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EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA: SOFRIMENTO A MAIOR

INSTRUMENTALIZAÇÃO PARA PROPAGAÇÃO


Felipe Fulanetto*

Resumo: Neste artigo pretendemos expor um metaparadigma evangelística, que


despertará uma reflexão bíblica-teológica dos modelos apresentados, concatenando as
ideias e propondo um adendo do conceito martírico.

Palavras-chaves: martírio, evangelização, sofrimento, paradigma evangelistíco.

Abstract: In this article we present an evangelistic metaparadigm, awakening a


biblical-theological reflection of the models presented by concatenating the ideas and
proposing an addition of martyrdom concept.

Keywords: martyrdom, evangelization, suffering, evangelistic paradigm.

* Felipe Fulanetto é técnico em Web Design, graduado em Teologia no STNB, bacharel em Teologia
reconhecido pela UNICESUMAR e mestrando em missiologia no CEM. Pastor e missionário pela Igreja do
Nazareno, coordenador de pesquisas missionárias institucional da AMTB, pertence à equipe do projeto
Vocacionados e do movimento VOCARE. Organizador e co-autor do e-book “Vocação e Juventude” publicado
pela editora Ultimato.
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1. INTRODUÇÃO
O rei do baião, Luiz Gonzaga, cantor e compositor de música típica do nordeste
brasileiro, em sua mais famosa composição, a “Asa Branca”, conta de suas tristes
experiências na década de 40, com a seca que assola a terra e suas misérias decorrentes. A
canção conta a história de um homem que, por causa da falta de chuva, os seus gados e
plantações morreram de sede, e no desespero para sobreviver até mesmo à ave “Asa-
branca” migra em busca de alimento. E, esta seca, obriga também o rapaz a sair da sua
querida terra, prometendo voltar um dia para os braços de sua mulher. No meio do caos e
angustia, em um diálogo com Deus, ele exclama a emblemática pergunta: “Por que
tamanha judiação?”.
A mesma pergunta é feita por milhões de pessoas todos os dias, em diversos lugares,
em diferentes contextos e por variados motivos. Desde um professor acadêmico de filosofia
metafísica até a mãe que perdeu seu filho em um acidente; todos desejam a resposta do
“porquê” do sofrimento.
Falar a palavra sofrimento na nossa cultura é o mesmo que provocar calafrios. Somos
ensinados desde a tenra idade que o sofrimento deve ser evitado, expurgado e condenado.
As nossas ações e sonhos, não incluem qualquer tipo de padecimento, muito pelo contrário,
defendemo-nos com unhas e dentes dos horrores do mundo e almejamos as mais belas
conquistas e alegrias que existem.
A sociedade é impermeada pelo hedonismo, seja ele derivado de Aristipo de Cirene
(435-335 a.C.) – que ensinava o prazer devasso – ou o hedonismo de Epicuro (341-270
a.C), que ensinou o prazer moderado. Facilmente os cristãos criticariam a visão de prazer
dos cirenaicos e aceitariam dos epicuristas, no entanto, em ambas escolas filosóficas o
prazer é o alvo central da vida e o sofrimento um obstáculo para tal realização.*
No universo missionário o sofrimento é muito mais cotidiano do que em muitas outras
profissões. O missionário lida diariamente com as angustias, mazelas e dificuldades da
humanidade, seja a dor da perda em um campo de refugiados ou a solidão agonizante dentro
das prestigiosas universidades. E, muito mais constante que ajudar aos aflitos, os

* Estas duas escolas filosóficas, os epicuristas e os cirenaicos, se divergem sobre o entendimento do que é o
hedonismo. As duas escolas têm como o alvo último da vida o prazer, no entanto, para o filósofo Epicuro a
busca da felicidade acarretava duas características, primeiro a aponia, a ausência de dor física, segundo a
ataraxia, imperturbabilidade da alma. Para ele o prazer se encontrava nas situações simples da vida, como
amizade, comer, dormir etc. Em contrapartida, para Aristipo a felicidade é conquistada quando maximizamos
todas as sensações de prazer e minimizamos as de dores. A única razão da vida é o prazer e devemos busca-
lo ao extremo, mesmo que para isso devemos tomar atitudes antiéticas, como promiscuidade, drogas,
ultrapassas etc.
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missionários devem lidar com seus próprios sofrimentos. Saudade dos familiares,
enfermidades constantes, choque cultural, problemas matrimoniais e muito mais.
Todavia, em meio a todos esses percalços uma marca é inegável: o crescimento do
evangelho. Não há propagação do evangelho sem sofrimento, assim como não há paraíso
sem calvário. Portanto, neste presente artigo pretendemos estudar o avanço da palavra de
Deus através do sofrimento, analisando como a evangelização martírica torna-se a maior
instrumentalização para propagação da graça.

