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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA

“JÚLIO DE MESQUITA FILHO”


Faculdade de Ciências e Letras
Campus de Araraquara – SP
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais

DOUGLAS ALESSANDRO SOUZA SANTOS

OS DESIGREJADOS: UM CASO DE RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA


ENTRE OS EVANGÉLICOS BRASILEIROS NO CONTEXTO DA
MODERNIDADE RADICALIZADA

ARARAQUARA - SP
2018
DOUGLAS ALESSANDRO SOUZA SANTOS

OS DESIGREJADOS: UM CASO DE RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA ENTRE OS


EVANGÉLICOS BRASILEIROS NO CONTEXTO DA MODERNIDADE
RADICALIZADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.

Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento


Social

Orientadora: Prof. Dra. Carla Gandini Giani Martelli.

Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES).

ARARAQUARA - SP
2018
SANTOS, Douglas Alessandro Souza
Os desigrejados: um caso de reconfiguração religiosa entre os evangélicos
brasileiros no contexto da modernidade radicalizada / Douglas Alessandro
Souza Santos – 2018.
180 f.
Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual
Paulista “Júlio de Mesquita Filho”, Faculdade de Ciências e Letras (Campus
Araraquara).
Orientadora: Prof. Dra. Carla Gandini Giani Martelli.
1. Desigrejados. 2. Desinstitucionalização. 3. Evangélicos. 4.
Modernidade Radicalizada.
DOUGLAS ALESSANDRO SOUZA SANTOS

OS DESIGREJADOS: UM CASO DE RECONFIGURAÇÃO RELIGIOSA ENTRE OS


EVANGÉLICOS BRASILEIROS NO CONTEXTO DA MODERNIDADE
RADICALIZADA

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação


em Ciências Sociais da Faculdade de Ciências e Letras –
UNESP/Araraquara, como requisito para obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.

Linha de pesquisa: Cultura, Democracia e Pensamento


Social

Orientadora: Prof. Dra. Carla Gandini Giani Martelli.

Bolsa: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de


Nível Superior (CAPES).

Data de aprovação: 28/02/2018

MEMBROS DA BANCA EXAMINADORA:

___________________________________________________________________________
Presidente e Orientadora: Prof. Dra. Carla Gandini Giani Martelli.
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Araraquara/SP

___________________________________________________________________________
Membro Titular: Prof. Dr. João Carlos Soares Zuin.
Faculdade de Ciências e Letras – UNESP – Araraquara/SP

___________________________________________________________________________
Membro Titular: Prof. Dr. André Ricardo de Souza.
Centro de Educação e Ciências Humanas – UFSCar – São Carlos/SP

Local: Universidade Estadual Paulista


Faculdade de Ciências e Letras
UNESP – Campus de Araraquara
AGRADECIMENTOS

Primeiramente, agradeço a minha querida família, em especial a minha esposa Bárbara,


pela paciência e apoio prestados durante todo o tempo dessa etapa tão significativa para mim;
e aos meus pais e tias, que não mediram esforços, e em diversos sentidos, para me manter na
Universidade durante todo esse tempo. Também agradeço à CAPES, pela bolsa disponibilizada
na reta final da pesquisa. Por último, e não menos importante, ao corpo de professores da
FCLAr/UNESP, especialmente à professora Carla Gandini Giani Martelli, que com paciência
e excelência apontou um caminho a ser trilhado, cuja caminhada seria impossível sem a
brilhante luz de sua orientação.
RESUMO
Ao contrário do que previa a tese clássica da secularização, a religiosidade não combaliu. Na
realidade, o que temos observado na contemporaneidade poderia ser definido como um caso de
reconfiguração religiosa de características próprias, um processo de reenquadramento. Dentre
as mais diversas e significativas mudanças no cenário religioso brasileiro dos últimos anos
destaca-se a desinstitucionalização cristã, sobretudo evangélica. Os desigrejados, termo usado
para designar os que se encontram nesse processo, estão inseridos numa variável crescente. A
presente dissertação busca levantar as características de tal grupo, bem como estudar a relação
entre o seu crescimento vinculado aos aspectos próprios da modernidade radicalizada nele
reverberados. Para tanto, toma a comunidade Caminho da Graça, liderada por Caio Fábio
D’Araújo Filho, como principal caso de campo a ser observado.

Palavras-chave: desigrejados; desinstitucionalização; evangélicos; modernidade radicalizada.


ABSTRACT

Contrary to the classical thesis of secularization, the religious field did not lower. In fact, what
we have observed in contemporaneity could be defined as a case of religious reconfiguration of
its own characteristics, a process of reframing. Among the most diverse and significant changes
in the Brazilian religious scene of the last few years, it is worth mentioning the christian
deinstitutionalization, above all evangelical. The desigrejados, portuguese term used to refer to
those who are within this process, are inserted in an increasing variable. The present work seeks
to analyze the characteristics of such a group, as well as to study the relationship between their
growth linked to the aspects of radicalized modernity reverberated therein. To do so, it takes
the Caminho da Graça community, led by Caio Fábio D'Araújo Filho, as the main field case to
be observed.

Keywords: desigrejados; desinstitucionalization; evangelicals; radicalized modernity.


LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 – Evangélicos nos censos 1970-2010 ...................................................................... 75


Gráfico 2 – Evangélicos históricos nos censos 1980-2010 ...................................................... 76
Gráfico 3 – Percentual dos históricos entre os evangélicos nos censos 1980-2010 ................ 76
Gráfico 4 – Participação das denominações históricas no total de evangélicos ...................... 77
Gráfico 5 – Percentual dos pentecostais entre os evangélicos nos censos 1980-2010 ............ 92
Gráfico 6 – Participação das denominações pentecostais no total de evangélicos .................. 92
Gráfico 7 – Percentual dos não determinados entre os evangélicos nos censos 2000-2010 ... 93
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 – Denominações históricas e seus adeptos no censo 2010 .................................... 75


Tabela 2 – Denominações pentecostais e seus adeptos no censo 2010 ................................ 91
Tabela 3 – Estações do Caminho da Graça por região ........................................................... 133
Tabela 4 – Estações do Caminho da Graça por Unidade Federativa ...................................... 134
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Fachada da Fábrica de Esperança ........................................................................ 113


Figura 2 – Charge de Chico Caruso na 1ª página do O Globo de 28/11/1995 ..................... 118
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ABI – Associação Brasileira de Imprensa


ABU – Aliança Bíblica Universitária
AEVB – Associação Evangélica Brasileira
AME – Associação Missionária Evangélica
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
CBB – Convenção Batista Brasileira
CBN – Convenção Batista Nacional
CEMA – Centro Educacional Maria Auxiliadora
CEU – Centro Evangelístico Unido
CGADB – Convenção Geral das Assembleias de Deus
CONAMAD – Convenção Nacional de Ministros da Assembleia de Deus Madureira
EST – Escola Superior de Teologia
FHC – Fernando Henrique Cardoso
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
IECLB – Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil
IELB – Igreja Evangélica Luterana do Brasil
IPB – Igreja Presbiteriana do Brasil
IPCB – Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil
IPFB – Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil
IPIB – Igreja Presbiteriana Independente do Brasil
IPUB – Igreja Presbiteriana Unida do Brasil
IURD – Igreja Universal do Reino de Deus
MPB – Música Popular Brasileira
MPC – Mocidade Para Cristo
ONG – Organização Não-Governamental
PIB – Primeira Igreja Batista
PT – Partido dos Trabalhadores
SBT – Sistema Brasileiro de Televisão
UIECB – União das Igrejas Evangélicas e Congregacionais do Brasil
UIECCB – União das Igrejas Evangélicas Congregacionais e Cristãs do Brasil
UIEI – União das Igrejas Evangélicas Indenominacionais
VINDE – Visão Nacional de Evangelização
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 13
Notas Metodológicas ........................................................................................................ 19

1 – RELIGÃO E MODERNIDADE ................................................................................ 24


1.1 – O advento da modernidade .................................................................................... 25
1.1.1 – A modernidade e suas descontinuidades ............................................................ 29
1.1.2 – Nosso contexto: a modernidade radicalizada ..................................................... 32
1.2 – Saberes e crenças acerca da religião na modernidade e suas descontinuidades .. 35
1.3 – Danièle Hervieu-Léger e o conceito de modernidade religiosa ........................... 38
1.4 – Ulrich Beck: a individualização e o “Deus de cada um” ...................................... 41
1.5 – O desigrejado: figura do ser religioso na modernidade radicalizada ................. 46

2 – OS EVANGÉLICOS BRASILEIROS ...................................................................... 51


2.1 – Definindo termos: protestantes ou evangélicos ..................................................... 53
2.2 – O recorte histórico-denominacional ...................................................................... 58
2.3 – O fracasso no período colonial ............................................................................... 59
2.3.1 – Villegagnon e os calvinistas na baía de Guanabara ................................................. 60
2.3.2 – Os protestantes e a tentativa da “França Equinocial” ............................................. 61
2.3.3 – Maurício de Nassau e os reformados no Nordeste brasileiro .................................. 61
2.4 – O protestantismo de imigração ............................................................................... 62
2.4.1 – O luteranismo ......................................................................................................... 63
2.5 – O protestantismo de missão .................................................................................... 65
2.5.1 – Igreja Congregacional ............................................................................................. 67
2.5.2 – Igrejas Presbiterianas .............................................................................................. 68
2.5.3 – Igrejas Metodistas ................................................................................................... 70
2.5.4 – Igrejas Batistas ........................................................................................................ 71
2.5.5 – Igrejas Adventistas ................................................................................................. 73
2.5.6 – Outras evangélicas de missão ................................................................................. 74
2.5.7 – Considerações sobre o protestantismo de missão ................................................... 74
2.6 – O pentecostalismo ..................................................................................................... 77
2.6.1 – Congregação Cristã no Brasil ................................................................................... 80
2.6.2 – Assembleias de Deus ................................................................................................ 81
2.6.3 – Igreja do Evangelho Quadrangular ........................................................................... 83
2.6.4 – Igreja O Brasil Para Cristo ........................................................................................ 84
2.6.5 – Igreja Deus é Amor .................................................................................................. 85
2.6.6 – Igreja Casa da Benção .............................................................................................. 86
2.6.7 – Igreja Cristã Maranata .............................................................................................. 86
2.6.8 – Igreja de Nova Vida ................................................................................................. 87
2.6.9 – Igreja Universal do Reino de Deus ........................................................................... 88
2.6.10 – Demais categorias pentecostais .............................................................................. 89
2.6.11 – Considerações sobre o pentecostalismo ................................................................. 91
2.7 – Os evangélicos não determinados ............................................................................ 93
2.7.1 – O problema metodológico do censo ......................................................................... 94
2.7.2 – Entre as possibilidades, os desigrejados ................................................................... 96

3 – O “CAMINHO DA GRAÇA” ................................................................................... 102


3.1 – Caio Fábio d’Araújo Filho, seu fundador e mentor .............................................. 105
3.1.1 – Da “devassidão” à conversão, da conversão à ordenação como pastor ................... 106
3.1.2 – A Visão Nacional de Evangelização (VINDE) e a projeção nacional ..................... 110
3.1.3 – A Associação Evangélica Brasileira (AEVB) ........................................................ 113
3.1.4 – Os escândalos e o desligamento da Igreja Presbiteriana do Brasil ........................... 116
3.1.4.1 – O “Dossiê Cayman” .................................................................................. 118
3.1.4.2 – O divórcio ................................................................................................. 119
3.1.4.3 – A exoneração da IPB: fim de uma era institucional .................................. 120
3.2 – O nascimento do “Caminho da Graça” ................................................................... 121
3.2.1 – Ser igreja fora da Igreja ........................................................................................... 124
3.2.2 – As estações e sua presença no país ........................................................................... 133
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 136
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 139

ANEXOS:
ENTREVISTA 1 ................................................................................................................ 156
ENTREVISTA 2 ................................................................................................................ 168
13

INTRODUÇÃO

O tema principal da presente pesquisa fundamenta-se na discussão acerca das mudanças


observadas no cenário religioso brasileiro no contexto denominado modernidade, em sua fase
e forma conhecida como modernidade radicalizada – também chamada de modernidade
reflexiva, modernidade líquida, hipermodernidade, segunda modernidade etc. Num recorte
mais específico, sobre a desinstitucionalização de evangélicos no Brasil como caso de
reconfiguração religiosa nesse período.

Inegavelmente, ao contrário do que previa alguns defensores da tese clássica da


secularização, a religiosidade não combaliu. A verdade é que, fundamentados na clássica tese
da secularização, muitos cientistas sociais acreditavam que com a modernidade e o avanço da
ciência e da técnica, a dimensão religiosa haveria de ser totalmente suprimida e superada, não
sendo exagero dizer extirpada e renegada. O projeto da modernidade não só previa o fim do
religioso como postulava que, uma vez moderno, o homem racional fundamentaria suas ações
de modo a descaracterizar todo resquício de experiência religiosa possível. Em outras palavras,
o destino humano estaria traçado a “(…) viver numa época indiferente a Deus e aos profetas”
(WEBER, 2010, pg. 48). Esse tipo de postura parecia perpassar as mais variadas correntes de
pensamento de toda uma geração. Em A Gaia Ciência, o filósofo alemão Friedrich Nietzsche
parecia descrever esse espírito apontando para aquilo que chamara de “morte de Deus”

O maior dos acontecimentos recentes – que “Deus está morto”, que a crença
no Deus cristão caiu em descrédito – já começa a lançar suas primeiras
sombras sobre a Europa (...) De fato, nós filósofos e “espíritos livres” sentimo-
nos, à notícia de que “o velho Deus está morto”, como que iluminados pelos
raios de uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, assombro,
pressentimento, expectativa - eis que enfim o horizonte nos parece livre outra
vez (...) talvez nunca dantes houve tanto “mar aberto” (NIETZSCHE, 2006,
p. 343).

Indiscutivelmente, a crença na aniquilação da experiência religiosa era real para muitos.


As instituições e as diversas áreas que conformavam as sociedades ditas modernas aos poucos
foram se autonomizando do religioso, caminhando à laicidade e secularização. Assim, a relação
da modernidade com a religião era caracterizada cada vez mais pelo conflito entre a percepção
religiosa de mundo, carregada de símbolos e liturgias sacras, com as múltiplas esferas sociais,
regidas por normas e princípios seculares, também chamadas de esferas profanas (WEBER,
1979). Entretanto, mesmo em meio a todo esse processo e contrariando diversas expectativas,
a religião não se extinguiu. Observava-se, na realidade, não o seu desaparecimento, mas a
14

“progressiva e relativa perda de pertinência do religioso” (BOBINEAU e TANK-STORPER,


2011, p. 51). De fato, o que se vê e se percebe hodiernamente é que, apesar de os
comportamentos e atitudes, e mesmo as instituições sociais serem pinceladas progressivamente
por normas seculares, a permanência do religioso é incontestável. Retorno do sagrado, como
escreveram alguns?1 Certo que não, pois como ponderara Renato Ortiz, “em termos lógicos não
há pois necessidade de imaginarmos o ‘retorno’ de algo que nunca expirou” (ORTIZ, 2001, p.
62). Equilíbrio, talvez. É exatamente sobre essa questão que Hervieu-Léger (2008) discorre ao
apontar que as sociedades modernas são marcadas por um paradoxo no campo religioso. A
modernidade, ao mesmo tempo em que seculariza a religião, tirando seu prestígio e o status de
controladora das coisas mundanas – perfil dos séculos anteriores ao seu “aparecimento” –,
criara determinadas vias de acesso para que essa mesma religião recriasse novas formas de
religiosidade. A religião, nesse sentido, não morreu na modernidade, mas em novas formas de
organização respirara ares de reconfiguração, dada sua capacidade de se “transformar e se
deslocar” (SANCHIS, 2001) – argumento que servirá de fio condutor para o primeiro capítulo
desta dissertação, apresentado aqui na sua dissertação final.

Sabe-se então, de acordo com Antônio Flávio Pierucci (2004), que na mesma proporção
em que esse processo de reconfiguração caminha, aspectos da modernidade radicalizada, como
a questão da individualização, passam a marcar, nesse jogo de tensão, o modus operandi
religioso. Então deparamo-nos com nosso objeto específico: os desigrejados. De todas as
mudanças observadas no cenário religioso brasileiro nos últimos anos, chama à atenção, entre
as confissões cristãs evangélicas, o crescimento desse grupo específico. O termo, em si, é
autoexplicativo. Não diz respeito a apóstatas ou a “desviados” (nomenclatura interna usada para
com quem se desvia da denominação e confissão cristã evangélica2). Por desigrejado, entende-
se o indivíduo que decide viver a sua fé cristã evangélica fora do ambiente eclesiástico. Em
outras palavras, o desigrejado é aquele que deixa a igreja evangélica institucional sem deixar
de exercer a fé religiosa nela praticada, alguém que, não filiado às alternativas de denominação
oferecidas, sejam elas tradicionais ou não, se identifica como cristão e participa assiduamente
dos rituais ligados à identidade evangélica, muitas das vezes em pequenas reuniões em lares,
espaços públicos, auditórios, hotéis etc. Na definição de Leonildo Silveira Campos, grupos que

1
Como, por exemplo, Peter Berger em The desecularization of the world: resurgent religion and world politics
(1999).
2
Apesar da comum similaridade entre os termos “apóstata” e “desviado”, vale ressaltar uma diferença: o apóstata
se afasta da antiga confissão e doutrinação de forma definitiva e, na maioria das vezes, destaca-se por combatê-la.
O “desviado”, apesar de afastado da prática religiosa, continua a se identificar como pertencente a confissão,
mesmo que a não pratique.
15

“(...) nestes tempos de individualismo e de formação de um ‘rebanho virtual’ levaria o


respondente afirmar-se apenas ‘evangélico’, porém sem determinar uma igreja específica”
(CAMPOS, L. S., 2012).

Quando, em 2012, o IBGE divulgou os primeiros números do Censo 2010 sobre as


religiões no Brasil, chamava à atenção o fato da categoria denominada “sem religião” ter sido
a de maior índice de crescimento em números proporcionais, além da confirmação da
diminuição do número de católicos e do aumento do número de evangélicos – acarretado
sobretudo, de acordo com alguns especialistas, pelo aumento de pentecostais. Nesse último
apanhado, foi notável o crescimento da subcategoria “evangélica não determinada” entre todas
as pertenças declaradas, passando de 1.627.869 para 9.218.129 pessoas. Dentro da gama de
possibilidades que tal esfera poderia representar – entre as quais os evangélicos nominais
[conceito similar ao de catolicismo nominal (CAMARGO, 1973)], os que transitam por
diversas denominações, e, bem provavelmente, aqueles que não quiseram ou não souberam
informar seu vínculo denominacional ao recenseador – outra indagação passaria a habitar a
mente dos pesquisadores de religião no país: estariam entre eles os desigrejados? Ao discorrer
sobre o futuro da igreja evangélica no Brasil acerca de dados ainda anteriores, o sociólogo Paul
Freston parecia acreditar que sim

Saiu nos jornais o resultado de uma pesquisa do IBGE com dados interessantes
sobre a realidade evangélica no Brasil. O dado que mais nos chamou a atenção
é o que diz respeito à categoria evangélica que mais cresce: o “evangélico sem
igreja”. A maior parte desse grupo não é de evangélicos “nominais” (os que
se autodenominam evangélicos, mas não frequentam uma igreja); antes, é
composta pelos que se consideram evangélicos, mas não se identificam com
denominação alguma. Longe de ser “nominal” ou “não-praticante”, o
evangélico sem igreja talvez frequente várias igrejas sem se definir por uma;
ou pode ser que assista a uma igreja durante alguns meses, antes de passar
facilmente a outra. Com isso, não chega a se sentir assembleiano ou batista ou
presbiteriano ou quadrangular. Existe, então, um setor crescente de pessoas
que se identificam como evangélicas, mas não como pertencentes a uma
determinada denominação (FRESTON, 2011).

Em um país de pluralidade cristã (SOUZA, 2012), de hegemonia católica romana


histórica, tais números não só criavam ponto de interrogação na mente de teóricos do assunto
como assustavam os púlpitos evangélicos institucionais, corroborando análises precedentes. A
destradicionalização, pluralização e concorrência religiosa (MARIANO, 2013), acompanhadas
da desinstitucionalização, inseridas numa gama de aspectos que eram observados desde sua
gênese, nos meados dos anos 1980, avançavam, tomando forma nunca vista anteriormente.
16

Certamente, a configuração do cristianismo no Brasil mostrava-se palco de significativas


mudanças.

Com efeito, inúmeros grupos de evangélicos desinstitucionalizados e


desinstitucionalizantes iam surgindo pelo país, formando um universo cada vez mais difícil de
apreender e estimar. Juntamente com eles, determinadas questões ecoavam em minha reflexão:
o que tem desencadeado esse processo? Quais as explicações da desinstitucionalização de
evangélicos brasileiros? Onde, nas categorias censitárias, estariam essas experiências
religiosas? Entre os “evangélicos não determinados”? O que de fato explica o crescimento dos
“desigrejados” no país e qual o seu perfil? Assim formavam-se os problemas desta pesquisa,
bem como a pertinência da escolha do objeto, que como justificativa, resumia-se em trazer luz
a esse apanhado nebuloso até então pouco discutido na literatura sociológica da religião no
Brasil, a partir de revisão bibliográfica e material empírico, criando dessa forma subsídios
científicos para entender as mutações que se dão no perfil da religiosidade brasileira, ajudando,
assim, a traçar a sua feição e organização.

A tarefa de obtenção das respostas, evidentemente, não era nada fácil. Também pudera.
Se as igrejas evangélicas tradicionais já apresentavam em si uma série de dificuldades quanto
à sua observância dentro das pesquisas oficiais, muito por conta da multiplicidade de
denominações que dia a dia vão surgindo país afora, como equacionar dados referentes a grupos
informais e não institucionalizados? Assim surgiam também os incontáveis desafios.
Naturalmente, nada além do esperado para uma pesquisa científica, demandadora de “(...)
aplicação permanente, disciplina e organização, mais do que brilhantismo intelectual”
(GONDIM & LIMA, 2002, p. 24).

Diante de todo o terreno espinhoso do campo, dentro do exercício das regras do método
científico, partir para um recorte específico de pesquisa foi a melhor, senão a única, solução
encontrada. Tomava-se assim a comunidade “Caminho da Graça”, liderada por Caio Fábio
D’Araújo Filho. As indagações não parariam por aí e, agora, surgiriam de fora para dentro.
Nesse ponto específico residiria o fundamento de quase toda totalidade de questões a mim
levantadas durante todo período de desenvolvimento do projeto de pesquisa: o porquê e como
teria chegado ao conhecimento do grupo. A resposta, então, durante todo esse tempo seria
basicamente a mesma e gerava-me um outro problema: elenquei o “Caminho da Graça” porque
ao estudar os evangélicos no Brasil não o faço como um pesquisador externo e totalmente alheio
ao seu objeto, mas como alguém que, de dentro desse apanhado, conhece seu perfil e
17

contradições, insistindo no seu estudo seguindo as regras científicas-sociológicas que devem


ser tomadas por todos aqueles que nesse ramo trabalham. De forma inevitável, tal exposição
tornar-me-ia suspeito no âmbito científico. Assim, partia-se para um outro exercício de
esclarecimento necessário e constante.

As justificativas eram fundamentalmente as mesmas. Em trecho sobre estudos da


religião no Brasil, Pedro Ribeiro de Oliveira conseguia traduzir em texto a ideia central de cada
uma delas, ao escrever que

(...) para estudar religião é indispensável entender sua linguagem que, por
metáforas e analogias, fala de experiências, emoções e sentimentos profundos.
Quem pertence a esse campo religioso tem familiaridade com a sua linguagem
nativa, enquanto para quem o estuda desde fora, ele é como uma língua
estrangeira a ser sempre traduzida para o código científico. Aqui a pergunta:
que posição permite lidar da melhor forma com as duas linguagens? A
observação externa facilmente descamba para um reducionismo
empobrecedor: aquele que transita habitualmente pelos dois mundos
linguísticos, com frequência, acaba introduzindo categorias religiosas no
discurso científico, pois lhe repugna a redução científica da experiência
religiosa. Não é por isso que se deva interditar o estudo científico da religião
a seus próprios adeptos, mas há que ser extremamente vigilante para evitar as
contaminações. Minha experiência diz que estas inevitavelmente ocorrem,
mas penso ser preferível correr o risco de contaminação num conhecimento
de boa qualidade científica, do que, de tanto precaver-se contra as
interferências da religião, não ir além de trabalhos acadêmicos sem qualquer
importância prática (OLIVEIRA, 1998, p. 15).

Mesmo a escolha do objeto de pesquisa, frequentemente teria de dizer, como apontara


Charles Wright Mills em A imaginação sociológica (1972), leva consigo parte dos valores do
pesquisador. A defesa, então, seguia no sentido de que, ao expor sua religiosidade, o sociólogo
da religião assume uma postura de honestidade para com aqueles a quem busca traduzir
identificavelmente seu objeto de pesquisa (ECO, 2003, p. 28), já que, uma vez conscientizado
de suas preferências, o pesquisador tende a estar ainda mais atento às explicitações de todos os
passos tomados no trabalho, e com isso, busca adotar todas as premissas objetivistas do estudo
científico. Enxergar-se-ia assim precavido a evitar qualquer tipo de parcialidade. Em outras
palavras, como escreve Breno Martins Campos, defendia que “(...) ainda há espaço para a
possibilidade de se fazer ciência social da religião de dentro do campo religioso e segundo as
regras do método científico-sociológico” (CAMPOS, 2007, p. 124). Em suma, a questão era
deixar-se guiar “(...) com responsabilidade conforme seu dever de ofício, agindo
profissionalmente movido por interesses de fato científicos, em vez de religiosos” (SOUZA,
18

2015, p. 313). Sobre essa questão, como discorre André Ricardo de Souza, tratava-se, antes, de
exercer um direito, já que

(...) o sociólogo da religião que é possuidor de alguma fé religiosa não tem


obrigação ou dever, seja profissional ou moral, de assumir publicamente tal
condição, mas, sim, o direito de fazê-lo, evidentemente, se quiser, desde que
cumpra seus deveres de cientista profissional, comprometido com a realidade
objetiva que estuda. Não há, portanto, o imperativo de “assumir bem
analisadamente a própria pertença religiosa” (Pierucci, 1997a: 255), mas, sim,
a liberdade para fazer isso, tendo como necessária contrapartida a observância
de parâmetros científicos (SOUZA, 2015, p. 312).

Por certo, a justificativa final era que a visão da esfera evangélica de dentro para fora
foi determinante. Conhecendo a história dos evangélicos brasileiros não foi difícil perceber
algumas particularidades pertinentes que definiram a escolha do recorte especificado, o que
talvez não fosse possível num olhar de fora para dentro. Em primeiro lugar, a figura do fundador
e representante maior do “Caminho da Graça”, Caio Fábio. Há quem considere que, em meados
dos anos 1990, o então presidente da AEVB – Associação Evangélica Brasileira – fosse a voz
mais expressiva da igreja evangélica do país. Ex-pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil – uma
denominação histórica e tradicional –, sua figura ganhou destaque após envolvimento em
alguns escândalos públicos e privados3. Além dele, o alto destaque da comunidade entre os
“desigrejados”, como sua forte presença na internet4 e um número elevado de suas “estações”
– como são chamados os grupos regulares do movimento – distribuídas por todas as regiões do
país, aguçaram ainda mais o anseio por investigação científica.

Na indicação de seu estudo, aos poucos algumas hipóteses iam se fazendo no artesanato
sociológico. Silhuetas de respostas surgiam quando considerado que, dentro dessa lógica de
reconfiguração, estariam reverberadas diversas características da modernidade radicalizada,
especificamente naquilo que alguns estudiosos têm chamado de modernidade religiosa. Por
consequência, definiu-se o objetivo basilar da pesquisa, a saber, traçar as características de um
grupo de evangélicos não institucionalizados no Brasil, analisando e apontando para a relação
entre o seu crescimento e as características da modernidade radicalizada nele refletidas, a partir
de uma hipótese bem solidificada, a de que o aumento do número desses, aqui chamados de

3
Como veremos mais detalhadamente na seção final, Caio Fábio fora tido com descrédito pela comunidade
evangélica no final da década de 1990 por causa de seu envolvimento com o Dossiê Cayman e, mais fortemente,
por um caso de adultério e novo casamento.
4
Em entrevista concedida aos repórteres da revista Cristianismo Hoje, Caio declarara – exageradamente, como é
comum dos discursos dos próprios agentes religiosos –, que mais de três milhões de pessoas, desigrejadas em sua
maioria, alimentam-se de tudo o que é produzido em seu ministério, defendido como alternativa de comunhão
cristã não institucional.
19

“desigrejados”, está ligado à reverberação de diversas características próprias dessa fase e


forma específicas do moderno, como a destradicionalização, desinstitucionalização e a
individualização, num processo de reconfiguração religiosa.

Assim, portanto, estava definido o arquétipo da dissertação: partindo do objetivo,


hipótese, justificativa e metodologia aqui descritos, uma divisão em três capítulos; o primeiro
sobre as implicações dos processos da modernidade radicalizada na religião, com atenção
especial às discussões de Danièle Hervieu-Léger e Ulrich Beck; o segundo sobre os evangélicos
brasileiros em um panorama geral, especificamente sobre o aumento da categoria censitária dos
evangélicos não determinados – defendida aqui como categoria possível a abarcar os
desigrejados – frente à diminuição numérica das igrejas institucionais no total de evangélicos
brasileiros; e o terceiro, sobre o objeto recortado, a comunidade “Caminho da Graça” liderada
por Caio Fábio, trabalhada bibliográfica e experimentalmente.

NOTAS METODOLÓGICAS

Este é mais um dos incontáveis trabalhos sobre religiosidade brasileira realizados sob a
ótica da sociologia. Embora seja indiscutível a afirmação de que as ciências modernas – entre
as quais as ciências sociais – nascem e se perpetuam sobre um forte discurso antirreligioso,
motivado principalmente pela proposta de desenvolvimento de um conhecimento que dê
respostas satisfatórias aos seus problemas de forma totalmente isenta de qualquer inclinação à
crença religiosa de qualquer espécie, também parece inegável que, na religião, elas encontram
um de seus mais antigos e dissecados objetos. A razão é simples: a busca pela reafirmação
científica da sociologia, consequentemente seu desenvolvimento técnico, estariam estritamente
ligados ao desaparecimento da religião. Uma simples análise nos escritos dos cientistas sociais
clássicos, desde a solidificação da área no século XIX, nos permite confirmar essa imagem.
Émile Durkheim, por exemplo, dedica uma obra toda à temática5. Max Weber, por sua vez,
concentraria parte de seus escritos às religiões ditas mundiais, bem como a sua relação com as
mudanças e transformações sociais de uma época rumo ao “desencantamento” 6. Já em Marx,
embora não seja tema principal, a religião por vezes seria pincelada em sua relação com o social,
vista como instrumento de classe, objeto de superação inexorável. Entretanto, a reprodução do

5
Lançado em 1912, “As formas elementares da vida religiosa” (2003) toma como objetivo a elaboração de uma
teoria geral da religião, tendo como base a análise das instituições religiosas mais primitivas.
6
No clássico “A ética protestante e o espírito do capitalismo” (2004), Weber discorre sobre a relação existente
entre a ascese protestante, principalmente puritana, e a conduta econômica capitalista. Em 2016, a editora Vozes
lançou a 1ª edição em português de “Ética econômica das religiões mundiais”, outra obra do autor alemão
envolvendo religião.
20

ethos cientificista moderno não veio acompanhado da extinção do religioso, antes, ignorar que
a religião, mesmo na contemporaneidade, continua a exercer influência sobre ideias,
instituições, esferas e formas sociais parece impossível. A verdade é que, como escreveu Júlio
de Santa Ana,

A religião é um aspecto importante da realidade humana e parece ser


indissociável do processo social, pois permite o desenvolvimento de
convicções e valores, contribuindo de maneira decisiva para a formação de
diversos tipos de comunidades (SANTA ANA, 1998, p. 52).

O tema por muito tempo continuaria a ser debatido nos corredores da ciência. No Brasil,
já nos primeiros passos das ciências sociais por suas universidades, o reconhecimento da
religião como objeto considerável de análise sociológica desembarcara junto com os
pesquisadores franceses que aqui buscavam solidificar a recém-criada área. Roger Bastide, por
exemplo, que além de dedicar vários de seus escritos às articulações entre os termos
raça/religião brasileiras, sendo ele mesmo protestante, já se destacava como sociólogo a
ponderar sobre a matéria desde a França7. O resultado posterior foi nítido. A religião não só
seria também tomada posteriormente como objeto por aqui, como prevaleceria no país,
conforme aponta Santa Ana (1998), a influência francesa no seu fazer sociológico.

Décadas após décadas, trabalhos seguidos de trabalhos, eis o nosso contexto. Sob a
tutela de tal influência, o caminho metodológico a ser percorrido por esta dissertação entraria
pelo viés da teoria de uma pesquisadora francesa específica: Danièle Hervieu-Léger. Dentro
disso, para um maior entendimento do significado dessa escolha, penso ser necessário resgatar
uma ponderação feita por Santa Ana relacionada ao caráter múltiplo das sciences de la religion
francesas

O enfoque interdisciplinar da escola francesa não é totalmente claro: há alguns


investigadores que seguem, predominantemente, a linha sociológica (a
orientação foi indicada por Durkheim), ao passo que outros vão por caminhos
cuja maior influência provém da antropologia (Roger Bastide é um exemplo
clássico nesse sentido) e dão maior importância a aspectos psico-sociais
(Danièle Hervieu-Leger pode ser mencionada neste caso), ou ainda, levam a
cabo seu trabalho demonstrando um respeitoso cuidado ao considerar
definições teológicas que emanam de centros de autoridade religiosa, mas que
são fortemente questionadas por algumas instituições científicas (Ibid, p. 52).

7
“Eléments de sociologie religieuse” (1935) e “Les problèmes de la vie mystique” (1931) são alguns exemplos de
textos de Bastide circuncidados pela temática “religião”. Em 1960 é publicado “Les réligions africaines au Brésil”,
a tratar do tema no contexto brasileiro.
21

A teoria hervieu-légeriana foi tomada, portanto, por um caráter distintivo do fazer


sociológico da religião: o seu desenho da relação religião e segunda modernidade que delimita
novos contornos ao seu estudo, distintos das formulações de especialistas da área apadrinhados
pela sociologia clássica francesa. A questão fundamental apontada pela autora era que,
diferentemente da metodologia essencialmente verificativa e experimentativa proposta até
então para a validação da secularização e do desencantamento racional da sociedade moderna
– mensurada pelo declínio do catolicismo na França, de acordo com os teóricos quantitativistas
– a modernidade acarretou um panorama religioso complexo de “decomposição e recomposição
de crenças” (HERVIEU-LÉGER, 2015), cuja compreensão só seria possível quando levada em
consideração a experiência subjetiva dos indivíduos.

Fica claro, portanto, que epistemologicamente a dissertação se orientou pela corrente


fenomenológica, que oposta ao método positivista, fundamenta-se numa relação de
proximidade entre pesquisador e pesquisados. Sendo assim, também parece explícito que todas
as questões levantadas pela problemática desta pesquisa foram e só puderam ser traduzidas por
um exaustivo exercício teórico-bibliográfico e, empiricamente, pela abordagem qualitativa.
Correto, não fosse a preocupação em traçar um panorama histórico e demográfico dos
evangélicos brasileiros no segundo capítulo, uma vez que tratar de sua desinstitucionalização é
ponto central. Portanto, o caminho percorrido aqui foi dobre: quantitativo na análise de dados
estatístico sobre os evangélicos no país, centrado principalmente nos censos, e qualitativo
quando da abordagem do grupo elencado, baseado em depoimentos orais via entrevistas
temáticas semiestruturadas, reafirmando assim a importância da exposição dos aspectos
psicossociais como ferramentas de compreensão, possíveis validadores das hipóteses
levantadas. Além do mais, como a história do recorte está diretamente ligada à trajetória de seu
fundador e líder, utilizou-se também, a partir do uso de extenso material discursivo, o estudo
de trajetória de vida (GUÉRIOS, 2011), crendo ser possível, através dele, entender ainda mais
o universo social e histórico de nossa delimitação. De forma mais objetiva, portanto, os
procedimentos adotados nesta dissertação foram: 1) uma exaustiva pesquisa bibliográfica; 2) a
sistematização e análise de materiais e práticas discursivas; e 3) a aplicação de entrevistas
semiestruturadas com atores-chave do grupo recortado.

Sobre o primeiro ponto, explicita-se que foram feitos usos de diversas referências
teórico-bibliográficas, por meio de consultas à literatura científica específica sobre o tema, ora
em livros de bibliotecas físicas e virtuais – principalmente nas bibliotecas da própria UNESP-
FCLAr e na da FFLCH, na USP –, ora com o uso de diversos artigos científicos disponibilizados
22

na internet. Ressalta-se além disso que, especialmente por conta da concessão da bolsa de pós-
graduação no segundo ano da pesquisa, diversos livros sobre a temática foram também
adquiridos, o que contribuiu muito para o enriquecimento do texto, uma vez que boa parte dos
títulos ainda não traduzidos que aqui são citados foram comprados com recursos desse auxílio.
Isso nos parece ser digno de destaque na reafirmação de sua importância, dadas a situação e
previsões nada otimistas relacionadas à ciência brasileira hoje. Prosseguindo, portanto, no que
concerne ao uso e análise dos materiais e práticas discursivas do grupo recortado, nossa ênfase
repousou na sistematização do vasto conteúdo audiovisual presente na internet – principalmente
no site youtube.com – do Caminho da Graça e de seu fundador, Caio Fábio. Publicados pela
sua própria equipe, tais registros somaram-se ao pouco que se tem escrito sobre o movimento,
bem como às reportagens midiáticas veiculadas à época para nós pertinente, formando um rico
e imprescindível todo discursivo, principalmente sobre Caio, sem o qual nossa pesquisa não
seria o que se tornou.

Por fim, com relação às entrevistas semiestruturadas, optamos pela sua realização com
dois atores considerados chaves para o entendimento não só do funcionamento daquele que
delimitamos como recorte específico de pesquisa mas também de um predominante perfil entre
aqueles que se simpatizam e aderem ao movimento: religiosos outrora filiados a alguma igreja
evangélica institucionalizada. Na primeira delas, conversamos com Adaílton César de Assis
Dutra, um dos coordenadores/mentores do movimento Caminho da Graça, responsável pela
estação de Taguatinga-DF. Colhida em 26/07/2017, em Taguatinga, essa entrevista fora
marcada depois de contatos primários via aplicativo de mensagens, já que seu contato telefônico
se encontrava no próprio site do Caminho da Graça. Sendo Adaílton ex-pastor de igreja
evangélica, e mais, mentor de um grupo na macrorregião da Brasília – onde o movimento fora
iniciado – tal entrevista mostrou-se importante fornecedora de informações que foram
incorporadas à dissertação. Já em relação à segunda entrevista, conversamos com Carlos
Bregantim, outro dos coordenadores/mentores do grupo, responsável pela Estação de São
Paulo-SP. Também marcada via aplicativo de mensagens e realizada em 06/09/2017, na cidade
de São Paulo, a interlocução mostrou-se rica dado envolvimento de Carlos com Caio Fábio
muito antes do Caminho da Graça dar os seus primeiros passos como movimento, o que
inegavelmente trouxe à pesquisa informações valiosas8.

8
Contatos com Caio Fábio também foram realizados na tentativa de realização de uma entrevista. Muito embora,
depois de repetidas conversas com sua secretária pessoal, Caio tenha se prontificado a responder somente poucas
perguntas enviadas por meios eletrônicos, tais perguntas, até a finalização deste texto, não haviam sido
23

Particularmente, para a exigência do objeto em si e o pouco tempo que uma pesquisa de


mestrado oferece, esses caminhos foram, então, escolhidos como melhor roteiro metodológico.
Citando Greene et al.9, Pascale Dietrich et al. escrevem que a articulação entre as abordagens
quantitativa e qualitativa é funcional, uma vez que

(...) este modo de trabalhar pode ter quatro funções: a “triangulação” (buscar
fazer convergir ou corroborar resultados provenientes de diferentes métodos
com os resultados do outro); o “desenvolvimento” (utilizar os resultados de
um dos métodos para auxiliar na interpretação dos resultados de outro
método); a “iniciação” (descobrir paradoxos e contradições que levam a
reconsiderar a questão de pesquisa) e a “expansão” (tentar entender a
amplitude e o alcance da pesquisa utilizando elementos da pesquisa para
confrontá-los com outro método) (DIETRICH, P.; LOISON, M.; ROUPNEL,
M., 2015, p. 172).

Referindo-se à animosidade histórica entre os representantes das duas abordagens,


Mirian Goldenberg discorrera ainda no mesmo sentido, pontuando que

A integração da pesquisa quantitativa e qualitativa permite que o pesquisador


faça um cruzamento de suas conclusões de modo a ter maior confiança que
seus dados não são produto de um procedimento específico ou de alguma
situação particular. Ele não se limita ao que pode ser coletado em uma
entrevista: pode entrevistar repetidamente, pode aplicar questionários, pode
investigar diferentes questões em diferentes ocasiões, pode utilizar fontes
documentais e dados estatísticos (GOLDENBERG, 1997, p. 62).

Logo, o manuseio dessas vertentes metodológicas se deu na ambição de dar a esta


pesquisa extensão e profundidade, dentro da generosidade de um tempo limite para uma
dissertação de mestrado. Dito de outra forma, ao identificar quantitativamente mudança no
cenário religioso brasileiro em sua extensão, nossa tentativa foi buscar aprofundar o seu estudo
ao evidenciar novas formas do ser religioso ligadas à individualização e consequente
desinstitucionalização, contextualizando-as temporal e espacialmente num recorte específico.
Espera-se, portanto, que no decorrer do trabalho tais linhas saltem aos olhos de seu leitor, de
modo que a metodologia seja sempre lembrada na medida em que as páginas avançarem.

respondidas. Todavia, dada a grande quantidade de material disponibilizado por e sobre Caio em sua autobiografia,
em entrevistas dadas a outros e na internet, cremos ter preenchido tal lacuna no seu uso, sistematização e análise.
9
GRENE, J. C.; CARACELLI, V. J. & GRAHAM, W. F. Toward a conceptual framework for mixed-method
evaluation designs. Educational Evaluation and Policy Analysis, vol. 11, 1989, p. 255-274.
24

1 – RELIGIÃO E MODERNIDADE

A experiência ambiental da modernidade anula todas as fronteiras geográficas


e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia: nesse sentido,
pode-se dizer que a modernidade une a espécie humana. Porém, é uma unidade
paradoxal, uma unidade de desunidade: ela nos despeja a todos num turbilhão
de permanente desintegração e mudança, de luta e contradição, de
ambiguidade e angústia. Ser moderno é fazer parte de um universo no qual,
como disse Marx, “tudo o que é sólido desmancha no ar” (BERMAN, 2007,
p. 15).

Não há como negar que a modernidade, enquanto tema e objeto, tem ocupado lugar de
destaque no debate sociológico há muito tempo. Na realidade, não podemos esquecer que a
própria sociologia se constitui a partir da aparição do moderno, sendo não só uma ciência que
se propõe a estudar suas contradições como, também, um de seus produtos diretos. Nesse
sentido, Marshall Berman, em Tudo o que é sólido desmancha no ar: a aventura da
modernidade (2007), não foi o primeiro a apontar para a emergência da discussão de dentro dos
corredores das ciências sociais, sendo esse assunto permeado desde a obra dos chamados
cientistas sociais clássicos, ainda que neles o termo não apareça explicitamente10. Depois dele,
por certo, muitos foram os teóricos que se dedicaram no estudo da temática, inclusive sobre
suas fases e formas posteriores, entre os quais poderíamos citar Habermas (2002), Giddens
(1991), Bauman (2001), Berger e Luckmann (2004), entre outros.

O fenômeno estudado nesta dissertação, a saber, a desinstitucionalização evangélica,


vem alicerçado na hipótese de ser, ele, o resultado de uma série de transformações causadas por
um processo heterogêneo, observado no mundo de maneira desigual, inserido no contexto
denominado modernidade radicalizada. A esse respeito, esta primeira seção tratará de balizar
sobre o debate acerca dessa fase e forma moderna, seus reflexos na experiência religiosa, bem
como suas características enxergadas naquele que foi elencado aqui como recorte de pesquisa,

10
Karl Marx, o primeiro dos clássicos no sentido cronológico da obra, relaciona de modo direto os termos
“modernidade” e “capitalismo”, designando-os como um período histórico marcado pela ascensão da classe
burguesa e suas consequências, tais como as mudanças estruturais operadas em favor do lucro – em O manifesto
do partido comunista (2003), por exemplo, as expressões “indústria moderna”, “moderno proletariado”, “moderna
sociedade burguesa”, entre outras, são encontradas logo nas primeiras páginas. Émile Durkheim, por sua vez,
empreende esforço para a compreensão das mudanças processadas no interior das sociedades tradicionais,
buscando compreender e explicar as lógicas de funcionamento das novas estruturas sociais que surgiam no
contexto moderno, trabalhando para isso com questões como as instituições, a moral, a política, religião,
solidariedade etc. Podemos citar, por exemplo, sua ponderação em A divisão do trabalho social (1977). Já em Max
Weber, o tema da modernidade vem acompanhado com aquilo que o teórico alemão chamou de “desencantamento
de mundo”, relacionado ao processo de racionalização característico das sociedades ditas modernas – em Die
Wirtschaftsethik der Weltreligionen (1998), obra dividida em três grandes volumes, é possível ver como Weber
trabalha com essa noção a partir de seus estudos sobre as religiões mundiais.
25

o grupo Caminho da Graça. Tomar-se-á como roteiro, para tanto e sobretudo, um caminho que
passará pela discussão sobre as diferentes concepções do lugar e do papel da religião na
sociedade moderna; sobre a modernidade em si, enquanto conceito sociológico; suas
descontinuidades, na contraposição de diferentes fases e formas assumidas até à compreensão
da modernidade radicalizada; bem como suas implicações na religião com a contribuição dos
trabalhos da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger – especificamente com o seu conceito
de modernidade religiosa (HERVIEU-LÉGER, 2008) – e do sociólogo alemão Ulrich Beck –
com suas contribuições para a construção da ideia de “Deus pessoal” e individualismo
institucionalizado (BECK, 2011, 2016).

Como enunciado desde o título, é mister que façamos, na proposta de nosso trabalho,
uma ponderação acurada sobre tais conceitos de modo que fique mais claro, quando tratarmos
das mudanças observadas no cenário religioso brasileiro, especificamente sobre os evangélicos,
que os desigrejados inserem-se num todo de transformações que permeiam diversos tipos de
campo social (BOURDIEU, 1989), entre os quais o religioso, que além de perder sua anterior
posição de destaque sobre os demais – destaque outrora determinante, inclusive, para a
composição e manutenção de outros campos –, acaba ocupando um dos lugares centrais no
debate sociológico acerca do período moderno, com o tão controverso paradigma da
secularização.

1.1 – O ADVENTO DA MODERNIDADE

Como já escrito, o problema desta dissertação está situado em uma fase e forma
específicas da modernidade, a modernidade radicalizada. Para entendermos, entretanto, o que
essa afirmação significa, passaremos a discorrer de modo breve sobre a modernidade enquanto
conceito sociológico, concentrando-nos posteriormente no tempo histórico aqui circunscrito.
Em outras palavras, retomaremos alguns conceitos que nos ajudem a entender o advento da
sociedade moderna de modo que, adiante, possamos nos concentrar em sua forma
contemporânea, chamada radicalizada. Longe da tentativa de tratar exaustivamente sobre as
inúmeras teorias acerca do início do período moderno – como se de fato fosse possível
estabelecer um início indubitável –, o nosso trabalho buscará por situar o advento da
modernidade seguindo a argumentação de Shmuel Eisenstadt, que em Modernidades Múltiplas
(2001) toma essa discussão como tema explicativo de sua teoria.

De acordo com Eisenstadt, duas idiossincrasias principais teriam se destacado como


projetos fundantes do moderno – ou, como escreveu, teriam sido as responsáveis pela passagem
26

das civilizações da primeira era axial para uma segunda era axial (EISENSTADT, 1982; 1986):
um projeto político, baseado no individualismo, e um projeto cultural, baseado na reflexividade;
como escreve

O programa cultural da modernidade implicava alterações muito diferentes na


concepção de ação humana e do seu lugar no fluir do tempo. Carregava
consigo uma concepção de futuro caracterizada por um número de
possibilidades realizáveis através da ação humana autónoma. As premissas em
que assentava a ordem social, ontológica e política, e a legitimação dessa
mesma ordem, já não eram dadas como garantidas. Desenvolveu-se assim uma
intensa reflexividade em torno das premissas ontológicas básicas das
estruturas da autoridade social e política - uma reflexividade partilhada mesmo
pelos críticos mais radicais da modernidade, que negavam por princípio a sua
validade (Ibid., p. 141).

Longe da querela sobre o contexto histórico inequívoco de afirmação de tais projetos –


que varia na maioria da historiografia, indo do século XVI até o século XVIII, como se fosse
precisa e objetivamente possível delimitá-lo –, embora pareça certo que o contraste entre
tradicional e moderno tenha começado a se popularizar na Europa ainda no século XVI
(WILLIAMS, 1987), tomaremos dos anos de 1700 como seminais para um tipo de postura que,
embora experimentada àquela altura, era desconhecida até então e que já nos serve, em um
primeiro momento, para entendermos o que foi a passagem à modernidade a partir daqueles
que a assistiam: a compreensão da modernidade como uma época contemporaneamente vivida.

Como pontuara Jürgen Habermas, a noção de tempo a ocupar o imaginário das pessoas
a partir desse século foi determinante para uma compreensão da necessidade de superação de
um passado tradicional, determinando assim o que autor chamou de “projeto da modernidade”
(HABERMAS, 1984). As experiências de autonomia individual e reflexividade vivenciadas na
Renascença e na Reforma Protestante, séculos antes, embora tivessem fomentado o modo
ontológico a emergir séculos depois, não foram capazes de produzir em seu tempo as múltiplas
percepções e revoluções que consagrariam a vitória do moderno sobre o tradicional. Ainda
marcados pela ideia da transcendência11 – não nos esqueçamos que a Reforma Protestante foi,
antes de qualquer outra coisa, um movimento religioso de retorno ao que acreditavam ser a
forma pura da religiosidade cristã –, esses eventos apenas gestaram um projeto de autonomia
individual que encontraria sua realização mais de trezentos anos depois.

11
Utilizando-se do método comparativo das religiões mundiais empreendido por Weber, Shmuel Eisenstadt vê a
transcendência como um elemento axiológico comum que perpassa as sociedades dentro daquela que chamou de
primeira “era axial”, anterior à modernidade – conceito que, por sua vez, é derivado da obra de Karl Jaspers (1949)
– marcada pelo conflito entre uma visão transcendental e a ordem mundana.
27

Ainda no século XVII, as publicações de algumas obras enigmáticas registravam o


espírito da época, de uma passagem da mentalidade política e cultural da Renascença para um
novo tempo marcado pelo predomínio da técnica, ciência e da racionalidade, que por sua vez,
pregoavam a autonomia do indivíduo sobre qualquer tipo de controle institucional, intelectual
e moral, cada vez menos pautada numa reivindicação transcendental, cada vez mais pautada
numa reivindicação ontológica de imanência. Em 1624, por exemplo, Francis Bacon – aquele
que é considerado por muitos como o último dos tradicionais e primeiro dos modernos –
descrevia em Nova Atlântida (1973) uma ilha de organização igualitária e justa tão somente
graças a ciência, que dava ao homem o poder de controlar a natureza, usufruída para o bem
comum. Treze anos depois, em 1637, René Descartes dava ao mundo sua obra magna, O
Discurso do Método (1979), apontando um modo moderno de fazer filosofia, indagando sobre
o seu presente, ainda que nele a representação fosse apresentada como um dado sem qualquer
necessidade de fundamentação empírica. John Locke, por sua vez, na publicação da primeira
Carta sobre a Tolerância (1973), em 1689, discorrera sobre a necessidade de separação da
esfera civil e da esfera religiosa, sendo a primeira a responsável exclusiva pelos interesses
ligados à vida, à liberdade, ao bem-estar geral etc.

