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FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

O REPOUSO DIVINO: SEU SIGNIFICADO NO ANTIGO


TESTAMENTO

Samuel Gomes de Araujo Fantazzini

SÃO PAULO

2023
Samuel Gomes de Araujo Fantazzini

O REPOUSO DIVINO: SEU SIGNIFICADO NO ANTIGO


TESTAMENTO

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


como requisito final no curso de Bacharel em
Teologia da Faculdade Teológica Batista de São
Paulo.

Orientador: Prof. Dr. Pedro Evaristo C. Santos

SÃO PAULO
2023
2

Fantazzini, Samuel
O repouso divino : seu significado no Antigo Testamento. / Samuel
Fantazzini. – São Paulo : Faculdade Teológica Batista, 2023
60 p.

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como exigência para a


conclusão do Curso de Bacharel em Teologia
Orientador Pedro Evaristo Conceição Santos

1 Sábado – Antigo Testamento. 2 Repouso divino. I. Título. II. Santos


Pedro Evaristo Conceição.

CDD 296.41
3

FACULDADE TEOLÓGICA BATISTA DE SÃO PAULO

Samuel Gomes de Araujo Fantazzini

O REPOUSO DIVINO: SEU SIGNIFICADO NO ANTIGO


TESTAMENTO

BANCA EXAMINADORA

Prof. Dr. Pedro Evaristo Conceição Santos – Orientador


Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Prof. Me. Joerley Orlando de Oliveira Cruz – Leitor


Faculdade Teológica Batista de São Paulo

Prof. Me. Marcos de Almeida – Coordenador Acadêmico


Faculdade Teológica Batista de São Paulo
4

DEDICATÓRIA

À minha esposa Rute


que sempre me iluminou e fortaleceu na execução deste trabalho e na vida em
todos os seus sentidos

Aos nossos filhos


que ainda virão e lerão este trabalho de seu pai

Aos meus pais Evandro e Fernanda


que me geraram, me amaram e me educaram nos caminhos de Cristo

Aos meus avós Ernani, Ivone, Luiz Alberto, Diná, Franklin e Maria Alice
que sempre deram todo o apoio à minha vida espiritual, familiar e profissional

Aos amados Rodrigo, Carmem, Família Bueno, Família Novaes, Leonardo, Daniel e Guilherme
que me ajudaram, me motivaram e me encorajaram a chegar até aqui

Ao Bendito Deus Triúno


que ilumina as nossas trevas para a Sua glória
5

AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha esposa Rute por tanto amor, apoio, refrigério, leveza, compreensão e
diálogos que me elucidaram o entendimento nesta caminhada tão intensa de pesquisa.

Dedico agradecimentos à minha família pelo auxílio de ordem espiritual e de outras


ordens que me sustentaram em todos os sentidos até aqui. Não sou digno da família que tenho.
Obrigado às famílias Fantazzini, Rovere, Gomes de Araujo, Bellatini, Shikanai, Sayão e Corrêa.

Agradecimentos e dedicação aos meus amados irmãos da Comunidade Vida Cristã não
somente pelo apoio em orações e ofertas como também por terem me ensinado o valor da
presença de Deus.

Minha sincera e mais profunda gratidão à Faculdade Teológica Batista de São Paulo, a
todos os professores e funcionários e, em especial, ao meu caro orientador Prof. Dr. Pedro
Santos, Alberto Kenji, Emmanuel Athayde, Marcos de Almeida, Jonas Machado, Luiz Sayão,
Miriam e Roberto por terem me proporcionado uma educação teológica valiosa que
transformou minha vida e meu ministério.

Agradeço à Igreja Batista da Liberdade por ter confiado em minha caminhada junto à
faculdade, dando oportunidade para que eu expressasse meu aprendizado teológico junto à
juventude da igreja.

Aos meus colegas e amigos de turma, um caloroso agradecimento por terem tornado
este curso um oásis em meio ao deserto deste mundo. Em meio a estas palavras, as lágrimas
molham meu rosto.

Aos meus amigos, familiares e irmãos em Cristo que sempre me fortaleceram com
palavras, orações e ofertas, deixo um muitíssimo obrigado por tudo o que fizeram para que eu
chegasse até aqui. Os nomes de todos vocês estão em meu coração.

Agradeço também ao Angelo Bazzo por me fornecer indicações e conceitos tão valiosos
para a minha vida e para este trabalho.

Por fim, e o mais importante, agradeço a Deus, o Senhor e Sustentador do Universo por
ter elaborado um plano tão insondável e tê-lo revelado a homens pecadores e desprezíveis como
eu.
6

RESUMO

Esta pesquisa visa propor um significado para o tema do repouso divino no Antigo Testamento.
A metodologia abordada foi teórica e analítica a partir de uma exegese do texto hebraico de
Gênesis 2.1-3, uma observação do assunto do repouso divino em textos no restante do Antigo
Testamento que direta ou indiretamente abordam o tema e uma análise contextual do repouso
divino no ambiente cognitivo do Antigo Oriente Próximo com base em textos religiosos e
criacionais egípcios, babilônicos e sumérios. Assim propõe-se que o significado do repouso
divino no Antigo Testamento seja não somente a cessação de atividade criadora, mas também a
presença habitante e reinante do criador sobre a sua criação. Ademais, a pesquisa demonstra a
expressiva importância do repouso divino para o entendimento do propósito da criação de
Gênesis e, consequentemente, de todo o Antigo Testamento. Dessa maneira, o presente trabalho
busca contribuir com o pensamento teológico brasileiro na área da teologia bíblica do Antigo
Testamento, sem desconsiderar o possível auxílio para a teologia sistemática, para a prática
eclesiástica cristã, para os estudos do Israel antigo e para a área de estudos comparados do
Antigo Oriente Próximo. Para a fundamentação teórica desta pesquisa foram consultadas obras
de relevância singular nas áreas de exegese do hebraico bíblico, teologia bíblica do Antigo
Testamento, contexto do Israel antigo, estudos comparados e literaturas religiosas do Antigo
Oriente Próximo. Portanto, esta pesquisa objetiva contribuir não apenas com o ambiente
acadêmico, mas também com o eclesiástico e, não menos importante, com o individual, isto é,
com todos aqueles que buscam um sentido para a vida; sentido este que, de acordo com o que
o texto bíblico defende, conforme demonstra esta pesquisa, é a presença habitante e reinante do
criador.

Palavras-chave: Repouso Divino. Presença. Habitação. Reino. Sábado. Antigo Testamento.


7

ABSTRACT

This research aims to propose a meaning for the theme of divine rest in the Old Testament. The
methodology employed was theoretical and analytical, starting with an exegesis of the Hebrew
text of Genesis 2:1-3, followed by the observation of the subject of divine rest in other texts
throughout the Old Testament that directly or indirectly address the theme, as well as a
contextual analysis of divine rest in the cognitive environment of the Ancient Near East, based
on Egyptian, Babylonian and Sumerian religious and creational texts. It is thus proposed that
the meaning of divine rest in the Old Testament is not merely the ceasing of creative activity
but also Creator's dwelling and reigning presence over his creation. Furthermore, the research
has shown the significant importance of divine rest for understanding the purpose of Genesis'
creation narrative and, consequently, of the entire Old Testament. In this way, this work seeks
to contribute to the brazilian theological thinking in the field of Old Testament biblical theology,
without neglecting the potential assistance to systematic theology, Christian ecclesiastical
practice, studies of ancient Israel, and comparative studies of the Ancient Near East. As
theoretical foundation for this research, works of singular relevance were consulted in the areas
of biblical Hebrew exegesis, Old Testament biblical theology, the context of ancient Israel,
comparative studies and religious literature of the Ancient Near East. Finally, this research aims
to not only serve the academic environment, but also the ecclesiastical and, not least, the
individual one, that is, all those who seek meaning in life; which is, according to the biblical
text and demonstrated in this study, is the dwelling and reigning presence of the Creator.

Keywords: Divine Rest. Presence. Dwelling. Kingdom. Sabbath. Old Testament.


8

“...a Presença de Deus é o sentido da história e


o anseio mais profundo do coração humano.”
(Angelo Bazzo)

“... e é essa a verdadeira História que dá sentido


a todas as outras. É o Arquétipo no qual todas as
histórias têm a sua fonte e para a qual todas elas
apontam... Ela tem esse breve relance da
Verdadeira Alegria para a qual todas as outras
alegrias não são nada mais do que ecos
distantes...tem tudo o que o coração humano
deseja, pois foi contada por Aquele que é a
satisfação do próprio desejo.” (J. R. R. Tolkien)
9

SUMÁRIO

Introdução....................................................................................................................10

CAP. 1 – O REPOUSO DIVINO EM GÊNESIS 2.1-3...............................................15

1.1 – O contexto literário de Gênesis 1.1- 2.3..................................................19


1.2 – Tradução e comentário exegético de Gênesis 2.1-3................................21
1.2.1 – A completude da criação............................................................22
1.2.2 – A completude do criador............................................................23
1.2.3 – O repouso....................................................................................27
1.2.4 – A benção e a consagração...........................................................31
1.2.5 – A causa da benção e da consagração..........................................33
1.3 – O significado do repouso divino em Gênesis 2.1-3................................33

CAP. 2 – O REPOUSO DIVINO NA TANAKH.........................................................35

2.1 – Na Torah: o Shabat e o governo de Deus.................................................35


2.2 – Nos Nevi’ym: a criação, a nova criação e o governo escatológico.........41
2.3 – Nos Ketuvim: adoração, habitação e governo messiânico.....................46

CAP. 3 – O REPOUSO DIVINO NO AMBIENTE COGNITIVO DO ANTIGO


ORIENTE PRÓXIMO................................................................................................49

3.1 – Na Literatura Egípcia.............................................................................49


3.2 – No Hino do Templo de Kês (Literatura Suméria)..................................52
3.3 – No Enuma Elish (Literatura Babilônica)...............................................53

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................56

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................58
10

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa abordará o tema do significado do repouso divino no Antigo Testamento.


A compreensão desse tópico será buscada através de uma exegese do texto hebraico de Gênesis
2.1-3, de uma análise da importância do repouso divino no Antigo Testamento e da observação
e extração do sentido do repouso divino em relatos de criação do Antigo Oriente Próximo.

Em face disto, uma pergunta central é levantada: qual é o significado do repouso divino
no Antigo Testamento? Para responder este questionamento diversas outras perguntas devem
ser suscitadas e respondidas. No primeiro capítulo esta pesquisa buscará responder à seguinte
problemática: qual a ideia exegética central de Gênesis 2.1-3? Para respondê-la, outras
perguntas também serão investigadas, tais como: é possível extrair um significado do repouso
divino a partir de Gênesis 2.1-3? Se sim, qual? Qual a importância do repouso divino no
primeiro relato (1.1 – 2.3)? O repouso divino pode se relacionar com o propósito da criação?

No segundo capítulo, procurar-se-á responder ao seguinte questionamento central: qual


é o significado do repouso divino na Lei, nos Profetas e nos Escritos? Com vistas à resolução
desta problemática, é importante buscar as respostas de outros questionamentos, tais como:
quais textos tocam no assunto do repouso divino, direta ou indiretamente? Qual a relação do
repouso divino com o Shabat? De que maneira o conceito do repouso divino de Gênesis 2.1-3
influenciou o entendimento do propósito divino da criação no Antigo Testamento? Qual a
importância do repouso divino nos textos abordados para o entendimento do propósito da
criação?

Por fim, no terceiro capítulo, esta pesquisa considerou importante a resolução do


seguinte problema: qual conceito de repouso divino é possível ser observado no contexto do
Antigo Oriente Próximo a fim de ampliar a compreensão do ambiente cognitivo do Israel
antigo? Para encontrar uma solução será necessário responder às seguintes perguntas: em qual
contexto do Antigo Oriente Israel estava inserido na ocasião da redação do Pentateuco? Quais
civilizações podem ter influenciado a cosmovisão israelita? Quais relatos destas civilizações
podem contribuir para a compreensão do repouso divino para o Antigo Testamento? Há alguma
ideia comum acerca do repouso divino no contexto cultural do Israel antigo? Se sim, qual?

O interesse desta pesquisa surgiu do seguinte questionamento: qual seria o propósito


supremo divino de toda a história bíblica? Esta pergunta somada à minha admiração pela língua,
ambiente, contexto, história, cosmovisão e teologia do Antigo Testamento e à riqueza
11

epistemológica, para a teologia bíblica, que o Gênesis oferece, me conduziu a um caminho de


busca pela teodiceia da cosmogonia e da escatologia bíblicas. Ao utilizar a palavra “teodiceia”,
não me refiro à disciplina que visa a justificação de Deus diante do mal e sim ao seu próprio
sentido etimológico, olhando para os princípios que regem as justas razões e propósitos de Deus
para a sua criação a partir do texto bíblico.

A reflexão sobre as origens do cosmos e da humanidade permeia o pensamento humano


desde sempre, inclusive o meu. Os homens sempre buscaram encontrar sentido para a existência
e para a história, sendo esta reflexão uma das maiores indagações filosóficas da humanidade.
Pequenas respostas a esta indagação já foram responsáveis pela transformação de indivíduos,
grupos e civilizações. Portanto, uma ínfima proposta de solução a esse questionamento já pode
ser considerada relevante, ao menos para o diálogo. Assim, a compreensão da maneira como o
Israel antigo pensava essa questão, se é que pensava, pode contribuir com esse diálogo. Além
disso, o estudo do texto bíblico é um dos primeiros passos para obter esta compreensão.

A localização do assunto específico do repouso divino está no último (sétimo) dia do


primeiro relato criacional de Gênesis (1.1 – 2.3) o que parece indicar um lugar de destaque na
mente do autor bíblico. Além disso, o repouso divino continua no restante do Antigo Testamento
(e.g. Êxodo 20; Salmos 95; Isaías 66) e no Novo Testamento (e.g. Hebreus 4) a ser abordado,
ou no mínimo mencionado, além de a sua relação com o mandamento sabático que permeia
todo o Antigo Testamento. Outros povos ao redor de Israel, como evidenciará esta pesquisa,
também mencionam o repouso divino num lugar de consumação da criação como é o caso do
Enuma Elish, conforme apresenta Walton (2009, p. 75), e do Hino do Templo de Kês1

A análise exegética de Gênesis 2.1-3 será fundamental para extrair os princípios


fundantes do conceito de repouso divino para o Antigo Testamento. Toda a Bíblia tem como
início o relato criacional de Gênesis. E este relato tem como consumação o sétimo dia, isto é, o
repouso divino. Entender o seu significado por meio de uma exegese gramático-histórico-
contextual parece ser a maneira mais segura de extrair estes princípios.

Além do texto-chave para o entendimento do repouso divino (Gn 2.1-3), é necessário


observar outros textos do Antigo Testamento que façam menção direta ou indireta ao texto de
Gn 2.1-3 ou ao repouso divino. A seleção destes textos se deu por meio de ampla pesquisa dos
termos, termos derivados, conceitos semelhantes, construções sintáticas semelhantes e outras

1
Disponível em: <https://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section4/tr4802.htm> Acesso em 7 de dezembro de 2023
12

referências que se apresentam no restante do Antigo Testamento. Dessa maneira será possível
observar os diversos conceitos ligados ao repouso divino que permeiam os muitos textos do
Antigo Testamento.

O Antigo Testamento foi escrito no contexto do Antigo Oriente Próximo. Observar sua
cosmovisão especialmente relacionada ao tema proposto nesta pesquisa é de valor essencial
para a compreensão mais detalhada do pensamento antigo e de sua influência no texto
veterotestamentário. Por isso, considerando os povos vizinhos a Israel nos tempos de possível
redação do Antigo Testamento, é importante a análise de relatos de criação de povos como os
egípcios, os babilônios e os sumérios.

Assim, parece não recomendável que o estudo de teologia bíblica ignore ou


simplesmente deduza a interpretação do significado e da relevância deste assunto reduzindo,
muitas vezes, o significado do sétimo dia a apenas uma prévia explicação da razão do Shabat.
Do material consultado previamente como inspiração para esta pesquisa, pouca ênfase foi dada
na questão do repouso divino com exceção das obras The Lost World of Genesis One, de Walton
e O Templo e a Missão da Igreja: uma teologia bíblica sobre o lugar da habitação de Deus, de
Beale. Estas obras tratam da questão do repouso divino relacionado à presença habitante e
reinante de Deus na criação e abriram as janelas para esta pesquisa. Walton defende que a
criação divina tem como finalidade a “templificação” do Cosmos, enquanto Beale trabalha mais
o tema da habitação de Deus como centro da teologia bíblica. Entretanto, suas obras não
trabalham exaustivamente o significado mais específico do repouso divino. Isso me motivou a
iniciar uma pesquisa, paulatinamente, desde o começo (Gênesis) sobre qual seria o significado
do repouso divino. Contudo, esta pesquisa não se compromete a analisar exaustivamente o
assunto, mas apenas a iniciar esta reflexão.

Além disso, situar o texto bíblico em seu contexto mais amplo da época permitirá uma
análise enriquecida, a partir de semelhanças e contrastes, do significado do repouso divino,
sendo ele moldado ou influenciado pelas crenças e tradições da época. Para o estudo de religiões
antigas, este trabalho pode auxiliar outros que, de modo semelhante, utilizam pesquisas sobre
religiões que permeavam a religião em análise, isto é, o objeto principal de estudo.

Em suma, a reflexão acerca deste assunto pode emprestar alguma inspiração para o
diálogo que visa uma compreensão ampliada do texto bíblico, seu contexto e sua interpretação;
um enriquecimento das informações referentes à cosmovisão de culturas antigas, especialmente
13

a israelita, que visa também a reflexão filosófica do sentido da existência humana e da história
e, por fim, o desenvolvimento de perspectivas relevantes para a relação divino-humana.

