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UNIVERSIDADE FEDERAL DA GRANDE DOURADOS – UFGD

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS – FCH


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – DOUTORADO

HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS DE NATUREZA


ESPIRITUALISTA: UM ESTUDO DE CASO NA CIDADE DE
DOURADOS- MS

DOURADOS- 2021
ANA MARIA VALIAS ANDRADE SILVEIRA

HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS DE NATUREZA


ESPIRITUALISTA: UM ESTUDO DE CASO NA CIDADE DE
DOURADOS - MS

Tese apresentada à banca examinadora do Programa


de Pós-Graduação Em História da Universidade
Federal da Grande Dourados (UFGD), como parte
dos requisitos para a obtenção do título de Doutor
em História.
Área de concentração: História da Representação.
Orientador: Prof. Dr. Linderval Augusto Monteiro.

DOURADOS - MS
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Central – UFGD.

S Silveira, Ana Maria Valias Andrade.


587h História das instituições religiosas de natureza
espiritualista: um estudo de caso na cidade de
Dourados-MS. / Ana Maria Valias Andrade
Silveira. – Dourados, MS: UFGD, 2021.

Orientador: Prof. Dr. Linderval Augusto


Monteiro.
Tese (Doutorado em História) – Universidade
Federal da Grande Dourados.

1. Transe.2. Diálogo. 3. Mediunidade.4.


Experiência. 5. Religião. I. Título.
ANA MARIA VALIAS ANDRADE SILVEIRA

HISTÓRIA DAS INSTITUIÇÕES RELIGIOSAS DE NATUREZA


ESPIRITUALISTA: UM ESTUDO DE CASO NA CIDADE DE
DOURADOS- MS

TESE PARA OBTENÇÃO DO GRAU DE DOUTOR PROGRAMA DE PÓS-


GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA – PPGH/UFGD

Aprovada em:

BANCA EXAMINADORA:

Presidente e orientador:
(Linderval Augusto Monteiro) (Dr. UFGD) __________________________________

2º Examinador:
(Mario Teixeira Sá Junior) (Dr. UFGD) _____________________________________

3º Examinador:
(Adriana Aparecida Pinto) (Dra. UFGD) ____________________________________

4º Examinador:
(Eder da Silva Novak) (Dr. UFGD) ________________________________________

5º Examinador:
(André Luiz Faisting) (Dr. UFGD) _________________________________________
Dedico este trabalho a todos que
compartilham da experiência sob a imortalidade da
alma.
AGRADECIMENTOS

Compartilho um sentimento de gratidão aos incentivadores dos estudos que estão, a cada dia,
aproximando a ciência com a espiritualidade. Agradeço a convivência e o aprendizado com
todos os interlocutores que promoveram as provocações que puderam produzir o sentido das
discussões refletidas nesta pesquisa. Em especial a cooperação e generosidade de todos os
professores que abraçaram a idéia desta pesquisa desde a concepção até sua resultante.
“A vida Cuida.” (Luiz Antônio Gasparetto)
RESUMO

Esta pesquisa é continuidade da pesquisa já realizada em 2013, revisitando algumas


considerações que não puderam ser exploradas, devido a opções consideradas de maior
relevância para o contexto abordado naquele período. A descrição narrativa das experiências
entre dois espaços religiosos, com a contribuição de experiências em transe mediúnico, na
tentativa de compreender a passagem do tempo, e as dinâmicas que mobilizam a construção
de duas instituições religiosas, fundamentadas no diálogo entre as religiões Umbanda e
Espiritismo. A possibilidade de transpor novos sentidos para narrativas colhidas
anteriormente, não são cristalizadas numa mesma percepção, considerando que estas
narrativas foram produzidas com fundamentos importantes que ocasionaram nuances a serem
analisadas, sendo o transe mediúnico o foco que estrutura as reflexões desta pesquisa. No
contexto da experiência religiosa, duas religiões, com aproximações diacríticas, se expressam
nas práticas rituais das atividades destes espaços, apontando bases filosóficas que articulam
reflexos no grupo social, desenvolvendo através da estrutura da crença na existência da
capacidade da comunicação espiritual, ao interagir nas ações tecidas, promovendo alterações
no contexto religioso e social. O transe mediúnico será abordado num estudo de caso, em dois
cenários religiosos específicos, num contexto de proximidades, sendo, Umbanda e
Espiritismo.

PALAVRA CHAVE: Transe; Diálogo; Mediunidade; Experiência; Religião.


ABSTRACT

This paper is a sequence of a study conducted in 2013, revisiting some considerations that
could not be explored due to options deemed more relevant to the context approached at the
time.The narrative description of the experiences between two religious spaces, with the
contribution of trance mediumship experiences, in an attempt to understand the passage of
time and the dynamics that mobilize the construction of two religious institutions based on the
dialogue between two religions: Umbanda and Spiritism.The possibility of transposing new
meanings to previously collected narratives is not crystallized in a same perception, as these
narratives were produced with important foundations that generated nuances to be analyzed,
with trance mediumship as the focus that structures the reflections of this study.In the context
of religious experiences, two religions with diacritical approaches are expressed in the
ritualistic practices of the activities of these spaces, pointing out philosophical bases that
articulate reflections in the social group, being developed through the structure of the belief in
the existence of a capacity for spiritual communication, by interacting in the woven actions,
promoting changes in the religious and social contexts.Mediumship trance will be approached
in a case study, in two specific religious scenarios, in a context of proximities, namely
Umbanda and Spiritism.

KEY WORDS - trance - dialogue - mediumship - experience- religion.


LISTA DE FIGURAS

Figura 1- Salão Central Casa Movimento Espírita Francisco de Assis 47


Figura 2- Salão Central MEFA. Nas portas à esquerda ocorrem às atividades mediúnicas 52
Figura 3- Parte externa do Terreiro “Reino de Ogum Beira Mar 61
Figura 4- Altar de Umbanda da casa Reino de Ogum Beira Mar 63
Figura 5- Lado direito do Altar, parte inferior 63
Figura 6- Lado esquerdo, parte inferior 64
SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS ..................................................................................................................................... 6

RESUMO............................................................................................................................................................. 8

ABSTRACT ........................................................................................................................................................ 9

LISTA DE FIGURAS ..................................................................................................................................... 10

SUMÁRIO......................................................................................................................................................... 11

INTRODUÇÃO ............................................................................................................................................... 13

CAPITULO 1 - A HISTORICIDADE DO TRANSE MEDIUNICO .................................................. 24

1.1. PERCEPÇÃO MEDIÚNICA NO PRESENTE (2019-2020)......................................................................... 25


1.2. DINÂMICA RITUAL DAS SESSÕES MEDIÚNICAS – MEFA (2019) ...................................................... 28
1.3. LIMPEZA ESPIRITUAL DOS MÉDIUNS – MEFA (2019) ...................................................................... 31
1.4. A EXPERIÊNCIA COLETIVA DO TRANSE MEDIUNICO ......................................................................... 43

CAPÍTULO 2- RECONSTITUIÇÃO DAS CASAS RELIGIOSAS ................................................... 45

2.1. DESCRIÇÃO DAS CASAS RELIGIOSAS ................................................................................................... 46


2.2 O ESPAÇO DAS PRÁTICAS DE TRANSE MEDIUNICO ............................................................................ 48
2.2.1 - CASA MOVIMENTO ESPÍRITA FRANCISCO DE ASSIS - MEFA ..................................................................... 48
2.2.2 ORGANIZAÇÃO PRÁTICA RITUAL ........................................................................................................................ 50
2.2.3 ESTRUTURA DAS ATIVIDADES SEMANAIS (MEFA) ....................................................................................... 54
2.2.4. PRÁTICAS DIALÓGICAS - UMBANDA .................................................................................................................. 55
2.3 O TERREIRO – REINO DE OGUM BEIRA MAR ...................................................................................... 62
2.3.1. A ESTRUTURA DO TERREIRO ............................................................................................................................. 63
2.3.2. A ORGANIZAÇÃO DOS RITUAIS ........................................................................................................................... 68
2.4. A FORMAÇÃO DAS CASAS SOB A DIRETRIZ DO TRANSE..................................................................... 72
2.5. ÀS ORIGENS DO MEFA – MOVIMENTO ESPIRITA FRASCISCO DE ASSIS ...................................... 77

CAPÍTULO 3 - A TRAMA, O TRÂNSITO, O TRANSE ..................................................................... 87


3.1 OS ATORES DA FUNDAÇÃO (MÉDIUNS/FUNDADOR – MEFA) ........................................................... 91
3.3. A TRAMA ................................................................................................................................................. 104
3.4. CENTRO ESPÍRITA ANJO ISMAEL .........................................................................................................................111
3.5. A PRIMEIRA RUPTURA – TRAÇOS DO TRANSE MEDIÚNICO......................................................... 124
3.6. RELEITURA DO TRÂNSITO ENTRE AS CASAS.................................................................................... 129

CAPÍTULO 4 - O TRANSE E O TRÂNSITO ..................................................................................... 131

4.1. O TRÂNSITO DOS ESPÍRITOS ................................................................................................................................137


4.2. O PERCURSO DOS ADEPTOS ................................................................................................................ 139
4.3. A REPRESENTAÇÃO DO TRANSE MEDIÚNICO ................................................................................. 147
4.3.1. TEMPO E MEDIUNIDADE ................................................................................................................... 148

CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................................................... 152

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................................................... 154


13

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa tem por objetivo levantar a problemática do campo das religiões
mediúnicas, bem como sua representação prática, iniciando uma reflexão da função social no
campo da história a partir das experiências de transe mediúnico, enquanto objeto que vincula
movimentos de aproximação e trajetórias, que compõe a história da aproximação de duas
casas religiosas localizadas na cidade de Dourados-MS, cuja matriz, corresponde a Umbanda
e Espiritismo em diálogo. O fundamento basilar desta análise é demonstrar que a história da
consolidação das casas apresentadas, bem como da situação de aproximação entre elas, está
ligada a uma percepção (êmica) histórica que percorre alterações no passar do tempo.
A imersão no campo histórico, aliado as brechas que ficaram soltas na pesquisa
antropológica realizada entre 2013 a 2015, passa a impressão de que, a relação do grupo
social pertencente a estas casas, as mudanças na constituição simbólica que amplia, à medida
que aproxima sinais diacríticos até então mantidos em autocontenção, passam a se aproximar
e transformar religiões de matriz africana (Umbanda) e Espiritismo, num potencial dialógico
complementar.
Em meio às conclusões adquiridas na experiência da pesquisa realizada em 2013,
conclui-se que, o transe mediúnico, ou seja, o canal da comunicação espiritual é uma aliança
simbólica a qual não poderia ser desprezada, devido à valorização e o poder simbólico que
esta experiência exerce entre os indivíduos que partilham deste campo de realidade vinculado
a crença religiosa, sendo estes, os interlocutores das narrativas as quais serão expostas
subsequentemente. Assim, desprezar a crença na possibilidade de interação espiritual é
sabotar a base primordial do modo como estes atores sociais pensam as experiências que
compartilham coletivamente durante as atividades desenvolvidas nas casas.
O transe mediúnico é um instrumento regulador do contexto social e histórico de um
diálogo construído ao longo do tempo entre uma casa de modalidade espírita, e outra,
Umbandista. Durante a convivência e compilação dos dados coletados entre o ano de 2013 e
2015, foi perceptível nas falas e nas construções narrativas durante as entrevistas que, a
presença das informações a partir do contato espiritual é inevitável, de acordo com as falas. A
narrativa dos interlocutores reforça a participação espiritual expressa, por um lado, nas
trajetórias individuais, percorridas na descoberta da mediunidade marcada pelo início do
contato, os movimentos da trajetória das casas religiosas, até mesmo, a dinâmica que viabiliza
o fenômeno de aproximação, tanto no aspecto físico (frequentando os dois espaços religiosos
14

simultaneamente), quanto no aspecto ritualístico e litúrgico, construindo um diálogo


complementar. O elemento central deste movimento histórico é a comunicação espiritual, que
articula e produz processosque afetam o contexto social, espacial e simbólico. Compreender a
fala destes interlocutores requer inserir a crença espiritual, que se alternam constantemente,
como a estabelecer uma aliança. O lugar de fala dos “espíritos” paira a todo momento durante
a produção das entrevistas, na percepção dos entrevistados.
Esta pesquisa é uma continuidade da pesquisa já realizada anteriormente, no sentido
de relevar algumas discussões que não puderam ser exploradas, devido ao delineamento da
estrutura analítica. A ideia de utilizar a descrição narrativa das experiências entre espaço
religioso, religiões dialógicas e experiências de transe mediúnico, é uma tentativa de
compreender a passagem do tempo, e o caráter participativo destas crenças, para a dinâmica
histórica que movimentou estas casas desde sua fundação.
O foco é demonstrar a função dinâmica do transe mediúnico, no contexto da
experiência religiosa, envolvendo duas religiões dialógicas, com aproximações diacríticas,
presentes nos rituais das atividades que ocorrem no espaço das experiências práticas. O transe
mediúnico será abordado, tecendo a dinâmica da aproximação entre duas religiões, sendo,
Umbanda e Espiritismo (SILVEIRA, 2015).
Em 2013 inicia uma proposta de pesquisa a fim de compreender como era possível
duas religiões distintas formar elementos dialógicos, que possibilitam aproximação tanto em
termos de sinais diacríticos como de evocações filosóficas com sentido complementar.
Quando se trata de religiões não universais (ORTIZ, 2015), ou seja, de campos que despertam
possibilidades de comunicação com os mortos ou espíritos, há maiores elementos que
possibilitam compreender como tais fenômenos constroem no tempo um caráter dialético
entre aproximações e afastamentos (AUBREÉ; LAPLANTINE, 2009). E o que sustenta a
estrutura litúrgica da Umbanda e do Espiritismo é a comunicação com os espíritos, através do
transe mediúnico.
Em meio às experiências religiosas da autora, foi constatado um percurso de pessoas
que frequentava uma Casa religiosa Espírita ou Espiritualista1, em dias alternados também
frequentava um Terreiro de Umbanda. De acordo com estudos bibliográficos este fenômeno
não era tão aprofundado em termos práticos e sociais, o que chamou a atenção. Assim, foi

1
O termo espiritualista é uma categoria utilizada pelo grupo social estudado para referir as
aproximações da Umbanda com o Espiritismo nas atividades que são desenvolvidas nas
respectivas casas religiosas.
15

proposta uma pesquisa que buscasse compreender quais eram os elementos que estavam
fomentando e viabilizando um trânsito de pessoas de uma casa para outra, em dias alternados.
Além dos referenciais esboçados nos textos acadêmicos, observar os indivíduos foi
fundamental. Tendo como base o diálogo entre a Umbanda e o Espiritismo, foi construída
uma abordagem sincrônica, a fim de compreender, como as casas funcionavam em suas
atividades práticas. E a parte diacrônica contemplaria o processo marcado pela trajetória das
casas, desde a fundação, juntamente com a trajetória dos indivíduos que participaram dos
movimentos percorridos até o tempo presente.
Como conclusão desta primeira etapa no campo desta pesquisa, constatou-se que o
processo histórico permitia adentrar no universo simbólico pertencente às religiões, ao mesmo
tempo em que percebia laços de parentescos e vínculos que, construídos ao longo do tempo,
facilitavam a promoção dialógica. A justificativa do trânsito religioso apontava os laços de
parentesco firmados e fortalecidos pelas relações sociais que facilitavam experiências entre as
casas que representam campos religiosos específicos (SILVEIRA, 2015). Para além dos dados
que foram colhidos em campo, houve um amplo campo de informações que ofereciam novas
possibilidades de pesquisa, sendo o transe o elemento chave do desencadeamento de um
sentido para o percurso histórico construído.
Naquele período, a comunicação com os espíritos foi negligenciada, e pouco
aprofundada. Desse modo, esta pesquisa em formato de tese, tem como principal objetivo
tornar evidente a comunicação com espíritos através do fenômeno do transe mediúnico. Será
abordado como objeto o fenômeno do transe, dentro de um contexto mediúnico que envolve
duas correntes religiosas que dialogam entre si são elas: a Umbanda e o Espiritismo. Desta
forma, a Umbanda e o Espiritismo não serão abordados por esta pesquisa devido ao despêndio
desprendido para dar conta de explicitar a dinâmica que a realidade social pode oferecer ao
interagir com a experiência do transe mediunico. Logo, são duas casas religiosas: a casa
Movimento Espírita Francisco de Assis (MEFA), e Terreiro de Umbanda Reino de Ogum
Beira Mar, tendo como foco as relações interpostas entre humanos e não humanos (espíritos)
(LATOUR, 2012).
O fio condutor desta pesquisa parte da terceira geração dos Annales e a História
Cultural, considerando a expansão das possibilidades de diversos objetos comporem interesse
historiográfico, de modo específico, as práticas discursivas partilhadas por um determinado
grupo social (CHARTIER, 1990), devido a dois campos específicos. De início a escolha do
objeto em sua especificidade na pesquisa histórica dentro de um viés das experiências dos
indivíduos no contexto religioso, sendo o transe mediúnico um elemento da representação.
16

O transe é uma experiência mediúnica de fator abrangente, capaz de articular, no


destaque que promove neste cenário religioso em questão (Espiritismo, Umbanda). Esta
prática oferece para o fenômeno social uma potência para investigação histórica, não pelo
fenômeno em si, mas, pela capacidade de promover mudanças históricas que se alteram no
decorrer do tempo entre aproximações e afastamentos, de uma manifestação corporal densa a
uma constância sutil. Da passagem do passado para o presente, estas práticas se dinamizam
através do percurso entre as casas, sendo este, o principal elemento da mudança.
É uma abordagem processual (diacrônica) desses movimentos que possui tendência a
busca aos anseios de uma visibilidade considerada apta a compor uma estrutura
compartilhada. Partindo dos preceitos teóricos da Antropologia Histórica (SAHLLINS, 1990),
que permeia um ordenamento reavaliado na prática dialógica promovida pelo gruo social
envolvido, sendo o percurso das duas casas um aspecto de alteração sustentado por uma
crença construída pela representação do imaginário coletivo compartilhado, capaz de articular
o processo (CHARTIER, 2011).
Ainda que os frequentadores se movimentem entre as casas, esta história religiosa
dinâmica viabiliza um acesso voluntário a comunicação com os espíritos partindo do
imaginário da resolução de questões ligadas a vida cotidiana. O caráter abrangente da
percepção histórica, nas bases estruturais de Marshall Sahllins (1990) oferece abrangências
que iniciam discussões sobre a linha processual da mudança. Embora seu posicionamento
teórico apresente controvérsias ao pensamento antropológico, o sustento da totalidade encerra
a função diacrônica desta análise (SCHWARTZMAN, 2005).
Contudo, há três fatores relevantes que serão tratados nos capítulos desta pesquisa: a
irradiação de uma dinâmica dialógica promovida por uma crença sustentada por um
imaginário compartilhado, produzido no diálogo entre duas religiões específicas, que encerra
a experiência de transe mediúnico; o percurso de médiuns e frequentadores entre as duas
casas religiosas; a manifestação da aproximação dos elementos religiosos complementares
entre Umbanda e o Espiritismo.
Estes fatos estão alinhados numa trajetória comum que afeta as mudanças que
ocorreram nas atividades das casas, e, conforme o percurso dos frequentadores se processa no
tempo, há modificações ritualísticas e mediúnicas. Estas práticas eram realizadas por
elementos em que, a casa espírita adota sinais característicos da Umbanda, e o terreiro
incorpora traços das diretrizes espíritas, exemplo este, o reconhecimento do terreiro como
“terreiro de umbanda branca” que se refere à categoria mesa branca preconizada pela doutrina
Espírita.
17

Considerando que são as questões que norteiam a importância de um objeto, o transe


mediúnico foi pensado em alguns campos específicos, os estudos antropológicos e
sociológicos, no entanto, na área da História houve pouca visibilidade, a não ser em termos de
contextualizar outros focos detidos com maior profundidade, sendo esta, uma proposta que
viabiliza as possibilidades que o transe reforça em discussões fundamentais. Os intelectuais
franceses marcam o movimento dos Annales, tendo como característica, autores que vão
formalizar reflexões históricas inicialmente pela história problema, desencadeando renovação
e novas possibilidades por uma historiografia voltada para as práticas humanas e
representações coletivas (BLOCH, 2001).
A escolha deste foco teórico é devido ao perfil dos intelectuais que formalizam
reflexões que tornam como possibilidade o caráter dialógico com outras ciências, desde, Marc
Bloch e LucienFebvre, os caminhos da interdisciplinaridade torna-se aberto, tendo como
influencia sociólogos influentes na época como Emile Durkheim, considerando que a base
fundamental da historiografia francesa não foi construída de modo isolado. Da mesma forma,
esta pesquisa tem como objeto um fenômeno que evoca necessidade complementar de
aproximar correntes teóricas que oferece maior espaço para reflexões que transitam com
produtividade na natureza interdisciplinar.
O percurso da história a partir da terceira geração dos Annales se destaca por dois
aspectos fundamentais: as rupturas e continuidades, tais perspectivas serão traçadas a partir do
termo. A noção de continuidade pressupõe que, dos movimentos epistemológicos na linha do
conhecimento histórico, os aspectos fragmentários possibilitaram retornos em que, as
discussões foram traçadas haja vista, as reflexões construídas anteriormente. Neste caso, a
História das Mentalidades. O movimento contínuo nesta perspectiva, é enfatizado pelas
mudanças dando maior visibilidade a aspectos qualitativos. Estes paradigmas apoiam
condições para se pensar o tema proposto (BURKE, 1989).
Das rupturas justifica-se a necessidade da insurgência da Nova História voltada para
os indivíduos numa relação dialética numa conjuntura que se manifesta nas práticas sociais. A
memória individual, num olhar não progressista, permite aproximações com um perfil
antropológico e histórico. Esta readaptação permite o entrelaçamento de um olhar cultural,
simbólico e social (DOSSE, 1992). O transe mediúnico é uma prática social que envolve o
campo pragmático vinculado a matriz africana, inserida em codificações da linguagem
religiosa, que recebe interferências diretas de um fluxo contínuo entre, religiões com níveis
mais intensos da influencia africana, até um nível mais vulnerável aos marcadores litúrgicos
18

do Espiritismo. Justamente, é nesta coluna pendular que estas dusas casas sobrevivem e se
mantém ao longo dods anos, desde a sua formação.
Dentre tantas possibilidades no trato com o transe, em outros campos do
conhecimento (LATOUR, 2012), restringe-se uma abordagem voltada a manifestaçõe
religiosa num quadro dialógico que aproxima religiões de matriz africana com a doutrina
espírita, inseridas num aspecto contínuo de um processo de africanização (CAPONE, 2008;
ORTIZ, 1991).
O objeto desta pesquisa se insere na terceira geração dos Annales à Nova História
Cultural, pela abordagem analítica que permite a inserção de novos objetos com potencial
para elucidações históricas, dentro de uma perspectiva interdisciplinar que terá no diálogo
com outros campos do conhecimento científico elementos complementares para uma análise
mais rica e complexa.
Estes campos do conhecimento são: a abordagem sincrônica sociológica em termos
mais abrangentes, devido a especificidade do objeto que inclui parte de aspectos religiosos
manifestos nas representações coletivas (BLOCH, 2001). E em diacronia a ideia de processo,
enfatizando mudanças e permanências, devido as mudanças que ocorrem no tempo num
processo contínuo que permitirá compreender a relação do transe mediúnico com a história,
detectando aquilo que se modifica e aquilo que permanece no tempo.
Considerando a abordagem diacrônica, a compreensão do processo histórico do
fenômeno mediúnico será analisada a partir da orientação teórica fornecida pela antropologia
histórica, seguido de embasamentos do conceito de historicidade do transe, buscando
apresentar as contribuições da perspectiva histórica refletindo na historicidade desta prática
social determinada pela experiência dos indivíduos. Tal perspectiva dá visibilidade aos
movimentos que este fenômeno apresesenta por meio dos indivíduos, captando assim, sua
percepção na comunicação com os espíritos.
Logo, o objeto não está voltado aos espíritos e sim a comunicação com estes do ponto
de vista de quem interage e automaticamente se expressa, por isso, a compreensão das
elaborações narrativas os agentes intitulados “médiuns” é importante. A escolha da
abordagem epistemológica sobre esta abordagem segue a linha diacrônica, a fim de perceber
como se movimenta no tempo o modo como os indivíduos elaboram sentidos e significados,
assim, o modo como veem a comunicação, sinaliza o modo como percebem a temporalidade
destes espíritos através do transe, levando a formação de um entendimento sobre a
importância de refletir sobre a história do tempo dos espíritos, considerados possivelmente
agentes do seu próprio tempo e consequentemente da sua própria história.
19

Partindo do princípio teórico da existência do movimento dinâmico nas práticas


culturais, é certo que o tempo é elemento onipresente do ponto de vista estrutural (HARTOG,
1996) no sentido das individualidades históricas, através da construção de sentidos que
atualizam um fenômeno prescritivo ordenado por um padrão sistêmico. O transe mediúnico é
considerado um evento histórico no sentido de possuir capacidade de ser atualizada no
decorrer das práticas incorporadas nas experiências dos indivíduos:

(...) os homens em seus projetos práticos e em seus arranjos


sociais, informados por significados de coisas e de pessoas, submetem
as categorias culturais a riscos empíricos. Na medida em que o
simbólico é, desse modo, pragmático, o sistema é no tempo, a síntese
da reprodução e da variação (SHALINS, 1987, p.09).

Os significados são postos em movimento através da ação. Sendo as experiências do


transe tratadas como evento histórico, as mudanças tornam-se elementos de manutenção, por
estarem servindo a garantia de sobrevivência acerca da necessidade de atualizar-se para
sobreviver diante das modificações do contexto social abrangente, e dialógicos que também
inflige na condição apresentada pela situação em que o campo religioso se manifesta na
contemporaneidade. Do ponto de vista mais amplo, a temporalidade do transe é um aspecto
ligado a correntes dinâmicas que envolvem duas matrizes religiosas, que constituem um ponto
comum, ligado diretamente a uma construção do modo como foram consolidadas dentro do
contexto social num dado período histórico.
Esse elemento que conecta estas duas religiões é a condição fundamentada pelas bases
filosóficas de ambas, na existência de outros mundos, sendo estes manifestos através da
comunicação espiritual. Por isso, é de vital importância conhecer historicamente o processo
que, ora aproxima, ora afasta, sob medidas conflitantes de relações, a religião Espirita da
religião Umbandista, sendo esta última interligada a religiões de matriz africana. Este tema
será abordado no capítulo seguinte.
A história é produzida tanto entre as sociedades, quanto no interior de um mesmo
contexto, formando um nicho na estrutura de grupo social (SAHLINS, 1987). O lócus deste
objeto da pesquisa está vinculado a três aspectos fundamentais: inserido dentro de um
contexto de sociedade complexa (VELHO, 2003), ligada ao campo religioso, indo além, a um
campo de religião que tem nos fenômenos mediúnicos elemento central que são postos em
operação a intermediação com comunidades espirituais.
20

Assim, um elemento metodológico que possibilita compreender a mudança a partir de


aspectos narrativos, tendo como referência a percepção do tempo, é a trajetória individual das
experiências tanto da constituição espacial do contexto em que as práticas são conduzidas
pelos indivíduos interligados a trajetórias dos mesmos, sendo este, instrumento facilitador da
garantia de obtenção objetiva.
Em alinhamento com a ideia inicial proposta durante o mestrado, esta releitura se
constrói em narrativas já analisadas anteriormente, através da observação participante e
colheita de narrativas sobre o transe mediúnico, o percurso entre as casas, e as disposições das
atividades desempenhadas nas sessões mediúnicas. A narrativa se constrói a partir do contato
realizado através daquilo que na antropologia é considerado trabalho de campo etnográfico.
Portanto, esta pesquisa compõe diálogo com método antropológico denominado campo
etnográfico.
Durante sua realização desenvolvida no mestrado, os dados empíricos foram
orientados pela pesquisa de campo e experiência etnográfica (CLIFFORD, 1998). A
continuação desta mesma linhagem que expande para refletir sobre o transe mediúnico está
sendo conduzida pela abordagem da antropologia histórica, seguida do conceito de
representação e construção do imaginário, em que as fontes serão apresentadas em formato de
narrativa, reutilizando os dados já coletados anteriormente.
A condução da escrita desta tese será feita através de uma análise descritiva do espaço
o qual a pesquisa foi realizada entre os anos de 2013 a 2015. A primeira delas é a
apresentação do espaço das atividades nas experiências de transe mediúnico, o processo
histórico da formação destas casas no tempo e o modo como os indivíduos percebem suas
experiências. Através destas narrativas é possível perceber o sentido da constituiçãoda
experiência de transe mediúnico, e como é estabelecida na interação com o universo
espiritual. Partindo desta concepção, é possível apreender com mais propriedade, reflexões da
dinâmica do tempo, para a transformação social a qual este grupo está inserido.
A trajetória da formação das casas, e o modo como o campo dialógico de aproximação
entre duas matrizes religiosas é vivenciado dentro do sentido articulado no interior de uma
estrutura de crença, especifica nuances expressivas da função do transe para um contexto mais
amplo. Para tanto, a importância de revisitar informações pertinentes ao diálogo entre as casas
que compõem um trânsito no formato de percurso que aproxima a religião da Umbanda e
Espiritismo. Compreender o funcionamento das casas, consciente do contexto dialógico
existente é um caminho que conduzira a escrita, e a partir desta ferramenta detectar a
construção da experiência de transe no tempo.
21

A construção das fontes através da oralidade foi realizada a fim de compreender o


papel da mudança, através das narrativas a partir da fundação da casa, dos conflitos
desencadeados no tempo, até uma perspectiva do presente, percorrendo a construção do
imaginário acerca do transe mediúnico. A percepção dinâmica das experiências remete a
orientação do lugar de onde se fala, no sentido de pertencer a uma corrente filosófica, ligados
aos preceitos dogmáticos conduzindo-se ao campo de possibilidades que justificam a prática
com o “mundo dos espíritos”. A trajetória das experiências (VELHO, 2003) de transe
mediúnico será conduzida a fins metodológicos de apreensão do que a mudança é capaz de
fornecer para compreender em âmbitos mais gerais como tratar o transe dentro de uma
perspectiva histórica.
A noção de comunidade afetiva se adapta ao cenário desta análise, em se tratando de
um grupo que se forma na década de 80 e se fortalece no convívio social, considerando a
recorrência dos encontros nas reuniões e sessões mediúnicas, em que pessoas partilham
experiências, lembranças e impressões, num convívio fortalecido no tempo. A memória se
constrói no indivíduo, mas se dinamiza no coletivo do grupo social, tendo como resultante a
formação do percurso entre a casa espírita e o terreiro de Umbanda. O transe mediúnico é um
efeito de experiências individuais, que gradativamente se transforma em coletiva, sustentada
pelo grupo na construção prática do convívio nas atividades das casas (HALBWACHS,
2013).
As escolhas metodológicas para análise dos dados, para atingir os objetivos propostos
prevalece a importância do sujeito que conhece e o outro sujeito que se torna conhecido, a
resultante dessa interação é bastante pertinente. A história possibilita uma relação entre o
processo do conhecimento e a verdade a qual se deseja atingir, sendo esta, bastante abordada
pelos intelectuais afeitos a produção do pensamento histórico. A experiência do transe como
elemento de visibilidade à medida que se constrói nas relações entre as casas.
Reconhecendo a dificuldade ao mensurar um conhecimento objetivo, considera-se
que, a verossimilhança abre um campo de possibilidade. A produção do conhecimento será
realizada dentro de uma perspectiva baseada no processo cognitivo, pois, muito mais do que
considerar o sujeito como criador de sua própria realidade (SCAFF, 1995), tal abordagem
consiste num sujeito capaz de produzir sentido e conhecimento em meio as experiências
compartilhadas com a realidade (MANNHEIM, 1968). Neste aspecto, a objetividade é
mantida, o que oferece maiores condições para definir que este objeto de fato é, privilegiando
assim, não o sujeito que conhece e o sujeito que é conhecido, mas a interação destas
22

subjetividades postas em dialogo, tendo em vista os estímulos que movimentam o caráter


intersubjetivo (CLIFFORD, 1988).
Quanto as contribuições antropológicas no método de pesquisa, o processo é elemento
central de uma adequação de sentido entre uma história descritiva que aborda em termos
circunstanciais aspirações particulares e específicas, encaminhando posteriormente a ligação
das partes num todo, indutivamente, sendo esta analise proposta. A narrativa é elemento
metodológico e, do ponto de vista histórico, aquilo que se pretende demonstrar de modo mais
reflexivo (STONE, 1979). O princípio da narrativa oferece algumas questões importantes. O
relato da trajetória mediúnica e religiosa, partindo para as experiências individuais ligadas a
formação das casas religiosas.
Ao encontro daquilo que Roger Chartier (1990) pensa como ausências presentes e
presenças ausentes, de acordo com as percepções do trabalho de campo, estes elementos são
onipresentes e fatores condicionantes da experiência, o que demonstra que não há muito o que
ser dito sob isto devido aos automatismos, e por entenderem que a pesquisadora reconhece os
códigos estabelecidos pelos preceitos religiosos envolvidos, tornando assim, um objeto
familiar.
Esta pesquisa será conduzida em duas etapas, inicialmente demonstrativa, e
posteriormente analítica. A fase demonstrativa reconstitui um recuo histórico do tempo
presente (HARTOG, 2003), para o passado, enfatizando sinais estabelecidos, para a
reconstituição do movimento de artefatos do passado para o cenário atual. As narrativas
expressam situações em conflito que promove a construção do espaço religioso, e a formação
do percurso que aproxima Umbanda e Espiritismo no contexto social das relações.
Portanto, a releitura da pesquisa anterior, sob novas perspectivas, evoca detalhes com
devida importância. Este retorno tem por objetivo destacar a visibilidade do transe mediúnico
no corpo narrativo e nas práticas observadas durante o trabalho de campo etnográfico,
enfatizando o fundamento hipotético de que a experiência mediúnica é um condutor
primordial que articula o impulso dinâmico do estreitamento de laços entre religiões de matriz
africana com a religião espirita vis-à-vis, como intermediador de abrangência que resulta no
diálogo complementar.
A fase analítica possui estrutura conclusiva. Através do conceito de representação
(CHARTIER, 2001) explorar a reflexão da predominância da interação espiritual no convívio
e na narrativa, do poder simbólico do transe mediúnico, desenvolvendo a noção dos sinais
atribuídos nos capítulos anteriores sobre a capacidade que esta experiência possui de
sobressair na percepção do grupo social, a ponto de estabelecer respaldo para que as
23

modificações aconteçam, elementos se aproximem. Evocando a construção do imaginário,


será apresentada a capacidade que esta experiência possui de, de modo indutivo, abrir
possibilidades para que o individual se torne potência gradativa do coletivo compartilhado,
considerando as etapas deste percurso através do médium (indivíduo que promove
intermediação entre o plano material com o plano espiritual).
Em suma, esta pesquisa foi construída a paritr de três pilares fundamentais, a qual esta
a base estrutural dos capítulos: a comunicação espiritual como fator predominante de sentido
dado às circunstâncias da prática religiosa concebida entre um fio condutor, com forte
potencial dialógico entre o individuo que percorre a coletividade, para a criação de
experiências compartilhadas e fixadas no tempo da mudança, percebida na narrativa fornecida
pela composição histórica das casas. Esta composição ariticula o segundo pilar da base desta
pesquisa, que expressa à produção do transe na tranformação do cenário temporal,
contribuindo assim para o fenômeno dialógico que aproxima a religião da Umbanda com o
Espiritismo. O terceiro pilar desta pesquisa esta expresso no refinamento que equilibra e
fornece manutenção da formação deste vinculo simbólico, oferecido pela categoria
espiritualismo.
24

CAPITULO 1 - A HISTORICIDADE DO TRANSE MEDIUNICO

Este capítulo tem o objetivo de demonstrar como está o andamento das práticas
mediúnicas nas casas religiosas que foram pesquisadas no ano de 2013. As atividades do
Terreiro Reino de Ogum Beira Mar foram interrompidas por uma série de imponderáveis que
marcaram um resfriamento nas atividades, impossibilitando um contato. No entanto, a casa
Movimento Espírita Francisco de Assis, permanecem ativos nas sessões semanais, sendo,
estes os produtores da narrativa apresentada neste capítulo.
Serão apresentadas considerações através da entrevistas cedidas, cujo objetivo é
demonstrar a concepção de transe mediúnico, no contexto das relações que os indivíduos
estabelecem ao se colocarem receptivos a comunicação de interação espiritual, formando uma
aliança que produz efeitos no sistema das organizações rituais das atividades da casa MEFA,
que permanece a partir do dialogo com elementos diacríticos da religião Umbandista. Ainda
que, dentro do modelo contínuo que aproxima e afasta, tendo em vista, o senso coletivo e a
presença de preceitos espíritas que opera uma retenção, há concessões, que produz um campo
coeso de unidade representativa de práticas, aliadas as operações no imaginário, identificados
através das fontes narrativas.
As casas religiosas que estudadas no ano de 2013, promoveram um campo da
observação dialógica entre a Umbanda e o Espiritismo, ao estabelecer o transe em bases
fundamentadas no percurso pragmático complementar, entre práticas da Umbanda, e as bases
características da doutrina Espírita.
No decorrer do trabalho de campo, a mediunidade e a relação do indivíduo com o
produto espiritual, marcou páginas que fornecem subsídios para a concretização hipotética
desta pesquisa, cujo foco é o transe e suas narrativas, para sistematização do modelo da
construção da representação articulada pelo tempo histórico. Esta dinâmica expressa como
este fenômeno é percebido nas casas observadas no ano de 2013, com o intuito de apresentar e
compreender dinamismos e permanências como fatores históricos, através da reprodução da
memória que caminha do individual para o coletivo, a partir das novas atividades que surgem
neste cenário.
As práticas mediúnicas devem ser descritas como fatores principais, pois, somente
através destas práticas é possível identificar o transe. Suas narrativas expressam sua função. O
presente é um elemento de recuo ao passado, em que, através das trajetórias de vida
25

mediúnica, e das casas que foram analisadas em 2013, será providenciado um campo
potencial para expressar o caráter histórico e coletivo do transe mediúnico.

1.1. Percepção mediúnica no presente (2019-2020)


O conceito de transe mediúnico será apresentado através de dados de campo
realizados no início de 2020, com o objetivo de compreender a percepção deste fenômeno
através da construção de crenças fornecidas pelas religiões de matriz africana, bem como a
filosofia espírita, sobre a possibilidade de interagir com a espiritualidade. O retorno ao campo
de uma pesquisa realizada no ano de 2013 é instrumento para algumas questões que não
puderam ser exploradas anteriormente devido ao foco central da análise proposta.
Inicialmente, a análise das casas Movimento Espirita Francisco de Assis e Casa Reino
de Ogum Beira Mar, foi realizada com o intuito de perceber o movimento de um percurso
entre frequentadores e médiuns. Nesta nova roupagem, o objetivo é apresentar o conceito de
transe e sua função enquanto elemento fundamental que transcende os bens simbólicos
fornecidos, para uma esfera sustentada por uma crença comum da possibilidade de interagir
com elementos extra físico.
No início da formação da primeira pesquisa, a presença dos espíritos e no instrumento
de comunicação espiritual, ou seja, a mediunidade marca todas as falas colhidas e até mesmo
na convivência com o grupo, percebe-se que há práxis que direciona acontecimentos e
eventos importantes a partir desta crença, considerando que este fenômeno dito espiritual é
cabível de domesticação e movimento purificador que insere o campo das energias, espíritos,
e até mesmo, a manipulação de sinais diacríticos que fornecem a adequação necessária para
que o intercâmbio com o mundo espiritual seja cabível de concessão. Uma das maiores
preocupações que o grupo apresenta é na manutenção da intermediação, devido ao
reconhecimento da importância do transe para que a religião se mantenha dentro de um
mercado simbólico no cenário religioso.
A história da comunicação espiritual potencializa o campo religioso mediúnico, sendo
este o fenômeno que mais potencializa sua sobrevivência e fundamentação do vínculo do
homem com o divino e da necessidade da busca pelo equilíbrio e resoluções de problemas do
cotidiano. A casa Movimento Espírita Francisco de Assis - MEFA, oferece atividades que
permeia, a busca pelo equilíbrio através da razão e a prática mediúnica, promovendo a
interação dos indivíduos com os espíritos, e os bens oferecidos por eles através de passes
magnéticos, passes de descarrego, práticas de desobssessão (libertação de maus espíritos do
26

convívio do indivíduo), bem como orientações que prometem resoluções difíceis da vida
cotidiana, seja a nível financeiro, amoroso, ou até mesmo, social.
O fenômeno do transe mediúnico possui duas etapas fundamentais: a primeira delas é
a conscientização das operações do mundo espiritual, e de como a crença na comunicação
com os espíritos é validada e sustentada em alicerces dogmáticos, fornecidos pela doutrina
espírita, e a segunda é a prática da interação através do fenômeno da mediunidade, que ocorre
nas atividades oferecidas pelas casas, com o intuito de promover interação entre o indivíduo e
os espíritos. A descrição do funcionamento destas atividades é importante para compreender o
transe de modo amplo e pragmático no sentido de sustentar, através de sinais diacríticos, a sua
presença:

...estar em transe é estar receptivo não só para os espíritos se


comunicarem através de nós, mas também, para que as energias de
limpeza, refazimento energético seja possível. Quando você abre uma
brecha para ver outras possibilidades e sentir outras coisas também,
você consegue compreender muito mais as próprias dificuldades, o
que você precisa para receber boas energias, a ciência espiritual é
muito importante para a vida material. E como a ciência não admite, a
gente vai fazendo o que pode com o conhecimento que a doutrina
espírita nos permite saber para obter a cura. O transe também é um
fenômeno de cura, por que ele te deixa mais sensível para captar
outros mundos, por que a maioria dos nossos problemas tem origem
no espiritual. Por isso, equilibrar este fenômeno durante as sessões na
casa é muito importante. A nossa busca é no equilíbrio tanto da mente,
quanto do corpo, e isso a gente consegue através das experiências de
transe, ligado aos espíritos, porque são eles que sabem. Um bom
médium é aquele que sabe receber. (MARIA, 07/ 2020, DOURADOS
- MS).

A partir das experiências mediúnicas vivenciadas durante a pesquisa, foi possível


perceber que, apesar de um processo histórico de adaptação, que inicia desde as práticas
iniciáticas, até o desenvolvimento da mediunidade, há uma busca por adequação e adequação
para um convívio coletivo. Assim, o processo histórico do transe inicia no indivíduo e nas
experiências que apresentam alto grau de desequilíbrio até uma constante mudança que
27

viabiliza uma domesticação para que o médium possa conviver dentro de um ambiente
coletivo, e assim, neste processo de adaptação passa a contribuir com a adaptação de outras
pessoas que vivenciam um grau de desajuste. A outra história do transe caminha do individual
para o coletivo:

...quando eu recebi um caboclo pela primeira vez, a cadeira


virou para trás e eu me inclinei para frente de um modo tão brusco que
quase bati com a cabeça. Quem tem mediunidade e começa a
desenvolver tem este tipo de experiência, por que, é muito difícil de
controlar, é muito impulsivo. Quantas cadeiras já foram quebradas nos
trabalhos do MEFA no início? Mas aí com o tempo você vai se
controlando e limpando a manifestação somente depois deste processo
é que o médium pode trabalhar e fazer parte da corrente (ROSALINA,
07/ 2020, DOURADOS - MS).