Mas é precisamente no século XVIII que essa virada à busca de compreensão do tempo
contemporaneamente vivido, entendido como a modernidade, se dará livre das amarras
transcendentais, onde o projeto da modernidade encontrará sua personificação no uso da razão
para a regulação do projeto individual, inaugurando aquilo que Eisenstadt chamará de um
segundo momento da história social, especificamente como segunda era axial (EISENSTADT,
1982; 1986). Se na primeira era axial, segundo Jaspers (1949), o homem fora despertado para
uma consciência de si mesmo, com a ordem transcendental como critério para a ordem
temporal; na segunda, tal “transcendência das mundivisões teológicas sofre uma viragem
política” (BECK, 2017, p. 52), inaugurando a partir de então o momento em que o homem é
descoberto como objeto central do arranjo político-cultural da nova sociedade. Sobre isso
escrevera Lukács que

A ontologia religiosa original, que visava reinar sozinha, foi vítima de um –


respeitoso – desprezo científico que costuma estender-se também, com menos
respeito, para a ontologia que está fora do domínio religioso. O moderno
neopositivismo, em seu período de florescimento, qualificou toda indagação
sobre o ser, até mesmo qualquer tomada de posição em relação ao problema
de saber se algo é ou não é, como um absurdo anacrônico e anticientífico
(LUKÁCS, 2015, p. 34).
28

O filósofo francês Michel Foucault, sobre isso, enfatizara a importância de Immanuel


Kant e a sua formulação e reflexão sobre o Aufklärung (FOUCAULT, 2016). Apontando o
filósofo alemão como o responsável pelo que chama de “ontologia de nós mesmos”, Foucault
destaca que em Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung? (1974), texto publicado
originalmente em 1784, Kant teria proposto uma investigação inédita do próprio tempo
presente, perguntando sobre a modernidade ao indagar sobre o Aufklärung, fundando assim
modos seguidos pela filosofia moderna que, ao contrário de Descartes – que como já
escrevemos, de certa maneira, também indagara sobre o seu tempo – haveriam de afirmar a
necessidade de fundamentação empírica a toda representação, traçando assim uma diferença
entre o transcendental e o empírico. Em outras palavras, se Descartes questionava sobre o que
o presente significava para a filosofia, Kant, seguindo o inverso, inquiria o significado da
filosofia para o próprio tempo presente. Com a revolução copernicana de Kant na filosofia
(KANT, 1973) – que invertera a centralidade do objeto pela centralidade do sujeito que o pensa
– estavam finalmente erigidos os pilares modernos a caracterizar uma segunda era axial,
retomados na discussão de Eisenstadt: a autonomia do indivíduo e a reflexividade.

Em oposição ao período anterior, portanto, a segunda era axial despontava como uma
nova configuração social que, pautada em tais idiossincrasias defendidas como imanentes,
haveria de caracterizar-se pela secularização de sua ordem, questionando as bases do
pensamento tradicional – por conta da reflexividade, tendo o desenvolvimento da ciência, do
capitalismo da sociedade industrial, da burocracia, entre outros processos racionais como
exemplos – e, ao mesmo tempo, relacionando-a aos processos políticos e sociais de construção
identitária, tais como os movimentos sociais – por conta da ênfase na autonomia individual,
tendo como exponencial exemplo a Revolução Francesa. Como escreve o autor

O grau de reflexividade característico da modernidade ultrapassou aquilo que


estava cristalizado nas civilizações da era axial [Eisenstadt, 1982; e Eisenstadt
(org.), 1986]. A reflexividade que se desenvolveu no seio do programa
moderno não se centrou somente na possibilidade da existência de diferentes
interpretações das visões transcendentais nucleares e das concepções
ontológicas básicas prevalecentes numa sociedade ou civilização particular;
questionou-se também a própria evidência dessas visões e dos padrões
institucionais com elas relacionados. Surgiu assim uma consciência da
possibilidade de múltiplas visões que, de facto, podiam ser contestadas (...)
No centro deste programa cultural encontrava-se a ênfase colocada na
autonomia do homem: a emancipação do homem ou da mulher (na sua
formulação original, tratava-se certamente do ‘homem’) dos grilhões da
autoridade política e cultural tradicionais. Neste processo de contínua
expansão do domínio da liberdade e da actividade pessoal e institucional, essa
29

autonomia começou por implicar a reflexividade e a exploração; em segundo


lugar, implicou também a construção activa e o domínio da natureza,
incluindo a natureza humana. Este projecto de modernidade colocava uma
ênfase muito forte na participação autónoma dos membros da sociedade na
constituição da ordem social e política, no acesso autónomo de todos os
membros da sociedade a estas ordens e aos seus centros (EISENSTADT,
2001, p. 142).

Em suma, na definição dada por Anthony Giddens, a modernidade constituía-se como


um “período que se estendeu do Iluminismo europeu de meados do século XVIII a, pelo menos,
meados dos anos 1980, caracterizado pela secularização, racionalização, democratização,
individualização e ascensão da ciência” (GIDDENS e SUTTON, 2016, p. 22). Todavia,
fundamentados nos projetos do Iluminismo, que foram por sua vez personificados na Revolução
de 1789, esses valores não demorariam para ser questionados, muito em razão daquilo que a
história preparava para as gerações posteriores, o que inevitavelmente revelaria uma nova faceta
da modernidade, um novo período em sua constituição a se revelar como descontínua.

1.1.1 – A MODENRIDADE E SUAS DESCONTINUIDADES

A era da modernidade é tão diferente das eras anteriores que deverá ser
abandonada qualquer abordagem considerando a sociedade ocidental,
industrial ou capitalista, consoante a terminologia com que se opere, como o
topo de um processo evolutivo – independente do esquema evolutivo que se
tenha em mente. Em sua substituição devemos defender uma abordagem das
origens e consequências da modernidade que, embora aceitando obviamente
a existência de continuidades entre a era moderna e as eras precedentes,
permita salientar quão radicais são as descontinuidades que nos separam das
épocas anteriores (...) Esta descontinuidade é intensiva e extensiva
(GIDDENS, 1988, p. 238).

Se com o advento da modernidade prevalecera, segundo vimos seguindo Eisenstadt,


uma ordem social fundamentada em um projeto político, baseado no individualismo, e um
projeto cultural, baseado na reflexividade e na capacidade humana de superação por meio da
ciência e da técnica, não foram poucos os teóricos que, a partir da segunda metade do século
XX, passaram a acreditar na superação de suas principais consequências, criando a partir disso
novas categorias e conceitos explicativos que fossem capaz de abarcar uma nova realidade que
parecia se apresentar como resultado de transformações experimentadas desde o início dos anos
1900. As sucessivas crises sociais, políticas e econômicas, motivadas sobretudo pelas grandes
guerras mundiais, colocaram em xeque os programas racionais e autônomos apregoados pelos
ideais modernos, dando novos contornos ao sentido da história, que, ao contrário do sentido de
progresso inexorável defendido por muitos, revelava-se descontínua. Se, como escrevera Bacon
30

séculos antes, os projetos político e cultural da modernidade permitiriam a organização de uma


sociedade igualitária e justa, o século XX, mais precisamente a partir de 1914, escrevia uma
história diferente, de um enredo marcado por milhares de mortes e mudanças substanciais que
demonstravam não ter muita relação – pelo menos diretamente – com os valores iluministas.
Tão logo, como escrevera Eric Hobsbawm

(...) uma era cuja única pretensão de benefícios para a humanidade se


assentava nos enormes triunfos de um progresso material apoiado na ciência
e tecnologia encerrou-se numa rejeição destas por grupos substanciais da
opinião pública e pessoas que se pretendiam pensadores do Ocidente
(HOBSBAWM, 1995, p. 20).

Embora já presente em Nietzsche, ainda no final do século XIX12, em outros desses que
se pretendiam pensadores do Ocidente, como escreveu Hobsbawm, pudemos ver os ataques e
críticas crescentes ao projeto iluminista. Por proximidade à área concernente ao nosso trabalho,
poderíamos citar, por exemplo, Georg Simmel e Max Weber. Contemporâneos e amigos, esses
dois pensadores alemães caracterizaram-se, entre outras coisas, pela crítica à modernidade nos
meandros de seus pensamentos. Concentrando-se nos temas da objetividade e da subjetividade,
Simmel desenvolveu uma teoria da sociedade que levou em consideração um efeito negativo
do advento da modernidade, a saber, o ganho de autonomia própria dos objetos face à
subjetividade distintiva dos indivíduos, o que caracterizou seu conceito de “tragédia da cultura
moderna” (SIMMEL, 2005a; 2005b). Olhando para a metrópole de seu tempo, o teórico
discorrera sobre os ônus sociais causados pelos ideais iluministas a partir do projeto político do
moderno; problemas que, como pontuara, “derivam da reivindicação que faz o indivíduo de
preservar a autonomia e individualidade de sua existência em face das esmagadoras forças
sociais, da herança histórica, da cultura externa e da técnica da vida” (SIMMEL, 1976, p. 11).
De modo semelhante, na conclusão de A ética protestante e o espírito do capitalismo (WEBER,
2004), Max Weber usava da alegoria da “jaula de aço” para se referir à essência de um dos
produtos diretos do advento da modernidade: o capitalismo. Fruto dos processos de
desencantamento do mundo, esse sistema total seria o responsável, segundo Weber, não pela
afirmação da autonomia individual, mas ao contrário, pela limitação da liberdade humana face
à determinação imposta por sua lógica; e criticando-o, Weber constatava os agravos da própria
modernidade.

12
Ao questionar boa parte da tradição filosófica e sua necessidade constante de busca pela verdade e pela afirmação
racional diante das “inverdades” a partir de uma noção de identidade, Nietzsche acaba por atacar as bases fundantes
do projeto da modernidade, cuja ênfase no caráter racional-científico se definia em um alicerce identitário comum.
31

Não obstante a todas as críticas emergentes naquele contexto, bem como as novas – ou
pelo menos modificadas – configurações e arranjos sociais que dele resultavam, passavam a
surgir novas tentativas de explicação do mundo e da história, que aumentavam na medida em
que o tempo passava, principalmente a partir do período conhecido como entreguerras. Nesse
interim, não demorou para que surgissem movimentos que se posicionaram publicamente como
antagônicos aos projetos modernos, que buscavam romper com as acepções modernistas até
então tomadas como convencionais. A partir da década de 1960, por exemplo, surgem os
movimentos contraculturais, caracterizados nesse perfil, dada sua posição contrária ao tipo de
racionalidade técnica e burocrática das diversas instituições, incluindo “os partidos políticos e
os sindicatos”, como pontua o teórico David Harvey (1992, p. 44). Então, como se o conceito
de modernidade já não fosse mais suficiente para lidar com todo esse cenário, que evidenciava
em si um processo de descontinuidade da modernidade – como citamos de Giddens no início
desta subseção –, passou-se a ouvir e a ler com cada vez mais frequência sobre o advento de
um novo período, conceituado por termos variáveis em diferentes pensadores.

Popularizada na filosofia e epistemologia pelo filósofo francês François Lyotard, a


nomenclatura “pós-modernidade” – já usada como designação de categoria estética em certos
movimentos artísticos e arquitetônicos, pelo menos desde a década de 193013 – tão logo ecoaria
entre os corredores do pensamento que se propunham a entender o seu tempo presente, sendo
talvez a formulação teórica mais afamada para o período. Designando, segundo Lyotard, “o
estado da cultura após as transformações que afetaram as regras do jogo da ciência, da literatura
e das artes a partir do final do século XIX” (LYOTARD, 1998, p. 15), o termo faria referência
a um novo tempo, em que as metanarrativas tão características no período anterior não mais
serviam como sustentação de prescrições éticas e de conduta; condição em que as visões
totalizantes da história perdiam credibilidade. Nesse contexto de crise dos metadiscursos, todas
as mudanças sociais pareciam corroborar com uma teoria de ruptura, já que os arranjos outrora
observados davam lugar a novas formas e desenhos do mundo.

De fato, as últimas décadas do século XX contribuíam com um prognóstico de transição.


Nesse curso da crise da modernidade, sobretudo após o fim da Guerra Fria em 1989, processos
econômicos, políticos e culturais geraram o que veio a se chamar de globalização. Assim, em
um processo diferenciado e desigual, marcado por “um conjunto de condições e contradições”

Segundo Perry Anderson (ANDERSON, 1999), a expressão “pós-modernismo” surgiu na Espanha na década de
13

1930, com o crítico literário Frederico de Onís. Tratada como categoria estética, a nomenclatura fora empregada
para referenciar a contemporaneidade da lírica à época.
32

(ORTIZ, 2009, p. 248), implicador de transformações que transcendiam os limites do Estado-


nação, o capitalismo – de certa forma como já predito por Marx no que diz respeito ao seu
caráter expansionista (MARX, 1991) – atingia um estágio para além de qualquer fronteira; com
isso, os bens de consumo se desterritorializavam na medida em que esse sistema mais
reivindicava uma ação global, em uma nova divisão internacional do trabalho. Ao mesmo
tempo, com o surgimento de novas tecnologias informacionais e o desenvolvimento de meios
de transporte mais rápidos, a velha noção e conceito de espaço passavam a exigir uma nova
definição que o Estado-nação não era capaz de fornecer. Mais do que isso, a problemática em
si era desafiadora para as próprias ciências sociais, já que como se não bastasse o surgimento
de uma nova categoria histórica, o globalismo “desafiava as próprias categorias cultivadas pelo
pensamento sociológico” (ORTIZ, 2009, p. 242), que por sua vez eram fundamentadas em
conceitos e formas da sociedade nacional. Não apreensíveis pelos modelos científicos
tradicionais, restritos às fronteiras nacionais, as dinâmicas modernas impunham ao campo das
ciências sociais “um desafio epistemológico novo” (IANNI, 1994, p. 147).

A pergunta em meio a todas essas transformações e suas implicações nas diversas áreas
da vida social, portanto, era se de fato, como observou Lyotard, estaríamos no limiar de uma
nova era. A modernidade, como conhecida a partir do século XVIII, teria chegado ao fim dando
lugar a um novo tempo?

1.1.2 – NOSSO CONTEXTO: A MODERNIDADE RADICALIZADA

Hoje, no final do século XX, muita gente argumenta que estamos no limiar de
uma nova era, a qual as ciências sociais devem responder e que está nos
levando para além da própria modernidade. Uma estonteante variedade de
termos tem sido sugerida para estra transição, alguns dos quais se referem
positivamente à emergência de um novo tipo de sistema social (tal como a
“sociedade de informação” ou a “sociedade de consumo”), mas cuja a maioria
sugere que, mais que um estado de coisas precedente, está chegando a um
encerramento (“pós-modernidade”, “pós-modernismo”, “sociedade pós-
industrial”, e assim por diante) (GIDDENS, 1991, p. 11).

Autor de destaque das ciências sociais contemporâneas, o sociólogo britânico Anthony


Giddens destacou-se, entre outras coisas, pela formulação de teorias acerca das
descontinuidades da modernidade, a fim de fundamentar uma compreensão do período histórico
circunscrito no conjunto de mudanças aqui citadas. Autor de livros como As consequências da
modernidade (1991) e Modernização Reflexiva (1995) – esse em parceria com Scott Lash e
Ulrich Beck – Giddens, ao contrário dos defensores das teorias da pós-modernidade, chama a
atenção para uma linha de pensamento que será tomada como um dos pilares teóricos desta
33

dissertação: a de que “em vez de estarmos entrando num período de pós-modernidade, estamos
alcançando um período em que as consequências da modernidade estão se tornando mais
radicalizadas e universalizadas do que antes” (GIDDENS, 1991, p. 13). Chamado de
modernidade radicalizada, modernidade tardia ou alta modernidade14, o período iniciado a
partir das décadas finais do século XX definir-se-ia não pelo desaparecimento dos projetos da
modernidade, como muitos criam, mas pela sua intensificação e surgimento de novas
características que lhe fossem próprias. Essa nova fase descontínua e globalizante, por sua vez,
assentar-se-ia em três características a definir seu dinamismo, segundo o autor: 1) a separação
do tempo e do espaço em novas recombinações; 2) o desencaixe dos sistemas sociais; e 3) a
ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais.

Sobre o primeiro eixo, Giddens faz uma diferenciação da ligação estabelecida entre
tempo e espaço nas sociedades que chama de pré-modernas em relação às modernas.
Conectadas na pré-modernidade por um vínculo que dava base à vida cotidiana, as noções de
tempo e espaço teriam sofrido, no ritmo das mudanças do século XVIII, uma separação que
expressara “uma dimensão uniforme de tempo ‘vazio’ quantificado de uma maneira que
permitisse a designação precisa de ‘zonas’ do dia” (Ibid., p. 27). Se na pré-modernidade a
conexão estabelecida por ambos se dava por marcações socioespaciais, na ideia de “lugar”, na
modernidade o descompasso entre as duas concepções fez com que o espaço fosse arrancado
do tempo, que por sua vez esvaziado, se apresentou paralelamente como pré-condição para
esvaziamento do próprio espaço, com o surgimento daquilo que Giddens chamou de lugares
fantasmagóricos. Diferentemente do que foi na pré-modernidade, pontua o autor, o lugar já não
tinha condições de intermediar espaço e tempo, já que o projeto da modernidade “estabeleceu
o espaço como ‘independente’ de qualquer lugar ou região particular” (Ibid., p. 29).

Todavia, como consequência direta do esvaziamento das noções de tempo e espaço,


surge também como característica inerente do dinamismo da modernidade o desencaixe dos
sistemas sociais, que nas palavras de Giddens se define como “o ‘deslocamento’ das relações
sociais de contextos locais de interação e sua reestruturação através de extensões indefinidas de
tempo-espaço” (Ibid., p. 31). Distinguidos entre os tipos fichas simbólicas e sistemas peritos,
os mecanismos modernos de desencaixe são apontados como responsáveis pela aceleração da
separação entre tempo e espaço, redefinindo os tipos de relação social interpostos no moderno,

14
Em outros autores, a alta modernidade assume outros nomes, como Modernidade Líquida, em Zygmunt Bauman
(2001); Hipermodernidade, em Gilles Lipovetsky (2004); Segunda Modernidade ou Sociedade do Risco, em
Ulrich Beck (2011) etc.
34

contribuindo assim com a perda da tradição e da identidade dos indivíduos. Nesta chave
explicativa, as fichas simbólicas – Giddens, no texto, toma como exemplo o dinheiro –
assumem o papel de meios de troca independentes dos contextos e particularidades individuais
e coletivas; já os sistemas peritos, como “sistemas de excelência técnica ou competência
profissional que organizam grande áreas dos ambientes material e social em que vivemos hoje”
(Ibid., p. 37-38), fundamentando relações cotidianas de confiança nos especialistas modernos,
retirariam do contexto as relações sociais que sem eles eram impensáveis na pré-modernidade.

Dessa forma, apresentar-se-ia ainda, como característica a influenciar o dinamismo


moderno, a ordenação e reordenação reflexiva das relações sociais. Nos colocando em situação
de questionamento e revisão constantes, sob a luz dos novos conhecimentos e informações
produzidas a todo instante, a reflexividade da modernidade levara o indivíduo moderno à
constante posição de escolha, frente à infinidade de possibilidades que se apresenta no jogo e
uso de conhecimento adquirido e acumulado na vida cotidiana, estimulando assim um processo
de individualização e destradicionalização, já que até mesmo as práticas mais tradicionais
passam agora pelo crivo da contestação.

Assim, pautada nessas três características a definir o dinamismo da modernidade, a


defesa de Giddens passa a ser o oposto daqueles que, observando tais aspectos, reivindicavam
em suas construções teóricas a eflorescência de uma nova era, marcada por determinada ruptura
nas décadas finais do século XX com tudo o que fora vivenciado a partir do século XVIII. Ao
contrário do que afirmavam os teóricos da pós-modernidade, as consequências da modernidade,
no contexto denominado globalização, se radicalizavam e se difundiam como nunca antes,
ainda que fossem observadas algumas diferenças na ordem e organização sociais. Nesse todo
de reconfigurações e redefinições das práticas sociais na modernidade, o conhecimento
tradicional pautado na ciência e na técnica não fora superado, antes, como sua consequência
radical, relativizado nos parâmetros da reflexividade. Nosso contexto, portanto, não se definiria
como pós-moderno no sentido empregado pela pós-modernidade, mas sim como um período
de novos contornos dados à primeira modernidade, mais radicalizados e universalizados do que
antes.

Entendendo-o, portanto, as perguntas a se levantar a partir daqui, de acordo com os


objetivos desta pesquisa, são: quais os reflexos das características da modernidade radicalizada
na religião? Como estariam eles reverberados na figura do desigrejado? Avancemos, antes, para
um panorama geral sobre os saberes e as crenças construídos ao longo do tempo acerca do papel
35

da religião nesse período, de modo que consigamos situar o debate acerca do sentimento
anímico nesse processo descontínuo do moderno.

1.2 – SABERES E CRENÇAS ACERCA DA RELIGIÃO NA MODERNIDADE E


SUAS DESCONTINUIDADES

Como já se pontuou aqui, como resultado do estabelecimento do projeto político-


cultural da modernidade assistia-se, somado a outros fatores, a um processo racional de
diferenciação de esferas impensável nas sociedades pré-modernas. Rigidamente hierárquicas e,
de certa maneira concêntricas, as sociedades axiais organizavam-se em torno da ideia do
transcendental de maneira que todas as outras esferas sociais – ou a maioria, pelo menos – lhe
fossem subalternas, num contexto em que a religião, indiscutivelmente, desempenhava um
papel estruturante de controle sobre a organização societária em sua multiplicidade e
complexidade, misturando-se às estruturas sociais de maneira eminente. Com o advento da
modernidade – e a contribuição de momentos que já consideramos outrora para tal, como a
Renascença e a Reforma –, todavia, a ênfase na autonomia individual e a reflexividade davam
indícios que a dimensão religiosa haveria de recuar, declinar e, para alguns, até mesmo se
extinguir. Além de Nietzsche, que já citamos como aquele parecia descrever esse espírito
apontando para aquilo que chamara de “morte de Deus” (NIETZSCHE, 1973), outros
pensadores modernos punham em xeque às crenças religiosas, muitas vezes buscando por
explicações que dessem conta da existência do sentimento anímico mesmo em um contexto em
que tudo levava a crer em seu desaparecimento, caso de Sigmund Freud, por exemplo, em seus
escritos já do início do século XX

A psicanálise tornou conhecida a íntima conexão existente entre o complexo


do pai e a crença em Deus. Fez ver que um Deus pessoal nada mais é,
psicologicamente, do que uma exaltação do pai, e diariamente podemos
observar jovens que abandonam suas crenças religiosas logo que a autoridade
paterna se desmorona (FREUD, 1976, p.112)

No debate sociológico, entretanto, dois conceitos inseriam-se aos poucos na tentativa de


explicitar sobre o futuro da religião nas sociedades modernas: o de laicidade e o de
secularização. O primeiro, que prevalecera sobretudo na França, referenciava uma relação
política-institucional que remetia a neutralidade do Estado para com toda e qualquer confissão
de ordem religiosa15. O segundo, por sua vez, fazendo alusão ao termo “secular” – usado desde

15
A laicidade, longe de uma concepção de um processo unilateral de separação entre Estado e religião, é, na
realidade, conhecida de forma multifacetada quando observados os exemplos de distintos países. Bobineau e Tank-
36

a Idade Média para se referir a tudo o que fosse antagônico ao religioso (LUCHI, 2014) – e
predominante no contexto algo-saxão, referia-se a algo mais amplo, como um processo pelo
qual, nas palavras de Berger, “setores da sociedade e da cultura são subtraídos à dominação das
instituições e símbolos religiosos” (BERGER, 2004, p. 118), abarcando em certo sentido o
próprio conceito de laicidade, enxergada como uma de suas características particulares.

A partir de então, especialmente pelo conceito de secularização, não foram poucos os


que se empreenderam por entender as mudanças ocorridas no interior das sociedades modernas
buscando não só pela compreensão de sua relação com o religioso, mas fornecendo inclusive
determinadas previsões acerca da posição que seria ocupada pela religião – se é que ela fosse
ocupar alguma – no mundo moderno com a iminência do curso de seus processos. Nesse
sentido, sobre o papel da religião na modernidade, muitas foram as reflexões produzidas acerca
das implicações da secularização, desde que o tema fora pincelado por Weber em A ética
protestante e o espírito do capitalismo (2004) – Entzauberung der Welt –, sendo esse muito
provavelmente o tema mais debatido, contestado e trabalhado pela e na sociologia da religião
desde sua formação (MARIZ, 2001). A sociedade tecnicista, centrada no homem enquanto
senhor da natureza, marcada ascendentemente pela racionalização e ciência, haveria de extirpar
a utilidade e existência da religião enquanto um “sistema unificado de crenças e práticas ligadas
ao sagrado que congrega as pessoas que as seguem em uma comunidade moral” (DURKEHIM,
1989, p. 79)? Formavam-se assim saberes e crenças sobre o assunto, segundo as quais, nas
palavras de José Zepeda, “duas abordagens ou teses” se apresentavam como dominantes: uma
tese dura e uma tese suave da secularização

Essas discussões revelaram duas abordagens ou teses dominantes sobre a


secularização válidas até hoje: a primeira poderia ser chamada de “tese dura
ou forte da secularização” e seria concebida como um processo lento e
inexorável a caminho do fim da religião; a segunda, ou seja, a “tese suave da
secularização” afirmará que se trata de um processo pelo qual a religião sofre
severas alterações na modernidade, mas persiste disseminada pelos
interstícios da cultura, disfarçada ou oculta na economia como “espírito do
capitalismo”, na política como “religião civil”, ou como formas socioculturais
pouco relevantes (ZEPEDA, 2010, p. 131).

Exemplo emblemático de um teórico que flertou com as duas perspectivas em


determinado momento de sua trajetória intelectual, o sociólogo austro-americano Peter Berger
é elencado aqui como exemplo biográfico-acadêmico que pode ajudar a compreender um pouco

Storper, em Sociologia das Religiões (2011), apresentam quatro modelos de laicidade: um francês, um norte-
americano, um alemão e um israelense. Sobre isso ver BOBINEAU & TANK-STOPER (2011).
37

mais sobre tais saberes e crenças sobre a secularização nas descontinuidades do moderno. Sua
primeira fase é encontrada em sua obra O dossel sagrado (2004), publicada originalmente em
1969, onde o autor apresenta a tese, logo de início, de que “a modernidade leva necessariamente
a um declínio da religião” (Ibid., p. 1). Trabalhando com as ideias de relativização, subjetivação
e privatização dos discursos religiosos, tidos como intrínsecos ao processo de modernização da
sociedade, Berger parecia acreditar no fim inexorável da religião, fazendo escola nesta linha
argumentativa16. Obviamente, ele não fora o primeiro a delinear esse tipo de postura. Aliada
estritamente às teorias da modernização – que viam a modernidade como um processo
homogêneo, como já citamos anteriormente –, a crença no fim da religião permeava a
mentalidade intelectual de toda uma época a assistir o advento da segunda era axial, ainda que
de maneira desigual; tendo ainda sido pincelada antes em teóricos de emancipação que
advogavam pela extinção do religioso, tais como Comte (1967) – pelo menos em termos de
uma religião transcendental – e Marx (1989). Pessoas de seu tempo, os defensores da tese dura
da secularização, assim como no caso dos defensores das teorias de modernização, traçavam
um fim teleológico para a religião, que parecia fazer todo sentido quando observado o conflito
entre a percepção religiosa de mundo, carregada de símbolos e liturgias sacras, com as múltiplas
esferas sociais, regidas cada vez mais por normas e princípios seculares, também chamadas de
esferas profanas, como já citamos de Weber (1979).

Todavia, com o passar do tempo e as descontinuidades da modernidade, outros saberes


passariam a ser produzidos em relação às crenças que sobre esse processo não se efetivaram;
saberes que, já no final do século XX, seriam os responsáveis pela mudança de paradigma de
Berger em relação a sua concepção de secularização, saindo da tese dura para o que Zepeda
chamou de tese suave, com o próprio Berger afirmando em A dessecularização do mundo: uma
visão global (2000) que

O mundo de hoje, com algumas exceções (...) é tão ferozmente religioso


quanto antes, e até mais em certos lugares. Isso quer dizer que toda uma
literatura escrita por historiadores e cientistas sociais vagamente chamada de
“teoria da secularização” está essencialmente equivocada (BERGER, 2001, p.
10).

Convencidos, como Berger, de que a religião não haveria de se extinguir, muitos


cientistas sociais começaram a revisar suas teorias sobre o religioso na modernidade,
principalmente depois das formulações de Eisenstadt, que como já pontuamos, deu novos

16
Influenciado pela discussão de Berger, o sociólogo Steve Bruce (2002; 2006) se destaca ainda hoje como o mais
ferrenho defensor do fim inexorável da religião na modernidade, defendendo a “tese dura” da secularização.
38

contornos às teorias sobre o moderno, pondo em xeque especialmente as teorias da


modernização prevalecentes em meados do século XX. Nesse sentido, tais revisões passaram a
indicar que, incontestavelmente, a religião teria sim sido afetada com o advento da segunda era
axial, todavia, tais transformações não indicavam seu desaparecimento. Assim, muitos
sociólogos da religião escreveram acerca das consequências da modernidade no campo
religioso nesta concepção específica, cada qual com suas especificidades teóricas, tais como
Luckmann (1987), Davie (2007), o próprio Berger (2017) e Hervieu-Léger (2008), de quem
trataremos mais adiante. Bobineau e Tank-Storper (2011), por exemplo, apontaram para cinco
resultados do processo de secularização, “que não necessariamente agem com a mesma força e
com o mesmo alcance segundo os contextos culturais, geográficos, históricos e políticos” (Ibid.,
p. 70), efeitos relacionados não à extinção da religião, mas a 1) um processo de diferenciação
institucional – com a diminuição da influência da esfera religiosa sobre as instituições políticas,
econômicas e científicas –; 2) um processo de pluralização da oferta religiosa – que leva a
concorrência das religiões –; 3) um processo de privatização e individualização – com a religião
transferida exclusivamente para a esfera privada –; 4) um processo de racionalização –
exercendo controle e integração social – e 5) um processo de mundanização – aumento do
interesse pela imanência em detrimento da transcendência.

Longe da aceitação de um processo unilinear como definição do conceito de


modernidade secularizante, a concepção de modernidade descontínua e múltipla acabava por
demonstrar que, ao invés do desaparecimento da religião, a modernidade radicalizada reservava
para si a existência do sentimento anímico em novas configurações religiosas, afetadas sim
pelas suas características estruturantes, porém não em um caminho inexorável rumo à extinção.
A balizar sobre estas reconfigurações – dentre as quais o objeto específico desta pesquisa –
trataremos de ressaltar adiante as contribuições da socióloga francesa Danièle Hervieu-Léger e
do sociólogo alemão Ulrich Beck.

1.3 – DANIÈLE HERVIEU-LÉGER E O CONCEITO DE MODERNIDADE


RELIGIOSA

Diretora de estudos e ex-presidente da École des Hautes Éstudes en Sciences Sociales


de Paris, a socióloga Danièle Hervieu-Léger tem se destacado nos últimos anos como estudiosa
a pensar o paradigma da secularização no mundo contemporâneo, no que aqui tem se chamado
de modernidade radicalizada. Se, como já discorremos, o debate em torno do assunto gerou
concepções díspares dentro dos corredores das ciências sociais – sobretudo na sociologia da
39

religião –, a teoria hervieu-légeriana é tomada como uma perspectiva bem equilibrada entre
dois extremos muito comuns: a crença na aniquilação do religioso e a “revanche de Deus”
(KEPEL, 1991). Integrando aqueles que aqui temos chamado de defensores da “tese suave da
secularização” – ou também podemos dizer se tratar de uma teórica que faz uma integração de
elementos presentes na polarização –, a pesquisadora francesa é tomada em nossa dissertação
especificamente por conta de seu mais conhecido conceito cunhado, a saber, o conceito de
modernidade religiosa, que muito pode contribuir para o entendimento da figura do religioso
nesta segunda modernidade. Para que o entendamos, contudo, recorreremos antes, de forma
sucinta17, às definições de modernidade da autora.

Numa conceituação similar à de Eisenstadt – exceto ao aspecto da multiplicidade, pelo


menos não de forma explícita –, Hervieu-Léger define a modernidade relacionando-a a um
processo de racionalização, atrelado, no que lhe concerne, a três características específicas. A
primeira delas, escreve, “é colocar à frente, em todos os domínios da ação, a racionalidade, ou
seja, o imperativo da adaptação coerente dos meios aos fins que se perseguem” (HERVIEU-
LÉGER, 2008, p. 31). Posta como a chave determinante para a manutenção do status social, a
racionalidade, pontua, levou o indivíduo a afirmar-se não mais por herança ou atributos
pessoais, mas pela educação e formação. Com o desenvolvimento da ciência e da técnica, essa
característica condicionou toda explicação do mundo e dos fenômenos aos critérios racionais
que seriam os responsáveis pelo progresso humano. A segunda característica, por sua vez,
fundamenta-se na “autonomia do indivíduo-sujeito, capaz de ‘fazer’ o mundo no qual ele vive
e construir ele mesmo as significações que dão sentido à sua própria existência” (Ibid., p. 32).
Também ligada às definições de Eisenstad, essa característica é apontada pela autora como a
responsável pela cisão do moderno com o tradicional, uma vez que a partir dela o homem é
colocado como o legislador de si e do mundo, capaz de se orientar não mais pela transcendência,
mas pela imanência. Por último, a terceira implicação a caracterizar o moderno apontada pela
socióloga é apresentada como “um tipo particular de organização social, caracterizada pela
diferenciação das instituições” (Ibid., p. 33), responsável pela especialização e autonomização
das diversas esferas sociais.

No que diz respeito à religião, a modernidade é apontada por Hervieu-Léger como a


responsável pela laicização das sociedades, que deve ser entendida como a perda de influência

17
Um trabalho significativo a tratar de toda teoria hervieu-légeriana sobre modernidade é o de Victor Breno Farias
Barrozo, em seu livro Modernidade religiosa – Memória, transmissão e emoção no pensamento de Danièle
Hervieu-Léger (2014).
40

das instituições religiosas sobre a vida social. Em todos esses processos, escreve, “a tradição
religiosa não constitui mais um código de sentido que se impõe a todos”, onde “a crença e a
participação religiosas são ‘assunto de opção pessoal’: são assuntos particulares, que dependem
da consciência individual e que nenhuma instituição religiosa ou política podem impor a quem
quer que seja” (Ibid., p. 34). A partir desses pontos e, entendendo a religião como “um
dispositivo ideológico, prático e simbólico, através do qual se constitui, mantém, desenvolve e
controla a consciência individual e coletiva da pertença a uma linhagem crente particular”
(HERVIEU-LÉGER, 1993, p. 136, tradução nossa), a autora formula o conceito de
modernidade religiosa, a ser caracterizado, em suas palavras,

pela individualização (e, portanto, pela extrema pluralização) das trajetórias


de identificação que conduzem os indivíduos a endossar, tirando implicações
práticas e éticas altamente variáveis, sua adesão escolhida a uma linhagem
crente particular (HERVIEU-LÉGER, 2013, tradução nossa).

Marcada pela apresentação de uma explicação razoável entre concepções polarizadas de


secularização, a noção de modernidade religiosa surge como importante crivo de entendimento
do que Hervieu-Léger chamou de paradoxo da condição da religião na contemporaneidade
(HERVIEU-LÉGER, 2008), paradoxo caracterizado por dois movimentos antagônicos internos
às sociedades da segunda modernidade, de acordo com a autora. O primeiro, como já dito
outrora, relacionado à “perda de influência dos grandes sistemas religiosos” (Ibid., p. 37) e um
segundo, referente à “recomposição, sob uma nova forma, das representações religiosas” (Ibid.,
p. 37). Geradas sobretudo pela frustração com as expectativas geradas no moderno –
expectativas apropriadas da religião pela ciência, em termos de construção de uma sociedade
teleologicamente destinada à abundância e paz – estas novas recomposições tendem a aparecer
como o preenchimento de espaços vazios gerados entre o mundo cotidiano e o mundo ordinário,
experimentados pelo homem moderno que não vê na modernidade a realização de todos os seus
anseios, recriando assim novas modalidades da experiência religiosa alicerçadas na
individualidade e subjetividade de crença.

Nesse sentido, o que o conceito de modernidade religiosa quer nos dizer é que

(...) a oposição entre as contradições do presente e o horizonte do


cumprimento do futuro cria, no coração da Modernidade, um espaço de
expectativas no qual se desenvolvem, conforme o caso, novas formas de
religiosidade que permitem superar essa tensão: novas representações do
“sagrado” ou novas apropriações das tradições das religiões históricas (Ibid.,
p. 40).
41

Em outras palavras, o que Danièle Hervieu-Léger nos ajuda a entender é que a


modernidade ao mesmo tempo em que seculariza a religião, tirando dela seu prestígio e o status
de controladora das coisas mundanas – perfil dos séculos anteriores ao seu advento -, também
cria determinadas vias de acesso para que essa mesma religião recrie novas formas de
religiosidade. A religião, nessa lógica, não morre na modernidade, mas em novas formas de
organização respira ares de reconfiguração, dada sua capacidade de se “transformar e se
deslocar” (SANCHIS, 2001).

Sabendo, entretanto, como escreve Eisenstadt, que a modernidade se constitui “como


uma história contínua de constituição e reconstituição de uma multiplicidade de programas
culturais” (EISENSTADT, 2001, p. 140), não seria coerente que pensássemos, aliados ao
conceito de Hervieu-Léger, em “modernidades religiosas múltiplas”? Em outras palavras,
partindo dos processos de individualização e diversificação do religioso, marcados pelo
paradoxo supracitado – que alicerça o conceito de modernidade religiosa –, não nos é lícito
pensar que sua dinâmica não se dá de modo unilinear em todas as sociedades modernas, mas
pelo contrário, é observada de acordo com as especificidades de cada uma delas? Ao menos, o
que podemos afirmar certamente é que essa possibilidade parece confluir com teóricos que
trabalharam com o conceito de múltiplas secularizações (MARTIN, 2005; STEPAN, 2011;
WOHLRAB-SAHR & BUCHARDT, 2012). Nesta chave, como pensaríamos o caso brasileiro?
Quais as novas representações e apropriações do sagrado experimentadas aqui? Estariam os
desigrejados inseridos nas mudanças causadas pela modernidade religiosa no contexto
brasileiro? Antes, entretanto, de tratarmos especificamente sobre o desigrejado, recorramos a
alguns conceitos de Ulrich Beck que nos ajudarão a encorpar nossa argumentação teórica sobre
o processo de individualização – e a consequente desinstitucionalização – de cristãos no Brasil.

1.4 – ULRICH BECK: A INDIVIDUALIZAÇÃO E O “DEUS DE CADA UM”

Qual é, porém, a relação entre a secularização e a individualização? Enquanto


a teoria da secularização afirma: quantos mais modernização, tanto menos
religião, a tese da individualização religiosa parte da premissa contrária, ou
seja, que com a crescente modernização, as religiões não desaparecem, mas
apenas mudam de feição. É verdade que se relaxam as ligações das pessoas
com as comunidades religiosas organizadas, do mesmo modo como
desaparece a autoridade eclesiástica em questões existenciais (...) Dito de
outro modo: a teoria da individualização distingue entre religião (organizada)
e fé (individualizada), distanciando-se, assim, da teoria da secularização
(BECK, 2016, p. 45).
42

Nascido em 1944 em Stolp, o sociólogo alemão Ulrich Beck destacou-se, junto com
outros pensadores, como teórico a pensar o seu tempo numa perspectiva crítica da sociedade da
segunda modernidade, ou como também chamou, da sociedade de risco. De uma abordagem
sociológica inovadora, o trabalho de Beck figura entre as principais contribuições intelectuais
sobre as transformações sociais, econômicas e políticas observadas desde a segunda metade do
século XX, com especial ênfase às suas décadas finais. Tomado como referência teórica que
muito pode colaborar no entendimento das condições que sustentam o surgimento da figura que
é tomada como objeto nesta pesquisa, dele tomaremos as reflexões e discussões acerca dos
processos de individualização no contexto da modernização reflexiva, bem como suas
consequências na esfera da religiosidade, na análise de sua ideia do Deus de cada um.

Assim como Giddens, Beck desenvolve seus conceitos a partir do entendimento de que
a sociedade moderna estaria passando para uma nova fase, consequência de seu dinamismo
interno, na qual “o progresso pode se transformar em autodestruição, em que um tipo de
modernização destrói outro e o modifica” (BECK; GIDDENS; LASH; 1995, p. 13); a etapa da
modernização reflexiva. Responsável pela dissolvição dos contornos da sociedade industrial –
que por sua vez dissolvera, outrora, a sociedade estamental agrária, na modernização simples –
a modernização reflexiva não teria tido como causas, segundo o autor, nada além das próprias
bases da modernidade, que radicalizadas, prepararam o terreno para o advento de seus novos
contornos. Nesta linha de raciocínio, dois eixos inter-relacionados são propostos pelo autor
como dimensões desse novo período: a emergência da sociedade do risco e o processo social
da individualização – aquilo que mais nos interessa de acordo com nossos objetivos.

Designando “uma fase no desenvolvimento da sociedade moderna, em que os riscos


sociais, políticos, econômicos e individuais tendem cada vez mais a escapar das instituições
para o controle e a proteção da sociedade industrial” (Ibid., p. 17), o conceito de sociedade do
risco formulado por Beck é trabalhado num primeiro momento em sua obra Sociedade de risco:
rumo a uma outra modernidade (2011), publicado originalmente 1986. Nesse livro o autor
alemão aponta para a unidade da produção social da riqueza da sociedade industrial com a
produção social dos riscos, fazendo uma associação da lógica de sua distribuição na segunda
modernidade – gerada pelo próprio avanço técnico-científico da modernização – a duas
condições específicas: 1) à objetiva redução e isolamento social da “autêntica carência
material”; e 2) ao desencadeamento de “riscos e potenciais de ameaças” a extensões antes
desconhecidas. Apontada como realidade processual a partir dos anos de 1970, a transição da
sociedade industrial, da primeira modernidade, para a sociedade de riscos, da segunda
43

modernidade, trouxera consigo dimensões da modernização reflexiva de modo inicialmente


imperceptível mesmo entre cientistas sociais; entre as quais, por afinidade temática deste
trabalho, aquela que procuraremos nos concentrar: o processo social da individualização18.

Sendo um fenômeno, segundo Beck, referente a um “(...) conceito que descreve uma
transformação estrutural, sociológica, das instituições sociais e a relação do indivíduo com a
sociedade” (BECK e BECK-GERNSHEIM, 2003, p. 339, tradução nossa), a individualização,
como relacionada ao surgimento dos riscos e inseguranças sociais, biográficas e culturais, se
apresentaria de forma tripla, como

(...) desprendimento em relação a formações e vínculos sociais estabelecidos


historicamente, no sentido de contextos de domínio e provimento (“dimensão
da libertação”), perda de seguranças tradicionais, com relação a formas
sabidas de atuação, crenças e normas de direcionamento (“dimensão do
desencantamento”) e – com o que o sentido do conceito se converte em seu
contrário – uma nova forma de enquadramento social (“dimensão do controle
e da reintegração”) (BECK, 2011, p. 190).

Dessa maneira, inaugurando um “novo modo de socialização, como um tipo de


‘transformação formal’ ou ‘categorial’ no relacionamento entre indivíduo e sociedade” (Ibid.,
p. 189), o processo da individualização fora o responsável, segundo o autor, pela centralidade
do indivíduo nas ações do mundo social, ou como escreve, na conversão do próprio indivíduo
“em unidade reprodutiva do social no mundo vital” (Ibid., p. 193). Todavia, tal transformação,
muito além do âmbito individual, teria também transpassado a esfera privada, afetando
inclusive as instituições da sociedade moderna, resultando naquilo que Beck e Beck-
Gernscheim denominaram individualismo institucionalizado (2003), conceito que, como
comenta Martelli, definir-se-ia pela necessidade das instituições centrais da sociedade moderna
de “desenvolver uma biografia própria, de se despregar das predeterminações coletivas (...)
numa dinâmica institucional endereçada ao indivíduo, não ao grupo” (MARTELLI, 2006, p.
74). Como consequência de todas essas mudanças, portanto, viveríamos em meio ao
desmoronamento das outrora unidades de referência, das instituições tradicionais, tais como a
família e as classes sociais – exemplos trabalhados por Beck em Sociedade do Risco (2011).
Nesse raciocínio, como aponta Vera Westphal comentando a obra do sociólogo alemão

No lugar de religião, tradição e Estado sobrevêm novas exigências, controles


e obrigações aos indivíduos na sociedade moderna. O indivíduo deve

18
Segundo Beck, a individualização deve ser entendida como “primeiro, a desincorporação, e, segundo, a
reincorporação dos modos de vida da sociedade industrial por outros modos novos, em que os indivíduos devem
produzir, representar e acomodar suas próprias biografias” (BECK; GIDDENS; LASH; 1995, p. 13).
44

autodirigir-se, controlar-se e decidir sobre sua vida, inclusive nos aspectos


relativos à proteção social e às condições de trabalho. Se na sociedade
tradicional o indivíduo adentrava nessa por nascença, na sociedade atual a
inclusão demanda esforço ativo individual. Consolida-se a biografia da
escolha, da construção, do malabarismo, da ruptura, do risco. Apesar das
novas liberdades, há muito esforço e desgaste. A individualização se constitui
numa dinâmica social, não repousada sobre as decisões livres dos indivíduos,
mas é uma obrigação, aos quais as pessoas estão destinadas (WESTPHAL,
2011, p. 428).

Dessa maneira, de reverberação na esfera religiosa, tal processo seria trabalhado pelo
autor como o paradigma de explicação para as transformações a ocorrer nesse campo, criando
para isso a figura explicativa que chamou de o Deus de cada um. Publicado, portanto,
originalmente em 200819, o livro que conhecemos em português como O Deus de Cada Um: a
Capacidade das Religiões de Promover a Paz e o Seu Potencial de Violência (2016) se
apresentaria como o trabalho em que Ulrich Beck se propõe a fazer um balanceamento
sociológico sobre as consequências da individualização da segunda modernidade sobre o campo
religioso, apresentando tal conceito como a representação do que veio a se tornar a experiência
religiosa contemporânea: constructo do indivíduo pautado em um Deus individual e
individualizante. Tratando especificamente sobre o panorama religioso, em O Deus de Cada
Um Beck apresenta como sua justificativa inicial para a confecção do texto aquilo que diz
definir cada vez mais a realidade: “o retorno do encantamento pela religião” (Ibid., p. 8).
Trabalhando nesse sentido com o mesmo problema proposto por Hervieu-Léger – citando-a,
inclusive, por diversas vezes no livro – o autor passa a delinear toda sua argumentação
fundamentado em dois pilares principais, a saber, a individualização – e sua consequente
desinstitucionalização – bem como seu processo de cosmopolitização (Ibid., p. 53).

Dessa forma, a individualização, tão trabalhada por Beck em Individualismo


Institucionalizado (2003), Sociedade do Risco (2011), Modernização Reflexiva (2012) etc., é
apontada pelo autor como um processo a perpassar, também e inevitavelmente, a esfera e a
instituição que nos interessam aqui, isto é, a esfera religiosa e a instituição igreja. Antes
definidora dos padrões de comportamento de toda uma sociedade, a igreja na modernidade
reflexiva, assim como outras instituições tidas outrora como determinantes para a construção
de identidades coletivas que davam aos indivíduos segurança e sentido – partidos políticos,
sindicatos etc., como já citamos – é colocada em xeque com toda sua estrutura normativa e

19
Sob o título original Der eigene Gott: Von der Friedensfähigkeit und dem Gewaltpotential der Religionen, o
livro de Beck sobre as implicações da segunda modernidade na religião fora publicado em 2008, pela editora
Verlag der Weltreligionen.
45

dogmática. Assim, na segunda modernidade, a instituição mais importante do cristianismo se


enfraquece face à individualização reflexiva, que por sua vez, contribui decisivamente para um
processo de “desigrejização” da sociedade (Ibid., p. 36). Sobre esse descolamento do indivíduo
religioso da religião institucional o autor escreve que

não há mais nenhuma fé religiosa que não tenha passado pelo fundo da agulha
da reflexividade da própria vida, da própria experiência e da autoconfiança
(exceções confirmam a regra). Cada pessoa constrói para si, a partir de suas
experiências religiosas, seu abrigo individual, seu baldaquim sagrado. É o
indivíduo que decide sobre sua fé, e não mais apenas ou primordialmente sua
origem e sua organização religiosa (BECK, 2016, p. 22).

Dessa maneira, as religiões de igreja – ou de qualquer outra instituição religiosa


organizada que exija exclusividade de seus membros, como no caso dessa, que é cristã – tendem
a assistir a um processo irreversível de pluralização religiosa, ao surgimento de “Novos
Movimentos Religiosos” construídos e mantidos pelo crivo do indivíduo, orientados pelo Deus
de cada um, de e para o religioso, não de e para o pertencente a uma religião; pois como pontua
o autor, “ser religioso não pressupõe a pertença ou não-pertença a um determinado grupo ou
organização; designa antes uma determinada atitude para com as questões existenciais da
humanidade” (Ibid., p. 55). Ou seja, nas palavras do autor, se nas igrejas prevalecera a lógica
da inequivocidade, “o modelo do ‘ou-isto-ou-aquilo’”, como resultado da individualização da
segunda modernidade prevalecera em nosso contexto a lógica religiosa da equivocidade, “o
modelo do ‘tanto-isto-como-aquilo’” (Ibid., 74). Assim a religião não desaparece, como
discorre também Hervieu-Léger, mesmo porque “a adesão à fé religiosa é proporcional à
insegurança que os processos radicalizados de modernização deflagram em todos os setores
sociais (‘modernização reflexiva’)” (Ibid., p. 91), todavia, contempla-se “o renascimento de um
novo tipo subjetivo, anárquico, de fé que se ajusta cada vez menos às balizas dogmáticas das
religiões institucionalizadas”, dissolvendo-se assim “a unidade entre religião e religioso, entre
religião e fé” (Ibid., p. 91), com “o esvaziamento das igrejas e o re-encantamento religioso do
pensamento e das ações das pessoas”, bem como o “enfraquecimento das organizações
religiosas e o fortalecimento de uma religiosidade pós-clerical, fluida” (Ibid., p. 93 e 94).

Em suma, a figura do Deus de cada um da segunda modernidade seria então, como


escreve Beck, “muitos ‘não’: não é nenhuma etiqueta, nenhuma carteira de identidade de
segunda classe, nenhuma convenção de dupla moral e sobretudo não é nenhum ‘desde sempre’,
nem algo absoluto” (Ibid., p. 18); como defende a partir de sua análise da modernidade
reflexiva, seria antes de tudo a possibilidade de divisão e recomposição, como o próprio
46

indivíduo, “Ele é a garantia da independência do indivíduo e da independência de Deus” (Ibid.,


p. 18), inclusive no que diz respeitos às amarras históricas com a instituição eclesiástica. À vista
disso, a pergunta a nos interessar aqui é: corresponderiam, portanto, tais conceitos à realidade
empírica brasileira que diante de nós se apresenta? Respondendo afirmativamente, passamos
agora a discorrer sobre a figura do desigrejado brasileiro no cruzamento com tais referências
teóricas.

1.5 – O DESIGREJADO BRASILEIRO: FIGURA DO SER RELIGIOSO NA


MODERNIDADE RADICALIZADA

Com base nessas que serão nossas principais perspectivas teóricas, pretende-se deixar
claro, de acordo com o decorrer deste trabalho, que a categoria dos desigrejados brasileiros –
se é que podemos chamá-la de categoria – é definida aqui como um conjunto a abarcar aqueles
que experimentam da fé correlata à evangélica sem, todavia, fazer uso da instituição como local
religioso, de e para práticas religiosa; e isso como consequência dos processos de
individualização da modernidade religiosa que resultam na desinstitucionalização. Longe da
tentativa de tentar estabelecer uma definição teológica para o termo “igreja”, a sua apropriação
enquanto tentativa de conceito sociológico é a postura nevrálgica que se observará no
desenrolar do texto, sendo fundamental a sua concepção enquanto um dispositivo disciplinar
que reúne em si os adeptos de um “sistema solidário de crenças seguintes e de práticas relativas
a coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas; crenças e práticas que unem a mesma
comunidade moral” (DURKHEIM, 1989, p. 79). Cientes disto, como pensar essa nova
configuração religiosa não tradicional na modernidade radicalizada? Propomos, então, pensá-
la como um exemplo de recriação dessa segunda modernidade a partir das perspectivas teóricas
com que trabalhamos anteiormente, de experimentação da fé no Deus de cada um, paradigmas
explicativos que, embora tenham sido formulados a partir de uma experiência europeia
(HERVIEU-LÉGER, 2008; BECK, 2016), nos são apresentados na experiência brasileira na
correlação das características que lhe são próprias (EISENSTADT, 2001).

