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CENTRO DE EDUCAÇÃO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
CURSO DE BACHARELADO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
João Pessoa/PB
2022
VICTOR HUGO BERNARDINO BEZERRA
João Pessoa/PB
2022
VICTOR HUGO BERNARDINO BEZERRA
Banca Examinadora
_________________________________________________
Orientador: Prof. Dr. Matheus da Cruz e Zica
Universidade Federal da Paraíba
__________________________________________________
Membro da banca: Prof. Dra. Leyla Thais Brito da Silva
Universidade Federal da Paraíba
_________________________________________________
Membro da banca: Me. Suele Conde Soares
Este trabalho é dedicado a todos que deslegitimados em sua
experiência, tiveram que enfrentar a suspeita daqueles que supõem-
se superiores por simbolicamente comportarem-se razoavelmente de
forma ordenada.
AGRADECIMENTOS
Aos colegas de curso que me possibilitam entender, cada um a sua forma, como as
Ciências das Religiões pode servir de recurso ao debate contemporâneo, aos problemas
emergentes, para refletirmos a sociedade e seus impasses.
A minha família que por intermédio de minha querida mãe, Valéria Bernardino da Silva,
e minha amada irmã, Juliana Bernardino Bezerra, apoiaram todo esse percurso, acolhendo-me
nos momentos de dificuldade, instigando-me a cada nova ideia, a cada novo projeto, até o
culminar dessa monografia.
Ao meu “amigo-irmão” Matheus Bezerra e toda nossa trajetória de debates, encontros e
desencontros, que só fizeram fortalecer uma amizade que fundando-se dentro da graduação de
Ciências das Religiões conseguiu manter-se fora dos muros da universidade preservando no
amor um ponto indissolúvel de admiração, carinho e respeito.
A minha amiga mais que especial Amanda Castro, que sempre me incentivou,
instigando o debate acerca da Psicanálise, do papel do outro, da imprescindibilidade de uma
escuta engajada, amorosa, libertadora, que mescla em Paulo Freire, quanto em Freud, toda sua
influência. Agradeço pelo espaço de diálogo que criamos, pelo ideal de acolhimento que
compartilhamos, que se converteram em ideias ímpares ao processo de maturação na produção
científica, além de sua participação ativa na revisão e correção desse trabalho.
Ao Diego Bezerra por seu acolhimento, amizade e disponibilidade ímpar. Sem o seu
suporte quanto as normas técnicas, e mesmo ao debate foucaultiano elementar as melhores
rodas de amigos, essa pesquisa não teria tomado os caminhos que tomou. Estendendo a Matheus
Bezerra meu carinho, por não medir esforços na ajuda de um amigo recém-chegado.
Não poderia deixar de ressaltar o papel que meu orientador prestou nesse percurso.
Agradeço ao Dr. Matheus da Cruz e Zica por todo suporte, interesse e empolgação quanto a
pesquisa cá produzida. Agradeço por acreditar nesse projeto, por contribuir sempre respeitando
os meus limites e especificidades, abraçando a causa e tomando-a como necessária ao debate
atual em Ciências das Religiões. Agradeço por saber lidar com minhas inseguranças quanto ao
conteúdo e capacidade de abordá-lo, alertando sempre que a vida acadêmica é um processo de
eterna evolução, avanços e recuos.
A minha companheira, namorada, esposa, amiga, Hanna Jarine Sales Suassuna, que
esteve comigo em todos os momentos possíveis antes e durante essa pesquisa. Foi por meio de
nossos debates, por vezes empolgados demais, que pude pensar esse trabalho em sua grande
maioria. Agradeço por me ensinar a fazer concessões a ideias outras, a ser a prova cabal em
minha vida da tese psicanalítica que “não há saber sem amor”. Obrigado por me orientar extra-
academicamente. Obrigado por fazer dessa pesquisa um ponto de encontro entre o seu universo
de referências e o meu, a ponto que isso não gerasse algum tipo de esmagamento de nossas
particularidades, antes mesmo uma ampliação de nossos horizontes.
Enfim, agradeço a todas as pessoas e instantes que contribuíram de alguma forma para
esse fase inicial de minha vida acadêmica.
“É só isso que há de seguro: há coisas que nos dão sinais e das quais
não compreendemos nada.”
Esta pesquisa objetivou contribuir para a ampliação das produções acadêmicas voltadas à
temática da experiência mística no campo das Ciências das Religiões a fim de projetar um
debate que possibilitasse elevar o tema da mística ao âmbito extra religioso, além de abordar
a Psicanálise lacaniana como meio para esse caminho. É nesse contexto que procuramos situar
essa pesquisa como abertura crítica e propositiva para pensarmos em Ciências das Religiões da
forma que, em Psicologia, Marlos Gonçalves Terêncio propôs compreender a mística, ou mais
precisamente em seus termos, a experiência mística. Como explicita-se em título, esse trabalho
inscreve-se no intuito de contribuição para fortalecer a formalização teorética lacaniana ainda
tímida nas produções correntes em Ciências das Religiões, tendo como objetivo principal
buscar indicar contribuições que a teoria lacaniana pode oferecer ao campo das Ciências das
Religiões para compreensão das experiências místicas. No que diz respeito às especificidades
metodológicas, esse trabalho por servir-se de procedimentos bibliográficos para dar vazão à
proposta temática, inclina-se a uma abordagem qualitativa, já que pretende não só introduzir ao
campo das CRs um acréscimo ao estudo da mística, mas antes uma proposta interpretativa,
conceitual e “lacanianamente” metodológica, ou seja, procurando se inspirar na
interdisciplinariedade pela qual o programa lacaniano se fundamenta desde sua gênese, fazendo
disso recurso importante para as Ciências das Religiões para pensarmos as experiências místicas
como tema potente ao debate acerca da psicopatologização das vivências religiosas não-
inteligíveis, do lugar do outro na sociedade, quanto do controle, repressão e silenciamento de
práticas sexuais não simbolicamente ordenadas.
This research aimed to contribute to the expansion of academic productions focused on the
theme of mystical experience in the field of Religion Sciences in order to project a debate that
could raise the theme of mysticism to the extra-religious sphere, besides approaching Lacanian
Psychoanalysis as a means to this path. It is in this context that we seek to situate this research
as a critical and propositional opening to think about Religion Sciences in the way that, in
Psychology, Marlos Gonçalves Terêncio proposed to understand mysticism, or more precisely
in his terms, the mystical experience. As explicitly stated in the title, this work is part of a
contribution to strengthen the Lacanian theoretical formalization still shy in current productions
in the field of Religion Sciences. Its main goal is to indicate contributions that Lacanian theory
can offer to the field of Religion Sciences in order to understand mystical experiences. As far
as the methodological specificities are concerned, this work, by using bibliographic procedures
to give flow to the thematic proposal, leans toward a qualitative approach, since it intends not
only to introduce to the field of the RCs an addition to the study of mysticism, but rather an
interpretative, conceptual and "Lacanianically" methodological proposal, that is, This will make
it an important resource for the Sciences of Religions in order to think about mystical
experiences as a potent theme for the debate about the psychopathologization of non-intelligible
religious experiences, about the place of the other in society, and about the control, repression
and silencing of non-symbolically ordered sexual practices.
1. INTRODUÇÃO................................................................................................................ 12
1. INTRODUÇÃO
1
Abreviatura de “Ciências das Religiões” na UFPB.
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2
Tradição Filosófica que toma como paradigma o entendimento sobre uma natureza humana imutável,
transhistórica, que encontra na cultura e seus meios diversos, formas particulares, históricas, sociais e psicológicas,
à representar a mesma essência (LIMA, 2012).
3
Tradição filosófica que rompe com a ideia de “natureza humana”, advogando o caráter adquirente da experiência
do sujeito no mundo como formativa de sua personalidade, suas inclinações, seus empreendimentos. Como ser
14
propositiva para pensarmos em Ciências das Religiões da forma que, em Psicologia, Marlos
Gonçalves Terêncio (2011) propôs compreender a mística, ou mais precisamente em seus
termos, a experiência mística.
