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Studium Theologicum de Curitiba

STUDIUM
REVISTA TEOLÓGICA
Studium: revista teológica/ Studium Theologicum de Curitiba - Ano 2
Vol. 2 - n. 3 (jan./jun.) e 4 (jul./dez.), 2008

Semestral

ISSN 1981-3155

1. Teologia – Periódicos. I. Studium Theologicum de Curitiba.


CDU: 2
STUDIUM
Revista Teológica

Ano 2 – 2008
Nº 3 e 4

Revista semestral de Teologia do Studium Theologicum de Curitiba


ISNN 1981-3155

Editor-Chefe
Hélcion Ribeiro – Studium Theologicum

Conselho Editorial
Jaime Sanches Bosch – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Marcio Luiz Fernandes – Studium Theologicum, Curitiba, Pr.
Tedoro Hanicz – Instituto S. Basílio Magno, Curitiba, Pr.
Valdinei de Jesus Ribeiro – StudiumTheologicum, Curitiba, Pr.
Vitor P. Calisto dos Santos – PUC, Campinas, SP

Conselho Consultivo
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Jose Carlos Fonsati – Cúria Geral dos Vicentinos - Paris, Fr.
Josu M. Auday – Claretianum, Roma
Sávio Scopinho – CEUCLAR, Batatais
Ricardo Hoepers - Studium Theologicum – Curitiba, Pr.

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Studium Revista Teológica


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Nota: os autores das contribuições desta publicação assumem a


responsabilidade das idéias e teses defendidas nos seus textos.
SUMÁRIO

Editorial................................................................................................................................ 5

Dimensão carismática da Igreja e identidade da vida religiosa .................... 9


Florêncio Garcia Castro

A vida consagrada hoje. Desafios e vitalidade diante da primeira década do


ano 2000. De onde viemos, onde estamos, para onde vamos? .......................... 23
José Rovira

Mistica e profecia. Um estilo de vida e “novos areópagos”.......................... 35


Ciro Garcia, ocd

O pai que nossa sociedade precisa. Uma leitura psico-sociológica da


figura paterna................................................................................................................. 57
.Josu M. Alday

Vozes proféticas de religiosos diante da escravidão negra no Brasil............ 67


Wilmar Santin

Desafios e perspectivas da ética numa sociedade em transformação ...... 81


Santiago Maria Gonzalez Silva

Coexistência e Confronto entre judeus e cristãos em Antioquia na


Antiguidade Tardia.........................................................................................................97
Rivaldave Paz Torquato

Recensão.........................................................................................................................117
Editorial
Ao pensar teologicamente a Vida Consagrada

A Vida Consagrada (VC) é um parâmetro significativo e


imprescindível para a vida da Igreja. Ao lado de cristãos leigos e cristãos
hierarcas, os consagrados, quanto em grupo como pessoalmente, buscam uma
santidade maior, ao mesmo tempo são testemunho vivo do seguimento de Jesus,
tanto pela mística quanto pela profecia. Na busca, a Igreja, pela força inefável do
Espírito, se enriquece e se santifica mais ainda.

Como os pensamentos de Deus não são iguais aos dos homens e mulheres,
a VC não pode ser medida primeiramente em números, obras e nem mesmo pelo
carisma/missão fundacional e/ou reformado. Deus, o que é Santo, santifica a
humanidade pelas suas obras e, especialmente por nos ter dado seu Filho Jesus,
5
afim de que crendo nele, todos possam ser salvos. Mas, o Deus que continua a
se manifestar entre nós, por meio da excelência de seu Filho, feito nosso irmão,
também continua servir-se de seus outros filhos e filhas como sinais visíveis do
amor divino por nós na história; Os consagrados, por toda parte e por princípio,
são especial manifestação visível deste amor santificante.

Na linguagem tradicional da Igreja pode-se dizer que há muitos santos


“oficiais”. Sem dúvida, há um número muitíssimo maior daqueles sobre os quais
a Igreja não se pronuncia – sobretudo quando se refere aos cristãos leigos.
Todavia, ocorrem beatificações e canonizações, sem conta no meio dos de
vida consagrada; pode-se até dizer: mais que entre os hierarcas, mesmo em se
pensando na proporcionalidade.

Tanto a santidade explícita quanto implícita é sempre um presente


de Deus à humanidade na força do Espírito, o Santificador. Os de VC têm a sua
disposição, certamente, mais recursos e oportunidades humanas como resposta
deste caminho de radical assemelhamento a Deus, em seu Cristo Jesus. Ela,
porém, precisa ser buscada por não ser um dado “ipso facto”.

A santidade da VC – querida e esperada por Deus – se torna, para a Igreja


e para o mundo, um sinal da presença divina de modo mais forte. Assim e além
da santidade, os consagrados são “instrumentos” divinos para a reconciliação da
humanidade, através de sua doação e de seus múltiplos carismas e missões.

Sem dúvida, a VC é, em primeiro lugar, um gesto amoroso do Pai. Por


outro lado, é busca da realização humana. Cada consagrado tem como meta a
plenificação humana. Esses homens e mulheres, que fazem de suas vidas uma
consagração original a Deus, na Igreja, são os humanos buscadores da mais
profunda e desejada realização. São mulheres e homens que decidiram, em sua
generosidade – apesar de suas limitações -, colocar suas vidas a serviço de Deus
e da humanidade. Constroem suas obras para servir, servem-se das coisas do
mundo para enriquecer os pobres, os doentes e os aflitos. Instrumentalizam seus
múltiplos carismas para dar sentido ao mundo e soerguer os caídos. Não sendo
anjos – pelo contrário, bem humanos – sofrem as vicissitudes humanas com o
coração, mesmo ferido e machucado; mas, sem desanimar buscam a plenitude
humana de forma mais radical.

Nos carismas e missões dos consagrados, a Igreja vê sua própria


instrumentalidade – a Igreja é sacramento do Reino e de Cristo – para colaborar
com Deus, na obra da evangelização e da dignificação humana. Em cada
religioso – sinal visível da Igreja – torna-se manifesta a vontade salvífica de Deus.
Os consagrados visibilizam, por meio de suas obras, a Igreja como “curadora/
sanadora”, como educadora, como companheira da humanidade e, sobretudo, a
que está atenta aos pobres. Como diz um de nossos autores: mística e profecia não
podem estar separadas na VC. Daí, a atenção samaritana particular dos religiosos
6 – para além de seu testemunho – no cuidado amoroso daqueles que a sociedade
alija de seus banquetes...

O Studium Theologicum de Curitiba, com seus quase 75 anos de serviço


claretiano à igreja local e regional, é uma escola de formação para tantos
consagrados.

Por isso, este fascículo especialmente dedicado à VC é também uma


forma de gratidão a Deus, à Igreja e aos próprios consagrados, pois eles fazem
parte da história real de nossa instituição claretiana, aberta a todas as ordens,
congregações religiosas e movimentos eclesiais que a procuram.

Esse fascículo de nossa Revista teológica, enfeixando os dois números


correspondente ao ano de 2008, é produzido pela reflexão de pessoas consagradas
escrevendo sobre sua própria realidade teológico-existencial. De modo particular,
esse volume conta com a especial colaboração de quatro claretianos, que têm
uma particular e histórica ligação como Studium Theologicum. A eles – e aos
demais autores - antecipadamente apresentamos nosso agradecimento pela
colaboração.

O claretiano José Rovira em A vida consagrada hoje. Desafios e


vitalidadea diante da primeira década do ano 2.000 traça um importante
quadro, chamando a atenção para o fato de que a VC não pode ser medida por
números nem mesmo quando ela está, como vulgarmente se afirma, em crise. É
verdade que há desafios e ambigüidades, mas a esperança e sua vitalidade não
morrem, pois dependem de Deus.

A história da Igreja, em geral, é feita ao redor da hierarquia e, quase à


margem, está a história da Vida Religiosa. Mas, para bem compreender a
Igreja impõe-se situar a eclesialidade da VC desde uma perspectiva histórica e,
sobretudo, teológica. Se a VC surge dos carismas, a sua identidade se encontra
na dimensão constitutiva e natural da Igreja. A doutrina conciliar e a reflexão
teológica posterior a apresentam como parte constitutiva da dimensão
carismática da Igreja: são carismas feitos vida na comunidade eclesial. É esta a
reflexão do claretiano Florêncio Garcia Castro, em Dimensão carismática da
Igreja e identidade da vida religiosa.

Ciro Garcia, ocd, se propõe, a partir de uma reflexão existencial, analisar


a Mística e Profecia, como duas vertentes da mesma e única fonte da VC. A
insistência de K, Rahner sobre a necessidade da mística no século 21, urge à
VC um comportamento novo, capaz de renová-la, para além dos percalços e
discussões. Unir o binômio mística e profecia leva à genuinidade desejada pelos
Pais Fundadores, apesar das aparências em contrário.

Josu M Alday, CMF, propõe uma reflexão - na verdade, uma parábola


- sobre O Pai que nossa sociedade precisa. Uma leitura psicossociológica
da figura paterna. Parte da psicologia e da sociologia do pai, evidenciando a
“diminuição” da figura paterna e de sua ausência/desaparecimento para mostrar
os prejuízos psicossociais contemporâneos daí decorrentes. Ao caracterizar os
“modelos” de pai, propõe a necessária e madura recuperação desta figura em 7
função do equilíbrio humano. A parábola aponta à realidade de que apenas
na concepção equilibrada do pai – especialmente do “pai nutritício” - é que os
consagrados se encontrarão com o Deus Pai/Mãe verdadeiro.

O carmelita historiador Wilmar Santin, em Vozes proféticas, rediscute


a questão ausência/presença dos religiosos no processo europeu de tornar
escravos homens e mulheres, aprisionados na África e trazidos para o Brasil. O
autor detecta, em sua pesquisa historiográfica, a presença de inúmeros frades e
padres que ergueram suas vozes, em nome da justiça e da fé, contra a escravidão
– inclusive dentro das próprias casas e províncias religiosas. Muitos deles pagaram
alto preço por causa de seus discursos libertários, “seja diante do trono seja diante
do altar”. Mesmo que isolado, o número destas vozes proféticas é bem maior do
muitos contam...

Esse fascículo sobre a VG se amplia com duas outras contribuições bem


pertinentes ao refletir sobre o mundo contemporâneo e o mundo dos primeiros
cristãos.

O também claretiano Santiago Maria Gonzalez Silva levanta a


atualíssima questão dos Desafios e perspectivas éticas numa sociedade em
transformação. Com riqueza de dados, o autor faz desfilar, sob nossos olhos
grandes transformações produzidas pela engenharia genética, capazes de atingir
– muito mais do que se imagina – nossas vidas desde o ponto de vista biológico
e ético. As questões envolvem uma afirmação positiva, i. é: um compromisso
com a vida frente a fatos como o aborto, a eutanásia, o ecossistema, o equilíbrio
econômico mundial, um mundo justo etc. A energia do amor será capaz de
construir um mundo novo possível e justo?
Por fim, Rivaldave Paz Torquato, o. carm, escreve sobre a Coexistência
e Confronto entre judeus e cristãos em Antioquia na Antiguidade Tardia. Um
tema raro na literatura bíblico-teológica, especialmente em língua portuguesa.
Com freqüência os valores religiosos dos povos, sobretudo quando confrontados
por religiões novas, são transformados em fonte de conflitos, intolerância e
violência. Para atingir seu objetivo, tais religiões manipulam países, sistemas
políticos e econômicos ou se deixam manipular por eles. As consequências para
a humanidade são normalmente catastróficas. Aos poucos as religiões perdem
assim seu potencial libertador e tornam-se fonte de opressão, escravidão, aflição
e sofrimento. O autor aborda esta questão do início do cristianismo frente ao
judaísmo, apresentando suas conclusões.

Entregamos nossa Revista de Teologia STUDIUM, na certeza do bom


proveito de nossos leitores.

8
Artigos
DIMENSÃO CARISMÁTICA DA
IGREJA E IDENTIDADE DA VIDA
RELIGIOSA
Florêncio Garcia Castro, CMF *

RESUMO: O artigo traz as conclusões mais significativas do estudo feito para a tese de Doutorado
9
apresentado no Instituto Teológico da Vida Consagrada – Claretianum de Roma – com o título
“Dimensão carismática da Igreja e identidade da Vida Religiosa” salientando o núcleo temático;
e o subtítulo, “Ensinamento do Concílio Vaticano II e a sua recepção na reflexão teológica pós-
conciliar” enquadra historicamente o assunto de nossa análise e investigação. Portanto, a finalidade
desta exposição é a de apresentar o que foi recolhido do ensinamento do Concílio Vaticano II sobre
os carismas na Igreja e a sua relação com a Vida Religiosa, de um lado, e de outro, apresentar
sistematicamente como foi acolhida esta doutrina na reflexão teológica posterior ao Concílio.

PALAVRAS CHAVE: Carimsa. Reflexão teológica. Dimensão institucional. Concilio. Vida religiosa.
Ecleseologia.

ABSTRACT: The article brings the conclusions most significant of the made study for the thesis of
Doctoral presented in the Theological Institute of the Life Consecrated - Claretianum of Rome - with
the heading “ Charismatic dimension of the Church and identity of the Religious Life”; pointing out
the thematic nucleus; e the sub-heading, “Teaching of Vatican Conciliation II and its reception in
the theological reflection after-conciliation” it historically fits the subject of our analysis and inquiry.
Therefore, the purpose of this exposition is to present what it was collected of the teaching of Vatican
Conciliate II on charisma in the Church and its relation with the Religious Life, from all points of view, to
present systematically as Conciliate was received this doctrine in the theological subsequent reflection.

KEY WORDS: Charisma. Theological reflection. Institutional dimension. I conciliate. Religious life.
Ecclesiology.

* Doutor em teologia, Superior do Instituto Teológico da Vida Consagrada “Claretianum”, Roma. Falecido em
2005, aos 46 anos de idade, enquanto se preparava para assumir um novo encargo nas Filipinas.
1. Origem deste trabalho

Por que fazer esta pesquisa? É a primeira pergunta que nos fazemos e aqui
explicamos a origem e causas do presente trabalho.

Gostaria de começar por uma impressão pessoal. Olhando a história da Igreja


e da Vida Religiosa, percebi algo que sempre me surpreendeu, deixando-me uma
certa perplexidade: tem-se a impressão de estar diante não de uma única história,
mas diante de duas histórias paralelas. A história da Igreja ao redor da Hierarquia
e, quase à margem, a história da Vida Religiosa. Não aparece evidenciada nesta
história do passado a unidade e a edificação da Igreja como fruto da colaboração
de todos os seus membros. Este fato tem repercussões concretas, uma delas é em
nível teológico e eclesiológico. Sirva como exemplo o quanto seja difícil encontrar
nos ensaios de eclesiologia um capítulo dedicado à Vida Religiosa.

Mesmo no interior da Vida Religiosa a história nos mostrou um caminho de


divisões entre as mesmas famílias religiosas, como alguma coisa que nos parece de
alguma forma “contra natura”.

10 Partindo desta observação, quando nos detemos nos trabalhos de pesquisa


sobre a Vida Religiosa, constatamos que a grande parte destes estudos no período
pós-conciliar foram marcados pelo retorno às origens das famílias religiosas,
registrando-se grande desenvolvimento e aprofundamento no conhecimento do
carisma dos fundadores e do próprio Instituto para realizar a adequada renovação
que o Vaticano II pedia à Vida Religiosa no documento conciliar “Perfectae Caritatis”.

Este fato nos levou a adquirir mais conhecimentos e maior clareza sobre o
carisma do fundador e sobre o carisma de cada Instituto e a sua missão na Igreja.
Mas outros aspectos foram muito menos freqüentados. Um destes aspectos foi, a
meu ver, a reflexão sobre a eclesialidade da Vida Religiosa desde uma perspectiva
histórica e, sobretudo, teológica. Correu-se o risco de sublinhar excessivamente o
estudo “ad intra” da Vida Religiosa, certamente necessário e positivo, mas que pode
impedir de ver o horizonte geral ao qual se pertence: a Igreja.

Como veremos, foi o próprio Concílio a favorecer esta necessária visão


eclesial quando dedicou um capítulo próprio aos religiosos na Constituição
Dogmática sobre a Igreja. Um fato sem precedentes. O Concílio recolocou as coisas
no seu lugar. Não é possível entender a Igreja sem apresentar todos os estilos de
vida que a compõem , um dos quais é a Vida Religiosa; nem mesmo é possível
entender a Vida Religiosa propriamente fora do âmbito onde nasceu: a Igreja.

Neste processo é que se situa a nossa reflexão. Nos propomos a um


aprofundamento teológico e eclesiológico da Vida Religiosa. Evidentemente, neste
artigo, não pretendemos esgotar as múltiplas possibilidades que esta perspectiva
nos oferece. Por isto, limitamos o nosso estudo a um aspecto particular, no qual
nos parece encontrar a origem e a identidade da Vida Religiosa: a sua realidade
carismática. O carisma a define e caracteriza porque cada Instituto é a encarnação
de um carisma concreto.

Portanto, o porquê deste trabalho encontra-se no desejo de aprofundar


a eclesialidade da Vida Religiosa apontando para o seu coração: a sua natureza
carismática.

2. Metodologia

Com a metodologia utilizada respondemos à segunda pergunta: Como


desenvolvemos este estudo? O nosso método de trabalho poderia ser caracterizado
como histórico-indutivo. Fizemos uma pesquisa e análise da palavra “carisma” no
processo de elaboração redacional dos diferentes documentos estudados, seja
nos textos apresentados assim como nas modificações e objeções feitas a eles
pelos Padres conciliares.

Num segundo momento, dedicado à reflexão teológica pós-conciliar


sobre os carismas, analisa-se como foi assumido o ensinamento do Concílio e o
seu desenvolvimento posterior em nível eclesiológico e teológico em relação à
11
Vida Religiosa.

Neste artigo o foco será apenas as questões referentes ao debate conciliar


e algumas consequências teológicas.

3 Até onde leva o Espírito

A convocação de um Concílio na Igreja é um fato tão extraordinário que


nos faz entender, por si mesmo, como os temas escolhidos para serem tratados
respondem particularmente à situação da Igreja naquele momento histórico.1
Cada documento pressupõe uma realidade social e eclesial à qual quer dar uma
resposta.

Seguramente, as pessoas encarregadas de elaborar a redação do texto


sobre a Igreja, para ser apresentada no início dos trabalhos conciliares, na qual
aparecem pela primeira vez os carismas, não imaginavam a repercussão e a
transcendência que este fato teria na definição e compreensão da Igreja tal qual
nos apresenta a “Lumen Gentium” e a reflexão teológica posterior.

1 O dia 25 de janeiro de 1959 desde a Basílica de S.Paulo fora dos muros o Beato João XXIII fez o anúncio da
convocação do Concílio Vaticano II com estas palavras: “Pronunciamos diante de vós, certamente tremendo
um pouco de comoção, mas ao mesmo tempo com humilde decisão de propósito, o nome e a proposta
da dúplice celebração: de um Sínodo Diocesano para a Urbe, e de um Concílio Ecumênico para a Igreja
Universal”. ( cf. AD, series 1. vol. l. 5).
Podemos verificar toda a importância deste processo em duas frases. Uma
pertence ao primeiro esquema da Constituição sobre a Igreja e diz: “É falso dizer
que, as assim chamadas, Igreja hierárquica ou do direito e Igreja carismática ou do
amor, se diferenciem realmente.”2 A outra é de João Paulo II em sua mensagem ao
Congresso Mundial dos Movimentos Eclesiais celebrado no ano de 1998: “Outras
vezes tive a oportunidade de sublinhar como na Igreja não exista contraste ou
contraposição entre a dimensão institucional e a dimensão carismática, da qual
os movimentos são uma expressão significativa. Ambas são co-essenciais à
constituição divina da Igreja fundada por Jesus”.3

Entre uma frase e a outra existe um arco de tempo de quase 40 anos que
marcaram um caminho, longo e cansativo, para definir a relação entre a dimensão
institucional e a dimensão carismática da Igreja.

