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DOURADOS- 2021
ANA MARIA VALIAS ANDRADE SILVEIRA
DOURADOS - MS
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD.
Aprovada em:
BANCA EXAMINADORA:
Presidente e orientador:
(Linderval Augusto Monteiro) (Dr. UFGD) __________________________________
2º Examinador:
(Mario Teixeira Sá Junior) (Dr. UFGD) _____________________________________
3º Examinador:
(Adriana Aparecida Pinto) (Dra. UFGD) ____________________________________
4º Examinador:
(Eder da Silva Novak) (Dr. UFGD) ________________________________________
5º Examinador:
(André Luiz Faisting) (Dr. UFGD) _________________________________________
Dedico este trabalho a todos que
compartilham da experiência sob a imortalidade da
alma.
AGRADECIMENTOS
Compartilho um sentimento de gratidão aos incentivadores dos estudos que estão, a cada dia,
aproximando a ciência com a espiritualidade. Agradeço a convivência e o aprendizado com
todos os interlocutores que promoveram as provocações que puderam produzir o sentido das
discussões refletidas nesta pesquisa. Em especial a cooperação e generosidade de todos os
professores que abraçaram a idéia desta pesquisa desde a concepção até sua resultante.
“A vida Cuida.” (Luiz Antônio Gasparetto)
RESUMO
This paper is a sequence of a study conducted in 2013, revisiting some considerations that
could not be explored due to options deemed more relevant to the context approached at the
time.The narrative description of the experiences between two religious spaces, with the
contribution of trance mediumship experiences, in an attempt to understand the passage of
time and the dynamics that mobilize the construction of two religious institutions based on the
dialogue between two religions: Umbanda and Spiritism.The possibility of transposing new
meanings to previously collected narratives is not crystallized in a same perception, as these
narratives were produced with important foundations that generated nuances to be analyzed,
with trance mediumship as the focus that structures the reflections of this study.In the context
of religious experiences, two religions with diacritical approaches are expressed in the
ritualistic practices of the activities of these spaces, pointing out philosophical bases that
articulate reflections in the social group, being developed through the structure of the belief in
the existence of a capacity for spiritual communication, by interacting in the woven actions,
promoting changes in the religious and social contexts.Mediumship trance will be approached
in a case study, in two specific religious scenarios, in a context of proximities, namely
Umbanda and Spiritism.
AGRADECIMENTOS ..................................................................................................................................... 6
RESUMO............................................................................................................................................................. 8
ABSTRACT ........................................................................................................................................................ 9
SUMÁRIO......................................................................................................................................................... 11
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 13
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem por objetivo levantar a problemática do campo das religiões
mediúnicas, bem como sua representação prática, iniciando uma reflexão da função social no
campo da história a partir das experiências de transe mediúnico, enquanto objeto que vincula
movimentos de aproximação e trajetórias, que compõe a história da aproximação de duas
casas religiosas localizadas na cidade de Dourados-MS, cuja matriz, corresponde a Umbanda
e Espiritismo em diálogo. O fundamento basilar desta análise é demonstrar que a história da
consolidação das casas apresentadas, bem como da situação de aproximação entre elas, está
ligada a uma percepção (êmica) histórica que percorre alterações no passar do tempo.
A imersão no campo histórico, aliado as brechas que ficaram soltas na pesquisa
antropológica realizada entre 2013 a 2015, passa a impressão de que, a relação do grupo
social pertencente a estas casas, as mudanças na constituição simbólica que amplia, à medida
que aproxima sinais diacríticos até então mantidos em autocontenção, passam a se aproximar
e transformar religiões de matriz africana (Umbanda) e Espiritismo, num potencial dialógico
complementar.
Em meio às conclusões adquiridas na experiência da pesquisa realizada em 2013,
conclui-se que, o transe mediúnico, ou seja, o canal da comunicação espiritual é uma aliança
simbólica a qual não poderia ser desprezada, devido à valorização e o poder simbólico que
esta experiência exerce entre os indivíduos que partilham deste campo de realidade vinculado
a crença religiosa, sendo estes, os interlocutores das narrativas as quais serão expostas
subsequentemente. Assim, desprezar a crença na possibilidade de interação espiritual é
sabotar a base primordial do modo como estes atores sociais pensam as experiências que
compartilham coletivamente durante as atividades desenvolvidas nas casas.
O transe mediúnico é um instrumento regulador do contexto social e histórico de um
diálogo construído ao longo do tempo entre uma casa de modalidade espírita, e outra,
Umbandista. Durante a convivência e compilação dos dados coletados entre o ano de 2013 e
2015, foi perceptível nas falas e nas construções narrativas durante as entrevistas que, a
presença das informações a partir do contato espiritual é inevitável, de acordo com as falas. A
narrativa dos interlocutores reforça a participação espiritual expressa, por um lado, nas
trajetórias individuais, percorridas na descoberta da mediunidade marcada pelo início do
contato, os movimentos da trajetória das casas religiosas, até mesmo, a dinâmica que viabiliza
o fenômeno de aproximação, tanto no aspecto físico (frequentando os dois espaços religiosos
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O termo espiritualista é uma categoria utilizada pelo grupo social estudado para referir as
aproximações da Umbanda com o Espiritismo nas atividades que são desenvolvidas nas
respectivas casas religiosas.
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proposta uma pesquisa que buscasse compreender quais eram os elementos que estavam
fomentando e viabilizando um trânsito de pessoas de uma casa para outra, em dias alternados.
Além dos referenciais esboçados nos textos acadêmicos, observar os indivíduos foi
fundamental. Tendo como base o diálogo entre a Umbanda e o Espiritismo, foi construída
uma abordagem sincrônica, a fim de compreender, como as casas funcionavam em suas
atividades práticas. E a parte diacrônica contemplaria o processo marcado pela trajetória das
casas, desde a fundação, juntamente com a trajetória dos indivíduos que participaram dos
movimentos percorridos até o tempo presente.
Como conclusão desta primeira etapa no campo desta pesquisa, constatou-se que o
processo histórico permitia adentrar no universo simbólico pertencente às religiões, ao mesmo
tempo em que percebia laços de parentescos e vínculos que, construídos ao longo do tempo,
facilitavam a promoção dialógica. A justificativa do trânsito religioso apontava os laços de
parentesco firmados e fortalecidos pelas relações sociais que facilitavam experiências entre as
casas que representam campos religiosos específicos (SILVEIRA, 2015). Para além dos dados
que foram colhidos em campo, houve um amplo campo de informações que ofereciam novas
possibilidades de pesquisa, sendo o transe o elemento chave do desencadeamento de um
sentido para o percurso histórico construído.
Naquele período, a comunicação com os espíritos foi negligenciada, e pouco
aprofundada. Desse modo, esta pesquisa em formato de tese, tem como principal objetivo
tornar evidente a comunicação com espíritos através do fenômeno do transe mediúnico. Será
abordado como objeto o fenômeno do transe, dentro de um contexto mediúnico que envolve
duas correntes religiosas que dialogam entre si são elas: a Umbanda e o Espiritismo. Desta
forma, a Umbanda e o Espiritismo não serão abordados por esta pesquisa devido ao despêndio
desprendido para dar conta de explicitar a dinâmica que a realidade social pode oferecer ao
interagir com a experiência do transe mediunico. Logo, são duas casas religiosas: a casa
Movimento Espírita Francisco de Assis (MEFA), e Terreiro de Umbanda Reino de Ogum
Beira Mar, tendo como foco as relações interpostas entre humanos e não humanos (espíritos)
(LATOUR, 2012).
O fio condutor desta pesquisa parte da terceira geração dos Annales e a História
Cultural, considerando a expansão das possibilidades de diversos objetos comporem interesse
historiográfico, de modo específico, as práticas discursivas partilhadas por um determinado
grupo social (CHARTIER, 1990), devido a dois campos específicos. De início a escolha do
objeto em sua especificidade na pesquisa histórica dentro de um viés das experiências dos
indivíduos no contexto religioso, sendo o transe mediúnico um elemento da representação.
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do Espiritismo. Justamente, é nesta coluna pendular que estas dusas casas sobrevivem e se
mantém ao longo dods anos, desde a sua formação.
Dentre tantas possibilidades no trato com o transe, em outros campos do
conhecimento (LATOUR, 2012), restringe-se uma abordagem voltada a manifestaçõe
religiosa num quadro dialógico que aproxima religiões de matriz africana com a doutrina
espírita, inseridas num aspecto contínuo de um processo de africanização (CAPONE, 2008;
ORTIZ, 1991).
O objeto desta pesquisa se insere na terceira geração dos Annales à Nova História
Cultural, pela abordagem analítica que permite a inserção de novos objetos com potencial
para elucidações históricas, dentro de uma perspectiva interdisciplinar que terá no diálogo
com outros campos do conhecimento científico elementos complementares para uma análise
mais rica e complexa.
Estes campos do conhecimento são: a abordagem sincrônica sociológica em termos
mais abrangentes, devido a especificidade do objeto que inclui parte de aspectos religiosos
manifestos nas representações coletivas (BLOCH, 2001). E em diacronia a ideia de processo,
enfatizando mudanças e permanências, devido as mudanças que ocorrem no tempo num
processo contínuo que permitirá compreender a relação do transe mediúnico com a história,
detectando aquilo que se modifica e aquilo que permanece no tempo.
Considerando a abordagem diacrônica, a compreensão do processo histórico do
fenômeno mediúnico será analisada a partir da orientação teórica fornecida pela antropologia
histórica, seguido de embasamentos do conceito de historicidade do transe, buscando
apresentar as contribuições da perspectiva histórica refletindo na historicidade desta prática
social determinada pela experiência dos indivíduos. Tal perspectiva dá visibilidade aos
movimentos que este fenômeno apresesenta por meio dos indivíduos, captando assim, sua
percepção na comunicação com os espíritos.
Logo, o objeto não está voltado aos espíritos e sim a comunicação com estes do ponto
de vista de quem interage e automaticamente se expressa, por isso, a compreensão das
elaborações narrativas os agentes intitulados “médiuns” é importante. A escolha da
abordagem epistemológica sobre esta abordagem segue a linha diacrônica, a fim de perceber
como se movimenta no tempo o modo como os indivíduos elaboram sentidos e significados,
assim, o modo como veem a comunicação, sinaliza o modo como percebem a temporalidade
destes espíritos através do transe, levando a formação de um entendimento sobre a
importância de refletir sobre a história do tempo dos espíritos, considerados possivelmente
agentes do seu próprio tempo e consequentemente da sua própria história.
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Este capítulo tem o objetivo de demonstrar como está o andamento das práticas
mediúnicas nas casas religiosas que foram pesquisadas no ano de 2013. As atividades do
Terreiro Reino de Ogum Beira Mar foram interrompidas por uma série de imponderáveis que
marcaram um resfriamento nas atividades, impossibilitando um contato. No entanto, a casa
Movimento Espírita Francisco de Assis, permanecem ativos nas sessões semanais, sendo,
estes os produtores da narrativa apresentada neste capítulo.
Serão apresentadas considerações através da entrevistas cedidas, cujo objetivo é
demonstrar a concepção de transe mediúnico, no contexto das relações que os indivíduos
estabelecem ao se colocarem receptivos a comunicação de interação espiritual, formando uma
aliança que produz efeitos no sistema das organizações rituais das atividades da casa MEFA,
que permanece a partir do dialogo com elementos diacríticos da religião Umbandista. Ainda
que, dentro do modelo contínuo que aproxima e afasta, tendo em vista, o senso coletivo e a
presença de preceitos espíritas que opera uma retenção, há concessões, que produz um campo
coeso de unidade representativa de práticas, aliadas as operações no imaginário, identificados
através das fontes narrativas.
As casas religiosas que estudadas no ano de 2013, promoveram um campo da
observação dialógica entre a Umbanda e o Espiritismo, ao estabelecer o transe em bases
fundamentadas no percurso pragmático complementar, entre práticas da Umbanda, e as bases
características da doutrina Espírita.
No decorrer do trabalho de campo, a mediunidade e a relação do indivíduo com o
produto espiritual, marcou páginas que fornecem subsídios para a concretização hipotética
desta pesquisa, cujo foco é o transe e suas narrativas, para sistematização do modelo da
construção da representação articulada pelo tempo histórico. Esta dinâmica expressa como
este fenômeno é percebido nas casas observadas no ano de 2013, com o intuito de apresentar e
compreender dinamismos e permanências como fatores históricos, através da reprodução da
memória que caminha do individual para o coletivo, a partir das novas atividades que surgem
neste cenário.
As práticas mediúnicas devem ser descritas como fatores principais, pois, somente
através destas práticas é possível identificar o transe. Suas narrativas expressam sua função. O
presente é um elemento de recuo ao passado, em que, através das trajetórias de vida
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mediúnica, e das casas que foram analisadas em 2013, será providenciado um campo
potencial para expressar o caráter histórico e coletivo do transe mediúnico.
convívio do indivíduo), bem como orientações que prometem resoluções difíceis da vida
cotidiana, seja a nível financeiro, amoroso, ou até mesmo, social.
O fenômeno do transe mediúnico possui duas etapas fundamentais: a primeira delas é
a conscientização das operações do mundo espiritual, e de como a crença na comunicação
com os espíritos é validada e sustentada em alicerces dogmáticos, fornecidos pela doutrina
espírita, e a segunda é a prática da interação através do fenômeno da mediunidade, que ocorre
nas atividades oferecidas pelas casas, com o intuito de promover interação entre o indivíduo e
os espíritos. A descrição do funcionamento destas atividades é importante para compreender o
transe de modo amplo e pragmático no sentido de sustentar, através de sinais diacríticos, a sua
presença:
viabiliza uma domesticação para que o médium possa conviver dentro de um ambiente
coletivo, e assim, neste processo de adaptação passa a contribuir com a adaptação de outras
pessoas que vivenciam um grau de desajuste. A outra história do transe caminha do individual
para o coletivo:
que afeta um dinamismo social, que se refaz constantemente para que se possa manter a
funcionalidade deste bem simbólico que o transe representa.
A inclusão desta atividade, reforça dois pontos importantes, inicialmente, pelo caráter
dinâmico do modo como as pessoas concebem a representação do transe mediúnico, não
somente como a restrita comunicabilidade com os espíritos de modo direto, mas, elementos
espirituais também são inseridos como parte de um processo mantido como fundamento para
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a existência da crença religiosa. A partir da fala seguinte, o fato histórico do transe mediúnico
está vinculado ao canal de recepção, num processo contínuo de aprimorar campos que
possibilitam um compartilhamento coletivo, em atividades desta natureza. Logo, a amplitude
da visão do que significa o transe mediúnico transcende a visão da incorporação, termo este,
bastante utilizado para categorizar as práticas efetivas de conversação com os espíritos:
Para além das práticas inseridas recentemente na casa Movimento Espírita Francisco
de Assis, há uma prioridade em manter os elementos da Umbanda ativos nas atividades da
casa. A prática da incorporação como uma vertente fundamental do transe mediúnico através
da possibilidade de conversar e estabelecer um diálogo direto com os espíritos, é um fator
valorizado pelos médiuns e até mesmo frequentadores da casa.
No entanto, recentemente houve o surgimento de uma nova atividade da casa, voltada
exclusivamente para os médiuns, “o trabalho de limpeza para os médiuns”, é uma atividade
voltada aos médiuns da casa, em que se explora elementos rituais da Umbanda e vários sinais
diacríticos característicos, como: ponto riscado, ponto cantado, velas, defumação para iniciar
a sessão, e pelo que pode ser percebido, é um dia em que se movimenta um grande número de
pessoas. Assim, foi constatada presença de grande número de pessoas, que em dias comuns de
atividades frequentes na casa, o número é bem reduzido. Isso reforça a importância que a
presença destes espíritos exerce nestas atividades de modo específico.
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Outra atividade inserida nas práticas rituais da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis foi o trabalho trimestral de limpeza dos médiuns. É uma atividade desenvolvida pelos
médiuns da casa que tem finalidade e exercem práticas de incorporação por entidades
características da religião Umbandista: Caboclos, Pretos Velhos e Exus. O termo incorporação
é uma subcategoria êmica utilizada para classificar o fenômeno do transe mediúnico, em se
tratando de um veículo de comunicação mais eficaz por envolver comunicação através da
fala, e a certeza de que, naquele momento os fiéis estão interagindo de modo integral em que
conversam com as entidades ao mesmo tempo em que recebem a cura. Sem nenhuma
distinção, o número de pessoas que estão frequentando estes tipos de trabalho é um
sinalizador da potência simbólica que este fenômeno exerce, como manutenção e
sobrevivência da crença na comunicabilidade com os espíritos e no reforço da imortalidade da
alma.
A análise desta atividade organizada pela casa merece algumas observações dias antes
de se concretizar de fato. A divulgação do “trabalho trimestral” foi observada no mês de
fevereiro de 2020, com a orientação do Dirigente Espiritual da Casa Paulo. Em sua fala ouvi
bastante o pronunciamento da frase “nossos irmãos umbandistas”, sempre se referindo com
bastante cautela e cuidado, tentando deixar em evidência as diferenciações existentes entre
Umbanda e Espiritismo, esclarecendo também que o único objetivo da atividade é “purificar”
ou “limpar” os médiuns.
Durante um encontro do estudo sistematizado no MEFA, pude captar algumas frases
marcantes do Dirigente espiritual: nesta próxima quarta-feira nós vamos fazer um trabalho
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para a limpeza dos médiuns. E continuou dizendo: Nossa casa é “Kardimbanda”, mistura de
Kardec com Umbanda. Mas não é esta Umbanda que a gente vê por aí não. Com isso, o
papel destas entidades da linha de Umbanda é limpar e possibilitar um “refazer-se” para
garantir a continuação das atividades que a casa realiza durante as semanas. E assim termina
dizendo que: os espíritos da Umbanda são sempre bem-vindos a esta casa.
Cabe considerar também que os convidados a estarem presentes neste dia pouco
comum são bastante limitados, e abrange apenas os médiuns que trabalham na casa e aqueles
que estudam, nas quartas-feiras ou nos sábados na parte da tarde. Logo, durante o aviso os
dirigentes aconselham as pessoas a não levarem desconhecido tão pouco pessoas próximas. O
fato deste trabalho não ser aberto ao público, não extingue a possibilidade de pessoas
desconhecidas aparecerem neste dia. É o que normalmente ocorre de acordo com minhas
impressões nestes dias pré-determinados.
De acordo com esta declaração do dirigente é explicito nas observações colhidas, a
presença que um número considerável de pessoas. Outra característica importante sobre a
atratividade da possibilidade de interagir com os espíritos através do transe mediúnico é o
discurso limitante e domesticável quanto a prática da manifestação dos espíritos. Há uma
crença subentendida de manter o controle e o domínio diante das manifestações e até mesmo
do modo como as pessoas lidam com as circunstâncias deste momento que ressoa como um
privilégio.
Isto não somente exemplifica a importância do fenômeno quanto a necessidade de
promover um estabelecimento sútil e ordenador, o que retira o caráter desta comunicação
enquanto um fenômeno hostil de um processo de estigma social na história do cenário
religioso mediúnico, por vincular duas matrizes religiosas consideradas “inferiores”, pela
presença de artifícios materiais, o que por muito tempo foi um dos conflitos entre as religiões
de baixo espiritismo e o espiritismo no Brasil.
De acordo com a fala da dirigente Espiritual, com relação a está prática ritual:
Quando presenciei esta atividade como historiadora, pude perceber que houve uma
preocupação extrema em esclarecer, que os espíritos que ali se farão presentes não tinham
como objetivo a solução de problemas da vida, como amor, dinheiro, casa, família, pois existe
um entendimento de que tais personagens estavam programados para fazer um trabalho de
limpeza, e não de questões da vida pragmática.
Após esta nota de esclarecimento do dirigente antes de começar as atividades, pude
perceber que havia uma necessidade de controlar as práticas e as pessoas, impondo regras e
normatizações para garantir um controle sobre o que estava acontecendo naquele momento. A
Sra. Rosa continuou sua fala explicando algo significativo: “este dia é dia de limpar os
médiuns não é dia para conversar ou pedir solução para os problemas, o objetivo não é esse,
não há necessidade de contato entre espírito e pessoa, eles vão, fazem o que tem que fazer e
ponto”. Isto afirma a sobrecarga de um princípio ordenador em busca da purificação do
transe.
