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* Felipe Fulanetto é técnico em Web Design, graduado em Teologia no STNB, bacharel em Teologia
reconhecido pela UNICESUMAR e mestrando em missiologia no CEM. Pastor e missionário pela Igreja do
Nazareno, coordenador de pesquisas missionárias institucional da AMTB, pertence à equipe do projeto
Vocacionados e do movimento VOCARE. Organizador e co-autor do e-book “Vocação e Juventude” publicado
pela editora Ultimato.
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1. INTRODUÇÃO
O rei do baião, Luiz Gonzaga, cantor e compositor de música típica do nordeste
brasileiro, em sua mais famosa composição, a “Asa Branca”, conta de suas tristes
experiências na década de 40, com a seca que assola a terra e suas misérias decorrentes. A
canção conta a história de um homem que, por causa da falta de chuva, os seus gados e
plantações morreram de sede, e no desespero para sobreviver até mesmo à ave “Asa-
branca” migra em busca de alimento. E, esta seca, obriga também o rapaz a sair da sua
querida terra, prometendo voltar um dia para os braços de sua mulher. No meio do caos e
angustia, em um diálogo com Deus, ele exclama a emblemática pergunta: “Por que
tamanha judiação?”.
A mesma pergunta é feita por milhões de pessoas todos os dias, em diversos lugares,
em diferentes contextos e por variados motivos. Desde um professor acadêmico de filosofia
metafísica até a mãe que perdeu seu filho em um acidente; todos desejam a resposta do
“porquê” do sofrimento.
Falar a palavra sofrimento na nossa cultura é o mesmo que provocar calafrios. Somos
ensinados desde a tenra idade que o sofrimento deve ser evitado, expurgado e condenado.
As nossas ações e sonhos, não incluem qualquer tipo de padecimento, muito pelo contrário,
defendemo-nos com unhas e dentes dos horrores do mundo e almejamos as mais belas
conquistas e alegrias que existem.
A sociedade é impermeada pelo hedonismo, seja ele derivado de Aristipo de Cirene
(435-335 a.C.) – que ensinava o prazer devasso – ou o hedonismo de Epicuro (341-270
a.C), que ensinou o prazer moderado. Facilmente os cristãos criticariam a visão de prazer
dos cirenaicos e aceitariam dos epicuristas, no entanto, em ambas escolas filosóficas o
prazer é o alvo central da vida e o sofrimento um obstáculo para tal realização.*
No universo missionário o sofrimento é muito mais cotidiano do que em muitas outras
profissões. O missionário lida diariamente com as angustias, mazelas e dificuldades da
humanidade, seja a dor da perda em um campo de refugiados ou a solidão agonizante dentro
das prestigiosas universidades. E, muito mais constante que ajudar aos aflitos, os
* Estas duas escolas filosóficas, os epicuristas e os cirenaicos, se divergem sobre o entendimento do que é o
hedonismo. As duas escolas têm como o alvo último da vida o prazer, no entanto, para o filósofo Epicuro a
busca da felicidade acarretava duas características, primeiro a aponia, a ausência de dor física, segundo a
ataraxia, imperturbabilidade da alma. Para ele o prazer se encontrava nas situações simples da vida, como
amizade, comer, dormir etc. Em contrapartida, para Aristipo a felicidade é conquistada quando maximizamos
todas as sensações de prazer e minimizamos as de dores. A única razão da vida é o prazer e devemos busca-
lo ao extremo, mesmo que para isso devemos tomar atitudes antiéticas, como promiscuidade, drogas,
ultrapassas etc.
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missionários devem lidar com seus próprios sofrimentos. Saudade dos familiares,
enfermidades constantes, choque cultural, problemas matrimoniais e muito mais.
Todavia, em meio a todos esses percalços uma marca é inegável: o crescimento do
evangelho. Não há propagação do evangelho sem sofrimento, assim como não há paraíso
sem calvário. Portanto, neste presente artigo pretendemos estudar o avanço da palavra de
Deus através do sofrimento, analisando como a evangelização martírica torna-se a maior
instrumentalização para propagação da graça.
* Apoteose, no grego apothéosis, significa deificação, que consiste em endeusar ou deificar uma pessoa
devido a alguma ação grandiosa que tenha feito. Hoje é utilizado para ações, construções ou celebrações
grandiosas, que trazem grande glorificação para quem o realizou.
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Jesus, antes de ser assunto ao céu, ordenou aos seus discípulos a serem testemunhas
“em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samária, e até os confins da terra” (Atos 1:8),
porém com o grande resultado das conversões em pentecoste e em momentos subsequentes,
fizeram que a Igreja se acomodasse em Jerusalém e buscasse o seu autogerenciamento.
