Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
FATEO
Brasília - DF
2017
FACULDADE DE TEOLOGIA DA ARQUIDIOCESE DE BRASÍLIA -
FATEO
Brasília - DF
2017
Dedico este trabalho a todos aqueles que buscam um
aprofundamento na fé para compreendê-la melhor, torna-la simples e
vivencial e, acima de tudo, transmiti-la sem o “jugo da Lei”, mas com
o mandamento novo do Amor.
AGRADECIMENTOS
Este trabalho tem como objetivo apreender qual é, no pensamento de Joseph Ratzinger, o
significado de Reino de Deus. Para tanto, há um aprofundamento no estudo sobre o Jesus
histórico, visto que os dois termos se correlacionam: ao ponderar sobre o Jesus histórico,
abordamos necessariamente o centro de sua mensagem, que é o Reino de Deus. Ao falar
deste, temos que fazer referência necessária a Jesus. Assim, com o intuito de encontrar quem
foi o Jesus da história, é que se desenvolve a partir do século XVIII, as procuras pelo Jesus
histórico. Essas buscas, que duram até nossos dias, são divididas, geralmente, em três
momentos: Old Quest, que compreende o período de 1748 até 1906; New Quest, de 1953 até
por volta de 1980 e Third Quest, de 1980 em diante. Nossa metodologia consiste em uma
análise comparativa com outros teólogos que abordam o tema do Reino de Deus e também
nas obras de Ratzinger, especialmente Introdução ao Cristianismo e Jesus de Nazaré. No
desenrolar de nosso estudo encontramos com clareza e compreensão a posição de Bento XVI
sobre o sentido do Reino de Deus na mensagem de Jesus: ao desenvolver sua Teologia do
Filho, fica evidente a união de Jesus e o Pai e, principalmente, de Jesus e sua missão, sua
pregação. No fim, Jesus fala d’Ele mesmo. É assim que compreendemos o “Eu sou o
caminho, a verdade e a vida”.
INTRODUÇÃO ................................................................................................................ 8
CAPÍTULO I
CAPÍTULO II
CAPÍTULO III
CONCLUSÃO ................................................................................................................ 46
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA................................................................................ 48
8
INTRODUÇÃO
1
Utilizo Bento XVI com o cuidado que o autor teve no primeiro volume do livro Jesus de Nazaré de indicar que
é obra de teologia e não de magistério. Assim, Joseph Ratzinger e Bento XVI farão referência ao teólogo, não à
posição magisterial do Papa.
2
Teologia liberal ou liberalismo teológico foi um movimento teológico cuja produção se deu entre o final do
século XVIII e o início do século XX. Relativizando a autoridade da Bíblia, o liberalismo teológico estabeleceu
uma mescla da doutrina bíblica com a filosofia e as ciências da religião.
9
ressurreição tem alguma base na pregação pré-pascal de Jesus” (THEISSEN; MERZ, 2004, p.
25). Já na Third Quest, terceira busca, “o interesse histórico-social substitui o teológico, a
inserção de Jesus no judaísmo substitui o interesse de separá-lo dele, a abertura a fontes não
canônicas substitui a preferência por fontes canônicas” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 28).
Analisado o itinerário sobre o tema do Jesus histórico, veremos o posicionamento de
alguns autores, em sua maioria alemães, sobre a questão do Reino de Deus: como avaliam, em
que abordagem colocam, qual aspecto mais estimam.
De posse dessas informações, iremos enfocar o tratamento que Joseph Ratzinger dá à
questão: sua preocupação com a pesquisa histórica a respeito da questão do Jesus histórico e
do Cristo da fé, numa tentativa de conciliar fé, razão e história e sua elucidação para o Reino
de Deus na pregação de Jesus Cristo.
No primeiro capítulo será apresentado o debate sobre tema do Jesus histórico e do
Cristo da fé, na primeira busca, a partir de Reimarus; na segunda, principalmente com
Käsemann e seu trajeto até a terceira busca. O objeto da Old Quest se mostra fracassado após
os trabalhos de A. Schweitzer (1906), W. Wrede (1901) e K. L. Schmidt que
demostrou o caráter fragmentário dos evangelhos ao argumentar que a
tradição de Jesus consiste em “pequenas unidades” e que o quadro
cronológico e geográfico “da história de Jesus” foi criado secundariamente
pelo evangelista Marcos. Assim, desaparece a possibilidade de extrair um
desenvolvimento da personalidade de Jesus a partir da sequência das
perícopes (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 24).
Evidenciaremos também como os teólogos da New Quest se propõem a identificar a
cristologia implícita e explicita de Jesus. E, por fim, buscaremos compreender como este
movimento alhures irá incentivar a Third Quest, centrada no interesse dos contextos sociais e
culturais do judaísmo do primeiro século onde Jesus viveu e atuou.
No segundo capítulo faremos uma investigação de alguns autores consagrados da
cristologia no que tange ao tema específico do Reino de Deus, como R. Schnackenburg, W.
Kasper, G. Theissen e G. Lohfink. Foram selecionados, em sua maioria, autores alemães, para
fazer o contraponto e a similitude de pensamento entre teólogos que viveram num mesmo
ambiente, seja acadêmico, seja geográfico, seja histórico, seja sociocultural de Joseph
Ratzinger. Não faz simetria José Antônio Pagola, espanhol, que será estudado pela amplitude
da divulgação de uma sua obra relativamente recente.
No terceiro capítulo a visão de Bento XVI sobre o Reino de Deus será o enfoque.
Abordaremos sua posição frente à “evolução” do tema Jesus histórico, tanto na segunda como
na terceira busca. Tendo por alicerce as referências de Ratzinger, principalmente o livro Jesus
10
de Nazaré, veremos como a opção dele pela exegese canônica irá influenciar a sua cristologia,
o Jesus real, e sua definição de Reino de Deus.
Este trabalho tem o escopo de contribuir para o esclarecimento e aprofundamento
teológico ao verificar como a opinião de Bento XVI sobre a questão do Jesus histórico influi
em sua interpretação do significado do Reino de Deus, posto que o próprio Jesus não dá uma
definição, mas usa de parábolas e o testemunha de diversos modos, tornando-se assim uma
questão sensível.
11
CAPÍTULO I
1.1. INTRODUÇÃO
Desde a revolução das luzes que a humanidade acredita estar na razão e no seu uso a
chave para dar respostas a todos os questionamentos e situações da vida. Assim também
aconteceu com o Jesus da bíblia. A razão deveria dar respostas para as inquietações surgidas
sobre o judeu do século primeiro: os evangelhos seriam fonte segura para chegar ao Jesus da
história? Deveriam ser buscadas outras fontes? É possível chegar mesmo à Jesus de Nazaré?
Diante de questões como estas é que a pesquisa sobre o Jesus histórico se desenvolveu
ao longo dos tempos. Aqui vamos mostrar como essa pesquisa chegou até os dias atuais: não
é unanime a tripartição aqui levantada, qual seja, Old Quest, New Quest e Third Quest, mas é
a mais utilizada e reconhecida. Alguns autores, como Albert Schweitzer 3 e Gerd Theissen 4
utilizam classificação e nomenclaturas próprias.
Com tal aclaramento, poderemos saber quais são as bases dos escritos e do
pensamento de Ratzinger sobre o Jesus histórico e, consequentemente, sua influência a
respeito do tema do Reino de Deus.