É também nesse processo, que o médium apresenta algumas características, que


apontam qual atividade da casa melhor se adequa a seu tipo específico de mediunidade:

…no início da formação do MEFA a maioria dos médiuns


vieram da Umbanda, normalmente quem tem este tipo de mediunidade
trabalha na sala grande, onde acontece as atividades de dessobsessão,
e encaminhamento de espíritos inferiores que ficam perturbando a
vida da pessoa. Normalmente esses trabalhos são mais pesados, aí
quem trabalha são os caboclos, pretos velhos e exus. Não adianta
querer doutrinar um espírito enfurecido, tem que tirar a força, e só
estas entidades da Umbanda conseguem. Por isso que Luiz Leal nunca
abriu mão de trabalhar com estas entidades na casa (EUNICE,
07/2020 – DOURADOS - MS).

A interação espiritual é fator que impulsiona mudanças e até mesmo rupturas de


estruturas da dinâmica que organiza as atividades da casa, que passa a ser estabelecida, e sofre
alterações à medida que evoca uma necessidade de buscar um estabelecimento confiável e
coeso, pois, tudo que se articula a nível estrutural da ordem dos fatores em que esta interação
ocorre, devido à visibilidade e reconhecimento, os ajustes possuem efeitos a nível externo,
28

que afeta um dinamismo social, que se refaz constantemente para que se possa manter a
funcionalidade deste bem simbólico que o transe representa.

1.2. Dinâmica ritual das sessões mediúnicas – MEFA (2019)


A casa Movimento Espírita Francisco de Assis, possui duas linhas de atividades que,
muito distintas se tornam complementares. Há uma vertente de trabalhos com cura do corpo
físico, voltados a questões ligadas a saúde e os trabalhos de limpeza espiritual voltado para a
desobsessão. Por estas duas atividades, a casa não é filiada à Federação Espírita Brasileira
devido ao decreto que proíbe atividades ligadas a cura e a presença de entidades da Umbanda,
por isso, o termo espiritualista.
Por isso, o transe mediúnico é um aspecto fundamental destas práticas religiosas, pois
ela define outros aspectos que direcionam o enquadramento de uma casa religiosa desta
modalidade. Sobre o termo espiritualista, este interlocutor explica a origem desta palavra, bem
como, os motivos que levam a casa Movimento Espírita Francisco de Assis, não se titular aos
moldes estabelecidos pela doutrina Espírita:

... O MEFA se utiliza de elementos doutrinários do


espiritismo, mas não se compromete em seguir os dogmas pré
requisitados por que, não é a proposta da casa. Quando eu digo que
sou espírita, estou me valendo de uma religião espírita que só estuda e
oferece passe magnético nas sessões. Agora ser espiritualista é bem
mais amplo, o espiritualismo agrega inúmeros elementos, da
Umbanda, até mesmo do esoterismo que recentemente foi adotado na
casa, durante as segundas-feiras. O espiritualismo te dá muito mais
possibilidade de trabalhar com a espiritualidade, para fortalecer
principalmente os médiuns da casa, por que, a mediunidade é muito
complexa e não cabe numa caixa, então quanto mais se agrega
elementos de outras práticas também espiritualistas como: o uso de
incenso, cromoterapia, as entidades da Umbanda, os pontos cantas da
Umbanda, tudo isso, contribui para o nosso próprio bem-estar. E
também por que os resultados destas atividades são muito
satisfatórios, para nós médiuns e para quem vem em busca de uma
solução para a própria vida (REGINALDO,07/2020 – DOURADOS-
MS).
29

Apesar da casa Movimento Espirita Francisco de Assis - MEFA, estar se atualizando


com algumas práticas recentes, há um mesmo modelo padrão que permanece presente nas
atividades. No entanto, no final de 2019, uma nova atividade foi implantada na casa
espiritualista sendo descrita pelos membros do grupo como “sala de cromoterapia”. Desde a
fundação o MEFA teve como prioridade os atendimentos da “sala de cura”, voltada para o
campo da saúde e males provocados pelo corpo físico. No interior da sala, há uma maca e três
cadeiras posicionadas uma ao lado da outra na parte da frente, e aos fundos há mais cinco
cadeiras posicionadas no mesmo sentido, com a finalidade de finalizar o tratamento. De
acordo com um dos médiuns responsáveis pela atividade em específico, a prática ritual ocorre
da seguinte maneira:

As pessoas são encaminhadas para a sala de cura, através da


triagem que é feita na “sala grande” (sala da dessobssessão, onde o
transe mediúnico é realizado através da presença das entidades da
Umbanda e dos espíritos que são encaminhados para se manifestar nos
médiuns, e em seguida os mentores encaminham esses espíritos para
um tratamento). Quando os espíritos detectam uma doença no corpo
físico, eles encaminham a pessoa para a sala de cura. Lá a pessoa
recebe um passe inicial, depois é encaminhado para a maca onde é
feita as cirurgias espirituais, através da Dona Rosa ou Paulo e a Paula.
Depois disso, a pessoa se senta na parte dos fundos da sala e recebe
outro passe magnético. A sala de cromoterapia é mais voltada para os
tratamentos psíquicos através da irradiação das cores. Não tem
incorporação, mas, as entidades da Umbanda são responsáveis pela
corrente, e através da necessidade das pessoas que são encaminhadas
para este tratamento, é utilizada as cores. Problemas de ansiedade,
síndrome do pânico, fobias, tudo isso é tratado neste atendimento. Eu
achei muito importante essa iniciativa, por que, é muito efetivo o
tratamento (SÔNIA, 08/2020, DOURADOS - MS).

A inclusão desta atividade, reforça dois pontos importantes, inicialmente, pelo caráter
dinâmico do modo como as pessoas concebem a representação do transe mediúnico, não
somente como a restrita comunicabilidade com os espíritos de modo direto, mas, elementos
espirituais também são inseridos como parte de um processo mantido como fundamento para
30

a existência da crença religiosa. A partir da fala seguinte, o fato histórico do transe mediúnico
está vinculado ao canal de recepção, num processo contínuo de aprimorar campos que
possibilitam um compartilhamento coletivo, em atividades desta natureza. Logo, a amplitude
da visão do que significa o transe mediúnico transcende a visão da incorporação, termo este,
bastante utilizado para categorizar as práticas efetivas de conversação com os espíritos:

A espiritualidade não se resume em incorporação, e as pessoas


precisam entender isso. Um passe, uma irradiação, uma limpeza
energética só se faz se eu entrar em comunicação com a
espiritualidade, se eu abrir um canal, e estar receptiva as energias sutis
do astral superior, e quanto mais você vivencia a prática mediúnica,
mais você entende que a comunicação espiritual é bem mais ampla e
inclui outros fatores espirituais, que não necessariamente é um espírito
(SÔNIA, 08/2020 – DOURADOS – MS).

Para além das práticas inseridas recentemente na casa Movimento Espírita Francisco
de Assis, há uma prioridade em manter os elementos da Umbanda ativos nas atividades da
casa. A prática da incorporação como uma vertente fundamental do transe mediúnico através
da possibilidade de conversar e estabelecer um diálogo direto com os espíritos, é um fator
valorizado pelos médiuns e até mesmo frequentadores da casa.
No entanto, recentemente houve o surgimento de uma nova atividade da casa, voltada
exclusivamente para os médiuns, “o trabalho de limpeza para os médiuns”, é uma atividade
voltada aos médiuns da casa, em que se explora elementos rituais da Umbanda e vários sinais
diacríticos característicos, como: ponto riscado, ponto cantado, velas, defumação para iniciar
a sessão, e pelo que pode ser percebido, é um dia em que se movimenta um grande número de
pessoas. Assim, foi constatada presença de grande número de pessoas, que em dias comuns de
atividades frequentes na casa, o número é bem reduzido. Isso reforça a importância que a
presença destes espíritos exerce nestas atividades de modo específico.
31

1.3. Limpeza Espiritual dos Médiuns – MEFA (2019)

Hoje em dia, o MEFA está mais voltado a orientação dos


médiuns, e doutrinação da Umbanda. Você vê um caboclo, um preto
velho, se manifestar de forma mais sutil, com os rituais da Umbanda
mais voltado para os médiuns e do esoterismo, no caso da sala de
cromoterapia. Os mentores da casa que decidiram inserir os trabalhos
num dia voltado para tratar dos médiuns, por que não adianta ter
frequentadores para auxiliar e ter os médiuns tudo quebrado e
desequilibrado. Então, foi feita essa proposta do trabalho trimestral,
até mesmo, para o desenvolvimento mediúnico (REGINALDO,
05/2019 – DOURADOS - MS).

Outra atividade inserida nas práticas rituais da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis foi o trabalho trimestral de limpeza dos médiuns. É uma atividade desenvolvida pelos
médiuns da casa que tem finalidade e exercem práticas de incorporação por entidades
características da religião Umbandista: Caboclos, Pretos Velhos e Exus. O termo incorporação
é uma subcategoria êmica utilizada para classificar o fenômeno do transe mediúnico, em se
tratando de um veículo de comunicação mais eficaz por envolver comunicação através da
fala, e a certeza de que, naquele momento os fiéis estão interagindo de modo integral em que
conversam com as entidades ao mesmo tempo em que recebem a cura. Sem nenhuma
distinção, o número de pessoas que estão frequentando estes tipos de trabalho é um
sinalizador da potência simbólica que este fenômeno exerce, como manutenção e
sobrevivência da crença na comunicabilidade com os espíritos e no reforço da imortalidade da
alma.
A análise desta atividade organizada pela casa merece algumas observações dias antes
de se concretizar de fato. A divulgação do “trabalho trimestral” foi observada no mês de
fevereiro de 2020, com a orientação do Dirigente Espiritual da Casa Paulo. Em sua fala ouvi
bastante o pronunciamento da frase “nossos irmãos umbandistas”, sempre se referindo com
bastante cautela e cuidado, tentando deixar em evidência as diferenciações existentes entre
Umbanda e Espiritismo, esclarecendo também que o único objetivo da atividade é “purificar”
ou “limpar” os médiuns.
Durante um encontro do estudo sistematizado no MEFA, pude captar algumas frases
marcantes do Dirigente espiritual: nesta próxima quarta-feira nós vamos fazer um trabalho
32

para a limpeza dos médiuns. E continuou dizendo: Nossa casa é “Kardimbanda”, mistura de
Kardec com Umbanda. Mas não é esta Umbanda que a gente vê por aí não. Com isso, o
papel destas entidades da linha de Umbanda é limpar e possibilitar um “refazer-se” para
garantir a continuação das atividades que a casa realiza durante as semanas. E assim termina
dizendo que: os espíritos da Umbanda são sempre bem-vindos a esta casa.
Cabe considerar também que os convidados a estarem presentes neste dia pouco
comum são bastante limitados, e abrange apenas os médiuns que trabalham na casa e aqueles
que estudam, nas quartas-feiras ou nos sábados na parte da tarde. Logo, durante o aviso os
dirigentes aconselham as pessoas a não levarem desconhecido tão pouco pessoas próximas. O
fato deste trabalho não ser aberto ao público, não extingue a possibilidade de pessoas
desconhecidas aparecerem neste dia. É o que normalmente ocorre de acordo com minhas
impressões nestes dias pré-determinados.
De acordo com esta declaração do dirigente é explicito nas observações colhidas, a
presença que um número considerável de pessoas. Outra característica importante sobre a
atratividade da possibilidade de interagir com os espíritos através do transe mediúnico é o
discurso limitante e domesticável quanto a prática da manifestação dos espíritos. Há uma
crença subentendida de manter o controle e o domínio diante das manifestações e até mesmo
do modo como as pessoas lidam com as circunstâncias deste momento que ressoa como um
privilégio.
Isto não somente exemplifica a importância do fenômeno quanto a necessidade de
promover um estabelecimento sútil e ordenador, o que retira o caráter desta comunicação
enquanto um fenômeno hostil de um processo de estigma social na história do cenário
religioso mediúnico, por vincular duas matrizes religiosas consideradas “inferiores”, pela
presença de artifícios materiais, o que por muito tempo foi um dos conflitos entre as religiões
de baixo espiritismo e o espiritismo no Brasil.
De acordo com a fala da dirigente Espiritual, com relação a está prática ritual:

Estes trabalhos foram criados para atender os médiuns da casa,


pois durante a semana nas atividades normais eles acabam não
conseguindo ser atendidos devido a necessidade de estabelecer um
horário fixo para finalizar as reuniões. Trabalhamos com Caboclos e
Pretos Velhos, Erês no dia de São Cosme e Damião, Exu e Baiano
para fazer o encerramento do ano. Diferente do Kardecismo, os
espíritos que trabalham na Umbanda são os que mais se aproximam da
33

energia terra-a-terra, e assim conseguem fazer uma limpeza mais


rápida. No Kardec os problemas mais difíceis e mais “pesados” são
solucionados através de doutrinação e levam muito mais tempo para
serem resolvidos. E na Umbanda eles retiram certas energias com
mais rapidez, mas, mas eles não esclarecem nada para que a pessoas
se modifique internamente. Esse trabalho não é aberto, mas tem muita
gente que vai participar. Quem estuda tem muito mais possibilidade
de receber auxílio do que aqueles que não estudam (EUNICE,
07/2020, DOURADOS - MS).

Quando presenciei esta atividade como historiadora, pude perceber que houve uma
preocupação extrema em esclarecer, que os espíritos que ali se farão presentes não tinham
como objetivo a solução de problemas da vida, como amor, dinheiro, casa, família, pois existe
um entendimento de que tais personagens estavam programados para fazer um trabalho de
limpeza, e não de questões da vida pragmática.
Após esta nota de esclarecimento do dirigente antes de começar as atividades, pude
perceber que havia uma necessidade de controlar as práticas e as pessoas, impondo regras e
normatizações para garantir um controle sobre o que estava acontecendo naquele momento. A
Sra. Rosa continuou sua fala explicando algo significativo: “este dia é dia de limpar os
médiuns não é dia para conversar ou pedir solução para os problemas, o objetivo não é esse,
não há necessidade de contato entre espírito e pessoa, eles vão, fazem o que tem que fazer e
ponto”. Isto afirma a sobrecarga de um princípio ordenador em busca da purificação do
transe.
Comparando as observações colhidas em 2013, para os dias de hoje, há que se
enfatizarem algumas diferenças e mudanças que foram acontecendo durante este período.
Quando estas reuniões começavam a acontecer elas ocorriam basicamente da seguinte forma:

Antigamente na limpeza do médium, nos trabalhos bem no


início, nós fazíamos um “terreirão”, o que aconteceu é que nós
sentimos que as pessoas ficavam transitando entre os médiuns. E
agora desde o ano passado, a gente faz diferente, pois agora, não é
mais feito o modelo de terreiro, e sim, as pessoas ficam sentadas em
fileiras, um de costa para o outro, e os médiuns vai à sala recebe o
guia e o guia passa dando passe. Inicialmente as pessoas iam aos
34

médiuns, agora os médiuns é que vão até as pessoas (VICENTE, 07/


2020, DOURADOS – MS).

Esta atividade já havia sido realizada anteriormente com artifícios mais complexos,
tanto do ponto de visto ritual como na manifestação dos espíritos. O retorno a estas atividades
reforça não somente as aproximações e afastamentos existentes entre uma doutrina
espiritualista com os rituais da Umbanda, mas, sobretudo, enfatiza a importância que o transe
mediúnico apresenta enquanto um produto eficaz e funcional, quando se trata do
reconhecimento e da resolução de questões complexas que se apresentam através dos
frequentadores da casa. O transe é um elemento fundamental, ainda que percorra por um
processo histórico que acompanha não somente a trajetória da casa, tão pouco a trajetória dos
médiuns, mas, destaca ausências presentes contidas nos discursos em que o que se diz,
normalmente não está para o que se faz e até mesmo para o que se prática.
A reunião estava marcada para iniciar às 19:30. Fui de pronto impossibilitada de
estacionar o carro no estacionamento da Casa, por que há quase uma hora antes de iniciar, o
arredor do MEFA já estava lotado de pessoas que aguardavam pelo início das atividades. O
número de pessoas presentes, expressa a grandiosidade simbólica que esta atividade exerce na
vida destas pessoas. Fui induzida a pensar que a quantidade de gente seria por conta da
proliferação da notícia de que a casa estaria, neste dia, desenvolvendo tais práticas. Mas para
a minha surpresa ao adentrar no salão central e observar a reação das pessoas percebi que,
grande maioria eram frequentadores da casa Francisco de Assis, mas que há muito tempo não
aparecia, e percebi também que outra grande maioria eram aqueles que não participavam mais
das atividades da casa, mas que neste dia se faz presente. Sendo eles, em grande parte,
médiuns.
Já visto em outro momento, o salão central do MEFA possui duas partes, a parte de
cima, destinada aos palestrantes e médiuns da casa. Sendo este espaço reservados aos
explanadores do Evangelho, ele ocupa uma posição de destaque, tendo dois degraus que
delimita o “palco”, dos lugares a baixo onde estão localizadas cadeiras de plástico para a
assistência se acomodar. Quando adentrei ao salão percebi que esta parte superior (palco)
estava preenchida por cadeiras, e na parte inferior do salão (assistência) estavam postas quatro
fileiras de cadeiras, sendo cada uma delas correspondente a duas fileiras com cadeiras
alinhadas uma de frente para a outra, para facilitar a passagem dos médiuns incorporados.
Esta mudança que ocorreu foi interpretada por alguns autores como uma contenção
para que as pessoas não passem por todos os médiuns para ouvir a opinião de cada um, mas
35

percebo também que antigamente quando o salão estava aberto e os médiuns estavam ao
centro, era bastante semelhante ao que se vê em um terreiro de Umbanda com fixidez
ritualística. Com isso, as pessoas tinham mais liberdade para conversar com os personagens,
mas neste último trabalho que assisti me saltou os olhos algumas ocorrências que tornam
maleável esta afirmação. Pois acabei presenciando uma situação de contraste.
Antes de começar o trabalho me dirigi até a cozinha onde se encontrava Reginaldo
preparando a brasa da defumação, em todas as vezes que participei desta reunião este
personagem sempre fica responsável em preparar a brasa e em seguida defumar as pessoas
que se encontravam no salão para participar seja na assistência ou na atividade mediúnica da
noite. Cabe aqui considerar que a defumação é uma pratica ritualística característica da
Umbanda, indo além, é um dos processos que marcam a fixidez diacrítica da Umbanda.
Desta forma um dos sinais que permite reconhecer um espaço religioso de culto afro
brasileiro é a presença da defumação. Indo ao encontro desta afirmativa, é cabível considerar
que no Terreiro Ogum Beira Mar, a defumação também se faz presente em um mesmo grau
pragmático que é realizado nestes trabalhos trimestrais na casa espírita Francisco de Assis.
Trazendo a fala dos dirigentes do Terreiro, Sr. Aretino e Sra. Terezinha: “não é possível
iniciar os trabalhos de umbanda sem a defumação, e sua função é purificar e limpar o
ambiente, retirando toda sujeira astral para que os espíritos de luz tiverem condições de
chegar ao terreiro” (ROSA, 07/2020).
Isso confere com a fala de Reginaldo quando afirma que: “a defumação garante a
retirada das más influencias para a chegada das boas energias, por isso todos têm que
defumar”. (REGINALDO, 07/2020)
No instante em que Reginaldo preparava o defumador para o ritual, dentro do salão as
pessoas estavam se acomodando nas cadeiras posicionadas em fileiras um de costas para o
outro, formando quatro valas. Pude constatar certa euforia por parte das pessoas que estavam
presentes para assistir a reunião, com olhares esperançosos, dando a impressão de que estava
depositando muita fé e confiança no que iria desenrolar a partir daquele instante. Foi neste
momento que detive minha total atenção para a parte superior (palco) do salão central e vi a
Dona Rosa (dirigente espiritual) agachada no chão com uma série de plantas e folhas dentre
elas havia; rosa branca, rosa vermelhar, flores rosa, espada de são Jorge, samambaia.
As ervas é um dos sinais diacríticos característicos dos rituais da Umbanda. O
manuseio destes elementos no início das atividades expressa a presença da espiritualidade.
Sendo assim, o fenômeno do transe, muito além de fornecer um canal de comunicação com os
espíritos, possibilita que estes atores espirituais exerçam atividades na matéria através de seus
36

intermediários, sendo um dos artifícios utilizados, que permite expandir o imaginário do


transe de modo complexo.
A atuação da intermediação do transe mediúnico é um percurso histórico que inicia
nos médiuns de modo individual e se amplia ao senso de coletividade para que as práticas
mediúnicas ocorram, tendo como objetivo movimentar o pertencimento de religiosidade, não
somente nos médiuns mais também entre aqueles que se adepta ao mesmo compartilhamento
de crenças.
Neste dia de trabalho, foi concedida a presença dos espíritos das crianças (erês). A
umbanda é uma religião composta por personagens diversos, onde cada um exerce um papel,
e cada personagem reconhece o seu próprio lugar de origem. Na umbanda a origem define
limites e delimitações entre caboclos, pretos velhos, exus e erês. Existe um entendimento por
parte dos Umbandistas de que os mais velhos são os responsáveis pelas crianças. Logo,
sempre que erê “baixa” no terreiro fica subentendido a presença dos mais velhos. Desta forma
a ausência presente é o que vincula um personagem ao outro.
Mesmo os pretos velhos não manifestados nos médiuns, na presença das crianças, as
próprias crianças relatam que elas só conseguiram chegar por que seus “avôs” o trouxeram. “
E no momento do desenvolvimento das atividades em que as crianças estão presentes, quando
começa a ficar muito tarde, estas, manifestadas nos médiuns da casa, começam a dizer” já
está quase na hora de subir, já estou ouvindo a vovó me chamar por que é ela quem me põe
para dormir”.
Desta forma, os antigos se responsabilizam pelas crianças. E é bastante claro entre os
Umbandistas que quem exerce este papel de antigo com relação às crianças são os pretos
velhos, assim, onde têm criança têm preto velho por perto, pois eles oferecem a guarda
indispensável para sua chegada. O senso da estrutura do pensamento das entidades que
comunicam suas verdades, e até mesmo sua própria realidade, está em conformidade com
uma crença hierárquica coletiva entre os mais novos e os mais velhos, o que promove um
estreitamento e familiaridade maior entre os indivíduos e os espíritos manifestos.
Dentro desta lógica é possível compreender por que os pretos velhos vieram com as
crianças. Pois exercem um controle sobre estes personagens já que se entende a devoção e o
respeito aos mais velhos, na umbanda isto não é diferente. O que estou tentando demonstrar é
que a presença do preto velho imprime uma lógica sofisticada e bem-conceituada pelo
universo Umbandista, e que de algum modo direto ou indiretamente o grupo da casa espírita
Francisco de Assis parecem dominar e compreender perfeitamente.
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Os relatos do discurso apresentando no espaço da Umbanda e do Espiritismo na casa


como espaço distinto a presença dos pretos velhos acompanham as crianças, enfatizando o
contraste entre aquilo que é dito e aquilo que é vivido efetivamente pelo grupo. Pois, se não
houvesse este entendimento hierárquico e interligado, dominado pelo código ritualístico da
Umbanda, poderia ser os caboclos. Isto expressa que a lógica do pensamento Umbandista
predomina na organização estrutural ritualística da prática exercida nestes trabalhos.
Antes de começar a atividade da noite, percebi que além de ser uma pratica conhecida
na casa, é um espaço de encontros e reencontros, pois como já foi dito acima, muitas pessoas
que frequentam esta atividade de modo específico, ou não frequentam a casa assiduamente em
dias comuns de culto, ou deixaram de frequentar o MEFA, mas que neste dia as pessoas que
não estão mais vinculadas a casa, se confraternizam.
Presenciei muitas conversas paralelas em que as pessoas conversavam sobre suas
atividades fora da casa espírita, contavam o que andava fazendo, compartilhavam
experiências comuns através do laço fraterno. Isto pode enfatizar o quanto o lado social está
presente no campo religioso, onde a socialização é muito bem vista e está bastante presente na
vida destas pessoas que compõem este campo de pesquisa etnográfica. Indo além, o transe
mediúnico é um fator social ao promover um dinamismo que movimenta experiências comuns
de uma crença compartilhada.
A dirigente da casa se posicionou no canto esquerdo do salão central um “ponto
riscado” com uma vela branca e um copo de água com sal grosso. Neste instante abordei o
médium Reginaldo, tendo em vista o alto grau de conhecimento na linha da Umbanda,
questionando sobre o ponto riscado, buscando o entendimento do que aquilo estava
representando em relação as práticas que seguiriam a diante e assim me respondeu dizendo
“este ponto é a firmeza da esquerda” (REGINALDO,05/2013).
Isso quer dizer que aquele ponto se remete diretamente a Exu, o chamado guardião da
Casa. É ele o responsável pela segurança tendo como objetivo “barrar” a presença de pessoas
e “espíritos” que poderiam vir a comprometer a harmonia e o equilíbrio da Casa Espírita.
Mas, quero aqui deixar registrado algo bastante importante dentro desta questão. O momento
em que a Dona Rosa firmou o ponto de exu as pessoas ainda não estavam presentes em
grande número.
Logo, quando eu cheguei aquele ponto já estava lá há muito tempo, o que demonstra
que foi riscado num momento bastante discreto, com um número reduzido de pessoas. Ou
seja, ninguém viu ou presenciou aquele momento. Por isso acho importante considerar que o
exu é uma presença ausente e uma ausência presente. Pois ele estava ali, desde o princípio,
38

mas sua presença não foi pronunciada de modo público a olhos vistos por todos os presentes.
Por que quando as pessoas chegaram ali o ponto já estava posicionado.
Contrastando com este acontecimento, minutos antes de começar as atividades, a dona
rosa organizou aquelas ervas já expostas a cima, dividindo-as de um lado e outro e ao meio,
ela estava riscando um ponto de “erê”, colocando sobre o chão, em cima do ponto riscado,
uma vela branca e um copo com água diluído em sal grosso. Em cima da mesa havia algumas
garrafas com água, perguntei a uma das participantes da utilidade da água e ela me respondeu
prontamente que “é para as entidades fluidificar para que as pessoas levem para suas casas
com a finalidade de um tratamento espiritual”. Já devo ter dito que a água fluidificada é um
sinal pertencente à cultura Espírita. A finalidade desta descrição é tentar esclarecer que a
situação e circunstâncias as quais foram riscados o “ponto”, foram minutos antes da iniciação
da atividade, onde todas as pessoas já haviam chegado e já estava se posicionando para o
processo ritual (TURNER, 1974).
Esta prática característica da Umbanda, foi feita publicamente no momento em que
todos já estavam ali. Já o “ponto de exu” foi riscado em algum momento que é de difícil
apreensão, pois quando cheguei e outros quando chegaram parecia que o ponto foi riscado já a
algum tempo. O local onde este ponto foi riscado estava situado em uma parte periférica do
salão, em uma parte onde não havia cadeiras para que as pessoas se acomodassem, logo, este
ponto de exu foi riscado em uma área isolada do salão. No momento em que a Sra. Rosa risca
seu “ponto”, logo ao lado Reginaldo risca seu ponto de Preto velho acompanhado de velas
azul claro, amarela, branca e verde, seguido de quatro espadas de São Jorge em volta do
ponto. Penso que as espadas simbolizavam a segurança e a guarda do ponto riscado.
Segundos antes de iniciar os trabalhos pude perceber que a noção de hierarquia se
fazia presente de modo bastante peculiar. Em um momento de observação pude constatar
nitidamente quem estava posicionado na parte superior do salão central e quem estava
posicionado na parte inferior. Foi possível definir o lugar que cada um ocupa na organização
social da Casa Espírita Francisco de Assis.
Na parte superior estavam a Ex-presidente da casa, a atual presidente, os médiuns
dirigentes, a filha da dirigente espiritual (rosa), alguns membros da diretoria administrativa da
casa, e os médiuns trabalhadores, que não “incorporavam as entidades da Umbanda”. Na parte
inferior estavam os frequentadores assíduos da casa, alguns médiuns iniciantes e em
desenvolvimento, pessoas que participam dos estudos, aqueles que já frequentava, mas
deixaram de comparecer com frequência, os que já tinha deixado a casa e alguns convidados e
desconhecidos.
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As atividades começaram pontualmente ás 19h30min com o pronunciamento da atual


Presidente do MEFA Sra. Francisca. Foi uma fala bastante acolhedora, gentil, seguida de uma
prece inicial. Pois nenhuma reunião de centro espírita inicia sem o ritual da prece inicial de
abertura. Após a fala de Dona Francisca, Paulo dirigente espiritual da Casa, e um dos
responsáveis pela atividade se pronuncia com o objetivo de dar início aos rituais de iniciação.
Antes de autorizar a abertura das atividades, Paulo de modo bem enfático faz uma advertência
dizendo aos presentes que:

Espírito não resolve problema de ninguém. Não adianta pedir para


espírito cobrir o cheque que está no banco, ajudar a alugar a casa que
não desempaca. Outra coisa, espírito não arruma namorado para
ninguém, eles não estão interessados se o seu namoro vai dar certo ou
não. Os espíritos não estão preocupados com a vida material de
ninguém, espírito não ajuda ninguém, o que eles fazem é nos orientar,
auxiliar e mostrar um caminho que seja bom pra todos nós, pois cabe a
cada um de nós resolvermos os nossos problemas materiais. O
problema é nosso e não do espírito, e se nós não conseguimos
resolver, não são eles que resolverão (Caderno de Campo).

Após o “aviso” os médiuns de incorporação se dirigiram a uma sala a parte,


denominada “sala grande”, onde são praticadas atividades de desobssessão e consulta. As
luzes foram apagadas, e ainda no Salão Central Reginaldo iniciou o ritual de defumação,
proferindo o ponto cantado da Umbanda: “Corre gira pai ogum filhos quer se defumar, a
umbanda tem fundamento é preciso preparar, com incenso e alecrim, benjoim e alfazema,
defumar filhos de fé com as ervas da jurema” (Caderno de campo).
O incenso sendo jogado na panela com brasa viva, exalava uma fumaça que preenchia
todo o salão, e ao passo que o defumador passava, as pessoas faziam gestos deixando nítida a
vontade de se inebriar daquela fumaça. Cada um ao seu modo trazia a fumaça para si através
dos braços, e era bastante evidente, que os gestos eram particulares a casa pessoas, mas entre
aqueles que conseguia identificar uma forma fixa de marcar aquele ponto ritualístico
característico da Umbanda pude perceber as diferenciações na gesticulação do ato de defumar
o próprio corpo. Após a defumação com a garantia de que todos foram beneficiados com a
fumaça, os pontos entoados da sala grande estavam tomando conta de todo o salão central
situado na parte de fora.
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Todos os pontos cantados eram característicos da Umbanda, sendo até alguns deles
próprios dos cânticos que também são entoados na casa Reino de Ogum Beira Mar. De
repente a porta se abriu e pude ver nove médiuns no total incorporados e dando vida a
personagens infantis com seus arquétipos característicos e reconhecidos como pertencentes a
linha da Umbanda. Não consegui deixar de comparar e lembrar dos erês (espírito de criança)
que baixam em terreiros no dia se São Cosme e Damião, para mim não houve nenhuma
diferenciação.
Todos os médiuns estavam tomados pelos personagens até mesmo a Sra. Rosa
(dirigente espiritual), exceto o dirigente Paulo que estava dando vida ao personagem Preto
Velho. Acho que agora ficam em evidencia as indagações expostas a cima quanto ao papel e
ao vinculo particular entre criança e preto velho, considerando que preto velho é autoridade e
está incumbido de cuidar das crianças, as quais estão sob sua responsabilidade. Não por acaso
ele recebe Preto Velho, pois na casa espírita Francisco de Assis Paulo é o dirigente espiritual
da casa, ou seja, é a liderança máxima, pois é ele quem decide e determina os rumos que a
casa irá tomar, na área mais importante e fundamental de qualquer casa espírita, a área da
espiritualidade.
O dirigente era o único que estava incorporado em um preto velho, o personagem se
acomodou em uma mureta localizada no canto intermediário da parte superior e inferior do
salão central. Neste instante me vi coberta de pessoas que andavam de lá para cá atrás das
crianças para se consultar e conversar. Alguns trabalhadores da casa, que não estavam no
papel de médium distribuíam guloseimas para as pessoas, que se concentravam na mesa
branca da parte superior do salão para amontoar doces para levar para casa, ou comer ali
mesmo. As festas de Cosme e Damião é bastante interessante, pois mais do que se consultar e
conversar com os eres (espírito de criança) as pessoas vão para comer e desfrutar de um
espaço público, com doces e comidas à vontade.
Enquanto as crianças passavam nas fileiras para dar “passe” nos presentes, comecei a
observar mais detidamente o personagem preto velho incorporado no dirigente. No primeiro
momento pude perceber que ele estava sozinho no canto do salão aparentemente sem ser visto
pelas pessoas. Passado algum tempo ouço uma voz altiva dizendo Gente o preto velho vai dar
consulta aqui, quem quiser conversar com ele pode vir aqui que ele vai atender. Após o
pronunciamento de Reginaldo, que não trabalhou, pois estava mal do corpo e por isso não
estava receptivo para dar vida a seu preto velho, as pessoas entenderam o que o preto velho
estava fazendo ali. Passado algum tempo percebi a formação de uma fila com mais ou menos
umas 25 pessoas enfileiradas esperando para se consultar com o Preto Velho.
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Mas, pensando que a fila não iria passar de 25 pessoas, ela permaneceu do mesmo
tamanho por um bom tempo, isso significa que as pessoas permaneceram entrando na fila para
se consultar com o preto velho. Quando eu entendi a situação diante dos meus olhos, resolvi
sentar do lado do preto velho e pude perceber algumas questões bastante importantes. A
primeira foi a constatação da presença da Dona Benita, ela é uma das personagens que entram
na parte da fundação do MEFA, ocorre que, nos últimos dias e anos até, a Sra. Benita não
frequenta mais o MEFA como fazia ano passado e nos outros anos, isso significa que ela se
afastou. Mas no dia da limpeza dos médiuns ela está sempre muito presente. Foi ela a segunda
pessoa a ser atendida pelo Preto Velho.
Enquanto estava sentada ao lado do Preto Velho, percebi nos olhos, na face e nos
gestos das pessoas que estavam na fila algo bastante relevante. A posição do Preto Velho
exigia que as pessoas se ajoelhassem no chão para conversar melhor com ele. E quando as
pessoas se ajoelhavam tinha a sensação de que aquele momento de se curvar a ele era um
momento de alívio, esperança, dando a impressão que elas estavam se sentindo protegidas por
aquele momento, pude até sentir um sentimento de devoção por parte das pessoas, como se
aquele momento fosse bastante importante para elas.
Aquele momento único e altamente significativo era bastante valorizado por elas.
Parecia que estavam esperando a anos por aquele momento. O preto velho era naquele
momento o destino daquelas pessoas, como se ele representasse um rito de passagem, pois
naquele instante em diante tudo seria diferente. As pessoas estavam tomadas por uma
expectativa muito grande, pois tinham a esperança de que conversar e consultar com uma
entidade espiritual era um modo de receber informações que até então parecia impossível de
ser recebidas.
O preto velho parecia bastante preocupado com a hora, as atividades deveriam ser
encerradas pontualmente às 21:00, ainda sim a fila não diminuía. Ainda sentada ao lado do
preto velho chegou à vez de uma senhora com aparência de uns 50 anos, quando ela se
ajoelhou nos pés do preto velho ela disse: Ainda bem que eu consegui falar com o Sr., o preto
velho indagou dizendo o que está acontecendo minha filha, indubitavelmente veio a resposta
“eu vim para cá com muitas dúvidas e estou atrás de respostas” (Caderno de Campo)
Esta senhora me parecia estar depositando bastante confiança naquele momento que
penso ser raro para aquelas pessoas. Faltando vinte minutos para o encerramento, Reginaldo
começou a ficar bastante preocupado, pois segundo ele o preto velho não daria conta de
atender toda a gente que ainda faltava ser atendida. Sendo assim, chamou outra médium para
receber outro Preto Velho, para dividir as pessoas entre os dois personagens presentes. A
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solução foi cabível até certo tempo, após cinco minutos, Reginaldo chama outro médium para
receber um terceiro Preto velho para facilitar o atendimento, fazendo com que todos fossem
atendidos.
Comecei a prestar mais atenção no que estava acontecendo, que afila não diminuía
tendo em vista que não eram tantas pessoas assim. Quando de repente olho para o segundo
preto velho que se fez presente e percebo que a Sra. Benita novamente está se consultando
com o outro Preto Velho. Após a saída da Sra. Benita do segundo preto velho vi, que uma
consulente que havia acabado de deixar a ala do preto velho do Paulo, imediatamente foi para
o segundo preto velho para se consultar novamente.
Quando perguntei a uma frequentadora da casa sobre a “tal” mulher, me veio a
resposta pois é ele fica repetindo e se consultando com todos os guias, isto por que é médium
da casa. Isto é importante, pois as únicas que estavam se consultando com todos os pretos
velhos eram trabalhadores da Casa Espírita Francisco de Assis, pois não consegui visualizar a
mesma atitude das outras pessoas, esta transição de médiuns ocorreu somente entre as
integrantes da casa.
De acordo com o discurso proferido pelo personagem Vicente, o posicionamento da
cadeira em fileiras tinha como principal objetivo fazer com que as entidades fossem até a
assistência e não o contrário. Ocorre é que me parece que na prática esta estratégia para evitar
que as pessoas se consultem em todas as entidades presentes não funciona de modo tão eficaz
no campo pragmático e pratico do dinamismo das atividades. Enquanto estava somente o
Preto Velho do Paulo, não havia motivo para que as pessoas se dirigissem a outros pretos
velhos presentes.
No momento que outros pretos velhos aparecem, às pessoas que se consultaram com o
preto velho do Paulo, passaram a se consultar também com os outros dois que chegaram a
seguir. O momento da consulta ás entidades é raro e estrategicamente dominado, controlado e
domesticado pelos dirigentes da casa, que não permitem que as pessoas se consultem com as
entidades de qualquer forma. Dentro desta perspectiva a consulta é controlada, e ela não se
manifesta de qualquer forma. A finalidade da consulta nos terreiros de Umbanda não se
configura no objetivo da consulta estabelecida pela liderança do MEFA através da imposição
de limites.
Durante todo o momento desta análise será desprendido um esforço considerável para
localizar o posicionamento ideológico do discurso e o posicionamento pragmático da pratica.
Pois existe uma baixa frequência de coesão entre estes dois campos da abordagem empírica.
43

Ao final o dirigente agradeceu a presença dos irmãos da Umbanda e a atividade foi encerrada
com a prece “pai nosso”.

1.4. A experiência coletiva do transe mediunico


Expressando o aspecto coletivo da experiência de transe, sua memória a partir da
interpelação dos interlocutores e da pesquisadora é possível compreender a construção de um
sentido em que o indivíduo apreende a partir do modo como percebe sua própria capacidade
de interagir com as experiências que este cenário religioso proporciona no compartilhamento
comum nos padrões de uma identificação específica. Obviamente tais percepções não
ocorrem num mesmo nível, há aqueles que a vivenciam de modo mais integrado e aqueles que
interagem de modo limitado, pelas bases destas mesmas crenças num grau reduzido, são
aqueles chamados “curiosos”, ou que se motivam a compartilhar estas experiências através da
fé.
A identidade da memória das experiências de transe está relacionada a crença na
capacidade de interagir com os espíritos. Este fenômeno possui uma potência narrativa ao
demonstrar vínculos entre trajetórias e motivações que parte do indivíduo para o coletivo. Em
se tratando de uma experiência restrita e percebida do modo individual é compartilhada, e
produz uma dinâmica de um grupo social marcados por pontos diacríticos que se modificam
com o passar do tempo, entre mudanças, reajustes e elementos flexíveis que podem retornar
na medida em que as permanências se abalam em alguma medida.
O transe mediúnico não é uma experiência estática, sendo fundamental para as práticas
religiosas que exercem função de manutenção e permanência no campo das religiões
mediúnicas, sendo Umbanda e Espiritismo, o foco central desta pesquisa. Por ora, cabe
reconhecer a história deste fenômeno, a partir dos indivíduos com a interação produzida na
relação do pesquisador e dos recordadores. Pois, a longo ou a médio prazo, o transe é uma
experiência narrativa, pois é contada através da memória do que se passa no momento do
transe, expressando a percepção.
Compreender a percepção individual através dos percursos que possuem início, meio e
fim, é um caminho para traçar um sentido das dinâmicas das atividades desenvolvidas na
casa, o que permite reforçar a capacidade do transe de promover uma história religiosa não-
oficial, nas múltiplas histórias do tempo presente (HARTOG, 2003). Recordando nossa última
entrevista, Luiz Leal, fundador da casa Movimento Espírita Francisco de Assis, reforça que:
“quando você possui uma capacidade de conversar com om os espíritos, muda tudo. Aceitar a
44

existência e o diálogo com os espíritos, você já não faz parte de um lugar comum. Atravessar
os mundos já te coloca em outro estado de percepção” (LEAL, 2020).
O discurso dos médiuns estabelece um campo para uma outra história, composta por
arsenais de uma cultura de crenças em oposição a uma ciência oficial normativa, por isso,
compõe o campo religioso: “...certamente, nós seres humanos possuímos cinco sentidos, mas
há existência de um sexto sentido, que até poderia ser considera pela ciência, mas, isso ficou à
mercê da religião que transforma a sensibilidade mediúnica em crendices religiosas” (LEAL,
2020).
Um intermediário de dois mundos possui um processo de ajuste, de manifestações
mais concretas e performáticas a um constante refinamento. Esse processo vai de um continuo
performático a uma domesticação corporal promovendo um proforma como um mecanismo
de inserção do médium nas práticas mediúnicas para garantir uma coesão social do grupo.
Ainda que seja uma experiência individual, sua memória é compartilhada e promovida a uma
ordem pré-estabelecida, nas diretrizes orientadas. Este é um dos pilares fundamentais da
interação dialógica entre a Umbanda e o Espiritismo, o que justifica o retorno das atividades
de limpeza dos médiuns no tempo presente.
45

CAPÍTULO 2- RECONSTITUIÇÃO DAS CASAS RELIGIOSAS

Este capítulo é uma reexposição do campo empírico a fim de concretizar todas as


indicativas que demonstram a importância do transe pelo viés interativo entre os indivíduos e
os espíritos. Para tanto, isso envolve as casas religiosas e seus aspectos físicos, bem como das
atividades que são desenvolvidas, articulando o movimento dinâmico que aproximam, vis-a-
vis, o Espiritismo da Umbanda. O objetivo desta amostra descritiva é compreender o
funcionamento destas casas, para clarificar o modo como o espaço físico e ritualístico articula
e promove um campo que estabelece a relação e a comunicação com os espíritos, sendo esta,
a manifestação do fenômeno do transe.
Em seguida, uma descrição diacrônica do movimento histórico que estas casas
percorrem, estabelecendo laços e firmando diálogos que aproxima os indivíduos ao mesmo
tempo em que promove a percepção das mudanças que vão ocorrendo ao longo do tempo,
entre as narrativas, tornando perceptível a historicidade que compõe este fenômeno, à medida
que estes também se modificam, transformando e fomentando complementos nestas práticas
religiosas.
As casas se movimentam no tempo, os espíritos também se movimentam através do
transe. Por isso, o transe se torna objeto por materializar possibilidades de relação, pois,
qualquer informação ocorre por fatores intermediários, que propicia ao indivíduo as
impressões de um mundo “além”. Neste aspecto, as narrativas são práticas discursivas
validadas e baseadas numa história em busca de objetos que correspondam às crenças de
práticas que compõe as experiências dos indivíduos.
Com maior propriedade, no terceiro momento serão apresentadas descrições sobre
como os indivíduos que compõe a história destas casas estabelecem sentidos para o transe
mediúnico ao passo que sinalizam que estes também se movimentam no tempo sendo assim,
participantes ativos desse processo. O transe dos espíritos será descrito através das
experiências de transe, relacionados à história da formação das casas e as práticas religiosas,
sendo estes, fatores em que essa interação de concretiza de fato.
Esta descrição é restrita a fatos específicos no tempo e espaço, que criam
condicionamentos, justificando a importância de reconhecer nas religiões, meios norteadores
para compreender o porquê tais aspectos serão relevantes. A utilização da categoria transe
mediúnico já é um indicador restritivo desta análise.
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Neste capítulo, as fontes produzidas através da oralidade estarão vinculadas a


observação propiciada pelo método etnográfico como instrumento demonstrativo para uma
análise descritiva dos aspectos históricos que correspondem a estas práticas, a fim de
concretizar a ideia de demonstrar o quanto o transe enquanto fenômeno corresponde a uma
análise histórica cientifica.