Diante disso, esta pesquisa terá como objetivo macro propor um significado do repouso
divino extraído a partir de uma compreensão do texto e do contexto do Antigo Testamento.
Pretende-se realizar esta proposição durante toda a pesquisa, ainda que ela seja efetivamente
explanada no terceiro capítulo e nas considerações finais.

A fim de alcançar esse objetivo, este trabalho buscará, num primeiro momento, extrair,
por meio da exegese a ideia central de Gênesis 2.1-3 e analisar o significado e o propósito do
repouso divino neste texto. Em seguida é feita uma observação panorâmica do repouso divino
e seus desdobramentos no restante do Antigo Testamento com o objetivo de examinar o conceito
de repouso divino na Tanakh. Por fim, no terceiro capítulo, uma comparação dos relatos
criacionais extrabíblicos com o relato bíblico servirá para a compreensão do conceito de
repouso divino no ambiente cognitivo do Antigo Oriente Próximo.

A presente pesquisa tem como hipótese central que o significado do repouso divino para
o Antigo Testamento seja a presença habitante e reinante de Deus sobre a criação e que o
repouso divino transcende os tradicionais sentidos comumente atribuídos a ele, isto é, de que
se refira tão somente à fundamentação do Shabat ou à abstenção de trabalho. É evidente que
estes sentidos estão presentes em Gênesis 2.1-3, mas esta pesquisa sugere que seu sentido seja
mais amplo, envolvendo o propósito supremo de Javé para a criação revelado no Antigo
Testamento.

A pesquisa também postula que o conceito do repouso divino não se limita ao relato
criacional, mas que o relato de Gênesis oferece um princípio que permeia todo o restante do
Antigo Testamento. Nesse quesito, a pesquisa propõe que o conceito do repouso divino no
Antigo Testamento signifique a presença habitante e reinante de Javé no templo, mas que visa,
como um propósito, a presença habitante e reinante de Javé sobre toda a criação conforme
defendem Walton e Beale.

Por fim, observando a ideia do repouso divino em outras civilizações circunvizinhas ao


Israel antigo, este trabalho também defende que as culturas antigas tinham como entendimento
comum acerca do repouso divino a habitação e o reinado divino em suas criações.
14

A pesquisa terá como fundamento o texto hebraico massorético da Bíblia Hebraica


Stuttgartensia (5ª edição). A fim de um melhor embasamento exegético na compreensão do
texto de Gênesis 2.1-3 em seu contexto serão utilizadas literaturas de referência no estudo
exegético de Gênesis, tais como: The Book of Genesis: Chapters 1-17, de Victor Hamilton;
Comentários do Antigo Testamento – Gênesis, de Bruce Waltke e World Biblical Commentary:
Genesis 1-15, de Gordon Wenham. Também servirá de base contextual e hermenêutica o livro
The Lost World of Genesis One, de John Walton. Além disso o apoio em dicionários de teologias
como o Dicionário Internacional de Teologia do Antigo Testamento, de Harris; Archer e Waltke
e o Novo Dicionário Internacional de Teologia e Exegese do Antigo Testamento, de Willem
VanGemeren serão imprescindíveis.

Para o estudo do conceito de repouso divino no Antigo Testamento de forma


panorâmica, serão consultados exegetas dos livros bíblicos que contenham trechos que serão
observados neste capítulo, tais como, Victor Hamilton, R. K. Harrison, Peter Craigie, John
Taylor, Gordon Wenham, J. Ridderbos, Joyce Baldwin, Donald Wiseman, Richard Pratt Jr. e
Luis Alonso Shökel.

Por fim, para o estudo comparado do conceito de repouso divino no Antigo Testamento
com o dos outros povos ao redor de Israel, serão vistas as seguintes obras de referências na área
dos estudos comparados: The Search For God in Ancient Egypt, de Jan Assman; Creation
Accounts in the Ancient Near East and in the Bible de Richard. J. Clifford; The Lost World of
Genesis One e O Pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento: introdução
ao mundo conceitual da Bíblia hebraica, ambos de John H. Walton.
15

CAPÍTULO 1

O REPOUSO DIVINO EM GÊNESIS 2.1-3

O repouso divino tem a sua primeira menção na Bíblia Hebraica em Gênesis 2.1-3, no
sétimo dia da criação. Além do relato criacional, o assunto deste repouso permeia as demais
páginas da Tanakh, encontrando sua consumação no contexto profético e escatológico,
conforme esta pesquisa mostrará no capítulo dois. Entretanto a base que dá início ao conceito
de repouso divino na Tanakh é o texto de Gênesis 2.1-3. Desse modo, para que se possa analisar
o conceito de repouso divino no texto em questão, a observação do contexto de Gênesis 1 e 2 é
seguida de uma tradução do primeiro relato (Gênesis 1.1 - 2.3), uma análise sintática das
orações, uma interpretação do texto e sua relação com o propósito almejado por esta pesquisa.

Quanto à tradução, esta teve por objetivo central o reconhecimento do texto em suas
estruturas gramaticais e sintáticas originais. Sabe-se da impossibilidade de tal realização ao se
tratar de uma comparação entre línguas cujos abismos temporais, históricos, estruturais,
geográficos e culturais são expressivamente grandes. Assim, visando uma aproximação da
língua portuguesa para com o texto hebraico de Gênesis 2.1-3, optou-se por seguir uma
metodologia de tradução literal, o que pode, em alguns momentos, acabar ferindo a norma
padrão da língua portuguesa. As escolhas tradutórias serão explicadas nas notas de rodapé.

Após a tradução, seguiremos à separação das orações de Gn2 2.1-3. Esta separação visa
a compreensão específica das estruturas sintáticas ao tornar claras as funções sintáticas de cada
expressão da frase. Abaixo da tradução, o comentário exegético buscará a explicação de seu
significado e a proposição de suas ideias centrais a fim de encontrarmos a ideia exegética central
de toda a perícope.

2
A partir de agora adotar-se-á a abreviação “Gn” para “Gênesis”.
16

Tradução3 de Gn 1.1 – 2.3:

No4 princípio, criou5 ’elohim6 os Céus e a Terra.

E7 a terra era8 um caos e um deserto9 e havia escuridão sobre a face do abismo10 e o


espírito11 de ’elohim pairava sobre a face das águas. E disse ’elohim: “Exista12 luz”, e existiu
luz e viu ’elohim a luz, que era boa e distinguiu13 entre a luz e entre a escuridão. E nomeou14
’elohim à luz, “Dia” e à escuridão, nomeou “Noite.” E existiu tarde e existiu manhã: Dia um.

3
Tradução feita pelo autor da presente pesquisa a partir do Texto Massorético da Bíblia Hebraica Stuttgartensia
(5ª edição)
4
Esta tradução considera o v. 1 como uma oração completa, independente e introdutória (como em Gn 2.4),
conforme defendem Wenham (1987, p. 51-56) e Walton (2001, p. 74-75). De acordo, também, com Hamilton
(1990, p. 126), “a ausência do artigo não é um argumento definitivo contra a interpretação da palavra como
absoluta. [...] Isaías 46.10 utiliza ‫אשית‬
ִׁ ‫ ֵר‬em sentido absoluto nos fornecendo uma ilustração desta palavra tanto
em sentido absoluto quanto indeterminado sendo, portanto, um paralelo exato com Gn 1:1”
5
Esta tradução adotará o uso de criar para ‫ בָּ ָּרא‬e fazer para ‫עָּשָּׂ ה‬.
6
Considerando a complexidade numérica (e, também, etimológica) do termo ‫אֱֹלהִׁ ים‬, decidiu-se por usar a
transliteração em detrimento da tradução.
7
Adota-se aqui que o waw seja conjuntivo, usando a terminologia de Waltke (2006, cap. 32 e 33), e não conversivo,
sendo, portanto, introdutório. Para mais detalhes, ver Hamilton (1990, p. 133).
8
Já que a construção do v. 2 é a de uma oração disjuntiva somado ao uso de ‫הָּ י ָּ ְָ֥תה‬ (no tempo perfeito), esta
tradução optou por traduzir ‫יְתה‬
ָ֥ ָּ ָּ‫ ה‬num sentido estativo e não fientivo. Para mais detalhes, ver novamente Hamilton
(1990, p. 133) e Wenham (1987, p. 56).
9
As opções por caos para ‫ ֹ֨תהו‬e deserto para ‫ ֹ֔בהו‬foram escolhidas com vistas à comunicação completa dos
sentidos de vastidão, desordem, nulidade e vazio conforme apontam Schökel (1997, p. 697) e Hamilton (1990, p.
127). Também foi considerado o sentido funcional de improdutividade defendido por Walton (2009, p. 46-49).
Ainda que ‫ ֹ֨תהו‬se aproxime mais da expressão “deserto” (por causa do ugarítico) do que ‫( ֹ֔בהו‬que pode ter o seu
sentido mais próximo de vazio) as expressões devem ser lidas em conjunto para se obter o sentido completo. Além
disso, os sentidos de organização e enchimento, respectivamente, fazem mais sentido com a criação dos dias que
se seguirão na narrativa em sua ordem organizacional e habitacional.
10
Para o uso de “abismo” em detrimento de “oceano” ver Hamilton (1990, p. 129)
11
No Pentateuco a expressão ‫ֱֹלהים‬
ִֹׁ֔ ‫ ֣רוח א‬com referência ao próprio Deus (Javé) só aparece em Gn 1.2; Êxodo
31.3; Êxodo 35.31 e Números 24.2. Em todas elas, o sentido é positivo e indica controle soberano de Deus.
Conforme apresenta Hamilton (1990, p. 129), depois de Gn 1.2, “... a próxima aparição desta frase é Êxodo. 31:3,
onde Bezalel é preenchido com ‫ֱֹלהים‬
ִֹׁ֔ ‫ ֣רוח א‬para ser equipado para construir o tabernáculo. [...] Esta frase-chave
une, por meio de uma alusão intertextual, o mundo e a construção do tabernáculo, a criação de um mundo e a
criação de um santuário. É muito improvável, portanto, que a frase seja lida negativamente em Gn 1 e
positivamente em Êxodo 31.” Por esses motivos, a escolha para esta tradução foi espírito.
12
Entende-se que existir como tradução de algumas das aparições de ‫ היה‬em Gênesis denota, com mais precisão,
a ontologia funcional da criação conforme apresenta Walton (2009, cap. 2-4). O uso do jussivo aqui traz a
conotação de ordem. Para mais detalhes, ver Waltke (2006, p. 568).
13
Considera-se aqui que distinguir comunica melhor a funcionalidade da separação. Para mais detalhes, ver
Wenham (1987, p. 59).
14
Nomear traz consigo os sentidos de domínio e de designação funcional, os quais estão muito presentes em
Gênesis (2.19; 17.5; 32.27). Ver Wenham (1987, p. 59) e Walton (2009, p. 29)
17

E disse ’elohim: “Exista expansão celeste15 no meio das águas e exista distinguindo entre
águas de águas.” E fez ’elohim a expansão e distinguiu entre as águas que existem debaixo da
expansão e entre as águas que existem acima da expansão. E existiu assim. E nomeou ’elohim,
à expansão, “Céus.” E existiu tarde e existiu manhã: Dia dois.

E disse ’elohim: “Agrupem-se as águas que existem debaixo dos Céus para um só lugar
e apareça a parte seca.” E existiu assim. E nomeou ’elohim à parte seca, “Terra” e ao
agrupamento das águas, “Mares.” E viu ’elohim que era bom. E disse ’elohim: “Vegete a Terra
de vegetação produzindo semente, árvore de fruto,16 fazendo17 fruto de acordo com seu tipo18
cuja semente sua exista em cima da Terra. E existiu assim. E fez sair a Terra, vegetação
produzindo semente do seu tipo, árvore fazendo fruto de semente de acordo com seu tipo. E viu
’elohim que era bom. E existiu tarde e existiu manhã: Dia três.

E disse ’elohim: “Existam luzeiros na expansão dos Céus para distinguir entre o Dia e
entre a Noite, e existam para sinais e para estações e para dias e para anos e existam para luzeiros
na expansão dos Céus para iluminar, acima, a Terra.” E existiu assim. E fez ’elohim dois, os
luzeiros, os grandes; o luzeiro o maior para o governo do Dia e o luzeiro o menor para governo
da Noite e as estrelas. E colocou-os, ’elohim, na expansão dos Céus para lumiar, acima, a Terra
e para governar no Dia e na Noite e para distinguir entre a luz e entre as trevas. E viu ’elohim
que era bom. E existiu tarde e existiu manhã: Dia quatro.

E disse ’elohim: “Fervilhem das águas seres de fôlego vivente e aves voem acima da
Terra, acima na face da expansão dos Céus.” E criou ’elohim os monstros marinhos os maiores
e todos os de fôlego vivente, os que deslizam, os que fervilham as águas, de acordo com seus
tipos; e toda ave com asa, de acordo com seu tipo. E viu ’elohim que era bom. E abençoou-os
’elohim dizendo: “Sede férteis e multiplicai e preenchei as águas nos mares e as aves
multipliquem na Terra. E existiu tarde e existiu manhã: Dia cinco.

E disse ’elohim: “Faça sair a Terra, fôlego vivente de acordo com seu tipo, animal
doméstico e animal rastejante e animal selvagem da Terra, de acordo com seu tipo.” E existiu
assim. E fez ’elohim animal selvagem da Terra, de acordo com seu tipo e animal doméstico, de

15
A tradução expansão celeste para ‫ ָּר ִׁ ִ֖קיע‬tem como base a sua raiz (malhar, prato batido e estender) segundo
Tsumura (2011, vol. 3, p. 1191) e entendimento primitivo (vastidão) segundo Payne (1998, p. 1455).
16
Ou, frutíferas.
17
O texto parece indicar que ainda usa como sujeito a Terra.
18
Considerando que a palavra espécie traz consigo um sentido científico moderno, optou-se pela palavra tipo.
18

acordo com seu tipo e todo animal rastejante do solo de acordo com seu tipo. E viu ’elohim que
era bom. E disse ’elohim: “Façamos o ser humano com imagem Nossa, como semelhança Nossa
e senhoreiem sobre peixe do mar e sobre ave dos Céus e sobre animal doméstico e sobre a toda
a Terra e sobre todo animal rastejante que rasteja sobre a Terra.” E criou ’elohim o ser humano
com Sua imagem, com imagem de ’elohim criou-o, macho e fêmea criou-os. E abençoou-os
’elohim. E disse a eles ’elohim: “Sede férteis e multiplicai e preenchei a Terra e submetei-a vós
e senhoreai sobre peixe do mar e sobre ave dos Céus e sobre todo animal selvagem que se move
sobre a Terra. E disse ’elohim: “Eis que vos dou toda erva produzindo semente que existe sobre
as faces de toda a erra e toda a árvore que nela exista fruto da árvore produzindo semente para
vós exista como alimento. E, para todo animal selvagem da Terra e para toda ave dos céus e
para todo que rasteja sobre a Terra que exista em si fôlego vivente, exista toda relva e erva como
alimento. E existiu assim. E viu ’elohim tudo o que fez e eis muito bom. E existiu tarde e existiu
manhã: Dia seis.

E foram completados19 os Céus e a Terra e todo o serviço20 deles. E completou ’elohim


no Dia Sétimo21 a Sua obra22 que fez e repousou23 no Dia Sétimo24 de toda Sua obra que fez. E
abençoou25 ’elohim o Dia, o Sétimo, e consagrou-o26, porque nele repousou de toda Sua obra
que criou ’elohim ao fazer.