Durante os primeiro dezoito séculos da cristandade, seja pela confiança nos escritos
evangélicos, seja pelo monopólio nas igrejas, não houve preocupação com a questão histórica
da vida de Jesus. “Antes de Reimarus ninguém tinha tentado formar uma concepção histórica
da vida de Jesus. Lutero sequer sentiu a necessidade de ter uma ideia clara da ordem dos
eventos registrados” (SCHWEITZER, 2003, p. 21).
3
Na obra A busca do Jesus histórico, de 1901, Schweitzer traça o caminho das fases da pesquisa do Jesus
histórico com subdivisões peculiares.
4
Em seu O Jesus histórico: um manual, Theissen elabora a divisão das fases em cinco.
12
Autores como Hess, Reinhard, Optiz, Jakobi e Herder são expoentes deste período, no qual se
entende que
o problema da vida de Jesus está solucionado no momento em que consegue
trazer Jesus para perto de seu próprio tempo, ao retratá-lo como o grande
mestre da virtude, e mostrar que seu ensinamento é idêntico à verdade
intelectual que o racionalismo deifica (SCHWEITZER, 2003, p. 38).
Já no período histórico seguinte, o racionalismo plenamente desenvolvido, que se
inicia com Paulus 5 e busca de forma mais intensa a explicação dos milagres pela via racional,
há “aquele racionalismo pleno que aceita apenas o tanto de religião que consegue justificar-se
por si mesma nos tribunais da razão, e que concebe e representa a origem da religião em
acordo com este princípio” (SCHWEITZER, 2003, p. 37). Deste período vale destacar Strauss
e os liberais.
O filósofo e teólogo David Friedrich Strauss (1808-1874) “publicou em 1835/1836 sua
sensacional Vida de Jesus, que provocou uma avalanche de tentativas de refutação e rendeu a
seu autor proscrição social por toda a vida” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 22).
No entendimento de Theissen,
a contribuição principal de Strauss foi a aplicação aos evangelhos do
conceito de mito, já comum na pesquisa do Antigo Testamento de seu
tempo. Ele demonstra a consideração mítica da tradição de Jesus como
síntese (no sentido hegeliano) das interpretações inadequadas do
supranaturalismo, de um lado, e do racionalismo, de outro (THEISSEN;
MERZ, 2004, p. 22).
Neste sentido, Theissen afirma que
Strauss vê o mito operando em todas as partes dos evangelhos em que
as leis da natureza são invalidadas, as tradições se contradizem ou
motivos difundidos na história das religiões, especialmente do Antigo
Testamento, são transferidos a Jesus. O a-histórico não se deve, como
supunha Reimarus, a uma fraude deliberada, mas a um processo
inconsciente de imaginação mítica. Para Strauss, hegeliano declarado,
o cerne da fé cristã não é atingido pela abordagem mítica. Pois no
indivíduo histórico Jesus realiza-se a ideia da humanidade de Deus, a
mais sublime de todas as ideias. O mito é a roupagem legítima “de
tipo histórico” dessa ideia humana geral (THEISSEN; MERZ, 2004,
p. 22).
Quanto aos evangelhos, “Strauss foi também o primeiro a reconhecer que o Evangelho
de João é estruturado a partir de premissas teológicas e é historicamente menos confiável que
os sinóticos” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 23). Conforme Theissen,
5
Este autor defendia, por exemplo, que Jesus curava os doentes porque só ele conhecia os remédios; que o andar
sobre as águas foi ilusão dos discípulos; e que sua crucificação e morte foi só um transe.
15
6
De acordo com Griesbach, a ordem histórica dos evangelhos era, em primeiro lugar, Mateus; depois Lucas,
fazendo uso de Mateus e outra tradição não-mateusiana; em terceiro, Marcos, fazendo uso de ambos Mateus e
Lucas.
7
A mesma fonte Q já citada.
16
Se não sabemos ao certo quando terminou a primeira busca pelo Jesus histórico, por
volta de 1900 a 1906, temos com exatidão o início da segunda: a “nova” pergunta foi lançada
por E. Käsemann em 20 de outubro de 1953 na palestra “O problema do Jesus histórico”
proferida em Marburg.
Surge, porém a indagação: mas o que aconteceu entre 1900 e 1953 sobre a questão do
Jesus histórico? Foi um período conhecido também como “No Quest”, no qual “três fatores
conduziram ao colapso da teologia da vida de Jesus” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 24). São
eles:
1. O caráter projetivo das imagens das vidas de Jesus foi desvelado pela
História de Investigação da Vida de Jesus de A. Schweitzer. Ele demonstrou
que cada imagem de Jesus da teologia liberal revelava a estrutura de
personalidade que, aos olhos do autor, valia como o ideal ético mais digno
de almejar.
2. O caráter tendencioso das fontes mais antigas existentes sobre a vida
de Jesus foi indicado por W. Wrede em 1901. O evangelho de Marcos seria
expressão da dogmática da comunidade. Nele, a fé pós-pascal na
messianidade de Jesus é projetada sobre a vida intrinsecamente não-
messianica de Jesus. A “teoria do segredo messiânico”, situada em nível
não-histórico, determina todo o evangelho de Marcos. Com isso desaba a
confiança na possibilidade de distinguir a partir de duas fontes antigas entre
a história de Jesus e a imagem do Cristo pós-pascal.
3. K. L. Schmidt demonstrou o caráter fragmentário dos evangelhos ao
argumentar que a tradição de Jesus consiste em “pequenas unidades” e que o
quadro cronológico e geográfico “da história de Jesus” foi criado
secundariamente pelo evangelista Marcos. Assim, desaparece a possibilidade
de extrair um desenvolvimento da personalidade de Jesus a partir da
sequência das perícopes (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 24).
Diante deste quadro ainda houve o impulso da teologia dialética, com seu ápice entre
1919 e 1968, que teve como um grande expoente Rudolf Bultmann (1884-1976). E o
surgimento de um novo método de crítica bíblica, o método de história das formas. “A
teologia dialética contrapõe Deus e o mundo tão radicalmente, que eles se encontram apenas
em um ponto, como uma tangente toca um círculo: no ‘fato’ da vinda de Jesus e no ‘fato’ da
sua partida, na cruz e na ressureição” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 24). Assim, “o fator
decisivo não era o que Jesus havia feito e dito, mas o que Deus tinha feito e dito na cruz e na
ressureição. A mensagem dessa ação de Deus, o ‘querigma’ neotestamentário, não tem por
objeto o Jesus histórico, mas o Cristo querigmático” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 24-25). Já
com o método de história das formas aplicado ao Novo Testamento, “ele demonstrava que os
evangelhos sinóticos não eram documentos históricos dos quais se pudesse extrair uma Vida
17
de Jesus, e sim documentos de fé, nascidos no contexto vivo das primeiras comunidades
cristãs” (GIBELLINE, 2002, p. 46).
No que tange ao teólogo Bultmann, Gibelline afirma que
o cristianismo nasce com a fé pascal, com o querigma da comunidade
primitiva, que confessa, diferentemente do anúncio de Jesus, que Jesus é o
Cristo. Bultimann diferencia e separa a Geschichte, quer dizer, a história que
qualifica o presente de minha existência, da Historie, dos fatos do passado
de que se ocupa a historiografia. O querigma da Igreja é Greschichte, é
história viva, é a historicidade atual de Cristo presente no querigma e
relevante para mim como clarificação da existência; o Jesus histórico é
Historie, é história passada. [...] O querigma do Cristo é querigma
cristológico, ao contrário do anúncio de Jesus, que não podia sê-lo, porque
Jesus não anuncia a si mesmo, e sim ao Reino de Deus que está chegando
(GIBELLINE, 2002, p. 50-51).