2. ANTÍTESE DA EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA


Quando pensamos em evangelização logo associamos com a proclamação da palavra,
isto é, uma mensagem a ser anunciado para todos os povos. Essa afirmação não está errada,
porém incompleta. A evangelização, como comprovaremos adiante, é muito mais do que
verbalização das boas novas, por isso devemos analisar biblicamente e historicamente a
sua significação. De uma forma sucinta, veremos primeiramente alguns dos equívocos
relacionados à evangelização e posteriormente a nossa definição.
a) Proselitismo
Primeiramente, evangelização não é um ato prosélito, isto é, zelo ou esforço
para fazer converter pessoas a uma religião, a um partido ou a uma
denominação. No proselitismo há uma forte tendência de dizer às pessoas o
quão ruim ou erradas são suas crenças atuais. Muito diferente da apologética
cristã, que defende suas crenças e valores em frente as heresias e debates.
Portanto, quando evangelizamos, não devemos ter a intenção de dizendo que a
nossa religião é melhor que qualquer outra. Não estamos nos colocando como
seres moralmente ou espiritualmente superiores, e tentando conquistar pessoas
para deixar sua religião juntando-se a nós, de forma que se sintam tão superiores
como nós.
De acordo com Orlando Costas “a evangelização é um labor de amor, e não
uma cruzada proselitista (...) se recusa a ser coercitiva e sempre respeita a
dignidade e a liberdade humana” (Costas, 2014, p. 51). Em uma evangelização
prosélita o alvo são números, não vidas. Colocamos como campo a serem
alcançados onde a nossa denominação não está, buscando converter a todos que
não seguem as nossas bandeiras eclesiásticas. A evangelização martírica segue
o caminho completamente oposto.
b) Civilisismo
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Na história podemos observar missionários, igrejas e agências missionárias


inteiras que tinham como alvo evangelístico a civilização de um povo. Eles
criam que levar o evangelho implicava trazer um padrão de vida equivalente à
sua própria cultura. David Bosch salienta que, para eles, civilizar era uma
condição sine qua non para alcançar resultados espirituais, acreditando que
etnias tão primitivas não poderiam entender a mensagem do evangelho se não
fosse previamente civilizadas. Muitos indagavam-se: é necessário,
primeiramente, educar e civilizar para que a evangelização possa ser efetiva ou
deveríamos concentrar-nos na evangelização, confiantes de que a civilização
virá em seguida? Inclusive para Wilberforce e Carey viam na "civilização" e na
"difusão do evangelho" um conjunto (BOSCH, 1998, p. 360). Hoje com o
avanço do uso das ciências sociais na teologia e missiologia, essas ideologias
são fortemente combatidas.
c) Apoteosismo
Denominarei evangelização apoteótica* todas ações destinas a impressionar o
inconverso através de ações grandiosas e atrativas, seja elas pelo poder, política
ou dinheiro. Congressos, shows e pregações de pastores famosos, são
considerados como ações evangelísticas apoteóticas, pois seu alvo é chamar
atenção pela grandiosidade do evento, atraindo a pessoa para obter o mesmo
poder. É descartado a simplicidade, fidelidade e transformação genuína, desta
forma, tornando a igreja uma casa de eventos. Isto demonstra a crise eclesiástica
que estamos vivenciando e como foi transportado a teologia triunfalista para a
esfera da evangelização.
d) Teologia da Prosperidade
O arqui-inimigo da evangelização martírica nos dias atuais é a teologia da
prosperidade com seus ensinamentos errôneos sobre o sofrimento, sucesso e
vitória. Para tais teólogos, o sofrimento é decorrente única e exclusivamente do
pecado pessoal ou satânico, atribuindo total responsabilidade à falta de fé em
Cristo. Para essa linha teológica o sucesso e a vitória estão intrinsicamente
ligados à bens materiais, a felicidade, a saúde física e conquistas profissionais.

