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UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião

Sílvio Lopes Peres

O PROTESTANTISMO NO PENSAMENTO DE CARL GUSTAV JUNG

São Paulo

2007

1
SÍLVIO LOPES PERES

O PROTESTANTISMO NO PENSAMENTO DE CARL GUSTAV JUNG

Dissertação apresentada à
Universidade Presbiteriana Mackenzie
como requisito parcial para a obtenção
do título de Mestre em Ciências da
Religião.

ORIENTADOR: PROF. DR. ANTONIO MÁSPOLI DE ARAÚJO GOMES

São Paulo

2007

2
P147 Peres, Silvio Lopes.
O protestantismo no pensamento de Carl Gustav Jung / Silvio
Lopes Peres. - 2007.
212 f.; 30 cm.

Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) –


Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2007.
Bibliografia: f.193-198.

1. Protestantismo. 2. Iluminismo. 3. Religião.


I. Título.

CDU 347.7:339.137

3
SÍLVIO LOPES PERES

O PROTESTANTISMO NO PENSAMENTO DE CARL GUSTAV JUNG

Dissertação apresentada à Universidade


Presbiteriana Mackenzie como requisito parcial para
a obtenção do Título de Mestre em Ciências da
Religião.

Aprovada em 11 de Setembro de 2007.

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. ANTONIO MÁSPOLI DE ARAÚJO GOMES – Orientador


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Prof. Dr.RONALDO DE PAULA CAVALCANTE


Universidade Presbiteriana Mackenzie

Profª. Drª. YARA NOGUEIRA MONTEIRO


Universidade Federal de São Paulo

4
À minha esposa Sílvia, pelo constante
incentivo, apoio, compreensão e sua
sensibilidade.

5
AGRADECIMENTOS

A Deus, Agente interno, pela força e pela coragem que providenciou todos os
recursos, na realização desse trabalho.

Aos membros da Igreja Presbiteriana Filadélfia de Marília, que por valorizar o


trabalho acadêmico e o aperfeiçoamento intelectual do seu pastor, nos incentivou,
durante todo o período desta pós-graduação.

Ao Conselho da Igreja, pela autorização, que permitiu tal realização, representado


pelos irmãos: Alderacy de Campos Benincasa, Eliseu Pavarini, Marco Antonio Bicalho
Eugênio e Waldir Lopes.

Ao Prof. Dr. Antonio Máspoli de Araújo Gomes, pelo ensinamento durante as aulas e
orientação pelo trabalho realizado.

Ao Prof. Dr. Ronaldo de Paula Cavalcante, pelas aulas tão magistrais quanto
poéticas, que serviram de aprofundamento do pensamento intelectual.

Ao Prof. Dr. Antonio Gouvêa Mendonça, pelo exemplo de trabalho dedicado, que
incondicionalmente entrega-se ao labor intelectual.

À Drª. Márcia Serra Ribeiro Viana, incentivadora e companheira, enquanto pudemos


conviver juntos.

Ao Rev. Paulo Viana, que nos provocou a iniciar este mestrado, e seu apoio moral.

Aos Srs. Reinaldo Pavarini, empresário em Marília e, Odete Saldiba, tia incentivadora
e apoiadora de todos os familiares que necessitam da sua ajuda, financiadores de
parte das despesas de transporte e estadia durante o período das aulas.

Ao irmão Márcio Roberto Agostinho, companheiro nas viagens e de aulas, pela forma
sempre alegre e descontraída de “viver a vida”.

Ao irmão José Wellington dos Santos, que apesar de todas suas dificuldades, se
aplicou ao máximo nos estudos, enquanto pode e, pelo incentivo que nos deu.

À minha mãe Aime Lopes, que além de auxiliar monetariamente algumas vezes,
acompanhou-nos com suas orações.

À minha prima Fernanda Peres Antonio, pelas correções gramaticais feitas sempre
com disposição e desprendimento.

Ao Presbítero Enio Stein, in memorian, reserva moral, ética e espiritual, da cidade de


Rio Claro, amigo para todos os momentos alegres e tristes e, com a fidelidade,
lealdade e verdadeira, blindada contra hipocrisia e inveja. Meu pai no
Protestantismo.

6
Quanto maior for o predomínio da razão
crítica, tanto mais nossa vida empobrecerá; e
quanto mais formos aptos a tornar
consciente o que é mito, tanto maior será a
quantidade de vida que integraremos. A
superestima da razão tem algo em comum
com o poder de estado absoluto: sob seu
domínio o indivíduo perece. O inconsciente
nos dá uma oportunidade, pelas
comunicações e alusões metafóricas que
oferece. É também capaz de comunicar-nos
aquilo que, pela lógica, não podemos saber.
(JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e
Reflexões, p. 262)

7
RESUMO

A presente pesquisa trata do pensamento de Carl Gustav Jung, acerca do

Protestantismo como religião. Declarando-se protestante, Jung faz considerações

pertinentes quanto às influências que o Protestantismo sofreu e desempenhou na

história do Cristianismo, e os resultados que seus fiéis logram, por pertencer a ele,

desde os períodos anteriores à Reforma do século XVI, focalizando sua atenção no

Iluminismo dos finais do século XVII e todo o século XVIII, chegando aos seus dias,

no século XX. O objetivo desse trabalho é apresentar como Jung entendeu o

Protestantismo como “risco e possibilidade” religiosa, isto é, seus aspectos negativos

e positivos. Para isto nos reportamos a alguns conceitos científicos elaborados por

Jung, com o objetivo de compreender os fundamentos de suas observações quanto à

fé protestante, visto serem suas experiências pessoais, o ponto principal de suas

análises científicas, quanto ao Protestantismo.

Palavras-Chave: Religião; Protestantismo; Iluminismo; Gnosticismo; Liberalismo e

Fundamentalismo Teológico.

8
ABSTRACT

This present research deals with the thought of Carl Gustav Jung, concerning the

Protestantism as religion. Pronouncing himself protestant, Jung does pertinent

considerations regarding the influences that the Protestantism suffered and carried

out in the history of the Christianity, and the results that its followers achieve, for

belonging to it, since the periods previous to the Reform of the century XVI, focusing

its attention in the Enlightenment of the ends of the century XVII and the whole

century XVIII, arriving at his days, in the century XX. The objective of this work is to

present how Jung understood the Protestantism as " risk and religious possibility ",

that is, its negative and positive aspects. For this, we report to somes cientific

concepts elaborated by Jung, with the objective of understanding the basis of his

observations about the Protestant faith, since his personal experiences is the main

point of his scientific analyses , with regard to the Protestantism.

Keywords: Religion; Protestantism; Enlightenment; Gnosticism; Liberalism and

Theological Fundamentalism.

9
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................ 12

1º CAPÍTULO: DADOS BIOGRÁFICOS E HISTÓRICO-RELIGIOSO DE CARL

GUSTAV JUNG ........................................................................................ 14

I. 1. Suas Origens Familiares e Religiosas ........................................................ 14

I. 2. Jung na Escola: formação médica e sua visão acerca da psiquiatria............. 35

I. 3. Suas Personalidades: Números 1 e 2 ......................................................... 47

I. 4. Sua relação com Goethe ........................................................................... 52

I. 5. Sua vivência com Freud ............................................................................ 55

I. 6. Sua Teoria ............................................................................................... 59

I. 6. 1. Arquétipo ............................................................................................. 59

I. 6. 2. Anima e Animus ................................................................................... 66

I. 6. 3. Alquimia e Transferência ....................................................................... 69

I. 6. 4. Gnosticismo ......................................................................................... 71

I. 6. 5. Libido .................................................................................................. 73

I. 6. 6. Individuação ........................................................................................ 75

I. 6. 7. Sombra ................................................................................................ 77

I. 6. 8. Self ou Si-Mesmo .................................................................................. 79

I. 7. A Torre de Bollingen ................................................................................. 81

I. 8. Suas Viagens ........................................................................................... 82

I. 8. 1. África do Norte e Novo México .............................................................. 83

I. 8. 2. Quênia e Uganda ................................................................................. 84

I. 8. 3. Índia ................................................................................................... 85

I. 8. 4. Ravena e Roma .................................................................................... 86

10
I. 9. Problema cardíaco ................................................................................... 86

2º CAPÍTULO: RELIGIÃO E PROTESTANTISMO EM CARL GUSTAV JUNG .. 90

II. 1. As Repercussões do “Sonho” ................................................................... 90

II. 2. “A teologia que estava na ordem do dia” .................................................. 92

II. 3. C. G. Jung reage ao criticismo bíblico e ao liberalismo teológico ................. 96

II. 4. C. G. Jung toma uma posição: Kant e Schopenhauer ................................ 100

II. 5. O Iluminismo no Protestantismo .............................................................. 112

II. 6. C. G. Jung reage ao Protestantismo Iluminista: Fenomenologia própria....... 120

II. 7. Definição de Religião para C. G. Jung ...................................................... 124

II. 8. Protestantismo para C. G. Jung ............................................................... 128

II. 9. Sonhos: “Caráter divino das Escrituras” .................................................... 142

3º CAPÍTULO: JUNG, O PROTESTANTE ................................................... 149

III. 1. C. G. Jung, seguidor de Schleiermacher? ............................................... 149

III. 2. “Sou protestante” ................................................................................. 154

III. 3. C. G. Jung, gnóstico? ............................................................................ 157

III. 4. O Protestantismo como “psiquificação” dos instintos alemães ................... 162

III. 5. Protestantismo como “risco e possibilidade” ............................................ 172

III. 6. Dogma e Experiência Religiosa para o Protestantismo .............................. 189

III. 7. Protestantismo como Religião da “plenitude de vida” ............................... 192

CONCLUSÃO ............................................................................................ 205

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ........................................................... 208

ENDEREÇOS ELETRÔNICOS CONSULTADOS .......................................... 213

11
INTRODUÇÃO

Este trabalho trata de apresentar o pensamento de Carl Gustav Jung acerca

do Protestantismo, como religião. Tendo nascido e convivido num ambiente

protestante, não se furtou em admitir “sou protestante”. Assim sendo, estamos

diante de um cientista que analisou os elementos fundamentais de sua crença

religiosa, questionando-a frente às experiências pessoais que vivera, intensamente.

Jung verificou que o Protestantismo se afastara de suas origens históricas, por

envolver-se com o Iluminismo, perdendo sua linguagem simbólica, por defender o

racionalismo em detrimento da alma e sua “função transcendente”. Aos protestantes

não recomendava abandonar sua fé, ao contrário, estimulava-os a encontrar nela os

elementos que os fariam encontrar a “plenitude de vida”, pois experimentara por si

mesmo, ser o Protestantismo uma religião viva.

Para isso seguimos os seguintes critérios na abordagem de tão extenso e

interessante tema: primeiramente, procuramos encontrar em duas de suas obras –

Memórias, Sonhos e Reflexões e, Psicologia e Religião – não que nas demais Jung

não tratasse do Protestantismo, mas para que tivéssemos uma visão mais específica,

dentro de nossas possibilidades, sobre o assunto. A natureza desse trabalho não

poderia ser outra senão apresentar um breve registro biográfico e histórico-religioso

de Jung, conforme o mesmo nos apresenta, principalmente, em sua biografia

Memórias, Sonhos e Reflexões. Em segundo lugar nossa preocupação principal foi de

coletar os registros das análises que Jung elaborou acerca de suas experiências

religiosas frente ao sistema protestante de seu tempo. E, por fim, apresentar o

contexto que se deu suas análises, tendo como pano de fundo os conceitos teóricos

junguianos e, as considerações que Jung apresenta ao mundo protestante, para que

12
este seja uma verdadeira Igreja e não apenas uma “sementeira de cismas”. Assim

sendo, a relevância deste trabalho está na razão do Protestantismo experimentar em

seu seio a dicotomia razão e alma, dogma e subjetividade.

Considerado “esotérico” por alguns e, “místico confuso” por teólogos,

principalmente protestantes, Jung é uma personalidade desconhecida e,

principalmente, suas posições acerca da fé cristã, este trabalho objetiva atender esta

lacuna, apresentando tal tema em língua portuguesa.

13
1º CAPÍTULO:

DADOS BIOGRÁFICOS E HISTÓRICO - RELIGIOSO DE CARL GUSTAV JUNG

I. 1. Suas Origens Familiares e Religiosas

Carl Gustav Jung, nasceu no dia 26 de Julho de 1875, em Kesswill, cidade

pequena, com menos de mil habitantes 1 , localizada em um dos Cantões da Suíça,

Turgóvia, que fica à beira do lago de Constança. Em Memórias, Sonhos e Reflexões,

Jung registra que de lá, sua família mudou-se, seis meses depois do seu nascimento,

para o “Presbitério 2 do Castelo de Laufen, que domina as quedas do Reno” 3 , bairro

da Dachsen-am-Rheinfall, cidade de Schaffehausen 4 , com pouco menos de dois mil

habitantes, próximo da região de Zurique, e lá permaneceu durante quatro anos 5 e

de onde, ele disse: “vi os Alpes pela primeira vez” 6 . A mudança de cidade foi devido

à transferência de seu pai, Johann Paul Achilles Jung (1842-1896), pastor da Igreja

Luterana 7 , para atender às exigências de seus superiores. Em 1879, mudaram-se

novamente, agora para Klein-Hüningen 8 , perto de Basiléia, Cantão de Basel-Land,

onde além, naturalmente de exercer o pastorado, foi também Presidente do

Conselho da Cidade, em cuja função tinha autoridade para nomear professores e

dirigir a Escola local 9 . Em poucos anos, a família residiu em três cidades diferentes.

Richard Noll (1959 -), psicólogo clínico norte americano, autor de O Culto de Jung,
1
http://www.cgjung.net/tour/kesswil.htm, consulta realizada em 16 de Novembro de 2006 (apresenta fotos
dos locais da vida de Jung)
2
Uma informação que pode interessar aos presbiterianos, segmento reformado, de ramo calvinista, é
quanto ao termo de sua organização eclesiástica – “presbitério”, apesar de Jung não definir o que vem a
ser o “presbitério”, em outra parte, ele diz: “o presbitério fica isolado”, dando a entender que se tratava da
propriedade onde se localizava o Templo e a residência do pastor.
3
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 21.
4
http://www.symbolon.com.br/biografia2.htm, consulta realizada em 26 de Setembro de 2006.
5
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 21
6
Id. p. 347
7
Id. p. 23
8
Id. p. 28
9
http://www.nytimes.com/books/first/m/mclynn-jung.html, consulta realizada em 26 de Setembro de 2006.

14
aponta algumas razões que talvez justifique tantas mudanças: seus pais eram de

famílias burguesas e haviam sofrido perdas financeiras consideráveis 10 . É importante

notar que Noll registra Jung como “calvinista” 11 , porém, segundo o Dicionário Crítico

de Análise Junguiana, ele era “luterano” 12 e, em Memórias, Sonhos e Reflexões,

referindo-se ao pai, Jung afirma: “meu pai está presente, em seu traje de pastor

luterano” 13 . As cidades em que moraram eram muito pequenas, praticamente vilas

rurais e sabe-se que sua família exercia um papel modesto. No entanto, Noll

assegura, citando o historiador da psiquiatria Henri Ellenberger, que “o presbitério

tem sido considerado uma das células germinativas da cultura alemã” 14 ; na opinião

de Jung, estes lugares “eram organizados e cheios de um sentido oculto” 15 , mas que

tanto os homens como os animais já o haviam esquecido e não percebiam a vida

passando por eles, talvez devido à religiosidade do lugar.

Originariamente a família de Jung era da Alemanha, e seu nascimento na

Suíça se deu pelas seguintes razões: seu avô paterno Carl Gustav Jung (1794-1864),

franco-maçom e grão-mestre da Loja Suíça 16 , dramaturgo, cientista e médico 17 em

Berlim, Alemanha mudou-se para Basiléia, Suíça, em 1820, tornando-se em 1824,

cidadão suíço 18 . Lá lecionou anatomia e cirurgia na Universidade, em que foi reitor,

sendo esta fundada pelo papa Pio II19 e, até então, era católico 20 . Residia em Mainz,

10
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
22
11
Id. p. 40
12
SAMUELS, Andrew, SHORTER Bani e PLAUT, Fred. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de Janeiro:
Imago Editora Ltda., (s/d). p. 189
13
Id. p. 23
14
Id. p. 26
15
Id. p. 69
16
Id. p. 207
17
Id. p. 84
18
http://www.psychematters.com/papers/bair.htm - consulta realizada em 16 de Novembro de 2006.
19
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p.347
20
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
23

15
cidade vizinha a Frankfurt. Para Jung, sua árvore genealógica começa com seu

bisavô Sigismund Jung, nascido no começo do século XVIII21 . Seu avô materno,

Samuel Preiswerk (1799-1871), foi o primeiro pastor na mesma cidade, Basiléia 22 ,

sendo Presidente do Conselho de Pastores da Igreja Reformada Suíça 23 , erudito e

dotado para a poesia. Foi de sua segunda esposa Augusta Faber (?), que provinha

de uma família protestante francesa, da Alsácia 24 refugiada na Alemanha depois da

revogação do Édito de Nantes (1685) 25 , que nasceu sua mãe Emile Preiswerk (1848-

1923), esta sim, de origem calvinista. A Igreja Reformada da Suíça era “rígida,

exclusivista e convencional”, bem ao estilo de vida do povo suíço “profundamente

religioso e politicamente conservador, com um forte sentido de independência” 26 .

Jung freqüentemente identificou o povo aos Alpes, como a imagem coletiva central

da Suíça e sugeria que a paisagem, por ser mais forte que os homens, tinha

produzido o povo com as características de “obstinação, persistência, pertinácia e de

orgulho inato” 27 . Para se ter uma idéia da influência destas características do povo

suíço, em 1875 a Confederação Suíça expulsou aos jesuítas, estabelecendo no

catolicismo suíço os Ultramontanos, que aceitaram o dogma da infalibilidade papal de

1870, e os Católicos Velhos, que contundentemente recusaram-no, a ponto do Censo

Demográfico de 1888 registrar que havia na Basiléia 74.247 habitantes, sendo que

21
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 208
22
GAILLARD, Christian. Jung e a Vida Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 13
23
http://www.psychematters.com/papers/bair.htm - consulta realizada em 16 de Novembro de 2006.
24
Idem
25
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
23. Quanto ao Édito de Nantes, tratasse de um documento assinado em 13 de Abril de 1598, pelo rei da
França Henri IV, que garantia aos huguenotes, protestantes, tolerância religiosa, depois de trinta e seis
anos de perseguição e massacres por todo o país, assegurando, no entanto, que a religião oficial do Estado
Francês, continuaria sendo a confissão católica. Porém, em 23 de Outubro de 1685, o rei Luís XIV,
revogou-o, forçando muitos huguenotes a fugirem da França.
23 http://www.psychematters.com/papers/bair.htm - consulta realizada em 16 de Novembro de 2006.
27
http://www.nytimes.com/books/first/m/mclynn-jung.html, consulta realizada em 26 de Setembro de
2006.

16
dos tais 50.326 eram protestantes 28 . Este fato histórico era tão forte na família de

Jung, que ele registra que teve medo ao vir se aproximar de sua casa, quando

criança, um “homem vestido de preto e roupas femininas”, passando a considerá-los

homens “perigosos de batinas-negras” 29 e “só aos trinta anos”, pode sentir, sem

experimentar qualquer desconforto, o que era a “Mater Ecclesia” 30 , quando entrou

na Catedral de Santo Estevão, em Viena, Áustria31 .

Jung lembra-se que quando tinha apenas três anos de idade, seus pais se

“separaram momentaneamente, devido às dificuldades da vida conjugal” 32 , casados

desde 18 de Abril de 1869 33 , possuíam um casamento infeliz – “o casamento de

meus pais não fora uma união feliz, mas uma prova de paciência sobrecarregada de

múltiplas dificuldades. Ambos cometeram os erros típicos comuns a numerosos

casais” 34 . Sua mãe permanecera vários meses no hospital Friedmatt 35 , de Basiléia,

onde mais tarde seu pai, foi servir como Capelão 36 , que segundo o próprio Jung “é

presumível que tivesse adoecido em conseqüência de sua decepção matrimonial” 37 ,

o que fazia dela uma mulher infeliz e insegura, vivia em constante medo.Talvez um

dos fatores que tenha contribuído para este quadro, tenha sido o falecimento de seu

primeiro filho, aos cinco dias de vida, além de não cuidar muito de sua aparência

física nem de suas roupas 38 . Neste período, Jung foi levado à casa de uma tia, vinte

anos mais velha que sua mãe, com a qual ficou sob seus cuidados, junto a uma
28
http://www.nytimes.com/books/first/m/mclynn-jung.html, consulta realizada em 26 de Setembro de
2006.
29
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 78
30
Id. p. 24
31
Id. p. 29
32
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
22
33
http://www.psychematters.com/papers/bair.htm - consulta realizada em 16 de Novembro de 2006.
34
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 273
35
http://www.symbolon.com.br/biografia2.htm, consulta realizada em 26 de Setembro de 2006.
36
http://www.symbolon.com.br/biografia2.htm, consulta realizada em 26 de Setembro de 2006.
37
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 22.
38
http://www.psychematters.com/papers/bair.htm - consulta realizada em 16 de Novembro de 2006.

17
empregada, que segundo o próprio Jung, era uma pessoa “muito diferente de minha

mãe” 39 .

Assim, Jung se refere à sua família de modo geral:

Tenho a forte impressão de estar sob a influência de coisas e problemas que


foram deixados incompletos e sem resposta por parte de meus pais, meus
avós e de outros antepassados. Sempre pensei que teria de responder a
questões que o destino já propusera a meus antepassados, sem que estes
lhes houvessem dado qualquer resposta, ou melhor, que deveria terminar ou
simplesmente prosseguir, tratando de problemas que as épocas anteriores
haviam deixado em suspenso. Por outro lado, é difícil saber se tais problemas
são de natureza pessoal ou de natureza geral (coletiva). Parece-me ser, este
último, o caso. Enquanto não é reconhecido como tal, um problema coletivo
toma sempre a forma pessoal e provoca, ocasionalmente, a ilusão de uma
certa desordem no domínio da psique pessoal. 40

Johann Paul Achilles Jung (1842-1896), pai de Jung, considerado por muitos

em Basiléia como um promissor professor de línguas orientais, devido ao seu

doutorado em Teologia, tornou-se um especialista em línguas e culturas clássicas

(grega e latina) e orientais (hebraica e árabe) 41 , na cidade alemã de Gottingen, com

uma Tese sobre uma versão árabe do Cântico dos Cânticos 42 , o que levou Jung (o

filho) a interessar-se por filologia ou arqueologia 43 egípcia e assíria 44 , zoologia 45 ,

paleontologia e geologia, sendo até atraído pelo tio mais velho, para a teologia, mas

recomendado pelo pai, a não ser teólogo de maneira alguma, o que logo o

tranqüilizou, dizendo não ter a menor vontade de assim ser 46 . Seu pai a todos

surpreendeu quando resolveu ser Ministro Protestante da Igreja Reformada da Suíça

e, logo foi nomeado para a Igreja de Kesswill, onde Jung nasceu. Seus

39
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 22
40
Id. p. 208
41
Id. p. 76
42
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
22
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988), p. 76, 89
43
GAILLARD, Christian. Jung e a Vida Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 38 e Id. p. 83
44
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 76
45
Id. p. 84
46
Id. p. 73, 74

18
conhecimentos das línguas orientais ajudaram a aproximá-lo do Rev. Samuel

Preiswerk, o qual veio a ser seu sogro 47 . A decisão de Jung pelas ciências naturais,

inicialmente, e depois pela Medicina48 , foi tomada firmemente depois de muitas

dúvidas, entre filosofia, História e Arqueologia 49 . Seu interesse por Arqueologia, o

acompanhou por toda sua vida, e sempre que possível consultava, com entusiasmo,

Simbolismo e Mitologia dos Povos Antigos 50 , de Georg Friedrich Creuzer (1771-

1858). Como seus pais dormiam em quartos separados, Jung dormia no quarto do

seu pai, que o socorria quando estava em crise respiratória – Crupe (infecção viral

contagiosa dos canais respiratórios superiores) 51 , que o obrigava a ficar de costas na

cama, inclinado para trás, e seu pai o sustentava, mais ou menos, sentado 52 ; para

seu pai, a vida conjugal o decepcionara53 , tanto que nos dias que se seguiram à

morte de seu pai, Jung ouvira sua mãe dizer em voz baixa: “ele desapareceu na hora

certa para você”, o que o levou a compreender que isto queria dizer: “vocês não se

compreendiam e ele poderia ser um obstáculo para você” 54 . Foi depois da morte de

seu pai, que passou a refletir sobre a vida após a morte, levado pela sua

personalidade número dois, e a considerar mais realmente suas condições

financeiras, frente aos estudos de Medicina. Foi neste período que aprendeu a

apreciar as coisas simples, sem, contudo, perder algumas regalias, como por

exemplo, fumar um charuto, por domingo, que ganhara de presente 55 . Aprendeu

47
http://www.nytimes.com/books/first/m/mclynn-jung.html, consulta realizada em 26 de Setembro de
2006.
48
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 84
49
Id. p. 83
50
Id. p. 145
51
http://www.manualmerck.net/artigos/?id=286&cn=1526&ss=, consulta realizada em 26 de Setembro de
2006.
52
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 31
53
Id. p. 89
54
Id. p. 92
55
Id. p. 93

19
com seu pai latim, a partir dos seus seis anos de idade 56 . Para Jung, a biblioteca de

seu pai era um mundo misterioso e maravilhoso 57 , se bem que em outro momento a

considera “relativamente modesta” 58 , por não encontrar nela, livros de filosofia,

levando-o a suspeitar que tais livros valorizavam o pensamento 59 , mas Jung, muitas

vezes, a utilizava sem permissão e às escondidas 60 . Foi seu pai que o ingressou na

Sociedade de Zofingia 61 , definida por Richard Noll, como irmandade universitária 62 ,

composta por 120 membros, cujo lema era Patriae, Amicitiae, Litteris – “Pela Pátria,

pela Amizade e pela Literatura” com objetivo de promover a cultura pan-germânica

mais elevada, na qual anos mais tarde fez várias palestras sobre temas psicológicos

e religiosos 63 , que depois de anos de sua admissão, exerceu o cargo de presidente,

em 1897. Segundo Noll, foi na Sociedade de Zofingia, que Jung palestrou sobre a

teologia de Albrecht Ritschl (1822-1889) 64 , em janeiro de 1899, cujo título foi:

Algumas considerações sobre a interpretação do Cristianismo 65 .

Jung teve sua espiritualidade despertada e fortalecida a partir da proximidade

e influência de sua mãe, mantendo, contudo, um espírito fortemente crítico em

relação à vivência religiosa de seu pai. Seu pai lhe figurava como um homem fraco e

sofredor “aflito pelo sofrimento cristão” 66 , pois para Jung, seu pai, não lutava,

confrontando-se com a sua situação religiosa 67 - “meu pai, na realidade, nunca se

56
Id. p. 50
57
Id. p. 40
58
Id. p. 61.
59
Id. p. 64
60
Id. p. 66
61
Id. p. 91
62
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
26
63
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 93
64
Referências a esta teologia serão apresentadas no Capítulo II: O Protestantismo em Carl Gustav Jung
65
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
157
66
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 189
67
Id. p. 89

20
ocupara com o simbolismo da forma humana de Cristo; porém, sem ter uma clara

consciência da conseqüência da imitatio Christi sofreu literalmente até à morte o

sofrimento vivido e anunciado pelo Cristo. Considerava seu sofrimento como algo de

particular, sobre o qual poderia pedir conselho ao médico e não, de forma geral,

como o sofrimento do cristão. As palavras do Apóstolo da Epístola aos Gálatas 2.20:

“ E se vivo, não sou mais eu, mas o Cristo que vive em mim”, jamais penetraram no

seu espírito, no seu significado total, pois em matéria religiosa tinha horror a todo

pensamento. Queria contentar-se com a fé, mas esta lhe era infiel” 68 – e, seu modo

de existir 69 , era dominado pelos humores depressivos, apesar de “praticar o bem em

demasia” 70 e era hipocondríaco, a ponto de queixar-se várias vezes da sensação de

“ter pedras no ventre” 71 ,ao contrário de sua mãe, em sua opinião, que era “mais

forte” 72 . As lembranças agradáveis que tinha do pai era que à noite cantava melodias

do seu tempo de estudante 73 , que se misturavam, por considerá-lo como uma

pessoa irascível, que não conseguia dominar sua irritação caprichosa ou crônica;

estava sempre de mau humor, e insatisfeito 74 . Talvez devido a isso, Jung não lhe

contasse as experiências religiosas que experimentava, e isto estabeleceu entre eles

um “abismo sobre o qual era impossível lançar uma ponte” 75 . Apesar de várias

tentativas de diálogo com o pai, para conhecê-lo intimamente e o que sabia acerca

de si mesmo, Jung estava convencido de que o quê o atormentava, tinha origem em

suas convicções religiosas, isto é, apesar de entristecê-lo não admitia as dúvidas que

68
Id. p. 189
69
Id. p. 60, 89
70
Id. p. 89
71
Id. p. 91
72
Id. p. 36
73
Id. p. 22
74
Id. p. 33, 36, 89
75
Id. p. 34, 60

21
tinha em relação à fé, fazendo dele um “fracasso religioso” 76 . Para ele, seu pai

deveria, ao invés de discutir com sua família, devido às dificuldades de

relacionamento com a esposa, ou consigo mesmo, discutir com o próprio Deus, pois

acreditava que se assim o fizesse, aconteceria o mesmo que aconteceu com ele,

Deus enviaria um “sonho mágico” 77 , de que Ele é uma questão de experiência

imediata, e não como artigo de fé de sua confissão religiosa, baseado em

argumentos racionais 78 . Para Jung, seu pai não passava de um pobre pastor luterano

de aldeia, de quem tinha pena79 , “homem bom e sem complicações” 80 , devido às

intermináveis dificuldades financeiras que sua família passava 81 (sua mãe “era

incapaz de lidar com as contas”) 82 . Mas, as deficiências e erros do pai, na opinião de

Jung, faziam dele um homem “digno de ser amado”83 , diferentemente dos homens

considerados “bem-aventurados e santos” pela Igreja, “simpatia que se aprofundara

com os anos” 84 . Entretanto, Jung se sentia muito diferente dele 85 . Quando ouvia

seus sermões, Jung sentia dúvidas profundas em relação a tudo que dizia e pensava

em sua própria experiência religiosa. Para Jung suas palavras eram como que

insípidas e vazias, tais como as de uma história contada por alguém que nela não

crê, ou que só conhece por ouvir dizer, pois percebia que suas afirmações acerca de

Deus, eram contraditórias 86 , como encontrara nos livros de teologia que

76
Id. p. 89
77
Id. p. 90
78
Id. p. 90
79
Id. p. 36, 79
80
Id. p. 84
81
GAILLARD, Christian. Jung e a Vida Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 14
82
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 93
83
Id. p. 78
84
Id. p. 274
85
Id. p. 84
86
Id. p. 50

22
consultara 87 . Apesar de querer ajudá-lo, não sabia como 88 . Sua voz ressonante 89 e

seus sermões o irritavam. O seu interesse pelas coisas religiosas, teve início ao se

perguntar quanto à experiência religiosa de seu pai: “saberá ele de que está falando?

Teria acaso a coragem de decapitar-me em holocausto, como a um outro Isaque, ou

de entregar-me a um tribunal injusto, para que me crucificassem como a Jesus?” A

conclusão que chegara era: “Não, ele não teria essa coragem. Assim pois, se a

ocasião se apresentasse, não cumpriria a vontade de Deus, que – segundo a própria

Bíblia – pode ser implacável. Compreendi que as exortações usuais no sentido de

obedecer mais a Deus do que aos homens eram superficiais e irrefletidas” 90 , para ele

e para a Igreja. Jung sentia que o curso de instrução religiosa oferecido pela Igreja

nada dizia sobre o problema que lhe preocupava. O temor a Deus,de que se falava,

era considerado em geral como algo antiquado, “judaico”, e foi substituído há muito

pela mensagem cristã do amor e da bondade de Deus91 , e não tratava do aspecto

mais importante, que segundo ele, era a origem e a relação com o mal. Aos dezoito

anos, manteve inúmeras discussões com seu pai, “sempre com a secreta esperança

de fazê-lo sentir algo da graça maravilhosamente eficaz e ajudá-lo em seus conflitos

de consciência”, ou, como disse, “adquirir novos pontos de vista” 92 , como ele. Jung

percebeu que seu pai queria se contentar com a fé, que pregava conforme os

ensinos teológicos da época, influenciados pelo iluminismo 93 , que segundo ele, sua

fé acabou com ele, tornando-o depressivo, mal humorado, insatisfeito e irascível.

Infelizmente as discussões com seu pai jamais chegavam a uma solução satisfatória,

87
Id. p. 64
88
Id. p. 50
89
Id. p. 23
90
Id. p. 53
91
Id. p. 53
92
Id. p. 273
93
Assunto desenvolvido no Capítulo II: O Protestantismo em Carl Gustav Jung

23
pois estas irritavam e entristeciam-no, por sufocar suas próprias emoções místicas.

“Pois bem – seu pai costumava dizer – você só quer pensar. Mas não é isso que

importa; o importante é crer”. Na opinião de Jung, a teologia os tornara como que

estranhos um ao outro 94 . Jung, nestas oportunidades, esclarecia que era preciso

experimentar para saber e, acrescentava ao pai: “Dê-me essa fé” 95 , referindo-se ao

tipo de fé que seu pai dizia possuir. Porém, mesmo assim sentia que teria sido bom

submeter-lhe suas dificuldades religiosas e aconselhar-se com ele, mas registra: “se

não o fiz foi porque julgava conhecer a resposta que me daria, ligada à probidade do

seu ministério” 96 . Jung dá a impressão de que o ambiente social e religioso não lhe

permitia ser mais direto em suas observações e idéias, durante os debates religiosos

que travava com o pai, ou devido à sua ira e irritação caprichosa. Na opinião de

Jung, seu pai não tinha amigos com quem pudesse discutir temas teológicos que o

atormentavam e, que tanto a teologia como a própria Igreja, como instituição,

abandonaram-no deslealmente e de certa maneira, impediram-no de um encontro

direto e pessoal com Deus 97 . Era natural que sendo o pastor da Igreja, o pai lhe

ministrasse aulas de religião e o preparasse para a crisma (Profissão de Fé), mas isto

o aborrecia, porque o curso de instrução religiosa que seguia nessa época nada dizia

sobre a experiência que tivera, da visão dos muros e paredes da Catedral sendo

derrubadas, enquanto Deus defecava assentado em seu trono sobre ela 98 , que é

relatado mais adiante. Jung nos conta que certa vez, folheando o catecismo em

busca de algo diferente do que considerava “explanações sentimentais,

incompreensíveis e desinteressantes acerca do Senhor Jesus”, deparou-se com o

94
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 90
95
Id. p. 50
96
Id. p. 57
97
Id. p. 90
98
Id. p. 57

24
parágrafo referente à trindade de Deus. Ficou muito interessado pelo assunto: uma

unidade que ao mesmo tempo é uma “trindade”! Ele declara:

Esperei com impaciência o momento em que deveríamos abordar essa


questão. Quando chegamos a ele, porém, meu pai disse: “Chegamos agora à
Trindade, mas vamos passar por alto este problema pois, para dizer a
verdade, não a compreendo de modo algum”. Por um lado, admirei sua
sinceridade, mas por outro fiquei extremamente decepcionado e pensei: “Ah,
então é assim! Eles nada sabem disso e não refletem! 99

Em outro lugar, Jung se refere a este fato:

assim ficou sepultada minha última esperança. Admirei a honestidade do meu


pai, mas isso não me ajudou a superar o tédio mortal que a partir de então
me causava toda conversa religiosa” 100 . “O Catecismo me entediava
indivisivelmente. 101

Para ele, seu pai não tinha paciência e se recusava a debater teologia, porque

tinha “dúvidas profundas e dilacerantes” que o obrigavam a pensar, pois esperava

alcançar a fé mediante esforço pessoal, e não pela graça de Deus 102 .

Quando se refere à sua mãe, Emile Preiswerk (1848-1923), Jung a recorda

com um sentimento filial mais vivo e mais convencido de que ela lhe foi “mais

forte” 103 que seu pai. Ele diz que sua saúde era precária 104 , que segundo Noll tinha

“acessos de doença mental” 105 - talvez esteja aí a razão pela qual levou Jung à

medicina e à psiquiatria mais diretamente . Ela que o iniciou na vida religiosa,

ensinando-lhe uma oração que repetia todas as noites, pois isso lhe “dava um certo

sentimento de conforto diante das inseguranças e ambigüidades da noite” 106 . A

oração dizia: “Estende tuas duas asas, ó Jesus, minha alegria, e protege teu

99
Id. p. 57, 58
100
Jung, C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1990. XI/1, par. 30
101
Jung, C. G. – Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2003. IX/1, par. 30
102
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 74
103
Id. p. 36
104
Id. p. 33
105
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
160
106
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 23

25
pintinho. Se Satã quiser devorá-lo faz cantar os teus anjinhos: que esta criança fique

ilesa”. 107

A imagem desse grande pássaro de asas desdobradas parecia-lhe

tranqüilizadora e protetora. “Pintinho”, em dialeto basileense é kuechli, e kuechli

também significa bolinhos, os quais o pássaro Jesus deveria, portanto, engolir para

livrá-los de Satã, que por sua vez, também os devoraria 108 . Talvez, tal imagem, que

se formara em sua mente – Jesus, “devorador dos homens”, associara ao “phalo

sagrado”, conforme gritara sua mãe, no sonho. O sonho do falo sagrado é relatado

da seguinte maneira:

O presbitério fica isolado, perto do castelo de Laufen, e atrás da quinta do


sacristão estende-se uma ampla campina. No sonho, eu estava nessa
campina. Subitamente descobri uma cova sombria, retangular, revestida de
alvenaria. Nunca a vira antes. Curioso, me aproximei e olhei seu interior. Vi
uma escada que conduzia ao fundo. Hesitante e amedrontado, desci. Embaixo
deparei com uma porta em arco, fechada por uma cortina verde. Esta era
grande e pesada, de um tecido adamascado ou de brocado, cuja riqueza me
impressionou. Curioso de saber o que se escondia atrás afastei-a e deparei
com um espaço retangular de cerca de dez metros de comprimento, sob uma
tênue luz crepuscular. A abóbada do teto era de pedra e o chão de azulejos.
No meio, da entrada até um estrado baixo, estendia-se um tapete vermelho.
A poltrona era esplêndida, um verdadeiro trono real, como nos contos de
fada. Sobre uma forma gigantesca quase alcançava o teto. Pareceu-me
primeiro um grande tronco de árvore: seu diâmetro era mais ou menos de
uns quatro ou cinco metros. O objeto era estranhamente construído: feito de
pele e carne viva, sua parte superior terminava numa espécie de cabeça
cônica e arredondada, sem rosto nem cabelos. No topo, um olho único,
imóvel, fitava o alto. O aposento era relativamente claro, se bem que não
houvesse qualquer janela ou luz. Mas sobre a cabeça brilhava uma certa
claridade. O objeto não se movia, mas eu tinha a impressão de que a
qualquer momento poderia descer do seu trono e rastejar em minha direção,
qual um verme. Fiquei paralisado de angústia. Neste momento insuportável
ouvi repentinamente a voz de minha mãe, como que vindo do interior e do
alto, gritando: “Sim, olhe-o bem, isto é o devorador de homens!” Senti um
medo infernal e despertei, transpirando de angústia. Durante noites seguidas
não queria dormir, pois receava a repetição de um sonho semelhante.109

107
Id. p. 24
108
GAILLARD, Christian. Jung e a Vida Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 17
109
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 25-26

26
Jung demorou muitos anos para descobrir do que tratava o “objeto” 110 , ao se

referir ao “phalo sagrado”. Só muito mais tarde descobriu que a forma estranha era

um falo e dezenas de anos depois, compreendeu que se tratava de um falo ritual 111 .

Este sonho o acompanhou durante toda a vida, como expressão do arquétipo da

fertilidade representado pelo phalo sagrado, imagem arquetípica reunindo sexo e

religião, carne e espírito 112 . Ele assim interpretou o sonho:

A significação abstrata do falo é assinalada pelo fato de que o membro em si


mesmo é entronizado de maneira ictifálica (ereto). A cova na campina
representava sem dúvida um túmulo. O próprio túmulo é um templo
subterrâneo, cuja cortina verde lembra a campina e representa aqui o mistério
da terra coberta de vegetação verdejante. O tapete era vermelho-sangue. 113

Para Jung, Jesus e o phalus sagrado eram como o Deus grego Dioniso,

expressões arquetípicas da fertilidade humana que transcendem até mesmo a

finitude da vida e não poderiam ser reduzidas à sexualidade incestuosa nem com

todo o esforço do mundo, como queria Sigmund Freud, segundo sua teoria da libido

sexual. Ele diz que tal sonho,

reaparecia cada vez que se falava com demasiada ênfase no Senhor Jesus
Cristo. O “Senhor Jesus” nunca foi para mim completamente real, aceitável e
digno de amor, pois eu sempre pensava em sua equivalência subterrânea
como numa revelação que eu não buscara e que era pavorosa. O “Senhor
Jesus” se me afigurava, não sei porque, uma espécie de deus dos mortos-
protetor, uma vez que expulsava os demônios da noite, mas em si mesmo
temível pois era um cadáver sangrento e sacrificado. Seu amor e sua
bondade, incessantemente louvados diante de mim, pareciam-me suspeitos,
pois aqueles que me falavam do “Bom Senhor Jesus”, eram principalmente
pessoas de fraque negro, sapatos reluzentes e que sempre me lembravam os
enterros – os colegas de meu pai e oito tios, todos pastores. Nos anos que se
seguiram, até a minha crisma, esforcei-me penosamente por estabelecer
apesar de tudo uma relação positiva com Cristo, tal como esperavam de mim.
Mas não conseguia superar a minha desconfiança secreta. Enquanto se
tornava mais impossível encontrar uma relação positiva com o “Senhor Jesus”,
eu me lembro que, aos onze anos, a idéia de Deus já começara a me
interessar. 114

110
Id. p. 25
111
Id. p. 26
112
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Transcendência e totalidade. Revista Viver: Mente&Cérebro, Jung: A
Psicologia Analítica e o Resgate do Sagrado. Nº 2, p. 09.
113
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 26
114
Id. 26, 27, 38

27
Voltando à sua relação com a mãe ela servia-lhe como “confidente” 115 para

compartilhar as experiências religiosas que teve na infância, porém, logo percebeu

que não podia confiar-lhe, porque ela o admirava muitíssimo, e ao invés de isso

servir de estímulo, isto não era um fato favorável 116 . Sua admiração era tão grande e

desproporcional, pois mesmo ainda criança, Jung registra que quando tinha onze

anos de idade, ela o tratava como se fosse mais velho e conversava com ele de

adulto para adulto, e isto quase causou uma desgraça, pois lhe confidenciou um

incidente de seu pai, que só foi evitada graças a um período de horas de um dia para

outro 117 , sem, contudo, esclarecer do que se tratava. Sobre a imagem física de sua

mãe, Jung recorda que lhe parecia uma mulher jovem e esbelta, mas que, quando

mais idosa era corpulenta, gorda mesmo e, hospitaleira que cozinhava muito bem e

tinha muito senso de humor; extremamente simpática, e que dela irradiava um

grande calor animal 118 . Era uma mulher que partilhava de todas as opiniões

tradicionais, falava sobre assuntos corriqueiros e sem muita importância, mas que

revelava, repentinamente, uma “personalidade inconsciente de um poder imprevisto

– um aspecto sombrio, imponente, dotado de uma autoridade intangível”119 . Se ela

demonstrava ser uma pessoa aparentemente inofensiva e humana, abruptamente se

tornava “temível”, e isto provocava nele “medo”. Jung registra que havia ocasiões

que ela falava, como que consigo mesma e suas palavras o atingiam profundamente,

de tal maneira que em geral ficava calado 120 . A imagem de sua mãe era tão forte

que Jung diz que quando criança teve sonhos de angústia motivados por ela (por

115
Id. p. 54
116
Id. p. 54
117
Id. p. 57
118
Id. p. 29, 54
119
Id. p. 54
120
Id. p. 54, 55

28
exemplo, do falo sagrado, onde ouvira sua voz que lhe dizia: “Cuidado com o

devorador de homens”. Durante o dia, era uma mãe amorosa, mas à noite a julgava

temível. Parecia então uma vidente que ao mesmo tempo é um estranho animal,

uma sacerdotisa no antro de um urso, arcaica e cruel. Cruel como a verdade e a

natureza. Era a encarnação de uma espécie de natural mind” 121 , isto é, guiava-se

mais, pelo que ele chamou de “fundo invisível e profundo” 122 , do que em sua fé

religiosa. Jung, esclarece que este fundo se refere como uma “ligação com os

animais, árvores, montanhas, campos e cursos d’água, e que era muito diferente

com as manifestações convencionais de sua fé cristã” 123 . Indicando assim, que sua

mãe exercia uma grande e forte influência sobre sua personalidade consciente e

inconsciente, a ponto de confessar:

De minha mãe herdei o dom, nem sempre agradável, de ver homens e coisas
tais como são. Ela não sabia o que dizia, mas sua voz tinha uma autoridade
absoluta e exprimia o que convinha à situação. 124

Foi sua mãe que o introduziu no mundo religioso ao ler Orbis Pictus –

Imagens do Universo – de Johann Amos Comenius125 , antigo livro para crianças no

qual havia a descrição de religiões exóticas, particularmente as da Índia 126 , com

ilustrações coloridas de Brahma, Vishnu, Shiva, entre outros 127 . Talvez deste livro

tenha surgido a idéia de desenvolvimento das religiões, conforme um dos

pressupostos da teoria junguiana 128 . Jung recorda que ela fazia comentários ácidos

121
Id. p. 56
122
Id. p. 56
123
Id. p. 88
124
Id. p. 56, 57
125
http://www.symbolon.com.br/biografia2.htm, consulta realizada em 27 de Setembro de 2006.
126
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 30
127
http://www.nytimes.com/books/first/m/mclynn-jung.html, consulta realizada em 26 de Setembro de
2006.
128
“Poderíamos dizer que o termo ‘religião’ designa a atitude peculiar, de uma consciência, que foi mudada
pela experiência do numinoso”. Psicologia e Religião – XI/1, par. 9

29
quanto às letras dos hinos cantados nos cultos, quanto ao que havia de enfadonho

em alguns deles. Falava acerca da possível revisão do livro de cânticos, por exemplo:

“Ó tu, amor do meu amor, felicidade maldita”, devido aos seus evidentes dons

literários 129 . Apesar, de não saber o que dizia, conforme Jung admite, mas devido à

sua “intuição”, ela sempre apontava algo de muito profundo nas diversas situações

familiares, eclesiásticas e religiosas 130 .

Quando sua mãe morreu Jung encontrava-se em Tessin. Assim, ele registra:

“fiquei aturdido pela notícia, porque sua morte foi inesperada e brutal 131 , em janeiro

de 1923” 132 .

Quanto à família Jung, o contingente de teólogos era consideravelmente

grande. Eram nove. Dois da família do pai, além do próprio, e da família da mãe,

seis 133 e, uma de suas primas era médium134 . Segundo Richard Noll “alguns com

tendências pietistas” 135 . Devido a este ambiente fortemente eclesiástico é de esperar

que Jung registrasse suas impressões, sua participação na vida da Igreja, e do papel

que a religião exercia sobre ele, e sobre a cidade de Basiléia 136 . Ele, não se acanha

de afirmar: “Sou protestante” 137 . Mas, ao mesmo tempo não gostava de maneira

nenhuma de ir à Igreja. A única exceção que abria era o Dia de Natal, e

especialmente o cântico natalino “É este o Dia que Deus criou...”, agradava-o

imensamente as músicas tocadas ao órgão e som do Coral do Templo. Ele escreve

129
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 56
130
Id. p. 57
131
Id. p. 271
132
Id. p. 273
133
Id. p. 49
134
Id. p. 258
135
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
22.
136
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 106
137
Jung, C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Vozes, 1990. XI/1, par. 78

30
em suas Memórias: “Era a única festa cristã que despertava meu fervor” 138 . Porém,

Jung considerava a Igreja uma “fonte de suplício”, devido às contradições que

percebia entre o espírito litúrgico e a vivência familiar, da linguagem religiosa

dissociada da vida cotidiana e sem a reverência devida às manifestações do Sagrado

na vida das pessoas, que eram exortadas a crer em “mistérios”, sem, contudo,

conhecê-los por experiência própria, a começar do pastor, no caso, seu pai, que com

seu “sentimentalismo insípido, profanava sentimentos tão inefáveis” 139 . Foi

comparando com sua experiência religiosa que Jung avaliava a vida religiosa do pai,

tios, ministros religiosos com os quais teve contato, e membros da comunidade

religiosa, pois tinha a convicção pessoal de que aquela teologia e práticas religiosas,

“eram o caminho errado para atingir a Deus, pois não tiveram a experiência de que

essa graça só é dada àquele que cumpre sem restrição a Sua vontade” 140 . Ainda que

muitos sermões tivessem como tema central os fiéis que deveriam fazer vontade de

Deus, em sua opinião, o pressuposto para tal experiência estava equivocado, pois a

mesma “podia ser conhecida pela revelação” das Escrituras. Contudo, sua convicção

não deixava aceitar que assim fosse, pois achava, pelo contrário, que essa vontade

seria tudo que poderia haver de mais desconhecido. “Minha impressão era que, cada

dia, seria necessário indagar acerca de Sua vontade”. Para Jung, a vontade de Deus,

é tão “imprevista quanto duvidosa”, isto é, pessoal e na maioria das vezes implacável

e temível, conforme sua própria experiência e, salienta, como que advertindo para a

possibilidade de as pessoas “pretenderem substituí-la por preceitos religiosos” e

assim se furtarem à obrigação de compreender tal vontade, no âmbito pessoal,

138
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 31, 75
139
Id. p. 52
140
Id. p. 52

31
quando exige algum “sacrifício” 141 . Mas, assim mesmo, Jung fez sua Pública

Profissão de Fé – rito de iniciação cristã, da Igreja Reformada, depois do Batismo,

por ocasião do nascimento – ou Crisma, para os Luteranos, porém, registra que tal

cerimônia fora marcada pelo “vazio” 142 . Confessou, sinceramente, que se “esforçou,

com a maior seriedade, para crer sem compreender”, e dignamente procurou imitar

seu pai. Apesar da solenidade, tão característica deste tipo de cerimônia, Jung

percebeu a indiferença dos seus participantes, que mais se importavam com a

prática escrupulosa da tradição, observada assertivamente, mas que se limitara tão

somente às palavras, no entanto, sem nenhuma emoção, fosse de tristeza ou de

alegria, como seria de se esperar, devido à extraordinária significação da

personalidade celebrada, no caso Jesus Cristo, sua morte e ressurreição; antes, suas

fisionomias revelavam enfado e tédio, conforme observou, a partir de seu próprio

sentimento. Para Jung, aquela cerimônia não passou de uma “deplorável experiência,

que resultara em vazio, pior ainda, perda”, pois para ele, não houvera nenhuma

manifestação de qualquer traço de Deus, pois do contrário, seus participantes,

inclusive ele, não experimentaram algum tipo de emoção, fosse desespero intenso,

comoção ou alegria muito grande e contagiante, pois nisto estava a essência de

Deus. Para ele, a cerimônia que o uniria a Jesus, provocaria pelo menos a mesma

experiência que tinha tido, em sua infância, no sonho do “phalo sagrado”, mas, não

passou, segundo ele mesmo disse “de uma ausência de Deus”. Isto foi suficiente

para Jung decidir não voltar mais à Igreja, pois a partir de então, a Igreja passou a

ser “um lugar da morte”, sentindo que seu ingresso à Igreja fora a maior derrota da

sua vida. Para ele, as cerimônias religiosas eram vulgares e ridículas se comparadas

141
Id. p. 51
142
Id. p. 59

32
com seus “segredos”, a saber, seus sonhos, especialmente do falo sagrado, os quais

não inventara, mas entendia como que uma vontade mais forte se impusera sobre

ele. Seus “segredos”, não poderiam ser compreendidos como uma ação diabólica,

pois, segundo ele, o Diabo, não passa de uma criatura de Deus – que não age livre e

arbitrariamente, mas aceita ser da vontade de Deus, tida como terrível, temível e

implacável, que lhe foi como “fogo devorador e graça indescritível”, ainda que mais

tarde admita que tal experiência fora por “intermédio do Diabo, e se impusera contra

sua vontade” 143 . O desencanto que sentia o levara a uma espécie de desinteresse

resignado, assegurando-lhe, no entanto, uma profunda convicção de que só a

experiência com Deus, pelo Espírito Santo, “inconcebível, cujas ações eram de

natureza sublime” 144 , lhe era decisiva quanto à religião 145 . Jung compreendia esta

situação assim: “como Deus permanecera ausente – da cerimônia de recepção à

Igreja, por Sua vontade separei-me da Igreja e da fé de meu pai e de todos os

outros, na medida em que representavam a religião cristã”, ainda que tenha ficado

muito triste com isso. Porém, deixa bem claro, que isto não significava que tivesse

alguma “vocação nem para fundar uma religião, nem para professar uma dentre

elas”, pretendendo ser somente médico 146 . Quanto mais se afastava da Igreja, mais

se sentia aliviado, considerava seus colegas de fora da Igreja, “menos virtuosos, mas

mais amáveis, de sentimentos mais naturais, afáveis, calorosos, alegres e cordiais”,

enquanto seu pai, talvez numa atitude de respeito, nunca o questionara, pelo fato de

se ausentar do Culto e da Eucaristia147 .

