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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS

DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A ESPIRITUALIDADE QUE NASCE DA PRÁXIS


LIBERTADORA DE JESUS

MARIA JOSÉ CARDOSO

GOIÂNIA
2011
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU
EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO

A ESPIRITUALIDADE QUE NASCE DA PRÁXIS


LIBERTADORA DE JESUS

MARIA JOSÉ CARDOSO

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação Stricto Sensu em Ciências da
Religião como requisito parcial para obtenção
do grau de Mestre.

Orientadora: Profa. Dra. Ivoni Richter Reimer

GOIÂNIA
2011
C268e Cardoso, Maria José
A espiritualidade que nasce da práxis libertadora de
Jesus [manuscrito] / Maria José Cardoso. – 2011.
95 f.
Bibliografia: f. 91-95.
Dissertação (mestrado) – Pontifícia Universidade Católica
de Goiás, Departamento de Filosofia e Teologia, Goiânia,
2011.
“Orientadora: Profª. Drª. Ivoni Richter Reimer”.
1. Reino de Deus. 2. Jesus Cristo – exemplo. 3. Jesus
Cristo – ensinamentos. I. Pontifícia Universidade Católica de
Goiás, Departamento de Filosofia e Teologia. II. Reimer,
Ivoni Richter. III.Título.
CDU: 232.9(043.3)
DEDICATÓRIA

Ao meu inesquecível pai José Sudário Cardoso (in memoriam)., por suas
costumeiras leituras bíblicas, que quase sempre vinham acompanhadas de
comentários tão edificantes, por isso mesmo, inesquecíveis.

À minha querida mãezinha Antônia Geralda Cardoso (D. Diná), pelo apoio, incentivo
e orações, que foram imprescindíveis para que eu chegasse até aqui.

Ao saudoso Mons. Lincoln Monteiro Barbosa, cujas aulas de Ensino Religioso foram
de fundamental importância para que continuasse - aceso no meu coração - o
desejo de conhecer e vivenciar os ensinamentos de Jesus já iniciados através de
minha família.

E, a todas as pessoas que acreditam que um mundo melhor necessita da


contribuição de cada um de nós e, por isso mesmo, colocam suas inteligências,
vontades e ações a serviço da construção do Reino de Deus, aqui e agora.
AGRADECIMENTOS

A Deus, pelo dom da vida, pela inteligência, pela inspiração e pelos talentos a mim
confiados.

Ao meu pai e à minha mãe, por tudo o que me proporcionaram e ensinaram,


especialmente através do exemplo de trabalho, perseverança, honradez e fé.

Aos meus irmãos: Maria Lúcia, Regina, Tereza de Fátima, Ana Maria, José Sudário
Filho (Zezé), Eduardo e Geraldo (in memoriam).

Aos demais familiares e amigos, pela presença e companhia sempre indispensáveis.

À prof. Dra. Ivoni Richter Reimer, pela competência, incentivo, apoio e orientação
que foram fundamentais e determinantes na condução e finalização deste trabalho.

Ao prof. Dr. Valmor da Silva pela acolhida e disponibilidade para conversas, na


pessoa de quem agradeço a todos os professores e professoras do Programa.

À secretária Geyza Pereira, pela presteza e eficiência demonstradas em todas as


ocasiões em que a ela eu me dirigi.

Enfim, a todos os colegas do mestrado, pelas idéias compartilhadas, pelo


aprendizado mútuo e pelas demonstrações de afeto e amizade, em especial à amiga
Cida (Cidoka), pelo apoio e incentivo.
Não tenhais medo! Abri as portas, melhor,
escancarai as portas a Cristo!
(Papa João Paulo II)
RESUMO

CARDOSO, Maria José. A espiritualidade que nasce da práxis libertadora de Jesus.


Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Pontifícia Universidade Católica
de Goiás, Goiânia, 2011.

A presente pesquisa tem como objetivo aprofundar o conhecimento acerca da práxis


libertadora de Jesus a partir de duas perícopes: Lc 4,14-21 e Mt 9,35-38. A Boa
Nova trazida por Jesus consiste principalmente no anúncio do Reino de Deus aqui
na terra, cuja instauração acontece de modo especial por meio da
inclusão/promoção dos pobres e marginalizados da sociedade. Nesse contexto,
percebe-se que Jesus foi profundamente movido pela espiritualidade judaica,
centrada no seu “Abbá” (Pai), com quem mantinha laços de íntima ligação e sintonia
(verticalidade), bem como pela manifestação da misericórdia e compaixão
(horizontalidade) para com todas as pessoas que de alguma forma ou por algum
motivo encontravam-se à margem da sociedade. Portanto, conhecer a práxis
libertadora de Jesus, tendo como ponto de partida os Evangelhos, torna-se pré-
requisito para a vivência de uma autêntica espiritualidade cristã hoje, o que inclui
uma atenção especial para os pobres e marginalizados, bem como a relativização
dos bens materiais em prol dos valores do Reino de Deus, que podem dar vida em
abundância. Dessa forma, defende-se a premissa de que o despontar de uma
autêntica espiritualidade cristã deve estar fundamentada na práxis libertadora de
Jesus, que engloba tanto a ligação com o transcendente, como também a
relacionalidade com as pessoas, lugar este, onde se evidencia realmente a
concretude dos valores do Reino de Deus ensinados por Jesus.

Palavras-chave: Reino de Deus, práxis de Jesus, pobres e marginalizados,


espiritualidade, evangelhos.
ABSTRATCT

Cardoso, Maria Jose. The spirituality that emerges from the liberating praxis of
Jesus. Dissertation (Masters in Science of Religion) - Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, Goiânia, Goiás, 2011.

The present research has as an objective to go further in the knowing of the


liberating praxis of Jesus, based on two passages: Lc 4 14- 21 and Mt 9, 35-38. The
Good News brought by Jesus consists mainly on the announcement of the kingdom
of God here on earth, whose instauration happens in a special way, by
inclusion/promotion of the poor and marginalized of society. In this context, can see
that Jesus was profoundly moved by the Jewish spirituality centered on it “Abba”
(Father), with whom he maintained bonds of intimate connection and harmony
(verticality), as well as by the manifestation of pity and compassion for everyone that
in any way or for any reason, found themselves on the margin of society
(horizontality). Therefore, knowing the liberating praxis of Jesus, while having the
gospels as a starting point, is a prior condition to the living of an authentic Christian
spirituality today, which includes a special attention to the poor and marginalized, as
well as the relativization of material assets in favor of the values of God’s kingdom,
which may give life in abundance. Thus, defend the premises that the start of an
authentic Christian spirituality must be founded on the liberating praxis of Jesus
which encompasses the connection with the transcendent as well as the relationship
with people; this is how we really evidence the conquest of the values of God’s
kingdom taught by Jesus.

Key words: kingdom of God, practice of Jesus, poor and marginalized, spirituality,
gospels.
SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO ..................................................................................................10

2 A PRÁXIS LIBERTADORA DE JESUS ............................................................13


2.1 A BOA NOVA ANUNCIADA POR JESUS (Lc 4,14-21) ..............................14
2.2 A COLHEITA É GRANDE MAS OS OPERÁRIOS SÃO POUCOS
(Mt 9, 35-38) .. .............................................................................................19
2.3 O REINO DE DEUS E O MOVIMENTO DE JESUS ...................................21
2.4 A LOCALIZAÇÃO DO REINO DE DEUS ....................................................22
2.4.1 Algumas Características do Reino de Deus Trazidas por Jesus .......26
2.4.1.1 Pobres, marginalizados e cativos como primícias do Reino
de Deus ................................................................................27
2.4.1.2 Questionamento de prestígio e status no movimento de
Jesus ...... ..............................................................................29

3 FUNDAMENTOS DA ESPIRITUALIDADE DE JESUS ....................................33


3.1 FILHO DE DEUS E FILHO DO HOMEM .....................................................33
3.1.1 A Filiação De Jesus em Profunda Ligação com o Deus-Pai
(verticalidade) ...................................................................................36
3.1.2 Retiro para a Oração e Oração Confiante ..........................................38
3.1.3 Vida e Poder no Espírito Santo ..........................................................39
3.2 PREOCUPAÇÃO COM AS NECESSIDADES DO SER HUMANO
(HORIZONTALIDADE) ...............................................................................41
3.2.1 Misericórdia e Compaixão dentro do Contexto Relacional práxis
Libertadora de Jesus .........................................................................44
3.3 VIVÊNCIA EM COMUNIDADE: JESUS CHAMOU HOMENS MULHERES
PARA O SEU SEGUIMENTO .....................................................................46
3.4 APRENDIZ E MESTRE: JESUS MANIFESTOU A SUA DIVINDADE .........49
3.5 A ESPIRITUALIDADE DO ENSINO-APRENDIZAGEM NAS PARÁBOLAS
DE JESUS ...................................................................................................53

4 CONCEITUANDO A ESPIRITUALIDADE ........................................................57


4.1 A BÍBLIA COMO FUNDAMENTO PARA A ESPIRITUALIDADE ................59
4.1.1 A Identidade e a Vida de quem Lê a Bíblia ........................................64
4.1.2 A Religião como um Caminho para a Espiritualidade ........................65
4.2 ESPIRITUALIDADE CRISTÃ ......................................................................70
4.2.1 Formas Históricas da Espiritualidade Cristã ......................................71
4.2.1.1 Espiritualidade bíblico-meditativa ..........................................71
4.2.1.2 Espiritualidade da libertação .................................................72
4.3 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE DE JESUS PARA
O NOSSO TEMPO ......................................................................................74
4.3.1 Resgatar a Opção Preferencial pelos Pobres e Marginalizados ........77
4.3.2 Relativizar os Bens Terrenos em Prol dos Valores do Reino de
Deus ...................................................................................................79
4.4 O CAMINHO DA MÍSTICA ..........................................................................82

CONCLUSÃO ......................................................................................................87
REFERÊNCIAS ....................................................................................................91
INTRODUÇÃO

Nossa pesquisa tem como propósito conhecer os aspectos que


compõem a espiritualidade de Jesus, tendo como base inicial os textos
de Lc 4,14-21 e Mt 9,35-38. Essas duas perícopes são pontos de
partida para o trabalho ora proposto nesta dissertação, sendo que o
nosso o objetivo é despertar para uma reflexão mais aprofundada sobre
a espiritualidade cristã a partir da práxis libertadora de Jesus.
Para tanto, buscamos a contribuição de vários pesquisadores/as,
que nos auxiliaram na compreensão dos assuntos para os quais
estamos focando a nossa atenção, objeto da pesquisa, bem como
outros textos bíblicos, que fazem referência a Jesus, sua práxis e ação
libertadora, tentando assim, responder à pergunta principal a que nos
propomos: Quais as principais características da espiritualidade de
Jesus que serviram de fundamento para a sua práxis e ação
libertadora?
Acredito que a motivação para a presente pesquisa teve início na
minha infância. Lembro-me que era costume ouvir o meu pai ler a Bíblia
em voz alta para a minha mãe, não que ela não soubesse ler, mas
porque sentia imensa alegria em compartilhar a ‘Palavra de Deus’ e o
que ele entendia a respeito dela.
Mais tarde, por volta dos 17 anos, além de participar ativamente
das leituras dos Evangelhos e das partilhas com o meu pai, senti-me
motivada para conhecer outros líderes religiosos, como Gandhi, Buda,
Maomé, Santo Agostinho, entre outros. No entanto, minha atenção
continuou voltada para Jesus de Nazaré, em especial, para a sua
práxis e ação libertadoras. Desde então tenho intensificado as leituras
e pesquisas no sentido de conhecer a vida e missão de Jesus, não
somente para alimentar um saber especulativo, de cunho cultural, mas
especialmente, para tentar colocar em prática os valores por ele
ensinados. Dessa forma, sem a pretensão de esgotar o assunto, nossa
pesquisa tentará responder sobre quais eram as principais
características da espiritualidade de Jesus, que a nosso ver, estavam
profundamente vinculadas a sua práxis libertadora.
11

Vivemos em uma época de grandes mudanças em que o ser


humano, em meio a todo aparato tecnológico e científico, corre de um
lado para o outro em busca de algo que possa dar sentido ou
ressignificar a sua existência. Nesses termos, entendemos que a
presente pesquisa poderá contribuir para despertar uma reflexão mais
aprofundada e substancial sobre a práxis libertadora de Jesus, que
tornava evidente a fonte da sua espiritualidade, fundamentada nos
textos e tradições sagradas judaicas.
Trabalhamos com a hipótese de que a vivência da espiritualidade
cristã fundamentada na práxis libertadora de Jesus pode encontrar o
seu espaço e ajudar na difícil tarefa de ressignificar todas as nossas
relações, quer seja, dos seres humanos com o transcendente, dos
seres humanos entre si, com a natureza e com todo o universo.
Visando a obtenção de um maior número de informações
possíveis sobre o tema, bem como o aprimoramento de idéias, nossa
pesquisa é do tipo exploratório. Quanto aos procedimentos técnicos,
ela é eminentemente bibliográfica e documental.
O desenvolvimento da presente pesquisa dar-se-á em três
capítulos. No capítulo primeiro abordaremos a práxis libertadora de
Jesus a partir de duas perícopes: Lc 4,14-21 e Mt 9,35-38. Ambos os
textos retratam a Boa Nova anunciada e colocada em prática por Jesus
em confronto com as estruturas sócio-econômicas e político-religiosas
do seu tempo.
No segundo capítulo, trataremos dos fundamentos da
espiritualidade de Jesus, considerando os seguintes aspectos: a sua
filiação, profunda ligação com o seu “Abbá” (verticalidade), a prática da
oração, a vida e poder no Espírito Santo. Num segundo momento,
abordaremos a prática do ensino e da misericórdia como características
de sua práxis e ação libertadoras.
No terceiro capítulo, levando-se em conta tempos e contextos
atuais, serão apresentados alguns conceitos de espiritualidade,
focalizando especialmente a espiritualidade cristã, bem como possíveis
contribuições dessa forma de espiritualidade para o nosso tempo.
12

Pretendemos com esta pesquisa não só cumprir uma tarefa


metodológica científica de interpretação textual e de análise discursiva,
mas também promover e despertar uma reflexão sobre a espiritualidade
cristã a partir da práxis libertadora de Jesus.
Assim sendo, acreditamos que esta pesquisa trará contribuições
significativas para a comunidade acadêmica, por meio de interpretação
de textos bíblicos que agreguem valores para a vivência da
espiritualidade. Esta contribuição pode ser extensiva a todas as
pessoas que queiram conhecer, aprofundar e colocar em prática os
ensinamentos de Jesus, em especial sobre a sua espiritualidade e
práxis libertadora.
13

2 A PRÁXIS LIBERTADORA DE JESUS

Conforme Mesters (2006, p.1) os estudos mostram e os


evangelhos confirmam que Jesus vivia em uma época profundamente
conflitiva, havia muitas tensões sociais (Mc 15,6; Mt 24,23-24) com
repressão sangrenta que matava sem piedade (Lc 13,1). Gente
explorada por um sistema injusto (Lc 22,25), com desemprego,
empobrecimento e endividamento crescentes (Mt 6,12; 18,24. 28-34; Lc
16,5), consequentemente, fome, pobreza e muita doença.
Nesse cenário de conflitos repercutindo nos mais diversos níveis
da vida da nação, podemos citar ainda:

As c las s es al t as , c om pr om et id as c om os r om an os na
ex p l or aç ã o d o p o v o ( J o 1 1 ,4 7- 48 ; Lc 20 ,4 7) e p o d er os os r ic os
qu e n ã o s e im por ta v a m c om a p obr e za d os ir m ã os ( Lc 1 5, 16 ;
16 , 20- 2 1) ; e ha v i a gr up os d e o p os iç ã o ao s r om an os q u e s e
i de nt if ic a v am c om as as p ir aç ões d o po v o ( A t 5 , 36- 3 7) ; h a v ia a
r e li g i ão of ic i a l am bíg u a e o pr es s or a , or g an i za d a em tor no d a
s i na g og a e d o t em pl o ( M t 21 ,1 3 ; M t 23 ,4 .2 3- 32) ; e h a v ia a
p ie d ad e c o nf us a e r es is t e nt e do s p o br es c o m s uas d e v oç õ es ,
r om ar i as e pr át ic as s ec u l ar es ( Mt 1 1 ,2 5; 2 1, 8- 9; Lc 2 ,4 1;
21 , 2) . N um a p a la vr a , ha v i a c o nf l it os n os v á r i os ní v e is da v id a
da n aç ã o: ec on ôm ic o , s oc i al , po l ít ic o, id e o ló g ic o , r el i g i os o
( M E ST ER S , 2 00 6, p. 1 ) .

Diante desse contexto, Jesus não ficou indiferente, mas tomou


posição. Assim, através da sua atitude, a Boa Nova do Reino de Deus
se fez presente na vida do povo. O anúncio dessa Boa Nova é antes de
tudo, uma nova prática, fruto da experiência que Jesus tinha com o
“Abba”- Pai e que o levava a tomar determinadas atitudes.
Neste capítulo serão contempladas, de modo especial, duas
perícopes; Lc 4,14-21 e Mt 9,35-38. A primeira delas remete-nos a Is
61,1-2, que na verdade, representa o prenúncio da Boa Nova do Reino
de Deus anunciada por Jesus. A segunda perícope mostra que Jesus
não somente dá continuidade à sua ação evangelizadora, como
também, sente-se incomodado com a situação de opressão e
dominação por parte dos romanos. Nesse contexto de abandono e
miséria, Jesus anuncia a Boa Nova do Reino de Deus, bem como
14

manifesta a sua misericórdia, que são intrínsecas à sua práxis e ação


libertadora.

2.1 A BOA NOVA ANUNCIADA POR JESUS (Lc 4,14-21)

Esta passagem de Lc 4,14-21 torna evidente que Jesus movido


pela força do Espírito Santo anunciava a Boa Nova do Reino de Deus,
ensinava e cumpria as tradições judaicas:

J es us v o lt o u p ar a a G a l il é i a, c om a f or ç a do Es pír i to , e s u a
f am a s e es pa l ho u p or t o da a r eg i ã o. E le e ns in a v a n as
s i na g og as de l es , e to dos o e lo g i a vam . Fo i en tã o a N a za r é ,
on d e s e ti n h a c r i a d o. Co nf or m e s e u c o s tum e, no d ia d e
s áb a do , f o i à s in a go ga e l e va n to u- s e p ar a f a ze r a l e it ur a.
Der am - lh e o l i vr o do pr of et a Is aí as . A br i nd o o l i vr o e nc on tr ou
o l ug ar o n de es t á es c r it o :
“ O es p ír it o d o S e nh or es tá s obr e m im , pois el e m e ung i u p ar a
an u nc iar a Bo a N o va aos c e g os , a r ec u p er a ç ão d a vis t a; p ar a
dar li b er da d e aos o p r im id os e pr oc l am ar um an o ac e i to d a
par t e d o S e nh or ” . De p ois f ec h ou o l i v r o, en tr eg o u- o ao
aj u d an te e s en t ou- s e .
O s ol h os d e t o dos , n a s i n ag o ga , es t a vam f ix os n e l e. E nt ão ,
c om eç ou a d i zer - l h es : “ H oj e s e c um pr i u e s ta p as s a g em da
es c r it ur a qu e ac a bas t e d e ou v ir ” ( Lc 4, 1 4- 2 1) .

De acordo com Reimer e Richter Reimer (1999, p.118-19), a


citação feita em Lc 4,18-19, com base em textos veterotestamentários,
não é completa nem literal. O Evangelho de Lucas apresenta uma
composição de textos sagrados, relacionando-os à sua realidade.
Assim, assumimos a tradução de Is 61,1-2, conforme a LXX,
apresentada pelos autores:

O es pí r i t o do Se n ho r ( es t á) s o br e m im por c aus a d o q ua l m e
un g i u; par a an u nc i ar a B o a N o v a às pes s o as p o br es e le m e
en v i o u, par a c u r ar a s pes s o as q ue es t ã o c om o c or aç ã o
ab a ti d o p ar a pr oc l a m ar r em is s ã o/ l i ber ta ç ão ( áf es is ) às
pes s o as c a t i vas e r es t a ur aç ã o d e vis t a par a as pes s o as
c eg as , p ar a an u nc iar um an o agr a dá v e l a o S en h or e um di a de
v i ng a nç a p ar a c o ns o l a r t od as as p es s o as en l ut a das .

A tradução da versão hebraica em Is 61,1-2 consta como:

O es p ír it o do m eu S e nh or es t á s o br e m im , por q ue o Se n ho r
m e un gi u . Par a pr oc l am ar a l egr i a às p es s oas p o br es e l e m e
en v i o u, p ar a an u nc i ar um a l i b er t aç ã o p ar a a s p es s o as c a ti v as ,
15

par a pes s o as am ar r ad as , o d es at ar d e s u as am ar r as ;
pr oc l am ar um an o agr a d á ve l par a o S e nh or , um di a de
v i ng a nç a p ar a nos s o De us , p ar a c ons o l ar to d as a s p es s o as
en l ut a das .

Por fim, vejamos a tradução do texto grego em Lc 4,18-19,


proposta por Reimer e Richter Reimer (1999, p.117):

O es pí r i t o do Se n ho r ( es t á) s o br e m im por c aus a d o q ua l m e
un g i u p ar a a n unc i ar a Bo a N o v a às p es s oas p ob r es e le m e
en v i o u, par a c u r ar a s pes s o as q ue es t ã o c om o c or aç ã o
ab a ti d o p ar a pr oc l a m ar r em is s ã o/ l i ber ta ç ão ( áf es is ) às
pes s o as c a t i vas e r e s ta ur aç ã o d e v is t a à s pes s o as c e gas ,
par a en v i ar as p es s oas o pr im id as em li ber d a de /r em is s ão
( áf es is ) p ar a pr oc l am ar um a n o agr a d á ve l a o S e nh or .

Em Lc 4,18-19, o termo áfesis é usado nesse contexto como


enunciado de libertação e está relacionado com o “ano da graça”
proposto por Dt 15. O conceito é uma forma de Deus manifestar-se na
história, nas relações sócio-econômicas, no sentido de libertar e
perdoar.
Para a realização desse novo tempo de graça, Jesus também
conclama a uma profunda transformação de pessoas ricas e detentoras
do poder:
Nis s o es t á i nc lu í da u m a no v a r e laç ã o c om o di n he ir o : a l ém de
per d o ar as dí v i das ( L c 11 ,1 4) , d e v e- s e e v i tar o ac úm ul o d o
d in h ei r o ( Lc 1 2, 13 - 2 1) ; o d i nh e ir o d e ve es t a r a s er v iç o da v id a
( Lc 1 0 , 3 5) [ .. .] . O s be ns de v em s er us a d os p ar a a l i v i ar os
s of r im en tos d as p es s oas em po br ec i d as ( L c 18 ,2 2; 1 9, 8) . E
qu a nt o a d i nh e ir o r ou b ad o .. . m el h or é de v o l v ê- lo q u adr i p l ic a d o
( Lc 1 9, 8) ! ( RE I M ER e RI CHT E R R EI M ER , 1 9 99 , p . 12 2) .

Após Jesus ter lido a passagem, o povo na sinagoga, além de


“manter os olhos fixos nele”, esperava por sua interpretação, visto que
esse mesmo povo aguardava por um tempo de graça e de reconstrução
da esperança, como afirmam Reimer e Richter Reimer (1999 p. 121):

J es us f a z a r e l e it ur a e at ua l i za ç ão d a tr a d iç ã o j ub i l ar par a
de n tr o d e s eu t em po. O c um pr im ent o da es c r i tur a es tá
v i nc u l ad o c om a a b e r tur a d e um n o vo t e m po. N ã o s e tr at a
ap e nas de r es pe i tar t em pos e é p oc as . T r at a- s e de dec l ar ar o
HO J E c om o t em po d a s a l v aç ão , d a r em is s ão e l ib er taç ã o.
T am bém nis s o, c ons i s tem a n o vi d ad e e a r a d ic a l i d ad e d e
J es us .
16

Há que se considerar que quando Jesus fez a leitura profética na


sinagoga em Nazaré, passaram-se séculos desde a fixação por escrito
das tradições judaicas proféticas e jubilares. Mas elas ainda
continuavam vivas e presentes no tempo de Jesus, justamente pela
leitura e releitura desses textos sagrados na vida e na liturgia do povo.
São tradições que vêm do tempo pós-exílico para o tempo de Jesus e
das comunidades cristãs influenciadas, no caso, por Lucas.
Além da dominação e ocupação romanas, o tempo de Jesus era
também marcado por estruturas de poder das elites sacerdotais e
econômicas judaicas, que sobrecarregavam o povo com altas taxas de
tributos. Consequentemente, esse sistema imposto pelos poderosos de
Roma, além de fazer aumentar o número de escravos e escravas, fez
surgir também, uma classe de pessoas endividadas e oprimidas:

Um a pr á t ic a q u e h a v i a s i do es t i p u la d a c om o l eg a l p e l os d o nos
do p od er er a qu e f a m íli as e nd i v i d ad as e n tr e g as s em f il has à
es c r a v i d ão - m ui t as v e zes t am bém l i ga d a à pr os t i tu iç ã o! –
c om o p a gam en t o t o ta l o u par c i a l d e dí v i d as . A pr is ã o ( d a
pes s o a qu e d e ve o u d e a lg u ém qu e per t enc e à s ua f am íl ia) e
a tor t ur a por f a lt a d e pa g am ent o d e d í vi d as er am o u tr a m ed id a
ad o ta d a p el os d e te n tor es d o p o der ec o nôm ic o e p o lí t ic o
( R EI M ER e R IC HT E R RE I M ER , 19 9 9, p . 11 9) .

As guerras eram um dos outros motivos para o endividamento de


toda uma população sob a expansão do Império Romano. Os povos e
regiões subjugados tinham que pagar indenizações pelos gastos que
Roma tinha com a guerra. Dessa forma: “Os maiores fatores para o
crescente empobrecimento da população no tempo de Jesus eram as
dívidas, os impostos e as guerras” (REIMER e RICHTER REIMER,
1999, p. 121).
Dentro deste contexto, as pessoas pobres, cativas, cegas,
doentes e oprimidas aparecem como centro no texto lido por Jesus na
sinagoga, uma vez que toda ação de Jesus foi direcionada às pessoas
que por algum motivo viviam à margem da sociedade. Nesse sentido, a
práxis de Jesus em Lc 4,16-30 é entendida como ‘programática’, visto
que,
17

[.. .] f a z p ar t e d o p r o g r am a de J es us at u ar pr of et ic am ent e em
f av or d a l i ber t aç ã o d e s s as p es s o as q ue s ão m ar g in a l i za d as e
ex c lu íd as d o s is t em a e d os v a lor es d om ina n tes . P or is s o,
r es g a tar tr a diç õ es j u b il ar es par a d en tr o d es s a s i t uaç ã o f a z
par t e d o m i nis t ér io pr of ét ic o de J es us qu e es t ar á t am bém em
op os iç ão às e l it es s a c er d o ta is d o s e u p o v o. R es ga t ar es s as
tr a d iç õ es c o loc a J es u s de nt r o das ex pec t at i v as l i be r t ár ias d o
po v o , p o is ex is t e u m gr an d e d es ej o e n ec es s i d ad e d e
l ib er taç ã o ( R EI M ER e RI CHT E R R EI M ER , 1 9 99 , p . 12 2) .