* Apoteose, no grego apothéosis, significa deificação, que consiste em endeusar ou deificar uma pessoa
devido a alguma ação grandiosa que tenha feito. Hoje é utilizado para ações, construções ou celebrações
grandiosas, que trazem grande glorificação para quem o realizou.
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Desta forma, interpretando o sofrimento como um percalço a ser vencido de


todas as formas possíveis, eliminando-o e excluindo da soberania de Deus. Há
fortemente uma doutrina anti-sofrimento sendo propagado nas igrejas, e não
somente em neopentecostais, mas desde as históricas, pentecostais, holiness,
congregacionais etc.

3. BASE BÍBLICA PARA EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA


Como vimos o que não é a evangelização, discorreremos o paradigma metodológico
evangelístico da evangelização martírica, vendo de que maneira a bíblia nos auxilia a
alinhavar alguns pontos que não podem ficar de fora, à medida que refletimos a partir da
Palavra de Deus sobre o trabalho missionário e sobre a tarefa que temos de fazermos
consiliência* com a Missio Dei.
Em nenhuma lenda ou crença religiosa existe um Deus que por amar tanto a sua criação
se materializou com o objetivo de padecer, sofrer e morrer, em prol daqueles que o
rejeitaram, o ignoraram e escarneceram. O Buda, Maomé, os Faraós, Bahá'u'lláh,
Zaratustra, Mahatma Gandhi e outros ícones da fé de milhões, simplesmente, nenhum deles
professaram morrer pelos pecados de alguém. Em contrapartida, o Servo sofredor, aquele
que se humilhou, se rebaixou e foi obediente até a morte de cruz, tornou-se, assim como
C.S. Lewis expressou, o “Deus-que-morre em sacrifício pelo povo”. (Downing, 2006, p.
157)
O sofrimento de Cristo, não foi somente para nos libertar, mas, também, o
estabelecimento do padrão de vivência de seus seguidores, isto é, seu sofrimento requer
que nós, como seguidores dEle, palmilhemos um caminho semelhante. (Lothar Coenen &
Colin N. Brow, 2000, p. 2417).
O Cristianismo desde que foi fundado foi alvo de perseguições e opressões, sendo que
o próprio fundador declarou que assim como Ele foi atacado e perseguido, os seus
discípulos passariam pelas mesmas aflições (Jo 15:20). Não muito tempo depois da morte
do Mestre, ocorreu o primeiro martírio da história da Igreja, Estevão, um homem cheio de
fé e do Espírito Santo (At 8:1). Decorrente deste fato, as Escrituras nos narra que houve
uma dispersão dos discípulos fugindo da opressão (8:4), porém, não perdendo a fé e a
ousadia da pregação.

* A palavra “consiliência” é um termo que significa unidade do conhecimento ou conjunção de diferentes


áreas do conhecimento que chegam na mesma conclusão utilizando disciplinas e metodologias distintas.
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Jesus, antes de ser assunto ao céu, ordenou aos seus discípulos a serem testemunhas
“em Jerusalém, como em toda a Judéia e Samária, e até os confins da terra” (Atos 1:8),
porém com o grande resultado das conversões em pentecoste e em momentos subsequentes,
fizeram que a Igreja se acomodasse em Jerusalém e buscasse o seu autogerenciamento.
Contudo, com a morte de Estevão, a liderança da Igreja foi chacoalhada e seus membros
lembraram-se da missão que lhe foram conferidas. Quando a Igreja fica apática com a sua
responsabilidade missiológica, Deus suscita perseguições para acorda-la e pôr-lha em
movimento.
Paulo, Pedro, João e todos os discípulos dos primeiros séculos tinham consciência do
sofrimento, preparando-se para quando ele chegar e não se chegar. Eles reconheciam que
as palavras do seu Mestre não eram falsas ao declarar que “Bem-aventurados os que são
perseguidos por causa da justiça [...] quando vos injuriarem e perseguirem e, mentindo,
disserem todo mal contra vós por minha causa” (Mt 5:10-11). Eles viviam a Teologia do
Sofrimento, que reconhece que o sofrimento não é uma pedra de tropeço, e sim, o meio
mais frutifico de propagar as boas-novas. O sofrimento é uma disciplina espiritual para
aumentar a fé e crescer em santidade (cf. Hb 12:10, II Co 1:8-9). Hoje nas igrejas do
Ocidente, temos uma Teologia do Conforto, uma teologia que prega para o nosso ego,
vaidade e futilidade. Uma teologia que obriga Deus realizar os nossos caprichos e desejos,
em uma busca desenfreada pela felicidade e estabilidade. O hedonismo tomou posse da
cruz, trocando o “negar a si mesmo” por “satisfazer a si mesmo”.
Justo González nos conta como o martírio foi uma ferramenta divina para propagação
do evangelho, sendo reconhecido como de todos os milagres, o mais eficaz em conversões.
Os primeiros cristãos estavam tão dispostos a serem dignos de sacrificarem suas vidas pelo
seu Senhor que, nas palavras de González, “a igreja teve de proibir a prática dos
‘espontâneos’ – pessoas que se ofereciam voluntariamente para o martírio – e insistir em
que o martírio era uma coroa para a qual era necessária a eleição divina” (Justo L. Gonzáles
& Carlos Cardoza Orlandi, 2008, p. 69). Eles entenderam que suas vidas são como
sementes que ao morrerem geram mais frutos: "Na verdade, na verdade vos digo que, se o
grão de trigo, caindo na terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer; dá muito fruto" (Jo
12.24)
O que Gonzáles narra como o milagre mais eficaz para conversões é exatamente o que
estamos propondo, uma evangelização martírica. Um versículo muito usado dentro do
contexto missionário perde a sua profundidade se não foi lido no idioma original.
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“mas recebereis poder, ao descer sobre vós o Espírito Santo, e sereis