143
Id. p. 62
144
Id. p. 95
145
Id. p. 96
146
Id. p. 322
147
Id. p. 75

33
Outro fato que o levou a distanciar-se da Igreja, foi à associação que fez de

Jesus com os homens parecidos com os ministros religiosos, com suas vestes negras

e sapatos lustrosos, semelhante aos jesuítas, e aos homens que freqüentavam a

Igreja, e identificados desde a infância quando presenciara ao enterro de um

homem, que morrera afogado, devido às cheias do Rio Reno; e, isto ele considerava,

seu “primeiro trauma consciente” 148 . Muito mais tarde, Jung compreendeu que o

“jesuíta” que esculpira numa régua de madeira e, a “pedra” – sobre a qual sentado

falava-lhe e ouvia sua voz, e o sonho do “phalo sagrado” -, constituíam um segredo

inviolável que jamais deveria ser traído, pois para ele, disso dependia a segurança da

sua existência” 149 . Só com trinta e cinco anos de idade, toma conhecimento, quando

preparava seu livro Metaformose e Símbolos da Libido, que o tal “homenzinho

(jesuíta esculpido na régua de madeira) e a pedra”, eram algo parecido com os

cache – em francês, esconderijo, e churingas, pedras dos aborígines australianos,

onde são gravados relatos míticos, e percebe que se tratava de “um pequeno deus

oculto dos antigos” 150 . Segundo John Dourley (?), este segredo constituía o “pré-

racional, a experiência natural e simples do divino no fundamento da vida pessoal e

evidente nas forças naturais, além da psique e dentro dela” 151 .

Aparentemente, Jung não se arrependeu do que lhe aconteceu. Ao contrário,

diz “nessa época principiou inconscientemente minha vida espiritual” 152 . Para ele,

seus “segredos” significavam sinais de uma experiência religiosa pessoal, sem ser

mediada pela instituição eclesiástica nem pelos teólogos, que como seu pai, faziam

148
Id. p. 24
149
Id. p. 33
150
Id. p. 34
151
http://www.metodista.br/correlatio/num_01/a_doule.htm - consulta realizada no dia 01 de Novembro de
2006.
152
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 28

34
restrições do tipo: “mas não é exatamente assim!”, mas, como ele mesmo afirma:

“na minha consciência eu era religioso e cristão” 153 . A vocação para a vivência da

transcendência logo cedo permitiu a Jung perceber que a religião formal do pai, que

asfixiava as emoções místicas do filho, não era pessoal, mas da instituição

eclesiástica 154 .

Tendo visto suas origens familiares e histórica-religiosa, podemos agora

verificar a formação acadêmica de Jung, e sua visão acerca da ciência da Psiquiatria.

I. 2. Jung na Escola: formação médica e sua visão acerca da Psiquiatria

Não eram apenas as aulas de ensino religioso que o aborrecia no Ginásio de

Basiléia, também as aulas de matemática, tornaram-se fonte de horror e tormento,

pois não se conformava que os números fossem identificados por sons – na verdade,

para ele os números tinham significados simbólicos, por exemplo: “o UM, primeiro

nome dos números, é uma unidade. Mas ele é também “a unidade”, o UM, o apenas

UM, o Único, o Não-Dois, não só um nome de número, mas também uma idéia

filosófica, um arquétipo e um atributo de Deus, a Mônada. Qualquer outra unidade

traz consigo novas propriedades e novas modificações” 155 -, mas assim mesmo, ele

conseguiu cumprir bem o currículo das disciplinas, graças à sua memória fotográfica;

e, às aulas de alemão. A gramática e a sintaxe não o interessavam, pois como ele

mesmo diz: “despertava a preguiça e me entediavam” 156 . Estudava seis horas de

aula a fio, com sapatos furados, meias molhadas, calças rasgadas, e mãos sujas 157 ,

153
Id. p. 34
154
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Transcendência e totalidade. Revista Viver: Mente&Cérebro, Jung: A
Psicologia Analítica e o Resgate do Sagrado. Nº 2, p. 08 e 09.
155
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 269
156
Id. p. 66
157
Id. p. 55

35
condições que indispunham-no com a Escola, pois além desses fatos exteriores do

seu vestuário, também sentia “uma espécie de desalento mudo”, por se angustiar

diante da possibilidade de fracassar diante da grandeza do mundo que tomava

conhecimento, devido aos seus sentimentos de inferioridade que acompanhavam a

ausência de importância que dava a si mesmo. Acrescentou-se, outro motivo de

grande importância, pelo menos para ele, para desanimar diante dos desafios

escolares, quando aos doze anos de idade, devido a uma briga com um colega, na

Praça da Catedral, em que bateu a cabeça contra a sarjeta passou a sofrer síncopes

– perda temporária da consciência – e era acometido todas as vezes que tinha que

voltar ao colégio, ou quando seus pais lhe mandavam fazer algum trabalho escolar.

Isto fez com que faltasse às aulas durante mais de seis meses, permitindo-lhe passar

muito tempo ociosamente, em leituras, que lhe eram interessantes e lhe

proporcionavam uma distração benéfica 158 , com suas coleções de pedras e em

brincadeiras solitárias 159 . Fora esta experiência que o fez sentir o que chamou de

“má consciência”, pois esta situação, não o fez mais feliz, pelo contrário, sentia que

fugia de si mesmo, das responsabilidades pessoais e pelas preocupações

compassivas que causava aos seus pais, que consultaram muitos médicos, para dar-

lhe o melhor tratamento, os quais lhe proibiram de fazer ginástica 160 . Numa conversa

que presenciara, às escondidas no jardim de sua casa, ouvira seu pai dizer a um

amigo: “Os médicos ignoram o que ele tem. Falaram em epilepsia: seria terrível se

fosse incurável. Perdi o pouco que tinha (uma clara evidência às grandes

necessidades financeiras pelas quais passava), o que será dele se for incapaz de

158
Id. p. 66
159
Id. p. 40, 41
160
Id. p. 41

36
ganhar a vida?” 161 Esta experiência, foi para Jung, como ele mesmo escreveu: “um

raio que me feriu” 162 . Foi quando percebeu as responsabilidades que tinha diante da

sua existência e, logo, pensou que precisava trabalhar 163 . Esta experiência fizera com

que Jung percebesse que suas síncopes eram “arranjos demoníacos: o colega me

derrubara e eu colaborara” 164 . Então, como que retorna à sua sensatez, percebendo

que ele mesmo havia montado toda aquela história vergonhosa. Isto fez com que

sentisse raiva de si mesmo e, ao mesmo tempo, vergonha, pois percebera que

estava sendo falso diante de si. Para ele, aquilo foi “um fiasco” 165 . Ele próprio diz

que começou a ser consciencioso diante dele mesmo, e não somente a fim de

aparentar valor 166 , esta experiência passou a ser novo “segredo”, este “vergonhoso,

uma derrota” 167 . Jung não se dava valor quando considerava a graça de Deus por

ele mesmo. Seu sentimento de inferioridade se agravava à medida que não podia se

sentir seguro de si mesmo, pois se sentia “um diabo, um porco, ou um réprobo” 168 .

Para ele, os conceitos que os outros tinham a seu respeito, como sua mãe lhe dizia:

“Você sempre foi um bom menino”, não o ajudavam a compreender, pois sempre se

considerou “um ser corrompido e inferior 169 , infantil, vaidoso, egoísta, arrogante,

sedento de amor, exigente, injusto, susceptível, preguiçoso, irresponsável, etc” 170 .

Para ele, sua “má consciência” comprovava sua culpa e seu potencial para o mal, e

as censuras que recebia dos outros, lhe atingiam profundamente, a ponto de dizer

convictamente: “se não tivesse cometido realmente a falta, teria sido capaz de

161
Id. p. 41
162
Id. p. 41
163
Id. p. 41
164
Id. p. 41
165
Id. p. 42
166
Id. p. 42
167
Id. p. 41
168
Id. p. 48
169
Id. p. 48
170
Id. p. 61

37
cometê-la. Tinha a impressão de ser um indivíduo culpado que queria ser

inocente” 171 .

Durante sua formação na Faculdade de Medicina, na Universidade de

Basiléia 172 , aprovado em primeiro lugar 173 , Jung interessou-se pela teoria da

evolução de Charles Darwin (1802-1882), a qual mexeu com suas antigas dúvidas,

seus sentimentos de inferioridade e humores depressivos 174 , a ponto de haver,

segundo ele, “uma identificação inconsciente com os animais” 175 , o que o levava a

faltar às aulas de vivissecção 176 . Interessou-se, igualmente, pela Psiquiatria, depois

de ler Lehrbuch der Psychiatrie, de Krafft-Ebing – Manual de Psiquiatria 177 , que

segundo os autores do livro, o conteúdo que apresentava tinha “um caráter mais ou

menos subjetivo”, isto é, o psiquiatra só podia responder à doença da personalidade

pela totalidade de sua própria personalidade 178 . Seu primeiro livro, consagrado à

psicologia da demência precoce 179 (esquizofrenia, como era conhecida na época)

propunha uma resposta ao que chamavam de “doença da personalidade”, com os

pressupostos da sua própria personalidade: a psiquiatria, em seu sentido lato, é o

diálogo de uma psique doente com a psique do médico, considerada “normal”, o

confronto da pessoa “doente” com a personalidade, em princípio também subjetiva,

do médico empenhado no tratamento. Jung dedicou-se saber o que se passava no

espírito do doente mental, mesmo sozinho, pois nenhum de seus colegas se

171
Id. p. 37, 48, 51
172
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
156
173
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 104
174
Id. p. 97
175
Id. p. 98
176
Id. p. 98
177
Id. p. 103
178
Id. p. 104
179
Id. p. 105

38
interessou pelo mesmo tipo de pesquisa, levou à frente 180 . Nesta pesquisa, Jung

reconhece o papel que Sigmund Freud (1856-1939), que mesmo não sendo

psiquiatra, mas neurologista exerceu sobre ele, e admite que foi essencial,

principalmente, devido às suas pesquisas fundamentais sobre a psicologia da histeria

e do sonho. Seu maior interesse era receber informações diretamente do

inconsciente dos “doentes”. Foi acompanhado por Freud, que Jung recebeu seu

primeiro título honoris causa, pela Clark University, nos Estados Unidos da América

do Norte, em 1909, quando apresentou Estudos sobre as Associações 181 . Como

psiquiatra, Jung formulou sua teoria, inicialmente valendo-se do método de

associação de palavras, depois desenvolveu outros conceitos, pois para ele “não há

verdade unívoca em psicologia... Uma pergunta pode ser respondida de uma forma

ou de outra, conforme considerarmos ou não os fatores inconscientes” 182 . Nesta

posição vemos nitidamente a influência do pensamento kantiano, como veremos

mais tarde. Quanto ao método de associação de palavras, segundo o Dicionário

Crítico de Análise Junguiana, de Andrew Samuels e outros,

tal método fora inventado por Galton e adotado por Wundt”. Trata-se de um
método para a identificação de complexos pessoais mediante a investigação
de associações e ou conexões psicológicas ao acaso. Através deste método
Jung distinguiu diferentes tipos de complexos, dependendo de saber se
estavam relacionados com eventos simples, contínuos ou repetidos; se eram
conscientes, parcialmente conscientes ou inconscientes e se revelavam fortes
cargas de afeto. Usado durante certo tempo, mas logo deixou por completo
tal teste. 183

Para Jung,

a verdadeira terapia só começa depois de examinada a história pessoal. Esta


representa o segredo do paciente, segredo que o desesperou. Ao mesmo
tempo, encerra a chave do tratamento. Cabe ao médico propor perguntas que
digam respeito ao homem em sua totalidade e não limitar-se apenas aos

180
Id. p. 108
181
Id. p. 112
182
Id. p. 109
183
SAMUELS, Andrew e outros. Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Imago Editora, Rio de Janeiro, p.
214, 215

39
sintomas. Na maioria dos casos, não é suficiente explorar o material
consciente. Conforme o caso, a experiência de associações pode abrir o
caminho à interpretação dos sonhos, ou então ao longo e paciente contato
com o doente. 184

Como exemplo, podemos verificar um caso que Jung relata, de uma mulher

que assassinou sua melhor amiga, para casar-se com o marido dela. O que de fato

aconteceu, mas logo o marido faleceu, e a filha, nascida desse casamento, procurou

afastar-se da mãe, assim que atingiu a idade adulta, desaparecendo de sua vida de

uma vez por todas, e ela, não teve mais contato nem notícias da filha. Esta mesma

mulher, que amava apaixonadamente equitação, não podia mais se aproximar dos

cavalos, pois estes se tornaram ariscos, e nem mesmo os cães podiam “suportar”

sua presença, sendo que o seu preferido, um cão-lobo, foi atingido por uma

paralisia. Isto a levou a procurá-lo, e assim Jung, registra sua compreensão deste

caso:

aquele que comete um crime destrói a própria alma; quem assassina já está
se justiçando. Alguém por cometer um crime, é preso, é atingido pela punição
jurídica; mas se o comete em segredo, sem a consciência moral disso, e se o
crime permanece ignorado, pode ser atingido pelo castigo. Tudo acaba por vir
à luz. Às vezes parece que até mesmo os animais e as plantas o advertem.
Como alguém pode viver em extrema solidão? 185

Na sua prática médica, mesmo quando ainda era assistente, na Clínica de

Burghölzli 186 , da Universidade de Zurique, Jung reagia à psiquiatria daquela época,

que não levava em conta a personalidade do doente e se contentava com os

diagnósticos, com a descrição dos sintomas e dos dados estatísticos, pois achava que

o objetivo da psiquiatria era compreender o que se passa no interior do espírito

doente 187 , e passou a dar mais atenção para as reações significativas da psicose,

184
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 110
185
Id. p. 114, 115
186
Id. p. 108
187
Id. p. 116

40
buscando a psicologia do doente mental, “informações diretamente do

inconsciente” 188 , ou o “exame da história pessoal” do paciente189 , observando que

como se houvesse “uma pessoa normal escondida no íntimo do enfermo, que de

algum modo o observava”, que depois denominou de “análise dos sonhos e de suas

outras manifestações do inconsciente” 190 e, não os “rótulos” dos diagnósticos. Seus

estudos sobre a psicose precoce foram publicados e suas intervenções psiquiátricas

valeram a cura de muitos pacientes 191 , e sua fama em todo mundo. Jung buscava

encontrar o “sentido – um núcleo significativo nos dramas, esperanças e desejos dos

pacientes, que mantinham-se vivos e cheios de força de vida e sentido, como se

encontrasse nos doentes as bases da própria natureza humana” 192 . Em 1905, Jung

tornou-se professor de psiquiatria, e também foi médico-chefe da Clínica Psiquiátrica

da Universidade de Zurique, permanecendo quatro anos nesta função – 1905-1909,

e só deixou o cargo, porque seu número de pacientes particulares aumentou

consideravelmente 193 .

Jung era muito discreto no tratamento dos seus pacientes, temendo ser

acusado de “mistificador” ou que errara no diagnóstico, caso algum paciente

esquizofrênico, por exemplo, fosse “curado”. Sua discrição, certa vez, causou-lhe

certo mal-estar com Freud, pois ao apresentar pessoalmente uma de suas pacientes,

apelidada de “Babete”, este não pode compreender como Jung suportou a presença

de uma “mulher que era um fenômeno de feiúra, gastando horas e dias”, em sua

companhia. O mal-estar justifica-se, pois, Jung nunca havia nem sequer pensado

188
Id. p. 108
189
Id. p. 110
190
Id. p. 112
191
Id. p. 110, 111, 112,
192
Id. p. 118
193
Id. p. 110

41
deste modo, pois para ele “Babete” era uma “velha amiga cujas idéias, ainda que

delirantes, eram muito interessantes”, mas, que com o passar do tempo, surgira

nela, o que chamou de “perfil humano”, mesmo sem sucesso, à semelhança de

outros casos que tratou. Para ele, “Babete” e outros pacientes, eram “vítimas” de

forças inconscientes, que não estavam interessadas em se mostrar aos outros, mas

que Jung tinha convicções de que a “aparência exterior”, por pior que fosse tão

somente enganava aos que estavam por perto, pois se importava com os aspectos

do interior – inconsciente – dos pacientes. Para ele, cada paciente deve ser tratado

tão individualmente quanto possível, pois acreditava que a solução do problema é

sempre pessoal, podendo inclusive, uma “solução falsa para ele ser justamente a

verdadeira para outra pessoa” 194 . Jung tinha claro que o analista deve conhecer a

variedade de métodos, sem, contudo, se definir por um “caminho determinado ou

rotineiro”. Ele declara que “intencionalmente” evitava ser sistemático, podendo fazer

uso de vários tipos de abordagens, adleriana, freudiana, dependendo do caso. Para

ele o que decide mesmo é que enquanto ser humano, encontrava-se diante de um

outro ser humano. A análise é um diálogo que tem necessidade de dois

interlocutores. O analista, médico ou não, desde que sob a supervisão de um

especialista, e o doente, se encontram face a face, olhos nos olhos. O analista tem

alguma coisa a dizer, mas o doente, também 195 . Seus estudos sobre mitologia

surgiram da necessidade de tratar a simbologia das neuroses apresentadas pelos

diversos pacientes. O objetivo da psicoterapia de Jung, não é confirmar uma

determinada teoria, mas sim levar o doente a se “compreender como indivíduo” 196 ,

isto é, levá-lo a tomar consciência de sua própria alma, que traz um problema de
194
Id. p. 120
195
Id. p. 121
196
Id. p. 121

42
ordem universal, coletiva, e é a esse mundo interior que o analista deve se referir,

mas a eficiência do tratamento depende do próprio terapeuta compreender a si

mesmo, que apenas conhecendo-se a si mesmo e a seus problemas, poderá cuidar

do doente. O terapeuta é a sua própria matéria a ser trabalhada. Antes não. Em

muitos casos os pacientes só podem ser “curados” se o terapeuta se envolver

pessoalmente com sua própria alma, seu inconsciente. Para Jung, o terapeuta

contribui para a “cura”, caso trate de suas próprias feridas, ao tomar conhecimento

das “feridas” que seus pacientes lhe trazem. Jung afirma: “levo meus pacientes a

sério”. Isto significava que ele próprio estava diante de um problema, que

provavelmente, não tivesse consciência, e o próprio doente se constituía num apoio

para um problema com que se confrontava. Jung é de opinião que todo terapeuta

deve ter a supervisão de um terceiro, para que haja sempre a possibilidade de um

outro ponto de vista. Durante a análise, Jung não procurava exercer qualquer tipo de

pressão, do tipo religiosa sobre o paciente, procurando convertê-lo ao seu sistema

religioso, mas acreditava que o próprio doente era capaz de chegar à sua própria

concepção religiosa. Para ele, um “pagão continuará um pagão, um cristão, cristão e

um judeu, judeu, se for isso que exigir seu destino”. Num dos casos que relata,

acerca de uma jovem judia que atendera, e que fora antecipadamente “avisado” em

sonho, verificou o quanto era verdadeiro que o “destino” pode exigir o retorno à

religião do paciente. No caso desta jovem, tratava-se de uma neta de um rabino

“Zaddik”, que segundo ela mesma dissera, “era uma espécie de santo e que tinha

uma segunda visão”, mas que por várias razões, considerava a religião como “tolice”,

por acreditar que tais “coisas não existissem mais”. Jung teve que dizer-lhe: “seu avô

era um “Zaddik”. Seu pai foi infiel à religião judaica. Traiu o mistério e esqueceu

43
Deus – e sua neurose está ligada ao medo de Deus”. E, qual não foi sua surpresa,

Jung novamente sonhou com a mesma jovem do sonho anterior, a quem emprestou

um guarda-chuva, mas o ofereceu ajoelhando-se diante dela, em sentido de

profunda reverência. Jung relata que contou o sonho, a referida paciente, e oito dias

depois sua neurose desaparecera. A terapia teve continuidade, Jung apresentando-

lhe à mitologia e à religião, pois para ele, a paciente “era um desses seres que

devem desenvolver uma atividade espiritual”, nisto consistia o sentido da sua vida.

Jung concluiu que a cura se dera em razão da “presença do numen”, isto é, do

sagrado, conforme o conceito de Rudolf Otto, e que seu método, neste caso, fora

seguir ou acompanhar o “temor de Deus que agia sobre ela” 197 . Para Jung, a causa

das neuroses era a confiança dos pacientes à “respostas insuficientes ou falsas às

questões da vida”, que os levavam a procura de várias situações como casamento,

reputação, sucesso exterior e dinheiro, e mesmo quando atingem o que buscam,

continuam infelizes e neuróticos. Para ele, trata-se de uma grande limitação do

espírito, pois o mesmo não tem conteúdo suficiente, não tem sentido, mas quando

encontram algo suficiente ou sentido, a neurose em geral cessa. Também, é digno

de nota, visto que estamos tratando do Protestantismo no pensamento de Jung, que

ele próprio registra em seu Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo, o caso de um

teólogo, pastor protestante 198 , que tinha um grande “desprezo pela alma”, isto é,

dificuldades para aceitar que o Espírito Santo age livremente sobre sua vida,

levando-o a experimentar o que a sua teologia desconsiderava e rejeitava. Nos diz,

ele:

197
Id. p. 127
198
Jung, C. G. – Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis: Vozes, 2003. Volume IX/1, parágrafo
36

44
Um teólogo tem um sonho que se repete freqüentemente: sonha que se acha
no declive de uma colina, de onde se descortina uma linda vista sobre um
vale profundo, com florestas espessas. Sabe que há muito tempo algo o havia
impedido de penetrar nesse lugar. Dessa vez, entretanto, quer fazê-lo.
Quando se aproxima do lago, é tomado de terror e, repentinamente, um leve
golpe de vento desliza na superfície da água, que ondula e fica sombria. Ele
acorda gritando de medo. No primeiro momento, o sonho parece
incompreensível; mas, sendo teólogo, deveria ter-se lembrado do “lago” cujas
águas foram agitadas por um vento súbito e no qual os doentes eram
mergulhados: o lago de Bethesda. Um anjo desce do céu e aflora a água, que
assim adquire o poder e a virtude de curar. O vento leve é o pneuma que
sopra onde quer. E o sonhador experimenta uma angústia infernal. Uma
presença invisível se revela, um numen, que vive por si mesmo e em presença
do qual o homem é tomado de um frêmito. Só de mau grado ele aceitou essa
associação com o lago de Bethesda. Ele a recusava porque – pensava – tais
idéias só aparecem na Bíblia ou, conforme o caso, nos sermões matinas de
domingo. E estes nada têm a ver com a psicologia. Por outro lado, só se fala
do Espírito Santo em circunstâncias solenes, mas com certeza não é um
fenômeno do qual se faça experiência. Sei que este paciente deveria ter
superado o terror, penetrando nos bastidores do seu pânico, para ultrapassá-
lo. Mas nunca insisto quando o indivíduo não se mostra inclinado a seguir seu
próprio caminho, assumindo a sua parte de responsabilidade. 199

No caso acima, Jung percebeu que o “pânico” tratava de passar por uma

experiência cuja vivência interior poderia não ser aprovada pela instituição

eclesiástica ou pelo dogma. Em sua opinião, “o risco da experiência interior, da

aventura espiritual é estranha à maioria dos homens”, mas considerou isto estranho,

por se tratar de um teólogo, para quem não devia haver desprezo pela alma. Sob

avaliação, Jung apresenta que seu “tratamento” demonstrou os seguintes resultados:

um terço de verdadeiras curas, um terço de sensíveis melhoras e um terço sem

qualquer resultado 200 . Para Jung, se cada um dos elementos envolvidos na terapia,

paciente e analista, não se tornar problema, um para o outro, será impossível buscar

uma resposta à neurose apresentada. Quanto ao valor da religião, para a vida do

homem, Jung é da opinião, que se este homem vivesse em épocas mais antigas, não

teriam se tornado neuróticos, pois antigamente, como se pode dizer o “homem ainda

era ligado pelo mito ao mundo dos ancestrais, vivendo a natureza e não apenas a

199
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 128
200
Id. p. 129

45
vendo de fora” 201 , como ele constatava com os habitantes de Basiléia 202 , não teriam

promovido a desunião consigo mesmos. Para Jung, estes seriam como “neuróticos

facultativos” 203 , pois sua doença desapareceria no momento em que voltassem a se

ligarem com o mundo do inconsciente, suas almas. E, sua atenção se voltará a estes

que ainda que somente fossem herdeiros de alguma fé religiosa, no caso

protestante, e que por várias razões abandonaram e negligenciaram sua alma e o

procuravam para serem curados. Jung acredita que isto se inicia com a tentativa de

“dominar tudo pelo intelecto”, onde os conceitos apresentam benefícios

aparentemente seguros, mas na verdade se trata de “benefícios artificiais”, mas que

no fundo só objetivam “cobrir e ocultar toda a realidade da vida”, isto é, “o

deslocamento para o conceitual tira à experiência sua substância para atribuí-la a um

simples nome que, a partir desse instante, é posto no lugar da realidade” 204 . Isto ele

deve ter percebido em seu pai, para quem as noções eram mais importantes que as

experiências, sem, contudo, perceber que uma noção o protegia da experiência com

Deus, que deveria ter tido, para então, servir melhor a sua Igreja. Jung é taxativo ao

dizer: “ora, o espírito não vive através de conceitos, mas através dos fatos e das

realidades. Não é com palavras que afastem um cão do fogo. E, no entanto este

processo é repetido infinitamente”. 205

Depois de tantos anos dedicados ao ensino universitário, Jung teve que

“abandonar a carreira” 206 , devido às experiências com seu “conteúdo do

inconsciente”, e durante três anos não leu nenhuma obra científica, ainda que tenha

201
Id. p. 130
202
Id. p. 69
203
Id. p. 130
204
Id. p. 131
205
Id. p. 131
206
Id. p. 172

46
escrito alguns artigos em inglês e o livro Psicologia do Inconsciente 207 . Durante este

período temia ser “condenado a uma solidão absoluta” 208 em termos acadêmicos,

mas assim mesmo esforçou-se para mostrar que “os conteúdos da experiência

psíquica são ‘reais’ e não apenas vivências pessoais – mas sim experiências coletivas

que podem repetir-se em outros homens” 209 .

O principal fator que o fez sair da “obscuridade”, foram as “mandalas que

desenhava”, durante os anos de 1918-1919. As mandalas eram “desenhos de forma

redonda”, interpretadas como correspondentes à sua “situação interior”. Pouco a

pouco foi compreendendo o significado da mandala – “a mandala exprime o si - a

totalidade da personalidade que, se tudo está além, é harmoniosa, mas que não

permite o auto-engano, é o caminho que conduz à individuação” 210 .

Destaca-se na formulação de sua visão científica acerca da psiquiatria seu

modo de compreender a si mesmo. Ele formulou a idéia de ter duas personalidades,

que chamava de “números 1 e 2”.

I. 3. Suas Personalidades: Números 1 e 2

Jung buscou, na biblioteca de seu pai, autores que refletissem por eles

mesmos, instruções acerca de Deus, e na própria Bíblia 211 , assim como acreditava

ter vivido. Encontrou, em “A Dogmática Cristã” de Biedermann (?), obra publicada

em 1869,que Religião “é um ato espiritual de relacionamento do homem com Deus”,

porém, para ele, religião era algo que Deus fazia com os homens, especialmente,

207
Id. p. 171
208
Id. p. 173
209
Id. p. 172
210
Id. pp. 173, 174
211
Id. p. 48, 49

47
com ele. Isto o levou a ler mais a Bíblia, na qual “mergulhava em segredo” 212 , e fez

com que aceitasse a definição do referido teólogo, resistindo à idéia de que Deus

possuía um caráter, assim como ele 213 , que conforme visto acima, não era nada

recomendável. Suas dúvidas cresciam à medida que procurava descobrir algo sobre a

“obscuridade de Deus: Seu espírito de vingança, Sua irascibilidade perigosa, Seu

comportamento incompreensível em relação aos seres criados por Sua

onipotência” 214 . Não deixa de ser interessante, que o texto que apresenta os

pronomes pessoais escritos em letras maiúscula em Memórias, Sonhos e Reflexões,

que transcrevemos (da Dogmática Cristã) indica a ação divina na criação:

O parágrafo 183 (Dogmática Cristã) ensinou-me que “a essência


supraterrestre de Deus em face do mundo moral” consistia em Sua “justiça” e
que esta não era somente a de um “juiz”, mas uma expressão de sua
natureza sagrada. Esperara descobrir nesse parágrafo algo sobre a
obscuridade de Deus, que me preocupava: Seu espírito de vingança, Sua
irascibilidade perigosa, Seu comportamento incompreensível em relação aos
seres criados por Sua onipotência. Em virtude desta onipotência deveria ter
sabido de antemão o quanto eram precárias Suas criaturas. Ora, agradava-
Lhe também induzi-las em tentação, ou pô-las à prova, se bem que
conhecesse de antemão o resultado de Suas experiências. Assim, pois, qual o
caráter de Deus? Como julgaríamos uma personalidade humana que se
comportasse dessa maneira? Não ousava pensar nisso; mas li depois que
embora “bastando-se a Si mesmo, de nada mais precisava além de Si”, tendo
criado o universo “para Sua satisfação”: “enquanto que o mundo natural Ele
cumulou com Sua bondade”, “o mundo moral, Ele quis cumular com Seu
amor”. (grifos nossos)

Estas experiências fizeram com que Jung desenvolvesse sua personalidade,

como que em duas partes, num processo de auto-entendimento, que se iniciou aos

doze anos de idade, quando se diz perturbado “tudo não passava de pressentimento

perturbador e de sentimento intenso, tomei consciência, de que, na realidade, havia

em mim duas pessoas diferentes: uma delas o menino de colégio; o outro, era um

homem importante, velho que vivia no século XVIII”, era como se fossem duas

212
Id. p. 48
213
Id. p. 61
214
Id. p. 62

48
pessoas distintas, vivendo em duas épocas diferentes 215 . Ele, inicialmente, chamava

de número um e número dois. O mesmo ele fazia com as pessoas mais próximas a

ele, como seus pais. Jung identificava a personalidade número “um” com os homens

comuns, cheias de defeitos que ele admitia em si próprio 216 . Já a número “dois”,

para ele, era aquela que conhecia a Deus como um mistério oculto, pessoal e ao

mesmo tempo supra-pessoal, e que o fazia sentir-se digno e verdadeiramente

homem. A número “dois” é identificada ao “homem interior” a qual, segundo ele, se

dirigem todas as religiões, e que são poucos que a sentem 217 . Para ele, estas

personalidades são o seu “eu” 218 , o eu nº 1, extremamente limitado: estava

submetido a todas as ilusões acerca de si mesmo, aos erros, humores, pecados, às

emoções e paixões, menos capaz de vitórias do que sujeito a derrotas, infantil,

vaidoso, egoísta, arrogante, sedento de amor, exigente, injusto, susceptível,

preguiçoso, irresponsável, etc. Sua personalidade número “dois” era “secreta, com

suas fantasias proibidas” 219 , pois não podia relatá-las, a quem quer que fosse, com

receio de ser censurado como herege, identificada inicialmente com o Zaratustra, de

1885, de Friedrich Nietzsche (1844-1900), a qual mantinha em segredo dos parentes

e amigos, com a qual se relacionava através dos sonhos, principalmente, isto é,

pelos meios inconscientes, que mexiam com seus “humores depressivos” 220 , mas isto

o levava a buscar se mais pessoas tinham vivido a mesma experiência,

principalmente os problemas religiosos, que o decepcionava cada vez que buscava

compreendê-los, mas o fazia sentir que os outros se espantavam, desconfiavam e

215
Id. p. 43, 52
216
Id. p. 51
217
Id. p. 52
218
Id. p. 61
219
Id. p. 66, 99
220
Id. p. 66

49
tinham medo dele, inibindo-o em seu relacionamento interpessoal 221 . A número “um”

era o seu “eu ativo e compreensivo”, para ele era como que este permanecesse

passivo e absorvido na esfera do que chamava de “homem velho” 222 , que descreve

como tendo caráter histórico e de extensão no tempo, isto é, sua intemporalidade 223 ,

e que era responsável pelo seu interesse pelas ciências naturais 224 , já o interesse

pelas disciplinas do espírito ou históricas – filosofia e história – eram despertadas

pela número “dois” 225 . Jung admite que tentou recalcar a personalidade número

“dois”, mas confessa que não conseguiu, pois os conceitos de Arthur Schopenhauer

(1788-1860) e Immanuel Kant (1724-1804), eram lembrados com muita intensidade,

e seu pensamento acerca do “mundo de Deus” 226 não lhe deixava em paz. Ele

registra: “meu número “um” queria livrar-se da pressão ou da melancolia do número

“dois”” 227 . O relacionamento com a personalidade número “dois”, Jung intensificava

nas férias, quando se dedicava aos estudos das ciências naturais e à filosofia 228 . Para

ele, sua depressão vinha da número “dois”, quando lembrava da número “um”, as

idéias conflitantes de Schopenhauer e o cristianismo229 , e isto inicia quando decidira

estudar Medicina. Ser médico, apesar disso parecer imitação de seu avô, lhe trouxe

mais tarde, paz de espírito 230 . Mas sempre se lembrava da advertência do seu pai

para não se tornar materialista, ao estudar Medicina 231 , mas é no ambiente

acadêmico, e depois mais tarde na prática da psiquiatria, que Jung diferencia o

221
Id. p. 66
222
Id. p. 70
223
Id. p. 87
224
Id. p. 73
225
Id. p. 74
226
Id. p. 75
227
Id. p. 79
228
Id. p. 76
229
Id. p. 79
230
Id. p. 84
231
Id. p. 91

50
materialismo científico e o mundo interior, que seu número “dois” 232 , como acima

fora descrito, lhe apresentava como o “mundo de Deus”.

A escolha pela Medicina foi um grande conflito entre as duas personalidades,

apesar disso, resultou em amadurecimento e auto-conhecimento mais profundos: a

sua número “um” considerava a número “dois” como de um jovem pouco simpático e

medianamente dotado, com reivindicações ambiciosas, um temperamento

descontrolado, de maneiras duvidosas, ora ingenuamente entusiasta, ora

puerilmente decepcionado; e a número “dois” considerava a número “um” como

aquele que encarnava um homem cheio de deveres difíceis e ingratos à cumprir,

porque se tratava de uma personalidade não dada ao trabalho intenso devido à

preguiça, à falta de coragem para enfrentar os desafios reais que apareciam à sua

volta, porque se perdia, muito facilmente, em suas próprias idéias e em coisas que

interessava a maioria das pessoas, com seus amigos imaginários (jesuíta esculpido

na régua de madeira ou a pedra com quem “conversava”), e também porque sua

número um era considerada pela número dois, como alguém, egoísta,

preconceituoso, estúpido, que não tem compreensão com outras pessoas, confuso e

atrapalhado em relação à realidade do mundo, e acrescentava a isso, ainda, que a

número “dois” considerava a número “um”, “nem cristão, nem nada” 233 .

Era sua personalidade número “dois”, que o fazia parecer cada vez mais com

sua mãe, da qual conforme anteriormente vimos, herdara o dom, nem sempre

agradável de ver homens e coisas tais como eram 234 . Era-lhe desagradável ou

desconfortável, ser parecido com ela, pois a número “dois” fazia-o “ter uma visão

total da natureza humana, com uma clareza impiedosa consigo mesmo, mas incapaz
232
Id. p. 74
233
Id. p. 85
234
Id. p. 56

51
e pouco inclinado (se bem que o desejando) a exprimir-se por intermédio do espesso

e obscuro número um” 235 . Quando considerava seus pais, através do mesmo

método, compreendendo-os como se tivessem duas personalidades, o aspecto

número “dois” de sua mãe lhe foi o apoio mais forte que sentiu nos conflitos que se

apresentavam entre a tradição paterna e as estranhas formas compensadoras que

seu inconsciente tendia a criar, proporcionando-lhe suas experiências religiosas, sem

apoio na tradição protestante que guiava sua família 236 .

Ainda sobre a personalidade número “dois”, Jung registra: “o arquivelho que

eu sentira em mim, quando criança, é a personalidade número “dois” que sempre

viveu e sempre viverá, fora do tempo, filho do inconsciente materno. E este número

“dois” vivia autentica e amplamente em Bollingen” 237 – torre que construíra às

margens do lago de Zurique, conforme mais adiante veremos.

I. 4. Sua relação com Johann Wolfgang Von Goethe

Não seria demais, ainda que rapidamente, registrar o possível parentesco de

Jung, com o grande escritor, cientista e filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe

(1749-1832). Goethe foi uma das figuras mais proeminentes da literatura alemã e do

Romantismo europeu, nos finais do século XVIII e inícios do século XIX, poupado por

Schopenhauer em seus comentários mordazes contra os demais seres humanos 238 .

No entanto, seu parentesco era para Jung, um fato que lhe foi contado pela primeira

vez, por pessoas estranhas, à sua família. Tratava-se, da possibilidade de seu avô

paterno, Carl Gustav Jung, ter sido filho natural de Goethe, e isto o irritava

235
Id. p. 85
236
Id. p. 88
237
Id. pp. 211, 198
238
YALOM, Irvin D. A Cura de Schopenhauer. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 202

52
bastante 239 . A única possível explicação, que ele mesmo conta era que a segunda

mulher de seu bisavô Franz Ignaz Jung (1759-1831), Sophie Jung-Ziegler (?),

freqüentava com sua irmã o Círculo do Teatro de Mannheim e, entre suas relações

havia muitos poetas, e esta teria tido um filho ilegítimo. Jung considerava este fato,

com alguma segurança, porém, estranhava que o mesmo tivesse sido relatado pelo

seu avô em seu “diário”, que por sua vez contava apenas que vira Goethe na cidade

de Weimar e assim mesmo simplesmente de costas! Sophie Jung-Ziegler tornou-se,

mais tarde, amiga de Lotte Kestner (1773 - ?), sobrinha da “Lottchen” de Goethe. Ela

visitava freqüentemente seu avô, que também era amigo de Franz Liszt (1811-1886),

compositor húngaro, famoso pelas “Rapsódias Húngaras”, que também escreveu

duas sinfonias, a "sinfonia Dante", inspirada na divina comédia do mesmo, e a

"sinfonia Fausto" composta por diferentes quadros que caracterizam as personagens

de "Fausto", da obra de Goethe 240 . Alguns anos mais tarde, Lotte Kestner

estabeleceu-se em Basiléia – provavelmente devido às relações de amizade com a

família Jung. Seu avô também era amigo de seu irmão, o conselheiro de embaixada

Auguste Schleurer-Kestner (1833-1899), industrial químico e político francês, que

pertencia a uma família protestante da Alsácia 241 , que vivia em Roma e em casa de

quem Karl August (?), filho de Goethe, se hospedara pouco antes de sua morte 242 .

Goethe representava para Jung algo muito além de seu possível parentesco.

Jung considerava-se “ligado” 243 interiormente a ele. Ele assim afirma:

o segredo de Goethe foi o de ter sido tomado pelo lento movimento de


elaboração de metamorfoses arquetípicas que se processam através dos
séculos; ele sentiu seu Fausto como uma opus magnum ou divinum – uma
grande obra ou uma obra divina. Tinha razão, portanto, quando dizia que

239
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 44, 209
240
http://pt.wikipedia.org/wiki/Franz_Liszt - consulta realizada em 12 de Dezembro de 2006.
241
http://pt.wikipedia.org/wiki/Auguste_Scheurer-Kestner - consulta realizada em 12 de Dezembro de 2006.
242
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 342
243
Id. p. 181

53
Fausto era sua “obra prima”; por isso sua vida foi enquadrada por esse
drama. Percebe-se de modo impressionante que se tratava de uma substância
viva que agia e vivia nele, a de um processo supra-pessoal, o grande sonho
do mundus archetypus. Fausto já soprara em meus ouvidos, as palavras
salutares: “duas almas, ai de mim, habitam no meu peito!” Quando li o Fausto
não podia supor ainda quanto o estranho muito heróico de Goethe era
coletivo, e profetizava o destino da Alemanha. Era por isso que me sentia
pessoalmente atingido, e quando Fausto, em conseqüência de sua hybris e
inflação provoca a morte de Filemon e de Baucis, acreditei ser culpado, um
pouco como se, em pensamento, tivesse participado do assassinato dos dois
velhos. Essa estranha idéia alarmou-me e achei que era responsabilidade
minha expiar tal crime, ou impedir que ele se reproduzisse. Fausto, filósofo
inepto e ingênuo, depara com seu lado obscuro, sua sombra inquietante:
Mefistófeles. Meus contrastes interiores apareciam assim sob a forma do
drama. Goethe, de alguma forma, havia esboçado um esquema de meus
próprios conflitos e soluções. A dicotomia Fausto-Mefistófeles, confundia-se
para mim num só homem, e este homem era eu! Em outras palavras, sentia-
me atingido, desmascarado e, uma vez que ra esse o meu destino, todas as
peripécias do drama me concerniam pessoalmente. Apaixonadamente, sentia-
me obrigado a aceitar isto, a lutar contra aquilo; nenhuma solução me era
indiferente. Mais tarde, em minha obra, parti do que Fausto deixara de lado: o
respeito pelos direitos eternos do homem, a aceitação do antigo e a
continuidade da cultura e da história do espírito. 244

Fora em Goethe, em seu Sieben Rden na die Toten, que Jung se inspirou para

formular sua teoria dos arquétipos, especialmente, na frase: “Empurra ousadamente

a porta diante da qual todos procuram esquivar-se” 245 .

Em Goethe, com seu Fausto, que Jung encontra, ainda que parcialmente,

satisfatórias explicações quanto ao Mal, e o considera mais próximo dos seus

próprios pensamentos, a ponto de escrever: “hoje sei que isto aconteceu (referência

ao sonho do falo) para que a mais intensa luz possível se produzisse na obscuridade.

Foi como que uma iniciação no reino das trevas. Nessa época principiou

inconscientemente minha vida espiritual” 246 . E, a ele recorre para sua formação

metodológica, desprezando os filósofos alemães do Iluminismo e aos da crítica

kantiana. Este passo, o leva naturalmente, para a teologia denominada apofática ou

negativa de Mestre Eckhart, à filosofia da natureza desenvolvida pelos alquimistas e

244
Id. pp. 209-210
245
Id. p. 168
246
Id. p. 28

54
retomada por Phillipus Aureolus Theophrastus Bombastus von Hohenheim,

pseudominado Paracelso (1493-1541), e depois por Jacob Bohème (1575-1624),

enfim, à psicologia do inconsciente proposta em seguimento à tradição romântica por

Carl Gustav Carus (1789-1869) 247 e, na tradição do pensamento joachimista 248 em

que aliás situam-se Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher (1768-1834), o próprio

Goethe e Karl Robert Eduard von Hartmann (1842-1906) 249 , de quem se confessa

ser “leitor ardoroso” 250 , de quem se aproxima bastante, devido ao seu Filosofia do

Inconsciente, de 1869 251 .

I. 5. Sua vivência com Sigmund Freud

Desde o início da sua carreira psiquiátrica, os estudos de Freud foram

importantes para Jung, sobretudo as primeiras tentativas de Freud, em busca do

método de análise e de interpretação dos sonhos, em algumas ocasiões ambos

relatavam seus sonhos e interpretavam-nos mutuamente, apesar de Freud

interpretar incompletamente os sonhos de Jung 252 . No mesmo ano do lançamento da

247
Carl Gustav Carus já havia estabelecido, antes de Freud: 1) A diferença entre inconsciente absoluto e
relativo; 2) A influência permanente entre os dois; 3) Que o conhecimento do consciente tem sua chave no
inconsciente; 4) Que o sonho consiste na irrupção do inconsciente.
http://www.noergologia.com.br/Freud%20descobriu%20o%20inconsciente.htm – consulta realizada em 13
de Dezembro de 2006
248
Referência a Joachim de Flore (1132-1202), abade cisterciense, que influenciou espiritualmente todo o
´seculo XIII até o Renacimento. Desconfiava da razão, recusava os postulados de Aristóteles e o
pessimismo de Santo Agostinho. http://fr.wikipedia.org/wiki/Joachim_de_Flore - consulta realizada em 13
de Dezembro de 2006. Conforme Gilberto Durant, autor do texto consultado: “A herança joachimista é
enorme e contínua: beneficiando Bossuet e Vico, Condorcet, Hegel, Auguste Comte e Marx...”
http://www.pucrs.br/famecos/pos/revfamecos/23/Durand.pdf - consulta realizada em 13 de Dezembro de
2006
249
Hartmann já ensinava com clareza que (...)o inconsciente é o princípio primeiro, a causa universal de
onde deriva a totalidade do real(...). JUNG, C. G. – Os Arquétipos e o Inconsciente Coletivo. Petrópolis:
Editora Vozes, 2003, par. 01
http://www.noergologia.com.br/Freud%20descobriu%20o%20inconsciente.HTM#_ftnref3 – consulta
realizada em 13 de Dezembro de 2006
250
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 98
251
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996,
p.157
252
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 142

55
obra de Freud Interpretação dos Sonhos, em 1900, fora “fonte de iluminações”,

apesar de inicialmente ter sido colocada de lado, pois Jung não se via com

experiência suficiente para estudá-la, porém, em 1903, ele retoma o estudo da

referida obra, e descobre que havia relação entre as idéias de Freud e, suas idéias,

principalmente quanto ao “mecanismo de recalque”, que observava no tratamento

dos seus pacientes protestantes que reprimiam suas experiências interiores

preferindo ficar com a “segurança” de suas opiniões, conceitos, dogmas. No entanto,

Jung não concordava com Freud, pois para este todo recalque tinha causa no

“trauma sexual”, e isto para Jung era insatisfatório, pois em sua experiência

psiquiátrica, conhecera numerosos casos em que a sexualidade desempenhava papel

secundário, pois para alguns, reprimiam sua adaptação social, outros pela opressão

das circunstâncias trágicas da vida, outros ainda pelas exigências de prestígio, entre

outras razões. Jung buscava defender Freud em congressos e nas aulas da

universidade, mas sempre era ameaçado pelos colegas de ser igualmente rejeitado,

mas mesmo conservando suas diferenças ideológicas, como a do recalque ou

trauma, que para Freud era tão somente de fundo sexual, Jung via em Freud um

caminho de pesquisa aberto, e estava disposto a correr qualquer perigo para estar

desenvolvendo seu trabalho, apesar da sua incompreensão quanto às idéias de Jung,

e suas “violentas resistências”, quanto à uma posição diferente da sua 253 .

Somente em fevereiro de 1907, Jung se encontrou pessoalmente com Freud,

em sua casa, em Viena, Áustria. O encontro durou treze horas de conversa e debate

científico 254 . Jung declara que Freud era a primeira personalidade verdadeiramente

253
Id. p. 143
254
Id. p. 135

56
importante com a qual se relacionava 255 . Apesar de sua admiração e vontade de

conhecer ainda mais as idéias de Freud, Jung divergia dele, por não se considerar à

altura para discutir mais profundamente, especialmente quando tratava da questão

da espiritualidade, pois para Freud as manifestações espirituais não passavam de

“sexualidade recalcada”, a ponto de Jung opinar que sua teoria quanto a libido

sexual, lhe era “numinosa” 256 . Em 1910 voltaram a se encontrar, foi nesta ocasião,

em Viena, novamente, que Jung separou-se de Freud definitivamente, quando este

lhe disse que sua teoria sexual era um “baluarte, um dogma contra o lodo do

ocultismo”, o que inquietou Jung, pois eles deviam contribuir com julgamentos

científicos e não lutar por uma “vontade de poder pessoal”, como entendeu que

queria Freud. Para Jung, a teoria sexual era momentaneamente satisfatória, mas não

um artigo de fé eternamente válido, como queria Freud. Para ele, um ocultismo,

filosofia e religião, seriam substituídos por outro: sexualidade, porque esta também

guardava, igualmente, especulações obscuras, não era entendida em sua plenitude,

nem mesmo pelo seu criador. Para Jung, Freud elegera a sexualidade como religião,

isto é, como perdera sua religiosidade, construíra um dogma substituto, a da

sexualidade; “psiquicamente falando, aquilo que é mais forte e, portanto, mais

temível, toma os atributos de “divino” e de “demoníaco”; da mesma forma, a “libido

sexual” se revestira e desempenhara nele o papel de um deus oculto”257 . A idéia da

libido sexual se revestia de numinosidade por seu caráter cientificamente irrecusável

e livre de qualquer hipótese religiosa. “Mas, no fundo, a numinosidade – enquanto

classificação psicológica desses contrários, racionalmente incomensuráveis, que são

Javé e a sexualidade, permanecia a mesma. Só mudara o nome, e, por conseguinte


255
Id. p. 135
256
Id. p. 136
257
Id. p. 137

57
o ponto de vista. Não se devia buscar no alto e sim no baixo aquilo que se

perdera” 258 . Jung confessa ter ficado eufórico 259 com esta maneira de compreender

o que Freud tentava estabelecer como verdade no campo científico, não como uma

vitória sobre o mestre austríaco, mas como seu empenho em pesquisar a presença e

a atuação do numinoso, na vida humana, que também identificara em Freud,

“grande homem e, o que é principal, tinha o fogo sagrado” 260 . Eles não mais se

conversaram depois de uma conversa sobre os fenômenos ocultos, objeto de

pesquisa de Jung, em que para Freud não passavam de “puro disparates” 261 .

Freud considerava Jung seu sucessor, porém, este não aceitara a idéia por

nenhum momento, pois se importava mais em pesquisar a verdade, e não estava em

busca de prestígio pessoal, pois para Freud, importava mais preservar sua

“autoridade” que a busca da verdade 262 . Suas divergências aumentaram quando

Jung formulou seu conceito sobre os sonhos, diferentemente de Freud. Para Freud o

sonho é uma “fachada” atrás da qual seu significado se dissimula, que se oculta

quase maliciosamente à consciência. Entretanto, para Jung “os sonhos são natureza,

e não encerram a menor intenção de enganar; dizem o que podem dizer e tão bem

quanto o podem como faz uma planta que nasce ou um animal que procura

pasto” 263 . Sua teoria acerca dos sonhos o levou a conhecer ainda mais arqueologia,

lembrando de seus interesses infantis, e em sua opinião, a mitologia antiga era

próxima da psicologia dos primitivos. Era como se os antigos fizessem psicologia ao

narrarem seus mitos.

258
Id. p. 137
259
Id. p. 137
260
Id. p. 138
261
Id. p. 141
262
Id. p. 142
263
Id. p. 145

58
I. 6. Sua teoria: Arquétipo, Gnosticismo, Alquimia, Anima e Animus,

Sombra, Si-mesmo, Libido, Individuação, Transferência

Cremos ser importante e necessário que se apresente num trabalho sobre

Jung, apesar do enfoque ser quanto ao seu pensamento acerca do Protestantismo,

os conceitos básicos da sua teoria. Não se trata de uma análise dos mesmos, mas

apenas definições das noções dos conceitos, sem, contudo ter o objetivo de

apresentar em profundidade e exaurir um assunto tão vasto da psicologia junguiana.

