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SÃO PAULO
2023
Samuel Gomes de Araujo Fantazzini
SÃO PAULO
2023
2
Fantazzini, Samuel
O repouso divino : seu significado no Antigo Testamento. / Samuel
Fantazzini. – São Paulo : Faculdade Teológica Batista, 2023
60 p.
CDD 296.41
3
BANCA EXAMINADORA
DEDICATÓRIA
Aos meus avós Ernani, Ivone, Luiz Alberto, Diná, Franklin e Maria Alice
que sempre deram todo o apoio à minha vida espiritual, familiar e profissional
Aos amados Rodrigo, Carmem, Família Bueno, Família Novaes, Leonardo, Daniel e Guilherme
que me ajudaram, me motivaram e me encorajaram a chegar até aqui
AGRADECIMENTOS
Agradeço à minha esposa Rute por tanto amor, apoio, refrigério, leveza, compreensão e
diálogos que me elucidaram o entendimento nesta caminhada tão intensa de pesquisa.
Agradecimentos e dedicação aos meus amados irmãos da Comunidade Vida Cristã não
somente pelo apoio em orações e ofertas como também por terem me ensinado o valor da
presença de Deus.
Minha sincera e mais profunda gratidão à Faculdade Teológica Batista de São Paulo, a
todos os professores e funcionários e, em especial, ao meu caro orientador Prof. Dr. Pedro
Santos, Alberto Kenji, Emmanuel Athayde, Marcos de Almeida, Jonas Machado, Luiz Sayão,
Miriam e Roberto por terem me proporcionado uma educação teológica valiosa que
transformou minha vida e meu ministério.
Agradeço à Igreja Batista da Liberdade por ter confiado em minha caminhada junto à
faculdade, dando oportunidade para que eu expressasse meu aprendizado teológico junto à
juventude da igreja.
Aos meus colegas e amigos de turma, um caloroso agradecimento por terem tornado
este curso um oásis em meio ao deserto deste mundo. Em meio a estas palavras, as lágrimas
molham meu rosto.
Aos meus amigos, familiares e irmãos em Cristo que sempre me fortaleceram com
palavras, orações e ofertas, deixo um muitíssimo obrigado por tudo o que fizeram para que eu
chegasse até aqui. Os nomes de todos vocês estão em meu coração.
Agradeço também ao Angelo Bazzo por me fornecer indicações e conceitos tão valiosos
para a minha vida e para este trabalho.
Por fim, e o mais importante, agradeço a Deus, o Senhor e Sustentador do Universo por
ter elaborado um plano tão insondável e tê-lo revelado a homens pecadores e desprezíveis como
eu.
6
RESUMO
Esta pesquisa visa propor um significado para o tema do repouso divino no Antigo Testamento.
A metodologia abordada foi teórica e analítica a partir de uma exegese do texto hebraico de
Gênesis 2.1-3, uma observação do assunto do repouso divino em textos no restante do Antigo
Testamento que direta ou indiretamente abordam o tema e uma análise contextual do repouso
divino no ambiente cognitivo do Antigo Oriente Próximo com base em textos religiosos e
criacionais egípcios, babilônicos e sumérios. Assim propõe-se que o significado do repouso
divino no Antigo Testamento seja não somente a cessação de atividade criadora, mas também a
presença habitante e reinante do criador sobre a sua criação. Ademais, a pesquisa demonstra a
expressiva importância do repouso divino para o entendimento do propósito da criação de
Gênesis e, consequentemente, de todo o Antigo Testamento. Dessa maneira, o presente trabalho
busca contribuir com o pensamento teológico brasileiro na área da teologia bíblica do Antigo
Testamento, sem desconsiderar o possível auxílio para a teologia sistemática, para a prática
eclesiástica cristã, para os estudos do Israel antigo e para a área de estudos comparados do
Antigo Oriente Próximo. Para a fundamentação teórica desta pesquisa foram consultadas obras
de relevância singular nas áreas de exegese do hebraico bíblico, teologia bíblica do Antigo
Testamento, contexto do Israel antigo, estudos comparados e literaturas religiosas do Antigo
Oriente Próximo. Portanto, esta pesquisa objetiva contribuir não apenas com o ambiente
acadêmico, mas também com o eclesiástico e, não menos importante, com o individual, isto é,
com todos aqueles que buscam um sentido para a vida; sentido este que, de acordo com o que
o texto bíblico defende, conforme demonstra esta pesquisa, é a presença habitante e reinante do
criador.
ABSTRACT
This research aims to propose a meaning for the theme of divine rest in the Old Testament. The
methodology employed was theoretical and analytical, starting with an exegesis of the Hebrew
text of Genesis 2:1-3, followed by the observation of the subject of divine rest in other texts
throughout the Old Testament that directly or indirectly address the theme, as well as a
contextual analysis of divine rest in the cognitive environment of the Ancient Near East, based
on Egyptian, Babylonian and Sumerian religious and creational texts. It is thus proposed that
the meaning of divine rest in the Old Testament is not merely the ceasing of creative activity
but also Creator's dwelling and reigning presence over his creation. Furthermore, the research
has shown the significant importance of divine rest for understanding the purpose of Genesis'
creation narrative and, consequently, of the entire Old Testament. In this way, this work seeks
to contribute to the brazilian theological thinking in the field of Old Testament biblical theology,
without neglecting the potential assistance to systematic theology, Christian ecclesiastical
practice, studies of ancient Israel, and comparative studies of the Ancient Near East. As
theoretical foundation for this research, works of singular relevance were consulted in the areas
of biblical Hebrew exegesis, Old Testament biblical theology, the context of ancient Israel,
comparative studies and religious literature of the Ancient Near East. Finally, this research aims
to not only serve the academic environment, but also the ecclesiastical and, not least, the
individual one, that is, all those who seek meaning in life; which is, according to the biblical
text and demonstrated in this study, is the dwelling and reigning presence of the Creator.
SUMÁRIO
Introdução....................................................................................................................10
CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................................56
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................58
10
INTRODUÇÃO
Em face disto, uma pergunta central é levantada: qual é o significado do repouso divino
no Antigo Testamento? Para responder este questionamento diversas outras perguntas devem
ser suscitadas e respondidas. No primeiro capítulo esta pesquisa buscará responder à seguinte
problemática: qual a ideia exegética central de Gênesis 2.1-3? Para respondê-la, outras
perguntas também serão investigadas, tais como: é possível extrair um significado do repouso
divino a partir de Gênesis 2.1-3? Se sim, qual? Qual a importância do repouso divino no
primeiro relato (1.1 – 2.3)? O repouso divino pode se relacionar com o propósito da criação?
1
Disponível em: <https://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section4/tr4802.htm> Acesso em 7 de dezembro de 2023
12
referências que se apresentam no restante do Antigo Testamento. Dessa maneira será possível
observar os diversos conceitos ligados ao repouso divino que permeiam os muitos textos do
Antigo Testamento.
O Antigo Testamento foi escrito no contexto do Antigo Oriente Próximo. Observar sua
cosmovisão especialmente relacionada ao tema proposto nesta pesquisa é de valor essencial
para a compreensão mais detalhada do pensamento antigo e de sua influência no texto
veterotestamentário. Por isso, considerando os povos vizinhos a Israel nos tempos de possível
redação do Antigo Testamento, é importante a análise de relatos de criação de povos como os
egípcios, os babilônios e os sumérios.
Além disso, situar o texto bíblico em seu contexto mais amplo da época permitirá uma
análise enriquecida, a partir de semelhanças e contrastes, do significado do repouso divino,
sendo ele moldado ou influenciado pelas crenças e tradições da época. Para o estudo de religiões
antigas, este trabalho pode auxiliar outros que, de modo semelhante, utilizam pesquisas sobre
religiões que permeavam a religião em análise, isto é, o objeto principal de estudo.
Em suma, a reflexão acerca deste assunto pode emprestar alguma inspiração para o
diálogo que visa uma compreensão ampliada do texto bíblico, seu contexto e sua interpretação;
um enriquecimento das informações referentes à cosmovisão de culturas antigas, especialmente
13
a israelita, que visa também a reflexão filosófica do sentido da existência humana e da história
e, por fim, o desenvolvimento de perspectivas relevantes para a relação divino-humana.
Diante disso, esta pesquisa terá como objetivo macro propor um significado do repouso
divino extraído a partir de uma compreensão do texto e do contexto do Antigo Testamento.
Pretende-se realizar esta proposição durante toda a pesquisa, ainda que ela seja efetivamente
explanada no terceiro capítulo e nas considerações finais.
A fim de alcançar esse objetivo, este trabalho buscará, num primeiro momento, extrair,
por meio da exegese a ideia central de Gênesis 2.1-3 e analisar o significado e o propósito do
repouso divino neste texto. Em seguida é feita uma observação panorâmica do repouso divino
e seus desdobramentos no restante do Antigo Testamento com o objetivo de examinar o conceito
de repouso divino na Tanakh. Por fim, no terceiro capítulo, uma comparação dos relatos
criacionais extrabíblicos com o relato bíblico servirá para a compreensão do conceito de
repouso divino no ambiente cognitivo do Antigo Oriente Próximo.
A presente pesquisa tem como hipótese central que o significado do repouso divino para
o Antigo Testamento seja a presença habitante e reinante de Deus sobre a criação e que o
repouso divino transcende os tradicionais sentidos comumente atribuídos a ele, isto é, de que
se refira tão somente à fundamentação do Shabat ou à abstenção de trabalho. É evidente que
estes sentidos estão presentes em Gênesis 2.1-3, mas esta pesquisa sugere que seu sentido seja
mais amplo, envolvendo o propósito supremo de Javé para a criação revelado no Antigo
Testamento.
A pesquisa também postula que o conceito do repouso divino não se limita ao relato
criacional, mas que o relato de Gênesis oferece um princípio que permeia todo o restante do
Antigo Testamento. Nesse quesito, a pesquisa propõe que o conceito do repouso divino no
Antigo Testamento signifique a presença habitante e reinante de Javé no templo, mas que visa,
como um propósito, a presença habitante e reinante de Javé sobre toda a criação conforme
defendem Walton e Beale.
Por fim, para o estudo comparado do conceito de repouso divino no Antigo Testamento
com o dos outros povos ao redor de Israel, serão vistas as seguintes obras de referências na área
dos estudos comparados: The Search For God in Ancient Egypt, de Jan Assman; Creation
Accounts in the Ancient Near East and in the Bible de Richard. J. Clifford; The Lost World of
Genesis One e O Pensamento do Antigo Oriente Próximo e o Antigo Testamento: introdução
ao mundo conceitual da Bíblia hebraica, ambos de John H. Walton.
15
CAPÍTULO 1
O repouso divino tem a sua primeira menção na Bíblia Hebraica em Gênesis 2.1-3, no
sétimo dia da criação. Além do relato criacional, o assunto deste repouso permeia as demais
páginas da Tanakh, encontrando sua consumação no contexto profético e escatológico,
conforme esta pesquisa mostrará no capítulo dois. Entretanto a base que dá início ao conceito
de repouso divino na Tanakh é o texto de Gênesis 2.1-3. Desse modo, para que se possa analisar
o conceito de repouso divino no texto em questão, a observação do contexto de Gênesis 1 e 2 é
seguida de uma tradução do primeiro relato (Gênesis 1.1 - 2.3), uma análise sintática das
orações, uma interpretação do texto e sua relação com o propósito almejado por esta pesquisa.