minhas testemunhas (μάρτυρες, martures) tanto em Jerusalém como em
toda a Judéia e Samaria e até aos confins da terra.” (Atos 1:8)

As últimas palavras de Jesus para os seus discípulos estão relacionadas com a nossa
missão de glorificá-lo entre todas as nações, levando as boas-novas como martures, isto é,
mártires. Literalmente Cristo está nos convocando para sermos mártires do Reino de Deus
para pregar o evangelho até aos confins da terra.
Não obstante, infelizmente, muitos se equivocam classificando o martírio como um
dom, atribuindo que as pessoas que morrem por Cristo receberam um poder sobrenatural
para serem mártires. Esta afirmação é um erro fugaz, uma escapatória de serem fiéis. Ao
afirmarem que o martírio é um dom, simplesmente estão abrindo a possibilidades de negar
a Cristo em momentos de perseguição, tendo como crença que, se não tenho este dom,
logo, eu posso fugir da minha responsabilidade. Contudo, a bíblia é clara e nítida que o
martírio não é dom, e sim, fidelidade a Deus. Por conseguinte, veremos a seguir quais sãos
os pressupostos para uma evangelização martírica.

a) Perseverante
A evangelização martírica é duradoura, enfrenta as dificuldades e persevera até
o final da sua missão, não buscando projetos curtos para apenas obter
experiências, mas é focado em longos e produtivos trabalhos. Compreendendo
o que é um ministério perseverante e martírico, eliminaremos as causas
evitáveis do retorno prematuro. A visão bíblica que nos é apresentada requer
um desprendimento total do missionário para servir por tempo indeterminado
(Lc 9:62; Fp 3:13-14; 2 Tm 4:7). Entendemos que há momentos de se retirar,
avaliar e atualizar, no entanto, a normativa para nossa ação é que cumpramos a
obra, ou seja, perseveraremos martiricamente até que cumpramos a missão que
nos foi outorgada.
b) Compassiva
A segunda característica da evangelização martírica é a ação orientada pela
compaixão. Nos evangelhos podemos aprender com o próprio Cristo como deve
ser a nossa evangelização: “Ao ver as multidões, Jesus sentiu grande compaixão
pelas pessoas, pois que estavam aflitas e desamparadas como ovelhas que não
têm pastor” (Mateus 9:36). A empatia faz parte de todo servo sofredor, pois
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compreende o que é a dor em si mesmo e é-lhe conferido a capacidade de sentir