I. 6. 1. - Arquétipo

Jung desenvolve sua teoria dos arquétipos a partir das suas próprias

experiências – “tanto nossa alma como nosso corpo são compostos de elementos

que já existiam na linguagem dos antepassados” 264 . Iniciando com seus sonhos, se

afasta da teoria freudiana, conforme vimos acima. Ele narra que sua teoria teve

como ponto fundante os seguintes sonhos e fantasias, que somente depois de vinte

anos 265 , mais ou menos, pode compreender o significado do conteúdo:

Em 1912, na véspera do Natal, tive um sonho. Encontrava-me numa


esplêndida loggia italiana, com colunas, piso e balaustrada de mármore.
Estava sentado numa cadeira dourada de estilo Renascença, diante de uma
mesa de rara beleza, talhada em pedra verdade, semelhante à esmeralda.
Sentado, olhava a paisagem à distância, pois a loggia ficava situada no alto da
torre de um castelo. Meus filhos também estavam sentados à mesa. De
repente um pássaro branco baixou: era uma gaivota pequena ou uma pomba.
Pousou graciosamente na mesa, perto de nós; fiz um sinal às crianças que
não se movessem a fim de não assustar o belo pássaro branco. No mesmo
instante a pomba transformou-se numa menina de cerca de oito anos, de
cabelos de um louro dourado. Ela saiu correndo com meus filhos e, juntos,
começaram a brincar nas maravilhosas colunatas do castelo. Eu continuava
mergulhado em meus pensamentos, refletindo sobre o que acabara de
acontecer. A menina voltou nesse instante e cingiu-me afetuosamente o
pescoço com um braço. De repente desapareceu e em seu lugar surgiu
novamente a pomba falando com voz humana e lenta: “Só nas primeiras
horas da noite posso transformar-me num ser humano, enquanto o pombo
cuida dos doze mortos”. Dizendo isto, levantou vôo no espaço azul e eu

264
Id. p. 210
265
Id. p. 177

59
despertei. 266 Uma fantasia terrível repetiu-se várias vezes: havia algo de
morto que continuava a viver. Por exemplo, cadáveres eram colocados em
fornos crematórios e descobria-se então que ainda mostravam sinais de vida.
Essas fantasias atingiram num sonhos, simultaneamente, seu ponto
culminante e seu fim. Eu estava numa região que me lembrava os Alyscamps,
perto de Arles. Lá existe uma alameda de sarcófagos que remonta à época
dos merovíngios. No sonho, eu vinha da cidade e via diante de mim uma
alameda semelhante, orlada de uma fileira de túmulos. Havia pedestais
encimados por lajes sobre as quais os mortos repousavam. Jaziam em suas
roupagens antigas, as mãos postas sobre o peito, à maneira dos cavaleiros
das antigas capelas mortuárias em suas armaduras, com a única diferença de
que em meu sonho os mortos não eram de pedra talhada, mas, de modo
singular, mumificados. Parei frente ao primeiro túmulo e observei o morto.
Era um personagem dos anos 1830. interessado, olhei suas roupas. De
repente ele começou a mover-se e voltou à vida. Separou as mãos e
compreendi que isso ocorrera porque eu o olhara. Com um sentimento de
mal-estar continuei a caminhar e me aproximei de um outro morto, que
pertencia ao século XVIII. Aconteceu então a mesma coisa: enquanto o
olhava, ele voltou à vida e moveu as mãos. Percorri toda a fila, até atingir o
século XII. O morto era um cruzado que repousava numa cota de malha, de
mãos postas. Seu corpo parecia talhado na madeira. Contemplei-o
longamente convencido de que estava realmente morto. Subitamente, porém,
vi que um dos dedos de sua mão esquerda começava, pouco a pouco, a se
animar. 267

Enquanto procurava compreender o significado destas imagens, Jung viveu

este período sob imensa “pressão interna”, quando procurou instrospectivamente

encontrar alguma coisa, desde sua infância, que justificasse a fonte de tais imagens,

pois temia tratar-se de alguma “perturbação psíquica”. Foi então, que resolveu seguir

tão somente ao “impulso do inconsciente”. E, assim ele percebeu que aquelas

imagens tinham alguma ligação emocional com sua infância, quando tinha dez ou

doze anos de idade, devido à sua paixão por brincar de “construção de casinhas e

castelos, com portais e abóbadas, usando garrafas como suportes” 268 . Apesar de

rejeitar voltar às suas brincadeiras infantis, não fez outra coisa senão render-se aos

“impulsos do inconsciente” 269 , e passou a colecionar pedras do lago, que havia

próximo de onde morava, todos os dias depois do almoço ou, até o momento de

atender aos pacientes, que o procuravam. Mas, logo percebera que faltava em sua

266
Id. p. 152-153
267
Id. p. 153-154
268
Id. p. 154
269
Id. p. 154

60
“cidade”, uma igreja 270 . Esta ele a construiu “quadrada, encimada por um tambor

hexagonal e por uma cúpula de base quadrada” 271 , mas relutava em edificar um

“altar” 272 . Mas depois de tanto relutar, encontrou uma “pedra vermelha, uma espécie

de pirâmide de quatro lados, de uns quatro centímetros de altura” 273 , a qual foi

colocada no meio da construção, sob a cúpula. Isto fez lembrá-lo do sonho do falo

sagrado. E, quanto a este episódio, afirma:

esta conexão – pedra com o falo – despertou em mim um sentimento de


satisfação. Com isso meus pensamentos se tornavam claros e conseguia
apreender de modo mais preciso fantasias das quais até então tivera apenas
um vago pressentimento. Tinha a íntima certeza de trilhar o caminho que
levava ao meu mito. 274

A construção da “cidade”, pinturas de pedras ou esculturas em pedras, foram

seus trabalhos, toda vez que se sentia “bloqueado” 275 ; deram origem a seus

escritos 276 : Presente e Futuro, Um Mito Moderno, A Propósito da Consciência Moral,

como também, o ajudaram a passar pelo período difícil de perder sua esposa, e

também analista, Emma Jung (1882-1955), e manter contato com a realidade da

existência, e não se perder em seus pensamentos e fantasias. Das experiências

interiores, Jung percebe que seus temores passaram a “realidade exterior”, tendo

uma visão, que durara cerca de uma hora, a qual o perturbou, deixando-o nauseado

e com vergonha de sua própria fraqueza, por não poder fazer alguma coisa para

evitar que tal se tornasse realidade:

vi uma onda colossal cobrir todos os países da planície setentrional, situados


entre o Mar do Norte e os Alpes. As ondas estendiam-se da Inglaterra à
Rússia, e das costas do Mar do Norte quase até os Alpes. Quando atingiram a
Suíça, vi as montanhas elevarem-se cada vez mais, como para proteger nosso

270
Id. p. 155
271
Id. p. 155
272
Id. p. 155
273
Id. p. 155
274
Id. p. 154-155
275
Id. p. 155
276
Id. p. 155

61
país. Acabara de ocorrer uma espantosa catástrofe. Eu via vagas impetuosas
e amarelas, os destroços flutuantes das obras da civilização e a morte de
inúmeros seres humanos. O mar transformou-se em torrentes de sangue. 277

Esta visão repetiu-se mais uma vez, e foi-lhe inesquecível, e uma voz interior

lhe disse: “Olha bem, isto é real e será assim; portanto, não duvides”, e isto lhe

trouxe o temor de estar sendo “ameaçado por uma psicose” 278 , justificado com o que

acontecera com Nietzsche e Friedrich Hoelderlin (1770-1843), com sua máxima de


279
que “tudo é interior” . Mas, nada nem ninguém, demoveram-no da tentativa de

compreender o significado destas imagens antes, Jung entregava-se ao impulso do

inconsciente de modo que “obedecer a uma vontade superior era inquebrantável e

sua presença constante em mim me sustinha – tal um fio condutor – no

cumprimento da tarefa” 280 . E, mesmo sentindo-se angustiado 281 devido aos efeitos

que as imagens exerciam sobre ele, recorria a “ioga” 282 , com o objetivo de acalmar-

se, mas para logo em seguida retomar o trabalho com o seu inconsciente. E, assim,

procurou o significado das emoções que estavam por trás das imagens, e neste

trabalho “readquiria paz interior”, tendo, contudo, cuidado para não tratá-las de

modo emocional, mas sim com uma atitude consciente, anotava todas as emoções,

viessem elas em sons que seus ouvidos captavam, ou em palavras que seus próprios

lábios pronunciavam ou murmuravam. 283 Jung registra que sua entrega aos

“impulsos do inconsciente” se deu de forma inadiável e sem retorno, no dia 12 de

dezembro de 1913, mesmo sob um “sentimento de pânico”. Assim ele registra:

277
Id. p. 156
278
Id. p. 156
279
Id. p. 156; http://www.bibliele.com/CILHT/total.html - consulta realizada em 28 de fevereiro de 2007.
280
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 157
281
Id. p. 159
282
Id. p. 158
283
Id. p. 158

62
De repente, sem que ainda tivesse atingido uma grande profundidade
(inicialmente trezentos metros, mas depois se tornava uma “profundidade
cósmica”) 284 , encontrei-me – com grande alívio – de pé, numa massa mole e
viscosa. A escuridão era quase total; pouco a pouco meus olhos se
habituaram a ela, que parecia uma crepúsculo sombrio. Diante de mim estava
e entrada de uma caverna obscura; um anão ali permanecia de pé. Parecia
feito de couro, como se estivesse mumificado. Tive que esgueirar-me, quase
roçando nele, a fim de entrar pela passagem estreita e fui patinando, a água
gelada alcançando-me os joelhos, até o outro lado da caverna. Percebi então
que numa saliência da rocha cintilava um cristal vermelho. Ergui a pedra e
embaixo havia um espaço vazio. A princípio nada distingui nele; depois
percebi, no fundo, um curso d’água. Passou um cadáver flutuando na
corrente: era um adolescente de cabelos louros, ferido na cabeça. Seguiu-o
um enorme escaravelho negro e então surgiu, do fundo das águas, um rubro
sol nascente. Ofuscado pela luz, tentei repor a pedra no orifício, mas nesse
momento um líquido fez pressão e escoou através da brecha. Era sangue! Um
jato espesso jorrou e senti náusea. Tive impressão de que isto se prolongou
intoleravelmente. Afinal o jato de sangue estancou, terminando a visão. Fiquei
prostrado por causa dessas imagens. 285

Foi quando ele teve a percepção do que realmente estava por trás, e

compreendeu-as como arquétipos:

era um mito do herói e um mito solar, um drama da morte e da renovação,


exprimindo-se a ideais do renascimento do novo dia. Mas em lugar deste
surgira a insuportável onda de sangue, fenômeno excepcionalmente anormal,
segundo me pareceu. 286

Menos de uma semana depois, teve outro sonho:

Encontrava-me numa montanha solitária e rochosa, com um adolescente


desconhecido, um selvagem de pele escura. Antes da aurora: o céu, no
oriente, já estava claro e as estrelas começavam a apagar-se. Sobre as
montanhas ecoou a trompa de Siegfried 287 e compreendi então que
precisávamos matá-lo. Estávamos armados com fuzis e ficamos de emboscada
numa caminho estreito. Súbito, Siegfried apareceu ao longe, no cume da
montanha, ao primeiro raio do sol nascente. Desceu em louca disparada pelo
flanco rochoso, num carro feito de ossos. Ao surgir numa volta, atiramos
contra ele e o abatemos, caindo mortalmente ferido. Cheio de desgosto e de
remorsos de haver destruído algo tão belo, preparei-me para fugir, impelido
pelo medo de que o crime pudesse ser descoberto. Desabou então uma
violenta e copiosa chuva que, eu sabia, faria desaparecer todos os vestígios

284
Id. p. 161
285
Id. p. 159
286
Id. p. 159
287
Gnomo da saga “O Anel dos Nibelungos”,do compositor alemão Richard Wagner (1813-1883), no qual
reconstrói partes da mitologia germânica. Siegfried, nas suas aventura, mata o dragão Fafnir para reclamar
o seu tesouro. Segundo a lenda, após matar o dragão, se banha com seu sangue para se tornar imortal. E
praticamente o consegue, porém, uma pequena parte de seu corpo, onde havia caído uma folha, ficou
vulnerável e lá seria o seu ponto fraco. Acaba morto pelos irmãos da princesa Kriemhild, Gunnar e Hogni,
que acertam uma lança exatamente no ponto fraco de Siegfried, para se apoderarem das suas riquezas,
entre as quais se encontra o poderoso “Anel dos Nibelungos”. Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Sigurd -
consulta realizada em 28 de fevereiro de 2007.

63
do atentado. Eu escapara do perigo de ser descoberto, a vida podia continuar,
mas persistia em mim um sentimento intolerável de culpabilidade. 288

Jung registra que depois deste sonho, não conseguiu compreendê-lo, e tentou

adormecer de novo e uma voz lhe disse: “É preciso que compreendas o sonho

imediatamente! Se não compreendes o sonho, deves dar um tiro na cabeça!” 289 , e

em sua cômoda havia um revólver carregado e sentiu medo. Refletindo sobre o

sonho, o compreendeu da seguinte maneira:

Este é o problema que agita atualmente o mundo! Siegfried representa o que


os alemães queriam realizar, isto é, a imposição heróica da própria vontade.
Onde há uma vontade, há um caminho! Era precisamente isto o que eu
também quisera. Mas tal coisa não era mais possível. O sonho mostrava que a
atitude encarnada por Siegfried, o herói, não correspondia mais a mim
mesmo. Por este motivo foi necessário que ele sucumbisse. Depois da
realização em sonho desse ato, eu sentia uma compaixão transbordante,
como se eu mesmo tivesse sido atingido pela bala. Isto exprimia minha
identidade secreta com o herói, e também com o sofrimento do homem que é
obrigado a fazer uma experiência que o constrange e sacrifica seu ideal e sua
atitude consciente. No entanto, era preciso pôr um termo a essa identidade
com o ideal do herói, pois há valores mais altos que a vontade do eu aos
quais precisamos nos submeter. O selvagem de pele bronzeada que me
acompanhava e que tomara a iniciativa da emboscada é uma encarnação da
sombra primitiva. A chuva mostra que a tensão entre o consciente e o
inconsciente estava se resolvendo. 290

As tentativas de compreender as fantasias levaram Jung a passar por outras

experiências, como esta que ele registra:

Parecia uma viagem à lua ou uma descida no vácuo. Surgiu em primeiro lugar
a imagem de uma cratera e senti como se estivesse no país dos mortos. Ao
pé de um alto muro rochoso vi duas figuras: a de um homem idoso de barba
branca e a de uma bela jovem. Reunindo toda a minha coragem, abordei-os
como se fossem seres reais. Escutei com atenção o que me diziam. O homem
idoso declarou que era Elias, e isto me abalou. Quanto à moça, desconcertou-
me ainda mais dizendo que se chamava Salomé! Era cega. Que estranho
casal: Salomé e Elias! Entretanto, Elias assegurou-me que ele e Salomé já
estavam ligados por toda a eternidade e isto aumentou ao máximo a minha
confusão. Vivia com eles uma serpente negra que manifestava uma evidente
inclinação por mim. Preferi dirigir-me a Elias, porque se afigurava o mais
razoável dos três, parecendo dispor de uma boa compreensão. Salomé
inspirava-me desconfiança. Mantive com Elias uma longa conversa, cujo
sentido não consegui compreender. Naturalmente, tentei”. tornar plausível a
aparição dos personagens bíblicos em minha fantasia, uma vez que meu pai
fora pastor. Mas isso não esclarecia coisa alguma. O que significava o homem

288
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 160
289
Id. p. 160
290
Id. p. 160-161

64
velho? O que significava Salomé? Por que estavam juntos? Somente muitos
anos mais tarde, quando meu conhecimento se ampliou, a ligação do velho
com a moça me pareceu perfeitamente natural. Ao longo das peregrinações
oníricas encontra-se mesmo muitas vezes um velho acompanhado por uma
moça; e em numerosos relatos míticos encontram-se exemplos desse mesmo
par. Assim, segundo a tradição gnóstica, Simão, o Mago, peregrinava com
uma jovem que tirara de um bordel. Ela se chamava Helena e era tida como
uma reencarnação de Helena de Tróia. Klingsor e Kundry 291 , Lao-Tse 292 e a
dançarina são exemplos do mesmo caso. Em minha imaginação, como já
mencionei, ao lado de Elias e de Salomé havia uma terceira figura; uma
grande serpente negra. Nos mitos, a serpente é muitas vezes a adversária do
herói. Numerosos relatos testemunham o seu parentesco. Assim, por
exemplo, diz-se que o herói tem olhos de serpente; outras vezes, depois de
sua morte, o herói é transformado em serpente e venerado sob essa forma.
Ou ainda, a serpente é a mãe do herói, etc. Na minha fantasia, pois, a
presença da serpente anunciava um mito do herói. Salomé é uma figuração
da Anima. É cega, pois não vê o sentido das coisas. Elias é a figuração do
profeta velho e sábio: representa o elemento do conhecimento, e Salomé, o
elemento erótico. Poder-se-ia dizer esses dois personagens encarnam o Logo
e o Eros. 293

Depois deste sonho, e sua interpretação, em que Jung expõe sua teoria dos

arquétipos, ele narra outro sonho, que o faz voltar-se ao gnosticismo, esclarecendo

que não se trata do movimento herético que surgiu no cristianismo primitivo, e seus

estudos em alquimia, como afirmamos no início deste trabalho. Assim, nos narra:

Pouco depois desta fantasia, outro personagem surgiu do inconsciente.


Configurava-se a partir de Elias. Chamei-o de Filemon. Filemon era um pagão
que trouxe à superfície uma atmosfera meio-egípcia, meio-helenística, de
tonalidade algo gnóstica. Sua imagem apresentou-se primeiro num sonho:
Havia um céu azul, que também parecia ser o mar. Estava coberto, não de
nuvens, mas de torrões de terra que pareciam desagregar-se, deixando
visível, entre elas, o mar azul. A água, entretanto, era o céu azul.
Subitamente, apareceu um ser alado pairando à direita. Era um velho com
chifres de touros. Trazia um feixe de quatro chaves, uma das águas estava
em sua mão como se fosse abrir uma porta. As asas eram semelhantes às do
martim-pescador, com suas cores características. Filemon, da mesma forma
que outros personagens da minha imaginação, trouxe-me o conhecimento
decisivo de que existem na alma coisas que não são feitas pelo eu, mas que
se fazem por si mesmas, possuindo vida própria. Filemon representava uma
força que não era eu. Em imaginação, conversei com ele e disse-me coisas
que eu não pensaria conscientemente. Percebi com clareza que era ele, e não
eu, quem falava. Explicou-me que eu lidava com os pensamentos como se eu

291
Personagens da Ópera Parsifal de Richard Wagner. Klingsor: mago negro, arquiteto de um jardim
mágico povoado por mulheres que seduziam com seus perfumes e trejeitos, os cavaleiros do Santo Graal.
Kundry: uma das amazonas do jardim de Klingsor, que ora é sua escrava, ora é uma fiel de Parsifal. –
http://pt.wikipedia.org/wiki/Parsifal - consulta realizada em 01 de Março de 2007.
292
Lao-Tse, cujo nome significa “Filho Velho”, tradicionalmente considerado o fundador do Taoísmo, religião
chinesa que enfatiza a espontaneidade ou liberdade de manipulação sócio-cultural pelas instituições,
linguagem e práticas culturais. – htto://pt.wikipedia.org/wiki/Lao-Tse – consulta realizada em 01 de Março
de 2007; e, http://pt.wikipedia.org/wiki/Tao%C3%ADsmo – consulta realizada em 01 de Março de 2007.
293
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 161

65
mesmo os tivesse criado; entretanto, segundo lhe parecia, eles possuem vida
própria, como animais na floresta, homens numa sala ou pássaros no ar:
“Quando vês homens numa sala, não pretenderias que os fizeste e que és
responsável por eles”, ensinou-me. Foi assim que, pouco a pouco, me
informou acerca da objetividade psíquica e da “realidade da alma”. Graças aos
diálogos com Filemon, esclareceu-se a diferenciação superior. Era para mim
um personagem misterioso. De vez em quando fez compreender que havia
uma instância em mim capaz de enunciar coisas que eu não sabia, não
pensava, e mesmo coisas com as quais não concordava. Psicologicamente,
Filemon representava uma inteligência superior. Era para mim um
personagem misterioso. De vez em quando tinha a impressão de que ele era
quase fisicamente real. Passeava com ele pelo jardim e o considerava uma
espécie de guru, no sentido dado pelos hindus a esta palavra. Filemon me
encaminhou para muitos esclarecimentos interiores. Mais tarde, Filemon foi
relativizado pela aparição de outro personagem, que denominei Ka. No antigo
Egito, o “Ka do Rei” era considerado sua forma terrestre, sua alma encarnada.
Na minha fantasia a alma-Ka vinha de sob a terra como que de um poço
profundo. O Ka diz sobre si mesmo: “Eu sou aquele que enterra os deuses no
outro e nas pedras preciosas”. Filemon tem um pé paralisado, mas é um
espírito alado, enquanto o Ka é uma espécie de demônio da terra ou dos
metais. Filemon encarna o aspecto espiritual, o “sentido”. O Ka, pelo
contrário, é um gênio da natureza como o anthroparion da alquimia grega,
que eu desconhecia nessa época. O Ka é aquele que torna tudo real, mas que
vela o espírito do martim-pescador, o sentido, ou que o substitui pela beleza,
pelo “eterno reflexo”. Com o tempo integrei essas duas figuras. O estudo da
alquimia ajudou-me a consegui-lo. 294

Jung define arquétipo como:

O conceito de arquétipo... deriva da observação reiterada de que os mitos e


os contos da literatura universal encerram temas bem definidos que
reaparecem sempre e por toda parte. Encontramos esses mesmos temas nas
fantasias, nos sonhos, nas idéias delirantes e ilusões dos indivíduos que vivem
atualmente. A essas imagens e correspondências típicas, denomino
representações arquetípicas. Quanto mais nítidas, mais são acompanhadas de
tonalidades afetivas vívidas... Elas nos impressionam, nos influenciam, nos
fascinam. Têm sua origem no arquétipo que, em si mesmo, escapa à
representação, forma preexistente e inconsciente que parece fazer parte da
estrutura psíquica herdada e pode, portanto, manifestar-se espontaneamente
sempre e por toda parte. 295

I. 6. 2. – Anima e Animus

Outro conceito de sua teoria é a idéia de anima e animus, que surgiu a partir

do momento em que tomava nota de suas fantasias, procurando compreender o

significado do que passava em suas experiências interiores, e os conflitos com seu

compromisso com o conhecimento científico. Jung relata que desconfiava de que

294
Id. p. 162-164
295
Id. p. 352

66
estivesse realmente “fazendo ciência” 296 , surgiu depois que ouvira uma voz feminina,

identificada como a de uma de suas pacientes, “uma psicopata muito dotada, que

estabelecera uma forte transferência” 297 com ele; “ela se tornara um personagem

vivo de meu mundo interior” 298 . Tal voz lhe disse: “O que fazes é arte” 299 . E, muito

surpreso, Jung percebe que se trata de uma maneira tipicamente feminina de

argumentar, pois se não era ciência, era então arte, mesmo. Como se houvesse

apenas essas duas possibilidades. E, num intenso debate, Jung explica à voz que o

que fazia não era arte, senão “natureza” 300 , isto é, por deixar-se ser conduzido pelas

experiências interiores, tinha aquelas fantasias e, as registrava com o fim de

compreender. Desta experiência nasceu sua teoria sobre a anima, como fruto de

suas reflexões quanto à realidade da “alma, no sentido primitivo do termo” – a

mulher interior não dispõe de um centro da palavra e faz uso da linguagem do

homem exterior. Como a “alma” sempre fora designada como sendo “feminina e se

tratava de uma personificação típica ou arquetípica no inconsciente do homem” 301 ,

passa a designá-la pelo termo anima. “À figura correspondente, no inconsciente da

mulher, chamei animus”. 302 Jung mantém contato com sua anima, através de cartas

para evitar que a mesma venha deformar a natureza de suas fantasias, ou envolvê-lo

em suas intrigas negativas, tentando ser o mais honesto possível. Contudo, buscou

“distinguir” 303 seus pensamentos dos conteúdos da anima, por possuírem certo grau

de autonomia e, manteve vivo um diálogo, com bastante franqueza e sinceridade,

para não se ver envolvido com o inconsciente e assim perder o contato com a
296
Id. p. 164
297
Id. p. 164
298
Id. p. 164
299
Id. p. 164
300
Id. p. 165
301
Id. p. 165
302
Id. p. 164-165
303
Id. p. 165

67
realidade consciente. “Apenas dessa maneira é possível despotenciá-los, sem o que

irão exercer seu poder sobre o consciente” 304 , mantendo assim uma “inter-relação

com o inconsciente” 305 .

A ambigüidade da anima, mensageira do inconsciente, pode aniquilar um


homem de uma vez por todas. Mas o decisivo, em última instância, é sempre
o consciente, pois é ele que deve compreender as manifestações do
inconsciente e tomar posição frente a elas. 306

Jung percebeu que a anima também tem um aspecto positivo.

É ela que transmite ao consciente as imagens do inconsciente e é isto que me


parecia o mais importante. Durante décadas, dirigi-me a anima quando minha
afetividade estava perturbada e me achava intranqüilo. Nessas ocasiões havia
sempre algo constelado no inconsciente. Então eu interrogava a anima: “o
que se passa contigo? O que vês? Queria sabê-lo!”Depois de algumas
resistências ela produzia sempre uma imagem. Assim que essa imagem se
formava, a agitação ou a tensão desapareciam. Depois eu falava com a anima
a propósito das imagens, pois sentia a necessidade de compreendê-las, tanto
quanto possível à maneira de um sonho”. 307 “Sentia a urgência de tirar
conclusões concretas dos acontecimentos que o inconsciente me havia
transmitido, e isto se transformou na tarefa e conteúdo da minha vida.
Compreendi que nenhuma linguagem, por mais perfeita que seja, pode
substituir a vida. Se procurar fazê-lo, não somente ela se deteriorará como
também a vida. Para conseguir a liberação da tirania dos condicionamentos do
inconsciente duas coisas são necessárias: desincumbirmo-nos de nossas
responsabilidades intelectuais e também de nossas responsabilidades
éticas. 308

Jung define anima e aninus, respectivamente, da seguinte maneira:

personificação da natureza feminina do inconsciente do homem e da natureza


masculina do inconsciente da mulher. Tal bissexualidade psíquica é o reflexo
de um fato biológico; o maior número de gens do sexo oposto parece produzir
um caráter correspondente ao sexo oposto mas, devido à sua inferioridade,
usualmente permanece inconsciente. Desde a origem, todo homem traz em si
a imagem da mulher; não a imagem desta ou daquela mulher, mas a de um
tipo determinado. Tal imagem é, no fundo, um conglomerado hereditário
inconsciente, de origem remota, incrustada no sistema vivo, tipo de todas as
experiências da linhagem ancestral em torno do ser feminino, resíduo de
todas as impressões fornecidas pela mulher, sistema de adaptação psíquico
herdado... o mesmo acontece quanto à mulher. Ela também traz em si uma
imagem do homem. A experiência mostra-nos que seria mais exato dizer:
uma imagem de homens, enquanto que no homem se trata em geral da
imagem da mulher; sendo inconsciente, esta imagem é sempre projetada

304
Id. p. 165
305
Id. p. 167
306
Id. p. 166
307
Id. p. 166
308
Id. p. 167

68
inconscientemente no ser amado; ela constitui uma das razoes essenciais da
atração passional e de seu contrário. A função natural do animus (como a da
anima) consiste em estabelecer uma relação entre a consciência individual e o
inconsciente coletivo. Analogamente, a persona representa uma zona
intermediária entre a consciência do eu e os objetos do mundo exterior. O
animus e a anima deveriam funcionar como uma ponte ou pórtico, conduzindo
às imagens do inconsciente coletivo, assim como a persona representa uma
ponte para o mundo. Em sua primeira forma inconsciente, o animus é uma
instância que engendra opiniões espontâneas, involuntárias, exercendo uma
influência dominante sobre a vida emocional da mulher; a anima é, por outro
lado, uma instância que engendra sentimentos espontâneos, os quais
exercem uma influência sobre o entendimento do homem, nele provocando
distorções. O animus é projetado particularmente em personalidades
“espirituais” e toda espécie de “heróis”. O animus se apodera facilmente do
elemento que na mulher é inconsciente, vazio, frígido, desamparado, incapaz
de relação, obscuro e equívoco... No decurso do processo de individuação, a
alma se associa à consciência do eu e possui, pois, um índice feminino no
homem e masculino na mulher. A anima do homem procura unir e juntar, o
animus da mulher procura diferenciar e reconhecer. São posições
estritamente contrárias... No plano da realidade consciente constituem uma
situação conflitual, mesmo quando a relação consciente dos dois parceiros é
harmoniosa. A anima é o arquétipo da vida... pois a vida se apodera do
homem através da anima, se bem que ele pense que a primeira lhe chegue
através da razão. Ele domina a vida com o entendimento, mas a vida vive
nele através da anima. E o segredo da mulher é que a vida vem a ela através
da instância pensante do animus, embora ela pense que é o Eros que lhe dá
vida. Ela domina a vida, vive, por assim dizer, habitualmente, através do Eros;
mas a vida real, que é também sacrifício, vem à mulher através da razão que
nela é encarnada pelo animus. 309

I. 6. 3. Alquimia e Transferência

A alquimia foi decisiva, pois para Jung esta serviu de “base histórica” de suas

experiências interiores, sendo que o sonho, quando contava com onze anos de

idade, a seguir o levou a se interessar pela matéria:

Estou no Tirol do sul, durante a guerra. Encontro-me no front italiano, prestes


a retirar-me com um homenzinho, um camponês, na carroça do qual nos
achamos. Em torno explodem obuses e sei que é preciso nos afastarmos tão
rapidamente quanto possível, pois nos encontramos em grande perigo.
Tínhamos que atravessar uma ponte e depois um túnel, cuja abóbada tinha
sido parcialmente destruída pelos obuses. Chegando ao fim do túnel, vimos
diante de nós uma paisagem ensolarada: reconheci a região de Verona. Mais
abaixo estava a cidade iluminada pelo sol. Senti-me aliviado enquanto nos
dirigimos para a planície lombarda, verdejante e florida. A estrada
serpenteava através de belas paisagens primaveris e admiramos arrozais,
olivais e vinhedos. De repente, avistei, interceptando a estrada, um edifício
grande, uma casa senhorial de grandes proporções, semelhante a um castelo
de algum príncipe da Itália do Norte. Era uma morada senhorial característica,
com muitas dependências e edifícios anexos. Tal como no Louvre, a rua

309
Id. 351-352

69
levava ao castelo através de um grande pátio. O cocheiro e eu atravessamos
um portal e pudemos então, de onde nos encontrávamos, perceber de novo a
paisagem ensolarada, através de um segundo portal mais distante. Olhei em
torno: à direita, a fachada da morada senhorial; à esquerda, as casas dos
empregados e as cavalariças, as granjas e outras construções anexas que se
estendiam ao longe. Enquanto permanecíamos no meio do pátio, diante da
entrada principal, ocorreu algo inesperado: com um baque surdo, os dois
portais se fecharam. O camponês saltou do banco do carro e gritou: “eis-nos
agora prisioneiros do século XVII!” Resignado, pensei: “sim, é isso! Mas que
fazer? Eis-nos prisioneiros por muitos anos!” Depois tive um pensamento
consolador: algum dia, depois de passados esses anos, poderei sair. 310

Foi o livro Segredo da Flor de Ouro, de Richard Wilhelm (1873-1930),

missionário protestante alemão e sinólogo, na qual analisa e apresenta a alquimia

chinesa, o qual motivou Jung a estudar profundamente a alquimia européia311 , sendo

que durante quinze anos ele formou uma grande biblioteca acerca do assunto, sendo

que Artis Auriferae Volumina Duo de 1593, servira para que compreendesse que os

“alquimistas falavam em símbolos” 312 , e por mais de dez anos 313 estudou

profundamente, inicialmente, um estudo filológico e depois de interpretação dos

símbolos.

A alquimia para Jung serviu de referência para comparar com a psicologia. Por

exemplo, sua interpretação do Dogma da Trindade, do texto da missa, Jung compara

ao de Zózimo de Panópolis, alquimista e gnóstico do século III. Assim, formulou a

idéia de Cristo como “figura psicológica” 314 , e que a “pedra” (lápis), que é uma

representação central da alquimia, “é uma figura paralela a Cristo” 315 .

O conceito de transferência também surgiu da aproximação da alquimia, da

“conjunctio – da união”, conforme os escritos de Herbert Silberer (1882-1923). Como

310
Id. p. 179-180
311
REVISTA, Viver Mente&Cérebro: Memória da Psicanálise. Jung e a Psicologia Analítica e o Resgate do
Sagrado. Nº 02, São Paulo. p. 11
312
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 180
313
Id. p. 181
314
Id. p. 185
315
Id. p. 185

70
“todos os problemas foram antecipados ou acompanhados por sonhos” 316 , o

problema da transferência também foi um deles, que fora abordado via manifestação

do inconsciente, no caso, no seguinte sonho:

Minha casa tinha uma grande ala na qual jamais havia entrado. Finalmente fui
visitá-la. Cheguei a uma grande porta de dois batentes. Ao abri-la, encontrei-
me num espaço onde havia sido instalado um laboratório. Diante da janela
havia uma mesa cheia de todos os tipos de recipientes de vidro e todo o
aparelhamento de um laboratório zoológico. Era o local de trabalho de meu
pai. Mas ele não estava lá. Nas paredes, cabides suportavam centenas de
vidros que continham todas as espécies de peixes imagináveis. Estava
assombrado: “Então meu pai se ocupa de ictiologia!” Enquanto estava lá e
olha em torno, vi que uma cortina de vez em quando se inflava ao sopro de
um vento forte. De repente apareceu Hans, um rapaz do campo; pedi-lhe que
fosse ver por detrás da cortina se não havia alguma porta ou janela aberta.
Ele obedeceu e, ao voltar vi que estava transtornado. Uma expressão de
terror lia-se em seu rosto. Disse simplesmente: “Sim, há uma coisa. É um
fantasma!” Fui então para a outra peça e encontrei uma porta que
comunicava com o quarto de minha mãe; não havia ninguém. A atmosfera
era opressiva e o quarto muito grande. No teto havia duas fileiras de cinco
caixas suspensas, cerca de meio metro do chão. Pareciam pequenas cabanas
de jardim, com uma superfície de mais ou menos dois metros quadrados; em
cada uma havia dois leitos. Sabia que nesse local minha mãe, que na
realidade morrera há muito tempo, era visitada e lá instalara leitos para os
espíritos. Eram espíritos que vinham aos pares; casais de espíritos, que lá
passavam a noite ou mesmo o dia. Em frente ao quarto de minha mãe havia
uma porta. Eu a abi e encontrei-me num imenso hall de um grande hotel,
com cadeiras, mesas, colunas e todo o luxo habitual. Uma orquestra de
instrumentos de metal tocava espalhafatosamente. Antes, já ouvira a música
ao longe, sem saber, entretanto, de onde vinha. Não havia ninguém no hall,
só a fanfarra executando canções, danças e marchas. A orquestra de metais,
no hall do hotel, indicava divertimento e mundanidade ostensiva. Atrás dessa
fachada barulhenta, ninguém teria suspeitado que existia um outro mundo na
casa. A imagem onírica do hall seria, portanto, uma caricatura de minha
bonomia e jovialidade mundana. Mas isso era apenas o lado exterior; atrás,
encontrava-se algo completamente diferente, sobre o qual seria impossível
discorrer, ouvindo a orquestra de metais: o laboratório de peixes, e o quarto
onde estavam suspensas as armadilhas de espíritos. Eram locais
impressionantes, nos quais reinava misterioso silêncio. Meu sentimento era
este: aqui vive a noite, enquanto o hall representa o dia e a agitação
superficial do mundo. 317

I. 6. 4. Gnosticismo

Jung estudou os escritos gnósticos de 1918 a 1926, que em sua opinião foram

eles que “encontraram o mundo original do inconsciente” 318 . Jung esclarece que não

316
Id. p. 187
317
Id. p. 187-188
318
Id. p. 177

71
quer dizer que os gnósticos tivessem alguma concepção psicológica, pelo menos

inicialmente. Ele não via nenhum tipo de interação entre seus pressupostos

científicos e os conceitos gnósticos. Ele mesmo afirma: “a alquimia como filosofia da

natureza, em vigência na Idade Média, lança uma ponte tanto para o passado, a

gnose, como para o futuro, a moderna psicologia do inconsciente” 319 .

Sua referência a “moderna psicologia do inconsciente” é a Freud, que para

ele, fora quem relacionara a psicologia com o gnosticismo com os temas gnósticos

da sexualidade, por um lado, e da autoridade paterna nociva, por outro, isto é, Jung

compreendeu algo mais profundo que Freud. Para ele, o “pai original e o super-ego”

estavam relacionados com o Deus Criador do gnosticismo, devido a sua obscuridade,

isto é, por não ser de todo compreendido. Jung entendia que para Freud, este “pai

original” era como um “demônio que engendrara um mundo de decepções, de

ilusões e de dor”. Enquanto que em sua opinião “de acordo com a tradição gnóstica,

foi esse deus superior que enviou aos homens, a fim de ajudá-los, o “Cratera”

(recipiente para as misturas), o vaso da metamorfose em espírito” 320 .

Jung faz esta relação psicologia-gnosticismo por levar em conta que os

gnósticos apresentaram a idéia que a religião poderia ser conhecida através da

intuição e da razão, e não exclusivamente pela fé. Portanto, a noção de Deus poderia

ser adquirida através da intuição e da razão. Segundo Jorge W. F. Amaro (?), em

Psicoterapia e Religião (1996) “para Jung, a alquimia não só legou um valor

inestimável aos conhecimentos materiais, mas também aos elementos obscuros da

vida anímica. Ele estabelece correlações entre as idéias enigmáticas dos sonhos e

figurações preexistentes nas representações cristãs observadas nos relatos da

319
Id. p. 177
320
Id. p. 178

72
alquimia. Jung lembra que naquela época alguns alquimistas intuitivamente já

apontavam que a pedra filosofal, há séculos procurada e nunca encontrada, estava

no próprio homem” 321 .

A inspiração da psicologia do inconsciente na alquimia veio da atitude do

alquimista que procurava o “segredo de Deus” na matéria desconhecida e se

empenhava em preocupações e caminhos semelhantes aos da psicologia. Conforme

o Glossário que se encontra na parte final do Memórias, Sonhos e Reflexões, nos

apresenta o sentido da alquimia para a psicologia do inconsciente:

A alquimia filosófica da Idade Média deve ser compreendida, na perspectiva


da história do Espírito, como um movimento compensatório do inconsciente,
em face do cristianismo; pois o objeto das meditações e da técnica alquimista
– o domínio da natureza e da matéria – não encontrou lugar nem uma
valorização adequada dentro do cristianismo; foi por ele considerado como
algo a ser superado. Assim pois a Alquimia é uma espécie de imagem
especular primitiva e obscura do mundo de imagens e pensamentos cristãos,
tal como Jung mostrou em seu livro Psicologia e Religião, mediante a analogia
da idéia central dos alquimistas relativamente à pedra – o lápis – com o
Cristo. A imagem simbólica e o paradoxo são típicos da linguagem dos
alquimistas. Ambos correspondem à natureza inapreensível da vida e da
psique inconsciente. 322

I. 6. 5. Libido

Jung discorre mais sobre este tema no livro Metamorfose e Símbolos da

Libido. Para ele a libido era de natureza mais quantitativa que qualitativa, isto é, são

“expressões diversas da energia psíquica” 323 e não apenas compulsões isoladas de

fome, agressão ou de sexualidade, como queria Freud, ou de poder, como queria

Alfred Adler (1870-1937). Jung distanciou seu conceito de libido especificamente do

conceito de Freud, para quem ela tinha um significado predominantemente ou

exclusivamente sexual. Em sua opinião, assim como em física se fala de energia da

eletricidade, luz, calor, etc, o mesmo se dá na Psicologia, sua manifestação é


321
AMARO, Jorge W. F. – Psicoterapia e Religião. São Paulo: Lemos Editora e Gráficos Ltda., 1996. p. 230
322
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 350
323
Id. p. 183

73
diversificada em intensidade. Na verdade Jung intencionava estabelecer

comparações da Psicologia com as Ciências Físicas, talvez por temer não estar

fazendo ciência, mas sim “arte”, com afirmava uma de suas pacientes. Por isso

afirma:

Considero, por exemplo, os impulsos humanos como formas sob as quais se


manifestam os processos energéticos, e, portanto, como forças análogas ao
calor, à luz, etc. Da mesma forma que não ocorreria a qualquer físico
contemporâneo coloca apenas no calor a origem de todos os impulsos
energéticos, da mesma forma seria pouco admissível em psicologia fazer
decorrer todos esses impulsos apenas do conceito de poder ou da
sexualidade. 324

Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana Jung usava libido e energia

psíquica como termos intercambiáveis. Para Jung a libido assume muitas formas,

conforme as fases ou estágios da vida. A afirmação acima citada, quanto a

comparação com a física, na verdade trata-se de uma metáfora, isto é, Jung procura

explicar seu conceito acerca da libido, usando a linguagem das ciências físicas.

Embora não existam meios objetivos para medir a quantidade de energia psíquica

que os indivíduos investem em suas atividades psicológicas, não se pode negar seu

valor e sua intensidade. Talvez, para nosso trabalho acerca do Protestantismo é

interessante perceber que em sua análise Jung acreditava que a religião é um

“canal” por onde flui a energia psíquica, e quando este fica como que bloqueado, a

energia procura fluir por outros canais, podendo levar até mesmo a depressão e ao

sentimento de vazio existencial. Como ele demonstrou no caso que apresenta em

seu livro Psicologia e Religião, de um paciente protestante e outro católico, que

tiveram suas energias espirituais bloqueadas pelo racionalismo científico, chegando a

324
Id. p. 184

74
acreditarem terem um câncer, conforme veremos no terceiro capítulo. Ainda,

segundo o Dicionário citado acima:

De acordo com Jung, este é um exemplo da tendência natural da psique de


manter um equilíbrio. Devido a essa tendência, a energia psíquica muda de
direção e intensidade quando ocorre um desequilíbrio e não apenas devido a
um bloqueio. 325

I. 6. 6. Individuação

Só quando descobriu a alquimia que Jung percebeu que o inconsciente se

transforma ou provoca transformações. Para ele o inconsciente é um “processo e

que as relações do ego com os conteúdos do inconsciente, sonhos e fantasias, em

casos individuais, e no mundo coletivo, nos sistemas religiosos e na transformação

de seus símbolos 326 , desencadeiam um desenvolvimento ou uma verdadeira

metamorfose da psique” 327 . A individuação, então, além de ser o “conceito básico” 328

é também a conclusão a que se chega depois de analisar as evoluções individuais e

coletivas, graças à simbologia alquimista. Para ele, tanto o indivíduo como o coletivo,

passa por transformações, assim como se dá nos processos alquímicos, sendo que

na psicologia isto se passa graças ao inconsciente que desencadeia metamorfoses

psíquicas 329 . Se considerarmos o Protestantismo como um processo coletivo do

inconsciente, pois se trata de um sistema religioso e que também sofrera

transformações em seus símbolos, podemos concluir que como tal o Protestantismo

promove metamorfoses em seus fiéis e no mundo real. Tal estudo ainda está para

ser elaborado.

325
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred – Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de
Janeiro: Imago Editora Ltda., 1996, p. 69
326
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 184
327
Id. p. 184
328
Id. p. 184
329
Id. p. 184

75
Segundo o Dicionário, acima citado, “o termo “individuação” foi adotado por

Jung através do filósofo Schopenhauer, porém reporta-se a Gerard Dorn, um

alquimista do século XVI. Ambos falam do principium individuationis. Jung aplicou o

princípio à psicologia. Na linguagem da alquimia, a individuação é um trabalho contra

a natureza – opus contra naturam” 330 .

Individuação é o processo de tornar-se uma pessoa inteira, indivisível e

completa, com sensação de auto-realização, que motiva o ser humano do

nascimento à velhice e o guia nas escolhas afetivas e profissionais. Jung afirma:

A individuação significa tender a tornar-se um ser realmente individual; na


medida em que entendemos por individualidade a forma de nossa unicidade,
a mais íntima, nossa unicidade última e irrevogável; trata-se da realização de
seu si-mesmo, no que tem de mais pessoal e de mais rebelde a toda
comparação. Poder-se-ia, pois traduzir a palavra individuação por “realização
de si-mesmo”, “realização do si-mesmo. 331

Trata-se, portanto, de um processo de diferenciação psicológica que tem

como finalidade o desenvolvimento da personalidade individual. Este processo

depende da relação vital que existe entre o ego e o inconsciente. A meta não é

sobrepujar a própria psicologia pessoal, tornar-se perfeito, mas familiarizar-se com

ela. Assim, a individuação envolve uma consciência crescente da nossa realidade

psicológica única, incluindo as forças e as limitações pessoais, e, ao mesmo tempo,

uma apreciação mais ampla da humanidade em geral. De acordo com o ponto de

vista de Jung, ninguém jamais é completamente individuado. Enquanto a meta é a

totalidade e uma relação de trabalho saudável com o self, o verdadeiro valor da

330
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred – Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de
Janeiro: Imago Editora Ltda., 1996, p. 108, 110
331
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 355

76
individuação situa-se naquilo que acontece durante o processo. Jung diz:

“Individuação é a vida em Deus” 332 .

I. 6. 7. Sombra

Este conceito é elaborado graças à sua consciência da realidade do mal na

vida humana e seu empenho de compreendê-la. Segundo o Dicionário Crítico de

Análise Junguiana é a Freud que Jung dá o crédito de chamar a atenção do homem

moderno para a dissociação entre os lados claro e escuro da psique humana. Jung

falava do método de Freud como a mais detalhada e profunda análise da sombra

jamais realizada. Porém, achava o modo freudiano de tratar a sombra, “limitada” 333 .

Para ele a sombra é uma parte viva da personalidade e que “quer viver com esta” de

alguma forma, identifica-a, antes de tudo, com os conteúdos do inconsciente

pessoal.

Ainda segundo o Dicionário a sombra é um arquétipo e, seus conteúdos são

poderosos, pois são marcados pelo afeto, obsessivos, possessivos, autônomos, e

assim, capazes de alarmar e dominar o ego estruturado 334 .

Este conceito de sua psicologia talvez venha daquilo que chamou de “má

consciência”, quando ainda adolescente foi despertado para o fato de ter colaborado

com o colega de escola que batera nele, e isto o forçou a se afastar da Escola

durante alguns meses. Diz ele: “A sombra é um problema moral que desafia toda a

personalidade do ego, pois ninguém pode tornar-se consciente da sombra sem um

332
JUNG, C. G. – A Vida Simbólica, parág. 1.624
333
SAMUELS, Andrew; SHORTER, Bani; PLAUT, Fred – Dicionário Crítico de Análise Junguiana. Rio de
Janeiro: Imago Editora Ltda., 1996, p. 205
334
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 205

77
considerável esforço moral. A sua conscientização envolve o reconhecimento dos

aspectos sombrios da personalidade como presentes e reais” 335 .

Para Daryl Sharp (?) a sombra compõe-se, em sua maior parte, de desejos

reprimidos e de impulsos não civilizados, de motivos moralmente inferiores, de

fantasias e ressentimentos infantis, etc – todas aquelas coisas as quais não nos

orgulhamos. A realização da sombra é inibida pela persona. Na medida em que nos

identificamos com uma persona brilhante, a sombra é correspondentemente escura.

Assim, sombra e persona situam-se num relacionamento de compensação e o

conflito entre ambas está invariavelmente presente na eclosão de uma neurose. A

depressão característica de tal momento indica a necessidade de constatarmos que

não somos tudo o que fingimos ou que gostaríamos de ser 336 .

Em Memórias, Sonhos e Reflexões Jung considera pela primeira vez sua

“sombra” ao relatar um sonho em que dois médicos psiquiatras, pai e filho, e ele,

ouviam um sermão de seu pai, que na ocasião já havia morrido. O sermão era

baseado no Velho Testamento, no Pentateuco, mas não era possível ser

compreendido devido a sua profundidade, ao muito diferente de quando seu pai era

vivo, e por essa razão, Jung registra: “os dois psiquiatras representam de alguma

forma a minha sombra, em primeira e segunda edição, como pai e filho” 337 .

335
SHARP, Daryl – Léxico Junguiano: Dicionário de Termos e Conceitos. São Paulo: Editora Cultrix, 1997. p.
149
336
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 149, 150
337
Id. p. 191

78
I. 6. 8. Si-Mesmo ou Self

Só a partir das mandalas que Jung desenvolveu o conceito do Si-mesmo. Para

ele o si-mesmo é a “meta do desenvolvimento psíquico”338 . À medida que se

aproxima deste “centro”, de modo “circular” 339 , o indivíduo se individua, isto é,

compreende que tudo se “refere ao centro” da existência. Jung relata que de um

sonho, abaixo transcrito, compreendeu o si-mesmo, como um “princípio, um

arquétipo da orientação e do sentido” 340 . O sonho é o seguinte:

Encontrava-me numa cidade suja de fuligem. Chovia e a atmosfera estava


carregada: era uma noite de inverno em Liverpool. Com cerca de seis
companheiros suíços, eu caminhava através das ruas escuras. Tinha a
impressão de que vínhamos do mar, do porto, e que a verdadeira cidade
ficava no alto, sobre os penhascos. Para lá nos dirigíamos. A cidade lembrava-
me Basiléia: o mercado é embaixo e há uma ruela que sobe chamada
Totengaesschen (ruela dos mortos) conduzindo a um planalto onde fica a
praça de São Pedro e a grande igreja do mesmo nome. Quando chegamos ao
planalto encontramos uma vasta praça fracamente iluminada por lampiões
onde muitas ruas desembocavam. Os quarteirões da cidade eram dispostos
radialmente em torno da praça. No meio, encontrava-se um pequeno lago, no
centro do qual havia uma pequena ilha. Embora tudo estivesse mergulhado
na chuva, na neblina, na fumaça, numa noite frouxamente iluminada, a ilhota
resplandecia à luz do sol. Nela se erguia uma árvore solitária: uma magnólia
coberta de flores avermelhadas. Era como se a árvore estivesse ligada à luz
do sol e como se, ao mesmo tempo, fosse a própria luz. Meus companheiros
faziam observações sobre tempo terrível e evidentemente não viam a árvore.
Falavam de um outro suíço que habitava Liverpool, espantados de que ele
tivesse se estabelecido nessa cidade. Eu me sentia transportado pela beleza
da árvore em flor, pela ilha ensolarada e pensava: “Eu bem sei porque”,
quando despertei. 341

Trata-se do arquétipo da totalidade e o centro regulador da psique; poder

transpessoal que transcende o ego. Jung acreditava que não havia nenhuma

diferença essencial entre o self enquanto realidade experimental e psicológica e o

conceito tradicional de uma divindade suprema. Ele chega a afirmar:

Intelectualmente, ele não passa de um conceito psicológico, de uma


construção que serve para exprimir o incognoscível que, obviamente,
ultrapassa os limites a nossa capacidade de compreender. O si-mesmo

338
Id. p. 174
339
Id. p. 174
340
Id. p. 176
341
Id. p. 175

79
também pode ser chamado de “o Deus em nós”. Os primórdios de toda nossa
vida psíquica parecem surgir inextricavelmente deste ponto e as metas mais
altas e derradeiras parecem dirigir-se para ele. Tal paradoxo é inevitável como
sempre que tentamos definir o que ultrapassa os limites de nossa
compreensão. 342

Segundo o Dicionário Crítico de Análise Junguiana, às vezes Jung fala do self

como origem da vida psíquica; outras vezes refere-se a sua realização como o

objetivo. Sublinhava que era um conceito empírico e não uma formulação filosófica

ou teológica, daí sua elucidação acima. A capacidade de uma pessoa de integrar tal

imagem sem mediação sacerdotal foi questionada pelo clero, e teólogos criticaram a

inclusão de elementos, tanto positivos como negativos, na imagem de Deus. Porém,

Jung defendia com firmeza sua posição apontando que a ênfase cristã só sobre “o

bem” havia deixado o homem ocidental alienado e dividido dentro de si. Isto talvez

se aplique a compreensão que tinha de seu pai, por este se identificar tão somente

com “o bem” sem, contudo, perceber seu mau humor, como manifestação do self.