Basta um olhar acurado para a realidade brasileira para chegarmos à conclusão de que
não é difícil de enxergar – no grupo elencado como recorte de nossa pesquisa, inclusive – as
reverberações características do que Hervieu-Léger chamou de modernidade religiosa, por
exemplo. Muito embora no Brasil não tenhamos uma diferenciação institucional rígida,
concernente à laicidade (MARIANO, 2011) – o que mais uma vez nos leva a pensar nas
múltiplas modernidades religiosas –, a individualização das trajetórias de identificação religiosa
47

é o fator determinante para o entendimento da desinstitucionalização evangélica – ou sobretudo


evangélica. Como poderá ser visto em nossas entrevistas com alguns líderes do movimento
tomado como recorte de pesquisa20, a ideia da não necessidade de controle coletivo e da
autonomia individual é o aspecto central do discurso daqueles que decidiram viver sua fé
apartado das prerrogativas institucionais eclesiásticas. Como resultado de uma reconfiguração
religiosa de características próprias, a desinstitucionalização evangélica parece exemplificar o
paradoxo das teorias hervieu-légeriana e beckiana, pois não abandonando a experiência
religiosa em definitivo, os sujeitos religiosos que deixam a igreja passam a recriar, de acordo
com concepções formadas na individualização de suas crenças, uma nova forma de ser religioso
que destoa do molde evangélico histórico-formal, apoiados na construção do Deus de cada um.

Convém pontuar que, circunscrito no curso histórico-temporal de que já tratamos,


especialmente a partir das últimas décadas do século XX – com a mundialização do capitalismo
e a globalização econômica e política –, essa figura, a do desigrejado brasileiro, tipifica no
campo da religião, por meio de tensões e contradições da passagem da primeira para a segunda
modernidade, um processo que se estende a todas as esferas da vida não só na experiência
europeia mas também aqui e em todos os cantos do mundo: o processo de individualização, ou
seja, o de produção de um indivíduo que se autoconstrói, cada vez mais autônomo; autônomo
dos antigos parâmetros que lhe davam segurança e orientação, muito embora a conquista dessa
autonomia de jure não esteja diretamente ligada à autonomia de facto (BAUMAN, 2001). Em
outras palavras, o que nos parece é que o desigrejado no Brasil, como ator de novas
religiosidades, está inserido em um conjunto de transformações do processo de individualização
que o transcende, e que, a bem da verdade, o tem como consequência. Vale lembrar, ademais,
que tais transformações na modernidade radicalizada, como sabemos, estão também
diretamente vinculadas ao resultado da relação de forças sociais que disputaram entre si a
hegemonia política e cultural nas últimas décadas do século XX. Com isso pretende-se dizer
que esse processo de individualização que perpassa diversas esferas na segunda modernidade,
além da religiosa, está também intimamente ligado à vitória planetária do capitalismo, que
desde a derrota do comunismo no fim da União Soviética, prevalecera global e imediatamente
na sobreposição de valores e princípios neoliberais de organização da vida material e imaterial,
como apontam alguns autores – mesmo que em medidas diferentes.

20
Cf. entrevistas completas na seção “Anexos”.
48

Como ponderara Wendy Brown (2007; 2009; 2015; 2017), é inegável que o triunfo do
neoliberalismo implicou a desconstrução do demos, ou como escreve, “a demolição conceitual
da democracia e sua evisceração substantiva” (BROWN, 2015, p. 9, tradução nossa), e com
isso, substituiu a preocupação cidadã para com o bem público para um tipo de cidadania baseada
na afirmação do homo economicus, individualizado e individualizante, em detrimento do homo
politicus, outrora engajado na vida comum. Com efeito, no enfraquecimento da noção e lógica
da coletividade, prevalecera na efervescência e consolidação do neoliberalismo uma lógica que
potencializou os processos de individualização. É o que aponta Brown quando pontua que

O cidadão-modelo neoliberal é aquele que constrói estratégias para ele mesmo


entre as diversas opções sociais, políticas e econômicas, não aquele que se
empenha com outros para alterar ou organizar essas opções. Uma cidadania
neoliberal plenamente realizada seria o oposto da preocupação com o público;
de fato, ela nem existiria como público. O corpo político deixa de ser um
corpo, mas é, ao contrário, um conjunto de empreendedores e consumidores
individuais (BROWN, 2005, p. 43, tradução nossa).

Nessa estratégia de desdemocratização (BROWN, 2007), com o que alguns chamam de


formação de um sistema pós-democrático (DARDOT; LAVAL, 2016), o neoliberalismo
enquanto sistema normativo estendeu sua influência não só ao âmbito da economia, mas “a
todas as relações sociais e a todas as esferas da vida” (Ibid., p. 9), entre as quais, como
pretendemos mostrar, à religiosa. Como escrevem Dardot e Laval,

(...) essa norma de vida [o neoliberalismo] rege as políticas públicas, comanda


as relações econômicas mundiais, transforma a sociedade, remodela a
subjetividade (...) Ora sob seu aspecto político (a conquista do poder pelas
forças neoliberais), ora sob seu aspecto econômico (o rápido crescimento do
capitalismo financeiro globalizado), ora sob seu aspecto social (a
individualização das relações sociais as expensas das solidariedades coletivas,
a polarização extrema entre ricos e pobres), ora sob seu aspecto subjetivo (o
surgimento de um novo sujeito, o desenvolvimento de novas patologias
psíquicas). Tudo isso são dimensões complementares da nova razão do mundo
(DARDOT; LAVAL, 2016, p. 16).

Dessa forma, se com a secularização da primeira modernidade assistimos à “formação


e a difusão massiva de uma religiosidade que se inclinava cada vez mais para a
individualização” (BECK, 2016, p. 34) – embora ainda houvesse força nos corpos sociais
normativos – na segunda modernidade, os impactos de catalizadores como a consolidação
planetária do capitalismo neoliberal só contribuíram para a intensificação – ou radicalização –
de tal processo. Nesse sentido, a transformação do ser humano em ator de mercado, da relação
do sujeito consigo mesmo em uma concepção desembocada na sua própria afirmação como
49

“capital humano” – dada a característica da lógica neoliberal em atribuir valor a tudo e a todos
(GALLINO, 2000) –, resultou numa privatização de si a perpassar, por sua vez, mesmo as
esferas ontológicas de não-valor, como no caso das experiências anímicas – na privatização da
crença; de Deus, o Deus de cada um. Esse hiperindividualismo, por sua vez, resultaria não só
no esvaziamento dos valores universais da vida comum, como também, e consequentemente,
no desmantelamento e descrédito das antigas formas de regulação social, na diminuição de sua
importância, enfraquecendo assim unidades como a família, o Estado-nação, os partidos
políticos, os sindicatos e todas outras instituições e organizações, nas quais se inserem, também
e sobretudo para nós, as religiosas. Sobre isso, Lipovetsky escreve que a segunda modernidade
– ou hipermodernidade, como chama –

Favorece a desestruturação de antigas formas de regulação social dos


comportamentos, junto a uma maré montante de patologias, distúrbios e
excessos comportamentais. A era do hiperconsumo e da hipermodernidade
assinalou o declínio das grandes estruturas tradicionais de sentido e a
recuperação destas pela lógica da moda e do consumo (LIPOVETSKY, 2004,
p. 29).

Analogamente, a tal conclusão chegaria também o sociólogo francês Alain Ehrenberg,


que buscando traçar os contornos do indivíduo na contemporaneidade, ou como pontua, “o tipo
de pessoa que se institui gradativamente na medida em que deixamos a sociedade de classes, e
o estilo de representação política e de regulação das condutas que lhe eram ligadas”
(EHRENBERG, 2008, p. 11, tradução nossa), aponta para o ocaso dos dispositivos disciplinares
e suas respectivas figuras de autoridade, já que assinala que, na segunda modernidade, “o lugar
da disciplina nos modos de regulação da relação indivíduo-sociedade se reduziu” (Ibid., p. 15,
tradução nossa). Essa nova era, no que lhe concerne e como têm discorrido todos os autores
citados até aqui, seria a “era da autonomia”, da “autonomia e iniciativa individual”. Ratificando,
portanto, o que escrevera Hervieu-Léger, tais contribuições teóricas confluiriam para a
constatação de que, na segunda modernidade, “as instituições religiosas continuam a perder sua
capacidade social e cultural de impor e regular as crenças e práticas”, de modo que “o número
de seus fiéis diminui e os fiéis ‘vem e vão’, não apenas em matéria de prescrições morais, mas
igualmente em matéria de crenças oficiais” (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 41), criando
condições, a partir desse processo radicalizado de individualização, para criação da ideia de um
Deus pessoal, de cada um.

Outrossim, não seria comum detectar em nosso tempo e em nosso espaço geográfico,
dada toda essa abordagem de nosso contexto, o crescimento de vivências e experiências
50

religiosas que procurassem orientação não mais das e nas igrejas, seus sacerdotes ou mesmo
em um corpo regulamentador como a teologia ou qualquer outra força social normativa – tão
comuns na primeira modernidade –, mas em suas próprias significações e apropriações
privadas? Já que a individualização da modernidade individualizada “exclui toda fé imposta
que se pretende inquestionável e que desconheça abismos” (BECK, 2016, p. 22) a resposta nos
parece indubitavelmente positiva. Bem, ao menos é o que pretenderemos mostrar nas próximas
seções, olhando para os desigrejados brasileiros como um exemplo emblemático, já que,
conforme o que será apresentado adiante a partir dos dados do IBGE, as igrejas evangélicas
formais brasileiras – entenda-se institucionalizadas – aparentam apresentar sinais de cansaço,
indicando reconfigurações específicas de religiosidade de parte dos outrora fiéis desse
segmento, caso de nosso recorte elencado.
51

2 – OS EVANGÉLICOS BRASILEIROS

Dada nossa contextualização geral da situação da experiência de ser religioso na


modernidade radicalizada, passamos a discorrer agora sobre as mudanças observadas no
cenário religioso brasileiro que nos permitirão corroborar tais análises, especificamente sobre
o processo de desinstitucionalização evangélica, caso de reconfiguração decorrente de tudo o
que já escrevemos até aqui. Antes, entretanto, uma ponderação faz-se necessária. É muito
possível que esta seção específica seja considerada densa pelo seu leitor – para não dizer
desnecessária em boa parte de seu conteúdo. De fato, a opção por uma espécie de breve
historiografia da presença e inserção do protestantismo e suas ramificações no Brasil não parece
muito condizente com o objetivo geral desta pesquisa, já que seu intuito se resume em ponderar
sobre a experiência religiosa em um contexto e fase históricas específicas. Contudo, já que
temos partilhado da análise de Ulrich Beck sobre o processo de individualização da religião,
nos pareceu mister considerar que, para o autor, “a ‘invenção’ do Deus de cada um constitui
talvez o cerne da revolução luterana” (BECK, 2016, p. 119) – muito embora, como considera
Beck, esteja entre o cristianismo desde suas origens –, ou seja, está enfatizada no seio do
advento do protestantismo, mesmo que tenha conhecido outra forma na segunda modernidade,
a saber, uma reconstrução “fora do cristianismo”, numa espécie de individualização “pós-
religiosa” (Ibid., p. 106).

Sendo assim, o que tentamos apresentar aqui é que, de fato, como pondera Beck, o
protestantismo, como vertente cristã, abriga em sua lógica uma ênfase na individualização da
crença cristã que, inevitavelmente, leva a pulverização de experiências religiosas. Nesse
sentido, nossa intenção a partir de agora será apontar para as consequências dessa ênfase no
território brasileiro numa espécie de arqueologia, primeiro com um panorama da multiplicação
de denominações; depois, com indicadores quantitativos a partir do censo brasileiro, atestando
o surgimento de novas formas de fé evangélica para além da instituição. Assim, embora custoso
para uma pesquisa de tão pouco tempo – que é a de mestrado –, preferimos priorizar a
apresentação de um panorama mais geral que nos permitisse entender o paradigma da
individualização de forma historicamente ampla, primeiro sobre uma primeira individualização,
que tem lugar na religião – da primeira modernidade –, segundo com a individualização da
própria religião – a da segunda modernidade (Ibid., p 87).

Avançando, portanto, destacamos uma constatação: sabe-se que quando tratamos de


Brasil nos referimos a um país essencialmente religioso; pluralmente cristão (SOUZA, 2012).
52

Segundo dados do último censo demográfico (2010), a soma daqueles que se declararam fiéis
às doutrinas cristãs, nos seus mais variados recortes históricos, teológicos e denominacionais21,
ultrapassou 90% do contingente de toda população brasileira. A diminuição do número de
católicos e aumento do número de evangélicos, alavancado principalmente pelo crescimento de
pentecostais, só reafirmaram uma tendência que vinha sendo observada desde a divulgação dos
dados referentes aos censos posteriores a 1980. Assim, enquanto o catolicismo perdia ainda
mais de sua hegemonia no país – de 89,2% em 1980 para 64,6% em 2010 –, os evangélicos
assistiam a um crescimento de 15,6 pontos percentuais no mesmo período, saltando de 6,6%
para 22,2%, num total de 42.275.440 brasileiros22

De 2000 a 2010, os evangélicos cresceram cinco vezes a mais do que a


população brasileira: 61,4% contra 12,3%. Com isso, ampliaram seu rebanho
em 16 milhões de adeptos, saltando de 26,2 para 42,3 milhões, compostos por
7,7 milhões de evangélicos de missão (4% da população), 25,4 milhões de
pentecostais (13,3%) e 9,2 milhões de evangélicos não determinados (4,8%)
(MARIANO, 2013, p. 124).

Desde então, não são poucos os pesquisadores, e de diversas áreas científicas inclusive,
que têm dado enfoque sobre o fenômeno do crescimento evangélico em suas pesquisas,
especialmente os que versam sobre uma de suas correntes mais estudadas nos últimos anos, o
neopentecostalismo23. É perceptível, desde o título, que o estudo das igrejas evangélicas no
Brasil se constituem como ponto primordial para a presente pesquisa, uma vez que a maior
parte dos simpatizantes dos grupos de cristãos desinstitucionalizados, tomados aqui como
objeto principal, é formada majoritariamente por indivíduos outrora filiados às igrejas
evangélicas nas suas mais distintas vertentes e denominações. Nesse sentido, reafirmando a
justificativa do primeiro parágrafo desta seção, cremos que o estudo das igrejas evangélicas
brasileiras abre caminho para um maior aprofundamento no entendimento da
desinstitucionalização evangélica quando do olhar para as trajetórias religiosas tomadas pelos
atores envolvidos nesse processo de ressignificação, bem como nos faz relembrar, como

21
Contingente formado por religiões confessionalmente declaradas cristãs, inseridas nas categorias censitárias
“Católica Apostólica Romana”, “Católica Apostólica Brasileira”, “Católica Ortodoxa”, “Evangélicos”, “Outras
religiões cristãs”, “Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias”, “Testemunhas de Jeová” e “Espíritas”.
22
Tais números advém das pesquisas do último recenseamento realizado pelo órgão oficial brasileiro responsável,
o IBGE (nesse caso, o censo de 2010). Pesquisas mais recentes, entretanto, apontam para um crescimento ainda
mais expressivo dos evangélicos no país desde então. Em levantamento realizado pelo Datafolha em outubro de
2017, por exemplo, o percentual de evangélicos brasileiros é estimado em 32% da população (ver mais em
<http://datafolha.folha.uol.com.br/opiniaopublica/2017/10/1930455-para-votar-19-dos-brasileiros-com-religiao-
seguem-indicacao-da-igreja.shtml>).
23
Freston (1995); Oro (1996); Mendonça (1990, 1997, 2005, 2008); Mariano (2004); Campos (2005); são só alguns
poucos exemplos.
53

citamos acima, que processos de individualização e privatização da crença não só sempre


estiveram presentes no protestantismo como são seus fundamentos propulsores, e que agora, na
modernidade radicalizada, têm desembocado na desinstitucionalização, sendo a igreja não mais
o centro da estrutura religiosa mesmo após ruptura, como na primeira modernidade, mas sendo
o próprio indivíduo o gerador de uma religiosidade para além dos templos e instituições
religiosas.

Sendo assim, algumas questões se tornam fundamentais: quem são os evangélicos


brasileiros? Quais são as igrejas evangélicas no Brasil? Onde se encaixam os desigrejados na
gama de categorias evangélicas apresentadas pelas pesquisas oficiais? De que modo os números
do censo podem nos apontar mudanças que nos permitem confirmar as implicações dos
processos da modernidade radicalizada no campo religioso?

2.1 – DEFININDO TERMOS: PROTESTANTES OU EVANGÉLICOS?

Estudar a religião cristã, aponta a maioria dos especialistas, é deparar-se com um campo
multifacetado. A verdade é que, como escreve Dreher (2013), “o cristianismo jamais foi
uniforme” (Ibid., p. 25). Desde os seus primórdios, nos primeiros séculos da assim chamada
“Era cristã”, variados registros nos dão o panorama de desarmonia de posições existente no seio
da igreja. Basta uma simples análise nos próprios textos neotestamentários, parte do
fundamento escriturístico da fé cristã, para observarmos, além de uma série de embates travados
entre fiéis convencidos de portarem a verdade acerca dos ensinamentos de Jesus24, repetidas
exortações dos escritores às igrejas que estavam sendo influenciadas por aqueles que “(...)
perturbam e querem perverter o evangelho de Cristo” (BÍBLIA, Gálatas, 1, 7). A partir de então,
diversos registros nos dariam uma noção de como a discórdia era rotineira entre os adeptos do
cristianismo – os gnósticos e judaizantes no século I; o docetismo, marcionismo e montanismo
no século II; sabelianismo no século III; e o donatismo e arianismo no século IV são apenas
alguns exemplos de correntes condenadas pela ortodoxia histórica –, que por sua vez e
paradoxalmente, levariam a recém fundada religião a uma rígida solidificação institucional,
passando por marcos como as resoluções dos primeiros concílios, formulações de credos, a
formação do cânon, sua consolidação e expansão ao ponto de chegar a ser estabelecida como
religião oficial do império em 380 com o imperador Teodósio.

24
Lê-se no livro de Atos dos Apóstolos, por exemplo, que a discordância da igreja em relação às práticas de fé dos
gentios (não judeus), se deveriam seguir ou não os costumes da religião israelita, levaram a formação do primeiro
concílio da igreja, em Jerusalém.
54

Na medida em que a história avança essa realidade vai se confirmando cada vez mais,
posições oficiais se dogmatizam enquanto pensamentos heterodoxos levam seus responsáveis
às fogueiras. De forma paulatina, a igreja católica se infiltra, basicamente, na integralidade das
esferas da vida privada e social de toda uma época, constituindo-se como principal dispositivo
disciplinar de uma era. Não demoraria muito para que as esferas religiosa, política e econômica
se entrelacem ao ponto de ser praticamente impossível distingui-las e diferenciá-las. Todavia,
em meio ao exercício de todo aquele monopólio, a Europa passava, depois de séculos, por uma
nova fase de inauguração de novos projetos culturais e políticos. Com a primeira modernidade
– já discorrida na primeira seção –, “aos poucos foi surgindo forte clamor por reforma”
(DREHER, 2013, p. 28).

Jan Huss, pré-reformador tcheco condenado por heresia à fogueira no Concílio de


Constança de 1414, diante da não negação de suas posições contrárias ao terreno de poder
ocupado pela igreja de sua época, parecia prever o futuro em suas últimas palavras antes de ser
queimado vivo em 6 de julho de 1415: “Hoje vocês assarão um ganso25 magro, mas em cem
anos ouvirão um cisne cantar. Não serão capazes de assá-lo e nenhuma armadilha ou rede
poderá segurá-lo” (THE PAPIST, 1997, p. 60, tradução nossa). Em 1531, ao comentar um edito
imperial, Martinho Lutero afirmava ser aquele de quem Huss havia falado um século antes. A
Reforma chegara em meio a um tempo de mudanças de diversos sentidos, o mundo já não era
o mesmo, a religião deixava de ocupar cada vez mais a base do social, privatizava-se à medida
que seu espaço ia sendo tomado por outros atores, como o mercado e o próprio Estado: a
modernidade desfilava pelos corredores europeus. Embora o ano de 1517 seja tomado como o
marco da reforma protestante, o fatídico 31 de outubro nada mais era que o ápice de um
sentimento que permeava o continente muito tempo antes, mais um episódio, e talvez um dos
mais radicais, que confirmava a não uniformidade da religião cristã. Tão logo o movimento
deixava de ser motivado apenas por causas religiosas e passava a ser incentivado por razões
políticas, sociais e econômicas. Protegido por uma série de autoridades do Sacro Império
Romano-Germânico avançava para além dos limites geográficos de sua eclosão, estendendo-se
pela Suíça, Países Baixos, França, Reino Unido, entre outros.

Em 1529, por ocasião da escrita de uma carta pública de protesto por parte de cinco
príncipes eleitores, além de catorze cidades livres, contra a decisão da segunda Dieta de Spira,
que contando com a maioria dos Estados católicos manteve a condenação dos ensinamentos de

25
O nome “Huss”, na língua boêmia, traduz-se como “ganso”.
55

Lutero e proibiu a aderência de suas ideias aos Estados que ainda não as tivessem aceitado até
o presente momento, o termo “protestante” passava a ser usado para se referir aos reformadores
e seus adeptos. Ainda nesse contexto, o termo “evangélico”, já presente nos pré-reformadores,
seria retomado designando aqueles que abraçaram o evangelho que havia sido “recuperado”
pela reforma. Derivado da palavra ευαγγελιον (evangelion), que é o termo grego para
"evangelho", os "evangélicos" eram aqueles que, resgatando o evangelho, lutariam agora para
proclamá-lo a todos. Com o passar do tempo, seria essa a mesma terminologia empregada aos
que, na Inglaterra do século XVII, buscavam diferenciação, inclusive política, da Igreja da
Inglaterra. Não demoraria muito para que esses fossem os conceitos usados para definir não só
o todo de igrejas históricas que provieram do movimento reformatório do século XVI, mas toda
e qualquer experiência religiosa cristã derivada destas denominações que, historicamente,
diferir-se-iam, ora mais ora menos, dos padrões estabelecidos pela igreja católica apostólica
romana.

Desde então, o protestantismo seria marcado por uma que, como apontam os
especialistas, vem a ser de suas principais características: a fragmentação. Baseados na crença
do sacerdócio universal dos crentes e na sua relação direta com o divino sem a necessidade de
mediação sacramental por parte da igreja – diversamente à visão eclesiológica observada no
catolicismo romano, por exemplo – a reforma protestante "promoveu uma radical
dessacralização da hierarquia eclesiástica" (FERNANDES, R. C., 1998, p. 41), que por sua vez,
evidenciava um traço marcante da modernidade: uma sociabilidade individualizada,
característica já tratada na seção que deu início a este trabalho. O sola fide protestante –
traduzido do latim como “somente a fé”, um dos cinco pilares fundamentais do protestantismo,
conhecidos como “as cinco solas” – tirava a salvação das mãos despóticas da igreja de Roma,
entregando-a aos crentes (indivíduos) agraciados com fé. Se séculos antes era impensável a
formação e manutenção de um núcleo cristão fora do terreno da igreja romana, a modernidade
se encarregava – pelo processo de individualização – de dar ao panorama religioso novos
contornos. Karl Marx, filho de um luterano pragmaticamente convertido do judaísmo,
diagnosticaria tais mudanças do século XVI escrevendo, em 1843, em Crítica da filosofia do
direito de Hegel que

Sem dúvida, Lutero venceu a servidão por devoção porque pôs no seu lugar a
servidão por convicção. Quebrou a fé na autoridade porque restaurou a
autoridade da fé. Transformou os padres em leigos, transformando os leigos
em padres. Libertou o homem da religiosidade exterior, fazendo da
56

religiosidade o homem interior. Libertou o corpo dos grilhões, prendendo com


grilhões o coração (MARX, 2010, p. 152).

Essas palavras eram a explicação para uma sentença emblemática dada no parágrafo
anterior: “Assim como outrora a revolução começou no cérebro de um monge, agora ela começa
no cérebro do filósofo” (Ibid., p. 152). A relação do protestantismo com a modernidade desde
sua observação enquanto movimento religioso era nítida. Como escrevera Lyndon Santos, “o
protestantismo construiu-se historicamente na relação com a modernidade, seus pressupostos,
enunciados, práticas e conquistas” (SANTOS, 2008, p. 179). Abertos a um livre e pessoal
exame das escrituras por conta desse caráter subjetivo e individualista, os protestantes foram,
então, dissolvendo-se em diferentes denominações26 num conjunto de experiências religiosas
diversas. Por essa razão, como aponta Antônio G. Mendonça, o uso da palavra
“protestantismos”, no plural, nos daria uma maior e real compreensão desse ramo do
cristianismo, vindo a ser o seu uso mais adequado (Ibid., 1990, p. 11). Protestantes, dessarte,
como pontua o autor

(...) seriam aquelas igrejas que se originaram da Reforma ou que, embora


surgidas posteriormente, guardam os princípios gerais do movimento. Essas
igrejas compõem a grande família da Reforma: luteranas, presbiterianas,
metodistas, congregacionais e batistas. Estas últimas, as batistas, também
resistem ao conceito de protestantes por razões de ordem histórica, embora
mantenham os princípios da Reforma. Creio não ser, por isso, necessário criar
para elas uma categoria à parte. São integrantes do protestantismo chamado
tradicional ou histórico, tanto sob o ponto de vista teológico como
eclesiológico. Esses cinco ramos ou famílias da Reforma multiplicam-se em
numerosos sub-ramos, recebendo os mais diferentes nomes, mas que, ao
guardar os princípios fundantes, podem ser incluídos no universo do
protestantismo propriamente dito (Ibid, 2005, p. 51).

Tomando dessa noção, logo surgia também o emprego do termo “evangélicos”.


Certamente, como apontam estudiosos, o uso dessa palavra há muito teria sido consagrado
como indicativo da totalidade de cristãos protestantes no Brasil. É exatamente o que apontou
Antônio Flávio Pierucci, em programa exibido pela TV Cultura em 2004

(...) aqui, em evangélicos, é bom lembrar que o censo tanto quanto a sociologia
da religião chama, usa, o termo “evangélicos” como sinônimo, taco à taco, de
“protestantes”. Quer dizer, não é assim: você tem os protestantes e dentro dos
protestantes você tem os evangélicos. Não. Todos os protestantes do Brasil

26
“Denominações” que, nas palavras de Reily (1993, p. 35), sugerem grupos membros de um grupo ainda maior,
a “Igreja de Cristo” na concepção cristã. Von Wiese e Howard Becker (1950) apontam a “denominação” como
uma instituição religiosa menor do que uma “igreja”, que sendo uma “seita”, acaba por se institucionalizar após
gozar de calmaria frente a ruptura com a antiga instituição a qual pertencia.
57

são chamados pelo censo de evangélicos e é assim que eles se


autodenominam. Digamos, desde que o primeiro grupo protestante chegou no
Brasil, ainda no primeiro império, em 1824, que é um grupo de colonos
alemães luteranos, eles fundaram no Brasil a igreja evangélica luterana do
Brasil. Então, já o primeiro grupo protestante que veio para o Brasil, por uma
tradição alemã, traduziu o evangelische para evangélico e aí está batizado para
sempre. Ou seja, todo ramo do protestantismo é o ramo dos evangélicos
(PIERUCCI, 2004a).

Em si, esse conceito se diferencia do utilizado para se referir ao movimento evangelical,


que na década de 1940, surgia como fruto de uma contestação interna do movimento protestante
fundamentalista norte-americano27. Nesta relação, inclusive, encontrava-se a possível e mais
recorrente confusão em torno de seu uso, dado que os protestantismos encontrados no Brasil,
em maioria, estão estritamente relacionados a esse último. Entretanto, embora graficamente
similares, os termos “evangélicos” e “evangelicais” – como são chamados os grupos do
movimento evangelical – apresentam não só conceituação em tempos distintos como sentidos
próprios diferentes. Como escreve Prócoro Velazques Filho

Evangélico é o movimento teológico que remonta aos pré-reformadores e


enfatiza a volta à Bíblia como única regra de fé e de conduta. Esse movimento
passou por todos os reformadores e marcou a distinção entre o catolicismo
romano e os demais movimentos de renovação religiosa. Portanto, evangélicas
são todas as Igrejas e denominações que descendem, direta ou indiretamente,
da Reforma do século XVI. Evangelical é uma ala do movimento evangélico
que enfatiza a experiência emocional da conversão como sinônimo de
conversão. (...) O movimento evangelical está intimamente ligado a outro
movimento religioso: os reavivamentos (MENDONÇA & VELAZQUES
FILHO, 1990, p. 82).

Em outras palavras, dentre os ramos inseridos na gama de denominações chamadas de


protestantes e/ou evangélicas – aqui ambas nomenclaturas indicaram o mesmo apanhado, sendo
usadas como sinônimos – encontram-se também os evangelicais, presentes no Brasil desde o
século XIX. Sobre isso escreveu também escreveu Mendonça

Como, portanto, identificar todos os protestantes brasileiros como


evangélicos? Embora as linhas do movimento se ajustem bem ao perfil da
média dos protestantes brasileiros, existem muitos que, sendo evangélicos,
não são “evangelicais”. Daí a necessidade que muitos expositores do
protestantismo têm de introduzir o anglicismo evangelical para distinguir

27
O fundamentalismo protestante, enquanto movimento religioso norte-americano, caracterizou-se de início pela
reafirmação de pontos considerados essenciais à fé cristã protestante ortodoxa (inerrância da Bíblia, nascimento
virginal e divindade de Cristo etc.) em meio ao crescimento do liberalismo teológico moderno. Posteriormente,
destacar-se-ia pela inserção na esfera pública, onde o termo passará a ter conotação de religiosidade extremada.
Ver SCHWEITZER, 2001; CAMPOS, 2010.
58

“evangélicos” de evangélicos. Aqueles, tipicamente conservadores,


denominacionalistas, antiecumênicos e até fundamentalistas, e estes, soltos
nas mais variadas correntes. Para concluir podemos dizer que os protestantes
brasileiros são evangélicos, mas nem todos são “evangelicais”
(MENDONÇA, 1992, p. 6).

Dessa maneira, de forma gradual, os evangélicos cresciam e se espalhavam pelo mundo.


Consequência direta dos projetos impostos pela modernidade, não demorariam para chegar ao
Brasil, como veremos adiante.

2.2 – O RECORTE HISTÓRICO-DENOMINACIONAL

Para tratar dos evangélicos no Brasil seguiremos pela linha dos recortes histórico-
denominacionais que tratam da presença protestante no país, desde as tentativas de inserção no
período colonial às manifestações mais contemporâneas. Acreditamos ser o esboço do
desenvolvimento histórico-denominacional fundamental para o estudo e compreensão das
igrejas evangélicas aqui presentes, sem deixar de lado, evidentemente, as diversas interações
observadas entre denominações de “períodos” distintos. Nesta linha de raciocínio, uma
observação é necessária. A pulverização denominacional protestante, observada desde a
Reforma, tem como de seus principais motivos as questões de ordem teológica, movidas
sobretudo pelo predicado individualizado da livre interpretação da Bíblia, assunto já pincelado
anteriormente neste trabalho. Sendo assim, o recorte histórico-denominacional invariavelmente
estará acompanhado de determinado recorte teológico, ora mais ora menos radical. Pensamos
dar-nos a entender de forma mais clara se voltarmos a discussão de Mendonça (1998, 2005)
sobre protestantismo e pentecostalismos, por exemplo. O principal motivo que faz com que o
autor faça uma diferenciação entre as duas “correntes” reside principalmente em razões
teológicas. Depois de discorrer sobre as diferenças do uso da Bíblia nos dois grupos, Mendonça
escreve que

Entendemos que as diferenças e oposições acima expostas são suficientes para


estabelecermos a distinção entre um e outro. Percebe-se entre eles alguns
traços de continuidade que nos permitem afirmar que existe uma matriz
protestantes no pentecostalismo institucionalizado – como a eclesiologia –
mas há importante ruptura em questões fundamentais, como a fonte da
autoridade e a revelação (MENDONÇA, 1998, pg. 80).

De fato, quando observadas, as denominações não católicas no Brasil guardam em si


princípios teológicos distintos, como observa o autor. Assim, aparar as arestas de pesquisa sobre
protestantismo por um viés exclusivamente teológico parece sensato, caso de textos de autores
como Steve Bruce (1990), por exemplo. Entretanto, vale-se reafirmar que, para efeito de uma
59

pesquisa sociológica – proposta deste trabalho – o recorte histórico-denominacional, cremos,


revela-se capaz de abarcar o objetivo proposto, uma vez que carrega em si mesmo a questão
epistemológica dos protestantismos, razão maior das cisões, quando não das polarizações
internas de uma mesma denominação.

Assim sendo, dentro do aqui temos chamado de evangélicos, seguiremos pela linha de
análise do recorte histórico-denominacional apresentado nas pesquisas oficiais – sobretudo o
censo do IBGE -, olhando para suas matrizes fundantes no protestantismo, capazes de abarcar
não a totalidade de igrejas no Brasil – o que seria praticamente impossível, dada a grande
multiplicidade de denominações que surgem dia após dia -, mas grande parte delas, o que
inevitavelmente virá acompanhado também de questões teológicas, embora estas últimas não
sejam enfatizadas, mas sim as suas implicações histórico-sociais.

Sobre essa escolha específica, cabe lembrar das constantes reflexões propostas por
pesquisadores quanto a dificuldade para com às categorias utilizadas pelo IBGE sobre o
panorama religioso brasileiro, como já apontado na seção “notas metodológicas” deste
trabalho.28 Quanto a isso, mais uma vez reconhece-se a limitação imposta pela plural realidade
evangélica brasileira, buscando, todavia, o máximo de esforço científico possível para
apresentação de dados mais claros e consistentes. Nesse exercício, pretenderemos mostrar como
já afirmamos na seção anterior que o processo de individualização está no seio do
protestantismo desde seus primórdios, muito embora assuma uma configuração diferente, uma
radicalização na segunda modernidade – conclusão a que se chega, por exemplo, ao se constatar
a gradativa pulverização de denominações e movimentos, como o dos desigrejados.

2.3 – O FRACASSO NO PERÍODO COLONIAL

Não demorou muito para que o protestantismo europeu desembarcasse no Brasil, ainda
durante o processo de colonização. Nesse período, três momentos distintos se destacaram: um
ainda no século de XVI, de 1555 a 1560, quando da chegada de huguenotes29 – como eram
chamados os calvinistas reformados franceses nos séculos XVI e XVII - na baía de Guanabara;
e outros dois no século XVII, com uma nova tentativa francesa de ocupação no Maranhão, ainda
na primeira década, e a presença de reformados holandeses na colonização no nordeste

28
Os trabalhos de Clara Mafra (2004; 2013a; 2013b) e Walter Altmann (2012), por exemplo.
29
Embora incerto, duas principais hipóteses apontam para a origem do termo huguenote. A primeira, e
numericamente mais creditada, se fundamenta na derivação do nome de Hugues Besançon, líder de um movimento
político francês que lutou pela independência de Genebra contra o domínio da dinastia de Saboia. Já a segunda,
defendida por um biógrafo de Calvino, Bernard Cottret (1999), aponta para relação com a palavra francesa
Eidguenot (confederados), grupo político genebrino mais progressista e enveredado no protestantismo.
60

brasileiro sob a regência de Maurício de Nassau, de 1630 a 1654. Em ambos casos, entretanto,
a tentativa de inserção no país não foi bem-sucedida, resultando no que Mendonça chamou de
“tentativas fracassadas” (1990, p. 12).

2.3.1 – VILLEGAGNON E OS CALVINISTAS NA BAÍA DE GUANABARA

Sob a tutela financeira de Gaspar de Coligny (1519-1572), chefe do partido político


huguenote, o diplomata Nicolau Durand de Villegagnon (1510-1571) chega em Guanabara no
ano de 1555 e dá início ao estabelecimento colonial da França Antártica. Juntamente com ele,
a primeira expedição de Coligny enviara quatrocentos homens, basicamente militares
mercenários. Cerca de dois anos mais tarde, em 7 de março de 1557 e a pedido do próprio
Villegagnon – que solicitava à Igreja Reformada de Genebra “elevação do nível moral e
espiritual” da terra que agora habitava - aporta à recente colônia uma segunda caravana, dessa
vez com 280 pessoas, entre as quais dois pastores recomendados pelo reformador francês João
Calvino: Pierre Richier e Guillaume Chartier. Esse período viria a ficar marcado na história
pela realização do primeiro culto e celebração do sacramento da Santa Ceia protestantes nas
Américas. Jean de Léry, que estava entre os que vieram na missão francesa, registrara os passos
iniciais do movimento

Assim, antes de partir de França, Villegagnon prometeu a alguns honrados


personagens que o acompanharam, fundar um puro serviço de Deus no lugar
em que se estabelecesse. E depois de aliciar os marinheiros e artesãos
necessários, partiu em maio de 1555, chegando ao Brasil em novembro, após
muitas tormentas e toda a espécie de dificuldades. Aí aportando, desembarcou
e tratou imediatamente de alojar-se em um rochedo na embocadura de um
braço de mar ou rio de água salgada a que os indígenas chamavam Guanabara
e que (como descreverei oportunamente) fica a 23° abaixo do Equador, quase
à altura do Trópico de Capricórnio. Mas o mar daí o expulsou. Constrangido
a retirar-se avançou quase uma légua em busca de terra e acabou por
acomodar-se numa ilha antes deserta, onde, depois de desembarcar sua
artilharia e demais bagagens, iniciou a construção de um forte, a fim de
garantir-se tanto contra os selvagens como contra os portugueses que viajavam
para o Brasil e aí já possuem inúmeras fortalezas (LÉRY, 1972, p. 22).

Receios, hesitações e incertezas, porém, em pouco tempo perturbariam Villegagnon.


Polêmico e de tendências católicas, o então governador da França Antártica passou a criticar e
questionar uma série de posições calvinistas dos que anteriormente recebera de forma piedosa.
Obrigando-os a declarar os termos de sua fé – origem da primeira confissão de fé protestante
das Américas, a Confesio Fluminensis -, Villegagnon, que já rejeitara publicamente o
calvinismo, manda executar três de seus assinantes por discordância doutrinária, eram os
61

primeiros mártires do credo protestante na América. Chamado de volta à França em 1558 para
justificar-se, o almirante se ausentou da efêmera colônia, que, invadida e destruída por forças
portuguesas comandadas por Mem de Sá, deixaria de existir pouco tempo depois. Era o fim da
primeira tentativa de inserção do protestantismo em terras brasileiras.

2.3.2 – OS PROTESTANTES E A TENTATIVA DA “FRANÇA EQUINOCIAL”

No Maranhão, mais precisamente na fundação da cidade de São Luís, em 1612, ocorrerá


a segunda tentativa de estabelecimento de uma colônia francesa no Brasil, com massiva
presença de huguenotes. De início, a missão de Daniel de La Touche, senhor de La Ravardiere,
tinha como objetivo a fundação da França Equinocial sob valores e princípios do protestantismo
calvinista, influência direta do rei protestante Henrique IV. Assassinado, o promulgador do
Edito de Nantes (1598), que deu liberdade religiosa aos protestantes na França, não chegou a
ver o fracasso de sua missão. O crescimento expressivo da presença de católicos, juntamente
com o envio e estabelecimento da liderança de frades capuchinos católicos enviados por Maria
de Médici, aos poucos foram minando a presença protestante na região. Com a capitulação
francesa a Portugal, dava-se o fim de mais uma tentativa de inserção do protestantismo no
Brasil.

2.3.3 – MAURÍCIO DE NASSAU E OS REFORMADOS NO NORDESTE BRASILEIRO

A presença dos holandeses no nordeste brasileiro se caracteriza como a tentativa de


inserção do protestantismo no Brasil no período colonial de maior duração. O domínio holandês
que se estendeu entre os anos de 1630 a 1654 ficou marcado pela presença de reformados que
buscavam estabelecer no novo continente uma sociedade pautada pelo protestantismo,
considerado como a verdadeira religião. Abrangendo sete das dezenove capitanias do Brasil à
época, a Nova Holanda destacar-se-ia por uma incomum liberdade religiosa. Enquanto católicos
exerciam sua fé livremente e judeus lançavam os alicerces das primeiras sinagogas das
Américas, o protestantismo angariava uma quantidade cada vez maior de adeptos. Sobre esse
período escreveu Mendonça

Durante quinze anos (1630-1645), Pernambuco e outras áreas do Nordeste


brasileiro foram protestantes. Embora Maurício de Nassau fosse bastante
tolerante com os católicos, o esforço dos “predicantes” logo conseguiu reunir
flamengos, ingleses e franceses moradores no Recife e, com eles, organizar a
primeira igreja. Procurando aprender a língua geral, os pregadores holandeses
não perderam de vista os indígenas, os africanos e os portugueses. Abriram
guerra à imoralidade reinante entre os locais e mesmo entre os próprios
holandeses. (...) Com os consistórios (conselhos) das congregações locais,
62

estava implantada, de modo completo, a organização eclesiástica calvinista


(MENDONÇA, 2008, p. 39 e 40).

Passados vinte e quatro anos desde a ocupação, e por uma série de motivos que aqui não
convém detalhar, a colônia é finalmente reconquistada pelos portugueses. Era o fim da Igreja
Reformada Holandesa no nordeste, o fracasso de mais uma tentativa – e a última no período
colonial – do estabelecimento do protestantismo no Brasil.

2.4 – O PROTESTANTISMO DE IMIGRAÇÃO

Depois das três tentativas frustradas durante o período colonial, o protestantismo


finalmente teria êxito em sua implementação no país a partir das primeiras décadas do século
XIX. Desde a saída dos holandeses do nordeste, no século XVII, o Brasil não tolerara outra
expressão de religiosidade que não fosse o catolicismo, sua religião oficial. Todavia, a situação
parecia mudar com a chegada da família real e a consequente mudança política que abrangeria
a relação metrópole-colônia. Em 1808, ano que marca a chegada de Dom João VI, um primeiro
decreto é oficializado com medidas que abririam os portos brasileiros as “nações amigas”,
marcando o fim do Pacto Colonial. Dois anos mais tarde, em 1810, sacramentam-se entre
lusitanos e ingleses os tratados de Comércio e Navegação, Amizade e Aliança e dos Paquetes
que, reafirmando a vantagem britânica nas alíquotas alfandegárias em relação às demais nações,
atraíram centenas de protestantes imigrantes – principalmente anglo-saxões - que, enxergando
no Brasil valiosa oportunidade de benesses dos mais variados tipos, se estabeleceriam e
gozariam de relativa liberdade religiosa. É a partir de 1810, por exemplo, que igrejas anglicanas
se estabelecem no país com seus capelães, responsáveis por serviços de assistência,
principalmente religiosa, aos imigrantes ingleses que aqui se estabeleciam aos poucos. Os cultos
protestantes paulatinamente “regressavam” ao Brasil nesses últimos anos de regime português,
ainda que de maneira bem restritiva. É nesse contexto que se dará o que seria convencionado
pela sociologia da religião anos mais tarde como o contexto de inserção do protestantismo de
imigração no país. Obviamente, tal nomenclatura forjou-se a partir de uma característica
distintiva: a inserção de protestantes estrangeiros – anglicanos e, sobretudo, luteranos - que não
demonstravam muito interesse em propagar sua fé aos brasileiros, e que, em razão dessa não
motivação missionária e proselitista, satisfaziam-se com a permissão de realização de seus
cultos em templos “sem a forma exterior de templos” (LÉONARD, 2002, p. 47), assegurando
assim a manutenção de suas tradições religiosas protestantes mesmo em terras católicas-
portuguesas.
63

2.4.1 – O LUTERANISMO

Os anos vão se passando e é em 1824 - período pós independência, portanto - que o


Brasil experimentará da primeira formação institucional protestante, com a formação de
comunidades permanentes luteranas a partir da imigração alemã. A comunidade formada por
cerca de 300 alemães luteranos que vieram para a região serrana da atual cidade de Nova
Friburgo, no estado do Rio de Janeiro, liderada por Friedrich Oswald Sauerbronn (1784-1864),
primeiro pastor luterano não só no Brasil, mas em toda América Latina, é tomada como marco
inicial do feito30. Em certo sentido, a assembleia constituinte de 1823 teria colaborado com esse
fato. Escreve Mendonça (2008)

A questão da liberdade religiosa foi motivo de grandes debates na Constituinte


de 1823. Havia numerosos parlamentares, portadores de ideias liberais, que
propugnavam abertura maior, provavelmente também porque pressentiam a
inevitabilidade de um contato cada vez mais intenso com nações protestantes.
Houve cerrada oposição. Nem podia ser diferente, pois que, dos noventa
constituintes, dezenove era padres. Mas por fim, embora continuasse
mantendo a religião católica como a religião do Estado par excellence, e a
única a ser mantida por ele, a Constituição reconhecia o Brasil como nação
cristã em todas as suas comunhões e estendia os direitos políticos a todas as
profissões cristãs (MENDONÇA, 2008, p. 43).

Com efeito, a imigração dos alemães seria a responsável por espalhar o protestantismo
– nesse caso luterano – em diversas regiões do país. Entre os cerca de mais de 4 milhões de
imigrantes que desembarcaram no Brasil entre o final do século XIX e início do XX, os alemães,
primeiro grupo étnico europeu não ibérico a se estabelecer no país, foram o quarto contingente
em ordem numérica, atrás de espanhóis, italianos e portugueses (ADAS; ADAS;
MARTINELLI, 1998). Segundo Vallentin (1909, p. 253), aproximadamente 350 mil pessoas
de “fala alemã” residiam aqui no início do século XX, lutando por preservar no novo território
sua germanidade, inclusive no que diz respeito às tradições religiosas. Aos poucos, os
imigrantes que outrora haviam sido dirigidos majoritariamente por “pastores leigos”, isto é, sem
ordenação oficial e formação teológica, acompanharam um processo gradativo de
institucionalização. Pastores passaram a ser enviados frequentemente ao Brasil pela igreja
estatal alemã. Com o estabelecimento de diversas comunidades autônomas umas das outras,
não tardaram as tentativas de criação de conselhos maiores que fossem responsáveis por
inúmeras associações delas, e assim os sínodos iam sendo criados. Unidos em 1938, com

30
Mendonça (1990) aponta ainda a fundação de outra comunidade no sul do país, também em 1824, com 43
integrantes, na atual São Leopoldo-RS.
64

exceção a não aderência do Sínodo de Missouri, tais sínodos dariam origem em 1949 a uma
Federação Sinodal, três anos após a abertura de uma Escola Superior de Teologia (EST) em
São Leopoldo-RS, que, visando a formação de lideranças brasileiras, levava a igreja rumo à
independência da Igreja Evangélica Alemã – o que ocorrerá oficialmente em 1955. Assim, após
uma série de episódios singulares31, institui-se em 1962 a Igreja Evangélica de Confissão
Luterana no Brasil (IECLB). No país, entretanto, essa não vem a ser a única Federação Sinodal
luterana a tornar-se oficialmente uma igreja. Fruto da ação do Sínodo de Missouri, que se
estabelece nos Estados Unidos a partir da chegada de imigrantes alemães em 1847 e irradia-se
ao Brasil no início do século XX, forma-se o movimento que será denominado em 1954 de
Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB). Historicamente mais ortodoxa e conservadora, a
IELB formaria com a IECLB o conjunto das duas maiores denominações luteranas no Brasil.
Desde então, os luteranos sempre foram, como escreve Gertz, “(...) uma minoria absoluta dentro
da sociedade brasileira” (GERTZ, 2007, p. 9). A explicação para tal razão parece simples
quando reafirma-se, como escreveu Mendonça (1990), o “caráter étnico” das igrejas do
chamado protestantismo de imigração. A não dedicação ao proselitismo, como resultado do tal,
nesse sentido revela-se como principal chave explicativa, marca diferencial em relação às
inserções seguintes.

Atualmente, segundo dados do Censo 2010, os luteranos no Brasil – abrangendo pelo


menos duas de suas grandes denominações, a maior IECLB e a menor IELB – formam um
contingente de 999.498 adeptos, quase 6% a menos quando comparados ao panorama de 2000,
ocasião em que os números chegavam a 1.062.144 de filiados. A igreja anglicana, outra
denominação aqui apontada no protestantismo de imigração, nem sequer aparece na pesquisa.
Dadas as devidas ressalvas para com as categorias do IBGE, a diminuição em números dessa
linha protestante é evidente, o que poderia indicar a perda de influência das vertentes religiosas
mais tradicionais, tese defendida, por exemplo, por Mendonça e Velasques Filho (1990),
Pierucci (2004b) e Mariano (2010), que associarão o fenômeno à pluralização e oferta religiosa.

Muito embora essa primeira corrente tenha se definido exclusivamente como


consequência imigratória, será inegável sua influência na criação de condições que facilitariam
a entrada e a permanência bem-sucedida das correntes missionárias.

31
Aos poucos, a Federação Sinodal luterana do Brasil foi ganhando reconhecimento entre órgãos evangélicos. Em
1950 foi aceita na Federação Luterana Mundial e no Conselho Mundial de Igrejas. Já em 1958 passa a fazer parte
da Confederação Evangélica do Brasil.
65

2.5 – O PROTESTANTISMO DE MISSÃO

Uma vez revista desde a constituinte de 1823, a questão da liberdade religiosa foi crucial
para o processo de inserção do protestantismo missionário no Brasil Império. A Carta de 1824
trazia logo em seu 5º Artigo: “A Religião Catholica Apostolica Romana continuará a ser a
Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou
particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo [sic]”
(BRASIL, 1824). Além disto, o de número 179 também ponderava em seu V inciso: “Ninguem
póde ser perseguido por motivo de Religião, uma vez que respeite a do Estado, e não offenda a
Moral Publica [sic]” (Ibid.). De fato, os primeiros missionários no país fariam se valer de tais
palavras. O anseio por missões protestantes na América Latina era pujante nas organizações
protestantes internacionais. Escreve Mendonça

Na virada do século XIX, a expansão colonial do mundo anglo-saxão elevou


o movimento missionário a escala mundial. Em 1910, a Conferência
Missionária de Edimburgo forjou a ideia de um corpus christianum mundial
e procurou centralizar os objetivos missionários nos povos considerados
pagãos, como asiáticos e africanos. A conferência de Edimburgo chocou-se
com a mentalidade missionária desenvolvida durante o século XIX, que
incluía os povos católicos entre os pagãos. Portanto, a América Latina,
inteiramente católica, tinha, para os conservadores, de estar dentro dos
objetivos missionários (MENDONÇA & VELASQUES FILHO, 1990, p. 31).

Não tardou muito, então, para que determinadas missões chegassem ao Brasil,
protegidas pela “legislação avançada de D. Pedro II e certas autoridades imperiais” (BRAGA
& GRUBB, 1932, p. 49). De início, é mister mencionar que as primeiras ações protestantes
missionárias no país não se dariam, entretanto, só com a instalação de igrejas propriamente
ditas, mas com o trabalho de organizações britânicas e americanas interessadas na distribuição
de bíblias pelo território brasileiro. Sobre isso, é interessante reafirmar que poucas bíblias eram
encontradas em território brasileiro, como escreve Giraldi

Até o final do século XVIII, a Bíblia era um livro praticamente desconhecido


no Brasil. O fechamento dos portos brasileiros aos navios estrangeiros e o
controle rígido que as autoridades religiosas exerciam sobre a entrada de todo
o tipo de livro mantiveram essa situação inalterada até o final do século XVIII.
Alguns poucos exemplares da Bíblia em francês e holandês chegaram ao País
durante os séculos XVI e XVII, nas caravelas dos calvinistas franceses e
holandeses, integrantes das expedições invasoras que desembarcaram nos
Estados do Rio de Janeiro e Pernambuco. A situação somente começou a
mudar no início do século XIX, quando foi liberada a importação de livros, e
as primeiras Sociedades Bíblicas começaram a enviar Bíblias na língua
portuguesa para o Brasil. Mas a distribuição regular das Escrituras só começou
66

mesmo a partir da segunda metade de século XIX, quando as Sociedades


Bíblicas enviaram seus representantes e instalaram suas Agências bíblicas no
País (GIRALDI, 2008, p. 11).