Quanto à tradução, esta teve por objetivo central o reconhecimento do texto em suas
estruturas gramaticais e sintáticas originais. Sabe-se da impossibilidade de tal realização ao se
tratar de uma comparação entre línguas cujos abismos temporais, históricos, estruturais,
geográficos e culturais são expressivamente grandes. Assim, visando uma aproximação da
língua portuguesa para com o texto hebraico de Gênesis 2.1-3, optou-se por seguir uma
metodologia de tradução literal, o que pode, em alguns momentos, acabar ferindo a norma
padrão da língua portuguesa. As escolhas tradutórias serão explicadas nas notas de rodapé.
Após a tradução, seguiremos à separação das orações de Gn2 2.1-3. Esta separação visa
a compreensão específica das estruturas sintáticas ao tornar claras as funções sintáticas de cada
expressão da frase. Abaixo da tradução, o comentário exegético buscará a explicação de seu
significado e a proposição de suas ideias centrais a fim de encontrarmos a ideia exegética central
de toda a perícope.
2
A partir de agora adotar-se-á a abreviação “Gn” para “Gênesis”.
16
3
Tradução feita pelo autor da presente pesquisa a partir do Texto Massorético da Bíblia Hebraica Stuttgartensia
(5ª edição)
4
Esta tradução considera o v. 1 como uma oração completa, independente e introdutória (como em Gn 2.4),
conforme defendem Wenham (1987, p. 51-56) e Walton (2001, p. 74-75). De acordo, também, com Hamilton
(1990, p. 126), “a ausência do artigo não é um argumento definitivo contra a interpretação da palavra como
absoluta. [...] Isaías 46.10 utiliza אשית
ִׁ ֵרem sentido absoluto nos fornecendo uma ilustração desta palavra tanto
em sentido absoluto quanto indeterminado sendo, portanto, um paralelo exato com Gn 1:1”
5
Esta tradução adotará o uso de criar para בָּ ָּראe fazer para עָּשָּׂ ה.
6
Considerando a complexidade numérica (e, também, etimológica) do termo אֱֹלהִׁ ים, decidiu-se por usar a
transliteração em detrimento da tradução.
7
Adota-se aqui que o waw seja conjuntivo, usando a terminologia de Waltke (2006, cap. 32 e 33), e não conversivo,
sendo, portanto, introdutório. Para mais detalhes, ver Hamilton (1990, p. 133).
8
Já que a construção do v. 2 é a de uma oração disjuntiva somado ao uso de הָּ י ָּ ְָ֥תה (no tempo perfeito), esta
tradução optou por traduzir יְתה
ָ֥ ָּ ָּ הnum sentido estativo e não fientivo. Para mais detalhes, ver novamente Hamilton
(1990, p. 133) e Wenham (1987, p. 56).
9
As opções por caos para ֹ֨תהוe deserto para ֹ֔בהוforam escolhidas com vistas à comunicação completa dos
sentidos de vastidão, desordem, nulidade e vazio conforme apontam Schökel (1997, p. 697) e Hamilton (1990, p.
127). Também foi considerado o sentido funcional de improdutividade defendido por Walton (2009, p. 46-49).
Ainda que ֹ֨תהוse aproxime mais da expressão “deserto” (por causa do ugarítico) do que ( ֹ֔בהוque pode ter o seu
sentido mais próximo de vazio) as expressões devem ser lidas em conjunto para se obter o sentido completo. Além
disso, os sentidos de organização e enchimento, respectivamente, fazem mais sentido com a criação dos dias que
se seguirão na narrativa em sua ordem organizacional e habitacional.
10
Para o uso de “abismo” em detrimento de “oceano” ver Hamilton (1990, p. 129)
11
No Pentateuco a expressão ֱֹלהים
ִֹׁ֔ ֣רוח אcom referência ao próprio Deus (Javé) só aparece em Gn 1.2; Êxodo
31.3; Êxodo 35.31 e Números 24.2. Em todas elas, o sentido é positivo e indica controle soberano de Deus.
Conforme apresenta Hamilton (1990, p. 129), depois de Gn 1.2, “... a próxima aparição desta frase é Êxodo. 31:3,
onde Bezalel é preenchido com ֱֹלהים
ִֹׁ֔ ֣רוח אpara ser equipado para construir o tabernáculo. [...] Esta frase-chave
une, por meio de uma alusão intertextual, o mundo e a construção do tabernáculo, a criação de um mundo e a
criação de um santuário. É muito improvável, portanto, que a frase seja lida negativamente em Gn 1 e
positivamente em Êxodo 31.” Por esses motivos, a escolha para esta tradução foi espírito.
12
Entende-se que existir como tradução de algumas das aparições de היהem Gênesis denota, com mais precisão,
a ontologia funcional da criação conforme apresenta Walton (2009, cap. 2-4). O uso do jussivo aqui traz a
conotação de ordem. Para mais detalhes, ver Waltke (2006, p. 568).
13
Considera-se aqui que distinguir comunica melhor a funcionalidade da separação. Para mais detalhes, ver
Wenham (1987, p. 59).
14
Nomear traz consigo os sentidos de domínio e de designação funcional, os quais estão muito presentes em
Gênesis (2.19; 17.5; 32.27). Ver Wenham (1987, p. 59) e Walton (2009, p. 29)
17
E disse ’elohim: “Exista expansão celeste15 no meio das águas e exista distinguindo entre
águas de águas.” E fez ’elohim a expansão e distinguiu entre as águas que existem debaixo da
expansão e entre as águas que existem acima da expansão. E existiu assim. E nomeou ’elohim,
à expansão, “Céus.” E existiu tarde e existiu manhã: Dia dois.
E disse ’elohim: “Agrupem-se as águas que existem debaixo dos Céus para um só lugar
e apareça a parte seca.” E existiu assim. E nomeou ’elohim à parte seca, “Terra” e ao
agrupamento das águas, “Mares.” E viu ’elohim que era bom. E disse ’elohim: “Vegete a Terra
de vegetação produzindo semente, árvore de fruto,16 fazendo17 fruto de acordo com seu tipo18
cuja semente sua exista em cima da Terra. E existiu assim. E fez sair a Terra, vegetação
produzindo semente do seu tipo, árvore fazendo fruto de semente de acordo com seu tipo. E viu
’elohim que era bom. E existiu tarde e existiu manhã: Dia três.
E disse ’elohim: “Existam luzeiros na expansão dos Céus para distinguir entre o Dia e
entre a Noite, e existam para sinais e para estações e para dias e para anos e existam para luzeiros
na expansão dos Céus para iluminar, acima, a Terra.” E existiu assim. E fez ’elohim dois, os
luzeiros, os grandes; o luzeiro o maior para o governo do Dia e o luzeiro o menor para governo
da Noite e as estrelas. E colocou-os, ’elohim, na expansão dos Céus para lumiar, acima, a Terra
e para governar no Dia e na Noite e para distinguir entre a luz e entre as trevas. E viu ’elohim
que era bom. E existiu tarde e existiu manhã: Dia quatro.
E disse ’elohim: “Fervilhem das águas seres de fôlego vivente e aves voem acima da
Terra, acima na face da expansão dos Céus.” E criou ’elohim os monstros marinhos os maiores
e todos os de fôlego vivente, os que deslizam, os que fervilham as águas, de acordo com seus
tipos; e toda ave com asa, de acordo com seu tipo. E viu ’elohim que era bom. E abençoou-os
’elohim dizendo: “Sede férteis e multiplicai e preenchei as águas nos mares e as aves
multipliquem na Terra. E existiu tarde e existiu manhã: Dia cinco.
E disse ’elohim: “Faça sair a Terra, fôlego vivente de acordo com seu tipo, animal
doméstico e animal rastejante e animal selvagem da Terra, de acordo com seu tipo.” E existiu
assim. E fez ’elohim animal selvagem da Terra, de acordo com seu tipo e animal doméstico, de
15
A tradução expansão celeste para ָּר ִׁ ִ֖קיעtem como base a sua raiz (malhar, prato batido e estender) segundo
Tsumura (2011, vol. 3, p. 1191) e entendimento primitivo (vastidão) segundo Payne (1998, p. 1455).
16
Ou, frutíferas.
17
O texto parece indicar que ainda usa como sujeito a Terra.
18
Considerando que a palavra espécie traz consigo um sentido científico moderno, optou-se pela palavra tipo.
18
acordo com seu tipo e todo animal rastejante do solo de acordo com seu tipo. E viu ’elohim que
era bom. E disse ’elohim: “Façamos o ser humano com imagem Nossa, como semelhança Nossa
e senhoreiem sobre peixe do mar e sobre ave dos Céus e sobre animal doméstico e sobre a toda
a Terra e sobre todo animal rastejante que rasteja sobre a Terra.” E criou ’elohim o ser humano
com Sua imagem, com imagem de ’elohim criou-o, macho e fêmea criou-os. E abençoou-os
’elohim. E disse a eles ’elohim: “Sede férteis e multiplicai e preenchei a Terra e submetei-a vós
e senhoreai sobre peixe do mar e sobre ave dos Céus e sobre todo animal selvagem que se move
sobre a Terra. E disse ’elohim: “Eis que vos dou toda erva produzindo semente que existe sobre
as faces de toda a erra e toda a árvore que nela exista fruto da árvore produzindo semente para
vós exista como alimento. E, para todo animal selvagem da Terra e para toda ave dos céus e
para todo que rasteja sobre a Terra que exista em si fôlego vivente, exista toda relva e erva como
alimento. E existiu assim. E viu ’elohim tudo o que fez e eis muito bom. E existiu tarde e existiu
manhã: Dia seis.
19
O uso afirmativo de ָּכלָּהsomado ao uso da palavra שבִׁ יעִׁ י
ְ na oração traz o sentido de completude e finalidade
de todo o processo conduzido até a sua consumação. Cf. Domeris e Van Dam (2011, vol. 2, p. 641), Oswalt (1998,
p. 719) e Cohen (1998, p. 1514).
20
Considerando um sentido mais amplo da palavra צָּ בָּ אpreferiu-se traduzir por “serviço”, incluindo assim, além
do sentido militar o sentido funcional da criação que é entregue a ela por todo o capítulo 1.
21
Esta tradução optou por seguir o Texto Massorético, entendendo que a opção da Septuaginta, “sexto”, pode ter
sido escolhida por convenção dos tradutores em salvaguardar o texto da ideia de que Deus possa ter trabalhado no
sétimo dia.
22
Visto que a palavra ְמלָּאכָּהdeve ser contrastada com עָּמָּ לe ְיגִׁ יע, optou-se por traduzir pela palavra "obra" a
fim de não trazer qualquer sentido negativo; antes comunicar o sentido habilidoso da palavra. Cf. Bowling (1998,
p. 763) e Hague (2011, vol. 2, p. 942)
23
Preferiu-se a palavra “repousar” a “descansar” a fim de evitar a ideia de algum possível cansaço em Deus, já
que, a palavra שָּ בתtem como sentido mais próximo a cessação de atividade, isto é, a conclusão e término de uma
obra do que o descansar de um trabalho fatigoso, conforme apresenta Hamilton (1998, p. 1520).