É diante de um pensamento como este, qual seja, de que o que importava era o Cristo
da fé e não o Jesus histórico, que Ernst Käsemann (1906-1998) dá o pontapé inicial à “‘nova
pergunta’, desenvolvida no círculo dos discípulos de Bultmann, parte do Jesus querigmático e
pergunta se sua exaltação fundada na cruz e na ressurreição tem alguma ‘base’ na pregação
pré-pascal de Jesus” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 25). O objetivo é reconstruir “uma ponte
entre o Jesus histórico e o querigma da Igreja em termos de continuidade e unidade objetiva.
O querigma cristológico da Igreja é explicitação da cristologia implícita nas ações e nas
palavras do Jesus histórico” (GIBELLINE, 2002, p. 52). Ou seja, “o querigma cristológico
compromete-se com ‘a pergunta pelo Jesus histórico’, pois se apoia numa figura terrena e fala
dela como de uma figura terrena nos evangelhos” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 26).
Nesta forma de pensar “a Geschichte remete à Historie; o querigma assume em si o
Jesus histórico. O principal resultado [...] foi a reivindicação – diante de uma teologia
rigidamente existencial – da relevância do elemento histórico para a teologia” (GIBELLINE,
2002, p. 52).
Além disso,
a base metodológica da “pergunta pelo Jesus histórico” é a confiança de que
se pode encontrar um mínimo criticamente assegurado de tradição
“autêntica” de Jesus, quando se exclui o que pode ser derivado tanto do
judaísmo como do cristianismo primitivo. No lugar da reconstrução crítico-
literária das fontes mais antigas na “antiga” pesquisa da vida de Jesus da
teologia liberal, entra em cena a metodologia da comparação que emprega a
história das religiões e a história da tradição: o “critério da diferença”
(THEISSEN; MERZ, 2004, p. 26).
Neste sentido, “a busca por um ponto de apoio pré-pascal do querigma de Cristo é
independente do fato de Jesus ter usado ou não algum título cristológico. [...] Esta
reivindicação está, antes, implícita em sua atuação e em seu anúncio” (THEISSEN; MERZ,
18
Diferentemente da New Quest que possui “data de nascimento”, a Third Quest surge
aos poucos, na década de 1980, à medida que os estudiosos apresentaram novas investidas
sobre o tema. Há uma pulverização mundial sobre a problemática, pois antes o foco esteve
principalmente sob a tutela alemã. Contribuiu para esta nova jornada outros dois fatores
vetoriais: o início da divulgação dos escritos de Qumran, encontrados em 1947, e a criação
das organizações “Society of Biblical Literature” e o “Jesus Seminar”, sendo que este último
tinha uma grande ressonância, mesmo fora do escopo estreito dos
pesquisadores, constituído em 1985 por R. W. Funk com a participação de
19
8
“Milenarista” origina-se de “millennium” (=1000) e relaciona-se originalmente com o reino de 1000 anos de
Ap 20. São chamados milenaristas (ou quiliastas) movimentos que esperam uma mudança radical das coisas.
9
Espécie de evangelho cruzado ou transversal, o qual seria anterior aos canônicos e que, segundo Crossan, teria
servido de base para eles.
20
Jesus se livra do ‘critério de diferença’ como base metódica da pesquisa [...]. Ela tende a um
critério histórico de plausibilidade 10” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 29).
Por último, podemos verificar os oito pontos comuns e conclusivos da Third Quest
enumerados por Xabier Pikaza (2002): Jesus é um profeta escatológico e mensageiro da
graça; é um sábio no mundo, expert da humanidade; é poderoso em obras: curador e/ou
carismático; homem de mesa comum. Pão compartilhado; criador de família: discipulado e
comunhão; homem em conflito. O desafio da graça; seu assassinato em Jerusalém. Morte de
Jesus; e Deus o ressuscitou. Páscoa cristã.
Deste modo, segundo Pikaza (2002), o milagre material está descartado e o
entendimento sobre Jesus é de que o que permanece vivo é a sua mensagem e o seu modo de
viver entre os homens, isto é, essa nova forma de interpretar a fé a tornaria mais profunda,
pois o Cristo manifestado será aquele ao qual houver aproximação do seu modo de viver e
agir.
10
O que é plausível no contexto judaico e torna compreensível o surgimento do cristianismo primitivo poderia
ser histórico.
21
CAPÍTULO II
2.1. INTRODUÇÃO
G. Lohfink inicia sua obra afirmando que “seu empenho é historiográfico e crítico”
(LOHFINK, 2015, p. 10) e “Jesus foi judeu e viveu perfeitamente imerso nas experiências de fé
de Israel” (LOHFINK, 2015, p. 10). A partir daí assevera que tudo é fruto de interpretação,
não sendo, portanto, possível chegar ao Jesus verdadeiro que os iluministas aventaram:
os autores dos evangelhos tinham uma multiplicidade de tradições sobre
Jesus e com o auxílio destas, eles interpretaram a Jesus. Eles interpretaram
suas palavras, seus atos, toda a sua vida. Eles interpretaram a Jesus em cada
linha, em cada frase (LOHFINK, 2015, p. 12).
Para tanto, busca fazer a distinção entre fato e interpretação e afirma que “mesmo o
assim chamado ‘fato puro’, mesmo o ‘nu estado de coisas’ já brotou de uma nítida
intervenção na realidade” (LOHFINK, 2015, p. 17), “interpretação não cai espontaneamente
do céu nem é fruto apenas de um indivíduo. Interpretação pressupõe comunidade
interpretativa [...], um grande grupo que busca assegurar-se de sua identidade histórica”
(LOHFINK, 2015, p. 27) e “todo e qualquer fato já é interpretação” (LOHFINK, 2015, p. 31).
Assim, conclui que é possível haver
um acesso a Jesus puramente historiográfico, puramente pautado na ciência
da religião. Mas isso tem seus limites. O presente livro lança mão, com
muita gratidão, preferencialmente de pesquisas historiográficas de muitos
cientistas bíblicos. Além disso, não tem a mínima inibição em reconstruir
criticamente o sentido original das palavras e das parábolas de Jesus. Muita
coisa neste livro não passa de reconstrução (LOHFINK, 2015, p. 36).
11
Título original: Jesus von Nazaret: Was er Wollte, wer er war (2011)
23
12
Sem se tornar um princípio rígido, G. Lohfink prefere usar a expressão “Domínio de Deus”, dentre outras
coisas, porque, segundo ele, retrata melhor o conceito bíblico que lhe serve de base.
24
O homem não quer ter a Deus muito próximo de si. Prefere dançar em suas próprias núpcias,
do que nas núpcias às quais Deus convida” (LOHFINK, 2015, p. 52). Mesmo na academia, os
estudiosos da Bíblia
asseveram constantemente que na interpretação dos textos jesuanos sobre o
Reino de Deus a tensão entre presente e futuro e respectivamente entre o “já”
e o “ainda não” não poderia ser solucionada tendendo para nenhum lado.
Mas essa visão correta, via de regra, não é mantida. Tão logo se estabeleça
esse princípio, volta-se a decair no presente do domínio de Deus. Ali se diz,
por exemplo: o Reino de Deus só está presente na pessoa do próprio Jesus,
ou , só está presente nas palavras de Jesus, ou está presente de modo
dinâmico, proléptico, antecipativo, pontual-situacional, ou – de modo bem
refinado – está presente no modo de seu anúncio (...) com essas restrições
posteriores o domínio de Deus é faticamente deslocado de novo para o
futuro (LOHFINK, 2015, p. 54).