Segundo Carlos Amadeu Botelho Byington, no Artigo Transcendência e

Totalidade, da Revista Viver Mente&Cérebro, Nº 02, o Self é “a descoberta mais

espetacular das neurociências, que consagrará finalmente a genialidade de Jung na

academia científica e nos templos religiosos, será a localização do Arquétipo Central

– Self – no sistema neuropsíquico. Que eu saiba, a busca pela imagem de Deus no

sistema nervoso humano ainda não consta oficialmente de nenhum projeto de

pesquisa das neurociências. Sua proposta já seria certamente um escândalo para a

mentalidade positivista que, infelizmente, ainda domina a universidade e chocaria

certamente também o dogmatismo das instituições religiosas”. 343

JUNG, C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis: Editora Vozes, 1994. parág. 399


342
343
REVISTA, Viver Mente&Cérebro: Memória da Psicanálise. Jung: a Psicologia Analítica e o Resgate do
Sagrado. Nº 02, São Paulo: Duetto Editorial. P. 14

80
I. 7. A Torre de Bollingen

A título de curiosidade apresento as características da casa que Jung

construíra em Zurique. Trata-se de uma casa de férias, construída à beira do lago

superior de Zurique 344 , adquirida em 1922, da Igreja de St. Gall, próximo ao distrito

de St. Meirad, construída pelo próprio Jung, obviamente com a ajuda de

pedreiros 345 , que aparentemente era de difícil acesso, pois segundo ele se faz por

um “atalho ao longo do lago” 346 mas, considerada como sua “profissão de fé – ela

exerceu sobre mim uma ação benfazeja, como a aceitação daquilo que eu era,

símbolo da totalidade psíquica” 347 , isto é, a construção representava seus

pensamentos mais íntimos e “era poderoso o sentimento de repouso e de renovação

que a torre despertava”, nele. Inicialmente idealizada nas “cabanas africanas, com

uma lareira ao centro e pedras ao seu redor, onde se desenrola a existência da

família, cuja construção corresponde aos sentimentos primitivos do homem; oferecia

uma sensação de refúgio e de abrigo, não só no sentido físico, mas também

psíquico. Um lugar de amadurecimento” 348 . Na casa não há eletricidade e ele mesmo

acendia o fogo da lareira e do fogão e dos velhos lampiões. Não há também, água

encanada, que era tirada do poço, graças à ajuda de uma “bomba manual”. Quando

lá estava, Jung rachava lenha e cozinhava. Segundo ele “esses trabalhos simples

tornam o homem simples, e é muito difícil ser simples” 349 . A casa passou a ser

conhecida como “torre” devido a altura de dois andares e em plano circular, sendo

que a primeira fase de construção ficara pronta em 1923. E, em 1927 já havia

344
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p.196
345
Id. p. 198
346
Id. p. 205
347
Id. p. 196, 197, 198
348
Id. p. 196, 197
349
Id. p. 198

81
acrescentado outra construção, como um “anexo” 350 . E, em 1931, Jung constrói um

terceiro apêndice, um quarto que mantinha fechado e a chave em seu poder, sem

permitir a entrada de outras pessoas, senão aquelas que permitia 351 . As paredes

desse quarto eram ornadas por figuras, pintadas pelo próprio Jung, que segundo ele,

“exprimiam tudo o que me conduz da agitação do mundo à solidão, do presente ao

intemporal – é um lugar de concentração espiritual” 352 , e, o teto era decorado com

os brasões de sua família, dos de sua esposa e de seus genros 353 . E, em 1935,

depois de doze anos, concluiu a construção, com mais um pátio, formando assim o

que chamou de “quaternidade, quatro partes de construção diferente, sendo que a

parte central, até então muito baixa e presa entre as duas torres, me representava,

ou mais precisamente, meu próprio eu, o segundo andar, a superioridade do ego,

adquirida com a idade ou a da consciência” 354 .

I. 8. Suas Viagens

Acrescentamos isto ao trabalho por considerar que Jung relata experiências

religiosas, que certamente influenciaram sua prática como protestante.

Jung descreve os lugares e as pessoas por onde passou, com detalhes acerca

dos costumes sociais – homens abraçados a outros homens 355 ; familiares – homens

falam com homens e mulheres com mulheres 356 ; culturais – festas e danças 357 ; e,

350
Id. p. 197
351
Id. p. 197
352
Id. p. 197
353
Id. p. 207
354
Id. p. 197
355
Id. p. 212
356
Id. p. 213
357
Id. p. 214

82
religiosos – “o ar era saturado de mistério” 358 , porém, justifica suas observações por

se ocupar de “estudar principalmente as manifestações afetivas das pessoas”.

I. 8. 1. África do Norte e Novo México

O roteiro seguido na África do Norte, em 1920, foi: Tunis, Soussa, Sfax, Saara,

Tozeur, Nefta 359 , ora de navio, ora em lombos de “grandes mulas, de trote

rápido” 360 , tendo retornado cinco anos mais tarde 361 . Para ele estas viagens serviram

para “amadurecer em mim o desejo de levar mais longe as comparações históricas,

descendo a um nível cultural ainda menos evoluído”362 . No Novo México, nos Estados

Unidos da América do Norte, com os Índios Pueblos, Jung teve a real percepção de

que a religião era algo viva, apesar de ser “absolutamente inacessível”, a ele como

estrangeiro e europeu, que seus “sacramentos” ainda conservavam um “mistério”

que havia sido preservado, mas inacessível ao “branco” 363 . Diz ele:

Admirado, constatava o quanto a expressão do índio se modificava ao falar de


suas idéias religiosas, ficava tomado por uma emoção surpreendente, que não
se podia dissimular. Quando tocava no essencial, ele se calava ou dava uma
resposta evasiva, manifestando uma profunda emoção; às vezes seus olhos se
enchiam de lágrimas. Para eles as concepções religiosas não são teorias (que
curiosas teorias arrancariam lágrimas de um homem!), mas fatos importantes
e significativos como as realidades exteriores correspondentes. 364

Adoradores do Sol, os Índios Pueblos revelavam serem dependentes desse

deus, se comoviam emocionalmente quando se referiam a ele, e se viam filhos do

Sol, mesmo sendo “homens maduros, extremamente dignos”, mas sempre ficavam

358
Id. p. 214
359
Id. p. 212
360
Id. p. 213
361
Id. p. 218
362
Id. p. 219
363
Id. p. 221
364
Id. p. 221

83
possuídos por uma “emoção irreprimível ao falar do Sol” 365 . Jung percebeu que esta

religião dava aos Índios Pueblos um “sentido cosmológico”, isto é, eles se viam

partes integrantes para a existência de todo o mundo, por serem colaboradores do

Sol, em seu percurso de luz e calor por toda a terra. Um dos índios, disse-lhe: “Se

cessássemos nossas práticas religiosas, em dez anos, o Sol não se ergueria mais.

Haveria uma noite eterna”. 366

I. 8. 2. Quênia e Uganda

Em 1925, Jung empreendeu uma viagem à África Tropical: Quênia e Uganda.

Iniciou por Mombaça, Nairóbi 367 , Athi Plains – grande reserva de caça 368 , Sigistifour,

Kakamégas, Monte Eglon, Bunambale, Mbala, Jinja, Chioga, Masindiport,

Masinditown, Sudão 369 , Rejâf 370 , Cartum, no Egito 371 . O roteiro fora cumprido de

barco 372 , trem 373 , automóvel Ford 374 , e caminhão 375 . Nesta viagem, Jung aprendera

“o homem é indispensável à perfeição da criação e que, ainda mais, é o segundo

criador do mundo; é o homem que dá ao mundo, pela primeira vez: a capacidade de

ser objetivo – sem poder ser ouvido, devorando silenciosamente, gerando,

morrendo, abanando a cabeça através de centenas de milhões de anos, o mundo se

desenrolaria na noite mais profunda do não-ser, para atingir um fim indeterminado.

A consciência humana foi a primeira criadora da existência objetiva e do significado:

365
Id. p. 222
366
Id. p. 223
367
Id. p. 224
368
Id. p. 225
369
Id. p. 237
370
Id. p. 239
371
Id. p. 240
372
Id. p. 224
373
Id. p. 224, 236
374
Id. p. 225
375
Id. p. 227, 237

84
foi assim que o homem encontrou seu lugar indispensável no grande processo do

ser. Aqui não é o homem, é Deus quem domina; não a vontade e a intenção, mas

um desígnio impenetrável” 376 . Esta viagem foi patrocinada pela Bugishu

Psychological Expedition – BPE, que se interessava pela psicologia primitiva, porém,

para Jung, funcionou como um meio de “examinar a reação de um europeu às

condições de vida do mundo primitivo. Fiquei, portanto, muito admirado ao descobrir

que não se tratava tanto de um estudo científico objetivo, mas de um problema

pessoal agudo, ligado a muitos pontos dolorosos de minha própria psicologia”. 377

I. 8. 3. Índia

Em 1938 Jung vai à Índia, a convite do governo inglês da Índia, para as

festividades do 25º Jubileu da Universidade de Calcutá 378 . Durante esta viagem

estudou à fundo Theatrum Chemicum, de Gerardus Dorreus (alquimista do século

XVI), obra alquímica. Como ele mesmo diz:

Na Índia o que me preocupou acima de tudo foi o problema da natureza


psicológica do mal (...) fiquei impressionado em ver que era possível integrar
aquilo que é considerado “mal”, sem por isso passar vergonha. Espantava-me
o fato de que a espiritualidade indiana contivesse tanto o bem como o mal. O
cristão aspira pelo bem e sucumbe ao mal; o indiano, pelo contrário, sente-se
fora do bem e do mal, ou procura obter esse estado pela meditação ou ioga.
Neste ponto, no entanto, é que surge minha objeção: numa tal atitude, nem o
bem, nem o mal, têm contornos próprios e isso leva a uma certa inércia.
Ninguém acredita verdadeiramente no mal, ninguém acredita
verdadeiramente no bem. Bem ou mal significam, no máximo, o que é meu
bem ou o meu mal, isto é, o que me parece ser bem ou mal. Poder-se-ia
dizer, paradoxalmente, que a espiritualidade indiana é desprovida tanto do
mal como do bem, ou, ainda, que se acha de toda forma oprimida pelos
contrários, que precisa a qualquer custo de nirdvandva, isto é, da liberação
dos contrastes e das dez mil coisas. A meta do indiano não é atingir a
perfeição moral, mas sim o estado de nirdvandva. 379

376
Id. p. 226
377
Id. p. 240
378
Id. p. 241
379
Id.p. 242, 243

85
Pela Índia, Jung passou pelos seguintes lugares: Konarak, Sânchi, Allahabad,

Bénarés e Calcutá, sendo nestes três últimos lugares, recebera “diplomas de

doutorado”. Em Allahabad, o diploma “representa o Islã”, o de Bénarés, “o

Induísmo” e, o de Calcutá, “a medicina e as ciências naturais indo-britânicas” 380 .

I. 8. 4. Ravena e Roma

Em Ravena, esteve pela primeira vez em 1913, retornando depois em 1933,

onde se encontrou com o túmulo da imperatriz Galla Placidia (morta em 450 d.C.),

na qual sua “anima” se projetara 381 . Em 1912 foi à Roma e pretendia voltar em

1949, mas foi impedido devido a uma “sincope na hora de comprar a passagem”,

mas em 1912, a viagem significou ir além do “prazer estético, mas sim a cada passo,

ser tocado até o fundo do ser pelo espírito que já reinou naquele lugar” 382 . Também

viajou para o norte da Itália, em 1911, acompanhado por um amigo, cujo nome não

menciona, passando por Pávia, Arona, Tessin e Faido. O inusitado dessa viagem, é

que fizera “de bicicleta” 383 .

I. 9. Problema Cardíaco

Em 1944 Jung fraturou o pé e logo depois teve um enfarto cardíaco 384 , e

nesta ocasião sem saber se tratava de “sonho ou êxtase”, ele registra ter tido “coisas

muito estranhas” 385 . Conta-nos que vira o planeta terra a uma “distância de 1.500

380
Id. p. 246
381
Id. p. 251
382
Id. p. 252
383
Id. p. 266
384
Id. p. 253
385
Id. p. 253

86
quilômetros de altura” 386 , como que houvesse saído do mundo real, e que desta

experiência, relatada com detalhes, ficou o seguinte:

eu era feito de minha história e tinha a certeza de que era bem eu. Esta
experiência me deu a impressão de uma extrema pobreza, mas ao mesmo
tempo de uma extrema satisfação. Não tinha mais nada a querer nem a
desejar; poder-se-ia dizer que eu era objetivo; era aquilo que tinha vivido.
Nenhum pesar de que alguma coisa se perdesse ou fosse arrebatada. Ao
contrário: eu tinha tudo o que era e tinha apenas isso. Deveria, de novo,
convencer-me que viver neste mundo tinha algum valor! 387

O período de seu “retorno” à vida foi de três semanas, durante o qual não

pode alimentar-se, devido à “aversão pelos alimentos”388 . Assim ele registra:

Durante essas semanas o ritmo de minha vida foi estranho. Durante o dia
sentia-me freqüentemente deprimido, miserável e fraco e ousava com
dificuldade fazer um movimento; melancolicamente pensava: Agora preciso
voltar a este mundo cinzento. De tarde, adormecia e o sono durava até perto
de meia-noite. Então acordava e ficava desperto, talvez uma hora, mas num
estado muito particular. Ficava como que num êxtase ou numa grande
beatitude. Sentia-me pairando no espaço como que abrigado no meio do
universo, num vazio imenso, embora pleno do maior sentimento de felicidade
possível. Era a beatitude eterna, não se pode descrevê-la, é
extraordinariamente maravilhosa, eu pensava. 389

Para Jung estas experiências eram a “presença do sagrado”. E,

depois dessa doença começou um período de grande produtividade. Muitas de


minhas obras principais surgiram então. O conhecimento ou a intuição do fim
de todas as coisas deram-me a coragem de procurar novas formas de
expressão. Não tentei mais impor meu próprio ponto de vista, mas submetia-
me ao fluir dos pensamentos. Os problemas apoderavam-se de mim,
amadureciam e tomavam forma. Foi só depois da minha doença que
compreendi o quanto é importante aceitar o destino. Porque assim há um eu
que não recua quando surge o incompreensível. Um eu que resiste, que
suporta a verdade e que está à altura do mundo e do destino. Então uma
derrota pode ser ao mesmo tempo uma vitória. Nada se perturba, nem
dentro, nem fora, porque nossa própria continuidade resistiu à torrente de
vida e do tempo. Mas isso só acontece se não impedirmos que o destino
manifeste suas intenções. Também compreendi que devemos aceitar os
pensamento que se formam espontaneamente em nós como uma parte de
nossa própria realidade e isso fora de qualquer juízo de valor. As categorias
do verdadeiro e do falso certamente sempre existem, mas porque não são
constrangedoras, ficam à margem. Porque a existência das idéias é mais
importante do que seu julgamento subjetivo. Os julgamentos, entretanto,

386
Id. p. 253
387
Id. p. 254, 255
388
Id. p. 255
389
Id. p. 256

87
enquanto idéias existentes, não devem ser reprimidas, porque fazem parte da
expressão da totalidade. 390

Chegamos ao fim da exposição de seus dados históricos, segundo o próprio

Jung expõe em Memórias, Sonhos e Reflexões. Contudo não poderíamos deixar de

lado outro de “segredos”, o sonho da defecação de Deus, sobre o Templo de

Basiléia, que já nos prepara para entrarmos no Segundo Capítulo deste trabalho, que

trata do que é o Protestantismo para Jung. Assim ele registra:

No verão de 1887, voltando do colégio ao meio-dia, passei pela praça da


catedral. Sentia-me deslumbrado pela beleza do céu maravilhosamente azul, o
sol brilhando em toda a sua luminosidade, o teto da catedral cintilava ao sol, e
pensava: “O mundo é belo, a igreja é bela, e Deus, que criou tudo isso, está
sentado lá no alto, no céu azul, num trono de ouro...” Neste momento senti
uma sensação de asfixia. Estava como que paralisado e me esforçava por não
continuar a pensar. A idéia proibida, mas ignorada, sempre me ameaçava
emergir, enquanto eu lutava desesperadamente por expulsá-la. Na terceira
noite, porém, meu pensamento era de tal natureza que não sabia mais o que
fazer. Acordara de um sono agitado, pensando ainda na catedral e no Bom
Deus. Por que devo pensar em algo que não sei o que é? Por Deus, tenho a
certeza de que não quero pensar nisso. Mas quem está me forçando? Por
que, então, sou impelido a pensar num mal inconcebível? Não o concebi, nem
o quis. Foi ele que veio ao meu encontro, como um mau sonho. De onde
provêm tais coisas? Deus me pusera naquela situação e aí me deixara, sem
recursos. Estava certo de que, segundo seu desejo, deveria procurar por mim
mesmo uma saída. É singular que nem um só instante pensei na possibilidade
do Diabo estar me pregando uma peça. No meu estado de espírito de então,
seu papel era insignificante e seu poder, nulo, diante do poder de Deus. Reuni
toda a coragem, como se fosse saltar nas chamas do Inferno e deixei o
pensamento emergir: diante de meus olhos ergue-se a bela catedral e, em
cima, o céu azul. Deus está sentado em seu trono de outro, muito alto acima
do mundo e, debaixo do trono, um enorme excremento cai sobre o teto novo
e colorido da Igreja; este se despedaça e os muros desabam. Então era isto!
Senti um alívio imenso e uma libertação indescritível: em lugar da danação
esperada, a graça descera sobre mim e com ela uma felicidade indizível, como
jamais conhecera! Chorei lágrimas de felicidade e de gratidão, porque a
sabedoria e a bondade de Deus me haviam sido reveladas, depois de me
haverem sujeitado a seu impiedoso rigor. Fora como uma iluminação. Fizera a
experiência que meu pai não tinha tentado – cumprira a vontade de Deus, à
qual ele se opunha pelas melhores razoes, e pela fé profunda. Por isso nunca
vivera o milagre da graça que cura e que torna tudo compreensível. Tomara
por regra de conduta os mandamentos da Bíblia, acreditando em Deus como
a Bíblia exige e como seus pais o haviam ensinado. Mas não conhecia o Deus
vivo, imediato, que se mantém livre e onipotente, acima da Bíblia e da Igreja,
que chama o homem à sua liberdade e que também pode obrigá-lo a renúncia
às suas próprias opiniões e convicções, a fim de cumprir sem reservas a Sua
vontade. Quando põe à prova a coragem do homem, Deus não se prende a
tradições, por mais sagradas que sejam. Em Sua onipotência cuida de que

390
Id. p. 259

88
nada realmente mal resulte dessas provações. Quando se cumpre à vontade
de Deus não há dúvida de que se segue o bom caminho. Deus, portanto,
podia exigir de mim aquilo que por tradição religiosa eu deveria recusar. Ora,
foi a obediência que me trouxe a graça e só a partir desse momento
compreendi o que significa a graça divina. Aprendera que estava entregue a
Deus e que o importante era cumprir Sua vontade, sem o que seria uma
presa da loucura. Assim começou a minha verdadeira responsabilidade. A
idéia de que fora obrigado a aceitar era assustadora e com ela despertou em
mim o pressentimento de que Deus bem poderia ser algo terrível. Não me
envolvera naquele segredo apavorante, que tanto me angustiara? Uma
sombra fora lançada sobre minha vida. Tornei-me profundamente meditativo.
O episódio da catedral constituíra algo de muito verdadeiro e fazia parte do
grande segredo... Fora, entretanto, uma experiência humilhante. 391

391
Id. p. 45, 46, 47, 48

89
2º CAPÍTULO:

RELIGIÃO E PROTESTANTISMO EM CARL GUSTAV JUNG

II. 1. As repercussões do sonho

Segundo Carlos Amadeu Botelho Byngton, médico, psiquiatra, educador,

historiador e analista junguiano graduado pelo Instituto C. G. Jung de Zurique, Suíça,

ao olhar para a Catedral de Basiléia, talvez o maior símbolo do Protestantismo suíço,

Jung ficou abalado pela culpa e pela vergonha e, sofreu muito, sem ainda perceber

que aquilo era uma imagem arquetípica do repúdio existencial que germinava em

seu Arquétipo Central – Self – contra tudo o que era dogmático, formal, reducionista,

sem criatividade, sem simbologia relacionada com o Todo, sem transcendência. O

antagonismo ao pai, não pode passar despercebido neste símbolo. Só que essa

reprovação, longe de significar simplesmente uma agressividade específica ao pai

pessoal, abrangia também o pai simbólico espiritual, que Jung havia projetado em

seu pai. A incapacidade de este corresponder a essa projeção, devido à literalidade

com que viviam os símbolos religiosos, destruíra e reduzira a pó a admiração do

filho. O símbolo desta des-idealização catastrófica é ainda mais significativo quando

vemos que a atitude do pai e freqüentemente da Igreja a qual ele pertencia eram

iguais no culto da religião formal e estagnada, repudiada pelo Deus vivo que Jung

amava e que, na visão, destruía o seu próprio templo 392 .

Já para Christian Gaillard, de forma violenta os costumes das pregações

religiosas paternais foram destruídos com esta “quase visão”, há uma grande

diferença entre esse Deus iconoclasta, brutal e tão grosseiramente destruidor, e

392
BYINGTON, Carlos Amadeu Botelho. Transcendência e totalidade. Revista Viver: Mente&Cérebro, Jung: A
Psicologia Analítica e o Resgate do Sagrado. Nº 2, p. 09.

90
aquele que se canta e se reverencia nos templos e nas casas das famílias 393 . Deus

revelou-se mesmo, como Jung o descrevera: “algo terrível” 394 , pois assim ele O

considera conforme seu A Resposta a Jó, fora o próprio Deus que desaprovara a

teologia e a Igreja fundada por ele, uma religião teológica, uma crença sem

esperança 395 .

Jung declara que seu interesse pelo problema religioso protestante, além de

suas próprias experiências que tivera na convivência com uma família luterana, com

nove teólogos, fora aprofundado graças às conversas com um teólogo 396 , que fora

“vigário” de seu pai, sem, contudo dizer seu nome. Segundo Jung, era um grande

erudito que lhe instruiu bastante acerca dos pais da Igreja e a história dos dogmas,

além é claro de introduzi-lo nas profundidades da teologia protestante. Jung registra

que “a teologia de Albrecht Ritschl (1822-1889) estava na ordem do dia” 397 . É

importante salientar que sua família passou a ser protestante, com a conversão de

seu avô paterno, antes católico 398 , Carl Gustav Jung, durante os anos que este vivera

em Berlim, de 1827-1864, época em que travara conhecimento com os irmãos Karl

Wilhelm Friedrich Schlegel (1771-1829), poeta fundador do romantismo alemão e

August Wilhelm Von Schlegel (1767-1845), este tradutor para o alemão, da obra de

William Shakespeare (1564-1616), ambos filhos de pastor luterano 399 , Ludwing Tieck

(1773-1853) e Friedrich Schleiermacher (1768-1831).

393
GAILLARD, Christian. Jung e a Vida Simbólica. São Paulo: Edições Loyola, 2003, p. 23
394
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 56
395
Id. p. 90
396
Id. p. 95
397
Id. p. 95
398
Id. p. 343
399
http://www.kirjasto.sci.fi/schlegel.htm - consulta realizada em 24 de fevereiro de 2007.

91
II. 2. “A Teologia que estava na ordem do dia”

Quanto a Ritschl pode-se considerar ser ele o pai da teologia liberal,

desenvolvendo-se até Karl Barth (1886-1968), que segundo Noll, consistia na

tentativa de remover o mistério necessário à experiência religiosa 400 , e que procurou

estabelecer absoluto contraste entre misticismo e fé, porém Paul Tillich (1886-1965)

define misticismo como aproximação direta e íntima com a divindade e fé 401 , como

conhecimento racional, para quem a teologia protestante não tem entendido o

significado do misticismo, desde então 402 , pois esta possui a tendência de

racionalizar a imagem de Deus 403 . Ainda conforme Tillich, Ritschl introduziu o método

da interpretação filosófica da “consciência abstrata-formalista” 404 , no seio da teologia

protestante, e a escola ritschliana, liderada pelo próprio Ritschl e outros como

Johann Wilhem Herrmann (1846-1922), Adolf von Harnack (1851-1930); surgiu no

cenário protestante, na tentativa de salvar a teologia do naturalismo e do

materialismo, tendo desmoronado no final do século XIX 405 , numa tentativa de volta

a Kant, procurando integrar o pensamento kantiano à teologia 406 . Segundo, Tillich o

século XVIII foi marcado por um conflito entre naturalismo e sobrenaturalismo. E no

campo teológico não poderia ser diferente. A teologia sobrenaturalista queria salvar a

tradição com os mesmos meios usados pelo naturalismo para transformar a tradição.

400
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
161
401
TILLICH, Paul. A Era Protestante. Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São
Bernardo do Campo, 1992. p. 105
402
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. ASTE, São Paulo, 2000. p. 105
403
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 31
404
TILLICH, Paul. A Era Protestante. Instituto Ecumênico de Pós-Graduação em Ciências da Religião, São
Bernardo do Campo, 1992. p. 165
405
TILLICH, Paul. História do Pensamento Cristão. ASTE, São Paulo, 2000. p. 287
406
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p.
216, 221

92
Era como houvesse uma “tirania da Grécia sobre a Alemanha” 407 , que funcionava

como pano de fundo para o liberalismo teológico, proposto por Ritschl. E,

Schleiermacher está no centro de tal conflito. Tanto ele quanto Hegel trataram

desses problemas e escreveram teologias que transcenderam o natural e o

sobrenatural 408 . Sendo assim, a escola de Ritschl não acreditava na presença do

Espírito divino no espírito humano, com suas manifestações de êxtase, e negava

radicalmente a presença mística do divino. O único elemento capaz de elevar o

homem acima da existência animal era o imperativo moral, segundo Ritschl. A moral

dignificava o homem, e a luta entre o bem e o mal era a luta moral. Graça e Oração

não tinham lugar nesse esquema 409 . Sendo assim, no entender de Tillich, Ritschl e

seus discípulos desferiram o mais radical ataque contra o misticismo da história do

cristianismo.

Os ritschlianos diziam que Kant era o filósofo do protestantismo, com seu

ensaio de filosofia religiosa A Religião Dentro dos Limites da Razão Pura, de 1793 410

que, porém, mais tarde, o próprio Kant censurou 411 . Na opinião de Tillich, Kant

passou a ser considerado o demolidor da teologia racional do iluminismo 412 . Neste

ensaio, segundo Pierre-Yves Ruff, filósofo e pastor protestante francês e presidente

da Revista Eletrônica Trimestral Théolib, é onde se encontra a mais antiga menção

do liberalismo em teologia, no qual Kant procura distinguir a ortodoxia “despótica”,

que qualifica como “brutal”, e uma ortodoxia “mais livre”, que a religião se

407
http://www.metodista.br/correlatio/num_01/a_dourle.htm - consulta realizada em 01 de Novembro de
2006.
408
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 65,
66
409
Id. p. 93-94
410
PADOVANI, Humberto Antonio e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. Edições Melhoramentos, 5ª
Edição, 1962, São Paulo. p.308
411
Id. p. 307
412
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 91

93
estabeleça nos debates teológicos e não em seu poder de estabelecer doutrinas, cuja

demonstração se vê nas inquisições e censuras. Para Ruff, Kant estabelece uma

diferença entre crença e investigação com esperança de busca pela verdade413 .

É no início do século XIX que apareceu o termo liberal, que caracteriza a

interpretação de alguns textos bíblicos, e que as doutrinas são apenas indicativas

aproximativas e, portanto, provisórias, ou mesmo opcionais, onde a tolerância e a

opção para o pluralismo e a diversidade devem ser cultivadas. E, no século XX, com

Rudolf Karl Bultmann (1884-1976) continua a elaborar esta tendência, quando

estabeleceu que há a necessidade de desmitologizar a Bíblia, ou seja, distinguir o

que é histórico e o que é mito. Depois dele, muitos continuaram a considerar que

Deus, por se tratar do inefável, deve ser apreendido pelo exercício racional e

inteligível.

Segundo o professor marroquino André Gounelle (1933), presidente de honra

da L’Association Protestante Libérale de Belgique, o liberalismo teológico é um

movimento ligado à modernidade, o qual contribuiu para o seu surgimento três

grandes forças históricas: a luta pela liberdade intelectual, o desenvolvimento da

ciência e a luta pelas reformas sociais, que tiveram lugar entre os anos 1350 a 1650

d.C. 414

O protestantismo não busca se elevar ao divino mantendo-se, porém, nos

limites do finito. Os esforços da grande síntese resultaram do misticismo, do princípio

de identidade entre o divino e o humano. Portanto, o movimento de “volta a Kant”

mostrava-se extremamente hostil a todas as formas de misticismo, incluindo as

teologias da experiência. Experiência, no sentido de possuir o divino no humano, não

413
http://www.theolib.com/libtheo.html - consulta realizada em 26 de Janeiro de 2007
414
http://www.protestantismeliberal.be/ - consulta realizada em 26 de Janeiro de 2007

94
necessariamente por meio da natureza, mas assim mesmo dado e sentido em nosso

ser. Importava-se com a pesquisa histórica, isto é, aplicação do método histórico à

literatura bíblica. A fé deve se fundamentar nos resultados dessa pesquisa histórica.

E, o outro fator era o imperativo moral. A religião é a força que nos capacita a

sermos pessoais morais. A religião fundamentaria o poder do comportamento ético.

O liberalismo teológico, então, defende uma religião na base da experiência ética da

personalidade de total exclusão do misticismo. A religião serviria, então, para nos

ajudar em nossa auto-realização moral. Para os ritschlianos o divino só se manifesta

no imperativo moral e em nenhum outro lugar. A função do cristianismo consistia em

tornar possível a moral. A salvação é a vitória do espírito ou da mente sobre a

natureza humana. Chega-se à salvação pelo perdão dos pecados. Este pensamento

fez surgir uma doutrina que negava o poder de Deus ou o reduzia a quase nada.

Buscava-se acabar com polaridade entre poder e amor de Deus, reduzindo a idéia de

amor. A mensagem da salvação reduziu-se a perdão, e não há transformação. A

piedade prática era simplificada, eliminando-se os símbolos da ira divina e do

julgamento de Deus. Com isso há uma reedição do iluminismo, do kantismo e de

toda a tradição humanista.

Segundo Carl E. Braaten (?), autor do texto Paul Tillich e a Tradição Cristã

Clássica, que serve como preâmbulo do livro Perspectivas da Teologia Protestante

nos Séculos XIX e XX, de Tillich, diz que “Ritschl era representante da teologia

liberal, que procurava reduzir o cristianismo à religião de Jesus, isto é, recuperar o

Jesus histórico por trás dos vários retratos de Jesus visíveis no Evangelho, por meio

dos métodos da alta crítica, com tendência anti-metafísica e anti-mística” 415 .

415
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 33

95
II. 3. Jung reage ao Criticismo Bíblico e ao Liberalismo Teológico

E fora, inicialmente, contra esta teologia que Jung iniciou seus debates,

começando na Sociedade Zofingia 416 , tendo sido apresentado pelo seu pai, quando

abordou o tema “Algumas Considerações sobre a Interpretação do Cristianismo”, em

Janeiro de 1899 417 , registrada na The Zofingia Lectures, onde afirmara: “O mistério

permanecerá no coração dos homens até o final dos tempos” 418 . Depois de muitos

anos da referida palestra, Jung registra:

Jamais uma vontade consciente substituirá o instinto de vida. Esse instinto


surge em nós, do íntimo como uma obrigação, uma vontade, uma ordem, e
quando o chamamos de daimon pessoal, como sempre aconteceu e acontece,
pelo menos exprimimos de forma pertinente a situação psicológica. 419

Suas críticas ao pensamento de Ritschl versavam sobre a teologia, por

exemplo, ao afirmar:

O Cristo presente para o cristão ritschliano constitui a soma de todas as


imagens contidas na memória que foram transmitidas pela tradição, ou seja,
de todas as imagens mentais que se referem ao Cristo, em conjugação com o
sentimento valorativo à totalidade dessas imagens.

Ritschl, por sua vez, argumentava que “a memória rigorosa é o instrumento

das relações pessoais e também da relação entre nós e Deus, ou Cristo”. Jung

repreendia ainda mais Ritschl por este ter condenado os místicos que afirmavam

haver uma relação direta, uma unio mystica, entre o homem e Deus – já para Ritschl

essa experiência era sempre mediada pelos conteúdos pessoais e culturais das

imagens da memória individual. Para Ritschl a imagem de Cristo é transmitida por

tradições e instituições culturais, com sua ilustração de um trem que está sendo

416
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
156
417
Id. p. 157
418
Id. p. 105
419
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 301

96
manobrado, onde a locomotiva empurra por trás, e o choque se propaga através de

todos os vagões que compõem o trem; dessa forma, o impulso de Cristo ter-se-ia

propagado através dos séculos, enquanto que para Jung, tal ilustração o irritava 420 ,

pois a imagem de Cristo, logo depois da Sua morte foi incorporada ao inconsciente

coletivo, “a uma esfera transcendental da natureza humana”421 .

Para compreender esta questão é bom citar que para Tillich, Rudolf Otto

(1869-1937), com a idéia do mistério abissal de Deus, do mysterium tremendum et

fascinosum, desenvolvido em seu O Sagrado, no qual tentara definir o sentimento

religioso como o sentimento de fascínio e ao mesmo tempo de sobreexcitação, fora

melhor intérprete da teologia de Lutero do que os teólogos da escola de Ritschl 422 .

Jung rejeita o Protestantismo identificado ao Liberalismo Teológico, que

defendia o Criticismo Bíblico que se trata de uma ruptura epistemológica, que se

passa no ponto central do iluminismo. Segundo Elian Cuvillier (?) professor de Novo

Testamento da Faculdade Livre de Teologia Protestante de Montpellier (França),

Este período coincide com a tomada de consciência que existe uma diferença
entre as elaborações dogmáticas eclesiásticas e os testemunhos bíblicos, com
os Evangelhos em especial. A investigação então, é guiada por uma dupla
motivação: convém responder às exigências do mundo moderno que não
pode satisfazer-se, enquanto que desenvolvem-se por toda a parte as ciências
históricas e, o estudo crítico da história, isto é, a tradição histórica que pura e
simplesmente identifica o Jesus da história e o Cristo da fé, e que recusa
aplicar aos textos bíblicos os critérios da ciência. Para a exegese racionalista
do século XVIII tratava-se de reencontrar o “núcleo puro” dos textos bíblicos,
e particularmente os Evangelhos, numa recusa da herança cristã. É no século
XIX, sob influência do liberalismo teológico alemão, que vai se investigar o
“Jesus Histórico”. Este período é chamado de Historicismo: a história é a única
capaz, comprovadamente, de estabelecer ou explicar a verdade. Nos anos de
1830-1850 a “Escola de Tübingen” se destaca neste empenho, tendo como
representantes David Friedrich Strauss (1808-1874) e Ferdinand Christian
Baur (1792-1860). Para este, os textos do Novo Testamento, mesmo
passando por uma crítica severa, não são testemunhos da vida de Jesus, mas
sim são textos teológicos que contam os conflitos dos primeiros cristãos. Duas
obras se apresentam como decisivas na história da exegese moderna: Das

420
Id. p. 95
421
Noll, Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p.
279
422
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 31

97
Messiasgeheimnis in den Evangelien, de 1901, de William Wrede (1859-1906),
que apresenta o evangelho de Marcos como o mais primitivo dos outros
quatro, e que portanto, nos conduziria diretamente ao Jesus da história, mas
é cheio de incoerências, sobretudo teológicas, o que comprovaria que diversas
tradições e tendências contribuíram para dar forma ao Evangelho, que seria o
produto apologético ou eclesiástico. E, em 1906, Albert Schweitzer (1875-
1965), com Geschichte der Leben-Jesu-Forschung, em que afirmara com
todas as letras: “Jesus de Nazaré, que se apresentou como Messias, que
anunciou o advento de um reino moral, a realização do Reino dos céus sobre
a terra e que morreu sobre a cruz, este Jesus, nunca, jamais, existiu. É
apenas uma figura projetada pelo racionalismo do século XVIII, animada
seguidamente pelo liberalismo e coberta de um fato de época pela teologia
moderna”. Posição mais radical é a de Rudolf Karl Bultmann (1884-1976).
Este defende por uma separação fundamental entre o Jesus da história e o
Cristo da fé. O Jesus histórico não é objeto da fé. 423

Ronaldo Cavalcante, no recém publicado Espiritualidade Cristã na História: Das

Origens até Santo Agostinho, apresenta a crítica literária como tendo sido uma “obra

demolidora, a partir de K. Graf (?) e J. Wellhausen (1844-1918), por desacreditar a

própria historicidade das personagens e dos acontecimentos” 424 . E, Cavalcante ainda

esclarece em nota de rodapé, da mesma página acima citada, quanto ao Criticismo

Bíblico:

Parte integrante da crítica bíblica: buscar compreender a composição literária


de cada um dos livros que formam a Bíblia. A partir da constatação das
“discrepâncias internas”, conclui-se que os livros foram feitos com base em
diferentes textos que antes existiam separadamente. Assim, o estudo das
formas literárias tenta identificar a natureza, intenção, aplicação e signficação
das unidades literárias fundamentais, e descobrir seu lugar na vida do povo
antes de sua fixação em escritura. O pioneiro nessa tarefa foi H. Gunkel, com
seu “método de história das religiões”, posteriormente utilizado por H.
Gressmann, J. Hempel, A. Alt; chegando à sua plenitude com o “método
histórico da tradição”, de M. Noth, que trata de penetrar na história pré-
literária de tais unidades fundamentais, para estudar exatamente seu
nascimento, significado e fim na fase da tradição oral. Ademais, com W.
Eichrodt, há uma concentração e esforço por encontrar um “centro” de
coerência aos vários matizes teológicos. G. Von Rad insiste no caráter
diacrônico do Antigo Testamento; com isso ganha espaço a “intenção
querigmática de cada tradição e documento, como descrições da ação divina,
chave de leitura histórica” (VILANOVA, E. Historia de la teologia cristiana.
Barcelona, Herder, 1987, p. 57)

http://www.eglise-reforme-mulhouse.org/ - consulta realizada em 18 de Novembro de 2006


423

CAVALCANTE, Ronaldo. Espiritualidade Cristã na História: Das Origens até Santo Agostinho. São Paulo:
424

Paulinas, 2007. p. 37

98
Paul Tillich, em Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX,

aponta a obra O Cristianismo não é Misterioso (1669), de John Tolan (1670-1722),

como que tendo sido a inauguração da Crítica Literária, aplicada às Escrituras

Sagradas 425 . E, Frederico Pieper Pires, no artigo Mito, Modernidade e Querigma no

Pensamento de Rudolf Bultmann, na Revista de Teologia e Filosofia – ULBRA, afirma

que “nesta obra, Toland destaca aspectos racionais do cristianismo em relação aos

considerados irracionais. Procura-se minimizar e eliminar os elementos que são

considerados irracionais no cristianismo. Outra obra que pode ser citada é

Christianity as Old as the Creation (1730), de Matheus Tindal (?), que concebe o

cristianismo como edição da religião natural. Ambos os autores atacaram os milagres

e dogmas que iam além da razão. Nestas obras, percebe-se a proposta de exaltação

dos elementos racionais do cristianismo em detrimento do que se consideram

mitológicos. Por outro lado, teólogos mais ligados ao pensamento romântico (que

será exposto no Terceiro Capítulo) faziam oposição ao racionalismo na religião e

privilegiavam a função do símbolo e do mito. Wilhelm Martin Leber de Wette destaca

a presença do subjetivismo na religião e a incapacidade do discurso científico para

responder às necessidades do ser humano quando comparado com o mito, a poesia

e o símbolo”. 426

Se assim é, percebe-se porque Jung teve ojeriza ao Protestantismo

influenciado pelo iluminismo, que teve como ponto principal para a teologia o

criticismo bíblico, ou o que ele chamava de crítica literária.

425
TILLICH, Paul. – Perspectivas da Teologia Protestantismo nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE (1999),
p. 115
426
Revista de Teologia e Filosofia – ULBRA, Vol. 3, Nº1/2 – Jan.Dez/2003, p. 53

99
II. 4. Jung toma posição: Kant, Hegel, Nietzsche e Schopenhauer

Jung decide voltar-se para a filosofia, a fim de encontrar algum

esclarecimento acerca dos problemas que o preocupavam quanto ao poder do Mal

no mundo e, de como o homem pode escapar das trevas de sofrimento que este lhe

causa. A primeira obra que consultara foi o Dicionário Geral das Ciências Filosóficas,

de Krug 427 (?), segunda edição de 1832. Mas sua decepção não poderia ser maior,

pois, os filósofos abordavam Deus, como se fosse uma “idéia” inventada a partir de

um determinado momento, como uma “hipótese a ser discutida”, enquanto que para

ele, “Ele é tão manifesto quanto uma telha que nos cai na cabeça. Deus era uma

experiência imediata e das mais convincentes” 428 . E, Jung relaciona tal “experiência

imediata”, com a “terrível história da Catedral”, que se sentira constrangido a pensar,

pois esta lhe fora imposta. E, assim, concluiu que assim como os teólogos, os

filósofos também não queriam refletir sobre a questão do Mal, sua origem e sua

atuação real, nos homens. Inicialmente, estudou os clássicos Pitágoras (571-497

a.C), Heráclito (540-470 a.C), Empédocles (483-430 a.C) e Platão (428-347 a.C),

passando pelo alemão Mestre Johannes Eckehart (1260-1327) 429 , que lhe deram a

sensação de que seus pressentimentos, em relação a Deus, o Mal e vida humana, já

tinham sido, de certa maneira, tratados.

Jung admite que os problemas religiosos que procurou solucionar deixaram-no

decepcionado, pois era como se encontrasse todas as portas fechadas, isto é, não

tinha como conversar com alguém que pudesse ouvi-lo e tratar dos assuntos, com a

427
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 64
428
Id. p. 65
429
Id. p. 70

100
mesma seriedade, nem mesmo com o tio, pastor em St. Alban, em Basiléia 430 , e

primo, também teólogo, em cuja residência ia todas as quintas-feiras, para

almoçar 431 , e discutir teologia, podiam falar dos seus “segredos”, pois temia não ser

compreendido e, sim, considerado blasfemo e herege. Nestes almoços-debates, os

princípios kantianos eram mencionados, sendo os principais conceitos teológicos do

iluminismo: Deus, Liberdade e Imortalidade 432 , expostos no A Religião dentro dos

Limites da Razão Pura, de 1793, para desmontar os argumentos dos “liberais”, no

conceito deles 433 , Friedrich Nietzsche (1844-1900) e Jacob Burckhardt (1818-1897),

mas nunca dos próprios sistemas teológicos 434 , no qual se baseavam.

Quanto a Nietzsche, Jung, inicialmente, hesitou lê-lo por não sentir-se

suficientemente preparado, pois se considerava parecido com ele, o que o

angustiava bastante 435 , por este “perder o solo debaixo dos pés porque nada mais

possuía senão o mundo interior de seus pensamentos – mundo que o possuíra muito

mais do que Nietzsche a ele, sendo vítima do exagero e da irrealidade” 436 , por ser

fortemente resistido nas “altas esferas”, fosse no ambiente da faculdade de

medicina, com também na Sociedade de Zofingia, círculo restrito de intelectuais

formado principalmente por filósofos, poetas e teólogos que liam muito, assim como

ele também a “autoridade mais alta” de Jacob Burckhardt 437 . Jung sentia que quanto

mais admirava a ciência, que procurou mostrar aos que estavam próximos dele, para

430
Cidade cujos habitantes, na opinião de Jung, achavam que nela tudo era “certo”, de valor incontestável,
mesmo que se tratava que continha uma atmosfera espiritual superior e de um cosmopolitismo invejável,
porém, com um lastro da tradição muito pesado para ele, devido à influência da religião em seus
habitantes, contrário de Zurique, onde o comércio regia as relações com o mundo.
431
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 74
432
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 88
433
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 74
434
Id. p. 75
435
Id. p. 98
436
Id. p. 168
437
Id. p. 94

101
não ser ainda mais rejeitado, mais sentia que se afastava do “mundo de Deus”, dos

animais, plantas e pedras, sendo que destas últimas, sentia certo parentesco, como

coisa morta, como representação do ser vivo que se encontrava na natureza da

divindade. A expressão “mundo de Deus designava tudo que era sobre-humano: a

luz ofuscante, as trevas abissais, a gélida apatia do tempo e do espaço infinitos e o

caráter grotesco e terrível do mundo irracional do acaso. Para mim, “Deus” era tudo,

menos edificante” 438 .

Para Jung a fonte da indiferença de sua época para com os pensamentos

acerca do Sagrado era a escolástica cristã e o intelectualismo aristotélico de São

Tomás de Aquino (1227-1274), originários do pensamento de Santo Agostinho (354-

430), mesmo sendo, bastante, citado em suas obras – empenho intelectual valendo-

se unicamente da lógica, para provar a existência de Deus, sem se valer da

experiência, que lhe era prova suficiente.

Ele admite não ter compreendido a filosofia crítica do século XVIII, pelo

menos no início dos estudos de filosofia, dos dezessete anos até quase à metade dos

estudos de medicina 439 , que teve como um dos principais articuladores, o alemão

George Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), tido por Jung, como “prisioneiro do seu

próprio orgulho” 440 .

Outro “verdadeiro quebra-cabeças” 441 foi-lhe Immanuel Kant (1724-1804),

estudado intensamente aos domingos 442 , e foi a sua Crítica da Razão Pura, que lhe

indicou a saída, para o dilema que se encontrava. Jung adotou o método kantiano,

para entender a realidade do Mal, que consiste em recusar toda pretensão de

438
Id. p. 73
439
Id. p. 72
440
Id. p. 70
441
Id. p. 71
442
Id. p. 98

102
qualquer afirmação metafísica que seja. A “coisa em si” escapa à nossa apreensão. O

“numeno”, isto é, o numinoso, permanece fora de alcance. Apenas o trabalho sobre

os fatos, sobre os fenômenos, é da nossa competência. Até o fim de seus dias, Jung

perseguirá e denunciará toda hipótese que consista em atribuir a qualquer realidade

na qual fosse postulada, a existência transcendente das qualidades induzidas pela

experiência ou deduzidas por argumentação.

É daí que deriva sua constante insistência em qualificar sua postura como

empírica, uma característica que o coloca em oposição aos teólogos e religiosos, por

vezes de maneira polêmica, uma vez que estes consideram que Jung está usurpando

seu campo de domínio através de pesquisas e interpretações, ou a alguns de seus

leitores e seguidores que, pelo contrário, esperavam dele uma profissão de fé deísta,

ou ainda aos diversos dogmatismos a que ele será levado a se confrontar,

especialmente aqueles que, com ou sem razão, denunciará em Freud, o qual foi

essencial nas pesquisas sobre a psicologia da histeria e do sonho, e também, dos

cursos que ministrou sobre o hipnotismo 443 .

Mas logo renuncia a hipnose, porque acreditava que através desse método se

“tateia na obscuridade, e decidiu-se a utilizar de uma minuciosa análise dos sonhos e

de outras manifestações do inconsciente dos seus pacientes 444 , nos quais aprendera

que havia uma “pessoa normal”, escondida em seu íntimo” 445 .

Tillich é da opinião de que Kant tenha sido muito mais importante para a

teologia alemã, do que Hegel e Schleiermacher. Kant passou a ser considerado o

demolidor da teologia racional do iluminismo. Ele conseguiu de maneira clara e

precisa a finidade do homem e sua incapacidade de transcender seus limites para


443
Id. p. 108, 110
444
Id. p. 112
445
Id. p. 117

103
alcançar o infinito, isto é, que não conseguimos chegar a Deus, por nós mesmos,

nem no pensamento. Ele precisa vir a nós. E esta mudança fundamental contrasta

com a arrogância metafísica do iluminismo que acreditava no poder da razão – com

todas as suas diferentes formas – para colocar o homem, imediatamente, na

presença de Deus. É neste ponto que Jung se identifica com o pensamento kantiano.

Em História da Filosofia, de Humberto Antonio Padovani e Luís Castagnola,

nos ajuda a reconstruir a busca de Jung por compreensão filosófica do problema do

mal, no contato com os filósofos Hegel, Kant e Schopenhauer, pois esta obra nos

apresenta os principais e mais importantes pontos do pensamento destes filósofos,

aos quais influenciaram a formação filosófica de Jung. Segundo Jung, Hegel era um

“prisioneiro do próprio orgulho”, devido ao seu sistema filosófico, segundo o qual

para poder elevar a realidade da experiência à ordem de realidade absoluta, divina,

ele se achou obrigado a mostrar a racionalidade absoluta da realidade da

experiência, a qual, sendo o mundo da experiência limitado e deficiente, por causa

do assim chamado mal metafísico, físico e moral, não podia, por certo ser concebida

mediante o ser, idêntico a si mesmo e excluindo o seu oposto, e onde a limitação, a

negação, o mal, não possa, de modo nenhum, gerar naturalmente valores positivos

de bem verdadeiro. Mas essa racionalidade absoluta da realidade da experiência

devia ser concebida mediante o vir-a-ser absoluto onde um elemento gera o seu

oposto, e a negação e o mal são condições de positividade e de bem, e é este

racionalizar o elemento potencial e negativo da experiência, que levou Hegel a

inventar uma nova lógica – a dialética dos opostos, cuja característica fundamental é

a negação, em que a positividade se realiza através da negatividade, no ritmo

famoso de tese, antítese e síntese. Esta nova lógica é considerada como sendo a

104
própria lei do ser. Quer dizer, coincide com a ontologia, em que o próprio objeto já

não é mais o ser, mas o devir absoluto.

Para Hegel, o devir absoluto se dá em três momentos: idéia, natureza e o

espírito. A idéia constitui o princípio inteligível da realidade. A natureza é a

exteriorização da idéia no espaço e no tempo. O espírito é o retorno da idéia para si

mesma. A primeira grande fase de o absoluto devir do espírito é representada pela

idéia, que, por sua vez, se desenvolve interiormente em um processo dialético,

segundo seu esquema (tese, antítese e síntese), cujo complexo é objeto da Lógica, a

saber, a idéia é o sistema dos conceitos puros, que representam os esquemas do

mundo natural e do espiritual. É, portanto, anterior a estes, mas apenas

logicamente.

Chegada ao fim do seu desenvolvimento abstrato, a idéia torna-se natureza,

passa da fase em si à fase fora de si; esta fase representa a grande antítese à

grande tese, que é precisamente a idéia. Na natureza a idéia perde como que a sua

pureza lógica, mas em compensação adquire uma concretude que antes não tinha. A

idéia, todavia, também na ordem da natureza, deveria desenvolver-se mais ou

menos, segundo o processo dialético, das formas ínfimas do mundo físico até as

formas mais perfeitas da vida orgânica. Esta hierarquia dinâmica é estudada, no seu

complexo, pela Filosofia da Natureza.

Finalmente, tendo a natureza esgotado a sua fecundidade, a idéia, assim

concretizada volta para si, toma consciência de si no espírito, que é precisamente a

idéia por si: a grande síntese dos opostos (idéia e natureza), a qual é estudada em

seus desenvolvimentos pela Filosofia do Espírito. O espírito desenvolve-se através

dos momentos dialéticos de subjetivo (indivíduo), objetivo (sociedade), absoluto

105
(Deus); este último se desenvolve, por sua vez, em arte (expressão do absoluto na

intuição estética), religião (expressão do absoluto na representação mítica), filosofia

(expressão conceptual, lógica, plena do absoluto).

Com o espírito subjetivo, a individualidade empírica, nasce da consciência do

mundo. O espírito subjetivo compreende três graus dialéticos: consciência,

autoconsciência e razão; com esta última é atingida a consciência da unidade do eu

e do não-eu. Não estando, pois, o espírito individual em condição de alcançar, no seu

isolamento, os fins do espírito, de realizar a plena consciência e liberdade do espírito,

surge e se afirma a fase do espírito objetivo, isto é, a sociedade. No espírito objetivo,

nas concretizações da sociedade, Hegel distingue três graus dialéticos: o direito (que

reconhece a personalidade em cada homem, mas pode regular apenas a conduta

externa dos homens); a moralidade (que subordina interiormente o espírito humano

à lei do dever); a eticidade ou moralidade social (que atribui uma finalidade concreta

à ação moral, e se determina hierarquicamente na família, na sociedade civil, no

estado).

A sociedade do estado transcende a sociedade familiar, bem como a

sociedade civil, que é um conjunto de interesses econômicos e se diferencia em

classes e corporações. O estado transcende estas sociedades, não porque seja um

instrumento mais perfeito para a realização dos fins materiais e espirituais da pessoa

humana (a qual unicamente tem realidade metafísica); mas porque, segundo Hegel,

tem ele mesmo uma realidade metafísica, um valor ético superior ao valor particular

e privado das sociedades precedentes, devido precisamente à sua maior

universalidade e amplitude, isto é, é uma superior objetivação do espírito,

denominada por Hegel espírito vivente, razão encarnada, deus terreno.

106
No sistema hegeliano a vida do espírito culmina efetivamente no estado, que é

a suprema expressão do espírito objetivo, mas dialeticamente, Hegel põe acima do

espírito objetivo o espírito absoluto, em que, através de uma última hierarquia

ternária de graus (arte, religião, filosofia), o espírito realizaria finalmente a

consciência plena da sua infinidade, da sua natureza divina, em uma plena

adequação consigo mesmo.

Na arte o espírito tem intuição, em um objeto sensível, da sua essência

absoluta; quer dizer, o belo é a idéia concretizada sensivelmente. Portanto, no

momento estético, o infinito é visto como finito. Na religião, pelo contrário, se efetua

a unidade do finito e do infinito, imanente no primeiro; mas em forma sentimental,

imaginativa, mítica. Hegel traça uma classificação das religiões, na qual o

cristianismo é colocado no vértice como religião absoluta, enquanto no mistério da

encarnação do Verbo, da humanização de Deus, ele vê, ao contrário, a consciência

que o espírito (humano) adquire da sua natureza divina.

Acima da religião e do cristianismo está a filosofia, que tem o mesmo

conteúdo da religião, mas em forma racional, lógica, conceitual. Na filosofia o espírito

se torna inteiramente auto-transparente, auto-consciente, conquista a sua absoluta

liberdade, infinidade. Como as várias religiões representam um processo dialético

para a religião absoluta, assim, os diversos sistemas filosóficos, que se encontram na

história da filosofia, representariam os momentos necessários para o advento da

filosofia absoluta, que seria o idealismo absoluto de Hegel.

