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STUDIUM
REVISTA TEOLÓGICA
SUMÁRIO
Editorial
JESUS E ALGUMAS QUESTÕES CRISTOLÓGICAS................................................ 5
Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 4 ESPIRITUALIDADE CENTRADA EM JESUS............................................................... 51
n. 7 e 8 - 2010. José Antonio Pagola
Ano 4 – 2010
Nº 6 e 7
Editor-Chefe
Hélcion Ribeiro – Studium Theologicum, Curitiba, PR. Jesus exerce uma força fascinante e inesgotável. Quem o pode apreender?!
Ninguém é “dono” dele. Esses tempos de mudanças epocais sinaliza-se também,
Conselho Editorial apesar de tudo quanto já se disse da morte de Deus e do fim das religiões, uma
Jaime Sanches Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, PR. busca inquieta de Jesus – aquele que se deixa encontrar e se esconde ao mesmo
Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, PR. tempo. Encontrá-lo não significa ter posse definitiva dele, pois o encontro de hoje,
Tedoro Hanicz – Instituto S. Basílio Magno, Curitiba, PR. exige a nova busca no e para o dia de amanhã. Mesmo o encontro pessoal no
Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, PR. mais profundo do próprio ser não garante a posse do encontro; garante sim, o
Vitor P. Calixto dos Santos – CEUCLAR, Batatais, SP. incentivo à fé e à continua procura. A fé, para os cristãos, torna-se um desafio para
cada pessoa responder, de novo, à instigante provocativa pergunta: “E vós, quem 5
Conselho Consultivo dizeis que eu sou?” (Mc. 7, 27)
Angelo Carlesso - Studium Theologicum – Curitiba, PR.
Jose Carlos Fonsati – Cúria Geral dos Vicentinos - Paris, Fr. Essa dimensão lúdica entre re-velação/velação impulsiona a espiritualidade
Sávio Scopinho – Faculdades Claretianas, Rio Claro, SP. de milhares de pessoas de fé e as explicações de centenas de intelectuais,
Ricardo Hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, PR. especialmente cristãos de todos os grupos religiosos. As respostas, enquanto
existenciais, são sempre novas e in-suficientes, porque sendo contextuais, são
Abstract também temporais (provisórias) e situadas. Jesus, sempre presente e em todos os
Elias Jr. tempo, permanece inabarcável. E é isto que evidencia seu mistério: um-como-nós,
um-conosco, um-para-nós; mas, ao mesmo tempo, é o Outro, que nos transcende,
ADMINISTRAÇÃO E REDAÇÃO pois é Deus no mistério da Trindade. É o irmão e o amigo, porque se fez um-de-
Contato e assinatura nós; mas, é Deus-para-nós porque pertence à vida de Deus, é Deus mesmo com o
Pai e o Espírito Santo.
Studium Revista Teológica Como apreendê-lo? – Respostas a essa pergunta (“Quem sou?”) não têm
Av. Getúlio Vargas, 1193
mais a unidirecionalidade que lhe atribuía a dogmática forjada nos “séculos
80.250-180 Curitiba, PR.
de ouro da cristologia” (do século II ao VIII). O resgate do Jesus bíblico aponta
Tel. (41)3224-5467 – Fax: (41) 3233-8979
sempre a uma inesgotabilidade plural a partir da própria pluralidade dos
e-mail: studium.sec@studium.com.br
evangelhos, a que se deve acrescentar as concepções cristológicas paulinas e
outras neotestamentarias. Por outro lado, o fato de Jesus não ser um elemento
Solicita-se permuta/ Exchange requested/ de museu, mas antes uma realidade viva para o crente, ele está situado em todos
Se pide cambio/ On prie l’échange os tempos e lugares em formas divino-existenciais, quer para a imitação e/ou
adoração, quer para o seguimento.
Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a São diversas as interpretações sobre ele, desde a dogmática – iniciada no
responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos. Concílio de Nicéia, passando por diversas escolas que encontraram a chamada
“questão do Jesus histórico e o Cristo da fé”, até questões mais recentes. O próprio para nosso publicação, a quem agradecemos, especialmente Antonio Pagola,
teólogo e papa Raztinger, percebendo a dificuldade produzida pela dispersão das Bruno Forte e Roberto Pereyra.
compreensões, quis oferecer, com seus dois livros sobre Jesus (Jesus de Nazaré. Do
O professor Antonio Carlos Coelho, mantendo o tom coloquial de sua
batismo no Jordão até a transfiguração – já publicado- e Jesus de Nazaré. Da entrada
palestra Jesus, o judeu do seu povo, apresentada na Semana Teologia sobre
em Jerusalém até a ressurreição – prometido para breve), uma contribuição tanto
Cristologia, deste ano, propõe-se contextualizar Jesus e sua atuação, desde
às discussões acadêmicas quanto às práticas da fé. (Sem dúvida, é emblemática
uma perspectiva judaica ao invés da cristã. Ressalta a dificuldade dos judeus,
sua proposta por concentrar em si os papéis de teólogo e de papa; mas, espera-se
sobretudo, em aceitar o significado dado a ele na história. Por outro lado
que resguarde e enfatize sua proposta como contribuição dialogante).
reconhece nele uma aproximação ao pensamento de Hillel e o considera um
A singularidade do homem Jesus está em ele ser Deus. Isto é, Deus-entre- darshan, interprete da Torá e um mestre.
nós, os humanos, por-nós e para-nós. O Verbo se tornou humano no tempo e
O biblista Carlos Mesters, nos cedeu sua palestra Jesus, formando e
no espaço geográfico, assumindo a temporalidade e a ubicação – que nada
formado, proferida na 3ª Semana Brasileira de Catequese. Nela, destaca dois
tem de “gueto”, mas se propõe a uma abertura universalizante e acima de uma
aspectos poucas vezes ressaltados em Jesus: o processo de sua formação
temporalidade situada. Ou seja, sua singularidade faz dele, enquanto Deus
ao conviver e ouvir o povo, os discípulos e o próprio Deus e sua pedagogia
encarnado, alguém para todos os tempos e lugares, para todos os homens e
formativa atenta às questões do seu povo e de Deus.
mulheres.
O espanhol José Antonio Pagola, em Espiritualidade centrada em Jesus
Após o longo período de compreensão cristológica ontologizada da
6 união hipostática e que, progressivamente – seja pela piedade popular seja pela
ressalta, frente a uma mediocridade espiritual contemporânea, a necesidade
de buscar a espiritualidade profética de Jesus, de modo criativo, libertador e
7
contribuição dos intelectuais –, chegou-se a uma quase exclusividade do divino
gerador de esperança.
nele, busca-se agora um acento na sua dimensão humana.
Na continuação do tema da espiritualidade jesuânica, Mateus Locatelli,
Quer-se compreendê-lo, hoje, como o Deus que ele é, mas a partir do
em seu estudo a partir do evangelho de Lucas, constrói Uma espiritualidade
humano. Isto é também um caminho viável. Daí, passam a ter importância não
cristã hoje para o seguimento de Jesus que seja capaz de uma mudança de vida
mais a conceitualidade grega, mas a judeidade dele, seus comportamentos e
e de encarnar-se na história, a exemplo do próprio Jesus.
atitudes, seus ensinamentos e “surpreendestes sinais de curas”, sua paixão, morte
e ressurreição. Em síntese, a ênfase recai sobre o conjunto de sua vida terra, onde O argentino Roberto Pereyra, utilizando inúmeras e recentes fontes
ele não é apenas Deus e tampouco apenas homens, mas Deus-e-homem ou bibliográficas, levanta algumas questões sobre Jesus e o lugar dos evangelhos
homem-e-Deus unido indivisa, inconfusa, inseparável e imutavelmente - como na fé cristã, justificando, porque afinal “Eu acredito no ´Jesus histórico”
afirma o Concílio de Calcedonia. Sua singularidade – inclusive salvífica - pertence O texto A cristología hoje: o desenvolvimento a partir de Vaticano II e as
ao todo de sua vida histórica. características emergentes, do teólogo italiano Bruno Forte propõe-se a analisar
O fascínio que Jesus exerce, entre crentes e não-crentes, está no ter sido o tema, enfocando não tanto o caminho teológico feito especialmente na
todo-para-Deus- e todo-para-os-outros. Esvaziando-se a si, plenificou e continua Europa, mas sobretudo o do Magistério da Igreja. Sua reflexão chama a atenção
plenificando a todos os que o procuram e o encontram. para a produção cristológica do próprio Magistério, não apenas de sua ação
como “guardião da fé”.
A busca de Jesus e sua revelação/velação se tornam atitudes com sentido,
à medida que do fascínio se chega ao seguimento. O autor de Uma historia da historia de Jesus, mais do que afirmações sobre
O Studium Theologicum, junto com o Diretório Acadêmico promoveu Jesus dos evangelhos ou do dogma, tem em vista contar o processo destas
sua Semana Teológica, deste 2010, com o tema da Cristologia. Algumas destas afirmações. Hélcion Ribeiro enfatiza a necessidade de conhecer a história do
reflexões estão incluídas neste fascículo de nossa Revista de Teologia STUDIUM. processo de compreensão sobre Jesus. Importa também ir além dos discursos
Temos também a grata alegria de ver entre nossos articulistas a contribuição de sobre ele, pois o encontrar outras vozes deste longo caminhar, pode gerar maior
alguns teólogos de portada internacional, que gentilmente cederam seus textos adesão, admiração e seguimento de Jesus.
Artigos
Rivaldave Paz Torquato contribui, neste número de nossa Revista
STUDIUM com o interessante estudo exegético: Zaqueu: o ver que reorienta a vida.
Destaca as diversas perspectiva do olhar, do ver, capazes de orientar o cristão
a perceber com profundidade a própria situação humana para transformá-la,
desde o olhar humano e divino.
Wilmar Santin recupera com suas pesquisas uma vasta documentação,
no Arquivo Geral da Ordem Carmo em Roma, a respeito de Portugal e Brasil.
JESUS, O JUDEU DO SEU POVO
Neste artigo comenta O Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII, que, em
1624, concede aoVigário provincial da Ordem dos Carmelitas do Maranhão, a
Antonio Carlos Coelho *
faculdade de conceder o título de doutor em Sacra Theologia, aos carmelitas
devidamente examinados e aprovados.
Desejamos aos nossos leitores um feliz encontro com Jesus e algumas RESUMO: Constata-se na história a dificuldade em aceitar a condição judaica de Jesus, filho
questões cristológicas, a fim de aprofundar a fé, ter e aprofundar as próprias do povo de Israel e do próprio judaísmo. Com as descobertas arqueológicas do último século,
obteve-se maior conhecimento sobre o modo de vida, costumes e leis dos tempos bíblicos. Tem-
razões de nossa fé. se, então, uma melhor compreensão de quem é Jesus. Propõe-se uma análise mais judaica do que
cristã – assente sobre o título. Jesus é descrito como judeu e integrado em sua cultura. Destaca-se
a prática da cura, tida como um atributo do homem que se relacionava diretamente com Deus.
8 Também as pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura como na forma
de ensinar. Não se pode afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica, que
o mestre dos cristãos era um ‘prushim’, todavia podemos reconhecer a semelhança em sua prática
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e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu ou não, Jesus era um ‘darsham’ – interprete
da Torá – possuía discípulos e ensinava por onde passava.
PALAVRAS CHAVE: Jesus judeu; Jesus messias; Pregação farisaica; Cultura judaica.
ABSTRACT: We looked at the story difficult to accept the Jewishness of Jesus, son of Israel and
of Judaism itself. With the archaeological discoveries of the last century, we got more knowledge
about the way of life, customs and laws of biblical times. So we can have a better understanding
of who Jesus is. We propose here further analysis Jewish than Christian - based on the title.
Jesus is described as Jewish and integrated into their culture. Also we highlight the practice of
healing, regarded as an attribute of man which related directly to God. Also the preaching of
Jesus followed the Pharisaic style, both in its structure and in the way of teaching. We may not
say categorically, because there is no historical reference that the master was a Christian ‘prushim’,
but we can recognize the similarity in their practice and its proximity to the thought of Hillel. A
Pharisee or not, Jesus was a ‘darshan’, an interpreter of the Torah, and he had disciples, and also
taught wherever he went.
KEY WORDS: Jewish Jesus, Jesus Messiah; Preaching Pharisaic; Jewish Culture.
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da Europa cristã sobre os horrores da Shoá perceberam o quanto a religião cenário em que viveram e traçar um perfil aproximado das suas vidas, bem
contribuiu ou falhou em seus princípios humanitários. Vinte anos após o como superar os anacronismos do texto sagrado.
término do conflito mundial o Concílio Vaticano II apelou para a necessidade
urgente para uma mudança de postura diante do judaísmo. Promoveu, assim, Com maior precisão podemos fazer o mesmo em relação a Jesus. As
a aproximação fraterna e o conhecimento da religião berço do cristianismo. fontes históricas do primeiro século são mais abundantes e retratam mais
Desta forma, a condição judaica de Jesus deixou de ser um tabu dentro do precisamente o ambiente da época. Portanto, encontrar Jesus, o judeu da
ambiente católico. Galiléia não é impossível, afinal, ele não teve uma vida excêntrica a ponto de
não se poder falar sobre o homem Jesus.
Apesar da nova e sincera postura da Igreja diante do judaísmo e das outras
religiões não cristãs, os meios acadêmicos não se sentiram suficientemente O Rabino Berman, em sua palestra na manhã de ontem, ao se referir à
motivados para pesquisar sobre a condição judaica de Jesus. De certa forma condição judaica de Jesus disse: “Ela (a condição) é um problema para os cristãos
isso é compreensível, pois não existem informações sobre Jesus. Sabemos o que e para os judeus”. — E é exatamente sobre esse problema, ou problemas, que
sabemos pelo Evangelho. Seus autores não tiveram a preocupação em retratar a tratarei neste texto. Veremos o que dificultou, por muitos séculos, situar e aceitar
vida de um pregador judeu, e sim, daquele que a comunidade cristã reconheceu a condição judaica daquele que é centro da fé cristã.
como o filho de Deus e Messias anunciado pelos Profetas.
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e João Paulo II aos judeus, houve um maior interesse sobre a pessoa de Jesus e Durante os anos da vida pública de Jesus, Yosef Bar Kayafa (Caifás) exercia
o seu significado. Isso contribui, em parte, para uma reabilitação da imagem de o sumo-sacerdócio, a presidência do Sanhedrim e a lideranças dos Saduceus.
Jesus aos judeus, mostrando-o como homem religioso, fiel à tradição judaica, Tibério César, sucessor de Júlio César, era o imperador de Roma. Valério Graco e
bem como para superar anos de conflitos entre Igreja Católica e Judaísmo. Pôncio Pilatos administravam a província romana da Síria e o território do atual
Estado de Israel (Judéia, Samária, Galiléia) e a Peréia.
16 Rabi Meir, um dos sábios da Mishná, ensinava que o valor da vida é superior Relação de Jesus com os fariseus:
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ao valor do Sábado. E, não foi só ele a ensinar. Muitos outros orientavam para Na conferência do Doutor Pablo ficou bastante claro a importância dos
que a observância do Sábado e das datas festivas não comprometessem o trato fariseus para o judaísmo do primeiro século e, também, para a continuidade da
com a vida. Aliás, a mensagem bíblica e a legislação hebraica são muito claras ao religião após a destruição do Templo. No entanto, foi com os fariseus – prushim
defender o valor da vida, sobrepondo a toda Halachá(Lei). – com quem, segundo os evangelhos, Jesus teve as discussões mais valorizadas.
Portanto, o que lemos nos evangelhos sobre Sábado e sua observância não Temos que considerar o papel e a aceitação dos fariseus no meio popular
destoa do judaísmo farisaico (ensinado por Hillel) e, muito menos, do judaísmo da época. Eles eram, antes e depois da destruição do Templo, os que mais exerciam
rabínico posterior à destruição do Templo. influência no meio popular. Eram, também, aqueles que mais se aproximavam,
tanto na prática como na doutrina, do modo dos primeiros pregadores cristão.
Lembre-mos que Jesus se avizinhava do pensamento de Hillel, inclusive, nos
A Pregação: evangelhos há interpretações iguais ao do mestre fariseu. Sem dúvida, os
textos cristãos traduzem “uma competição” entre o grupo judaico e a primeira
As pregações de Jesus seguiam o estilo farisaico, tanto em sua estrutura comunidade cristã, isto é, a suposta inimizade entre Jesus e os fariseus refletem
como na forma de ensinar. Havia o pregador/mestre itinerante e havia aqueles que a relação posterior à morte de Jesus – refletem os embates entre a primeira
ensinavam nas sinagogas e nas escolas criadas pelos fariseus cento e cinquenta comunidade cristã e os fariseus ou os cristãos nascentes e os judeus durante o
anos antes da era cristã10. Esses mestres usavam métodos e construções período da guerra com Roma.
diferenciadas para cada situação: o colar, a abertura, a parábola. Métodos todos
usados por Jesus em suas pregações feitas em torno do Mar da Galiléia e Jerusalém Quanto ao judeu Jesus, é explicita a sua forma farisaica de ensinar. Não
e nas sinagogas em que frequentava costumeiramente. podemos afirmar categoricamente, pois, não há nenhuma referência histórica,
que o mestre dos cristãos era um prushim, todavia podemos reconhecer a
Suas referências eram próprias dos rabinos do seu tempo: referências às semelhança em sua prática e sua proximidade ao pensamento de Hillel. Fariseu
Escrituras, situadas no cotidiano, nas coisas da natureza - água – vento, nos fatos ou não, Jesus era um darsham – interprete da Torá – possuía discípulos e ensinava
da vida. Assim era transmitida a Lei Oral. Por esta forma de ensinar conquistou a por onde passava.
Para que um mestre da Torá tivesse credibilidade era necessário que não 5 Afirmamos três vezes baseados na obrigação judaica de peregrinar a Jerusalém nas festas de
vivesse do ensino, isto é, não cobrasse por seu trabalho de mestre, logo, era preciso Pessach, Shavuot e Sukot.
que tivesse uma profissão. Hillel, por exemplo, era um vendedor de água. Buscava 6 O termo zelota ou zelote vem do hebraico kanai, que significa seguidor, zeloso – aquele que
água na fonte e entregava nas casas. Disso tirava seu sustento. Os evangelhos não zela pelo nome de Deus. Portanto, não podemos afirmar com segurança se o qualificativo
falam da atividade de Jesus. Talvez, ganhou a vida como carpinteiro, assim como atribuído ao apóstolo Simão( Lc 6; 15 e At. 1; 13) referia-se a sua pertença ao grupo revoltoso
fez seu pai. Todavia, na sua vida pública, os textos o situam próximo ao mar da (de zelo nacionalista) ou se era considerado alguém de zelo religioso.
Galiléia, junto aos pescadores. Embora nenhum escrito confirme que Jesus tirava
7 É de responsabilidade da mãe judia transmitir aos filhos a educação, os valores da religião e da
seu sustento de alguma atividade, há escritos judaicos do período do I d.C. que tradição aos filhos. Daí se reconhecer como judeu aquele que nasce de mãe judia. No livro do
alertam sobre a proibição de se cobrar pelo ensino da Torá. Êxodo encontra-se um fato que ilustra o cuidado com a educação da criança e o papel da mãe
na transmissão da herança hebraica ao filho, uma herança que se transmite como alimento que
Os fariseus implantaram escolas “públicas” em muitas cidades e vilas de dá a vida e crescimento aos pequenos: A irmã dele(Moisés) disse à filha do Faraó: “Queres que eu
Israel. Eram escolas para meninos. Ensinavam a ler e escrever – desde Ezra o ensino vá chamar uma ama de leite entre as mulheres dos hebreus? Ele poderia amamentar o menino
da Torá ganhou importância no ambiente judaico. Todo homem deveria saber ler para ti”. Ex 2; 7
para estudar a Torá, o que era uma forma de acolher a revelação divina. Conforme
8 Vermes, Geza: Jesus, o Judeu, p. 84, Ed. Loyola, São Paulo, 1990.
o Evangelho Jesus sabia ler – leu na sinagoga – sabia escrever – deve, portanto,
ter freqüentado alguma escola “pública” na vila de Nazaré, onde aprendeu com 9 Ver referências sobre Hillel e Shammai em Wikipédia: http://en.wikipedia.org/wiki/Hillel_and_
mestres fariseus. Shammai; e na Jewish Encyclopedia: http://www.jewishencyclopedia.com/search?utf8=%E2%9
18 O que disse nesta manhã da Semana Teológica, não esgota o tema, mas
C%93&keywords=Bet+Hillel+and+Bet+Shammai&commit=search
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10 Já no tempo de Ezra existiam escolas para se ensinar a Torá. Mas foram os fariseus que se
já é uma boa dose. Espero ter, juntamente com Rabino Pablo Berman, oferecido
empenharam em espalhar tais escolas por todo o território de Israel.
subsídios para uma melhor da história, das instituições judaicas do período em
que Jesus e os primeiros autores cristãos viveram. Espero, também, que a melhor
compreensão do judaísmo, principalmente do judaísmo do primeiro século da
nossa era, contribua para recuperar séculos de mal entendidos entre judeus e
cristãos e, ainda, que católicos possam encontrar as suas raízes espirituais, pois,
lembrando Paulo na carta aos romanos, nossas qualidades vem de uma boa
origem - raiz – que é o judaísmo.
(Endnotes)
3 Kathleen Mary Kenyon, arqueóloga inglesa (1906-1978) destacou-se por suas pesquisas na
cultura do neolítico no Crescente Fértil e, também, por suas escavações em Jericó. Kathleen
Kenyon deu à arquelogia bíblica o cunho e seriedade científica, afastando-se da ideologia
religiosa que marcaram as pesquisas anteriores. A Arqueologia bíblica visava, antes de Kenyon
comprovar que as histórias da Bíblica eram cientificamente comprováveis.
4 Não temos nada que garanta ser Belém o local do nascimento de Jesus. Não há registros
históricos de um recenseamento exigido por ordem de Roma, nem mesmo uma lógica que
explique o dominador promover o deslocamento de pessoas a troco de um censo.
Artigos
JESUS: FORMANDO E FORMADOR
Carlos Mesters *
RESUMO: Costumamos falar de Jesus como formador. Poucas vezes pensamos no processo de
formação tanto em sua infância quanto em sua vida pública, tal qual ocorre com todos os seres
humanos. Convivendo e formando os discípulos, Jesus também se forma ouvindo o povo, os
discípulos, a si mesmo e a Deus. O caminho formativo de Jesus, válido para todos os tempos, tem
três indicativos básicos: imitar o mestre, participar de seu destino e conservar sua vida dentro de
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si. O modo de ensinar de Jesus admite estar atento às questões do povo, partilhando os segredos
de Deus, detectando e discernindo os sinais de mentalidade ‘antiDeus’ e adepta de Deus, mesmo
que implique na sua Paixão.
PALAVRAS CHAVE: Jesus como formador; Jesus como formando; Discípulos; Processo de
formação.
ABSTRACT: We usually speak of Jesus as a formator. We seldom think of the process of training
him, both in his childhood and in his public life, as occurs with all human beings. Living and
forming disciples, Jesus is also formed when heard the people, the disciples, himself and God. The
formative journey of Jesus, valid for all times, has three basic indicative: imitate the teacher, attend
your destination and keep his life within. The way of teaching of Jesus involves being aware of the
issues of the people, sharing the secrets of God, detecting and discerning the signs of mentality
‘against-God’ and those favor of God, even if resulting in his passion.
* Formado em Ciências Bíblicas, pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblique, de Jerusalém, assessor do
CEBI e CRB, Doutor Honoris Causa , pelo Instituto São Paulo de Estudos Superiores, ITESPP.
Geralmente, quando falamos de Jesus, não costumamos ver nele o • Imitar o exemplo do Mestre:
formando, mas só o formador. Na realidade, Jesus, igual a nós em tudo, menos
no pecado (Hb 4,15), viveu o mesmo processo de aprendizagem, próprio de todo Jesus era o modelo a ser recriado na vida do discípulo ou da discípula (Jo
ser humano. Como todo mundo, crescia em sabedoria, tamanho e graça, diante 13,13-15). A convivência diária com o mestre permitia um confronto constante.
de Deus e dos homens (Lc 2,52). Naqueles trinta anos em Nazaré, Jesus “crescia Nesta “escola de Jesus” só se ensinava uma única matéria: o Reino! E este Reino se
e ficava forte, cheio de sabedoria, e a graça de Deus estava com ele” (Lc 2,40). E reconhecia na vida e na prática do Mestre. Isto exige de nós leitura e meditação
mesmo depois, ao longo dos três anos da sua vida como formador dos discípulos constantes do Evangelho para olharmos no espelho da vida de Jesus.
e das discípulas, ele ia aprendendo no contato com o povo, com os discípulos
e com os fatos duros da vida. “Mesmo sendo Filho de Deus, aprendeu a ser
obediente através de seus sofrimentos” (Hb 5,8). Como todos nós, ele matriculou- • Participar do destino do Mestre.
se na escola da vida e tornou-se discípulo aplicado de Deus e do povo.
A imitação do Mestre não era um aprendizado teórico. Quem seguia
Falando de “Jesus formando e formador”, não se trata de dois períodos Jesus devia comprometer-se com ele e “estar com ele nas tentações” (Lc
distintos, como se nos trinta anos em Nazaré Jesus fosse só formando, e nos outros 22,28), inclusive na perseguição (Jo 15,20; Mt 10,24-25). Devia estar disposto a
três anos fosse só formador. Na realidade, o formando sempre é fator de formação carregar a cruz e a morrer com ele (Mc 8,34-35; Jo 11,16). Isto exige de nós um
para seu próprio formador. O formador se forma formando seus discípulos. Uma compromisso concreto e diário de fidelidade com o mesmo ideal comunitário
vez tendo formado o discípulo, o formador desaparece. com que Jesus, fiel ao Pai, se comprometia.
22 1. Seguir Jesus 23
2. O amigo que convive e forma para a vida • Ter a vida de Jesus dentro de si.
3. Jesus forma os discípulos envolvendo-os na missão
Depois da Páscoa, surge uma terceira dimensão, fruto da fé na ressurreição
4. O método participativo das Parábolas e da ação do Espírito na vida das pessoas. Trata-se da experiência pessoal da
presença de Jesus ressuscitado, que levava os primeiros cristãos a dizer: “Vivo,
5. Atento ao processo de formação dos discípulos mas já não sou eu, é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20). Eles procuravam refazer
6. Conteúdos e recursos didáticos em suas vidas a mesma caminhada de Jesus que tinha morrido em defesa da
vida e foi ressuscitado pelo poder de Deus (Fl 3,10-11). Isto exige de nós uma
espiritualidade de entrega contínua, alimentada na oração.
1. Seguir Jesus Tanto a convivência comunitária estável ao redor de Jesus e a missão
Desde o começo, o objetivo do seguimento é duplo: estar com Jesus, itinerante através dos povoados da Galileia, as duas dimensões fazem parte
formar comunidade com ele e ir em missão, ou seja, pregar, expulsar os demônios, do mesmo processo de formação. Uma não exclui a outra. Pelo contrário! Elas
ser pescador de gente (Mc 1,17; Lc 5,10; Mc 3,13-15). “Seguir Jesus” era o termo que se completam mutuamente. Uma sem a outra, não se realiza, pois a missão
fazia parte do sistema educativo da época. Indicava o relacionamento do discípulo consiste em reconstruir a vida em comunidade.
com o mestre. O relacionamento mestre-discípulo é diferente do relacionamento
professor-aluno. Os alunos assistem às aulas do professor sobre uma determinada
matéria, mas não convivem com ele. Os discípulos “seguem” o mestre e se formam 2, O amigo que convive e forma para a vida
na convivência diária com ele, dentro do mesmo estilo de vida.
Ao longo daqueles três anos, Jesus acompanhava os discípulos. Ele era
O seguimento de Jesus tinha três dimensões que perduram até hoje e que o amigo (Jo 15,15) que convivia com eles, comia com eles, andava com eles, se
formam o eixo central do processo de formação dos discípulos: alegrava com eles, sofria com eles.