a dor do outrem.
Christopher Wright diz que "se a fé sem obras está morta, a missão sem a
compaixão e a justiça social é deficiente desde a perspectiva bíblica." (Wright,
2006, p. 381). Ser compassivo é refletir o maior atributo divino: o amor.
Portanto, a evangelização martírica encontra os necessitados, ama os excluídos
e doa-se aos famintos.
c) Altruísta
Uma pessoa pode perseverar em meio as dificuldades e ajudar os aflitos, no
entanto, não podemos sondar o seu coração para saber a sua real intenção. Por
isso, a evangelização martírica tem como princípio o altruísmo, que não busca
o valor do reconhecimento, mas obedecer a causa que lhe foi imbuído. Em
outras palavras o amor ágape. O versículo chave para essa característica é
Filipenses 2:6-7: “Que, sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser
igual a Deus, mas esvaziou-se a si mesmo, tomando a forma de servo, fazendo-
se semelhante aos homens”. John Stott ressaltou esse vínculo indestrutível entre
sofrimento e serviço, paixão e missão tendo como base a própria vida de Cristo,
como ele afirma, “Não é apenas que sofrimento e serviço caminham juntos, mas
que o sofrimento é indispensável ao serviço frutífero ou eficaz” (Stott, 2006, p.
144). Devemos desatar qualquer sentimento de autopromoção, seja para si
mesmo ou para instituição. O único nome que deve ser proclamado e adorado é
o de Jesus Cristo, e exatamente esta é a próxima colocação.
d) Doxológica
Desde o surgimento do conceito teológico Missio Dei e da sua definição que é,
como John Piper advogou, a busca da adoração à Deus entre as nações (Piper,
2001, p. 13), nós entendemos que não há verdadeira evangelização sem
adoração. O alvo fundamental do missionário é a glorificação do santo nome de
Deus em todos os povos. A evangelização martírica é doxológica por essência,
ela caminha em direção aos povos em busca de adoradores, assistindo ao agir
de Deus soberanamente. Uma vida e mensagem cristocêntrica desemboca em
uma evangelização martírica escatológica que aponta para a parousia e entrega-
lhe a adoração devida.
e) Sacrificial
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Por último, entendemos que não há verdadeira evangelização sem sacrifício, e,


este sacrifício, não consiste em ações em prol do outro, mas o sacrifício de
crucificar a sua carne e seus desejos, reconhecendo a sua própria inabilidade
para agarrar-se na imensidão do amor de Deus. O maior sacrifício que um
missionário pode fazer é viver uma vida de santidade, negando as paixões do
coração. Uma evangelização martírica requer uma abnegação sacrificial ao
extremo. Ao vivermos um modelo bíblico, os que nos rodeiam observarão a
diferença que há em nós e consequentemente buscarão entender como vivemos
de tal modo. Nesse momento que a evangelização verbalizada se aplica, onde
anunciamos a graça de Deus. Dessa forma entendemos que evangelização não
consiste somente em palavras, mas uma vida santa atraente que se distingue do
modus operandi dos outros povos. Christopher Wright ilumina o nosso
entendimento usando o termo “magnetismo missionário”, que demonstra o
desejo que Deus tem de atrair os perdidos para si. E o principal meio pelo qual
ele faz isso é vivendo no meio de seu próprio povo, de tal forma que ele atraia
os outros (Wright, 2012, p. 155).