Comparando as observações colhidas em 2013, para os dias de hoje, há que se
enfatizarem algumas diferenças e mudanças que foram acontecendo durante este período.
Quando estas reuniões começavam a acontecer elas ocorriam basicamente da seguinte forma:
Esta atividade já havia sido realizada anteriormente com artifícios mais complexos,
tanto do ponto de visto ritual como na manifestação dos espíritos. O retorno a estas atividades
reforça não somente as aproximações e afastamentos existentes entre uma doutrina
espiritualista com os rituais da Umbanda, mas, sobretudo, enfatiza a importância que o transe
mediúnico apresenta enquanto um produto eficaz e funcional, quando se trata do
reconhecimento e da resolução de questões complexas que se apresentam através dos
frequentadores da casa. O transe é um elemento fundamental, ainda que percorra por um
processo histórico que acompanha não somente a trajetória da casa, tão pouco a trajetória dos
médiuns, mas, destaca ausências presentes contidas nos discursos em que o que se diz,
normalmente não está para o que se faz e até mesmo para o que se prática.
A reunião estava marcada para iniciar às 19:30. Fui de pronto impossibilitada de
estacionar o carro no estacionamento da Casa, por que há quase uma hora antes de iniciar, o
arredor do MEFA já estava lotado de pessoas que aguardavam pelo início das atividades. O
número de pessoas presentes, expressa a grandiosidade simbólica que esta atividade exerce na
vida destas pessoas. Fui induzida a pensar que a quantidade de gente seria por conta da
proliferação da notícia de que a casa estaria, neste dia, desenvolvendo tais práticas. Mas para
a minha surpresa ao adentrar no salão central e observar a reação das pessoas percebi que,
grande maioria eram frequentadores da casa Francisco de Assis, mas que há muito tempo não
aparecia, e percebi também que outra grande maioria eram aqueles que não participavam mais
das atividades da casa, mas que neste dia se faz presente. Sendo eles, em grande parte,
médiuns.
Já visto em outro momento, o salão central do MEFA possui duas partes, a parte de
cima, destinada aos palestrantes e médiuns da casa. Sendo este espaço reservados aos
explanadores do Evangelho, ele ocupa uma posição de destaque, tendo dois degraus que
delimita o “palco”, dos lugares a baixo onde estão localizadas cadeiras de plástico para a
assistência se acomodar. Quando adentrei ao salão percebi que esta parte superior (palco)
estava preenchida por cadeiras, e na parte inferior do salão (assistência) estavam postas quatro
fileiras de cadeiras, sendo cada uma delas correspondente a duas fileiras com cadeiras
alinhadas uma de frente para a outra, para facilitar a passagem dos médiuns incorporados.
Esta mudança que ocorreu foi interpretada por alguns autores como uma contenção
para que as pessoas não passem por todos os médiuns para ouvir a opinião de cada um, mas
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percebo também que antigamente quando o salão estava aberto e os médiuns estavam ao
centro, era bastante semelhante ao que se vê em um terreiro de Umbanda com fixidez
ritualística. Com isso, as pessoas tinham mais liberdade para conversar com os personagens,
mas neste último trabalho que assisti me saltou os olhos algumas ocorrências que tornam
maleável esta afirmação. Pois acabei presenciando uma situação de contraste.
Antes de começar o trabalho me dirigi até a cozinha onde se encontrava Reginaldo
preparando a brasa da defumação, em todas as vezes que participei desta reunião este
personagem sempre fica responsável em preparar a brasa e em seguida defumar as pessoas
que se encontravam no salão para participar seja na assistência ou na atividade mediúnica da
noite. Cabe aqui considerar que a defumação é uma pratica ritualística característica da
Umbanda, indo além, é um dos processos que marcam a fixidez diacrítica da Umbanda.
Desta forma um dos sinais que permite reconhecer um espaço religioso de culto afro
brasileiro é a presença da defumação. Indo ao encontro desta afirmativa, é cabível considerar
que no Terreiro Ogum Beira Mar, a defumação também se faz presente em um mesmo grau
pragmático que é realizado nestes trabalhos trimestrais na casa espírita Francisco de Assis.
Trazendo a fala dos dirigentes do Terreiro, Sr. Aretino e Sra. Terezinha: “não é possível
iniciar os trabalhos de umbanda sem a defumação, e sua função é purificar e limpar o
ambiente, retirando toda sujeira astral para que os espíritos de luz tiverem condições de
chegar ao terreiro” (ROSA, 07/2020).
Isso confere com a fala de Reginaldo quando afirma que: “a defumação garante a
retirada das más influencias para a chegada das boas energias, por isso todos têm que
defumar”. (REGINALDO, 07/2020)
No instante em que Reginaldo preparava o defumador para o ritual, dentro do salão as
pessoas estavam se acomodando nas cadeiras posicionadas em fileiras um de costas para o
outro, formando quatro valas. Pude constatar certa euforia por parte das pessoas que estavam
presentes para assistir a reunião, com olhares esperançosos, dando a impressão de que estava
depositando muita fé e confiança no que iria desenrolar a partir daquele instante. Foi neste
momento que detive minha total atenção para a parte superior (palco) do salão central e vi a
Dona Rosa (dirigente espiritual) agachada no chão com uma série de plantas e folhas dentre
elas havia; rosa branca, rosa vermelhar, flores rosa, espada de são Jorge, samambaia.
As ervas é um dos sinais diacríticos característicos dos rituais da Umbanda. O
manuseio destes elementos no início das atividades expressa a presença da espiritualidade.
Sendo assim, o fenômeno do transe, muito além de fornecer um canal de comunicação com os
espíritos, possibilita que estes atores espirituais exerçam atividades na matéria através de seus
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mas sua presença não foi pronunciada de modo público a olhos vistos por todos os presentes.
Por que quando as pessoas chegaram ali o ponto já estava posicionado.
Contrastando com este acontecimento, minutos antes de começar as atividades, a dona
rosa organizou aquelas ervas já expostas a cima, dividindo-as de um lado e outro e ao meio,
ela estava riscando um ponto de “erê”, colocando sobre o chão, em cima do ponto riscado,
uma vela branca e um copo com água diluído em sal grosso. Em cima da mesa havia algumas
garrafas com água, perguntei a uma das participantes da utilidade da água e ela me respondeu
prontamente que “é para as entidades fluidificar para que as pessoas levem para suas casas
com a finalidade de um tratamento espiritual”. Já devo ter dito que a água fluidificada é um
sinal pertencente à cultura Espírita. A finalidade desta descrição é tentar esclarecer que a
situação e circunstâncias as quais foram riscados o “ponto”, foram minutos antes da iniciação
da atividade, onde todas as pessoas já haviam chegado e já estava se posicionando para o
processo ritual (TURNER, 1974).
Esta prática característica da Umbanda, foi feita publicamente no momento em que
todos já estavam ali. Já o “ponto de exu” foi riscado em algum momento que é de difícil
apreensão, pois quando cheguei e outros quando chegaram parecia que o ponto foi riscado já a
algum tempo. O local onde este ponto foi riscado estava situado em uma parte periférica do
salão, em uma parte onde não havia cadeiras para que as pessoas se acomodassem, logo, este
ponto de exu foi riscado em uma área isolada do salão. No momento em que a Sra. Rosa risca
seu “ponto”, logo ao lado Reginaldo risca seu ponto de Preto velho acompanhado de velas
azul claro, amarela, branca e verde, seguido de quatro espadas de São Jorge em volta do
ponto. Penso que as espadas simbolizavam a segurança e a guarda do ponto riscado.
Segundos antes de iniciar os trabalhos pude perceber que a noção de hierarquia se
fazia presente de modo bastante peculiar. Em um momento de observação pude constatar
nitidamente quem estava posicionado na parte superior do salão central e quem estava
posicionado na parte inferior. Foi possível definir o lugar que cada um ocupa na organização
social da Casa Espírita Francisco de Assis.
Na parte superior estavam a Ex-presidente da casa, a atual presidente, os médiuns
dirigentes, a filha da dirigente espiritual (rosa), alguns membros da diretoria administrativa da
casa, e os médiuns trabalhadores, que não “incorporavam as entidades da Umbanda”. Na parte
inferior estavam os frequentadores assíduos da casa, alguns médiuns iniciantes e em
desenvolvimento, pessoas que participam dos estudos, aqueles que já frequentava, mas
deixaram de comparecer com frequência, os que já tinha deixado a casa e alguns convidados e
desconhecidos.
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Todos os pontos cantados eram característicos da Umbanda, sendo até alguns deles
próprios dos cânticos que também são entoados na casa Reino de Ogum Beira Mar. De
repente a porta se abriu e pude ver nove médiuns no total incorporados e dando vida a
personagens infantis com seus arquétipos característicos e reconhecidos como pertencentes a
linha da Umbanda. Não consegui deixar de comparar e lembrar dos erês (espírito de criança)
que baixam em terreiros no dia se São Cosme e Damião, para mim não houve nenhuma
diferenciação.
Todos os médiuns estavam tomados pelos personagens até mesmo a Sra. Rosa
(dirigente espiritual), exceto o dirigente Paulo que estava dando vida ao personagem Preto
Velho. Acho que agora ficam em evidencia as indagações expostas a cima quanto ao papel e
ao vinculo particular entre criança e preto velho, considerando que preto velho é autoridade e
está incumbido de cuidar das crianças, as quais estão sob sua responsabilidade. Não por acaso
ele recebe Preto Velho, pois na casa espírita Francisco de Assis Paulo é o dirigente espiritual
da casa, ou seja, é a liderança máxima, pois é ele quem decide e determina os rumos que a
casa irá tomar, na área mais importante e fundamental de qualquer casa espírita, a área da
espiritualidade.
O dirigente era o único que estava incorporado em um preto velho, o personagem se
acomodou em uma mureta localizada no canto intermediário da parte superior e inferior do
salão central. Neste instante me vi coberta de pessoas que andavam de lá para cá atrás das
crianças para se consultar e conversar. Alguns trabalhadores da casa, que não estavam no
papel de médium distribuíam guloseimas para as pessoas, que se concentravam na mesa
branca da parte superior do salão para amontoar doces para levar para casa, ou comer ali
mesmo. As festas de Cosme e Damião é bastante interessante, pois mais do que se consultar e
conversar com os eres (espírito de criança) as pessoas vão para comer e desfrutar de um
espaço público, com doces e comidas à vontade.
Enquanto as crianças passavam nas fileiras para dar “passe” nos presentes, comecei a
observar mais detidamente o personagem preto velho incorporado no dirigente. No primeiro
momento pude perceber que ele estava sozinho no canto do salão aparentemente sem ser visto
pelas pessoas. Passado algum tempo ouço uma voz altiva dizendo Gente o preto velho vai dar
consulta aqui, quem quiser conversar com ele pode vir aqui que ele vai atender. Após o
pronunciamento de Reginaldo, que não trabalhou, pois estava mal do corpo e por isso não
estava receptivo para dar vida a seu preto velho, as pessoas entenderam o que o preto velho
estava fazendo ali. Passado algum tempo percebi a formação de uma fila com mais ou menos
umas 25 pessoas enfileiradas esperando para se consultar com o Preto Velho.
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Mas, pensando que a fila não iria passar de 25 pessoas, ela permaneceu do mesmo
tamanho por um bom tempo, isso significa que as pessoas permaneceram entrando na fila para
se consultar com o preto velho. Quando eu entendi a situação diante dos meus olhos, resolvi
sentar do lado do preto velho e pude perceber algumas questões bastante importantes. A
primeira foi a constatação da presença da Dona Benita, ela é uma das personagens que entram
na parte da fundação do MEFA, ocorre que, nos últimos dias e anos até, a Sra. Benita não
frequenta mais o MEFA como fazia ano passado e nos outros anos, isso significa que ela se
afastou. Mas no dia da limpeza dos médiuns ela está sempre muito presente. Foi ela a segunda
pessoa a ser atendida pelo Preto Velho.
Enquanto estava sentada ao lado do Preto Velho, percebi nos olhos, na face e nos
gestos das pessoas que estavam na fila algo bastante relevante. A posição do Preto Velho
exigia que as pessoas se ajoelhassem no chão para conversar melhor com ele. E quando as
pessoas se ajoelhavam tinha a sensação de que aquele momento de se curvar a ele era um
momento de alívio, esperança, dando a impressão que elas estavam se sentindo protegidas por
aquele momento, pude até sentir um sentimento de devoção por parte das pessoas, como se
aquele momento fosse bastante importante para elas.
Aquele momento único e altamente significativo era bastante valorizado por elas.
Parecia que estavam esperando a anos por aquele momento. O preto velho era naquele
momento o destino daquelas pessoas, como se ele representasse um rito de passagem, pois
naquele instante em diante tudo seria diferente. As pessoas estavam tomadas por uma
expectativa muito grande, pois tinham a esperança de que conversar e consultar com uma
entidade espiritual era um modo de receber informações que até então parecia impossível de
ser recebidas.
O preto velho parecia bastante preocupado com a hora, as atividades deveriam ser
encerradas pontualmente às 21:00, ainda sim a fila não diminuía. Ainda sentada ao lado do
preto velho chegou à vez de uma senhora com aparência de uns 50 anos, quando ela se
ajoelhou nos pés do preto velho ela disse: Ainda bem que eu consegui falar com o Sr., o preto
velho indagou dizendo o que está acontecendo minha filha, indubitavelmente veio a resposta
“eu vim para cá com muitas dúvidas e estou atrás de respostas” (Caderno de Campo)
Esta senhora me parecia estar depositando bastante confiança naquele momento que
penso ser raro para aquelas pessoas. Faltando vinte minutos para o encerramento, Reginaldo
começou a ficar bastante preocupado, pois segundo ele o preto velho não daria conta de
atender toda a gente que ainda faltava ser atendida. Sendo assim, chamou outra médium para
receber outro Preto Velho, para dividir as pessoas entre os dois personagens presentes. A
42
solução foi cabível até certo tempo, após cinco minutos, Reginaldo chama outro médium para
receber um terceiro Preto velho para facilitar o atendimento, fazendo com que todos fossem
atendidos.
Comecei a prestar mais atenção no que estava acontecendo, que afila não diminuía
tendo em vista que não eram tantas pessoas assim. Quando de repente olho para o segundo
preto velho que se fez presente e percebo que a Sra. Benita novamente está se consultando
com o outro Preto Velho. Após a saída da Sra. Benita do segundo preto velho vi, que uma
consulente que havia acabado de deixar a ala do preto velho do Paulo, imediatamente foi para
o segundo preto velho para se consultar novamente.
Quando perguntei a uma frequentadora da casa sobre a “tal” mulher, me veio a
resposta pois é ele fica repetindo e se consultando com todos os guias, isto por que é médium
da casa. Isto é importante, pois as únicas que estavam se consultando com todos os pretos
velhos eram trabalhadores da Casa Espírita Francisco de Assis, pois não consegui visualizar a
mesma atitude das outras pessoas, esta transição de médiuns ocorreu somente entre as
integrantes da casa.
De acordo com o discurso proferido pelo personagem Vicente, o posicionamento da
cadeira em fileiras tinha como principal objetivo fazer com que as entidades fossem até a
assistência e não o contrário. Ocorre é que me parece que na prática esta estratégia para evitar
que as pessoas se consultem em todas as entidades presentes não funciona de modo tão eficaz
no campo pragmático e pratico do dinamismo das atividades. Enquanto estava somente o
Preto Velho do Paulo, não havia motivo para que as pessoas se dirigissem a outros pretos
velhos presentes.
No momento que outros pretos velhos aparecem, às pessoas que se consultaram com o
preto velho do Paulo, passaram a se consultar também com os outros dois que chegaram a
seguir. O momento da consulta ás entidades é raro e estrategicamente dominado, controlado e
domesticado pelos dirigentes da casa, que não permitem que as pessoas se consultem com as
entidades de qualquer forma. Dentro desta perspectiva a consulta é controlada, e ela não se
manifesta de qualquer forma. A finalidade da consulta nos terreiros de Umbanda não se
configura no objetivo da consulta estabelecida pela liderança do MEFA através da imposição
de limites.
Durante todo o momento desta análise será desprendido um esforço considerável para
localizar o posicionamento ideológico do discurso e o posicionamento pragmático da pratica.
Pois existe uma baixa frequência de coesão entre estes dois campos da abordagem empírica.
43
Ao final o dirigente agradeceu a presença dos irmãos da Umbanda e a atividade foi encerrada
com a prece “pai nosso”.
existência e o diálogo com os espíritos, você já não faz parte de um lugar comum. Atravessar
os mundos já te coloca em outro estado de percepção” (LEAL, 2020).
O discurso dos médiuns estabelece um campo para uma outra história, composta por
arsenais de uma cultura de crenças em oposição a uma ciência oficial normativa, por isso,
compõe o campo religioso: “...certamente, nós seres humanos possuímos cinco sentidos, mas
há existência de um sexto sentido, que até poderia ser considera pela ciência, mas, isso ficou à
mercê da religião que transforma a sensibilidade mediúnica em crendices religiosas” (LEAL,
2020).
Um intermediário de dois mundos possui um processo de ajuste, de manifestações
mais concretas e performáticas a um constante refinamento. Esse processo vai de um continuo
performático a uma domesticação corporal promovendo um proforma como um mecanismo
de inserção do médium nas práticas mediúnicas para garantir uma coesão social do grupo.
Ainda que seja uma experiência individual, sua memória é compartilhada e promovida a uma
ordem pré-estabelecida, nas diretrizes orientadas. Este é um dos pilares fundamentais da
interação dialógica entre a Umbanda e o Espiritismo, o que justifica o retorno das atividades
de limpeza dos médiuns no tempo presente.
45
ali em busca de uma casa religiosa de culto Umbandista, não consegue, a princípio, identificá-
la, pois não possui nenhum identificador aparente.
No entanto, aqueles que frequentam e participam ativamente das atividades da casa
conseguem identificar e determinar a presença de um terreiro de Umbanda por outro conjunto
de códigos simbólicos que sinalizam o terreiro. Portanto, quando um terreiro não possui
identificação ao público significa que se trata de um local privado, conforme o desejo de seus
líderes, que preferem manter a discrição, já que se trata de espaços que sofrem estigmas
sociais, mesmo considerando a frequência de pessoas de várias classes sociais.
Isso corrobora com os escritos de Ivonne Maggie (VELHO, 1980) em um trabalho
com o título “Gueto Cultural ou a Umbanda como modo de vida: Notas sobre uma
experiência de campo na Baixada Fluminense”. Ao tecer uma descrição sobre o terreiro, sua
organização social e localização, a autora vai considerar também que, no decorrer da
pesquisa, ela identificou um grande número de Igrejas Católicas, explicitadas publicamente, e
as mesmas eram muito fáceis de serem encontradas e identificadas por qualquer um, no
entanto, os terreiros eram mais difíceis de serem encontrados, por isso, não identificados.
Na medida em que começou a identificar os sinais e os códigos catalogados pelo
próprio grupo, começou a encontrar estes espaços, e conforme foi dominando e se apoderando
destes sinalizadores percebeu que havia muito mais terreiros do que podia imaginar: “sempre
que há uma bandeira em cima de uma casa, em um mastro, ou bandeirolas de papel no
quintal, ou um muro alvo com tigelas em cima, pode estar certo de que ali há um “barracão”
(VELHO, 1980, p.79).
no entanto com algumas casas de madeira, outras de alvenaria. A Casa Movimento Espírita
Francisco de Assis é um local bastante frequentado e um ótimo indicador disto é a rua que dá
acesso a esta casa espiritualista, especialmente às segundas-feiras e sextas-feiras, dias em que
acontecem as atividades e que mais se apresenta um fluxo significativo de demanda, pois fica
totalmente congestionada nos dois sentidos das vias, apesar do amplo estacionamento do
local. Lá, os frequentadores buscam um diagnóstico, ou estão em processo de tratamento
espiritual.
A Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, espaço religioso característico de um
Centro Espírita de fato, visto que, é um espaço simples com ausências de artefatos
ritualísticos, demonstrando assim um anti ritualismo muito característico da prática Espírita,
que se coloca do lado oposto das necessidades materiais expressas pela Umbanda (LEWGOY,
2000).