2.1. Descrição das Casas Religiosas


O processo histórico da formação das casas religiosas, Movimento Espírita Francisco
de Assis e Terreiro Reino de Ogum Beira Mar, é marcado por uma construção produzida no
tempo, através das relações entre os frequentadores, num trânsito que perdura desde a
fundação. Ainda que uma delas não tenha sido fundada pela mesma pessoa, houve um diálogo
fazendo com que uma conexão se instaurasse, possibilitando uma movimentação de pessoas
que passaram de um desconhecimento a uma frequência assídua.
Por esse motivo, é indispensável estruturar um sentido que expresse a ligação
existente entre estes espaços. A primeira casa fundada abriu caminhos para a formação da
segunda casa, que viabiliza a inserção de uma terceira que aparece a medida em que se inicia
um percurso recorrente entre estes espaços. Na construção da pesquisa de dissertação ficou
evidente que, a trajetória e ligação entre as casas se dá devido ao movimento dos
frequentadores. Logo, são as pessoas e os vínculos entre elas que contribuem para que estas
casas estejam unidas num propósito comum: o diálogo entre a Umbanda e o Espiritismo
(SILVEIRA, 2015).
A segunda constatação é que o diálogo entre a Umbanda e o Espiritismo como fator
contribuinte nesse processo, considerando as ausências presentes (CHARTIER, 1990),
manifesta-se na figura da FEB (Federação Espirita Brasileira), pois, dentre tantas
possibilidades de análise, a comunicação com os espíritos é regulada e estabelecida por um
corpo político bastante articulado, o qual estatuto das casas flexibiliza tais normas devido à
presença dialógica expressa na relação entre estas religiões.
Inicialmente este diálogo foi interpretado e posteriormente analisado no sentido de
enfatizar que, a marca diacrítica do trânsito entre as casas, bem como o diálogo entre a
Umbanda e o Espiritismo, são relações dentro de um processo histórico estruturadas no
tempo. Dando ênfase aos fatores dialógicos entre Umbanda e Espiritismo sobre o caráter
pragmático do transe mediúnico.
O que motiva e concretiza tais aproximações de contato são os espíritos, pois assim
como as pessoas se solidificam no tempo, os espíritos também possuem tal habilidade,
47

reforçando as considerações do ator rede, fundamentando o papel que os espíritos, via


indivíduo, exercem nesse processo. (LATOUR, 2012).
O lócus desta pesquisa situa-se em duas casas religiosas. A casa Movimento Espírita
Francisco de Assis, atualmente dirigida por Rosa e Paulo, também popularmente conhecida
como MEFA, é identificada pelo grupo como “casa espírita e ou espiritualista”. E utilização
do termo êmico espiritualista é uma compreensão de que, nas práticas realizadas na casa há a
ausência da Federação Espirita Brasileira, sinalizando que, sua ausência determina o campo
de possibilidade dialógica com outros elementos pertencentes a outras religiões, neste caso, a
Umbanda.
A outra casa, que compõe o vínculo dialógico chama-se Reino de Ogum Beira Mar,
identificada por seus médiuns e frequentadores assíduos como casa de Umbanda Branca,
tendo em vista a aproximação existente com a modalidade Espírita. Este termo Umbanda
Branca é uma categoria reconhecida por alguns estudiosos como resultante de um
deslocamento simbólico de um processo de embranquecimento (ORTIZ, 1999), sendo esta, a
que mais se aproxima de uma identificação Espírita, inclusive, os dirigentes do terreiro
mantêm no Espiritismo o início de sua trajetória na religião.
Este fenômeno de identificação reforça as teorias precedidas quanto ao conceito
cultural religioso no que se refere às atribuições feitas a uma identidade especifica marcando
assim diferenças e delimitando espaços através das fronteiras. O grupo MEFA se atribui e se
identifica com a modalidade religiosa do Espiritismo, enquanto a outra casa Reino de Ogum
Beira Mar a identificação afirma a presença da Umbanda. Os grupos estabelecem suas
fronteiras através da posição que ocupam ao frequentar uma casa ou outra. O fato é que, tais
fronteiras são transcendentes reforçando permanentes diálogos (BARTH, 2000).
Os grupos sociais ocupam espaços bem distintos na cidade de Dourados-MS. O marco
divisório é a Avenida Marcelino Pires. À esquerda de quem entra na cidade, vindo de São
Paulo, estão constituídos os bairros mais pobres, formando a periferia da cidade. O lado
direito é constituído por bairros nos quais os grupos médios e as elites residem. As duas casas
religiosas, que serão estudas nesta pesquisa, se localizam na parte periférica de Dourados.
Esse posicionamento, por si só, já apresenta indícios que serão importantes no desdobrar da
pesquisa proposta.
A casa umbandista Reino de Ogum Beira Mar está localizada no lado à margem da
Marcelino Pires, principal rua da cidade de Dourados – Mato Grosso do Sul, mas que ainda
assim encontra-se em um bairro central, apesar de não possuir identificação. Para quem passa
48

ali em busca de uma casa religiosa de culto Umbandista, não consegue, a princípio, identificá-
la, pois não possui nenhum identificador aparente.
No entanto, aqueles que frequentam e participam ativamente das atividades da casa
conseguem identificar e determinar a presença de um terreiro de Umbanda por outro conjunto
de códigos simbólicos que sinalizam o terreiro. Portanto, quando um terreiro não possui
identificação ao público significa que se trata de um local privado, conforme o desejo de seus
líderes, que preferem manter a discrição, já que se trata de espaços que sofrem estigmas
sociais, mesmo considerando a frequência de pessoas de várias classes sociais.
Isso corrobora com os escritos de Ivonne Maggie (VELHO, 1980) em um trabalho
com o título “Gueto Cultural ou a Umbanda como modo de vida: Notas sobre uma
experiência de campo na Baixada Fluminense”. Ao tecer uma descrição sobre o terreiro, sua
organização social e localização, a autora vai considerar também que, no decorrer da
pesquisa, ela identificou um grande número de Igrejas Católicas, explicitadas publicamente, e
as mesmas eram muito fáceis de serem encontradas e identificadas por qualquer um, no
entanto, os terreiros eram mais difíceis de serem encontrados, por isso, não identificados.
Na medida em que começou a identificar os sinais e os códigos catalogados pelo
próprio grupo, começou a encontrar estes espaços, e conforme foi dominando e se apoderando
destes sinalizadores percebeu que havia muito mais terreiros do que podia imaginar: “sempre
que há uma bandeira em cima de uma casa, em um mastro, ou bandeirolas de papel no
quintal, ou um muro alvo com tigelas em cima, pode estar certo de que ali há um “barracão”
(VELHO, 1980, p.79).

2.2 O espaço das práticas de Transe Mediunico


Neste momento, serão apresentadas algumas características diacríticas sobre a
estrutura ritualísticas das casas através das atividades que são desenvolvidas durante a
semana, bem como, alguns fatores importantes que aparecerão através das narrativas que
aparecem no decorrer da descrição. Serão mencionadas também o processo diacrônico que
aparece na trajetória de formação das casas. Contudo, será possível conhecer a relação que se
estabelece com a espiritualidade através do transe mediúnico.

2.2.1 - Casa Movimento Espírita Francisco de Assis - MEFA


A casa Movimento Espírita Francisco de Assis – MEFA, fundada no dia 05 de janeiro
de 1988, está localizada numa área periférica da cidade de Dourados – MS. O bairro Jardim
Cuiabazinho é um lugar habitado por uma população de classe média baixa, de rua asfaltada,
49

no entanto com algumas casas de madeira, outras de alvenaria. A Casa Movimento Espírita
Francisco de Assis é um local bastante frequentado e um ótimo indicador disto é a rua que dá
acesso a esta casa espiritualista, especialmente às segundas-feiras e sextas-feiras, dias em que
acontecem as atividades e que mais se apresenta um fluxo significativo de demanda, pois fica
totalmente congestionada nos dois sentidos das vias, apesar do amplo estacionamento do
local. Lá, os frequentadores buscam um diagnóstico, ou estão em processo de tratamento
espiritual.
A Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, espaço religioso característico de um
Centro Espírita de fato, visto que, é um espaço simples com ausências de artefatos
ritualísticos, demonstrando assim um anti ritualismo muito característico da prática Espírita,
que se coloca do lado oposto das necessidades materiais expressas pela Umbanda (LEWGOY,
2000).
A apresentação física da casa representa um arquétipo remetendo a um hospital, até
mesmo um templo, em que as pessoas vão em busca de respostas sendo estas oferecidas à luz
da doutrina Espírita. Para quem vem de fora sem conhecer a funcionalidade das atividades
desempenhadas ali, acreditam ser um “Centro Espírita”. Não somente o espaço em si
contribui a esta identificação, mas também alguns elementos que só são possíveis de serem
encontrados em espaços onde se pratica o Espiritismo de Kardec.
Na parte inferior do salão principal, no canto esquerdo, aos fundos, ao lado da porta de
entrada, existe um espaço destinado às garrafas de água, que os clientes 2 da casa levam para
serem fluidificadas3.É comum os centros espíritas possuírem um compartimento específico
para a fluidificação da água pela espiritualidade superior que naquele momento se faz
presente e que, de acordo com a crença, é a responsável em dispensar nesta água “fluidos

2
A classificação “cliente” será aqui utilizada para designar aqueles que buscam a casa no
sentido de usufruir os produtos que são oferecidos. Há aqueles que procuram a casa com o
objetivo de solucionar questões da vida, em busca de respostas, há os médiuns/adeptos, que
são os trabalhadores da casa, aqueles que auxiliam no decorrer das atividades na semana, bem
como, aqueles que recebem espíritos, e auxiliam nas reuniões mediúnicas da Casa. Os
médiuns antigos exercem a mesma função, no entanto possuem maior bagagem por
vivenciarem a casa ao longo dos anos.
3
Em geral, são os Espíritos desencarnados que, durante as sessões de fluidoterapia, fluidificam
a água, mas a água pode ser magnetizada tanto pelos fluidos espirituais quanto pelos fluidos
dos homens encarnados, assim como ocorre com os passes, sendo necessário, para isso, da
parte do indivíduo que irá realizar a fluidificação, a realização de preces e a imposição das
mãos, a fim de direcionar os fluidos para o recipiente em que se encontrar a água.
50

benéficos”, que vão contribuir com o melhoramento e cura espiritual através da água de
dentro das garrafas (DUMMOND, 1993).

Figura 1- Salão Central Casa Movimento Espírita Francisco de Assis – MEFA


Fonte: Autora (2014).

As reuniões públicas ocorrem em dois dias da semana, é o momento em que os


adeptos recebem tratamento para a cura dos males do corpo, da alma e da mente. Uma
atividade presente nestes dias é a leitura ou explanação do livro Evangelho Segundo o
Espiritismo (1982), assim um tema é escolhido e retirado do livro e após leitura o palestrante
faz inúmeros comentários sobre o assunto, buscando assim, preparar os clientes e
frequentadores da casa às reflexões necessárias para a obtenção do êxito aos reais motivos que
os conduziram até ali. Esta é outra característica do Espiritismo, em se tratando de uma
religião de letrados, tendo assim, o estudo um valor muito grande (LEWGOY, 2000).
Estas são as principais marcas diacríticas tendo como identificação a presença do
Espiritismo na casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Muitos identificam a casa como
pertencente à modalidade ortodoxa e esteticamente considerando alguns elementos dispostos
aos clientes leva-se ao entendimento de que de fato, trata-se de uma Casa seguida da prática
Kardecista. Mas o MEFA possui peculiaridades que lhe são próprias as quais merecem ser
tratadas com bastante consideração e cuidado.

2.2.2 Organização Prática Ritual


O primeiro fator que se destacou desde que chegamos ao universo religioso do MEFA,
é o fato da casa ser titulada logo na entrada como Movimento Espírita Francisco de Assis, e
não Centro Espírita Francisco de Assis. A utilidade do termo movimento em substituição do
termo reconhecido dentro da lógica Espírita (Centro) possui um alto grau de importância
51

analítica, pois, tal observação irá permitir a possibilidade de apresentar primordialmente a


forma como este grupo se pensa e atribui suas ações sociais e culturais, dentro de uma lógica
bastante dialógica, promovendo flexibilizações e movimentações de cultos vistos aqui como
complementaridades.
É bastante compreensível a utilização do termo Centro, como uma marca diacrítica
para legitimar a atividade da ortodoxia Espírita. No entanto esta posição ideológica não se
aplica ao MEFA – Movimento Espírita Francisco de Assis. Pude durante estes anos de
convivência perceber que a adoção de “Movimento”, é uma tentativa de retirar a casa de
qualquer possibilidade de vinculação com os tramites exigidos nas Casas Espíritas que
contêm parcerias com a Federação Espírita Brasileira – FEB.
O principal discurso de justificativa é que a formação ideológica do MEFA nunca
seguiu uma padronização legal institucional da religião Espírita. Notamos que existe uma
tentativa profícua por parte do grupo em dificultar qualquer vinculação ou identificação com o
Espiritismo enquanto Centro. Este posicionamento coletivo ocorre em decorrência do fato de
que o MEFA possui agregações e práticas cuja política e imposição da FEB não aceita, e nega
irrevogavelmente.
Tais agregações dizem respeito a algumas práticas que são proibidas, e se por algum
motivo houvesse uma possível filiação, a maioria destas práticas, tidas como fundamentais
para o funcionamento das atividades compostas de sentido, não poderiam ser realizadas. A
presença da política federativa iria modificar drasticamente toda construção cultural
ideológica proposta pelo fundador Luiz Leal.
Assim, sua produção independente de pensamento agrega elementos de outras
modalidades. A ex-presidente da casa Espírita Maria Evangelista4 conta que já houve
tentativas de alguns trabalhadores da casa em modificar a ideia de Movimento para Centro,
tanto que, até hoje, nas fichas de cadastro dos clientes mais antigos, é possível visualizar logo
acima, no campo ‘nome da casa’ o título CEFA – Centro Espírita Francisco de Assis.
Esta tentativa de modificar o nome de MEFA para CEFA surgiu de um grupo que,
anterior à década de 90, frequentava a casa e tinha como intuito promover a vinculação do

4
Maria Evangelista, filha da falecida Dona Mineira. É professora do município de Dourados
– MS. Foi presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis por 15 anos, e hoje está
no corpo administrativo da casa. Esta personagem não atua como médium, porém também se
identifica com a Doutrina Espírita, tendo muito pouco conhecimento da religião Umbandista.
Apesar da Umbanda estar presente nas atividades do MEFA, sua presença não é tão
intensamente identificada por ela, como ocorre com aqueles que reconhecem e aceitam o
código Umbandista, bem como suas práticas ritualísticas.
52

MEFA com a FEB. Maria, se referindo a este grupo com uma proposta distinta ao que estava
sendo construído nas práticas da casa, disse:

...após o momento que eles assumiram a presidência do


MEFA, eles quiseram modificar as atividades da casa por completo,
com o objetivo de vincular a casa à federação espírita Brasileira. Para
mim, este conflito que teve é poder e status. E todos aqueles que
tentaram mudar o MEFA saíram, e foi isso que aconteceu com a turma
da Sônia5 Esse grupo que voltou para o Ismael queria mudar o estatuto
do MEFA, e o nome Movimento Espírita Francisco de Assis,
quiseram mudar para Centro Espírita Francisco de Assis. Eles
tentaram me levar para o Ismael para trabalhar com a evangelização,
mas, eu não fui... [sic] (Maria E, 2013).

Ao relatar esta constatação, é necessário compreender como o grupo se identifica e se


situa em um espaço religioso dialógico. Os adeptos/médiuns, ou seja, aqueles que vivenciam a
casa diariamente, participando das atividades se identificam como Espiritualistas. Este termo
permite a possibilidade de universalização, ao invés de uma singularidade e filosofia religiosa
única. Todo aquele que se atribui desta forma se coloca em uma posição de neutralidade e o
principal artifício é explicar que todas as religiões são espiritualistas, seja, budista, católico,
evangélico, Espírita, Umbandista, Candomblecista, Xamânico etc.
Mencionamos no capítulo anterior como alguns autores epistemológicos conceituam a
ideia de espiritualismo. Apesar de tais definições irem ao encontro deste entendimento do
grupo, cabe aqui salientar como eles efetivamente elaboram este conceito, dentro de uma
perspectiva que escapa ao encaixe epistemológico. O espiritualismo é um conceito universal
que abarca as diversas manifestações religiosas espalhadas pelo mundo. Logo, todos somos
espiritualistas. Este conceito êmico não é evocado pelo grupo MEFA casualmente, tendo em
vista que tudo tem sua razão de ser. Trata-se de um conceito pressupondo uma neutralidade
que não possui uma única possibilidade.
De uma forma geral, todas as religiões possuem o mesmo fim, acesso ao divino que é
sempre essencial, espiritual. Tão logo se percebe que o grupo se utiliza deste atributo para se

5
Sonia é filha da falecida Dona Nêga. Frequentou a Casa Ismael, parte da primeira fundação,
depois acompanhou Luiz Leal na formação da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis
onde participou das atividades por muitos anos.
53

legitimar e se situar no mundo social. Quando este lugar é ocupado, retira-se qualquer
possibilidade de fidelização e credenciamento a um único pólo religioso. Isto favorece o
trânsito, o diálogo, a mobilidade, o fluxo e a formação de redes que se dão a partir de uma
condição proposta nas construções de relações interpessoais.
Esta é uma tentativa de enquadramento, em se tratando de uma situação dialógica. Por
diversas vezes, deparamos com algumas considerações importantes sobre esta identificação,
lembrando que é uma identificação da casa, ou seja, algo que é externo aos membros do
grupo. Assim, “o MEFA é uma casa Espiritualista, mas eu sou Espírita (grifos da autora)”.
O MEFA configura-se num enquadramento irrestrito. Permitindo assim, a entrada de
algumas particularidades incorporadas em meio às práticas exercidas. A casa se autodenomina
como espaço irrestrito por seu caráter prático. Todas as atividades desenvolvidas marcam
pontos divergentes com relação ao que se espera de um espaço religioso que carrega ao centro
o Espiritismo. O MEFA é uma casa de Espíritos, portanto não somente as pessoas são plurais,
mas os ditos Espíritos também o são.
A fala do dirigente reforça esta assertiva: “O MEFA não tem comando, aqui vem todo
tipo de espírito, superior, inferior, sem distinção” (DIRIGENTE, 04/2013, DOURADOS -
MS). Os espíritos inferiores são manifestações que ganham vida nos médiuns da casa com um
posicionamento arredio, grosseiro, malvado, entoando gargalhadas maliciosas e cheias de
intenções negativas. Também se apresentam nesta casa Espíritos doentes, apresentando
feições de dores.
Alguns se manifestam nos médiuns tossindo muito, outros chorando de tristeza,
mágoa e ressentimentos. Estas presenças emocionais e psicológicas se vestem na concepção
dos atores êmicos em um acoplamento de corpos mediados por dois planos reconhecidos
como espiritual e material, na medida em que se aproximam. Só é possível conceber estes
fenômenos por meio desta intermediação.
A casa oferece algumas atividades não aconselhadas pela FEB, uma delas é a presença
dos espíritos, através da comunicação mediúnica. Este fenômeno está presente nas atividades
das segundas e quintas-feiras, mas também às sextas-feiras, ainda que de modo bastante
sutilizado e às segundas-feiras na sala de cura, cuja também não é aceita pela Federação
Espírita Brasileira, outro entrave para qualquer possibilidade de relação. A presença da
incorporação nas casas Espíritas ocorre, no entanto, a presença deste fenômeno é restrito
apenas aos trabalhadores das Casas, as sessões onde há manifestação dos Espíritos não é
pública e acessível aos clientes frequentadores. Esta é uma normatização FEB que aos poucos
vêm apagando estas práticas nas Casas Espíritas através de orientações.
54

O fato comunicação com os mortos é o eixo central para compreender o MEFA em si,
bem como sua possibilidade de assistir práticas Umbandistas. A incorporação é uma categoria
êmica, que chamaremos aqui de possessão. De acordo com algumas falas informais de
trabalhadores da casa, percebi que a possessão é um eixo que determina o fomento ao diálogo
com práticas Umbandistas. Assim sendo, a possessão é o elemento-chave do pêndulo
existente entre a Umbanda e o Espiritismo.
A produção simbólica do grupo tanto na negação de um modelo espírita institucional,
quanto na afirmação e legitimação de uma identidade espiritualista (STOLL, 2009), reforça as
discussões evidenciadas no capítulo anterior. O fato da casa não oferecer nenhum tipo de
interesse em se filiar a Federação Espírita Brasileira – FEB, e se concretizar enquanto grupo
dentro de uma configuração que caminha em um circuito aberto, através da categoria
Espiritualista, é elemento importante para conhecer quais foram os mecanismos os quais
facilitaram a entrada do universo Umbandista no quadro ritualístico da casa.

2.2.3 Estrutura das Atividades Semanais (MEFA)


A casa Movimento Espírita Francisco de Assis, oferece atividades em todos os dias da
semana, exceto aos domingos. Assim, seguem as programações:
● Segundas-feiras: atendimento fraterno - atividades oferecidas pela casa
com o intuito de se consultar, para dar andamento a um tratamento de ordem espiritual
– na maioria das vezes – e também as partes materiais ou física.
● Terças-feiras: atendimento assistencial - a casa confecciona enxovais
para as mães carentes do entorno do centro. O grupo de destaque neste dia são os
trabalhadores da casa que se envolvem com a parte administrativa e assistencial da
casa.
● Quartas-feiras e Sábados: estudos sistematizados abordagem
doutrinárias do Espiritismo aliada a outros vieses que não exclusivamente à doutrina
de Allan Kardec.
● Quintas-feiras (as primeiras de cada mês): atividades de desobssessão -
onde todos aqueles que passaram por um processo de triagem e foram encaminhados
ao tratamento comparecem para dar andamento a um processo de cura, e de libertação
de perturbações e males ligados a influências de espíritos malévolos.
● Sextas-feiras: atividades de passe magnético (através da chamada
corrente mental eletromagnética), uma continuação das atividades iniciadas nas
segundas.
55

2.2.4. Práticas dialógicas - Umbanda


De um modo geral, as atividades se repetem na maioria dos centros espíritas. É
presente nas atividades espíritas é a doutrinação por meio das palestras. Assim, o ensino
propagado pelo MEFA durante suas atividades, como dito anteriormente, não se atém apenas
aos livros básicos kardecistas como o Evangelho segundo o Espiritismo. Também são
incluídas outras obras comentadas como livros Psicografados por Francisco Candido Xavier,
personalidade bastante evocada nas falas proferidas em palestras, quando não autores como
Divaldo Pereira e Raul Teixeira ganham destaque, através de suas obras publicadas e
reconhecidas pela Federação Espírita Brasileira.
O momento da palestra, que se inicia pontualmente às 19:15h, é restritamente dirigido
por um discurso doutrinário Espírita, com características próprias quanto à motivação,
persistência no bem, caridade, amor ao próximo, nada acontece ao acaso, dentre outras
abordagens.

Figura 2- Salão Central MEFA. Nas portas à esquerda ocorrem às atividades mediúnicas. Fonte:
Autora (2014).

Enquanto a palestra acontece no salão central, na sala ao lado, alguns médiuns se


reúnem para dar início as atividades da noite. A marca diacrítica principal deste momento são
os cânticos entoados em que a presença da linha da Umbanda é evocada de forma
significativa. É possível aos ouvintes das palestras no salão central também serem
impactados, ainda que sutilmente, por este ambiente dialógico através destes cânticos. Os
frequentadores atribuem esse fato como algo bastante característico da casa Movimento
Espírita Francisco de Assis.
Inegavelmente os pontos cantados são um dos sinais diacríticos mais emblemáticos
neste caso. Aqui serão usados como um dos arcabouços teóricos para explicitar a presença da
56

Umbanda em uma casa cujos adeptos atribuem grande influência do Pentateuco Kardecista,
pautando e justificando suas ações. Pretende-se apresentar os pontos que são cantados se os
momentos em que são evocados durante os rituais, especificamente nos dias de Segunda-
Feira. Posteriormente, serão apresentados outros pontos que são cantados nas reuniões das
primeiras Quintas-Feiras do mês. As atividades praticadas nestes dias possuem muitos pontos
semelhantes no que se refere ao funcionamento e lógica ritualística com a Umbanda, o que faz
com que os objetivos e pensamentos significados destes dias caminhem rumo a vertentes
completamente diferentes do Espiritismo kardecista.
Foi percebido no processo de formação da pesquisa em frequência nesta casa espírita
em 2010, a efetivação do trânsito dos frequentadores mais assíduos, os quais serão
apresentados no decorrer do capítulo. O número crescente de pessoas que passaram a
frequentar esses dois espaços religiosos foi uma vertente bem marcante que acabou por
caracterizar e diferenciar o MEFA dos demais centros espíritas da cidade, principalmente
quando não apenas os consulentes, como também dirigentes passaram a compor este quadro
de movimento religioso.
Como consequência desse movimento dentro do próprio MEFA, formaram-se dois
grupos de frequentadores: os que migravam para o terreiro e os que permaneceram apenas na
doutrina espírita. Em outras palavras, pode-se afirmar que há uma espécie de subgrupo
(parcela não menos importante e não marginalizada) de frequentadores do MEFA: os
espíritas/umbandistas.
O fato é que alguns elementos de Umbanda migraram de modo bastante singular via
terreiro para o MEFA. Após a composição do trânsito é possível identificar pontos do terreiro,
que anteriormente não eram cantados, mas que com o passar do movimento dialógico entre as
casas, começaram a se fazerem presentes no MEFA, inclusive até os dias atuais. Nesse
sentido, podemos concluir que o trânsito fomentou interinfluências em campos distintos, entre
uma casa e outra.
Como mencionado anteriormente, no interior da sala grande, a preparação inicial das
atividades mediúnicas concorre com a explanação do evangelho. De uma forma bastante
objetiva este momento de iniciação ocorre sob duas vias distintas, pois, se por um lado as
pessoas, clientes e frequentadores da casa se preparam para receber as consultas mediúnicas,
por outro, os médiuns e dirigentes se preparam para garantir o êxito destas. Este é um ponto
importante para compreender que, fazendo uso das categorias cliente e adeptos/médiuns,
deve-se contemplar o fato de que os campos de acesso a rituais são completamente distintos.
57

Os clientes têm acesso a um discurso proferido dos palestrantes e dirigentes da casa, quanto à
necessidade e supervalorização da presença Espírita.
É o caso da participação ouvinte das palestras, dos atendimentos de passes
magnéticos, e toda ritualística da casa MEFA que perpassa estes sinais diacríticos
identificados no cenário Espírita. Já os médiuns/adeptos, participam do outro campo lhes é
próprio. Os médiuns reconhecem os pontos das linhas de Umbanda, têm ciência da presença
de diferentes entidades como, Caboclos e Pretos Velhos e, sobre seus fundamentos,
participam das atividades trimestrais e comparecem aos estudos doutrinários oferecidos pela
casa. Este papel ocupado pelos médiuns é desempenhado em um local onde a Umbanda se faz
presente de modo enfático, pois estes atores se utilizam de muitos elementos desta
modalidade para legitimar e reafirmar práticas consideradas necessárias e primordialmente
indispensáveis.
Com isso queremos ressaltar que as pessoas que frequentam a casa em uma posição de
visitante ou cliente não possuem necessariamente conhecimento da presença da Umbanda nos
rituais. Esta identificação não é imediata, visto que, pela fachada, muitos consideram com
uma Casa Espírita, portanto, a presença da Umbanda não é questionada, tão pouco vivenciada
de modo intenso e, nesse caso, passa quase que despercebido. Por outro lado, a liderança
espiritual da casa apoderou-se dessa modalidade religiosa em seus ritos de modo que a
Umbanda, além de vivenciada, é estudada, questionada, principalmente, no que tange às
aproximações e vínculos por parte de médiuns e adeptos através dos estudos.
Durante todos os dias em que a casa funciona com suas atividades, é comum observar
um elemento que sinaliza a presença da Umbanda dentro da Casa MEFA. Sem muito esforço
é possível diferenciar os frequentadores da casa como clientes e trabalhadores e médiuns, pois
os membros do grupo MEFA só utilizam vestimentas na cor branca. O uso da cor branca não
é algo peculiar característico da religião Espírita. Dos Centros Espíritas conhecidos pela
cidade o único grupo Espírita que se veste de branco para realizar suas atividades é o MEFA,
salvo engano da existência de algum outro grupo. Esta marca é a influência da Umbanda nas
práticas rituais do Espiritismo.
Voltando ao momento dual dos rituais de iniciação, entre preparação de médiuns e
clientes, cabe tecer algumas considerações sobre como acontecem às práticas realizadas na
sala grande nas segundas-feiras. Finalizada a palestra, há uma organização intensa por parte
dos trabalhadores da casa para chamar as pessoas a adentrar a sala de consultas, em que os
pontos estavam sendo cantados no momento em que o Evangelho Segundo o Espiritismo era
proferido.
58

Enquanto os trabalhadores do MEFA organizavam os grupos de pessoas para adentrar


a consulta, é dentro dela que os procedimentos ritualísticos acontecem de forma mais intensa.
Os médiuns já se encontram posicionados na parte direita e esquerda da sala. Os dirigentes
também se colocam em pé, um na parte da dianteira e outro aos fundos da sala, que dá acesso
à porta de entrada e saída. Ao adentrar a sala, é possível sentir o cheiro de incenso sendo
queimado, uma luz colorida de cores azul e verde tem o objetivo de proporcionar um
ambiente propício com aspecto tranquilo para quem chega.
As práticas rituais são abertas e públicas no sentido de que médiuns, clientes e
dirigentes coabitam um mesmo espaço único. Tudo é visto por todos e não há privacidade ou
métodos individuais de lidar com as pessoas. Esta condição facilita algumas observações que
consideramos importantes para compreender a proliferação e perpetuação do trânsito que
começou a ocorrer entre as casas. A tendência e exposição são muito grandes, pois no
momento em que os dirigentes perguntam sobre os problemas que motivaram a presença de
tal pessoa, estas pessoas acabam relatando suas questões pessoais e íntimas, o qual outras
pessoas estão em conjunto participando.
Após as colocações dos clientes, os dirigentes evocam os nomes dos médiuns presente
na roda e dizem a seguinte frase: “(nome do médium), se concentre” [sic]. Neste momento, o
médium solicitado pelo dirigente dá início o fenômeno da incorporação em si, fruto do
fenômeno mediúnico. Em seguida, os trabalhadores que têm tendência a este tipo de
fenômeno começam a se contorcer - alguns choram, gritam, esbravejam, contêm as mãos
entre as pernas em uma aparência performática de prisão e domesticação; outros esboçam
uma feição trevosa, de maldade, soltam gargalhadas tenebrosas com tendências a algo ruim e
nefasto e outros ainda demonstram sentir dor e desconforto.
De acordo com a crença, essa manifestação durante o transe mediúnico trata-se de um
espírito acompanhante dos clientes presentes, que vieram em busca de auxílio.
Semelhantemente, existem os casos em que as entidades da Umbanda são solicitadas para
ajudar determinados consulentes. A autora desta pesquisa já presenciou, por exemplo, o
descarrego (quando o consulente busca se livrar de maus espíritos e maus pensamentos) feito
por médiuns incorporados com entidades umbandistas. Houve uma ocasião em que se ouviu:
“ (nome do médium), vem trabalhar com seu caboclo aqui! ”.
As entidades se manifestam de forma disciplinada, mas, de forma bem característica.
Os pertencentes ao grupo espírita/umbandista conseguem identificar esses personagens
através dos chiados, do estalar dos dedos, do manusear das mãos, a forma de bater com os
pés, o modo de andar, falar e gesticular.
59

Na dinâmica da atividade, os médiuns são conduzidos aos clientes através da


solicitação dos dirigentes. Esta é uma marca singular altamente importante para compreender
as configurações dinâmicas deste grupo. As relações entre clientes e espíritos que se
comunicam através dos médiuns são limitadas e controladas tanto pelo médium quanto pelo
líder das atividades. Não existe, pois, um diálogo entre eles, tampouco um contato direto.
Os médiuns vão até os clientes e, de um modo prático e ritual, transmitem um passe
espiritual que normalmente é feito através de um caboclo, preto velho ou exu, ou um médium
passista que se dispõe a auxiliar o cliente com passes magnéticos, prática característica dos
Espíritas. Aqui, fica evidente a corrente que conecta elementos Espíritas e Umbandistas em
um mesmo procedimento ritual.
Deve-se destacar uma singularidade importante que o MEFA apresenta em suas
práticas rituais nas segundas-feiras e quintas-feiras. Tais práticas são claramente distintas do
que se propõem outras casas Espíritas, cujas atividades são norteadas e orientadas
restritamente pela Federação Espírita Brasileira. Este marco diferencial norteia o campo da
desobssessão, que no MEFA ocorre de outras formas, como nas segundas-feiras, onde há
manifestação de Espíritos em concomitância às entidades umbandistas, o que descaracteriza
as atividades mais arraigadas ao processo das práticas rituais. Assim, é possível contrastar
algumas diferenças e peculiaridades com relação às práticas ritualísticas do MEFA, no que
tange ao fenômeno da incorporação ou transe mediúnico, prática esta que caracteriza a
presença de espíritos.
É comum as casas espíritas que ainda trabalham com atividade de desobssessão, a
“chegada” dos espíritos ocorrerem discretamente, não havendo uma sinalização de que em
breve algum espírito irá se manifestar. Nestes espaços, o transe mediúnico ocorre em meio ao
silêncio, que é quebrado pela voz do médium já incorporado. Alguns se expressam chorando,
com voz diferente, outros reclamando. A grande questão aqui é a diferença entre estas casas
espíritas (MEFA e Ismael) no que tange à ausência ou presença deste sinalizador, ou seja,
deste ato performático que possibilita aos presentes saber que o espírito chegou.
Voltando ao cerne de nossa análise, que é o MEFA, podemos assinalar tais diferenças.
Nas primeiras quintas-feiras de cada mês – que é quando ocorrem as chamadas atividades de
desobssessão – as reuniões são marcadas pela presença sinalizadora de entidades e espíritos
de ambas as partes do chamado plano astral ou espiritual: espíritos do bem ou não. O
sinalizador de que um espírito seja sofredor ou maléfico quando se manifesta é um chiado, ou
uma respiração mais ofegante e intensa e, após a consulta, sua partida é marcada por um
60

chiado, um manusear das mãos perpassando a cabeça, e de repente um estalar de dedos, e


chiados constantes, mas não tão longos.
Quando o espírito sinaliza que vai embora, imediatamente, o médium comunicante
recebe as influências de seu caboclo, preto velho, ou qualquer personagem da linha de
Umbanda com quem tenha maior afinidade, com o objetivo de descarregar a pessoa a qual o
espírito intermediou. Ao final de toda manifestação de espírito, há presença rápida e definitiva
dos personagens da Umbanda. É importante enfatizar desta forma que, se na grande maioria
das casas Espíritas existe um controle e domesticação dos sinalizadores de manifestações de
Espíritos, por outro lado, no MEFA e em suas casas de continuidades, há presença marcante
destes componentes performáticos.
Outra singularidade do MEFA é que, diferentemente dos outros centros espíritas em
que existe uma restrição quanto à participação e presença dos clientes durante estas sessões de
desobssessão, lá a presença dos clientes é possível. Os clientes vivenciam diariamente a
presença dos espíritos. Logo, tais práticas se configuram em um modo aberto, cuja
participação das pessoas de fora é altamente significativa. As pessoas assistem aos espíritos
sinalizando sua presença, bem como, os momentos em que se encontram intermediados pelos
médiuns da casa, contudo não há abertura de diálogo com essas entidades, com exceção de
quando as entidades se dirigem aos clientes, que são orientados a não responder.
A prática de comunicação com espíritos é um sinal diacrítico legitimador do grupo e,
ao mesmo tempo, é um capital simbólico, pois as pessoas de um modo geral valorizam este
tipo de atividade. Este ato é possível através do fenômeno daquilo que o próprio grupo
denomina “incorporação”. É algo enfatizado no campo do fenômeno, o que atrai as pessoas de
diferentes classes, raças e credos. Em contrapartida, as atividades de passe magnético de
sexta-feira do MEFA são marcadas pela ausência de comunicabilidade com espíritos. Os
médiuns - atores da incorporação – dão lugar a outros médiuns passistas, que realizam as
atividades do dia. Este tipo de atividade de passe magnético é um ponto de singularidade com
todas as outras casas espíritas e coincidentemente é a atividade que mais atrai adeptos durante
a semana.
Após acesso à ata de fundação da casa MEFA, constatamos que as atividades de
segundas e quintas-feiras estavam presentes desde o início. Portanto, trata-se de práticas
remanescentes às mudanças ao longo dos anos. Estas atividades possuem similaridades em
aspectos de desenvolvimento e prática, mas possuem significados distintos. Enquanto uma é
procedimento de consulta, ou seja, um processo natural de triagem para um encaminhamento
futuro, a outra é vista como parte principal para um tratamento mais denso e aprofundado nos
61

problemas espirituais considerados graves como se apenas os métodos utilizados pela prática
Espírita, não pudessem resolver e, portanto, se faz necessária a presença das entidades da
Umbanda.
É inegável a tendência a qual este movimento em que Espíritas caminham a uma
prática Umbandista. Haja vista uma conotação de que este caminho regride, ao contrário do
movimento inverso: “como certos Espíritas, dirigindo-se para “baixo”, apropriam-se das
crenças afro-brasileiras” (ORTIZ, 1991, p.41). Este discurso reforça a inferioridade da pratica
afro-brasileira em vista às religiões institucionalizadas no Brasil.
O objetivo não é apontar divergências tão pouco enfatizar tal discurso, pois aqui, nem
Umbanda, nem Espiritismo estão sendo abordados como “superior” ou “inferior”. Mas sim,
através da ideia de interação social, haja vista as possibilidades que as redes de relações
contribuem ao processo de mediação e tradução cultural. Umbanda e Espiritismo são
elementos dialógicos que se sustentam em redes de foram construídas ao longo do tempo
através dos grupos à medida que se vinculam uns aos outros. (BARTH, 2000; GALLOIS,
2005).
O movimento que caminha do Espiritismo para a Umbanda foi retratado por Renato
Ortiz (1991), em que elementos da Umbanda começam a ser agregado ao armazém simbólico
Espírita, fato este construído e produzido pelos próprios praticantes. Este fato acontece no
MEFA ao longo de sua trajetória enquanto Casa Religiosa. O que fomenta este diálogo
Espiritismo/Umbanda é a manifestação de entidades pertencentes à Umbanda em terrenos
Espíritas. Isso ocorre quando, em uma reunião mediúnica em um Centro Espírita, um
determinado médium recebe uma entidade de nome “Caboclo Mirim”. Índio Brasileiro a
entidade é proibida de participar da reunião, pois os Espíritas se recusam a permitir tal feito,
devido à possível “inferioridade” da entidade aos propósitos encerrados ali.
Sendo a entidade proibida de se manifestar em Casa Espírita, o médium retira-se do
centro e funda uma nova casa, a qual é permitida entrada de tais entidades que tem como
característica serem os anunciadores da proposta religiosa Umbandista. No MEFA isto
também ocorreu, o sinal diacrítico mais destacado quanto à presença Umbandista nas
atividades diárias, é o fato do grupo mediúnico permitir a entrada de entidades da Umbanda
(Caboclos, Pretos Velhos, Exus, Erês).
O processo que caminha da Umbanda para o Espiritismo é marcado pela presença
destes personagens. Em uma reunião de mesa Branca (Espiritismo), um espírito manifestou-se
no médium no meio de uma pratica mediúnica. O espírito comunicante se apresentava como
um Caboclo que havia mantido experiências corpóreas em uma comunidade indígena no
62

Brasil a muito anos. Nisso, o dirigente espiritual da reunião interpela o espírito dizendo se
tratar de uma reunião séria com nobres objetivos, e que, portanto, em sua inferioridade, não
estava apto a frequentar aquele espaço, devido suas condições de Índio Brasileiro. Com isso, o
médium é advertido devido a impossibilidade de a entidade frequentar a casa. Neste momento
o médium se afasta da casa Espírita e Funda outra casa aos moldes da religião Umbandista,
permitindo assim a presença de Caboclos, Índios e Pretos Velhos. (ORTIZ, 1991, p.41).
Este é um enredo que contextualiza a ideia do Mito Fundador da Umbanda (SÁ
JUNIOR, 2004; ORTIZ, 1991). E o que destaca as práticas mantidas no MEFA é justamente o
fato de que, tais entidades são parte importante dos rituais mantidos, e, portanto, esta é uma
característica que sinaliza a complementaridade que a casa apresenta para estes sinais
pertencentes a religião Umbandista.
Inúmeras são as casas em que incorporam tais personagens Umbandistas. A entrada
dessas entidades modifica o contexto ritual, pois, os mesmos ao atuarem trazem consigo seus
sinais afirmando a presença da Umbanda através de pontos cantados, do uso do descarrego, da
roupa branca, velas coloridas, aplicação de passes mediúnicos com performances que
sinalizam o ritual Umbandista.
Estes e outros elementos são encontrados em casas que dialogam com a Umbanda,
aqui, o MEFA é esta casa. O caso é que esse diálogo não se dá por acaso, para compreender
este processo faz-se necessário conhecer a forma como os grupos das casas se conheceram e a
trajetória destas relações que à medida que se fortaleceram em laços de amizade, afinidade e
parentesco, permitiram o diálogo.

