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UNIVERSIDADE METODISTA DE SÃO PAULO - UMESP

DIRETORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

JOVANIR LAGE

A Tríade Social e suas implicações para a teologia


bíblica veterotestamentária. Indícios de uma
teologia marginal

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2021
JOVANIR LAGE

A Tríade Social e suas implicações para a teologia


bíblica veterotestamentária. Indícios de uma
teologia marginal

Tese apresentada em cumprimento às exigências do


Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião,
da Universidade Metodista de São Paulo, para obtenção
do grau de Doutor em Ciências da Religião
Orientadora: Profª. Drª. Suely Xavier dos Santos

SÃO BERNARDO DO CAMPO


2021

2
FICHA CATALOGRÁFICA

L135t Lage, Jovanir


A tríade social e suas implicações para a teologia bíblica veterotestamentária:
indícios de uma teologia marginal / Jovanir Lage -- São Bernardo do Campo, 2021.
161 p.

Tese (Doutorado em Ciências da Religião) --Diretoria de Pós-Graduação e


Pesquisa, Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade
Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, 2021.
Bibliografia
Orientação de: Suely Xavier dos Santos.

1. Tríade social 2. Bíblia – A.T. – Deuteronômio 3. Bíblia – A.T. – Arqueologia


4. Paradigmas - Teologia I. Título

CDD 222.15

3
A tese de doutorado intitulada “A Tríade Social e suas implicações para a teologia
bíblica veterotestamentária. Indícios de uma teologia marginal”, elaborada por
Jovanir Lage foi defendida e aprovada em 21/09/2021, perante banca examinadora
composta por Profª Drª. Suely Xavier dos Santos (presidente UMESP), Prof. Dr.
José Ademar Kaefer (Titular/UMESP), Prof. Dr. Tércio Machado Siqueira (Titular
UMESP), Prof. Dr. Elcio Valmiro Sales de Mendonça (Titular Unimes), Prof. Dr.
Antônio Carlos Frizzo (Titular/ITESP).

_________________________________________________________
Profª. Drª. Suely Xavier dos Santos
Orientadora e Presidente da Banca Examinadora

_________________________________________________________
Prof. Dr. Marcio Cappelli Aló Lopes
Coordenador do Programa de Pós-Graduação

Programa: Pós-Graduação em Ciências da Religião


Área de Concentração: Linguagens da Religião
Linha de pesquisa: Literatura e Religião no Mundo Bíblico

4
Esta pesquisa foi produzida com apoio da CAPES que
ofereceu bolsa de estudos, para o andamento das pesquisas entre
fevereiro de 2017 à julho de 2021.

5
Para Roberta, Ana Luíza e Arthur,
vocês foram essenciais neste processo.

6
AGRADECIMENTOS

Sou agradecido à vida, que me fez trilhar cominhos importantes e às vezes tortuosos,

que me permitiram chegar até aqui;

Agradeço à minha família: minha esposa Roberta e meus filhos Ana Luíza e Arthur,

pelo exercício da paciência nos muitos momentos de reclusão e no distanciamento

provocado pelas constantes viagens para a conclusão das disciplinas;

À Igreja Metodista que me inseriu neste universo bíblico e me possibilitou os estudos

teológicos por meio da Faculdade de Teologia da Igreja Metodista;

Aos professores e professoras do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião,

em especial Suely Xavier, Tércio Machado Siqueira e José Ademar Kaefer pelos

constantes incentivos ao estudo;

A CAPES, mantenedora importante neste processo;

Ao IEPG, Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, que cooperou imensamente

ajudando-me financeiramente nas muitas viagens, enquanto elas foram necessárias.

Ao Programa de Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da Universidade

Metodista de São Paulo, por abrir-me a possibilidade de novos caminhos.

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LAGE, Jovanir. A Tríade Social e suas implicações para a teologia bíblica
veterotestamentária. Indícios de uma teologia marginal. São Bernardo do Campo:
UMESP, 2021. Tese (Doutorado em Ciências da Religião) – Diretoria de Pós-
Graduação e Pesquisas, Universidade Metodista de São Paulo (UMESP).

RESUMO
O presente trabalho expõe o interesse por uma leitura social do
Antigo Testamento e busca desenvolvê-la, analisando um
considerável sistema de leis que prevê os aspectos físicos e sociais
de indivíduos em situação de vulnerabilidade. Os critérios
sociológicos, aqui desenvolvidos, buscam distinguir da religião
institucionalizada, uma religião invisível e marginal, com
profundas raízes antropológicas e sociais. No centro deste sistema
que abriga os marginalizados da sociedade, encontramos a Tríade
Social: estrangeiro rGEï, órfão ~Aty" e viúva hn"ôm'la
. ". O objetivo de
nossa pesquisa está em analisar a presença destas categorias no
texto bíblico e como elas acenam para um significativo conjunto
de normas jurídicas, produzidas por grupos de oposição à
“religião oficial”, desenvolvendo concepções totalmente novas
no campo teológico, político e cultual. O método encontrado para
averiguar nossas suspeitas está no estudo exegético de textos
bíblicos, em especial, textos deuteronômicos e textos
extrabíblicos, tendo como suporte os achados arqueológicos em
Khirbet Qeiyafa. Os resultados preliminares de nossa pesquisa
nos dão pistas de que a prática social, muito difundida no antigo
Israel, entendida como uma exigência divina, alcança contornos
litúrgicos importantes na fixação dos valores éticos e sociais na
comunidade. Nossa pretensão é destacar que o tema do pobre e
do necessitado, representados em nossa pesquisa pela Tríade
Social, bem como a preservação de seus direitos básicos, perpassa
todo o Antigo Testamento, promovendo uma espécie de teologia
marginal, que caminha paralelo aos temas e às dinâmicas oficiais
de fé.

Palavras-chave: Tríade Social, Deuteronômio, Khirbet Qeiyafa,


Teologia Marginal, Paradigmas

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LAGE, Jovanir. The Social Triad and its implications for Old Testament biblical
theology. Signs of a marginal theology. São Bernardo do Campo: UMESP, 2021. Thesis
(Doctorate in Sciences of Religion) – Postgraduate and Research Board, Methodist
University of São Paulo (UMESP).

ABSTRACT
The present work exposes the interest in a social reading of the
Old Testament and seeks to develop it, analyzing a considerable
system of laws that foresees the physical and social aspects of
individuals in vulnerable situations. The sociological criteria,
developed here, seek to distinguish from institutionalized
religion, an invisible and marginal religion, with deep
anthropological and social roots. At the center of this system that
shelters the marginalized of society, we find the Social Triad:
foreigner rGE,ï orphan ~At±y" and widow hn"ôm'la
. ". The objective of our
research is to analyze the presence of these categories in the text
biblical and how they point to a significant set of legal norms,
produced by groups opposing the “official religion”, developing
totally new conceptions in the theological, political and cultural
fields. The method found to investigate our suspicions is in the
exegetical study of biblical texts , in particular, Deuteronomic
texts and extra-biblical texts, supported by the archaeological
finds in Khirbet Qeiyafa. The preliminary results of our research
give us clues that the social practice, very widespread in ancient
Israel, understood as a divine requirement, reaches liturgical
contours important in establishing ethical and social values in the
community. Our intention is to emphasize that the theme of the
poor and needy, represented and n our research into the Social
Triad, as well as the preservation of its basic rights, permeates the
entire Old Testament, promoting a kind of marginal theology,
which runs parallel to the official themes and dynamics of faith.

Keywords: Social Triad, Deuteronomy, Khirbet Qeiyafa,


Marginal Theology, paradigms

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LAGE, Jovanir. La tríada social y sus implicaciones para la teología bíblica del Antiguo
Testamento. Signos de una teología marginal. São Bernardo do Campo: UMESP, 2021.
Tesis (Doctorado en Ciencias de la Religión) - Consejo de Postgrado e Investigación,
Universidad Metodista de São Paulo (UMESP).

RESUMEN

El presente trabajo expone el interés por una lectura social del


Antiguo Testamento y busca desarrollarlo, analizando un
considerable sistema de leyes que prevé los aspectos físicos y
sociales de las personas en situación de vulnerabilidad. Los
criterios sociológicos, aquí desarrollados, buscan distinguir de la
religión institucionalizada, una religión invisible y marginal, con
profundas raíces antropológicas y sociales. En el centro de este
sistema que alberga a los marginados de la sociedad, se encuentra
la Tríada Social: extranjero rGEï, huérfano ~At±y" y viuda hn"ôm'la
. ". El
objetivo de nuestra investigación es analizar la presencia de estas
categorías en el texto bíblico y cómo apuntan a un conjunto
significativo de normas legales, producidas por grupos que se
oponen a la “religión oficial”, desarrollando concepciones
totalmente nuevas en los campos teológico, político y cultural. El
método encontrado para investigar nuestras sospechas está en
estudio exegético de textos bíblicos, en particular, textos
deuteronómicos y extrabíblicos, apoyado en los hallazgos
arqueológicos en Khirbet Qeiyafa. Los resultados preliminares de
nuestra investigación nos dan pistas de que la práctica social, muy
extendida en el antiguo Israel, entendida como un exigencia
divina, alcanza contornos litúrgicos importantes para establecer
valores éticos y sociales en la comunidad. Nuestra intención es
enfatizar que el tema de los pobres y necesitados, representados y
n nuestra investigación sobre la Tríada Social, así como la
preservación de sus derechos básicos, impregna todo el Antiguo
Testamento, promoviendo una especie de teología marginal, que
corre paralela a los temas y dinámicas oficiales de la fe.

Palabras clave: Tríada Social, Deuteronomio, Khirbet Qeiyafa,


Teología marginal, paradigmas.

10
SUMÁRIO
Introdução ....................................................................................................................... 14

1 Declaração do Problema .......................................................................................... 14


2. Objetivos específicos desta pesquisa ...................................................................... 18

Capítulo1. A Tríade Social e seus aspectos conceituais ................................................. 23

1.2 A composição da Tríade Social ............................................................................ 23

1.2.1 A ideia de tríade como um grupo .................................................................. 23

1.3 A Tríade Social no contexto dos socialmente fracos ............................................ 24

1.3.1 Sobre o conceito “pobre” .............................................................................. 26


1.3.2 rGE ger: o estrangeiro dependente .................................................................. 29
1.3.3 ~Aty" yātôm: “sem pai” e “sem pátria” ........................................................... 33
1.3.4 hn"m'l.a; almānāh: viúva e desamparada .......................................................... 36

1.4 A Tríade Social em sua realidade marginal. ......................................................... 39

Capítulo 2. A Tríade Social no contexto do Antigo Oriente Próximo. .......................... 42

2.1 A Tríade Social na Literatura Extra Bíblica ......................................................... 42

2.1.1 A contribuição da arqueologia ....................................................................... 43


2.1.2 A defesa da Tríade Social em fontes do Antigo Oriente Próximo ................ 47
2.1.3 Khirbet Qeiyafa e sua proximidade com o texto bíblico ............................... 51
2.1.4 Considerações parciais .................................................................................. 64

2.2 A Tríade Social na literatura veterotestamentária ................................................ 65

2.2.1 O panorama das ocorrências relativas à Tríade Social .................................. 67


2.2.2 Circunstâncias éticas das referências à Tríade Social ................................... 69
2.2.3 A Tríade Social no contexto histórico do Deuteronômico ............................ 70
2.2.4 Considerações parciais .................................................................................. 73

Capítulo 3. Abordagem metodológica sobre a defesa do estrangeiro, órfão e viúva na


legislação deuteronômica. .............................................................................................. 75

3.1 O Deuteronômio em seu ambiente teológico ....................................................... 75

3.1.1 As leis sociais deuteronômicas e seu cuidado com os miseráveis ................. 79

11
3.2 E agora, o que Javé teu ’elohim pede a ti?Dt 10.12 – 22...................................... 81

3.2.1 Dt 10.12 – 22: Tradução ................................................................................ 82


3.2.2 Temer, amar e servir a Javé é o centro de tudo ............................................. 84
3.2.3 Uma aliança fiel com Javé ............................................................................. 88

3.3 Consciência sobre as desigualdades sociais: Dt 14. 28-29 ................................... 91

3.3.1 Dt 14. 28-29: Tradução .................................................................................. 92


4.3.2 Em teus portões comerão e saciarão .............................................................. 93
3.3.3 Para que te abençoe Javé teu ’elohim ............................................................ 95

3.4 As festas como prescrições cultuais de solidariedade: Dt 16.9-15 ....................... 98

3.4.1 Dt 16.9-15: Tradução ..................................................................................... 99


3.4.2 Criando situações de partilha e solidariedade.............................................. 100
3.4.3 Festa é alegria! ............................................................................................. 104

3.5 E recordarás que escravo fostes no Egito: Dt 24.17-22 ...................................... 107

3.5.1 Dt 24.17-22: Tradução ................................................................................. 108


3.5.2 Todos tem o direito de desfrutar da terra ..................................................... 109
3.5.3 Preservar o direito é garantir liberdade........................................................ 111

3.6 Não me esqueci dos teus mandamentos: Dt 26.12-15 ........................................ 112

3.6.1 Dt 26.12-15: Tradução ................................................................................. 113


3.6.2 Os dízimos são para os necessitados ........................................................... 115
3.6.3 Não ultrapassei teus mandamentos nem me esqueci deles .......................... 117

3.7 Deveres de consciência: Dt 27.11-26 ................................................................. 118

3.7.1 Dt 27.11-26: Tradução ................................................................................. 119


3.7.2 Bênção pra os obedientes e maldição para os rebeldes ............................... 121
3.7.3. E todo o povo dirá amém: uma coalizão necessária ................................... 123

3.8 Considerações parciais ....................................................................................... 125

Capítulo 4. A defesa da Tríade Social e seus desdobramentos na teologia


veterotestamentária. ...................................................................................................... 129

4.1. O desenvolvimento do contexto histórico e social do Antigo Testamento ....... 130

4.1.1 A dimensão social do Direito e da justiça no texto bíblico. ........................ 134


4.1.2 Um apelo ao comportamento ético para a vida ........................................... 137

12
4.2 A Tríade Social como princípio norteador para a teologia veterotestamentária. 138

4.2.1 A defesa da Tríade Social na ação profética................................................ 141

4.3 Considerações parciais: Uma liturgia do cuidado .............................................. 142

Conclusão ..................................................................................................................... 145

1. A Tríade Social nas fronteiras da marginalidade.................................................. 145


2.Excurso: Por uma reconstrução libertadora das relações sociais .......................... 149
Referências Bibliográficas ........................................................................................ 153

13
Introdução

1 Declaração do Problema

A realidade do sofrimento social é um tema constante na história da humanidade.


De forma direta, pode-se compreendê-lo como um conjunto de problemas humanos que
afetam o cotidiano de um grupo social, provocando mudanças significativas no contexto
de vida das pessoas e principalmente no modo como a vítima deste sistema se reconhece
neste contexto (Cf. KLEINMAN, DAS, LOCK, 1999, p. ix).
As constantes crises que afetam o cenário global, causando impactos que
ultrapassam os limites da economia e atingem diversas outras dimensões da vida humana
como o acesso à educação, alimentação, saúde, moradia e bem-estar social, vivenciadas
tão de perto no contexto brasileiro, produzem experiências de sofrimento que modificam
a maneira de ser dos grupos atingidos.
Seja no âmbito do imaginário ou das metanarrativas, os horizontes de
compreensão da vida passam pelas relações que se estabelecem entre o sofrimento e a
maneira que ele modifica a forma de pensar a construção social, principalmente entre
as esferas de poder e os sujeitos marginais na sociedade 1.
Embora os estudos antropológicos se dediquem mais arduamente às pesquisas do
campo etnográfico, visto como espaço de desordem e marginalidade (DAS, POOLE,
2008, p. 47), os estudos no campo das Ciências da Religião e da Crítica literária,
voltados para a pesquisa bíblica, desenvolvem importante contribuição para a
compreensão da construção social dos povos da Bíblia e seus sujeitos marginais.
Ao ler os relatos bíblicos, encontramos a frequente e repetida profissão de fé em
um Deus que ama a justiça, sustenta e acolhe os mais frágeis, justamente pelo fato de
que são mais carentes e necessitados. Tais textos preservam a preocupação em mostrar
a ação de Deus na história, fazendo-se, portanto, histórias de fé evidenciadas a partir de
relatos de escribas, sacerdotes e profetas ligados à corte e ao templo.
A importância e a sacralidade do texto bíblico acontecem justamente na
diversidade de sua formação, expressas em seu conjunto literário traditivo, pois trazem a
percepção, em um primeiro momento, para o contexto da época. Mesmo diante de

1
Veena Das e Deborah Poole chamam a atenção para as tecnologias específicas do poder que contam com
um projeto “civilizacional” que tenta manipular e pacificar os sujeitos marginais, tanto através da força,
como a partir de uma pedagogia de “conversão”. (DAS, POOLE, 2008, p. 24-25)

14
resultados que dificultam a compreensão sobre a datação de antigas tradições presentes
na Bíblia e o quanto elas foram mudadas até serem escritas (KAEFER, 2015, p.8), o valor
do texto bíblico não deve ser menosprezado, pois, por ele se pode ouvir as vozes
dissonantes que perpassam a história humana.
As constantes reformulações nos conceitos e nas conclusões acerca da literatura e
da história dos povos da Bíblia (Cf. FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2001, p. 169;
DONNER, 2000, p. 29-32), proporcionados pelos avanços no campo da investigação
literária e arqueológica, permitem-nos uma melhor compreensão acerca do
desenvolvimento cultural e social, que permeiam tais textos, principalmente quando os
comparamos com a literatura extrabíblica.
Dentre os vários temas que emergem deste entorno religioso, sociológico e
cultural, tão marcante no contexto do Antigo Oriente2, estão os apelos à prática da justiça
para com os marginalizados ou os socialmente fracos na comunidade.
Este conjunto social marginalizado está intrinsecamente estruturado no Antigo
Testamento sobre o conceito de pobre, um termo bastante genérico que na perspectiva
sociológica do Antigo Testamento, designa um segmento composto por indivíduos
considerados socialmente fracos (SCHWANTES, 2013, p. 16).
Estes “socialmente fracos” aparecem como objeto do ataque dos malfeitores
~y[ivr' >.3 Em contrapartida, a associação do pobre com o justo qyDIc;, aproxima-nos da

2
Das muitas realizações dos povos do Antigo Oriente, principalmente as civilizações egípcia,
mesopotâmica e pérsia, destacam-se as atividades na arte, na arquitetura e na literatura, com uma
consolidada organização política e religiosa que serviram como inspiração para as gerações futuras. Mirian
Lichtheim retrata bem estas contribuições a partir de sua obra: Ancient Egyptian Literature. Vol. I: The Old
and Middle Kingdoms. Berkeley: University of California Press, 1973. Nesta obra, ela descreve a gênese e
a evolução de diferentes gêneros literários no Egito, a partir de óstracos, inscrições gravadas em pedra e
textos de papiros.
3
É frequente nos textos bíblicos a correlação entre raxá e tsadiq, formando um dualismo de oposição.
[v'r':adj. malfeitor, criminoso; — abs. r Gn 18:23 +; pl. ~y[iv'r >Is 13:11 +; cstr. y[ev.rI Sl. 75:9 + 3 t. sf. h['v'r
>Ez 3:18 , v:19([v'r' ); — †1. usu. como subst., um culpado de crime que merece punição; sts. também
malfeitor; opp. [yDIc;; [v'r' Ex 2:13; 23:1, Dt 25:2; Pr 17:23;18:5; 25:5; Jó 9:22; 9:24; col. Gn 18:23; 18:25;
18:25 (J) Mi 6:10Pr 3:3328:4, ~y[vr 1S 24:14; Je 5:26Pr 19:2820:2629:12, ~y[vr ~yvna 2 S 4:11
(assassinos),tWml' [v'r' Nu 35:31 (P) culpado de morte,År lveAm Pr 28:15, cf. 29:2, År qyDIc.hi Ex 23:7 (E) Is
5:23Pr 17:15; År [;yvir>hi Dt 25:11R 8:32 = [v'r'l. byvh 2 Cr 6:23;qyDIc; ¾rl rma Pr 24:24. 2. culpados de
hostilidade para com Deus ou seu povo, inimigos perversos:[vr sg. Sl.17:13 + 6 t. , Is 26:10; col. Sl9:6;
9:1710:2 + 6 t. , Is 11:4 Hb 3:13;~y[vr Sl.3:87:109:18 + 5 t. , Is 48:2257:20; 57:21Je 25:31Ez 21:34Mal
3:21 (+ (poss.) outros casos, muitas vezes difícil de decidir); especificação para: Faraó Ex 9:27 (J),
Babilônia Is 13:1114:5, Caldeus Hb 1:4; 1:13; || hwhy yaen>f 2 Cr 19:2. 3. culpados do pecado, contra Deus ou
y
homem, malvado:~y[vrh ~yvnah Nu 16:26 (J, rebelião dos Coraítas), Mal 3:18 (não servindo Å ), opp. qyDIc;;
sg. indiv. Ez 3:18; 3:1821:3033:8; 33:8; Sl11:532:10Pr 9:7 +; col. Is 3:11Jó 34:1836:6; 36:17; pl. ~y[vr Is
53:9Je 23:19 = 30:23, Zq 1:3Sl26:5Pr 10:3Ec 8:10 +; ||~ydysox 1 S 2:9 (Poema), Sl12:950:1697:10145:20;

15
identificação daqueles que acumulam complexas experiências de sofrimento e perante
Javé se identificam como oprimido, assumindo sua verdadeira condição humana em
dependência com a intervenção divina (KRAUS, 1985, p. 199).
Ao analisarmos a presença da Tríade Social estrangeiro, órfão e viúva no Antigo
Testamento, conhecidos respectivamente pelos termos hebraicos rGEï, ~At±y" e hn"ôm'la. ;,
percebemos que o tema do cuidado para com estes socialmente fracos é executado em
boa parte da Bíblia Hebraica, certamente influenciado por uma recorrente aplicação do
tema na literatura extrabíblica.
Como será possível perceber no decorrer desta pesquisa, as influências religiosas
e culturais presentes nos textos bíblicos, possuem claras conexões com os povos de
nações vizinhas, particularmente com a Mesopotâmia e o Egito, que promoveram
mudanças e tensões no decorrer da história da religião israelita.
É bem verdade que os estudos sobre a História da Religião de Israel, nunca se
apresentaram de forma homogênea e estática. Os numerosos movimentos religiosos que
floresceram, principalmente durante a monarquia, com abordagens conservadora, mágica,
cúltica, nacionalista, sapiencial e profética, são frutos destas tensões e contrastes herdados
dos povos vizinhos.
De qualquer forma, as leis e decretos que propõem a defesa do estrangeiro, do
órfão e da viúva, eram políticas comuns no Antigo Oriente Próximo e não foi iniciado
pelo espírito do profetismo Israelita. Esta proteção era vista como uma virtude de deuses,
reis e juízes que usavam métodos obrigatórios para garantir o direito destes grupos.
Além dos antigos códigos jurídicos com estipulação casuística propondo atenção
especial à Tríade Social, ocorre também na literatura sapiencial, um apelo didático e
comportamental para com estes grupos, gerando uma política de conduta. Certamente este
foi o início de um testemunho social que funcionou como um critério para influenciar o
desenvolvimento de ações, formas e posturas conscientes na sociedade israelita.

||^t+d, A' t ybez[> o 119:53, cf. V:61, +; †År ~da Pr 11:7Jó 20:2927:13; År vyai Pr 21:29; År $alm 13:17; ~y[vr
[r;z<Sl37:28; †~y[vr tc;[] 1:1Jó 10:321:1622:18; †~y[vr xr,D, Je 12:1Sl1:6146:9Pr 4:1912:26; [vr xr,D,
15:9;AKd>D;mi h[v'r>h†' Ez 3:18; 3:19 (mas v, supr.); †#ra¿hÀ y[ev.rI Sl 75:9101:8119:119Ez 7:21 (LXX ycyr[). Cf.
BROWN, Francis, DRIVER, Samuel Rolles, BRIGGS, Charles Augustus. BDB –A Hebrew and English
Lexicon of the Old Testament. Boston, New York and Chicago: Houghton, Mifflin and Company the
Riverside Press, 1906, p. 957

16
No decorrer da história, este apelo ao cuidado social, torna-se um movimento que
ganha forma na crítica profética que desenvolve uma acusação relevante contra a classe
dominante, principalmente no que se refere ao campo econômico e social.
Diante deste quadro, a realidade marginal é um fato. Quando nos propomos a
pensar, sobre os desdobramentos que a defesa da Tríade Social, pode produzir na teologia
veterotestamentária, somos desafiados a olhar para suas raízes históricas.
É claro que este exercício já tem sido elaborado há muito tempo pelas mais
importantes escolas da pesquisa bíblica e arqueológica. Nosso desafio hoje é repensar, de
forma inovadora e até certo ponto inventiva, a importante contribuição dos paradigmas
hermenêuticos em torno da teologia, no contexto desta realidade marginal.
Sabemos que todo o conhecimento humano é dominado por um paradigma
específico (Cf. BACHELARD, 2005, p. 103-107). A influência dos paradigmas já
consolidados, tornam mais difícil uma proposta para além de seu tempo, pois é a partir
deles que se definem os horizontes históricos, que pressupõem qualquer tipo de
conhecimento. O avanço efetivo, portanto, se dá com a superação destes paradigmas e
não com simples acréscimos dentro do mesmo contexto.
Este foi o papel desempenhado pela Teologia da Libertação ao longo de décadas,
quando simplesmente se propôs a criticar os paradigmas estabelecidos, fazendo-o a partir
de dentro. Para ser mais claro, a Teologia da Libertação presta um grande serviço quando
tenta reformular o paradigma da leitura bíblica, priorizando as políticas em favor dos
pobres, seu erro ou sua limitação foi quando se esqueceu de incluir outros tantos sujeitos
invisíveis nas pesquisas bíblicas, que sofriam as mesmas limitações e rejeições que os
pobres (cf. SUSIN, 2013, p.1678-1691).
Percebemos que a busca pela compreensão das relações sociais a partir da ótica
de quem sofre, envolve um esforço crítico e uma proposta de releitura do texto bíblico,
que em certo ponto, pode soar de forma irreverente e até mesmo subversiva.
Esta leitura crítica da Bíblia que nos desafia a repensar os modelos estruturalistas
é, possivelmente, o maior avanço do século XX em termos de pesquisa, permitindo-nos
pintar quadros com um viés histórico jamais imaginado em outros tempos. Uma das
grandes contribuições para este avanço é o uso da arqueologia como instrumento
essencial para o desenvolvimento da pesquisa, apesar de sua lenta evolução, quando se
trata do estudo sobre o Antigo Oriente e a Bíblia.
Este apoio essencial da arqueologia como instrumento para a pesquisa bíblica é
que nos permite olhar para além de nossos limites e compreender, a partir do contato com

17
as margens da historiografia bíblica, um testemunho de relações sociais para além da
vontade oficial de reis e sacerdotes.

2. Objetivos específicos desta pesquisa

Após esta abordagem introdutória, estabelecemos aqui, um escopo do que


pretendemos executar, na tentativa de responder nosso problema central: A defesa da
Tríade Social no texto bíblico e suas implicações teológicas para o Antigo Testamento,
poderiam ter sido provocados a partir da reação de grupos marginais na sociedade
Israelita?
Dentro deste contexto, o livro do Deuteronômio tornou-se um ponto central em
nossa pesquisa, por apresentar um maior número de ocorrências relativas à Tríade Social
e também por seu gosto especial pelas ditas “leis sociais”. No entanto, responder a esta
pergunta não é uma tarefa fácil. Os resultados aparentemente animadores da grande
maioria dos estudos exegéticos, que examinam as leis humanitárias, as leis sociais ou o
cuidado com as pessoas miseráveis, são influenciados categoricamente por uma ideia de
institucionalização do direito e da justiça.
Com base na ideologia deuteronomista, Bernard Levinson (2001, p 511-534)
destaca a figura do rei como um gerenciador da justiça, reforçando o estreitamento entre
a divindade e a realeza. Levinson destaca que nos aspectos essenciais na função do Rei,
estava o dever em administrar e praticar a justiça. Neste contexto o autor considera
características como filiação divina, prática da justiça, garantia de direitos aos
marginalizados, remissão de dívidas e poderio militar, como virtudes desenvolvidas a
partir do estreitamento entre a divindade e a realeza.
A questão da preferência divina, originalmente a favor da instituição da realeza em
Israel, mostra-nos, porém, conclusões menos satisfatórias, quando o próprio texto bíblico
parece apontar em direções opostas sobre o assunto. Por um lado, um grande corpo de
textos retrata a realeza davídica em termos muito positivos4 e uma teologia bíblica

4
As imagens positivas da monarquia encontradas nas Escrituras representam sua acomodação graciosa para
um ideal geralmente minoritário dentro de Israel. Gerald Gerbrandt em seu trabalho sobre a realeza e a
história deuteronomista, argumenta que os textos da História Deuteronomista refletem um conceito
unificado essencialmente pró-reinado, no entanto, afirma que a questão correta não é confrontar o
Deuteronomista sobre seu viés anti-reinado ou pró-reinado e sim, perguntar que tipo de realeza ele via como
ideal para Israel, ou que papel a realeza deveria representar para Israel. Cf. GERBRANDT, Gerald Eddie.
Kingship According to the Deuteronomistic History (SBLDS 87; Atlanta: Scholars Press, 1986. xv, 229.
Disponível em: https://www.sbl-site.org

18
significativa surge em torno dela. Por outro lado, vários textos, particularmente em
1Samuel, parecem desenvolver significativos argumentos contra a instituição da realeza.
A forma de compreender melhor este sistema tão diversificado sobre as ações do
rei e o desenvolvimento dos direitos e deveres dos socialmente fracos, está no estudo do
emprego semântico da Tríade Social, que já antecipamos aqui, e dos termos ligados à
justiça hq'd'c. e ao direito jP'vm
. i, observados como elementos da ação do rei e de Javé.
Tais significados serão avaliados a partir de seu emprego semântico e da análise dos
trabalhos de Helmer Ringgren, Ernst Jenni, Clauss Westermann, Gerhard Lisowsky, Luiz
Alonso Schokel e Nelson Kirst5.
Tomas Römer6 ao destacar os eventos da “chamada história deuteronomista”, traz
importante contribuição para a compreensão do desenvolvimento dos textos
deuteronômicos e seu caráter histórico, sociológico e literário para a tradição hebraica e
em certo ponto na tradição cristã.
Römer nos ajuda a compreender as questões mais relevantes da Obra
Historiográfica Deuteronomista, nos levando a suspeitar que os livros que compõem a
OHDtr querem difundir ideias que interessam a alguém ou a alguma instituição. Do ponto
de vista sociológico e ideológico este modelo exerceu influências significativas durante
o exílio babilônico e a época persa. Römer também nos faz questionar se a OHDtr é uma
literatura de crise e qual é a influência que ela exerce sobre a identidade do período pós-
exílio.
No primeiro capítulo, trabalharemos os aspectos conceituais da Tríade Social, nos
permitindo entender que o grupo formado pelo estrangeiro, o órfão e a viúva, funcionam
como modelo para as questões sociais de uma realidade marginal que está escancarada
no texto bíblico, embora tenha sofrido abordagens romantizadas ao longo do tempo. A
abordagem conceitual de cada um dos membros desta Tríade Social e sua ligação com o
conceito de pobre, trabalhados neste capítulo, nos dão bases para avançar na pesquisa,
tendo em mente o caminho que queremos seguir.

5
KIRST, Nelson et al. Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português. Petropólis/ RJ:
Sinodal/Vozes, 2009. ; ALONSO SCHOKEL, Luiz. Dicionário bíblico hebraico-português. Tradução: Ivo
Storniolo e José Bortolini. São Paulo. Paulus, 1997. ; JENNI, Ernst e Clauss Westermann. Diccionario
teológico manual Del Antiguo Testamento, Volume II. Edicciones Cristandad. Madrid, 1985. ;
RINGGREN, H. In Theological Dictionary of the Old Testament. Edited by G. Johannes Botterweck,
Helmer Ringgren and Heinz-Josef Fabry. Volume XIV. Willian B. Eardmans Publishing Company. Grand
Rapids: Michigan, Cambridge. 2004; LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischem Alten
Testament. Stuttgart, Deutsche bibelgesellschaft. 1968.
6
Veja: RÖMER, Thomas. A chamada história deuteronomista. Rio de Janeiro: Vozes, 2008.

19
O segundo capítulo propõe conduzir-nos ao desenvolvimento da Tríade Social no
contexto do Antigo Oriente Próximo, tanto na literatura extrabíblica como em fontes
veterotestamentárias. Nos textos extrabíblicos, investigaremos decretos comuns ao
Antigo Oriente que previam a defesa da Tríade Social. O apelo didático e comportamental
proposto pela literatura sapiencial do contexto egípcio e mesopotâmico, certamente
promoveram o início de um testemunho social que serviram como critério para posturas
conscientes na sociedade israelita.
O uso da arqueologia e sua proximidade com o mundo da linguagem serão
ferramentas importantes neste processo de descobrimentos, onde as referências externas
à Bíblia compõem, a partir deste esforço dialógico, a reconstrução de eventos históricos
e sociais perdidos no tempo. Destas fontes estudadas, concentramo-nos em Khirbet
Qeiyafa e na influência de seus escritos para a composição bíblica, compondo uma
importante ferramenta em nossa tese.
As recentes pesquisas de Yosef Garfinkel, Saar Ganor, Lily Singer-Avitz, Israel
Finkelstein, Eli Piasetzky7 e Yehudah Dagan8, produzidas após as primeiras escavações
no sítio de Khirbet Qeiyafa ampliaram os debates, mesmo sob muitas controvérsias,
relacionados à identidade dos habitantes, sua filiação territorial e a possibilidade de
identificar Khirbet Qeiyafa com os locais mencionados na Bíblia e na lista Sheshonq I.
Nadav Na’aman busca resgatar as antigas identidades de Khirbet Qeiyafa e sua
possível relação com a cidade de Gath9, abrindo ligações com as cidades do norte,
conquistadas pela campanha do faraó Sheshong I10. Interessa-nos neste contexto, o aporte
político e religioso em defesa da Tríade Social, identificados no óstraco. Nossa suspeita
é que Kirbeth Qeiyafa abre-nos a possibilidade de enxergar um movimento social
estruturado, porém silenciado no decorrer da história.
No passo seguinte, procuramos identificar os elementos de defesa da Tríade Social
na literatura veterotestamentária a partir de uma visão panorâmica onde os termos
estrangeiro, órfão e viúva ocorrem em conjunto. A intenção está em identificar qual

7
Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. Volume 37:2010. Disponível em:
http://www.tandfonline.com/loi/ytav20?open=37&repitition=0#vol_37
8
Journal of the Institute of Archaeology of Tel Aviv University. Volume 36:2009. Disponível em:
http://www.tandfonline.com/doi/abs/10.1179/204047809x439451
9
Journal of Hebrew Scriptures. Disponível em: http://ejournals.library.ualberta.ca/index.php/
jhs/article/view/6219/5253
10
Cf.KAEFER, José Ademar. Arqueologia das terras da Bíblia II. São Paulo: Paulus, 2016, p. 86-87

20
contexto social está circunscrito a presença da Tríade Social, bem como a relevância
deste tema para o contexto do Deuteronômio.
Toda esta jornada nos fará aportar no terceiro capítulo com uma visão mais ampla
do contexto que envolve a defesa da Tríade Social. Neste momento da pesquisa, nos
dedicaremos aos textos do Deuteronômio que fazem referência à Tríade. São ao todo,
seis perícopes muito bem elaboradas e orquestradas de forma habilidosa para atender às
demandas éticas e sociais de seu tempo.
A complexa estrutura de composição do Deuteronômio mescla o desejo contínuo
de um movimento legislador que tenta manter sua hegemonia frente as transformações
constantes de sua época e a espiritualidade profética com uma profunda mística
desenvolvida em torna da irmandade, fraternidade, partilha e inclusão de grupos
marginais. É bom lembrar que a participação da comunidade profética enquanto
movimento ou manifestação em defesa da vida, identifica uma forte tendência de que
tais comunidades sejam críticas aos sistemas de governos monárquicos (KAEFER,
2018, p. 11-25). A voz profética é, portanto, representante do clamor coletivo de uma
comunidade que sofre as explorações de poderosos com o intuito de manter seu status
de poder.
No quarto capítulo, buscaremos compreender os desdobramentos provocados na
teologia veterotestamentária, a partir da defesa da Tríade Social, questionando os sinais
evidentes de uma ideologia real, produzidos na prática da assistência solidária e
fraternal. Para este fim, percorreremos os caminhos da pesquisa na construção dos
estudos sobre o contexto histórico e social do Antigo Testamento, bem como a dimensão
social do direito e da justiça no texto bíblico.
Percebemos que o comportamento ético social, associado às práticas litúrgicas do
culto, é o elemento essencial para compreender a Tríade como um princípio norteador
para a teologia do Antigo Testamento. O ideal de uma sociedade sem classes (REIMER,
2001, p. 13), centrado no paradigma do êxodo estimula os deveres de consciência para
com a reorganização dos direitos e possibilidades garantidos aos mais frágeis.
Assim, finalizaremos, com a perspectiva de que deixaremos um caminho aberto
para novas indagações, propondo uma releitura dos temas de defesa dos socialmente
fracos, com outras possibilidades de entender a comunidade do Deuteronômio e suas
formas de experimentar a aliança. Não temos a intenção de concluir, pois estaríamos
cometendo um erro ao fechar o diálogo e formata-lo dentro de um pensamento. O que

21
fazemos aqui é propor, a partir de novos paradigmas, a hermenêutica de diálogos
transformadores e pedagógicos.

22
Capítulo1. A Tríade Social e seus aspectos
conceituais

1.2 A composição da Tríade Social

O Termo Tríade Social, serve aos propósitos desta pesquisa como referência ao
conjunto de pessoas vulneráveis na sociedade israelita, formado pelo estrangeiro, órfão e
viúva, que surge com certa predominância no Deuteronômio. Embora as pesquisas
apontem o estrangeiro, o órfão e a viúva tipicamente como grupos sem-terra ou
economicamente pobre e dependente (KRAMER, 2006, p.25-28), o que realmente o
caracteriza, está fundamentalmente relacionado à ausência de laços de parentesco e de
proteção, resultando na falta de meios para se sustentar.
A combinação do substantivo rGEï com o par ~At±y" e hn"ôm'la. ;, nesta tríade, é uma
novidade do deuteronômio que reúne pessoas que se encontram em situação de
necessidades semelhantes (Cf. KIDD, 1999, p.46-47). A razão por trás de sua miséria é,
no entanto, diferente em cada caso.
José E. Ramirez Kidd (1999, p 45) supõe que, especificamente no deuteronômio,
a referência ao órfão e viúva pode ser explicada em relação a fatores internos da sociedade
israelita, como o problema da crescente urbanização e o surgimento de grade número de
imigrantes por volta do VIII século A.E.C, enquanto o surgimento do estrangeiro é uma
consequência parcial da presença Assíria na região.
Antônio Carlos Frizzo indica que o termo Tríade Social não é uma concepção
nova para este grupo. George Braulik já se referia ao conjunto estrangeiro, órfão e viúva
como “sozialtrias”, que traduzido do alemão como Tríade Social, tem como objetivo
realçar o grau de importância deste grupo, principalmente no que se refere aos aspectos
econômicos e sociais (FRIZZO, 2009, p. 30).
Para nós, o termo Tríade Social distingue o estrangeiro, o órfão e a viúva de outros
agrupamentos socialmente dependentes como o pobre, o escravo, o levita e outros
marginalizados que teremos a oportunidade de abordar mais adiante.

1.2.1 A ideia de tríade como um grupo

A ideia da Tríade Social como um grupo e não como uma simples justaposição de
três sujeitos independentes, mostram claramente que a intenção do texto é tratar de um

23
sujeito coletivo (KIDD, 1999, p. 40). O padrão distinto seguido pela ordem das palavras,
estrangeiro, órfão e viúva, como por exemplo em Dt 24.19-21, acompanha também outras
tríades semelhantes no contexto deuteronomista como em Dt 7.13; 11.14; 12.17; 14.23;
18.4; 28.51; com a tríade cereal, vinho e azeite.
Assim como na Tríade Social, a dupla órfão e viúva são frequentes fora do
Deuteronômio (Cf. Êx 22.21, 23; Is 1.17, 23; 9.26; 10.12, Jr 49.11; Sl 68.6; 109.9; Jó
22.9; 24.3; Lm 5.3), o par cereal e vinho são frequentemente usados em Gn 27.28-37; Is.
36.17; 62.8; Os 2.11; 7.14; Zc 9.17; Sl 4.811.
Este padrão aparece também na relação que o texto bíblico faz com o nome dos
patriarcas “Abraão, Isaac e Jacó” (VON RAD, 2006, p.163-173), encontrados como
tríade no Deuteronômio (Dt. 1.8; 6.10; 9.5; 29.12; 30.20) e como dupla “Abraão e Jacó”
nos textos de Gn 28.13; 32.10; 48.15-16.
Estas constatações nos fazem crer que a Tríade Social enquanto sujeito coletivo,
compõe este grupo socialmente frágil e marginal na sociedade. Mencionados de forma
isolada, o estrangeiro, o órfão e a viúva são simplesmente subespécies deste grupo e
não devem ser analisados isoladamente em sua base individual dentro da proposta desta
pesquisa.

1.3 A Tríade Social no contexto dos socialmente fracos

O intercâmbio que se realiza em nossa pesquisa entre textos que trabalham a


defesa da Tríade Social e o termo pobre é inevitável, uma vez que os pobres, por força da
ação profética, estão em oposição aos grupos ligados aos proprietários de terras e à
aristocracia (FRIZZO, 2009, p. 34). Há, portanto, grande relevância neste tema para a
nossa pesquisa, principalmente no que se refere à compreensão das demandas que
envolvem estes grupos sociais e a violação de seus direitos.
Milton Schwantes já nos alertava que “a palavra pobre é um termo bastante
genérico” (2013, p.16). Em sua contribuição ao tema, Schwantes mostra-nos que a
definição de um conceito precisa ir além dos dicionários, pois, é no intercâmbio das
palavras que conseguimos aprimorar seu significado.

11
Todas as referências são extraídas do texto bíblico tendo como base a obra: LISOWSKY, Gerhard.
Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft. 1968.

24
O desenvolvimento semântico12 torna-se, portanto, o espaço em que as palavras
ganham mais força e sentido. A relação que cada termo assume com suas fronteiras dentro
de um texto, ou mesmo fora dele, promove o funcionamento de uma espécie de filtro
bilíngue, onde os espaços internos e externos de uma cultura se comunicam, fazendo com
que um texto possa se traduzir em outra linguagem (LOTMAN, 1996, p.11).
A pergunta pelo lugar que estes socialmente fracos ocupam na sociedade nos
inquieta. Seriam os movimentos de defesa aos socialmente fracos, apenas fruto de uma
influência da cultura escribal e de uma classe alta piedosa?13 Ou poderiam estes grupos
“subalternos” terem a força necessária para influenciar um movimento que defenda seus
interesses, ainda que em uma espécie de antilinguagem?14
Schüssler Fiorenza, talvez nos aponte um caminho para resolver esta questão,
quando propõe um novo olhar para a crítica social, assumindo como prática da
interpretação dos textos bíblicos o paradigma retórico emancipatório 15. Esta é uma
abordagem que consideraremos mais adiante.
De fato, quando tratamos de analisar as palavras a partir de seu conceito estrutural
ou seu campo semântico, ganhamos a possibilidade de compreender a intenção dos
autores ao usarem determinados termos. Por isso, nos dispomos neste primeiro momento,
trilhar o caminho das palavras, buscando compreender os conceitos que envolvem o
pobre, o estrangeiro, o órfão e a viúva. Como nos ensinou Milton Schwantes, “é preciso
ter paciência para andar em meio às palavras e aos significados, para ver que portas
podem se abrir” (2008, p.7).

12 Para uma introdução mais didática aos conceitos sobre semântica ver: PINTO, Deise Cristina de
Moraes; COELHO, Fábio André Cardoso; RIBEIRO, Roza Maria Palomanes. Introdução à semântica. V.
único. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2016. Disponível em: https://canal.cecierj.edu.br/122016/
89e37050506a18d67892651721082ce9.pdf
13 Sobre a atividade dos escribas, Karel Van der Toorn faz importantes observações quanto às
influências da cultura escribal, oriundos de uma elite letrada. Os recursos usados pelos escribas tinham teor
educativo. Suas ações se desenvolveram em amplo aspecto, empregando até mesmo nas escolas, coleções
de sentenças com uma série de aforismos sobre malfeitores e fiéis com as quais as crianças da classe alta
aprendiam a ler. Toorn afirma que qualquer produção literária, por mais precária que pareça, só poderia ser
fruto da atividade profissional de escribas, que por sua vez, eram sociologicamente influenciados pelas
culturas mesopotâmicas e pelo Egito, proporcionando uma visão cosmopolita que entendia muito bem a
conjuntura política e social de seu tempo. Cf. TOORN, Karel Van Der. The Image and the book: Iconic
Cults, Aniconism, and the Rise of Book Religion in Israel and the Ancient Near East. Leuven: Peeters, 1997,
p.51-74.
14 Elisabeth Schüssler Fiorenza em The Power of the Word, 2007, p.147, nos conduz à reflexão de
que, dentro do texto bíblico há lutas que reinscrevem o império em uma antilinguagem, mas, por outro lado,
apresentam uma visão radicalmente nova, desenvolvidas a partir de uma linguagem alternativa.
15 A autora aprofunda a questão em seu livro: Caminhos da sabedoria – uma introdução à
interpretação bíblica feminista, São Bernardo do Campo: Nhanduti, 2009, p.53-65.

25
1.3.1 Sobre o conceito “pobre”

A palavra “pobre” é representada na língua hebraica por, pelo menos, quatro

termos: ‫ ָענִ י‬,‫ ַּדל‬, ‫ ֶא ְביֹון‬e ‫רוׁש‬. Embora sejam termos diferentes e representem contextos

diversificados, seu significado pode ser usado de forma sinonímica. O fato de ocorrerem
paralelamente e de serem intercambiáveis16 nos textos bíblicos reforça a tese de que estes
termos possam conduzir a um mesmo significado, ainda que haja um claro destaque às
nuances específicas de cada palavra.

É sabido que o verbete ‫ ֶא ְביֹון‬é em grande escala, compreendido como o

socialmente frágil. Para BOTTERWECK, seu significado é uma derivação semítica da

raiz ‫ אבה‬querer/desejar, inferindo-lhe um significado comum ao indivíduo que deseja

algo e não possui, tornando-se consequentemente carente e pobre (TDOT, 1983, Vol. 1,
p. 28).17

Na maioria das ocorrências no Antigo Testamento, ‫ ֶא ְביֹון‬surge em paralelo

com ‫ ָענִ י‬encurvado/desvalido, comumente empregado para definir uma pessoa aflita,

oprimida, assumindo em seu significado passivo pual o sentido de “ser vítima de uma
praga” (cf. MARTIN-ARCHARD, 1978, p. 437), designando uma posição de
inferioridade no contexto social.
Em sentido mais específico o pobre não é necessariamente alguém sem dinheiro
ou recursos, despossuído de qualquer tipo de bem material. É de fato, alguém que vive
sem grandes perspectivas, condicionado em sua posição de socialmente indefeso, sujeito
à opressão. As privações econômicas tornam-se a principal consequência da diminuição
de sua força e valor perante a sociedade.

O paralelo frequente entre ‫ ֶא ְביֹון‬e ‫ ָענִ י‬com a fórmula ‫ ָע ִנִ֣י וְ ֶא ְבי֑ ֹון‬desvalido e

necessitado (Cf. Dt 15.11; 24.14; Jo 24.14; Sl 35.10; 37.14; 40.18; e outros), transforma
o conceito de pobre, inferindo-lhe nuances claramente religiosa, dentro do Antigo
Testamento, principalmente nos contextos litúrgicos. Gerstenberger (2003, p.73-90)
afirma que, especialmente nos cânticos de lamentação e ações de graça, o orante se

16 Pv10.15; Sl 107.41. Cf. SCHWANTES, Milton. O direito dos pobres. São Bernardo do
Campo/São Leopoldo: Editel/Oikos, 2013, p. 329.
17 Ver também: ALONSO-SCHÖKEL, 1997, p.22; GERSTENBERGER, 1985, p 61-68.

26
apresenta diante de Javé como pobre e necessitado, confessando sua inferioridade diante
de um Deus poderoso e justo (cf. Jó 42.2; Sl 74.21; 86.1). Tal confissão torna-se uma
espécie de sentença que garante ao que suplica os direitos de receber justiça.
Os sintomas que acometem este desvalido e necessitado vão além de sua mera
condição econômica, ampliando os sinais de menosprezo, perseguição, enfermidade ou
morte (cf. Sl 31.1; 40.13; 69.9ss; 88.4; 109.2; 109.22). Seus inimigos tornam-se,
geralmente cúmplices ou executores de uma ação hostil, não somente para com o pobre,
mas também para com o próprio Javé.