Ambas as expressões nos revelam que o tema dos carismas tinha uma
relação muito estreita com a eclesiologia e que havia uma base problemática a
ser superada: a Igreja hierárquica e a Igreja carismática vistas como realidades
contrapostas.

12 O documento conciliar que marcou o Concílio foi a Constituição Dogmática


“Lumen Gentium”. Na fase preparatória, através de dois esboços, houve uma
primeira redação do texto. Ela é de menor relevância porque o esquema foi
rejeitado.4

As causas que levaram a tal ação foram diversas. Uma delas podemos
dizer de caráter ambiental. Na aula conciliar, antes de analisar o esquema sobre
a Igreja foi debatido o esquema sobre “Fontes da Revelação”. Foi rejeitado. Em
tais circunstâncias podia se prever que também o esquema sobre a Igreja iria de
encontro ao mesmo fim.

Mas as causas diretas e determinantes foram as objeções dos Padres


conciliares, os quais depois de louvar todo o trabalho realizado apresentaram as
suas críticas. Para uma maioria o texto era abstrato e muito esquemático com falta
de coesão e síntese. Podemos recordar que DE SMEDT qualifica o documento de
“triunfalismo”, “clericalismo” e “juridicismo”.5 HUYGHE, diz que o esquema proposto
deve ser profundamente modificado e apresentar uma Igreja embebida pelo
espírito evangélico, isto é, por um espírito católico, missionário de humildade e

2 AD, series 11, vol. 11, pars 111, 988. “falso Ecclesia hierarchica seu iuris ab Ecclesia societas charismatica vel
amoris, quas vocant, re diferre dicuntur”.
3 JUAN PABLO II, Messaggio a! Congreso Afondiale dei Movimenti Ecclesiali: PONTIFICIUM CONSILIUM PRO
LAICIS ( ed.). Città del Vaticano 1999, 18.
4 No fim do primeiro período conciliar se falou sobre o esquema da Igreja: 1-7 de dezembro em seis
Congregações Gerais ( XXXI-XXXVI). Falaram 77 Padres e deixaram por escrito as suas notas outros 85.
Mencionaram os carismas 16 deles ( 5 oralmente e 11 nos escritos).
5 AS. 1 (IV), 142-144.
serviço.6 CARLI o qualifica de militarista.7 idéia que repete também o Patriarca
antioqueno Maxirno IV SAIGH8.

Como conseqüência, foi elaborado um novo texto ( terceira redação)


para ser estudado em sucessivas sessões conciliares (1963-1964). Este itinerário
compreende o desenvolvimento de sucessivas redações até a sexta e definitiva.

O fato que a redação apresentada ao Concílio fosse rejeitada marca um


dos momentos mais importantes para a elaboração da Constituição “Lumen
Gentium”, porque mostra claramente a existência de duas correntes diferentes
no Concílio. A redação que chega ao primeiro período conciliar herdava e fazia
própria uma visão piramidal da Igreja, o ponto de referência era a Hierarquia e
partindo dela se elaborava o discurso eclesiológico. Ao contrário, o novo texto
apresentado no segundo período conciliar concebia a Igreja como mistério de
salvação e povo de Deus, composto pelas diversas vocações e estados de vida
existentes em seu conjunto.

A prova evidente de tudo isto é o conteúdo e divisão dos capítulos do


novo esquema:9
13
Introdução

Capítulo I: Sobre o mistério da Igreja (De Ecclesiae mysterio)

Capítulo II: Sobre a constituição hierárquica da Igreja e de modo especial:


sobre o episcopado (De constitutione hierarchica Ecclesiae et in specie: de
episcopadu).

Capítulo III: Sobre o povo de Deus e de modo especial sobre os leigos (De
populo Dei et speciatem in de laicis)

Capítulo IV: Sobre a vocação à santidade na Igreja (De vocatione ad


sanctitatem in Ecclesia)

É neste momento chave quando se realiza o grande debate sobre os


carismas. Os grandes representantes das duas posições foram o Cardeal Ruffini e
o Cardeal Suenens. A maior parte dos Padres que participam da discussão fazem
referência a estas duas intervenções, manifestando conformidade ou desacordo.
6 Ibid. 196: “Optaremus etenim ut doctrina Ecclesiae quae in hoc Concilio determinda est. ipsam Ecclesiam
exhiberet quase imbutam spiritu evangélico, scilicet: spiritus apertus er reapse catholicus, spiritus
missionarius; spiritus humilis deditionis et servitii”.
7 Ibid. 160: “...quia id sapit militarismum”.
8 Ibid. 295: “La comparaison de l’Eglise avec `une armée serrée en bataille’ ...n’est pas ce qu’il ya de plus heureux...”
9 AS, II (I), 215-281.
O posicionamento do Cardeal Ruffïni10 é contrário ao reconhecimento
da existência de carismas na Igreja atual, fazendo exceção de casos raríssimos
e rejeitando que se encontrem nos leigos. Podemos resumir o seu pensamento
assim:
a. Os carismas ocupam muito espaço no texto do esquema.
b. Os carismas, abundantes no início da Igreja, diminuíram com o passar
do tempo até o seu quase desaparecimento.
c. Atualmente os carismas são raríssimos e excepcionais.
d. Não se pode confiar nos leigos carismáticos para o apostolado e o
crescimento da Igreja.
e. Os carismas na Igreja primitiva eram ocasião de freqüentes desordens
nas comunidades.
O Cardeal Suenens11 sublinhou praticamente todo o contrário. Podemos
sintetizar a sua intervenção nestes termos:
14 a. Fala-se pouco dos carismas no texto, devem ser tratados mais
amplamente porque são muito importantes na vida da Igreja.
b. O tempo da Igreja é a era do Espírito Santo. O Espírito Santo é recebido
por todos os cristãos, pastores e fiéis, pelo batismo. O Espírito se faz
presente na Igreja por meio de seus dons e carismas.
c. Os carismas estiveram presentes ao longo de toda a história da Igreja,
das origens até os nossos dias.
d. Na Igreja primitiva existiam não somente carismas extraordinários,
mas também ordinários (discernimento, governo,...)
e. Na Igreja são necessários os pastores e os carismas porque a Igreja
não é uma estrutura administrativa, mas uma realidade viva. Ambos
devem concorrer para construir a Igreja com o diálogo aberto e
sincero. Uma Igreja sem um destes elementos cairia na desordem ou
na esterilidade.
f. Pede uma maior presença dos leigos no Concílio e de modo especial
das mulheres e dos religiosos das Congregações laicais.
O debate foi mais favorável às teses do Cardeal Suenens, mas o fruto mais
importante dele foi a aceitação da nova eclesiologia que devia ser expressa na
redação do texto definitivo.

10 AS, II (II), 627-632.


11 AS, II (III), 175-178.
O forte debate sobre os carismas deixou manifestada uma tensão que
estava presente desde a primeira redação: a relação entre a Igreja hierárquica e a
Igreja carismática.
O texto definitivo mantém ainda como base este tema. Explica-se assim
que dos 6 textos (4; 7; 12; 25; 30; 50) nos quais se fala dos carismas, em três deles
(7; 12,30) se repita desde diferentes perspectivas, que os carismas devem ser
estudados e aprovados pela Hierarquia.

Do conjunto de textos sobre os carismas presentes na “Lumen Gentium”,


podemos traçar as coordenadas para uma nova perspectiva teológica:

1. Contexto eclesiológico

Desde o primeiro momento, os carismas foram tratados no âmbito da


reflexão sobre a Igreja. Segundo a concepção eclesiológica, assim eram tratados
os carismas. Como conseqüência, os carismas são entendidos como elemento
importante da nova eclesiologia conciliar que define a Igreja como mistério e
povo de Deus no qual cada um tem a própria vocação com a qual contribui para
15
a edificação comum.

A doutrina conciliar define os carismas neste contexto eclesiológico como


graças especiais doadas pelo Espírito a todos os batizados para o bem da Igreja.
Estes carismas podem ser excelsos ou simples e corresponde à Hierarquia o seu
discernimento e integração na vida da comunidade eclesial.

As linhas de força que emergem desta compreensão são:

a. Definição terminológica.

O texto conciliar não usa a palavra “carisma” para exprimir num sentido
geral as graças que o Espírito doa à sua Igreja, mas este significado se exprime com
a palavra “dons”. Por sua vez, estes dons podem ser hierárquicos e carismáticos.

b. Os carismas na Igreja como mistério.

A Igreja é assistida pelo Espírito Santo mediante os seus dons. Eles


têm a missão de governá-la, os dons hierárquicos; e de enriquecê-la, os dons
carismáticos. Portanto, os carismas estão presentes na Igreja, mas a sua missão
principal, exceto se estão associados aos dons hierárquicos, não é o governo dela
(LG 4; 7).
c. Os carismas e o povo de Deus.

O Espírito distribui os seus carismas a todos os fiéis para a edificação da


Igreja. Os leigos os recebem para contribuir à sua missão salvífica mediante o
apostolado. Estes carismas estão amplamente difundidos, mas não devem ser
desejados temerariamente e sempre devem estar submetidos ao discernimento
e integrados na vida e atividade da Igreja para a Hierarquia (LG 12, 30).

d. Os carismas e a Hierarquia.

Não se fala explicitamente dos carismas em referência à Hierarquia, salvo


no caso do carisma da infalibilidade (LG 25), irias de dons. Aparece, sim, delineada
a sua missão em relação a eles, como vimos antes.

Enfim, pode-se dizer que a reflexão teológica pós-conciliar continuou


fundamentalmente esta orientação para estabelecer a relação entre a dimensão
institucional e carismática da Igreja, aprofundando e trazendo novos aspectos
16 que ajudem a superar esta visão dualista, porque, de alguma forma, ela ainda
persiste na doutrina conciliar.

Fruto deste perseverante empenho podem ser consideradas as palavras


de João Paulo II que assume a co-essencialidade da dimensão institucional e
carismática na construção da Igreja.

2. A Vida Religiosa

Em nossa pesquisa pretendíamos aprofundar o estudo da identidade da


Vida Religiosa em sua relação com a dimensão carismática da Igreja.

Nós nos rendemos conta que uma diversa eclesiologia configura uma
nova situação para a Vida Religiosa no contexto eclesial. Na eclesiologia anterior
ao Concílio, que considerava a Igreja como sociedade perfeita, a Vida Religiosa
era vista com uma orientação jurídica e ascética sem nenhuma referência à sua
natureza carismática. De fato, na primeira redação aparece com um capítulo
próprio intitulado “De statibus adquirendae perfectionis”.

Com a nova eclesiologia do Vaticano II não foi um empenho fácil designar


o lugar e a definição que correspondia à Vida Religiosa. Ao contrário, foi motivo de
numerosas controvérsias e dificuldades. Todo este trabalho teve como resultado a
redação de um capítulo próprio na “Lumes Gentium”, o que a princípio não estava
previsto no novo projeto da Constituição.
Falava-se da Vida Religiosa no capítulo que tratava do chamado universal
à santidade, fazendo desaparecer o capítulo a ela dedicado no texto precedente.12
Além disto, uma das coisas que mais chama a atenção no capítulo sobre os
religiosos na “Lumen Gentium”, é que a Vida Religiosa nunca é descrita com a
palavra “carisma”e por outro lado, não há quase nenhuma referência bíblica.

Quais os motivos destas lacunas? De um lado, as pessoas que propuseram


o texto base da nova eclesiologia, falavam da Vicia Religiosa no contexto amplo
do chamado de todos os cristãos à santidade. A Vida Religiosa é somente um
caminho para atingi-la dentro da Igreja. Desde esta perspectiva, procuravam
superar a concepção da Vida Religiosa com uma estado de vida “mais perfeito”,
mas se perdia a sua própria identidade carismática na Igreja.

A oposição de numerosos padres conciliares a esta orientação reducionista


fez que os religiosos tivessem um capítulo próprio na “Lumes Gentium”,13 mas
em grande parte permaneceu o texto já existente como parte final do capítulo
sobre o chamado universal à santidade. Agora passava a ser o capítulo IV sobre
os religiosos, porém nele predominava, bastante, uma visão ascética da Vida

17
Religiosa.

12 U. BETTI, Cronistoria della Costituzione, in G. BARAUNA ( ed.), La Chiesa dei Vaticano II, Firenze 1965, 137.
Betti em seu estudo diz que para redigir o novo texto a Comissão Doutrinal nomeou uma sub-comissão
“De Ecclesia” que trabalhou com um esquema de origem belga dividido em quatro capítulos: O mistério da
Igreja, A Hierarquia e em particular sobre o episcopado, os leigos e os estados de perfeição. O esquema foi
aprovado pela comissão Doutrinal; somente o capitulo 4 sobre os estados de perfeição não foi aprovado e
foi refeito por tinia nova sub-comissão nomeada para esta finalidade. Na nova redação o capítulo mudou
a orientação porque o seu tema específico não eram mais os estados de perfeição mas a vocação universal
à santidade, e este capítulo não foi estudado pela comissão Doutrinal, passando diretamente ao debate
conciliar.
13 Um exemplo destas reações encontramos no Abade Geral do Cisterciense, P.5. KLEINER. Para ele, a questão
a tratar não é sobre a igualdade ou desigualdade da santidade dos religiosos e a de todos os outros cristãos,
mas se o lugar de falar da Vida Religiosa é próprio neste capítulo sobre a vocação à santidade ou em outro
diferente, porque agora aparece como um tratado de teologia ascética, como um apêndice. Por isto, pensa
que o modo de apresentar o tema dos conselhos evangélicos no capítulo é completamente insuficiente e
restritivo; e, de outro lado, deve se tratar do estado religioso de uma maneira mais concreta e adequada.
Para ele é necessário falar dos religiosos não separados da Igreja, mas mostrando as suas profundas raízes
teológicas e eclesiológicas. Neste contexto e no final de sua exposição fala cios carismas em relação com os
fundadores.
Dos grandes tesouros que o nosso Senhor confiou à sua Igreja, cada um dos fundadores recebeu um dom
especial ou carisma que plasmou institucionalmente na sua família religiosa que, desta maneira, o faz_
perdurar. Os diferentes ofícios que a Igreja tem de adorar, evangelizar, etc. encontram em cada Instituto
a sua expressão peculiar, ainda que não exclusiva, assim a face da Igreja resplandece de maneiras diversas
nos diferentes Institutos religiosos. Os Institutos são a mesma Igreja que age neles segundo aquele dom
particular.
Nesta contribuição de KLEINER, encontramos os elementos fundamentais e constitutivos dos carismas e a
sua relação com a Vida Religiosa. A Vida Religiosa nasce na Igreja como um dom que Deus lhe dá através
de algumas pessoas, os fundadores, os quais recebem um carisma especial, que se faz vida da Igreja nas
diferentes famílias religiosas. ( cf. AS, II (IV), 231-233).
Outros Padres que falaram neste sentido foram: SILVA, DÖFNER, DESCHÂTELETS, SCHWEIGER. etc. Mas o
documento que teve mais força para fazer um capítulo especial para os religiosos foi aquele assinado por
679 Padres, os quais pediam expressamente tal capítulo especial. A decisão final foi tomada pelo próprio
concílio em uma votação para esta finalidade que teve o seguinte resultado: Padres votantes: 2.177; placet:
1.856; non placet: 698; placet iuxta modum: 4; suffragia nulla: 3. (cf. AS. Ill (111), 140.
Apesar disto, e aqui entramos em um outro aspecto muito interessante
do Concílio, a realidade carismática da Igreja, não aparece no Concílio somente
mediante o uso da palavra “carisma” mas também com as palavras “dom” e “graça”.
Denominamos esta realidade como “campos semânticos”. Em várias ocasiões,
traduzem ou fazem referência a textos bíblicos, sobretudo de São Paulo, nos
quais se fala expressamente dos carismas nas primeiras comunidades cristãs.

Por isto, especialmente no caso da Vida Religiosa, a sua identidade


carismática é afirmada pelo Concílio, não com a palavra “carisma” mas com
a palavra “dom”. Assim, a Vida Religiosa que se identifica com os conselhos
evangélicos, é considerada um dom do Espírito à sua Igreja. Ele sempre existiu
como testemunha a vida dos homens e das mulheres que abraçaram os
conselhos evangélicos ao longo da história da Igreja.

Este modo de existência cristã é considerado um estado de vida, que


não é intermediário entre a condição dos clérigos e a dos leigos, mas de ambas
as partes Deus chama alguns fiéis para possuir um dom particular na vida da
Igreja (LG 43).
18 O estado, portanto, constituído pela profissão dos conselhos evangélicos,
mesmo não pertencendo à estrutura hierárquica da Igreja, pertence, todavia,
indiscutivelmente à sua vida e à sua santidade (LG 44).

Como conseqüência, a Vida Religiosa é vista na “Lumen Gentium” como


um carisma que implica a própria vida e santidade da Igreja. Assim, a índole
eclesial da Vida Religiosa se explica e se entende desde o elemento carismático
da Igreja, do qual ela é uma expressão concreta.

O Concílio apresenta com a “Lumen Gentium” a doutrina fundamental


sobre a dimensão carismática da Igreja e nela coloca a identidade da Vida
Religiosa. Com o decreto “Perfectae Caritatis” enfrenta este mesmo tema desde
outra perspectiva: a renovação que a Vida Religiosa era chamada a empreender.

O “Perfectae Caritatis” também seguiu um longo processo de formação


tendo necessidade de seis redações para chegar à sua forma definitiva. Foi,
sobretudo, um trabalho feito pelas comissões, porque o texto apresentado ao
debate do Concílio era já, de fato, a quinta redação.

No “Perfectae Caritatis” nem mesmo aparece o termo “carisma” em


referência à Vida Religiosa, porém, se manifesta a sua realidade carismática
com as palavras “donum” e “gratia”. Apesar disto, é preciso dizer que nas
muitas colaborações feitas ao texto discutido na aula conciliar, alguns Padres
falaram expressamente da necessidade de apresentar com clareza a sua
realidade carismática. Dois destes Padres foram o Cardeal BEA e o Cardeal SILVA
HENRIQUEZ.
O cardeal BEA14 na sua intervenção manifesta que o Decreto centraliza a
renovação da Vida Religiosa sob um aspecto muito jurídico, faltando princípios,
fundamentos e meios que o passam aviar.

O cardeal BEA, pelo contrário, lembra que a Vida Religiosa deve ser vista
no contexto da Igreja. O Decreto “Perfectae Caritatis” faz parte de todo o processo
de renovação que está acontecendo na Igreja. A renovação da Vida Religiosa não
deve centralizar-se somente no aspecto jurídico mas deve também atingir os seus
princípios fundamentais. Um dos quais é a sua realidade carismática. Considera
a Vida Religiosa como um dom carismático do Espírito à igreja tomando como
exemplo a vida da Igreja primitiva (1 Cor 12). Como o Espírito Santo distribuía
os seus carismas na Igreja primitiva, continuou a fazê-lo ao longo da história até
nossos dias. Assim, os fundadores são pessoas que receberam carismas especiais,
que transmitiram a outros, dando origem às diferentes e múltiplas Ordens e
Congregações, por meios das quais os carismas permanecem na Igreja.