2.3 O terreiro – Reino de Ogum Beira Mar


O ponto em que está situada a casa Reino de Ogum Beira Mar é algo importante a ser
considerado. O terreiro Reino de Ogum Beira Mar está localizado não na margem da cidade,
tampouco em um local isolado, e de difícil acesso, pois está localizado em uma rua muito
próxima à área central da cidade, onde transitam muitas pessoas, das mais diferentes classes
sociais. A casa umbandista está a cinco quadras da avenida principal da cidade.
A rua da casa é de duas vias, ou seja, há uma grande circulação de carros. O terreiro se
encontra na Rua Cuiabá, sendo identificada pelo grupo frequentador e por alguns passantes do
entorno como “a única casa vermelha situada na rua”. O terreiro está próximo à feira livre;
considera-se também que é uma rua coletora, ou seja, que dá acesso a vários bairros da
cidade.
63

Certamente, esta é uma peculiaridade, diferentemente do que Maggie (1980)


encontrou no subúrbio do Rio de Janeiro, pois, mesmo se tratando de uma rua “para baixo da
Marcelino Pires” (rua que estratifica a sociedade douradense entre a população elitizada e
população periférica), o terreiro não está estrategicamente velado. Pelo fluxo contínuo de
pessoas, é possível assegurar que se trata de um local de fácil acesso, apesar da falta de
identificação na fachada, como acontece na maioria dos templos religiosos. Contudo, a casa
possui outros códigos, que servem como sinalizadores (LEACH, 1970), que a diferenciam das
demais residências.
Segundo o chefe do terreiro, muitas pessoas demonstram interesse em participar e
conhecer as atividades religiosas da casa que, mesmo não possuindo qualquer letreiro de
identificação, é conhecida por suas atividades religiosas de origem afrodescendente. Esta é
uma estratégia adotada pelos próprios líderes da casa que, juntamente com o processo de
permissão de novos membros via indicações, é uma forma de limitar o acesso, escolher os
frequentadores, particularizar o espaço, domesticar os rituais e controlar o fluxo.
A diferenciação entre espaço público e privado é algo incomum entre os terreiros.
Normalmente, as casas religiosas de Umbanda são abertas ao público, facilitando a entrada
das pessoas mais diversas (em todos os sentidos) e, independentemente de indicação ou não,
geralmente, o acesso aos cultos é livre. Alguns líderes afirmam: “aqui é um espaço público,
entra quem quiser quem sou eu para impedir que alguma pessoa entre ou deixe de entrar,
aqui todos são iguais e merecem ser auxiliados pelos guias” (Experiência no terreiro Caboclo
Tupinambá. Jul/2012).
No entanto, o Terreiro Reino de Ogum Beira Mar, não funciona desta forma. Uma de
suas características peculiares latentes é sua formação através de uma rede religiosa
constituída por participantes conectados entre si por relações de amizade, grau de parentesco
etc. Assim, um indica o outro para fazer parte do grupo e assim sucessivamente e,
consequentemente, o grupo torna-se coeso, restrito e com participantes que se reconhecem
entre si.

2.3.1. A Estrutura Do Terreiro


A casa “Reino de Ogum Beira Mar” pode ser descrita como um cômodo medindo 3x4
m2localizado aos fundos da residência pertencente à família Taquis. Fisicamente, o terreiro é
pequeno, considerando o tamanho da residência do casal, líderes da casa de Umbanda.
Aqueles que olham a casa do lado de fora, não têm dimensão do que efetivamente acontece
nos fundos. No entanto, os cânticos entoados do local onde ocorrem as atividades são
64

percebidos pelos vizinhos que moram ao lado da residência. Vale ressaltar que, no que tange à
instrumentalidade dos rituais efetuados na casa, não há uso de atabaques, como comumente
acontece nos cultos de religiões afrodescendentes.

Figura 3- Parte externa do Terreiro “Reino de Ogum Beira Mar. Fonte: Autora (2021).

A Casa do Exu é um espaço relativamente pequeno que contém algo como que uma
casinha de pequeno porte, aproximadamente do tamanho de um abrigo para cachorro, de
alvenaria, na cor vermelha, com uma grade de ferro como portão. Dentro da Casa estão
presentes algumas esculturas, sendo elas: Exu Maré, que é o responsável pela “guarda” da
casa e dos médiuns, segundo os preceitos umbandistas, Exu Tranca Rua e Exu Tiriri. Esta
pequena casa, de uso exclusivo dos médiuns, situa-se em local pouco conhecido para os
visitantes, propositadamente colocada do lado esquerdo do terreiro.
Sob um foco sincrético, embora Umbanda, Quimbanda e Candomblé sejam
manifestações religiosas da mesma raiz afrodescendente, cada uma apresenta suas
especificidades, apesar de haver certa comunicação através do uso dos mesmos elementos. O
Exu é um elo de fluidez e continuidade entre as três, pois se trata de uma entidade presente
nos rituais, embora adote aspectos diferentes de interpretação e significação em cada uma
delas. O fato de sua “morada” se encontrar na parte de fora da casa, de acordo com a crença,
remete a entidade Exu à rua, ao externo. Para os umbandistas, ele assume uma interpretação -
ou um arquétipo - de ‘malandro’ (DA MATTA, 1997; CAPONE, 2004).
Ao adentrarmos o terreiro, nossa primeira visão é do altar, ou conga, que, segundo
Brumana e Martínez (1991) é o espaço considerado mais sagrado no interior de qualquer
terreiro de Umbanda. Trata-se de um local de referência ritual, onde se dispensa o olhar e
comportamentos práticos de sacralização mítico-religiosa. Logo acima, na parte superior da
parede um desenho de aspecto praiano serve de pano de fundo para a cena. O desenho é o
simbolismo que evoca a característica espiritual do terreiro, considerando o “chefe espiritual”
65

do terreiro, a entidade “Ogum Beira Mar”. Há, ainda, uma frase no topo da parede: “Dai de
Graça, o que de graça recebestes, é a lei de Oxalá”6. Assim, baseados nessa ideologia de
caridade, os trabalhos espirituais não envolvem nenhuma transação financeira de qualquer
espécie.
Dona Tereza, líder do terreiro, considera que:

É passe mediúnico, é consultar com os guias. Eu não sou mãe


de Santo vidente, não jogo búzios, nem cartas, nem nada. Eu não dou
Santo para ninguém, quem sou eu para dar santo pra alguém. E o meu
pai de santo é Oxalá (Sr. Aretino e esposa. 08/2013, DOURADOS -
MS).

Em seguida, Aretino complementa dizendo: “O uso da palavra Mãe de Santo, veio do


Candomblé, da Umbanda antiga, e não tem nada a ver com a verdadeira Umbanda”
(Conversa com Aretino e Tereza, abril, 2013).
Esta verdadeira Umbanda, considerada é a Umbanda legitimada pelo mito fundador,
criado por Zélio de Moraes. Muitos Umbandistas acreditam que a Umbanda em si teve sua
emergência a partir daquele instante, em que Zélio recebe um Preto Velho em uma casa de
Mesa Branca, ou seja, um Centro Espírita.
Para estes líderes, a ausência de atabaques, trabalhos de matança de animais, oferenda
para santo, são atos que dão legitimidade a este conceito:

Aqui muitas pessoas nos procuram em busca de trabalho espiritual


particular, em busca de bens materiais, ou até mesmo pessoal e
afetivo, mas nós não trabalhamos desta forma. Às vezes chega aqui e
diz que quer pagar não sei quanto pra que a Tereza faça a pessoa
amada voltar, e nós não aceitamos esse tipo de coisa. Geralmente
agente diz que nós não fazemos, mas que outras pessoas por aí fazem,
então, que vão à busca destas pessoas. A lei é clara, “Dai de graça o
que de graça recebestes”. Eu não comprei minha mediunidade e

6
Esta frase é um forte indício dos resquícios do catolicismo romano imposto aos negros em
regime de escravatura, pois esta mesma frase encontra-se na Bíblia sagrada dos cristãos em
Mateus 10:8, porém sem o termo Oxalá.
66

Tereza também não comprou a dela, nós não podemos cobrar por
aquilo que não é nosso, é da espiritualidade. Às vezes, se a pessoa
quiser contribuir com uma vela, nós aceitamos de bom grado, porém,
aqui não se cobra nada de ninguém, por que a caridade não tem preço.
Eu cuido muito isto aqui na casa, pois não é uma prática que eu
aprovo, pelo contrário (Sr. Aretino. 04/2013, DOURADOS - MS).

Analogamente os argumentos contra este tipo de prática no terreiro são bastante


fomentados pela prática ortodoxa da Doutrina Espírita. E muitos dos ensinamentos que
anulam tais práticas estão vinculados a aprendizados do Evangelho Segundo Espiritismo. De
fato, a filosofia espírita interfere substancialmente no delineamento prático do Terreiro, pois
muitos dos códigos espíritas são dominados pelos dirigentes. Portanto, a Umbanda praticada
neste terreiro se assemelha ao Espiritismo caridoso praticado pela Casa Espírita Francisco de
Assis. Por isso, consequentemente, torna-se comum a presença de espíritas praticantes desta
Umbanda Branca muito mais do que de outras ramificações dela (CAMARGO, 1961; ORTIZ,
1999).
67

Figura 4- Altar de Umbanda da casa Reino de Ogum Beira Mar. Fonte: Autora (2020).

Figura 5- Lado direito do Altar, parte inferior. Fonte: Autora (2014).

Figura 6- Lado esquerdo, parte inferior. Fonte: Autora (2014).


68

A casa possui oito médiuns que trabalham com entidades características do panteão
umbandista7. As entidades que comumente se manifestavam nos rituais daquela Casa são:
Preto-Velho Pai Joaquim de Aruanda, Caboclo Tupinambá, Caboclo 7 Flechas, Caboclo
Flecheiro, Caboclo Ogum Beira-Mar, Cigano, Caboclo Índio e Cabocla do mar. Cada médium
trabalha de forma distinta e cada um é responsável por seus utensílios materiais disponíveis
para a entidade.
Diante destas considerações, faz-se importante apresentar a forma como este grupo de
médiuns se organiza estruturalmente nas atividades da Casa de forma ritualística. Trataremos
de suas peculiaridades objetivando melhor situar o leitor para as condições ritualísticas que se
propõe o Grupo de Terreiro, sobretudo no que tange às similaridades que fornecem
continuidades com a prática espírita.
A primeira delas é o uso de roupas claras, esta é condição imposta a todos os médiuns
e frequentadores da casa, pois até mesmo os que buscam a casa de modo esporádico são
orientados pelo chamado “orientador material” a utilizar roupa branca nos dias de culto.
Outra característica é que todos os médiuns ao adentrarem ao espaço sagrado, se dirigem até o
peji, ou seja, o altar onde estão localizados todos os santos, e ali batem a cabeça três vezes, e
permanecem imobilizados por um tempo relativamente longo em sinal de oração e pedido.
Esta é a hora em que os médiuns saúdam a casa e as entidades da Umbanda, e fazem os
pedidos, que giram em torno do desejo de que as atividades da noite sejam realizadas com a
proteção da espiritualidade sagrada, segundo suas crenças.

2.3.2. A Organização dos Rituais


A atividade da Casa acontece às sextas feiras, a partir das 20 horas. Com o número
crescente de adeptos, o espaço reservado para receber as pessoas tem se tornado pequeno.
Desta forma, enquanto aguardam o início dos trabalhos, as pessoas se acomodam também na
varanda da residência, além das que já lotaram o próprio terreiro. Os vínculos de amizade e
intimidade entre os membros são fortalecidos. Esta é uma característica bastante peculiar
desta casa umbandista, já que, na maioria das vezes, não há contato próximo dos

7
A Umbanda é uma religião genuinamente brasileira de possessão em que os seus adeptos
incorporam entidades de um mundo espiritual. Historicamente, essas entidades são compostas
por tipos sociais excluídos, como índios [caboclos], pretos-velho [escravos], pomba-gira
[prostitutas] etc. Com o passar das décadas do século XX e devido à plasticidade da
Umbanda, surgiram novos tipos de entidades, como baianos, malandros, marujos, boiadeiros
dentre outros. No entanto, todos possuem em comum o caráter marginal.
69

frequentadores e seus líderes, do contrário, há uma delimitação entre o lugar que cada um
deve ocupar.
Daqui em diante serão apresentados alguns rituais específicos praticados na casa, que
de alguma forma demonstra as especificidades ritualísticas que o terreiro apresenta. O
primeiro ponto importante a ser mencionado é um ritual que determina o início das atividades
da casa naquela noite. Este é um elemento diacrítico importante. A presença da oração do Pai
Nosso reforça as singularidades da atividade religiosa, é um elemento encontrado no
catolicismo e até mesmo no Espiritismo.
Esta oração é um símbolo que contribui ao entendimento de que a presença dos
preceitos ortodoxos das religiões dominantes conduz as atividades a serem desempenhadas na
noite. Após o “Pai Nosso” é entoado o seguinte ponto cantado: “Eu abro a nossa gira com
Deus e Nossa Senhora, Eu abro a nossa gira Pemba de Angola “(Ponto de abertura).
Contudo, é possível apreender a mobilidade e a fluidez entre preceitos católicos e referência a
uma origem africana.
Durante o culto não é cantado nenhum ponto de louvação à entidade Exu nesta casa
umbandista, pois, simbólica e espiritualmente, a casa “pertence” a Ogum Beira Mar, portanto,
o ponto de Exu - o “guardião espiritual” é entoado individualmente por cada médium no
momento da saudação antes de iniciar os trabalhos. Todavia, a maioria dos cultos são
iniciados sem esta saudação – analogamente, é como quando saudamos o porteiro na entrada
do prédio ao adentrarmos, que é quem “permite” ou “barra” a entrada das pessoas. Contudo,
deve-se ater ao fato de que a segurança que os exus dispensam ao terreiro afeta apenas o lado
espiritual, logo, as pessoas não são barradas, esse papel quem desempenha é o chefe do
terreiro.
O lugar e papel ocupado por Exu por estes grupos, tanto da casa MEFA, quanto do
terreiro Reino de Ogum Beira Mar, é a identidade de Guardião. Stefania Capone encontrou
em sua analise o exu com identidade de Diabo: “Exu é o Diabo” (CAPONE, 1991). Esta
afirmativa não se estende a todos, pois neste caso o Exu ocupa um lugar diferente, sempre
remetendo a rua no sentido de que, é este, o personagem responsável pela Guarda e segurança
tanto do terreiro como de seus adeptos, médiuns e frequentadores.
A umbanda é uma religião que sofre inúmeras alterações dentro de uma configuração
pautada no africanismo. Alguns autores consideram que o estilo religioso Umbandista sofre
modificações no contexto social da Capital Paulista, sendo o Espiritismo o principal fato desta
mudança e das alterações decorrentes, considerando aspectos ritualísticos e doutrinários.
(CAMARGO, 1961).
70

Outra importante constatação é a mistura que há entre frequentadores e visitantes com


médiuns que darão vida às atividades posteriores e o papel de cada um dentro do universo
cósmico do culto. Em alguns terreiros visitados pela autora desta pesquisa, pode-se notar
como que um marco divisório entre os líderes e os frequentadores. Por vezes, são marcos
físicos como muretas de concreto ou cortinas de pano, ou mesmo o local que cada um se
posiciona respeitando tal “hierarquia” espiritual com a finalidade de exteriorizar quem é
membro e quem é visitante, sejam médiuns ou apenas frequentadores. Todavia isto não foi
constatado nesta casa umbandista. O fato é que, talvez pela sua própria limitação da estrutura
física em relação ao número de pessoas, o que se viu lá foi um conglomerado de várias
pessoas com atribuições diferentes no que tange aos seus papeis dentro do culto.
As fronteiras culturais são mantidas no instante em que as proximidades e interação
social são estabelecidas enquanto um fenômeno transcendente e que extrapola a noção de
delimitação de território mantido por afastamentos, em contraste com a situação de interação
social e cultural. Aqui, mesmo a interação entre médiuns, frequentadores e visitantes da casa,
ainda assim há delimitações atribuídas pelos próprios agentes sejam qual for sua identidade
naquele cenário de culto umbandista.
A partir da interação, existe uma produção de relação, tornando dinâmica e complexo
o espaço. Desta forma, as próprias pessoas são quem se enxergam aos outros e a si mesmo,
nesta lógica cultural, estabelecendo suas próprias limitações e produzindo fórmulas para lidar
com o próprio espaço onde constroem a própria ideia de “social”. Esta é a lógica da noção de
identidade, e atribuição do “eu” e do “outro” (BARTH, 2000).
No terreiro existe, assim como na casa Francisco de Assis, um “controle social do
corpo, que não é simplesmente abolido no transe, mas substituído por outro controle, o dos
estereótipos corporais da incorporação de cada entidade mística que é de uma extrema e
sofisticada codificação” (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991, p. 84). Isso quer dizer que cada
manifestação é mantida sob uma performance simbólica, com o intuito de distinguir um
caboclo do outro, tais como outras entidades, é um sinal que o próprio personagem fornece
para que em todas as vezes em que aqueles gestos forem apresentados, todos saberão quem é
e do que se trata dada manifestação.
Nesse sentido, descreveremos como se dão três de várias possessões na casa
umbandista em questão. A primeira é da médium chefe do terreiro, Dona Tereza, que dá vida
ao “pai” do terreiro: Ogum Beira Mar. Assim que a música referente a esta entidade começa a
ser entoado, a médium inicia um processo corporal em que se balança dos pés à cabeça para
frente e para traz em um ritmo parecido com o balanço do mar. De repente após balbuciar um
71

chiado parecido com o barulho das ondas do mar após quebrar, empurrando os braços para
frente, inclinando a cabeça para frente e para traz conforme o movimento das mãos, em
seguida coloca a guia– uma espécie de colar de miçangas – de cores transparente e vermelha
ao redor do pescoço e, sob o aplauso de todos os presentes, saúda a Umbanda e todas sete
linhas.
O segundo exemplo aqui descrito trata-se da entidade chamada “caboclo Tupinambá”,
que se manifesta no terreiro de forma bastante leve e contida. Quando chega, a médium
balança levemente o ombro, dando a impressão de um constante refazer-se, abaixa até o chão
e bate as mãos sobre o chão, três vezes seguida, e depois de ter sua guia sob o pescoço, saúda
o chefe do terreiro Ogum Beira Mar, que já se encontra movimentando-se dentro do terreiro.
A terceira e última manifestação é da entidade “Caboclo Sete Flechas”. Assim que seu
ponto é cantado. O corpo da médium inclina-se para trás sob o chão, fornecendo a imagem de
um flecheiro agachado apontando sua flecha para frente, em seguida a médium bate no peito e
no chão três vezes. Em seguida, cumprimenta o chefe do terreiro. Esta é uma condição ritual,
todas as entidades manifestadas vão até o “chefe” e saúdam sua presença no terreiro.
Dos três exemplos, o que mais se assemelha dos traços de possessão do espiritismo é a
entidade Caboclo Tupinambá. Isso por se tratar de uma manifestação religiosa de
característica silenciosa, sem muito alarde, bastante contida e equilibrada, que muito se
assemelha às sessões mediúnicas dos centros espíritas, o que denota certa domesticação da
manifestação por parte do (a) médium que o incorpora. Este é um traço bem característico das
reuniões espíritas, que prezam pelo código verbal, ao passo que na Umbanda, o que se
privilegia são códigos corporais (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991, p. 89).
É possível ser observado que grande parte dos médiuns/adeptos tiveram a marca da
doutrina espírita em suas trajetórias de vida até as práticas umbandistas no terreiro Ogum
Beira Mar. Não somente isso, mas também em sua grande maioria há composição de
circulação em outros espaços religiosos. Estes espaços serão contemplados nas linhas
seguintes, através de descrições que poderão mobilizar o leitor a conhecer estes espaços que
dialogam entre si, através da produção simbólica que se origina no estabelecimento de
relações e interações entre os grupos que compõem cada casa.
Durante toda a sessão não constatamos nenhuma entidade (personagens incorporados
em seus médiuns) fazendo o uso de bebida alcoólica ou cigarro. Certo dia, conversando com a
Sra. Tereza, indagamos do porquê de não se utilizarem esses utensílios materiais bastante
comuns em terreiros de Umbanda. Segundo ela, no início, sua entidade Caboclo Ogum Beira
Mar, bebia muito vinho, com o passar do tempo trocou o vinho pela cerveja, onde
72

permaneceu bebendo nas sessões da casa por muitos anos. Após um longo período, a entidade
dispensou o uso da bebida substituindo a mesma por água.
Nestes tempos, tudo o que tem é uma garrafa com água a qual faz o uso de modo
muito esporádico, e as outras entidades incorporadas em seus respectivos médiuns não fazem
uso de nenhum tipo de bebida. Na década de 60 já havia algumas menções sobre as
influências do Espiritismo nas sessões Umbandistas sendo: “Exclusão de bebidas alcoólicas,
especialmente da pinga, apesar de ser apreciada por “Pretos Velhos” e “Caboclos”
(CAMARGO, 1961). Qualquer comentário sobre isso, entre os médiuns da casa, o discurso
doutrinário Espírita é automaticamente evocado como justificativa e esclarecimento. Trata-se
de um elemento dispensável e tido como desnecessário.
Durante os rituais alguns utensílios materiais são utilizados por todos os trabalhadores
da casa. O descarrego8 é usado de forma corriqueira e cada médium possui o seu de forma
individual. As velas são utilizadas por médiuns, e pelas próprias entidades durante o trabalho
para alguns rituais destinados a pessoas específicas que se encontram em tratamento
“espiritual”. Outro material utilizado é a “pemba”9, destinada a riscar os pontos, normalmente
feitos no piso nos cantos do terreiro.
Outra marca diacrítica a apresentar no terreiro é a ausência de atabaques. O uso do
atabaque é dispensável, até mesmo as palmas, pois seu uso remete a uma modalidade
Umbandista relegada a outra pratica a qual o grupo do terreiro, bem como seus chefes não se
identifica em distanciamento.
Desta forma os pontos cantados são entoados durante toda a atividade, são eles
condutores simbólicos que fornecem o andamento das práticas rituais. Os pontos são cantados
de forma a louvar as entidades e até mesmo aos orixás. Contudo, como no terreiro em
questão, apesar de o orixá ser Ogum, há a manifestação de outras linhas de orixás, assim, é
comum haver uma simultânea miscelânea de cânticos melódicos, já que tanto o Ogã, ou chefe
– Sr. Aretino – quanto os médiuns podem entoar esses pontos de louvação.

2.4. A formação das casas sob a diretriz do transe


Quando os dados falam por si, fica muito mais evidente a impressão a ser apreendida
dos fatos. No decorrer desta escrita a partir daqui, fica evidente ao leitor que, o contexto da

8
Um composto de álcool com ervas que, segundo as crenças, ao ser aspergido no corpo dos
frequentadores, possui a finalidade de retirar energias negativas.
9
Um pedaço de giz, utilizado pela entidade para desenhos (assinaturas), onde legitimam sua
identidade particular.
73

formação da casa Movimento Espírita Francisco de Assis, apresenta maior complexidade e,


portanto, importância, não por um fator hierárquico, mas, devido a capacidade de lidar com as
diferenças muito mais do que, em contraparte com as semelhanças.
Em todos os cenários no contexto social, há um fator de referência que visibiliza com
maior exatidão quem será o influenciador e aquele que sofrerá a influência. Embora estas
casas busquem por uma legitimação e manutenção do espaço religioso a qual interagem, sob o
poder simbólico do transe mediúnico, tudo parece contribuir para que, o espaço com bases nas
diretrizes espíritas tornem, a contraparte que se destaca.
Esta opção foi induzida voluntariamente devido ao andamento e as envergaduras
promovidas pelo próprio grupo social, em que, a parte de impõe maiores aspectos
reguladores, apresentam maior visibilidade e reconhecimento, não somente pelo histórico da
casa MEFA, mas por ser um espaço de negociações simbólicas, para que se mantenha um
controla sob a égide da doutrina espírita a qual não se pretende se desprender.
A relação dialógica da Umbanda e Espiritismo representando a práxis na dinâmica das
casas, não são lineares, com tendência a casa MEFA extrair muito mais dinamismo do que o
Terreiro, pois as negociais devem ser dosadas, para que se mantenha um eixo norteador
regular e absoluto. Logo, esta discrepância nas próprias informações relatadas aqui é um risco
a qual assumimos, no compromisso de honrar com todas as consequências, por não haver
espaço suficiente para trilhar um caminho analítico que foge ao propósito desta pesquisa.
Para conhecer o processo histórico das casas é necessário dar destaque a quem o
produziu no tempo, trazendo indivíduos e narrativas para expor algumas considerações. Estes
personagens são antigos e já passaram por experiências no MEFA, desse a sua fundação,
quando Luiz Leal (Fundador do MEFA) estava presente nas atividades. A primeira informante
é Air, frequentadora há mais de 23 anos, que acompanhou de perto as mudanças e também, as
permanências.
Durante sua fala, buscou legitimar seu tempo na casa, o que lhe traria certos
privilégios que os outros não possuíam, pois quanto maior o tempo, maior o poder de
influência e lugar de fala. Aproveitando sua presença, perguntamos sobre como era o MEFA
antigamente. Segundo ela, a casa nasce com o compromisso de trabalhar aliando a Umbanda e
o Espiritismo. Que esta era a identidade da casa e, qualquer um que tentasse modificar aquilo,
já previsto desde o princípio, iria sair pois, ninguém conseguiu mudar esta proposta inicial.
Foi então que indagamos sobre a Umbanda, e sua fala demonstra que, a Umbanda
praticada na casa não era uma Umbanda de terreiro, tampouco aquilo concebíamos como
Umbanda. Ou seja, aquilo que se identifica como elemento na Umbanda, não necessariamente
74

é, pois o espaço não é um terreiro, e sim uma casa Espírita. A modalidade a qual considerava
era uma configuração única ao dizer: “A diferença entre a Umbanda e o MEFA é que aqui
nós temos Caboclos, Preto-Velho, mas não temos os rituais” (Sra. Air. Out/2013). A tentativa
de retirada de qualquer identificação com terreiros e espaços de culto umbandista foi muito
forte na sua fala.
Dá-se a impressão que o objetivo era dizer que a Umbanda no MEFA possui
diferenciais significativos. É como se os “pontos cantados” mais importantes da Umbanda
fosse inserido nas práticas do MEFA, produzindo retiradas e domesticações de práticas
ritualísticas, comuns em terreiros.
Dona Amada é antiga na casa e chegou no tempo em que Luiz Leal tinha recém
fundado, e as práticas estavam sendo desenvolvidas de forma bastante interessante, segundo
sua fala. Amada chegou até Luiz Leal através de um grupo o qual estava vinculada por
relações, ou seja, naquela época, ela apresentava reações típicas dos que sofriam daquilo que
era classificado como “mediunidade malconduzida”.
Ela relata que sofrera muito de desmaios, era constantemente tomada por espíritos em
casa, na rua, e estes espíritos eram sempre arredios, apresentavam descontroles e eram
maldosos. Segundo ela, os espíritos a dominavam e não lhe davam opções de escolhas, o que
lhe causou desarmonia na família e com os amigos. Foi então que se conduziu até o MEFA:

Naquele tempo, tudo que era coisa pesada, espíritos bravos,


indisciplinados era tudo encaminhado para o MEFA, pois era o único
lugar que estes espíritos eram aceitos. E por diversas vezes, houve
casos de pessoas tomadas por espíritos serem trazidas para o MEFA
por outras casas espíritas que não se viam em condições de lidar com
aqueles casos aparentemente sem solução, os espíritos eram violentos
[sic] (Maria E, 06/2013, DOURADOS - MS).

A incorporação é um fator de extrema importância, pois, o ato de “receber” um


espírito é forte e presente nas práticas deste grupo, considerando que todos estes personagens
invocados através do transe mediúnico são os chamados espíritos inferiores baixos e trevosos,
sofredores, bem como Caboclos e Preto-Velho. O fenômeno da incorporação, termo bastante
usado entre eles, é um sinal de comunicação entre Umbanda e Espiritismo. Amada continuou
dizendo: “naquela época eu sofri muito, porque nenhuma casa espírita me aceitava; ninguém
75

me ajudava porque as casas espíritas não aceitam a incorporação. E o MEFA aceitava, e


aceita até hoje” (Sra. Amada. Jun /2013).
Após esta consideração, Amada começou a inserir ocorrências cuja evocação da
presença da Umbanda é determinante, deixando evidente que a Umbanda, por aceitar a
incorporação e o MEFA adotando algumas práticas desta modalidade, ajuda a compreender
que, a incorporação, a mediação - humano e espírito - é um produto muito forte que a casa
oferece como um bem simbólico (BOURDIEU, 2001).
Amada, ao continuar sua fala, relatou algumas histórias de espíritos trevosos que
incorporavam nos médiuns e que era possível sentir os odores de sangue, cheiro de carne
putrefata e que tudo era ligado aos personagens da Umbanda. Em memória aos tempos do
MEFA antigo, Amada disse:

O Sr. Luiz Leal e a Dona Nega faziam trabalho de


desenvolvimento mediúnico em cima dos pontos cantados da
Umbanda. Ele cantava para Iemanjá, Xangô, Preto-Velhos, Caboclos,
Ogum, Oxum, entre outros. E conforme os efeitos que os pontos
causavam nos médiuns, ele conseguia identificar o “santo” de cada
um, e também as entidades que os médiuns iriam trabalhar (Amada,
07/ 2013, DOURADOS - MS).

Isto significa que desde aquela época já existia a presença da Umbanda, e tal
modalidade definia e encaminhava os médiuns da casa para que estivessem ligados e
influenciados pelas entidades. Os próprios termos utilizados na narrativa já expressa um
diálogo entre Umbanda e Espiritismo. Partindo para outro ponto importante, perguntamos aos
adeptos/médiuns mais antigos da casa sobre como eram as atividades na época e em como
estas atividades são vistas nos dias atuais.
Amada aponta o estudo como um fator importante de mudança e nivelamento ao
considerar: “O estudo me modificou muito! Antigamente nós fazíamos muito barulho ao
receber espíritos, não tínhamos conhecimento doutrinário. As manifestações eram pesadas, e
hoje eu trabalho com o meu caboclo de outra forma” (Amada. Mar/2013). Indo ao encontro
desta fala, a interlocutora Maria, ex-presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis, afirma:
76

Naquela época quem dirigia os trabalhos era o próprio Sr. Luiz.


Antigamente, os trabalhos eram diferentes dos que são realizados hoje
em dia lá no MEFA, porque agora existe um conhecimento teórico
mais aprofundado e isso contribui muito para a mudança na forma de
trabalhar (Maria E., 07/2013, DOURADOS - MS).

Em seguida levantou algumas questões que sinalizam a falta de conhecimento que,


segundo ela, ainda é presente na Casa Espírita Francisco de Assis:

Hoje em dia, ainda tem pessoas que acham que as coisas acontecem
na nossa vida é culpa dos espíritos, como se eles fossem os
responsáveis por tudo aquilo que nos acontece, e às vezes acaba
recorrendo a eles para solucionar questões que só nós mesmos
conseguimos resolver, e os espíritos não tem nada a ver [sic] (Maria
E., 07/2013, DOURADOS - MS).

Dando continuidade à sua fala sobre o período da fundação do MEFA, Maria enfatiza
questões que já foram discutidas anteriormente, mas que podem contribuir para a
compreensão de fatores necessários de como o MEFA configura-se na contemporaneidade. A
fundação do MEFA tinha como objetivo dar continuidade aos trabalhos que anteriormente
eram realizados na Casa Espírita Ismael. Antigamente a Umbanda era bem mais presente no
MEFA e houve uma maior domesticação dos mentores:

Já fizeram uma “Quiumba” para o MEFA. Nesta época tinha uma


caseira (em nota) que morava na casa situada dentro do MEFA, e
neste dia esta mulher tinha acabado de sair para trabalhar, e seu filho
mais velho ficou em casa. Quando ele saiu pra fora de casa, começou
a sentir um cheiro ruim de bicho morto mesmo, procurou por tudo e
não encontrou a origem daquele cheiro. Foi aí que avistou em cima da
casa, um monte de mosquito, subiu em cima da casa e avistou uma
cabeça de bode preto. Depois disso todo mundo começou a se
perguntar quem poderia ser o responsável por aquilo. O Sr. Luiz Leal,
bastante tranquilo com a situação, acalmou todo mundo dizendo que
não era para se preocupar com aquilo. Depois disso, o Sr. Luiz marcou
77

um trabalho, me lembro bem, foi em uma Quarta-feira. Foram


escolhidos médiuns da casa para trabalhar, e a Caseira, porque de
alguma forma ela estava envolvida, por ser a moradora da casa na
época. Todos os médiuns que participaram estavam ligados a
Umbanda, dentre estes médiuns estavam Amada, Paulo, Rosa, e
outros, além do próprio Sr. Luiz. Pegaram a cabeça do bode
colocaram no chão, e dali em diante foi feito um trabalho na linha da
“quimbanda”, que era a única que daria condições para desmanchar
aquilo ali que tinha sido feito. O Paulo trabalhou com o exu dele,
aquela entidade dele, pegava pimenta malagueta esfregava nas mãos
juntamente com brasa viva. E daquela maneira os trabalhos foram
acontecendo. O Sr. Luiz olhou para mim, e disse que queria o
responsável por aquilo ali, e eu recebi o cara, quando ele chegou o
Tupinambá da Rosa veio junto pra fazer a segurança do ambiente, de
tão pesada que era energia. No final do trabalho, baixou o Ogum no
Sr. Luiz Leal, e aí tudo terminou bem [sic] (Reginaldo, 06/2013,
DOURADOS - MS).

A casa possui inúmeras histórias em que a Umbanda se fazia sempre presente. Esta
colocação serve de orientação para os fatos vividos e experimentados no MEFA antigo que,
de alguma forma, ainda se faz presente até os dias de hoje. Apesar de algumas práticas terem
sido banidas do cotidiano do grupo, foram adotadas outras práticas que seguiam no intuito de
evocar a presença da Umbanda como um mecanismo de segurança. A Umbanda sempre
esteve presente no alicerce da casa, e existe um consenso de que qualquer tentativa da retirada
da Umbanda das atividades do MEFA, é tendência à falência.

2.5. Às origens do MEFA – Movimento Espirita Frascisco de Assis


No ano de 1976, Luiz Leal fundou a Casa Espírita Ismael, cujas atividades eram
continuidades de práticas ritualísticas promovidas na capital do estado do Rio de Janeiro,
onde Luiz nasceu, cresceu, se criou enquanto um membro da religião espiritualista e fundou
sua primeira casa.
Durante o período da pesquisa, alguns interlocutores entram em cena para apresentar
sua experiência na Casa Espírita Anjo Ismael, como era identificada naquela época.
Considerando as temporalidades diferentes, cabe uma contextualização deste momento que só
78

se faz possível demonstrar através da memória. Assim, o primeiro tempo data o ano de 1976.
Segundo Maria (uma frequentadora):

Em 1976 foi fundado o Ismael, naquele tempo minha mãe começou a


desenvolver a mediunidade com o grupo da casa que era liderado pelo
Luiz Leal. O trânsito entre estas casas é muito antigo. Esses dias eu
estava olhando a ata de fundação do Centro Espírita Ismael, e estava
escrito que um dos objetivos da casa é o estudo da doutrina espírita, e
falava de estudos esotéricos. E o intuito era trabalhar nos moldes
esotéricos, fora do padrão FEB (MARIA, 2013).

A interlocutora teve bastante dificuldade de lembrar como eram as atividades da Casa


Espírita Anjo Ismael na época. Maria é filha de uma das integrantes do grupo liderado por
Luiz Leal, naquela época, e que posteriormente iria compor o quadro de dirigentes da casa
Movimento Espírita Francisco de Assis. Por mais que sua condição de criança limitasse sua
memória, sua posição refere a quem esteve presente, considerando que muitos integrantes do
Ismael daquele tempo já faleceram sobrando, assim poucas opções de contato.
Inicialmente Maria relatou como foi o encontro de sua Mãe com Luiz Leal, que em
um futuro próximo estaria ligado integralmente a sua equipe da Casa Espírita Anjo Ismael.
Segundo ela:

Quando o MEFA foi fundado eu já estava ali, e antes do MEFA eu


conheci o Ismael através da minha mãe. A minha mãe conheceu o Sr.
Luiz quando a minha avó ficou muito doente, ela era doida da cabeça,
e precisava passar por um tratamento muito sério, por que seu
problema era espiritual. Uma tia da minha avó ficou sabendo dos
trabalhos espirituais que o Sr. Luiz realizava e ele foi a casa atender
ela. Foi quando minha mãe conheceu o Sr. Luiz pela primeira vez,
inclusive ele fundou o Centro Anjo Ismael (naquela época) também,
foi a primeira casa que ele criou. E ele convidou a minha mãe para ir
ao centro, e minha mãe acabou ficando (MARIA, 2013).

Ao longo de sua fala, Maria deu grandes indícios de como se configuravam as práticas
ritualísticas do Ismael na época. Segundo ela, se viu obrigada a frequentar aquele espaço de
79

culto, devido às influências e imposições de sua mãe, que exigia sua presença junto a ela nos
dias de atividade. Os autores Fernando Brumana e Martinez (1991), já davam indicações
destas transmissões fornecidas pelos laços familiares, exercendo assim um papel relevante,
tendo em vista que tais relações servem como propulsores e fomentadores de adeptos ligados
à religião. Isso aconteceu com Maria, pode-se considerar que talvez nem quisesse adentrar a
este universo, porém as relações que a vinculam à mãe a levaram a aceitar e aderir aos
códigos da religião a qual estava sendo inserida (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991, p.140).
Esta colocação induz ao entendimento de que Maria foi inserida neste universo através
da relação que construía com sua mãe, e que havia na época uma grande necessidade de impor
respeito e devoção aos entes aos quais se via subordinada. Voltando às descrições da memória
da interlocutora: “Os trabalhos do Ismael na época eram de manifestação de espíritos
mesmo, eu me lembro que não tinha cadeira pra sentar, os médiuns trabalhavam em pé, e o
único que sentava era o Preto-Velho que tinha a banquetinha dele” (MARIA, 2013).
Ao indagarmos se as atividades do Ismael eram semelhantes aos trabalhos de um
terreiro de Umbanda, e ela não soube me dizer, e logo já entendi o motivo da não analogia
com relação aquele espaço. De fato, é porque Maria não tem familiaridade nenhuma com um
terreiro de Umbanda, por não dominar os signos e as sinalizações ritualísticas que são
perfeitamente reconhecidas e identificadas por aqueles que têm uma formação Umbandista
em sua trajetória de vida.
Deve-se também salientar que Maria não compõe o trânsito, exceto em sua passagem
pelo Ismael naquela época. Sua fala expôs o fato do dia em que visitou um terreiro de
Umbanda no ano passado pela primeira vez, que por pura coincidência - e para nossa sorte
enquanto pesquisadora –tratava-se do terreiro que Reino de Ogum Beira Mar. A visita fora
feita através de frequentadores do MEFA que passaram a frequentar o terreiro assiduamente
(lembrando que os visitantes só podem entrar se forem convidados por quem já é “da casa”).
Continuando suas recordações:

O Ismael quando fundado nos anos 70, os trabalhos eram no mesmo


estilo do terreiro do Sr. Aretino. A primeira vez que pus meus pés ali
no terreiro da Dona Tereza, me veio o Ismael antigo rapidamente na
minha casa, para mim é igualzinho sem tirar e nem pôr, o estilo é o
mesmo, o Ismael era daquele jeito. Quando eu olhei lembrei por que
eu não conhecia terreiro de Umbanda, mas o que eu vi do Ismael ali
no terreiro é que, naquele tempo não tinha cadeira para os médiuns
80

sentar, só tinha para o público, mas para os trabalhadores não, o único


que sentava era o Preto Velho [sic] (MARIA, -09/2013, DOURADOS
- MS).

Foi então que questionei sobre como se dava ali na casa Ismael o desenvolvimento
mediúnico, segundo Maria: “era gira! Minha mãe desenvolveu girando” (MARIA, /2013).
Ainda falando sobre o Ismael:

O salão do Ismael era grande, não tinha compartimento de sala como


tem no MEFA. Mas quando eu entrei ali no Sr. Aretino e vi a Ísis
trabalhando, aquele Preto Velho sentado, vi você lá também, aquele
momento me fez lembrar o Ismael na mesma hora. A diferença é que
ali no Ismael o salão era bem maior, tinha uma cerca que separava o
público dos trabalhadores da casa (dos médiuns), era uma cerca
parecida com cabo de vassoura, para separar médium da casa, das
pessoas que iam ali para tomar passe. Não me lembro de velas, nem
imagem, o que tinha era água para fluidificar igual tem no MEFA. Era
igualzinho sem tirar nem pôr (MARIA, 09/2013, DOURADOS - MS).

Esta declaração de Maria é altamente significativa, pois no momento em que adentrou


pela primeira vez no terreiro Ogum Beira Mar, Maria teve a impressão de estar retornando ao
passado das práticas que eram exercidas na Casa Espírita Ismael na década de 70. O mais
significativo é que sua identificação do terreiro com a casa reforça e induz à identificação das
práticas ritualísticas da Umbanda. E no instante em que nos relatou sobre como eram as
práticas do Ismael antigo, pudemos ter a certeza de que era um modelo cuja Umbanda estava
bastante presente, só pelo simples fato de haver presença de Caboclos e Pretos Velhos,
sentados em banquetas. A similaridade apontada por Maria, expressa a Umbanda como
referencial, indicando como eram as práticas antigas, e como com o decorrer dos anos houve
inúmeras mudanças, afastamentos, aproximações e continuidades caminhando pendularmente
entre Umbanda e Espiritismo.
Traçando um paralelo para demonstração das observações colhidas na experiência de
campo, estivemos inseridos também nas atividades praticadas pela casa Ismael nos dias
atuais. Podemos assegurar que houve mudanças e transformações marcantes desde os tempos
de Luiz Leal até os dias de hoje, se acompanharmos as considerações de Maria, pois se antes
81

havia possibilidade de dialogar com a estrutura da Casa Ismael com um terreiro, nos dias de
hoje, o Ismael está mais próximo de dialogar com os padrões ortodoxos da cultura Espírita
kardecista.
A estratégia da observação para a coleta de dados na Casa Espírita Ismael aconteceu
no ano de 2006. Cujo objetivo era estudar e aprofundar na doutrina como adepta e,
consequentemente, desenvolver a mediunidade para conhecer melhor os fenômenos, para
habilitação no campo daspercepções necessárias a cerca deste veículo de comunicação
espiritual. Os estudos sobre mediunidade tinham base nas obras de Allan Kardec.
Esta característica é um sinal diacrítico sobre a consolidação dialógica das instituições
mediúnicas. A busca do conhecimento filosófico-doutrinário é fornecida pelo MEFA ao passo
que, a invocação e atuação das entidades da umbanda é feita no terreiro, num formato de
maior expressão. Daí o sentido de complementaridade do movimento religioso que
complementa um ao outro. Ou seja, onde a teoria e prática interagem, através do trânsito, e
umbandistas e espíritas se unem nas trocas de conceito-ritualísticos.
O fato é que a identidade religiosa desta pesquisadora não era algo muito claro para o
grupo Centro Ismael, devido a esse encontro de conceitos e rituais então houve um momento
em que nos vimos forçadas a optar entre o terreiro e a Casa Ismael, pois havia um choque
entre identidade e preceitos da casa. Deste modo pudemos constatar que esta casa se afasta de
qualquer possibilidade de diálogo com outras modalidades de matriz Africana. No entanto, o
afastamento não exclui tal possibilidade, que mesmo sendo em raríssimas exceções, não se
pode dizer que não ocorrem de modo sutil, através das relações e da circulação dos adeptos.
Estas considerações servem para indicar o modo como a casa era vista pelos
frequentadores da época, visto que, a partir do momento em que o fundador Luiz Leal deixa
casa e funda o MEFA. Posteriormente a casa Espírita Ismael sofre inúmeras modificações e
mudanças no cenário ritualístico e a cada dia passa a adotar um modelo que caminha para
uma identificação ortodoxa Espírita. Cabe salientar que estas Casas que foram fundadas pelo
Sr. Luiz tiveram contribuições de outras pessoas que já faleceram, alguns recentemente,
outros há algum tempo. E de todos os fundadores e dirigentes antigos que vivenciaram aquele
tempo, Luiz é o único que permanece vivo.
Está evidentemente claro na fala do Sr. Luiz que o principal motivo da necessidade da
criação de uma nova casa foi o grande número de pessoas que buscavam a casa, o que foi
alimentando necessidade de novos espaços, de outros lugares que pudessem atender a
demanda que crescia quantitativamente no decorrer dos anos. Mas o que nos deixou bastante
intrigados é que ao ouvir as falas dos outros interlocutores que assistiram este momento de
82

cisão, temos a impressão de que esta ruptura que culmina com a fundação do MEFA pode ter
outros motivos. É comum entre as casas espíritas o surgimento de conflitos a partir do
aumento de pessoas em um espaço que pode não ser suficiente para um atendimento que se
pretenda positivo e com êxito.
A partir de agora transporemos os depoimentos dos interlocutores que nos apontaram
esta possibilidade. A primeira interlocutora é Maria Evangelista:

Toda casa tem uma presidência no comando, mas a gente sabe que
com o tempo novas pessoas aparecem para assumir aquilo que
antigamente era responsabilidade de outra pessoa. Porque com o
tempo, outras pessoas vão assumir para substituir quem estava ali até
então, e estas pessoas vêm com ideias novas, isso é normal, toda casa
é assim. O que deve ter acontecido é que com o tempo da casa, outras
pessoas vieram em seguida, e o Sr. Luiz estando houve algum atrito na
maneira de pensar por conta das colocações que estavam sendo
impostas pelas pessoas novas, e isso criou uma divergência entre eles,
e aí as casas se separaram (MARIA, 09/2013, DOURADOS - MS).