A relação do conceito de pobre com a palavra ‫ ַּדל‬fraco, não está associada,

especificamente à pobreza social, sua derivação de ‫ דלל‬tornar-se pequeno, estar baixo,

ficar pendurado (Cf. COPPES, 2001, p. 313-314), mostra-nos que a frequência maior
deste termo está na sua forma adjetiva e representa aqueles que têm necessidades, mas

não em caráter absoluto. Diferentemente de ‫ ֶא ְביֹון‬e ‫ ָענִ י‬, o adjetivo ‫ ַּדל‬não enfatiza dor,

opressão ou fragilidade social, sua relação em contraposição ao ryvi[' rico, poderoso, (Ex

30.15; Rt 3.10; Pv 10.15; 22.16 e outros) amplia o sentido de uma fragilidade estrutural

e, portanto, coloca o ‫ ַּדל‬como uma condicionante do sujeito pobre, representado de uma

forma mais significativa pelo verbo ‫ רוׁש‬18.

Este verbo e seus derivados, abrange o ser pobre no sentido exclusivamente


socioeconômico, expressando distintamente a ideia de pobreza, excluindo qualquer
significado que o associe a elementos intelectuais ou psíquicos. Seu uso, refere-se à
condição experimentada pelas classes mais pobres, deixando implícita a ideia de privação
absoluta de bens.

A grande maioria das ocorrências do termo ‫ רוׁש‬e seus derivados está em

Provérbios (16 vezes), surgindo ocasionalmente em Salmos (2 vezes), 1 Samuel (2vezes),


2 Samuel (2 vezes) e Eclesiastes (2 vezes), (Cf. MARTIN-ACHARD, 1978, p. 443),
sugerindo-nos uma predileção do uso deste verbete em textos de tradição sapiencial.

18 vwr
: qal: pf. Wvr' v¿aÀr'
;pt. , pl. ~yvi¿aÀr'
: to be poor, in want (ser pobre, carente).Cf.
HOLLADAY, 2010, p. 479 ; DAVIDSON, 1970, p. 680.

27
Embora ‫ רוׁש‬seja em muitos casos, visto interligado a vry herdar, tomar posse, como

se fossem derivados de uma mesma raiz (Cf. LISOWSKY, 1981, p. 641 e 1326), seu
significado distinto, pode ser facilmente explicado quando se observa o emprego
recorrente de seu oposto mais frequente ryvi[' rico, poderoso.

Martin-Archad considera que, de todos os sinônimos para o termo pobre, o

particípio ativo do verbo ‫( רוׁש‬v¿aÀr' ou vr') é a designação mais natural para descrever

a pobreza a partir da situação socioeconômica (1985, p. 443). Enquanto este é um termo

preferido pela linguagem sapiencial, juntamente com o ‫ ַּדל‬, os textos Deuteronômicos

preferem o uso de ‫ ֶא ְביֹון‬e ‫ ָענִ י‬para se referirem ao socialmente frágil.

A partir dos regulamentos propostos no chamado código da aliança, o ‫ ֶא ְביֹון‬é

claramente contrastado com os proprietários de terras, tendo necessidade de que lhe sejam
restabelecidas a assistência material e jurídica. Nos regulamentos relativos ao ano
sabático, o que lhe sobra, são os momentos de descanso da terra, sendo forçado a comer
juntamente com os animais do campo (Ex. 23.11).
O Deuteronômio inova o código da aliança, permitindo que este indivíduo sem
propriedades ou produtos, substituísse os locais de descanso da terra por libertação e

remissão de suas dívidas (Dt 15.2).O ‫ ֶא ְביֹון‬torna-se alvo de uma série de leis que

estimulam a solidariedade e a prática da justiça, que combatem a exploração dos

socialmente frágeis ou necessitados e juntamente com o ‫ ָענִ י‬despertam a compreensão de

que as pessoas desprotegidas -rGE- ~Aty"- hn"m'l.a; (estrangeiro, órfão e viúva) devem ser

resguardadas diante do ataque e da violência dos poderosos.


Percebemos, portanto, que o conceito de pobre é identificado no Antigo
Testamento por estes quatro termos, abrangendo uma mesma grandeza socioeconômica.
A identificação de pequenos grupos de empobrecidos, vitimados por um sistema opressor,
tem sua origem não somente no sistema econômico, mas também na desintegração social,
colocando-o no patamar mais baixo da população, na companhia do estrangeiro, do órfão
e da viúva.

28
A escolha que o deuteronomista faz pelo ‫ ָענִ י‬e ‫ ֶא ְביֹון‬abrange, de certa forma, estes

“socialmente fracos” de que tanto falamos. Estrangeiros, órfãos, viúvas, pobres, fracos,
desvalidos e necessitados são vítimas de um sistema opressor e violento que os explora
economicamente e rouba seu direito (Dt. 10.18; 16.19). A preocupação autêntica com os
socialmente fracos é mais que uma postura caridosa e distanciada, é antes, uma
preocupação carregada de empatia, nascida da própria pobreza e da reivindicação
daqueles que tem em vista o bem comum de todo o povo.
A preocupação e dedicação aos socialmente fracos, deve estar, portanto, no centro
do agir divino e na prática de seu povo.

1.3.2 rGE ger: o estrangeiro dependente

Em termos gerais,rGE é o indivíduo que, sozinho ou com sua família, deixa sua

aldeia e tribo, por causa da guerra (2 Sm 4.3), fome (Rt1.1), pestilência ou busca por
proteção em outra comunidade (Gn. 23.4; Ex 2.22; 18.3). Sua procura por abrigo e
permanência em outro lugar, está geralmente acompanhada da redução do seu direito de
possuir terra, de se casar, de participar da administração da justiça (HOLLADAY, 2010,
p. 87). A LXX o classifica como um prosélito prosh,lutoi ou pároco pa,roikoj deixando
entender que em sentido religioso, o rGE é um convertido que está sujeito às mesmas

prescrições religiosas de um judeu, como a observação do sábado, da expiação, da páscoa


e da circuncisão19 (Cf. MARTIN-ACHARD, 1978, p. 586).
Outros termos hebraicos que identificam o estrangeiro no contexto da narrativa
bíblica, aparecem com frequência sob as formas rz" estrangeiro/invasor; yrIkn. "
estrangeiro/desconhecido/estranho, designando muitas vezes aquele que não pertencem
ao clã ou ao grupo familiar e bv'AT estrangeiro/peregrino (ocasionalmente idêntico ao

rGE).20

19 Veja em: leis iguais (Ex 12.49; Nm 15.15); Observar o sábado (Ex 20.10; Dt 5.14); Expiação (Lv
16.29-31); Páscoa (Nm 9.14); Circuncisão (Ex 12.48).
20 Ver mais detalhes em: ACHENBACH, Reinhard; ALBERTZ, Rainer; WÖHRLE, Jakob ed. The
Foreigner and the Law Perspectives from the Hebrew Bible and the Ancient Near East. Wiesbaden:
Harrassowitz, 2011, p.29 – 68.

29
Grande parte dos estudos sobre o estrangeiro21no texto bíblico assumem uma
correspondência entre o substantivo rGE e o verbo rwG, de modo que ambas as palavras se

referem a pessoas deslocadas que procuram um novo lar. José E. Ramírez Kidd (1999,
p.13-17), trouxe maior precisão para a uma definição do substantivo rGE ao investigar sua

relação com o verbo. Enquanto rwG tende a ser usado em textos narrativos, referindo-se a

eventos específicos ocorridos na vida de personagens concretos, descrevendo


deslocamentos comuns22, o substantivo rGE tem predileção em textos legais.

Estes estrangeiros relacionados ao verbo rwG que estão de passagem, gente de fora

que, por força das circunstâncias necessita residir temporariamente em um novo local,
são narrados pelos textos bíblicos, deixando sua marca na história e na memória do povo
de Israel. Devemos associar a este contexto, por exemplo, o próprio Moisés, que traz no
nome de seu primeiro filho ~vor
+ >GE Gerxom, as circunstâncias de sua condição na terra de
Midiã.
Marcado pela emblemática frase: hY")rIk.n" #r<aB,Þ . ytiyyIëh' rGEå “estrangeiro sou em

terra estranha”, (Ex 2.22), Moisés revela o estado de forasteiro que experimentou em
terras distantes de seu contexto familiar.
Outro fator importante são as peregrinações de Abraão e dos patriarcas (Ex 6.4),
acompanhadas pela promessa de uma nova e exclusiva terra, mostrando que este
estrangeiro está sempre ali, por um tempo, mas sabe que aquela não é sua pátria
definitiva.

21 A equivalência semântica do verbo rwG e o substantivo rGE é geralmente considerada como garantida
pela maioria dos autores, ver, por exemplo: KELLERMANN, 1999 (TDOT II) p. 439; MARTIN-
ARCHARD, 1978, p. 583-584; de Vaux, Instituições I, p. 98-100; CRÜSEMANN, 2012, p. 256, notas 373-
375.
22 O verbo rwG tem prioridade na descrição de eventos narrativos como a história dos patriarcas (Gn 12,10;
19,9; 20,1; 21,23.34; 26,3; 32,5; 35,27; 47,4), a história de Moisés (Ex 3,22; 6,4.), a história deuteronomista
(Jz 17,7.8.9; 19,1.16; 2 Sam 4,3; 1 Rs 17,20; 2 Rs 8,1.2), a narrativa cronista (2 Cr 15,9; Ed 1,4 10) e a
narrativa no livro de Jeremias (Jer 35,7; 42,15.17.22; 43,2.5; 44,8.12.14.28.). Este verbo é usado para
descrever eventos específicos como por exemplo, os relatos da permanência de Ló em Sodoma (Gn 19,19);
de Sara e Abraão no Egito (Gn 12,10) e em Gerar ( Gn 20,1), de Abraão em Beer-Seba (Gn 21,23) e Isaac
em Gerar (Gn 26,3); a longa permanência de Jacó com Labão (Gn 32,5); a história da família de José no
Egito (Gn 47,4) ou de Elimeleque e sua família em Moabe (Rute 1,1); o levita que vive na casa de Miquéias
em Efraim (Jz 17,7-9); a história da concubina do levita (Jz 19, Iff.); A permanência de Eliseu com a mulher
sunamita (2 Rs 8,1-2); ou as discussões de Jeremias com os israelitas que queriam migrar para o Egito (Jr
42,15.17.22). Nessas histórias, podemos identificar pessoas específicas por seus nomes e circunstâncias
concretas em suas vidas (Cf. RAMIREZ KIDD, 1999, p. 15; LISOWSKY, 1981, p. 319; HOLLADAY,
2010, p. 79.).

30
Se o verbo rwG tem preferência por movimento, indicando situações e narrativas

onde acontecem a saída ou mudança inicial de uma cidade natal para um lugar novo, o
rGE está associado a expressões que apontam, não para um movimento inicial, mas para

a permanência deste estrangeiro em sua nova residência, como é o caso em Dt 14.21;


14.29; 16.11; 14; 24.14; 2612 e outros, onde é comum a expressão ^yr<ø[v' .B-i rv,a]
rGE“l;“para o estrangeiro que (vive) em teus portões”, conferindo-lhe um caráter bem

mais pontual do que transitório como acontece com o verbo rwG.

No contexto do Deuteronômio o rGE é ao mesmo tempo, uma pessoa deslocada e

dependente, sua condição é marginal na sociedade Israelita, e por isso, se encaixa nas leis
de proteção que regiam o direito dos pobres, órfãos e viúvas (Lv 19,10; 23,22; Dt 14,29;
16,11.14; 24,17; 26,13; 27,19). A este estrangeiro, era permitido apanhar os feixes
deixados no campo e o fruto das oliveiras e videiras que fossem abandonados (Dt 24,19-
21). Ele deveria ser julgado com justiça e as cidades de refúgio também poderiam servir-
lhe como abrigo (Dt 1,16; 24,17; 27,19; Nm 35,15). Por fim, os israelitas não deveriam
oprimi-lo porque estiveram em situação semelhante no Egito (Ex 22,21; Dt 10,19).
Embora haja um dominante uso do termo para indicar um estrangeiro que não seja
dependente, tendo como base a hipótese documental (MEEK, 1930, p. 172-180). A
tentativa de se definir este indivíduo, dando-lhe a alcunha de “migrante” feita por Frank
Anthony Spina (1983, p. 321-323), sugere que o termo deva ser traduzido por uma palavra
que enfatize não apenas o status de forasteiro no cenário social adotado, mas, além disso,
demonstre os fatores e condições relacionados ao deslocamento.
As afirmações de Spina são, no entanto, contestáveis pelo fato de rGE ser um termo

mais comum em textos legislativos, que fazem referências a deslocamentos de famílias e


ou indivíduos, sem se preocuparem com as circunstâncias por trás deste deslocamento
(Cf. GLANVILLE, 2018, p. 601-602). Em geral, os estudos referentes ao rGE em

Deuteronômio apresentam visões conflitantes, indicando que este grupo ou indivíduo


possa ser um deslocado por consequência da invasão Assíria no Israel Norte
(WEINFELD, 1972, p. 90-91), ou um estrangeiro comum de algum povo vizinho
(AWABDY, 2014, p. 110-116), ou um judaíta internamente deslocado (NA’AMAN,
2008, p. 237-279).

31
A sugestão para estrangeiro residente23 é também vista com apreço por muitos
autores, embora seu uso seja mais apropriado nos textos relativos ao Código de Santidade.
No Deuteronômio o rGE não é apenas um residente em um novo contexto, mas também

um dependente do contexto (Cf. Dt 5.14) exercendo em muitos casos, funções de trabalho


na comunidade (Dt 29.10), com associações próximas ao ynI[' (Dt 24.14-15).

A falta de relações de sangue, coloca este estrangeiro no degrau mais baixo da


escala social, sem a segurança de laços familiares e os privilégios de seu local de
nascimento. O rGE está no limbo social, tendo por um lado a liberdade, com a

possibilidade de ser um não escravizado, mas por outro lado é um sem-terra que
permanece sem a segurança de conexões significativas com grupos familiares24
Neste sentido, o RGE é um dependente em relação à família e ao clã, é alguém de

fora, um “outsider”25deslocado internamente do agrupamento de parentesco, podendo ser


um judaíta26, pois uma distinção binária tão simples “Israel/não Israel”, não faria sentido
em uma cultura antiga, estruturada por clãs (GLANVILLE, 2018, p. 603). No entanto,
não é descartado a possibilidade de que o estrangeiro seja também uma designação para
nortistas deslocados e até mesmo não judeus.
O rGEE é, portanto, na comunidade judaica do Deuteronômio, estigmatizado de

maneira geral como pessoa de menor valor humano, pois não possui o carisma grupal
distinto que o grupo dominante atribui a si. É um outsider em disputa por espaço entre os

23 O termo "estrangeiro residente" tornou-se padrão na literatura inglesa. Veja, por exemplo, o estudo de
Jan Joosten, People and Land in the Holiness Code, p54, com uma abordagem mais aprofundada sobre o
Código de Santidade. Cf. JOSSTEN, Jan. People and Land in the Holiness Code: an exegetical study of
the ideational framework of the law in Leviticus 17-26. Ej. Brill: Leiden· New York . Köln, 1996, p. 54.
Disponível em: https://oxford.academia.edu/JanJoosten
24 Meyer Fortes aborda de forma mais detalhada os sistemas que se desenvolvem no parentesco e
nas relações sociais. Sua abordagem o levou a formular o princípio de que o parentesco e as relações afins
reconhecidas em uma dada sociedade constituem um sistema coerente de representação social equilibrado
e consistente internamente. Cf. FORTES, 1972, p. 285
25 Oustider, anglicismo para se referir à pessoa que não é aceita em um grupo social; pessoa que não
pertence a determinada organização ou empresa ou que não se ocupa de determinada atividade; pessoa ou
animal que tem chance mínima ou nenhuma de vencer. Cf. https://www.dicio.com.br/outsider/
26 Christoph Bultmann (1992), supõe que o termo rGE no Deuteronômio seja referência a um judaíta
deslocado (p.17). Ele argumenta que nas leis deuteronômicas mais antigas, o termo rGE não tem a intenção
de descrever pessoas de origem estrangeira, mas israelitas desfavorecidos, semelhantes a viúvas e órfãos,
necessitados da solidariedade, geralmente praticada pelo grupo de parentesco (p. 43-44). Cf. BULTMANN,
1992.

32
estabelecidos27, que no próprio seio comunitário deuteronômico, deixa transparecer uma
diferenciação hierárquica que estigmatiza os que não pertencem ao “povo santo”.
O apelo à defesa do rGEE incluindo-o como parte da tríade social, é portanto,

plenamente justificado, pois este é um problema social que está além da dinâmica de
inclusão-exclusão comum na categoria dos estrangeiros (rz", yrIk.n", bv'AT e rGE). Este
estrangeiro não era simplesmente um migrante ou um estrangeiro que está de passagem
(MARIANNO, 2009, p.48), mas em sua maioria, alguém de dentro, um irmão, um
israelita, uma pessoa vulnerável à exploração e ao abuso, alguém que está fora da família
principal, separado da terra e dos parentes. Neste sentido, um estrangeiro dependente.

1.3.3 ~Aty" yātôm: “sem pai” e “sem pátria”

Nos escritos da Bíblia Hebraica, as referências literárias a órfãos tornam-se


assunto recorrente em uma variedade de gêneros, alcançando desde o material jurídico a
textos proféticos, estendendo-se também aos textos poéticos e à literatura sapiencial28,
refletindo contextos variados de diferentes épocas históricas. O significado de ~Aty" está

relacionado na Bíblia Hebraica, especificamente a um filho sem pai (BDB, p.1102-1103;


RINGGREN,1990, p. 479) podendo acontecer em alguns casos a referência à ausência da
mãe (SIGISMUND, 2009, p. 87).

No que diz respeito à literatura rabínica, a palavra ~Aty" indica em seu potencial

semântico, carta primazia em relação ao sexo masculino, pois nos primeiros escritos
judaicos, havia maior importância na falta do pai do que na falta da mãe e, portanto, ser
órfão ou órfã, era quase em todos os casos, o equivalente a ser um “sem pai”.
No Antigo Testamento as 42 ocorrências de ~Aty" deixam claro a tendência de seu

significado. Ele é sem dúvida um “sem pai” e necessitado: “órfãos somos sem pai, nossas

27 Este conceito foi trabalhado por Norbert Elias e John Scotson (os estabelecidos e os outsiders), a partir
de uma minuciosa pesquisa que investiga o dia a dia de um pequeno povoado inglês chamado Winston
Parva (nome fictício), com o objetivo de estudar o jogo de poder que a relação entre os dois grupos
escondia. Cf. ELIAS, Norbert e SCOTSON, John L. Os estabelecidos e os Outsiders. Sociologia das
relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Zahar, 2000.
28 Referências: Ex 22.21-23; Dt 10.18; 14.29; 16.11, 14; 24. 17, 19–21; 26.12, 13; 27.19; Is 1.17, 23; 9.16;
10. 2; Jer 5.28; 7. 6; 22.3; 49.11; Ez22. 7; Os 14. 4; Zc 7.10; Mal 3. 5; Sl 10.14, 18; 68. 6; 82. 3; 94.6; 109.
9, 12; 146. 9; Jó 6.27; 22. 9; 24. 3, 9; 29.12; 31.17, 21; Pv 23.10; Lm 5. 3. (Cf. LISOWSKY, 1981)

33
mães são como viúvas (Lm 5.3)29”; “a toda viúva, e órfão não afligi (Ex 22.22)”; “faz
direito ao órfão e a viúva e ama o estrangeiro, para dar a ele pão e cobertor (Dt 10.18)”.
O órfão, na condição de frágil e necessitado no contexto social israelita, era caracterizado,
especificamente pela ausência de sua relação com o pai e consequentemente, de suas
garantias econômicas.
A declaração presente no livro de Lamentações (Lm 5.3), nos leva à compreensão
de que, tanto a condição de ~Aty" como a de hn"m'l.a; está estruturada em relação ao
homem e, portanto, os filhos são órfãos por não terem pai, mesmo sendo filhos de viúvas.
Não ter pai, significava não ter terras ou propriedades, e caso houvesse alguma herança,
o órfão corria o risco de perdê-la por não ter alguém que garantisse a proteção de seus
direitos “o jumento dos órfãos conduzem e penhoram o boi da viúva (Jó 24.3)”.
É curioso observar que a prevalência do substantivo masculino ~Aty" nos textos

da Bíblia Hebraica30, revela a ligação do órfão com o pai e sua herança a partir do nome,

pois nas relações sociais do Antigo Oriente, o menino é quem tem as prerrogativas sobre
o direito da herança (Dt 21.17), com privilégios para o primogênito (WOLF, 1975, p.244).
Portanto, um filho sem pai é um filho sem herança e passa a ser conhecido na comunidade
como ~Aty", não mais pelo seu nome, assumindo um lugar marginal na sociedade,

compondo, principalmente no deuteronômio, junto com estrangeiros e viúvas, a tríade


social.
O ~Aty" torna-se também, por consequência de ser um “sem pai”, um “sem

pátria”, pois sua condição de dependência, em relação ao pai que não possuía
propriedades fundiárias ou heranças de terras ancestrais (SIMKINS, 2014, p. 22), o
colocava em uma condição desfavorável diante do modo dominante de produção no

29 O Texto Massorético apresenta uma variante textual Î!yaeäw>Ð ¿!yaeÀque sugere a tradução: “órfãos e
sem pai”. Esta é uma anotação clássica entre Qerê (Q - o que se lê) e Ketiv (k – o que está escrito)
determinando que onde está escrito Î!yaeäw>Ð, deve-se ler ¿!yaeÀ enfatizando ainda mais a relação de dependência
o
do órfão ~Aty" em relação à ausência do pai ba'. Cf. Anotações Massoréticas de KITTEL, Rudolf (ed.),
Bíblia Hebraica (BHK 16ª edição). Stuttgart: Privilegierte Württembergische Bibelanstalt, 1973, p. 1024.
30 Das 42 ocorrências de ~Aty", LISOWSKY faz referência a duas formas deste substantivo: wym'A( tyli
em Sl 109.12 e wym't
Û oy> em Is 9.16 (1981, p 656 – 657), tratando-se apenas de sufixos pronominais que na
terceira pessoa fazem alusão ao caráter possessivo (seu) (Cf. HOLLADAY, p 209). A Massora Parva
contida no Texto Massorético de ambos tem a seguinte inscrição: ‫בליש‬ ‫מל‬
̇ ‫ ̇ב חר חסֹ וחר‬indicando que
o termo “ocorre duas vezes, sendo uma como escrita defectiva e uma como escrita plena com este
significado” (veja em: ELLIGER, Karl e RUDOLPH, Wilhelm (eds), 1983, p. 689 e 1192).

34
Antigo Israel. Tal modo dominante de produção consistia em uma hierarquia, cuja base
sobre a qual todas as outras desigualdades produtivas foram construídas, estava na relação
entre a divindade (ou divindades) e o povo (cf. BOER, 2007, p. 39-41)
Por consequência, a dependência da esposa e dos filhos em relação ao marido era
estruturalmente semelhantes aos modelos dominantes de produção, fazendo da família a
principal correspondente deste modelo onde o marido, assim como a divindade, é o
possuidor da semente e aquele que controla a produção (SIMKINS, 2014, p. 25-26).
Quando observamos somente o aspecto etimológico da palavra ~Aty" pouco se

aproveita para compreender seu significado e seus usos dentro do livro de Deuteronômio.
Um destaque pode ser feito com o correspondente árabe [yatim] que, além de “órfão”,
pode significar “único”. Entretanto, as palavras da mesma raiz, que aprofundam o sentido
semântico para órfão em outras línguas revelam paralelos significativos para o vocábulo
hebraico. O egípcio nmḥ.w, além de “órfão” também pode significar “pobre e humilde”,
e aponta para o órfão como uma pessoa “sem ajuda e necessitado” (RINGGREN, 1990,
p. 478).
Textos do Antigo Oriente Próximo também lançam luz sobre o texto hebraico
quando colocam juntos o órfão e a viúva em uma mesma declaração, como necessitados
de que alguém lhes cumpra o papel de protetor e lhes assegure seus direitos. O diferencial
entre ambos é que nos textos egípcios como o Papyrus Harris I e textos mesopotâmicos
como o Código de Hamurabi (RINGGREN, p. 478), o rei deve exercer esta função,
enquanto no deuteronômio, esta ajuda e garantia de direitos deve estar nas mãos da
comunidade orientada por Javé.
Por estarem privados dos benefícios que, provavelmente, os outros membros da
comunidade desfrutavam como terra, recursos, religião e estar ligado a um clã, os
conceitos relacionados ao ~Aty" dentro do Deuteronômio, ganham um sentido mais

sociológico, a favor de alguém que está abandonado e necessitado de proteção.


O fato de ~Aty" não possuir um oposto feminino que represente a palavra órfã

levanta suspeitas de que meninas órfãs não se tornavam um problema social31, visto que

31 Luciana Mendes Galdeman, em sua tese doutoral pesquisa os bastidores do contexto social de assistência
a meninas órfãs no Império Português do século XVIII. Sua pesquisa faz um paralelo entre as relações de
assistência e as relações de gênero que proporcionavam formas primárias de significado à manutenção do
poder. Estes dados mostram uma ampliação na Idade Moderna de práticas já trabalhadas em outros tempos.
Confira em: GALDEMAN, Luciana Mendes. Mulheres para um império: órfãs e caridade nos

35
poderiam ser absorvidas por algum outro clã, dando continuidade à geração de filhos.
Este argumento torna-se plausível, à medida em que se analisa as instituições familiares
do Antigo Testamento, onde a mulher é contada entre as posses do homem (Ex 20.17)
sendo este, aquele que decide seu destino, pois ele é o seu l[;B,; senhor, dono (II Sm
11.26; Pv 12.4).
Se comparado com a Septuaginta, onde o termo ovrfano,j carrega o sentido de
“abandonado” e “privado”, o ~Aty" pode ser melhor compreendido, principalmente

dentro do Deuteronômio, como alguém que perde sua identidade e carece dos olhares
beneficentes da comunidade. O vínculo entre as características sociais e a situação
socioeconômica, compõe, neste contexto, a sustentação dos critérios32 que priorizam a
categoria dos indivíduos marginais na sociedade.
Caminham juntos o ~Aty" e a hn"m'l.a; nesta busca por solidariedade e por decisões

justas de um povo orientado pelos atributos da imparcialidade divina. Os redatores


deuteronômicos os aproximam do estrangeiro e do pobre, construindo paralelos entre a
necessidade dos marginalizados e o socorro divino.

1.3.4 hn"m'l.a; almānāh: viúva e desamparada

Não é novidade que o ambiente social do Antigo Testamento se revela como um


espaço bastante favorável à figura paterna. Estudos de gênero, no entanto, têm sido
importantes para destacar o viés patriarcal de numerosos textos bíblicos e as estruturas
sociais que os produziu, além de recuperar as vozes femininas silenciadas e
marginalizadas.
A tentativa e os esforços para situar um texto antigo e arcaico no contexto da
contemporaneidade, destacando as sensibilidades de gênero, foi um grande avanço nas
pesquisas da exegese bíblica. Por outro lado, a crítica literária, em alguns momentos,

recolhimentos femininos da Santa Casa da Misericórdia (Salvador, Rio de Janeiro e Porto – século XVIII).
Orientadora: Leila Mezan Algranti. Tese (doutorado). Campinas: Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2005.
32
Ainda sob suspeitas, o paradigma legal que guia as discussões sobre a defesa dos socialmente fracos,
mantém relações de subordinação e de dominação em sociedades que são economicamente heterogêneas e
assimétricas. Esta é uma crítica destacada por V. Bennett que a partir de uma leitura revisionista de
Deuteronômio 14.22-29, sugere que tais exemplos de solidariedade mantém os oprimidos em posição
subalterna. Veja em: BENNETT, V. Harold. “Triennial Tithes and the Underdog – A Revisionist Reading
of Deuteronomy 14:22-29 and 26:12-15”, em Randall Bailey (organizador), Yet with a Steady Beat –
Contemporary U.S. Afrocentric Biblical Interpretation, Atlanta, Society of Biblical Literature, 2003, p.7-
18.

36
incorreu no erro de minimizar aqueles textos bíblicos, cujo uso ou relevância para a
modernidade, seja aceito como não problemático. Um bom exemplo é percepção sobre a
condição dos grupos marginais na sociedade sem levar em conta as lutas e os dramas
dessa gente pobre33, com a tendência de minimizar os efeitos destas narrativas para a
análise de uma conjuntura atual.
Uma reflexão teológica que não consegue se estruturar a partir da realidade na
vida, está fadada a esquecer-se ou diminuir o impacto no sofrimento e na esperança,
promovidos pela “atuação de Deus na História”. O sofrimento indescritível e a esperança
inexplicável da população mais miserável, são importantes critérios a serem considerados
no ponto de partida para o trabalho teológico de interpretação bíblica34.
O fato de hn"ml' .a; ser a única mulher que aparece nas listas dos socialmente

fracos, tendo como companhia o estrangeiro, o órfão e em alguns casos o levita,


especialmente, dentro do bloco literário chamado de Código Deuteronômico, amplia
ainda mais a necessidade de um olhar abrangente para a situação da mulher no texto
bíblico. Como já afirmamos, o elo entre este grupo marginal tem em comum a perda de
suas raízes e laços familiares, a falta de proteção e consequente facilidade de serem
oprimidos. O livro de Deuteronômio torna-se, portanto, a possibilidade de um avanço,
quando promove uma legislação que os protege, articulando meios para sustentá-los.
A ordem usual, quando estes termos aparecem juntos, é sempre ywIl,e rG,e ~wOty"e e

hn"+m'la. ;. Mesmo quando o ywIle está ausente, segue-se com a figura masculina em primeiro
lugar na ordem de atenção: ~wOty" hn"+m'la. ; e rGe (Deuteronômio 10,18) ou rGe, ~wOty" e

hn"+m'la. ; (Deuteronômio 24,17.19.20.21; 27.19) (Cf. LISOWSKI, 1981).


Embora Hoffner (1997, p.288) nos afirme que originalmente hn"+m'la. ; em sua
formação etimológica tenha sido empregada como um adjetivo que acompanhava

33
O termo aqui sugere um contraste com o romance de Dostoiévski que consegue abranger em uma única
história diversos tipos sociais, dos mais abastados aos menos privilegiados. O autor mergulha na miséria
dos apartamentos alugados de São Petersburgo, retratando a sociedade russa de seu tempo.
DOSTOIÉVSKI, Fiódor M. Gente pobre. Trad. A. Augusto dos Santos. E-book, Centaur Editions, 2014.
Disponível em: https://farofafilosofica.com/2017/12/05/dostoievski-20-livros-para-download-em-pdf/
34
Neste sentido, Gerstenberger nos inspira com sua experiência e atuação como professor de Antigo
Testamento no Brasil, abordando o estudo exegético e a interpretação bíblica a partir da realidade na vida.
Sua palestra intitulada Leitura Bíblica e Realidade, foi proferida, em 1983, num congresso internacional,
na Espanha e publicada no Brasil em 1984. Confira em: GERSTENBERGER, Erhard S. Exegese
Veterotestamentária e sua contextualização na realidade. São Leopoldo: Revista Estudos Teológicos,
Programa de Pós-Graduação em Teologia. V. 24, N. 3. 1984. Disponível em:
http://www.periodicos.est.edu.br/index.php/estudos_teologicos/issue/view/126.

37
frequentemente o substantivo feminino ‫ ִא ָשה‬. Contornos significativos vão se

construindo em torno da palavra, até que hn"+m'l.a; passe a ser reconhecido como um
substantivo feminino, surgindo sempre desta mesma forma na Bíblia Hebraica. Tal
transformação ou adaptação da língua, mostra-nos que a condição de viuvez é tipicamente
feminina, visto que não há uma ocorrência equivalente de um substantivo masculino que
designe um homem como “viúvo” no texto massorético. Desta forma, hn"+m'l.a; tem como
característica designar de forma geral, mais uma função ou personalidade, do que uma
identidade.
A mulher chamada de hn"+m'l.a; passa a ser nomeada assim, pela condição em que
se encontra, estigmatizada pela perda de seu marido e não mais pelo seu próprio nome.
Aliás, mesmo com o marido vivo, ela seria reconhecida por ser a “mulher de...”. Agora
na condição de hn"+m'la
. ;, ela ainda é tratada como a “viúva de” (SIMKINS, 2014, p. 22).
Na tradição bíblica, a hn"m'l.a; compõe, portanto, um grupo social definido,

formado por pessoas vulneráveis no antigo Israel. Embora a viúva hn"ml


' .a; e o órfão ~wOty"
estejam claramente sem marido e pai, respectivamente, Naomi Steinberg (2003, p 3-10)
observa que a Bíblia usa, juntamente com hn"m'l.a; , mais duas expressões distintas para a

viúva, que de forma particular designam um status social distinto. A hn"m'l.a; ‫ִא ָ ִ֣שה‬
(mulher viúva) é a mulher que, embora permaneça na condição de viúva tem direitos de
redenção no patrimônio ancestral de seu marido, exercendo-o através do filho. A mãe do
rei Jeroboão (1Rs 11.26), por exemplo, é uma viúva com este status. Outra expressão é

a ‫ת־ה ֵּמת‬
ַּ ‫( ֵּ ֵֽא ֶׁש‬mulher do morto) é uma viúva que perde seu marido antes que este seja
pai de um herdeiro para exercer os direitos de redenção de seus bens ancestrais.
A lei do Levirato em Dt 25.5-10 por exemplo, se aplica a uma viúva com esse
status, Rute também é descrita dessa maneira em Rt 4.5, embora não empregue nunca a
expressão hn"m'l.a; (KÜHLEWEIN, 1985, p. 264-270). Fica claro, portanto, que hn"ml
' .a;
tem um sentido específico para a viúva que está destituída do amparo ancestral e nesta
condição, passa a compor o grupo social dos “sem terra”, marginalizados e vulneráveis.
O campo semântico ao entorno de hn"m'l.a; nos dá pistas da condição solitária e
indefesa de alguém que foi completamente abandonada ou despojada de seu protetor

38
(HOFFNER, 1997, p. 288). Verbos como perverter/violar ‫ַּמ ֶ ֶּ֛טה‬ tendo como objeto o

direito ‫( ִמ ְׁש ַּ ַּ֥פט‬Dt 27.19) e outros como afligir ‫( ענה‬Ex 22.21); tomar como refém/

penhorar ‫( ָח ָ ֵֽבל‬Dt 24.17); oprimir ‫( ינה‬Jr. 22.3), reforçam o apelo por justiça e proteção

a este grupo a partir de determinações legais (KÜHLEWEIN, 1985, p. 267).


Por estar desamparada, é que as responsabilidades de cuidado para com a mulher
viúva, que em condições normais seriam deveres do marido ou pai, passam a ser um dever
da sociedade em geral (HOFFNER, 1997, p. 288). É interessante notar que dos 55 casos35
em que hn"m'l.a; surge no texto bíblico, ao menos um terço deles aparecem em textos

jurídicos, mostrando que a perspectiva de uma atenção especial à viúva no antigo Israel,
tem maior adesão no contexto da defesa dos socialmente fracos da sociedade.

1.4 A Tríade Social em sua realidade marginal.


A palavra marginal tem como proposta aqui, abrir uma discussão que nos leve a
refletir a desconcertante e polifacetária realidade da Tríade Social. Embora a imagem
espacial que há por trás da palavra seja bem simples, sendo definida como uma extensão
geográfica, borda, extremidade ou limites exteriores (MICHAELIS, 1998, p. 1325), seu
contexto social remete aos limites impostos na incorporação de hábitos e valores de duas
culturas divergentes.
Este contexto social do termo a que nos referimos, se presta, no entanto, a
aplicações metafóricas que classificam aquilo que é correto, usual, seguro e estável como
virtudes ou qualidades que estão automaticamente propensas ao centro ou na parte
principal do espaço disponível como meio de atuação, ao passo que o estranho, o
inusitado, o ambíguo, o perigoso e o pobre são automaticamente empurrados para as
bordas, para as margens deste espaço (MEIER, 1998, p.18).
Na verdade, os chamados marginalizados, embora considerados “de fora” da
estrutura central, sempre estiveram dentro dela, mesmo que, transformados em “seres
para outro”. A realidade de um grupo colocado à margem de uma sociedade atinge seu
ápice justamente quando, estando este grupo na borda ou margem social, consegue

35
Estes números correspondem à seguinte contagem: 1 em Gn; 2 em Ex; 2 em Lv; 1 em Nm; 11 em Dt; 1
em IISm; 5 em I Rs; 5 em Is; 5 em Jr; 6 em Ez; 1 em Zc; 1 em Ml; 5 em Sl; 6 em Jó; 2 em Lm, 1 em Pv.
(Cf. LISOWSKI, 1981).

39
abranger áreas diferentes de comunicação com outros grupos, sem, no entanto, pertencer
efetivamente e nenhuma delas. A solução para esta condição portanto, não está em
‘integrar-se’, em ‘incorporar-se’ a esta estrutura que os oprime, mas em transformá-la
para que possam fazer-se “seres para si” 36
Esta constatação nos faz olhar com outra perspectiva para o status quo da

marginalidade. No texto bíblico, duas palavras ‫ גְ בּול‬e ‫ ׁשּול‬fazem referência ao sentido de

margem. A primeira, gebul, refere-se aos limites de um território (Dt 27.17; Os 5.10 dentre
outros) e a segunda, xul, aos limites de uma vestimenta ou “orla de uma veste” (cf. Ex
39.26; Is 6.1). Embora a predominância destes termos não faz ligação com nenhum
conceito social, não é difícil, através do texto bíblico, descrever a história de um povo
pobre e marginalizado, contada por grupos minoritários com uma tradição de resistência.
De fato, estes marginalizados continuam contando a história (SILVA, 1989, p. 9-22),
articulando uma reconstrução libertadora.
Nos estudos sociológicos modernos, a palavra "marginal" é frequentemente
aplicada a pessoas pobres, de cultura rural, que migram para as cidades, mas não se
integram bem à cultura urbana dominante, por isso se perdem na fronteira entre dois
mundos.
Longe de querer forçar uma analogia, nosso objeto de estudo nesta pesquisa, em
sentido semelhante, é um grupo que possui as características mais marcantes de um grupo
marginal. Pessoas sem pai, sem pátria, sem a segurança de um clã familiar e
principalmente desamparadas por questões de gênero em um marcado contexto patriarcal,
tornam-se, por excelência, marginais diante de um grupo com doutrinas e reivindicação
conservadoras pensadas para o conjunto dominante da sociedade.
Fernando Cândido da Silva, faz duras críticas à leitura romantizada das leis sociais
produzidas no deuteronômio, sem um devido questionamento das ambiguidades que o
próprio texto produz em uma sociedade liberta às custas da legitimação de uma conquista
imperialista, como foi a caso do êxodo (2011, p. 5).

36
Valho-me aqui de um dos conceitos fundamentais no existencialismo de origem sartreana e também
constantemente utilizados por Simone de Beauvoir. A ideia de “para-si” e “em-si”. O “para-si” possui uma
consciência intencional. Este se abre e doa sentido ao mundo, portanto, é o sujeito que se faz e faz o mundo
ao seu redor. Por sua vez, o “em-si” é o objeto pensado, ele não se faz, se fecha em si mesmo, foi pensado
por outros e não tem condições de pensar por si próprio. No “para-si” existe um sujeito que pensa e reage.
Nele, há a possibilidade de existência, pois constituirá a essência daquilo que pode ser pensado e construído
intencionalmente. Assim, a condição humana está em aberto para o mundo, se abre para dar sentido e não
é, portanto, definível. Veja em: BEAUVOIR, 2005; SARTRE, 1988.

40
Quando nos propomos à análise da situação destes grupos em contraste com sua
sociedade, o conceito de “marginal” nos indica uma direção. A crítica literária torna-se
um meio útil de fixar a atenção no que, de outra forma, negligenciaríamos em nossa busca
zelosa de fontes e antecedentes históricos. Ajuda-nos a prestar atenção ao todo literário e
a compreender como as diferentes partes da narrativa funcionam dentro desse todo.
Torna-se, no entanto, necessário que tal abordagem procure por fontes e
antecedentes a-históricos contidos nos documentos propagandísticos de e grupos
dominantes a partir do VIII século AEC, perguntando pela função literária deste texto,
antes de assumi-lo como uma fonte confiável de informações históricas.

41
Capítulo 2. A Tríade Social no contexto do Antigo
Oriente Próximo.

2.1 A Tríade Social na Literatura Extra Bíblica

As influências religiosas e culturais presentes nos textos bíblicos, possuem claras


conexões com os povos de nações vizinhas, particularmente com a Mesopotâmia e o
Egito, que promoveram mudanças e tensões no decorrer da história da religião israelita.
É bem verdade que os estudos sobre a História da Religião de Israel, nunca se
apresentaram de forma homogênea e estática. Os numerosos movimentos religiosos que
floresceram, principalmente durante a monarquia, com abordagens conservadora, mágica,
cúltica, nacionalista, sapiencial e profética, são frutos destas tensões e contrastes herdados
dos povos vizinhos.
De qualquer forma, as leis e decretos que propõem a defesa do estrangeiro, do
órfão e da viúva, como veremos neste capítulo, eram políticas comuns no Antigo Oriente
Próximo e não foi iniciado pelo espírito do profetismo Israelita37. Esta proteção era vista
como uma virtude de deuses, reis e juízes que usavam métodos obrigatórios para garantir
o direito destes grupos.
Além dos antigos códigos jurídicos com estipulação casuística propondo atenção
especial à Tríade Social, ocorre também na literatura sapiencial, um apelo didático e
comportamental para com estes grupos, gerando uma política de conduta. Certamente este
foi o início de um testemunho social que funcionou como um critério para influenciar o
desenvolvimento de ações, formas e posturas conscientes na sociedade israelita.
No decorrer da história, este apelo ao cuidado social, torna-se um movimento que
ganha forma na crítica profética que desenvolve uma acusação relevante contra a classe
dominante, principalmente no que se refere ao campo econômico e social.
Diante deste quadro, a realidade marginal é um fato. Quando nos propomos a
pensar, sobre os desdobramentos que a defesa da Tríade Social, pode produzir na teologia
veterotestamentária, somos desafiados a olhar para suas raízes históricas. É a partir desta

37
Para mais detalhes sobre o Profetismo no Antigo Oriente Médio e no Antigo Israel, veja: BARSTAD,
Hans M. No Prophets? Recent Development in Biblical Prophetic Research and Ancient
Near Eastern Prophecy. Journal for the Study of the Old Testament (JSOT), Nº57, 1993.

42
hipótese, que desenvolvemos neste capítulo, um breve olhar para a trajetória da defesa da
Tríade Social em textos extrabíblicos.
A partir de então, buscaremos destacar neste processo, a grande contribuição da
arqueologia associada à pesquisa bíblica, que nos ajuda a revisitar, a partir das fontes
históricas, o contexto social destes povos e como eles reagiam diante dos quadros de
vulnerabilidade e de injustiça para com o socialmente fraco.
Como exemplo prático de que o tema da atenção especial à Tríade Social é assunto
recorrente em fontes extrabíblicas, propomos a análise do Óstraco de Khirbet Qeiyafa. O
estudo deste sítio, assume neste capítulo uma função especial devido à sua proximidade
com o texto bíblico e por conter explicitamente a menção ao cuidado com a Tríade Social.
Kh. Qeiyafa, embora pareça fugir à delimitação de nossa pesquisa, atrai-nos por dois
motivos especiais: pela possibilidade de compor escritos do contexto do séc. X A.E.C.,
corroborando com extratos de escritos tardios e pela localização do sítio com comprovada
influência de unidades políticas do Norte Israelita.
Estes elementos nos levam a considerar, ao final deste capítulo, que a literatura
extrabíblica reforça em nossa pesquisa, o papel relevante deste grupo, representado aqui
pela Tríade Social, na medida em que evidencia um apelo permanente e renovado de
proteção aos grupos sociais indefesos.

2.1.1 A contribuição da arqueologia

O debate que expõe esta relação entre a arqueologia e a Bíblia, que parece tão
moderno hoje, na verdade começou séculos atrás. Em 1902, a famosa palestra “Babel und
Bibel” proferida por Friedrich Delitzsch, gerou muito interesse público38. Desde o início
da pesquisa sistemática sobre o desenvolvimento arqueológico e histórico no Antigo
Oriente, houve uma complexa relação entre a arqueologia e os estudos da Bíblia.
O extenso ataque às propostas de conexão entre a tradição bíblica e a arqueologia,
tornou-se maior quando um modelo de raciocínio circular começou a ser aplicado pois,
em tais casos, a Bíblia é usada para interpretar os dados arqueológicos e estes, por sua
vez, confirmam a tradição bíblica. Este sistema gerou certa desconfiança no contexto

38
Para uma revisão mais detalhada veja: ARNOLD, Bill T., and David B. Weisberg. “A Centennial Review
of Friedrich Delitzsch's ‘Babel Und Bibel’ Lectures.” Journal of Biblical Literature, vol. 121, n. 3, 2002,
pp. 441–457. JSTOR, www.jstor.org/stable/3268155. Acesso em 18 Dez. de 2020.

43
intelectual mais amplo de pesquisas, diminuindo a credibilidade dos relatórios propostos
a partir dos achados arqueológicos de então.
No entanto, o uso da arqueologia para fundamentar o texto bíblico, foi o fator que
impulsionou o desenvolvimento das pesquisas durante o século XX. A limitação estava
na sobreposição do interesse religioso e teológico à ciência, à história e à antropologia. O
conteúdo bíblico, pela força de instituições que financiavam as escavações, definiu a
priori o resultado das buscas realizadas nos sítios, comprometendo o princípio da
neutralidade das ciências arqueológicas (KAEFER, 2015, p.13).
A confiabilidade histórica da Bíblia foi alvo de posturas conflitantes entre os
críticos do texto bíblico, que o usavam como objeto de dissecação, enquanto arqueólogos
mais comprometidos com os ideais de seus financiadores, usavam a narrativa bíblica
como parâmetro para direcionar o curso das escavações (RÖMER, 2016, p. 21). Esta
postura acabou desenvolvendo dois mundos intelectuais distintos, que fizeram escola no
passado, propondo visões totalmente opostas de interpretação, conhecidas como
maximalista e minimalista.
A escola maximalista é de caráter fundamentalista e tende a ler a história bíblica
de forma literal e incontestável enquanto a escola minimalista nega veementemente a
historicidade do texto bíblico (MENDONÇA, 2015, p. 25). Este modelo conservador,
conhecido também como maximalista, está diretamente ligado a uma convicção religiosa,
que os motiva à busca por resultados que estejam comprometidos, ou até mesmo,
submetidos aos relatos bíblicos. A base do pensamento maximalista é que a arqueologia
pode provar a veracidade da Bíblia, com a possibilidade de contestar os estudiosos
críticos.
Outro fator de interesse pela busca de provas contundentes a partir da arqueologia
vem do Estado Israelense que financia escavações na tentativa de provar a existência da
monarquia unida, tão importante para a propagação de uma “idade de ouro”
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 131), reafirmada por uma dinastia real para
Israel a partir das narrativas sobre Davi e Salomão. Mesmo sem evidências contundentes
da existência de uma monarquia unida de Davi e Salomão, muitas escavações estão
acontecendo em Jerusalém, Hazor e na Região de Judá (Cf. KAEFER, 2015, p. 14-15).
Grupos de pesquisadores de uma ala mais crítica, se interessaram pelo debate
sobre a confiabilidade histórica da Bíblia, direcionando suas buscas por evidências
arqueológicas e históricas, que permitiam construir uma nova compreensão do
surgimento do Antigo Israel e a emergência de seus textos.