Era através desta convivência que eles se formavam. Muitos pequenos Deste modo, pelo seu jeito de ser e por este seu testemunho de
gestos refletem o testemunho de vida com que Jesus marcava presença na vida vida, Jesus encarnava o amor de Deus e o revelava aos discípulos
dos discípulos e das discípulas: o seu jeito de ser e de conviver, de relacionar-se e discípulas (Mc 6,31; Mt 10,30; Lc 15,11-32). “Quem vê a mim,
com as pessoas e de acolher o povo que vinha falar com ele. Era a maneira de vê o Pai” (Jo 14,9). Tornava-se para eles uma pessoa significativa
ele dar forma humana à sua experiência de Deus como Pai: que os marcou pelo resto de sua vida como “caminho, verdade
e vida” (Jo 14,6).
– Comprometido, defende os amigos quando são criticados pelos – Sabe aguardar o momento oportuno para corrigir (Lc 9,46-48; Mc
adversários (Mc 2,18-19; 7,5-13). 10,14-15).
– Manso e humilde, convida os pobres e oprimidos: “Venham – Ajuda-os a discernir (Mc 9,28-29).
todos a mim” (Mt 11,28). – Interpela-os quando são lentos (Mc 4,13; 8,14-21).
– Exigente, pede para deixar tudo por amor a ele (Mc 10,17-31). – Prepara-os para o conflito e a perseguição (Jo 16,33; Mt 10,17-25).
– Sábio, conhece a fragilidade dos seus discípulos, sabe o que se – Manda observar a realidade (Mc 8,27-29; Jo 4,35; Mt 16,1-3).
passa no coração deles e, por isso, insiste na vigilância e ensina-
os a rezar (Lc 11,1-13; Mt 6,5-15). – Reflete com eles as questões do momento (Lc 13,1-5).
– Homem de oração, aparece rezando em todos os momentos – Confronta-os com as necessidades do povo (Jo 6,5).
importantes de sua vida e desperta nos discípulos a vontade de – Ensina que as necessidades do povo estão acima das prescrições
rezar: “Senhor, ensina-nos a rezar!” (Lc 11,1-4; Lc 4,1-13; 6,12-13; rituais (Mt 12,7.12).
Jn 11,41-42; Mt 11,25; Jn 17,1-26; Lc 23,46; Mc 15,34)
– Esquece o próprio cansaço e acolhe o povo que o procura (Mt
– Humano, Jesus é humano, muito humano, “tão humano como 9,36-38).
só Deus pode ser humano” dizia o Papa Leão Magno (Séc. V).
Ele veio nos mostra o caminho para quem quer ser divino: – Tem momentos a sós com eles para poder instruí-los (Mc 4,34;
antes de tudo ser profundamente humano! (cf. Fl 2,6-11) 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3).
– Sabe escutar, mesmo quando o diálogo é difícil (Jo 4,7-30). pedagógico. Ela provoca assim para levar o ouvinte a pensar. Ela leva a pessoa a se
envolver na história a partir da sua própria experiência de vida.
– Ajuda as pessoas a se aceitarem a si mesmas (Lc 22,32).
Uma vez um bispo perguntou numa reunião da comunidade: “Jesus falou
– É severo com a hipocrisia (Lc 11,37-53).
que devemos ser como sal. Para que serve o sal?” Discutiram e, no fim, partilhando
– Faz mais perguntas do que respostas (Mc 8,17-21). entre si suas experiências com o sal, encontraram mais de dez finalidades para o sal.
Aí eles foram aplicar tudo isto à sua própria vida e descobriram que ser sal é difícil
– É firme e não se deixa desviar do caminho (Mc 8,33; Lc 9,54). e exigente! A parábola funcionou e ajudou-os a dar um passo. Iniciaram a travessia
em direção ao Reino!
– Desperta liberdade e libertação: “O ser humano não foi feito para
o sábado, mas o sábado para o ser humano!” (Mc 2,27; 2,18.23). Certa vez, por ocasião da parábola da semente, os discípulos perguntaram a
Jesus o que ele queria ensinar por meio daquela parábola. Jesus disse: “Para vocês,
– Depois de tê-los enviado em missão, na volta faz revisão com eles
foi dado o mistério do Reino de Deus; para os que estão fora tudo acontece em
(Lc 9,1-2;10,1; 10,17-20)
parábolas, para que olhem, mas não vejam, escutem, mas não compreendam, para
– Desperta a atenção dos discípulos para as coisas da vida através que não se convertam e não sejam perdoados.” (Mc 4,11-12).
do ensino das Parábolas (Lc 8,4-8).
Jesus distingue duas categorias de pessoas: “os de fora” e os “de dentro”. Aos
de dentro, isto é, aos discípulos que convivem com Jesus e acreditam nele, é dado
26 4. O método participativo das parábolas
conhecer o mistério do Reino, pois o mistério do Reino era o próprio Jesus. Jesus é a
semente do Reino. Aos de fora, isto é, aos que não faziam parte da “família de Jesus”,
27
Jesus tinha uma capacidade muito grande de inventar parábolas ou tudo é dito em parábolas, “para que vendo não vejam”. Estes, os de fora, sabem o
pequenas histórias para comparar as coisas de Deus, que não são tão evidentes, que é semente, mas não sabem que o próprio Jesus é esta semente. Alguns deles,
com as coisas da vida do povo que todos conheciam e experimentavam como por exemplo, aqueles fariseus e os herodianos que queriam matar Jesus (Mc
diariamente na sua luta pela sobrevivência. Isto supõe duas coisas: estar por 3,6), nunca aceitariam Jesus ser a semente do Reino. Por isso, mesmo vendo não
dentro das coisas da vida do povo, e estar por dentro das coisas de Deus, do Reino enxergam e ouvindo não entendem. E por causa desta cegueira eles se excluem a
de Deus. si mesmos do Reino.
A parábola é uma forma participativa de ensinar e de educar. Não dá Só poucas vezes Jesus explica as parábolas. Geralmente, ele diz: «Quem
tudo trocado em miúdo. Não faz saber, mas faz descobrir. Ela muda os olhos, faz tem ouvidos para ouvir ouça!» (Mt 13,9; 11,15; 13,43; Mc 7,16). Ou seja: «É isso!
a pessoa ser contemplativa, observadora da realidade. Leva a pessoa a refletir Vocês ouviram! Agora tratem de entender!» De vez em quando, em casa, ele dava
sobre a sua própria experiência de vida, e faz com que esta experiência a leve a explicação aos discípulos (Mc 4,34-34). Isto significa que o ensino em parábola
descobrir que Deus está presente no cotidiano da vida de cada dia. Por exemplo, era um voto de confiança de Jesus na capacidade do povo e dos discípulos de
o agricultor que escuta a parábola da semente, diz: “Semente no terreno, eu sei o entenderem o seu ensinamento. É bom para o formando saber e experimentar que
que é. Mas Jesus diz que isso tem a ver com o Reino de Deus. O que será que ele o formador acredita nele e na sua capacidade de assimilar e compreender as coisas.
quis dizer com isto?” E aí você pode imaginar as longas conversas do povo e dos
discípulos em torno das parábolas que Jesus contava.
5. Atento ao processo de formação dos discípulos
A parábola provoca. Em algumas parábolas acontecem coisas que não
costumam acontecer na vida normal. Por exemplo, onde se viu um pastor de cem Não é pelo fato de uma pessoa andar com Jesus e de conviver com ele que
ovelhas abandonar noventa e nove no deserto para encontrar aquela única ovelha ela já seja santa e renovada. O “fermento de Herodes e dos fariseus” (Mc 8,15), a
que se perdeu? (Lc 15,4) Onde se viu um pai acolher com festa o filho devasso, ideologia dominante da época, tinha raízes profundas na vida daquele povo. A
sem dar nenhuma palavra de censura? (Lc 15,20-24). Onde se viu um samaritano conversão que Jesus pedia e a formação que ele dava procuravam atingir e erradicar
ser melhor que o levita e o sacerdote? (Lc 10,29-37). A parábola traz um exagero de dentro deles esse “fermento” da ideologia dominante.
Também hoje, a ideologia do sistema neoliberal renasce sempre de novo na ser disciplinada pelos adultos. Era ainda o medo de que as mães e as crianças,
vida das comunidades e dos discípulos e discípulas. O “fermento do consumismo” tocando em Jesus com mãos impuras, causassem alguma impureza em
tem raízes profundas na vida, tanto dos formandos como dos formadores, e exige Jesus. Mas Jesus os repreende: “Deixem vir a mim as crianças!” (Mc 10,14).
uma vigilância constante. Jesus ajudava os discípulos a viverem num processo Ele os acolhe, abraça e abençoa. Coloca a criança como professora de
permanente de formação. Vamos ver alguns casos desta vigilância com que Jesus adulto: “Quem não receber o Reino como uma criança, não pode entrar
os acompanhava e os ajudava a tomarem consciência do “fermento de Herodes e nele” (Lc 18,17). Transgride aquelas normas da pureza legal que impedem o
dos fariseus”. É a ajuda fraterna com que ele, atento ao processo de formação dos acolhimento e a ternura.
discípulos, intervinha para ajudá-los a dar um passo e criar nova consciência:
5. Mentalidade de quem segue a opinião da ideologia dominante.
1. Mentalidade de grupo fechado.
Certo dia, vendo um cego, os discípulos perguntaram a Jesus: “Quem
Certo dia, alguém que não era da comunidade, usava o nome de Jesus para pecou, ele ou seus pais, para que nascesse cego?” (Jo 9,2). Como hoje, o
expulsar os demônios. João viu e proibiu. Ele disse a Jesus: “Impedimos, poder da opinião pública era muito forte. Fazia todo mundo pensar do
porque ele não anda conosco” (Mc 9,38). 5 João pensava ter o monopólio de mesmo jeito de acordo com a ideologia dominante. Enquanto se pensa
Jesus e queria proibir que outros usassem o nome dele para realizar o bem. assim não é possível perceber todo o alcance da Boa Nova do Reino. Jesus
Era a mentalidade antiga de “Povo eleito, Povo separado!”. Jesus responde: os ajuda a ter uma visão mais crítica: “Nem ele, nem os pais dele, mas
“Não impeçam! Quem não é contra é a favor!” (Lc 9,39-40). Para Jesus, o que para que nele se manifestem as obras de Deus” (cf Jo 9,3). A resposta de
28 29
importa não é se a pessoa faz ou não faz parte da comunidade, mas sim se Jesus supõe uma consciência nova e uma leitura diferente da realidade.
ela faz ou não o bem que a comunidade anuncia a todos em nome de Deus. Estes e muitos outros episódios mostram como Jesus estava atento ao
processo de conversão e de formação em que se encontravam seus
2. Mentalidade do grupo que se considera superior aos outros.
discípulos. Isto revela duas características em Jesus: 1) Possuía uma visão
Certa vez, os samaritanos não queriam dar hospedagem a Jesus. A reação de crítica, tanto da sociedade em que ele vivia, como da ideologia ou “fermento”
alguns discípulos foi violenta: “Que um fogo do céu acabe com esse povo!” que os grandes comunicavam aos súditos. 2) Tinha uma percepção clara de
(Lc 9,54). Queriam imitar o profeta Elias (cf. 2Rs 1,10-11). Achavam que, pelo como este “fermento”, disfarçadamente, se infiltrava na vida das pessoas.
fato de estarem com Jesus, todos deviam acolhê-los. Pensavam ter Deus do Pois de certo modo, eles pensavam agradar a Jesus quando proibiam as
seu lado para defendê-los. Era a mentalidade antiga de “Povo eleito, Povo mães aproximar-se de Jesus ou quando pediam para Deus fazer baixar o
privilegiado!”. Jesus os repreende: “Vocês não sabem de que espírito estão fogo do céu.
sendo animados” (Lc 9,55).
• A Vida e a natureza.
Jesus descobre a vontade do Pai nos fenômenos mais comuns da natureza • Momentos a sós com os discípulos.
e a transmite aos discípulos e discípulas: na chuva que cai sobre bons e maus
ele descobre a misericórdia do Pai que acolhe a todos (Mt 5,45); nos pássaros do Várias vezes, Jesus convida os discípulos para ir com ele a um lugar
céu e nos lírios do campo ele descobre os sinais da Divina Providência (Mt 6,26- distante, seja para instruir (Mc 4,34; 7,17; 9,30-31; 10,10; 13,3), seja para
30). A sua maneira de ensinar em parábolas provoca os discípulos a refletirem descansar (Mc 6,31). Ele chegou a fazer uma longa viagem ao exterior na terra
sobre as coisas mais comuns do dia a dia da sua vida (Mt 13,1-52; Mc 4,1-34). de Tiro e Sidônia para poder estar a sós com eles e instruí-los a respeito da Cruz
As parábolas de Jesus são um retrato da vida do povo e da realidade confusa e (Mc 8,22-10,52).
conflituosa da época.
30 • A Bíblia e a história do povo.
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• As grandes questões do momento e as perguntas do povo. Nem sempre é possível discernir se o uso que os evangelhos fazem do
O crime de Pilatos contra alguns romeiros da Galileia, a queda da torre AT vem do próprio Jesus ou se é uma explicitação dos primeiros cristãos que,
de Siloé em construção que matou 18 operários (Lc 13,1-4), a discussão dos assim, expressavam o alcance da sua fé em Jesus. Seja como for, é inegável o
discípulos em torno de quem deles era o maior (Mc 9,33-36), a fome do povo (Lc uso constante e frequente que Jesus fazia da Bíblia. Ele conhecia a Bíblia de cor
9,13), o ensinamento dos escribas (Mc 12,35-37) e tantos outros problemas, fatos e salteado. Como ainda veremos, Jesus se orientava pela Sagrada Escritura para
e perguntas do povo funcionavam como gancho para Jesus levar os discípulos a realizar sua missão e ele a usava para instruir os discípulos e o povo.
refletir, a cair em si e a descobrir algum ensinamento ou apelo de Deus.
• A Cruz e o sofrimento.
• O jeito de ensinar em qualquer lugar. Quando ficou claro para Jesus que as autoridades religiosas não iam
Em qualquer lugar onde encontrava gente para escutá-lo, Jesus aceitar a sua mensagem e que decidiram matá-lo, ele começou a falar da cruz que
transmitia a Boa Nova de Deus: nas sinagogas durante a celebração da Palavra o esperava em Jerusalém (Lc 9,31). Isto provocou reações fortes nos discípulos
nos sábados (Mc 1, 21; 3,1; 6,2); em reuniões informais nas casas de amigos (Mc (Mc 8,31-33), pois na lei estava escrito que um crucificado era um “maldito de
2,1.15; 7,17; 9,28; 10,10); andando pelo caminho com os discípulos (Mc 2,23); ao Deus” (Dt 21,22-23). Como um maldito de Deus poderia ser o Messias? Por isso, a
longo do mar na praia, sentado num barco (Mc 4,1); no deserto para onde se partir deste momento crítico, o eixo da formação que Jesus dava aos discípulos
refugiou e onde o povo o procurava (Mc 1,45; 6,32-34); na montanha, de onde consistia em ajudá-los a superar o escândalo da Cruz (Mc 8,31-34; 9,31-32; 10,33-
proclamou as bem aventuranças (Mt 5,1); nas praças das aldeias e cidades, onde 34). Estes são alguns dos recursos didáticos usados por Jesus na formação dos
povo carregava seus doentes (Mc 6,55- 56); no Templo de Jerusalém, por ocasião discípulos e discípulas. Alguns destes recursos eram diferentes de hoje, outros
das romarias, diariamente, sem medo (Mc 14,49). eram iguais.
32 os dias de hoje, pois seguir a Cristo implica uma mudança de vida e um comprometimento com
o reino de Deus não somente em palavras, mas também em atos. Faz-se necessário um encontro
pessoal com Jesus. Para isso, os cristãos de todos os tempos necessitam de uma espiritualidade
33
encarnada na realidade e atenta aos sinais dos tempos. Também profundamente mística, a
exemplo de Jesus. Portanto, uma verdadeira espiritualidade cristã, hoje, deve desafiar o ser
humano a uma mudança de vida, que coloque em comunhão total – ‘ser um com Deus’, consigo
mesmo, com o próximo e com o universo, para tornar-se radicalmente livre e em tudo fazer a
vontade de Deus.
ABSTRACT: This paper investigates, from the Christology of Luke, an archetype of Christian
spirituality. For this, is scoped pointing a path of spirituality to the present, because to follow
Christ involves a lifestyle change and a commitment with the kingdom of God, not only in words
but also in deeds. It is necessary a personal encounter with Jesus. For this reason, Christians of all
times need a spirituality embodied in reality and attentive to the signs of the times. Also deeply
mystical, like Jesus. Therefore, a true Christian spirituality today, must challenge the human being
to a life change, which put into full communion - ‘to be one with God’, with himself, with others
and with the universe, to become radically free and in all things be able to do God’s will.
KEY WORDS: Spirituality path; Compassion of Jesus; Total Communion; Metanoia-Change of the
life.
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Deste modo, se o reinado de Deus é a dedicação universal da misericórdia
4.1 Com os doentes divina ao ser humano, então a metanóia exigida por ele é concretizada na
dedicação ao próximo:13 “sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso”
Na época de Jesus as enfermidades são as próprias de países pobres
(Lc 6,36).
e subdesenvolvidos: cegueira, paralisias, surdez, mudez, doenças cutâneas,
transtornos.
Dentre os “castigados” estão os leprosos, que pela enfermidade são impuros 4.2 Com os pobres
e, por isso, isolados da comunidade para não contaminarem os pertencentes ao
povo santo de Deus. Numa cultura onde o indivíduo vive inserido em sua família Os pobres fazem parte do setor social mais oprimido. A população
e aldeia, tal exclusão é uma tragédia, “abandonados por Deus e pelos homens, da Galiléia, na sua grande maioria, é formada por eles, que sem condições de
estigmatizados por seus vizinhos, excluídos em boa parte da convivência, estes reivindicar os próprios direitos e de conseguir o alimento diário precisam lutar
enfermos constituem, provavelmente o setor mais marginalizado da sociedade”.11 e trabalhar. Em meio a esta realidade somente podem confiar no direito divino.
Jesus percebe tal realidade, move-se de compaixão, vai ao encontro José Antonio Pagola14 escreve que: os pobres não são anônimos, são
e aproxima-se deles; toca-os e desperta a confiança. Faz isso sem desejo de pessoas cujo rosto é sujo e definhado pela miséria. Entre os homens, encontram-se
retribuição, dinheiro ou reputação. Apenas por amor, algo que lhe brota das os mendigos que caminham de povoado em povoado pedindo esmolas, escravos
entranhas e que o leva a eles, a fim de lhes devolver o desejo pela vida, reavivar fugidos dos patrões e camponeses de seus credores. Entre as mulheres estão às
a fé e os reconciliar com a sociedade. Estes são sinais de um mundo novo onde o viúvas, as estéreis repudiadas pelos seus maridos e obrigadas a entregarem-se à
Reino de Deus está presente. prostituição.
Em nossos tempos quem são os doentes? Os excluídos? Os abandonados? Jesus, ao anunciar um reino de justiça e misericórdia, não pode esquecer-
Os caídos? A narrativa do bom samaritano fundamenta uma espiritualidade, para se dessas pessoas. Quando defende, acolhe e, a eles, dá lugar, provoca uma
nossos dias, centrada na atitude Jesus Cristo. inversão total, pois os primeiros tornam-se últimos e os últimos primeiros.
10 VATICANO II (1962-1965). Documentos do Concílio ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 12 SCHILLEBEECKX, op cit,. 2008, p. 151.
1997, p. 361-362, n. 8/3. 13 SCHILLEBEECKX, op cit,. 2008, p. 159.
11 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 195. 14 PAGOLA, J. A. op cit,. 2010, p. 222.
Pergunta-se pelos pobres de hoje. Como são tratados? Onde estão? A Ao tratar da vida das mulheres, Pagola16 afirma: “as mulheres judias, sem
narrativa do homem rico e do pobre Lázaro (Lc 16, 19-31) pinta uma situação verdadeira autonomia, servas do próprio esposo, reclusas no interior da casa,
de época que reflete na atualidade. A parábola contada por Jesus, às pessoas suspeitas de impureza ritual, discriminadas religiosa e juridicamente, constituíam
humildes, retrata a vida de um homem rico em uma vida de ostentação e de luxo, um setor profundamente marginalizado da sociedade judaica.” Diante de tamanha
com a qual os ouvintes nem sequer sonham. Perto do rico há um pobre, Lázaro, discriminação a atitude de Jesus, novamente, é de acolhida, amor e misericórdia.
que não tem nada a não ser o nome, cujo significado é “aquele a quem Deus Aproxima-se delas, abertamente, sem receio e sem deixar-se condicionar por
ajuda”. Encontra-se coberto de feridas, não conhece banquetes e festas, apenas nenhuma forma de preconceito. Elas, diante de tal abertura, aproximam-se e
deseja saciar-se com os restos que caiam da mesa do opulento. É repugnante, seguem-no.
impuro, degradado e sem forças mesmo para pedir ajuda.
Hoje, a dignidade da mulher é respeitada? Elas têm espaço na sociedade?
A atitude de Jesus inverte totalmente os conceitos, os valores e desmascara Na política? Na economia? Na academia? Na religião? Nos meios de comunicação?
tamanha injustiça, “os ricos estão dentro de seus palácios celebrando esplêndidas Como são valorizadas? Percebe-se que muitos passos foram dados, mas muito
festas; os pobres estão fora morrendo de fome”. Tudo muda. Lázaro, tido como ainda precisa ser feito para que haja igual dignidade entre homens e mulheres,
condenado por Deus, em sua morte vai para seio de Abraão, o rico, considerado tanto no campo social como no religioso.
como agraciado, vai para o Sheol (Lc 16,22). Com esta parábola, Jesus denúncia a
injustiça, na Galiléia, e a riqueza que cresce através da opressão dos fracos, a qual As mulheres tiveram um papel significativo na missão de Jesus. Seguiram-
não é sinal de bênção, mas é iniquidade, e com ela Deus não se compraz. Por isso no como discípulas e permaneceram com Ele na dor, no sofrimento e na morte. Em
40 a fará desaparecer, pois o Reino é incompatível com esta realidade. todos os tempos, são chamadas a testemunhar a fé no Cristo vivo e ressuscitado.
Se no passado, por questões históricas e culturais permaneciam silenciosas no 41
Uma opção pelo reino, em todos os tempos, obrigatoriamente implica cuidado do cônjuge e dos filhos, hoje são chamadas a uma participação ativa no
num levantar a voz contra toda e qualquer injustiça e opressão aos menos discipulado e na missão, testemunhando a fé, por meio de uma espiritualidade
favorecidos. Uma espiritualidade cristológica passa por uma opção preferencial místico-profética.
pelos pobres e menos favorecidos, a qual nasce de nossa fé em Jesus, Deus feito
homem e nosso irmão e nos convida a contemplar, no rosto dos sofredores, o
rosto de Cristo e a eles servir.15
4.4 Com as crianças
Somente é possível construir uma vida tal como Deus quer, libertando
A criança, na cultura e na sociedade judaica do primeiro milênio, não tem
homens e mulheres da fome, da miséria e da humilhação. A suprema caridade é
um lugar social. É desprezada, ignorada e considerada como ninguém. Por isso,
a justiça e só se pode acolher a Deus e a revelação de seu Filho, construindo um
quando Jesus coloca um pequenino como modelo a ser imitado, todos ficam
mundo que tenha como meta primeira a dignidade dos últimos.
surpresos (cf. Lc 9,46-48). Para Ele, a verdadeira transformação acontecerá quando
as pessoas tornarem-se humildes como as crianças.
4.3 Com as mulheres Com tal atitude, Jesus revela que o Reino de Deus é incompatível com a
soberba e a hipocrisia. Para tanto, pede que as pessoas imitem o exemplo das
A mulher em uma sociedade patriarcal está destinada a viver na criancinhas e sejam capazes de confiar em Deus, como um pequenino confia em
inferioridade e submissão aos homens. O controle sobre elas, na cultura semita, seus pais; de sentir assombro com as pequenas coisas da vida; de ter a capacidade
deve-se, principalmente, às regras de pureza sexual (cf. Lv 15,19-30), pois em de rir e de brincar. Devido à tamanha simplicidade delas, Jesus as trata com
decorrência da menstruação e do parto tudo o que tocam torna-se impuro. dignidade e respeito, colocando-as como modelo para quem deseja herdar o
Reino dos céus.
É inadmissível o grande número de crianças abandonadas nas ruas como A atitude de não excluir ninguém surpreende a todos. Com isso, apresenta
pedintes, exploradas sexualmente, obrigadas a trabalhos forçados, esfomeadas ou que no Reino de Deus tudo será diferente, uma mesa aberta onde, indistintamente,
desnutridas pela falta de alimentos, afastadas da escola e morrendo por não serem todos podem aproximar-se e banquetear, pois a misericórdia supera a santidade.
atendidas em suas enfermidades. Frente a tal panorama, verifica-se que muito ainda Comendo e bebendo, com Jesus, experimentam Deus entrando em suas vidas não
é necessário caminhar, para que as crianças sejam respeitadas em sua dignidade de com grandes sinais, mas como uma força compassiva que os cura e transforma.
filhos de Deus. Oferece o perdão sem antes exigir uma conversão, ou melhor, sem submetê-los a
ritos penitencias. Não coloca os pecadores diante da Lei, mas da ternura de Deus.18
As crianças têm um papel significativo na sociedade de hoje, pois serão
adultos e os idosos do amanhã. Por isso, é imprescindível investimentos para uma Em nossos dias, quem são os pecadores? Como são tratados? Como
educação de qualidade e condições de vida que supram suas necessidades básicas vivem? Onde estão? E qual é a atitude de homens e mulheres para com eles? É de
de saúde, alimentação, moradia, higiene e segurança, bem como de afeto e carinho. acolhida? De perdão? De sentar-se à mesa?
O governo, a família, a Igreja e a sociedade devem levantar a voz em prol destes
42 43
indefesos que necessitam de proteção contra qualquer tipo de ameaça. A parábola do pai compassivo espelha as atitudes misericordiosas de
Jesus e ajuda a compreender a realidade de um Deus movido pela compaixão,
Aqui, encontram eco as palavras de Jesus: “Aquele que receber uma criança que acolhe a todos, em qualquer época e condição, não importando a situação
como esta por causa do meu nome, recebe a mim, e aquele que me receber recebe de pecado em que se encontram. O filho, ao pedir a herança e partir para um
aquele que me enviou; com efeito, aquele que no vosso meio for o menor, esse país distante, está dando o pai por morto, rompendo a solidariedade da família e
será grande” (Lc 9,48). As quais nos fazem repensar o modo de ver e de tratar os jogando por terra sua honra. Em pouco tempo se arruína e estando sem recursos,
pequeninos, os prediletos de Deus. sem família, sem proteção termina como escravo de um pagão e cuidando de
porcos. Ao ver-se em uma vida de total impureza e de desespero, pois até a comida
A espiritualidade do seguimento de Jesus, em relação à criança, implica, dos animais lhe é negada, reage e se reconhece pecador e vai ao encontro do pai.
pois em: tornar-se simples como elas e simultaneamente considerá-las como Jesus
as considerava em sua dignidade, isto é, como filhas de Deus, feitas à sua imagem. Este aguarda ansiosamente à volta e o arrependimento do filho. Ao vê-lo
maltrapilho, vai ao seu encontro, movido de compaixão “abraça-o com ternura
sem deixar que ele se lance aos seus pés e o beija efusivamente sem temer seu
estado de impureza”19; não permite a confissão de seu pecado, simplesmente
4.5 Com os pecadores
apressa-se em restabelecer a dignidade perdida: “ide de presa, trazei a melhor
Jesus é hostilizado, ainda e de forma principal, pela sua aproximação e túnica e revesti-o com ela, ponde-lhe um anel nos dedos e sandália nos pés” (Lc
amizade com os pecadores, pois o pecado, no mundo semita, é tido como a maior 15,22) e manda preparar a festa, pois o filho estava morto e tornou a viver perdido
desgraça e o maior mal, pelo fato de desagradar a Deus e desencadear a sua “ira”. e foi encontrado.