4. POR QUE EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA?


A evangelização martírica que estamos propondo apresenta pressupostos conhecidos e
praticados há séculos por muitos missionários. Em vista disso, não temos o propósito de
apresentar algo inovador e único, muito menos que esse paradigma evangelístico venha
suplantar outras. Entretanto, ele apresenta algumas variações de outros métodos, tais como
a evangelização contextual de Orlando Costas, a evangelização discipuladora de Robert
Coleman, a evangelização querigmática de Billy Graham, a evangelização ecumênica de
Sherron George, a evangelização de crescimento de Donald McGavran e a evangelização
de batalha espiritual de Peter Wagner.
A evangelização martírica não cai no erro do pragmatismo da querigmática e do
assistencialismo da ecumênica. Muito menos esquece do holismo que é apresentado pela
contextual e de fazer discípulos da discipuladora. No entanto, não busca o extremismo do
paradigma de crescimento e da batalha espiritual. O que propomos é uma metaparadigma,
isto é, despertar uma reflexão bíblica-teológica de todas os paradigmas evangelísticos,
concatenando as ideias e propondo um adendo do conceito martírico.
Pois assim como John Stott salienta, não podemos continuar na mesma ignorância, que
“apesar de o sofrimento ser um aspecto indispensável na missão, ele é frequentemente
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subestimado” (Stott, 2011, pp. 100-101). Por isso, é importante delinear alguns limites com
relação ao sofrimento, porque, nem todo o sofrimento é comunhão com os sofrimentos de
Cristo.
Para o sofrimento estar nesta categoria, os apóstolos e a igreja devem sofrer por amor
ao seu cargo ou a sua vocação cristã; devem sofrer como cristãos (1 Pe 4:16), injustamente
(1 Pe 2:19-20), não sendo considerados malfeitores ou assassinos (1 pe 4:15; Lc 23:32ss).
O verdadeiro sofrimento para Cristo é chamado sofrimento “segundo a vontade de Deus”
(1 Pe 4:19), sofrimento “pelo nome” de Jesus Cristo (At 9:16; Fp 1:29), “a favor do
evangelho” (2 Tm 1:8), “por motivo de sua consciência para com Deus” (1 Pe 2:19), “por
causa da justiça” (1 Pe 3:14), “para que sejais considerados dignos do reino de Deus” (2 Ts
1:5) (COENEN, Lothar; BROWN, Colin, 2000, p. 2418). Vale ressaltar que não podemos
ir para outro extremismo, como a síndrome messiânica, crendo que nossos atos de
sofrimento se comparam de tal forma a de Cristo que, são realmente sofrimentos
expiatórios e dignos de adoração. Isto é idolatria. Todo o sofrimento tem somente um alvo
e Ele é Cristo.
Muito menos, o sofrimento deve ser procurado, como um método de alcançar uma
recompensa maior, pois nós não somos masoquistas, que sentimos prazer na dor em si,
porém somos confiantes que quando chegar o sofrimento, não será em vão. John Piper com
exatidão afirma que “as aflições são a nossa vocação, quer sejamos missionários ou não”.
(Piper, 2001, p. 91)

5. EXEMPLO HISTÓRICO DA EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA


Assim como afirmamos que esse modelo perpassa em toda a história da igreja,
pretendemos narrar algumas histórias práticas, dentre muitas que existem, de como a
evangelização martírica é eficaz. Uma das histórias mais surpreendente do crescimento do
evangelho no século XX é do povo chinês. Os missionários que foram à China no início
dos anos 1900 traduziram com muito esforço a Bíblia para o idioma mandarim. Em 1951,
os comunistas expulsaram todos os missionários, porém nos 20 anos seguintes a igreja na
China se multiplicou em 500%. Saindo do um milhão de cristãos conhecidos, para os
incríveis 75 milhões de convertidos. Muitos dos missionários criam que logo após sua
deportação a igreja chinesa iria morrer com as pressões e perseguições ferrenhas feita pelo
ditador Mao Tsé-Tung. No entanto, a fé dos crentes era nutrida pela Bíblia na língua deles
e a soberania de Deus foi maior do que qualquer especulação humana. (HILL, Harriet &
HILL, Margaret, 2010, p. 45).
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De acordo com as Sociedades Bíblicas Unidas, (Societies, 2013) os países onde os


cristãos são perseguidos, obtiveram o maior percentual de crescimento na demanda de
leitura bíblica. Países como Síria, Iraque, Egito, Índia, Laos e Nigéria são alguns apontados
como sofrendo altos níveis de perseguição, e em 2012 a distribuição das Escrituras
aumentou significativamente. A triste situação que a Síria está passando com a devastação
da guerra civil, proporcionou o crescimento dos incríveis 758% na distribuição da bíblia,
sendo de 19 mil exemplares no ano de 2011, para 163,105 em 2013. No Iraque, o
crescimento foi de 132%, em Laos de 159% e no Egito de 25%. Estes dados testificam que
em meio ao caos e perseguição a fome da palavra continua crescente, e o evangelho sendo
o balsamo aos feridos.
Ainda podemos citar o exemplo dos cristãos iranianos, que vivendo em regime
ditatorial anti-cristão, em 1979 eram conhecidos apenas 500 seguidores de Jesus, no
entanto, em 2010 a Igreja do nosso Senhor expandiu para mais de um milhão de discípulos.
E essa história não é isolada no contexto muçulmano. As estatísticas não formais feitas por
missionários de como os muçulmanos se convertem, relatam que em geral há quatro
maneiras distintas: 25% através de TV e rádio; outros 25% lendo a Bíblia, sem nenhum
auxílio humano; mais 25% com visões e sonhos; e os demais 25% se convertem através do
evangelismo pessoal. Isto nos mostra que 75% das conversões dos muçulmanos acontecem
sem nenhum contato pessoal direto com um missionário. Com base nessa informação, nos
evidencia a supremacia de Deus na evangelização mundial e que os sofrimentos, privações
e martírios são o cumprimento de João 12:24, a semente que não morrer na terra não produz
fruto. Por isso, Tertuliano declarou que “enquanto mais nos destroem mais crescemos; o
sangue dos cristãos é semente”.
Por fim, uma das histórias mais nítidas do valor da evangelização martírica é a do
missionário inglês Allen Gardiner (1794–1851). Aos 20 anos de idade converteu-se ao
cristianismo e largou a sua posição de capitão, que era o sonho da sua infância, para
consagrar-se a evangelização dos pagãos. Viajou pela África, Nova Guiné e por outros
territórios, porém a América do Sul tornou-se o seu alvo definitivo. Visitou a cordilheira
dos Andes e o Chile, mas seus projetos eram recebidos mui friamente. A oposição do clero
obrigou-o a pensar em alguma região onde não fosse incomodado, e para isso a parte mais
meridional do continente lhe pareceu propícia. Então, Allen Gardiner fixou seu projeto na
região do extremo sul do continente americano, chamado Terra do Fogo, o habitat dos
povos aborígenes.
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Depois de três intentos de fazerem incursões missionárias entre os aborígenes, os seus