A apresentação física da casa representa um arquétipo remetendo a um hospital, até
mesmo um templo, em que as pessoas vão em busca de respostas sendo estas oferecidas à luz
da doutrina Espírita. Para quem vem de fora sem conhecer a funcionalidade das atividades
desempenhadas ali, acreditam ser um “Centro Espírita”. Não somente o espaço em si
contribui a esta identificação, mas também alguns elementos que só são possíveis de serem
encontrados em espaços onde se pratica o Espiritismo de Kardec.
Na parte inferior do salão principal, no canto esquerdo, aos fundos, ao lado da porta de
entrada, existe um espaço destinado às garrafas de água, que os clientes 2 da casa levam para
serem fluidificadas3.É comum os centros espíritas possuírem um compartimento específico
para a fluidificação da água pela espiritualidade superior que naquele momento se faz
presente e que, de acordo com a crença, é a responsável em dispensar nesta água “fluidos
2
A classificação “cliente” será aqui utilizada para designar aqueles que buscam a casa no
sentido de usufruir os produtos que são oferecidos. Há aqueles que procuram a casa com o
objetivo de solucionar questões da vida, em busca de respostas, há os médiuns/adeptos, que
são os trabalhadores da casa, aqueles que auxiliam no decorrer das atividades na semana, bem
como, aqueles que recebem espíritos, e auxiliam nas reuniões mediúnicas da Casa. Os
médiuns antigos exercem a mesma função, no entanto possuem maior bagagem por
vivenciarem a casa ao longo dos anos.
3
Em geral, são os Espíritos desencarnados que, durante as sessões de fluidoterapia, fluidificam
a água, mas a água pode ser magnetizada tanto pelos fluidos espirituais quanto pelos fluidos
dos homens encarnados, assim como ocorre com os passes, sendo necessário, para isso, da
parte do indivíduo que irá realizar a fluidificação, a realização de preces e a imposição das
mãos, a fim de direcionar os fluidos para o recipiente em que se encontrar a água.
50
benéficos”, que vão contribuir com o melhoramento e cura espiritual através da água de
dentro das garrafas (DUMMOND, 1993).
4
Maria Evangelista, filha da falecida Dona Mineira. É professora do município de Dourados
– MS. Foi presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis por 15 anos, e hoje está
no corpo administrativo da casa. Esta personagem não atua como médium, porém também se
identifica com a Doutrina Espírita, tendo muito pouco conhecimento da religião Umbandista.
Apesar da Umbanda estar presente nas atividades do MEFA, sua presença não é tão
intensamente identificada por ela, como ocorre com aqueles que reconhecem e aceitam o
código Umbandista, bem como suas práticas ritualísticas.
52
MEFA com a FEB. Maria, se referindo a este grupo com uma proposta distinta ao que estava
sendo construído nas práticas da casa, disse:
5
Sonia é filha da falecida Dona Nêga. Frequentou a Casa Ismael, parte da primeira fundação,
depois acompanhou Luiz Leal na formação da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis
onde participou das atividades por muitos anos.
53
legitimar e se situar no mundo social. Quando este lugar é ocupado, retira-se qualquer
possibilidade de fidelização e credenciamento a um único pólo religioso. Isto favorece o
trânsito, o diálogo, a mobilidade, o fluxo e a formação de redes que se dão a partir de uma
condição proposta nas construções de relações interpessoais.
Esta é uma tentativa de enquadramento, em se tratando de uma situação dialógica. Por
diversas vezes, deparamos com algumas considerações importantes sobre esta identificação,
lembrando que é uma identificação da casa, ou seja, algo que é externo aos membros do
grupo. Assim, “o MEFA é uma casa Espiritualista, mas eu sou Espírita (grifos da autora)”.
O MEFA configura-se num enquadramento irrestrito. Permitindo assim, a entrada de
algumas particularidades incorporadas em meio às práticas exercidas. A casa se autodenomina
como espaço irrestrito por seu caráter prático. Todas as atividades desenvolvidas marcam
pontos divergentes com relação ao que se espera de um espaço religioso que carrega ao centro
o Espiritismo. O MEFA é uma casa de Espíritos, portanto não somente as pessoas são plurais,
mas os ditos Espíritos também o são.
A fala do dirigente reforça esta assertiva: “O MEFA não tem comando, aqui vem todo
tipo de espírito, superior, inferior, sem distinção” (DIRIGENTE, 04/2013, DOURADOS -
MS). Os espíritos inferiores são manifestações que ganham vida nos médiuns da casa com um
posicionamento arredio, grosseiro, malvado, entoando gargalhadas maliciosas e cheias de
intenções negativas. Também se apresentam nesta casa Espíritos doentes, apresentando
feições de dores.
Alguns se manifestam nos médiuns tossindo muito, outros chorando de tristeza,
mágoa e ressentimentos. Estas presenças emocionais e psicológicas se vestem na concepção
dos atores êmicos em um acoplamento de corpos mediados por dois planos reconhecidos
como espiritual e material, na medida em que se aproximam. Só é possível conceber estes
fenômenos por meio desta intermediação.
A casa oferece algumas atividades não aconselhadas pela FEB, uma delas é a presença
dos espíritos, através da comunicação mediúnica. Este fenômeno está presente nas atividades
das segundas e quintas-feiras, mas também às sextas-feiras, ainda que de modo bastante
sutilizado e às segundas-feiras na sala de cura, cuja também não é aceita pela Federação
Espírita Brasileira, outro entrave para qualquer possibilidade de relação. A presença da
incorporação nas casas Espíritas ocorre, no entanto, a presença deste fenômeno é restrito
apenas aos trabalhadores das Casas, as sessões onde há manifestação dos Espíritos não é
pública e acessível aos clientes frequentadores. Esta é uma normatização FEB que aos poucos
vêm apagando estas práticas nas Casas Espíritas através de orientações.
54
O fato comunicação com os mortos é o eixo central para compreender o MEFA em si,
bem como sua possibilidade de assistir práticas Umbandistas. A incorporação é uma categoria
êmica, que chamaremos aqui de possessão. De acordo com algumas falas informais de
trabalhadores da casa, percebi que a possessão é um eixo que determina o fomento ao diálogo
com práticas Umbandistas. Assim sendo, a possessão é o elemento-chave do pêndulo
existente entre a Umbanda e o Espiritismo.
A produção simbólica do grupo tanto na negação de um modelo espírita institucional,
quanto na afirmação e legitimação de uma identidade espiritualista (STOLL, 2009), reforça as
discussões evidenciadas no capítulo anterior. O fato da casa não oferecer nenhum tipo de
interesse em se filiar a Federação Espírita Brasileira – FEB, e se concretizar enquanto grupo
dentro de uma configuração que caminha em um circuito aberto, através da categoria
Espiritualista, é elemento importante para conhecer quais foram os mecanismos os quais
facilitaram a entrada do universo Umbandista no quadro ritualístico da casa.
Figura 2- Salão Central MEFA. Nas portas à esquerda ocorrem às atividades mediúnicas. Fonte:
Autora (2014).
Umbanda em uma casa cujos adeptos atribuem grande influência do Pentateuco Kardecista,
pautando e justificando suas ações. Pretende-se apresentar os pontos que são cantados se os
momentos em que são evocados durante os rituais, especificamente nos dias de Segunda-
Feira. Posteriormente, serão apresentados outros pontos que são cantados nas reuniões das
primeiras Quintas-Feiras do mês. As atividades praticadas nestes dias possuem muitos pontos
semelhantes no que se refere ao funcionamento e lógica ritualística com a Umbanda, o que faz
com que os objetivos e pensamentos significados destes dias caminhem rumo a vertentes
completamente diferentes do Espiritismo kardecista.
Foi percebido no processo de formação da pesquisa em frequência nesta casa espírita
em 2010, a efetivação do trânsito dos frequentadores mais assíduos, os quais serão
apresentados no decorrer do capítulo. O número crescente de pessoas que passaram a
frequentar esses dois espaços religiosos foi uma vertente bem marcante que acabou por
caracterizar e diferenciar o MEFA dos demais centros espíritas da cidade, principalmente
quando não apenas os consulentes, como também dirigentes passaram a compor este quadro
de movimento religioso.
Como consequência desse movimento dentro do próprio MEFA, formaram-se dois
grupos de frequentadores: os que migravam para o terreiro e os que permaneceram apenas na
doutrina espírita. Em outras palavras, pode-se afirmar que há uma espécie de subgrupo
(parcela não menos importante e não marginalizada) de frequentadores do MEFA: os
espíritas/umbandistas.
O fato é que alguns elementos de Umbanda migraram de modo bastante singular via
terreiro para o MEFA. Após a composição do trânsito é possível identificar pontos do terreiro,
que anteriormente não eram cantados, mas que com o passar do movimento dialógico entre as
casas, começaram a se fazerem presentes no MEFA, inclusive até os dias atuais. Nesse
sentido, podemos concluir que o trânsito fomentou interinfluências em campos distintos, entre
uma casa e outra.
Como mencionado anteriormente, no interior da sala grande, a preparação inicial das
atividades mediúnicas concorre com a explanação do evangelho. De uma forma bastante
objetiva este momento de iniciação ocorre sob duas vias distintas, pois, se por um lado as
pessoas, clientes e frequentadores da casa se preparam para receber as consultas mediúnicas,
por outro, os médiuns e dirigentes se preparam para garantir o êxito destas. Este é um ponto
importante para compreender que, fazendo uso das categorias cliente e adeptos/médiuns,
deve-se contemplar o fato de que os campos de acesso a rituais são completamente distintos.
57
Os clientes têm acesso a um discurso proferido dos palestrantes e dirigentes da casa, quanto à
necessidade e supervalorização da presença Espírita.
É o caso da participação ouvinte das palestras, dos atendimentos de passes
magnéticos, e toda ritualística da casa MEFA que perpassa estes sinais diacríticos
identificados no cenário Espírita. Já os médiuns/adeptos, participam do outro campo lhes é
próprio. Os médiuns reconhecem os pontos das linhas de Umbanda, têm ciência da presença
de diferentes entidades como, Caboclos e Pretos Velhos e, sobre seus fundamentos,
participam das atividades trimestrais e comparecem aos estudos doutrinários oferecidos pela
casa. Este papel ocupado pelos médiuns é desempenhado em um local onde a Umbanda se faz
presente de modo enfático, pois estes atores se utilizam de muitos elementos desta
modalidade para legitimar e reafirmar práticas consideradas necessárias e primordialmente
indispensáveis.
Com isso queremos ressaltar que as pessoas que frequentam a casa em uma posição de
visitante ou cliente não possuem necessariamente conhecimento da presença da Umbanda nos
rituais. Esta identificação não é imediata, visto que, pela fachada, muitos consideram com
uma Casa Espírita, portanto, a presença da Umbanda não é questionada, tão pouco vivenciada
de modo intenso e, nesse caso, passa quase que despercebido. Por outro lado, a liderança
espiritual da casa apoderou-se dessa modalidade religiosa em seus ritos de modo que a
Umbanda, além de vivenciada, é estudada, questionada, principalmente, no que tange às
aproximações e vínculos por parte de médiuns e adeptos através dos estudos.
Durante todos os dias em que a casa funciona com suas atividades, é comum observar
um elemento que sinaliza a presença da Umbanda dentro da Casa MEFA. Sem muito esforço
é possível diferenciar os frequentadores da casa como clientes e trabalhadores e médiuns, pois
os membros do grupo MEFA só utilizam vestimentas na cor branca. O uso da cor branca não
é algo peculiar característico da religião Espírita. Dos Centros Espíritas conhecidos pela
cidade o único grupo Espírita que se veste de branco para realizar suas atividades é o MEFA,
salvo engano da existência de algum outro grupo. Esta marca é a influência da Umbanda nas
práticas rituais do Espiritismo.
Voltando ao momento dual dos rituais de iniciação, entre preparação de médiuns e
clientes, cabe tecer algumas considerações sobre como acontecem às práticas realizadas na
sala grande nas segundas-feiras. Finalizada a palestra, há uma organização intensa por parte
dos trabalhadores da casa para chamar as pessoas a adentrar a sala de consultas, em que os
pontos estavam sendo cantados no momento em que o Evangelho Segundo o Espiritismo era
proferido.
58
problemas espirituais considerados graves como se apenas os métodos utilizados pela prática
Espírita, não pudessem resolver e, portanto, se faz necessária a presença das entidades da
Umbanda.
É inegável a tendência a qual este movimento em que Espíritas caminham a uma
prática Umbandista. Haja vista uma conotação de que este caminho regride, ao contrário do
movimento inverso: “como certos Espíritas, dirigindo-se para “baixo”, apropriam-se das
crenças afro-brasileiras” (ORTIZ, 1991, p.41). Este discurso reforça a inferioridade da pratica
afro-brasileira em vista às religiões institucionalizadas no Brasil.
O objetivo não é apontar divergências tão pouco enfatizar tal discurso, pois aqui, nem
Umbanda, nem Espiritismo estão sendo abordados como “superior” ou “inferior”. Mas sim,
através da ideia de interação social, haja vista as possibilidades que as redes de relações
contribuem ao processo de mediação e tradução cultural. Umbanda e Espiritismo são
elementos dialógicos que se sustentam em redes de foram construídas ao longo do tempo
através dos grupos à medida que se vinculam uns aos outros. (BARTH, 2000; GALLOIS,
2005).
O movimento que caminha do Espiritismo para a Umbanda foi retratado por Renato
Ortiz (1991), em que elementos da Umbanda começam a ser agregado ao armazém simbólico
Espírita, fato este construído e produzido pelos próprios praticantes. Este fato acontece no
MEFA ao longo de sua trajetória enquanto Casa Religiosa. O que fomenta este diálogo
Espiritismo/Umbanda é a manifestação de entidades pertencentes à Umbanda em terrenos
Espíritas. Isso ocorre quando, em uma reunião mediúnica em um Centro Espírita, um
determinado médium recebe uma entidade de nome “Caboclo Mirim”. Índio Brasileiro a
entidade é proibida de participar da reunião, pois os Espíritas se recusam a permitir tal feito,
devido à possível “inferioridade” da entidade aos propósitos encerrados ali.
Sendo a entidade proibida de se manifestar em Casa Espírita, o médium retira-se do
centro e funda uma nova casa, a qual é permitida entrada de tais entidades que tem como
característica serem os anunciadores da proposta religiosa Umbandista. No MEFA isto
também ocorreu, o sinal diacrítico mais destacado quanto à presença Umbandista nas
atividades diárias, é o fato do grupo mediúnico permitir a entrada de entidades da Umbanda
(Caboclos, Pretos Velhos, Exus, Erês).
O processo que caminha da Umbanda para o Espiritismo é marcado pela presença
destes personagens. Em uma reunião de mesa Branca (Espiritismo), um espírito manifestou-se
no médium no meio de uma pratica mediúnica. O espírito comunicante se apresentava como
um Caboclo que havia mantido experiências corpóreas em uma comunidade indígena no
62
Brasil a muito anos. Nisso, o dirigente espiritual da reunião interpela o espírito dizendo se
tratar de uma reunião séria com nobres objetivos, e que, portanto, em sua inferioridade, não
estava apto a frequentar aquele espaço, devido suas condições de Índio Brasileiro. Com isso, o
médium é advertido devido a impossibilidade de a entidade frequentar a casa. Neste momento
o médium se afasta da casa Espírita e Funda outra casa aos moldes da religião Umbandista,
permitindo assim a presença de Caboclos, Índios e Pretos Velhos. (ORTIZ, 1991, p.41).
Este é um enredo que contextualiza a ideia do Mito Fundador da Umbanda (SÁ
JUNIOR, 2004; ORTIZ, 1991). E o que destaca as práticas mantidas no MEFA é justamente o
fato de que, tais entidades são parte importante dos rituais mantidos, e, portanto, esta é uma
característica que sinaliza a complementaridade que a casa apresenta para estes sinais
pertencentes a religião Umbandista.
Inúmeras são as casas em que incorporam tais personagens Umbandistas. A entrada
dessas entidades modifica o contexto ritual, pois, os mesmos ao atuarem trazem consigo seus
sinais afirmando a presença da Umbanda através de pontos cantados, do uso do descarrego, da
roupa branca, velas coloridas, aplicação de passes mediúnicos com performances que
sinalizam o ritual Umbandista.
Estes e outros elementos são encontrados em casas que dialogam com a Umbanda,
aqui, o MEFA é esta casa. O caso é que esse diálogo não se dá por acaso, para compreender
este processo faz-se necessário conhecer a forma como os grupos das casas se conheceram e a
trajetória destas relações que à medida que se fortaleceram em laços de amizade, afinidade e
parentesco, permitiram o diálogo.
percebidos pelos vizinhos que moram ao lado da residência. Vale ressaltar que, no que tange à
instrumentalidade dos rituais efetuados na casa, não há uso de atabaques, como comumente
acontece nos cultos de religiões afrodescendentes.
Figura 3- Parte externa do Terreiro “Reino de Ogum Beira Mar. Fonte: Autora (2021).
A Casa do Exu é um espaço relativamente pequeno que contém algo como que uma
casinha de pequeno porte, aproximadamente do tamanho de um abrigo para cachorro, de
alvenaria, na cor vermelha, com uma grade de ferro como portão. Dentro da Casa estão
presentes algumas esculturas, sendo elas: Exu Maré, que é o responsável pela “guarda” da
casa e dos médiuns, segundo os preceitos umbandistas, Exu Tranca Rua e Exu Tiriri. Esta
pequena casa, de uso exclusivo dos médiuns, situa-se em local pouco conhecido para os
visitantes, propositadamente colocada do lado esquerdo do terreiro.
Sob um foco sincrético, embora Umbanda, Quimbanda e Candomblé sejam
manifestações religiosas da mesma raiz afrodescendente, cada uma apresenta suas
especificidades, apesar de haver certa comunicação através do uso dos mesmos elementos. O
Exu é um elo de fluidez e continuidade entre as três, pois se trata de uma entidade presente
nos rituais, embora adote aspectos diferentes de interpretação e significação em cada uma
delas. O fato de sua “morada” se encontrar na parte de fora da casa, de acordo com a crença,
remete a entidade Exu à rua, ao externo. Para os umbandistas, ele assume uma interpretação -
ou um arquétipo - de ‘malandro’ (DA MATTA, 1997; CAPONE, 2004).
Ao adentrarmos o terreiro, nossa primeira visão é do altar, ou conga, que, segundo
Brumana e Martínez (1991) é o espaço considerado mais sagrado no interior de qualquer
terreiro de Umbanda. Trata-se de um local de referência ritual, onde se dispensa o olhar e
comportamentos práticos de sacralização mítico-religiosa. Logo acima, na parte superior da
parede um desenho de aspecto praiano serve de pano de fundo para a cena. O desenho é o
simbolismo que evoca a característica espiritual do terreiro, considerando o “chefe espiritual”
65
do terreiro, a entidade “Ogum Beira Mar”. Há, ainda, uma frase no topo da parede: “Dai de
Graça, o que de graça recebestes, é a lei de Oxalá”6. Assim, baseados nessa ideologia de
caridade, os trabalhos espirituais não envolvem nenhuma transação financeira de qualquer
espécie.
Dona Tereza, líder do terreiro, considera que:
6
Esta frase é um forte indício dos resquícios do catolicismo romano imposto aos negros em
regime de escravatura, pois esta mesma frase encontra-se na Bíblia sagrada dos cristãos em
Mateus 10:8, porém sem o termo Oxalá.
66
Tereza também não comprou a dela, nós não podemos cobrar por
aquilo que não é nosso, é da espiritualidade. Às vezes, se a pessoa
quiser contribuir com uma vela, nós aceitamos de bom grado, porém,
aqui não se cobra nada de ninguém, por que a caridade não tem preço.
Eu cuido muito isto aqui na casa, pois não é uma prática que eu
aprovo, pelo contrário (Sr. Aretino. 04/2013, DOURADOS - MS).
Figura 4- Altar de Umbanda da casa Reino de Ogum Beira Mar. Fonte: Autora (2020).
A casa possui oito médiuns que trabalham com entidades características do panteão
umbandista7. As entidades que comumente se manifestavam nos rituais daquela Casa são:
Preto-Velho Pai Joaquim de Aruanda, Caboclo Tupinambá, Caboclo 7 Flechas, Caboclo
Flecheiro, Caboclo Ogum Beira-Mar, Cigano, Caboclo Índio e Cabocla do mar. Cada médium
trabalha de forma distinta e cada um é responsável por seus utensílios materiais disponíveis
para a entidade.
