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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA

CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES

VICTOR HUGO BERNARDINO BEZERRA

ACRÉSCIMOS LACANIANOS AO ESTUDO DA MÍSTICA EM CIÊNCIAS DAS


RELIGIÕES: UMA INTRODUÇÃO

João Pessoa/PB
2022
VICTOR HUGO BERNARDINO BEZERRA

ACRÉSCIMOS LACANIANOS AO ESTUDO DA MÍSTICA EM CIÊNCIAS DAS


RELIGIÕES: UMA INTRODUÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de Ciências das Religiões, da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito para a obtenção do título de Bacharel
em Ciências das Religiões, sob orientação do
Prof. Dr. Matheus da Cruz e Zica.

João Pessoa/PB
2022
VICTOR HUGO BERNARDINO BEZERRA

ACRÉSCIMOS LACANIANOS AO ESTUDO DA MÍSTICA EM CIÊNCIAS DAS


RELIGIÕES: UMA INTRODUÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao curso de Ciências das Religiões, da
Universidade Federal da Paraíba, como
requisito para a obtenção do título de Bacharel
em Ciências das Religiões, sob orientação do
Prof. Dr. Matheus da Cruz e Zica.

Aprovado em: 13/06/2022.

Banca Examinadora

_________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Matheus da Cruz e Zica
Universidade Federal da Paraíba

__________________________________________________
Membro da banca: Prof. Dra. Leyla Thais Brito da Silva
Universidade Federal da Paraíba

_________________________________________________
Membro da banca: Me. Suele Conde Soares
Este trabalho é dedicado a todos que deslegitimados em sua
experiência, tiveram que enfrentar a suspeita daqueles que supõem-
se superiores por simbolicamente comportarem-se razoavelmente de
forma ordenada.
AGRADECIMENTOS

Aos colegas de curso que me possibilitam entender, cada um a sua forma, como as
Ciências das Religiões pode servir de recurso ao debate contemporâneo, aos problemas
emergentes, para refletirmos a sociedade e seus impasses.
A minha família que por intermédio de minha querida mãe, Valéria Bernardino da Silva,
e minha amada irmã, Juliana Bernardino Bezerra, apoiaram todo esse percurso, acolhendo-me
nos momentos de dificuldade, instigando-me a cada nova ideia, a cada novo projeto, até o
culminar dessa monografia.
Ao meu “amigo-irmão” Matheus Bezerra e toda nossa trajetória de debates, encontros e
desencontros, que só fizeram fortalecer uma amizade que fundando-se dentro da graduação de
Ciências das Religiões conseguiu manter-se fora dos muros da universidade preservando no
amor um ponto indissolúvel de admiração, carinho e respeito.
A minha amiga mais que especial Amanda Castro, que sempre me incentivou,
instigando o debate acerca da Psicanálise, do papel do outro, da imprescindibilidade de uma
escuta engajada, amorosa, libertadora, que mescla em Paulo Freire, quanto em Freud, toda sua
influência. Agradeço pelo espaço de diálogo que criamos, pelo ideal de acolhimento que
compartilhamos, que se converteram em ideias ímpares ao processo de maturação na produção
científica, além de sua participação ativa na revisão e correção desse trabalho.
Ao Diego Bezerra por seu acolhimento, amizade e disponibilidade ímpar. Sem o seu
suporte quanto as normas técnicas, e mesmo ao debate foucaultiano elementar as melhores
rodas de amigos, essa pesquisa não teria tomado os caminhos que tomou. Estendendo a Matheus
Bezerra meu carinho, por não medir esforços na ajuda de um amigo recém-chegado.
Não poderia deixar de ressaltar o papel que meu orientador prestou nesse percurso.
Agradeço ao Dr. Matheus da Cruz e Zica por todo suporte, interesse e empolgação quanto a
pesquisa cá produzida. Agradeço por acreditar nesse projeto, por contribuir sempre respeitando
os meus limites e especificidades, abraçando a causa e tomando-a como necessária ao debate
atual em Ciências das Religiões. Agradeço por saber lidar com minhas inseguranças quanto ao
conteúdo e capacidade de abordá-lo, alertando sempre que a vida acadêmica é um processo de
eterna evolução, avanços e recuos.
A minha companheira, namorada, esposa, amiga, Hanna Jarine Sales Suassuna, que
esteve comigo em todos os momentos possíveis antes e durante essa pesquisa. Foi por meio de
nossos debates, por vezes empolgados demais, que pude pensar esse trabalho em sua grande
maioria. Agradeço por me ensinar a fazer concessões a ideias outras, a ser a prova cabal em
minha vida da tese psicanalítica que “não há saber sem amor”. Obrigado por me orientar extra-
academicamente. Obrigado por fazer dessa pesquisa um ponto de encontro entre o seu universo
de referências e o meu, a ponto que isso não gerasse algum tipo de esmagamento de nossas
particularidades, antes mesmo uma ampliação de nossos horizontes.
Enfim, agradeço a todas as pessoas e instantes que contribuíram de alguma forma para
esse fase inicial de minha vida acadêmica.
“É só isso que há de seguro: há coisas que nos dão sinais e das quais
não compreendemos nada.”

Jacques Lacan, 1971


RESUMO

Esta pesquisa objetivou contribuir para a ampliação das produções acadêmicas voltadas à
temática da experiência mística no campo das Ciências das Religiões a fim de projetar um
debate que possibilitasse elevar o tema da mística ao âmbito extra religioso, além de abordar
a Psicanálise lacaniana como meio para esse caminho. É nesse contexto que procuramos situar
essa pesquisa como abertura crítica e propositiva para pensarmos em Ciências das Religiões da
forma que, em Psicologia, Marlos Gonçalves Terêncio propôs compreender a mística, ou mais
precisamente em seus termos, a experiência mística. Como explicita-se em título, esse trabalho
inscreve-se no intuito de contribuição para fortalecer a formalização teorética lacaniana ainda
tímida nas produções correntes em Ciências das Religiões, tendo como objetivo principal
buscar indicar contribuições que a teoria lacaniana pode oferecer ao campo das Ciências das
Religiões para compreensão das experiências místicas. No que diz respeito às especificidades
metodológicas, esse trabalho por servir-se de procedimentos bibliográficos para dar vazão à
proposta temática, inclina-se a uma abordagem qualitativa, já que pretende não só introduzir ao
campo das CRs um acréscimo ao estudo da mística, mas antes uma proposta interpretativa,
conceitual e “lacanianamente” metodológica, ou seja, procurando se inspirar na
interdisciplinariedade pela qual o programa lacaniano se fundamenta desde sua gênese, fazendo
disso recurso importante para as Ciências das Religiões para pensarmos as experiências místicas
como tema potente ao debate acerca da psicopatologização das vivências religiosas não-
inteligíveis, do lugar do outro na sociedade, quanto do controle, repressão e silenciamento de
práticas sexuais não simbolicamente ordenadas.

Palavras-chave: Mística; Psicanálise lacaniana; Ciências das Religiões.


ABSTRACT

This research aimed to contribute to the expansion of academic productions focused on the
theme of mystical experience in the field of Religion Sciences in order to project a debate that
could raise the theme of mysticism to the extra-religious sphere, besides approaching Lacanian
Psychoanalysis as a means to this path. It is in this context that we seek to situate this research
as a critical and propositional opening to think about Religion Sciences in the way that, in
Psychology, Marlos Gonçalves Terêncio proposed to understand mysticism, or more precisely
in his terms, the mystical experience. As explicitly stated in the title, this work is part of a
contribution to strengthen the Lacanian theoretical formalization still shy in current productions
in the field of Religion Sciences. Its main goal is to indicate contributions that Lacanian theory
can offer to the field of Religion Sciences in order to understand mystical experiences. As far
as the methodological specificities are concerned, this work, by using bibliographic procedures
to give flow to the thematic proposal, leans toward a qualitative approach, since it intends not
only to introduce to the field of the RCs an addition to the study of mysticism, but rather an
interpretative, conceptual and "Lacanianically" methodological proposal, that is, This will make
it an important resource for the Sciences of Religions in order to think about mystical
experiences as a potent theme for the debate about the psychopathologization of non-intelligible
religious experiences, about the place of the other in society, and about the control, repression
and silencing of non-symbolically ordered sexual practices.

Keywords: Mysticism; Lacanian Psychoanalysis; Religious Sciences.


SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO................................................................................................................ 12

2. A MÍSTICA COMO OBJETO CULTURAL E CIENTÍFICO................................... 17

2.1. A mística e o problema da classificação .................................................................. 17

2.2. Ciência da Religião e estudo disciplinar da mística: uma demarcação ............... 19

2.2.1. O lugar da mística nas Ciências das Religiões ........................................................... 21

2.2.1.1. Ramos das ciências das religiões e o estudo da mística ............................................ 23

2.2.1.2. Fenomenologia ......................................................................................................... 23

2.2.1.2.1. O numinoso e a mística .......................................................................................... 24

2.2.1.3. A mística pós Otto .................................................................................................... 25

2.2.1.4. Empirismo ................................................................................................................ 26

2.3. A mística na Psicanálise – o legado freudiano ........................................................... 28

2.3.1. Religião e alienação .................................................................................................... 29

2.3.2. Do obscurantismo ao mais além ................................................................................. 30

2.3.3. Para além da religião................................................................................................... 31

2.3.1.1. Considerações sobre a tópica ..................................................................................... 34

3. A MÍSTICA NO PROGRAMA LACANIANO ............................................................ 36

3.1. A subversão lacaniana na clínica ............................................................................. 36

3.1.1. A crítica ao diagnóstico do olhar – a mística despatologizada ................................... 39

3.2. A mística na teoria lacaniana – outro acréscimo ................................................... 47

3.2.1. Da fantasia expandida do místico a um gozo mais além ............................................ 51

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS .......................................................................................... 55

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................... 58


12

1. INTRODUÇÃO

Numa sociedade patriarcal, o feminino é o “outro”, assim como o “outro” é tudo


aquilo que não é conhecido. A aceitação do outro, a tolerância ao diferente, constitui-
se em peça chave para (...) a construção da cidadania. (MIELE; POSSEBON, 2012,
p. 418)

“Vivemos um movimento direcionado para o conhecimento do outro” (MIELE;


POSSEBON, 2012, P. 417), essa constatação do interesse ocidental crescente a temas voltados
ao “diferente de nós mesmos”, justifica em termos éticos, o papel das Ciências das Religiões
no âmbito cientifico-social. Ou seja, é buscando contribuir para a superação do preconceito,
para o respeito as diferenças, para o estreitamento das relações e mesmo a assimilação de
saberes outros, que a proposta pluralista das Ciências das Religiões na UFPB organiza-se. É
por lidarmos com o “outro” e suas diferenças, com a diversidade cultural religiosa e toda suas
particularidades, que estamos expostos aos perigos das reproduções conscientes ou não, de
atitudes que invisibilizem, bem como silencie, esse “outro”, à luz do argumento de uma
“condição indispensável do fazer cientifico”.
Esse modelo retrogrado de pensar ciência encontra no exercício das CRs1 uma
resistência flagrante aos seus intentos. Tomando os porquês que justificam a formação das
Ciências das Religiões encontraremos as respostas adequadas: O estudo das religiões, [...] para
nós, tem por objetivo dar [...] a oportunidade de acesso ao conhecimento da origem das
diversas tradições religiosas, dos mais diferentes povos [...], sem interferir na sua opção
religiosa. (MIELE; POSSEBON, 2012, p. 418)
Desse ponto é tomando as palavras de Neide Miele e Fabricio Possebon citadas na
epígrafe e reforçadas nas citações diretas subsequentes, que sustentamos mais que uma abertura
ao debate sobre o “outro” como tudo aquilo que não é conhecido, sustentamos uma aceitação
desse “desconhecimento” inexorável as relações humanas, respeitando-o nos limites do
possível. Nesse bojo não há só o feminino como alteridade radical ao saber do ocidente e seus
interesses; há as minorias marginalizadas; as práticas sexuais não convencionais; as
experiências religiosas que transgridem a lógica da religião institucionalizada. A essas últimas,
orientou-se o debate que esse trabalho propõe. É sobre um estudo acerca da mística que optou-
se abordar esse “outro estranho”, distinto, desconhecido, incognoscível e mesmo assim tão
excitante ao debate ocidental.

1
Abreviatura de “Ciências das Religiões” na UFPB.
13

Percebendo que inúmeras são as pesquisas voltadas a pensar o misticismo e sua


modalidade prática, a experiência mística, no âmbito da pesquisa, produzindo por vezes dentro
da academia um saber cada vez mais setorial quanto ao objeto de análise, esse trabalho decidiu
adentrar a esse debate de interesses situando-se para além da “onda” cada vez mais
especializada que parece tomar força apenas em alguns ramos das ciências. Encontrando em
outros ramos do tronco das humanidades seus aportes (e leia-se que quando falamos de
“ciências” falamos de ciências humanas) como é o caso da Ciências das Religiões, que parece
localizar-se à margem de tais tendências, mesmo que vez ou outra, em contextos específicos,
esta mesma área incline-se mais à especialização radical de seu objeto do que em sua
possibilidade de “pluriabordagem”, tal pesquisa ao perspectivar horizontes mais amplos as suas
proposições, posiciona-se em lado especifico nessa querela histórica entre a tendência mono e
pluridiscplinar: a holisticização metodológica.
A querela do século passado entre a ênfase fenomenológica e os estudos empíricos da
religião, retrata bem os polos desse conflito e seus desdobramentos para o tema do misticismo
e sua experiência (CRUZ, 2013). É interessante notar, no entanto, que os dois lados dessa
divergência sejam os que tomam o fenômeno religioso como algo sui generis, a ponto de exigir
uma metodologia de mesmo caráter; ou mesmo de reivindicar na qualidade do objeto das
Ciências das Religiões sua pluralidade de abordagem (CRUZ, 2013), admitem uma ampliação
de seu campo de interesse à mística que, seja na sua qualidade de fenômeno agregado a religião,
seja na sua condição de excepcionalidade transgressora das normas, dogmas e acesso à
transcendência circunstancialmente mediada pela instituição religiosa.
Nosso trabalho tenta dar um passo à mais e trazer elementos que retirem a experiência
mística dos confins de sua conexão com a religião como se só pudesse ser pensada nos limites
de agregada a ordem religiosa e seus filtros linguísticos. É sobre tais convenções históricas, nas
Ciências tanto quanto no senso comum, acerca da relação mística e contextos estritamente
religiosos, que consolidou-se pensar (equivocadamente) tal inclinação à transcendência, como
inclinação de natureza determinada única e exclusivamente pela tradição religiosa
(TERÊNCIO, 2011).
É nesse contexto, em meio às reduções postas pelo perenialismo2, de um lado e pelo
construtivismo3, de outro, que procuramos situar essa pesquisa como abertura crítica e