Na Galiléia do primeiro século, são chamados de pecadores um grupo especial bem
O mesmo carinho e dedicação o pai tem com o filho mais velho, que por
reconhecível de pessoas com determinados traços sociológicos. São aqueles que:
não entender tamanha alegria, em receber um miserável que desperdiçou todos
Rejeitam a Aliança com Deus, desobedecendo radicalmente à lei: os os bens, manifesta todo seu rancor. O pai apenas o escuta sem recriminá-lo, pois
que profanam o culto, os que desprezam o grande dia da Expiação,
os deliquentes, os que colaboravam com Roma na opressão do povo
seu único desejo é ver seus filhos, novamente, sentados à mesma mesa.
judeu, os usuários e trapaceiros e as prostitutas17.
18 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 251.
17 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 242. 19 PAGOLA J. A. op cit,. 2010, p. 162.
Jesus apresenta na atitude do pai misericordioso a de Deus, pois como Portanto, o conhecimento do Deus revelado por Cristo passa pelo
ele, Deus não guarda para si seus bens, respeita o comportamento dos filhos, não conhecimento de si próprio,20 em que se faz necessário um olhar para dentro
é obcecado por moralidades e rompe as regras do certo e do errado. Seguindo de si, para sua vida, para seus erros e limitações e não os do próximo. Escreve o
tal exemplo, Jesus aproxima-se e acolhe a todos, especialmente, os pecadores, evangelista: “por que olhas o cisco no olho do teu irmão, e não percebes a trave
devolvendo-lhes a dignidade perdida e dando-lhes um sinal de esperança. que há no teu?” (Lc 6, 41). É somente no silêncio, na solidão, que o indivíduo
descobrirá a trave em seu olho e sem sentimento de culpa buscará respostas e
O cristão é chamado a introduzir no mundo a compaixão de Deus, a qual é soluções para suas dificuldades, também, descobrirá a necessidade da compaixão
revelada nas atitudes de Jesus. Aproximando-se dos que se encontram à margem e da solidariedade para consigo e para com o próximo.
e movido de misericórdia, apresentar o rosto de um Deus que se alegra, festeja
Nesse caminho para uma espiritualidade viva e que ajude a virar o mundo
o arrependimento e o retorno à casa de seus filhos, pois seu desejo é ver todos
para o caminho certo se faz necessário, também, um espírito de gratidão. O
sentados numa mesma mesa.
episódio narrado por Lucas (Lc 7,36-50) da mulher pecadora que lava os pés de
Virar o mundo de pernas para o ar ou para o lado certo é simplesmente Jesus com as próprias lágrimas, seca-os com seus cabelos e unge-os com perfume
amar, indistintamente, como Jesus. demonstra sua profunda gratidão pelo perdão recebido; “a mulher chorava de
forma irreprimível porque estava cheia de alegre gratidão pelo perdão imenso
que recebera.”21 Portanto em um mundo cercado pelo mal, pelo erro e pela
condenação, a gratidão pelo bem recebido levará a pessoa a também mover-se
Jesus amava a si próprio como era e da forma que era. A sua experiência
de ser amado pelo Pai, fazia-o sentir-se digno desse amor. O ser humano como 23 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 225-226.
24 Aqui encontram eco os documentos e as encíclicas sociais da Igreja e dos papas, especialmente,
também é amado de forma incondicional por Deus é, igualmente, merecedor
a de Bento XVI Caritas in Veritate a qual lança um apelo para que a dignidade da pessoa e a
desse amor. Todo indivíduo, para viver em paz, é desafiado a amar a si próprio, a justiça sejam respeitadas, sobretudo, nas opções econômicas, para que não façam aumentar a
miséria, a fome, a mortalidade infantil e o desemprego. (BENTO XVI. Caritas in veritate. Paulinas:
22 NOLAN, A. op cit,. 2008, p. 199-252. São Paulo, 2009, p. 52-55).
7 CONCLUSÃO REFERÊNCIAS
Ao final deste artigo, verifica-se que a problemática suscitada no início está CONCÍLIO VATICANO II. Constituição dogmática Lumen Gentium: sobre a Igreja.
longe de ser respondida. Isso pelas grandes mudanças no horizonte conjuntural, In: CONCÍLIO VATICANO II (1962-1965). Documentos do Concílio ecumênico
as quais mudam os critérios de julgamento sobre o certo e o errado. Vaticano II. São Paulo: Paulus, 1997, p. 101-197.
A vida de Jesus foi permeada pelo anúncio do Reino de Deus, por uma CONFERÊNCIA GERAL DO EPISCOPADO LATINO-AMERICANO (CELAM). Documento
profunda intimidade com o Abbá e por uma espiritualidade completamente de Aparecida: texto conclusivo da V Conferência Geral do Episcopado Latino-
contextual. Fazendo-o ler os sinais dos tempos a fim de perceber a realidade Americano e do Caribe. São Paulo: Paulinas; Paulus; Brasília: edições CNBB, 2007,
de exclusão, miséria, sofrimento e discriminação como algo incompatível com 296p.
o sonho de Deus, a felicidade para todos. Por isso, provoca uma verdadeira
mudança, a qual inverte a ordem das coisas, ou melhor, suas atitudes e seu mover- ______. Papa (2005 : Bento XVI). Carta Encíclica Caritas in Veritate: sobre o
se de compaixão pelos excluídos, marginalizados, pecadores, doentes, mulheres, desenvolvimento humano integral na caridade e na verdade. São Paulo: Paulinas,
crianças vira o mundo judeu, do século I, de pernas para o ar. Seguindo esse 2009, 142p.
caminho de espiritualidade, vivido por Cristo, os cristãos de todos os tempos são
KESSLER, H. Cristologia. In: SCHNEIDER, T. Manual de dogmática Vol. I. Petrópolis:
48 49
chamados, a exemplo Dele, introduzir e viver no mundo a compaixão de Deus.
Vozes, 2000, p. 219-400.
É impossível confessar Jesus como Salvador, e segui-lo sem uma mudança
NOLAN, A. Jesus hoje: uma espiritualidade de liberdade radical. São Paulo:
de vida (metanóia). Uma espiritualidade cristológica, hoje, necessariamente
Paulinas, 2008, 290p.
deve espelhar-se naquele “Profeta de fogo” que percorreu a Galiléia por volta do
ano 30 e como Ele, trabalhar a fim de virar o mundo para o lado certo. Isso sem PAGOLA, J. A. Jesus aproximação histórica. Vozes: Petrópolis, 2010, 651p.
deixar para segundo plano a oração e a contemplação, pois como bem afirmava
o grande teólogo do século XX, Karl Rahner, “o cristão do futuro ou será místico, SCHILLEBEECKX, E. Jesus: a história de um vivente. São Paulo: Paulus, 2008,
ou deixará de existir”. 743p.
RESUMO: Buscar uma nova espiritualidade é algo que se impõe aos cristãos dos tempos atuais
- tempos de luz e de sombra. Ante a mediocridade espiritual, impõe-se a necessidade de um
50 novo vigor espiritual, que exige uma conversão sem precedentes. Então, é preciso, buscar a
espiritualidade profética de Jesus, centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana. O
exemplo da espiritualidade de Jesus nestes momentos de sombra, poderá levar o ser humano
51
a uma espiritualidade saudável, criativa, libertadora e geradora de esperança. Marcada pelo
Espírito de Jesus, ela será uma presença alternativa, portadora da indignação profética de Jesus.
Transforma-se em imaginação e fôlego para pensar no futuro a partir da liberdade de Deus, amigo
da vida. Aberta à esperança e incentivada pela compaixão, ela há de aprender a olhar o rosto dos
outros, sobretudo das vítimas.
ABSTRACT: Get a new spirituality is something that is imposed on Christians of modern times -
times of light and shadow. Before the spiritual mediocrity, it imposes the need for a new spiritual
force, which requires a conversion unprecedented. So, we must seek the prophetic spirituality
of Jesus, focusing on the Kingdom and the service of a more humane life. The example of the
spirituality of Jesus in these moments of shadow, could lead the human being to a healthy
spirituality, creative, liberating and generating hope. Marked by the Spirit of Jesus, it is a presence
alternative bearer of prophetic indignation of Jesus. Becomes in imagination and stamina to
think about the future, the starting point of God’s freedom, friend of life. Opened the hope and
encouraged by compassion, she will learn to look at the faces of others, especially the victims.
KEY WORDS: Spirituality and compassion; Indignation prophetic; Hope; Kingdom of God and
Justice.
* Mestre em Teologia, pela Pontificia Universidade Gregoriana, Roma, diplomado em Ciências Bíblicas,
pelo Instituto Bíblico de Roma e pela École Biblíque, de Jerusalém, autor de mais de 20 livros, sendo o mais
importante: Jesus, uma aproximação histórico. Petrópolis: Vozes, 2010.
Torna-se urgente buscar, com humildade, novos caminhos de denunciava há anos Karl Rahner com tanta lucidez. Nossa Igreja não possui
espiritualidade. Neste tempo de mudança epocal, a Igreja precisa de uma hoje o vigor espiritual que precisa para enfrentar os desafios do momento atual.
conversão centrada na espiritualidade do Espírito, uma conversão para o Espírito Depois de vinte séculos de cristianismo, o coração da Igreja precisa de conversão
que animou a vida inteira de Jesus. I. é, um estilo particular de vida que se alimenta e purificação. Nestes tempos em que se está acontecendo uma mudança sócio-
do seu Espírito, é reconhecido por suas escolhas e sua prática, e a conduza viver cultural sem precedentes, a Igreja precisa de uma conversão sem precedentes.
a serviço de uma vida mais digna e mais aberta à esperança no Mistério bom de Não estou pensando num «aggiornamento», sempre necessário, nem também
Deus. Três aspectos caracterizam a espiritualidade profética de Jesus, que está algumas reformas religiosas; mas em uma conversão para o Espírito que animou
centrada no Reino e a serviço de uma vida mais humana: a presença alternativa, a vida inteira de Jesus. Se nas próximas décadas não se produzir um clima novo
a indignação profética e a abertura à esperança. Incentivada pela compaixão, de conversão humilde, gozoso, radical ao Espírito de Jesus, o cristianismo entre
buscando curar sempre, tendo paixão pelo reino de Deus, como Jesus, e a sua nós corre o risco de diluír-se em formas religiosas cada vez mais decadentes e
compaixão por todas as vítimas sectárias, e cada vez mais distantes do que foi movimento inspirado e querido
por Jesus.
Buscar novos caminhos para uma nova espiritualidade, hoje se torna uma
tarefa importante. E o faço a partir da convicção de que nada é mais urgente na Estou convencido de que Jesus pode ser, nestes momentos difíceis, mas
Igreja de hoje do que voltar a Jesus para focar com mais verdade e mais fidelidade apaixonantes, fonte e caminho humilde de uma espiritualidade saudável, criativa,
a nossa espiritualidade em sua pessoa e em seu projeto do Reino de Deus. Faço-o libertadora e geradora de esperança. Entendo por «espiritualidade de Jesus» um
também a partir da consciência de que não é possível hoje fazer uma oferta de estilo particular de vida que se alimenta do seu Espírito, é reconhecido por suas
O que podemos perguntar neste tempo de luz e sombra? Para que 1. Espiritualidade enraizada na paixão profética.
noite se encaminha o niilismo moderno, esquecido da interioridade e sem um
horizonte capaz de orientar e estimular a existência? Começa a clarear alguma luz A primeira coisa que temos de captar bem é que a espiritualidade de
desde essa constelação de espiritualidades que nasce, cresce e se cruza dentro Jesus se enraíza na experiência bem conhecida dos profetas de Israel. Jesus não
desse fenômeno complexo da “Nova Era” (New Age)3? É possível vislumbrar um é um sacerdote do templo ocupado no serviço religioso. Ninguém o confunde
amanhecer nessa noite fechada de uma humanidade desumana que se afunda também com um mestre da lei dedicada a defender a ordem social legal. Os
camponeses da Galiléia vêem em seus gestos e palavras a atuação de um homem
na fome e na miséria milhões de homens e mulheres, enquanto continua a
impulsionado pelo espírito profético: “Um grande profeta surgiu entre nós”6.
destruir de forma incontrolável a casa de todos, e colocando em risco a trama
mesma da vida? Estará renascendo realmente um novo dia com o nascimento
Jesus, como os profetas de Israel, não faz parte da estrutura política nem
dessa espiritualidade laica disposta a substituir em um futuro não muito distante
religiosa. Não é nomeado por nenhuma autoridade, não é ordenado nem ungido
as religiões e crenças do passado?
4 Não vou falar da mística cristiá que tem as suas raízes na cristologia jovanea; tão pouco da
Enquanto isso, na opinião de não poucos observadores e pastoralistas, “cristologia interior” que é possivel desenvolver desde a experiencia paulina de “viver em Cristo”,
é cada vez mais patente na Igreja Católica a «mediocridade espiritual» que nem dos diversos caminhos que se ensaiam hoje para acessar à espiritualidade oriental dedde a
pedsoa de Jesus. Pode-se ler XAVIER MELLONI. El Cristo interior. Herder, Barcelona, 2010.
1 Marià Corbí, Hacia una espiritualidad laica. Sin creencias, sin religiones, sin dioses. Herder, Bar- 5 “Luz eu vim trazer à terra: e o que mais queria eu que ele já estivesse ardendo!” (Lucas 12, 49);
celona, 2007, p.191-294 “O que está perto de mim, está perto da luz. O que está longe de mim, está longe do reino”
2 Isaías 21, 12. (Evangelho apócrifo de Tomás)
3 Jean Vernette, Jésus dans a Nouvelle Religiosité, Desclée, 1987. 6 Lucas 7, 16; ver Marcos 6, 15; 8, 27-28.
por ninguém. Sua vida é marcada pelo Espírito de Deus empenhado em conduzir Movido por seu espírito profético, Jesus levanta a sua voz: “Os chefes dos
o povo pelos caminhos da justiça7. Três aspectos caracterizam a espiritualidade povos os tiranizan, e os poderosos os exploram. Mas entre vocês não pode ser
profética: presença alternativa, indignação profética, a abertura à esperança. assim” (Mt 20, 25-26a). Deus é contra o poder opressor. Grita também: “Na cadeira
de Moisés sentaram os escribas e os fariseus ... atam fardos pesados e os colocam
nas costas dos outros, mas eles não põem um dedo para carregá-los” (Mt 23, 2-4).
Não deve ser assim. Deus é contra a religião opressora. A indignação de Jesus é a
1.1.Presença alternativa sua reação profética diante de uma sociedade não suficientemente indignada.
Em meio a uma sociedade injusta que os poderosos não têm consciência
de estar arrebatando o pão dos pobres, onde os privilegiados buscam seu próprio
bem-estar silenciando o sofrimento dos que choram, o profeta apresenta uma 1.3. Abertura à esperança
forma alternativa de compreender e de viver a realidade à luz da compaixão de
Quando a sociedade não permite apenas expectativas de mudança para
Deus e seus desejos de justiça. Por outro lado, quando a religião se acomoda a um
os pobres, quando a religião fecha a passagem a toda novidade considerando
estado de coisas injusto, quando os interesses religiosos não são iguais porque
como uma ameaça ao estabelecido, quando ninguém sabe como e onde poderia
os interesses da justiça de Deus, quando a crítica não pode ser praticada a partir
germinar uma esperança nova para os últimos e essa sociedade cínica e indiferente
do templo, porque desapareceu a paixão pelo Deus dos pobres, substituído pelo
que lhes dá as costas ,..., aparece o profeta lutando contra o ceticismo, criticando a
Deus da ordem e do culto ,..., faz-se presente o profeta com o seu jeito de ler e de
ilusão de eternidade e absoluto que paralisa a religião, e lembrando a todos que
54 viver a realidade a partir da verdade de Deus. só Deus é dono do futuro. Então, a indignação profética torna-se imaginação e
fôlego para pensar o futuro a partir da liberdade de Deus, amigo da vida.
55
Assim temos que captar a presença profética de Jesus no meio da cultura
dominante de indiferença na sociedade judaica dos anos trinta. A vida inteira Assim temos que ler a história profética de Jesus. O império romano
deste homem que percorre as aldeias da Galileia impulsionado pelo Espírito de pretende que a pax romana é a paz plena e definitiva, a religião do templo defende
Deus é um grito: as coisas não são como o Pai as quer. Na Galiléia não reina a que a Torá de Moisés é imutável e eterna. Enquanto isso, os excluídos do império e
justiça. Faz tempo que a política de Roma e de seus vassalos herodianos vem os esquecidos pela religião, estão condenados a viver sem esperança. Pode haver
oprimindo os mais fracos, enquanto os líderes religiosos do templo se fazem de alguma melhora na pax romana, pode cumprir de maneira mais escrupuloso a
desentendidos diante de seu sofrimento. Torá de Moisés, mas nada decisivo muda para os pobres: o mundo não se torna
mais humano. Não é possível imaginar um novo começo.
7 O profeta é “nabi”, quer dizer alguem que foi chamado por Deus para escutar uma mensagem 8 Este dito aparece com pequenas modificações em Marcos 10,31; Mateus 19,30; 20,16; Lucas
que deverá comunicar no seu nome. Chama-se também “ro’eh” e “hozeh”, quer dizer, um vidente 13,30.
que, desde Deus, ve o que outros não vem. 9 Lucas 14, 11; 18,14; Mateus 23,12
Esta espiritualidade profética, marcada pela presença de alternativa, pela experiência nova de Deus que o ressitua tudo de modo novo. Temos que aprender
indignação e abertura à esperança, é o âmbito da espiritualidade de Jesus e de a captar e buscar a presença humanizadora de Deus no âmbito da religião, mas
todo aquele que segue inspirado pelo seu espírito. na experiência de uma vida cada vez mais saudável, mais justa, mais liberta, de
acordo com o que quer o Pai para seus filhos e suas filhas. Costumam-se citar
as palavras de Jesus que podem distorcer gravemente o seu pensamento11
pois a expressão original de Lucas “entos hymin” admite duas leituras possíveis.
2. Espiritualidade centrada no reino de Deus
Seguindo uma primeira possibilidade, traduziu-se tradicionalmente assim: “O
Com uma audácia desconhecida, Jesus surpreende a todos dizendo reino de Deus está dentro de vós” com o risco de reduzir o reino de Deus a uma
algo que nenhum profeta de Israel se atrevera a declarar: Deus já está aqui, com realidade íntima e espiritual, que ocorre no interior da pessoa quando se abre à
sua força criadora de justiça, tentando reinar entre nós. Marcos resume bem a ação de Deus. Hoje, no entanto, de acordo com outra possibilidade mais provável,
mensagem: «O tempo está cumprido e vem o reino de Deus, ele está próximo. tende a traduzir: “O reino de Deus está entre vós” com o risco de fazer do reino de
Convertei-vos e crede na Boa Nova» (Mc 1, 15). Começa um tempo novo. Deus Deus um projeto ideológico ou político, alheio à transformação das ciências. Na
não nos quer deixar sozinho diante de nossos problemas, desafios e sofrimentos. verdade, Jesus está pensando numa transformação que abrange a totalidade da
Gostaria de construir, junto a nós, uma vida mais humana. Temos aprendido a vida e humanizar todas as dimensões do ser humano. De ordinário, o acolhimento
viver esta boa notícia. Neste grande símbolo do reino de Deus, Jesus recolhe do reino começa dentro da pessoa que se torna o Deus revelado em Jesus, e vai-
as aspirações e expectativas mais profundas de Israel: o anseio que encontrou se tornando realidade social onde a vida se vai tornando mais humana12.
no coração de seu povo, que está vivo em todos os povos, e que Jesus soube
56 recriar a partir da sua própria experiência de Deus, dando-lhe um horizonte novo
e surpreendente. Este projeto do Reino de Deus constitui o princípio estruturante
57
2.3. A oração do buscador do reino de Deus
da sua espiritualidade.
Jesus deixou em herança a seus seguidores uma oração, a única que lhes
ensinou para alimentar a sua atitude espiritual. Esta frase constitui o núcleo da
2.1. Buscar o reino de Deus e sua justiça sua identidade, de homens e mulheres empenhados na tarefa do reino. É uma
oração confiante ao Pai de todos, que nos enraíza na fraternidade universal
O centro da experiência mística de Jesus e da sua atividade profética não reunindo três grandes anseios centrados no reino de Deus e três gritos saídos
ocupa propriamente Deus, senão o reino de Deus, pois Jesus não separa nunca desde as necessidades mais básicas do ser humano13.
Deus de seu projeto de transformar o mundo. Não o contempla encerrado em seu
mistério insondável, alheio ao sofrimento humano. Experimenta, como a presença “Santificado seja o Vosso Nome” do Padre. Que ninguém o despreze
bondosa de um pai que procura abrir caminho no mundo para humanizar a vida. violando a dignidade de seus filhos e de tuas filhas. Que sejam desterrados os
Este é o horizonte da espiritualidade de Jesus. Por isso, não convida seus seguidores nomes dos ídolos que matam os seus pobres. Que todos bendigam o seu nome de
a buscar a Deus por caminhos de perfeição e santidade, mas a «procurar o reino Pai bondoso. “Que venha o teu reino”. Que abramos caminhos para a sua justiça, à
de Deus e a sua justiça» (Mt 6, 33). Não chama à conversão a Deus, voltando à verdade e à sua paz. O que não reinem os ricos sobre os pobres, que os poderosos
observância da Lei, mas que convida a entrar no reino de Deus10. não abusem dos fracos, que os homens não dominem as mulheres. “Faça-se a tua
vontade na terra como no céu”. Que não encontre tanta resistência em nós. Que
na criação inteira se faça o que o Pai quer, e não o que procuram os poderosos da
Terra. Que se vá tornando realidade entre nós o que Deus quer em seu coração
2.2. Os caminhos do reino de Deus
de Pai.
O reino de Deus não é uma religião. É muito mais. Acolher o reino de
Deus vai além da aceitação das crenças, preceitos e ritos de uma religião. É uma 11 Lucas 17, 21
12 O evangelho apócrifo de Tomás atribui precisamente a Jesus estas palavras: “O reino de Deus
10 Os profetas de Israel chamam à conversâo (teshubá), que consiste em abandonar os caminhos está dentro e fora de vós” (3).
desviados para voltar (shub) ao Deus da Aliança. Jesus chama para entrar no reino de Deus 13 Lucas 11, 2-4 // Mateus 6, 9-13. Provavelmente Jesus a entendia como uma oração para ser
saindo de outros reinados (Dinheiro, César,...). rezada cada día.
“Dá-nos o pão de cada dia”. Que a ninguém falte pão. Não que peçamos Ao que parece, Jesus tinha o hábito de despedir os doentes curados e
bem estar bem abundante só para nós, mas pão para todos. Que os famintos da os pecadores perdoados com o cumprimento: “Va em paz”16 e desfrute da vida.
Terra possam comer, que os seus pobres deixem de chorar e começar a rir, que Jesus deseja-lhes o melhor: saúde integral, bem-estar completo, uma convivência
possamos ver a viver com dignidade. “Perdoa-nos as nossas dívidas”. Precisamos ditosa em casa e na aldeia, cheia de bênçãos de Deus. O termo hebraico Shalom
do seu perdão e sua misericórdia. Estamos em dívida com Deus pelo nosso vazio indica o mais oposto a uma vida indigna, infeliz, maltratada pelas desgraças ou a
imenso de resposta ao seu amor libertador. Que o teu perdão transforme o nosso pobreza. O Deus de Jesus é amigo da vida17.
coração e nos faça viver perdoando-nos uns aos outros. “Não nos deixes cair em
tentação” de afastar-nos definitivamente do seu reino. Somos fracos e estamos
expostos a riscos e crises que podem arruinar a vida humana. Não nos deixeis cair
3.2. Em direção aos pobres
derrotados. “Livra do mal”. Arranca-nos da frustração.
O espírito de Deus empurra Jesus para os últimos. Os primeiros a
Esta frase repetida diariamente, a sós e em comunidade, fortalece o nosso
experimentar essa vida mais digna e liberada devem ser aqueles para quem a
espírito, configura-nos como seguidores de Jesus e compromete-nos na busca
vida não é vida. Nessa direção vive-se a espiritualidade de Jesus. Lucas captou isso
do reino de Deus e a sua justiça. Recuperar a espiritualidade de Jesus é focar a
religião cristã na busca do reino de Deus, colocar a Igreja ao serviço de um mundo muito bem quando o apresenta na sinagoga de Nazaré aplicando-se a si mesmo
mais justo, mais digno e mais feliz para todos, começando pelos últimos, entender as palavras de Isaías 62, 1-2: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele foi
e viver o seguimento de Jesus colaborando com todos os homens e mulheres que quem me ungiu para proclamar a Boa Nova aos pobres. mandou-me para lhes
58 59
caminham e trabalham nessa direção. anunciar a liberação para os aprisinados e a vista aos cegos, para dar liberdade
aos oprimidos e proclamar o ano da graça do Senhor “18.
Depressa Jesus percebeu isso. Esta visão religiosa não corresponde à sua
4. Espiritualidade incentivada pela compaixão experiência de um Deus misericordioso e acolhedor. Então, com uma audácia
e lucidez surpreendentes introduz um novo princípio que transforma em tudo:
Esta espiritualidade a serviço de uma vida mais humana é incentivada
«Sede compassivos como o vosso Pai é cpmpassivo»23. É a compaixão e não a
por uma compaixão ativa e solidária. Não devemos esquecer. Na trajetória das
santidade o princípio que irá inspirar a conduta dos filhos e das filhas de Deus.
atividades de Jesus a serviço do reino de Deus, como princípio dinamizador,
Jesus não nega a santidade de Deus, mas o que qualifica essa santidade não é a
encontramos a compaixão pelas vítimas.
separação do impuro ou a rejeição do santo. Deus é grande e santo, não porque
rejeita e exclui pagãos, pecadores e impuros, mas porque ama a todos sem excluir
ninguém da sua compaixão. Esta compaixão ativa não é uma virtude a mais; mas
4.1. A compaixão como princípio de atuação a única maneira de olhar a vida, de sentir as pessoas e de reagir perante o seu
sofrimento, que nos aproxima do Pai das Misericórdias.
Jesus capta e vive a realidade insondável de Deus como bondade e
compaixão. O que define a Deus não é o poder nem a sabedoria, mas as suas Nesta compaixão podemos distinguir três elementos. Em um primeiro
entranhas maternais de Pai. A compaixão é o modo de ser de Deus, o seu jeito de momento, por assim dizer, Jesus interioriza o sofrimento alheio, deixa que
olhar o mundo e de reagir perante as suas criaturas. O Pai vive principalmente a
22 Parábola do pai bondoso (Lc 15, 11-32); parábola do dono boa da vinha (Mt 20, 1-15); parábola
19 “Jesus, fenomeno pessoal inédito em Israel, experimenta a Deus como uma potencia que abre do fariseu e o cobrador de impostos que subirão ao templo a orar (Lc 18, 9-14).
futuro, que é contraria ao mal, que só quer o bem, que se opõe a tudo o que é mal e doloroso 23 Lucas 6, 36. Na versão paralela de Mateus 5, 48 traduziu-se tradicionalmente assim: “Sede perfetos
para o homem... e, portanto, quer redimir a historia da dor humana” (Jesús, la historia de un (teleioi) como o vosso Pai do céu é perfeto” justificando e promovendo uma espiritualidade de
viviente, Cristiandade, Madrid, 1981, 209-232). aperfecionamento progressivo em santidade. É melhor traduzir: “Sede bons de todo como é
20 Lucas 16,13 // Mateus 6,24 bom de todo o vosso Pai do céu” ou “Não ponhais limites à vossa bondade como tampouco põe
21 Lucas 20,25 // Mateus 22,21 límites a sua bondade o Pai do céu” (David Flusser)
penetre em suas entranhas, em seu coração, em seu ser: fá-lo seu, dói nele. Em interior ... e com razão26. Entretanto, me atrevería dizer que o caminho mais eficaz
um segundo momento, esse sofrimento interiorizado, provoca nele uma reação, para sintonizar com a espiritualidade de Jesus é aprender a olhar com atenção o
torna-se ponto de partida de um comportamento ativo e comprometido; vem a rosto do outro com compaixão.
ser um princípio de ação, um estilo de vida. Por último, o princípio de ação vai se
concretizando em ações e compromissos, destinados a erradicar o sofrimento ou,
pelo menos, alivá-lo.