19
O uso afirmativo de ‫ ָּכלָּה‬somado ao uso da palavra ‫שבִׁ יעִׁ י‬
ְ na oração traz o sentido de completude e finalidade
de todo o processo conduzido até a sua consumação. Cf. Domeris e Van Dam (2011, vol. 2, p. 641), Oswalt (1998,
p. 719) e Cohen (1998, p. 1514).
20
Considerando um sentido mais amplo da palavra ‫ צָּ בָּ א‬preferiu-se traduzir por “serviço”, incluindo assim, além
do sentido militar o sentido funcional da criação que é entregue a ela por todo o capítulo 1.
21
Esta tradução optou por seguir o Texto Massorético, entendendo que a opção da Septuaginta, “sexto”, pode ter
sido escolhida por convenção dos tradutores em salvaguardar o texto da ideia de que Deus possa ter trabalhado no
sétimo dia.
22
Visto que a palavra ‫ ְמלָּאכָּה‬deve ser contrastada com ‫ עָּמָּ ל‬e ‫ ְיגִׁ יע‬, optou-se por traduzir pela palavra "obra" a
fim de não trazer qualquer sentido negativo; antes comunicar o sentido habilidoso da palavra. Cf. Bowling (1998,
p. 763) e Hague (2011, vol. 2, p. 942)
23
Preferiu-se a palavra “repousar” a “descansar” a fim de evitar a ideia de algum possível cansaço em Deus, já
que, a palavra ‫ שָּ בת‬tem como sentido mais próximo a cessação de atividade, isto é, a conclusão e término de uma
obra do que o descansar de um trabalho fatigoso, conforme apresenta Hamilton (1998, p. 1520).
24
Cf. Shökel (1997, p. 655)
25
“Abençoar no AT quer dizer ‘conceder poder para alcançar sucesso, prosperidade, fecundidade, longevidade,
etc.’ ” (OSWALT, 1998, p. 220).
26
“No piel a palavra é usada na maioria das vezes para designar o ato de consagração. Em Êxodo 19.23 a
consagração do monte Sinai, mediante o estabelecimento de limites ao seu redor, serviu para manter à distância
tudo o que poderia ter profanado a santa presença de Deus.” (MCCOMISKEY, 1998, p. 1321).
19

1.1. O Contexto literário de Gênesis 1.1 – 2.3

O livro de Gênesis é uma grande narrativa hebraica antiga. Como apontam Dillard e
Longman:

De fato, é um livro dos primórdios ou "origens" como sugere o seu título em


português, Gênesis, derivado da Septuaginta (sendo Gn 2.4a a sua provável fonte).
Embora com pouca frequência citado em outros lugares, o livro é fundamental para o
restante da Torá (os primeiros cinco livros da Bíblia), para o Antigo Testamento e
mesmo para o Novo Testamento. (2006, p. 37)

Adota-se nesta pesquisa a autoria mosaica do Gênesis, sem desconsiderar a grande


probabilidade de o texto ter passado por alguns processos editoriais ao longo do tempo.
Conforme Hill e Walton:

O livro de Gênesis não identifica seu autor, e nenhum outro livro bíblico afirma
explicitamente sua autoria. Tradicionalmente, ele é atribuído a Moisés, e há bons
motivos para isso. Os outros livros da Torá vinculam Moisés à sua composição, e a
maior parte da literatura bíblica analisa a Torá como uma unidade. Portanto, é
completamente aceitável que Moisés se tenha tornado autor do conjunto. Como já se
comentou muitas vezes, quem melhor que ele para reunir o livro do Princípio? (2006,
p. 71)

Dessa maneira, o texto comunica primeiramente a escravos recém libertos do Egito,


onde viveram por mais de 400 anos segundo o Livro do Êxodo. De acordo com John Bright,
“como, qualquer que seja a interpretação que se lhes dê, os acontecimentos do cativeiro do
Egito, o êxodo e a conquista devem cair no período do Império Egípcio — isto é, na Última
Idade do Bronze (1550-1200, aproximadamente)” (1978, p. 135). Em segundo lugar o texto fala
a um povo que é rodeado de outros povos como os babilônios, sumérios, assírios e outros; povos
estes que mantiveram contato com Israel por muito tempo. Estas considerações nos auxiliarão
no entendimento da cosmovisão presente no Gênesis.

O texto do Gênesis é claramente dividido em narrativas menores por sua própria marca

literária, ְ‫תֹולְ ֧דֹות‬, presente em Gn 2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10; 11.27; 25.12; 25.19; 36.1; 37.2.
Esta marca define os momentos de transição literária do texto ao apontar para possíveis origens
das informações obtidas pelo autor ou significando apenas o objeto sobre quem o autor está
circundando a sua narrativa. Ela não aparece no primeiro versículo do capítulo 1; sua primeira
aparição é em Gn 2.4, marcando o início da próxima seção e, consequentemente, o fim da seção
estudada nesta pesquisa.
20

Desse modo, seguindo a proposta de Hamilton (1990, p. 19), de que o toledoth de 2.4 é
um sobrescrito de 2.4 a 4.26, a seção de 1.1 – 2.3 se encaixa perfeitamente como uma introdução
ao livro do Gênesis. Se este é um livro que relata as origens do povo hebreu, das nações, dos
territórios, da religião israelita, dos problemas, dos sofrimentos, da morte e outros, então julga-
se coerente a decisão do autor de relatar a origem de tudo. E neste propósito o autor inicia seu
texto com: “No princípio, criou ’elohim os Céus e a Terra.” Como abertura titular de seu texto,
o autor resume o que vai falar adiante.

Conforme defende Walton em seu livro The Lost World of Genesis One, a preocupação
inerente ao povo antigo do Oriente Próximo não era com a ontologia das coisas, mas sim com
suas funções. Tendo em vista que este padrão também é encontrado nos escritos bíblicos, como
apresenta Walton (2009, cap. 1), não é inesperado que Gênesis 1.1 – 2.4 também busque dar
sentido funcional a tudo o que os ouvintes primeiros veem, tocam, ouvem e sentem. Por isso, o
relato das origens não enfoca em responder a perguntas científicas dos tempos modernos, ainda
que indiretamente também possa responder. Antes, busca responder ao “para quê” tudo foi
criado por ’elohim.

Observando o relato criacional de Gn 1.1 – 2.4, percebe-se que o autor busca dar sentido
funcional à criação de ’elohim. Como no exemplo observado por Walton (2009, cap. 5 e 6), a
preocupação principal do autor em relatar o dia 1 é dar suas funções temporais. No dia 2, as
funções climáticas. E por fim, no dia 3, as alimentares. E se nos três primeiros dias encontramos
as funções da criação, nos últimos três encontramos seus funcionários.

Este primeiro relato criacional é panorâmico e pouco detalhado. Se comparamos a


criação do ser humano no dia seis deste relato com a especificação do primeiro toledoth (2.4-
4.26), vemos o contraste. Por isso, notamos que a intenção do autor é introduzir o assunto das
origens do mundo de seus ouvintes dando-lhes uma visão panorâmica e precisa da função de
cada coisa.

O autor inicia defendendo que ’elohim (mais tarde identificado como Javé) é o criador
de tudo o que os seus ouvintes veem. ’elohim é retratado neste relato como um ser soberano e
transcendente que além de trazer à existência o mundo, lhe confere uma função. Como afirmam
Hill e Walton, “Ele é apresentado como o criador soberano do mundo feito especialmente para
a habitação humana.” (2006, p. 76). A soberania de ’elohim é percebida pela obediência de sua
criação à sua palavra. A fórmula “e Deus disse” se repete por todo o relato, exceto no dia sétimo,
21

enfatizando a soberania reinante do Criador. Dillard e Longman também afirmam que, “a


criação é descrita de tal forma a apresentar Deus como a causa exclusiva por trás da criação do
universo e da humanidade. Gênesis 1 e 2 revelam que Deus é o Criador poderoso e também que
homens e mulheres são criaturas dependentes dele.” (2006, p. 52).

O texto caminha então pela criação de ’elohim da luz, dos dias, noites, sol, lua e estrelas
com ênfase no propósito delimitador do tempo para os seres humanos que serão criados no dia
seis. A correspondência dos dias 1 e 4, 2 e 5 e 3 e 6 indica um possível ajuste de ’elohim à
situação desordenada e desabitada do verso 2. Com a ordenação das águas dos Céus e das águas
da Terra no segundo dia, vem a habitação dos seres marinhos e das aves no quinto dia. E com
o ajuste da desordem entre terras e águas, ’elohim traz à existência as plantas, os animais e o
homem.

No dia seis, o ser humano é criado como coroa desta criação. O mandamento e a benção
da multiplicação e do enchimento da terra é dado aos animais e ao homem, mas somente do
homem, ’elohim diz: “Façamos o ser humano com imagem Nossa, como semelhança Nossa...”
e o texto rapidamente explica o seu sentido, isto é, “senhoreiem sobre peixe do mar e sobre ave
dos Céus e sobre animal doméstico e sobre a toda a Terra e sobre todo animal rastejante que
rasteja sobre a Terra.” O autor expõe que à semelhança do reinado de ’elohim sobre a sua
criação, o homem também deveria senhorear sobre a criação. O sexto dia se apresenta como
um dia especial em relação aos demais. Todos os outros dias foram uma preparação para este
domínio, à imagem divina, do ser humano sobre a criação e por isso a nota diferenciada de
soma de todas as notas anteriores de aprovação: “E viu ’elohim tudo o que fez e eis muito bom.”

Dessa maneira, o foco do relato até aqui é revelar o propósito de ’elohim para a criação,
o qual é preparar todas as coisas para o reinado do ser humano sobre a criação por meio da
imagem divina e da bênção divina da fertilidade. Mas o propósito deste reinado será respondido
no Dia Sétimo que analisaremos agora oração por oração.

1.2. Tradução e Comentário

A seção do Dia Sétimo pode ser dividida em cinco orações principais marcadas pela

conjunção ‫ ו‬e duas orações subordinadas à última principal. Portanto, analisaremos as 5


orações por meio de tradução e comentário.
22

1.2.1. A Completude da Criação

Tradução:

27
E foram completados os Céus e a Terra e todo o serviço deles

Comentário:

A primeira oração vem logo em seguida à aprovação de ’elohim acerca do sexto dia,
aqui o autor inicia sua conclusão do primeiro relato. Depois de haver descrito a criação de

’elohim dos céus e da terra, ele aponta para a sua consumação utilizando o verbo ‫ ָּכלָּה‬no seu
tronco pual, indicando a passividade dos sujeitos Céus e Terra, visto que, são retratados como
simples obras de ’elohim se comparadas ao seu Criador que cria todas as coisas com facilidade
e por meio de sua palavra. Conforme assinalam Domeris e Van Damee:

O término de projetos como o tabernáculo (Êx 39.32) e o templo (1 Rs 6.38) sugere


um significado como o português “completo”, com o sentido de uma conclusão bem-
sucedida para um importante trabalho. O termo klh se refere não só a conclusão de um
processo, mas, também, o caminho que conduz até àquele ponto. (2011, vol. 2, p. 641)

Para o autor a criação é completa e harmônica, não há mais nada a acrescentar. A


expressiva aprovação de ’elohim no versículo anterior confirma que o que foi feito até aqui foi
feito de modo completo e perfeito. O início da consumação, isto é, do sétimo dia é marcado
pela plenificação do processo criacional, ou seja, os céus e a terra encontram sua plenitude
funcional no sétimo dia. Como apresenta Hamilton (1990, p. 158), a atmosfera dos primeiros
versículos do capítulo 1 retorna. O silêncio e a quietude dominam, mas agora não há caos,
desordem, disfunção e nem falta de habitação.

Os Céus, a Terra e todo o serviço deles

Céus e Terra estão completos, plenos, organizados, habitados e com suas funções
perfeitamente em uso. No começo do prólogo, a Terra não era nomeada, estava em desordem e
desabitada; no fim do prólogo, a Terra está nomeada, transmitindo a ideia de que seu propósito
funcional está plenamente definido. Céus e Terra estão em ordem. A criação está completa.

O uso de ‫צָּ בָּ א‬, traduzido aqui por “serviço”, explicita ainda mais a ideia defendida por
Walton (2009) de que o relato criacional de Gênesis objetiva a explicação funcional da criação.

27
Oração principal independente: conj. aditiva + verbo pual imperfectivo (wayyqtol) + sujeito.
23

Sua aplicação no restante das Escrituras mostra o sentido militar do termo ‫צָּ בָּ א‬. Este sentido
reflete o caráter real da criação. Ela é feita por ’elohim que é descrito como um rei soberano do
Universo. Seus habitantes, ou funcionários, são como súditos deste rei, indicando um serviço a
ser cumprido para todos eles, uma função, um propósito.

Outro aspecto a ser observado é que de acordo com Hamilton (1990, p. 158), a palavra

‫צָּ בָּ א‬, comunica a ideia de um coletivo constituinte de muitas partes. Ou seja, toda a criação
possui um corpo coletivo de funcionários reais de ’elohim nos Céus e Terra. Dessa maneira,
animais, seres humanos, estrelas ou anjos são todos servos reais do rei ’elohim.

Diante disso, esta primeira oração afirma que os Céus e a Terra junto com seus
funcionários reais encontraram sua plenitude funcional no sétimo dia iniciando, assim, a
consumação da criação em relação ao estado inicial da criação retratado no capítulo 1. Portanto,
é possível observar que no sétimo dia, a criação é finalizada, isto é, ’elohim cessa o trabalho
criador, a criação encontra o seu propósito e os habitantes da criação também encontram os seus
propósitos.

1.2.2. A Completude do Criador

Tradução:
28
E completou, ’elohim, no Dia Sétimo a Sua obra que fez29

Comentário:

Se na primeira oração, Céus e Terra foram retratados como passivos e submissos à obra
de finalização, aqui ’elohim é o sujeito ativo e soberano desta finalização. A obra da criação é

pertencente a ele. Ninguém o auxiliou, ninguém mais é o sujeito do verbo ‫ ָּכלָּה‬e ninguém mais

é o possuidor do substantivo ‫ ְמלֶאכֶת‬. Ele criou, fez, formou e finalizou a sua obra. A repetição
do fato com variações sintáticas representa uma ênfase do autor na consumação e completude
funcional da criação.

28
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo (wayyqtol) + sujeito +
locução adverbial de tempo + objeto direto.
29
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. rel. +
verbo transitivo direto qal perfeito.
24

O Dia Sétimo

O detalhe adicional é o tempo desta consumação. Esta coroação da obra de ’elohim


acontece no Dia Sétimo. Faz-se importante mencionar que o autor modifica o seu modo habitual
de se referir à ordem dos dias. Até o dia seis ele usa numeração cardinal, aqui ele utiliza
numeração ordinal, todos os outros seis dias são nomeados por substantivos e o sétimo dia é
nomeado por um adjetivo acompanhado de artigo. Segundo Cohen:

Tais exemplos do emprego sagrado do número sete são inúmeros, e não é necessário
multiplicá-los aqui. O exemplo maior, entretanto, deve ser a santificação especial do
sétimo (sh'bVí) dia como dia de descanso e, por conseguinte, como o principal dia de
atividades normais de adoração (Êx 20.10; Dt 5.14). Foi ao sétimo dia que Deus
descansou dos dias em que esteve criando, e por esse motivo, para benefício do
homem, Deus separou esse sétimo dia para descanso e adoração (Êx 20.11; Gn 2.2).
A partir disso atribui-se uma significação simbólica original ao número sete por: 1)
ter um caráter sagrado especial; 2) assinalar a totalidade de um ciclo ou a realização
de uma tarefa; e 3) assinalar um período de descanso. (1998, p. 1514).

Assim, o tempo no qual a conclusão da criação é realizada por ’elohim não é um tempo
qualquer. Este dia é um dia qualitativo, pois irá categorizar todo o calendário judaico posterior.
Como diz Waltke, “distinto dos dias prévios, o número deste dia é gravado três vezes, indicando
sua significação acima dos demais dias” (2019, p. 79). Por isso é o dia escolhido por ’elohim
para coroar a sua obra.

Além desse fator, o uso de ‫ְשׁבִ יעִ י‬ em lugar de ‫ ֥֨יֹום הש ָָּּ֖֜בת‬, indica uma provável
preocupação do autor com a idolatria do Dia de Sábado, visto que, como aponta Hamilton
(1990, p. 154), “a omissão deliberada de ‘sábado’ em Gênesis 2 pode ser devido ao desejo de
evitar qualquer possibilidade de unir o sétimo dia com a festa pagã.” Sobre isso, Wenham
também afirma:

[...] é impressionante que o sábado não seja mencionado nominalmente. Cassuto


(1:65–68) sugere que isso ocorre porque os babilônios chamavam o décimo quinto dia
do mês, o dia da lua cheia, Sðapattu; então Gênesis, não querendo confundir os dois,
evita o termo. [...] Parece provável que o sábado israelita foi introduzido como uma
contraexplosão deliberada a este ciclo regulado pela lua. O sábado era totalmente
independente das fases da lua e, longe de ser azarado, era abençoado e santificado
pelo criador. (1987, p. 75)
25

Obra

Com o uso da palavra, ‫ ְמלָּאכָּה‬, o autor está enfatizando a perfeição harmoniosa e


admirável de ’elohim. A ideia é de que a criação pronta de ’elohim, à semelhança do
tabernáculo, é uma obra artesanal, bela, prima e artística.

m'lã’kâ podia referir-se à atividade trabalhadora, às habilidades necessárias para


realizar o trabalho ou ao produto do trabalho. Em contraste com palavras como ‘ãmal
e yãga\ que enfatizavam o aspecto fatigante e laborioso do trabalho, este termo
ressaltava o trabalho como algo que envolvia habilidades e benefícios [...] “Obra” era
termo que indicava destreza artesanal quando Deus dotou certas pessoas de
habilidades sobrenaturais para realizarem o trabalho especializado de confecção do
tabernáculo (Êx 31.3; ARA, “artifício”) e quando Salomão trouxe da Fenícia artesãos
hábeis e capazes para construírem o templo (1 Rs 7.14). (BOWLING, 1998, p. 763)

Também afirma Hamilton:

O AT tem duas palavras para “trabalho”, me lÿÿ ÿá e aÿÿ ÿá. A segunda palavra enfatiza
o trabalho bruto e não qualificado. A primeira – e a que aqui se utiliza –designa mão-
de-obra qualificada, trabalho que é executado por um artífice ou artesão. Essa é a
medida da sutileza e das habilidades profissionais da obra de Deus. (1990, p. 153).

Que fez

Esta oração subordinada substantiva objetiva direta indica que a obra da criação já
estava feita. O tempo perfeito indica que ela já estava concluída ao se adentrar no sétimo dia.

Algumas interpretações deste qal perfeito, ‫ע ָּ ָָּֽׂשה‬, sugerem que ’elohim havia trabalhado no
sétimo dia, mas como afirma Wenham:

Em outra parte do Pentateuco, por exemplo, Gn 17:22; 49:33; Êxodo 40:33, a frase
indica que a ação em questão já passou, e um mais que perfeito é usado nas traduções
para o inglês. Não há nenhuma implicação no hebraico de 2:2 de que Deus estava
trabalhando no sétimo dia antes de terminar. (1987, p. 74).

Notemos com mais atenção a semelhança citada por Wenham entre Gn 2.2a e Êxodo
40.33c a fim de compreendermos o pano de fundo que prepara o leitor para a inclusão do
repouso divino na oração que se seguirá a esta.