Indicando um debate epistemológico, vertendo a abordagem de Eduardo R. Cruz
(Estatuto epistemológico da Ciência da Religião, 2013) e priorizando uma conversa acerca do
estatuto formal da mística enquanto conceito nas Ciências das Religiões, essa pesquisa dialoga
abertamente com as propostas metodológicas que, de algum modo, organizaram, e ainda
organizam, acadêmica e culturalmente, os sentidos usuais que adotamos para ao trato de termos
como mística, religião, comportamento religioso, etc. Assim, mediante a urgência de um
alargamento de horizontes conceituais nas Ciências das Religiões, nos dispomos a um diálogo
pertinente com os dilemas da contemporaneidade: a irrupção cientificamente visível (dos anos
sessenta pra cá) de um crescente interesse popular pelas denominadas “novas espiritualidades,
esoterismos ou, ainda, Nova Era” (GUERRIERO, 2003, p. 1). Esse elemento inscreve uma
reação aditiva ao campo frente à temática da mística e seus frutíferos rendimentos à nosografia
psi4, ao “caráter ético-político das identidades, dos discursos e das práticas sexuais” (COSSI;
DUNKER, 2016, p. 1), o debate da atualidade.
Acréscimos lacanianos ao estudo da mística em Ciências das Religiões nestes termos
não resume-se a um diálogo estatutário, ou seja, prescritivo a uma nova noção de mística em
detrimento às existentes. Como explicita-se em título, esse trabalho inscreve-se no intuito de
contribuição para fortalecer a formalização teorética lacaniana ainda tímida nas produções
correntes em CRs. Em termos estritamente gerais, este trabalho tem como objetivo principal
buscar indicar contribuições que a teoria lacaniana pode oferecer ao campo das Ciências das
Religiões (leia-se “Ciências das Religiões” com os “esses (S)” que reivindicam
terminologicamente o pluralismo metodológico, quanto o entendimento amplo sobre seu
objeto), para compreensão das experiências místicas.
Diante dos levantamentos apontados aqui, adicionados às motivações tanto pessoais
(desejo de tornar explícitas as possibilidades de apropriações teórica lacanianas às investigações
em Ciências das Religiões), quanto sociais (retorno à sociedade de uma análise que pode
proporcionar uma abertura a pensarmos o outro em suas especificidades para além da
anormalidade), como científicas (ampliar o acervo em Ciências das Religiões de temas voltados
histórico, social e político, o humano não poderia ser pensado como ser de essência imutável, mas sim sujeito
histórico, agente que só pode ser “entendido” no espaço e tempo qual sua ação social produz efeitos (LIMA, 2012).
4
Se alude por “Nosografia Psi” o conjunto de descrições voltadas a classificação de doenças psíquicas por parte
dos campos (que fazem parte das ciências ou dialogam) especializados como: Psiquiatria, Psicologia e a
Psicanálise (FOUCAULT, 2006b).
15
5
Sistema teórico dentro do empreendimento psicanalítico que tem como fundador o psicanalista francês Jacques
Lacan.
16
isso pode tornar-se recurso importante para as Ciências das Religiões para pensarmos o
misticismo como tema potente ao debate acerca da patologização das vivências religiosas não-
inteligíveis, do lugar do feminino na sociedade, quanto do controle, repressão e silenciamento
de práticas sexuais não simbolicamente ordenadas (COSSI; DUNKER, 2016).
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Assim a ideia de “mar” não está ligada por relação alguma anterior à sequência de
sons m-a-r que lhe serve de significante; poderia ser representada igualmente bem por
outra sequência, não importa qual; como prova, temos as diferenças entre as línguas
e a própria existência de línguas diferentes: o significado da palavra francesa boeuf
(‘boi”) tem por significante b-ö-f de um lado da fronteira franco-germânica, e o-k-s
(Ochs) do outro. (SAUSSURE, 2012, p. 81-82)
única acepção, ou mesmo, uma que sature a realidade das coisas. Torna-se tarefa impossível
centrar uma compreensão unívoca de qualquer fenômeno que seja, levando apenas e só, em
conta que o mesmo significado/sentido/coisa não opera situacionalmente em
significantes/termos/palavras diferentes. O termo “mística”, por exemplo, incorpora
historicamente inúmeros traços tão antinômicos entre si, que para melhor incorremos em sua
análise, optou-se considerar que cada um desses situa sob o significante “mística” um valor de
uso estritamente situacional.
Nas religiões, a título de exemplo, sejam essas as abraâmicas, como também ramos do
Taoismo, Bhakti Hindu, Zen budismo etc., a mística apresenta-se comumente atrelada a uma
vivência espiritual particular, onde os limites do mundo ordinário são extrapolados sob os mais
variados argumentos. Seja por um despertar às coisas do mundo, pela necessidade de regresso
a um instante de júbilo imaginário ou mesmo pelo resgate ou fusão do/ao objeto de devoção,
todas essas experiências culminam na inscrição religiosa de uma vivência nomeadamente
mística (ELIADE; COULIANO, 1995; TERÊNCIO, 2011).
Se recorremos ao argumento etimológico para nos asseguramos de uma base
minimamente longínqua do fenômeno, ver-se-á que por mística traduz-se o termo grego
mystikós que, em linhas gerais apresenta-se como ato de “fechar-se”, ou para sermos mais fiéis
ao sentido, “fechar”. As leituras sobre o termo explicitam seu caráter uma particularidade que
tomada de sentido alude ao mistério, a um enigmatismo vivido à luz de um retraimento do
sujeito (ensimesmamento) à crenças, objetivos transhumanos, modelos ideais. De “fechar”
flexionou-se “fechar-se”, termos que linguisticamente possuem relações próximas de sentido,
mas que são dissemelhantes em termos de valor. De fato, o sentido, quanto valor, do termo
ganhou contornos precisos a cada época que seu uso corrente desempenhara funções
discriminatórias específicas. Como enfatiza Certeau (2015), a mística como concebemos hoje
só pode ser pensada a partir de meados do século XVI, categorizando-se usualmente como
experiência, ou seja, um tipo de saber acessível ao campo empírico, dos sentidos.
Mas o que nos diz a ciência sobre a mística? A qual ramo dessa, historicamente,
consolidou-se o estudo das manifestações religiosas da mística? Qual seu sentido?
Faz-se necessário o recurso da conceituação nesse trabalho para que possamos tornar
evidente o tópico subsequente “O lugar da mística nas Ciências das Religiões”. Recorrendo
ao texto de Frank Usarski, História da Ciência da Religião (2013), tanto pelo seu poder de
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síntese, quanto por seu prestígio expresso na aceitação majoritária dentro e fora da comunidade
acadêmica das Ciências das Religiões, elegemos alguns pontos de sua explanação na busca de
trazer a essa pesquisa um caráter familiar dentro da historiografia e base epistemológica aceita
atualmente.
Optou-se pensar a diferença Ciência da Religião e estudo disciplinar da mística como
fronteira necessária a pesquisa por dois aspectos fundamentais: a) Existe de fato uma diferença
que se faz notar na proposta epistemológica entre o estudo engajado ao fenômeno místico-
religioso, numa perspectiva disciplinar, e estudos do fenômeno místico pela ótica do campo
(USARSKI, 2013); b) A demarcação dessa diferença possibilita trilhar análises de menor
amplitude, respeitando os limites do campo e suas especificidades.
Tomando assim por referência esses dois aspectos fundamentais de discriminação,
definamos tal diferença começando pela Ciência(s) da(s) Religião(ões). 1) Ciência(s) da(s)
Religião(ões), grosso modo, é a expressão substantiva qual denominamos o empreendimento
acadêmico que tem por fim o estudo e sistematização pluridisciplinar, quanto a produção de
pesquisas acadêmicas em torno de temáticas como a das religiões, sistemas e comportamentos
religiosos (USARSKI, 2013). Esse campo formalizado academicamente em 1873 pelo filólogo
e mitólogo Friedrich Max Müller (1823-1900), encontra-se espalhado mundo à fora em maior
ou menor clímax na escala de receptividade institucional, mediante as especificidades regionais
de sua inserção.