Diante destas considerações, faz-se importante apresentar a forma como este grupo de
médiuns se organiza estruturalmente nas atividades da Casa de forma ritualística. Trataremos
de suas peculiaridades objetivando melhor situar o leitor para as condições ritualísticas que se
propõe o Grupo de Terreiro, sobretudo no que tange às similaridades que fornecem
continuidades com a prática espírita.
A primeira delas é o uso de roupas claras, esta é condição imposta a todos os médiuns
e frequentadores da casa, pois até mesmo os que buscam a casa de modo esporádico são
orientados pelo chamado “orientador material” a utilizar roupa branca nos dias de culto.
Outra característica é que todos os médiuns ao adentrarem ao espaço sagrado, se dirigem até o
peji, ou seja, o altar onde estão localizados todos os santos, e ali batem a cabeça três vezes, e
permanecem imobilizados por um tempo relativamente longo em sinal de oração e pedido.
Esta é a hora em que os médiuns saúdam a casa e as entidades da Umbanda, e fazem os
pedidos, que giram em torno do desejo de que as atividades da noite sejam realizadas com a
proteção da espiritualidade sagrada, segundo suas crenças.
7
A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira de possessão em que os seus adeptos
incorporam entidades de um mundo espiritual. Historicamente, essas entidades são compostas
por tipos sociais excluídos, como índios [caboclos], pretos-velho [escravos], pomba-gira
[prostitutas] etc. Com o passar das décadas do século XX e devido à plasticidade da
Umbanda, surgiram novos tipos de entidades, como baianos, malandros, marujos, boiadeiros
dentre outros. No entanto, todos possuem em comum o caráter marginal.
69
frequentadores e seus líderes, do contrário, há uma delimitação entre o lugar que cada um
deve ocupar.
Daqui em diante serão apresentados alguns rituais específicos praticados na casa, que
de alguma forma demonstra as especificidades ritualísticas que o terreiro apresenta. O
primeiro ponto importante a ser mencionado é um ritual que determina o início das atividades
da casa naquela noite. Este é um elemento diacrítico importante. A presença da oração do Pai
Nosso reforça as singularidades da atividade religiosa, é um elemento encontrado no
catolicismo e até mesmo no Espiritismo.
Esta oração é um símbolo que contribui ao entendimento de que a presença dos
preceitos ortodoxos das religiões dominantes conduz as atividades a serem desempenhadas na
noite. Após o “Pai Nosso” é entoado o seguinte ponto cantado: “Eu abro a nossa gira com
Deus e Nossa Senhora, Eu abro a nossa gira Pemba de Angola “(Ponto de abertura).
Contudo, é possível apreender a mobilidade e a fluidez entre preceitos católicos e referência a
uma origem africana.
Durante o culto não é cantado nenhum ponto de louvação à entidade Exu nesta casa
umbandista, pois, simbólica e espiritualmente, a casa “pertence” a Ogum Beira Mar, portanto,
o ponto de Exu - o “guardião espiritual” é entoado individualmente por cada médium no
momento da saudação antes de iniciar os trabalhos. Todavia, a maioria dos cultos são
iniciados sem esta saudação – analogamente, é como quando saudamos o porteiro na entrada
do prédio ao adentrarmos, que é quem “permite” ou “barra” a entrada das pessoas. Contudo,
deve-se ater ao fato de que a segurança que os exus dispensam ao terreiro afeta apenas o lado
espiritual, logo, as pessoas não são barradas, esse papel quem desempenha é o chefe do
terreiro.
O lugar e papel ocupado por Exu por estes grupos, tanto da casa MEFA, quanto do
terreiro Reino de Ogum Beira Mar, é a identidade de Guardião. Stefania Capone encontrou
em sua analise o exu com identidade de Diabo: “Exu é o Diabo” (CAPONE, 1991). Esta
afirmativa não se estende a todos, pois neste caso o Exu ocupa um lugar diferente, sempre
remetendo a rua no sentido de que, é este, o personagem responsável pela Guarda e segurança
tanto do terreiro como de seus adeptos, médiuns e frequentadores.
A umbanda é uma religião que sofre inúmeras alterações dentro de uma configuração
pautada no africanismo. Alguns autores consideram que o estilo religioso Umbandista sofre
modificações no contexto social da Capital Paulista, sendo o Espiritismo o principal fato desta
mudança e das alterações decorrentes, considerando aspectos ritualísticos e doutrinários.
(CAMARGO, 1961).
70
chiado parecido com o barulho das ondas do mar após quebrar, empurrando os braços para
frente, inclinando a cabeça para frente e para traz conforme o movimento das mãos, em
seguida coloca a guia– uma espécie de colar de miçangas – de cores transparente e vermelha
ao redor do pescoço e, sob o aplauso de todos os presentes, saúda a Umbanda e todas sete
linhas.
O segundo exemplo aqui descrito trata-se da entidade chamada “caboclo Tupinambá”,
que se manifesta no terreiro de forma bastante leve e contida. Quando chega, a médium
balança levemente o ombro, dando a impressão de um constante refazer-se, abaixa até o chão
e bate as mãos sobre o chão, três vezes seguida, e depois de ter sua guia sob o pescoço, saúda
o chefe do terreiro Ogum Beira Mar, que já se encontra movimentando-se dentro do terreiro.
A terceira e última manifestação é da entidade “Caboclo Sete Flechas”. Assim que seu
ponto é cantado. O corpo da médium inclina-se para trás sob o chão, fornecendo a imagem de
um flecheiro agachado apontando sua flecha para frente, em seguida a médium bate no peito e
no chão três vezes. Em seguida, cumprimenta o chefe do terreiro. Esta é uma condição ritual,
todas as entidades manifestadas vão até o “chefe” e saúdam sua presença no terreiro.
Dos três exemplos, o que mais se assemelha dos traços de possessão do espiritismo é a
entidade Caboclo Tupinambá. Isso por se tratar de uma manifestação religiosa de
característica silenciosa, sem muito alarde, bastante contida e equilibrada, que muito se
assemelha às sessões mediúnicas dos centros espíritas, o que denota certa domesticação da
manifestação por parte do (a) médium que o incorpora. Este é um traço bem característico das
reuniões espíritas, que prezam pelo código verbal, ao passo que na Umbanda, o que se
privilegia são códigos corporais (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991, p. 89).
É possível ser observado que grande parte dos médiuns/adeptos tiveram a marca da
doutrina espírita em suas trajetórias de vida até as práticas umbandistas no terreiro Ogum
Beira Mar. Não somente isso, mas também em sua grande maioria há composição de
circulação em outros espaços religiosos. Estes espaços serão contemplados nas linhas
seguintes, através de descrições que poderão mobilizar o leitor a conhecer estes espaços que
dialogam entre si, através da produção simbólica que se origina no estabelecimento de
relações e interações entre os grupos que compõem cada casa.
Durante toda a sessão não constatamos nenhuma entidade (personagens incorporados
em seus médiuns) fazendo o uso de bebida alcoólica ou cigarro. Certo dia, conversando com a
Sra. Tereza, indagamos do porquê de não se utilizarem esses utensílios materiais bastante
comuns em terreiros de Umbanda. Segundo ela, no início, sua entidade Caboclo Ogum Beira
Mar, bebia muito vinho, com o passar do tempo trocou o vinho pela cerveja, onde
72
permaneceu bebendo nas sessões da casa por muitos anos. Após um longo período, a entidade
dispensou o uso da bebida substituindo a mesma por água.
Nestes tempos, tudo o que tem é uma garrafa com água a qual faz o uso de modo
muito esporádico, e as outras entidades incorporadas em seus respectivos médiuns não fazem
uso de nenhum tipo de bebida. Na década de 60 já havia algumas menções sobre as
influências do Espiritismo nas sessões Umbandistas sendo: “Exclusão de bebidas alcoólicas,
especialmente da pinga, apesar de ser apreciada por “Pretos Velhos” e “Caboclos”
(CAMARGO, 1961). Qualquer comentário sobre isso, entre os médiuns da casa, o discurso
doutrinário Espírita é automaticamente evocado como justificativa e esclarecimento. Trata-se
de um elemento dispensável e tido como desnecessário.
Durante os rituais alguns utensílios materiais são utilizados por todos os trabalhadores
da casa. O descarrego8 é usado de forma corriqueira e cada médium possui o seu de forma
individual. As velas são utilizadas por médiuns, e pelas próprias entidades durante o trabalho
para alguns rituais destinados a pessoas específicas que se encontram em tratamento
“espiritual”. Outro material utilizado é a “pemba”9, destinada a riscar os pontos, normalmente
feitos no piso nos cantos do terreiro.
Outra marca diacrítica a apresentar no terreiro é a ausência de atabaques. O uso do
atabaque é dispensável, até mesmo as palmas, pois seu uso remete a uma modalidade
Umbandista relegada a outra pratica a qual o grupo do terreiro, bem como seus chefes não se
identifica em distanciamento.
Desta forma os pontos cantados são entoados durante toda a atividade, são eles
condutores simbólicos que fornecem o andamento das práticas rituais. Os pontos são cantados
de forma a louvar as entidades e até mesmo aos orixás. Contudo, como no terreiro em
questão, apesar de o orixá ser Ogum, há a manifestação de outras linhas de orixás, assim, é
comum haver uma simultânea miscelânea de cânticos melódicos, já que tanto o Ogã, ou chefe
– Sr. Aretino – quanto os médiuns podem entoar esses pontos de louvação.
8
Um composto de álcool com ervas que, segundo as crenças, ao ser aspergido no corpo dos
frequentadores, possui a finalidade de retirar energias negativas.
9
Um pedaço de giz, utilizado pela entidade para desenhos (assinaturas), onde legitimam sua
identidade particular.
73
é, pois o espaço não é um terreiro, e sim uma casa Espírita. A modalidade a qual considerava
era uma configuração única ao dizer: “A diferença entre a Umbanda e o MEFA é que aqui
nós temos Caboclos, Preto-Velho, mas não temos os rituais” (Sra. Air. Out/2013). A tentativa
de retirada de qualquer identificação com terreiros e espaços de culto umbandista foi muito
forte na sua fala.
Dá-se a impressão que o objetivo era dizer que a Umbanda no MEFA possui
diferenciais significativos. É como se os “pontos cantados” mais importantes da Umbanda
fosse inserido nas práticas do MEFA, produzindo retiradas e domesticações de práticas
ritualísticas, comuns em terreiros.
Dona Amada é antiga na casa e chegou no tempo em que Luiz Leal tinha recém
fundado, e as práticas estavam sendo desenvolvidas de forma bastante interessante, segundo
sua fala. Amada chegou até Luiz Leal através de um grupo o qual estava vinculada por
relações, ou seja, naquela época, ela apresentava reações típicas dos que sofriam daquilo que
era classificado como “mediunidade malconduzida”.
Ela relata que sofrera muito de desmaios, era constantemente tomada por espíritos em
casa, na rua, e estes espíritos eram sempre arredios, apresentavam descontroles e eram
maldosos. Segundo ela, os espíritos a dominavam e não lhe davam opções de escolhas, o que
lhe causou desarmonia na família e com os amigos. Foi então que se conduziu até o MEFA:
Isto significa que desde aquela época já existia a presença da Umbanda, e tal
modalidade definia e encaminhava os médiuns da casa para que estivessem ligados e
influenciados pelas entidades. Os próprios termos utilizados na narrativa já expressa um
diálogo entre Umbanda e Espiritismo. Partindo para outro ponto importante, perguntamos aos
adeptos/médiuns mais antigos da casa sobre como eram as atividades na época e em como
estas atividades são vistas nos dias atuais.
Amada aponta o estudo como um fator importante de mudança e nivelamento ao
considerar: “O estudo me modificou muito! Antigamente nós fazíamos muito barulho ao
receber espíritos, não tínhamos conhecimento doutrinário. As manifestações eram pesadas, e
hoje eu trabalho com o meu caboclo de outra forma” (Amada. Mar/2013). Indo ao encontro
desta fala, a interlocutora Maria, ex-presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis, afirma:
76
Hoje em dia, ainda tem pessoas que acham que as coisas acontecem
na nossa vida é culpa dos espíritos, como se eles fossem os
responsáveis por tudo aquilo que nos acontece, e às vezes acaba
recorrendo a eles para solucionar questões que só nós mesmos
conseguimos resolver, e os espíritos não tem nada a ver [sic] (Maria
E., 07/2013, DOURADOS - MS).
Dando continuidade à sua fala sobre o período da fundação do MEFA, Maria enfatiza
questões que já foram discutidas anteriormente, mas que podem contribuir para a
compreensão de fatores necessários de como o MEFA configura-se na contemporaneidade. A
fundação do MEFA tinha como objetivo dar continuidade aos trabalhos que anteriormente
eram realizados na Casa Espírita Ismael. Antigamente a Umbanda era bem mais presente no
MEFA e houve uma maior domesticação dos mentores:
A casa possui inúmeras histórias em que a Umbanda se fazia sempre presente. Esta
colocação serve de orientação para os fatos vividos e experimentados no MEFA antigo que,
de alguma forma, ainda se faz presente até os dias de hoje. Apesar de algumas práticas terem
sido banidas do cotidiano do grupo, foram adotadas outras práticas que seguiam no intuito de
evocar a presença da Umbanda como um mecanismo de segurança. A Umbanda sempre
esteve presente no alicerce da casa, e existe um consenso de que qualquer tentativa da retirada
da Umbanda das atividades do MEFA, é tendência à falência.
se faz possível demonstrar através da memória. Assim, o primeiro tempo data o ano de 1976.
Segundo Maria (uma frequentadora):
Ao longo de sua fala, Maria deu grandes indícios de como se configuravam as práticas
ritualísticas do Ismael na época. Segundo ela, se viu obrigada a frequentar aquele espaço de
79
culto, devido às influências e imposições de sua mãe, que exigia sua presença junto a ela nos
dias de atividade. Os autores Fernando Brumana e Martinez (1991), já davam indicações
destas transmissões fornecidas pelos laços familiares, exercendo assim um papel relevante,
tendo em vista que tais relações servem como propulsores e fomentadores de adeptos ligados
à religião. Isso aconteceu com Maria, pode-se considerar que talvez nem quisesse adentrar a
este universo, porém as relações que a vinculam à mãe a levaram a aceitar e aderir aos
códigos da religião a qual estava sendo inserida (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991, p.140).
Esta colocação induz ao entendimento de que Maria foi inserida neste universo através
da relação que construía com sua mãe, e que havia na época uma grande necessidade de impor
respeito e devoção aos entes aos quais se via subordinada. Voltando às descrições da memória
da interlocutora: “Os trabalhos do Ismael na época eram de manifestação de espíritos
mesmo, eu me lembro que não tinha cadeira pra sentar, os médiuns trabalhavam em pé, e o
único que sentava era o Preto-Velho que tinha a banquetinha dele” (MARIA, 2013).
Ao indagarmos se as atividades do Ismael eram semelhantes aos trabalhos de um
terreiro de Umbanda, e ela não soube me dizer, e logo já entendi o motivo da não analogia
com relação aquele espaço. De fato, é porque Maria não tem familiaridade nenhuma com um
terreiro de Umbanda, por não dominar os signos e as sinalizações ritualísticas que são
perfeitamente reconhecidas e identificadas por aqueles que têm uma formação Umbandista
em sua trajetória de vida.
Deve-se também salientar que Maria não compõe o trânsito, exceto em sua passagem
pelo Ismael naquela época. Sua fala expôs o fato do dia em que visitou um terreiro de
Umbanda no ano passado pela primeira vez, que por pura coincidência - e para nossa sorte
enquanto pesquisadora –tratava-se do terreiro que Reino de Ogum Beira Mar. A visita fora
feita através de frequentadores do MEFA que passaram a frequentar o terreiro assiduamente
(lembrando que os visitantes só podem entrar se forem convidados por quem já é “da casa”).
Continuando suas recordações:
Foi então que questionei sobre como se dava ali na casa Ismael o desenvolvimento
mediúnico, segundo Maria: “era gira! Minha mãe desenvolveu girando” (MARIA, /2013).
Ainda falando sobre o Ismael:
havia possibilidade de dialogar com a estrutura da Casa Ismael com um terreiro, nos dias de
hoje, o Ismael está mais próximo de dialogar com os padrões ortodoxos da cultura Espírita
kardecista.
A estratégia da observação para a coleta de dados na Casa Espírita Ismael aconteceu
no ano de 2006. Cujo objetivo era estudar e aprofundar na doutrina como adepta e,
consequentemente, desenvolver a mediunidade para conhecer melhor os fenômenos, para
habilitação no campo daspercepções necessárias a cerca deste veículo de comunicação
espiritual. Os estudos sobre mediunidade tinham base nas obras de Allan Kardec.
Esta característica é um sinal diacrítico sobre a consolidação dialógica das instituições
mediúnicas. A busca do conhecimento filosófico-doutrinário é fornecida pelo MEFA ao passo
que, a invocação e atuação das entidades da umbanda é feita no terreiro, num formato de
maior expressão. Daí o sentido de complementaridade do movimento religioso que
complementa um ao outro. Ou seja, onde a teoria e prática interagem, através do trânsito, e
umbandistas e espíritas se unem nas trocas de conceito-ritualísticos.
O fato é que a identidade religiosa desta pesquisadora não era algo muito claro para o
grupo Centro Ismael, devido a esse encontro de conceitos e rituais então houve um momento
em que nos vimos forçadas a optar entre o terreiro e a Casa Ismael, pois havia um choque
entre identidade e preceitos da casa. Deste modo pudemos constatar que esta casa se afasta de
qualquer possibilidade de diálogo com outras modalidades de matriz Africana. No entanto, o
afastamento não exclui tal possibilidade, que mesmo sendo em raríssimas exceções, não se
pode dizer que não ocorrem de modo sutil, através das relações e da circulação dos adeptos.
Estas considerações servem para indicar o modo como a casa era vista pelos
frequentadores da época, visto que, a partir do momento em que o fundador Luiz Leal deixa
casa e funda o MEFA. Posteriormente a casa Espírita Ismael sofre inúmeras modificações e
mudanças no cenário ritualístico e a cada dia passa a adotar um modelo que caminha para
uma identificação ortodoxa Espírita. Cabe salientar que estas Casas que foram fundadas pelo
Sr. Luiz tiveram contribuições de outras pessoas que já faleceram, alguns recentemente,
outros há algum tempo. E de todos os fundadores e dirigentes antigos que vivenciaram aquele
tempo, Luiz é o único que permanece vivo.
Está evidentemente claro na fala do Sr. Luiz que o principal motivo da necessidade da
criação de uma nova casa foi o grande número de pessoas que buscavam a casa, o que foi
alimentando necessidade de novos espaços, de outros lugares que pudessem atender a
demanda que crescia quantitativamente no decorrer dos anos. Mas o que nos deixou bastante
intrigados é que ao ouvir as falas dos outros interlocutores que assistiram este momento de
82
cisão, temos a impressão de que esta ruptura que culmina com a fundação do MEFA pode ter
outros motivos. É comum entre as casas espíritas o surgimento de conflitos a partir do
aumento de pessoas em um espaço que pode não ser suficiente para um atendimento que se
pretenda positivo e com êxito.
A partir de agora transporemos os depoimentos dos interlocutores que nos apontaram
esta possibilidade. A primeira interlocutora é Maria Evangelista:
Toda casa tem uma presidência no comando, mas a gente sabe que
com o tempo novas pessoas aparecem para assumir aquilo que
antigamente era responsabilidade de outra pessoa. Porque com o
tempo, outras pessoas vão assumir para substituir quem estava ali até
então, e estas pessoas vêm com ideias novas, isso é normal, toda casa
é assim. O que deve ter acontecido é que com o tempo da casa, outras
pessoas vieram em seguida, e o Sr. Luiz estando houve algum atrito na
maneira de pensar por conta das colocações que estavam sendo
impostas pelas pessoas novas, e isso criou uma divergência entre eles,
e aí as casas se separaram (MARIA, 09/2013, DOURADOS - MS).
10
A ideia de cisma remete à noção de conflito existente entre duas categorias opostas que se
chocam desencadeando mudanças e transformações.