44
Tais pesquisadores priorizaram o aparato técnico e científico, criando, por vezes,
um modelo desconstrutivista, que questionava as narrativas bíblicas, entendidas até então
como verossímeis e exatas. Esta desconstrução passou a tomar forma, como movimento
que realçava a necessidade de uma crítica literária, onde o que até então era considerado
absoluto, começa a se tornar relativo.
A crítica ao modelo minimalista, as vezes chamados de desconstrucionistas, é que
o uso das fontes extrabíblicas é tomado como elemento comprobatório exclusivo para os
acontecimentos e personagens bíblicos, descartando qualquer hipótese de que a Bíblia
seja uma fonte histórica confiável para comprovar a história de Israel.
As discussões entre maximalistas e minimalistas avançaram as últimas décadas,
que se seguiram após o início dos primeiros eventos arqueológicos e uma terceira via de
pesquisa surge como paradigma arqueológico. Com uma diferença significativa das
escolas maximalistas e minimalistas, este grupo concentra-se na leitura da Bíblia como
uma história regressiva39, onde a maioria dos textos foram compostos entre os séculos
VII, V e II AEC (FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 16 e 17).
Esta constatação só é possível com os avanços da tecnologia empregada nos
estudos de carbono 14, utilizado para estabelecer datação das evidências arqueológicas,
também conhecido como Cronologia Absoluta. A partir de então, começa-se a
desenvolver datas mais precisas, que apresentam fases tipológicas de cerâmicas com um
espaço de 50 anos ou menos (FINKELSTEIN, 2015, p. 21).
Este grupo adota como parâmetro o período da monarquia ou o período pós-exílio,
como período de redação de grande parte do texto bíblico. Desta forma conseguem
estabelecer o texto bíblico como fonte confiável de provas, sobre a história de Israel nos
tempos monárquicos (Cf. KAEFER, 2015, p. 20-21).
Deste modo, as concepções maniqueístas sobre o certo ou errado começam a ser
revisadas e as abordagens contraditórias assumem, em certa medida, características de
legitimidade, tornando fundamental o estudo do texto bíblico a partir da linguagem, onde
o científico ocupa o espaço do prescritivo para assumir uma observação imparcial dos

39
Método regressivo usado pelos medievalistas que consiste na abordagem de um objeto usando um
princípio comparativo entre vários estágios e em momentos diferentes, partindo da fase mais recente para
acessar a mais antiga. Esse procedimento é baseado no postulado de que uma situação tardia retém traços
interpretáveis da dinâmica do passado. Tal método foi ampliado e estruturado pelo historiador francês Marc
Bloch. Para mais detalhes leia: ABBÉ, Jean-Loup. Le paysage agraire médiéval et la méthode régressive.
disponível em: https://books.openedition.org/pur/8207?lang=en

45
fatos40. A arqueologia neste sentido, permite e construção de pontes que amenizam o
abismo que havia entre o estudo dos textos Bíblicos e os achados arqueológicos, abrindo-
nos as possibilidades de estudar os estágios do desenvolvimento social das comunidades.

2.1.1.1 A Arqueologia no mundo da linguagem


É bem verdade que quando nos propomos a falar da Bíblia como literatura ou da
Bíblia na história da literatura e da crítica literária, encontramo-nos no mundo da
linguagem. Seja pelos signos e metáforas, seja pelos aspectos semânticos ou lexográficos,
não temos como evitar o conceito de linguagem e, portanto, torna-se decisivo para a nossa
leitura do texto bíblico a forma como lidamos com o mundo da linguagem e da literatura.
Neste sentido, é preciso ter coragem de sair de nossas trincheiras demarcadas por
posições ideológicas, políticas e institucionais ou doutrinárias e arriscarmos
interpretações que valorizem o mundo da linguagem e seus muitos signos
(MAGALHÃES, 2012, p. 134).
O campo da pesquisa em linguagem tem em seu “DNA” a complexidade como
caráter indispensável. Esta complexidade tende a se alargar ainda mais quando a pesquisa
procura entendê-la no contexto das práticas sociais. Se por um lado, são muitas e quase
sempre divergentes as linhas filosóficas, teóricas e metodológicas que se propõem ao
anúncio revelador de verdades individuais, por outro, tais teóricos tendem a se apegar
quase que espiritualmente às suas correntes, o que os tornam irredutíveis à compreensão
de outras visões e noções que não sejam identificadas às suas formas de pensar.
A disputa desenvolvida nestes espaços teóricos, em sua defesa de fé, cai na mesma
tentação, elaborando uma resposta definitiva e final para o seu problema de pesquisa.
Com isso, acabam por limitar seu objeto a pequenos recortes, muitas vezes homogêneos
e centrados em si mesmos.
Fica claro, portanto, que para o bom andamento da pesquisa, torna-se
imprescindível sair das fronteiras. Pensando no papel determinante que a arqueologia
pode exercer para a pesquisa bíblica, principalmente no que se refere à história de Israel

40
De fato, é bastante frequente casos em que o domínio da observação imparcial é abandonado nas
pesquisas para recomendar determinado comportamento, de deixar de notar o que realmente se diz para
passar a recomendar o que se deve dizer. Cf. MARTINET, André. Elementos de linguística geral. 8 ed.
Lisboa: Martins Fontes, 1978. Em: DUARTE, Vânia Maria do Nascimento. "Linguística"; Brasil Escola.
Disponível em: https://brasilescola.uol.com.br/portugues/linguistica.htm. Acesso em 26 de fevereiro de
2021.

46
e Judá, é que buscamos referências externas ao texto, que nos ajudam a conhecer melhor
a cultura de um povo, suas festas e sua religião.
Nossa intenção é que, ao compreender estes traços importantes de construção
social de povos do Antigo Oriente Próximo, bem como o modo como administram suas
leis e seu povo, teremos a chance de nos aproximamos do contexto social do povo da
Bíblia, pois os paralelismos encontrados em ambos são inegáveis (FOHRER, 1982, p. 14-
16 e 273-279).
Os contextos são fundamentais para a formação dos textos, pois é a partir deles
que temos a capacidade de definir suas vozes sociais, seus interlocutores e os limites
determinantes do mundo social de onde brotam estes textos. Por serem complexos, os
contextos dos povos do Antigo Oriente Próximo no período bíblico, são em grande parte,
inacessível ou incompreensível, causando variações importantes em conceitos advindos
da linguagem e da cultura local.
O texto na verdade, mesmo que denso e bem elaborado em sua estrutura, é
somente um fragmento do contexto. Suas relações internas e externas, bem como os
eventos históricos e sociais aos quais ele compõe, perdidos no tempo, podem ser
reconstruídos a partir de um esforço dialógico entre a linguagem e a arqueologia.
É a partir das fronteiras com o texto bíblico que temos a oportunidade de
vislumbrar de forma mais adequada, a vitalidade do tema da defesa do estrangeiro, do
órfão e da viúva no decorrer da história.

2.1.2 A defesa da Tríade Social em fontes do Antigo Oriente Próximo

Nossa proposta ao analisar a defesa da Tríade Social em fontes do Antigo Oriente


Próximo, serve-nos somente como ponto de partida para a compreensão da recorrente
presença deste tema nos textos bíblicos. Um exame mais elaborado da historiografia do
mundo antigo com dados e fontes arqueológicas, nos conduziria a uma infinidade de
textos, epopéias, inscrições reais e literaturas fornecidas por estas importantes
civilizações, que extrapolariam o objetivo desta pesquisa.
Optamos por conhecer o panorama da literatura sapiencial e jurídica do Antigo
Oriente em defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva e suas conexões com as diversas
realidades da literatura bíblica, em particular, a religiosa e a política.
Na Mesopotâmia, grandes impérios e culturas como a Suméria, a Babilônia e a
Assíria se formaram, promovendo uma sucessão de documentos e fontes com farto
material histórico, onde a realeza se consumava pela orientação e autoridade expressa dos

47
deuses, tendo o dever de manter a terra próspera e equilibrada (LAMBERT, 2005, p. 58).
Surge aqui a ideia da Justiça como uma virtude que se transforma em espaço de proteção
aos desfavorecidos, com motivações bastante religiosas, mas também de cunho político,
onde a vontade divina deveria ser acompanhada pela virtude de Reis e o dever do povo
comum (FENSHAM, 1962, p. 137).
O documento mais famoso retratado por estas fontes é talvez o código de
Hammurabi, que embora não seja o corpo legal mais antigo, é o documento que propõe
uma abrangente tentativa de um monarca em unificar o direito em seu reino. Com uma
estrutura literária tripartite contendo prólogo, leis e epílogo, muito semelhante ao código
de Lipt-Is̆ tar,41 o rei se apresenta como o soberano que fora chamado pelos deuses para
fazer justiça na terra. No epílogo, ao concluir as sentenças de justiça, acentua o grande
alcance social de sua obra quando escreve: “Para que o forte não oprima o fraco, para fazer
justiça ao órfão e à viúva, para proclamar o direito do país...”42.
Para Bouzon (1980, p. 14), a obra de Hammurabi tem um caráter marcante de
reforma legal, pois, ao dirigir-se contra os abusos de seu tempo, o faz retomando tradições
legais antigas completando-as com maior rigor, ou apenas abolindo aquelas que
apresentavam interpretações consideradas distorcidas da lei.
Como já afirmamos anteriormente, as referências a reis e monarcas como
protetores dos socialmente fracos é abundante não somente nos corpora legais, mas
também na literatura sapiencial43. Ao longo das estipulações legais babilônicas e da
literatura de sabedoria, o cuidado da viúva, do órfão e dos pobres, incluindo aqui o
estrangeiro, está no centro das atenções das divindades. À semelhança da Mesopotâmia,
onde Šamas̆ se apresenta como deus da justiça (PATTERSON, 1973, p. 226), o Egito

41
Datado por volta de 1875-1865 AEC, descoberto a partir de fragmentos de quatro tablets o código legal
de Lipt-Is̆tar proporcionou duas significativas contribuições para a história cultural do Antigo Oriente
Médio. A primeira por fornecer informações importantes da língua suméria sobre os s Babilônio, Assírio e
Hitita. A segunda, por fornecer a quase dois séculos antes do código de Hammurabi, informações sobre
conceitos legais da antiga Mesopotâmia. Cf. STEELE, Francis Rue. “The Code of Lipit-Ishtar.” American
Journal of Archaeology, vol. 52, no. 3, 1948, pp. 425–450. JSTOR, www.jstor.org/stable/500438. Acesso
em 16 de fev. de 2021.
42
Cf. Epílogo, Col. XLVII, 60. Em: BOUZON, 1980, p. 109.
43
Literatura Sapiencial ou Livros de Sabedoria é um gênero de literatura comum no Antigo Oriente
Próximo. No Egito Antigo, alguns destes gêneros incluem os ensinamentos do o rei Merikare e o de
Amenemhat. (Cf. CARAMELO, 2003, p. 8). Para ajudar os leitores a compreender o lugar da sabedoria
bíblica neste contexto mais amplo, incluindo sua originalidade e distinção, sobre o cenário social,
intelectual e literário da sabedoria mesopotâmica, veja CLIFFORD, Richard J. (editor) Wisdom Literature
In Mesopotamia And Israel. Atlanta: SBL - Society of Biblical Literature, nº 36, 2007.

48
refere-se à justiça como uma virtude divina que atua a favor dos fracos, como seu protetor
e juiz (FENSHAM, 1962, p. 133).
No Egito Antigo, o conceito básico da literatura sapiencial está estruturado nos
valores éticos com conotação de retidão, verdade, direito e justiça, personificados pela
deusa maat. Neste sentido, qualquer movimento contrário às intenções de preservação da
ordem social é considerado como uma ação contra a maat, seja pelo faraó ou qualquer
outro membro da sociedade.
Portanto, maat está associada à determinação final de sua representação como
divindade garantidora da ordem social. O interesse em recolocar maat em lugar de
destaque na administração do Egito está intrinsecamente ligado à retomada do poder e na
reconstrução da paz social, que se tornam reflexo da ordem cósmica. Assim a maat está
ligada à corte, sendo apresentada como uma das principais prerrogativas míticas de um
faraó. (CAMARA, 2011, p.19-33).
Sua representação extrapola os limites da religião, a ponto de se desenvolver como
um conceito gerador de princípios para a garantia da ordem pública, atingindo
diretamente os aspectos primordiais da existência humana como a prática de relações
justas, de ordem econômica com aplicações importantes nas interações sociais.
Estes valores éticos, já mencionados, como base essencial da literatura sapiencial,
se estende para outras formas. Dentre as formas de ensino mais comuns na literatura
sapiencial do Egito Antigo, estão as Instruções44. Poderíamos aqui, listar algumas, como
a Instrução do rei Amenemhet, o primeiro governante da décima segunda dinastia, que
tem seu nome associado a um dos sebayt, gênero literário egípcio para designar instrução
e ensino. Neste ensinamento ético, atribuído aos monarcas egípcios, Amenemhet enumera
como um de seus grandes atos, o cuidado para com os indefesos (Cf. LICHTHEIM, 1973,
p. 176-188).
A Instrução do vizir Ptah-hotep, descrevem vários tópicos derivados do conceito
central de sabedoria e literatura egípcia, vindos de maat. Seus escritos, intitulado “As
Máximas de Ptah-hotep” tinham a função de aconselhar o povo a manter a esperança, a
ordem social e cultivar o autocontrole (FONTAINE, 1981, p. 155-160). Ao propor a

44
Instruções são ensinamentos em que um orador se dirige a um interlocutor, normalmente de pai para
filho, transmitindo-lhe conselhos e ensinamentos. Este era um dos principais recursos da literatura egípcia,
que numa estrutura formal e poética, se fazia como um catálogo de virtudes e autobiografias. Cf.
LICHTHEIM, 1973, p. 11)

49
manutenção da ordem social, Ptah-hotep solicita ao rei que transmita seus conhecimentos
para seu filho, como uma espécie de testamento moral.
Meri-ka-Re, um rei da 9ª ou 10ª dinastia, recebe também seu sebayt ou instrução,
promovendo um efetivo tratado sobre a realeza, na forma de um testamento real com
conselhos sobre como ser um bom rei e evitar o mal. A ordem mundial estabelecida por
maat e o julgamento divino é enfatizado em seus escritos do mesmo modo que seus
antecessores.
A famosa Instrução de Amenemope (Cf. LICHTHEIM, 1976, p. 146-163)
originada por volta do 10º Século AEC, que apresenta uma afinidade destacada com Pr
22,17-23,15, representa a convergência de muitas ideias encontradas nas longas tradições
do Egito antigo. Sua relação com a terminologia e as imagens empregadas no livro de
Provérbios (FENSHAM, 1962, p. 132-133), leva-nos a supor que as antigas sebayt
serviram como modelo para todas as literaturas antigas do tipo proverbial.
A obra contém trinta capítulos de aconselhamentos para uma vida bem sucedida
que refletiam das transformações daquele “império novo”, com forte desenvolvimento da
piedade pessoal (Cf. WEEKS, 1994, p. 168-169). Sua estrutura concentra-se nas questões
mais profundas da consciência, propondo a defesa dos socialmente fracos como os
pobres, órfãos e viúvas, tendo como princípio as ordenanças divinas de bênção e de
castigo para aqueles que seguem ou não aos preceitos de maat.
Os paralelos desta obra com os textos bíblicos no livro de Provérbios, mostram
como a literatura hebraica está permeada de conceitos e figuras derivados destes
tratados didáticos egípcios. Vejamos alguns exemplos:
Provérbios 22.22 – “Não roubes o pobre, porque é pobre, nem oprimas em juízo
ao aflito”45 / Amenemope, cap.2 – “Cuidado para não roubar os pobres e oprimir os
aflitos”46; Pv. 23.10 – “Não remova os marcos das viúvas; e não entres no campo dos
órfãos.” / Amn, cap.6 – “Não removas o marco dos limites do campo... e não violes os
limites das viúvas”.
A estreita relação literária entre Amenemope e as instruções anteriores,
comprovada pelo gênero, tema e vocabulário, refletem-se no texto bíblico, formando uma
conexão direta entre estas duas formas de literatura sapiencial.

45
As citações bíblicas neste momento são da edição: ARA, 1969.
46
As citações das instruções de Amenemope foram extraídas da obra: GLANVILLE, S. K. R. The Legacy
of Egypt. Oxford: Clarendon Press, 1942. Disponíveis em: https://archive.org/details/in.ernet.dli.2015.2834
49/page/n1/mode/2up.

50
Em Ugarit, embora não haja código legal nem livro de sabedoria, encontramos
textos que mencionam explicitamente a atuação ético-social do rei, que faz ressoar dentro
da ideologia real de Israel, a função indispensável do monarca como responsável supremo
de uma ordem sociorreligiosa, que implica a aliança como expressão de uma relação
igualitária de todos os membros da sociedade.
Na epopeia de Kirta por exemplo, se vê, claramente, um poema que descreve a
rebelião de Yaṣṣibu, filho do rei Kirta, que acusa seu pai de não julgar a causa da viúva,
não examinar o caso do oprimido e de não repreender aqueles que maltratam o pobre:
“...Tu fizeste cair as tuas mãos em prostração, não julgaste a causa da viúva, nem
julgaste a causa dos oprimidos, nem lançaste fora aqueles que depredam os pobres47”.
Por esta pequena amostra de textos, pode-se concluir quão importante era para a
realidade do Antigo Oriente Médio, o aspecto do cuidado com os socialmente fracos. Para
além da proximidade com a literatura bíblica, o uso da arqueologia nos coloca em contato
com documentos importantes, sobre a responsabilidade que pesava em seus governantes,
para fazer justiça às pessoas mais frágeis. A prática desta justiça, considerada como
oriunda da própria vontade divina, não deixava de ser reivindicada pelas próprias vítimas
do sistema.
Um cuidado especial e necessário, no entanto, é o de não sobrepor as descobertas
arqueológicas ao texto bíblico. Quando o estudo das narrativas bíblicas, conseguem
estabelecer diálogo franco com a arqueologia, transforma-se, seguramente, numa grande
referência para a pesquisa.
Esta importante interação entre Bíblia e arqueologia, se torna elemento
fundamental diante do tema proposto em nossa pesquisa, pois a análise do cuidado
especial destinado aos socialmente fracos e as implicações de uma crescente teologia que
se desenvolve a partir da realidade marginal é tema recorrente tanto em fontes internas
quanto externas.

2.1.3 Khirbet Qeiyafa e sua proximidade com o texto bíblico

Das fontes arqueológicas que desenvolvem possíveis referências com o nosso


objeto de estudo, encontrados no Óstraco em Khirbet Qeiyafa, proximidades marcantes

47
Tradução minha. Texto original: “Has hecho caer tus manos en la postración, no has juzgado la causa
de la viuda, ni dictaminado el caso del oprimido ni arrojado a los depredadores del pobre”. Cf. LETE, G.
del Olmo. Mitos y Leyandas de Canaan, segun la tradicion de Ugarit. Madrid: Ediciones Cristiandad, 1981,
p. 322.

51
de ordem geográfica e temporal com o texto bíblico. Como o termo grego demonstra, os
óstraca48 eram pedaços de cerâmica quebrados, utilizados em documentos, notas curtas,
lista de nomes, registros, mensagens e cartas privativas, sua popularidade se dá
principalmente por ser um material mais barato do que papiro ou couro e graças à sua
durabilidade um grande número de peças foi preservado (Cf. HAHN, 2009, p. 666).
Segundo os relatórios desenvolvidos pelas escavações, Khirbet Qeiyafa foi
construída na segunda metade do século XI AEC e destruída/abandonada na segunda
metade do século X AEC49. Neste importante sítio arqueológico que está localizado cerca
de 30 km a sudoeste de Jerusalém, numa região fronteiriça com o Vale Elah
(GARFINKEL, 2007-2013), encontram-se inscrições com uma sugestiva “mensagem
sociológica” (KAEFER, p. 81-84), que podem ajudar-nos a compreender melhor os
preceitos bíblicos que defendem a tríade social.
O famoso Óstraco de Qeiyafa, encontrado no segundo ano de escavação do sítio,
no edifício do portão norte (GARFINKEL, 2017, P.12-14), foi amplamente discutido,
com opiniões controversas entre os estudiosos. Sua escrita é em tinta (não é entalhada) e
está no lado côncavo do Óstraco, medindo cerca de 15 cm x 16,5 cm. Sua datação
aproximada, foi anunciada nos primeiros relatórios, para o 10 º século AEC.
Os dados levantados em Khirbet Qeiyafa, produziram implicações importantes
para a arqueologia, para a história e os estudos da Bíblia, reacendendo o debate dos
últimos 30 anos, relativo ao estabelecimento de uma Judá bíblica, com o governo histórico
de Davi. Esta possibilidade da descoberta de evidências concretas do reinado de Davi, foi
sem dúvidas, um chamariz para setores da comunidade judaica e grupos religiosos
espalhados em todo o mundo.

48
Em grego: όστρακον, ostrakon, plural όστρακα, ostraka. Significa literalmente “caco/ invúlucro”
(LEMAIRE, 1992, p. 50-51).
49
Sobre a estratigrafia, cf. FINKELSTEIN, I.; FANTALKIN, A. “Khirbet Qeiyafa: An Unsensational
Archaeological and Historical Interpretation”. In: Tel Aviv 39, 2012 p. 38-63. Sobre a cronologia, cf.
GARFINKEL, Y; GANOR, S. “Khirbet Qeiyafa in Survey and in Excavations: A Response to Y. Dagan”.
In: Tel Aviv 37, 2010, p. 67-78; FINKELSTEIN, I.; PIASETZKY,E. “Khirbet Qeiyafa: Absolute
Chronology”. In: Tel Aviv 37, 2010, p. 84-88; SINGER-AVITZ, L. “The Relative Chronology of Khirbet
Qeiyafa”. In: Tel Aviv 37, 2010, p. 79-83; as escavações de Beth-Shemesh, pouco ao norte e de mesma
época trariam resultados similares no nível 4, cf. McCARTER; P.K; BUNIMOVITZ, S.; LEDERMAN, Z.
“An Archaic Ba`l Inscription from Tel Beth-Shemesh”. In: Tel Aviv 38, 2011, p. 35-49; GARFINKEL, Y.;
KANG, H.G. “The Relative and Absolute Chronology of Khirbet Qeiyafa: Very Late Iron Age I or Very
Early Iron Age IIA?”. In: IEJ 61, 2011, p. 171-183; SINGER-AVITZ, L. "Khirbet Qeiyafa: Late Iron Age
I in Spite of it All". In: IEJ 62, 2012, p. 177-185; GARFINKEL, Y.; STREIT, K.; GANOR, S.; REIMER,
P.J. “King David’s City at Khirbet Qeiyafa; Results of the Second Radiocarbon Dating Project”. In:
Radiocarbon 57, n. 5, 2015, p. 881-890.

52
Sem entrar no mérito da complexa relação de interesses do Estado de Israel em
fornecer a sensação de continuidade histórica com o tempo dos patriarcas, as alegações
de se ter descoberto um centro administrativo davídico em Khirbet Qeiyafa atraiu, de fato,
os olhares da mídia e das manchetes nos jornais (Cf. GARFINKEL, KREIMERMAN e
ZILBERG, 2015, p.11).
Os primeiros relatórios das escavações com base na decifração feita por Gershon
Galil (GALIL, 2009, p. 193-242), supõe que os achados em Khirbet Qeiyafa, relativos ao
Óstraco, podem ser considerados como a inscrição mais antiga existente no roteiro "proto-
sinaítico", típica do período do Bronze, mostrando-se um escrito raro que antecede o bem
conhecido Hebraico e Fenício da era do Ferro.
No entanto, divergências e contradições entre os principais pesquisadores
começaram a surgir. Primeiro, Galil é acusado de controvérsias de ordem ética50, por
omitir a participação de pesquisadores nos resultados e por antecipar o comunicado das
descobertas à imprensa assumindo todos os créditos, sem uma verdadeira consistência de
dados.
Posteriormente surgem questionamentos quanto à datação e etnia do sítio. Após
calibração e averiguação dos dados de carbono-14, Garfinkel e Ganor (2008), propõem
uma datação na faixa de 1051–969 AEC, que segundo eles, possui uma probabilidade de
77,8%, reafirmando um modelo clássico de sincronismo com o tempo de Saul (1025 –
1005) e Davi (1005-965). Esta visão, no entanto, foi contestada por Finkelstein e
Piasetzky (2010, p.84-88) com base em análises da cerâmica do local e uma datação
diferente nas análises de radiocarbono que colocam a ocupação do sítio na Idade do Ferro,
em algum lugar entre 1050 AC e 915 AC.
Embora estas pequenas diferenças não mudam muito a importância e o caráter do
sítio, uma data próxima de 915 AEC, colocaria Khirbet Qeiyafa no fim da Idade do Ferro,
enquanto 970 corresponde à transição entre Ferro I e Ferro II. Esta transição em sua visão
tradicional é designada como alta cronologia que data para cerca de 1000 AEC (MAZAR,
1992, p.368-371). Os defensores de uma baixa cronologia, colocam o fim da Idade do
Ferro I em aproximadamente 920 AEC (FINKELSTEIN, 2015, p. 21-27).
Thomas Römer que defende a datação proposta por Finkelstein (1050 e 915 AEC),
ciente do impacto desta mudança para a compreensão histórica do local (RÖMER, 2017,

50
Em carta aberta ao Prof. Gershon Galil, a Universidade Hebraica de Jerusalém rebate suas contribuições,
acusando-o de apresentar problemas éticos e de erudição em suas declarações. Cf. Open Letter to Prof.
Gershon Galil, Haifa University, disponível em: http://qeiyafa.huji.ac.il/galil.asp

53
p. 73-86), também contesta a identidade judaíta do sítio. Para ele, neste tempo, as
fronteiras culturais eram muito fluidas, permitindo haver confluência de territórios sem
que as pessoas estivessem muito cientes disto.
A ideia de que este não poderia ser um acampamento habitado por filisteus
somente com base na ausência de ossos de porcos ou a ausência de estatuetas
antropomórficas, esbarram em dois problemas: Primeiro, que não haviam proibições
neste sentido, já que o decálogo ainda não existia no décimo século. Depois, que ao
contrário de Judá, os porcos eram aparentemente muito populares nas cidades de Israel,
no entanto, eles aparecem apenas esparsamente ou não aparecem em assentamentos não
urbanos, mesmo no presumível território filisteu.
Talvez haja outras explicações para a evasão de porcos em territórios de Judá, no
entanto, é questionável se a ausência dos ossos do porco em Khirbet Qeiyafa deve ser
vista como uma marca étnica51.
Todas estas especulações sobre Khirbet Qeiyafa, em torno da etnia e datação do
sítio, embora pareçam triviais em nossa pesquisa, carregam importante informação sobre
as influências religiosa, cultural e política que marcaram os povos no final do século X
AEC. Dados que não se podem extrair somente com a leitura da História Deuteronomista
e parte dos textos proféticos, pois estes, simulam a situação de tempos monárquicos
tardios (FINKELSTEIN, 2015, p. 66-67) favorecendo uma ideologia Judaíta que tenta
resgatar o engrandecimento da dinastia davídica como projeto político expansionista da
realeza de Jerusalém.
De fato, a arqueologia nos ajuda a superar este problema, quando abre diante de
nós pistas literárias da campanha de Sheshonq I, que descreve uma lista de cidades
conquistadas, localizadas nas terras altas. Ao observarmos a sugestão de Finkelstein
(2015, p.82) de que Khirbet Qeiyafa tenha servido como um posto avançado da unidade
política do Norte, representando uma ameaça aos interesses Egípcios, percebemos o
rápido declínio da entidade territorial norte, incluindo o sítio de Khirbet Qeiyafa.
Torna-se evidente aqui, o nascimento de uma crise social que mudaria o rumo da
história. Como veremos a seguir, o Óstraco de Qeiyafa traz consigo marcas evidentes do

51
Veja mais detalhes em: RÖMER, Thomas. Khirbet Qeiyafa – Some Thoughts of a Biblical Scholar.
Response to Yosef Garfinkel and Aren Maeir. In: SCHROER, S. e MÜNGER, S. eds. Shephelah. Articles
published in a Colloquium of the Swiss Society for Studies of the Ancient Near East, carried out at the
University of Bern, September 6, 2014. Orbis Biblicus et Orientalis 282. Friborg (CH): Academic Press.
ISBN 978-3-7278-1791-5, 2017

54
apelo social ao cuidado com o estrangeiro, o órfão e a viúva, obedecendo a típica
formulação dos corpora legais e da literatura sapiencial presente em textos do Antigo
Oriente.
É preciso lembrar, no entanto, que embora permeado por muitas controvérsias, o
Óstraco oferece-nos poucas informações. Este é um fator preponderante na limitação de
uma aproximação mais exata e contundente. Atemo-nos, portanto, ao conteúdo básico da
plausibilidade da função ética e social do texto.

2.1.3.1 O Óstraco e suas possíveis traduções


Óstraco de Khirbet Qeiyafa (fotografia de Clara Amit, Autoridade em Antiguidades de Israel, cortesia do
Khirbet Qeiyafa Expedição)52

Galil em sua reconstrução do Óstraco para o inglês propõe a seguinte tradução:

Transliteração Inglês Tradução


1) ᵓ͘l tᶜś : wᶜbd ᵓ[t] you shall not do [it], but worship the Voçê não deve fazer, mas adore ao
[Lord]. [Senhor]
2) špṭ ᶜbd wᵓlmn špṭ yt[m] Judge the sla[ve] and the wid[ow] / Julgue o escra[vo] e a viú[va] / julgue o
Judge the orph[an] órf[ão]

3) wgr rb ᶜll rb dl w [and] the stranger. [Pl]ead for the e o estrangeiro. [Pl]eiteia pela criança /
infant / plead for the po[or and] pleiteia pelos pob[res e]

4) ᵓlmn nqm ybd mlk the widow. Rehabilitate [the poor] at a viúva. Reabilita [os pobres] nas mãos
the hands of the king. do rei

5) ᵓbyn wᶜbd šk gr tm[k] Protect the po[or and] the slave / Proteja os po[bres e] o escravo / [apo]ie
[supp]ort the stranger. o estrangeiro

52
Imagem extraída de: LEVY, Eythan e Frédéric Pluquet. Computer experiments on the Khirbet Qeiyafa
ostracon. Digital Scholarship in the Humanities, Vol. 31. pp. 1-21, Oxford University Press: 2006.

55
Para Galil o conteúdo do texto expressa a sensibilidade social à frágil posição dos
membros marginais da sociedade. A inscrição testemunha a presença de estrangeiros
dentro da sociedade israelense desde este período antigo, e apela para dar apoio a esses
indivíduos fragilizados por sua condição social. Apela também ao cuidado das viúvas e
dos órfãos e ao envolvimento do rei, que na época tinha a responsabilidade de combater
a desigualdade social.
Os achados nesta inscrição podem ser comparados, por sua semelhança, ao
conteúdo dos textos bíblicos que apelam para a manutenção deste conjunto social,
garantindo-lhes o direito e a justiça.

Ainda com relação à interpretação do Óstraco, Haggai Misgav (MISGAV, 2009,


p.243-257) e Ada Yardeni (YARDENI, 2009, p 259-260) propuseram cautelosamente
que estas leituras são parciais e notaram as muitas dificuldades na interpretação da
inscrição. De fato, há várias decifrações que foram propostas para o Óstraco e estão
ancoradas na hipótese de que este fragmento cerâmico reflete uma fase inicial da antiga
língua hebraica. Suas leituras dependem em grande parte de reconstruções de letras
danificadas que diferem consideravelmente umas das outras.
As dificuldades em interpretar a inscrição são certamente devido ao seu estado
bastante deteriorado, bem como, a forma incomum de algumas de suas letras, e a escassez
de nosso conhecimento do escrito protocananita.
Para Christopher Rollston seria necessário que estas decifrações fossem colocadas
à prova de uma abordagem mais cautelosa, pois embora sejam excelentes os resultados
obtidos e apesar de seu caráter superlativo, não possuem dados linguísticos suficientes
para comprovar a classificação hebraica para esta inscrição (ROLLSTON, 2011, p 67-
82).
Enquanto Misgav sugere que a inscrição possui, em seu início, várias palavras de
comando que podem ser de natureza judicial ou ética e finaliza com palavras relacionadas
ao âmbito político e governamental, Galil vai mais adiante argumentando que o texto é
uma expressa afirmação social relativa a escravos viúvas e órfãos. Portanto, é bem
provável que o Óstraco possa conter uma mensagem, ou um esboço, um texto original ou
mesmo um registro de um contrato oral.
Alan Millard defende que ao ler um texto antigo único, todas as possibilidades
alternativas de entendimento devem e precisam ser exploradas. Muitas vezes, o mais
simples, o mais banal, torna-se a interpretação preferível (MILARD, 2011, p 7).

56
Diante da variedade de interpretações possíveis para o Óstraco, um novo desenho
e uma nova leitura foram apresentados por Emile Puech (PUECH, 2010, p 162-184):
... Você, (a / o) companheiro / necessitados (?)]
1) não oprime, e servir a Deus: O / a despojado
2) o juiz e a viúva chorou; ele tinha poder
3) no estrangeiro residente e a criança, e
removeu-os juntos.
4) Os homens e líderes / oficiais fizeram um rei.
5) Ele marcou <sessenta> servos entre
comunidades / casas / gerações.53

Ao que nos parece, as semelhanças entre


as traduções são poucas. O conteúdo do
Óstraco, exceto algumas palavras ou partes de
palavras, permanece inalterado. Como já observamos, a questão da afiliação do sítio em
sua estrutura étnica e política, apresenta inúmeras perguntas abertas, às quais foram
oferecidas respostas igualmente conflitantes - filisteu, cananita, judáita (e davídica),
benjamita (e saulida) ... Embora algumas propostas sejam mais plausíveis do que outras, a
natureza especulativa das traduções são claramente manifesta.
No entanto, em termos de avaliação do conteúdo básico, a maioria dos autores
concordam que a inscrição começa com várias palavras de comando que podem ter um
conteúdo ético ou judicial. Afirmam também que o final da inscrição contém palavras
que podem estar relacionadas à política ou governo. A partir destas afirmações, podemos
supor a plausibilidade da função social deste texto para sua época e consequentemente,
sua provável influência nos textos bíblicos.

2.1.3.2 Advertências sobre a escrita do Óstraco

Khirbet Qeiyafa tornou-se notório tanto pela importância histórica do que ele pode
representar para a política e religião de Israel, quanto pelas incertezas de suas descobertas,
que ainda inspiram cuidados técnicos. Há uma divergência de informações ainda não
solucionadas, que disputam o contexto, datação e função do escrito decifrado do Óstraco.
O artigo proposto por Christopher Rollston (2011, p.67-82) questiona os
argumentos de que os achados epigráficos do Óstraco de Khirbet Qeiyafa, sejam

53
Cf. MILLARD, 2011, p.7, com o seguinte texto em francês: ‘ … Toi, (le/ton) compatriote/necessiteux(?)]
1) n’opprime pas, et sers Dieu: Le/a spoliait / 2) le juge et la veuve pleurait; il avait pouvoir / 3) sur l’étranger
résidant et sur l’enfant, et les supprimait ensemble. / 4) Les hommes et les chefs/officiers ont établi un roi.
/ 5) Il a marqué <soixante> serviteurs parmi les communautés/habitations/générations.’

57
características da escrita hebraica. Para o autor, os dados levantados pelas escavações,
realizadas por Misgav, Garfinkel e Ganor em 2007-2008 e publicadas em 2009, embora
sejam excelentes resultados e de caráter superlativo, não possuem dados linguísticos
suficientes para comprovar a classificação hebraica dada a esta inscrição.
Rollston afirma que os problemas associados à tentativa de defender uma
classificação linguística precisa, passam, primeiramente, pela escassez geral de dados
históricos que não podem ser realizados apenas a partir de um fragmento do Óstraco.
A classificação linguística neste contexto, deve levar em conta uma gama de dados
convergentes relacionados à um número considerável de substantivos, além das
delimitações padrão de idiomas e dialetos.
O método usado por Rollston passa pelo exame das várias possibilidades de leitura
do Óstraco, visto que a classificação linguística deste fragmento precisa atender a uma
delimitação dos principais agrupamentos (línguas semíticas orientais e ocidentais)54.
O autor combate o argumento de que o Óstraco está escrito em hebraico, a partir
do diagnóstico de alguns lexemas suspeitos, detalhando dados comparativos semíticos
relevantes. O primeiro deles é a presença da raiz špṭ.55 O achado desta raiz em uma fonte
não pode ser considerado evidência de que este texto é hebraico, afinal, špṭ ocorre em
várias línguas semíticas, não apenas no hebraico. O ponto crítico é que se esta palavra
pode ser atestada em várias línguas semitas como ugarítico, aramaico, fenício, moabita,
amorita e outros, não pode ser considerada um lexema distintivo do hebraico antigo.
Portanto, a evidência destes escritos não pode ser encarada de forma tão simples
pois, em última análise, os dados epigráficos deste sítio não são suficientes para uma
decisão ou uma afirmação mais precisa. O autor sugere cautela na determinação decisiva
para a classificação da língua hebraica.
Rollston concorda que a inscrição seja datada como pertencente à Idade do Ferro,
tendo como base os dados combinados da região geográfica, do horizonte cronológico
básico e do roteiro.

54
Veja os detalhes em: ROLLSTON, Christopher. The Khirbet Qeiyafa Ostracon: Methodological Musings
and Caveats. Emmanuel School of Religion: Tel Aviv, Vol. 38, 2011, p. 68.
55
Na maioria dos textos do Antigo Testamento špṭ tem como significado “fazer justiça”, ondo os oprimidos
são objeto direto na construção do špṭ. Sua análise semântica tem comprovada referências em textos do
Antigo Oriente. Confira em: NIEHR, Herbert. ‫ שָׁ ַפט‬šāpaṭ ; ‫ שֹׁ ֵפט‬šōpēṭ; lead, rule; judge; ruler. In:
BOTTERWECK, G. Johannes and RINGGREN, Helmer. Theological Dictionary of the Old Testament
(TDOT XV). Michigan: Willian B. Eerdemans Publishing Company, 1995, p. 411-431.

58
A localização do sítio como cidade fortificada próxima à fronteira tradicional
entre Judá e Filisteia e sua datação com provas convergentes entre o XI ou X séc. AEC,
são reforçados pelo relatório final sobre as estações de escavação de 2007-2008. A
publicação de tal relatório, trazem três capítulos (14, 14A e 15)56 que tratam da inscrição.
Segundo os autores, a inscrição contém palavras que estão claramente
relacionadas à área de política e governo. Mesmo com as dificuldades de se extrair mais
significados deste texto em seu estágio atual, torna-se possível determinar, no entanto,
sua continuidade de significado, desfazendo a ideia de que o Óstraco seja meramente uma
lista de palavras desconectadas.
Por outro lado, Schniedewind, argumenta que diversos aspectos se apresentam
problemáticos na inscrição, como por exemplo, a inconstância do direcionamento de suas
letras, levando-o a desconfiar que o texto tenha influência Egípcia. De qualquer modo, o
autor não acredita que o texto seja uma atividade escribal que apresente evidências
religiosas (2013, p 65 - 69).
A plausibilidade de que o resultado das traduções do Óstraco e sua datação, sejam
interessantes na comprovação de um movimento de defesa dos socialmente fracos, ganha
mais relevância no relatório proposto por Garfinkel. Os exames epigráficos de uma
segunda inscrição encontrada no sítio, mostram que do ponto de vista paleográfico,
identifica-se uma inscrição como ʾIšbaʿal, com os padrões dos escritos canaanita, da
direita para a esquerda.
Em resumo, o nome ʾIšbaʿal é conhecido no texto bíblico, como sendo um dos
filhos de Saul (1Cr 8.33; 9.39). Outras 11 referências fazem ressonância com o
significado do nome, como por exemplo Isbosete (cf. 2Sm 2.8, 10, 12, 15; 3.8, 14, 15),
com uma possível referência crítica a Saul, que tenta desacreditar sua figura,
transformando ʾIšbaʿal (homem de baal) em ʾIšbōšet (homem de vergonha)57.
Nos séculos seguintes, no entanto, o nome pessoal ʾIšbaʿal ou qualquer outro
nome pessoal com o elemento Baʿal desaparece do contexto bíblico (GARFINKEL et al.,
2015, p.228-231). A associação do nome ʾIšbaʿal com o texto bíblico, no contexto do
século X é evidente. Yigal Levin, nesse aspecto, demonstrou que a importância da

56
Cf. MISGAV, H., GARFINKEL, Y. e GANOR, S. O Khirbet Qeiyafa Ostracon. Em Amit, D., Stiebel,
GD e Peleg-Barkat, O. eds. Novos estudos na arqueologia de Jerusalém e sua região , pp. 111-
123. Jerusalém: Autoridade de Antiguidades de Israel e Instituto de Arqueologia, Universidade Hebraica
de Jerusalém, 2009.
57
Do hebraico = ʾIš – homem+ bōšet - Vergonha

59
inscrição é perceber que o nome bíblico ʾIšbaʿal era realmente utilizado na região de
Israel no tempo e local relatados pelo texto58.
Tendo como base o planejamento do sítio em formato de casamata, os hábitos
alimentares distinto dos filisteus, administração, escrita e localização geográfica,
Garfinkel (2013) defende a pertença Judaíta do sítio usando principalmente a lógica
geográfica. Como demonstramos anteriormente, a proposta de Garfinkel de localização
do sítio a partir destes argumentos foi refutada por contra argumentos apresentados
principalmente por Finkelstein que propõe o contrário.
A hipótese levantada por Finkelstein (2015, p. 76-83) que associa Khirbet Qeiyafa
à dinastia Saulida, com a função de ser um posto avançado de domínio indireto, confirma
a filiação norte. Finkelstein se apoia principalmente nas evidências cerâmicas com traços
e modelos de jarros idênticos aos artefatos encontrados no Norte e o fato de que a
inscrição ʾIšbaʿal mostra fortes traços da tradição nortista de nomes com o final teofórico
baal.
Comparando o argumento dos dois autores, vemos interpretações distintas para os
mesmos detalhes que só contribuem para ampliar ainda mais a polêmica em torno do sítio.
Por outro lado, a asserção feita por Finkelstein parece-nos mais contundentes e por isso
optamos por sua teoria.
De fato, a escavação do local de Khirbet Qeiyafa conta com achados
arqueológicos valiosos, destacados por seu contexto histórico importante em Israel
durante as últimas décadas. Khirbet Qeiyafa lança uma nova luz sobre o 10 º Século
A.E.C, mas ainda é preciso que se esclareça o que se quer iluminar de fato, na pesquisa
histórica e bíblica. Por hora, a coincidência de nome, região, filiação e do texto bíblico
junto ao óstraco, apresentando indícios de uma preocupação social com o estrangeiro, o
órfão e a viúva, talvez revelem uma convergência histórica que ilumine o texto bíblico.

2.1.3.3 O valor social dos achados em Khirbet Qeiyafa


A possibilidade de filiar Qeiyafa com a entidade territorial Norte Israelita, torna-
se bastante plausível pelo fato de que as construções complexas do assentamento, rodeado
por elaboradas muralhas casamata, só eram possíveis no contexto da região Norte,

58
Levin diz que, em certos casos, Baal é utilizado para yhwh como em Bealias (heb./‫ בְּ עַלְּ יָׁה‬bĕʿalyâ), que
significaria “Baal é yah[weh]”, i.e., “Yah é Senhor”. Daí, a importância do uso desta inscrição no texto
bíblico. LEVIN, Y. “Baal Worship in Early Israel: An Onomastic view in Light of the ‘Eshbaal’ Inscrpition
from Khirbet Qeiyafa”. In: Maarav, v. 21, n.1-2, 2014, p. 203-222

60
densamente habitada e com mão de obra excedente. A região de Judá, mesmo sendo mais
próxima geograficamente do sítio, era pouco povoada e demograficamente empobrecida
no contexto do séc. X AEC (Cf. FINKELSTEIN, 2015, p. 74-81).
É possível, portanto, que a primitiva unidade política Saulida Gabaon/Gabaa59
tenha usado Khirbet Qeiyafa como um posto avançado, frente a Gat, a cidade filisteia
mais importante deste período. Esta entidade territorial localizada nas terras altas do Norte
Israelita, apresentam em seu platô um denso sistema de muralhas de casamata, formando
juntamente com Kh. Qeiyafa as únicas construções deste tipo encontradas no oeste do
Jordão.
Segundo Finkelstein (2015, p. 79-80), esta filiação explicaria a origem dos relatos
sobre a presença do rei Saul no vale de Elah (ISm 17.1-3), onde as tropas filisteias
acampam entre Soco e Azeca (geograficamente oposto a Kh. Qeiyafa) e Saul e os homens
de Israel ocupam o outro lado da montanha com um vale entre eles.
A história como é lida hoje (ISm 17.12-58), com a exaltação dos atos heroicos de
Davi, tem certamente a influência da linguagem deuteronomista, com uma ideologia
política judácêntrica, formulada cerca de um século após a queda do Israel Norte
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2006, p. 53-57) e o fato de não nomearem o
acampamento mostra que certos detalhes não eram mais lembrados (2015, p. 80).
Este importante diálogo com a arqueologia nos permite perceber o
desenvolvimento político proeminente no contexto da idade do ferro, marcado pela
concentração de um grande número de assentamentos, numa pequena parte conhecida
como a sefelá, região entre a planície costeira e as terras altas.
O que a arqueologia não consegue dimensionar, a partir de seus achados
epigráficos e nas datações propostas pelos exames de radiocarbono, é o valor social dos
escritos apresentados no sítio. Tanto o Óstraco como a alça de Jarro encontrados em
Khirbet Qeiyafa, contém marcas, mesmo que escassas, do desenvolvimento de um
contexto social, marcado pelo cuidado com o socialmente fraco. Neste sentido, nossos
esforços de diálogo com a arqueologia devem se juntar à capacidade da exegese Bíblica
de narrar a realidade com a preocupação de mostrar a ação de Deus na história humana.

59
Os nomes gaba, Gabaon, Gabaa, derivam da mesma raíz ‫ ָג ֵַּֽבע‬surgindo no texto bíblico como
representação de vários locais que podem supor uma disputada localização para a entidade Saulida. A
identificação Gabaon/Gabaa é mais significativa quando associada aos vestígios do período do Ferro I.
Veja mais detalhes em: ARNOLD, M. Patric. Gibeah: The Search for a Biblical City. Sheffield: JSOT
Press, 1990.

61
Como bem nos lembra José Ademar Kaefer:
“Certamente a arqueologia tem mais facilidade para encontrar sinais que relatam
a estrutura e a organização das cidades e de suas construções- palácios, templos,
muralhas, portões, monumentos -, que falam da vida dos reis, do exército e dos
ricos. Em contrapartida, é mais difícil encontrar artigos, objetos que falam do
cotidiano do povo pobre, das aldeias, das vilas, das casas, das tendas, da vida do
povo nômade.” (KAEFER, 2015, p. 8)
Esta dificuldade de lidar com o cotidiano de povos tão distantes de nós, está longe
de ser uma questão que se possa resolver com preferências ou categorias subjetivas, por
mais subjetivas que sejam as opções de que dispomos, quando o assunto é a formação
social de pequenos agrupamentos humanos.
A compreensão do sentido da vida a partir dos textos bíblicos é que dão
sustentação ao fazer exegético. Ao situar a relevância da história para o estabelecimento
seguro das possibilidades de interpretação dos fatos e textos, a exegese produz uma
margem de sentido relativamente confiável em sua análise diacrônica, oferecendo
caminhos para alcançar o objetivo de compreender o texto e o contexto bíblico.
No horizonte da busca pelo sentido do texto em sua origem histórica, está a defesa
contra eventuais manipulações de cunho subjetivo ou ideológico. Para isso, a exegese usa
o método histórico crítico como elemento fundamental para a verificação científica do
texto.
Assim surge a necessidade de que, no diálogo com os textos bíblicos, os conceitos
sobre a experiência de Deus na vida humana reproduzidos ali, no contexto familial, sejam
compreendidos como marca inesquecível de qualquer religião que proponha o mínimo de
solidariedade, proximidade, caráter pessoal e amor.
Neste sentido, é perfeitamente possível conceber possibilidades de mudança nas
estruturas sociais e políticas nesta região, a partir das transformações causadas pelas
interferências da dominação Egípcia. Estas mudanças sociais ocorrem geralmente a partir
do contexto político, mas também, sob forte influência religiosa, principalmente quando
em um clima de grandes transformações, pretende-se impor novas concepções teológicas,
como é o caso da ideologia real do período imperial que tende a endeusar o rei.
Situados neste contexto sócio-histórico, está presente o caráter religioso que
compõe a base estrutural da vida intracomunitária em Israel. Este sistema dá origem a
dois modelos: o primeiro de uma religião institucionalizada, desenvolvida ao longo da
história e o segundo, que caminha paralelamente a esta, é de uma “religião invisível” de
caráter popular, com profundas raízes antropológicas. Enquanto a primeira é voltada para

62
o coletivo, numa identidade de caráter oficial e global, submetida ao contexto de
dominação, a segunda está mais ligada à família, orientada para o indivíduo dentro de um
grupo mais reduzido.
O mundo simbólico desta religiosidade familiar está orientado fundamentalmente
para as questões de maior proximidade parental, em especial as relações pai -mãe- filho
(ALBERTZ, 1999, p. 50). Em contrapartida, na religião oficial,60 os símbolos nascem de
uma experiência coletiva alternadas entre a autoridade política e as concepções da
divindade.
Isto quer dizer que em meio a diferentes grupos religiosos na comunidade, torna-
se possível discussões que priorizem um sistema de símbolos mais adequado ao seu ponto
de vista, que expresse a identidade e a sobrevivência de seus seguidores. Evidentemente,
estas escolhas não acontecem facilmente sem a intervenção de grupos de oposição política
e religiosa como por exemplo, os profetas.
É interessante notar que a configuração político-religiosa que compõe os
primórdios da história Israelita surge com maior força nos centros de culto do período
inicial da monarquia, aparecendo no texto bíblico, geralmente em formas diversas
como: santuário sem nome, 1Sm 10.1; Gibeá-Eloim, 1Sm 10.5, 10; Gilgal, 1Sm 11.15;
Mispa,1Sm 10.24; Nobe, 1Sm 21-22.
Embora pesquisas tenham sido realizadas no contexto das descobertas da cultura e
religião israelita a partir destes espaços, nenhuma se ocupou das múltiplas possibilidades
de fontes presentes neste espaço, que nos remete à constatação de um complexo sistema
cultural-religioso, crescente e fronteiriço neste local.
Visualizar uma religião israelita primitiva que nos oferece conexões de pluralidade
e ligação com suas fronteiras, centrada em pontos heterodoxos da reinterpretação
teológica, nos permite perceber as vozes dissonantes diante de um sistema opressor. Neste
sentido, a experiência do tribalismo em Israel com pressupostos sociais, políticos e
religiosos divergentes do regime monárquico (SILVA, 2015, p. 255), colocou em
evidência a traumática interferência da ideologia real herdada dos grandes reinos
vizinhos.