Assim, chegaria ao Brasil em 1835 a primeira denominação de trabalho estritamente


missionário, a norte-americana Igreja Metodista Episcopal. Três momentos, então, marcariam
sua presença aqui até o insucesso dessa primeira tentativa. O primeiro com a chegada do
missionário pioneiro, Fountain Elliot Pitts, que após responder positivamente ao desejo de
expansão da igreja pela América do Sul, tratado pela Conferência Geral da denominação em
1834 – assunto que vinha sendo considerado desde 1832 – seria enviado ao país oficialmente
pelo bispo James Osgood Andrew para o início das atividades missionárias, em 1835,
principalmente em residências da cidade do Rio de Janeiro. O segundo, com a chegada do pastor
Justus Spaulding em terras cariocas, em 1836, após apelo de Pitts, organizando ali uma
congregação formada por, aproximadamente, quarenta estrangeiros. Já o terceiro, a chegada de
Daniel Parish Kidder em 1837, que enviado pela Sociedade Bíblica norte-americana, se
destacaria como distribuidor e vendedor de Bíblias pelo território brasileiro, registrando suas
viagens em documentos que posteriormente se sobressairiam como importantes relatos desse
período de inserção do protestantismo no país32. Seis anos após sua chegada, no final de 1841,
a Igreja Metodista Episcopal encerraria oficialmente suas atividades no Brasil graças a alguns
motivos específicos, tais como o falecimento da esposa de Kidder em 1840, Cyntihia Russel, e
o mais provável segundo Mendonça, o corte de recursos missionários por conta da “(...) crise
das igrejas protestantes americanas por causa da escravidão (...)” (MENDONÇA, 2008, p. 46).
O metodismo só retornaria ao país anos depois, ponto que trataremos mais adiante.

Atuariam ainda entre os brasileiros, como agentes oficiais de sociedades bíblicas, o


pastor presbiteriano James Cooley Fletcher, vinculado à União Cristã Americana e Estrangeira,
à Sociedade Americana dos Amigos dos Marinheiros e à Sociedade Bíblica Americana, em
missões que foram de 1851 a 1854 – posteriormente vinculado também à União Americana de
Escolas Dominicais, em missão de 1855 a 1856 -; e Richard Corfield, agente da Sociedade
Britânica e Estrangeira, em 1856. Nestas ocasiões, contudo, a finalidade última não consistia
em plantação de igrejas, mas em distribuição de bíblias e literatura religiosa protestante aos
nativos. Segundo Léonard, até 1854 aproximadamente 4.000 exemplares da bíblia haviam sido
distribuídos (LÉONARD, 2002, p. 55). Aconteceria em 1855, conquanto, o estabelecimento

32
Reminiscências de viagens e permanência no Brasil (1943), publicado em 1845 em dois volumes, e Brasil e os
brasileiros (1941), publicado em 1857 com coautoria de James Fletcher, foram os principais. Há ainda outras
publicações de Kidder sobre o período de permanência no Brasil, como a obra São Paulo in 1839 (1969).
67

permanente de uma denominação protestante no Brasil, o que segundo o autor, haveria de


aumentar esse número para 20.000 exemplares em cinco anos (Ibid. p. 55).

2.5.1 – IGREJA CONGREGACIONAL

A Igreja Congregacional viria a ser a primeira denominação protestante de interesse


missionário a se instalar e permanecer no país até aos atuais dias. Para entender sua história por
aqui, faz-se necessário que recorramos a história de Robert Reid Kalley, missionário
implementador da denominação em terras brasileiras. Médico, Kalley nasce na Escócia em
1809, vindo a dedicar parte da vida às missões evangélicas após experimentar uma mudança
religiosa em sua vida, na década de 1830. Viajante marítimo por conta do exercício da profissão,
via o Oriente como local de grande necessidade de pregação de suas crenças, muito por conta
de condição social da região. Impedido de ir para a China pela debilidade de saúde de sua
primeira esposa, Margareth Crawford, é em Funchal, na Ilha da Madeira – local já conhecido
por ele por causa de duas de suas viagens à Índia -, que Kalley se estabeleceria em missão, com
serviço voluntário de medicina em 1838. Ali, o médico escocês - e agora pastor - residiria até
1846, ano em que seria expulso pela perseguição católica antiprotestante. Juntamente com ele,
centenas de seus prosélitos fugiriam se espalhando por diversas regiões, entre as quais Trinidad,
Antígua, Ilha de São Cristóvão, Jamaica, Estados Unidos, entre outras. Passando por lugares
como Inglaterra, Ilha de Malta e Palestina – onde Kalley conheceria Sarah Poulton Wilson, com
quem contrairia núpcias no final do ano de 1852, após a morte de Margareth, sua primeira
esposa33 -, o missionário finalmente chega ao Brasil em 1855, após atender um pedido feito à
Sociedade Bíblica Americana por James Cooley Fletcher, já mencionado anteriormente.

No país, Kalley e sua esposa dariam início ao trabalho que posteriormente resultaria na
implementação da Igreja Congregacional no Brasil. Estabelecendo-se em Petrópolis, no Rio de
Janeiro, partiriam logo para o exercício do proselitismo, diferenciando-se assim da ação
protestante observada aqui com o protestantismo de imigração. Assim, depois de cerca de três
anos de trabalho estritamente missionário, com distribuição de bíblias, publicações em

33
O segundo casamento de Kalley é determinante para a compreensão de seu envolvimento com o
congregacionalismo. A Igreja Presbiteriana Escocesa foi a denominação de origem do missionário, sendo nela sua
eleição para presbítero na Ilha da Madeira e posterior ordenação como pastor em 1839. Após o casamento com a
congregacional Sarah Poulton Wilson – sobrinha de Samuel Morley, líder da Igreja Congregacional inglesa -,
Kalley passa a se envolver com a Igreja Congregacional, tornando-se membro e pastor missionário pela
denominação. O caráter mais distintivo entre as diferentes correntes resume-se na organização e forma de governo
eclesiásticas. As igrejas presbiterianas adotam como estrutura de governo um corpo formado por presbíteros – daí
a origem de seu nome – chamado de conselho. Já as congregacionais defendem que o poder de mando da igreja
reside nela própria como um todo, organizando assim assembleias formadas localmente por todos os membros.
68

periódicos locais, contatos estabelecidos com autoridades – inclusive com o próprio Imperador
– etc., o batismo de um primeiro prosélito brasileiro, em 11 de julho de 1858, seria marcado
como dia de fundação da Igreja Evangélica Fluminense, a primeira denominação protestante –
congregacional - a se instalar definitivamente no país.

Muito embora não viesse a ser a maior denominação dessa fase do protestantismo no
Brasil, paulatinamente a Igreja Congregacional foi se expandindo, dando origem a outras igrejas
de mesma organização, embora nem todas ligadas a associações missionárias estrangeiras como
a Fluminense. Em 1913, treze delas formariam a União das Igrejas Evangélicas
Indenominacionais (UIEI). Anos mais tarde, em 1942, e ligadas à Igreja Cristã Evangélica do
Brasil, criar-se-ia a União das Igrejas Evangélicas Congregacionais e Cristãs do Brasil
(UIECCB), que por sua vez e desde de 1969, viria a se tornar a União das Igrejas Evangélicas
e Congregacionais do Brasil (UIECB). Citando dados de Read e Ineson (1974), Mendonça
aponta para o número de 56.386 evangélicos congregacionais no país em 1966, e traça uma
perspectiva de 60.000 em 1990 (1990, p. 35), ano da publicação de sua obra. Sabemos, contudo,
que no ano 2000 a categoria censitária “igreja evangélica congregacional” aparecia com um
total de 148.836 membros. Mais recentemente, e de acordo com os números do censo 2010, sua
membresia é de 109.591, representando uma queda de 26,3%.

2.5.2 – IGREJAS PRESBITERIANAS

O presbiterianismo chega ao Brasil definitivamente em 1859, quatro anos após a


chegada dos congregacionais. Sua implementação aqui também seria fruto do desejo de
expansão evangelística das igrejas e organizações protestantes norte-americanas, que como já
vimos, já haviam enviado para cá homens como Fountain Elliot Pitts, Justus Spaulding, Daniel
Parish Kidder, James Cooley Fletcher etc. Assim, enviado pela junta de missões estrangeiras
da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos - a igreja do norte de um país dividido pela questão
da escravidão -, desembarcava na cidade do Rio de Janeiro em 12 de agosto de 1859 o
missionário Ashbel Green Simonton. Dava-se assim o início do trabalho da denominação que,
até o início do século XX, viria a ser a maior igreja do protestantismo de missão no país em
número de adeptos.

De início, o trabalho de Simonton em terras brasileiras não foi fácil. Algumas razões
particulares pesam como explicação. A primeira delas, e talvez principal, está relacionada a
inexistente familiaridade do missionário norte-americano com a língua portuguesa quando da
sua chegada, como relatado em seu diário pessoal
69

O que mais me interessa agora é aprender a língua. Começo a reprovar-me por


perder tempo, pois este é o meu primeiro dever, e enquanto não completar,
não tenho condições de ser útil aqui. Procurei o Sr. Eubank e ofereci-me para
dar aulas de inglês a seus filhos a fim de aprender com eles português. Ele
falou-me de um cunhado que quer muito aprender inglês e agora estou
entrevista com ele. Esta manhã escrevi um recado para o Dr. Pacheco na
esperança de que ele possa ajudar-me. Se não tiver sucesso em nenhum desses
casos, vou colocar anúncio no jornal. (...) Todos os esforços que fiz até agora
para aprender o português não tiveram sucesso (SIMONTON, 2002, p.132-
133).

Além disto, a febre amarela e o posterior desapoio de muitos estrangeiros puseram-se


como entraves. Entretanto, desde sua chegada, o missionário norte-americano parecia estar
convicto de sua missão no Brasil. Mesmo orientado com determinadas ressalvas de Kalley
quanto ao trabalho missionário no país, Simonton registrara seu desejo de trabalho ostensivo
entre os brasileiros. “Minha presença e meus objetivos aqui não podem ficar escondidos (...)
Existem indicações de que um caminho está sendo aberto aqui para o Evangelho” (Ibid., p.
127).

Dessarte, com a chegada posterior de outros dois missionários – os pastores Alexander


Latimer Blackford, em 1860, e Francis Joseph Christopher Schneider, em 1861 -, o
presbiterianismo avançaria em número a partir da fundação de sua primeira igreja no Rio de
Janeiro, em 1862, chegando a passar de cem membros já em 1864, segundo estimativa de Braga
e Grubb (1932, p. 58). Com a ordenação do primeiro pastor protestante brasileiro, o ex-
sacerdote católico José Manoel da Conceição em 1865, sua força adentraria o interior da
província de São Paulo e do sul de Minas, uma das principais razões de seu rápido crescimento
e expansão. Conceição, que era da cidade de Brotas, logo empenhava-se, como escreve
Mendonça, a “(...) viajar incansavelmente por suas ex-paróquias propagando suas novas crenças
(...)” (MENDONÇA, 2008, p. 48). Não bastasse, estabelece-se ainda no país uma missão
advinda da igreja presbiteriana do sul dos Estados Unidos, em Campinas, no ano de 1868, com
a finalidade de prestar assistência religiosa aos confederados que emigravam para a região, mais
precisamente para Santa Bárbara d’Oeste.

Com isso, no fundir dos dois núcleos, dá-se origem ao primeiro sínodo brasileiro da
Igreja Presbiteriana do Brasil (IPB), o que oficialmente representou o seu desligamento e
dependência das igrejas norte-americanas, em 1888. Dali em diante, por conta de variados
motivos que não convém pontuar agora, algumas cisões passariam a ser observadas na
denominação enquanto de seu desenvolvimento. Assim surgem outras igrejas de origem
70

presbiteriana ao longo da história do protestantismo brasileiro, tais como a Igreja Presbiteriana


Independente do Brasil (IPIB) em 1903, a Igreja Presbiteriana Conservadora do Brasil (IPCB)
em 1940, a Igreja Presbiteriana Fundamentalista do Brasil (IPFB) em 1956, Igreja Presbiteriana
Renovada do Brasil (IPRB) em 1975 e a Igreja Presbiteriana Unida do Brasil (IPUB) em 1978.
Zwinglio Mota Dias cita, ainda, alguns outros “parentes muito próximos”, como a Igreja
Reformada do Brasil, a Igreja Reformada Húngara, a Igreja Presbiteriana Árabe e a Igreja
Reformada Armênia (DIAS, 2013, p. 112).

Em sua totalidade, e de acordo com dados do censo 2010, os presbiterianos somam hoje
cerca de 921.209 membros no país, número 6,11% menor quando comparado aos da pesquisa
do decênio anterior, em 2000, quando os presbiterianos compreendiam cerca de 981.064
brasileiros. É na Igreja Presbiteriana do Brasil que nasce a liderança que estudaremos mais
adiante, o hoje mentor da comunidade Caminho da Graça, Caio Fábio d’Araújo Filho.

2.5.3 – IGREJAS METODISTAS

Após o encerramento de suas primeiras atividades no Brasil, em 1841, o metodismo34


retornaria ao Brasil definitivamente em 1867, com o pastor Junius Estaham Newman. Newman,
que fora capelão durante a Guerra Civil Americana, estabelece-se por conta própria como
missionário no país acompanhando os imigrantes norte-americanos que se instalavam aos
poucos no interior da província de São Paulo, mais precisamente na região de Campinas. Fixado
em Saltinho, o missionário fundaria com seus compatriotas a primeira igreja metodista a se
instalar finalmente no Brasil, em agosto de 1871. Cinco anos depois, em 1876, e aos pedidos
de Newman, a Junta de Missões da Igreja Metodista Episcopal Sul enviaria o segundo – o
primeiro oficialmente constituído - missionário metodista ao Brasil, o pastor John James
Ransom.

A partir de então a denominação passa a conhecer ligeiro crescimento. Sobre esse


avanço tímido, Mendonça escreve que “O crescimento inicial dos metodistas foi lento porque
se estabeleceram em cidades, sofrendo, por isso, a presença física da Igreja Católica”
(MENDONÇA, 1990, p. 40). Entretanto, tal situação mudaria, ainda segundo o autor, a partir
da fundação de colégios dirigidos pela denominação, que obteriam sucesso diante da “(...)
burguesia cafeeira e comercial das cidades” (Ibid., p. 40), que buscava uma alternativa à

34
Fundado pelos irmãos Charles e John Wesley, o metodismo nasce como uma cisão na Igreja Anglicana do século
XVIII. Em suma, sua doutrina fundamenta-se no arminianismo teológico de Wesley, numa forte ênfase na relação
íntima e pessoal do fiel com Deus, através de um determinado método – daí a origem de seu nome.
71

educação católica romana. É nesse contexto, por exemplo, que nasce o Colégio Newman, hoje
conhecido como Universidade Metodista de Piracicaba. Assim, na medida em que outros
missionários chegavam ao país, o trabalho avançava para diversas regiões do território
brasileiro35 seguindo este viés duplo: a implementação de igrejas e escolas.

Reily (1980), utilizando números dos Annual Reports, apresenta números do


crescimento da denominação até 1930. Segundo o autor, em 1890 a igreja contava com 480
membros; em 1900, cerca 2785; em 1910, 6208; já em 1920, 10314; e em 1930 já eram 15560.
Sobre esse último período, uma outra consideração faz-se necessária. Depois de estar vinculada
à missão norte-americana, é em 1930 que a denominação se torna independente, buscando,
entre outras coisas, a “(...) substituição das lideranças missionárias norte-americanas por líderes
brasileiros” (VALVERDE, 2013, p. 143). Isso não significa, evidentemente, que a igreja não
mais recebeu missionários de outros países. Vale destacar que outras denominações ligadas ao
metodismo, chamadas de igrejas “de linhagem wesleyana”, também se estabeleceriam no Brasil
advindas de missões estrangeiras. Esse é o caso das igrejas Exército de Salvação, que chegou
ao país em 1922 através de suíços; Holiness, implementada em 1925 por japoneses; Metodista
Livre, iniciada no final de 1936 também por imigrantes japoneses; Nazareno, em 1958 com
missionários norte-americanos; Aliança Cristã e Missionária, de chegada em 1962, entre outras.

De acordo com os dados dos dois últimos recenseamentos, o número de metodistas no


Brasil tem praticamente se estagnado. Na realidade, os dois últimos censos apontam para um
decréscimo ínfimo de 0,008%. Em 2000 seus adeptos formavam um contingente de 340.963
pessoas, enquanto que no ano de 2010 esse número foi de 340.938. Por ora, vale reafirmar que
os dados nos apontam a diminuição – embora entre os metodistas essa seja quase impercebível
– de todas as denominações observadas até aqui, das de imigração às de missão, que, mesmo
não acontecendo com duas denominações históricas que serão tratadas adiante, nos faz pensar
sobre qual tem sido o destino da migração desses “ex-membros” na diferença final entre o
acréscimo e decréscimo de fiéis do protestantismo histórico.

2.5.4 – IGREJAS BATISTAS

Sobre o conjunto formado pelas igrejas chamadas batistas, determinadas ponderações


são necessárias. Aqui destaco a resistência e a dificuldade que os batistas têm de se identificar
com as igrejas oriundas da Reforma, denominações que são trabalhadas neste texto como as

35
Até 1886 a Igreja Metodista no Brasil contava com quatro principais centros estratégicos no Brasil: duas
congregações no Rio de Janeiro, uma em São Paulo, uma em Juiz de Fora e outra em Piracicaba.
72

matrizes que formam o todo denominado no Brasil como “evangélicos”. O pastor batista
Vernon C. Lyons, por exemplo, aponta três razões que, segundo seu entendimento, atestam a
não relação do movimento batista ao dos protestantes do século XVI: uma de cunho histórico,
outra doutrinária e uma última em relação ao aspecto prático.36 Entretanto, como considerara
Mendonça, não faz sentido “(...) criar para eles uma categoria à parte” (MENDONÇA, 2005, p.
51), uma vez que, tanto do ponto de vista teológico e eclesiológico – e ainda acrescentaria
histórico no Brasil -, os batistas confundem-se com os protestantes de missão, também
chamados históricos. Assim sendo, passemos a considerar brevemente seu processo de inserção
em terras brasileiras, bem como sua atual dimensão no país de acordo com as pesquisas oficiais.

Assim como no caso das outras denominações históricas já trabalhadas até aqui, estudar
a inserção batista no Brasil é estudar uma missão norte-americana. Como no caso dos
metodistas, os primeiros batistas a se estabelecerem no país decorreram do período de imigração
de norte-americanos motivados, principalmente, pela guerra de secessão nos Estados Unidos.
Quando a primeira igreja batista, Primeira Igreja Batista da Bahia (PIB Bahia), foi oficialmente
organizada em 1882 na cidade de Salvador, pelos missionários Willian B. Bagby e Anne L.
Bagby, outras duas já existiam há pelo menos dez anos no país, segundo Reily (1989), ambas
na região de Campinas, nos municípios de Santa Bárbara d’Oeste e Americana.

Depois de determinado tempo de estabelecimento em terras brasileiras, a organização


de uma convenção das igrejas em nível nacional seria concretizada em 1907. Esse fato, em
específico, foi um marco para a história batista brasileira. Vale lembrar que, assim como na
Igreja Congregacional, a forma de governo eclesiástico dos batistas é local, as igrejas são
autônomas umas das outras. Nesse sentido, dá-se a formação de convenções como
conglomerados de igrejas que, mesmo independentes, buscam atuar em conjunto por questões
de ordem evangelística, educativa etc. Assim, além da Convenção Batista Brasileira (CBB) de
1907, surge também uma dissidente, de características pentecostais, a Convenção Batista
Nacional (CBN) – outrora chamada Associação Missionária Evangélica (AME) -, criada no
início dos de 1960.

Investindo em estratégia evangelística e educacional – mais naquela do que nesta, em


relação às demais igrejas missionárias -, os batistas foram os evangélicos que mais cresceram
entre as correntes históricas no Brasil, espalhando-se por todo território em pouco tempo,

36
LYONS, Vernon C. Batistas não são protestantes. Disponível em: http://solascriptura-
tt.org/EclesiologiaEBatistas/BatistasNaoSaoProtestantes-Lyons.html. Acesso em: 08/04/2017.
73

ocupando a posição majoritária entre os demais evangélicos ainda no início do século XX.
Mendonça (1990), por exemplo, aponta que a existência de 312 fiéis em 1889 passou para cerca
de 264.137 em 1966, estimando ainda um contingente no ano de publicação de seu livro, entre
todos batistas brasileiros, de 1.310.000 pessoas. Como no caso das demais igrejas do
protestantismo, falar da totalidade dos batistas no país implica falar numa plêiade de
denominações distintas, inclusive sobre as pentecostais. O que sabemos, hoje, é que de acordo
com os dados do censo 2000, os batistas correspondiam a 3.162.691 de brasileiros; número que
cresce na divulgação dos dados da pesquisa posterior, de 2010, quando o total de seus membros
foi de 3.723.853, crescimento de 15%.

2.5.5 – IGREJAS ADVENTISTAS

Uma outra subcategoria utilizada pelo IBGE no conjunto formado pelas igrejas
chamadas na pesquisa de “evangélicas de missão” é a composta pelos adeptos das igrejas
adventistas. Como no caso dos batistas, cabe reafirmar nesse ponto uma particularidade: embora
seja um ramo denominacional oriundo do protestantismo, o adventismo é renegado enquanto
fé evangélica pela maioria – para não dizer totalidade – das igrejas evangélicas brasileiras. A
dificuldade, como já apontada na introdução desta seção, reside unicamente em problemas de
ordem teológica. Todavia, vale reafirmar que enquanto experiência religiosa oriunda do
protestantismo, não parece haver razão sociológica para não incluir as igrejas adventistas no
conjunto final aqui trabalhado. Para tanto, vale reafirmar a proposta do trabalho de olhar o grupo
“evangélicos brasileiros” como o conjunto total dos cristãos não-católicos no país, oriundos de
movimentos da reforma protestante e suas posteriores dissensões, tanto quanto for possível
extrair da pluralidade desse campo.

Enquanto movimento religioso autônomo, a história dos adventistas está relacionada a


de pioneiros norte-americanos como Guilherme Miller e Ellen White, ambos oriundos de
denominações tradicionais dos Estados Unidos, sendo a última considerada profetisa pelos
adventistas. Formalmente criada em 1863, a maior denominação do movimento adventista, a
Igreja Adventista do Sétimo Dia, foi implantada oficialmente no Brasil trinta e três anos depois,
em 1896, em Gaspar Alto, no estado de Santa Catarina. A partir de então, adotando uma postura
proselitista similar a das demais igrejas do protestantismo de missão, principalmente no que diz
respeito a importância dada à criação de institutos educacionais, o adventismo expandiu-se pelo
território brasileiro, instalando, no mesmo contexto, igrejas no Rio de Janeiro, São Paulo,
74

Espírito Santo, Minas Gerais etc., através da ação missionária de pastores enviados por missões
estrangeiras, apoiados, sobretudo, pela comunidade alemã.

Sobre seu avanço, Michelson Borges escreve sobre a existência, no ano de 1956, de
“(...) 22 igrejas, 56 escolas sabatinas, três mil membros batizados, 15 escolas elementares, 15
professores que ensinavam cerca de mil alunos, um hospital, dois médicos e enfermeiras, 15
pastores e evangelistas” (BORGES, 2007). Hoje, depois de passar por subdivisões inúmeras –
como por exemplo, o surgimento de igrejas como Adventista Movimento da Reforma,
Adventista da Promessa Renovada, Adventista da Reforma Completa, Adventista
Conservadora Renovada, entre outras -, os respondentes que se declararam adventistas aos
recenseadores em 2010 aumentaram cerca de 22,5%, passando dos 1.209.842 fiéis em 2000,
para 1.561.071.

2.5.6 – OUTRAS EVANGÉLICAS DE MISSÃO

Naturalmente, pela amplitude de denominações que se instalaram no país e por aqui se


ramificaram, o censo fecha a categoria “evangélicas de missão” com a subcategoria “outras
evangélicas de missão”, compreendendo assim denominações com menos respondentes e,
possivelmente, respostas não definidas. Esse conjunto que em 2000 era de 34.224 pessoas,
passa para 30.666 nos números do censo 2010.

2.5.7 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROTESTANTISMO HISTÓRICO

Como pôde-se perceber ao longo do texto, chamo de “protestantismo histórico” o


conjunto de igrejas formado pelas aqui descritas como “de imigração” e “de missão”. Penso ser
necessário dizer isso uma vez que os censos do IBGE, tratados aqui como fios condutores de
apresentação das maiores denominações evangélicas do país, apresentam todo esse apanhado
na categoria denominada de modo único como “evangélicas de missão” – nomenclatura que
não parece fazer sentido para igrejas como a anglicana e luterana, pelas razões já apresentadas.
Dito isso, dentro da proposta e objeto do trabalho, algumas considerações fazem-se cruciais ao
olharmos a realidade desta primeira divisão.

O primeiro, e talvez mais importante ponto a ser apresentado aqui, é o da realidade de


que o crescimento expressivo do total de evangélicos no Brasil nos últimos decênios
(GRÁFICO 1) não se deve a categoria formada pelo conjunto de igrejas evangélicas
apresentadas até aqui (TABELA 1). Mesmo que, em número absolutos, esse contingente tenha
crescido ligeiramente especialmente por causa dos batistas e adventistas (GRÁFICO 2) –
75

comparando as pesquisas a partir de 1980, ano em que se faz uma subdivisão entre os
protestantes, antes aglomerados numa única categoria -, o que temos na realidade, na
desagregação dos números, é um decréscimo da categoria e subcategorias quando comparada
ao crescimento total do protestantismo brasileiro (GRÁFICOS 3 e 4).

TABELA 1 - Denominações históricas e seus adeptos no censo 2010


Denominações históricas Número de adeptos
Igrejas Luteranas 999.498
Igrejas Congregacionais 109.591
Igrejas Presbiterianas 921.209
Igrejas Metodistas 340.938
Igrejas Batistas 3.723.853
Igrejas Adventistas 1.561.071
Outras evangélicas de missão 30.666
Total 7.686.827
Fonte: Censo 2010

GRÁFICO 1 - Evangélicos nos censos 1970-2010


42.275.440
(22,2% da população)
45,000,000
40,000,000
35,000,000 26.184.941
(15,6% da população)
Total de adeptos

30,000,000
25,000,000
13.189.284
20,000,000 (9,0% da população)
7,885,846
15,000,000 (6,6% da população)
4.814.728
10,000,000 (5,2% da população)
5,000,000
0
1970 1980 1991 2000 2010
Série histórica dos censos

Fonte: Censos de 1980-2010


76

GRÁFICO 2 - Evangélicos históricos nos censos


1980-2010 7,686,827
6,939,765 (4,0% da população)
(4,1% da população)
8,000,000
Total de adeptos

7,000,000 4,388,310
6,000,000 4,061,999 (2,9% da população)
(3,3% da população)
5,000,000
4,000,000
3,000,000
2,000,000
1,000,000
0
1980 1991 2000 2010
Série histórica dos censos

Fonte: Censos de 1980-2010

Fonte: Censos de 1980-2010


77

GRÁFICO 4 - Participação das denominações


históricas no total de evangélicos
14.00%
12.07%
Participação no total
de evangélicos 12.00%
10.00% 8,81%
8.00%
6.00%
4.05% 4.62%
4.00% 3.74% 3.69%
2.36% 2.18%
2.00% 0.56% 0.26%
1.30%
0.81% 0.13% 0.07%
0.00%

Subcategorias - Denominações históricas

2000 2010

Fonte: Censos de 1980-2010

Sobre essa questão, retoma-se o que já era apontado por Antônio Flávio Pierucci em
“Bye bye, Brasil” – o declínio das religiões tradicionais no Censo 2000 (2004b): os “(...) sérios
sinais de cansaço, mais do que isso, de exaustão (...)” (PIERUCCI, 2004b) das religiões
tradicionais no país, entre as quais o protestantismo histórico. Certamente, o que fica por ora é
que o protestantismo histórico, além de ter perdido sua predominância entre o total de
evangélicos brasileiros desde os números de 1991, parece ter assistido o crescimento e
pulverização de outras formas de fé evangélica. Sobre estas avançamos nosso texto.

2.6 – O PENTECOSTALISMO

Abrangendo um conjunto de igrejas bem diversificado, o grupo formado pelos


pentecostais reafirmavam sua posição de predominância entre as religiosidades evangélicas
brasileiras, mantendo-se como o segundo maior “grupo” religioso de todo país, atrás do
catolicismo e a frente dos protestantismos de imigração e de missão.

Muitas seriam as razões de explicação sociológica ao crescimento dos pentecostais no


Brasil e, desde então, vários são os autores que têm dado enfoque científico sobre o fenômeno
em suas pesquisas, especialmente os que versam sobre uma de suas ondas mais estudadas, o
neopentecostalismo (FRESTON, 1995; ORO, 1996; MENDONÇA, 1990, 1997; MARIANO,
1999, 2004; CAMPOS, 2005). Entretanto, parece perpassar pela maioria das análises a
observação de que tal crescimento esteja assentado, entre outros, sobre o pilar do forte apelo
78

emocional à necessidade de conversão individual que marca as religiões chamadas de


universais (DE CAMARGO, 1973, p. 23), caso do protestantismo pentecostal.

Há quem considere o movimento pentecostal de matriz protestante como um fenômeno


dos mais significativos da história moderna do cristianismo e muitas são as tentativas de
localizá-lo historicamente enquanto movimento religioso específico. A maioria dos estudos
sobre o tema, entretanto, parece concordar que seu surgimento data do final do século XIX e
início do XX, nos Estados Unidos, marcado por uma série de “despertamentos espirituais” entre
fiéis do protestantismo histórico. Como escrevem Bobineau e Tank-Storper

De origem protestante e calvinista, o pentecostalismo nasceu nos Estados


Unidos no começo do século XX depois de dois “despertares” que se
colocaram em ruptura com os hábitos de diversas igrejas tradicionais
(metodistas, presbiteriana e batista...) (BOBINEAU & TANK-STORPER,
2011, pg. 107).

Numa análise rápida, poderíamos aqui registrar, como referenciam os estudiosos, que o
nome “pentecostal” está ligado ao evento registrado no livro de Atos dos Apóstolos do texto
norteador da fé cristã, a Bíblia, marcado pelo derramar do Espírito Santo37 na igreja primitiva
através de seus mais variados dons (χαρισματα – charismata, de onde derivam os termos
“carismas” e “carismático”). Segundo relato, tal fato teria se dado num contexto específico de
comemoração de uma das festas mais tradicionais da religião judaica, celebrada cinquenta dias
após a Páscoa, a festa de Pentecostes (daí a origem da nomenclatura “pentecostal”, de
pentekostos, “cinquenta”).

Buscando resgatar, então, a prática esquecida do uso dos dons espirituais - profecias,
línguas estranhas (γλωσσολαλια – glossolalia), milagres etc. -, nasce o pentecostalismo
moderno. Um momento inicial, então, surge como marca do início do movimento nos Estados
Unidos: o avivamento da rua Azusa de 1906, liderado por William Joseph Seymour, estudante
outrora atraído pelas instruções de Charles Fox Parham, que por sua vez e desde o final do
século XIX, ensinava o falar em línguas estranhas. Muito embora a literatura específica sobre
o tema aponte para diversas manifestações em espaços e tempos diferentes entre o final do
século XIX e início do século XX, numa espécie de movimento plurifacetado

De acordo com a confissão e tradição cristã, o “Espírito Santo” é uma das pessoas que formam a chamada
37

“Trindade divina”, juntamente com Deus Pai e Filho.


79

(HOLLENWEGER, 1976), o que nos interessa por ora são as características que definiram o
grupo e o levaram às rupturas com as igrejas do protestantismo tradicional.

Formado, em princípio, majoritariamente por negros das classes urbanas mais baixas, o
pentecostalismo norte-americano reivindicava para um si um reavivamento, uma ideia de
restauração, que em pouco tempo atraiu centenas de pessoas e espalhou-se por todo mundo.
Discorre Matos

Uma das idéias centrais era o que se denomina “repristinação” ou


restauracionismo, isto é, o desejo de voltar aos dias iniciais do cristianismo,
aos primeiros tempos da igreja primitiva, idealizados como uma época de
maior fervor e plenitude cristã (MATOS, 2011, p. 30).

No Brasil, sua chegada data do início do século XX, através da ação missionária do
italiano Louis Francescon, fundador da Congregação Cristã no sudeste do país, em 1910, e dos
suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren, fundadores da Assembleia de Deus em Belém do Pará,
em 1911 – casos que veremos mais adiante -; muito embora, como aponta Alencar (2013, p.
169) “(...) ainda no século XIX, no meio protestante (...)” já existissem indícios pentecostais,
citando exemplos de denominações como Holiness, os batistas letos e metodistas livres.

O que nos importa pontuar, agora, é que marcado por uma série de movimentos em
mudança constante, o pentecostalismo ramifica-se pelo país, e à medida que avança a história
novas configurações em sua estrutura religiosa vão montando o panorama de sua presença em
terras brasileiras. Freston, por exemplo, apontará para o que chamou de “três ondas”
pentecostais

O pentecostalismo brasileiro pode ser compreendido como a história de três


ondas de implantação de igrejas. A primeira onda é a década de 1910, com a
chegada da Congregação Cristã (1910) e da Assembleia de Deus (1911) (...)
A segunda onda pentecostal é dos anos 50 e início dos 60, na qual o campo
pentecostal se fragmenta, a relação com a sociedade se dinamiza e três grandes
grupos (em meio a dezenas de menores) surgem: a Quadrangular (1951),
Brasil Para Cristo (1955) e Deus é Amor (1962). O contexto dessa
pulverização é paulista. A terceira onda começa no final dos anos 70 e ganha
força nos anos 80. Suas principais representantes são a Igreja Universal do
Reino de Deus (1977) e a Igreja Internacional da Graça de Deus (1980) (...) O
contexto é fundamentalmente carioca (FRESTON, 1993, p. 66).

Obviamente, por nunca ter sido homogêneo, novas denominações vão surgindo ao ponto
de ser difícil, como escrevem Bobineau e Tank-Storper, “(...) atribuir traços distintivos a esse
movimento particularmente diversiforme do qual igrejas e denominações muito variadas se
reclamam um pouco por todo mundo (...) formando uma “nebulosa” as vezes difícil de
80

apreender”. (Ibid., p.107). Os números do censo 2010, por exemplo, indicaram cerca de 25,4
milhões de pentecostais no país. Entretanto, passaremos a discorrer aqui das principais
denominações pentecostais a se instalarem e nascerem no país nesses meandros, tendo como
pontos de referência não só a classificação dada por Freston – que certamente não esgota o
multifacetado campo pentecostal, mesmo que seguida por outros pesquisadores, como Kramer
(2005), Oro e Semán (2001), entre outros -, mas levando em consideração o caráter plural que
tal nomenclatura implica quando estudamos o caso brasileiro.

2.6.1 – CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL

Na classificação dada por Freston (Ibid., p. 66), a Congregação Cristã do Brasil forma,
juntamente com a igreja Assembleia de Deus, a chamada “primeira onda pentecostal brasileira”.
Ricardo Mariano, tratando de tal categorização, ainda irá retomar o conceito de
“pentecostalismo clássico” dado por pesquisadores norte-americanos ao se referir ao conjunto
formado pelas denominações da gênese do movimento pentecostal, no sentido de ser um termo
que “(...) pretende aqui se restringir à ideia de antiguidade ou pioneirismo histórico dessas
denominações” (MARIANO, 1999, p. 24). Desse apanhado, a Congregação Cristã é a primeira
igreja pentecostal a se estabelecer no Brasil.

O italiano Louis Francescon, seu fundador, chega ao país em abril de 1910, após
vivenciar uma série de experiências com o pentecostalismo nos Estados Unidos. Ex-membro
da igreja presbiteriana de Chicago, é no Brasil que Francescon dará os primeiros passos no
sentido de fundar uma denominação brasileira, independente de qualquer financiamento
missionário exterior, ao contrário dos casos das igrejas do protestantismo histórico.
Influenciado pela teologia calvinista – uma vez que fora presbiteriano -, o pioneiro da
denominação inicia seu trabalho em Santo Antônio da Platina, no Paraná, batizando ali seus
primeiros adeptos. Migrando posteriormente para cidade de São Paulo, vai formando mais
membros entre a comunidade de imigrantes italianos, residentes no bairro do Brás, ainda que
sem uma denominação criada e de forma não prosélita, posta a ênfase dada ao eficaz chamado
divino aos seus eleitos, que anula a necessidade de proselitismo.

Adquirido o primeiro prédio, adotava-se como nome daquela que até então não era uma
denominação a designação “Congregação Christã do Brasil”, oficializada quando da realização
de uma Convenção em 1936, título que seria alterado por questões de ordem interna em 1960,
na substituição da preposição “do” pela preposição “no”. De maioria italiana até meados da
década de 1930, é a partir de 1950 que a recém-criada igreja cresce explosivamente, quando,
81

nas palavras de Mendonça, “(...) nordestinos passaram a ocupar o lugar dos italianos no Brás”
(1990, p. 49). Citando dados de Read e Ineson (Ibid.), o autor apresenta a totalidade de 282.233
fiéis da denominação em 1966, e estima que, em 1990, esse número estivesse na casa de um
milhão de pessoas. O que sabemos hoje, olhando para os dados dos censos passados, é que o
número de respondentes que declararam filiação à Congregação Cristã no Brasil decaiu cerca
de 8% entre 2000 e 2010, passando dos 2.489.113 membros para 2.289.634. Cabe ainda
ressaltar que, como no caso das outras denominações vistas até aqui, é bem possível que esse
número não corresponda apenas a uma única igreja, já que algumas cisões internas levam à
formação de novas igrejas, geralmente de mesmo nome, como no caso da Congregação Cristã
no Brasil – Ministério de Jandira.

2.6.2 – ASSEMBLEIAS DE DEUS

No dia 19 de novembro de 1910, chegam ao Brasil, especificamente em Belém do Pará,


os missionários suecos Daniel Berg e Gunnar Vingren. Participantes do chamado “grande
avivamento pentecostal” vivenciado nos Estados Unidos no início do século XX, ambos são
recebidos e acolhidos por um pastor batista. Passado o tempo da adaptação e, uma vez
entendedores da língua local, tais homens dão início a pregação de suas crenças pentecostais
em seu novo território. Separados, então, de qualquer relação junto aos batistas, avançam em
direção a formação dos primórdios da comunidade que viria a ser conhecida como Igreja
Evangélica Assembleia de Deus, fundada oficialmente em 1911.

No início, os missionários suecos desenvolveriam sua liderança e ministério entre os


cidadãos mais simples, humildes e marginalizados da sociedade local (FRESTON, 1995, p.
122). Bastaram três décadas para que liderança eclesiástica estivesse em poderes de cristãos
assembleianos brasileiros - com a criação da Convenção Geral das Assembleias de Deus
(CGABD) em 1930 -, que aos poucos levavam a igreja ao sudeste do país, especialmente para
as grandes cidades, locais de intensa migração urbana, como aponta Mendonça

Com a industrialização e o crescimento urbano do pós-guerra, resultado de


intensa migração interna, as Assembleias de Deus cresceram muito,
principalmente nas grandes cidades. No entanto, apesar de serem, à
semelhança das demais Igrejas pentecostais, tipicamente urbanas compostas
de operários e pequenos servidores de baixa renda, elas já ganham corpo em
áreas rurais de posseiros e trabalhadores assalariados (MENDONÇA, 1990, p.
50).
82

A essa altura, a igreja já contava com a importância de três templos e cerca de mil
membros só na cidade de Belém (CHESTNUT, 1997). A realidade não era muito diferente nas
demais localidades brasileiras, e nada impedia o avanço por todo país. Por volta de 1950, a
Assembleia de Deus já estava presente em todos os estados brasileiros (OLIVEIRA, 1997).
Dados de Read e Ineson (Ibid.) apontavam para a membresia de 636.370 pessoas em 1966. Com
sua rápida expansão pelo país, logo vieram os primeiros sintomas de fragmentação. A primeira
cisão aconteceria no ano de 1989, quando da promoção de uma assembleia geral extraordinária
na cidade de Salvador para oficializar o desligamento dos pastores do ministério Madureira -
referência a igreja localizada no bairro de Madureira, zona norte do Rio de Janeiro -, que,
unânimes, resolveram manter a existência da então recém-criada Convenção Nacional de
Ministros da Assembleia de Deus Madureira (CONAMAD). A partir de então, a configuração
das igrejas no Brasil, outrora una, se daria da seguinte forma: as igrejas da CGADB, diretamente
ligadas à fundação da denominação, manteriam o nome Assembleia de Deus Ministério Belém;
já as ligadas à CONAMAD, Assembleia de Deus Ministério Madureira. Dos cerca de 8,4
milhões de adeptos da denominação no censo 2000, estimava-se um terço nesta última, e dois
terços na primeira (FRESTON, 1995, p. 124).

Todavia, esses dois grupos não seriam os únicos a carregar a nomenclatura. O que se
assistiria em relação à denominação seria um processo de fragmentação ainda maior, onde as
referidas matrizes dariam origem a igrejas independentes que, por sua vez – como na grande
maioria dos casos de cisão observadas até aqui -, carregam o mesmo nome, formando um
apanhado difícil de empreender empiricamente. A título de exemplo, vale citar duas destas
denominações, já do século XXI, de certa forma mais conhecidas por conta dos nomes de seus
pastores fundadores: a Assembleia de Deus Vitória em Cristo, de Silas Malafaia; e a Assembleia
de Deus Catedral do Avivamento, de Marco Feliciano; ambas dissidentes.

Não ignorando, portanto, toda essa diversidade denominacional existente, e que


inevitavelmente se reflete dentro da categoria “igreja assembleia de Deus”, o número que
tivemos nos resultados do censo de 2010 significou um crescimento de um pouco mais de 46%
em relação aos números de 2000 – o que pode ser explicado pela grande gama de denominações
autônomas que se confundem na nomenclatura -, passando dos 8.418.140 membros para
12.314.210 na última pesquisa realizada pelo IBGE; ponto importante a frisar, dado que tal
crescimento, junto ao da igreja Batista, foram os mais expressivos quando observados os casos
isolados das igrejas. Sendo não só a maior denominação pentecostal do país, a igreja
83

Assembleia de Deus, desde o boom do pentecostalismo no Brasil, ocupa o primeiro lugar das
maiores igrejas evangélicas por aqui.

2.6.3 – IGREJA DO EVANGELHO QUADRANGULAR

Quatro décadas se passam desde a chegada e formação das primeiras denominações


pentecostais no Brasil e então, em meio a uma série de transformações sociais enfrentadas pelo
país – tais como a industrialização crescente, êxodo rural etc. -, novas manifestações religiosas
de ordem pentecostal desembarcam por aqui buscando espaço num mercado religioso
(BERGER, 2004) cada vez mais concorrido. Chamado de pentecostalismo de segunda onda ou
deuteropentecostalismo (FRESTON, 1993; MARIANO, 1999), essa nova configuração
pentecostal se introduz no Brasil dando origem a diversas denominações, dentre as quais
destacamos as principais, que consequentemente e de acordo com os objetivos do trabalho, são
as igrejas a aparecer nos últimos dados do Censo.

Algumas particularidades são apontadas como causa de diferenciação destas duas


primeiras correntes pentecostais, chamadas de ondas. Estudiosos convergem para a constatação
de uma ênfase dada a mensagem de cura divina por parte da última em detrimento a primeira,
além de questões menos destacadas, como determinado apelo midiático (rádios), evangelismos
itinerantes, maior flexibilidade quanto aos usos e costumes – exceto no caso da igreja Deus é
Amor - etc. (MARIANO, 2004; 2005; MENDONÇA, 1997). Responsáveis por aquilo que
Mariano chama de crescimento pentecostal “(...) sem precedentes nos Estados Unidos, América
Latina, África e Ásia” (MARIANO, 1999, p. 31), as igrejas desse movimento chegam ao Brasil
tendo como pioneira a Igreja do Evangelho Quadrangular.

Fundada nos Estados Unidos em 1923, pela canadense Aimee Semple McPherson, a
Igreja do Evangelho Quadrangular – The Foursquare Church – é trazida para as terras
brasileiras através de dois ex-atores norte-americanos, Raymond Boawright e Harold Williams.
Promovendo reuniões em tendas de lona, é através daquilo que costumavam chamar de
“encontros interdenominacionais” da Cruzada Nacional de Evangelização (PROENÇA, 2006,
p. 115) que os agora pastores irão propagar suas crenças, primeiro pelo estado de São Paulo, e
depois pelo Brasil, enfatizando em cada um deles, sobretudo, a cura divina para uma infinidade
de males físicos e psicológicos. Fundada a primeira igreja da denominação – posteriormente
chamada Igreja do Evangelho Quadrangular - na cidade paulista de São João da Boa Vista, no
84

final de 1951, seu crescimento expressivo só seria observado na década de 80, quando da
autonomia em relação à sede de Los Angeles, em 1988 (FRESTON, 1995, p. 27).

Mendonça, citando dados de Read e Ineson, atribuiu à igreja a quantidade de 24.493


fiéis em 1966, além de “(...) 171 Igrejas e congregações satélites” (MEDONÇA, 1990, p. 53).
Olhando para os resultados das pesquisas mais recentes, especialmente para os censos dos dois
últimos decênios, o que assistimos em relação a essa vertente pentecostal de segunda onda,
isoladamente, foi um crescimento de um pouco mais de 37%, sendo 1.318.805 membros no ano
2000, 1.808.389 em 2010. Evoca-se, aqui também, o caráter plural que a nomenclatura da
denominação pode implicar, dadas as cisões posteriores, com igrejas como a Igreja do
Evangelho Quadrangular Independente e Igreja do Evangelho Quadrangular Renovada.

2.6.4 – IGREJA O BRASIL PARA CRISTO

Outra denominação a figurar a lista de denominações evangélicas do Censo, entre as


pentecostais, é a igreja Brasil para Cristo. Nela encontramos o primeiro exemplo de uma
denominação brasileira fundada, ao contrário de todas as outras anteriores, por um brasileiro.
Migrando para São Paulo já adulto, em 1947, o nordestino Manoel de Mello e Silva converteu-
se à fé evangélica ainda moço, tornando-se membro da Assembleia de Deus em Pernambuco.
Tendo sido recebido como diácono – função eclesiástica cristã relacionada à manutenção do
templo e assistência – pela Assembleia de Deus em São Paulo, não demorou muito para que
tivesse contato com os populares “encontros interdenominacionais” promovidos pela Cruzada
Nacional de Evangelização, movimento símbolo da inserção do deuteropentecostalismo no
Brasil, como já visto no caso anterior. Encantado, e enxergando no movimento a possibilidade
de expansão ministerial até então inexistente aos seus moldes na Assembleia de Deus, Mello
torna-se adepto do grupo, nele permanecendo até meados da década de 1950.

A virada determinante para a criação da igreja O Brasil para Cristo dá-se em 1955,
quando Mello, juntamente com os demais pastores da Cruzada Nacional de Evangelização,
veem-se envolvidos em uma série de acusações de charlatanismo. Decidido então a deixar a
Cruzada, Manoel de Mello funda a nova denominação em 1956, distinguindo-a das demais não
só pelo seu caráter pioneiro como primeira igreja fundada no Brasil por um brasileiro, mas por
ser a primeira igreja evangélica no país a alinhar-se, declaradamente, com o campo político e
midiático – através do rádio. Quando comparada à igreja Quadrangular, percebe-se um
crescimento mais explosivo da igreja de Mello já nos primeiros anos de sua formação, seguido
85

de acréscimos bem pequenos nos dados posteriores, principalmente depois da morte de seu
fundador em 1990.

Referenciando, mais uma vez, os dados de Read e Ineson citados por Mendonça, a
realidade observada em 1966 era de 93.096 membros, “(...) distribuídos em 359 Igrejas e
congregações satélites, com uma taxa de crescimento de 14,3% que já começava a apresentar
decréscimo em relação aos anos anteriores” (Ibid., p. 53). Já em 2000, o número de
respondentes filiados à igreja foi de 175.618 pessoas, número 11% menor quando comparado
de forma isolada com os 196.665 membros no ano de 2010.

2.6.5 – IGREJA DEUS É AMOR

Assim como no caso da igreja anterior, estudar a formação da denominação pentecostal


Deus é Amor é estudar um histórico de migração para São Paulo. David Miranda, seu fundador,
nasce no Paraná em 1935, tendo se mudado para a cidade de São Paulo ainda jovem, aos 22
anos, juntamente com toda família. Único dos quatro irmãos a não se converter ao
protestantismo até então, é em 1958 que terá sua primeira experiência com a fé evangélica, ao
ouvir uma mensagem na igreja pentecostal Maravilha de Jesus (MIRANDA, 1992). Uma vez
convertido, o paranaense passa a lançar as bases do projeto que viria a se tornar a igreja Deus é
Amor, depois de passar brevemente pelo movimento de tendas e pela denominação Igreja
Pentecostal do Brasil.

Convencido de sua missão – David relatara ter tido uma revelação divina especial
quanto ao projeto -, funda-se oficialmente em junho de 1962 a igreja Deus é Amor. Ainda mais
atrelada a ideia de cura divina do que as outras denominações da segunda onda pentecostal
(CHESTNUT, 1997, p. 38), nela se verá, muito provavelmente, o maior investimento feito em
rádio por uma vertente religiosa até então. Além disto, a igreja se destacaria pela rigidez no
trato dos usos e costumes dos fiéis, constando, nas palavras de Mariano, “(...) entre as que mais
radicalizaram as exigências comportamentais” (MARIANO, 1999, p. 196). Por ocasião de seu
surgimento, Eric Kramer (1999) destaca o marco da diversificação do pentecostalismo em solo
brasileiro, já que a Deus é Amor era mais uma igreja a surgir num contexto que antes era
dominado pelas denominações do pentecostalismo clássico, Congregação Cristã e Assembleia
de Deus.
86

Atraídas pelas campanhas de cura e libertação, multidões fluíam todos os dias para a
sede da igreja, fundada no centro de São Paulo dezoito anos depois de seu nascimento. Formada,
predominantemente, por membros “(...) muito pobres e pouco alfabetizados” (MARIANO,
1999, p. 169), a denominação expandiu-se de tal forma que, segundo suas estimativas, conta
hoje com mais de 10 mil igrejas espalhadas pelo país, além de estar presente em diversos outros
países. Com base nos números do Censo 2010, sob essa alcunha estão 845.383 fiéis, número
9% maior que o da pesquisa anterior, quando da declaração de filiação de 774.830.

2.6.6 – IGREJA CASA DA BENÇÃO

Ao contrário das anteriores, a igreja Casa da Benção, outra denominação do


deuteropentecostalismo brasileiro, nasce em Minas Gerais, em junho de 1964. Doriel de
Oliveira, seu fundador, dá início ao seu movimento na cidade de Belo Horizonte, após se
desvincular da igreja O Brasil Para Cristo, onde fora pastor por alguns anos. Originalmente
chamada de Tabernáculo Evangélico de Jesus, a comunidade experimenta uma mudança crucial
ainda na década de 60: por decisão de seu líder maior, transfere-se para Brasília com mais de
500 membros das cerca de 40 congregações então existentes na região metropolitana da capital
mineira. Popularizada por uma série de relatos acerca dos milagres que nela eram realizados, a
igreja logo passa a ser conhecida pela designação que lhe caracterizava como um “lugar
abençoado”, uma “casa da benção”.

Crescendo a partir do Distrito Federal, a denominação conclui a construção de sua sede


mundial em 1985, com capacidade para 5.000 pessoas, a Catedral da Benção. Seguindo suas
precedentes, a igreja avançaria não só pelo Brasil, mas por diversos outros países, como Estados
Unidos, Japão, Argentina, Suíça, Inglaterra, entre outros. Segundo dados do portal oficial de
seus jovens, “(...) são mais de 2.000 igrejas espalhadas por todos os recantos brasileiros e
dezenas em outros países” (FELIPE, 2012). Relacionada entre as igrejas a constar no censo do
IBGE, sua presença no país constava de 128.676 pessoas em 2000, passando para 125.550 em
2010, queda de cerca de 2,4%.

2.6.7 - IGREJA CRISTÃ MARANATA

Outra denominação a figurar nos censos é a igreja Cristã Maranata. Fundada


oficialmente em 1968, sua história se inicia no Espírito Santo, na cidade de Vila Velha. Fruto
de uma dissidência na igreja Presbiteriana da cidade, suas primeiras reuniões seriam marcadas
87

por experiências pentecostais desconhecidas de seus adeptos até então, quando membros da
denominação histórica. Intitulado, num primeiro momento, como “A Porta”, o grupo passou a
se expandir pela região de sua fundação, atraindo prosélitos de cidades vizinhas como
Cariacica, Caratinga e Juiz de Fora (CHUNG NIN et al., 2000).