4.3. Gestos de bondade
Johan Baptist Metz lembrou que, frente a “mística de olhos fechados” mais Assim é Jesus que, “ungido por Deus com o Espírito Santo, passou a vida
própria da espiritualidade do Oriente, voltada sobretudo para o interior, quem fazendo o bem” (Feito 10, 38). Ele não tem poder político, não tem nenhuma
se inspira em Jesus é chamado a criar uma «mística de olhos abertos» e uma potestade religiosa, não pode resolver as imensas injustiças que se cometem
espiritualidade de responsabilidade absoluta para os que sofrem. naquele canto do império; mas caminha pela Galileia e Judeia, movido pelo
Espírito de Deus semeando gestos de bondade28. Abraça as crianças e as meninas
A espiritualidade de Jesus leva os seus seguidores a viver atentos ao da rua porque não quer que os seres mais frágeis daquela sociedade vivam como
sofrimento das pessoas, ou como diria o filósofo francês Emmanuel Levinás, órfãos, abençoa os doentes e as doentes para que não se sintam malditos de Deus
atentos ao aparecimento do rosto do outro, que expressa, mesmo sem palavras, por não poderem receber a bênção do templo; toca nos leprosos e acaricia a sua
o caráter vulnerável e frágil do ser humano. A compaixão não afasta da atenção pele para que ninguém os exclua da convivência; cura mesmo no dia de sábado
à lei e do respeito aos direitos humanos; mas cria, a partir do olhar atento, o para que todos saibam que nem a lei mais sagrada está acima do atendimento
compromisso com o que sofre. Olhar para o rosto do que sofre liberta-nos de aos que sofrem. Acolhe os indesejáveis e come com pecadores desprezados por
ideologias que bloqueiam a nossa compaixão ou de marcos normativos que nos todos, porque, na hora de praticar a compaixão, o mau e o indigno têm tanto
fazem viver com a consciência tranquila. Esse olhar arranca-nos da indiferença, direito para serem acolhidos com bondade, como o bom e piedoso.
nos recorda a nossa própria condição vulnerável, desperta em nós a solidariedade
fraterna25. Estes gestos não são convencionais. Nascem em Jesus de sua vontade
de fazer um mundo mais amável e solidário, em que as pessoas se ajudam e se
Em quase todos os caminhos espirituais privilegia-se a importância da cuidam mutuamente. Não importa que, com freqüência, sejam gestos pequenos.
consciência, a atenção para o aqui e o agora, a experiência de unidade, o silêncio Deus tem em mente o «copo de água» que damos a quem tem sede. São gestos
26 Ver a formosa síntese de Willigis Jäger, Sabiduría eterna. El misterio que se esconde detrás de todos
24 Lucas 7, 13. Os evangelistas empregam o termo “splanchnizomai” que expressa uma reação los caminos espirituales, Verbo Divino, Estella, 2010.
visceral, uma comoção nas entranhas. 27 Lucas 10, 30-37. Surpreende o carater detallado e minucioso com que Lucas descreve a reação
25 Joan-Carles Mélich Ética de la compasión, Herder, Barcelona, 2010; Xosé María Castillo, La «maternal» do samaritano.
sensibilidad de Jesús, em VVAA, El grito de los excluidos. Seguimiento de Jesús y teología, Estella, 28 Marcos 2, 27. Deus criou o sábado por amor ao ser humano e não ao ser humano por amor ao
Verbo Divino, 2006, 153-172. sábado.
destinados a afirmar a vida e a dignidade dos seres humanos. Lembram-se que “Jesus proclama a proximidade do reino de Deus curando, anunciamdo
sempre é possível intervir para tirar bem do mal que existe no mundo. São gestos a salvação de Deus”, introduzindo saúde no mundo. Este é o novo. E é
que vão além da resposta técnica e administrativa dos problemas. Acompanham necessário recordá-lo porque, com frequência, a teologia cristã acentuou até
a indignação profética abrindo caminhos diretos e imediatos frente à passividade o extremo a sua atenção ao pecado atenuando a tragédia do sofrimento. JB
e à indiferença social, para não deixar abandonado em sua desgraça a nenhum Metz denunciou repetidamente o grave deslocamento: “A doutrina cristã da
doente. salvação dramatizou muito o problema do pecado enquanto relativizou o
problema do sofrimento”30.
5. Espiritualidade curadora
5.2. Oferta de saúde integral
A espiritualidade de Jesus, alentada pela compaixão ativa, tem uma
dimensão claramente terapêutica, orientada para curar a vida tanto a nível Os doentes que Jesus encontra em seu caminho são, sem dúvida, o setor
individual como social. Os evangelhos sublinham que Jesus é um profeta curador: mais desvalido e marginalizado daquela sociedade. Muitos deles são incuráveis.
«Como Deus ungiu com o Espírito Santo a Jesus de Nazaré, que passou fazendo Abandonados à sua sorte, incapacitados para ganharem o seu sustento, muitas
o bem e curando a todos os que eram oprimidos pelo Demónio, porque Deus vivem arrastando uma vida de mendicância que roça à miséria e à fome. Não
estava com ele» (Feito 10, 38). experimentam a sua desgraça como um problema médico, mas como exclusão
injusta da vida: não podem viver como os outros. São cegos que não conseguem
64 captar a vida de seu domínio, surdos e mudos que não podem se comunicar, nem 65
5.1 Curar a vida cantar nem bendizer a Deus, paralíticos que não podem se movimentar, trabalhar
ou peregrinar a Jerusalém, doentes de pele repugnante que são afastados do lar
A chave mais importante a partir da qual Jesus vive para Deus e trabalha e da aldeia, desprezados que perderam o domínio de suas vidas. A maior tragédia
para abrir caminhos do seu reino de paz e de justiça, não é o pecado, a moral ou destes doentes é sentirem-se esquecidos por Deus: parece que o Espírito criador
o culto, mas o sofrimento, a doença, a deterioração da vida, as condições insanas de vida os abandonou provavelmente por causa de algum pecado grave. Por
da sociedade, a falta de justiça e compaixão solidária. A gente teve que captar isso, precisamente, são marginalizados e excluídos, em maior ou menor grau de
o contraste enorme que havia entre o Batista e Jesus. A trajetória profética do convivência social e religiosa. A exclusão do templo é a confírmação de que vivem
Batista é inspirada e orientada pela luta contra o pecado. É a sua preocupação no fundo da sua doença: Deus não os quer, não podem confiar nele.
suprema: denunciar os pecados do povo, chamar à conversão e purificar pelo
rito do batismo aos que vão ao Jordão. O Batista não cura a nenhum paciente, Para entender em toda a sua profundidade a atuação curadora de Jesus,
não toca os leprosos, não libera os possuídos por espíritos malignos, não alivia o devemos notar que ele se aproxima de idosos e doentes esforçando-se por saná-
sofrimento. Não faz gestos de bondade. Não cura a vida. los desde as suas raízes. Não procura apenas resolver um problema orgânico de
caráter físico ou psíquico, mas sim reconstruir a sua vida inteira. A saúde física ou
Os evangelhos, ao contrário, apresentam a Jesus caminhando pela
psíquica vai incluída dentro de uma ação sanadora mais integral. Os diferentes
Galiléia, e não em busca de pecadores para convertê-los de seus pecados, mas
relatos sugerem com diversos aspectos que o processo de curas realizadas por
aproximando-se dos enfermos dos caminhos e das aldeias para curá-los de seus
Jesus é uma experiência de recuperação da vida, afirmação da própria dignidade,
sofrimentos. Sua trajetória profética é destinada primordialmente a aliviar os que
crescimento de liberdade, de reconciliação com Deus, a integração no convívio
vivem sufocados pelo mal e excluídos de uma vida saudável. Quando os enviados
social.
do Batista lhe perguntam se está agindo em nome de Deus, Jesus responde com a
sua atuação curativa: «Os cegos vêem e os coxos andam, os leprosos ficam limpos Jesus coloca o doente em contato com essa parte do seu ser que está ainda
e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres está sendo anunciada a saudável para suscitar o desejo de vida que se esconde em todo ser humano:
Boa Nova. E feliz quem não se escandaliza de mim29. «Você, você quer ser saudável?» (Jo 5, 6). Desperta em seu interior a confiança
29 Mateus 11, 4-6. Não nos escandaliza pois que para Jesus o pecado que oferece maior
resistencia ao reino de Deus é precisamente causar injustamente sofrimento ou tolerá-lo 30 Ver a obra de Johann Baptist Metz Memoria passionis. Una evocación provocadora en una sociedad
com indiferença fazendo-nos desentendidos dele. pluralista, Sal Terrae, Santander, 2007, 160-183
em Deus como uma força curadora: «Levanta e vá-. Salvou-te a tua fé» (Lc 17, curai”37. O anúncio missionário e a tarefa sanadora são parte da mesma dinâmica
19). Liberta da culpa e do medo de Deus, oferecendo a sua paz e o seu perdão que irá abrir caminho para o reino de Deus. Jesus convida a promover a cura
Reconciliador: «Meu filho: estão perdoados os teus pecados» (Mc 2, 5). Desata as como horizonte, canal e conteúdo da ação evangelizadora38.
amarras e escravidão para viver em liberdade: «Mulher, estás livre de tua doença»
(Lc 13, 12). Faz retornar novamente a convivência: «Pega a tua maca e volta para a
tua casa» (Mc 2, 11). Orienta-os para uma existência nova vivida desde o louvor e 6. A modo de conclusão
agradecimento a Deus: «Vai para a sua casa, volta para os seus, e conta-lhes tudo
o que o Senhor, compadecido, fez com você»31. A existência profética de Jesus atinge sua culminação ao ser crucificado
nos arredores da cidade santa de Jerusalém. Na cruz revela-se de maneira
definitiva a sua paixão pelo reino de Deus e a sua compaixão por todas as
vítimas, assumindo a sua aflição até o fim.
5.3. Promover um processo de cura social
O seu pedido de perdão ao Pai para os algozes que o crucificam é,
Jesus nunca pensou em suas curas como uma forma fácil de eliminar o
ao mesmo tempo, um gesto sublime de compaixão e uma crítica suprema à
sofrimento no mundo, mas apenas como um sinal para indicar a direção em que
insensatez do poder político e religioso que crucificam os inocentes: “Pai,
devemos trabalhar para acolher e introduzir entre nós o reino de Deus. Por isso
perdoa; eles não sabem o que fazem “(Lc 23, 34). Por outro lado, o seu grito
Ele põe em marcha um processo de cura tanto individual como socialmente, com
66 67
a Deus, identificado com todas as vítimas, pedindo alguma explicação para
o intuito de fundo: curar a vida doente. Toda a sua atuação é feita no sentido de
tanta injustiça e abandono, e sua entrega confiante ao Pai ficam nos lábios do
encaminhar a sociedade para uma vida mais saudável.
Crucificado reclamando uma resposta de Deus para além da morte: “Meu Deus,
Pensemos em sua preocupação de curar a religião rebelando-se contra Meu Deus, por que me abandonaste? “. Por que nos abandonaste? “Pai, às tuas
tantos comportamentos patológicos de raiz religiosa (legalismo, hipocrisia, mãos encomenda o meu espírito», Pai, em tuas mãos estão as nossas vidas39.
rigorismo, culto vazio de justiça e amor)32. Jesus é um grande curador da religião:
A ressurreição do Crucificado, desautorizando o representante do
liberta de medos de religião, não os alimenta; faz crescer a liberdade não as império romano e as autoridades do templo, é a intervenção definitiva de
servidões; atrai para o amor de Deus, não para a lei; desperta a compaixão, não o Deus, que abre um futuro novo para a história humana. Só é possível acolher
ressentimento. e proclamar a esperança nova que apresenta Jesus para e no mundo a partir
Pensemos em seus esforços para conseguir uma convivência mais saudável, da fé em um Deus que não abandona as vítimas. Pois, ele é um Deus livre e
criando relações mais humanas entre pessoas para que se respeitem mais, que se libertador; é o amor salvador do qual não temos que acomodar as pretensões
dos poderosos, nem seguir os caminhos que marcam os donos do mundo.
compreendam melhor, e que se perdoem sem condições33, defendendo a mulher
do domínio possesivo do homem34, convidando a uma vida liberta da escravidão A atuação curadora de Jesus fornecendo saúde nos doentes da Galiléia
do dinheiro e da obsessão pelas coisas35, oferecendo o perdão a pessoas afundadas já está anunciando a salvação eterna que nós oferecemos Deus. A acolhida
no fracasso moral e na ruptura interior36. aos que vivem excluídos já é promessa de armazenamento definitivo e do
perdão reconciliador de Deus. Suas refeições com pecadores, prostitutas e
É significativo, que ao confiar a missão a seus discípulos, Jesus fala
indesejáveis antecipam já o banquete do reino em torno do Pai. Deus tem a
invariavelmente de uma dupla tarefa: “Ide e anunciai o reino de Deus”, “Ide e
última palavra sobre a história humana. Quando o projeto do reino é impedido
pelo mal, fracassa pelo nosso pecado, ou fica a meio do caminho interrompido
31 Marcos 5, 19; Lucas 13, 13; 17, 15; 18, 43 pela morte; mas, Deus o leva a sua plenitude, para além da morte. Um dia as
32 Lucas 40-42; Mateus 23, 23-24.
33 Mateus 5, 21-26; 7,15; 18, 21-22. 37 Lucas 9, 2; 10, 8-9; Mateus10, 7-8.
34 Marcos 10, 1-9; João 8, 1-11. 38 Sobre a atuação sanadora de Jesus permito-me citar o meu estudo: Id y curad. Evangelizar el
35 Mateus 6, 21; 6, 24. mundo de la salud y la enfermedad, PPC, Madrid 2004, sobretudo 9-50.
36 Marcos 2, 1-12; Lucas 7, 36-50; João 8, 1-11 39 Marcos 15, 34; Lucas 23, 46.
Artigos
aventuranças de Jesus serão cumpridas. Deus será tudo em todos. Ele “enxugar
todas as lágrimas dos nossos olhos, e a morte já não existirá mais. Não haverá
mais luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas já passaram” (Ap 21,
4). Então ouvirá do Ressuscitado as palavras mais consoladora que podemos ler
nas Escrituras cristãs: “A quem tem sede, eu darei de beber gratuitamente água
das fontes da vida” (Ap 21, 6).
EU ACREDITO NO
“JESUS HISTÓRICO”
Roberto Pereyra *
68 RESUMO: A questão que domina os estudos do NT nas últimas décadas se relaciona com o problema
do “Jesus histórico”, expressão que se refere à vida de Yesua de Nazaré desde seu nascimento
69
em Belém até sua execução em Jerusalém. Desde o século XVIII, alguns teólogos, fundados em
pressuposições metodológicas naturalistas, promovem a investigação do Jesus histórico a partir
da análise historicista. Concluem que os evangelhos não constituem uma fonte histórica objetiva e
confiável para conhecer o verdadeiro Jesus da história. Argumentam que estes apresentam material
fictício, mítico, teológico, com o propósito de promover a fé cristã, o que resulta um claro problema
para a veracidade histórica dos mesmos. Apresenta-se uma síntese desta busca pelo Jesus histórico
e provê razões para acreditar no “Jesus histórico”; o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, o Jesus que
realmente existiu na história.
ABSTRACT: The question that dominates the study of the NT in recent decades is related to
the problem of “Historical Jesus”, a term that refers to the life Yesua of Nazareth, from his birth in
Bethlehem until his execution in Jerusalem. Since the eighteenth century. some theologians, based
on naturalistic methodoIogical presuppositions, promote research of the Historical Jesus from the
perspective of the historical analysis. They conclude that the Gospels are not historically a reliable
source to know the true Jesus of History. They argue that the Gospels present fictitious, mythical
and theological material, to promote the Christian faith, which is a clear challenge to the historical
veracity of them. The author presents a summary of this quest for the historical Jesus and provides
reasons to be1ieve in the “historical Jesus”, the Christ of Faith, the Jesus of the Gospels, the Jesus who
actually existed in History.
* Engenheiro, Ph.D. em Teologia, pela Andrews University, Michigan (EUA), professor e diretor da pós-graduação
de Teologia Centro Universitário Adventista de São Paulo, Campus Engenheiro Coelho, SP.
Introdução com sua obra Wolfenbttler Fragmente eines Ungenannten (1774) que decidiu não
publicar. 4
74 75
Penguin, 1993); Bruce Chilton and Craig Evans (eds.), Studying the Historical Jesus: Evaluations Millennium (San Francisco, CA: Harper, c. 1996); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Acts
ofthe State of Current Research (New Testament Tools and Studies 19; Leiden: E.J. Brill, 1994); of Jesus: The Search for the Authentic Deeds (San Francisco, CA: Harper, 1998); Robert W. Funk
Marcus J. Borg, Meeting Jesus Again for the First Time: the Historical Jesus and the Heart of and the Jesus Seminar, The Parables Of Jesus: Red Letter Edition: A Report of The Jesus Seminar
Contemporary Faith, (San Francisco, CA: HarperCollins, 1994); Luke Timothy Johnson, The Real (Sonoma, CA: Polebridge Press, c. 1988); Robert W. Funk and the Jesus Seminar, The Gospel af
Jesus: the Misguided Quest for the Historical Jesus and the Truth of the Traditional Gospels (San Jesus: According to the Jesus Seminar(Santa Rosa, CA.: Polebridge Press, 1999); Robert W. Funk
Francisco, CA: HarperCollins, 1995); lan Wilson, Jesus: The Evidence. The Latest Research and and the Jesus Seminar, The Once and Future Jesus (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2000); The
Discoveries ([San Francisco]: Harper San Francisco, c.1996); C. Stephen Evans, The Historical Christ Once and Future Faith (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2001); Robert W. Funk, A Credible Jesus
and the Jesus of Faith: the Incamational Narrative as History (New York: Oxford University Press, Fragments of a Vision (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2002).
1996); Gary R. Habermas, The Historical Jesus: Ancient Evidence for the life of Christ (Joplin, MO: 26 Ademais, presidiu a seção do Jesus histórico da Sociedade Biblica de Literatura. Escreveu 20 livros
College Press, 1997); Stephen J. Patterson, The God of Jesus: The Historical Jesus and the Search for sobre o Jesus histórico, dos quais os mais significativos são: John Dominic Crossan, The Historical
Meaning (Harrisburg, PA: Trinity Press International, 1998); Gerd Theissen and Annette Merz, The Jesus: The Life of a Mediterranean Jewish Peasant (San Francisco, CA: Harper San Francisco, 1991);
Historical Jesus: A Comprehensive Guide (Minneapolis: Fortress Press, 1998); W. Barnes Tatum, In idem, Jesus: A Revolutionary Biography ([San Francisco, CAl: Harper San Francisco, 1994), idem.,
quest of Jesus (Nashville, TN: Abingdon Press, 1999); J. R. Porter, Jesus Christ: The Jesus of History, Who Killed Jesus: Exposing The Roots af Anti-Semitism in The Gospel Story af The Death of Jesus
the Christ of Faith (New York: Oxford University Press, 1999); Charles W. Hedrick, When History ([San Francisco, CAl: Harper San Francisco, 1996); idem., The Birth of Christianity: Discovering What
and Faith Collide: Studying Jesus (Peabody, MA: Hendrickson, 1999); N. T. Wright, The Challenge of Happened in the Years Immediately after the Execution of Jesus ([San Francisco, CAl: Harper San
Jesus: Rediscovering Who Jesus Was and Is (Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1999); Stanley Francisco, 1998); idem., The Jesus Controversy: Perspectives in Conflict (Harrisburg, PA: Trinity Press
E. Porter, The Criteria for Authenticity in Historical-Jesus Research: Previous Discussion and New International, 1999); idem., Excavating Jesus: Beneath the Stones, Behind the Texts ([San Francisco,
Proposals (Sheffield, England: Sheffield Academic Press, c. 2000); Robert M. Price, Deconstructing CAl Harper San Francisco, 2001); idem., The Resurrection of Jesus: John Dominic Crossan and N.
Jesus (Amherst, NY: Prometheus Books, 2000); Gregory W. Dawes, ed., The Historical Jesus Quest: T. Wright in Dialogue (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2006).
Landmarks in the Search for the Jesus af History (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, 27 Em seu meio destaca-se a influencia de expertos da língua inglesa e um papel mais comprometido
2000); Jonathan L. Reed, Archaeolagy and the Galilean Jesus: A Re-examinatian of the Evidence dos representantes da Igreja Católica. Por exemplo John P. Meier, A Marginal Jew Rethinking the
(Harrisburg, PA: Trinity Press International, c2000); William R. Herzog, Prophet and Teacher: An Historical Jesus. (New York, Doubleday, 1991).
Introduction to the Historical Jesus (Louisville, KY: Westminster John Knox Press, c2005); N. T. 28 O discurso de abertura do seminário por Robert W. Funk, apresentado na primeira reunião de
Wright, The Contemporary Quest for Jesus (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2002); Gerd Theissen, 21-24 de março de 1985 em Berkeley, Califómia, se encontra em Forun 1,1 (1985), ou htip:/Jwww.
Jesus AIs Historische Gestalt: Beitrage Zur Jesusforschung: Zum 60. Geburtstag Von Gerd Theissen westarinstitute.org/Jesus_Seminar/Remarks/remarks.html. Funk começou dizendo: “We are about
(Goettingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 2003); Peter Walker L., Jesus and his World (Downers to embark on a momentous enterprise. We are going to inquire simply, rigorously after the voice of
Grove, IL: InterVarsity Press, c. 2003); Craig A. Evans, ed., The Historical Jesus (London; New York: Jesus, after what he really said. “In this process we will be asking a question that borders the sacred,
Routledge, 2004), idem., Fabricating Jesus: How Modem Scholars Distort the Gospels (Downers that even abuts blasphemy, for many in our society. As a consequence, the course we shall follow may
Grove, IL: IVP Books, c. 2006 ); James D. G. Dunn and Scot McKnight, eds., The Historical Jesus in prove hazardous. We may well provoke hostility. But we will set out, in spite of the dangers, because
Recent Research (Winona Lake, IN: Eisenbrauns, 2005 ); Lee Strobel, The Case for the Real Jesus: A we are professionals and because the issue of Jesus is there to be faced, much as Mt. Everest confronts
Joumalist Investigates Current Attacks on the Identity of Christ (Grand Rapids, MI: Zondervan, c. the team of climbers.” Forum, o jornal acadêmico do Instituto Westar, publica o conhecimento
2007); Robert J. Miller, ed., The Future of the Christian Tradition (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, originado pelas investigações realizadas, incluindo The Jesus Seminar. Publica monografias que
2007); Bernard Brandon Scott, ed., Jesus Reconsidered (Santa Rosa, CA: Polebridge Press, 2007). informam os debates gerados e os resultados alcançados.
de Funk, o Jesus histórico permanece oculto sob mitos e lendas cristãs. Portanto, de Jesus. Para os discursos, se determinaria o grau diferente de valorização, juízo
dificilmente pode ser personificado pela figura de Cristo que apresentam os e consenso com um de quatro cores no processo de votação: vermelho, rosa,
evangelhos e que adoram os cristãos. cinza e preto, significando cada cor um grau diferente de avaliação. O vermelho
significava: “sem dúvida alguma, Jesus disse isto, ou alguma coisa parecida com
O Jesus Seminar tem como meta remover esses mitos e lendas para isto”; o rosa: “provavelmente Jesus disse algo similar”; o cinza: “Jesus não disse
recuperar a figura do Jesus autêntico, o que realmente existiu na história. Nesta isso, porém as ideias contidas na frase estão próximas à suas”; e o preto: “Jesus
tentativa, Funk se propôs a iniciar uma época revolucionária que terminasse com não disse isso; representa a perspectiva ou o conteúdo de uma tradição tardia ou
o que considerava um tempo de ignorância. Criticou e atacou as organizações diferente”.
religiosas e seus líderes, por “não permitir que o conhecimento gerado pela
mais alta e notável erudição passe através dos pastores e sacerdotes aos leigos Para definir os feitos históricos de Jesus, o vermelho significaria: “a
famintos”.29 Considera que o Jesus Seminar é um meio para convencer aos confiabilidade histórica desta informação está virtualmente assegurada. Se apóia
crentes da figura mitológica de Jesus de modo que sejam ensinados a adorar ao em evidência persuasiva”; o rosa: “provavelmente, esta informação é confiável.
verdadeiro e real Jesus da história.30 Corresponde bem com outra evidência verificável”; o cinza: “esta informação
é possível, porém não digna de crédito. Carece de evidências”; e o preto: “esta
Como pareceria evidente, então, o Jesus Seminar continua sob tradição informação é improvável. Não corresponde com evidência verificável. É em
e influência filosófica e metodológica do primeiro e segundo quest. Contudo, o grande parte, ou inteiramente, fictícia”.34
mais significativo de suas tentativas é que tem estendido ao público em geral
76 problemas e propostas de solução que, principalmente, estavam reservados a
discussões acadêmicas entre eruditos neotestamentários.
A segunda coisa que o Seminário decidiu foi criar uma versão crítica dos
evangelhos para informar ao público em geral os resultados finais alcançados.35
77
Quais foram as conclusões principais, ou resultados, levantados pelo Seminário
Com o propósito de descobrir a autenticidade histórica dos ditos e feitos de sobre os ditos e feitos autênticos de Jesus?
Jesus o Seminário decidiu que “os limites canônicos são irrelevantes na avaliação
crítica das diversas fontes de informação sobre Jesus”,31 o que implicou em rejeitar Em 1993, o Seminário publicou os resultados das deliberações sobre os
os evangelhos neotestamentários como fontes únicas e confiáveis para descobrir ditos autênticos de Jesus na obra The Five Gospels: The Search for the Authentic
o Jesus histórico. Words of Jesus. Em termos gerais, os resultados do trabalho do Seminário não
mostram unanimidade. Muitos ditos equivalentes receberam votos vermelhos
Resolveu-se então utilizar 1.500 versões de palavras atribuídas a Jesus de alguns e pretos de outros. Entretanto, o Seminário concluiu que das diversas
em documentos dos primeiros três séculos da era cristã, sejam estes materiais declarações atribuídas a Jesus nos “cinco evangelhos”, apenas 18% foram
canônicos e não canônicos.32 O Seminário estabeleceu o objetivo de avaliar consideradas prováveis ditos de Jesus; 82% das expressões restantes representam
cada uma das 1.500 fontes para determinar o que foi dito e feito por Jesus com a perspectiva ou o conteúdo de uma tradução tardia ou diferente e, portanto, não
o propósito de encontrar o personagem histórico que se explora. Depois de um são consideradas palavras de Jesus.
grande debate, tiveram a ideia de fazer duas coisas. 33
Em 1998 foram publicados os resultados das deliberações sobre os feitos
Primeiro, adotar o voto dos membros do seminário como o caminho mais autênticos de Jesus na obra The Acts of Jesus: The Search for the Authentic Deeds of
eficiente para determinar o consenso erudito sobre os ditos e realizações autênticas Jesus. Durante a segunda fase do seminário, de 1991 a 1996, foram examinados
29 Robert Funk, “The Issue of Jesus,” Forum 1 (1985): 8. 387 informações de 176 acontecimentos em que Jesus foi o ator principal. Dos 176
30 Para ter uma visão do que The Jesus Seminar propõe e o que significa o novo entendimento de Jesus eventos analisados, somente dez foram considerados como informação histórica
para a Igreja. a fé e o mundo do amanhã, veja Robert W. Funk, ed., The Once & Future Jesus (Santa virtualmente assegurada (vermelho), tendo como base as evidências concretas e
Rosa. CA: Polebridge Press. 2000).