Cabe o destaque para a particularidade de sua base teórico-metodológica que
hegemonicamente consolidou-se a uma compreensão pluridisciplinar atrelada ao empirismo,
mas que em outrora firmou-se numa tendência fenomenológica caracterizada por sua proposta
sui generis ao objeto do estudo da religião. Hoje em dia a(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões)
estabelece-se de forma ampla e respeitada por diversos países do mundo, fomentando questões,
debatendo o cotidiano, perpassando algumas crises do passado (CRUZ, 2013), enquanto
mergulha na urgência das novas problematizações (WIRTH, 2013).
Em contrapartida, 2) o estudo disciplinar engajado do(s) religião(ões), se reflete numa
orientação especializada de seu objeto de trabalho (Religião, Comportamento religioso,
sistemas simbólicos etc.). Essa perspectiva enfatiza um trato monodisciplinar, de abertura quase
nula (USARSKI, 2013). Exemplo que poderíamos tomar para didatizarmos tal compreensão
seria as ofertas disciplinares voltadas ao estudo das religiões que os diversos departamentos
acadêmicos disponibilizam.
Essas disciplinas: Antropologia da Religião, Sociologia da Religião, História da
Religião etc. seriam voltadas exclusivamente ao estudo especializado das áreas implíticas
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(Ciências sociais, História etc.), enfatizando um diálogo restrito ao método proveniente dessas.
Priorizando o desenvolvimento de um saber fechado ao campo, a diferença entre estudo
disciplinar da religião e Ciência(s) da(s) Religião(ões) explicitar-se-ia pelo caráter circunscrito
do estudo, enquanto a primeira fechando-se em si dispenderia esforços à luz do seu paradigma
(ou paradigmas) para validar ou refutar suas proposições, a nível disciplinar, a segunda seria o
seu avesso, operaria a nível das interconexões epistemológicas (USARSKI, 2013).
As nuances não se esgotam por aí, existem de fato outras tantas abordagens para se
explorar tal diferença, campo/disciplina, mas que não recorreremos aos fins do trabalho, já que
fixados de imediato à abordagem apresentada (abertura teórico-metodológica), encontramos
nela subsídios ao nosso propósito. É sob a égide de uma abertura que podemos situar o estudo
da mística na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) tendo por referência as propriedades do campo,
ao invés da disciplina. Em outras palavras, é a partir dessa demarcação que de fato podemos
pensar com propriedade a mística nas Ciências das Religiões, sem reduzirmos o campo a uma
de suas subdisciplinas como discurso generalizado das CRs.
7
Enquanto doutrina iniciática.
23
propiciados historicamente pela contestação mútua sobre a validade metodológica dessas por
essas. Assim, cabe um destaque nessa pesquisa acerca desses ramos que posturam nas Ciências
das Religiões os estudos sobre a mística. Cabe uma explanação sintética, mas cuidadosa.
2.2.1.2. Fenomenologia
resgate frente ao empobrecimento das análises científicas sobre a religião (USARSKI, 2004).
O elemento irracional deveria ser resgatado ao debate da experiência religiosa, posto ao seu
posto, nem que pra isso fosse nomeado enquanto categoria fundamental da religião, essência,
no sentido mais platoniano do termo. Daí adentramos ao conceito-chave de “numinoso”
categórica fenomenológica desse “irracional medular”, anterior a razão, expresso por um tipo
de sentimento especifico à vida religiosa, o sentimento numinoso – “qualitativamente diferente
dos sentimentos naturais” (CROTTI, 2019, p. 14).
Para entendermos a proposta da fenomenologia da religião é importante que tomemos
por nota as seguintes questões: a fenomenologia da religião, como já atrelada a Rudoph Otto,
poderia ser entendida em duplo caráter; 1) como um estudo acerca da instância não-racional e
seu fundamento como crucial à experiência religiosa; 2) a título de crítica a racionalização
radical qual os estudos, à sua época, impingiam ao fenômeno religioso. Por meio dessas
questões poderíamos capturar por quais argumentos o programa fenomenológico se
fundamentaria. É por um retorno às bases mais negligenciadas às pesquisas sobre religião, que
Otto vê na temática do irracional o ponto por qual todo e qualquer estudo deveria se pautar. É
sobre esse elemento “[...] vivo em todas as religiões, constituindo seu mais íntimo cerne”
(OTTO, 2007, p. 38) que o teólogo encontra o Sagrado e sua expressão afetiva, estritamente
religiosa, o numinoso.
O numinoso, em Otto, seria, se pudermos propor esse entendimento, uma ficção teórica.
Ou seja, um conceito desenvolvido para dar vazão, ou mesmo para tornar mais concebível, um
conjunto de experiências humanas de caráter estritamente religioso que outrora encontravam-
se negligenciadas pelos estudos científicos das religiões. Por “ficção” não presume-se farsa,
mentira, ou qualquer outra acepção pejorativa, antes mesmo uma ferramenta
classificatória/prescritiva pela qual a teoria se vale na busca de tornar certos fenômenos
minimamente “tangíveis” às problematizações, quanto ao debate (CROTTI, 2019). Nesse
contexto, o numinoso representa uma tentativa conceitual em abarcar racionalmente um campo
de impossível tradutibilidade exata – o irracional.
A fenomenologia da religião supõe nessa instância não apenas sua existência enquanto
importante às análises religiosas, como também uma dinâmica de operação específica. É
entendendo a experiência religiosa como duplamente constituída; ou seja, tanto por elementos
não-racionais, como por racionais, que Otto pôde pensar a manifestação do “numinoso”
25
A marcha fenomenológica não ficara a serviço exclusivo das teorias ottonianas, outros
autores contribuíram com sua consolidação. Seja na Teologia (Gustav Mensching 1901-1978,
Nathan Söderblom 1866-1931), História (Mircea Eliade 1907-1986), Filosofia (Geradus van
der Leeuw 1890-1950), a Fenomenologia da religião transitou das generalizações a nível
cosmos/caos, transhumano/humano, sagrado/profano, a revisão sistemática de suas
proposições. Nesse percurso, a mística de certa forma manteve sua posição inalterada, haja vista
seu entendimento firmado à experiência de superação do cognoscível, um estado de saturação
no sagrado que faz do “sujeito” da mística aquele que adentra ou é adentrado plenamente (o um
ou zero da relação) pela essência de todas as coisas, ou circunscritamente em Otto, essência de
todas as religiões – o sagrado (GASBARRO, 2013).
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À margem disso, outros discursos dentro do campo das Ciências da Religiões se faziam
coexistentes. Como ligeiramente apontado no início da tópica “O lugar da mística nas Ciências
das Religiões”, estudos comparativos, sócio-históricos, psicológicos, fomentavam um debate
crescente na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões), um debate estatutário voltado às credenciais
científicas do estudo das religiões. Essa fase formativa culminou na institucionalização das CRs
como disciplina autônoma, mas não parou por aí. Um campo como esse que se pretende
pluridisciplinar, como defendiam seus fiadores à época, não poderia recorrer a explicações
criptoteológicas 8, ou sui generis, como se fizera antes e depois de sua formalização
institucional. O objeto Religião teria que ser analisado mediante suas condições concretas na
história, sociedade, linguagem etc. (USARSKI, 2013), teria que superar as condições
metafísicas de outrora e do devir.
2.2.1.4. Empirismo
Em Ciência entende-se comumente por empirista toda e qualquer inclinação que prime
a noção de experiência como meio mais adequando de se chegar ao conhecimento de alguma
coisa. Essa postura frente ao objeto (coisa) orienta, tanto quanto delimita, o fazer científico e,
por assim dizer, todo o saber produzido com sua aplicação. Essa definição um tanto quanto
elementar, aponta para aspectos específicos que fogem à regra genérica, circunscrevendo em
seu fulcro a constatação do empirismo como método, ou seja, ferramenta. Por método, traduziu-
se nas Ciências, todo e qualquer conjunto de normas que aplicado sistematicamente a um objeto,
previamente eleito (ou não), verte dos dados obtidos um sentido elevado a posição de saber
constatável (ENGLER; STAUSBERG, 2013).