O cardeal SILVA HENRIQUEZ15, crê, pelo contrário, que o esquema deve


ser refeito novamente porque é muito genérico e incompleto. Mas a coisa mais
interessante é que ele fala expressamente do carisma do fundador, “carisma
fundatoris”, e o define claramente. O carisma do fundador é uma força dinâmina 19
para promover a vida da Igreja peregrina segundo determinadas situações
históricas. Em tal carisma devem-se distinguir dois elementos: a) Uma força vital,
a qual é um dom especial do Espírito Santo em favor de toda a comunidade cristã,
que pode e é normalmente chamado “espírito do fundador”, e b) a forma externa
de encarnação deste dinamismo que se concretiza nas estruturas temporais e
segundo os costumes de cada cultura e organização humana.

Estas duas intervenções serão decisivas, sobretudo, para a redação da


introdução feita ao Decreto conciliar. Mas, sobre o trabalho redacional, não se
retomam as expressões concretas usadas por eles, evitando claramente o uso do
termo carisma, tão explícito, sobretudo, na intervenção do Cardeal SILVA.16

O texto definitívo do “Perfectae Caritatis” nos mostra as características


com as quais é considerada a natureza carismática da Vida Religiosa. Ela é um
chamado do Espírito para um estilo de vida, definido pela prática dos conselhos
evangélicos cuja finalidade é seguir Cristo mais de perto e mais livremente (PC 1).

Esta forma de vida existe na Igreja desde o seu início. Atrás do impulso do
Espírito, muitos fundadores e fundadoras deram origem às famílias religiosas, as
quais continuam a estar presentes na Igreja depois de serem por ela aprovadas.

14 AS, 111 (VII), 442-444


15 Ibid- 570-571
16 É interessante notar que, segundo alguns estudiosos, o primeiro a utilizar a expressão “carisma do fundador”
foi J. FAMRÉE. Le carisme de fondateur, Roma, 1966. ( cf. G. ROCCA, 11 carisma del fondatore, in Claretianum (
1994) 49 ). Pelo contrário, aqui se vê claramente que foi o Cardeal SILVA a usar com propriedade por primeiro
este termo “carisma fundatoris”e que depois se tornou uma expressão técnica.
Nas primeiras comunidades cristãs o Espírito concedia os seus carismas
para a edificação da comunidade. Aos Institutos da vida apostólica é reconhecida
uma especial continuidade com a presença de tais dons na Igreja ( PC 8).

Finalmente, encontramos outros documentos no Concílio Vaticano II


que também usam o termo “carisma”, que são: DV 8; PO 4, 9; AA 3, 30; AG 4,
23; 28. Em todos encontramos definidos os carismas como dons que o Espírito
Santo confere aos batizados para a missão recebida na construção da Igreja.

O Documento “Ad Gentes” é o único que fala da Vida Religiosa em


ligação com os carismas ( AG 23). Menciona os carismas no contexto da vocação
missionária, que define como um chamado de Cristo àqueles que Ele quis entre
os seus discípulos, para que o acompanhem e para convidá-los a pregar aos
povos.

Este chamado o faz o Espírito Santo que concede os carismas segundo


o seu querer para a utilidade comum de todos. Um destes carismas é a vocação
missionária que suscita no coração dos fiéis e pela qual dá a vida na Igreja aos
Institutos que tomam como missão própria o dever da evangelização.
20 A Vida Religiosa, portanto, é suscitada na Igreja como um dom do
Espírito. Se esta Vida Religiosa surge dos carismas, a sua identidade se encontra
nesta dimensão, constitutiva e essencial da Igreja. É parte imprescindível de sua
vida e dinamismo.

Todo este trabalho e impulso dado pelo Concílio promoveu nos Institutos
uma renovação em todos os níveis, entre os quais emerge a reflexão teológica,
que retomando as linhas traçadas pelo Concílio realizou um notável esforço.

Ao seguir este caminho, as diversas Ordens e Congregações se


orientaram segundo a própria consciência carismática, mas podemos recolher
os seus frutos em alguns pontos essenciais:

a. O Carisma da Vida Religiosa

Se o Concílio não usa a palavra “carisma” para definir a Vida Religiosa tem
presente o seu significado e atualmente esta expressão faz parte da linguagem
comum da teologia.

A reflexão teológica desenvolveu a identidade carismática da Vida


Religiosa partindo de duas perspectivas:

A primeira, compreendeu a Vida Religiosa, no seu conjunto, como


carisma. Por este caminho se reforçou o ensinamento do Concílio que caracteriza
a Vida Religiosa como um dom que nasce na Igreja pelo impulso do Espírito
Santo, e como um elemento essencial de seu componente carismático, já que
não pertence à estrutura hierárquica mas à vida e santidade eclesiais.

A segunda, desenvolve o estudo histórico-fenomenológico da Vida


Religiosa, para passar de uma concepção carismática da mesma para a
consideração, em cada Instituto, da realização concreta de um carisma.

b. O carisma dos fundadores e do Instituto.

O estudo de cada Instituto como realização concreta de um carisma


recebido do Espírito nos leva para quem se encontra nas suas origens: a figura
do fundador. Deste modo, se aviou uma ampla e profunda investigação sobre o
carisma do fundador. Procura-se individuar as notas essenciais que deram origem
ao novo Instituto e, como conseqüência, se analisa todo o processo interno que
se produz desde a experiência originária até a perdurabilidade do carisma na
dinâmica comunitária.

21
c. Elementos essenciais para uma teologia dos carismas da Vida Religiosa

Podemos concluir dizendo que o Concílio considera a Vida Religiosa como


um dom carismático do Espírito à sua Igreja, um chamado a um estilo de vida
segundo os conselhos evangélicos. Esta vivência tem a finalidade de favorecer a
santidade na Igreja.

Desde esta perspectiva, fala-se dos conselhos evangélicos como dons


recebidos na Igreja do Senhor, e, a Vida Religiosa se mostra como um caminho
para atingir a santidade. Não é definida como estado de vida mais perfeito, mas
por meio de uma essencial referência carismática.

Por tudo isto, podemos afirmar que a doutrina conciliar e a posterior


reflexão teológica, nos apresentam a Vida Religiosa como parte constitutiva da
dimensão carismática da Igreja: são carismas feitos vida na comunidade eclesial.

A dimensão carismática da Igreja explica a existência da Vida Religiosa


nela e a Vida Religiosa mostra de modo vivo e real o perfil carismático da Igreja.
Por isto, a eclesialidade da Vida Religiosa é entendida particularmente pelo seu
ser mais radical: a própria identidade carismática.
22
Artigos
A VIDA CONSAGRADA HOJE
DESAFIOS E VITALIDADE
DIANTE DA PRIMEIRA DÉCADA
DO ANO 2000
De onde viemos, onde estamos,
para onde vamos? 23
Prof. Pe. José Rovira, cmf *

RESUMO: São muitas as análises sócio-culturais da vida religiosa. A partir de números, cujo valor
está no indicativo que na precisão da atualidade, vai-se discorrendo sobre o significado desta imensa
força moral da vida consagrada, mesmo que em aparência os números sejam “pouco” expressivos no
conjunto da vida da Igreja. Pessimismos, questões de crise, mudanças de valores e comportamentos?
Na verdade, é o Senhor o dador de vocações e a Ele interessa a qualidade da VC, nesta mudança de
tempos, onde é necessário ver a Vida Consagrada do mesmo modo... de antigamente. Inclusive é útil
recordar que esta nem é a maior transformação na VC, na história da Igreja. Os novos passos dados
“após a crise”– redescoberta da missa, refundação dos institutos – são na verdade ações criativas do
Espírito, que pedem compromissos mais profunda, que evidencia o significado real da VC.

PALAVRAS CHAVE: Vida Consagrada. Crise. Números. Desisnstitucionalização. Renascimento da


espiritualidade. Novas formas de VC.

ABSTRACT: There is a lot of social cultural analysis related to religious life. According to numbers, its
valor states that in the present precision; bring up the meaning of this enormous moral strength of
consecrated life, even though the numbers are “less” expressive in the group of church life. Pessimism,
crisis questions, goodness changes and behaviors? In fact, the Lord is the vocation giver and He
is interested about the consecrated life (CL), in this time of change, where it’s necessary to see the
Consecrated Life in the same way… previously. Inclusive it’s useful to remember that this is not even
the biggest change in CL, in the history of church. The new steps given “after crisis”-mass rediscovery,
re-foundation of the institutes-are Spirit creative actions, which require deep commitment, evidencing
the real meaning of CL.

KEYWORDS: Consecrated Life. Crisis; Numbers. Deinstitutionalization. Spiritually rebirth. New ways
of LC.

* Diretor do Instituto de Teologia da Vida Consagrada “Claretianum “, de Roma.


Talvez esta pergunta possa parecer retórica, mas não é. Falar “da” VC é
fazer uma abstração; assim nos adverte insistentemente o próprio Magistério da
Igreja em documentos recentes. O que existem são os grupos ou Institutos de
VC e, em última instância, os indivíduos concretos. Pretender falar da VC como
sendo uma realidade indiferenciada, é um dos grandes riscos da VC no nosso
tempo: a indiferenciação, pensar que todos somos mais ou menos a mesma
coisa.

A constituição LG falava dos religiosos como uma «árvore com muitos


galhos, esplêndida e viçosa» (LG 43a). Variedade esta, devida à diversidade do
«carisma dos Fundadores», como diziam ET 11 e MR 11. Por isso «a Igreja defende
e apoia a índole peculiar dos vários Institutos Religiosos» (LG 44), «índole que
comporta um estilo particular de santificação e de apostolado ... « (MR 11). Mais
recentemente, PI afirmava que: «Não existe uma maneira uniforme de observar
os conselhos evangélicos, antes cada Instituto tem que estabelecer a sua própria
maneira, levando em consideração a sua índole e finalidade próprias. E isto, não
somente no que diz respeito à prática dos conselhos evangélicos, como também
a tudo o concernente ao estilo de vida dos seus membros» (PI 16). Concluindo:
24 «Não existe uma vida religiosa ‹em si›, à qual acrescentaria-se depois, como algo
exterior, um fim específico e o carisma particular de cada Instituto» (PI 17). Por
isso, VFC dirá que « é preciso cultivar a identidade carismática, para evitar uma
crescente indiferenciação, que constitui um verdadeiro perigo para a vitalidade
da comunidade religiosa” (VFC 46ª). Diversidade esta sobre a que insistiram,
tanto o CDC 573-730, quanto o CIC 914-933.944-945 e, ultimamente, VC 5-12 e
62.

Como quer que seja, também não podemos negar a existência de


aspectos que, de alguma maneira ou medida, se assemelham ou se aproximam.
É isto que nos permite falar “da” VC em geral, apesar de tudo. Fazendo uma
comparação, eu diria que todas as caras possuem os mesmos elementos, apesar
do qual, dificilmente confundimos uma pessoa com outra.

No mais, devemos levar em consideração ainda que, quando falamos de


VC estamos entendendo, seguindo o estilo atual nos documentos mais recentes:
a VR mais os IS.

Por último, para falar da “VC hoje”, o faremos considerando a situação


geral, em nível de Igreja. Portanto, devemos ter presente que as situações
variam do norte para o sul, de continente para continente, de país em país, e
inclusive dentro do mesmo país, dependendo das várias regiões. Sem esquecer
que varia também de Instituto a Instituto e, inclusive, dentro de um mesmo
Instituto, segundo os lugares e as Províncias.
1. Situação e tendências da VC atual

Qual é a evolução numérica da VC atual? Quantos somos? Quê mudanças


nos apontam as estatísticas oficiais das últimas décadas? Quais são as tendências
que estes números manifestam?

a) Segundo o lnstrumentum Laboris para o Sínodo dos Bispos de 1994,


sobre a VC (IL 5e e 8b), os consagrados naquele momento eram:

- de Direito Pontifício: 1.423 Congregações femininas e 250


masculinas;

- de Direito Diocesano: I.SS0 Congregações femininas e 242


masculinas;

- tanto de Direito Pontificio quanto Diocesano: 165 Institutos


Seculares, 39 Sociedades de Vida Apostólica e um número
crescente de virgens consagradas, viúvos e viúvas, ermitãos e
ermitãs, e outros grupos ainda ... 25
É interessante notar que, apesar do período de crise atravessado nas
últimas décadas, a Santa Sé (sem falar dos Bispos, no nível diocesano), do Vaticano
II até o início dos anos 90, aprovou mais de 200 novos Institutos! O Espírito Santo
não tomou férias!

Falando em conjunto, somos um pouco mais de um milhão de pessoas,


equivalente ao 0,12 % do total da Igreja Católica. Uma realidade eclesial muito
pequena, porém muito dinâmica. Com efeito, se fôssemos julgar o número pela
influência e a atividade realizada pelos consagrados, poderia parecer que somos
muitíssimos mais. Portanto, ser católico significa, normalmente, ser «leigo», e
somente de maneira excepcional, ser clérigo ou consagrado.

Outro dado importante é que, dentro da VC, os 82,25 % são leigos e


somente 17,8 % são sacerdotes ou diáconos. Ainda: uns 72,5 % são mulheres, e
um 27,5 % homens. A VC atual, então, é maioritariamente laical e feminina.

b) As tendências numéricas na VC são as seguintes (vamos nos referir


também aos sacerdotes, diáconos e seminaristas, considerando a «proximidade»
vocacional):

- As vocações sacerdotais estão diminuindo globalmente; mas,


dentro desta situação, diminuem mais os religiosos do que os
diocesanos.
- As ordenações sacerdotais, pelo contrário, estão aumentando.

- Os falecimentos, tanto de diocesanos quanto de religiosos, estão


aumentando.

- Os abandonos, tanto de diocesanos quanto de religiosos, estão


diminuindo. Os seminaristas maiores (diocesanos e religiosos)
estão aumentando.

- Os abandonos de seminaristas maiores (diocesanos e religiosos)


estão aumentando.

- Os seminaristas menores (diocesanos e religiosos) estão


diminuindo, devido ao fechamento deste tipo de seminário em
muitos países.

- Os diáconos permanentes estão aumentando. Os religiosos irmãos


estão diminuindo.

26 - As religiosas estão diminuindo.

- Os noviços e noviças estão aumentando.

c) Destes dados (e de outros que poderíamos acrescentar), podemos tirar


várias conseqüências que gostaria de indicar agora brevemente.

A maioria dos sacerdotes e consagrados, globalmente, encontram-se


ainda no mundo ocidental, particularmente na Europa. Um exemplo: há mais
religiosas somente na Itália (120.000, apesar da crise), que em toda a América
Latina (93.000).

Porém, estão crescendo rapidamente as novas vocações fora do mundo


ocidental e da Europa. Por isso, considerando as entradas e os falecimentos,
percebemos uma tendência que indica que, num futuro não muito distante, a
maior parte dos sacerdotes e consagrados estará no Terceiro Mundo, embora hoje
em dia ainda não seja assim.

A crise numérica atingiu e atinge, sobretudo e em certos aspectos


unicamente, o chamado mundo ocidental.

O momento mais forte da crise das últimas décadas, em nível de Igreja, já


passou, podendo ser situado entre os anos 1975-1979. A partir desse momento,
percebe-se uma diminuição dos abandonos e uma recuperação, embora
hesitante, das entradas. Em todo caso, dá a impressão de que não voltaremos
aos números do passado, e por outro lado os acréscimos são ainda parciais e
variáveis, para podermos prognosticar claramente o futuro. É verdade que as
novas vocações aumentam; mas, no conjunto, há um envelhecimento da VC, ou
seja, que o número de falecimentos certamente crescerá. As novas vocações não
conseguem recuperar o número de falecimentos e, ainda que tenham diminuído,
o de abandonos.

No Segundo Mundos ( os países ex-comunistas do Leste europeu) está


se experimentando um certo renascimento religioso, depois de cinqüenta anos
de perseguição religiosa e de congelamento político-econômico-social. Mas,
a situação ainda não está clara, e as manifestações são muito incertas. Parece,
com efeito, que domina a sede de consumismo, e que tendem a imitar os piores
defeitos do mundo ocidental com que estão entrando em contato de maneira
acelerada.

Enquanto isso, no Terceiro e no Quarto Mundo, em geral (há exceções),


está acontecendo um forte aumento vocacional, portador verdadeiramente de
esperança. Mas, em muitos lugares fica aberto o problema de que são muitos
os que entram, mas a desproporção com o número dos que a longo prazo
perseveram de fato, é muito grande. E coloca-se também a pergunta sobre se este
aumento continuará ou não, em particular por causa da influência do secularismo 27
ocidental, através dos meios de comunicação social.

O mundo feminino, em feral, entrou em crise mais tarde do que o mundo


masculino; todavia, parece ser que os efeitos negativos, em muitos lugares,
são maiores. Uma razão disto encontra-se, provavelmente, no fato da pouca
formação anterior em muitíssimas religiosas, o que fez que ficassem sem recursos
culturais e humanos diante da crise cultural. A graça de Deus pode certamente
fazer milagres; mas não podemos prescindir dos elementos humanos. A graça
pressupõe a natureza, repetia Santo Tomás de Aquino. O fato de que nas últimas
décadas tenha havido uma reação, intensificando a formação inicial, e criando a
formação permanente, está sendo uma boa resposta ao desafio.

Para prever de alguma maneira qual será a evolução numérica no futuro


próximo, não basta considerar os números globais nas várias Congregações (por
exemplo: éramos mil e agora somos oitocentos). O ponto de referência são os
noviços, pois todos os consagrados passam pelo Noviciado. E este é o lugar onde
para muitas Congregações (ou Províncias) os números despencaram mais ou
menos em queda livre. Mais ainda, ultimamente nem sequer é suficiente olhar
para os Noviciados, pois, como dizem os psicólogos, o amadurecimento de
muitos indivíduos hoje em dia está demorando mais (não está passando, como
pretendem os políticos, dos 21 para os 18 anos, mas dos 21 para os 25 ou os 30);
diante disto, vemos nos dias de hoje que, enquanto em outros tempos o momento
de crise e de decisão definitiva da pessoa era o Noviciado, atualmente chega mais
tarde, até as vésperas ou inclusive depois da profissão perpétua ou da ordenação
sacerdotal. Indivíduos que foram em frente com mais ou menos tranqüilidade até
esse momento, de repente entram em crise, ou nunca acabam de decidir. De fato
vemos que somente observa do quantos perseveram depois de um tempo de
votos perpétuos, é que podemos ter certeza de quantos somos, na realidade.

Digamos, antes de mais, que não é a primeira vez que a VC atravessa um


período de crise, e também que esta não é a maior crise por ela vivida ao longo da
sua história. Baste lembrar as perseguições locais de outros séculos, as epidemias,
a Reforma protestante, a Revolução Francesa e as guerras liberais desde o final
do século XVIII até aos meados do século XIX, as perseguições do nosso século
por parte de regimes totalitários: nazismo, fascismos e comunismos vários. A
história, hoje como sempre é mestra de vida; temos que conhecer o passado para
compreender o presente e preparar o futuro. Ignorar o passado é desconhecer-
se a si mesmo e se condenar a repetir os próprios eventuais erros. A criança e
o adolescente vêem apenas o futuro; o ancião, somente o passado; a pessoa
humanamente madura é aquela que possui e vive os três tempos (passado,
presente e futuro) de maneira equilibrada. E a situação atual está pedindo de
todos nós um suplemento de sabedoria e de maturidade humanas e cristãs, para
poder servir melhor o homem e o Reino de Deus.
28
a) Para termos a coragem de dizer alguma coisa a respeito do futuro, digamos,
em primeiro lugar, algo sobre as etapas vividas pela VC nestas últimas décadas
(sempre nas grandes linhas e considerada globalmente).