2
Tradição Filosófica que toma como paradigma o entendimento sobre uma natureza humana imutável,
transhistórica, que encontra na cultura e seus meios diversos, formas particulares, históricas, sociais e psicológicas,
à representar a mesma essência (LIMA, 2012).
3
Tradição filosófica que rompe com a ideia de “natureza humana”, advogando o caráter adquirente da experiência
do sujeito no mundo como formativa de sua personalidade, suas inclinações, seus empreendimentos. Como ser
14

propositiva para pensarmos em Ciências das Religiões da forma que, em Psicologia, Marlos
Gonçalves Terêncio (2011) propôs compreender a mística, ou mais precisamente em seus
termos, a experiência mística.
Indicando um debate epistemológico, vertendo a abordagem de Eduardo R. Cruz
(Estatuto epistemológico da Ciência da Religião, 2013) e priorizando uma conversa acerca do
estatuto formal da mística enquanto conceito nas Ciências das Religiões, essa pesquisa dialoga
abertamente com as propostas metodológicas que, de algum modo, organizaram, e ainda
organizam, acadêmica e culturalmente, os sentidos usuais que adotamos para ao trato de termos
como mística, religião, comportamento religioso, etc. Assim, mediante a urgência de um
alargamento de horizontes conceituais nas Ciências das Religiões, nos dispomos a um diálogo
pertinente com os dilemas da contemporaneidade: a irrupção cientificamente visível (dos anos
sessenta pra cá) de um crescente interesse popular pelas denominadas “novas espiritualidades,
esoterismos ou, ainda, Nova Era” (GUERRIERO, 2003, p. 1). Esse elemento inscreve uma
reação aditiva ao campo frente à temática da mística e seus frutíferos rendimentos à nosografia
psi4, ao “caráter ético-político das identidades, dos discursos e das práticas sexuais” (COSSI;
DUNKER, 2016, p. 1), o debate da atualidade.
Acréscimos lacanianos ao estudo da mística em Ciências das Religiões nestes termos
não resume-se a um diálogo estatutário, ou seja, prescritivo a uma nova noção de mística em
detrimento às existentes. Como explicita-se em título, esse trabalho inscreve-se no intuito de
contribuição para fortalecer a formalização teorética lacaniana ainda tímida nas produções
correntes em CRs. Em termos estritamente gerais, este trabalho tem como objetivo principal
buscar indicar contribuições que a teoria lacaniana pode oferecer ao campo das Ciências das
Religiões (leia-se “Ciências das Religiões” com os “esses (S)” que reivindicam
terminologicamente o pluralismo metodológico, quanto o entendimento amplo sobre seu
objeto), para compreensão das experiências místicas.
Diante dos levantamentos apontados aqui, adicionados às motivações tanto pessoais
(desejo de tornar explícitas as possibilidades de apropriações teórica lacanianas às investigações
em Ciências das Religiões), quanto sociais (retorno à sociedade de uma análise que pode
proporcionar uma abertura a pensarmos o outro em suas especificidades para além da
anormalidade), como científicas (ampliar o acervo em Ciências das Religiões de temas voltados

histórico, social e político, o humano não poderia ser pensado como ser de essência imutável, mas sim sujeito
histórico, agente que só pode ser “entendido” no espaço e tempo qual sua ação social produz efeitos (LIMA, 2012).
4
Se alude por “Nosografia Psi” o conjunto de descrições voltadas a classificação de doenças psíquicas por parte
dos campos (que fazem parte das ciências ou dialogam) especializados como: Psiquiatria, Psicologia e a
Psicanálise (FOUCAULT, 2006b).
15

à experiência mística e suas interpretações), o trabalho sustenta-se adiante, além do objetivo


geral no parágrafo acima apontado, em torno de dois objetivos específicos: 1) localizar as
principais contribuições para o estudo da mística na Psicanálise lacaniana; 2) realizar
reflexões sobre o papel da Ciências das Religiões dentro do estudo da mística e abordar a
Psicanálise lacaniana como meio para esse caminho.
Por partir de uma pesquisa bibliográfica tal trabalho prioriza nas produções lacanianas
tomando-as como possível referencial para análises em CRs. É por reconhecer que as
produções pertinentes ao tema da mística transcendem o próprio trabalho teorético de Jacques
Lacan (1901-1981), e que passaram por comentários, acréscimos, de alunos a críticos, que essa
pesquisa tomou como mais adequada uma hipótese de leitura de dados voltadas ao lacanismo5
enquanto expressão de um sistema teórico que se funde com de seu fundador. Nesses termos,
textos das mais diversas orientações dentro da episteme lacaniana, são tomados em análise na
tentativa de melhor empreender uma introdução ao tema da experiência mística e suas
particularidades.
No que diz respeito às especificidades metodológicas, esse trabalho por servir-se de
procedimentos bibliográficos para dar vazão à proposta temática, inclina-se a uma abordagem
qualitativa, já que pretende não só introduzir ao campo das CRs um acréscimo ao estudo da
mística, mas antes uma proposta interpretativa, conceitual e “lacanianamente” metodológica,
ou seja, procurando se inspirar no “programa interdisciplinar cuidadosamente montado”
(SAFATLE, 2017, p. 10) por seu fundador, conforme afirmou Vladmir Saflate.
Por isso ao definirmos os procedimentos metodológicos que possibilitaram o
desenvolvimento dessa pesquisa, pautamo-nos por critérios voltados a lidar com problemas
como: 1) a pouca informação em Ciências das Religiões acerca das proposições lacanianas
sobre a experiência mística; 2) a necessidade de uma atualização teórico-metodológica nas
Ciências das Religiões à sistemas teóricos emergentes, e suas proposições à experiência
místico-religiosa na contemporaneidade impulsionadas as novas espiritualidades que
emergiam; 3) a possibilidade de elevar a temática da mística ao debate extra religioso, já que
“não há nenhum fato essencialmente religioso no mesmo sentido que não há nenhum fato
essencialmente econômico ou essencialmente político” (ENGLER; STAUBERG, 2013, p. 68-
69).
Terminados esses dados introdutórios, passemos agora à pesquisa em sua integralidade,
seus avanços e recuos, seu caráter propositivo frente ao tema da experiência mística e como

5
Sistema teórico dentro do empreendimento psicanalítico que tem como fundador o psicanalista francês Jacques
Lacan.
16

isso pode tornar-se recurso importante para as Ciências das Religiões para pensarmos o
misticismo como tema potente ao debate acerca da patologização das vivências religiosas não-
inteligíveis, do lugar do feminino na sociedade, quanto do controle, repressão e silenciamento
de práticas sexuais não simbolicamente ordenadas (COSSI; DUNKER, 2016).
17

2. A MÍSTICA COMO OBJETO CULTURAL E CIENTÍFICO

O uso do termo “mística” na cultura, tanto quanto na ciência, é polivalente. Incorrendo


por múltiplas vias de desenvolvimento, ao que acusa, aplicou-se em contextos diversos, para
fins, tais quais, dissemelhantes. Marlos Terêncio, em seu trabalho dissertativo intitulado Um
percurso psicanalítico pela mística, de Freud a Lacan (2011), aponta a essa condição do termo
enquanto argumenta por uma definição “[...] tanto melhor quanto possível...” (TERÊNCIO,
2011, p. 21). Por “mística” vulgarizou-se a compreensão seja em consequência do impacto
exercido pelo discurso científico e religioso enquanto organizadores culturais de subjetividades,
de uma posição contemplativa, que mediante inclinação devocional, o indivíduo vivencia à luz
de uma relação direta frente ao transcendental, circunscreve-se na experiência particular do
sujeito como marca religiosa (JAMES, 1991).
Por mística, também, observa-se uma série de atributos outros, que assumidos por uma
forma estritamente depreciativa fazem parte dos usos e abusos quais o termo por empréstimo
tornara-se expressão substantiva (JAMES, 1991). Ser um “místico” passara de crente a
charlatão (TERÊNCIO, 2011), daquele qual vivencia a aterradora e fascinante, porém legítima,
condição do fenômeno religioso (OTTO, 2007), ao extático há algum tempo psicopatologizado
(JANET, 1975 apud TERÊNCIO, 2011). Enfim, das proliferações que tomaram os sermões, os
debates, as audiências, uma espécie de consenso é certo: a mística é, antes de tudo, uma
experiência particularizada, inclinação individual que se realiza circunscritamente no eu, à
revelia dum outro mediador, seja esse a linguagem, seu semelhante ou uma instituição.
A mística, o místico, enquanto vivência particular da religiosidade (JAMES, 1991),
experiência vivida do Uno (PLOTINO, 1981) ou categoria analítica da ciência, ganha nesse
espaço um lugar de fala, ou melhor, um lugar que fala as Ciências das Religiões. Desse modo,
antes de mais nada, para que possamos prosseguir em nossa explanação, definamos, seja para
o “bem” ou para o “mal”, do que necessariamente falamos quando falamos de “mística”,
abrindo espaço a questão precedente a qualquer classificação: O que é esse fenômeno? Ou neste
caso particular, “o que é isto, a mística?”.

2.1. A mística e o problema da classificação

A problemática da classificação percorre a história do pensamento ocidental de ponta a


ponta. Pensadores da estirpe de Platão (424-348 a.C.), Aristóteles (384-322 a.C.), Santo
Agostinho (354-430 d.C.), Wittgenstein (1889-1951), Heidegger (1889-1976), dentre tantos,
destacam-se por suas contribuições vertidas em tentativas diversas de compreensão da
18

inexorabilidade, do problema (MARCONDES, 2010). Por problema de classificação, traduz-se


questões centradas aos limites representacionais da realidade, que por seu turno, escancara de
forma inconteste a insuficiência conceitual, por vezes encobertas, a qual nenhum método
classificatório, por melhor que seja sua teoria do conhecimento, escapa.
Descartes, um dos primeiros “modernos” a propor uma nova fundamentação
metodológica à ciência (DESCARTES, 2011), aloca na linguagem a função errática de
expressão imperfeita do pensamento. A realidade, segundo ele, essa manifestação do que é, ou
seja, do que existe, fazia-se acessível apenas ao campo das ideias, que por seu turno,
encontrando no pensar sua expressão mais que fiel, perverter-se-ia quando transformada em
linguagem. Plotino (1981) seguindo a mesma linha6, apontara à natureza da linguagem
situando-a como termo limítrofe às vivências transcendentais (MARINHO, 2002), o que em
outras palavras sugere “a linguagem falha quando a experiência extravasa seus limites”. De
fato, transformar dado empírico em conceito é, antes de mais nada, uma operação de linguagem
fadada a um sucesso parcial.
Tomemos contemporaneamente Ferdinand de Saussure (2012) e sua obra póstuma,
Curso de linguística geral de 1916. É situando sobre a natureza do signo linguístico um salto
conceitual aos reducionismos que as antigas teses defendiam, que um argumento psicossocial
da linguagem se esboça em seu curso. Partindo de uma reformulação do estudo cientifico da
língua (sistema de signos socialmente constituídos), quanto uma crítica a ideia de signo natural,
ou seja, a suposição de “ideias completamente feitas, preexistentes às palavras” (SAUSSURE,
2012, p. 79), que construiu-se em Curso de linguística geral, sob a ideia de “natureza do signo
linguístico”, a tese psicolinguística de nomeação da realidade. Em outras palavras, a condição
estrutural de desconexão que um significante teria do seu significado:

Assim a ideia de “mar” não está ligada por relação alguma anterior à sequência de
sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por
outra sequência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas
e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf
(‘boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s
(Ochs) do outro. (SAUSSURE, 2012, p. 81-82)

Tal condição sociossimbólica a nomeação terá impacto flagrante nas investidas


históricas rumo à tentativa de uma tradução universal da experiência humana. Se a linguagem,
assim como aponta Descartes, Plotino e Saussure, não limita-se, seja por sua natureza pobre em
questão da experiência, seja mediante a arbitrariedade da relação significante/significado, a uma

6 Afirmou isso, no entanto, muito antes de Descartes.


19

única acepção, ou mesmo, uma que sature a realidade das coisas. Torna-se tarefa impossível
centrar uma compreensão unívoca de qualquer fenômeno que seja, levando apenas e só, em
conta que o mesmo significado/sentido/coisa não opera situacionalmente em
significantes/termos/palavras diferentes. O termo “mística”, por exemplo, incorpora
historicamente inúmeros traços tão antinômicos entre si, que para melhor incorremos em sua
análise, optou-se considerar que cada um desses situa sob o significante “mística” um valor de
uso estritamente situacional.
Nas religiões, a título de exemplo, sejam essas as abraâmicas, como também ramos do
Taoismo, Bhakti Hindu, Zen budismo etc., a mística apresenta-se comumente atrelada a uma
vivência espiritual particular, onde os limites do mundo ordinário são extrapolados sob os mais
variados argumentos. Seja por um despertar às coisas do mundo, pela necessidade de regresso
a um instante de júbilo imaginário ou mesmo pelo resgate ou fusão do/ao objeto de devoção,
todas essas experiências culminam na inscrição religiosa de uma vivência nomeadamente
mística (ELIADE; COULIANO, 1995; TERÊNCIO, 2011).
Se recorremos ao argumento etimológico para nos asseguramos de uma base
minimamente longínqua do fenômeno, ver-se-á que por mística traduz-se o termo grego
mystikós que, em linhas gerais apresenta-se como ato de “fechar-se”, ou para sermos mais fiéis
ao sentido, “fechar”. As leituras sobre o termo explicitam seu caráter uma particularidade que
tomada de sentido alude ao mistério, a um enigmatismo vivido à luz de um retraimento do
sujeito (ensimesmamento) à crenças, objetivos transhumanos, modelos ideais. De “fechar”
flexionou-se “fechar-se”, termos que linguisticamente possuem relações próximas de sentido,
mas que são dissemelhantes em termos de valor. De fato, o sentido, quanto valor, do termo
ganhou contornos precisos a cada época que seu uso corrente desempenhara funções
discriminatórias específicas. Como enfatiza Certeau (2015), a mística como concebemos hoje
só pode ser pensada a partir de meados do século XVI, categorizando-se usualmente como
experiência, ou seja, um tipo de saber acessível ao campo empírico, dos sentidos.
Mas o que nos diz a ciência sobre a mística? A qual ramo dessa, historicamente,
consolidou-se o estudo das manifestações religiosas da mística? Qual seu sentido?

2.2. Ciência da Religião e estudo disciplinar da mística: uma demarcação

Faz-se necessário o recurso da conceituação nesse trabalho para que possamos tornar
evidente o tópico subsequente “O lugar da mística nas Ciências das Religiões”. Recorrendo
ao texto de Frank Usarski, História da Ciência da Religião (2013), tanto pelo seu poder de
20

síntese, quanto por seu prestígio expresso na aceitação majoritária dentro e fora da comunidade
acadêmica das Ciências das Religiões, elegemos alguns pontos de sua explanação na busca de
trazer a essa pesquisa um caráter familiar dentro da historiografia e base epistemológica aceita
atualmente.
Optou-se pensar a diferença Ciência da Religião e estudo disciplinar da mística como
fronteira necessária a pesquisa por dois aspectos fundamentais: a) Existe de fato uma diferença
que se faz notar na proposta epistemológica entre o estudo engajado ao fenômeno místico-
religioso, numa perspectiva disciplinar, e estudos do fenômeno místico pela ótica do campo
(USARSKI, 2013); b) A demarcação dessa diferença possibilita trilhar análises de menor
amplitude, respeitando os limites do campo e suas especificidades.
Tomando assim por referência esses dois aspectos fundamentais de discriminação,
definamos tal diferença começando pela Ciência(s) da(s) Religião(ões). 1) Ciência(s) da(s)
Religião(ões), grosso modo, é a expressão substantiva qual denominamos o empreendimento
acadêmico que tem por fim o estudo e sistematização pluridisciplinar, quanto a produção de
pesquisas acadêmicas em torno de temáticas como a das religiões, sistemas e comportamentos
religiosos (USARSKI, 2013). Esse campo formalizado academicamente em 1873 pelo filólogo
e mitólogo Friedrich Max Müller (1823-1900), encontra-se espalhado mundo à fora em maior
ou menor clímax na escala de receptividade institucional, mediante as especificidades regionais
de sua inserção.
Cabe o destaque para a particularidade de sua base teórico-metodológica que
hegemonicamente consolidou-se a uma compreensão pluridisciplinar atrelada ao empirismo,
mas que em outrora firmou-se numa tendência fenomenológica caracterizada por sua proposta
sui generis ao objeto do estudo da religião. Hoje em dia a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)
estabelece-se de forma ampla e respeitada por diversos países do mundo, fomentando questões,
debatendo o cotidiano, perpassando algumas crises do passado (CRUZ, 2013), enquanto
mergulha na urgência das novas problematizações (WIRTH, 2013).
Em contrapartida, 2) o estudo disciplinar engajado do(s) religião(ões), se reflete numa
orientação especializada de seu objeto de trabalho (Religião, Comportamento religioso,
sistemas simbólicos etc.). Essa perspectiva enfatiza um trato monodisciplinar, de abertura quase
nula (USARSKI, 2013). Exemplo que poderíamos tomar para didatizarmos tal compreensão
seria as ofertas disciplinares voltadas ao estudo das religiões que os diversos departamentos
acadêmicos disponibilizam.
Essas disciplinas: Antropologia da Religião, Sociologia da Religião, História da
Religião etc. seriam voltadas exclusivamente ao estudo especializado das áreas implíticas
21

(Ciências sociais, História etc.), enfatizando um diálogo restrito ao método proveniente dessas.
Priorizando o desenvolvimento de um saber fechado ao campo, a diferença entre estudo
disciplinar da religião e Ciência(s) da(s) Religião(ões) explicitar-se-ia pelo caráter circunscrito
do estudo, enquanto a primeira fechando-se em si dispenderia esforços à luz do seu paradigma
(ou paradigmas) para validar ou refutar suas proposições, a nível disciplinar, a segunda seria o
seu avesso, operaria a nível das interconexões epistemológicas (USARSKI, 2013).
As nuances não se esgotam por aí, existem de fato outras tantas abordagens para se
explorar tal diferença, campo/disciplina, mas que não recorreremos aos fins do trabalho, já que
fixados de imediato à abordagem apresentada (abertura teórico-metodológica), encontramos
nela subsídios ao nosso propósito. É sob a égide de uma abertura que podemos situar o estudo
da mística na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) tendo por referência as propriedades do campo,
ao invés da disciplina. Em outras palavras, é a partir dessa demarcação que de fato podemos
pensar com propriedade a mística nas Ciências das Religiões, sem reduzirmos o campo a uma
de suas subdisciplinas como discurso generalizado das CRs.