Na(s) Ciência(s) da(s) Religião(ões) tal orientação circunscreve-se a um vasto grupo de
disciplinas que adotando uma postura “objetiva” frente a dados brutos, localiza seu material de
trabalho, no mundo empírico. Ou seja, situa nos “elementos religiosos empiricamente
acessíveis” (USARSKI, 2013, p. 51) a importância investigativa do campo, dada a sua realidade
imanente, passível a falseabilidade:
qualquer opinião que se figure vaga, vasta sentimental e sem base nos fatos lógicos.” (JAMES,
1991, p. 316)
A mística sofrera os impactos que engendrados pelo desencantamento do mundo, como
dirá Weber (1968) – em contextos outros, escancara sua dupla existência no discurso científico.
No bojo da mística encontra-se comumente associações à ingenuidade e a malícia; a vivência
honesta e o charlatanismo; a realidade e a ilusão (TERÊNCIO, 2011). Predicados postos,
vertidos a uma lógica maniqueísta de classificação que nas ciências empíricas exerceram papel
central de reação a todo e qualquer discurso que se pondo como possibilidade não seguira os
critérios escrutináveis do fazer científico, encontram respostas outras em campos vindouros,
que como sintomas desse momento da ciência, insurgiram trazendo questões antigas à luz de
novos sinais.
A Psicanálise, eleita aqui como orientação teórica principal da pesquisa, arguindo
contribuições marcantes para um diálogo a esse nível, introduz-se na época moderna como um
desses campos de interesse às coisas da vida, tanto a nível privado, quanto público. Pelas
análises de seu fundador, notabilizam-se o destaque para a mística, as religiões, a moção política
presente no sistema de crenças, naquilo que genericamente alude-se por textos sociológicos da
Psicanálise (TERÊNCIO, 2011). Para as Ciências das Religiões as construções freudianas
representaram um marco subversivo em relação às análises do fenômeno religioso em todo seu
espectro. Valendo-se desse ponto, nos coube situar um trato mais refinado, já que para
entendermos os acréscimos lacanianos ao estudo da mística, devemos posicionar seus
antecedentes sobre a mesa. É sob a insígnia das ciências empíricas que a psicanálise paira com
seu fundador, “Nem ciência, nem delírio, nem arte, nem religião, nem magia.” (ALLOUCH,
2014, p. 52), um sintoma sócio-científico.
9
Ciência da natureza.
29
Enquanto projeto científico, adotara no ideal de submissão dos instintos e aplicação dum
modelo particular de pensamento crítico, sua orientação. Enquanto refém de um compromisso
clínico aos moldes charcotianos de um “a teoria é boa, mas não impede que as coisas
aconteçam”, tivera que se submeter a um dado paradigmático: a razão não era em si só
suficiente, “argumentos nada podem contra [...] paixões” (FREUD, 2011[1927], p.21).
“Trocando em miúdos”, a realidade em meio à qual a Psicanálise se projetara, tornar-se
hostil a ela. Se por um lado seu fundador convergia com os argumentos de sua época, "Ousa
pensar por ti mesmo", por outro, encontrava na escuta de outrem o "algo pensa em mim"
nietzscheziano (ROUDINESCO, 2016). Essa superposição tivera consequências, que para o
"bem” ou para o “mal" impactaram concretamente os desenvolvimentos da "primeira"
Psicanálise. Freud fora afetado pelo seu meio, era fruto de seu tempo, e como pensador
iluminista que era, logo tratara de tomar por posse de seus inimigos por "direito". Fora contra
o que aliena sua mais duradoura batalha (TERÊNCIO, 2011; ROUDINESCO, 2016).
Nesse sentido, eu posso dizer que sou profundamente “religioso” – e sem que esse
estado constante (como um lençol d’água que sinto irromper na superfície) afete de
qualquer maneira minhas faculdades críticas e minha liberdade de exercê-las, mesmo
contra a imediação desta experiência interior. Desta maneira, sem desconforto ou
contradição, eu posso levar uma vida “religiosa” (no sentido desta sensação
prolongada) e uma vida de razão crítica (que é sem ilusão) ... (VERMOREL;
VERMOREL, 1993, p. 303, apud TERÊNCIO, 2011).
Pela primeira vez expressamente em seu edifício teórico, Freud se via impelido a pensar
o “fenômeno religioso” para além da religião. Era impelido a pensar a natureza do “sentimento
oceânico” sem a incidência da alienação em seu sentido reprovativo, da ilusão, e assim o fizera.
Em 1930 em um dos seus célebres textos sociológicos, Freud ensaiara uma resposta a Rolland.
Foi sobre a égide d’O mal estar na cultura (1930), que o pai da Psicanálise elevara, à luz de
sua teoria, a mística da condição de insulto e obscurantismo a objeto mais além da religião.
É sobre o debate da “sensação de eternidade”, que Freud conseguirá situar suas
observações mais claras sobre à mística. Apontando já no primeiro capítulo sua dificuldade de
reconhecer em si tal característica, aludida por seu amigo como universal:
Essa declaração de meu estimado amigo, que, aliás, honrou poeticamente o encanto
da ilusão certa vez, trouxe-me dificuldades nada pequenas. Não consigo descobrir esse
sentimento “oceânico” em mim mesmo. (FREUD, 2010 [1930], p. 20).
10Às vezes as soluções dos conflitos psíquicos são bem sui generis, não cabendo na psicanálise a noção de um
normal padrão.
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Freud percebe nesse fato psicológico uma característica sui generis ao psiquismo
humano. O místico sendo um desses poucos sujeitos que encontrando condições favoráveis ao
regresso à fases incipientes do desenvolvimento psíquico, vivência tal sentimento à luz do que
de mais característico ele pode motivar: a restauração do narcisismo ilimitado (FREUD, 2010
[1930]), ou seja, da ilusão da completude amorosa. Nesses termos o sentimento oceânico seria
inequiparável à experiência religiosa. O primeiro, ao seu turno, exprimir-se-ia como fixação
dependente de um modelo de ser e estar totalizador, como se o dentro e o fora estivessem
submetidos em mesma intensidade a um narcisismo primário; a necessidade religiosa, por outro
lado, estaria vinculada a uma negação da realidade externa, e interna, inóspita, consolidando
nas formas religiosas um lugar de segurança aos males da vida pela identificação paterna dum
narcisismo secundário.
Ocorreu durante toda construção da tópica “2.3.3 Para além da religião”, a constatação
do quão introdutórias são as observações freudianas sobre a mística. Convocado a pensar o
sentimento oceânico em seu caráter diferencial em relação à religião, Freud ousou alocá-lo em
suas teorizações sob o signo do amor, da regressão e das disposições pouco ordinárias quais
certos sujeitos estão submetidos em seu psiquismo.
Cabe um destaque ao capítulo segundo da obra O mal estar na cultura, (1930), onde
aproxima àquilo que chama de “técnica da arte de viver” (FREUD, 2010 [1930], p. 39) de suas
postulações sobre a sublimação. É através de processos sublimatórios elevados em sua
35
11 Mundo ideal.
36
12
Termo que metaforicamente alude aos caminhos das profundezas mentais, as manifestações do inconsciente
enquanto constitutivas à vida dos sujeitos.
13
Expressão usada pelo próprio Antônio Conselheiro para intitular suas predicas acerca de sua experiência místico-
religiosa por volta de 1895. MACIEL, A.V.M. Apontamentos dos preceitos da divina lei de nosso senhor Jesus
Cristo, para a salvação dos homens. Belo Monte: Manuscrito, 1895.
39
o episódio vivenciado em Canudos nada teria que ver com a ingerência do governo central em
saber lidar com a precariedade da vida, e as incertezas que assolavam o nordeste brasileiro
aquela época, antes isso teria que ver com a crise religiosa e de caráter que fundava na natureza
do sertanejo uma suscetível inclinação as manipulações espirituais (RODRIGUES, 1939
[1897]). É por meio dessa manipulação dos povos fragilizados do sertão, aneladas as condições
propicias do ambiente, que a figura do Antônio Conselheiro começa a tomar forma a ponto de
todas as características de sua vida ganharem o “quê” psicopatológico. A experiência
sociorreligiosa de Canudos, agora seria explicada enquanto loucura epidêmica. A figura
carismática do Antônio, agora seria antagonizada com a normalidade. Era o “louco Antônio
Maciel” (RODRIGUES, 1939 [1897], p. 145), “o louco de canudos” (RODRIGUES, 1939
[1897], p. 146), “o psicótico crônico em estado progressivo”, “o adversário da ordem cívica, da
pátria”.