Nos primeiros anos depois da celebração do concílio Vaticano II, aconteceu,


antes de mais, uma crise da instituição, ou desinstituicionalização, uma rejeição
quase instintiva e generalizada, por parte de muitos, do aparelho institucional da
VC (como também da Igreja). Explodiu uma crise que estava latente já fazia muitos
anos, por não dizer séculos; crise motivada fundamentalmente pela ausência de
uma adaptação ajustada à cultura em que de fato se vivia. Atribuir simplesmente
ao Vaticano II a crise posterior a ele, significa somente desconhecer, mais uma vez,
a história. Em PC 2-6, os Padres, assistidos pelo Espírito Santo, afirmaram que era
preciso: eliminar o que já fosse de tempos passados, adaptar o que ainda fosse
válido, e introduzir novas estruturas. Tudo isto representou uma mexida federal,
uma verdadeira “revolução cultural”, a qual, sem dúvida -como quase todas as
revoluções- produziu entusiasmo, confusão, vítimas e melhorias.

Este vazio de estruturas deixou a pessoa ao relento, sem aquelas bengalas,


ao qual ela não estava habituada. Eram os últimos anos da década dos sessenta:
os anos do Primeiro Capítulo Geral depois do Concílio. Deste naufrágio das
estruturas emergia uma pessoa mais consciente da sua unicidade, dignidade e
liberdade, porém atordoada e freqüentemente frágil.

Tudo isto deu lugar a uma crise de identidade: o que significava ser
religioso nas novas circunstâncias, valia a pena continuar em frente? O efeito foi
extraordinário: desencadeou-se o estudo do próprio carisma e das fontes, da figura
do Fundador etc... Começou um esforço imenso e enormemente enriquecedor.

A fragilidade do indivíduo fez com que ele se aproximasse, com uma


visão nova, a seus irmãos de carisma: aconteceu uma grande ênfase da vida
comunitária. Estamos entre os anos 1968 e 1973. Uma comunidade, em todo caso,
diferente da anterior em muitos aspectos: uma comunidade menos estruturada,
e mais comunhão carismática e lar humano. Conseqüentemente, adquiria um
novo significado a oração em comum, a partilha dos sentimentos humanos e das
experiências espirituais, desaparecendo, pelo contrário, quase completamente o
silêncio, tão sagrado em outros tempos.

Todavia, a comunidade religiosa percebeu que ela não existia sozinha,


nem somente para si mesma, formando antes parte de uma comunhão mais
ampla: a Igreja universal, encarnada na Igreja local. Os religiosos iam descobrindo
os outros cristãos da paróquia, da diocese, do bairro, do prédio ... ; sentiam-se
mais próximos das pessoas e menos uma casta separada.

Ora, este «estar» dos consagrados no meio das pessoas, tinha uma razão
de ser: a missão. Os carismas são dons do Espírito para a construção do Povo de
Deus, minha vocação é um dom que Deus faz aos outros através de mim. Tudo
29
isso levou a focalizar a missão, a reformulá-la. Nós somos para os outros, estamos
em missão: fomos chamados para ser consagrados, para ser enviados. Estamos
entre 1974 e 1980 (os anos da EN 1975, do MR 1978 e do RPH 1980).

Contudo, realizar a missão estava se manifestando cada vez mais difícil.


A sociedade não aceitava facilmente a missão dos consagrados; ela estava
se secularizando depressa. Muitos consagrados sentiam-se impreparados,
espiritualmente, culturalmente e, às vezes, até humanamente. Por isso, reforçou-
se mais ainda o interesse pela pessoa, intensificou-se a formação inicial e
«inventou-se» algo que a sociedade já tinha descoberto fazia tempo: a formação
permanente.

No final dos anos 70 e no início dos 80, houve um retomo à instituição,


se bem que renovada: uma nova institucionalização. Acabava o tempo das
experiências, e chegava a hora de chegar a conclusões concretas. No nível de
Igreja foi aprovado o novo CD (1983), e no nível de cada Congregação iam sendo
aprovados os textos definitivos das novas Constituições. Acabava o pós-concílio e
começava uma nova Época: o pós-posconcílio.

Este interesse renovado pela pessoa, e esta “calmaria exterior” depois de


tantos anos de buscas e discussões, fez com que nos anos 80 renascesse fortemente
a preocupação pela espiritualidade. Na verdade, já no final dos anos 70 aconteceu
um “boom” de interesse em relação à oração (agora pessoal, pois a coletiva já fora
recuperada anteriormente); aparecia um grande interesse pela interioridade, pela
dimensão contemplativa da VC (DCVR 1980), pela Cristologia, a Pneumatologia,
a Mariologia (RMa 1987) e o silêncio. Multiplicavam-se as experiências chamadas
de “deserto” e cresciam como fungos as “casas de espiritualidade” ou de acolhida,
etc.

Existia o perigo de cair numa espécie de intimismo ou de pietismo, o


privatismo. Um bom antídoto foi, ainda muito lentamente, ao longo dos anos 80,
o interesse pelo tema da “Nova Evangelização”, que João Paulo II estava pregando
desde 1983, com motivo da sua visita no Haiti; a celebração dos 500 anos do
início da evangelização das Américas; e o documento sobre a formação (PI),
cuja preparação se alongava já por mais de vinte anos. Além disso, estávamos
entrando num período de um certo cansaço: os temas repetiam-se, porém sem
muito mordente.

Na primeira metade dos anos 90, temos vivido mais ou menos intensamente
algo que poderíamos chamar “o Sínodo e seus arredores”. Um período que foi
dos [mais de 1991, quando o Papa anunciou o tema do Sínodo sobre a VC, até
a primavera de 1996, com a publicação da Exortação Apostólica Pós-sinodal
“Vita Consecrata”, e cujo momento central foi a celebração desta Assembléia, em

30 Outubro de 1994. Um Sínodo que foi, no dizer do Cardeal Daneels de Bruxelas, o


mais concorrido, o mais participado e o mais tranqüilo. Os consagrados demos
uma grande prova de responsabilidade, apesar de que ele não foi sentido ou
seguido com a mesma intensidade em todos os lugares. No mais, a Exortação não
pretendia certamente, nem podia, ser perfeita ou satisfazer todo mundo; mas não
se pode negar que é um bom documento, certamente o melhor sobre a VC do
Vaticano II até hoje; um documento positivo, estimulante e aberto; não é a última
palavra (nem poderia pretender sê-lo: basta ler as palavras do n. l3e, onde o Papa
nos exorta a uma “adesão cordial” e a “continuar a reflexão”), mas é, sem dúvida,
uma grande palavra.

O risco consiste em que, considerando que nestes anos estamos sendo


bombardeados por uma chuvarada incessante de documentos ec1esiais e
congregacionais e que, por outro lado, muitos sofrem de uma espécie de
alergia pela leitura, sendo levados pela “sociedade da imagem”, este documento
possa ter caído no esquecimento, que não tenha sido meditado seriamente ou
inc1usive que nem tenha sido lido. Dependerá muito dos formadores, diretores
espirituais, pregadores, escritores, etc . ... , que seja transmitido às novas gerações
de consagrados.

b) Chegados neste ponto, o quê podemos dizer sobre o futuro da VC? Quê
características aparecem na VC que está surgindo em volta de nós, e em nós mesmos?

No mundo chamado ocidental, particularmente o mundo europeu, diante


do secularismo, da busca frenética do hedonismo e da liberdade, e diante do
envelhecimento dos consagrados e a escassez de vocações, estão aparecendo
dois interesse: 1) em favor da dimensão contemplativa da VIC, e 2) da inserção
no meio do povo. Muitos jovens demonstram muito pouco interesse pelas
grandes obras e pelo eficientismo das gerações precedentes; gostam, pelo
contrário, dos grupos pequenos, de ser sinal e testemunho, levedo na massa, da
proximidade com as pessoas concretas, particularmente os pobres. Interesses
mais do que justos, se evitarmos o perigo de cair no pietismo, no privatismo, e de
simplesmente se encarnar para sumir dentro da massa. Existe também uma certa
tendência ao aburguesamento, a uma vida espiritual fraca, e um certo número de
personalidades frágeis (consagrados “light”).

No mundo ex-comunista, os novos consagrados, que entraram depois do


colapso da URSS, trouxeram consigo um testemunho de sofrimento, fidelidade
e martírio que foi um exemplo para todos. Todavia, eles estão tendo que se
atualizar rapidamente, depois de tanto tempo perdido, sem por isso perder os
seus valores e sem imitar os defeitos do Ocidente. Um trabalho nada fácil. Creio
que a grande solução é o diálogo; um diálogo que vai nos enriquecer, e que já
está nos enriquecendo a todos. Todos temos que aprender de todos; ninguém
tem “o” modelo válido para todos; determinados “messianismos, de uma parte
ou de outra, estão se demonstrando sempre falsos. Sem esquecer que já está
despontando a geração que não conheceu o comunismo, e que vem aí com uma 31
mentalidade diferente.

No Terceiro Mundo, os que vivem nas grandes cidades correm perigos


muito semelhantes aos do mundo ocidental; os outros (e também muitos dos
que moram nos centros urbanos) vivem uma realidade de grande inserção entre
as pessoas e de verdadeira preocupação e serviço aos pobres. Mas em não poucos
lugares é preciso cuidar bem a formação (saber “perder tempo” para se preparar
cultural, humana e espiritualmente, pois em caso contrário, em pouco tempo
pagam-se as conseqüências desta superficialidade!), e fortalecer as pessoas para
ajudá-Ias a perseverar: não são poucos os que, depois de uns anos (ou menos até)
de grande e sincera atividade apostólica, acabam largando tudo.

c) Finalmente, para que futuro estamos nos encaminhando? Eu ousaria


indicar alguns pontos, sem querer brincar de profeta.

A VC está mudando. Globalmente, estamos diminuindo em número. Em


alguns países de velha tradição (como os ocidentais, mas também em alguns
lugares do Terceiro Mundo), constata-se um envelhecimento preocupante, que as
novas vocações não conseguem equilibrar. Em outros países, sobretudo alguns
do Terceiro Mundo, acontece, pelo contrário, um crescimento estupendo. A VC,
portanto, está mudando de lugar e de cultura; e isto, futuramente, comportará
outras mudanças nos níveis teológico e comportamental, quando for cada vez
menor a influência dos antigos países originais do Instituto, e se proceda a uma
inculturação radical.
Em todo caso, o grande risco para a VC não é o número (que depende
de Deus e de muitos imponderáveis históricos), mas a qualidade. Por outras
palavras, o perigo (e não somente o perigo, às vezes!) da mediocridade, da falta de
radicalismo evangélico, do aburguesamento, da ambigüidade, do individualismo,
da incoerência, da superficialidade, da falta de preparo, etc. E este não é um
problema somente dos jovens, mas de todos os consagrados, por mais idade
que tenham. Não devemos esquecer que nós mesmos somos a melhor ou a pior
propaganda vocacional.

Alguns Institutos, ou em alguns lugares, será necessário aprender o que


foi denominado a “ars moriendi carismatica”, ou seja, também, saber morrer, saber
desaparecer. O problema não é morrer, mas perceber se chegou realmente a hora,
ou seja, se o Instituto já realizou a missão que o Espírito lhe confiou. Depois disso,
morrer é um sinal de confiança em Deus, de abandono à Sua vontade e de pobreza
evangélica. No mais, a experiência histórica e a fé em Deus nos garantem -como
repetidamente diz a Exortação Pós-sino dai (VC 3.29.63)- que a VC não faltará ao
longo dos séculos, embora possam evoluir e desaparecer muitas das suas formas.

32 As novas formas de VC e de vida evangélica em geral, que estão aparecendo


continuamente na Igreja: o Espírito não esgotou a sua criatividade! (cf. VC 62).
Prova disto é a contínua emergência de novos grupos e experiências em todos
estes anos, inclusive naqueles países onde a VC «tradicional» se encontra mais ou
menos em crise ou em fase de extinção.

Conclusão

E se perguntássemos ao Cristo sobre o nosso futuro, o responderia?

Tudo o que dissemos até agora nos conduz a ler a realidade atual da VC,
não de maneira alarmista, e também não ingênua, mas providencialista. Antes de
mais, temos que agradecer pelo seu crescimento e expansão em tantos lugares
e, no que diz respeito à situação crítica em não poucos Institutos ou partes dos
mesmos, atualmente, não devemos vê-Ia como efeito de uma espécie de castigo
divino (como poderíamos dizer tal coisa, quando tem havido e há ainda tanta
entrega e tanta fidelidade?), mas como a passagem contínua, embora talvez
surpreendente e criativa, de Deus na história da humanidade. No mais, o futuro
da VC não depende do número de consagrados nem do prestígio ou da eficácia
humana das suas obras e instituições, dos cargos ocupados pelos consagrados na
Igreja ou na sociedade, etc.; mas da sua atenção e acolhida, alegre e disponível, da
voz do Espírito. Nunca devemos esquecer que o Espírito é a nossa força:

Aquele que nos fez nascer na Igreja, para a Igreja e para o mundo; mas é
Ele, também, quem nos faz entrar em crise, ou até decreta, se for preciso, a nossa
morte, se nos tornarmos servos que não sabem explorar os dons recebidos no
momento e da maneira devidos (cf. Mt 25,24-30; Lc 19,20-36). Poderíamos citar
aqui uma famosa frase de Georges Bernanos: “O Evangelho é jovem, vocês é que
são velhos!”.

No mais, não devemos perder muito tempo em tentar adivinhar como


será a VC do futuro, o tanto fatídico quanto banal século XXI. Temos, antes, que
nos esforçar em vivê-Ia hoje com a maior fidelidade possível: esta é, certamente,
a melhor preparação para o futuro que Deus quiser nos dar. Se perguntássemos
ao Cristo, como vai ser o futuro, e quantos e como vão ser os nossos sucessores,
quem sabe se não nos responderia talvez como a Pedro: “O que tu tens com isso?
Tu, segue-me!” (Jo 21,22)?

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Artigos
MISTICA E PROFECIA UM ESTILO DE
VIDA E “NOVOS AREÓPAGOS”
Ciro Garcia, ocd *

“Que bom eu saber que a fonte emana e corre,


ainda que seja noite” (São João da Cruz)

RESUMO: Mística e profecia constituem uma descoberta gozosa das fontes da salvação para a da
35
vida consagrada. Elas são uma experiência baseada na fé, que se alimenta visceralmente de Deus. Os
religiosos são chamados a recriar o carisma místico-profético na Igreja, através da experiência viva,
concreta de Deus e sua Palavra, numa espiritualidade contemporânea, que assinala a urgência desse
testemunho, sobretudo em novos areópagos que aparecem para e na vida consagrada. O inseparável
binômio se torna testemunho porque importa no seguimento afirmativo de Jesus, o apaixonado por
Deus e pela humanidade. A mística aponta para alguns areópagos concretos (vivencia pessoal da
fé, escuta da Palavra, experiência de Deus), enquanto a profecia se faz em outro estilo ( desde de uma
situação de exílio, capaz de criar comunhão, humanizar, descobrir a sabedoria dos pequenos sinais). E
por consequência a VC se torna uma canção de almas enamoradas do Senhor.

PALAVRAS CHAVE: Mística. Profecia. Experiência de Deus. Escuta da Palavra. Consagração


humanização. Areópago.

ABSTRACT: Mystic and prophecy, a non-separable binomial of the consecrated life (CL) constitute
a joyful discovery of the sources of the salvation. They are an experience based on the faith, which
viscerally itself of God. The religious ones are required to recreate the mystic-predictive charisma in
the Church, through the alive experience, certain of God and his Word, in a contemporary spirituality,
which designates the urgency of this certification, over all in new areopagus that appear for and in
the consecrated life. The Non-separable binomial becomes a testimonial because it matters in the
affirmative pursuit of Jesus, the passionate one for God and humanity. The mystic indicates to some
sure aeropagus (personal existence of the faith, listening of the Word, God’s experience), while the
prophecy is made in another style (ever since a exile situation, capable to create communion, in order
to humanize, to discover the wisdom of small signals). The consequence is that the CL becomes a song
of the Lord’s enamored souls.

KEYWORDS: Mystic. Prophecy. Experience of God. Listening of the Word. Consecration humanization.
Areopagus.

* Professor de Teologia Dogmática e Antropologia na Faculdade de Teologia do Norte da Espanha,Sede de


Burgos. Lecionou em Roma, Madrid, México, Haifa e Honduras.
Introdução

• “Que bom eu saber que a fonte que emana e corre...”

O maior dom, o presente mais precioso que o Senhor pode dar à vida
consagrada e a cada religioso, é fazer-lhes provar (fazer gostar) essa fonte secreta
de água viva -»coisa tão bonita que o céu e a terra bebem dela»-, beber e cantar
seu rico caudal - «caudalosas correntes que regam infernos, céus e gentes» - e
saciar a sede das criaturas - «as criaturas que aqui são chamadas e fartam desta
água, embora no escuro». Foi isto que aconteceu na vida de Frei João da Cruz,
místico, cantor e profeta, que se delicia ao conhecer os mistérios da fé (fonte),
que irrompem na história como um torrente (Cristo) e inundam toda a vida (céu e
terra). Esta irrupção é como a dos rios abertos no deserto anunciados pelo profeta
(cf. Is 43,19), que fazem a reverdejar a terra e dão frutos abundantes (cf. Ez 47, 8-9).

Assim experimentou e cantou João da Cruz sua fé em Deus, enquanto


esteve perseguido, marginalizado e preso no calabouço mais sombrio da prisão
36 de Toledo (novembro de 1577- agosto de1578). Ali num lugar escuro e tenebroso,
nasceu o poema da Fonte, cheio de vida, de luz e de cor, que canta sua experiência
de conhecer a Deus na fé, superando a hostilidade, a escuridão e até mesmo a
morte.. Penso isto como uma parábola para a vida consagrada, enraizada nas
fontes da salvação, como a fonte escondida, como manancial secreto, cujas
águas torrenciais são chamadas a fecundar nossas planicies ressequidas e nossos
desertos estéreis, fazendo germinar neles a vida, florescer as plantas e amadurecer
os frutos para a vida do mundo. E isto, ainda que seja noite e trevas se adensen
e asdificuldades se avolumem.

Não é outro não é o significado que inclui a experiência mística e profética


da vida consagrada. É a descoberta gozosa das fontes da salvação, a descoberta
do tesouro escondido, o encontro com Cristo e o anúncio profético do seu Reino.
Mística e profecia são acima de tudo uma experiência que vamos tentar descrever
não tanto teologicamente quanto existencialmente.

Neste sentido é que vamos abordar os novos areópagos da mística e da


profecia:

a) são uma experiência baseada na fé, alimentada pela Palavra, que


descobre Deus em meio à vida e se sente a urgência de testemunhá-
la (areópago do mística);

b) são igualmente o anúncio a partir de uma situação de exílio (noite),


que cria comunhão, que humaniza através de pequenos sinais e do
serviço da caridade (areópago da profecia).
Tudo isso prorrompe num canto de louvor, que faz sua «as alegrias e
esperanças» da família humana e profeticamente recria a vida consagrada.

• Chamados para ser profetas e místicos

Todos os nossos fundadores e co-fundadores eram místicos e profetas.


Somos chamados a recriar seu carisma místico-profético na Igreja. Sem místicos e
profetas a vida consagrada não tem futuro. Mística e profecia são duas vertentes
essenciais de toda identidade religiosa, da vida cristã e da vida consagrada,
estreitamente relacionadas. A primeira se projeta mais diretamente rumo à união
com Deus; a segunda concentra-se mais imediatamente no cumprimento de sua
vontade aqui e agora. Só uma sábia combinação de uma e outra pode forjar uma
identidade religiosa genuína de Deus e o ser humano. Não há autêntica nística se
não desemboca a um compromisso ético e profético; nem é concebível em uma
profecia que não se alimenta num relacionamento profundo com o divino1.