Portanto, o Reino de Deus em Lohfink é visto como a atualidade transformadora, o
hoje, a escatologia da atualidade e “só pode acontecer onde o homem se depara com seu
limite, onde não sabe mais como ir adiante, onde se entrega, onde só abre espaço para Deus,
de tal modo que Ele possa agir” (LOHFINK, 2015, p. 57).
13
Título original: Jesus der Christus (1976). Utilizamos para este trabalho a obra em espanhol: Jesús, El Cristo
(2006). Assim, toda referência é tradução nossa.
25
acresce para o debate da cristologia ao afirmar que sua atuação se dá essencialmente em três
grandes áreas, a saber: orientada historicamente “a partir da profissão ‘Jesus é o Cristo’, a
cristologia se remete a uma história totalmente concreta e a um destino único” (KASPER,
2006, p. 48); com alcance universal “requer ser pensada e justificada a vista das questões e
necessidades dos homens e em analogia com os problemas do tempo” (KASPER, 2006, p.
49); e determinada soteriologicamente “quer dizer, a doutrina do significado salvador de Jesus
Cristo” (KASPER, 2006, p. 51).
14
Título original: Jesús: aproximación histórica (2007)
29
simples, para aproximar sua pessoa e sua mensagem ao homem e à mulher de hoje”
(PAGOLA, 2014, p. 12). Deixa evidente que discorrerá sobre o “Jesus histórico” e não sobre
o “Cristo da fé”: “é preciso não confundir minha investigação sobre o ‘Jesus histórico’ com o
estudo sobre o ‘Cristo da fé’ no qual nós cristãos cremos” (PAGOLA, 2014, p. 13).
Deixa clara também sua metodologia e forma de investigação: “segui os métodos
empregados pela ciência histórico-crítica [...] a partir das fontes literárias disponíveis [...] e
critérios claros que nos permitam avaliar o conteúdo das fontes” (PAGOLA, 2014, p. 15-17).
Conforme nosso autor assevera “segui os critérios de historicidade que estão hoje
mais consolidados entre os investigadores: o critério da dificuldade 15, de descontinuidade16,
de testemunho múltiplo 17 e de coerência 18” (PAGOLA, 2014, p. 17-18). Emprega todo tipo de
método e ciências: “esforcei-me também eu para estar atento às contribuições mais relevantes
da arqueologia, da antropologia cultural, da sociologia das sociedades agrárias da bacia
mediterrânea, da economia” (PAGOLA, 2014, p. 18).
Enfim, adverte que seu propósito não é “deslindar os complexos caminhos da gestação
e desenvolvimento da fé cristológica” (PAGOLA, 2014, p. 26 e p. 363, n. 2).
O reino de Deus “é, sem duvida, o núcleo central de sua pregação, sua convicção mais
profunda, a paixão que anima toda a sua atividade. [...] O reino de Deus é a chave para captar
o sentido que Jesus dá à sua vida” (PAGOLA, 2014, p. 115). Segue o autor falando de Jesus
que “seu objetivo não é aperfeiçoar a religião judaica, mas contribuir para que se implante o
quanto antes o tão suspirado reino de Deus e, com ele, a vida, a justiça e a paz” (PAGOLA,
2014, p. 115).
Segundo nosso autor,
para Jesus este mundo não é algo perverso, submetido irremediavelmente ao
poder do mal até que venha a intervenção final de Deus, como diziam os
escritores apocalípticos. Junto à força destruidora e terrível do mal podemos
captar agora mesmo a força salvadora de Deus, que já está conduzindo a
vida à sua libertação definitiva. [...] A acolhida do reino de Deus começa no
interior das pessoas em forma de fé em Jesus, mas se realiza na vida dos
15
Se um dado cria dificuldades, é muito provável que provenha de Jesus e não de uma criação posterior da
tradição cristã.
16
Se um dado não pode ser explicado nem recorrendo ao judaísmo nem à Igreja primitiva, é muito possível que
tenhamos que atribuí-lo a Jesus.
17
Se um dado aparece em fontes múltiplas e independentes, cresce sua confiabilidade histórica
18
É mais confiável o que se harmoniza com as circunstâncias históricas ou com os dados bem estabelecidos
30
povos na medida em que o mal vai sendo vencido pela justiça salvadora de
Deus (PAGOLA, 2014, p. 123).
Pagola (2014, p. 124) afirma que Deus não vem defender seus direitos e ajustar as
contas com quem não cumpre seus mandamentos. “O reino de Deus é outra coisa. O que
preocupa a Deus é libertar as pessoas de tudo quanto às desumaniza e as faz sofrer. [...] O
reino de Deus que Jesus proclama corresponde ao que elas mais desejam: viver com
dignidade” (PAGOLA, 2014, p. 124). “O reino de Deus abre caminho lá onde os enfermos
são resgatados do sofrimento, os endemoninhados se veem libertados de seu tormento e os
pobres recuperam a dignidade” (PAGOLA, 2014, p. 125). E segue:
Deus não reserva seu amor apenas para os judeus nem bendiz somente os
que vivem obedientes à lei. Tem compaixão também dos gentios e
pecadores. Esta atuação de Deus, que tanto escandalizava os setores mais
fanáticos, comove Jesus. Não que Deus seja injusto ou que reaja com
indiferença diante do mal. O que acontece é que ele não quer ver ninguém
sofrer. Por isso sua bondade não tem limites, nem sequer com os maus. Este
é o Deus que está chegando (PAGOLA, 2014, p. 127).
Falando dos interlocutores de Jesus, Pagola (2014, p. 128) afirma que o reino de Deus
tinha que ser algo muito simples, ao alcance daquelas pessoas. Algo muito concreto e bom
que até os mais ignorantes entendiam. “Deus se interessa realmente por suas vidas e não tanto
por questões ‘religiosas’ que a eles escapam. O reino de Deus corresponde às suas aspirações
mais profundas” (PAGOLA, 2014, p. 128). E “seguindo a tradição dos grandes profetas, Jesus
entende o reino de Deus como um reino de vida e paz” (PAGOLA, 2014, p. 129).
Quanto aos milagres são “como um sinal para indicar a direção em que é preciso atuar
para acolher e introduzir o reino de Deus na vida humana” (PAGOLA, 2014, p. 129). Nesse
sentido,
Jesus não pensa só na cura de pessoas enfermas. Toda sua atuação vai no
sentido de gerar uma sociedade mais saudável: sua rebeldia diante de
comportamentos patológicos de raiz religiosa como o legalismo, o rigorismo
ou o culto vazio de justiça; seu esforço por criar uma convivência mais justa
e solidária; sua oferta de perdão às pessoas afundadas na culpabilidade; sua
acolhida aos maltratados pela vida ou pela sociedade; seu empenho em
libertar todos do medo e da insegurança para viver a partir da confiança
absoluta em Deus. Curar, libertar do mal, tirar do abatimento, sanear a
religião, construir uma sociedade mais amável, constituem caminhos para
acolher e promover o reino de Deus. São os caminhos que Jesus percorrerá
(PAGOLA, 2014, p. 129-130).
No tocante ao tema da pobreza, é assim que nosso autor elucida:
Jesus não fala da “pobreza” abstratamente, mas daqueles pobres com os
quais trata enquanto percorre as aldeias. [...] Homens e mulheres sem
possibilidades de um futuro melhor. Por que o reino de Deus constituirá uma
boa notícia para estes pobres? Por que serão eles os privilegiados?