24
Cf. Shökel (1997, p. 655)
25
“Abençoar no AT quer dizer ‘conceder poder para alcançar sucesso, prosperidade, fecundidade, longevidade,
etc.’ ” (OSWALT, 1998, p. 220).
26
“No piel a palavra é usada na maioria das vezes para designar o ato de consagração. Em Êxodo 19.23 a
consagração do monte Sinai, mediante o estabelecimento de limites ao seu redor, serviu para manter à distância
tudo o que poderia ter profanado a santa presença de Deus.” (MCCOMISKEY, 1998, p. 1321).
19
O livro de Gênesis é uma grande narrativa hebraica antiga. Como apontam Dillard e
Longman:
O livro de Gênesis não identifica seu autor, e nenhum outro livro bíblico afirma
explicitamente sua autoria. Tradicionalmente, ele é atribuído a Moisés, e há bons
motivos para isso. Os outros livros da Torá vinculam Moisés à sua composição, e a
maior parte da literatura bíblica analisa a Torá como uma unidade. Portanto, é
completamente aceitável que Moisés se tenha tornado autor do conjunto. Como já se
comentou muitas vezes, quem melhor que ele para reunir o livro do Princípio? (2006,
p. 71)
O texto do Gênesis é claramente dividido em narrativas menores por sua própria marca
literária, ְתֹולְ ֧דֹות, presente em Gn 2.4; 5.1; 6.9; 10.1; 11.10; 11.27; 25.12; 25.19; 36.1; 37.2.
Esta marca define os momentos de transição literária do texto ao apontar para possíveis origens
das informações obtidas pelo autor ou significando apenas o objeto sobre quem o autor está
circundando a sua narrativa. Ela não aparece no primeiro versículo do capítulo 1; sua primeira
aparição é em Gn 2.4, marcando o início da próxima seção e, consequentemente, o fim da seção
estudada nesta pesquisa.
20
Desse modo, seguindo a proposta de Hamilton (1990, p. 19), de que o toledoth de 2.4 é
um sobrescrito de 2.4 a 4.26, a seção de 1.1 – 2.3 se encaixa perfeitamente como uma introdução
ao livro do Gênesis. Se este é um livro que relata as origens do povo hebreu, das nações, dos
territórios, da religião israelita, dos problemas, dos sofrimentos, da morte e outros, então julga-
se coerente a decisão do autor de relatar a origem de tudo. E neste propósito o autor inicia seu
texto com: “No princípio, criou ’elohim os Céus e a Terra.” Como abertura titular de seu texto,
o autor resume o que vai falar adiante.
Conforme defende Walton em seu livro The Lost World of Genesis One, a preocupação
inerente ao povo antigo do Oriente Próximo não era com a ontologia das coisas, mas sim com
suas funções. Tendo em vista que este padrão também é encontrado nos escritos bíblicos, como
apresenta Walton (2009, cap. 1), não é inesperado que Gênesis 1.1 – 2.4 também busque dar
sentido funcional a tudo o que os ouvintes primeiros veem, tocam, ouvem e sentem. Por isso, o
relato das origens não enfoca em responder a perguntas científicas dos tempos modernos, ainda
que indiretamente também possa responder. Antes, busca responder ao “para quê” tudo foi
criado por ’elohim.
Observando o relato criacional de Gn 1.1 – 2.4, percebe-se que o autor busca dar sentido
funcional à criação de ’elohim. Como no exemplo observado por Walton (2009, cap. 5 e 6), a
preocupação principal do autor em relatar o dia 1 é dar suas funções temporais. No dia 2, as
funções climáticas. E por fim, no dia 3, as alimentares. E se nos três primeiros dias encontramos
as funções da criação, nos últimos três encontramos seus funcionários.
O autor inicia defendendo que ’elohim (mais tarde identificado como Javé) é o criador
de tudo o que os seus ouvintes veem. ’elohim é retratado neste relato como um ser soberano e
transcendente que além de trazer à existência o mundo, lhe confere uma função. Como afirmam
Hill e Walton, “Ele é apresentado como o criador soberano do mundo feito especialmente para
a habitação humana.” (2006, p. 76). A soberania de ’elohim é percebida pela obediência de sua
criação à sua palavra. A fórmula “e Deus disse” se repete por todo o relato, exceto no dia sétimo,
21
O texto caminha então pela criação de ’elohim da luz, dos dias, noites, sol, lua e estrelas
com ênfase no propósito delimitador do tempo para os seres humanos que serão criados no dia
seis. A correspondência dos dias 1 e 4, 2 e 5 e 3 e 6 indica um possível ajuste de ’elohim à
situação desordenada e desabitada do verso 2. Com a ordenação das águas dos Céus e das águas
da Terra no segundo dia, vem a habitação dos seres marinhos e das aves no quinto dia. E com
o ajuste da desordem entre terras e águas, ’elohim traz à existência as plantas, os animais e o
homem.
No dia seis, o ser humano é criado como coroa desta criação. O mandamento e a benção
da multiplicação e do enchimento da terra é dado aos animais e ao homem, mas somente do
homem, ’elohim diz: “Façamos o ser humano com imagem Nossa, como semelhança Nossa...”
e o texto rapidamente explica o seu sentido, isto é, “senhoreiem sobre peixe do mar e sobre ave
dos Céus e sobre animal doméstico e sobre a toda a Terra e sobre todo animal rastejante que
rasteja sobre a Terra.” O autor expõe que à semelhança do reinado de ’elohim sobre a sua
criação, o homem também deveria senhorear sobre a criação. O sexto dia se apresenta como
um dia especial em relação aos demais. Todos os outros dias foram uma preparação para este
domínio, à imagem divina, do ser humano sobre a criação e por isso a nota diferenciada de
soma de todas as notas anteriores de aprovação: “E viu ’elohim tudo o que fez e eis muito bom.”
Dessa maneira, o foco do relato até aqui é revelar o propósito de ’elohim para a criação,
o qual é preparar todas as coisas para o reinado do ser humano sobre a criação por meio da
imagem divina e da bênção divina da fertilidade. Mas o propósito deste reinado será respondido
no Dia Sétimo que analisaremos agora oração por oração.
A seção do Dia Sétimo pode ser dividida em cinco orações principais marcadas pela
Tradução:
27
E foram completados os Céus e a Terra e todo o serviço deles
Comentário:
A primeira oração vem logo em seguida à aprovação de ’elohim acerca do sexto dia,
aqui o autor inicia sua conclusão do primeiro relato. Depois de haver descrito a criação de
’elohim dos céus e da terra, ele aponta para a sua consumação utilizando o verbo ָּכלָּהno seu
tronco pual, indicando a passividade dos sujeitos Céus e Terra, visto que, são retratados como
simples obras de ’elohim se comparadas ao seu Criador que cria todas as coisas com facilidade
e por meio de sua palavra. Conforme assinalam Domeris e Van Damee:
Céus e Terra estão completos, plenos, organizados, habitados e com suas funções
perfeitamente em uso. No começo do prólogo, a Terra não era nomeada, estava em desordem e
desabitada; no fim do prólogo, a Terra está nomeada, transmitindo a ideia de que seu propósito
funcional está plenamente definido. Céus e Terra estão em ordem. A criação está completa.
O uso de צָּ בָּ א, traduzido aqui por “serviço”, explicita ainda mais a ideia defendida por
Walton (2009) de que o relato criacional de Gênesis objetiva a explicação funcional da criação.
27
Oração principal independente: conj. aditiva + verbo pual imperfectivo (wayyqtol) + sujeito.
23
Sua aplicação no restante das Escrituras mostra o sentido militar do termo צָּ בָּ א. Este sentido
reflete o caráter real da criação. Ela é feita por ’elohim que é descrito como um rei soberano do
Universo. Seus habitantes, ou funcionários, são como súditos deste rei, indicando um serviço a
ser cumprido para todos eles, uma função, um propósito.
Outro aspecto a ser observado é que de acordo com Hamilton (1990, p. 158), a palavra
צָּ בָּ א, comunica a ideia de um coletivo constituinte de muitas partes. Ou seja, toda a criação
possui um corpo coletivo de funcionários reais de ’elohim nos Céus e Terra. Dessa maneira,
animais, seres humanos, estrelas ou anjos são todos servos reais do rei ’elohim.
Diante disso, esta primeira oração afirma que os Céus e a Terra junto com seus
funcionários reais encontraram sua plenitude funcional no sétimo dia iniciando, assim, a
consumação da criação em relação ao estado inicial da criação retratado no capítulo 1. Portanto,
é possível observar que no sétimo dia, a criação é finalizada, isto é, ’elohim cessa o trabalho
criador, a criação encontra o seu propósito e os habitantes da criação também encontram os seus
propósitos.
Tradução:
28
E completou, ’elohim, no Dia Sétimo a Sua obra que fez29
Comentário:
Se na primeira oração, Céus e Terra foram retratados como passivos e submissos à obra
de finalização, aqui ’elohim é o sujeito ativo e soberano desta finalização. A obra da criação é
pertencente a ele. Ninguém o auxiliou, ninguém mais é o sujeito do verbo ָּכלָּהe ninguém mais
é o possuidor do substantivo ְמלֶאכֶת. Ele criou, fez, formou e finalizou a sua obra. A repetição
do fato com variações sintáticas representa uma ênfase do autor na consumação e completude
funcional da criação.
28
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo (wayyqtol) + sujeito +
locução adverbial de tempo + objeto direto.
29
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. rel. +
verbo transitivo direto qal perfeito.
24
O Dia Sétimo
Tais exemplos do emprego sagrado do número sete são inúmeros, e não é necessário
multiplicá-los aqui. O exemplo maior, entretanto, deve ser a santificação especial do
sétimo (sh'bVí) dia como dia de descanso e, por conseguinte, como o principal dia de
atividades normais de adoração (Êx 20.10; Dt 5.14). Foi ao sétimo dia que Deus
descansou dos dias em que esteve criando, e por esse motivo, para benefício do
homem, Deus separou esse sétimo dia para descanso e adoração (Êx 20.11; Gn 2.2).
A partir disso atribui-se uma significação simbólica original ao número sete por: 1)
ter um caráter sagrado especial; 2) assinalar a totalidade de um ciclo ou a realização
de uma tarefa; e 3) assinalar um período de descanso. (1998, p. 1514).
Assim, o tempo no qual a conclusão da criação é realizada por ’elohim não é um tempo
qualquer. Este dia é um dia qualitativo, pois irá categorizar todo o calendário judaico posterior.
Como diz Waltke, “distinto dos dias prévios, o número deste dia é gravado três vezes, indicando
sua significação acima dos demais dias” (2019, p. 79). Por isso é o dia escolhido por ’elohim
para coroar a sua obra.