Todo homen-toda mulher, todo consagrado-toda consagrada, estão 37


chamados a ser místicos e profetas, ou seja, ter uma experiência de Deus e sua
Palavra, que hão de transmitir; ambos também são chamados a comprometer-se
com a história da Igreja e do seu tempo. O verdadeiro caminho, portanto, reside
na conjugação destas duas identidades: não tanto ser místico “ou” ser um profeta,
mas ser místico ”e” profeta.

Partindo pois deste pressuposto e da própria experiência pessoal:


1) iremos desenvolver cada uma das duas identidades religiosas como duas
identidades básicas da experiência cristã, observando ao mesmo tempo a dinâmica
das relações entre elas; 2) descreveremos brevemente o ressurgir da mística e
profética da espiritualidade contemporânea; 3) realçaremos sua incidência
na vida consagrada, na sua dupla dimensão mística e profética, assinalando a
urgência do testemunho místico e profético na igreja atual; 4) indicaremos, por
fim, alguns os novos areópagos da mística e da profecia que aparecem no cenário
da vida consagrada.

1. Duas experiências básicas da vida cristã

Mística e profecia são duas experiências, duas realidades fundamentais da


vida cristã, porque elas respondem a duas dimensões essenciais da revelação de
Deus ao homem e a duas dimensões essenciais também pelas quais o ser humano
1 Ultimamente muito se tem escrito sobre o assunto. Remetemos à bibliografia final.
entra em relação com Deus. Do ponto de vista bíblico estas duas dimensões são
expressas pelos termos Ruah (espírito) e Dabar (palavra)2.

Mística e profecia não são identidades religiosas estáticas, mas dinâmicas.


Isso significa que elas ocorrem dentro de um processo religioso de maturação e
purificação da pessoa (as noites de São João da Cruz), resultado de uma história
complexa de identificações, caracterizado por este empenho pessoal de dar
plenitude e sentido à própria existencia. No horizonte místico, esta plenitude só
se alcança no encontro com Deus (a união mística), que é o desejo mais profundo
do ser humano (cf. GS 19): «se a alma procura Deus, muito mais o olhar do seu
amado se volta para ela» (Llama de amor viva 3.28).

Costuma-se dizer que todos nós carregamos dentro de nós um místico(


e um profeta), como todos nós um pequeno buda, que encarna as necessidades
e os desejos mais profundos, que busca o sentido da vida, que aspira por um
futuro de mudança e novidade e pela realização utópica final. Se isso for verdade
antropológica e religiosamente falando, muito mais o é desde o ponto de vista
da fé cristã e da vida consagrada. Na verdade, o cristianismo é primordialmente

38 uma mística, e não um código de ético ou moral; é a mística do seguimento de


Jesus e a configuração batismal com ele. Da mesma forma, a vida consagrada é
uma mística e uma profecia; é essencialmente uma consagração a Cristo (mística)
e anúncio da boa nova (profecia).

1.1. A experiência mística

A experiência mística, qualquer que seja sua expressão, parece ter como
principal objetivo a busca de uma união que rompe os limites do Eu e, assim,
mergulha em uma realidade vivida como plenificante, que é a união mística.
Experiência mística é essencialmente pati divini, isto é, experiri a presença de Deus
e “sofrer”, “sentir” acolher sua ação transformadora em nós; é portanto, vínculo,
relação, «olhar amoroso», contato amoroso com uma realidade imensamente
valorizada e concebida como o centro secreto mais íntimo da existência e como
fonte permanente da mesma, que faz o mísitico exclamar: «Oh chama de amor
viva / que com ternura feres / minha alma no centro mais profundo!» (São João
Cruz, Llama de amor viva).
2 Ruah (feminino) faz o ser humano tornar-se participante da realidade de Deus e tende à união com Ele.
Dabar (masculino) estabelece o diálogo entre Deus e os seres humanos, respeitando a distância. Daqui pro-
vém a seguinte articulação entre mística e profecia, segundo Carlos Domínguez: “mística e profecia, espírito
que une e palavra que assume a distância, aparecem como dois modos básicos que têm necessariamente
de articular-se para configurar a identidade religiosa, tanto como uma a identidade de relação, como de
uma ‘religação’ em comunhão (espírito) e diálogo (palavra) entre o humano e o divino. Nesse encontro e
religação, Ruah que não desemboca em Dabar, a mística que não incorpora a dimensão profética, facilmen-
te deriva em pura subjetividade, numa dinâmica de regressão, em puro extravío… “Por sua vez, Dabar, a
palavra profética como palavra ouvida e transmitidos, dificilmente poderia chegar a estabelecer-se de modo
autentico se não está fortificada pela Ruah, o espírito que impulsiona e olha para o encontro e a união”. CAR-
LOS DOMÍNGUEZ MORANO. Místicos y profetas: dos entidades religiosas, 48 Proyección 48 (2001) p. 357.
A experiência mística vai além do conhecimento conceitual; não se
aprende lendo ou pensando, mas vivendo e sentindo. São João dla Cruz fala do
“saber por experiência” frente ao “saber por ciencia” (Cântico espiritual, Pról. 3).
Sua realidade fundante é a experiência amorosa de Deus, a quem João da Cruz
chamada “mãe nutritiva”3. A primeira preocupação de uma mãe para com o filho
são “necessidades”, não seus “deveres”. Perante este Deus do amor, a única resposta
sadia e madura é aprender a amar a deixar-se amar e deixar-se curar as feridas.

Esta atitude se manifesta em um particular estado de consciência de


confiança e abandono na realidade crida e amada de Deus, na qual não somente
joga papel decisivo a graça mas também psicologia pessoal de cada um e sua
própria condição de homem ou mulher. Diz-se que as mulheres têm maior
predisposição para o místico e os homens para a profecia. «A mãe cria vida, o
pai a história» (G. Van der Leuw). Embora os componentes místico-proféticos
ocorram tanto entre as mulheres quanto os homens, historicamente as atitudes e
comportamentos proféticos mais estreitamente estão ligados aos componentes
masculinos da personalidade: direito, requisito, denúncia e castigo...

39
1.2. A experiência profética

Assim como a vivencia mistica se caracteriza pela experiência da presença


envolvente do outro, a vivencia profética caracteriza-se por ouvir a palavra que
vem da divindade e que o profeta se vê forçado, frequentemente mesmo com
relutância, a transmitir. O profeta é o porta-voz de uma mensagem divina; a
divindade irrompe nele, não tanto para se comunicar em sua intimidade, quanto
para fazê-lo dizer sua palavra salvífica. A palavra ouvida e transmitida sempre
envolve a exigência de uma ação transformadora na história, com o ouvido no
coração de Deus e a mão sobre o pulso da história e os olhos nEle (cf. Subida 2,22).

O espaço simbólico da identidade profética não serão espaço intimo e


interior da céla, como no caso da experiência mística. Seu espaço paradigmático
será o da praça, onde acontece a vida social, nesta rede de relações interpessoais
tecidas pela vida política, económica e cultural.

Mas a dinâmica do profetismo está intimamente ligada a uma experiência


de comunhão com Deus, a qual deve ser qualificada como genuinamente mística.

Neste sentido, vemos como o profetismo bíblico evolui desde um


decifrar enigmas até a descoberta de uma missão e uma responsabilidade
histórica, comprometida com a coletividade. Assim, preocupação pela justiça,
3 “Deus se comunica com a alma com tantas forças de amor, que não há nenhum distração de”mãe”, com
tanta ternura acaricia seu filho, que nem o amor de ‘irmão’, nem a amizade de ‘amigo’ se possa comparar”
(Cântico espiritual 27.1).
pelo estabelecimento de uma sociedade digna de Deus e de seus filhos, os seres
humanos, vão se tornando o centro do profetismo judaico4.

1.3. A irrupção do “outro” e a experiência da alteridade

Místicos e profetas, em suas distintas vertentes, têm algo em comum:


ambos são testemunhas da irrupção do Outro, que os transcende e em cujo nome
se transformam, modificando sua identidade pessoal. O místico já não é mais o
mesmo depois da visita do Outro, com quem agora se sente amorosamente
vinculado. Também o profeta se vê invadido pela presença deo Outro que irrompe
em sua vida causando um transtorno profundo em seu ser e sua atuação. O Eu dá
lugar a outro e outro.

O místico experimenta o Outro que irrompe nele desde o mais profundo


de sua interioridade. O profeta, em troca, descreve esta irrupção do Outros não
tanto como emergindo de seu interior, mas como uma voz que vem de fora. Uma

40 voz inesperada, surpreendente e, de um modo geral, inquietante, que chama


a uma missão difícil: “Ai de mim! Eu homem de lábios impuros” (Os 6.5). Ah,
meu Senhor! Vê que eu não sei falar, que eu sou apenas um menino (Jr 1.6). “Ai
evangelizar se não evangelizar! “(1Cor 9,16).

A experiência mística tem uma tonalidade emocional e amorosa. Por


outro lado, a experiência profética aparece como palavra que exige e convoca à
realização de um empreendimento difícil.

A experiência da irrupção do Outro vai acompanhada de uma experiência


de desapego radical de si mesmo, que é antes de mais nada uma experiência de
abertura ao outro, ou seja, a alteridade é que autentica a experiência mística. A
alteridade é, por sua vez, o “esquecimento de si” (saída do nosso mundo encerrado
em apegos e conforto) e «radical abertura ao outro»5.

Desta forma, a experiência mística se torna realmente significativa,


converte-se em uma experiência profética.

Porém tantos místicos quanto profetas desencadeiam suspeita, resistência


e rejeição daqueles que estão relacionados com eles…

4 Cf. J. L. SICRE, Profetismo em Israel, Verbo Divino, Estella (Navarra) 1992.


5 Assim, para João da Cruz, no início de qualquer experiência de Deus há sempre um “êxodo”, uma “saída”, uma
experiência de desapego radical.
2. O despertar místico e profético da era contemporânea

Se a mística e a profecia respondem a duas dimensões básicas da


experiência religiosa, estas dimensões ainda continuam presentes nos nossos
dias, embora elas também tenham perfis e padrões diferentes das figuras
históricas dos profetas da antiguidade e diferentes também dos grandes místicos
dos tempos de efervecencia religiosa, como as da Reforma e Contrarreforma.

O século XX apesar de seu processo de secularização e crise religiosa - pelo


menos no mundo ocidental - é caracterizado por um crescente interesse tanto
pelo estudo quanto pela vivencia mística. É fato constatável o atual renascimento
das experiencias místicas, bem como o estudo e interesse por elas no campo das
ciências humanasl. Nesta nova revalorização da experiência mística, se destaca
também a sua dimensão utópica e sua ubicação no próprio coração da história e
não à margem dela.

Este movimento de renovação, que emergiu no ar profético dos


movimentos bíblico, patrístico e litúrgico, foi chamado «novimento místico» e
está amplamente documentado nos estudos que citamos na nota abaixo6. Ele
tende a promover a vida mística como a plenitude da vida cristã e a denúncia
profética da cultura secularista e materialista da nossa sociedade.
41
Nós todos fomos e sãmos protagonistas, em maior ou menor medida,
desta situação religiosa do século passado e do nosso século, caracterizado
por uma série de mudanças rápidas e profundas, que marcam nossas vidas:
secularismo, modernidade, pós-modernidade, juntamente com clamorosas
situações de injustiça e de marginalização. Face a estas situações e mudanças
profundas, tivemos que reajustar os parâmetros da nossa vida consagrada,
seguindo as diretrizes conciliares de um «retorno constante às fontes de toda a
vida cristã e à inspiração original de nossos institutos e uma adaptação deles às
novas condições dos tempos “. (2 PC)

Tenho seguido pessoalmente muito de perto a evolução da situação


religiosa contemporânea, através do estudo das correntes de espiritualidade
e de minhas próprias tarefas pastorais. Por isso quero caracterizareste estudo
mais desde minha própria experimência do que desde as abordagens teóricas,
teológicas ou pastorais.

Minha experiência tem sido profundamente marcada por estes dois pólos:
o da volta às fontes da revelação e o da abertura às necessidades do mundo
contemporâneo, com suas situações de pobreza, marginalização, violência
6 Permita-se-nos referirnos aos nossos próprios estudos, onde o leitor encontrará documentação abundante:
CIRO GAECIA, Corrientes nuevas de teologia espiritual, Studium, Madrid, 1971; ID.,Teologia espiritual
contemporânea. Corrientes y perspectivas. Editoroal Monte Carmelo, Burgos, 2002; ID., La mística do
Carmelo, Editorial Monte Carmelo Burgos 2002; ID., Mística, mistério y teologia, Leccion inaugural do ano
lectivo 2003-2004 Faculdade de Teologia do Norte de Espanha, Burgos 2003; ID., Mística no diálogo. Congreso
Internacional de Mistica. Seleción y síntesis, Editorial Monte Carmelo Burgos 2004.
e injustiça. O elo ou o laço de união entre estes dois pólos tem sido minha
preocupação com mística e especificamente, a mística carmelitana. Isso me deu a
síntese vital-existencial da minha teologia e minha consagração religiosa e aviva
em mim uma renovada consciência das situações descrença (primeiro mundo) e
pobreza (terceiro mundo).

A partir destas considerações, tenho tentado dar uma resposta aos


problemas colocados hoje pela fé e pelo anúncio da mesma;e u também tenho
tentado responder aos desafios da consagração e da missão da vida religiosa
na Igreja, sensíveis às situações de pobreza e a exclusão de amplos setores da
humanidade.

A este respeito, gostaria de expressar algumas convicções:

1ª. Vida cristã e, em particular, a vida consagrada, não podem ser vividas
à margem da situação contemporanea que atinge hoje a fé e espiritualidade
em geral; igualmente é preciso conhecer para responder profeticamente tanto
42 aos desejos e perguntas mais profundos do ser humano quanto às situações
dramáticas da pobreza e a marginalização.

2ª. Além disso, é nenessário fundamentar-se nas fontes bíblica e litúrgica;


e também em uma séria reflexão teológica, que nos ajude a penetrar no
mistério revelado da nossa fé, superando, assim, o divórcio entre a teologia e a
espiritualidade. Às vezes se fala do deficit espiritual da vida religiosa; mas nós não
deveriamos falar também em alguma medida do deficit da formação teológica?

3ª. Finalmente, a vida consagrada deve basear-se na dupla abertura:


mística e profético, que nós descrevemos. A experiência mística representa a
plenitude da vida cristã; é a experiência vivida não só no silêncio da oração, mas
também no cotidiano da existência, no dinamismo teologal.

4ª. A experiência profética, que se alimenta a experiência mística, urge


o compromisso ético e social, que se traduz não tanto nas grandes causas da
humanidade quanto nos pequenos gestos da humanização: atenção aos pobres,
doentes e marginalizados. A experiência de Deus não pode acontecer no
isolamento, na indiferença, na falta de atenção para o sofrimento dos homens.

3. A interpelação mística e profética da vida consagrada

Quero começar esta seção com um texto de Albert Nolan, que fala da
vida consagrada como testemunho profético: “a vida consagrada não é apenas
um modo de vida que dá testemunho da realidade de Deus..., senão também
uma maneira de viver que contradiz os valores do mundo, os valores da maior
parte da nossa sociedade. É um testemunho profético, porque denuncia, como
fazem todos os profetas…, porque se atreve a enfrentar os valores do mundo
que a maioria das pessoas dão como certos. É profético porque quer superar a
cultura do sexo, a cultura do dinheiro e a cultura do individualismo. “Desta forma,
atesta que um outro mundo é possível, que há uma alternativa, que é possível um
mundo de amor e justiça, paz e felicidade” (p. 139).

A expressão deste testemunho profético da vida religiosa são os votos ou


promessas de nossa consagração: pobreza, castidade e obediência. Nossos votos
podem ser vistos como um testemunho profético contra os valores do mundo e
como um sinal de esperança para um mundo melhor para todos, destacando-nos
na nossa sociedade como pessoas esperançosas. A base da nossa esperança não
são sinais ou falta de sinais que encontramos em nosso mundo atual, mas Deus e
somente Deus: “Esperança contra toda a esperança” (S. Paulo).

Para fazer isso devenos apenas superar o pessimismo de muitas pessoas,


mas também a “culpa cultural”. Quando algo vai mal, nós tendemos a culpar
alguém, em vez de ver as possibilidades de cura, perdão e amor, imitando assim
a Jesus.
43
Todos conhecemos e experimentamos as mudanças na vida consagrada,
com suas luzes e sombras, com seus pontos fortes e fracos, suas realizações e suas
limitações. Sem querer fazer um balanço, hoje temos uma compreensão melhor
do que é a vida consagrada, de seus valores fundamentais, de sua teologia, de sua
espiritualidade e de sua missão na Igreja; e também uma melhor compreensão do
carisma específico de nossos fundadores.

Pressuposto tudo isso, nos perguntamos em que sentido a vida religosa


se sente interpelada hoje na sua dupla dimensão: mística e profética. É do
conhecimento de todos o texto de VC sobre o profetismo da vida consagrada
(cf. VC 84-85). Centremos nossa reflexãono valor da consagração e no sentido da
missão7, fazendo uma referência ao Congresso Internacional da vida consagrada
de 2004.

3.1. A mística da consagração

A consagração religiosa não é compreendida à margem da mística do


seguimento de Jesus e a configuração com ele. O seguimento é uma memoria Iesu,
que torna presente Jesus, sua maneira de viver e comportar-se, em virtude dos
votos de pobreza, castidade e obediência. Implica uma união e uma familiaridade
com ele, como os discípulos, que marca profundamente a vida religiosa. Baseia-
7 Existem bons estudos sobre a teologia da Vida Consagrada. Aqui nos fazemos eco da obra de GABINO
URIBARRI. Portar las marcas de Jesùs. Teologia y espiritualidad de la vida consagrada, Comillas, Madridd,
2008 (4ª Ed.)
se no encontro, no contato, na familiaridade com a sua vida e sua pessoa, na
reprodução de seu estilo de vida, con sua prática pessoal, livre, escolhida e
amada, de pobreza, castidade e obediência. É o fundamento verdadeiro, firme e
inconestável de nossa vida consagrada (cf. VC 88-90).

Evidentemene a vida consagrada é mais do que os votos; mas os votos


ainda continuam sendo parte essencial e significativa deste modo de vida,
chamada a viver os votos de uma maneira integrada como um fator de identidade
pessoal, como um lugar de encontro com Deus e a dimensão missionária da
própria existência, como parte da profecia que é. Se isso não nos identificas e
não se constata em seus efeitos no dia a dia, se nós aburguesamos e diminuimos
o sentido evangélico dos votos estaremos, em definitivo, enterrando o talento
recebido por medo de pô-lo em prática.

3.2. A profecia da missão

44
Não existe consagração sem missão. A vida consagrada é para a missão. A
consagração mesma, vivida como entrega a Deus, como o amor a Jesus e como
um serviço para o povo de Deus, já é uma missão: a missão por excelência de
anunciar Cristo, de torná-lo presente, reproduzindo as características existenciais
de sua vida por conselhos evangélicos (cf. VC 72-75). Esta é a dimensão profética
da vida consagrada.