O ambiente onde Jesus fez a leitura (sinagoga) é de suma


expectativa, uma vez que o povo esperava que ele se pronunciasse
publicamente em prol da causa nacionalista e que se pusesse do lado
dos fanáticos. Mas Jesus ao receber do responsável pela sinagoga o
rolo do livro do profeta Isaías leu a passagem onde se fala sem
circunlóquios da mudança histórica que o Messias devia levar a cabo
em favor de Israel e contra as nações pagãs opressoras (RIUS-CAMPS,
1995, p. 72).
O autor chama a atenção para o fato de que Jesus lê em voz alta
a passagem, mas interrompe a leitura final de um versículo, silenciando
o outro que todos esperavam. O texto de Isaías dizia: “O espírito do
Senhor está sobre mim, porque me ungiu... para proclamar um ano de
graça do Senhor e o dia da vingança (de Deus)”. Dessa forma, Jesus
teria proclamado que:

A p r of ec i a ac a b a d e s e c um pr ir em s ua pes s oa ( 4, 2 1: “ h oj e s e
c um pr i u a os v os s os o u v id os es s a p as s ag e m da Es c r i tu r a” ) e
c en tr a s u a hom i l ia na i n au g ur aç ã o d o A no S an to por
ex c e l ê nc i a , “ o a n o da gr aç a d o S en h or ” , m as om ite q ua l q uer
r ef er ênc i a à v i ng a n ç a/c as t i g o c on tr a o im pér i o r om an o
opr es s or . D aí qu e “ to d os es tr a n h a vam qu e m enc i on as s e
s om ent e as p a l a vr as s obr e a gr aç a” ( RI US - C A M P S, 19 9 5,
p. 7 3) .

Continuando nossa fundamentação no autor acima citado, a


maneira de Jesus falar, “recusando fazer seus os ideais político-
religiosos do povo, que era obrigado a pagar enormes impostos de
guerra e submetido à vassalagem das tropas de ocupação, não parece
em nada – dizem – com seu pai” (RIUS-CAMPS, 1995, p. 73). Isso fica
bastante evidente em Lc, 4,22: “Não é este o filho de José?”
18

Na intenção de Lucas, o texto lido por Jesus na sinagoga é


verdadeiramente o manifesto de cumprimento da salvação prometida
por Deus, presente na pessoa de Jesus, com características
diferenciadas, visto que ele:

Nã o s e s u bm et e a os c r it ér ios ut i l it ár ios e es tr ei t os d e s eus


c on t er r â n eos ; o h or i z on t e d e J es us é m ai s am pl o, c oi nc i de
c om o es t il o d e D e u s , q u e s al v a os d e f or a . P or es s a s u a
pos iç ã o J es us s e ar r is c a a s er l inc h ad o p el o s s eus . Is to é um
a v is o a
r es p e it o d o r es u lt ad o f in a l de s u a c am in h ad a. [ ... ] J es us de ix a
de l a do as s ut i l e za s dos c om en t ár i os ha b it u a is , q ue s e
i ns p ir am nos r a b in os , e v ai d ir et am en te à i n te nç ão d o an ú nc io
pr of ét ic o. H oj e, t ã o c e r to qu a nt o voc ês es c u tam , es t e an ú nc i o
de l ib er t aç ã o par a o s o pr im id os , es t a b oa no v a p ar a os
po br es , é um a r e a l id ad e! Ac a b ou o t em po d as p a l a vr as , d i z
em s ubs t â nc i a J es us , o tem po d as es p er as o u pr om es s as
ad i a das o u r en o v ad as ; a q u i e a g or a s e i n ic i a o c um pr im ent o
( FA B RI S e MA G G IO NI , 19 9 8, p . 5 9 ).

Assim, podemos afirmar que o anúncio de Jesus realmente trouxe


uma boa nova, uma vez que, além de oferecer aquilo que proclamou,
os seus patrícios compreenderam também que a sua mensagem não se
tratava de rotineiras frases de propaganda religiosa ou das piedosas
elucubrações de consolações: “Eles ficam entusiasmados com um
discurso que torna patente o amor gratuito de Deus, faz intuir a força
histórica nova desta realidade”, afirmam Fabris e Maggioni (1998, p.
60).
Desse modo, a Boa Nova do Reino se encarna na convivência
humana e revela uma nova visão das coisas, um novo ponto de
partida. Os valores básicos dessa nova ordem aparecem encarnados
na pequena comunidade itinerante que se formou em torno de Jesus.
Mesters (2006, p. 3), destaca alguns deles:

Partilha dos bens ou caixa comum (Jo 13,29); igualdade básica de


todos: “Vocês todos são irmãos” (Mt 23,8-10); poder como serviço:
“Quem quiser ser o primeiro seja o servidor de todos” (Mc 9,35; Mt
20,24-28; Jo 13,14; Mt 23,11); convivência amiga a ponto de não ter
mais segredos (Jo 15,15); novo relacionamento homem-mulher (Mt
19,1-9).

Esses pontos nos dão uma idéia de como era a prática


evangelizadora de Jesus. Nela se revela a experiência que ele
19

mesmo tinha de “Abba”- Pai, ou seja, através dos gestos e atitudes


de Jesus, o povo pode perceber claramente o rosto misericordioso e
compassivo de Deus. Dessa forma, através da prática libertadora e
acolhedora de Jesus, Deus se tornou realmente uma Boa Nova para
o povo.

2.2 A COLHEITA É GRANDE, MAS OS TRABALHADORES SÃO


POUCOS (Mt 9,35-38)

A Boa Nova anunciada por Jesus na sinagoga de Nazaré – do


ponto de vista ‘cronológico’ é tida como ‘inaugural’, mas como se pode
ver nesta segunda perícope da nossa pesquisa, a Boa Nova anunciada
é colocada em prática através de sua ação itinerante/evangelizadora:

J es us p er c o r r i a to d a s as c i d a des e a l d e i as e ns i na n do n as
s i na g og as , pr eg a nd o o e v an g e lh o d o r e i n o e c ur a nd o t o da
enf er m id ad e e d oe nç a . Ve n do o p o v o, s e nt i u c om pa ix ã o d el e
por q u e es t a v a f at ig a d o pr os tr a do c om o ov e lh as s em pas t or .
E nt ão d is s e a s e us di s c íp u los : “ A c o l he i ta é gr a n de , m as os
tr a b al h a dor es s ã o po u c os . P e d i, p ois , a o s e nh or d a p la nt aç ão
qu e m and e tr ab a l ha d o r es p ar a a c o lh e it a” ( Mt 9 , 35- 3 8) .

Lancellotti (1980, p. 101) diz que este trecho demonstra um olhar


panorâmico e sintético sobre a atividade e missão de Jesus, ou seja:

Re a lç a a nec es s id a de d e q u e m ui tos “ op er ár i os ” s ej am
en v i a dos p or D e us à “ v i nh a” e v a ng é l ic a [. .. ] a ex pr es s ã o
o ve l h as s em pas t or : a im ag em é bem c onh ec i da no An t ig o
T es tam en to , es pec i a l m ente n os pr of e tas J e r em ias ( c f . J r 2 3) e
E ze q u i el ( c f . E z 3 4) . [No vs ] 37 , a c ol h e i ta é gr an d e: um a
no v a im ag em bí b l ic a , r e l ac i o n ad a c om o “ c um pr im en to d os
tem pos ” ( c f .J l 4, 12- 1 3 ) . Es s e c um pr im ent o j á s e in ic i o u c om o
Mes s i as ; e l e é en v i a d o pe l o P ai c e l es t e p ar a l im par a s ua e ir a
e r ec o l h er o tr i go a o c e le ir o. M as nes s a o b r a qu er as s oc i ar a
s i c o l a bor a dor es no m aior núm er o p os s í v e l. Pa r a ta nt o é
m is ter ins is t ir j u nt o a o “ s e n ho r d a m es s e” qu e en v i e m ui tos
op er ár ios .

Para Carter (2002, p. 302-303), essa passagem de Mt 9,35-38


proporciona uma retrospectiva e antecipação do capítulo 10, que
estabelece uma grande urgência de expandir o ministério de Jesus por
20

meio de outros ‘operários’. Portanto, esses versículos resumem os


capítulos 8-9 e 4,23-35 para sublinhar Jesus realizando a missão dada
por Deus entre os marginalizados e excluídos.
Mt 9,35 repete o resumo do ministério tríplice de Jesus (ensino,
pregação e cura). Já o versículo 36 destaca que

J es us v en d o as “ m ult i d ões t e v e c om pa ix ão de l as p or qu e
es t a v am c om o ac os s ad as e i nd ef es as .” T er c om pa ix ã o ( Lc
14 , 14 ; 1 5, 3 2; 1 8, 27 ; 20 ,3 4) de r i v a das “ en tr an h as ” , o u
“ ab d ôm en” , o l oc a l d a aç ão c ar i n hos a , m i s er ic or d i os a . [. .. ]
As s im , J es us ex pr es s a a m is er ic ó r d i a de D eus em s eus a tos
( C ART E R, 2 0 02 , p . 30 2) .

Segundo o mesmo autor acima referenciado, a expressão


“acossada” pode significar esfolar ou espoliar, violência e roubo.
“Indefesa” pode significar abatida e resignada, amiúde em contextos
violentos, incluindo abandono (Gn 21,15; 37,20,24). Jesus vê gente que
está oprimida, pisada, esmagada. Dessa forma, “os contextos histórico
e literário indicam Roma e a elite religiosa como aqueles que infringem
abusos sociais, econômicos, políticos e religiosos com desgoverno ”
(CARTER, 2002, p. 303).
A imagem desta passagem também transparece em Ez 34, em
que Deus ataca os falsos pastores que se ocupam deles mesmos e
descuidam das ovelhas (povo) privando-as de alimento e vestuário, não
socorrem a fraca, não curam a enferma, não tratam a ferida, não
buscam a perdida (34,2-4). Assim, conforme Carter (2002, p. 303), por
meio de Jesus, “Deus se encarregará delas, as livrará das nações
(Roma) e proverá alimento, justiça, segurança, saúde, força e um
pastor davídico (34,8-31). Tal é o ministério de Jesus”.
Para a expressão “A colheita é grande, mas os trabalhadores são
poucos” (Mt 9,37), Carter (2002, p. 303) afirma que:

O m inis tér i o d e J es us , a m an if es t aç ã o d o po d er s a l v íf ic o d e
De us q ue j us t if ic a o u c o nd e na , é l im it ad o em s ua ex t e ns ão .
Uns p o uc os op er ár io s /tr ab a l ha d or es ( 10 , 1 0) o e nt e nd er ão .
P ar a os po uc os c om o a c om un id a de m in or it á r i a e m ar g i n al dos
d is c í pu l os , em c ontr a m ar c ha e em te ns ã o c om s eu c on tex t o
s oc ia l , v er 7, 1 4.
21

Para a petição “Pedi, pois, ao senhor da plantação que mande


trabalhadores para a colheita” (Mt 9,38), Carter (2002) ressalta que a
atitude de Jesus não é de desespero, mas oração, visto que tanto a
existência da comunidade como a natureza missionária resultam da
resposta de Deus ratificada por Jesus. Chegará o momento em que
Jesus convocará e enviará seus próprios discípulos neste mesmo
campo de missão.

2.3 O REINO DE DEUS E O MOVIMENTO DE JESUS

De acordo com Richter Reimer (2009), o movimento de Jesus é


reconhecido como movimento de renovação intrajudaico, assim como o
movimento de João Batista e de outros naquele tempo:

Com o t a l, a gr eg o u h om ens , m u lh er es e c r i anç as q ue


bus c a v am ver /d ar s e n ti d o à s u a v id a ou r es s i gn if ic á- l a, s ej am
e las pes s o as d o en t es , em po br ec i d as e ex c l uí das o u t am bém
enr i q uec i d as às c us ta s de o utr as p es s oas c om o Zaq u eu ( Lc
19 , 1- 1 0) . Sej a p or c aus a d e e ns in o ou de c ur as , d e
c om is s i o nam en to o u de gr at u i da d e c om pa s s i v a, as pes s o as
qu e v i v enc i a vam a pr áx is l i b er t ad or a de J e s us [ .. .] pas s a v am
a c om pr om et er - s e c om o pr oj et o d e v i da /R e i no de D eus
apr es e nt ad o e c onc r et i za d o p or J es us e a v i ver s u a
es p ir i tu a l id a de n a i t in er â nc i a do s er v iç o d e s te R e in o d e am or
e j us t iç a, em ald e ias e c i da d es ( R IC HT ER RE I M ER , 2 00 9, p.
24) .

Referenciando ainda ao artigo acima citado, Richter Reimer (2009)


afirma que no caminho e na construção desse Reino, as pessoas
presenciaram, na experiência de Jesus, os riscos de tal dedicação,
consagração e compromisso. Desta forma, os conflitos com a elite
religiosa interna, bem como os conflitos com os representantes
políticos externos e seus funcionários vassalos do próprio governo,
logo se evidenciaram como perseguição, tortura e morte não só para o
líder do movimento, como também para todos os seus adeptos
(mulheres, homens e crianças).
Pelo que lemos nos textos sagrados, Jesus não apenas chamava
pessoas para acompanhá-lo, mais do que isso, através de sua
espiritualidade manifestada por meio de gestos e palavras
22

des p er t a v a ne l as o d es ej o d e s eg u i- lo a p ó s v i v e nc i ar em s ua
pr áx is l ib er ta d or a n o c am po d a s a úd e , d a e duc aç ã o e d a
r e li g i ão em s i . M u l her es , h om ens e c r i anç as ad er i am à
pr o p os t a de c o loc ar a s u a v id a – r e s s i gn if ic a da p e la
c om pa ix ã o e j us t iç a e x per i e nc ia d as j u n to a J es us - a s er v iç o
da c ons tr uç ã o d o R e in o d e D e us q ue s e f e z pr es e n te . A
ex p er i ênc i a d a ac ei t aç ã o , ac o l h id a , da au t o- es t im a e d a
d ig n id a de ( r e) c o ns tr u íd as po r e c om J es us , b em c om o do
c om pr om is s o f ir m ad o a pa r t ir d es t a ex p er iê nc i a, s ã o os
e lem en t os f u nd a nt es no m ov im en to c r is t ã o or i g in ár i o qu e d á
c on t in u i da d e a os pr o c es s os l ib er tár i os d e s enc a de a dos por
J es us ( R IC HT E R R EI M ER , 2 00 9, p. 2 4- 25) .

Desse modo, podemos dizer que o seguimento de Jesus


pressupõe um continuado processo educativo teológico, que inclui a
conversão e a mudança de vida como condições essenciais e
indispensáveis para participar do Reino de Deus, cuja localização será
abordada no próximo item.

2.4 A LOCALIZAÇÃO DO REINO DE DEUS

De acordo com Allgayer (1994, p. 123), entre os teólogos não há


consenso quanto à exata caracterização e localização do Reino
anunciado por Jesus. Inclusive, apresentam posições totalmente
opostas. Para alguns, o Reino vai acontecer de acordo com um plano
pré-estabelecido por Deus e anunciado pelos profetas, ou seja, obra
exclusiva de Deus, dispensando a participação humana. Para outros, é
indispensável a participação humana, ou seja, o Reino de Deus só
acontecerá se os homens o construírem.
Há ainda uma terceira posição que deve ser do agrado de
cristãos propensos a uma religiosidade intimista e desligada da
historicidade. Com base na declaração de Jesus – o “Reino de Deus já
está no meio de vós” (Lc 17,21),

representantes da teologia liberal do século passado sustentavam que o


Reino efetivamente acontece no interior do ser humano. Tal concepção
assenta numa exegese equivocada do texto de Lucas, a partir do radical
grego entos, que tanto pode significar dentro de, como em meio a. Para V.
Harnack, o Reino de Deus seria a união da alma com Deus. Assim sendo,
as coisas “externas” do mundo e a dimensão escatológica não deveriam
angustiar o homem de fé. (ALLGAYER, 1994, p. 123-24)
23

Sobre esta passagem de Lc 4,17,21, Nolan (1987) faz questão de


afirmar que durante séculos, por um erro de tradução, muitos cristãos
têm sido enganados a respeito da natureza do Reino de Deus. No
entanto, atualmente todos os exegetas e tradutores sérios, concordam
que o correto deve ser: “O Reino de Deus está entre vós ou no meio de
vós”. Considerando que a palavra grega en tos pode significar “dentro"
ou “entre”, nesse contexto,

tr a d u zi - l a por “ de n tr o” s i g n if ic ar ia qu e, em r es pos ta à
per g u nt a d os f ar is e us s obr e q u a nd o vir i a o Re i no de De us ( Lc
17 , 20) , J es us l h es t er ia d it o q ue o r e i n o de D eus es ta v a
de n tr o de l es ! Is s o es t ar ia em c ontr ad iç ã o c om tud o m ais q ue
J es us h a v i a di t o a r es pe i to d o r e i no o u d os f ar is eus . A l ém do
m ais , j á q u e t o das as ou tr as r ef er ê nc i as do r e in o pr es s u p õem
qu e a in d a es t á por v ir , e j á o v er b o, em to da s as ou tr as f r as es
des t a p as s a g em ( 17, 2 0- 3 7) es t á n o f ut ur o, e s te v er s íc u lo d e ve
s er e nt e nd i do no s en t i do de qu e um di a e les vã o d es c obr ir q u e
o r e in o d e D e us , s ú b it a e i nes p er a d am ent e, es tá n o m e io
de l es ( NO L AN , 1 98 7, p. 7 4) .

De acordo com o autor acima citado, por detrás da expressão


“Reino de Deus”, utilizada por Jesus, existe uma imagem visual. De tal
modo, que o Reino de Deus como qualquer outro reino, não pode estar
no interior do homem, mas é um lugar dentro do qual uma pessoa pode
viver. Isso está bem caracterizado em algumas passagens bíblicas,
como por exemplo, quando Jesus fala do povo que entra ou que se
recusa a entrar no reino: (Mt 5,20;7,21;18,3;21,31;23,13), ou ainda, o
reino tem uma porta ou um portão (Mt 7,7-8 par; 25,10-12 par), no qual
se pode bater (Mt 7,7-8 par; 25,10-12 par), que também tem chaves (Mt
16,19; Lc 11,52), e pode ser trancado (Mt 23,13; Lc 13,25). Assim
sendo a imagem visual que está por trás dessas descrições, é a de
uma casa ou cidade rodeada de muros (NOLAN, 1987, p. 74-75).
Essa perspectiva de localização do reino não permite dúvidas
sobre aquilo que Jesus tinha em mente, ou seja, uma sociedade
estruturada aqui na terra, afirma Nolan (1987, p. 75).
A presença do Reino de Deus não deixa a pessoa na passividade
ou inatividade, mas proporciona um engajamento, de forma concreta, a
fim de que haja correspondência entre as palavras e ações. Desse
24

modo, há realmente o crescimento do Reino Deus, “não como fruto da


iniciativa humana, nem como processo evolutivo, mas como adesão,
adequação das pessoas e do mundo ao Reino que em Jesus já veio”
(BRAKEMEIER, 1984, p. 49).
Assim, a presença do Reino seria resultado da obra de Deus e
engajamento humano, sendo que as duas partes são indispensáveis
para a construção da polis fraterna morável e acolhedora, ou seja,

tarefa do cristão a ser desempenhada por ele segundo o plano de Deus. E


o será em cooperação com todos os homens. Contudo, seria lamentável
reducionismo circunscrever o projeto de construção do Reino a um
humanismo imanentista, despreocupado com a transcendência. A
transcendência é que dá ao Reino a sua dimensão definitiva. [...] A
transcendência irrompe da imanência. Um Che Guevara retamente
intencionado na luta contra a espoliação dos pobres, mesmo que não saiba,
promove o Reino que uns e outros desejamos. As obras em sua
concretude, dão sinal do Reino (ALLGAYER, 1994, p. 124).

Nesse contexto, vale lembrar que para informar a João que o


Messias tinha chegado Jesus fala das características de sua práxis
libertadora: “Os cegos veem, paralíticos andam, leprosos são
purificados, surdos ouvem, mortos ressuscitam e a pobres se anuncia a
Boa-Nova do Reino” (Lc 7,22). Assim fica evidente, que o Reino de
Deus não é ‘coisa do outro mundo’, mas acontece na concretude da
realidade, na qual todos os seres humanos - aqui e agora – podem ser
co-participantes e beneficiários.
Embora no Novo Testamento não haja uma definição clara e
direta a respeito do Reino de Deus, por meio dos Evangelhos
percebemos que esse “Reino” é uma das mensagens centrais
anunciadas por Jesus, sobre a qual falava como

uma realidade conhecida, que está próxima e já presente na realidade


]histórica e nas pessoas, mas que também continua aberta para o futuro.
[...] Nos diálogos de Jesus com seus discípulos transparece quem participa
dessa realidade, quais exigências e as condições necessárias para esta
participação, bem como quem está excluído da mesma (REIMER e
RICHTER REIMER, 2008, p. 857).

Conforme os autores acima citados permanece impossível querer encerrar o


Reino de Deus numa definição. Contudo, faz-se necessário enfatizar alguns
25

aspectos, determinadas situações temáticas e gêneros literários contidos no Novo


Testamento que servem de referência e podem nos ajudar a perceber melhor as
algumas características desse Reino, como por exemplo:

as parábolas são o lugar preferencial para Jesus falar a respeito do Reino


de Deus. Aqui se expressa o semear como sinal de que o Reino de Deus é
uma dádiva que, em medidas pequenas, é colocada como graça em meio a
situações conflitivas e difíceis; ela cresce e se torna frutífera (Mc 4.26-
29,30-32/Lc 13.18/Mt 13.31,24-30). Nessa dinâmica, são destacados dois
aspectos relevantes: o trabalho da semeadura e da colheita são
necessários para que a dádiva chegue a transformar-se em vida; o
descanso e o ficar observando também são relevantes, pois o poder da
dádiva é que possibilita o que virá. O mesmo também vale para a parábola
do fermento (Lc 13.20/Mt 13.33). Como dádiva que quer tornar-se verdade
enquanto prioridade na vida, o Reino de Deus também é comparado com o
tesouro e com a pérola (Mt 13,44-55). Para tomar posse deles, todo o resto
é vendido. Além disto, é contado que no Reino de Deus encontram-se o
bem e o mal, até o dia do grande juízo (Mt 13,24-30,47-50) (REIMER e
RICHTER REIMER, 2008, p. 857).

Reimer e Richter Reimer (2008) afirmam ainda que a expressão escatológica


presente nas parábolas também aparece em Mt 18,23-35; 20,1-16; 22,2-14, onde a
prática da justiça e da misericórdia é o tema central juntamente com o desafio de dar
preferência ao Reino de Deus diante de outros compromissos. Assim,

onde se exige esta prioridade, a disponibilidade da pessoa está


pressuposta: a pessoa precisa estar disposta a participar do Reino de Deus
(Mt 25.1-12; Lc 29-36). [Além disso] o Reino de Deus precisa ser anunciado
(Lc 4.43 deve ser lido no contexto de 4.17-21; 8.1; 9.11,60; 10.2; 16.16 e
também At 8.12; 28.31; e uma vez em Mt 10.7) e, nisso palavra e ação
precisam estar interligados no trabalho missionário. Anuncia-se um novo
tempo de justiça para as pessoas empobrecidas, doentes, marginalizadas;
quer se concretizar o jubileu proposto na Torá (REIMER e RICHTER
REIMER, 2008, p. 857-58).

Cabe destacar ainda que o Reino de Deus é uma experiência pessoal e uma
realidade que a tudo abarca, mas que de modo algum, compactua com as injustiças
e com os mecanismos de discriminação. Pelo contrário, acolhe crianças, mulheres e
homens de forma igualitária e capacita estas pessoas para atuarem como sujeitos
de uma nova história, na qual a justiça solidária impera em favor da vida de todas as
formas (REIMER e RICHTER REIMER, 2008, p. 858-59).
Por meio das pesquisas realizadas até aqui, fica evidente que no tempo de
Jesus havia muitas divisões, mantidas em nome de Deus pela própria religião oficial
26

que contradiziam a vontade do Pai. Jesus, no entanto, teve a coragem de criticar


essas divisões e, principalmente, de combatê-las, através da sua maneira de viver e
de agir, entre as quais podemos citar:

as divisões entre próximo e não-próximo (Lc 10,29-37), entre santo e


pecador (Mc 2,15-17), entre puro e impuro (Mc 7,1-23), entre judeu e
estrangeiro (Mt 15,21-28).
Condenando estas divisões, Jesus relativizava e sacudia as pilastras do
sistema religioso: o templo, o sábado, as obras santas (jejum, esmola,
oração), a pureza legal. Sua prática evangelizadora incomodava
profundamente os homens do poder (MESTERS, 2006, p. 2).

Assim sendo, a adesão ao Reino de Deus exigiu no tempo de Jesus e


continua exigindo hoje, não somente uma tomada de decisão, mas principalmente
uma postura diferenciada, autêntica e compromissada com os valores inerentes a
esse Reino, cujas características encontram-se bastante evidenciadas dentro do
movimento de Jesus.