Além desse fator, o uso de ְשׁבִ יעִ י em lugar de ֥֨יֹום הש ָָּּ֖֜בת, indica uma provável
preocupação do autor com a idolatria do Dia de Sábado, visto que, como aponta Hamilton
(1990, p. 154), “a omissão deliberada de ‘sábado’ em Gênesis 2 pode ser devido ao desejo de
evitar qualquer possibilidade de unir o sétimo dia com a festa pagã.” Sobre isso, Wenham
também afirma:
Obra
O AT tem duas palavras para “trabalho”, me lÿÿ ÿá e aÿÿ ÿá. A segunda palavra enfatiza
o trabalho bruto e não qualificado. A primeira – e a que aqui se utiliza –designa mão-
de-obra qualificada, trabalho que é executado por um artífice ou artesão. Essa é a
medida da sutileza e das habilidades profissionais da obra de Deus. (1990, p. 153).
Que fez
Esta oração subordinada substantiva objetiva direta indica que a obra da criação já
estava feita. O tempo perfeito indica que ela já estava concluída ao se adentrar no sétimo dia.
Algumas interpretações deste qal perfeito, ע ָּ ָָּֽׂשה, sugerem que ’elohim havia trabalhado no
sétimo dia, mas como afirma Wenham:
Em outra parte do Pentateuco, por exemplo, Gn 17:22; 49:33; Êxodo 40:33, a frase
indica que a ação em questão já passou, e um mais que perfeito é usado nas traduções
para o inglês. Não há nenhuma implicação no hebraico de 2:2 de que Deus estava
trabalhando no sétimo dia antes de terminar. (1987, p. 74).
Notemos com mais atenção a semelhança citada por Wenham entre Gn 2.2a e Êxodo
40.33c a fim de compreendermos o pano de fundo que prepara o leitor para a inclusão do
repouso divino na oração que se seguirá a esta.
ָּאכה
ָֽׂ ָּ אֶ ת־ה ְמל מֹ ֶשׁה יְ כל ו
Conjunção ()ו Verbo () ָּכלָּה, piel, wayyqtol, 3ª p. masc. sg. Sujeito Objeto () ְמלָּאכָּה
Demais pontos de semelhança contextual serão vistos no capítulo dois com mais
detalhes. Por ora, essas são suficientes para entender como o autor estava desenvolvendo sua
narrativa do sétimo dia.
Portanto, podemos afirmar que a ideia central desta oração é que a consumação da obra
da criação de ’elohim não se dá por meio de um trabalho realizado no sétimo dia, mas sim como
uma espécie de proclamação do fato de que a obra-prima de ’elohim estava completa, perfeita
e harmônica. A garantia desta consumação é o repouso divino sobre a criação, isto é, o repouso,
que veremos a seguir, é a própria proclamação da consumação da obra, assim como o repouso
da glória de Javé sobre e no tabernáculo também o são. Como afirma Westerman:
27
[...] o verbo “ele terminou” é uma declaração de que a obra foi concluída, não o ato
de completá-la. [...] O capítulo 40 encerra a construção da “tenda da reunião” que
Moisés recebeu ordem de erguer no capítulo 25 depois da teofania do Sinai. A
cerimônia é encerrada solenemente com o aparecimento da nuvem, 40:33. A frase
“assim Moisés terminou a obra” é um eco claro de Gênesis 2:2 (1984, p. 170).
1.2.3. O Repouso
Tradução:
30
E repousou, no Dia Sétimo, de toda a Sua obra que fez31
Comentário:
Se de fato todo o relato buscou fornecer as funções e propósitos de cada parte e habitante
da criação, a consumação no sétimo dia não é diferente. Até o sexto dia tudo parecia servir e
convergir ao homem. Mas depois da criação do homem à imagem e semelhança de ’elohim, a
soma de todos os processos anteriores, julgada como “muito boa” no versículo 31 do capítulo
um, desemboca na completude harmônica e perfeita da criação no sétimo dia com o repouso
divino. A distinção e importância do sétimo dia para os demais tem por causa e propósito o
repouso de ’elohim. E não somente isso, o repouso também será a causa da benção e
consagração do sétimo dia nas orações seguintes. Isto significa que o centro do sétimo dia e,
consequentemente, do relato criacional de Gênesis 1 é o repouso divino.
O verbo שׁבת, no seu tronco qal, tem como sentido imediato a cessação de atividade,
conforme apresentam Jenni e Westerman (1994, p. 1612), Shoekel (1997, p. 657) e Hamilton
(1998, p. 1520). Evidentemente não há aqui um contraste com um possível cansaço na
30
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo intransitivo qal imperfectivo (wayyqtol) + locução adverbial
de tempo + complemento preposicional: prep. + adv. de intensidade + objeto indireto.
31
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. rel. +
verbo transitivo direto qal perfeito.
28
divindade criadora. O Antigo Testamento não abre possibilidades para isso (Isaías 40). A ideia
de cessação de atividade criadora é, possivelemente, uma grande ênfase do autor aqui. Dessa
maneira, o texto parece trabalhar a ideia de que o ’elohim soberano, criador, rei e governante
de sua própria criação, após ter confiado à sua criação propósitos, funções, sentidos e
funcionários cumpridores destas funções e após ter criado o ser humano como seu vice-regente
sobre a terra, considerou que sua obra-prima estava completa, bela e satisfatória. Vejamos o que
O verbo hebraico shabat (Gn 2:2) do qual nosso termo “sábado” é derivado tem o
significado básico de “cessar” (cf. Js 5:12; Jó 32:1). Semanticamente, refere-se à
conclusão de certa atividade com a qual alguém estava ocupado. Essa cessação leva a
um novo estado que é descrito por outro conjunto de palavras, o verbo nuha e seu
substantivo associado, menuha. O verbo envolve entrar em uma posição de segurança
ou estabilidade e o substantivo refere-se ao local onde se encontra. O verbo shabat
descreve uma transição para a atividade ou inatividade de nuha. Sabemos que quando
Deus descansa (cessa, shabat) no sétimo dia em Gênesis 2, ele também transita para
a condição de estabilidade (nuha) porque essa é a terminologia usada em Êxodo 20:11.
A única outra ocorrência do verbo shabat com Deus como sujeito está em Êxodo
31:17.1. (2009, p. 72)
’elohim se satisfaz com sua criação considerando que tudo o que fez estava muito bom
(1.31), ou seja, pronto e passível de repouso por parte de seu Criador. Assim, a cessação de
atividade tem por causa a satisfação de 1.31, que por sua vez, gera a finalização da obra de
’elohim e, então, a coroação da consumação com o repouso divino. Por mais que שׁבת
signifique a cessação de atividade, no nosso contexto esta cessação não encontra sua
significância plena em si mesma, isto é, ela tem uma causa e um propósito. A causa é a satisfação
de ’elohim, como já explanado. O propósito veremos agora.
Com isso em vista, é muito provável que a cessação das atividades de ’elohim encontre
como lugar de repouso a sua própria criação completa e satisfatória. O Criador se satisfaz com
29
sua obra e a coroa com seu repouso sobre ela. Se seu espírito pairava sobre as águas antes do
trabalho Criador do primeiro dia, agora o criador paira sobre a sua própria obra finalizada.
Tanto no Enuma Elish quanto no épico Atrahasis, os deuses descansam após a criação
do homem. Com o homem para fazer o trabalho servil da manutenção diária da terra,
os deuses agora estão livres para tarefas administrativas menos exigentes no mundo.
Em agradecimento pela liberação deste trabalho manual, os deuses prometem
construir a Babilônia e seu templo para Marduk. (1990, p. 154)
Um último aspecto, quanto ao propósito do repouso divino pós criação pode ser
observado no próprio contexto do relato, isto é, o aspecto reinante de ’elohim sobre a criação.
A autoridade sobre a criação é evidente em todo o relato. No sexto dia, como já foi apresentado,
o ser humano criado à imagem de ’elohim é criado como um vice regente e dominador da
criação. ’elohim é o grande rei e dominador que cria o cosmos com autoridade e poder
supremos. Waltke também afirma que, “esse dia é abençoado para o refrigério da terra. Ele
convoca a humanidade a imitar o padrão de trabalho e descanso do Rei, e assim confessar o
senhorio de Deus e sua consagração a ele.” (2019, p. 79). Dessa maneira, ao concluir sua obra,
tendo o homem como seu súdito-rei, ’elohim repousa também no aspecto de encontrar toda sua
criação debaixo de sua vontade, ou seja, ele repousa como rei da criação, afinal a terra se torna
o estrado dos pés deste rei soberano (Isaías 66). A continuidade da narrativa do Gênesis também
contribui com este entendimento. Javé será aquele que continuará governando sua criação com
a atribuição de funções e propósitos para o homem e para a mulher, com a determinação de
penas e culpas para o homem, a mulher e a serpente, com a autoridade destruidora no dilúvio e
o julgamento sobre Babel. Todas estas atividades são atividades de um rei. O contexto do Antigo
Oriente próximo também reforça esta ideia, conforme apresenta Walton:
Tradução:
32
E abençoou, ’elohim, o Dia, o Sétimo, e consagrou-o33
Comentário:
Aqui, o sétimo dia é abençoado e consagrado pelo seu Criador. Como já vimos, a causa
desta benção e consagração é o repouso de ’elohim sobre a sua obra. Porque ’elohim repousa
sobre a criação no sétimo dia ele, então, o abençoa e o santifica. Esta nota de benção e
consagração confere ao sétimo dia uma distinção ainda maior em relação aos demais dias da
criação. Até então, ’elohim havia abençoado os animais e o ser humano com a benção da
fertilidade. Aqui o tempo é abençoado de maneira que por meio de sua santidade solene
provinda do repouso, o sétimo dia sirva de benção vital para as criaturas. A própria palavra בָּ רך
possui este sentido vivificante. Oswalt afirma:
Esta raiz e os seus derivados ocorrem 415 vezes. A maioria das ocorrências está no
piel (214), que é traduzido por “abençoar”. O particípio passivo do qal, “abençoado”,
aparece 61 vezes. O sentido de “ajoelhar” aparece somente três vezes, duas no qal (2
Cr 6.13; SI 95.6) e uma única vez no hifil (Gn 24.11). Com base nisto, alguns
argumentam que bãrak é um verbo denominativo de berek, “joelho”, que não tem
nada a ver com bãrak, “abençoar”. Todavia, pode-se ter percebido alguma associação
entre ajoelhar-se e o ato de receber uma bênção (cf. 2 Cr 6.13; o árabe baraka também
apresenta a mesma amplitude de sentido). Abençoar no AT quer dizer “conceder poder
para alcançar sucesso, prosperidade, fecundidade, longevidade, etc.”. O termo é
muitas vezes contrastado com qãlal, “reverenciar com indiferença, amaldiçoar” (cf.
Dt 30.1,19). (1998, p. 220)
Não pode haver dúvida de que esta terceira bênção no decorrer do evento da criação
é do mesmo tipo que a bênção dada às criaturas vivas e aos humanos, 1:22, 28, onde
significava o poder da fertilidade. O significado é essencialmente o mesmo aqui,
embora muito mais abstrato. A bênção de Deus confere a este dia especial, santo e
solene uma força que o torna fecundo para a existência humana. A bênção dá ao dia,
que é dia de descanso, o poder de estimular, animar, enriquecer e dar plenitude à vida.