Assim, Hegel celebrou o racionalismo e o otimismo absolutos elaborados com

base nos princípios lógicos da razão, e este, talvez seja o principal motivo para Jung

considerá-lo “prisioneiro do seu próprio orgulho”.

107
Isto levou Jung a admirar outro filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-

1860), que introduzira o budismo 446 e o pensamento indiano, na metafísica alemã 447 ,

cujas idéias não se conciliavam com o cristianismo 448 . Porque para o cristão, que

segue os dogmas “aspira pelo bem e sucumbe ao mal” 449 enquanto que para o

indiano o bem ou o mal não existem, e procura se manter longe dessa polaridade,

através da meditação ou do ioga 450 . Jung conclui que “a espiritualidade indiana é

desprovida tanto do mal como do bem” 451 . Mas, como cristão, Jung percebe que não

é compatível com o cristianismo tal crença indiana. Ele afirma:

Não poderia desembaraçar-me de algo que não possuo, que não fiz, nem
vivi(...) O homem que não atravessa o inferno de suas paixões também não
as supera. Elas se mudam para a casa vizinha e poderão atear o fogo que
atingirá sua casa sem que ele perceba. Se abandonarmos, deixarmos de lado,
e de algum modo esquecermo-nos excessivamente de algo, corremos o risco
de vê-lo reaparecer com uma violência redobrada. 452

Numa franca oposição ao iluminismo, que prefigurara na luta de Erasmo com

Lutero e no humanismo teológico, só conseguia ver o mal por meio dos atos

individuais que dependiam de decisões livres da personalidade consciente. O

iluminismo acreditava na possibilidade de induzir a grande maioria dos indivíduos a

seguir as exigências de uma vida social e individual perfeitamente integrada, por

meio de educação e de persuasão, e de instituições adequadas.

Jung era de opinião que este fora o filósofo que tratou do sofrimento do

mundo, do Mal, e da imperfeição do universo, sem apelar para a ininteligibilidade, de

que cabe ao homem aceitar sem questionamentos os males, mas alguém que dizia

446
Id. p. 98
447
http://pt.wikipedia.org/wiki/Schopenhauer - consulta realizada em 12 de Dezembro de 2006 e Id. p. 98
448
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 79
449
Id. p. 242
450
Id. p. 242
451
Id. p. 243
452
Id. p. 243

108
claramente que o problema do mal, provinha de uma “cegueira da vontade criadora

do mundo” 453 , e que se opunha a qualquer crença sobrenatural 454 , em suas

principais obras: O Mundo como Representação e como Vontade e Parerga und

Paralipomena, em que analisa o mundo e a vida, especialmente em seus aspectos

negativos 455 . Tanto Schopenhauer e Kant, como que penetravam em seus

pensamentos quando estava sozinho 456 , e com eles, o grande “mundo de Deus”. Tal

“vontade” foi entendida por Jung, como o próprio Deus, o Criador, a ponto de

identificar-se profundamente com o pensamento de Schopenhauer, quando afirma:

Percebi que é inútil falar aos outros sobre coisas que não sabem” 457 . “Ofendi
muitas pessoas ; assim que lhes percebia a incompreensão, ela me
desinteressavam. À exceção dos meus doentes, não tinha paciência com os
homens. Em relação a alguns seres, era sempre próximo e presente, na
medida em que mantínhamos um diálogo interior; mas podia ocorrer que,
bruscamente, eu me afastasse, por sentir que nada mais havia que me ligasse
a eles (...) podia interessar-me intensamente por alguns seres, mas, desde
que se tornavam translúcidos para mim, o encanto se quebrava. Fiz, assim,
muitos inimigos. 458

Assim, pode ser comparado com o pensamento do filósofo, pois em seus

escritos, lamenta qualquer hora desperdiçada no convívio ou em conversa com

outros, a ponto de dizer: “É melhor não fazer nada do que ter um diálogo estéril e

burro em conversas com os bípedes” 459 .

Para Schopenhauer o mundo é um fenômeno, uma representação do sujeito

que conhece. Este sujeito elabora, constrói o fenômeno através do tempo, do espaço

e da causa. O mundo é um fenômeno, do qual é possível passar ao conhecimento

das coisas em si, mediante a intuição interior pela qual conhecemos a nós mesmos

453
Id. p. 71
454
YALOM, Irvin D. A Cura de Schopenhauer. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 219
455
PADOVANI, Humberto Antonio e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. Edições Melhoramentos, 5ª
Edição, 1962, São Paulo. p. 341
456
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 75
457
Id. p. 100
458
Id. p. 308
459
YALOM, Irvin D. A Cura de Schopenhauer. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Ediouro, 2006, p. 202

109
como tendência, esforço e vontade. E visto que sentimos que o sujeito que conhece

a si, como ser fenomênico, espacial, temporal, causal, é idêntico ao sujeito que se

percebe a si mesmo como vontade, concluímos, por analogia, que todas as coisas,

que aparecem ao nosso conhecimento exterior como representações, fenômenos

espaciais, temporais, causais, são interiormente, substancialmente, também elas,

vontade.

Para Schopenhauer, a vontade, portanto, seria a essência do universo, o

noumenon da experiência. Esta vontade é cega e irracional, portanto as suas

manifestações no mundo são irracionais, e mais se sobe na hierarquia dos seres até

ao homem, no qual o mal e a dor do universo são compendiados e em demasia

intensificados. E essa vontade é una e imanente. Essa vontade cega é uma e quer

viver, nada mais quer senão viver. E, portanto, se vai concretizando no mundo da

experiência através das várias formas dos vários graus da natureza. Enfim manifesta-

se no homem, em que ela teria criado para si, no conhecimento e na inteligência, um

instrumento prodigioso para satisfazer a sua louca sede de vida. E, com efeito, para

a maioria dos homens – o comum – o conhecimento, o intelecto serve unicamente

para fins práticos, utilitários, egoístas.

Para Schopenhauer tudo é desejo, porque tudo é querer: e desejar é sofrer

pela falta do que se deseja. E, neste momento, Jung também é parecido com o

filósofo: “A falta de liberdade causava-me grande tristeza” 460 . Se o desejo não for

satisfeito, o sofrimento permanece e aumenta; e quando satisfeito, se seguem

infalivelmente à saciedade, o cansaço, o tédio. Daí novos desejos e novos

sofrimentos, em uma odisséia perpétua sem meta e sem paz. E isto acontece quanto

460
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 309

110
mais alto se sobe na hierarquia dos homens. Para Schopenhauer, a vida do homem

oscila tragicamente e fatalmente entre o sofrimento e o tédio; o prazer é apenas

negativo, pois nada é mais que cessação do sofrimento.

Segundo Schopenhauer, o caminho da libertação do sofrimento e, por

conseguinte, da vontade de viver, seria constituído por uma purificação humana que

se realiza em três graus. A purificação estética, pela qual o homem, completamente

absorto na contemplação, na intuição da idéia, já não é mais perturbado pelo desejo

gerador de sofrimento; cala-se, portanto, a vontade de viver. O conhecimento é

emancipado da vontade, de que era originariamente escravo.

Segue-se – superior à primeira – a purificação ética, mediante a qual o

homem, pelo exercício da justiça e da caridade, mortifica a sua vontade de viver, o

seu egoísmo, que o separava dos outros homens, impelindo-o até à perversidade.

Isto é, o homem se sente, pela compaixão – que, segundo Schopenhauer, é a raiz

próxima da moralidade – uno juntamente com todos, como é, de fato,

metafisicamente, graças à unidade do princípio da realidade, que é a vontade una.

Desse modo, porém, o homem não venceu a dor; pelo contrário, carregou-se

do sofrimento universal, que o leva, portanto, à renúncia extrema. Não basta

mortificar a própria vontade de viver, é preciso aniquilar a vontade em si mesma

para alcançar a libertação completa. A isto providencia a purificação ascética, que se

encontra na vida dos santos e dos ascetas, por exemplo. Graças a essa purificação

ascética o homem se torna perfeitamente indiferente a tudo, e se desapega de tudo

que o cerca: está morto inteiramente à vida, ainda que esta possa continuar

materialmente.

111
Dessa concepção do mundo e da vida, decorre uma pedagogia negativa e

quietista, mas que exige muita força e proporciona libertação; uma pedagogia que

ensina o desapego, o desprezo do mundo e da vida, porquanto não são o Absoluto e

porquanto estão cheios de mal.

É importante registrar que Nietzsche, como discípulo de Schopenhauer,

escreveu Schopenhauer Educador, ensaio que expõe a pedagogia do mestre, pois

para ele, este libertou o espírito humano dos nivelamentos, dos empecilhos e da

escravidão do ambiente, da opinião pública e da massa popular. E, é neste sentido

que para Jung, Schopenhauer introduziu o budismo 461 e o pensamento indiano na

metafísica alemã 462 , que conflitava com cristianismo professado pelo iluminismo

alemão 463 .

II. 5. O Iluminismo no Protestantismo

Jung aponta que o protestantismo tinha perdido sua naturalidade, tornando-se

uma religião mais do exterior do que do interior, por ter se deixado influenciar pelo

iluminismo. O iluminismo trata-se de um movimento cultural europeu, onde na

Alemanha ganhou muito espaço, e passou a influenciar até mesmo a teologia, que

ocupa o século que ocorre entre a revolução inglesa de 1688, passando pela Itália e

a revolução francesa de 1789. A revolução francesa transformou o mundo, ao

formular o conceito de razão crítica, e devido ao conflito com o catolicismo, a razão

se fez radical e até mesmo anti-religiosa, destruindo as velhas instituições

controladas pela igreja e pelo Estado. A razão crítica consistia em enfatizar a

bondade como essência do homem, que em nome do princípio de justiça, lutavam


461
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 98
462
http://pt.wikipedia.org/wiki/Schopenhauer - consulta realizada em 12 de Dezembro de 2006 e Id. p. 98
463
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 79

112
contra o feudalismo e contra as igrejas autoritárias. O nome – iluminismo – deriva do

seu intento de iluminar com a razão o obscurantismo da tradição: entende-se que a

história não constitui uma lenta subida humana para a civilização, mas o desvio de

uma ideal condição originária, para a qual a razão deveria levar de novo a

humanidade. O iluminismo suprime toda a história da civilização, para chegar às

origens dela, ao homem de natureza, em que julga encontrar o homem segundo a

razão. E é este homem, imaginado no estado de pura natureza, que o iluminismo

quer e se propõe restaurar. Segundo Tillich, a essência do iluminismo é o uso livre da

razão 464 . E, ainda, segundo o teólogo alemão, a teologia abraçou o iluminismo, por

acreditar que quando o “logos” (razão) desaparece da teologia, ela se transforma em

“fanática repetição de passagens bíblicas sem o necessário esforço para alcançar o

seu sentido. Qualquer teologia que não reconheça o caráter universal da estrutura do

mundo, baseada no “logos” torna-se bárbara e deixa de ser teologia” 465 , em

conformidade com o pensamento kantiano, exposto em seu A Religião.

Segundo Padovani em História da Filosofia, as fontes principais do iluminismo

estão na filosofia do racionalismo e do empirismo. O racionalismo fornece ao

iluminismo o método crítico, a atitude demolidora da tradição, para instaurar a luz, a

evidência, a clareza e a distinção da razão. E o empirismo contribui para tudo isto

proporcionando um procedimento simples, a fim de reconstruir toda a realidade por

elementos primitivos mediante o mecanismo e o associacionismo 466 .

Na Inglaterra, o iluminismo, durante o século XVII, depende substancialmente

do empirismo inglês, especialmente de John Locke (1632-1704). O empirismo de

464
TILLICH, Paul. Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. ASTE, São Paulo, 1999. p. 56,
62
Id. p. 61
465
466
PADOVANI, Humberto Antonio e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. Edições Melhoramentos, 5ª
Edição, 1962, São Paulo. p. 283

113
Locke determinou desenvolvimentos em sentido iluminista, que segundo Padovani,

seguiu algumas fases, a saber: do platonismo religioso da escola de Cambridge; da

religião e da moral natural; e, do senso comum da escola escocesa 467 . De Locke, o

iluminismo ganhou força na Inglaterra, do deísmo, que foi a religião e da moral

natural dos chamados livres-pensadores.

Os deístas admitem ainda, mais ou menos, o Deus da tradição, mas sem o

sobrenatural, sem milagres, sem revelação e sem mistérios. Admitem ainda uma

religião, mas natural, racional e universal. A história religiosa da humanidade seria a

história da corrupção da religião natural originária, ideal de que o cristianismo do

Evangelho representaria uma breve restauração, porém, muito cedo arruinada. A

filosofia iluminista deveria levar de novo a humanidade à religião natural originária,

acreditava-se.

Ainda no iluminismo inglês, os maiores expoentes dessa escola, em ordem

cronológica, seriam: Matheus Tindal (1656-1733), autor de Um Cristianismo Antigo

como a Criação, em que é manifestamente acentuado o racionalismo religioso e o

afastamento da revelação cristã, ainda que a religião natural seja mantida sobre suas

bases metafísicas; John Toland (1670-1722), autor de Cristianismo sem Mistérios, e

do Pantheisticon, é o primeiro representante dos deístas ingleses finalizando em uma

espécie de monismo materialista; Juan Antonio Collins (1676-1729), discípulo e

amigo de Locke, empirista e hostil a todo sobrenaturalismo; e, Henry St. John (?),

cético em metafísica, mas deísta, avesso à religião positiva, considerando-a,

entretanto, necessário para os homens comuns.

467
Id. p. 284

114
Junto ao movimento da religião natural vem o da moral natural, que pregava

a moral autônoma tanto da teologia quanto das pessoas. Esta tendência moralista

pode distinguir-se em três correntes principais: intelectualista, sentimentalista e

idealista.

A corrente intelectuaista tem como seu maior representante o teólogo Samuel

Clarke (1675-1729), grande admirador de Isaac Newton (1643-1727), que julgava a

ordem mecânica do universo, posta em evidência pela nova ciência da natureza, ser

uma confirmação da existência de Deus. Clarke, filósofo e apologista, esforça-se por

defender com a razão, contra o deísmo e os livres-pensadores, a transcendência

divina, a imortalidade da alma, as causas finais, a moral estável, a liberdade e a

responsabilidade, etc.

A corrente sentimentalista é constituída por um grupo de moralistas ingleses,

cujo chefe Ashley Cooper (1671-1713) julgava que o fundamento da moral era o

sentimento e não a razão. E pensava igualmente que a sociedade depende da

simpatia humana e não do egoísmo humano, como queria Thomas Hobbes (1588-

1679).

A corrente idealista é representada, sobretudo, depois de George Berkeley

(1685-1753), por John Norris (1657-1711) e Arthur Collier (1680-1732). Aquele

sustentava a visão das idéias em Deus, à maneira de Nicolau Malenbranche (1638-

1715) e contra o empirismo de Locke, que diminui o senso dos valores espirituais e

abre o caminho ao livre pensamento. Este eclesiástico inglês negava a existência do

mundo externo e sustentava o imaterialismo para um escopo espiritualista.

O iluminismo na França foi introduzido por François-Marie Arouet (1694-1778),

mais conhecido pelo pseudônimo Voltaire, onde adquiriu seu traço específico – o

115
culto da razão, a deusa razão da revolução francesa. A razão (humana) deve

dominar acima de tudo e acima de todos,déspota e absoluta. Daí a guerra a qualquer

atividade e instituição que não seja puramente racional, à fantasia, ao sentimento, à

paixão, às desigualdades sociais, porque a razão é universal; ao estado, quando

desrespeita os direitos naturais do indivíduo; às divisões nacionais e à guerra; à

história e à tradição em geral, em que a razão certamente não domina. No campo

social, econômico, político, religioso, tudo isto levará à demolição, à destruição da

ordem constituída.

No que diz respeito ao problema filosófico em geral, o iluminismo francês, que

segundo Padovani aderiu ao empirismo de Locke, desenvolvido por Étienne Bonnot

de Condillac (1715-1780) em seu Traité des Sensations, e por Pierre Bayle (1647-

1706) autor do Dictionnaire Historique et Critique, que propagou a incredulidade pela

Europa toda, sustentando a irracionalidade da revelação: mesmo contra a própria

intenção do autor, que pretendia apenas mostrar a necessidade de se apoiar na fé

em face dos máximos problemas, sendo a razão humana impotente para solucioná-

los 468 .

E, conforme o mesmo autor de História da Filosofia, o mecanicismo (empirista

e racionalista) é levado até ao materialismo por La Mettrie e D’Holbach, autores

atacados por Voltaire. Trata-se dos escritos de Julien Offray de La Mettrie (1709-

1751) autor de L’Homme Machine e de Teodor D’Holbach (1723-1789), autor de

Système de la Nature, onde o materialismo se manifesta em cheio469 .

Do iluminismo francês a figura que mais se destaca é a de Jean Jacques

Rousseau (1712-1778), suíço de nascimento, viveu na Inglaterra e na França,

468
Id. p. 286-287
469
Id. p. 287

116
calvinista, tendo se convertido ao catolicismo, mas retornou ao calvinismo. No fundo,

aderiu apenas à religião natural. Foi pensador, escritor, secretário, pedagogo,

tipógrafo, criado conforme Padovani 470 . Pode ser considerado iluminista por ter feito

oposição à história, à tradição, à sociedade. Mas, ao mesmo tempo, pode ser

considerado anti-iluminista, por admitir o primado do sentimento, da espontaneidade

natural, que reconhece como fonte de todos os valores contra a razão, a cultura, a

civilização, de que o iluminismo se vangloriava, e a que atribui ele a origem de todos

os males. Para Rousseau, a civilização e a sociedade corrompem o homem: é preciso

recorrer ao sentimento, voltar à natureza, que é boa. Depois a entende no sentido

espiritual, como espontaneidade, liberdade, contra todo vínculo inatural e toda

escravidão artificial. A liberdade não é apenas um direito, mas um dever

imprescindível da natureza humana, que exige também a igualdade dos homens, em

virtude precisamente, da natureza comum. Tal natureza humana, sem os males da

civilização, produzirá frutos de fraternidade universal.

Na Alemanha, o iluminismo tem como seu fundador Christian Wolff (1679-

1754), divulgador do racionalismo de Gottfried Wilhem von Leibniz (1646-1716). Para

Padovani, visto que o escopo do iluminismo é fundamentalmente prático, se dá ele

necessariamente com a religião e, precisamente, com o pietismo alemão. Este

desvaloriza o aspecto dogmático e confessional da religião, como o deísmo, e

valoriza o aspecto interior, sentimental 471 . Quanto ao pietismo alemão, veremos mais

adiante, quando apresentarmos a teologia de Friedrich Daniel Ernst Schleiermacher

(1768-1834), como sendo pietista, que conduzira Carl Gustav Jung, avô de Jung, ao

470
Id. p. 288
471
Id. p. 290

117
protestantismo, mas já falamos quanto ao pietismo que reinava entre os tios de

Jung 472 .

Também na Alemanha a religião do iluminismo é o deísmo. Manifesta-se em

duas correntes: uma delas, a mais moderada, faz coincidir a religião positiva, o

cristianismo, com a razão, que teria o papel de esclarecer a primeira, valorizando-a

racionalmente; a outra, negativa, demole criticamente a religião. Expressão dessa

segunda corrente é Samuel Reimarus (1694-1768), autor de Apologia, isto é, defesa

dos que adoram racionalmente a Deus. Ao contrário da chamada filosofia popular,

característica do iluminismo alemão adere à primeira interpretação da religião

positiva. O seu maior expoente é Moisés Mendelsohn (1720-1796), que vê no

sentimento o centro da personalidade. Bem ao gosto do pietista Schleiermacher.

O maior expoente do iluminismo alemão, porém, e ao mesmo tempo o seu

maior crítico é Gotthold Ephraim Lessing (1729-1781), autor da Educação do Gênero

Humano Mediante a Revelação Divina. Como os iluministas, ele é crítico,

cosmopolita, progressista. Mas, diversamente deles, julgava que a cultura, a ciência,

a verdade, não são uma posse, e sim, uma pesquisa perpétua, de conformidade com

uma concepção historicista, inaugurando assim, o romantismo. Este pensamento

impera na teologia liberal, como já vimos. No parecer de Padovani, este senso

histórico lhe faz reconhecer o valor progressivo e relativo de toda a história, em

todos os seus aspectos, especialmente no religioso. A verdadeira religião natural é o

deísmo; entretanto, ela não é realizada no princípio da história humana, vai

realizando através da história religiosa da humanidade 473 .

472
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 49 e em Noll,
Richard. O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática, 1996, p. 22
473
PADOVANI, Humberto Antonio e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. Edições Melhoramentos, 5ª
Edição, 1962, São Paulo. p. 291

118
Quanto ao iluminismo Jung tinha a seguinte opinião:

Estamos longe de ter liquidado a Idade Média, a Antiguidade, o primitivismo e


de ter respondido às exigências de nossa psique a respeito deles.
Entrementes, somos lançados num jato de progresso que nos empurra para o
futuro, com uma violência tanto mais selvagem quanto mais nos arranca de
nossas raízes. Entretanto, se o antigo irrompe, é freqüentemente anulado e é
impossível deter o movimento para a frente. Mas é precisamente a perda de
relação com o passado, a perda das raízes, que cria um tal “mal-estar na
civilização”, a pressa que nos faz viver mais no futuro, com suas promessas
quiméricas de idade de outro, do que no presente, que o futuro da evolução
histórica ainda não atingiu. Precipitamo-nos desenfreadamente para o novo,
impelidos por um sentimento crescente de mal-estar, de descontentamento,
de agitação. Não vivemos mais do que possuímos, porém de promessas; não
vemos mais a luz do dia presente, porém perscrutamos a sombra do futuro,
esperando a verdadeira alvorada. Não queremos compreender que o melhor é
sempre compensado pelo pior. A esperança de uma liberdade maior é anulada
pela escravidão do Estado, sem falar dos terríveis perigos aos quais nos
expõem as brilhantes descobertas da ciência. Quanto menos compreendemos
o que nossos pais e avós procuraram, tanto menos compreendemos a nós
mesmos, e contribuímos com todas as nossas forças para arrancar o indivíduo
de seus instintos e de suas raízes: transformado em partícula da massa,
obedecendo somente ao que Nietzsche chamava o espírito da gravidade. É
evidente que as reformas orientadas para a frente, isto é, por novos métodos
trazem melhorias imediatas, mas logo se tornam problemáticas e ainda por
cima custam muito caro. Não aumentam em nada o bem-estar, o
contentamento, a felicidade em seu conjunto. Na maioria das vezes são
suavizações passageiras da existência, como, por exemplo, os processos de
economizar tempo, que infelizmente só lhe precipita o ritmo, deixando-nos,
assim, cada vez, menos tempo. “Omnis festinatio ex parte diaboli est” (toda
pressa vem do Diabo), costumavam dizer os antigos mestres. As reformas que
levam em conta a experiência do passado são em geral menos custosas e, por
outro lado, duráveis, pois retornam aos caminhos simples e mais
experimentados de outrora, e só fazem um uso moderado dos jornais, do
rádio, da televisão e de todas as inovações feitas no sentido de ganhar
tempo. (...) Se vemos e ouvimos com demasiada nitidez limitamo-nos à hora
e ao minuto de hoje e não observamos se e como as nossas almas ancestrais
percebem e compreendem o hoje em outros termos, e como o inconsciente
reage. Dessa forma, continuamos ignaros e não sabemos se o mundo
ancestral participa de nossa vida com prazer primitivo ou se, pelo contrário,
volta as costas com desgosto. Nossa calma e satisfação íntima dependem, em
grande parte, do fato de saber se a família histórica que o indivíduo
personifica, está ou não de acordo com as condições efêmeras de nosso
presente. (...) Desviemos, por um momento, nosso olhar de todo racionalismo
europeu, e fujamos para o ar límpido das alturas desse planalto solitário que,
de um lado, desce até às vastas pradarias continentais e do outro, ao Oceano
Pacífico; desembaracemo-nos, ao mesmo tempo, da nossa consciência do
mundo, em troca de um horizonte ilimitado e de uma inconsciência do
Universo que vive além dele, e então começaremos a compreender o ponto
de vista do índio pueblo. “Toda vida provém da montanha”: tal é sua
convicção imediata. Da mesma, ele tem a profunda consciência de morar no
teto de um mundo infinito, perto de Deus. Tem acesso imediato ao ouvido da
divindade e seu ato ritual atingirá antes, dos demais, o Sol longínquo. O
caráter sagrado das montanhas, a revelação do Jeová, no Sinai, a inspiração
que Nietzsche recebeu em Engadine estão na mesma linha. A idéia, absurda
para nós, de que um comportamento cultual possa “fazer nascer” o Sol pela
magia não é, certamente, examinando mais detidamente, menos irracional,

119
mas é infinitamente mais familiar que se poderia pensar à primeira vista.
Nossa religião cristã – como qualquer outra religião – é impregnada pela idéia
de que ações particulares, ou uma forma particular de agir, podem influenciar
a Deus; por exemplo, os ritos, a oração, um tipo de moral que o agrade. Face
à ação de Deus sobre o homem coloca-se o ato cultual do homem, que é uma
resposta e uma “re-ação” – talvez não apenas isto, mas também uma
“solicitação” ativa, uma forma de coação mágica. Sentindo-se capaz de uma
réplica plenamente válida à influência todo-poderosa de Deus, e de prestar-
lhe em troca uma contribuição essencial, mesmo em se tratando d’Ele, o
homem se sente exaltado, pois o humano acede à dignidade de um fator
metafísico. “Deus e nós” (mesmo que se trate apenas de um subentendido
inconsciente): esta equivalência na relação está, sem dúvida, à base da
invejável serenidade do índio pueblo. Tal homem se encontra, no sentido
pleno da palavra, em seu lugar. 474

II. 6. Jung reage ao Protestantismo Iluminista: Fenomenologia própria

Para Jung, o Protestantismo quando visto em sua forma de Confissão de Fé,

trata-se de uma “forma codificada e dogmatizada de experiências religiosas

originárias” 475 , enquanto que seu interesse pela religião era pelo “Deus terrível”, cuja

vontade se mostrava de forma surpreendente e muitas vezes temível e implacável 476 .

Para Jung, o Protestantismo é extensão do Cristianismo graças à herança que

recebera do Catolicismo Romano, a saber, “Deus se revelou em Cristo, o qual

padeceu pela humanidade” 477 , e neste sentido não pode ser ampliado nem vinculado

a idéias e sentimentos budistas ou islâmicos, pois o conteúdo da fé que confessa é

preciso, e, que, portanto, não negocia nem transige com tal verdade exclusiva. Jung

não analisa o sistema de fé protestante, pela confissão de fé que professa (luterana),

mas concentra-se no aspecto humano do problema religioso por considerá-lo um

“acontecimento concreto” 478 . Por isso ele referir que seu trabalho é

fenomenológico 479 , isto é, “crítica à metafísica, que pressupõe a verdade una, estável

474
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) pp. 210, 211, 223
475
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 10
476
JUNG, Carl Gustav. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Editora Nova Fronteira S.A., Rio de Janeiro, s/d, p.
53
477
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 10,11
478
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 4
479
Id. par. 2

120
e absoluta, mas analisa um fenômeno como tal, ou seja, na relação sujeito-objeto,

enquanto ser-no-mundo. Tendo seu expoente o filósofo Martin Heidegger (1889-

1976) e, o também filósofo e protestante, Paul Ricoeur (1913-2005)” 480 , utiliza-se

“de um ponto de vista científico-natural” 481 . Sua abordagem fenomenológica se

baseia na filosofia de Immanuel Kant (1724-1804), que explicitou em seu A Crítica da

Razão Pura, em que colocou no centro do mundo cognoscitivo não o objeto e sim o

sujeito, de modo que não é o sujeito que espelha o objeto, mas este depende

daquele. Por exemplo, a matemática é uma ciência universal e necessária não

porque revele um aspecto universal e imutável da realidade (material), mas porque é

uma construção a priori do espírito humano, e, dessa forma, participa da

universalidade das leis que regulam as atividades do espírito humano, conforme o

Capítulo: Estética Transcendental, da A Crítica da Razão Pura. Para Kant, o tempo é

a forma de todos os fenômenos e especificamente dos fenômenos internos; o espaço

é a forma específica dos fenômenos chamados externos. A este propósito Kant nos

faz notar que, não somente são subjetivos e fenomenais os objetos do mundo

exterior, mas também os do mundo interior, pois todos caem sob a forma da

temporalidade 482 . A fenomenologia kantiana se verifica na vida de Jung, quando ele

escreve:

Minha vida é a história de um inconsciente que se realizou. Tudo o que nele


repousa aspira a tornar-se acontecimento, e a personalidade, por seu lado,
quer evoluir a partir de suas condições inconscientes e experimentar-se como
realidades. O que se é, mediante uma intuição interior e o que o homem
parecer ser sub specie aeternitatis só pode ser expresso através de um mito.
Cada vida é um desencadeamento psíquico que não se pode dominar a não
ser parcialmente. A vida sempre me afigurou uma planta que extrai sua
vitalidade do rizoma; a vida propriamente dita não é visível, pois jaz no
rizoma. O que se torna visível sobre a terra dura um só verão, depois

480
http://www.netpsi.com.br/linhas/fenomenologia.htm, consulta realizada em 02 de Agosto de 2006.
481
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 2
482
PADOVANI, Humberto Antonio e CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. Edições Melhoramentos, 5ª
Edição, 1962, São Paulo. p. 310

121
fenece... Aparição efêmera. Quando se pensa no futuro e no desaparecimento
infinito da vida e das culturas, não podemos nos furtar a uma impressão de
total futilidade; mas nunca perdi o sentimento da perenidade da vida sob a
eterna mudança. O que vemos é a floração – e ela desaparece. Mas o rizoma
persiste. 483

Trata-se de uma fenomenologia própria: para Jung há experiência possível

sem uma consideração reflexiva, porque a ‘experiência’ constitui um processo de

assimilação, sem o qual não há compreensão alguma 484 . Ele faz isso a partir de sua

experiência pessoal, comparando-a com a ausência de tal experiência na vida de seu

pai e seus tios, pastores luteranos, que não pensavam, mas, tão somente

importavam-se com a fé 485 . Portanto, Jung não questiona a confissão de fé

protestante, mas analisa o aspecto humano do problema religioso, isto é, procura

estudar o fenômeno religioso, como um aspecto humano, e a relação humana com

este fenômeno. Para Jung, o “problema da religião” é um assunto importante para

grande número de indivíduos além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, por

se tratar de “uma das expressões mais antigas e universais da alma humana”, daí a

psicologia ocupar-se deste assunto, abordando-o pela fenomenologia e não pela

metafísica, ou teologia. Jung apresenta sua apologia à Religião, pois percebera que a

mesma rapidamente se desacreditava no mundo do século XIX e XX, que

abandonava o sentimento do divino. Segundo Jung, a insensibilidade à realidade do

inconsciente privava o ser humano de ter acesso ao numinoso, que as religiões

chamam de “Deus”. Em sua opinião, os responsáveis por esse estado de coisas eram

as ciências, a filosofia, e a religião protestante. Religião, para Jung é uma expressão

da alma humana, isto é, uma das maneiras de ser e estar no mundo que o homem

desenvolveu, durante sua existência no mundo. Ele considera a religião como um

483
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 19, 20
484
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 2
485
Id. p. 50

122
tipo de experiência gerada por um processo de assimilação de um fenômeno 486 . Jung

não nega a validade de outras abordagens – metafísica, teológica ou filosófica – da

religião, enquanto fenômeno, contudo, afirma que o trata, “exclusivamente” 487 pelo

método da observação empírica, científico-natural, como psicólogo. A abordagem

metafísica, talvez querendo afirmar teológica, para Jung, busca “saber se é

verdadeiro ou falso” qualquer tema religioso, enquanto que ele esclarece que

pretende “só se ocupar da existência das idéias” 488 que qualquer tema religioso

apresenta, e sua presença na vida humana e sua atuação nela. Para ele, se existe

uma idéia, seja ela de qual natureza for, é “psicologicamente verdadeira”, pois como

“idéia, só pode ocorrer num indivíduo, ela existe psicológica e subjetivamente, pois

ela ocorre a um indivíduo, e pode se tornar objetiva, na medida em que mediante

um consensus gentium é partilhada por um grupo maior” 489 . Partindo desse

pressuposto, o fenômeno religioso é uma idéia subjetiva, presente em indivíduos,

mas também objetiva, pois é partilhada por um grupo maior de indivíduos. Para

Jung, a idéia religiosa existe e é tão verdadeira quanto um elefante é verdadeiro a

ponto de ser objeto de estudo por parte da Zoologia490 . Para a Zoologia o elefante é

um fenômeno, mas, lamenta que qualquer idéia religiosa é logo interpretada como

invenção de seu criador humano, porém, para Jung este fato ocorre devido ao hábito

de pensarmos ou considerarmos preconceituosamente a psique, de onde procede

todos os fenômenos, sejam eles objetivos, como o elefante, enquanto idéia, quanto

subjetivo, como as religiões 491 . Parece que Jung valha-se do exemplo do elefante,

486
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 6
487
Id. par. 2
488
Id. par. 4
489
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 4
490
Id. par. 5
491
Id. par. 5

123
para mostrar o quanto são verdadeiras e grandemente reais as idéias subjetivas

presentes no indivíduo, mas que passam a ser objetivas quando partilhadas, por um

grupo maior de indivíduos.

Em outro lugar ele diz:

descobertas são feitas quando se transferem conhecimentos de um domínio


para outro, a fim de empregá-los de maneira prática. Quantos achados não
teriam ocorrido se os raios X deixassem de ser utilizados em medicina, por
serem uma descoberta da física! Quanto ao fato de que, em certos casos,
possa haver perigo na terapia pelos raios X, isso interessa ao médico, mas
não necessariamente ao físico, que se serve desses raios de outra maneira e
para outros fins. O físico não pensará que o médico pretende iludi-lo ao
chamar-lhe a atenção para certas propriedades nocivas ou salutares da
radioscopia! 492

A religião protestante, para Jung, é uma idéia subjetiva e objetiva, pois de

“modo espontâneo e independentemente de migração e da tradição” 493 irrompe, na

consciência individual, e passou a ser uma idéia de um grupo de indivíduos. Para

Jung era estranho de que só é “verdadeiro” aquilo que se provou como sendo uma

realidade física. Ele chega a pedir aos cientistas que renunciem a “palavrinha

físico” 494 , pois também há verdades psíquicas, que mesmo que não possam ser

explicadas, podem ser demonstradas, “os enunciados religiosos são desta

categoria” 495 .

II. 7. Definição de Religião para Jung

Jung se vê no “dever”, como cientista, de explicar o que entende por religião,

como fenômeno, de maneira generalizada, afirmando:

Religião é – como diz o vocabulário latino religio – uma acurada e


conscienciosa observação daquilo que Rudolf Otto acertadamente chamou de
numinoso, isto é, uma existência ou um efeito dinâmico não causado por um

492
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988), p. 301
493
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 5
494
JUNG, C. G. - A Resposta a Jó – Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 553
495
Id. par. 554

124
ato arbitrário. Conceito que designa o inexprimível, misterioso, tremendo, o
“totalmente outro”, propriedades que possibilitam a experiência imediata do
divino. Pelo contrário, o efeito se apodera e domina o sujeito humano, sendo
este mais sua vítima do que seu criador. Qualquer que seja a sua causa, o
numinoso constitui uma condição do sujeito, e é independente de sua vontade
(...), porque está ligada a uma causa externa ao indivíduo. O numinoso pode
ser a propriedade de um objeto visível, ou o influxo de uma presença invisível,
que produzem uma modificação especial na consciência”. 496 “O pensamento
teológico está habituado a tratar de verdades eternas. Quando o físico diz que
o átomo é desta ou daquela constituição e dele constrói um modelo, não tem
em mira exprimir uma verdade eterna. Mas os teólogos não conhecem o
modo de pensar das ciências, ignorando particularmente o pensamento
teológico. O material da psicologia analítica, seus dados essenciais, são
expressões humanas e, sobretudo, expressões humanas que se apresentam
de maneira concordante em lugares diferentes e em épocas diferentes. Que
sentido terá uma religião sem mito, se sua função, quando realmente existir é
precisamente a de nos ligar ao mito eterno? 497

Jung se preocupa em analisar a crença religiosa protestante por esse ponto de

vista. Ele não se dedica a analisar as práticas rituais que, para ele, procuram apenas

provocar deliberadamente o efeito do que foi espontâneo e irrompeu na consciência

do indivíduo. Ele analisa a religião não como uma “determinada profissão de fé

religiosa” 498 , apesar de reconhecer que:

Toda confissão religiosa, por um lado, se funda originalmente na experiência


do numinoso, e por outro, na pistis, na fidelidade (lealdade), na fé e na
confiança em relação a uma determinada experiência de caráter numinoso e
na mudança de consciência que daí resulta. 499

Jung resume religião, de maneira geral, como “a atitude particular de uma

consciência transformada pela experiência do numinoso” 500 . Para Jung, “religião é

uma relação com o valor supremo ou mais poderoso, seja ele positivo ou negativo,

relação esta que pode ser voluntária ou involuntária; isto significa que alguém pode

ser possuído inconscientemente por um “valor”, ou seja, por um fator psíquico cheio

de energia, ou que pode adotá-lo conscientemente. O fator psicológico que, dentro


496
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 6
497
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988), p. 190, 191
e, Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986, par. 647
498
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 9
499
Id. par. 9
500
Id. par. 9

125
do homem, possui um poder supremo, age como “Deus”, porque é sempre ao valor

psíquico avassalador que se dá o nome de Deus. Logo que um deus deixa de ser um

fator avassalador, converte-se num simples nome. Nele o essencial morreu, e seu

poder dissipou-se. Por que os deuses do Olimpo perderam seu prestígio e sua

influência sobre a alma humana? Porque cumpriram sua tarefa e porque um novo

mistério se iniciava: O Deus que se fez homem.” 501

Parece que para Jung o protestantismo é um sistema religioso que se libertou

quase totalmente da codificação e dogmatizada, que a confissão de fé e os rituais

procuram provocar deliberadamente o efeito do numinoso, mediante certos artifícios

mágicos, mas que podem ter sido “sacralizados e que enrijeceram dentro de uma

construção mental irreflexível e, freqüentemente, complexa” 502 , referência clara ao

iluminismo. Neste sentido o protestantismo para Jung, não se encaixa num quadro

bem determinado, com conteúdos precisos, como as idéias e sentimentos budistas e

islâmicos. Para ele, quando o protestantismo procura se encaixar num quadro bem

determinado, se torna algo parecido com o budismo e o islamismo. Jung é de opinião

que o protestantismo é maior que as denominações, pois estas representam apenas

o quanto foi “desintegrado” 503 , enquanto fenômeno, pois estas podem estar mais a

fim de vinculá-lo a idéias e sentimentos que somente desejam codificar e dogmatizar

a confissão de fé e os rituais que desejam provocar deliberadamente o efeito do

numinoso, mediante certos artifícios mágicos. O protestantismo para Jung é um tipo

de experiência religiosa, que deve ser estudado além das confissões de fé que foram

elaboradas a partir dele, e que foi transformado como tal, pois de nada valem a

“pretensão de todo credo religioso: a de ser o possuidor da verdade exclusiva e


501
Id. par. 137
502
Id. par. 10
503
Id. par. 10

126
eterna, mas que deve ser analisado, abstraindo o que as confissões religiosas

fizeram com ele” 504 , atendo-se às experiências como tais, pois a experiência é mais

valiosa que os conceitos, apesar destes darem uma aparente segurança aos seus

possuidores, por substituírem a realidade e os fatos, que uma experiência

proporciona 505 .

Jung faz isso, partindo da análise da “psicologia do homo religiosus”, do

paciente que apresenta no Congresso Terry Lectures 506 e observa cuidadosamente

certos fatores que agem sobre ele e sobre seu estado geral 507 . Ele procura fazer isso

com a psicologia do homo religiosus protestante. Jung analisa as neuroses desse

paciente, definindo-as como infiltração na consciência, como que tendo existência

própria, independente do indivíduo. Para Jung, as neuroses são fatores alheios à

vontade do indivíduo que funcionam como majoritários, não permitindo ao indivíduo

que este se sinta sozinho em sua própria vida, e que estas funcionam em conjunto

formadas por várias imagens e idéias. Jung chama isto de “complexos, capazes de

perturbar as intenções do eu” 508 . Na realidade, os complexos se comportam como

personalidades secundárias ou parciais, dotadas de vida espiritual autônoma 509 .

Certos complexos só estão separados da consciência porque esta preferiu descartar-

se deles, mediante a repressão. Mas há outros complexos que nunca estiveram na

consciência, por isso, nunca foram reprimidos voluntariamente. Brotam do

inconsciente e invadem a consciência com suas convicções e seus impulsos

504
Id. par. 10
505
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 131
506
Série de Conferências apresentadas por Jung, na Universidade de Yale, EUA, em 1937.
507
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 11
508
Id. par. 21
509
Id. par. 21

127
estranhos e imutáveis 510 . Assim, Jung compreendeu sua própria experiência, da

visão de Deus defecar em cima da Catedral, e foi por esta experiência que teve início

sua vida espiritual. A idéia obsessiva cresce como um carcinoma imaginário, mas é

tão real em seus efeitos devastadores. Um belo dia – a idéia obsessiva apareceu, e

desde então continua inalterável, tendo, o paciente, do caso apresentado, só breves

períodos de liberdade 511 .

No caso apresentado tratava-se de um paciente que Jung define como:

Pensador que pretendia ordenar continuamente o mundo com o poder de seu


intelecto e entendimento. Tal ambição conseguiu pelo menos forjar seu
destino pessoal. Submeteu tudo à lei inexorável de seu entendimento, mas
em alguma parte a natureza se furtou sorrateiramente, vingando-se dele, sob
o disfarce de um disparate absolutamente incompreensível: a idéia de um
carcinoma. Este plano inteligente foi tramado pelo inconsciente, para travá-lo
com cadeias cruéis e impiedosas. Tal obsessão só pode ocorrer num homem
acostumado a abusar da razão e do intelecto para fins egoístas. 512

II. 8. Protestantismo para Jung

Jung apresenta tal paciente, como um “homem de uma época em que os

deuses foram eliminados e até passaram a gozar de má reputação” 513 , devido ao

“abuso da razão e do intelecto para fins egoístas”, que ele percebera no

protestantismo no qual fora educado e observou na experiência vivida por seu pai.

Para ele, isto se deve ao “preconceito, muito difundido, contra os sonhos”, por

exemplo, e, isto “é apenas um dos sintomas da subestima muito mais grave da alma

humana em geral. Muito mais antigo do que estes desenvolvimentos relativamente

recentes são o medo e a aversão primitivos contra tudo o que confina com o

inconsciente” 514 . É partindo dessa análise psicológica, que Jung analisa o

510
Id. par. 22
511
Id. par. 22
512
Id. par. 27
513
Id. par. 28
514
Id. par. 28

128
Protestantismo, pois por mais que este se vê como fruto da racionalidade, na

verdade, se trata de um movimento do inconsciente, sendo que o que se passou foi

o abandono e a rejeição ou “repressão”, por parte da consciência, sem, contudo,

obter êxito. O protestantismo para Jung, perdeu sua alma, pois “perder a alma é

quando uma parte volta a ser inconsciente” 515 . Para Jung, o que “voltou a ser

inconsciente”, passa a ser tratado como tabu. Sua proposta é que o protestante

procure ser como a comunidade primitiva, que quebre os tabus levantados pelo

catolicismo, ou por ele mesmo. O protestantismo, no entender de Jung, procurou

“imitar a irrefreável e arbitrária influência do sobrenatural”, mediante formulação de

leis, na tentativa de ordenar e sistematizar um fenômeno do inconsciente, tal como o

catolicismo, que nos dois últimos milênios, como Igreja Cristã, desempenha uma

função mediadora e protetora entre essas influências e o homem. A Igreja Católica,

inicialmente, se reserva o direito de decidir, e posteriormente, a Protestante, em

cada caso, se um sonho constitui ou não uma revelação genuína” 516 . Jung esclarece

que o Protestantismo não pode se ver “petrificado”, pois seu nascimento se deu

justamente num processo contrário, e cita, que:

embora muitas vezes se acuse a Igreja Católica por sua rigidez particular, ela
admite que o dogma é vivo e, portanto, sua formulação seria, em certo
sentido, susceptível de modificação e evolução. Nem mesmo o número de
dogmas é limitado, podendo aumentar com o decorrer do tempo. De um
modo ou de outro, qualquer mudança ou desenvolvimento são determinados
pelos marcos dos fatos originariamente experimentados, através dos quais se
estabelece um tipo particular de conteúdo dogmático e de valor afetivo. 517

Para provar que a Igreja Cristã, Católica e Protestante, agem

equivocadamente, Jung cita os Pais da Igreja e outros autores da Idade Média, como

precursores da prática de valorizar a mensagem dos sonhos, como um dos meios da


515
Id. par. 29
516
Id. par. 32
517
Id. par. 10

129
comunicação com Deus. Parte do dado histórico, como por exemplo: Benedictus

Pererius S. J. (1535-1610) – que classifica os sonhos, sendo alguns “naturais, vários

humanos e alguns podem ser divinos” 518 . Casper Peucer (1525-1602), sendo

apresentado como humanista e criptocalvinista 519 , pois sua teologia diferia de seus

contemporâneos católicos – o qual afirma:

Os sonhos de origem divina são aqueles que, segundo o testemunho das


Sagradas Escrituras, foram concedidos, não a qualquer um e de maneira
casual, nem àqueles que andam à procura de revelações particulares e de
caráter pessoal, segundo suas opiniões, mas somente aos santos pais e
profetas, em conformidade com o julgamento e a vontade de Deus; além do
mais, tais sonhos não tratam de coisas sem importância, superstições e
momentâneas, mas falam-nos de Cristo, do governo da Igreja, dos impérios e
de outros fatos maravilhosos da mesma natureza. Deus sempre faz com que
tais sonhos sejam acompanhados de provas seguras, como o dom da
(correta) interpretação e outros, de modo que fique bem patente o fato de
não serem arbitrários ou oriundos da simples natureza, mas realmente
inspirados por Deus. 520

Jung se fundamenta nestes escritores, para justificar seu conceito de realidade

da subjetividade, pois estes escreveram sobre esta questão, importando-se com os

sonhos, não os considerando como irreais, erro no qual elaborou a Igreja Cristã,

Católica e Protestante, e que ele procura apontar e esclarecer. Parece que Jung,

espera que o que se passou com estes pacientes que se sentiram “desmoralizados”

ou humilhados por algo considerado até então “irreal”, e que foram levados a

confessar certas coisas a si mesmos, ainda que hesitantemente, temendo “tomar

consciência de si próprios”, e ainda, tiveram “medo daquilo que aparentemente podia

subjugá-los”, que aconteça com o protestantismo, finalmente reconheça a realidade

do inconsciente, como um elefante. Referindo-se “a psique, existe, embora não sob

518
Id. par. 32
519
Id. par. 32; sm. [cripto-+calvinismo]. Complexo doutrinário formulado por Melancton, depois da morte
de Martinho Lutero, para tentar uma harmonização entre calvinistas e luteranos, sobretudo quanto a Santa
Ceia. - http://scienzeumane.net/scienze-umane/criptocalvinismo-1A32.html - consulta realizada em
27.07.06
520
Id. par. 32

130
uma forma física” 521 , conforme o pensamento dominante no protestantismo de seu

tempo. Porém, o conceito que defendia era contrário:

É um preconceito quase ridículo a suposição de que a existência só pode ser


de natureza corpórea. Na realidade, a única forma de existência de que temos
conhecimento imediato é a psíquica. Poderíamos igualmente dizer que a
existência física é pura dedução uma vez que só temos alguma noção da
matéria através de imagens psíquicas, transmitidas pelos sentidos. 522

Jung procura provar a existência e a realidade de um fato imaginário,

originário da religião, comparando-o com as fantasias, que não só existem como

podem ser tão reais, nocivas e perigosas quanto aos estados físicos, citando um

exemplo, caso “um homem imaginasse que ele seria seu pior inimigo e o matasse.

Ele estaria morto por causa de uma mera fantasia”. Jung afirma: “A psique existe, e

mais ainda: é a própria existência” 523 , isto se deve ao fato de crer que se trata de

experiência, pois para ele “o termo “religião” designa a atitude de uma consciência

transformada pela experiência do numinoso” 524 . Assim, Jung analisa o fenômeno

religioso, valendo-se da “filosofia oriental dos Upanishad, para quem a realidade dos

deuses é relativa, de onde adota a expressão “Si-mesmo” (Selbst) para designar a

totalidade do homem, a soma de seus aspectos, abarcando o consciente e o

inconsciente” 525 . Para Jung, a opção por formulação de leis, na tentativa de ordenar

e sistematizar um fenômeno do inconsciente, não passa de uma “estranha

modificação, com a retirada das projeções, desenvolveu-se um conhecimento

consciente, estabelecendo primeiramente leis astronômicas, depois na Antiguidade

Clássica, os deuses foram retirados das montanhas e dos rios, das árvores e dos

animais, e assim se deu a “des-animação” do mundo. Embora, a ciência moderna

521
Id. par. 16
522
Id. par. 16
523
Id. par. 18
524
Id. par. 9
525
Id. par. 140

131
tenha refinado suas projeções, a ponto de torná-las quase irreconhecíveis, elas ainda

pululam na vida diária, nos jornais, nos livros, nos boatos e nas intrigas banais no

seio da sociedade. Onde há uma lacuna, onde falta o verdadeiro saber, ainda hoje o

espaço é preenchido com projeções” 526 . Assim, Jung analisa o Protestantismo, do

seu tempo, como fruto da “des-animação”, procurando reter as projeções que

surgem na experiência religiosa. Para Jung, assim age o Protestantismo por “possuir

uma sombra considerável”, que denomina má consciência 527 e, assim, “converteu-se

numa séria tarefa para si mesmo, pois vive na “casa do auto-conhecimento” 528 , da

concentração interior, conforme o sonho analisado do paciente, apresentado no

Terry Lectures, o qual aprende que seja qual for a coisa que ande mal no mundo,

este homem sabe que o mesmo acontece dentro dele, e se aprender a arranjar-se

com a própria sombra, já terá feito alguma coisa pelo mundo 529 .

“Na realidade, basta uma neurose para desencadear uma força impossível de

controlar por meios racionais” 530 . Jung faz esta citação para explicar que o que se

deu com o paciente é o mesmo que estava acontecendo com o Protestantismo, que

a semelhança do Catolicismo, reprimia conteúdos que “invadem a consciência com

suas convicções e seus impulsos imutáveis” 531 , tornando-o neurótico, apesar de

pretender ordenar o mundo com o poder de suas convicções dogmáticas ou

doutrinárias, conforme o entendimento da sua Confissão de Fé. À semelhança do

paciente, o Protestantismo está diante do seu “destino, travado com cadeias cruéis e

526
Id. par. 140
527
Id. par. 86
528
Id. par. 62
529
Id. par. 140
530
Id. par. 26
531
Id. par. 22

132
impiedosas, devido ao abuso da razão e do intelecto para fins egoístas” 532 , sem

perceber que está sendo vingado, por um carcinoma, sua sombra, a idéia de que se

vive num mundo “des-animado”, isto é, tem controle absoluto sobre os movimentos

livres do espírito humano, a ponto de Jung registrar que a cidade de Basiléia teria

perdido seu vínculo com a natureza 533 . Retornando a Pererius, ele cita um dos seus

textos:

É lícito ao cristão observar os sonhos (...) É próprio de um espírito religioso,


prudente, solícito e preocupado com a própria salvação e não de um espírito
supersticioso, indagar, por um lado, considerar se os sonhos que nos
estimulam e nos incitam a praticar o bem, como por exemplo abraçar o
celibato, distribuir esmolas e entrar para a vida religiosa, não são inspirados
por Deus. 534

Para Jung, o pensamento protestante tem respaldo histórico, caso valorizasse

a experiência religiosa e não os conceitos, dos autores citados, pois como ele mesmo

observa: “É evidente, porém, que um autor jesuíta não poderia pensar num

descensus spiritus Dei” 535 .

É interessante notar que em sua observação de rodapé, Jung cite o texto

bíblico de I Coríntios 2.11: “Porque qual dos homens sabe as coisas do homem,

senão o seu próprio espírito, que nele está? Assim, também as coisas de Deus,

ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus.” Para explicitar, que o próprio texto

bíblico, se refere à realidade da psique, por se tratar de realidades, às quais o

homem “sabe”, tem conhecimento, tanto como o próprio Deus, conhece todas as

coisas, sejam as visíveis como as invisíveis, objetivas bem como as subjetivas.