2.4.1 Algumas Características do Reino de Deus Trazidas por Jesus

Pelos textos lidos e apresentados, Jesus tinha consciência acerca


da realidade de sua época, de forma que a sua práxis e proposta jubilar
permeavam os seus ensinamentos, deixando claros os fundamentos do
Reino de Deus.
Dessa forma, podemos perceber que o ministério de Jesus
engloba tudo o que ele fez e disse. Para isso ele se orienta pela
vontade de Deus para a realização do seu ministério. Como seguidor
das tradições judaicas, ele cumpre a Torá e não quer que ela seja
invalidada ou violada, porque “o seu objetivo é evitar ou amenizar a
marginalização ou exclusão sociais, desumanização, a escravidão, a
idolatria e a coisificação da criação de Deus” (REIMER e RICHTER
REIMER, 1999, p.113).
Theissen (1989, p. 143), por sua vez, ressalta que o movimento
de Jesus, além de ser um movimento de renovação intrajudaico que se
dirigia a todas as comunidades judaicas, originalmente, não pretendia
formar grupos separados do judaísmo, portanto, pode levar a equívocos
27

falar de comunidades protocristãs bem nos primórdios do cristianismo,


visto que

[os ] p or t a d or es d aq u i l o q ue m a is t ar d e s e c onf ig ur ou c om o
“ c r is ti a n is m o” er am ant es , m is s i o ná r i os , a p ós t o los e pr of et as
it i n er a nt es , q ue p o d i am c ont ar c om peq ue n os gr up os d e
s im pat i za n t es em d i v e r s as l oc a l i d ad es .

Vale ressaltar, como já visto no início deste capítulo, que o


movimento de Jesus não era o único movimento de renovação
intrajudaico que se distinguia por um comportamento social
marcadamente divergente. Naquela época, havia várias outras opções
para quem renunciava à sua existência social pregressa para adotar
outra forma de vida: podiam tornar-se mendigos, salteadores,
guerrilheiros, essênios – ou então apóstolos, profetas e missionários
(THEISSEN, 1989, p. 143).
Outra característica importante do Movimento de Jesus é quanto
à localidade onde se desenvolveu, ou seja, estava enraizado no meio
rural/interiorano da Palestina habitada, cujo contexto está bem
representado no mundo de suas parábolas. (THEISSEN, 1989, p. 147).

2.4.1.1 Pobres, marginalizados e cativos como primícias do Reino de


Deus

No projeto de Jesus os pobres vêm antes dos ‘fiéis’. Os perdidos deste


mundo, os coxos-manetas-cegos, os pecadores e expulsos têm uma dignidade
primária que está acima da própria dignidade e da vida da Igreja oficial (da sua
estrutura e hierarquia posteriores). Pikaza (1995, p. 135-36) relaciona algumas
características dos primeiros chamados por Jesus que formam o ponto de partida de
sua Igreja:

• Os pobres em sentido material, aqueles que não podem dispor de bens deste
mundo, conforme a primeira bem-aventurança (Lc 6,20-21). Os primeiros na
igreja são, portanto, os famintos e com eles os enfermos.
• Os que choram, ou seja, todos aqueles que estão tristes e aflitos; os que não
podem achar consolação neste mundo, os que vivem à beira do pranto e da
loucura, conforme a segunda bem-aventurança (Lc 6,21).
• Os oprimidos, isto é, aqueles que estão sob o império dos grandes deste
mundo. Os humilhados da terra, os marginalizados da cultura, os expulsos do
28

sistema social de dignidade etc. Assim fica assinalado no cântico de Maria


(Lc 1,52), bem como em Mt 25,31-46.
• Os pecadores, na linha apresentada acima: quer dizer, todos aqueles que
foram expulsos do espaço sacro israelita, de maneira que podem sequer
receber a consolação de saber que são importantes, donos de suas vidas e
de seu futuro no mundo.
• Há outros marginalizados que devíamos fixar com atenção. Entre ele podem
estar os soldados de um exército de ocupação que são objeto do ódio dos
homens e mulheres da terra (cf. Mt 8,5-13); talvez aqui possamos incluir as
crianças e mulheres que, aparecem como seres de menor importância (cf. Mt
14,21 par.; Mc 9,33-37; 10,13-16), etc.

Nessa mesma linha, Allgayer (1994, p. 76) enfatiza a preferência


de Jesus pelos pobres, que como tais, somam-se os cegos, os
prisioneiros, os oprimidos em geral, mencionados no ‘discurso-
programa’ de Jesus na sinagoga de Nazaré (Lc 4,16-21). Todos esses
marginalizados e carentes irão compor o tribunal em que o Filho do
Homem ratifica a sua decisão de identificar-se com cada um deles
(famintos, nus, doentes, encarcerados, estrangeiros etc.) que estão à
margem do caminho e da sociedade (Mt 25,31-46).
Para os que viviam à margem da organização social daquele
tempo, Jesus tinha sempre uma palavra, um gesto de compreensão e
acolhida. De tal modo, que a maior parte do tempo de sua missão
itinerante foi dedicada a aqueles e aquelas que não tinham um lugar
dentro do sistema social e religioso da época, conforme destaca
Mesters (1995, p. 72):

Ele Vive misturado com as pessoas que eram consideradas impuras:


publicanos, pecadores, prostitutas, leprosos (Mt 9,10-13; Lc 5,12-16; Lc 7,
37). Reconhece a riqueza e o valor que os pobres possuem (Mt 11,25-26;
Lc 21,1-4). Proclama-os felizes, porque o Reino é deles, dos pobres (Lc
6,20; Mt 5,3). Define sua missão como “anunciar a Boa Nova aos pobres”
(Lc 4,18). Ele mesmo vive como pobre. Não possui nada para si, nem
mesmo uma pedra para reclinar a cabeça (Lc 9,58).

Percebe-se assim, que Jesus não procurou os grandes aos olhos


do mundo e que teriam poder para ajudá-lo com a força das armas, do
poder político, ou da ciência. Pelo contrário, saiu pelas ruas da terra
(Lc 14,15-24) a procura dos caídos e prostrados (Mt 9,35-38), entre
eles os enfermos e impotentes. Com este grupo de pessoas
29

marginalizadas e expulsas do sistema, Jesus inicia o caminho do Reino


e a edificação de sua igreja:

Aqui distinguimos Jesus de outros profetas daquele tempo que também


iniciaram uma tarefa e missão de messianismo. Os zelotes procuravam os
fortes, para iniciar com eles a grande revolta militar; os sacerdotes obtinham
a ajuda dos grandes poderes do mundo, para manter a sua ordem sacra
estabelecida; os fariseus insistiam na pureza da lei, que pode conservar os
fiéis impolutos dentro deste mundo corrupto; os apocalípticos queriam
congregar os restantes escolhidos para o tempo do grande julgamento que
estava próximo (PIKAZA, 1995, p. 136-37).

Continuando nossa fundamentação em Pikaza (1995, p. 137), Jesus num


gesto de acolhida universal para os perdidos da terra, escolhe como destinatários do
seu Reino, os últimos do mundo. Esses, além de formar a sua família, constituem o
objeto de vida dele (Lc 8,21). Por isso mesmo, antes da igreja como estrutura
organizada de discípulos, eleva-se a igreja dos pobres formada pelos irmãos e irmãs
de Jesus, destinatários do seu reino.

2.4.1.2 Questionamento de prestígio e status no movimento de Jesus

No tempo em que Jesus vivia, o valor predominante era o


prestígio, depois, vinha o dinheiro. A sociedade estava estruturada de
tal modo que cada um tinha seu lugar na escala social e tudo o que era
dito ou feito levava em conta o status das pessoas em questão. As
pessoas viviam da honra e do respeito que os outros lhes conferiam,
além disso, continua Nolan (1987, p. 84):

O s ta t us e o pr es t íg i o e r am bas e ad os n os an t ep as s ad os , n o
d in h ei r o , n a au t or id a de , n a e duc aç ão e na v ir t u de . Er am
dem ons tr ad os e m ant i dos pe l a m ane ir a c o m o as pes s oas s e
v es t i am , c om o os ou tr os s e d ir i g iam a e l as , qu em as r ec e b ia
em s ua c as a , qu em as c on v i d a va p ar a c om er , e p e lo l u gar q ue
oc u p a vam n os b a nq u e tes o u o n de s e s en ta v am nas s in a go g as .

Mesmo os judeus mais severos e fanáticos, como os de Qumrã,


se baseavam em seus status e posição dentro da comunidade religiosa.
Desse modo, todos os direitos e privilégios eram distribuídos com base
na posição social que a pessoa ocupava. No caso dos loucos, cegos,
coxos, surdos, aleijados e menores, eram totalmente excluídos (NOLAN
1987, p. 85).
30

Continuando nossa fundamentação em Nolan (1987), para Jesus


essa era uma das estruturas fundamentais de onde brotava o mal da
sociedade. Além de demonstrar oposição a tudo isso, ele ousava pôr
sua esperança em um reino onde tais distinções não teriam sentido:
“Bem-aventurados sereis quando os homens vos odiarem, quando vos
rejeitarem, insultarem e proscreverem vosso nome como infame...” (Lc
6,22). “Ai de vós, quando todos falarem bem de vós” (Lc 6,26).
Cabe destacar aqui, que a crítica de Jesus contra os escribas e
fariseus não era basicamente contra os seus ensinamentos, mas à sua
prática: “Tudo o que eles vos disserem fazei e observai, mas não
imiteis suas ações, pois eles falam e não praticam” (Mt 23,1-3). Na
realidade, os escribas e fariseus viviam em função do prestígio e da
admiração que recebiam de outros homens (Mt 23,5-7).
No caso de Jesus, a leitura dos evangelhos permite-nos afirmar
que ele pouco ou nada se importava com a sua reputação social, visto
que vivia misturado com os pobres, prostitutas, cobradores de impostos
e com muitas outras classes de pessoas de ‘má fama’, que também não
eram bem vistas pela sociedade:

[Af in a l] , nã o er am os s ãos q ue n ec es s i t a vam de m é dic o . J es us


pr e za v a a v i d a. [ P or is s o] qu er i a qu e t o dos t i v es s em em
ab u nd â nc ia . O s p ec ad or es c om os q u a is c on v i v i a er am
i nf e li ze s , tr is tes , d es a n im ad os e f at a l is t as . N ão v i am
per s p ec t i v a d e s al v aç ã o . Ex p os t os à e x ec r aç ã o p ú b lic a ,
e v it a vam q ua l q uer c o nt at o c om “ p es s o as d e bem ” , f i é is à l ei
de J a vé . P e la pr im eir a v e z, al g uém de v id a il i ba d a os ac o lh i a
s em c on de n ar - l hes d e an t em ão a c on d ut a , tr a ta n do- os c om
r es p e it o e af et o ( A L LG A YE R , 1 99 4, p. 1 01) .

Allgayer (1994) afirma ainda, que através de um simples gesto de


amizade e simpatia, poderia dar início à conversão. O que para os
judeus era considerado uma ação pecaminosa, como “comer com os
pecadores”, para Jesus, era uma prática terapêutica:

Za qu e u, n um s im ples a lm oç o par a o q ua l o pr ó pr i o J es us s e
c on v i d ar a , d es t i na a m eta de d e s e us b ens a os p obr es e
pr om et e a r es t i t uiç ã o em quá dr u p l o d e t u do o q u e r o ub ar a.
Mu l h er es d e “ m á v i da” tr ans f or m am - s e em des tem i das
tes tem un h as d e s u a m or te e c o nf i de n tes p r ef er enc i a is d e s ua
m or te e r es s ur r e iç ão . P ag ã os s e r en d em a g es tos d e am or ,
c om o o c en t ur i ã o r om ano , c uj o f i lh o J es us c ur o u, e a
31

Ca n an é ia , q ue de l e o bt e v e a c ur a da f i l ha ( A LL G A YE R , 1 9 94 ,
p. 1 01- 0 2) .

Agnelo (2009) relembra a passagem em que Jesus estava reunido


com os seus discípulos na última ceia e falava-lhes sobre a vinda do
Reino. Então, eles começam a discutir qual deles deveria ser
considerado o maior e Jesus lhes exorta, dizendo:

“ O s r e is d as n aç ões d om in am s obr e e las , e os q u e ex er c em o


po d er s e f a zem c h am ar be nf e it or es . E n tr e v ós , n ão d e v e s e r
as s im . P e lo c on tr ár i o , o m ai or e n tr e vós s ej a c om o o m a is
no v o , e o qu e m and a , c om o qu em es tá s e r vi nd o . Afinal, quem é
o maior: o que está à mesa ou o que está servindo? Não é aquele
que está à mesa? Eu, porém, estou no meio de vós como aquele
que serve” ( Lc 2 2, 2 5- 26) .

Agnelo (2009) destaca ainda que a única vez que Jesus foi
coberto de vestes reais foi durante o interrogatório de Pilatos. Puseram-
lhe sobre os ombros um manto real com a coroa de espinhos, e como cetro na mão
uma cana de bambu. Por aí, dá para afirmar que o Reino do qual Jesus
falava era totalmente diferente dos reinados deste mundo. A Pilatos
agradou a resposta de Jesus, “O meu reino não é deste mundo. Se o
meu reino fosse deste mundo, os meus guardas lutariam para que eu não
fosse entregue aos judeus. Mas, o meu reino não é daqui.” (Jo,18,36)
Dessa forma, Jesus não representaria uma ameaça ao poder de Pilatos,
nem tampouco é um concorrente perigoso, visto que

Ele não guerreia com exércitos a posse do mundo. O seu reino compromete
as pessoas concretas no seu coração. Projeta-se no futuro: nesta existência
e na outra. [...] o reino de Jesus é resposta de Deus às inquietudes do
espírito humano insatisfeito, inquieto com a idéia da morte, do fim de tudo.
O reino é resposta explícita de Deus à necessidade irreprimível do coração
humano, sedento de infinito. O reino de Jesus não se encontra nos mapas
do mundo, mas na geografia do espírito. Este reino singular requer de seus
cidadãos, os cristãos, coisas não habituais e imprevisíveis. Manda aos seus
uma conquista toda espiritual, toda interior, dominar-se, vencer as forças do
egoísmo, do instinto da violência. Vitória sobre o pecado, sobre o mal.
“Reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, reino de justiça, de
amor e de paz” (AGNELO, 2009, p. 2).
32

Resumindo este capítulo:


A práxis libertadora de Jesus - expressão máxima do amor
gratuito e misericordioso de Deus como Pai - revela especial predileção
pelos pobres, excluídos e marginalizados da sociedade, inaugurando
assim, um novo tempo e uma nova ordem social, que nada tinha a ver
com o modelo imperial excludente da época.
A Boa Nova anunciada e colocada em prática por Jesus tornou
evidente a chegada do Reino de Deus como realidade transformadora;
“... os cegos veem, paralíticos andam, leprosos são purificados, surdos
ouvem, mortos ressuscitam e a pobres se anuncia a Boa-Nova do
Reino” (Lc 7,22). Mas para que essa realidade se propagasse, Jesus
viu a necessidade de mais ‘operários’ trabalhando na messe, como bem
expressa Mt 9,38: “A colheita é grande, mas os trabalhadores são
poucos. Pedi, pois, ao senhor da plantação que mande trabalhadore s
para a colheita.”
O Reino nessa perspectiva acontece através da práxis de Jesus,
como dom gratuito de Deus, ou seja, um serviço exercido em prol da
construção de uma sociedade justa e igualitária, recuperando assim, a
opção de Deus pela justiça em favor de todas as pessoas oprimidas,
excluídas e marginalizadas. No próximo capítulo, serão abordadas
algumas características da espiritualidade de Jesus, que a nosso ver,
são os fundamentos de sua práxis libertadora.
33

3 FUNDAMENTOS DA ESPIRITUALIDADE DE JESUS

Diante da práxis libertadora de Jesus, sentimo-nos motivados


para aprofundar e refletir sobre quais eram as características de sua
espiritualidade que, de acordo com a pesquisa realizada, serviram de
fundamento para a sua ação evangelizadora, libertadora e modificadora
de realidades.

3.1 FILHO DE DEUS E FILHO DO HOMEM

As expressões “Filho de Deus” e “Filho do Homem” – no Novo


Testamento - são atribuídas a Jesus como títulos messiânicos, sendo
que esse último, de acordo com Oliveira (2008, p. 545),

tem s i do o m a is ac e i t o par a a s u a id e nt if ic aç ã o , c o nf or m e os
E v an g e lh os S i n ót ic os . Fo i o ú n ic o tí tu l o q ue el e us o u
r ef er i nd o- s e a s i m es m o. Nã o há d ú v id as d e q u e es s e tí tu l o f o i
us a d o p ar a s u bs ti t ui r o t ít u lo d e M es s i as , q ue J es us r ej e it o u
i nd ir et am en te .

No entanto, o que se discute é qual o sentido de “Filho do


Homem”, uma vez que os Sinóticos o apresentam de três formas
diferentes:

a) O Fi l ho d o H o me m pr e s en t e ( M t 9 . 6; 11 . 19 ; 12 . 8; 12 . 32 ; Mc
2. 1 0; 2. 27 ; Lc 5. 2 4; 6 .5 ; 7 .3 4; 9. 5 8) , te n do em vis ta o s e u
m inis tér i o t er r e n o;
b) O F i lh o d o H om e m S e r v o S ofr e do r ( Mt 17 .1 2; 1 7 .2 2; 20 .1 8 ;
20 . 28 ; 2 6. 2 4; 2 6. 4 5; Mc 9 .1 2; 9. 3 1; 1 0. 3 3; 10. 4 5; 14 .2 1 ;
14 . 41 ; Lc 9 .2 2 ; 9 .4 4 ; 1 8. 3 1; 2 2. 2 2) , te n do em v is t a a
c ons tr uç ã o d e s u a m is s ão atr a vés da pa ix ão ;
c ) O F i l h o do H o m em Es c at o ló g ic o ( Mt 16 ,2 7; 1 9 .2 8; 24 .3 0 ;
24 .4 4 ; 2 6. 64 ; Mc 8 . 38 ; 1 3. 1 6; 14 . 26 ; Lc 9 . 26 ; 1 2. 4 0; 2 1. 2 7;
22 .6 9) , t e nd o em v is t a a es p er a nç a e s c at o ló g ic a e a
c ons um aç ã o d e s u a m is s ão na e r a v in d ou r a ( O L I V EI RA ,
20 0 8, p . 5 45) .

Para melhor compreendermos o significado da expressão, “Filho


do Homem” recorremos a Mesters (1995), que afirma que esse termo
passa a ser utilizado a partir do momento em que ficou claro que iam
matar Jesus. Nesse sentido, o titulo “Filho do Homem”, vem do Antigo
Testamento e aparece:
34

Num a d as v is ões a p oc a l íp t ic as , em que o pr of e ta D an i e l


des c r e v e os im p ér i os dos b ab i l ô ni os , d os m ed os , d os per s as e
dos gr eg os . N a v is ã o do pr of et a, es t es q u atr o im pér ios têm
ap ar ê nc i a d e q u atr o “ an im a is m ons tr uos os ” [.. .] ( Dt 7, 3- 8 ) . Em
ou tr as p al a vr as , s ão im pér i os an im a les c os , br u t ais ,
des um an os , q ue pe r s e gu em e m atam ( Dt 7, 2 1- 2 5) . O r a , d e p ois
des s es r e i nos a n ti- h u m anos a par ec e o Re i n o de D e us qu e tem
a a par ê nc ia nã o d e a n im al , m as s im de “ u m Fi l ho de H o me m” .
O u s ej a , é um r e in o c om a par ê nc ia d e ge n te , um r ei no
hum an o , q ue pr om o ve v i d a ( M E ST E RS , 1 9 9 5, p . 1 07- 1 0 8) .

Para Libanio (2008, p. 24), a expressão “Filho do Homem”


condensa em si vários aspectos da pessoa e missão de Jesus, ou seja:

Ac en tu a o l a do d e h u m ani da d e em c on tr as t e c om a ex pr es s ão
Fi l ho d e D eus . “ Nã o tem on d e r e p ous ar a c ab eç a ( Mt 8, 2 0) ,
v a i s of r er n as m ãos d os hom e ns ( Mt 1 7 ,2 1) , s er á e ntr e gu e a os
s um os s ac er do tes e es c r i bas , o c on d en ar ã o à m or t e e o
en tr eg ar ão a os p ag ã o s ; s er á zom ba d o, aç o i ta d o e c r uc if ic a d o”
( Mt 2 0, 18- 1 9) . Em c er t os m om entos , o Fi lh o do hom em
ap ar ec e c om pod er d i vi n o d e p er d o ar p e c ad os ; “ P o is b em ,
par a q ue s a ib a is qu e o F i lh o do h om em tem na t er r a p o der d e
per d o ar p ec ad os – dis s e a o p ar a l ít ic o – e u t e d i g o: l e va n ta- t e ,
tom a a tu a c am a e v a i p ar a c as a” ( Mt 9, 6 s ) . C ar r eg a t o qu e
ap oc a lí pt ic o de q uem r es s us c i ta r á n o t er c e i r o d i a ( Mt 2 0, 1 9) ,
de q uem v ir á d as n u v ens p ar a j u lg ar ( Mt 16 ,2 7; 2 5, 31 . N ã o l h e
f al ta t am bém vi és m es s i ân ic o. As d u as af ir m aç ões – F i lh o do
Hom em e F i l ho de D e us – f a zem a ver d ad e s obr e J es us .

Possivelmente nenhum outro ser humano recebeu tantos títulos


quanto Jesus de Nazaré, pois além de “Filho do Homem”, o Novo
Testamento se refere a ele com vários outros, como por exemplo:
Santo de Deus, Cordeiro de Deus, Imagem de Deus invisível, Salvado r
do mundo, Bom Pastor, Cabeça da Igreja, Sumo Sacerdote, Emanuel
ou Deus-conosco etc. (LIBANIO, 2008, p. 24-5).
Assim, de acordo com o autor acima citado, com base no contexto
histórico do uso dessas formas aplicadas à pessoa de Jesus, pode-se
concluir que ele as reivindicou para si afirmando-se como o Messias.
Já a designação “Filho de Deus”, que na Bíblia pode ser usada
em vários sentidos, também foi empregada em relação a Jesus, para
designar:
O Un gi d o d e Iav é n ã o de v e s er a pe n as Fi l h o d e Da v i , tam bém
de v e s er F i l ho d e D eus , c om o q ua l s e i de nt if ic a . Mas t al
des i g naç ã o p ar ec e m ais s a ir d a b oc a d os o u tr os qu e d os s e us
pr ó pr i os l á b ios ( Mt 3, 11 ; Lc 4, 4 1; 16 ,1 6 ; M c 1, 11 ; 5 ,7 ; 9 , 7) .
[.. .] n ã o p od em os c o ns id er á- la c om o um a des i g naç ã o à qu a l
J es us r ec or r e c os tu m eir am en te , c om o f o i o c as o d o t ít u l o
35

“ Fi l ho d o Hom em ” , m as num s en t id o to ta lm en te ú n ic o e
es p ec i al , d e t er s i do e lem en t o es s e nc i a l d a c o ns c i ê nc ia qu e
E le t i n ha de s i m es m o ( O L I V EI R A, 2 0 08 , p . 54 6) .

De tal modo, essa filiação foi citada em outras passagens do


Evangelho, como por exemplo, no batismo de Jesus por João Batista,
quando do céu fez-se ouvir uma voz que dizia: “Este é o meu Filho
amado; em ti ponho toda a minha afeição” (Lc 3,22). Noutra ocasião,
estando Jesus no monte, com Pedro, Tiago e João, transfigurou-se
diante deles, e eis que da nuvem saiu uma voz que dizia: “Este é o meu
filho amado, nele está o meu pleno agrado; escutai-o!” (Lc 9,35; Mt 17,5).
Assim, os títulos atribuídos a Jesus podem ser compreendidos
como expressão de fé - pessoal e comunitária - contida no Novo
Testamento e plenitude da graça que se tornou realidade, ou seja,

O hom em J es us é o C r is t o , o F il h o d e De us P ai , a s u a ú l t im a e
def in i t i va r e v e l aç ã o. Na d a há m ais a r e v e l ar al ém d e J es us
en q ua n to pr oj e to s a l v ad or de D eus . [ .. .] T od os os s i n a is d e
r e ve l aç ão d e D eus no p as s a d o, no pr e s en t e e no f u tur o
enc o ntr am em J es us a c h a v e úl t im a d e i nt er pr e taç ã o e
r ef er ênc i a. P or m eio de l e p ar t ic ip am os da p le n it u de de
hum an i d ad e . A q ui l o q ue e le r e al i zo u em pl en i tu d e é o q ue
ex is t e em nós d e f or m a em br io n ár ia q u e t en d e par a e l e. P or
is s o, e le é o Pr inc í pi o e o F im , A lf a e Ô m eg a ( LI B AN IO , 2 0 08 ,
p. 2 5) .

Os quatro evangelistas apresentam a tomada de consciência


entre os discípulos de que Jesus era o Messias (= Cristo) como o
momento climax de seu ministério na Galiléia (Mc 8, 27-30; Mt 16,13-
20, Lc 9,18-21; Jo 6, 67-71). Assim, de acordo com Pixley (1997, p.
151), a ‘messianidade’ de Jesus foi, portanto, uma das primeiras
chaves para a compreensão pelos discípulos acerca de quem era o
homem extraordinário que os convocou”. Segundo o autor, o
cristianismo tem aqui o seu início, antes mesmo de haver uma igreja
cristã.
A confissão de Pedro “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt
16,15) supõe que os seguidores de Jesus o interpretaram como o
‘Messias’ prometido por Isaías e os profetas (Is 7,14; Is 9,7; Jr 23,5;
Mq 5,2 etc.), cuja missão era restaurar o reino de Israel. Também o
36

título colocado na cruz de Jesus – “o rei dos judeus” – e a maneira


como foi condenado, são evidências claras de que as autoridades
romanas e o grupo de discípulos o entenderam como um pretendente
messiânico. No entanto, somente após a ressurreição é que os
discípulos e discípulas de Jesus adquiriram a consciência de sua
messianidade diferenciada, tendo em vista que a sua luta não foi
armada (PIXLEY, 1997, p.152).