31
Porventura Deus não é neutro? Não ama a todos por igual? Se Jesus tivesse
dito que o reino de Deus chegava para tornar felizes os justos, teria tido sua
lógica e todos o teriam entendido, mas que Deus esteja a favor dos pobres,
sem levar em conta seu comportamento moral, resulta escandaloso. [...] Ao
proclamar as bem-aventuranças, Jesus não diz que os pobres são bons ou
virtuosos, mas que estão sofrendo injustamente. Se Deus se põe ao lado
deles, não é porque o mereçam, mas porque precisam. [...] É isto que
desperta uma alegria grande em Jesus: Deus defende aqueles que ninguém
defende! (PAGOLA, 2014, p. 131-132).
Pelo que já fora dito, na visão de Pagola sobre a construção do reino de Deus é
importante “que todos reconheçam a Deus e ‘entrem’ na dinâmica de seu reinado. Não é um
assunto meramente religioso, mas um compromisso de profundas consequências de ordem
política e social” (PAGOLA, 2014, p. 134). Por isso, “‘entrar’ em seu reino é ‘sair’ do
império que os ‘chefes das nações’ e os poderosos do dinheiro procuram impor” (PAGOLA,
2014, p. 136). No entendimento de nosso autor:
Jesus não só denuncia aquilo que se opõe ao reino de Deus. Sugere, além
disso, um estilo de vida mais de acordo com o reino do Pai. Não busca só a
conversão individual de cada pessoa. Fala nos povoados e aldeias,
procurando introduzir um novo modelo de comportamento social. [...] Ele
não apela com isto a uma intervenção milagrosa de Deus, mas a uma
mudança de comportamento que possa levar todos a uma vida mais digna e
segura (PAGOLA, 2014, p. 136).
Como definição em Pagola (2014, p. 138), “o certo é que Jesus anuncia o reino de
Deus como uma realidade que exige a restauração da justiça social”. “O reino de Deus já está
abrindo caminho, mas sua força salvadora só é experimentada de maneira parcial e
fragmentária, não em sua totalidade e plenitude final.” (PAGOLA, 2014, p. 138). Assevera
que “o reino de Deus já está aqui, mas apenas como uma ‘semente’ que está sendo semeada
no mundo; um dia [...] Deus tornará realidade esta utopia tão antiga como o coração humano:
o desaparecimento do mal, da injustiça e da morte” (PAGOLA, 2014, p. 139).
19
Apesar de O Jesus histórico – um manual ter sido fruto do trabalho de dois autores, Gerd Theissen e Annette
Merz, utilizamos aqui a autoria como de Theissen, sem demérito a Merz, mas unicamente para simplificar o
estudo. Além disso, no próprio prefácio é afirmado que Merz elaborou apenas três dos dezesseis parágrafos
(capítulos), logo, ao simplificar o estudo, a escolha recaiu sobre Theissen.
32
20
Título original: Der historische Jesus – Ein Lehrbuch (1996)
33
ética; já a ação no reino urge pela vontade ética do ser humano e Jesus representa uma
expectativa teocêntrica na realidade do reino de Deus; quanto a sua dimensão, o reino de Deus
é mais que espiritual, há uma expectativa religiosa com relevância política, mas vai além e
deslegitimiza a presente distribuição de poder e posses, pois todos os convidados têm parte na
honra do anfitrião; Enquanto aquele que abarca todas as gentes, o Reino de Deus foi
entendido como uma metáfora viva, visto que os judeus esperavam uma glorificação de sua
nação, tão somente; mas deve ser buscado assim como se deve buscar a sabedoria, uma vez
que segue o núcleo da crença judaica em Deus.
Portanto, na visão de Theissen, o reino de Deus é o estabelecimento divino de sua
vontade ética: “o anúncio do reinado de Deus é determinado pela compreensão judaica de
Deus: Deus é vontade incondicional para o bem. [...] Essa vontade ética incondicional já atua
no presente. Tudo o que se opõe a ela já foi vencido” (THEISSEN; MERZ, 2004, p. 298).
21
Em 1914 ainda existia o Reino Alemão da Prússia. Depois das duas grandes guerras e mudanças no cenário
geopolítico, a aludia região passou a compor a atual República da Polônia.
22
Título original: Gottes Herrschaft und Reich (1965). Utilizamos para este trabalho a obra em espanhol: Reino
y Reinado de Dios (1967). Assim, toda referência é tradução nossa.
23
Título original: Jesus Christus – Im Spiegel der vier Evangelien (1998)
35
Schnackenburg em sua obra Reino e Reinado de Deus traça um panorama do que foi
entendido e interpretado como reino de Deus desde o Antigo Testamento, passando pela
pregação de Jesus e chegando ao cristianismo nascente. Nosso foco de análise está na segunda
parte, qual seja, o reino de Deus na pregação de Jesus que está permeado pela escatologia,
pelo seu caráter soteriológico, religioso e universal.
Sobre a “doutrina” que Jesus possa ter instituído, “tudo está subordinado ao
pensamento da basileia e relacionado ao mistério de sua pessoa. A ‘doutrina’ está unida de
fato à ‘pregação’” (SCHNACKENBURG, 1967, p. 67). E, conceitualmente
“reino de Deus” significa sempre em seus lábios reino escatológico de Deus,
ainda quando o pensamento do reino universal de Deus, reino que não terá
fim, isso é familiar e inabalável. No entanto, Jesus não fala dele quando diz
“reino de Deus”; sempre que surge esta expressão, sem exceções possíveis,
refere-se ao reino escatológico de Deus, e os textos não podem ser
interpretados de forma não escatológica (SCHNACKENBURG, 1967, p.
69).
Neste sentido, “o caráter escatológico do reino de Deus por Ele anunciado é
descoberto, [...], ainda em uma característica essencial que vamos analisar agora mesmo: este
reino é exclusivamente ‘semente e ação de Deus’” (SCHNACKENBURG, 1967, p. 73). E,
nessa linha,
a pureza de sua imagem de Deus proibiu a Jesus abordar o Pai, fazer
qualquer tipo de prescrição, ser um mensageiro diante d´Ele de mensagens
humanas ou um intruso penetrando seus segredos. Por isso também para Ele
é o reino de Deus uma dimensão estritamente escatológica e puramente
sobrenatural (SCHNACKENBURG, 1967, p. 74).
Na mensagem de Jesus, o reino de Deus é o mais fundamental e central porque faz
nexo com a própria salvação. Esta
elevação do reino de Deus para o conceito mais importante de salvação deve
ser visto como a ação original de Jesus. A salvação é para o rabinismo "a
consequência do reino de Deus, mas não é o próprio reino de Deus”. Se
Jesus faz deste reino o conceito fundamental da salvação, sua mensagem
adquire por ele grande homogeneidade e concentração. Ele anuncia a
vontade salvífica presente de Deus e sua misericórdia salvadora sob a ideia
do senhorio real de Deus, e dá o mesmo motivo para a última vontade
salvífica: participação no reino de Deus plenamente desenvolvido e
ilimitado, conferindo assim a todos os salvos a felicidade e a alegria
completas (SCHNACKENBURG, 1967, p. 82).
37
pessoal. Esta ligação com sua própria pessoa pertence ao novo e incomparável da mensagem e
das exigências de Cristo” (SCHNACKENBURG, 1967, p. 97).