De fato, tal nosografia do Antônio Vicente Mendes Maciel esbarra naquilo que estamos
tentando pontuar desde o “exemplo Janet”, e antes mesmo, desde o capítulo anterior à luz do
“problema da classificação”, como o da “mística enquanto objeto de interesse científico” etc.
O que falamos em síntese até o exato momento é que experiência místico religiosa pelo olhar
cientifico e clinico (ou científico-clínico) em muitas das observações feitas nos aparece
enquanto dissolução estética da normalidade. É sempre a experiência “desproporcional” do
numinoso (OTTO, 2007), o estado dissociativo de consciência (Leuma) ou mesmo
“degenerado” (RODRIGUES, 1939) de uma normalopatia socialmente aceita, ou como nos
sugere Rolland, um estado “outro” de vivência inalienável a experiências normais das religiões.
Enfim, é sobre uma crítica a essa noção de normalidade muito bem delineada que Lacan
insere no campo clínico seus acréscimos. A clínica lacaniana antes de tudo é uma clínica de
desconstrução das fórmulas socialmente inquiridas do normal e patológico (SAFATLE, 2017).
Ou seja, uma clínica que encontra na “normalopatia” trazida pelo sujeito mais de “realidade”
alucinada (configurações imaginarias) do que fatos concretos.
Ao situarmos o lugar que a mística historicamente ocupara, e por vezes ainda ocupa, no
discurso clínico tradicional, tencionamos uma comparação evidente: se o estatuto clínico
tradicional trata a mística, aqui e acolá, enquanto desvio da normalidade, o que a abordagem
lacaniana do diagnóstico propõe de tão diferente em relação a essa temática? Comecemos pelo
começo (e com redundância).
40
A classificação das estruturas subjetivas lacaniana caracteriza-se, antes de tudo, por suas
particularidades herdadas. Vinculada ao discurso freudiano por base, ela se modifica
initerruptamente a medida que os problemas e questões se apresentam como dissonantes as
técnicas, interpretações e hipóteses já firmadas. Poderíamos sugerir, como sendo único ponto
inegociavelmente rejeitável à clínica psicanalítica, e mesmo ao pensamento do psicanalista em
geral, seja a intervenção medicamentosa da experiência trágica humana como recurso terápico.
Não por desconsiderar a influência que os déficits cognitivos e orgânicos possam exercer a
nível psíquico, mas por acreditar que sem presença de marcadores biológicos cientificamente
balizados às causas das perturbações psíquicas, a medicalização haja de forma paliativa, e
acrítica, na gestão dos conflitos quais vivenciam os mais variados sujeitos.
A clínica lacaniana, aos seus moldes, está à margem das tradições descritivas dos
fenômenos psíquicos, que os colocam como tratáveis através de medicamentos exclusivamente;
essa herança inalienável ao freudismo preserva em Lacan um caráter singular de torção da
clínica do olhar e da pílula para a clínica da escuta (BACKES, 2007), como diferencial
distinguível de sua prática. Nesse nível podemos pensar as categorias diagnósticas lacanianas e
suas distinções terminológicas a partir de um estatuto psicopatológico que reintegra o sujeito à
cena principal de seu sofrimento sem esmaga-lo pela noção de “transtorno mental/cerebral” tão
flagrante nas orientações quais os diversos manuais de classificação diagnóstica preservam
mundo afora (TEIXEIRA; CALDAS, 2017). Nesse ponto nos cabe um destaque à clínica
lacaniana e toda sua releitura à psicopatologia freudiana, que possibilita pensarmos a mística e
sua relação com as estruturas clínicas psicanalíticas, mas não sem antes introduzirmos as bases
de onde ela se sustenta: o freudismo e sua psicogenia 14.
Em Freud, as categorias diagnósticas sintetizam em poucas estruturas uma
psicopatologia diferencial (Neurose e suas subcategorias: histérica e obsessiva; Psicose e sua
subcategorias: paranoica e esquizofrênica e a Perversão, também com suas subcategorias: social
e sexual). Os limites entre o normal e patológico, entre a sintomatologia neurótica, o fetichismo
perverso ou mesmo a alucinação do psicótico, como expressões do doente, do anômalo, do
diferente, perdem esse poder a priori. O que é doente e o que é são não depende
necessariamente do quadro sintomatológico, ou seja, do achado dessas qualidades em
indivíduos, pois de certa forma para Freud todos nós apresentamos traços de mesma natureza
(FREUD, 2010 [1930]). Lacan, se valendo dessa psicopatologia, desenvolve alguns acréscimos
à diagnóstica que serão de suma cruciais. Se todos, em alguma medida, apresentam traços que
14
Refere-se a “psicogênico” todo e qualquer distúrbio entendido enquanto de origem psíquica, não orgânica.
41
15
CANGUILHEM, Georges. O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2020.
16 Corrente da psiquiatria clássica atrelada a psicopatologia desenvolvida pelo psiquiatra alemão Emil Kraepelin.
42
Lacan, como herdeiro de Freud, tomara por tese a proposição freudiana que o mal-estar
da vida cotidiana teria mais a ver com a forma como “abordamos” a realidade e seus “nãos”,
do que qualquer outra querela que preserva na dicotomia corpo/mente seu escopo. É situando
num horizonte mais amplo “a saber, a do homem afligido pela linguagem em seu corpo e em
seus pensamento” (TEIXEIRA; CALDAS, 2017, p. 8) que o psicanalista enfatiza uma
reformulação psicopatológica à literatura psicanalítica. Foi mediante esse acréscimo às ciências
que a estrutura psicótica ganha uma nova perspectiva, nos possibilitando pensa-la para além de
sua roupagem histórica vinculada a comportamentos impróprios à “sã normalidade”, ou mesmo
como nos diz Nina Rodrigues (1987 [1897]), “comportamentos impróprios à ordem cívica”.
Desmembrando radicalmente desse quadro homossexuais, transsexuais, místicos, tanto quanto
outros sujeitos que historicamente eram nomeado enquanto “loucos”, “esquizofrênico, ou
desajustados ao comum da vida, Lacan lança as bases de um novo olhar à clínica.
Por psicose, entende-se agora lacanianamente falando, uma estrutura subjetiva que
evidencia-se por um tipo particular de rejeição, assim como nos diz Bruce Fink (2018), a um
elemento específico da linguagem ao qual antropologicamente definiu-se pensar o processo de
sociabilidade: a função de laço. Ou seja, o elemento que tem por função a instauração de uma
nova modalidade de ser distinta a antiga organização arcaica experienciada pelas relações de
reconhecimento da própria imagem pela alienação à imagem de um outro. Em Lacan, as
maneiras pelas quais inscrevemo-nos na realidade perpassam por estágios que poderíamos
descrevê-los adjetivamente enquanto primário e secundário, e à clínica essa concepção será
fundamental para se pensar a diagnóstica. Aliás, um adendo, a realidade pela qual Lacan se
interessa não é a realidade do mundo natural animal; influenciado por Levi Strauss em
Estruturas elementares de parentesco (1949), a realidade que trata a Psicanálise lacaniana é a
realidade cultural, ou seja, o mundo dos símbolos, da linguagem e suas possibilidades e
impossibilidades, usos e abusos, trocas.
Entender a realidade pela qual Lacan toma, por essa perspectiva, é, antes de mais nada,
incidir uma separação terminológica, como organizacional, em relação a Freud. Enquanto em
Freud a forma como situamo-nos no mundo é herdeira fidedigna de uma compressão mentalista
dos complexos de parentalidade, dentre eles o “complexo de édipo” (fase do desenvolvimento
psicossexual infantil responsável pela formação do Ego, função psíquica que tem como tarefa
central adaptar o indivíduo ao mundo empírico e suas limitações). Ou seja, o indivíduo vindo
ao mundo desprovido do pleno desenvolvimento perceptivo-motor encontra no seio parental
(consanguíneo ou não) a suplementariedade gestacional que lhe faltara.