3.1.1 A Filiação de Jesus em Profunda Ligação com Deus-Pai


(verticalidade)

Para falarmos sobre a profunda ligação de Jesus com o Pai, seria


interessante tentarmos saber quem é o Deus de Jesus Cristo?
Certamente, esta não é uma pergunta fácil de responder, mesmo
porque, ele não apresentou um ensinamento sistematizado sobre Deus.
No entanto, a ausência de um ensinamento elaborado e específico não
quer significar que Jesus não tinha um pensamento claro a respeito de
Deus. Pelo contrário, através dos relatos contidos nos evangelhos,
percebemos que o seu conhecimento e experiência de Deus eram
bastante claros, ou seja, materializava-se na concretude da vida, na
cultura e tradições de sua gente.
Conforme Sobrino (1994), com relação ao conteúdo da realidade
de Deus, Jesus faz uso das diferentes tradições provenientes do Antigo
Testamento. Na tradição profética, Deus aparece como parcial e
defensor dos fracos; na tradição apocalíptica, Deus é aquele que, no
futuro, transformará a realidade; na tradição do Deus do reino, Deus
está profundamente ligado à justiça dos pobres; nas tradições
sapienciais, Deus é criador-providente; nas tradições existenciais,
Deus é aquele do qual só se ouve o seu silêncio.
Embora essas diferentes tradições não sejam facilmente
conciliáveis, podemos afirmar que Jesus nos apresenta um Deus
transcendente, que é bom. Notamos este fato quando fala de Deus
que cria (Mt 19,4) ou quando fala de Deus como soberano absoluto (Mt
37

10,28). O Deus que Jesus procura tornar conhecido é também um Deus


que é Pai (Mt 6,8).
Jesus ao chamar a Deus de Pai não apresentou uma novidade, visto que no
Antigo Testamento encontramos várias referências de Deus como Pai, que
apareciam revestidas de um clima de enorme reverência e respeito, acrescentando
inclusive, títulos ostentosos. A novidade trazida por Jesus consiste na maneira de
invocá-lo, visto que o Deus apresentado por Jesus é próximo e familiar. Essa
proximidade é o que deixa Jesus à vontade para exclamar: “Abbá!” (Mc 14,36).
Essa maneira de se referir a Deus como “Abbá” nos chama particularmente a
atenção. Esse termo é uma palavra aramaica que, traduzida para o português, seria
o equivalente a "papai", "paizinho". É uma forma das crianças se referirem a seus
pais e que Jesus, provavelmente, usava ao dirigir-se a José (MOLTMANN, 1994).
Esse termo dificilmente seria usado numa oração pelos contemporâneos de Jesus
para se referirem a Deus, uma vez que eram acostumados com uma linguagem mais
reservada e formal em suas orações. Assim, o significado deste termo pode ser
entendido da seguinte forma:

Quando Jesus se dirige a Deus como Abbá, conseqüentemente a tônica


não está na masculinidade de um Deus Pai e nem na sua majestade de
Deus Senhor, mas na inaudita proximidade, na qual experimenta o mistério
divino. Deus lhe está tão próximo em termos de espaço quanto o reino de
Deus se 'aproximou' por meio dele em termos de tempo. O reino está tão
próximo que se pode dizer abba para Deus, e se é possível dizer Abba para
Deus, então o seu reino já está aí (MOLTMANN, 1994, p. 55).

Por meio dos relatos bíblicos, fica evidente que para Jesus, o nome de Deus
é Pai:
- que é perfeito “Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito” (Mt
5,48);
- que é íntimo dele; “Todas estas coisas me foram dadas por meu Pai e
ninguém conhece o filho, senão o Pai, e ninguém conhece o Pai senão o filho e
aquele a quem o filho quiser revelá-lo” (Mt 11,27);
- que é perdão, tão bem demonstrado na parábola do filho pródigo (Lc 15,11-
32);
- que é a própria imagem de Jesus: “Quem me vê, vê o Pai” (Jo, 14,9) etc.
Desse modo, Deus-Pai se revela e se manifesta em Jesus e através de
Jesus. É o Pai que se mostra com toda sua bondade e vigor. As ações de Jesus
38

nos revelam o Pai e o Pai se revela nele. Essa experiência de íntima


ligação e sintonia com o Pai possibilitou a Jesus um novo olhar para
perceber o Reino presente no meio do povo.
Portanto, através de Jesus, Deus se deu a conhecer. Não é
Deus quem nos revela Jesus, mas o contrário, Jesus é quem nos revela
Deus. Jesus é a plena manifestação do Pai: “Ninguém jamais viu a
Deus. O Filho único que está no seio do Pai foi quem o deu a
conhecer” (cf. Jo 1,18). É Jesus em sua humanidade, com suas
palavras, gestos e atitudes, que nos revela plenamente o rosto humano
de Deus.
Nesse sentido, embora Jesus tenha se manifestado ser o “Filho
de Deus”, como ser humano, mostrou-se necessitado de Deus, cujos
laços e forças eram fortalecidos e revigorados através da prática da
oração, tão bem configurada em toda a sua trajetória sobre a terra.

3.1.2 Retiro para a Oração e Oração Confiante

De acordo com Butzke (2008, p.387), os evangelhos


repetidamente falam da oração solitária de Jesus (Mc 1,35). Existe uma
dinâmica entre o envolvimento com o povo/ensino e o retiro para o
exercício espiritual. Dessa forma:

S ua f é [d e J es us ] é c ar r e ga d a po r es s e ex er c íc i o [o r aç ã o]
r eg u l ar q ue o pr es er v a de a t i vis m o e d es ân i m o. Al ém dis s o, os
e va n ge l h os r e l at am q ue J es us , s e gu i n do a tr a d iç ão j ud a ic a,
f a zi a- s e pr es e nt e n o s c u lt os d a s i n ag o ga o nd e er a l i d a e
i nt er p r e ta d a a es c r i tu r a; r e l at am qu e e l e v i v ia em c om unh ã o
de v i da c om s eus d is c í p u los , q u e e l e d a va tes t em unh o a
r es p e it o d a p r ox im id a de do Re i no de De us em pal a vr a e aç ã o.
O s ev a n ge l hos de ix am ent r e v er q u e a es p ir it ua l i da d e d e J es us
c om pun h a- s e d os s eg u in t es e l em ent os : o u vir , or ar ,
c om par t i l ha r , t es t em unh ar e a g ir .

Vale destacar que, de acordo com Martins (2008, p.1), o evangelista Lucas
traz mais referências à oração do que os outros evangelhos. Ele enfatiza
especialmente a vida de oração, registrando sete ocasiões em que Jesus orou que
não são encontradas em nenhum outro lugar:

(3.21; 5.16; 6.12; 9.18,29; 11.1; 23.34,46). Só Lc tem as lições do Senhor


sobre a oração ensinada nas parábolas do amigo importuno (18.9-14). Além
39

disso, o evangelho é abundante em notas de louvor e ação de graças


(1.28,46-56,68-79; 2.14,20,29-32; 5.25-26; 7.16; 13.13; 17.15; 18.43).

De acordo com os Evangelhos Jesus não somente ensinava sobre o valor da


oração, como também a praticava, vemos, por exemplo, em Lc 11,1: “Um dia, num
certo lugar, estava Jesus a rezar. Terminando a oração, disse-lhe um de seus
discípulos: Senhor, ensina-nos a rezar, como também João ensinou a seus
discípulos”.
Era comum estar a sós em oração com o Pai, principalmente nos momentos
difíceis e/ou de grandes decisões. Um exemplo claro dessa prática encontra-se no
capítulo 6 de Lucas, que diz que Jesus foi à montanha para orar e passou a noite
toda em oração (v.12). Essa passagem demonstra que os resultados foram
extremamente significativos e surpreendentes: primeiro a escolha dos doze (Lc 6,13-
16), em seguida, curou a muitas pessoas que estavam enfermas (vs.17-19) e por
último, pregou o seu sermão mais conhecido (o sermão da montanha) (vs. 20-49).
Percebemos assim, que os pormenores desgastantes para iniciar e dar
continuidade a uma obra não inibiram a oração de Jesus, mas ordenou e fortificou
para que continuasse levando avante o projeto do Reino rumo à “glória de Deus”. O
cansaço depois da ação também não era para Jesus motivo de esmorecimento.
Depois de curar os doentes, de alimentá-los e de despedir seus discípulos, ele subiu
a um monte para orar (Mt 14,13-21). Seguindo-se outros dias estafantes ele buscou
alívio num lugar deserto (Lc 5,12-16). Podemos afirmar assim, que Jesus tinha
confiança no Pai e sabia que era ouvido (Jo 11,42), dessa forma, impulsionado pela
força do Espírito Santo, gastava o seu tempo diante d’Ele como uma das formas
para (re)abastecer para a missão que lhe fora confiada.

3.1.3 Vida e Poder no Espírito Santo

Certamente seria difícil falarmos de Jesus Cristo, sem vincularmos a sua


pessoa à força e ao poder no Espírito Santo que movimentou e dinamizou toda a
sua vida desde a concepção até os seus últimos dias sobre a terra (Lc 1,35; 3,22;
23,46). Em se tratando da infância de Jesus, Libanio (2008, p. 14) destaca que
Lucas e Mateus carregam a tinta para falar da presença do Espírito Santo nessa
fase de sua vida:
40

Maria engravidou pela força do Espírito Santo (Mt 1, 18; Lc 1,34). O anjo
confirmou a José que o gerado em Maria era obra do Espírito Santo (Mt 1,
20). A simples saudação de Maria com Jesus no seio, enche Izabel do
Espírito Santo, e ela reconhece na prima a mãe do Senhor (Lc 1, 41) [...] Na
apresentação de Jesus ao templo, o texto se refere a Simeão, como aquele
em que o Espírito Santo repousava e que lhe tinha revelado que não
morreria sem ter visto o Cristo Senhor (Lc 2,25-26).

Lucas termina o evangelho da infância de Jesus dizendo: “E Jesus crescia em


estatura, em sabedoria e graça diante de Deus e diante dos homens” (Lc 2,52).
Para Libanio (2008, p.16), “o termo sabedoria ocupa o lugar de sinônimo de Espírito
Santo”.
Não somente quando criança, mas também como jovem-adulto, anualmente
por ocasião da festa da Páscoa (Lc 2,41), Jesus acompanhava sua família e seu
povo para Jerusalém. Nessas ocasiões, conforme afirma Richter Reimer (2009, p.
21):
Além de confirmar parte da práxis religiosa de Jesus de sua família e
comunidade, o texto aponta para o processo de emancipação e autonomia
de Jesus em relação a seu pai e sua mãe. [...] Pai e mãe continuavam
responsáveis pelo “jovem-adulto” Jesus nesse processo que ele estava
vivendo, mesmo que ele já tivesse completado a maioridade aos 12 anos
conforme costumes e leis judaicos. Por isto, se preocupavam e precisavam
voltar para encontrá-lo. Em demonstração de enorme alegria pelo
reencontro, é sua mãe Maria que trava com ele o típico “diálogo educativo”
na práxis educacional judaica, a qual Jesus mais tarde também utilizava em
seus ensinamentos: perguntas e respostas que brotam de experiências,
expectativas e certezas de ambas as partes, que são respeitadas.

Além da ‘concepção’ e ‘crescimento’ acima referenciado, na fase adulta, o


Espírito Santo continuou a agir na pessoa e nas ações de Jesus de diversos modos
e ocasiões: tentação no deserto (Lc 4,1-13), citações de Isaías sobre o Espírito (Mt
12,18), na sinagoga de Nazaré (Lc 4,14), em nome de quem expulsa demônios (Mt
12, 28), reconhece o plano do Pai em relação aos pequenos (Lc 10,21) etc.
Libanio (2008, p. 32) ressalta que uma das funções mais importantes do
Espírito Santo no Novo Testamento, está relacionada com a partida de Jesus deste
mundo, vejamos:

Depois da morte e ressurreição, pouco antes da ascensão, Jesus


reconhece o limite do seu agir com os discípulos e remete a compreensão
do que ele ensinara [...]. Os apóstolos reunidos percebem a solenidade do
momento e perguntam a Jesus: “Senhor, por acaso será agora que vais
restabelecer o reino de Israel?” Respondeu ele: “A vós não compete saber
os tempos que o Pai fixou em seu poder. Mas recebereis uma força, o
Espírito Santo que virá sobre vós, sereis minhas testemunhas em
41

Jerusalém, em toda a Judéia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1,6-


8), Jesus fala que em seu nome, o Pai enviará o Paráclito, Espírito Santo
para ensinar e recordar tudo o que ele tinha dito (Jo 14,26) etc.

Dessa forma, podemos afirmar que do início ao fim da vida na terra, o Espírito
Santo ungiu Jesus e o capacitou para a sua missão. Jesus, na concepção de Jo 1,1,
era Deus, mas também era homem (1Tm 2,5). E como ser humano, Jesus dependia
da ajuda e do poder do Espírito Santo para cumprir a sua missão diante de Deus e
diante dos homens (Mt 12,28; Lc 4,1,14; Rm 8,11; Hb 9,14).
Dentro do cristianismo o Espírito Santo é uma pessoa da Trindade, co-igual
ao Pai e ao Filho. Através da ação do Espírito Santo, Jesus Cristo nos revela o
mistério de Deus presente e atuante em sua pessoa. Assim sendo, nada na pessoa
e missão de Jesus aconteceu sem a força, participação e poder do Espírito Santo, o
que sem dúvida alguma era resultado de sua íntima ligação com o “Abbá” (Pai),
preparando-o e capacitando-o desse modo, para o relacionamento com as pessoas
na horizontalidade, conforme está posto no primeiro capítulo (item 2.1) desta
dissertação que trata da Boa Nova anunciada por Jesus em Lc 4, 14-21.

3.2 PREOCUPAÇÃO COM AS NECESSIDADES DO SER HUMANO


(HORIZONTALIDADE)

Por meio dos relatos bíblicos podemos afirmar que Jesus realmente se
preocupava com as pessoas, e não era uma preocupação vazia, mas levava à ação
libertadora e transformadora de realidades. Assim, depois de nutrir-se do amor e da
‘comum união’1 com o Pai na verticalidade, compartilhava abundantemente na
horizontalidade com o próximo em forma de gestos, palavras e ações traduzidas em
misericórdia, principalmente com os mais pobres e excluídos do seu tempo.
Por isso mesmo, Jesus passou a ser conhecido como “o amigo dos
publicanos e dos pecadores”: Veio o Filho do Homem, comendo e bebendo, e
dizem: ”Eis aí um comilão e bebedor de vinho, amigo de publicanos e pecadores”
(Mt 11,19). No entanto, isso não o intimidou no seu propósito e missão, como
bem ressalta Mesters (2006, p. 2):

1
A expressão ‘comum união’ foi usada aqui para destacar a plena união entre Jesus e o Pai, a qual era fonte
substancial de sua práxis libertadora – horizontal – com as pessoas.
42

Acolhia os que não eram acolhidos: os imorais (prostitutas e


pecadores), os hereges (samaritanos e pagãos), os impuros (leprosos e
possessos), os marginalizados (mulheres, crianças, doentes de todo
tipo), os colaboradores (publicanos e soldados), os fracos (o povo da
terra e os pobres sem poder). Jesus falava para todos. Não excluía
ninguém. Mas falava a partir dos pobres e dos marginalizados.

O apelo que resulta desta atitude acolhedora e evangelizadora é muito


claro: não era possível alguém ser amigo de Jesus e, ao mesmo tempo,
continuar apoiando o sistema que marginalizava tanta gente em Nome de Deus.
De fato, Nicodemos (Jo 7,52), José de Arimatéia (Mt 27,57-58) e Zaqueu (Lc
19,8) sentiram na carne que aderir ao projeto de Jesus e ao Reino por ele
anunciado, significava ter que romper com as estruturas que marginalizava tantas
pessoas em nome de Deus.
O próprio Jesus, por causa de sua postura diante dos marginalizados,
entrou em conflito com vários grupos e lideranças, entre eles os fariseus, os
escribas, os saduceus, os herodianos, os romanos etc. Embora estes conflitos
tenham sido a causa de sua morte, a execução de Jesus em si foi feita pelos
romanos (Mt 12,14) (MESTERS, 2006, p. 2).
Por isso mesmo, a figura de Jesus de Nazaré ficava cada vez mais
controvertida na medida em que avançava a sua pregação. As autoridades
religiosas de Jerusalém mostravam-se cada vez mais inquietas com a agitação
suscitada no povo por aquele homem chegado da Galiléia para festa da Páscoa.
Da mesma forma,

as elites imperiais, desde que algumas vezes em que periodicamente


renasciam levantes contra a ocupação romana, que eram encabeçados
por líderes locais que apelavam ao caráter próprio dos judeus, as
notícias que chegavam sobre este mestre que falava de preparação
para a chegada do “reino de Deus’ não eram nada tranqüilizadoras. Os
dois grupos estavam, desde logo prevenidos contra ele por diversos
motivos (VARO, 2006, p.1).

Nesse sentido, embora a práxis evangelizadora e libertadora de Jesus


tenha incomodado profundamente os donos do poder, ele continuou a convidar e
a provocar as pessoas para que se definissem face aos valores fundamentais da
vida humana e do Projeto de Deus, como a justiça, a fraternidade, o amor, a
misericórdia, a partilha, a honestidade (MESTERS, 2006, p. 2).
Jones (2006, p. 121), por sua vez, enfatiza que é possível imaginar a
revolução no pensamento e na mentalidade advindas do Antigo Testamento, em que
43

a humanidade se achava em dívida com Deus e por isso mesmo, precisava


encontrar formas de agradá-lo. Então, chega um homem que tem todos os poderes
de Deus, acolhe os pobres e marginalizados com imensa misericórdia e ainda tem a
coragem de perguntar às pessoas o que gostariam que fosse feito por elas, como
por exemplo, quando do seu encontro com o cego em Jericó (Lc 18,41-42).
Richter Reimer (2009, p. 25) afirma que o seguimento de Jesus pressupõe
um profundo e continuado processo de conversão, revisão de vida e de valores, cujo
significado é:
abrir mão de tudo e segui-lo por causa da força de convencimento
gerada por sua práxis libertadora fundamentada teologicamente e que
implica questionamento e inversão de valores socioculturalmente
construídos. A força de coesão que se desenvolve a partir desta
convicção pode sustentar uma práxis igualmente libertadora com base
na justiça para pessoas necessitadas, sem condicionamento meritório,
mas embasada na misericórdia de Deus manifestada em Jesus.

O seguimento a Jesus é práxis teológica educativa, que se baseia na


experiência de pessoas orientadas pela misericórdia de Deus nas mais diversas
formas e expressões, indo contra toda expectativa do mercado religioso e
econômico. Dessa forma, a misericórdia de Deus nunca foi ingênua, nem
entregue às manobras estratégicas de poderes estabelecidos, ao contrário, ela
dá sustentação aos “miseráveis”, porque encontram lugar no “coração” de Deus e
de pessoas que são sujeitos de sua própria história. (RICHTER REIMER, 2009,
p. 25).
Além disso, seguimento é serviço, é relação libertadora que se manifesta
na horizontalidade:

Seguir Jesus é não se conformar e não se submeter aos “poderes deste


século” que não colocam o Reino de Deus e a sua justiça como
prioridade (Rm 12,2), o que significa buscar constante renovação de
mentalidades: ser nova criatura (2Co 5,17) na construção cotidiana de
nossas relações afetivas, políticas, profissionais, econômico-sociais. Isto
é construir uma educação teológica dialógica voltada para a práxis que
será sempre transformadora, também de nossa mentalidade (RICHTER
REIMER, 2009, p. 25).
.

Podemos afirmar então, que seguir a Jesus é confiar na gratuidade de


Deus em sua dinâmica solidária, que não faz acepção de pessoas. É superar
pré-conceitos, colocando-se do lado dos marginalizados e excluídos da
44

sociedade, a fim de ajudá-los a reconstruir as suas identidades de filhos e filhas


muito amados de Deus.
Desse modo, a preocupação de Jesus com as pessoas (horizontalidade) era
demonstrada e colocada em prática através dos seus atos de misericórdia e
compaixão com que acolhia a todas as pessoas, indistintamente.

3.2.1 Misericórdia e Compaixão dentro do Contexto Relacional da


Práxis Libertadora de Jesus

A fim de melhor compreendermos a palavra “misericórdia”, investigamos o


termo no Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento, que assim o
define:
No emprego original, eleos refere-se ao sentimento de “compaixão”,
oiktirmos, e especialmente sua raiz, oiktos, refere-se à exclamação de “dó”
ao ver o infortúnio de outra pessoa. [...] Os respectivos verbos, no ativo,
expressam estas emoções no sentido de “ajudar”, “compadecer-se”, “ter
misericórdia”; quando usados no passivo, expressam o impacto destas
emoções sobre a pessoa (ESSER, 2000, p. 1294).

No Novo Testamento, em especial em Mt 9,35-38, o termo apresenta

aquele irromper da misericórdia divina no meio da realidade da desgraça


humana, que foi levado a efeito na Pessoa de Jesus de Nazaré, mediante a
Sua obra de libertação e cura que demonstrava a Sua autoridade. Jesus
atendia o grito de socorro: ”Tem misericórdia de mim” (Mc 10,47,48 par. Mt
9,27; 15,22; 17,15; Lc 17,13) da parte dos doentes, ou parentes dos
endemoninhados (Mt 15,22; 17,15), operando cura (ESSER, 2000, p. 1296).

Quando Jesus começou a atuar no cenário político-histórico da


Galiléia, grande número de pessoas era deixada à margem da
sociedade, algumas por causa dos atos, outras por causa da classe
social ou profissão, outras ainda, por causa da origem, como por
exemplo, os não judeus e assim por diante. No entanto, Jesus não
fechou os olhos para aquela situação, pelo contrário, interagia sem
preconceitos, tornando-se próximo delas, devolvendo-lhes a
integralidade e a verdadeira dignidade.
Seguindo a linha de argumentação dos relatos da ação de Jesus
contida no Evangelho de Lucas, percebe-se claramente a legitimação
da misericórdia e compaixão, visto que esta é uma das principais
45

características de sua práxis e ação libertadora (Lc 7,11-17; 13,11-17;


14,1-6; 17,11-19).
De acordo com Richter Reimer (2008), dentro desse contexto do
irromper da misericórdia de Jesus, chama a nossa atenção o ‘aspecto
relacional’, ou seja, tradicionalmente, estamos acostumados a ler as
curas de Jesus numa perspectiva unifocal, em que tudo gira em torno
de Jesus: ele cura, ele está no centro da atenção e é o sujeito da ação
libertadora. No entanto, a partir de

um a p er s p ec t i v a te o ló g ic a l i b er t ad or a abr a n ge nt e , q u e
v a lor i za e r e i v in d ic a a p os iç ã o- de- s uj e it o de pes s o as q u e
par t ic ip am do f en ôm en o r e l i g ios o, [. .. ] é nec es s ár i o l er e
i nt er p r e ta r es t as tr a d iç õ es n um a p er s pe c ti v a m uit o m a is
r e lac i o na l , c on tr ib u i n do t am bém p ar a a c ons tr uç ã o d e um a
c r is t o l og i a qu e t em a v er c om tu do q u e n os s a c or p or e i d ad e
im pl ic a: r es p ir ar , m ov im ent ar , p ens ar , s e nt ir , f a l ar , t oc ar
( RI CHT E R R EI M ER , 2 00 8 , p. 7 1) .

Dessa forma, torna-se possível perceber Jesus na sua relação


com Deus e com as pessoas, sendo que é nessa relação que se
apresenta a dynamis relacional, que é “força” e “poder” que é dinâmico,
compartilhado, espontâneo, incontrolável e não carece de legitimação
social oficial (RICHTER REIMER, 2008, p. 71).
Por isso mesmo, aprofundar o conhecimento sobre Jesus através
do que foi escrito sobre ele - sem deixar de lado o contexto histórico -
principalmente nos Evangelhos leva-nos a considerar uma realidade
sofrida da qual ele não se furtou, pelo contrário, tornou-se um com
aqueles e aquelas que mais sofriam:

Es c ol h e u f ic a r d o la do d os p o br es . As s um iu e s of r e u as
c ons e qu ê nc ias . Com a c ap ac id a d e e a i nt e l ig ê nc ia q u e t i nh a ,
J es us nã o t er i a t i do d if ic ul d ad e p ar a s a ir d a p obr e za . Mas
nu nc a t e nt o u um a s aí d a in d i v id u a l, s ó p ar a s i . Co nt i n uo u
s o li d ár io c om os po b r es . C o n hec e u a p o b r e za pe l o la d o d e
de n tr o . Es v a zi o u- s e e f oi es v a zi a d o ( F l 2 ,7 ) . Ex p er im en to u a
f r aq ue za na ho r a da ag o n ia e o a ba n do n o na ho r a da m or t e
( Mc 1 5 ,3 4) . O a ba n do no a o q ua l er am c ond en a dos os p o br es !
Mo r r e u s o l ta n d o o gr i to dos po br es ( Mc 1 5 ,3 7) , c er t o de s er
ou v i d o p e l o Pa i q ue e s c ut a o c lam or do p ob r e. P or is s o, D eus
o ex al t ou [s o ber a nam e nt e] ( F l 2 ,9) ( M E ST ER S, 19 9 5, p . 1 20) .
46

Percebemos assim, que o ambiente e as circunstâncias em que Jesus viveu


foram o seu campo de ação para a prática da misericórdia e da compaixão, como
também para a escolha e chamado dos seus companheiros e companheiras que
dariam continuidade ao seu projeto de ‘vida nova’ e abundante para todos.

3.3 VIVÊNCIA EM COMUNIDADE: JESUS CHAMOU HOMENS E MULHERES


PARA O SEU SEGUIMENTO

Um aspecto que nos chama a atenção é quanto à forma que Jesus se


preparou para a escolha inicial dos seus primeiros seguidores, que também foram
chamados de discípulos e apóstolos. Como já foi dito anteriormente, ele subiu a
montanha e passou a noite inteira em oração antes de fazer essa escolha definitiva
de sua vida (Lc 6,12).
Interessante ressaltar que Jesus não escolheu gente erudita, de classes
sociais abastadas ou com grandes qualidades, mas pessoas comuns como todos
nós, que tinham suas virtudes e seus defeitos. Com este pequeno grupo que se
sentiu atraído pela sua mensagem de vida, Jesus começa então, a nosso ver, a
maior revolução da história da humanidade (Lc 6,12-16).
Percebemos que Jesus participava da vida da comunidade e não tinha medo
de se misturar com as pessoas de má fama e consideradas impuras no sistema
religioso judaico. De acordo com Mt 9, 35-38, Jesus acolhia as multidões sem fazer
acepção de pessoas. Pode-se imaginar como isso perturbou a hierarquia religiosa
de seu tempo. O Evangelista Lucas relata uma passagem em que Jesus encontra
um cobrador de impostos chamado Levi e o convida para ser seu discípulo. E ao ser
questionado e criticado pelos escribas e fariseus, sobre o porquê de comer e beber
com os publicanos e pessoas de má vida, Jesus responde: “Não são as pessoas
com saúde que precisam de médico, mas as doentes. Não vim chamar à conversão
os justos, mas sim os pecadores” (Lc 5,27-32).
Sobre a comunidade inicial de Jesus, resume Mesters (1995, p. 99):

As pessoas que compunham a pequena comunidade ao redor de Jesus


eram de vários níveis: publicanos, pescadores, agricultores, artesãos,
zelotes. Por causa da religião oficial e por causa da política do governo,
estas pessoas viviam separadas, umas das outras. Jesus as chama para
formar uma nova família. Este era o grande desafio! Era o mesmo que
47

remar contra a corrente ou andar na contramão, tanto da sociedade quanto


da religião.