31 Funk, The Five Gospels, 35. 34 http://www.westarinstitute.org/Polebridge/Excerpts/votingacts.html.
32 Assim, o evangelho (gnóstico, não canônico) de Tomás, o que se considera uma coleção de ditos 35 Conhece-se esta versão crítica como “the Scholars Version” (SV). De acordo com o prefácio da
de Jesus, se inclui como o quinto evangelho em The Five Gospels. Ver http://www.westarinstitute. obra The Five Gospels, o propósito desta versão é que os textos dos evangelhos “percam o caráter
org/PolebridgelTitle/5Gospels/lntr05G/intro5g.html. sagrado” e se faça uma tradução “confiável como uma peça da literatura contemporânea” (xvi)
33 Ibid., 35-37. pelo uso “da linguagem original, familiar da rua” (xiv).
persuasivas. Adicionalmente, 19 foram estimadas como provavelmente confiáveis Eles teorizam que os evangelhos foram escritos por autores de uma terceira
(rosa), o que soma um total de 29 eventos dos 176 (16% do total). geração tendo como base as memórias populares preservadas nas histórias
que haviam circulado de boca em boca por décadas, formuladas, reformuladas,
De acordo com uma síntese do informe,36 se afirma que “por mais de dez aumentadas e editadas muitas vezes e de diversas maneiras, antes de encontrar
anos, o Seminário sobre Jesus investigou e debateu a vida e a morte do Jesus seu formato escrito final.
histórico. Têm concluído que o Jesus da história é muito diferente ao da imagem
proveniente do cristianismo tradicional”.37 Segundo algumas conclusões do Pelo visto até aqui, os estudiosos interessados no Jesus histórico,
Seminário, argumentando os interesses não históricos dos escritores evangélicos e a distância
em tempo, linguagem e perspectiva entre eles e Jesus, abraçaram um total
1. Jesus de Nazaré nasceu durante o reinado de Herodes, o Grande. ceticismo. Confiados na rigorosidade de suas próprias pressuposições e critérios
metodológicos, abandonaram toda esperança de encontrar ao Jesus da história.
2. O nome de sua mãe foi Maria, e teve um pai humano cujo nome
Concluíram que a partir das descrições evangélicas não é possível reconstruir “o
não pode ter sido José.
que realmente aconteceu” durante o ministério de Jesus.38
3. Nasceu em Nazaré, não em Belém.
Não é meu propósito fazer uma análise crítica das pressuposições,
4. Jesus foi um sábio que assistiu à mesa dos párias da sociedade de metodologia e resultados alcançados nesta busca pelo Jesus da história, o que
seu tempo. já foi realizado eficientemente por outros.39 Mas desejaria sugerir minhas razões
78 79
5. Praticou a cura sem o uso de magia e medicina desusadas, para crer no “Jesus histórico”, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, o Jesus bíblico,
reduzindo aflições que agora se consideram psicossomáticas. o Jesus que realmente existiu na história.
6. Não caminhou sobre as águas, não alimentou a multidão com 38 Há os que, contudo, do contexto histórico de Jesus em paralelo com as descrições evangélicas,
pães nem com peixes, não transformou a água em vinho nem parecem estabelecer com razoável segurança o que possivelmente sucedeu, o que
ressuscitou a Lázaro da tumba. provavelmente sucedeu e o que possivelmente não pode ter sucedido no ministério de Jesus.
Ver Paula Fredriksen, From Jesus to Christ. The Origins of the New Testament Images of Jesus (New
8. Foi executado como rebelde social e não por ser o Filho de Deus. Haven and London: Yale University Press, 1988).
39 Como exemplo, ver as seguintes respostas ao the Jesus Seminar: William Lane Craig, “The Historicity
9. A tumba vazia é uma ficção - Jesus não ressuscitou corporalmente of the Empty Tomb of Jesus”, NTS 31 (1985): 39-67; idem., “Contemporary Scholarship and the Historical
dos mortos. Evidence for the Resurrection of Jesus Christ,” Truth 1 (1985): 89-95; idem., “The Problem of Miracles:
A Historical and Philosophical Perspective”, en Gospel Perspectives VI, 9-40 (ed. David Wenham e
10. A ideia da ressurreição se origina nas experiências alucinantes de Craig Blomberg; Sheffield, England: JSOT Press, 1986); idem., “Rediscovering the Historical Jesus:
Paulo, Pedro e Maria The Presuppositions and Presumptions of the Jesus Seminar”, Faith and Mission 15 (1998): 3-15;
idem., “Rediscovering the Historical Jesus: The Evidence for Jesus”, Faith and Mission 15 (1998): 16-26;
11. Jesus não pretendia ser o Messias, não aspirou ser Deus, não James D. G. Dunn, The Evidence for Jesus (Phíladelphia, PA: Westminster, 1985); R. T. France, ed., The
acreditou que sua execução fosse necessária para que os Evidence for Jesus (Downer Grove, IL: InterVarsity, 1986); N. T. Wright, Who Was Jesus? (Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1993); idem., The Contemporary Quest for Jesus; idem., The Challenge of Jesus; D. A.
que cressem nele como Senhor e Salvador fossem salvos da Carson, “Five Gospels, No Christ,” Christianity Today 38 (1994): 30-33; Gregory A. Boyd, Cynic, Sage
condenação eterna. ar Son of God? Recovering the Real Jesus in an Age of Revisionist Replies (Wheaton, IL: Victor Books,
1995); William F. Buckley, Jr., e1, aI., Will the Real Jesus Please Stand Up! The Jesus Seminar’s Dr. John
Logicamente, estas conclusões, somadas a 18% de exatidão histórica Dominic Crossan vS.Dr. William Lane Craig (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1998); Michael J. Wilkins, J.
para os ditos e a 16% para os feitos de Jesus, parecem impróprias e infundadas P. Moreland, eds., Jesus Under Fire (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1995); Gregory A. Boyd, Cynic Sage
para os que creem e aceitam a Bíblia como Palavra de Deus. Porque o Seminário ar Son of God? (Wheaton: Victor, 1995); Douglas Groothuis, Searching for the Real Jesus in an Age of
Controversy (Eugene, OR: Harvest House, 1996); Michael J. Wilkins, James P. Moreland, editors, Jesus
terminou com tantos votos cinza e pretos em relação aos ditos e feitos atribuídos UnderFire: Modem Scho/arship Reinvents the Historical Jesus (Grand Rapids, MI: Zondervan, 1996);
a Jesus? A razão, para que o Seminário colorisse 82% dos ditos e 84% dos feitos Paul Barnett, The Truth About Jesus (Sydney South, Australia: Aquila, 1994); Ben Witherington 111,
com cinza e preto, deve-se, segundo os avaliadores críticos, à própria natureza The Jesus Quest: The Third Search for the Jew of Nazareth (Downers Grove, IL: InterVarsity, 1995),42-
43; James R. Edwards,”Who Do Scholars Say That I Am?” Christianity Today 40.3 (1996): 14-20;
dos evangelhos. Porter, The Criteria for Authenticity in Historical-Jesus Research; Price, Deconstructing Jesus; Evans, The
36 http://www.westarinstitute.org/Seminars/acts_seminar.html. Historical Jesus; idem., Fabricating Jesus; Dunn e McKnight, The Historical Jesus; Strobel, The Case for
37 http://www.westarinstitute.org//Polebridge/acts.html. the Real Jesus; http://virtualreligion.net/forum/reaction.html.
Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos por analogia, mas hinos, sermões, etc. Outras formas, ao contrário,
e sobretudo o conjunto, usam estilo de redação descritiva com
1. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos sentido histórico intencional, usual: Jesus foi,fez, disse, saiu, entrou,
porque a veracidade histórica dos registros evangélicos não tem orou, comeu, proporcionando-se informações topográficas e
sido debatida ao longo dos séculos de interpretação. Foi a partir cronológicas que concordam com dados históricos topográficos
do século 17, com o filósofo judeu Baruch Spinoza (1633-1677), e cronológicos que harmonizam com dados históricos e
que começou o ataque contra a veracidade histórica dos autores arqueológicos de outras fontes. A sobriedade, simplicidade,
evangélicos. No século 18 se fez mais violento com Voltaire (1694- objetividade, franqueza e espontaneidade que resultam tanto ao
1778), Diderot (1713-1784) e especialmente Reimarus, com sua descobrir feitos sublimes como fraquezas, reforçam o argumento.
teoria infundada de fraude. O quest pelo Jesus histórico - desde
Reimarus até o Jesus Seminar, no presente - está fundado em Se os comparássemos com os apócrifos cheios de relatos fantásticos, o
pressuposições filosóficas deístas, naturalistas, céticas, cujas fato distingue-se rapidamente. Com efeito, não existe nos quatro evangelhos
premissas são improváveis e seus procedimentos metodológicos canônicos nada de invenções ridículas e fantásticas. Porém, se bem que o relato
questionáveis e alienados da real evidência histórica. Tudo responde ao gênero histórico, não poderia ser ficção, mito ou lenda histórica? É
resulta em um Jesus muito diferente do que realmente existiu. O necessário destacar que nenhuma parte dos evangelhos deixa entender que sua
quest não pode fundamentar a suposta separação entre o Jesus narração seja fictícia. Lucas, por exemplo, faz referência a fatos que realmente
histórico e o Cristo da fé nem consegue provar o hipotético aconteceram, nas palavras a Teófilo: Lc 1:1-4 - “Visto que muitos houve que
80 caráter não histórico dos evangelhos. Não conta mais que com o
consenso de uns poucos envolvidos no quest que traz em questão
empreenderam uma narração coordenada de fatos que entre nós se realizaram,
conforme nos transmitiram os que desde o princípio foram deles testemunhas
81
a mesma autenticidade e validade dos evangelhos, o que impacta, oculares e ministros da palavra, gualmente a mim me pareceu bem, depois de
obviamente, no objeto essencial da credibilidade e proclamação acurada investigação de tudo desde sua origem, dar-te por escrito, excelentíssimo
cristã. Teófilo, uma exposição em ordem, para que tenhas plena certeza das verdades
em que foste instruído”. É necessário recordar que os evangelhos canônicos
2. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos não registram exatamente as mesmas palavras e os mesmos feitos originais de
evangelhos porque existem fontes extrabíblicas, não cristãs, Jesus nos próprios contextos históricos em que estes se originaram, nem sequer
que apresentam evidências adicionais de sua existência real e registram a forma na qual estas palavras e estes feitos foram transmitidos. A forma
histórica, confirmando a veracidade e a credibilidade do relato escrita dos ditos e dos feitos de Jesus que dão os evangelhos hoje é a forma que
dos evangelhos. 40 o Espírito Santo inspirou. Tal fenômeno é o que garante a exatidão histórica dos
fatos registrados. Portanto, o conteúdo da inspiração que se tem registrado em
3. Eu acredito no Jesus histórico, o Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos,
forma escrita mantém concordância com as palavras e os feitos de Jesus.
porque estes possuem valor histórico. Pertencem ao gênero
histórico. Seus registros, mesmo não sendo “textos modernos” de Por exemplo, atente para as seguintes palavras-ações de Jesus registradas
história, certamente, apresentam o Jesus real, a figura histórica no evangelho: Mt 16:13-16 “E, chegando Jesus às partes de Cesárea de Filipe,
que o NT diz que existiu. Entre as diversas formas literárias que interrogou os seus discípulos, dizendo: Quem dizem os homens ser o Filho do
caracterizam os evangelhos, algumas não são históricas em si homem? E eles disseram: Uns, João o Batista; outros, Elias; e outros, Jeremias, ou
mesmas, como as parábolas 41 de estilo metafórico e ilustrativo um dos profetas. Disse-lhes ele: E vós, quem dizeis que eu sou? E Simão Pedro,
respondendo, disse: Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo”. Segundo este relato,
40 Ver os estudos de F. F. Bruce, Jesus & Christian Origins Outside the New Testament (Gran Rapids, MI:
Eerdmans, 1974); Scot McKnight, A New Vision for Israel: The Teaching of Jesus in National Context os discípulos conheciam a um Jesus real, histórico, como os homens de seu
(Grand Rapids, MI: Eerdmans, c. 1999); Robert E. Van Voorst, Jesus Outside The New Testament: An tempo, os quais o relacionaram com indivíduos reais como João Batista, Elias,
Introduction to the Ancient Evidence (Grand Rapids, MI: Eerdmans, 2000). Jeremias ou algum dos profetas. Os 12 aceitaram seu convite para o ministério.
41 Nos evangelhos as parábolas constituem uma evidência significativa dos ditos e ensinos de
Jesus. EM geral os eruditos os consideram entre as alocuções que poderiam ser declarações Foram instruídos por ele. Viajaram e trabalharam com Ele; conheceram ao Jesus
atribuídas ao Jesus histórico. histórico, o Cristo da fé. Este Cristo, da confissão de Pedra, é o Jesus histórico dos
evangelhos, o “Emanuel” da escritura profética (Is 7: 14) antecipado a José (Mt 1 e o extraordinário papel e função de Cristo nos Evangelhos. Iniciou-se uma
:23); o “Jesus” anunciado pelo anjo Gabriel à bem-aventurada virgem Maria em diferenciação e separação radical, mesmo que supostamente, entre o “Jesus da
Nazaré (Lc 1 :26-37); “Cristo, o Senhor” informado pelos anjos aos pastores que história” e o “Cristo da fé”. Aceitou-se que um homem chamado Jesus realmente
velavam e guardavam seus rebanhos sobre as colinas de Belém (Lc 2:8-11); de existiu. Contudo, inventaram-se mitos e tradições fantásticas sobre sua pessoa,
que Paulo ouviu e escreveu, dizendo: “São israelitas ... deles são os patriarcas, e chegando a ser para muitos, o “Cristo da fé” em fábulas, símbolos e adoração. O
também deles descende o Cristo segundo a carne” (Rm 9:4-5); “da linhagem de resultado, finalmente, levou estes poucos que sustentavam esta posição a um
Davi” (Rm 1 :3; 2Tm 2:8); “nascido de mulher, nascido sob a lei”(Gl 4:4); na “figura total ceticismo. Confiados em suas pressuposições e métodos, abandonaram todo
humana” (F12:7); “em semelhança de carne pecaminosa” (Rm 8:3); “Cristo Jesus, o intento e toda esperança de encontrar ao Jesus da história. São mais, hoje, os que
homem” (Rm 5:15; 1Tm 2:5); o qual “a si mesmo se humilhou”(F12:8); se “fez pobre” expõem as mesmas perguntas: como conhecer ao Jesus que realmente existiu? É
(2Co 8:9); “mansidão e benignidade de Cristo” (2Co 10: 1); “foi constituído ministro possível conhecer ao Jesus da história? Quais são as fontes para conhecer o Jesus
da circuncisão, em prol da verdade de Deus, para confirmar as promessas feitas histórico? Os evangelhos são historicamente confiáveis?
aos nossos pais” (Rm 15:8); “foi crucificado em fraqueza” (2Co 13:4); “foi sepultado
É possível conhecer ao Jesus da história para os que abandonam toda
e ressuscitou ao terceiro dia” (1Co 15:4); porque “Deus ( ... ) ressuscitou Cristo”
filosofia e pressuposição cética. Pode-se encontrar ao Jesus histórico a partir do
(1 Co 15: 15; Gl 1: 1; Ef 1: 17-20), “fazendo-o sentar-se à sua direita nos lugares
Cristo da fé, o Jesus dos evangelhos, da revelação bíblica. Não é possível conhecer
celestiais”(Ef 1 :20).
ao Jesus da história independentemente do Cristo da fé.
Este Jesus histórico é o “Cristo” que “morreu pelos nossos pecados, segundo
82 as Escrituras” (1 Co 15:3). O fato de que Jesus morreu é um acontecimento que
deve ser verificado por investigação histórica. Porém, a informação que sua morte
Teologia e história se combinam, a revelação e o evento histórico se
completam no processo de conhecer ao Jesus histórico. Por isso, afirmo acreditar 83
naquele que foi real, que existiu; pois Ele é o Cristo da fé, é o Jesus dos evangelhos.
foi “pelos nossos pecados segundo as Escrituras” é uma interpretação inspirada
que deve ser entendida pela fé, tendo o molde da Escritura como Palavra de
Deus, o que é próprio das pressuposições bíblicas. Portanto, muitos dos eventos
históricos revelados nos evangelhos chegam a ser recursos literários para ensinar
verdades teológicas profundas.
Conclusão
84 RESUMO: A partir de uma visada histórica focada no magistério da Igreja e na teologia européia,
delineiam-se três linhas nas quais se pode resumir as características do desenvolvimento da
85
cristologia nas últimas décadas: i) mais trinitária, pois marca a revelação de Deus em Jesus; ii)
mais histórica, porque abrolhou, estabelecido pelo Concílio, uma renovada atenção de volta às
origens e à história concreta do Nazareno narrados pelos Evangelhos; iii) mais pascal, projetada
para confessar a singularidade do Crucificado-Ressuscitado, porque chama a testemunhá-lo por
de todos os caminhos possíveis ante o mistério da divindade e da salvação eterna dos homens.
PALAVRAS CHAVE: Cristologia trinitária; Cristologia histórica, Cristologia Pascal; Revelatio Dei.
ABSTRACT: From a historical sight focused on the Church’s magisterium and theology in Europe,
are outlined in the three lines which can summarize the characteristics of the development of
Christology in recent decades: i) more Trinitarian, it marks the revelation of God in Jesus, ii) more
historic because originated, established by the council, a renewed attention back to the origins
and the concrete history of the Nazarene narrated by the Gospels, iii) more paschal, designed to
admit the uniqueness of the Crucified and Risen One, because it draws to bear witness to it by all
possible paths before the mystery of godliness and eternal salvation of men.
KEY WORDS: Trinitarian Christology; Historical Christology, Christology of the Passion; Revelatio
Dei.
88 89
ao conhecimento da fé para abrir-se à profundidade de Deus e fazer-se dEle uma completamente uma estadia do véu, ou melhor, mesmo adensarse um.
idéia autenticamente cristã e não intelectualista, alheio ao confronto com o
escândalo da cruz e à luz da Páscoa. Apenas uma cristologia construída sobre o “re-velatio Dei” - entendida
dialeticamente -, respeita o caráter trinitário da revelação original: é necessário,
O aprofundamente trinitário da encarnação do Verbo mostra como então, voltar-se decididamente para uma cristologia cada vez mais “teológica” e,
a Palavra encarnada retorna ao Silencio de origem, à profundidade da qual portanto, cada vez mais mais “trinitária”, tanto para educar e ouvir na Palavra o
eternamente provem e junto à qual está eternamente: o Deus que se fez visível ao silêncio do qual provem e ao qual se abre e, por conseguinte, no Verbo encarnado
Deus invisível, o Filho ao Pai. Como diz Inácio de Antioquia, o Pai “revelou através a relevação do Pai e do Espírito Santo.
de Seu Filho Jesus Cristo, que é a seu Verbo procedente do Silêncio” (Ad Magn.
8,2). São João da Cruz afirma: “O Pai pronunciou uma palavra, que foi seu Filho
e a repete sempre num eterno silencio; depois, em silencio ela deve ser escutada
na ama” (Sentenze. Spunti d’amore. [Sentencias.
A palavra de revelação, que é Cristo, requer então, a ser “transcendida”,
não no sentido de que pode ser eliminada ou posta entre parentese, pois isso
Acolher a Palavra escutando nela o silencio divino é permanecer no
obstacularizaria todos os acessos às profundezas do divino, mas no sentido de
santuário da adoração, deixando-se amar pelo Deus silencioso e atrair para ele,
que é verdade e assim como a vida é o caminho (cf. Jo 14,6), o umbral que se abre
através da insubstituível e necessária mediação do Verbo: “Ninguém vai ao Pai
diante do Mistério, a porta pela qual se deve passar para entrar no aprisco das
senão por mim” ( Jo 14,6)
ovelhas (cf. Jo 10,7), a luz vinda das trevas para a luz, na qual veremos a luz (cf. Jo
1,9 e Sl 36,10).
Aquí se compreende como uma cristología no horizonte da fé está
profundamente enraizada na experiência crente do Deus vivente da revelação
Graças à dialética trinitária da Palavra e Silêncio, de abertura, e ocultação,
bíblica e, portanto, na espiritualidade da escuta, alimentada pela oração. Por isto,
no evento da revelação a transcendência divina não é entregue à imanência do
separar cristología e espiritualidade quer dizer: privar-se do horizonte necessário
mundo, e a forma histórica da autocomunicação divina se remete à inesgotável
para obedecer verdadeiramente à palavra revelada, escutando nela o Silencio
excedencia do mistério sagrado.
fontal, do qual ela provem e ao qual ela se abre.
Reencontrar a unidade cristológica do pensamento e da experiência cristã, Na sua verdadeira e completa humanidade, Jesus Cristo é a revelação de
mais além das dificuldades introduzidas também na teologia pelo racionalismo da Deus: aqui se fundamenta a exigencia de alcançar, através dos traços do Jesus
modernidade, significa voltar à condição hermeneutica originária e constitutiva histórico, a profundidade do mistério que eles oferecem. Não se trata de contar
do pensamento da fé ao estado original e hermenêutica constitutivos do uma centésima história de Jesus em que se projeta, mais ou menos amplamente,
pensamento fé. as interrogações e questões da sensibilidade do presente nem, muito menos
intentar uma análise psicológica da personalidade do Nazareno, que seria
Da mesma forma, a urgência é capturada aqui para reflexão cristológica totalmente arbitrária, dados os elementos à nossa disposição.
se situe no interior da transmissão eclesial vivente da Palavra, que de testemunho
em testemunho e de obediência em obediência faça chegar até nós a água da Trata-se de investigar nos “mysteria vitae Jesu” das dimensões do humano
vida. que se manifestam neles ,e através dos quais, passa a revelação do Deus vivente
lendo na história o “querigma” e no “querigma “ a história e capturando, na
A cristologia separada da tradição viva da fé da Igreja - especialmente plenitude, a fecunda circularidade atestada no Novo Testamento entre o Jesus
daquela que é guaadada dentro do “limite/umbral” que é a definição dogmática - histórico e o Cristo pascal.
levaria a aventuras impróprias, inseguras e inconsistente.
Trata-se de reconstruir a história da consciência e da liberdade do homem
Jesus, bem como a experiência de sua finitude, experimentada conhecendo
Isto não tem nada a ver com uma teologia bloqueada pela definição
pessoalmente a dor e a morte, na convicção fundada na luz da Páscoa que tudo o
90 91
dogmática (a “Denzinger-Theologie”, como se diria!). É, isto sim, uma condição
que vem à verdadeira e plena humanidade do Salvador, está baseado na revelação
de vitalidade do pensamento cristão, chamado a razão da esperança fundada
de sua divindade.
sobre a verdade da fé: longe de ser ima repetição mecânica do que está morto, a
tradição é vida que transmitem vida
Em Jesus de Nazaré foi-nos oferecido o rosto humano de Deus: cada gesto
seu, cada aspecto de sua condição humana, cada momento de sua vida terrena,
Uma cristologia no horizonte da fé é, portanto, não só biblicamente
é a aparição (manifestação) de Deus entre os homens e deve ser, portanto,
fundada e alimentada pela experiência espiritual, mas também é eclesialmente
valorizado pela fé e reflexão cristã. O terno amor de muitos santos à humanidade
responsável e deve estar atenta para superar as aventuras de subjetividade na
do Salvador, a atenção para “Dominus humanissimus”, que tem sido muitas vezes
objetividade da “fides Ecclesiae”, recebida e transmitida.
estranhos à teologia dos últimos séculos (desde Suarez em diante se abandonou
a exposição dos “mysteria vitae Jesu” na articulação de “De Verbo Incarnato”) e
A revelação de Deus em Cristo inspira o povo de peregrinos da fé,
familiar só à piedade cristã, capta um aspecto profundo do paradoxo cristão. Deus
chamado a transmitir a todas as gerações a memória do Eterni, vinculada ao texto
não faz concorrência ao homem em Jesus de Nazaré; ao contrário, o ser humano
das Escrituras inspiradas, mas também o contexto do anúncio e da práxis cristã,
é assumido plenamente e é valorizado na história do Filho do homem, como um
nos que o Espírito trabalha para levar a Igreja à plenitude da verdade divina.
veículo eficaz, “sacramento” do Filho eterno entrado neste mundo.
92 93
amor que vem de Deus e pela qual a comunidade cristã, que aceita os desafio dos mistério da divindade e da salvação eterna dos homens. A fé do Novo Testamento
sinais do tempo , se torna solidária com o próximo concreto e o serve na causa não hesita em indicar no campo “evento Cristo” o lugar onde é possível encontrar-
de sua promoção mais completa e, portanto, na libertação de tudo o que ofende se,em plenitude, autocomunicação divina: Jesus não fala somente com as palavras
a dignidade dos filhos de Deus. Nesta estrada abre aos olhos da fé a presença de Deus, mas é a Palavra de Deus, o Verbo eterno feito carne , que se comunica a
misteriosa de Deus no maior variedade de situações humanas: Cristo se esconde si mesmo e dá acesso à experiência vivificante das profundezas divinas no dom
nos pobres, nos famintos, nos sedentos, nos marginalizados e que sofriem, na do Espírito.
crianças exploradas, as mulheres pisoteadas, nos últimos (cf. Mt 25:31 ss). Quem
responde aos que têm fome e sede de tuto isso com o amor livre e gratuito, torna- Sobre esta convicção baseia-se a consciência do cristianismo de ser
se um Evangelho vivo, uma Palavra escrita, já não mais em tábuas de pedra, mas o portador de uma mensagem universal, dirigida a todos os homens em cada
sobre a carne de nossos corações (cf. 2 Cor 3,3) . homem. E é em virtude dela que para os discípulos de Cristo são estabelecidas
as condições necessárias de possibilidade e os critérios de discernimento da
A presença de Cristo no cotidiano da dor e das lágrimas são reconhecidos, eventual presença da auto-comunicação divina nas outras religiões e no diálogo
bem como, em quem ama em seu nome: “Nisto todos conhecerão que sois meus com elas.
discípulos, se tiverdes amor uns aos outros” (Jo, 13, 35) . No amor ao próximo é
revelado o amor de Deus: “Quem não ama seu irmão a quem vê, não pode amar A Encíclica Redemptoris Missio (1990) afirma: “Deus chama a si todos os
a Deus a quem não vê» (1 Jo 4, 20). Neste amor, Cristo se faz presente em seu povos em Cristo, desejando-lhescomunicar-lhes a plenitude da sua revelação e
Espírito e diz palavras de vida eterna. O outro é, no Espírito, um sacramento do amor, e continua a fazer-se presente de muitos modos, não só aos indivíduos,
encontro com o Senhor Jesus, um lugar de advento, o tempo da salvação (cf. Mt mas também para populações inteiras através das suas riquezas espirituais, cuja
25, 31ss). expressão princial e essencial são as religiões, ainda que elas contenham “lacunas,
insuficiências e erros” (55).
Uma cristologia que não é medida pelas urgências de caridade e justiça, e
não dá razões para viver o êxodo de si mesmo no seguimento do Filho na carne, As religiões oferecem, então, não apenas como expressões de auto-
se desnaturaliza no exercício da razão, aberto a todos possíveis riscos de desvios transcendência do homem frente ao mistério sagrado, senão também como
ideológicos. As “cristologias da práxis” (cristologias de cristologias da libertação, possíveis lugares da autocomunicação do ser divino: novamente a encíclica diz
cristologias políticas, cristologias da esperança e do “eschaton”) mostram que para aqueles que “não têm a oportunidade de conhecer ou aceitar a revelação
do Evangelho e de entrar na Igreja “, porque” vivem condições sócio-culturais que e islamismo - reflexos de que a verdade que ilumina todos os homens – drgue
não permitem isso e, em muitos casos tenham sido educados em outras tradições valendo seu dever e determinação de proclamar sem hesitação Jesus Cristo, que
religiosas, “a salvação de Cristo” é acessível, em virtude da graça que, mesmo ao é “o Caminho, a Verdade ea Vida” “(Redemptoris Missio, 55).
ter uma relação misteriosa com a Igreja, não lhes introduz formalmente da mesma,
mas ilumina-los adequadamente em sua situação espiritual e material . Esta graça Assim, o diálogo com outras religiões “deve ser realizado e levado a termo
provém de Cristo; é fruto do seu sacrifício e é comunicada pelo Espírito Santo: ela com a convicção de que a Igreja é o meio ordinário de salvação e que só ela possui
permite a cada pessoa alcançar a salvação através de sua livre colaboração “(10). a plenitude dos meios da salvação” (ibid.). Nem este diálogo – enquanto unido ao
A encíclica precisa que “a presença e a atividade do Espírito não afetam somente dever de proclamar a verdade do evangelho - deve ser considerada instrumental,
os indivíduos, mas também a sociedade, história, povos, culturas e religiões ... É pois conjuga a fidelidade irrenunciável com a identidade do discípulo de Cristo
também o Espírito que espalha “as sementes do Verbo “presentes em vários ritos com o reconhecimento das “semina Verbi” onde quer que estejam presentes, e
e culturas, preparando-os para a plena maturidade em Cristo” (28). que justamente por esta fidelidade é possível.