43
Em Lacan, tal trama se dá de maneira não vinculada a noções tão restritas ao nível
familiar das representações mentais construídas pela criança em relação aos seus pais. A
formação da personalidade, análoga ao processo de inserção ou “exclusão” do sujeito na cultura
– ou seja, na realidade simbólica qual Lacan trabalha, opera em triplo momento na história
infantil, vinculada a uma perspectiva linguística de operação: 1) passando pela vida do sujeito
antes de seu nascimento quando, falado pelos pais, desenha-se ainda sem corpo num mundo de
significantes (LACAN, 1988); 2) como sujeito alienado a imagem e os significantes de um
Outro primordial (mãe) como forma imaginária de se autorreferenciar no mundo (LACAN,
1998); 3) e por sua relação com a fala, modo pelo qual aborda a realidade e seus limites para
além do vínculo primário à imagem do outro (LACAN, 1985).
Se para Freud o sujeito adentra a cultura (de fato), enquanto agente individuado, quando
recalca por influência do Pai o desejo de união indissolúvel com esse outro de amparo (mãe).
Para Lacan isso se dará por outros termos (está aí um acréscimo), é encontrando na linguagem
e seus processos de assimilação e aparelhamento da realidade que ele retornará a tese freudiana
de inscrição social enquanto recalque do desejo da mãe, pela noção de metáfora paterna e
inscrição do nome-do-pai enquanto operador simbólico de passagem.
A psicose, para Lacan, nesse sentido funcionando a nível de outro modo de organização
e introjeção de elementos preconizados da linguagem, entra na clínica como uma dessas
modalidades, junto a perversão e neurose, de se lidar com a realidade. O diferencial lacaniano,
nesse ponto, impõe-se não só por uma mudança na abordagem terminológica das categorias
diagnósticas e seus mecanismos constituintes, mas num esforço rigoroso em distinguir tais
estruturas psíquica sem que para isso recorresse a precipitações diagnósticas e julgamentos
normativos de nenhuma respeitabilidade teórica. A isso Lacan recorre como modelo
diagnóstico, apartando de seu projeto psicanalítico qualquer forma de descrição
fenomenológica do sintoma, uma abertura a escuta do sujeito valorizando nos fenômenos da
linguagem seu caráter fecundo e diferencial (LACAN, 1985). Tomemos a tese psicanalítica dos
processos de socialização para entendermos como inscreve-se um quadro de psicose, e por
44
ênfase a psicose, percebermos o desmembramento de quadros que até então eram vinculados a
insígnia da loucura, como é o caso das experiências místicas.
Na teoria lacaniana, desde seu projeto começado em sua tese de doutoramento em 1932,
como esmiuçado em parágrafos anteriores, o tema da psicopatologia, ou mesmo, o papel que o
sofrimento psíquico, a angústia, o dilaceramento proporcionado pelo mal-estar, ou seja, os
males do espírito, acenam à vida dos sujeitos sempre como uma questão de sucesso ou
insucesso do processo de socialização. Por conceito de socialização, nas ciências sociais
entende-se simploriamente: o processo pelo qual o indivíduo, mutuamente, reconhece-se e
reconhecido por uma ordem social que o habilita à convivência em sociedade.
Psicanaliticamente falando, tal inscrição a essa ordem perpassa, inevitavelmente, antes,
por modos de identificação do indivíduo ainda criança à agentes sóciossimbólicos de seu
contexto existencial (LACAN, 1998 [1949]). Esses “agentes do meio” que modernamente no
ocidente fixou-se o entendimento, nos primeiros anos de vida de uma criança, à figuras como a
dos genitores e cuidadores, cristalizam-se como modelos veiculares pelo qual a criança formar-
se-á enquanto ser de desejo, Eu corporal e indivíduo socializado. Bruce Fink em “O sujeito
lacaniano” (1998), quanto em “Introdução a clínica lacaniana” (2018), alerta a esse caráter
determinante, que no a priori, da vida no mundo apresenta-se enquanto crucial para um
entendimento das afecções psíquicas como herdeiras indiscutíveis de “uma certa dinâmica
familiar enquanto gênese social da personalidade” rumo à socialização:
Uma criança nasce, então, num lugar preestabelecido dentro do universo linguístico
dos pais, um espaço muitas vezes preparado muitos meses, senão anos, antes que ele
veja a luz do dia. E a maioria das crianças é obrigada a aprender a língua dos pais, o
que significa dizer que, a fim de expressar seus desejos, elas são virtualmente
obrigadas a irem além do estágio do choro – um estágio no qual os pais são forçados
a adivinhar o que seus filhos desejam ou precisam – e tentar dizer o que querem em
palavras, isto é, de uma forma que seja compreensível aos principais responsáveis por
elas (FINK, 1998, p. 22).
Seguindo:
Para o nosso proposito aqui, basta dizer que o pai que encarna a função paterna numa
família nuclear colocando-se geralmente ente a mãe e o filho, impedindo que a criança
seja inteiramente atraída para dentro da mãe e impedindo a mãe de tragar seu filho.
[...] o pai mantém a criança a certa distância da mãe, ou proibindo a mãe de obter
satisfação com o filho, ou ambas as coisas. [...] A função paterna é uma função
simbólica, e pode igualmente ser eficaz quando o pai acha-se temporariamente
ausente ou quando está presente. As mães apelam para o pai como juiz e punidor
quando dizem aos filhos: ‘Você vai ser castigado por isso quando seu pai chegar’. [...]
De modo similar, ou a função paterna é atuante numa certa idade, ou nunca o será.
[...] As consequências clinicas observáveis do fracasso da função paterna são muitas
e variadas... (FINK, 2018, p. 83-86).
45
17
“A foraclusão envolve a rejeição radical de determinado elemento da ordem simbólica (isto é, da linguagem),
e não de um elemento qualquer: ela envolve o elemento que, em certo sentido, lastreia ou ancora a ordem
simbólica como um todo” (FINK, 2018, p. 83): a função paterna.
47
O místico vive uma relação que pode sim irromper em experiências de alucinações, de
transtornos temporários de linguagem, isolamento social, ou mesmo, de desorganização dos
pensamentos, tão caricatas ao diagnóstico do olhar que podem ser facilmente confundidas com
uma psicose. Por isso o papel da escuta é fundamental. Trazer o sujeito para narrar sua
experiência foi o caminho por qual Lacan tomou por herança de Freud e nisso foi subversivo.
É entendendo que só abordamos a realidade e seus limites pela linguagem, que nascemos e nos
criamos na linguagem (sendo “são” o não) que a psicopatologia lacaniana nos ajuda a
despsicotizar a mística, além de despatologizar sua expressão. O místico diferente do psicótico,
não é tomado em sua vontade por um desencadeamento desmedido de alucinações, visões,
emoções, etc.; antes de tudo, o busca. É no buscar que a experiência mística se aparta
radicalmente do fenômeno da loucura, pois “o místico proporciona o exemplo do método pelo
qual interior e exterior podem ser unidos; o esquizofrênico, o resultado trágico de sua
separação” (WAPNICK, 1993, p. 149 apud TERÊNCIO, 2011, p. 123).
[1932]), a textos como “O estádio do espelho como formador da função do eu” (LACAN, 1998
[1949]), “Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano” (LACAN,
1988 [1960]), ou mesmo, dos textos seminariais “Sobre a carta roubada” (LACAN, 1988,
[1956]), “As psicoses” (LACAN, 1988 [1955-1956]) e talvez a comunicação de maior
importância, “Mais, ainda” (LACAN, 1985 [1972-1973]), que encontramos subsídios à
tematização da mística e sua relação com as estruturas clínicas.
Foi mediante uma abordagem linguageira que captura as relações humanas em um
universo mediado pelas operações de linguagem, enquanto aparelho universal pelo qual
abordamos a realidade, que desde seu ensino mais remoto, influenciado pelo paradigma
saussureano, pela antropologia estrutural levistraussiana, e mesmo pela lógica hegeliana trazida
por Kojève (1902-1968) em seus cursos sobre a Fenomenologia do Espírito, que a teoria
lacaniana se ateve a um dado pragmático à sua época: “sem linguagem não há cultura, nem
pensamento, nem personalidade...” (ARAUJO, 2004, p. 12). É por evidenciar que “nascemos
numa linguagem que não foi criada por nós” (FINK, 2018, p. 90) que estabelecemos vínculos
de dependência com o idioma dos outros, se quisermos minimamente expressar nossos
interesses.