Por isso mesmo, os discípulos experimentaram um contexto totalmente novo


diante do chamado e seguimento de Jesus, visto que não foram eles que fizeram a
escolha do seu mestre, o mestre os escolheu e chamou (Mt 4,18-22; Lc 5,1-11; veja
também Jo 15,16). Além disso, tiveram a oportunidade e o privilégio de conhecer de
perto o projeto de Jesus, se preparando, assim, para se tornarem missionários e
anunciadores da Boa Nova do Reino.
Em se tratando dos anunciadores, conforme relatado em Lc 6,12-16, o
primeiro grupo de Jesus foi formado por pessoas simples, sem muita instrução,
abrangendo profissões e classes muito diferentes. Com esse pequeno grupo fez
questão de compartilhar tudo o que sabia, de forma que estivessem preparados para
levar adiante a sua mensagem: “Não fostes vós que me escolhestes; fui eu que vos
escolhi e vos designei, para dardes fruto e para que o vosso fruto permaneça” (Jo
15, 16). Sem dúvida alguma, a proposta de Jesus conquistou os seus discípulos, do
contrário, sua mensagem não teria chegado até nós ou até onde chegou.
Com base no Documento de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência
Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (2007, Item 131), extraímos uma
importante contribuição quanto à dinâmica do chamamento e proposta de Jesus, ou
seja, enquanto na antiguidade, os mestres convidavam aos seus discípulos a se
vincular com algo transcendente e propunham a adesão à Lei de Moisés, Jesus
apresenta uma grande novidade, pois convida os seus discípulos a se encontrar
com ele, estabelecendo estreitos vínculos, porque ele é a fonte de vida (Jo 15,1-5) e
só ele tem palavras de vida eterna (Jo 6,68).
Desse modo, por meio da convivência cotidiana com Jesus, seus discípulos
logo perceberam a originalidade de sua proposta em confronto com os seguidores
de outros mestres, visto que não foram convocados para algo, como purificar-se ou
aprender a Lei, mas para se vincular intimamente à pessoa de Jesus e para que
estivessem sempre com ele, para enviá-los a pregar e para assumir seu estilo de
vida e suas motivações (Mt 10,7-8). Percebemos que tudo isso estava em
consonância com o que havia anunciado na sinagoga de Nazaré (Lc 4,18-19).
Não se pode esquecer que também as mulheres faziam parte do grupo de
Jesus (Lc 8,1-3). Silva (2000, p. 9) cita vários exemplos da participação delas na
vida de Jesus e vice e versa, vejamos:
48

O movimento de Jesus, o seu discipulado, tem mulheres que o seguem


desde a Galiléia, estão presentes ao pé da cruz e são as primeiras
apóstolas da ressurreição. A genealogia de Jesus inclui mulheres
transgressoras. Há mulheres ligadas à palavra como Maria Madalena, Marta
e Maria. Há mulheres curadas e reintegradas à diaconia como a sogra de
Pedro, a hemorroíssa, a filha de Jairo e a mulher encurvada. Há mulheres
evangelizadoras, como a Samaritana e a siro-fenícia. Nas comunidades há
mulheres que protagonizam o culto e a profecia como as de Corinto. E
ainda Priscila, Lídia, Febe, Maria e tantas outras (SILVA, 2000, p. 9).

Pelos textos dos evangelhos, as mulheres foram as primeiras


testemunhas da ressurreição (Lc 24,1-11). Após o relato do túmulo
vazio, enquanto dois dos seus seguidores caminharam com ele e não o
reconheceram, Maria Madalena e outras mulheres foram as primeiras a
perceber e admitir o milagre da ressurreição (JONES, 2006, p. 95).
Nesse contexto da participação das mulheres no movimento de
Jesus, Richter Reimer (2005, p. 68) destaca que elas estiveram
presentes desde o início, tanto como sujeito no discipulado (Lc 8,1-3),
como destinatárias do seu amor e salvação. Assim,

são também elas que estão com ele junto à cruz ou observando de longe, e
é com o testemunho delas que se abre uma nova dimensão na história
religiosa: Jesus é o messias, primogênito dentre os mortos. Não está morto,
mas ressuscitou! Essa é a novidade que elas presenciaram e
testemunharam por primeiro. Jesus e o anjo de Deus as incumbem de dar
testemunho, as vocacionam para a proclamação dessa Boa-Nova de
alegria. São, por incumbência divina, apóstolas dos apóstolos (Mc 16,7; Mt
28,7; Lc 24,6ss; Jo 20,17-18).

Desse modo, as mulheres passam a fazer parte do movimento de Jesus num


quadro de renovação dentro do judaísmo em que elas puderam experimentar a
construção de novas relações de vida com dignidade e justiça. Dentro desse novo
tempo instaurado por Jesus elas podem viver sua espiritualidade judaica,
participando de festas e celebrações no templo (Lc 2,36-38, At 2,46 entre outros),
bem como confessar a fé no Messias judeu, cuja concretização se realiza em Jesus
de Nazaré (RICHTER REIMER, 2005, p. 68).
Dentro desse contexto relacional, Jesus ia tecendo laços de convivência
fraterna e acolhedora, onde o que valia era a pessoa humana, independentemente
da classe, posição social, etnia etc.
No próximo item abordaremos a dinâmica entre aprender e ensinar, nas
quais ficaram evidentes a manifestação da divindade de Jesus.
49

3.4 APRENDIZ E MESTRE: JESUS MANIFESTOU A SUA


DIVINDADE

Não apenas quando criança, mas também como jovem-adulto (aos


12 anos), anualmente, seguindo o costume judaico, Jesus ia a
Jerusalém em companhia de seus pais e sua gente para a festa da
Páscoa (Lc 2,41). Nessa passagem, de acordo com Richter Reimer
(2007), encontramos a primeira demonstração de sua identidade e
autonomia em relação a seus pais: “Por que vocês me procuravam?
Não sabiam que eu devia estar na casa de meu Pai?” (Lc 2,49).
De acordo com a autora acima citada, primeiramente na resposta
de Jesus transparece uma obviedade de quem se encontra em
processo emancipatório, em seguida deixa transparecer um indicativo
de oposição entre a casa de mãe e pai em Nazaré e a casa do “meu
pai” em Jerusalém, o templo.
Embora Jesus já tivesse atingido a maioridade, seu pai e sua mãe
continuavam responsáveis pelo jovem-adulto. Nesse processo de
emancipação que Jesus vivenciava, Maria, sua mãe, estabelece com
ele um diálogo educativo na práxis educacional judaica, que consistia
em perguntas e respostas, cujo modelo, mais tarde também passa a ser
utilizado por Jesus em seus ensinamentos. A resposta de Jesus e o
indicativo de ‘casa de meu Pai’ para o Templo evidenciam sua madura
espiritualidade, onde ambas as partes são respeitadas (RICHTER
REIMER, 2007, p. 71).
Percebemos que o Evangelho da infância de Jesus passa
abruptamente para a atuação de independência, conforme ressalta
Richter Reimer (2007, p. 72):

De r e p en te , em Lc 2, 4 1s s , d ef r o nt am o- nos c om o J es us
j o vem - ad u lt o q ue , j un t o c om s ua f am í li a , p ar tic i p a a n u alm e nt e
da F es t a d a p ás c o a em J er us a l ém . O ze l o f am il i ar - s oc i a l
pe l a tr a diç ã o e pe l o es tu d o d a T or á ex p l ic a a ef et i v a
par t ic ip aç ão d e J es us no tem p lo , qu a nd o, c onf or m e c os t um e
j ud a ic o c om pl et o u a m aior i da d e a os 1 2 a n os . O t ex to r ef l et e
es t a f as e de em a nc i paç ã o e a ut o nom i a de J es us qu a nd o
des t ac a a s ua p er m an ênc i a em J e r us a l ém s em o
c on h ec im ent o de p ai e m ãe. E n qu a nt o es t e s j á s e enc o ntr am
no c am i nh o d e v o lt a a N a zar é, J es us p er m anec e u “ as s e n ta d o”
50

em m eio a os m es tr es n o t em pl o. E l e es c u ta s eus
ens i n am ent os e lh es f a z p er g un tas ( 2 , 46) , d i an te d o qu e to d as
as pes s o as f ic ar am m ar av i l ha d as . T r a t a- s e da s a b ed or i a do
j o vem - ad u lt o . A n ar r at i v a r ef l et e um a pr á t ic a us u a l e
c os t um eir a no a pr e n d i za d o da T or á e s u a i nt er p r e taç ã o p or
par t e de J es us . As s im , em c as a e n o tem p l o, j u nt o à m ãe , a o
pa i , à c om un i da d e e j un t o aos m es tr es , J es us v a i ad q u ir in d o e
c ons tr ui n d o o s eu c on h ec im ent o d as es c r it ur as e a s u a
i de nt i d ad e r e l i gi os a j u da ic a.

Antes de tratarmos da messianidade de Jesus, cabe aqui


contextualizar a importância que tiveram as instituições sagradas
judaicas – templo e sinagoga - como espaço sagrado, cumprimento das
tradições (Lc 2,22-24) e local de aprendizagem também para Jesus:

T ant o a c ons a gr aç ã o q ua nt o o s ac r if íc io n o t em pl o es t ã o
v i nc u l ad os c om o r it u a l d a p ur if ic aç ão pós - par t o d a m ãe e do
f il h o, b em c om o do p a i, p or qu e el e c o n v i v e c om am bos . Es s e
r it u a l f a z p ar t e d a h e r anç a d e t r a d iç õ es a nc es tr ais j u d aic as ,
l ig a das c om a l eg is l aç ão de us os e c os t um es r e l i gi os o- s oc i a is .
[.. .] O t em pl o at u a nes t e r e l at o ( Lc 2- 2 5- 3 8) , c om o f or ç a
pr o d ut or a d e s e n ti d o i de nt i tár i o- r e l ig i os o at r a vés d a m em ór ia
e d a tr a d iç ão anc es t r a l. O im ag i ná r i o r e l i g i os o e a tr ad iç ão
m ític o- s im bó l ic a at u a m na c ons tr uç ã o d a i d en t id a de s óc i o-
r e li g i os a d es ta f am íl i a qu e s e or g an i za a par t ir d a i dé i a d a
per t enç a, b us c a nd o c oes ã o s oc ia l . N es te s en t id o , per e gr in ar
ao t em pl o d e J er us a lém f a z pa r t e d o pr oc es s o d e ( c o)
m em or ar e at ua l i za r o s m it os d as or i ge ns j u da ic as , a os q ua is
s e r e lac i o nam , n o c as o d a l e i de Mo i s és , os r i t os da
c ir c unc is ã o, d e c ons agr aç ã o e de p ur if ic aç ã o . A i de n ti d ad e
s oc ior e l ig i os a de M ar i a, J os é e d e J es us e s tá ( r e) af i r m ada e
pa u tar á os d is c ur s os , a ét ic a e as aç õ es de l es . Es s a n ar r at i v a
em tor no d o t em plo r e g is tr a, p or ta nt o , a id e nt i da d e j ud a ic a d e
J es us ( R IC HT E R R EI M ER , 2 00 7, p. 7 1) .

A autora acima citada destaca ainda que o templo era lugar para
o estudo e ensino da Torá, anúncio da palavra profético-sapencial,
oração e do louvor, sacrifício, intercessão e louvor. Em suma,

O tem p lo em n í v el na c i on a l e a s i n ag o g a e m nív e l l oc a l-
r eg i o na l er am lu g ar es s a gr a d os par a ex pr e s s ão p ú bl ic a d a f é
j ud a ic a e f a zi am par t e d os pr oc es s os ed uc ac io n ais i nd i v i du a l
e c o le t i vo . N a c as a, n a s i na g og a e no t em pl o é q ue ac o n tec e a
ed uc aç ã o t e ol ó g ic a a s er v iç o d a v i d a, v i ve nc ia d a p or J es us .
Di g a- s e a i nd a q u e o t em pl o, ap ós a m or t e de J es us , c on t in u a
s en d o es paç o r e l e va n te p ar a o gr up o d e m u lh er es e h om ens
qu e f ic ar am s o zin h o s /as e pr ec is a v am ( r e) c ons tr ui r s u a
i de nt i d ad e de f o r m a n o va d en tr o d e um no v o c o nt ex to c r ít ic o e
de p er s eg u iç õ es : m es m o qu e a pe n as n a m em ór ia e na
es p er a nç a , e le c o n ti n ua s en d o es p aç o s a gr ad o e d e
i de nt i d ad e q ue g ar an t e ao gr u po a c o nt i n u i da d e t am bém no
51

s en t id o d e p er t e nç a ao po v o d e D eus ( R IC HT ER R E IM E R,
20 0 9, p . 2 2) .

Considerando que o meio em que se vive exerce grande


influência no processo de ensino-aprendizagem, certamente Jesus
aprendia não só com os seus pais, como também através da
observação e da convivência em outros ambientes, por isso,

Nã o é d e s e s u r pr e en der q u e, v i v en d o em am bi en t e a gr í c o l a,
J es us t i v es s e f am i li a r i da d e c om o c u lt i v a r d os c am pos ( Lc
9, 6 2; 1 7 ,7) o l a nç a r das s em ent es ( Mt 13 , 4; Mc 4 ,3 ; Lc 8, 5)
c e if aç ã o e s ep ar aç ão da s af r a ( J o 4, 3 5- 3 8) e ar m a ze n am ent os
dos pr od ut os n os c e l eir os ( Mt 13 ,3 0 ; Lc 12 ,1 6- 18) .T a l ve z
qu a nd o c r ia nç a, t i v e s s e v is to ou ou v i d o os f a ze n d eir os
f al ar em s o br e os r el at i v os b e nef íc i os d os s ol os , o im pac to
des s es s o br e os r en d im ent os d as s em en t es ( M t 1 3, 3- 8; Mc
4, 3- 8; Lc 9, 5- 8) , s o br e os c a pr ic hos d o t e m po ( M t 1 6, 2- 3; Lc
12 , 54- 5 5) e s o br e a nec es s i da d e d e d is p o r s ab i am en te d as
er vas d an i nh as ( Mt 13 , 30) e p o dar as v i nh as a f im de
aum en t ar a pr o d ut i v i da d e ( J o 15 , 2) . D e ne n hum a m ane ir a
es s a l is t a é ex te n ua nt e ( M t 4 , 26- 2 9) . P od e- s e a i nd a in d ic ar a
f r eq uê nc i a c om qu e J es us , o m es tr e , f a l a va de p ás s ar os ,
ár vo r es , e o utr as v e g e taç õ es ( G R EN I ER , 1 9 98 , p . 32 ).

Assim, aceitar ou perceber Jesus como mestre, leva-nos a afirmar


que ele não perdia oportunidades para ensinar. Fürst (2000, p. 633-34)
apresenta-nos o seguinte significado para o verbo “ensinar”:

Di d as k õ , “ e ns i nar ” pr o vém de d i- d ak - s k o ( r a i z d ek - , “ ac e i ta r ” ,
“ es t e nd er a m ão p ar a ” ) . A r a i z d u pl ic a da e o s uf ix o inc o at i v o
tr a ns m it em a i dé i a d e f a ze r a l gu ém ac e i t ar a l g o; a p a l a vr a ,
por t an to , s u g er e a i d é i a d e f a zer a lg u ém ac e it ar a l gum a c o is a.
[.. .] a pa l a vr a s e em p r eg a t i pic am en te par a o r e l ac io n am ent o
en tr e pr of es s or e o a l un o , o i ns tr u t or e o a pr e n d i z. O q u e s e
ens i n a p od e s er c on h ec im ent o, op i n iõ es o u f atos , bem c om o
per íc ias ar tís t ic as e téc n ic as , to d os os q ua is d e vem s er
s is t em át ic a e c om pl et am ent e ad q ui r i d os p e l o a pr en d i z c om o
r es u l ta d o de a ti v i d ad e r ep et i d a t a nt o pe l o pr of es s o r q u an t o
pe l o a l un o . No N o v o T es tam ent o, d id as k õ oc or r e 9 5 v e ze s ,
das q ua is 38 s e ac ham nos E v a ng e l hos S in ó tic os [ .. .] . O
s i gn if ic a do s em pr e é “ ens i n ar ” ou “ ins tr u ir ” , em bor a o
c on t eú d o d o ens i n o s om ent e pos s a s er d e t er m in ad o m ed i an t e
o c o nt ex t o i n di v i d ua l .

Nesse sentido, não foi sem razão que, como vimos acima, Jesus
foi chamado de mestre por pessoas diversas e de classes tão distintas,
entre as quais podemos citar: um fariseu que questionava sobre o
porquê de Jesus se alimentar em companhia dos publicanos e
52

pecadores (Mt 9,11); alguns escribas e fariseus que queriam ver um


sinal (Mt, 12,38); coletores de impostos (Mt 17, 24); um escriba que
queria segui-lo (Mt 8,19); pelo jovem rico (Mt 19,16; Lc 18,18) etc.
Em se tratando da obra didático-pedagógica de Jesus, essa sua
atividade é relatada pelos evangelhos sinóticos em diversos lugares e
circunstâncias. Ele ensinava publicamente nas sinagogas (Mt 9,35;
13,54; Mc 6,2; Mc 1,21), no templo (Mc 12,35; Lc 21,37; Mt 26,55), ao
ar livre (Mt 5,2; Mc 6,34; Lc 5,3). E de acordo com o costume judaico,
nessas ocasiões, ele ficava em pé para ler um trecho dos profetas,
depois se sentava para fazer a exposição (Lc 4,14-20; Lc 5,3; Mt 5,2).
Os Evangelhos relatam que a multidão ficava admirada com
aquele homem que surpreendia a todos com suas ações e os seus
ensinamentos (Mt 22,33) ministrados com originalidade e simplicidade.
Diante dos ensinamentos de Jesus, os judeus questionavam admirados:
“Como sabe este, de letras, sem ter estudado?” (Jo 7,15) ou “Não é
este o filho de José?” (Lc 4,22)
Outra característica do ensino de Jesus que não pode passar
despercebida é quanto à autoridade demonstrada e perfeitamente
reconhecida pelos seus ouvintes em diversas ocasiões, como por
exemplo, em Mt 7,28-29: “Quando ele terminou estas palavras, as
multidões ficaram admiradas com o seu ensinamento. De fato, ele as
ensinava como alguém que tem autoridade e não como os doutores da
lei”. Certamente a autoridade de Jesus era decorrente de sua
autenticidade (palavras e ações), ou seja, ele viveu o que ensinou e
ensinou o que viveu.
Nesse sentido, Hunter (1995) deixa claro a diferença entre poder
e autoridade. O monge parte da premissa de que um grande líder não é
aquele que detém o poder, mas, sim, a autoridade. O poder, segundo o
autor, resulta da posição e do cargo que a pessoa ocupa e quase
sempre é imposta, já a autoridade, é conquistada com amor,
responsabilidade, dedicação, respeito e cuidado com as pessoas.
Podemos afirmar que isso era perfeitamente demonstrado por Jesus
dentro de sua prática pedagógica.
53

No próximo item, abordaremos sobre os métodos do ensino-


aprendizagem utilizados por Jesus que demonstram que ele era versátil
e criativo, pois sempre levava em conta a ocasião e as necessidades
dos ouvintes.

3.5 A ESPIRITUALIDADE DO ENSINO-APRENDIZAGEM NAS


PARÁBOLAS DE JESUS

Os Evangelhos mostram que grande parte dos ensinamentos de


Jesus ocorreu através de parábolas, que foram contadas utilizando-se
de uma linguagem simples que fazia parte da realidade do povo, como
por exemplo: pesca, rede, peixe; árvore, fruto, solo, semente etc. Para
descrever o amor de Deus pelos pecadores, ele falou sobre o pastor
que saiu em busca de uma ovelha desgarrada (Lc 15, 4-70) e de um pai
que esperava ansioso, o retorno de um filho que estava perdido (Lc
15,11-32).
Para Grenier (1998, p. 43), o termo “parábola” provém do grego
parábole, que, em derivação (para = ao lado de + ballein =
arremessar), indica a colocação de coisas uma ao lado da outra para
fins de comparação: “embora as maneiras mais comuns de fazer
comparações na linguagem do dia-a-dia sejam a analogia (Mt 23,27) e
a metáfora (Mt 5,13), pode-se ocasionalmente empregar uma narrativa
ampliada para essa finalidade.”
Richter Reimer (2004, p. 286) afirma que as parábolas fazem
parte do gênero discursivo, utilizado por Jesus como uma das formas
de veicular os seus ensinamentos, especialmente sobre o Reino de
Deus. Há razões pedagógicas na utilização deste meio de
comunicação, visto que

as p ar áb o l as q u er em ins tr u ir e i nc e n ti v ar as p es s oas a s e
c om por t ar em de um a m ane ir a c o er e n te c om o Re i n o d e D eus .
[.. .] S e u o bj et i v o n ão é ap e n as a pr es en t ar t er m os d e
c om par aç ã o, m as , pr o p o nd o um c as o ex em p lar n um a
r ou p a gem his tór ic a, is t o é, c ons i de r a nd o s e u c o nt ex to
h is t ór ic o , e l a q ues t io na e i nc e n ti v a d e ter m ina das c on d ut as .
Me d i an t e p er s on a ge n s - m ode lo , e l a s ug er e ex em p los da q u i lo
qu e o le i tor d e v e o u n ão f a ze r . O c e ntr a l é a pr áx is , a c o n du ta
qu e d e v e s er a lc an ç ad a , enf im , a c o n s tr uç ã o do et h os
54

a lt er n a ti v o a o q u es t i o na d o, c om o p o dem os e v id e nc i ar n o t ex t o
de Mt 1 8, 23- 3 5 ( RICHTER REIMER, 2004, p. 286).

Conforme Kunz (2008) as parábolas são a “expressão natural de


uma mentalidade que vê a verdade em imagens concretas em vez de
concebê-la por meio abstratos”. Assim, pode-se dizer que as parábolas
não são apenas ilustrações, mais do que isso, têm um caráter
argumentativo que convidam o ouvinte a julgar sobre a situação
descrita. Dessa forma, uma parábola

po d e s e r c om pa r a d a c om um es pe l ho . S er ve p ar a q u e os
ou v i nt es enx er gu em , atr a vés d e la , o q ue s em el a n ã o
po d er iam ver , o u s ej a , s e u pr ópr i o r o s to , s u a pr ópr i a
r ea l i d ad e. A l gum as p es s o as , i ns at is f e it as , pr ef er em às ve ze s
qu e br ar o es p e lh o , em ve z d e t en tar m ud ar o s e u r os t o.
As s im , s ão du as as r eaç õ es f un d am ent a is às p ar á b o las de
J es us : uns r ej e it am J es us e q u er em m atá- lo ( c f . Mc
3, 6; 1 2; 1 2) ; ou tr os p er c eb em qu e p o d em m udar a v i da e s eg u ir
J es us ( KU NZ , 20 0 8, p. 7 4 3) .

Kunz (2008, p. 747) destaca ainda que o ponto principal de uma


parábola deve ser comparado teologicamente com os ensinamentos de
Jesus e com o resto das Escrituras, sendo que a unidade das
Escrituras se manifesta quando o ensino básico de uma parábola foi
completamente explorado e corretamente entendido.
Nolan (1987, p. 178) por sua vez, chama a atenção para o fato
de que as parábolas não são ilustrações de doutrinas reveladas; são
obras de arte que revelam, que despertam a fé e que ajudam a
descobrir a verdade sobre a vida. Nesse sentido, o único objetivo das
parábolas é levar os ouvintes a descobrir ‘algo’ ou “ver” a verdade por
si mesmos. É por isso que as parábolas de Jesus sempre terminam
com um questionamento explícito ou implicam que o ouvinte precisa
dar uma resposta por si mesmo, vejamos os seguintes exemplos:

“ Q u al d os tr ês em s u a o pi n i ão f oi o pr óx im o?” ( Lc 1 0 ,3 6) ; “ Q ua l
dos d o is o am ar á m ai s ?” ( Lc 7, 42 ) ; Q u e v os p ar ec e ? Q ua l d os
do is r e al i zo u a v on ta de d o P a i ?” ( M t, 2 1, 2 8 .3 1) ; “ P o is b em , o
qu e l hes f a r á o do n o da v i n ha ?” ( Lc 20 ,1 6) . As p ar áb o las d a
o ve l h a per d i da e da dr ac m a p er d i d a f or am f or m ul ad as q u as e
55

i nt e ir am en t e c om o p er g u nt as ( Lc 1 5 ,4- 1 0; Mt 1 8, 1 2- 1 4)
( NO L A N, 19 8 7, p . 1 78 ) .

Outro ponto importante em relação às parábolas é que elas não


foram dirigidas aos discípulos e nem aos pobres e oprimidos, mas aos
adversários de Jesus que não aceitavam sua autoridade. No entanto,
quando falava com os seus discípulos e com as multidões que o
aceitavam como Senhor e Mestre, então falava com autoridade. Por
outro lado, segundo Nolan (1987, p. 179), Jesus esperava que seus
discípulos também julgassem por si mesmos (Lc 12,57), bem como
lessem os sinais dos tempos por si mesmos (Lc 12,54-56; Mt 16,2-3).
Brakemeier (1987, p. 14) afirma ainda que as parábolas contam
uma história, um acontecimento corriqueiro que fazia parte do dia-a-dia
das pessoas, mas o ouvinte atencioso percebe imediatamente que
estas histórias não são reportagens, antes devem ser entendidas como
ilustrações, como narrativas transparentes para um sentido profundo.
Com suas palavras Jesus quer mostrar como Deus age e como as
pessoas devem reagir. Portanto, as parábolas focalizam um aspecto do
Reino de Deus, que pode ser exemplificado com o auxílio de algo que
faz parte da realidade humana .