conterrâneos ingleses foram extrememante contra seus projetos de voltar a ilha da Terra do
Fogo. Mas este era o único caminho, e Gardiner com convicção divina, propôs de novo seu
empreendimento. Não é necessário falar da frieza e desgosto com que o receberam, mas
Gardiner tomava mais força e continuava batendo às portas que pareciam fechadas, até que
conseguiu fazer-se ouvir.
Em setembro de 1850 uma companhia de sete: três marinheiros, um médico, um jovem
de ardor apostólico, um o carpinteiro naval e Allen Gardiner embarcaram, levando consigo
dois pequenos barcos, que devido à falta de fundos os obrigaram ir deste modo.
Chegando à Terra do Fogo, devido a oposição dos indígenas, foram obrigados a voltar
aos barcos, e nisso perderam muitas provisões. Depois de várias tentativas inúteis de
encontrar auxílio e as constantes tempestades que visitam essas remotas paragens,
inutilizaram o barco a tal ponto que tiveram de lançá-lo em terra. A pesca, na qual os
missionários tinham confiado para sua alimentação, não lhes deu os resultados esperados,
e os fuzis que levavam para a caça não podiam ser usado, porque infelizmente haviam, por
esquecimento, deixado a pólvora no navio que os trouxera. Começaram a escassear as
provisões trazidas, e o navio que esperavam nunca chegava. Cada dia parecia um ano para
os sete heróis que pressentiam que seu fim seria morrer de fome entre os gelos do sul. O
momento era solene e dolorosamente começavam a verificar o triste desfecho da
empreitada. Puseram dentro de algumas garrafas uma nota pedindo auxílio a quem acaso
as encontrasse, e as cobriram com uma pedra grande sobre a qual escreveram estas
palavras: “Navegue para baixo. Vá ao Porto Espanhol - Março 1851”.
Palavras estas que só serviu para que por meio dela se encontrassem os cadáveres dos
valentes cristãos. Nos dias 28 e 29 de agosto de 1851 ainda ficavam alguns com vida, e
Gardiner escrevia as seguintes palavras, despedindo-se de sua filha: "Ele me tem guardado
em perfeita paz. Confio em que a pobre Terra do Fogo não será abandonada. Se tenho um
desejo a expressar aos meus companheiros, é que a missão da Terra do Fogo seja
vigorosamente continuada".
Em outra parte de seu diário leem-se estas palavras: "Ontem não comi nada. Bendito
seja meu Pai Celestial pela graça que tenho desfrutado: uma cama cômoda, nenhuma dor,
nenhuma câimbra, ainda que quase impossibilitado de volver-me no leito". São estas as
últimas palavras do diário: "Grande e maravilhoso é o amor de meu bom Pai para comigo.
Ele me guardou até aqui, sem alimento para meu corpo, porém, sem sentir fome nem sede”.
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Quando chegaram à Inglaterra as notícias do desastre, todos os amigos da missão se