Não é o dia em si que é abençoado, mas sim o dia no seu significado para a
comunidade. No contexto da criação, é para o mundo e para a humanidade. O poder
da bênção, isto é, o poder do empreendimento e do sucesso, tem aqui o seu ponto de
partida. (1984, p. 172)
32
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo wayyqtol + sujeito +
obj. direto.
33
Oração principal: conj. coordenativa aditiva + verbo transitivo direto piel imperfectivo wayyqtol + objeto
(pron. pessoal oblíquo referindo-se ao objeto direto “Dia, o Sétimo”).
32
O verbo qadash tem, no qal, a conotação de estado daquilo que pertence à esfera do
que é sagrado. Desse modo, distingue-se do que é comum ou profano. No piel e no
hifil tem a ideia do ato pelo qual se efetua essa distinção. (1998, p. 1320)
Dessa maneira, ’elohim distingue o sétimo dia dos demais por meio de sua própria
presença, afinal, no contexto veterotestamentário algo só pode ser santificado ou separado
quando está em relação direta com a presença daquele que é retratado como o “Totalmente
Outro” conforme continua Mccomiskey:
No piel a palavra é usada na maioria das vezes para designar o ato de consagração.
Em Êxodo 19.23 a consagração do monte Sinai, mediante o estabelecimento de limites
ao seu redor, serviu para manter à distância tudo o que poderia ter profanado a santa
presença de Deus. (1998, p. 1320)
Com esta benção e santificação, parece-nos que o autor já busca encontrar fundamentos
exemplares de ’elohim para que o homem também repouse neste dia, isto é, Deus estabelece o
padrão do descanso para que o homem também entre neste descanso da presença de Deus. À
semelhança de Êxodo 24.16, no sétimo dia há o convite ao relacionamento do ser humano com
seu Deus:
Em primeiro lugar, Êxodo 20.8 e ss. associa a guarda do sábado ao fato de o próprio
Deus ter descansado no sétimo dia, depois de seis dias de trabalho (Gn 2.2-3). Tudo
que Deus fez, segundo o registro de Gênesis, avaliou como bom. Entretanto, somente
o sábado ele santificou, dando talvez a entender que o clímax da criação não foi a
criação do homem, mas o dia de descanso, o sétimo dia. O sábado é, portanto, um
convite ao regozijar-se com a criação de Deus e reconhecer a soberania divina sobre
o nosso tempo. (HAMILTON, 1998, p. 1522)
Há aqui muito mais do que uma mera referência ao sábado no Israel posterior. A
santificação do sábado institui uma ordem para a humanidade segundo a qual o tempo
é dividido em tempo e tempo santo, tempo de trabalho e tempo de descanso. A obra
da criação começou com três atos de separação. A primeira foi a separação entre luz
e trevas. Seu objetivo era determinar que o tempo era para o ser humano, a existência
de tudo o que foi criado é determinada pela polaridade do dia e da noite. Ao santificar
o sétimo dia, Deus instituiu uma polaridade entre o cotidiano e o solene, entre dias de
trabalho e dias de descanso, que seria determinante para a existência humana. Este é
um presente do criador ao seu povo e não é apenas uma antecipação do sábado
israelita. (1984, p. 171)
33
Tradução:
...34porque nele repousou de toda Sua obra que criou, ’elohim, ao fazer35
Comentário:
O uso da expressão ִ ּ֣כי encontra aqui um sentido causal, indicando que a causa da
consagração do sétimo dia se encontra no repouso de ’elohim de Sua obra.
Com a última oração, o autor conclui a sua seção. לmostra a ênfase do autor no fato de
que a obra de criação de ’elohim foi uma obra prima, pois ele a criou fazendo, isto é, moldando-
a. Conforme aponta Wenham, a frase indica que o autor está consumando o seu relato:
“A qual Deus criou ao fazê-la” é uma expansão da frase usual “a obra que ele fez”
(2:2). A inserção de “Deus criou” na frase produz um hebraico ligeiramente
desajeitado, mas mais significativamente remonta a 1:1, resultando em uma boa
inclusão indicando que a primeira seção de Gênesis termina aqui. (1987, p. 76)
Diante disso, o autor relembra pela terceira vez que o centro de sua perícope é o repouso
de ’elohim. Deus abençoou e consagrou o sétimo dia, pois repousou sobre a sua obra recém
realizada.
Diante de tudo o que foi considerado até aqui podemos dizer que o sétimo dia se
apresenta como propósito central do relato criacional, isto é, a coroa da criação, evidenciado
pela sua santificação ante os demais dias da criação, os quais não foram consagrados como o
sétimo. Sua centralidade tem como causa evidente o repouso de seu Criador, ’elohim, ao
consumar a sua obra prima.
Assim, considerando que todo o relato caminha naturalmente para a exposição das
principais funções de cada parte do cosmos, é de se notar que a função principal do cosmos no
relato é o repouso de ’elohim sobre ele. O significado deste repouso pode ser observado em
uma causa: a satisfação de ’elohim com sua criação (1.31) e, consequente, consumação; em três
aspectos: a cessação de atividade criadora de ’elohim, a presença habitante de ’elohim sobre o
34
Oração subordinada adverbial causal: conj. subordinativa causal + pron. pessoal oblíquo (objeto indireto da ação
de repousar) + verbo intransitivo qal perfeito + complemento preposicional.
35
Oração subordinada adjetiva restritiva, atuando como adjunto adnominal do substantivo “obra”: pron. relativo
+ verbo transitivo direto qal perfeito + sujeito + locução prepositiva de tempo (verbo qal infinitivo).
34
seu cosmos recém-criado e a presença reinante de ’elohim como soberano rei do universo; e em
uma consequência diante de seu repouso: a benção e santificação do sétimo dia, isto é, do tempo.
Tudo isso mostra que a situação inicial da terra no versículo 2 foi totalmente ajustada. A
presença do Criador agora paira sobre o cosmos satisfatoriamente e convida suas criaturas a
entrarem neste descanso em plenitude de vida a fim de viverem os seus propósitos pré-
determinados. Dessa maneira o autor conclui o primeiro relato criacional.
35
CAPÍTULO 2
No capítulo anterior buscamos extrair qual é o centro exegético de Gn 2.1-3 com vistas
à compreensão do significado do repouso divino no sétimo dia, entendendo que a localização
bíblica deste repouso é de fundamental importância para o restante do Antigo Testamento. A
partir de agora buscaremos observar panoramicamente a influência deste repouso divino no
restante do Antigo Testamento em diversos textos que direta ou indiretamente abordam o
assunto.
O critério de decisão dos textos a serem observados se deu por meio de ampla pesquisa
bíblico-referencial. Primeiramente buscou-se ler todos os textos veterotestamentários que
possuíam termos, vocabulários, estruturas frasais, referências e conceitos teológicos
semelhantes ao do Gênesis 2.1-3, isto é, o repouso divino. Exemplificando, foram lidos todos
os textos bíblicos que utilizam termos (lexicais ou derivados) como שָּׁ בת, ְשׁבִ יעִ י, ְמלָּאכָּה, ou
שׁבָּ ת. Com a leitura, foram selecionados os textos que mais poderiam servir ao propósito desta
pesquisa.
Este texto é um dos únicos, junto a Levítico 19.2, que explicitamente ordenam uma
imitação a Deus. Hamilton diz que “o propósito primário para a observância do sábado é que,
ao descansar nesse dia, os israelitas imitem o seu Senhor, que descansou nesse dia após a sua
obra de criação (Gn 2.2-3)” (2018, p. 499). Esta nota clara de imitação sugere que se a
comunhão e o desfrute familiar e caseiro eram buscados, logo Javé houvera instituído o sábado
para que o ser humano experimentasse um eco do sétimo dia da criação, a saber, o repouso de
Durante várias décadas foi comum pressupor antecedentes no antigo Oriente Próximo
para a observância do sábado. Mas agora é amplamente reconhecido que ainda não se
descobriu nenhuma dessas observâncias. A solução para entender o descanso sabático
das pessoas está no descanso sabático de Yahweh no sétimo dia da Criação, como nos
diz o mandamento em Êxodo. Por sua vez, o conceito de descanso divino pode ser
esclarecido por textos do antigo Oriente Próximo que revelam o descanso da
divindade ocorrendo em um templo, em geral em consequência de a ordem ter sido
estabelecida. O descanso, embora represente o desengajamento do processo de
estabelecer a ordem (quer por meio de conflito com outras divindades, quer não), é,
de modo ainda mais importante, uma expressão de engajamento quando a divindade
ocupa sua posição de comando para manter um cosmo ordenado, seguro e estável.
(2021, p. 215)
O destaque deste texto é a relação do chamado de Deus para Moisés entrar na nuvem
gloriosa com o sétimo dia. Sobre isso Westerman afirma:
O autor faz questão de enfatizar que Moisés só pode entrar na nuvem gloriosa de Javé
no sétimo dia, indicando, como Westerman afirmou na citação acima a consagração do tempo
por meio da presença de Deus. A chamada de Javé é evidentemente para a sua própria presença.
37
Ele chama de dentro ( )תָּ וֶךda nuvem para a sua presença comprovando a ideia de que o sétimo
dia é santificado pela própria presença do Criador.
Hamilton apresenta pontos de comparação interessantes deste episódio com Êxodo 40.
A comparação também ajuda a observar que a glória da presença de Javé deve ser vista como
um grande propósito para a mentalidade do autor da Torah.
A relação entre o tabernáculo e o templo com a criação é um assunto que renderia muitos
trabalhos. Não é o objetivo desta pesquisa esgotá-lo aqui, mas Beale (2021) nos fornece uma
gama de teóricos que escreveram sobre isso, entre eles, Walton, Levenson, A. Silva, M. Haran
e outros. O foco aqui será apenas observar os pontos que mais contribuem com a pesquisa. O
que pode ser introduzido de antemão é que esta relação é muito perceptível, pois como afirma
Beale:
Com isso em vista, vejamos alguns pontos que podem nos ajudar na compreensão do
repouso divino. O tabernáculo é construído com gradações de santidade, isto é evidenciado
pelos materiais utilizados no Átrio Exterior, no Lugar Santo e no Santo dos Santos. Não somente
os materiais, mas as pessoas que podiam participar destas partes eram selecionadas,
especificadas e consagradas com níveis de consagração diferentes, por exemplo, entre os
sacerdotes e o Sumo Sacerdote e entre as tribos levíticas meraritas, gersnonitas e coatitas. Beale
(2021) apresenta as altas probabilidades desta gradação ser uma referência à terra, céus visíveis
e céus invisíveis de Deus. Além disso, há uma relação direta entre a bacia de bronze e os mares,
38
Desse modo, a imagem da nuvem da glória repousando sobre a tenda do encontro (figura
do cosmos) é significativa quando a relacionamos com a imagem de ’elohim repousando após
a sua criação do cosmos (Isaías 66) fortalecendo a ideia de que o repouso divino está na presença
habitante e reinante de Deus.