60
Por religião oficial, entende-se a religião javista, com concepções distintas de personagens que
desempenham funções concretas nas instituições religiosas e políticas em Israel como os sacerdotes, os
anciãos e a corte. Para mais detalhes ver: ALBERTZ, 1999, p. 55-92.

63
Embora, estudos recentes61 mostram que a proposta de um “projeto tribal”, que
perpassa toda a literatura bíblica, denunciando os poderes centralizadores das monarquias
e mantendo acesa a utopia dos pequenos na luta por um mundo mais igualitário e justo,
não possui a magnitude que antes se imaginava, o constante conflito entre a monarquia e
estas pequenas aldeias comunitárias, promoveu, mesmo que paralelo, um modo de
governo popular, fraterno e de partilha.
É na experiência fronteiriça destes pequenos grupos, que surgem resistências às
contradições sociais tão marcantes neste tempo, que transparecem nos códigos legais. A
defesa de um grupo com características tão específicas como o estrangeiro, o órfão e a
viúva, não se faz por acaso. Este grupo social possui papéis bem definidos ao longo da
história política e religiosa das civilizações em diferentes épocas (Cf. FRIZZO, 2011, p.
16-17), o grau de importância atribuído a eles pode facilmente ser verificado nos aspectos
econômicos-sociais, profundamente atrelados ao modo de produção agropastoril.
Khirbet Qeiyafa nos dá pistas de um movimento já estruturado. Evidencia a herança
cultural de estruturas e tradições de longa duração, que realçam a experiência de grupos
sociais que gritam por seus direitos. O texto bíblico faz essa mesma trajetória, herda de
suas origens históricas contradições sociais importantes que expõem alto grau de
violência para com setores marginalizados da sociedade, mas evidenciam as leis que
tentam suplantar esta violência. São os marginalizados da Bíblia, marcados pela tríade
social que podem desempenhar um papel relevante no contexto sócio-político,
reivindicando seus direitos como “trabalho, alimentação, justiça, terra e liberdade”
(FRIZZO, 2011, p. 17).

2.1.4 Considerações parciais

Nossa proposta até aqui, seguiu na tentativa de encontrar referências consensuais


aos grupos marginalizados, presentes na literatura extrabíblica. A relativa atenção que
estes grupos recebem, de forma quase que equivalente em vários contextos históricos,
mostra-nos sua importância social e econômica para seu tempo. O papel relevante deste
grupo, representado aqui pela Tríade Social evidencia um apelo permanente e renovado
de proteção a estes indefesos.

61
Veja mais detalhes em: KAEFER, J.A. Um pueblo libre y sin reyes – La función de Gn 49 y Dt 33 en la
composición del Pentateuco, Asociación Bíblica Española / 44, editorial Verbo Divino, Estella, 2006.

64
Todo o arcabouço jurídico produzido nas diferentes épocas e em povos distintos em
torno deste tema, revela-nos a recorrente situação de opressão e violência experimentado
pela Tríade Social. As leis e as normas que apelam à sensibilidade e à responsabilidade
de proprietários de terras e monarcas, tem como eixo a orientação e a punição da
divindade, que se apresenta como doador da terra e da fertilidade.
O fato de que o tema da proteção e defesa dos socialmente fracos esteja tão presente,
não somente nos códigos legais e nos ambientes da corte, mas também no contexto de
vida das pequenas comunidades, como é o caso de Khirbet Qeiyafa, revela-nos a questão
fundamental desta tese, pois o apelo ao cuidado com o estrangeiro, o órfão e a viúva, não
surge de atos misericordiosos da realeza ou da classe dominante, sua gênese está
necessidade de quem sofre.
A Tríade Social no contexto de sua marginalidade, torna-se foco do conceito de
resistência. Situação que ganha mais força quando o sistema opressor persiste por longo
tempo e insiste em manipular as pessoas, negando-lhes dignidade para manter o poder. O
desenvolvimento de um sistema tradicional que garanta os aspectos físicos e sociais do
estrangeiro, do órfão e da viúva, são essenciais neste processo.
A contribuição que a arqueologia nos dá neste percurso, é a possibilidade de
desenterrar artefatos que mostram o desenvolvimento de uma cultura material, que se abre
em um horizonte de possibilidades, nos permitindo a partir da exegese Bíblica, interpretar
e dar sentido à vida em sua conjuntura social.
Ao compreender a relativa atenção que os socialmente fracos recebem no contexto
da literatura extrabíblica, somos desafiados a olhar para dentro, para o contexto da
intertextualidade da Bíblia. Nossa percepção é que a literatura veterotestamentária,
absorve com muita propriedade este tema, dando continuidade à saga de um povo que
sofre, mas resiste.

2.2 A Tríade Social na literatura veterotestamentária

Identificar o contexto social de um povo não constitui uma tarefa fácil. É preciso
dar um passo além dos parâmetros já estabelecidos na pesquisa, na tentativa de enxergar
as entrelinhas daquilo que se pretende investigar.
As construções monumentais de templos e palácios, podem até pressupor
determinado grau de organização social, mas é preciso perguntar como foram construídos
e sob que circunstâncias (KESSLER, 2009, p. 30). Do mesmo modo, os artefatos escritos,

65
encontrados no entorno de Israel, mesmo sendo uma rica fonte epigráfica, são
documentos que falam de relações sociais, econômicas e jurídicas daquelas sociedades
que produziram estes documentos.
Na maioria dos casos, a transposição destas relações para o contexto de Israel se faz
por analogias. Em posse desta herança material, Israel transpõe para seu contexto a
reconstrução de uma estrutura administrativa consolidada nas administrações Egípcia e
Mesopotâmica. No entanto, mesmo em uma estrutura menos desenvolvida, os
testemunhos escritos e não escritos desempenham um importante papel na reconstrução
histórico-social de Israel.
Embora o Antigo Testamento seja um livro preponderantemente teológico, que
teoricamente o classificaria como uma literatura de caráter mais ficcional do que histórico
(KESSLER, 2009, p. 34), há nele um diálogo intenso com a história, onde uma série de
relatos e acontecimentos são atestados por fontes extrabíblicas, desde a época da
monarquia. São estes relatos que colocam em evidência aspectos singulares entre as
fontes bíblicas e as literaturas em seu entorno, principalmente quando pensamos em
códigos legais.
Dentre estes acontecimentos está o relato do Êxodo. A experiência do êxodo é o
campo primordial onde se firma a teologia do Antigo Testamento. Independente de qual
seja a corrente hermenêutica que o analise, o êxodo é o ponto central onde se consolida a
concepção histórica da Torá e o início dos ideais constitutivos para Israel.
Neste ambiente, as noções de direito divino estão intrinsecamente ligadas às linhas
fundamentais do Código da Aliança, tendo como referenciais o lugar e a presença de
Deus, bem como o acolhimento ao socialmente frágil, que coloca o pobre no centro da
história e em contato direto com a misericórdia divina.
Ao identificar os elementos de defesa da Tríade Social na literatura
veterotestamentária, somos desafiados, em primeira instância, ao desenvolvimento de
uma visão panorâmica daquelas referências bíblicas onde ocorrem os termos em seu
conjunto, para logo em seguida, investigar sobre qual contexto se expressa o lugar social
do Estrangeiro, do órfão e da viúva.
É o que faremos neste capítulo.
A partir desta base ampla que desejamos estabelecer entre o panorama de
ocorrências e a intenção delas no texto bíblico, teremos como fundamento para o
próximo capítulo, uma sondagem mais específica do ambiente teológico onde a
presença da Tríade Social é bem mais difundida e frequente.

66
2.2.1 O panorama das ocorrências relativas à Tríade Social

Ao analisarmos o texto bíblico, encontramos muitas referências à grupos


economicamente fracos e legalmente dependentes, principalmente quando tratamos do
estrangeiro rGEï, do órfão ~At±y" e da viúva hn"ôm'l.a;.

O panorama sobre as ocorrências relativas a esta Tríade Social acontece no texto


bíblico em repetidas circunstâncias e em certa frequência, nos permitindo em primeira
aproximação, a constatação de alguns dados:

• Observando cada uma destas palavras isoladamente temos o seguinte número de


ocorrências62 em todo o texto da Bíblia Hebraica: estrangeiro Rge 92 vezes; órfão

~At±y" 42 vezes; viúva hn"ôm'l.a; 55 vezes.

• A menção ao órfão e à viúva acontece 12 vezes nos seguintes livros: Êx 22.21,


23; Is 1.17, 23; 9.26; 10.12, Jr 49.11; Sl 68.6; 109.9; Jó 22.9; 24.3; Lm 5.3.
• A tríade social repete-se 18 vezes no Antigo Testamento, na seguinte sequência:
11 vezes no Deuteronômio (Dt. 10.18; 14.29; 16.11; 16.14; 24.17; 24.19; 24.20;
24.21; 26.12; 26.13; 27.19), 2 vezes em Jeremias (Jr 7.6; 22.3), 1 vez em Ezequias
(Ez. 22.7), 1 vez em Zacarias (Zc 7.10), 1 vez em Malaquias (Ml 3.5), 2 vezes em
Salmos (Sl 94.6; 146.9).

Em cada um dos textos citados, os termos relativos ao estrangeiro, órfão e viúva,


expostos em contextos diversos e isolados do sentido da tríade social, ocorre em sua
grande maioria em situações referentes a grupos de pessoas vulneráveis economicamente
e legalmente dependentes.

62
Cf. LISOWSKY, Gerhard. Konkordanz Zum Hebräischem Alten Testament. Stuttgart: Deutsche
Bibelgesellschaft. 1968.

67
Pensando na projeção que se faz da Tríade Social no Antigo Testamento, temos o
seguinte quadro63:

Chama a nossa atenção o fato de que os termos: órfão ~Aty"; e viúva hn"m'l.a;,
aparecem sempre juntos e nesta mesma sequência “órfão e viúva”. A ocorrência desta
dupla acontece em poucos casos, distribuídos entre o pentateuco, os Profetas Posteriores
e os Escritos, com uma tímida preferência pelo Proto Isaías, com quatro ocorrências na
mesma seção.
O contexto de frequente denúncia profética pela culpabilidade dos dirigentes de
Judá e anúncio da catástrofe nacional formam o pano de fundo destas referências no Proto
Isaías.

63
Tabela elaborada pelo autor, tendo como base a obra: LISOWSKI, Gerhard. Konkordanz zum
Hebraischen Alten Testament. Deutsche Bibelgesellschaft Stuttgart: Printed in Germany, 1981

68
Quando conectados ao substantivo “estrangeiro”, este sempre antecederá à dupla,
produzindo a tríade “estrangeiro, órfão e viúva”, mantendo esta mesma sequência e
ordem. O estrangeiro Rge, quando observado de forma isolada, aparece em grande maioria
das ocorrências no contexto do indivíduo que sozinho ou com sua família, deixa sua aldeia
ou tribo por causa da guerra, fome ou crimes de sangue, procurando abrigo em outro lugar
onde seus direitos são reduzidos. Das 92 ocorrências na Bíblia Hebraica sobre o
estrangeiro, a maior parte está concentrada nos livros de Levíticos e Deuteronômio.
Nossa escolha pelo Deuteronômio é evidente. Nesta primeira observação, já é
possível notar sua predileção pelo tema da defesa da Tríade Social, a partir do número de
ocorrências, confirmando uma tendência narrativa importante, de caráter ideológico
segundo o qual, Javé assume a função comum nos códigos legais do Antigo Oriente,
colocando-se como protetor dos pobres e fracos em seu reino.
O surgimento de grupos de pessoas vulneráveis, narrados sempre na mesma ordem
e sequência, nos mostra a ação de um legislador que pensa de forma lógica e organizada.
Os vínculos temáticos existentes entre o Deuteronômio e os povos assírios,
babilônicos e persas (RÖMER, 2010, p.299-302), revelam sua capacidade de redigir e
editar os temas que compõem a História de Israel, usando em suas obras documentos mais
antigos, retocando-os de acordo com a necessidade. Estas evidências expõem certa
tendência típica da redação Deuteronomista que se espalham pelos demais textos onde a
referência ao tema da defesa dos grupos sociais marginalizados é frequente.
Certamente, o Deuteronomista com sua teologia da fidelidade absoluta a Javé e a
prática da justiça e do direito, torna-se, em sua vocação litúrgica e didática, o lugar ideal
para a difusão do tema relacionado a esta Tríade Social. Fica claro que os respectivos
textos do Deuteronômio, deixam transparecer um forte apelo à defesa de grupos marginais
ameaçados socialmente, principalmente o conjunto social composto pelo estrangeiro,
órfão e viúva.

2.2.2 Circunstâncias éticas das referências à Tríade Social

Faz-se importante notar que as referências à Tríade Social no Texto bíblico


obedecem a um elaborado sistema ético, colocando em pauta a frequente referência às
medidas alimentares. Das onze ocorrências da Tríade Social no Deuteronômio, oito estão
relacionadas à estas necessidades básicas, distribuídas na seguinte forma:

69
• Duas referências às Festas das semanas e Festas dos tabernáculos - Dt. 16.9-12 e
Dt 16. 13-15
• Três referências ao Dízimo – Dt 14.28-29 e Dt 26.12-13
• Três referências à partilha dos excedentes da colheita – Dt 24.19-21

As referências externas ao Deuteronômio estão relacionadas a questões legais,


jurídicas ou de denúncia, sem necessariamente tocar no assunto das questões alimentares.
Citamos aqui algumas delas:
Ex 22.20-21 – “O estrangeiro não afligirás, nem o oprimirás; pois estrangeiros fostes
na terra do Egito. A nenhuma viúva nem órfão afligireis”.
Sl 46.6 – “Matam a viúva e o estrangeiro, e ao órfão tiram a vida”.
Sl 146.9 – “O Senhor guarda os estrangeiros; sustém o órfão e a viúva, mas
transtorna o caminho dos ímpios”.
Jer. 7.6-7 – “Se não oprimirdes o estrangeiro, e o órfão, e a viúva, nem derramardes
sangue inocente neste lugar, nem andardes após outros deuses para vosso próprio mal,
Eu vos farei habitar neste lugar, na terra que dei a vossos pais, desde os tempos antigos
e para sempre”.
Mal. 3.5 – “Chegar-me-ei a vós para juízo; e serei uma testemunha veloz contra os
feiticeiros, contra os adúlteros, contra os que juram falsamente, contra os que
defraudam o diarista em seu salário, e a viúva, e o órfão, e que pervertem o direito do
estrangeiro, e não me temem, diz o Senhor dos Exércitos”.

Estas referências nos indicam que no Deuteronômio as medidas alimentares estão


circunscritas no contexto de sua defesa à Tríade Social, impondo certa tendência narrativa
ao tratar da defesa dos socialmente frágeis na sociedade. De forma mais ampla,
abordaremos este assunto no capítulo seguinte, quando trataremos das abordagens
metodológicas sobre a defesa do Estrangeiro, do órfão e da viúva na legislação
deuteronômica.

2.2.3 A Tríade Social no contexto histórico do Deuteronômico

O Deuteronômio compõe uma parte significativa e importante de nossa pesquisa,


tanto por apresentar o maior número de ocorrências de nosso objeto de interesse
(estrangeiro, órfão e viúva), quanto pelo lugar de destaque que este livro ocupa no cânon
massorético. Além de concluir os relatos e coleções da torá, torna-se também introdução

70
da obra historiográfica de Josué, Juízes, Samuel e , que na Bíblia Hebraica formam os

nevi’im ‫יאים‬
ִ ‫ – נְ ִב‬Profetas (a primeira parte dos profetas – profetas anteriores).

Pode-se dizer que o Deuteronômio reúne três chaves de leituras fundamentais que
estão presentes no Antigo Testamento, muito semelhante à TaNaK64: 1. A Torá
(instrução), também conhecida como lei, que está presente no Deuteronômio em sua
porção legislativa, no contexto em que indica as práticas diretivas diante de questões
difíceis e conflitivas, 2. O profetismo, que motiva os ouvintes com sua oratória fluente e
a partir da leitura da conjuntura social, propõe de forma convincente uma mudança radical
e 3. A sabedoria, que abre os olhos do povo para a realidade.
Esta estrutura tem como finalidade uma constante busca por educar, produzindo
discernimento e conhecimento histórico, com o objetivo de levar o homem à realização
da vida. Do ponto de vista formal, o Deuteronômio está esquematicamente estruturado
sob estes três componentes básicos: Lei, exortação e história, possibilitando boa
articulação no processo de formação dos textos.
O código de leis no deuteronômio, expresso em forma de decálogo, reflete
mudanças ideológicas na religião javista com proibições e exigências de exclusividade
(RÖMER, 2008, p. 130). É possível supor, no entanto, que paralelamente a este
movimento legislador, que tentava manter viva a consciência de um projeto institucional,
caminhavam as forças de resistência de grupos que protestavam contra um javismo
garantidor das instituições.
Estes grupos, supostamente formados por profetas, pela família e pelo povo,
defendiam que Javé sempre havia sido o garantidor da liberdade, bem mais que isto,
defendiam que Javé era garantidor da liberdade dos politicamente oprimidos, contra a
prepotência dos politicamente opressores.
O Deuteronômio desenvolve-se, portanto, como uma ficção literária que reflete a
situação concreta de grupos residentes na babilônia (RÖMER, 2008, p. 125). A intenção

64 TaNaK (hebraico: ‫)תנ״ך‬, ou Tanakh , é um acrônimo para a Bíblia Hebraica que consiste nas letras
hebraicas iniciais (T + N + K) de cada uma das três partes principais do texto. Como o antigo idioma
hebraico não tinha vogais claras, os sons vocálicos subsequentes foram adicionados às consoantes,
resultando na palavra TaNaK. As principais porções da Bíblia Hebraica representadas por essas três letras
são: Torá (‫ )תורה‬que significa "Instrução" ou "Lei", também chamado de " Pentateuco "; Nevi'im (‫)נביאים‬
que significa "Profetas"; Ketuvim (‫ )כתובים‬que significa "Escritos". Esta parte do Tanakh é separada em
diferentes seções, incluindo um grupo de livros de história, livros de sabedoria, livros de poesia e salmos.
Cf. New World Encyclopedia contributors, "TaNaK," New World Encyclopedia, https://www.newworl
dencyclopedia.org/p/index.php?title=TaNaK&oldid=1030791. Acesso em 22 de novembro de 2020.

71
é torná-los contemporâneos de Moisés, pois no contexto do exílio, com o
enfraquecimento da monarquia, todas as instituições importantes e sua narrativa
concentram-se no período das origens.
Dirigindo-se diretamente a seus ouvintes, os deuteronomistas atribuem a Moisés
as funções de representação da divindade e de transmissão da lei, que tradicionalmente
eram dadas ao rei. A partir deste ponto, a lei de Moisés passa a ser o critério para todos
os líderes do povo.
A ideia de que o Deuteronômio surge como uma interpretação completamente
nova da multiplicidade dos mandamentos divinos, até então considerados uma lista de
proibições da tradição jurídica Israelita (VON RAD, 1973, p. 202-205) pode ser revista.
Por outro lado, sua novidade está no oferecimento de uma pedagogia da liberdade e da
justiça, que a partir do relato exódico da origem, criam paralelos de construção de uma
sociedade em aliança fiel com Deus, que traz libertação e vida a todos.
Como já observamos no capítulo anterior, paralelos comuns desenvolvidos entre
o texto bíblico e os códigos de leis do Antigo Oriente como os códigos de leis assírios e
Hamurabi, foram copiados sistematicamente pelos escribas deuteronomistas (RÖMER,
2008, p. 85) e suscitam no Deuteronômio uma dimensão subversiva onde o suserano de
Judá não é o rei assírio e as divindades que ele representa, mas Javé.
É notório que o texto bíblico, em sua defesa aos grupos marginais, apresenta-se
de forma consensual com textos legais, narrativos, proféticos ou sapiencial do Mundo
Antigo (Cf. BENNETT, 2002, p.55-68), reiterando um criterioso exame dos aspectos
jurídicos. Há, no entanto, certo caráter ideológico e segregacional presente nas
entrelinhas do deuteronômio. Após o exílio babilônico, assumem os Persas com um
novo modelo administrativo, permitindo o retorno e estabelecimento dos exilados em
sua terra, promovendo uma nítida distinção entre os que retornaram e a população rural
que havia permanecido na Palestina.
Este grupo formado por membros da classe alta que retornara da Babilônia,
considerava-se o “verdadeiro Israel” excluindo, portanto, toda a população não exilada,
estabelecendo uma nítida divisão entre os “de dentro” e os “de fora” (RÖMER, 2008,
p. 169). Estes membros da diáspora eram denominados golah, enquanto a população
rural, que havia permanecido na palestina era chamada de “povo da terra”.
Segregação, monoteísmo e integração dos interesses da golah eram as maiores
preocupação desse grupo que desejavam manter seu status de superioridade diante do
povo sem romper com os laços econômicos importantes tratados com a antiga

72
Babilônia. Esta distinção de classes produziu, ao mesmo tempo, conflitos de ordem
social e ideológico que ameaçavam a existência de outros grupos.
A pobreza crescente causada pelo rápido processo de urbanização a partir de um
grande número de imigrantes na sociedade Israelita, produziu modificações importantes
nas bases tradicionais e religiosas de solidariedade familiar (Cf. KIDD, 1999, p. 44).
No Deuteronômio, como se pode verificar pelo número de ocorrências, as
referências à Tríade Social, expõe conflitos muito mais profundos na sociedade. Mais
certo é, que esta preocupação social exposta de forma tão concreta, seja resultado da
perturbação das estruturas clânicas e familiares tradicionais no conflito com os
membros da golah.
A predileção dada ao cuidado com a Tríade Social pelo Deuteronômio, ganha,
portanto, nova dimensão, pois realçam, em tom apodítico, a defesa destes grupos
marginais, colocando-os no contexto dos socialmente fracos.

2.2.4 Considerações parciais

O caminho que trilhamos até aqui é uma tentativa de construção das relações
sociais, econômicas e jurídicas que permeiam o contexto vivencial da Tríade Social. O
diálogo que o Antigo Testamento faz com a história e as leis de povos que o antecederam
é fundamental neste processo, para entendermos as linhas gerais que ligam os elementos
de defesa dos socialmente fracos à misericórdia divina.
É revelador perceber que as ocorrências frequentes ao estrangeiro, órfão e viúva
obedecem a critérios específicos e muito bem intencionados, indicando uma forma
ideológica redacional com fortes influências deuteronomistas. A propósito, a predileção
do Deuteronômio pela Tríade Social, apresentando o maior número de casos em toda a
Bíblia, reforçam a percepção de que há um conflito teológico permanente onde grupos
se contrapõem na tentativa de encontrar seu espaço e defender seus interesses.
Diante de tal condição, entender o processo de formação do texto, bem como o
sentido aplicado pelo Deuteronomista à defesa da Tríade Social, torna-se fundamental
para a produção de uma hermenêutica que valorize as forças que emergem das margens
sociais.
Evidentemente, este é um primeiro passo que nos direcionará a outra reflexão na
tentativa de compreender os paradigmas que se podem produzir a partir desta
abordagem literária. Sabemos, porém, que este não é um caminho fácil. Ao ler o

73
Deuteronômio, temos a sensação de estar diante de uma obra complexa, pois, ficamos
confusos ao identificar a que gênero este livro pertence. Afinal, estamos diante de um
Discurso? uma Narrativa? um segundo Código legal? um Documento de aliança? Na
verdade, o livro é tudo isso e mais um pouco.
O Deuteronômio se constitui de grandes discursos, desenvolvidos à sombra
mitológica de Moisés, com narrativas entrecruzadas de exortações, prescrições e
formulários de aliança. Por estas características, a ideia de que o Deuteronômio se
apresenta estruturalmente como uma espécie de arquivo65 torna-se bastante razoável.
Nosso próximo passo é buscar no Deuteronômio, a partir de uma abordagem
metodológica, o que se esconde por trás das ditas, “leis sociais”. O crucial neste
momento é tentar ouvir as vozes do estrangeiro, do órfão e da viúva e buscar identificar
a partir das narrativas de uma comunidade em aliança com Javé, se os pressupostos para
uma sociedade justa e igualitária atingem realmente as necessidades dos socialmente
fracos.

65
Veja em: SILVA, 2011, p 57-96

74
Capítulo 3. Abordagem metodológica sobre a
defesa do estrangeiro, órfão e viúva na legislação
deuteronômica.

3.1 O Deuteronômio em seu ambiente teológico

O livro do Deuteronômio (Dt) e a Obra Historiográfica Deuteronomista (OHD)


formaram-se a partir da junção de diversos blocos literários, que se estende de Dt 1 a 2Rs
25. Segundo Erich Zenger (ZENGER, 1996, p. 94-96), a fase mais antiga (Dt 12 – 26) é
uma coletânea de leis sem nexo narrativo que surge no tempo do Rei Ezequias (700 AEC),
tendo como inspiração o Código da Aliança apresentado em Ex. 20.22 - 23.33.

Concebido pela tradição judaica e cristã como um longo discurso de Moisés,


exposto numa espécie de testamento (Dt 1-30) e finalizado por suas últimas ações e morte
(Dt 31-34) (RÖMER, 2008, p. 11-15), o Deuteronômio torna-se importante discurso na
tentativa de unificação da religião, economia e política, a partir da ideologia de
centralização66.

As prescrições referentes ao culto exclusivo a Javé e a observância do calendário


litúrgico das festas do povo de Israel têm sua base na reformulação dos textos de Ex
20.24-26 e Ex 34.10-26, onde a liturgia dos israelitas poderia ser realizada em honra a
Javé sobre os altares e santuários espalhados pelo país. No Deuteronômio, o templo em
Jerusalém torna-se o ponto central de toda a liturgia e todo o culto.
Com um viés teológico mais próximo do contexto de Jerusalém67, as concepções
mais comuns versam que este “Deuteronômio de Ezequias”, foi ampliado sob o Reinado

66 Thomas Römer entende o círculo de escribas e intelectuais como os possíveis deuteronomistas,


então, ele opta por considerá-los uma ‘escola’ de autores, redatores ou compiladores que compartilham da
mesma ideologia e possuem as mesmas técnicas retóricas e estilistas. A ideologia de centralização
deuteronomista, tende a “corrigir” o início do assim chamado “código da aliança” que possibilitava a
construção de altares em vários lugares (bekol-maqôm). Na fórmula de centralização nos v.14.11.5 de Dt
12 há, para ele, uma evolução. Este desenvolvimento da fórmula de centralização corresponde com a tríplice
edição da OHD nos períodos assírio, babilônico e persa. Cf. RÖMER, Thomas. A chamada História
Deuteronomista: introdução sociológica, histórica e literária. Petrópolis: vozes, 2008 p. 51-70.
67 Rainer Albertz observa que a orientação dos legisladores deuteronômicos se concentra na teologia
cúltica de Jerusalém e sua preocupação se dirige especialmente aos interesses de Josias. Na teologia de
Sião, há ocasiões em que a identificação de Javé com Jerusalém (Sl 46.5ss; 48.2ss) é elevada ao nível da
decisão pessoal com Deus (Sl 76.3; 132.11). Na teologia deuteronômica é frequente a ideia de “eleição”,
com referência à cidade de Jerusalém (IRs 8.16,44,48; 14.21; IIRs 21.7; 23.27) Cf. ALBERTZ, Rainer.
Historia de la religión de Israel em tiempos Del Antiguo Testamento. Vol. 1 de los comienzos hasta el final
de la monarquía. Madrid: Editorial Trota, 1999, p 241-255

75
de Josias (622 AEC), constituindo no tempo do Exílio e parte do Pós-Exílio sua porção
mais abrangente. Esta concepção, no entanto, começa a ser superada à medida em queas
narrativas do Deuteronômio apontam clara influência de grupos sacerdotais e escribas
judaítas com aspectos de realidade histórica (RÖMER, 2008, p. 135-157).
A Obra Historiográfica Deuteronomista é, portanto, uma coletânea de escritos
resultante de uma confluência de tradições, que podem ser institucionalizadas ou não,
com a finalidade de formar uma didática de ensino, tendo como base as histórias que
relatam o passado, na tentativa de decidir sobre o futuro.
Exortações e exigências são elementos importantes na composição do gênero
literário do Deuteronômio, juntamente com as narrativas. Poderíamos dizer que o texto
deuteronômico é em seu sentido estrito, legislativo, repleto de forças persuasivas que se
apoiam nas principais tradições que comunicam a Israel o sentido de sua existência.
Quando nos referimos às forças persuasivas existentes no Deuteronômio, falamos
de uma religiosidade que tentava manter os ideais de um javismo pré-monárquico, como
forma de protesto ao desenvolvimento teológico proposto por sacerdotes e teólogos da
corte que vinculavam Javé a um local sagrado.
A concepção teológica que se desenvolve em torno do templo central em
Jerusalém, se caracterizou inicialmente a partir do monopólio sacerdotal dos sadoquitas
(IRs 4.2), que estavam vinculados às tradições cúlticas pré-israelitas. Uma síntese de
concepções israelitas e cananeias funcionaram como base para a religião Javista, na
tentativa de responder com mais exatidão às transformações políticas e sociais advindas
do desenvolvimento da monarquia (ALBERTZ, 1999, p. 241-255).
A realeza de Javé e a apresentação de Jerusalém como cidade de Deus, foram os
núcleos principais onde se desenvolveu a nova teologia do Templo de Jerusalém,
elaborada por sacerdotes e teólogos da corte. As vantagens desta concepção teológica
tornam evidentes a sustentação da continuidade de uma dinastia davidíca, sem deixar de
lado, certos pontos de conexão com a política, economia e cultura de povos vizinhos.
A teologia de Jerusalém, influenciada pelo contato com a religião ugarítica68
acrescentou à concepção da Realeza de Javé uma nova matriz bem mais incisiva, que

68 Ugarit também conhecida como Ras Shamra, estudada por escavações arqueológicas desde 1929,
forneceu documentos importantes que se tornaram fonte de informação para a compreensão da religião e
cultura cananeia, revelando seus mitos relativos ao panteão regidos pelos deuses ’el e ba’al. Os estudos
sobre Ugarit proporcionaram um importante pano de fundo para a compreensão não só do hebraico antigo,
como também da formação cultural, política e religiosa de Israel. Cf. FHORER, 2006, p. 54; BROWN,
1986, p. 20; VAUX, 1976. P 477.

76
chegou a ser o traço típico da religião Javista. Javé passa a ser chamado de Rei das nações,
desenvolvendo um caráter mitológico no campo da história política, capaz de produzir,
juntamente com as antigas experiências de libertação, um pretenso Estado Israelita com
um Rei universal, senhor de deuses e povos (ALBERTZ, 1999, p. 248).
Esta composição teológica que vincula Javé intimamente a um lugar específico,
neste caso Jerusalém, se fez com elementos evidentes do sincretismo herdado de povos
vizinhos69. Se nas origens da religião Javista a característica principal era sua vinculação
com um pequeno grupo de nômades, agora o culto oficial em Jerusalém elabora uma
tradição salvífica independente, onde Sião passa a ser o centro absoluto de toda atividade
cúltica e política.
Nos textos deuteronômicos (Cf. Dt 12.18-26; 1Rs 8.16-44) esta associação com

Sião é interpretada com o vocábulo eleição ‫ ְב ַּחר‬. Esta atividade cúltica com a

centralização em Jerusalém tornou-se a base principal da reforma deuteronomista, onde


os grupos de legisladores encontravam apoio nas elucubrações teológicas sobre Jerusalém
e o significado do templo.
Junto a este contexto, os sacerdotes levíticos70 desempenhavam funções
importantes na história deuteronomista, impondo ao povo a observância da lei (Dt 27.9-
26), validados pela narrativa de que em companhia dos anciãos, os sacerdotes levitas
recebem de Moisés a versão escrita desta lei para serem proclamadas durante a celebração
litúrgica da festa das tendas (Dt 31. 9-13).
Uma leitura mais atenta ao deuteronômio, no entanto, nos permite observar que
uma violência explícita perpassa estes textos legislativos, legitimando a prática da
intolerância religiosa a partir da proposta da reforma josiânica (Cf. MONTEIRO DE
MATOS, 2020).
As novas descobertas arqueológicas suscitadas no debate entre os arqueólogos
Israel Finkelstein e Amihai Mazar71 nos permite observar que os principais momentos

69 Um dos exemplos são os traços bem aproximados com a religião de Ugarit onde se podem detectar
estágios da tradição de um antigo hino de Israel Norte que assume uma identificação entre Javé e baal (Sl
29) e de Sião com a montanha sagrada dos deuses (Sl 48.3; Is 14.13) Cf. ALBERTZ, 1999, p. 244-246).
70 Segundo Rainer Albertz esta é uma fórmula deuteronômica para se referir aos sacerdotes de
Jerusalém. Cf. ALBERTZ, 1999, p 413ss.
71
Três décadas de diálogo, discussão e debate dentro das disciplinas inter-relacionadas de
arqueologia siro-palestina, história israelita e Bíblia hebraica sobre a questão da relevância do relato bíblico
para reconstruir a história de Israel primitiva criaram a necessidade de uma articulação equilibrada do
questões e suas resoluções futuras. O debate entre os arqueólogos Israel Finkelstein e Amihai Mazar

77
redacionais do texto bíblico e consequentemente o deuteronômio, são datados entre os
séculos VII e V A.E.C, atribuídos às épocas de Josias e Esdras respectivamente, quando
a força da teocracia sacerdotal se fazia predominante.
De posse dos arquivos arqueológicos, pouco se pode provar sobre a historicidade
da reforma de Josias. Os dados arqueológicos são difíceis de serem interpretados. As
tentativas de provas da centralização, cultivadas a partir do declínio do santuário de Arad,
supondo que haviam sido derrubados pelo exército de Josias não encontram respaldo na
datação de construção, restabelecimento e decadência deste santuário.
Por outro lado, a construção de um forte em Arad sob o reinado de Manassés ou
de Josias deixam dúvidas se o fato do não reestabelecimento deste santuário seria a
indicação de uma ligação com a crescente importância de Jerusalém no tempo de Josias
(RÖMER, 2016, p. 190-191).
Do ponto de vista narrativo, as transgressões cúlticas previstas na Obra
Historiográfica Deuteronomista, assumem lugar de destaque. A centralização do culto
torna-se um de seus principais pontos teológicos, desenvolvendo critérios unilaterais que
esvaziam as denúncias contra as injustiças sociais e as transgressões éticas e políticas.
Ao fortalecer a exaltação de Javé como Deus único de Israel, tendo como
consequência a adesão de todo o povo como adoradores exclusivos de Javé, legitima-se,
de certo modo, a violência, usando traços da ideologia militarista assíria e relacionando-
a com Javé e seu povo. Römer afirma que a centralização do culto implica também na
centralização da economia e da política (2008, p.11) e sem uma estrutura clara, misturam
leis privadas e leis públicas numa perspectiva altamente ideológica judaíta.
A tentativa pela criação de uma história abrangente entre Israel e Judá, que
costumamos chamar de Historiografia deuteronomista, revela muito mais um ensaio de
“modelagem” de um passado distante estruturado sob ideologias desenvolvidas nas crises
dos períodos neobabilônico e exílico, com o objetivo de explicar o presente.
Neste caso, o presente se fazia diante da dominação persa e o exílio torna-se um
elemento fundante para o desenvolvimento ideal de um “Israel monárquico”.

ocorrido em outubro de 2005 no International Institute for Secular Humanistic Judaism – IISHJ – de
Farmington Hills, MI, USA, resume bem este contexto. Veja em: FINKELSTEIN – MAZAR, 2007.

78
3.1.1 As leis sociais deuteronômicas e seu cuidado com os miseráveis

O Código Deuteronômico (Dt 12 - 26) e as reflexões teológicas sobre o significado


da lei (Dt 6 – 11) têm relação direta com o Código da Aliança (Ex 20.22 - 23.33),
formando uma espécie de substituição dos elementos mais antigos da lei e influenciando
nos traços decisivos para uma nova revisão literária, que tem como objetivo proporcionar
a unidade de Deus (monoteísmo) e a integralidade daqueles que se relacionam com Ele.

Termos como aliança ‫ ְב ִרית‬, torá ‫ּתֹורה‬


ָ e as concepções sobre o Deus uno, aliados

ao conceito de eleição ‫ ָב ַּחר‬, localizam-se teologicamente na história da libertação do

povo e na exigência de uma fidelidade integral, desde que Israel foi conclamado a se
dedicar à Javé “com toda a alma e todo o coração e toda a sua força” (CRÜSEMANN,
1999, p. 283-287).
É verdade que a grande maioria dos estudos exegéticos deuteronômicos apontam
para um conjunto de leis humanitárias que parecem ser mais avançadas do que a tradição
legal que o antecede, como por exemplo os códigos Mesopotâmicos, Assírios e
Babilônicos citados no primeiro capítulo. Não se pode negar, contudo, a presença de

textos que promovem o ‫( ֲח ֵּרם‬banir, destruir) na tentativa de regular suas fronteiras (cf.

Dt 3.6; 7.2; 13.16; e 20.17), pois mesmo que sejam relatos de uma ficção literária
(CRUSEMANN, 2006, p. 230), representam um pensamento recorrente que deturpa o
sentido de consciência social defendidos no contexto do Deuteronômio.
Estamos diante de um paradoxo. De um lado temos um código que busca
implantar no imaginário Israelita, um conjunto regulador de novas práticas onde a
inclusão dos elos mais frágeis da sociedade se faz na lógica da bênção e da solidariedade,

sob o princípio da misericórdia (‫) ֶח ֶסד‬. De outro, nos damos conta de haver certa ironia

quando o Deuteronômio repete os atos imperialistas de seus colonizadores, mandando


exterminar os povos vizinhos.
Nossa tarefa hermenêutica será trabalhar os conflitos e esperanças contidos neste
conjunto de textos, buscando perceber onde se localiza a resistência deste grupo marginal.
Esta tarefa será ampliada pelo fato de estarmos diante de um livro pedagógico por
excelência, que promove uma retórica reativa às práticas de dominação, que influencia
toda a leitura do texto bíblico.

79
De fato, há uma força importante no Deuteronômio que atua como uma espécie
de elo entre a Torá e os Profetas Anteriores, fornecendo uma síntese teológica para a
Bíblia Hebraica, mas é preciso olhá-lo com desconfiança a partir de uma crítica retórica
aos paradigmas já estabelecidos.
Como podemos observar, a história Deuteronomista é um trabalho literário repleto
de tradições e muitos afluentes que sinalizam diversos acréscimos e laços ideológicos em
sua constituição. Quando nos propomos a analisar exegeticamente, as perícopes que
destacam o tema da atenção à Tríade Social72, fazemo-lo na expectativa de que sejamos
capazes de ouvir também as vozes silenciadas daqueles que vivem à margem social.
Cada uma destas perícopes deixa transparecer o contexto de determinado
momento da sociedade, construído em etapas históricas. Provavelmente este conjunto de
textos nos permitirá reacender as discussões sobre quais eram os atores em torno do
desenvolvimento de normas jurídicas que propõe especial atenção aos direitos dos
socialmente fracos.
Na intenção de conhecer melhor as normas jurídicas que dedicam especial atenção
ao estrangeiro, órfão e à viúva, em um determinado contexto social, buscamos neste
capítulo, compreender o texto bíblico em si. As ideias, as intenções e a forma literária do
texto, serão trabalhadas nesta seção a partir dos critérios propostos pela Crítica da Forma.
Assumiremos na análise exegética dos textos selecionados (Dt 10.12-22; 14.28-
29; 16.9-17; 24.17-22; 26.12-15; 27.11-16), os princípios da análise histórico sociológica
como metodologia básica. Os passos utilizados para este trabalho seguem os seguintes
níveis: 1. Tradução; 2. Delimitação e estrutura do texto; 3. Gênero literário; 4. Análise de
conteúdo. Mesmo que apresentada de forma implícita no texto, manteremos o devido
cuidado com os padrões exegéticos, sabendo que esta ordem poderá sofrer ligeiras
modificações, caso seja necessário atender ao conteúdo e à estrutura de determinada
perícope.

72 O Deuteronômio possui seis perícopes destinadas ao tema do cuidado com o estrangeiro, órfão e
viúva (Dt 10.12-22; 14.28-29; 16.9-17; 24.17-22; 26.12-15; 27.11-26).

80
3.2 E agora, o que Javé teu ’elohim pede a ti?Dt 10.12 – 22

O tema da terra é central em toda a História Deuteronomista, é frequente as


afirmações sobre o fim da monarquia, a destruição de Jerusalém e a perda da terra como
resultado da ira de Javé.73
O livro do Deuteronômio repete constantemente a promessa de Javé em dar a terra.
Suas leis, especialmente as que insistem na centralização do culto e na adoração exclusiva
a Javé, funcionam como critérios para manter o povo prezo a este sistema. Aqueles que
não respeitam o tratado de Javé perdem automaticamente este direito.
Este importante conjunto de leis conhecido como Código Deuteronômico, que em
sua fase inicial é composto por um texto jurídico relativamente curto, recebe ajustes e
enquadramento histórico, que ampliam o texto, incluindo na legislação litúrgica leis
socioeconômicas (KRAMER, 2006, p.28).
O documento deuteronômico desenvolvido neste período a partir da releitura de
Dt 12-26 é mais voltado para o tema da Aliança. Este documento da Aliança é emoldurado
por um prólogo histórico (Dt 1-4), onde narra a descrição do tempo da peregrinação do
Povo de Israel pelo deserto, no trajeto do Monte Horeb até Moab. O capítulo 4 reflete
sobre estes acontecimentos, insistindo na singularidade de Israel diante de outros povos
e funcionando como uma chave de leitura da versão mais antiga (cap. 5). O capítulo 5 é
a base que estipula e define as relações estabelecidas pelo decálogo.
Römer defende a hipótese de que o capítulo 5 é a versão deuteronomista do
decálogo, concebido como uma espécie de resumo de todo “corpus legal” (RÖMER,
2008, p. 12), mantendo uma coerência narrativa até o capítulo 28 (CARRIÈRE, 2002, p.
28).
Os capítulos 6 – 11 servem como uma espécie de pregação do deuteronomista que
tenta colocar em prática os mandamentos de Javé, apoiando-se nas narrativas sobre os
feitos Dele, desenvolvendo a questão central que é o tema da Aliança. O capítulo 10 está
nesta ótica, está construído sobre a estrutura de uma renovação da aliança, cujas
exigências são principalmente temer, amar e servir a Javé.

73
Para Römer, estes discursos são os pilares que organizam a história deuteronomista em diferentes
períodos. Os discursos mais importantes estão em: Dt 1-30; Js 1.1-9; Js 23; Jz 2.6-3.6; ISm 12.1-15; IRs 8;
2Rs 17. Cf RÖMER, 2008, p. 119.

81
3.2.1 Dt 10.12 – 22: Tradução

‫ׁש ֵּ ֵֹׁ֖אל ֵּמ ִע ָ ֑מך‬ ‫ֹלהיך‬


ֵֶ֔ ‫ֱא‬ ‫הוִ֣ה‬
ָ ְ‫ָ ָ֚מה י‬ ‫יִ ְש ָר ֵֵּ֔אל‬ ‫וְ ַּע ָּתה‬12
pede a ti? teu Deus que YHWH Israel E agora
‫ל־ד ָר ָכיו‬
ְ ‫ְב ָכ‬ ‫ָל ֶל ֶֶ֤כת‬ ‫ֹלהיך‬
ֶֶ֜ ‫ֱא‬ ‫ֶאת־יְ הוָ ה‬ ‫ם־ליִ ְר ָאה‬
ְ ְ֠ ‫ִ ִ֣כי ִא‬
em todos os para andar teu Deus a YHWH que tema
teus caminhos (portanto)
ֵ֖‫ל־ל ָב ְבך‬
ְ ‫ְב ָכ‬ ‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫ֱא‬ ‫הוִ֣ה‬
ָ ְ‫ֶאת־י‬ ‫וְ ַּ ֵֽל ֲעבֹׁד‬ ‫ּול ַּא ֲה ָ ִ֣בה א ֵֹׁ֔תֹו‬
ְ
em todo teu teu Deus a YHWH e para servir e para amá-lo
coração
‫ת־חק ֵָֹׁ֔תיו‬
ֻ ‫וְ ֶא‬ ‫יְ הוָ ה‬ ‫את־מ ְצֹוֶ֤ ת‬
ִ ‫מר‬
ֹׁ ֹ֞ ‫ ִל ְׁש‬13 74‫ּוב ָכל־נַּ ְפ ֶ ֵֽׁשך׃‬
ְ

e seus estatutos de YHWH os para guardar e em toda a tua


mandamentos vida
‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫ֱא‬ ‫יהוִ֣ה‬
ָ ‫ ֵּ ָ֚הן ַּל‬14 ‫ְל ֵ֖טֹוב ָ ֵֽלך׃‬ ‫ְמ ַּצּוְ ךֵ֖ ַּהי֑ ֹום‬ ‫ֲא ֶ ֶּׁ֛שר ָאנ ִ ַֹּׁ֥כי‬
teu Deus Veja, a para o teu bem te ordeno hoje que eu
YHWH
‫ר־בּה׃‬
ֵֽ ָ ‫ל־א ֶׁש‬
ֲ ‫וְ ָכ‬ ‫ָה ָ ֵ֖א ֶרץ‬ ‫ַּה ָש ָ ֑מיִ ם‬ ‫ּוׁש ֵּ ִ֣מי‬
ְ ‫ַּה ָש ַּ ֵ֖מיִ ם‬
e tudo que nela a terra dos céus e os céus os céus
há (pertencem)
‫ְבזַּ ְר ָעִ֣ם‬ ‫וַּ יִ ְב ַֹּ֞חר‬ ‫אֹותם‬
֑ ָ ‫ְל ַּא ֲה ָ ִ֣בה‬ ‫הוֵ֖ה‬
ָ ְ‫ָח ַּ ַּׁ֥שק י‬ ‫ ַּ ַ֧רק ַּב ֲאב ֶ ֶֹּׁ֛תיך‬15
como e escolheu-os para amá-los se ligou YHWH certamente, a
descendência (elegeu) teus pais
‫ַּכיַּ֥ ֹום ַּהזֶ ה׃‬ ‫ל־ה ַּע ִ ֵ֖מים‬
ָ ‫ִמ ָכ‬ ‫ָב ֶכֶּ֛ם‬ ‫יהם‬
ֶֶ֗ ‫ַּא ֲח ֵּר‬
como no dia de dentre todos os a vós mesmos depois deles
hoje povos
‫ַּ֥ל ֹׁא ַּת ְק ֵׁ֖שּו ֵֽעֹוד׃‬ ‫וְ ָע ְר ְפ ֵֶ֔כם‬ ‫ְל ַּב ְב ֶכ֑ם‬ ‫ֵּ ֵ֖את ָע ְר ַּלִ֣ת‬ ‫ּומ ְל ֶֶּּ֕תם‬
ַּ 16
não endurece e vossas nucas dos vossos os prepúcios e circuncideis
mais corações
‫וַּ ֲאד ֵֹּׁנֵ֖י‬ ‫ֹלהים‬
ִֵ֔ ‫ָ ֵֽה ֱא‬ ‫ֹלהי‬
ִ֣ ֵּ ‫ָ֚הּוא ֱא‬ ‫יכם‬
ֵֶ֔ ‫ֱא ֵֹֽל ֵּה‬ ‫הוִ֣ה‬
ָ ְ‫ ִ ָ֚כי י‬17
e senhor dos deuses ele é Deus vosso Deus Pois YHWH
‫ֲא ֶׁשר לֹׁא־יִ ָ ִ֣שא‬ ‫ּנֹורא‬
ֵ֔ ָ ‫וְ ַּה‬ ‫ַּהגִ בֹׁר‬ ‫ָה ֵּאל ַּהגָ ֶ֤ד ֹׁל‬ ‫ָה ֲאד ִֹׁנ֑ים‬
que não e o terrível o poderoso o Deus grande dos senhores
favorece

74 O conceito de ‫ש‬ ׁ ‫ – ֶנ ֶפ‬nefeš, apresenta, além de pequenas variantes, certa polissemia que aparecem
desde as camadas mais antigas, até as mais recentes no Antigo Testamento. Dependendo de seu contexto e
uso, há vários significados possíveis: garganta, vida, pessoa, desejo, pescoço, etc. Seu sentido mais original
está ligado especificamente, de forma concreta à respiração e revela a essência de um ser necessitado de
vida. Cf. WOLFF, Hans Walter. Antropologia do Antigo Testamento. São Paulo: Edições Loyola, 1975,
p.22-41; SIQUEIRA, Tércio Machado. Tirando o pó das palavras: história e teologia das palavras e
expressões específicas. São Paulo: Editora Cedro, 2005, p.24-25; LYS, Daniel. Nèphèsh. Histoire de
l’âmedanslarévélation d’Israëlauseindesreligionsproche-orientales. Paris: PressesUniversitaires de France,
1959. (Études d’histoire et de philosophiereligieuses, 50).