apoderou da consternação. Se os cristãos houvessem sido mais generosos e fornecessem a
Gardiner o navio que ele pedira, a história não teria a relatar esta página lutuosa. Mas os
cadáveres estendidos sobre as neves da Terra do Fogo falaram com mais eloquência que os
lábios ardentes de Gardiner. Portanto, resolveram cumprir o desejo do herói, prosseguindo
na obra. Começaram a chegar doações generosas e comprou-se um navio adequado ao qual
denominaram "Allen Gardiner". Um novo grupo de missionários preparou-se e a missão
teve todo êxito que se podia esperar numa etnia que se extinguia. A sociedade não se
limitou a Terra do Fogo, porém estendeu seus trabalhos a muitas partes do continente,
ocupando-se, de preferência com os indígenas.
Essa e muitas outras histórias, demonstra como pessoas que consideram “tudo como
perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus" (Fp 3:8)
apregoam o evangelho martiricamente. Sete vidas que morreram como mártires, refletiram
em mais missionários e conversões de indígenas. Essa é a maior instrumentalização para
propagação do evangelho. Porém, logicamente, entendemos que não serão todos os
missionários que levarão a cabo literalmente esse imperativo de morrer por causa do seu
labor, mas indiscutivelmente, como temos defendido, todos devem aplicar a evangelização
martírica. E, esse estilo de vida, assim como Paulo cita, não é sem um propósito, mas cheio
de significado eterno, como veremos na conclusão a seguir.

6. EM RUMO A UMA EVANGELIZAÇÃO MARTÍRICA


Depois dessa exposição bíblica e histórica da evangelização martírica, em conclusão,
devemos ressaltar algumas últimas considerações. Não estamos propondo nesse material,
uma vida miserável ou infeliz. Sabemos que o sofrimento em si, é pesaroso e desgostoso,
e que muitas vezes não entendemos o motivo.
Viktor Frankl, psiquiatra judeu que sobreviveu ao campo de concentração em
Auschwitz, após passar por longo período vivenciando a maior decadência moral humana,
desenvolveu uma ciência chamada logoterapia que ensina como superar o sofrimento. Ele
afirma em seu livro que o “sofrimento de certo modo deixa de ser sofrimento no instante
em que encontra um sentido (...) Esta é a razão por que o ser humano está pronto até a
sofrer, sob a condição, é claro, de que o seu sofrimento tenha um sentido” (Frankl, 1985,
p. 65). Frankl gostava de citar a frase de Friedrich Nietzsche: "Quem tem por que viver
pode suportar quase qualquer como".
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Na ótica cristã, William Lane Craig examina o sentido do sofrimento e conclui que “a
fim de alcançar seus propósitos Deus pode ter que permitir uma grande dose de sofrimento
ao longo do caminho. O sofrimento que nos parece sem sentido, segundo nossa visão
limitada, pode ser visto por Deus como algo justificadamente permitido, segundo a visão
dele, que é bem mais ampla”. (CRAIG, 2011, p. 176)
Tanto Frankl como Craig estão defendendo que é possível termos um sentido em todo
o sofrimento. Para nós, compreendemos biblicamente que em toda situação de sofrimento
por Cristo há um complemento divino que Pedro e Paulo narram perfeitamente.
“Mas alegrem-se à medida que participam dos sofrimentos de Cristo, para
que também, quando a sua glória for revelada, vocês exultem com grande
alegria” (1 Pe 4:13)
“Pois as nossas aflições leves e passageiras estão produzindo para nós uma
glória incomparável, de valor eterno” (2 Co 4:17)
Onde há o sofrimento por causa de Cristo a glória de Deus anda adjunto. É, pois, a
esperança da glória que torna o sofrimento suportável. Nós temos o porquê de viver e
sabemos o sentido do sofrimento. O sofrimento e a glória são como duas irmãs que
caminham de mãos dadas em rumo ao Pai Celestial. Assim como Piper defende em base
das citações de Paulo, é possível termos alegria em meio as aflições, e, tais sofrimentos,
tornarem a maior instrumentalização para propagação (Piper, 2001, p. 132). Espero que
esse pequeno ensaio possa despertar em nós uma reavaliação em nossas metodologias
evangelísticas e que possamos aderir o conceito de evangelização martírica para que, então,
todos os povos glorifiquem a Deus.
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Publicações.

Societies, U. B. (22 de Novembro de 2013). Fonte: United Bible Societies:


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