Jung reconhece que a dificuldade do protestante em admitir que certos

sonhos provenham de Deus, se deve a Igreja não estar disposta a tratá-los com

532
Id. par. 27
533
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 69
534
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 32
535
Id. par. 32

133
seriedade e até mesmo se pronunciar expressamente contra eles, embora, em certos

períodos a Igreja reconheça que alguns sonhos possam conter uma revelação

imediata 536 , porém havia uma corrente contrária a este pensamento dominante,

representada nos autores citados. Conforme Jung apresenta os depoimentos destes

autores, partindo dos “profetas judeus” 537 , ao já citado criptocalvinista Benedictus

Pererius S. J., em seu De Magia, De Observatione Somnionum et de Divinatione

Astrologia, de 1578, p. 147: “com efeito, Deus não está ligado às leis do tempo e

não precisa de ocasiões determinadas para agir, pois inspira seus sonhos em

qualquer lugar, sempre que quiser e a quem quiser” 538 , passando pela Coleção de

Cassiano “que os antigos mestres e guias espirituais dos monges eram versados na

investigação e interpretação cuidadosas da origem de certos sonhos” 539 . No entanto,

Jung aponta que “desde os albores da humanidade observa-se uma pronunciada

propensão a limitar a irrefreável e arbitrária influência do “sobrenatural”, mediante

fórmulas e leis” 540 . Parece que alude aos contra-reformadores, ao afirmar:

Por isso a Igreja não vê com bons olhos a mudança de atitude espiritual que
se verificou nos últimos séculos – pelo menos no que se refere a este ponto;
porque essa mudança debilitou demais a posição introspectiva anterior,
favorável a uma consideração séria dos sonhos e às experiências interiores. 541

Retorna a Casper Peucer, apresentando-o como um “escritor mais perspicaz e

de maior compreensão humana”, onde consagra um capítulo ao problema: “É lícito

ao cristão observar os sonhos? E, em outro lugar à questão: “A quem compete

interpretar corretamente os sonhos?; fazendo questão de registrar que “seus

conhecimentos eram manifestamente diferentes de seus contemporâneos

536
Id. par. 32
537
Id. par. 32
538
Id. par. 32
539
Id. par. 32
540
Id. par. 32
541
Id. par. 32

134
católicos” 542 . Foi a Reforma que diferenciou a fé primitiva, como a de João, na ilha

de Patmos, graças ao progresso das ciências, porém, os mesmos elementos ainda

continuam presentes e ativos em nossa época, segundo a opinião de Jung 543 .

O Protestantismo parece ter sucumbido a um historicismo racionalista,


perdendo a sensibilidade para a presença do Espírito Santo que atua no mais
recôndito de nossa alma. Por isso é incapaz de compreender ou admitir uma
outra revelação do drama divino. 544

O Protestantismo para Jung é um movimento do inconsciente, pois este levou

“o homem a se confrontar com uma experiência interior sem o amparo e o guia de

um dogma e de um culto, apesar de sentir os efeitos destruidores e cismáticos da

revelação individual” 545 ; ao contrário do Catolicismo, que “desempenha uma função

mediadora e protetora das influências do inconsciente e o homem” 546 . Para Jung, o

Protestantismo “perdeu todas as características mais sutis do cristianismo tradicional,

devido a queda da barreira dogmática e da perda da autoridade do rito, tal como a

missa, a confissão, grande parte da liturgia e a função do sacerdote como

representante hierárquico de Deus, restando-lhe a revelação individual”. Com isto,

Jung registra os grandes princípios que originaram a Reforma Protestante do século

XVI, a saber, quando se refere a “missa” – ele quer dizer da Transubstanciação da

eucaristia e a repetição do sacrifício salvífico de Jesus Cristo; quanto à “confissão” –

referência ao sacramento católico da confissão auricular, sendo que não é mais a

Igreja que declara o perdão aos pecados; que o Protestantismo perdeu “grande

parte da liturgia”, ele se refere à simplificação dos rituais e quanto à função do

sacerdote, pois, conforme o Protestantismo, o sacerdócio passou a ser universal, isto

é, de todos os cristãos. Procurando defender seu postulado de natureza empírica,


542
Id. par. 32
543
Id. par. 742
544
JUNG, C. G. A Resposta a Jó – Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 749
545
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 33
546
Id. par. 32

135
Jung adverte que sua afirmação não constitui em julgamento de valor, e nem

pretende sê-lo, mas não deixa de afirmar que com a perda da autoridade da Igreja,

o Protestantismo reforçou a autoridade da Bíblia 547 . É, com este Protestantismo que

Jung procura dialogar, mesmo admitindo que as passagens bíblicas podem ser

interpretadas de maneiras diferentes, e aponta que apesar do Protestantismo de sua

época ser promotor e defensor da “crítica literária” 548 dos textos bíblicos, ele aponta

que esta “revelou-se muito pouco apta para fortalecer a fé no caráter divino das

Escrituras, devido a nossa mentalidade moderna que olha com desdém as trevas da

superstição e a credulidade medieval ou primitiva, esquecendo-se por completo de

que carregamos em nós todo o passado, escondido nos desvãos dos arranha-céus da

nossa consciência racional” 549 . Com a afirmação “caráter divino das Escrituras”, Jung

se refere aos registros das experiências interiores pelo encontro com o numinoso,

sem se valer de nenhum conceito à priori elaborado racionalmente. Para as

Escrituras a experiência era mais importante que os conceitos que porventura os

indivíduos tinham a respeito.

Ao se referir à crítica literária, Jung menciona, principalmente os teólogos

alemães: Albrecht Ritschl (1822-1889), Johann Wilhelm Hermann (1846-1922), Adolf

Von Harnack (1851-1930), defensores do liberalismo teológico, que se baseava na

crítica literária das Escrituras Sagradas. Jung registra que já em sua época, devido à

influência da “ilustração científica” 550 na Igreja Protestante, isto provocou o

afastamento de grande massa de pessoas cultas, ou estas pessoas se tornaram

547
Id. par. 34
548
Id. par. 34
549
Id. par. 34, 56
550
Id. par. 34

136
indiferentes à Igreja 551 . Jung admite que muitas dessas pessoas são homens

religiosos, pois não são racionalistas empedernidos ou intelectuais neuróticos, pois se

assim fossem, poderiam suportar, a sua saída ou indiferença. A questão que procura

compreender é se estas pessoas foram “incapazes de se harmonizar com as formas

de fé existentes” 552 . Parece que no entendimento de Jung, estas pessoas não

souberam se harmonizar com as formas de fé existentes, pois muitas passaram a ser

influenciadas pelo Grupo de Buchman 553 , mas Jung lamenta por alguns aderirem a

movimentos sectários, motivados pelo pietismo. Com a aplicação dos conceitos da

crítica literária aos textos bíblicos, apenas substituiu a unilateralidade medieval, ou

seja, a inconsciência que dominava durante séculos e pouco a pouco se tornara

caduca, ao invés de promover o alargamento da consciência. Para Jung o criticismo

bíblico contribuiu ainda mais para produzir “um homem massificado, com sua

tendência irresistível à catástrofe”, na medida em que a religião defende uma

confissão ou credo codificado e cristalizado em fórmulas dogmáticas, ainda que seus

símbolos exprimam arquétipos vivos e livres 554 . A oposição ao misticismo por parte

do criticismo bíblico, só fez o protestantismo se fechar em sua posição unilateral.

Neste sentido a fé, tão enaltecida, pregara uma peça fatal, não somente em seu pai,

mas à maioria das pessoas sérias e instruídas. A vivência, a experiência imediata,

fora substituída pelos argumentos racionais da teologia de uma crença sem

esperança 555 . Jung aponta reações antagônicas entre protestantes e católicos que

voltam suas costas à Igreja: o católico “alimenta uma inclinação secreta ou

551
Id. par. 34
552
Id. par. 34
553
O autor se refere ao movimento fundado pelo norte americano Frank Nathan Daniel Buschman, na
década de 1920, na Inglaterra, conhecido inicialmente como o Grupo de Oxford, e a partir de 1938
denominado Rearmamento Moral; tal movimento esteve em voga na época da Guerra Fria .
554
JUNG, C. G. – A Natureza da Psique. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 426
555
JUNG, Carl Gustav. Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 90-91

137
manifesta para o ateísmo”, isto é, nega-se absolutamente, na mesma intensidade

que foi absolutamente catequizado, enquanto que o protestante se tiver

oportunidade, “adere a movimentos sectários” 556 . Esta afirmação pode se referir à

experiência clínica, pois não cita nenhuma outra fonte que comprove tal afirmativa.

Durante os últimos trinta e cinco anos, pessoas de todos os países civilizados


da Terra vieram consultar-se comigo. Tratei muitas centenas de pacientes, o
maior número deles protestantes, um menor número de judeus e não mais
que cinco ou seis católicos. Entre todos os meus pacientes que se
encontravam na segunda metade da vida – ou seja, a partir dos trinta e cinco
anos -, não houve nenhum cujo problema não fosse, em última instância, o
de encontrar uma perspectiva religiosa na vida. É seguro dizer que todos eles
sentiam-se doentes porque haviam perdido o que as religiões vivas de todas
as eras dão a seus seguidores, e todos entre eles que foram realmente
curados recuperaram sua perspectiva religiosa. Isto, claro, não tem nada a
ver com um credo ou culto específicos. 557

O católico tem mais razão para ter preconceitos contra sonhos e contra a

experiência individual, que o protestante, conforme a opinião de Jung, pois, o

católico, se vê protegido pelos braços da mater ecclesia. Jung trata desse tema, pois

está narrando o estudo de caso, de um paciente protestante, com câncer. Para Jung,

o câncer é “uma manifestação espontânea do inconsciente, em cuja base se acham

conteúdos que não são encontrados na consciência”, devido ao preconceito que o

paciente nutria aos sonhos e contra a experiência individual que sua fé reivindicava,

e que por isso, “voltou às costas à sua igreja, aderindo a um movimento sectário,

tornando-se uma idéia obsessiva de sua vida” 558 . Para Jung “os sonhos deverão ser

tidos como possíveis fontes de informações das tendências religiosas do

inconsciente” 559 , sem esperar, contudo, “que os sonhos falem explicitamente de

religião, na forma pela qual estamos acostumados a fazê-lo. Os sonhos poderão ser

tidos como possíveis fontes de informação das tendências religiosas do

556
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 34
557
JUNG, C. G. Psicologia e Religião Oriental. São Paulo: Círculo do Livro, S.A. 1990. par. 509
558
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 36
559
Id. par. 39

138
inconsciente” 560 . Isto pode ser entendido como uma contribuição muito importante,

para que cristãos católicos e protestantes passem a orientar suas vidas com a ajuda

dos sonhos. Pelo menos, parece que esse é o ponto de vista mais importante para

Jung, quanto à prática religiosa protestante, visto esta ser conduzida sem o auxílio

dos “matizes do cristianismo tradicional: o sacrifício repetitivo da eucaristia, a

confissão auricular como um dos sacramentos, a simplificação dos rituais litúrgicos e

o sacerdócio universal dos crentes, conforme historicamente postulou a Reforma

Protestante. Não esperar que os sonhos tratem de religião, da mesma forma como

nos acostumamos a fazê-lo, parece indicar não só um conselho que se aplica ao caso

do paciente que ele apresenta, como também uma advertência àqueles que têm

preconceitos contra os sonhos e/ou subestimam a alma humana em geral, e atende

àqueles que carecem de sabedoria, de introspecção 561 , e que já se acostumaram a

viver sua fé religiosa, sob a influência da crítica literária ou também chamada, por ele

de “ilustração científica” 562 , pois as passagens bíblicas podem ser interpretadas, de

tal maneira a fortalecer a fé no caráter divino das Escrituras Sagradas 563 , quando

leva os indivíduos a terem suas próprias experiências, assim como as personagens

bíblicas tiveram as suas.

Que sentido terá uma religião sem mito, se sua função, quando realmente
existe, é precisamente a de nos ligar ao mito eterno? O mito não é ficção;
pelo contrário, o mito se verifica em fatos que se repetem incessantemente e
podem ser constantemente observados. 564

A religião protestante se constitui apenas numa experiência íntima e

individual, talvez em detrimento da massa 565 . A concepção protestante de uma

560
Id. par. 39, 40
561
Id. par. 28
562
Id. par. 34
563
Id. par. 34
564
JUNG, C. G. - A Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 648
565
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 43

139
relação individual com Deus se acha reprimida pela organização de massas e um

sentimento religioso coletivo 566 . “Com a eliminação da ação sagrada eficaz, passou a

faltar a resposta de Deus ao propósito do indivíduo” 567 . E, assim, o Protestantismo

está em falta consigo mesmo, deixando de lado, sua história de busca por uma

resposta individual ao drama humano. Parece que os problemas com os teólogos

protestantes e católicos alemães tenham advindo de suas afirmações, ao se

estabelecer o que denomina a figura feminina nos sonhos das pessoas do sexo

masculino, o termo técnico anima, tais como: “sizígia do Criador” e, traz o exemplo

de que “no final do século XIX, Edward Maitland (1824-1897) 568 , relata-nos uma

experiência interior da bissexualidade da divindade” 569 . Porém, Jung procura se

defender de que estas idéias não são suas e nem originais, citando que podem ser

encontradas no Corpus Hermeticum, Lib. I 570 , provavelmente tomada de Platão:

Banquete XIV, mas também que Marsílio Ficino (1433-1499) 571 , no ano 1471, em sua

obra Poimandus, onde fala de representações medicinais do hermafrodita, e antes

desses há registro de símbolos hermafroditas no Codex Germanicus Monacesus, de

1417, mas para ele é mais provável que o símbolo hermafrodita provém de

manuscritos árabes ou sírios, traduzidos no século XI ou XII, e pelo que pode

verificar, o primeiro texto que seguramente menciona o hermafrodita é o Líber de

Arte Chimica Incerti Autoris, do século XVI, citando inclusive as páginas, onde se

566
Id. par. 44
567
JUNG, Carl Gustav Jung. Psicologia da Religião Oriental. São Paulo: Círculo do Livro. par. 862
568
Inglês, filho do pastor Rev. Charles David Maitland, converteu-se a Teosofia Mística, e fundador da União
Cristã Esotérica em 1891.
http://www.annakingsford.com/portugues/informacoes_biograficas_e_biografias/informacoes_biograficas_e
_biografias.htm - consulta realizada em 06.08.06
569
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 47
570
Categoria literária latina antiga muito popular, geralmente atribuída à Hermes Trismegistus – “Hermes
Três-Vezes-Grande”, uma semi-divindade sincrética entre o deus grego Hermes e o deus egípcio Tolth -
http://pt.wikipedia.org/wiki/Corpus_Hermeticum - consulta realizada em 06.08.06
571
Filósofo Italiano, tradutor de várias obras de Platão http://pt.wikipedia.org/wiki/Mars%C3%ADlio_Ficino
– consulta realizada em 06.08.06

140
encontram os textos, conforme nota de rodapé, das páginas 34 e 35, em Psicologia e

Religião. Entre as obras citadas por Jung, como literatura posterior, ele menciona

uma denominada Philosophia Reformata, de 1622.

Ao interpretar o sonho do paciente, este católico 572 , que relata na Terry

Lectures, Jung afirma que:

o sentimentalismo religioso substitui o numinoso da experiência divina,


característica de uma religião que perdeu o mistério vivo. É fácil compreender
que uma religião desse tipo não representa uma ajuda, nem produza qualquer
efeito moral. 573

Esta afirmação é bastante geral, cabendo perfeitamente sua aplicação, tanto

aos católicos quanto aos protestantes, pois ambos podem ser como o tal paciente –

“altamente intelectualizado, e um cientista moderno”, e que para o mesmo “a

religião é destituída de importância e ele jamais esperava que ela viesse a interessá-

lo de algum modo” 574 . Para Jung, os sonhos ajudariam a volta à religião de sua

infância, na esperança de nela encontrar alguma ajuda para seus problemas 575 ,

como aconteceu com a jovem judia, narrada anteriormente. Este tinha um

“compromisso muito barato e superficial, para com a religião, para quem não

significava muito. Era um intelectual extremamente racionalista, que acabou

percebendo ser sua atitude espiritual e filosófica totalmente impotente em relação à

sua neurose e aos seus fortes efeitos desmoralizantes. Nada encontrou em toda a

sua concepção do mundo que lhe proporcionasse um autocontrole satisfatório 576 . O

vinho era um de seus inimigos mais perigosos. Sua religião era degenerada e

corrompida pelo mundanismo e pelos instintos do vulgo, e uma religião desse tipo

572
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 43, 50, 124
573
Id. par. 52
574
Id. par. 51, 56
575
Id. par. 51
576
Id. par. 51

141
não representa uma ajuda, nem produz qualquer efeito moral. Restando-lhe apenas

o sentimentalismo religioso, pois sua religião perdera o mistério vivo. Sentiu-se

várias vezes presa de pânico, de ser transformado em outra pessoa, e tinha medo de

enlouquecer. Procurava constantemente esquivar-se às suas necessidades afetivas,

pois temia que elas pudessem trazer-lhes inconvenientes, envolvendo-o, por

exemplo, no matrimônio e em outras responsabilidades como o amor, o dom de si

mesmo, a fidelidade, a confiança, a dependência afetiva e, de modo geral, a

subordinação às exigências da alma. Nada disso tinha a ver com a ciência ou com

uma carreira acadêmica. Além disso, a palavra “alma” expressava apenas uma falta

de decoro intelectual, que ele achava necessário evitar a todo custo. Seus sonhos

tomavam a religião à sério, colocando-a no ápice da vida, uma vida que comportasse

“ambos os lados”, liquidando assim seus preconceitos intelectuais e racionalistas

mais caros” 577 .

II. 9. Sonhos: “Caráter Divino das Escrituras”

Jung considera que a atitude espiritual e filosófica é totalmente impotente em

relação à neurose e a seus fortes efeitos desmoralizantes, sem a “vida instintiva”,

que os sonhos revelam em suas imagens. Para Jung, “a reconstrução possível da

personalidade instintiva, só é possível unicamente quando acompanhada de

importantes modificações da atitude consciente. Mediante a reintegração da vida

instintiva, pode levar o indivíduo a submeter-se a uma importante transformação,

tornando-se assim um novo homem” 578 . A questão que Jung levanta é: a

importância dos sonhos, e talvez principalmente, para aqueles que a religião não tem

577
Id. par. 52, 56, 72, 73
578
Id. par. 56

142
importância, é que “sem esses estratos inferiores, nosso espírito estaria suspenso no

ar, pois a verdadeira história do espírito não se conserva em livros, mas no

organismo vivo, psíquico de cada indivíduo” 579 . Numa clara referência ao

Protestantismo que elegera “o livro” 580 , de suas Confissões de Fé, que se tornaram

formas codificadas e dogmatizadas de experiências religiosas originárias. Os

conteúdos da experiência foram sacralizados e enrijeceram dentro de uma

construção mental inflexível e, freqüentemente, complexa. O exercício e a repetição

da experiência original transformaram-se em rito e em instituição imutável. Isto não

significa necessariamente que se trata de uma petrificação sem vida. Pelo contrário,

ela pode representar uma forma de experiência religiosa para inúmeras pessoas,

durante séculos, sem que haja necessidade de modificá-la 581 . Para Jung, a

“Confissão Religiosa desempenha uma importante função na sociedade humana, ela

tem a finalidade evidente de substituir a experiência imediata por um grupo

adequado de símbolos envoltos num dogma e num ritual fortemente organizados” 582 .

Jung continua sua argumentação afirmando que a Igreja Católica os mantém por

força de sua autoridade absoluta. Já a Igreja Protestante os mantém pela ênfase da

fé na mensagem evangélica. Os homens estarão adequadamente protegidos contra a

experiência religiosa imediata, enquanto estes dois princípios forem válidos. E mais:

se apesar de tudo acontecer-lhe algo de imediato, eles poderão recorrer à Igreja,

que está em condições de dizer se a experiência provém de Deus ou do diabo, se

deve ser repelida ou aceita 583 .

579
Id. par. 56
580
Id. par. 56
581
Id. par. 10
582
Id. par. 74
583
Id. par. 75

143
Parece que Jung se posiciona de maneira pessimista em relação ao

posicionamento que as Igrejas Católica e Protestante se colocam frente àqueles que

têm uma experiência religiosa imediata, no entanto, ele considera de “extraordinária

importância o dogma e os ritos, pelo menos enquanto métodos de higiene” 584 . Mas o

que fazer com aqueles que, como seus pacientes, um protestante e outro católico,

tiveram a experiência imediata e que não queriam ou não podiam submeter-se à

decisão da autoridade eclesiástica 585 ?

Se o paciente é católico praticante, eu o aconselho a confessar-se e a


comungar para resguardar-se de uma experiência imediata, que poderia ser
superior a suas forças. Com os protestantes, a tarefa não é assim tão fácil; o
dogma e os ritos enfraqueceram a tal ponto, que perderam grande parte de
sua eficácia. 586

Para Jung, todo dogma é muito antigo, e por isso vieram de um “processo

vivo do inconsciente”, e neste sentido são “métodos de higiene”, pois assim são

“controladas” as pessoas que têm uma experiência imediata com o Sagrado, pois

podem apresentar crises e violentos conflitos mentais, podendo enlouquecer,

desequilibrarem-se e sofrerem depressão, caindo em grande desespero, pois estas

experiências imediatas podem exigir uma mudança de vida, profunda em direção à

plenitude da vida. Para Jung, o dogma e os ritos, para o protestante, não são

métodos de higiene, pois estes não são mais eficientes. Com isso, Jung lamenta a

situação para os protestantes, pois se encontram mais vulneráveis às crises e aos

violentos conflitos que a experiência imediata do Sagrado, pode causar. Jung

constata que os protestantes têm uma dificuldade maior, porque infeliz e

lamentavelmente os pastores são antipáticos aos problemas psicológicos e não têm

conhecimento em matéria de psicologia, graças ao seu treinamento científico em

584
Id. par. 76
585
Id. par. 76
586
Id. par. 76

144
alguma Faculdade de Teologia que, com seu espírito crítico, mina a ingenuidade da

fé, enquanto que os sacerdotes católicos e diretores de almas, em geral, possuem

mais habilidade psicológica e às vezes uma compreensão mais profunda 587 . Jung

parece rejeitar a facilidade de “aderir à chamada ilustração científica” 588 , segundo a

qual uma neurose é nada mais do que sexualidade infantil reprimida ou ambição de

poder, em clara aprovação a Sigmund Freud (1856-1939), tão-somente por

considerá-lo “científico”. Jung parece chamar a atenção do Protestantismo, que ao

mesmo tempo em que valoriza o indivíduo e sua liberdade, elegeu a ditadura das

Escrituras Sagradas, ou suas Confissões de Fé, como sendo a “história do

espírito” 589 . Porém, a transformação do espírito, advém do inconsciente, que

pretende produzir uma “transformação profunda em nossa atitude para com a vida e

com a humanidade” 590 . Jung acrescenta à necessidade de considerar os sonhos,

como elementos do inconsciente, e buscar as “associações livres”, que o sonhador

possa fazer das imagens oníricas. Num outro caso apresentado nas Conferências

Terry Lectures, ele apresenta algumas das associações que o paciente faz quanto a

imagem das “velas acesas”, do sonho que apresentou em sua terapia com o próprio

Jung. Suas associações: quanto ao fogo “um atributo bem conhecido da divindade,

não só no Antigo Testamento como também na alegoria de Cristo, numa oração não-

canônica do Senhor, citada nas Homilias de Orígenes”, considerando-o como

“símbolo com o significado de vida, que se enquadra muito bem com a natureza do

sonho, que realça ser a plenitude da vida, a única legítima da religião” 591 . O que

legitima a religião para Jung é a “plenitude da vida”, o que não conseguia verificar

587
Id. par. 76
588
Id. par. 34
589
Id. par. 56
590
Id. par. 59
591
Id. par. 60

145
na vida de seu pai Johann Paul Achilles Jung (1842-1896), e outros oito tios, todos

pastores, e os membros da sua comunidade religiosa, desde a infância de Laufen, à

beira do lago de Costança, próximo do Rio Reno e de Klein-Hüningen, próximo de

Basiléia, Suíça. Para Jung, o sonho, como fenômeno do inconsciente pode criar um

culto religioso,

a atitude consciente pode ser incapaz de produzir fenômenos religiosos, no


entanto, o inconsciente, através do sonho constitui um fenômeno religioso
básico, revelando uma inteligência e intencionalidade superiores à
compreensão consciente” 592 . E esclarece: “podemos dizer que a personalidade
humana é constituída de duas partes: a primeira é a consciência e tudo o que
ela abrange; a segunda é o interior de amplidão indeterminada da psique
inconsciente. A personalidade consciente é mais ou menos definível e
determinável. Mas, em relação à personalidade humana, como um todo,
temos de admitir a impossibilidade de uma descrição completa dela. Em toda
personalidade existe inevitavelmente algo de indelineável e de indefinível, que
não contém determinados fatores, cuja existência, no entanto é forçoso
admitir, se quisermos explicar a existência de certos fatos. Estes fatores
desconhecidos constituem aquilo que designamos como o lado inconsciente
da personalidade. 593

Para Jung, “não podemos dizer em que consistem estes fatores, pois só

podemos observar os seus efeitos” 594 . E, alguns desses fatores, “provém do centro

de um ego que, no entanto, não seria idêntico ao eu consciente. Tal conclusão será

admissível sempre que considerarmos o eu como subordinado ou contido num “Si-

mesmo” (Selbst) superior, que constitui o centro da personalidade psíquica total,

ilimitada e indefinível” 595 . Jung recomenda a prática religiosa não segundo determina

os livros, nem a crítica literária, mas à experiência interior de cada indivíduo, o que

deu origem ao Protestantismo, pois para ele o eu precisa se submeter e ser contido

pelo Si-mesmo superior, pois é o centro da personalidade psíquica total, ilimitada e

indefinível, que leva o indivíduo para a plenitude da vida, a única possibilidade que

legitima uma religião. Para Jung, o Si-mesmo é “uma psique mais ampla do que a

592
Id. par. 63
593
Id. par. 66
594
Id. par. 67
595
Id. par. 67

146
consciência que se experimenta pela intuição” 596 . Esta intuição não é produzida pela

simples vontade e determinação, mas surge espontaneamente. Tem-se a idéia de

que “se apresenta por si mesma, e que só podemos captá-la se formos

suficientemente rápidos” 597 . O Si-mesmo é explicado como uma voz não-ortodoxa,

não-convencional e que torna a religião como algo sério, colocando-a no ápice da

vida, uma vida que comporta “ambos os lados”, isto é, a racionalidade e os valores

da alma, e que liquida assim os preconceitos intelectuais e racionalistas, mais caros

ao homem. Para Jung, religião é como um “considerável cuidado da experiência da

vida, é o agir com pistis ou lealdade frente às experiências” 598 . Para ele, a rejeição

da influência do inconsciente na formulação dos dogmas, como por exemplo, do da

Trindade,

via de regra, as tendências que representam a soma dos elementos anti-


sociais na estrutura psíquica do homem (eu as denomino “criminoso
estatístico”) são reprimidas, isto é, eliminadas consciente e intencionalmente.
Mas, em geral, só as tendências recalcadas têm caráter duvidoso. Elas não
são necessariamente anti-sociais, mas também não são aquilo que chamaria
de convencional e ajustado às normas sociais. Igualmente duvidosa é a razão
pela qual são suprimidas. Algumas pessoas o fazem por mera covardia, outras
por uma moral convencional, e outras, para resguardar sua reputação. O
recalque é a maneira semiconsciente de deixar correr as coisas, ou de
externar desprezo por uvas que pendem de ramos demasiado altos, ou de
olhar em direção contrária para não enxergar os próprios desejos. Foi Freud
quem descobriu que o fenômeno do recalque constitui um dos mecanismos
principais na formação das neuroses. A eliminação, pelo contrário,
corresponde a uma decisão moral consciente, ao passo que o recalque
representa uma tendência, bastante imoral, de evitar decisões desagradáveis.
A eliminação pode causar aflições, conflitos e sofrimentos, mas nunca uma
neurose. A neurose é sempre um substitutivo do sofrimento legítimo. 599

Jung com isso incentiva ao protestante exercer a introspecção para enfrentar

sua má consciência, e assim transformar seu comportamento, sem se ver vítima do

recalque ou repressão, mas que sofra legitimamente, recusando a neurose, pois esta

596
Id. par. 69
597
Id. par. 69
598
Id. par. 74
599
Id. par. 129

147
é fruto de um “desenvolvimento unilateral ou não-equilibrado”, devido ao

preconceito que se tem do inconsciente. Assim, podemos entrar no terceiro e último

capítulo, procurando compreender como Jung entendia a vida religiosa e sua,

própria, prática, como protestante.

148
3º CAPÍTULO:

JUNG, O PROTESTANTE

III. 1. Jung, seguidor de Schleiermacher?

No Primeiro Capítulo apresentamos sua origem histórico-religiosa, de como o

Protestantismo passou a ser o fundo dos seus antepassados, quando da entrada de

seu avô Carl Gustav Jung, graças à influência de Friedrich Schleiermacher, sendo que

Johannes Sigismund Jung (morto em 1778), irmão do avô de Jung, casou-se com

uma das irmãs de Schleiermacher, fortalecendo ainda mais sua adesão ao

Protestantismo, apesar da desaprovação do restante da família Jung. Porém, faz-se

necessário, portanto, apresentar, ainda que rapidamente, um pouco acerca da

teologia protestante de Schleiermacher que serviu de base às críticas que Jung

elaborou contra o protestantismo do século XIX, sendo este “considerado uma das

células germinativas da cultura alemã”, conforme o historiador Henri Ellenberger

(1905-1993), em seu The Discovery of the Uncounscious. E, segundo Richard Noll,

em seu O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático, este Protestantismo

servia como uma espécie de “velha nobreza protestante, um baluarte contra o

barbarismo, o paganismo, o ocultismo e a ameaça combinada de tudo isso que

estava no catolicismo papista”. 600

Friedrich Schleiermacher é considerado o mais importante teólogo protestante

do Romantismo Alemão, movimento político, literário e religioso, e fundador da

Universidade de Berlim, onde foi o primeiro professor de Teologia. Foi, também,

pastor da Igreja da Trindade, para onde acorria multidões para ouvir seus sermões,

600
NOLL, Richard. – O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática
(1996) p. 26

149
“pois consideravam-no sincero e de grande fervor religioso, numa época de

depressão nacional e baixo patriotismo”.

Schleiermacher, devido às suas raízes moravianas, é um grande representante

do pietismo, que dispunha de seus próprios centros docentes, Barby 601 , Alemanha –

Escola Teológica Superior na qual se formavam os teólogos e docentes da corrente

pietista e, que vai deixar uma profunda marca em seu espírito. Suas características

são: intimismo, o valor dos dogmas passa a ser relativo, a teologia é uma disciplina

prática, sendo o seu maior representante Filipe Jacob Spener (1635-1705). Em

História do Pensamento Cristão, Tillich indica que a origem histórica do pietismo é

muito antiga:

o subjetivismo do pietismo, ou a doutrina da “luz interior” dos quacres e de


outros movimentos de êxtase de imediatez ou de autonomia em oposição à
autoridade da Igreja. A autonomia racional moderna é filha da autonomia
mística da doutrina da luz interior. Essa doutrina é muito antiga; encontramo-
la na teologia fransciscana da Idade Média, em algumas das seitas radicais
(especialmente entre os franciscanos posteriores), em inúmeras seitas do
período da Reforma, na transição do espiritualismo para o racionalismo, da
crença no Espírito como guia autônomo de cada indivíduo à orientação
racional que todas as pessoas possuem em virtude de sua razão autônoma. 602

Schleiermacher conseguia combinar piedade religiosa com a coragem de cavar

nas profundezas do pensamento filosófico, sendo que ele próprio disse, certa vez:

os pensamentos mais profundos filosóficos identificam-se completamente com


o meu sentimento religioso mais íntimo” 603 . Na opinião de Arsênio Giuzo
Fernandez, foi na Universidade de Halle, entre os anos 1787 e 1789 que
Schleiermacher que passa a “individualizar a religião e a confiná-la na auto
consciência imediata. A religião tende assim a converter-se em fé subjetiva.
Ele dissocia a religião do reino do saber e passa a questionar aos enunciados
religiosos, sua validade universal propriamente dita. A expressão: ‘Um e
Tudo’, de Spinoza, se converteu em lema da liberdade religiosa de uma época
e foi assumida por vários autores como Goethe, Hegel, Schelling, Novalis e
Schleiermacher, entre outros. É como pregador do Hospital de Caridade de
Berlim, entre 1796 e 1802, que começa sua atividade criadora como teólogo,
filósofo e pregador, e tem contato com o romantismo, onde surgem seus

601
Id. p. XIX
602
TILLICH, Paul. – História do Pensamento Cristão. São Paulo: ASTE (2000), p. 281
603
TILLICH, Paul. – Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999, p.
99

150
Discursos. Para Schleiermacher a religião brota da relação do finito com o
infinito, pois implica reconhecer todo o particular como uma parte do Todo, a
todo o limitado como uma expressão do Infinito. O homem moderno deve
buscar através da religião este complemento que lhe falta em sua cultura. Se
insiste na primazia da experiência religiosa, se sub-valorizam os dogmas e, se,
por um lado, se criticam os limites do racionalismo ilustrado, por outro
também se vão a mitigar os elementos sobrenaturais do cristianismo, de
modo que, apesar de todos os esforços, se estaria provocando uma
naturalização da tradição protestante. Schleiermacher é o autor mais
representativo entre aqueles que têm intentado transformar o conteúdo da fé
cristã em mística. 604

A teologia de Schleiermacher baseava-se no seguinte argumento:

O conhecimento teórico de tipo deísta – racionalista ou, sobrenaturalista – e a


obediência moral do tipo kantiano, pressupõem uma ruptura entre sujeito e
objeto. Aqui estou eu, o sujeito, e lá adiante está Deus, o objeto. Ele é
apenas um objeto para mim, e eu sou um objeto para ele. Temos aí
diferença, distanciamento e não-envolvimento. Mas essa diferença precisa ser
superada no poder do princípio da identidade. Esta identidade está em nós.
Dentro de nós. 605

Nisto reside o “sentimento” que tanto Schleiermacher procurou salientar em

sua teologia, não como mera emoção subjetiva, mas como “percepção do divino

imediatamente no indivíduo”, algo com que Jung se identificou pronta e subitamente

– há uma percepção imediata daquilo que transcende o sujeito e o objeto, que é o

fundamento de tudo o que existe, dentro de nós. Dizia Schleiermacher: “Deus se faz

presente em nossa consciência imediata e tudo o que dizemos a respeito Dele

expressa essa imediatez” 606 . A primeira declaração da teologia de Schleiermacher é:

A unidade com Deus, a participação nele, não é questão de vida depois da


morte; não se relaciona com um legislador celestial; em vez disso, é questão
de nossa participação atual na vida eterna. Uma das idéias que mais
acentuavam era a da vida eterna aqui e agora, e não continuação da vida
depois da morte. Essa participação na eternidade se dava antes do tempo, no
tempo e depois do tempo, significando, também, além do tempo. 607

604
FERNANDEZ, Arsenio Giuzo. Estudio Preliminar Y Traduccíon de Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher –
Sobre La Religíon: Discursos a suas Menospreciadoras Cultivados. Madrid: Tecnos (1990), p. XX, XXIII,
XXV, XXVII, XC, XCII
605
TILLICH, Paul. – Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999, p.
118
606
Id. p. 129
607
Id. p. 121

151
Em seu Discursos sobre a Religião, Schleiermacher diz que religião é algo mais

que caberia a “ensinar”, seria algo que haveria de “suscitar”.

Fernandez afirma que “na opinião do filósofo italiano Gianni Vattimo (1936), a

originalidade de Schleiermacher quanto à filosofia da religião, consiste no fato de que

ele é o primeiro que adota uma atitude autenticamente fenomenológica no que se

refere ao fato religioso. Em oposição ao fenômeno tipicamente protestante da

‘bibliocracia’, do culto à letra da Escritura, Schleiermacher confessa que “pouco” do

que ele disse e sente se encontra nos livros sagrados, e que toda “Escritura morta”

não é mais que um mausoléu da religião”608 .

Talvez as críticas de Jung ao Protestantismo de seu tempo foi uma tentativa

de se voltar às suas origens protestantes, isto é, ao Protestantismo de

Schleiermacher, isto porque, tendo encontrado na filosofia de Kant as respostas que

buscava para compreender o drama humano, e Schleiermacher ser um dos

seguidores mais fiéis de Kant, juntamente com Hegel, que segundo Tillich, em seu

Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX, foram “os paladinos da

volta a Kant, isto é, conciliar o misticismo com o princípio protestante, o princípio da

identidade, que é a participação do divino em cada um de nós, com o princípio da

distância, e da obediência moral sem qualquer participação no divino” 609 , neste

sentido, Jung faz oposição ao Iluminismo. Na teologia de Schleiermacher, conforme

exposto pelo Romantismo, a intuição humana é que dá percepção do fenômeno

religioso, e não a moral como queriam os racionalistas iluministas. Na mesma obra,

Tillich esclarece:

608
FERNANDEZ, Arsenio Giuzo. Estudio Preliminar Y Traduccíon de Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher –
Sobre La Religíon: Discursos a suas Menospreciadoras Cultivados. Madrid: Tecnos (1990), p. XXXVI, XLVIII
609
TILLICH, Paul. – Perspectivas da Teologia Protestante nos Séculos XIX e XX. São Paulo: ASTE, 1999, p.
99

152
A intuição mística não se divorcia da emoção (conforme acreditavam os
iluministas), antes, objetiva-a, tornando-a no próprio ato da intuição. A
emoção romântica não é sentimental, mas reveladora e cheia de Eros
platônico. A tradição era importante para o romantismo enquanto o
iluminismo preferia analisá-la com olhos críticos. De certa forma, o
protestantismo também olhava para o passado e para a tradição com o
mesmo olhar crítico. Para o iluminismo o passado se mantinha, até certo
ponto, submerso em superstição. Com o advento da era da razão
desapareciam as superstições da Idade Média. Era assim que o iluminismo
percebia a história. O romantismo, por outro lado, tinha uma atitude diferente
para com o passado. O infinito também aparecera no passado por meio de
formas expressivas de vida bem como nos seus grandes símbolos. Os
períodos da história passada também haviam sido revelatórios. Era preciso,
pois, levar à sério o passado histórico. 610

Podemos considerar o Romantismo dividindo-o em dois períodos, sendo que a

transição se dá nos anos vinte do século XIX. O primeiro período, sendo neste o de

Schleiermacher e Friedrich Wilhelm Joseph Von Schelling (1775-1854), os maiores

expoentes, salientava a presença do infinito no finito, isto é, “a intuição mística não

se separa da emoção humana”. E, o segundo período, tendo como representantes

principais o mesmo Schelling, porém, agora mais maduro, e Sören Aabye

Kierkegaard (1813-1855), para quem a dimensão do infinito não permanece apenas

no divino, mas desce até o demônico. Tillich registra que daí “o conceito do

inconsciente passar a ter importância decisiva. O problema do significado da vida”611 .

Segundo H. Hartmann “o romantismo em seu ser mais profundo é afim à mística e

adversário natural do iluminismo” 612 . O romantismo se caracteriza pela reivindicação

da imaginação, da fantasia, do mistério, do lado obscuro e enigmático da existência.

Trata-se da formulação de uma “nova mitologia” ou uma “remitologização”, em clara

contraposição ao desencantamento defendido pelo iluminismo.

610
Id. p. 106, 107
611
Id. p. 110, 111
612
FERNANDEZ, Arsenio Giuzo. Estudio Preliminar Y Traduccíon de Friedrich Daniel Ernest Schleiermacher –
Sobre La Religíon: Discursos a suas Menospreciadoras Cultivados. Madrid: Tecnos (1990), p. XXVIII

153
É interessante, observar que ele destaca em itálico suas convicções religiosas

protestantes, não seguindo o curso iluminista, conforme o exemplo de seu pai, tios e

primos, mas sim sua própria “experiência imediata”, ao estilo “schleiermacheano”, e

quando alguém o criticava por indicar a confissão auricular a um católico, por não

acreditar, por ser protestante, sua resposta era:

Para responder a esta crítica, devo esclarecer que na medida do possível


quando me pergunta a respeito, defendo minhas convicções, que não vão
além daquilo que considero meu saber. Estou convencido daquilo que sei .
Tudo o mais é hipótese. 613

III. 2. “Sou protestante”

Jung não nega sua origem religiosa em nenhum instante e parece que faz

questão de afirmar sua formação sob qual influência religiosa viveu. Ele afirma:

Sou protestante, e não nego minha crença, defendo minhas convicções, mas
sei que não vão além daquilo que considero meu saber 614 ; estou convencido
daquilo que sei. Quanto ao resto, há um sem-número de coisas que deixo
entregue ao desconhecido. Essas coisas não me afligem. 615

Como cientista as convicções religiosas de Jung são suas próprias, sem

desejar como propósito ser proselitista, sem, contudo, assumir sem constrangimento

de estar “convencido” do que sabia acerca da sua fé protestante. Ele diz:

Devo esclarecer que na medida do possível não prego minha crença, e sem
entrar no mérito da questão acadêmica (se o paciente está convencido da
origem exclusivamente sexual de sua neurose) de averiguar se a forma de
defesa constitui ou não uma verdade última. 616

Todavia, como psiquiatra está atento às manifestações do inconsciente dos

pacientes, pois este pode indicar que a busca por sua “teoria protetora, ou, círculo

613
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 79
614
Id. par. 78, 79
615
Id. par. 79
616
Id. par. 79

154
tão restrito” 617 , referindo-se à confissão ao padre, pode não ser a atitude mais

“eficaz” contra sua neurose, pois como médico ele “defende a personalidade mais

ampla” 618 . Para Jung a “restrição”, imposta aos fiéis, pela Igreja Católica Apostólica

Romana, só é indicada quando esta “traz alguma ajuda e se é eficaz” 619 . Nos casos

que apresenta na Conferência Terry Lectures, Jung diz que procurou apresentar aos

pacientes, um protestante e o outro católico, a importância da religião tomada à

sério em suas vidas, conforme seus sonhos a indicavam, pois assim os preconceitos

intelectuais e racionalistas seriam como que liquidados. Nestes casos, Jung procurou

levá-los a seguirem a “consideração cuidadosa de suas experiências imediatas”, pois

percebia que tinham “bastante pistis ou lealdade frente às experiências” 620 .

Jung aplica aos pacientes o mesmo que aplicara anteriormente a si mesmo.

Como protestante não tinha a proteção dos rituais, dogmas, confissões,

sacramentos, mas o protestantismo havia escolhido se proteger contra as

experiências que o inconsciente proporcionava, agarrando-se à moral que o

iluminismo erigiu com seu racionalismo e conseqüentes preconceitos intelectuais.

Para ele, o Si-mesmo aponta para uma “personalidade mais ampla, destinada a

libertar da atitude unilateral” 621 . Assim sendo, Jung anseia um retorno protestante

aos dogmas e ritos, com a justificativa de que estes expressam “uma totalidade

irracional” 622 . Diz ele:

em minha opinião e sob o ponto de vista da verdade psicológica, qualquer


teoria científica, por mais sutil que seja, tem em si mesma, menos valor do
que o dogma religioso, e isto pelo simples motivo de que uma teoria é forçosa
e exclusivamente racional, ao passo que o dogma exprime, por meio de sua
imagem, uma totalidade irracional. Este método garante-nos uma reprodução

617
Id. par. 79
618
Id. par. 79
619
Id. par. 79
620
Id. par. 74
621
Id. par. 80
622
Id. par. 80

155
bem melhor de um fato tão irracional como o da existência psíquica. Além
disso, o dogma deve sua existência e forma, por um lado, às experiências da
“gnose” – e ele logo esclarece – a gnose, como forma especial de
conhecimento, não deve ser confundida com o gnosticismo – consideradas
como reveladas e imediatas, por exemplo, o Homem-Deus, a Cruz, a
Concepção Virginal, a Imaculada Conceição, a Trindade, etc, e por outro lado,
à colaboração ininterrupta de muitos espíritos e de muitos séculos. 623

Contudo, registra que respeita aos “métodos de higiene”, que os católicos

possam se valer, diante da experiência imediata, caso isto os livrassem de algum

“grave risco” de enlouquecer, por exemplo. Qualquer opção o contentava, sendo que

a mais “eficaz”, fosse a melhor para o paciente – ter a experiência imediata ou fazer

uso do “método de higiene”.

Jung reclamava para si uma relação com Deus que o satisfizesse, sem que

ficasse preso ao que chamava de “sentimentos contraditórios” 624 . Para ele, Deus

estava nas montanhas, rios, lagos, árvores, flores e animais 625 . Daí, afirmar: “As

manifestações dos arquétipos repousam sobre precondicionamentos instintivos e

nada têm a ver com a razão; além de não serem fundadas racionalmente, não

podem ser afastadas por uma argumentação racional.” 626

O Protestantismo em Jung é tão severamente arraigado que tem a opinião de

que os grandes problemas que a Alemanha experimentava com a intensa

interferência do Estado na vida dos indivíduos, poderiam ser superados, caso os

alemães se valessem da mesma atitude que motivara aos reformadores do século

XVI. Ele diz:

Depois da última grande guerra, o mundo, e, sobretudo a Alemanha que é


propriamente a expressão da problemática européia, deveria ter começado a
pensar. O espírito, porém, transformou-se em falta de espírito, tendo
desviado de suas questões decisivas e buscado soluções em sua própria
negação. Como foi diverso no tempo da Reforma? Diante das deficiências do

623
Id. par. 81
624
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira (s/d). p. 28
625
Id. p. 51, 52
626
Id. p. 304

156
mundo cristão, o espírito alemão respondeu com o ato da Reforma: mal
comparando, segundo a atração que os alemães sentem pelas antíteses, eles
jogaram a criança junto com a água do banho. Mesmo assim, naquela
ocasião, os alemães não fugiram à sua própria problemática. 627

Para ele, o Protestantismo ainda era uma força viva, e que precisa ser vista na

vida das pessoas.