82
‫ִמ ְׁש ַּ ַּ֥פט‬ ‫ע ֶ ֶֹּׁ֛שה‬18 ‫ֵֽׁש ֹׁ ַּחד׃‬ ‫וְ ַּ֥ל ֹׁא יִ ַּ ֵ֖קח‬ ‫ָפ ִֵ֔נים‬
direito faz suborno e não aceita pessoas
‫ָ ַּ֥ל ֶתת‬ ‫ֵ֔ ֵּגר‬ ‫וְ א ֵּ ִֹׁ֣הב‬ ‫וְ ַּא ְל ָמ ָנ֑ה‬ ‫יָ ֵ֖תֹום‬
para dar o estrangeiro e ama e a viúva ao órfão
‫ִ ֵֽכי־גֵּ ִ ַּ֥רים‬ ‫ת־ה ֵּג֑ר‬
ַּ ‫ֶא‬ ‫וַּ ֲא ַּה ְב ֶ ֵּ֖תם‬19 ‫וְ ִש ְמ ָ ֵֽלה׃‬ ‫לֵ֖ ֹו ֶל ֶַּ֥חם‬
porque o estrangeiro e ama e cobertor a ele pão
estrangeiros
‫ֹלהיך‬
ֶּ֛ ֶ ‫ֱא‬ ‫הוַ֧ה‬
ָ ְ‫ ֶאת־י‬20 ‫ִמ ְצ ָ ֵֽריִ ם׃‬ ‫ְב ֶ ַּ֥א ֶרץ‬ ‫יתם‬
ֵ֖ ֶ ִ‫ֱהי‬
teu Deus a YHWH do Egito na terra fostes
‫ִּת ָש ֵּ ֵֽב ַּע׃‬ ‫ּוב ְׁש ֵ֖מֹו‬
ִ ‫ּובֹו ִת ְד ֵָ֔בק‬
ִ֣ ‫א ִֹׁ֣תֹו ַּת ֲע ֑בֹׁד‬ ‫ירא‬
ֵ֖ ָ ‫ִּת‬
jurarás e em seu nome e nele te a ele servirás temerás
apegarás
‫ִא ְּת ֶ֗ך‬ ‫ר־ע ָ ִ֣שה‬
ָ ‫ֲא ֶׁש‬ ‫ֹלהיך‬
֑ ֶ ‫וְ ִ֣הּוא ֱא‬ ֵ֖‫ְת ִה ָל ְתך‬ ‫ ַּ֥הּוא‬21
a ti que realizou e ele é teu é o teu louvor ele
Deus
‫ֵּע ֶינֵֽיך׃‬ ‫ֲא ֶ ַּׁ֥שר ָר ֵ֖אּו‬ ‫ָה ֵֵּ֔א ֶלה‬ ‫ת־הּנֵֽ ָֹוראֹׁת‬
ַּ ‫וְ ֶא‬ ‫ת־הגְ ד ֹֹׁלֶ֤ ת‬
ַּ ‫ֶא‬
teus olhos que viram estas E temíveis grandes
‫וְ ַּע ֶָּ֗תה‬ ‫ִמ ְצ ָ ֑ריְ ָמּה‬ ‫ֲאב ֶ ֵֹׁ֖תיך‬ ‫ֵֶ֔נ ֶפׁש יָ ְר ַּ֥דּו‬ ‫ ְב ִׁש ְב ִ ִ֣עים‬22
e agora ao Egito teus pais Pessoas com setenta
desceram
‫ָל ֵֽר ֹׁב׃‬ ‫ַּה ָש ַּ ֵ֖מיִ ם‬ ‫כֹוכ ֵּ ַּ֥בי‬
ְ ‫ְכ‬ ‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫ֱא‬ ‫הוִ֣ה‬
ָ ְ‫ָ ֵֽש ְמך י‬
numerosas dos céus como as teu Deus te colocou
estrelas YHWH

12. E agora Israel, o que Javé teu Deus pede a ti? Que tema, portanto, a Javé teu Deus,
para andares em todos os teus caminhos, para amá-lo e servir a Javé teu Deus de todo o
teu coração e em toda a tua vida. 13. Para guardar os mandamentos de Javé e seus
estatutos, que eu hoje te ordeno, para o teu bem.
14. Veja: a Javé teu Deus pertencem os céus e os céus dos céus, a terra e tudo que nela
há. 15. Certamente, a teus pais se ligou Javé para amá-los e escolheu-os como
descendência e depois deles, a vós mesmos, dentre todos os povos, como no dia de hoje.
16. Circuncidados prepúcios dos vossos corações e vossas nucas não endurece mais, 17.
Pois Javé vosso Deus é Deus dos deuses e Senhor dos senhores. O grande Deus, poderoso
e terrível, que não favorece pessoas (em detrimento de outras) e não aceita suborno; 18.
faz direito ao órfão e a viúva e ama o estrangeiro, para dar a ele pão e cobertor. 19. Então,
ama o estrangeiro, porque estrangeiro fostes na terra do Egito.
20. A Javé teu Deus temerás, a ele servirás e nele te apegarás e por teu nome jurarás.

83
21. Ele é o teu louvor, ele é o teu Deus que realizou em ti, estas coisas grandes e temíveis
que viram seus olhos. 22. Com setenta pessoas, desceram teus pais ao Egito e agora te
colocou Javé teu Deus, como as estrelas numerosas do céu.

3.2.2 Temer, amar e servir a Javé é o centro de tudo

A delimitação do início e do fim de uma perícope faz-se necessário, por seu caráter
diversificado, pois muitos textos podem ter sido incorporados a um relato bíblico, sem
uma razão evidente entre sua ordem e sucessão. Delimitar o texto é permitir saber qual é
a mensagem expressa nele, qual é o sentido atribuído pelo emissor, do contrário, o texto
não seria meio de comunicação entre emissor e destinatário e sim, mera realidade física.75
Nosso texto é marcado pelas fórmulas de início e fim, já consagradas no estudo

exegético. O uso da partícula conjuntiva ‫“ו‬e” associado à partícula adverbial temporal

‫ ַּע ָּתה‬, (agora) formando o termo ‫ וְ ַּע ָּתה‬é muito utilizado para introduzir a frase de

abertura, que em seguida, expressa uma sequência de declarações que enaltecem a


fidelidade e o amor incondicional de Javé. A transição entre o texto anterior (10.1-11) e
nossa perícope (10.12-22), fica também bastante evidente com a mudança de assunto.
A conclusão da narrativa se dá no verso 22, pois este, cita dois aspectos
quantitativos no desejo de exaltar o crescimento numérico da comunidade israelita a partir
da onipotência de Javé: “Com setenta pessoas, desceram teus pais ao Egito e agora te
colocou Javé teu Deus, como as estrelas numerosas do céu.” Como exemplo típico de
uma hipérbole retórica (PINHEIRO, 2013), este verso realça as citações presentes em Ex
1.5 e Dt. 26.5, tratando-se de um verso adicional, utilizado na conclusão narrativa, diante
do desafio de ocupar a terra (THOMPSON, 2008, p. 145).
A perícope em estudo está no movimento do conjunto dos capítulos 6 a 11 do livro
do Deuteronômio e parece surgir como um relato em segunda instância sobre a renovação
da aliança com Javé. A proclamação da exigência de exclusividade de Javé com verbos
quase sempre no futuro, seguida de motivações apoiadas na grandeza de Javé, enunciam
uma experiência sobre quem realmente é Javé.

75 Para mais detalhes sobre métodos exegéticos ver: SIMIAN-YOFRE, H. Metodologia do Antigo
|Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

84
Temer‫יָ ֵּרא‬, amar‫ ָא ַּהב‬e servir‫ ָע ַּבד‬é o centro motivador destes textos que circulam

em torno do Shema Israel (Dt 6.4-9) e ao mesmo tempo que dita as exigências da aliança
e as fundamenta na prática principal do mandamento do amor a Javé. A articulação
teológica entre o domínio do cosmos e os atos de Javé na história fundamenta a reflexão
sobre quem é Javé e qual é a sua importância para a continuidade da experiência76 de Javé
em Israel.
O tema da identidade divina e seu relacionamento exclusivo com Israel são
preponderantes no texto e se desenvolve em três blocos que compõem esta unidade

literária: vv. 12-15; 16-19; 20-22. Marcados pelo termo teu Deus ‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫ ֱא‬, descrito na

segunda pessoa do singular, esta identidade se apresenta em forte coesão no texto.

Por quatro vezes o termo ‫ֹלהיך‬


ֵֶ֔ ‫ ֱא‬surge nos versos 12 e 14, acompanhado do uso

de pronomes possessivos na segunda pessoa do singular: “com todo o teu coração” e


“com toda a tua vida”(v12); “te ordeno” e “para o teu bem” (v13); “com teus pais”
(v.15). No segundo bloco (v16-19), a diferença acontece na mudança abrupta inserida na
redação onde a forma passa do singular para a segunda pessoa do plural: “vossos
corações” e “vossas nucas” (v16); “vosso Deus” (v17) e “ama” (v19).
Percebe-se, portanto, nestas observações, uma mudança de estilo imposta ao texto
que, depois do terceiro bloco, retoma o uso da segunda pessoa do singular. Ao concluir a
narrativa neste terceiro bloco, o estilo é bem semelhante ao primeiro, pois retoma o termo

‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫ ֱא‬citando-o três vezes (v 20, 21, 22), agora, conclamando Israel a cultuar a Javé,

considerando seus grandes feitos em prol do povo.


Poderíamos pensar então em uma estrutura com a seguinte ordem:
I – Introdução (v.12 – 15)
A – O que Javé pede?
B - O que Javé oferece?
II – Discurso sobre a Aliança (v. 16 – 19)
A – Mudança de vida

76 O sentido de Experiência aqui está apoiado na tese desenvolvida por Walter Benjamin que articula
o conceito de Experiência ao conceito de Conhecimento. Para Benjamin, é a partir da linguagem que
Experiência e Conhecimento se convergem e torna palpável a mediação de uma real experiência de Deus.
Cf. BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1989; PIRES, Gurgel Eloísa. Experiência e Linguagem em Walter Benjamin. Educ. Pesqui.,
São Paulo, v. 40, n. 3, p. 813-828, jul./set. 2014. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ep/v40n3/aop1524.pdf

85
B – Atributos de Javé
C – Reconhecimento
III – Exortação (v. 20 – 22)
A – Caminhar com Javé
B – Promessas

Entre os versos 12 – 15 encontramos várias menções exaltando a Javé e


favorecendo a compreensão da estrutura literária. Ao iniciar com uma conclamação à
observância da lei, abre-se uma introdução e um pedido de atenção especial quanto àquilo
que Javé requer das lideranças de Israel. Amar e servir a Javé de todo o coração e em toda
a vida, constitui-se num dos temas essenciais desta relação que precisa ser exclusiva,
como podemos ver em: Dt. 6.4-9; 7.1-11; 10.12-22; 26.1-15; 26.16-19 (cf. ROSE, et.al,
2009, p. 265).

ֻ ‫“ יְ הוָ ה ִמ ְצֹוֶ֤ ת וְ ֶא‬mandamentos de Javé


Nota-se que a utilização do termo ‫ת־חק ֵָֹׁ֔תיו‬

e estatutos” produzido no verso 13, identifica-se com os vocábulos correspondentes ao


“shema Israel” em Dt. 6.4-9, conferindo ainda mais força à expressão.

Mandamentos ‫ ִמ ְצֹוֶ֤ ת‬e estatutos‫ ֻחק ֵָֹׁ֔תיו‬são uma espécie de binômio muito utilizado

pelos autores deuteronomistas, tornando-se uma “marca registrada” do livro. Quando

associados a termos como ‫ ֵּעדּות‬testemunho e ‫ ִמ ְׁש ָפט‬direito, (Dt 4.45; 6.2; 8.11; 10.1-

3; 11.1; 28.15,45; 30.16), constituem talvez a confluência entre uma tradição legal própria
do Javismo e outra distante a esta, (LIEDKE, 1978, p. 874). Para Jean-Marie Carriere,
este pode ser o indício de uma síntese jurídica produzida no Deuteronômio que une de
maneira inovadora “leis” e “costumes”.
Esta associação pode ser uma indicação de que a lei deuteronômica na época de
Josias resulta na fusão de dois tipos de direito: aquele produzido nas esferas oficiais
oriundos de decretos do rei e de funcionários da corte e aquele em curso nas cidades de
Israel, originado dos ciclos mais populares (cf. CARRIERE, 2005, p. 26 – 28).
Os versos 14 e 15 surgem como contrapartida dos efeitos da aliança entre Israel e
Javé. “Veja: a Javé teu Deus pertencem os céus e os céus dos céus, a terra e tudo que
nela há. Certamente, a teus pais se ligou Javé para amá-los e escolheu-os como
descendência e depois deles, a vós mesmos, dentre todos os povos, como no dia de hoje.”
Reforçando ainda mais a ideia de vínculo entre Israel e o Deus uno.

86
O antigo vínculo usado para identificar as tribos de Israel e servir de sinal de
pertença a Javé é, agora, retomado sob a figura de uma adesão interior que ultrapassa os
limites da primeira aliança. O apelo a um ritual religioso, como a circuncisão, abre a
segunda parte da narrativa (v.16 – 19), numa espécie de discurso sobre o que Javé espera
desta aliança. O gesto de “circuncidar o coração” e não se deixar endurecer a mente
(v.16b) convoca a todos para que se façam responsáveis na adesão e disponibilidade aos
mandamentos divinos.
Após esse clamor à mudança de vida, o ouvinte é conduzido a se lembrar dos
atributos de Javé: Sua grandeza e integridade (v.16 e 17) e sua justiça (v.18). Javé é
descrito como um soberano juiz (Dt. 16.19), ao utilizar um processo jurídico no desejo
de oferecer um veredicto em prol dos desvalidos (ALONSO-SCHÖKEL, 1970, p. 305).
A ação divina, produzida aos moldes da imparcialidade do direito, voltada para os
grupos socialmente vulneráveis, realça o modo de ação de Javé. A atenção especial de
Javé para com a tríade social denuncia a violação e a negligência destes direitos por parte
da sociedade Israelita.
É interessante observar que o ponto de ligação entre os versos 18 e 19, se faz na

utilização do termo estrangeiro ‫גֵּ ר‬, que assume no texto um apelo à memória,

promovendo uma justaposição entre os atributos de Javé e o que ele espera da comunidade
israelita. Israel deve imitar ao seu Deus na prática da justiça, tendo por base a recordação
dos fatos grandiosos de sua libertação do Egito.
No terceiro Bloco da narrativa, retoma-se o discurso voltado para a segunda
pessoa do singular. Nos versos 20 – 22, a comunidade é exortada a caminhar com Javé
(20). A exigência de entrega total “a Javé teu Deus temerás...” e da prática cultual “Ele
é o teu louvor...”(21), estão acompanhadas da promessa das grandes realizações de Javé
no passado (22).
Parece haver neste caso uma intenção dos autores em unir a fase dos patriarcas
“Com setenta pessoas, desceram teus pais ao Egito” e a realização das promessas feitas
à Abraão, “e agora te colocou Javé teu Deus, como as estrelas numerosas do céu.”Neste
paralelismo sinonímico (WEGNER, 1998, p. 90-92), tais autores reforçam a necessidade
de exclusividade nesta parceria que envolve Israel e Javé.

87
Como já percebemos a perícope em estudo não pertence ao conjunto da obra
considerada mais antiga do Dt, intitulada Código Deuteronômico77. O Capítulo 10 parece
ser um acréscimo ao livro, ocorrido ao longo dos anos que sucederam à morte do rei Josias
(609 AEC).
Enquanto a reforma empreendida por Ezequias parece ter deixado sua marca na
tradição, passando perto, talvez, de uma construção hipotética de conjunto, a reforma
empreendida por Josias, desenvolvida a partir de 622 AEC, não se limitou aos aspectos
cúlticos somente, mas desenvolveu uma autêntica renovação social, nacional e religiosa
(ALBERTZ, 1999, p. 370 – 372).
Neste período o livro recebia os capítulos referentes ao decálogo (Dt 5) e mais
tarde, os relatos oriundos da chegada na terra (Dt 1-3) e as tradições vindas do Sinai (Dt
9-10), formando a primeira edição da Obra Historiográfica Deuteronomista a chamada
“narração Josiânica de posse da terra”.
Para Joseph Blenkinsopp, estes acréscimos teriam ocorrido em um período tardio,
pelos judeus da diáspora mesopotâmica, como resultado de mais um estágio redacional
imposto ao livro (1999, p. 220 – 225).

3.2.3 Uma aliança fiel com Javé

Percebemos em Dt 10.12-22, portanto, a articulação de um ponto central que se


resume no tema da exclusividade do culto à Javé e na adesão de seu desejo de instaurar a
igualdade entre todos os membros da comunidade.

A utilização dos verbos temer ‫ ;יָ ֵּרא‬andar/seguir ‫ ; ָה ַּלך‬amar ‫ ; ָא ַּהב‬servir ‫; ָע ַּבד‬

guardar ‫ ָׁש ַּמר‬, promovem e exaltam de forma mais enfática a figura de superioridade de

Javé, favorecendo a compreensão da estrutura literária. O texto começa com a


conclamação à observância das leis (v12), para depois apresentar a identificação de Javé

(v14), concluindo com a eleição ‫ ְב ַֹּ֞חר‬divina e sua preferência por Israel (v15).

77 Há inúmeras propostas para as etapas literárias impostas ao Dt, que convergem para a ideia central
de que o conjunto da obra, tem seu processo redacional entre o reinado de Ezequias (700 AC) e Josias (622
AC), findando no período Persa (540 AC). Cf. BRAULIK, G. O Livro do Deuteronômio, in: ZENGER,
Erich. et.al. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução de Werner Fuchs. Belo Horizonte: Edições
Loyola, 1996, p. 96 - 112; CRÜSEMANN, Frank. A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo
Testamento. Rui de Janeiro: Vozes, 1999, p 283 – 382; ZENGER, 1996, p. 94-96; THOMPSON, J. A.
Deuteronômio, Introdução e comentário. São Paulo: Vida nova, 2008, p. 14 – 30; KRAMER, Pedro. Origem
e legislação do Deuteronômio. São Paulo: Paulinas, 2006, p.11-16.

88
Na abertura do diálogo entre Javé e seu povo, as consequências da demanda
imposta a Israel, acontece em um tom questionador.

‫ׁש ֵּ ֵֹׁ֖אל ֵּמ ִע ָ ֑מך‬ ‫ֹלהיך‬


ֵֶ֔ ‫ֱא‬ ‫הוִ֣ה‬
ָ ְ‫ָ ָ֚מה י‬ ‫יִ ְש ָר ֵֵּ֔אל‬ ‫וְ ַּע ָּתה‬12
pede a ti? teu Deus que YHWH Israel E agora
A expressão adverbial e agora ‫ וְ ַּע ָּתה‬que abre o diálogo, realçando as

consequências e nos benefícios da obediência exclusiva a Javé, têm como pano de fundo
a prática fundamental a ser vivida por Israel. Tanto em Dt 10.12 como em 4.1, Israel é
exortado a obedecer aos decretos apresentados por um Deus que lhe é exclusivo e único,
este tom solene coloca Israel como sujeito principal no diálogo, impondo-lhe uma atitude
que será capaz de garantir ou não a felicidade da comunidade religiosa (cf. v. 13 e 15).
O paralelo que se faz entre Dt 10.12-15 e parte do decálogo (Dt 5.2-7 e Ex 20.1-
3), exaltando a exclusividade de Javé, destacam um comportamento que deve pautar
muito mais por uma conduta comportamental do que emocional. Esta afirmação se
justifica diante dos inúmeros verbos e repetições que visam convocar Israel frente a uma
divindade que não é mais única, mas, Um. Javé coloca-se em primazia e exclusividade
diante das demais divindades.

“12bQue tema, ‫ יָ ֵּרא‬portanto, a Javé teu Deus, para andares em todos os teus
caminhos, para amá-lo e servir a Javé teu Deus de todo o teu coração e em
toda a tua vida. 13. Para guardar os mandamentos de Javé e seus estatutos, que
eu hoje te ordeno, para o teu bem.”

Na sequência do verbo temer ‫ יָ ֵּרא‬unem-se a ele, outras importantes práticas, já

expressados nas primeiras páginas do Dt, como é o caso do substantivo (‫) ָכל־‬, traduzido

como totalidade, que é repetidamente utilizado nos versos 12, 14 e 15, na tentativa de
evidenciar como deve ser a ação de Israel diante de seu Deus.
Estas frequentes repetições que são típicas do Deuteronômio têm em seu processo
evolutivo de formação a junção e integração de vários conjuntos de textos. Este modelo,
que segundo Kramer, determina o estilo narrativo conhecido como “modelo de blocos”
(KRAMER, 2000, p. 12), prescreve a centralização da liturgia como um processo
embrionário para as leis de centralização do culto no templo de Jerusalém.
Kramer ilustra o processo de composição do Deuteronômio como um rio com
muitos afluentes, que influenciaram significativamente seu conteúdo teológico:

89
Um afluente que vai desembocar no rio, que é o livro do Deuteronômio, são
os temas teológicos como o êxodo dos hebreus do Egito, a estadia no monte
Horeb e a caminhada pelo deserto, presentes nas narrações mais antigas do
Pentateuco. Outro afluente são os oráculos dos Profetas Oséias, Amós e
Jeremias. Mais um afluente que desemboca suas águas no Deuteronômio são
algumas coleções de leis, que só nele se conservaram, e o decálogo ético, Dt
5,6-21. Outro afluente é o conteúdo mais antigo nos livros de Josué até 2, que
se encontra nas camadas mais recentes do Deuteronômio. Estes afluentes são
as raízes literárias do Deuteronômio. (KRAMER, 2006, p. 14 e 15)

Confirma-se, portanto, que as raízes históricas do Deuteronômio, formadas por


estes muitos afluentes, dão a sua contribuição na forma de exclusividade tão debatida em
nosso texto. O tema da crença em um Deus diferente dos deuses vizinhos a Israel, está
bem evidenciado nos elementos utilizados para reforçar a fidelidade ao criador. Um Deus
que deve ser exaltado acima dos demais: “céus e os céus dos céus” (v.14).
Este recurso que também está presente em IRs 8.27 e no Sl 148 .4, é uma espécie
de superlativo que exaltam os atributos de Javé.
Sendo o Deuteronômio este discurso que prioriza o aprendizado, que proporciona
uma pedagogia da liberdade e da justiça, que promove a pregação de uma aliança fiel com
Javé, que tem em seu histórico um passado de realizações e um futuro de possibilidades,
torna-se fácil perceber que o aspecto central de nosso texto (Dt. 10.12-22), compõe a
necessidade de que a legislação fundada no decálogo (Dt 5.1-21), seja aqui inculcada,
reprisado, repetido, devido à sua urgência e importância.
A defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva é componente intrínseco nesta
fidelidade esperada, daqueles que buscam a Javé como referencial. Neste aspecto, é
preciso que o povo aprenda a viver em liberdade e a construir relações econômicas,
políticas e sociais justas, a fim de que a vida em sociedade apresente os sinais de um Deus
vivo que convoca seu povo a escolher entre a liberdade e a escravidão, entre a vida e a
morte.
Na tentativa de atualizar a mensagem do Deuteronômio, o autor deste bloco, que
certamente viveu muito tempo depois da narrativa (CARRIERE, 2002, p. 53-59), apela
para a conversão ao povo de seu tempo. Na clara intenção de fazer uma espécie de
atualização do Decálogo e do Código da Aliança, este “legislador” caminha entre a
realidade e a utopia, a fim de promover dignidade aos desvalidos, fazendo valer os
princípios sociais impressos nos aspectos políticos e éticos, dos sólidos fundamentos da
libertação.

90
O termo direito ‫ ִמ ְׁש ַּ ַּ֥פט‬, apresentado aqui (v18) como uma ação divina em prol do

bem-estar do órfão, da viúva e do estrangeiro, revela uma realidade social. A ação de Javé
no reestabelecimento da dignidade do órfão e da viúva e no acolhimento do estrangeiro
promove o reestabelecimento do direito aos grupos negligenciados, contrariando
historicamente a realidade de séculos de exploração em tempos passados.

No texto, o gesto de amor é explícito e reafirmado na expressão “para dar ‫” ָ ַּ֥ל ֶתת‬

sinalizando que o próprio Javé é quem garante nova realidade, de uma nova aliança em
amor. Em resumo, as exigências feitas por Javé ao seu povo, são um chamado para que
Israel seja parceiro nesta aliança. O mesmo Deus que dá a vida e a mantém, convida seu
povo para desfrutar das realidades concretas de bênçãos advindas da prática do direito e
da justiça, promovendo a liberdade e a vida, tanto no âmbito social como pessoal.
Vemos neste texto uma forte ênfase que determinará a mensagem do
Deuteronômio, pois temer e amar a Javé torna-se o centro teológico de todo o livro. Este
eixo teológico é que levará o povo a obedecer a vontade de Javé e aderir ao projeto de
uma sociedade mais justa.
Tal construção nos permite observar como os autores do Deuteronômio
procuravam atualizar para o seu tempo, a relação de aliança já estruturada na memória do
povo. A insistência não está somente na observância das leis de forma estrita, mas sim na
possibilidade de aprofundá-las aos moldes de uma nova espiritualidade. Esta relação de
aliança com Javé exige uma resposta prática na vida religiosa, com reflexos sociais.

3.3 Consciência sobre as desigualdades sociais: Dt 14. 28-29

Compondo o conjunto conhecido como “Código Deuteronômico”, o capítulo 14


está inserido neste bloco de textos mais primitivos do Deuteronômio (12-26), onde um
grupo de normativas colocam em destaque uma estrutura análoga, no que diz respeito à
sua forma, aos mandamentos do decálogo.
Esta forma, que segundo Crüsemann (2012, p.289), obedece à uma ordem exata e
bem pensada, carregam consigo os princípios estruturais que caracterizam as antigas leis
orientais. Tais leis podem ser facilmente percebidas nestes textos a partir dos seguintes
estilos narrativos: leis que defendem o culto Javista (12.2 – 14.21), que trabalham o tema
religioso em sentido mais estrito, como as leis sobre o lugar de culto (12.1-12); a

91
centralização dos sacrifícios e a não contaminação com o culto dos cananeus (12.13-
13.1); a preservação da adoração única (13.2-19) e a preservação a santidade (14.1-21).
Uma outra estrutura sobressai ao texto, formando a partir do bloco 14.22 – 26.15
uma moldura que trata o dízimo como importante ferramenta para a questão social.
Dentro deste bloco temos as prescrições morais, jurídicas e cultuais (14); as
determinações sobre o ano sabático e as obrigações a serem praticadas (15.1-11); normas
de comportamento entre escravos e proprietários (15.12-18); a primogenitura (15.19-23);
as festas de peregrinação (16.1-17); as leis que priorizam o modo de vida no interior das
cidades (16.18 – 20.20); leis sobre a família e de cunho comportamental (21.1-21); leis
de pureza (21.22 – 22.12), leis sociais (22.13-23.1) e leis rituais (23.2-26.15), estão
emolduradas sob o assunto do dízimo, (Cf. BUIS, 1969, p. 219; CRÜSEMANN, 2012, p.
291; BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2008, p. 273 - 290.).
Percebemos que esta estrutura emoldurada pelo tema do dízimo tem seu início em
Dt 14.22-28, sendo retomado em Dt 26.12-14. Os dois trechos também encerram as
prescrições com votos de bênçãos (14.29 e 26.15), mostrando que nestes paralelos, há
uma relação de unidade entre o conteúdo e a moldura, que valoriza a proteção dos
socialmente fracos. O dízimo é tratado aqui com efeitos sociais importantes para o
desenvolvimento de uma consciência de gratuidade, evitando a ideia de posse e
produzindo sacrifícios de comunhão.

3.3.1 Dt 14. 28-29: Tradução

‫ ִמ ְק ֵּצִ֣ה׀‬28 ‫ָׁשֹלִ֣ ׁש ָׁש ִֶ֗נים‬ ‫ּתֹוציא‬


ִ ‫ל־מ ְע ַּשר‬
ַּ ‫ת־כ‬
ָ ‫ֶא‬ ‫בּוא ְת ֵ֔ך‬
ִ֣ ָ ‫ְּת‬
a décima parte
ao final de três anos trarás tua colheita
de toda

‫ַּב ָש ָנֵ֖ה‬ ‫ַּה ִ ֑הוא‬ ‫וְ ִהּנַּ ְח ָ ֵּ֖ת‬ ‫ִב ְׁש ָע ֶ ֵֽריך׃‬ ‫ּובא ַּה ֵּל ִ ִ֡וי‬
ִ֣ ָ 29

em teus
no ano Este e depositarás e virá o levita
portões

‫ִ ִ֣כי ֵּ ֵֽאין־לֹו‬ ‫ֵּח ֶלק‬ ‫וְ נַּ ֲח ֶ֜ ָלה‬ ‫ִע ֶָ֗מך‬ ‫ְו ְַּ֠הגֵּ ר‬

porque não há
Porção e herança contigo e o estrangeiro
nada

‫וְ ַּהיָ ֶ֤תֹום‬ ‫וְ ָ ֵֽה ַּא ְל ָמנָ ה‬ ‫ׁשר‬


ִ֣ ֶ ‫ֲא‬ ‫ִב ְׁש ָע ֶ ֵ֔ריך‬ ‫וְ ָא ְכלֵ֖ ּו‬

92
em teus
e o órfão e a viúva que comerão
portões

‫וְ ָש ֵּ ֑בעּו‬ ‫ְל ַּ ֶ֤מ ַּען‬ ‫יְ ָב ֶר ְכך‬ ‫ֹלהיך‬


ֵֶ֔ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ‫ל־מ ֲע ֵּ ַּ֥שה‬
ַּ ‫ְב ָכ‬

YHWH teu
e se saciarão para que te abençoe em toda obra
Deus

ֵ֖‫יָ ְדך‬ ‫ֲא ֶ ַּׁ֥שר‬ ‫ַּּת ֲע ֶ ֵֽשה׃ ס‬

tua mão Que fizeres


28. Ao final de três anos trará a décima parte de toda a tua colheita e neste ano depositará
em teus portões 29. e virá o Levita, (porque não tem nada, porção nem herança contigo),
o estrangeiro, o órfão e a viúva, que em teus portões comerão e se saciarão. Para que te
abençoe Javé teu ’elohim em toda obra que fizeres tua mão.

4.3.2 Em teus portões comerão e saciarão

O capítulo 14 do Deuteronômio desenvolve algumas unidades literárias divididas


em pequenos blocos: Orientações contra práticas cultuais aos mortos (14.1-2); prescrições
sobre as práticas alimentares definidas como puros e impuros (14.3-21); práticas do
dízimo anual (14.22-27) e prática do dízimo trienal em favor dos socialmente fracos
(14.28-29).
Em um ambiente claramente concebido para uma comunidade que vive na terra
(Dt 12.1), com uma orientação ética evidente para o santuário (Dt 12.8-28; 16.1-16)78, o
capítulo 14 apresenta, dentro de seu conjunto literário, o tema da atenção às necessidades
para com os mais pobres, centralizando o caráter humanitário das normas apresentadas.
A delimitação de nossa pequena perícope é determinada pela mudança na fixação
do tempo estipulado para cumprir a oferta do dízimo anual e trienal, produzindo
consciência de gratuidade (anual) e consciência sobre as desigualdades sociais (trienal).
Dentro do capítulo 14, encontramos nestas duas leis sobre o dízimo, a
apresentação de obrigações distintas. Se na primeira (anual), prevalece a oferta para Javé
em santuário determinado por Ele (22-27), na segunda, o dízimo trienal, retira o foco do

78 Embora não se deva desconsiderar o impacto real de um núcleo constituído por exilados,
estruturados por um decálogo proclamado no deserto e longe da terra, a obediência à lei é enobrecida por
uma comunicação direta da divindade. Cf. ROSE, Martin. Deuteronômio.Em: RÖMER, Thomas;
MACCHI, Jean-Daniel; NIHAN, Christophe, org. Antigo Testamento. História, Escritura e Teologia. São
Paulo: Loyola, 2009, p. 260 – 284.

93
Templo ou da manutenção dos serviços realizados ali, para destacar como principal
destinatário um grupo social formado por pessoas em situação marginal bem delineada.
O levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva (28-29), destacam o universo cultual ao qual se
destina a nomeação do dízimo trienal (Cf. CARRIERE, 2005, p.30).
Neste bloco sobre o dízimo trienal, a referência temporal promove um ciclo bem
definido para dispor o dízimo: “ao final de três anos” (v28). Os bens disponibilizados a
estes destinatários específicos, em paralelo com as ofertas feitas a Javé (22-27), destacam
a importância deste comprometimento mútuo que precisa ser desenvolvido.
Se a intenção da lei está na importância da prática do dízimo que deve ser
ministrado em seu devido tempo, (v28b) “trará a décima parte de toda a tua colheita e
neste ano depositará em teus portões”, os produtos a serem ofertados, sobre os quais esta
lei vigora, completam sua finalidade prática (v.29ª)“... e virá o Levita, (porque não tem
nada, porção nem herança contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva, que em teus portões
comerão”. O resultado da colheita no último ano do triênio, oferecido àqueles
beneficiados por seu cumprimento legal e a garantia de bênção aos ofertantes, completam
o arcabouço jurídico.
A narrativa em 14.28-29 tem, portanto, a temporalidade como ênfase de um ciclo
definido para a prática social, que delimita nosso texto e o trona coeso, quando analisado
em seus limites externos (Dt. 14.22 – 26.15). Pensando em uma estrutura que seja
condizente com e tema, entendemos que nosso texto está dividido em duas partes que
constam de: I) A determinação legal que exaltam a importância da prática do dízimo e
II) as motivações sociais e comunitárias pelas quais o dízimo deve ser praticado. Temos,
portanto, o seguinte delineamento:
I Determinação Legal (v. 28ª - 29ª)

A. Referência temporal
B. Benefício
C. Beneficiários

II Motivação (v. 29b – 29c)

A. Porque não têm nada... (v.29b)


B. Para que te abençoe Javé teu ’elohim... (v.29c)

94
3.3.3 Para que te abençoe Javé teu ’elohim

A Lógica impressa na teologia do dízimo ‫ ַּמ ֲע ֵּשר‬é o contexto chave para discernir

o pensamento jurídico por trás do Código Deuteronômico (CRÜSEMANN, 2012, p. 302).


A origem desta “décima parte” correspondente a toda a quantia produzida no ano,
resultante do produto da colheita (v.28), lança luz sobre a relação interior das várias partes
da obra.
O resultado da quantia a ser separada e colocada à disposição dos necessitados

nos portões da cidade, é reforçado pelo verbo trazer ‫יָ ָצא‬, com o sentido imperativo no

hif‘il79. Trata-se de uma quantia abundante, considerada suficiente para suplantar os


limites da pobreza, onde a celebração da justiça está na partilha com necessitado (Cf.
SÁNCHEZ, 2002, p. 280, 281 e 301).
Sob a forma de uma prescrição para pagamentos de impostos (Dt 14.22), a
legislação sobre o modo de dividir o dízimo, torna-se fundamental no propósito de uma
autêntica legislação social. Os beneficiários são bem definidos em nosso texto: o levita,
o estrangeiro, o órfão e a viúva (v.29a) e a determinação legal, prescrita neste bloco,
reserva um tempo específico para atender a estes levitas e demais grupos desprovidos de
propriedades agrícolas (v.29b).
Crüsemann é categórico ao afirmar que as prescrições que emolduram o Código
Deuteronômico, ficam bem mais claras dentro do contexto do dízimo (2012, p.302-306).
Nenhum código anterior ao Deuteronômio o regulamenta. A ausência a esta referência e
legitimação, não sinaliza, porém, a sua inexistência antes deste relato. Sua prática é
relatada desde o surgimento da monarquia, através de textos como Am 7.13; IRs 12.26,
nas narrativas do Gênesis (Gn 28.22) e na lei do rei em ISm 8.15-17.
É sabido que em vários outros países do Antigo Oriente o dízimo era praticado.
Provavelmente, em Judá e Israel, o dízimo fosse praticado como tributo pago à casa real
e não como oferta cúltica, uma vez que no Código da Aliança, desde Ex 34.11 ss., só se
conheça as ofertas das primícias e dos primogênitos (Cf. CRÜSEMANN, 2012, p. 304-
305).

79 Para mais detalhes ver: KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico: Uma gramática introdutória, 5ª
Edição. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p.205 – 206.

95
No Deuteronômio, as leis de centralização de culto modificam tremendamente um
grande número de costumes religiosos, em particular as ofertas dos dízimos80. Ao abordar
esta questão, o Deuteronômio ao mesmo tempo em que evidencia a necessidade da oferta
do dízimo, anula sua institucionalização quando não o centraliza em templos ou alguma
instituição estatal.
Ao determinar sua entrega diretamente em cada povoado ou aos grupos de pessoas
desamparadas na sociedade, em especial nos portões das cidades, o Deuteronômio
legaliza o “primeiro imposto social” (CRÜSEMANN, 2012, p. 305). Este sinal eficaz na
busca de equilíbrio social promove uma base econômica segura, garantida pela lei e pelo
juramento público dos produtos agrícolas, retomado no último parágrafo do Código
Deuteronômico (Dt 26.12ss.).
Comparado aos demais textos do livro, onde somente são citados o estrangeiro,
órfão e viúva, Dt 14.28-29 com a lei do dízimo trienal, Dt 16.9-12 com a festa das semanas
e Dt 16.13-15 com a festa das tendas, inserem o levita como beneficiário dos bens
produzidos pela comunidade. Como figura emblemática do Israel Norte, a menção do
Levita pode estar ligada às antigas tradições sociais e redacionais vindas de Israel81.
A novidade do deuteronomista em colocar os levitas junto aos grupos
reconhecidamente marginais, mostra que mesmo diante de movimentos reformistas,
ocorridos nos reinados de Ezequias e Josias, estes são claramente, grupos diferenciados
de pessoas a quem o texto também prioriza. A entrega do dízimo e a menção à posse de
terra nas introduções aos mandamentos (Dt 12.29; 17.12; 18.9; 19.1; 26.1), fornecem o
contexto histórico para o questionamento sobre a quem é endereçado ou para quem o
Deuteronômio foi redigido no final da monarquia.
Para alguns autores82, a citação dos levitas como beneficiários, liga-se às redações
tardias que iguala a figura do levita ao sacerdote. Podemos supor que as reformas de

80 Para Raymond Abba, o deuteronomista harmoniza fragmentos e fórmulas das antigas tradições
sacerdotais vindas das tribos de Levi e as de Abraão, com uma linguagem geralmente particular do estilo
Deuteronomista. Cf. ABBA, Raymond. “Priests and Levites in Deuteronomy.” VetusTestamentum, vol. 27,
no. 3, 1977, pp. 257–267. JSTOR, www.jstor.org/stable/1517492, p.258-259.
81 Uma cuidadosa reconsideração sobre as origens dos levitas, sua função social e localização,
propõe um olhar mais atento para os limites deste grupo que emerge em meio ao que significava ser parte
de Israel. Mark Leuchter defende que a luta para definir sua identidade social e religiosa diante das culturas
estrangeiras produziu uma evolução da religião Israelita para um Judaísmo nascente. Cf. LEUCHTER,
M. The Levites and the Boundaries of Israelite Identity. Oxford: Oxford University Press, 2017.
82 Cf. DE VAUX, R. InstituicionesdelAntiguo Testamento. Barcelona: Herder, 1992, p.465-476;
LOPEZ, Félix Garcia. O Deuteronômio: uma lei pregada. São Paulo: Paulinas, 1992, p. 35 - 49.; SÁNCHEZ,
E. Deuteronomio: Introducción y comentario. Comentario Bíblico Iberoamericano, Buenos Aires: Kairos,

96
caráter centralizador, causaram graves problemas às pessoas ligadas aos santuários locais,
seja sacerdote ou levita. A norma legal exposta em Dt 14.29 enfatiza o grau com que a
prescrição jurídica deve acontecer, indicando um sistema que visa disponibilizar parte da
produção agrícola às pessoas que não eram proprietárias de terras
Torna-se plausível, portanto, que a população agrícola que assume o poder no
estado e exerce o governo de fato, deixe de cumprir com seu dever de pagamentos
regulares de legitimidade religiosa. Crüsemann (1999, p. 309) afirma que estes são os
principais destinatários a quem o livro é dirigido.
Nota-se, que as expressões “ao final de três anos”, “décima parte de toda a tua
colheita”, “depositará em teus portões”, “para que te abençoe Javé teu ’elohim em toda
obra que fizeres tua mão”, pertencem a uma realidade agropastoril e, portanto, provém
de um universo social onde a lei do dízimo trienal precisa ser uma realidade de equilíbrio

social entre a posse da terra ‫ ְל ִר ְׁש ֵ֔ ָּתּה ֶ ַּ֥א ֶרץ‬e os povos da terra ‫ ַּ ַּ֥עם ָה ָ ֵֽא ֶרץ‬.

O estilo e a forma de abertura do verso 29, e virá‫ּובא‬


ִ֣ ָ , especifica em seguida quatro

grupos a quem se destinam o dízimo. Os verbos que descrevem as ações destes grupos “e

comerão”‫וְ ָא ְכלֵ֖ ּו‬, “e se saciarão”‫וְ ָש ֵּ ֑בעּו‬impressos na forma qal, mesmo indicando uma

ação simples, completam a sequência redacional.


A fórmula conclusiva “Para que te abençoe Javé teu ’elohim”, oferece um caráter
de consequência, diante dos preceitos divinos que devem ser praticados. A forma

pi‘eldada a “te abençoe”‫יְ ָב ֶר ְכך‬, intensifica a ação de Javé e evidencia sua relação de

gratuidade e favorecimento. A compreensão desta forma verbal no Antigo Testamento,


denota uma relação de troca, onde aquele que abençoa é alguém de posição privilegiada.83
Duas motivações são essenciais na validade desta fórmula conclusiva (Porque não
têm nada... ‘v.29b’ / Para que te abençoe Javé teu’elohim... ‘v.29c’), a função chave do

2002, p. 279; CRÜSEMANN, Frank. A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Rio
de Janeiro: Vozes, 1999, p308-312.
83 Josef Scharbert argumenta que por ocasião da forma pi‘el, o verbo ‫ברך‬apresenta frequentemente
declarações relacionadas à relação de poder. Os exemplos são muitos: 1. O poder do rei sobre seus súditos
(2Sm 6.18; IRs 8.14); 2. Quando uma pessoa privilegiada se opõe em relação a outra (Js 14.13); 3. Bênção
de um patriarca (Gn 28.1-6); 4. Uma liderança carismática que se impõe diante do povo (Lv 9.23); 5.
Benção de sacerdotes (ISm 2.20; Lv 9.22; Sl 118.26; Dt 10.8). Cf. SCHARBERT, J. ‫ברך‬brk, In: TDOT II
bdl – gālāh, 1977, p.288 – 295.

97
dízimo na relação interior das leis no Deuteronômio dirigida aos proprietários de terras,
pressupõe que os poderes que poderiam exigir o dízimo não existem mais.
Assim a moldura desta lei fica clara quando percebemos o entrelaçamento da
função do dízimo com todos os temas centrais do Deuteronômio como a ação libertadora
de Javé, as festas que dessacralizam o poder, a vinculação de um lugar central para o culto
e a obrigação social para com os desvalidos.
Este é, portanto, o âmago da teologia deuteronomista, onde a liberdade é garantida
a todos aqueles que optam por vincular-se a Javé.

3.4 As festas como prescrições cultuais de solidariedade: Dt 16.9-15

O movimento de centralização em torno do santuário, inaugurado no tempo de


Ezequias, e mais tarde, retomado por Josias, acabou impondo-se às antigas tradições
religiosas e neste sentido, as festas atuaram como um importante esquema de fixação de
leis e preceitos, que refletiam na vida do povo, uma síntese das inúmeras tradições sobre
a vida religiosa e social de Israel.
O capítulo 16 do livro do Deuteronômio revela no sacrifício da Páscoa (16.1-8),
na comemoração da Festa das semanas (16.9-12) e na Festa das tendas (16.13-15), o
centro das prescrições cultuais do código deuteronômico.
Apoiados em um cronograma que regula o tempo em que se deve comparecer
perante Javé (16.16-17), estes rituais conhecidos como festas de peregrinação, prevê o
deslocamento do povo para o “local escolhido” (16.2,11,15). O legislador
Deuteronomista deixa transparecer nestes textos, um esquema, que concentra no local do
templo, o marco da expressão religiosa de fidelidade a Javé.
Shigeyuki Nakanose afirma, porém, que o resultado da reforma centralizadora de
Josias, foi produto de muita violência, na tentativa de eliminar qualquer reação contrária
à centralização do templo. Segundo o autor, a centralização do culto visava eliminar a
contaminação nos santuários locais e na prática, culto contaminado significava,
manifestações populares (2000, p. 111—114 e 197).
Para o autor, esta centralização reflete os embates ideológicos resultantes do
surgimento do Estado, provocados em uma revolução camponesa contra as cidades-
estados cananeias, alimentada pelos ideais de justiça e igualdade presentes na teologia
javista. Enquanto a ideologia revolucionária campesina era mais voltada para a tradição
da aliança mosaica, mais bem conservada no Israel Norte, os representantes da tradição

98
davídica apresentavam uma ideologia da corte judaíta, mais opressora e favorável aos
interesses da classe dominante urbana.
O Deuteronômio torna-se, portanto, segundo Nakanose (1993, p. 87), fruto de um
trabalho de levitas, especialmente do Israel Norte, que coletavam e transmitiam as
tradições sagradas e legais, difundindo sua visão revolucionária. As festas serviam como
um lugar de fixação da experiência de libertação, com uma visão concreta, prazerosa e
contagiante de uma sociedade sem exclusão de raça e gênero, com expectativas de
liberdade e inclusão.