Contudo, com a morte de Estevão, a liderança da Igreja foi chacoalhada e seus membros
lembraram-se da missão que lhe foram conferidas. Quando a Igreja fica apática com a sua
responsabilidade missiológica, Deus suscita perseguições para acorda-la e pôr-lha em
movimento.
Paulo, Pedro, João e todos os discípulos dos primeiros séculos tinham consciência do
sofrimento, preparando-se para quando ele chegar e não se chegar. Eles reconheciam que
as palavras do seu Mestre não eram falsas ao declarar que “Bem-aventurados os que são
perseguidos por causa da justiça [...] quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo,
disserem todo mal contra vós por minha causa” (Mt 5:10-11). Eles viviam a Teologia do
Sofrimento, que reconhece que o sofrimento não é uma pedra de tropeço, e sim, o meio
mais frutifico de propagar as boas-novas. O sofrimento é uma disciplina espiritual para
aumentar a fé e crescer em santidade (cf. Hb 12:10, II Co 1:8-9). Hoje nas igrejas do
Ocidente, temos uma Teologia do Conforto, uma teologia que prega para o nosso ego,
vaidade e futilidade. Uma teologia que obriga Deus realizar os nossos caprichos e desejos,
em uma busca desenfreada pela felicidade e estabilidade. O hedonismo tomou posse da
cruz, trocando o “negar a si mesmo” por “satisfazer a si mesmo”.
Justo González nos conta como o martírio foi uma ferramenta divina para propagação
do evangelho, sendo reconhecido como de todos os milagres, o mais eficaz em conversões.
Os primeiros cristãos estavam tão dispostos a serem dignos de sacrificarem suas vidas pelo
seu Senhor que, nas palavras de González, “a igreja teve de proibir a prática dos
‘espontâneos’ – pessoas que se ofereciam voluntariamente para o martírio – e insistir em
que o martírio era uma coroa para a qual era necessária a eleição divina” (Justo L. Gonzáles
& Carlos Cardoza Orlandi, 2008, p. 69). Eles entenderam que suas vidas são como
sementes que ao morrerem geram mais frutos: "Na verdade, na verdade vos digo que, se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer; dá muito fruto" (Jo
12.24)
O que Gonzáles narra como o milagre mais eficaz para conversões é exatamente o que
estamos propondo, uma evangelização martírica. Um versículo muito usado dentro do
contexto missionário perde a sua profundidade se não foi lido no idioma original.
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As últimas palavras de Jesus para os seus discípulos estão relacionadas com a nossa
missão de glorificá-lo entre todas as nações, levando as boas-novas como martures, isto é,
mártires. Literalmente Cristo está nos convocando para sermos mártires do Reino de Deus
para pregar o evangelho até aos confins da terra.
Não obstante, infelizmente, muitos se equivocam classificando o martírio como um
dom, atribuindo que as pessoas que morrem por Cristo receberam um poder sobrenatural
para serem mártires. Esta afirmação é um erro fugaz, uma escapatória de serem fiéis. Ao
afirmarem que o martírio é um dom, simplesmente estão abrindo a possibilidades de negar
a Cristo em momentos de perseguição, tendo como crença que, se não tenho este dom,
logo, eu posso fugir da minha responsabilidade. Contudo, a bíblia é clara e nítida que o
martírio não é dom, e sim, fidelidade a Deus. Por conseguinte, veremos a seguir quais sãos
os pressupostos para uma evangelização martírica.
a) Perseverante
A evangelização martírica é duradoura, enfrenta as dificuldades e persevera até
o final da sua missão, não buscando projetos curtos para apenas obter
experiências, mas é focado em longos e produtivos trabalhos. Compreendendo
o que é um ministério perseverante e martírico, eliminaremos as causas
evitáveis do retorno prematuro. A visão bíblica que nos é apresentada requer
um desprendimento total do missionário para servir por tempo indeterminado
(Lc 9:62; Fp 3:13-14; 2 Tm 4:7). Entendemos que há momentos de se retirar,
avaliar e atualizar, no entanto, a normativa para nossa ação é que cumpramos a
obra, ou seja, perseveraremos martiricamente até que cumpramos a missão que
nos foi outorgada.
b) Compassiva
A segunda característica da evangelização martírica é a ação orientada pela
compaixão. Nos evangelhos podemos aprender com o próprio Cristo como deve
ser a nossa evangelização: “Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão
pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não
têm pastor” (Mateus 9:36). A empatia faz parte de todo servo sofredor, pois
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subestimado” (Stott, 2011, pp. 100-101). Por isso, é importante delinear alguns limites com
relação ao sofrimento, porque, nem todo o sofrimento é comunhão com os sofrimentos de
Cristo.