Colocando lado a lado as orações de Gn 2.2a e Êxodo 40.33c, respectivamente, temos:


26

‫ְמלאכְ תו‬ ‫אֱֹלהִ ים‬ (‫יעי‬


ִ ִ֔ ִ‫יְ כַ֤ל)ביּ֣ ֹום ה ְשב‬ ‫ו‬

‫ָּאכה‬
ָֽׂ ָּ ‫אֶ ת־ה ְמל‬ ‫מֹ ֶשׁה‬ ‫יְ כל‬ ‫ו‬

E completou (no Dia Sétimo) ’elohim a Sua obra

E completou Moisés a obra

Observando as orações acima é possível perceber a seguinte estrutura em semelhança:

Conjunção (‫)ו‬ Verbo (‫) ָּכלָּה‬, piel, wayyqtol, 3ª p. masc. sg. Sujeito Objeto (‫) ְמלָּאכָּה‬

A diferença se dá no sujeito, que em Gênesis é ’elohim e em Êxodo é Moisés. Há também


a inclusão de Gênesis de referência preposicional temporal, a saber, o sétimo dia e a adição do
Gênesis do sufixo pronominal possessivo de terceira pessoa do singular em “obra”. Outros
pontos de destaque são que nos dois casos não há trabalho de ’elohim ou de Moisés na conclusão
destas obras. Em Gênesis, ’elohim repousa e em Êxodo, a glória desce e enche o tabernáculo.
Além disso, a descida da glória na nuvem em Êxodo 40 é retratada como que repousando sobre
o tabernáculo no versículo 38, o que reforça a semelhança dos textos, ainda mais se
considerarmos a mesma autoria.

Demais pontos de semelhança contextual serão vistos no capítulo dois com mais
detalhes. Por ora, essas são suficientes para entender como o autor estava desenvolvendo sua
narrativa do sétimo dia.

Portanto, podemos afirmar que a ideia central desta oração é que a consumação da obra
da criação de ’elohim não se dá por meio de um trabalho realizado no sétimo dia, mas sim como
uma espécie de proclamação do fato de que a obra-prima de ’elohim estava completa, perfeita
e harmônica. A garantia desta consumação é o repouso divino sobre a criação, isto é, o repouso,
que veremos a seguir, é a própria proclamação da consumação da obra, assim como o repouso
da glória de Javé sobre e no tabernáculo também o são. Como afirma Westerman:
27

[...] o verbo “ele terminou” é uma declaração de que a obra foi concluída, não o ato
de completá-la. [...] O capítulo 40 encerra a construção da “tenda da reunião” que
Moisés recebeu ordem de erguer no capítulo 25 depois da teofania do Sinai. A
cerimônia é encerrada solenemente com o aparecimento da nuvem, 40:33. A frase
“assim Moisés terminou a obra” é um eco claro de Gênesis 2:2 (1984, p. 170).

Também afirma Wenham:

A fraseologia de Êxodo 40:33, “E Moisés terminou a obra,” é particularmente próxima


a este versículo e sugere que a construção do tabernáculo está sendo comparada à
criação do mundo por Deus. (1987, p. 75)

1.2.3. O Repouso

Tradução:
30
E repousou, no Dia Sétimo, de toda a Sua obra que fez31

Comentário:

Aqui chegamos ao centro da perícope e foco desta pesquisa. Depois de desenvolver a


ideia de que o sétimo dia é a coroa da criação de um Deus soberano que confere propósito
(função) a ela, o autor nos mostra o propósito último da criação, a saber, o repouso de Elohim.
Segundo o desenvolvimento (abordado previamente) do autor até este ponto, o repouso divino
encontra um lugar de extremo destaque no relato criacional.

Se de fato todo o relato buscou fornecer as funções e propósitos de cada parte e habitante
da criação, a consumação no sétimo dia não é diferente. Até o sexto dia tudo parecia servir e
convergir ao homem. Mas depois da criação do homem à imagem e semelhança de ’elohim, a
soma de todos os processos anteriores, julgada como “muito boa” no versículo 31 do capítulo
um, desemboca na completude harmônica e perfeita da criação no sétimo dia com o repouso
divino. A distinção e importância do sétimo dia para os demais tem por causa e propósito o
repouso de ’elohim. E não somente isso, o repouso também será a causa da benção e
consagração do sétimo dia nas orações seguintes. Isto significa que o centro do sétimo dia e,
consequentemente, do relato criacional de Gênesis 1 é o repouso divino.

O verbo ‫שׁבת‬, no seu tronco qal, tem como sentido imediato a cessação de atividade,
conforme apresentam Jenni e Westerman (1994, p. 1612), Shoekel (1997, p. 657) e Hamilton
(1998, p. 1520). Evidentemente não há aqui um contraste com um possível cansaço na

30
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo intransitivo qal imperfectivo (wayyqtol) + locução adverbial
de tempo + complemento preposicional: prep. + adv. de intensidade + objeto indireto.
31
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. rel. +
verbo transitivo direto qal perfeito.
28

divindade criadora. O Antigo Testamento não abre possibilidades para isso (Isaías 40). A ideia
de cessação de atividade criadora é, possivelemente, uma grande ênfase do autor aqui. Dessa
maneira, o texto parece trabalhar a ideia de que o ’elohim soberano, criador, rei e governante
de sua própria criação, após ter confiado à sua criação propósitos, funções, sentidos e
funcionários cumpridores destas funções e após ter criado o ser humano como seu vice-regente
sobre a terra, considerou que sua obra-prima estava completa, bela e satisfatória. Vejamos o que

diz Walton sobre o uso do verbo ‫שׁבת‬:

O verbo hebraico shabat (Gn 2:2) do qual nosso termo “sábado” é derivado tem o
significado básico de “cessar” (cf. Js 5:12; Jó 32:1). Semanticamente, refere-se à
conclusão de certa atividade com a qual alguém estava ocupado. Essa cessação leva a
um novo estado que é descrito por outro conjunto de palavras, o verbo nuha e seu
substantivo associado, menuha. O verbo envolve entrar em uma posição de segurança
ou estabilidade e o substantivo refere-se ao local onde se encontra. O verbo shabat
descreve uma transição para a atividade ou inatividade de nuha. Sabemos que quando
Deus descansa (cessa, shabat) no sétimo dia em Gênesis 2, ele também transita para
a condição de estabilidade (nuha) porque essa é a terminologia usada em Êxodo 20:11.
A única outra ocorrência do verbo shabat com Deus como sujeito está em Êxodo
31:17.1. (2009, p. 72)

’elohim se satisfaz com sua criação considerando que tudo o que fez estava muito bom
(1.31), ou seja, pronto e passível de repouso por parte de seu Criador. Assim, a cessação de
atividade tem por causa a satisfação de 1.31, que por sua vez, gera a finalização da obra de

’elohim e, então, a coroação da consumação com o repouso divino. Por mais que ‫שׁבת‬
signifique a cessação de atividade, no nosso contexto esta cessação não encontra sua
significância plena em si mesma, isto é, ela tem uma causa e um propósito. A causa é a satisfação
de ’elohim, como já explanado. O propósito veremos agora.

A ideia de repouso aparece novamente em Gn 49.15 atrelada à necessidade de um lugar


para o repouso. Não somente nessa passagem, mas também em Êxodo 33.12-17, Salmo 132 e
Deuteronômio 28.65 a ideia de repouso é inerentemente ligada a um lugar de repouso para o
repousante após a cessação de sua atividade. Sobre isso, Oswalt afirma:

O descanso é composto de diversos elementos. Uma ideia fundamental é a de lugar


de repouso. Assim como os pássaros, os homens precisam de um lugar onde podem
encontrar descanso de suas atividades e no qual podem sentir-se protegidos e seguros
(Is 32.18). O reconhecimento dessa necessidade encontra-se no cerne das promessas
a Abraão em Gênesis 12.1-3. (2011, p. 516)

Com isso em vista, é muito provável que a cessação das atividades de ’elohim encontre
como lugar de repouso a sua própria criação completa e satisfatória. O Criador se satisfaz com
29

sua obra e a coroa com seu repouso sobre ela. Se seu espírito pairava sobre as águas antes do
trabalho Criador do primeiro dia, agora o criador paira sobre a sua própria obra finalizada.

Outro aspecto, já mencionado, que pode reforçar esta ideia é a construção do


tabernáculo. Em Êxodo 40, o mesmo autor do Gênesis descreve, com semelhança expressiva a
Gn 2.1-3 já demonstrada, a finalização do tabernáculo. No texto em questão Moisés também
finaliza a sua obra artística sendo a coroação dela a glória da presença de Javé que repousa
sobre a tenda. Neste sentido, pós Gênesis 11, isto é, depois de toda a perversão da criação contra
o seu Criador, ’elohim edifica um lugar para o seu repouso. Isaías 66 reafirma a importância de
um lugar para o repouso de Javé. Sobre este aspecto habitante do repouso, Hamilton afirma:

Tanto no Enuma Elish quanto no épico Atrahasis, os deuses descansam após a criação
do homem. Com o homem para fazer o trabalho servil da manutenção diária da terra,
os deuses agora estão livres para tarefas administrativas menos exigentes no mundo.
Em agradecimento pela liberação deste trabalho manual, os deuses prometem
construir a Babilônia e seu templo para Marduk. (1990, p. 154)

O descanso também é apresentado no Antigo Testamento como um lugar de habitação


e permanência para o povo de Israel. Esse aspecto nos ajuda a entender a busca de Davi por
uma casa habitável para o Criador no Salmo 132. Para aquele povo antigo, uma permanência
onde pudessem descansar em meio a um mundo hostil e mortal era algo valioso. A diferença é
que em Gênesis 2, o mundo era perfeito e governado pela vida. Entretanto é de se notar que
independente da situação, o repouso é central. Seja para o Criador após a perfeita criação, seja
do Criador para o seu povo num ambiente hostil. Nos dois casos, o repouso tem centralidade.
Isto indica que a ideia de repouso é anterior à queda da humanidade e continua com seu valor
depois da ideia de redenção. Não somente após a redenção do Egito, mas até mesmo após a
conquista da terra. Estar na terra prometida não era suficiente para o povo desfrutar do descanso
de Deus plenamente. Na terra o período dos juízes se deu, na terra toda a idolatria aconteceu.
Por isso afirma Oswalt:

Pois, se o significado da terra podia ser colocado dentro da categoria de descanso, o


sentido do descanso não podia ser abrangido pela terra. Os primeiros vislumbres desse
fato podem ser encontrados logo em Êxodo 33.14, em que o descanso prometido é
associado inseparavelmente à presença de Deus. Em última análise, o descanso deve
ser encontrado em Deus e não pode ser achado em terra distante de Deus. Outra
separação entre descanso e posse da terra aparece na aplicação das promessas de
descanso a Davi e Salomão (2Sm 7.1, 11; 1 Rs 5.4 [18]; 8.56; lCr 22.9). Por um lado,
eles haviam recebido o descanso quando a terra foi conquistada sob a liderança de
Josué. Mas, por outro, esse descanso só se concretizou no reinado dos monarcas
davídicos e quando a arca entrou no lugar do seu “repouso” em Jerusalém (Sl 132.8,
14). Assim, apesar de o descanso estar intimamente ligado à posse da terra pelo povo,
não era inseparável dessa posse. Esse descanso possuía uma qualidade individual que
era, enfim, uma expressão do relacionamento com Deus. (2011, vol. 4, p. 518)
30

Um último aspecto, quanto ao propósito do repouso divino pós criação pode ser
observado no próprio contexto do relato, isto é, o aspecto reinante de ’elohim sobre a criação.
A autoridade sobre a criação é evidente em todo o relato. No sexto dia, como já foi apresentado,
o ser humano criado à imagem de ’elohim é criado como um vice regente e dominador da
criação. ’elohim é o grande rei e dominador que cria o cosmos com autoridade e poder
supremos. Waltke também afirma que, “esse dia é abençoado para o refrigério da terra. Ele
convoca a humanidade a imitar o padrão de trabalho e descanso do Rei, e assim confessar o
senhorio de Deus e sua consagração a ele.” (2019, p. 79). Dessa maneira, ao concluir sua obra,
tendo o homem como seu súdito-rei, ’elohim repousa também no aspecto de encontrar toda sua
criação debaixo de sua vontade, ou seja, ele repousa como rei da criação, afinal a terra se torna
o estrado dos pés deste rei soberano (Isaías 66). A continuidade da narrativa do Gênesis também
contribui com este entendimento. Javé será aquele que continuará governando sua criação com
a atribuição de funções e propósitos para o homem e para a mulher, com a determinação de
penas e culpas para o homem, a mulher e a serpente, com a autoridade destruidora no dilúvio e
o julgamento sobre Babel. Todas estas atividades são atividades de um rei. O contexto do Antigo
Oriente próximo também reforça esta ideia, conforme apresenta Walton:

O papel do templo no mundo antigo não é principalmente um lugar para as pessoas se


reunirem em adoração como as igrejas modernas. É um lugar para a divindade -
espaço sagrado. É sua casa, mas o mais importante é que é seu quartel-general – a sala
de controle. Quando a divindade repousa no templo, significa que está assumindo o
comando, que está subindo em seu trono para assumir seu lugar de direito e seu papel
adequado [...] A posição que propus em relação a Gênesis 1 pode ser designada como
a visão cósmica da inauguração do templo. Este rótulo capta o aspecto mais
importante da visão: que o cosmos está recebendo suas funções como o templo de
Deus, onde ele estabeleceu sua residência e de onde dirige o cosmos. Este mundo é o
quartel general dele. (2009, p. 74 e 162)

Portanto, considerando todos esses fatores, podemos afirmar que o propósito da


cessação de atividade divina no sétimo dia pode se expressar em dois aspectos, a saber, o
cosmos como um lugar de habitação para este repouso e, consequentemente, a presença reinante
do Criador soberano sobre o cosmos.
31

1.2.4. A Benção e a Consagração

Tradução:
32
E abençoou, ’elohim, o Dia, o Sétimo, e consagrou-o33

Comentário:

Aqui, o sétimo dia é abençoado e consagrado pelo seu Criador. Como já vimos, a causa
desta benção e consagração é o repouso de ’elohim sobre a sua obra. Porque ’elohim repousa
sobre a criação no sétimo dia ele, então, o abençoa e o santifica. Esta nota de benção e
consagração confere ao sétimo dia uma distinção ainda maior em relação aos demais dias da
criação. Até então, ’elohim havia abençoado os animais e o ser humano com a benção da
fertilidade. Aqui o tempo é abençoado de maneira que por meio de sua santidade solene

provinda do repouso, o sétimo dia sirva de benção vital para as criaturas. A própria palavra ‫בָּ רך‬
possui este sentido vivificante. Oswalt afirma:

Esta raiz e os seus derivados ocorrem 415 vezes. A maioria das ocorrências está no
piel (214), que é traduzido por “abençoar”. O particípio passivo do qal, “abençoado”,
aparece 61 vezes. O sentido de “ajoelhar” aparece somente três vezes, duas no qal (2
Cr 6.13; SI 95.6) e uma única vez no hifil (Gn 24.11). Com base nisto, alguns
argumentam que bãrak é um verbo denominativo de berek, “joelho”, que não tem
nada a ver com bãrak, “abençoar”. Todavia, pode-se ter percebido alguma associação
entre ajoelhar-se e o ato de receber uma bênção (cf. 2 Cr 6.13; o árabe baraka também
apresenta a mesma amplitude de sentido). Abençoar no AT quer dizer “conceder poder
para alcançar sucesso, prosperidade, fecundidade, longevidade, etc.”. O termo é
muitas vezes contrastado com qãlal, “reverenciar com indiferença, amaldiçoar” (cf.
Dt 30.1,19). (1998, p. 220)

Westerman, da mesma maneira, defende:

Não pode haver dúvida de que esta terceira bênção no decorrer do evento da criação
é do mesmo tipo que a bênção dada às criaturas vivas e aos humanos, 1:22, 28, onde
significava o poder da fertilidade. O significado é essencialmente o mesmo aqui,
embora muito mais abstrato. A bênção de Deus confere a este dia especial, santo e
solene uma força que o torna fecundo para a existência humana. A bênção dá ao dia,
que é dia de descanso, o poder de estimular, animar, enriquecer e dar plenitude à vida.
Não é o dia em si que é abençoado, mas sim o dia no seu significado para a
comunidade. No contexto da criação, é para o mundo e para a humanidade. O poder
da bênção, isto é, o poder do empreendimento e do sucesso, tem aqui o seu ponto de
partida. (1984, p. 172)

Quanto ao sentido do termo ‫קָּ דשׁ‬, Mccomiskey afirma:

32
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo wayyqtol + sujeito +
obj. direto.
33
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo wayyqtol + objeto
(pron. pessoal oblíquo referindo-se ao objeto direto “Dia, o Sétimo”).
32

O verbo qadash tem, no qal, a conotação de estado daquilo que pertence à esfera do
que é sagrado. Desse modo, distingue-se do que é comum ou profano. No piel e no
hifil tem a ideia do ato pelo qual se efetua essa distinção. (1998, p. 1320)

Dessa maneira, ’elohim distingue o sétimo dia dos demais por meio de sua própria
presença, afinal, no contexto veterotestamentário algo só pode ser santificado ou separado
quando está em relação direta com a presença daquele que é retratado como o “Totalmente
Outro” conforme continua Mccomiskey:

No piel a palavra é usada na maioria das vezes para designar o ato de consagração.
Em Êxodo 19.23 a consagração do monte Sinai, mediante o estabelecimento de limites
ao seu redor, serviu para manter à distância tudo o que poderia ter profanado a santa
presença de Deus. (1998, p. 1320)

Com esta benção e santificação, parece-nos que o autor já busca encontrar fundamentos
exemplares de ’elohim para que o homem também repouse neste dia, isto é, Deus estabelece o
padrão do descanso para que o homem também entre neste descanso da presença de Deus. À
semelhança de Êxodo 24.16, no sétimo dia há o convite ao relacionamento do ser humano com
seu Deus:

Em primeiro lugar, Êxodo 20.8 e ss. associa a guarda do sábado ao fato de o próprio
Deus ter descansado no sétimo dia, depois de seis dias de trabalho (Gn 2.2-3). Tudo
que Deus fez, segundo o registro de Gênesis, avaliou como bom. Entretanto, somente
o sábado ele santificou, dando talvez a entender que o clímax da criação não foi a
criação do homem, mas o dia de descanso, o sétimo dia. O sábado é, portanto, um
convite ao regozijar-se com a criação de Deus e reconhecer a soberania divina sobre
o nosso tempo. (HAMILTON, 1998, p. 1522)

Dessa maneira, como diz Westerman:

Há aqui muito mais do que uma mera referência ao sábado no Israel posterior. A
santificação do sábado institui uma ordem para a humanidade segundo a qual o tempo
é dividido em tempo e tempo santo, tempo de trabalho e tempo de descanso. A obra
da criação começou com três atos de separação. A primeira foi a separação entre luz
e trevas. Seu objetivo era determinar que o tempo era para o ser humano, a existência
de tudo o que foi criado é determinada pela polaridade do dia e da noite. Ao santificar
o sétimo dia, Deus instituiu uma polaridade entre o cotidiano e o solene, entre dias de
trabalho e dias de descanso, que seria determinante para a existência humana. Este é
um presente do criador ao seu povo e não é apenas uma antecipação do sábado
israelita. (1984, p. 171)
33

1.2.5. A Causa da Benção e da Consagração

Tradução:

...34porque nele repousou de toda Sua obra que criou, ’elohim, ao fazer35

Comentário:

O uso da expressão ‫ִ ּ֣כי‬ encontra aqui um sentido causal, indicando que a causa da
consagração do sétimo dia se encontra no repouso de ’elohim de Sua obra.