Portanto, “o reino de Deus agora se manifesta de uma maneira muito diferente: como
graça e salvação. Mas o direito que o reino escatológico de Deus estabelece sobre os homens
é bem enfatizado por ele, e não menos verdadeiro e consistentemente”
(SCHNACKENBURG, 1967, p. 100), já que “a pessoa de Jesus é inseparável da sua
pregação. [...] Nisto reside precisamente o mistério mais profundo da imagem da basileia,
incomparável, única, que irradia de toda a pregação de Jesus” (SCHNACKENBURG, 1967,
p. 100).
39
CAPÍTULO III
3.1. INTRODUÇÃO
Passada a análise comparativa de alguns autores sobre o que eles entendem ser o
Reino de Deus, agora vamos verificar qual a visão de Bento XVI sobre o tema.
Para tanto, faremos uma recapitulação histórica da vida de nosso autor, por entender
que o contexto em que cada pessoa está inserida ajuda a determinar sua forma de ser e seu
pensamento. Depois virá a posição de Joseph Ratzinger sobre o Jesus histórico em seus dois
momentos cruciais: na primeira abordagem, ainda sob a égide da “New Quest”, na obra
Introdução ao Cristianismo de 1967 nosso autor desenvolverá a Teologia do Filho, marcante
em toda sua cristologia, como se vê, por exemplo, em Dogma e Anúncio de 2005; e na
segunda, já sob os ditames da “Third Quest”, na obra Jesus de Nazaré de 2007 será florescida
a Teologia do Jesus real.
Por último, vislumbraremos aquele que é o centro de nossa análise: o pensamento de
Bento XVI sobre o que é o Reino de Deus com base no seu livro Jesus de Nazaré.
3.2. BIOGRAFIA
Joseph Aloisius Ratzinger é o irmão mais novo de três: Maria, irmã mais velha, nasceu
em 1921 e Georg, nascido em 1924. Nasceu em um Sábado de Aleluia, dia 16 de abril de
1927, em Marktl, às margens do rio Inn. A família mudou-se de lá dois anos depois para
Tittmoning, pequena cidade às margens do rio Salzach, cuja ponte faz fronteira com a Áustria.
O seu pai, comissário da polícia, provinha duma antiga família de agricultores da Baixa
Baviera, de modestas condições econômicas. A sua mãe era filha de artesãos de Rimsting, no
lago de Chiem, e antes de casar trabalhara como cozinheira em vários hotéis. Como o pai era
de religiosidade profunda e um decidido adversário do regime nacional-socialista, as suas
ideias políticas firmes chegaram a trazer sérios perigos para a própria família. Ele expôs-se
demais e criou muitos problemas. A família teve que mudar-se novamente no final de 1932
40
para Aschau, às margens do rio Inn, um lugarejo rural, pacato, com fazendas grandes e
vistosas. Quatro anos mais tarde, nova mudança: foram morar em uma velha casa de fazenda
em Traunstein, que os pais haviam adquirido por baixo preço alguns anos antes. Foi neste
ambiente que recebeu a sua formação cristã, humana e cultural.
O período da sua juventude não foi fácil. A fé e a educação da sua família prepararam-
no para enfrentar a dura experiência daqueles tempos, em que o regime nazista mantinha um
clima de grande hostilidade contra a Igreja Católica. O jovem Joseph viu os nazistas
açoitarem o pároco antes da celebração da Santa Missa. Aos 16 anos e já seminarista, iniciou
uma espécie de serviço militar para estudantes na ocupação auxiliar de defesa antiaérea.
Porém, “no dia 10 de setembro de 1944, tendo chegado à idade militar, fora dispensado do
serviço como estudante e a convocação para o treinamento básico da infantaria alemã já
estava sobre a mesa” (RATZINGER, 2006, p. 36). O período do serviço militar durou até 19
de junho de 1945 quando recebeu o bilhete de dispensa no campo de concentração de
prisioneiros das forças aliadas.
Iniciou os estudos de filosofia no final do segundo semestre de 1945 e os de teologia
no segundo semestre de 1947 até o exame final no verão de 1950. Em 29 de junho de 1951,
juntamente com seu irmão e outros quarenta candidatos, foi ordenado sacerdote pelo Cardeal
Faulhaber, Arcebispo de Munique. A partir de 1952 iniciou a sua atividade de professor na
Escola Superior de Filosofia e Teologia de Frisinga lecionando teologia dogmática e
fundamental. Em 1953, obteve o doutoramento em teologia com a tese "Povo e Casa de Deus
na doutrina da Igreja de Santo Agostinho". Sob a orientação do professor de teologia
fundamental Gottlieb Söhngen, obteve a habilitação para a docência apresentando para isto
dissertação com título de "A teologia da história em São Boaventura". Lecionou ainda em
Bonn (1959 - 1963); em Münster (1963 - 1966) e em Tubinga (1966 - 1969) onde foi colega
de Hans Küng e confirmou uma certa visão tradicionalista como oposição às tendências
marxistas dos movimentos estudantis dos anos 1960. Aí também em Tubinga conseguiu
realizar um projeto sonhado a tempos: “arrisquei-me a fazer uma palestra para ouvintes de
todas as faculdades, sob o título: Introdução ao cristianismo. Disso, depois, nasceu um livro,
que foi traduzido para 17 línguas, chegando a um grande número de edições” (RATZINGER,
2006, p. 119). A partir de 1969, passou a ser catedrático de dogmática e história do dogma na
Universidade de Ratisbona, onde chegou a ser Vice-Reitor.
No Segundo Concílio do Vaticano (1962 – 1965), Ratzinger assistiu como peritus
(especialista em teologia) do Cardeal Joseph Frings de Colônia. Tornou-se, por isso,
41
mundialmente conhecido como um dos mais influentes teólogos do Concílio Vaticano II. A
sua intensa atividade científica levou-o a desempenhar importantes cargos ao serviço da
Conferência Episcopal Alemã e na Comissão Teológica Internacional. Fundou em 1972, junto
com os teólogos Hans Urs von Balthasar (1905-1988) e Henri De Lubac (1896-1992), a
revista Communio, para dar uma resposta positiva à crise teológica e cultural que despontou
após o Segundo Concílio do Vaticano. Em 25 de março de 1977 foi nomeado Arcebispo de
Munique e Frisinga pelo Papa Paulo VI. Em 1981 foi nomeado prefeito da Congregação para
a Doutrina da Fé. Decano do Colégio Cardinalício desde 2002, foi eleito Papa em abril de
2005, adotando o nome Bento XVI.
Nesta primeira análise tomaremos um livro do final da década de 60 (1967) que traz
em seu bojo uma reflexão do cristianismo até então, com todo o vigor das ciências e dos
caminhos a serem tomados no pós Concílio Vaticano II. Nascido de palestras com o mesmo
nome, Introdução ao Cristianismo retrata bem a realidade de sua época e também a atual.
Num primeiro momento Joseph Ratzinger faz a exposição da precariedade dos
métodos empregados, para depois falar propriamente sobre Jesus Cristo. Não nega os métodos
das ciências, pelo contrário, os reafirma. No entanto, coloca a necessidade do emprego de meios
complementares. Expõe que o método científico, das ciências modernas e exatas, não é
completo para se chegar a verdade real precisamente porque muitas vezes deixa a verdade de
lado para tentar comprovar, através da repetibilidade, o que é “conhecido”. Ou seja, se
dispensa a descoberta do próprio ser, limitando-se ao “positivo”, ao que pode
ser comprovado. Em consequência, disso precisa pagar as vantagens de uma
exatidão impressionante com a renúncia à verdade que pode chegar a tal
ponto que, atrás das grades do mundo positivo, desaparecem o ser e a própria
verdade, de modo que fica cada vez mais impossível falar em ontologia e a
própria filosofia se recolhe, em grande parte, à fenomenologia que se
interessa apenas pelo que aparece (RATZINGER, 2012a, p. 146).