Terra. Por isso o sábado é tratado como um ( אֹ ותsinal) que deve trazer à memória do povo e
das demais nações que Javé é quem os separa, santifica e consagra. Dessa maneira, o sábado
deveria ser uma memória viva, celebrada por Israel, da santidade devida ao Senhor que
descansou sobre sua criação, consagrou o tempo de repouso e que ainda vai repousar em meio
ao seu povo depois do trabalho e suor da edificação desta habitação. A celebração desta
memória é tão fundamental que o texto nos informa uma pena contumaz, a saber, exclusão e
morte.
Por tudo isso, Bosman diz que o sábado é mais do que mera abstenção de trabalho:
O sábado como um sinal da aliança vai além da mera abstenção de atividades profanas
e revela um conceito novo de tempo como sendo sagrado, algo peculiarmente israelita.
36
Para mais detalhes, ver BEALE, G.K. O Templo e a Missão da Igreja: uma telogia do lugar da habitação de
Deus. 2021.
39
(McKenzie, 80). Esse conceito de tempo sagrado se reflete no uso de sabbãtôn como
um paradigma para os dias de festas (Êx 31.15; 35.2; Lv 16.31; 23.3; 25.4-6). Apesar
de o sábado não desempenhar um papel sacrificial importante no culto, é chamado
muitas vezes de dia santo (Êx 16.23; 31.14-15; 35.2) e é santificado por Deus e Israel
(Gn 2.3; Êx 31.13; Lv 23.2; 25.10). Jenson (195) sugere que essa concepção de
santidade não depende de atos ou pessoas ligados ao culto, nem de um lugar sagrado
como o tabernáculo (Êx 31.12-17). O caráter geral do sábado chama a atenção para a
presença de Deus no meio de seu povo como um todo e não apenas no meio dos
sacerdotes ou nos santuários. Assim, a santidade do sábado tem suas raízes na
comemoração jubilosa de Deus como criador e redentor no passado e na experiência
da presença de Deus no descanso do sétimo dia como um sinal da aliança no presente
(ABD 5:852). Esse usufruto do sábado por Israel como um todo se reflete no perdão
das dívidas e libertação dos escravos no ano sabático e no ano de jubileu (Lv 25.10;
Dt 15.1-11). [...] Ao começar e encerrar as comemorações religiosas com o Sabbâtôn
e sua referência ao descanso (ou seja, o primeiro e o oitavo dia), a atividade cultual da
festa religiosa passava a ser qualificada em termos teológicos pelo sábado e seu
objetivo de desfrutar a presença de Deus como Criador e Redentor. (2011, vol. 4, p.
1148-9)
Diante da preocupação de Moisés em subir com o povo de Deus para a terra prometida,
Javé conduz Moisés ao entendimento de que sem a sua presença ativa, ou melhor, sua face ()פָּנָ֥י
junto ao povo, toda a liderança mosaica e a caminhada do povo até então teriam sido inúteis. A
face de Javé é quem dá descanso para o povo de Deus. Aqui vemos a relação entre a face de
Javé e o repouso dado por ele ao seu povo:
No caso de Êxodo 33, a resposta divina fornece uma oportunidade a Moisés para que
ele diga ao Senhor: “Eles precisam de ti muito mais do que de mim”; é a oportunidade
de Moisés dizer a Yahweh: “Israel (e eu) precisa não apenas da tua presença ‘presente’,
mas também da tua presença ‘ativa’ ”. Alguns indivíduos podem estar presentes numa
situação e não fazer nada, ou não contribuir com nada. Já outros, quando estão
presentes (Deus e Moisés), e por estarem ali, mudam toda a dinâmica da situação para
melhor. (HAMILTON, 2018, p. 791)
Não será uma divindade ausente; pelo contrário, estará com os israelitas, dirigindo
suas vidas e providenciando todas as suas necessidades. Estas bençãos são sui generis
no seu caráter, e garantem aos israelitas sua segurança pessoas, a contínua
prosperidade nacional, e, acima de tudo a presença de uma divindade amorosa e
onipotente. A certeza da presença de Deus tem sido uma fonte de fortaleza e bênção
para gerações incontáveis de crentes (cf. Is 11.1-26; Ez 36.28; 37.24-27, etc.).
(HARRISON, 1983, p. 214)
Neste texto do livro de Números encontramos a presença de Javé, representada pela arca
da aliança, retratada aqui como aquilo que confere descanso ao povo. O repouso é novamente
dado pela presença. Neste caso o repouso do povo de Deus é entregue pela presença de Deus
que guia, governa e habita no meio do seu povo.
Descansar no sábado era lembrar que oser humano, como parte da ordem criada por
Deus, era totalmente dependente do Criador. A tarefa divinamente designada para 0
homem, de dominar a ordem criada (Gn 1.26), trazia o privilégio de participar do
descanso de Deus. O êxodo, também, era um tipo da criação e, portanto, fazia uma
analogia com o relato da criação cm Gênesis. O êxodo do Egito marca, com efeito, a
criação do povo de Deus como nação,18 e a memória desse evento lembrava aos
israelitas sua dependência de Deus. Embora, certa vez, os israelitas tenham sido
escravos no Egito, sem dia reservado para o descanso de seu trabalho contínuo e
monótono, a libertação que receberam de Deus os tornou potencialmente uma nação,
e o sábado devia funcionar como um dia de descanso no qual a libertação da antiga
escravidão poderia ser lembrada com ação de graças. (CRAIGIE, 2013, p. 154)
Nesta segunda parte observaremos seis textos contidos nos Nevi’ym, isto é, a secção dos
profetas da Bíblia hebraica, com exceção do texto de segundo Crônicas 3 a 7 que será observado
juntamente a 2 Reis 5 a 9, pois tratam do mesmo episódio histórico. Os autores não são mais os
mesmos, mas esse fato será relevante para a observação do assunto do repouso em diferentes
contextos do Antigo Testamento.
Assim como em Números 10, o descanso do povo está totalmente atrelado à ideia da
presença de Deus. Em Números, a presença de Deus daria repouso ao povo. Mas em Samuel o
descanso dos inimigos tão almejado por Israel não é suficiente. O propósito não estaria
cumprido enquanto não houvesse um local mais adequado para a presença de Javé. A presença
os havia dado descanso de todos os inimigos, mas ainda faltava a centralização plena da
presença habitante e reinante de Javé no meio de Israel e isto é claramente demonstrado no
coração de Davi aqui e no Salmo 132 como veremos mais adiante. A preocupação de Davi com
este texto é de construir uma casa para a habitação de Javé em Sião. Mas é Javé quem edifica
uma casa para Davi, e essa casa possui dois principais sentidos para Davi e sua família: a
42
habitação na terra e o governo para sempre de sua descendência. Neste sentido, Baldwin
confirma:
Um lugar para o meu povo...Israel já havia sido colocado no mapa, mas há também
um vislumbre do futuro distante, que propiciaria esperança e consolo em tempos
atribulados (e.g., Jr 32.37) e uma visão de segurança (descanso, cf. v. 1) ainda futura
(Sl 89.22-24). Finalmente, num trocadilho com a palavra “casa”, a situação e
completamente invertida, e o Senhor compromete-Se a construir para Davi uma casa
com o sentido de “dinastia” (1997, p. 243-4)
Apesar do desejo de Davi, Deus o proibira de construir o templo a seu Nome (ver
Introdução: 11) Nome de Deus). Porque ele era um homem de guerras e derramara
muito sangue (28.3). Pela segunda vez, o cronista explicou por que Davi não pôde
construir o templo (ver comentários em 22.6–10). Conforme a lei de Moisés, o lugar
permanente da presença de Deus deveria acontecer somente depois que a conquista
da terra estivesse completa. Davi passou sua vida a lutar contra seus inimigos na terra.
Não era apropriado Deus habitar em seu palácio, enquanto houvesse guerras em
andamento. Somente quando o povo de Deus tivesse alcançado a paz era que o Deus
do povo iria descansar em seu palácio. (2008, p. 247)
Novamente vemos a relação entre descanso, casa, templo, habitação e governo no texto
bíblico. Neste caso, conforme o Salmo 132 reafirma, a presença habitante e governante de Javé
deve repousar sobre o lugar mais santo da terra. Por isso afirma Baldwin:
“Tendo-lhe o Senhor dado descanso de todos os seus inimigos em redor” (cf. v. 11) é
uma citação literal de Deuteronômio 12.10, onde se promete que a terra pertencerá às
doze tribos, que vencerão seus inimigos e às quais será mostrado o único local em que
se deverá adorar. Tendo visto a promessa cumprida pelo menos em parte, Davi queria
glorificar ainda mais a Deus, abrigando a arca de modo mais adequado ao estilo e ao
caráter permanente de sua própria habitação. Os cananeus consideravam que esse era
o dever do rei; algo menos do que isso seria um insulto deliberado contra o Deus que
lhe havia concedido suas vitórias. (1997, p. 242)
As duas secções observadas agora são semelhantes a Êxodo 25 a 40, pois descrevem a
edificação da habitação de Deus em meio ao seu povo. Os dois casos, quando se referem ao
término da obra de Moisés e Salomão, possuem construção frasal semelhante à de Gênesis
quando ’elohim conclui a sua obra e nos dois casos a glória de Javé desce sobre o lugar de seu
repouso (1 Reis 7.51 e 2 Crônicas 7.1).
Descanso de todos os lados (b l h “paz”, cf. 4.24) cumpriu a promessa de Deus a seu
povo (Êx 33.14; Dt 12.10; cf. Hb 4.1-11). Isso foi literalmente verdadeiro somente no
início do reinado de Salomão. Não havia inimigo. Também não havia adversidade,
melhor “acontecimento ruim”, ou “perigo de ataques.” O templo é interpretado aqui
como “casa” (bêt), tanto no sentido de lugar de adoração quanto de casa real. (2006,
p. 91)
São muitos os pontos de comparação aqui entre o templo e a criação. Beale (2021)
desenvolve boa parte de seu livro, O Templo e a Missão da Igreja, para não somente defender
a comparação, mas para evidenciar que a concepção do templo de Israel como um reflexo do
templo cósmico do Criador não é teoria recente, antes, foi desenvolvida por muitos estudiosos
judeus e cristãos do passado, além de ter sido confirmada pelo próprio texto bíblico.
Alguns dos pontos que Beale (2021) apresenta são, por exemplo, a visão do átrio exterior
como uma representação do mundo visível, sendo a bacia de bronze uma referência aos mares
(1 Reis 7.23-26). Além disso, é evidente que o Santo dos Santos era visto como uma
representação do trono celestial de Deus. Além de suas descrições serem extremamente
semelhantes a visões bíblicas do próprio trono celestial (como de Isaías 6 ou Ezequiel 1 e 10)
onde encontramos, nos dois casos, seres angelicais ao redor (ou debaixo) do trono, nuvens de
fumaça, fogo e relâmpagos em torno da presença do rei, sua função é também a mesma, um
lugar de repouso para o Criador e um lugar de governo.