Com a última oração, o autor conclui a sua seção. ‫ ל‬mostra a ênfase do autor no fato de
que a obra de criação de ’elohim foi uma obra prima, pois ele a criou fazendo, isto é, moldando-
a. Conforme aponta Wenham, a frase indica que o autor está consumando o seu relato:

“A qual Deus criou ao fazê-la” é uma expansão da frase usual “a obra que ele fez”
(2:2). A inserção de “Deus criou” na frase produz um hebraico ligeiramente
desajeitado, mas mais significativamente remonta a 1:1, resultando em uma boa
inclusão indicando que a primeira seção de Gênesis termina aqui. (1987, p. 76)

Diante disso, o autor relembra pela terceira vez que o centro de sua perícope é o repouso
de ’elohim. Deus abençoou e consagrou o sétimo dia, pois repousou sobre a sua obra recém
realizada.

1.3. O significado do repouso divino em Gn 2.1-3

Diante de tudo o que foi considerado até aqui podemos dizer que o sétimo dia se
apresenta como propósito central do relato criacional, isto é, a coroa da criação, evidenciado
pela sua santificação ante os demais dias da criação, os quais não foram consagrados como o
sétimo. Sua centralidade tem como causa evidente o repouso de seu Criador, ’elohim, ao
consumar a sua obra prima.

Assim, considerando que todo o relato caminha naturalmente para a exposição das
principais funções de cada parte do cosmos, é de se notar que a função principal do cosmos no
relato é o repouso de ’elohim sobre ele. O significado deste repouso pode ser observado em
uma causa: a satisfação de ’elohim com sua criação (1.31) e, consequente, consumação; em três
aspectos: a cessação de atividade criadora de ’elohim, a presença habitante de ’elohim sobre o

34
Oração subordinada adverbial causal: conj. subordinativa causal + pron. pessoal oblíquo (objeto indireto da ação
de repousar) + verbo intransitivo qal perfeito + complemento preposicional.
35
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. relativo
+ verbo transitivo direto qal perfeito + sujeito + locução prepositiva de tempo (verbo qal infinitivo).
34

seu cosmos recém-criado e a presença reinante de ’elohim como soberano rei do universo; e em
uma consequência diante de seu repouso: a benção e santificação do sétimo dia, isto é, do tempo.
Tudo isso mostra que a situação inicial da terra no versículo 2 foi totalmente ajustada. A
presença do Criador agora paira sobre o cosmos satisfatoriamente e convida suas criaturas a
entrarem neste descanso em plenitude de vida a fim de viverem os seus propósitos pré-
determinados. Dessa maneira o autor conclui o primeiro relato criacional.
35

CAPÍTULO 2

O REPOUSO DIVINO NA TANAKH

No capítulo anterior buscamos extrair qual é o centro exegético de Gn 2.1-3 com vistas
à compreensão do significado do repouso divino no sétimo dia, entendendo que a localização
bíblica deste repouso é de fundamental importância para o restante do Antigo Testamento. A
partir de agora buscaremos observar panoramicamente a influência deste repouso divino no
restante do Antigo Testamento em diversos textos que direta ou indiretamente abordam o
assunto.

O critério de decisão dos textos a serem observados se deu por meio de ampla pesquisa
bíblico-referencial. Primeiramente buscou-se ler todos os textos veterotestamentários que
possuíam termos, vocabulários, estruturas frasais, referências e conceitos teológicos
semelhantes ao do Gênesis 2.1-3, isto é, o repouso divino. Exemplificando, foram lidos todos

os textos bíblicos que utilizam termos (lexicais ou derivados) como ‫שָּׁ בת‬, ‫ ְשׁבִ יעִ י‬, ‫ ְמלָּאכָּה‬, ou
‫שׁבָּ ת‬. Com a leitura, foram selecionados os textos que mais poderiam servir ao propósito desta
pesquisa.

2.1. Na Torah: o Shabat e o governo de Deus

Primeiramente, observaremos 9 textos que se encontram na Torah. É importante


ressaltar que aqui ouviremos um mesmo autor que o de Gênesis, ou no mínimo, um mesmo
editor final. Isto nos ajudará a compreender a influência do entendimento do repouso divino
pós-criacional no restante de seus escritos.

O Shabat: Êxodo 20.8-11

Este texto é um dos únicos, junto a Levítico 19.2, que explicitamente ordenam uma
imitação a Deus. Hamilton diz que “o propósito primário para a observância do sábado é que,
ao descansar nesse dia, os israelitas imitem o seu Senhor, que descansou nesse dia após a sua
obra de criação (Gn 2.2-3)” (2018, p. 499). Esta nota clara de imitação sugere que se a
comunhão e o desfrute familiar e caseiro eram buscados, logo Javé houvera instituído o sábado
para que o ser humano experimentasse um eco do sétimo dia da criação, a saber, o repouso de

’elohim pairando e desfrutando de sua criação. A preposição ְ‫ ל‬no versículo 10 indica


36

direcionamento. Ou seja, o sábado era direcionado ao Senhor, em imitação a Javé, um eco de


sua obra prima criadora, pois à semelhança de ’elohim, o homem também deve produzir a sua
obra em seis dias para então descansar. Por isso, o sábado era o único mandamento anterior à
lei. Bahya ben Asher (c. de 1300 d.C.) disse, “saiba que o mandamento do sábado é o primeiro
mandamento dado a Israel, antes das ordenanças da lei, e, por isso, ele é o princípio da fé” (apud
HAMILTON, 2018, p. 497). Hamilton continua, e cita Tsevat, que disse que, “todo sétimo dia
os israelitas renunciam à sua autonomia [sobre o seu tempo] e afirmam o domínio de Deus
sobre si. Guardar o sábado é aceitar a soberania de Deus” (2018, p. 499). Portanto, 20.8-11 nos
ajuda a entender que o se o repouso do homem era um eco do repouso divino, logo, o repouso
divino está intrinsecamente relacionado à ideia de habitação e governo como afirma Walton:

Durante várias décadas foi comum pressupor antecedentes no antigo Oriente Próximo
para a observância do sábado. Mas agora é amplamente reconhecido que ainda não se
descobriu nenhuma dessas observâncias. A solução para entender o descanso sabático
das pessoas está no descanso sabático de Yahweh no sétimo dia da Criação, como nos
diz o mandamento em Êxodo. Por sua vez, o conceito de descanso divino pode ser
esclarecido por textos do antigo Oriente Próximo que revelam o descanso da
divindade ocorrendo em um templo, em geral em consequência de a ordem ter sido
estabelecida. O descanso, embora represente o desengajamento do processo de
estabelecer a ordem (quer por meio de conflito com outras divindades, quer não), é,
de modo ainda mais importante, uma expressão de engajamento quando a divindade
ocupa sua posição de comando para manter um cosmo ordenado, seguro e estável.
(2021, p. 215)

O Sétimo Dia e a Glória de Javé: Êxodo 24.12-18

O destaque deste texto é a relação do chamado de Deus para Moisés entrar na nuvem
gloriosa com o sétimo dia. Sobre isso Westerman afirma:

Em sua descrição da teofania no Sinai, Êxodo 24:16, P escreve: “A glória do Senhor


pousou sobre o monte Sinai, e a nuvem o cobriu seis dias; e no sétimo dia ele chamou
a Moisés do meio da nuvem." O contexto aqui é muito significativo. Êx 24:15b-18,
que é uma continuação da descrição sacerdotal de Êx 19:1, 2a, é a base do culto e
adoração de Israel. De acordo com esta passagem, o lugar santo, o período sagrado, o
mediador do sagrado são básicos para a estrutura do evento cúltico. Embora seja
apenas neste evento que o lugar santo é fundado (o Sinai e a tenda da reunião que dele
deriva e que prefigura o templo de Jerusalém), o período santo já está lá ("seis dias...
e em o sétimo dia"). P está apontando aqui que o período sagrado, como parte básica
do culto, tem um caráter fortemente universal, enquanto o lugar sagrado tem um
caráter fortemente particular. Embora o período sagrado em Gênesis 2:1-3 seja
expressamente uma dádiva do criador ao seu povo, o lugar santo recebe a sua função
apenas com o início da história do povo. (1984, p. 172)

O autor faz questão de enfatizar que Moisés só pode entrar na nuvem gloriosa de Javé
no sétimo dia, indicando, como Westerman afirmou na citação acima a consagração do tempo
por meio da presença de Deus. A chamada de Javé é evidentemente para a sua própria presença.
37

Ele chama de dentro (‫ )תָּ וֶך‬da nuvem para a sua presença comprovando a ideia de que o sétimo
dia é santificado pela própria presença do Criador.

Hamilton apresenta pontos de comparação interessantes deste episódio com Êxodo 40.
A comparação também ajuda a observar que a glória da presença de Javé deve ser vista como
um grande propósito para a mentalidade do autor da Torah.

A cena em 24.12-18 antecipa a do final de Êxodo e do primeiro versículo de Levítico


(Êx 40.34-38; Lv 1.1). Note estes paralelos: (1) “a nuvem cobriu o monte” (24.15b) e
“a nuvem encobriu a tenda da congregação” (40.34); (2) “a glória do Senhor se
assentou sobre o Monte Sinai” (24.16) e “a glória do Senhor encheu o tabernáculo”
(40.34b); (3) “Ele convocou Moisés... do meio da nuvem” (24.16b) e “o Senhor
chamou Moisés... da tenda da congregação” (Lv 1.1); (4) “como um fogo
consumidor... à vista dos filhos de Israel” (24.17b) e “fogo estava na nuvem à noite à
vista de toda a casa de Israel” (40.38b). (2018, p. 632)

O Tabernáculo e a Criação: Êxodo 25-40

A relação entre o tabernáculo e o templo com a criação é um assunto que renderia muitos
trabalhos. Não é o objetivo desta pesquisa esgotá-lo aqui, mas Beale (2021) nos fornece uma
gama de teóricos que escreveram sobre isso, entre eles, Walton, Levenson, A. Silva, M. Haran
e outros. O foco aqui será apenas observar os pontos que mais contribuem com a pesquisa. O
que pode ser introduzido de antemão é que esta relação é muito perceptível, pois como afirma
Beale:

Essa equivalência está implícita em suas muitas semelhanças evidentes e na


comparação de Êxodo 25.9,40 com 1Crônicas 28.19, em cujas passagens tanto o
modelo do Tabernáculo como o do templo vieram de Deus. A tradição judaica, como
veremos, segue o salmo 78 e Êxodo 25, reafirmando que o Templo terreno
correspondia de maneira significativa aos céus, especialmente a um templo
celestial.[7] A principal tarefa deste capítulo é analisar de que maneira o Tabernáculo
de Israel e o templo eram comparáveis, como modelo simbólico, aos céus e à terra.”
(2021, p. 38).

Com isso em vista, vejamos alguns pontos que podem nos ajudar na compreensão do
repouso divino. O tabernáculo é construído com gradações de santidade, isto é evidenciado
pelos materiais utilizados no Átrio Exterior, no Lugar Santo e no Santo dos Santos. Não somente
os materiais, mas as pessoas que podiam participar destas partes eram selecionadas,
especificadas e consagradas com níveis de consagração diferentes, por exemplo, entre os
sacerdotes e o Sumo Sacerdote e entre as tribos levíticas meraritas, gersnonitas e coatitas. Beale
(2021) apresenta as altas probabilidades desta gradação ser uma referência à terra, céus visíveis
e céus invisíveis de Deus. Além disso, há uma relação direta entre a bacia de bronze e os mares,
38

o candelabro e a árvore da vida, os querubins bordados e os querubins colocados ao redor do


jardim do Éden, a arca da aliança e o trono de Deus.36

Estas relações se confirmam no próprio texto bíblico, especialmente o entendimento da


Arca da Aliança como um trono, mas não um trono comum, um trono de repouso (Salmo 132),
afinal Javé é aquele que está entronizado entre os querubins tanto no céu (Ezequiel 1) como na
Terra (Êxodo 25.20). Mesmo que em todo o tabernáculo não exista nenhum assento para os
homens, o Antigo Testamento indica que sobre a Arca da Aliança aspergida com o sangue no
propiciatório, Javé se assentava.

Desse modo, a imagem da nuvem da glória repousando sobre a tenda do encontro (figura
do cosmos) é significativa quando a relacionamos com a imagem de ’elohim repousando após
a sua criação do cosmos (Isaías 66) fortalecendo a ideia de que o repouso divino está na presença
habitante e reinante de Deus.

O Sinal, a Santificação, a Honra e o Alento: Êxodo 31.12-18

Primeiramente é interessante observar a posição desta ordenança quanto ao sábado.


Num primeiro momento, parece não fazer muito sentido a colocação deste sábado logo após as
instruções da construção do tabernáculo. Entretanto há uma repetição da ordenança no capítulo
35 depois da idolatria do povo e a intercessão de Moisés logo antes da execução da construção
do tabernáculo. Parece que a intenção do autor é afirmar a necessidade do povo de Deus
descansar e lembrar o descanso divino antes de começar a edificação da habitação de Deus na

Terra. Por isso o sábado é tratado como um ‫( אֹ ות‬sinal) que deve trazer à memória do povo e
das demais nações que Javé é quem os separa, santifica e consagra. Dessa maneira, o sábado
deveria ser uma memória viva, celebrada por Israel, da santidade devida ao Senhor que
descansou sobre sua criação, consagrou o tempo de repouso e que ainda vai repousar em meio
ao seu povo depois do trabalho e suor da edificação desta habitação. A celebração desta
memória é tão fundamental que o texto nos informa uma pena contumaz, a saber, exclusão e
morte.

Por tudo isso, Bosman diz que o sábado é mais do que mera abstenção de trabalho:

O sábado como um sinal da aliança vai além da mera abstenção de atividades profanas
e revela um conceito novo de tempo como sendo sagrado, algo peculiarmente israelita.

36
Para mais detalhes, ver BEALE, G.K. O Templo e a Missão da Igreja: uma telogia do lugar da habitação de
Deus. 2021.
39

(McKenzie, 80). Esse conceito de tempo sagrado se reflete no uso de sabbãtôn como
um paradigma para os dias de festas (Êx 31.15; 35.2; Lv 16.31; 23.3; 25.4-6). Apesar
de o sábado não desempenhar um papel sacrificial importante no culto, é chamado
muitas vezes de dia santo (Êx 16.23; 31.14-15; 35.2) e é santificado por Deus e Israel
(Gn 2.3; Êx 31.13; Lv 23.2; 25.10). Jenson (195) sugere que essa concepção de
santidade não depende de atos ou pessoas ligados ao culto, nem de um lugar sagrado
como o tabernáculo (Êx 31.12-17). O caráter geral do sábado chama a atenção para a
presença de Deus no meio de seu povo como um todo e não apenas no meio dos
sacerdotes ou nos santuários. Assim, a santidade do sábado tem suas raízes na
comemoração jubilosa de Deus como criador e redentor no passado e na experiência
da presença de Deus no descanso do sétimo dia como um sinal da aliança no presente
(ABD 5:852). Esse usufruto do sábado por Israel como um todo se reflete no perdão
das dívidas e libertação dos escravos no ano sabático e no ano de jubileu (Lv 25.10;
Dt 15.1-11). [...] Ao começar e encerrar as comemorações religiosas com o Sabbâtôn
e sua referência ao descanso (ou seja, o primeiro e o oitavo dia), a atividade cultual da
festa religiosa passava a ser qualificada em termos teológicos pelo sábado e seu
objetivo de desfrutar a presença de Deus como Criador e Redentor. (2011, vol. 4, p.
1148-9)

A Presença e o Repouso: Êxodo 33.12-17

Diante da preocupação de Moisés em subir com o povo de Deus para a terra prometida,

Javé conduz Moisés ao entendimento de que sem a sua presença ativa, ou melhor, sua face (‫)פָּנָ֥י‬
junto ao povo, toda a liderança mosaica e a caminhada do povo até então teriam sido inúteis. A
face de Javé é quem dá descanso para o povo de Deus. Aqui vemos a relação entre a face de
Javé e o repouso dado por ele ao seu povo:

No caso de Êxodo 33, a resposta divina fornece uma oportunidade a Moisés para que
ele diga ao Senhor: “Eles precisam de ti muito mais do que de mim”; é a oportunidade
de Moisés dizer a Yahweh: “Israel (e eu) precisa não apenas da tua presença ‘presente’,
mas também da tua presença ‘ativa’ ”. Alguns indivíduos podem estar presentes numa
situação e não fazer nada, ou não contribuir com nada. Já outros, quando estão
presentes (Deus e Moisés), e por estarem ali, mudam toda a dinâmica da situação para
melhor. (HAMILTON, 2018, p. 791)

O Shabat e a Solenidade: Levítico 23.3

Aqui há a reafirmação do sábado direcionado ao Senhor como uma convocação solene.