III. 3. Jung, gnóstico?

Jung quando se refere à gnose esclarece que se trata de uma forma especial

de conhecimento, e que não deve ser confundida com o “gnosticismo”, pois o

gnosticismo, ainda hoje é considerado movimento herético pela Igreja Cristã,

Católica ou Protestante. Quando se refere a Gnosis, Jung esclarece “não confundir

com gnosticismo” 628 , isto afirmava, talvez, em razão do gnosticismo tender ao

docetismo, isto é, tender a minimizar a figura histórica de Jesus de Nazaré e a negar

a realidade de sua morte na cruz e, simultaneamente, acentua o caráter divino,

supra-humano, do Cristo, pois para ele:

o protestantismo moderno, cuja teologia crítica tem feito desaparecer mais e


mais a divindade de Cristo, tomou a personalidade de Jesus como seu último
refúgio, ou uma ficção, porém, o mito não é ficção, pelo contrário, o mito se
verifica em fatos que se repetem incessantemente e podem ser
constantemente observados. Que a vida de Cristo seja um mito, nada depõe
contra a sua realidade, e eu quase diria: muito pelo contrário, pois é o caráter
mítico de uma vida que exprime justamente o seu valor humano universal.
Psicologicamente falando, nada impede que o inconsciente ou o arquétipo se
apodere totalmente de um indivíduo e determine o seu destino até mesmo
nos mínimos detalhes. Em tal ocorrência podem surgir fenômenos que
também são expressões do arquétipo. A meu ver Cristo era uma dessas
personalidades. Sua vida é precisamente o que deve ser, pois se trata da vida
de um Deus e de um homem. É um símbolo, isto é, a reunião das naturezas
heterogêneas, um pouco como se víssemos Jó e Javé unidos em uma e só
personalidade. 629

627
JUNG, C. G. – Aspectos do Drama Contemporâneo. Petrópolis: Editora Vozes, 1990. par. 434
628
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 127
629
JUNG, C. G. – Desenvolvimento da Personalidade, O. Petrópolis: Editora Vozes (1986), par. 311 e
Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes (1986), par. 648

157
Talvez isto se deve ao fato da gnose antiga ter uma apreciação extremamente

negativa do mundo e do corpo, segundo alguns autores. Para Noll, por exemplo,

Jung teve contato com correntes gnósticas, através de suas leituras de escritos

antigos e recentes, originais e comentários 630 . Em A Forma da Religião: Leituras de

Paul Tillich no Brasil, Etienne A. Higuet e Jaci Maraschin, afirmam que o próprio

Jung:

teve uma experiência gnóstica, e escreveu os “Sete Sermões sobre os


Mortos”, que se enquadram bem nas preocupações e no estilo literário
gnóstico, estudou escritos e simbologia alquímicos, que possuem algumas
similaridades com o gnosticismo e, principalmente nos últimos anos de sua
carreira, teve um interesse crescente nesse caldo de cultura arcano. Ele
advogava a concepção de que os gnósticos foram os primeiros psicanalistas.
Alguns escritos de Nag-Hammadi vêm confirmar essa intuição, ao falar em
interioridade humana, relação entre o inconsciente, o ego e a psique. No
círculo de Eranos, ele conviveu com uma variedade de estudiosos do
gnosticismo como H. C. Puech(?), G. Quispel (1916-2006), Hugo Rahner (?) e
muitos outros, e se comporta, na prática, como um gnóstico. Na sua
discussão com os teólogos a respeito da privatio boni (ou seja, a concepção
agostiniana de que o mal não tem uma consistência ontológica próprio, mas é
simplesmente uma ausência do bem) e a respeito da doutrina da trindade (ele
defende uma forma de quaternidade), Jung também reitera alguns elementos
da gnose. Jung compartilha com os gnósticos a ontologização do mal. 631

Jung retém o pré-requisito essencial da filosofia gnóstica que é o postulado da

existência de uma "entidade imortal", que não é parte deste mundo, que pode ser

chamado de Deus interno, Ser imortal, divina essência, etc. que existe em todos os

homens e é a sua única parte imortal. Rejeitando o gnostismo como movimento que

floresceu durante os séculos II e III, cujas bases filosóficas eram as da Antiga Gnose

– palavra grega que significa conhecimento, com influências do neoplatonismo e dos

pitagóricos. Este movimento reivindicava a posse de conhecimentos secretos, que

segundo eles, os tornava diferentes dos cristãos alheios a tal conhecimento, que

630
NOLL, Richard. – O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática
(1996) p. 77
631
HIGUET, Etienne A. e MARASCHIN, Jaci (Editores). – Forma da Religião, A: Leituras de Paul Tillich no
Brasil. São Bernardo do Campo: Universidade Metodista de São Paulo (2006), p. 130, 131

158
alguns possuíam. Ensinavam o dualismo, pois para eles, existem dois deuses: o

criador imperfeito, que eles associavam ao Jeová do Velho Testamento e outro, bom,

associado ao Novo Testamento. O primeiro criou o mundo com imperfeição, e desta

imperfeição é que se origina o sofrimento humano. Mas, o deus bom, teve pena dos

homens e dotou-os de uma “centelha divina” que lhes dá a capacidade de despertar

deste mundo de ilusões e imperfeição. Os gnósticos buscavam, de maneira

independente, as respostas às questões de todos os tempos, em lugar de se

entregarem aos dogmas da Tora ou da Igreja. Seus livros são compostos pelos

registros dos seus pensamentos e experiências, ao estilo da escrita bíblica. Eles

perguntavam acerca da origem da vida humana e seu destino. Assim, buscavam a

“verdade” por meio de experiências diretas da presença divina. June Singer, em A

Mulher Moderna em Busca da Alma: Guia Junguiano do Mundo Visível e do Mundo

Invisível (2002), afirma quanto à origem do nome gnósticos:

adquiriram o nome de gnósticos porque estavam buscando um tipo especial


de conhecimento que dizia respeito à natureza de Deus e do relacionamento
entre os níveis divino e humano da consciência. Tal conhecimento era
chamado de gnose. Não era do tipo que se transmitisse mediante o
sacerdócio sagrado, nem em livros repletos de afirmações que não deviam ser
questionadas, e tampouco por meio de leis promulgadas por autoridades
sectárias reconhecidas oficialmente. O tipo de conhecimento que buscavam
viria de seu interior, pois para eles Deus estava em toda parte no universo,
até nos mais íntimos recessos do indivíduo. O termo grego gnose expressava
muito fielmente esse tipo de conhecimento, pois se refere ao conhecimento
interior que é comunicado diretamente da fonte divina ao ser humano, ou,
numa outra visão, a partir do divino no ser humano. Alguns críticos afirmam
que o termo “gnóstico” era depreciativo, pois se aplicava a essas pessoas para
insinuar que era “sabichões”, pois davam a impressão de que acreditavam em
qualquer coisa que já fosse de seu conhecimento em algum nível. (...) Como
os escritos gnósticos freqüentemente assumiam uma posição que desafiava a
tradição cristã em fase de desenvolvimento, assim como a antiga tradição
judaica, eram tratados como formas crassas de heresia. (...) Podem-se ler os
textos gnósticos de várias maneiras: apenas pelo seu sentido literal, em seu
contexto histórico, como o fundamento de uma filosofia perene que estava
viva naqueles tempos e continua nos tempos atuais, ou como um elemento
contracultural que compensava a cultura vigente então. Qualquer um desses
modos é útil e fornece muitas informações sobre o fenômeno histórico do
gnosticismo e sobre sua dimensão espiritual. (...) Reconheciam que a Igreja
estava tornando-se uma instituição cheia de regras e regulamentos, e
consideravam inaceitável tal acontecimento. Não que em princípio

159
discordassem dos preceitos do cristianismo na forma como estavam sendo
codificados na lei e ensinados aos seguidores dessa fé. Os ensinamentos de
Jesus e os princípios adotados pela comunidade cristã serviam para
estabelecer a religião na mente e no coração das pessoas. Essa disciplina
servia de sustento espiritual e de crença comum, e tornaria possível à fé
sobreviver e tornar-se firmemente assentada que, para a maioria das pessoas,
era necessário e suficiente um entendimento elementar das regras, a diretriz
moral e a submissão à autoridade. Mas pensavam que eles mesmos
pertenciam a uma categoria especial. Para eles, o ensinamento cristão,
formalizado numa doutrina, era apenas o começo, um passo adiante no
caminho da liberdade espiritual. Para esse grupo, a liberdade total significava
o direito de cada pessoa encontrar uma relação direta com Deus, sem
intérpretes nem intermediários, se esse vínculo parecesse autêntico para o
indivíduo. Por esse motivo é que o gnosticismo surgiu como um movimento
de protesto pela liberdade individual contra as restrições cada vez maiores
impostas pela ortodoxia. (...) A psicologia profunda contemporânea de Jung
foi fortemente influenciada por suas incursões pela literatura gnóstica. Seu
mundo arquetípico, com o Si-mesmo inapreensível como arquétipo central
também vai além do mundo corriqueiro, em que o Eu é a força motriz
elementar. Os textos gnósticos são certamente a-históricos: não têm nada a
ver com as pessoas que já viveram neste mundo ou com os eventos que
tiveram sua realidade histórica. Têm validade psicológica, porém, à medida
que vêm da alma ou psique do ser humano e se expressam na linguagem da
alma coletiva, ou do inconsciente coletivo, como diria Jung, linguagem que
acha seus caminhos nos mitos e nas metáforas. 632

Singer, apesar de ressaltar que se trata de apenas “generalizações”, indica

algumas comparações entre o gnosticismo e as instituições religiosas, quer cristãs ou

judaicas. Ela nos diz:

As autoridades judaicas e cristãs fecharam os cânones do Velho e do Novo


Testamento, implicando com isso que a revelação aconteceu em determinada
era histórica, e nunca mais. O gnosticismo reconhece muitos textos sagrados
escritos durante o mesmo período do Novo Testamento e depois,
considerando a revelação um processo contínuo. O cristianismo ortodoxo situa
a autoridade no contexto eclesiástico oficial, e o chefe da Igreja é a
autoridade final a respeito de alguns assuntos importantes. O gnosticismo
acentua a autoridade da voz interior, que às vezes é chamada de a Voz de
Deus, no íntimo de cada indivíduo. No gnosticismo, a autoridade torna-se uma
função da percepção particular que cada pessoa tem da Vontade Divina, que
o autoconhecimento e a contemplação permita discernir. O Deus judaico-
cristão é descrito como ciumento, quando diz: “Tu não terás outro deus além
de mim”, e assim, reconhece que existem esses outros, mas que lhe são
inferiores. O gnosticismo considera o deus criador, Jesus e Yahweh, bem
como os deuses das outras culturas, como manifestações neste mundo de
manifestações de alguma coisa que aponta para, mas não equivale a Deus,
que é desconhecido e cuja natureza é incognoscível. Todos os outros deuses,
que podem ser descritos, são para o gnóstico uma aproximação imperfeita do
Deus Verdadeiro. Para o cristão ortodoxo, a missa é celebrada como
comemoração de algo que se deu no passado, oferecendo benefícios vicários

632
SINGER, June. – A Mulher Moderna em Busca da Alma: Guia Junguiano do Mundo Visível e do Mundo
Invisível. São Paulo, Paulus, 2002. p. 146-148, 150, 158-159, 166

160
para aqueles que participam dela. Na celebração gnóstica da eucaristia, o
participante tem uma experiência imediata da morte do Eu pessoal,
simbolizada pelo Cristo crucificado, e a ressurreição que ocorre em seguida é
a união do Si-mesmo com o Eu integrado, simbolizada pela sensação de união
com o Cristo ressuscitado. No cristianismo tradicional, a trindade consiste em
Pai, Filho e Espírito Santo. Digno de nota por sua ausência é o quarto
elemento, que poderia ser a matéria, o princípio feminino, ou o elemento
demoníaco. O gnosticismo leva os quatro em conta. Recoloca a matéria numa
posição vitalmente importante no mundo visível; redime o princípio feminino,
na imagem de Sofia; e reconhece a presença do demoníaco, na forma dos
arcontes. Estes representam os poderes não criativos deste mundo, que
devem ser reconhecidos em sua verdadeira natureza e confrontados
diretamente. Tanto o judaísmo como o cristianismo consideram Deus como
uma figura paterna, que cria um mundo por meio do verbo, ou Logos. No
Velho Testamento, a criação prossegue com o verbo que emana de Deus: “E
Deus disse: ‘Faça-se a luz’, e houve luz” (Gn. 1.3), e o Evangelho de João no
Novo Testamento começa com: “No princípio era o Verbo”. O gnosticismo
considera o poder criativo incessante no universo como o princípio Paterno-
Materno de que emana luz ou energia; no espírito humano, esse é o princípio
da individuação. No cristianismo tradicional, o poder feminino é secundário.
Quando a mulher é reconhecida como elemento na espiritualidade, ou é em
função biológica de Mãe e portadora da Criança Divina, ou como virgem
compulsória nas ordens religiosas. Como mulher plenamente independente
que pode escolher entre ser sexual ou não, ela tem um status reduzido. No
gnosticismo, o feminino é redimido e resgatado das profundezas da matéria, e
reinvestido de sua totalidade num status de co-igualdade com o masculino. O
cristianismo considera uma alta virtude a Imitatio Dei, ou a Imitação de Deus,
com as palavras: “Sede, perfeito”. No gnosticismo não é assim, pois o que se
busca aí não é a perfeição, mas sim a totalidade. A totalidade ou a plenitude
se dá simbolicamente no casamento místico entre a figura do Cristo ou Logos
e a da Sofia, ou Eros. Para o gnóstico, isso significa que tal união pode se
realizar não só no altar da missa, mas também no íntimo de cada indivíduo.
Isso envolve admitir a presença do lado escuro dentro de si e no mundo, e a
decisão de combatê-lo. As religiões tradicionais, e suas litanias sobre o que
deve e não deve ser feito, encorajam a repressão da sombra, aquela parte do
ser inaceitável aos códigos coletivos de conduta. O gnosticismo insiste na
integração da sombra por um trabalho progressivo de transformação dos
aspectos ignorantes e destrutivos da própria natureza da pessoa. Em sua
abordagem à totalidade, o ritual gnóstico tenta “reunir os fragmentos
dispersos”. A prece que encerra a eucaristia gnóstica contemporânea expressa
essa intenção primordial ao dizer: “Reconheci quem sou e me reuni em mim
por todos os lados. Não semeei filhos para o regente deste mundo, mas
arranquei-o pelas raízes. Reuni meus membros que estavam espalhados por
toda parte e sei quem és Tu Que És. 633

Ainda quanto a sua posição “gnóstica”, Jung esclarece que se:

Situa na linha de consenso universal, isto é, de arquétipo. Foi somente iso que
me possibilitou uma relação distinta com o dogma. Como “verdade” metafísica
ele me era inteiramente inacessível, mas o conhecimento dos fundamentos
arquetípicos universais me animou a considerar como fato psicológico que
ultrapassa o quadro da confissão de fé cristã, e tratá-lo simplesmente como
objeto das Ciências Físicas e Naturais, como um fenômeno puro e simples,
qualquer que seja o significado “metafísico” que lhe tenha sido atribuído. Sei

633
Id. p. 168-170

161
por experiência própria que este último aspecto jamais contribui, por pouco
que fosse, para a minha fé ou para a minha compreensão. Ele não me dizia
absolutamente nada. Entretanto, tive de reconhecer que o Símbolo de fé
possui uma verdade extraordinária pelo fato de ter sido considerado, durante
dois milênios, por milhões e milhões de pessoas, como um enunciado válido
daquelas coisas que não se podem ver com os olhos, nem tocar com as mãos.
Este fato deve ser bem entendido, porque da “Metafísica” só conhecemos o
produto humano, quando o carisma da fé, tão difícil de ser mantido, não
afasta de nós toda dúvida e, conseqüentemente, nos liberta de toda
angustiosa investigação. É perigoso que tais verdades sejam tratadas
unicamente como objeto de fé – ponto de vista do sola fide no protestantismo
– pois onde há fé, ali também está presente a dúvida, e quanto mais direta e
mais ingênua é a fé, tanto mais devastadoras são as idéias quando a primeira
começa a eclipsar-se. Em tais ocasiões é que nos mostramos mais hábeis do
que as cabeças enevoadas da tenebrosa Idade Média, e então acontece que a
criança é desprezada juntamente com a bacia em que foi lavada. 634

III. 4. O Protestantismo como a “psiquificação” dos instintos alemães

Num evidente confronto com o protestantismo iluminista, Jung escreve:

No século das luzes formou-se, sobre a essência das religiões, uma opinião
que merece ser mencionada por causa de sua larga propagação, embora ela
seja um desprezo típico da época. Segundo essa opinião, as religiões seriam
espécies de sistemas filosóficos, que com estes últimos, teriam saído da
cabeça das pessoas. Um homem qualquer teria certo dia imaginado um Deus
e dogmas, e graças a essa fantasia “realizadora de desejos”, teria enganado a
humanidade. A essa opinião opõe-se a realidade psicológica da dificuldade
que se tem de apreender intelectualmente os símbolos religiosos. De modo
nenhum eles provêm da razão, mas de outro lugar; do coração, talvez, mas
em todo caso de uma camada psíquica profunda, pouco semelhante à
consciência que não é mais do a superfície. Os símbolos religiosos também
tiveram um caráter bem marcado de “revelação” ou, dito de outra forma, são
em geral produtos espontâneos da atividade inconsciente da alma. São tudo o
que quisermos menos inventados pelo pensamento; revelações naturais da
alma humana, cresceram pouco a pouco no decorrer de milênios como
plantas. 635

Para ele “o aspecto humano do problema religioso é um acontecimento

concreto”, e assim ele analisa o Protestantismo, usando-se do referencial

fenomenológico, isto é, para ele os “fatores psíquicos que determinam o

comportamento humano são, sobretudo os instintos enquanto forças motivadoras do

processo psíquico”, apesar dele próprio considerar que os termos – instinto psíquico

634
JUNG, C. G. – Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Petrópolis: Editora Vozes, 1983. par.
294
635
JUNG, C. G. – Energia Psíquica, A. Petrópolis: Editora Vozes, 1997, Parte I

162
e extra-psíquico não seriam os mais apropriados para assim tratá-lo 636 . Segundo

Denise Guimenez Ramos e Péricles Pinheiro Machado, autores do Artigo Consciências

em Evolução, da Revista Viver Mente & Cérebro, Nº 02:

a sensação de um ser transcendente, um deus é um fato psicológico


arquetípico. Com isso Jung introduziu a possibilidade de estudar a religião
enquanto manifestação psicológica, distinguindo a psicologia das religiões da
teologia. Aqui não se disputa a existência de Deus, mas pode-se afirmar que a
idéia de que um deus está presente na psique humana é instintiva e,
portanto, comum a toda a humanidade. Só mudam sua aparência, forma e
características dinâmicas. 637

E é neste sentido, que Jung desenvolve sua fenomenologia própria.

Jung é de opinião que as características do povo alemão levaram a provocar o

cisma cristão, e a formar uma nova modalidade de cristianismo. Segundo ele:

o protestantismo se converteu em credo religioso para os germânicos, com


seu desejo de aventuras, sua curiosidade, sede de conquistas e, falta de
escrúpulos característicos, é lícito supor que a índole peculiar deste povo não
se harmoniza – pelo menos duradouramente, com a paz da Igreja. 638

Para Jung os alemães:

talvez precisassem de uma experiência de Deus mais intensa e menos


dominada, como acontece muitas vezes com povos ávidos de aventuras,
irrequietos e demasiado jovens para qualquer forma de conservadorismo ou
domesticação. Por isso afastaram uns mais, outros menos, a intercessão
eclesiástica entre Deus e o homem. Como resultado da destruição do muro
protetor, os protestantes perderam as imagens sagradas como expressão de
importantes fatores inconscientes, juntamente com o rito, que desde tempos
imemoriais constituíra num caminho seguro de acomodação para as forças
incalculáveis do inconsciente. Assim foi liberada grande quantidade de energia
que logo fluiu pelos antigos canais de curiosidade e da sede de conquista,
convertendo a Europa na mãe dos dragões que devoraram a maior parte da
terra. 639

Numa clara referência às diferenças entre os protestantismos: luterano,

calvinista e zwingliano, e cada um deles gerando seus ramos: pietismo, puritanismo

636
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 233, 245
637
REVISTA, Viver&Cérebro: Memória da Psicanálise. Jung e a Psicologia Analítica e o Resgate do Sagrado.
Nº 02. São Paulo: Duetto Editorial. P. 42
638
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 82
639
Id. par. 82

163
e anabatismo, além é óbvio, referências às guerras religiosas que viveram os países

europeus, principalmente França e Inglaterra, e em seus dias, a realização da

Primeira Guerra Mundial e, o surgimento do nazismo, culminando com a Segunda

Guerra Mundial. Noll, em O Culto de Jung: Origens de um Movimento Carismático

apresenta-nos a realidade que Jung chamou de “fator extrapsíquico”, quando afirma:

A Suíça tem uma tradição de muitos séculos como terra de heresia e de seitas
incomuns. Na Idade Média, os amalricianos, os valdenses e até os cátaros
conseguiram muitos adeptos na região. A Alemanha meridional e a Suíça
foram os principais centros da Reforma quinhentista, e na Suíça o processo de
formação de dissidência do Protestantismo em “seitas” isoladas continuou até
nosso século. 640

Já para Jung, o Protestantismo é o produto final do instinto como fenômeno

psíquico que foi assimilado como estímulo que por sua vez se expressou no

comportamento humano:

O instinto como fator extrapsíquico, desempenharia o papel de mero estímulo.


O instinto como fenômeno psíquico seria, pelo contrário, uma assimilação do
estímulo a uma estrutura psíquica complexa que eu chamo psiquificação.
Assim que chamo simplesmente instinto seria um dado já psiquificado de
origem extrapsíquica. 641 Resulta da interação do instinto com a situação do
momento, isto é, os alemães não se harmonizavam, pelo menos
duradouramente, com a paz da Igreja, não haviam chegado ao estágio de
poder suportar um processo de salvação e submeter-se a uma divindade que
se manifestara na grandeza da construção da Igreja. Talvez esta contivesse
muitos elementos do Império Romano e da Paz Romana, pelo menos para as
suas energias que naquela época e ainda hoje não se acham suficientemente
domesticadas. Talvez precisassem de uma experiência de Deus mais intensa e
menos dominada, como acontece muitas vezes com povos ávidos de
aventuras, irrequieto e demasiado jovens para qualquer forma de
conservadorismo ou domesticação. Por isso, afastaram, uns mais, outros
menos, a intercessão eclesiástica entre Deus e o homem. 642

O mesmo se deu quanto ao carisma do nazismo e, sua influência em seus

dias, a ponto de alguns considerarem Adolf Hitler (1889-1945) ser “o continuador e

consumador da obra da Reforma, que Lutero executara apenas pela metade” 643 a

640
NOLL, Richard. Culto de Jung, O: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática
(1996), p. 113, 114
641
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 234
642
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 82
643
JUNG. C. G. – Aion: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Petrópolis: Editora Vozes, 1982, par. 159

164
experiência imediata que o movimento provocou no povo alemão por ter sido

deixada em seu caráter original “selvagem” causou transtornos tanto nos indivíduos

como no grupo coletivo, quando alguns se colocaram como salvadores, combinando-

se assim com o espírito do messianismo. E, neste sentido Jung verificou as várias

modalidades de instintos, como o da “fome”, por exemplo, que pode ser

compreendido como fome real, devido à ausência de alimento no estomago. Como

qualquer outro instinto o da fome passa pelo processo de “psiquificação”, podendo

como que haver um desvio de sua aplicação puramente biológica, para outros

sentidos que lhe são estranhos, por exemplo, fome no sentido metafórico. Jung

entende os instintos como grupos que agem distintamente entre si, nos indivíduos

que os vivencia e os motivos exteriores que servem de estímulos e, atendem ao que

chama de “modalidades psicológicas” 644 , as quais são: a consciência e o

inconsciente, a extroversão e introversão, ao elemento espiritual e material. Entre

esses instintos ele inclui o que leva à “ação”, e o exemplifica como o “de viajar, amor

à mudança, o de sossego, e o instinto lúdico”, porém, só para ilustrar a realidade de

tais instintos no gênero humano. Apresenta ainda, o instinto de “reflexão”:

o termo latino reflexio significa um curvar-se, inclinar-se para trás, e usado


psicologicamente indicaria o fato de o processo reflexivo ser um voltar-se para
dentro, tendo como resultado que, em vez de uma reação instintiva, surja
uma sucessão de conteúdos ou estados que podemos chamar reflexão ou
consideração. 645

Neste sentido, então, a reflexão foi o instinto que levou ao surgimento do

Protestantismo, isto é, as características do provo alemão, associadas à interação

com os fatores externos, ficaram como que excitados, e assim reproduziram

externamente. Para ele esta reprodução externa se dá em todas as realidades

644
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par.240
645
Id. par. 241

165
humanas que passam pelo processo da reflexão: na expressão verbal, como

“expressão do pensamento abstrato, como representação dramática ou como

comportamento ético, ou ainda como feito científico ou como obra de arte” 646 . Para

Jung, graças ao instinto da reflexão que os indivíduos têm experiências, isto é, o

instinto se “transforma em um conteúdo consciente, e estabelece o “instinto cultural

par excellence” e sua força se revela na maneira como a cultura se afirma em face

da natureza” 647 . E, Jung aponta para o problema quando os instintos, de todas as

modalidades, se constituírem numa organização estável, e assim tornarem-se

“automáticos”. E, neste sentido sua crítica ao Protestantismo desenvolve esta idéia,

“tendo sido um fator humano instintivo, o Protestantismo não pode perder sua

capacidade de criar coisas novas no verdadeiro sentido da palavra” 648 .

Para Jung, o protestantismo esqueceu-se das insondáveis forças do

inconsciente, “convertendo-se em sementeira de cismas e também de rápido

desenvolvimento científico e técnico, atraindo de tal forma a consciência humana,

enquanto que as insondáveis forças do inconsciente foram esquecidas” 649 , em razão

do preconceito, já anteriormente apontado.

Parece que Jung relaciona o protestantismo e o nazismo, apesar de não

mencionar o movimento político liderado por Adolf Hitler (1889-1945), mas

apresenta esta idéia com afirmações do tipo:

a catástrofe da guerra de 1914 e as extraordinárias manifestações posteriores


de uma profunda comoção espiritual foram necessários para que os homens
perguntassem se alguma coisa não estava errada no espírito do homem
branco. Não é difícil compreender que as potências do mundo subterrâneo –
para não dizer infernal – antes acorrentadas e domesticada, com maior ou
menor êxito, dentro de um gigantesco edifício espiritual, estão procurando

646
Id. par. 242
647
Id. par. 243
648
Id. par. 245
649
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 83

166
criar uma escravidão e prisão estatais desprovidos de qualquer estímulo
psíquico espiritual. 650

Reconhece que tal “desenvolvimento é fatal, pois levou o homem moderno –

não importa se protestante ou católico – a perder a proteção dos muros da Igreja,

que tinham sido cuidadosamente erigidos e fortificados desde os dias de Roma, e

que se aproximando, por causa desta perda, da zona do fogo destruidor e criador do

mundo. A vida se tornou mais rápida e intensa. Nosso mundo é sacudido e inundado

por ondas de inquietação e medo”, porém, deixa bem claro que não acusa nem o

protestantismo, nem o Renascimento, como os únicos culpados para o problema que

o homem moderno se encontra 651 . Para Jung “a incrível crueldade de nosso mundo

supostamente civilizado – tudo isso tem sua origem na essência humana e em sua

situação espiritual” 652 . Perder a proteção dos muros da Igreja é desprezar os dogmas

como manifestações do inconsciente.

Se compararmos o que afirma quanto aos “instintos” e suas críticas ao

Protestantismo, percebemos que há uma grande semelhança. Por exemplo:

O fato é que certas idéias (ao falar do Protestantismo) ocorrem quase em


toda a parte em todas as épocas, podendo tornar-se de um modo
espontâneo, independentemente da migração e da tradição. Não são criadas
pelo indivíduo, mas lhe ocorrem simplesmente, e mesmo irrompem, por assim
dizer, na consciência individual” 653 . “O instinto, não é universalmente
difundido nem é uma organização fixa e herdada invariavelmente. O indivíduo
é inconsciente quando há predominância de processos instintivos e
compulsivos, em manifesta ausência de inibição ou de total inibição de seus
instintos. Enquanto que o indivíduo consciente, é caracterizado por
sensibilidade, orientado pela vontade e, por uma atitude mais racional do agir.
Esta modalidade também pode se tornar “automática”, e pode ser verificada
quando há falta de desempenho intelectual e ético, no caso da modalidade
inconsciente, e na modalidade da consciência, quando há falta de
naturalidade. 654

650
Id. par. 83
651
Id. par. 84
652
Id. par. 85
653
Id. par. 05
654
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 245

167
A falta de naturalidade pode promover o que ele chama de “apogeu da

iniciação religiosa”, mas, não “manifestar qualquer traço de Deus, ainda que se fale

Dele, mas tudo se limita a palavras, e ainda pode, promover uma deplorável

experiência, provocar vazio e uma perda” 655 . Tal fato, Jung constatou no

Protestantismo vivido pelo pai, tios e primos, para ele um “sistema dominado por

sentimentalismo insípido” 656 , uma “comunhão em que todos pareciam solenes e

indiferentes 657 , cujo sentimento era de vazio 658 ”. Para Jung, a “naturalidade” poderia

ser observada caso as pessoas percebessem o que ele chamou de “a essência de

Deus verificada em desespero intenso, comoção poderosa ou graça

transbordante” 659 . A falta de naturalidade no Protestantismo fez com que Jung o

visse “não como uma religião, mas uma ausência de Deus, e a Igreja não como um

lugar de vida, mas de morte, que provoca a maior derrota de alguém” 660 . Jung

considera a religião como uma modalidade natural, pois, assim percebeu em suas

experiências pessoais: quando do episódio da Catedral cujos muros foram

derrubados pelo próprio Deus, e do sonho com o monstro fálico, aos três anos de

idade. Foram naturais estas experiências, pois foram como que vontades mais fortes

que as suas que se impuseram sobre ele, e as considerava como experiências

naturais, ou seja, imediatas, que tivera com Deus.

O instinto se apresenta também na modalidade de extroversão e

introversão 661 , isto é, o processo psíquico se dá nos objetos externos ao indivíduo ou

em seu interior, dentro dele, sendo ele o sujeito ou o objeto da sua experiência. Esta

655
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d, p. 59
656
Id. p. 31
657
Id. p. 58
658
Id. p. 59
659
Id. p. 59
660
Id. p. 60
661
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 250

168
modalidade da “psiquisificação” do instinto, Jung constatou no Protestantismo,

quando verificou que havia se tornado mais numa religião exterior que interior, e ele

apelou para que retornasse aos mistérios da Bíblia, por este ter se identificado com a

crítica científica, esquecendo-se das insondáveis forças do inconsciente 662 ,

afastando-se do numinoso, que leva o indivíduo, independentemente, da sua

vontade consciente, mas que produz uma modificação especial em sua

consciência 663 . Para Jung, é o instinto da reflexão, como modalidade introvertida,

que promove a experiência imediata, e se esta não se dá é devido à ausência da

introversão 664 . O Protestantismo se identificou com a modalidade extrovertida,

quando sacralizou e enrijeceu sua construção mental, tornando-a irreflexível, isto é,

como dizia seu pai: “Você quer pensar, mas antes precisamos crer”.

Em Resposta a Jó, Jung expõe o instinto de reflexão, que o levou a ter uma

experiência imediata. Diz ele:

A crença em Deus como o “Summum Bonum” é impossível para uma


consciência reflexiva. Podemos interpretar Cristo ainda hoje ou devemos
contentar-se com a explicação histórica? (...) Para uma consciência mais
diferenciada deve ser difícil, a longo prazo, amar um Deus como pai bondoso
que deve também ser temido por causa de suas cóleras bruscas e
imprevisíveis, de sua instabilidade, injustiça e crueldade. A decadência dos
deuses da antiguidade clássica mostrou, à saciedade, que o homem não
aprecia as incoerências e as fraquezas demasiado humanas de seus deuses.
Parece, portanto, que a derrota moral de Javé em relação a Jó teve suas
conseqüências ocultas: de um lado, a exaltação não premeditada do homem,
e de outro, a inquietação do inconsciente. O primeiro destes acontecimentos
consiste antes de tudo em um mero fato não percebido no plano da
consciência, mas que foi registrado pelo inconsciente, pois desta forma ele
recebeu um maior grau de potencialidade em relação à consciência: o homem
é mais ele no inconsciente do que na consciência. Com isto se estabelece um
desnível entre o inconsciente e a consciência, e o inconsciente irrompe na
consciência sob a forma de sonhos, visões e revelações. Como psiquiatra devo
enfatizar expressamente que as visões e os fenômenos concomitantes não
podem ser considerados, sem um exame crítico, como patológicos.
Consideradas de um ponto de vista clínico, as visões de Ezequiel são de
natural arquetípicas e de maneira alguma patologicamente desfiguradas. Não
há motivos para considerá-las doentias. Elas são indícios de que já havia um

662
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 83
663
Id. par. 06
664
Id. par. 09

169
inconsciente separado, de algum modo, da consciência. É um erro puro e
simples supor que uma visão é de natureza patológica. Ela ocorre, ma não é
freqüente, nem muito rara em pessoas normais. (...) Paulo é do número
daqueles cujo inconsciente se achava inquieto e provocava êxtases
reveladores. Ora, no inconsciente acha-se tudo o que rejeitado pela
consciência, e quanto mais cristã é esta consciência, tanto mais o inconsciente
se comporta de forma pagã; se ainda se encontrarem valores de importância
vital no paganismo rejeitado, isto é, a criança (como acontece
freqüentemente) foi atirada fora juntamente com a água em que foi banhada.
Ao contrário da consciência, o inconsciente não isola nem diferencia os seus
objetos. 665

Jung trata dos dogmas ligados ao Summum Bonum em relação a Deus, em

razão deste ser um dos temas dominantes do século XIX, e que vem desde os

séculos anteriores, XVII e XVIII.

Outra modalidade psicológica do instinto é a espiritual e a material. Para Jung,

a realidade da “matéria” é objeto de interesse para as religiões também, bem como

o “espírito”, e estes são inseparáveis, ou pelo menos, não podem ser divididos. Este

erro, cometido pelo Protestantismo, Jung percebeu quando se verificou o empenho

de “desmitologizar” as Escrituras, separando o material do espiritual, dicotomizando

a própria vida humana, fazendo-a interessar-se pelas coisas da alma, e desprezar a

“matéria”. Jung argumenta, porém, que é da “existência destas categorias que

resultam sistemas de valores éticos, estéticos, intelectuais, sociais e religiosos que

determinam, às vezes, de maneira decisiva a aplicação final que deverão ter os

fatores dinâmicos da psique” 666 , isto é, a divisão ou a separação destes elementos

provoca uma desordem de tal tamanho, que todas as áreas da vida humana sentem

e sofrem. O Protestantismo que havia operado tal separação contava apenas com a

unilateralidade, isto é, contava apenas com um dos lados destas modalidades

psicológicas, enaltecendo sua consciência, desprezando seu lado inconsciente,

665
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 662, 665, 696, 713
666
JUNG, C. G. – Dinâmica do Inconsciente, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000. par. 251

170
preferindo a extroversão e preterindo a introversão, procurando fazer a separação

entre a matéria e o espírito.

Apesar de Jung verificar que os grupos de instintos e suas modalidades

aplicarem-se a indivíduos, e que os mesmos sofrem uma infinidade de variações,

devido a tendência e diversificação entre si, por descrever a estrutura psíquica, em

razão desta não ser homogênea 667 , estes conceitos se aplicam perfeitamente à

análise que faz do sistema religioso protestante. Jung usa de sua autoridade

científica, tão ao gosto do Protestantismo, para dizer que o caráter numinoso de

Deus, não deixa nenhum ser humano “psicótico”, como se temia, por considerar as

manifestações do inconsciente – visões, sonhos e revelações – como “traços

patológicos” 668 .

Antes, ele diz:

Deus pode ser amado e deve ser temido, por ser mistério. A numinosidade do
objeto torna difícil que se lhe dê um tratamento intelectual, pois é o caráter
afetivo que entra sempre em linha de conta. O indivíduo participa pro et
contra no processo, e aqui é mais difícil ainda chegar-se à “objetividade
absoluta”, do que em outras situações. Quem possui convicções religiosas
positivas, isto é, quem “crê”, não somente encara a dúvida como coisa muito
desagradável e penosa, mas também a teme. É por isso que não gostamos de
analisar o objeto da fé. O indivíduo que não tem concepções religiosas não
gosta de reconhecer-se como portador de um déficit; antes apela para a sua
mentalidade esclarecida ou, no mínimo, para a franqueza de seu próprio
agnosticismo. Quem se fixa neste ponto de vista dificilmente admitirá o
caráter numinoso do objeto religioso, e este não poucas vezes até mesmo o
impede de pensar criticamente, pois pode acontecer – o que para ele não é
nada agradável – que sua fé no iluminismo opera com conceitos racionalistas
inadequados, apoiando-se, por exemplo, no fato de que enunciados como o
do nascimento virginal, da filiação divina, da ressurreição dos mortos, da
transubstanciação, etc, não passam de disparates. O agnosticismo sustenta
que não possui qualquer conhecimento de Deus ou qualquer outro
conhecimento de natureza metafísica; entretanto, se esquece de que jamais
somos nós que possuímos uma convicção, mas é ela que nos possui. Tanto
um como o outro estão possuídos pela razão, que representa o arbitro
supremo e indiscutível. Mas o que é “razão”? Por que motivo deve ser
suprema? Não é aquilo que é e age uma instância que está acima do
julgamento racional e da qual a história do pensamento nos oferece tantos
exemplos? Infelizmente os defensores da “fé” também operam com os
mesmos argumentos fúteis, só que em direção inversa. Indiscutível é apenas

667
Id. par. 252
668
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 665

171
o fato de que há enunciados metafísicos que, justamente por seu caráter
numinoso, são formulados e negados em tom carregado de afeto. Esse fato
constitui a base empírica e segura da qual se deve partir. Ele é objetivamente
real enquanto fenômeno psíquico. Nesta constatação acham-se incluídas
naturalmente todas as afirmações (até mesmo as contrastantes) que algum
dia já foram ou ainda serão de caráter numinoso. É preciso levar em conta
todos os enunciados religiosos em seu conjunto. (...) À Psicologia deve ser
deixado os estados de conflitos agudos gerados por estados que
aparentemente são contraditórios. 669

III. 5. Protestantismo como “risco e possibilidade”

Jung define o homem protestante “alguém que perdeu sua Igreja e está

desamparado perante Deus, sem a proteção de muros e comunidade” 670 , e por isso

mesmo, o Protestantismo pode ser um “grande risco ou uma grande possibilidade”


671
, dependendo de como o protestante escolher, valendo-se da sua consciência.

Jung teme o que chama de “risco - o processo de desintegração do protestantismo,

enquanto Igreja, o homem ver-se despojado de todos os dispositivos de segurança e

meios de defesa espirituais, que o protegem contra a experiência imediata das forças

enraizadas no inconsciente, e que esperam sua libertação” 672 . Parece que Jung está

no mínimo assustado, quanto à crueldade que o homem, fruto da sua situação

espiritual e, não sabe muito bem o que pode acontecer com o protestante que “está

entregue só a Deus” 673 , assim como não se pode prever, senão a catástrofe final,

caso o “homem civilizado”, resolva detonar seus arsenais, contra seu vizinho, pois

“como ninguém pode saber em que ponto e com que intensidade está possuído e é

inconsciente, simplesmente projeta seu próprio estado no vizinho”674 . A título de

curiosidade é bom notar o registro de Noll, faz em O Culto de Jung: Origens de um

Movimento Carismático, acerca do que se passa no universo religioso suíço: “O censo


669
Id. par. 735, 738
670
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 86
671
Id. par. 85
672
Id. par. 85
673
Id. par. 86
674
Id. par. 85

172
suíço de 1º de Dezembro de 1888 contou 10.697 pessoas que viviam em seitas

anticonvencionais (e apenas 8.384 judeus) numa população de 2,9 milhões, com 1,7

milhões de protestantes e 1,2 milhões de católicos. Embora a maioria daquelas seitas

estivesse de um modo ou de outro ligada a idéias cristãs, algumas eram cultos

carismáticos com estranhos sistemas de crença que promoviam o incesto entre pais

e filhos, a ingestão de urino e esperma e outras práticas espirituais

anticonvencionais, as quais levaram esses grupos a serem considerados à parte no

censo. Grupos neopagãos, heliólatras, nudistas, vegetarianos, espíritas, sexualmente

liberados e às vezes anarquistas, grupos que faziam experiências com novos estilos

de vida ou com uma nova filosofia de vida baseada na experiência mística. Alguns

grupos neopagãos extraíram de antigas fontes persas suas idéias de culto do sol”. 675

Talvez, venha daí, a generalização que os racionalistas faziam acerca da religião,

considerando-a como um desvio de personalidade, ou uma patologia mental.

Jung nutre a esperança de que os protestantes “tomem consciência do próprio

pecado” 676 , e levados pela sua “má consciência, que pode ser um dom de Deus, uma

verdadeira graça” 677 , possa interferir e alterar a situação que ele próprio criara de

total instabilidade e de iminente destruição dos seus dias. Para Jung o

protestantismo é “um grande risco” caso continue em sua jornada teológica,

intelectualizada e racional, mantendo e reforçando o preconceito contra os sonhos,

por exemplo, ou os elementos do inconsciente, que procuram se expressar, como já

o fizeram no passado, mas que estão, e ainda hoje, continuam fora do debate e

675
NOLL, Richard. – Culto de Jung, O: Origens de um Movimento Carismático. São Paulo: Editora Ática S.
A., 1996, p. 113-115
676
JUNG. C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes (1990) par. 86
677
Id. par. 86

173
muito mais da elaboração de verdades que podem salvar a humanidade de sua

destruição.

Mas salienta-se que para Jung, o protestantismo, é ao mesmo tempo, “uma

grande possibilidade” 678 , caso perceba que “está entregue só a Deus”, e que mesmo

sem “confissões, absolvição ou qualquer possibilidade de cumprir uma obra de divina

expiação; tem de digerir sozinho seus pecados”, ainda que “sem a certeza da graça

divina”, pois sem “o ritual adequado esta tornou-se inacessível” 679 . Jung defende a

idéia de que a má consciência pode ser a “única possibilidade da experiência

religiosa imediata” para o protestante que “perdeu sua Igreja e continua protestante,

isto é, ao homem desamparado perante Deus, sem a proteção de muros e

comunidades”, como acontece com os católicos 680 .

Entregue à tensão interior, o protestante, pode continuar aguçando sua


consciência, e muito especialmente a má consciência, pode ser um dom de
Deus, uma verdadeira graça, quando aproveitada para uma autocrítica mais
elevada. 681

Para Jung, é a “má consciência”, ou “a autocrítica, como atividade

introspectiva discriminatória”, a única possibilidade diante do protestante, para

“compreender a própria psicologia” 682 . Compreender a própria psicologia significa

“descobrir as razões do próprio comportamento” 683 . Descobrir as razões do próprio

comportamento significa “descobrir coisas até então inconscientes, tornando possível

ao homem transpor o limiar do inconsciente: ele pode assim perceber as forças

678
Id. par. 85
679
Id. par. 86
680
Id. par. 86
681
Id. par. 86
682
Id. par. 86
683
Id. par. 86

174
impessoais que se ocultam em seu interior, convertendo-o em instrumento de

assassínio em massa” 684 .

E é interessante notar que Jung parte da análise dos sonhos de um paciente

católico 685 , para tratar da psicologia do protestante, e mesmo que afirme que tais

conclusões “devemos tomá-la no justo valor que apresenta para a pessoa que tem a

experiência”, isto é, que o conteúdo do sonho se refere apenas a ela, no caso um

católico, contudo, afirma a seguir: “o genius religiosus é um vento que sopra onde

quer” 686 . Para Jung o sonho não é uma criação individual de caráter absolutamente

único. Para ele os “sonhos são constituídos de um material preponderantemente

coletivo a que denominou de arquétipos”, termo que define como “certas formas e

imagens de natureza coletiva, que surgem por toda parte como elementos

constitutivos dos mitos e ao mesmo tempo como produtores autóctones individuais

de origem inconsciente (...) e podem ser reproduzidos espontaneamente, sem

qualquer possibilidade de tradição direta” 687 . Jung defende que os sonhos podem

ser a experiência imediata que falta aos protestantes, caso levem-nos à sério, e

procurem neles a “graça divina”, visto que os dogmas não existem, entre seus

fundamentos e, os rituais foram simplificados. Como não é possível levar um

protestante a confessar um dogma e praticar um ritual, que historicamente foram

suprimidos, e dado ao seu “espírito aventureiro, sua curiosidade, sede de

conquistas” 688 , que se aplicam também a qualquer protestante, não só germânico,

Jung espera que ele se aventure em sua psicologia, seja curioso quanto aos seus

próprios comportamentos, e conquiste sua má consciência, ou seja, a torne

684
Id. par. 86
685
Id. par. 43
686
Id. par. 87
687
Id. par. 88
688
Id. par. 82

175
proveitosa e uma “graça” favorável, que não seja apenas uma auto-condenação por

uma vida sem significado, que sofre por suas fraquezas e pecados.

Não se pode esperar que os sonhos falem explicitamente de religião, na forma


pela qual estamos acostumados a fazê-lo. Os sonhos poderão ser tidos como
possíveis fontes de informação das tendências religiosas do inconsciente 689 ,
por representar, por um lado, a voz e mensagem divinas. 690

Portanto, a tradição católica não interfere na aplicação do sonho de um

católico, aos protestantes, pois suas formas e imagens se aplicam aos cristãos de

modo geral. Neste caso, Jung aplica o “método comparativo”, pois este

mostra-nos, sem a menor dúvida, que a quaternidade (analisada no sonho do


paciente), é uma representação mais ou menos direta de um Deus que se
manifesta na sua criação. Por isso poderíamos conceber que o símbolo
produzido espontaneamente nos sonhos dos homens modernos indica algo
semelhante: O Deus Interior. 691

Para Jung, a “idéia do Deus interior é mística, e que, devido a educação

religiosa sempre depreciou esta idéia” 692 . Mas, Jung não teme em afirmar:

“entretanto, é esta idéia “mística” que se impõe à consciência através de sonhos e

visões” 693 . Parece que para Jung voltar-se aos sonhos e visões, como expressão da

“experiência imediata” é uma prática mística. Mesmo que isso não seja aceito pela

maioria das pessoas, cuja educação religiosa moderna, considere a “mística” como

algo depreciativo, porém, isto é devido ao preconceito 694 já referido anteriormente.

Jung, de imediato, defende sua idéia como um exercício científico psicológico, e não

se tratar de uma “demonstração da existência de Deus” 695 .

Como se trata de um arquétipo de grande significado e poderosa influência,


seu aparecimento, relativamente freqüente, parece-me um dado digno para a

689
Id. par. 39, 40
690
Id. par. 32
691
Id. par. 101
692
Id. par. 101
693
Id. par. 101
694
Id. par. 05
695
Id. par. 102

176
Theologia Naturalis. Como a vivência deste arquétipo tem muitas vezes, e
inclusive, em alto grau, a qualidade do numinoso, cabe-lhe a categoria de
experiência religiosa. 696

Para Jung, a experiência religiosa, encontro com o numinoso, ainda que em

sonhos, ou outros meios do inconsciente, onde isto possa se dar, trata-se de lembrar

da “poderosa influência do inconsciente” 697 , que o protestantismo esqueceu, devido

ao preconceito à “função religiosa do inconsciente” 698 , utilizando-se do “método de

higiene” 699 , pela “ilustração ou crítica científica” 700 , ficando sob a “ameaça de

congelar-se no doutrinarismo” 701 , sem contudo perceber que se “encontra mais

vulnerável às crises e aos violentos conflitos que a experiência imediata do

Sagrado” 702 , numa clara referência aos movimentos sociais da Alemanha nazista.

Para Jung a idéia do “Deus interior” 703 representa uma “dificuldade dogmática” 704 . “A

atitude espiritual do homem moderno que se coloca sob o veredicto do extra

eclesiam nulla salus (fora da Igreja não há salvação), será a de voltar-se para a alma

como sua última esperança. Onde, a não ser nela, poderia obter a experiência?” 705

Jung refere-se a Guillaume de Digulleville (1295-1358), poeta normando do

monastério cisterciense de Châlis, autor de “Pèlerinages de Vie Humaine; Pèlerinages

de L’Âme; Pèlerinages de Jésus Christ” – na formulação de suas afirmações quanto à

Trindade, como sendo “uma tentativa herética de completar o dogma da Trindade e

que estão no domínio da especulação mística, e não é de toda errônea” 706 .

696
Id. par. 102
697
Id. par. 102
698
Id. par. 03
699
Id. par. 76
700
Id. par. 34
701
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988), p. 274
702
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 76
703
Id. par. 101
704
Id. par. 105
705
Id. par. 106
706
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 108, 119

177
Digulleville é citado em razão do sonho que relata em que três seres angelicais

vestidos de púrpura, lhe dizem que a Trindade de cores foi unida em uma só: o Pai

ficou com o ouro, o Filho com o vermelho, e o Espírito Santo com o verde, ao qual

Jung chama de “psicologia medieval” 707 . E, Jung se pergunta quanto ao azul, como

sendo o quarto elemento, formando assim a Quaternidade, o qual se vê no manto

azul da Virgem Maria, a Rainha do Céu708 .

Para Jung, a Trindade se completa com o Quarto Elemento que vem a ser

Maria que

subiu ao céu com seu corpo – único ser mortal, cuja alma reuniu-se ao corpo
antes da ressurreição universal dos mortos. Nesta representação, como em
outras no mesmo estilo, o Rei é o Cristo Triunfante, em união com sua
esposa, a Igreja. Acontece, porém, e este é o aspecto mais importante, que
Cristo como Deus é também, e ao mesmo tempo, a Trindade que a
transforma em quaternidade, com o acréscimo de uma quarta pessoa, a
Rainha. 709

Por acreditar que os sonhos podem alterar a religião oficial – “não se pode

esperar que os sonhos falem explicitamente de religião, na forma pela qual estamos

acostumados a fazê-lo. Os sonhos poderão ser tidos como possíveis fontes de

informação das tendências religiosas do inconsciente, por representarem, por um

lado, a voz e mensagem divinas” 710 , Jung deixa claro que esta idéia de

“Quaternidade” advém do sonho de seu paciente, católico 711 : “A visão do meu

paciente é uma resposta simbólica a uma questão que remonta há séculos, (...)

assim, o significado íntimo da visão nada mais seria que a união da alma com

Deus” 712 .

707
Id. par. 124
708
Carl Jung and the Trinitarian Self – Michael J. Brabazon. Online Journal Of Christian Theology and
Philosophy. Disponível em http://www.quodlibet.net/brabazon-jung.shtml>. Acesso em: 15.08.06
709
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 122
710
Id. par. 39, 40, 32
711
Id. par. 43, 50, 124
712
Id. par. 124

178
Para Jung “se as representações da Trindade nada mais fossem do que

sutilezas da razão humana, talvez não valesse a pena mostrar todas estas conexões

sob uma luz psicológica. Mas sempre defendi o ponto de vista de que essas

representações pertencem à categoria de revelação, isto é, àquilo que Koepgen

qualificou ultimamente de “gnosis” 713 . Georg Koepgen (1898-1975) é autor cujas

obras têm “impramatur eclesiástico” 714 , como por exemplo Die Gnosis des

Christentums.

Para Jung, como o dogma da Trindade é parte da “revelação natural e não

mera invenção do intelecto” 715 , conclui que não se trata apenas de fruto da

racionalidade humana, mas produto da influência do inconsciente. Diz-nos ele:

A revelatio é, em primeira instância, uma descoberta das profundezas da alma


humana, a “manifestação” em primeiro lugar de um modus psicológico que
como se sabe, além disto, nada nos diz acerca do que ela poderia ser. Na
linha desta concepção, citemos a fórmula lapidar de Koepgen: “Deste modo, a
Trindade não é somente revelação de Deus, mas ao mesmo tempo revelação
do homem. 716

Outro “risco” 717 que Jung aponta ao Protestantismo é o problema da

“sombra” 718 , (conceito apresentado no primeiro capítulo),pois enquanto “possuímos

certas idéias sobre como deveria viver um homem civilizado, culto e moral, e de vez

em quando fazemos tudo o que está ao nosso alcance para satisfazer essas

expectativas ambiciosas, podem desenvolver estados de espírito verdadeiramente

infernais, que as torna insuportáveis para seus próximos, como bem observou Henry

Drummond 719 , em sua obra Das Naturgesetz in der Geisteswelt, em seu tempo,

713
Id. par. 127
714
Id. par. 127
715
Id. par. 152
716
Id. par. 127
717
Id. par. 85
718
Id. par. 131
719
Henry Drummond (1851-1897, famoso escritor de “O Dom Supremo”

179
apesar de serem pessoas muito piedosas, porém, inconscientes de seu outro

lado” 720 .

A questão que Jung levanta, quanto ao risco, que o Protestantismo apresenta,

é que “conviver com um santo pode desenvolver um complexo de inferioridade ou

até mesmo uma violenta explosão de imoralidade entre indivíduos menos dotados de

qualidades morais” 721 . Nisto percebemos sua resistência ao puritanismo e

movimentos protestantes que buscavam a “santidade”, confundindo-a com “moral”.

Para Jung “a moral parece ser um dom equiparável à inteligência. Não é possível

incuti-la, sem prejuízo, num sistema ao qual ela não é inata” 722 . E, a moral não é

inata, não ao Protestantismo, mas ao ser humano, assim ele esclarece:

Infelizmente, não se pode negar que o homem como um todo é menos bom
do que ele se imagina ou gostaria de ser. Todo indivíduo é acompanhado por
uma sombra, e quanto menos ela estiver incorporada à sua vida consciente,
tanto mais escura e espessa ela se tornará. Uma pessoa que tome consciência
de sua inferioridade, sempre tem mais possibilidade de corrigi-la. Essa
inferioridade se acha em contínuo contato com outros interesses, de modo
que está sempre sujeita a modificações. Mas quando é recalcada e isolada da
consciência, nunca será corrigida. E além disso há o perigo de que, um
momento de inadvertência, o elemento recalcado irrompa subitamente. De
qualquer modo, constitui um obstáculo inconsciente, que faz fracassar os
esforços mais bem intencionados. 723

O Protestantismo é um risco para si mesmo, quando “reprime”, isto é, quando

a consciência se destaca do inconsciente, toma a proeminência e se determina como

mais importante e única, no cenário da vida humana, e assim se separa dos

complexos, cujo inconsciente os contém, e, que possuem a vida como um todo. Para

Jung, “a simples repressão não constitui remédio algum, tal como a decapitação não

é um remédio para a dor de cabeça”. 724 Apesar da “repressão” ser uma tendência do

720
Id. par. 130
721
Id. par. 130
722
Id. par. 130
723
Id. par. 131
724
Id. par. 133

180
homem culto, porém, “o homem inferior que tem dentro de si, rebela-se, pois, o

inconsciente limita e ameaça a consciência. Os homens não percebem a perigosa

autonomia do inconsciente, tomando-a apenas negativamente como ausência de

consciência. Onde quer que o inconsciente domine, encontra-se também a não-

liberdade, e até mesmo a obsessão”. 725 Não se trata com isso, que se deva buscar “a

destruição da moral de um homem, pois isso seria o mesmo que matar o seu “Si-

mesmo” (Selbst), sem o qual a sombra perderia o seu sentido” 726 . Jung propõe uma

“conciliação”, ainda que admita ser um “dos problemas mais importantes, que

mesmo na Antiguidade ocupou alguns espíritos” 727 .

Para Jung, o Protestantismo é uma “grande possibilidade” 728 , se fizer uso da

“razão”, tão valorizada e apreciada, mas que esta funcione como “uma instância de

decisão ética” 729 . Jung toma o cuidado de salientar que sua afirmação trata-se de um

“fino argumento, sutil e singularmente prático do ponto de vista moderno, que não

fora percebido pelos Padres da Igreja, apesar de sua mentalidade robusta” 730 . A

“decisão ética” 731 impõe ao homem um “sacrifício, no sentido mais elevado do termo,

mas trata-se de uma questão vital, mas também perigosa” 732 . Jung tem esperança

de que o Protestantismo como “modo espontâneo e independentemente de migração

e da tradição” 733 , e, devido ao “desejo de aventuras, sua curiosidade, sede de

conquistas e, falta de escrúpulos característicos, do povo germânico” 734 , de onde

nasceu, também seja “capaz de realizar coisas espantosas, desde que tenham um

725
Id. par. 136, 141
726
Id. par. 133
727
Id. par. 133
728
Id. par. 85
729
Id. par. 133
730
Id. par. 133
731
Id. par. 133
732
Id. par. 133
733
Id. par. 05
734
Id. par. 82

181
sentido para ele” 735 , assim como foi com Lutero e outros reformadores, que

perceberam que havia algum sentido em tudo que sofreram e realizaram, conforme

às suas convicções. É natural que Jung reconheça que “o difícil é criar esse sentido.

Deve tratar-se de uma convicção, mas as coisas mais persuasivas que o homem

pode imaginar são medidas pela mesma escala e se mostram insuficientes para que

possam também protegê-lo com eficácia contra seus próprios desejos e temores” 736 .

O Protestantismo é uma “grande possibilidade”, caso convictamente aceite a

convivência junto aos conteúdos do inconsciente, e não se proteja ao que Jung

chama de “desejos e temores”. Jung, diz que a tendência de se proteger é por

considerar a sombra como totalmente má, porém, para ele, “a sombra é

simplesmente vulgar, primitiva, inadequada e incômoda, e não de uma malignidade

absoluta. Ela contém qualidades infantis e primitivas que, de algum modo, poderiam

vivificar e embelezar a existência humana” 737 . Jung aponta que o problema está

quando se leva em conta “as regras tradicionais” 738 , e no caso do Protestantismo,

seu “doutrinarismo” 739 , o qual provocou o afastamento de “grande massa de pessoas

cultas, as quais se tornaram indiferentes à Igreja”, e que foram levadas a aderirem a

movimentos sectários 740 . Jung é de opinião que “as coletividades de indivíduos –

incluindo o Protestantismo – não passam de aglomerados de indivíduos, e os seus

problemas também não passam de acúmulos de problemas individuais” 741 . E, se

assim é, o Protestantismo é um grande risco para si mesmo, enquanto Igreja, pois se

pode “perder sua vinculação com a terra, e encontrar-se num inquietante conflito de

735
Id. par. 133
736
Id. par. 133
737
Id. par. 134
738
Id. par. 134
739
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988) p. 274
740
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 34
741
Id. par. 134

182
opinião” 742 . Para Jung, o Protestantismo deve se voltar às suas inquietações, isto é,

deixar-se ser conduzido pelos “movimentos do inconsciente, dos sonhos e das

experiências interiores” 743 e “fortalecer o caráter divino das Escrituras Sagradas” 744 ,

e rejeitar à “crítica científica” 745 , ou o “psicologismo” 746 , como sinônimo de ciência

psicológica, para quem “Deus é alguma coisa, uma ilusão motivada entre outras

coisas pela vontade de poder e pela sexualidade recalcada” 747 , num claro confronto

com Sigmund Freud, e, que estava ganhando cada vez mais espaço dentro do

Protestantismo, a ponto de Jung reconhecer que até mesmos os missionários

protestantes já pensarem segundo o psiquiatra austríaco. Diz ele:

Os missionários cristãos disseram coisas parecidas para derrubarem os ídolos


pagãos. Mas, ao passo que em sua luta contra os antigos deuses os
missionários primitivos tinham consciência de estar servindo a um novo deus,
os modernos iconoclastas não sabem em nome do que destroem os antigos
valores. 748

A proposta de Jung, para que o Protestantismo seja uma “grande

possibilidade”, para si mesmo, não está na “legislação ou artifícios” 749 , criados pelos

Concílios, mas sim numa “mudança geral de atitude. E esta mudança não se inicia

com a propaganda ou com reuniões de massa, e menos ainda com violência. Ela só

pode começar com a transformação interior dos indivíduos. Ela produzirá efeitos

mediante a mudança das inclinações e antipatias pessoais, da concepção de vida e

dos valores, e somente a soma dessas metamorfoses individuais poderá trazer uma

solução coletiva” 750 .