Essas relações que resultarão na assimilação da linguagem do outro pelo indivíduo
recém chegado ao mundo, na teoria lacaniana se dará de forma assimétrica. Não há equivalência
de influência, a criança não é uma mera “esponja” que dentro de um universo particular de
linguagem que lhe antecede, mas também é super-inclinada a absorver aquilo que os outros
ofertam e lhe interessa. Safatle em “introdução a Jacques Lacan” (2017), reforça esse
entendimento de interesse que a criança cultiva em seu meio pelos esforços interpretativos dos
outros às suas demandas, tornando-as mais “representáveis” em termos de linguagem comum.
É o discurso do outro internalizado enquanto referencial daquilo que se demanda,
segundo Lacan no uso de Hegel e por conseguinte no Estádio do espelho, que acaba
cristalizando desde a época mais terna da vida uma das instâncias da experiência subjetiva como
marca primeira da personalidade: o Imaginário. O imaginário seria o primeiro registro da
subjetividade humana que estaria intimamente ligado, como nos afirma Lacan em seu vigésimo
segundo seminário, ao reino das identificações, lugar qual extraímos nossas primeiras palavras,
gestos, imagens, para podermos nos autorreferenciar no mundo enquanto corpos que recebem
de fora “coordenadas” (LACAN, 2005[1974-1975]).
A passagem da alienação pelo imaginário para alienação pela linguagem em seu sentido
mais radical, seria um equivalente antropológico da passagem da vida animal para a vida
cultural. Isso em Lacan só seria possível pelo recalcamento da antiga ordem relacional por uma
49
nova. Em outras palavras, enquanto indivíduo que nasce numa linguagem que lhe antecede, a
criança habitaria a linguagem não enquanto ser falante, mas sim enquanto ser falado pelos pais,
pelos outros imediatos, recebendo sua mensagem de fora. Apenas com o advento da fala, ou
seja, de uma apropriação do “idioma dos pais”, a criança poderia sair da condição de
dependência do discurso do outro para nomear seus interesses e elevar-se ao papel de ser
discursivo. Foucault já nos falava:
[...] visto que o discurso – como a psicanálise nos mostrou – não é simplesmente
aquilo que manifesta (ou oculta) o desejo; é visto que – isso a história não cessa de
nos ensinar – o discurso não é simplesmente aquilo que traduz as lutas ou sistemas de
dominação, mas aquilo porque, pelo que se luta, o poder do qual nos queremos
apoderar. (FOUCAULT, 2014, p. 10).
É um segundo registro, o simbólico, que advém com a fala (em seu sentido mais amplo)
que alça essa possibilidade de sensação de independência, de autonomização frente a miragem
de completude representacional qual a relação de identidade (imaginária) supõe. Mas nem
todos, como nos aponta Lacan em “As psicoses” (1988 [1955-1956]), reagem satisfatoriamente
“bem” a esse “novo modo de autenticar seus interesses”. Um grupo muito específico, os
psicóticos, foracluem, como visto, esse elemento fundante da linguagem enquanto veículo de
laço, de relação, de sensação de “dominação” dos meios por quais expressa-se os interesses,
vontades e desejos. Outros como os neuróticos, são o seu oposto frente a linguagem, tomam
com forma mais “autêntica” de representação uma forma de viver na linguagem enquanto seres
que minimamente “dominam” e internalizam um subconjunto de formas de expressões:
Embora a linguagem fale através de nós, mais do que a maioria quer admitir, embora
pareçamos, às vezes, ser pouco mais que transmissores do discurso que nos cerca, e
embora, às vezes de início nos recusemos a reconhecer o que sai da nossa própria boca
(lapsos, fala engrolada etc.), em geral temos a sensação de viver na linguagem e de
não sermos simplesmente vividos por ela. O psicótico, por outro lado, é subjugado
pelo fenômeno do discurso como um todo (Seminário 3). Enquanto todos somos
habitados pela linguagem como uma espécie de corpo estranho, o psicótico tem a
impressão de ser possuído por uma língua que fala como se viesse não de dentro, mas
de fora. (FINK, 2018, p 91).
18
“Corpo do Outro, corpo fictício do qual se haveria destacado uma parte gozosa.” (NASIO, 1993, p. 152).
51
fundador introduz por via de um formalismo lógico as bases para se pensar a experiência de
gozo místico como subjacentes as formulações da sexualidade feminina.
O meio por qual o místico procura “tatear” esse instante fugitivo, nostálgico, de uma
vivência “enigmática” que se apresenta enquanto cena afetiva de uma época mítica perdida,
originária, onde se supõe, como nos dirá Terêncio (2011), um estado de “bem aventurança”
com o ambiente, os personagens, a trama vivida, é por meio da fantasia de identificação que o
sujeito estabelece com essa perda. Ou seja, “do ponto de vista psicanalítico, somos, na fantasia,
aquilo que perdemos.” (NASIO, 1993, p. 129).
A fantasia de uma união total a esse instante, ou melhor, a esse Outro que falta, remete
a uma carência de completude – do todo. É alucinando19 em um lugar fora do “aleijo” qual a
linguagem exerce sobre o objeto de desejo, de fascínio (o phallus - falo, significante da sutura
da falta), e sua possibilidade de obtenção, que o místico parece esbarrar em uma relação
diferencial de mediação com o registro simbólico (operador da castração). É por estar posto
em uma dupla posição, como observa Lacan (1985 [1972-1973]), quanto a sua forma de gozar,
uma mediada pela fantasia, ou seja, meio linguístico que nos sobra enquanto tentativa de
“remendo” desse “corte fálico” (perda), entre o gozo obtido frente ao gozo esperado, observado
na passagem da necessidade para o desejo na infância; e essa outra modalidade sobre a qual
nada se sabe, exceto que, ela se estabelece pela foraclusão temporária da função paterna – lugar
ocupado pela linguagem em sua qualidade simbólica de “tampo” à incompletude deixada pela
impossibilidade secessão do desejo, ou seja, realização satisfacional plena.
A sugestão lacaniana em seu último ensino, em fins dos anos setenta, é “definir o místico
a partir de seu posicionamento no lado feminino das fórmulas da sexuação” (TERÊNCIO,
2011, p. 145). Isso em outros termos expressaria uma subversão na concepção psicanalítica de
identidade sexual circunscrita apenas e só na função simbólica, já que Lacan aloca “no lado
feminino”, nesse ensino, outra possibilidade de gozo que não um falicizado (castrado). Ou seja,
pela concepção clássica da psicanálise, como já abordamos por inúmeras perspectivas nesse
trabalho, toda identidade, ou melhor, toda forma de identificação, remete a uma ligação afetiva,
como nos dirá Roudinesco e Plon (1998), que a criança desde os primeiros anos de vida terá a
outras pessoas de seu contexto existencial (primariamente familiar) servindo-lhe delas como
19
E aqui tome por nota tudo que estamos trazendo: Alucinar em seu sentido mais amplo não categoriza a
experiência mística como uma experiência de loucura. Vejamos no tópico sobre a “crítica ao diagnóstico do olhar”.
52
modelo pedagógico dos seus interesses, quanto definidores primários de uma personalidade, até
que culmine o advento do complexo de édipo, quando se oferecerá à criança “duas
possibilidades, ativa e passiva, de satisfação libidinal” (ROUDINESCO; PLON, 1998, p. 365).
Em outros termos, uma possibilidade “masculina” e outra “feminina” de ser no mundo, não
havendo possibilidade de escolha pura diga-se de passagem.
Apesar de afastar do biológico, anatômico, os processos pelos quais se dariam a
formação de uma identidade sexual, essa concepção ainda prender-se-ia aos reducionismos e
preconceitos da época. A psicanálise fundara e reforçara historicamente um modelo
extremamente falocentrado de se entender os modos pelos quais os sujeitos formar-se-iam seres
de práticas sexuais. Ou seja, como bem sintetiza Fabbi e Schuck:
Uma vez que o real do sexo é inacessível, o essencial para a construção da identidade
sexual é que ela seja simbolicamente reconhecida pela palavra do outro, encarnada
por quem acolhe a criança no mundo. Esse reconhecimento inscreverá o recém-
nascido na função fálica e transformará a criança em ser falante, homem ou mulher.