83
Quando eu falei sobre a casa ficar muito Kardecista, quis dizer, muito
cheia de regras que a federação espírita acaba impondo. Porque tem
muitos espíritas que nunca foram umbandistas. Uns nasceram espíritas
e outros vieram da igreja católica para o Espiritismo. E estas pessoas
acabam se enchendo de teoria, é bonita, a ciência espírita é
maravilhosa! Com isso, eles começam a ficar muito fundamentalistas,
só aquilo está correto e nada mais. E acaba não aceitando que outras
pessoas vêm de outras culturas religiosas, do budismo, Umbanda,
Candomblé e acabam trazendo outras bagagens de conhecimento. Aí
começa a achar que está errado, mas a função da Casa espírita é
acolher, quem quer que seja (MARIA, 07/2013, DOURADOS - MS).
Fomos levados a crer que a grande questão que envolve estas casas, e estes grupos, é
que existe um confronto e uma série de divergências entre aqueles que possuem maior
afinidade com a Umbanda, através das práticas adotadas por Luiz leal, e entre aqueles que
possuam mais afinidade com o Espiritismo seguidores de preceitos estipulados pela FEB.
Logo, há existência de um compartimento dos grupos que acabaram se chocando devido às
ideologias e orientação religiosa distintas.
84
Ainda com relação aos motivos que promoveram esta primeira ruptura que se tornaria
a fundação do MEFA, alguns integrantes também relatam, como a Senhora Benta: “a turma
que gostava de trabalhar na Umbanda foi tudo atrás dele inclusive eu. E ali no MEFA agente
[sic] trabalha com a Umbanda somente quando há necessidade”. Seguindo esta orientação
Reginaldo também dá a sua contribuição para este entendimento:
Com o tempo as pessoas vão mudando, e toda pessoa que entra vem
com um conhecimento diferente do outro, e cada um trabalha de um
jeito diferente. O Renato modificou os trabalhos do Ismael
completamente depois do senhor Luiz leal, por conta das diferenças de
ideias. E cada dirigente adéqua os trabalhos da casa de acordo com
sua própria visão da doutrina que se orienta. E também porque o
espaço lá ficou pequeno demais para ele, e como ele tinha terreno para
construir outra casa ele acabou fundando o MEFA. Eu acho que deve
ter sido essa divergência de pensamento que deve ter ajudado a
mudança. Mas o motivo também foi por conta da necessidade de
atender pessoas de outros lugares, e porque a casa estava muito cheia
(REGINALDO, 09/2013).
Após a exposição destas falas pretendemos tecer da rede que interliga e pode
significativamente contribuir ao entendimento da formação do trânsito e das mobilidades
existentes entres estas casas. Buscamos tecer a história através das falas dos interlocutores,
tendo em vista que já foram apresentados acima os personagens que estiveram presentes neste
primeiro momento. A personagem Maria, que é quem abre esta explicação da trajetória das
Casas. Como foi dito acima, Maria é filha de Catarina, uma das integrantes do grupo de Luiz
leal, nos tempos de Anjo Ismael. Maria cresceu na Casa Espírita Ismael, e contribuiu com
grandeza ao entendimento do como foi sua experiência até os dias de hoje nas casas por onde
passou.
No momento em que ficou bastante claro a existência do Ismael, um insight nos
conduziu àquilo que buscávamos compreender. Conhecemos Maria no terreiro de Ogum
Beira Mar há uns 9 anos atrás, e sua presença naquele espaço é de extrema importância, já que
exerce um papel da “cambone” da entidade denominada Preto Velho de Aruanda, manifestada
através do médium – seu esposo – Nei. Contudo, ela não apenas frequenta o terreiro como
também a casa Espírita Ismael durante as programações semanais.
85
Durante nossa conversa, ela faz um relato da sua experiência e de suas lembranças,
ainda pequena, sobre o momento em que o Sr. Luiz Leal resolve deixar a Casa Ismael para
fundar um segundo templo, que mais adiante seria reconhecido como Casa Espírita Francisco
de Assis. Maria deixa bastante evidente algumas questões referentes à saída do Sr. Luiz:
Após esta fala, ficam claros os motivos pelos quais Maria não deixou de frequentar a
Casa Espírita Ismael. O motivo era um sentimento de dever e gratidão por Luiz Leal e sua
significativa presença em sua família. Entender o porquê da permanência na Casa Ismael até
os dias de hoje é expressão de uma motivação fomentada por laços de família e afinidade.
Depois Maria me relatou uma história que caminha dentro de uma lógica bastante
sofisticada para compreensão da sua permanência na Casa Espírita Ismael, justificando,
também, a permanência de sua Irmã Ísis na Casa Espírita Francisco de Assis:
...isso ficou muito claro na minha cabeça, quando o meu mentor, por
intermédio de uma médium da Casa de Ismael me disse: “eu vou
trabalhar com você nesta casa, e eu quero trabalhar verdadeiramente
na área da cura, e eu estou aguardando sua disposição para o trabalho
e meu nome é Ismael”. Então ali eu entendi que a minha casa era lá, e
o da minha irmã é o Tupinambá. Tupinambá é mentor da Dona Rosa
(dirigente espiritual da Casa Espírita Francisco de Assis), então ela
86
tem que estar no MEFA e não no Ismael. Para minha família ficou
esta herança, você ajuda aqui, você ajuda ali e assim por diante. E eu
gosto muito do MEFA, e do terreiro, mas a minha casa é o Ismael
(MARIA, 06/2013, DOURADOS - MS).
11
O conceito de trânsito é uma ideia formulada como categoria cuja finalidade é referir-se ao
movimento dos grupos das duas casas religiosas, à medida que integrantes do grupo da Casa
MEFA passam a frequentar o terreiro, e vice-versa. O movimento dos grupos entre uma casa e
outra é identificado através da categoria “prática”.
88
nas Guianas foram enfatizadas situações de interação e mediação entre “Índios” e “não
Índios”, as relações estabelecidas entre grupo Umbandista e Espírita não podem ser tratadas
como exteriores as redes tecidas pelos dois grupos.
As formas de lidar com as práticas rituais vão ao encontro de tais exterioridades se
conectando a elas constituindo assim, o que se chama de “conexões variáveis”, ou seja,
vínculos que caminham em um circuito permissível e aberto, ás diferenças e elementos que
até então eram corrompidos pela barreira das diferenças (GALLOIS, 2005). Muito pelo
contrário, no instante que as diferenças se encontram, ambas permitem interações mediadas e
negociadas pelos próprios fatores diferenciadores, levando assim ao reconhecimento
atribuições e evocações de identidade. (BARTH, 2000).
No instante em que esta teia começa a ser tecida há o surgimento das Casas Espíritas
na cidade de Dourados – MS. Circulando entre estes espaços, foi possível detectar que o
diálogo entre as casas é muito fixado em relações construídas no passado. Todos, em grande
maioria, se conhecem e reconhecem uns nos outros pelo próprio nome. A casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, recebe grande parte desta população nas atividades diárias
oferecidas ao público geral.
Esta oferta de espaços religiosos desta modalidade, é vista positivamente por parte dos
adeptos da religião. O fato é, estas casas foram sendo constituídas a partir de uma situação de
conflito entre os grupos participantes. Já presenciamos algumas conversas entre os
frequentadores do MEFA que afirmavam que todas as casas espíritas da cidade foram frutos
de desentendimentos e brigas entre dirigentes e médiuns da casa. Por isso, se não fossem estas
brigas talvez não existisse tanta casa espírita na cidade. Assim, uma vez ouvimos: “Ainda
bem que o povo briga! “[sic]. Esta fala retrata o que alguns teóricos dizem sobre o conceito
de “socialidade”, tendo o conflito uma conotação positiva, sendo este o principal promotor de
mudanças no cenário social. (STRATHERN, 2006).
Neste caso, o conflito é parte do contexto social o qual vivenciam suas experiências.
Como diz a própria Maria Evangelista, ex-presidente da Casa Espírita Francisco de Assis: “Se
não houvesse tantas discordâncias entre os fundadores e presidentes de Centro Espírita,
talvez não tivéssemos tantas casas oferecendo socorro e assistência aos mais necessitados na
cidade” (MARIA, 2013).
Foi o que ocorreu no MEFA. Sua origem, na Casa Espírita Ismael, é fruto da trajetória
religiosa de seus idealizadores, antigos frequentadores da Casa Ismael, embora sua
configuração atual se desenhe de forma distinta ao modelo Espírita tradicionalmente regulado
pela Federação Espírita Brasileira - FEB.
89
segundo ela, até os dias de hoje ela não consegue obter uma resposta plausível para o fato que
será narrado por ela a seguir:
de vidro e nem a água, sumiu tudo. Até hoje eu não consigo entender
o que aconteceu, nem onde foi para os cacos e a água que estava
dentro do copo. Voou caco para todo o lado, e depois quando e em
fração de segundos quando você procurava o caco não tinha mais
nada, evaporou tudo! E homem, depois que ele jogou o copo no chão
o homem ficou calmo, agradeceu a Senhor Luiz, tomou água,
conversou com o Sr. Luiz, e foi embora como se não estivesse
acontecido nada! Simplesmente acabou. Já houve muitos casos de
gente que chegava acorrentada no MEFA, tomada por espírito, Senhor
Luiz mandava soltar, e o espírito parava nos pés dele, de repente
ficava calmo, passava tudo aquilo, eu nunca entendia o que acontecia
(MARIA, 07/2013, DOURADOS - MS).
Essa fala expressa o respeito que Luiz Leal recebia do grupo, por justamente conseguir
manter um diálogo efetivo e que funcionava visivelmente sobre o mundo invisível. Neste
sentido, além do Sr. Luiz possuir autoridade, tamném detém conhecimento da Umbanda e
Espiritismo, porém, sua identificação percorre os códigos ritualísticos da Umbanda que, ao se
aproximar da doutrina espírita, recebe a identificação na categoria “umbanda branca”. Sua
importância enfatiza o papel de mediação, entre aqueles que compartilham da crença
complementar entre estas duas religiões aparentemente divergentes. O fato de ter fundado e
contribuído na fundação de Casas Espíritas na cidade, existiram pessoas que o seguiram e o
acompanharam neste processo, que possivelmente o mantinha em posição de liderança e
inovação, que transformam fatores restritivos em elemento potencial de mediação.
Antes de iniciar sua trajetória de vida, foi reconstituída sua representação para o
grupo, apresentando suas contribuições na reprodução do pensamento religioso, nas práticas
realizadas no MEFA, e no segmento filosófico da estrutura discursiva que permeia o
pensamento de muitos autores que compartilham atividades na casa, especialmente os que
acompanham desde a fundação, que mesmo não se colocando numa posição de autoridade,
possui o reconhecido do grupo.
Luiz Leal nasceu no ano de 1930, em Cachoeiro do Itapemirim – RJ. Hoje, já
completando seus 82 anos, possui uma família muito extensa com filhos, filhas, netos e
bisnetos, na companhia de sua esposa Dona Maria. Foi funcionário público federal por muitos
anos, e nos dias de hoje cuida de sua casa, esposa e familiares, próximos, sem falar dos
auxílios que presta aos trabalhadores e frequentadores da casa Movimento Espírita Francisco
94
de Assis. Sua gentileza é bastante perceptível tendo como referência uma bagagem extensa
com a espiritualidade através das casas que fundou, das pessoas a qual estendeu a mão, das
lições e das experiências com a Umbanda e a Quimbanda, sem deixar o embasamento
Espírita.
Enquanto estava presente, inicialmente, ao lado de Luiz Leal, seria inevitável
negligenciar a presença de fenômenos ligados ao espiritual, seja na sua fala, nos gestos, me
sentia por diversas vezes pendularmente oscilando entre o plano da cientificidade acadêmica o
qual havia me levado até ali, mas sempre muito vinculada a minha própria trajetória enquanto
adepta, e parte do universo religioso.
Luiz Leal inicia sua fala dizendo, “A história é longa”, indagando-me se estava
realmente a fim de ouvir o que tinha a dizer sobre sua vida, e é claro, de um modo bastante
positivo disse que ficaria o dia todo só para ouvi-lo. A partir de então Luiz começa a relatar
como chegou ao espiritismo e posteriormente a Umbanda. Considerando que, Luiz transita de
modo bastante tranquilo e fluido entre a ortodoxia Espírita e o pragmatismo da Umbanda.
Luiz Leal inicia: “minha história começou através de um matador profissional”. O
relato do autor inicia-se em sua cidade natal, em Itapemirim, contando a história de outra
pessoa, curioso o fato dele em nenhum momento se colocar na trama, são as pessoas que
estiveram a sua volta que explicam seu destino e sua imersão na religião. Então começou a me
contar sobre este matador profissional, que até naquele momento desconhecia o fundamento
daquela presença em suas palavras.
A história tem como destaque o matador profissional chamado Sebastião Santos12
responsável pela morte de muitas pessoas. Naquela região onde morava, havia um lugar
especifico, onde Sebastião anotava os nomes de suas vítimas na porteira na cidadezinha onde
morava, em seguida colocava uma cruz abaixo do nome das pessoas, e logo no dia seguinte
aquela pessoa a qual escreveu o nome, morria em fração de segundos. Após a nomeação de
seu pai como delegado da cidade, ele e mais 21 homens armaram uma emboscada para ele,
em um plano que não tinha como dar errado.
Após a construção da armadilha, Sebastião passara e acabou sendo surpreendido por
seu pai e seus homens. Quando se deu conta, correu num plano de fuga, mas foi perseguido
por alguns homens de seu pai. Quando chegou a um determinado ponto da rota, Sebastião
caiu do cavalo e acabou sendo cercado pelos homens da polícia, se vendo impossibilitado de
reagir, um dos homens sacou um facão de dentro da calça e apontou na direção do coração,
12
Recebi autorização do próprio Luiz Leal, em divulgar o nome verdadeiro deste personagem
marcante em sua trajetória de vida.
95
dizendo: - “Sebastião, você sabia que ia morrer”... E ele disse: - “eu sei!” Neste momento o
homem atravessou o coração de Sebastião, que não resistiu e morreu na hora.
A construção da crença nos espíritos é uma representação vital no imaginário deste
grupo. Luiz Leal, á exemplo, é um personagem que vive a espiritualidade. Não há como
transpor tal verossimilhança aos moldes do que considero palpável a posição acadêmica. Sua
trajetória inicia quando morava no Rio de Janeiro, e relata a presença de um espírito
“obsessor”, que retorna na sua vida, através da comunicação mediúnica que recebe do mundo
dos espíritos desde a infância.
No Rio de Janeiro, Luiz Leal conheceu através da Casa Espírita Caminheiros da
Verdade, conheceu a mesa de tiptologia, também conhecida como as mesas girantes.
Frequentou também outro Centro “Legionários de Maria”. Lá começou a estudar e se
envolveu nos estudos da chamada mocidade Espírita, com o objetivo de conhecer a doutrina
de Kardec, que considera fundamental: “para mim foi muito importante por que passei a
conhecer a ciência do Espírito, fundamental para compreender determinadas coisas, muitas
coisas do espírito, quem fornece é o espiritismo”. Continuou dizendo que só foi conhecer a
Umbanda muito tempo depois, após estar com uma boa bagagem de conhecimento da
doutrina Espírita:
Nêga
Já falecida, esta personagem participou juntamente com Luiz leal na fundação da Casa
Espírita Anjo Ismael. Foi também dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco
de Assis, onde atuou ativamente ao lado de seu colega Luiz Leal. Em seguida, passados
100
alguns anos, retorna a Casa Espírita Ismael, que passa por um período de transformação, após
um bom tempo sem funcionar. No retorno, volta com sua filha Sônia, casada com Adolfo, e a
partir daí o centro retoma suas atividades sob os moldes da ortodoxia Espírita.
Sônia
Filha da falecida Dona Nêga, nasceu na religião Espírita seguindo os passos de sua
mãe. Professora da rede estadual de ensino, esta personagem aparece durante o trânsito tendo
como característica ser adepta de uma cultura Kardecista, que lhe é própria. Casada com
Adolfo, é presidente do Centro Espírita Ismael na atualidade, e segue categoricamente
princípios ligados a filosofia Espírita.
Mineira
Mineira também a falecida, e também participou da primeira casa fundada por Luiz
Leal. Sendo uma seguidora fiel, foi convidada pelo próprio Luiz Leal a compor o corpo de
médiuns da casa recém-formada. Participou ativamente das atividades do MEFA, vindo a
falecer durante este período. Hoje a casa Movimento Espírita Francisco de Assis, conta com a
participação ativa de sua filha Maria Evangelista, compondo o corpo administrativo da casa.
Catarina
Esta personagem frequenta somente o Terreiro Reino e Ogum Beira Mar, casa que
escolheu para se fixar a 40 anos atrás. Juntamente com suas filhas, Catarina participou
ativamente na inauguração do terreiro, nos tempos em que as atividades eram desenvolvidas
na cozinha da casa da líder mediúnica do Terreiro. Catarina é aposentada, tem 63 anos de
idade, é casada, e tem três filhas. Duas delas aparecem nesta trama, e participam ativamente
101
das casas religiosas. Catarina é bastante conhecida por Luiz Leal, sendo ela participante ativa
desde os tempos em que o Centro Anjo Ismael, foi fundado. Sua trajetória é marcada pela
presença ortodoxa do Espiritismo, pois por vários anos frequentou Centros Espíritas, e ainda
hoje participa das atividades do Centro Espírita Ismael e o terreiro Reino de Ogum Beira,
comparecendo todas as sextas-feiras religiosamente. Não exerce mediunidade, comparecendo
ao terreiro como cliente, no entanto, sua participação mediúnica foi marcada pela história
destas casas, as quais serão descritas a seguir.
Maria
Maria é a personagem mais emblemática da história dessas casas. Filha de Catarina,
Maria presenciou ativamente e relatou através de sua memória, tendo em vista que é a filha
mais velha de Catarina, recordou muitos acontecimentos marcantes, sobre o trânsito e as
interconexões que foram sendo construídas entre estas casas ao longo do tempo. Esta
personagem participa das atividades do Centro Espírita Ismael, comparecendo em todos os
dias de funcionamento. E ás sextas-feiras Maria frequenta o Terreiro Reino de Ogum Beira
Mar, onde exerce o papel de Cambone, do personagem Preto Velho Pai Joaquim de Aruanda,
que se comunica com os clientes da casa através do médium Nei. Nei é outro personagem, já
referido em outros momentos a cima, e está ligado a Maria por laços de parentesco e
casamento.
Ísis
Ana é a filha mais nova de Catarina. Esta personagem cresceu dentro do universo
Espírita e ao mesmo tempo Umbandista. Hoje Ísis é médium ativa da Casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, e também do terreiro Reino de Ogum Beira Mar, também no
exercício mediúnico. Ísis percorre estes espaços desde pequena, acompanhando sua mãe
Catarina e sua irmã Maria, que também passou a infância transitando por estes espaços. Ana,
com 35 anos de idade, é casada com o dirigente espiritual da casa Movimento Espírita
Francisco de Assis. Possui trajetória marcada por dois espaços de culto, Espiritismo e
Umbanda, assim como sua mãe e sua irmã. Durante a descrição desta trajetória percorrida por
construções de redes ficará mais visível como este diálogo se dá na prática.
Paulo
Paulo, é servidor público Municipal, tem 51 anos de idade, é casado com Ana, filha de
Catarina, irmã de Maria. É dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis, e frequenta de vez em quando, antigamente, no levantamento de dados que foi
realizada para esta pesquisa, sua presença no terreiro Reino de Ogum Beira Mar era bem mais
102
intensivo, considerando seu laço de afinidade com Ana. Paulo se reconhece como Espírita,
apesar de comunicar através de práticas mediúnicas com personagens e práticas ritualísticas
identificadas na religião Umbandista. Atua como médium dirigente na casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, há mais de 20 anos, e é membro fixo da casa.
Rosa
Rosa tem 65 anos, Professora aposentada da rede estadual de ensino. É dirigente
espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, juntamente com Paulo. Rosa
possui uma trajetória marcada pela presença da Umbanda. Quando jovem era médium da
Umbanda, desenvolvendo suas faculdades mediúnicas. Depois de ter passado um bom tempo
entre os espaços ligados a Umbanda, Rosa conheceu a Casa MEFA, passando a frequentar
como adepta, em busca de um amparo e auxilio espiritual, onde passou por um período de
tratamento, assim como todos os clientes que buscam a casa para a cura e a resolução de
problemas difíceis.