Expandindo-se principalmente pelos estados do Espírito Santo e Minas Gerais, a igreja


também alcançaria êxito em sua estratégia internacional, implementando-se em outros países
do globo. Marcada pelas características arquitetônicas distintivas de seus templos – em moldes
similares aos chalés, construídos em madeira – a Maranata encontrar-se-ia envolvida em uma
série de escândalos a partir de 2013, envolvendo acusações como estelionato e formação de
quadrilha, todas relacionadas à administração dos dízimos dos fiéis. Segundo dados divulgados
em seu portal oficial na internet38, sua presença no país é estimada em 900 mil membros,
distribuídos em torno de cinco mil igrejas e templos. Contrariando tais projeções, os números
do censo nos apresentariam uma realidade diferente, 356.021 pessoas em 2010, 28,3% a mais
em relação a totalidade de 2000, 277.342 fiéis.

2.6.8 – IGREJA DE NOVA VIDA

Embora mais velha que as três últimas denominações deuteropentecostais apresentadas


aqui, a igreja Nova Vida ocupa lugar estratégico neste trabalho como a última a ser apresentada
no conjunto de igrejas da segunda onda pentecostal a constar nos dados do IBGE. Isso se dá
especialmente pelo fato de ser ela a denominação que prepara efetivamente o terreno para o
surgimento da onda posterior, o neopentecostalismo. Sobre ela discorre Mariano

Já na Nova Vida encontramos de forma embrionária as principais


características do neopentecostalismo: intenso combate ao Diabo, valorização
da prosperidade material mediante a contribuição financeira, ausência do
legalismo em matéria comportamental (MARIANO, 1999, p. 51).

Nascido no Canadá, Walter Robert McAlister é quem dá início a denominação após vir
para o Brasil para uma série de programações ligadas a missões evangelísticas relacionadas a
Cruzada Nacional de Evangelização, da qual já mencionamos. Estabelecendo-se na cidade do
Rio de Janeiro, o missionário logo estrearia um programa na rádio Copacabana, em agosto de
1960, o A Voz da Nova Vida. De ascendência ligada aos grandes avivamentos pentecostais
experimentados na América do Norte, o sucesso experimentado midiaticamente logo o

38
Disponível em: <http://www.igrejacristamaranata.org.br>. Acesso em: 19 maio 2017.
88

transferiria das cadeiras dos estúdios para os púlpitos dos palcos, primeiro no auditório da
Associação Brasileira de Imprensa (ABI), posteriormente na Cruzada própria, a Cruzada de
Nova Vida (Ibid., p. 52). Assim dar-se-ia a inauguração oficial da primeira igreja Nova Vida,
em 7 de março de 1965, no bairro de Bonsucesso, Rio de Janeiro. A “Cruzada”, que se
transformara primeiramente em “Igreja Pentecostal de Nova Vida”, era agora cognominada
“Igreja de Nova Vida”, seguindo assim, de acordo com seu portal oficial na Internet, “a direção
que Deus dera ao Bp. Robert McAlister”39.

Crescendo, sobretudo, entre as pessoas de classe média e média baixa (Ibid., p 52), a
igreja viria a ser conhecida, anos mais tarde, como o berço das primeiras e mais importantes
lideranças neopentecostais, tendo tido como membros Edir Macedo, Romildo Ribeiro Soares e
Miguel Ângelo. Carioca, é no final da década de 1970 que a denominação decide irradiar-se
para outros estados do país, estabelecendo-se em São Paulo em 1979, ainda que sem muito
sucesso. Mesmo mediante uma cisão após a morte de Robert McAlister – protagonizada em
1996 por seu filho, hoje bispo primaz das igrejas dissidentes Cristãs de Nova Vida, Walter
McAlister – a igreja então controlada pelo bispo Tito Oscar contava com, nas palavras de
Mariano, seis dezenas de igrejas, “quarenta e cinco das quais se encontravam no Rio de Janeiro”
(Ibid., p. 52). Aparecendo nos dados censitários sobre a religiosidade brasileira, declaravam-se
filiadas a denominação 92.315 pessoas na pesquisa do ano 2000, número 1,8% menor que o de
2010, com seus 90.568 correspondentes.

2.6.9 - IGREJA UNIVERSAL DO REINO DE DEUS

A igreja Universal é, nas subcategorias censitárias, a única representante do movimento


que estudiosos têm chamado de neopentecostalismo (MARIANO, 1999), ou pentecostalismo
de terceira onda (FRESTON, 1993). Caracterizadas pelo forte apelo financeiro da teologia da
prosperidade, bem como determinada ênfase na batalha espiritual e maior elasticidade quanto
ao usos e costumes, as igrejas neopentecostais se inscrevem na gama de denominações mais
estudadas pelos especialistas em religião no caso brasileiro nos últimos anos. Pioneira entre
todas elas – Internacional da Graça de Deus, Sara Nossa Terra, Renascer em Cristo, Mundial
do Poder de Deus, Plenitude do Trono de Deus etc. – a igreja Universal, maior denominação
do grupo em número de adeptos, constitui-se como “o grande fenômeno atual do
pentecostalismo brasileiro” (MARIANO, 1999, p. 53).

39
Disponível em: <http://www.novavida.com.br/nossa-historia/>. Acesso em: 19/05/2017.
89

Edir Bezerra Macedo, um de seus fundadores, tornara-se evangélico como membro da


igreja de Nova Vida aos 19 anos de idade, após uma série de experiências religiosas no
catolicismo e, posteriormente, na umbanda. Frequentador das reuniões de Robert McAlister, na
Nova Vida Macedo teria seus primeiros contatos com aqueles que fundariam, juntamente com
ele, o embrião daquilo que daria origem a igreja Universal anos depois: a igreja Cruzada do
Caminho Eterno, de 1975 - que além de Edir ainda contava com os dissidentes Roberto Augusto
Lopes, os irmãos Samuel e Fidélis Coutinho e Romildo Ribeiro Soares (R. R. Soares, cunhado
de Macedo, fundador e líder da posterior dissidência Igreja Internacional da Graça de Deus) -.
Nela durante dois anos, não demorou para que outros conflitos o levassem para novos planos.
Assim, desvencilhando-se primeiramente dos irmãos Coutinho, e depois dos demais, formava-
se em julho de 1977, no Rio de Janeiro, a igreja Universal do Reino de Deus.

Marcada por sua rápida inserção nas esferas midiática e política, essa denominação
alcançaria, em pouco tempo, uma membresia maior que todas as pentecostais de segunda onda
anteriores, figurando entre as maiores denominações do país em menos de trinta anos de
existência. Mariano, escrevendo sobre tal êxito, pontua que

Seu crescimento institucional foi acelerado desde o início. Em 1985, com oito
anos de existência, já contava com 195 templos em catorze Estados e no
Distrito Federal. Dois anos depois, eram 356 templos em dezoito Estados. Em
1989, ano em que começou a negociar a compra da Rede Record, somava 571
locais de culto. Entre 1980 e 1989, o número de templos cresceu 2.600%. Nos
primeiros anos, sua distribuição geográfica concentrou-se nas regiões
metropolitanas do Rio de Janeiro, de São Paulo e de Salvador. Em seguida,
expandiu-se pelas demais capitais e grandes e médias cidades. Na década de
1990, passou a cobrir todos os Estados do território brasileiro, período no qual
logrou taxa de crescimento anual de 25,7%, saltando de 269 mil (dado
certamente subestimado) para 2.101.887 adeptos no Brasil, de onde se
espraiou para mais de oitenta países (MARIANO, 2004, p. 125).

Concentrando-se fundamentalmente entre as classes mais baixas, a denominação de


Macedo seria responsável nos anos 2000, nas palavras do autor, aliada a Congregação Cristã
no Brasil e Assembleia de Deus, por “74% dos pentecostais [brasileiros], ou treze milhões [de
pessoas]” (Ibid., 122). O que muitos certamente não esperavam, depois de todo esse boom, foi
a diminuição da igreja mensurada nos dados do censo 2010. Queda aproximada em 12,2%,
passando dos 2.101.887 para 1.873.243 membros no país.

2.6.10 – DEMAIS SUBCATEGORIAS PENTECOSTAIS


90

Outras três e últimas subcategorias ligadas ao pentecostalismo a aparecer no censo 2010


do IBGE são Evangélica renovada não determinada, Comunidade evangélica e Outras igrejas
Evangélicas de origem pentecostal. Passemos a discorrer, dentro do campo das possibilidades,
sobre cada uma delas. Tudo parece indicar, com relação ao primeiro grupo, que a designação
“renovada” esteja relacionada as denominações de um momento específico da história do
protestantismo brasileiro ligado a pentecostalização de igrejas históricas, iniciado entre as
décadas de 1960 e 1970. A hipótese torna-se palpável quando observada a diversificação das
igrejas de missão em comunidades carismáticas que carregaram consigo a nomenclatura, como
no caso das igrejas Presbiteriana e Metodista Renovadas. Isso, certamente, constitui-se como
mais um ponto difícil de ser apreendido na análise dos dados censitários. O respondente filiado
à igreja Presbiteriana Renovada está inserido entre os presbiterianos ou entre os evangélicos
renovados não determinados? Embora seja difícil responder, o termo “renovada” – ideia de
substituição pelo novo, revigoramento, recomeço – nos ajuda a ter a impressão de que é bem
provável que falemos de igrejas evangélicas que passaram de um ethos tradicional para um
ethos pentecostal. De acordo com o IBGE, 23.461 pessoas responderam estar filiadas a
denominações desse tipo em 2010.

No que concerne ao segundo subgrupo, Comunidade evangélica, mais uma vez nos
deparamos com termos ambíguos. Certo é que dentro do multifacetado campo evangélico
diversas denominações carregam a alcunha “comunidade”, ora como “comunidade evangélica”,
ora como “comunidade cristã”. Esse é o caso de igrejas de determinada expressividade
midiática, como as neopentecostais Comunidade Evangélica de Maringá, do Paraná; a
Comunidade Internacional da Zona Sul, do Rio de Janeiro; e a Comunidade Cristã Paz e Vida,
de São Paulo. Seguindo essa razão, é bem possível que o apanhado de 180.130 pessoas dessa
subcategoria corresponda a estas igrejas que, mesmo em menor tamanho, correspondem a um
número significativo quando aglomeradas. Levando em consideração o método adotado pelo
IBGE e empregado pelos agentes censitários, no que diz respeito a liberdade de resposta do
questionado quanto ao seu pertencimento institucional – diferentemente de pesquisas oficiais
de outros países que apresentam um questionário fechado de alternativas – tal possibilidade é
bem concreta. Por último, temos a subcategoria Outras igrejas Evangélicas de origem
pentecostal, que não só é mais abrangente na análise semântica como também na observância
dos números da pesquisa, englobando assim todos os respondentes de uma miríade de
denominações que se multiplica a cada nova cisão. Consoante ao censo 2010, 5.267.029 pessoas
encontravam-se nesse apanhado, numa nebulosa cada vez mais difícil de apreender.
91

2.6.11 – CONSIDERAÇÕES SOBRE O PENTECOSTALISMO

Muitos são os pesquisadores que escreveram sobre o crescimento evangélico dos


últimos anos justificando-o, especialmente, ao crescimento dos pentecostais. Se nos dados do
censo 1980 – o primeiro a dividir evangélicos pentecostais de históricos – os carismáticos
perfaziam cerca de 48,5% do total de evangélicos brasileiros, esse número em 2010 chegava à
casa dos 60%, saltando dos 3.863 fiéis em sua primeira identificação censitária para mais de 25
milhões na última. Entretanto, uma consideração faz-se mister para nossa pesquisa: se em 2010
a presença dos pentecostais entre os evangélicos era de 60%, em 2000, decênio anterior, esse
número era de 68,5%. Isso significa dizer, obviamente, que assim como no caso do
protestantismo histórico, nos dados de 2010, os pentecostais decaíram nas comparações
agregadas face ao crescimento total de evangélicos brasileiros, ainda que em números absolutos
algumas denominações tenham aumentado. Como no caso das considerações sobre os
históricos feitas anteriormente, alguns gráficos são eficazes ao nos clarear essa realidade, como
o gráfico 5, sobre o percentual dos pentecostais entre os evangélicos na série histórica do censo
1980-2010, e o gráfico 6, panorama da variação das denominações pentecostais nas duas
últimas pesquisas.

TABELA 2 - Denominações pentecostais e seus adeptos no censo 2010


Denominações pentecostais Número de adeptos
Congregação Cristã do Brasil 2.289.634
Assembleias de Deus 12.314.410
Igrejas Quadrangular 1.808.389
O Brasil Para Cristo 196.665
Deus é Amor 845.383
Casa da Bênção 125.550
Igreja Maranata 30.666
Igreja Nova Vida 90.568
Igreja Universal 1.873.389
Igreja Renovada não-determinada 23.461
Comunidade Evangélica 180.130
Outras evangélicas de origem pentecostal 5.267.029
Total 25.370.484
Fonte: Censo 2010
92

Fonte: Censos de 1980-2010

Fonte: Censos de 2000-2010

Nesse ponto destaco ainda que, em relação ao último gráfico, a única subcategoria a
apresentar índice de crescimento é exatamente aquela que, na realidade, não diz respeito a
93

denominação específica alguma, mas ao conjunto de respondentes distribuídos no aglomerado


de denominações evangélicas múltiplas do cenário religioso brasileiro. Assim sendo, o que
temos na observação de tais dados desagregados descritos neste capítulo até aqui resume-se em:
queda de 26,5% para 18,18% dos históricos e de 68,56% para 60,01% dos pentecostais entre o
total de evangélicos. Portanto, a pergunta que fica é: onde foram parar esses números sendo que
os evangélicos passaram de 15,6% para 22,2% do total da população brasileira?

2.7 – OS EVANGÉLICOS NÃO DETERMINADOS

Dentro do grande grupo formado pelos evangélicos no censo 2010 encontramos, junto
com as categorias evangélicas de missão e evangélicas de origem pentecostal, a categoria
evangélica não determinada. Ainda que pouco explorada pelos pesquisadores – muito por conta
da recente utilização da categoria pelo IBGE -, é nesse grupo que nos depararemos com os
números mais significativos de todo aglomerado do protestantismo brasileiro. A razão para
tanto é simples: ao passo da diminuição da presença das outras categorias no todo contingente
evangélico, os não determinados passaram de 1.627.869 em 2000 para 9.218.129 pessoas em
2010, aumento de 466%, saindo dos 6,21% do total de evangélicos brasileiros para cerca de
21,8% - número maior que o do protestantismo histórico e de missão, que é de 18,18%
(GRÁFICO 7). Assim parece que encontramos as respostas das perguntas feitas anteriormente,
já que os números perdidos nos outros aglomerados aparentam ter favorecido essa esfera
específica.

Fonte: Censos de 2000-2010


94

Em trabalho específico sobre a categoria, Allan Nilton dos Reis nos traça o quadro de
caracterização do apanhado, inferindo a partir dos dados censitários que

(...) a maioria dos evangélicos não determinados são: mulheres [55,2%],


brancas ou pardas [89,98%], que moram na periferia das regiões
metropolitanas [93,91%], tendo como instrução o fundamental incompleto
[42,15%] e possuem um rendimento de mais ou menos dois salários mínimos
[50,77%] (REIS, 2014, p. 37, acrescido nosso).

De certa maneira, seria muito ingênuo de nossa parte supor que todo esse conjunto seja
formado por evangélicos não institucionalizados, objeto desta pesquisa. Ao mesmo tempo,
incorreríamos no mesmo erro se ignorássemos a sua presença nesse todo, incontestável de
acordo com as abordagens qualitativas sistematizadas nos anexos deste texto. Cientes disto,
passemos a algumas reflexões sobre as dificuldades dessa categoria, bem como ao levantamento
de determinadas hipóteses.

2.7.1 – O PROBLEMA METODOLÓGICO DO CENSO

Não obstante, é óbvio que, já que estamos fazendo uso das estatísticas divulgadas pelo
censo brasileiro no que diz respeito à religiosidade no país, determinadas ponderações sobre
esse apanhado quantitativo fazem-se necessárias. E aqui é necessário que se diga que,
infelizmente, o censo erra com a classificação de um grande contingente denominado
“evangélicos não determinados”, que por sua vez, implicou queda dos números do
protestantismo histórico e pentecostal. Muito embora não se duvide da importância dos
números decenalmente publicados, não se pode negar que o que encontramos em tais dados não
vão muito além de uma “fotografia da autodeclaração religiosa em determinado contexto [já
que o censo] não possibilita qualificar a mudança, ou entender suas nuanças, mas apenas nos
ajuda a visualizar as macrolinhas das transformações de uma década” (MENEZES, 2012, p. 42,
acrescido nosso).

Uma primeira questão, e talvez a mais pertinente delas, está vinculada diretamente ao
que já falamos sobre o nosso objeto: não há, entre as categorias do IBGE, uma identificação
que classifique os que aqui têm sido chamados de desigrejados. Decorrente a isso, um outro
problema se levanta. O conjunto evangélica não determinada, mais provável aglomerado a
abarcá-los, por si só, é muito ambíguo, gerador de debates por vezes inconclusivos. Seriam,
então, as categorias do censo capazes de captar com fidelidade a declaração do evangélico sem
igreja? Claro que, explicitamente, não. Se mesmo as categorias sociológicas parecem não dar
conta da realidade empírica que diante de nós se coloca – ponto de que tratarei mais adiante, na
95

seção Considerações Finais – o que esperar de uma pesquisa responsável por aferir a realidade
de um país de dimensões continentais como o Brasil? Muitas conjecturas, é verdade, são
formadas a partir desse ponto problemático da metodologia censitária. Entretanto, penso que
cabe a nós, cientistas sociais, a tentativa de aprofundar um pouco mais as reflexões em torno
desse complexo dilema, ainda que não sejamos capazes de nele nos aprofundar como
gostaríamos. A começar, nota-se que Paulo Gracino Junior faz um apontamento, no mínimo,
interessante

(...) realizamos uma série de consultas aos técnicos do IBGE, que foram
responsáveis pelo treinamento e pela tabulação das respostas, no intuito de
esclarecer tal categoria [evangélica não determinada]. Segundo o que
apuramos, embora fosse explícita no protocolo de pesquisas do IBGE a
orientação de se evitar o registro de expressões genéricas, o que ocorreu na
prática foi que os recenseadores foram instruídos para não reformularem a
pergunta “Qual a sua religião ou culto?”. Ou seja, embora pudessem repetir a
pergunta, não poderiam acrescentar nenhuma questão complementar do tipo:
“Qual a igreja?” ou “Qual a denominação?”. O recenseador deveria acolher
literalmente a resposta pelos recenseadores. Portanto, se esses dissessem:
“Sou evangélico(a), mas não tenho denominação alguma”, deveria registrar
essa resposta (GRACINO JUNIOR, 2016, p. 47).

Concomitantemente, o estipulado pelo instituto no que se refere as instruções dadas aos


recenseadores quanto ao correto exercício de suas funções, inseridas no manual do recenseador
de 2010 citado pelo autor, também ajuda a clarear um pouco essa nebulosa

O registro deve identificar a seita, culto ou ramo da religião professada como,


por exemplo: Católica Apostólica Romana, Católica Apostólica Brasileira,
Luterana Pentecostal, Batista, Assembleia de Deus, Universal do Reino de
Deus, Congregação Cristã do Brasil, Adventista do Sétimo Dia, Kardecista,
Xintoísmo, Testemunhas de Jeová, Candomblé, Umbanda, Budismo, Israelita,
Maometana (ou Islamita), Esotérica, etc. Não registre expressões genéricas
como Católica, Protestante, Espírita, Crente, Evangélica, etc. (...) Não
faça deduções a partir da declaração da pessoa que estiver prestando as
informações. Registre a religião declarada por cada morador do domicílio
(IBGE, 2010, p. 195, grifo nosso).

Nesse exercício, uma primeira e importante ponderação surge: concluir que os


respondentes inseridos na categoria censitária evangélica não determinada são aqueles que
foram registrados a partir de uma declaração genérica do tipo “sou evangélico” pela pura e
simples razão do recenseador colocar tal identidade a frente de outras mais ligadas a
denominação pertencente em si não faz muito sentido, já que os recenseadores não tinham
permissão para deduções, ainda que Gracino pareça defender essa hipótese na prática, a partir
96

da impossibilidade de complemento à pergunta por parte do recenseador – recomendação que


por si só também é discutível, já que o mesmo manual apresenta como dever em tema religioso
“identificar a seita, culto ou ramo da religião professada” (Ibid., p. 195)40. Qual a razão de um
número quase seis vezes menor um decênio antes, na pesquisa de 2000? Não teria havido,
naquele contexto, tantas respostas genéricas como em 2010 de modo que os recenseadores as
aglomerassem numa única categoria? E mais, se as categorias enquanto denominações
praticamente se repetem nas duas pesquisas, por que os respondentes que outrora seriam
identificados como pertencentes a determinada igreja se identificariam, agora, apenas como
“evangélico”, fazendo diminuir assim a porcentagem das denominações entre o total de
evangélicos? Decerto estas questões não esgotam o problema, mas acabam revelando ainda
mais a sua complexidade. Óbvio que não é impossível que existam respostas genéricas nesse
apanhado, mas também é certo que há uma complicação maior do que qualquer saída simplista,
característica inquestionável da modernidade religiosa.

Caberia sim, aí, uma objeção que apontasse para a pulverização de igrejas no Brasil, que
não identificadas nas categorias censitárias, estariam todas inseridas entre os evangélicos não
determinados. Ainda assim, é palpável que nesse caso boa parte desses fiéis constassem em
categorias como outras evangélicas de missão, evangélica renovada não determinada e outras
igrejas evangélicas de origem pentecostal, categorias que supostamente abarcariam estas
igrejas que fogem das categorias denominacionais. O problema, como conclui o próprio
Gracino, é que “estamos diante de apenas uma falta de informação” (GRACINO JÚNIOR e
MARIZ, 2013, p. 165). A melhor saída nesse caso, penso, seria refletir sobre outras
possibilidades que aparentam ser mais concretas. Partimos, então, para o apontamento de
algumas dessas, que chamarei de “mais tangíveis”, já que, mesmo que concordemos que
explicitamente o censo não seja capaz de captar com fidelidade as novas formas de religiosidade
– como os não institucionalizados –, ele nos fornece um mapa de um terreno a ser investigado.

2.7.2 – ENTRE AS POSSIBILIDADES, OS DESIGREJADOS

Para além da controvérsia em torno da identificação genérica, proponho que pensemos


em três principais possibilidades diferentes de respondentes que bem provavelmente integram

40
Ao escrever que várias consultas aos recenseadores foram feitas e que, segundo o apurado, recomendações
quanto a impossibilidade da reformulação da pergunta “Qual é a sua religião ou culto?” efetivaram-se, Gracino
não deixa claro quantas destas consultas de fato foram feitas, nem como com quais recenseadores de qual cidade
ou região específica geograficamente tais recomendações se deram; o que deixa tal afirmação vaga e inaplicável
em toda aplicação do censo no país, dependendo da metodologia adotada em tal “verificação”.
97

essa categoria polêmica, independentemente de termos condições de afirmar se em minoria,


maioria ou no todo; lembrando que, como escreveu Regina Novaes reportando-se a Bourdieu
(1963), “o desafio da interpretação sociológica - mesmo quando a força da ‘evidência’ dos
números, das tabelas e gráficos parece marcante - é atribuir-lhes sentido que nunca perdem seu
caráter hipotético” (NOVAES, 2004, p. 323).

A primeira delas diz respeito aqueles que, numa situação semelhante ao que observou o
trabalho organizado pelo sociólogo Cândido Procópio em relação ao catolicismo (CAMARGO,
1973), estão numa situação de protestantismo nominal – ou como evangélicos genéricos, como
escreve Novaes (2012). Como evangélico nominal entende-se o indivíduo que, mesmo
professando ser evangélico, não pratica a fé evangélica – não participando assim dos cultos, das
programações, dos sacramentos etc. De acordo com as palavras de Carrero

(...) o termo “nominal” deve ser usado para qualificar o indivíduo que professa
uma determinada fé, sem, contudo, ser praticante. Seria apenas de nome; seria
católico no nome, mas não professaria efetivamente a fé católica; seria
protestante no nome, mas não professaria plenamente a fé protestante
(CARRERO, 2011, p. 135).

Três tipos, nesse apanhado, existiriam: primeiro, aqueles que são chamados pelos não
nominais, comumente, de “desviados” – pessoas que, na linguagem religiosa, se “desviaram
dos caminhos do Senhor”, afastando-se da denominação em que antes estavam filiados.
Segundo, assim como observou Procópio em relação aos católicos, aqueles que podem estar
ligados a confissão religiosa, nesse caso evangélica, por certa tradição familiar. Já em terceiro,
aqueles que professam ser evangélicos, mas que, entretanto, transitam por diversas
denominações; já que não há o que impeça o trânsito do evangélico professo. Clara Mafra faz
uma ponderação interessante sobre essa questão, atrelando esse fenômeno ao exemplo da
fluidez da Igreja Universal

Uma das peculiaridades da IURD em relação ao universo pentecostal e


carismático está no fato de esta igreja não recusar uma membresia flutuante
(...) O que estou afirmando é que a Universal tem um desenho institucional
que não se abala com a não fidelização do frequentador. Isso significa que
muitos dos seus frequentadores esporádicos, como compõem a sua religião a
partir de uma circulação entre várias igrejas, podem perfeitamente se
identificar como “evangélicos não determinados”. (...) esse tipo de evangélico
– que provavelmente circula e/ou transita entre diferentes denominações – não
se choca com a organização institucional da Universal, que pode vir, na outra
volta do parafuso, exatamente como demonstração de sua influência, por
ajudar a engrossar uma categoria alicerçada na noção de vínculo
congregacional frouxo (MAFRA, 2013, p. 19-20).
98

Essa também é, com certeza, uma hipótese bem tangível, dado que o fluxo do trânsito
religioso no Brasil tem se revelado bem intenso, fenômeno também ligado as transformações
causadas pela segunda modernidade – ou modernidade religiosa, nas palavras de Hervieu-Léger
–, já que “as diferentes tradições religiosas estão em permanente processo de reinvenção e
rearticulação muitas vezes responsável pelo apagamento da nitidez das fronteiras” (ALMEIDA
e MONTEIRO, 2001, p. 92).

Por último, trabalhamos como possibilidade o objeto deste trabalho, os desigrejados –


que até mesmo assumem em alguns casos as características anteriores, tais como a
transitabilidade, como colhemos em entrevista

Numericamente aqui em São Paulo eu tenho uma média de presença


dominical cerca de 80 a 100 pessoas. Mas é itinerante, peregrina. Eu tenho um
grupo que veio desde o primeiro dia, pessoas que se identificam como
Caminho da Graça, mas temos também uma coisa natural de alternância. Por
exemplo, pessoal que veio nesse domingo não vem no outro e volta no outro.
Mas o trânsito é total e o ir e vir é livre, leve, sem cobrança, ninguém sumiu.
Mas quando chegam aqui é uma festa, ficamos felizes (ENTREVISTA 2, com
Carlos Bregantim. Cf. seção “Anexos”).

Chamados também de “cristãos sem igreja”, ou “cristãos orgânicos”, os desigrejados


constituem, nas palavras de Ricardo Mariano em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, grupos
que se desinstitucionalizam como resultado “do individualismo e da busca de autonomia diante
das instituições que defendem valores extemporâneos e exigem elevados custos de seus
filiados” (GOIS e SCHWARTSMAN, 2011). O termo, por si, é usado aqui sociologicamente.
Com isso queremos dizer que, como se percebe, se refere aos indivíduos que exercem da fé
cristã evangélica apartados da “instituição igreja”. Essa pontuação é necessária uma vez que o
termo “desigrejado” não é bem aceito entre os que partilham essa prática41, como pode se notar
a partir de um trecho de nossas entrevistas, por exemplo

(...) só fala desigrejado quem acha que alguém tem que estar na igreja
institucional. Essa palavra desigrejado talvez tenha sido um eufemismo para
desviado. Quando começou esse movimento, os que saíam das igrejas para
irem ao movimento eram tidos como desviados, que se desviaram da fé,
abandonaram a igreja de Cristo – leia-se deixaram de se reunir com a igreja
local –. Só que o tempo foi passando e eles começaram a perceber que não

A recusa se dá pela apropriação da conceituação religiosa para “igreja”, que ao contrário das múltiplas definições
41

das ciências sociais, define o termo para além da explicação de razões comunitárias, institucionais etc. Para o
desigrejado ele é a própria igreja, justificativa da onde deriva o conceito “igreja orgânica” apropriado por algumas
comunidades desta lógica. Esse argumento, como toda cisão evangélica, é apoiado no uso de textos bíblicos, como
1 Co. 6.19: “Ou não sabeis que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós, proveniente de
Deus, e que não sois de vós mesmos?” (BÍBLIA, 1 Coríntios, 6, 19).
99

eram desviados, porque eles continuaram amando a Jesus, fiéis, bons para as
pessoas, vivendo o evangelho, só que não estavam na igreja. Então
“desviados” já não cola mais. É o meu caso, eu fui tido como desviado. De
repente eu tive gente virando a cara para mim, e não foram poucos, muita
gente dizia que eu era um “desviado”. Antes eu era convidado para orar nas
reuniões, e a partir daí eu já não era mais convidado para orar, porque afinal
de contas eu já era um “desviado”, então minha oração não valia mais. Só que
o tempo foi passando e eu deixei de ser “desviado”, porque eles viram que na
verdade eu não tinha desviado. Então como me definiram? “Desigrejado”. É
o “desigrejados” que precisa ser igreja. Então isso é só mais uma tolice
evangélica. Não, nós não nos consideramos desigrejados, muito pelo ao
contrário, nós estamos muito bem igrejados, no que se refere a igreja de Cristo.
O desigrejado é só na cabeça deles (ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra.
Cf. seção “Anexos”).

Aqui cabe a diferenciação desse grupo com os demais citados acima: ao contrário dos
evangélicos nominais, os desigrejados não deixam de exercer a fé, a religiosidade evangélica –
embora reapropriada – no que concerne aos seus ritos, pois como veremos no capítulo seguinte,
continuam a reunir-se em lares e/ou espaços públicos, cultivando nestas ocasiões leitura bíblica,
orações, confissões, canções etc; já em oposto aos que transitam, os desigrejados defendem não
se identificar com nenhuma das opções de instituição existentes, já que combatem
discursivamente qualquer tipo de institucionalização da fé evangélica, anulando assim qualquer
possibilidade de trânsito entre igrejas institucionais42.

A hipótese de que esse grupo esteja, em boa parte, inserido entre a categoria evangélica
não determinada também parece ser refletida por outros pesquisadores de religião brasileiros.
Leonildo Silveira Campos, por exemplo, questiona-se acerca do crescimento dessa categoria
censitária relacionando-o a esses grupos

Portanto, o elemento desestabilizador dos dados relativos ao Censo de 2000


não foi mais o crescimento explosivo dos pentecostais, mas o crescimento dos

42
Sobre isso vale reforçar o fato da constante enunciação de seu líder não só contra a igreja evangélica institucional
mas também contra qualquer tipo de "religião”. Em seu web portal oficial, por exemplo, Caio Fábio escreve que
“Jesus nunca quis fundar uma religião. Essa foi a razão pela qual nada foi mais danoso para a genuína fé do que
terem-na feito tornar-se uma religião, entre as demais” (FILHO, [2007]). Por esse motivo específico muitos tendem
a apontar os adeptos do grupo como respondentes possíveis da categoria censitária dos “Sem religião”. Essa é uma
possibilidade plausível, já que, semelhantemente ao observado no caso dos evangélicos não-determinados, os
“Sem religião” vêm experimentando crescimento nos últimos anos, de 7,4% da população em 2000 para 8,0% em
2010. Todavia, é importante ressaltar que o crescimento mais expressivo dos “sem religião” no Brasil é verificado
no intervalo dos censos 1991-2000, passando de 4,8% para 7,4%, ocasião em que Caio Fábio ainda era
representante – para não dizer o mais conhecido representante – do protestantismo institucional. Essa é uma
variável importante, que nos leva a pensar ser mais provável a pertença dos desigrejados entre os evangélicos não-
determinados, ainda que, evidentemente, isso não exclua a primeira hipótese. Quando perguntado sobre como
responderia à pergunta do censo “qual a sua religião ou culto?”, um dos líderes nos disse que responderia “minha
religião é Jesus” (ENTREVISTA 1), o que nos leva a pensar na plausibilidade desta resposta ser inserida em
categorias mais genéricas, como a dos evangélicos não determinados.
100

evangélicos que, pelo menos teoricamente, estariam se libertando da força da


tradição familiar e denominacional e se aventurando pelos caminhos de uma
religiosidade, embora evangélica, sem identidade denominacional. Seriam
eles os “desigrejados”? Ou é um grupo formado por indivíduos que estão a
caminho de uma nova afiliação eclesiástica? É possível responder sim a ambas
as questões (CAMPOS, 2013, p. 139).

Ricardo Mariano, por sua vez, reafirma na análise da hipótese as características


marcantes do religioso na modernidade, tais como a privatização e individualismo. Escreve que

O inchaço da categoria “evangélica não determinada” reduziu artificialmente


o crescimento pentecostal. Mostra limitações do Censo, mas também pode
estar sinalizando a expansão da privatização religiosa nesse grupo, situação
em que o crente mantém a identidade religiosa e a crença, mas opta por fazê-
lo fora de instituições. Tal privatização resultaria da massiva difusão do
individualismo, da crescente busca de autonomia em relação aos poderes
eclesiásticos, à imposição de moralidades tradicionalistas, aos elevados custos
do compromisso religioso (MARIANO, 2012).

De outra maneira, vale pontuar que em nossas entrevistas os líderes do movimento que
tomamos como recorte mencionam a predominância, pelo menos no início, de simpatizantes
outrora filiados à igreja evangélica institucional, o que corroboraria a possibilidade de parte
desses respondentes entre os não determinados

A maioria, no começo, era a maioria de cristãos evangélicos, 100%, os


desencatados. Na medida em que o tempo vai passando você tem a maioria
cristã protestante, mas já tem também uma quantidade razoável de pessoas
que vem de outras confissões, como espíritas, umbandistas, pensamentos
filosóficos dos mais variados, ateus, católicos. Houve um tempo em que
católicos eram campo missionário dos crentes, mas hoje eu não vejo assim,
para mim são irmãos. Nossas doutrinas, nossas confissões, divergem na
periferia, mas na essencialidade cremos no Deus Pai, Deus Filho e Deus
Espírito Santo, e na santa amada igreja universal mística e com tudo isso bate.
Hoje a frequência é de um bom grupo que vem do movimento cristão
evangélico dos mais variados, históricos, pentecostal, das novas igrejas que
estão no mercado religioso, esses que do mercado religioso chegaram
sangrando, sofrendo, doloridos, feridos, traídos, defraudados – e por isso que
eu digo para eles entenderem a nossa reunião como uma emergência, a cadeira
como uma maca. Numericamente aqui em São Paulo eu tenho uma média de
presença dominical cerca de 80 a 100 pessoas (ENTREVISTA 2, com Carlos
Bregantim. Cf. seção “Anexos”).

Inseridos num contexto de modernidade religiosa, não seria natural que os fenômenos
há certo tempo já observados no campo religioso de outros países do globo fossem também,
101

ainda que de maneira desigual, vistos por aqui?43 Certo que sim, a grande dificuldade, na
realidade, residiria no fato de ser árdua a tarefa de caracterização sociológica desse grupo, que
por sua vez, é só mais um entre a miríade de novos movimentos religiosos individualizados da
segunda modernidade. Ainda assim, mesmo que a informalidade e pouca organização de tais
grupos nos embarace a possibilidade de aprofundamento empírico44 – pelo menos para uma
pesquisa de tão pouco tempo como a de mestrado –, algumas ponderações empíricas mais
longas e aprofundadas lançam luz a tal dilema. Sabemos, por exemplo, como já citamos
anteriormente, que se boa parte desses novos atores religiosos estiverem inseridos na categoria
censitária evangélica não-determinada fazemos referência a um grupo formado
predominantemente por mulheres, brancas ou pardas, de fundamental incompleto na faixa etária
dos 30 aos 49 anos – como nossas pesquisas de campo parecem ratificar. Igualmente, se a
categoria dos sem religião – que como também já dissemos, é uma possibilidade bem plausível
– for o conjunto a abarcar tais indivíduos, de acordo com os dados de 2010, nos referimos à
predominância de homens, de cor branca ou parda, também de fundamental incompleto e faixa
etária mais jovem, dos 20 aos 49 anos – o que de certa forma reafirmaria a presença dos jovens
entre esses novos movimentos, muito pelo fato de já terem sido socializados no contexto da
segunda modernidade, da ascensão do Deus de cada um, como também apontam as
contribuições de trabalhos como os de Regina Novaes (2004, 2012), Flávio Sofiati (2011) e
Silvia Fernandes (2007, 2009, 2011). Dados tais entraves, o que parece mais palpável é que
entre a infinidade de possibilidades integrantes desses movimentos que crescem a cada dia,
inconclusivos quantitativamente – pelo menos por ora –, estão esses que, no capítulo seguinte,
serão abordados a partir do olhar para um grupo específico: o Caminho da Graça.

43
Grace Davie, socióloga da religião britânica e autora de Religion in Britain since 1945: Believing without
belonging (1994), escrevera sobre a persistência do religioso no contexto britânico acompanhada de um declínio
inegável da frequência da igreja no contexto da modernidade radicalizada, motivo da formulação do conceito que
chamou de “crer sem pertencer”.
44
Como poderá ser visto nas entrevistas com peças-chave do movimento aqui recortado, nossas perguntas sobre o
perfil dos que passam pelos seus encontros ficaram sem respostas satisfatórias, uma vez que mesmo os mentores
dos grupos não se preocupam com o histórico e caracterização dos frequentadores.
102

3 – O “CAMINHO DA GRAÇA”

A terceira seção deste trabalho abordará aquele que se delimitou como recorte específico
de uma comunidade que se apropria de sua própria concepção de Deus, formada por indivíduos
contemporâneos que experimentam do sobrenatural não mais a partir das instituições, dos
dispositivos disciplinares e das identidades coletivas, mas da construção individual: a
comunidade Caminho da Graça. Segundo a descrição oferecida em seu site oficial, um
movimento que poderia ser definido como

(...) mais que um lugar ou um clube de iluminados. Trata-se de um movimento


de subversão do Reino de Deus na Terra (...) “O Caminho da Graça” é a
simples busca de viver o Evangelho com tal consciência entre os homens.
Nada mais e nada menos do que isso! (D’ARAÚJO FILHO, [2007])

Como se deve ter em mente, esse certamente não é o único aglomerado de cristãos não
institucionalizados e não institucionalizantes no Brasil. Também chamados comumente de
“igrejas orgânicas”, como já escrevemos antes, tais grupos se espalham pelo país de modo a ser
extremamente complicado estimá-los em números, exatamente pelo caráter que os definem
como tal: a informalidade. Todavia, dentro das prerrogativas de construção de uma pesquisa,
outra alternativa não havia além de um recorte metodológico que nos permitisse, pelo menos
em partes, compreender os discursos e organização de uma fração desses que são também
personagens dos processos de reconfiguração e redefinição da religiosidade evangélica
brasileira. Sobre esse exercício, Lima e Gondim escrevem que “delimitar um objeto é
necessário mesmo que não se pretenda realizar pesquisa empírica, pois é essa delimitação que
torna uma dissertação ou tese diferente de um manual, uma enciclopédia ou um tratado teórico”
(LIMA & GONDIM, 2004, p. 48).

Algumas particularidades, então, definiriam a escolha do Caminho da Graça como


grupo a se enquadrar na categoria sociológica dos desigrejados aqui trabalhada, uma vez dada
a identificação de seu fundador ao movimento desinstitucionalizante

(...) essa nova igreja tá aí, com milhares de pessoas se espalhando. Ela não é
visível, graças a Deus, ela só é perceptível. Eu a sinto aqui como poucas
pessoas, porque ela passa por aqui (...) de acordo com o IBGE a igreja que
mais cresce no Brasil hoje é essa igreja, dos chamados desigrejados. Ela
cresceu 750% entre os dois censos [2000 e 2010], quando a igreja que cresceu
mais entre as evangélicas entre os dois censos, num período aí de dez anos,
foi a Assembleia de Deus, com 24%. Mas a que cresceu mais foi essa que a
igreja oficial, a igreja institucional, chama de a não-igreja (...) é um pessoal
103

que não deixou a fé, eles só deixaram a instituição (D’ARAÚJO FILHO,


2014a).

Provavelmente por proporção, o Caminho da Graça é, com certeza, o mais conhecido


movimento a confluir desigrejados no país. Atraindo dezenas de cristãos outrora vinculados a
alguma denominação institucional, o movimento também se destaca por ter, como seu principal
veículo de propagação, um meio que ganha cada vez mais força e público no Brasil: a Internet.
Obviamente, não com exclusividade, já que é inegável que a partir do final do século XX a
disseminação da utilização de computadores, e a posterior incorporação da Internet, modificou
não só o cotidiano das pessoas como também as relações por elas desempenhadas em diversas
esferas, inclusive na religiosa em vários dos seus segmentos. Sobre essa relação, inclusive, uma
digressão é necessária. Jorge Miklos escreve que

A dupla contaminação “mídia religiosa e religião midiática” promove a


transformação da religião em mercadoria e dos fiéis em consumidores
consumíveis, uma vez que na mesma medida em que consomem produtos
sagrados também se convertem em mercadorias imagéticas consumíveis.
Embora aparentemente ambíguos, o ser humano religioso e o consumista
buscam a mesma realidade: o resgate do sentimento de pertença, a inclusão
comunitária (MIKLOS, 2010, p. 47).

Nesse sentido, o ciberespaço, como trabalhado pelo autor, utilizando das ferramentas da
Internet que possibilitam comunicação instantânea, somada ao intercâmbio de ideias, gera
terreno profícuo para uma interação religiosa, haja vista a predisposição na constituição de laços
e pertencimento social característico. A cultura contemporânea, fortemente marcada pelas
tecnologias digitais, transforma radicalmente a sociabilidade humana. As experiências
religiosas, evidentemente, não ficaram imunes a tantas mudanças. A considerar o que chamou
de Novos Movimentos Religiosos, Beck bem escreve que

Exemplos das novas formas de religião podem ser encontradas nas páginas da
internet. Aí exibe-se um bazar superlotado de ofertas para quem procura o
sentido da vida. As pessoas viajam pelos espaços digitais e escolhem o que
agrada a cada um. Ao lado dessa explosão de oferta de assuntos religiosos, na
esfera virtual, também a maré crescente de publicações sobre esses temas,
assim como o cinema e a televisão, contribui para transformar completamente
o cenário religioso institucionalizado, embora isso possa parecer a muitos
superficial e arbitrário (BECK, 2016, p. 136).

A reverberação disso no Brasil foi sentida no intenso esforço de variadas vertentes pela
construção e manutenção de veículos eletrônicos de divulgação, como emissoras de web rádios
e web TV’s. Já que, segundo dados do Censo 2010 (IBGE, 2010), aproximadamente 30,7% das
casas no Brasil possuem acesso à rede mundial de computadores – ou seja, um em cada três
104

brasileiros -, seria essa importante fatia da população ignorada pelo discurso religioso? Pelo
menos no que tange ao Caminho da Graça podemos afirmar, certamente, que não.

Não bastasse o seu potencial de alcance, vale ainda pontuar alguns outros aspectos que
fazem da Internet uma importante ferramenta. Entre eles a ausência de regulação, que permite
a produção de conteúdo sem a necessidade de uma concessão pública para funcionamento -
diferentemente das emissoras de TV, por exemplo -, e os valores mais atenuados para
manutenção de um web portal, em oposto aos contratos milionários assinados por líderes de
grandes igrejas evangélicas no Brasil para compra de emissoras ou horários na programação da
TV aberta, como os pastores R. R. Soares, da igreja Internacional da Graça, e Valdemiro
Santiago da igreja Mundial do Poder de Deus (SOUZA, 2012). No caso do nosso recorte, dois
portais específicos mereceram destaque, a web TV Vem e Vê Tv – por onde é transmitida uma
grade diária relacionada ao grupo, tais como os programas Espaço das Estações e o Papo de
Graça – e o website caiofabio.net – onde se pode encontrar uma infinidade de textos produzidos
sobre a temática da não institucionalidade.

Dito isso, retornemos às especificidades responsáveis pela nossa delimitação, listando


agora o que talvez seja o principal fator de eleição do grupo: a trajetória e figura de seu líder e
fundador, Caio Fábio D’Araújo Filho. Há quem considere que, em meados dos anos 1990, Caio
Fábio fosse a voz mais expressiva da igreja evangélica tradicional brasileira, ao ponto de se
tornar, como um de seus idealizadores, presidente da AEVB – Associação Evangélica
Brasileira. Sobre esse pilar, todavia, explanaremos mais adiante. O que cabe agora, após a
apresentação das razões de nossa demarcação, é explicitar sobre a metodologia que foi
empregada na construção da pesquisa que fundamenta esta seção específica. Se na seção inicial
propusemos um balanceamento bibliográfico sobre a relação religião e modernidade
radicalizada e, na seguinte, um trabalho quantitativo a partir dos censos sobre as mudanças no
cenário evangélico brasileiro, relacionadas às características próprias do processo de
individualização desse período, aqui, na última parte, apresentaremos ao leitor um trabalho
essencialmente qualitativo, mesclado ao método de estudo das trajetórias (GUÉRIOS, 2011),
dividido entre o mapeamento e análise de materiais discursivos sobre o grupo e seu respectivo
líder disponibilizados na rede – bem como seus perfis biográficos –, e duas entrevistas
semiestruturadas realizadas com atores-chave desse universo, anexadas ao final da dissertação.
Espera-se, assim, que na conclusão do capítulo todo esse balizamento sirva para a compreensão
de parte da redefinição e reconfiguração dos evangélicos no Brasil no contexto da segunda
modernidade.
105

3.1 - CAIO FÁBIO D’ARAÚJO FILHO, SEU FUNDADOR E MENTOR

A história do Caminho da Graça confunde-se, inquestionavelmente, à história de seu


fundador e líder, Caio Fábio D’Araújo Filho. Com isso pretende-se dizer que é praticamente
impossível entender a história de formação do grupo sem um entendimento mais amplo que
abranja, em si, a trajetória biográfica de seu representante maior. Na pretensão de cumprir
cabalmente com essa finalidade, trabalharemos de início com o método de estudo das trajetórias
de vida, sendo ele “(...) conclusões a que o pesquisador de Ciências Sociais chega a partir do
estudo dos materiais obtidos a partir das biografias e das histórias de vida” (GUÉRIOS, 2011,
p. 09). Sobre esse gênero de pesquisa, Mirian Goldenberg escreve que

Se cada indivíduo singulariza em seus atos a universalidade de uma estrutura


social, é possível ‘ler uma sociedade através de uma biografia’, conhecer o
social partindo-se da especificidade irredutível de uma vida individual. Ou,
como afirma Norman Denzin, inspirado em Sartre, o homem é “um singular
universal” (DENZIN, 1984, p. 30)” (GOLDENBERG, 1996, p. 36-37).

Como defendemos, contextualizando a argumentação de Goldenberg, é perfeitamente


possível entender parte da sociedade aqui elencada, o tecido social do Caminho da Graça,
através da biografia de Caio Fábio, ou, em outras palavras, entender esse fenômeno social de
parte da reconfiguração da fé evangélica brasileira a partir da experiência pessoal de seu
fundador e mentor, ainda que se deva ficar claro nosso ceticismo quanto à crença de uma
linearidade gradativa dos eventos biográficos de um indivíduo. Na união, portanto, da trajetória
individual de Caio Fábio aos traços característicos do Caminho da Graça, encontraremos
trajetórias comuns que nos permitirão enxergar a objetivação das relações entre o agente e as
forças de sua estrutura social (BOURDIEU, 1989), pois como escreve Pierre Bourdieu,

Toda trajetória social deve ser compreendida como uma maneira singular de
percorrer o espaço social, onde se exprimem as disposições do habitus e
reconstitui a série das posições sucessivamente ocupadas por um mesmo
agente ou por um mesmo grupo de agentes em espaços sucessivos
(BOURDIEU, 1996, p. 34).

Trabalhando, portanto, com a apropriação prática do indivíduo da sua concepção de


Deus e da fé na segunda modernidade, o Deus de cada um, não seria pertinente que
balizássemos sobre um desses movimentos contemporâneos a partir do indivíduo que o
idealizou? A resposta nos parece positiva. Dessa forma, recorrendo a alguns de seus livros,
especificamente à sua autobiografia Confissões do Pastor (D’ARAÚJO FILHO, 1997), bem
como a outros materiais biográficos e discursivos disponibilizados em seu portal oficial na
106

Internet e às nossas entrevistas face a face, procuraremos destacar alguns fatos da vida de Caio
Fábio que evidenciam seu envolvimento e destaque no protestantismo institucional no final do
século XX e a sua guinada à formação de um movimento desinstitucionalizado e
desinstitucionalizante no início do século XXI, começando, assim, arqueologicamente pelo
início de sua vida até sua ordenação como pastor da Igreja Presbiteriana do Brasil.

3.1.1 – DA “DEVASSIDÃO” À CONVERSÃO, DA CONVERSÃO À ORDENAÇÃO


COMO PASTOR

Nascido em 15 de março de 1955, em Manaus-AM, Caio Fábio viria a ser o primeiro


filho de um total de três do casal Caio Fábio D’Araújo e Lacy Silva D’Araújo; ele de família
católica e ela de família protestante, presbiteriana. Por ocasião de seu nascimento, conta que o
pai, mesmo confessando o agnosticismo por uma série de questões existenciais, fora inundado
pela “ideia do sagrado”, ao ponto de, tomando-o nos braços, expressar uma oração que, segundo
suas palavras, “estaria marcada com a força divina das profecias”

Deus, se Tu existes e estás aqui neste quarto, ouve a minha voz. Eu Te dedico
o meu filho, meu primogênito, e peço que faças dele um homem de Deus, um
sacerdote, alguém que carregue a Tua marca em sua vida. Mas peço que Tu
não o prives do privilégio de ter família, de criar filhos e de conhecer o amor
por uma mulher. Por isso, mesmo sem saber por que Te peço, por favor, Deus,
faze dele um pastor. Assim, ele poderá conhecer a alegria que eu estou
sentindo neste momento, de levantar meu filho nos braços, e será também
capaz de conhecer este estranho sentimento de proximidade da divindade, que,
como nunca antes, me invade agora todo o ser (Ibid., p. 08).

Residindo na cidade amazonense de Canutama, onde o pai exercia o cargo de promotor


público do Estado do Amazonas, mudara-se pouco tempo depois para sua cidade natal, à época
da ascensão do pai à subprocuradoria-geral daquela unidade federativa. Ali o menino assistia
não só ao crescimento da família, com o nascimento de seus irmãos mais novos Luiz Fábio e
Suely, mas também ao crescimento da condição socioeconômica dos seus, já que o pai pedira
exoneração do cargo público que ocupava para dedicar-se a um escritório de advocacia próprio,
além de fundar, a partir de 1958 e em sociedade com nomes expressivos da política local –
como Gilberto Mestrinho, governador do Estado que no final daquele mesmo ano nomearia
Caio, o pai, como diretor comercial da Papel Amazon -, uma companhia de exploração de ouro,
a Colimpa S. A., e uma de extração de borracha e castanha pouco tempo depois, a Compaina,
fundada junto a outros amigos.
107

De infância pacata, marcada pela fascinação devotada ao pai, em Manaus, na mesma


casa onde fora criado o seu progenitor, D’Araújo Filho tivera os seus primeiros contatos com a
fé evangélica, influenciado sobremodo pela avó materna, que era acostumada a “(...) dividir o
mundo entre católicos e protestantes, dizendo sempre que os primeiros estavam
irremediavelmente perdidos e os últimos inevitavelmente salvos” (Ibid., p. 36). Anos mais tarde
essa influência passaria a ser ainda maior, dessa vez vinda da mãe, que, prestes a se divorciar
por causa de uma relação extraconjugal do marido, apegava-se a fé evangélica para “(...)
diminuir a sensação de solidão que sobre ela se abatera” (Ibid., 48). Sem uma vinculação
institucional formal, entretanto, o pequeno Caio vivenciava àquela altura nada mais do que
lampejos de experiência religiosa, tais como um vislumbrar místico do pôr-do-sol, como relata
em sua autobiografia

Lembro-me que passei a me postar na varanda lateral de nossa casa e olhar o


pôr-do-sol, que acontecia por trás de uma alta e frondosíssima mangueira, que
virava Sarça Ardente quando as luzes multimatizadas do ocaso pintavam-na
de tons quase psicodélicos e davam-lhe o poder místico dos sacramentos. Para
minha mente de oito anos, as maiores impressões ficavam por conta do fato
de que as folhas se doiravam com o reflexo do sol e aquela silhueta imensa da
árvore me enchia de uma estranha sensação: era como se aquela mangueira
fosse o símbolo de algo espiritual para a minha alma, de alguma coisa na qual
um dia minha existência encontraria seu sentido. Algo saudoso, porém vivo.
Era como se a pessoa que mais me amasse estivesse escondida ali, atrás
daquela árvore mágica, sagrada, reluzente e cheia de uma estranha sombra
colorida (Ibid., p. 48).