À luz disso, é legítimo considerar que as religiões não cristãs contêm ***
elementos autênticos da autocomunicação divina, cujo discernimento é possível
para os discípulos de Cristo, em virtude do critério que é a revelação cumprida A cristologia mais teológica, uma cristologia histórica, cristologia
Nele: entende-se, portanto, não pode ser aceita uma avaliação puramente mais capaz de combinar essas duas dimensões na confissão da unicidade de
negativa dos mundos não-cristãos e de textos sagrados, ligadas a um suposto
94 95
Jesus Cristo, que, una ao mesmo tempo a urgência de proclamar a boa notícia
“exclusivismo” fundado sobre a identificação absoluta entre a Igreja e o Reino necessidade de diálogo com o outro , quem quer que seja e de que parte venhar.
(como, por exemplo, a posição de Karl Barth) . Não se pode - na direção oposta É esta triplice instancia que parece emergird os desenvolvimentos da reflexão
- a aceitar o pluralismo indiscriminado de algumas teologias das religiões que pós-conciliar cristológico: uma instância que faça eco à demanda constante de fé
fazem com que seja vã a absoluticidade do cristianismo e ignorar as lacunas e em Cristo, para confessar nEle a união do humano e do divino, sem confusão ou
resistencias das outras experiências religiosas, com a intenção de tomar distância mistura, sem divisão ou separação (cf. Concílio de Calcedônia, em 451).
da insistência sobre a superioridade e definitividade de Cristo para se mover em
direção ao reconhecimento da independente validade de outros caminhos (como Trata-se de desenvolver uma reflexão de fé que una fidelidade ao mundo
o encontrado na concepção de teólogos como John Hick e Paul Knitter F.). presente e fidelidade ao céu, fidelidade a este mundo e fidelidade ao mundo que
deve vir, como já aconteceu uma vez por todas naquele que é a Aliança em pessoa
Entre essas orientações contrapostas faz falta perseguir o discernimento . A Ele se dirige, pois a invocação do divino - uniao a de toda a Igreja - para o “logos”
que - sem renunciar a proclamação da graça e do escândalo singulares da da fé pensativo adera ao “hymnos” da fé adorante, que escuta, celebra, proclama
boa notícia - reconheça a ação do Espírito orientada para a luz do Verbo onde e vive o mistério revelado Nele, o Verbo vindo entre nós, em cuja seguimento
quer que ela se realize. “Tudo o que o Espírito faz nos homens e na história dos apostamos toda a nossa vida.
povos, assim como nas culturas e religiões,tem um papel de preparação para o
Evangelho, e não pode menos que referir-se a Cristo, o Verbo Encarnado pelo
Espírito “(Redemptoris Missio, 29).
RESUMO: O artigo se propõe a delinear como foi sendo construída a história da compreensão
de Jesus. Sua origem, narrada nos evangelhos, e a racionalidade dos discursos - notadamente os
96 helênicos - levaram à composição dos dogmas ou, ainda, as devoções. Os dogmas e as devoções
são as duas grandes realidades que permeiam a história humana na relação com Jesus Cristo.
Privilegiou-se, na Igreja, a memória do discurso racional sobre Jesus. A memória devocional
97
é mais volátil e contém menos documentação. Os textos escritos por intelectuais são mais
duradouros; a memória popular perde-se mais rapidamente por causa de suas mudanças. Os
chamados “concílios de ouro da cristologia” marcaram o primeiro milênio. Nos tempos seguintes,
não havendo grandes inovações teológicas, surgiram diversificadas devoções, especialmente “as
doloristas” e as eucarísticas. Estes dois modelos marcam o lugar de Jesus na história da fé.
PALAVRAS CHAVE: Compreensão sobre Jesus; Racionalidade dos discursos; Dogmas; Devoção.
ABSTRACT: This article aims to outline how the story was constructed understanding of Jesus.
The origen of Jesus, narred in the Gospels and the racionality of the speches - especially the
Helens - led to the composition of dogmas or even the devotions. The dogmas and devotions are
the two great realities that has permeated the human history in relationship with Jesus Christ. We
privilege in the Church, the memory of rational discourse about Jesus. The memory devotional is
more volatile and contains less documentation. The texts written by scholars are more durable.
The popular memory is lost faster because of the constant changes. The so-called “golden
councils of Christology” marks the first millennium. Afterward, as there was no great theological
innovations emerged diversified devotions, especially those “of the Passion” and the Eucharist.
These two models mark the place of Jesus in the history of faith.
KEY WORDS: Understanding about Jesus; Rationality speeches; Dogmas; Devotions “of the
Passion” and Eucharistic.
* Mestre e doutor em Missiologia, pós doutor em Antropologia Teológica, pela Pontifícia Universidade Gregoriana
de Roma e professor do Studium .
Algumas observações iniciais Foi S. Paulo quem por primeiro escreveu sobre Jesus. Toda tradição
bíblica que possuímos confirma isto. Só depois vieram os evangelhos. Primeiros
os evangelhos sinóticos, depois o de João. Os apócrifos – que também têm
algum valor, mesmo que não canônico – vieram bem mais tarde. Eles têm sido
Este é um artigo de síntese. Síntese sempre indica uma (nova) posição
valorizados em muitos ambientes religiosos e teológicos atuais
(tese) sujeita à críticas (antíteses). Então, uma síntese é sempre algo dinâmico e
provisório, mas não diz tudo. Não é um resumo. Um resumo está baseado em algo São Paulo interessou-se pelo Cristo crucificado. Mas, o crucificado é
pronto e dele não se sai. A síntese se abre para dizer novas coisas- que se tornarão o ressuscitado (1Cor 2,2) . Dele que vem a fé. S. Paulo, porém, – que de modo
velhas um dia. algum se detém sobre a história de Jesus – procura, antes e, sobretudo, entender
o significado de Jesus como Cristo de Deus. É claro, além do fato histórico da
Escrever sobre a história do que disseram de Jesus é um processo
morte, Paulo também afirma ser Ele nascido de mulher (Gal 4,4)2. Certamente as
arriscado. Para uns, faltará isto ou aquilo. Outros poderão dizer que não é bem interpretações paulinas são fundamentais para compreender Jesus como o Filho
assim. Então o artigo, que é provisório, torna-se também provocador. E disto o Unigênito, o Primogênito de toda criatura, o Filho de Deus nascido segunda a
autor está consciente e, de modo algum, pretende ser dogmático ou definitivo. carne da estirpe de Davi e constituído em virtude como Filho de Deus, segundo
o espírito de santidade (Rom.1,3ss). É ele o Filho de Deus, enviado a nós para
O artigo não tem como objetivo primeiro escrever sobre Jesus. Não é uma
que, por sua morte, nós fossemos salvos, i. é: todos os homens fossem salvos não
“jesuologia”. Mas, também e muito menos é uma “cristologia”. É tão somente uma
importando se judeus ou pagãos (Rom 3,24; 6,22; 1Tim 2,6 etc.). É aquele que
98 99
(tentativa de) caracterização de como interpretaram Jesus na história. O peso,
se humilhou em sua divindade para fazer-se um homem e ainda mais, em sua
pois, está na história, não dele, mas do que fizeram dele, de como o conceberam – o
humilhação, fez um escravo que foi crucificado (cf. Fil 2, 6-11).
que, inclusive, serviu para assim justificar atitudes de poder, piedade, exclusão/
inclusão, pecado/graça etc. De modo mais ordenado, pode-se dizer que Paulo, na fase inicial, vê Jesus,
através de sua ressurreição, como o futuro salvador escatológico (1-2Ts; 1Cor 15).
“Ninguém conhece o Filho a não ser o Pai...” (Mt. 11,27). Esta afirmação
Depois, enfatizando o Crucificado-Ressuscitado, o encontra como aquele que
joanina já é suficiente para indicar a provisoriedade de todo conhecimento sobre
opera, desde já, a salvação (cf 1-2 Cor, Gl, Rm). Por fim, para Paulo, Jesus ocupa
Jesus; mas, ao mesmo tempo, é a possibilidade real e histórica de conhecer Jesus,
todo o centro do plano de Deus, desde o início da criação até sua consumação. É
o que revela o Pai. Conhecer Jesus é um ato de fé. Porém nem tudo que se conhece
o Cristo cósmico.3
de Jesus é uma questão de fé. 1
A reflexão paulina considera Jesus em seu mistério a partir de Deus e a
partir de sua missão escatológica. O apóstolo certamente não ignora a vida
Jesus nas várias explicações do Novo Testamento e dos primeiros Santos de Jesus vivida na carne, mas ele amplia o significado histórico, embasado no
Padres Primeiro Testamento e nas suas visões pessoais de Jesus (cf. caps. 9, 22 e 26), para
os significados cósmico e escatológico. É a partir daí que ele compreende quem
foi Jesus.
A fonte normativa primária para saber como se conhece Jesus é a Bíblia Os evangelhos sinóticos surgiram para assentar a revelação de Deus sobre
Sagrada, prioritariamente o Novo Testamento. Mas, ninguém pode conhecê-lo Jesus e foram escritos à luz da ressurreição. Consequentemente nem pretendem
sem o suporte revelatório do Antigo Testamento. Convém dizer, logo no início, ser uma biografia de Jesus tal qual nós entendemos hoje. Aliás, tampouco foram
que para a compreensão eclesial de Jesus, a dogmática cristológica é integrativa escritos para ser um relato fiel e imediato da vida e obras de Jesus. Antes, foram
da fé professada – mesmo que o dogma, no caso, decorra da explicitação do que escritos em função das necessidades da fé das comunidades primitivas que já não
se encontra na Bíblia. 2 - Paulo não diz que ele nasceu de Maria. Convém lembrar aqui que Paulo foi fervoroso judeu e
mesmo tendo dito que depois de Cristo não há mais judeu ou grego prosélito ou pagão
3 Jesus é Deus, para S. Paulo? – Bem, esta é outra discussão de cuja oportunidade não se ocupa
1 Veja-se, por exemplo, toda a discussão sobre Jesus histórico, promovida pelo Jesus Seminar. este texto.
mais conheciam pessoalmente Jesus. Mesmo assim, é o que de mais próximo e realizam as inúmeras profecias veterotestamentárias sobre o messias prometido7.
autoritativo que se tem da vida dele. As poucas referências da literatura judaica4 Ele é o filho de Davi, verdadeiro filho de Abraão. É quem escolhe doze apóstolos
e romana são ainda muito mais insuficientes, tanto por serem poucas quanto por que simbolizam as novas doze tribos de Israel. Os apóstolos encabeçarão o novo
serem quase sempre uma referência indireta ou complementar. Israel que haverá de escutar os novos ensinamentos do “reino dos céus” (cf. Mt. 4,
23; 24,14) e aceitará a nova Lei de Jesus, que já o velho Israel rejeitará mais e mais
Foi assim que Marcos5 escreveu para mostrar, sempre à luz da ressurreição, tais ensinamentos e tal Lei.
que Jesus era verdadeiramente o Filho de Deus6. O texto foi escrito depois
dos anos 40 e antes da destruição de Jerusalém, em função da catequese das Mateus escreve ao novo e verdadeiro Israel, a Igreja, e evidencia Jesus
comunidades gentio-cristãs; i. é : de cristãos “convertidos do paganismo” que como “Filho de Deus”, em quem se cumprem e se projetam as realidades da
formaram comunidades estabelecidas e que não conheciam suficientemente os imprevisível e insuperável vinda de Deus. Assim Jesus é, definitivamente, o Cristo,
costumes judeus. o Emanuel (1, 22), o que estará sempre conosco (29,18-20) e a quem será dado
todo poder no céu e na terra (26, 54-56). Todavia sua vida está constantemente
Marcos descreve as atividades de Jesus antes de sua ressurreição – que é o
ameaçada no antigo Israel. São constantes as intrigas e ciladas até ser rejeitado
mesmo pregado como ressuscitado e o juiz do mundo, o Filho de Deus. Constrói
e levado à morte, pelas forças históricas – que na verdade são as forças do mal
um Jesus com a misteriosidade de messias: o Filho de Deus. Titulo, aliás, evitado por
recusando a Deus. Mas, o sangue da nova aliança, derramado por muitos para a
Jesus, que inclusive proíbe a divulgação de seus feitos messiânicos (os chamados
remissão dos pecados (26,28), será ocasião expiatória que levará à exaltação do
“os segredos messiânicos”). Mas, o título se torna conveniente aos “ouvintes
Filho de Deus, por quem vem chegando o Reino dos Céus.
100 101
descrentes” – e a todos os pósteros – tanto por causa do fim trágico de Jesus
quanto da revelação de sua messianidade. O evangelista, em seu esquemático O terceiro evangelista escreve, pelos anos 80, para os cristãos vindos do
texto, apresenta Jesus não como um “homem divino”, um super homem, ou um helenismo. O evangelista evidencia a misericórdia de seu Mestre para com os
semideus glorioso e triunfante, realizador de fatos e causas extraordinários. Antes, pecadores. Insiste na ternura de Jesus para com os humildes, marginalizados e
a filialidade e a messianidade de Jesus são mostradas pelo sofrimento e morte excluídos, com as crianças e mulheres, com doentes e pobres, sem perder a justa
na cruz: ele deu a vida pela nossa salvação e nele se cumpriram as promessas condenação aos soberbos de corações, aos folgazões da vida – apesar de que
messiânicas de Deus, já feitas no AT. no fundo Jesus é o que até espera a conversão deles à causa do reino. Em seu
primeiro livro, Lucas relata com delicadeza e sensibilidade os acontecimentos
O Jesus de Mc é aquele que está no meio do povo. É o que prega, cura
enfermos, expulsa demônios, faz refeições com os pecadores (i.é: os excluídos), com Jesus, dentro dos mistérios do Deus amoroso, sob a ação do Espírito. Jesus, o
instrui seus discípulos e o povo em geral. Ele discute as tradições judaicas e se vê que vence o tentador (4,1-11) é o portador da luz e da salvação, inclusive para os
acuado pelos fariseus, por Herodes e outras autoridades judaicas. Por fim, ele vê pagãos (2, 32.30), mesmo se rejeitado pelos seus (2,34). Ele ensina a seus discípulos
sua própria morte aproximar-se de modo violento. Mesmo assim, não deixa de ser conhecê-lo mais profundamente, em meio a contradições e situações pequenas.
crítico da sociedade estabelecida, agindo sobretudo como um messias de Deus. Ao mesmo tempo, ensina o povo, a quem é dado conhecer os mistérios de Deus
Aprisionado, julgado e condenado, morre na cruz para ser ressuscitado depois do (8,10). Devotado aos seus, ao povo e a Deus, demonstra o Reino como serviço de
sábado da Preparação. Deus, do qual é ele o primeiro servidor, até mesmo no martírio exemplar. Ele, na
verdade lucana, é de fato o Filho de Deus como salvador de todos, especialmente
Mateus – cujo escrito foi o segundo a ser produzido, apesar de o texto dos pequenos, dos pecadores e dos pagãos. É ele o mestre de vida, tanto no
oficial da Bíblia vir como primeiro – foi escrito por volta do ano 85, para as acolhimento quanto na dor.
comunidades judaica-cristãs que, não só se distanciaram das sinagogas, mas
também viverem em tensão com os judeus – agora considerados como um povo No mais teológico dos quatro evangelhos, Jesus vem apresentado no
que abandonou Deus. O Jesus mateano é o novo Moisés, o libertador e nele se embate entre Deus e o mundo, cuja aparente vitória do mundo é na verdade
o gesto de amor maior daquele que dá a vida pelos seus. O Filho encarnado,
4 Aqui se incluem também as de Flávio Josefo, sempre mais tidas como glosa de cristãos no texto
do historiador) pré-existente a tudo quanto existe, veio morar entre os seus. Ele é o revelador
5 O texto de Marcos é mais antigo que possuímos, mesmo que se fale de algum texto mais do Pai e da vida eterna que passa pela sua cruz, pela sua glorificação. Os fatos
primitivo, não conhecido hoje
6 Cf. no início: 1, 1; no meio: 9,29 e, no final,:15,39. 7 Diz-se que ao todo há 118 profecias a respeito de Jesus, no AT..
e as palavras de Jesus são sempre sinais maiores que compõem uma “história Todavia, “a estrutura básica comum consiste na indissolúvel vinculação
qualitativa” só possível a quem nascer de novo. É o Espírito que faz perceber isto. da revelação de Deus à pessoa e obra de Jesus de Nazaré: por meio dele, Deus
Entrar para seu círculo é entrar em comunhão com seu Pai, que faz brilhar a glória e sua salvação tornam-se insuplantavelmente válidos (escatológicos) e são
do Filho na paixão e ressurreição, conhecido na fé e no dom do Espírito. Esse comunicados de maneira universal”.9 Esse Jesus foi “aprovado por Deus diante de
Jesus, relativamente misterioso, é capaz de soerguer o mundo, afastando o mal vós, com milagres, prodígios e sinais, que Deus operou por meio dele entre vós...
ao chegar a sua hora, pois é ele quem revela e comunica a salvação como enviado que vós o matastes e Deus o ressuscitou (...) e o constituiu Senhor e Cristo” (At. 2,
do Pai – com quem mantém um relacionamento singular, a ponto de poder dizer: 22.32.36). Esse Jesus não provinha “de nenhum grupo ou tendência determinada
“eu e o Pai somos um”, “faço as obras que vejo meu Pai fazer”. Esse Jesus joanino do judaísmo. Ele as conhece, envolve-se com seus questionamentos, mas não
– que avoca o testemunho do Pai sobre si – é capaz também de dizer: “eu sou” o se deixa dominar por nenhuma delas. Ele não é um homem da ordem, nem um
pão da vida, o bom pastor, a porta das ovelhas, a água da vida, a ressurreição etc. revolucionário político; com grande liberdade passa por cima dos esquemas.
Todas essas realidades indicam as necessidades profundas da alma humana, e ele Os dois únicos particularismos que ele pratica de modo muito engajado são:
pode, por isso mesmo, dizer que é “o caminho, a verdade e a vida” (14,16; cf. 11,25) considerar Deus como seu Pai e agir em defesa das pessoas desprezadas, débeis,
sem oportunidade e pecadores: de resto, ele se dirige ao povo todo e o chama à
Quanto mais tempo passava, mais a lembrança viva de Jesus se perdia; conversão (também os piedosos)” 10. Ele se ateve a Deus como centro de sua vida
não só iam morrendo os que conviveram com ele, mas também as gerações que e ao projeto do Reino de Deus, a ponto de dar sua vida.
se sucediam iam esquecendo os fatos narrados, em geral, oralmente. Por outro
Assim, os primeiros crentes – ainda dentro do judaísmo – foram
102 lado, os “seguidores do Caminho” – que começaram a ser chamados de cristãos,
pela primeira vez na Antioquia, pelo ano 43, passaram a criar novas comunidades percebendo o papel histórico-salvífico de Jesus, enfatizando o homem concreto, 103
e levando a mensagem e o jeito de ser cristão para outras culturas. mas escolhido de Deus (“Deus o exaltou”). À medida que – quer por pressões
internas do judaísmo, quer por questões da dominação romana que pressionava
Além dos discípulos de Jesus, os judeus que se foram convertendo, com exílio e/ou “correntes migratórias” – os seguidores de Jesus foram entrando
constituíam comunidades de vida, perseverando na oração, na fração do pão, na em contato especialmente com novas cultura, se viram obrigados a explicar
leitura e memória da Palavra de Deus. Adotavam modos de vida comunitários. quem eram e a quem seguiam com elementos alheios a sua origem. Se a pureza
Uns ajudavam os outros, a ponto de venderem os bens e pôr o resultado da venda originária ia sendo perdida na inculturação, abriam-se também perspectivas
em caixa comum. Tais judeus convertido, junto com os apóstolos, eram um só novas.
coração e chamavam a atenção pelo modo de viver. “Vede como se amam”, diziam
os outros. 8 Já desde o início, após a morte e a ressurreição de Jesus, sua riqueza
multifacética, que era de boa conivência, também gerou tensões. À medida
Esses primeiros adeptos de Jesus, após a ressurreição seguiam seus do distanciamento dos fatos iniciais, os diversos grupos passavam a criar suas
ensinamentos, procurando pô-los na vida diária, e, em meio aos adeptos do interpretações e modos de vida, os quais nem sempre eram os mais concordes
judaísmo, tinham seu modo próprio de vida. Também tiveram um modo bem com os ensinamentos e a vida de Jesus. A Didaqué e os textos joaninos indicam
plural de compreender Jesus, a quem seguiam. A pluralidade de interpretar tensões bem evidentes. Aí estão presentes gnósticos, ebionitas, monarquianos,
Jesus e os modos de seguí-lo se deve às diversas possibilidades contextuais de docetas etc. As discussões vão se centrar ora na redução ou contestação da
interpretá-lo e compreendê-lo. Nenhuma por si só era oniabrangente, mesmo divindade de Jesus, ora na redução ou contestação de sua humanidade.
com o referencial comum, pois não era nem o modo de seguí-lo nem o modo
de interpretá-lo que o criaram: antes, “aquele que passara pelo mundo fazendo o Todavia, houve grupos não especulativos que mantiveram um equilíbrio
bem” (At. 10, 38), que morto fora ressuscitado pelo Pai, era tão plural que nenhum simétrico entre a divindade e a humanidade, como por exemplo os Padres pós-
grupo poderia apreender toda sua “plenitude” (cf. Ef. 4,13). apostólicos e antignósticos. Sto. Inácio de Antioquia (+ 117) exemplifica bem este
comportamento ao escrever suas diversas cartas aos magnésios, aos efésios, aos
8 É encantadora a descrição de um texto antigo: alias o mais antigo que descreve a vida dos 9 KESSLER, Hans. Cristologia in SHNEIDER, Th. (org.) Manual de dogmática, Vol. I. Petrópolis:
primeiros cristãos depois das anotações de Paulo, Lucas e outros textos neotestamentarios: Vozes², pg.291
DIDAQUÈ. 10 Idem, pg. 240
romanos etc. “Deus é um”, afirma Inácio, mas vai acrescentando, de modo muito passou a entender e crer ”num só Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus (preexistente
natural que o Cristo é o “nosso”, o “seu” Deus”, ou ainda ”Deus no ser humano” , a e eterno), gerado/nascido do Pai como unigênito, isto é, da substancia (ousia)
verdadeira “gnose de Deus” (Aos Efésios 7.2; 17,2). Mais tarde, Sto. Irineu (+205) do Pai (...), Deus verdadeiro do Deus verdadeiro (...) gerado/nascido, não feito, de
enfatizará o significado salvifico de Jesus Cristo, Deus e ser humano, um e o uma só substancia como o Pai (homousios) pelo qual foram feitas todas as coisas
mesmo (Adv. Haer.III 16, 2.8; I. 9,2), segundo sua substancia, capaz de mediar e (...); o qual, por nós homens e para a nossa salvação, desceu do céu e se encarnou,
reunir, de aproximar os homens de Deus (III, 18,7). Ainda Irineu vai explicar a larga se fez homem, sofreu e ressuscitou ao terceiro dia”. (DZ 125/155).
que em Jesus, Deus se fez homem para que os homens se tornasse divinos.
Sem ter como outro objetivo que esclarecer a fé em Jesus, os bispos e
Idéia esta enfatizada em Tertuliano (+ após 220), com modificações teólogos conciliares introduziram uma nova linguagem (a helênica), embora
evidentes: Jesus, homem e Deus, com duas naturezas que se unem, mas não se pretendendo manter a realidade redentora de Jesus – doravante enriquecida
confundem. Isto só se torna possível à medida, como faz Irineu, que se identifica o para além dos textos imediatos dos evangelhos que narravam a história singular
Deus criador como o Deus redentor e vice versa. Para Tertuliano –e daí em diante do homem Jesus: ele é salvador porque é Deus com o Pai e como o Pai.
isto se vai fixando, até caracterizar toda a sotereologia do segundo milênio – Deus
se fez homem, em Jesus, para restabelecer, por meio de sua morte redentora, a Estava claro, sem mais discussões: Jesus é verdadeiramente Deus como
ordem perturbada pelo pecado. A morte é a verdadeira finalidade da encarnação, o é o Pai. Um concílio, o de Constantinopla (381) complementou a discussão de
“verdadeiro fundamento do Evangelho e da nossa salvação” (Adv. Marc. III, 8,5). Niceia declarando que o Pai, o Filho e o Espírito Santo são verdadeiramente um
único e não três deuses, apesar de suas diferenças: uma é a substância de Deus,
104 mas três são suas realizações ou expressões (como Pai, como Filho e como Espírito
divino). E ainda mais: Jesus é verdadeiro homem. Só assim seria o nosso salvador. 105
A discussões dos intelectuais, bispos e teológos
As discussões dos grandes não pararam aí. Surgiam novas dúvidas, em
A passagem para a cultura helênica, sobretudo sob a ótica do platonismo meio a interesses e esforços de mediação, que encontraram respostas no Concílio
médio, vai exigir dos intelectuais cristãos desde II e III séculos, uma diferenciação de Éfeso (431): Jesus, Deus verdadeiro e homem verdadeiro (integral, completo) é
metafísica entre a divindade invisível e a força de sua presença visível no cosmo. uma só pessoa. Tudo o que se diz do homem Jesus se deve dizer do Verbo Divino,
Na realidade surge a questão: como o Deus uno e transcendente poderia porque ele é um só. O homem e Deus não estão unidos nele como algo misturado,
manifestar-se (multiplicar-se) em Jesus? A tensão entre o Uno e o Múltiplo passa mas ele é um só e o mesmo, com dimensões humanas e divinas; por isso Maria
a ser contemplada nos escritos dos apologistas cristãos do século II – Justino (+ também é a mãe do Deus, o que se encarnou, viveu, sofreu e morreu por nós e
165) é um dos mais importantes - para resolver a questão da preexistência do para a nossa salvação e, por fim, ressuscitou e foi constituído Senhor e Cristo.
Cristo gerado pelo Pai, antes de todas as criaturas.