Hoje se entende particularmente de forma afirmativa, como o foi a vida


de Jesus, isto é, anunciando a Boa Nova: “A missão do VC é converter-se por seu
modo de vida fraternal, sua forma de governo, sua simplicidade de vida, suas
realizações missionárias, educacionais, caritativas e contemplativos precisamente
como antecipação profética do Reino. Assim, se tornará um sinal eloqüente do
Evangelho,tanto para a sociedade onde se insere quanto para a Igreja na qual
floresce. Diante das vocações, a profecia afirmativa, que mostra alternativas
evangélicas visíveis aos males da sociedade, parece mais necessária do que a
profecia negativa”8.

No Sínodo sobre a vida religiosa, o cardeal J. Ratzinger ofereceu uma


contribuição magistral para o verdadeiro significado do profetismo, recolhido
na Proposição n. 39. Os valores da profecia estão radicados precisamente na
experiência de Deus e de sua palavra, na amizade com Deus que amadurece no
diálogo da oração, na paixão por sua santidade e sua glória, na busca apaixonada
de sua vontade e no testemunho da verdade. Uma ação profética que pede a
coragem no anúncio e na denúncia, na coerência de vida até a selar a mensagem
de Deus com seu próprio sangue. Uma ação profética que exigem também a busca
apaixonada de novos caminhos para construir o Reino de Deus, a comunhão
8 G. Uribarri. o.c., p. 305
eclesial. Por isto o verdadeiro profetismo se alimentad a palavra de Deus e da
contemplação de sua presença e sua ação na história.

3.3 Mística e profecia na “Paixão por Cristo e paixão pela humanidade”

Em novembro de 2004, foi realizado em Roma o Congresso Internacional


da Vida Consagrada sob o slogan: “Paixão por Cristo e paixão pela humanidade”9.
Nele se abordou a dimensão mística e profética à luz de dois ícones bíblicos:
o encontro de Jesus com a samaritana junto ao poço de Jacó (Jn 4, 1-42)
e a parábola do bom samaritano (Lc 10:29-37). Os dois ícones pretendem
harmonizar de modo fecundo: mística e profecia, contemplação e ação,
experiência e missão. Na verdade, no encontro com Deus, vida consagrada
descobre a fonte de um amor que faz a entrega e serviço ao próximo,
especialmente aos pequenos e fracos. E desde aqui se sente referido tanto
à dignidade da pessoa, muitas vezes menosprezada, quanto ao Deus de
amor e misericórdia.
À luz dos dois ícones bíblicos indicados, o tema mística e profecia adquire 45
um profundo sentido evangélico e representa um impulso de renovação da
vida consagrada no terceiro milénio. O primeiro ícone – o da samaritana com
o Senhor- destaca o amor e a paixão de Cristo: é concretamente a adoração,
conversa íntima da samaritana com o Senhor. O segundo - o do bom samaritano
- enfatiza a compaixão, amor e a atenção aos feridos de sarjetas da vida. Mas não
são elementos justapostos ou desarticulados; mas sim, desde a raíz do encontro
com o Deus da vida, com o Senhor das Misericórdias. Este é o critério com que o
Senhor vai nos ensinando a articular a adoração agradecida ao Mistério fundante
com compaixão comprometida pela humanidade ferida, como vamos ver no
próximo item.

4. Os novos areópagos de mística e profecia

A Exortação Apostólica de VC, falando sobre a missão da vida consagrada


(“Servitium caritatis”) indica os seguintes campos: missão ad gentes, inculturação,
opção para os pobres e cuidado com os enfermos (nn. 77-83). Mas alargando o
horizonte apostólico e missionário da Igreja: inclui novos areópagos, nos quais
se há de se fazer presente a vida consagrada: a presença no mundo da educação
e os meios de comunicação (nn. 96-99) e também o compromisso de diálogo

9 CONGRESO INTERNACIONAL DE LA VIDA CONSAGRADA, Pasión por Cristo, pasión por la humanidad,
Publicaciones Claretianas, Madrid 2005.O Congresso deu origem a vários comentários: JOSEPH CHALMERS,
Pasión por Cristo, pasión por la humanidad, Vida Religiosa 98 (2005) 274-280; GABINO URIBARRI, El encanto de
una pasión escatológico. Glosa a las “conclusiones” del Congreso, Cf. 44 (2005) 387-399; ID., La vida consagrada
mira al futuro, Rozón y Fe 251 (2005) 59-75. Nós fazemos eco deste último.
ecumênico e inter-religioso (nn. 100-103). Estes areópagos mantêm toda sua
atualidade e podemos dizer que eles são mais urgentes do que nunca. Mas para
sejam realmente uma presença evangelizadora, são chamados a revestir-se de
uma força profética capaz de tornar sua missão realmente significativo.

Ao falar aqui dos novos areópagos, o fazemos desde a dupla perspectiva


da mística e da profecia. Isso quer dizer que não vamos tratá-los tanto como
como campos de ação ou apostolado, mas sim como um estilo ou forma de vida,
como atitudes básicas, chamadas a permear toda a atividade apostólica. Portanto,
embora expostos separadamente, eles formam uma unidade inseparável, como
pode ser visto em nossa exposição anterior. Identidade mística e profética são
duas perspectivas de vida consagrada que se fundem na mesma realidade e que,
portanto, não podem viver nem ser cultivaadas separadamente. Desvirtuar-se-ia,
então, seu verdadeiro significado. Só o místico é profeta e todo profeta tem que
ser místico. Unidade de vivência também leva também à unidade de cultivo dos
caminhos que representam os novos areópagos hoje.

São atitudes básicas que se aplicam a todos os areópagos, embora,


46 obviamente, se cultivem uns mais do que outros, de acordo com o carisma de
cada Instituto e o próprio campo da missão. Vamos assinalar aqui aqueles que
nos parecem mais fundamentais.

4.1. Os areópagos da mística

Constatamos os seguintes: a vivencia pessoal de fé; a escuta da Palavra; a


experiência de Deus “em meio da vida”; a urgência do testemunho.

a) A vivencia pessoal de fé

Num mundo - particularmente europeu - em que somos chamados a viver


nossa fé sob a intempérie, sem apoios sócio-culturais ou religiosos, as pessoas
consagradas - juntamente com os outros cristãos - sentimos a necessidade
urgente de avivar nossa fé ante as perguntas de Jesus a seus discípulos: “por que
são tão covardes? Vocês ainda não têm fé?» (Mc 4.40). «Vocês também querem ir
embora?» (Jo 6,67).

Parece algo evidente e que nós normalmente damos por óbvio, porém,
convém não nos esquecermos. A vida consagrada se origina e se alimenta da fé.
O centro é Jesus Cristo, vivo e dela se alimenta, que a envia generosamente em
missão para um mundo que têm sede de espiritualidade, que a enche de seu
Espírito, para que seja um hino de louvor a Deus e Pai de todas as criaturas e
expressão de sua compaixão. Uma vez mais há que se dizer: a fecundidade e a
alegria de nossa vida passa mpela familiaridade com Deus, pelo encontro com
Cristo, a experiência mística da fé.

Neste contexto, o texto de K. Rahner adquire asentido: «O cristão do futuro


será um místico, ou seja, uma pessoa que experimentou algo, ou não será cristão.
Porque a espiritualidade do futuro não se apoiará mais numa convicção pública,
evidente e unânime, nem em um ambiente religioso generalizado, prévios à
experiência e a decisão persoais»10.

A motivação apontada de Rahner hoje se mostra muito mais radical. Não


é tão somente um ambiente adverso à fé cristã que exige uma experiência pessoal,
mas a própria natureza da fé cristã, que não é uma formulação doutrinária, mas
uma experiência, uma adesão plena a Deus, um encontro pessoal com Ele, a
resposta a seu convite amoroso (cf. DV 2.5).

A experiência de fé, como assinala o grande teólogo De Lubac, «não é um


aprofundamento de si mesmo; é o aprofundamento da fé; não é uma tentativa de
evasão para o interior, é o cristianismo mesmo». A novidade do mística cristão está
na peculiaridade da adesão a Deus pela fé: «fora a mística, o Mistério se exterioriza 47
e corre o risco de perder-se em pura fórmula”11.

b) A escuta da Palavra

O alimento essencial de fé é a Palavra de Deus, consignada na Sagrada


Escritura, fonte primária da mística cristão. Nela, se nos é oferecida ainda a história
da salvação em chave de aliança, encarnada pela tipologia do misticismo cristão.
Por isso a Palavra de Deus como fonte de vida não pode faltar na vida das pessoas
nem em suas comunidades e congregações. Os dois ícones - o bom samaritano
(Jesus Cristo) e a samaritana (nós) – nos falam do encontro com ele, como Mestre
comunicador e fonte de água viva, admiravelmente descrita por Santa Teresa de
Ávila (Vida, 30, 19). Portanto, Um caminho de renovação é colocar as Escrituras
no centro da vida, servir-se dela em oração, dialogar com ela, compartilhá-la,
celebrá-la, escutá-la (cf. VC 94). O último Sínodo sobre a Palavra de Deus na vida
e na missão da Igreja (cf. Sínodo dos Bispos, de outubro de 2008) deixou-nos
preciosas recomendações a este respeito.

Porém, a nova evangelização urge abrir-nos aos novos areópagoa, entre


eles o mass midia e particularmente a internet, colocandoos novos meios de
comunicação à serviço da Palavra.

10 K RAHNER, La natureza y la gracia. In Escritos teológicos, IV, pp. 215-243.


11 H. DE LUBAC, em prefácio a RAVIER (ed.), mística et les mystiques, DDB, Paris, 1964, p. 24-27.
c) A experiência de Deus “em meio a vida”

Hoje se fala de uma experiência mística “em meio à vida”12. Sua base
antropológica é “essa experiência fundamental de uma atração para Deus” que
existe em cada homem, em cada mulher, e que K.. Rahner chama “existencial-
sobrenatural”13. Do ponto de vista histórico-existencial, a pessoa humana está
constitutivamente aberta para o trascendencia.

Tal experiência não é algo excepcional; pelo contrário, é dada sempre


que a pessoa humana percebe os fatos cotidianos da vida com lucidez: sua
repugnância interior ao mal, seu amor irrevogável a um tu contingente, a paixão
pelo trabalho bem feito, protesto contra a injustiça, oa aposta na fraternidade
efetiva, pela convivência humana... Todas essas experiências, as mais plenamente
humanas e humanizadoras, são sempre experiências de graça.

Esta experiência remete às profundezas da vida, ao melhor que nós temos


como seres humanos. Mas, em nossa sociedade escaceiam as vivencias profundas
e verdadeiras de qualquer realidad, não só de Deus. Vivemos muitas emoções
e sensações, mas nós não temos experiência no singular, não só de Deus, nem
48 sequer a experiência profunda da própria vida.

Chega-se a essa experiência através da contemplação e do olhar teologal


da fé: “longe de exigir carismas extraordinários e graças espetaculares, o cristão
deve, sim, habituar-se a contemplar a realidade de todos os dias através dos olhos
da fé. Assim fazendo, será capaz de rastrear e detectar, ao seu redor, a constante
poderosa e reconfortadora (ao mesmo tempo discreta e velada) presença de
Deus”14. A experiência de Deus não é uma experiencia à margem da vida no seu
dia-a-dia, mas é justamente - diz Zubiri - a maneira de experienciar em toda ela «a
condição divina em que o homem existe»15.

A experiência de Deus no humano e no real não é viver no mundo «como


se Deus não existisse» (etsi Deus non daretur), como proclamam os teólogos da
secularização e da morte de Deus, mas sim “como se Deus existisse” (etsi Deus
daretur)16. Esse Deus é que se manifestou na carne, na fraqueza humana, na dor
da Cruz; que ele ainda está presente onde há dor humana; e que remiu o mundo,
em meio à sua aparente impotência, pelo poder do Espírito, que Jesus ressuscitou
dentre os mortos (Rm 1, 4).
12 Estudos dos últimos anos, diante das mudanças cultural e religiosa de nosso tempo, têm prestado atenção
especial aos novos caminhos da experiência de Deus, ajudando a discernir sua presença nesta situação
de mudança. Eles são uma mistagogía verdadeira ou uma verdadeira iniciação no Mistério. Remetemos à
bibliografia específica.
13 K Rahner. Natureleza y gracia, in Escritos de Teologia, IV, PP, 215-243
14 J.L.RUIZ DE LA PEñA. El don de Dios. Antropologia especial. Sal Terrae, Santander, 1991, p. 400

15 . “A experiência subsistente em Deus não é uma experiência à margem da vida cotidiana..., mas é a maneira
de viver como um todo a condição divina em que o homem subsiste” (X. ZUBIRI, El hombre y Dios, Fax, Ma-
drid, 1984, p. 333).
16 SANTIAGO DEL CURA ELENA. A tiempo y al destiempo. Elogio del Dios (in)tempestivo. Faculdad de Teologia
del Norte de España, Burgos, 2001.
Não teremos futuro nem como congregação nem como Igreja se não
houver um cultivo da experiência de Deus. Precisamos de pessoas com experiência
interna de Deus, homens e mulheres de espírito que possan responder à pergunta
que João da Cruz continua a fazer todos nós: «Dizei se por vós existe passado».

d) A urgência eclesial de testemunho

Mundo de hoje precisa de testemunho. Já Paulo VI tinha recordado


oportunamente que o homem de hoje está cansado de ouvir, enfastiado dos
discursos e quase imunizado contra as palavras; e que, por essa razão, prefere
testemunhas antes que mestres, até o ponto que, se ainda escuta os mestres, é
porque eles são testemunhas ao mesmo tempo. O homem de hoje compreende
melhor a linguagem dos fatos e a vida do que a linguagem das palavras (cf. EN
41-42). [O que não se manifesta no cotidiano da vida vai deixando de existir para
outros e também para mim] E acrescentou: “Para a Igreja, o primeiro meio de
evangelização consiste no testemunho” (EN 41 ).

João Paulo II, fazendo eco a essas palavras, afirmou em sua Encíclica 49
Redemptoris Missio: “O homem contemporâneo acredita mais nas testemunhas do
que nos mestres; crê mais na experiência que na doutrina, na vida e nos fatos do
que nas teorias. O testemunho da vida cristã é a primeira e insubstituível forma de
missão: Cristo, de cuja missão todos nós somos continuadores, é a “Testemunha»
por excelência e o modelo do testemunho cristão. O Espírito Santo acompanha
o caminho da Igreja e a associa ao testemunho que ele dá de Cristo. “A primeira
forma de testemunho é a vida do missionário” (RM 42).

O verdadeiro testemunhao não é que outra coisa senão a mesma


vida vivida intensamente, que irradia para fora sua plenitude interior. Só se
é realmente testemunho quando se vive o que se anuncia, ou seja, quando se
parte da própria experiência. Bento XVI, em uma das suas primeiras intervenções
sobre a vida consagrada (Roma, 10 de Dezembro de 2005) propôs aos religiosos
serem “testemunhas da presença transfigurante de Deus». E em um discurso
subsequente incentivou-os a serem «pioneiros proféticos», como seus fundadores
(discurso na Assembleia Plenária da UISG, Roma, em 7 de Maio de 2007).

4.2. Os areópagos da profecia

a) desde uma situação de exílio

Vivemos em uma época em que alguns comparam com o exílio. Tal como
Israel que se encontrava despojado de todas as suas seguranças (o templo, lugar
da presença de Deus), também na vida consagrada, especialmente no Ocidente,
perdemos muitos pontos de segurança, perda que abriu caminho à busca. O exílio
é também uma experiência espiritual: «saí atrás de tí gritando e tu te tinhas ido»
(Joâo da Cruz); uma ocasião para retonar o caminho da consagração e da missão
com renovada esperança.

Assim dizem não poucas vozes: «Evangelizar a partir das margens»17.


Outros descreveram a situação nova como uma experiência pascal: a passagem
das “estufas” às intempéries, das clausuras a percorrer caminhos onde há um
próximo ferido; a passagem dos “ que venham” a que nós os “busquemos”, etc18.
Outros, finalmente, falam de ocultação de Deus frente o sofrimento humano.
Onde está Deus num mundo que sofre sua ausência por tantas situações de
pobreza, a injustiça e a dor?19

b) Criar família (casa-lar), comunhão

Vivemos em um mundo em que o lar e a família estão em uma enorme


crise intercontinental e intercultural. O modelo tradicional de família está falindo
50 em todos os continentes. O desejo e a necessidade de um lar, de acolhida, de
escutam crescem em toda parte. Isto é por que um dos principais sinais de que a
vida consagrada pode oferecer hoje , como sinal evangélico pobre e humilde, é
simplesmente a casa: ali onde há consagrados, haja uma casa aberta, acolhedora,
fraterna, como um sinal da comunhão da Igreja (cf. VC 41ss.)

A casa, o lar (a comunidade), é também o local de uma leitura


compartilhada da nossa história pessoal, comunitária, onde nos encontramos
com o Senhor Jesus nosso médico que cura: nossas carencias, em nossas fraturas,
nossas falhas, nossas justificações. Esta leitura compartilhada de nossa historia
pessoal, comunitária e congregacional, é uma fonte de alegria, de encontro com
Deus, de capacidade missionária e profética.

Nesta linha, uma das grandes chamadas da vida religiosa é saber escutar.
Escutar Deus, escutar sua Palavra. Mas também escutar o mundo, a sociedade,
escutar especialmente os pobres, com suas tristezas e alegrias, com suas condições
de vida e a sua dignidade. Escutar dentro da Igreja: escutar os bispos, escutar
os leigos de quem tanto falamos, escutar os sacerdotes diocesanos. Escutar em
nossas comunidades, escutar os jovens e os de outras gerações, àqueles que
pensam de forma diferente. A escuta supõe receptividade e humildade, paciência
e hospitalidade, generosidade de coração para deixar-se habitar pelo outro. Neste
sentido, mantém toda a sua validade a Encíclica Ecclesiam suam de Paulo VI (1964),
que nos oferece toda uma teologia de escuta e de diálogo como exigencia de
renovação.
17 Cf. PHILIP L.WICKERI, Mision from the margins. The Missio Dei in the crisis of Word Christianity, International
Review of Mission 93 (2004) 182-198.
18 Cf. AMELIA BELTRÁN, Radicalidad y tolerancia en la vida religiosa feminina, Pastoral Misionera 192 (1994) 20-24
19 Cf. AA. VV., ¿Donde está Dios? Un clamor en la noche oscura, Concilium 242 (1992) 571-697.
Num mundo desconjuntado e que anseia por um lar, por comunhão,
fraternidade, a vida consagrada pode oferecer um magnífico sinal evangélico.
Daqui surge, com força, uma identidade que se constitui fortemente como
”ser-com”: ser com Jesus Cristo, ser com a Igreja, ser com os companheirosde
comunidade e de congregação, ser com os pobres. Ser sinal de comunhão é um
dos desafio evangelizadores que coloca o Novo Millennio Ineunte (n. 43).

c) Humanizar

- Humanizar frente às escravidões

Humanizar frente às escravidões do nosso mundo é outra das tarefas


proféticas da vida consagrada hoje, identificando as forças do maligno nos os
ídolos da nossa cultura. Alguns são fáceis de reconhecer: a recompensa a curto
prazo, o prazer imediato, o consumo irresponsável e o individualismo, a exaltação
da identidade pessoal fragmentada, etc. Outros aparecem mais sofisticadamente

51
sob a capa do bem: o «Eu» como centro de definição dos fins últimos sob o ideal
de auto-realização.

A vida consagrada somente será capaz de humanizar a nossa cultura e


nossa sociedade se ela mesma se tornar humanizadora de seus membros. Aqui
se coloca um grande desafio. Também aqui se joga grande parte do encontro ou
do desencontro da fé com a cultura. Como definimos a qualidade das nossas
instituições ou o sucesso de nossas empresas apostólicas? Se adotarmos a cultura
do marketing e da gestão, acabaremos caindo nas redes dos seus valores e seus
ídolos: eficiência, desempenho, objetivos alcançados, cotas de mercado. Toda
essa trama desconhece por completo a sabedoria das Bem-aventuranças. Ela
funciona de acordo com a eficácia e não de acordo com a fecundidade.