2.2.1. O lugar da mística nas Ciências das Religiões

A história da mística, ou mais precisamente, a elevação da mística enquanto objeto de


interesse científico em termos modernos de ciências, é contemporânea ao estudo corrente,
sistemático e disciplinar da religião nas emergentes ciências do século XIX. De fato, pensar a
não relação mística/religião é uma alternativa pouco usual no contexto academicista, mesmo
considerando as especificidades pelas quais a mística se manifesta nos diversos sistemas de
crenças (JAMES, 1991).
É coerente apontar a convergência do pensamento científico do século passado expresso
no posicionamento de Bergson (1978) ou William James (1991) que tomavam a mística por
uma espécie de experiência culminante da religião, entendida via ápice da experiência religiosa
em Bergson, ou mesmo, base comum a toda origem religiosa, por James. As Ciências das
Religiões não sendo refratária às influências da época, tampouco subverteu toda crescente
orientação do estudo das religiões, e por conseguinte da mística, que lhe antecedera, do
contrário, absorvera como sinalização da urgência crescente de uma consciência disciplinar que
consolidava-se paulatinamente (USARSKI, 2013).
No meio da marcha de consolidação disciplinar da nova ciência o tema da mística se
manteve presente, e foi explorado exaustivamente pelos filósofos e historiadores da religião,
quanto pelos psicólogos. A nova ciência, grosso modo, tomava um entendimento tanto
22

sistêmico7 da mística, quanto experiencial. Não é de se estranhar que os primeiros psicólogos


da religião, voltados a essa análise de um “excepcional”, atributo adotado por muitos místicos
na qualificação de sua experiência, alocavam-na nos domínios da psicopatologia. Exemplo
dessa inclinação, é o caso de Pierre Janet que associando as experiências extáticas à luz da falsa
consciência neurótica, as patologizou. Outros cientistas também se empenharam na busca de
causas que pudessem explicar a experiência da mística sem o recurso de uma metateoria. Leuma
optando pela neurofisiologia tentou encontra nos efeitos dissociativos provocados pelos usos e
abusos de drogas sintéticas, o protótipo explicativo para o êxtase místico (RODRIGUES;
GOMES, 2013).
Neste horizonte multidisciplinar em que as teorizações eram formalizadas, onde
empreendimentos de diversos campos convergiam em entendimento ou múltiplos
entendimentos sobre a mística, cabe o destaque ao termo em questão. Por mística comumente
entende-se, como bem observa Velasco (2004), um certo tipo de experiência de relação com a
divindade. Se recorremos ao Dicionário da Mística (2003) o tipo de relação que se enfatiza nos
limites do termo, é uma relação de mistério, pura excitabilidade empírico-sensível de caráter
religioso, testemunhado como júbilo, comunhão absoluta com o inefável, o sagrado, o todo;
para muitos uma condição específica da experiência humana no mundo encontrada em poucos.
A mística sempre teve trânsito livre nos estudos realizados nas Ciências das Religiões.
É certo que muitas vezes tratada por sinônimo de religião ou fundamento dessa, como no caso
das proposições de William James (1991), a abordagem quanto sua natureza, propriedade,
estrutura, variaram frutiferamente de ramo a ramo dentro daquilo que denominamos posturas
teórico-metodológicas. Essas posturas, como bem enfatiza Guerrieiro (2010) são as
responsáveis por dinamizar, dentro do campo das Ciências das Religiões, as posições que os
pesquisadores ocupam frente ao outro e a si, nessa engrenagem produtora de sentido/saber. Em
outras palavras, por postura teórico-metodológica entende-se a inclinação teórica e
metodológica que um pesquisador cultiva/defende como mais adequada ao escrutinamento de
seu objeto de pesquisa.
Dentre essas posturas destacam-se duas, que historicamente hegemonizaram-se nos
departamentos das CRs mundo afora: a fenomenologia da religião, encabeçada por Rudoph
Otto e seus pares; e o empirismo metodológico expresso no método históricoempirico,
socioempirico, entre outros de mesma proposição (GUERRIEIRO, 2010). É sabido dos
inúmeros embates que tais posturas empreenderam. Também sabe-se dos frutíferos progressos

7
Enquanto doutrina iniciática.
23

propiciados historicamente pela contestação mútua sobre a validade metodológica dessas por
essas. Assim, cabe um destaque nessa pesquisa acerca desses ramos que posturam nas Ciências
das Religiões os estudos sobre a mística. Cabe uma explanação sintética, mas cuidadosa.

2.2.1.1. Ramos das ciências das religiões e o estudo da mística

Na aurora institucional da(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) pela Europa, lá no início


depois de uma certa estabilização das cátedras recém nascidas da nova ciência, a
Fenomenologia da religião encontrou solo fértil às suas proposições e estabeleceu-se como
opção ao positivismo científico (USARSKI, 2004). Nomes como Rudoph Otto, Nathan
Söderblom, Gustav Mensching, Mircea Eliade, dentre outros, convergiram teoricamente para a
sedimentação de teses centrais ao estudo das religiões. Noções como o “não-racional”,
“sagrado”, “associação de sentimentos”, “mito, “rito”, “numinoso”, foram medulares ao
programa fenomenológico em sua reação às análises racionalistas sobre o fenômeno religioso.
Ou seja, em sua retomada à temática do “não-racional” aos fundamentos do estudo da religião.
Tal programa possibilitou às CRs, não de forma generalizada, uma ruptura
epistemológica transformativa. É só lembrarmos do quão consolidadas estavam as pesquisas
vinculadas a uma perspectiva sócio-histórica da religião, com suas análises objetivas do
fenômeno, antes da marcha fenomenológica hegemonizar-se enquanto proposta. O programa
fenomenológico como aponta Usarski, defendia à revelia de seus concorrentes científicos um
estudo das religiões orientado pela “busca de compreensão do sagrado como fenômeno
universal, único e trans-histórico” (USARSKI, 2004, p. 77). Essa prescrição teria impactos
profundos no entendimento da mística, tanto quanto no seu estudo.
Levando em consideração tais propriedades que a Fenomenologia da Religião introduz
ao debate, recorreremos a uma síntese de suas proposições para melhor situarmos a mística nas
Ciências das Religiões, formalizada à luz da tese fenomenológica do sagrado.

2.2.1.2. Fenomenologia

A reação fenomenológica ao positivismo é clássica. Edmund Husserl (1859-1938) seu


fundador, motivado pela crítica aos métodos vigentes na ciência da época, lançara à cena seu
modelo alternativo de ferramenta à uma ciência de rigor (HUSSERL, 1968). A fenomenologia
ganhara destaque. Na(s) Ciência(s) da Religião(ões) não fora diferente. Ela se deu aos seus
moldes, com suas particularidades. Precipitada em Rudoph Otto a onda fenomenológica
ganhara de prontidão estudiosos que viam em sua reação à hegemonia do racionalismo, um
24

resgate frente ao empobrecimento das análises científicas sobre a religião (USARSKI, 2004).
O elemento irracional deveria ser resgatado ao debate da experiência religiosa, posto ao seu
posto, nem que pra isso fosse nomeado enquanto categoria fundamental da religião, essência,
no sentido mais platoniano do termo. Daí adentramos ao conceito-chave de “numinoso”
categórica fenomenológica desse “irracional medular”, anterior a razão, expresso por um tipo
de sentimento especifico à vida religiosa, o sentimento numinoso – “qualitativamente diferente
dos sentimentos naturais” (CROTTI, 2019, p. 14).
Para entendermos a proposta da fenomenologia da religião é importante que tomemos
por nota as seguintes questões: a fenomenologia da religião, como já atrelada a Rudoph Otto,
poderia ser entendida em duplo caráter; 1) como um estudo acerca da instância não-racional e
seu fundamento como crucial à experiência religiosa; 2) a título de crítica a racionalização
radical qual os estudos, à sua época, impingiam ao fenômeno religioso. Por meio dessas
questões poderíamos capturar por quais argumentos o programa fenomenológico se
fundamentaria. É por um retorno às bases mais negligenciadas às pesquisas sobre religião, que
Otto vê na temática do irracional o ponto por qual todo e qualquer estudo deveria se pautar. É
sobre esse elemento “[...] vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne”
(OTTO, 2007, p. 38) que o teólogo encontra o Sagrado e sua expressão afetiva, estritamente
religiosa, o numinoso.

2.2.1.2.1. O numinoso e a mística

O numinoso, em Otto, seria, se pudermos propor esse entendimento, uma ficção teórica.
Ou seja, um conceito desenvolvido para dar vazão, ou mesmo para tornar mais concebível, um
conjunto de experiências humanas de caráter estritamente religioso que outrora encontravam-
se negligenciadas pelos estudos científicos das religiões. Por “ficção” não presume-se farsa,
mentira, ou qualquer outra acepção pejorativa, antes mesmo uma ferramenta
classificatória/prescritiva pela qual a teoria se vale na busca de tornar certos fenômenos
minimamente “tangíveis” às problematizações, quanto ao debate (CROTTI, 2019). Nesse
contexto, o numinoso representa uma tentativa conceitual em abarcar racionalmente um campo
de impossível tradutibilidade exata – o irracional.
A fenomenologia da religião supõe nessa instância não apenas sua existência enquanto
importante às análises religiosas, como também uma dinâmica de operação específica. É
entendendo a experiência religiosa como duplamente constituída; ou seja, tanto por elementos
não-racionais, como por racionais, que Otto pôde pensar a manifestação do “numinoso”
25

circunscrita ao sentimento, enquanto a manifestação da razão anelada a predicação, “o que


racionaliza ou esquematiza o numinoso” (CROTTI, 2019, p. 10).
É tomando o numinoso como essa base comum a toda experiência religiosa, que a
Fenomenologia da religião encontra na ação humana sobre esse sentimento um meio a se pensar
as vivências religiosas e suas multiplicidades. A experiência mística nesse contexto é pensada
enquanto espectro desse gigantesco campo qual denominamos “fenômeno religioso”. Isso se
daria pelo simples fato que por religião se compreenderia um tipo de relação com o irracional
que, pautando-se pelo esforço em torná-lo inteligível, a fim partilhá-lo socialmente, diferenciar-
se-ia da mística quali-quantitativamente. A mística uma das expressões do fenômeno religioso
apresentar-se-ia como o completo oposto da religião. Pois se por religião se entenderia a
tentativa de domesticação do numinoso/sagrado pela razão, na mística o numinoso/sagrado
seria experienciado em toda sua “integralidade”; chegando a sinonimizar que o próprio
sentimento numinoso em sua condição ininteligível, seria em outras palavras uma experiência
de ordem mística.
Assim Otto havia fundado um segmento a se pensar o estudo da religião. Havia, em seus
termos, evocado a excitabilidade religiosa necessária ao reconhecimento da ação Numinosa
(OTTO, 2007). Havia teorizado a mística via experiência extrema do numinoso e a alocado
como marco zero da experiência do homem com o sagrado para então propor que toda
experiência não-racional da religião é da ordem do mistério, da mística, do sentimento de ser
criatura, o que em miúdos significa, “a sensação de ser reduzido ao nada, ao não-ser,
depreciação do eu...” (CROTTI, 2019, p. 4).

2.2.1.3. A mística pós Otto

A marcha fenomenológica não ficara a serviço exclusivo das teorias ottonianas, outros
autores contribuíram com sua consolidação. Seja na Teologia (Gustav Mensching 1901-1978,
Nathan Söderblom 1866-1931), História (Mircea Eliade 1907-1986), Filosofia (Geradus van
der Leeuw 1890-1950), a Fenomenologia da religião transitou das generalizações a nível
cosmos/caos, transhumano/humano, sagrado/profano, a revisão sistemática de suas
proposições. Nesse percurso, a mística de certa forma manteve sua posição inalterada, haja vista
seu entendimento firmado à experiência de superação do cognoscível, um estado de saturação
no sagrado que faz do “sujeito” da mística aquele que adentra ou é adentrado plenamente (o um
ou zero da relação) pela essência de todas as coisas, ou circunscritamente em Otto, essência de
todas as religiões – o sagrado (GASBARRO, 2013).
26

À margem disso, outros discursos dentro do campo das Ciências da Religiões se faziam
coexistentes. Como ligeiramente apontado no início da tópica “O lugar da mística nas Ciências
das Religiões”, estudos comparativos, sócio-históricos, psicológicos, fomentavam um debate
crescente na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), um debate estatutário voltado às credenciais
científicas do estudo das religiões. Essa fase formativa culminou na institucionalização das CRs
como disciplina autônoma, mas não parou por aí. Um campo como esse que se pretende
pluridisciplinar, como defendiam seus fiadores à época, não poderia recorrer a explicações
criptoteológicas 8, ou sui generis, como se fizera antes e depois de sua formalização
institucional. O objeto Religião teria que ser analisado mediante suas condições concretas na
história, sociedade, linguagem etc. (USARSKI, 2013), teria que superar as condições
metafísicas de outrora e do devir.

2.2.1.4. Empirismo

Em Ciência entende-se comumente por empirista toda e qualquer inclinação que prime
a noção de experiência como meio mais adequando de se chegar ao conhecimento de alguma
coisa. Essa postura frente ao objeto (coisa) orienta, tanto quanto delimita, o fazer científico e,
por assim dizer, todo o saber produzido com sua aplicação. Essa definição um tanto quanto
elementar, aponta para aspectos específicos que fogem à regra genérica, circunscrevendo em
seu fulcro a constatação do empirismo como método, ou seja, ferramenta. Por método, traduziu-
se nas Ciências, todo e qualquer conjunto de normas que aplicado sistematicamente a um objeto,
previamente eleito (ou não), verte dos dados obtidos um sentido elevado a posição de saber
constatável (ENGLER; STAUSBERG, 2013).
Na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) tal orientação circunscreve-se a um vasto grupo de
disciplinas que adotando uma postura “objetiva” frente a dados brutos, localiza seu material de
trabalho, no mundo empírico. Ou seja, situa nos “elementos religiosos empiricamente
acessíveis” (USARSKI, 2013, p. 51) a importância investigativa do campo, dada a sua realidade
imanente, passível a falseabilidade:

A afirmação “religiões concretas” alude ao fato de que a Ciência da Religião encontra


seus objetos no mundo empírico. Trata-se de uma consequência do axioma de que
religiões representam sistemas simbólicos elaborados em relação a uma “realidade
culturalmente postulada não falsificável” que transcende o alcance de qualquer
método cientificamente comprovado. (USARSKI, 2013, p. 51)