Os detalhes destas comparações não são tão precisos e muito menos unânimes entre os
comentaristas, mas atestam que a mentalidade veterotestamentária confirma a simples ideia de
que o tabernáculo e o templo foram edificados com o propósito de representarem toda a criação
outrora perfeita num mundo então imperfeito e por isso a presença de Deus outrora manifestada
plenamente sobre todo o cosmos no sétimo dia, estava agora repousando de modo restrito sobre
edificações humanas, como afirma Walton, “a principal conexão é, no entanto, o tema do
44
[...] o que se descreve aqui é a sua submissão voluntária ao governo dEle. Assim
mesmo, esse julgamento real não pode ser divorciado da instrução nos caminhos do
Senhor que as nações procurarão e encontrarão em Sião (2.3ss.); portanto, o Rei é
simultaneamente o Mestre das nações. Desta forma Ele tem um nome que está acima
de todo o nome, e o lugar do Seu repouso - isto é, a Sua residência — é glorioso
porque os tesouros das nações para ali serão levados (SI 72.10; Ap 21.24;Is 60). (1986,
p. 139)
Temos aqui um claro eco do templo em relação com a criação. O templo havia sido
edificado para representar o cosmos, mas não poderia, como aconteceu, ter se tornado um objeto
de idolatria para o povo de Israel, pois ele devia representar o fato de que toda a criação era o
lugar criado pelo próprio Deus para o seu repouso como vemos neste texto. A pergunta acerca
do lugar do repouso divino sugere que toda a sua criação foi feita como um lugar para o seu
repouso. E é por isso que novos céus e nova terra restaurados serão criados, isto é, para que
novamente a glória de Javé possa habitar plenamente sobre todo o cosmos conforme o capítulo
11.
37
Nova Versão Internacional, 2021.
46
habita, assim como antigamente habitava no Santo dos Santos. (BEALE, 2021, p. 53)
No contexto de cativeiro babilônico, isto é, de ter visto a glória de Javé saindo de dentro
do templo para longe da presença do povo (cap. 10 e 11), Ezequiel recebe visões gloriosas do
retorno desta glória e neste contexto ele vê a glória enchendo o templo novamente e ouve do
próprio Javé (vs. 7) que o interior desta casa é trono de ’elohim e o lugar de descanso para os
seus pés. Mais uma vez se tem a ideia do repouso divino sendo completamente associada ao
reino de ’elohim na Terra e à sua habitação conforme pode-se notar no versículo 9. Pois como
afirma Taylor:
Nesta terceira parte da Bíblia hebraica serão observados três salmos que apontam
aspectos que nos ajudam a entender um pouco mais acerca do repouso divino no Antigo
Testamento dentro da literatura do hinário do Israel antigo.
47
O Salmo 95 começa com um convite de seu autor ao louvor do povo de Deus ao seu
Criador. É um convite à aproximação à presença de Deus. Mas com a exortação fundamentada
no episódio da provação no deserto. A provação serviu de exortação de que aquele povo perdeu
o descanso de Javé. A nota interessante, inclusive apoiada por Hebreus 3 e 4 é que este descanso
parece ir além de um simples descanso dos inimigos e da Terra, antes é o descanso de Deus,
“meu descanso”, diz o versículo 11. E conforme aponta o livro de Hebreus, se o próprio salmista
muito tempo depois do povo ter entrado na terra do descanso com Josué ainda promete um
descanso divino, obviamente o descanso de Deus compreende um aspecto maior do que
simplesmente a terra prometida. Dessa maneira, o repouso divino é tratado aqui num aspecto
escatológico que muito provavelmente reforça o propósito original da criação de que todo o
cosmos deve entrar neste repouso da presença plena de seu Criador. Como aponta Shökel:
Por fim, o salmo 132 talvez seja um dos mais valiosos para esta pesquisa. Seus primeiros
versos mostram que a preocupação davídica e, consequentemente, do salmista é a habitação de
Deus no meio do seu povo. Os versos 7 e 8 evidenciam esta preocupação e revelam que o Santo
dos Santos é o lugar do repouso de Deus na terra como aponta Shökel:
48
Não pretendem eles transportar o Senhor, seria absurdo pensá-lo; podem pedir
humildemente que o Senhor se levante e se dirija com sua arca ao novo domicílio: o
versículo atualiza a tradição retomada em Nm 10,35: “Quando a arca se punha em
marcha, Moisés dizia: Levanta-te, Senhor!... E quando se detinha a arca, dizia:
Descansa, Senhor!”: tradição retomada em forma enunciativa no SI 68,1. O texto de
lCr 28,2 ajuda a imaginar a cena: O rei Davi levantou-se e, de pé, declarou: Escutai,
meus irmãos e meu povo. Eu tinha a intenção de edificar um templo para descanso
(byt mnwhh) da arca da aliança do Senhor e como estrado dos pés de nosso Deus; e
fiz os preparativos para a construção. Arca de teu poder, a tua arca poderosa, alude à
função da arca como paládio ou proteção militar, e rememora velhas tradições. A
expressão lêse aqui e em 2Cr 6,11. No versículo presente produz-se um contraste entre
o atributo bélico e o repouso augurado. Terminaram as batalhas, às quais acudia a arca
protetora, sobrevêm a paz e o tempo do repouso. Por sua ocupação na guerra, Davi
não pôde construir o templo; Salomão, o pacífico, o fez. E essa a doutrina própria do
Cronista (lCr 28,3-6). (1998, p. 1528-9)
O Santíssimo Lugar, onde a glória de Javé era plenamente manifestada na nuvem era o
lugar onde a presença de Deus habitava e reinava. Isto claramente reforça o fato de que para a
mentalidade veterotestamentária o repouso divino implica no pairar de sua presença habitante
e reinante sobre um lugar.
CAPÍTULO 3
Para os egípcios, uma cidade era um templo localizado no monte primitivo, o lar e o
domínio de uma divindade autóctone. O que esse conceito de cidade como morada
divina significava na vida das pessoas que moravam nas cidades? "Devemos aceitar
literalmente a afirmação de que era precisamente no seu aspecto de habitação divina
50
que uma cidade unia as pessoas umas às outras e as fazia sentir-se em casa. O templo
era o centro da administração civil municipal no Egipto. Os habitantes da cidade
pertenciam ao templo como sacerdotes leigos; eles eram os "sacerdotes da hora" que
serviam nos templos em rodízio mensal. (2001, p. 25)
A relação entre casa e domínio é evidente no mundo antigo. Só é possuidor de uma casa
aquele que tem autoridade. Com os deuses não é diferente. As divindades deveriam habitar nos
templos a fim de exercerem o seu domínio sobre a região. Esta mentalidade do mundo antigo
estava presente também em meio aos hebreus, confirmando-se a ambiência cognitiva de
domínio por parte das divindades ao repousarem sobre as suas casas, isto é, os templos.
A terra está silenciosa agora, porque Aquele que a faz está descansado em Seu
horizonte. Mas quando o dia amanhece você se eleva no horizonte e brilha no Aton
durante o dia. (SIMPSON, 2003, p. 493)
O hieróglifo desta ideia mostra o dilúvio primitivo com o sol nascendo sobre ele,
estilizado como um monte. Ele representava não terras emergentes em geral, mas o
mundo contido inteiro em uma pequena ilha. O monte desempenhou um papel
importante nos principais sistemas cosmológicos. Em Heliópolis, o próprio Atum
apareceu como o monte primordial, que às vezes era chamado de benben. Em
51
Memphis, o deus ctônico Ta-tenen, "a terra que sobe", foi combinado com Ptah a partir
do período do Novo Reino. Em Hermópolis, a Ogdóade foi colocada dentro ou ao
lado da "ilha das chamas" com o monte explodindo em vida. Outros santuários
também localizaram o monte primordial dentro de seus arredores. Relacionados ao
monte primitivo estavam o templo e o trono. A criação era renovada todos os dias no
templo, que assim se tornou um monte primordial. Os templos foram construídos
sobre fundações especiais de areia, com o Santo dos Santos em um nível mais alto do
que as outras salas. "O rei, que representava na terra o deus e suas ações geradoras de
vida, desempenhava o papel de criador in parvo. Como o criador, ele ascendia ao
estilizado monte primordial. O pedestal (geralmente escalonado) do trono funcionava
como o monte primordial. E cada vez que o rei se sentava nele - especialmente
significado nas entronizações e na festa Sed – ele repetia a criação simbolicamente.
(CLIFFORD, 1994, p. 105-6)
O simbolismo cósmico dos templos egípcios assenta nesta antinomia entre interior e
exterior, entre laços locais e a onipresença da manifestação divina. O naos onde
repousa a estátua de culto é a parte mais remota do céu, onde habitam os deuses e
deusas. As portas do santuário são os portões celestiais pelos quais o deus sol passa
pela manhã. O restante do templo é o mundo que o deus sol inunda de luz quando
aparece no Leste. Naos e templo têm, portanto, um relacionamento interno-externo
um com o outro. Quando as portas do santuário são abertas, o sacerdote começa a
recitar. (2001, p. 36)
Por mais que o descanso divino não seja citado explicitamente, ele é subentendido na
estabilidade, tranquilidade e domínio que os deuses alcançam ao estabelecerem ordem no caos,
por meio de suas criações. Walton retrata que:
Ptah descansou depois de ter feito tudo e de também ter pronunciado todo o discurso
divino, tendo dado à luz os deuses e edificado as cidades deles, tendo estabelecido as
divisões territoriais dos deuses e os colocado em seus locais de culto, tendo assegurado
suas ofertas de pão e estabelecido seus santuários, tendo dado a seus corpos a forma
que lhes satisfaz. (2021, p. 217)
Dessa maneira, a mentalidade religiosa egípcia também contempla ideia de que suas
divindades encontram lugar para a sua habitação na terra após criarem o cosmos. Tal como o
sol nasce no leste junto ao horizonte montanhesco, Aton, por exemplo, manifesta a sua presença
junto ao monte primitivo irradiando vida à sua criação. Na procissão da estátua de Pepi I, a
recitação também diz que, “sua mãe, o céu, o carregará vivo todos os dias como o Sol: ele
aparecerá com ele no Leste e irá descansar com ele no oeste; sua mãe Nut não ficará sem ele
todos os dias.” (ALLEN, 2005, p. 265). Portanto a significação do descanso divino envolvendo
a habitação dos deuses sobre a terra e o reinado destes a partir do templo cósmico é evidente.
Considerando os 400 anos de vivência dos hebreus com esta mentalidade religiosa, torna-se
mais compreensível o entendimento do repouso de ’elohim depois de ter criado o cosmos,
levando em consideração o público a quem o autor estava se dirigindo.
52
A mitologia suméria data do final do terceiro milênio antes de Cristo, em sua maioria.38
Sua principal divindade criadora é Enlil, considerado o principal deus do panteão sumério e
responsável pela separação do céu e da terra. Além disso, Enlil era aquele que concedia
fertilidade aos seres humanos e à terra. Aqui já podemos ver pontos de semelhança entre o
Gênesis e a literatura suméria.