No decorrer da conversa com Maria perguntamos sobre a fundação do MEFA e sobre


os acontecimentos que o antecederam, marcando a ocorrência que resultou na necessidade de
implantar um novo espaço religioso como continuidade das práticas que tiveram seu início na
Casa Espírita Anjo Ismael. Sobre os fatos que fomentaram a formação e criação do MEFA,
parece-nos que existe uma rusga entre os interlocutores que presenciaram esta época, quanto
ao que realmente resultou neste primeiro conflito. E o que Maria relatou vai ao encontro de
outras falas que aparecem nesta exposição. Ao que tudo indica, houve controvérsias entre o
grupo, desencadeando um cisma10 entre os antigos e os novos integrantes da Casa Espírita.
Este atrito resultou em uma ruptura, fazendo com que o grupo que se afinava com o
Sr. Luiz devido ao tempo na casa acabou seguindo-o e, assim, forma-se o novo grupo
componente da nova casa que daria continuidade as atividades realizadas na casa Centro
Espírita Anjo Ismael. Ainda sobre o motivo da cisão que resulta na construção do MEFA,
Maria relata: “quando o Sr. Luiz percebia que a Casa ficava muito Kardecista, se retirava e
fundava outra Casa” (Sra. Maria E. Set/2013).

10
A ideia de cisma remete à noção de conflito existente entre duas categorias opostas que se
chocam desencadeando mudanças e transformações.
83

Perguntei a ela qual o significado da expressão “muito Kardecista”, e ela explicou:

Quando eu falei sobre a casa ficar muito Kardecista, quis dizer, muito
cheia de regras que a federação espírita acaba impondo. Porque tem
muitos espíritas que nunca foram umbandistas. Uns nasceram espíritas
e outros vieram da igreja católica para o Espiritismo. E estas pessoas
acabam se enchendo de teoria, é bonita, a ciência espírita é
maravilhosa! Com isso, eles começam a ficar muito fundamentalistas,
só aquilo está correto e nada mais. E acaba não aceitando que outras
pessoas vêm de outras culturas religiosas, do budismo, Umbanda,
Candomblé e acabam trazendo outras bagagens de conhecimento. Aí
começa a achar que está errado, mas a função da Casa espírita é
acolher, quem quer que seja (MARIA, 07/2013, DOURADOS - MS).

Esta declaração é de fundamental importância para tornar claro que, o “muito


Kardecista”, está ligado às exigências institucionalizadas pela Federação Espírita brasileira,
que tende a impor regras reconhecidas como a legitimidade do Espiritismo. Pois o espiritismo
é um movimento religioso e a atribuição e identidade da modalidade espírita evoca a presença
da FEB, pois é ela quem fomenta e determina os preceitos que deverão ser seguidos para que
haja uma real relação com a “pureza” Espírita. Durante a passagem desta adepta, lembramo-
nos da nossa segunda conversa com o Senhor Luiz leal, em que ele afirmou:

Não via nenhuma serventia em vincular o MEFA com a federação,


porque eles tinham umas coisas, umas regras que para mim não tinha
nenhum fundamento. Não podia tocar nas pessoas, não podia isso, não
podia aquilo, e isso atrapalha muito o andamento e a eficácia de um
trabalho (LEAL, 06/2013, DOURADOS - MS).

Fomos levados a crer que a grande questão que envolve estas casas, e estes grupos, é
que existe um confronto e uma série de divergências entre aqueles que possuem maior
afinidade com a Umbanda, através das práticas adotadas por Luiz leal, e entre aqueles que
possuam mais afinidade com o Espiritismo seguidores de preceitos estipulados pela FEB.
Logo, há existência de um compartimento dos grupos que acabaram se chocando devido às
ideologias e orientação religiosa distintas.
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Ainda com relação aos motivos que promoveram esta primeira ruptura que se tornaria
a fundação do MEFA, alguns integrantes também relatam, como a Senhora Benta: “a turma
que gostava de trabalhar na Umbanda foi tudo atrás dele inclusive eu. E ali no MEFA agente
[sic] trabalha com a Umbanda somente quando há necessidade”. Seguindo esta orientação
Reginaldo também dá a sua contribuição para este entendimento:

Com o tempo as pessoas vão mudando, e toda pessoa que entra vem
com um conhecimento diferente do outro, e cada um trabalha de um
jeito diferente. O Renato modificou os trabalhos do Ismael
completamente depois do senhor Luiz leal, por conta das diferenças de
ideias. E cada dirigente adéqua os trabalhos da casa de acordo com
sua própria visão da doutrina que se orienta. E também porque o
espaço lá ficou pequeno demais para ele, e como ele tinha terreno para
construir outra casa ele acabou fundando o MEFA. Eu acho que deve
ter sido essa divergência de pensamento que deve ter ajudado a
mudança. Mas o motivo também foi por conta da necessidade de
atender pessoas de outros lugares, e porque a casa estava muito cheia
(REGINALDO, 09/2013).

Após a exposição destas falas pretendemos tecer da rede que interliga e pode
significativamente contribuir ao entendimento da formação do trânsito e das mobilidades
existentes entres estas casas. Buscamos tecer a história através das falas dos interlocutores,
tendo em vista que já foram apresentados acima os personagens que estiveram presentes neste
primeiro momento. A personagem Maria, que é quem abre esta explicação da trajetória das
Casas. Como foi dito acima, Maria é filha de Catarina, uma das integrantes do grupo de Luiz
leal, nos tempos de Anjo Ismael. Maria cresceu na Casa Espírita Ismael, e contribuiu com
grandeza ao entendimento do como foi sua experiência até os dias de hoje nas casas por onde
passou.
No momento em que ficou bastante claro a existência do Ismael, um insight nos
conduziu àquilo que buscávamos compreender. Conhecemos Maria no terreiro de Ogum
Beira Mar há uns 9 anos atrás, e sua presença naquele espaço é de extrema importância, já que
exerce um papel da “cambone” da entidade denominada Preto Velho de Aruanda, manifestada
através do médium – seu esposo – Nei. Contudo, ela não apenas frequenta o terreiro como
também a casa Espírita Ismael durante as programações semanais.
85

Durante nossa conversa, ela faz um relato da sua experiência e de suas lembranças,
ainda pequena, sobre o momento em que o Sr. Luiz Leal resolve deixar a Casa Ismael para
fundar um segundo templo, que mais adiante seria reconhecido como Casa Espírita Francisco
de Assis. Maria deixa bastante evidente algumas questões referentes à saída do Sr. Luiz:

O Sr. Luiz eu acho que ele é o grande responsável por esta


disseminação de espírita umbanda. Quando ele fundou estas casas o
compromisso que ele tinha era de disseminar a ideia. Aí quando as
casas começavam a ficar muito Kardecista, parece que ele saía e
fundava outra. Lá no Emmanuel ele trabalhava e daí a pouco ele
mudou para o Ismael. O Ismael começou a ficar assim também por
que tinha uma diretoria bastante conservadora, aí ele saiu também e
fundou o MEFA. Mas em cada casa que ele criou, ele deixou uma
equipe que levaria em diante todo o trabalho que ele começou. E não
vou para o MEFA porque eu sou do Ismael. Porque na minha cabeça é
ingratidão por tudo que ele fez para minha mãe e para a minha família.
Então para mim, eu devo estar lá ajudando o filho dele (MARIA,
06/2013, DOURADOS - MS).

Após esta fala, ficam claros os motivos pelos quais Maria não deixou de frequentar a
Casa Espírita Ismael. O motivo era um sentimento de dever e gratidão por Luiz Leal e sua
significativa presença em sua família. Entender o porquê da permanência na Casa Ismael até
os dias de hoje é expressão de uma motivação fomentada por laços de família e afinidade.
Depois Maria me relatou uma história que caminha dentro de uma lógica bastante
sofisticada para compreensão da sua permanência na Casa Espírita Ismael, justificando,
também, a permanência de sua Irmã Ísis na Casa Espírita Francisco de Assis:

...isso ficou muito claro na minha cabeça, quando o meu mentor, por
intermédio de uma médium da Casa de Ismael me disse: “eu vou
trabalhar com você nesta casa, e eu quero trabalhar verdadeiramente
na área da cura, e eu estou aguardando sua disposição para o trabalho
e meu nome é Ismael”. Então ali eu entendi que a minha casa era lá, e
o da minha irmã é o Tupinambá. Tupinambá é mentor da Dona Rosa
(dirigente espiritual da Casa Espírita Francisco de Assis), então ela
86

tem que estar no MEFA e não no Ismael. Para minha família ficou
esta herança, você ajuda aqui, você ajuda ali e assim por diante. E eu
gosto muito do MEFA, e do terreiro, mas a minha casa é o Ismael
(MARIA, 06/2013, DOURADOS - MS).

Na atualidade, a Casa Espírita Ismael continua localizada no mesmo espaço em que


foi fundada na década de 70, no bairro na sociedade Douradense, numa extensão geográfica
diferente da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, que está situada em um bairro
periférico da cidade. Quando a autora desta pesquisa adentrou pela primeira vez na casa, pode
apreender com evidências a presença marcante do Espiritismo tanto no ethos do grupo, como
também nas práticas que são desenvolvidas semanalmente. Hoje, a doutrina Espírita é o eixo
central que mobiliza a produção do espaço social. De certa forma, esta constatação contrasta
com que era praticado outrora, cujos rituais se assemelhavam às práticas ritualísticas da
modalidade Umbandista. Assim, é possível afirmar a existência, no decorrer dos anos, de um
processo de afastamento e aproximação que caminha entre a Umbanda e o Espiritismo.
87

CAPÍTULO 3 - A TRAMA, O TRÂNSITO, O TRANSE

O trânsito11 se dá a partir da relação dialógica construída por grupos sociais que


compõem aproximações instituindo complementaridades em suas práticas das modalidades do
campo religioso. Este fenômeno se dá de duas formas: a primeira é referente aos produtos
simbólicos da Casa Espírita que se movimentam em direção à Umbanda, e o terreiro que
possui em suas práticas, caracteres específicos da ortodoxia Espírita, a partir do afastamento
de elementos práticos rituais das religiões afro brasileiras. Sob outro viés, o trânsito se dá de
modo concreto à medida que frequentadores da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis
passam a compor o quadro dos frequentadores do Terreiro. O objetivo deste capítulo é narrar
a história do trânsito, de acordo com um grupo tanto da categoria de médiuns quanto os
clientes que fazem este movimento complementar entre as casas.
O ponto discursivo determina interpretações do trânsito vinculado às relações
atrelando Umbanda e Espiritismo, o que inclui também o fundador da Casa Movimento
Espírita Francisco de Assis. Após relatar o fluxo de pessoas, será narrada a trajetória das casas
enquanto fomentadores deste trânsito, tendo em vista o percurso que os próprios personagens
percorreram, para exemplificar as interconexões existentes entre elas, o que possibilita
maiores entendimentos com relação aos elementos desencadeadores desta movimentação e
prática de elementos simbólicos e pessoas.
Os grupos que serão apresentados são conduzidos por uma intensa relação com os
espíritos, os mesmos também são objetos de continuidades e rupturas moldadas de acordo
com as casas religiosas aqui mencionadas. Logo, serão enfatizados o modo e a interpretação
do trânsito dos espíritos, além do trânsito das pessoas. Em seguida serão explicitados
elementos simbólicos que foram diagnosticados durante o trabalho de campo, considerados
como estimuladores e mediadores do trânsito.
Esta trama é composta por personagens cujas ações nos permitirão compreender o que
estas casas, que ora se apresentam, têm em comum. Assim, apesar de ambas apresentarem
singularidades, elas se veem interligadas pelos próprios agentes que as compõem. Umbanda e
Espiritismo foram são aqui, religiões opostas mantidas em afastamento e estabelecidas num
diálogo mediado pelo fenômeno do transe. Assim como nos Estudos das Redes de Relações

11
O conceito de trânsito é uma ideia formulada como categoria cuja finalidade é referir-se ao
movimento dos grupos das duas casas religiosas, à medida que integrantes do grupo da Casa
MEFA passam a frequentar o terreiro, e vice-versa. O movimento dos grupos entre uma casa e
outra é identificado através da categoria “prática”.
88

nas Guianas foram enfatizadas situações de interação e mediação entre “Índios” e “não
Índios”, as relações estabelecidas entre grupo Umbandista e Espírita não podem ser tratadas
como exteriores as redes tecidas pelos dois grupos.
As formas de lidar com as práticas rituais vão ao encontro de tais exterioridades se
conectando a elas constituindo assim, o que se chama de “conexões variáveis”, ou seja,
vínculos que caminham em um circuito permissível e aberto, ás diferenças e elementos que
até então eram corrompidos pela barreira das diferenças (GALLOIS, 2005). Muito pelo
contrário, no instante que as diferenças se encontram, ambas permitem interações mediadas e
negociadas pelos próprios fatores diferenciadores, levando assim ao reconhecimento
atribuições e evocações de identidade. (BARTH, 2000).
No instante em que esta teia começa a ser tecida há o surgimento das Casas Espíritas
na cidade de Dourados – MS. Circulando entre estes espaços, foi possível detectar que o
diálogo entre as casas é muito fixado em relações construídas no passado. Todos, em grande
maioria, se conhecem e reconhecem uns nos outros pelo próprio nome. A casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, recebe grande parte desta população nas atividades diárias
oferecidas ao público geral.
Esta oferta de espaços religiosos desta modalidade, é vista positivamente por parte dos
adeptos da religião. O fato é, estas casas foram sendo constituídas a partir de uma situação de
conflito entre os grupos participantes. Já presenciamos algumas conversas entre os
frequentadores do MEFA que afirmavam que todas as casas espíritas da cidade foram frutos
de desentendimentos e brigas entre dirigentes e médiuns da casa. Por isso, se não fossem estas
brigas talvez não existisse tanta casa espírita na cidade. Assim, uma vez ouvimos: “Ainda
bem que o povo briga! “[sic]. Esta fala retrata o que alguns teóricos dizem sobre o conceito
de “socialidade”, tendo o conflito uma conotação positiva, sendo este o principal promotor de
mudanças no cenário social. (STRATHERN, 2006).
Neste caso, o conflito é parte do contexto social o qual vivenciam suas experiências.
Como diz a própria Maria Evangelista, ex-presidente da Casa Espírita Francisco de Assis: “Se
não houvesse tantas discordâncias entre os fundadores e presidentes de Centro Espírita,
talvez não tivéssemos tantas casas oferecendo socorro e assistência aos mais necessitados na
cidade” (MARIA, 2013).
Foi o que ocorreu no MEFA. Sua origem, na Casa Espírita Ismael, é fruto da trajetória
religiosa de seus idealizadores, antigos frequentadores da Casa Ismael, embora sua
configuração atual se desenhe de forma distinta ao modelo Espírita tradicionalmente regulado
pela Federação Espírita Brasileira - FEB.
89

A existência do MEFA se deve ao advento de um conflito entre os grupos sociais que


compunham a primeira formação na casa “Centro Espírita Ismael”. Semelhantemente, a
criação do terreiro também foi consequência da vida de seus chefes, como mencionado
anteriormente, que foram aconselhados pela própria entidade Ogum Beira Mar a usar sua
própria casa como templo umbandista.
Os conflitos ocorrem em vários grupos em diferentes contextos, e com o MEFA não
foi diferente. Podemos afirmar que na cidade de Dourados, é bastante comum. Parte das casas
espíritas douradenses é fruto de conflitos entre dirigentes com correntes de pensamentos
divergentes. Assim, esses líderes disseminam a reconfiguração que resulta na comunidade
com maior afinidade, se influenciando pela trajetória religiosa e com a própria doutrina,
formando novos centros de religião espírita.
A casa Movimento Espírita Francisco de Assis é resultante de um processo que se
inicia no ano de 1976, com a fundação da Casa Espírita Ismael. Isso emerge naturalmente no
âmbito das relações por dois motivos objetivos, segundo os caminhos percorridos pelas casas
Espíritas, considerando o espaço geográfico ao encontro da demanda crescente, gerando
instabilidade, tendo em vista que o espaço geograficamente não comporta a quantidade de
pessoas, frequentadores, trabalhadores da casa e médiuns. E pouco espaço para muita gente é
um fator potencial para o surgimento de conflitos e disputas por um espaço em aspecto
estrutural.
Esta tensão ocorre entre os novos que chegam, carregados de expectativas, e os
frequentadores, médiuns e trabalhadores da casa mais antigos, que buscam em seu discurso a
legitimação e o privilégio, por participarem da casa em outros tempos. A casa torna-se assim,
um espaço de disputa. Outro ponto de conflito bastante comum nas casas Espíritas é de cunho
ideológico, de crença e de fé em determinadas correntes possíveis de se pensar a religiosidade
Espiritualista.
O MEFA surgi no conflito social que se dá entre grupos que, em conjunto, movem
atividades e práticas desenvolvidas. Esta história será apresentada a seguir, incluindo os
personagens, que se veem, através de narrativas, envolvidos em acontecimentos que marcam a
trajetória das casas religiosas. Os personagens apresentados serão caracterizados como:
médiuns/adeptos que (a) transitam através da trajetória das casas, (b) transitam entre as casas
e (c) que não transitam.
Utilizaremos aqui, para análise a adequação do conceito de socialidade
(STRATHERN, 2006; CUNHA, 2009). A ideia de sociedade, ou seja, indivíduo e sociedade é
um conceito bastante discutido entre os antropólogos. No entanto, surgem algumas colocações
90

trazendo contribuições ao entendimento deste elemento epistemológico. Ao apresentar as


críticas à análise da vida social na Melanésia, Strathern (2006) contrapõe a abordagem de
Malinowski (1978) no sentido de desfazer a ideia de sociedade harmônica tendo como
característica uma totalidade, se colocando em dúvida quanto a esta possibilidade tendo em
vista que, a forma de abordar o outro é trazer evidencias de nossas próprias concepções
acidentais. O objetivo é olhar para o outro, sob suas próprias configurações, tendo em vista
que os nossos instrumentos de observação tendem a encará-los como reflexos de nós mesmos.
Os conceitos são nossos, e são estes que atribuímos a eles:

Sociedade e Individuo constituem um par terminológico intrigante


porque nos convida a imaginar que a socialidade é uma questão de
coletividade, que ela é generalizante porque a vida coletiva é de
caráter intrinsecamente plural. A “sociedade” é vista como aquilo que
conecta os indivíduos entre si, às relações entre eles (STRATHERN,
2006, p.21).

O conceito de socialidade é um conceito pós social, que entende às sociedades com


uma conotação interativa, conexa e com habilidades de estabelecer relações, mediações
desmembrando negociações flexíveis. A ideia de sociedades contidas, harmônicas e isenta de
conflito (DURKHEIM, 1989), foi desconstruída por este conceito que acredita que, o conflito
faz parte do social tido como indispensável para a manutenção das relações. O conflito é
instituído num processo natural, produzido nas relações em movimento das estruturas sociais.
Dentro desta abordagem conceitual, o conflito faz parte do sistema, tendo como característica
a promoção de mudanças tendo assim uma participação positiva e ativa na sociedade
(STRATHERN, 2006).
Quando os atores dizem que os cismas existentes foram indispensáveis para a
manutenção do próprio grupo, consideram assim, que o conflito, ou seja, as pressões das
relações que chocavam aqueles que eram contra e a favor da prática Umbandista na casa,
foram muito positivas para garantir a sobrevivência das práticas rituais.
O movimento de um grupo para outros espaços foi indispensável para garantir a
existência do grupo no campo religioso, bem como, as práticas adotadas que tinham por
objetivo garantir a relação dialógica entre elementos Umbandistas e Espíritas. O conceito de
socialidade vem ao encontro e ajuda a compreender o fundamento e adequação desta
colocação epistêmica a utilização pratica do campo empírico.
91

3.1 Os Atores da Fundação (médiuns/fundador – MEFA)


Luiz Leal é o fundador da Casa Centro Espírita Anjo Ismael, que hoje em dia é
conhecido como Centro Espírita Ismael. Participou por muito tempo das atividades do MEFA,
sendo um dos fundadores e construtor de uma corrente do pensamento que constrói o diálogo
entre a Umbanda e o Espiritismo, considerando que, a fundação do MEFA foi constituída por
este princípio, garantindo assim, a presença da Umbanda como um ethosefetivo da Casa
Movimento Espírita Francisco de Assis.
Este personagem é reconhecido por todos os grupos das casas envolvidas nesta
pesquisa. Foi ele, um dos fundadores da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, e a
primeira casa fundada Casa Espírita Anjo Ismael, que hoje é reconhecida somente como
Centro Espírita Ismael. O que faz deste indivíduo um personagem emblemático é o valor
atribuído pelo grupo, enquanto líder religioso.
Não somente por sua trajetória de vida, mas pela forte relação que consegue
estabelecer com o “mundo espiritual”, tão almejado e procurado por aqueles que buscam as
casas religiosas espiritualistas. A importância que possui também se deve as histórias e aos
acontecimentos que segundo as próprias colocações do grupo, foi de difícil solução e o
médium e dirigente, da época, Luiz Leal conseguia resolver através do seu potencial
mediúnico de intercambiar e se comunicar com os espíritos.
A trajetória deste personagem é valorizada pelo grupo, devido ao grau de
conhecimento que possui no que se refere aos cultos e as experiências compartilhadas por
muitos deles, durante as atividades rituais da casa MEFA. Sua bagagem de reconhecimento
pelo grupo é de fundamental importância para compreender a composição ideológica da casa
MEFA, bem como, os diálogos existentes entre religiões de possessão (a Umbanda e
oEspiritismo).
Mesmo afastado das atividades rituais da casa, Luiz Leal permanece líder, exercendo
grande influência sobre o grupo. Luiz não foi somente o criador responsável pelas casas de
fundou, mas foi também responsável pela incorporação de uma nova forma de conceber o
pensamento religioso, trazendo elementos da Umbanda e do Espiritismo. Cabe salientar que
este é um ponto de vista unânime entre todos os frequentadores e trabalhadores das casas, em
reconhecimento e valor a sua trajetória individual.
Em uma conversa, a ex-presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis,
relata sobre um acontecimento que ocorreu nos tempos em que Luiz Leal era o dirigente
Espiritual do MEFA. Maria participa da casa há muitos anos, e já presenciou bastantes
acontecimentos, no entanto, teve um altamente marcante a qual considera significativo, pois,
92

segundo ela, até os dias de hoje ela não consegue obter uma resposta plausível para o fato que
será narrado por ela a seguir:

Até hoje eu não entendo, perdi as contas de quantas vezes os


bombeiros traziam as pessoas amarradas ali pro MEFA para o Sr. Luiz
dar conta, e o pior de tudo é que só ele conseguia resolver, por que
naquela época as outras casas espíritas não aceitavam aquelas pessoas,
e eram eles mesmos que encaminhavam, dava endereço e tudo para os
bombeiros encaminharem a pessoa para o Senhor; Luiz. Elas
chegavam amarradas, gritando, “tripudiando” pareciam que estava
tendo um ataque convulsivo, espumando pela boca, as pessoas tinham
muito medo daquilo e o senhor Luiz era o único que amansava estes
espíritos que tomavam o corpo das pessoas. Eu presenciei uma cena
La no MEFA que até hoje eu não consigo entender o que foi. Teve
uma vez que chegou um cara lá no MEFA, o bombeiro que levou, o
homem estava muito atormentado, parecia um cão tomado por uma
raiva sem fim, os espíritos que estava com ele devem ser das trevas
por que ele estava totalmente fora da normalidade. Lembro que eram
15 homens e não conseguiam controlar e segurar o cara de jeito
nenhum, o espírito estava muito bravo. E isso é algo que nunca vou
esquecer na minha vida, o Senhor Luiz simplesmente mandou os
bombeiros trazer o cara para dentro do salão, mas não era para ele
entra ainda. O senhor Luiz pegou um copo americano com água,
entrou no salão, na direção da porta, onde estava o cara sendo
controlado pelos bombeiros, e disse: - Sai todo mundo do rumo da
porta. E os bombeiros não queriam soltar, por que ele estava muito
bravo e tomado pelo espírito, e as pessoas começaram a ficar com
medo, porque se soltassem aquele homem, bravo do jeito que estava
ele iria avançar em todo mundo, e naquele momento ninguém
entendeu o que o senhor Luiz estava fazendo. E aiele insistiu mais
uma vez e disse: - Pode soltar! Pode Soltar! Quando os bombeiros
soltaram o cara, ele começou a querer engrossar, e nesse momento o
Senhor Luiz soltou o copo no chão e deu aquele estouro, e ai o copo
espatifou no chão, de repente você olhava para o chão e não via caco
93

de vidro e nem a água, sumiu tudo. Até hoje eu não consigo entender
o que aconteceu, nem onde foi para os cacos e a água que estava
dentro do copo. Voou caco para todo o lado, e depois quando e em
fração de segundos quando você procurava o caco não tinha mais
nada, evaporou tudo! E homem, depois que ele jogou o copo no chão
o homem ficou calmo, agradeceu a Senhor Luiz, tomou água,
conversou com o Sr. Luiz, e foi embora como se não estivesse
acontecido nada! Simplesmente acabou. Já houve muitos casos de
gente que chegava acorrentada no MEFA, tomada por espírito, Senhor
Luiz mandava soltar, e o espírito parava nos pés dele, de repente
ficava calmo, passava tudo aquilo, eu nunca entendia o que acontecia
(MARIA, 07/2013, DOURADOS - MS).

Essa fala expressa o respeito que Luiz Leal recebia do grupo, por justamente conseguir
manter um diálogo efetivo e que funcionava visivelmente sobre o mundo invisível. Neste
sentido, além do Sr. Luiz possuir autoridade, tamném detém conhecimento da Umbanda e
Espiritismo, porém, sua identificação percorre os códigos ritualísticos da Umbanda que, ao se
aproximar da doutrina espírita, recebe a identificação na categoria “umbanda branca”. Sua
importância enfatiza o papel de mediação, entre aqueles que compartilham da crença
complementar entre estas duas religiões aparentemente divergentes. O fato de ter fundado e
contribuído na fundação de Casas Espíritas na cidade, existiram pessoas que o seguiram e o
acompanharam neste processo, que possivelmente o mantinha em posição de liderança e
inovação, que transformam fatores restritivos em elemento potencial de mediação.
Antes de iniciar sua trajetória de vida, foi reconstituída sua representação para o
grupo, apresentando suas contribuições na reprodução do pensamento religioso, nas práticas
realizadas no MEFA, e no segmento filosófico da estrutura discursiva que permeia o
pensamento de muitos autores que compartilham atividades na casa, especialmente os que
acompanham desde a fundação, que mesmo não se colocando numa posição de autoridade,
possui o reconhecido do grupo.
Luiz Leal nasceu no ano de 1930, em Cachoeiro do Itapemirim – RJ. Hoje, já
completando seus 82 anos, possui uma família muito extensa com filhos, filhas, netos e
bisnetos, na companhia de sua esposa Dona Maria. Foi funcionário público federal por muitos
anos, e nos dias de hoje cuida de sua casa, esposa e familiares, próximos, sem falar dos
auxílios que presta aos trabalhadores e frequentadores da casa Movimento Espírita Francisco
94

de Assis. Sua gentileza é bastante perceptível tendo como referência uma bagagem extensa
com a espiritualidade através das casas que fundou, das pessoas a qual estendeu a mão, das
lições e das experiências com a Umbanda e a Quimbanda, sem deixar o embasamento
Espírita.
Enquanto estava presente, inicialmente, ao lado de Luiz Leal, seria inevitável
negligenciar a presença de fenômenos ligados ao espiritual, seja na sua fala, nos gestos, me
sentia por diversas vezes pendularmente oscilando entre o plano da cientificidade acadêmica o
qual havia me levado até ali, mas sempre muito vinculada a minha própria trajetória enquanto
adepta, e parte do universo religioso.
Luiz Leal inicia sua fala dizendo, “A história é longa”, indagando-me se estava
realmente a fim de ouvir o que tinha a dizer sobre sua vida, e é claro, de um modo bastante
positivo disse que ficaria o dia todo só para ouvi-lo. A partir de então Luiz começa a relatar
como chegou ao espiritismo e posteriormente a Umbanda. Considerando que, Luiz transita de
modo bastante tranquilo e fluido entre a ortodoxia Espírita e o pragmatismo da Umbanda.
Luiz Leal inicia: “minha história começou através de um matador profissional”. O
relato do autor inicia-se em sua cidade natal, em Itapemirim, contando a história de outra
pessoa, curioso o fato dele em nenhum momento se colocar na trama, são as pessoas que
estiveram a sua volta que explicam seu destino e sua imersão na religião. Então começou a me
contar sobre este matador profissional, que até naquele momento desconhecia o fundamento
daquela presença em suas palavras.
A história tem como destaque o matador profissional chamado Sebastião Santos12
responsável pela morte de muitas pessoas. Naquela região onde morava, havia um lugar
especifico, onde Sebastião anotava os nomes de suas vítimas na porteira na cidadezinha onde
morava, em seguida colocava uma cruz abaixo do nome das pessoas, e logo no dia seguinte
aquela pessoa a qual escreveu o nome, morria em fração de segundos. Após a nomeação de
seu pai como delegado da cidade, ele e mais 21 homens armaram uma emboscada para ele,
em um plano que não tinha como dar errado.
Após a construção da armadilha, Sebastião passara e acabou sendo surpreendido por
seu pai e seus homens. Quando se deu conta, correu num plano de fuga, mas foi perseguido
por alguns homens de seu pai. Quando chegou a um determinado ponto da rota, Sebastião
caiu do cavalo e acabou sendo cercado pelos homens da polícia, se vendo impossibilitado de
reagir, um dos homens sacou um facão de dentro da calça e apontou na direção do coração,

12
Recebi autorização do próprio Luiz Leal, em divulgar o nome verdadeiro deste personagem
marcante em sua trajetória de vida.
95

dizendo: - “Sebastião, você sabia que ia morrer”... E ele disse: - “eu sei!” Neste momento o
homem atravessou o coração de Sebastião, que não resistiu e morreu na hora.
A construção da crença nos espíritos é uma representação vital no imaginário deste
grupo. Luiz Leal, á exemplo, é um personagem que vive a espiritualidade. Não há como
transpor tal verossimilhança aos moldes do que considero palpável a posição acadêmica. Sua
trajetória inicia quando morava no Rio de Janeiro, e relata a presença de um espírito
“obsessor”, que retorna na sua vida, através da comunicação mediúnica que recebe do mundo
dos espíritos desde a infância.
No Rio de Janeiro, Luiz Leal conheceu através da Casa Espírita Caminheiros da
Verdade, conheceu a mesa de tiptologia, também conhecida como as mesas girantes.
Frequentou também outro Centro “Legionários de Maria”. Lá começou a estudar e se
envolveu nos estudos da chamada mocidade Espírita, com o objetivo de conhecer a doutrina
de Kardec, que considera fundamental: “para mim foi muito importante por que passei a
conhecer a ciência do Espírito, fundamental para compreender determinadas coisas, muitas
coisas do espírito, quem fornece é o espiritismo”. Continuou dizendo que só foi conhecer a
Umbanda muito tempo depois, após estar com uma boa bagagem de conhecimento da
doutrina Espírita:

...só é possível praticar a umbanda se você tiver um conhecimento


mínimo da vida espiritual, e quem fornece todo este alicerce
necessário é Kardec, não somente, mas é muito importante. Não quero
dizer que seja o único, mas é um dos ensinos que tem muito a
contribuir (LEAL, 05/ 2013, Dourados – MS).

Após esta afirmação passamos a falar da Umbanda e me disse que:

Fui para Umbanda porque meu mentor espiritual é um Preto Velho.


Tive um conhecimento muito grande da Umbanda através de uma
pessoa humana que me apresentou e eu comecei a entender muitas
coisas sobre a Umbanda. E que é muito difícil você praticar a
Umbanda sem humildade. A grande diferença entre o espiritismo e a
Umbanda é que no Espiritismo você se intelectualiza e na Umbanda
você passa a conhecer a humildade (idem, pg. 90).
96

Mais adiante deixa evidente o sentido que a Umbanda representa:

A umbanda que eu acredito é a Umbanda com conhecimento de causa.


A Umbanda esclarecida é a Umbanda Kardequiana, é muito diferente
das Umbandas que existem por aí, ela deve iluminar o interior das
pessoas, para isso deve existir um alto nível de conhecimento, pois
senão responsáveis diretamente somos corresponsáveis por tudo
aquilo que transmitimos para as pessoas enquanto doação energética.
Não ter consciência disso é péssimo. A umbanda deve estar atrelada
ao conhecimento senão não funciona (Idem, pg. 90).

Dando continuidade a suas considerações sobre a umbanda conclui: “A umbanda sem


conhecimento fica toda escura, a Umbanda dos ignorantes é horrível. Por isso o Kardecismo e
a Umbanda sempre estiveram presentes na minha vida, desde o início”. Ainda no Rio de
Janeiro, Luiz leal fundou sua primeira casa Espírita chamada Simão Pedro.
Antes de conhecer a exuberância das matas da Colônia Agrícola Nacional de
Dourados que vivia uma explosão demográfica, a exemplo do seu conterrâneo Roberto
Carlos, deixou seu Pequeno Cachoeiro foi para o Rio de Janeiro para voltar e não voltou.
Preferiu fugir para a Mata de Dourados que recebia migrantes de várias partes do Brasil,
principalmente nordestinos, que atender ao chamado de Getúlio Vargas, e aderiram à Marcha
para o Oeste com o fito desbravar e povoar o sertão da “fronteira onde o Brasil foi Paraguai”.
Nesta data incerta que a memória lhe trai, Leal desembarcou em Cruzaltina, na BR 163 com
sua mulher. Veio do Sudeste com a missão de matar as saudades dos sogros.
Seguido da identificação com a região Sul Mato-grossense, Luiz se mudou, e em
seguida pediu transferência do seu trabalho nos Correios para se instalar na região. Luiz não
possui afinidade com rótulos e se por um lado possui uma identificação com Kardec e
preceito do espiritismo esotérico, do outro, permanece firme na identidade Umbandista, pois
considera cultos que se auxiliam mutuamente, o que justifica a estrutura organizacional das
casas as quais trabalhou como dirigente por muitos anos.
Ao relembrar sua chegada aqui na região de Dourados, onde foi sua última parada pelo
estado, Luiz conta que não havia nenhuma casa espírita a qual se sentisse bem, pois como era
um lugar ainda em desenvolvimento, considerando os caminhos percorridos pela história da
região de Dourados, não existia uma base para a prática dos rituais o qual já tinha iniciado no
Rio de Janeiro. Então, por suas próprias palavras:
97

Quando cheguei a Dourados comecei a perceber que as pessoas não


sabiam nada de espiritualidade, e naquela época presenciei problemas
gravíssimos de obsessão. Pessoas completamente tomadas por
espíritos, descontroladas, se debatendo. E tive que ir com muita calma,
por que as pessoas ainda não estavam preparadas para trabalhar com a
verdadeira Umbanda. Quando cheguei participava do centro espírita,
mas nunca fui a nenhum terreiro de Umbanda, por que não
identificava com a Umbanda que eu conhecia, iluminada e correta.
Existiam dois centros espíritas e eu frequentava o Amor e Caridade e
o Emmanuel. Depois disso, fundei a Casa Espírita Ismael, e lá
comecei a dirigir os trabalhos, e aos poucos eu fui aplicando aquilo
que comecei a construir no Rio de Janeiro, comecei a trabalhar com a
Umbanda Kardequiana, mediada por entidades da Umbanda e
aplicava a doutrina Espírita. Utilizava os benefícios da Umbanda e de
Kardec para construir um bom trabalho espiritual (LEAL, 06/2013,
DOURADOS - MS).

Em reconhecimento a posição que ocupou no grupo até os dias de hoje, mesmo


afastado já algum tempo, Luiz Leal fundou não somente as casas, mas também, uma ideologia
incorporando uma nova forma de conceber o pensamento religioso, trazendo elementos da
Umbanda e do Kardecismo. Nas falas dos interlocutores, a presença de Luiz retornava
constantemente sob a retrospectiva da liderança, e até mesmo, do sentimento de gratidão pelo
seu trabalho para todos que se beneficiaram da resultante do diálogo e os impactos
decorrentes desse processo.
Neste contexto religioso, especialmente entre Umbandistas e Espíritas, pessoas que,
segundo eles, conseguem manter diálogo “afinado” entre o mundo espiritual e o mundo
material. O instrumento de mediação entre espiritual e material é chamada vidência
mediúnica, ou seja, ele enxerga espíritos, sendo mais fácil saber o que está do outro lado, e
controlar tudo o que está acontecendo.
A mediunidade de vidência é o produto mais valorizado pelas pessoas que buscam
estes espaços de culto, pois ter o conhecimento imediato do outro lado é uma potência
comunicativa, pois em verdade, todos têm curiosidade em se aprofundar neste domínio sobre
o que acontece do outro lado, esta é uma característica muito presente entre Umbandistas e
98

Espíritas, já que as duas modalidades produzem representações a grande visibilidade deste


fenômeno.
Numa tarde, sentado em sua cadeira de fio Luiz Leal, me recebeu mais uma vez em
sua casa, onde conversamos por cerca de duas horas. Neste espaço de tempo, além de
conhecer sua trajetória e inserção no universo religioso, procurei compreender algumas
categorias de atribuições que fornecia a Casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Minhas
inquietações vieram do fato da casa MEFA, não possui vínculo com a Federação Espírita
Brasileira. Esta é uma circunstância central, porém, algumas indagações sobre a forma como
o grupo expressa os aspectos complementares.
A categoria espiritualista é atribuída ao fato da casa não possuir vínculo com a
Federação Espírita - FEB, devidos aos condicionamentos restritivos que esta normatização
impõe, aderindo o termo Espiritualista como uma identidade que incorpora um fator de
diferenciação, em contraste a outras Casas Espíritas regularizadas. Desde o princípio, havia
uma tendência discursiva a diferenciação do MEFA, em relação ás outras casas, sendo este,
um traço de diferenciação, mantido até os dias de hoje. O grupo MEFA se pensa nas
diferenciações, tornando-as expressivas, à medida que encurta espaços mantidos em
distanciamento: “aqui no MEFA o nosso trabalho é diferente de todas as outras casas
espíritas que existem em Dourados-MS” (BARBOSA, 07/2013).
Segundo Luiz Leal: “espiritualista é aquele que credita no mundo espiritual, no
espírito, isso nada tem a ver com Kardec” (LEAL, 2013). Logo, o termo espiritualista retira o
caráter Kardecista, legitimando a crença mundo espiritual que existe independentemente de
preceitos dogmáticos do Espiritismo. A legitimação desta crença sustenta a representação do
transe mediúnico, atestando seu potencial simbólico para o estabelecimento de uma
fundamentação do próprio termo Espiritualista. Quando este termo se opera nas relações
práticas religiosas, há um fator abrangente que cria artifícios para possibilitar a incorporação
de outros elementos que não correspondem ás imposições de controle das políticas que
cercam as diretrizes do Espiritismo.
Outros elementos do campo espiritualista são incorporados às práticas da Casa
MEFA, por isso, a ausência da FEB é uma singularidade importante de ser trazida à
discussão. O que explica esta pluralidade dialógica que possibilita a presença da Umbanda,
que é também, um elemento da composição de identidade do grupo. A questão é compreender
o contexto histórico em que estas modalidades promovem dinamismo nestes espaços
religiosos, e em que momento elas aparecem. Tal observação se refere à casa e não ao
99

terreiro. Apesar do diálogo, os espaços compõem quadros diferentes, devido à complexidade,


com maior capacidade promover mudança.
O momento em que se torna inteligível a construção histórica de vida de Luiz Leal, já
conhecendo a casa MEFA, é possível construir um sentido extremamente lógico, dos motivos
que fizeram da casa o que é hoje, tendo em vista que este pensamento foi relevante, e baseou
toda a formação discursiva, aliada à prática e formas das atividades rituais. Portanto, entender
o pensamento do fundador é um passo importante para comprovar a irradiação simbólica da
referência discursiva do fundador, como base para os interlocutores. O pensamento ambíguo
que insere Umbanda e Espiritismo numa complementaridade é uma produção, seguida de
reprodução contínua ás práticas exercidas até hoje, que alia e integra modalidades distintas,
que comunicam uma lógica sofisticada em âmbito pragmático.
Mas, esta não é verdadeiramente a proposta desta pesquisa, pois apesar dos diálogos e
dos complementos existentes entre estas casas, deve-se ter em mente o lugar dos discursos
daquilo que é dito entre os componentes dos grupos, contrastando o lugar do que é feito nas
práticas e exercícios ritualísticos. Pois não existem trocas, ou a trilogia dar, receber e retribuir,
o que existe não negociações constantes, pois, apesar dos fluxos e das continuidades
existentes, cada modalidade desta ocupa espaços que lhes são próprios, devido ás suas
especificidades marcantes, mas de fundamental importância para a cultura de cada casa, sendo
esta a fonte do sentido para a consolidação do trânsito religioso.