- Humanizar frente ao sofrimento

Nossa sensibilidade frente ao sofrimento indica o nosso grau de


humanidade e um dos gestos proféticos da vida religiosa, particularmente
feminina, por sua capacidade de ternura: humanizar desde a ternura. Desde a
ternura de Deus: “Como um pai sente ternura para com os seus filhos, o Senhor
sente ternura para com seus” (Sal 103,13). Desde a ternura e compaixão de Jesus,
expressas no evangelho e desde a vivencia pessoal de ternura de cada um de
nós. À luz das ciências humanas, ela se torna uma necessidade básica para o
desenvolvimento normal da nossa condição humana e gesto profético em um
mundo sofredor.
d) A sabedoria de pequenos sinais

O mundo sangra intensamente , internet nos conecta com tudo e nos


deixa sós diante da tela. O que fazer, como reagir? O Congresso Internacional
sobre vida consagrada apontou para a sabedoria dos pequenos passos e sinais
humildes, porém reais. Ante as enormes quantidades de males que enfrentamos,
corremos a tentação de desprezar as coisas pequenas, de querer implantar uma
solução global. Mas esse não é caminho do Pai das misericórdias. Pois o que
descobrimos na história da salvação é que Deus atua através do pequeno: escolhe
umpovo pequeno: Israel (7.7 Dt); confia num resto ainda menor deste povo.

Ele nos convida a um passo menor, mas real; um sinal humilde, mas
expressivo. Os milagres são sinais do Reino. Jesus não organizou uma espécie
de «Seguridade Social» para toda a Palestina, mas manifestou através de alguns
sinais eloquentes que o Reio de Deus estava chegando através de sua pessoa.
A salvação de Deus ir rompia através da vitória de Jesus sobre Satanás, sobre a
doença e morte, como manifestações concomitantes do afastamento de Deus e
a ausência da salvação.

52 Seguindo este caminho, a vida consagrada é chamada a mostrar sinais do


Reino de Deus, a ser ela mesma ,no seu próprio ser, em sua vida, um sinal do Reino
de Deus: a irrupção da graça , que gera fraternidade, filiação, alegria, esperança,
acolhida, generosidade, adoração, entusiasmo, gratuidade.

e) O serviço da caridade: Um “coração que vê”

“A fé que atua pela caridade” (Gal 5,6). “O programa do cristão - o programa


do bom Samaritano, o programa de Jesus - é um”coração que vê.” Este coração vê
onde o amor é necessário e, em consequencia, age (Deus caritas est, 31 c).

“Os seres humanos precisam sempre mais do que uma atenção


tecnicamente correto. Eles precisam de humanidade. Eles precisam de atenção
cordial. Todos aqueles que trabalham nas instituições caritativas da Igreja
devem distinguir-se não por limitar-se a executar com destreza o que é mais
conveniente em cada momento, mas por dedicar-se ao outro com o toque que
lhe sai do coração, para que o outro experimente sua riqueza de humanidade.
Por conseguinte, esses agentes, além da preparação profissional, necessitam
também e acima de tudo uma «formação do coração»: que os guie ao encontro
com Deus em Cristo, que suscite neles o amor e abra seu espírito ao outro, de
modo que , para eles, o amor ao próximo já não seja um mandamento por assim
dizer, imposto de fora, mas uma consequencia que se depreende sua fé, que age
pela caridade « (Deus caritas est, 33).
Conclusão: Uma canção de louvor

• Oração da alma enamorada

Tanto o poema da Fonte quanto o do Cântico espiritual de São João da


Cruz terminam com uma doxologia, um cântico de louvor. É um louvor que
abarca toda a criação: «meus são os céus e minha é a terra” minhas são as gentes,
os justos são meus e meus os pecadores; os anjos são meus, e a Mãe de Deus e
todas as coisas são minhas; e o próprio Deus é meu e para mim, porque Cristo é
meu e todo para mim» (Oración de la alma enamorada, 27).

É o louvor enamorado que brota de uma plenitude de vida, em que o


mundo da natureza é integrado à beleza divina e prorrompe em um canto alegre
e esperançoso. Este é o grande testemunho profético-místico que se espera
hoje da vida consagrada. Ela, fazendo suas «as alegrias e esperanças» da família
humana deve ser um «canto», uma vida de «encanto», de «júbilo», para louvar ao
Senhor. É como um corolário da fé, de crer e de seguir Jesus. Uma vida religiosa
triste e enlutada não tem futuro algum.

53
• Experiência festiva: alegria interior e abertura para o outro

Experiência mística é uma experiência festiva. Deus se comunica na alegria


da vida, no gozo, na apreciação do vinho novo (cf. Mt 9.17). Experiências de festa
e alegria, gozo e prazer interior são experiências fundantes. O gozo e a alegria
de viver estão na base da experiência feita por João da Cruz. Não apenas seus
poemas - em que se condensa sua experiência - transpiram alegria, mas também
o caminho espiritual traçado em suas obras.

Seu centro não é a mística de dor, de sacrifício ou renúncia (embora façam


parte do caminho), mas a mística da união gozosa e esponsal, na qual desemboca
a noite escura que ilumina nossas sombras: “Noite feliz” (N 2, 9.1).A “noite” é uma
“presença amorosa de Deus na alma” (N 2,5,1) que dá origem a um processo de
libertação e cura; é uma transformação profunda; é um caminho para uma nova
experiência incrível de alegria e liberdade.

• A mística de uma presença, que faz a profecia

A vida consagrada do futuro será feliz e humilde, se vivida unida a essa


presenca - iluminadora e transformadora - do Senhor que canta São João da Cruz:
«Mil gracas derramando/ passou ligeiro por esses bosques e, estendendo seu
olhar / tão somente com um gesto / os vestiu de formosura» (Cântico espiritual,
estrofe 5). É a presença de Deus na criação e na história; presença viva e pessoal;
presença sacramental, especialmente na Eucaristía; presença nos pobres;
presença na missão; presença nos irmãos e irmãs da Congregação; presença na
Igreja; presença em oração e na leitura da Palavra de Deus; presença na família
humana.

A experiência mística desta presença tem um caráter performativo, isto


é, produz efeitos ou atitudes sustentáveis em conexão com a vida real: certo
contentamento interior, sentido positivo e esperançoso frente ao que acontece,
porém sobretudo experiencia de desprendimento radical e abertura ao outro.
Esta experiência é que convalida a experiência mística. É então - e só então - que
a experiência mística se traduz em «sentimentos sustentáveis» do tipo positivo,
alimentados sempre com alegria e amor20. Então - e só então-que a experiência
mística torna-se significativa, isto é, torna-se profética.

Que a experiência mística desta presença ilumine o rosto da nossa


esperança e dinamize criativamente nossa missão profética.

Mística e Profecia

54 Perguntas
1. Crês que a mística e a profecia são uma realidade essencial da vida
consagrada? Como se concretiza na situação cultural e religiosa em
que vives?
2. Em que medida a mística e a profecia são uma urgência eclesial que
interpela à vida consagrada? Como valorizas esta necessidade urgente
dentro da Igreja particular a que tenhas sido enviado?
3. Quais são, em tua opinião, os novos areópagos da mística e da profecia
tendo em conta, por um lado, a situação da vida religiosa em tua região
e, por outro lado ,o carisma de teu Instituto? Assinale uma ordem ou
congregação de tua preferência.
4. Quais são os sinais que definem hoje o místico-profeta e com que
figuras os identificas?

Bibliografía geral
Aa. Vv., Profetismo, en Dizionario degli Istituti di Perfezione, vol. VII, Edizioni
Paoloine, Roma 1983, 972-993; Enzo Bianchi, La vida religiosa, ¿signo profético creíble?
Confer 40 (2001) 43-56; Jesús Castellano Cervera, Esigenze odierne di spiritualità:
memoria e profezia, en Aa. Vv., Impegni e testimonianza di spiritualità alla luce della
lettera apostolica “Novo millennio ineunte”, Teresianum, Roma 2001, p. 75-197;
Carlos Domínguez Morano, Místicos y profetas: dos entidades religiosas, Proyección
20 “Andar dentro e fora do partido é trazer a alegria do grande Deus, como um canto novo, envolvido em
alegria e amor” (Llamade amor viva 2.26).
48 (2001) 339-366; José María Arnáiz, Místicos y profetas. Necesarios e inseparables
hoy, PPC, Madrid 2004; José María González Ruiz, Profetismo, en Nuevo Diccionario
de Pastoral, San Pablo, Madrid 2002, p. 1208-1214; José Luis Barriocanal, Diccionario
del profetismo bíblico, Monte Carmelo, Burgos, 2004, p. 558-590 (“Profetismo/
profetas, hoy”); Mons. Jesús Sanz Montes, Mística y profecía. El hilo de Ariadna de
nuestra fidelidad (Editorial), Tabor 3 (2007) 8-11; José Cristo Rey García Paredes,
Profecía cultural de la vida religiosa hoy. Nuevos caminos, fuentes y oportunidades,
Vida Religiosa 102 (2007) 222-234; A. Arvalli, Vita religiosa come profezia? Le
lacrime di una difficile transizione imcompiuta, Credere Oggi 27 (2007) 131-144;
Aa. Vv., Palabra y profecía, Vida Religiosa 104 (2008) 85-160 (“Profecía y mística en
una sociedad secularizada”, p. 149-160); Jesús Álvarez Gómez, El profetismo de los
fundadores y el ministerio profético de sus discípulos, Vida Religiosa 106 (2009) 469-
479; Mª Carmen Mariñas, La Consagración contemplativa desde una mística de “ojos
abiertos”, Vida Religiosa 107 (2009) 375-379; Albert Nolan, Esperanza en una época
de desesperanza, Sal Terrae, Santander 2008 (original inglés: Hope in an Age of
Despair, Orbis Books, 2007); destacamos algunos capítulos (“Teología de carácter
profético”, p. 99-111; “El espíritu de los profetas”, p. 113-124; “La vida consagrada
como un testimonio profético”, p. 139-147).
55
Bibliografía específica

Aa. Vv., L’expérience de Dieu au sein d’un monde indifférent, Christus 36


(1989) 136-218; Aa. Vv., Dieu dans un monde sécularisé, Ibid. 36 (1989) 136-201;
Aa. Vv., L’initiation au mystère chrétien. Retrouver le chemin, Christus 40 (1993)
135-222; Aa. Vv., Présence et absence de Dieu. L’épreuve de l’indiférence, Ibid., 40
(1993) pp. 311-464; Aa. Vv., L’expérience mystique, Christus 41 (1994) 133-213;
A. Alvarez Bolado, Mística y secularización. En medio de las afueras de la ciudad
secularizada, Sal Terrae, Santander 1993; J. Caillot, La mystique dans les religions. Le
Cristianisme exposé, Christus 41 (1994) 147-156; A. De Munstzer, Le buisson ardent
de la vie quotidienne, Christus 36 (1989) 146-157; C. Domínguez Morano, Experiencia
cristiana y psicoanálisis, Sal Terrae, Santander, 2005; J.-C. Eslin, La nouvelle situation
religieuse, Christus 47 (2000) 136-144; C. Flipo, Vers un nouveau “sentir” spirituel,
Christus 36 (1989) 158-170; T. Goffi, L’esperienza spirituale oggi, Queriniana, Brescia
1984; A. Guerra, Experiencia cristiana, en Nuevo Diccionario de Espiritualidad,
Madrid 1991, pp. 680-688; W. Johnston, Mística para una nueva era, Desclée, Bilbao
2003; Id., Fuego y luz. Mística y teología, Editorial de Espiritualidad, Madrid 2009
(“La mísica de la vida cotidiana”, p. 157-173); J. Y. Lacoste, Expérience, événement,
connaissance de Dieu, Nouvelle Revue Théologique 106 (1984) 854-855; Ghislain
Lafont, La sabiduría y la profecía. Modelos teológicos, Sígueme, Salamanca 2007; Ph.
Lécrivain, Comme à tâtons... Les nouveaux paysages de la mystique, Chritus 41 (1994)
136-145; Trinidad León Martín, Dios presencia ineludible, Proyección 47 (2000) 3-18
(SelTeol 157, 2001, 21-32); H. Madelin, La sécularization nouvelle chance?, Christus
36 (1989) 136-145; J. Martín Velasco, La experiencia de Dios, hoy, Manresa 75 (2003)
3-25; Id., Mística y humanismo, PPC, Madrid 2007; Th. Matura, Les chemins de
“l’expérience” de Dieu, Vie Consacrée 74 (2002) 403-414; Th. Merton, La experiencia
interna, Cistersium 212 (1998) 785-971; C. Mucci, La mistica come crocevia del
posmoderno, La Civiltà Cattolica 153 (2002) 3-12; B. Secondin, Spiritualità in dialogo.
Nuovi scenari dell’esperienza spirituale, Edizioni Paoline, Roma 1997; K.-H. Weger,
Is Gott erfahrbar? Stimmen der Zeit 210 (1992) 33-341 (¿Es posible la experiencia
de Dios? SelTeol, 127, 1993, 165-171); Salvador Ros García, La experiencia de Dios
en mitad de la vida, Editorial de Espiritualidad, Madrid 2007; José María Avendaño,
Mística en el espesor de la vida, PPC. Madrid 2007; Pascual Cebollada (ed.), Experiencia
y misterio de Dios, Comillas, Madrid 2008; Aa. Vv., The experience of God today and
Carmelite Mysticism. Mystagogy and Inter-Religious and Cultural Dialog, Acts of the
Internacional Seminar, Zagreb 2000.

56
Artigos
O PAI QUE NOSSA SOCIEDADE
PRECISA UMA LEITURA PSICO-
SOCIOLÓGICA DA FIGURA PATERNA

Prof. Pe. Josu M. Alday, CMF *

57
RESUMO: A metáfora, de que se utiliza este texto, propõe – partindo de análises sociológico e
psicológica da figura do “pai”, quer chegar a uma profunda compreensão da paternidade de Deus na
vida consagrada. Desde o iluminismo a figura do “pai” vem sendo – programaticamente -eclipsada.
E isto traz um grave problema, não só psicossocial, mas muito mais que isto, para a constituição e
equilíbrio sadio nas relações humano afetivas. Daí deriva um posicionamento “doentio” também
em relação à figura de Deus, com implicações para vida dos consagrados. È fundamental para a
maturidade humana e espiritual dos homens e mulheres a figura paternal, especialmente a de Deus.

PALAVRAS CHAVE: Paternidade. Figura do “pai”. “Auctoritas”. Pai nutritício. Matar o pai.

ABSTRACT: The metaphor, which is used in this text, proposes-from a sociologic and psychological
analysis of the “father”, wishes to achieve a deep comprehension of God’s paternity into Consecrated
Life. Ever since illuminism, the figure of the “father” has been-programmatically-eclipsed. This brings
up a very serious problem, not only psychosocial, much more than that, for the constitution and
healthy balance related to affective human relation. It also derives a “sick” positioning regarding
to God’s figure, with implications to the Consecrated Life. It’s essential to human maturity as well as
spiritual of men and women the paternal figure, especially God’s.

KEYWORDS: Paternity. “Father’s” figure. “Auctorial”. Nutritious father. Kill the father.

* Professor do Instituto de Teologia da Vida Consagrada “Claretianum”, de Roma.


O papa João Paulo II dedicou o ano de 1999 a Deus Pai como preparação
ao Grande Jubileu do começo do século XXI. Diante deste acontecimento de
graça, como leitura crente do tempo e da história foram feitas diversas leituras.
Leituras teológicas, bíblicas, eclesiais, pastorais, profética, etc. Tendo em conta
estas leituras e passado o tempo, buscarei oferecer uma leitura psicossociológica
da figura do pai, como pressuposto para dar sentido à existência de Deus Pai no
mais íntimo do ser humano e na sociedade.

1. Leitura sociológica da figura do “pai”

1.1. - Foi o iluminismo que hipotizou o desaparecimento do pai


introduzindo uma idade da razão adulta, dona de si e do destino do mundo, a partir
da qual cada um possa desenvolver-se por si mesmo e ordenar sua vida segundo
seus próprios cálculos e projetos. Esta ambição da época moderna (que inspirou
tantas revoluções) demonstrou sempre sua profunda ambiguidade. Por um lado,
a pretensão da razão adulta de explicar tudo, produziu as grandes ideologias
massificadoras; com a conseqüência de eliminar com a força tudo aquilo que
58 aparecesse diferente (no credo, na condição social, na raça, na nação; e a partir daí
os regimes policiescos, os campos de concentração, as limpezas étnicas, etc.). Por
outro lado, a partir da negação pragmática da dependência de Alguém mais alto,
passou-se para a busca de ídolos, isto é, mesquinhos” substitutos do pai”, com o
rosto de chefes carismáticos, do partido-guia, da idéia de progresso, etc.

Este foi um processo que teve um dramático reflexo na negação explícita


de Deus, entendido como Pai e Senhor, desta maneira foi se desenvolvendo
um ateísmo programático, ou seja o outro lado do esforço para conseguir a
emancipação total. Como conseqüência a “morte de Deus” pareceu condição
necessária para a vida e glória do homem. O que se queria era libertar-se de um
Deus entendido como árbitro despótico ou contraparte indiferente e inerte.

As pretensões do Iluminismo fracassaram. A ideologia terminou nos


fomos crematórios e nos genocídios de nosso século. A sociedade sem pais,
produzida pelas ambições totalitárias da razão converteu-se em uma multidão de
solidões. A assim chamada “crise das ideologias” e o surgimento do “pensamento
débil” que caracterizam o final do milênio, nascem da experiência de fracasso das
pretensões da razão adulta. Caíram os horizontes cheios de sentido, difunde-se
uma reação de rejeição das certezas ideológicas, perfila-se um sentido de mal-
estar e sem pontos de referência. Uma condição de “naufrágio” com espectador
parece caracterizar o tempo do final dos blocos ideológicos contrapostos. A
indiferença, a falta de paixão pela verdade, empurra a muitos a fechar-se no curto
horizonte dos próprios interesses ou dos interesses do grupo. A fragmentação
entra em lugar dos sistemas totais. Surge o “pensamento débil” temeroso de
qualquer tipo de verdade.
O que fica da figura do pai neste contexto pós-moderno? Se a ideologia
quis nos livrar da dependência do pai para nos fazer adultos e emancipados, o
“pensamento débil” que a sucede não recupera a figura do Outro em quem
confiar. O final da “sociedade sem pais” não equivale a um retorno à figura do
pai: inclusive, o relativismo, que se difunde como conseqüência do abandono
das certezas ideológicas parece que está nos fazendo mais fechados em nós
mesmo e mais solitários. A indiferença aos valores, mascarada muitas vezes sob o
oportunismo e o frenesi de uma existência sustentada pelo efêmero dá um passo
ainda mais radical que “matar o pai” como queria a razão iluminista: o pai já não
é figura de um adversário a combater ou de um déspota do qual libertar-se; mas
sim é a figura carente de todo interesse ou atração. Ignorar a figura do pai é no
fundo mais trágico que combatê-Ia para dele se emancipar.