Para o sofrimento estar nesta categoria, os apóstolos e a igreja devem sofrer por amor
ao seu cargo ou a sua vocação cristã; devem sofrer como cristãos (1 Pe 4:16), injustamente
(1 Pe 2:19-20), não sendo considerados malfeitores ou assassinos (1 pe 4:15; Lc 23:32ss).
O verdadeiro sofrimento para Cristo é chamado sofrimento “segundo a vontade de Deus”
(1 Pe 4:19), sofrimento “pelo nome” de Jesus Cristo (At 9:16; Fp 1:29), “a favor do
evangelho” (2 Tm 1:8), “por motivo de sua consciência para com Deus” (1 Pe 2:19), “por
causa da justiça” (1 Pe 3:14), “para que sejais considerados dignos do reino de Deus” (2 Ts
1:5) (COENEN, Lothar; BROWN, Colin, 2000, p. 2418). Vale ressaltar que não podemos
ir para outro extremismo, como a síndrome messiânica, crendo que nossos atos de
sofrimento se comparam de tal forma a de Cristo que, são realmente sofrimentos
expiatórios e dignos de adoração. Isto é idolatria. Todo o sofrimento tem somente um alvo
e Ele é Cristo.
Muito menos, o sofrimento deve ser procurado, como um método de alcançar uma
recompensa maior, pois nós não somos masoquistas, que sentimos prazer na dor em si,
porém somos confiantes que quando chegar o sofrimento, não será em vão. John Piper com
exatidão afirma que “as aflições são a nossa vocação, quer sejamos missionários ou não”.
(Piper, 2001, p. 91)
Na ótica cristã, William Lane Craig examina o sentido do sofrimento e conclui que “a
fim de alcançar seus propósitos Deus pode ter que permitir uma grande dose de sofrimento
ao longo do caminho. O sofrimento que nos parece sem sentido, segundo nossa visão
limitada, pode ser visto por Deus como algo justificadamente permitido, segundo a visão
dele, que é bem mais ampla”. (CRAIG, 2011, p. 176)
Tanto Frankl como Craig estão defendendo que é possível termos um sentido em todo
o sofrimento. Para nós, compreendemos biblicamente que em toda situação de sofrimento
por Cristo há um complemento divino que Pedro e Paulo narram perfeitamente.
“Mas alegrem-se à medida que participam dos sofrimentos de Cristo, para
que também, quando a sua glória for revelada, vocês exultem com grande
alegria” (1 Pe 4:13)
“Pois as nossas aflições leves e passageiras estão produzindo para nós uma
glória incomparável, de valor eterno” (2 Co 4:17)
Onde há o sofrimento por causa de Cristo a glória de Deus anda adjunto. É, pois, a
esperança da glória que torna o sofrimento suportável. Nós temos o porquê de viver e
sabemos o sentido do sofrimento. O sofrimento e a glória são como duas irmãs que
caminham de mãos dadas em rumo ao Pai Celestial. Assim como Piper defende em base
das citações de Paulo, é possível termos alegria em meio as aflições, e, tais sofrimentos,
tornarem a maior instrumentalização para propagação (Piper, 2001, p. 132). Espero que
esse pequeno ensaio possa despertar em nós uma reavaliação em nossas metodologias
evangelísticas e que possamos aderir o conceito de evangelização martírica para que, então,
todos os povos glorifiquem a Deus.
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Bibliografia
BOSCH, D. J. (1998). Missão Transformadora: Mudanças de Paradigma na Teologia da Missão. São
Leopoldo: Sinodal.
COENEN, Lothar; BROWN, Colin. (2000). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
Vol. II. São Paulo: Vida Nova.
Costas, O. E. (2014). Proclamar Libertação: Uma teologia de evangelização contextual. São Paulo:
Garimpo.
CRAIG, W. L. (2010). Apologética para questões difíceis da vida. São Paulo: Vida Nova.
Downing, D. (2006). C.S. Lewis O mais relutante dos convertidos. Editora Vida.
HILL, Harriet & HILL, Margaret. (2010). Colocando a Bíblia em Ação. São Paulo: Vida Nova.
Justo L. Gonzáles & Carlos Cardoza Orlandi. (2008). História do Movimento Missionário. São Paulo:
Hagnos.
Lothar Coenen & Colin N. Brow. (2000). Dicionário Internacional de Teologia do Novo Testamento
vol. II. São Paulo: Vida Nova.
Piper, J. (2001). Teologia da alegria: a plenitude da satisfação em Deus. São Paulo: Shedd
Publicações.
Wright, C. (2012). A Missão do Povo de Deus. São Paulo: Vida Nova e Insituto Betel Brasileiro.