A possiblidade de divórcio de seus pais, contudo, não era o único evento a marcar a vida
de Caio Fábio. A vida da família D’Araújo mudaria drasticamente após o golpe militar de 1964.
Envolvido em negócios de inúmeros ramos – em sua maioria dependentes da aprovação e
licença do governo federal –, o seu pai não viu outra alternativa diante do declínio de suas
companhias e a perda de sua posição na Papel Amazon que não fosse uma mudança para uma
nova vida no Rio de Janeiro. Assim instalavam-se na capital fluminense em dezembro de 1964,
permanecendo ali por cerca de dois anos, até se mudarem, em 1966, para uma cidade vizinha,
Niterói-RJ. Caio, então com 11 anos, participara do primeiro culto em uma igreja presbiteriana
levado, juntamente com os irmãos, por sua mãe Lacy - que ouvira de conhecidos a notícia de
que um pastor, que há muito vira pregar em Manaus, estava abrindo uma igreja nova na cidade
em que agora residiam. Sobre esses primeiros contatos, Caio Fábio escreve que

No domingo seguinte, todos nós fomos à igreja. Até eu gostei. No outro


domingo, já fui decidido a passar a tarde com o filho mais novo do pastor, um
108

garoto tímido, um ano mais novo que eu, chamado Teófanes (...) A tarde com
Teófanes foi maravilhosa. Jogamos bola e nos atolamos num pé de jamelão
carregadíssimo. Comi tanto, que tive uma alergia que me deixou quase dois
dias inchado. O entusiasmo com a experiência comunitário-religiosa
contagiou a todos nós. Eu mesmo, até aquela data absolutamente
desinteressado pelas coisas da religião, passei a ficar empolgado com a
chegada do domingo. O impacto da fé em mim era muito relativo. Eu gostava
das pessoas do lugar, mas não havia nada que fosse muito além disso (Ibid.,
p. 57).

O pai, até então declaradamente agnóstico, demonstraria, para a surpresa dos membros
da família, um interesse incomum por aquilo que antes lhe era indiferente: a fé de sua esposa.
Chegando a frequentar algumas reuniões da igreja presbiteriana Betânia, não demorou para que
professasse publicamente a fé evangélica, exercendo a partir dali, nas palavras de D’Araújo
Filho, “tudo, menos a advocacia”, já que “(...) seu escritório nada mais era do que um centro de
irradiação de graças e preces” (Ibid., p. 67). Não bastasse sua filiação junto à comunidade
religiosa, logo viu-se no desejo de regressar à terra natal a fim de propagar sua nova crença
àqueles que havia deixado para trás, contrariando demasiadamente o desejo de permanência de
seu filho mais velho. Como pastor missionário, porém, a igreja lhe exigiria quatro anos de
formação teológica, tempo para o qual Caio, o pai, não estava disposto a se dedicar. Depois de
muita discussão, enquadrá-lo no caso de “vocação tardia”, prevista em sua constituição interna,
foi a melhor solução encontrada pela denominação, para qual a entrega de uma tese em teologia
substituía a necessidade de formação em um seminário confessional. Era o tempo que restava
à família no Estado do Rio de Janeiro. A essa altura Caio, o filho, desinteressado por qualquer
tipo de compromisso mais sério com a fé que seu pai então abraçava, dava os primeiros sinais
de seu afastamento paulatino daquelas experiências religiosas com as quais convivera desde a
mudança para Niterói. Concernente a isso, escrevera

Enquanto meus pais se dedicavam cada vez mais à fé, eu experimentava uma
vida cada vez mais ambígua. Na igreja, eu era visto como bom de bola, bom
de papo, bom garoto e bem-entrosado. Fora da igreja, entretanto, todo mundo
sabia que, na verdade, eu era apenas um “dublê de crente”, pois as estripulias
que eu fazia falavam de uma outra pessoa, que apenas uns poucos, e
igualmente sonsos, da igreja conheciam (Ibid., p. 63).

Envolvendo-se com álcool, drogas e brigas constantes, afastara-se de vez da igreja na


mudança para Manaus, em 1971, onde, segundo Alexandre Fonseca, assumia “(...) práticas
promíscuas em sua vida cotidiana” (FONSECA, 1997, p. 228). Seu estilo de vida na capital
amazonense acarretaria, sem demora, novos problemas não só diante da postura rígida e
legalista do pai recém ordenado pastor, mas também diante das autoridades policiais manauaras,
109

emaranhado de situações que o impeliria novamente para o Rio de Janeiro, dessa vez sozinho,
onde passaria a maior parte do ano de 1972. Vivendo dissolutamente ali, segundo seus relatos,
Caio enfrentava dificuldades que chamava de espirituais, determinantes para sua futura
conversão. Em sua autobiografia escrevera, acerca daquela situação específica, que “a pressão
espiritual estava pesada demais” (Ibid., p. 104). De volta a Manaus em 1973, e decidido a tirar
a própria vida, envolver-se-ia novamente com a fé evangélica depois de uma visita inusitada
em um culto da igreja Assembleia de Deus. Decidido definitivamente a mudar de vida, naquele
mesmo ano experimentaria aquilo que seria destacado em seu texto biográfico como um dos
mais importantes momentos de sua existência: a sua conversão.

Curiosamente, da mesma forma como acontecera com o pai, sua mudança não estaria
restrita somente à vida privada, já que, dia e noite, via-se “(...) pregando para multidões” (Ibid.,
p. 130), prendendo-se assim à ideia de que a “pregação do evangelho” era sua “grande vocação”
(Ibid., p. 130). Matriculado naquele momento em um curso de edificações pela Escola Técnica
Federal, Caio logo abandonou as aulas para dedicar-se “(...) completamente ao estudo da Bíblia,
à oração e à pregação da Palavra” (Ibid., p. 86). Não muito tempo depois, mais especificamente
em julho de 1974, ele e o pai eram convidados por Robert Phelippe Daou, dono da Rede
Amazônica de Televisão – que iniciara suas transmissões naquele ano como rede independente
-, para a condução do primeiro programa evangélico de televisão do Amazonas, o dominical
Jesus, a esperança das gerações. Projetado midiaticamente, em pouco tempo Caio Fábio Filho
já era chamado de pastor pelas pessoas que o reconheciam por onde estava, ainda que não
tivesse passado, até aquele momento, por um seminário teológico, exigência da denominação a
qual estava vinculado, a igreja presbiteriana do Brasil.

A ordenação, de fato, viria mesmo sem a formação teológica, como no caso de seu pai
anos antes, mas agora não por conta de “vocação tardia”. Sobre o momento de tensão entre seu
desejo pessoal e as prerrogativas da igreja em relação aos candidatos ao pastorado, Caio
escrevera

(...) embora eu desejasse viver para o ministério da pregação do evangelho,


não podia me ver quatro anos dentro das paredes de um seminário. Achava
que aquilo me afastaria das ruas, das escolas, do rádio e da televisão, e que eu,
provavelmente, não sobreviveria ao tédio da experiência. Como sabia que os
presbiterianos jamais consentiriam com minha ordenação sem o curso
teológico, comecei a me imaginar para o resto da vida como um pregador leigo
do evangelho (Ibid., p. 136).
110

Nomeado primeiramente como evangelista – título dado ao leigo que se propõe ao


trabalho eclesiástico -, a oportunidade à nomeação efetiva como pastor se abriria em 1975, ano
de seu casamento com Alda Maria Fernandes, quando o concílio da igreja presbiteriana de
Manaus oferecia-lhe a chance da ordenação depois de um acompanhamento por três anos, ao
final dos quais uma tese teológica tivera de ser entregue. Indiferente à situação, a afirmação de
Caio concernente ao impasse, relatada subsequentemente em sua autobiografia, já parecia
demonstrar determinada apatia para com os vínculos denominacionais, ainda que tenha sido
escrita durante o tempo em que neles via-se pertencente

Eu, contudo, não fiquei magoado com aquilo. Na verdade, nunca tivera
qualquer tipo de fé na instituição religiosa. Sabia que ela era útil apenas
para manter a tradição da fé, mas que era completamente inútil quanto a
produzir amor e paixão no coração das pessoas sofridas deste mundo (Ibid., p.
146, grifo nosso).

Basicamente essa era mesma apatia que, em setembro de 2014, levava o já líder do
Caminho da Graça a afirmar, em seu programa diário Papo de Graça, palavras de resistência
relacionadas ao período

A IPB [igreja presbiteriana do Brasil] quis fazer um julgamentozinho


comigo... conseguiu? “Eu não dou para vocês esse poder!” Eu nunca quis ser
ordenado, nunca pedi, vocês é que me convidaram para ser. Me mandaram
duas vezes para o seminário e eu disse que não ia, que eu não queria ser
ordenado. Vocês é que quiseram me ordenar por conta própria e onde
quiseram, com 20 anos de idade, problema é de vocês. Nunca trabalhei para a
IPB, passei a vida inteira pregando o evangelho para todos, sem distinção (...)
(D’ARAÚJO FILHO, 2014b).

Mesmo em meio a toda indisposição, à época, Caio era oficialmente ordenado como
pastor da igreja antes do previsto, em janeiro de 1977, com uma tese que versava sobre a
salvação dos pagãos fora da religião, recheada de argumentos desinstitucionalizantes, já que,
segundo suas palavras, a implicação de seus pensamentos naquela área dava-se em conceber a
igreja como “(...) agente de Deus neste mundo para pregar a salvação, mas não a detentora da
administração da graça divina por meio algum (...) arranhando [assim] o assunto mais delicado
da experiência eclesiástica: a ação divina fora da instituição religiosa” (D’ARAÚJO FILHO,
1997, p. 153). Assim, oficialmente constituído como ministro eclesiástico, o nome de Caio
Fábio D’Araújo Filho ganhava, aos poucos, uma projeção antes inimaginável.

3.1.1 - A VISÃO NACIONAL DE EVANGELIZAÇÃO (VINDE) E A PROJEÇÃO


NACIONAL
111

Já tivemos entre nós: a) A Era dos Missionários (1855-1933); b) A Era da


Confederação Evangélica (1934-1964); c) A Era dos Velhos Caciques (1965-
1980); e d) A Era Caio Fábio (anos 80-90). E agora, na Era Pós-Caio, o que
temos? Como classificaríamos a atualidade: a) Era tem-de-tudo?; b) Era vale-
tudo?; c) Era cada-um-por-si-e-Deus-por-todos (e o demônio-por-alguns)?
(CAVALCANTI, 2002a).

Segundo seus registros, Caio Fábio vivia em meio a um tufão gerado pelo prestígio que
gozava entre aqueles que viam nele um líder religioso em ascensão. Tendo montado uma
espécie de escritório de assistência espiritual – já que o fluxo contínuo de fiéis em sua casa
começara a desagradar sua esposa e filhos -, as filas logo se acumulavam, consequência
imediata de sua presença cada vez maior nos meios de comunicação. No ar em todas as manhãs
pela Radio Baré, no programa de Clodoaldo Guerra, Caio relatara receber até mil e oitocentas
chamadas telefônicas por dia, das oito da manhã à meia-noite (Ibid., p. 179). Pensando de modo
estratégico, aliara-se então a um novo projeto audacioso

(...) não perdi a fé no fato de que a mídia poderia ser usada de modo legítimo.
Eu mesmo usava a mídia e via os resultados positivos. Dessa forma, animado
com o sucesso dos meios de comunicação, parti para um projeto de saturar
Manaus com o evangelho. Unimo-nos à Cruzada Estudantil e Profissional
Para Cristo, bem como com à Mocidade Para Cristo (MPC) e à Aliança Bíblica
Universitária (ABU), e partimos para o ataque (Ibid., p. 180).

Na medida em que a projeção aumentava, via-se a necessidade de formação de uma


organização que fosse responsável por toda aquela ação missionária, de forma que se
configurasse como uma “estrutura que pairasse acima das bandeiras evangélicas, de modo que
pudesse servir a todos” (Ibid., p. 181). Criava-se então, em 1978, a VINDE – Visão Nacional
de Evangelização. Na condição de uma convenção independente de qualquer laço
denominacional, a VINDE seria a responsável pela promoção nacional de Caio Fábio.
Angariando, aos poucos, uma multidão de contribuintes com a plataforma, Caio infiltrava-se
em diversas redes comunicativas de sua época, entre emissoras de rádio e TV, além das
inúmeras concentrações evangelísticas que iam sendo organizadas em diversas regiões do país

Daí em diante, comecei a desejar expandir meu programa de televisão, Jesus,


esperança das gerações, para toda a nação. De repente, já estávamos
alcançando todo o nordeste e já tínhamos patrocinadores locais. Aí então
vieram convites para conferências e grandes ajuntamentos em estádios, praças
e ginásios de esportes por todo o Brasil (Ibid., p. 181).

De forma progressiva, Caio Fábio tornava-se “significativa figura da sociedade civil


organizada” (FONSECA, 1998, p. 95) e a VINDE, sua mola propulsora, mais tarde se
ressaltaria “com uma emissora de rádio, uma revista e uma TV a cabo” consolidando-se, em
112

pouco tempo, como “uma empresa na área de comunicações” (CAVALCANTE, 2015, p. 73).
Cada vez mais distante de casa por conta das viagens constantes, Caio decidira com a família
seu retorno ao Rio de Janeiro, viagem que marcaria profundamente sua trajetória enquanto líder
religioso, já que, segundo Alexandre Fonseca, a partir daquele momento o seu nome estaria
grifado como “uma das principais lideranças evangélicas do Brasil, deixando de ser a ‘figura
pública de Manaus’ para ganhar uma projeção nacional e internacional no meio evangélico”
(FONSECA, 1997, p. 231). De fato, bastaram alguns dias na capital fluminense, em 1981, para
que sua notoriedade aumentasse entre os evangélicos brasileiros. Ali conseguira negociar um
espaço na grade dominical do Sistema Brasileiro de Televisão, o SBT, e fora convidado para
suceder como pastor da igreja presbiteriana Betânia, de Niterói, aquele a quem chamava de “pai
na fé”, o pastor e amigo de longa data Antônio Elias.

Como pastor local até 1985, Caio decidira voltar a viajar e a fortalecer a VINDE a partir
de 1986. Dando-se a conhecer de “ponta a ponta do Brasil”, contudo, sentia que “sem querer e
de modo imperceptível” a igreja o havia domesticado (D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 191).
Cansado, como escrevera em sua autobiografia, e na expectativa de se lançar como
conferencista internacional, era a hora de se mudar para os Estados Unidos para aprimorar seu
inglês, o que se efetivaria em 1987. Sob a gestão de “um time base de assistentes” (Ibid., p.
193), a VINDE dava continuidade ao seu trabalho no Brasil de forma comum, até ter suas contas
confiscadas em 1990 pelo então recém-eleito presidente do país, Fernando Collor de Mello;
fato que, aliado à eclosão de Edir Macedo, foi determinante para o retorno de seu idealizador.

Como que influenciado pela visão empresarial norte-americana, Caio Fábio daria a
VINDE, na década de 1990, uma proporção não conhecida antes, o que, obviamente, significava
também a divulgação e perpetuação de seu nome como um pilar do protestantismo brasileiro.
Cavalcante discorrera sobre a tal mudança, registrando que “(...) dos quinze funcionários que a
VINDE possuía até 1990, em 1997 ela multiplica para quatrocentos. Alterando também
significativamente toda estrutura dos seus congressos, passando a ser realizados em hotéis de
cinco estrelas com custos elevadíssimos” (CAVALCANTE, 2015, p. 74). Obstinado, apesar
disso, a comprometer-se mais com a integração da fé “aos temas da natureza social”
(D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 194), Caio envolvia-se cada vez mais em iniciativas dessa
ordem, como no caso de sua participação ativa na formação da ONG Viva Rio, criada em 1993,
por exemplo.
113

Como reflexo desse interesse, nasceria em 1992 o desejo de efetivação de um projeto


que, nas palavras do pastor manauara, mudaria completamente sua vida em razão de “seus
muitos desdobramentos” (Ibid., p. 215.), e certamente, resultaria no plano mais ousado da
VINDE desde seu nascimento: a criação de uma entidade que abrigaria mais de cinquenta
projetos sociais ao longo de sua história, a Fábrica de Esperança (IMAGEM 1). Instalada em
1994, em um prédio de seis andares e com cerca de 55 mil metros quadrados outrora devastados
por um incêndio, a organização localizava-se no bairro de Acari, zona norte do Rio de Janeiro.
O espaço, disponibilizado em comodato pelo grupo Fomitex à VINDE, era mantido por doações
de empresas de grande porte e repasses do governo. Como uma das mais importantes
organizações não-governamentais do Rio Janeiro, era mais um empreendimento que fazia de
Caio Fábio D’Araújo Filho, àquela altura presidente da Associação Evangélica Brasileira, um
dos nomes mais representativos do campo religioso no país.

IMAGEM 1 – Fachada da Fábrica de Esperança.


Foto tirada em 2002, por ocasião da demolição do prédio.

3.1.2 – A ASSOCIAÇÃO EVANGÉLICA BRASILEIRA (AEVB)

Outra faceta a ser mencionada, relacionada à posição de destaque de Caio Fábio entre
os evangélicos no final do século XX, diz respeito à formação da AEVB – Associação
Evangélica Brasileira. Em sua autobiografia, Caio menciona três planos que nutrira após o seu
retorno para o Brasil
114

Os planos que eu trazia comigo eram três, todos bem objetivos: 1. Incrementar
as ações da Vinde e fazê-la crescer para ser a maior organização
paraeclesiástica e não-governamental do país, no meio evangélico (...) 2. Usar
o capital relacional que eu tinha desenvolvido em toda a nação para promover
a criação de uma entidade que representasse os evangélicos preocupados com
a ética e, se possível, envolver o máximo possível de líderes e igrejas, tentando
ser maioria. 3. Envolver-me o máximo possível com iniciativas de natureza
social e assim demonstrar a séria preocupação dos cristãos com a coletividade
(D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 199).

Concernente ao segundo ponto, criava-se em 17 de maio de 1991 a maior associação de


igrejas evangélicas do país, aglomerando, em si, os “setenta principais grupos evangélicos
nacionais” (Ibid., p. 199). A AEVB, de início, matinha como razão principal de existência o
desejo de estabelecer-se como uma referência ética para a igreja evangélica brasileira, tendo-se
de haver com os incontáveis casos de escândalos públicos que permeavam aquele espectro
cristão não-católico do país. Inevitavelmente, seus primeiros passos nesse caminho seriam
dados rumo a uma denominação que experimentava crescimento admirável naquele tempo, de
notoriedade negativa crescente na mídia por conta de suas “excentricidades espirituais”: a igreja
neopentecostal Universal do Reino de Deus (IURD), de Edir Macedo. Naturalmente, Caio
Fábio, seu primeiro presidente – posição que, segundos suas palavras a uma entrevista anos
mais tarde, jamais deveria ter sido aceita -, seria o responsável diplomático pelas relações
interpostas a partir de então, levando-o a protagonizar um confronto que se estenderia por toda
aquela década, em um cenário onde o aumento de sua expressividade era nítido.

Caio ouvira falar de Macedo antes mesmo de seu regresso ao Brasil. Quando de sua
permanência nos Estados Unidos, Cristina Christiano, secretária da VINDE, já o havia avisado
das mudanças observadas no campo religioso brasileiro, como relatara

– Reverendo, tem uns negócios esquisitos acontecendo por aqui – dizia-me


Cristina Christiano. – Tem um tal de Edir Macedo botando pra quebrar. O
senhor precisa ver. Não sei, não. Acho que a coisa ainda acaba mal – ela me
falou mais de uma vez, para depois me dizer que havia mandado uns recortes
de jornal para eu saber o que era (Ibid., 195).

Com a AEVB em processo de formação, a curiosidade gerada em torno da denominação


neopentecostal fizera com que uma primeira aproximação fosse ponderada como possibilidade,
já que era praticamente impossível levantar a bandeira de uma ética evangélica onde essa era
sinônimo da teologia da prosperidade da Universal. O maior problema, entretanto, era que
“Macedo não queria nem ver evangélico” (Ibid., p. 200), já que, por conta de uma matéria
polêmica publicada pelos jornais da época, era disseminada a ideia de que os evangélicos
115

preferiam a umbanda à igreja que há pouco tempo adquirira a Rede Record de televisão. Depois
de toda resistência, o primeiro encontro finalmente ocorreria em abril de 1991, espalhando a
impressão de que a AEVB procurava a adesão da IURD para sua concepção, o que gerara
intenso mal-estar nas igrejas filiadas. Ao contrário disto, Caio concluiria que “a AEVB não
deveria aceitar nada de graça da Universal até que se soubesse muito bem quem eles eram e
quais os seus objetivos” (Ibid., p. 204).

Um ano se passara desde aquelas primeiras impressões e chega ao conhecimento de


Caio Fábio a prisão de Edir Macedo, em maio de 1992, pelas acusações de charlatanismo,
estelionato e curandeirismo. No ápice da controvérsia entre os dois líderes, a AEVB, mesmo
preocupada com “aqueles critérios subjetivos de julgamento” (Ibid., p. 207), apresentava
através de seu presidente uma proposta que seria encarada por Macedo, tempos depois, como
prova de lealdade condicional, levando-o a ponderar sobre a criação de um órgão evangélico
paralelo à AEVB, tendo como um de seus principais apoiadores o representante maior da
Assembleia de Deus Madureira, Manoel Ferreira

A Associação Evangélica Brasileira se propõe a intervir neste caso, pedindo à


IURD que abra sua contabilidade a uma auditoria independente, contratada
pela AEVB, e que posteriormente venha a público trazer os resultados de tal
auditoria. Com isso se pretende que o caso da IURD e o bispo Edir Macedo
sejam julgados com os mesmos critérios objetivos com os quais a justiça
brasileira venha a julgar os muitos corruptos que encontram guarida à sombra
do poder (Ibid., p. 207).

Desse modo, mesmo sem ataques diretos, o distanciamento entre as duas das mais
importantes vozes do protestantismo brasileiro àquele contexto crescia de forma abismal. Os
embates, no entanto, não demorariam a aparecer, e aquela situação dubiamente polarizada, na
realidade, parecia manifestar-se como uma “situação de mercado” (BERGER, 1971, p. 169)
gerada sobretudo pelo caráter dialético do protestantismo, fator já tratado na seção anterior. Por
certo, a presidência da AEVB não só elevara Caio Fábio ao posto de “voz das igrejas
evangélicas”, como muito contribuiria, em suas palavras, com a sua crescente descrença na
instituição

Eu fui perdendo o romance com a igreja como uma instituição que pudesse
fazer alguma diferença no Brasil. Ter sido eleito presidente da Associação
Evangélica Brasileira, a AEVB, me fez muito mal. Antes eu sabia que os
pastores e lideres eram doentes, na sua maioria aparente. Mas como presidente
da AEVB eu tive que comer, beber e dormir sobre e com aquelas doenças.
Trinta por cento dos PMs do Rio eram evangélicos e não mudava nada. Setenta
por cento dos doentes internados em muitas clinicas de doentes mentais eram
116

evangélicos, e, para mim, isso dizia tudo. Havia alguma coisa


irremediavelmente adoecida dentro da igreja, e eu não via como aquela
enfermidade pudesse ser debelada. À cada novo movimento surgia um
lampejo de esperança. Mas logo se percebia que “luz” na “igreja” não era Luz
do Espírito, mas Purpurina Carismática. O modelo era adoecido. E não só o
modelo, sobretudo, a mensagem (CAVALCANTI, 2002b).

Seu desligamento institucional, todavia, se realizaria impulsionado pelo declínio de seu


ministério religioso, vinculado especialmente a fatos tidos como escândalos públicos a partir
do final da primeira metade daquela década emblemática.

3.1.3 – OS ESCÂNDALOS E O DESLIGAMENTO DA IGREJA PRESBITERIANA DO


BRASIL

O ano de 1994 fora marcado como o momento inicial dos conflitos entre as lideranças
da AEVB e IURD. A atividade de Caio Fábio não só como pastor, mas como figura pública,
fora intensa naquele período. Escrevera que, no final daquele ano, “subia morros três vezes por
semana, pregava todas as noites, participava de dezenas de reuniões, visitava Bangu I e o
presídio Milton Dias Moreira todas as semanas, articulava campanhas com o pessoal do Viva
Rio, buscava dinheiro para projetos novos (...)” (D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 256). A Fábrica
de Esperança, inaugurada naquele tempo, estabelecia parcerias com as iniciativas pública e
privada, despertando a curiosidade de figuras públicas de destaque, como o recém-eleito
presidente da república Fernando Henrique Cardoso, que escolhera o lugar para sua primeira
visita oficial. Caio, junto do antropólogo Rubem César Fernandes e dos sociólogos Betinho e
Caio Ferraz, realçava-se como um dos principais coordenadores de projetos sociais do Rio de
Janeiro. Contudo, aquele que fora talvez o maior e mais audacioso projeto do pastor manauara
não tardaria em trazer-lhe seus primeiros escândalos públicos como voz evangélica.

O ano de 1995 chegava e juntamente com ele a percepção de Caio de que “sua maior
vulnerabilidade social estava na Fábrica de Esperança” (Ibid., 174). Como agravante, a relação
com Edir Macedo já tinha deixado o nível dos conflitos, estabelecendo-se como enfrentamento
direto. Em matéria pela Folha de São Paulo, o jornalista Sérgio Dávila resumia a conjuntura de
ataques

Segundo ele [Caio Fábio], há uma diferença entre “evangélicos” e “Igreja


Universal”: “Nós pregamos o Evangelho e recolhemos o dízimo apenas para
continuar a obra”, diz. “Macedo e seus bispos vivem apenas em função do
dízimo”. Segundo declarou recentemente, o bispo Macedo não leva em conta
as opiniões de Caio Fábio, porque ele seria “sócio de Roberto Marinho”
(DÁVILA, 1995).
117

Onze dias depois da publicação, Fernando Molica e Cláudia Trevisan escreviam na


coluna “Brasil” do mesmo periódico um artigo sobre o pedido da AEVB à IURD para que essa
deixasse de se chamar evangélica (MOLICA e TREVISAN, 1995). Na medida em que a
polarização aumentava, o mês de novembro reservava à trajetória de Caio um primeiro impacto
gerador de desconfiança, inclusive entre os seus “aliados”. No dia 23 daquele mês, irrompia-se
o que seria chamado em sua autobiografia, anos mais tarde, de “o plano para seu sequestro
moral” (D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 293).

Naquela ocasião, sendo objeto de uma investigação, a Fábrica de Esperança fora


invadida por policiais militares durante uma operação na favela de Acari. Dava-se ali a
apreensão de mais de 2.000 sacos plásticos contendo cocaína, além de menor quantidade de
maconha. A repercussão era tamanha. “Isso só pode ser coisa do bispo Macedo”, dizia um líder
comunitário de Acari (DE SOUZA, 2001, p. 120). “É bom, em certos casos, que algumas
organizações sejam desmistificadas”, afirmava, por sua vez, o então governador do Rio de
Janeiro Marcelo Allencar (MOLICA, 1995). Acusados de obstrução do trabalho policial, dois
funcionários foram presos, sendo inocentados anos depois por falta de evidências que
comprovassem a acusação. Caio Fábio, que era procurado pelos principais veículos de
comunicação para comentar o ocorrido, encontrava-se no nordeste brasileiro, preparando-se
para o primeiro Congresso Sertanejo de Evangelização (D’ARAÚJO FILHO, 1997, p. 293).
Dias depois, após seu retorno, saía pela Folha a matéria Para pastor, apreensão de drogas é
suspeita (1995). Nela Caio dizia desconfiar da ação da polícia, chamando-a de “telepatia” –
referindo-se ao fato da droga ter sido encontrada de imediato à entrada da polícia na ONG,
mesmo que bem escondida, como relatara a própria corporação.

Posteriormente, em sua autobiografia, o pastor defendera o caso como uma ação


estratégica do governador carioca visando sua ruína, bem como o fracasso de um protesto contra
o aumento da violência na cidade do Rio de Janeiro, a marcha Reage Rio (D’ARAÚJO FILHO,
1997, p. 295). Marcada para o dia 28 daquele mês, a manifestação idealizada pela ONG Viva
Rio tinha como apoiadores diversos projetos sociais, tais como a Fábrica de Esperança
(IMAGEM 2). Independentemente de qualquer suposição, a celeuma gerada pelo episódio fora
aos poucos abrandada, incomparavelmente mais plácida em relação ao que ainda haveria de vir.
118

IMAGEM 2 – Charge de Chico Caruso na 1ª página do O Globo de 28/11/1995.


Na imagem Caio Fábio, Betinho e Rubem Fernandes, organizadores do Reage Rio.

Dois outros casos, ainda na década 1990, abalariam definitivamente a imagem de pastor
ético que Caio Fábio lutara para manter desde seu aparecimento e escalada no protestantismo
brasileiro, sobre os quais, por ordem de conhecimento público, discorremos agora.

3.1.4.1 – O “DOSSIÊ CAYMAN”

O ano de 1998 seria marcado por dois escândalos públicos inter-relacionados


envolvendo o governo do então presidente da república Fernando Henrique Cardoso (FHC).
Revelados em 08/11/1998 pelo jornalista Elio Gaspari em suas colunas simultâneas na Folha e
no O Globo, os casos eram chamados de Os grampos do BNDES e Dossiê Cayman. Em relação
ao primeiro, a notícia apresentava a existência de grampos telefônicos supostamente
clandestinos que, gravando conversas de FHC com a alta cúpula do Banco Nacional de
Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), apontavam como evidencia um esquema de
favorecimento no maior processo de privatização brasileiro, o leilão da Telebrás. O segundo,
por sua vez, acusava a formação e circulação de um dossiê capaz de comprovar a existência de
uma conta no paraíso fiscal caribenho das Ilhas Cayman, com recursos desviados da
privatização – cerca de 368 milhões de dólares -, em nome de FHC, do ex-ministro do
planejamento José Serra, do ministro das comunicações Sergio Motta, e do governador de São
Paulo, Mario Covas.
119

Intitulada Há duas chantagens contra o governo na praça (GASPARI, 1998), a matéria


de Gaspari – publicada um mês depois da reeleição de FHC – referia-se à segunda polêmica
como uma farsa em potencial, muito bem articulada por um chantagista que começara a agir
em setembro daquele ano, “oferecendo um suposto dossiê de denúncias (Ibid.). Comprados por
Paulo Maluf e Fernando Collor de Mello, os papéis também teriam sido oferecidos ao PT de
Lula, que os recusara. Detalhadamente composta, a coleção de documentos seria apontada pela
investigação da Justiça Eleitoral, tempos depois, como um meio pelo qual se ganharia dinheiro
ao ser vendida aos candidatos da oposição durante as eleições de 1998, tendo um nome como
um de seus principais responsáveis: Caio Fábio D’Araújo Filho.

O alvoroço era nítido. Desde então, a massiva demanda por explicações - principalmente
por parte dos evangélicos – sobre o envolvimento de Caio com o caso só aumentava. Ao mesmo
tempo, as justificativas por parte do pastor brotavam em um misto de negação e arrependimento

O dossiê Cayman me fez mal, não tenho o menor orgulho disso. Tenho
vergonha dessa história. Aquele não era o lugar para eu estar como homem de
Deus, e eu não estaria ali se não fossem os episódios anteriores, que me tiraram
do caminho. Eu fico pensando como é que fui entrar em algo tão diabólico,
tanto em suas tramas como em suas consequências. Acreditei que a
informação que eu havia recebido era verdadeira. O que eu não sabia era que
iria ficar no centro daquele tufão e que iria ser acusado de calúnia por uma
coisa que só falei em particular e com um grupo muito reduzido (PASTOR,
1999).

A verdade é que, dali em diante, o lugar que Caio ocupava no protestantismo não seria
mais o mesmo. Treze anos depois do ocorrido, em 2011, dava-se sua condenação perante a
Justiça Eleitoral: quatro anos de reclusão em regime semiaberto por crime de calúnia, agravado
por ter envolvido o então presidente da república. Apesar da anulação da sentença em janeiro
de 2012, o caso ainda voltaria à tona neste ano de 2017, com sua reabertura. Preso em 24 de
maio, D’Araújo Filho conseguiria a suspensão do cumprimento da pena dois dias depois, via
habeas corpus, tendo declarado após sua soltura que o episódio nada mais fora que “envio
missionário apostólico” (D’ARAÚJO FILHO, 2017).

3.1.4.2 – O DIVÓRCIO

Além de seu envolvimento com o Dossiê Cayman, a trajetória de Caio Fábio como
figura pública evangélica seria marcada, ainda em 1998, pelo seu divórcio, resultante de uma
relação extraconjugal. O fato, obviamente, caiu como uma bomba entre os evangélicos,
fortemente marcados por determinado discurso moralista, principalmente em relação aos
120

chamados “pecados sexuais” - sendo o protestantismo um exemplo de religiosidade cristã, por


sua vez constituidora de um discurso de repressão sexual (FOUCAULT, 1993). Como dito pelo
próprio, aquele era o ápice do desmoronamento de sua imagem na igreja evangélica brasileira

Com meu divórcio e a perspectiva de um novo casamento, veio o terremoto.


Vi o chão se abrir. Temi pelos meus filhos e por todos aqueles que dependiam
de mim. E não eram apenas os milhões que se beneficiavam da mensagem.
Eram também os milhares que dependiam socialmente e economicamente de
meu ministério. As propostas políticas do tipo: “Por favor, reverendo, ajude a
gente a ganhar essa eleição e nós garantiremos a sobrevivência de seu
trabalho”, vieram aos montes. Depois se tornaram insistentes e passionais. E
tornaram-se uma horrível tentação. Não era nada além de poder garantir que
se “meus amigos” chegassem ao poder, então, eles me ajudariam a não deixar
que tudo o que existia como coisas tão boas acabasse em razão de uma
situação pessoal, mas que no meio cristão, em se tratando de mim, tornara-se
um caso nacional. Fui, não vi e perdi! (CAVALCANTI, 2002).

Frente ao desencadeamento negativo, Caio mudava-se para os Estados Unidos em 1999,


de onde assistiria a queda vagarosa daquilo que constituíra no Brasil anos antes, como a
extinção da VINDE e da Fábrica de Esperança – a primeira desacreditada por patrocinadores e
contribuintes e a segunda pelo apoio das iniciativas pública e privada -, e a perda de vitalidade
da AEVB – que mesmo tentando se reerguer com a mudança de nome para “Aliança Evangélica
Brasileira” e a eleição de uma nova diretoria, nunca mais conseguiria aglomerar vozes do
protestantismo brasileiro com tanta representatividade.

3.1.4.3 – A EXONERAÇÃO DA IPB: FIM DE UMA ERA INSTITUCIONAL

Os últimos vínculos institucionais de Caio Fábio – àquele contexto unicamente formais


-, quebrar-se-iam definitivamente nos anos iniciais do século XXI. Afastado, seu reingresso
ministerial era visto com bons olhos pela instância responsável por sua readmissão na igreja
presbiteriana, o presbitério de Niterói. Segundo suas palavras, em 2001 o colegiado havia
votado unanimemente por sua “restauração”. Diane de sua recusa, escreve, ainda outros “quatro
presbitérios da IPB”, bem como convites de várias “outras denominações” eram postos como
alternativa de reconstrução de sua carreira na igreja institucional (D’ARAÚJO FILHO, 2002a).
Ao seu próprio pedido, entretanto, sua exoneração como pastor da IPB se efetivaria em 2003,
ainda que com resistência de alguns da denominação, como relatara

(...) eu me retirei de tudo, e da IPB. Me retirei... eu escrevi lá, em agosto, e o


pastor da igreja Betânia só foi ler em janeiro, porque dizia que nunca leria
aquela carta que eu mandei para ele me desligando de tudo, inclusive de ser
pastor emérito ou honorário da igreja presbiteriana Betânia (...) fico eu com a
121

pecha, depois de eu ter implorado a ele não sei quantas vezes de ler a carta
publicamente, de que não tinha feito nada naquele lugar, quando eu já tinha
posto na Internet sete ou oito meses antes e o mundo inteiro sabia (...) o pastor
disse que nunca teria coragem de lê-la porque disse: - “nunca lerei essa carta,
porque você é o meu pai na fé” (D’ARAÚJO FILHO, 2014b).

Permanecendo ainda por algum tempo como membro da IPB, ainda que não mais como
pastor, Caio vincular ia-se à Catedral Presbiteriana do Rio Janeiro, nela pregando
ocasionalmente; o que se revertera não muito tempo depois, por ocasião de seu desligamento
total. Aproximava-se, assim, o nascimento do Caminho da Graça.

3.2 – O NASCIMENTO DO “CAMINHO DA GRAÇA”

Quando retornara dos Estados Unidos – depois do período por ele chamado de “parada”,
em 1999 – Caio Fábio se reinseria na vida pública aos poucos. Até a saída definitiva da IPB,
entre 2003 e 2004, atividades envolvendo seu nome tornavam-se um tanto quanto comuns em
alguns círculos evangélicos, principalmente no Rio de Janeiro – cidade em que voltaria a viver
a partir de 2001. Além das participações semanais na Catedral Presbiteriana – que já
mencionamos -, as pregações esporádicas em igrejas de “vários tipos e matizes” (D’ARAÚJO
FILHO, 2002a), bem como sua vinculação ao Centro Evangelístico Unido (CEU), pareciam dar
prova de que sua trajetória no protestantismo brasileiro estava em vias de se reestruturar, ainda
que os escândalos envolvendo seu nome – principalmente o caso extraconjugal e divórcio –
talvez não lhe dessem o mesmo prestígio experimentado antes.

Crítico dos sistemas religiosos desde os tempos mais áureos de sua carreira como pastor,
a expectativa criada em torno da possibilidade de seu retorno gerava não só variadas dúvidas
como estranhamento. Inquestionavelmente a pergunta que pairava sobre a cabeça dos que antes
o acompanhavam era se, em todo aquele contexto, Caio regressaria à igreja, quando, de que
modo e por onde. Fundar uma nova denominação soava a muitos como uma hipótese concreta,
ligada principalmente à formação de um movimento que poderia ser muito bem apontado como
as primeiras sementes do Caminho da Graça: o Café com Graça.

Iniciado entre 2000 e 2001, no bairro carioca de Copacabana, o “Café” – como


comumente chamado – fora criado como um “um lugar onde grupos se reuniam com a
finalidade de estudar a Bíblia, orar e conviver” (D’ARAÚJO FILHO, 2002b, p. 16). Realizados
em um jardim de inverno nos fundos da livraria Razão Cultural, aqueles encontros informais –
frequentados sobretudo por pessoas de classe média alta –, ainda que realizados de maneira
coexistente aos razoavelmente pontuais compromissos de agenda de Caio com a instituição
122

“igreja” e ao contrário de expectativas relacionadas com a fundação de uma nova denominação,


definir-se-iam, na verdade, como os responsáveis iniciais pela sua guinada prática à
desinstitucionalidade. Realizados três vezes na semana, neles, conforme relatara, Caio voltava
a ser “pastor de poucos, de alguns e de um só, quando necessário” (Ibid., p. 16), em seus
primeiros contatos com uma espécie de comunidade alternativa depois de anos. Voltando a
escrever e publicar livros recheados de críticas à igreja evangélica, é razoável dizer que se
marcava ali um primeiro passo à desvinculação da instituição religiosa protestante, marca
distintiva de seu retorno ministerial, como dissera

A Catedral Presbiteriana do Rio queria que eu fosse para lá, ficar lá com eles,
que são amigos a vida inteira, queridos... convites dos metodistas, dos
congregacionais, de gente de todas as denominações, de todos os grupos; mas
eu sentia no meu coração que aquele era um caminho sem volta, que se eu não
tinha querido aceitar a ordenação da igreja presbiteriana com 20 anos de idade,
porque achava desnecessário e acabei aceitando muito mais para ser gentil,
agora, depois de tudo, não aceitava mais sob hipótese alguma aquele tipo de
vinculação daquela natureza, e disse que não queria (D’ARAÚJO FILHO,
2010a).

Dali em diante, a trajetória rumava ao que viria a se conhecer anos depois como o
Caminho da Graça. Já desligado da IPB, a última espécie de vinculo que conhecera dar-se-ia
em sua passagem por Recife-PE, em 2004, ainda que marcada por controvérsias45. No entanto,
se as reuniões do Café com Graça abriram a Caio a possibilidade de constituição de uma nova
forma de religiosidade evangélica, marcada sobretudo pela informalidade, sendo essa como que
a semente do que viria a existir no futuro, o seu adubo – para permanecer na metáfora –
certamente seria sua incisiva inserção na Internet, com a criação e lançamento de seu site
caiofabio.com ainda em 2003 – domínio alterado para caiofabio.net anos depois.

Conforme já discorremos no início deste capítulo, o Caminho da Graça se destaca por


sua presença e divulgação pela rede mundial de computadores, presença que, antes mesmo de
sua existência, tivera início com a projeção virtual de seu fundador e mentor. Nesse sentido, o
uso da palavra “adubo” como figura de linguagem surge exatamente na necessidade de sua
apropriação semântica, ou seja, no seu significado relacional com aquilo que aqui se pretende
dizer. E o que se pretende dizer, nesse caso, é: se a experiência com o “Café” fora o fator

45
“Caio Fábio assumira um papel na Igreja Episcopal Carismática de Recife, uma denominação surgida em 2003”,
noticiava uma matéria da revista Eclésia em março de 2004. Todavia, a afirmação era posta em xeque pelo pastor
manauara não muito tempo depois, defendendo à relação com a igreja como simples fruto da longa amizade com
seu líder, e não uma vinculação formal e institucional (2002a).
123

impulsionador de Caio à criação de algo que lhe fosse similar – o posterior Caminho da Graça
–, essa criação, por sua vez, talvez não tivesse sido tão bem-sucedida sem a fertilização causada
pela Internet. Quiçá por isso, em uma de nossas entrevistas, o Caminho da Graça tenha sido
imediatamente associado com a importância de sua inserção na rede

(...) [a internet é] muito importante, porque temos muita gente espalhada pelo
mundo e que não tem com quem se reunirem, então eles reúnem virtualmente
e chamam de Caminho Virtual. Acontece toda terça-feira para os que estão
dispersos por aí mas que querem ter um ambiente para compartilhar a fé, para
ouvir a mensagem, para conversar, pedir oração. Se reúnem semanalmente,
mas não há aquela obrigatoriedade de ter que se reunir. Nós temos grupo que
se reúnem uma vez por mês, quinzenalmente e outros que se reúnem
esporadicamente. Eles se reúnem e combinam a próxima reunião, avisam uns
aos outros pelo WhatsApp etc. (ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra. Cf.
seção “Anexos”).

Inicialmente, de tráfego constante, o portal que fora doado e mantido em um primeiro


momento por amigos viria a ser local de divulgação de textos notadamente marcados pelas
constantes críticas à igreja evangélica, principalmente às neopentecostais, servindo mais tarde
como principal aporte do grupo iniciado por Caio.

Dessa forma, o último passo tomado em direção à formação da comunidade aqui tomada
como objeto dar-se-ia no fim da permanência do pastor manauara no Recife, com sua mudança
em 2004 para Brasília, cidade onde hoje reside. Convidado por dois amigos, inicialmente, para
um primeiro encontro na capital federal, Caio falara a 120 pessoas, tendo sido alvo de
insistência para que ali permanecesse e desse início a uma série de encontros que tratassem da
fé cristã. Dividido entre a possibilidade de permanecer em Brasília ou regressar a Pernambuco,
a decisão seria tomada depois de um “lançar de sortes”, como descreve em um de seus inúmeros
vídeos na Internet

(...) eu digo: ‘Olha, só tem uma coisa a fazer. Vamos ver o que Deus quer,
vamos lançar sorte, vamos deixar Deus decidir em uma semana essa história.
Aluga um auditório, de quarta a domingo, que eu vou aí, e eu vou pregar de
quarta a domingo. Se no domingo eu virar para o pessoal e disser: gente vocês
estão dispostos a continuar domingo que vem e iniciar aqui a jornada do
Caminho da Graça; e esse povo disser sim, no domingo seguinte eu tô lá
(D’ARAÚJO FILHO, 2010b, grifo nosso).

Com a confirmação dos ouvintes, as reuniões iniciadas no auditório do Hotel Fenice


logo passariam para o Centro Educacional Maria Auxiliadora (CEMA), posteriormente para o
Colégio La Salle, tempo em que Caio Fábio fixa residência permanente com a família no
Distrito Federal. Dava-se, assim, o nascimento oficial do Caminho da Graça.
124

3.2.1 – SER IGREJA FORA DA IGREJA

De repente eu comecei a ver quais eram as pessoas que estavam aqui e a


maioria delas eram pessoas muito idas, traumatizadas; traumatizadas com a
vida e traumatizadas com a igreja, mas ao mesmo tempo, viciadas em religião.
E eu fiquei um ano inteiro tentando tirar o vício da religião (...) o ano inteiro
tentando pregar a graça de Deus (Ibid.).

Dessa maneira se referia Caio Fábio à percepção que tivera das reuniões iniciais do
recém fundado Caminho da Graça. De fato, grande parte daqueles que se propunham a
participar das reuniões do recém-formado grupo caracterizavam-se por um histórico no
protestantismo em suas mais variadas vertentes e denominações, rompido por variadas
situações que também os colocariam numa posição de aversão à igreja institucional46. Até
aquele ponto, as críticas à igreja institucional outrora feitas de dentro do próprio movimento
seriam ouvidas agora, com a formação do grupo, de uma outra perspectiva, mais exterior do
que interior. O Caminho da Graça formava-se nitidamente como um grupo não só
desinstitucionalizado, mas desinstitucionalizante; isto é, propagador do ideal da não
institucionalização. Caio Fábio, a despeito disso, direcionara essa tarefa exatamente como um
dos objetivos do movimento

Por isso vão surgindo pessoas aos milhares que vão se organizando nas
próprias casas e que não tem nada a ver com o Caminho da Graça, do ponto
de vista de vinculo objetivo, de pertencimento a este movimento do Caminho
da Graça que nós começamos aqui em Brasília em 2004, quando me mudei
para cá (...) eu nunca tive o desejo de criar uma denominação, nada disso,
Deus me livre (...) O que é que os grupos do Caminho da Graça fazem para
que eles existam? Qual a missão deles hoje? Nunca foi reunir todo mundo que
me ouve e que ouve o evangelho e diz: eu quero. Não dá, ia virar um negócio
monstruoso, ia virar aquilo do que saímos e para o que não queremos retornar.
Pois bem. Então, o Caminho da Graça, nos seus grupos, serve para estabelecer
modelos que as pessoas podem visitar e reproduzir. Algo que não é grande, é
pequeno, é gostoso, é fraterno, é alegre, é íntimo, é simples, é no evangelho e
é baseado no que eu ensino (D’ARAÚJO FILHO, 2015).

A essa característica, certamente, estaria ligada toda aquela série de características


trabalhadas na seção inicial deste trabalho, que somada ao que reservamos para essa subseção,
pretende mostrar no panorama religioso brasileiro as consequências da individualização da

46
Sobre esse ponto vale ressaltar que há alguns trabalhos dedicados a entender os principais motivos pessoais que
levam à desvinculação institucional do protestantismo brasileiro. Paulo Romeiro, em Decepcionados com a Graça
(2005), por exemplo, relaciona grande parte de tais desligamentos à frustração de fiéis com as práticas difundidas
pela teologia da prosperidade das igrejas neopentecostais. Todavia, vale ressaltar o caráter confessional do autor e
sua obra.
125

segunda modernidade, a modernidade radicalizada. E aqui fica claro, como defendemos, que a
formação do Caminho da Graça definir-se-ia como um certo tipo de desmantelamento da
objetividade da instituição igreja, rumo a uma subjetivização onde esse conceito - o de igreja -
assume uma nova configuração na consciência de quem o trabalha e o emprega (BERGER,
2017); é a construção do Deus de cada um (BECK, 2016). Em outras palavras, como se percebe
nas práticas discursivas dos simpatizantes do movimento, a igreja, ao contrário da definição
trabalhada tradicionalmente em sociologia como um lugar, uma instituição – como já
discorremos na primeira seção -, passa ser enxergada, na ressignificação autônoma do indivíduo
dessa segunda modernidade, como o próprio aderente em sua subjetividade religiosa, que unido
a outro semelhante, exerce nada mais nada menos do que comunhão – como uma forma de
suprir as necessidades de segurança diante das angústias geradas paradoxalmente aos
indivíduos nesse contexto; necessidades que não podem ser resolvidas unicamente pela vida
privada –; tipificando, assim, o que ponderara Beck quando escreveu que “o indivíduo que
decide e que duvida, torna-se igreja, torna-se pastor de Deus e da Fé – a igreja, ao contrário,
converte-se em heresia” (Ibid., p. 17).

Quando perguntado em entrevista televisiva sobre a possibilidade do Caminho da Graça


se tornar uma igreja, uma denominação institucional, a resposta de Caio Fábio parece
emblematizar essa questão: “igreja sou eu, igreja é você (...) igreja somos nós” (D’ARAÚJO
FILHO, 2014c). Assim, conforme Caio, o Caminho da Graça, “não quer ser um movimento
religioso, quer ser um caminho de fé, de consciência”, razão pela qual “milhares de pessoas
chamadas ‘desigrejadas’ pelas igrejas” estarem todas dentro dele (Ibid.). Por essa razão, cabe
salientar mais uma vez – enfaticamente para que não passe desapercebido – que esse processo
de desinstitucionalização encontra, na realidade, sua razão de ser na individualização que está
posta nesse tipo de reconfiguração, que por sua vez, como já trabalhamos, marca a passagem
da primeira era axial para a segunda, radicalizando-se na segunda modernidade. Nesse sentido,
vale ressaltar algumas características que marcam esse viés de ressignificação autônoma da
religiosidade do grupo, ou em outras palavras, as idiossincrasias do Deus do Caminho da
Graça, partindo da noção do Deus de cada um – ou, pelo menos, do Deus de cada um dos
mentores aqui estudados, dado o caráter pessoal que o conceito implica. Ao contrário do ethos
burocrático de expansão da igreja evangélica institucional, por exemplo, o Caminho da Graça
experimentara projeção em vias informais, muito ligadas a propagação catalisada pela Internet,
especialmente à criação da web TV “Vem e Vê TV”, em 2006, vinculada ao site de
caiofabio.net. Sobre essa relação, exatamente por conta da não pretensão de criar no movimento
126

um estereótipo de uma instituição, Caio Fábio dizia em um dos inúmeros vídeos recortados de
seus programas que

O Caminho da Graça é muito menor do que a Vem e Vê TV, do que o alcance


da Vem e Vê TV. O Caminho da Graça é um pontinho pequenininho
comparado aos milhões que são atingidos pela Vem e Vê TV (...) não tô
falando de milhares, a gente tá falando de milhões que no fim do mês foram
alcançados por todos os meios, modos e mídias que a gente oferece a todo
mundo todos os dias (Ibid).

A crença do movimento, na realidade, longe de redundar numa estipulação institucional


local, perpassa para a compreensão de pertencimento a uma realidade maior, composta por
aqueles que “se libertam das amarras institucionais”, para os quais o Caminho da Graça se
apresenta apenas como uma espécie de “modelo”, como discorre Caio em outro momento

O Caminho da Graça, no máximo, é uma maquetinha de uma coisinha aqui e


ali que ensina como é possível a gente ser igreja sem nos tornarmos de fato
uma babilônia de dominações (...) eu não quero que o Caminho da Graça seja
o gargalo do que o Espírito Santo está fazendo, eu quero é que ninguém
controle, que o Caminho da Graça seja mais um ponto num negócio assim que
não tem nome, o povo de Deus espalhado pela Terra (...) a minha oração é
para que a revolução aconteça e seja incontrolável (D’ARAÚJO FILHO,
2011).