Entretanto o que mais interessa a esta pesquisa é a crença suméria relativa à criação,
especialmente, se há alguma alusão a um descanso divino semelhante ao Gênesis e qual o seu
significado. Conforme aponta Walton (2009, p. 74), o hino de dedicação do templo de Kês
apresenta um aspecto interessante quanto ao repouso divino. O verso 58 diz:
Casa ...... inspirando grande admiração, chamada com um nome poderoso por An ;
casa ...... cujo destino é grandemente determinado pela Grande Montanha Enlil ! Casa
dos deuses Anuna possuindo grande poder, que dá sabedoria ao povo; casa, morada
de repouso dos grandes deuses! Casa, que foi planejada junto com os planos do céu e
da terra, ...... com os puros poderes divinos ; casa que sustenta a Terra e sustenta os
santuários! Casa, montanha de abundância que passa os dias em glória; casa de
Ninhursaja que estabelece a vida da Terra! Casa, grande encosta digna dos ritos de
purificação, alterando todas as coisas; casa sem a qual não se tomam decisões! Casa,
boa......que carrega nas mãos a ampla Terra; casa que dá origem a inúmeros povos,
semente que brota! Casa que dá origem aos reis, que determina os destinos da Terra;
casa cujos personagens reais devem ser reverenciados! Alguém mais produzirá algo
tão grande quanto Kec ? Alguma outra mãe dará à luz alguém tão grande quanto seu
herói Acgi ? Quem já viu alguém tão grandioso quanto sua senhora Nintud?39
Este hino é uma ode à habitação de Enlil na terra. A habitação é retratada como o local
de governo de Enlil, por exemplo, nos versos de 22 a 30. Nos versos 45-57 ela é retratada com
carros de guerra e no verso 58 as aclamações de glória deste templo. A todo o tempo ele é
chamado de casa, enfatizado a sua função residencial para Enlil. E em meio a estas aclamações
há a menção de que esta casa é um lugar para o repouso dos deuses.
Mais uma vez vemos o templo sendo retratado como uma representação cósmica e como
um lugar de governo dos deuses e sobre uma montanha. Neste caso um lugar de governo a partir
da habitação de repouso de Enlil em sua casa. A ideia, no texto é de que esta habitação fora
planejada desde a criação e, portanto, serve de sustento vital para o cosmos. A partir da presença
divina nela, todo o cosmos é abençoado por suas decisões reais e pela vida divina que dela
emana.
38
Para mais detalhes, ver CLIFFORD, 1994, p. 13.
39
Disponível em <https://etcsl.orinst.ox.ac.uk/section4/tr4802.htm>. Acesso em: 7 de dezembro de 2023
53
Dessa maneira, a presença divina que habita nela é a responsável por manter a ordem,
tranquilidade e estabilidade da vida no cosmos, pois Enlil é também um rei soberano. E assim
como para todo rei, encontrar um lugar agradável para a sua habitação e governo é o objetivo
supremo. Assim, é possível ver que na mentalidade antiga do oriente próximo o propósito
criacional da divindade está sempre relacionado ao estabelecimento de uma ordem de governo
e de habitação dos deuses, sendo, portanto, o repouso divino.
Assim, pode-se observar que, assim como esta pesquisa tem buscado demonstrar, os
relatos criacionais do Antigo Oriente Próximo tem em comum que suas divindades criadoras
sempre buscam um lugar para a sua habitação após criarem o cosmos. Reinke afirma que, “o
objetivo da criação dos homens era que eles se ocupassem do fardo do trabalho no lugar dos
deuses, os quais poderiam finalmente descansar.” (2019, p. 50). Este aspecto também é
encontrado na Epopeia de Atrahasis quando os deuses acordam Elil a fim de aliviarem os seus
trabalhos duros por meio da criação do ser humano:
40
Disponível em: <https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html> Acesso em: 7 de dezembro de
2023.
54
Agora que nos libertaste e fizeste menor nossa carga de trabalho, como devemos
retribuir tal graça? Que construamos um templo e que o chamemos de O Albergue Do
Descanso Da Noite. Lá onde todos iremos dormir uma estação do ano, no Grande
Festival, quando todos reunidos em Assembleia, iremos construir altares para ti,
iremos construir Parakku, o Santuário [...] Quando a construção do templo terminou,
os Anunaki construíram capelas para si; então todos se reuniram, e Marduk ofereceu
a todos um banquete. Esta é Babilônia, a cidade querida dos deuses, teu amado lar!41
Além disso Marduk não somente busca uma casa para morar, mas também para reinar.
Tal como nos outros relatos já observados neste capítulo, Marduk também visa, ao criar o
cosmos, estabelecer a ordem, tranquilidade e estabilidade sobre o caos e, portanto, reinar sobre
a Terra. Dessa maneira, o lugar da habitação de Marduk é o local de seu governo sobre a Terra
a fim de manter a ordem. Isto é demonstrado pelos seguintes versos da tábua 7:
Ele é Aranunna, o conselheiro, com seu pai Ea sem igual em seus modos soberanos,
ele criou os deuses. Ele é Dumuduku, a montanha brilhante, Dumuduku, a presença
no templo, o local das decisões, onde nada se decide sem ele [estar presente]. Ele é
Lugallanna, o forte, aquele que carrega o firmamento.42
41
Disponível em: <https://www.angelfire.com/me/babiloniabrasil/enelish.html>. Acesso em: 7 de dezembro de
2023
42
Idem nota 41
43
Disponível em:
<https://sf8f90c5fdde20445.jimcontent.com/download/version/1502911073/module/9728361671/name/Enuma%
20Elish%20em%20Portugues.pdf> Acesso em: 7 de dezembro de 2023
55
Diante de todos estes relatos, podemos afirmar que no ambiente cognitivo do Antigo
Oriente Próximo havia uma concordância quanto à ideia criativa das divindades. Para este
mundo uma divindade ao criar o cosmos buscava um lugar para a sua habitação reinante, sendo
ela, o seu repouso. Neste contexto, o significado do repouso divino sempre estava relacionado
à habitação da presença da divindade sobre um templo ou sobre o próprio cosmos como um
templo. John Walton (2021), em seu livro O Pensamento do Antigo Oriente Próximo, apresenta
seis aspectos do descanso divino presentes nos relatos criacionais do Antigo Oriente Próximo.
São eles: o descanso divino é perturbado por rebelião; é alcançado depois de um conflito; é
alcançado depois de uma criação; é alcançado num templo; traz controle, estabilidade e ordem
e, por último, é alcançado por meio da criação de seres humanos que trabalham para os deuses.
Claramente existem diferenças com o relato bíblico, mas as semelhanças mostram que a
cosmovisão do Antigo Oriente Próximo influenciou na compreensão de ideias comuns. Um
ouvinte de Moisés saberia facilmente o que ele queria dizer com o repouso de ’elohim depois
da criação, a saber a presença habitante e reinante do Criador sobre a criação.
Esses templos eram construídos para servir de local de descanso para a divindade.
Embora o conceito de relaxamento (ou até mesmo de indolência) não esteja ausente,
o descanso está relacionado, antes de tudo, com a conquista da estabilidade, segurança
e ordem. A divindade pode descansar em seu templo porque a ameaça de caos foi
afastada. O deus ou a deusa ocupa então seu lugar no cosmo ordenado e controlado,
com tempo livre para desfrutar de seu patrimônio. “Podemos então dizer que os deuses
buscam descanso e que seu descanso implica estabilidade para a ordem mundial. Os
deuses descansam porque querem ver o mundo ordenado”. O objetivo da criação dos
homens era que eles se ocupassem do fardo do trabalho no lugar dos deuses, os quais
poderiam finalmente descansar. (2021, p. 140)
56
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Desse modo, o presente trabalho revelou como possíveis as hipóteses prévias de que o
repouso divino implica, não somente na cessação de atividade criadora por parte de Deus, mas
também na presença habitante e reinante de Deus sobre a sua criação. O texto de Gênesis coloca
este repouso como coroa do relato criacional indicando que o propósito da criação é o repouso
divino que abençoa e consagra o tempo. Os textos do Antigo Testamento revelam a percepção
de que Javé busca um lugar para o seu repouso em meio ao seu povo. Para alcançar este repouso,
Israel deve celebrar o Shabat, e, dessa maneira, celebrar seu criador que habita e reina sobre a
criação. Tal lugar é a sede de sua habitação e governo sobre a humanidade. A partir disso, o
propósito escatológico veterotestamentário é que Javé alcance não apenas o seu povo, mas
também toda a Terra, enchendo-a com sua presença e com seu governo, especialmente, o
messiânico. Por fim, a ideia comum presente em grande parte do ambiente cognitivo do Antigo
Oriente Próximo é de que as divindades criavam com o objetivo de descansarem sobre os
templos para a partir disso reinarem estabelecendo a ordem e a estabilidade que suas presenças
habitantes geravam no lugar.
Assim, é evidente que o repouso divino tem como significado a presença divina que
paira sobre o templo ou sobre toda a criação a fim de habitar e reinar sobre ela trazendo a ordem
sobre o caos, a estabilidade sobre a insegurança e a paz sobre o mal. Esta pesquisa forneceu
diversas percepções sobre o repouso divino, tais como, a ideia inerente de um lugar de repouso
na ideia de repouso do Antigo Testamento, a relação entre o tabernáculo e o templo com a
criação do Gênesis e a ligação entre o repouso divino com o governo messiânico. Cada um
desses temas pode servir à futuras pesquisas de um modo singular.
ter servido de base para outro, confirmando a relevância das demonstrações. Além disso, a
observação da Tanakh e a análise contextual do Antigo Oriente Próximo se revelaram como um
seguro e eficaz caminho de consolidação exegética. Por isso, devemos reforçar cada vez mais
a necessidade do uso dos estudos comparados para a exegese bíblica.
Faz-se necessário também mencionar o lugar do Shabat nesta pesquisa. Não tivemos
aqui o interesse de buscar interpretar o lugar do Shabat na vida do cristão atual. Para o autor
desta pesquisa, neotestamentariamente, não há para o cristão a obrigação da guarda do sábado.
Entretanto, esta pesquisa revelou que o princípio sabático do descanso e da busca de um
direcionamento da vida ao Senhor da Criação que habita em nosso meio é valioso, pois segundo
a ideia de Abraham Heschel (2019), o Shabat é a presença de Deus no mundo, abrindo uma
brecha no tempo e santificando os dias. As polêmicas e extremidades religiosas levaram a
concepção judaica ou cristã do Shabat a um nível muito inferior em relação ao apresentado no
texto bíblico. Em tempos de falta de tempo, de crescimento dos casos de burnouts e de
crescentes exigências de produtividade gerando estresses demasiados, o conceito de
santificação do tempo visando o desfrutar da presença habitante e reinante de Deus em nosso
meio é mais do que necessário, pois seguindo o pensamento de Heschel (2019), ao descansar,
Deus demonstrou ao homem que é permitido desfrutar da criação sem sentir-se culpado. O
Shabat é um convite para compartilhar a alegria da existência.
Este trabalho também abre janelas de pesquisa para toda a área da teologia bíblica e
sistemática, pois como vimos, o repouso divino encontra significância em textos escatológicos
e messiânicos de modo que sua relação com Hebreus 4, Apocalipse 21 e outros é inevitável e
digna de estudo.
E sobre este último aspecto, se o repouso divino enquanto presença divina habitante e
reinante sobre a criação é entendido como o propósito da criação de Deus e se esta presença
busca encontrar lugar para o seu repouso durante toda a história bíblica e visa a habitação e
governo plenos de Deus com os seres humanos conforme revelado por Apocalipse 21, qual
deveria ser então a principal busca de nossas vidas individuais e eclesiásticas?
58
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Livros:
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