Nada no psiquismo, permite que o sujeito se situe como macho ou fêmea, é do outro
que o ser humano aprende, peça por peça, o que fazer como homem ou mulher
(FABBI; SCHUCK, 2019, p. 2).
Formulando uma nova teoria da sexualidade (ou das formas de gozo para sermos mais
exatos), Lacan nessa comunicação recorre a o tema da mística para introduzir, de forma
inovadora, uma possibilidade de pensar “novas” configurações amorosas e práticas sexuais ao
campo teórico da psicanálise que não aquelas que teoricamente se propunha como únicas
possíveis. Confrontado pelo debate contemporâneo e crescente sobre a experiência transexual,
homossexual, e como essas se articulariam a teoria da identidade sexual e dos papeis de gênero
teorizadas a partir da travessia do édipo, ele encontra no exemplo dos místicos, ou mais
precisamente, nas relações quais esses detinham com suas divindades, o argumento modal que
sustentaria a tese de uma outra possibilidade de relação dos sujeitos com seus corpos e práticas
sexuais socialmente instituídas (LACAN, 1985 [1972-1973]).
Para além de um argumento identitário de reconhecimento que capacitaria definir o que
seria um “homem” ou “mulher”, e práticas sexualmente bem delimitadas que legitimariam
normativamente tais posições como universais, ontologicamente dadas, Lacan priorizou
abordar a diferença sexual não pelo campo das identificações, ou seja, construções imaginárias
como essencialmente organizadoras da sexualidade e suas facetas (COSSI; DUNKER, 2016).
A teoria do Gozo seria cabal a essa discussão, pois enfatizaria como diferença
distinguível daquilo que supormos como forma “masculina” e “feminina” de ser no mundo, não
uma diferença a nível do semblante, ou seja, como socialmente nos reconhecemos no discurso
de feminilidade e masculinidade culturalmente dado; tampouco ao anatomismo enquanto
argumento válido para se definir “homem” e “mulher”; mas sim, como essa se articularia a
outra tese fundamental na psicanálise: a plasticidade da pulsão e como se incide o recalcamento
sobre essa (FREUD, 2016 [1905]). É recorrendo as formas como os sujeitos, antes de tudo,
falam sobre o seu gozo, ou melhor, sobre o efeito que se produz no sujeito em sua relação com
a linguagem, que Lacan articula tal divisão baseando-se nas diferentes formas como o
recalcamento se impôs aos indivíduos (LACAN, 1985 [1972-1973). Nesses termos, “Lacan vai
insistentemente chamar a mulher de “não-toda (pas-tout) – ela não está inteiramente sob o
domínio do falo” (TERÊNCIO, 2011, p. 139), o recalcamento a esses sujeitos se deram de
forma diferente, elas gozam dentro e “não-toda dentro” da linguagem, mas dessa forma não-
toda “talvez ela mesma não saiba nada a não ser que experimenta – isto ela sabe” (LACAN,
1985 [1972-1973] p. 99).
Nesse ponto o místico servirá a esse papel de exemplo, pois é na forma como ele aponta
a sua experiência “análoga” ao gozo feminino. Se a “mulher” nada sabe a não ser que
experimenta essa irrupção mais além, o místico parece não se dar por satisfeito apenas em
54
experimentar (POMMIER, 1987). O testemunho místico, como Lacan sublinha, é crucial a sua
experiência, pois ele, para o místico, legitima sua vivencia:
Para a Hadewijch em questão, é como para Santa Tereza - basta que vocês vão olhar
em Roma a estátua de Bernini para compreenderem logo que ela está gozando, não há
dúvida. E do que e que ela goza? É claro que o testemunho essencial dos místicos e
justamente o de dizer que eles o experimentam, mas não sabem nada dele. (LACAN,
1985 [1972-1973] p. 102-103)
Por mais que sublinhe um não saber, o testemunho místico faz de sua experiência do
indizível um meio. Um meio de retorno social, de retorno à natureza das coisas que o gozo
feminino se exclui. E por “natureza das coisas”, leia-se, “natureza das palavras” (LACAN,
1985 [1972-1973], p. 99). Terêncio no início do seu “Percurso psicanalítico pela mística”
(2011) enfatiza esse caráter “estagial” da experiência de retorno, Lacan por outro lado, indica
sua importância ao tema da sexualidade feminina: “Essas jaculações místicas não são lorota
nem só falação, são em suma o que se pode ler de melhor - podem pôr em rodapé, nota -
Acrescentar os Escritos de Jacques Lacan, porque é da mesma ordem.” (LACAN, 1985 [1972-
1973] p. 103).
55
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
acadêmica dos conceitos freudianos” (RUDINESCO, 2016 p. 102), que delimitavam, como
por vez ainda delimitam, o campo da vivencia mística à luz da experiência da loucura, da
perversão, ou mesmo do devaneio neurótico – categorias deslegitimadas pelo moralismo
tradicionalista cientifico-cultural.
Por servir-se das leituras de Bataille (1997-1962) Koyré (1892-1964), Kojève (1902-
1968), Henry Corbin (1903-1978), o projeto lacaniano apresentou-se ao mundo como uma
aposta interdisciplinar que recolocou a psicanálise no debate contemporâneo das relações
humanas e sua diversidade. O procedimento eleito por Lacan à revelia de um olhar cartesiano,
resultou em uma nova concepção de sujeito, de racionalidade, como de uma sexualidade para
além dos limites do simbolicamente ordenado pela linguagem, pela cultura, pela regra
convencionada. O místico, quanto sua experiência, entra nas teses lacanianas como exemplo
didático desse novo horizonte teorético que desde seu doutoramento ao fim do seu ensino,
haveria de ser diuturnamente reforçado.
Entendendo que de perto ninguém é normal – pelo menos não nos termos que as ciências
tradicionais categorizam a normalidade como negação à “natureza trágica da vida”, Lacan pôde
oferecer às ciências humanas um acréscimo, um apoio teórico, as problematizações
socioculturais. Isso às Ciências das Religiões (UFPB) parecia-se desconhecido até meados de
2021, quando Katarine de Lourdes Alves Laroche submete à avaliação seu trabalho de
conclusão de curso (TCC): Da bruxa maligna ao feminino terrível do Gozo do Outro: uma
leitura psicanalítica de Anticristo, de Lars von Trier. Lá observa-se obstinadamente a tentativa
pioneira em uma graduação em Ciências das Religiões (UFPB) de transportar às
problematizações concernentes à experiência religiosa, como suas produções, uma leitura (em
partes) lacaniana.
Nesse ponto “Acréscimos lacanianos ao estudo da mística em Ciências das Religiões”
reforça a proposição que Laroche induz sem erro: o caráter agregador à pesquisa das teses
lacanianas. É por transportamos o debate da mística de um quadro psicótico vinculado a
temáticas religiosas às discussões concernentes ao amor, no sentido psicanalítico do termo (uma
busca por si mesmo); que também expomos o quão a experiência do místico perpassa o âmbito
da religiosidade pura, introduzindo-a ao campo da feminilidade, das formas não
simbolicamente ordenadas da sexualidade, quanto a crítica ao sistema simbólico como principal
autor das acepções pejorativas, deslegitimantes, das formas nadas convencionais de se
experienciar, subjetivamente, a realidade.
Sendo assim os acréscimos lacanianos às CRs, apresentam-se como novos meios de se
exercitar cientificamente a aceitação desse outro desconhecido. Se como epigrafado no início
57
dessa pesquisa, “o feminino é o outro, e o outro é tudo aquilo não é conhecido”, um percurso
lacaniano à mística se faz mais que necessário, já que associado em larga escala ao feminino,
possibilita um novo olhar, de respeito às diferenças, de aceitação desse outro em sua
ininteligibilidade simbólica até que se diga o contrário fundamentadamente, como fizera Lacan
ao seu favor.
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