A dogmatização proposta pela Igreja praticamente se afirmou no Concilio
Na verdade, a entrada no mundo intelectual helênico levou os cristãos a de Calcedônia (451), quando se chegou a um consenso em que se compôs uma
abandonarem a concretude da linguagem semita e a buscar conceitos filosóficos fórmula doutrinária capaz de unir as afirmações dos concílios anteriores com a
exatos e definidos, que levaram à grande construção da dogmática cristã, expressão: “um e o mesmo”. Assim tudo o que se diz de Deus em Jesus se afirma ao
sobretudo entre os séculos IV e VIII de nossa era. Há alguns marcos que não se mesmo tempo do homem Jesus: o mesmo verdadeiro Deus e homem, o mesmo
pode omitir, pois eles fazem parte integrante da fé, ao lado da normatividade consubstancial a Deus e à humanidade, o mesmo nascido (gerado) por Deus antes
constituída pelas escrituras sagradas do A. e do N. Testamentos. dos séculos e de Maria, conhecido em duas naturezas que não se confundem e
nem se mudam, mas também não se dividem e nem se separam. Tudo isso veio a
Questões como o relacionamento do Logos-Filho com Deus-Pai levaram os
ser conhecido como a “união hipostática”.11
bispos, pressionados pelo imperador Constantino ( 274-337) que visava à unidade
do império, a declarar a divindade do Pai e a do Filho, sepultando teorias tipo: Terminadas as grandes discussões cristológicas, a Igreja se volta para
subordinacionismo, modalismo, adocianismo etc. Surge do Concilio de Nicéia outras questões que, neste artigo, não nos são importantes. Todavia, no início
(325) um credo que enfatiza mais a essência da realidade intradivina, calcada
11 Depois deste concilio, surgiram ainda algumas outras questões como quantas vontades Jesus
em princípios mais metafísicos que na realidade histórico-salvífica. Então a Igreja
teria? O que na verdade o movia? Qual a mais importante? etc.
do século XII, surge o texto de um grande bispo teólogo, que vai estabelecer Ser cristão para eles, bem como para os de todos os tempos, é um estilo de
bases para um novo modo de compreender quem era de Jesus, ou melhor, qual vida. Ser cristão não comporta fragmentar a vida pessoal. O estilo de vida é global,
o seu papel. Anselmo de Cantuária (de Aosta, para outros), conhecido também holístico. É a partir deste “ser cristão” que se vai pensar a economia, a política, o
como Sto. Anselmo (+1109) escreveu um livrinho para dialogar com judeus e casamento, a paternidade ou a filialidade, o estudo, enfim a vida e a morte. É óbvio
muçulmanos, sobre o porquê Deus se encarnou (Cur Deus homo?12). O livrinho que em todas estas realidades – entremisturadas de graça e pecado – há uma
teve uma influência muito grande em todo o cristianismo, sobretudo durante todo gradualidade. Assim, não é por ser bem intelectualizado nas “coisas da fé” que um
o segundo milênio. As idéias aí expressas praticamente se tornaram “a” resposta será mais cristão que outro, que aderirá mais a Jesus que outro, que viverá uma
cristã: Deus se fez homem porque só alguém proveniente de Deus mesmo, por práxis mais intensa que um outro. Também é importante perceber que a vivencia
causa de sua dignidade, pudesse sacrificar sua vida, em nosso lugar, morrendo na religiosa está constantemente condicionada à educação recebida. Alguém que foi
cruz; só assim se conseguiria de obter o perdão de Deus sobre nossos pecados. instruído a viver a fé pela fidelidade aos sacramentos, sem a preocupação com o
Deste modo, a encarnação de Jesus estava voltada para a morte redentora. seguimento de Jesus, é quase óbvio que não se preocupará (muito) com a justiça
social. Um que é introduzido na fé pela ênfase na adoração eucarística, dificilmente
O livro de Sto. Anselmo está datado num tempo de senhores feudais e entenderá a necessidade de um real seguimento de Cristo. Ou aquele que recebe
absolutistas que tinham domínio pleno sobre a vida e a morte de seus servos. E só a introdução à vida sacramental, certamente não chegará à maturidade da fé.
mesmo que esta teologia tenha se tornado hegemônica, convém recordar que Nisso, transparece a importância (educadora) da comunidade de fé.
a Igreja não dogmatizou uma sotereologia e nem mesmo a desenvolveu muito
se comparado com a cristologia. A posição anselmiana foi muito estudado por Na história da evangelização, porém, há – por muitos motivos –
106 grandes teólogos; mas, nem todos lhe dão razão total. Sto. Tomás(+1274) , por comunidades inteiras que não conseguiram ou não conseguem viver a 107
exemplo, assinala a morte de Jesus como uma expressão absoluta de seu amor integralidade da fé por não ter quem as ensine (cf Rom 10,14) e nem lhes confira
por nós e por Deus, mais que uma necessidade de perdão por nossos pecados. o Espírito Santo.
Por causa das teorias de Freud (sadismo, masoquismo, complexos etc.), A memória história sobre a relação de Jesus e seus fiéis não se limita
muitos teólogos de hoje discordam da posição de Anselmo por fazer de Deus às questões teóricas da teologia. Ela também passa por outras possibilidades,
alguém vingativo, justiceiro e sem amor, enquadrado nos critérios e limites das sempre cercadas de várias nuances.
questiúnculas humanas desatento ao que é divino.
Assim, é válido perguntar como as primeiras comunidades cristãs, a partir
da expansão missionária, seja entre os judeus seja entre os “pagãos”, entendiam
quem é Jesus? Reuniam-se eles para prestar culto a ele, adorando-o? Ou para
Místicos, adoradores e penitentes se auto-esclarecerem sobre quem era Jesus? Ou ainda, buscarem razões a fim
de imitá-lo? Ou se reuniam para, fortificando-se entre si, tornarem-se suas
As posições teológicas acima são as dos cristãos intelectuais (bispos e
testemunhas? Ou enfim, tudo isto junto?
teólogos). E não deixa de ser a grande tradição da Igreja. Mas, terá sido assim e,
sempre assim, a postura dos cristãos leigos e, porque não, até de clérigos? Os relatos são muitos e bem variados. Atualmente, na Inglaterra, discute-
se sobre se os primeiros cristãos prestavam culto a Jesus, o Cristo, enquanto Deus.
– A adesão cotidiana dos fiéis cristãos (católicos) a Jesus passa por
Duas linhas se sobrepõem. Uma capitaneada por Larry W. Hurtado.13 A outra é
outros canais. Por vezes até bem distantes da ortodoxia doutrinária, sem ser
liderada por J. G. D. Dunn14
necessariamente contra ela.
Acima fizemos a referencia a dois textos (Atos dos Apóstolos e Didaqué) 13 Cf. HURTADO, Larry, W. Lord Jesus Christ. Devotion to Jesus in Earliest Christianity. Michigan Wn
sobre a vida dos primeiros cristãos, de como eles se posicionavam enquanto B. Eedmans, 2003. Também em espanhol: Señor JesuCristo. La devoción a Jesús en el cristianismo
crentes fiéis e como viviam o que criam. primitive. Salamanca: Sigueme, 2008
14 DUNN, J.G. D. Did the Firsdt Christians Worship Jesus? The New Testament. London: SPCK, 20119.
Também em espanhol: Dieron culto a Jesus los primeros cristianos. Estella (Navarra): Ed. Verbo
12 ANSELMO, Sto. Porque Deus se fez homem? São Paulo: Editora Cristã Novo Século 2003. Divino, 2011.
Para Hurtado, o culto a Jesus tem início em algo como uma explosão Bem outra é a história da história de Jesus no inicio da implantação
simultânea em várias comunidades primitivas, logo após a morte e ressurreição de do cristianismo na capital do imperio. .Os primeiros cristãos em Roma foram
Jesus, que incluía os próprios apóstolos e discípulos. Esses cristãos proclamavam progressivamente penetrando, o tecido social da cidade, a partir dos pobres,
e adoram Jesus como Deus, vivendo e morrendo por ele, bem antes do como eles, e dos judeus. Para chegar a isto, convém não esquecer as querelas
desenvolvimento dos credos e das doutrinas, do início de século II. Foi a devoção iniciais entre cristãos e judeus migrantes na capital imperial, as perseguições
a Jesus como Senhor à direita de Deus (Pai) a fonte propulsora do culto binário a especialmente de Nero, a culpabilização dos cristãos pelo incêndio de Roma,
Deus – que incluía Jesus. Os problemas desta assertiva não estavam na divindade os martírios constantes. Como ser seguidor de Jesus neste contesto? E como
de Jesus, mas no compreender, em sua devoção, a verdadeira dimensão humana compreendê-lo? Como foi a compreensão dessa história?
e o significado de Deus. Dado o pressuposto da divindade, decorriam os cultos,
os ritos e as devoções que alimentavam a certeza tão rapidamente difundida: A vida de fé foi vivida, durante muitas décadas nas casas e nos cemitérios/
ele era Deus, como o Pai e, por isso, se lhe prestava culto. A devoção a Jesus e catacumbas. Alguns cristãos também se manifestavam de modo mais público,
o reconhecimento de sua divindade não é, para Hurtado, o resultado de uma mesmo sob as constantes ameaças. Roma viveu, no inicio do cristianismo, uma
processo, mesmo que rápido, mas a explosão de sentimentos religiosos desde “psicose” de martírio e de perseguição Os martírios, que passaram a ser freqüentes,
sua ressurreição. tornavam-se fonte de encorajamento e testemunho para viver o seguimento
de Jesus. É provável que os cristãos fossem notados por seus comportamentos
Dunn defende a idéia de que os primeiros cristãos estavam convencidos públicos e pessoais cheios de ética, que fossem exemplares na vida familiar e
de que em Jesus se havia aberto uma porta nova e definitiva na relação recíproca social, que se distinguissem pela ação caritativa entre os pobres: mas por serem
108 entre Deus e os seres humanos. Os títulos divinos atribuídos a ele tinham uma
função paradoxal: ao mesmo tempo revelavam sua identidade, mas impediam
considerados ateus - não prestavam culto ao imperado - tinham uma “religião
ilícita”, dizia-se. Em certa ocasião (ano 111) o próconsul de Bitínia, Plínio, o Jovem
109
os cristãos de porem, a seu capricho, o mistério insondável e abissal de Deus nele (62-113), consultou o imperador Trajano sobre o que fazer com os cristãos – que
revelado. Jesus não abre totalmente o mistério, tampouco o fecha; antes, o entre- eram homens bons, apesar de serem supersticiosos e entoarem hinos a um certo
abre. Ele é o sentinela do ser de Deus e do ser do homem. O Deus único(o Pai), e só Cristo como a um deus.
Ele, recebe a adoração – mesmo que seja por meio de Jesus na força do Espírito.
Têm-se poucos documentos deste período para compreender como eles
Dunn historia o significado evolutivo do fato Jesus, afirmando que no apresentavam Jesus, a quem seguiam pelo modo de viver no cotidiano, nos cultos
cristianismo primitivo foram sendo assentadas todas as variáveis para confirmar e nas artes. Aliás, as raras pinturas e imagens de Jesus encontradas, até hoje, nas
a devoção a Jesus. De modo óbvio, tal devoção não tem os parâmetros e catacumbas, mostram Jesus como o Bom Pastor, como um peixe ou pescador ou
a sofisticação atuais. Mas, lá estão configuradas as crenças, as convicções como homem orante.
fundamentais, as possibilidades do desenvolvimento doutrinal (e dogmático) e
a prática devocional, que levarão a entendê-lo mais tarde como Deus mesmo. Uns três séculos após a ressurreição de Jesus, os cristãos tinham se tornado
Apesar de que alguns tenham afirmado que a devoção surgiu para contrapor a dezenas de milhares na capital, a ponto de o imperador Constantino fazer do
outras divindades epocais, é fato que a proto-ortodoxia foi estabelecendo bases cristianismo a religião oficial, certo de que – até independentemente de seu
teóricas para uma nova compreensão do significado de Deus a fim de melhor significado religioso intrínseco – dava o melhor passo para a união e manutenção
entender Jesus. Tal processo foi um crescendo nos círculos judeucristãos, inclusive do império.
da diáspora, gentios e helenistas em geral. Isto daria fundamento ao sentido de
Após a legalização do culto e a oficialização da religião, sem dúvida, a grande
Jesus como salvador e Deus mesmo.
maioria dos cristãos continuou firme em sua fidelidade a Jesus. E a ele tributavam
Esse história da origem da compreensão de Jesus como Deus desde os o sentido de suas ações, de suas vidas. Mas, o cristianismo, agora transformado
primeiros dias após sua morte ou a partir do período da dogmatização, é em boa em religião do império, deu as bases cristãs ao Estado, que progressivamente
parte é desconhecida da maioria dos cristãos hodiernos que o professam, em geral, transformou-se no “Imperium Christianorum”, primeiro como Império Bizantino,
como Deus desde a anunciação (Maria sabia que seu filho era Deus) sobretudo na depois Carolíngio e, por fim, Sacro Império Romano. Neste processo, muitos
celebração do natal: nasceu o menino-Deus... cristãos, “sepultados na vida como velhos homens, e renascidos como homens
novos pelo batismo” (cf. Rom, 64) se afastavam dos hábitos e estruturas do “velho” medos dos feudais eram acrescentados – desde os tempos fortes dos monges de
mundo, deixando comércio, açougues, teatros, arte e literatura pagãs, serviço Cluny, motivadores das confissões auriculares - os medos do pecado, por causa
militar, certos esportes, cultos e banhos públicos. À medida que aumentava a do inferno. Daí em diante, passou-se a desenvolver uma cultura cristã em torno
estabilidade cristã do império, a progressiva conversão dos povos românicos, do Crucificado e de um dolorismo cheio de Vias Sacras, Mater Dolorosa, almas do
celtas, germânicos e eslavos, passaram a surgir mosteiros que iriam orientá-los, purgatório, autos da paixão, culpabilizações da morte do Senhor pelos pecados
dando-lhes conhecimentos e indicações da prática cristã. da humanidade, de jejum, penitência, auto-flagelação etc., ao lado das situações,
cheias de ternura, do Menino Jesus do presépio.
É de se supor que se a religião do rei, do príncipe, era a religião do povo, então
à medida que os governantes adotavam o cristianismo iam se entremisturando Para “fugir do mundo”, muitos homens se recolheram aos mosteiros, como
também a fé culta e pura com as superstições pagãs, gerando sincretismo cristão o de S. Bento de Núrsia (480-547) – recriando os antigos monaquismos do romano
entre todos os povos. Por outro lado, a escassez de missionários e de mosteiros, Pacômio (292-346) na oriental Tebas (Egito), de Atanásio no ocidente (durante
não apenas deixava o povo abandonado, mas também pouco instruído. A Igreja, já seu exílio em Tréveris (340-346), de Basílio Magno (330- 379) na Igreja Bizantina.
antes do início do segundo milênio, tinha se tornado uma força político-religiosa Ao redor destes mosteiros europeus desenvolveu-se uma vida de penitência
estendida por todo o ocidente. Assumiu e transformou circunstancias histórico- e sacrifico em meio à doenças e pestes, fomes e vida pesada. Ganhava espaço
sociais e religiosas das culturas, sobretudo, romana e anglo-germânica, para criar uma piedade centrada na paixão e morte do Senhor: algo para ser contemplado,
uma cultura de cristandade. amado e chorado. A devoção a tudo que girava em torno da cruz de Jesus e de
suas dores se complementava com a vida crucificado dos povos e pessoas que se
Como se compreendia, então, quem era Jesus Cristo, em tempos que eram
110 111
identificavam com Ele.
raríssimos os letrados e um grande número de monges e padres era composto
de analfabeto, inclusive muitos mal sabendo latim – consequentemente quem Multiplicadas as “devoções doloristas” centradas na paixão e morte do
conheceria a Bíblia? Tudo era ou por ouvir dizer ou pela visualização nas “chamadas Senhor, tornava-se fácil o surgimento de penitentes tanto individuais quanto
bíblias dos pobres” (os vitrais das igrejas). em grupos, tendo à frente, místicos e santos (de profunda espiritualidade), que
geravam seguidores nos mais diversos graus de “santidade e loucura”. Esses
Pode-se dizer que no segundo milênio, especialmente no medievo, se penitentes se prolongam ainda hoje naqueles que se auto-flagelam nas sextas-
encontrariam, facilmente, quatro grandes grupos de cristãos que se tornaram feiras santas, com em Manila, na Espanha e América espanhola, além de outros
significativos para a compreensão de Jesus neste período: os místicos, os lugares.
adoradores, os penitentes e os artistas, entre esses os poetas e dramaturgos
também. O segundo milênio construiu-se entre a cruz e o desprendimento, entre
a autoflagelação e os misticismos, entre o desprezo ao mundo e a santidade
Como acreditar que a grande conquista intelectual dos séculos de ouro interior, ora num processo devocional intenso ora na contemplação em meio à
da cristologia (a dogmática) pudesse fazer parte da compreensão e vivencia “noite escura”.
dos subordinados aos senhores feudais, dos camponeses e das mulheres (mães,
principalmente), se até mesmo nos mosteiros e conventos havia tanta ignorância? Mas, nem tudo esteve ligado apenas ao Cristo sofredor. Neste tempo,
Que cristologia haveria de passar por estes tempos? – Como estas perguntas não foram desenvolvidas muitas devoções centradas em outras dimensões de Jesus.
podem ser diferentes para outros tempos, anteriores e posteriores, convém situar Adoradores e adoradoras do Santíssimo Sacramento apareceram por toda
a vida cristã na história, outra vez. a Europa. Místicos e beatos, com suas visões, criavam o gosto pela adoração e
devoção à Sagrada Eucaristia (Como não lembrar a festa do Corpus Chisti?). Na
Enquanto a herança e o desenvolvimento das culturas predominantes, França, Alemanha, Espanha, Países Baixos, Itália etc., foram fundadas centenas de
greco-romana e anglossaxônica, ocorriam nos grandes centros urbanos, e aí, nos ordens e congregações – masculinas e femininas - dedicadas ao Sagrado Coração
círculos dos nobres, intelectuais e ricos; sobravam as “migalhas” do cristianismo de Jesus. Apareceram inúmeros livros de piedade que incentivam uma comunhão
para o povo (a plebe). E quem era Jesus para eles? Lembremos: por causas dos mística com o Senhor, dos quais o mais famoso é a “Imitação de Cristo”.15
medos dos inimigos, dos invasores, dos animais ferozes, das doenças e pestes,
no tempo do feudalismo se vivia apinhado nos morros ao redor dos castelos, 15 Atribui-se a Thomas de Kempis a autoria de “Imitação de Cristo, que em português é feita nova
edição todos os anos pela Vozes, de Petrópolis. Sabe-se que este livrinho estava na cabeceira
subservindo ao monarca – que era o patrocinador, inclusive da religião. Aos do papa João João Paulo I, por ocasião de sua morte, em 1978
Artistas plásticos produziram expressivas imagens para sustentar esta elemento cultural que fomenta religiosidades descomprometidas com a verdade
piedade, incluindo uma expressividade tal que raiava a uma projeção de imagens de Jesus e o anúncio de seu Reino.
que pareciam falar, gemer e chorar. Algumas pinturas do rosto de Jesus se
tornaram célebres; mas, não se pode esquecer a face dele nos populares “santos Alguém já chamou a atenção que no Brasil, popularmente, chegou-se
sudários”, dos quais o mais famoso é o de Turin, e o do Véu de Verônica. A eles a algumas posturas que podem assim ser sintetizadas: o Cristo morto, o Cristo
devem ser somados os poetas e dramaturgos, com seus autos, que expressam em distante, o sem poder, o que não inspira respeito e/ou o desencarnado.17 A esta
seus textos esta mesma espiritualidade dolorista e/ou de uma mística tão elevada lista, pode-se falar do Cristo milagroso, de Jesus santo entre outros santos, do
a ponto de quase materializar o mistério. Jesus sofredor ou da Paixão. Imagens do “doce e amado” Jesus, “meigo redentor”,
“grande amado”, “bom amigo” indicam dimensões muito subjetivas, que tendem
Quem foi então Jesus no segundo milênio senão aquele que devia ser ao individualismo (católico e protestante), capazes de construir um Jesus intimista,
adorado, amado, chorado e imitado? Quem foi Jesus no segundo milênio senão “meu salvador e redentor”, num clima de familismo.
que aquele que era conhecido e “divulgado” pelo clero e autoridades eclesiásticas
– os únicos que tinham acesso ao Evangelho, mas eram extremamente versados No entanto, convém chamar a atenção que na história da história de Jesus
na dogmática – e, sobretudo, pelos pais/mães e pregadores ambulantes? entre nós, no Brasil e na América Latina, nas últimas cinco décadas tem houve
um grande incremento na práxis e na teorização sobre Jesus libertador. Milhares
O Brasil e a América Latina,durante cinco séculos, foram evangelizados à de comunidades e grupos, com centenas de assessores, discutiram e rezaram,
sombra do Crucificado (veja-se o valor da Sexta-feira Santa, dos crucifixos, das aprofundaram a vivência espiritual e encaminharam seus projetos e trabalhos
116 excluído redimensionar a própria existência e sentir-se impelido a ver também o outro. A
experiência que tranforma religião em ética. Para tanto, são apresentados alguns exemplos
no AT mostrando que o ver de Deus, antes de ser uma expressão de controle moralizante e
117
punitivo, exprime sua providência que abre sempre uma nova possibilidade ao ser humano
na sua miséria. Enquanto espera-se que o que é visto, também veja. Este duplo ver (divino
e humano) no AT juntamente com uma breve contextualização literário-teológica do
próprio Evangelho servem de base para a abordagem do texto lucano. Ao mesmo tempo o
episódio de Zaqueu deixa transparecer claramente a crítica de Jesus contra uma ideologia
de exclusão disfarçada em nome da fé.
ABSTRACT: The article is an approach of the Zacchaeus episode from the perspective of
the respective reciprocity of the gaze and its implications. Wanting to see Jesus, Zacchaeus
is seen by him. The act of seeing, as experience of an encounter with Jesus that that
changes lives, allows for someone excluded from, that he resize the own existence and feel
compelled to also see the other. The experience what transforms religion into ethics. For this,
we present some examples in the Old Testament showing that the act of seeing God, before
there was such an expression of control moralizing and punitive, expresses his providence
which always opens a new possibility to the human being in his misery.While it is expected
that which is seen also see. This dual view (divine and human) in the Old Testament with
a brief literary-theological contextualization of the proper Gospel, serves of basis for the
approach of Lucan text. At the same time the episode of Zacchaeus reveals clearly critical of
Jesus against an ideology of exclusion disguised in the name of the faith.
KEY WORDS: Zacchaeus; The seeing God; Human response to the gaze of God; Gospel of
Luke.
* Mestre em Ciênciass Bíblicas, pelo Pontifício Instituto Bíblico de Roma e doutor em Sagrada Escritura pela
Westfälische Wilhelms-Universität de Münster – Alemanha (WWU), professor do Studium Theologicum de
Curitiba.
1 – Introdução Ambos se vêem. Deus recebe o título de “aquele que vê” porque ouviu a aflição de
uma maltratada e errante pelo deserto e a assiste (vv. 6b-12).
“Foi preciso, contudo, ele morrer: via com olhos que tudo viam; via as
profundidades e os abismos do homem, toda sua oculta ignomínia e fealdade. [...] Levando o filho, sua única esperança, para sacrificá-lo (Gn 22), Abraão ouve
Foi mister morrer o mais curioso, o mais importuno, o mais compassivo. Sempre a cruel pergunta de Isaac: “Meu pai ... eis o fogo e a lenha, mas onde está o cordeiro
me via; quis vingar-me de tal testemunha ou deixar de viver. O Deus que via para o holocausto?” (v. 7). Abraão responde: “É Deus quem verá (/LAha,rÒyI / o;yetai
tudo, até o homem: esse Deus devia morrer! O homem não suporta a vida de e`autw/|) o cordeiro para o holocausto, meu filho” (v. 8). E ambos caminham juntos
semelhante testemunha” (Zaratustra IV: O Homem mais feio).1 para um beco aparentemente sem saída. No momento de sacrificar a esperança,
o anjo do Senhor aparece (vv. 11-12) e Abraão levanta os olhos (avnable,yaj ... toi/j
Neste texto, o filósofo fala do Deus “espião” cujo olhar penetrante tudo ovfqalmoi/j) e viu (arÒY®w® / ei=den) um cordeiro (v. 13). Abraão dá o nome do monte de:
controla e não deixa escapar nada que fira os parâmetros da moral, deixando o “o Senhor verá/viu (ha,rÒyI / ei=den)” (v. 14a). A experiência de Abraão torna-se uma
homem sem a menor chance de resistir. Esta visão corresponde à mentalidade de confissão de fé: “Daí se diz até o dia de hoje: no monte do Senhor se verá (ha,r:yE /
muita gente. Não são poucos os que concebem Deus como aquele que tem nas w;fqh)” (v. 14b). O ver de Deus é uma expressão da providência que não elimina,
mãos uma caderneta e anda por aí tomando nota de tudo o que o ser humano mas assegura a esperança. Enquanto o ver do homem exprime a experiência da
faz de errado para depois puni-lo devidamente. Ele, com seu olhar onipotente e providência divina que abre saída no beco.
onipresente, tem sob controle todos os movimentos e pensamentos do indivíduo.
O ver de Deus é moralizante, aguça o escrúpulo e o pavor. Que superego! Mas o ver Jacó tinha duas mulheres, Lia e Raquel (Gn 29). O “Senhor viu (arÒY®w® / ivdw.n)
118 de Deus é isto? Vamos ao texto bíblico, talvez haja outra perspectiva. Apresentar-
se-á alguns casos no Primeiro Testamento onde aparece o ver divino e humano.
que Lia era odiada (ha;Wnc]) e abriu-lhe o ventre...” (v. 31), isto é, tornou-a fecunda. Lia
concebeu e deu à luz a um filho, que chamou Rúben (v. 32a) e justifica: “porque 119
Formar-se-á assim um pano de fundo que poderá ajudar a entender, no Segundo (yKi) o Senhor viu (ha;r: / ei=de,n) a minha aflição. Agora meu marido me amará” (v.
Testamento, o caso específico de Zaqueu. 32b).3 Outra vez o ver de Deus vai ao encontro da miséria de Lia, abre-lhe uma
oportunidade nova com a perspectiva de que o ódio seja revertido em amor.
“Quando Jesus chegou ao lugar, levantou os olhos e disse-lhe: “Ele desceu imediatamente e recebeu-o com alegria.
‘Zaqueu, desce depressa, pois hoje devo ficar em tua casa’” (v. 5). À vista do acontecido, todos murmuravam, dizendo:
126 é típica daqueles que procuram domesticar a Boa-Nova de Jesus segundo sua
ideologia cega. Neste nível cabe uma dupla pergunta: a mensagem da salvação
opção clara pela fraternidade a partir dos proscritos – como transbordamento do
encontro-convívio com Jesus. A reciprocidade do olhar corrige a miopia e permite 127
pode quebrar esta dupla muralha hoje na pessoa de fé? Como? O conjunto ao visto ver. A visível adequação nova na relação com os bens e com a justiça é
desta perícope é certamente uma luz. sinal da salvação aceitada. Este claro intuito de mudança de vida leva Jesus ao
anúncio da salvação (v. 9).
128 129
portas de Jerusalém. É preciso tornar tudo mais claro a cada passo. Ecoando Js 2
e 6, o evangelista mostra em que consiste o projeto novo de Jesus. Nesta síntese
Síntese da missão salvífica de Jesus (v. 10). Jesus oferece agora a
32 paradigmática (19,1-10) ele sugere aos “bons” ou “sãos” (v. 7) que a “justiça” deles
segunda razão que justifica sua entrada na casa do banido: buscar (zhth/sai) salvar não os impeça de reconhecer a eficácia da graça, o alcance da misericórdia que
o que estava perdido (to. avpolwlo,j). A salvação é obra de Jesus que convida as abraça e regenera os quebrados da vida que se abrem ao recomeço.
pessoas à conversão. Nele realiza-se a palavra de Deus a Ezequiel: “A [ovelha]33
perdida buscarei (to. avpolwlo.j zhth,sw), reconduzirei a que estiver desgarrada...”
(Ez 34,16; cf. 34,4.12). Se no v. 7 culminava uma escalação gradativa da crítica 4 - O paralelo lucano: 18,35-43 // 19,1-10
dos escribas e fariseus a Jesus que se relaciona com publicanos e pecadores,
neste verso (v. 10) culmina também a reação de Jesus. Em 5,31-32 Jesus afirma O evangelista Lucas não esconde sua predileção por narrativas pares.34 Isto
que os sãos não necessitam de médico e ele veio chamar os pecadores ao sugere ver nas duas histórias de Jericó (18,35-43; 19,1-10) um paralelo de “curas”
arrependimento. Nas parábolas do cap. 15 ensina a buscar o que está perdido (vv. com função resumitiva neste grande relato de viagem. O Jesus, Senhor e filho
4.8.24.32) e fala da alegria do encontro (vv. 5-7.9-10.20-24). Este foi o programa (cf. de Davi (18,35-43) é aquele que veio salvar o estava perdido (19,1-10). Enquanto
4,18) que ele realizou e com o qual se identifica (7,22) e proclama feliz quem não falam da salvação (18,42b; 19,9-10) oferecida a proscritos, estes relatos preparam
a eminente entrada de Jesus em Jerusalém como salvador (23,35-39; cf. 2,11).