Passados alguns anos, Rosa foi convidada a compor o corpo de médiuns da casa,
passando assim a participar ativamente como trabalhadora da Casa Movimento Espírita
Francisco de Assis, sob a orientação de Luiz Leal, Nêga, Mineira e José Pereira. Rosa possui
uma trajetória marcada pela Umbanda. E durante as atividades a qual realiza, incorpora o
Caboclo Tupinambá, Exu Tatá Caveira, entre outros, personagens arquetípicos da religião
Umbandista.
O que reforça esta afirmativa foi um acontecimento marcante que expressa este
diálogo que Rosa mantém com a prática da Umbanda. Segundo ela:
Durante nossa conversa, Rosa afirmou que, não se deve negar obrigação para orixá
nenhum, e que se deve ter muito cuidado com os pedidos que os espíritos da Umbanda nos
fazem, por que a maioria deles é nestas obrigações que estão depositadas todas as
possibilidades de cura e livramento de perturbações e perseguições espirituais. Por isso, deve-
se levar a sério o ato de ir ao cemitério para entregar marafa (bebida alcoólica) e cigarro a
Exu, por exemplo. Esta é uma constatação que só é possível, participando dos bastidores da
casa, e de momentos mais fechados, limitados e restritos. Pois estas práticas não são exercidas
publicamente, e não são anunciadas. Elas ocorrem de modo particular, privado e restrito. Mas,
apesar das restrições a Umbanda é evocada para vários momentos nas atividades da casa. Se
há fortes influencias do espiritismo sobre a Umbanda, em contrapartida, mesmo que
privativamente, há influencias e interferências da Umbanda, suas práticas rituais e seus
personagens arquétipos.
Benita
Com 76 anos, Benita é considerada a médium mais antiga, atua nas atividades da casa
Movimento Espírita Francisco de Assis, até o ano de 2017, interrompida por seu falecimento.
É a médium mais antiga, sendo a que presenciou a passagem do grupo da casa Ismael para a
casa MEFA, participando ativamente deste período de transição. Esta personagem se
considera Espírita Kardecista.
A partir de agora estes personagens irão aparecer alguns através das narrativas, outras
serão mencionadas por personagens que contam a história destas casas. Uns, serão narradores,
outros os que aparecem por entre as vozes de alguns. Esta pesquisa é qualitativa, e muitos dos
discursos que foram colocados serão levados pela pesquisa, a fim de refletir constatar a raiz
hipotética da proposta inicial.
3.2.2. Terreiro
Nei
Nei, com 48 anos de idade, casado com Maria é médium do Terreiro Reino de Ogum
Beira Mar, mas participa esporadicamente das atividades do Centro Espírita Ismael, o qual
frequenta juntamente com sua esposa. Nei iniciou sua trajetória religiosa dentro de um terreiro
de Umbanda, sendo esta sua identidade religiosa. Possui um perfil característico de um ser
Umbandista, não possuindo graus de afinidade com o Espiritismo, apesar de considerar
questões importantes ligadas a esta filosofia e religião. No entanto, tem apenas no Espiritismo
uma base, especialmente no que se refere a prática mediúnica, no entanto, sua tendência a
104
3.3. A Trama
No momento em que percorremos a construção histórica de vida de Luiz Leal, já
conhecendo a casa MEFA, é possível construir o sentido coerente dos motivos que fizeram da
casa o que é hoje. Este pensamento foi extremamente fecundo e de fato baseou toda a
formação discursiva e estrutural aliada à prática e formas das atividades rituais. Entender o
pensamento do fundador é um passo importante para decifrar os caminhos proferidos por
muitos dos interlocutores construtores desta pesquisa.
O pensamento ambíguo que insere Umbanda e Espiritismo em uma
complementaridade é uma contribuição do fundador e criador das casas que deu continuidade
às práticas exercidas até hoje, resultando na reprodução deste dualismo, que alia une
modalidades distintas, mas que consegue dialogar e comunicar uma lógica sofisticada em
âmbito pragmático.
De posse das especificidades da trajetória de vida – em especial a espiritual – do
fundador do MEFA, Sr. Luiz Leal, podemos afirmar que toda admiração que os adeptos, tanto
da casa quanto do terreiro, têm por este personagem foi fundamental para manter o caminho
aberto para a fluidez deste trânsito a que nos referimos.
Sobre fundação do MEFA, a equipe de Luiz leal que passa a compor o quadro de
médiuns era composta por: Catarina, Nêga, Mineira, Luiz Leal, Adolfo, Sônia, Maria Amada,
Merci, José Pereira, Ivete, dentre outros que já faleceram. Após a fundação, passados alguns
anos, um novo corpo de médium na casa é formado. No período em que Dona Nêga assumia a
diretoria Espiritual do Grupo, sempre sob a égide do Sr. Luiz Leal, o novo grupo de médiuns
é composto por: Rosa, Paulo (hoje dirigentes espirituais da casa MEFA), Boni, Reginaldo,
dentre outros.
Após a fundação do Movimento Espírita Francisco de Assis, ocorreram novos
conflitos que geraram mudanças. Como mesmo disse uma médium antiga da casa (que
preferiu não se identificar) “O MEFA foi fundado com o objetivo de juntar o Espiritismo com
a Umbanda. Está escrito no estatuto do MEFA e ninguém jamais conseguiu mudar esta ideia
que foi criada pelo Sr. Luiz fundador das casas” (Caderno de campo, 2013).
Outra médium, também antiga da casa, reforça que:
105
Luiz Leal, fundador do MEFA, inseria elementos da Umbanda nos rituais. Ainda de
acordo com a outra médium antiga que não quis se identificar:
Outra personagem participou deste momento da ruptura é Dona Nega. Já falecida, esta
personagem participou juntamente com Luiz leal na fundação da Casa Espírita Ismael. Foi
também dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, onde atuou
ativamente ao lado de seu colega Luiz Leal. Em seguida, passados alguns anos, retorna a Casa
Espírita Ismael, que passa por um período de transformação, após bom tempo sem funcionar.
No retorno, volta com sua filha Sônia, casada com Adolfo, e a partir daí o centro
retoma suas atividades sob os moldes da ortodoxia Espírita. A título de informação, Adolfo é
também filho do Sr. Luiz Leal. Dirigente espiritual do Centro Espírita Ismael, juntamente com
sua esposa. Possui formação religiosa na Umbanda, onde transitou por muitos anos,
juntamente com seu pai Luiz Leal, mas hoje se considera a pratica do Espiritismo como
alicerce de sua vida religiosa.
Assim, o que segue são lembranças da participação da Sra. Nega, na tentativa de nos
orientar quanto à compreensão deste período. Nessa perspectiva, Adolfo (filho do Sr. Luiz)
afirma que no tempo em que seu pai era dirigente da Casa Ismael, a Sra. Nega era uma das
médiuns que compunham o grupo e era a que tinha mais tinha afinidade com o dirigente.
Sendo assim, ela o acompanhou quando da criação do MEFA:
106
Foi justamente nesta época que Paulo e Dona Rosa começam a frequentar o MEFA,
para se tratar espiritualmente. Com o passar do tempo, Paulo (casado com Ísis) e Rosa
tornam-se os dirigentes espirituais da casa espírita Francisco de Assis. Continuando a fala de
Maria:
No momento em que Dona Nega assumia a liderança espiritual na
casa, houve um conflito e após a volta do Sr. Luiz do Rio de Janeiro a
Dona Nega pegou seu grupo e voltou para o Ismael, onde permaneceu
até o fim da sua vida. E o Sr. Luiz permaneceu no MEFA até o fim
também. E hoje Sônia (filha de Dona Nega) e Adolfo (filho de Sr.
Luiz), ambos casados, dirigem as atividades da Casa Espírita Ismael
(MARIA, 08/2013, Dourados, MS).
Adolfo relatou que participou de todo processo da fundação da casa Espírita Francisco
de Assis, e frequentou lá por muito tempo, por influência de seu pai, que acompanhava
sempre. E conta também o que o levou a voltar para a casa Ismael:
Paulo (atual dirigente do MEFA) conta que na época da Sra. Nega, existia no MEFA
um grupo mais voltado para a doutrina espírita de Kardec, estas pessoas, eram do grupo que
mais se preocupava em estudar a doutrina e praticar nas atividades da casa os preceitos
doutrinários aconselhados pelo Pentateuco Kardequiano. Ainda segundo Paulo, ele não fazia
107
parte deste grupo, já que fazia parte do grupo da desobssessão responsável por espíritos mais
violentos e grosseiros, sofredores.
Estes espíritos contrastavam com os espíritos considerados superiores, de inteligência
elevada. Estas atividades, em grande parte eram voltadas para questões ligadas à magia,
feitiçaria, ou seja, aqueles espíritos que traziam um caráter de densidade, percebida na
quantidade de elementos materiais utilizados, sendo assim classificados como espírito inferior
por receber influencia do mundo material.
Na época em que havia uma demarcação intensa entre estes grupos contrastantes, o
grupo que estava mais voltado para a doutrina de Kardec montou um curso de passe, com o
objetivo de eliminar algumas práticas exercidas no MEFA, buscando adotar outras de acordo
com as predeterminações exigidas e aconselhadas pela FEB (Federação Espírita Brasileira).
Tratava-se do mesmo grupo que tentou promover a ideia de que a Casa Espírita Francisco de
Assis deveria se afiliar a FEB, o que de fato não aconteceu. Seguindo a fala do dirigente,
enquanto ocorria o curso de passe segundo a FEB pelo grupo dos estudiosos, na sala ao lado,
neste mesmo horário reunia-se o outro grupo que coincidentemente era integrado por médiuns
que vieram da Umbanda para participar das atividades da Casa.
Logo existia o grupo Espírita e o grupo Umbandista, que estavam em conflitos e
promoviam atividades conjuntas no mesmo dia e horário. Enquanto o grupo Umbandista
pautava suas atividades na desobssessão, o grupo espírita promovia um curso para ensinar a
dar passe segundo a FEB. Um dia, durante as atividades do grupo espírita que objetivavam a
aplicação de passes, uma mulher foi subitamente tomada por um espírito que aparentava uma
violência e um descontrole descabido, fazendo com que as dirigentes do curso se vissem
impossibilitadas de fazer qualquer coisa, pois na realidade não sabiam o que fazer.
Diante de uma situação a qual não dominavam e não sabiam como agir, bateram na
porta do outro grupo composto por Umbandistas e pediram ajuda para dar conta daquele
espírito que tinha tomado o corpo da mulher, e gentilmente o grupo acolheu a mulher na sala,
chamouà entidade “Exu Tranca-Rua” para encaminhar o espírito e tudo ficou sob controle e
voltou à normalidade.
Para finalizar esta ilustração, cabe localizar quais as pessoas importantes nesta trama
compunham estes grupos. O grupo Espírita que se baseava em preceitos de Kardec e visava
uma futura filiação à FEB era liderado por Sônia, hoje doutrinadora da Casa Espírita Ismael,
mulher de Adolfo (filho de Luiz Leal), filha da Sra. Nega dirigente espiritual do MEFA e do
Ismael. O grupo Umbandista era contra a filiação à FEB, composta por adeptos advindos da
Umbanda, era composto por Rosa, dirigente espiritual do MEFA, Paulo, dirigente espiritual
108
13
Mineira também já é falecida. Participou da primeira casa fundada por Luiz Leal e foi uma
seguidora fiel, convidada pelo próprio Luiz a compor o corpo de médiuns da casa recém
formada. Participou ativamente das atividades do MEFA, que hoje conta com a participação
ativa de sua filha Maria Evangelista compondo o corpo administrativo da casa.
109
provável que esta necessidade viesse de uma demanda crescente que ocasionou conflitos e
divergências formando a necessidade de um segundo espaço.
Porém a Casa Franciscana possui similaridade nas atividades, no entanto, suas marcas
singulares são inúmeras, e podemos afirmar que, de acordo com nossa experiência na Casa
Franciscana, esta é marcada por fortes influências do Kardecismo juntamente com o
Catolicismo, o que foi comprovado pelo fato de que se apropriaram de cânticos da Igreja
Católica, excluindo os pontos cantados da linha de Umbanda.
Como esta segunda casa não faz parte da nossa pesquisa em seu sentido êmico, nos
ateremos apenas a afirmar que ela existe, mas nos dias atuais ela funciona em um alto grau de
autonomia e, por fim, não observamos ao longo dos anos de vivência no MEFA, o trânsito
existente entre esta casa e o MEFA, tampouco entre o Terreiro.
A existência do conflito ocorre à medida que o diálogo entre Umbanda e Espiritismo
se choca. Tais relações conflituosas são positivas no sentido de fomentar o movimento e o
fluxo contínuo à formação de novas casas enquanto continuidades de um processo anterior.
Esta forma singular da configuração deste conceito se dá a partir de um processo produzido
através das relações, sendo estas as que determinam a configuração do campo religioso o qual
se baseiam.
A relação estabelecida entre os grupos das casas com suas respectivas identificações
de modalidade religiosa (Umbanda e Espiritismo) são determinadas por interconexões
estabelecidas nas relações, que ao longo dos anos vêm tecendo redes (STRATHERN, 2006).
É evidente que os principais elementos propulsores das discordâncias internas entre
estes grupos, que foram ocasionando cismas, desmembrando assim a formação de novas
casas, é a necessidade de institucionalizar a proposta do Espiritismo que em vias de regra
exclui qualquer possibilidade pratica e ideológica que justifique a necessidade de agregar
sinais diacríticos Umbandistas em suas atividades.
Então os conflitos se encerram entre os que entendem a necessidade de elementos
Umbandistas inseridos nas atividades, e aqueles que buscam a institucionalização ortodoxa
Espírita corporificando a presença da Federação Espírita Brasileira – FEB, que em tese,
normatiza e estabelece regras as quais devem ser seguidas com rigidez. Não se trata de um
conflito pautado na tradução, ou no abismo cultural presente entre estas modalidades
religiosas, mas sim, trata-se de um desentendimento gerado à medida que, ambos se
conhecem muito bem, e sabem exatamente o que é Umbanda e Espiritismo. Assim, este
problema está vinculado a relações de poder simbólico religioso.
111
Agora é que nós estamos estreitando laços com a FEB, está havendo
um interesse por parte do grupo em se relacionar com a federação,
mas a Federação orienta algumas coisas que não condiz com a nossa
maneira de trabalhar, como por exemplo, o fato do dirigente estar
112
O fato da casa não ser filiada à federação espírita, contribui a algumas analogias com
relação ás outras duas casas que estarão envolvidas entre si. Como já foi dito aqui em algum
momento, o MEFA não possui relações com a FEB, e o Terreiro Reino de Ogum Beira Mar,
não possui vínculo com a Federação Umbandista de igual forma. Logo, o fato destas casas
não serem vinculadas às instituições e classes federativas, sugere um ponto em comum entre
elas, para dizer que, de alguma forma elas compõem um quadro de similaridades. Após tornar
claro este ponto comum, desejo continuar a tecer esta rede repleta de conexões.
Os sinais diacríticos Umbandistas estão presentes em todas as casas, porem o grau de
entendimento, liberdade, e espaço ás estas entidades possuem intensas oscilações e diferenças,
pois em cada uma delas, eles são vistos de formas distintas, e por mais que haja ideias em
comum, o espaço destes sinais afirmados a partir de um circuito de negação, retirando-lhes
características, a fim de reafirmar sua presença, que é controlada, umas mais outras menos. O
importante é dizer que apesar de estarem presentes, os graus de entendimento pragmático são
completamente diferentes, e isto é algo que procurei tornar explicito na primeira parte desta
análise, bem como expressar o pensamento do criador para contribuir a visualização do
andamento das casas que fundou.
De acordo com o autor fundador: “No kardecismo eu meu intelectualizei, e na
Umbanda conheci a humildade”. Em sua trajetória de vida no campo religioso, dá-se
claramente a impressão de que, tanto a Umbanda como o Espiritismo estavam
continuadamente envolto as suas experiências. Serão apresentados os interlocutores, que
aparecem à medida que a história vai sendo contada, a partir dos relatos e da experiência de
campo. Após a fundação outras trajetórias viabilizam maiores detalhes sobre esta
demonstração analítica.
Naquela época, alguns integrantes possuíam famílias, sendo grande maioria filhos, que
também compõe o corpo narrativo sobre os acontecimentos. Muitos interlocutores se
encaminharam na religião Centro Espírita por circunstâncias familiares. Os que irão narrar o
Ismael antigo são aqueles que já cresceram dentro de um centro espírita, e assim foram
construindo sua trajetória a partir de algo que já estava estabelecido pelos laços de família.
Naquela época Catarina, integrante do grupo do senhor Luiz leal, tinha duas filhas que
a acompanhava, eram elas Maria e Ísis. Mineira, tinha uma filha de nome Maria, todos
membros da casa. Nêga tinha uma filha, chamada Beatriz, Luiz Leal, dentre seus filhos,
113
Adolfo foi o que mais se destacou ao tomar a frente dos trabalhos do Centro Espírita Ismael.
Outra personagem que também estava presente nesta primeira etapa é Benita. Estive
conversando com ela, pois até hoje é médium do MEFA.
Benita possui 26 anos de MEFA: “eu ajudei a construir e levantar com as minhas
mãos aqueles tijolos para construir o alicerce daquela casa”, que participou das atividades do
Centro Espírita Ismael compondo o grupo do Sr. Luiz Leal dirigente espiritual da casa. Nos
dias de hoje, é membro da sala de cura há uns 10 anos, e segundo ela, do tempo do Sr. Luiz
Leal e da Sra. Nêga ela é a única que permanece viva nas atividades da casa. Segundo ela:
Após este acontecimento, Sra. Benita começou a participar da casa anjo Ismael.
Segundo a autora nos próximos dias os quais passou a frequentar a casa, recebeu o “mentor
espiritual” que a acompanhava, este mentor pertencia à linha de Oxossi, e seu nome é
Caboclo da Mata Virgem: até hoje ele é meu “guia”. Ou seja, desde aquela época no anjo
Ismael os espíritos que ali trabalhavam pertenciam à égide da Umbanda: La trabalhava com
Umbanda e Kardecismo, mas era muito diferente do MEFA(BENITA, 06/2013, DOURADOS
- MS).
Este relato enfatiza a concretização de uma experiência que expressa uma mudança no
cenário da vida, modificada a partir de um rito de passagem para uma religião espiritualista.
De acordo com a fala desta personagem, a mudança do dirigente fundador para a formação e
fundação da Casa São Francisco de Assis ocorreu devido a um desentendimento com um dos
dirigentes da casa anjo Ismael, levando a conflitos que geraram necessidades a criação de uma
114
nova casa. Após a fala desta personagem me coloco a descrever as narrativas da interlocutora
Maria. Maria é filha de Catarina, integrante da Casa espírita Ismael no período da fundação.
O fundador, ao perceber que muitas pessoas estavam com dificuldade de chegar e
frequentar a casa, pois a mesma se encontrava do “outro lado da cidade”, fundou um novo
espaço de culto que em breve estaria em funcionamento, estaria localizada em outro ponto da
cidade de Dourados-MS, que por coincidência estaria localizado em uma área periférica da
cidade, aonde sobrevive até os dias de hoje.
Alguns relatos demonstraram que, a origem do atrito é o eixo central da saída do
dirigente. Apresento a seguir ás opiniões que expressam os acontecimentos potenciais a
ruptura e cisão em que a Casa Francisco de Assis, seria continuidade da Casa Espírita Ismael,
em termos de práticas e métodos ritualísticos.
Após expressar questões referentes à sua primeira fundação na cidade de Dourados –
MS, Luiz começa a fornecer indicativas de como surgi à ideia de uma segunda fundação:
sua primeira casa. Mais adiante, em outro momento, estará bastante claro como à liderança do
fundador influenciou a formação da identidade ideológica das práticas que foram sendo
adaptadas, a partir desta primeira fundação.