3.4.1 Dt 16.9-15: Tradução

‫ ִׁש ְב ָ ַּ֥עה‬9 ‫ָׁש ֻב ֵ֖עֹׁת‬ ‫ר־ל֑ך‬


ָ ‫ִּת ְס ָפ‬ ‫ֵּמ ָה ֵּ ֶ֤חל‬ ‫ֶח ְר ֵּמׁש‬
desde o
Sete semanas contarás para ti foice
começo
‫ַּב ָק ֵָ֔מה‬ ‫ָּת ֵּ ִ֣חל‬ ‫ִל ְס ֵ֔ ֹׁפר‬ ‫ִׁש ְב ָ ֵ֖עה‬ ‫ָׁש ֻב ֵֽעֹות׃‬
no cereal começará para contar sete semanas
ָ ‫וְ ָע ִֶ֜ש‬10
‫ית‬ ‫ַּ ֶ֤חג ָׁש ֻבעֹות‬ ‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫יהוִ֣ה ֱא‬
ָ ‫ַּל‬ ‫ִמ ַּ ֶּ֛סת‬ ‫נִ ְד ַּ ַּ֥בת‬
para YHVH
festa das da oferta
e farás teu ’elohim a medida
semanas voluntária

ֵ֖‫יָ ְדך‬ ‫ׁשר ִּת ֵּ ּ֑תן‬


ִ֣ ֶ ‫ֲא‬ ‫ַּכ ֲא ֶ ַּׁ֥שר‬ ֵ֖‫יְ ָב ֶר ְכך‬ ‫ֹלהיך׃‬
ֵֽ ֶ ‫הוַּ֥ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬
YHVH teu
de tua mão que darás com que Te abençoou
’elohim
‫וְ ָש ַּמ ְח ָֹּ֞ת‬11 ‫ִל ְפ ֵּנִ֣י׀‬ ‫ֹלהיך‬
ֶֶ֗ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ִ֣‫ּובנְ ך‬
ִ ‫ַּא ָּתה‬ ‫ּוב ֶּתך‬
ִ
YHVH teu
e te alegrarás diante de tu e teu filho e tua filha
’elohim
ִ֣‫וְ ַּע ְב ְדך‬ ‫וַּ ֲא ָמ ֶתך‬ ‫ׁשר‬
ִ֣ ֶ ‫וְ ַּה ֵּלוִ י ֲא‬ ‫ִב ְׁש ָע ֶ ֵ֔ריך‬ ‫וְ ַּה ֵּגֶּ֛ר‬
em teus
e teu servo e tua serva e o levita que e o estrangeiro
portões
‫וְ ַּהיָ ַּ֥תֹום‬ ‫וְ ָה ַּא ְל ָמ ָנֵ֖ה‬ ‫ׁשר ְב ִק ְר ֶב֑ך‬
ִ֣ ֶ ‫ֲא‬ ‫ַּב ָמ ֶ֗קֹום‬ ‫ֲא ֶ ֶׁ֤שר יִ ְב ַּחר‬
que em teu
e o órfão e a viúva no local que escolherá
interior
‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ‫ְל ַּׁש ֵּ ַּ֥כן‬ ‫ְׁש ֵ֖מֹו ָ ֵֽׁשם׃‬ ‫וְ ָז ִַּ֣כ ְר ֵָּ֔ת‬12 ‫י־ע ֶבד‬
ַּ֥ ֶ ‫ִכ‬
YHVH teu Para
seu nome e recordarás que escravos
’elohim estabelecer
‫ֵ֖ית‬
ָ ִ‫ָהי‬ ‫ְב ִמ ְצ ָ ֑ריִ ם‬ ‫וְ ָׁש ַּמ ְר ָ ִּ֣ת‬ ‫ית‬
ָ ‫וְ ָע ִֵ֔ש‬ ‫ת־ה ֻח ִ ֵ֖קים‬
ֵֽ ַּ ‫ֶא‬
foste no Egito e guardarás e cumprirás os estatutos
‫ָה ֵּ ֵֽא ֶלה׃ פ‬ ‫ ַּ ַ֧חג ַּה ֻס ֶּ֛כֹׁת‬13 ‫ַּּת ֲע ֶ ַּ֥שה‬ ֵ֖‫ְלך‬ ‫ִׁש ְב ַּעִ֣ת יָ ִ ֑מים‬

99
a festa das
estes farás para ti Sete dias
tendas
‫ְב ָא ְס ְפ ֵ֔ך‬ ֵ֖‫ִ ֵֽמגָ ְרנְ ך‬ ‫ּומיִ ְק ֶ ֵֽבך׃‬
ִ ‫וְ ָש ַּמ ְח ָ ֵּ֖ת‬14 ‫ְב ַּח ֶ ֑גֶּ֑ך‬
no teu recolher de tua eira e do teu lagar e te alegrarás Na tua festa
ֶ֤‫ּובנְ ך‬
ִ ‫ַּא ָּתה‬ ‫ּוב ֶּתך‬
ִ ִ֣‫וְ ַּע ְב ְדך‬ ‫וַּ ֲא ָמ ֵֶ֔תך‬ ‫וְ ַּה ֵּל ִ ֶ֗וי‬
tu e teu filho e tua filha e teu servo e tua serva e o levita
‫וְ ַּה ֵּגֶּ֛ר‬ ‫וְ ַּהיָ ַּ֥תֹום‬ ‫וְ ָה ַּא ְל ָמ ָנֵ֖ה‬ ‫ֲא ֶ ַּׁ֥שר‬ ‫ִב ְׁש ָע ֶ ֵֽריך׃‬
Nos teus
e o estrangeiro e o órfão e a viúva que
portões
‫ ִׁש ְב ַּעִ֣ת‬15 ‫יָ ִֶ֗מים‬ ‫ָּתחֹׁג‬ ‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫יהוִ֣ה ֱא‬
ָ ‫ַּל‬ ‫ַּב ָמ ֵ֖קֹום‬
para YHVH
sete dias festejarás no local
teu ’elohim
‫ֲא ֶׁשר־יִ ְב ַּ ִ֣חר‬ ‫הו֑ה‬
ָ ְ‫י‬ ‫ִ ִ֣כי יְ ָב ֶר ְכ ֹ֞ך‬ ‫ֹלהיך‬
ֶֶ֗ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ‫ְב ֶ֤כֹׁל‬
pois te YHVH teu
que escolher YHWH ’elohim
Em todo
abençoará
‫בּוא ְתך‬
ֵֽ ָ ‫ְּת‬ ‫ּובכֹׁל‬
ְ ‫שה‬
ִ֣ ֵּ ‫ַּמ ֲע‬ ‫יָ ֶ ֵ֔דיך‬ ‫ֵ֖ית‬
ָ ִ‫וְ ָהי‬
Teu produto e em todo feito de tua m'ao serás
‫ַּ ַּ֥אך ָש ֵּ ֵֽמ ַּח׃‬
certamente
alegre
9 Sete semanas contarás para ti, depois de começar a foice no cereal, começarás a contar
sete semanas. 10 E farás a Festa das Semanas para Javé teu ’elohim. A medida da oferta
voluntária de tua mão, darás conforme te abençoou Javé teu ’elohim. 11 E te alegrarás
diante de Javé teu ’elohim, tu e teu filho, tua filha, teu servo e tua serva, o levita em teus
portões, o estrangeiro, o órfão e a viúva no meio de ti, no local que escolher Javé teu
’elohim, para estabelecer seu nome.
12 E recordarás que escravo foste no Egito, guardarás e cumprirás estes estatutos.
13 A Festa das Tendas, farás para ti sete dias, no recolher de tua eira e de teu lagar. 14 E
te alegrarás na tua festa tu e teu filho, tua filha, teu servo e tua serva, o levita, o estrangeiro,
o órfão e a viúva que vivem em teus portões. 15 Sete dias festejarás para Javé teu ’elohim,
no local que escolher Javé, pois te abençoará Javé teu ’elohim em todo o teu produto e
em todo feito de tua mão. Serás certamente alegre.

3.4.2 Criando situações de partilha e solidariedade

É importante destacar que uma das características do legislador deuteronômico é


sua insistência nas refeições comunitárias. Celebrações, festas e ofertas de sacrifícios

100
compõem o auge de uma experiência que deve ser vivida no santuário local, visando criar
situações de partilha e de fraternidade (Cf. KRAMER, 2006, p. 45).

Estas celebrações, festas e sacrifícios são marcadas pelo substantivo ‫ ַּחג‬festa, que

faz referência ao sentido mais solene e religioso do povo. Seu cognato direto é o termo
árabe haggun (BDB, 1906, p. 290-291)84, usado para descrever a peregrinação à Meca,
traz à memória as peregrinações do povo em busca de sua liberdade. Para De Vaux, o fato
deste substantivo surgir relacionado principalmente com as três festas Páscoa, Semanas
e Tabernáculo, é uma consequência da centralização do culto (2003, p.523). Sua conexão
direta com o sentido teológico das três festas agrícolas mais importantes em Israel,
mostra-nos uma festividade que se torna o motivo de alegria para todos os membros da
comunidade.
Para George Braulik, o Deuteronômio desenvolveu dois tipos básicos de liturgia
popular dentro do escopo de sua teologia. O primeiro é constituído pela comemoração da
Páscoa (Dt 16: 1-8), que visa a libertação social de todos em Israel, tendo como exemplo
máximo a saída da escravidão do Egito. O segundo tipo é apresentado na Festa das
Semanas e na Festa dos Tabernáculos (16: 9-12, 13-15), onde iniciam uma sociedade
fraternal, tratando os sintomas da pobreza, ou dos socialmente fracos, de forma realista e
ao mesmo tempo simbólica, através da refeição fraternal, onde todos podem se alegrar
diante de Javé (1999, p. 326-339).
Neste sentido, a liturgia possui um potencial sócio crítico que supera em muito, o
ativismo político, proporcionando com este modelo, a alegria celebrativa que se
desenvolve como um caminho de resistência e de mudanças. Temos neste bloco do
Deuteronômio, especificamente em 16.1-17, as principais festas de Israel, que tratam de
questões com grande potencial sociológico, sem perder de vista o tom político.
Conhecidas como Festas de Peregrinação, seu auge está na criatividade litúrgica
e teológica que reforçam as leis de centralização como um importante esquema que
concentra toda a vida dos Israelitas em um único e exclusivo lugar, como base de uma
aliança de veneração e de fidelidade exclusiva a Javé.
As três grandes festas anuais do Antigo Israel estão entre os rituais mais antigos
de seu calendário Religioso (DE VAUX, 1976, p.611), com detalhes históricos, caráter e

84 BDB sigla para: BROWN, F., DRIVER, S. R. and BRIGGS, C. A. A Hebrew and English Lexicon
of the Old Testament. With an appendix containing the biblical Aramaic, based on the lexicon of William
Gesenius. New York and Chicago: Hought on Mifflin Company, 1906, p. 290-291

101
origem bem diferentes. A grande inovação do Deuteronômio está em ajuntá-las,
centralizando-as em Jerusalém. Segundo Roland de Vaux, Dt 16.1-8 parece ser a primeira
passagem a unir a Páscoa e os Pães ázimos de forma mais estreita, ligando-as ao
calendário das festas de peregrinação.
Esta aproximação, usada como um artifício literário foi uma inovação
deuteronomista que transformou a Páscoa em uma festa familiar. A relação entre as festas
(ázimos, páscoa, semanas e tabernáculos), fazem conexão com os agricultores sedentários
na região da palestina (DE VAUX, 1976, p. 612-630).
Tais festas, formam um ponto de coerência com a lei de centralização do capítulo
12, onde a ideologia deuteronomista de centralização se expressa por fórmulas
distribuídas no texto (12.4-28), indicando um processual de romaria85 para o local em que
Javé escolher seu nome.
Este processo de peregrinação ao santuário único e os primeiros detalhes destes
ritos encontram-se em Dt 16. 13-15, onde a purificação (farás para ti sete dias), as ofertas
(no recolher de tua eira e de teu lagar), a alegria (e te alegrarás na tua festa) e a
solidariedade (o levita, o estrangeiro, o órfão e a viúva que vivem em teus portões),
propõem o caráter de renovação da aliança, acomodando as condições de vida sedentária
(pois te abençoará Javé teu Deus em todo o teu produto e em todo feito de tua mão. Serás
certamente alegre.).
Percebemos, portanto, uma harmonização clara entre os versos 1-17, pois a
descrição das festas da Páscoa, das Semanas e das Tendas, apresenta coerência de estilo
narrativo, conteúdo e uniformidade de vozes. Há um período para a realização da festa
(tempo), um nome e um local determinado (espaço) para sua celebração. Para Jean-Marie
Carrière (2005, p.28-31), neste esquema espacial organizam-se os três primeiros capítulos
de exposição do Código, fornecendo traços típicos de um editor que tem como prioridade
as referências de tempo e espaço na apresentação de prescrições do tipo cultual.86
Carrière afirma ainda que a exposição das leis está organizada neste conjunto de
acordo com períodos definidos: “cada ano (14.22), cada três anos (14.28), depois de sete

85 Esta expressão nomeada por Norbert Lohfink como “esquema de romaria” está estruturada através
de uma sequência de verbos ou frases verbais que manifestam a intenção do deuteronomista em criar um
centro simbólico para todo o povo de Israel, tornando-se na época de Josias um importante referencial
dialeticamente contrário aos tributos levados do povo para a capital assíria. Para mais detalhes veja:
KRAMER, 2006, p. 61-66.
86 O Código Deuteronômico apresenta as mesmas festas realçadas no Código da Aliança (Ex 23.14-
17 e Ex 34.18-24), com alguns detalhes acrescentados a partir de Lv 23. A importância das três festas:
Páscoa, Semanas e Tendas, são referendadas por estes textos e repetidas no Deuteronômio.

102
anos (15.1), todos os anos (15.19) ”, facilitando a compreensão de uma abordagem
litúrgica que coloca o tema da libertação dos escravos na esfera cultual, promovendo um
laço entre culto e justiça (CARRIÈRE, 2005, p. 30).
As festas das Semanas e das Tendas (Dt 16.9-15), celebram a Javé ’elohim como
fonte de vida, bênção e libertação para seu povo. Com ritos semelhantes que determinam
seu modus operandi em um santuário central, estas duas festas em especial, têm como
características básicas a manutenção da alegria diante de Javé (v. 11, 14 e 15). Assim,
logo após a indicação de comer pães ázimos por um período de seis dias e no sétimo fazer
uma grande assembleia em louvor a YHWH (Dt 16.8), há a indicação de um novo
cronograma, referindo-se inevitavelmente a uma outra festa.
Agora, deve-se contar sete semanas, a partir do início da colheita, para ter um
tempo favorável para a celebração da Festa das Semanas. O verso 9 abre, portanto, a
narrativa realçando um convite “Sete semanas contarás para ti”, mostrando a
importância deste tempo determinado e o verso 15 finaliza, prescrevendo o sentido maior
de sua realização que é a alegria.

Percebemos que os termos sete semanas ‫תׁש ְב ָ ַּ֥עה‬


ִ ֹׁ‫ ָׁש ֻב ֵ֖ע‬e contar ‫ ְס ָפר‬se repetem em

paralelismo ao longo do versículo 9. Esta unidade e coesão percebidas no texto, conferem


à narrativa um caráter de periodicidade e obrigatoriedade, ao mesmo tempo que insiste
em marcar o ciclo de início das festividades “...depois de começar a foice no cereal,
começarás a contar sete semanas” (Dt 16.9) e “A Festa das Tendas, farás para ti sete
dias, no recolher de tua eira e de teu lagar. ” (Dt 16.13).
Os verbos apresentados em nosso texto, descrevem em sua maioria, ações
processuais87 que tecem exigências bem definidas: “contarás para ti”; “começarás a
contar”; “E farás a Festa das Semanas”; “darás conforme te abençoou Javé”; “E te
alegrarás”; “E recordarás que escravo foste”; “guardarás e cumprirás estes estatutos”.
Tais sentenças se apresentam em todo o texto, delineando intencionalmente a

identificação dos atributos de Javé, tornando a expressão ‫ֹלהיך‬ ָ ְ‫“י‬Javé teu ’elohim”,
ֵֶ֔ ‫הוִ֣ה ֱא‬

o eixo central.

87 O sistema verbal no Hebraico Bíblico tem sua ênfase na questão modal e visa responder à pergunta
“como?”, tendo basicamente dois modos principais “perfeito e imperfeito”. Enquanto o modo perfeito trata
de questões pontuais, o imperfeito demonstra ações processuais que podem expressar muitas vezes ações
que dependem de outros fatores, pessoas e situações do contexto. Cf. KELLEY, Page H. Hebraico Bíblico:
Uma gramática introdutória, 5ª Edição. São Leopoldo: Sinodal, 2004, p. 160-165.

103
As festas aqui apresentadas, têm a aplicação direta da lei da centralização. Ao que
tudo indica, esta “ideologia de centralização” (Dt 12-13) era a base inicial do código
deuteronômico, com paralelos importantes nos tratados de vassalagem da literatura assíria
(RÖMER, 2008, p. 78-85). A citação de Dt 12.17-18 em Dt 16.5-6 e também nos versos
11 e 15, reflete esta motivação e o desejo de controle e padronização litúrgica.

3.4.3 Festa é alegria!

A regulamentação litúrgica, torna-se importante, quando observado o fato de que


várias vezes no ano, o povo de Israel deveria se reunir no mesmo lugar. Estas refeições
comunitárias, festivas e alegres diante de “Javé teu ’elohim”, tronaram-se a prática
simbólica e ao mesmo tempo fundamental da vivência fraternal e de solidariedade com
os socialmente fracos.
Este esquema, no qual o legislador deuteronomista construiu a redação, dá lugar
à reflexão sobre a dimensão ideológica da peregrinação, apoiada na centralização de Javé,
a partir de uma ordem litúrgica. A expressão “Javé teu ’elohim” surge neste texto como
uma espécie de refrão, repetindo-se oito vezes ao longo do texto (v. 102, 112, 152, 16 e
17), permitindo-nos compreender que Javé torna-se a causa última na vida e na celebração
do povo.
Analisando o texto sob este aspecto litúrgico, percebemos claras indicações que
prescrevem o que deve ser realizado, o modo a ser realizado e os benefícios a serem
conquistados neste processo, trazendo definitivamente Dt 16.9-15 para o contexto da
legislação litúrgica deuteronômica. O texto parece marcar muito bem, que a característica
principal da Festa é a alegria, que só poderá ser completa onde houver solidariedade e
partilha.
A – Prescrições para a festa: (v. 9-10)
B – Todos se alegram (v.11)
A - Prescrições para a festa: (v. 12-13)
B – Todos se alegram (v.14-15)
O paralelismo usado no texto, mostra-nos que este clima de alegria e satisfação,
transformaram-se em verdadeira profissão de fé. Javé é ao mesmo tempo, a causa e o
efeito da vida harmonizada. As implicações litúrgicas empregadas nas festas, conduzem
o leitor para seu tema central e característico que é a alegria, no entanto, sua realização
só é possível e completa quando se percebe que na comunidade, os marginalizados e

104
oprimidos não são mais excluídos. Juntos nas refeições comunitárias estão os
proprietários de terra com sua esposa, seus filhos e filhas, seus servos e servas, os
socialmente fracos e os legalmente dependentes como o levita, o estrangeiro, o órfão e a
viúva (Dt 16.11 e 14).

Aqui temos o direito, a liturgia e a economia entrelaçados como meios para


alcançar e promover a solidariedade. Surge então, um grande ensinamento para que o
povo de Israel se perceba como sociedade de irmãos e irmãs, diante de um Deus libertador
e doador. Os eventos festivos rompem, portanto, situações do cotidiano, tornando-se
canal transformador de realidades religiosas e sociais.
Quando pensamos em definir a época em que a festa tem seu início, deparamo-
nos com uma larga história e diversos pontos ainda obscuros (DE VAUX, 1976, p. 610),
que se revelam a partir de textos litúrgicos, pertencentes à diferentes tradições. O ritual
mais desenvolvido era talvez o de Lv 23.15-21 que apresenta os inícios da festa de
pentecostes: “A partir do dia seguinte ao sábado, desde o dia em que tiverdes trazido o
feixe de apresentação, conta sete semanas completas. Conta cinquenta dias até o dia
seguinte ao sétimo sábado e oferece, então, a Iahweh uma nova oblação” (Lv 23,15-
16)88.
O Deuteronômio reúne de forma harmonizada a combinação destas importantes
festas celebradas em Israel, acompanhadas das principais leis sociais que unem-se
formando uma categoria de pensamento típico do deuteronomista. A bênção divina sobre
o trabalho e o fruto da terra, está vinculada de forma explícita à condição de que se
beneficie os mais fracos e vulneráveis. Esta inclusão solidária, vincula a benção divina,
de modo específico, às leis sociais com formulações típicas de bênçãos e maldições
(CRÜSEMANN, 1999, p. 316), abrindo caminhos para que a festa seja de fato,
legitimadora de uma lógica desenvolvida entre a liberdade e a solidariedade como
estrutura teológica.
Marcada pela evolução histórica dos elementos festivos que envolviam as
colheitas agrícolas, acompanhadas de diversões populares, mas também da reorganização
social, a narrativa retoma seu caráter fundamental, quando o ato de se alegrar diante de
Javé, exige um local determinado com o propósito de fixar ali o nome do Deus de Israel

88 Texto extraído da bíblia de Jerusalém. Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulus, 2002.

105
O destaque dado pelo Deuteronomista para a celebração, são ocasiões de alegria
e gratidão. Estes momentos de confraternização social que começam no ambiente
familiar, “E te alegrarás diante de Javé teu ’elohim, tu e teu filho, tua filha, teu servo e
tua serva...” (v.11)89, extrapola a contexto da casa, promovendo forte interação social, que
revela o ideal humanitário de preceitos a serem cumpridos, marcado pela ênfase na
expressão: “E te alegrarás diante de Javé teu ’elohim...”.
Os grupos especificados na narrativa, que se encontram fora do ambiente familiar,
possuem acesso garantido pela ocasião da festa. O motivo que legitima tais grupos sociais
como servo, serva, levita, estrangeiro, órfão e viúva, participarem em condição de
igualdade nestes momentos festivos, surgem na semelhança com as experiências vividas
por Israel na terra do Egito.
O gesto de manter a celebração, colocando em prática o estatuto (v 12) e de
festejar no local escolhido por Javé (v 15), tornam-se as condições ideais para a
manutenção do decreto que deve ser praticado, como propósito principal de assegurar a
condição de equidade em meio à comunidade.
Ao apelar para as experiências vividas por seus antepassados, o deuteronomista
reflete uma antiga realidade experimentada pelo povo e evoca a memória como elemento

essencial no processo fixação da comunidade religiosa. O verbo recordar ‫זכר‬, expresso

no modo qal, compreende um exercício mental que contrasta com a memória dos anos
vividos em terras egípcias, esquecer-se destes tempos difíceis seria o mesmo que
desobedecer a Javé.90Ao refletir a antiga realidade de exclusão e sofrimento do povo, o
autor o faz, tendo como modelo os grupos sociais formados pelo estrangeiro, órfão, viúva,
escravos, servos e levitas. Diante desta realidade é que Israel é convidado a observar e
praticar os estatutos de Javé.
Assim, olhando para o passado, o povo tem a chance de refazer seu tempo
presente. Este é, portanto, o propósito principal da lei, onde a comunidade tem a

89 Outros paralelos com esta mesma sentença estão em Dt 12.7,12 e 18.


90 A maioria das ocorrências do verbo recordar ‫ זכר‬tem como ideia básica o ato de pensar, meditar
e contrasta com “esquecer-se”. É um ato mental, geralmente acompanhado de fatores externos apropriados.
Seu desenvolvimento semântico (recordar/ agir), segue a mesma fórmula encontrada no verbo ouvir ‫ְׁש ַּ ֵ֖מע‬
(ouvir / obedecer). Cf. HARRIS, R. Lair et. Al. Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento.
São Paulo: Editora Vida Nova, 1998, p. 389-391.

106
segurança da vida em condições de equidade, assegurando a participação dos socialmente
fracos em seus momentos festivos, como sentido último para um futuro melhor.

3.5 E recordarás que escravo fostes no Egito: Dt 24.17-22

Pedro Kramer ao analisar os estudos e publicações de Georg Braulik, destaca que


Dt 24.17-22, compõe o contexto literário de uma série de leis que tratam de princípios
norteadores e orientadores para diferentes aspectos e situações de uma vida ética. Os
mandamentos produzidos pelas “palavras de Javé” Dt 5.6-21, surgem como orientações
básicas para a promoção e preservação da liberdade alcançada, evitando desvios que
possam reconduzir à escravidão.

Tais palavras libertadoras, no entanto, só podem ser compreendidas em seu


sentido pleno, como princípios norteadores e orientadores, quando associadas às suas leis
complementares. Esta relação evidente entre o Decálogo Deuteronômico exposto no
capítulo 5.6-21 e as leis complementares em Dt 12-26, mostram uma tentativa de
adaptação do decálogo para um determinado período da história do povo de Israel.
A reciprocidade entre o decálogo e suas leis complementares proporcionaram,
portanto, uma espécie de constituição jurídica do povo de Israel, gerando a compreensão
mais aproximada de sua real função, garantindo um conjunto de normas e estatutos que
nortearam o destino do povo por longo tempo (KRAMER, 2006, p. 107).
Thomas Römer afirma que as leis sociais e cultuais, expressas no deuteronômio,
revelam paralelos comuns com o Código da Aliança e principalmente com as antigas leis
do Oriente Próximo como o Código de Hamurabi e os códigos de leis assírios. O autor
defende que o código e leis desenvolvidas no Deuteronômio é dominado por uma
ideologia de centralização e “pode ser entendido como um programa para a reorganização
do Estado judaíta, a fim de proporcionar mais poder ao seu centro” (2008, p. 84)
Temos, portanto neste conjunto, Dt. 24.17-22, uma espécie de execução prática
dos mandamentos do Decálogo Deuteronômico, no que se refere à defesa de grupos
desfavorecidos, como é possível verificar em Dt. 5.12-15 e 21. Na tentativa de permitir
melhor acesso à interpretação e compreensão destes mandamentos, as leis
complementares possuem em seu arcabouço um amplo e emaranhado desenvolvimento
jurídico, que colocam em evidência as motivações para uma relação social igualitária
(SÁNCHEZ, 2002, p.346).

107
3.5.1 Dt 24.17-22: Tradução

‫ ִ֣ל ֹׁא ַּת ֵֶ֔טה‬17 ‫ִמ ְׁש ַּ ֵ֖פט‬ ‫ֵּגִ֣ר יָ ֑תֹום‬ ‫וְ ִ֣ל ֹׁא ַּת ֲח ֵ֔בֹׁל‬ ‫ֶ ֵ֖בגֶ ד ַּא ְל ָמ ָנֵֽה׃‬
do estrangeiro, e não a roupa da
Não desviará o direito
do órfão penhorará viúva
‫וְ זָ ַּכ ְר ֶָּ֗ת‬18 ‫ִ ִ֣כי ֶע ֶֶ֤בד‬ ‫ית‬
ָ ִ‫ָהי‬ ‫ְב ִמ ְצ ַּ ֵ֔ריִ ם‬ ֶּ֛‫ַּוֵֶּֽ֑יִ ְפ ְדך‬
e recordarás que escravo foste no egito e te remiu
‫ֹלהיך‬
ֵ֖ ֶ ‫הוַּ֥ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ‫ִמ ָ ֑שם‬ ‫ל־כן ָאנ ִ ֶֹׁ֤כי‬
ֵֹּ֞ ‫ַּע‬ ‫ְמ ַּצּוְ ך‬ ‫ַּל ֲע ֵ֔שֹות‬
YHWH teu
de lá portanto eu te ordeno para praticar
'elohim
‫ת־ה ָד ָ ֵ֖בר‬
ַּ ‫ֶא‬ ‫ַּה ֶזֵֽה׃ ס‬ ‫ ִ ִ֣כי ִת ְקצֹׁר‬19 ‫ְק ִ ֵֽצ ְירך‬ ‫ְב ָש ֶ ֶ֜דך‬
a palavra esta quando colher tua colheita em teu campo
‫וְ ָ ֵֽׁש ַּכ ְח ָ ַּ֧ת‬ ‫ִ֣עֹׁ ֶמר‬ ‫ַּב ָש ֶ ֶ֗דה‬ ‫ֶ֤ל ֹׁא ָתׁשּוב‬ ‫ְל ַּק ְח ֵּ֔תֹו‬
e esqueceres feixe no campo não voltes para pegá-lo
‫ַּל ֵּגֶּ֛ר‬ ‫ַּליָ ַּ֥תֹום‬ ‫וְ ָל ַּא ְל ָמ ָנֵ֖ה‬ ‫יִ ְה ֶי֑ה‬ ‫ְל ַּ ֶ֤מ ַּען יְ ָב ֶר ְכך‬
para o para que assim
para o órfão e para a viúva será
estrangeiro te abençoe
‫ֹלהיך‬
ֵֶ֔ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬ ‫ְב ֵ֖כֹׁל‬ ‫ַּמ ֲע ֵּ ַּ֥שה יָ ֶ ֵֽדיך׃‬ ‫ ִ ֶ֤כי ַּת ְחבֹׁט‬20 ‫ֵֽית ֵ֔ך‬
ְ ‫ֵּז‬
YHWH teu trabalho de quando
em todo tua oliva
'elohim tuas mãos debulhares
‫ַּ֥ל ֹׁא ְת ָפ ֵּ ֵ֖אר‬ ‫ַּא ֲח ֶ ֑ריך‬ ‫ַּל ֵּגֶּ֛ר‬ ‫ַּליָ ַּ֥תֹום‬ ‫וְ ָל ַּא ְל ָמ ָנֵ֖ה‬
não derrube para o
depois de ti para o órfão e para a viúva
com vara estrangeiro
‫יִ ְה ֶיֵֽה׃ ס‬ ‫ ִ ֶ֤כי ִת ְבצֹׁר‬21 ‫ַּכ ְר ְמ ֵ֔ך‬ ‫עֹולֵ֖ל‬
ֵּ ‫ַּ֥ל ֹׁא ְת‬ ‫ַּא ֲח ֶ ֑ריך‬
quando
será tua vinha não rebuscará depois de ti
cortares
‫ַּל ֵּגֶּ֛ר‬ ‫ַּליָ ַּ֥תֹום‬ ‫וְ ָל ַּא ְל ָמ ָנֵ֖ה‬ ‫יִ ְה ֶיֵֽה׃‬ ‫וְ ָז ִַּ֣כ ְר ֵָּ֔ת‬22
para o
para o órffão e para a viúva será e recordarás
estrangeiro
‫ֵ֖ית‬
ָ ִ‫י־ע ֶבד ָהי‬
ַּ֥ ֶ ‫ִכ‬ ‫ְב ֶ ִ֣א ֶרץ‬ ‫ִמ ְצ ָ ֑ריִ ם‬ ‫ל־כן‬
ֵֹּ֞ ‫ַּע‬ ‫ָאנ ִ ֶֹׁ֤כי‬
que escravo
na terra do egito portanto eu
foste
‫ְמ ַּצּוְ ך‬ ‫ַּל ֲע ֵ֔שֹות‬ ‫ת־ה ָד ָ ֵ֖בר‬
ַּ ‫ֶא‬ ‫ַּה ֶזֵֽה׃ ס‬
te ordeno para fazer a palavra esta

17 Não desviará o direito do estrangeiro, e do órfão e não penhorará a roupa da viúva. 18

E recordarás que escravo fostes no Egito e te remiu Javé teu ’elohim de lá. Portanto, eu
te ordeno praticar esta palavra.

108
19Quando colheres a tua colheita em teu campo e esqueceres um feixe no campo, não
voltes para pegá-lo. Para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva será, para que assim te
abençoe javé teu ’elohim em todo o trabalho de tuas mãos. 20Quando debulhares tua oliva
não derrubes com vara [os ramos que ficaram] depois de ti. Para o estrangeiro, para o
órfão e para a viúva será.
21Quando cortares tua vinha, não rebuscarás depois de ti. Para o estrangeiro, para o órfão
e para a viúva será. 22 E recordarás que escravo fostes na terra do Egito, portanto eu te
ordeno para fazer conforme [esta] palavra.

3.5.2 Todos tem o direito de desfrutar da terra

Os temas que marcam nossa perícope, impõe seus limites ao texto. As repetições
que mencionam a defesa do estrangeiro, órfão e viúva, (v 17, 19, 20 e 21), associadas às
orientações que visam manter a prática do direito (v 17, 19 e 20) e o apelo às lembranças
do tempo em que foram escravos no Egito (v 18 e 22), delimitam o início e o fim da
perícope (v 17 - 22). É em torno destes grupos que representam as camadas mais pobres
da vida social, onde concentra-se a narrativa, insistindo na manutenção da prática do

direito ‫ ִמ ְׁש ַּ ֵ֖פט‬, tendo como motivação a ordem ‫ צוה‬de praticar a palavra de Javé.

As sentenças que formam esta unidade narrativa estão em conformidade com o


desenvolvimento de todo o capítulo, mostrando a coesão com suas demais partes, onde
brotam medidas que apelam para a proteção e defesa do indivíduo. Temas como divórcio
e desenvolvimento familiar, penhora, respeito à liberdade, justiça e responsabilidade
pessoal, estão presentes em todo o capítulo, conferindo ênfase aos apelos pela prática da
justiça diante de Javé.
A relação entre mandamento e êxodo estão novamente presentes no texto. A
memória da condição de escravo no Egito, surge como pré-requisito para a proteção dos
socialmente fracos, pois o enfoque é sempre acabar com as condições sociais que podem
gerar opressão e inibir a libertação, reforçando a premissa de que o direito não pode ser
desviado. O tema da libertação, estrutura profundamente as leis sociais quando associado
a Javé, pois Nele, está fixada a ideia do objetivo concreto da relação entre libertação e
servidão (CARRIÈRE, 2005, p. 96-97).
A relação entre Javé libertador e o Egito opressor, torna-se fundamental na a
compreensão da acentuada conotação ideológica em torno das experiências vividas por
Israel em tempos de escravidão. A ordem para “praticar a palavra” (v18), surge como

109
uma nova identidade para Israel, na tentativa de manter a igualdade social, apresentada
aqui, como vontade divina.
O desafio de manter o estilo de vida herdado na tradição do Êxodo, tendo Javé
como garantidor das leis (Dt 24.13-15), reforça a insistência de que o direito não sofra
desvios e seja assegurado aos socialmente fracos, representados aqui pela tríade social. O
Egito é, portanto, um paralelo que retoma no texto, este desafio de um estilo de vida que
priorize a defesa de grupos marginais. Formamos assim, a seguinte estrutura.
A – Recomendações para preservar o direito (v17)
B – Memórias do Egito (v 18)

A – Recomendações para preservar o direito (v 19-21)


B – Memórias do Egito (v 22)
Na intenção de produzir um efeito mais expressivo, o deuteronomista usa como
figuras de estilo, o recurso do parallelismus mombrorum91, usando repetições que
contribuem para completar e descrever sua mensagem.
Notem que a preservação do direito tem como contraponto a memória do tempo
de escravidão (v 18 e 22), tema caro ao direito deuteronômico, que numa nova proposta
de responsabilidade social, limitaram consideravelmente as diversas formas de escravidão
(Dt 23.16). Crüsemann defende que no sistema de leis sociais as regulamentações acerca
da escravidão, podem ter exercido uma extraordinária influência da realidade social da
escravidão e no tratamento que se deveria dispensar aos escravos (2012, p. 322-324).
Embora nosso texto não trate do tema do escravo em si, a insistência em manter a
prática do direito, usa como referencial os grupos socialmente fracos (v17), estabelecendo
a possibilidade de que cada membro na sociedade possa desfrutar do produto da terra,
mesmo que no momento da rebusca (v 19-21), sob as promessas de bênçãos de Javé em
todo o trabalho (v 19)92.
A ideia de que os sofrimentos do passado não podem se repetir no presente, tem
como apelo a distribuição ou a possibilidade de que pessoas de distintas realidades

91 O parallelismus membrorum é um princípio de estilo fundamental da poesia oriental e tem como


base, a repetição de diferentes segmentos de sentença. No caso dos Salmos, este tipo de paralelismo que
influencia, além dos títulos, formas de endereço e macroestrutura da seção, é central para a constituição de
sua poesia. Em teologia, ele é dividido com base na estrutura dos versos, de acordo com critérios
predominantemente relacionados ao conteúdo, nos grupos de paralelismo sinônimo, antitético, avançado
ou sintético, climático, simbólico e incompleto, com e sem substituição. Cf. SIMIAN-YOFRE, 2015, p.
102-103.
92 Cf. CRÜSEMANN, 2012, p. 315.

110
sociais, tenham acesso ao cereal, azeite e a vinha. Estes são os principais produtos
agrícolas, responsáveis pelo desenvolvimento econômico de Israel.
Percebemos, portanto, que a situação destes socialmente fracos, havia se
deteriorado de tal forma que já não era suficiente protegê-los contra qualquer abuso ou
arbitrariedades, mas era necessário ajudá-los economicamente (ALBERTZ, 1999, p.
413).
Observamos também que o texto está estruturado em forma de um mandamento,

onde a partícula não‫ ֶ֤ל ֹׁא‬, associada aos verbos no tempo do imperfeito: desviará ; 93‫ַּת ֵֶ֔טה‬

penhorará 94‫ ; ַּת ֲח ֵ֔בֹׁל‬voltará 95‫ ; ָתׁשּוב‬derrubará 96‫ ; ְת ָפ ֵּ ֵ֖אר‬rebuscará 97‫עֹולֵ֖ל‬


ֵּ ‫ ְת‬, define o

tema central do texto. A forte ordem negativa, produzida por esta associação entre a
partícula negativa e os verbos no imperfeito, conferem uma ordem negativa enfática
(BOWLING, 2001 – p. 760-761), típica do estilo legislativo.

3.5.3 Preservar o direito é garantir liberdade

Vemos, portanto, que Dt 24.17-22, opta por reforçar duas importantes tradições
que compõe o centro estrutural da vida religiosa e social do Antigo Israel. A primeira,
reforça a experiência do êxodo, com seu apelo à libertação e o direito à terra. A segunda
se refere aos laços consanguíneos, reais ou não, desenvolvidos pelo tribalismo, que
proporcionam a este grupo autônomo de famílias a possibilidade de se ajudarem
mutuamente, sob o vínculo de um antepassado (DE VAUX, 2003, p. 24-28).
Na tentativa de superar os desafios sociais, o deuteronomista insiste na prática do
direito e da justiça, associando-as ao cotidiano. O envolvimento de cada cidadão em
relação aos socialmente fracos, deve ter como base inspiradora a ética da libertação,
proposta pelo Deuteronômio como uma ética social (CARRIÈRE, 2005, p.63).
A relação de partilha proposta pelo texto, sob o teor das antigas normas de vida
comunitária, herdadas da tradição do êxodo, tem como ênfase a vontade do próprio Javé:
“Portanto, eu te ordeno praticar esta palavra.” (v 18 e 22), desenvolvendo uma relação

93 ‫ נטה‬verbo hiphil imperfeito 2ª pessoa masculino singular


94 ‫ׁחבל‬verbo qal imperfeito 2ª pessoa masculino singular
95 ‫ שוב‬verbo qal imperfeito 2ª pessoa masculino singular
96 ‫ׁפאר‬verbo piel imperfeito 2ªpessoa masculino singular
97 ‫ׁעלל‬verbo poel imperfeito 2ª pessoa masculino singular

111
importante de causa e efeito entre as lembranças da escravidão (êxodo) e as relações de
partilha para o sustento de grupos desfavorecidos (tribalismo).
A insistência na prática do direito e da justiça proposta neste texto, é reforçada
pelo estilo legislativo, onde em hipótese alguma, deve-se negar a manutenção dos direitos
ao estrangeiro, órfão e viúva. Nota-se que o uso do direito e justiça, remonta a conceito
técnicos do cenário jurídico, principalmente quando associados aos conceitos básicos das
relações pessoais que envolvem de modo direto a economia e a política.
As recomendações para preservar o direito (v 17 e 19-21) e as lembranças do Egito
(v 18 e 22) estão entrelaçadas no texto, produzindo a ideia de interdependência, onde Javé
é lembrado como garantidor da liberdade (...e te remiu Javé teu ’elohim de lá. v 18) e
provedor dos bons resultados da colheita (..., para que assim te abençoe javé teu ’elohim
em todo o trabalho de tuas mãos. v 19).
Pedro Kramer, citando Braulik (KRAMER, 2006, p.170-172), argumenta que o
apelo à defesa do estrangeiro, órfão e viúva, está incluído dentro de uma moldura literária
que ele denomina de “sintética instrução social”. Este modelo, que tem sua origem a partir
dos termos direito e justiça, desenvolve pontos de encaixe com as leis complementares
expostas em Dt 5.9-21 e mantém certa dependência literária com as afirmações expostas
em Ez 18.5-20.

Estas afirmações, associadas à expressão “e te remiu”98 ֶּ֛‫ ַּוֵֶּֽ֑יִ ְפ ְדך‬que também pode

ser traduzido como “resgatou”, usam elementos do direito para produzir a ideia de
dependência em Javé. O povo liberto, é agora propriedade de um Deus que o
remiu/resgatou do poder de faraó. E, portanto, não permite que seu povo reproduza os
mesmos ambientes de opressão e miséria em que se encontravam.
Estes são os critérios que formam a base para o desenvolvimento das relações
pessoais. E relação entre a colheita e a prática da respiga, concedida aos grupos
socialmente desfavorecidos, garantem a sustentabilidade da tríade social.

3.6 Não me esqueci dos teus mandamentos: Dt 26.12-15

Como já havíamos afirmado anteriormente, o Código Deuteronômico (Dt.12-26)


é um importante conjunto de leis, que fora submetido a alguns acréscimos desenvolvidos

98 Da raizׁׁ‫ פדה‬verbo qal com waw consecutivo, imperfeito 3ª pessoa do masculino singular. Cf.
HOLLADAY, 2010 p. 410.

112
entre os anos 630-609, por setores que pretendiam uma espécie de reorganização social.
O capítulo 26 apresenta uma das diversas conclusões, expostas no longo processo
redacional no livro do Deuteronômio99.
Verifica-se nesta etapa, a presença de antigas normas sociais recolhidas e que,
uma vez agrupadas, oferecem estilo, ritmo e coesão à composição. Predomina aqui, um
modelo de espiral ao compor a narrativa, onde temas citados anteriormente são retomados
oferecendo um estilo original ao livro, como acontece no discurso de abertura: “Quando
entrares na terra que YHWH, teu Deus te dará como herança” (v. 1), aqui, retomada, mas
já citado em outras partes do livro (6,10; 7,1; 11,29; 17;14; 18,2).
Os antigos hábitos de cunho cultual e social, se fazem presentes neste texto,
destacando as funções sacerdotais no gesto de cuidar dos sacrifícios (vv.2-4), juntamente
com a fórmula utilizada durante o ato de ofertar a parte sagrada destinada aos grupos de
necessitados (v.13). A referência a algum tipo de divindade ligada ao produto da terra
(v.14) e uma possível forma de dedicação do santuário (v.15), dão um sentido sempre
atual aos preceitos divinos. É bem possível que as camadas literárias e as inúmeras
tradições tão presentes na memória do povo, juntaram-se na formatação do texto que
possuímos hoje100.

3.6.1 Dt 26.12-15: Tradução

‫ ִ ִ֣כי ְת ַּכ ֹ֞ ֶלה‬12 ‫ְ֠ ַּל ְע ֵּשר‬ ‫ל־מ ְע ַּ ַ֧שר‬


ַּ ‫ת־כ‬
ָ ‫ֶא‬ ֶּ֛‫בּוא ְתך‬
ָ ‫ְּת‬ ‫ַּב ָש ָנַּ֥ה‬
Eis que! ao de toda a
o dízimo de teu produto no ano
completares décima parte
‫יׁשת‬
ֵ֖ ִ ‫ַּה ְש ִל‬ ‫ְׁש ַּנִ֣ת‬ ‫ַּ ֵֽה ַּמ ֲע ֵּ ֑שר‬ ‫וְ נָ ַּת ָ ִּ֣תה‬ ‫ַּל ֵּל ִ ֶ֗וי‬
de dar o
terceiro ano e darás para o levita
dízimo
‫ַּלגֵּ ר‬ ‫ַּליָ ִ֣תֹום‬ ‫וְ ָ ֵֽל ַּא ְל ָמ ֵָ֔נה‬ ‫וְ ָא ְכלַּ֥ ּו‬ ‫ִב ְׁש ָע ֶ ֵ֖ריך‬
para o
para o órfão e para a viúva e comerão Em tuas portas
estrangeiro
‫וְ ָש ֵּ ֵֽבעּו׃‬ ‫וְ ָא ַּמ ְר ִָּ֡ת‬13 ‫ִל ְפנֵּ י‬ ‫ֹלהיך‬
ֶֶ֜ ‫יְ הוָ ה ֱא‬ ‫ִב ַּ ַ֧ע ְר ִּתי‬
YHWH teu
e fartar-se-ão e dirás perante retirei
'elohim
‫ַּה ִ֣קֹׁ ֶדׁש‬ ‫ן־ה ֶַּ֗ביִ ת‬
ַּ ‫ִמ‬ ‫וְ גַּ ם‬ ‫נְ ַּת ִ ֶּ֤תיו‬ ‫ַּל ֵּלוִ י‬

99 Outras conclusões em Dt 27-28 e 30-34, que juntamente com Dt 26, marcam as sucessivas etapas
de desenvolvimento do livro. Cf. RÖMER, 2008, p. 77.
100 Cf. KAEFER, J. A., Um pueblo livre y sin reyes: la función de Gn 49 y Dt 33 em la composición
del Pentateuco, Navarra, Verbo Divino, 2006, pp 237-238

113
o santo de minha casa e também o dei para o levita
‫וְ ַּלגֵּ ר‬ ‫ַּליָ ִ֣תֹום‬ ‫וְ ָל ַּא ְל ָמ ֵָ֔נה‬ ֵ֖‫ל־מ ְצוָ ְתך‬
ִ ‫ְכ ָכ‬ ‫יתנִ י‬
֑ ָ ִ‫ׁשר ִצּו‬
ִ֣ ֶ ‫ֲא‬
e para o conforme teu que me
para o órfão e para a viúva
estrangeiro mandamento mandaste
‫א־ע ַּ ַּ֥ב ְר ִּתי‬
ָ ֹׁ ‫ֵֽל‬ ‫ֹותיך‬
ֵ֖ ֶ ‫ִמ ִמ ְצ‬ ‫וְ ַּ֥ל ֹׁא ָׁש ָ ֵֽכ ְח ִּתי׃‬ ‫א־א ַּכ ְל ִּתי‬
ָ ֹׁ ‫ל‬14 ‫ְבא ִֶֹׁ֜ני‬
Não dos teus
e não esqueci não comi em luto
ultrapassei mandamentos
‫ִמ ֶֶ֗מּנּו‬ ‫א־ב ַּ ֶ֤ע ְר ִּתי‬
ִ ֹׁ ‫וְ ל‬ ‫ִמ ֶמּנּו‬ ‫ְב ָט ֵֵּ֔מא‬ ‫וְ לֹׁא־נָ ַּ ַּ֥ת ִּתי‬
dele e não retirei dele em impuro e não dei
‫ִמ ֶ ֵ֖מּנּו‬ ‫ְל ֵּ ֑מת‬ ‫ָׁש ֶַּ֗מ ְע ִּתי‬ ‫ְבקֹול‬ ‫ֹלהי‬
ֵָ֔ ‫הוִ֣ה ֱא‬
ָ ְ‫י‬
YHWH meu
dele para morto escutei a voz
'elohim
‫יתי‬
ִ ‫ָע ִֶּ֕ש‬ ‫ְכ ֵ֖כֹׁל‬ ‫יתנִ י׃‬
ֵֽ ָ ִ‫ֲא ֶ ַּׁ֥שר ִצּו‬ ‫יפה‬
ָ ‫ ַּה ְׁש ִק‬15 ‫ִמ ְמעֹון‬
que me desde a
fiz conforme tudo olha para baixo
mandaste morada
‫ָק ְד ְׁש ֶ֜ך‬ ‫ן־ה ָש ֶַּ֗מיִ ם‬
ַּ ‫ִמ‬ ‫ּוב ֵּ ֶ֤רך‬
ָ ‫ת־ע ְמך‬
ַּ ‫ֶ ֵֽא‬ ‫ֶאת־יִ ְש ָר ֵֵּ֔אל‬
tua santidade desde os céus e abençoa teu povo israel
‫וְ ֵּאת ָה ֲא ָד ֵָ֔מה‬ ‫ֲא ֶ ַּׁ֥שר‬ ‫נָ ַּ ֵ֖ת ָּתה‬ ‫ָל֑נּו ַּכ ֲא ֶ ֶׁ֤שר‬ ‫נִ ְׁש ַּב ְע ָּת‬
para nós
e o solo que deste juraste
conforme
‫ַּל ֲאב ֵֵֹּׁ֔תינּו‬ ‫ֶ ֶּ֛א ֶרץ‬ ‫זָ ַּ ַּ֥בת‬ ‫ָח ָלֵ֖ב‬ ‫ְּוד ָ ֵֽבׁש׃ ס‬
para nossos
terra que flui leite e mel
pais

12Eis que! Ao completares o dízimo de toda a décima parte de teu produto no terceiro ano,
darás o dízimo para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva. E comerão
em tuas portas e fartar-se-ão. 13Dirás perante Javé teu ’elohim: retirei o que é santo de
minha casa e também o dei para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva,
conforme o teu mandamento que me mandaste. Não ultrapassei teus mandamentos e nem
esqueci deles. 14 Não comi dele em luto, não retirei nada dele enquanto estava impuro e
não dei dele por um morto. Escutei a voz de Javé meu ’elohim, fiz conforme tudo que me
mandaste.
15 Olha para baixo, da morada de tua santidade desde os céus e abençoa teu povo Israel e
o solo que deste para nós, conforme juraste para os nossos pais, uma terra que flui leite e
mel.