30 O termo casa significa também família (cf. At 10,2; 11,14; 16,15.31; 18,8 e o episódio de Ló em
Gn 19). Uma série de elementos comuns confirmam o paralelo.35 O desejo do cego que
31 Trata-se das 4 ocorrências do termo swthri,a neste Evangelho. leva-o a implorar ao Filho de Davi que tenha compaixão dele para voltar a ver
32 O v. 10 está vinculado ao que precede pelo termo salvar (v. 9) e buscar (v. 3). Isto é, (18,41) é continuado em Zaqueu que tudo faz para ver (19,3-4). Os relatos partem
Jesus parte deste episódio concreto para fazer uma afirmação genérica sobre sua da cegueira física para chegar naquela mais séria e profunda, a cegueira espiritual,
tarefa como um todo.
33 Do contexto do capítulo 34, a palavra óbvia aqui é ovelha como aparece em algumas traduções 34 Cf. duplo anúncio de nascimento (1,5-25.26-38); duplo nascimento (1,57-66; 2,1-7); dupla
como é o caso da Bíblia Ave Maria e da Bíblia da CNBB que visam certamente ajudar o leitor. manifestação do menino-Jesus (2,28-32.34-40); duplo canto (1,46-55.67-79); dupla cura (4,31-
Todavia, é um fato que o termo ovelha não aparece no texto hebraico (TM) nem na versão grega 37.38-39).
(LXX). É uma elipse. Isto o aproxima ainda mais do texto de Lc usando a mesma formulação: to. 35 Por exemplo: a) eles procuram chamar a atenção para serem vistos (18,38.39b; 19,4); b) ambos
avpolwlo.j (isto é, artigo neutro singular to. + perfeito particípio ativo, acusativo, neutro singular) têm o mesmo desejo: querem ver (18,41; 19,3.4); c) ambos os eventos encontram censura do
+ verbo zhte,w. Esta relação Ezequiel-Lucas é corroborada pelo fato que o termo “perdido” público (18,39; 19,7); d) Jesus chama a ambos (18,40; 19,5); e) eles reagem com alegria (18,43a;
(avpolwlo.j) é o mesmo usado por Lucas – entre outros – na parábola da ovelha perdida (15,4.4.6) 19,6); f ) os dois relatos culminam no anúncio da salvação por Jesus (18,42; 19,9a); g) ambos
e do pai misericordioso (15,24.32). confessam Jesus como Senhor (18,41b; 19,8) e dão passos de um discípulo (18,43; 19,8).
Artigos
isto é, aquela que distancia o homem de Deus e do outro defraudado, do caminho
de salvação. Em ambos ocorre uma mudança de mentalidade que resulta numa
reorientação da vida a partir da experiência feita (ver) no encontro com o Senhor.
Libertam-se daquilo que escravizava. O cego de Jericó (18,35) é, na verdade, uma
figura dos discípulos cegos. Eles estão no caminho rumo a Jerusalém com Jesus,
todavia, ainda não o entendem nem conseguiram fazer a mesma opção e por isso
se escandalizam com as atitudes de Jesus (19,7; cf. 7,23). Zaqueu é o paradigma O Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de
daquele que dá um passo e tem sua “cegueira” curada e agora pode ver o outro e o
outro proscrito (cf. 19,8) que antes era incapaz de ver. Querendo ver Jesus, abre-se Bento XIII - que concedia ao Vigário
para ele uma possibilidade nova, que por sua vez, gera possibilidades novas aos
demais (v. 8). Este é o ver que reorienta a vida. Provincial Carmelita do Maranhão a
faculdade de dar o título de doutor
5 – Conclusão
aos frades de sua Ordem
Finalizando cabe perguntar: o que nos impede de vê-lo hoje? É possível
130 131
que esta cegueira se dê conosco que caminhamos com ele sem, todavia, ter a
mesma opção? Quer-se ter visões e ser visto, mas não se quer ver o semelhante
na sua miséria. É sugestiva a atitude de súplica do cego do caminho de Jericó:
“que eu possa ver novamente” (18,41). É sugestiva a coragem de Zaqueu que tudo Frei Wilmar Santin, O.Carm *
faz para vê-lo (vv. 3-4). É motivador aceitar o (auto-)convite de Jesus de ir à nossa
casa para o encontro pessoal e sincero com ele (v. 5) com semelhante alegria (v.
6) e tomar decisões claras que se revertam em sinais visíveis da conversão e da
salvação aceita (v. 8). Qual não será a surpresa, experienciar no coração a mesma
frase de Jesus: “hoje a salvação entrou em tua casa” (v. 9).
Introdução e contextualização
6 - Bibliografia
Os carmelitas surgiram no Monte Carmelo no final do século XII, após
a III Cruzada. A sua Regra foi escrita por Santo Alberto Avogrado, Patriarca de
BUSSE, U. et al. Jesus zwischen arm und reich. Lukas-Evangelium (BP 18). KBW,
Jerusalém, entre 1206 e 1214. Foi aprovada inicialmente pelo Papa Honório IV em
Stuttgart, 1980, pp. 133-134.
1226, mas sua aprovação definitiva, como Regra, foi dada pelo Papa Inocêncio IV
DILLMANN, R. – MORA PAZ, C. Das Lukas-Evangelium. Ein Kommentar für die em 1247.
Praxis. KBW, Stuttgart, 2000, pp. 324-327.
FITZMYER, J. A. El Evangelio según Lucas IV. Cristiandad, Madrid, 2006, pp. 53-67. Alguns autores, no passado, afirmavam que o ingresso dos carmelitas
nas Universidades aconteceu no final do século XIII. Porém, a bula Devotionis
KREMER, J. Lukasevangelium (NEB 3). Echter, Würzburg, 1988, pp. 182-183.
augmentum de Inocêncio IV demonstra claramente que frades da Ordem do
LOHSE, E. L’ambiente del Nuovo Testamento (NTS 1). Paideia, Brescia, 21993, pp. 27-28. Carmo já estavam presentes nas Universidades antes de 26 de agosto de1253,
MÜLLER, P.-G. Lukas-Evangelium (SKK NT 3). KBW, Stuttgart, 41990, p. 147.
OLMOS, C. L. Zaqueo: La curiosidad de un cobrador de impuestos. Lc 19,1-10 * Mestre e doutor em História da Igreja, pela Pontifícia Universidade Gregoriana, de Roma, e Professor no
(Cuadernos 2). Instituto de Teología para Laicos, Colima, México, 1999. Instituto Pastoral e Ensino Superior da Amazônia, em Manaus.
data da bula1. A bula indica também que o motivo dos estudos universitários era Nel corso dei secoli XVIII e XIX l’avversione alla scolastica si ripercosse
senza dubbio anche nell’Ordine. In questo contesto emerge la proposta
capacitar os frades para o púlpito e o confessionário. No entanto, foi só a partir per un nuovo metodo teologico fatta dal carmelitano Agostino Molin
de 1270 que os carmelitas entraram de forma ampla e sistemática no mundo (+ 1840). Egli raccomandava un positivo avvicinamento della Sacra
universitário. Em geral se dedicaram mais ao estudo da Bíblia do que da Filosofia. Scrittura e della Tradizione con utilizzo dei metodi delle scienze
profane quali la storia, le lingue, la letteratura. La metafisica doveva
O primeiro carmelita a doutorar-se em Paris foi Gerardo de Bologna em 1295. essere usata il meno possibile nella spiegazione delle verità della fede.
Depois surgiram vários doutores e mestres, como John Baconthorp – comentador Questa teoria, espressa in forma di dialogo, fu attribuita ad un altro
carmelitano: Filiberto Perricone (+ 1797), per molti anni professore
de Averróis, Guido Terrena – o primeiro a falar sobre a infabilidade do Papa, Siberto di teologia a Padova. Sembra anche che questi abbia introdotto la
de Beka – grande liturgista, Miguel Aiguani ... Apesar de estarem presentes nas filosofia di Cartesio negli studia di Sicilia e di Roma4.
grandes Universidades, como Paris, Oxford, Bolonha, Salamanca, Pádua, não
chegaram a formar uma própria escola filosófica-teológica, como os franciscanos
e dominicanos. Porém, no século XV iniciou-se na Ordem o movimento de considerar O caminho acadêmico passava pelas fases de cursor, leitor (lectoratus),
como melhor a obra doutrinal desenvolvida por alguns dos autores da mesma bacharelado (baccalaureatum), presentado (præsentatus) e mestre (magister).
Ordem. Com isto pretendia-se sustentar uma linha doutrinal carmelitana. Foram
No início o estudante, destinado ao ensino, era chamado de cursor, porque
contempladas no século XVI, de forma oficial, as obras dos dois autores Carmelitas
devia estudar e ler a “cursoria” das Sentenças de Pedro Lombardo. O cursorado
Miguel Aiguani e João Baconthorp2. Por isso no “Studium Generale” da Traspontina
ainda não é um grau acadêmico.
em Roma os estudantes carmelitas se proclamavam da Escola de Baconthorp. Em
geral seguiram o aristotelismo e depois o tomismo. Quando o estudante era promovido a ensinar as Sentenças, passa a ser
132 Os decretos do Concílio de Trento provocaram uma reorganização dos
chamado Leitor (lector), que ao longo dos séculos XVII-XVIII era considerado 133
um grau acadêmico. Tornava-se bacharel quem era promovido após ter feito 3
estudos de preparação ao sacerdócio. A Ordem do Carmo teve também que se
anos de leitorado ou ensino. Fazia-se a diferença entre: bacharel “biblicus” (que
adaptar às decisões tridentinas. Apesar das Constituições estabelecerem normas,
ensinava Bíblia), “sententiarius” (que ensinava as Sentenças) e “formatus” (que
não aconteceu uma uniformidade dentro da Ordem. Em 1692 o Prior Geral João
Feyxoo de Villalobos tentou impor o sistema espanhol, mas causou uma grande participava ativamente nas disputas).
confusão, principalmente na Itália. O Capítulo Geral de 1704 tratou o assunto dos Presentado era o bacharel candidato ao magistério, mas que tinha já
estudos e determinou medidas precisas. Estas decisões capitulares, confirmadas 4 anos de ensinamento, empenho nas disputas e ter pregado pelo menos um
pelo Papa Clemente XI em 10 de novembro de 17113, permaneceram válidas até sermão da Quaresma ou pregado na presença dos nobres5. Devia ter pelo menos
a metade do século XIX. 32 anos de idade.
Os estudantes carmelitas deviam estudar 3 anos Filosofia e 4 de Teologia. 4 Os leitores deviam empenhar-se no ensino e nas disputas com seriedade e sobretudo com clareza, e
Para os graus acadêmicos de bacharelado e magistério seguia-se o que era deviam se basear mais sobre reflexões sólidas que sobre o argumento de autoridade. Em particular
na Teologia se sugeria seguir Santo Tomás de Aquino, interpretado por autores carmelitas. Na
previsto nas faculdades de Teologia onde se estudava, mas com complementação Filosofia se devia seguir Aristóteles em tudo aquilo que era compatível com o cristianismo.
em casa. Os leitores deviam prestar conta diariamente sobre os estudos e uma No curso dos séculos XVIII e XIX a aversão à escolástica percorreu sem dúvidas também a Ordem
vez por mês se fazia uma disputa entre eles. De acordo com os resultados obtidos do Carmo. Neste contexto apareceu a proposta feita pelo carmelita Agostinho Molin (+1840). Ele
recomendava uma positiva aproximação à Sagrada Escritura e à Tradição utilizando os métodos
nas disputas, o capítulo provincial podia aprovar um pedido a ser apresentado ao das ciências profanas, como a História, línguas e a literatura. A Metafísica devia ser usada o menos
Prior Geral para uma promoção. possível na explicação das verdades da fé. Esta teoria expressa em forma de diálogo foi atribuída a
um outro carmelita: Filiberto Perricone (+ 1797), que por muitos anos foi professor de Teologia em
I lettori dovevano impegnarsi nell’insegnamento e nelle dispute
con serietà e sopratutto con chiarezza, e si dovevano basare su Pádua. Parece também que ele introduziu a Filosofia de Descartes nos “studia” carmelitas da Sicília
riflessioni solide, più che sull’argomento di autorità. In particolare in e de Roma (BOAGA, Emanuele e ALBAN, Kevin. Studio e Studia nell’Ordine dei Carmelitani, em
teologia si suggeriva di seguire S. Tommaso, interpretato dagli autori Dizionario Carmelitano, Città Nuova, Roma 2008, 877.)
carmelitani. In filosofia si doveva seguire Aristotele in tutto ciò che 5 Mas houve tempo em que a exigência era de 7 anos. O capítulo provincial de Portugal, celebrado
era compatibile col cristianesimo. em 30 de abril de 1651, determinava que se naõ postulem ao Padre Reverendissimo para o gráo
de Presentado, senaõ os Religiosos, q tiverem sete annos de leytura de Artes, ou Theologia (SÁ, Fr.
1 Bullarium Carmelitanum, I, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1715, 13. Manoel de. Memorias Historicas dos Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portuguezes
2 BOAGA Emanuele. Como pedras vivas, Roma 1989, 47. da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, reduzidas a Catalogo Alfabetico, Lisboa Occidental: Off.
3 Bullarium Carmelitanum, II, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1727, 650-653. Ferreyriana, Lisboa 1724, p. 462).
Por fim chegava-se a ser mestre (magister), ou seja, devia sustentar uma de Coimbra a conceder o título de doutor9. Ali foi formada a maioria dos intelectuais
disputa final diante do colégio de docentes, após concluir todas as etapas e carmelitas portugueses e brasileiros nos séculos XVI-XVIII.
exigências6. Mas devia também ser nomeado pelo Prior Geral. Por longo tempo
Os carmelitas chegaram no Brasil em 1580 e se instalaram em Olinda.
havia um numero limitado por província ou país. Havia também diferenças entre
Em 1586 fizeram uma nova fundação em Salvador. Seguiram-se as fundações de
os “magistri”: “regens” (que desenvolvia atividade acadêmica), “vacans” (que não
Santos (1589), Rio de Janeiro (1590), Angra dos Reis (1593), São Paulo (1594), São
desempenhava atividade acadêmica), “regens studii” (que além da atividade
Cristóvão (1600), Paraíba (1608), São Luís (1616), Belém (1626) e Mogi das Cruzes
acadêmica dirigia o estudo local ou geral), “bullatus” (que obteve o grau de
(1629). Em 1595 o Carmelo Brasileiro foi elevado à condição de vigararia. Em 1640
mestre com dispensa, privilégios ou com cursos apressados) e “de gratia” (que
foram criadas duas vigararias: a do Estado do Maranhão e a do Estado do Brasil. Da
obtinha o título sem concluir o currículo dos estudos). Além destes aparece
vigararia do Estado do Brasil surgiram as Províncias do Rio de Janeiro, da Bahia e
nos documentos: “magistri de justitia”, “magistri de pulpito”7 (de retórica) e
de Pernambuco. No entanto, a Vigararia do Maranhão nunca se tornou província
“magistri de cursu”. independente de Portugal. Terminou com a morte do último carmelita Frei Caetano
O convento carmelita Santo André de Salamanca foi fundado em de Santa Rita Serejo em 8 de maio de 1891.
1480, mas antes alguns carmelitas haviam estudado na famosa universidade Os carmelitas nunca foram numerosos no Maranhão e Grão-Pará.
salmanticense. A fundação deste convento tinha o escopo de ser também uma Concentraram suas atividades sobretudo nas cidades onde tinham conventos
casa de estudos. No início do século XVI era um colégio interprovincial para os (São Luís, Belém, Alcântara) ou hospícios (Vigia, Bonfim, Bom Jardim). O trabalho
estudantes das províncias espanholas. Em 1548 o convento foi declarado como missionário com os índios só começou em 1695. Missionaram principalmente nos
134 colégio de todas as Províncias Carmelitas da Espanha. Ali morou e estudou o
grande místico carmelita São João da Cruz, entre 1564 e 1568. O Capítulo Geral
rios Negro e Solimões. Muitas aldeias das missões carmelitas tornaram-se cidades.
As maiores marcas da presença carmelitana na Amazônia são as devoções a Nossa
135
de 1564 determinou que o colégio se abrisse para outras províncias. Por isso Senhora do Carmo em Parintins, a Santo Alberto de Trapani em Carvoeiro (e rio
também alguns alunos carmelitas de Portugal foram para Salamanca. Portanto Negro) e a Santa Teresa de Ávila em Tefé.
este colégio também teve alguma influência no Carmelo brasileiro.
As principais casas de estudos dos carmelitas do Brasil colonial foram as da
Em 1537 o rei Dom João III transferiu a universidade de Lisboa para Coimbra. Bahia, Rio de Janeiro, São Luís, posteriormente transferida para Belém, e Recife. As
Logo em seguida o provincial carmelita Frei Baltasar Limpo fundou o Colégio do Províncias do Rio de Janeiro e da Bahia receberam do Papa Inocêncio XIII a faculdade
Carmo de Coimbra. A nova fundação deveria abrigar estudantes carmelitas que de concederem o título de doutor aos seus membros em 23 de dezembro de 172310.
iriam freqüentar a universidade. O próprio Baltasar Limpo, já na condição de bispo
do Porto, foi encarregado de redigir os primeiros estatutos do colégio. Terminados No Maranhão os carmelitas abriram, no pequeno convento [de São Luís],
em 18 de Setembro de 1555, os estatutos contêm, além de um preâmbulo, que expõe aulas de filosofia e teologia e solfa, além de ativo exercício em torno à moralização dos
em poucas palavras a origem da fundação e as condições que esta impõe, dezoito costumes dos colonos11. Para se verificar o nível dos estudos de Filosofia e Teologia
capítulos, regulando a vida comum do colégio, e uma observação final, incutindo a dos carmelitas na capital do Maranhão, basta ler as informações de Felipe Condurú
sua fiel observância8. Em 1723 o Papa Inocêncio XIII autorizou o Colégio Carmelita Pacheco a esse respeito: Os carmelitas, com seus estudos filosóficos e teológicos, em
que doutouravam, produziram alguns religiosos de valor intelectual e facultaram
6 O capítulo provincial de Portugal de 1651 estabeleceu que para serem postulados para o gráo
dependências do seu convento para ‘Biblioteca’, ‘Lyceo’ e ‘Escola Normal’ da Província12.
de Mestre, haõ de ter doze annos completos de leytura (SÁ, Fr. Manoel de. Memorias Historicas dos
Illustrissimos Arcebispos, Bispos, e Escritores Portuguezes da Ordem de Nossa Senhora do Carmo, Em 1698 foi transferido de São Luís para Belém o Colégio de Filosofia e Teologia. O
reduzidas a Catalogo Alfabetico, Lisboa Occidental: Off. Ferreyriana, Lisboa 1724, p. 462). Breve Exponi nobis nuper de Bento XIII será em função dos estudos realizados em
7 Die 29. [Februarius 1734] Institutus fuit Magister de Pulpito, et Justitia de numero cum voce, Belém.
et loco in capitulis Provincialibus R. P. Præsentatus Philippus de Mello Provinciæ Lusitaniæ in
loco vacuo, per mortem R. P. Magistri Joannis de Sousa (AGOC II C.O. 1 (54), p. 141) – No dia
29 de fevereiro de 1734 foi instituído Mestre de Púlpito e de Justiça de número com voz e lugar nos 9 Bullarium Carmelitanum, II, Ed. Eliseo Monsignani, Roma 1727, 551-552 e 591-592.
capítulos provinciais o Rev. Pe. Presentado Felipe de Melo da Província Lusitana no lugar vago por 10 Bullarium Carmelitanum, IV, Ed. Josepho Alberto Ximenez, Roma 1768, 83-85.
morte do Rev. Pe. Mestre João de Souza. 11 REIS Arthur Cézar Ferreira. A conquista espiritual da Amazônia, Governo do Estado do Amazonas
8 WERMERS Manuel Maria. Os Primeiros Estatutos do Colégio Universitário Carmelita de Coimbra, em e Universidade do Amazonas, 2ª edição revista, Manaus 1997, 26.
Carmelus, 9, Institutum Carmelitanum, Roma 1962, 96-159. On line: < http://br.geocities.com/ 12 PACHECO, Felipe Condurú. História Eclesiástica Do Maranhão, S.E.N.E.C., Departamento de
wilmarsantin/EstCoim.html > Cultura, Maranhão, 1969, 98.
Não encontramos uma lista dos que conseguiram o doutorado na Vigararia O texto do Breve “EXPONI NOBIS NUPER” de Bento XIII
Carmelita do Maranhão, mas sim os nomes dos que foram instituídos magister,
que supunha o doutorado13. Os registros da Ordem do Carmo, conservados
no Arquivo Geral da Ordem do Carmo (AGOC), atestam que, da Vigararia do
Maranhão, conseguiram o título de Magister in Sacra Theologia: Frei Ângelo do
Monte Carmelo (24 de janeiro de 1739), Frei Pedro de Santo Eliseu (28 de julho XXIX.
de 1748), Frei Antonio de Faria (12 de julho de 1751), Frei João da Silveira (27 de
Exscripta a Bull. Rom. Tom. XII.
setembro de 1752), Frei Francisco Xavier da Silva (13 de julho de 1755)14 e Frei
Francisco José dos Reis (10 de junho de 1758)15. pag. 232.
136 Bibliografia
137
BENEDICTUS PAPA XIII.
SMET Joachim. The Carmelites, 5 vol., Carmelite Spiritual Center, Darien 1985-88.
WERMERS Manuel Maria. Os Primeiros Estatutos do Colégio Universitário Carmelita 1. Exponi Nobis nuper fecerunt dilecti filii Vicarius Provincialis, aliique
de Coimbra, em Carmelus n. 9, Institutum Carmelitanum, Roma 1962, pp. 96-159. Fratres Vicariæ Maranionis in Brasilia Ordinis B. M. de Monte Carmelo, quod alias
postquam fel. rec. Urbanus PP. VIII. prædecessor noster per quasdam suas in simili
forma Brevis die 27. Augusti 1624. expeditas literas concesserat quondam Theodoro
Statio tunc tempore Priori Generali, ac professoribus Provinciarum Hispaniæ, &
Lusitaniæ ejusdem Ordinis, ut ii, qui absolutis lecturis, & exercitationibus literariis
per regularia Ordinis hujusmodi Instituta requisitis, ac servatis alias servandis
per eumdem Priorem Generalem in Sacra Theologia Magistri juxta juxta ejus
facultates instituti, & creati fuissent Lauream Doctoratus in Collegio Sanctæ
Theresiæ Salmaticen. memorati Ordinis ad formam in præfatis literis præscriptam
13 Cum Expostulasione Provinciæ Lusitaniæ institutus fuit Magistros in Sacra Theologia de Justitia R. suscipere possent, nec pro ea suscipienda aliquam approbatam studii Generalis
P. Præsentatus Angelus a Monte Carmelo Vicariæ Maragnonensis Alumnus cum omnibus gratiis, Universitatem adire tenerentur: rec. mem. Innocentius Papa VIII. etiam prædecessor
privilegiis excepta voce in Capitolo Provinciali; et quod infra annum accipiat Lauream Doctoralem
(Regestum pro provinciis Lusitaniae et Brasiliae tempore generalium Ludovici Benzoni, Nicolai
noster indulsit, quod omnes, & singuli dictæ Provinciæ Lusitaniæ Professores, quos
Richiutti, Aloysii Laghi (et in supplemento) Antonii Feydeau, 1728-1755. - AGOC II C.O. 1 (54), 142). pro tempore existens Prior Generalis Ordinis hujusmodi in eadem Sacra Theologia
14 Cf Regestum pro provinciis Lusitaniae et Brasiliae tempore generalium Ludovici Benzoni, Nicolai Magistros instituisset, & creasset, præfatam Lauream Doctoratus, prævio rigoroso
Richiutti, Aloysii Laghi (et in supplemento) Antonii Feydeau, 1728-1755. - AGOC II C.O. 1 (54)
examine coram Priore Generali dictæ Provinciæ Lusitaniæ, & quatuor in ipsa Sacra
15 Regestum pro litteris ministerii magistri socii et secretarii generalis Lusitaniae, 1744. Regestum
magistri Joachim Pontalti generalis, 1756-1760 - AGOC II C.O. 1 (57). 16 Bullarium Carmelitanum – Pars IV. Ed. Josepho Alberto Ximenez, Roma 1768, 162-164.
Theologia Magistris, sive coram Rectore Collegii Colimbrien. Ordinis prædicti, ac quos spectat, & pro tempore spectabit, plenissime suffragari, & ab eis respective
illius Regentibus, & Magistris sumere valerent, ac subinde simile quoque Indultum inviolabiliter observari; sicque in præmissis per quoscumque Judices Ordinarios, &
Fratribus Provinciarum Bahien. & fluminis Januarii itidem in Brasilia dicti Ordinis Delegatos, etiam Causarum Palatii Apostolici Auditores judicari, & definiri debere:
concessit, & alias prout in binis ipsius Innocentii desuper in pari, etiam forma Brevis ac irritum, & inane, si secus super his a quoquam quavis auctoritate scienter, vel
editis, ac supradictis Urbani prædecessorum literis, quarum tenores præsentibus ignoranter contigerit attentari.
pro plene, & sufficienter expressis haberi volumus uberius continetur.
5. Non obstantibus Constitutionibus, & Ordinationibus Apostolicis, necnon
2. Cum autem sicut eadem expositio subjungebat, primum ex memoratis quatenus opus sit Vicariæ, & Ordinis præfatorum etiam juramento, confirmatione
Indultis favore Professorum Provinciæ Lusitaniæ emanaverit, eo, quod enarrata Apostolica, aut quavis firmitate alia roboratis statutis, & consuetudinibus, privilegiis
concessio a memorato Urbano VIII. prædecessore eis facta fuisset tempore, quo quoque, indultis, & literis Apostolicis in contrarium præmissorum quomodolibet
Rex Hispaniarum etiam Lusitaniam possidebat, sicque Religiosis tum Hispanis, concessis, confirmatis, & innovatis. Quibus omnibus, & singulis, illorum tenores
tum Lusitanis præfatum Collegium Salmaticen. pro assequenda Laurea Doctorali præsentibus pro plene, & sufficienter expressis, ac de verbo ad verbum insertis
præfata facile adire licebat. At separatis postmodum Dominiis, idem Indultum habentes, illis alias in suo robore permansuris, ad præmissorum effectum hac vice
sine ullo effectu, ac utilitate remanserat respectu Lusitanorum, quibus propter dumtaxat specialiter, & expresse derogamus, cæterisque contrariis quibuscumque.
immutatum rerum statum non amplius ad dictum Collegium libere accedere
permissum fuit: & alterum Indultum hujusmodi Professoribus prædictarum Datum Romæ apud S. Petrum sub Annulo Piscatoris die 25. Junii 1727.
Provinciarum Bahien., & Fluminis Januarii propter nimiam earum ab Europa Pontificatus Nostri Anno IV.
138 distantiam concessum fuerit; dicta vero Vicaria Maranionis, utpote in remotissima
parte vastæ Regionis ipsius Brasiliæ sita, longius, quam prædictæ Provinciæ
139
Bahien., & Fluminis Januarii ab eadem Europa distet, nec Regiæ Naves, quibus
ejusdem Vicariæ Religiosi in Lusitaniam transfretare valeat, eo unquam appellant:
Nobis propterea dicti Exponentes humiliter supplicari fecerunt, ut sibi in præmissis
opportune providere de benignitate Apostolica dignaremur.
Dado em Roma, junto à Basílica de São Pedro, sob o Anel do Pescador, no dia
25 de Junho de 1727. Ano IVº do Nosso Pontificado.