O capítulo 23 inicia a secção das festas solenes de Israel, ou seja, a consagração do tempo ao
Senhor. O sábado é a base de todas as outras festas (Páscoa, Pães sem fermento, Primícias,
Pentecostes, Tabernáculos). Sendo o sábado a base desta consagração do tempo, mais uma vez
encontramos a santificação do sábado pela presença de Deus, dando descanso ao seu povo. Com
esta consagração, o Dia de Sábado deveria solenizar o povo de Deus diante de sua presença.
“Em Israel, o sábado era uma ocasião para a adoração regular a Deus como o Autor das
misericórdias da aliança e o Sustentador da vida nacional.” (HARRISON, 1983, p. 199).
40

O Shabat, a Reverência e o Santuário: Levítico 26.1-13

Aqui encontramos um discurso expressivamente relevante para a compreensão do


sábado e, consequentemente, do repouso divino. Nesta secção há uma sequência de bênçãos e
maldições que são declamadas como condições da aliança de Deus com seu povo. No contexto
de Levítico estas condições são requisitos de santidade para que Javé habite junto com seu povo
no tabernáculo. O destaque aqui é que o sábado é colocado como o cerne da fidelidade exclusiva
do povo a Deus. O povo deve ser exclusivo a Javé e não cair em idolatria por meio, também da
observância do sábado, por isso, a reverência ao santuário, isto é, à presença de Deus. O sábado
é a ordenança positiva de Deus ao seu povo num contexto de santificação que visa a
exclusividade do seu povo para si e, principalmente, a formação de um lugar agradável para a
sua presença habitante e reinante no meio do seu povo conforme os versículos 11, 12 e 13. Ou
seja, a observação do sábado tinha como objetivo, neste texto, a possibilidade de Javé habitar,
reinar e andar no meio do seu povo, pois ’elohim:

Não será uma divindade ausente; pelo contrário, estará com os israelitas, dirigindo
suas vidas e providenciando todas as suas necessidades. Estas bençãos são sui generis
no seu caráter, e garantem aos israelitas sua segurança pessoas, a contínua
prosperidade nacional, e, acima de tudo a presença de uma divindade amorosa e
onipotente. A certeza da presença de Deus tem sido uma fonte de fortaleza e bênção
para gerações incontáveis de crentes (cf. Is 11.1-26; Ez 36.28; 37.24-27, etc.).
(HARRISON, 1983, p. 214)

O Repouso e a Arca da Aliança: Números 10.33-36;

Neste texto do livro de Números encontramos a presença de Javé, representada pela arca
da aliança, retratada aqui como aquilo que confere descanso ao povo. O repouso é novamente
dado pela presença. Neste caso o repouso do povo de Deus é entregue pela presença de Deus
que guia, governa e habita no meio do seu povo.

O Shabat e o Êxodo: Deuteronômio 5.12-15;

Nesta ordenança do Shabat, o diferencial principal para com a ordenança do Êxodo


talvez seja a razão redentora do Shabat. Esta diferença não é, de modo algum, contraditória,
mas sim complementar, afinal, o êxodo do Egito era uma espécie de nova criação daquele povo.
No relato criacional o caminho foi do caos à ordem, da desolação à habitação. No êxodo ocorre
a mesma coisa, da escravidão à liberdade, da desolação à habitação. Desse modo, o repouso do
povo em Deuteronômio 5 é uma celebração do Deus redentor, do Deus que vai com sua
presença no meio do sofrimento do seu povo e os liberta:
41

Descansar no sábado era lembrar que oser humano, como parte da ordem criada por
Deus, era totalmente dependente do Criador. A tarefa divinamente designada para 0
homem, de dominar a ordem criada (Gn 1.26), trazia o privilégio de participar do
descanso de Deus. O êxodo, também, era um tipo da criação e, portanto, fazia uma
analogia com o relato da criação cm Gênesis. O êxodo do Egito marca, com efeito, a
criação do povo de Deus como nação,18 e a memória desse evento lembrava aos
israelitas sua dependência de Deus. Embora, certa vez, os israelitas tenham sido
escravos no Egito, sem dia reservado para o descanso de seu trabalho contínuo e
monótono, a libertação que receberam de Deus os tornou potencialmente uma nação,
e o sábado devia funcionar como um dia de descanso no qual a libertação da antiga
escravidão poderia ser lembrada com ação de graças. (CRAIGIE, 2013, p. 154)

Diante de todos os textos observados panoramicamente, podemos notar que na Torah há


a confirmação de que o repouso de Deus é transmitido à humanidade e ao seu povo com o
propósito de desfrutar de uma presença divina habitante e reinante em meio ao seu povo. A
tônica mais evidente é, claramente, a da ordenança do sábado que em suas diversas ênfases
contribui para a compreensão do repouso divino enquanto cessação de atividade, habitação
divina e governo de Deus sobre a criação e sobre o seu povo. Além disso, foi possível observar
que o repouso divino está relacionado à arca da aliança e ao repouso desta sobre a terra
prometida, indicando a relação entre o repouso e a manifestação da presença divina que busca
um lugar agradável sem desordem e caos para a sua habitação.

2.2. Nos Nevi’ym: a criação, a nova criação e o governo escatológico

Nesta segunda parte observaremos seis textos contidos nos Nevi’ym, isto é, a secção dos
profetas da Bíblia hebraica, com exceção do texto de segundo Crônicas 3 a 7 que será observado
juntamente a 2 Reis 5 a 9, pois tratam do mesmo episódio histórico. Os autores não são mais os
mesmos, mas esse fato será relevante para a observação do assunto do repouso em diferentes
contextos do Antigo Testamento.

O Descanso e a Arca da Aliança: 2 Samuel 7.1-2;

Assim como em Números 10, o descanso do povo está totalmente atrelado à ideia da
presença de Deus. Em Números, a presença de Deus daria repouso ao povo. Mas em Samuel o
descanso dos inimigos tão almejado por Israel não é suficiente. O propósito não estaria
cumprido enquanto não houvesse um local mais adequado para a presença de Javé. A presença
os havia dado descanso de todos os inimigos, mas ainda faltava a centralização plena da
presença habitante e reinante de Javé no meio de Israel e isto é claramente demonstrado no
coração de Davi aqui e no Salmo 132 como veremos mais adiante. A preocupação de Davi com
este texto é de construir uma casa para a habitação de Javé em Sião. Mas é Javé quem edifica
uma casa para Davi, e essa casa possui dois principais sentidos para Davi e sua família: a
42

habitação na terra e o governo para sempre de sua descendência. Neste sentido, Baldwin
confirma:

Um lugar para o meu povo...Israel já havia sido colocado no mapa, mas há também
um vislumbre do futuro distante, que propiciaria esperança e consolo em tempos
atribulados (e.g., Jr 32.37) e uma visão de segurança (descanso, cf. v. 1) ainda futura
(Sl 89.22-24). Finalmente, num trocadilho com a palavra “casa”, a situação e
completamente invertida, e o Senhor compromete-Se a construir para Davi uma casa
com o sentido de “dinastia” (1997, p. 243-4)

E Pratt Jr., do mesmo modo, defende:

Apesar do desejo de Davi, Deus o proibira de construir o templo a seu Nome (ver
Introdução: 11) Nome de Deus). Porque ele era um homem de guerras e derramara
muito sangue (28.3). Pela segunda vez, o cronista explicou por que Davi não pôde
construir o templo (ver comentários em 22.6–10). Conforme a lei de Moisés, o lugar
permanente da presença de Deus deveria acontecer somente depois que a conquista
da terra estivesse completa. Davi passou sua vida a lutar contra seus inimigos na terra.
Não era apropriado Deus habitar em seu palácio, enquanto houvesse guerras em
andamento. Somente quando o povo de Deus tivesse alcançado a paz era que o Deus
do povo iria descansar em seu palácio. (2008, p. 247)

Novamente vemos a relação entre descanso, casa, templo, habitação e governo no texto
bíblico. Neste caso, conforme o Salmo 132 reafirma, a presença habitante e governante de Javé
deve repousar sobre o lugar mais santo da terra. Por isso afirma Baldwin:

“Tendo-lhe o Senhor dado descanso de todos os seus inimigos em redor” (cf. v. 11) é
uma citação literal de Deuteronômio 12.10, onde se promete que a terra pertencerá às
doze tribos, que vencerão seus inimigos e às quais será mostrado o único local em que
se deverá adorar. Tendo visto a promessa cumprida pelo menos em parte, Davi queria
glorificar ainda mais a Deus, abrigando a arca de modo mais adequado ao estilo e ao
caráter permanente de sua própria habitação. Os cananeus consideravam que esse era
o dever do rei; algo menos do que isso seria um insulto deliberado contra o Deus que
lhe havia concedido suas vitórias. (1997, p. 242)

O Templo e a Criação: 1 Reis 5-9 e 2 Crônicas 3-7;

As duas secções observadas agora são semelhantes a Êxodo 25 a 40, pois descrevem a
edificação da habitação de Deus em meio ao seu povo. Os dois casos, quando se referem ao
término da obra de Moisés e Salomão, possuem construção frasal semelhante à de Gênesis
quando ’elohim conclui a sua obra e nos dois casos a glória de Javé desce sobre o lugar de seu
repouso (1 Reis 7.51 e 2 Crônicas 7.1).

Primeiramente, é interessante notar que à semelhança de 2 Samuel 7, a ideia de


edificação de um templo está relacionada ao descanso dos inimigos, pois como afirma
Wiseman:
43

Descanso de todos os lados (b l h “paz”, cf. 4.24) cumpriu a promessa de Deus a seu
povo (Êx 33.14; Dt 12.10; cf. Hb 4.1-11). Isso foi literalmente verdadeiro somente no
início do reinado de Salomão. Não havia inimigo. Também não havia adversidade,
melhor “acontecimento ruim”, ou “perigo de ataques.” O templo é interpretado aqui
como “casa” (bêt), tanto no sentido de lugar de adoração quanto de casa real. (2006,
p. 91)

São muitos os pontos de comparação aqui entre o templo e a criação. Beale (2021)
desenvolve boa parte de seu livro, O Templo e a Missão da Igreja, para não somente defender
a comparação, mas para evidenciar que a concepção do templo de Israel como um reflexo do
templo cósmico do Criador não é teoria recente, antes, foi desenvolvida por muitos estudiosos
judeus e cristãos do passado, além de ter sido confirmada pelo próprio texto bíblico.

Alguns dos pontos que Beale (2021) apresenta são, por exemplo, a visão do átrio exterior
como uma representação do mundo visível, sendo a bacia de bronze uma referência aos mares
(1 Reis 7.23-26). Além disso, é evidente que o Santo dos Santos era visto como uma
representação do trono celestial de Deus. Além de suas descrições serem extremamente
semelhantes a visões bíblicas do próprio trono celestial (como de Isaías 6 ou Ezequiel 1 e 10)
onde encontramos, nos dois casos, seres angelicais ao redor (ou debaixo) do trono, nuvens de
fumaça, fogo e relâmpagos em torno da presença do rei, sua função é também a mesma, um
lugar de repouso para o Criador e um lugar de governo.

Entre as poucas passagens bíblicas reconhecidamente explícitas que apoiam a tese do


templo cósmico (Levenson 1984: 289-98), Levenson cita Isaías 6.3: “Santo, santo,
santo é o Senhor dos Exércitos; toda a terra está cheia da sua glória”. Ele argumenta
que essa “glória” é o esplendor divino por meio do qual Deus manifesta sua presença
no templo. O significado da visão que Isaías teve da fumaça luminosa que enchia o
templo (6.4) é explicado pelo serafim com o sentido de que o mundo inteiro manifesta
a glória celestial cultual de Yahweh, que tem correspondência exclusiva no Templo
terreno. A passagem de Isaías 6.3b poderia muito bem ser traduzida por “a plenitude
da terra inteira é a sua glória” (uma tradução alternativa proposta por Levenson e pela
NASB), isto é, o mundo inteiro reflete a glória de Deus no templo.[44] Da mesma
forma que a glória de Deus (kābôd) encheu tanto o Tabernáculo quanto o Templo
quando a construção de cada um deles foi terminada, a passagem de Isaías 6.3 afirma
de igual modo que a glória de Deus enche o cosmo todo (Levenson 1984: 289).
Embora Levenson admita que a evidência bíblica é “tênue e implícita”, o AT “não é
assim tão carente de evidência quanto se poderia pensar à primeira vista” (Levenson
1984: 286). (BEALE, 2021 p. 54)

Os detalhes destas comparações não são tão precisos e muito menos unânimes entre os
comentaristas, mas atestam que a mentalidade veterotestamentária confirma a simples ideia de
que o tabernáculo e o templo foram edificados com o propósito de representarem toda a criação
outrora perfeita num mundo então imperfeito e por isso a presença de Deus outrora manifestada
plenamente sobre todo o cosmos no sétimo dia, estava agora repousando de modo restrito sobre
edificações humanas, como afirma Walton, “a principal conexão é, no entanto, o tema do
44

descanso, pois o descanso é a principal função de um templo, e o templo é sempre onde a


divindade encontra descanso” (2021, p. 288)

Assim afirma Pratt Jr.:

O cronista selecionou porções pertinentes do Salmo 132. O salmo em si começa com


o pedido para que Deus se lembre do zelo que Davi manifestou para encontrar
morada para a arca (vs.1–5). Depois se lembre da convocação para a viagem, para o
lugar de habitação da arca (vs.6–9). O restante do salmo é uma súplica a Deus para
que se lembre de seu juramento pactual feito a Davi e se regozije com as bênçãos
que virão sobre Sião e sobre o rei (vs.10–18). O cronista começou sua seleção com
a procissão dos sacerdotes levando a arca para Jerusalém (6.41 // Sl 132.8–9). Ele
então encerra suplicando a Deus que se lembre de ambos os seus juramentos e de
sua fidelidade para com Davi (6.42 // Sl 132.1a,10). Ao fazer isso, seu final combina
as esperanças que Salomão tinha para seu templo e para o trono de Davi. O salmo
pede a Deus: entra para teu repouso (6.40). Com a arca de teu poder no templo, o
poder do nome seria acessível ao povo. Ele também solicita aos sacerdotes e santos
(provavelmente os leigos santificados [ver Sl 16.3; 30.4; 31.23; 34.9; 116.15;
149.1,5]) que sirvam no templo com grande alegria. Então, como base para esses
pedidos, os salmos selecionados do cronista apelam para as promessas de Deus a
Davi (6.42 // Sl 132.11). Com efeito, o cumprimento do templo ideal era o
cumprimento da aliança davídica. Sem a presença de Deus no templo, a esperança
davídica seria em vão. (2008, p. 315)

O Rebento de Jessé e o Lugar do Repouso: Isaías 11.1-10

Neste caso temos um vislumbre escatológico do reino messiânico do Rebento de Jessé.