8 Uma teologia encoberta pela tônica de método científico.


27

Enquanto empreendimento acadêmico que “não instrumentaliza seus objetos em prol de


uma apologia a uma determinada crença privilegiada...” (USARSKI, 2013, p. 51) ambicionou
à época formativa do campo inseri-lo no que de mais prestigioso se pedia a uma ciência em
processo de nascimento. Assim, por ramo empírico da ciência das religiões, elenca-se todo
modelo subdisciplinar que voltando-se “ao estudo histórico e sistemático de religiões concretas
em suas múltiplas dimensões...” (USARSKI, 2013, p. 51) encontra no contexto sociocultural
sua manifestação.
Da mística, nesses termos, poder-se-ia supor que sua elevação a categoria de objeto não
se faz decorrente ao valor qualitativo que sua vivência religiosamente aponta. Tal ideal
circunscreve-se nas análises confessionais, que imbuídas sobre a questão da verdade toma a
experiência mística à luz do argumento religioso. A mística, entra nas Ciências empíricas das
Religiões despida de toda aura da exclusividade sui generis, preconizando nos fatos históricos,
sociais e psicológicos, um lugar de manifestação capturável aos filtros das ciências.
Seja pela psicologia da religião que à luz do fato psicológico pôde reduzi-la a estado não
ordinário de consciência religiosa (JAMES, 1991), performatividade neurótica (JANET, 1975
apud TERÊNCIO, 2011), ou mesmo, processo de indução dissociativa (RODRIGUES;
GOMES, 2013). A campos como as ciências sociais que viam no signo da mística, seja numa
perspectiva sociológica maussiana (BRÜSEKE, 2004), uma categoria tão primitiva da realidade
da experiência do indivíduo social que antecederia a forma magica e religiosa de situar-se no
mundo, servindo-lhes de sentimento “subtrático”. Na etnologia como em outros ramos das
ciências sociais, a mística é um dado comum a experiência religiosa, seja enquanto seu
fundamento, seja enquanto seu sinônimo, forjando análises sociorreligiosas de caráteres
diversos.
A influência do cientificismo empirista fora marcante nas análises místico-religiosas
também fora do contexto europeu. Um exemplo explicito do impacto empirista em
manifestações místicas em nossa sociedade, é como o caso Antônio Conselheiro fora retratado
pela historiografia (NOGUEIRA, 1978; CUNHA, 2021[1902]) e antropologia-médica
(RODRIGUES, 1939) brasileira. Notabiliza-se que todo o sentido atribuído a mística enquanto
categoria analítica nas ciências, também abrira brechas a preconceitos avassalantes. Willian
James, para além do caso brasileiro ao qual voltaremos mais adiante, já anunciara em
Variedades da experiência religiosa (1991) a conotação extremamente negativa qual o termo
mística ou misticismo desempenharia para além de sua significância religiosa: “Usam-se a
miúdo as palavras ‘misticismo’ e ‘místico’ como termos de mera censura, para capitular
28

qualquer opinião que se figure vaga, vasta sentimental e sem base nos fatos lógicos.” (JAMES,
1991, p. 316)
A mística sofrera os impactos que engendrados pelo desencantamento do mundo, como
dirá Weber (1968) – em contextos outros, escancara sua dupla existência no discurso científico.
No bojo da mística encontra-se comumente associações à ingenuidade e a malícia; a vivência
honesta e o charlatanismo; a realidade e a ilusão (TERÊNCIO, 2011). Predicados postos,
vertidos a uma lógica maniqueísta de classificação que nas ciências empíricas exerceram papel
central de reação a todo e qualquer discurso que se pondo como possibilidade não seguira os
critérios escrutináveis do fazer científico, encontram respostas outras em campos vindouros,
que como sintomas desse momento da ciência, insurgiram trazendo questões antigas à luz de
novos sinais.
A Psicanálise, eleita aqui como orientação teórica principal da pesquisa, arguindo
contribuições marcantes para um diálogo a esse nível, introduz-se na época moderna como um
desses campos de interesse às coisas da vida, tanto a nível privado, quanto público. Pelas
análises de seu fundador, notabilizam-se o destaque para a mística, as religiões, a moção política
presente no sistema de crenças, naquilo que genericamente alude-se por textos sociológicos da
Psicanálise (TERÊNCIO, 2011). Para as Ciências das Religiões as construções freudianas
representaram um marco subversivo em relação às análises do fenômeno religioso em todo seu
espectro. Valendo-se desse ponto, nos coube situar um trato mais refinado, já que para
entendermos os acréscimos lacanianos ao estudo da mística, devemos posicionar seus
antecedentes sobre a mesa. É sob a insígnia das ciências empíricas que a psicanálise paira com
seu fundador, “Nem ciência, nem delírio, nem arte, nem religião, nem magia.” (ALLOUCH,
2014, p. 52), um sintoma sócio-científico.

2.3. A mística na Psicanálise – o legado freudiano

Herdeira inafiançável do iluminismo (ROUDINESCO, 2016), a Psicanálise pretendida


enquanto uma naturwissenschaften 9, tivera que lidar desde cedo com a amarga, porém irônica,
situação científica em que se metera: à medida que apresentava-se ao mundo
como empreendimento da razão em detrimento ao laço alienante das paixões, reconhecera de
imediato nessa última, uma irredutibilidade flagrante aos intentos científicos; as paixões, em
sua totalidade, eram indomesticáveis. Tal limbo entre o idealizado e o reconhecido, possibilitara
a Psicanálise habitar, não sem resistência de todos os lados inclusive de si, dois mundos.

9
Ciência da natureza.
29

Enquanto projeto científico, adotara no ideal de submissão dos instintos e aplicação dum
modelo particular de pensamento crítico, sua orientação. Enquanto refém de um compromisso
clínico aos moldes charcotianos de um “a teoria é boa, mas não impede que as coisas
aconteçam”, tivera que se submeter a um dado paradigmático: a razão não era em si só
suficiente, “argumentos nada podem contra [...] paixões” (FREUD, 2011[1927], p.21).
“Trocando em miúdos”, a realidade em meio à qual a Psicanálise se projetara, tornar-se
hostil a ela. Se por um lado seu fundador convergia com os argumentos de sua época, "Ousa
pensar por ti mesmo", por outro, encontrava na escuta de outrem o "algo pensa em mim"
nietzscheziano (ROUDINESCO, 2016). Essa superposição tivera consequências, que para o
"bem” ou para o “mal" impactaram concretamente os desenvolvimentos da "primeira"
Psicanálise. Freud fora afetado pelo seu meio, era fruto de seu tempo, e como pensador
iluminista que era, logo tratara de tomar por posse de seus inimigos por "direito". Fora contra
o que aliena sua mais duradoura batalha (TERÊNCIO, 2011; ROUDINESCO, 2016).

2.3.1. Religião e alienação

Tematizada frutiferamente em Freud, a religião ocupa inequivocamente o posto de


alienação de massas, e até mesmo, de neurose universal. Esse entendimento, ao que tudo indica,
fixa Freud a uma tradição antirreligiosa muito característica ao intelectualismo de matriz
europeia muito influente desde o século XIX (TERÊNCIO, 2011; ROUDINESCO, 2016).
Casos como esses, tratados à luz, apenas e só de fatos negativos, têm impactos sugestivamente
infelizes quando associamos Psicanálise e Religião. Se, por Psicanálise e religião entende-se
uma relação de contrários, como explicitamente frisa Freud nas Conferencias Introdutórias
sobre a Psicanálise (1996 [1916-1917]): A Psicanálise e a Religião, enquanto empreendimento
humanos, situam-se em posições diferentes no mundo. A religião funda pela uniformização
resolutiva dos problemas da existência, um abarcamento das questões da vida por respostas
prontas, fixas. A Psicanálise, perspectiva outra visão, centrada pela mesma interpretação de
mundo da ciência, posiciona-se enquanto ramo da mesma, incutindo em si, suas metas de
progresso, tanto quanto, sua vocação questionadora, como seu adaptacionismo a cada nova
evidência.
Tais caminhos se cruzam durante muitas vezes quando a Psicanálise decide tomar por
unidade temática a religião. De ilusão a conhecimento falacioso (TERÊNCIO, 2011), a religião
percorre o pensamento freudiano fixada como termo guarda-chuva. Encontramos da magia à
mística; da neurose (FREUD, 2015 [1907]) a construção intelectual (FREUD, 1976 [1916-
30

1917]); do alívio ao desamparo constitutivo (FREUD, 2011[1927]) a influência hipnótica


(FREUD, 2013 [1921]). De fato, é sob o tom crítico que muitas dessas abordagens
se desenvolveram e continuam a se desenvolver mundo afora.
Ao estudo das religiões as construções freudianas foram bem generosas, não há o que
reclamar. Sabe-se de uma grande tradição que tomando, por vezes, as teses duma religião
enquanto neurose obsessiva, dera continuidade ao seu legado. Tal realidade não pode fazer-se
mesma quanto ao estudo da mística. Relegada ao segundo plano, como afirma Terêncio (2011),
das ínfimas vezes que tratada por Freud, o tema da mística o fora pela via da ambiguidade
pejorativa, posição compreensível dada a formação intelectual.
Como já vimos, Freud situava-se numa tradição de pensamento que temas como
religião, magia e mística, quando não criticamente combatidos, eram tratados como a mesma
coisa. Por ser herdeiro tardio de um iluminismo combalido (ROUDINESC, 2018) Freud via na
sua formalização de um projeto científico, sob a Psicanálise, a reação contundente da ciência
moderna aos irracionalismos do mundo, mesmo que, longe dos “discursos oficiais”, por de trás
das cortinas, se visse impelido a reconhecer na mística um mais além admirável, temido e
incomensurável (TERÊNCIO, 2011).

2.3.2. Do obscurantismo ao mais além

Encontramos no programa freudiano, como já citado, uma ambiguidade estrutural


quanto ao assunto da mística. No âmbito de sua abordagem ao tema, percebe-se um duplo
discurso operante: um científico tradicional, ou seja, voltado a “uma concepção pejorativa”
(TERÊNCIO, 2011, p. 41); outro “extra-cientificista”, expresso por “uma consideração muito
respeitosa...” (TERÊNCIO, 2011, p. 48). A margem de tais lugares, dentro de sua obra, à luz
de sua teoria, observa-se escassamente construções ao termo. Freud pouco se atera ele.
Pensando nisso, elencaremos abaixo algumas das pontuações do pai da Psicanálise à mística na
busca de desenvolvermos uma abertura ao debate:

1) As primeiras interações do freudismo com a mística se deram por via de


classificações pejorativas (FREUD, 1996 [1910]);
2) Em Novas conferências de introdução a Psicanálise (1932-1933), Freud
aproxima mística de ocultismo, apontando como característica central a busca à
transcendência;
31

3) Na busca de expurgar o fantasma da ilusão (TERÊNCIO, 2011) para evitar a


associação da Psicanálise a um discurso “fantasioso”, “religioso”, “místico”,
devido seu interesse em temas comuns a tais atividades, Freud se via
determinado a equiparar a sua invenção às ciências de estrutura mecanicistas,
como: a física e química (FREUD, 2016 [1905]);
4) O lugar da mística, enquanto inclinação à transcendência, no discurso freudiano
tem lugar moderado, articulando-se numa ideia mais ou menos definida, e de
mais frequência, a partir de 1923 devido seus diálogos correspondências com
Romain Rolland (1866-1944).

2.3.3. Para além da religião

O lugar da mística, enquanto objeto de interesse e não de injúria em Freud, destaca-se


de fato, como citado acima, a partir de acontecimentos iniciados na década de vinte. Mas por
que levara quase três décadas desde a formalização de seu programa científico para que a
mística ocupasse uma posição que não de insulto? O que acontecera nesse ano para que
houvesse um despertar freudiano às coisas transcendentais? Esse fato explica-se, como introduz
Marlos Terêncio (2011), pelo contato próximo estabelecido entre Freud e Romain Rolland. Esse
último por sua vez, um grande erudito francês que a época da marcha do freudismo
notabilizava-se por sua influência, mantivera uma relação correspondencial que durara de 1923
a 1936 com Freud, onde dentre muitos temas tratados o do “sentimento oceânico”, experiência
mística em outras palavras, fizera-se presente.
O uso da expressão “sentimento oceânico” denota uma dificuldade terminológica de
reconhecer no significante “mística” um equivalente a sensação de arrebatamento aludida, além
de contornar uma série de argumentos tecidos por Rolland acerca de sua leitura sobre o texto O
futuro de uma Ilusão (1927), qual opusera-se parcialmente à sua tese central. Nessa
comunicação, para termos ideia, Freud desenvolvera que além de exercer função de freio moral
em prol da preservação da cultura, o fundo ao qual repousara a religião e toda sua autoridade,
era ilusório. O sucesso religioso estaria no que, psicologicamente falando, o fenômeno
representaria para o devoto e; no que propunha à cultura. Não tratar-se-ia, apenas e só, de um
sistema normativo de direitos e deveres, mas, antes de tudo, de uma resposta que apresentar-se-
ia como “suficientemente satisfatória” às inseguranças internas e externas do eu. O sujeito via-
se impelido a alienar-se ao discurso da religião, porque esse desde sua fundação forjara no
32

argumento de amparo/salvação/resolução dos problemas, uma falsa sensação de segurança as


vicissitudes da vida, um mergulho no irracionalismo pelo medo.
Rolland via no argumento freudiano um equívoco habitual ao “antirreligiosismo” da
época. Apontara que longe de uma Ilusão completa, o fundamento religioso não deveria ser
equiparado em toda sua extensão. Existiria um aquilo que classificado por “sentimento
oceânico”, expressava-se para além da ilusão da religião, por mais que fizesse parte, em algum
grau, da experiência religiosa. Romain Rolland argumenta:

Nesse sentido, eu posso dizer que sou profundamente “religioso” – e sem que esse
estado constante (como um lençol d’água que sinto irromper na superfície) afete de
qualquer maneira minhas faculdades críticas e minha liberdade de exercê-las, mesmo
contra a imediação desta experiência interior. Desta maneira, sem desconforto ou
contradição, eu posso levar uma vida “religiosa” (no sentido desta sensação
prolongada) e uma vida de razão crítica (que é sem ilusão) ... (VERMOREL;
VERMOREL, 1993, p. 303, apud TERÊNCIO, 2011).

Pela primeira vez expressamente em seu edifício teórico, Freud se via impelido a pensar
o “fenômeno religioso” para além da religião. Era impelido a pensar a natureza do “sentimento
oceânico” sem a incidência da alienação em seu sentido reprovativo, da ilusão, e assim o fizera.
Em 1930 em um dos seus célebres textos sociológicos, Freud ensaiara uma resposta a Rolland.
Foi sobre a égide d’O mal estar na cultura (1930), que o pai da Psicanálise elevara, à luz de
sua teoria, a mística da condição de insulto e obscurantismo a objeto mais além da religião.
É sobre o debate da “sensação de eternidade”, que Freud conseguirá situar suas
observações mais claras sobre à mística. Apontando já no primeiro capítulo sua dificuldade de
reconhecer em si tal característica, aludida por seu amigo como universal:

Essa declaração de meu estimado amigo, que, aliás, honrou poeticamente o encanto
da ilusão certa vez, trouxe-me dificuldades nada pequenas. Não consigo descobrir esse
sentimento “oceânico” em mim mesmo. (FREUD, 2010 [1930], p. 20).

À luz dessa elevação do “sentimento religioso” ao primeiro plano de suas observações,


em detrimento da religião propriamente dita, Freud através da questão de “um sentimento de
união indissolúvel, de pertencimento ao todo do mundo exterior” (FREUD, 2010 [1930], p.
20), ou seja, do que psicanaliticamente argumenta-se enquanto noção de amor (busca da
completude), encontra o ponto perfeito para sua resposta. Demarcando explicitamente os
termos de sua argumentação, Freud explicita em suas análises sobre a mística o papel central
que as observações acerca da dissolução regressiva do ego teriam frente a quaisquer outras
abordagens menos especulativas quanto ao que temática possibilitara:
33

Não é fácil tratar sentimentos cientificamente. Pode-se tentar a descrição de suas


manifestações fisiológicas. Quando isso não é possível – receio que também o
sentimento oceânico se esquivará a essa caracterização –, nada resta senão ater-se ao
conteúdo ideativo que, associativamente, se ligar em primeiro lugar ao sentimento.
(FREUD, 2010 [1930], p. 20).