114
3.6.2 Os dízimos são para os necessitados

Na opinião de Römer (2008, p. 174), Dt 26.12-15 apresenta uma nítida perspectiva


monoteísta, quando sugere que a morada de Javé não é mais o templo e sim o céu, sua
“morada de santidade” (v.15). Esta oração que finaliza uma confissão de pureza (v.12-
15), tem paralelos com IRs 8.34, que na oração pessoal de Salomão ao dedicar o templo,
deixa transparecer certa ideologia exílica, pois Javé não mora mais no templo e sim no
céu. A presença divina já não depende mais do templo, embora possa fazer seu nome
abitar ali (IRs 8.14-16).
Há no capítulo 26, três narrativas distintas que conferem ao texto certa coerência
e lógica com suas partes internas. A oferta dos produtos da terra que no antigo calendário
litúrgico estava ligada às festas, aqui apresenta-se como um acontecimento da história da
salvação, onde o dom da terra é tema central (vv. 1-11). Os versos 12-15 trazem
novamente à discussão o tema do dízimo trienal que numa confissão de pureza cúltica
deve ser subtraído de qualquer indício de profanação:
Não ultrapassei teus mandamentos e nem esqueci deles. Não comi dele em luto,
não separei nada dele enquanto estava impuro e não dei dele por um morto.
Escutei a voz de Javé meu ’elohim, fiz conforme tudo que me mandaste (Dt
26.13b-14).
O capítulo finaliza com o documento da aliança apresentado em forma de
contrato, onde Javé será o Deus de Israel e Israel será o seu povo, na condição de guardar
os mandamentos, (vv. 16-19). Os grupos sociais beneficiados com a possibilidade de
partilha, advinda da prática legal de dízimo trienal, são novamente formados pelo levita,
estrangeiro, órfão e viúva e recebem de Javé, o direito de comerem até se fartarem (v.12).
Ao direcionar o dízimo e a parte consagrada aos grupos necessitados, o autor usa
o recurso do paralelismo e para garantir mais força ao seu discurso alterna os verbos

retirar ‫( ָב ַּער‬Dt 13, 14) e dar ‫( נָ ַּתן‬Dt 12, 13, 14, 15):

12Eis que! Ao completares o dízimo de toda a décima parte de teu produto


no terceiro ano, darás ‫נָ ַּתן‬o dízimo para o levita, para o estrangeiro, para
o órfão e para a viúva. E comerão em tuas portas e fartar-se-ão. 13Dirás
perante Javé teu ’elohim: retirei‫ ָב ַּער‬o que é santo de minha casa e também
o dei ‫נָ ַּתן‬para o levita, para o estrangeiro, para o órfão e para a viúva,
conforme o teu mandamento que me mandaste. Não ultrapassei teus
mandamentos e nem esqueci deles. 14 Não comi dele em luto, não
retirei‫ ָב ַּער‬nada dele enquanto estava impuro e não dei‫נָ ַּתן‬dele por um
morto. Escutei a voz de Javé meu ’elohim, fiz conforme tudo que me
mandaste.

115
15 Olha para baixo, da morada de tua santidade desde os céus e abençoa
teu povo Israel e o solo que deste‫נָ ַּתן‬para nós, conforme juraste para os
nossos pais, uma terra que flui leite e mel.
Ao observarmos a estrutura do texto, percebemos uma prática comum e
importante, presente no universo religioso, que garante a estabilidade da relação entre
Javé e seu povo. O jogo de palavras reforça a lógica da obediência acompanhada da
retribuição, nos permitindo esboçar a seguinte estrutura:
I. Mandamento de Javé (v 12)
II. Promessa de ser obediente (v 13-14)
III. Súplica por recompensa (v 15)
Sob certo teor ritualístico, a ideia de purificação, presente no caráter cultual

utilizado no texto, concentra-se nestas duas palavras (retirar ‫ ָב ַּער‬e dar ‫)נָ ַּתן‬, colocadas

em paralelo. A raiz ‫ ָב ַּער‬, que em uma de suas derivações tem o sentido de “queimar”,

está mais comumente relacionada, no Deuteronômio, com o mal que precisa ser retirado,
afastado da comunidade. O descuido e a desatenção com os grupos marginalizados (Dt
21-26), configura um pecado flagrante que juntamente com várias prescrições e regras,
promulgavam a necessidade de que todo o mal fosse retirado para garantir bem-estar
social (DITAT, p.203).

A outra raiz ‫נָ ַּתן‬, possui um amplo emprego na Bíblia Hebraica com grande

variedade de sentidos. O mais frequente é dar, presentear, oferecer, produzindo um


campo semântico que pode indicar ações que vão desde a entrega física de um presente
ou uma recompensa, até a concessão de coisas menos tangíveis como bênção ou
compaixão, onde Javé é o principal doador (DITAT, p. 1017-1019).
Fica, portanto, implícito no texto, que a afirmação de retidão do povo que os torna
aptos a receberem a recompensa de Javé, passa por sua ética comportamental,
exemplificada pela prática de entregar parte de sua colheita para o suprimento dos menos
favorecidos. A negativa quanto aos desvios da parte dedicada ao levita, ao estrangeiro, ao
órfão e à viúva completam a declaração de inocência no cumprimento dos mandamentos
de Javé (v. 13-14). O verso 15 faz o desfecho da perícope, com a súplica pela manutenção
das promessas garantidas aos patriarcas. Este desejo por recompensa, que evoca tradições
pré-exílicas, parte do pressuposto teológico popular de um contexto onde a liberdade e a
solidariedade são recompensadas por Javé.

116
3.6.3 Não ultrapassei teus mandamentos nem me esqueci deles

Com uma narrativa muito idêntica ao texto de Dt 14. 28-29, o tema do dízimo
toma novamente o cenário redacional e legislativo do Deuteronômio. Como dissemos
anteriormente, os paralelos que unem Dt 14.28-29 à Dt 26.12-15, propõem uma relação
de unidade entre os textos, tendo como moldura o tema do dízimo. As partes internas a
esta moldura, remontam o centro moral, jurídico e cultual que estabelece a ordem social
e comportamental do povo. O juramento público dos produtores agrícolas em cumprir os
mandamentos de Javé, destinando parte de sua colheita aos grupos socialmente fracos,
compõe o início de uma verdadeira legislação social.
A cultura do dízimo constituía um dos grandes jugos que o rei impunha sobre o
seu povo. Ao usar os modelos de impostos exigidos para a manutenção de e grandes
estados, os autores do Deuteronômio propõem uma inversão ao sistema e o dízimo passa
a servir para o sustento dos próprios produtores e também como garantia de sustendo aos
grupos marginalizados (Cf. CRÜSEMANN, 2012, p. 303-304).
O dízimo é tratado aqui com efeitos sociais importantes para o desenvolvimento
de uma consciência de gratuidade, evitando a ideia de posse e produzindo práticas onde
a oferta estabelecida de 10% proveniente da colheita, para ser entregue aos grupos
fragilizados diante de Javé, foi considerado algo sagrado.
Crüsemann (2012, p. 305) relata que a atitude de entregar o dízimo na porta das
localidades, lugares de encontros públicos e da prática do direito, torna-se um ato que
dispensa a instituição, o estado e o templo. Ao transformar o dízimo em uma prática social
direta, o deuteronômio cancela o imposto presumível, tradicionalmente destinado à
manutenção do estado.
As declarações de inocência, estão ligadas à duas realidades plenamente possíveis
diante de qualquer sistema jurídico que é, o não cumprimento das leis e o esquecimento
de sua prática. Frente ao mandamento de Javé, o deuteronomista se inocenta dizendo:

“Não ultrapassei ‫ ָע ַּבר‬teus mandamentos e nem esqueci ‫ ָׁש ַּכח‬deles”. Ultrapassar ‫ ָע ַּבר‬e

esquecer ‫ ָׁש ַּכח‬, estão entre uma das maiores faltas que se pode cometer diante de Javé,

esta era uma preocupação que já ocupava destaque nas pregações dos profetas que
atuaram na tentativa do reestabelecimento da fé e da firme consolidação da aliança, numa
reivindicação incondicional de Javé para com seu povo (GERSTENBERGER, 2014, p.
318).

117
A utilização destes dois verbos ressalta a necessidade de unidade entre Javé e seu

povo. A negação em ultrapassar ‫ ָע ַּבר‬e esquecer ‫ ָׁש ַּכח‬induz à prática do relacionamento,

como meio mais coerente e possível de se manter as garantias das bênçãos de Javé.
Parece-nos ser intencional que o autor queira combater alguma influência ou prática
religiosa e cultual em seu meio, reforçando a ideia de unicidade entre Javé e seu povo.
A prática de cerimônias fúnebres é também destacada na declaração de inocência:

“Não comi dele em luto, não retirei ‫ ָב ַּער‬nada dele enquanto estava impuro e não dei ‫נָ ַּתן‬

dele por um morto(v.14)”. Os ritos alimentares, indicavam um tempo de luto e jejum,


pois a impureza que afetava a casa do falecido o impedia que se preparasse alimentos
nela. Do mesmo modo, uma prática Cananéia de depositar alimentos nos túmulos era
seguida por uma parte dos israelitas (DE VAUX, 2003 p. 84).
A declaração de Dt 26.14, pode ser explicada, tendo como referencial estes
mesmos costumes, pois, ao declarar que o dízimo é santo e consagrado a Javé, ele também
precisa reafirmar que não comeu dele em luto e nem ofereceu a um morto, pois isto teria
tornado todo o dízimo impuro.
A súplica expressa no encerramento da perícope (v.15), expondo termos como:
“da morada de tua santidade, desde os céus e abençoa teu povo Israel” expressam
nitidamente características usuais de uma oração que busca relembrar as promessas de

Javé que garantiam a posse da terra e bênçãos: “o solo que deste ‫ נָ ַּתן‬para nós, conforme

juraste para os nossos pais, uma terra que flui leite e mel”.
Nota-se aqui uma narrativa que harmoniza tradições antigas para propor uma
bênção condicionada, pois Israel somente conseguirá atingir a promessa de uma terra que
flui leite e mel, se souber testemunhar a grandeza de Javé diante dos grupos mais
necessitados.

3.7 Deveres de consciência: Dt 27.11-26


O capítulo 27 mostra-nos uma concepção diferente do Deuteronômio como
discurso de Moisés, pois refere-se a ele na terceira pessoa. Um conjunto de bênçãos e
maldições estão plenamente desenvolvidos nesta parte do livro (Dt 27-28). A perícope de
Dt 27,11-26, evidencia o aspecto litúrgico, com a finalidade de dar ao conjunto de normas
fixado, uma formulação que facilitaria a aceitação da Torá pela elite religiosa da província

118
de Samaria. Neste sentido, Dt 27 apresenta uma interpretação alternativa para os
Samaritanos (cf. RÖMER, 2008, p. 181).
A narrativa em terceira pessoa, deixa evidências textuais da mão de um editor, que
apela para uma composição com ênfase no caráter cúltico do texto. Ao intercalar uma
sequência de maldições, com esta formulação litúrgica, o autor evoca os deveres que cada
pessoa deve assumir na comunidade. O paralelismo com Dt 11.26-32, mostra-nos uma
estrutura literária que aponta mais para uma composição narrativa do que legislativa e
servem como uma espécie de pregação do deuteronomista que tenta colocar em prática
os mandamentos de Javé, desenvolvendo a questão central que é o tema da Aliança.

3.7.1 Dt 27.11-26: Tradução

‫ַּביַּ֥ ֹום‬
‫וַּ יְ ַּצֶ֤ו מ ֶֹׁׁשה‬11 ‫ת־ה ֵ֔ ָעם‬
ָ ‫ֶא‬ ‫מר׃‬
ֹׁ ֵֽ ‫ֵּלא‬ ‫ ְ֠ ֵּא ֶלה‬12
‫ַּה ֵ֖הּוא‬
aquele
e ordenou Moisés ao povo dizendo estes
dia
‫ַּי ֵַּֽע ְמ ֹ֞דּו‬ ‫ְל ָב ֵּ ֶ֤רך‬ ‫ת־ה ָעם‬
ָ ‫ֶא‬ ‫ל־הר‬
ִ֣ ַּ ‫ַּע‬ ‫גְ ִר ִֵ֔זים‬
permanecerão para abençoarem o povo sobre o monte Gerizim
‫ְב ָע ְב ְר ֶכֵ֖ם‬ ‫ת־היַּ ְר ֵּ ֑דן‬
ַּ ‫ֶא‬ ‫ִׁש ְמעֹון‬ ‫וְ ֵּלִוִ֣י‬ ‫יהּודה‬
ֵ֔ ָ ‫ִ ֵֽו‬
no vosso
o jordão ximeon e levi e judá
atravessar
‫שכר‬
ֵ֖ ָ ‫וְ יִ ָש‬ ‫יֹוסף‬
ַּ֥ ֵּ ְ‫ו‬ ‫ּובנְ יָ ִ ֵֽמן׃‬
ִ ‫וְ ֵּ ֶּ֛א ֶלה‬13 ‫ַּי ֵַּֽע ְמ ַּ֥דּו‬
e
e issacar e jose e estes permanecerão
benjamin
‫ל־ה ְק ָל ָלֵ֖ה‬
ַּ ‫ַּע‬ ‫יבל‬
֑ ָ ‫ְב ַּ ִ֣הר ֵּע‬ ‫אּובן ָגִ֣ד‬
ֵּ ‫ְר‬ ‫וְ ָא ֵֵּׁ֔שר‬ ‫בּולֵ֖ן‬
ֻ ְ‫ּוז‬
para a ruben,
no monte êbal e aser e zebulon
maldição gad
‫ָ ַּ֥דן וְ נַּ ְפ ָּת ִ ֵֽלי׃‬ ‫וְ ָענִ֣ ּו ַּה ְלוִ ִֶ֗ים‬14 ‫וְ ָ ֵֽא ְמ ֶּ֛רּו‬ ‫ל־איׁש‬
ַּ֥ ִ ‫ל־כ‬
ָ ‫ֶא‬ ‫יִ ְש ָר ֵּ ֵ֖אל‬
e proclamarão os a todo o
dan e naftali e dirão Israel
levitas homem de
‫ָה ִִ֡איׁש‬
‫ַּ֥קֹול ָ ֵֽרם׃ ס‬ ‫ ָא ִ֣רּור‬15 ‫יַּ ֲע ֶשה‬ ‫ֶפ ֶסל‬
‫ׁשר‬
ִ֣ ֶ ‫ֲא‬
voz que se o homem
maldito fiser imagen
eleva que
‫ּומ ֵּס ֶָ֜כה‬
ַּ ‫ּתֹוע ַּ ִ֣בת‬
ֲ ‫הוה‬
ֶ֗ ָ ְ‫י‬ ‫ַּמ ֲע ֵּ ֶּ֛שה‬ ‫יְ ֵּ ַּ֥די ָח ָ ֵ֖רׁש‬
de metal
abominação YHWH de mãos de artifice
fundido
‫וְ ָ ִ֣שם ַּב ָ ֑ס ֶתר‬ ‫ל־ה ָ ֶּ֛עם‬
ָ ‫וְ ָענַ֧ ּו ָכ‬ ‫וְ ָא ְמ ֵ֖רּו‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶּ֕רּור‬16

119
e coloca em e respoderão todo o
e dirão amen maldito
oculto povo
‫ַּמ ְק ֶ ַּ֥לה‬ ‫ָא ִ ֵ֖ביו וְ ִא ֑מֹו‬ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬
que
pai e mãe e dirá todo o povo amen
menospreza
‫ ָא ֶּ֕רּור‬17 ‫ַּמ ִ ֵ֖סיג‬ ‫גְ ִ֣בּול‬ ‫ֵּר ֵּע֑הּו‬ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר‬
do seu
maldito o que desloca fronteira e dirá
próximo
‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶּ֕רּור‬18 ‫ַּמ ְׁש ֶגַּ֥ה‬ ‫ִעֵּּוֵ֖ר‬
todo o povo amém maldito que extravia cego
‫ַּב ָ ֑ד ֶרך‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶ֗רּור‬19 ‫ַּמ ֶ ֶּ֛טה‬
no seu
e dirá todo o povo amém maldito desviar
caminho

‫ִמ ְׁש ַּ ַּ֥פט‬ ‫גֵּ ר־יָ ֵ֖תֹום‬ ‫וְ ַּא ְל ָמ ָנ֑ה‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬
do esreangeiro, e dirá todo o
o direito e viúva amém
órfão povo
‫ ָא ֶ֗רּור‬20 ‫ׁש ֵֹּׁכב‬ ‫ם־א ֶׁשת‬
ִ֣ ֵּ ‫ִע‬ ‫ָא ִֵ֔ביו‬ ‫ִ ַּ֥כי גִ ָלֵ֖ה‬
com a porque descobriu
maldito o que deita do pai dele
mulher dela
‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכל־‬
‫ְכ ַּ ִ֣נֶּ֑ף‬ ‫ָא ִ ֑ביו‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶּ֕רּור‬21
‫ָה ָ ֵ֖עם‬
e dirá
a extremidade
do seu pai todo o amém maldito
da vestimenta
povo
‫ׁש ֵֹּׁכֵ֖ב‬ ‫ל־ב ֵּה ָ ֑מה‬
ְ ‫ם־כ‬
ָ ‫ִע‬ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬
o que deita com todo animal e dirá todo o povo amém
‫ ָא ֶ֗רּור‬22 ‫ׁש ֵֹּׁכב‬ ‫ם־אח ֵֹׁ֔תֹו‬
ֲ ‫ִע‬ ‫ת־א ִ ֵ֖ביו‬
ָ ‫ַּב‬ ‫ת־א ֑מֹו‬
ִ ‫ִ֣אֹו ַּב‬
com a sua filha do seu ou filha da sua
maldito o que deita
irmã pai mãe
‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶּ֕רּור‬23 ‫ׁש ֵֹּׁכֵ֖ב‬ ‫ִעם־ ֵֽחֹׁ ַּתנְ ּ֑תֹו‬
e dirá todo o
amém maldito o que deita com a sua sogra
povo
‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶּ֕רּור‬24 ‫ַּמ ֵּ ַּ֥כה‬ ‫ֵּר ֵּ ֵ֖עהּו‬
e dirá todo o
amém maldito o que fere o seupróximo
povo
‫ַּב ָ ֑ס ֶתר‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָארּור‬25 ‫ֹל ֵּ ִֹ֣ק ַּח‬
Em oculto e dirá todo opovo amém maldito o que aceita
‫ֵׁ֔ש ֹׁ ַּחד‬ ‫ְל ַּה ַּ֥כֹות‬ ‫ֶנ ֵֶ֖פׁש‬ ‫ָ ִ֣דם נָ ִ ֹ֑קי‬ ‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬
ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬

120
ׁ pessoa
de sangue
suborno para ferir ser (ׁ e dirá todo o povo
inocente
)vivo
‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ ס‬ ‫ ָא ֶ֗רּור ֲא ֶ ַׁ֧שר‬26 ‫לֹׁא־יָ ִ ֶֹּ֛קים‬ ‫ת־ד ְב ֵּ ַּ֥רי‬
ִ ‫ֶא‬ ‫ה־ה ֵ֖ז ֹׁאת‬
ַּ ‫ּתֹור‬
ֵֽ ָ ‫ַּה‬
não
amém maldito aquele as palavras desta lei
validar
‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכל־‬
‫ַּל ֲע ִ֣שֹות‬ ‫אֹותם‬
ָ֑ ‫ָא ֵּ ֵֽמן׃ פ‬
‫ָה ָ ֵ֖עם‬
e dirá
para cumprir elas todo o .amém
povo

11 E ordenou Moisés ao povo naquele dia dizendo: 12 Estes permanecerão para


abençoarem o povo sobre o monte Gerizim, quando atravessarem o Jordão: Simeon e
Levi, Judá e Issacar, José e Benjamin. 13 E estes permanecerão para a maldição no monte
Ebal: Rúben, Gad e Aser, Zebulon, Dan e Naftali. 14Ploclamarão os levitas e dirão a todo
o homem de Israel com alta voz:
15 Maldito o homem que fizer imagem de metal fundido, abominação par Javé, obra de

mãos de artífice e coloca em oculto. E responderão todo o povo e dirão: amém.


16 Maldito o que menospreza pai e mãe. E dirá todo o povo: amém.
17 Maldito o que desloca a fronteira do seu próximo. E dirá todo o povo: amém.
18 Maldito o que extravia o cego do seu caminho. E dirá todo o povo: amém.
19 Maldito o que desviar o direito do estrangeiro, do órfão e da viúva. E dirá todo o povo:

amém.
20 Maldito o que deita com a mulher do seu pai, porque descobriu dela a extremidade da

vestimenta de seu pai. E todo o povo dirá: amém.


21 Maldito o que deita com animal. E dirá todo o povo: amém.
22 Maldito o que deita com sua irmã, filha de seu pai ou filha de sua mãe. E dirá todo o

povo: amém.
23 Maldito o que deita com sua sogra. E dirá todo o povo: amém.
24 Maldito o que fere ao seu próximo em oculto. E dirá todo o povo: amém.
25 Maldito o que aceita suborno para ferir a vida de sangue inocente. E dirá todo o povo:

amém.
26 Maldito aquele que não validar as palavras desta lei para as cumprir. E dirá todo o povo:

amém.

3.7.2 Bênção pra os obedientes e maldição para os rebeldes

O capítulo 27 do livro de Deuteronômio compreende três elementos distintos.


Enquanto os versos 1-8 e 11-26 prescrevem atos cultuais que se relacionam com o
santuário de Siquém, os versos 9-10 apresentam-se como uma sequência de Dt 26.19, que
formula uma espécie de contrato entre Javé e seu povo. Uma cerimônia inicial da aliança

121
em Siquém, desenvolvem atos cultuais destinados a apoiar o conceito de santuário
centralizado em Jerusalém. Antigas tradições siquemitas podem ter sido usadas neste
texto, como retoques para validar tais prescrições cultuais (Cf. UTLEY, 2011 p. 370-
373).
A unidade literária nos vv. 11-26, fica atestada pela expressão bastante usual no

livro do Deuteronômio “e ordenou” ‫וַּ יְ ַּצֶ֤ו‬, que a partir da raiz “ordenar” ‫ צוה‬em sua forma

piel, coloca em evidência o estilo cultual que o texto propõe, pois, bênção e maldição são
postas em paralelo à obediência e rebelião.

A raiz verbal ordenar ‫ צוה‬e alguns de seus derivados101 como: marco, sinal ‫ ִציּון‬,

mandamento ‫ ִמ ְצוָ ה‬e ordem, preceito ‫ ַּצו‬, marcam os discursos do deuteronomista e sua

tentativa de refletir uma sociedade firmemente estruturada sob o direito Israelita, que tem
como base o Decálogo, o Código da Aliança, o Código Deuteronômico e o Código de
Santidade (DEVAUX, 2002, p. 181).O pacto elaborado em Siquém, tem, portanto,
estreitos contatos com as prescrições elaboradas em tais códigos.
Nota-se, que na introdução ao Dt 27.11-26, uma ordem especial abre sentença
para duas cerimônias: A primeira, nos versos 12-13, onde as tribos repartidas em dois
grupos trocam bênçãos e maldições e a segunda vv. 14-26, onde os levitas proclamam
maldições em forma litúrgica tendo como expressão final: “E responderão todo o povo e
dirão: amém”.
A linguagem exortativa da perícope, coloca a figura de Moisés como mediador

divino, validado pelo verbo “e ordenou” ‫וַּ יְ ַּצֶ֤ו‬, (DITAT, p. 1269-1270). Suas ordens são

direcionadas a dois grupos distintos, especificados por sua localização geográfica:


Gerizim ao sul e Ebal ao norte. A tarefa dos Levitas em proclamar maldições conclui o
desfecho litúrgico do texto.
Estabelecemos, portanto, a seguinte estrutura:
I. Introdução
• Ordens de Moisés (v 11)
II. 1º Cerimônial
• Bênção em Gerizim (v.12)

101 Cf. DAVIDSON, Benjamin. The Analytical Hebrew and Chaldee Lexicon. London: Bagster, 1970,
p.641-642.

122
• Maldição em Ebal (v.13)
III. 2º Cerimonial
• Maldições rituais (vv. 14-26)

As doze maldições proclamadas pelos Levitas, possuem semelhanças estruturais


com as leis do código da aliança, promovendo agrupamento de sentenças e juízos, típicos
da pregação profética. A busca por desenvolver a prática do direito em uma sociedade de
pastores e lavradores (Cf. DE VAUX, 2002, p. 176), incorpora as maldições proclamadas
em Dt 27.15-26, trazendo à memória os temas gerais do decálogo102. Para Edesio Sanchéz
(2002, p. 383-384), esta era uma tentativa de evitar que o povo fosse influenciado pelos
elementos da cultura e religião Cananéia (Cf. Dt 27.11-14).

3.7.3. E todo o povo dirá amém: uma coalizão necessária

A narrativa, como é apresentada nesta porção do Deuteronômio, desdobra-se


como um discurso dentro do discurso: o primeiro é um discurso de Moisés, voltado para
as tribos e o segundo, um roteiro para a apresentação oral da cerimônia de juramento
pelos levitas a ser realizada posteriormente em Siquém.
Ambos servem como exemplo do entrelaçamento habilidoso do autor de
Deuteronômio que une o material ritual no capítulo 27 com o discurso de Moisés no
capítulo 11que o precede, onde é descrita a cerimônia de aliança, com as promessas e
advertências antes da tomada de posse da terra (RAMOS, 2014, p.5).
Ao relacionar a posse da terra aos mandamentos de Javé, o Deuteronomista o faz,

com ênfase nas fórmulas litúrgicas, com a sentença tipicamente solene do amém‫( ָא ֵּמן‬vv.

15-26). A expectativa de se possuir ou não a proteção divina é bem marcada pelo binômio

bênção ‫ ֵּב ַּרך‬e maldição ‫ ְק ָל ָלה‬, tendo Moisés como mediador entre a vontade de Javé e

as necessidades do povo.
Como já afirmamos, a rigor, Dt 27.11-26 aponta para o formulário da aliança:
bênção e maldição são invocadas na frente de testemunhas (vv. 11-13). No entanto,

102 Dt27.14-26 é na verdade um resumo do que é visto na lei da aliança ou código deuteronômico. Cf.
SANCHÉZ, Edesio. Deuteronomio. Introduccion y comentario. Buenos Aires: Kairos, 2002, p. 385.

123
percebemos que este formulário serve de base para a retórica, onde o tema da “bênção e
maldição” é, assim, desenvolvido em termos retórico-emocionais, que visam dar
continuidade sincrônica às maldições proclamadas pelos Levitas.
Bernard M. Levinson (1997, p. 149-150), afirma que os autores do Deuteronômio
usaram o Código da Aliança como um recurso textual, de forma dialética, a fim de
garantir sua própria agenda religiosa, jurídica e administrativa. Torna-se tentador insistir
nesse ponto e sugerir que os autores deuteronômicos representassem um movimento
sectário e institucional na sociedade judaica tardia.
No entanto, a dinâmica de aliança prevê atos necessários de coalizão, onde grupos
marginalizados, diante da estreita condição social e política em que viviam, tiveram que
chegar a um consenso entre os interesses pessoais e os interesses dos diversos grupos que
propunham um movimento de desintegração do Javismo Oficial. Uma teologia de
oposição a partir de classes sociais marginalizadas adquire funções totalmente
subversivas, que se tornam fundamentais para o desenvolvimento e organização dos
sujeitos em torno de um projeto social (ALBERTZ, 1999, p. 572-574).
O grande valor das ações em comunidade está na sua expressão da diferença e não
na manutenção de valores hegemônicos ou universais. A atenção aos grupos socialmente
fracos insere a atenção ao “outro” promovendo uma lógica diversa no princípio da
Aliança, criando uma esperança transformadora que se desenvolve em questões sociais
absolutas.
O diálogo litúrgico apresentado em Dt 27.11-26, quando comparado à
exclusividade suprema de Javé, proferida pela comunidade de Siquém em Js 24.14-24
traz como base um conjunto de leis provenientes do Código da Aliança, reeditadas na Lei
de Santidade em Lv 24.17 (Cf. CRÜSEMANNISEMANN, 2002, p. 383). Os
mandamentos pronunciados pelo levita trazem à tona o compromisso da comunidade para
com a organização social. Eles estabelecem uma punição ao transgressor que é
confirmado e testemunhado pela comunidade através do amém.
Para Edésio Sanchèz (2002, p.383-385), as maldições encontradas nestes
versículos cobrem os temas gerais do Decálogo: o versículo 15 cobre os mandamentos
concernentes a Deus; versículo 16, o mandamento dos pais (cf. 21.18-21; Êx 21.17; Lv.
20.9); versículos 17-19 e 25 os mandamentos sobre o tratamento justo e humanitáriopara
com outras pessoas – aquio mandamento do sábado também está incluso - (14.29; 16.14,
19;19.14;21. 1-9; 24.17, 19-21; 26. 12-13; Ex. 23. 8; Lv 19.14); os versos20-24 apontam

124
para vários elementos pertencentes ao sétimo mandamento(22.30; Lv. 18. 6-18; 20.10-
21). A tentativa é expor um compromisso sério e sólido entre o povo e Javé.

A sentença: “e dirá todo o povo”‫ל־ה ָ ֵ֖עם‬


ָ ‫וְ ָא ַּ ַּ֥מר ָכ‬, expõe uma categoria social (povo

‫ ) ָעם‬que perpassa todo o texto. Com o significado básico de “abranger, incluir”(DITAT,

p. 1132),o substantivo ‫ ָעם‬torna-se no texto, um termo aglutinador que compreende todas

as instâncias sociais, extrapolando o conceito de clãs e tribos. Soa como uma fórmula que
mantém a convivência ética e o direito dos grupos menos favorecidos, promovendo um
comportamento justo na convivência com os pais, com os vizinhos, junto ao deficiente e
aos setores pobres da comunidade.
Diante deste conjunto de advertências que busca reforçar o caráter e a pureza
cultual do povo, o verso 19 enfatiza o dever do cuidado para com o estrangeiro, o órfão e

a viúva, empregando o verbo desviar, desencaminhar ‫( נָ ָטה‬KIRST, 2004, p.155). Na

forma hiphil, este verbo assume caráter figurado para referir-se à perversão ou distorção
da justiça, mostrando-nos os mesmos critérios de caráter e pureza na aplicação do código
legal.
O verso 19 torna-se paralelo a Dt 24.17 e mostra-se coerente com a ideia de
imparcialidade e incorruptibilidade de Javé diante do fraco e do pequeno, tão presente no
livro do Deuteronômio (Dt 1.17, 10.17, 4.19 e outros, cf. UTLEY, 2011, p 376).
Percebemos, portanto, que Dt 27.11-26 interrompe a sequência do livro, propondo uma
lista de sentenças e maldições, obrigando, de certa forma, que cada pessoa na comunidade
assuma seus deveres em consciência com a aprovação popular.

3.8 Considerações parciais

A complexa estrutura de composição do Deuteronômio, desenvolvida em sua


grande maioria como uma espécie de testamento, repleto de forças persuasivas, que se
apoiam nas principais tradições de Israel, tem como cerne de seu discurso, um conjunto
de conteúdos que expõe leis e liturgias referentes às celebrações, festas, ofertas de
sacrifícios, ofertas de dízimos, voltadas para a realidade sócio econômica do povo de
Israel.
O conjunto de textos analisados - Dt 10.12-22; 14.28-29; 16.9-17; 24.17-22;
26.12-15; 27.11-26 - apresenta-nos situações que aprofundam a concepção de união entre

125
Javé e seu povo, a partir de uma legislação litúrgica que desenvolvia como meta, a
promoção de profunda espiritualidade profética através da mística da fraternidade,
irmandade, partilha e inclusão de grupos marginais e socialmente fracos.
Em meio a este movimento legislador, que tentava manter viva a consciência de
um projeto institucional, inspirado por grandes civilizações, se desenvolvia uma “teologia
marginal” que caminhava em paralelo com as forças de resistência produzidas por grupos
que protestavam contra um javismo garantidor das instituições.
Estes grupos, supostamente formados por profetas, pela família e pelo povo,
defendiam que Javé sempre havia sido o garantidor da liberdade, bem mais que isto,
defendiam que Javé era garantidor da liberdade dos politicamente oprimidos, contra a
prepotência dos politicamente opressores.
Além de oferecer a novidade de uma pedagogia da liberdade e da justiça, a fim de
construir uma sociedade em aliança fiel com Deus, que traz libertação e vida a todos, o
Deuteronômio nos mostra a possibilidade de se ouvir as vozes e os gritos de grupos
marginais. Este conjunto de textos concatenados em forma de arquivo (SILVA, 2011),
quando interpretado e articulado a partir de suas vozes dissidentes, nos permite perceber
sua contraposição às estruturas sistêmicas de subordinação dos socialmente fracos, ao
modelo institucional.
Como resultado dos círculos narrativos estudados no conjunto de perícopes
apresentadas, extraímos do texto deuteronômico a possibilidade de uma nova
interpretação da multiplicidade dos mandamentos divinos.
Em Dt 10.12-22, percebemos a articulação de um ponto central do conjunto
deuteronômico, que se resume no tema da exclusividade do culto à Javé e na adesão de
seu desejo de instaurar a igualdade entre todos os membros da comunidade. A defesa do
estrangeiro, do órfão e da viúva é componente intrínseco nesta fidelidade esperada,
daqueles que buscam a Javé como referencial. Neste aspecto, é preciso que o povo
aprenda a viver em liberdade e a construir relações econômicas, políticas e sociais justas,
a fim de que a vida em sociedade apresente os sinais de um Deus vivo que convoca seu
povo a escolher entre a liberdade e a escravidão, entre a vida e a morte.
Este bloco desenvolve uma forte ênfase na sentença “temer e amar a Javé”, que
determinará a mensagem do Deuteronômio, tornando-se o centro teológico de todo o
livro. Este eixo teológico é que levará o povo a obedecer a vontade de Javé e aderir ao
projeto de uma sociedade mais justa. A insistência não está somente na observância das
leis de forma estrita, mas sim na possibilidade de aprofundá-las aos moldes de uma nova

126
espiritualidade. Esta relação de aliança com Javé exige uma resposta prática na vida
religiosa, com reflexos sociais.
A narrativa de Dt 14.28-29 realça a temporalidade como ênfase de um ciclo bem
definido para a prática social. Este bloco desenvolve a lógica do dízimo dentro do
pensamento jurídico do deuteronômio, como ação libertadora de Javé.
A entrega de parte da colheita realizada nos portões torna-se a norma de uma
determinação legal para a prática do dízimo, tendo como motivação as ações sociais e
comunitárias em prol dos socialmente fracos.
Em Dt 16.9-15, as festas surgem como prescrições cultuais de solidariedade,
servindo como lugar de fixação das experiências concretas de libertação. As principais
festas de Israel são tratadas aqui com grande potencial sociológico, tratando os sintomas
da pobreza de forma realista e simbólica a partir de refeições fraternais. A alegria
celebrativa destas festas desenvolve-se a partir de uma liturgia com grande potencial
crítico, tornando-se prática simbólica que repensa as situações do cotidiano e as
transforma em realidade cúltica e social. O destaque dado pelo Deuteronomista para estes
momentos de confraternização está na alegria e na gratidão, começam no ambiente
familiar e extrapola a contexto da casa, promovendo forte interação social, que revela o
ideal humanitário de preceitos a serem cumpridos pelos seguidores de Javé.
Em Dt 24.17-22, duas importantes tradições que compõe o centro estrutural da
vida religiosa e social do Antigo Israel são colocadas em destaque: A primeira reforça a
experiência do êxodo, com seu apelo à libertação e o direito a terra. A segunda se refere
aos laços consanguíneos, reais ou não, desenvolvidos pelo tribalismo, que proporcionam
a este grupo autônomo de famílias a possibilidade de se ajudarem mutuamente, sob o
vínculo de um antepassado. Percebemos que a ética da libertação só tem sentido, se
acompanhada de uma ética social, onde a relação de partilha herdada de tradições como
a do êxodo, se desdobra em relações importantes na prática do direito e da justiça para
com grupos marginalizados como o estrangeiro, o órfão e a viúva.
O tema do dízimo toma novamente o cenário redacional e legislativo em Dt 26.12-
15, pois, com uma narrativa muito idêntica ao texto de Dt 14. 28-29, o texto remonta o
cenário moral, jurídico e cultural para estabelecer a ordem social e comportamental do
povo. A parte da colheita determinada para os grupos socialmente fracos compõe o início
de uma legislação de caráter social, que desenvolve na prática do dízimo consciência de
gratuidade como algo sagrado.

127
Os impostos, tradicionalmente destinados à manutenção do estado, transformam-
se em uma prática social direta, estabelecida por Javé. No entanto, fica exposto neste
trecho, que mesmo diante de uma visível prática social há uma tensão que evidencia a
retórica de manutenção do status quo “Olha para baixo, da morada de tua santidade
desde os céus e abençoa teu povo Israel e o solo que deste para nós, conforme juraste
para os nossos pais, uma terra que flui leite e mel. (Dt 26.15)”. Mesmo Jean-Marie
Carrière que acredita ter no Deuteronômio uma “escolha da vida”, reconhece essa tensão
entre utopia e realidade (2005, p.56), que nos leva a refletir sobre as contradições e os
limites dos projetos mais bem intencionados.
Em Dt 27.11-26, evidencia-se o aspecto litúrgico da prática social que estimula os
deveres de consciência para com os socialmente fracos, desenvolvendo a dinâmica de
uma aliança que prevê atos de coalizão entre grupos marginalizados e parte da uma elite
que se interessava na desintegração do javismo oficial. Aqui, a atenção aos grupos
socialmente fracos, cria uma esperança transformadora que desenvolve questões sociais
absolutas. O compromisso da comunidade com a reorganização social é retomado, tendo
como suporte os mandamentos pronunciados em forma litúrgica, na tentativa de expor
um compromisso sério e sólido entre Javé e seu povo.
A partir dos textos analisados e da constatação de que grande parte das produções
literárias deuteronomistas está situada na corte de Jerusalém (RÖMER, 2008, p. 107),
com uma ideologia marcadamente propagandista com viés político, econômico e
religioso, não podemos descartar que junto a este movimento, desenvolve-se a
constituição de uma nova história a partir da crise institucional iniciada no período
neobabilônico (626-539).
Com base nestes dados, nos propomos analisar em nosso próximo capítulo, os
efeitos sociais produzidos na teologia do Antigo Testamento, a partir da ótica
deuteronomista que se relacionam com a tríade estrangeiro, órfã e viúva na prática de
ações que promovam o direito e a justiça.

128
Capítulo 4. A defesa da Tríade Social e seus
desdobramentos na teologia veterotestamentária.

Como já afirmamos, o Deuteronômio nos mostra a possibilidade de se ouvir as


vozes e os gritos de grupos marginais, sufocados por seus opressores. No contexto destas
possibilidades, o opressor está associado à monarquia ou a Assíria e em muitos casos, é
fruto de uma combinação de ambos.
A atitude religiosa positiva em relação aos socialmente fracos, de certa forma,
distingue o Antigo Testamento de seu ambiente social, no contexto do Antigo Oriente.
De acordo com a visão de mundo presente na antiguidade (LEVIN, 2001, p. 253-274), a
pobreza era simplesmente um fato. A preocupação com os pobres, ideologicamente
atestada como um dos deveres especiais do rei, tinha como objetivo maior, preservar a
ordem mundial, sem a intenção, no entanto, de que esta realidade fosse alterada.
É bem verdade, que ao assumir uma assistência solidária e fraternal para com a
Tríade Social, as “leis sociais” produzidas neste contexto, deixam sinais evidentes de que
a proteção a este grupo marginal não poderia ser fruto exclusivo e desinteressado dos
detentores do poder. Por outro lado, os “atos misericordiosos”, presentes no
Deuteronômio, que em muitas vezes surgem como resultado de uma pretensa aliança com
Javé, serão sempre uma função provisória.
Como veremos na sequência deste capítulo, uma tendenciosa administração do
direito e da justiça, que privilegiava os poderosos e excluía os mais pobres é frequente no
texto bíblico e embora tenha a roupagem de legalidade, sua eficácia é nula. A atuação
profética, de certa forma, deu voz a esta gente pobre, ou melhor, para usar o conceito de
Frantz Fanon, estes “condenados da terra”103 que em sua condição marginal, só poderiam

103 Uso o termo “condenados da terra” para representar os pobres, e consequentemente, estrangeiros,
órfãos e viúvas. Aproprio-me aqui do termo desenvolvido por Frantz Fanon, que em sua obra publicada
originalmente em 1961, trata da colonização e seus efeitos políticos, históricos, culturais e psíquicos na
sociedade. Fanon argumenta que os colonizados estão em um mundo dividido, onde um lado se caracteriza
pela sociedade e o outro se caracteriza pela fome. Para o autor a relação entre estas duas partes opostas,
sempre foi promovida pelos agentes de opressão. Cf. FANON, F. Os Condenados da Terra. Lisboa: Livraria
Letra livre, 2015. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/fanon/1961/condenados /index.htm.

129
experimentar alguma mudança de seu status quo, tornando-se participantes das
transformações de sua estrutura social.
Nossa proposta para este capítulo está, justamente, na investigação dos efeitos
produzidos pelas implicações do direito e da justiça na teologia do Antigo Testamento,
no que se refere à defesa dos socialmente fracos. Para tanto, num primeiro momento
buscaremos destacar os caminhos trilhados no desenvolvimento do contexto histórico e
social do Antigo Testamento, para chegar à lógica impressa na solidariedade e sua
ressonância no desejo de liberdade contidos na teologia veterotestamentária.
A suspeita é que a dimensão social do direito e da justiça no Antigo Testamento
reproduziram uma linguagem litúrgica que sinaliza o comportamento ético social que
ganha mais força na atuação profética.
Como terceira etapa da proposta para este capítulo, somos desafiados a repensar
as questões já estabelecidas pela retórica deuteronomista e avançar para um
envolvimento orgânico com o texto, articulando o reconhecimento de uma teologia
marginal que se desenvolve a partir das necessidades dos socialmente fracos, e se
estende como um princípio norteador para a teologia veterotestamentária.
Esta junção entre a força da ação profética que verbaliza o sofrimento dos grupos
marginalizados, e a construção litúrgica do deuteronomista na intenção de forçar o
compromisso ético social do povo, nos leva a suspeitar que as perícopes tratadas no
capítulo anterior obedecem a uma orquestrada intenção dos editores deuteronomistas,
que denominamos aqui de “liturgia do cuidado”.

4.1. O desenvolvimento do contexto histórico e social do Antigo


Testamento

Ao estudarmos o contexto histórico e social da Bíblia trilhamos um caminho de


importância fundamental para a compreensão dos escritos no Antigo Testamento e suas
afirmações teológicas. As formas de organização familiares, comunidades locais,
formação regionais e do estado passam por esta pergunta fundamental sobre como estas
classes se encaixavam em alguns aspectos e como elas também se confrontavam em certa
tensão.
A administração política, a densidade populacional, a situação de moradia, a troca
de bens e a produção de alimentos, compreendem elementos essenciais que nos
direcionam para o contexto histórico e social da Bíblia.

130
No desenvolvimento desta tese, percebemos no primeiro e segundo capítulos, que
um considerável número de trabalhos no mundo da pesquisa bíblica moderna, acena cada
vez mais para um constante diálogo com narrativas históricas ou jurídicas, provenientes
do universo mesopotâmico e egípcio.
De fato, a comunidade religiosa israelita foi, de modo direto, influenciada por
pensadores, culturas e regimes que a circundavam. Tal influência foi determinante na
redação dos textos bíblicos e por isso, antes de entrarmos necessariamente no tema em
questão é importante compreender os caminhos desenvolvidos no estudo da história da
Religião de Israel e sua necessidade de compreensão por uma leitura sociológica do texto
bíblico.
A história da religião de Israel compõe o elemento central dos principais trabalhos
sobre o Antigo Testamento. Desde 1787, com os trabalhos de J. P. Gabler, a abordagem
histórica da Bíblia é vista como elemento que precisa necessariamente caminhar
dissociado de uma dogmática104 biblicista. Os embates entre razão e revelação, acabaram
promovendo observações importantes sobre as influências exercidas pelas religiões
vizinhas a Israel no estudo da Bíblia (FOHRER, 1982, p.10), introduzindo caminhos para
a construção de uma “história da religião de Israel” como disciplina veterotestamentária
(ALBERTZ, 1999, p.24-27).
O desenvolvimento dos estudos histórico-crítico, marcou as décadas seguintes,
operando principalmente no campo da crítica literária. Mas foi a partir de 1880, que a
escola da história da religião surge como significativa para os posteriores estudos da
religião israelita. H. Gunkel e H. Gressmann foram seus representantes mais expressivos.
Eles foram os precursores que influenciaram a geração seguinte e suscitaram
debates importantes para a formação histórica de Israel com os trabalhos inovadores de
Jullius Wellhausen com sua hipótese documental e posteriormente Martin Noth com a
construção da teoria das tradições (RÖMER, 2008, p. 22-29).
Desdobramentos importantes aconteceram em nosso século, principalmente com
os trabalhos de Roland de Vaux, Gerhard Von Rad e George Fhorer que construíram

104
A diferença real entre a Teologia Bíblica e a Teologia Dogmática e a determinação dos limites destas
duas disciplinas foi preconizada por J.P. Gabler. O racionalismo considerava a religião do Antigo
Testamento como magnitude autônoma de mediadores religiosos. Apesar de sua crítica histórica, a
“dogmática bíblica”, continuava a se esforçar para enquadrar os testemunhos bíblicos dentro de seu
particularismo. Cf. FOHRER, Georg. História da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 1982; ALBERTZ,
Rainer. Historia de la religión de Israel en Tiempos del Antiguo Testamento: Vol. 1. De los comienzos
hasta El final de la monarquía. Madrid: Editorial Trotta, 1999.

131
evidências textuais e arqueológicas das religiões dos vizinhos de Israel, ampliando nossa
compreensão dos conceitos e fenômenos religiosos em Israel e todo o levante.
Nas décadas recentes, ampliaram-se os questionamentos acerca do
desenvolvimento religioso e social do povo bíblico. Uma nova discussão sobre a história
de Israel e a compreensão de Deus na Bíblia, tornou-se frequente em círculos
especializados, a fim de compreender o contexto histórico da Bíblia e como ela apresenta
o passado de Israel105.
Ao adotar métodos usados pelos arqueólogos, pesquisadores da história bíblica
perceberam que as tradições do Norte chegaram em Judá a partir dos refugiados Israelitas
no final do séc. VIII após a queda do Israel Norte. Tais tradições foram incorporadas às
narrativas antigas em Judá, permitindo-nos perceber que uma boa parte dos textos
bíblicos estão mais próximos de uma literatura sacerdotal tardia e fictícia que têm gerado
novas concepções sobre a visão histórica da Bíblia (FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018, p.32-34).
Outro fator importante no desenvolvimento das pesquisas sobre a história de Israel
está nos recentes levantamentos sobre o desenvolvimento do Israel Norte a partir do final
do século VII. Os relatos e descobertas da cultura material e história do Norte na Idade
do Ferro mostra-nos que apesar de sua relevância econômica, política, cultural e militar,
o Israel Norte foi pouco valorizado nos relatos bíblicos e na pesquisa acadêmica.
Na Bíblia, isso se estruturou devido à perspectiva predominante sulista (Judá) e
religiosa com que foram redigidos os textos. Com efeito, nela, a história política do Israel
Norte recebeu pouca ênfase. Maior espaço foi concedido somente ao reinado de Jeroboão
I e Acab (respectivamente, 931- 910 e 874-853 a.C.). Por outro lado, Omri e sua dinastia
(885-841 a.C.), reconhecidos até mesmo em testemunhos extrabíblicos, não foram
contemplados nos textos bíblicos na dimensão que lhes caberia se considerada sua
importância histórica106.
Nesta busca pela compreensão do contexto histórico e social da Bíblia, chegou-se
à conclusão que uma destas influências mais marcantes para a pesquisa sobre o
desenvolvimento social e religioso dos povos da Bíblia, foi o estudo em torno do projeto

105
Mais detalhes em: SMITH, Mark. S. O memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino
no Antigo Israel. Trad. Luiz Alexandre Solano Rossi. São Paulo. Paulus, 2006.
106
Para uma abordagem mais detalhada sobre o tema veja: FINKELSTEIN, Israel. O Reino Esquecido,
arqueologia e história de Israel Norte. São Paulo: Paulus, 2015.