Partindo da premissa da subjetivização do conceito de igreja, é como se o movimento


se enxergasse como “igreja fora da Igreja” – ou seja, a verdadeira igreja fora da instituição
Igreja. O que merece destaque nesse ponto é que, se com o processo de secularização observou-
se um processo de diferenciação institucional – já que nas palavras de Bobineau e Tank-Storper
“progressivamente, a política, a educação, a saúde etc., outrora monopólios das instituições
religiosas, são transferidos para instituições seculares especializadas” (BOBINEAU & TANK-
STORPER, 2011, p. 71) -, o Caminho da Graça parece demonstrar que, na segunda
modernidade, mesmo a experiência religiosa cristã – nesse caso evangélica – não se limita
unicamente à igreja como sua instituição de origem, de maneira que essa tende a perder o
monopólio mesmo sobre aquilo que restara sob seus cuidados com a secularização, a saber, os
bens religiosos. Quando perguntado, por exemplo, se poderíamos chamar o Caminho da Graça
de igreja, a resposta de um de nossos entrevistados foi a de que

Pode chamar de igreja quanto à reunião de pessoas, porque teoricamente a


igreja é a reunião, é a assembleia de pessoas, que é o que significa o termo
igreja. Então do ponto de vista da reunião de pessoas, uma assembleia de
pessoas, com o mesmo fim, somos igreja. Do ponto de vista do evangelho
propriamente dito igreja é todo aquele que segue a Jesus, nós somos igreja, a
127

igreja não é o lugar, a igreja são pessoas. Ou seja, não podemos falar de igreja
dentro da visão tradicional de que igreja é uma instituição que está em
determinado lugar, não, não somos. Somos igreja do ponto de vista de aqueles
que seguem a Jesus, por isso somos igreja. Etimologicamente falando, uma
vez que nós nos reunimos, estamos reunidos como igreja (ENTREVISTA 1,
com Adaílton Dutra. Cf. seção “Anexos”).

Seguindo essa lógica, a configuração e as reuniões do movimento se destacam por uma


série de peculiaridades que, em muitos sentidos, se diferenciam da igreja evangélica
institucional, enfatizando sobretudo a importância do indivíduo enquanto experimentador do
religioso, do Deus de cada um, em detrimento ao papel dado à instituição outrora. Como outro
exemplo, poderíamos citar ainda aquilo que Caio chama de “ausência de hierarquia”. Sobre ela,
Caio Fábio diz que

Nós funcionamos baseados em dons, e não em hierarquias. Nas igrejas


convencionais, o diácono é mais do que o membro e o presbítero é mais do
que o diácono. Aqui no Caminho, essas funções expressam simplesmente
dons de serviço. O presbítero, o mentor, não é um sujeito mais elevado na
hierarquia, não tem poderes ou prerrogativas especiais. Ele é simplesmente o
cara que surge pela observação dos outros: “Puxa, quanta sabedoria fulano
tem recebido e manifestado”. Essas funções surgem por opiniões múltiplas,
não existe reunião de concílio ou votação para escolher ninguém (D’ARAÚJO
FILHO, 2012).

Sobre o mesmo ponto, um dos mentores do Caminho da Graça relatara em nossas


entrevistas que, na realidade, se existe determinada hierarquia no grupo essa é a “hierarquia do
amor”, onde Caio Fábio nada mais é do que um mentor experiente, relacionando o fato à
ausência de salários para os mentores, à manutenção dos grupos – baseada em ofertas
voluntárias e não em dízimos -, à autonomia que gozam os grupos locais, sem qualquer direção
“vinda do alto” etc.

É, a hierarquia que existe é uma hierarquia em amor, não é uma hierarquia


quanto a controle, do tipo “é ele quem toma as decisões”, não. Cada grupo que
se reúne é livre. Por exemplo, o grupo é tão livre que se ele quiser fazer uma
reunião em qualquer lugar ele faz, ninguém está preocupado com o tipo de
liturgia que ele vai seguir, ninguém determina isso, nem Caio, nem ninguém.
O Caio para nós é apenas um mentor espiritual, uma pessoa a quem nós
amamos, respeitamos e concordamos que esteja pregando o evangelho. Mas
ele não tem autoridade sobre a vida de ninguém, sobre nenhum mentor e sobre
a vida de nenhuma pessoa. Não existem decisões vindas de cima que obriguem
determinado grupo, como acontece nas igrejas evangélicas (ENTREVISTA 1,
com Adaílton Dutra. Cf. seção “Anexos”).
128

Essa característica específica, por sua vez, parece ratificar o que já discorremos sobre a
individualização da segunda modernidade: muito embora o indivíduo encontre na esfera
privada seu ponto de referência e conduta, as angústias geradas nessa circunscrição o levam à
produção de uma espiritualidade que o permita existir e agir; existência e ação que em muitas
vezes – como no caso de nosso recorte – são orientadas por espécies de gurus, ainda que não
de forma normativa, mas aconselhativa.

Concomitantemente, outra característica no mesmo sentido diz respeito à proliferação


das estações do grupo, não obedecendo práticas e normas por vezes burocráticas observadas na
lógica de expansão das igrejas evangélicas, como o registro em cartório, arrecadação de valor
de manutenção mensal mínimo através de dízimos formais, infraestrutura básica inicial
(cadeiras, aparelhagem de som, aluguel etc.), entre outras coisas. Obviamente, com o seu
crescimento, o movimento viu-se na necessidade de instruir as pessoas que o procuravam para
filiação ou o enxergavam como modelo para a formação de grupos similares. Mas ao contrário
da implementação de “novas igrejas”, formavam-se, em 2005, as primeiras “Estações” do
Caminho da Graça como locais de reunião constante, transitória e comunitária de simpatizantes
do grupo espalhados em diversas regiões do país, sem uma regularidade constante e, em muitas
vezes, realizadas nos próprios lares de seus frequentadores, sem identificação pública como
placas, letreiros etc. – ratificando a negação do lugar religioso como um espaço sagrado
privilegiado. Sobre as Estações, Adaílton relatara que

Não existe a organização, ela nasce, ela acontece. Então, por exemplo, alguém
entra em contato com a gente e fala “eu queria abrir uma Estação”. Se ele fizer
essa pergunta já começou errado e a resposta dada a ele será “não, não tem
como você abrir uma Estação”. Meu amigo, ninguém abre Estação. Se você é
discípulo de Cristo você só vai anunciar o evangelho, então comece a contar
seu evangelho aí e vão surgir pessoas que querem ter um tempo para
conversarem sobre esse evangelho, para louvarem a Jesus. Essa reunião vai
começar a acontecer, esporadicamente, uma vez por mês, uma vez a cada
sessenta dias, e de repente ela começa a aumentar, e com um grupo serão bem-
vindos ao Caminho da Graça; isso se a sua visão é de um evangelho leve,
simples e puro. Então, se uma pessoa chega para nós e diz que está se
reunindo, ou seja, já está acontecendo, a gente prega o evangelho, a gente
estuda o evangelho (ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra. Cf. seção
“Anexos”).

Não bastasse tais exemplos do plano organizacional, vale ainda mencionar os destoantes
teológicos quando comparado ao protestantismo tradicional, principalmente no que diz respeito
à ênfase dada a Bíblia – ressaltando que aqueles não deixam de ser resultados desses, uma vez
129

que a afirmação do Deus de cada um parte, por sua vez, de princípios de compreensão da
divindade, ou seja, de premissas teológicas, ainda que inconsciente e individualizadamente,
sem a compreensão normativa do objeto em si. Tomada como regra de conduta e fé dos
evangélicos, sendo ela própria entendida como a palavra inspirada por Deus, segundo creem, a
Bíblia no Caminho da Graça assume um papel diferente, não como a palavra de Deus, mas,
como uma espécie de testemunho de antigos que experimentaram da graça de Deus e que, por
determinados motivos, decidiram registrar tais experiências de modo a deixá-las para as
gerações futuras. Em entrevista registramos

Para nós a Bíblia não é um livro sagrado e ela não é a palavra de Deus. A
palavra de Deus não pode ser um livro, se a palavra de Deus é um livro
significa que enquanto o livro não existiu ficamos sem a sua palavra; porque
o livro não existiu sempre, o livro passou a existir pelo menos trezentos anos
depois de Cristo ter subido aos céus e a igreja ter começado seu ministério. O
primeiro evangelho foi escrito, pelo menos, uns trinta anos depois de Cristo
ter terminado seu ministério, que foi o evangelho de Marcos. Então ficamos
sem evangelho durante trinta anos? As primeiras cartas de Paulo foram
escritas quinze anos depois do primeiro livro do novo testamento, que foram
Tessalonicenses e Gálatas, que foram os primeiros livros a serem escritos. Ou
seja, não existia o novo testamento. Além disso, acesso ao velho testamento
era muito restrito, só foi copiado o primeiro livro, enquanto conjunto,
trezentos anos depois que foram organizados como um livro. E aí, ficamos
trezentos anos sem a palavra de Deus? O fato de colocarem a Bíblia como
sendo a palavra de Deus, como um livro sagrado, simplesmente fez do
cristianismo uma religião como qualquer outra, que tem o seu livro sagrado,
que tem o seu alcorão. Como se “cada religião tem o seu livro sagrado, e nós
temos a Bíblia sagrada”. Não, o que nós entendemos é que a palavra de Deus
não é um livro é uma pessoa. Jesus é a palavra de Deus, não é a letra. Então
isso significa que a Bíblia tem que ser largada? Abandonada? Não! Não é nada
disso. A neurose evangélica é essa porcaria que quando eu digo que a Bíblia
não é a palavra de Deus acham que eu estou jogando ela no lixo. Não. Ela é
o livro que eu mais amo, é o livro que eu mais leio e é o livro que eu uso para
pregar. É o livro que eu uso. Eu entendo que a Bíblia é um testemunho dos
antigos, a respeito do evangelho. Mas a palavra mesmo é uma pessoa, que
independe do livro. E tem uma outra coisa importante, ele [Jesus] é a chave
que interpreta, não só as escrituras, mas a própria vida. Olha o alcance que
isso tem. Quando você coloca na Bíblia, no escrito, a regra infalível de fé e
prática você se ferrou, meu amigo (ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra. Cf.
seção “Anexos”).

Nesse sentido, por conta da ênfase dada ao indivíduo e à individualização da crença –


que permite o questionamento de dogmas, preceitos, confissões e, nesse caso, da própria Bíblia
– a palavra de Deus deixa de ser vista como o testemunho escriturístico de Deus, como crê o
protestantismo tradicional, e passa a ser vista, na visão do movimento, como a própria pessoa
130

de Jesus – e daí a marca do indivíduo pessoal que perpassa em muitos sentidos a sua lógica
religiosa. Ulrich Beck, por sua vez, na obra que aqui tomamos como uma das principais
perspectivas teóricas discorrera sobre tal característica

(...) em muitos aspectos eles [os Novos Movimentos Religiosos] radicalizam


(se é que se pode abranger as diferenças em uma generalização desse tipo) a
narrativa do Deus de cada um que continua a ser escrita fora da igreja sob
signos existenciais e experimentais, como romance de formação da
religiosidade e espiritualidade privadas. Essa tendência mostra-se em
reinterpretações epistemológicas de conceitos-chave da religiosidade
(BECK, 2016, p. 134, grifo nosso).

Ainda sobre a reinterpretação da Bíblia, especialmente do Novo Testamento – não só


conceito-chave, mas origem de todos os conceitos-chave do cristianismo – o próprio Caio Fábio
diz que

Depois de Jesus nenhum livro é a palavra de Deus. Depois de Jesus só Jesus é


a palavra de Deus, Ele é o verbo que se fez carne. As escrituras, portanto,
passam a conter a palavra, pois só há uma palavra: é Cristo. As demais
manifestações, como diz o livro de hebreus, são todas indicações, são vozes
que se uniram a do pai dizendo: ‘eis o meu filho amado; a ele ouvi
(D’ARAÚJO FILHO, 2015).

Esse também é um fator determinante, entre outras coisas, para a postura adotada pelo
Caminho da Graça em relação aos frequentadores de suas reuniões. Com a negação da Bíblia
como um conjunto de regras morais, criadoras de certa tensão e imposição de exigências éticas,
é evidente que algumas práticas tidas como comuns nas igrejas evangélicas não fossem
observadas em seus meandros. Por exemplo, se no protestantismo tradicional a filiação como
membro implica, na maioria das denominações, um processo burocrático – iniciado com o rito
do batismo e concretizado numa pública profissão de fé diante da comunidade –, no movimento
de Caio Fábio a circulação de fiéis é livre, sem a exigência de sua permanência ou retorno
posterior; o que também significa a inexistência de controle institucional sobre o fiel 47, como
ressaltara Adaílton Dutra

Nas igrejas evangélicas a pessoa se torna membro da igreja e tem um


rol de membros, nós não temos um rol de membros, a gente não sabe
quem é membro, não contamos quem são membros, a gente não
trabalha na ideia de crescimento de igreja, do ponto de vista de crescer
o grupo... isso não importa para gente. Nós também não temos visitas.

47
A nomenclatura “estação”, utilizada pelos simpatizantes do grupo, traz em si essa ideia de fluidez, de caráter não
permanente com ausência de membresia formal. Evoca, segundo nossas entrevistas, a ideia de uma estação de
trem, marcada pelo trânsito constante de pessoas (Cf. ENTREVISTA 2).
131

Por exemplo, se você vai a uma igreja existe o visitante, nós não temos
visitante porque não temos membresia. Quem vem veio, ele pode voltar
domingo que vem ou nunca mais voltar, e isso para nós não faz a menor
diferença. Ele é um dos que foram ali hoje para ouvir o evangelho,
compartilhar o evangelho e ele poderá voltar mil vezes a partir daquele
momento ou poderá voltar nunca mais. E olha outra coisa importante, uma vez
que não existe rol, não existe essa hierarquia, não existe também controle
sobre a vida alheia. Então o cara foi hoje e voltou daqui quatro, cinco ou seis
meses e depois ele desapareceu, ninguém vai atrás dele, para saber “cara você
está perdido, não apareceu mais”. Veja só, isso não significa falta de interesse
em ajudar a pessoa. Então nós temos interesse em ajudar as pessoas, mas não
com controle, então por exemplo, você começa a frequentar e você vem meses
à fio e, de repente, você some. Ninguém vai ficar “poxa, o Douglas
desapareceu, desviou”. Não existe essa ideia de desviou porque você deixou
de vir. (...) Nós não temos números porque a gente não pergunta, e isso é uma
coisa que a gente orienta a todos, ainda que seja um grupo pequeno. Você, por
exemplo, se você chegar na reunião de um grupo que se reúne dentro desse
princípio que estou te falando, eles não vão te perguntar “e aí, da onde você
vem? Qual é a tua religião?”. Ninguém vai te perguntar isso. Não, você é o
Douglas, para nós o que importa é que você é o Douglas. O importante é que
você veio para estar com a gente, se você é budista, católico, espírita,
kardecista, isso não nos importa. A gente quer apresentar o evangelho para
você, a gente vive o evangelho e apresenta o evangelho. Se você crer e quiser
seguir o evangelho, legal. “Não eu sou budista e vou continuar sendo budista”,
ok, isso é com você. A nossa ideia de conversão não é, nunca, você sair de
uma religião e passar para outra. Conversão é algo que acontece no seu
interior, no seu encontro com Cristo e que qualquer mudança, que por acaso
seja necessária, será comunicada a você, conforme você vai recebendo o
evangelho, sem que ninguém tenha que dizer deixe de ser A ou B
(ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra. Cf. seção “Anexos”).

No que concerne a isso, também se torna mais fácil entender a crítica da igreja
evangélica tradicional ao grupo como um movimento “teologicamente liberal” em relação a
alguns temas tidos como tabus polêmicos, como a homossexualidade, adultério e aborto,
trabalhados de forma menos punitivas no Caminho da Graça, como evidenciam nossos diálogos

E a gente não se intromete na vida de ninguém, meu amigo. O cara adulterou?


Isso é problema dele com a mulher dele. Se ele pedir a minha ajuda ele terá a
minha ajuda, mas não existe nenhum tipo de controle comunitário para expor
a vida dessa pessoa. “Opa, você pecou contra o grupo” e aí eu vou dizer à
igreja “meus irmãos o ‘fulano de tal’ pecou contra a esposa dele, ele adulterou
e vamos discipliná-lo”. Não. A igreja passou a exercer um controle sobre a
vida das pessoas que não lhe é de direito. Nosso compromisso é de apoio
mútuo, de ajuda mútua, de serviço ao outro. Quando alguém passa a prestar
um desserviço ao outro, a prejudicar o outro, a ser prejuízo na vida do outro,
a ser um peso na vida do outro, aí sim você vai dizer “cara, você está vendo o
que está fazendo? O caminho não é esse”. Mas isso é coisa pessoal, entendeu?
132

Simples, nada de expor a vida do outro, colocando o outro a ridículo, como se


fosse “estamos limpando a igreja do pecado”, não existe isso, é papo furado
(ENTREVISTA 1, com Adaílton Dutra. Cf. seção “Anexos”).

Além de tudo, como colhido nas entrevistas, destaca-se a ausência de liturgia nas
reuniões, além da entoação de músicas não religiosas – sobretudo MPB – como parte de seus
cultos, baseadas em mensagens de cunho existencialista e humanista, algo totalmente
impensável nas igrejas evangélicas tradicionais, que consideram profanas – ditas seculares –
tais manifestações artísticas

Tipo assim, é só alguém se levantar e ficar em frente de um grupo e isso já se


caracteriza como uma liturgia, mas eu, particularmente, zelei por ir mudando
vocabulários nesse nosso ambiente. Por exemplo, você nunca vai ouvir
“vamos começar o culto”, porque eu entendo que em culto nós estamos toda
hora, a vida é um culto, então não existe isso de “vou estar diante de Deus”.
Diante de Deus todos nós já estamos 24h, porque se cremos que ele é o senhor
absoluto do universo, onde você estiver estará diante de Deus. As pessoas vão
chegando, entre 18:30h a 18:45h, e eu começo com a palavra dando boas
vindas àqueles que vão chegando – e tem gente que vai chegando até a hora
do término. Não temos essa coisa de “hora do louvor”. Eu começo uma
devocional de um texto bíblico, outra hora de um pensamento meu,
normalmente baseado em alguma leitura que eu fiz, e faço uma recepção com
essa devocional. Muitas vezes nele se dá a reflexão do encontro. Tem gente
que fala “eu já ouvi o que precisava, já posso ir embora” e eu digo “pode ir”.
Quando eu tenho alguém lá que toca um instrumento e canta alguma coisa – e
isso acontece ali no momento –, quando alguém chega com um violão ou é
um músico que eu conheço, ele pega o violão, que é o único instrumento que
temos, que foi doado por alguém, e canta o que achar que deve cantar. Nós
abolimos aquela coisa “você tem que cantar” ou “fique de pé para cantar”, isso
não existe. A gente não usa o palco, até tem um lá, mas a ideia é da
horizontalidade, para não ter alguém em proeminência, aquele que fica de pé,
no caso é quem fala ou toca. Ninguém vai para o palco, a não ser quem é artista
e precisa do palco para se mobilizar, já que artista precisa de palco e aplausos.
No domingo por exemplo, chegou um músico no intervalo que a gente tem e
tocou duas, três músicas, e cantou quem quis. Não existe um estimulo ou
cobrança “temos que cantar pra Deus”. Deus deve ter muitas pessoas
melhores, como os anjos. O que é para Deus ou o que não é pra Deus? São
coisas que ainda estamos discutindo. Então, se tem alguém que toca, isso vai
até as 19:15h mais ou menos (ENTREVISTA 2, com Carlos Bregantim. Cf.
seção “Anexos”).

Todas estas principais características – que podem ser observadas mais detalhadamente
na análise do discurso das entrevistas coletadas e anexadas neste texto – evidenciam, como
apontamos na primeira seção deste trabalho, que o Caminho da Graça converge a exemplificar
um caso de reconfiguração religiosa no período chamado de modernidade radicalizada, em que
133

o processo de individualização é fator determinante para a compreensão de tais novas


ressignificações da experiência religiosa cristã, vivida por indivíduos cada vez mais autônomos
em relação às instituições que anteriormente lhes conferiam algum sentido, criando assim,
segundo as formulações teóricas de Ulrich Beck, sua versão pessoal de Deus, como se o
simpatizante do grupo “pudesse tomar em suas próprias mãos sua própria vida e também a
dimensão religiosa” (BECK, 2016, p. 17).

3.2.2 – AS ESTAÇÕES E SUA PRESENÇA NO PAÍS

Espalhadas pelo país, as Estações do Caminho da Graça e sua presença no Brasil


encerram nossa terceira seção aqui escrita, numa espécie de panorama geral possível – dado o
caráter informal do movimento. Monitoradas pelos chamados “supervisores do Caminho” –
tidos como mentores e orientadores regionais -, as Estações estão, segundo o site caiofabio.net,
em todas as regiões do Brasil. De acordo com o portal, a cidade de Belém (PA) detém o único
grupo na região norte, seguida em ordem crescente pela região sul, com grupos formados em
Urussanga (SC), Blumenau (SC), Apucarana (PR), Curitiba (PR) e Peabiru (PR); região centro-
oeste, em Brasília (DF), Taguatinga (DF), Anápolis (GO), Goiânia (GO), Rio Verde (GO) e
Campo Grande (MS); região nordeste, em Abreu e Lima (PE), Arco Verde e Venturosa (PE),
duas em Recife (PE), Açailândia (MA), Caxias (MA), São Luís (MA), Salvador (BA), Itamaraju
(BA), Aracajú (SE), Fortaleza (CE) e Natal (RN); e a majoritária região sudeste, com estações
presentes em Serra (ES), Vitória (ES), duas estações em Belo Horizonte (MG), Capelinha
(MG), Lavras (MG), Contagem (MG), Ipatinga (MG), Juiz de Fora (MG), Montes Claros (MG),
Patos de Minas (MG), Santa Bárbara (MG), Poços de Caldas (MG), Uberlândia (MG), Vale do
Aço (MG), Barra Mansa (RJ), Campo Grande (RJ), Duque de Caxias (RJ), Macaé (RJ), Nova
Iguaçu (RJ), Niterói (RJ), Rio das Ostras (RJ), duas estações na capital Rio de Janeiro (RJ),
Tomaz Coelho (RJ), duas estações em São Paulo (SP), Mogi das Cruzes (SP), Praia Grande
(SP), Santos (SP), Campinas (SP), Rio Claro (SP), Sorocaba (SP), São José do Rio Preto (SP),
Taubaté (SP), Pindamonhangaba (SP) e São José dos Campos (SP); divididas e sistematizadas
nas tabelas a seguir

TABELA 3 – Estações do Caminho da Graça por região

REGIÕES ESTAÇÕES %
Região Norte 1 0,61%
Região Sul 5 8,20%
Região Centro-Oeste 6 9,84%
Região Nordeste 12 19,67%
134

Região Sudeste 37 60,66%


TOTAL 61 100%
Fonte: portal caiofabio.net

Quando dividimos por unidades federativas, em vez de regiões, vemos que os estados
com o maior número de Estações do Caminho da Graça são, justamente, os mais populosos do
país, embora não exatamente numa relação diretamente proporcional. Minas Gerais destaca-se
com 13 Estações, seguido por São Paulo, com 12, e Rio de Janeiro, com 10. Juntas, as três
unidades federativas abarcam 57,37% das Estações no Brasil. Excluindo as unidades em que
não há reuniões do movimento, os estados com menos grupos são Ceará, Mato Grosso do Sul,
Pará, Rio Grande do Norte e Sergipe, todos com um grupo em funcionamento.

TABELA 4 – Estações do Caminho da Graça por Unidade Federativa

UNIDADES FEDERATIVAS ESTAÇÕES %


Bahia 2 3,27%
Ceará 1 1,63%
Distrito Federal 2 3,27%
Espírito Santo 2 3,27%
Goiás 3 4,91%
Maranhão 3 4,91%
Mato Grosso do Sul 1 1,64%
Minas Gerais 13 21,32%
Pará 1 1,63%
Paraná 3 4,91%
Pernambuco 4 6,55%
Rio de Janeiro 10 16,39%
Rio Grande do Norte 1 1,63%
Santa Catarina 2 3,2%
São Paulo 12 20%
Sergipe 1 1,63%
TOTAL 61 100%
Fonte: portal caiofabio.net

A dificuldade quantitativa, entretanto, fica por conta das estimativas do total de


simpatizantes do movimento, que como já escrevemos, se dá muito por conta da informalidade
do movimento. Além de disponibilizar apenas a quantidade de Estações pelo Brasil, os
mentores do grupo revelaram em entrevista, como já enfatizamos, que não fazem a menor
questão de estimar os participantes das reuniões, tarefa praticamente impossível já que não há
135

meios razoáveis para tal exercício no Caminho da Graça, marcado pelo constante trânsito de
seus simpatizantes.
136

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não são poucas as mudanças a perpassar o cenário religioso brasileiro quando


observamos sua configuração nos últimos anos. Os últimos censos têm chamado a atenção
principalmente para três curvas que se destacam entre as demais: a diminuição do número de
católicos, o aumento do número de evangélicos e o aumento tímido do número daqueles que se
declaram sem religião (MARIANO, 2013)48. Quando observamos especificamente o segundo
caso – concernente aos evangélicos – vemos que a multiplicidade de denominações, confissões
e pertenças surge como questão a ser considerada, especialmente quando olhamos para os
números apresentados aqui, na segunda seção. Não há como negar que os evangélicos não
determinados, dentro de toda gama de religiosidades compreendidas no todo evangélico,
aparecem como categoria suscetível de dúvidas, geradas sobretudo pelos problemas
metodológicos do censo brasileiro. Todavia, ignorar a reconfiguração e apropriação de novas
experiências religiosas evangélicas no contexto que aqui temos chamado de segunda
modernidade não parece sensato. Cientes de tais mudanças, o que aqui defendemos partiu da
consideração dessa controversa categoria como retrato da “individualização (e, portanto, pela
extrema pluralização) das trajetórias de identificação” (HERVIEU-LÉGER, 2013, tradução
nossa) dos evangélicos brasileiros, dentro das especificidades imbricadas à religiosidade no país
– muito embora tal processo de individualização pareça não ser consciente em alguns desses
atores, que assim como no caso dos protestantes da primeira modernidade, evocam por algumas
vezes a tradição dos primórdios do cristianismo como justificativa da criação do movimento.

Com isso não queremos dizer, obviamente, que todos os desigrejados – no sentido
sociológico do termo – estão inseridos entre os evangélicos não determinados. Os objetivos da
pesquisa, na realidade, resumiram-se em mostrar que há mudanças que perpassam diversas
esferas na modernidade radicalizada, principalmente após a vitória planetária do capitalismo
neoliberal, dentre as quais se encontra o campo religioso, especificamente em nosso objeto: os
que se revelam avessos à instituição e a qualquer forma de institucionalização através da
afirmação da autonomia, valor tão caro nesse contexto. O Caminho da Graça, grupo elencado
aqui como recorte de pesquisa, certamente não é o único a se identificar com tal postura, tendo
sido apresentadas as razões de sua escolha na seção anterior. Entretanto, cremos ter sido
possível, através de sua observação específica, olhar para o caso de um movimento fundado e

48
Por conta da vertiginosa diminuição de católicos, Antônio Flávio Pierucci diz que “desde seus mais remotos
inícios, nos anos de 1950, a sociologia da religião praticada no Brasil tem sido uma sociologia do catolicismo em
declínio” (PIERUCCI, 2012, p. 93).
137

orientado por uma das mais importantes vozes da igreja evangélica brasileira na década de 1990
que, inserido nas transformações geradas pela modernidade radicalizada, decidiu apartar-se do
protestantismo tradicional, entendendo-o como experiência não genuína da fé cristã, criando
assim sua concepção pessoal de Deus. Ao mesmo tempo, como pretendíamos mostrar, também
é equivocado pensarmos que todos os simpatizantes do Caminho da Graça foram evangélicos
vinculados a sua forma institucional. Marcado por um trânsito intenso, o grupo também se
destaca por receber em suas reuniões adeptos de outras religiões, sem que faça qualquer tipo de
coerção no sentido proselitista do termo.

Prosseguindo, vale também concluir que a combinação desse balanço bibliográfico com
o resultado da observação do campo nos leva à discussão que, diante do quadro que se configura
no campo religioso da segunda modernidade, sempre vem à tona: nossas categorias sociológicas
sobre o tema são realmente capazes de apreender o objeto que diante dos nossos olhos se
coloca? Consideramos esse questionamento deveras importante. Esse dilema conscientemente
se refletiu desde o título deste trabalho. Falar em “desigrejado” pressupõe uma largada a partir
do esvaziamento do conceito “igreja”, por sua vez enraizado nas categorias sociológicas
tradicionais da sociologia da religião. O mesmo acontece com a própria definição de religião,
que como já pontuara Georg Simmel (2009), deveria ser entendida como produto da
religiosidade, e não o contrário. Dessa forma, como relembra Beck, “o substantivo religião
define o campo religioso segundo a lógica do ‘ou-isto-ou-aquilo’. O adjetivo ‘religioso’, ao
contrário, classifica conforme a lógica do ‘tanto-isto-como-aquilo’” (BECK, 2016, p. 55),
construção mais aplicável aos novos movimentos. Por isso, entender essa figura no nosso
contexto específico revelou também a necessidade que temos de repensar nossas próprias
categorias, pois como continua Beck,

Na medida em que a teologia e a sociologia sancionaram, com argumentos


científicos, esse conceito de exclusão, elas se posicionaram, tomando partido
em favor dos monopólios religiosos por obediência a seus credos (...) mais do
que isso, no contexto das mudanças nas relações de poder e de importância
dentro do campo religioso e cosmopolita, elas desobrigam as igrejas e a si
mesmas de levar a sério a existência dos Novos Movimentos Religiosos e de
analisa-los (BECK, 2016, p. 132 e 133).

De fato, se propor a pensar em questões contemporâneas nos coloca frente a frente com
nossas teorias, exercício nem sempre gratificante, embora prazeroso. Por certo, diante da
efervescência empírica que este novo tempo nos impõe, a verdade é que encontramos no Brasil,
no século XXI, uma figura nova, de um ser religioso que se identifica com uma forma específica
138

da fé cristã sem se identificar, entretanto, com as instituições que tradicionalmente se impunham


a esses fiéis. Ilustrando bem a ênfase no indivíduo – nesse caso na sua própria construção
religiosa –, os seus simpatizantes, entre os quais os desigrejados, evidenciam que, longe de se
extinguir, a religião se apropria de novas configurações no tempo hodierno, ditadas sobretudo
pelo processo de individualização que permeia as relações sociais bem como todas as esferas
da vida. Como questiona Beck

Essa forçada secularização, cujas lamentações acompanham até hoje a vitória


da modernidade, não seria até mesmo um presente de Deus que, inclusive,
preparou o caminho para a nova dinâmica da religiosidade no século XXI,
para o re-encantamento espiritual que, subitamente e por toda parte, se está
verificando, causando grande assombro, admiração e estranheza? (BECK,
2016, p. 31).

Todavia, a constatação de tais mudanças não significa, evidentemente, que não possa
haver crescimento das formas “mais tradicionais de religião”, tais como as igrejas institucionais
– tal como muito se tem observado especialmente nos últimos cinco anos com relação ao
protestantismo calvinista, muito embora ainda não haja pesquisa ou dado verificável sobre isso.
Esse indivíduo que se autoconstrói não poderia afirmar sua individualidade e livre escolha
optando pela filiação à uma instituição depois de um exercício reflexivo? Claro que sim. A
pergunta que fica é: os números da pesquisa do próximo decênio continuarão a ratificar esse
universo de mudanças? Impossível afirmar com total certeza, embora tudo também indique que
sim. O que podemos inferir, contudo, é que o panorama religioso brasileiro já não é mais o
mesmo de cinquenta anos atrás, e que muito provavelmente também não será exatamente o
mesmo daqui a cinquenta anos. Longe do exercício profético muito frequente na sociologia,
nos resta concluir que só o tempo poderá nos dizer o que a modernidade radicalizada reserva
para as futuras pesquisas em religião. Por ora, cabe salientar que as mudanças são reais e
inequívocas. Se em 2004 Pierucci escrevia sobre uma destradicionalização das religiões
brasileiras (PIERUCCI, 2004b) apontando para a retração do catolicismo, o esgotamento do
protestantismo luterano e de imigração, bem como a retração numérica da umbanda; podemos
dizer, hoje, que tal fenômeno também pode ser observado no questionamento de uma das
instituições mais caras à fé evangélica, mesmo por aqueles que um dia se confessaram
evangélicos, a saber, a igreja.
139

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ANEXOS

ENTREVISTA 1:

Entrevista realizada com Adaílton César de Assis Dutra, um dos


coordenadores/conselheiros do movimento Caminho da Graça, responsável pela Estação
de Taguatinga-DF, colhida em 26/07/2017 em Taguatinga-DF.

D: Bom, então a gente pode começar pelo teu nome completo e sua função no grupo.

A: Adaílton César de Assis Dutra. Tá, vamos lá... profissionalmente eu trabalho com marketing
digital, e essa já é uma coisa diferente nesses grupos. Os pastores não exercem uma função,
vamos dizer, profissional como pastores que são assalariados. Não, eu tenho a minha profissão
como a maioria daqueles que pastoreiam no Caminho da Graça também tem suas profissões,
trabalham no mercado de trabalho tradicional para se sustentarem. Mas como vocação eu sou
pastor, ou seja, eu exerço minha vocação pastoral pregando o evangelho, ajudando pessoas,
acompanhando, aconselhando. Essa é a minha vocação. Mas paralelamente eu exerço minha
profissão que é na área de marketing digital para me manter financeiramente.

D: Certo. Adaílton, o que é o Caminho da Graça?

A: O Caminho da Graça, aliás, nossa questão não está nem um pouco ligada ao nome, nunca
esteve. O nome [Caminho da Graça] foi para atender uma necessidade jurídica, ou seja, precisa
ter uma pessoa jurídica para gerir, porque você recebe ofertas e isso precisa ser feito de forma
transparente, então precisa ter uma conta para pagar as despesas. É só por isso que existe o
nome Caminho da Graça, portanto o nome não nos diz nada, ninguém tem placa “Caminho da
Graça”, os grupos, as igrejas que se reúnem, não têm uma placa “Caminho da Graça”. Bom, é
um movimento, ou seja, nós nos identificamos como um movimento livre que pretende seguir
o modelo de Jesus, como vida e como prática, é só isso, ou seja, não se pretende estabelecer
uma instituição organizada que estabeleça regras de práticas, condutas e de hierarquias. Não
existem hierarquias, não existem regras sobre como alguém se torna pastor, como alguém se
torna obreiro, nem existe esse termo entre nós, aliás. É um movimento livre de pessoas que se
reúnem para exercitarem a fé em Jesus, sem que ninguém tenha que determinar o que o outro
faz ou não faz, o evangelho é a nossa base.

D: Então nós não podemos chamar de igreja?


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A: Não. Pode chamar de igreja quanto à reunião de pessoas, porque teoricamente a igreja é a
reunião, é a assembleia de pessoas, que é o que significa o termo igreja. Então do ponto de vista
da reunião de pessoas, uma assembleia de pessoas, com o mesmo fim, somos igreja. Do ponto
de vista do evangelho propriamente dito igreja é todo aquele que segue a Jesus, nós somos
igreja, a igreja não é o lugar, a igreja são pessoas. Ou seja, não podemos falar de igreja dentro
da visão tradicional de que igreja é uma instituição que está em determinado lugar, não, não
somos. Somos igreja do ponto de vista de aqueles que seguem a Jesus, por isso somos igreja.
Etimologicamente falando, uma vez que nós nos reunimos, estamos reunidos como igreja.

D: E quais são as principais diferenças de uma igreja institucional?

A: Na igreja institucional há uma hierarquia definida, nós não temos hierarquia, não existe
hierarquia, o que existe são pessoas dispostas a servirem, dentro dos dons que têm e da
necessidade em que o momento apresenta. Então, havendo uma necessidade apresentam-se
pessoas disponíveis para exercerem tal função. Essa função, diferentemente da igreja
tradicional, não tem prazo. Por exemplo, na igreja tradicional como a Presbiteriana, Batista,
como a maioria das igrejas organizadas - não estou me referindo as igrejas neopentecostais onde
o cara parece ser o dono da igreja, como cargo vitalício, não é dessas igrejas que estamos
falando mas de igrejas tradicionais sérias -, o pastor tem um prazo, ele tem um mandato, o
presbítero tem um mandato, o diácono tem um mandato e o professor da escola dominical tem
um mandato que vence, e que pode ser renovado ou não. No nosso caso não existe a hierarquia
nem cargos oficiais, com mandato definido. É assim: a pessoa quer servir e ela vai servir pelo
tempo em que ela quiser servir, então, se ela começou hoje e por alguma razão ela quer parar o
mês que vem, ela para. Se ela quiser ficar indefinidamente, se ela estiver de fato servindo, e o
grupo aceita o serviço dela e ela também tem prazer em servir, ok! Então essa é uma das
diferenças. Outra diferença, não existe membresia. Nas igrejas evangélicas a pessoa se torna
membro da igreja e tem um rol de membros, nós não temos um rol de membros, a gente não
sabe quem é membro, não contamos quem são membros, a gente não trabalha na ideia de
crescimento de igreja, do ponto de vista de crescer o grupo... isso não importa para gente. Nós
também não temos visitas. Por exemplo, se você vai a uma igreja existe o visitante, nós não
temos visitante porque não temos membresia. Quem vem veio, ele pode voltar domingo que
vem ou nunca mais voltar, e isso para nós não faz a menor diferença. Ele é um dos que foram
ali hoje para ouvir o evangelho, compartilhar o evangelho e ele poderá voltar mil vezes a partir
daquele momento ou poderá voltar nunca mais. E olha outra coisa importante, uma vez que não
existe rol, não existe essa hierarquia, não existe também controle sobre a vida alheia. Então o
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cara foi hoje e voltou daqui quatro, cinco ou seis meses e depois ele desapareceu, ninguém vai
atrás dele, para saber “cara você está perdido, não apareceu mais”. Veja só, isso não significa
falta de interesse em ajudar a pessoa. Então nós temos interesse em ajudar as pessoas, mas não
com controle, então por exemplo, você começa a frequentar e você vem meses à fio e, de
repente, você some. Ninguém vai ficar “poxa, o Douglas desapareceu, desviou”. Não existe
essa ideia de desviou porque você deixou de vir. Uma vez que a gente estabelece amizade com
uma pessoa é um relacionamento de amizade e não de controle, eu vou entrar em contato com
uma pessoa e dizer: “tudo bem com você?” A minha pergunta não vai ser “cara, você está
faltando”, não existe você está faltando, mas “tudo bem com você?”. Se o cara dizer “tá, tudo
bem” eu respondo: “pô, legal cara, tô por aqui se você precisar, viu?”. Ponto, acabou. Essa é
uma diferença crucial, mas vou lhe dizer uma diferença que tem a ver com o evangelho, que eu
acho que é a mais importante. Uma pessoa que vai em uma igreja evangélica tradicional não
vai poder participar da ceia, e nem será batizado, a menos que ele participe de uma classe de
preparação para ser batizado - e o batismo significa se tornar membro da igreja. Nós entendemos
que isso é um desvio do evangelho. O batismo não é para você entrar para o rol de membros de
uma igreja local, mas uma representação, uma demonstração espiritual íntima e também pública
do seu pertencimento a Cristo, da sua fé em Cristo, e não do seu pertencimento ao um grupo
institucionalizado. Então, no nosso meio, se você chegar em uma reunião nossa e nós não te
conhecermos, não sabermos quem você é, não nos importará se você é um garoto de programa,
um assassino, um alcoólatra, um gay ou se a menina é lésbica ou uma prostituta, isso não nos
interessa. Nós pregamos o evangelho. A pessoa creu no evangelho e disse: “eu creio nisso, é
isso que eu quero para minha vida”, ela pode ser batizada naquele momento. Tão somente creu
e poderá ser batizada, o batismo dela é uma experiência espiritual para ela, diante de Deus, no
coração dela e tendo os demais ali como testemunhas de algo que a pessoa está realizando, e
acabou aí. Ela não se torna membra por causa do batismo. Ela foi batizada, então ela tem que
voltar domingo que vem? Não. Ela tem que assumir um compromisso com o grupo? Não. Ela
foi batizada em Cristo e para Cristo, é a vida dela, nós acreditamos que o Espírito Santo de fato
faz aquilo que o evangelho diz que faz, ou seja, Ele guia a pessoa, Ele acompanha a pessoa e
Ele não vai abandonar a pessoa, se aquilo que aconteceu de fato foi um exercício de fé... e eu
não tenho poder sobre isso como pastor, eu não tenho como controlar, como por exemplo “opa,
agora você batizou e eu tenho controle sobre você. Você está de baixo da minha autoridade
espiritual”, pois é isso que os pastores dizem. Não, você está de baixo da autoridade do Espirito,
eu não tenho nada a ver com isso. Eu vou te acompanhar, se você quiser. Eu vou te ajudar, se
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você quiser. E a gente não se intromete na vida de ninguém, meu amigo. O cara adulterou? Isso
é problema dele com a mulher dele. Se ele pedir a minha ajuda ele terá a minha ajuda, mas não
existe nenhum tipo de controle comunitário para expor a vida dessa pessoa. “Opa, você pecou
contra o grupo” e aí eu vou dizer à igreja “meus irmãos o ‘fulano de tal’ pecou contra a esposa
dele, ele adulterou e vamos discipliná-lo”. Não. A igreja passou a exercer um controle sobre a
vida das pessoas que não lhe é de direito. Nosso compromisso é de apoio mútuo, de ajuda
mútua, de serviço ao outro. Quando alguém passa a prestar um desserviço ao outro, a prejudicar
o outro, a ser prejuízo na vida do outro, a ser um peso na vida do outro, aí sim você vai dizer
“cara, você está vendo o que está fazendo? O caminho não é esse”. Mas isso é coisa pessoal,
entendeu? Simples, nada de expor a vida do outro, colocando o outro a ridículo, como se fosse
“estamos limpando a igreja do pecado”, não existe isso, é papo furado. Acho que essas são as
diferenças básicas. Deixa eu te falar mais uma diferença, teológica, e talvez eu já esteja
antecipando alguma pergunta aí. A igreja [institucional] tem um problema seríssimo com a
teologia dela. Já começa pelo fato de que em cada grupo tem a sua própria teologia, o que
significa o seguinte: o cara que é arminiano pertence a uma igreja arminiana, como por exemplo
a Metodista. Você não vai encontrar lá um calvinista, e você não vai encontrar na igreja
Presbiteriana um arminiano. Eles são exclusivistas. Eles têm uma teologia fechada, um pacote
de doutrinas e todos que pertencem aquela igreja precisam aceitar. Isso não existe entre nós,
não me interessa sua teologia. Você é arminiano? Problema é teu, meu amigo. Tu és calvinista?
Isso também é problema teu. Católico? Budista? O meu compromisso é com o evangelho, sem
teologia! Me refiro à teologia como um sistema fechado, com um pacote de doutrinas pré-
estabelecidas que precisam ser aceitas por todos. Então, se você for em uma reunião nossa você
vai ver que jamais se fala de teologia. Não existe “aqui está o pacote de doutrina que você deve
ter, pois é assim que cremos”. Não existe uma definição do que cremos ser teologia ou a nossa
teologia, como você pode encontrar a teologia pentecostal, a teologia calvinista, a teologia
arminiana etc. Não existe isso para nós, você não vai conseguir identificar. Essa é uma coisa
interessante, ninguém consegue identificar qual é a nossa teologia. Em todos os “ismos” -
arminianismo, calvinismo, pentecostalismo - você não consegue, ouvindo a gente, identificar
qual é o nosso, é impossível. Uns vão dizer “essa cara é arminiano”, outros dirão “esse cara é
calvinista”. Não tem jeito, porque na verdade é tolice você achar que alguém encontrou a
teologia e o pacote certo, e o pacote está ali. Isso é papo furado. Na verdade, tem muita coisa
certa em vários pensamentos deles, mas o problema deles é empacotar. Então a gente não
empacota, começa por aí. Tem uma outra coisa que é essencial, a visão que as pessoas têm da
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Bíblia. Para o evangélico tradicional a Bíblia é a palavra de Deus, ou seja, a palavra de Deus é
um livro sagrado. Nós não acreditamos nisso. Para nós a Bíblia não é um livro sagrado e ela
não é a palavra de Deus. A palavra de Deus não pode ser um livro, se a palavra de Deus é um
livro significa que enquanto o livro não existiu ficamos sem a sua palavra; porque o livro não
existiu sempre, o livro passou a existir pelo menos trezentos anos depois de Cristo ter subido
aos céus e a igreja ter começado seu ministério. O primeiro evangelho foi escrito, pelo menos,
uns trinta anos depois de Cristo ter terminado seu ministério, que foi o evangelho de Marcos.
Então ficamos sem evangelho durante trinta anos? As primeiras cartas de Paulo foram escritas
quinze anos depois do primeiro livro do novo testamento, que foram Tessalonicenses e Gálatas,
que foram os primeiros livros a serem escritos. Ou seja, não existia o novo testamento. Além
disso, acesso ao velho testamento era muito restrito, só foi copiado o primeiro livro, enquanto
conjunto, trezentos anos depois que foram organizados como um livro. E aí, ficamos trezentos
anos sem a palavra de Deus? O fato de colocarem a Bíblia como sendo a palavra de Deus, como
um livro sagrado, simplesmente fez do cristianismo uma religião como qualquer outra, que tem
o seu livro sagrado, que tem o seu alcorão. Como se “cada religião tem o seu livro sagrado, e
nós temos a Bíblia sagrada”. Não, o que nós entendemos é que a palavra de Deus não é um livro
é uma pessoa. Jesus é a palavra de Deus, não é a letra. Então isso significa que a Bíblia tem que
ser largada? Abandonada? Não! Não é nada disso. A neurose evangélica é essa porcaria que
quando eu digo que a Bíblia não é a palavra de Deus acham que eu estou jogando ela no lixo.
Não. Ela é o livro que eu mais amo, é o livro que eu mais leio e é o livro que eu uso para pregar.
É o livro que eu uso. Eu entendo que a Bíblia é um testemunho dos antigos, a respeito do
evangelho. Mas a palavra mesmo é uma pessoa, que independe do livro. E tem uma outra coisa
importante, ele [Jesus] é a chave que interpreta, não só as escrituras, mas a própria vida. Olha
o alcance que isso tem. Quando você coloca na Bíblia, no escrito, a regra infalível de fé e prática
você se ferrou, meu amigo. Primeiro, você tem um monte de problema, tem que explicar as
controversas que não tem explicação. Segunda coisa, você tem outro grande problema, que é
ter que dizer que alguns textos não valem e outros valem, correndo um risco sério de um monte
de igreja fazer loucura, porque eles dizem que “está escrito”. Meu, você determinou que a
palavra de Deus é um livro que tem letras registradas, então agora terá de aguentar o barulho
de ter que viver com gente aí dizendo que está escrito e tem que ser da forma que eles acham.
O evangelho não é assim. O evangelho é uma pessoa, ele atua no coração e na mente e a vida
deve ser interpretada a partir dele, ele interpreta a vida. Você pega escritos de Paulo, Pedro,
João, Tiago, escritos do velho testamento, enfim, eles têm um monte de coisa transitória, mas
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em Jesus você não encontra isso. Em Jesus você encontra princípios eternos de vida que são
não apenas atemporais, mas eles são de qualquer geografia. Eles se aplicam a qualquer povo e
em qualquer época. Os mandamentos de Jesus de amar a todos, por exemplo, se aplicam a
qualquer lugar, a qualquer momento, qualquer situação e a qualquer pessoa. “Não julgue a
ninguém”, por sua vez, também se aplica a qualquer grupo, a qualquer lugar e a qualquer pessoa.
Então para nós o princípio de interpretação da vida não é a Bíblia mas é Jesus. A Bíblia, então,
é o testemunho valiosíssimo para quem quer saber qual é o testemunho a respeito de Jesus.

D: Certo. Adaílton, quando que o movimento foi iniciado?

A: Ele na verdade aconteceu progressivamente. Caio deixou a igreja evangélica em 1998, mas
de forma oficial vamos dizer que foi em 2002 que ele largou a igreja mesmo. Na verdade, na
vida do Caio a igreja como instituição era uma coisa à parte. Ele servia o evangelho mas também
sendo membro de uma igreja, no caso a Presbiteriana. Posteriormente se tornou presidente da
Associação Evangélica Brasileira, que reunia as igrejas evangélicas do Brasil. Ou seja, ele
estava ligado a esse meio evangélico. Em 1998 houve a ruptura pessoal e em 2002 houve a
ruptura oficial em que ele diz: “a partir de agora eu não atuo mais na igreja”. A partir daí ele
começou a pregar sem igreja, apenas pregava o evangelho a partir do site dele, do “Café com
Graça”, que foi uma reunião que ele fez em Copacabana em um restaurante em que ele pregava.
Era um movimento livre, simples e natural. Aí aconteceu a morte do filho dele, e como ele já
tinha convites para se mudar para outros lugares - Recife e Brasília - ele quis se mudar do Rio.
Ele entrou em contato com o amigo dele, Rômulo, que havia o convidado para morar em
Brasília e ele veio. O Rômulo marcou um local para ele pregar e convidou as pessoas, aí as
pessoas lotaram o lugar para ouvir o Caio pregar. No domingo que vem o Caio vem de novo, e
aí lotou de novo, e depois de novo, de novo e de novo. E foi assim que começou, e não tinha
nome nenhum, era apenas um movimento natural e simples de pregação do evangelho com as
pessoas se reunindo. Nisso, uma pessoa de Santos, Marcelo Quintela, sabendo do que estava
acontecendo, entrou em contato com o Caio, porque ele também estava largando a igreja dele,
que era a Igreja Presbiteriana Independente. Daí o Caio falou: “Cara, continue pregando aí,
como estou aqui”, e o Marcelo começou. De repente começou muita gente querendo fazer a
mesma coisa e o Marcelo e o Caio ajudando esses grupos iniciantes. Chega Carlos Bregantin,
de São Paulo, e todo mundo foi naturalmente dizendo “tô saindo da igreja e quero uma coisa
leve, livre”. Isso tomou uma proporção que teve a necessidade de ser organizada, a mexer com
dinheiro alheio, porque você tem que pagar despesas de um salão, por exemplo. Então tivemos
que organizar como Caminho da Graça. Foi assim que surgiu. Então 2002 foi quando
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começaram as reuniões, como movimento. Registrado eu nem sei quando começou, acho que
ninguém sabe. Se você perguntar para qualquer um, Marcelo, Caio... de verdade eu acho que
foi 2004, 2005. Por aí que aconteceu.

D: E a tua inserção no movimento?

A: Foi em 2008. A igreja Presbiteriana saiu de mim antes, bem antes, em 2004. Caio ainda
estava escondido e eu havia tomado uma decisão de romper mesmo com o movimento
evangélico. Eu simplesmente me desliguei do movimento evangélico, totalmente, e quando eu
falo totalmente eu quero dizer que não lia mais livros, não queria saber de novidades, não queria
saber de nada. No que dizia respeito ao evangelho eu só queria o evangelho, mais nada. Quando
eu tomei essa decisão eu procurei uma outra igreja para me filiar, porque eu jamais imaginei
abrir uma igreja; mas não achei. Era como trocar seis por meia dúzia, era trocar de buraco. Eu
já não me encaixava na igreja Presbiteriana, muito menos em outras que me pareciam mais
malucas ainda. Então eu resolvi a pregar o evangelho e não me importando mais como o nome
“presbiteriano”. E eu avisei isso na igreja que eu pastoreava, “a partir de agora não me importa
teologia, não me importa práticas que sejam identificadas como presbiterianas. Me importa o
evangelho”. Então fui convidado para pastorear nos Estados Unidos. Fui para lá e fiz mesma
coisa, pregando só o evangelho, esquecendo de doutrina presbiteriana e teologia calvinista. Isso
foi em janeiro de 2006, perdurando até outubro do mesmo ano. Aí em outubro um irmão da
igreja dos Estados Unidos me disse que tinha um grupo lá no Brasil que estava pregando o que
eu estava pregando, o que era interessante, porque quando não encontrei nada quando procurei.
Ele falou: “tem lá e é o Caio Fábio, conhece?”. Bom, quem não conhece o Caio Fábio? Ele me
falou do site dele. Eu cheguei em casa depois da escola dominical, no domingo de manhã, e fui
ver o site, então “caraca, é isso aqui que eu estou pregando”. Daí eu já escrevi para o Caio,
naquele mesmo dia. “Caio, estou aqui nos EUA, na Flórida, e estou pregando o evangelho”. E
daí para frente o Caio só me respondeu “legal, Deus te abençoe”. Ele nunca disse para eu sair
da igreja Presbiteriana, jamais, não houve essa conversa, nunca em nenhum momento. E eu
continuei na igreja Presbiteriana - na verdade fazia pouco diferença estar nela ou estar fora dela,
porque eu só continuaria pregando só o evangelho como eu estava fazendo -. Aí meu irmão
faleceu em janeiro do ano seguinte, e eu vim ao Brasil para o funeral do meu irmão e de seus
filhos, que morreram em um acidente de carro. Nessa vinda ao Brasil eu mandei um e-mail para
todo mundo pedindo orações, porque foi uma tragédia para gente. Aí o Caio soube que eu vinha
ao Brasil e me convidou para ir a Brasília, e aí ele disse “tem um grupo lá na Flórida que tem
me acompanhado pelo site e não tem igreja pra se reunir e eu gostaria de ter alguém na Flórida
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que pudesse receber esse pessoal para orienta-los no evangelho, e eu sei que você é o cara que
está fazendo isso, você pode receber esse pessoal?”. Eu disse: “posso, só que sou pastor da
igreja Presbiteriana. Então vou ver com eles se eles topam se reunir em minha casa na segunda-
feira” - porque segunda era meu dia de folga do pastor presbiteriano, então eu não teria
problema local, porque estaria usando minha folga para fazer isso -. Quando eu avisei o
conselho da igreja Presbiteriana que eu ia fazer isso, ou seja, receber um grupo na minha casa
para pregar o evangelho, um presbítero da igreja falou: “Pastor, a gente precisa pensar se o que
você está ensinando aqui é verdade ou não. Se for verdade, nós estamos errados e se não for
verdade você tem que ir embora. Eu acho que é verdade, e acho que nós devemos largar essa
ideia de religião, denominação, e passarmos a seguir só o evangelho”. O resultado foi que houve
uma assembleia na igreja e a igreja decidiu não ser mais Presbiteriana. Em uma assembleia
encerrou-se a ata da igreja Presbiteriana e tirou-se a placa. A partir daí a gente começou a se
reunir como igreja normal. Foi aí que em 2007 eu comecei.