Na impossibilidade de uma resposta definitiva é que a experiência mística em Freud se


faz entendível. Na aproximação da mística com a vida na primeira infância encontra-se os
primeiros traços do argumento freudiano. É nesse estado onde o bebê recém-chegado ao mundo
não se percebe como um componente individual aos estímulos do fora (outro), “desalienando-
se”, apenas e só, posteriormente e de forma paulatina, qual Freud situa o modelo orientacional
de tal sentimento. (FREUD, 2010 [1930]). Para termos uma noção mais firme, o processo de
desenvolvimento humano na teoria psicanalítica atravessa toda a infância do sujeito, findando-
se no início da fase adulta, onde o indivíduo, tendo podido gestar uma maturação psicossexual
“regular”10, consegue estabelecer para a vida um protótipo do que se entende comumente por
relações “saudáveis”, precisadas em fronteiras bem definidas entre o Eu e o outro, ou seja, entre
sujeito e objeto, autorreferência e alteridade.
O sentimento oceânico nesse sentido seria, ao que cautelosamente rascunha Freud, um
traço residual que em menor ou maior escala alguns sujeitos herdariam de uma época remota
onde os limites do mundo interior e exterior não se faziam reconhecíveis; ou seja, um resíduo
infantilizado, mítico no sentido de remoto e fundante de uma história (FREUD, 2010 [1930]).
É sob o argumento que na vida psíquica nada se perder, que uma moção regressiva ao estado
primeiro de impessoalidade infantil pode ser concebida como possibilidade ao sentimento
oceânico:

Desde que superamos o erro de acreditar que o nosso esquecimento corriqueiro


significa uma destruição do registro mnêmico, ou seja, uma aniquilação, nos
inclinamos à suposição contrária, a de que na vida psíquica nada do que uma vez se
formou pode perecer, de que tudo permanece conservado de alguma forma e pode ser
trazido novamente à luz sob condições apropriadas – por exemplo, através de uma
regressão de suficiente alcance. (FREUD, 2010 [1930], p. 24)

E segue através de outro exemplo:

Através de uma comparação tomada de outro âmbito, tentemos esclarecer o conteúdo


dessa suposição. Os historiadores nos informam que a Roma mais antiga foi a Roma
Quadrada, uma colônia cercada no Monte Palatino. Seguiu-se então a fase do

10Às vezes as soluções dos conflitos psíquicos são bem sui generis, não cabendo na psicanálise a noção de um
normal padrão.
34

Septimontium, a unificação das colônias dos montes isolados; depois a cidade


limitada pela Muralha Serviana, e mais tarde, após todas as transformações do período
republicano e do primeiro período imperial, a cidade que o imperador Aureliano
cercou com a sua muralha [...] Façamos agora a fantástica suposição de que Roma não
seja a habitação de seres humanos, mas um ser psíquico com um passado de análoga
extensão e riqueza, um ser, portanto, em que nada do que uma vez aconteceu tenha se
perdido, em que ao lado da última fase de seu desenvolvimento todas as anteriores
ainda continuem existindo. Isso significaria para Roma, portanto, que os palácios
imperiais e o Septizonium de Sétimo Severo ainda se elevariam em sua antiga altura
sobre o Palatino, que o Castel Sant’Angelo ainda ostentaria em suas ameias as belas
estátuas que o adornavam até o cerco dos godos etc. (FREUD, 2010 [1930], p. 24-26).

Freud percebe nesse fato psicológico uma característica sui generis ao psiquismo
humano. O místico sendo um desses poucos sujeitos que encontrando condições favoráveis ao
regresso à fases incipientes do desenvolvimento psíquico, vivência tal sentimento à luz do que
de mais característico ele pode motivar: a restauração do narcisismo ilimitado (FREUD, 2010
[1930]), ou seja, da ilusão da completude amorosa. Nesses termos o sentimento oceânico seria
inequiparável à experiência religiosa. O primeiro, ao seu turno, exprimir-se-ia como fixação
dependente de um modelo de ser e estar totalizador, como se o dentro e o fora estivessem
submetidos em mesma intensidade a um narcisismo primário; a necessidade religiosa, por outro
lado, estaria vinculada a uma negação da realidade externa, e interna, inóspita, consolidando
nas formas religiosas um lugar de segurança aos males da vida pela identificação paterna dum
narcisismo secundário.

Com o tempo, são feitas as primeiras observações de regularidades e de leis nos


fenômenos naturais, e, com isso, as forças da natureza perdem seus traços humanos.
Mas o desamparo dos homens permanece, e, com ele, os deuses e o anseio pelo pai.
Os deuses conservam a sua tripla tarefa: afastar os pavores da natureza, reconciliar os
homens com a crueldade do destino, em especial como ela se mostra na morte, e
recompensá-los pelos sofrimentos e privações que a convivência na cultura lhes
impõe. (FREUD, 2011 [1927], p. 32).

2.3.1.1. Considerações sobre a tópica

Ocorreu durante toda construção da tópica “2.3.3 Para além da religião”, a constatação
do quão introdutórias são as observações freudianas sobre a mística. Convocado a pensar o
sentimento oceânico em seu caráter diferencial em relação à religião, Freud ousou alocá-lo em
suas teorizações sob o signo do amor, da regressão e das disposições pouco ordinárias quais
certos sujeitos estão submetidos em seu psiquismo.
Cabe um destaque ao capítulo segundo da obra O mal estar na cultura, (1930), onde
aproxima àquilo que chama de “técnica da arte de viver” (FREUD, 2010 [1930], p. 39) de suas
postulações sobre a sublimação. É através de processos sublimatórios elevados em sua
35

radicalidade que sujeitos específicos encontram num sentimento de pertencimento ao mundo


uma posição positiva ante a hostilidade da vida. Sob o signo de um amor totalizante,
transformador, encontram numa meta ampla o ponto estável à satisfação de seus impulsos mais
intensos e assim como na regressão, só que em escala invertida, uma cessação imaginária das
tensões da vida.
Se tomarmos a tese freudiana (FREUD, 2016 [1905]), que alude a um indivíduo que
desde a primeira infância orienta-se por uma causa em particular, o resgate do traço mnêmico
de primeira satisfação; observaremos que esse sentimento de união indissolúvel, seja pela
captura do outro, o mundo exterior, num Eu totalizador (fase primitiva egóica), sem fronteiras,
qual a regressão possibilita “revivenciar”. Ou até mesmo, pela dissolução dos intentos
narcísicos frente a sua meta de universalização antissocial, qual a sublimação induz; entra na
vida individual como polos de mesma inclinação: a fixação a objetos/objetivos que garantam a
satisfação das necessidades do Eu.
Na regressão isso se dá de forma análoga às psicoses, o sujeito reage à frustração
desencadeada pela impossibilidade de seus impulsos mais antissociais serem satisfeitos, com
dissociabilidade. O sujeito não se identifica com os meios pelos quais a coerção dos impulsos
na cultura diuturnamente é reforçada, voltando-se à fantasia de um “paraíso11” remoto, anterior
a cultura e seus procedimentos de contenção das metas do desejo. Àqueles que á satisfação
narcísica encontram em algum ideal cultural, com todos os limites que impõe, um meio de
realizarem-se, utilizam-se da sublimação dos impulsos enquanto substitutiva às mais medulares
pulsões antissociais do Eu. Isso de certo possibilita uma passagem da miragem de satisfação
individual irrestrita (estado de natureza) a satisfação contida pela cultura; tarefa capital de nos
defender contra a natureza e sua implacável indiferença à vida.
De certo modo tais perspectivas suscitam uma série de entendimentos, o que em termos
freudianos podem representar, como aponta Terêncio (2011), das constatações sobre a
regressão ao mecanismo sublimatório. O sentimento oceânico ou mesmo a técnica de saber
viver expõem a flagrante inclinação do pai da Psicanálise em trazer à luz de fatos psicológicos
uma contribuição à temática, sem a necessidade do discurso religioso de fundo. Algo
semelhante acontecerá, mesmo que igualmente circunstanciado, com as teorizações lacanianas
sobre a disparidade do Gozo. A esse suporte uma inserção nas contribuições de Jacques Lacan
(1901-1981) e toda sua causa se faz mais que necessária.

11 Mundo ideal.
36

3. A MÍSTICA NO PROGRAMA LACANIANO

Passada a fase das apresentações que buscaram circunscrever as posturas metodológicas


clássicas em Ciências das Religiões à temática da mística, desembarcamos no edifício teórico
lacaniano como que uma consequência fortuita advinda do freudismo.
Mas por que Lacan e não outro(a)? Qual "a mais" teria o lacanismo enquanto candidato a
representante legítimo da causa freudiana que outras psicanálises não teriam? Tal debate
secundário à nossa proposta de pesquisa entra em cena como fator importante ao entendimento
de contextos. Entender sobre quais bases se assentam a proposta de Lacan é antes de mais nada
entender que para chegarmos a mística em seu último ensino, precisamos retornar ao ponto zero
de seu pensamento. Desse modo, compartilhamos da afirmação de Safatle em "Introdução a
Jacques Lacan" (2017), quando sinaliza a importância de se começar a ler Lacan pelo
começo. É lá, no início, nesse minadouro de inclinações, que partiremos rumo a uma
familiarização dos seus conceitos, até que a mística, à luz de uma possibilidade de Gozo
suplementar, possa se fazer entendível. O “por que Lacan? Isso ficará explicito nessa
epistemohistória.

3.1. A subversão lacaniana na clínica

Apesar das arbitrariedades flagrantes que toda e qualquer proposta de abarcamento de


uma ideia possa esbarrar nas limitações de qualquer gênero textual, como é o nosso caso com
o lacanismo, encontramos uma possibilidade de situá-la longe de qualquer pretensão de
determos em nossas linhas a expressão total dos princípios e técnicas da clínica lacaniana.
Situamos esse espaço de debate em torno da subversão lacaniana na clínica, pois encontramos
nas contribuições de Lacan um lugar diferencial para se pensar a mística frente as demais
abordagens interpretativas ligadas a uma diagnóstica. Voltemos um pouco nessa pesquisa, lá na
tópica “O lugar da mística nas Ciências das Religiões” para que tomemos nota do que se
desenha.
No capítulo anterior pontuou-se como a mística fora tratada dentro e fora do campo da
ciência. Observou-se, mesmo que implicitamente indicado, que em sua grande maioria a mística
enquanto objeto do interesse científico tende a situar-se como uma vivência fora dos limites da
“normalidade”. Seja uma normalidade religiosa, uma psíquica ou mesmo linguística, toda e
qualquer interpretação sobre a mística nas observações cá trazidas esbarram em termos
sugestivos como “normal”, “excepcional”, “realidade”, “ilusão”, “imaginário”, “patológico”
etc. De Pierre Janet a Freud, das reduções materialistas dos fenômenos mentais às perspectivas
37

mais críticas ao organicismo, nenhuma dessas possibilidades de abordagens conseguiram


pensar a mística como um dado factível da experiência humana ordinária sem esbarrar em
retóricas essencialistas, patológicas ou mesmo apologéticas.
Lembremo-nos como se tornaram paradigmáticas as teses de Pierre Janet sobre a
natureza autossugestiva da mística. Em Da angústia ao êxtase (1975 apud TERÊNCIO, 2011),
um dos textos basilares ao estudo dos fenômenos ditos místicos à psicologia da religião, Janet
empenhado em desvendar a natureza do “caso Madeleine” terminara por recorrer ao argumento
psicopatológico como cientificamente plausível à revelia de qualquer dado que se mostrasse
dissensual à diagnóstica. Madeleine Lebouc, uma de suas famosas pacientes extáticas, segundo
o psicólogo, sofreria de uma psicose paranoico-depressiva vinculada a uma sintomatologia
delirante de temática religiosa (JANET, 1975 apud TERÊNCIO, 2011). Lebouc apresentaria
um quadro tão extenso, quanto contínuo, de experiências que iam do autoflagelamento a estados
dissociativos de consciência que, Janet vedava qualquer possibilidade de uma experiência outra
ao discurso clínico científico de seu contexto que não figurasse como ponto central uma
desordem mental severa.
O testemunho místico de Madeleine, que nos tempos de hoje para algumas orientações
clínicas, vide o lacanismo, se fixa como fundamento de uma diagnóstica minimamente segura,
fora relegado à prescrição científica janetiana de modo a representar o que de mais característico
há nas ciências clínicas: a sustentação de uma clínica “do olhar e da descrição
fenomenológica” (BACKES, 2007, p. 10) frente ao discurso do sujeito sobre sua condição.
De modo semelhante às conclusões de Pierre Janet (1975 apud TERÊNCIO, 2011), a
psicopatologização da experiência místico-religiosa vinculada a análises estritamente
sintomatológicas fora observada na história geral da psiquiatria. Não trata-se de episódio
isolado. Voltemos de fato e vez ao caso brasileiro de Antônio Conselheiro (1897) que havíamos
deixado para “um depois” desde a subtópica o “empirismo”, e observemos que essa inserção a
temática da mística pelo discurso científico de degenerescência psíquica/moral institui-se de
forma fortuita na psiquiatria sob o argumento de negação da condição qualitativamente variante
da experiência humana, frente a uma concepção fixada a ordem do convencionalmente normal.
Tomemos, por nosso próximo exemplo, Nina Rodrigues e sua Antropologia médica à luz da
experiência sociorreligiosa de Canudos.
É inevitável que não nos detenhamos ao contexto no qual situa-se nosso novo episódio:
O Brasil de 1897. As Ciências das Religiões à época era uma jovem ciência de vinte quatro
anos; a Psicanálise, por seu turno, ainda levaria mais três anos para vir ao mundo formalizada,
em “A interpretação dos sonhos” (1900) e constatando a necessidade de uma travessia da
38

ciência ao acheronta12. Nesse contexto a psiquiatria, a psicologia, as ciências médicas em sua


forma geral, imperavam quando o assunto se tratava de prevenção social contra as anomalias
do corpo, da mente, da vida. Pelo argumento de prevenção médica o “médico tornou-se o
sacerdote do corpo e o médico-psiquiatra, em particular, do espírito” (COSTA, 2006, p. 30).
Tal lógica paternalista (leia-se no sentido lacaniano), para não dizermos domesticante da
existência, encontrara no Brasil solo fértil. Um dos casos exemplares que tal discurso fizera
vítimas fora o caso Antônio Conselheiro e a experiência sociorreligiosa de Canudos.
Canudos, para contextualizarmos, tratava-se dum arraial fundado por um carismático
(leia-se no sentido bourdieusiano) líder religioso de nome Antônio Vicente Mendes Maciel – o
Antônio Conselheiro. A história vivida do Conselheiro de Canudos atravessa altos e baixos
como nos indica Euclides da Cunha (1902) em um dos clássicos da historiografia de “guerra”
brasileira e Ataliba Nogueira (1978) em sua revisão histórica sobre o assunto, antes de eclipsar
no massacre sertanejo de 1897. O caso mais chamativo nessa situação é o impacto político-
cultural que as interpretações diagnósticas feitas por um famoso médico-psiquiatra brasileiro
fizera do caso, mostrando-nos como as análises científico-clínicas sobre a experiência mística
cultivadas junto a elementos da vida religiosa eram tomadas à revelia de qualquer consideração
do testemunho do próprio sujeito sobre sua experiência mística.
Tomemos nota biográfica que Antônio em sua jornada de vida saíra dum casamento
conturbado onde a suspeita da traição sondara toda a trama amorosa, juntando a isso as perdas
irreparáveis que sofrera desde a baixa idade. Sua saída do Ceará, terra natal, a rumos outros o
levara a mudanças radicais de conduta e credo. Devoto de exemplar comunhão religiosa,
encontrara na figura do Deus católico a iluminação e purificação, que fizera da sua vida uma
eterna missão para os apontamentos dos preceitos da divina lei para salvação dos homens13.
Esses aspectos somados ao êxodo nordestino rumo a uma promessa de vida melhor que
convergiram, por acaso ou identificação, aos rumos do peregrino Antônio, tiveram
desdobramentos marcantes na história e protagonismo do diagnóstico psiquiátrico sobre a
experiência da mística e o lugar do misticismo como degeneração religiosa.
Em artigo intitulado A loucura epidêmica de canudos (1897), texto que consagra uma
interpretação multifatorial da situação do arraial, quanto dos seus “sucessos”, o autor recorre a
uma simples constatação que isentaria da responsabilidade diaspórica do sertão o poder público:

12
Termo que metaforicamente alude aos caminhos das profundezas mentais, as manifestações do inconsciente
enquanto constitutivas à vida dos sujeitos.
13
Expressão usada pelo próprio Antônio Conselheiro para intitular suas predicas acerca de sua experiência místico-
religiosa por volta de 1895. MACIEL, A.V.M. Apontamentos dos preceitos da divina lei de nosso senhor Jesus
Cristo, para a salvação dos homens. Belo Monte: Manuscrito, 1895.
39

o episódio vivenciado em Canudos nada teria que ver com a ingerência do governo central em
saber lidar com a precariedade da vida, e as incertezas que assolavam o nordeste brasileiro
aquela época, antes isso teria que ver com a crise religiosa e de caráter que fundava na natureza
do sertanejo uma suscetível inclinação as manipulações espirituais (RODRIGUES, 1939
[1897]). É por meio dessa manipulação dos povos fragilizados do sertão, aneladas as condições
propicias do ambiente, que a figura do Antônio Conselheiro começa a tomar forma a ponto de
todas as características de sua vida ganharem o “quê” psicopatológico. A experiência
sociorreligiosa de Canudos, agora seria explicada enquanto loucura epidêmica. A figura
carismática do Antônio, agora seria antagonizada com a normalidade. Era o “louco Antônio
Maciel” (RODRIGUES, 1939 [1897], p. 145), “o louco de canudos” (RODRIGUES, 1939
[1897], p. 146), “o psicótico crônico em estado progressivo”, “o adversário da ordem cívica, da
pátria”.
De fato, tal nosografia do Antônio Vicente Mendes Maciel esbarra naquilo que estamos
tentando pontuar desde o “exemplo Janet”, e antes mesmo, desde o capítulo anterior à luz do
“problema da classificação”, como o da “mística enquanto objeto de interesse científico” etc.
O que falamos em síntese até o exato momento é que experiência místico religiosa pelo olhar
cientifico e clinico (ou científico-clínico) em muitas das observações feitas nos aparece
enquanto dissolução estética da normalidade. É sempre a experiência “desproporcional” do
numinoso (OTTO, 2007), o estado dissociativo de consciência (Leuma) ou mesmo
“degenerado” (RODRIGUES, 1939) de uma normalopatia socialmente aceita, ou como nos
sugere Rolland, um estado “outro” de vivência inalienável a experiências normais das religiões.
Enfim, é sobre uma crítica a essa noção de normalidade muito bem delineada que Lacan
insere no campo clínico seus acréscimos. A clínica lacaniana antes de tudo é uma clínica de
desconstrução das fórmulas socialmente inquiridas do normal e patológico (SAFATLE, 2017).
Ou seja, uma clínica que encontra na “normalopatia” trazida pelo sujeito mais de “realidade”
alucinada (configurações imaginarias) do que fatos concretos.