Resumindo este capítulo:


No Antigo Testamento encontramos várias referências de Deus
como Pai. Mas a novidade trazida por Jesus reside na maneira de
invocá-lo (verticalidade), ou seja, dirigia-se ao seu “Abbá”-Pai
demonstrando uma relação de profunda intimidade e confiança, o que
acreditamos ter sido o sustentáculo para a sua profunda ligação com as
pessoas (horizontalidade), em especial, com os pobres e
marginalizados de todas as espécies, sendo que esse era também o
seu campo de ação para a prática da misericórdia e da compaixão,
características intrínsecas de sua práxis libertadora.
Como ser humano, Jesus demonstrou-se necessitado de Deus,
isso se confirma através de suas leituras dos textos sagrados, bem
como das inúmeras vezes e ocasiões em que se retirava para a oração.
Desse modo, percebe-se uma dinâmica entre o envolvimento com o
56

povo e a prática da oração, que era fortalecida e orientada pelo poder


do Espírito Santo, sempre presente e atuante na vida de Jesus desde
antes do seu nascimento até os seus últimos dias sobre a terra.
E para dar continuidade ao seu projeto Jesus convocou homens e
mulheres, que chamou de amigos (discípulos/as). Com esse pequeno
grupo de pessoas fez questão de compartilhar tudo o que tinha ouvido
do Pai (Jo 15,15). Certamente os seguidores de Jesus logo perceberam
que a proposta dele era muito diferente dos ensinamentos de outros
mestres, visto que havia coerência entre o que ele ensinava e o que ele
vivia. Desse modo, não somente foram atraídos e motivados para
seguir Jesus como também para levar adiante a mensagem de vida,
amor, misericórdia e libertação que ele trouxe.
No próximo capítulo serão apresentados alguns conceitos e
formas de espiritualidade, com foco principal para a cristã, bem como
algumas características e contribuições desse tipo espiritualidade, que
perfeitamente podem ser colocadas em prática por homens e mulheres
do nosso tempo.
57

4 CONCEITUANDO A ESPIRITUALIDADE

Embora nem sempre se saiba ao certo o que as pessoas


entendem por ‘espiritualidade’, percebemos a utilização desse termo de
forma cada vez mais frequente, não só no âmbito das religiões, como
também nos meios seculares que não estão vinculados a nenhum grupo
ou movimento religioso específico.
Além do aumento no uso da palavra, observa-se um interesse
crescente pelos assuntos ligados à espiritualidade, o que tem levado
um grande número de pessoas a se debruçar sobre o tema,
consequentemente, tem crescido também a oferta de literaturas a
respeito. Nesse contexto, assistimos à proliferação de todos os tipos de
espiritualidades pessoal e mística, que se desenvolvem de maneira
relativamente independente, sem, contudo, provocar impacto no
conjunto da sociedade. Isso porque, na maioria das vezes, é uma
busca que se inicia no interior da pessoa, cuja motivação é a sua
necessidade de transcendência.
Antes de adentrarmos no tema específico da espiritualidade
cristã, julgamos necessário apresentar alguns conceitos sobre o que se
entende pela palavra espiritualidade.
O Dicionário Brasileiro de Teologia traz a seguinte definição para o
termo (BUTZKE, 2008, p. 387):

Es pi r i t ua l i da d e r em on t a a o adj et i v o l a ti n o s p ir it u al is , tr ad uç ão
do gr e g o p ne u m at ic ó s ( I Co 2 , 1 4- 3 . 3) , des i g na n do o s er
hum an o ( h o mo s p ir i tu a l is ) ins p ir ad o e de t er m in ad o pe l o
Es pír i to d e D eus . O c onc e it o m od er no d e e s p ir i t ua l i da d e t em
s ua or i gem na pa l a v r a f r a nc es a es p ir it u a l it é , q ue , d es d e o
s éc u l o X VI I, n o âm b it o da t eo l o gi a d as or d e ns r e li g i os as
c at ó l ic as f r a nc es as , é t er m o t éc nic o p ar a a r e laç ã o p es s o a l
c om Deus e a vi v ê nc i a d a f é . Es p ir it u a li d a de é a ex pr es s ã o
ex t er io r e c or por a l da f é i nt er io r m oti v a da p e lo Es pír i to S a nt o.
E la i nc lu i f é s ob as c on d iç ões da v i da c ot i d ia n a, abr a ng e nd o
as d im ens ões , i nd i v i d ua l , f am i l iar , c om un i tá r i a e s oc i al .

Para McGrath (2008), a expressão está baseada na palavra


ruach, termo hebraico geralmente traduzido por “espírito”, que inclui
58

amplo campo de significados, abrangendo também “fôlego” e “vento”.


Desse modo, falar sobre o “espírito” significa
d is c u t ir s ob r e o q u e dá v id a e â n im o a um a pes s o a.
“ Es p ir i t ua l i da d e” tr a t a , e n tã o, d a v i da d e f é – aq u i lo q u e a
im pu ls io n a e m ot i v a, e o q u e as p es s o as c o n s i der am út i l p ar a
s us t e nt á- la e d es e n v o l vê- l a. [. .. ] Nã o s e tr a t a a p e nas d e
i dé i as , em bor a as id é ias bás ic as d a f é c r is t ã s ej am
im por ta nt es p ar a a es p ir i t ua l i da d e c r is tã . T r at a- s e de c om o a
v i da c r is t ã é c o nc e b id a e ex er c it a da . T r ata- s e d a p l en a
c om pr e ens ã o da r ea l i d ad e d e D eus ( Mc G R A T H, 2 0 08 , p . 20 ) .

Quando falamos de espiritualidade, não devemos nos esquecer de que no


passado, esse assunto foi tratado de maneira dissociada ou separada do corpóreo e
material, no entanto, pelo que parece,

retornamos para mais perto do pensamento globalizante da Bíblia. Não se


pode departamentalizar a vida humana, separando o espiritual e o material.
Espírito e matéria são duas dimensões do ser humano. Espiritualidade
designa uma forma de viver que abrange todas as dimensões da existência
humana. É a vida humana vivida com espírito, pois os limites da pessoa
transcendem os limites de sua pele (ZILLES, 2006, p. 20).

Continuando nossa fundamentação em Zilles (2006), o ponto de


partida para uma reflexão sobre espiritualidade é a encarnação. Nesse
sentido, a espiritualidade não é um acréscimo, ela exprime a própria
identidade numa situação concreta e diz respeito à pessoa como um
todo: em seu corpo e em sua alma, quando trabalha ou descansa,
quando se alimenta ou reza; em seus sonhos, desejos e pensamentos.
Desse modo, a vida espiritual é um processo sempre inacabado,
imperfeito, mas perfectível enquanto caminheiros e peregrinos neste
mundo.
King (2005) afirma, com base nos ensinamentos do Pe. Teilhard
Chardin, que a espiritualidade é reconhecida como um importante
agente para a transformação pessoal e social, desempenhando
também um papel bastante significativo no diálogo inter-religioso, na
educação, nas negociações de paz, no movimento das mulheres, na
ecologia e em outros processos da atualidade. Além disso, o
desenvolvimento espiritual caracteriza-se pela reflexão, pela atribuição
de sentido à experiência, pela valorização de uma dimensão não-
59

material da vida e por pressentimentos de uma realidade duradoura


(KING, 2005, p. 5).
Desse modo, a ‘vida sobrenatural’ não é uma montagem por cima
ou ao lado do dia-a-dia. É a presença e o reconhecimento saboroso de
Deus nos acontecimentos diários, visível em cada pessoa humana e
em cada passo de nossa caminhada.
Nos livros sagrados dos judeus e cristãos, a espiritualidade se
define como uma forma de ser no mundo. Nessa perspectiva, o cristão
lê os acontecimentos do mundo à luz da fé para libertar-se da idolatria
e viver em solidariedade com os semelhantes. Aliás, esse ideal de
realização humana foi concretizado no homem Jesus de Nazaré
(ZILLES, 2006, p. 5).
Assim sendo, levando-se em conta a realidade do mundo em que
vivemos, considerando todos os aspectos que a compõem; alegrias,
dores, esperanças, injustiças, expectativas etc, entendemos que a
Bíblia pode nos auxiliar na concretude de uma espiritualidade
verdadeira e autêntica que realmente possa fazer a diferença no
mundo.

4.1 A BÍBLIA COMO FUNDAMENTO PARA A ESPIRITUALIDADE

A Bíblia é reconhecida como fundamental para a vida e o


pensamento judaico e cristão, no entanto, é importante entender que
ela pode ser lida de diversas maneiras, tendo em vista outras
finalidades, como

documento histórico destinado às pessoas que se interessam em entender


a história de Israel e das nações vizinhas na época do Rei Salomão. [...]
pode ser lida como fonte de idéias cristãs, como por exemplo, por quem
deseja descobrir o que Paulo pensou sobre a natureza da Igreja
(McGRATH, 2008, p. 150).

Além de fonte de informação histórica e teológica, os cristãos


buscam na Bíblia uma fonte de sustento e refrigério para as questões
existenciais humanas. Sendo que os modos de interpretação desse
60

livro estão intimamente relacionados com as preocupações, perguntas


e interesses da pessoa que faz a leitura (McGRATH, 2008, p. 150).
Nessa mesma linha, Dietrich (2008, p. 569) afirma que as
sociedades são formadas por grupos constituídos por interesses
divergentes e contraditórios e considerando que Deus e sua palavra
são fornecedores de sentido e legitimadores de normas, leis e
instituições, cada grupo procura aproximar Deus e sua palavra da sua
visão de mundo e respectivos interesses.
Assim, na leitura popular da Bíblia, o texto é percebido como

fruto de uma comunidade que crê no Deus da Vida, e os pobres, fazendo de


sua vida uma ponte com a vida do povo da Bíblia, incorporam-se a esse
movimento e tornam-se os sujeitos da interpretação. Descobrem que o
sagrado está na vida e não nas letras. A Palavra de Deus, a Boa Nova,
manifesta-se na interpretação que atualiza a ação salvífica, cuidadora e
libertadora de Deus para com os pobres e com a vida, que promove hoje a
experiência concreta da presença e ação de Deus que fundamentam a fé de
Israel e de Jesus (DIETRICH, 2008, p. 571).

Desta forma, a Bíblia pode ser lida independentemente de uma


instituição ou confissão eclesial - de forma ecumênica, já que a defesa
da vida e o grito dos empobrecidos e empobrecidas de todas as
religiões e fora das religiões clamam por justiça social ‘condizente’ com
a dignidade humana.
W iese (2008, p. 105) afirma “que a Bíblia tem uma história
transmissível – oral e escrita – milenar. Cópias de manuscritos,
traduções e impressões, revisões e leitura continuada que constituem
um fenômeno linguístico universal e único.”
Nesse sentido, o mundo e sua história constituem o âmbito em
que se faz presente e atuante a força libertadora de Deus. No Antigo
Testamento, a história de Abraão e Moisés são exemplos eloquentes da
manifestação de Deus no meio do seu povo:

Na migração de Abrão que procura uma terra para estabelecer-se e


sobreviver, Deus se revela como alguém que sempre nos convida a sair de
nossa terra, de nossas falsas seguranças. A teologia do êxodo evoca um
acontecimento secular: Moisés viu como um egípcio maltratava
impunemente um hebreu, e se pôs do lado do oprimido. Unindo-se a
Moisés, o povo escravizado reagiu contra seus opressores. Nesse
acontecimento secular, aquele povo teve a experiência de Deus como
libertador (ESPEJA, 1994, p. 118).
61

Em relação à conduta histórica de Jesus no Novo Testamento,


Espeja (1994, p. 118) vem afirmar que a cristologia destaca que a sua
divindade se manifesta de forma original e secular, ou seja: gestos e
palavras humanas dentro de um tempo, num espaço e numa cultura,
nos mesmos condicionamentos de todos os mortais. E, interpretando
esse acontecimento secular, à luz do Espírito Santo, os primeiros
cristãos puderam experimentar por meio da conduta de Jesus a
presença pessoal e salvadora de Deus, de forma visível e concreta.
Desse modo a Bíblia não oferece definições, teses, nem
formulações filosóficas, mas manifesta uma impressão, uma
experiência de fé que demonstra que Deus está perto e caminha com o
seu povo. Tal presença é perceptível através de situações concretas
vivenciadas por homens e mulheres que se dispõem a ‘percorrer o
caminho’, sem se ‘conformar com este mundo’ (Rm 12,2), mas
iluminados pela palavra que é fonte de vida, sejam “perfeitamente
habilitados para toda boa obra” (2Tm 3,17).
Assim, embora a Bíblia seja o livro mais vendido e difundido no
mundo, podemos duvidar que seja lida na mesma proporção, visto que
além do ‘analfabetismo bíblico’, tem ela ainda de competir com as
novelas, futebol e outras programações da indústria da diversão que
vão preenchendo o tempo das pessoas de forma cada vez
indiscriminada. Desse modo, fazer com que a Bíblia adquira mais vida
em nossa vida e seja realmente uma fonte de espiritualidade constitui
um desafio e tanto para homens e mulheres cristãos do nosso tempo.
Nesse sentido, o papa Bento XVI nos recorda que ‘o discípulo’,
fundamentado na rocha da Palavra de Deus, sente-se motivado a levar
a Boa Nova da salvação a seus irmãos. Discipulado e missão são como
os dois lados de uma mesma moeda: quando o discípulo está
enamorado de Cristo, não pode deixar de anunciar ao mundo que só
Ele salva (At 4,12) e que sem ele não há esperança, não há amor, não
há futuro. De acordo com o Documento de Aparecida (2007, Item 146),
além do anúncio da palavra, a evangelização, contempla de forma
62

especial, a opção preferencial pelos pobres, a promoção humana


integral e autêntica libertação cristã.
Nessa mesma linha, o Documento da Conferência Nacional dos
Bispos do Brasil (CNBB n.66), destaca que o anúncio da palavra não se
dará somente pela pregação, mas mostrando a eficácia da Palavra
manifestada através do amor de Deus pela humanidade, os quais
atuam para a libertação das forças do mal e promovem a dignidade de
cada pessoa humana. Dentre esses sinais, destaca-se o dom do
serviço ou do amor-caridade (ágape), cuja autenticidade pode ser
comprovada através do amor preferencial pelos pobres, que a exemplo
de Jesus, atribuiu a eles o Reino de Deus.
Para Reimer e Richter Reimer (2008, p. 858), o Reino de Deus é
uma experiência pessoal e uma realidade que a tudo abarca e
transforma, de modo especial:

do e nt es e a ba n do n a d as n as es tr ad as da v i da ( Lc 1 4 ,1 5- 24 ) .
[.. .] a os p e qu e n in os , às c r ia nç as ( Lc 1 8, 15 - 17 e par ar e lo) as
pes s o as em p obr ec i da s ( Mt 5, 3 /Lc 6, 2 0) às pes s o as q u e s ã o
per s e g ui d as p or c a us a d a j us t iç a ( Mt 5, 1 0) , às pr os t i tu tas q ue
pr ec e d em aos “ s e n ho r es ” M t 21 , 31) .
A l ó g ic a d om in an te e a d i n âm ic a s óc io- r e l ig i os a
ex p er im en tar ã o um a i n ver s ã o atr a v és d o p od er d in âm ic o d o
Re i no de De us ( M t 2 1 ,4 3 n o c o nt ex t o ; 2 0, 1 6) . [ .. .] O R e in o d e
De us , p or t a nt o , é um a dá d i va pr es en t ea d a p or g r aç a, à q ua l
c or r es p o nd e a um a de t er m in ad a ét ic a: a m ar a D eus e às
pes s o as pr óx im as atr a vés d e p al a vr as e d a pr á t ic a d a j us t iç a
( Mc 1 2, 3 4; M t 5, 1 9- 20 ) .

Dessa forma compete a todas as pessoas cristãs do nosso tempo


vivenciar e manifestar através de palavras e ações uma autêntica
espiritualidade, fundamentada na práxis libertadora de Jesus, de modo
que possam ajudar a transformar o mundo a partir de si mesmas, sendo
testemunhas vivas do evangelho de Cristo que continua dando vida e
sentido à nossa caminhada.
O Papa Bento XVI em sua encíclica Deus Cáritas Est (Item 12)
ressalta a íntima compenetração dos dois Testamentos como única
Escritura da fé cristã. No Antigo Testamento a novidade bíblica não
consistia simplesmente em noções abstratas, mas na ação imprevisível
e, de certa forma, inaudita de Deus. A verdadeira novidade do Novo
63

Testamento não reside em novas idéias, mas na própria figura de


Cristo, que dá carne e sangue aos conceitos, bem como um incrível
realismo. A ação de Deus ganha agora a sua forma dramática devido
ao fato de que, em Jesus Cristo, o próprio Deus vai atrás da ovelha
perdida, que representa a humanidade sofredora e transviada. Nesse
sentido, quando Jesus fala, nas suas parábolas, do pastor que vai atrás
da ovelha perdida, da mulher que procura a dracma, do pai que sai ao
encontro do filho pródigo e o abraça, não se trata apenas de palavras,
mas constituem a explicação e configuração do ‘seu próprio ser e agir’.
Vale aqui, com base em Brakemeier (1987, p. 64), ressaltar o que
a Bíblia não é:

[...] um resumo sistemático das verdades cristãs. Ela não é uma espécie de
compêndio dogmático, nem uma declaração de princípios ou algo parecido
a estatutos, decreto-lei ou um catecismo votado em Concílio Geral. [Visto
que] os escritos do Antigo e Novo Testamento surgiram, muito antes,
espontaneamente, de determinadas necessidades práticas. Eles surgiram
da vida de pessoas e foram redigidos para a vida do povo. Isto vale tanto
para os antigos credos, contidos na Bíblia, como também para as obras do
Pentateuco, dos profetas, dos evangelhos e as cartas do Novo Testamento.

É importante considerar que a Bíblia tem o seu lugar histórico, a


partir do qual deve ser entendido e para o qual se destina. O apóstolo
Paulo, por exemplo, ao escrever as suas cartas, nem de longe tinha em
mente a vida e circunstâncias em que vivemos hoje. De igual modo,
Lucas, Mateus, o autor do apocalipse etc.
Nesse sentido, Richter Reimer (2005) afirma que não precisa ser
um ‘profissional’ para ler a Bíblia, mas na medida em que lemos,
relemos e interpretamos os textos/ histórias sagradas - levando em
conta a nossa própria vida - tornamo-nos sujeitos teológicos,
permitindo assim, uma interpretação da nossa vida e relações levando-
se em conta as experiências com o Sagrado, que também estão
testemunhadas nos textos bíblicos. Desse modo, ler a Bíblia e fazer
Teologia torna-se algo relacional, mais aberto e profundo. Para isso,

nã o bas t a a br ir a B íb l i a; é n ec es s ár i o t am bém abr ir a pr óp r i a


v i da e c o l oc á- l a em c on t at o c om a v id a qu e es t á pr es e n te nas
ex p er i ênc i as na r r a d as n a Bí b l ia . Af i na l , es t a n ão é a pe n as um
am ont o ad o de r e l at os or g a n i za d os p or a lg uns h om ens , m as
64

ne l a es t ã o c o nt i dos m il har es e d if er e nt es h is t ór i as e
tes tem un h os de vi d a, v i v i dos e tr ans m it i d os por m ul her es ,
hom ens , c r i anç as e p es s o as i dos as ( RI CHT ER R EI M E R, 20 0 5,
p. 9) .

Assim sendo, não foi a intenção dos evangelistas conservarem o


patrimônio das palavras de Jesus inalterado para a posteridade, de
modo que em todos os lugares e em todos os tempos tivessem o
mesmo significado. Pelo contrário, eles atualizam, releem e recontam a
história de Jesus, levando em conta as condições, identidades e
perguntas de suas comunidades, tirando-lhes as consequências para
elas e para si mesmos (BRAKEMEIER, 1987, p. 64).

4.1.1 A Identidade e a Vida de quem Lê a Bíblia

Considerando que Deus sempre respeita a liberdade do ser


humano, o sentido da palavra não se impõe, ou seja, passa por um
investimento de leitura/percurso interpretativo que depende - de forma
integrada - de nossos olhos, nossos ouvidos e de nosso coração. O
significado deve, portanto, ser construído individualmente, aqui e agora
(FORTIN-MELKEVIK, 1997, p. 115).
De acordo com a autora acima citada, há que se considerar três
aspectos importantes da pessoa que faz a leitura de um texto sagrado,
quais sejam:
A i nt er pr et aç ão d e s i m esm o, do t ex t o e da tr a d iç ã o . Do po nt o
de v is t a do le i to r , o dis ta nc i am ent o, a d if er enc i aç ão e a
r e laç ã o d if er i da a o t ex t o e à s u a ex p er iê nc ia o a br em a s i
m esm o e a os o utr os . As i nt er pr et aç õ es de ou tr os le i to r es
s er ã o o utr as t a nt as ab er tur as à pl ur a l id a de d o t ex to e à
p lur a l id a de da t r a d iç ã o q ue f ar ã o ec lo d ir u m s ent i do s ec r e t o.
A va l i d aç ã o d as l ei t ur as s e f ar á atr a v és d a s m últ ip l as f or m as
qu e o d es abr oc ham e nt o d o hum a no p o der á tom ar e n os m i l
r os t os d a m atur i da d e dos c r is t ã os ( FO RT I N - M EL K E V I K, 1 9 97 ,
p. 1 16) .

Dessa forma, ler, interpretar o texto e a tradição levando em


conta a identidade narrativa do/a leitor/a vai ajudar a constituir a via
para cada pessoa afirmar e confessar a sua fé. Assim, “a maturidade
do cristão consiste em viver na liberdade, fora de uma interpretação
65

fixa e dada: a construção da interpretação implica em arriscar-se – com


outros – na busca do sentido” (FORTIN-MELKEVIK, 1997, p. 115).
Vale ressaltar ainda que, conforme Reimer (2006, p.8-9), em meio
a tantos e diversos movimentos sociais por estas terras latino-
americanas, a Bíblia tem sido fonte geradora de esperanças, utopias e
heterotopias, sendo que ela

nã o s er v e s om en t e p ar a r ef o r ç o e a c o ns er v aç ã o de es tr u t ur as
e i ns t i tu iç õ es j á s e dim en t ad as , m as é s o br e t ud o um a m ina , n a
qu a l p o dem os “ g ar im par ” t ex t os d e ins p ir aç ão e s a b ed or i a em
qu es tõ es de é t ic a , e c o lo g ia e es p ir it ua l i d ad e . Es t am os a í
d ia nt e d e tr a d iç õ es s ubm er s as , a tr op e l ad as . É n ec es s ár i o
r es g a tar t a is tr a d iç õe s d e es p ir i tu a l id a d e j ud a ic a e c r is t ã d e
c r ít ic a d o po d er , de é tic a , d e es p ir it u a li d ad e, qu e de r am aos
des p os s u í dos d e p od er a f o r ç a e c or a g em par a s e u
em pod er am en to , p ar a op or - s e aos q ue a b us ar am e a b us am
ta nt o d o p od er q u an t o das pes s o as des p os s u íd as d e p od er .

Os relatos bíblicos deixam evidente a presença de Deus que


caminha com o seu povo. De modo especial, no Novo Testamento
através da presença atuante de Jesus, que fez questão de manifestar
através de sua práxis libertadora (palavras e ações) o rosto
misericordioso de seu “Abbá”-Pai e nosso Pai. Assim, aprofundar o
conhecimento sobre Jesus Cristo nos motiva e capacita para vivermos
uma autêntica espiritualidade cristã, que pode até ter a religião como
um passo ou uma das vias para alcançá-la.
Concluímos esse item com uma afirmação de Murad (2007, p.
125), que nos convida a refletir: “Embora a religião tenha a pretensão
de ser a única expressão de fé, da espiritualidade e da religiosidade,
há uma relação de continuidade e descontinuidade entre elas”. Dentro
desse contexto, muitas pessoas podem simplesmente ser praticantes
de uma religião, sem, contudo, chegar a uma autêntica espiritualidade.

4.1.2 A Religião como um Caminho para a Espiritualidade

Não é raro encontrarmos pessoas que confundem religião e


espiritualidade, o que não tem nada a ver com devoções antigas e
impostas pela maioria das religiões. Enquanto que a espiritualidade é
66

uma vivência que se inicia no interior da pessoa e transcende para o


exterior, a religião pode ficar apenas na exterioridade das práticas e
dos ritos.
De acordo com Roos (2008, p. 859) o termo religião é anterior ao
surgimento do Cristianismo e geralmente designa a busca de sentido
do ser humano em uma relação com o sagrado que se expressa em
termos simbólicos. Embora o significado etimológico do termo seja
incerto, uma das compreensões atesta que:

o t er m o l a ti n o r el i g i o der i v a de r e l i ger e , q u e d e n ot a a a t it ud e
de es ta r a t en to , r ef l et ir , o bs er va r . Nes s e s e nt i do , r e l ig i ão d i z
r es p e it o àq u i lo qu e ex i ge c ui d a do , ze l o e d e d ic aç ã o p or p ar t e
do s er h um an o. A o utr a p os s i bi l i d ad e é a d e q u e o t er m o
pr o v e n ha d e r e l i gar e, des c r e v e nd o a b us c a do s e r hum an o p or
l ig ar - s e n o vam e nt e a De us ( RO O S , 2 00 8, p. 8 5 9) .

Mesmo considerando que haja diferenças significativas entre as


diversas religiões e seja dif ícil encontrar uma definição abrangente
para o termo, é possível afirmar que na maioria das religiões há algo
que nos possibilita perceber certa unidade em meio à diversidade,
afirma Roos (2008, p. 861):

As d i v er s as r e l i g iõ e s en v o l vem a q u e s tã o d o s agr a do
en t en d id o e nq u an t o s an t o, s e par a do , aq u i lo qu e é d if er en te d o
c ur s o ha b it u a l d as c o i s as . A r e l aç ã o c om o s agr a d o ac o n tec e
por f é e tem c om o ob j et o De us o u, em ter m os am plos , o q ue
s e e nt en d e p or d i v in o. Es t a r e l aç ã o c om o s a gr a d o o u c om
De us im pl ic a a r ec e p ç ão d e um a r e v e laç ã o, na q ua l o d i v in o
des v e l a e l em ent os qu e , d e o utr o m od o, per m a nec er iam
enc o be r t os pa r a o s er h um an o. D e ve- s e n ot ar , e nt r e ta n to , qu e
a d i vi n d ad e n ão é nec es s ar i am en te a l g o c o ns t i tu t i vo d e t od as
as r e l i g iõ es . T a l é o c as o d o b u d is m o, qu e n ã o l i d a
nec es s ar iam en t e c om a n oç ã o d e de us ou d i v i no ( RO O S,
20 0 8, p . 8 60 - 6 1) .