De modo semelhante expõe que o método histórico-crítico faz comprovação de fatos,
isto é, baseia-se em documentos para atestar o que foi verdade e o que não foi. Todavia,
“quantas vezes se esquece que a verdade plena da história foge à comprovação por
documentos, da mesma maneira que a verdade do ser se furta ao método experimental”
(RATZINGER, 2012a, p. 147). Assim,
chega-se a conclusão de que a ciência histórica no sentido estrito do termo
tanto descobre quanto encobre a história. É óbvio, portanto, que ela possa
42
ver o ser humano Jesus, mas que será difícil para ela descobrir o seu ser
como Cristo, porque essa realidade, como verdade da história, não se deixa
enquadrar nos procedimentos comprobatórios daquilo que é apenas certo
(RATZINGER, 2012a, p. 147).
Depois de realizar esta breve constatação, nosso autor parte para o levantamento
histórico sobre Jesus, aqui chamamos de Old Quest e New Quest, e conclui que “não foi
totalmente em vão o processo de idas e vindas do espírito moderno entre Jesus e Cristo, cujas
etapas principais em nosso século tentei recapitular” (RATZINGER, 2012a, p. 151). Afirma
ainda que “Jesus só existe como o Cristo e o Cristo só existe em Jesus” (RATZINGER,
2012a, p. 151). Entretanto, ressalta a necessidade da fé:
precisamos dar um passo a frente, tentando, antes de qualquer tipo de
reconstituição que só pode resultar em figuras artificiais posteriores,
entender simplesmente o que diz a fé que não é reconstrução e sim presente,
que não é teoria e sim uma realidade da existência viva. Talvez devamos dar
mais crédito à presença da fé que perpassa os séculos do que a uma
reconstrução que procura o seu próprio caminho fora da realidade, porque,
em sua essência, essa fé nada mais foi do que a vontade de entender – de
entender quem e o que foi esse Jesus na verdade; no mínimo é necessário
tentar tomar conhecimento daquilo que essa fé tem a dizer (RATZINGER,
2012a, p. 151).
Mais a frente, confirmando uma mesma realidade em Jesus Cristo, assevera que o
título Cristo (Messias) e Jesus são um mesmo: “a pessoa é a função e a função é a pessoa.
Ambos estão ligados de forma inseparável. Não existe [...] um eu separado da obra – o eu é a
obra e a obra é o eu” (RATZINGER, 2012a, p. 152). E, a partir daqui, faz um entrelaçamento
da realidade de Jesus como Filho para evidenciar a sua “Teologia do Filho”: “a fé cristã não
se refere a ideias e sim a uma pessoa, a um eu, e esse eu é definido como palavra e Filho, ou
seja, como abertura total. Isto leva a uma consequência dupla [...] da fé no Cristo e [...] da fé
no Filho.” (RATZINGER, 2012a, p. 157-158). É assim “que a condição radical de Jesus como
Cristo postula a condição de Filho, e que a condição de Filho inclui a condição de Deus”
(RATZINGER, 2012a, p. 158). Dessa forma, o termo Filho pertence à “linguagem codificada
das parábolas, usada por Jesus na tradição dos profetas e dos mestres de sabedoria de Israel”
(RATZINGER, 2012a, p. 166). Mais do que isso, “é provável que a sua verdadeira origem
remonte à vida de oração de Jesus, pois forma uma unidade intrínseca com a sua nova
invocação de Deus: ‘Abba’” (RATZINGER, 2012a, p. 167).
Mas é precisamente nesta invocação de “abba-pai” que se manifesta, segundo
Ratzinger, a realidade filial e divina de Jesus:
ela se distingue da maneira de dirigir-se ao pai no Antigo Testamento pelo
fato de ser expressão de um relacionamento de intimidade; [...] o ser humano
não tinha o direito de tratar Deus com tanta intimidade. Conservando essa
43
palavra em seu tom original, a cristandade primitiva quis mostrar que Jesus
rezava assim, que ele falava com Deus dessa maneira, expressando nessa
palavra uma nova intimidade com Deus que só cabia a ele usar. [...] Essa
invocação corresponde perfeitamente ao fato de Jesus mesmo se chamar de
filho (RATZINGER, 2012a, p. 167).
Jesus é o Filho porque é “expressão da relatividade total de sua existência, [...] sendo
apenas um ‘ser a partir de’ e um ‘ser para’; mas é justamente essa relatividade total que o faz
coincidir com o absoluto” (RATZINGER, 2012a, p. 168). “O título de ‘Filho’ se identifica
com as designações ‘a Palavra’ e o ‘Enviado’ [...] Jesus é a sua obra. [..] O seu ser é pura
atualidade ‘a partir de’ e ‘dirigido para’” (RATZINGER, 2012a, p. 168-170). Jesus só pode
ser o Filho porque está em relação com o Pai, “um Jesus sem Pai não tem nada, mas nada
mesmo, de comum com o Jesus histórico, com o Jesus do Novo Testamento” (RATZINGER,
2007, p. 87). No entendimento de nosso teólogo
a ideia de que Deus só pode ser conhecido como Pai de Jesus Cristo, mas
que assim é verdadeiramente acessível e que também Jesus só se torna
compreensível como “Filho”, já no Novo Testamento é radicalizada de tal
modo que a dependência do conhecimento de Deus da relação Pai-Jesus,
Pai-Filho não só é considerada uma forma do nosso conhecimento, um
acréscimo e algo exterior (ou até irrelevante) quanto a Deus, mas é tomada
como essencial para Deus mesmo. É realizada por ele e é inseparável dele,
não acendendo de fora para nós. É algo próprio Dele: Deus, de fato, existe na
relação Pai-Filho, ela lhe pertence essencialmente. Ele só pode ser
apreendido como relação (RATZINGER, 2007, p. 87-88).
Em Jesus de Nazaré, Bento XVI dá continuidade ao seu entendimento anterior: “ele vê
Jesus a partir da sua comunhão com o Pai, a qual é o centro autêntico da sua comunhão com o
Pai, sem a qual nada se pode compreender e a partir da qual Ele se torna presente para nós
hoje” (RATZINGER, 2012b, p. 11). No que tange ao método de pesquisa, mantém a sua
crítica à limitação do método histórico-crítico, mas o considera “irrenunciável a partir da
estrutura da fé cristã” (RATZINGER, 2012b, p. 13) e propõe, como método complementar, a
“exegese canônica”: “é uma dimensão essencial da explicação, que não está em contradição
com o método histórico-crítico, mas que de um modo orgânico o desenvolve e lhe permite
tornar-se autêntica teologia” (RATZINGER, 2012b, p. 15). Em resumo, “desenvolveu-se há
cerca de 30 anos na América, o projeto ‘exegese canônica’, cuja intenção consiste em ler os
textos individuais no conjunto da única Escritura, na qual todos os textos particulares
acendem a uma nova luz” (RATZINGER, 2012b, p. 14).
Desta maneira, Bento XVI “quis tentar representar o Jesus dos Evangelhos como o
Jesus real, como o ‘Jesus histórico’ no sentido autêntico” (RATZINGER, 2012b, p. 17).