3.2. GRUPO ISMAEL


Adolfo
Adolfo está ligado a Luiz Leal por laços de parentesco e afinidade sanguínea. É casado
com Sônia, trabalha como servidor público federal. É dirigente espiritual do Centro Espírita
Ismael, juntamente com sua esposa. Possui formação religiosa na Umbanda, onde transitou
por muitos anos, juntamente com seu pai Luiz leal, mas hoje se considera adepto do
Espiritismo Kardecista, e segue a ortodoxia Espírita como alicerce de sua vida diária, e
religiosa. Esta orientação diz muito sobre como configura-se o Centro Espírita Ismael nos dias
atuais.

Nêga
Já falecida, esta personagem participou juntamente com Luiz leal na fundação da Casa
Espírita Anjo Ismael. Foi também dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco
de Assis, onde atuou ativamente ao lado de seu colega Luiz Leal. Em seguida, passados
100

alguns anos, retorna a Casa Espírita Ismael, que passa por um período de transformação, após
um bom tempo sem funcionar. No retorno, volta com sua filha Sônia, casada com Adolfo, e a
partir daí o centro retoma suas atividades sob os moldes da ortodoxia Espírita.

Sônia
Filha da falecida Dona Nêga, nasceu na religião Espírita seguindo os passos de sua
mãe. Professora da rede estadual de ensino, esta personagem aparece durante o trânsito tendo
como característica ser adepta de uma cultura Kardecista, que lhe é própria. Casada com
Adolfo, é presidente do Centro Espírita Ismael na atualidade, e segue categoricamente
princípios ligados a filosofia Espírita.

Mineira
Mineira também a falecida, e também participou da primeira casa fundada por Luiz
Leal. Sendo uma seguidora fiel, foi convidada pelo próprio Luiz Leal a compor o corpo de
médiuns da casa recém-formada. Participou ativamente das atividades do MEFA, vindo a
falecer durante este período. Hoje a casa Movimento Espírita Francisco de Assis, conta com a
participação ativa de sua filha Maria Evangelista, compondo o corpo administrativo da casa.

3.2.1. Grupo MEFA


Maria Evangelista
Maria Evangelista, filha da falecida Dona Mineira. É professora do município de
Dourados – MS. Foi presidente da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis por 15 anos,
e hoje está no corpo administrativo da casa. Esta personagem não atua como médium, porém
também se identifica com a Doutrina Espírita, tendo muito pouco conhecimento da religião
Umbandista. Apesar da Umbanda estar presente nas atividades do MEFA, sua presença não
tão intensamente identificada como ocorre com aqueles que reconhecem e aceitam o código
Umbandista, bem como suas práticas ritualísticas.

Catarina
Esta personagem frequenta somente o Terreiro Reino e Ogum Beira Mar, casa que
escolheu para se fixar a 40 anos atrás. Juntamente com suas filhas, Catarina participou
ativamente na inauguração do terreiro, nos tempos em que as atividades eram desenvolvidas
na cozinha da casa da líder mediúnica do Terreiro. Catarina é aposentada, tem 63 anos de
idade, é casada, e tem três filhas. Duas delas aparecem nesta trama, e participam ativamente
101

das casas religiosas. Catarina é bastante conhecida por Luiz Leal, sendo ela participante ativa
desde os tempos em que o Centro Anjo Ismael, foi fundado. Sua trajetória é marcada pela
presença ortodoxa do Espiritismo, pois por vários anos frequentou Centros Espíritas, e ainda
hoje participa das atividades do Centro Espírita Ismael e o terreiro Reino de Ogum Beira,
comparecendo todas as sextas-feiras religiosamente. Não exerce mediunidade, comparecendo
ao terreiro como cliente, no entanto, sua participação mediúnica foi marcada pela história
destas casas, as quais serão descritas a seguir.

Maria
Maria é a personagem mais emblemática da história dessas casas. Filha de Catarina,
Maria presenciou ativamente e relatou através de sua memória, tendo em vista que é a filha
mais velha de Catarina, recordou muitos acontecimentos marcantes, sobre o trânsito e as
interconexões que foram sendo construídas entre estas casas ao longo do tempo. Esta
personagem participa das atividades do Centro Espírita Ismael, comparecendo em todos os
dias de funcionamento. E ás sextas-feiras Maria frequenta o Terreiro Reino de Ogum Beira
Mar, onde exerce o papel de Cambone, do personagem Preto Velho Pai Joaquim de Aruanda,
que se comunica com os clientes da casa através do médium Nei. Nei é outro personagem, já
referido em outros momentos a cima, e está ligado a Maria por laços de parentesco e
casamento.

Ísis
Ana é a filha mais nova de Catarina. Esta personagem cresceu dentro do universo
Espírita e ao mesmo tempo Umbandista. Hoje Ísis é médium ativa da Casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, e também do terreiro Reino de Ogum Beira Mar, também no
exercício mediúnico. Ísis percorre estes espaços desde pequena, acompanhando sua mãe
Catarina e sua irmã Maria, que também passou a infância transitando por estes espaços. Ana,
com 35 anos de idade, é casada com o dirigente espiritual da casa Movimento Espírita
Francisco de Assis. Possui trajetória marcada por dois espaços de culto, Espiritismo e
Umbanda, assim como sua mãe e sua irmã. Durante a descrição desta trajetória percorrida por
construções de redes ficará mais visível como este diálogo se dá na prática.
Paulo
Paulo, é servidor público Municipal, tem 51 anos de idade, é casado com Ana, filha de
Catarina, irmã de Maria. É dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de
Assis, e frequenta de vez em quando, antigamente, no levantamento de dados que foi
realizada para esta pesquisa, sua presença no terreiro Reino de Ogum Beira Mar era bem mais
102

intensivo, considerando seu laço de afinidade com Ana. Paulo se reconhece como Espírita,
apesar de comunicar através de práticas mediúnicas com personagens e práticas ritualísticas
identificadas na religião Umbandista. Atua como médium dirigente na casa Movimento
Espírita Francisco de Assis, há mais de 20 anos, e é membro fixo da casa.
Rosa
Rosa tem 65 anos, Professora aposentada da rede estadual de ensino. É dirigente
espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, juntamente com Paulo. Rosa
possui uma trajetória marcada pela presença da Umbanda. Quando jovem era médium da
Umbanda, desenvolvendo suas faculdades mediúnicas. Depois de ter passado um bom tempo
entre os espaços ligados a Umbanda, Rosa conheceu a Casa MEFA, passando a frequentar
como adepta, em busca de um amparo e auxilio espiritual, onde passou por um período de
tratamento, assim como todos os clientes que buscam a casa para a cura e a resolução de
problemas difíceis.
Passados alguns anos, Rosa foi convidada a compor o corpo de médiuns da casa,
passando assim a participar ativamente como trabalhadora da Casa Movimento Espírita
Francisco de Assis, sob a orientação de Luiz Leal, Nêga, Mineira e José Pereira. Rosa possui
uma trajetória marcada pela Umbanda. E durante as atividades a qual realiza, incorpora o
Caboclo Tupinambá, Exu Tatá Caveira, entre outros, personagens arquetípicos da religião
Umbandista.
O que reforça esta afirmativa foi um acontecimento marcante que expressa este
diálogo que Rosa mantém com a prática da Umbanda. Segundo ela:

Existem perturbações espirituais que é tão pesada, tão difícil que


somente os caboclos e pretos velhos, conseguem resolver. Existem
outros que só os exus dão jeito. E casos mais graves apelam à
necessidade de um ponto de fogo. Esse dia veio um rapaz aqui, que
estava muito perturbando espiritualmente, e houve a necessidade de
um afastamento compulsivo de alguns espíritos que estavam
perturbando ele. Aí eu levei-o lá para trás e fiz um cruzamento com
ponto de fogo, para ele. Você precisava ver como foi bom, era tudo
que ele estava precisando. Então tem casos, que os rituais da
Umbanda se apresentam como a única solução para ajudar as pessoas.
Só a Umbanda dá jeito (ROSA, 06/2013, DOURADOS-MS).
103

Durante nossa conversa, Rosa afirmou que, não se deve negar obrigação para orixá
nenhum, e que se deve ter muito cuidado com os pedidos que os espíritos da Umbanda nos
fazem, por que a maioria deles é nestas obrigações que estão depositadas todas as
possibilidades de cura e livramento de perturbações e perseguições espirituais. Por isso, deve-
se levar a sério o ato de ir ao cemitério para entregar marafa (bebida alcoólica) e cigarro a
Exu, por exemplo. Esta é uma constatação que só é possível, participando dos bastidores da
casa, e de momentos mais fechados, limitados e restritos. Pois estas práticas não são exercidas
publicamente, e não são anunciadas. Elas ocorrem de modo particular, privado e restrito. Mas,
apesar das restrições a Umbanda é evocada para vários momentos nas atividades da casa. Se
há fortes influencias do espiritismo sobre a Umbanda, em contrapartida, mesmo que
privativamente, há influencias e interferências da Umbanda, suas práticas rituais e seus
personagens arquétipos.
Benita
Com 76 anos, Benita é considerada a médium mais antiga, atua nas atividades da casa
Movimento Espírita Francisco de Assis, até o ano de 2017, interrompida por seu falecimento.
É a médium mais antiga, sendo a que presenciou a passagem do grupo da casa Ismael para a
casa MEFA, participando ativamente deste período de transição. Esta personagem se
considera Espírita Kardecista.
A partir de agora estes personagens irão aparecer alguns através das narrativas, outras
serão mencionadas por personagens que contam a história destas casas. Uns, serão narradores,
outros os que aparecem por entre as vozes de alguns. Esta pesquisa é qualitativa, e muitos dos
discursos que foram colocados serão levados pela pesquisa, a fim de refletir constatar a raiz
hipotética da proposta inicial.

3.2.2. Terreiro
Nei
Nei, com 48 anos de idade, casado com Maria é médium do Terreiro Reino de Ogum
Beira Mar, mas participa esporadicamente das atividades do Centro Espírita Ismael, o qual
frequenta juntamente com sua esposa. Nei iniciou sua trajetória religiosa dentro de um terreiro
de Umbanda, sendo esta sua identidade religiosa. Possui um perfil característico de um ser
Umbandista, não possuindo graus de afinidade com o Espiritismo, apesar de considerar
questões importantes ligadas a esta filosofia e religião. No entanto, tem apenas no Espiritismo
uma base, especialmente no que se refere a prática mediúnica, no entanto, sua tendência a
104

ritualística e ao pragmatismo oferecido pela Umbanda é um destaque, no modo como conduz


sua orientação no campo religioso.

3.3. A Trama
No momento em que percorremos a construção histórica de vida de Luiz Leal, já
conhecendo a casa MEFA, é possível construir o sentido coerente dos motivos que fizeram da
casa o que é hoje. Este pensamento foi extremamente fecundo e de fato baseou toda a
formação discursiva e estrutural aliada à prática e formas das atividades rituais. Entender o
pensamento do fundador é um passo importante para decifrar os caminhos proferidos por
muitos dos interlocutores construtores desta pesquisa.
O pensamento ambíguo que insere Umbanda e Espiritismo em uma
complementaridade é uma contribuição do fundador e criador das casas que deu continuidade
às práticas exercidas até hoje, resultando na reprodução deste dualismo, que alia une
modalidades distintas, mas que consegue dialogar e comunicar uma lógica sofisticada em
âmbito pragmático.
De posse das especificidades da trajetória de vida – em especial a espiritual – do
fundador do MEFA, Sr. Luiz Leal, podemos afirmar que toda admiração que os adeptos, tanto
da casa quanto do terreiro, têm por este personagem foi fundamental para manter o caminho
aberto para a fluidez deste trânsito a que nos referimos.
Sobre fundação do MEFA, a equipe de Luiz leal que passa a compor o quadro de
médiuns era composta por: Catarina, Nêga, Mineira, Luiz Leal, Adolfo, Sônia, Maria Amada,
Merci, José Pereira, Ivete, dentre outros que já faleceram. Após a fundação, passados alguns
anos, um novo corpo de médium na casa é formado. No período em que Dona Nêga assumia a
diretoria Espiritual do Grupo, sempre sob a égide do Sr. Luiz Leal, o novo grupo de médiuns
é composto por: Rosa, Paulo (hoje dirigentes espirituais da casa MEFA), Boni, Reginaldo,
dentre outros.
Após a fundação do Movimento Espírita Francisco de Assis, ocorreram novos
conflitos que geraram mudanças. Como mesmo disse uma médium antiga da casa (que
preferiu não se identificar) “O MEFA foi fundado com o objetivo de juntar o Espiritismo com
a Umbanda. Está escrito no estatuto do MEFA e ninguém jamais conseguiu mudar esta ideia
que foi criada pelo Sr. Luiz fundador das casas” (Caderno de campo, 2013).
Outra médium, também antiga da casa, reforça que:
105

Quantos já tentaram mudar? O grupo do Ismael que veio para cá,


depois que Luiz Leal fundou o MEFA, queria filiar a casa com a FEB.
Se isso acontecesse haveria uma mudança radical nas nossas práticas,
porque a FEB poda muita coisa. Mas eles não conseguiram. Todos
que tentaram mudar o sistema do MEFA foram tudo embora da casa.
(AMADA, 07/2013, Dourados/MS).

Luiz Leal, fundador do MEFA, inseria elementos da Umbanda nos rituais. Ainda de
acordo com a outra médium antiga que não quis se identificar:

A Umbanda sempre existiu no MEFA, desde o começo, antes de Luiz


Leal pensar em levantar o primeiro tijolo desta casa a gente já sabia
que a Umbanda seria parte dela. A diferença do MEFA para um
terreiro de Umbanda, é que aqui existe a presença das entidades,
Caboclos, Pretos Velhos, Exus e Crianças, mas nós não aderimos aos
rituais (AMADA, 07/2013).

Outra personagem participou deste momento da ruptura é Dona Nega. Já falecida, esta
personagem participou juntamente com Luiz leal na fundação da Casa Espírita Ismael. Foi
também dirigente Espiritual da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, onde atuou
ativamente ao lado de seu colega Luiz Leal. Em seguida, passados alguns anos, retorna a Casa
Espírita Ismael, que passa por um período de transformação, após bom tempo sem funcionar.
No retorno, volta com sua filha Sônia, casada com Adolfo, e a partir daí o centro
retoma suas atividades sob os moldes da ortodoxia Espírita. A título de informação, Adolfo é
também filho do Sr. Luiz Leal. Dirigente espiritual do Centro Espírita Ismael, juntamente com
sua esposa. Possui formação religiosa na Umbanda, onde transitou por muitos anos,
juntamente com seu pai Luiz Leal, mas hoje se considera a pratica do Espiritismo como
alicerce de sua vida religiosa.
Assim, o que segue são lembranças da participação da Sra. Nega, na tentativa de nos
orientar quanto à compreensão deste período. Nessa perspectiva, Adolfo (filho do Sr. Luiz)
afirma que no tempo em que seu pai era dirigente da Casa Ismael, a Sra. Nega era uma das
médiuns que compunham o grupo e era a que tinha mais tinha afinidade com o dirigente.
Sendo assim, ela o acompanhou quando da criação do MEFA:
106

A D. Nega ajudou o Sr. Luiz a fundar o MEFA com as próprias mãos.


Mas aí ali houve algumas divergências e eles entraram em conflito por
um motivo que desconheço. Nesta época da separação de grupos, o Sr.
Luiz foi para o Rio de Janeiro, e ficou por lá alguns meses, neste
período a Dona Nega dirigia as atividades espirituais da casa [sic]
(EDINALVA, 08/2013, DOURADOS, MS).

Foi justamente nesta época que Paulo e Dona Rosa começam a frequentar o MEFA,
para se tratar espiritualmente. Com o passar do tempo, Paulo (casado com Ísis) e Rosa
tornam-se os dirigentes espirituais da casa espírita Francisco de Assis. Continuando a fala de
Maria:
No momento em que Dona Nega assumia a liderança espiritual na
casa, houve um conflito e após a volta do Sr. Luiz do Rio de Janeiro a
Dona Nega pegou seu grupo e voltou para o Ismael, onde permaneceu
até o fim da sua vida. E o Sr. Luiz permaneceu no MEFA até o fim
também. E hoje Sônia (filha de Dona Nega) e Adolfo (filho de Sr.
Luiz), ambos casados, dirigem as atividades da Casa Espírita Ismael
(MARIA, 08/2013, Dourados, MS).

Adolfo relatou que participou de todo processo da fundação da casa Espírita Francisco
de Assis, e frequentou lá por muito tempo, por influência de seu pai, que acompanhava
sempre. E conta também o que o levou a voltar para a casa Ismael:

Eu participei do MEFA no início, mas eu não concordava com muitas


coisas que aconteciam lá, e eu fazia parte do grupo que gostava de
estudar, de aprender a dar passe, de conhecer preceitos doutrinários de
Kardec, mas como a Umbanda era muito presente, e as manifestações
eram muito violentas, resolvi retornar a casa espírita Ismael que
pertenço até hoje (ADOLFO, 2013, DOURADOS - MS)

Paulo (atual dirigente do MEFA) conta que na época da Sra. Nega, existia no MEFA
um grupo mais voltado para a doutrina espírita de Kardec, estas pessoas, eram do grupo que
mais se preocupava em estudar a doutrina e praticar nas atividades da casa os preceitos
doutrinários aconselhados pelo Pentateuco Kardequiano. Ainda segundo Paulo, ele não fazia
107

parte deste grupo, já que fazia parte do grupo da desobssessão responsável por espíritos mais
violentos e grosseiros, sofredores.
Estes espíritos contrastavam com os espíritos considerados superiores, de inteligência
elevada. Estas atividades, em grande parte eram voltadas para questões ligadas à magia,
feitiçaria, ou seja, aqueles espíritos que traziam um caráter de densidade, percebida na
quantidade de elementos materiais utilizados, sendo assim classificados como espírito inferior
por receber influencia do mundo material.
Na época em que havia uma demarcação intensa entre estes grupos contrastantes, o
grupo que estava mais voltado para a doutrina de Kardec montou um curso de passe, com o
objetivo de eliminar algumas práticas exercidas no MEFA, buscando adotar outras de acordo
com as predeterminações exigidas e aconselhadas pela FEB (Federação Espírita Brasileira).
Tratava-se do mesmo grupo que tentou promover a ideia de que a Casa Espírita Francisco de
Assis deveria se afiliar a FEB, o que de fato não aconteceu. Seguindo a fala do dirigente,
enquanto ocorria o curso de passe segundo a FEB pelo grupo dos estudiosos, na sala ao lado,
neste mesmo horário reunia-se o outro grupo que coincidentemente era integrado por médiuns
que vieram da Umbanda para participar das atividades da Casa.
Logo existia o grupo Espírita e o grupo Umbandista, que estavam em conflitos e
promoviam atividades conjuntas no mesmo dia e horário. Enquanto o grupo Umbandista
pautava suas atividades na desobssessão, o grupo espírita promovia um curso para ensinar a
dar passe segundo a FEB. Um dia, durante as atividades do grupo espírita que objetivavam a
aplicação de passes, uma mulher foi subitamente tomada por um espírito que aparentava uma
violência e um descontrole descabido, fazendo com que as dirigentes do curso se vissem
impossibilitadas de fazer qualquer coisa, pois na realidade não sabiam o que fazer.
Diante de uma situação a qual não dominavam e não sabiam como agir, bateram na
porta do outro grupo composto por Umbandistas e pediram ajuda para dar conta daquele
espírito que tinha tomado o corpo da mulher, e gentilmente o grupo acolheu a mulher na sala,
chamouà entidade “Exu Tranca-Rua” para encaminhar o espírito e tudo ficou sob controle e
voltou à normalidade.
Para finalizar esta ilustração, cabe localizar quais as pessoas importantes nesta trama
compunham estes grupos. O grupo Espírita que se baseava em preceitos de Kardec e visava
uma futura filiação à FEB era liderado por Sônia, hoje doutrinadora da Casa Espírita Ismael,
mulher de Adolfo (filho de Luiz Leal), filha da Sra. Nega dirigente espiritual do MEFA e do
Ismael. O grupo Umbandista era contra a filiação à FEB, composta por adeptos advindos da
Umbanda, era composto por Rosa, dirigente espiritual do MEFA, Paulo, dirigente espiritual
108

do MEFA, Reginaldo médium umbandista do MEFA, e outros que conjuntamente praticaram


a umbanda e quimbanda ativamente na casa.
Inserindo considerações de Maria (filha de Mineira13), sobre este momento de cisão,
ao que tudo indica, houve um tempo que o Grupo da Dona Nega assumiu a presidência do
MEFA, impondo alguns desejos de mudanças, dentre eles, a necessidade de uma orientação
mais sistemática concretizada pela presença da Federação Espírita Brasileira. Neste momento
é que entra Sônia. Segundo Maria (filha de Mineira):

Depois que eles assumiram a presidência do MEFA, eles quiseram


modificar as atividades da casa por completo, com o objetivo de
vincular a casa à federação espírita Brasileira. Para mim, este conflito
que teve é poder e status. E todos aqueles que tentaram mudar o
MEFA, saíram, e foi isso que aconteceu com a turma da Sônia. Esse
grupo que voltou para o Ismael queria mudar o estatuto do MEFA, e o
nome de Movimento Espírita Francisco de Assis, quiseram mudar
para Centro Espírita Francisco de Assis. Eles tentaram me levar para o
Ismael para trabalhar com a evangelização, mas, eu não fui. E isso
aconteceu também com relação a outro grupo, que por divergência de
pensamento, não estava contente com as práticas do MEFA, e este
grupo saiu de lá e ai fundaram o Franciscano, com ajuda do Sr. Luiz
Leal. Penso que isto ocorreu devido a algumas pessoas que chegaram
a casa para trabalhar, e todo mundo tem um modo de pensar e agir
individual, mas toda a casa tem um regimento uma norma
preestabelecida que todos soubessem que devem seguir, e se a pessoa
insiste em impor o que ela quer, acaba gerando um desentendimento, e
acaba não se dando com o grupo, e ai acaba abrindo outra casa. Eu
acho isso ótimo, por que é necessário haver as divergências para que
haja a necessidade de abrir outras casas, por que seria muito ruim se
isso não acontecesse. Lembro-me da época que o pessoal do MEFA
visitava e frequentava o franciscano para implantar o mesmo estilo do

13
Mineira também já é falecida. Participou da primeira casa fundada por Luiz Leal e foi uma
seguidora fiel, convidada pelo próprio Luiz a compor o corpo de médiuns da casa recém
formada. Participou ativamente das atividades do MEFA, que hoje conta com a participação
ativa de sua filha Maria Evangelista compondo o corpo administrativo da casa.
109

MEFA ali, no caso seria um segundo MEFA, mas mesmo a Casa do


Franciscano adotando o método do MEFA nos trabalhos, ainda sim é
muito diferente (MARIA, 05/2013, DOURADOS - MS).

Sônia, filha de Nega, apresenta um perfil ortodoxo, seguindo as orientações da


Federação Espírita, aplicando a Doutrina nas práticas, apresentando uma profunda aversão aos
trabalhos instituídos pelo MEFA, tendo em vista a adoção de práticas que aceitam a presença
dos personagens típicos da Umbanda. Cremos que esta posição ficou altamente clara após esta
exposição de falas.
Em última instância, a indagamos sobre a situação de Dona Nega, pois o que nos
chamou a atenção é a falta do entendimento dos motivos que podem ter levado Nega a
retornar ao Ismael. Uns afirmaram que ela retornara porque sua filha era doutrinadora
kardecista e a mãe teria voltado a Casa Ismael para ajudá-la nos trabalhos. Outros não
souberam ao certo explanar o real motivo, já que teriam conhecimento de que D. Nega era
também umbandista, o que estava em pleno acordo com os rituais que aconteciam lá.
Logo depois, Maria traz uma segunda cisão que ocorreu na Casa Espírita Ismael,
dando origem a uma terceira conjunta, a Casa Franciscana, o qual Luiz Leal exerce papel
fundamental. Segundo algumas colocações dos atores envolvidos, a justificativa mais
plausível é o fato de que, a partir do momento em que houve divergências de afinidades da
parte de um grupo com relação ao outro, ficou acordado entre eles da necessidade de criar
uma terceira casa, cujo espaço este grupo “inconformado” poderia praticar atividades de
modo próprio.
Em nenhum momento, durante esta pesquisa, sentimos uma tensão neste momento da
fundação da Casa Franciscano, tanto que, ouvimos que muitos dos frequentadores e
participantes ativos do MEFA, foram migrados para esta nova casa, a fim de aplicar as
práticas exercidas no MEFA, pois ali seria um “segundo MEFA”, tanto que, Luiz Leal
naquela época foi para lá com o objetivo de orientar as atividades da casa, por muitos dos
participantes estarem aprendendo a caminhar neste universo metodológico instituído pela casa
anterior.
Luiz Leal afirma que a fundação da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis veio
de uma necessidade de atender pessoas que residiam em outro ponto, muito distante do
MEFA, para suprir a dificuldade de deslocamento, tendo em vista que, Luiz sempre se
preocupou em atender os mais necessitados e impossibilitados de se deslocar devido a posição
social que ocupavam. De acordo com esta justificativa, mais a justificativa do grupo, é
110

provável que esta necessidade viesse de uma demanda crescente que ocasionou conflitos e
divergências formando a necessidade de um segundo espaço.
Porém a Casa Franciscana possui similaridade nas atividades, no entanto, suas marcas
singulares são inúmeras, e podemos afirmar que, de acordo com nossa experiência na Casa
Franciscana, esta é marcada por fortes influências do Kardecismo juntamente com o
Catolicismo, o que foi comprovado pelo fato de que se apropriaram de cânticos da Igreja
Católica, excluindo os pontos cantados da linha de Umbanda.
Como esta segunda casa não faz parte da nossa pesquisa em seu sentido êmico, nos
ateremos apenas a afirmar que ela existe, mas nos dias atuais ela funciona em um alto grau de
autonomia e, por fim, não observamos ao longo dos anos de vivência no MEFA, o trânsito
existente entre esta casa e o MEFA, tampouco entre o Terreiro.
A existência do conflito ocorre à medida que o diálogo entre Umbanda e Espiritismo
se choca. Tais relações conflituosas são positivas no sentido de fomentar o movimento e o
fluxo contínuo à formação de novas casas enquanto continuidades de um processo anterior.
Esta forma singular da configuração deste conceito se dá a partir de um processo produzido
através das relações, sendo estas as que determinam a configuração do campo religioso o qual
se baseiam.
A relação estabelecida entre os grupos das casas com suas respectivas identificações
de modalidade religiosa (Umbanda e Espiritismo) são determinadas por interconexões
estabelecidas nas relações, que ao longo dos anos vêm tecendo redes (STRATHERN, 2006).
É evidente que os principais elementos propulsores das discordâncias internas entre
estes grupos, que foram ocasionando cismas, desmembrando assim a formação de novas
casas, é a necessidade de institucionalizar a proposta do Espiritismo que em vias de regra
exclui qualquer possibilidade pratica e ideológica que justifique a necessidade de agregar
sinais diacríticos Umbandistas em suas atividades.
Então os conflitos se encerram entre os que entendem a necessidade de elementos
Umbandistas inseridos nas atividades, e aqueles que buscam a institucionalização ortodoxa
Espírita corporificando a presença da Federação Espírita Brasileira – FEB, que em tese,
normatiza e estabelece regras as quais devem ser seguidas com rigidez. Não se trata de um
conflito pautado na tradução, ou no abismo cultural presente entre estas modalidades
religiosas, mas sim, trata-se de um desentendimento gerado à medida que, ambos se
conhecem muito bem, e sabem exatamente o que é Umbanda e Espiritismo. Assim, este
problema está vinculado a relações de poder simbólico religioso.
111

Segundo Yvonne Maggie (2001), os conflitos ocorrem devido a um estabelecimento


que se define nas relações de poder através da impossibilidade de coexistência de dois
membros que ocupam espaços sociais diferentes dentro do mesmo grupo. É o caso do Pai-de-
santo e um membro da comunidade acadêmica. Neste caso estamos relatando um poder entre
Umbanda e Espiritismo, sendo a religião Espírita legitimada por sua marca que emerge dentro
do contexto Europeu reconhecido via Instituição, e a Umbanda legitimada como cheia de ritos
e sob estigmas carregados por religiões que se legitimam na magia.
As relações entre tais modalidades ocorrem através das tensões, produzindo novos
espaços religiosos, mas não se quer com isso dizer que exista conflitos (positivos ou
negativos) entre estas duas modalidades, pois ambas convivem e interagem constantemente a
partir da constituição da rede envolvendo pessoas de ambas as casas. Dentre elas, algumas
transitam entre elas, outras possuem trajetórias em todas elas.
Nas linhas que se seguem, buscaremos descrever a personagem Catarina e incluiremos
em nossa narrativa, a ótica que seus parentescos possuem em relação ao tema proposto por
esta pesquisa, ambos inseridos nas trajetórias das casas.

3.4. Centro Espírita Anjo Ismael


A casa Espírita Anjo Ismael, foi fundada no ano de 1976, pelo grupo de Luiz Leal.
Anteriormente a isso, Luiz já havia criado, na cidade do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e
criou-se, antes de vir para o estado sul-mato-grossense, um espaço de religião aos moldes
espiritualistas devido ao diálogo tendencioso entre vincular práticas Umbandistas a base
ortodoxa Espírita. Além de fundador, Luiz era o dirigente espiritual de sua equipe de médiuns,
que participava ativamente das atividades da casa, cujo enfoque era voltado a prática do
esoterismo, possibilitando a inserção de outras práticas que não somente estavam vinculadas
ao Espiritismo.
No entanto, a casa Espírita Ismael não possui nenhum vínculo com a Federação
Espírita Brasileira – FEB, até os dias de hoje. Segundo Maria:

Agora é que nós estamos estreitando laços com a FEB, está havendo
um interesse por parte do grupo em se relacionar com a federação,
mas a Federação orienta algumas coisas que não condiz com a nossa
maneira de trabalhar, como por exemplo, o fato do dirigente estar
112

mediunizado no momento da consulta, e a FEB não aprova esse tipo


de coisa (MARIA, 06/2013, DOURADOS - MS).

O fato da casa não ser filiada à federação espírita, contribui a algumas analogias com
relação ás outras duas casas que estarão envolvidas entre si. Como já foi dito aqui em algum
momento, o MEFA não possui relações com a FEB, e o Terreiro Reino de Ogum Beira Mar,
não possui vínculo com a Federação Umbandista de igual forma. Logo, o fato destas casas
não serem vinculadas às instituições e classes federativas, sugere um ponto em comum entre
elas, para dizer que, de alguma forma elas compõem um quadro de similaridades. Após tornar
claro este ponto comum, desejo continuar a tecer esta rede repleta de conexões.
Os sinais diacríticos Umbandistas estão presentes em todas as casas, porem o grau de
entendimento, liberdade, e espaço ás estas entidades possuem intensas oscilações e diferenças,
pois em cada uma delas, eles são vistos de formas distintas, e por mais que haja ideias em
comum, o espaço destes sinais afirmados a partir de um circuito de negação, retirando-lhes
características, a fim de reafirmar sua presença, que é controlada, umas mais outras menos. O
importante é dizer que apesar de estarem presentes, os graus de entendimento pragmático são
completamente diferentes, e isto é algo que procurei tornar explicito na primeira parte desta
análise, bem como expressar o pensamento do criador para contribuir a visualização do
andamento das casas que fundou.
De acordo com o autor fundador: “No kardecismo eu meu intelectualizei, e na
Umbanda conheci a humildade”. Em sua trajetória de vida no campo religioso, dá-se
claramente a impressão de que, tanto a Umbanda como o Espiritismo estavam
continuadamente envolto as suas experiências. Serão apresentados os interlocutores, que
aparecem à medida que a história vai sendo contada, a partir dos relatos e da experiência de
campo. Após a fundação outras trajetórias viabilizam maiores detalhes sobre esta
demonstração analítica.
Naquela época, alguns integrantes possuíam famílias, sendo grande maioria filhos, que
também compõe o corpo narrativo sobre os acontecimentos. Muitos interlocutores se
encaminharam na religião Centro Espírita por circunstâncias familiares. Os que irão narrar o
Ismael antigo são aqueles que já cresceram dentro de um centro espírita, e assim foram
construindo sua trajetória a partir de algo que já estava estabelecido pelos laços de família.
Naquela época Catarina, integrante do grupo do senhor Luiz leal, tinha duas filhas que
a acompanhava, eram elas Maria e Ísis. Mineira, tinha uma filha de nome Maria, todos
membros da casa. Nêga tinha uma filha, chamada Beatriz, Luiz Leal, dentre seus filhos,
113

Adolfo foi o que mais se destacou ao tomar a frente dos trabalhos do Centro Espírita Ismael.
Outra personagem que também estava presente nesta primeira etapa é Benita. Estive
conversando com ela, pois até hoje é médium do MEFA.
Benita possui 26 anos de MEFA: “eu ajudei a construir e levantar com as minhas
mãos aqueles tijolos para construir o alicerce daquela casa”, que participou das atividades do
Centro Espírita Ismael compondo o grupo do Sr. Luiz Leal dirigente espiritual da casa. Nos
dias de hoje, é membro da sala de cura há uns 10 anos, e segundo ela, do tempo do Sr. Luiz
Leal e da Sra. Nêga ela é a única que permanece viva nas atividades da casa. Segundo ela:

Cheguei lá no centro com a minha sobrinha, não era o MEFA, era lá


no outro centro, mas era do MEFA, aí dei o nome dela e o meu e fiz
nossas fichas, e quando foi na hora da chamada, era um pouco
diferente do MEFA, aí quando chegou minha vez eu sentei La na
cadeira e era o Sr. Luiz Leal que atendia, quando ele pôs a mão na
minha cabeça me deu um excesso de choro que parecia que eu não
chorava a um mês. Ele falou minha vida inteira, e ele não sabia de
nada, eu não o conhecia. Disse que eu era médium deveria
desenvolver minha mediunidade senão as coisas não iriam melhorar.
Aí ele me convidou pra ir trabalhar na casa, e eu sempre fui católica e
eu fiquei bastante preocupada (BENITA, 07/2013, DOURADOS -
MS).

Após este acontecimento, Sra. Benita começou a participar da casa anjo Ismael.
Segundo a autora nos próximos dias os quais passou a frequentar a casa, recebeu o “mentor
espiritual” que a acompanhava, este mentor pertencia à linha de Oxossi, e seu nome é
Caboclo da Mata Virgem: até hoje ele é meu “guia”. Ou seja, desde aquela época no anjo
Ismael os espíritos que ali trabalhavam pertenciam à égide da Umbanda: La trabalhava com
Umbanda e Kardecismo, mas era muito diferente do MEFA(BENITA, 06/2013, DOURADOS
- MS).
Este relato enfatiza a concretização de uma experiência que expressa uma mudança no
cenário da vida, modificada a partir de um rito de passagem para uma religião espiritualista.
De acordo com a fala desta personagem, a mudança do dirigente fundador para a formação e
fundação da Casa São Francisco de Assis ocorreu devido a um desentendimento com um dos
dirigentes da casa anjo Ismael, levando a conflitos que geraram necessidades a criação de uma
114

nova casa. Após a fala desta personagem me coloco a descrever as narrativas da interlocutora
Maria. Maria é filha de Catarina, integrante da Casa espírita Ismael no período da fundação.
O fundador, ao perceber que muitas pessoas estavam com dificuldade de chegar e
frequentar a casa, pois a mesma se encontrava do “outro lado da cidade”, fundou um novo
espaço de culto que em breve estaria em funcionamento, estaria localizada em outro ponto da
cidade de Dourados-MS, que por coincidência estaria localizado em uma área periférica da
cidade, aonde sobrevive até os dias de hoje.
Alguns relatos demonstraram que, a origem do atrito é o eixo central da saída do
dirigente. Apresento a seguir ás opiniões que expressam os acontecimentos potenciais a
ruptura e cisão em que a Casa Francisco de Assis, seria continuidade da Casa Espírita Ismael,
em termos de práticas e métodos ritualísticos.
Após expressar questões referentes à sua primeira fundação na cidade de Dourados –
MS, Luiz começa a fornecer indicativas de como surgi à ideia de uma segunda fundação:

O primeiro centro que eu criei foi à Casa Espírita Ismael. E devido à


quantidade de pessoas que estava frequentando a casa, houve á
necessidade de fundar outra casa, em outro lugar. Esta outra casa seria
o que é hoje a Casa Espírita Francisco de Assis. Mas com o passar do
tempo o MEFA também ficou muito apertado, e houve a necessidade
de uma terceira fundação, que foi à Casa Franciscana, que eu ajudei a
fundar e dirigi os trabalhos de lá por algum tempo. Foi eleito outro
bairro para atender as pessoas que moravam naquela região particular,
para que não houvesse necessidade de um deslocamento absurdo, pois
muita gente não tinha condição de ir ao MEFA devido à longa
distância (LEAL, 07/2013, DOURADOS - MS).

Assim, a acessibilidade é um dos fatores mencionados, considerando que, as escolhas


da elaboração de uma narrativa de algum acontecimento, parte de contextos eleitos para
fornecer explicações concisas para um determinado fato. No entanto, aqui estamos diante de
um quadro religioso, e veremos a seguir falas correspondentes que expressam a perspectiva
adequada ao nosso campo de análise.
No ano de 1976 Luiz Leal inaugura a Casa Espírita Ismael, cujas atividades eram
continuidades de práticas ritualísticas promovidas na capital do estado do Rio de Janeiro,
onde Luiz nasceu, foi criado, se criou enquanto um membro da religião espiritualista e fundou
115

sua primeira casa. Mais adiante, em outro momento, estará bastante claro como à liderança do
fundador influenciou a formação da identidade ideológica das práticas que foram sendo
adaptadas, a partir desta primeira fundação.
Ao que tudo indica a Casa Ismael ter sido criada com o intuito de atender ás
necessidades que para Luiz Leal, era de extrema urgência, mas, deve ser dito, que a Casa
Ismael, foi formatada aos moldes das atividades que já eram exercidas no Rio de Janeiro,
onde Luiz fundou sua primeira casa Espírita, cujo diálogo, Umbanda e Espiritismo já era um
fator ideológico.
A intenção de vincular Umbanda e Espiritismo sempre foi primordial para o
entendimento de Luiz Leal, a Casa Espírita Ismael ganha uma roupagem peculiar, pois desde
aquela época as práticas rituais exercidas na Casa Ismael era a inserção de um novo produto
de bens oferecidos para a população douradense que se firmava.
Isto expressa que esta casa possuía peculiaridades que a mantinha em um lugar
diferenciado. A seguir trago as falas dos interlocutores que presenciaram a época e me
relataram alguns trechos de como eram promovidas atividades na Casa Espírita Anjo Ismael,
como era denominada antigamente pelo fundador e frequentadores. Posso sondar que o
principal capital oferecido pela casa era o fenômeno da possessão.
Durante o período da descrição, alguns interlocutores entram em cena para apresentar
sua experiência na Casa Espírita Anjo Ismael, como era identificada naquela época.
Considerando as temporalidades diferentes, cabe uma contextualização deste momento que só
se faz possível demonstrar através da memória. Assim, o primeiro tempo data o ano de 1976.
No intuito de fornecer subsídios para o entendimento de como a Casa Ismael foi fundado,
bem como as atividades que eram desenvolvidas, tendo em vista os afastamentos e
aproximações característica deste processo. Maria, diz:

...naquele tempo minha mãe começou a desenvolver a mediunidade


com o grupo da casa que era liderado pelo Luiz Leal. O trânsito entre
estas casas é muito antigo. Esses dias eu estava olhando a ata de
fundação do Centro Espírita Ismael, e estava escrito que um dos
objetivos da casa é o estudo da doutrina espírita, e falava de estudos
esotéricos. E o intuito era trabalhar nos moldes esotéricos, fora do
padrão FEB (MARIA, 06/2013, DOURADOS – MS).
116

Salvo as vagas memórias da atividaderealizada na Casa Espírita Anjo Ismael na época,


outra interlocutora, que também estava envolvida neste processo relatou algumas falas
bastante pertinentes, que pode contribuir de forma significativa ao entendimento de como era
o Ismael da década de 70. Maria é filha de uma das integrantes do grupo liderado por Luiz
Leal, naquela época, e que posteriormente iria compor o quadro de dirigentes da casa
Movimento Espírita Francisco de Assis. Por mais que sua condição de criança limitasse sua
memória, sua posição refere a quem esteve presente, considerando que muitos integrantes do
Ismael daquele tempo, já faleceram sobrando assim poucas opções de contato.
Inicialmente Maria relatou como foi o encontro de sua Mãe com Luiz Leal, que em
um futuro próximo estaria ligado integralmente a sua equipe da Casa Espírita Anjo Ismael.
Segundo ela:

Quando o MEFA foi fundado eu já estava ali, e antes do MEFA eu


conheci o Ismael através da minha mãe. A minha mãe conheceu o Sr.
Luiz quando a minha avó ficou muito doente, ela era doida da cabeça,
e precisava passar por um tratamento muito sério, por que seu
problema era espiritual. Uma tia da minha avó ficou sabendo dos
trabalhos espirituais que o Sr. Luiz realizava e ele foi a casa atender
ela. Foi quando minha mãe conheceu o Sr. Luiz pela primeira vez,
inclusive ele fundou o Centro Anjo Ismael (naquela época) também,
foi à primeira casa que ele criou. E ele convidou a minha mãe pra ir ao
centro, e minha mãe acabou ficando (MARIA, 07/2013, DOURADOS
- MS).

Conforme a narrativa Maria fornece indícios de como se configurava ás práticas


ritualísticas do Ismael na época. Segundo ela, se viu obrigada a frequentar aquele espaço de
culto, devido às influencias e imposições de sua mãe, que exigia sua presença junto a ela nos
dias de atividade.
Fernando Brumana e Martinez (1991), já dava indicativas destas transmissões
fornecidas pelos laços familiares, exercendo assim um papel relevante, tendo em vista que,
tais relações servem como fatores de influência entre adeptos ligados a religião. Isso
aconteceu com Maria, pode-se considerar que talvez nem quisesse adentrar a este universo,
porem as relações que a vinculam a mãe a levou a aceitar e a transferir para a filha maiores
possibilidades para aderir aos códigos da religião, a qual estava sendo inserida via parentesco
117

(BRUMANA, 1991, p.140).Segundo ela: “Os trabalhos do Ismael na época eram de


manifestação de espíritos mesmo, eu me lembro que não tinha cadeira para sentar, os
médiuns trabalhavam em pé, e o único que sentava era o Preto-Velho que tinha a
banquetinha dele”. (Caderno de Campo, 08/2013).
Mais adiante eu perguntei a ela se as atividades do Ismael eram semelhantes aos
trabalhos de um terreiro de Umbanda, e ela não soube me dizer, e logo já entendi o motivo da
não analogia com relação aquele espaço. De fato, é por que Maria não tem familiaridade
nenhuma com um terreiro de Umbanda, por não dominar os signos e as sinalizações
ritualísticas, a qual é perfeitamente reconhecida e identificada por aqueles que têm uma
formação Umbandista em sua trajetória de vida.
Deve-se considerar que Maria não compõe o trânsito, exceto em sua passagem pelo
Ismael naquela época, no entanto sua fala expôs o fato do dia em que visitou um terreiro de
Umbanda pela primeira vez, e que por pura coincidência e para minha sorte enquanto
pesquisadora, o terreiro que visitou o ano passado, a casa Reino de Ogum Beira Mar, através
do grupo MEFA que passaram a frequentar o terreiro, e também, me recordo que estava
presente na casa neste dia, no meio do ano de 2012, período em que já estava fazendo campo
e observando o fenômeno do trânsito.
Continuando suas recordações da experiência apreendida na Casa Espírita Ismael
continuou dizendo, e através de sua experiência na Casa Espírita Reino de Ogum Beira Mar,
disse algo extremamente significativo e que pode verdadeiramente me dizer muita coisa:

O Ismael quando fundado nos anos 70, os trabalhos eram no mesmo


estilo do terreiro do Sr. Aretino. A primeira vez que pus meus pés ali
no terreiro da Dona Tereza, me veio o Ismael antigo rapidamente na
minha casa, para mim é igualzinho sem tirar e nem pôr, o estilo é o
mesmo, o Ismael era daquele jeito. Quando eu olhei lembrei por que
eu não conhecia terreiro de Umbanda, mas o que eu vi do Ismael ali
no terreiro é que, naquele tempo não tinha cadeira para os médiuns
sentar, só tinha para o público, mas para os trabalhadores não, o único
que sentava era o preto velho (Caderno de Campo conversa com
Maria do MEFA, 08/2013).