Além do aspecto do sagrado, a religião envolve também a


questão existencial, que se traduz na busca de sentido para a vida, e,
consequentemente, a um entendimento de significado para a morte,
que pode se articular no horizonte da pergunta pela salvação da alma
e/ou do corpo. Além disso, as religiões em geral implicam uma conduta
moral e uma reflexão ética, que envolve, por exemplo, leis virtudes,
solidariedade e amor (ROOS, 2008, 861).
67

Roos (2008) destaca ainda que o adjetivo “religioso”, muitas


vezes é usado para denotar apenas um tipo de comportamento moral
de uma pessoa, quando de fato, a atitude religiosa deveria ser
entendida de modo mais amplo, ou seja, abrangendo a pessoa em sua
totalidade. É nesse aspecto da inteireza do ser humano que a prática
de uma religião pode coadunar com a espiritualidade.
King (2005) afirma que alguns entendem que o espiritual é mais
amplo, mais disseminado e menos institucionalizado do que o
“religioso”, ao passo que outros consideram o espiritual como o
verdadeiro centro e coração da religião, que se expressa
particularmente por meio da experiência místico-religiosa. Visando
evitar uma concepção dualista e falsamente idealizada de
espiritualidade, muitos autores tentam propor uma definição mais
abrangente e inclusiva. Em trabalhos recentes, a espiritualidade tem
sido descrita como um empenho para crescer em termos de
sensibilidade ou como uma exploração daquilo que diz respeito ao
processo de humanização.
Leonardo Boff (1999) defende o ponto de vista de que a
espiritualidade deve vir à frente da religião. Para o autor, a
espiritualidade é capaz de ligar, religar e integrar com algo (no caso
um Ser Divino). Muitas pessoas tornam-se especialistas em dogmas,
ritos e crenças (religião), o que pode até ser um dos caminhos para se
chegar a uma autêntica espiritualidade. No entanto, isso não é
determinante para se atingi-la. Por isso, juntamente com Boff,
aceitamos a idéia de que a espiritualidade deve ser priorizada e não
apenas a religião.
Além do que já foi exposto acima, entendemos que em se
tratando de espiritualidade, dois conceitos não podem passar
despercebidos: o ‘misticismo’ (que será abordado logo à frente) e em
especial o ‘ascetismo’. De acordo com W eber (1982, p. 374) enquanto
que a atitude do místico é de humildade específica e minimização da
ação, o ascetismo deste mundo prova-se através da ação. Para o
asceta deste mundo, a conduta do místico é um gozo indolente do “eu”;
para o místico, a conduta do asceta (voltado para o mundo) é uma
68

participação nos processos do mundo combinado com uma hipocrisia


complacente.
Tanto o ascetismo como o misticismo interior-mundano condenam
o mundo social à absoluta falta de sentido ou pelo menos sustentam
que os objetivos de Deus, em relação ao mundo social, são totalmente
incompreensíveis. No entanto, apesar de toda maldade, o mundo é
considerado como portador de, pelo menos, traços do plano divino de
salvação (W EBER, 1982, p. 388).
Vale ressaltar que não existiria religião se não existisse o ser
humano, uma vez que esta (a religião) é ‘criatura’ do próprio homem e
por isso mesmo, reflete toda a realidade em que ele vive. Se ela é
precária, é porque precário é o conteúdo da vida real dos seres
humanos. Assim, “a religião é de fato a autoconsciência e o sentimento
de si do homem, que não se encontrou ainda, ou voltou a perder-se”
(MARX, 2004, p. 45).
Desse modo, a religião enquanto ‘criatura’ do homem deveria
estar a serviço do homem e não o contrário; se isso não acontece, ela
serve, pelo menos, para retratar a sua realidade. Se o ser humano está
enfermo, ele pede saúde, se está em conflito, pede paz, se está
desempregado, pede trabalho, e assim por diante. Dessa forma, a
religião ‘oferece’ ao ser humano aquilo que a sociedade está buscando
com ela e por meio dela.
Berger (1985, p. 99) ressalta que “a religião tem sido um dos
mais eficientes baluartes contra a anomia ao longo da história
humana”. No entanto, esse mesmo fato está diretamente relacionado à
propensão que a religião tem de se tornar alienante.
Por outro lado, o mundo feito pelo homem é explicado em termos
que negam sua produção pelo homem, já que a ‘receita’ fundamental
de legitimação religiosa é a transformação de produtos humanos em
facticidades supra-humanas ou não- humanas. Dessa forma, o nomos
humano torna-se um cosmo divino, ou pelo menos, uma realidade,
cujos significados são derivados de fora da esfera humana (BERGER,
1985, p. 102).
69

Há uma passagem interessante na obra “Zorba, o Grego” em que


um monge fala de suas teorias sobre a vida, em especial, chamou a
minha atenção, em virtude do tema pesquisado, a que diz o seguinte:

Há e t er n i d ad e, m es m o em nos s a vi d a ef ê m er a, m as é m ui t o
d if íc i l des c o br i- la s o z i nh os . As pr e oc up aç õ es c o t id i an as nos
des v i am . S om en te a l g uns [ .. .] c o ns e g uem v i v er a et er n i d ad e ,
m esm o em s ua v id a e f êm er a. Com o os d em a is s e per d er iam ,
De us p or pi e d ad e lh e s m ando u a r e l ig i ã o – e as s im o vu l go
po d e tam bém v i v er a et er ni d a de ( KA Z AN T ZAK I S, 1 9 74 , p.
24 6) .

Poderíamos nos perguntar então, seria possível viver a


eternidade ou tornar-nos espiritualizados sem a ajuda de uma religião?
No dizer King (2005, p. 5), isso realmente é possível, mas não há
dúvida de que,

todas as pessoas precisam se educar para uma maior conscientização, a


fim de que possam descobrir seu próprio potencial espiritual. Como foi
corretamente observado, “pouquíssimas pessoas poderão realizar-se na
vida espiritual sem de algum modo estudá-la, seja em termos teóricos, seja
em termos práticos”. No passado, essa educação para a espiritualidade
sempre se deu no contexto de uma fé particular, em um ambiente social e
institucional definido de uma tradição religiosa específica. A espiritualidade
era uma experiência vivida, uma práxis que se formulava em ensinamentos
particulares, como disciplinas espirituais e aconselhamentos para a
perfeição, que por sua vez poderiam guiar outras pessoas no caminho da
santidade. Mas essa santidade nem sempre era total, no sentido em que
hoje a entendemos, como o desenvolvimento integral de toda a pessoa
humana em um relacionamento equilibrado com seus semelhantes,
inseridos em uma comunidade. Muitas vezes, era unilateral, anti-social e
especialmente misógina. [Lembrando que] no passado, boa parte da
espiritualidade foi desenvolvida por uma elite social, cultural e intelectual
masculina.

De acordo com King (2005), a espiritualidade do passado pode


ser vista como fundamentalmente dualista e fragmentária, tendo em
vista a tendência de segregação dos homens e mulheres, por separá-
los entre si e do mundo, por discriminar claramente a experiência do
corpo, o trabalho e a matéria da experiência do espírito. No entanto,
percebe-se que as mulheres estão reagindo cada vez mais a todos os
tipos de condições adversas e indo em busca de seu crescimento
espiritual, encontrando inclusive, o seu espaço junto ao sexo
masculino, como também a vivência de uma espiritualidade mais
integrativa, dos seres humanos entre si e com toda a natureza.
70

Assim sendo, quer seja dentro de uma religião/igreja, ou mesmo


fora dela, a espiritualidade que pode fazer a diferença no mundo pós-
moderno é, acima de tudo, uma espiritualidade integrada, que envolva
a participação de homens e mulheres a serviço da vida, da promoção e
valorização da dignidade de todos os seres humanos. Entendemos que
isso é perfeitamente possível quando se busca conhecer e colocar em
prática os ensinamentos de Jesus de Nazaré.

4.2 A ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

Embora estejamos vivenciando um cenário de mudanças


significativas em todas as esferas da sociedade, com o surgimento de
novas práticas, crenças e formas de conceber, de interpretar e
relacionar com a divindade, acreditamos que conhecimento sobre Jesus
e sua práxis continuam fundamentais e de grande valia para todas as
pessoas que queiram vivenciar uma espiritualidade cristã de forma
autêntica.
McGrath (2008, p. 21) apresenta a seguinte definição para
‘espiritualidade cristã’:

No cristianismo, a espiritualidade significa viver o encontro com Jesus


Cristo. A expressão “espiritualidade cristã” refere-se a como a vida cristã é
entendida e às práticas devocionais explícitas desenvolvidas com vistas a
nutrir e sustentar esse relacionamento com Cristo. A espiritualidade cristã
pode, então, ser compreendida como a maneira pela qual indivíduos ou
grupos cristãos buscam aprofundar sua experiência com Deus ou “praticar a
presença de Deus”.

Para Espeja (1994, p. 57), “espiritualidade cristã não é outra coisa, senão
viver segundo o espírito de Cristo, recriar na própria existência e numa situação
histórica as motivações, as atitudes fundamentais e o comportamento de Jesus”.
No 23º Congresso Internacional da SOTER, “Religiões e Paz Mundial”,
realizado em Belo Horizonte, entre os dias 12 e 15 de julho de 2010, conversando
com uma pessoa que também se interessa bastante pelo assunto, ouvi a seguinte
afirmação: “Onde quer que vá ou esteja – uma pessoa espiritualizada – ela carrega
consigo a sua espiritualidade.”
71

Dessa forma, pode-se afirmar que não se separa a pessoa de sua


espiritualidade, uma vez que este valor envolve a pessoa toda,
conforme diz Espeja (1994, p. 33): “Toda existência humana, em todos
os seus momentos e âmbitos, entra na esfera da espiritualidade”. Por
esse motivo, não justifica, nem é coerente, uma pessoa ser honesta em
casa (família) e na igreja e desonesta na empresa e vice-versa, ou
educada com os amigos e conhecidos e ser grosseira e desrespeitosa
com os desconhecidos.
Assim sendo, assumimos a premissa de que a vivência da
espiritualidade cristã é o que leva uma pessoa “a crescer na graça e no
conhecimento do Senhor Jesus” (2Pd 3,18). Ninguém chega a ser uma
pessoa espiritualizada sem esforço, sem estudo e sem praticar o que
se aprendeu. Isso fica evidente na reflexão proposta por Libanio (1999,
p. 30): “Como um adolescente cresce? Fisicamente é comendo, e
assim, ele espicha. Os hormônios se encarregam disso. Mas o
crescimento espiritual não se faz com antibiótico, nem com hormônio,
nem com vacina, faz-se com um trabalho profundo e pessoal.”
Embora a nenhum de nós tenha sido possível decidir ou escolher
quanto ao próprio nascimento, através de Jesus, é-nos facultada a
opção de um ‘novo nascimento no Espírito’, que inclusive, é condição
para entrar no Reino de Deus (Jo 3,1-7).
Nesse sentido, acreditamos que a vida de Jesus é central e
essencial para que a espiritualidade cristã dê vida e seja fecunda, caso
contrário, se desvia e torna-se estéril. A espiritualidade de Jesus é que
nos faz superar o medo, a preguiça e o comodismo para atualizarmos
em nossa vida os seus ensinamentos.

4.2.1 Formas Históricas da Espiritualidade Cristã

Com base em Butzke (2008), a espiritualidade cristã apresentada


no Novo Testamento e desenvolvida ao longo da história da igreja,
pode ser subdividida em várias formas, das quais focamos a nossa
atenção em apenas duas, quais sejam:
72

4.2.1.1 Espiritualidade bíblico-meditativa

Esta forma de espiritualidade desenvolvida pelo monaquismo


(sec.IV) caracteriza-se por dois tipos de meditação: a ruminatio e a
lectio divina. De acordo com Butzke (2008, p. 388):

A ruminatio (Sl 1.2) utiliza palavras bíblicas avulsas que são recitadas em
voz baixa e meditadas, isto é, “‘ruminadas” no “‘estômago” na inteligência e
na memória. As palavras impregnadas do poder divino penetram no
subconsciente do orante, curando e santificando. Com fortes componentes
corporais e psicológicos, esse método permaneceu intacto no cristianismo
oriental da “oração do coração”.
No cristianismo ocidental floresceu o método mais cognitivo e reflexivo, a
lectio divina. A forma clássica da lectio divina foi formulada pelo monge
cartuxo Guido II (1087-1137) como “Escada dos Monges”, com quatro
degraus: leitura, meditação, oração e contemplação. Sobre a função de
cada degrau, escreveu Guido II: “A leitura está na casca, a meditação na
substância, a oração na petição do desejo, a contemplação no gozo da
doçura obtida” (LECTIO DIVINA, p. 15).

A devotio moderna (movimento leigo da Alta Idade Média) detalhou


os passos propostos pela lectio divina e teve grande influência sobre a
espiritualidade da igreja ocidental, como por exemplo, em Martin Lutero
(1483-1546) e Inácio de Loyola (1491-1556). Este último desenvolveu
um método de exercícios espirituais, realizados em forma de retiro de
até 30 dias, cujo centro é a meditação do texto bíblico com as três
potências da alma (inteligência, memória e vontade). “A revisão das
orações e meditações, o discernimento das moções da alma, o diálogo
com o orientador e o silêncio interior e exterior completam a dinâmica
dos exercícios inacianos” (BUTZKE, 2008, p. 388).

4.2.1.2 Espiritualidade da libertação

Continuando nossa fundamentação no Dicionário Brasileiro de


Teologia (BUTZKE, 2008, p. 390), podemos entender que a situação de
desigualdade, injustiça social, corrupção e ditadura levaram à
articulação da Teologia da Libertação na América Latina no final da
década de 60, que nasceu como resultado do envolvimento de pessoas
73

e grupos nos movimentos populares de libertação, formada pelos


sindicatos, partidos de esquerdas e pastorais eclesiais.
Esta forma de espiritualidade tem como característica principal a
opção preferencial pelos pobres. A conversão a Deus tem que passar
pela conversão ao oprimido. Nesse sentido, fé e realidade (de
opressão) se encontram, e como resultado desse encontro, nasce a
mística da libertação, que significa experienciar Deus no pobre. A
leitura popular da Bíblia (lida na perspectiva dos oprimidos) acontece
de forma especial nas Comunidades Eclesiais de Base, iluminando
assim, a realidade social e política do povo (BOFF, 1999).
Compreendemos que ambas as formas de espiritualidade estão
fundamentadas em tradições bíblicas e que também Jesus e seu
movimento de libertação as vivenciaram, bem como deixaram por
herança várias contribuições que continuam agregando valores à
espiritualidade contemporânea.
Embora possamos considerar várias formas de espiritualidades,
cada religião cria um jeito próprio de se relacionar com a divindade,
todas elas são dependentes das diferentes tradições religiosas, sendo
que aquelas que são consideradas ‘mais evoluídas’ apresentam para os
seus membros um ‘caminho espiritual’ com características mais
elaboradas.
Murad (2007, p. 125) elenca alguns traços comuns entre as
espiritualidades, considerando a sabedoria das grandes religiões da
humanidade, quais sejam:

• As s um ir um a p os t ur a de v i da d e “ s e r d o bem ” , em to d os os
s eus r el ac i on am en tos .
• B us c ar um s ent i d o i nt egr a d or p ar a a e x is t ê nc ia p es s o a l,
c o le t i va e c ós m ic a.
• A pr e n de r do c am inh o es p ir it u a l d as vár i as r e l i g iõ es ,
v a lor i za n d o s e us s ím bo los e r it os .
• S up er ar os ex c es s os d as r el i g iõ es h is t ór ic as , ta is c om o a
r ep r es s ã o s ex u a l, o c o nf or m is m o d ia nt e d o s of r im ent o , a
c u lp a bi l i d ad e tr á g ic a e inf an t il , a f i g ur a p a t r i ar c a l e a ut or it ár i a
de D e us , a in t ol er â nc i a c om as o utr as ex pr e s s ões r el i g i os as .
• Pr om ov er a c u lt ur a d a pa z, des e n v ol v e nd o a t o l er â nc i a e o
r es p e it o às d i v er s id a des , em to d as as s u as f or m as ( ét n ic a,
c u lt ur a l , d e g ên er o, s e x ua l , r e l ig i os a etc .) .
• Cu l ti v ar o c ui d a do c om o ec os s is t em a, a tr a v és d e a ti t ud es
pes s o a is e aç ões c o l e ti v as q u e v is am a s us t en t ab i l id a d e.
• A der ir a um es t i lo de v i da s a u dá v e l.
74

• Fa ze r um c am in ho d e e vo l uç ão es pi r i t ua l p e la i nt e gr aç ã o d as
pu ls õ es , a ut oc on h ec i m ento , c u lt i v o d a s a be dor i a e i l um in aç ão .

Assim sendo, desenvolver uma espiritualidade e uma atitude


espiritual é sempre um esforço e uma caminhada que exigem muitos
passos individuais, já que ninguém pode espiritualizar-se no lugar de
outra pessoa. Além do mais, a espiritualidade não é alcançada de uma
vez por todas, pelo contrário, constitui uma tarefa desafiadora buscar e
encontrar o caminho espiritual de cada um. Por isso, de acordo com
Grüm e Asslander (2009, p. 270), a verdadeira espiritualidade se
manifesta no agir autêntico, marcado por valores que demonstram
segurança interior nas mínimas coisas e exigências do dia-a-dia.
Nesse sentido, assumimos a premissa de que a vida de Jesus é
fonte inspiradora para qualquer pessoa que queira progredir na sua
espiritualidade. Não é por acaso que embora tenham sido decorridos
mais de dois milênios, a sua história, seu exemplo de vida continuam
atraindo e motivando tantas pessoas que desejam um mundo mais justo
mais humano e mais fraterno.

4.3 ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ESPIRITUALIDADE DE JESUS PARA O


NOSSO TEMPO

É importante percebermos o contexto no qual estamos inseridos,


onde profundas e rápidas transformações - provocadas pela
inteligência e atividade criadora humana - se estendem
progressivamente por toda a terra, repercutindo sobre tudo o que lhe
diz respeito, ou seja, tem impacto sobre os desejos individuais e
coletivos, modos de pensar e agir, tanto em relação às coisas como às
pessoas. De acordo com a Constituição Pastoral Gaudium Et Spes sobre a
igreja no mundo atual, podemos falar de uma verdadeira transformação
social e cultural, que já se reflete também na vida religiosa e espiritual
do ser humano.
Cardoso (2010, p. 27) afirma que “O analfabetismo espiritual tem
sido uma das causas da grande decadência na vida de muitos
75

letrados.” Nesse sentido, embora os seres humanos estejam


progredindo cada vez mais em todos os campos do saber, nem sempre
esses conhecimentos preenchem os seus anseios mais profundos. Por
isso mesmo, não é difícil detectar que em meio a todo aparato social,
tecnológico e científico grande número de pessoas sentem-se
frustradas e insatisfeitas. Certamente essa percepção das
consequências do ‘analfabetismo espiritual’ de que fala a autora, tem
desencadeado uma busca pelo transcendente, de modo que possa
ajudar a ressignificar as suas existências.
Nolan (2010, p. 31) denomina isso de uma ‘fome de
espiritualidade’ que pode ser experimentada de diversas formas:

Alguns experimentam-na como a necessidade de alguma coisa que lhes


transmita a força interior para aquentar a vida, ou paz de espírito e
libertação dos sentimentos de medo e ansiedade. Outros experimentam-na
quando se sentem ir abaixo e necessitados de alguma coisa maior do que
eles, que os mantenha de pé. Há, ainda, o sentimento de estar ferido,
magoado, alquebrado e com necessidade de cura. Muitos ao que parece,
sentem-se separados e isolados das outras pessoas e da natureza.
Anseiam por ligação e harmonia [...], sobretudo os jovens, que sentem
necessidade de entrar em contato com o mistério, para além daquilo que se
vê, ouve, cheira, saboreia, toca ou pensa, para além do materialismo
mecanicista. Alguns sentem, muito simplesmente, fome de espiritualidade
como um anseio de Deus.

Nesse contexto, embora tenham sido decorridos mais de dois mil


anos do nascimento de Jesus, assumimos a premissa de que os seus
ensinamentos continuam atuais e são de fundamental importância para
todas as pessoas que almejam viver uma autêntica espiritualidade
cristã, com possibilidades de – sem desprezar a cultura – conquistar
/alcançar uma vida plena de significados. Nesse sentido, o Documento
de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado
Latino-Americano (2007, item 41) traz a seguinte contribuição:

Os cristãos precisam recomeçar a partir de Cristo, a partir da contemplação


de quem nos revelou em seu mistério a plenitude do cumprimento da
vocação humana e de seu sentido. Necessitamos nos fazer discípulos
dóceis, para aprender d’Ele, em seu seguimento, a dignidade e a plenitude
de vida. E necessitamos, ao mesmo tempo, que o zelo missionário nos
consuma para levar ao coração da cultura de nosso tempo aquele sentido
unitário e completo da vida humana que nem a ciência, nem a política, nem
a economia nem os meios de comunicação poderão proporcionar. Em
76

Cristo Palavra, Sabedoria de Deus (cf. 1 Cor 1,30), a cultura pode voltar a
encontrar seu centro e sua profundidade, a partir de onde é possível olhar a
realidade no conjunto de todos seus fatores, discernindo-os à luz do
Evangelho e dando a cada um seu lugar e sua dimensão adequada.

Nessa mesma linha, Richter Reimer (2003, p. 57) afirma que


seguir Jesus Cristo, viver o seu discipulado e assumir o seu projeto,
que é a vivência e construção do Reino de Deus significa:

c om pr om et er - s e c om a j us tiç a , tr a b a lh ar p e la li b er t aç ão de
pes s o as q ue s of r em qu a lq u er t ip o d e o pr es s ã o. S em es s e
c om pr om is s o , a es p ir it u al i d ad e s e es va zi a ; e l a p od e a té
m anif es tar - s e d e f or m a bar u lh e nt a, m as é o c a , e , c om o um a
on d a, j o g a as p es s oa s par a l á e p ar a c á no m er c a d o da f é .
As s um ir o pr oj e to d e J es us é, p or ta nt o , f un d am ent a l p ar a nos s a
v i da d e f é, p ar a n os s a es p ir it u al i d ad e.

Seria grande pretensão de nossa parte querer comprometer-nos e


trabalhar na construção do Reino de Deus contando apenas com nossa
própria razão e força. Desse modo, governaríamos conforme os nossos
próprios interesses, buscaríamos nossa própria honra, reconhecimento
e glória, consequentemente, o Reino de Deus se transformaria numa
pequena extensão do nosso próprio reinado. Para nos livrar dessa
tentação, Jesus Cristo nos prometeu e ofertou o Espírito Santo, através
do qual podemos recordar tudo o que Jesus falou e ensinou (Jo 14,26).
Além disso, ele nos capacita, com seu poder dinâmico para sermos
testemunhas de Jesus diante de todas as pessoas (At 1,8) (RICHTER
REIMER, 2003, p. 57).
Nesse sentido, é imprescindível que estejamos imbuídos e
conectados com o Espírito Santo de Deus, o mesmo que sempre
impulsionou e orientou toda vida e missão de Jesus, pois

s e a l gu ém vi v e d o E s pír i to de D e us , nós o p er c e b em os por


s ua ir r ad i aç ão . En tã o e le s e t or n a tr a ns p ar e nt e p ar a a l go qu e
o s u p er a. Nã o c o loc a no c e ntr o s e u e g o, m as por e le f lu i um
es p ír it o q u e o u ne t a m bém aos d em ais . N ão s e c o loc a c om
s ua es p ir it ua l i d ad e a c im a d os ou tr os , m as s en t e- s e um c om
e les , p or q u e n e les s e enc on tr ou o m esm o Es pír i to de D e us .
Um a c ar ac ter ís t ic a im por t an te d e um a pes s oa es p ir i tu a l é qu e
s ua v id a pr o d u z f r u t o s . [. ..] em tor n o d el e “ f lor es c e” a l g um a
c o is a , em ú lt im a a ná l is e, es t á h a ur in d o d a f ont e do Es pír i to
S an to – m es m o que d i s s o e l e n ão te n ha c o n s c i ênc i a. ( G RÜ M e
A S SL A ND E R, 20 0 9, p . 1 2 8)
77

Nesse sentido, Jesus ao enviar o Espírito aos seus discípulos diz


que é o Espírito da Verdade: “Quando vier o Espírito da Verdade, ele
vos ensinará toda a verdade” (Jo 16,13). Aqueles e aquelas que vivem
desse Espírito não falseiam a realidade com suas projeções, nem
precisam propagar pelos quatro cantos que é uma pessoa
espiritualizada, uma vez que suas palavras e ações (falam por s i
mesmas) irradiam um pouco do Espírito de Jesus, assim,

Nem t od os os q ue us am as pa l a vr as de J e s us v i v em do s e u
es p ír it o. Se a l gu ém v i v e do Es p ír it o d e J es us , is s o s e
m anif es ta pe l o “ b om gos t o” q ue e l e es p al h a. O b om gos t o d e
J es us n ã o é d e dur e za n em de am ar g or , n ã o é g os t o d e
c on d en aç ão , m as é um gos t o d e c l ar e za , de am or e d e
l ib er d ad e. ( G RÜ M e A S S LA ND E R, 20 0 9, p .1 29)

Assim, compete aos cristãos do nosso tempo - homens e


mulheres que se apaixonaram pela práxis libertadora de Jesus (Lc 4,
16-21 e Mt 9,35-38) - tornar visível o amor misericordioso de Deus-
Pai, especialmente para os pobres e marginalizados em quaisquer
formas de expressão, que por isso mesmo, são os excluídos e
excluídas dos nossos meios de produção e consumo.