132
expansionista do rei assírio Teglat-Falasar III (745- 727AEC.), com desdobramentos
importantes na política e religião de Israel107.
A dominação Assíria com a implantação do regime político de vassalagem aos
conquistados, não tardou em atingir as fronteiras de Israel. O desenvolvimento das
pesquisas em torno destes acontecimentos, principalmente no exame dos relevos
produzidos pela iconografia Assíria, nos permite compreender o florescimento das
grandes potências do Antigo Oriente, bem como, as estratégias e resultados da reforma
promovida no reinado de Ezequias em oposição aos assírios.
Rainer Albertz (1999, p. 463-475) afirma que neste período, a perda do direito de
posse da terra e, consequentemente, o agravamento da crise que se abateu sobre os pobres,
foram determinantes para uma reação litúrgica e teológica promovida pelos grupos
proféticos de oposição, por grupos marginais e os reformadores deuteronomistas. Em
outras palavras, os que antes possuíam a terra, agora tem, como garantia de sobrevivência,
parte do dízimo, das festas e das colheitas defendidas como rituais, amparados pela
legislação social desenvolvida no ambiente deuteronômico.
A crítica social desempenhada principalmente pelos profetas do século VIII
A.E.C. tornaram-se o indício mais antigo do resgate das prescrições divinas em forma
escrita. As narrativas em torno da concepção de que Deus mesmo é quem escreve os
primeiros mandamentos (Cf. Ex 32.16-17; Ex 34 e Dt 9.10), testemunham a respeito de
um direito escrito em Israel com as orientações de Javé sobre tábuas de pedra, fazendo
com que a Torá esteja intrinsecamente localizada no centro da história de Israel.
Obviamente, as conhecidas hipóteses sobre a história do direito escrito influenciaram a
interpretação de textos proféticos, fornecendo uma moldura relativamente segura para a
gênese da Torá e sua compreensão como prescrição divina.
Na esfera da ética social, a prática do direito e da justiça transformam-se em leis
que garantiam sobrevida aos socialmente fracos, principalmente à tríade social. Tais leis,
foram elaboradas a partir de uma profunda transformação das estruturas internas do
Javismo, com a valorização da espiritualidade desenvolvida em grupos marginais em
consonância com o enfraquecimento das instituições cúlticas e políticas.
Para o contexto social do Antigo Testamento, o direito não é somente uma fonte
importante e indispensável, é além disso, parte desta mesma história (CRÜSEMANN,

133
2012, p.29). Esta relação entre direito e realidade social é intrínseca ao contexto bíblico
e molda um pando de fundo religioso específico que transfere para a liderança e
instituições reais, seu desenvolvimento a partir da inspiração divina.
A concepção israelita básica de que o direito é fruto do estatuto divino, é o
diferencial para com as concepções comuns do Mundo Antigo, onde as leis eram
transmitidas sob o nome de algum rei ou legislador (CRÜSEMANN, 2012, p. 32). Por
outro lado, as relações estreitas entre grande parte do direito veterotestamentário e a
legislação praticada por povos do Antigo Oriente, desenvolveram uma dimensão social
importante em Israel.
A manutenção dos direitos do estrangeiro, do órfão e da viúva ganham, portanto,
estilo legislativo e remontam a conceitos técnicos jurídicos que buscam garantir os
conceitos básicos do bem-estar social.

4.1.1 A dimensão social do Direito e da justiça no texto bíblico.

Em seu contexto histórico, direito e justiça representam um dos princípios mais


importantes na condução de governos e na organização das sociedades humanas. Em suas
diversas manifestações, históricas, lexicais e semânticas, concretizam-se como um
universo socialmente construído de princípios e normas que regem determinada
sociedade (VIEIRA, 2012, p.1).
Ao associar-se de forma intrínseca ao tema da moralidade, onde o comportamento
social é medido a partir de obrigações e deveres a serem cumpridos, o princípio da justiça
reveste-se de uma natureza eminentemente social, pressupondo a existência de um
sistema de relações cujas características definem o modo de vida de um indivíduo na
comunidade e determinam o que lhe é exigível e, simultaneamente, o que lhe é devido.
Esta estrutura formal que regulamenta a interação social, tende a atuar na
preservação de uma ordem que tenta reger os mecanismos pelos quais se reproduzem as
desigualdades sociais como a existência de hierarquias e desníveis de poder social e
riqueza.
Não é por acaso que esta mesma estrutura conceitual do princípio do direito e da
justiça, está presente nas principais literaturas do Antigo Oriente como expressão e
garantia do reestabelecimento da ordem divinamente criada, sistematizando a dimensão
social da justiça, que se faz pala ação divina e a mediação humana, na prática da
solidariedade.

134
Muito tempo antes de surgir a ideia de um Israel como povo unificado pela
autoridade central de um Rei108, a humanidade já havia alcançado níveis mais avançados
de sociedade, com a criação de grandes Cidades estados com um conjunto de leis e uma
administração mais elaborada. As Cartas de El-Amarna109 por exemplo, fazem referência
a um conjunto de correspondências diplomáticas do Antigo Oriente do século 14 AEC,
trocadas entre faraós e os grandes reinos da época, revelando um sistema complexo de
tratados políticos.
Israel desenvolve-se em meio a estes sistemas já estabelecidos e experimenta, em
meio a duras críticas, a transição para uma monarquia que se espelhava nos modelos
consagrados de seus vizinhos (GERSTENBERGER, 2006, p. 74-75). As críticas
apoiavam-se nas arbitrariedades e na soberba de seus regentes, mas por outro lado,
mantiveram-se acesas as crenças e festas populares típicas dos cultos domésticos
familiares.
Esta transição de modelos trouxe consigo a experiência jurídica destes povos,
junto com uma nova estrutura social e a mentalidade das religiões estatais onde o rei,
orientado pela força divina, tinha a incumbência de criar e manter o direito e a justiça
entre seus súditos na intenção de evitar problemas que colocassem em risco a delicada
harmonia social. Esta aproximação entre rei e divindade gerou em certo ponto
ambiguidades sobre a função e o lugar de cada um deles no contexto administrativo
(RÖMER, 2016, p.103).
O templo tornara-se também um santuário real onde o rei, enquanto filho de uma
divindade, possuía os mesmos direitos e privilégios de seu deus. Aos poucos, por força
dos massoretas a dedicação do templo passa a ser exclusivamente para Javé que assume
também o lugar das divindades solares da Mesopotâmia e Egito, transportando para si as
façanhas de um Deus criador e garantidor da vida, que julga o bem e o mal que os homens
fazem e assim como a divindade solar, promovia o direito e a justiça110.

108
Fato ou ficção, a ideia de um Israel unificado pela autoridade de um rei está presente na narrativa bíblica.
Embora a ficção destes relatos já não seja, hoje em dia, contestada seriamente, é certo que há um motivo
pela função de tal invenção nos textos bíblicos. Para mais detalhes veja: FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018).
109
Confira na íntegra os detalhes das cartas de Tell El-Amarna em: CAMINHANDO. Revista da Faculdade
de Teologia da Igreja Metodista. v23, n1, 1º semestre de 2018, p.1-250. São Bernardo do Campo:
Editeo/UMESP, 1982.
110
A transmutação da personalidade e dos atributos de divindades presente na cultura dos povos vizinhos
para Javé, em Israel, está muito bem retratado nos textos de Thomas Römer e Mark Smith. Cf. RÖMER,
Thomas. A Origem de Javé. O Deus de Israel e seu nome. São Paulo: Paulus, 2017; SMITH, Mark. S. O
memorial de Deus: história, memória e a experiência do divino no Antigo Israel. São Paulo: Paulus, 2006.

135
Libertação e salvação, estão, portanto, vinculadas ao cuidado divino, onde se
estabelece intrinsecamente o tema do direito e da justiça. Sobre o problema teológico-
moral já conhecido da miséria humana, da exploração e da maldade exercida sobre os
socialmente fracos, surge um deus justiceiro que se impõe a partir de leis que garantem
direitos e igualdade para os membros da comunidade.
Para usar um conceito moderno, esta violação aos direitos fundamentais de cada
ser humano, precisava de alguma forma ser corrigida, principalmente quando articulada
com nítida correspondência ao modo de viver e encarar o mundo tão complexo e
pluriforme do Antigo Oriente.
A relação entre direito e realidade social neste contexto multifacetário, como já
observamos no tópico anterior, torna o direito e a justiça parte inerente da História de
Israel, onde se manifesta uma fé específica em Javé como garantidor da justiça,
colocando-se além dos temas básicos que constituem a história jurídica herdada de outros
povos.
O alcance social deste tema é gigantesco, pois no contexto da bíblico, os conceitos
são bem mais amplos do que os estudos que se fazem presente nas disciplinas do direito,
da religião, da moral, da ética e da filosofia, permitindo que as concepções e aplicações
práticas do direito e da justiça, variem de acordo com o contexto social e sua perspectiva
interpretativa.
O termo mais frequente usado pelo texto massorético dentro do campo semântico
para a prática da justiça111 é ‫ ִמ ְׁש ָפט‬direito/ decisão/ julgamento, ocorrendo em 406 versos

com grande frequência em Salmos e Deuteronômio. O verbo ‫ ָׁש ַּפט‬juízo/ punição, aparece

em segundo com o número de ocorrências em 206 versos, seguido de ‫ ֶצ ֶדק‬direito/ justo

em 152 versos e ‫ ְצ ָד ָקה‬retidão/ sem culpa/ honesto em 150 versos112. Cabe ainda

111
Em greal, şedeq e şedāqāh têm substancialmente o mesmo sentido: tanto um como o outro poderiam
significar “ordem, retidão, justiça, comportamento justo, ação salvadora”. (Cf. K. KOCH,
“Şdq”, Diccionario teológico manual del Antiguo Testamento, II (eds. JENNI, E. e WESTERMANN, C.;
JOHNSON, B. “şedeq; şedāqāh; şaddîq”, Theological Dictionary of the Old Testament, XII (eds. G.J.
BOTTERWECK – H. RINGGREN – H.-J.FABRY. Cambridge: Eerdmans; Grand Rapids, 2003, p. 243-
264.). “Direito” (mišpat) é a ordem de direitos e de exigências que pertence a uma determinada relação e
também a ação para manter a pessoa assegurada mediante decisões legais justas. Şedeq e şedāqāh,
coordenados em par com mišpāţ, formam conceitos coordenados de justiça, designando a ordem
estabelecida por Deus na comunidade. (Cf. P. BOVATI, Ristabilire la giustizia (Analecta biblica 110;
Pontificio Istituto Biblico; Roma 1986) 149-196).
112
Cf. LISOWSKY, 1981

136
mencionar que também o verbo ‫ דין‬executar sentença/ juízo traz respectivamente a noção
de “julgamento”, “juízo”, “causa”, promovendo a ação de julgar e defender a causa.
Uma das ideias centrais que estrutura o pensamento teológico presente em toda a
Bíblia, se desenvolve, portanto, a partir deste princípio do direito e da justiça. Dentro
deste quadro, o conceito de justiça torna-se mais frequente, onde paralelos, especificações
e contextos em torno do tema são abundantes, produzindo diversas ocorrências com
noções semanticamente contíguas do termo. Noções sobre julgamento, sentença, direito
e ordem são expressões frequentes na Bíblia Hebraica que se ligam essencialmente ao
repertório lexical onde se estrutura o conceito de justiça.
Na Bíblia hebraica este conceito diferencia-se bastante do modelo aristotélico113
e também atual, onde justiça se faz por mérito, resumindo-se a retribuir a cada um o que
lhe é devido.
Justiça no contexto da Bíblia significa aplainar o fosso das desigualdades sociais
(SILVA, 2015, p. 256). A dimensão social do direito e da justiça no Antigo Testamento,
mostra-nos que o diálogo intenso que se faz entre a literatura bíblica e a história, caminha
lado a lado com uma herança interpretativa teológica que se torna fundamental e encena
em seu próprio mundo uma relação direta com o mundo que se encontra fora do texto.
Este é, portanto, um tema amplo que está essencialmente estruturado sobre um
campo semântico vasto e mesmo assim, sua dimensão social é visivelmente clara, pois
evidencia a condição do pobre em contextos diferenciados onde a proteção da pessoa
impotente se faz sob o signo da igualdade de todos, nos processos da organização social
(SCHWANTES, 2013, p. 67).

4.1.2 Um apelo ao comportamento ético para a vida

Sendo o conceito de Justiça uma das ideias centrais da Bíblia, o apelo ao


comportamento ético torna-se uma consequência inevitável para assegurar a manutenção
da ordem cósmica. As justas relações entre os membros da comunidade reafirmavam a

113
Na visão estrutural de Aristóteles a justiça distributiva se dá pela divisão dos bens e recursos comuns,
devendo de acordo com a contribuição de cada ser, em uma escala geométrica de acordo com o respectivo
mérito individual. A igualdade, pois, a ser observada é proporcional, ou seja, considera-se a situação das
pessoas, repartindo-se os benefícios de acordo com o seu mérito, e os encargos proporcionalmente à sua
capacidade o resultado deve ter por base o critério individual, assim como na fixação do salário a ser pago
ao trabalhador. Cf. ARISTÓTELES. A Política. Tradução: Torrieri Guimarães. São Paulo: Martin Claret,
2002.

137
ordem criada por Javé e a violação destes princípios éticos era um atentado contra o
próprio Deus (SANTOS VAZ, 2021).
Von Rad, propõe que “qualquer relação implica exigências de comportamento...”,

neste sentido, o uso de ‫ ְצ ָד ָקה‬funciona como designação essencial de conceitos

relacionais (2006, p.360-361), permitindo que as interações comunitárias sejam


simultâneas entre famílias, tribos ou o povo em geral.
O culto torna-se o lugar central para a prática destas virtudes, pois lá, o
relacionamento comunitário oferecido por Javé evidencia aquele que é justo e cumpre
as exigências especiais deste relacionamento. Esta declaração de lealdade a Javé ganha
elementos litúrgicos que se projetam em afirmações de fé.
A fórmula deuteronomista vai além do culto. Associa a fidelidade à Javé, ao
cumprimento dos mandamentos (Dt 6.25), definindo o que é a justiça e o que é justo.
Com referências rituais, no entanto, tornam-se justificados aqueles que confessam sua
culpa e deem sinais de arrependimento, podendo expressar-se de forma mais autônoma
(VON RAD, 2006, p.369).

4.2 A Tríade Social como princípio norteador para a teologia


veterotestamentária.

Ao reacender a discussão sobre o socialmente frágil, tendo o tema do pobre como


um princípio norteador para uma teologia veterotestamentária, que se apresenta de forma
distinta na história da religião de Israel, fica evidente que a orientação histórico-social,
identificada nesta categoria de desfavorecidos, abrange também a situação do estrangeiro,
do órfão e da viúva.
É tentador pensar que uma espécie de “redoma jurídica” parece ter sido
desenvolvida para atuar na defesa destes pobres e necessitados e que este apelo jurídico,
tenha como característica central, a manutenção das garantias do direito ao conjunto da
sociedade que se encontra por trás do texto (FRIZZO, 2009, p.22).
Como já afirmamos anteriormente, a Mesopotâmia, palco de grandes impérios e
culturas, forneceu documentos importantes na administração política da monarquia onde
o rei era visto como uma encarnação da divindade e responsável por implantar o direito
e a justiça na terra (SILVA, 2015, p. 256). Seus documentos tornaram-se um importante
modelo para a monarquia e a prática da justiça no antigo Israel. Da mesma forma, n o

138
Egito, o rei era considerado filho de Deus e operava como o centralizador do poder, mesmo
em sistemas politeístas (BAINES, 2005, p. 20).
Para além de conhecidas leis como o código de Hammurabi, a literatura sapiencial do
Antigo Oriente, ilustra a função do rei como responsável pela defesa dos oprimidos, sob a
proteção de Shamash, o deus sol, juiz do céu e da terra. Igualmente no Egito, a justiça é
promovida pelas divindades como Rá (deus sol) ou Amon (o oculto) (FENSHAM, 1962, p.
130-134).
Em Israel, o rei deve ser alguém que esteja apto a exercer o direito e a justiça, sob a
orientação da divindade como acontecia nos grandes impérios vizinhos, com a peculiaridade
de que sua imagem não esteja associada a um ser “divinizado”, mas ungido.
Os textos bíblicos, exaltam, portanto, um javismo cuja personificação do direito e
da justiça se fazem, não na pessoa do rei, mas a partir de um deus que se vê implicado no
cumprimento de manter a ordem sobre o caos (GONÇALVES, 2004, p. 34-35)114. Na
concepção javista, o rei cumpria um importante papel de propagador da justiça divina.
As narrativas que contemplam este aspecto legislativo e jurídico, que trazem em
sua base o resultado do contato de Israel com o cenário político e religioso das culturas
do Antigo Oriente, fazem de Israel, herdeiro das mais remotas culturas de povos e nações,
conservando um surpreendente paralelismo com as orações, sacrifícios e concepções
teológicas da monarquia (ALBERTZ, 1999, p. 51).
Junto ao desenvolvimento desta religião oficial, promovida por instituições
religiosas e políticas como os sacerdotes, os anciãos e a corte, surgiram também, certos
grupos de oposição e de reforma como os profetas e os adeptos à escola deuteronomista.
Isto porque, o processo de confrontação com as concepções religiosas oficiais é também
fruto da interação de Israel com povos vizinhos.
Concepções totalmente novas surgiram no campo teológico e cultual para fazer
prevalecer a prática do direito e da justiça à Tríade Social, como prova de sua interação
com Javé. Entre as diversas posturas teológicas produzidas a partir de reações de
oposição, surge o modelo de espiritualidade desenvolvida nos grupos marginais (SILVA,
2006, p.269-270), que desenvolvia em Israel uma religiosidade pessoal, convertida em
instrumento de autoafirmação.

114
Nesta concepção de realeza, o rei invocava a autoridade de um deus criador. A título de seu representante,
o rei recebia desse deus a missão de manter a ordem do mundo por ele instaurada com a sua vitória contra
o Caos. O rei exercia essa missão assegurando o culto do seu deus e fazendo reinar a justiça entre os seus
súditos.

139
Neste contexto é que as primitivas experiências da religiosidade pessoal tornaram
os setores marginalizados da sociedade, convictos de sua autêntica pertença a Javé. Estas
convicções serviam para consolidar e afirmar sua dignidade humana. Deste modo,
contrariamente às concepções teológicas correntes, sua miséria não era sinal do abandono
de Deus, mas sim, um sinal relevante para a manifestação da força de Javé, o Deus da
libertação.
Não podemos negar que as fontes da literatura sapiencial do Antigo Oriente
apresentam uma base estrutural para a ênfase dada à Tríade Social, no contexto da
organização política e social do Antigo Testamento, mas é preciso considerar que estas
fontes vieram carregadas de uma estrutura política e religiosa já consolidadas.
No contexto das grandes religiões do Antigo Oriente, haviam também
possibilidades alternativas à religião oficial que influenciaram uma força interna e
dinâmica de reação comunitária, embora não seja possível determinar com precisão os
limites desta influência externa (ALBERTZ, 1999, p. 52).
Durante certo tempo, esta herança de povos vizinhos tornou-se a base de
desenvolvimento do Javismo oficial. No entanto, com o passar do tempo, este javismo
havia se desdobrado em múltiplas tradições rivais, desenvolvendo-se, no pós-exílio, em
dois movimentos opostos: um de integração, que intencionava preservar a identidade
religiosa e o fundamento jurídico da comunidade, orientados pela Torá, e o outro de
desintegração, que a partir do profetismo desenvolveu o papel de teologia de oposição,
voltando suas atividades para as classes sociais marginalizadas.
Este quadro nos leva a suspeitar que a sensibilidade jurídica de Israel não foi,
desde seu começo, uma imposição dos extratos superiores, mas fruto de um crescimento
dos anseios de grupos marginais (ALBERTZ, 1999, p. 170). Para reforçar esta ideia, basta
percebermos como na perspectiva sociológica no Antigo Testamento, é comum
identificarmos que estes “socialmente fracos” aparecem como objeto do ataque dos
malfeitores ~y[ivr' >, produzindo reações de protesto que se estendem por muitos textos
bíblicos115 onde o justo qyDIc surge como um opositor direto.

115
As principais referências a este tema se realizam a partir do estudo do contexto social dos salmos de
lamentação, principalmente aqueles que se tornaram mais frequentes no período pós-exílio, característicos
de uma possível editoração sapiencial (Cf. DUNN, 2009, p. 50-66). Destacaremos aqui, o conjunto destes
salmos, concatenados com o salmo 55, onde os conceitos paralelos e opostos entre malfeitores e justos se
repetem (p. ex.: Sl 3-7; 9; 10-14; 17; 22; 25-28; 31; 35; 36; 38; 40-44; 51; 54; 55-57; 59-61; 64; 69; 70; 71;
74; 79; 80; 83; 85; 86; 88; 89; 94; 102; 108; 109; 120; 123; 130; 137; 140-143) (Cf. LISOWSKY, 1981).

140
Em contrapartida, a associação do pobre com o justo qyDIc;, aproxima-nos da
identificação daqueles que acumulam complexas experiências de sofrimento e perante
Javé se identificam como oprimido, assumindo sua verdadeira condição humana em
dependência com a intervenção divina (KRAUS, 1985, p. 199).
A pregação do direito e da justiça contidos no texto bíblico, revela-se, portanto,
um grande avanço humanitário, principalmente em textos legislativos que tentam impor
uma consciência ética e social. Obviamente, o Deuteronômio inova quando propõe uma
legislação que estimula os deveres de consciência para com os socialmente fracos,
promovendo uma esperança transformadora na prática da reorganização dos direitos e dos
deveres do conjunto social.
O ideal de uma sociedade sem classes, onde a inclusão dos elos sociais mais
frágeis atua como reação às práticas imperialistas promovida pela Assíria (REIMER,
2001, p.13), está centrada no paradigma do Êxodo. Deste contexto é que a exegese latino-
americana desenvolve seu programa de luta/reação tendo como paradigma a lógica da
libertação, do direito e da justiça.

4.2.1 A defesa da Tríade Social na ação profética

A defesa da Tríade Social surge no contexto profético como princípio norteador


para a teologia veterotestamentária. As exigências para o exercício da justiça e do
direito fazem ampliar a crítica profética a favor de uma sociedade igualitária, que
caracteriza os valores fundamentais da sociedade Israelita, herdados dos povos do
Antigo Oriente.
Obviamente, os critérios do direito e da justiça, vinculados aos valores éticos
propostos no contexto do culto, inspiraram as acusações proféticas contra a classe
dominante (Cf. Jr 7.6; 22.3; Ez 22.7; Zc 7.10; Mal 3.5).
Mais do que uma análise objetiva da sociedade em seu tempo, a acusação social
dos profetas era uma postura conscientemente partidarista que desvelava em nome de
Javé, a culpabilidade da classe dominante por haver criado uma situação de crise social
(ALBERTZ, 1999, p. 311).
Certamente a ação profética não seria capaz de provocar uma revolução social que
colocasse em prática os protestos por parte dos campesinos, dos pobres, dos socialmente
frágeis ou da Tríade Social, mas quando os profetas assumem sua posição de denúncia,

141
verbalizam a injustiça colocando Javé diretamente como autêntico defensor dos mais
frágeis.
A crítica profética contra a classe dominante expunha uma falsa concepção da
imagem ideal do rei como administrador de justiça (Cf. Sl 72.1-12), típico da teologia
de Jerusalém (GERSTENBERGER, 2014, p. 125-132). Os mecanismos de opressão que
operavam tendenciosa administração da justiça, criavam um sistema econômico e
jurídico onde os marginalizados ficavam de fora.
O que se desenvolve a partir deste momento é fruto das tradições cúlticas e
históricas, construídas por deste javismo compassivo que potencializa uma nova
construção jurídica em Israel. Javé, o Deus que um dia libertou seu povo da escravidão,
segue agora ao lado da Tríade Social.
Cria-se, portanto, o impulso necessário para o marco teológico da atuação
histórica de Javé como libertador de Israel (ALBERTZ, 1999, p. 312) e garantidor da
ordem social solidária, que assegure a todos os membros da comunidade Israelita seus
direitos fundamentais.

4.3 Considerações parciais: Uma liturgia do cuidado

Em nossa tentativa de elaborar neste capítulo uma investigação dos efeitos sociais
produzidos a partir da defesa dos socialmente fracos, em especial a Tríade Social, fomos
conduzidos ao contexto da dimensão social do direito e da justiça no Antigo Testamento
e seus desdobramentos na concepção ética e litúrgica da religião javista.
O aprofundamento da compreensão sociológica da história da religião de Israel,
nos abriram possibilidades de reconhecer que no contexto de toda a legislação social,
desenvolvida a favor da Tríade Social e dos marginalizados, estavam os acontecimentos
históricos de florescimento das grandes potências do Antigo Oriente, com consequente
agravamento da crise social que acompanha este movimento.
Como consequência da exploração constante de uma classe de poderosos que se
enriqueciam às custas do sofrimento de um povo que se tornava mais pobre, surgiram
as leis sociais, que elaboradas a partir de profundas transformações nas estruturas da
religião, colocavam os marginalizados no centro das atenções.
A atuação profética, a partir de sua denúncia contra o abuso das classes
dominantes, foi quem mais expôs a crua realidade deste povo, que sofre injustiças pelos

142
mecanismos estruturais de uma crise social, arrastados a um crescente empobrecimento,
tornando-se cada vez mais vítimas de um sistema.
Os profetas haviam anunciado uma intervenção salvadora de Javé que afetaria
basicamente a todo o Israel, colocando em prática, diante da crise social, uma típica
profecia que em parte é salvífica e em outra condenatória. Neste sentido, em javé, a
libertação dos oprimidos acarretará a condenação dos opressores, caso não expressem
contrição e arrependimento.
Esta é uma condição ideal para as normas cultuais que se firmaram como elemento
central da vida social. Parece-nos óbvio que o deuteronomista ao expor as leis sociais
que chamam a atenção ao cuidado e proteção da Tríade Social, o faça na estrutura
orquestrada de uma liturgia que privilegia o cuidado e a manutenção da vida.
A dimensão social do direito e da justiça no texto bíblico ganha nova
sistematização sob as garantias de salvação e libertação, vinculadas ao cuidado divino.
O culto, com suas referências rituais, desenvolve um sistematizado apelo ao
comportamento ético, estabelecendo uma lógica de bênção e castigo.
O cuidado e proteção da Tríade Social como requisito para uma vida íntegra em
uma sociedade justa, ganha espaço nos ambientes litúrgicos. Este movimento criativo é
capaz de promover um potencial sócio crítico que supera em muito o ativismo político.
O Deuteronômio foi quem mais soube aproveitar esta possibilidade, organizando uma
espécie de “liturgia do cuidado” com narrativas que se completam a partir de um esquema
intencional de fixação ideológica.
Os textos deuteronômicos examinados no quarto capítulo, mostra-nos certa
ligação entre as perícopes que promovem a prática do cuidado, com estímulos aos
deveres de consciência para com os socialmente fracos. Esta liturgia do cuidado está
estruturada nos seguintes passos:
1. Profissão de fé (Dt 10,12-22), onde a defesa da Tríade Social torna-se
componente intrínseco da fidelidade esperada pelo povo na promoção de políticas sociais
justas. A ênfase na observância das leis está diretamente relacionada ao desenvolvimento
da espiritualidade que convoca o povo a temer, amar e servir a Javé.
2. Relações justas (Dt 14,28-29), aqui o povo é convidado à conscientizar-se sobre
sua participação na proteção da Tríade Social, evitando a ideia de posse, produzindo
sacrifícios de comunhão. A orientação ética voltada para o santuário e a prática trienal do
dízimo, destacam a importância de um compromisso mútuo de relações justas entra os
membros da comunidade.

143
3. Festas (Dt 16,9-15), este é o espaço de fixação das experiências concretas de
libertação, aqui a alegria celebrativa assume na liturgia seu auge com grande potencial
crítico, tratando os sintomas da pobreza e da fome a partir da confraternização celebrativa.
O resgate da cumplicidade e da interação social do ambiente familiar, revelam os ideais
a serem cumpridos pela sociedade a partir da obediência a Javé.
4. Memória Egito (Dt 24,17-22), o resgate das tradições da memória do êxodo,
funcionam aqui como estrutura central da vida religiosa, sob a ética da libertação. Ao
rever as dinâmicas da aliança entre Javé e seu povo, cresce uma esperança transformadora
na prática do direito e da justiça para com a Tríade Social, tendo como memória a dura
experiência vivida por Israel em tempos de escravidão.
5. Dízimos (Dt 26,12-15), aqui, resgata-se novamente o gesto do cuidado, onde a
prática do dízimo, ofertada a partir do dom da terra, garante a estabilidade da relação entre
Javé e seu povo. Esta prática insere-se no contexto cultual sob o teor ritualístico de
purificação, mantendo uma lógica de sacrifícios e recompensas.
6. Bênção (Dt 27,11-26), e finalmente, um conjunto de bênçãos e maldição concede
ênfase ao caráter cúltico das prescrições em defesa da Tríade Social. Intercaladas com
uma sequência de punições para aqueles que se desviarem das recomendações éticas e
sociais, o deuteronomista encerra a liturgia do cuidado, com alusões importantes ao
formulário da aliança, usados aqui de forma dialética diante de uma estreita condição
social e política.

144
Conclusão

1. A Tríade Social nas fronteiras da marginalidade

Nossos esforços em destacar as implicações que a defesa da Tríade Social


produziu na teologia bíblica veterotestamentária, com possíveis indícios da participação
e desenvolvimento de uma teologia marginal, passam por processos interdisciplinares,
onde se misturam percepções literárias e também de cunho histórico, antropológico,
sociológico, político e cultural.
O ponto principal que devemos destacar, no entanto, é que cada uma destas
ciências nos conduziu para a prática da pesquisa bíblica e arqueológica, com a clara
tentativa de voltar à origem viva das coisas, juntamente com a promessa de um retorno
à realidade116 (DERRIDA, 2001, p. 120-122).
O sofrimento social é um tema constante nesta tese, trabalhado com a tentativa de
encontrar no texto bíblico, horizontes de compreensão das relações que se estabelecem
entre aqueles e aquelas que sofrem e a prática da justiça realizada em nome de Deus.
Ao ouvir estas vozes dissonantes que perpassam a história da humanidade, procuramos
destacar a importância e a sacralidade do texto bíblico a partir de um novo olhar, com
a constatação de que há na Bíblia, suporte para pensamos a construção de uma teologia
que se desenvolve de forma relacional, promovendo diálogo entre leis, reformas sociais
e o cuidado com a Tríade Social.
Em nossa pesquisa nos propomos ir além daquilo que a arqueologia consegue
dimensionar com todo o seu aparato técnico científico e até mesmo no fazer exegético,
optamos pela busca de sentidos que marcam a experiência de Deus na vida humana e se
reproduzem como solidariedade e proximidade com o que sofre.
Por alguns momentos nesta pesquisa fomos confrontados por um paradoxo, pois
ao mesmo tempo em que o Deuteronômio nos mostra um conjunto regulador de leis que
incluem os mais frágeis na sociedade, presenciamos, na tentativa de regular a presença
de povos vizinhos, textos que promovem o banimento e a destruição daqueles que
viviam às margens de suas fronteiras (Cf. ítem 4.1.1).

116
Jacques Derrida em análise da impressão Freudiana sobre o conceito de arquivo, levanta a questão pela
busca das origens a partir de uma tensão constante entre arquivo e arqueologia no campo da psicologia.
Ver: DERRIDA, Jacques. Mal de arquivo: uma impressão freudiana. Trad. Claudia de Moraes Rego. Rio
de Janeiro: Relume Dumará, 2001.

145
Decidimos então trilhar um caminho hermenêutico que tenta localizar, diante
deste quadro, o elo de resistência deste grupo marginal que questiona os paradigmas já
estabelecidos, propondo de forma retórica a análise das contribuições dos possíveis
paradigmas que surgem em torno da Tríade Social.
Este movimento é necessário, se quisermos sair da lógica já consolidada pela
exegese tradicional que celebra a memória arquivada do deuteronômio 117 como um
conjunto de leis sociais que propõem direito e justiça aos mais pobres a partir da
misericordiosa conduta de poderosos. As memórias arquivadas do Deuteronômio
contribuíram para a construção de uma memória coletiva onde o passado e o presente
nunca se dissociam completamente e por força da ação profética, a lembrança dos dias
passados se transformaram em luta pela justiça social e no reconhecimento da
redistribuição (Cf. SICRE, 1996, p. 357-375).
Na tentativa de ir além das fórmulas já estabelecidas, sejam elas objetivas ou
subjetivas, sonhamos, de forma profética, com a reconstrução de um passado, onde as
pessoas e suas culturas pudessem ser resgatadas, mesmo que para isso, fosse necessário
ultrapassar algumas fronteiras 118.
Michael Pollak, em uma interessante análise sobre a memória coletiva, comenta
sobre a função do “não dito” (POLLAK, 1989, p. 6), mostrando que a tipologia destes
discursos de silêncio, é moldada pela angústia de não encontrar uma escuta ou de ser
punido por aquilo que se diz ou até mesmo de se expor a mal entendidos. Esta é sem
dúvida a fronteira que separa uma sociedade dominada e marginal da memória coletiva
organizada e majoritária. Saber fazer esta distinção é entender até que ponto o passado
colore o presente.
Distinguir as fronteiras da marginalidade em que se encontra a Tríade Social e
como a memória coletiva ajudou a construir caminhos que priorizavam a defesa e o
sustento destes grupos, tentando ouvir as vozes e os discursos de silêncio, foi o que

117
As muitas referências a este tema se consolidaram na pesquisa bíblica de forma inovadora e competente,
mantendo, no entanto, a segurança dos paradigmas estabelecidos: Cf. BRAULIK, G. O Livro do
Deuteronômio, in: ZENGER, Erich. et.al. Introdução ao Antigo Testamento. Tradução de Werner Fuchs.
Belo Horizonte: Edições Loyola, 1996; BUIS, Pierre. Le Deutéronome. Paris: Beauchesne, 1969.;
CARRIERE, J. M. O livro do Deuteronômio: escolher a vida. São Paulo: Loyola, 2005.; CRÜSEMANN,
Frank. A Torá: Teologia e história social da lei do Antigo Testamento. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.; DE
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da religião de Israel. São Paulo: Paulus, 1982.; KRAMER, Pedro. Origem e legislação do Deuteronômio:
Programa de uma sociedade sem empobrecidos e excluídos. São Paulo: Paulinas, 2006.
118
Refiro-me aqui às memórias já consolidadas na exegese bíblica sobre o documento deuteronômico e sua
relação com as leis ditas “sociais”.

146
propomos desenvolver ao longo desta tese. Cabe-nos aqui, relembrar o caminho que
desenvolvemos nesta reflexão.
No capítulo introdutório, onde definimos os termos relacionados à Tríade Social
e a ideia de sua composição como um grupo bem delimitado na sociedade israelita, nos
preocupamos em demonstrar sua importante relação semântica com o conceito de pobre

no Antigo Testamento, principalmente sob a referência dos termos ‫ ֶא ְביֹון‬e ‫ ָענִ י‬usados

em paralelo, descrevendo pessoas em situação de opressão e aflição. A Tríade Social


foi, a partir de suas referências semânticas, intencionalmente compreendida no texto
bíblico como: rGE ger: o estrangeiro dependente119; ~Aty" yātôm: “sem pai” e “sem

pátria”120; hn"m'l.a; almānāh: viúva e desamparada121. Em seguida abordamos a


identidade polifacetária da Tríade Social em sua realidade marginal e sua articulação
por uma reconstrução libertadora.
O segundo capítulo nos levou a um passeio histórico sobre o desenvolvimento da
defesa da Tríade Social na literatura extrabíblica, destacando superficialmente as
principais referências à defesa do estrangeiro, do órfão e da viúva a partir de códigos
legais, promovidos geralmente como conselhos de um rei aos seus sucessores, imbuídos
de um viés político e religioso. A contribuição da arqueologia, neste sentido é
fundamental, justamente por auxiliar na pesquisa bíblica como importante ferramenta
que consegue por meios técnicos, desenterrar ou descortinar aquilo que só era possível
conhecer a partir do texto.
Abriu-se, portanto, um contexto totalmente inovador para as pesquisas, com a
possibilidade de recostruir monumentos, edificações, casas e utensílios, remontanto a
civilizações inteiras e suas mais variadas culturas. A limitação, no entanto, da
arqueologia, se dá na sua fragilidade em desenvolver valores sociais a partir de seus
achados e por isso os esforços de diálogo com a exegese bíblica são importantes na
preocupação de mostrar a ação divina na história da humanidade. O sítio de Khirbet
Qeiyafa foi escolhido para compor parte deste capítulo, justamente por conter, nas
entrelinhas da pesquisa, amostras deste valor social que compõe o mundo simbólico da
religiosidade que nasce nas experiências coletivas. A despeito das controvérsias que
envolvem a datação e a tradução do óstraco, sua proximidade com o texto bíblico e o

119
Item 1.3.2
120
Item 1.3.3
121
Item 1.3.4

147
teor de suas inscrições, evidenciam um movimento já estruturado que realçam a
experiência de grupos sociais que gritam por seus direitos.
Em seguida, nos propomos a contextualizar o panorama das ocorrências relativas
à Tríade Social, no campo da literatura veterotestamentária. Das ocorrências específicas
à Tríade Social, percebemos que elas obedecem a um elaborado esquema, ordenado pela
sequência estrangeiro, órfão e viúva, com predominância especial no livro do
Deuteronômio. No contexto deuteronômico, há uma preferência por circustâncias éticas
que fazem referência às medidas alimentares, colocando a Tríade Social em um
contexto narrativo tendencioso, que revela ainda mais a intenção dos editores a partir
das referências de fragilidade social deste grupo, composto por vítimas de um rápido
processo de urbanização e crescimento.
O mais extenso de todos é o terceiro capítulo. Ele se impõe no contexto da
pesquisa, por sua vertente metodológica que tenta esvaziar o tema da Tríade Social na
legislação deuteronômica. O caminho percorrido foi o da exegese, seguindo os passos
da análise histórico sociológica, com ligeiras modificações em casos específicos. Das
seis perícopes analisadas, perebe-se um claro direcionamento da composição
deuteronômica para o ambiente litúrgico. A defesa da Tríade Social segue uma estrutura
que prevê a ética religiosa difundida no compromisso de reorganização social.
Nos textos estudados, o desejo da igualdade instaurada na vida comunitária, passa
pela fidelidade esperada daqueles que buscam a Javé (Dt 10.12-22), a ênfase na sentença
temer, amar e servir, transforma-se no eixo teológico que conduzirá às práticas de uma
sociedade justa (Dt 14.28-29). Logo em seguida desenvolve-se a prática do dízimo
como determinação legal para a continuidade das ações sociais, tendo nas festas a
oportunidade de fixação da solidariedade como experiência concreta de libertação (Dt
16.9-15), olhando para o passado e refazendo o presente, a partir da experiência do
êxodo e dos laços consanguíneos (Dt 24.17-22). O conjunto se encerra com sentenças
organizadas em forma litúrgica, aos moldes do código da aliança em que o compromisso
da comunidade com a reorganização social é retomado.
Esta condição liturgica se reflete diretamento no capítulo seguinte, que trata dos
desdobramentos produzidos na teologia veterotestamentária a partir da defesa da Tríade
Social. Esta atitude positiva em relação aos socialmente fracos que distingue o Antigo
Testamento do contexto social do Antido Oriente, reelabora a ideia central sobre o
direito e a justiça, praticados como comportamento ético social esperado pelos
seguidores de Javé. Tendo como base as concepções desenvolvidas no terceiro capítulo,

148
procuramos num primeiro momento, desconstruir a ideia de que a defesa da Tríade
Social era uma motivação originariamente da realeza ou da classe social mais elevada.
Não havia uma proposta de real de cuidado com o socialmente frágil, que não carregasse
consigo, interesses e privilégios aos poderos, garantindo a manutenção da ordem já
estabelecida (FANON, 2015, p 50-55).
A segunda proposta deste quarto capítulo é que a partir do contexto histórico e
social do Antigo Testamento, com o desenvolvimento do direito e da justiça como
elementos centrais na comunidade, cria-se uma virtude ética, pautada pelo
comportamento daqueles que se dizem seguidores de Javé. Alimentados pela ação
profética que verbaliza o sofrimento dessa gente marginal, a defesa da Tríade Social
funciona como uma espécie de despertamento comunitário para a especial condição do
pobre.
Este princípio norteador para a teologia do Antigo Testamento, vai se convertendo
em uma espiritualidade geradora de convicções que consolidavam a dignidade humana,
quando a autêntica pertença a Javé por parte dos marginalizados era anunciada. A ação
profética foi capaz de desvelar a falsa concepção de justiça da classe dominante e o
meio ideal para a fixaçao da intervenção salvadora de Javé foi o culto e suas referências
rituais. A ligação das perícopes do Deuteronômio nos fazem suspeitar de uma
orquestrada ação editorial dos textos, concatenando-os para servir ao propósito de
estimular os deveres de consciência para com a Tríade Social.

2.Excurso: Por uma reconstrução libertadora das relações sociais

É bem verdade, que a partir dos conceitos trabalhados até aqui, percebe-se que os
critérios expostos sobre o cuidado e o desenvolvimento de uma atenção especial à Tríade
Social como grupo marginalizado, tem certa predileção pelos valores e costumes de uma
sociedade centrada na figura masculina122. Mesmo entre os grupos que compõem uma
camada social estigmatizada como sendo de baixa relevância, encontramos a mulher em
situação inferior, como é o caso da Tríade em estudo estrangeiro, órfão e viúva.

122
SCHÜSSLER FIORENZA trabalha bem esta ideia a partir do termo Kyriocêntrico, um neologismo que
deriva das palavras gregas kyrios (senhor, mestre, amo) e archein (governar, reinar, dominar). Com isto, a
autora procura redefinir a categoria analítica do patriarcado em termos de estruturas interseccionais
multiplicativas de dominação. Veja mais em: Caminhos da sabedoria – uma introdução à interpretação
bíblica feminista, São Bernardo do Campo, Nhanduti, 2009.

149
O engajamento por uma crítica social, deve, portanto, levar em conta os problemas
relativos aos marginalizados, começando por sua margem mais extrema que são as
mulheres e suas complexas experiências de inferioridade e de cidadania. No texto bíblico
estas experiências se traduzem em termos sistêmicos por uma codificação dualista e
assimétrica: masculino = positivo, feminino = negativo, que só podem ser superadas pelo
caminho hermenêutico (SCHÜSSLER FIORENZA, 2009, p. 9).
Os trabalhos em grande desenvolvimento por uma teologia que pense a mulher
como protagonista de uma crítica libertadora e formadora de consciências, estão cada vez
mais relevantes. Teólogas como Athalya Brenner, Lieve Troch, Ivone Gebara, Nancy
Cardoso, Mercedes Lopes e tantas outras, chamam a nossa atenção para os efeitos
transformadores que podem estar contidos nestes gritos silenciosos de quem vive à
margem social.
Destacar a relevância de um tema tão atual e crescente como a luta feminista por
direitos e justiça social, parece, em primeiro momento, destoar da proposta desta
pesquisa, principalmente por sua abordagem metodológica. No entanto, se nos propomos
pensar na defesa da Tríade Social como chave para a leitura de uma teologia marginal, ao
olhar para este tema, somos desafiados a repensar as estruturas de poder e propor uma
reconstrução libertadora que faz da categoria de gênero um referencial teórico-
metodológico constitutivo das relações sociais.
O uso deste instrumento conecta-se com outras categorias e interpretações de um
conjunto de fenômenos sociais históricos como raça, etnia, classe social e outros
(LAGARDE, 1996, p. 26).
Na busca pelo contexto destas tramas sociais, pretendemos ir além da visibilização
das mulheres como sujeitos sociais, buscando interconexões com outros grupos e outras
condições que falam das relações de poder, de classe e de gênero contidas no texto bíblico.
A hermenêutica desenvolvida pela teologia feminista torna-se proposta norteadora para
um processo de suspeita e de alargamento do lugar social ocupado pelos marginalizados
nos espaços religiosos e cúlticos do Antigo Israel.
A proposta desta análise hermenêutica, porém, deve estar conectada com a vida
religiosa em geral e suas diversas formas de expressão contidas no Antigo Testamento,
dentro do contexto social, econômico e político, evitando assim, o risco de uma análise
que isola o texto bíblico (cf. NEUENFELDT, 2006, p. 83).
É na experiência vivida que se articulam as relações entre poder e impotência,
repressão e resistência, opressão e liberdade (OTTERMANN, 2007, p. 6), pois na

150
realidade concreta é que se percebe com maior clareza a condição dos marginalizados na
sociedade.
Os efeitos sociais produzidos, portanto, no desenvolvimento deste paradigma,
precisam ser relidos, pois um novo discurso só pode surgir como paradoxo daquilo que
já está estabelecido. Assim concorda Roland Barthes (1971, p 9-10), quando propõe que
todo diálogo deve ser visto como uma espécie de batalha, onde o vencedor é aquele que
consegue impor seu ponto de vista. Para Barthes é preciso polemizar para que se admita
certos valores, pressupostos ou regras.
É consenso, no entanto, que a visão de Barthes prioritária pelo conflito, precisa
ser revisada para um estágio de interação que busque obviamente, a harmonia entre o
diálogo e a imposição de um ponto de vista. O paradoxo a que nos propomos pensar é
que o Deuteronômio, mesmo com toda a novidade de uma vida igualitária regida por uma
legislação social, desenvolve ainda um ethos de subordinação e dominação, onde a
manutenção da autoridade apenas adapta estruturas tradicionais ao seu ideal comunitário,
mantido por uma estrutura piramidal.
Aqui está o ponto chave desta questão. Os que estão na base destas estruturas de
pirâmide, são os que realmente enxergam seus lugares desumanizados e sua condição
marginal, por essa razão, devem empreender uma consciência coletiva diante das pressões
hierárquicas em relação ao caminho apontado pelo Deuteronômio.
Nesta linha de raciocínio, desejamos reificar123 o contrato social deuteronômico,
identificando que sua grande contribuição para o mundo social, está na compreensão de
que os sujeitos colocados à margem falam com mais propriedade sobre seus próprios
dramas do que, sacerdotes e profetas.
O rei, enquanto figura central no campo religioso, define também os espaços
relativos à visão de mundo, impregnando-a com a ideologia da realeza. Assim, é a partir
do rei, ou contra o rei, que os profetas orientam seus oráculos, aguçando, de certa forma,
a imaginação utópica dos que sofrem. Por outro lado, os sacerdotes, com sua perspectiva

123
No marxismo, a reificação (alemão: Verdinglichung, lit.transl.  "Fazer uma coisa") é o processo
pelo qual as relações sociais são percebidas como atributos inerentes das pessoas envolvidas nelas. Cf.
PETROVIĆ, Gajo. "Reification." Marxists Internet Archive, transcribed by R. Dumain. Originally in T.
Bottomore, L. Harris, V. G. Kiernan, and R. Miliband (eds.). A Dictionary of Marxist Thought. Cambridge,
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Democracy. p. 49. In Eleven: The Undergraduate Journal of Sociology. Berkeley: University of California,
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151
de centralização, usam as leis sociais como caminho para manterem-se comprometidos
com a manutenção da autoridade124.
Neste sentido, a proposta de resistência ou reação ao império dentro da retórica
deuteronômica, com a exposição de leis e contratos sociais, está mais para uma
representação identitária com as forças imperiais, que reconhece e revalida o lugar do
dominador, e se coloca em posição de subordinação.
A reação ao imperialismo que brota no deuteronômio com sua pedagogia retórica
e sociológica, está, neste sentido, marcadamente influenciada pela propaganda imperial.
Vê-se aqui um paradoxo, pois rejeita-se o dominador, mas mantêm seus métodos. Não é
difícil perceber que a pregação profética e as orientações sacerdotais, caminham sob os
auspícios de uma realeza influenciada pelo contexto cultural do Antigo Oriente,
principalmente dos dominadores Assírios.
Os desdobramentos destes acontecimentos se desenvolvem na retirada da
autoridade profética com perda de sua autonomia. A autoridade passa a ser do contrato
desenvolvido nos códigos legais e o profeta desenvolve uma relação de dependência para
com a monarquia (Cf. SCHWANTES, 2007, p.32).
Quando propomos uma crítica ou uma releitura do contrato social
deuteronômico, o fazemos conscientes de que mesmo no contexto da marginalidade há
influências da retórica imperial, pois, estando no centro ou na margem, ninguém está fora
do império. Esta tentativa rebelde e crítica porém desafia-nos a olhar para contrato social
deuteronômico de forma subversiva, que prioriza a experiência vivida nas relações
sociais.
Uma reconstrução libertadora das relações sociais deve começar, portanto, na
conscientização dos sujeitos frente aos seus poderes intracomunitários, para que sirva
como uma espécie de trampolim na internalização de uma cultura que busque a justiça
social e a chame a atenção para uma proposta de redistribuição democrática de poderes.
Sei que esta proposta pode parecer bastante utópica, mas como lembra Harold
Segura: “Utopia é o horizonte da esperança onde se deseja chegar...e onde se chegará.

124
A tese doutoral de Fernando Cândido da Silva nos dá um panorama bem mais amplo e aguçado
sobre este tema, oferecendo uma leitura libertária radical e de empoderamento hegemônico das classes
subalternas, tendo como ponto de apoio a lógica do berit em Deuteronômio. Veja em: SILVA, Fernando
Candido da. Uma aliança abominável e per/vertida?: anotações subalternas sobre o arquivo deuteronômico.
São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo, 2011.

152
É o anelo por um amanhã diferente, bem como a crítica do presente imperfeito”
(SEGURA, 2007, p. 23)

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