3.1.1. A crítica ao diagnóstico do olhar – a mística despatologizada

Ao situarmos o lugar que a mística historicamente ocupara, e por vezes ainda ocupa, no
discurso clínico tradicional, tencionamos uma comparação evidente: se o estatuto clínico
tradicional trata a mística, aqui e acolá, enquanto desvio da normalidade, o que a abordagem
lacaniana do diagnóstico propõe de tão diferente em relação a essa temática? Comecemos pelo
começo (e com redundância).
40

A classificação das estruturas subjetivas lacaniana caracteriza-se, antes de tudo, por suas
particularidades herdadas. Vinculada ao discurso freudiano por base, ela se modifica
initerruptamente a medida que os problemas e questões se apresentam como dissonantes as
técnicas, interpretações e hipóteses já firmadas. Poderíamos sugerir, como sendo único ponto
inegociavelmente rejeitável à clínica psicanalítica, e mesmo ao pensamento do psicanalista em
geral, seja a intervenção medicamentosa da experiência trágica humana como recurso terápico.
Não por desconsiderar a influência que os déficits cognitivos e orgânicos possam exercer a
nível psíquico, mas por acreditar que sem presença de marcadores biológicos cientificamente
balizados às causas das perturbações psíquicas, a medicalização haja de forma paliativa, e
acrítica, na gestão dos conflitos quais vivenciam os mais variados sujeitos.
A clínica lacaniana, aos seus moldes, está à margem das tradições descritivas dos
fenômenos psíquicos, que os colocam como tratáveis através de medicamentos exclusivamente;
essa herança inalienável ao freudismo preserva em Lacan um caráter singular de torção da
clínica do olhar e da pílula para a clínica da escuta (BACKES, 2007), como diferencial
distinguível de sua prática. Nesse nível podemos pensar as categorias diagnósticas lacanianas e
suas distinções terminológicas a partir de um estatuto psicopatológico que reintegra o sujeito à
cena principal de seu sofrimento sem esmaga-lo pela noção de “transtorno mental/cerebral” tão
flagrante nas orientações quais os diversos manuais de classificação diagnóstica preservam
mundo afora (TEIXEIRA; CALDAS, 2017). Nesse ponto nos cabe um destaque à clínica
lacaniana e toda sua releitura à psicopatologia freudiana, que possibilita pensarmos a mística e
sua relação com as estruturas clínicas psicanalíticas, mas não sem antes introduzirmos as bases
de onde ela se sustenta: o freudismo e sua psicogenia 14.
Em Freud, as categorias diagnósticas sintetizam em poucas estruturas uma
psicopatologia diferencial (Neurose e suas subcategorias: histérica e obsessiva; Psicose e sua
subcategorias: paranoica e esquizofrênica e a Perversão, também com suas subcategorias: social
e sexual). Os limites entre o normal e patológico, entre a sintomatologia neurótica, o fetichismo
perverso ou mesmo a alucinação do psicótico, como expressões do doente, do anômalo, do
diferente, perdem esse poder a priori. O que é doente e o que é são não depende
necessariamente do quadro sintomatológico, ou seja, do achado dessas qualidades em
indivíduos, pois de certa forma para Freud todos nós apresentamos traços de mesma natureza
(FREUD, 2010 [1930]). Lacan, se valendo dessa psicopatologia, desenvolve alguns acréscimos
à diagnóstica que serão de suma cruciais. Se todos, em alguma medida, apresentam traços que

14
Refere-se a “psicogênico” todo e qualquer distúrbio entendido enquanto de origem psíquica, não orgânica.
41

a clínica tradicional/clássica tipifica como desviantes à normalidade, seja talvez o caso de


pensarmos essa normalidade não como um outro radical dessas condições tão comuns à vida,
mas como um estatuto político-científico que se esforça a negar o pathos como precedente ao
logos15.
Desde sua tese de doutoramento (1932), Lacan já apontara, esforçadamente, a essa
“marca” indelével à existência humana. Em sua teorização acerca das afecções psíquicas e suas
relações com a personalidade, Lacan encontra na própria base para a formação da personalidade
humana a paranoia como pré-condicionante à existência do Eu enquanto função primária da
estruturação cognitiva da autoimagem do indivíduo. Em termos irruptivos às noções enunciadas
pela psiquiatria clássica, Lacan tornava o modelo paranoico um para além da noção
krapeliniana16 de déficit cognitivo de caráter psicótico, aproximando tal modelo da condição
fundamental a apreensão e construção do conhecimento humano; ou seja, um fenômeno
cognitivo universalmente constitutivo da imagem do Eu em sua relação com o mundo.
Os esforços de Lacan a confirmação de sua tese sobre o desenvolvimento da
personalidade tendo como “ponto zero” a condição paranoide como função formativa do Eu,
elevara seu projeto teórico a duas perspectivas reformativas à diagnóstica psicanalítica: 1) A
despatologização da paranoia e sua elevação à estrutura elementar de conhecimento pelo
desconhecido, ou seja, “uma identificação com seu semelhante através do reconhecimento da
própria imagem, estabelecida frente à experiência de um desconhecimento fundamental”
(GONÇALVES; TEIXEIRA, 2015, p. 103) de si; 2) a possibilidade de um tratamento de
reversibilidade da psicose (que logo mais adiante em suas teorizações fora abandonada),
entendida por sua ordem como afecção psíquica do desenvolvimento da personalidade
desencadeada pela fixação do Eu à esse primeiro registro estrutural da experiência paranoica
humana: O imaginário (LACAN, 1988 [1932]).
Dos anos trinta a meados dos anos cinquenta as hipóteses lacanianas, quanto a prática
terápica, organizavam-se em torno das relações quais o Eu desenvolvia frente ao seu ambiente.
A essa época o foco de Lacan estava voltando a uma das estruturas clínicas que mais desafiavam
a práxis psicanalítica tradicional: a psicose. Aos seu moldes tal introdução ao campo das
psicoses fizera-se elementar aos progressos posteriores a esse quadro psicopatológico, a ponto
de refundar em Psicanálise, não sem oposição, noções como “normal” e “patológico”, quanto
a posição da clínica psicanalítica frente a esse novo olhar sobre o Eu e seu desenvolvimento
(GONÇALVES; TEIXEIRA, 2015) tão ricos aos entendimentos subsequentes sobre a mística.

15
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.
16 Corrente da psiquiatria clássica atrelada a psicopatologia desenvolvida pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin.
42

Lacan, como herdeiro de Freud, tomara por tese a proposição freudiana que o mal-estar
da vida cotidiana teria mais a ver com a forma como “abordamos” a realidade e seus “nãos”,
do que qualquer outra querela que preserva na dicotomia corpo/mente seu escopo. É situando
num horizonte mais amplo “a saber, a do homem afligido pela linguagem em seu corpo e em
seus pensamento” (TEIXEIRA; CALDAS, 2017, p. 8) que o psicanalista enfatiza uma
reformulação psicopatológica à literatura psicanalítica. Foi mediante esse acréscimo às ciências
que a estrutura psicótica ganha uma nova perspectiva, nos possibilitando pensa-la para além de
sua roupagem histórica vinculada a comportamentos impróprios à “sã normalidade”, ou mesmo
como nos diz Nina Rodrigues (1987 [1897]), “comportamentos impróprios à ordem cívica”.
Desmembrando radicalmente desse quadro homossexuais, transsexuais, místicos, tanto quanto
outros sujeitos que historicamente eram nomeado enquanto “loucos”, “esquizofrênico, ou
desajustados ao comum da vida, Lacan lança as bases de um novo olhar à clínica.
Por psicose, entende-se agora lacanianamente falando, uma estrutura subjetiva que
evidencia-se por um tipo particular de rejeição, assim como nos diz Bruce Fink (2018), a um
elemento específico da linguagem ao qual antropologicamente definiu-se pensar o processo de
sociabilidade: a função de laço. Ou seja, o elemento que tem por função a instauração de uma
nova modalidade de ser distinta a antiga organização arcaica experienciada pelas relações de
reconhecimento da própria imagem pela alienação à imagem de um outro. Em Lacan, as
maneiras pelas quais inscrevemo-nos na realidade perpassam por estágios que poderíamos
descrevê-los adjetivamente enquanto primário e secundário, e à clínica essa concepção será
fundamental para se pensar a diagnóstica. Aliás, um adendo, a realidade pela qual Lacan se
interessa não é a realidade do mundo natural animal; influenciado por Levi Strauss em
Estruturas elementares de parentesco (1949), a realidade que trata a Psicanálise lacaniana é a
realidade cultural, ou seja, o mundo dos símbolos, da linguagem e suas possibilidades e
impossibilidades, usos e abusos, trocas.
Entender a realidade pela qual Lacan toma, por essa perspectiva, é, antes de mais nada,
incidir uma separação terminológica, como organizacional, em relação a Freud. Enquanto em
Freud a forma como situamo-nos no mundo é herdeira fidedigna de uma compressão mentalista
dos complexos de parentalidade, dentre eles o “complexo de édipo” (fase do desenvolvimento
psicossexual infantil responsável pela formação do Ego, função psíquica que tem como tarefa
central adaptar o indivíduo ao mundo empírico e suas limitações). Ou seja, o indivíduo vindo
ao mundo desprovido do pleno desenvolvimento perceptivo-motor encontra no seio parental
(consanguíneo ou não) a suplementariedade gestacional que lhe faltara.
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Em Lacan, tal trama se dá de maneira não vinculada a noções tão restritas ao nível
familiar das representações mentais construídas pela criança em relação aos seus pais. A
formação da personalidade, análoga ao processo de inserção ou “exclusão” do sujeito na cultura
– ou seja, na realidade simbólica qual Lacan trabalha, opera em triplo momento na história
infantil, vinculada a uma perspectiva linguística de operação: 1) passando pela vida do sujeito
antes de seu nascimento quando, falado pelos pais, desenha-se ainda sem corpo num mundo de
significantes (LACAN, 1988); 2) como sujeito alienado a imagem e os significantes de um
Outro primordial (mãe) como forma imaginária de se autorreferenciar no mundo (LACAN,
1998); 3) e por sua relação com a fala, modo pelo qual aborda a realidade e seus limites para
além do vínculo primário à imagem do outro (LACAN, 1985).

Há, diz Freud, um Lust-ich antes de um Real-ich. Isto é um deslize, um retorno ao


trilho, esse trilho que chama de desenvolvimento, e que é apenas uma hipótese da
mestria. Dizendo para si mesma que o bebê nada tem a ver com o Real-Ich, pobre
enfeite, incapaz da mínima ideia do que seja o real [...]. Quanto a mim, jamais olhei
para um bebê tendo o sentimento de que não houvesse, para ele, mundo exterior. É
absolutamente manifesto que ele só olha para aquilo, e aquilo o excita, e isto, meu
Deus, na exata proporção em que ele ainda não fala. A partir do momento em que ele
fala, a partir desse momento muito exatamente não antes, compreendo que há
recalque. (LACAN, 1985, p. 76-77).

Se para Freud o sujeito adentra a cultura (de fato), enquanto agente individuado, quando
recalca por influência do Pai o desejo de união indissolúvel com esse outro de amparo (mãe).
Para Lacan isso se dará por outros termos (está aí um acréscimo), é encontrando na linguagem
e seus processos de assimilação e aparelhamento da realidade que ele retornará a tese freudiana
de inscrição social enquanto recalque do desejo da mãe, pela noção de metáfora paterna e
inscrição do nome-do-pai enquanto operador simbólico de passagem.
A psicose, para Lacan, nesse sentido funcionando a nível de outro modo de organização
e introjeção de elementos preconizados da linguagem, entra na clínica como uma dessas
modalidades, junto a perversão e neurose, de se lidar com a realidade. O diferencial lacaniano,
nesse ponto, impõe-se não só por uma mudança na abordagem terminológica das categorias
diagnósticas e seus mecanismos constituintes, mas num esforço rigoroso em distinguir tais
estruturas psíquica sem que para isso recorresse a precipitações diagnósticas e julgamentos
normativos de nenhuma respeitabilidade teórica. A isso Lacan recorre como modelo
diagnóstico, apartando de seu projeto psicanalítico qualquer forma de descrição
fenomenológica do sintoma, uma abertura a escuta do sujeito valorizando nos fenômenos da
linguagem seu caráter fecundo e diferencial (LACAN, 1985). Tomemos a tese psicanalítica dos
processos de socialização para entendermos como inscreve-se um quadro de psicose, e por
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ênfase a psicose, percebermos o desmembramento de quadros que até então eram vinculados a
insígnia da loucura, como é o caso das experiências místicas.
Na teoria lacaniana, desde seu projeto começado em sua tese de doutoramento em 1932,
como esmiuçado em parágrafos anteriores, o tema da psicopatologia, ou mesmo, o papel que o
sofrimento psíquico, a angústia, o dilaceramento proporcionado pelo mal-estar, ou seja, os
males do espírito, acenam à vida dos sujeitos sempre como uma questão de sucesso ou
insucesso do processo de socialização. Por conceito de socialização, nas ciências sociais
entende-se simploriamente: o processo pelo qual o indivíduo, mutuamente, reconhece-se e
reconhecido por uma ordem social que o habilita à convivência em sociedade.
Psicanaliticamente falando, tal inscrição a essa ordem perpassa, inevitavelmente, antes,
por modos de identificação do indivíduo ainda criança à agentes sóciossimbólicos de seu
contexto existencial (LACAN, 1998 [1949]). Esses “agentes do meio” que modernamente no
ocidente fixou-se o entendimento, nos primeiros anos de vida de uma criança, à figuras como a
dos genitores e cuidadores, cristalizam-se como modelos veiculares pelo qual a criança formar-
se-á enquanto ser de desejo, Eu corporal e indivíduo socializado. Bruce Fink em “O sujeito
lacaniano” (1998), quanto em “Introdução a clínica lacaniana” (2018), alerta a esse caráter
determinante, que no a priori, da vida no mundo apresenta-se enquanto crucial para um
entendimento das afecções psíquicas como herdeiras indiscutíveis de “uma certa dinâmica
familiar enquanto gênese social da personalidade” rumo à socialização:

Uma criança nasce, então, num lugar preestabelecido dentro do universo linguístico
dos pais, um espaço muitas vezes preparado muitos meses, senão anos, antes que ele
veja a luz do dia. E a maioria das crianças é obrigada a aprender a língua dos pais, o
que significa dizer que, a fim de expressar seus desejos, elas são virtualmente
obrigadas a irem além do estágio do choro – um estágio no qual os pais são forçados
a adivinhar o que seus filhos desejam ou precisam – e tentar dizer o que querem em
palavras, isto é, de uma forma que seja compreensível aos principais responsáveis por
elas (FINK, 1998, p. 22).