4.3.1 Resgatar a Opção Preferencial pelos Pobres e Marginalizados

Embora o pobre ocupe um lugar central na reflexão teológica


latino-americana, vale ressaltar que a palavra ‘opção’ nem sempre é
bem interpretada. Conforme Calvani (2008), o que se busca dar ênfase
não é simplesmente uma “opção” que possa ser colocada ao lado de
outras também possíveis. Mais do que isso, trata-se de coerência em
relação à essência da revelação bíblica, ou seja,

Optar pelos pobres significa optar pelo Deus do Reino proclamado


pelos profetas e por Jesus. Toda a Bíblia é marcada pela opção de Deus
pelos fracos e oprimidos na história. Trata-se simplesmente, de coerência
com a > revelação bíblica. [...] o motivo da opção pelos pobres é o caráter
amoroso e soberano de Deus em quem cremos, pois o Deus verdadeiro dos
Cristãos que não são pobres é o Deus dos pobres. E por isso todos os
crentes - seja qual for a sua origem sócio-econômica – recebem a exigência
e o dom de optar pelos pobres (CALVANI, 2008, p. 728).
78

Desse modo, a exemplo de Jesus, a opção preferencial pelos


pobres e marginalizados na sociedade pós-moderna também deve fazer
parte do projeto de vida de todos os homens e mulheres que possuem
um querer autêntico de transformação de realidades. Nesse sentido,
não podem passar despercebidos os direitos básicos para uma vida
digna e significativa, como o direito à liberdade também de expressão,
à saúde, à educação, ao trabalho, à segurança, à moradia etc. Isso fica
evidente no Documento de Aparecida (2007, item 42), que diz o
seguinte:

[...] a sociedade que coordena suas atividades só mediante múltiplas


informações, acredita que pode operar de fato como se Deus não existisse.
Mas a eficácia dos procedimentos conseguida mediante a informação, ainda
que com as tecnologias mais desenvolvidas, não consegue satisfazer o
desejo de dignidade inscrita no mais profundo da vocação humana. Por
isso, não basta supor que a mera diversidade de pontos de vista, de opções
e, finalmente, de informações, que costuma receber o nome de pluri ou
multiculturalidade, resolverá a ausência de um significado unitário para tudo
o que existe. A pessoa humana é, em sua própria essência, aquele lugar da
natureza para onde converge a variedade dos significados em uma única
vocação de sentido. As pessoas não se assustam com a diversidade. O que
de fato as assusta é não conseguir reunir o conjunto de todos estes
significados da realidade em uma compreensão unitária que lhes permita
exercer sua liberdade com discernimento e responsabilidade. A pessoa
sempre procura a verdade de seu ser, visto que é esta verdade que ilumina
a realidade de tal modo que possa se desenvolver nela com liberdade e
alegria, com gozo e esperança.

Considerando a conjuntura social acima mencionada, certamente


a injustiça e marginalização social assumem proporções de ofensa a
Deus, bem como se opõem ao mandamento do amor fraterno e
instauração do Reino. De tal maneira, “o resgate da dignidade dos
pobres não pode limitar-se à assistência emergencial, mas exige a
transformação da sociedade e da economia numa nova ordem voltada
para o bem comum” (VASCONCELOS, 2007, p. 14).
É necessário, portanto, reafirmar a opção preferencial pelos
pobres, através da práxis libertadora de Jesus (Mt 9,35-38), uma vez
que esta propõe alternativas e recupera a dignidade de todos aqueles e
aquelas que, de alguma forma, são ou estão empobrecidos, no que
tange a sua imagem e semelhança a Deus Pai. Por isso mesmo, o
Reino de Deus exige sintonia e compromisso com a vida dos pobres,
79

miseráveis e excluídos, de modo a assegurar-lhes o direito à liberdade,


à dignidade, ao trabalho, à prática religiosa, à educação, à saúde, à
segurança e à solidariedade como opção pela vida e justiça
principalmente no contexto Latino-Americano.

4.3.2 Relativizar os Bens Terrenos em Prol dos Valores do Reino

Nas últimas décadas acentuou-se o complexo fenômeno da


secularização. Os seres humanos acreditaram que podiam prescindir
dos valores religiosos e, assim, declararam a chamada ‘morte de Deus’,
para acabar com a interferência da divindade, e assim, livres,
trabalhavam e transformavam o mundo a seu bel prazer. No entanto,
conforme Espeja (1994, p. 35):

A experiência humana nesse mundo “sem Deus” apresenta graves falhas –


agressividade, dominação do homem pelo homem, violência cruel – e há
motivos para se duvidar que os homens sozinhos possam construir a nova
sociedade que todos desejamos. Desse modo, a ausência de Deus é
também inquietante. Na sociedade secular parece que a divindade se
esfumou, mas cada vez mais se torna mais sensível “um rumor de anjos”: o
próprio Deus intervém continuamente para manifestar-se o quanto pode.

De algum modo, nossa própria condição humana anseia por essa


vontade divina, de acordo com Espeja (1994, p.35): “chamados a ser
mais do que somos, não suportamos a desrespeitosa redução a que
facilmente nos submetem o secularismo e o mercantilismo”. Para ele,
portanto, necessitamos de um sentido global para existência e a
divindade, por sua vez, anseia por revelar-se.
Diante desse contexto, percebe-se então, uma renovada busca
pelo sagrado, pelo mistério através da espiritualidade e
transcendência. Embora esse retorno não seja para o mesmo sagrado
de antigamente, visto que, apresenta-se com características bastante
secularizadas, como por exemplo, a procura por uma religião ou
divindade a fim de satisfazer necessidades imediatas, como cura,
emprego, bens materiais etc. Quando não satisfeitas tais necessidades,
a pessoa vai em busca de outra divindade ou religião ‘mais poderosa’.
80

E, a partir do momento em que se alcançou ‘a graça’ desejada,


concomitantemente cessa também a busca.
Além de termos uma procura pelo sagrado de forma do ‘toma lá
dá cá’, temos que considerar ainda a corrida desenfreada para possuir
cada vez mais e aproveitar a vida sem compartilhar do melhor do que
temos e somos. No entanto, não é isso que assegura a verdadeira
felicidade. Nesse sentido, afirma La Cigoña (2005, p. 2):

Essa busca ansiosa e frenética por “ter sempre mais” e “gozar o mais que
se puder” têm estancado o melhor de si em algumas pessoas e desviado,
não poucos, para gestos corrompidos e pouco solidários. E o tempo? Para
muitos, ele não está mais dividido em dia e noite, mas, sobretudo, em
trabalhar e se divertir. Na etapa da juventude, e também em outras para
alguns adultos ricos, há um medo indescritível do fim e término das coisas
e, até mesmo, do dia começado. As pessoas vivem num ativismo frenético
para não encontrar, dentro de si, o vazio angustiante. Barulho, velocidade,
“máscaras”, entorpecentes... Tudo colabora para partilhar o mínimo do que
somos e temos. A maioria nada partilha ou apenas reparte o sobrante da
vida. Mas, é preciso parar, se olhar no “espelho” e ir ao fundo de si para
encontrar o melhor, e oferecê-lo gratuitamente aos demais. Isso, além de
ser politicamente correto, traz imensa felicidade.

A Bíblia mostra reiteradamente que, quando Deus criou o mundo


com sua Palavra, expressou satisfação, dizendo que era “bom” (Gn
1,21), e quando criou o ser humano, homem e mulher, disse que “era
muito bom” (Gn 1,31). Procedemos de um desígnio divino de sabedoria
e amor. Mas, através do pecado esta beleza originária foi desonrada e
esta bondade ferida. Deus, por meio de Jesus Cristo, em seu mistério
pascal, recriou o homem fazendo-o filho e dando a ele a garantia de
novos céus e de uma nova terra (cf. Ap 21,1). Levamos a imagem do
primeiro Adão, mas somos chamados também, desde o princípio, a
produzir a imagem de Jesus Cristo, novo Adão (cf. 1 Cor 15,45). A
criação leva a marca do Criador e deseja ser libertada e “participar na
gloriosa liberdade dos filhos de Deus” (Rm 8,21) (DOCUMENTO DE
APARECIDA, 2007, item 28).
O mundo atual tem fornecido um bombardeio de informações,
bens, serviços e novidades que, num primeiro momento, parecem suprir
os seres humanos de tudo que necessitam para uma vida plena e feliz.
No entanto, através de um olhar profundo e preciso, não é difícil
81

perceber o sentimento de desilusão e desnorteamento que toma conta


de uma multidão de pessoas.
Nesse sentido, a Constituição Pastoral Gaudium Et Spes,
sobre a Igreja no mundo atual, apresenta-nos um panorama da
realidade que, de certo modo, também aponta para as verdadeiras
causas do esvaziamento de sentido da vida humana:

Nunca o gênero humano teve ao seu dispor tão grande abundância de


riquezas, possibilidades e poderio económico; e, no entanto, uma imensa
parte dos habitantes da terra é atormentada pela fome e pela miséria, e
inúmeros são ainda os analfabetos. Nunca os homens tiveram um tão vivo
sentido da liberdade como hoje, em que surgem novas formas de servidão
social e psicológica. Ao mesmo tempo que o mundo experimenta
intensamente a própria unidade e a interdependência mútua dos seus
membros na solidariedade necessária, ei-lo gravemente dilacerado por
forças antagónicas; persistem ainda, com efeito, agudos conflitos políticos,
sociais, económicos, «raciais» e ideológicos, nem está eliminado o perigo
duma guerra que tudo sbverta. Aumenta o intercâmbio das ideias; mas as
próprias palavras com que se exprimem conceitos da maior importância
assumem sentidos muito diferentes segundo as diversas ideologias.
Finalmente, procura-se com todo o empenho uma ordem temporal mais
perfeita, mas sem que a acompanhe um progresso espiritual proporcionado.

Desse modo, marcados por circunstâncias tão complexas, a


maioria de nós tem sido incapaz de discernir os valores
verdadeiramente permanentes e de harmonizá-los com os novos
valores descobertos. Daí que, agitados entre a esperança e a angústia,
sentimo-nos oprimidos pela inquietação, principalmente quando se
interroga acerca da evolução atual dos acontecimentos. Isso, não é
tarefa fácil, visto que representa um desafio encontrar e elaborar uma
resposta a partir de nós mesmos.
Nesse sentido, Espeja (1994, p. 86-7) vem reforçar a importância
da pessoa humana no projeto de Deus, como possuidora de direitos
invioláveis, por isso, Jesus de Nazaré

r e la t i vi za l eis , r it os e t r ad iç õ es q u an d o es tá em j ogo a v id a ou
a l i be r d a de das pes s o as . Se us dir e it os c on t êm alg o d e d i v i n o.
A par á bo l a do b om s am ar it an o de ix a bem c l ar o q u e s ó q ua n do
r ec o n h ec em os e s a t is f a zem os a es s es di r e it os p od em os n os
enc o ntr ar c om o v er da d e ir o De us . Es s a v is ão da p es s o a
hum an a é f un d am en ta l par a qu e hom en s e m ulh er es s e
r es p e it em m utu am ent e e r es p e it em aos d em ais . A
d is c r im i naç ã o e os u l t r aj es c on tr a as pes s o as s ã o i n to l er á ve is
c om o o d es pr e zo a s i m es m o. Co ns id er a r os o utr os e os
82

nos s os pr ó pr ios t a l en t os c om o dom gr a tu i to de D eus é m oti v o


de c on tí n ua aç ã o d e g r aç as ( E S P EJ A, 1 9 94 , p . 8 6- 8 7) .

No entanto, pode chegar o tempo e a nosso ver esse tempo já


chegou em que o conhecimento, os bens materiais e as tecnologias -
cada vez mais sofisticadas - sozinhas não darão conta de atribuir
sentido à existência, e é com essa consciência que o homem e a
mulher estão indo em busca do sobrenatural/transcendente.
Considerando a ação pedagógica de Jesus, é possível perceber
que mesmo decorridos mais de dois mil anos, seus ensinamentos não
foram esquecidos e nem se tornaram obsoletos. Acreditamos que eles
podem ser lidos, interpretados e atualizados com eficácia em todas as
relações, ou seja; do ser humano com Deus (verticalidade) e dos seres
humanos entre si (horizontalidade), como visto no item 3.2 (capítulo II)
desta pesquisa.
Resumindo este item, podemos destacar que, no caminho para
uma espiritualidade cristã libertadora, “ninguém pode dizer ‘Jesus
Cristo é o Senhor’ se não por ação do Espírito Santo” (1Cor 12,3).
Desse modo, a pessoa que está imbuída pela força e poder desse
Espírito torna-se portadora dos frutos que lhe são peculiares: “amor,
alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade,
mansidão, domínio próprio. Contra estas coisas não há lei” (Gl, 5,22-
23). Esses são os frutos que jamais envelhecem ou apodrecem, pelo
contrário, sem entrar em decomposição, tornam-se fecundos e
portadores de vida e vida em abundância (Jo 10,10).
Levando-se em conta as pesquisas realizadas até aqui,
percebemos que existe um entrelaçamento entre a mística e a
espiritualidade, de forma que uma faz parte da outra, e ao mesmo
tempo, elas se complementam. Por esse motivo, achamos conveniente
incluí-la como um dos itens a serem abordados.
83

4.4 O CAMINHO DA MÍSTICA

Segundo Barros (2003) a palavra mística é derivada do verbo


grego muô = fechar. Surgiu no universo das antigas religiões que
ecoava o caráter secreto, reservado unicamente às pessoas iniciadas,
desse modo,

a m ís tic a s er ia o l u gar no qu a l s e r e ve l a a qu i l o q ue es t á
es c o n d id o a o c om um d os m or ta is . P ar a o s p ais e m ã es d a
Igr ej a , o q u e es t a v a e s c on d i do e s e r e v el o u a os i n ic ia d os p el o
ba t is m o é o m is tér i o de J es us Cr is t o, pr es e nç a d o P a i n a
pes s o a h um an a d e J e s us e , em s ua P ás c o a, a s a l v aç ã o par a
to d o o u ni v er s o ( B A R RO S, 2 0 03 , p. 13) .

No início da história da igreja, o termo ‘mística’ foi usado para


designar a experiência batismal dos cristãos. A partir do século VI,
começou a designar experiências especiais e extraordinárias da
intimidade de Deus. Nesse sentido, era comum nomear como místicas
aquelas pessoas que tinham visões e recebiam revelações
extraordinárias. Nos últimos anos, as Igrejas cristãs retomaram a
centralidade do mistério pascal e a espiritualidade batismal tornou-se
novamente a base da mística cristã (BARROS, 2003, p.13).
Para Espeja (1994), o que caracteriza a mística cristã é o
interesse pelo “Reino de Deus”, que se constrói dia a dia em nossa
terra. Tal interesse se concretiza em compromissos reais e gestos
significativos, assim:

A versão da experiência mística é condicionada pela história de cada


pessoa, pela sensibilidade e cultura de cada época. Em todo caso, o
espírito comunitário, o eficaz sentimento de compaixão e solidariedade de
quem pensa não tanto “o que será de mim”, mas o que será dos outros,
especialmente dos mais pobres, é marca permanente da verdadeira mística.
Quem dialoga com o “Deus do Reino” estará sempre interessado em criar
comunidades sem dominação e fronteiras. O Reinado de Deus é símbolo de
uma utopia que, de algum modo, todos os seres humanos já vislumbram.
[...] na verdadeira mística cristã, não há lugar para o pessimismo absoluto
em face da evolução do mundo, nem para condenação genérica, nem para
o mau humor do intolerante dogmático. Sem também cair em ingênuo
otimismo, a paciência e o serviço desinteressado ao mundo, entendido
como família humana em sua organização social e no contexto cósmico,
serão a marca da mística cristã (ESPEJA, 1994, p. 165-166).
84

Certamente na medida em que tentar transformar a sua


experiência em história, o místico enfrentará conflitos e noites
sombrias, no entanto esse processo o fará crescer e amadurecer.
Desse modo, a ‘purificação’ de que falam os grandes místicos deve ser
interpretada levando-se em conta todos os âmbitos, não só no
relacionamento direto com o Pai, mas também no esforço de descobrir
sua presença e escutar sua palavra através dos seres humanos e dos
acontecimentos de nossa história. É dentro deste contexto que o
místico desenvolve a consciência de que jamais está só, ou seja, Deus
o acompanha sempre com a sua graça ajudando-o a vencer as
dificuldades pessoais, sociais e eclesiais que possam surgir ao longo
da caminhada (ESPEJA, 1994, p. 166).
Para Nolan (2010, p. 33), os místicos não são pessoas que
realizam feitos sobre-humanos e que são arrebatados por experiências
estranhas e miraculosas, mas atualmente são apreciados como
pessoas que levam Deus a sério. Ou seja, são pessoas que não se
limitam a acreditar na experiência de Deus, mas afirmam ter
‘experimentado’ a presença de Deus nas suas vidas e no mundo.
Uma das características dessa experiência mística é que esta
inclui, sempre, além da união com Deus, uma experiência de união com
todos os seres humanos e com todo universo. Francisco de Assis, por
exemplo, sentia-se perfeitamente um com todos os seus irmãos e irmãs
humanos, bem como de todas as criaturas (NOLAN, 2010, p. 34).
Pode ser que em pleno século XXI, falar em mística ainda pode
sugerir isolamento do mundo e alienação da realidade. No entanto, a
experiência mística não exclui o discernimento, nem a liberdade e nem
fica enclausurada dentro de quatro paredes. Mais do que isso, ela

[...] conduz a um autoconhecimento tal que não só nos libera de todo e


qualquer medo como também libera nossos atos de toda inibição ou temor
do fracasso. Faz-se o que se faz porque se encontra nisso um sentido e não
porque se espere algum resultado. [...] a religião do místico é aquela que o
religa à realidade em seus múltiplos aspectos. Aqui a religião religa meu
espírito e minha alma com meu corpo; religa-me aos meus semelhantes e
com o mundo inteiro; religa-me também com o espírito, com o Mistério ou
qualquer outro nome que se lhe queira dar. Paradoxalmente, ao ser
consciente de minha re-ligação, esta não me liga, não me prende, ao
contrário, ela me des-liga, me libera (LYRA, 2008, p. 2).
85

O ponto principal é a inserção da mística no cotidiano, em plena


secularidade, onde o místico, não se deixa aprisionar por nenhuma circunstância,
nem é escravo do mundo exterior, assim como não faz tragédia de nenhuma
calamidade e, portanto, vive e atua em plena liberdade (LYRA, 2008, p. 2).
Dessa forma, podemos afirmar que é inserido na realidade que os seres
humanos descobrem e aperfeiçoam suas potencialidades, bem como as
possibilidades de nela intervir. É no encontro com o real e com o outro que cada ser
humano pode reconhecer a singularidade e unicidade de seu ser. Assim, cada
pessoa tem um modo próprio de existir, um ‘ser assim’ e um ‘agir assim’ que lhe
permite responder a circunstâncias de modo personalizado e irrepetível, sobretudo,
afirmando valores que só um ser único seria capaz de realizar naquele momento e
daquela maneira.
Há um trecho da música cantada pelos Titãs, intitulada Comida, que
demonstra a amplitude das necessidades humanas, uma vez que elas vão muito
além do comer, beber, vestir etc.:

A gente não quer só comida


A gente quer comida
Diversão e arte
A gente não quer só comida
A gente quer saída
Para qualquer parte...

A gente não quer só comida


A gente quer bebida
Diversão, balé
A gente não quer só comida
A gente quer a vida
Como a vida quer...

Comida
Titãs
Composição: Arnaldo Antunes / Marcelo Fromer / Sérgio Britto

Certamente, a satisfação de nossas necessidades básicas terão


um novo sabor quando a dimensão espiritual também for considerada e
evidenciada por meio da prática da justiça, da misericórdia, da acolhida
e do compartilhamento de tudo o que temos e somos. Isso envolve,
além de tempo, um querer autêntico direcionado para a prática do
bem. Dessa forma, cada um de nós, com o nosso ‘jeito de ser no
86

mundo’ ao chegarmos ao final das nossas vidas, teremos a certeza e a


“alegria de não termos corrido e nem trabalhado em vão” (Fl 2,16).

Resumindo este capítulo:


Não faz muito tempo em que o termo espiritualidade era visto de
maneira fragmentada, dissociada do corpóreo e material, no entanto,
estamos vivenciando um retorno para o sentido mais próximo do
pensamento ‘globalizante’ da Bíblia em que espírito e matéria são duas
dimensões da espiritualidade que designam uma ‘forma de viver’ no
mundo, que abrangem todas as dimensões da existência humana.
Nesse sentido, a prática de uma religião pode até ser um caminho
para se chegar à espiritualidade. Mas é importante considerar que,
enquanto o pertencimento a uma religião pode ficar apenas na
exterioridade das práticas e dos ritos sem, contudo, passar por uma
autêntica experiência de fé com o sagrado a espiritualidade é uma
experiência que tem início no interior da pessoa e transcende para o
exterior.
Além da experiência com o sagrado (verticalidade) a
espiritualidade cristã envolve também o aspecto relacional
(horizontalidade), ou seja, leva a pessoa a interagir com os outros
seres humanos, colocando em prática os ensinamentos de Jesus,
passando inclusive pela experiência mística, que não deixa de ser
também uma fonte de espiritualidade.
87

CONCLUS ÃO

Com base nas duas perícopes escolhidas como objeto central a


partir do qual desenvolvemos a nossa pesquisa (Lc 4,14-21 e Mt 9,35-
38) (primeiro capítulo desta dissertação), ficou evidente a identidade
de Jesus como “Filho de Deus”, bem como a sua missão de anunciador
e instaurador do Reino de Deus aqui na terra.
A leitura do texto profético feita por Jesus na sinagoga de Nazaré
(Is 61,1-2), presente em Lc 4,14-21, foi uma das bases textuais sobre a
qual Jesus desenvolveu sua ‘pregação inaugural’, visto que a partir
daquele momento teve início oficialmente o ministério público de Jesus
em meio a uma situação de miséria e sofrimento, decorrentes de um
sistema injusto e opressor que sobrecarregava o povo com altas taxas
de impostos, fazendo aumentar assim, o número de escravos e
escravas e pessoas empobrecidas, doentes e marginalizadas.
Dentro desse contexto, Jesus anuncia um novo tempo de graça, de
libertação e reconstrução de identidades, que nada tinha a ver com
discursos vazios ou propagandas religiosas, mas tornava visível o rosto
misericordioso de Deus, com quem demonstrava proximidade e
intimidade. Desse modo, através de Jesus a Boa Nova do Reino se
encarna na convivência humana, propiciando uma nova ordem e um
novo sentido para a caminhada do povo.
Na segunda perícope (Mt 9,35-38), a Boa Nova anunciada por
Jesus é colocada em prática através de sua ação itinerante de
evangelização, curas e compaixão. Diante do grande número de
pessoas perdidas, abandonadas e abatidas, Jesus viu a necessidade
de mais trabalhadores na vinha: “Pedi, pois, ao Senhor da plantação
que mande trabalhadores para a colheita.”
Nesse contexto, nasceu o movimento de Jesus que é reconhecido
como movimento de renovação intrajudaico. Embora esse novo tempo
anunciado e colocado em prática por Jesus, tenha sido causa de muitos
conflitos, perseguições, torturas e mortes, Jesus não se deixou
intimidar, pelo contrário, colocou-se a serviço do Reino de Deus
(horizontalidade), como portador e praticante da misericórdia e da
88

compaixão, companheiras inseparáveis de sua práxis e ação


libertadoras.
Nesse sentido, foi possível perceber a importância do Reino de
Deus dentro da práxis libertadora de Jesus, visto que grande parte do
seu ensino foi dedicado a este tema. No projeto de Jesus, os pobres,
marginalizados e cativos eram considerados por ele como as primícias
do Reino de Deus, que já se fazia presente no meio deles.
Vimos que diante da atuação de Jesus as autoridades romanas e
os seus discípulos logo o entenderam como pretendente messiânico,
mas foi somente após a ressurreição que os participantes do
movimento de Jesus adquiriram a plena consciência de sua
messianidade.
No segundo capítulo abordamos sobre os fundamentos e
características da espiritualidade de Jesus, que a nosso ver,
sustentavam a sua práxis libertadora.
Entendemos que a espiritualidade de Jesus estava fundamentada
na consciência que ele tinha quanto a sua filiação e missão. Por isso
mesmo, mantinha uma profunda ligação com seu “Abbá” (verticalidade),
condição essa que pode ser verificada através da proximidade e
confiança com que se dirigia a Deus-Pai, principalmente através da
oração tantas vezes relatada nos evangelhos como forma de
preparação para a tomada de decisão e/ou fortalecimento para a
caminhada. Desse modo, podemos afirmar que a proximidade de Jesus
com o seu “Abbá”-Pai não o levou a prescindir-se da prática da oração,
pelo contrário, os evangelhos registram que ele orava antes da tomada
de decisões, como também após as atividades desgastantes de seu
ministério, que era totalmente movido e dinamizado pelo poder e pela
força do Espírito Santo.
Através das pesquisas realizadas foi possível perceber que o Deus
de Jesus Cristo, ao qual ele se dirigia chamando de “Abbá” não era um
Deus distante, nem tampouco a quem se devesse recorrer em clima de
enorme reverência, usando títulos ostentosos, mas um Deus que é Pai,
que é perfeito, que é perdão e que é intimo dele. Esse era o Deus que
Jesus - por meio de sua humanidade - quis tornar conhecido.
89

Essa condição não o fez sentir-se maior ou mais importante que os


outros, pelo contrário, vivia envolvido com aqueles e aquelas sem vez,
sem voz e sem nome, criando com eles e com elas laços de acolhida e
misericórdia através de uma convivência fraterna (horizontalidade).
Nesse contexto, as pessoas que aderiam ao projeto de Jesus
deveriam também fazer uma escolha, pois não era possível continuar
ao lado do sistema que – em nome de Deus – deixava tanta gente à
margem do caminho. O próprio Jesus entrou em conflito com vários
grupos e lideranças (fariseus, escribas, saduceus, herodianos etc.), por
eles não entenderem e nem aceitarem a sua maneira diferenciada de
tratar e acolher, principalmente os pobres e marginalizados, entre os
quais se encontravam inúmeras mulheres e crianças.
No terceiro capítulo, foram apresentados alguns conceitos de
espiritualidade, tendo como foco principal a espiritualidade cristã.
Assumimos a premissa de que a Bíblia pode ser utilizada como ponto
de apoio para quem quer crescer na sua espiritualidade, pois nela
encontramos exemplos de fé que demonstram que Deus está perto e
caminha com o seu povo. Tal presença pode ser percebida através de
situações concretas vivenciadas por homens e mulheres que se
dispõem a percorrer o caminho, iluminados pela palavra que é fonte de
vida, sejam “perfeitamente habilitados para toda boa obra” (2Tm 3,17).
No mundo globalizado em que vivemos a espiritualidade que nasce
da práxis libertadora de Jesus pode nos auxiliar nessa difícil tarefa de
ressignificar todas as relações, de tal modo que ao experienciar o
sagrado, os bens terrenos sejam relativizados e colocados a serviço da
vida, da promoção humana e da dignidade de todas as pessoas.
Concluímos assim, que a práxis libertadora de Jesus continua
atualíssima, uma vez que o quadro de marginalizados e marginalizadas
do nosso tempo exige da pessoa cristã um olhar e uma ação
misericordiosas que possibilitem o resgate e a promoção dos seres
humanos, de forma a tornar visíveis os sinais do Reino de Deus, tal
qual aconteceu por intermédio de Jesus há mais de dois mil anos.
Ao finalizar esta pesquisa, cabe aqui externar o meu sentimento
de alegria pelas reflexões e aprendizagem realizadas e obtidas através
90

das leituras e elaboração do presente trabalho. Por outro lado, percebo


que há muito por caminhar e agregar, em se tratando de um tema tão
atual e tão instigante.
91

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