Enfim, “tentei simplesmente, indo além da básica explicação histórico-crítica, aplicar os
44
Ratzinger começa assim sua reflexão: “o conteúdo central do Evangelho diz: o Reino
de Deus está próximo. É colocada uma marca no tempo, algo de novo acontece. E é exigida
uma resposta do homem a esta oferta: conversão e fé” (RATZINGER, 2012b, p. 58). Porém,
“enquanto o eixo da pregação pré-pascal de Jesus é a mensagem do Reino de Deus, a
cristologia constitui o centro da pregação apostólica pós-pascal” (RATZINGER, 2012, p. 58).
Assim, nosso teólogo lança uma questão fundamental, qual seja, “a que diz respeito à relação
do Reino de Deus com Cristo” (RATZINGER, 2012b, p. 58).
Fazendo uma recapitulação histórica nos Padres da palavra “Reino”, nosso autor
elenca três dimensões: “Orígenes caracterizou Jesus como a autobasileia, isto é, como Reino
de Deus em pessoa. Jesus mesmo é o ‘Reino’; o Reino não é uma coisa, não é um espaço de
domínio como um reino do mundo. É pessoa: o Reino é Ele.” (RATZINGER, 2012b, p. 59).
Uma segunda acepção “designada como ‘idealista’, ou como designação mística, a qual vê o
Reino de Deus essencialmente situado na interioridade do homem” (RATZINGER, 2012, p.
60). E uma terceira dimensão, a “eclesiológica: o Reino de Deus e a Igreja são colocados de
um modo distinto um em relação ao outro e mais ou menos aproximados um do outro”
(RATZINGER, 2012b, p. 60).
Antes de aprofundar na mensagem de Jesus propriamente dito, Bento XVI faz uma
observação linguística:
a palavra hebraica que se encontra aqui subjacente – malkut – “é um nomen
actionis e designa – como também a palavra grega Basileia – a função de
soberania, a condição de senhor que era própria do rei” (Stuhlmacher I 67).
Não se trata, portanto, de um “Reino” iminente ou a constituir-se, mas sim
da realeza de Deus sobre o mundo, a qual de um modo novo se torna
acontecimento na história. [...] Jesus anuncia, à medida que fala do Reino de
Deus, simplesmente Deus e precisamente o Deus vivo, que é capaz de agir
de modo concreto no mundo e na história e que já está exatamente agora em
ação. [...] Neste sentido, a tradução “Reino de Deus” é insuficiente, pois
seria melhor se se falasse da condição senhorial de Deus ou da soberania de
Deus (RATZINGER, 2012b, p. 64-65).
Assim, o “anúncio da soberania de Deus, como toda mensagem de Jesus, radica no
Antigo Testamento, que Ele, no seu movimento progressivo desde os inícios em Abraão até a
45
sua hora, lê como um todo, o qual [...] conduz diretamente a Jesus” (RATZINGER, 2012b, p.
65).
Numa reflexão da perícope de Lc 17, 20s conclui nosso teólogo que “hoje a crítica é
cada vez mais inclinada a pensar que Cristo, com essa palavra, se referia a si mesmo: Ele, que
está no meio de nós, é o Reino de Deus” (RATZINGER, 2012b, p. 68). De forma semelhante,
ultima sobre Lc 11,20: “não se trata simplesmente de presença física de Jesus, na qual estaria
o ‘Reino’, mas sim no seu agir que acontece no Espírito Santo. [..] Torna-se presente Nele e
por Ele, aqui e agora, o Reino de Deus” (RATZINGER, 2012b, p. 68).
Dessa maneira, Ratzinger afirma que “se impõe a resposta [...]: a nova proximidade do
Reino que Jesus fala e cuja proclamação constitui o elemento distintivo da sua mensagem –
esta nova proximidade consiste n’Ele mesmo” (RATZINGER, 2012b, p. 68). E prossegue:
com sua presença e sua ação, Deus irrompe como atuante aqui e agora na
história. Por isso é que agora é a plenitude do tempo (Mc 1, 15); por isso é
que agora, de um modo único, é tempo de conversão e da penitência, bem
como tempo da alegria, porque, em Jesus, Deus se aproxima de nós. N’Ele
Deus está agora em ação e é verdadeiramente Senhor – dominando
divinamente, isto é, não com o poder do mundo, mas dominando por meio
do amor que vai até “o fim” (Jo 13, 1), até a cruz. [...] É a partir daqui que
entendemos as afirmações sobre a pequenez e a condição escondida do
Reino; donde a representação fundamental da semente, que ainda nos vai
ocupar muitas vezes; donde também o convite à coragem para o seguimento,
que abandona tudo. Ele mesmo é o tesouro; a comunhão com Ele é a pérola
preciosa (RATZINGER, 2012b, p. 68).
Aqui enxergamos com clarividência a união da visão de Bento XVI sobre o Jesus
histórico (Jesus real) e o Reino de Deus como mensagem central de Jesus que é o anúncio
d’Ele mesmo, como modelo a ser seguido, como Caminho, Verdade e Vida (Jo 14, 6): “a sua
doutrina é, no fundo, ele próprio. Ele é em sua totalidade Filho, Palavra, Missão; a sua ação
está enraizada no fundo de seu ser e se identifica com ele” (RATZINGER, 2012a, p. 168-
169). E o “discurso sobre Deus é sempre central, mas precisamente porque Jesus mesmo – o
Filho – é Deus, então toda a sua pregação é mensagem do seu próprio mistério, a cristologia,
isto é, discurso acerca da presença de Deus na sua própria ação e no seu próprio ser”
(RATZINGER, 2012b, p. 70).
46
CONCLUSÃO
(histórico) e do Cristo (da fé). Apresenta-nos, num primeiro momento, o Jesus Cristo, que só
pode ser entendido como o Filho do Pai. É sendo Filho, ser relacional e provindo do Pai, que
o Jesus histórico pode ser encontrado. Mais a frente, já no papado, ao escrever seu Jesus de
Nazaré, Ratzinger mantém sua cristologia bem fundamentada na teologia do Filho e trás
como novidade na análise do Jesus histórico a interpretação científica somada à exegese
canônica para alcançarmos aquilo que ele chama de o Jesus real, aquele que será o mestre no
amor e formador de discipulado na experiência de fé.
É, portanto, nesta linha que vai se revelar, no entendimento de Bento XVI, o que é o
reino de Deus: é o próprio e único Jesus Cristo. Assim, ele resolve não só a problemática que
deu origem a todo estudo sobre o Jesus histórico, mas também clarifica aquilo que é a sua
mensagem principal: Ele mesmo. A Igreja primitiva não alterou a mensagem de Jesus, como
aventado na história, mas deu prosseguimento aquilo que agora Ratzinger nos deixa claro:
Jesus fala do reino para anunciar a novidade de Deus que é Ele, o Deus-homem redentor e
salvador. A Igreja fala, por isso, de Jesus Cristo, o reino de Deus presente entre nós.
48
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
GIBELLINI, Rossini. A teologia do século XX. 2. ed. São Paulo: Loyola. 2002.
LOHFINK, G. Jesus de Nazaré: O que Ele queria? Quem Ele era? Petrópolis: Vozes. 2015.
PAGOLA, José Antonio. Jesus: aproximação histórica. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.
SCHWEITZER, Albert. A busca do Jesus histórico: Um estudo crítico de seu progresso. São
Paulo: Novo Século. 2003.
THEISSEN, Gerd; MERZ, Annette. O Jesus Histórico: Um Manual. 2. ed. São Paulo:
Loyola. 2004.