Seguindo:

Para o nosso proposito aqui, basta dizer que o pai que encarna a função paterna numa
família nuclear colocando-se geralmente ente a mãe e o filho, impedindo que a criança
seja inteiramente atraída para dentro da mãe e impedindo a mãe de tragar seu filho.
[...] o pai mantém a criança a certa distância da mãe, ou proibindo a mãe de obter
satisfação com o filho, ou ambas as coisas. [...] A função paterna é uma função
simbólica, e pode igualmente ser eficaz quando o pai acha-se temporariamente
ausente ou quando está presente. As mães apelam para o pai como juiz e punidor
quando dizem aos filhos: ‘Você vai ser castigado por isso quando seu pai chegar’. [...]
De modo similar, ou a função paterna é atuante numa certa idade, ou nunca o será.
[...] As consequências clinicas observáveis do fracasso da função paterna são muitas
e variadas... (FINK, 2018, p. 83-86).
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É antropomorfizando as palavras, os cuidados, os desejos, prazeres e insatisfações, que


esses outros (agentes do meio – família nuclear) ofertam enquanto esforço em tornar “legível”
o choro, a agitação, os sons, do indivíduo-bebê, que a criança nesse primeiro tempo de
assimilação da vida, forma-se, um tanto quanto arcaicamente, em seus primeiros modelos de
convivência social (LACAN, 1988 [1932]; 1998 [1949]). Nesse ponto, o papel desempenhado
pela mãe, ou quem quer que seja o agente que “imediatize” uma resposta “amparativa” ao seu
choro/demanda, é priorizado pelo bebê enquanto lugar simultaneamente do saber de seu desejo,
quanto de sua identificação. Urge assim, o primeiro rasgo na subjetividade humana: um sujeito
do desejo preso as referências simbólicas de um outro, antes mesmo de um formação
propriamente dita de um Eu, instala-se ali, fundando uma primeira sobreposição: a da cultura
sobre a natureza, ou seja, do desejo mediado pela linguagem do Outro sobre as necessidades
orgânicas da criança – instinto (LACAN, 1998 [1960]).
Esse rasgo infligido pela interpretação que esse Outro primordial (mãe) faz da demanda
de necessidade da criança, é o referencial dialético da passagem da necessidade ao desejo. Ou
seja, enquanto chora a criança formaliza, segundo esse Outro, um apelo pré-verbal a ser
atendido. Esse “apelo” que em forma de necessidade expressa-se por um “idioma infantil” que
desconhecido dos pais é interpretado à sua revelia. É pela incapacidade em termos de linguagem
em articular o que sente frente aquilo o que quer, que a criança acaba tendo a sua disposição o
aquilo que o Outro supõe (LACAN, 1998 [1960]). As marcas dessa suposição por parte do
Outro entram na vida psíquica do indivíduo-criança enquanto condição pela qual seu Ego (Eu)
irá se constituir. A identificação com a oferta interpretativa do Outro enquanto único meio de
nomeação de sua demanda, dará vazão a uma compreensão lógica dessa etapa da vida: a criança
extrai desse Outro os “emblemas” pelos quais referenciará seu universo de experiências. Ou
mesmo, por qual abordará, enquanto sujeito na linguagem dos pais, a realidade.
A criança, nessa etapa, ainda não é um ser falante, ela é “na linguagem”, não “de
linguagem”. Essa condição é crucial para entendermos os porquês da alienação infantil a esse
Outro primordial espelham um entendimento sobre a formação da personalidade. “O eu é um
Outro”, porque antes de mais nada foi através da sujeição a esse que a criança conseguiu
articular, em termos de linguagem ofertada, o seu desejo. Esse alinhamento, fixação, a
identificação ao Outro Primordial, será o meio por qual Lacan abordará o diagnóstico da
psicose. A fixação do desenvolvimento da personalidade, como nos põe Safatle (2017), é o
recurso lacaniano a diagnóstica.
46

É visualizando na recusa infantil ao que o advento da fala simbolicamente possibilitaria,


ou seja, um acesso barrado (castração) do sujeito ao gozo (descarga da tensão pulsional)
estabelecido na relação de complementariedade suposta, qual a sua incapacidade de articular
o que sente ao que quer encontrara na relação direta com Outro os sentido e meios linguísticos
de satisfazer-se, que a criança reage a internalização da ordem paterna – função simbólica da
linguagem advinda da passagem do sujeito enquanto ser na linguagem (corpo assujeitado aos
investimentos do desejo do Outro - condição pré-verbal) a ser de linguagem (sujeito que
renuncia a esse gozo pulsional do Outro em seu corpo, proibindo-o de usá-lo como ele bem
entenda), via foraclusão 17. No fundo a fixação ao Outro do desejo Primordial poderia ser
entendida em termos de socialização, como a recusa à independência e seus riscos às certezas
já firmadas na relação com o Outro (FINK, 2018).
Os efeitos da foraclusão na clínica evidenciam que a estruturação psicótica reage a
função paterna (ou seja, a inscrição do nome-do-pai, segunda identificação à socialização)
descolando do sujeito a capacidade de mediar sua experiência com a realidade (mundo
empírico) por via de uma fantasia organizadora das relações. O que em outras palavras sugere
uma incapacidade em saber lidar com a dependência ao Outro Primordial sem que isso gere
rupturas agressivas a outros que se atrevam atravessar, ou ameaçar, tal relação de alucinação
simbiótica (LACAN, 1998 [1932]). Nesse ponto, Lacan aponta para uma diagnóstica da escuta.
Se o processo de formalização psicopatológica da vida está intimamente ligado a dinâmica de
assimilação da linguagem enquanto “componente crucial de uma estruturação da
personalidade”, é, sem sombra de dúvidas no dizer que algo se estrutura (DOR, 1991).
A mística nessa perspectiva entra nas análises lacanianas como expressão não vinculável
a psicose. Em “Mais, ainda” (1985), seu vigésimo seminário, Lacan focaliza na condição
mística um gozar suplementar preso a miragem narcísica de satisfação a esse Outro Primordial,
diferindo apenas e crucialmente para diagnóstica, pelo retorno social em forma de testemunho
qual o místico se utiliza para ancorar sua experiência. O místico não “solapa” a ordem
simbólica, ou seja, foraclui, como o psicótico, o nome-do-pai – significante que tem como
função torna possível uma relação para além do Outro Primordial enquanto único vínculo de
linguagem e nomeação de seus interesses. Há um testemunho místico que faz laço, que encontra
em outros (semelhantes, gente de carne e osso) uma possibilidade de satisfação mediada,

17
“A foraclusão envolve a rejeição radical de determinado elemento da ordem simbólica (isto é, da linguagem),
e não de um elemento qualquer: ela envolve o elemento que, em certo sentido, lastreia ou ancora a ordem
simbólica como um todo” (FINK, 2018, p. 83): a função paterna.
47

extraída da relação discursiva qual articula num endereçamento testemunhal a esses, a


“validação” final de sua vivência.
Nesses termos casos como de Madeleine e o Conselheiro se fossem abordados pela
diagnóstica lacaniana, não o seriam pelo que virtualmente pudessem representar. Não seriam
as visões ou êxtase místico, que muitas vezes nos fazem lembrar das alucinações psicóticas e
suas deformações da realidade, o critério fundamental. A diagnóstica não se faria minimamente
segura se fosse assentada apenas no que de sintomatológico se expressasse. Bruce Fink (2018),
nos faz lembrar em seu texto sobre a clínica o quão vacilante torna-se o debate diagnóstico,
quando toma por critério de classificação psicótica o aspecto virtual dos quadros de alucinação
aos invés da relação do paciente com a linguagem:

Quando a discursão `enunciada em termos de fantasia e realidade, porém não podemos


distinguir com clareza entre neurose e psicose, porque muitos neuróticos são
incapazes, em certos momentos, de distinguir a fantasia da (nossa ideia socialmente
construída da) realidade. (FINK, 2018, p. 87-88).

O místico vive uma relação que pode sim irromper em experiências de alucinações, de
transtornos temporários de linguagem, isolamento social, ou mesmo, de desorganização dos
pensamentos, tão caricatas ao diagnóstico do olhar que podem ser facilmente confundidas com
uma psicose. Por isso o papel da escuta é fundamental. Trazer o sujeito para narrar sua
experiência foi o caminho por qual Lacan tomou por herança de Freud e nisso foi subversivo.
É entendendo que só abordamos a realidade e seus limites pela linguagem, que nascemos e nos
criamos na linguagem (sendo “são” o não) que a psicopatologia lacaniana nos ajuda a
despsicotizar a mística, além de despatologizar sua expressão. O místico diferente do psicótico,
não é tomado em sua vontade por um desencadeamento desmedido de alucinações, visões,
emoções, etc.; antes de tudo, o busca. É no buscar que a experiência mística se aparta
radicalmente do fenômeno da loucura, pois “o místico proporciona o exemplo do método pelo
qual interior e exterior podem ser unidos; o esquizofrênico, o resultado trágico de sua
separação” (WAPNICK, 1993, p. 149 apud TERÊNCIO, 2011, p. 123).

3.2. A mística na teoria lacaniana – outro acréscimo

Ao falarmos dos acréscimos clínicos lacanianos sobre a temática da mística enquanto


uma não-desordem psíquica associada historicamente ao quadro psicopatológico da psicose,
inevitavelmente tivemos que incorrer de passagem sobre a teoria. Foi situado desde a tese
lacaniana “Da psicose-paranoica e suas relações com a personalidade” (LACAN, 1988
48

[1932]), a textos como “O estádio do espelho como formador da função do eu” (LACAN, 1998
[1949]), “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (LACAN,
1988 [1960]), ou mesmo, dos textos seminariais “Sobre a carta roubada” (LACAN, 1988,
[1956]), “As psicoses” (LACAN, 1988 [1955-1956]) e talvez a comunicação de maior
importância, “Mais, ainda” (LACAN, 1985 [1972-1973]), que encontramos subsídios à
tematização da mística e sua relação com as estruturas clínicas.
Foi mediante uma abordagem linguageira que captura as relações humanas em um
universo mediado pelas operações de linguagem, enquanto aparelho universal pelo qual
abordamos a realidade, que desde seu ensino mais remoto, influenciado pelo paradigma
saussureano, pela antropologia estrutural levistraussiana, e mesmo pela lógica hegeliana trazida
por Kojève (1902-1968) em seus cursos sobre a Fenomenologia do Espírito, que a teoria
lacaniana se ateve a um dado pragmático à sua época: “sem linguagem não há cultura, nem
pensamento, nem personalidade...” (ARAUJO, 2004, p. 12). É por evidenciar que “nascemos
numa linguagem que não foi criada por nós” (FINK, 2018, p. 90) que estabelecemos vínculos
de dependência com o idioma dos outros, se quisermos minimamente expressar nossos
interesses.
Essas relações que resultarão na assimilação da linguagem do outro pelo indivíduo
recém chegado ao mundo, na teoria lacaniana se dará de forma assimétrica. Não há equivalência
de influência, a criança não é uma mera “esponja” que dentro de um universo particular de
linguagem que lhe antecede, mas também é super-inclinada a absorver aquilo que os outros
ofertam e lhe interessa. Safatle em “introdução a Jacques Lacan” (2017), reforça esse
entendimento de interesse que a criança cultiva em seu meio pelos esforços interpretativos dos
outros às suas demandas, tornando-as mais “representáveis” em termos de linguagem comum.
É o discurso do outro internalizado enquanto referencial daquilo que se demanda,
segundo Lacan no uso de Hegel e por conseguinte no Estádio do espelho, que acaba
cristalizando desde a época mais terna da vida uma das instâncias da experiência subjetiva como
marca primeira da personalidade: o Imaginário. O imaginário seria o primeiro registro da
subjetividade humana que estaria intimamente ligado, como nos afirma Lacan em seu vigésimo
segundo seminário, ao reino das identificações, lugar qual extraímos nossas primeiras palavras,
gestos, imagens, para podermos nos autorreferenciar no mundo enquanto corpos que recebem
de fora “coordenadas” (LACAN, 2005[1974-1975]).
A passagem da alienação pelo imaginário para alienação pela linguagem em seu sentido
mais radical, seria um equivalente antropológico da passagem da vida animal para a vida
cultural. Isso em Lacan só seria possível pelo recalcamento da antiga ordem relacional por uma
49

nova. Em outras palavras, enquanto indivíduo que nasce numa linguagem que lhe antecede, a
criança habitaria a linguagem não enquanto ser falante, mas sim enquanto ser falado pelos pais,
pelos outros imediatos, recebendo sua mensagem de fora. Apenas com o advento da fala, ou
seja, de uma apropriação do “idioma dos pais”, a criança poderia sair da condição de
dependência do discurso do outro para nomear seus interesses e elevar-se ao papel de ser
discursivo. Foucault já nos falava:

[...] visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é visto que – isso a história não cessa de
nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar. (FOUCAULT, 2014, p. 10).

É um segundo registro, o simbólico, que advém com a fala (em seu sentido mais amplo)
que alça essa possibilidade de sensação de independência, de autonomização frente a miragem
de completude representacional qual a relação de identidade (imaginária) supõe. Mas nem
todos, como nos aponta Lacan em “As psicoses” (1988 [1955-1956]), reagem satisfatoriamente
“bem” a esse “novo modo de autenticar seus interesses”. Um grupo muito específico, os
psicóticos, foracluem, como visto, esse elemento fundante da linguagem enquanto veículo de
laço, de relação, de sensação de “dominação” dos meios por quais expressa-se os interesses,
vontades e desejos. Outros como os neuróticos, são o seu oposto frente a linguagem, tomam
com forma mais “autêntica” de representação uma forma de viver na linguagem enquanto seres
que minimamente “dominam” e internalizam um subconjunto de formas de expressões:

Embora a linguagem fale através de nós, mais do que a maioria quer admitir, embora
pareçamos, às vezes, ser pouco mais que transmissores do discurso que nos cerca, e
embora, às vezes de início nos recusemos a reconhecer o que sai da nossa própria boca
(lapsos, fala engrolada etc.), em geral temos a sensação de viver na linguagem e de
não sermos simplesmente vividos por ela. O psicótico, por outro lado, é subjugado
pelo fenômeno do discurso como um todo (Seminário 3). Enquanto todos somos
habitados pela linguagem como uma espécie de corpo estranho, o psicótico tem a
impressão de ser possuído por uma língua que fala como se viesse não de dentro, mas
de fora. (FINK, 2018, p 91).

Essa relação de como situamos a linguagem no exterior como no interior de nossos


domínios é o que fundará na teoria lacaniana uma modalidade, a se pensar a mística vinculada
primeiramente a temática das identificações imaginárias, da fantasia de um estado anterior ao
regime da linguagem como paraíso perdido. É por uma releitura rigorosa da tese freudiana
acerca do complexo de édipo que culminaria como ponto final num complexo de castração
enquanto organizador do processo de socialização, que Lacan, em termos análogos em valor,
50

recorrerá ao entendimento da proposição psicanalítica sobre a proibição pelo pai da relação


amorosa entre filho e mãe como fundante da cultura, pela lupa “antropoliguistica” da relação
de sujeição do indivíduo à linguagem.
O místico seria esse sujeito que deslizaria entre a forma imaginária de experienciar a
realidade, ou seja, sujeito individido, expresso pela fatídica fantasia de completude da qual a
mensagem do Outro (esse primordial) se articularia a sua demanda sem distinção,
proporcionando-lhe um gozo ideal, o equivalente freudiano ao encontro da felicidade plena,
“considerada como a realidade mais consumada do desejo” (NASIO, 1993, p. 28); e a forma
simbólica, lugar de divisão subjetiva onde o gozo (essa tensão à “satisfação/felicidade”)
encontra (se usarmos a matriz energética freudiana para didatizarmos) um modo de descarga
estritamente limitado, condicionado a intermediação da linguagem, quanto seus efeitos. Em
termos francamente lacanianos, é sobre a passagem da primazia de um registro ao outro e vice-
versa, que a experiência mística parece esbarrar em um terceiro componente crucial a
experiência humana, O real, que traduzido em outros termos, poderia representar nesse plano
um furo/falha na inscrição simbólica, onde as regras da linguagem não exerceriam domínio e a
representação mostrar-se-ia impossível.
Cabe salientar que é remodelando a teoria freudiana a um modelo extremamente
linguageiro de interpretação que Lacan resgata as teses psicanalíticas do enfadonho descredito
da época. Assim como Freud, Lacan aloca nas teorizações psicanalíticas do misticismo o tema
do amor como central, dando-lhe uma leitura em seus termos. É interpretando no desejo de
retorno a primeira experiência de satisfação (gozo ideal), aquela vivida pelo bebê quando de
forma inesperada fora-lhe ofertada um meio para suprir-lhe a sua situação de insatisfação
orgânica, que a inclinação as vivencias místicas surgem como um dos efeitos colaterais a “esse
desejo, eternamente frustrado, de retorno ao mundo da natureza, onde estabeleceria uma
relação imediata (não mediada) com a realidade...” (TERÊNCIO, 2011, p. 100).
Nesse ponto o místico seria um eterno nostálgico que preso de forma similar ao que as
ilusões neuróticas fantasiam, “um instante fugitivo em que se é permitido acreditar ser possível
[...] ganhar sem perder, gozar sem partilhar” (STRAUSS, 1982 [1949], p. 537), empenharia
uma jornada para tornar-lhe possível em tal instante. Essa passagem do mediado pela linguagem
(simbólico), para o imediato do “corpo gozoso18” encontrado na ficção imaginaria de gozo
absoluto, relação sexual, ou como no dirá Freud, “quebra do tabu do incesto”, será o enredo
por qual se dará as análises lacanianas sobre o amor místico até os anos setenta, quando seu

18
“Corpo do Outro, corpo fictício do qual se haveria destacado uma parte gozosa.” (NASIO, 1993, p. 152).
51

fundador introduz por via de um formalismo lógico as bases para se pensar a experiência de
gozo místico como subjacentes as formulações da sexualidade feminina.