Quando o Descendente de Davi reinar sobre a Terra, segundo o verso 9, toda ela se encherá da
glória de Javé. Assim, Javé encontrará como em Gênesis 2.1-3 o lugar do seu repouso.
Conforme Ridderbos:

[...] o que se descreve aqui é a sua submissão voluntária ao governo dEle. Assim
mesmo, esse julgamento real não pode ser divorciado da instrução nos caminhos do
Senhor que as nações procurarão e encontrarão em Sião (2.3ss.); portanto, o Rei é
simultaneamente o Mestre das nações. Desta forma Ele tem um nome que está acima
de todo o nome, e o lugar do Seu repouso - isto é, a Sua residência — é glorioso
porque os tesouros das nações para ali serão levados (SI 72.10; Ap 21.24;Is 60). (1986,
p. 139)

A Criação, o Repouso e a Glória Futura: Isaías 56-66

Em Isaías encontramos um embasamento teológico na criação e no Deus criador. A


partir desta ênfase o profeta direciona a sua profecia. Nestes capítulos encontramos diversas
menções do profeta a um tempo quando a glória do Senhor encherá toda a terra de modo que a
habitação e o governo divino serão plenos sobre todo o cosmos.
45

No capítulo 57 vemos a ênfase na habitação divina celestial e no quebrantado de


coração. Já no capítulo 60 o profeta vislumbra a glória de Sião, isto é, a glória que repousava
sobre o templo deveria expandir-se para todo o monte e, posteriormente para toda a terra:

A glória do Líbano — ou seja, as suas árvores (pinho, abeto e cipreste) — virá a


Jerusalém para aumentar a beleza do “lugar do meu santuário” - o templo com seus
pátios, toda a área que pertence ao santuário. Ele também é chamado de “lugar dos
meus pés” ; visto que a Sua verdadeira habitação é o céu, diz-se que são apenas os
Seus pés que repousam no templo; por essa razão, também, o templo, especialmente
a arca da aliança, é chamada de “estrado” dos Seus pés (I Cr 28.2; Sls. 99.5; 132.7;
Lm 2.1). [...] Desta forma o Senhor, que faz tudo isto acontecer, aumentará
continuamente a glória do Seu templo. [...] Sol e lua já não a iluminarão mais. O
Senhor será a sua luz perpétua; a Sua glória resplandecente a banhará de beleza.
(RIDDERBOS, 1986, p. 484-5-6)

No caso de Isaías 65 vemos a promessa de uma nova criação em perfeita ordem


restaurada. Em meio a esta promessa de novos Céus e nova Terra há o começo do capítulo 66.1-
2: “Assim diz o Senhor: ‘O céu é o meu trono, e a terra, o estrado dos meus pés. Que espécie
de casa vocês me edificarão? É este o meu lugar de descanso? Não foram as minhas mãos que
fizeram todas essas coisas, e por isso vieram a existir?’, pergunta o Senhor. ‘A este eu estimo:
ao humilde e contrito de espírito, que treme diante da minha palavra.’ ”37

Temos aqui um claro eco do templo em relação com a criação. O templo havia sido
edificado para representar o cosmos, mas não poderia, como aconteceu, ter se tornado um objeto
de idolatria para o povo de Israel, pois ele devia representar o fato de que toda a criação era o
lugar criado pelo próprio Deus para o seu repouso como vemos neste texto. A pergunta acerca
do lugar do repouso divino sugere que toda a sua criação foi feita como um lugar para o seu
repouso. E é por isso que novos céus e nova terra restaurados serão criados, isto é, para que
novamente a glória de Javé possa habitar plenamente sobre todo o cosmos conforme o capítulo
11.

Levando em consideração todos os dados anteriores, as três partes do Templo de Israel


representavam as três partes do cosmo: o Átrio Exterior simbolizava a terra visível
(terra e mar, o lugar em que vivem os seres humanos); o Lugar Santo representava
principalmente os céus visíveis (embora também houvesse simbolismo de jardim); o
Santo dos Santos representava a dimensão celestial invisível do cosmo, onde Deus
habita (ao que tudo indica, nem mesmo o sumo sacerdote, que entrava lá uma vez por
ano, conseguia ver qualquer coisa, por causa da fumaça do incenso que ele tinha de
pôr no fogo; cf. Lv 16.32). Como veremos melhor mais adiante, esse entendimento do
templo como um modelo de todo o cosmo em escala reduzida faz parte de uma
perspectiva mais abrangente segundo a qual o templo prefigurava um enorme
santuário mundial em que a presença de Deus habitaria em todas as partes do cosmos.
Essa concepção também constitui uma chave para entender melhor por que João mais
tarde retrata os novos céus e a nova terra como um gigantesco templo onde Deus

37
Nova Versão Internacional, 2021.
46

habita, assim como antigamente habitava no Santo dos Santos. (BEALE, 2021, p. 53)

A Glória, o Trono e o Repouso: Ezequiel 43.1-12

No contexto de cativeiro babilônico, isto é, de ter visto a glória de Javé saindo de dentro
do templo para longe da presença do povo (cap. 10 e 11), Ezequiel recebe visões gloriosas do
retorno desta glória e neste contexto ele vê a glória enchendo o templo novamente e ouve do
próprio Javé (vs. 7) que o interior desta casa é trono de ’elohim e o lugar de descanso para os
seus pés. Mais uma vez se tem a ideia do repouso divino sendo completamente associada ao
reino de ’elohim na Terra e à sua habitação conforme pode-se notar no versículo 9. Pois como
afirma Taylor:

As palavras aqui ecoam a oração de Salomão em 1 Reis 8:12,13, 27. O Santíssimo do


templo é considerado a sala do trono do Senhor (cf. Jr. 3:17; 17:12), e como o escabelo
dos Seus pés (cf. SI 99:5; 132:7), embora, por estranho que pareça, esta ideia não
parece contradizer o ponto de vista de que, na realidade, o Senhor habita no céu. O
templo é simplesmente Sua habitação terrestre. (1984, p. 238)

Dessa maneira, os textos considerados proféticos (Nevi’ym) que tratam direta ou


indiretamente do assunto do repouso divino enfatizam o aspecto criacional de Deus. Todos os
textos observados panoramicamente aqui ou lembram a criação de ’elohim do cosmos ou
profetizam a reconfiguração da criação em novos céus e nova terra para a vitória da habitação
reinante divina sobre o cosmos. Em 2 Samuel 7 notamos que este lugar de repouso e governo
virá por meio do Messias; os textos do templo fazem claro eco da criação de Gênesis e do
Tabernáculo indicando que o repouso divino é como a glória que paira sobre o Santo dos Santos;
Isaías 11 fortalece a ideia de que o repouso sobre toda a criação se dará por meio do governo
messiânico; a parte final de Isaías reafirma a relação entre o repouso e a glória de Javé sobre
toda a criação num novo Céu e nova Terra e o texto de Ezequiel também mostra a relação entre
o repouso e o governo junto a habitação divina.

2.3. Nos Ketuvim: adoração, habitação e governo messiânico

Nesta terceira parte da Bíblia hebraica serão observados três salmos que apontam
aspectos que nos ajudam a entender um pouco mais acerca do repouso divino no Antigo
Testamento dentro da literatura do hinário do Israel antigo.
47

O Templo e a Criação: Salmo 78

O aspecto que convém apontar do Salmo 78 é o fato de no versículo 69 o seu autor


afirmar claramente que o santuário terrestre será criado em referência às alturas, ou seja, ao
templo cósmico de Deus, reforçando mais uma vez a ideia de que toda a obra da criação teve
como objetivo final a presença plena de seu Criador sobre o universo, afinal o Messias
prometido no salmo deve edificar este novo templo cósmico, como diz Luis Alonso Shökel, “o
novo santuário terá estabilidade cósmica, pois será outra fundação divina, alicerçado como a
terra, elevado como o céu.” (1998, vol. 2 p. 1019).

O Repouso Futuro: Salmo 95

O Salmo 95 começa com um convite de seu autor ao louvor do povo de Deus ao seu
Criador. É um convite à aproximação à presença de Deus. Mas com a exortação fundamentada
no episódio da provação no deserto. A provação serviu de exortação de que aquele povo perdeu
o descanso de Javé. A nota interessante, inclusive apoiada por Hebreus 3 e 4 é que este descanso
parece ir além de um simples descanso dos inimigos e da Terra, antes é o descanso de Deus,
“meu descanso”, diz o versículo 11. E conforme aponta o livro de Hebreus, se o próprio salmista
muito tempo depois do povo ter entrado na terra do descanso com Josué ainda promete um
descanso divino, obviamente o descanso de Deus compreende um aspecto maior do que
simplesmente a terra prometida. Dessa maneira, o repouso divino é tratado aqui num aspecto
escatológico que muito provavelmente reforça o propósito original da criação de que todo o
cosmos deve entrar neste repouso da presença plena de seu Criador. Como aponta Shökel:

Na teologia do Cronista, a epopéia do êxodo só termina quando Salomão constrói o


templo e o Senhor entra em seu descanso; só então descansa finalmente o povo. O SI
132 relaciona o templo com a dinastia davídica: Davi não se pode dar descanso
enquanto o Senhor não tiver onde repousar.[...] Ou seja: não entrareis em meu repouso
/ templo, que é o vosso; se perderdes o templo, perdereis a terra, como vos fez
compreender Ezequiel. Entrar na terra / repouso não é fato consumado que garanta a
perpetuidade; entrar no templo não é rito isolado de toda exigência. Cada dia é preciso
voltar a entrar, na terra como tarefa, no culto como compromisso. (1998, vol. 2, p.
1200-1)

O Repouso e a Arca da Aliança: Salmo 132

Por fim, o salmo 132 talvez seja um dos mais valiosos para esta pesquisa. Seus primeiros
versos mostram que a preocupação davídica e, consequentemente, do salmista é a habitação de
Deus no meio do seu povo. Os versos 7 e 8 evidenciam esta preocupação e revelam que o Santo
dos Santos é o lugar do repouso de Deus na terra como aponta Shökel:
48

Não pretendem eles transportar o Senhor, seria absurdo pensá-lo; podem pedir
humildemente que o Senhor se levante e se dirija com sua arca ao novo domicílio: o
versículo atualiza a tradição retomada em Nm 10,35: “Quando a arca se punha em
marcha, Moisés dizia: Levanta-te, Senhor!... E quando se detinha a arca, dizia:
Descansa, Senhor!”: tradição retomada em forma enunciativa no SI 68,1. O texto de
lCr 28,2 ajuda a imaginar a cena: O rei Davi levantou-se e, de pé, declarou: Escutai,
meus irmãos e meu povo. Eu tinha a intenção de edificar um templo para descanso
(byt mnwhh) da arca da aliança do Senhor e como estrado dos pés de nosso Deus; e
fiz os preparativos para a construção. Arca de teu poder, a tua arca poderosa, alude à
função da arca como paládio ou proteção militar, e rememora velhas tradições. A
expressão lêse aqui e em 2Cr 6,11. No versículo presente produz-se um contraste entre
o atributo bélico e o repouso augurado. Terminaram as batalhas, às quais acudia a arca
protetora, sobrevêm a paz e o tempo do repouso. Por sua ocupação na guerra, Davi
não pôde construir o templo; Salomão, o pacífico, o fez. E essa a doutrina própria do
Cronista (lCr 28,3-6). (1998, p. 1528-9)

O Santíssimo Lugar, onde a glória de Javé era plenamente manifestada na nuvem era o
lugar onde a presença de Deus habitava e reinava. Isto claramente reforça o fato de que para a
mentalidade veterotestamentária o repouso divino implica no pairar de sua presença habitante
e reinante sobre um lugar.

Dentre os Escritos, portanto, nota-se a evidente relação entre o repouso divino, a


adoração e o aspecto escatológico. No Salmo 78 vemos claramente o reforço da ideia de um
templo cósmico e escatológico que vem com o Messias. No Salmo 95, vemos a relação entre o
repouso divino e a entrada na Terra e na presença de Deus junto à ideia de um repouso
escatológico. Por fim, no Salmo 132 temos a clarividente percepção do repouso divino como
tendo um lugar, o Santo do Santos. Todos estes textos evidenciam que o repouso divino está
intrinsecamente ligado à presença habitante e reinante de Deus e, consequentemente, à adoração
do ser humano nesta presença de Deus.
49

CAPÍTULO 3

O REPOUSO DIVINO NO AMBIENTE COGNITIVO DO ANTIGO


ORIENTE PRÓXIMO

Se o autor do Gênesis expôs com tamanha naturalidade o ato de ’elohim descansar,


muito provavelmente, é porque o seu público entendera rapidamente o seu significado. Pois
este público estava imerso em uma cultura de modo que frases, relatos e expressões eram
influenciados pela cosmovisão da época, isto é, pelo ambiente cognitivo do Antigo Oriente
Próximo. Dessa maneira, serão observados três trechos de relatos criacionais do contexto do
Israel antigo. Não é difícil imaginar a influência da literatura egípcia, suméria e babilônica no
povo de Israel. Abraão veio da Mesopotâmia e seus descendentes, segundo o relato bíblico,
passaram mais de 400 anos no Egito. Por isso, serão feitos apontamentos que contribuem com
esta pesquisa no que diz respeito ao entendimento do repouso divino e das consequências pós-
criativas dos deuses no contexto do Antigo Oriente Próximo.

3.1. Na Literatura Egípcia

A literatura religiosa egípcia é muito ampla e repleta de períodos. Não é do interesse


desta pesquisa aprofundar-se em seus detalhes. Para isso será necessário consultar alguns
egiptólogos que possam auxiliar nesta pesquisa. Jan Assman auxilia no entendimento,
primeiramente, da importância das cidades no Egito Antigo.

Para os antigos egípcios, o conceito de cidade era, portanto, determinado


principalmente pela religião. Viver em uma cidade significa estar na residência
interpretada, em primeiro lugar, como senhorio. O reino dos deuses egípcios era
enfaticamente “deste mundo”. Eles moravam em seus templos como senhores feudais,
proprietários das propriedades do templo. No Egito, a maior parte das terras pertencia
aos templos e eram trabalhadas pelos próprios funcionários do templo ou alugadas.
Os templos não pagavam impostos ao Estado, pois eles próprios eram agências
estatais (ASSMAN, 2001, p. 19)

As cidades tinham um papel primordial na centralização do culto e da noção de


habitação divina para o povo. Dessa maneira já encontramos a ideia, defendida nesta pesquisa,
de que a habitação de uma divindade numa região implica no seu domínio sobre ela. Sobre isso
J. Assman continua:

Para os egípcios, uma cidade era um templo localizado no monte primitivo, o lar e o
domínio de uma divindade autóctone. O que esse conceito de cidade como morada
divina significava na vida das pessoas que moravam nas cidades? "Devemos aceitar
literalmente a afirmação de que era precisamente no seu aspecto de habitação divina
50

que uma cidade unia as pessoas umas às outras e as fazia sentir-se em casa. O templo
era o centro da administração civil municipal no Egipto. Os habitantes da cidade
pertenciam ao templo como sacerdotes leigos; eles eram os "sacerdotes da hora" que
serviam nos templos em rodízio mensal. (2001, p. 25)

A relação entre casa e domínio é evidente no mundo antigo. Só é possuidor de uma casa
aquele que tem autoridade. Com os deuses não é diferente. As divindades deveriam habitar nos
templos a fim de exercerem o seu domínio sobre a região. Esta mentalidade do mundo antigo
estava presente também em meio aos hebreus, confirmando-se a ambiência cognitiva de
domínio por parte das divindades ao repousarem sobre as suas casas, isto é, os templos.

Um outro fator fundamental é a noção do cosmos como um templo. Assman (2001)


desenvolve este conceito dos templos egípcios como referências ao cosmos no capítulo 2 de
seu livro, The Search For God in Ancient Egypt. Tal como no tabernáculo e no templo, havia
nos templos egípcios uma representação do cosmos, indicando que a presença divina que
repousa sobre os templos repousa também sobre a criação. Assman afirma que, “o templo
representa um cosmos além do qual não há mais nada. A imagem de culto enchia o templo com
uma emanação da presença divina, enquanto, ao mesmo tempo, o deus enchia todo o cosmos
com o brilho de sua manifestação.” (2001, p. 36). Esta noção contribui para o entendimento de
que para o mundo antigo os templos eram referências da criação, entendendo-se a partir disso
que se a presença divina habitava nos templos não deveria permanecer apenas ali, mas em todo
o cosmos, pois “o templo era um ‘céu’ na terra, mas ao mesmo tempo céu e terra. Era um
recipiente de sacralidade no mundo profano, e foi o mundo que o deus onipresente preencheu
até os limites.” (ASSMAN, 2001, p. 37). No famoso Hino a Aton de Akhenaten também é
encontrada, de modo indireto, a divindade repousando com sua poderosa luz sobre a criação:

A terra está silenciosa agora, porque Aquele que a faz está descansado em Seu
horizonte. Mas quando o dia amanhece você se eleva no horizonte e brilha no Aton
durante o dia. (SIMPSON, 2003, p. 493)

Clifford (1994) aponta a congruência egípcia quanto ao conceito do “monte primitivo”.


Para muitos egípcios a criação se deu por meio da elevação de um monte primordial de entre
as águas primitivas. Após a elevação os deuses então passaram a habitar este monte e,
posteriormente, cada templo egípcio era como uma representação deste monte para que cada
divindade habitasse em sua cidade.