742
Id. par. 134
743
Id. par. 32
744
Id. par. 34
745
Id. par. 34
746
Id. par. 142
747
Id. par. 142
748
Id. par. 142
749
Id. par. 135
750
Id. par. 135

183
Para Jung, o protestantismo precisa retornar ao mistério, por isso dizer:

Se o processo histórico da “des-animação” do mundo, ou, o que é a mesma


coisa, a retirada das projeções continuar avançando, como até agora, então,
tudo quanto se acha fora, quer seja de caráter divino ou demoníaco, deve
retornar à alma, ao interior do homem desconhecido, de onde aparentemente
saiu. 751

É através dessa consideração que parece que Jung procura compreender o

que acontecia no mundo religioso e protestante, a redução da importância da alma e

seus mistérios e, sem perceber que estava, como que, copiando o Estado: “a esta

condição psíquica do indivíduo corresponde, em larga escala, a hipertrofia e a

exigência de totalidade da idéia de Estado. Assim o Estado trata de “englobar” o

indivíduo, assim também o indivíduo imagina ter “englobado” sua alma, e faz disto

até uma ciência, baseado na absurda suposição de que o intelecto, mera parte e

função da psique, basta para compreender a totalidade da alma” 752 . Assim, percebe

que o Protestantismo se reduziu ao “doutrinarismo”, devido ao império da “ilustração

científica”, representada por vários teólogos, a qual Jung aponta como responsável

pela sectarização, ou como ele mesmo chama de “sementeira de cismas” 753 e

“desintegração enquanto igreja” 754 . Jung procura esclarecer que assim, é como se

jogar fora a criança com a água do banho, porque: “a psique é mãe, sujeito e

possibilidade da própria consciência, é como uma pequena ilha no meio do grande

oceano, o inconsciente, e este age sobre a consciência e sua liberdade, restringindo-

a, ou melhor, onde quer que o inconsciente domine, aí se encontra também a não-

liberdade, e até mesmo a obsessão” 755 . Suas afirmações são amparadas nos filósofos

do Idealismo e do Romantismo do século XIX, como Carl Gustav Carus (1789-1869),

751
Id. par. 141
752
Id. par. 141
753
Id. par. 83
754
Id. par. 85
755
Id. par. 141

184
Edwing Von Hartmann (?) e Arthur Schopenhauer (1788-1860), que “identificaram o

inconsciente com o princípio criador do mundo, que nada mais fizeram do que

sintetizar todas as doutrinas do passado, as quais, com fundamento na experiência

interior, encaravam a misteriosa força atuante como deuses personificados” 756 . Jung

ilustra sua afirmação citando o que aconteceu com o protestante Nietzsche (1844-

1900), filho de pastor luterano e preparado para ser pastor 757 .

Nietzsche não era ateu, ele tinha uma natureza demasiado positiva, para
suportar a neurose peculiar aos habitantes das grandes cidades, o ateísmo, se
transformou em deus, porque seu Deus havia morrido, assim aquele para
quem “Deus morre” se torna vítima da inflação. 758

Jung, como protestante, procura ilustrar mais ainda o que acontecera com

Nietzsche, usando uma das prerrogativas do Protestantismo, o Livre Exame das

Escrituras, quando afirma:

Deus é a posição efetivamente mais forte da psique, quando, no sentido da


palavra de Paulo, Deus é o “ventre” – Fl. 1.3-19. Isto significa que o fator
efetivamente mais poderoso e decisivo da psique individual provoca,
forçosamente, fé ou medo, submissão ou entrega, que um deus poderia exigir
do homem. O dominante e inevitável é, neste sentido, “Deus”, que é absoluto,
se a decisão ética da liberdade humana não conseguir estabelecer uma
posição igualmente invencível contra esse fato natural. Na medida em que
essa posição comprova sua eficácia, torna-se merecedora de que se lhe
confira o predicado de Deus, ou melhor, de um Deus espiritual, uma vez que
a posição psíquica promana da livre decisão ética, isto é, da convicção íntima.
Cabe à liberdade do homem decidir se “Deus” é um “espírito” ou um
fenômeno da natureza, como o vício dos morfinômanos, e com isto fica
definido também se “Deus” significa poder benéfico ou destruidor” 759 . O
Senhor que escolhemos não se identifica com a imagem que dele esboçamos
no tempo e no espaço. Ele continua a atuar como antes nas profundezas da
alma, como uma grandeza não-reconhecível. 760

Parece que a citação do caso Nietzsche, é um exemplo clássico que Jung

deseja ressaltar do que pode acontecer com o protestantismo: “O eu humano

756
Id. par. 141
757
http://pt.wikipedia.org/wiki/Friedrich_Nietzsche, consulta realizada em 18 de Outubro de 2006.
758
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 142
759
Id. par. 142
760
Id. par. 144

185
individual é demasiado pequeno e seu cérebro demasiado débil para assimilar todas

as projeções retiradas do mundo. Numa eventualidade dessas, o eu e o cérebro

romper-se-iam em pedaços (que os psiquiatras chamam de esquizofrenia). Ao dizer:

“Deus está morto”, Nietzsche enunciou uma verdade válida para a maior parte da

Europa. Os povos sofreram sua influência, não porque ele tenha constatado tal fato,

mas porque se tratava de uma confirmação trazida pelos “ismos” e a catástrofe.

Ninguém soube tirar a conclusão do que Nietzsche anunciara. Não se ouve nela algo

de semelhante à antiga frase: “O grande Pã está morto”, que marcava o fim dos

deuses da natureza?” 761 Jung afirma isto porque para ele “não podemos dispor,

absolutamente, da vida íntima da alma”. 762 Jung teme o “risco do Protestantismo”,

por ter se perdido em meio a tantas possibilidades, e sem perceber que sua origem

está no inconsciente, daí afirmar:

Deus é o ser vivente escolhido e caracterizado pela definição que ultrapassa,


mesmo contra nossa vontade, os limites da imagem feita por mãos humanas.
Aí talvez pudéssemos dizer com Nietzsche: “Deus está morto”. Todavia mais
acertado seria afirmar: “Ele abandonou a imagem que havíamos formado a
seu respeito e nós, onde iremos encontrá-lo de novo?” O interregno é cheio
de perigos, pois os fatos naturais farão valer os seus direitos sob a forma de
diversos “ismos”, dos quais nada resulta senão a anarquia e a destruição. 763

Jung procura compreender o “ateísmo” de Nietzsche ao afirmar:

tudo o que acontece na vida de Cristo ocorre também, sempre e em toda


parte. Isto equivale a dizer que toda vida desse tipo se acha prefigurada no
arquétipo cristão, ou volta a expressar-se nele, ou já se expressou de uma vez
por todas. Assim, antecipa-se também nesse arquétipo, de modo perfeito, a
questão da morte de Deus que aqui nos ocupa. O próprio Cristo representa o
tipo do Deus que morre e se transforma. 764

Jung procura esclarecer e tirar o protestantismo do preconceito irracional

contra os movimentos do inconsciente, afirmando que todo o homem comum vive

761
Id. par. 145
762
Id. par. 144
763
Id. par. 144
764
Id. par. 146

186
inconscientemente as formas arquetípicas e, o mesmo se deu em Jesus Cristo, com

uma diferença, Ele sabia que estava ligado a algo arquetípico, bem como outras

“grandes figuras históricas que realizaram, de modo mais ou menos perceptível, o

arquétipo da vida heróica, com suas peripécias características” 765 . “A situação

psicológica da qual partimos corresponde às palavras: “Por que buscais entre os

mortos aquele que vive? Não está aqui”. (Lc. 24.5). Mas onde voltaremos a
766
encontrar o Ressuscitado?” Por isso Jung ter afirmado que os sonhos 767 nos

apontam para um Deus sem definição e “alterável” para cada indivíduo, pois para os

dogmas teológicos, representado pela ciência iluminista, Deus não passa de um

conceito formado pela imaginação do homem, mas que não percebe que ele se

altera de indivíduo para indivíduo. Isto ele afirma, pois para ele, o que importa

mesmo é o conhecimento psicológico.

Jung aponta para a “ignorância generalizada em matéria de psicologia, não

reconhecida” 768 , quando a Igreja se empenha em “extrair dos relatos evangélicos

uma vida individual e despojada do mito Jesus Cristo”769 , sendo que em sua opinião

“nos próprios evangelhos, os relatos de fatos reais, a lenda e o mito se entrelaçam

em um todo que constitui, precisamente, o sentido dos Evangelhos” 770 . Alerta para o

problema de se perder o “caráter de totalidade” 771 , quando se pretende separar o

individual do arquetípico. Assim, Jung, retorna ao que anteriormente chamou de

“caráter divino das Escrituras Sagradas” 772 .

765
Id. par. 146
766
Id. par. 147
767
Id. par. 38
768
Id. par. 76
769
Id. par. 146
770
Id. par. 146
771
Id. par. 146
772
Id. par. 34

187
Parece que Jung estabelece que como “o homem comum vive

inconscientemente as formas arquetípicas, apesar de não reconhecer” 773 , em sua

opinião cabe ao protestantismo fortalecer a fé no caráter divino das Escrituras

Sagradas, talvez começando pelos sonhos pois, em sua opinião:

até mesmo os fugazes fenômenos oníricos deixam muitas vezes transparecer


formações arquetípicas. Em última análise, todos os acontecimentos psíquicos
se fundam no arquétipo e se acham de tal modo entrelaçados que é
necessário um esforço crítico considerável para distinguir com segurança o
singular do tipo. (...) O individual é sempre “histórico”, por se achar
rigorosamente vinculado ao tempo. Inversamente, a relação entre o tipo e o
tempo é indiferente. Ora, sendo a vida do Cristo, em alto grau, arquetípica,
em igual medida representa a vida do arquétipo. 774

Jung se volta àqueles que como ele, protestante, também tem apenas a

“concepção do dogma com a experiência imediata dos arquétipos psicológicos” como

sua única esperança. Ele diz:

Não espero que nenhum cristão crente siga o curso destas idéias, que talvez
lhe pareçam absurdas. Não me dirijo também aos beati possidentes (felizes
donos) da fé, mas às numerosas pessoas para as quais a luz se apagou, o
mistério submergiu e Deus morreu. Para a maioria não há retorno possível e
nem se sabe se o retorno seria o melhor. Para compreender as coisas
religiosas acho que não há, no presente, outro caminho a não ser o da
psicologia; daí meu empenho em dissolver as formas de pensar
historicamente petrificadas e transformá-las em concepções da experiência
imediata. É, certamente, uma empresa difícil reencontrar a ponte que liga a
concepção do dogma com a experiência imediata dos arquétipos psicológicos,
mas o estudo dos símbolos naturais do inconsciente nos oferece os materiais
necessários. 775

Jung é de opinião que “tais idéias especulativas, indícios de um arquétipo

emergente, remontam – e isto é significativo – à época da Reforma, quando, à base

de figuras físico-simbólicas, muitas vezes de sentido ambíguo, procurava-se definir a

natureza do Deus Terrenus, isto é, do Lapis Philosophorum (pedra filosofal)” 776 . E,

773
Id. par. 146
774
Id. par. 146
775
Id. par. 148
776
Id. par. 150

188
para basear esta informação ele se refere ao “comentário sobre o Tractatus Aureus,

de J. J. Mangetus, no qual se afirma o seguinte:

Esse um, ao qual se devem reduzir os elementos, é aquele pequeno círculo


que ocupa o centro dessa figura quadrada. Com efeito, é ele o mediador que
promove a paz entre os inimigos, isto é, entre os elementos, para quem se
amem mutuamente num abraço necessário: na verdade, ele é o único que
realiza a quadratura do círculo que até hoje tantos procuraram e poucos
conseguiram. 777

III. 6. Dogma e Experiências Religiosas para o Protestantismo

Para Jung certos dogmas são designados como “experiências imediatas”, pois

alguns estão presentes e podem ser encontrados em outras religiões, até mesmo

pagãs 778 , apareceram espontaneamente, como “fenômenos psíquicos”, do mesmo

modo que no passado distante provieram de visões, sonhos e estados de transe.

Os dogmas não são idéias inventadas, nasceram quando a humanidade ainda


não havia aprendido a utilizar o espírito como atividade orientada para fins
determinados. Os homens não pensavam, e sim recebiam sua própria função
espiritual. O dogma, é como um sonho que reflete a atividade espontânea e
autônoma da psique objetiva, isto é, do inconsciente. O dogma como
expressão do inconsciente constitui um expediente defensivo contra novas
experiências imediatas e é muito mais eficaz do que uma teoria científica, pois
esta, tem de subestimar forçosamente os valores emotivos da experiência. E
sob este aspecto o dogma é profundamente expressivo. Uma teoria científica
logo é superada por outra, ao passo que o dogma perdura por longos séculos.
O Homem-Deus sofredor deve ter pelo menos cinco mil anos de existência, e
a Trindade talvez seja ainda mais antiga. 779

Talvez esteja aqui a explicação que gostaria de ter recebido do seu pai, nas

discussões acerca da Trindade, ainda na infância e adolescência, pois naquela

ocasião o pai lhe disse que não se discutia, só aceitava o dogma e pronto 780 . Jung,

debatia com o pai procurando entender porque aceitar o dogma, se o interesse na

época era pelo questionamento científico, pois assim o pai procurava explicar ao filho

inquiridor. Porém, mais tarde, pelo menos quarenta e três anos depois da morte do

777
Id. par. 150
778
Id. par. 81
779
Id. par. 81
780
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, (1988), p. 50

189
seu pai, pois Psicologia e Religião foi escrito em 1939, e seu pai falecera em 1896,

Jung admite que “a Trindade talvez seja ainda mais antiga, que os cinco mil anos do

Homem-Deus sofredor” 781 , que a Igreja Cristã adotara como dogma, porém, já tinha

sido dado como “função espiritual”, a outras religiões, que não se tratava de uma

conclusão teológica que os homens aprenderam a produzir graças ao pensamento,

mas que este “pensamento veio até eles” 782 , e não aos teólogos protestantes ou

católicos, mas a muitos outros homens, e que necessariamente não eram cristãos.

Para Jung, a diferença entre o dogma e a teoria científica é que “dogma

constitui uma expressão da alma” 783 , enquanto que a teoria científica “só é

formulada pela consciência” 784 . Esclarece ainda que uma teoria científica “mal

consegue exprimir o que é vivo, enquanto o dogma, utilizando-se da forma

dramática do pecado, da penitência, do sacrifício e da redenção, logra exprimir

adequadamente o processo vivo do inconsciente” 785 . Parece que Jung afirma isto,

para tentar compreender o que fez com que o protestantismo surgisse na história da

religião cristã, pois para ele “é realmente espantoso o fato de que não tenha podido

(o dogma) evitar o cisma protestante” 786 , sendo o dogma a expressão mais

adequada do processo vivo do inconsciente.

Compreende-se que Jung se refere ao dogma, como expressão da intuição e

não da elaboração mental e racional dos teólogos, pois para ele o homem moderno

se defronta com o “preconceito que considera a divindade exterior ao homem” 787 , a

qual só pode ser considerada racionalmente, sem possibilidade de experimentá-la,

781
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 81
782
Id. par. 81
783
Id. par. 81
784
Id. par. 82
785
Id. par. 82
786
Id. par. 82
787
Id. par. 100

190
embora tal preconceito não seja exclusivamente cristão, porém, há certas religiões

que dele não compartilham, em absoluto. Para Jung, “o inconsciente tem melhores

fontes de informação que a consciência, as quais não podemos outorgar o valor de

conhecimentos ou de provas, mas elas permitem ao intelecto indagar esse âmbito de

possibilidades absolutamente necessárias à sua atividade vital”788 .

Assim, Jung interpretava sua própria experiência, e ponderava da

possibilidade de seu pai fazer o mesmo, como havia acontecido com muitas pessoas

cujas experiências são registradas na Bíblia. Ele afirma:

O espírito primitivo encontrado nos profetas judeus, para quem os sonhos


representavam, por um lado a voz e a mensagem divinas, e, por outro, uma
inesgotável fonte de tribulações” 789 , ou, como com Abraão, a quem foi exigido
o sacrifício de seu filho Isaque, e a Jesus tendo sido entregue a um tribunal
injusto, para ser crucificado pois “a vontade de Deus, que – segundo a própria
Bíblia – pode ser implacável. 790

Talvez, pensando em protestantes, seus analisandos, diz: “Conheço um

número consideravelmente grande de pessoas que, se quiserem viver, devem levar a

sério sua experiência íntima”. 791

Jung declara que sua afirmação não se trata de uma questão de fé, mas de

experiência. Para ele,

é indiferente o que pensa o mundo sobre a experiência religiosa: aquele que a


tem, possui, qual inestimável tesouro, algo que se converteu para ele uma
fonte de vida, de sentido e de beleza, conferindo um novo brilho ao mundo e
à humanidade. Ele tem pistis e paz. Qual o critério válido para dizer que tal
vida não é legítima, que tal experiência não é válida sendo essa pistis mera
ilusão?” 792 “Eis a razão pela qual eu levo a sério os símbolos criados pelo
inconsciente. Eles são os únicos capazes de convencer o espírito crítico do
homem moderno. Eles convencem, subjetivamente, por razões antiquadas:
são imponentes, convincentes, palavra que vem do latim convincere, e
significa persuadir. O que cura a neurose deve ser tão convincente quanto a
própria neurose, e como esta é demasiado real, a experiência benéfica, deve
ser dotada de uma realidade equivalente.” 793 “Numa formulação pessimista:

788
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d p. 274
789
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 32
790
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 53
791
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 167
792
Id. par. 167
793
Id. par. 167

191
deverá ser uma ilusão muito real. Mas que diferença há entre uma ilusão real
e uma experiência religiosa curativa? É uma diferença de palavras. Poder-se-ia
dizer, por exemplo, que a vida é uma enfermidade com um diagnóstico muito
desfavorável: prolonga-se por vários anos, para terminar com a morte; ou que
a normalidade é um defeito constitutivo generalizado; ou que o homem é um
animal cujo cérebro alcançou um superdesenvolvimento funesto. Esta maneira
de pensar é privilégio daqueles que estão sempre descontentes e sofrem de
má digestão. Ninguém pode saber o que são as coisas derradeiras e
essenciais. Por isso devemos tomá-las tais como as sentimos. E se uma
experiência desse gênero contribuir para tornar a vida mais bela, mais plena
ou mais significativa para nós, como para aqueles que amamos – então
poderemos dizer com toda a tranqüilidade: “Foi uma graça de Deus”.794 “Com
isto, não demonstramos qualquer verdade sobre-humana, e devemos
reconhecer com toda a humildade que a experiência religiosa extra ecclesiam
(fora da Igreja) é subjetiva e se acha sujeita ao perigo de erros incontáveis. A
aventura espiritual do nosso tempo consiste na entrega da consciência
humana ao indeterminado e indeterminável, embora nos pareça – e não sem
motivos – que o ilimitado também é regido por aquelas leis anímicas que o
homem não imaginou, e cujo conhecimento adquiriu pela “gnose” no
simbolismo do dogma cristão, e contra o qual só os tolos e imprudentes se
rebelam; nunca, porém, os amantes da alma. 795

III. 7. Protestantismo como religião da “plenitude de vida”

Mesmo respeitando aos “métodos de higiene” – rituais, dogmas, sacramentos

– do catolicismo romano, que servem como “muros de proteção”, Jung é um

“defensor da personalidade mais ampla” 796 que o Self indica como uma

“personalidade futura mais ampla, destinada a liberdade da atitude unilateral” 797 ,

ainda que tal experiência “só é dada àquele que cumpre sem restrição à Sua

vontade” 798 . Para ele “tudo que é transformado em princípio ou virtude, seja por

inclinação ou por causa de sua utilidade, resulta sempre em unilateralidade ou em

compulsão à unilateralidade que exclui outras possibilidades” 799 e, inspirado pelo

texto bíblico de I Coríntios 2.11, seu espírito o levou a saber as coisas do homem,

que desde a infância, buscou por si mesmo, ser “consciencioso diante de si mesmo,

e não somente a fim de aparentar valor”. Foi a “solidão”, isto é, ver que
794
Id. par. 167
795
Id. par. 168
796
Id. par. 79
797
Id. par. 80
798
JUNG, C. G. - Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, s/d, p. 51, 52
799
JUNG, C. G. – Natureza da Psique, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000 par. 258

192
a natureza estava cheia de maravilhas, nas quais podia mergulhar. Cada
pedra, cada planta, tudo se me afigurava animado e indescritível. As plantas
eram seres vivos que deviam crescer e florescer – possuíam um sentido
oculto, misterioso, eram pensamentos de Deus. Devíamos olhá-las com
respeito e sentir diante delas um pasmo filosófico. Pertenciam,
evidentemente, ao estado divino da inocência que era melhor não perturbar.
Começava a compreender: era responsável e de mim dependia o curso do
meu destino. Um problema me havia sido proposto e a ele eu devia
responder. Ninguém conseguiu demover-me da certeza de que estava no
mundo para fazer o que Deus queria e não o que eu queria. Em tais
circunstâncias decisivas isto sempre me deu a impressão de não estar entre
os homens, mas de estar a sós com Deus. 800

Desde sua infância nos diálogos teológicos com o pai, Jung queria vivenciar a

plenitude de vida em sua religiosidade. Segundo Byington o Rev. Johann Paul

Achilles Jung (1842-1896), seu pai, apesar de ser um homem honesto, trabalhador e

dedicado à família, foi incapaz de corresponder ao que seu filho mais queria dele: “a

transcendência do cotidiano, do formal e do tradicional na relação com a totalidade.

Da mesma forma que Freud tudo explicava pela sexualidade através do Complexo de

Édipo, seu pai reduzia a transcendência da vivência religiosa aos textos bíblicos, às

explicações tradicionais da Igreja ou a “coisas misteriosas que não temos capacidade

de saber”. A vocação para a vivência de transcendência logo cedo permitiu a Jung

perceber que a religião formal do pai, que asfixiava as emoções místicas do filho,

não era pessoal, mas da própria Igreja. No entanto, essas percepções, que o

levaram mais tarde a compreender o poder criativo dos arquétipos, não ocorreram

por alguma dedução racional, mas foram o resultado da compreensão teórica de

intensas experiências emocionais de fatos, imaginações e sonhos”. 801 Esta

“transcendência do cotidiano, do formal e do tradicional” Jung, como protestante

buscou compreender real e profundamente ao estudar as doutrinas em “A Dogmática

JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 42, 54, 81
800

REVISTA, Viver Mente&Cérebro: Memória da Psicanálise. Jung e a Psicologia Analítica e o Resgate do


801

Sagrado. Nº 02, São Paulo. p. 08 e 09

193
Cristã” (1869) de Biedermann, na tentativa de encontrar a “plenitude de vida”, mas

se frustrou nesta empresa. Diz ele:

Procurei com zelo as qualidades de Deus e as encontrei, tal como apreendera


em minha instrução religiosa. Li que embora “bastando-se a Si mesmo, de
nada mais precisava além de Si”, tendo criado o universo “para Sua
satisfação”: “enquanto que o mundo natural Ele cumulou com Sua bondade”,
“o mundo moral, Ele quis cumular com Seu amor”. Em primeiro lugar, eu me
detive na desconcertante palavra “satisfação”. Satisfação com o quê, ou com
quem? Evidentemente, com o universo, pois Ele louvava e achava boa Sua
obra. Mas este era um ponto com o qual não concordava. Sem dúvida o
universo era belo, além de qualquer expressão, mas tinha um aspecto terrível.
No campo, numa cidadezinha de poucos habitantes, onde quase nada
acontece, “a velhice, a doença e a morte” são sentidas com maior
intensidade, mas abertamente e com todos os detalhes. Embora tivesse
apenas dezesseis anos, já presenciara muitas realidades da vida dos homens
e dos animais; na Igreja e na escola ouvira falar freqüentemente acerca do
sofrimento e da corrupção do mundo. Deus manifestara uma satisfação
imensa com o Paraíso, mas também cuidara de que seu esplendor não
durasse muito tempo, uma vez que nele pusera a serpente venenosa, o
próprio Diabo. Que satisfação poderia isso causar-Lhe? Estava certo de que
Biedermann não concordaria com esta idéia, mas devido à ausência usual de
reflexão em matéria religiosa, que me surpreendia cada vez mais, tagarelava
de um modo edificante, sem perceber as tolices que dizia. Eu não acreditava
que Deus sentisse uma satisfação cruel com o sofrimento imerecido dos
homens e dos animais, mas não me parecia insensato supor que Ele tivera a
intenção de criar um mundo de oposições, no qual um devorava o outro e
onde a vida era um nascimento em vista da morte. As “maravilhosas
harmonias” das leis da natureza pareciam-me um caos penosamente
subjugado e do “eterno” céu estrelado, com seus caminhos predeterminados,
se me afigurava um amontoado de acasos desordenados e sem qualquer
significação, pois as constelações, combinações arbitrárias, não podiam ser
realmente percebidas. 802

Assim, sua Dogmática foi altamente frustrante em busca da plenitude de vida.

E, a conclusão que chegou foi: “quanto mais a religião é racionalizada e enfraquecida

– destino este quase inevitável – mais intricados e mais misteriosos se tornam os

caminhos pelos quais os conteúdos do inconsciente chegam até nós. O materialismo

racionalista, uma atitude mental aparentemente insuspeita, é, na realidade, um

movimento psicológico de oposição ao misticismo. Este é o antagonista secreto que é

preciso combater. O materialismo e o misticismo nada mais são do que um par

psicológico de contrários, precisamente como o ateísmo e o teísmo. São irmãos

802
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 62, 63

194
inimigos, dois métodos diferentes de enfrentar de algum modo as influências

poderosas do inconsciente: um negando-as e o outro reconhecendo-as.” 803

Jung cautelosamente afirma:

Eu nunca inventei uma idéia de Deus. Minha convicção não provinha das
explicações que me davam, se bem que no fundo não podiam acreditar no
que me diziam. Para mim Deus era uma experiência imediata e das mais
convincentes. Ponho a palavra “Deus” entre aspas, pois a natureza (eu
inclusive) me parecia posta por Deus, como Não-Deus, mas por Ele criada
como uma Sua expressão. Não me convencia de que a semelhança com Deus
se referisse apenas ao homem. As altas montanhas, os rios, os lagos, as belas
árvores, as flores e os animais pareciam traduzir muito melhor a essência
divina do que os homens com seus trajes ridículos, sua vulgaridade, estupidez
e vaidade, sua dissimulação e seu insuportável amor-próprio. Conhecia muito
bem todos esses defeitos através de mim mesmo, isto é, através de minha
personalidade nº 1, a do colegial de 1890. Ao lado disso, havia um domínio
semelhante a um templo, onde todos os que entravam passavam por uma
metamorfose. Subjugados pela visão do universo e esquecendo-se de si
mesmos, apenas podiam se espantar e se admirar com ele. Lá vivia o “Outro”,
aquele que conhecia Deus como um mistério oculto, pessoal e ao mesmo
tempo suprapessoal. Lá, nada separava o homem de Deus. era como se o
espírito humano, ao mesmo tempo que Deus, lançasse um olhar sobre a
Criação. 804

Jung apela para que, ainda por um momento, os olhares dos religiosos sejam

“desviados de todo racionalismo europeu”805 , em direção a uma “reflexão que leva à

intensidade de vida”. 806 Ele pede a:

Renúncia à palavrinha “físico”. O conceito de “físico” não constitui o único


critério de uma verdade, pois há também verdades psíquicas que não se
podem explicar, demonstrar ou negar sob o ponto de vista físico. Os
enunciados religiosos são desta categoria. O fato de os enunciados religiosos
se acharem muitas vezes em aberta oposição aos fenômenos fisicamente
comprovados é uma demonstração da autonomia do espírito em face da
percepção de ordem física e também de um certa independência psíquica em
relação às realidades físicas. A alma é um fator autônomo, e os enunciados
religiosos são uma espécie de confissão da alma, os quais, em última análise,
têm suas razões em processos inconsciente e, por conseguinte, também
transcendentais. Por isso, quando falamos de conceitos religiosos, situamo-
nos em um mundo de imagem que se referem a um determinado inefável.
Não sabemos se estas imagens, comparações e conceitos exprimem ou não
com clareza seu objeto transcendental”. 807 Jung aponta que a razão da
resistência racional em aceitá-los, se deve ao fato de se tratarem de
“representações cujas imagens antropomórficas” 808 , e nos esquecemos que

803
JUNG, C. G. – Natureza da Psique, A. Petrópolis: Editora Vozes, 2000, par. 712
804
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 65, 51, 52
805
Id. p. 223
806
Id. p. 215
807
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 555
808
Id. p. 556

195
usam de uma linguagem emocional, que parece inacessível à razão crítica. A
“manifestação da alma”, em sua linguagem emocional, ultrapassa os limites
de nosso pensar comum, pois se referem a realidades que transcendem a
consciência. “Estas representações não são inventadas; são percebidas
interiormente (por exemplo nos sonhos), já como produtos acabados. São
fenômenos espontâneos que escapam ao nosso arbítrio e por isso podemos
atribuir-lhes uma certa autonomia. Pela mesma razão, devemos considerá-los
não só como objetos em si, mas como sujeitos dotados de leis próprias. 809

Para ele esta “reflexão” não está fora da “mensagem cristã, pois a considero

primordial para o homem do ocidente. Ela deve, no entanto, ser vista sob um novo

ângulo, que corresponda às transformações seculares do espírito contemporâneo,

sem o quê será relegada à margem do tempo e a totalidade do homem não se

encontrará mais inscrita nela”. 810 Ao buscar o “novo ângulo que corresponda às

transformações do espírito contemporâneo”, Jung percebe que este se encontra em

suas “fantasias, emoções ou imagens, que remontam à minha infância” 811 , mas nas

quais “uma graça indizível me invadira” 812 . Tal “graça é inconcebível para mim” 813 .

Ao ser levado a termo a reflexão de sua “má consciência”, na qual verificava seu

sentimento de inferioridade, em “nunca sentir-se seguro de si mesmo”, Jung lembra

bastante a mesma experiência que passara Lutero, quando este diz:

Sendo frade, quando me sentia assaltado por alguma tentação, dizia no meu
interior: estou perdido!... e imediatamente buscava mil meios para apaziguar
os gritos de minha consciência. Confessava-me todos os dias, porém isso de
nada me servia. Assistia à missa e orava com grande devoção, mas vindo ao
altar com dúvidas, com dúvidas saía dali. Velava, jejuava, maltratava meu
corpo; nada conseguia com isso. Então, prostrado de tristeza, atormentava-
me com a multidão de meus pensamentos. Vê! Gritava comigo mesmo, és
ainda invejoso, impaciente, colérico!... Então de nada te serviu, oh infeliz, o
teres entrado nesta sagrada ordem...” 814 Jung preferia a experiência direta do
mistério à religião cristã da época, uma religião estéril cujo Deus era
absolutamente distante e transcendente. Seu protestantismo foi de “tentar
reconstruir a alma primitiva inconsciente”. 815 E, esta experiência é

809
Id. par. 557
810
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 185
811
Id. p. 170, 172
812
Id. p. 65
813
Id. p. 48
814
D’AUBIGNÉ, J. h. Merle – História da Reforma do Décimo Sexto Século. Volume I. Nova York, Publicado
pela Sociedade de Tratados Americana, s/d, p. 192
815
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 300

196
compreendida como: “o caminho para atingir a Deus, isto é, experimentar a
graça de Deus, é cumprir sem restrição à vontade de Deus. 816

A “plenitude de vida” está em se voltar ao “caráter divino das Escrituras

Sagradas” 817 , por considerar “suas afirmações como manifestações da alma” 818 . É

como se a Bíblia fosse escrita para o indivíduo e acerca do indivíduo. Como Jung

mesmo disse:

Quando uso, por exemplo, conhecimentos históricos ou teológicos, não são


mais considerados sob o ângulo da verdade filosófica ou religiosa, mas
examinados, no sentido de apurar o que comportam de significação e de
fundamentos psicológicos. 819 Devo deixar que fale minha subjetividade
emocional, dizendo aquilo que sinto quanto leio determinados livros da
Sagrada Escritura ou me recordo de certas impressões que recebi dos
ensinamentos de nossa fé. 820 Precisamos ler a Bíblia ou não entenderemos
psicologia. Nossa psicologia, nossas vidas, nossa linguagem e imagens foram
construídas sobre a Bíblia. (EDINGER, Edward F., 1990 apud JUNG, The
Visions Seminars, vol. 1, p. 156)

A leitura e interpretação bíblica não é “fria e ponderada, muito pelo contrário,

é minha reação subjetiva”. 821 Para exemplificar, podemos citar o caso que Jung

relata acerca de uma “velha esquizofrênica”, que ouvia vozes em toda parte do

corpo. A “plenitude de vida” veio à paciente, graças à leitura da Bíblia, e aos

comentários que ambos faziam nos “encontros de terapia”. Ele nos conta:

Numa ocasião a voz que vinha do “meio do tórax” dizia-lhe que se tratava da
“voz de Deus”. E, disse-lhe: “nesta deves confiar”, e mesmo surpreendo-me
com a resposta, ajudei-a a compreender o que se passava com ela. A voz
fazia observações muito razoáveis, e certa vez disse: “É preciso que ele te
ouça a respeito da Bíblia”. E, resolvi aceitar a falar a respeito da Bíblia com
ela, e usando a Bíblia da paciente, li vários capítulos, e depois perguntava a
respeito do texto. Estes encontros duraram sete anos, com encontros
quinzenais; no fim dos quais as vozes que antes estavam disseminadas por
todo o corpo, passaram a se concentrar somente no lado esquerdo, deixando
completamente livre o lado direito. Foi um sucesso inesperado, pois não
imaginava que nossa leitura da Bíblia pudesse ter um efeito terapêutico. 822

816
Id. p. 52
817
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 34
818
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 557
819
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 302
820
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par. 559
821
Id. par. 561
822
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 117

197
O mesmo se deu no caso, anteriormente relatado, da neta do rabino Zaddik, e

sua conclusão fora: “Sentira a presença do numem. Expliquei-o à doente e a cursa se

seguiu. Eu seguira um método: só o temor de Deus atuara sobre ela”. 823

Jung vê a “plenitude de vida” como a vida guiada pelo “espírito”, algo que não

se verificava no Protestantismo, ao contrário, para ele:

o espírito não pairava mais no alto, mas está embaixo, não é mais fogo, mas
se tornou água. Quando o espírito se torna pesado, transforma-se em água e
o intelecto tomado de presunção luciferina usurpa o trono onde reinava o
espírito. O Espírito pode reivindicar legitimamente o “patrias potestas” (o
pátrio poder) sobre a alma; não porém o intelecto nascido da terra, por ser
espada ou martelo do homem e não um criador de mundos espirituais, um pai
da alma. 824

Esta “plenitude de vida” inclui a “má consciência”, pois se para o Iluminismo,

o dogma está separado da experiência interior, devido às suas origens históricas, o

Protestantismo deve se valer daquilo que lhe gerou – sua própria “sombra”. A “má

consciência, que pode ser um dom de Deus, uma verdadeira graça”. 825 Ele acredita

nisso, devido ao conceito que tem de religião, como “sistemas psicoterapêuticos”. 826

Deus é um agente de cura, é um médico que cura os doentes e trata dos


problemas do espírito; faz exatamente o que chamamos psicoterapia. Não
estou fazendo jogo de palavras ao chamar a religião de sistema
psicoterapêutico. É o sistema mais elaborado, por trás do qual se esconde
uma grande verdade prática. 827

Para ele, ser religioso e cristão se dá na “consciência” onde se dá “coisas

diferentes e muito misteriosas”. 828 Por algumas vezes ele se refere a si próprio como

823
Id. p. 127
824
JUNG, C. G. - Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 33
825
JUNG, C. G. – Psicologia e Religião. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 86
826
JUNG, C. G. – Fundamentos de Psicologia Analítica. Petrópolis: Editora Vozes, 1989, par. 370
827
Id. par. 370
828
JUNG, C. G. – Memórias, Sonhos e Reflexões. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, s/d. p. 33, 34

198
um “indivíduo culpado que queria ser inocente” 829 . Mas, sempre recordando que

diante do conteúdo do seu inconsciente pessoal “não podia faltar à ética” 830 consigo

mesmo. Talvez nisto consiste a confissão de pecados ao protestante, enfrentar sua

“má consciência” com ética. No entanto, ele constata que é:

comum satisfazer-se com os êxtases que podemos experimentar, sem que


nos envolvamos com as conseqüências éticas que tais imagens, do
inconsciente, pretendem. Desta forma aparecem os efeitos negativos do
inconsciente. Quem não sente a responsabilidade ética que seus
conhecimentos comportam, sucumbirá ao princípio de poder. Disso poderão
resultar efeitos destruidores não só para os outros como também para a
própria pessoa que sabe. As imagens do inconsciente impõem ao homem uma
pesada obrigação. Sua incompreensão, assim como a falta de sentido da
responsabilidade ética privam a existência de sua totalidade e conferem a
muitas vidas individuais um cunho de penosa fragmentação. 831

Esta atitude ética ele próprio exemplifica com sua atitude: “Trata-se de

imagens e pensamentos nos quais vivi, que me trabalharam e me preocuparam, são

idéias que palpitam em mim.” 832 Cabe ao protestante, segundo Jung, perguntar-se

diariamente: a qual responsabilidade ética meus conhecimentos me chamam, para

não me sucumbir ao princípio de poder? Qual é a minha obrigação frente ao

conhecimento que estou apreendendo? O quê cada imagem ou conteúdo do um

inconsciente, diz a meu respeito, e o quê me cabe realizar na vida?

Jung explica que a dificuldade do homem se assumir como instrumento capaz

de discernir moralmente, está no fato de ser “inconsciente, que não percebe suas

possibilidades de decisão” 833 , e é sua inconsciência que o leva a “procura ansiosa de

regras e leis exteriores as quais possa ater-se nos momentos de perplexidade” 834 .

Assim, facilmente não se refere à sua própria experiência imediata possível e

829
Id. p. 37, 48, 51
830
Id. p. 171
831
Id. p. 171
832
Id. p. 260
833
Id. p. 285
834
Id. p. 285

199
acessível a todos que se abrem ao Espírito. O Protestantismo esqueceu-se disso e

elegeu a luz da razão por apresentar “regras e leis” que asseguram certa estabilidade

diante das “perplexidades” que o Protestantismo enfrenta em seu viver. Mas, não é

difícil encontrar que os defensores deste sistema, estão conscientes de que nunca

poderão viver plenamente assim, pois o inconsciente não cansa de se manifestar.

Assim, Jung, retorna sua idéia principal da “má consciência” para reafirmar que só

encontram uma resposta ao problema do mal, os que têm um “conhecimento de si

mesmo, isto é, de um conhecimento tão profundo quanto possível de sua totalidade.

Deve saber, sem se poupar, a soma de atos vergonhosos e bons de que é capaz,

sem considerar a primeira como ilusório ou a segundo como real. Ambas são

verdadeiras enquanto possibilidades e não poderia escapar a elas se quiser viver

(como obviamente deveria), sem mentir a si mesmo e sem vangloriar-se”. 835 Para

Jung, o protestante é ético à medida que tem conhecimento de si mesmo, isto é,

atinge a “camada profunda, aquele núcleo da natureza humana no qual se

encontram os instintos”. Os instintos “compõem o inconsciente e seus conteúdos os

quais são conscientizados graças ao conhecimento aprofundado de si mesmo”, e

Jung propõe a “psicologia”, como ciência vital para respondermos ao mal. A

psicologia é vital por ser a ciência da “alma do homem”, que se apresenta como a

única resposta à questão do mal.836

A justificativa que Jung ressalta para nos voltarmos à alma é que:

Nossa psique é estruturada à imagem da estrutura do mundo, e o que ocorre


num plano maior se produz também no quadro mais íntimo e subjetivo da
alma. Por este motivo, a imagem de Deus é sempre uma projeção da
experiência interior vivida no momento da confrontação com um opositor
poderosíssimo. (...) Tais experiências têm uma influência benigna ou
devastadora no homem. Este não pode apreendê-la, compreendê-las, nem
dominá-las. Não pode livrar-se delas ou escapar-lhes, e por este motivo as

835
Id. P. 285-286
836
Id. p. 286

200
sente como relativamente subjugantes ou mesmo onipotentes. Reconhecendo
com precisão que elas não provêm de sua personalidade consciente, o
homem as designa de mana, demônio ou Deus. O conhecimento científico
utiliza o termo “inconsciente”, confessando assim sua ignorância na matéria, o
que é compreensível, uma vez que esse tipo de conhecimento nada pode
saber da psique, porquanto só através dela pode atingir o conhecimento. Eis
porque não é possível discutir ou afirmar a validade da designação de mana,
demônio ou Deus, mas unicamente constatar que o sentimento de algo
estranho ligado à experiência de algo objetivo é autêntico.837

A “plenitude de vida” tem a ver com “vida integrada à existência”. Jung diz:

O racionalismo e a doutrinação são doenças do nosso tempo; pretendem ter


respostas para tudo. Nossas noções de espaço e tempo são apenas
relativamente válidas; deixam aberto um vasto campo de variações absolutas
ou relativas. Levando em conta tais possibilidades, presto viva atenção aos
estranhos mitos da alma; observo o que se passa comigo e o que me
acontece, estejam em concordância ou não com meus pressupostos teóricos.
Infelizmente, o lado mítico do homem encontra-se hoje freqüentemente
frustrado. O homem não sabe mais fabular. E com isso perde muito, pois é
importante e salutar falar sobre aquilo que o espírito não pode apreender, tal
como uma boa história de fantasmas, ao pé de uma lareira e fumando
cachimbo. (...) A razão nos impõe limites muito estreitos e apenas nos
convida a viver o conhecido – ainda com bastantes restrições – e num plano
conhecido, como se conhecêssemos a verdadeira extensão da vida. Na
realidade, nossa vida, dia após dia, ultrapassa em muito os limites de nossa
consciência e, sem que saibamos, a vida do inconsciente acompanha a nossa
existência. Quanto maior for o predomínio da razão crítica, tanto mais nossa
vida empobrecerá; e quanto mais formos aptos a tornar consciente o que é
mito, tanto maior será a quantidade de vida que integraremos. A superestima
da razão tem algo em comum com o poder de estado absoluto, sob seu
domínio o indivíduo perece. O inconsciente nos dá uma oportunidade, pela
comunicações e alusões metafóricas que oferece. É também capaz de
comunicar-nos aquilo que, pela lógica, não podemos saber. Os mitos são
formas antiqüíssimas da ciência. 838

Jung demonstra sua grande preocupação com o cristianismo que se confronta

com o “princípio do mal, isto é, com a injustiça, a tirania, a mentira, a escravidão e a

opressão das consciências” 839 . Para ele isto se deve a “evidente e irrefutável a que

alto grau o cristianismo do século XX fora minado e esvaziado” 840 , graças ao

surgimento de um Protestantismo iluminista. Reveste-se de grande importância esta

constatação, por partir de um protestante que analisa e critica sua crença, pois

837
Id. p. 290
838
Id. p. 260, 261, 262
839
Id. p. 284
840
Id. p. 284

201
conforme vimos, o Protestantismo contribuiu para o esvaziamento do cristianismo

com seu confinamento ao doutrinarismo e rejeição às experiências imediatas,

proporcionadas pelo inconsciente e seus elementos que continuam a influenciar a

vida humana. Jung é de opinião que em relação ao “princípio do mal, é necessário

aprender a conviver com ele, pois ele quer participar da vida” 841 . Mesmo admitindo

que “até a hora atual, ainda é inconcebível como isso será possível, sem maiores

danos”. 842 Jung propõe uma “metanóia”, uma conversão 843 . Talvez por considerar o

exemplo do pai, como um homem que se envolvera “em demasia a fazer o bem” 844 ,

porém, com “conseqüências más” 845 , talvez refugiando-se no “idealismo”, como

forma excessiva a que se sucumbiu ao bem. Para ele, “nunca devemos sucumbir à

sedução daquilo que é prejudicial” 846 , nem ao bem nem ao mal, mas sim buscar em

todas as oportunidades uma conversão de mente, frente às exigências que tanto o

bem quanto o mal nos apresenta. Para ele, “conversão” é o processo de “julgamento

moral”, ou de “mudança de atitude” 847 , que se deva depender da “graça de Deus”,

isto é, se valer do “impulso espontâneo e decisivo que emana do inconsciente”. Para

Jung, devido às suas experiências imediatas, a graça de Deus se encontra nas

manifestações do inconsciente: sonhos, fantasias, imaginação, visões. Agir

eticamente frente ao bem e ao mal é seguir ao movimento que o inconsciente indica,

e isto está de acordo com os expoentes da pré-reforma e da Reforma Protestante do

841
Id. p. 284
842
Id. p. 284
843
Id. p. 284
844
Id. p. 89
845
Id. p. 284
846
Id. p. 284
847
JUNG. C. G. – Aion: Estudos Sobre o Simbolismo do Si-Mesmo. Petrópolis: Editora Vozes, 1982, par. 114

202
século XVI, e porque o Protestantismo perdeu os ritos, tendo ficado com “uns poucos

e pálidos ritos” 848 – batismo e eucaristia, basicamente.

Quanto aos expoentes da pré-reforma, Jung se refere a Nicolau de Flüe

(1417-1487), Jacob Böhme (1575-1624), Joaquim de Fiori (1132-1202), Nicolau de

Cusa (1401-1464) e Mestre Eckhart (1260-1327), que lideraram os movimentos dos

“bogumilas, cátaros, albigenses, valdenses, “pauperes spiritus” (pobres espirituais),

“frades liberi Spiritus” (irmãos do Livre Espírito), beguinos e begardas, patarinos,

concorreçanos, “Brod-durch-Gott”, que se denominavam de “irmãozinhos e irmãs da

comunidade do Livre Espírito e da Pobreza Voluntária 849 . Era, com efeito, uma época

de ideais novas, e em parte inauditas, que se difundiam, por toda parte, nestes

movimentos. Os efeitos do movimento do Espírito Santo se fizeram sentir, sobretudo

mediante quatro inteligências de primeira grandeza: Alberto Magno (1129-1280),

Tomás de Aquino (1260-1327). Pretendeu-se, com razão, ver no movimento do

Espírito Santo, um sinal precursor da Reforma 850 . Estes indivíduos que se

identificaram com Deus, se consideravam super-homens, assumiram uma atitude

crítica diante do Evangelho, seguiram os ditames do homem interior e concebiam o

reino dos céus como um estado interior”. Nicolau de Cusa, “definia a divindade como

uma verdadeira “complexio oppositorum”, “convivência de opostos” 851 ; Jacon

Böhme, “traçou uma imagem paradoxal de Deus, imagem na qual a natureza divina

possui ambos os aspectos o bom e o mal” 852 ; Basílio Magno (330-379), “não deves

considerar Deus como autor da existência, nem pensar que o mal tem substância

própria; pois nem a maldade existe como ser vivo, nem admitimos que o mal seja

848
Id. par. 277
849
Id. par. 139
850
Id. par. 143
851
Id. par. 355
852
Id. par. 191

203
sua entidade substancial. O mal é uma negação do bem... O mal, portanto, não se

fundamenta em uma existência própria mas decorre da mutilação da alma”. E, em

nota, Jung esclarece que “Basílio é de opinião que as trevas do mundo são devidas à

sombra produzida pelo corpo do céu” 853 .

Esta “plenitude de vida”, na opinião de Jung, está em harmonizar o

Protestantismo com o Catolicismo, pois chega a sugerir que se pratique uma religião

que seja “meio-protestante e meio-católica”. 854

853
Id. par. 82
854
JUNG, C. G. – Ab-Reação, Análise dos Sonhos, Transferência. Petrópolis: Editora Vozes, 1990, par. 392

204
CONCLUSÃO:

Tendo feito uma busca cuidadosa no material disponível tanto biográfico,

quanto em alguns conceitos básicos da psicologia junguiana, ainda que

superficialmente, pois se trata de um acervo rico e vastíssimo, mas com interesse

muito grande de trazer alguma contribuição para compreendermos, pelo menos o

cerne do pensamento de Jung acerca do Protestantismo, percebe-se a relevância da

responsabilidade que cabe a este, enquanto fenômeno religioso, de ocupar-se da

subjetividade, enquanto elemento que permite ao ser humano contato com o

Sagrado.

Tivemos como objetivo maior reunir o maior número possível de textos que

tratam do tema Protestantismo como religião, procurando apresentar as

considerações de Jung a respeito. Não tivemos a pretensão de exaurir o assunto,

visto ser consideravelmente amplo, como indicam os seus variados textos.

Procuramos, em primeiro lugar, apresentar dados da biografia de Jung, tendo como

ponto de partida seu Memórias, Sonhos e Reflexões, com o intuito de apresentá-lo

ao leitor, deixando ao mesmo que busque conhecê-lo mais de perto.

Tendo nascido em berço protestante, Jung teve toda sua formação religiosa

calcada nos princípios desta religiosidade, apesar de perceber que suas experiências

eram diferentes e tornavam-no, em sua opinião, mais próximo das fontes históricas

que deram origem ao Protestantismo, pois percebia em seu pai, teólogo e ministro

luterano, algo incompatível com a mensagem cristã, devido ao seu temperamento

depressivo e irritadiço, e nos demais familiares, a mesma incongruência e

contradição com o espírito do Cristianismo. No entanto, para ele, estes conflitos, de

origem familiar, foram considerados como um “destino”, que se impusera, ao qual

205
deveria dar alguma resposta. Parece que Jung transfere tal “destino” a todos os

protestantes, que tal como ele, também, nos encontra sem a proteção dos muros da

ecclesia matter. Cabe-nos haver com a “má-consciência”, isto é, encaminharmos

eticamente nossas fraquezas pessoais, para a efetividade do fenômeno religioso,

como o encontro com o numem transformador que objetiva a plenitude de vida.

O mais importante a destacar foi o combate enérgico e incansável de Jung

contra as forças destruidoras do Protestantismo, como fenômeno religioso, pois

como tal não poderia ficar à mercê de forças contrárias e alheias, tais como o

Iluminismo, tão cruento em suas manifestações contra qualquer presença de

elementos subjetivos, que se manifestam vividamente, por serem partes intrínsecas

da natureza humana.

Tanto o Liberalismo Teológico, que iniciou o movimento do Criticismo Bíblico,

por acreditar que as Escrituras Sagradas não têm um “caráter divino”, isto é, não há

interferências do Divino na realidade histórica, quanto o Fundamentalismo Teológico,

que baniu a realidade simbólica e metafórica das Escrituras, elegendo a literalidade

das palavras têm em Jung um representante que, lucidamente, aponta seus limites,

apesar de arvorarem-se frutos do empenho racional dos homens.

Jung, assim, busca resgatar a naturalidade que o Protestantismo perdera ante

às formas que advogam uma fé sem esperança, que provoca vazio e uma perda de

sentido da própria existência. Cabe ao Protestantismo, se quiser sobreviver, saindo

da condição de “sementeira de cismas” para se estabelecer definitivamente como

Igreja Cristã, valer-se das manifestações do inconsciente, devido ao seu caráter

arquetípico, procurando encontrar nelas sua mais expressiva manifestação religiosa.

206
Jung é uma pedra rejeitada pelos construtores da casa, pois entrincheirados

com a verdade nos seus bunkers ideológicos, cientistas positivistas e religiosos

dogmáticos, são convocados por ele, a reunir a fé e a razão e a caminhar como

peregrinos em busca da totalidade.

Em se tratando de Protestantismo, o que menos se vê é o espírito de

peregrinação em busca da totalidade, ao contrário, estes parecem detentores da

verdade, esquecidos de sua origem histórica, datada do século XVI, sendo a

liberdade de consciência e a liberdade de pensamento, que sustentaram o

movimento que deu sua origem – “a liberdade de espírito que, como sabemos, só é

garantida no seio do protestantismo” 855 , – e que, infelizmente, caiu no que Jung

chamou de “doutrinarismo” que recusa a idéia de abertura a novas experiências,

antes, preferindo e optando, sem perceber que suas raízes históricas não são estas,

isto é, a preservação de uma “atitude unilateral”.

855
JUNG, C. G. – Resposta a Jó. Petrópolis: Editora Vozes, 1986. par.754

207
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