Ao que tudo indica a Casa Ismael ter sido criada com o intuito de atender ás
necessidades que para Luiz Leal, era de extrema urgência, mas, deve ser dito, que a Casa
Ismael, foi formatada aos moldes das atividades que já eram exercidas no Rio de Janeiro,
onde Luiz fundou sua primeira casa Espírita, cujo diálogo, Umbanda e Espiritismo já era um
fator ideológico.
A intenção de vincular Umbanda e Espiritismo sempre foi primordial para o
entendimento de Luiz Leal, a Casa Espírita Ismael ganha uma roupagem peculiar, pois desde
aquela época as práticas rituais exercidas na Casa Ismael era a inserção de um novo produto
de bens oferecidos para a população douradense que se firmava.
Isto expressa que esta casa possuía peculiaridades que a mantinha em um lugar
diferenciado. A seguir trago as falas dos interlocutores que presenciaram a época e me
relataram alguns trechos de como eram promovidas atividades na Casa Espírita Anjo Ismael,
como era denominada antigamente pelo fundador e frequentadores. Posso sondar que o
principal capital oferecido pela casa era o fenômeno da possessão.
Durante o período da descrição, alguns interlocutores entram em cena para apresentar
sua experiência na Casa Espírita Anjo Ismael, como era identificada naquela época.
Considerando as temporalidades diferentes, cabe uma contextualização deste momento que só
se faz possível demonstrar através da memória. Assim, o primeiro tempo data o ano de 1976.
No intuito de fornecer subsídios para o entendimento de como a Casa Ismael foi fundado,
bem como as atividades que eram desenvolvidas, tendo em vista os afastamentos e
aproximações característica deste processo. Maria, diz:
Assim, indaguei sobre como se dava ali na casa Ismael o desenvolvimento mediúnico,
segundo Maria: “era gira! Minha mãe desenvolveu girando.”
118
sofre inúmeras modificações e mudanças no cenário ritualístico, e a cada dia passa a adotar
um modelo que caminha para uma identificação ortodoxa Espírita.
Estas Casas fundadas por Luiz tiveram contribuições de outras pessoas, que já
faleceram alguns recentemente, outros há algum tempo. E de todos os fundadores e dirigente
antigos que vivenciaram naquele tempo, Luiz é o único que permanece vivo. A partir desta
fala proferida pelo fundador das casas que me propus a estudar, quero justificar a necessidade
de introduzir a Casa Espírita Ismael como um adicional para contribuir a contextualização da
fundação do MEFA.
Para entender o sentido desta fundação, é necessário percorrer as ocorrências que
desencadearam esse processo. O MEFA é o resultado de um processo anterior, e que senão
por vias da primeira fundação, é possível que sua implementação não se concretizasse. Por
isso, deve-se traçar um fio condutor que nos vele ao entendimento dos elementos que
impulsionaram e fomentaram a construção de um novo espaço. Não se tratando somente de
duas casas no momento se trata de três que estão intimamente interligadas e conectadas
através de relações estabelecidas no passado e que prolifera até os dias de hoje.
No que se refere ao momento da cisão, que dá inicio ao processo de continuidade da
Casa Espírita Francisco de Assis como originária de atividades estendidas, que remonta a
Casa Espírita Ismael, foi elucidado na fala do Sr. Luiz que, o principal motivo que impulsiona
a criação de uma nova casa, foi o grande número de pessoas que buscavam atendimento
espiritual, promovendo a necessidade de novos espaços, que pudesse atender a demanda que
crescia ao longo dos anos. Em suma, a fala do fundador, é que o MEFA foi criado para
atender a demanda que a Casa Espírita Ismael já não comportava.
Mas, ao ouvir as falas dos outros interlocutores que assistiram este processo de
mudança, é perceptível que esta ruptura, poderia ter outros aspectos que fomentaram este fato.
Alguns depoimentos apontam que:
Toda casa tem uma presidência no comando, mas a gente sabe que
com o tempo novas pessoas aparecem para assumir aquilo que
antigamente era responsabilidade de outra pessoa. Por que com o
tempo outras pessoas vão assumir para substituir quem estava ali até
então, e estas pessoas vêm com ideias novas, isso é normal, toda casa
é assim. O que deve ter acontecido é que com o tempo da casa, outras
pessoas vieram em seguida, e o Sr. Luiz estando houve algum atrito na
maneira de pensar por conta das colocações que estavam sendo
120
impostas pelas pessoas novas, e isso criou uma divergência entre eles,
e aí as casas se separaram. (Caderno de campo, 09/2013).
Quando eu falei sobre a casa ficar muito Kardecista, quis dizer, muito
cheia de regras que a federação espírita acaba impondo. Por que tem
muitos espíritas que nunca foram umbandistas. Uns nasceram espíritas
e outros vieram da igreja católica para o Espiritismo. E estas pessoas
acabam se enchendo de teoria, é bonita, a ciência espírita é
maravilhosa! Com isso, eles começam a ficar muito fundamentalistas,
só aquilo está correto e nada mais. E acabam não aceitando que outras
pessoas vêm de outras culturas religiosas, do budismo, Umbanda,
Candomblé e acabam trazendo outras bagagens de conhecimento. Aí
começa a achar que está errado, mas a função da Casa espírita é
acolher, quem quer que seja. (MARIA, 09/2013, DOURADOS - MS).
legitimidade do Espiritismo. Por isso, esta expressão “muito Kardecista” faça referência ás
identificações com a FEB. Pois o espiritismo é uma instituição religiosa, e a atribuição e
identidade da modalidade espírita evocam a presença da FEB, pois é ele quem fomenta e
determina os preceitos que deverão ser seguidos para que haja uma real relação com a
“pureza” Espírita. Durante a passagem desta autora, recordo da segunda conversa que tive
com o Senhor Luiz leal, em que ele me disse que:
Com o tempo as pessoas vão mudando, e toda pessoa que entra vem
com um conhecimento diferente do outro, e cada um trabalha de um
jeito diferente. O Renato modificou os trabalhos do Ismael
completamente depois do senhor Luiz leal, por conta das diferenças de
ideia. E cada dirigente adéqua os trabalhos da casa de acordo com sua
própria visão da doutrina que se orienta. E também por que o espaço
lá ficou pequeno demais para ele, e como ele tinha terreno para
construir outra casa ele acabou fundando o MEFA. Eu acho que deve
ter sido essa divergência de pensamento que deve ter ajudado a
122
Após a exposição destas falas pretendo agora começar o tecer da rede que interliga e
pode significativamente contribuir ao entendimento da formação do trânsito e das mobilidades
existentes entres estas casas. Para tal buscarei trazer a todo instante os interlocutores para
orientar e esclarecer os caminhos que foram percorridos para a construção da rede.
A história desse processo constitui as falas dos interlocutores já apresentados acima.
Estas narrativas são fundamentais pois, foram estes que estiveram presentes nesta transição.
Iniciamos com a interlocutora Maria. Como foi dito, Maria é filha de Catarina, uma das
integrantes do grupo de Luiz leal, nos tempos de Anjo Ismael. Maria cresceu na Casa Espírita
Ismael, e contribuiu para o entendimento do como foi sua experiência até os dias de hoje.
O percurso para tecer a rede de relações as quais interagi para produzir o campo desta
pesquisa, ocorre de modo esporádico, mas, não por acaso. A medida que as informações
foram surgindo, os sentidos foram conduzindo os narradores a partir das informações
relatadas. A partir do primeiro informante inicia a composição das subsequentes narrativas,
que tiveram a contribuição da experiência de campo, elaborando os assuntos, que iam se
destacando pontualmente nas falas anteriores.
No caso de Maria, em nenhum momento os informantes mencionaram seu nome.
Contudo, ao se dar conta da relevância do centro Espírita Ismael, não seria possível
compreender as origens fundadoras do MEFA, sem recorrer a acontecimentos que foram
produzidos nas relações práticas ocorridas no período de sua fundação.
Conheci Maria no terreiro de Ogum Beira Mar, contados o recuo temporal de 2013.
Sua ligação com o terreiro, e até mesmo com a experiência de transe mediúnico por
intermédio de seu marido. Além de comparecer assiduamente no Terreiro, também frequenta
a casa Espírita Ismael, na evangelização nas terças-feiras, e nas segundas-feiras no
atendimento fraterno.
Durante nossa conversa relata sua experiência quando pequena em que o Sr. Luiz Leal
resolve deixar a Casa Ismael, para fundar outra casa, que mais adiante seria reconhecida como
Casa Espírita Francisco de Assim. Dentre inúmeras colocações das falas de Maria, deixa
evidente algumas questões referentes a saída do Sr. Luiz dizendo que:
123
Maria relatou uma história que caminha dentro de uma lógica bastante sofisticada
para compreensão da sua permanência na Casa Espírita Ismael, justificando também a
permanência de sua Irmã na Casa Espírita Francisco de Assis:
...isso ficou muito claro na minha cabeça, quando o meu mentor, por
intermédio de uma médium da Casa de Ismael me disse: “eu vou
trabalhar com você nesta casa, e eu quero trabalhar verdadeiramente
na área da Cura, e eu estou aguardando sua disposição para o trabalho
e meu nome é “Ismael”. Então ali eu entendi que a minha casa era lá,
e o da minha irmã é o Tupinambá. Tupinambá é mentor da Dona Rosa
(dirigente espiritual da Casa Espírita Francisco de Assis), então ela
tem que estar no MEFA e não no Ismael. Para minha família ficou
esta herança, você ajuda aqui, você ajuda ali e assim por diante. E eu
gosto muito do MEFA e do terreiro, mas a minha casa é o Ismael
(MARIA, 05/2013, DOURADOS - MS).
anos, entra um novo corpo de médium na casa. No período em que Dona Nêga assumia a
diretoria Espiritual do Grupo, sempre com a presença de Luiz Leal. O novo grupo é composto
por: Rosa, Paulo (hoje dirigentes espirituais da casa MEFA), Boni, Reginaldo, dentre outros.
Luiz Leal, fundador do MEFA, aplicava as linhas de Umbanda, aos rituais do MEFA.
Ainda de acordo com esta médium antiga, que não quis se identificar:
Tempos atrás, a Sr. Nêga era uma das médiuns que compunha o grupo de maior
afinidade com o Sr. Luiz. Assim, foi uma das integrantes que acompanhou o Sr. Luiz na
fundação e construção do MEFA. Participou o Sr. Luiz, Marcel, Beatriz, Nêga e Catarina mãe
de Maria. Segundo a fala de Maria, esposa de Nei:
Com base nesta informação, coincide a época em que Paulo e Rosa começam a
frequentar o MEFA, para tratamento espiritual. Hoje (2020), Paulo e Rosa são dirigentes
espirituais da casa espírita Francisco de Assis:
No momento em que Dona Nêga assumia a liderança espiritual na
casa, houve um conflito e após a volta do Sr. Luiz do Rio de Janeiro a
Dona Nêga pegou seu grupo e voltou para o Ismael, onde permaneceu
até o fim da sua vida. E o Sr. Luiz permaneceu no MEFA até o fim
também. E hoje Beatriz (filhas de dona nêga) e Marcel (filho de Sr.
Luiz), ambos casados, dirigem as atividades da Casa Espírita Ismael.
(MARIA,07/2013, DOURADOS - MS).
Adolfo relata que participou de todo processo da fundação da casa Espírita Francisco
de Assis, e frequentou por muito tempo, por influência de seu pai, que acompanhava sempre.
E conta também o que o levou a voltar para a casa Ismael:
Numa quarta-feira de estudo na casa MEFA, o dirigente espiritual relatou uma história
que sustenta as considerações feitas anteriormente. Na época da Sra. Nêga existia no MEFA,
um grupo mais voltado para a doutrina espírita. Segundo ele era o grupo que mais se
preocupava em estudar a doutrina e, posteriormente, aplicar nas atividades da casa.
Os comandos de divergências nos paradigmas doutrinairios, é um dos pontos
simbólicos relevantes. A afirmação e declaração do pertencimento a alguma idéia especifica,
é um fator que indica uma posição evocada por um contraste de opniões. Nesse sentido, havia
grupos divergentes dentro do MEFA naquela época, não que isto tenha deixado de existir.
Estas discordâncias são os principais aspectos que enfatizam o caráter complementar da
Umbanda e do Espiritismo, que reflete na função do transe, que media esta aproximação. O
grupo da desobssessãocompõe uma das atividades que articulam funções nas experiências do
transe, a partir de uma conciliação dialógica que articula a Umbanda e o Espiritismo.
Normalmente, segundo relatos, estas atividades eram voltadas para questões ligadas a magia,
ou seja, aqueles espíritos que traziam consigo um grau de maldade, por isso, são classificados
como espíritos inferiores.
Na época em que havia uma demarcação entre estes grupos, os que se afinavam com o
espiritismo, promoveram um curso de passe, com o objetivo de eliminar algumas práticas
exercidas no MEFA, buscando adotar outras de acordo com as predeterminações exigidas pela
FEB – (Federação Espírita Brasileira), se tratava também do mesmo grupo que propagou a
ideia de que a Casa Espírita Francisco de Assis deveria se afiliar a FEB, o que de fato não
aconteceu. Seguindo a fala do dirigente, enquanto ocorria o curso de passe segundo a FEB
pelo grupo dos estudiosos, na sala ao lado, neste mesmo horário reunia-se outro grupo que
integrado por médiuns que vieram da Umbanda para participar das atividades da Casa.
O grupo MEFA se dividia entre Espíritas e Umbandistas, que estavam em conflitos e
promoviam atividades conjuntas no mesmo dia. Enquanto o grupo Umbandista pautava suas
atividades na desobssessão, aliados a entidades da Umbanda, o grupo espírita promovia um
curso para ensinar a dar passe segundo a FEB.
Dentro das atividades do grupo espírita, ocorreu um evento em meio às atividades que
objetivava a aplicação de passes. Uma mulher recebe um espírito que aparentava uma
violência e descontrole, fazendo com que os integrantes do curso se vissem impossibilitados
de fazer qualquer coisa, por não desenvolverem habilidade com tais fenômenos. Diante dessa
situação a qual não sabiam como agir, bateram na porta do outro grupo onde os umbandistas
estavam reunidos, e pediram ajuda para dar conta daquele espírito que tinha tomado o corpo
127
da mulher, e gentilmente o grupo acolheu a mulher na sala, chamaram o “Exu tranca rua” para
encaminhar o espírito, e tudo ficou sob controle e voltou à normalidade.
O diálogo da Umbanda com o Espiritismo faz parte do contexto cotidiano destes
grupos, pois esta relação define, e diz muito sobre o grupo na forma como produzem seus
espaços de representação. Esta relação é uma instituição social dos grupos destas casas as
quais estão sendo relacionada, a partir da convivência e diálogos estabelecidos pelos próprios
atores sociais envolvidos. Para finalizar esta ilustração cabe localizar quais as pessoas
importantes nesta trama compunham estes grupos.
No grupo Espírita que se baseava em preceitos de Kardec, visando uma futura filiação
á FEB, era liderada por Sônia, hoje doutrinadora da Casa Espírita Ismael, mulher de Adolfo
(filho de Luiz Leal), filha da Sra. Nêga dirigente espiritual do MEFA e do Ismael. O grupo
Umbandista era contra a filiação á FEB, composta por adeptos advindos da Umbanda, era
integrado por Rosa, Paulo, Reginaldo (médium umbandista do MEFA), e outros que
conjuntamente praticaram a umbanda e quimbanda na casa.
Inserindo considerações de Maria (filha de Mineira), sobre o momento de ruptura, ao
que tudo indica, houve um tempo que o Grupo da Dona Nega assumiu a presidência do
MEFA, impondo alguns desejos de mudanças, dentre eles, a necessidade de uma orientação
mais sistemática concretizada pela presença da Federação Espírita Brasileira. Neste momento
é que entra Sônia, filha de Dona Nega, atual dirigente da Casa Espírita Ismael, e esposa de
Marcel, filho de Luiz Leal, e também dirigente da Casa Espírita Ismael. Segundo Maria (filha
de Mineira):
Depois que eles assumiram a presidência do MEFA, eles quiseram
modificar as atividades da casa por completo, com o objetivo de
vincular a casa à federação espírita Brasileira. Para mim este conflito
que teve é poder e status. E todos aqueles que tentaram mudar o
MEFA, saíram, o foi isso que aconteceu com a turma da Beatriz. Esse
grupo que voltou para o Ismael queria mudar o estatuto do MEFA, e o
nome. De Movimento Espírita Francisco de Assis, quiseram mudar
para Centro Espírita Francisco de Assis. Eles tentaram me levar para o
Ismael para trabalhar com a evangelização, mas, eu não fui. E isso
aconteceu também com relação a outro grupo, que por divergência de
pensamento, não estava contente com as práticas do MEFA, e este
grupo saiu de lá e ai fundaram o Franciscano, com ajuda do Sr. Luiz
Leal. Penso que isto ocorreu devido a algumas pessoas que chegaram
128
Sônia é adepta do Espiritismo e não participa das sessões da casa MEFA. De acordo
com as falas sobre a identificação com relação à Nega, afirmando que era umbandista,
participando das atividades da casa, inclusive que foi desenvolvida por Luiz Leal, sob a égide
de pontos e cânticos característicos das linhas de Umbanda. Logo perguntei a Maria (filha de
Mineira) sua opinião sobre isso: o problema é que a filha dela era mais para o lado de
Kardec, e em respeito à filha dela, ela acabou voltando para o Ismael para ajudar a filha
dela lá. Então foi por causa da filha que ela voltou. Maria justificou sua ida para o Ismael,
tendo em vista um vínculo familiar.
Nesta fala é firmada uma segunda ruptura que ocorre na Casa Espírita Ismael, dando
origem a uma terceira fundação, o qual Luiz Leal exerce papel fundamental. Segundo
algumas colocações dos interlocutores, a justificativa mais presente é, a partir do momento
que estabelece divergências de afinidade da parte de um grupo com relação a outro, ficou
estabelecido sobre a necessidade de criar uma terceira casa, o qual este grupo pudesse
desempenhar maior autenticidade no campo religioso que as instituições mediúnicas possuem,
por um dinamismo estruturado pelo transe e o desenvolvimento da capacidadrdr estabelecer
comunicação com os espíritos.
Em nenhum momento houve tensão no período da fundação da Casa Franciscano,
tanto que, ouvi que muitos dos frequentadores do MEFA, migraram para esta nova casa
naquela época, a fim de aplicar as práticas exercidas no MEFA, pois ali seria um “segundo
MEFA”, tanto que, Luiz Leal, naquela época foi para lá com o objetivo de orientar as
129
atividades da casa, por muitos dos participantes estarem aprendendo a caminhar neste
universo metodológico instituído pela casa anterior.
Segundo o fundador, a segunda casa surgr da necessidade de atender pessoas que
residiam em outro ponto, muito distante do MEFA, para suprir a dificuldade de deslocamento,
tendo em vista que, Luiz Leal sempre se preocupou em atender os mais necessitados e
impossibilitados de se deslocar devido a posição social que ocupavam. De acordo com esta
justificativa, mais a justificativa do grupo, é provável que esta necessidade viesse de uma
demanda crescente que ocasionou conflitos e divergências formando a necessidade de um
segundo espaço.
Porém a Casa Franciscana, possui similaridades nas atividades, no entanto suas
marcas singulares são inúmeras, e posso dizer que, minha experiência na Casa Franciscana é
marcada por fortes influencias do espiritismo e do Catolicismo. Isto foi expresso através de
cânticos da Igreja Católica, e os pontos cantados da linha de Umbanda são reduzidos.
Haja vista, limitamos no percurso destes espaços, suficiente para construir as bases
necessárias para sua sustentar esta pesquisa. A apresentação desta ruptura encerra a dinâmica
dos motivos vinculados ao conflito.
Cabe aqui apropriar-se de um conceito que permite explicitar melhor o que se quer
definir por incorporação:
Quando um médium permite a interferência de uma entidade
espiritual, o seu “eu” torna-se residual dando, assim, prioridade a
outro ser, personagem, entidade, promovendo um processo de
desterritorialização, onde desloca-se, movendo-se, dando passagem a
outro. Assim sendo, não somente o corpo ritualístico é deslocado, mas
também a capacidade de pensar, pois a partir daquele momento o
corpo e a cabeça estão sujeitos a manifestações de outro que mede
seus atos a partir do deslocamento. Logo, a incorporação é um
fenômeno intelectual desterritorializante, em que o sujeito entrega não
somente seu corpo, mas também sua capacidade de promover ações e
pensamentos a uma entidade para fora do controle do eu consciente
(ANJOS, 2006, p.20).
afastamento que a cultura Espírita mantém, envolvendo a comunicação direta com os mortos.