3.2.1. Da fantasia expandida do Místico a um gozo mais além

O meio por qual o místico procura “tatear” esse instante fugitivo, nostálgico, de uma
vivência “enigmática” que se apresenta enquanto cena afetiva de uma época mítica perdida,
originária, onde se supõe, como nos dirá Terêncio (2011), um estado de “bem aventurança”
com o ambiente, os personagens, a trama vivida, é por meio da fantasia de identificação que o
sujeito estabelece com essa perda. Ou seja, “do ponto de vista psicanalítico, somos, na fantasia,
aquilo que perdemos.” (NASIO, 1993, p. 129).
A fantasia de uma união total a esse instante, ou melhor, a esse Outro que falta, remete
a uma carência de completude – do todo. É alucinando19 em um lugar fora do “aleijo” qual a
linguagem exerce sobre o objeto de desejo, de fascínio (o phallus - falo, significante da sutura
da falta), e sua possibilidade de obtenção, que o místico parece esbarrar em uma relação
diferencial de mediação com o registro simbólico (operador da castração). É por estar posto
em uma dupla posição, como observa Lacan (1985 [1972-1973]), quanto a sua forma de gozar,
uma mediada pela fantasia, ou seja, meio linguístico que nos sobra enquanto tentativa de
“remendo” desse “corte fálico” (perda), entre o gozo obtido frente ao gozo esperado, observado
na passagem da necessidade para o desejo na infância; e essa outra modalidade sobre a qual
nada se sabe, exceto que, ela se estabelece pela foraclusão temporária da função paterna – lugar
ocupado pela linguagem em sua qualidade simbólica de “tampo” à incompletude deixada pela
impossibilidade secessão do desejo, ou seja, realização satisfacional plena.
A sugestão lacaniana em seu último ensino, em fins dos anos setenta, é “definir o místico
a partir de seu posicionamento no lado feminino das fórmulas da sexuação” (TERÊNCIO,
2011, p. 145). Isso em outros termos expressaria uma subversão na concepção psicanalítica de
identidade sexual circunscrita apenas e só na função simbólica, já que Lacan aloca “no lado
feminino”, nesse ensino, outra possibilidade de gozo que não um falicizado (castrado). Ou seja,
pela concepção clássica da psicanálise, como já abordamos por inúmeras perspectivas nesse
trabalho, toda identidade, ou melhor, toda forma de identificação, remete a uma ligação afetiva,
como nos dirá Roudinesco e Plon (1998), que a criança desde os primeiros anos de vida terá a
outras pessoas de seu contexto existencial (primariamente familiar) servindo-lhe delas como

19
E aqui tome por nota tudo que estamos trazendo: Alucinar em seu sentido mais amplo não categoriza a
experiência mística como uma experiência de loucura. Vejamos no tópico sobre a “crítica ao diagnóstico do olhar”.
52

modelo pedagógico dos seus interesses, quanto definidores primários de uma personalidade, até
que culmine o advento do complexo de édipo, quando se oferecerá à criança “duas
possibilidades, ativa e passiva, de satisfação libidinal” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 365).
Em outros termos, uma possibilidade “masculina” e outra “feminina” de ser no mundo, não
havendo possibilidade de escolha pura diga-se de passagem.
Apesar de afastar do biológico, anatômico, os processos pelos quais se dariam a
formação de uma identidade sexual, essa concepção ainda prender-se-ia aos reducionismos e
preconceitos da época. A psicanálise fundara e reforçara historicamente um modelo
extremamente falocentrado de se entender os modos pelos quais os sujeitos formar-se-iam seres
de práticas sexuais. Ou seja, como bem sintetiza Fabbi e Schuck:

Uma vez que o real do sexo é inacessível, o essencial para a construção da identidade
sexual é que ela seja simbolicamente reconhecida pela palavra do outro, encarnada
por quem acolhe a criança no mundo. Esse reconhecimento inscreverá o recém-
nascido na função fálica e transformará a criança em ser falante, homem ou mulher.
Nada no psiquismo, permite que o sujeito se situe como macho ou fêmea, é do outro
que o ser humano aprende, peça por peça, o que fazer como homem ou mulher
(FABBI; SCHUCK, 2019, p. 2).

Por fórmulas da sexuação tomemos nota, entende-se a resposta (teórica) lacaniana ao


debate crescente sobre a psicanálise e os estudos de gênero. “Ao criticar o biologismo
naturalizante de Freud e valorizar a dimensão da linguagem [...] Lacan recolocou a
psicanálise no debate [...] sobre o caráter ético-político das identidades, dos discursos e das
práticas sexuais.” (COSSI; DUNKER, 2016, p. 1). Por meio de uma formulação nada
essencialista da dimensão sexual e como essa não teria nada que ver com uma questão biológica
das condições anatômicas do corpo, Lacan aloca enquanto categoria “homem” e “mulher” uma
separação ilusória qual o discurso cultural se usa para tornar mais “palatável” a
ininteligibilidade da diferença sexual entre os seres.
É situando no debate de gênero a possibilidade de se pensar um sexualidade para além
da norma simbólica, ou seja, para além dos aparatos/amarras culturalmente bem delimitadas
que vinculam o sexo biológico a o gênero, e por conseguinte, às experiências de satisfação
mediadas por essas, como sendo os representantes imaginários e simbólicos por qual toda
experiência da sexualidade se faz possível, que Lacan afirma em seu seminário XX,
subvertendo toda concepção normativa da sexualidade qual apoiara seu primeiro ensino (sua
fase mais estruturalista de retorno a Freud), que “nem toda sexualidade é fálica ou
simbolicamente ordenada...” (COSSI; DUNKER, 2016, p. 7).
53

Formulando uma nova teoria da sexualidade (ou das formas de gozo para sermos mais
exatos), Lacan nessa comunicação recorre a o tema da mística para introduzir, de forma
inovadora, uma possibilidade de pensar “novas” configurações amorosas e práticas sexuais ao
campo teórico da psicanálise que não aquelas que teoricamente se propunha como únicas
possíveis. Confrontado pelo debate contemporâneo e crescente sobre a experiência transexual,
homossexual, e como essas se articulariam a teoria da identidade sexual e dos papeis de gênero
teorizadas a partir da travessia do édipo, ele encontra no exemplo dos místicos, ou mais
precisamente, nas relações quais esses detinham com suas divindades, o argumento modal que
sustentaria a tese de uma outra possibilidade de relação dos sujeitos com seus corpos e práticas
sexuais socialmente instituídas (LACAN, 1985 [1972-1973]).
Para além de um argumento identitário de reconhecimento que capacitaria definir o que
seria um “homem” ou “mulher”, e práticas sexualmente bem delimitadas que legitimariam
normativamente tais posições como universais, ontologicamente dadas, Lacan priorizou
abordar a diferença sexual não pelo campo das identificações, ou seja, construções imaginárias
como essencialmente organizadoras da sexualidade e suas facetas (COSSI; DUNKER, 2016).
A teoria do Gozo seria cabal a essa discussão, pois enfatizaria como diferença
distinguível daquilo que supormos como forma “masculina” e “feminina” de ser no mundo, não
uma diferença a nível do semblante, ou seja, como socialmente nos reconhecemos no discurso
de feminilidade e masculinidade culturalmente dado; tampouco ao anatomismo enquanto
argumento válido para se definir “homem” e “mulher”; mas sim, como essa se articularia a
outra tese fundamental na psicanálise: a plasticidade da pulsão e como se incide o recalcamento
sobre essa (FREUD, 2016 [1905]). É recorrendo as formas como os sujeitos, antes de tudo,
falam sobre o seu gozo, ou melhor, sobre o efeito que se produz no sujeito em sua relação com
a linguagem, que Lacan articula tal divisão baseando-se nas diferentes formas como o
recalcamento se impôs aos indivíduos (LACAN, 1985 [1972-1973). Nesses termos, “Lacan vai
insistentemente chamar a mulher de “não-toda (pas-tout) – ela não está inteiramente sob o
domínio do falo” (TERÊNCIO, 2011, p. 139), o recalcamento a esses sujeitos se deram de
forma diferente, elas gozam dentro e “não-toda dentro” da linguagem, mas dessa forma não-
toda “talvez ela mesma não saiba nada a não ser que experimenta – isto ela sabe” (LACAN,
1985 [1972-1973] p. 99).
Nesse ponto o místico servirá a esse papel de exemplo, pois é na forma como ele aponta
a sua experiência “análoga” ao gozo feminino. Se a “mulher” nada sabe a não ser que
experimenta essa irrupção mais além, o místico parece não se dar por satisfeito apenas em
54

experimentar (POMMIER, 1987). O testemunho místico, como Lacan sublinha, é crucial a sua
experiência, pois ele, para o místico, legitima sua vivencia:

Para a Hadewijch em questão, é como para Santa Tereza - basta que vocês vão olhar
em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há
dúvida. E do que e que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos místicos e
justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele. (LACAN,
1985 [1972-1973] p. 102-103)

Por mais que sublinhe um não saber, o testemunho místico faz de sua experiência do
indizível um meio. Um meio de retorno social, de retorno à natureza das coisas que o gozo
feminino se exclui. E por “natureza das coisas”, leia-se, “natureza das palavras” (LACAN,
1985 [1972-1973], p. 99). Terêncio no início do seu “Percurso psicanalítico pela mística”
(2011) enfatiza esse caráter “estagial” da experiência de retorno, Lacan por outro lado, indica
sua importância ao tema da sexualidade feminina: “Essas jaculações místicas não são lorota
nem só falação, são em suma o que se pode ler de melhor - podem pôr em rodapé, nota -
Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem.” (LACAN, 1985 [1972-
1973] p. 103).
55

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Verificou-se no decorrer dessa pesquisa um fato inconteste: a psicanálise de abordagem


lacaniana é antes de tudo um programa interdisciplinar que articula em reflexão social, clínica
e estética (SAFATLE, 2017), e que seus elementos essenciais são de grande valor para se pensar
a cultura humana. Isso em poucas palavras sugere que a proposta fundada por Jacques Lacan,
não se reduz ao campo dos cuidados, estudos e classificações dos distúrbios mentais; antes,
funda um modelo de pensamento imprescindível para se refletir sobre as produções
socioculturais, sejam essas: a política, a estética, a filosofia, o debate de gênero e a literatura.
Foi por entendermos a abrangência das teses lacanianas às diversas temáticas centrais à
vida, em seu sentido mais amplo, que as suas observações acerca das ideias religiosas, ou mais
precisamente, suas inovações a respeito da experiência místico-religiosa, fixam-se enquanto
destino final de nosso percurso. Observou-se desde os primeiros apontamentos da pesquisa que
até chegarmos aos acréscimos lacanianos, que muitas hipóteses e interpretações deram vazão a
tematização da experiência mística em Ciências das Religiões. Saindo das problematizações
concernentes a conceituação do objeto “mística”, vislumbrou-se que o místico, e a qualidade
de sua experiência, são tomados pela cultura, como pela ciência, de forma diversa, mediante os
mais variados interesses.
Como não lembrarmos das tradições religiosas e nelas os sujeitos que fogem à regra
litúrgica, encontrando em práticas personalizadas de devoção, relação com sua divindade ou
princípio universal, um meio mais satisfatório de exercício de seu credo? E nas ciências, que
assim como no senso comum, descriminam por “místico” o sujeito que voltado à crenças
sobrenaturais, incomensuráveis às explicações cientifico-racionais, inclinam-se a superstição,
a busca de comunhão e identidade com um mais além, um transcendental?
Essas breves problematizações apontaram para outras de natureza epistemológica, como
“a mística e o problema da classificação”, circunscritas aos limites representacionais da
realidade frente a insuficiência dos recursos da linguagem; quanto a demarcação de campo –
do saber disciplinar aos saberes pluridisciplinares. Foi nas hipóteses das CRs que ancoramos
um debate alongado, por ser nesse lugar o ponto fulcral de nossa pesquisa.
Mas por que Lacan? Ou melhor, por que o lacanismo? Isso pode ser explicado ao estudo
da mística porque o lacanismo desde sua essência apresenta-se como um meio a se reconfigurar
a ideia de normal e patológico e o que disso resulta; ou seja, toda gestão político-social de
normatização do comportamento humano. É pela subversão dessas categorias que o edifico
teórico lacaniano pôde apartar-se da ortodoxia do saber psiquiátrico, quanto da “apreensão
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acadêmica dos conceitos freudianos” (RUDINESCO, 2016 p. 102), que delimitavam, como
por vez ainda delimitam, o campo da vivencia mística à luz da experiência da loucura, da
perversão, ou mesmo do devaneio neurótico – categorias deslegitimadas pelo moralismo
tradicionalista cientifico-cultural.
Por servir-se das leituras de Bataille (1997-1962) Koyré (1892-1964), Kojève (1902-
1968), Henry Corbin (1903-1978), o projeto lacaniano apresentou-se ao mundo como uma
aposta interdisciplinar que recolocou a psicanálise no debate contemporâneo das relações
humanas e sua diversidade. O procedimento eleito por Lacan à revelia de um olhar cartesiano,
resultou em uma nova concepção de sujeito, de racionalidade, como de uma sexualidade para
além dos limites do simbolicamente ordenado pela linguagem, pela cultura, pela regra
convencionada. O místico, quanto sua experiência, entra nas teses lacanianas como exemplo
didático desse novo horizonte teorético que desde seu doutoramento ao fim do seu ensino,
haveria de ser diuturnamente reforçado.
Entendendo que de perto ninguém é normal – pelo menos não nos termos que as ciências
tradicionais categorizam a normalidade como negação à “natureza trágica da vida”, Lacan pôde
oferecer às ciências humanas um acréscimo, um apoio teórico, as problematizações
socioculturais. Isso às Ciências das Religiões (UFPB) parecia-se desconhecido até meados de
2021, quando Katarine de Lourdes Alves Laroche submete à avaliação seu trabalho de
conclusão de curso (TCC): Da bruxa maligna ao feminino terrível do Gozo do Outro: uma
leitura psicanalítica de Anticristo, de Lars von Trier. Lá observa-se obstinadamente a tentativa
pioneira em uma graduação em Ciências das Religiões (UFPB) de transportar às
problematizações concernentes à experiência religiosa, como suas produções, uma leitura (em
partes) lacaniana.
Nesse ponto “Acréscimos lacanianos ao estudo da mística em Ciências das Religiões”
reforça a proposição que Laroche induz sem erro: o caráter agregador à pesquisa das teses
lacanianas. É por transportamos o debate da mística de um quadro psicótico vinculado a
temáticas religiosas às discussões concernentes ao amor, no sentido psicanalítico do termo (uma
busca por si mesmo); que também expomos o quão a experiência do místico perpassa o âmbito
da religiosidade pura, introduzindo-a ao campo da feminilidade, das formas não
simbolicamente ordenadas da sexualidade, quanto a crítica ao sistema simbólico como principal
autor das acepções pejorativas, deslegitimantes, das formas nadas convencionais de se
experienciar, subjetivamente, a realidade.
Sendo assim os acréscimos lacanianos às CRs, apresentam-se como novos meios de se
exercitar cientificamente a aceitação desse outro desconhecido. Se como epigrafado no início
57

dessa pesquisa, “o feminino é o outro, e o outro é tudo aquilo não é conhecido”, um percurso
lacaniano à mística se faz mais que necessário, já que associado em larga escala ao feminino,
possibilita um novo olhar, de respeito às diferenças, de aceitação desse outro em sua
ininteligibilidade simbólica até que se diga o contrário fundamentadamente, como fizera Lacan
ao seu favor.
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