D: Entendi. Bom, então se não há hierarquia qual a função do Caio mediante isso tudo?

A: É, a hierarquia que existe é uma hierarquia em amor, não é uma hierarquia quanto a controle,
do tipo “é ele quem toma as decisões”, não. Cada grupo que se reúne é livre. Por exemplo, o
grupo é tão livre que se ele quiser fazer uma reunião em qualquer lugar ele faz, ninguém está
preocupado com o tipo de liturgia que ele vai seguir, ninguém determina isso, nem Caio, nem
ninguém. O Caio para nós é apenas um mentor espiritual, uma pessoa a quem nós amamos,
respeitamos e concordamos que esteja pregando o evangelho. Mas ele não tem autoridade sobre
a vida de ninguém, sobre nenhum mentor e sobre a vida de nenhuma pessoa. Não existem
decisões vindas de cima que obriguem determinado grupo, como acontece nas igrejas
evangélicas. Por exemplo, na igreja Presbiteriana se o presbitério determina alguma coisa para
a igreja local aquilo terá que ser cumprido. Se existe um conselho na igreja local e esse conselho
determina alguma coisa para os membros daquela igreja, aquilo se dá por cumprido, porque a
igreja determina o que será feito. Não existe isso entre nós, o que existe é apenas o
reconhecimento das pessoas que estão servindo e que nós respeitamos, em amor. Ele não tem
autoridade para determinar absolutamente nada a ninguém.

D: E como se dá a manutenção do grupo? Dízimos, ofertas?

A: Ofertas. Nós orientamos as pessoas que querem se reunir como Caminho a que mantenham
uma estrutura simples, uma estrutura leve, para que não se estabeleçam pesos. A ideia é manter
tudo leve e livre e tudo com ofertas voluntárias. Existe a ideia de oferta voluntaria, mas isso
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não ocupa espaço em nossas liturgias, não ocupa espaço em nossas reuniões em tentar fazer a
pessoa contribuir. Não existe maldição para quem não contribui. É assim: chegou o momento
da oferta? Cantamos um cântico e quem quiser contribuir contribui. As nossas necessidades são
apresentadas. Por exemplo, nós temos grupos no Brasil que o único compromisso financeiro é
com o aluguel do local em que eles se reúnem. Então dizemos: “olha, gente, o aluguel custa mil
reais. Quem puder contribuir, beleza, e o que passar do aluguel a gente doa para instituições
filantrópicas”. É o caso de muitos grupos, pagam o aluguel e ajudam muitas pessoas.

D: Você vem de uma igreja institucional, você saberia me dizer se os outros adeptos ao
movimento também vêm de um histórico institucional?

A: Hoje nós já temos uma parcela boa de pessoas completamente novas, vindas do “nada”, ou
seja, não pertenciam a nenhuma igreja institucional, nem Católica, nem Presbiteriana, nem
Batista etc. Na verdade pessoas que se definem sem religião e hoje se reúnem conosco, muitas
pessoas. Nós temos também muita gente, e aí um número bem mais expressivo que do que os
sem religião, que são os adeptos das religiões orientais, espiritualistas, que não se identificam
nem como católicos, nem como evangélicos, eles apenas seguem outros conceitos e princípios
de vida. Com isso quero dizer budistas, espiritas, kardecistas, ou outros exotéricos dos mais
diversos. Mas é importante eu dizer uma coisa. Nós não temos números porque a gente não
pergunta, e isso é uma coisa que a gente orienta a todos, ainda que seja um grupo pequeno.
Você, por exemplo, se você chegar na reunião de um grupo que se reúne dentro desse princípio
que estou te falando, eles não vão te perguntar “e aí, da onde você vem? Qual é a tua religião?”.
Ninguém vai te perguntar isso. Não, você é o Douglas, para nós o que importa é que você é o
Douglas. O importante é que você veio para estar com a gente, se você é budista, católico,
espírita, kardecista, isso não nos importa. A gente quer apresentar o evangelho para você, a
gente vive o evangelho e apresenta o evangelho. Se você crer e quiser seguir o evangelho, legal.
“Não eu sou budista e vou continuar sendo budista”, ok, isso é com você. A nossa ideia de
conversão não é, nunca, você sair de uma religião e passar para outra. Conversão é algo que
acontece no seu interior, no seu encontro com Cristo e que qualquer mudança, que por acaso
seja necessária, será comunicada a você, conforme você vai recebendo o evangelho, sem que
ninguém tenha que dizer deixe de ser A ou B. Mas a grande maioria vem de igrejas
institucionais sim, especialmente evangélicas.

D: O grupo não corre o risco de se institucionalizar?


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A: Sim, corre. Todo grupo corre o risco de ser institucionalizado. Vai acontecer com o Caminho
da Graça? Pode acontecer, e eu até digo que é possível que aconteça no futuro. Porque
lamentavelmente faz parte da estrutura emocional humana querer estar protegido por regras,
por muros, então acaba que as pessoas constroem os seus muros. Então isso pode acontecer.
Agora, qual é o meu compromisso? O meu compromisso, que eu sei que é do Caio também, é
com a nossa geração, aquela à qual eu pertenço. Enquanto eu estiver aqui, enquanto o Caio
estiver, enquanto o Carlos estiver aqui, esse movimento vai continuar assim, sendo livre. A
gente não responde pelas futuras gerações, e nem nos preocupamos.

D: Então como funciona o processo de abertura de uma nova Estação?

A: Não existe a organização, ela nasce, ela acontece. Então, por exemplo, alguém entra em
contato com a gente e fala “eu queria abrir uma Estação”. Se ele fizer essa pergunta já começou
errado e a resposta dada a ele será “não, não tem como você abrir uma Estação”. Meu amigo,
ninguém abre Estação. Se você é discípulo de Cristo você só vai anunciar o evangelho, então
comece a contar seu evangelho aí e vão surgir pessoas que querem ter um tempo para
conversarem sobre esse evangelho, para louvarem a Jesus. Essa reunião vai começar a
acontecer, esporadicamente, uma vez por mês, uma vez a cada sessenta dias, e de repente ela
começa a aumentar, e com um grupo serão bem-vindos ao Caminho da Graça; isso se a sua
visão é de um evangelho leve, simples e puro. Então, se uma pessoa chega para nós e diz que
está se reunindo, ou seja, já está acontecendo, a gente prega o evangelho, a gente estuda o
evangelho. Então qual seriam as exigências para ser um pastor? Não, não existe pastor do
movimento. Então não existe processo de aceitação para ser um pastor. O que existe são
algumas coisas básicas. A gente pede para ler dois livros, além de ler todo o novo testamento
sem os olhos da religião, ou seja, tendo Jesus como chave hermenêutica, passando a olhar a
Bíblia não como um livro sagrado, mas como testemunho a respeito de Jesus, interpretando
tudo a partir de Jesus. Bom, recomendamos a leitura de Sem Barganhas com Deus e O Caminho
da Graça para todos. O último é um livreto, simples, muito prático sobre o que é viver em
comunidade, tendo Jesus como a base e não a religião. Já o primeiro é um livro denso, bem
profundo, que desconstrói o conceito teológico da moral de causa e efeito, mostrando como
isso está impregnado na religião e qual é a proposta diferente do evangelho. Então a gente pede
para o pessoal lerem esses dois livros, já que ele está pensando em liderar esse grupo. E se ele
assim considerar que é isso que ele acredita e deve seguir, será bem-vindo.

D: E há uma frequência para a reunião desses grupos?


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A: Não existe essa regra, tem grupo que se reúne uma vez por mês, outros que se reúnem
virtualmente toda semana, pela internet mesmo - fazem ceia pela internet, batismos, tudo pela
internet.

D: Podemos ver a importância da internet para o grupo, não é?

A: Muito importante, porque temos muita gente espalhada pelo mundo e que não tem com quem
se reunirem, então eles reúnem virtualmente e chamam de Caminho Virtual. Acontece toda
terça-feira para os que estão dispersos por aí mas que querem ter um ambiente para compartilhar
a fé, para ouvir a mensagem, para conversar, pedir oração. Se reúnem semanalmente, mas não
há aquela obrigatoriedade de ter que se reunir. Nós temos grupo que se reúnem uma vez por
mês, quinzenalmente e outros que se reúnem esporadicamente. Eles se reúnem e combinam a
próxima reunião, avisam uns aos outros pelo Whatsapp etc. Ou então tem os grupos que se
reúnem regularmente. Por exemplo, aqui em Brasília nós temos nosso grupo que se reúne todos
os domingos à noite, outro grupo que se reúne no domingo de manhã e temos vários outros
grupos que se reúnem nas casas durante a semana. Mas isso é tudo livre, ninguém estabelece
uma periodicidade, é informal.

D: Vocês se definiriam como “desigrejados”?

A: Não, só fala desigrejado quem acha que alguém tem que estar na igreja institucional. Essa
palavra desigrejado talvez tenha sido um eufenismo para desviado. Quando começou esse
movimento, os que saiam das igrejas para irem ao movimento era tidos como desviados, que se
desviaram da fé, abandonaram a igreja de Cristo - leia-se deixaram de se reunir com a igreja
local -. Só que o tempo foi passando e eles começaram a perceber que não eram desviados,
porque eles continuaram amando a Jesus, fiéis, bons para as pessoas, vivendo o evangelho, só
que não estavam na igreja. Então “desviados” já não cola mais. É o meu caso, eu fui tido como
desviado. De repente eu tive gente virando a cara para mim, e não foram poucos, muita gente
dizia que eu era um “desviado”. Antes eu era convidado para orar nas reuniões, e a partir daí eu
já não era mais convidado para orar, porque afinal de contas eu já era um “desviado”, então
minha oração não valia mais. Só que o tempo foi passando e eu deixei de ser “desviado”, porque
eles viram que na verdade eu não tinha desviado. Então como me definiram? “Desigrejado”. É
o “desigrejados” que precisa ser igreja. Então isso é só mais uma tolice evangélica. Não, nós
não nos consideramos desigrejados, muito pelo ao contrário, nós estamos muito bem igrejados,
no que se refere a igreja de Cristo. O desigrejado é só na cabeça deles.
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D: Certo. Por último, o censo do IBGE pergunta em sua pesquisa “qual a sua religião ou culto?”.
O que você responderia?

A: Se alguém me perguntar a minha religião eu vou responder que nenhuma, não tenho religião.
Religião é um desvio do evangelho, sempre existiu e sempre vai existir. A religião é toda
tentativa humana de chegar até Deus, de se religar. Isso é religião. A religião é essencialmente
um esforço humano. Já o evangelho é exatamente para mostrar que todo esforço humano para
chegar a Deus é inútil. Jesus é o único caminho a Deus, e eu posso seguir a Jesus
independentemente de religião, então esse é o meu culto. Não quero dizer que alguém que tenha
religião não esteja seguindo a Jesus, estou dizendo que é preciso separar as coisas. Uma coisa
é ser discípulo de Jesus, seguir a Jesus, amar a Jesus e crer em Jesus. Outra coisa é seguir uma
determinada religião, católica, budista, espirita, batista, presbiteriana, seja qual for. Uma pessoa
pode ser presbiteriana e não ser de Jesus, como ela pode ser presbiteriana e ser de Jesus, ou de
qualquer outra religião e ser de Jesus. O evangélico pode dizer que se a pessoa é de Jesus ela
deixará de ser católico. Isso é coisa de religião, entendeu? As mudanças interiores e exteriores
que forem necessárias a uma pessoa pertencem a Deus. Não é a religião que irá salvar. Então
eu diria que meu culto é Jesus. E quando digo que sou pastor me refiro que prego o evangelho
e cuido de pessoas que querem seguir esse Jesus. Eu não preciso de religião para isso, nem
prego religião, não digo que você tem que vir para o Caminho da Graça, porque se eu falar isso
eu estaria transformando o Caminho da Graça em religião. Eu apenas prego o evangelho, e
muitos me perguntam, depois que eu prego o evangelho, aonde devem ir. Eu sempre digo: em
lugar nenhum. Não falo que ela tem que vir para minha “igreja”. Eu acredito que o evangelho
é o poder de Deus para a salvação daquele que crê, eu acredito que a pessoa que crê recebe o
Espírito Santo e ele guia essa pessoa à verdade, e se ela realmente creu o Espírito vai guiá-la.
Uma vez que eu preguei o evangelho para essa pessoa e ela creu no evangelho, é natural que
essa pessoa me procure outras vezes. Eu tenho que orientá-la no evangelho, nunca vou dizer
que ela tem que ir em tal e tal lugar, mas ela vai me perguntar se eu me reúno com a igreja e se
ela me perguntar se ela pode ir eu direi que sim, mas acaba por aí. Eu não vou ficar falando
“agora você tem que ir na escola dominical, na classe de catecúmenos etc.” Eu convido para
servir a Jesus e não para ir em uma reunião. Não tenho religião e meu culto é Jesus.

D: Você concorda para divulgação dessa pesquisa para fins acadêmicos?

A: Sim, sem dúvidas.

D: Muito obrigado pela atenção e cordialidade, Adaílton!


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A: Se precisar de mais alguma coisa, conte comigo!

ENTREVISTA 2:

Entrevista realizada com Carlos Bregantim, um dos coordenadores/conselheiros do


movimento Caminho da Graça, responsável pela Estação de São Paulo-SP, colhida em
06/09/2017 em São Paulo-SP.

D: Carlos, antes de qualquer coisa, obrigado por ter me recebido. Podemos começar com uma
pergunta básica: como se deu sua adesão ao movimento Caminho da Graça?

C: Primeiro, meus pais se converteram ao movimento cristão protestante, migraram da igreja


Católica lá nos anos 1960, e daí para frente eu fui criado dentro de uma igreja Batista. Fui
batizado aos 12 anos, me casei aos 22 anos, fui ordenado pastor, na instituição Batista em 1983.
Nesse ano eu conheci o Caio, eu o vi pela primeira vez, não conheci pessoalmente, e a partir de
ouvi-lo, pela primeira vez - eu me lembro bem do sermão que ele pregou “Seguindo a Jesus o
mais fascinante projeto de vida” – coisas mudaram. Eu estava com 27 anos, com uma história
protestante histórica, batista, pouco tinha saído dessas fronteiras institucionais, saí quando fui
para faculdade teológica. Quando eu vi o Caio pela primeira vez confesso que fui impactado.
Naquele tempo a algo que até então eu não tinha, a noção do evangelho, do que eram as
fronteiras do evangelho ou as não-fronteiras, porque quando você é criado em uma instituição
você entende o evangelho dentro dessas fronteiras. Aquilo me impactou muito, fui reler o
evangelho, fui reler os textos que ele (Caio) sugeria, a partir daquele sermão e acabei lendo os
quatros evangelhos de novo. E acabei fazendo com ele as considerações e tentando aprofundar
um pouco mais isso, e vivendo uma experiência comunitária junto à igreja Batista, mas já em
1984, 1986 e 1987, que eu me aproximei do Caio pessoalmente, fui ouvi-lo pessoalmente, a
partir daí desenvolvi uma caminhada meio que paralela ao movimento institucional. Tínhamos
um grupo que caminhava paralelamente com o Caio, a partir da VINDE, que era uma
organização que ele tinha criado e presidia, onde ele viajava pelo Brasil e pelo mundo, com
conferências e afins. Eu e muitos outros nos mantivemos nessa plataforma institucional mas
fazendo um caminho paralelo, muito mais ligado ao pacto Lausanne, que é conhecido como
missão integral, mas com princípios de reinterpretações do evangelho, a partir de outras leituras,
a partir de culturas e muito mais a partir da própria experiência religiosa na América Latina,
entre os pensamentos de alguns, como Renê Padilha, Samuel Escobar, ente outros que a gente
passou a ler, a ouvir, e até conhecer pessoalmente. A partir desse universo, desse caminho
paralelo e que tinha haver com o VINDE, como local de encontro também tínhamos a CEPAL.
169

Então havia dois congressos anuais, o da CEPAL no primeiro semestre e o da VINDE no


segundo semestre, que em alguns casos ditavam a agenda da igreja, da minha igreja e das igrejas
que nós pastoreávamos. Aí tinham os batistas, os presbiterianos, metodistas, congregacionais,
as denominações mais tradicionais, incluindo algumas pentecostais, como a Assembleia,
Quadrangular, enfim que mantinham-se na instituição mas que faziam esse caminho paralelo,
liderado pelo Caio e o Grupo que o Caio também dirigia naquele tempo. Nesse momento o Caio
projeta uma nova comunidade, querendo ou não, um novo jeito de ser igreja, um jeito de ser
comunidade, que alguns de nós tentávamos equacionar isso dentro da instituição, tentando fazer
mudanças, criando novos momentos, dentro da própria comunidade, mexendo nas estruturas
institucionais das igrejas Batistas, Presbiterianas, que é uma coisa muito formalizada. A gente
mexia, os Batistas com muito mais tranquilidade para isso, porque a autonomia da igreja local
dá essa liberdade - você em assembleia decide destituir corpo diaconal, destituir ministérios,
cria novos mecanismos que foi o que eu fiz durante 25 anos, enquanto pastoreei duas igrejas
Batistas, uma por 9, quase 10 anos e outra por 15 anos seguidos e depois nos últimos dois anos
trabalhei com Ede René na Igreja Batista de Água Branca, na área pastoral da igreja. Sempre
em igreja Batista, mas com essa possibilidade de mexer nas estruturas, na engrenagem, na
organização, enfim, fui aderindo a novos contornos. Visando o quê? Aproximar a comunidade
dessa comunidade terapêutica que povoava nosso imaginário, a partir da nossa leitura do
evangelho, da caminhada de Jesus e das propostas da comunidade que aparecem nos textos de
Atos dos Apóstolos, a qual Paulo escreve, Pedro escreve, enfim, aquela chamada igreja
primitiva, a igreja do primeiro século. A ideia era aproximar. Então dali brotou um sonho,
utopias para muitos de nós – e eu um deles, eu confesso. Darci Dusilek uma vez escreveu um
texto, “utópolis”, que era uma cidade imaginária, um mundo imaginário, uma comunidade
imaginária que era muito interessante, e muitos de nós partilhávamos isso. Entramos nos anos
90, com muita sede nesse sentido, participamos diretamente do Impeachment do Collor em
1992, diretamente nos movimentos liderados pelo Caio, mas nas entranhas do país, acho que
foi pela primeira vez que a igreja chamada evangélica - que hoje eu tenho muita dificuldade de
usar esses termos –, participou dessas engrenagens para conduzir o país para um novo momento,
e a gente fazia parte desse tempo. Então entramos nos anos 1990 com a visão mundial, fazendo
parte disso, outras ONG’s cristãs mundiais, mas sedeadas no Brasil, fazendo mobilizações sobre
isso. E de alguma forma isso alimentava a ideia de uma comunidade diferente, livre, não
obstante, responsável. Responsável individualmente, comunitariamente e socialmente, aquela
coisa de lidar com o pecado social e não só com o pecado individual, mas o pecado social, que
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está aí né? Hoje, ontem por exemplo, você vive em um tempo absurdo, e vemos que nós nos
perdemos mesmo e a igreja nisso. Voltando... aí entra os anos 90 e vai dando continuidade e
Caio cria Associação Evangélica Brasileira – AEVB, que aglutinou tendências das mais
variadas. Ela tem vida curta na verdade, mas muito efervescente no seu momento. Ela só teve
um congresso nacional, que foi em 1994 em Brasília, eu estava presente. Primeiro e único
congresso da AEVB liderado pelo Caio, e foi ali mesmo que o Caio tirou o pé e muitos de nós
demos continuidade. Como o Caio enfrenta o divórcio, e aí enfrenta sua própria complexidade
pessoal, num contexto cristão evangélico ainda muito tradicional, o divórcio causou uma
ruptura absolutamente radical. Então em 1998 foi um ano decisivo, no sentido de que essa
jornada paralela que trazia quase todo mundo do mundo evangélico para cá, que mantinha suas
instituições mas fazia esse caminho, com grandes lideranças, em 1998, tira o pé e ficam os
amigos do Caio e eu me considerava um, junto com outros amigos do Caio - os projetos são
menos importantes que pessoas, ponto –. Ele é um querido, é uma pessoa, então vamos ficar ao
lado dele. Então voltamos, na verdade nos recolhemos, para nossas instituições locais e dando
continuidade em tudo aquilo que a gente tinha caminhado até ali, dando continuidade com
encontros menores. Eu mesmo tinha um café com pastores que liderava aqui em São Paulo,
durante muitos anos às primeiras sextas-feiras de cada mês, e a gente trocava figurinha sobre
tudo que chegava no Brasil a respeito de doutrinas, movimentos, ideologia, enfim, a gente tinha
grupos menores que faziam esse caminho de volta nas comunidades locais, mas absolutamente
influenciados com tudo aquilo que nos trouxe até aqui, de modo que não dava para voltar. E
ninguém voltou mais para os movimentos mais institucionalizados. Voltamos para a
comunidade, tentando fazer da igreja aquela comunidade dos sonhos, da utopia, etc. Nesse
período o Caio se silencia um pouco, dá uma desaparecida, isso em 1999, 2000, 2001. Em 2001
e 2002 ele ganha um site de um amigo, o caiofabio.com, e nesse período de 1999 a 2003 ele
começa o Café com Graça lá em Copacabana, que você já deve ter pesquisado sobre isso... um
amigo oferece um espaço em uma livraria e ele começa a se reunir às quartas-feiras com quem
viesse, tipo uma caverna de Adulão, quem quisesse ir era bem recebido. E ele ministrava o
evangelho, como sempre fez. Esse é o embrião do movimento, começa na conversão do Caio
em 1974, fecha os anos 70 com a VINDE, passa os anos 80 ainda meio restrito a alguns lugares,
mas entra nos anos 90 com uma dimensão internacional – o próprio Caio se torna um pregador
internacional. Então esse é o embrião do movimento. Quando o Caio começa a escrever no site,
eu lembro do primeiro texto, eu até perguntei para ele se era dele mesmo, pois fazia muito
tempo que ele não publicava e aquele texto deu uma repercussão fora do normal. A partir dali
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ele começou a escrever e a se corresponder, responder cartas com perguntas, e isso meio que o
anima e nos anima para uma retomada que ainda a gente não fazia ideia de como seria. Ainda
estávamos em nossas igrejas, mas o volume de pessoas desencantadas, institucionalmente
falando, crescia e crescia muito. A gente entra os anos 2000 em um processo de desencanto,
não com Deus e nem com a trindade, e nem com a chamada igreja mística, não é uma crise de
fé, muitos tiveram, mas era uma crise institucional do “não me sinto bem como já me senti
nesse ambiente”. E os meios de pesquisas confirmam isso, e aparecem os nomes “os
desigrejados”, enfim, todas as designações que já deram – eu particularmente chamo de “os
desencantados”. Então uma das nossas propostas era o reencanto por Jesus, naqueles primeiros
momentos, reler o evangelho para nos reencantar com aquele Jesus de Nazaré e reiniciar uma
jornada. A partir daquele povo que se aglutinou perto do Caio por causa do site, e alguns que
conseguiam se encontrar no Café com Graça, começa um movimento de pessoas que queriam
se reunir em torno desses princípios e pensamentos, que não eram novos, afinal era o mesmo
“seguir a Jesus”, já que o discurso sempre foi o mesmo: o evangelho. Algumas pessoas
começaram a encorajá-lo, estimulá-lo a começar alguma coisa. Houve um momento em que ele
quase foi para Recife a convite de um amigo, da igreja Anglicana Carismática do Recife, para
começar uma comunidade na praia da Boa Viagem, que até foi começado - e que hoje está sob
outra liderança. Caio foi, pregou algum tempo, mas um amigo presbiteriano de Brasília o
convidou para começar uma comunidade em Brasília. Segundo o Caio, ele sempre teve
intenções de um dia morar no planalto central, naquela região de serrado. Enfim, esse amigo
acaba convencendo o Caio e patrocina a sua ida para lá, e as reuniões “pré-Caminho da Graça”,
começam em um hotel. Quando Caio migra pra Brasília o Café com Graça migra como o
“Caminho da Graça”, - e digo com aspas porque só o Caio poderá dizer quando que mudou de
Café com Graça para Caminho da graça –, mas “Caminho” por conta da expressão no livro de
Atos, que aparece algumas vezes como em “Paulo, o perseguidor do Caminho”. Caminho com
C maiúsculo. É uma expressão rica, preciosa, que eu particularmente gosto muito, e nesse
ambiente em 2004 ele começa as primeiras reuniões em hotéis em Brasília, já com o Caminho
da Graça, e depois faz um bom tempo as reuniões em um teatro, um teatro católico. Nesse
tempo alguns que faziam esse caminho de reaproximação começam a querer criar pequenas
comunidade, que o Caio denominou de estações do Caminho. Mas essas eram iniciativas de
quem se aproximou, não do Caio. Caio nunca ligou para alguém convidando. O único que ele
convidou foi o Bragantim, já os outros vieram porque quiseram. Um amigo começou uma
comunidade em Porto Ferreira, ele era pastor de uma igreja e essa igreja migrou para o Caminho
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da Graça e se tornou uma das primeiras estações do Caminho, que não existe mais hoje, mas
foi um momento importante aqui no interior de São Paulo. Um outro amigo começou o
Caminho da Graça em Santos, se tornando uma pessoa chave nesse processo, mesmo não
estando mais entre nós hoje no movimento. Mas foi uma pessoa chave na amplitude localizada
no Caminho. Enfim, isso tudo no começo do ano de 2005, e em 2006 já tínhamos grupos em
Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Belém do Pará, Recife etc., com pessoas que deixaram suas
denominações, alguns pastores, outros não, que começaram estações do Caminho, sem locais,
horários definidos. Então nesse momento eu entro. Caio faz contato comigo em fevereiro de
2006 e nós passamos alguns meses negociando, vendo o que estávamos querendo e como
poderia ser. Então, em 21 de maio de 2006, em um domingo as 10h da manhã, eu começo a
primeira reunião da estação do Caminho da Graça aqui em São Paulo, onde já estou há 11 anos
e meio.

D: Certo. E com todo esse tempo de liderança como você definiria, hoje, o movimento? O que
caracteriza o movimento segundo sua visão?

C: O Caminho da Graça é um movimento, em movimento, que se identifica com o evangelho


e com todos os que com esse evangelho se identificam. É assim que eu defino, na verdade eu
ouvi isso da boca do Caio falando para uma senhora que perguntou o que era o movimento, e
ele respondeu: “Caminho da Graça é um movimento, em movimento, que se identifica com o
evangelho, com a essência, a pureza, a simplicidade, mas se identifica com todos aqueles que
com esse evangelho se identificam, estejam eles onde estiverem no mundo”.

D: Nesse sentido há algumas diferenças da igreja institucional?

C: Sim, primeiro é exatamente isso, na verdade sempre há uma discussão porque na medida em
que você tem um local, um horário, um dia e alguém que convoca você, você parece ter uma
institucionalidade. Mas o que a gente pretende é que esse movimento em movimento – e
movimento com paradas (as estações) – seja um lugar do mais simples possível, menos
estruturado possível, o menos institucionalizado possível, o menos organizado possível, menos
pesado ou o mais leve possível. Então o que talvez nos distingue da estrutura de uma
denominação, das engrenagens religiosas, das engrenagens institucionais, é a leveza, a
simplicidade, a possibilidade de podermos ser o que somos sem precisar de um CNPJ. Por
exemplo, o Caminho da Graça de São Paulo não tem CNPJ, não tem diretoria, não tem
ministérios, não tem departamentos, não tem um organograma, não tem um cronograma, não
tem um planejamento estratégico, não tem um alvo, não tem uma meta. Não tem. E você está
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falando com quem supostamente o lidera. Então você encontra nos debates alguém dizendo:
“ah, mas na minha igreja também não tem”. Mas as vezes eu vou pregar nessas igrejas e eu
chego lá e vejo que tem sim. O pouco que nos aproxima de uma igreja institucionalizada é que
nós temos um dia de reunião, um horário, um local e eu sou o cara que convoco. É isso que nos
aproxima de qualquer irmão/irmã que lidera um grupo, mesmo que institucional. Eu chamo isso
de mínimos razoáveis, e antes de gravar você citou alguns movimentos que vão nessa linha
mais anárquica, o que me atrai muito, nesse tipo de “não temos nem dia, nem horário e
simplesmente acontece”. Só que você que está fazendo ciências sociais e sabe que
sociologicamente falando é quase impossível a gente conseguir dar identidade a qualquer
movimento sem esses mínimos razoáveis, ou seja, se alguém não disser quando, onde e que
horas, aquilo não acontece, ou quando acontece em si mesmo não consegue objetivos mínimos,
e nós temos objetivos mínimos. O que nós não temos é um programa de expansão, mas temos
objetivo de traduzir o evangelho de um modo que se aproxime o máximo possível do que é o
evangelho e das pessoas que precisam do evangelho, então nós temos um objetivo e é por isso
que nós nos reunimos, então temos um local, um horário e um convocador. Então assim a gente
não tem nenhuma preocupação em ficar provando que somos diferentes de qualquer
denominação ou igreja institucionalizada, não é nosso combate e esse não é um bom combate,
inclusive. Não obstante, eu falo por mim, nem sei se falo pelo Caio, porque o Caio é mais
estruturado, prefere as coisas mais estruturadas, porém na sua essência leve, livre, responsável,
e ele por ser quem é prefere e precisa de estruturas, um pouco mais de estrutura, então para
manter o que ele tem em Brasília precisa ter um pouco mais de estrutura, pra fazer o caminho
que ele faz precisa de CNPJ, porque ele emprega pessoas, precisa alugar locais, comprar
equipamentos, então ele precisa de uma estrutura oficial, coisas que eu não preciso. Aqui no
ambiente do Caminho da Graça de São Paulo eu não preciso disso, e essa talvez seja a questão
que mais me coloca longe das institucionalidades todas que há por aí, e os meus amigos
queridos achavam que assim eu não ia dar conta. Mas é assim que nós nos identificamos,
funcionamos, e eu falo mais por mim e o grupo que se reune comigo, não falo por todos do
movimento. Todas as estações do Caminho da Graça têm um convocador, tem um dia e um
horário. O local é diverso, vai desde a garagem de alguém, da sala, da recepção, da escolinha
infantil do bairro ou do clube japonês onde eu alugo uma sala só para nossa reunião. Acho que
ninguém tem um local que funcione para o Caminho da Graça 24h, todos se reúnem em locais
que são alugados ou emprestados para aquela hora da reunião, como por exemplo, salas de
hotel, teatro, enfim, nenhuma das estações do Caminho tem uma sede própria, nenhuma tem.
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Esse local não é fixo, pode ser durante um mês em um lugar e em outro mês em outro lugar,
enfim eu sempre prefiro que seja em um local, porque dá visibilidade. Aqui em São Paulo é lá
na Vila Mariana, e isso vai criando uma identidade no que diz respeito ao local. Nenhuma tem
contrato de locação, que precise de um CNPJ. Por exemplo, lá eu estou há 11 anos e nós não
temos um contrato, é um acordo verbal que nós temos com a direção do clube, nós pagamos
por reunião. Assim é a grande maioria das estações do Caminho da Graça, que movimenta o
próprio movimento em si.

D: Com que frequência as reuniões são realizadas?

C: Uma vez por semana, aos domingos as 18h30. Não há nenhuma outra reunião, somente esse
horário.

D: E como funciona esse encontro?

C: Nosso encontro se dá da forma mais simples possível, no que diz respeito ao formato e o
jeito de ser. Gosto muito do ambiente informal, ao redor da mesa. Nós temos um ambiente
mobiliário que facilita o entorno da mesa, fazemos uma espécie de “U” de mesas, com a mesa
do café no fundo. As pessoas vão chegando e vão sentando ao redor da mesa, e vai
acrescentando as cadeiras, mas basicamente a mesa é “sagrada”. A santidade da mesa é
preservada, essa coisa do olho no olho, do facilitar os entrelaçamentos e isso é uma coisa que o
tempo todo eu estou estimulando. Como sou o convocador, o tempo todo estou estimulando.
Nós não temos uma liturgia, embora haja uma liturgia. Tipo assim, é só alguém se levantar e
ficar em frente de um grupo e isso já se caracteriza como uma liturgia, mas eu, particularmente,
zelei por ir mudando vocabulários nesse nosso ambiente. Por exemplo, você nunca vai ouvir
“vamos começar o culto”, porque eu entendo que em culto nós estamos toda hora, a vida é um
culto, então não existe isso de “vou estar diante de Deus”. Diante de Deus todos nós já estamos
24h, porque se cremos que ele é o senhor absoluto do universo, onde você estiver estará diante
de Deus. As pessoas vão chegando, entre 18:30h a 18:45h, e eu começo com a palavra dando
boas vindas àqueles que vão chegando – e tem gente que vai chegando até a hora do término.
Não temos essa coisa de “hora do louvor”. Eu começo uma devocional de um texto bíblico,
outra hora de um pensamento meu, normalmente baseado em alguma leitura que eu fiz, e faço
uma recepção com essa devocional. Muitas vezes nele se dá a reflexão do encontro. Tem gente
que fala “eu já ouvi o que precisava, já posso ir embora” e eu digo “pode ir”. Quando eu tenho
alguém lá que toca um instrumento e canta alguma coisa – e isso acontece ali no momento –,
quando alguém chega com um violão ou é um músico que eu conheço, ele pega o violão, que é
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o único instrumento que temos, que foi doado por alguém, e canta o que achar que deve cantar.
Nós abolimos aquela coisa “você tem que cantar” ou “fique de pé para cantar”, isso não existe.
A gente não usa o palco, até tem um lá, mas a ideia é da horizontalidade, para não ter alguém
em proeminência, aquele que fica de pé, no caso é quem fala ou toca. Ninguém vai para o palco,
a não ser quem é artista e precisa do palco para se mobilizar, já que artista precisa de palco e
aplausos. No domingo por exemplo, chegou um músico no intervalo que a gente tem e tocou
duas, três músicas, e cantou quem quis. Não existe um estimulo ou cobrança “temos que cantar
pra Deus”. Deus deve ter muitas pessoas melhores, como os anjos. O que é para Deus ou o que
não é pra Deus? São coisas que ainda estamos discutindo. Então, se tem alguém que toca, isso
vai até as 19:15h mais ou menos. Daí fazemos um intervalo para o café e vamos prosear, esse
é nosso momento de café com graça, no nosso ambiente, onde tomamos café e conversamos,
isso desde o início. Eu sempre quis fazer isso na igreja, sempre, para mim esse é o melhor
horário. A cantina é o melhor lugar para conversar, conhecer, começar a namorar, sabe? Só que
na igreja a cantina é depois do culto, quando todo mundo já foi embora, só ficavam alguns.
Então eu queria um momento de intervalo que estivessem todos, celebrar a convivência, o
entrelaçar de irmãos e irmãs, o “vamos nos tornar amigos”. A ideia de Jesus é que sejamos
amigos, nem servos nem irmãos, mas amigos. O reino de Deus é um reino de amigos, não é
uma família. Família é um “porre”, ela até é boa, um instrumento da sociedade para organizar,
mas melhores famílias são aquelas que jogam tudo para baixo do tapete para viver bem. Amigos
não brigam, amigo é amigo. Jesus prefere isso, a última promoção que ele fez foi amigo e não
apóstolo. Então nosso objetivo é esse, que amizades brotem, até mesmo as espirituais.

D: E sobre a manutenção do grupo aqui de São Paulo, como se dá?

C: Quando voltamos do intervalo eu chamo o pessoal, e aí temos uma caixa de contribuição


que nós propusemos desde o começo, na primeira reunião que eu propus. Nós temos uma fatura
diária para pagar, um custo por reunião. Minha primeira reunião custou R$600,00, alugamos
uma sala cara, porque eu queria perto do metrô e tudo que é perto do metrô é caro. Nessa
primeira reunião eu disse às pessoas que aquela reunião estava custando R$600,00 e que não
teria o dinheiro para pagar, disse que aquela fatura era nossa. A minha primeira reunião tinha
38 pessoas, 90% eu não sabia quem era, nunca tinha visto, conhecia apenas minha cunhada,
meu irmão, minha mulher, e nem meus filhos foram – eles são do Caminho mas não tem essa
obrigação –, o resto das pessoas eram todas desconhecidas. Enfim, entraram os R$600,00 para
pagar a reunião, e é assim até hoje. Hoje nossa reunião custa R$375,00, custo da sala e mais
uns R$ 150,00 do café. Nosso café é bom, então nossa reunião sai em torno de R$ 500,00. Então
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eu passo a caixa e quem quer participa desse momento. Eu sempre digo que se entrar mais nós
usaremos para servir pessoas, pois temos um número razoável de pessoas que atendemos, e nós
atendemos com a sobra dominical. Nos primeiros anos, até 2010, eu dependia também daquelas
entradas para o meu sustento, porque me doo em tempo integral nisso, trabalho em tempo
integral desde 1986, ou seja, há mais de trinta anos. Quando eu saí da instituição eu perdi o
salário, porque no Caminho da Graça ninguém tem salário, então fui trabalhando ao longo da
jornada para ter meus mantenedores, pessoas, meus patrocinadores pessoais. Hoje eu não
dependo do dinheiro que entra dominicalmente para o meu sustento, porque eu tenho um grupo
de pessoas que são meus mantenedores. Alguns estão lá naquela sala, outros nunca foram lá e
alguns eu nem conheço pessoalmente, mas eles colocam dinheiro na minha conta de forma que
nunca sobra e nunca falta. Pago meu aluguel, pago meu convênio médico, tenho uma vida
simples. Moramos eu e minha esposa, meus filhos se bancam sozinhos, meu filho é casado e
minha filha faz um tempo que não mora conosco. Minha esposa é aposentada e eu tenho meus
mantenedores, é assim que eu vivo. Em outubro, por exemplo, vou no show do Paul McCartney,
porque minha filha me deu o ingresso de presente. Eu não compraria nunca um ingresso desse.
Como eu vivo de um dinheiro que as pessoas me dão para o meu sustento, eu nunca me senti à
vontade para isso. Então se você me ver em um show, alguém me pagou, assim como em um
jogo de futebol, eu não invisto nessas coisas. Então, o próprio grupo assume isso. Domingo,
por exemplo, quando falei que minha filha me deu um ingresso para o Paul McCartney o pessoal
aplaudiu, ficaram felizes. Financeiramente o grupo subsiste desse modo. Isso é bom ou ruim?
Nem bom, nem ruim. Diria que seria bom se tivéssemos mais recursos. Aqui no Caminho São
Paulo nós não falamos em dízimos, nem em ofertas, mas em contribuição voluntária, em
partilha, no sentido de repartir. Sempre pergunto “quanto vale esse momento para você?” alguns
respondem com R$2,00. Tem domingo que entra pouco e outros domingos que entra mais.
Então os R$2.000,00 que tenho de despesas com as reuniões o grupo banca, e a minha vida
pessoal meus mantenedores bancam, alguns são amigos que acreditam em mim e no meu
trabalho, bem como no modo como eu vivo. Óbvio que ao longo desses onze anos fui
reconfigurando meu status pessoal, então tudo que eu faço é meu trabalho, então se vocês
quiserem me pagar por isso me paguem, porque eu não tenho salário. Tem gente que diz:
“Nossa, orar para você é um trabalho?” e eu digo que sim, pois tem dia que eu não estou com
vontade de orar, mas são muitos pedidos de oração que chegam por quem eu tenho que orar.
Estou aqui conversando com você mas tem uma pessoa na UTI esperando minha visita. Quando
eu era remunerado pela igreja e eu recebia uma oferta eu devolvia, pedia para a pessoa colocar
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no gazofilácio da igreja, porque eu não precisava, porém hoje eu preciso. Então assim, eu
celebro um casamento e as pessoas me pagam, mas eu não deixaria de fazer um casamento por
causa de dinheiro, nunca! Eu faço qualquer celebração de graça para qualquer um, e se me
perguntarem quanto que é eu não cobro, mas esse é meu trabalho. Alguns retribuem com
alguma quantia, outros ajudam apenas com o valor da condução. Ótimo. Estou com 62 anos,
então não posso abusar também. Por exemplo, quando é um casamento muito longe eu peço
que eles providenciem a condução, porque eu não dirijo a noite. Então eu dou palestras, faço
mediações de conflitos, celebro casamentos, participo de reuniões de empresas, enfim, eu fui
ampliando as minhas competências profissionais, afinal sou um profissional do mercado de
trabalho e já tive outras funções. Eu sei que o mercado paga algumas atribuições minhas, então
eu lido com psicólogos, dou assessoria a psicólogos que resolvem problemas de ordem
religiosa, enfim, fui traduzindo as minhas competências para dar conta da minha vida e não ser
pesado para ninguém. Financeiramente é assim que funciona, inclusive o movimento e Caio.
Caio também tem seus mantenedores pessoais, que também tem um grupo que sustenta o dia a
dia. O movimento Caminho da Graça é tímido na arrecadação. Arrecadar para nós é um
problema. Não se tem nada no nome do Caminho da Graça, não se tem dinheiro. Temos pessoas
generosas, pessoas que perguntam para o Caio no final do ano se estamos no vermelho e então
ofertam o valor necessário. Assim como acontece comigo, chega no final do ano e alguns
irmãos perguntam como estou e falo que estou bem mas que queria tirar umas férias de 10 a 15
dias. A pessoa diz “está aqui o dinheiro para suas férias, vai descansar”. Ou alguém me oferece
um apartamento no Guarujá, e ainda coloca até uma compra no apartamento. Já fui duas vezes
para a Europa dessa forma.

D: Quanto aos simpatizantes, os que frequentam as reuniões do grupo aqui em São Paulo, qual
o perfil que você mais percebe? A maioria vem da igreja institucionalizada?

C: A maioria, no começo, era a maioria de cristãos evangélicos, 100%, os desencatados. Na


medida em que o tempo vai passando você tem a maioria cristã protestante, mas já tem também
uma quantidade razoável de pessoas que vem de outras confissões, como espíritas, umbandistas,
pensamentos filosóficos dos mais variados, ateus, católicos. Houve um tempo em que católicos
eram campo missionário dos crentes, mas hoje eu não vejo assim, para mim são irmãos. Nossas
doutrinas, nossas confissões, divergem na periferia, mas na essencialidade cremos no Deus Pai,
Deus Filho e Deus Espírito Santo, e na santa amada igreja universal mística e com tudo isso
bate. Hoje a frequência é de um bom grupo que vem do movimento cristão evangélico dos mais
variados, históricos, pentecostal, das novas igrejas que estão no mercado religioso, esses que
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do mercado religioso chegaram sangrando, sofrendo, doloridos, feridos, traídos, defraudados –


e por isso que eu digo para eles entenderem a nossa reunião como uma emergência, a cadeira
como uma maca. Numericamente aqui em São Paulo eu tenho uma média de presença
dominical cerca de 80 a 100 pessoas. Mas é itinerante, peregrina. Eu tenho um grupo que veio
desde o primeiro dia, pessoas que se identificam como Caminho da Graça, mas temos também
uma coisa natural de alternância. Por exemplo, pessoal que veio nesse domingo não vem no
outro e volta no outro. Mas o trânsito é total e o ir e vir é livre, leve, sem cobrança, ninguém
sumiu. Mas quando chegam aqui é uma festa, ficamos felizes. E as pessoas podem chegar antes
das 18:30h ou até no último minuto. No ano passado completamos 10 anos e nos reunimos,
convidamos Caio. Um amigo nos emprestou um teatro que cabe umas 600 pessoas e não coube
nos dois dias, até tivemos que mandar umas pessoas embora porque o bombeiro falou que não
pode entrar mais. Muita gente chega em mim e diz que é do Caminho, então se todos que se
dizem do caminho forem no domingo eu terei uma grande dificuldade, porque lá eu não consigo
colocar mais de 120 pessoas. E eu nem quero mais que isso. As vezes o Caio fala para alugar
um lugar maior e eu digo a ele que não tenho apetite para isso. Prefiro assim, com essa
itinerância, com esse grupo. Tem pessoas que eu consigo conversar durante a semana, grupos
que se reúnem durante a semana que não precisam ir lá no domingo. Eu não saberia dizer o
tamanho do movimento do Caminho de São Paulo hoje, é obvio que passa desses 80 a 100,
passa disso. Nesse domingo recebo o João Alexandre [cantor cristão] lá, e quando ele vai me
causa problema, porque ele tem fã, e aí o povo vai lá para ver o João. O João eu tenho como
amigo, assim como o Jorge Camargo, Vavá Rodrigues, esse povo conhecido da “MPB cristã”,
gente boa, que são meus amigos de anos. Caminhamos juntos há 30 anos, e as vezes eles me
ligam e sempre marcamos algo. Quando ele vai lá ele vende os CDs, os livros e tudo que vende
é dele, não temos um acordo financeiro, não tenho acordo financeiro nem comigo. Mas como
nós temos um público e um palco eles vão. O Camargo, por exemplo, não vai em nenhuma
igreja e se perguntar para ele onde ele vai ele fala que é do Caminho. Ele gravou um CD esses
dias com 12 músicas inspiradas no Caminho. Domingo foram apresentamos dois bebes, porque
o Caminho em São Paulo tem 12 anos e pessoas que se conheceram lá já tiveram filhos, e
quando isso acontece eles querem apresentar os filhos e a família, então os amigos vão na
reunião. Muitas vezes falamos sobre essas coisas, sobre essa fase, sobre criação de filhos, são
momentos maravilhosos, quando penso que o Caminho da Graça valeu por isso, e nisso já estou
satisfeito, só com esses momentos, porque são pais que eu conheci antes de se casarem. Então
a frequência desse domingo estava relacionada a isso. E aí o grupo que me acompanha todo
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domingo acaba participando disso também. Agora é claro que eu lido com as mídias desde que
a Internet chegou, todos os dias, e divulgo nossas reuniões também. Moro em São Paulo a vida
toda e sou pastor há 35 anos, então algumas pessoas vão para me ver também. Temos famílias
inteiras, temos pessoas casadas, descasadas, temos homossexuais que são meus amigos, que
são acolhidos com total reverência, amor e sem nenhum questionamento, de forma alguma.
Todos nos submetemos ao evangelho e é o evangelho que produz mudanças em nós, fora isso
não acredito em nenhuma outra forma de mudança. Então todos se sentem acolhidos lá, não há
nada e ninguém que se sinta excluído desses nossos momentos. Teve um querido nosso que
participou da Parada Gay - aquele movimento “Jesus cura a homofobia” nasceu aqui no
Caminho da Graça a partir de uma pessoa que caminhava com a gente. Depois de alguns dias
da Parada Gay muitos deles vieram nos conhecer e todos foram acolhidos como todo mundo é,
homens e mulheres com suas complexidades das mais variadas.

D: E quanto aos chamados sacramentos, tão importantes no protestantismo institucional?

C: Batismo é muito pouco, porque a maioria das pessoas já chegam batizadas. E eu longe de
querer questionar o batismo de quem quer que seja não batizo quem já foi batizado. Alguns
entendem que se reencontraram com a fé, com o próprio Cristo. Mas se me pedirem para batizar
eu batizo. Nós não temos batistério então batizamos por aspersão. Procuramos ter um momento
de ceia uma vez por mês, mas não há um dia fixo e nem uma liturgia fixa, fazemos de uma
forma mais comunitária e horizontal possível e tento ficar o mais longe possível da figura
sacerdotal. A única diferença é que no dia da ceia juntamos as mesas e fazemos uma mesa
cumprida, cabe umas 80 pessoas sentadas em torno da mesa. Depois distribuo o pão e o vinho,
as vezes com suco de uva – tem gente que leva o vinho, sem nenhum problema. As pessoas
dividem o pão, os cálices e fazemos um brinde ao cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo.
Celebramos até com o nosso café, seja o que estiver na mesa, enfim de uma forma mais
comunitária, horizontal, cultural possível e entendendo essa descaracterização que Jesus quis
fazer na mesa da ceia. Um dia ele lavou os pés de seus irmãos, disse que aquilo era entre nós.
Para mim a encarnação de Jesus é isso, o “entre nós”, no sentido de “agora é com vocês, o bem
e o mal está nas mãos de vocês”.

D: Carlos, como você responderia ao censo do IBGE a pergunta “qual a sua religião ou culto”?

C: Hoje eu tenho muita dificuldade com os vocábulos que são usados porque todos eles de
alguma forma estão corrompidos e bem manchados de modo que qualquer designação, para
mim, identifica muito mais o mercado religioso do que a confissão de fé. Eu digo que eu estou
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no mercado religioso mas eu não sou membro do mercado religioso, eu não participo, não sou
agente do mercado, mas trabalho nesse segmento, eu atendo gente desse segmento. Qualquer
designação para mim está muito contaminada, eu teria muita dificuldade em escolher uma delas.
Eu não me vejo mais evangélico, me vejo do evangelho. Não me vejo como cristão desses dias,
conquanto sejam cristãos segundo o termo mais embrionário, na tentativa de ser um pequeno
Cristo. Por outro lado, Jesus nos disse que quando já tivermos feito tudo era para nos
consideremos servos inúteis. Eu sou um candidato a servo inútil, porque eu não fiz tudo, mas
eu sigo Jesus. Se tivesse essa opção eu responderia “seguidor de Jesus”. A resposta seria essa:
sou um seguir de Jesus de Nazaré. Me identifico com o evangelho. As vezes vou ao mosteiro
lá em Vinhedo (SP), e me identifico com os irmãos monges, muito, muito. Participo das
homilias dos servis as 5h30, e sou um deles. Mas não me identifico com o Edir Macedo, por
exemplo, e nem irei conhecer o templo de Salomão, não tem nada a ver comigo. Assim como
a estrutura Batista, Presbiteriana, Metodista, Congregacional e nem as novas comunidades, não
tenho nada a ver com eles. Eu gosto do carisma que há entre os irmãos, isso me atrai. Não me
sinto bem nesses lugares, falo isso com muita reverencia, não falo como quem está abominando,
não, nada disso. Então eu me sinto um seguidor de Jesus. Às vezes me pergunto onde é que eu
encontraria Jesus? E com todo respeito aos que se reúnem aos domingos, talvez ele estaria lá,
mas talvez não estaria no palco, talvez ele estivesse preparando o lanche da cantina. Aqui no
Caminho São Paulo eu chego arrumo as cadeiras, as mesas, até que alguém chega para me
ajudar. Às vezes as pessoas se surpreendem ao me verem arrumando as cadeiras e depois
falando lá na frente. Gosto dessa coisa de mordomo que está no novo testamento, de quem lida
com aquilo que não é dele, e eu lido com as pessoas, com aquilo que não é meu, então eu lido
com muita reverência e cuidado. Enfim, sou um seguidor de Jesus.

D: Certo. Carlos, você concorda com a divulgação dessa entrevista para fins acadêmicos?

C: Claro!

D: Muito obrigado pela disposição e atenção nesse nosso encontro.

C: Obrigado você!

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