Assim, a incorporação é um elemento facilitador que dá acesso ao universo umbandista, em
âmbito singular da particularidade dos grupos correspondentes.
Segundo alguns autores, o que chama atençãono ato de comunicar-se com os mortos, é
que, não bastasse sua presença corporificada através da experiência mediunica, estes espíritos
falavam com os vivos através de uma linguagem acessível a todos. Desta forma, o corpo e a
fala são elementos que caracterizam a “incorporação”. No entanto, existem meios os quais
este fenômeno acontece.
No caso do Espiritismo, os espíritos incorporados nos médiuns se comunicam através
da fala, ao passo que no Candomblé, por exemplo, tais expressões e códigos são proferidos
através da linguagem corporal. Já a Umbanda assimila estas duas formas de comunicação em
apenas uma, absorvem expressões correspondentes ao corpo, através das performances da
chegada e permanência das entidades da Umbanda, sendo sinalizadores da presença
característica arquetípica de um espírito, bem como a linguagem, através da conversa com o
público (BRUMANA; MARTINEZ, 1991, p. 88-89).
O termo utilizado para caracterizar a presença do espírito é a “incorporação”. Assim, o
grupo, de um modo geral, identifica este fenômeno como algo pertencente à prática
Umbandista. Diferentemente das práticas de passes magnéticos e palestras proferidas no
início das atividades.
A exemplo de Maria Laura Viveiros de Castro (1983), o objetivo é demonstrar através
das narrativas e experiencias de deslocamento que o diálogo entre estas duas religiões
permite, por intermédio do fenômeno mediúnico, enfatizando a importância de trazer
discussões pertinentes ao transe, no intuito de classificar funções específicas a partir de um
fenômeno que pertence ao campo da integração. O transe é um fenômeno humano que,
quando traduzido num modelo específico, sendo o caso do campo religioso promove
catacterísticas que viabilizam um canal de ajuste por meio da comunicação de códigos
pertencentes a campos distintos, como é o caso da Umbanda e do Espiritismo.
Considerando a priorização narrativa dos interlocutores, em respeito ao lugar da
alteridade e validação do ponto de vista do outro,o transe é um processo que caminha da posse
para o alinhamento necessário para a domesticação do transe, a partir dos preceitos em torno
do conceito de mediunidade, sendo esta, uma categoria estudada e reproduzida na experiência,
é o que chamam de “ Educação Mediunica” . Isto ocorre através de dois elementos: o estudo e
a prática.
134
Haja vista as condições humanas na interação com o outro, bem como suas
necessidades de obter respostas para solucionar desafios do dia-a-dia, é importante entender
que, em outros espaços religiosos, isto não é tão comum. Nos centros de mesa Kardecista, este
contato com os mortos ocorre de forma limitada, cuja interação com as entidades não
acontece. Na Umbanda isto se dá de forma visível, gerando certo valor por parte das pessoas
para com seus “guias” espirituais. Isso reforça que a legitimidade da função que nos fornece
impressão da aproximação entre a Umbanda e o Espiritismo, é justamente os vazios que um
campo trás, evocando a necessidade do outro para fornecer meios de manutenção e sustento,
que fortelece uma crença, cuja função é o abastecimento do sentido simbólico. É por isso
qwue o transe é fundamental, ppis é ele que fornece mecanismos para possibilidade de
permanecia e existência.
Uma das vertentes deste trabalho é demonstrar fatores de diferenciação entre o
Espiritismo e a Umbanda, considerando que, apesar destas modalidades fornecerem condições
á comunicabilidade dos Espíritos, a Umbanda complementa mecanismos e respostas para o
pragmatismo da vida vivida, enquanto que, o Espiritismo reforça a necessidade de
reformulações intimas vislumbrando um futuro, sendo da responsabilidade do próprio
indivíduo fornecer meios internos para modificar o que requer atenção, e que de algum modo
afeta as ciscunstâncias que desafiam sua vida.
No entanto, há intermediação de igual forma, mas, com funções distintas. O transe
mediúnico no espiritismo intermedia movimento do individuo com os espíritos. A umbanda
opera o transe movimentando a interação direta, em que as entidades se manifestam e
interferem nas resoluções dos problemas que os indivíduos infrentam no cotidiano. Assim,
concluímos que, o transe mediúnico é um fenômeno caracterizado como intermediador direto
(Umbanda) e indireto (espiritismo), considerando a interação espiritual para manutenção da
representação institucional fixada no termo espiritualista.
É importante considerar outro ponto relevante para o entendimento de como funciona
as aproximações e afastamentos entre tais modalidades, considerando o processo de
136
sentir bem e acolhida. Esta casa é Jesus de Nazaré, um Centro Espírita com práticas
adequadas aos preceitos da normatização Espírita.
Por questões de interferências e fatores externos, buscou outro espaço, embora tenha
permanecido no Centro Espírita Amor e Caridade – uma das casas da cidade vinculada à FEB
– durante 15 anos. Neste centro espírita ela conheceu uma médium já frequentadora do
MEFA,criando um vinculo de amizade, oferecendo um campo propício para se aproximar do
universo umbandista.
Nas normas estabelecidas pelo centro de acordo com a FEB não é aconselhável a
comunicação, ou seja, a presença de “espíritos” através do corpo de uma pessoa viva, no caso,
o médium. Segundo ela, a médium possuía uma peculiaridade entre os demais. Sua prática nas
atividades da casa saltava aos olhos por operar de forma diferente, pois dava-se a impressão
que a mesma estava bastante influenciada por algum espírito que a acompanhava nas
atividades mediúnicas.
A proibição da presença de espíritos de natureza umbandista na casa Espírita a
incomodava. Dentre tantos acontecimentos, um caso específico ocasiona a mudança. Segundo
ela, um homem entrou na “sala de passe”, e recebeu um espírito. Quando isto aconteceu, o
dirigente espiritual expulsa o dito homem da sala, justamente em se tratando de uma presença
espiritual que não se adequava ao modelo correspondente aos preceitos doutrinários. Esta
clareza proporcionada por este caso, a fez procurar outra que aceitasse a presença dos
Espíritos de modo mais abrangente e integrado, fornecendo um tratamento mais inclusivo a
presença de espíritos, permitindo a mediação humano/Espírito de forma mais integrada. Foi
então que acabou conhecendo e se dirigindo ao MEFA, local onde frequenta até os dias de
hoje.
Um laço de amizade foi o fomento para a composição da prática entre as casas. Numa
conversa informal entre elas, as duas revelaram as casas onde trabalhavam. Quando uma delas
ficou sabendo do MEFA, passou a frequentar seguindo os passos de Joraci ao participar das
atividades do terreiro. Ambas sabiam, como todos os outros adeptos, que entre a Casa Ogum
Beira Mar e a Casa Espírita Francisco de Assis, há um consenso de mobilização e nenhuma
das partes exige permanência fixa.
Quanto a motivação que levou a frequentar a casa Ogum Beira Mar, disse que foi
porque lá no terreiro valoriza-se o individual, enquanto que na Casa Francisco de Assis,
predomina-se o coletivo. Isto porque nas atividades voltadas para consulta espiritual, não há
privacidade tampouco espaço para relatar coisas particulares da vida cotidiana, e até mesmo
141
dos problemas enfrentados dentro da própria casa. A sala de consulta ocorre na sala grande,
com mais ou menos umas 20 pessoas, que ficam escutando tudo o que os consulentes dizem.
Isso a incomoda profundamente, pois não se sente à vontade para contar e se abrir
sobre conflitos internos e externos da vida cotidiana. E no terreiro Ogum Beira Mar, prioriza-
se a conversa direta com as entidades do “outro” plano, dando espaço para uma conversa mais
direta, informal, particular e reservada, garantindo a privacidade, na certeza de que as pessoas
não estão ouvindo o que está sendo dito nem pela pessoa, nem mesmo pela entidade
comunicante:
Clarice, 54 anos, professora. Pertence ao Centro Espírita Ismael. Nos dias atuais,
frequenta o MEFA e também visita a Casa Reino de Ogum Beira Mar.
A conversa com Clarice inicia-se numa segunda-feira de atividades na casa MEFA.
Inicialmente as considerações sobre o percurso demonstraram que a percepção desta
aproximação destas religiões, que compõe instituições de natureza espiritualista. Sendo assim,
a interlocutora não fazia ideia de que compunha o trânsito entre as casas, não de modo
consciente.
142
Inicia manifestando completo bem-estar no percurso entre as duas casas. Então expôs
os motivos pelos quais frequenta o MEFA e o terreiro de forma contínua: “Não gosto de
frequentar as outras casas porque aqui eu recebo respostas daquilo que necessito para mim.
E nas outras casas estas inquietações não são resolvidas. Tanto na dona Tereza como no
MEFA, eu recebo aquilo que preciso de formas diferentes, mas recebo”. (CLARICE,
05/2013, DOURADOS - MS)
Entre a casa espírita Francisco de Assis e o terreiro existem oferecimentos simbólicos
distintos, porém complementares:
Segundo ela, a Dona Nega transitava entre o MEFA e a Casa Espírita Ismael ao
mesmo tempo, o que demonstra que o percurso é comum e instituído pelas próprias pessoas
que compõem o grupo. Conforme as informações que trazia. Foi possível perceber que estava
confusa em relação ao trânsito o qual faz parte e pratica constantemente.
Após a fala de Reginaldo houve menor resistência para dirigir seu depoimento, sobre o
trânsito. Ao final da reunião da noite, veio pedir minha opinião sobre a prática entre as casas.
Sobre os conflitos que ocasionam a frequência nas duas casas, disse que as pessoas a
procuravam para questionar sobre isto alegando que ela estava servindo a deuses diferentes, e
que isso poderia futuramente lhe trazer sérios problemas. Logo em seguida, afirmou que nas
duas casas ela busca respostas diferentes. Mas respostas que se complementam e contribuem
para sua vida de um modo geral: “No terreiro, a reposta é para a vida do meu dia-a-dia, na
matéria, problemas pessoais, desentendimentos com as pessoas”.
Logo, as repostas obtidas no terreiro eram objetivas e precisas e, normalmente,
imediatas, e na maioria das vezes, o consulente já sai do terreiro sabendo o que gostaria de
compreender a cerca de algum caso específico envolvendo questões práticas da vida. Já no
MEFA, a resposta vem no entendimento da evolução:
143
Estes costumes são característicos dos médiuns que vêm da Umbanda para trabalhar
nas atividades da casa. E devido a oportunidade de aquisão de conhecimentos que priorizam a
ciência do espírito, estes médiuns vêm paulatinamente modificando suas manifestações de
incorporação tornando-a mais leve, equilibrada. Por isso, existe uma valorização ao
conhecimento da doutrina espírita, pois, segundo os líderes da casa, há um entendimento que
parece consensual de que quanto maior o conhecimento o domínio da dita mediunidade, mais
estas manifestações performáticas tendem a desaparecer.
De fato, há que se reconhecer uma tendência a domesticação do ato de “receber um
espírito”. Isso se deve, á influencia Espíritas as quais os grupos estão envolvidos, tendo em
vista que, o fundamento doutrinário revela como se dá a base da incorporação, como um
fenômeno que pode, e deve ser controlado através do apoio da consciência do indivíduo que
empresta seus mecanismos corporais para a prática da possessão. Para ambos os grupos, das
casas quanto maior o controle do médium sobre a manifestação do Espírito mais prestigio ele
tem perante os outros. Existe aqui uma corrente civilizadora da comunicação com os mortos
(ELIAS, 1994).
Segundo suas posições diante das falas, houve um entendimento de que Deusemar não
se identifica com a ritualística da Umbanda. Ele nos narrou que antes de conhecer o terreiro
de Sra. Tereza, já frequentava o MEFA, inclusive trabalhava lá, como recepcionista,
compondo a diretoria que se encarrega de cuidar da parte material da casa e, por
consequência, da vida e das relações. Ele deixou de frequentar o MEFA, e passou a visitar a
casa da Sra. Tereza, por indicação de uma amiga, e segundo ele: “(...)me senti acolhido pela
casa, me senti cuidado” (DEUSEMAR, 06/2013, DOURADOS-MS).
Desde então, frequentou a casa por muitos anos. Até que novamente sentiu o peso da
ritualística e das imposições exigidas pela Umbanda e resolveu novamente se afastar por não
concordar com a necessidade de algumas regras e condicionamentos que são exigidos. Como
por exemplo, o fato de não poder frequentar outros lugares.
Após o afastamento do terreiro, passou a frequentar outros espaços religiosos, como
igreja cristãs Católica e Igreja Pentecostal do Evangelho Quadrangular, e outros centros
espíritas onde se sentia bem. Foi quando em uma conversa com um dos fundadores da Casa
Francisco de Assis (Luiz leal), o mesmo resolveu voltar ao MEFA, onde permanece até hoje:
Segundo o próprio: “Ali no MEFA a gente estuda, trabalha. E eu me sinto bem” [sic].
O ator acredita que a única forma das pessoas se curar dos males da alma e do corpo é o
evangelho (O Evangelho Segundo o Espiritismo), e a água fluidificada (fundamentações
elementares do Espiritismo). Por isso, recusa algumas práticas da Umbanda, por considerar
que são as pessoas que devem alcançar a cura e não os “espíritos”. Algo que comentou, é que
no MEFA são atendidas 150 pessoas por semana, de modo bastante eficiente, e sem a
necessidade de ritual, e contato direto com entidades espirituais.
Para ele, a questão da Umbanda é a necessidade de utensílios (objetos) que são
dispensáveis à ação dos espíritos, apesar de demonstrar um respeito grande pelos personagens
da Umbanda. Considera que o kardecismo e a umbanda podem existir separadamente, mas o
complemento de ambos faz toda a diferença numa atividade desta natureza. Ainda, afirma que
as pessoas que buscam o terreiro e permanecem frequentando o MEFA, compõem esta prática
por pura curiosidade.
De acordo com algumas denominações há o reconhecimento da casa como um pronto-
socorro espiritual, pela abertura que a casa oferece para receber elementos diferentes,
incluindo pessoas de outras orientações religiosas. A casa é reconhecida pela pluralidade,
tanto no que se refere à recepção de pessoas como de espíritos, inclusive os vinculados às
práticas umbandistas.
Ao final da conversa o interlocutor relatou que, uma das noites anteriores enquanto
estava dormindo teve a impressão de que havia três sombras ao lado de sua cama. Uma delas
estava segurando uma lança na mão apontando-a contra seu peito, que segundo ele era onde
estava localizado o “chakra14” cardíaco. Tendo esta sensação acabou acordando bastante
apreensivo e assustado, com aquele sentimento de que não estava nada bem.
Quando chegou à sexta-feira, dia das atividades do MEFA da qual participa, estava
com a esperança de que a dirigente espiritual da sala, ao colocar a mão em sua cabeça logo
saberia que ele não estava se sentindo bem. Ocorre que a Rosa não lhe disse absolutamente
nada, ao colocar a mão sobre sua cabeça (Jaz um entendimento entre os trabalhadores e
alguns adeptos da casa Francisco de Assis, que os dirigentes possuem sensibilidade e tem a
14
De acordo com a crença espírita, o Sistema de Chakras é interativo e é um captador e
repassador das energias existentes no universo para equilibrar a sinergia existente entre os
corpos espirituais, etérico e físico.
146
percepção no instante em que sobrepõe suas mãos na cabeça das pessoas, passando a sentir o
que elas estão sentindo naquele momento).
O fato de a dirigente espiritual das atividades não ter dito nada fez com que o mesmo
fosse buscar outro médium da casa para se consultar, pois ainda se sentia bastante mal
naquele período. Mas, o médium com o qual se identificava não estava presente naquele dia.
E então resolveu ir ao terreiro para se “consultar com os orixás”, segundo seus próprios
termos de identificação. Quando chegou ao terreiro, foi atendido por um médium da casa, que
na verdade é médium do MEFA, mas frequenta a casa nas sextas-feiras.
A consulta foi satisfatória, pois a entidade que lhe cedeu atendimento disse de
imediato que ele estava sendo “atingido” através do “chakra cardíaco”, e que este fato estava
muito ligado ao seu trabalho, onde estaria sendo vítima de “mau olhado”, inveja etc. Ao
seguir as orientações da entidade da umbanda, o interlocutor nos garantiu que as coisas
começaram a melhorar significativamente, o que o levou a retornar ao terreiro nas semanas
seguintes.
Ele conta: “A dirigente colocou a mão na minha cabeça e não me disse nada. Mas aí
eu fui lá no terreiro e eles me disseram o que estava acontecendo. Mesmo assim, eu não acho
ruim o fato dela não ter me dito, porque eu acho que não tem que falar”.[sic] Esta declaração
coloca em evidência a utilidade da Umbanda, mesmo que não se sinta confortável em
frequentar terreiro, existem momentos em que este espaço é solicitado para dar conta de
algumas questões que parecem de ordem do que é dito ou não dito.
Mesmo sendo, a comunicação direta com os espíritos, produto este oferecido pelo
terreiro, há resistências a esta conduta. Assim, buscar o terreiro é um mecanismo para a
solução de problemas relacionados a ordem social, do ponto de vista prático. Esta fala
expressa a grande flexibilidade contida nas ações, demonstrando assim possibilidades de
negociações e resoluções de questões que, segundo eles, o próprio espiritismo por mais
complexo que seja não apresenta soluções imediatas.
De acordo com os dados colhidos em campo, a segunda explicação sobre a busca dos
clientes do MEFA e do terreiro em percurso entre as casas, é justamente os produtos capitais
que são oferecidos tendo cada qual sua singularidade. Apesar das casas manterem vínculos
através de redes de relações mantidas ao longo do tempo, elas se configuram em contextos
rituais distintos, mantendo assim marcas diacríticas próprias. Os bens simbólicos (DANTAS,
1988) oferecidos pelo MEFA e o Terreiro não se chocam, e sim, se completam, por isso o
diálogo é profícuo.
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participação dos médiuns do terreiro na casa MEFA, estes elementos desaparecem por
completo.
Para os Umbandistas entrevistados, o diálogo com a doutrina espírita é definido no
campo das continuidades. Stefânia Capone (1991), apresenta o continuum religioso que vai de
um ponto da tradição africana, até um elemento oponente marcado pelo espiritismo, descrito
como processo de embranquecimento das religiões africanas (ORTIZ, 1990). O terreiro Reino
de Ogum Beira Mar, se identifica como um terreiro de Umbanda Branca, por ter sofrido
alterações ao longo dos anos, com a retirada de alguns elementos, e aderindo a outros, que as
tornam mais suscetíveis aos preceitos doutrinários do espiritismo, abrindo mão de elementos
ritualísticos à medida que adere práticas litúrgicas características dos preceitos doutrinário do
espiritismo:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fontes orais
Adolfo, Presidente da Casa Espírita Anjo Ismael. Entrevista realizada em Julho de
2013.
Nei, médium do terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada em maio de
2013.
Tereza, chefe espiritual do Terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada
em setembro de 2013.
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Fontes documentais
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afro-brasileira. Porto Alegre – RS: Editora UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.
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variações antropológicas. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2000.
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DA CUNHA. Maria Manuela Carneiro. “Cultura” com aspas. SP: Cosac e Naify,
2009.
DANTAS, Beatriz Goes. Vovó Nagô e papai branco: usos e abusos da África no
Brasil. Rio de Janeiro, Graal, 1988.
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GALLOIS, Dominique Tilkin. Redes de relações nas Guianas. São Paulo, Associação
Editorial Humanitas: Fapesp, 2005.
GASPARETTO, Luiz Antônio. “Se Ligue” em você. São Paulo: Espaço Vida e
Consciência, 1996.
_________________________. Você está onde se põe. São Paulo: Centro de Estudos
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Edição, 2001. Medo de Feitiço: Relações entre magia e poder no Brasil. Rio de Janeiro:
Arquivo Nacional.
MARCUS, George. O que vem (logo) depois dos “pós”: O caso da etnografia. In:
Revista de Antropologia, Departamento de Antropologia, USP, volume 37. São Paulo, 1994.