O hieróglifo desta ideia mostra o dilúvio primitivo com o sol nascendo sobre ele,
estilizado como um monte. Ele representava não terras emergentes em geral, mas o
mundo contido inteiro em uma pequena ilha. O monte desempenhou um papel
importante nos principais sistemas cosmológicos. Em Heliópolis, o próprio Atum
apareceu como o monte primordial, que às vezes era chamado de benben. Em
51

Memphis, o deus ctônico Ta-tenen, "a terra que sobe", foi combinado com Ptah a partir
do período do Novo Reino. Em Hermópolis, a Ogdóade foi colocada dentro ou ao
lado da "ilha das chamas" com o monte explodindo em vida. Outros santuários
também localizaram o monte primordial dentro de seus arredores. Relacionados ao
monte primitivo estavam o templo e o trono. A criação era renovada todos os dias no
templo, que assim se tornou um monte primordial. Os templos foram construídos
sobre fundações especiais de areia, com o Santo dos Santos em um nível mais alto do
que as outras salas. "O rei, que representava na terra o deus e suas ações geradoras de
vida, desempenhava o papel de criador in parvo. Como o criador, ele ascendia ao
estilizado monte primordial. O pedestal (geralmente escalonado) do trono funcionava
como o monte primordial. E cada vez que o rei se sentava nele - especialmente
significado nas entronizações e na festa Sed – ele repetia a criação simbolicamente.
(CLIFFORD, 1994, p. 105-6)

Assman também afirma:

O simbolismo cósmico dos templos egípcios assenta nesta antinomia entre interior e
exterior, entre laços locais e a onipresença da manifestação divina. O naos onde
repousa a estátua de culto é a parte mais remota do céu, onde habitam os deuses e
deusas. As portas do santuário são os portões celestiais pelos quais o deus sol passa
pela manhã. O restante do templo é o mundo que o deus sol inunda de luz quando
aparece no Leste. Naos e templo têm, portanto, um relacionamento interno-externo
um com o outro. Quando as portas do santuário são abertas, o sacerdote começa a
recitar. (2001, p. 36)

Por mais que o descanso divino não seja citado explicitamente, ele é subentendido na
estabilidade, tranquilidade e domínio que os deuses alcançam ao estabelecerem ordem no caos,
por meio de suas criações. Walton retrata que:

Ptah descansou depois de ter feito tudo e de também ter pronunciado todo o discurso
divino, tendo dado à luz os deuses e edificado as cidades deles, tendo estabelecido as
divisões territoriais dos deuses e os colocado em seus locais de culto, tendo assegurado
suas ofertas de pão e estabelecido seus santuários, tendo dado a seus corpos a forma
que lhes satisfaz. (2021, p. 217)

Dessa maneira, a mentalidade religiosa egípcia também contempla ideia de que suas
divindades encontram lugar para a sua habitação na terra após criarem o cosmos. Tal como o
sol nasce no leste junto ao horizonte montanhesco, Aton, por exemplo, manifesta a sua presença
junto ao monte primitivo irradiando vida à sua criação. Na procissão da estátua de Pepi I, a
recitação também diz que, “sua mãe, o céu, o carregará vivo todos os dias como o Sol: ele
aparecerá com ele no Leste e irá descansar com ele no oeste; sua mãe Nut não ficará sem ele
todos os dias.” (ALLEN, 2005, p. 265). Portanto a significação do descanso divino envolvendo
a habitação dos deuses sobre a terra e o reinado destes a partir do templo cósmico é evidente.
Considerando os 400 anos de vivência dos hebreus com esta mentalidade religiosa, torna-se
mais compreensível o entendimento do repouso de ’elohim depois de ter criado o cosmos,
levando em consideração o público a quem o autor estava se dirigindo.
52

3.2. No Hino do Templo de Kês (Literatura Suméria)

A mitologia suméria data do final do terceiro milênio antes de Cristo, em sua maioria.38
Sua principal divindade criadora é Enlil, considerado o principal deus do panteão sumério e
responsável pela separação do céu e da terra. Além disso, Enlil era aquele que concedia
fertilidade aos seres humanos e à terra. Aqui já podemos ver pontos de semelhança entre o
Gênesis e a literatura suméria.

Entretanto o que mais interessa a esta pesquisa é a crença suméria relativa à criação,
especialmente, se há alguma alusão a um descanso divino semelhante ao Gênesis e qual o seu
significado. Conforme aponta Walton (2009, p. 74), o hino de dedicação do templo de Kês
apresenta um aspecto interessante quanto ao repouso divino. O verso 58 diz:

Casa ...... inspirando grande admiração, chamada com um nome poderoso por An ;
casa ...... cujo destino é grandemente determinado pela Grande Montanha Enlil ! Casa
dos deuses Anuna possuindo grande poder, que dá sabedoria ao povo; casa, morada
de repouso dos grandes deuses! Casa, que foi planejada junto com os planos do céu e
da terra, ...... com os puros poderes divinos ; casa que sustenta a Terra e sustenta os
santuários! Casa, montanha de abundância que passa os dias em glória; casa de
Ninhursaja que estabelece a vida da Terra! Casa, grande encosta digna dos ritos de
purificação, alterando todas as coisas; casa sem a qual não se tomam decisões! Casa,
boa......que carrega nas mãos a ampla Terra; casa que dá origem a inúmeros povos,
semente que brota! Casa que dá origem aos reis, que determina os destinos da Terra;
casa cujos personagens reais devem ser reverenciados! Alguém mais produzirá algo
tão grande quanto Kec ? Alguma outra mãe dará à luz alguém tão grande quanto seu
herói Acgi ? Quem já viu alguém tão grandioso quanto sua senhora Nintud?39

Este hino é uma ode à habitação de Enlil na terra. A habitação é retratada como o local
de governo de Enlil, por exemplo, nos versos de 22 a 30. Nos versos 45-57 ela é retratada com
carros de guerra e no verso 58 as aclamações de glória deste templo. A todo o tempo ele é
chamado de casa, enfatizado a sua função residencial para Enlil. E em meio a estas aclamações
há a menção de que esta casa é um lugar para o repouso dos deuses.

Mais uma vez vemos o templo sendo retratado como uma representação cósmica e como
um lugar de governo dos deuses e sobre uma montanha. Neste caso um lugar de governo a partir
da habitação de repouso de Enlil em sua casa. A ideia, no texto é de que esta habitação fora
planejada desde a criação e, portanto, serve de sustento vital para o cosmos. A partir da presença
divina nela, todo o cosmos é abençoado por suas decisões reais e pela vida divina que dela
emana.

38
Para mais detalhes, ver CLIFFORD, 1994, p. 13.
39
Disponível em <https://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section4/tr4802.htm>. Acesso em: 7 de dezembro de 2023
53

Dessa maneira, a presença divina que habita nela é a responsável por manter a ordem,
tranquilidade e estabilidade da vida no cosmos, pois Enlil é também um rei soberano. E assim
como para todo rei, encontrar um lugar agradável para a sua habitação e governo é o objetivo
supremo. Assim, é possível ver que na mentalidade antiga do oriente próximo o propósito
criacional da divindade está sempre relacionado ao estabelecimento de uma ordem de governo
e de habitação dos deuses, sendo, portanto, o repouso divino.

3.3. No Enuma Elish (Literatura Babilônica)

O Enuma Elish é um poema épico babilônico, aproximadamente, do primeiro milênio


antes de Cristo, ainda que seja difícil a sua datação dada a dissincronia de datação das tábuas.
São sete tábuas que contam a principal versão criacional babilônica. O Enuma Elish também
conta sua versão criacional desde antes da existência dos deuses, isto é, desde as águas
primordiais de Tiamat. Com o surgimento de Marduk, Tiamat é morta por ele dando origem à
separação entre céus e terra. Marduk então ao terminar a criação escolhe a Babilônia como a
sua residência, erige templos para a sua habitação e é glorificado como diz a quinta tábua,
“quando o trabalho do deus tinha acabado, quando ele terminou tudo a que se propôs, então na
terra ele fundou templos, e entregou-os todos a Ea.”40

Assim, pode-se observar que, assim como esta pesquisa tem buscado demonstrar, os
relatos criacionais do Antigo Oriente Próximo tem em comum que suas divindades criadoras
sempre buscam um lugar para a sua habitação após criarem o cosmos. Reinke afirma que, “o
objetivo da criação dos homens era que eles se ocupassem do fardo do trabalho no lugar dos
deuses, os quais poderiam finalmente descansar.” (2019, p. 50). Este aspecto também é
encontrado na Epopeia de Atrahasis quando os deuses acordam Elil a fim de aliviarem os seus
trabalhos duros por meio da criação do ser humano:

“Eles estavam contando os anos de cargas.


Durante 3.600 anos eles suportaram o excesso,
Trabalho duro, noite e dia.
Eles gemeram e culparam um ao outro,
Resmungou sobre as massas de solo escavado:
'Vamos confrontar nosso camareiro,
E faça com que ele nos alivie do nosso trabalho duro!
Venha, vamos carregá-lo,
O conselheiro dos deuses, o guerreiro, desde a sua habitação.”
(DALLEY, 2009, p. 10)

40
Disponível em: <https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html> Acesso em: 7 de dezembro de
2023.
54

Geralmente este local é um templo edificado como casa da divindade. Ou seja, na


mentalidade médio-oriental antiga a coroação da criação do cosmos por uma divindade é a
glorificação de uma casa para esta divindade. Na sexta tábua há um exemplo disso por parte do
próprio povo que aclama o seu deus criador:

Agora que nos libertaste e fizeste menor nossa carga de trabalho, como devemos
retribuir tal graça? Que construamos um templo e que o chamemos de O Albergue Do
Descanso Da Noite. Lá onde todos iremos dormir uma estação do ano, no Grande
Festival, quando todos reunidos em Assembleia, iremos construir altares para ti,
iremos construir Parakku, o Santuário [...] Quando a construção do templo terminou,
os Anunaki construíram capelas para si; então todos se reuniram, e Marduk ofereceu
a todos um banquete. Esta é Babilônia, a cidade querida dos deuses, teu amado lar!41

Além disso Marduk não somente busca uma casa para morar, mas também para reinar.
Tal como nos outros relatos já observados neste capítulo, Marduk também visa, ao criar o
cosmos, estabelecer a ordem, tranquilidade e estabilidade sobre o caos e, portanto, reinar sobre
a Terra. Dessa maneira, o lugar da habitação de Marduk é o local de seu governo sobre a Terra
a fim de manter a ordem. Isto é demonstrado pelos seguintes versos da tábua 7:

Ele é Aranunna, o conselheiro, com seu pai Ea sem igual em seus modos soberanos,
ele criou os deuses. Ele é Dumuduku, a montanha brilhante, Dumuduku, a presença
no templo, o local das decisões, onde nada se decide sem ele [estar presente]. Ele é
Lugallanna, o forte, aquele que carrega o firmamento.42

Conforme sintetiza Waldízio Araújo43, as divindades buscam um lugar para o seu


repouso após a criação: “Como mostra de gratidão pelos benefícios de que passariam a
desfrutar, os deuses ofereceram-se para construir o santuário de Marduk em Babilônia, o
Esagila, destinado ao repouso dos deuses.”

A mentalidade babilônica, portanto, também reforça a ideia de que o repouso divino


implica na habitação reinante da divindade sobre a sua criação recém-criada. Jonh Walton
resume da seguinte maneira:

No famoso épico babilônico da criação, Enuma Elish, a obra da criação de Marduk é


seguida pela construção de um templo para ele. Observe o seguinte: Os deuses dão a
realeza a Marduk (5.113), e Marduk responde com a declaração: “Abaixo do
firmamento, cuja base eu tornei firme, uma casa construirei, que seja a morada de meu
prazer. Dentro dele estabelecerei seu lugar santo, designarei minhas câmaras sagradas,
estabelecerei minha realeza” (WALTON, 2009, p. 75).

41
Disponível em: <https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html>. Acesso em: 7 de dezembro de
2023
42
Idem nota 41
43
Disponível em:
<https://sf8f90c5fdde20445.jimcontent.com/download/version/1502911073/module/9728361671/name/Enuma%
20Elish%20em%20Portugues.pdf> Acesso em: 7 de dezembro de 2023
55

Diante de todos estes relatos, podemos afirmar que no ambiente cognitivo do Antigo
Oriente Próximo havia uma concordância quanto à ideia criativa das divindades. Para este
mundo uma divindade ao criar o cosmos buscava um lugar para a sua habitação reinante, sendo
ela, o seu repouso. Neste contexto, o significado do repouso divino sempre estava relacionado
à habitação da presença da divindade sobre um templo ou sobre o próprio cosmos como um
templo. John Walton (2021), em seu livro O Pensamento do Antigo Oriente Próximo, apresenta
seis aspectos do descanso divino presentes nos relatos criacionais do Antigo Oriente Próximo.
São eles: o descanso divino é perturbado por rebelião; é alcançado depois de um conflito; é
alcançado depois de uma criação; é alcançado num templo; traz controle, estabilidade e ordem
e, por último, é alcançado por meio da criação de seres humanos que trabalham para os deuses.
Claramente existem diferenças com o relato bíblico, mas as semelhanças mostram que a
cosmovisão do Antigo Oriente Próximo influenciou na compreensão de ideias comuns. Um
ouvinte de Moisés saberia facilmente o que ele queria dizer com o repouso de ’elohim depois
da criação, a saber a presença habitante e reinante do Criador sobre a criação.

Por fim, Walton conclui:

Esses templos eram construídos para servir de local de descanso para a divindade.
Embora o conceito de relaxamento (ou até mesmo de indolência) não esteja ausente,
o descanso está relacionado, antes de tudo, com a conquista da estabilidade, segurança
e ordem. A divindade pode descansar em seu templo porque a ameaça de caos foi
afastada. O deus ou a deusa ocupa então seu lugar no cosmo ordenado e controlado,
com tempo livre para desfrutar de seu patrimônio. “Podemos então dizer que os deuses
buscam descanso e que seu descanso implica estabilidade para a ordem mundial. Os
deuses descansam porque querem ver o mundo ordenado”. O objetivo da criação dos
homens era que eles se ocupassem do fardo do trabalho no lugar dos deuses, os quais
poderiam finalmente descansar. (2021, p. 140)
56

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo desta pesquisa exploramos o tema do repouso divino no Antigo Testamento


com o objetivo de propor um significado que fosse fiel ao texto bíblico diante de seu contexto
a partir de uma exegese de Gênesis 2.1-3, uma observação do tema nas páginas do Antigo
Testamento em todos os textos que direta ou indiretamente abordam a ideia de repouso divino
e uma análise do assunto no contexto do Israel antigo em textos religiosos criacionais egípcios,
babilônicos e sumérios.

Desse modo, o presente trabalho revelou como possíveis as hipóteses prévias de que o
repouso divino implica, não somente na cessação de atividade criadora por parte de Deus, mas
também na presença habitante e reinante de Deus sobre a sua criação. O texto de Gênesis coloca
este repouso como coroa do relato criacional indicando que o propósito da criação é o repouso
divino que abençoa e consagra o tempo. Os textos do Antigo Testamento revelam a percepção
de que Javé busca um lugar para o seu repouso em meio ao seu povo. Para alcançar este repouso,
Israel deve celebrar o Shabat, e, dessa maneira, celebrar seu criador que habita e reina sobre a
criação. Tal lugar é a sede de sua habitação e governo sobre a humanidade. A partir disso, o
propósito escatológico veterotestamentário é que Javé alcance não apenas o seu povo, mas
também toda a Terra, enchendo-a com sua presença e com seu governo, especialmente, o
messiânico. Por fim, a ideia comum presente em grande parte do ambiente cognitivo do Antigo
Oriente Próximo é de que as divindades criavam com o objetivo de descansarem sobre os
templos para a partir disso reinarem estabelecendo a ordem e a estabilidade que suas presenças
habitantes geravam no lugar.

Assim, é evidente que o repouso divino tem como significado a presença divina que
paira sobre o templo ou sobre toda a criação a fim de habitar e reinar sobre ela trazendo a ordem
sobre o caos, a estabilidade sobre a insegurança e a paz sobre o mal. Esta pesquisa forneceu
diversas percepções sobre o repouso divino, tais como, a ideia inerente de um lugar de repouso
na ideia de repouso do Antigo Testamento, a relação entre o tabernáculo e o templo com a
criação do Gênesis e a ligação entre o repouso divino com o governo messiânico. Cada um
desses temas pode servir à futuras pesquisas de um modo singular.

Todas essas descobertas e demonstrações são particularmente relevantes para o estudo


da exegese, teologia bíblica e estudo das religiões, pois elas se mesclam a fim de encontrarem
um caminho comum. Por mais que este trabalho tenha focado a exegese, cada capítulo poderia
57

ter servido de base para outro, confirmando a relevância das demonstrações. Além disso, a
observação da Tanakh e a análise contextual do Antigo Oriente Próximo se revelaram como um
seguro e eficaz caminho de consolidação exegética. Por isso, devemos reforçar cada vez mais
a necessidade do uso dos estudos comparados para a exegese bíblica.

Faz-se necessário também mencionar o lugar do Shabat nesta pesquisa. Não tivemos
aqui o interesse de buscar interpretar o lugar do Shabat na vida do cristão atual. Para o autor
desta pesquisa, neotestamentariamente, não há para o cristão a obrigação da guarda do sábado.
Entretanto, esta pesquisa revelou que o princípio sabático do descanso e da busca de um
direcionamento da vida ao Senhor da Criação que habita em nosso meio é valioso, pois segundo
a ideia de Abraham Heschel (2019), o Shabat é a presença de Deus no mundo, abrindo uma
brecha no tempo e santificando os dias. As polêmicas e extremidades religiosas levaram a
concepção judaica ou cristã do Shabat a um nível muito inferior em relação ao apresentado no
texto bíblico. Em tempos de falta de tempo, de crescimento dos casos de burnouts e de
crescentes exigências de produtividade gerando estresses demasiados, o conceito de
santificação do tempo visando o desfrutar da presença habitante e reinante de Deus em nosso
meio é mais do que necessário, pois seguindo o pensamento de Heschel (2019), ao descansar,
Deus demonstrou ao homem que é permitido desfrutar da criação sem sentir-se culpado. O
Shabat é um convite para compartilhar a alegria da existência.

Este trabalho também abre janelas de pesquisa para toda a área da teologia bíblica e
sistemática, pois como vimos, o repouso divino encontra significância em textos escatológicos
e messiânicos de modo que sua relação com Hebreus 4, Apocalipse 21 e outros é inevitável e
digna de estudo.

E sobre este último aspecto, se o repouso divino enquanto presença divina habitante e
reinante sobre a criação é entendido como o propósito da criação de Deus e se esta presença
busca encontrar lugar para o seu repouso durante toda a história bíblica e visa a habitação e
governo plenos de Deus com os seres humanos conforme revelado por Apocalipse 21, qual
deveria ser então a principal busca de nossas vidas individuais e eclesiásticas?
58

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HINO DO TEMPLO DE KÊS disponível em


<https://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section4/tr4802.htm> Acesso em 7 de dezembro de 2023

ENUMA ELISH em português disponível em


<https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html> Acesso em 7 de dezembro de
2023

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