Assim, indaguei sobre como se dava ali na casa Ismael o desenvolvimento mediúnico,
segundo Maria: “era gira! Minha mãe desenvolveu girando.”
118

Ainda falando sobre o Ismael ponderou que:

O salão do Ismael era grande, não tinha compartimento de sala como


tem no MEFA. Mas quando eu entrei ali no Sr. Aretino e vi a Ísis
trabalhando, aquele preto-velho sentado, vi você lá também, aquele
momento me fez lembrar o Ismael na mesma hora. A diferença é que
ali no Ismael o salão era bem maior, tinha uma cerca que separava o
público dos trabalhadores da casa (dos médiuns), era uma cerca
parecida com cabo de vassoura, para separar médium da casa, das
pessoas que iam ali para tomar passe. Não me lembro de velas, nem
imagem, o que tinha era água para fluidificar igual tem no MEFA. Era
igualzinho sem tirar nem pôr. (Caderno de campo, 08/2013).

Esta declaração de Maria é altamente significativa, pois no momento em que adentrou


pela primeira vez no terreiro Ogum Beira Mar, Maria teve a impressão de estar retornando a
um passado das práticas que eram exercidas na Casa Espírita Ismael na década de 70. O mais
significativo é que sua identificação do terreiro com a casa reforça e induz a identificação das
práticas ritualísticas da Umbanda.
No momento em que expõe sobre como eram as práticas do Ismael antigo, pude ter a
certeza de que era um modelo cuja Umbanda estava bastante presente, só pelo simples fato de
haver presença de Caboclos e Pretos Velhos, sentados em banquetas. Isso demonstra que a
similaridade apontada por Maria tem a Umbanda como referência isto torna bastante
explícito, como eram as práticas antigas, e como o decorrer dos anos trouxe inúmeras
mudanças, afastamentos, aproximações e continuidades caminhando pendularmente entre
Umbanda e Espiritismo.
Durante as atividades realizadad na casa Ismael, é notável que houve mudanças
significativas, desde os tempos de Luiz Leal até os dias de hoje, se acompanharmos as
considerações de Maria. Pois, se antes havia possibilidade de interagir com a estrutura da
Casa Ismael com um terreiro, nos dias de hoje, a casa Ismael está mais próxima dos padrões
ortodoxos da cultura Espírita, o que restringe a possibilidade dialógica.
Estas considerações servem para indicar o modo como a casa era vista pelos
frequentadores da época, visto que, a um momento em que o fundador Luiz Leal deixa a casa
e funda a Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, a partir daí a casa Espírita Ismael,
119

sofre inúmeras modificações e mudanças no cenário ritualístico, e a cada dia passa a adotar
um modelo que caminha para uma identificação ortodoxa Espírita.
Estas Casas fundadas por Luiz tiveram contribuições de outras pessoas, que já
faleceram alguns recentemente, outros há algum tempo. E de todos os fundadores e dirigente
antigos que vivenciaram naquele tempo, Luiz é o único que permanece vivo. A partir desta
fala proferida pelo fundador das casas que me propus a estudar, quero justificar a necessidade
de introduzir a Casa Espírita Ismael como um adicional para contribuir a contextualização da
fundação do MEFA.
Para entender o sentido desta fundação, é necessário percorrer as ocorrências que
desencadearam esse processo. O MEFA é o resultado de um processo anterior, e que senão
por vias da primeira fundação, é possível que sua implementação não se concretizasse. Por
isso, deve-se traçar um fio condutor que nos vele ao entendimento dos elementos que
impulsionaram e fomentaram a construção de um novo espaço. Não se tratando somente de
duas casas no momento se trata de três que estão intimamente interligadas e conectadas
através de relações estabelecidas no passado e que prolifera até os dias de hoje.
No que se refere ao momento da cisão, que dá inicio ao processo de continuidade da
Casa Espírita Francisco de Assis como originária de atividades estendidas, que remonta a
Casa Espírita Ismael, foi elucidado na fala do Sr. Luiz que, o principal motivo que impulsiona
a criação de uma nova casa, foi o grande número de pessoas que buscavam atendimento
espiritual, promovendo a necessidade de novos espaços, que pudesse atender a demanda que
crescia ao longo dos anos. Em suma, a fala do fundador, é que o MEFA foi criado para
atender a demanda que a Casa Espírita Ismael já não comportava.
Mas, ao ouvir as falas dos outros interlocutores que assistiram este processo de
mudança, é perceptível que esta ruptura, poderia ter outros aspectos que fomentaram este fato.
Alguns depoimentos apontam que:

Toda casa tem uma presidência no comando, mas a gente sabe que
com o tempo novas pessoas aparecem para assumir aquilo que
antigamente era responsabilidade de outra pessoa. Por que com o
tempo outras pessoas vão assumir para substituir quem estava ali até
então, e estas pessoas vêm com ideias novas, isso é normal, toda casa
é assim. O que deve ter acontecido é que com o tempo da casa, outras
pessoas vieram em seguida, e o Sr. Luiz estando houve algum atrito na
maneira de pensar por conta das colocações que estavam sendo
120

impostas pelas pessoas novas, e isso criou uma divergência entre eles,
e aí as casas se separaram. (Caderno de campo, 09/2013).

No decorrer da conversa com Maria perguntei sobre a fundação do MEFA e sobre os


acontecimentos que o antecederam, marcando a ocorrência que resultou na necessidade de
implantar um novo espaço religioso como continuidade das práticas que tiveram seu início na
Casa Espírita Anjo Ismael. Sobre os fatos que fomentaram a formação e criação do MEFA,
me parece que existe um incomodo entre os interlocutores que presenciaram esta época,
quanto ao que realmente resultou neste primeiro rompimento. Ao que tudo indica, houve
controvérsias entre o grupo, desencadeando uma ruptura, entre os antigos e os novos
integrantes da Casa Espírita.
Este atrito resultou numa ruptura, conduzindo o grupo a estabelecer uma dinâmica da
percepção da comunicação espiritual em conformidade a conciliação entre duas instâncias
religiosas cuja afinidade é explorada nas experiências de transe. Assim, forma-se um novo
grupo que daria continuidade as atividades realizadas no Centro Espíritas Anjo Ismael. Sobre
as motivações do conflito, outra personagem de nome Maria relata que: “quando o Sr. Luiz
percebia que a Casa ficava muito Kardecista, se retirava e fundava outra Casa.” (Caderno
de campo, 07/2013).
Sobre o significado da expressão “muito Kardecista”:

Quando eu falei sobre a casa ficar muito Kardecista, quis dizer, muito
cheia de regras que a federação espírita acaba impondo. Por que tem
muitos espíritas que nunca foram umbandistas. Uns nasceram espíritas
e outros vieram da igreja católica para o Espiritismo. E estas pessoas
acabam se enchendo de teoria, é bonita, a ciência espírita é
maravilhosa! Com isso, eles começam a ficar muito fundamentalistas,
só aquilo está correto e nada mais. E acabam não aceitando que outras
pessoas vêm de outras culturas religiosas, do budismo, Umbanda,
Candomblé e acabam trazendo outras bagagens de conhecimento. Aí
começa a achar que está errado, mas a função da Casa espírita é
acolher, quem quer que seja. (MARIA, 09/2013, DOURADOS - MS).

A expressão “muito Kardecista”, está vinculada ás exigências institucionalizadas pela


Federação Espírita brasileira, que tende a impor regras, sendo estas reconhecidas com a
121

legitimidade do Espiritismo. Por isso, esta expressão “muito Kardecista” faça referência ás
identificações com a FEB. Pois o espiritismo é uma instituição religiosa, e a atribuição e
identidade da modalidade espírita evocam a presença da FEB, pois é ele quem fomenta e
determina os preceitos que deverão ser seguidos para que haja uma real relação com a
“pureza” Espírita. Durante a passagem desta autora, recordo da segunda conversa que tive
com o Senhor Luiz leal, em que ele me disse que:

Não via nenhuma serventia em vincular o MEFA com a federação, por


que eles tinham umas coisas, umas regras que para mim não tinha
nenhum fundamento. Não podia tocar nas pessoas, não podia isso, não
podia aquilo, e isso atrapalha muito o andamento e a eficácia de um
trabalho. (Caderno de campo, 07/2013).

Nesse sentido, estabelece um confronto entre, os que possuem afinidade com a


Umbanda, através das práticas adotadas por Luiz leal, e aqueles com afinidade na religião do
Espiritismo,seguido de preceitos estabelecidos pela FEB. Logo há existência de um
compartimento dos grupos que acabaram se chocando devido ás ideologias e orientação
religiosa distinta, por isso, para esta analise torna-se imprescindível conhecer a trajetória das
pessoas, que integram, ou integraram estes grupos.
Ainda com relação aos motivos que promoveram esta primeira ruptura, alguns
integrantes também relatam frases interessantes, como a Senhora benta dizendo: a turma que
gostava de trabalhar na Umbanda foi tudo atrás dele inclusive eu. E ali no MEFA a gente
trabalha com a Umbanda somente quando há necessidade. Seguindo esta orientação
Reginaldo também dá a sua contribuição para este entendimento:

Com o tempo as pessoas vão mudando, e toda pessoa que entra vem
com um conhecimento diferente do outro, e cada um trabalha de um
jeito diferente. O Renato modificou os trabalhos do Ismael
completamente depois do senhor Luiz leal, por conta das diferenças de
ideia. E cada dirigente adéqua os trabalhos da casa de acordo com sua
própria visão da doutrina que se orienta. E também por que o espaço
lá ficou pequeno demais para ele, e como ele tinha terreno para
construir outra casa ele acabou fundando o MEFA. Eu acho que deve
ter sido essa divergência de pensamento que deve ter ajudado a
122

mudança, mas o motivo também foi por conta da necessidade de


atender pessoas de outros lugares, e por que a casa estava muito cheia.
(REGINALDO, 07/ 2013, DOURADOS - MS).

Após a exposição destas falas pretendo agora começar o tecer da rede que interliga e
pode significativamente contribuir ao entendimento da formação do trânsito e das mobilidades
existentes entres estas casas. Para tal buscarei trazer a todo instante os interlocutores para
orientar e esclarecer os caminhos que foram percorridos para a construção da rede.
A história desse processo constitui as falas dos interlocutores já apresentados acima.
Estas narrativas são fundamentais pois, foram estes que estiveram presentes nesta transição.
Iniciamos com a interlocutora Maria. Como foi dito, Maria é filha de Catarina, uma das
integrantes do grupo de Luiz leal, nos tempos de Anjo Ismael. Maria cresceu na Casa Espírita
Ismael, e contribuiu para o entendimento do como foi sua experiência até os dias de hoje.
O percurso para tecer a rede de relações as quais interagi para produzir o campo desta
pesquisa, ocorre de modo esporádico, mas, não por acaso. A medida que as informações
foram surgindo, os sentidos foram conduzindo os narradores a partir das informações
relatadas. A partir do primeiro informante inicia a composição das subsequentes narrativas,
que tiveram a contribuição da experiência de campo, elaborando os assuntos, que iam se
destacando pontualmente nas falas anteriores.
No caso de Maria, em nenhum momento os informantes mencionaram seu nome.
Contudo, ao se dar conta da relevância do centro Espírita Ismael, não seria possível
compreender as origens fundadoras do MEFA, sem recorrer a acontecimentos que foram
produzidos nas relações práticas ocorridas no período de sua fundação.
Conheci Maria no terreiro de Ogum Beira Mar, contados o recuo temporal de 2013.
Sua ligação com o terreiro, e até mesmo com a experiência de transe mediúnico por
intermédio de seu marido. Além de comparecer assiduamente no Terreiro, também frequenta
a casa Espírita Ismael, na evangelização nas terças-feiras, e nas segundas-feiras no
atendimento fraterno.
Durante nossa conversa relata sua experiência quando pequena em que o Sr. Luiz Leal
resolve deixar a Casa Ismael, para fundar outra casa, que mais adiante seria reconhecida como
Casa Espírita Francisco de Assim. Dentre inúmeras colocações das falas de Maria, deixa
evidente algumas questões referentes a saída do Sr. Luiz dizendo que:
123

O Sr. Luiz é o grande responsável por esta disseminação de espírita


umbanda. Quando ele fundou estas casas o compromisso que ele tinha
era de disseminar a ideia. Aí quando as casas começavam a ficar
muito Kardecista, parece que ele saía e fundava outra. Lá no
Emmanuel ele trabalhava e daí a pouco ele mudou para o Ismael. O
Ismael começou a ficar assim também por que tinha uma diretoria
bastante conservadora, aí ele saiu também e fundou o MEFA. Mas em
cada casa que ele criou, ele deixou uma equipe que levaria em diante
todo o trabalho que ele começou. E não vou para o MEFA por que eu
sou do Ismael. Por que na minha cabeça é ingratidão a tudo que ele
fez para minha mãe e para a minha família. Então para mim, eu devo
estar lá ajudando o filho dele (MARIA, 09/2013, DOURADOS –
MS).

Maria relatou uma história que caminha dentro de uma lógica bastante sofisticada
para compreensão da sua permanência na Casa Espírita Ismael, justificando também a
permanência de sua Irmã na Casa Espírita Francisco de Assis:

...isso ficou muito claro na minha cabeça, quando o meu mentor, por
intermédio de uma médium da Casa de Ismael me disse: “eu vou
trabalhar com você nesta casa, e eu quero trabalhar verdadeiramente
na área da Cura, e eu estou aguardando sua disposição para o trabalho
e meu nome é “Ismael”. Então ali eu entendi que a minha casa era lá,
e o da minha irmã é o Tupinambá. Tupinambá é mentor da Dona Rosa
(dirigente espiritual da Casa Espírita Francisco de Assis), então ela
tem que estar no MEFA e não no Ismael. Para minha família ficou
esta herança, você ajuda aqui, você ajuda ali e assim por diante. E eu
gosto muito do MEFA e do terreiro, mas a minha casa é o Ismael
(MARIA, 05/2013, DOURADOS - MS).

Neste cenário, A equipe de Luiz leal passa a compor o quadro de médiuns da


Fundação Casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Fazem parte desta nova fase os
seguintes personagens: Catarina, Nêga, Mineira, Luiz Leal, Adolfo, Sônia, Maria Amada,
Merci, José Pereira, Ivete, dentro outros que já faleceram. Após a fundação, passados alguns
124

anos, entra um novo corpo de médium na casa. No período em que Dona Nêga assumia a
diretoria Espiritual do Grupo, sempre com a presença de Luiz Leal. O novo grupo é composto
por: Rosa, Paulo (hoje dirigentes espirituais da casa MEFA), Boni, Reginaldo, dentre outros.

3.5. A Primeira Ruptura – Traços do Transe Mediúnico


Após a fundação do Movimento Espírita Francisco de Assis, houve novos conflitos
que geraram mudanças. O período da primeira ruptura, foi marcado por questões a esclarecer.
Como mesmo disse uma médium antiga da casa: o MEFA foi fundado com o objetivo de
juntar o Espiritismo com a Umbanda, está escrito no estatuto do MEFA, ninguém jamais
conseguiu mudar esta ideia que foi criada pelo Sr. Luiz fundador das casas. (Caderno de
campo). Indo ao encontro, outra médium também antiga de nome Maria Amada disse:

Quantos já tentaram mudar. O grupo do Ismael que veio para cá,


depois que Luiz Leal fundou o MEFA, queria filiar a casa com a FEB.
Se isso acontecesse haveria uma mudança radical nas nossas práticas,
porque a FEB poda muita coisa. Mas eles não conseguiram. Todos
que tentaram mudar o sistema do MEFA foram tudo embora da casa
(AMADA, 08/2013, DOURADOS – MS)

Luiz Leal, fundador do MEFA, aplicava as linhas de Umbanda, aos rituais do MEFA.
Ainda de acordo com esta médium antiga, que não quis se identificar:

A Umbanda sempre existiu no MEFA, desde o começo, antes de Luiz Leal


pensar eu levantar o primeiro tijolo desta casa a gente já sabia que a
Umbanda seria parte dela. A diferença do MEFA para um terreiro de
Umbanda, é que aqui existe a presença das entidades, Caboclos, Pretos
Velhos, Exus e Crianças, mas nós não aderimos aos rituais (AMADA,
08/2013, DOURADOS – MS)

Desde o princípio, O MEFA chama atenção pela possibilidade de interagir com


entidades referenciais na religião Umbandista, sabendo da abertura para a presença de
elementos simbólicos, tornando a dinâmica da comunicação espiritual mais fluida e
abrangente. Haja vista as especificidades que divide a Umbanda e o Espiritismo, em se
tratando de modalidades, divergentes, operadas em espaços distintos.
125

Tempos atrás, a Sr. Nêga era uma das médiuns que compunha o grupo de maior
afinidade com o Sr. Luiz. Assim, foi uma das integrantes que acompanhou o Sr. Luiz na
fundação e construção do MEFA. Participou o Sr. Luiz, Marcel, Beatriz, Nêga e Catarina mãe
de Maria. Segundo a fala de Maria, esposa de Nei:

A dona Nêga ajudou o Sr. Luiz a fundar o MEFA com as próprias


mãos. Mas aí ali houve algumas divergências e eles entraram em
conflito por um motivo que desconheço. Nesta época da separação de
grupos, o Sr. Luiz foi para o Rio de Janeiro, e ficou por lá alguns
meses, neste período a Dona Nêga dirigia as atividades espirituais da
casa (MARIA, 09/2013, DOURADOS – MS).

Com base nesta informação, coincide a época em que Paulo e Rosa começam a
frequentar o MEFA, para tratamento espiritual. Hoje (2020), Paulo e Rosa são dirigentes
espirituais da casa espírita Francisco de Assis:
No momento em que Dona Nêga assumia a liderança espiritual na
casa, houve um conflito e após a volta do Sr. Luiz do Rio de Janeiro a
Dona Nêga pegou seu grupo e voltou para o Ismael, onde permaneceu
até o fim da sua vida. E o Sr. Luiz permaneceu no MEFA até o fim
também. E hoje Beatriz (filhas de dona nêga) e Marcel (filho de Sr.
Luiz), ambos casados, dirigem as atividades da Casa Espírita Ismael.
(MARIA,07/2013, DOURADOS - MS).

Adolfo relata que participou de todo processo da fundação da casa Espírita Francisco
de Assis, e frequentou por muito tempo, por influência de seu pai, que acompanhava sempre.
E conta também o que o levou a voltar para a casa Ismael:

Eu participei do MEFA no início, mas eu não concordava com muitas


coisas que acontecia lá, e eu fazia parte do grupo que gostava de
estudar, de aprender a dar passe, de conhecer preceitos doutrinários de
Kardec, mas como a umbanda era muito presente, e as manifestações
eram muito violentas, resolvi retornar a casa espírita Ismael, a qual
pertence até hoje. (ADOLFO, 07/2013, DOURADOS - MS).
126

Numa quarta-feira de estudo na casa MEFA, o dirigente espiritual relatou uma história
que sustenta as considerações feitas anteriormente. Na época da Sra. Nêga existia no MEFA,
um grupo mais voltado para a doutrina espírita. Segundo ele era o grupo que mais se
preocupava em estudar a doutrina e, posteriormente, aplicar nas atividades da casa.
Os comandos de divergências nos paradigmas doutrinairios, é um dos pontos
simbólicos relevantes. A afirmação e declaração do pertencimento a alguma idéia especifica,
é um fator que indica uma posição evocada por um contraste de opniões. Nesse sentido, havia
grupos divergentes dentro do MEFA naquela época, não que isto tenha deixado de existir.
Estas discordâncias são os principais aspectos que enfatizam o caráter complementar da
Umbanda e do Espiritismo, que reflete na função do transe, que media esta aproximação. O
grupo da desobssessãocompõe uma das atividades que articulam funções nas experiências do
transe, a partir de uma conciliação dialógica que articula a Umbanda e o Espiritismo.
Normalmente, segundo relatos, estas atividades eram voltadas para questões ligadas a magia,
ou seja, aqueles espíritos que traziam consigo um grau de maldade, por isso, são classificados
como espíritos inferiores.
Na época em que havia uma demarcação entre estes grupos, os que se afinavam com o
espiritismo, promoveram um curso de passe, com o objetivo de eliminar algumas práticas
exercidas no MEFA, buscando adotar outras de acordo com as predeterminações exigidas pela
FEB – (Federação Espírita Brasileira), se tratava também do mesmo grupo que propagou a
ideia de que a Casa Espírita Francisco de Assis deveria se afiliar a FEB, o que de fato não
aconteceu. Seguindo a fala do dirigente, enquanto ocorria o curso de passe segundo a FEB
pelo grupo dos estudiosos, na sala ao lado, neste mesmo horário reunia-se outro grupo que
integrado por médiuns que vieram da Umbanda para participar das atividades da Casa.
O grupo MEFA se dividia entre Espíritas e Umbandistas, que estavam em conflitos e
promoviam atividades conjuntas no mesmo dia. Enquanto o grupo Umbandista pautava suas
atividades na desobssessão, aliados a entidades da Umbanda, o grupo espírita promovia um
curso para ensinar a dar passe segundo a FEB.
Dentro das atividades do grupo espírita, ocorreu um evento em meio às atividades que
objetivava a aplicação de passes. Uma mulher recebe um espírito que aparentava uma
violência e descontrole, fazendo com que os integrantes do curso se vissem impossibilitados
de fazer qualquer coisa, por não desenvolverem habilidade com tais fenômenos. Diante dessa
situação a qual não sabiam como agir, bateram na porta do outro grupo onde os umbandistas
estavam reunidos, e pediram ajuda para dar conta daquele espírito que tinha tomado o corpo
127

da mulher, e gentilmente o grupo acolheu a mulher na sala, chamaram o “Exu tranca rua” para
encaminhar o espírito, e tudo ficou sob controle e voltou à normalidade.
O diálogo da Umbanda com o Espiritismo faz parte do contexto cotidiano destes
grupos, pois esta relação define, e diz muito sobre o grupo na forma como produzem seus
espaços de representação. Esta relação é uma instituição social dos grupos destas casas as
quais estão sendo relacionada, a partir da convivência e diálogos estabelecidos pelos próprios
atores sociais envolvidos. Para finalizar esta ilustração cabe localizar quais as pessoas
importantes nesta trama compunham estes grupos.
No grupo Espírita que se baseava em preceitos de Kardec, visando uma futura filiação
á FEB, era liderada por Sônia, hoje doutrinadora da Casa Espírita Ismael, mulher de Adolfo
(filho de Luiz Leal), filha da Sra. Nêga dirigente espiritual do MEFA e do Ismael. O grupo
Umbandista era contra a filiação á FEB, composta por adeptos advindos da Umbanda, era
integrado por Rosa, Paulo, Reginaldo (médium umbandista do MEFA), e outros que
conjuntamente praticaram a umbanda e quimbanda na casa.
Inserindo considerações de Maria (filha de Mineira), sobre o momento de ruptura, ao
que tudo indica, houve um tempo que o Grupo da Dona Nega assumiu a presidência do
MEFA, impondo alguns desejos de mudanças, dentre eles, a necessidade de uma orientação
mais sistemática concretizada pela presença da Federação Espírita Brasileira. Neste momento
é que entra Sônia, filha de Dona Nega, atual dirigente da Casa Espírita Ismael, e esposa de
Marcel, filho de Luiz Leal, e também dirigente da Casa Espírita Ismael. Segundo Maria (filha
de Mineira):
Depois que eles assumiram a presidência do MEFA, eles quiseram
modificar as atividades da casa por completo, com o objetivo de
vincular a casa à federação espírita Brasileira. Para mim este conflito
que teve é poder e status. E todos aqueles que tentaram mudar o
MEFA, saíram, o foi isso que aconteceu com a turma da Beatriz. Esse
grupo que voltou para o Ismael queria mudar o estatuto do MEFA, e o
nome. De Movimento Espírita Francisco de Assis, quiseram mudar
para Centro Espírita Francisco de Assis. Eles tentaram me levar para o
Ismael para trabalhar com a evangelização, mas, eu não fui. E isso
aconteceu também com relação a outro grupo, que por divergência de
pensamento, não estava contente com as práticas do MEFA, e este
grupo saiu de lá e ai fundaram o Franciscano, com ajuda do Sr. Luiz
Leal. Penso que isto ocorreu devido a algumas pessoas que chegaram
128

a casa para trabalhar, e todo mundo tem um modo de pensar e agir


individual, mas toda a casa tem um regimento uma norma pré-
estabelecida que todos soubessem que devem seguir, e se a pessoa
insiste em impor o que ela quer, acaba gerando um desentendimento, e
acaba não se dando com o grupo, e ai acaba abrindo outra casa. Eu
acho isso ótimo, por que é necessário haver as divergências para que
haja a necessidade de abrir outras casas, por que seria muito ruim se
isso não acontecesse. Lembro-me da época que o pessoal do MEFA
visitava e frequentava o franciscano para implantar o mesmo estilo do
MEFA ali, no caso seria um segundo MEFA, mas mesmo a Casa do
Franciscano adotando o método do MEFA nos trabalhos, ainda sim é
muito diferente. (MARIA, 08/2013, DOURADOS – MS).

Sônia é adepta do Espiritismo e não participa das sessões da casa MEFA. De acordo
com as falas sobre a identificação com relação à Nega, afirmando que era umbandista,
participando das atividades da casa, inclusive que foi desenvolvida por Luiz Leal, sob a égide
de pontos e cânticos característicos das linhas de Umbanda. Logo perguntei a Maria (filha de
Mineira) sua opinião sobre isso: o problema é que a filha dela era mais para o lado de
Kardec, e em respeito à filha dela, ela acabou voltando para o Ismael para ajudar a filha
dela lá. Então foi por causa da filha que ela voltou. Maria justificou sua ida para o Ismael,
tendo em vista um vínculo familiar.
Nesta fala é firmada uma segunda ruptura que ocorre na Casa Espírita Ismael, dando
origem a uma terceira fundação, o qual Luiz Leal exerce papel fundamental. Segundo
algumas colocações dos interlocutores, a justificativa mais presente é, a partir do momento
que estabelece divergências de afinidade da parte de um grupo com relação a outro, ficou
estabelecido sobre a necessidade de criar uma terceira casa, o qual este grupo pudesse
desempenhar maior autenticidade no campo religioso que as instituições mediúnicas possuem,
por um dinamismo estruturado pelo transe e o desenvolvimento da capacidadrdr estabelecer
comunicação com os espíritos.
Em nenhum momento houve tensão no período da fundação da Casa Franciscano,
tanto que, ouvi que muitos dos frequentadores do MEFA, migraram para esta nova casa
naquela época, a fim de aplicar as práticas exercidas no MEFA, pois ali seria um “segundo
MEFA”, tanto que, Luiz Leal, naquela época foi para lá com o objetivo de orientar as
129

atividades da casa, por muitos dos participantes estarem aprendendo a caminhar neste
universo metodológico instituído pela casa anterior.
Segundo o fundador, a segunda casa surgr da necessidade de atender pessoas que
residiam em outro ponto, muito distante do MEFA, para suprir a dificuldade de deslocamento,
tendo em vista que, Luiz Leal sempre se preocupou em atender os mais necessitados e
impossibilitados de se deslocar devido a posição social que ocupavam. De acordo com esta
justificativa, mais a justificativa do grupo, é provável que esta necessidade viesse de uma
demanda crescente que ocasionou conflitos e divergências formando a necessidade de um
segundo espaço.
Porém a Casa Franciscana, possui similaridades nas atividades, no entanto suas
marcas singulares são inúmeras, e posso dizer que, minha experiência na Casa Franciscana é
marcada por fortes influencias do espiritismo e do Catolicismo. Isto foi expresso através de
cânticos da Igreja Católica, e os pontos cantados da linha de Umbanda são reduzidos.
Haja vista, limitamos no percurso destes espaços, suficiente para construir as bases
necessárias para sua sustentar esta pesquisa. A apresentação desta ruptura encerra a dinâmica
dos motivos vinculados ao conflito.

3.6. Releitura do trânsito entre as casas


Quanto à construção das relações estabelecidas ao longo da trajetória de formação das
casas, a narrativa da personagem Maria revela a formação das redes que foram construídas ao
longo dos anos, através dos laços de parentesco. A relevância argumentativa desdobra
apontamentos, e amplia relações em uma conexão fixada.
Na década de 80, Maria passa a frequentar a casa espírita Anjo Ismael, e a casa
Movimento Espírita Francisco de Assis, recém-formada na época. E foi na década de 90 que
inicia sua participação nas sessões mediúnicas do terreiro Reino de Ogum Beira Mar, na
companhia de sua mãe Catarina. Catarina é uma personagem a qual não nos remetemos em
termos do desenvolvimento narrativo, porém, sua importância expressa uma similaridade,
pelo fato de interagir com o transe mediúnico de matriz Umbandista, ao mesmo tempo que
segue preceitos doutrinários da religião espírita, especificamente, em se tratando da
comunicação espiritual, elemento fundamental na construção das relações entre as casas,
devido a representação do transe, sendo suas características, a principal fonte de articulação
entre a Umbanda e o Espiritismo.
Numa base sincrônica é possível perceber uma cadeia de relações que conectam estes
espaços no tempo, com bases comuns de aproximação e afastamento, sendo o transe
130

mediúnico o principal intermediário. Em alguma medida, atende a fluxos e continuidades num


circuito que está longe as restrições fechadas em se tratando de mobilidades.
A saída de Luiz Leal da Casa Espírita Ismael promove a primeira ruptura, que dividi o
grupo pertencente a casa Ismael em dois lados distintos. Assim, parte dos integrantes que o
acompanhava anteriormente, migra para a casa que ficará reconhecida como Movimento
Espírita Francisco de Assis - MEFA. Seguiu para a nova fundação: Benita, Catarina, Nêga,
Mineira, Luiz, dentre outros que fizeram parte desta nova criação. O que pude compreender é
que neste período as práticas antigas da casa Ismael, movimenta-se da direção desta nova
fundação.
131

CAPÍTULO 4 - O TRANSE E O TRÂNSITO

Cabe aqui apropriar-se de um conceito que permite explicitar melhor o que se quer
definir por incorporação:
Quando um médium permite a interferência de uma entidade
espiritual, o seu “eu” torna-se residual dando, assim, prioridade a
outro ser, personagem, entidade, promovendo um processo de
desterritorialização, onde desloca-se, movendo-se, dando passagem a
outro. Assim sendo, não somente o corpo ritualístico é deslocado, mas
também a capacidade de pensar, pois a partir daquele momento o
corpo e a cabeça estão sujeitos a manifestações de outro que mede
seus atos a partir do deslocamento. Logo, a incorporação é um
fenômeno intelectual desterritorializante, em que o sujeito entrega não
somente seu corpo, mas também sua capacidade de promover ações e
pensamentos a uma entidade para fora do controle do eu consciente
(ANJOS, 2006, p.20).

É justamente na incorporação, que todo o composto ritualístico da Umbanda adquiriu


total sentido. Por meio deste fenômeno, os espíritos ganham vida, através do campo
mediúnico de pessoas que possuem uma espécie de “dom”, para que a comunicação entre o
“mundo espiritual” e o “mundo material” aconteça. Por meio deste intermédio são permitidas
as soluções de problemas ligados a individualidades da vida, em vista das necessidades
pessoais e humanas, sendo o produto final as soluções e resoluções que dramas vividos por
pessoas carregadas pela fé.
Apesar da relevância e importância que este aspecto atribui ao sentido da existência
deste campo religioso, sua prática é bastante casual e mantida como prática rotineira, sendo
praticada com bastante naturalidade. Logo, o ato de comunicar-se com os espíritos é algo tão
comum, que é de suma importância atribuir sentido nas falas destes grupos por meio desta
lógica: a crença nos espíritos e no mundo espiritual (BRUMANA&, MARTINEZ, 1991). O
autor Procópio Camargo (1961) também explicita:
132

De maior importância, entretanto, é a consciência popular da


continuidade, senão da identidade religiosa, entre a Umbanda e o
Kardecismo. Efetivamente, a analogia da experiência religiosa e das
interpretações que giram em torno do fenômeno mediúnico, reduz, aos
olhos do fiel, o “terreiro” de Umbanda e a “mesa” Kardecista ao
continuum de uma vivência espiritual unificada. (CAMARGO, 1961,
p. 14).

Segundo Brumana, Martinez:

Um dos saltos mais significativos na passagem do Espiritismo para a


Umbanda é a assunção do que se costuma chamar de “mediunidade
ostensiva e fenomênica”, quer dizer, a manifestação das entidades não
mais por sua irradiação na mente de um médium que permanece pelo
menos parcialmente consciente, mas pela possessão total de seu corpo
e pelo deslocamento de sua personalidade. (BRUMANA;
MARTINEZ, 1991, p. 88).

O aspecto diacrítico da Umbanda e Espiritismo, é o fenômeno da intermediação, (na


Umbanda, de forma mais direta) com os mortos, pois o fato de incorporar um espírito e
aspectar sinais das crenças que sustentam tal viabilidade sob um ponto de vista lógico para
leis e paradigmas sustentados pela ciência do espírito, sua presença entre os vivos é uma
marca valorizada pelo grupo. Por isso, as atividades do terreiro têm o próprio modelo
ilustrativo de como opera aspectos estruturais traduzidos na construção ritual.
Buscar um terreiro de Umbanda significa validar a existência que possibilita a
conversação com entidades de natureza espiritual, para intermediar resoluções práticas da
vida cotidiana. Esta mediação entre espíritos e seres humanos reforça a consolidação que
mantém um capital simbólico, que, de modo mais amplo articula a ligação dos homens com
deuses por intermédio das instituições espiritualistas que, neste aspecto, baseiam modos
discursivos de reforçar estas experiencias a medida que os fenômenos se apresentam, seja
através de um depoimento, de uma cura conquistada, ou de qualquer problema solucionado.
O fenômeno da comunicação/incorporação está presente tanto no terreiro, quanto na
casa MEFA, é nesta prática que sobressai a presença da Umbanda, considerando o
133

afastamento que a cultura Espírita mantém, envolvendo a comunicação direta com os mortos.
Assim, a incorporação é um elemento facilitador que dá acesso ao universo umbandista, em
âmbito singular da particularidade dos grupos correspondentes.
Segundo alguns autores, o que chama atençãono ato de comunicar-se com os mortos, é
que, não bastasse sua presença corporificada através da experiência mediunica, estes espíritos
falavam com os vivos através de uma linguagem acessível a todos. Desta forma, o corpo e a
fala são elementos que caracterizam a “incorporação”. No entanto, existem meios os quais
este fenômeno acontece.
No caso do Espiritismo, os espíritos incorporados nos médiuns se comunicam através
da fala, ao passo que no Candomblé, por exemplo, tais expressões e códigos são proferidos
através da linguagem corporal. Já a Umbanda assimila estas duas formas de comunicação em
apenas uma, absorvem expressões correspondentes ao corpo, através das performances da
chegada e permanência das entidades da Umbanda, sendo sinalizadores da presença
característica arquetípica de um espírito, bem como a linguagem, através da conversa com o
público (BRUMANA; MARTINEZ, 1991, p. 88-89).
O termo utilizado para caracterizar a presença do espírito é a “incorporação”. Assim, o
grupo, de um modo geral, identifica este fenômeno como algo pertencente à prática
Umbandista. Diferentemente das práticas de passes magnéticos e palestras proferidas no
início das atividades.
A exemplo de Maria Laura Viveiros de Castro (1983), o objetivo é demonstrar através
das narrativas e experiencias de deslocamento que o diálogo entre estas duas religiões
permite, por intermédio do fenômeno mediúnico, enfatizando a importância de trazer
discussões pertinentes ao transe, no intuito de classificar funções específicas a partir de um
fenômeno que pertence ao campo da integração. O transe é um fenômeno humano que,
quando traduzido num modelo específico, sendo o caso do campo religioso promove
catacterísticas que viabilizam um canal de ajuste por meio da comunicação de códigos
pertencentes a campos distintos, como é o caso da Umbanda e do Espiritismo.
Considerando a priorização narrativa dos interlocutores, em respeito ao lugar da
alteridade e validação do ponto de vista do outro,o transe é um processo que caminha da posse
para o alinhamento necessário para a domesticação do transe, a partir dos preceitos em torno
do conceito de mediunidade, sendo esta, uma categoria estudada e reproduzida na experiência,
é o que chamam de “ Educação Mediunica” . Isto ocorre através de dois elementos: o estudo e
a prática.
134

Existem várias apresentações teóricas sobre o conceito de possessão, dentre elas,


Hoskins (1975), faz uma diferenciação entre o fenômeno mediúnico e possessão. A
mediunidade reflete a comunicabilidade com os mortos (pessoas que já estiveram presentes na
sociedade), enquanto a possessão engloba o fenômeno do transe, marcando alterações
fisiológicas e orgânicas. Estes fenômenos marcam comportamentos que se estendem aos
limites físicos, e estas manifestações são consideradas pelo grupo estudado como uma classe
primária articulada como potencial para o dito desenvolvimento mediúnico. (CAVALCANTI,
1983).
Estes fenômenos que marcam a fonte dialógica mantida entre as casas, através das
complementaridades entre as modalidades Umbanda e Espiritismo, é o objeto de
intermediação posto em operação, interferindo a operando nas funções pragmáticas das
instituições espiritualistas, sendo assim, percebidas pelo grupo como um canal dialógico
complementar. No terreiro Reino de Ogum Beira Mar, há um exercício que conduz a formatos
de controle dos fenômenos de possessão, marcando as influências do Espiritismo nas práticas
da Umbanda.A casa Movimento Espírita Francisco de Assis, amplia possibilidades e se
ancora na categoria espiritualista dando espaço a manifestações elementares através da
presença de entidades da Umbanda, de cânticos entoados, e uso de utensílios que remetam a
componentes essenciais utilizados nos terreiros, como por exemplo, o composto de ervas
dissolvido no álcool, denominado “descarrego”. Esta é uma marca diacítica que distingue a
casa MEFA de todas as outras casas Espíritas da cidade de Dourados – MS.
Em contrapartida, estas manifestações são domesticadas, e assim mantidas com certa
ressalva. Quanto menor a performance do espírito no corpo do médium, mais credibilidade e
confiabilidade terá o mediador. Esta marca se mantém permanentemente no campo do
discurso, logo, nas duas casas há necessidade de autocontrole promovendo o estabelecimento
de fronteiras delimitadas entre as modalidades Umbanda e Espiritismo.
É consensual por parte de alguns autores que, a marca diacrítica da Umbanda é o
fenômeno da incorporação o que permite o diálogo e a intermediação entre o mundo dos vivos
e o mundo dos mortos, sendo este, um produto dentro de um mercado de bens no campo
religioso afro descendente (BOURDIEU, 2011). A crença nesta possibilidade de contato com
o mundo invisível também é um sinal importante na percepção da existência pragmática da
incorporação ou transe mediúnico (NOGUEIRA, 2009):
135

A religião Umbandista fundamenta-se no culto dos espíritos e é pela


manifestação destes, no corpo do adepto, que ela funciona e faz viver
suas divindades; através do transe realiza-se assim a passagem entre o
mundo sagrado dos deuses e o mundo profano dos homens. A
possessão é, portanto, o elemento central do culto (ORTIZ, 1999,
p.69).

Haja vista as condições humanas na interação com o outro, bem como suas
necessidades de obter respostas para solucionar desafios do dia-a-dia, é importante entender
que, em outros espaços religiosos, isto não é tão comum. Nos centros de mesa Kardecista, este
contato com os mortos ocorre de forma limitada, cuja interação com as entidades não
acontece. Na Umbanda isto se dá de forma visível, gerando certo valor por parte das pessoas
para com seus “guias” espirituais. Isso reforça que a legitimidade da função que nos fornece
impressão da aproximação entre a Umbanda e o Espiritismo, é justamente os vazios que um
campo trás, evocando a necessidade do outro para fornecer meios de manutenção e sustento,
que fortelece uma crença, cuja função é o abastecimento do sentido simbólico. É por isso
qwue o transe é fundamental, ppis é ele que fornece mecanismos para possibilidade de
permanecia e existência.
Uma das vertentes deste trabalho é demonstrar fatores de diferenciação entre o
Espiritismo e a Umbanda, considerando que, apesar destas modalidades fornecerem condições
á comunicabilidade dos Espíritos, a Umbanda complementa mecanismos e respostas para o
pragmatismo da vida vivida, enquanto que, o Espiritismo reforça a necessidade de
reformulações intimas vislumbrando um futuro, sendo da responsabilidade do próprio
indivíduo fornecer meios internos para modificar o que requer atenção, e que de algum modo
afeta as ciscunstâncias que desafiam sua vida.
No entanto, há intermediação de igual forma, mas, com funções distintas. O transe
mediúnico no espiritismo intermedia movimento do individuo com os espíritos. A umbanda
opera o transe movimentando a interação direta, em que as entidades se manifestam e
interferem nas resoluções dos problemas que os indivíduos infrentam no cotidiano. Assim,
concluímos que, o transe mediúnico é um fenômeno caracterizado como intermediador direto
(Umbanda) e indireto (espiritismo), considerando a interação espiritual para manutenção da
representação institucional fixada no termo espiritualista.
É importante considerar outro ponto relevante para o entendimento de como funciona
as aproximações e afastamentos entre tais modalidades, considerando o processo de
136

embranquecimento, ou, como ditas anteriormente, desafricanização da Umbanda (ORTIZ,


1999). A doutrina espírita compõe destaque entre as religiões de possessão por possibilitarem
a revelação da causa das aflições humanas sob uma ótica oculta à materialidade cujas origens
são mantidas em um plano denominado espiritual.
Existem dois eixos fundamentais neste processo, um deles é uma pressão oculta
levando determinada pessoa a uma perturbação causada por grupos de espíritos reconhecidos
pelo grau de inferioridade, pois quando se tem um dom mediúnico, para os espíritas, os
médiuns iniciantes apresentam uma série de desequilíbrios desvinculados do corpo doente
material e/ou espiritual. O outro é quando uma pessoa, não estando sob a égide mediúnica, se
vê envolta de uma série de acontecimentos incomuns, marcados por queda emocional e
psíquica, marcada pela presença de espíritos inferiores. Nos dois casos, os espíritos inferiores
são a causa primeira (BRUMANA; MARTÍNEZ, 1991).
Brumana e Martínez (1991) consideram viável a assimilação e aceitação destes
espíritos pelo fato de os espíritos inferiores serem manipulados pelo que, alguns kardecistas
consideram de baixo espiritismo. O reconhecimento da existência de espíritos mantidos
hierarquicamente num patamar inferior, reforça indicações de uma posição desfavorecida que,
apesar de apresentarem soluções para a vida dos adeptos, permanecem no grau de subjugação.
Quanto maior a proximidade com a matéria,maior tendência a inferioridade, quanto maior a
espiritualidade, ou seja, o desprendimento da utilização de meios materiais para operar a
intermediação entre o plano do espirito(espiritual) com o plano físico (material), mais
próximo à superioridade espiritual.
Este pensamento circunta o universo das instituições Espíritas. A crença nestes
espíritos é eficiente tanto para o terreiro como para a casa espiritualista, neste caso o MEFA,
pois são eles que motivam o desenvolvimento das atividades. Lidar com estes espíritos é
reconhecer alicerces ligados à doutrina de Kardec, modalidade esta que reconhece condições
para delegar o papel que desempenham para as bases da existência religiosa.
Segundo a crença espírita, os espíritos sofredores ocupam lugar diferente dos caboclos
e pretos velhos, pois, são eles que comprometem a harmonia dos indivíduos.Nos terreiros a
comunicabilidade e conversação com espíritos mortos ocorre como mencionado, de forma
mais direta, no sentido de estar sendo requisitado para exercer determinada função. No caso
dos obsessores isto não acontece, pois estão ali nas condições de invasores espirituais, cujas
atividades operam na remossão destas entidades que estão ali, indevidamente, passando pelo
processo de doutrinação e remossão para o lugar devido, sendo, o plano em que estão vivendo
no mento, o mundo espiritual. O fato é que a presença de espíritos sofredores é uma
137

característica própria do Espiritismo que passou a ser incorporada no terreiro, no instante em


que houve a entrada destes novos médiuns. Logo, esta é mais uma constatação da função do
transe para produzir este elo de ligação que dinamizam as atividades das casas.
Aqui presenciamos o processo inverso, tendo como ponto a comunicabilidade como
um fator que caminha da Umbanda,praticada no terreiro, para as práticas da casa Movimento
Espírita Francisco de Assis - MEFA. A presença do transe mediúnico expressa uma
característica fundamental na Umbanda. Neste caso, compõe função de complementar
elementos funcionais ao cenário Espírita que incorpora nas atividades rituais.
De acordo com a base empírica apresentada, é importante considerar algumas falas. A
medida que se movimenta as relações entre os frequentadores, bem como os sinais diacríticos
característicos da Umbanda e Espiritismo, é possível dar mais ênfase nas mudanças que
ocorrem não somente no cenário mediúnico, mas também no modo como os espíritos vão
modificando sua roupagem manifesta nos médiuns, a partir das considerações apresentadas
conforme a fala e a elaboração de sentido. Isso pode ser encontrado a partir das trajetórias que
envolvem a vida dos médiuns, bem como, o processo histórico movimentado através das
mudanças das atividades realizadas nestes espaços. É o que exploraremos a seguir.

4.1. O Trânsito dos Espíritos


Os espíritos também são agentes do transe mediúnico. Esta explicação só faz sentido
se colocada diante das interpretações percebidas a partir de vivencias desta natureza,
considerando que os grupos os quais estive imersa no campo, acredita veemente na
possibilidade de se comunicar, se relacionar e ouvir os Espíritos. Durante uma tarde, Nei
estava relatou como foi sua entrada no terreiro e respectivamente como foi sua trajetória que o
levou a frequentar o Centro Espírita Ismael. Mas, segundo sua esposa, Nei não possui muitas
afinidades com a ortodoxia espírita, se identificando mais com a Umbanda, apesar da base
espírita compor sentido.
Na fala da Maria torna-se bastante evidente as ligações e interconexões entre ás
entidades e personagens da Umbanda e personagens característicos do Espiritismo. Vai dizer
que:
138

Depois que eu entendi o lado espiritual eu soube que Pai Joaquim


pode trabalhar em terreiro e pode trabalhar em centro espírita também.
Entendi que Ismael pode ser Ismael e Caboclo Pena Branca. Eles
podem ser a mesma pessoa. Esse Caboclo há muitos anos já trabalhou
com a minha Mãe no Ismael. Então Ismael/Pena Branca já foi mentor
da minha mãe há muitos anos, no tempo em que ela estava
trabalhando na Casa Espírita. (NEI, 07/2013, DOURADOS - MS).

Dentro deste entendimento a interlocutora complementa que: “o preto velho que


trabalha no terreiro Reino de Ogum Beira Mar, também frequenta a casa espírita Ismael nas
segundas-feiras como Irmão André. E o Tupinambá que trabalha no MEFA” (NEI, 07/2013,
DOURADOS-MS).Enquanto na Casa Espírita Ismael, o personagem Pai Joaquim recebe
outro nome “Irmão André”, na Casa Francisco de Assis, o Tupinambá que trabalha na Casa
Reino de Ogum Beira Mar, permanece na Casa Espírita Francisco de Assis como “Caboclo
Tupinambá”. Este fato ressalva a mudança e formação de outro movimento Espírita iniciado
pelo Sr. Luiz Leal, haja vista a narrativa da interlocutora, ao mencionar que: “quando o Sr.
Luiz percebeu que a Casa estava muito Kardecista, fundou outra Casa” (MARIA,07/2013,
DOURADOS - MS).
A ausência dos personagens da Umbanda na Casa Espírita Ismael reforça a
representação simbólica da diretriz espírita, como filosofia prescritiva da Casa federada á
Federação Espirita Brasileira - FEB. Diferente da Casa Espírita Francisco de Assis, que não é
federada, atribuindo a categoria espiritualista para delimitar a ausência da FEB nas atividades
desenvolvidas.
Ainda em relação as influencias dos Espíritos, no caso de Nei, sua entrada na Casa
Ismael ocorre por intermédio do convite de um Espírito pertencente a figura da ex dirigente da
casa, DonaNêga, já falecida. Neste caso os espíritos não somente transitam, mas também são
agentes facilitadores na constituição das conexões entre as casas. Outro ponto é o fato dos
espíritos que são recebidos em algumas casas, enquanto identidade independente do trânsito,
em outros casos, este trânsito viabiliza a formação de uma nova identidade.
No caso de “Pai Joaquim de Aruanda”, seu arquétipo só é validado no Terreiro,
quando o mesmo se dirige a outro espaço simbólico contrastante, no caso do centro Espírita
Ismael. O mesmo é identificado como Irmão André, com características arquetípicas que
remetem ao padão europeu. No caso do espírito Caboclo Tupinambá é reconhecido como
arquétipo comum no Terreiro Reino de Ogum Beira Mar e na Casa Movimento Espírita
139

Francisco de Assis, nestes espaços não há necessidade de uma nova composição de


identidade.
As casas Centro Espírita Ismael, Casa Movimento Espírita Francisco de Assis, e
Terreiro Reino de Ogum Beira Mar, sãoespaços complementares produzidos nas relações
sociais, ao passo em que permanecem nas características próprias. Apesar da casa Ismael se
manter em um perfil mais marcado pela legitimidade ortodoxa Espírita.
A casa MEFA desenvolve práticas a partir de diálogos que desempenham caráter
complementar, devido a inserção de elementos para além dos preceitos que regulamentam a
doutrina Espírita, estrutrando alicerces pragmáticos no universo Espírita com complementos
Umbandistas. Já o Terreiro é marcado pela legitimação Umbandista, que recebeinfluências de
natureza espírita doutrinária devido à trajetória de adeptos, médiuns e dirigentes.

4.2. O Percurso dos Adeptos


Este tópico fornece explicação a cerca do trânsito do ponto de vista dos adeptos.
Aqueles que buscam tanto a casa MEFA, quanto o terreiro de modo complementar a partir das
práticas rotativas oferecidas semanalmente, considerando a existência de um mercado de bens
simbólicos envolvendo práticas e formas rituais (BOURDIEU, 2011).
O trânsito entre clientes será apresentado a partir de narrativas, em casos específicos.
O olhar dos adeptos é de fundamental importância, por apresentar perspectiva contrastante,
por não estarem envolvidos dentro das relações históricas construídas entre os médiuns da
casa, que transitaram por outas casas espíritas, além das mencionadas nesta pesquisa.

Joraci, 47 anos. Empresária, e frequentadora da Casa Movimento Espírita


Francisco de Assis. Prática: Terreiro Reino de Ogum Beira Mar.
Joraci chegou à casa MEFA, anos depois que já frequentava a casa como um espaço
de estudo sobre mediunidade. Nos dias atuais, ela é uma das trabalhadoras da casa, não
enquanto médium, mas como colaboradora das atividades oferecidas na parte externa da sala
onde ocorrem as incorporações. Participa ativamente dos estudos doutrinários oferecidos pelo
MEFA às quartas-feiras.
A trajetória desta personagem começa na Igreja Católica, onde passou por alguns
rituais como: batismo, eucaristia, crisma e outros característicos da religião. Algumas
questões de ordem pessoal a levaram ao afastamento definitivo, devido a não aceitação da
Igreja diante das decisões pessoais que tomou naquele momento de sua vida. Encontrou uma
Casa Espírita através de um membro da família, que a levou para conhecer na esperança de se
140

sentir bem e acolhida. Esta casa é Jesus de Nazaré, um Centro Espírita com práticas
adequadas aos preceitos da normatização Espírita.
Por questões de interferências e fatores externos, buscou outro espaço, embora tenha
permanecido no Centro Espírita Amor e Caridade – uma das casas da cidade vinculada à FEB
– durante 15 anos. Neste centro espírita ela conheceu uma médium já frequentadora do
MEFA,criando um vinculo de amizade, oferecendo um campo propício para se aproximar do
universo umbandista.
Nas normas estabelecidas pelo centro de acordo com a FEB não é aconselhável a
comunicação, ou seja, a presença de “espíritos” através do corpo de uma pessoa viva, no caso,
o médium. Segundo ela, a médium possuía uma peculiaridade entre os demais. Sua prática nas
atividades da casa saltava aos olhos por operar de forma diferente, pois dava-se a impressão
que a mesma estava bastante influenciada por algum espírito que a acompanhava nas
atividades mediúnicas.
A proibição da presença de espíritos de natureza umbandista na casa Espírita a
incomodava. Dentre tantos acontecimentos, um caso específico ocasiona a mudança. Segundo
ela, um homem entrou na “sala de passe”, e recebeu um espírito. Quando isto aconteceu, o
dirigente espiritual expulsa o dito homem da sala, justamente em se tratando de uma presença
espiritual que não se adequava ao modelo correspondente aos preceitos doutrinários. Esta
clareza proporcionada por este caso, a fez procurar outra que aceitasse a presença dos
Espíritos de modo mais abrangente e integrado, fornecendo um tratamento mais inclusivo a
presença de espíritos, permitindo a mediação humano/Espírito de forma mais integrada. Foi
então que acabou conhecendo e se dirigindo ao MEFA, local onde frequenta até os dias de
hoje.
Um laço de amizade foi o fomento para a composição da prática entre as casas. Numa
conversa informal entre elas, as duas revelaram as casas onde trabalhavam. Quando uma delas
ficou sabendo do MEFA, passou a frequentar seguindo os passos de Joraci ao participar das
atividades do terreiro. Ambas sabiam, como todos os outros adeptos, que entre a Casa Ogum
Beira Mar e a Casa Espírita Francisco de Assis, há um consenso de mobilização e nenhuma
das partes exige permanência fixa.
Quanto a motivação que levou a frequentar a casa Ogum Beira Mar, disse que foi
porque lá no terreiro valoriza-se o individual, enquanto que na Casa Francisco de Assis,
predomina-se o coletivo. Isto porque nas atividades voltadas para consulta espiritual, não há
privacidade tampouco espaço para relatar coisas particulares da vida cotidiana, e até mesmo
141

dos problemas enfrentados dentro da própria casa. A sala de consulta ocorre na sala grande,
com mais ou menos umas 20 pessoas, que ficam escutando tudo o que os consulentes dizem.
Isso a incomoda profundamente, pois não se sente à vontade para contar e se abrir
sobre conflitos internos e externos da vida cotidiana. E no terreiro Ogum Beira Mar, prioriza-
se a conversa direta com as entidades do “outro” plano, dando espaço para uma conversa mais
direta, informal, particular e reservada, garantindo a privacidade, na certeza de que as pessoas
não estão ouvindo o que está sendo dito nem pela pessoa, nem mesmo pela entidade
comunicante:

Os dirigentes não dão dica de nada e não falam absolutamente nada, e


você tem que ficar adivinhando as coisas. Agente não tem espaço e
nem vez para conversar com os espíritos que trabalham ali. E lá no
terreiro eles falam tudo o que você precisa saber e ouvir. Eles falam na
lata. Todas as vezes que eu fui ao terreiro eles conversaram comigo
abertamente, como amigos e orientadores de verdade. E ali no MEFA
a gente não fica sabendo de nada, parece que eles guardam tudo para
eles [sic] (Joraci. 06/2013, DOURADOS - MS).

A questão da coletivização das práticas mediúnicas da casa leva à outra questão.


Vendo a impossibilidade de relatar as coisas nas consultas devido à quantidade de gente que
escuta e participam, estas questões pessoais são contadas em particular para os dirigentes em
outro momento que não o da consulta na sala grande. E, segundo ela, ao adentrar na sala, os
dirigentes tendo o conhecimento prévio da causa, pedem unicamente para pensar naquilo que
veio buscar nesta casa de oração, e assim tudo fica por conta do paciente que busca uma
orientação espiritual

Clarice, 54 anos, professora. Pertence ao Centro Espírita Ismael. Nos dias atuais,
frequenta o MEFA e também visita a Casa Reino de Ogum Beira Mar.
A conversa com Clarice inicia-se numa segunda-feira de atividades na casa MEFA.
Inicialmente as considerações sobre o percurso demonstraram que a percepção desta
aproximação destas religiões, que compõe instituições de natureza espiritualista. Sendo assim,
a interlocutora não fazia ideia de que compunha o trânsito entre as casas, não de modo
consciente.
142

Inicia manifestando completo bem-estar no percurso entre as duas casas. Então expôs
os motivos pelos quais frequenta o MEFA e o terreiro de forma contínua: “Não gosto de
frequentar as outras casas porque aqui eu recebo respostas daquilo que necessito para mim.
E nas outras casas estas inquietações não são resolvidas. Tanto na dona Tereza como no
MEFA, eu recebo aquilo que preciso de formas diferentes, mas recebo”. (CLARICE,
05/2013, DOURADOS - MS)
Entre a casa espírita Francisco de Assis e o terreiro existem oferecimentos simbólicos
distintos, porém complementares:

Aqui no MEFA me sinto mais livre para ir e vir aonde eu quiser,


porque aqui ninguém exige nada. E eu gosto do MEFA especialmente
por conta da Dona Nega. Dona Nega trabalhou muito tempo nesta
casa, mas foi lá na casa Ismael que ela curou minha filha que, naquele
tempo, estava com sérios problemas para engravidar. E sei que Dona
Nega também trabalha aqui e o que me faz bem é esta mistura com a
Umbanda, que eu gosto muito (Idem).

Segundo ela, a Dona Nega transitava entre o MEFA e a Casa Espírita Ismael ao
mesmo tempo, o que demonstra que o percurso é comum e instituído pelas próprias pessoas
que compõem o grupo. Conforme as informações que trazia. Foi possível perceber que estava
confusa em relação ao trânsito o qual faz parte e pratica constantemente.
Após a fala de Reginaldo houve menor resistência para dirigir seu depoimento, sobre o
trânsito. Ao final da reunião da noite, veio pedir minha opinião sobre a prática entre as casas.
Sobre os conflitos que ocasionam a frequência nas duas casas, disse que as pessoas a
procuravam para questionar sobre isto alegando que ela estava servindo a deuses diferentes, e
que isso poderia futuramente lhe trazer sérios problemas. Logo em seguida, afirmou que nas
duas casas ela busca respostas diferentes. Mas respostas que se complementam e contribuem
para sua vida de um modo geral: “No terreiro, a reposta é para a vida do meu dia-a-dia, na
matéria, problemas pessoais, desentendimentos com as pessoas”.
Logo, as repostas obtidas no terreiro eram objetivas e precisas e, normalmente,
imediatas, e na maioria das vezes, o consulente já sai do terreiro sabendo o que gostaria de
compreender a cerca de algum caso específico envolvendo questões práticas da vida. Já no
MEFA, a resposta vem no entendimento da evolução:
143

O que eu estou fazendo aqui? Respostas para compreender nossa


origem e estas respostas são mais abrangentes e se estendem para um
campo maior, é uma área mais filosófica, onde você precisa pensar e
entender, é mais intelectual. E ninguém está interessado com sua vida
material, trabalho, família... (CLARICE, 07/2013, DOURADOS -
MS).

O que pudemos apreender é um sentido de não dualidade, com o intuito de demonstrar


a ausência de sentido para uma percepção que a colocaria numa posição de escolha entre uma
casa ou outra, pois, segundo ela, é um complemento.

Deusemar, 38 anos, enfermeiro. Frequentava o terreiro Reino de Ogum Beira Mar.


Hoje frequenta as duas casas
Deusemaré frequentador do terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Após um longo
tempo, o reencontramos anos depois, na Casa Movimento Espírita Francisco de Assis.
Passado algum tempo, voltou a frequentar o terreiro. Mas sua presença não era tão frequente
quanto no MEFA, ou seja, passou algumas sextas-feiras seguidas frequentando o terreiro.
Logo, é um adepto que compõe o trânsito, passando, de esporádico a contínuo, com
frequências nas duas casas religiosas.
Deusemar já percorreu por diversas modalidades religiosas, demonstrando afeição às
manifestações religiosas de natureza mediunica. Sua posição é de que tanto a Umbanda,
Candomblé e Espiritismo devem ocorrer de forma mais natural possível. As manifestações
dos personagens da Umbanda e Candomblé, ocorrem de forma performática, em que os
médiuns manifestam expressões que foram identificadas por alguns autores como uma crise ,
de modo que, tais fenômenos ocorrem de duas formas: as mais brandas e leves possíveis,
onde os médiuns não apresentam este fenômeno da incorporação, ou apresentam este período
em uma performance corporal, o que este personagem considera agressivo.
A comunicabilidade com os espíritos é o fundamento das atividades do MEFA. Num
dia de estudo, o dirigente espiritual da casa mencionou que a casa espírita Francisco de Assis
acolheu muitos médiuns de Umbanda, e que estes foram para o MEFA com padrões
específicos correspondentes à sua ritualística religiosa. Esta manifestação ocorria de forma
bastante brusca e agressiva, no sentido de que muitos médiuns se debatem, e dá impressão de
estarem tomados por um ataque de convulsão.
144

Estes costumes são característicos dos médiuns que vêm da Umbanda para trabalhar
nas atividades da casa. E devido a oportunidade de aquisão de conhecimentos que priorizam a
ciência do espírito, estes médiuns vêm paulatinamente modificando suas manifestações de
incorporação tornando-a mais leve, equilibrada. Por isso, existe uma valorização ao
conhecimento da doutrina espírita, pois, segundo os líderes da casa, há um entendimento que
parece consensual de que quanto maior o conhecimento o domínio da dita mediunidade, mais
estas manifestações performáticas tendem a desaparecer.
De fato, há que se reconhecer uma tendência a domesticação do ato de “receber um
espírito”. Isso se deve, á influencia Espíritas as quais os grupos estão envolvidos, tendo em
vista que, o fundamento doutrinário revela como se dá a base da incorporação, como um
fenômeno que pode, e deve ser controlado através do apoio da consciência do indivíduo que
empresta seus mecanismos corporais para a prática da possessão. Para ambos os grupos, das
casas quanto maior o controle do médium sobre a manifestação do Espírito mais prestigio ele
tem perante os outros. Existe aqui uma corrente civilizadora da comunicação com os mortos
(ELIAS, 1994).
Segundo suas posições diante das falas, houve um entendimento de que Deusemar não
se identifica com a ritualística da Umbanda. Ele nos narrou que antes de conhecer o terreiro
de Sra. Tereza, já frequentava o MEFA, inclusive trabalhava lá, como recepcionista,
compondo a diretoria que se encarrega de cuidar da parte material da casa e, por
consequência, da vida e das relações. Ele deixou de frequentar o MEFA, e passou a visitar a
casa da Sra. Tereza, por indicação de uma amiga, e segundo ele: “(...)me senti acolhido pela
casa, me senti cuidado” (DEUSEMAR, 06/2013, DOURADOS-MS).
Desde então, frequentou a casa por muitos anos. Até que novamente sentiu o peso da
ritualística e das imposições exigidas pela Umbanda e resolveu novamente se afastar por não
concordar com a necessidade de algumas regras e condicionamentos que são exigidos. Como
por exemplo, o fato de não poder frequentar outros lugares.
Após o afastamento do terreiro, passou a frequentar outros espaços religiosos, como
igreja cristãs Católica e Igreja Pentecostal do Evangelho Quadrangular, e outros centros
espíritas onde se sentia bem. Foi quando em uma conversa com um dos fundadores da Casa
Francisco de Assis (Luiz leal), o mesmo resolveu voltar ao MEFA, onde permanece até hoje:

Uma das primeiras identificações da presença da Umbanda na casa


acontece participando das atividades cotidianas, a presença de
caboclos e pretos velhos, e outras entidades, os médiuns dirigentes
145

estalavam os dedos, e aplicavam alguns métodos próprios da


umbanda. (Deusemar. Jun./2013)

Segundo o próprio: “Ali no MEFA a gente estuda, trabalha. E eu me sinto bem” [sic].
O ator acredita que a única forma das pessoas se curar dos males da alma e do corpo é o
evangelho (O Evangelho Segundo o Espiritismo), e a água fluidificada (fundamentações
elementares do Espiritismo). Por isso, recusa algumas práticas da Umbanda, por considerar
que são as pessoas que devem alcançar a cura e não os “espíritos”. Algo que comentou, é que
no MEFA são atendidas 150 pessoas por semana, de modo bastante eficiente, e sem a
necessidade de ritual, e contato direto com entidades espirituais.
Para ele, a questão da Umbanda é a necessidade de utensílios (objetos) que são
dispensáveis à ação dos espíritos, apesar de demonstrar um respeito grande pelos personagens
da Umbanda. Considera que o kardecismo e a umbanda podem existir separadamente, mas o
complemento de ambos faz toda a diferença numa atividade desta natureza. Ainda, afirma que
as pessoas que buscam o terreiro e permanecem frequentando o MEFA, compõem esta prática
por pura curiosidade.
De acordo com algumas denominações há o reconhecimento da casa como um pronto-
socorro espiritual, pela abertura que a casa oferece para receber elementos diferentes,
incluindo pessoas de outras orientações religiosas. A casa é reconhecida pela pluralidade,
tanto no que se refere à recepção de pessoas como de espíritos, inclusive os vinculados às
práticas umbandistas.
Ao final da conversa o interlocutor relatou que, uma das noites anteriores enquanto
estava dormindo teve a impressão de que havia três sombras ao lado de sua cama. Uma delas
estava segurando uma lança na mão apontando-a contra seu peito, que segundo ele era onde
estava localizado o “chakra14” cardíaco. Tendo esta sensação acabou acordando bastante
apreensivo e assustado, com aquele sentimento de que não estava nada bem.
Quando chegou à sexta-feira, dia das atividades do MEFA da qual participa, estava
com a esperança de que a dirigente espiritual da sala, ao colocar a mão em sua cabeça logo
saberia que ele não estava se sentindo bem. Ocorre que a Rosa não lhe disse absolutamente
nada, ao colocar a mão sobre sua cabeça (Jaz um entendimento entre os trabalhadores e
alguns adeptos da casa Francisco de Assis, que os dirigentes possuem sensibilidade e tem a

14
De acordo com a crença espírita, o Sistema de Chakras é interativo e é um captador e
repassador das energias existentes no universo para equilibrar a sinergia existente entre os
corpos espirituais, etérico e físico.
146

percepção no instante em que sobrepõe suas mãos na cabeça das pessoas, passando a sentir o
que elas estão sentindo naquele momento).
O fato de a dirigente espiritual das atividades não ter dito nada fez com que o mesmo
fosse buscar outro médium da casa para se consultar, pois ainda se sentia bastante mal
naquele período. Mas, o médium com o qual se identificava não estava presente naquele dia.
E então resolveu ir ao terreiro para se “consultar com os orixás”, segundo seus próprios
termos de identificação. Quando chegou ao terreiro, foi atendido por um médium da casa, que
na verdade é médium do MEFA, mas frequenta a casa nas sextas-feiras.
A consulta foi satisfatória, pois a entidade que lhe cedeu atendimento disse de
imediato que ele estava sendo “atingido” através do “chakra cardíaco”, e que este fato estava
muito ligado ao seu trabalho, onde estaria sendo vítima de “mau olhado”, inveja etc. Ao
seguir as orientações da entidade da umbanda, o interlocutor nos garantiu que as coisas
começaram a melhorar significativamente, o que o levou a retornar ao terreiro nas semanas
seguintes.
Ele conta: “A dirigente colocou a mão na minha cabeça e não me disse nada. Mas aí
eu fui lá no terreiro e eles me disseram o que estava acontecendo. Mesmo assim, eu não acho
ruim o fato dela não ter me dito, porque eu acho que não tem que falar”.[sic] Esta declaração
coloca em evidência a utilidade da Umbanda, mesmo que não se sinta confortável em
frequentar terreiro, existem momentos em que este espaço é solicitado para dar conta de
algumas questões que parecem de ordem do que é dito ou não dito.
Mesmo sendo, a comunicação direta com os espíritos, produto este oferecido pelo
terreiro, há resistências a esta conduta. Assim, buscar o terreiro é um mecanismo para a
solução de problemas relacionados a ordem social, do ponto de vista prático. Esta fala
expressa a grande flexibilidade contida nas ações, demonstrando assim possibilidades de
negociações e resoluções de questões que, segundo eles, o próprio espiritismo por mais
complexo que seja não apresenta soluções imediatas.
De acordo com os dados colhidos em campo, a segunda explicação sobre a busca dos
clientes do MEFA e do terreiro em percurso entre as casas, é justamente os produtos capitais
que são oferecidos tendo cada qual sua singularidade. Apesar das casas manterem vínculos
através de redes de relações mantidas ao longo do tempo, elas se configuram em contextos
rituais distintos, mantendo assim marcas diacríticas próprias. Os bens simbólicos (DANTAS,
1988) oferecidos pelo MEFA e o Terreiro não se chocam, e sim, se completam, por isso o
diálogo é profícuo.
147

O produto do MEFA são elementos que buscam um entendimento da “vida” como um


todo, dando às práticas desenvolvidas com os “espíritos” um sentido plausível apresentado
pela fundamentação teórica da doutrina Espírita, tendo como norte, as obras básicas de
Kardec. Apesar da presença da “incorporação” garantindo assim a comunicação intermediária
do mundo físico com o mundo invisível ou espiritual, o contato restringe a práticas objetivas
mantendo assim certo distanciamento com os espíritos, excluindo assim a relação estreita com
entidades presentes nas reuniões. O produto oferecido pelo MEFA é um entendimento
adquirido através do estudo (LEWGOY, 2000).
A supervalorização do grupo que participa das sessões do terreiro, é a solução
imediata que a Umbanda oferece às questões da vida vivida. Assim, é mais ágil as soluções
que são ofertadas aos problemas do cotidiano. Os resultados são percebidos com mais rapidez,
onde a intervenção do mundo invisível na vida do indivíduo é notada. O fato de estar diante
de um espírito, ou seja, com o elemento que promove intermediação e intervenção do astral
no mundo material, fornece uma valorização peculiar, seguida de respeito e credibilidade. De
todos os depoimentos colhidos todos buscam uma conversa com espírito e este produto é
muito forte na pratica Umbandista como um todo. Logo, o bem simbólico do terreiro é a
intermediação através do diálogo com os mortos (CAMARGO, 1961; CAVALCANTI, 1983;
ORTIZ, 1991).

4.3. A Representação do Transe Mediúnico


A noção de representação é instrumento analítico para concluir algumas questões
abordadas nesta pesquisa como demonstração do papel do transe mediúnico na construção da
relação entre o grupo social envolvido e a produção de crenças que sustentam o movimento
que estreita o vínculo entre as religiões Espírita e Umbandista. Para além das indagações que
problematizam esta perspectiva historiográfica, esta análise direciona para refletir uma
“outra” história constituída pela realidade social e sustentada pela experiência empírica.
A tendência relativa pressupõe representações tecidas por fatores subjetivos perante
determinada prática. O que se quer demonstrar é a habilidade que faz destas práticas um
potencial, capaz de mobilizar contextos em âmbito social, bem como sua dinâmica concreta
configuradas na trajetória das casas religiosas. O tempo é elemento que contribui com a
organização social deste campo específico, por alterar o quadro cotidiano, promovendo
modificações em ordens estruturais, que são visíveis na prática das experiências de transe,
sendo o intermédio mediúnico o principal agente.
148

Contudo, a medida que a convivência desta intermediação é acionada que


representação de um conjunto de crenças, as dinâmicas sociais se apresentam, sendo validade
a partir da função que é capaz de exercer, justificando a controvérsia em se tratando de
tendências a relevâncias míticas. Mesmo quando há distorções induzidas pelo potencial
simbólico, não se pode negligenciar os sentidos que impulsionam determinadas práticas a
partir das relações apresentadas nos capítulos anteriores. Tudo que pode ser construído dentro
de um contexto lógico, ainda que compartilhado em nichos sociais específicos, possui
capacidade relevante para o contexto dos fenômenos sociais de modo abrangente.

4.3.1. Tempo e Mediunidade


A prática da representação do transe pode ser analisada nos seguintes termos: base de
conflitos que resultam em rupturas e a construção posterior de um novo espaço que dá
visibilidade para uma das tendências dialógicas construídas através das trajetórias individuais,
dentro de um conjunto de crenças que necessitam de um embasamento para que se mantenha
dentro de uma proposta com base nas crenças compartilhadas. O principal elemento desta
dinâmica é a ausência.
O transe mediúnico é uma experiência flexível, mantido entre a ausência de aspectos
resistentes, interagindo com a presença de fatores que permitem a manutenção do lugar que se
almeja legitimar em termos de referência. A ausência estimula a resistência e a presença
legitima a referência, sendo o transe o componente que articula esta intermediação simbólica,
através de um processo contínuo que permeia a pureza individual e o processo de adequação
para o fornecimento de práticas compartilhadas que exercem função social no contexto
religioso. O compartilhamento coletivo do transe mediúnico é uma estratégia de legitimação
consolidando simultaneamente, duas modalidades religiosas.
A experiência articula a realidade, se não por meio do transe, não haveria situações de
contato, por isso, validamos a expressão significativa que a possibilidade de se comunicar
com agências de outra dimensão pode realizar a nível de manutenção, para que este canal de
intermediação seja fortalecido. Este fenômeno é presente em várias instancias religiosas de
alcance abrangente.
É o campo religioso que representa o transe, por apresentar um caráter ontológico a
partir da capacidade de interação, traduzido no campo religioso que estamos tratando como,
exercício mediúnico. A princípio, a Umbanda e o Espiritismo compõe representações
distintas sobre uma mesma experiência. Por isso, viabiliza condições de fazer com que duas
realidades religiosas distintas, coexistam dentro de uma mesma experiência compartilhada.
149

De acordo com os dados apresentados na história destas casas, o transe apresenta


aspectos de continuidade através de um procedimento temporal que se manifesta no
indivíduo, apresentando aspectos de descontrole, e performances corporais compulsivas para
se iniciar num processo de constante adaptação e refinamento até o total desaparecimento de
qualquer resquício de movimentos corporais bruscos, estando assim, apto a compartilhar a sua
experiência no coletivo.
Sob o olhar das narrativas, na iniciação da manifestação voluntaria do transe, há uma
contínua domesticação, reconhecida como desenvolvimento da mediunidade, ou seja, um
contexto temporal que articula o fenômeno do transe. Inicialmente, há uma espécie de crise,
seguida de um desajuste seja na saúde, ou até mesmo “perturbações espiritual”, para o início
do processo de cura, esta cura é o ajuste do refinamento, parte dos alicerces doutrinados pela
ciência do espírito, como a base da religião espírita.
A contraparte da visão do transe, é referente a interação espiritual na representação
dos membros do grupo que se identificam com a matriz religiosa da Umbanda. Tendo como
característica dos rituais, e no modo como se apresentam através de expressões performáticas
corporais que remete a personalidades reconhecidas a partir da idiossincrasia. O transe
mediúnico concebido como um canal de comunicação recebe a incorporação de indivíduos
que se apresentam de modo específico: os anciãos (pretos velhos), os caboclos (índios), as
crianças (erês), e os guardiões (exus). Cada personagem é identificado em conformidade no
modo como se apresenta.
A potência simbólica do transe ganha grandes proporções à medida que estas
manifestações se aliam a outros elementos pertencentes ao contexto ritual que marca o início
e o final das sessões mediúnicas, sendo esta, uma das características da prática exercida no
terreiro, conforme descrito nos capítulos anteriores. O arsenal ritualístico engloba, cânticos
identificados como pontos cantados, pontos riscados (o chamado RG energético de cada
espírito comunicante), utensílios rituais (velas, incenso), descarrego (um comporto de ervas
misturados numa garrafa de álcool), ingestão de bebidas alcoólicas e fumo. A importância do
transe neste contexto encerra a função do canal da comunicação estender-se ao uso dos
elementos rituais, compondo esta complexa rede de comunicação dita “espiritual”.
A percepção da representação histórica deste ponto em particular, está relacionado a
passagem do tempo, e o processo de desaparecimento que reforça uma presença a partir do
processo de apagamento de alguns elementos. No caso do terreiro, muitos artefatos rituais
foram perdendo força com o passar do tempo, como por exemplo, o uso de bebidas alcoólicas,
e pode-se dizer que, após a aproximação dos frequentadores do MEFA no terreiro, e a
150

participação dos médiuns do terreiro na casa MEFA, estes elementos desaparecem por
completo.
Para os Umbandistas entrevistados, o diálogo com a doutrina espírita é definido no
campo das continuidades. Stefânia Capone (1991), apresenta o continuum religioso que vai de
um ponto da tradição africana, até um elemento oponente marcado pelo espiritismo, descrito
como processo de embranquecimento das religiões africanas (ORTIZ, 1990). O terreiro Reino
de Ogum Beira Mar, se identifica como um terreiro de Umbanda Branca, por ter sofrido
alterações ao longo dos anos, com a retirada de alguns elementos, e aderindo a outros, que as
tornam mais suscetíveis aos preceitos doutrinários do espiritismo, abrindo mão de elementos
ritualísticos à medida que adere práticas litúrgicas características dos preceitos doutrinário do
espiritismo:

No início “caboclo beira mar” tomava vinho, na época que


trabalhávamos na cozinha. Depois ele passou a tomar cerveja,
inclusive a preta, e hoje em dia ele só bebe água. É que com o passar
do tempo, o espírito vai se doutrinando né, não é a gente que tem que
evoluir, eles também, é uma via de mão dupla (TEREZA, 2013).

O poder doutrinário que reforça a permanência é o aspecto transformador que reforça


o papel do transe para a regularização destas práticas representativas. Sendo o espiritismo um
fator de permanência, se mantem nas ausências ao longo do tempo. Em contrapartida, a
ausência viabiliza o espaço da mudança exercendo sua função social na prática religiosa. São
estas, as negociações que articulam o diálogo no campo religioso, através das concessões.
Indo além, a campos da vida cotidiana cuja interação espiritual exerce um fator
transformador, em que os adeptos fortalecem o imaginário que somente esta pode fazer, por
isso, os casos complexos, que desafiam a ciência, e apresentam difícil solução, são
contemplados por uma linha do transe representada pela presença da Umbanda. Neste caso,
acredita-se que as práticas espíritas não apresentam elementos que atendem ás necessidades
de determinados tipos de problemas, sendo esta uma das vertentes da intermediação
simbólica. Esta mediação é percebida no transe, sendo o maior desafio, sua manutenção,
demonstrando o sistema hibrido requerendo constante processo de permanecias e ausências
com a finalidade de dar visibilidade ao produto que se é ofertado.
Contudo, as ausências presentes e as presenças ausentes, são validadas numa mesma
proporção independente da raiz marcada pela identidade que não se apresenta de modo fixo.
151

Porém, embora o caráter dialógico proporcione pontos de conexão, há indícios de uma


referência fixa, intermediando um espaço dialógico numa dinâmica restritiva e que não
poderia se comparar a um contexto de rede, pois há uma flexibilidade restrita a duas
modalidades religiosas, tendo as continuidades uma tendência fatal há uma condição de
sobreposição que não incentiva uma negociação igualitária.
Mesmo o transe representando um fator expressivo desta dinâmica social, há um vetor
invisível de controle que evidencia disparidades entre práticas litúrgicas e práticas rituais. Em
suma, a categoria espiritualista é uma presença discursiva que sinaliza uma abertura, ao
mesmo tempo que expressa aspectos limitantes, se tratando de uma fronteira simbólica,
mantida no processo de regularização de religiões mediúnicas.
152

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos a hipótese embasando a função simbólica do transe mediúnico de mediar


a dinâmica histórica das experiências compartilhadas, através da prática da representação que
envolve o campo religioso mediúnico, na manifestação da trajetória de duas casas religiosas
na cidade de Dourados – MS. A releitura da história da aproximação entre Umbanda e
Espiritismo que atesta o papel dos fenômenos religiosos na mudança da realidade social.
O fenômeno do transe mediúnico apresenta um caráter onipresente, ocupando um
espaço simbólico de interação espiritual em termos mais amplos, em vários setores do
contexto social, irradiando um referencial neutro que, ganha visibilidade através de
representações, criando marcas diacríticas, passando posteriormente a uma tradução por meio
de códigos simbólicos que compõe sentido , a fim de corresponder as aspirações preteridas
pelos indivíduos que buscam a legitimação de suas práticas religiosas, compartilhando
imaginários que reforçam uma diretriz específica, e servem a dinâmica social como parte
fundamental do cotidiano.
A orientação do campo religioso é um dos fatores explorados aqui, devido o papel que
exercem na elaboração deste sentido, que ocasionam dinâmicas e reforça composições para
negociar elementos simbólicos que natureza litúrgica e ritual, fornecida pela umbanda e
espiritismo, justificando a importância de validar aspectos destas religiões para compreender a
fonte de um percurso construído entre um grupo social, que envolve a história da formação de
espaços religiosos.
A especificidade desta análise prioriza a construção histórica deste fenômeno, a partir
do diálogo entre Umbanda e Espiritismo, resultando em características complementares como
instrumento de mudança e movimento conforme a aproximação acontece evidente na
exemplificação das mediações que só poderiam ser manifestadas devido ao fenômeno
mediúnico.
O aspecto do trânsito religioso, em meio aos acontecimentos, demonstra o caráter da
passagem do tempo, proporcionado por eventos que tencionam e ramificam estruturas,
possibilitando a formação de outros espaços, sendo assim, o conflito é um elemento
facilitador do tempo e da percepção das dinâmicas do tempo, representado nas narrativas. Por
sua vez o trânsito religioso é uma exposição de uma atividade motivada pela oferta de bens
simbólicos que oferecem condições para a experiência da interação espiritual, entre os
153

indivíduos e os espíritos, firmando relações de intermediação que afeta o meio social e


participa da dinâmica que se movimenta no percurso das casas.
A percepção dos indivíduos estrutura meios de manutenção na composição de
elementos dialógicos, sem abrir mão do reconhecimento de um ponto de partida, sendo esta,
uma referência. Portanto, a dinâmica da representação contém aspectos fixos, com sinais de
permanência a partir der uma identidade.
O universo religioso, quando interage com os indivíduos, oferece concessões que
beneficiam as observações sistêmicas, proporcionando uma vertente que possibilidade a
investigação do universo simbólico, atestando os meios que viabilizam ações práticas e
transformadoras, em que de modo automático, passam a exercer função social, operando fatos
históricos e validando o papel que exerce em se tratando da investigação científica. O
fenômeno do transe é um objeto de risco, que vale a pena correr.
Contudo, há que se considerar as possibilidades que as percepções humanas podem
oferecer para colocar algumas reflexões ao campo científico das humanidades. Até que ponto
esta visão dual e divergente de discriminar categorias que atendam a determinados campos
específicos do conhecimento religioso também não é uma percepção. Em hipótese para
reflexão futura, é necessário questionar o quanto condicionamentos estruturantes da natureza
do pensamento não podem nos limitar em conjecturas e pragmatismos, que só correspondem a
uma limitação nas percepções da fluidez que o universo das religiosidades múltiplas produz
na realidade. A representação da mente insiste em interferir nas percepções da realidade, ao
ponto de nos fazer questionar sobre, se de fato há diálogos entre as religiões mediúnicas, e
quals as bases fluidas e onipresentes que as coloca em uma comunhão uma e indivisível.
Nos limites da percepção, muito mais do que ivestigar elementos dialógicos que
produzem significados ao fenômeno do transe, é questionar se estes elementos são suficientes,
ou senão entraves para vislumbrar a riqueza humana que a ligação com os deuses pode
produzir. Os elementos colhidos nesta pesquisa não fecham portas, mas, questiona se de fato
produzir entre caminhos que conectam modelos distintos, num diálogo, se objetiva ou se não
passa de uma invenção para instruir a percepção do movimento histórico. A invenção desta
pesquisa estaaberta para os riscos dos efeitos de uma fé raciocinada sobre um mundo pouco
explorado no campo científico.
154

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Fontes orais
Adolfo, Presidente da Casa Espírita Anjo Ismael. Entrevista realizada em Julho de
2013.

Aretino, Presidente do Terreiro de Umbanda Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista


realizada em abril de 2014.

Benita, Médium antiga da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Entrevista


realizada em agosto de 2014.

Clarice, médium da casa Movimento Espirita Francisco de Assis. Entrevista realizada


em julho de 2014.

Deusemar, médium da casa Movimento Espirita Francisco de Assis, frequentador do


Terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada em abril de 2014.

Edinalva, médium da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Frequentadora do


terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada em Abril de 2014.

Flavia, médium da casa Movimento Espirita Francisco de Assis. Frequentadora do


Terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada em Agosto de 2013.

Joraci, coordenadora das atividades rituais da Casa Movimento Espirita Francisco de


Assis. Entrevista realizada em agosto de 2014.

Luiz Leal, fundador da Casa Espírita Anjo Ismael, e posteriormente, a fundação da


Casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Entrevista realizada em abril de 2013.

Maria Amada, médium antiga da Casa Movimento Espírita Francisco de Assis.


Entrevista realizada em outubro de 2013.

Maria Arruda, frequentadora do Terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista


realizada em Maio de 2013.

Maria Evangelista, presidente da casa Movimento Espírita Francisco de Assis.


Entrevista realizada em setembro de 2013.

Nei, médium do terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada em maio de
2013.

Reginaldo, médium da casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Entrevista


realizada em abril de 2013.

Tereza, chefe espiritual do Terreiro Reino de Ogum Beira Mar. Entrevista realizada
em setembro de 2013.
155

Vicente, médium da casa Movimento Espírita Francisco de Assis. Entrevista realizada


em outubro de 2020.

Fontes documentais

ANJOS, José Carlos Gomes dos. No Território da linha cruzada: a cosmo política
afro-brasileira. Porto Alegre – RS: Editora UFRGS/Fundação Cultural Palmares, 2006.

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