1.2 - Começa-se a perceber que a figura do pai veio sendo diminuída e


como esta lacuna da paternidade é uma das causas não marginais da perda de
identidade e da neurose tão estendida nestas últimas décadas do século que
morreu e na do que começa. E certo, faltam a figura do pai e as figuras dos avós
e dos tios que foram sob muitos pontos de vista determinantes na educação das 59
gerações passadas. E ficou também debilitada a figura da mãe ainda que em
certas culturas o “mamismo” permanece ainda como uma das características mais
acentuadas. Mas o “mamismo” é uma coisa e a figura materna, outra: é preciso
estar atento para não confundir estas duas tipologias profundamente distintas
entre si.

Mas o vazio estrutural da sociedade moderna procede da “ausência” do


pai. Em certo sentido o enfraquecimento e inclusive o desaparecimento dos
demais papéis parentais derivam desta lacuna que está no ponto mais alto da
família: se já não há pai, toda a arquitetura familiar está destinada a desmoronar-
se; se o pai foi demitido não haverá filhos, nem irmãos, nem primos; faltam os
pontos de referência e a própria dialética saudável entre as gerações se perde e se
transforma em mera luta pelo poder entre velhos e jovens.

A hierarquia familiar tinha função de transmitir a identidade, a memória e


o saber oral. Pois bem, este mundo se afundou ou está se afundando; mas como
a natureza não suporta o vazio, no lugar do pai, da mãe, dos irmãos colocou-se a
cultura do “rebanho” ou da “manada”.

Acreditava-se que o enfraquecimento dos vínculos parentais fosse uma


conquista da modernidade libertada uma vez por todas dos laços de sangue
e da tribalidade; pensava-se que o indivíduo, libertado dos papéis e dos usos
repetitivos da hierarquização recuperasse sua responsabilidade, sua liberdade e
a plenitude da própria realização. Mas estas aquisições verificaram-se somente
em parte. Na maioria dos casos o indivíduo, abandonado em sua solidão, não
encontrou outro remédio senão confundir-se com a “manada”, isto é, convertido
em um sujeito anônimo e indiferenciado, sustentado somente pelas motivações
emocionais como a individuação de um “rebanho” inimigo, a prática inclusive
externa de sinais distintivos, a vontade de poder do grupo, a eleição de um chefe
no qual delegar os poderes de decisão. A “manada” é um produto da modernidade
e ao mesmo tempo é o desenlace mais arcaico que se podia imaginar; contém
uma socialidade negativa e destrutiva, está baseada na ideologia do mais forte e
em valores elementares da violência, do gregarismo, do fetichismo. Os «ultra» das
curvas sul seriam a exemplificação mais frequente e mais primitiva.

1.3 - O enfraquecimento e o desaparecimento da figura paterna têm muitas


causas; as mais evidentes são de natureza econômica, mas não são somente elas
e nem são as mais essenciais. Na base desta autêntica revolução institucional está
por um lado a emancipação da mulher e por outro a perda da transcendência,
dois elementos fundamentais da modernidade e da laicização.

Desde este ponto de vista o desaparecimento do pai seria um ponto


positivo e não reversível ao menos em suas formas arcaicas baseadas no mandato
60 e na autoridade exercida por direito divino. E sem dúvida, uma sociedade não
pode viver sem modelos que lhe consintam refletir e conservar a memória de si. O
mal-estar que invadiu nossas sociedades, especialmente da segunda metade do
século XX em diante, deriva precisamente da ausência de reflexos e de memória.
A própria decadência das classes dirigentes tem sua causa na deterioração dos
modelos paternos. Por isso são chamados «pais fundadores» os que estabeleciam
as regras de convivência social e política. Desconsiderados aqueles modelos,
a sociedade perdeu a capacidade de se dar normas compartilhadas; fala-se
continuamente de sua necessidade, mas ninguém está à altura de produzi-Ias
porque ninguém se reconhece uma autoridade fundadora que supere os interesses
setoriais e se imponha em nome do interesse geral. Uma sociedade sem pais
está, portanto, destinada a uma continua e progressiva parcialização que paralisa
o funcionamento e toma impossível a produção de regras democraticamente
aceitadas.

Os indivíduos não estão em condições de sair desta incomoda situação


que, exaltando os interesses setoriais e os egoísmos de grupo, afasta-se cada vez
mais da «auctoritas” produtora das normas gerais; mas o mal-estar cresce e pode
ser visto por todas as partes. De modo que, precisamente na fase em que a figura
paterna cedeu o campo, ressurge a necessidade de recuperar ao menos algumas
das funções a ela confiadas; sobretudo aquela de indicar as regras básicas do
comportamento, de administrar a justiça sobre a base destas regras e de praticar
a “caritas” e a “pietas”, dois atributos típicos da figura paterna e da autoridade
fundadora.

Mas sobretudo a nostalgia do pai está motivada pela necessidade da


segurança psicológica que ele produz. Sem ele o mundo se torna inseguro para os
filhos órfãos e não preparados para substituí-Io. De fato, esta é a sociedade de fim
de um milênio e começo do presente que apesar de suas admiráveis aquisições
tecnológicas é um lugar inseguro, frágil inutilmente “motório», carente de crenças
mas cheio de superstições.

1.4 - Evidentemente não se nasce pai, chega-se a sê-lo com o viver e por
meio do viver. Chega-se a sê-lo quando se é capaz de compreender o Outro
superando as estreitezas nas quais o Eu inevitavelmente se encerra. Os filhos são
fisiologicamente os portadores do Eu; os verdadeiros pais superam a construção
defensiva e vivem para os filhos construindo as condições de seu futuro.

Resulta supérfluo advertir que, em um tempo como o nosso que viveu na


emancipação da mulher sua maior revolução, a função paternal não está ligada
ao sexo. Existiram e existirão ainda mais, mulheres em condições como e mais
que os homens de encarregar-se dos outros. Na realidade, a mulher sempre se
encarregou dos outros muito mais que o homem, mas isto acontecia na esfera
privada. Precisamente pelo fato de ter sido confinada nesta esfera privada por
uma sociedade governada por homens, o encarregar-se por parte da mulher
dificilmente podia sair do âmbito familiar com a conseqüência de uma hipertrofia
61
dos filhos que canalizava quase completamente os recursos afetivos das mães.

Este limite tende agora não só a desaparecer como ampliar-se. As


capacidades afetivas da mulher constituem uma das reservas essenciais da
caridade voluntária convertendo-se em um dos fenômenos mais relevantes
e mais positivos da sociedade moderna e do moderno humanismo. Eis
porque a «auctoritas” paterna com sua equipe de justiça, compreensão, regras
compartilhadas, caridade e “pietas” não será prerrogativa somente masculina
em um mundo onde os limites do sexo foram finalmente dissolvidos em uma
concepção mais ampla da “humanitas”.

2. Leitura psicológica do “pai” em nós

2.1 - Por que em tantas pessoas se produz uma rejeição um tanto visceral
da figura paterna? Por que o pai-mãe de nossas origens é ao mesmo tempo para
muitos o adversário a combater, a contraparte da qual emancipar-se e fugir? Por
que o filho mais jovem da parábola evangélica quer ir para longe da casa paterna
e do pai?

As razões do filho pródigo para sair de casa são as mesmas pelas quais se
cunhou a expressão “matar o pai”. Esta expressão denota o impulso que existe em
nós de pedir contas e razões a quem pensamos que em certo modo está acima de
nós a respeito do que nos concerne, para sermos finalmente senhores padrões de
nós mesmos e de nosso destino e assim fazer de nós “o que nos dá na telha”. Mas
para isto é preciso de algum modo apagar a figura do pai, fazer como se nunca
tivesse existido e em certa maneira, suprimi-Io.

A rejeição do pai por parte de não poucos de nossos contemporâneos


deve nos fazer atentos para não usar tão facilmente a imagem paterna (e em
certo modo também a materna) para falar de Deus. Se falamos de um “voltar
ao Pai” não se deve entender como uma espécie de regressão à dependência
infantil, nem muito menos uma re-evocação das conflitualidades profundas que
acompanharam certas personalidades. Nem “matar o pai” nem depender do pai:
autonomia pessoal em relação ao pai.

2.2 - A pessoa tem necessidade de um pai. O Eu, para crescer, tem


necessidade de um “tu”, de um ponto de referência diferente do seu Eu. O Eu
instintivo, pulsional, emotivo, afetivo, sentimental, irracional, agressivo, medroso,
egoísta, animal, etc. pertence à estrutura do nosso psiquismo. Nós o trazemos
conosco por herança humana. Nós o chamamos inconsciente, alma vegetativa-
62 sentiva, Eu criança ou o que se quiser.

E como este tipo de Eu não pode subsistir por si mesmo e não chegará
muito longe sozinho, os pais e outras figuras parentais começam muito cedo a
“domesticá-lo” e “programá-lo”: o Eu é “educado e “socializado” por um “tu” com
tantos nomes: cultura, tradição, religião, norma, lei etc. Para Freud seria o Superego

2.3 - A presença do “tu”, ou extereopsique, é conveniente, mas pode


ser prejudicial. É conveniente, inclusive necessária para que o sujeito atinja a
maioridade. Desde o seio materno e passando pelo trauma do nascimento às
primeiras experiências, a criança é protegida. Uma vez nascido, começa a ser
socializado (comida, limpeza, costumes, palavras que aprende etc.) por pressões
parentais e ao mesmo tempo pelo desejo de ser “acariciado” e pelo medo de não
poder sobreviver sozinho. Com os cuidados físicos se está dando à criança um
conteúdo moral-social que ela também assimila. Mediante elogios ou castigos se
reforça o processo de programação. Chega-se a ser homem ou mulher. Aprende
a viver em sociedade. Tudo isto é positivo, mas pode ser (e de fato é) prejudicial.

Se a pressão que se exerce sobre o sujeito não é equilibrada o Eu sentirá


uma programação inadequada. Se a pressão for escassa o Eu permanece sob o
influxo da pulsão e pode converter-se em um Eu instintivo, rebelde, medroso ou
caprichoso. Ele fica sem a capacidade de “dominar-se”. Se a pressão é excessiva,
o Eu sentirá o peso da programação e tende a ficar submetido e amargurado,
passivo e displicente: “Eu não estou bem, Tu estás bem”; ou se rebela e se toma um
opositor: “quererá matar o pai”.
2.4 - O “pai” forma parte da estrutura do Eu. Com efeito, todo ser humano
gravou dentro de si regras, opiniões, juízos, etc. sobre coisas e sobre as pessoas
antes de ter tido a possibilidade de analisar a exatidão de tais normas. Gravou
também modelos de comportamento, modos de falar, de utilizar a voz e as
expressões do rosto para tentar se impor, dominar, criticar ou rebaixar os outros.
Também modelos de comportamento para proteger, ajudar, animar o próximo:
atitudes, em palavra, de solicitude.

Existe um pai normativo porque contem regras, normas, opiniões, valores,


preconceitos, modelos de comportamento da autoridade e do domínio do
outros. É a parte positiva do pai: a parte diretiva que dá instruções, dita normas
em uma relação respeitosa. Será negativa a parte que expressa uma relação não
OK para criticar ou diminuir o outro. Diz-se então que a pessoa assume o papel de
“perseguidor” ou de “diminuidor”.

Existe também um pai benévolo: contem modelos de comportamento


protetores, estimulantes, compreensivos e permissivos em relação aos outros e a
si mesmo. Será positivo se protege, ajuda, estimula, concede permissões, dedica-
se a ações de atenção. Mas será negativo se a pessoa o utiliza para proteger
excessivamente impedindo o outro de crescer, fazer suas próprias experiências; 63
ou para fazer as coisas no lugar do outro ( “porque o outro não é capaz”). Este
papel se chama “hiperprotetor-salvador”.

A importância do “pai” se deduz de sua força e de sua dinamicidade, grava-


se em uma idade na qual o sujeito não é capaz de submeter a crítica e controle
os valores e exemplos que lhe são impostos. Por isso o “pai” não é fruto de
experiências e comprovações pessoais. Mais adiante, o Eu “adulto” poderá retificar
ou comprovar muitos dos ensinamentos do pai, mas as gravações antigas ficarão
inapagáveis. Bastaria, para entender isto, a força universal da consciência ou dos
preconceitos ou de muitas formas e normas de convivência, etc. Além disto, a
fonte de onde procedem estas gravações, os pais reais, é apavorante para a
criança. Eles são os gigantes poderosos que medem tanto em altura, aqueles que
sabem tudo, deles dependem a vida e a segurança da criança, são inspiradores
de todos os temores e ameaças; mas, sobretudo, a fonte de carinho, de carícias,
essenciais para que a criança cresça e sobreviva.

2.5 - A conclusão á qual podemos chegar é que este tipo de pai todos
o levamos dentro de nós. Será “positivo” quando seja fonte de carícias e ensine
bem. O pai positivo faz com suas carícias e reconhecimentos que se grave um
Pai também positivo. Transmite tradições e valores aceitáveis, sem preconceitos.
Educa, nutre e ensina a educar e nutrir. Brinca com a criança e não a traumatiza.
Não é para a criança um “bicho-papão” ou uma “bruxa”. Não programa em excesso
a criança reprimindo-a.
O pai “negativo” ou “ prejudicial” é fonte de carícias negativas ou de
preconceitos e idéias que não são objetivas e portanto são prejudiciais. Por exemplo,
o pai-lei em excesso. Opressor em sua normatividade, cheio de preconceitos,
talvez. Excessivamente sério, rígido, ordenado, pouco flexível, não muda em
nada. A cultura, a lei, a norma se torna um absoluto, um meio para dominar. O pai
nutritício que excede os limites e faz da criança uma objeto de atenção tão prolixa
que molesta e um cuidado tão excessivo que impede de crescer. Trata-se de um
pai “paternalista”, não “paternal”. O pai dominante, exagerado, duro, frio, até cruel é
muito prejudicial. E o pai real que não pode com seus problemas e !”domestica o
filho” para a sua destruição. Assim como há pais (e fundadores/as) que criam filhos
para que continuem com o melhor deles mesmos (uma magnífica paternidade!)
existem’ outros que “marcam” seus filhos com sua desgraça e falta de esperança
fazendo deles neuróticos ou “perdedores”. O pai incompleto, finalmente, pode ser
muito prejudicial. Quando pela ausência real de pais ou quem lhes faça às vezes,
a criança não grava em si um pai suficiente, sua personalidade fica incompleta.
Falta-lhe todo acúmulo de aspectos bons do “pai”. Esta ausência do “pai” deixa o
sujeito entregue aos caprichos de sua “criança” e não favorece o “adulto” com sãos
costumes e hábitos.
64 As gravações de um pai que nos nutriu, protegeu, ajudou e educou
convenientemente ao longo de toda nossa infância e que constituem nosso pai
nutritício são de inestimável valor para aqueles que assumem uma vocação de
serviço como a nossa. O exemplo de Cristo e dos fundadores está bem claro. Desde
o Pai Nosso, princípio de amor, cuidado e paternidade até Cristo, Bom Pastor, a
paternidade é uma característica essencial. Ainda que a mãe pudesse esquecer
do filho de suas entranhas, Deus não (ls 59,15). Maria soma-se à Paternidade
de Deus a partir de sua Maternidade. São Paulo nos dá exemplo sublime desta
paternidade nutritícia: « ... meus filhinhos que, na dor, eu dou à luz novamente, até
que Cristo seja formado em vós» ( GI 4,19); “Quanto a mim, de bom grado gastarei
e me desgastarei a mim mesmo todo inteiro por vós” (2Cr 12,15).

No normal desenvolvimento da personalidade toda pessoa deve empregar


as gravações de seu «pai nutritício” para dar-se e por sua vez nutrir seus próprios
filhos.

Na idade adulta, nos anos de produção a pessoa além de produzir o


fruto do seu trabalho, produz ”filhos». Não como uma máquina, mas com amor e
dedicação. Erikson diz que nesta idade se produz a crise da generatividade versus o
estancamento. Todo adulto que não seja generativo ( que não seja pai) se estanca,
torna-se egoísta, pois não tendo a quem cuidar “mima a si mesmo como se fosse
o seu próprio filho”.

Mas a paternidade não é necessária e unicamente física. Existe a


paternidade do serviço. Este é o caso da vida consagrada. Por isto é que o povo
nos chama, às vezes de Padre ou Madre. Na dedicação ao serviço alheio nós como
pessoas consagradas encontramos o amadurecimento de nossa Paternidade
necessária e para este serviço as gravações do “pai nutritício” ajudam muitíssimo.

O “pai” do qual estamos falando é metáfora do Outro misterioso e último


ao qual podemos confiar sem medo na certeza de sermos acolhidos, purificados
e perdoados. Este reflexo do rosto de um Pai-Mãe capaz de amar-nos sem reserva
foi vivido por muitos de nós em experiências felizes de relações paternas e ma-
ternas. Inclusive quem tenha tido somente em parte tais experiências ou teve ex-
periências negativas tem no coração, talvez mais forte, a saudade do Totalmente
Outro no qual abandonar-se.

Este Outro que se oferece a todos como Pai-Mãe no amor, como Tu de


misericórdia e de fidelidade é aquele que nos foi revelado em Jesus Cristo. Não
é mera aspiração ou um auspício, um vão suspiro interior: é uma realidade que
nos foi manifestada e na qual podemos nos apoiar como uma rocha que não se
rompe, como braços que nos abraçam e como um coração que palpita em nós.

Diante da figura e, mais ainda, da realidade de Deus-Pai podemos fazer


a experiência do “retorno ao Pai”. Um Tu que vem plenificar nosso Eu. Um Tu-Pai
positivo por não oprime, não é lei, não é imposição. E um Tu “ecológico”. Faz bem.
Não há porque “matá-Ia”. Irei até Ele como o filho pródigo da parábola evangélica:
65
“Levantar-me-ei e irei à casa de meu pai”. À casa de meu pai.
66
Artigos
VOZES PROFÉTICAS DE RELIGIOSOS
DIANTE DA ESCRAVIDÃO NEGRA
NO BRASIL
Wilmar Santin, O.Carm *

RESUMO: Em meio a tantos comentários históricos sobre as atitudes da Igreja dos tempos da Colônia
67
e Império do Brasil, há um certo consenso tácito de que nem ela, nem as congregações religiosas ou os
religiosos pessoalmente, nada fizeram. O texto recorda que a Igreja estava subordinada ao governo
português e que dele dependia. Todavia, diversas vozes, localizadas e/ou individualizadas se ergueram
quer pela compreensão do “pecado vivo” contra os negros, quer como atitudes libertárias em favor
deles – com decorrentes conseqüências. A pesquisa consegue identificar nomes e situações em que
religiosos, mesmo que a modo de profetas menores, tenham compreendido a enorme desumanidade
a que foram submetidas tantas pessoas.

PALAVRAS CHAVE: Escravidão. Negros. Religiosos. Denúncias. Libertação. Abusos. Alforria.


Religiosos.

ABSTRACT: Among many historical comments about the attitudes of the Church of the Brazil Colonial
and Imperial Age, there are certain tacit consensuses that haven’t done anything and neither the
religious congregations nor religious personally. The text reminds that the Church was subordinated
to the Portuguese government as well depended on it. However, various voices placed and or
individualized rose for the understanding of the “alive sin” against black people, with libertarian
attitudes on their favor-with deriving consequences. The research can identify names and situations
in which religious, even so in a minor prophet way, have understood the enormous inhumanity that
many people were submitted.

Keywords: Slavery. Black people. Religious. Denunciation. Release. Abuses. Enfranchisement.


1. INTRODUÇÃO

Não se sabe ao certo quando foram introduzidos os primeiros escravos


africanos no Brasil.

O certo é que, introduzida a cultura da cana de açúcar, foram montados


engenhos, sobretudo na capitania de S. Vicente, e que neles trabalhavam escravos
Africanos. E até se pretende que a caravela encontrada por Martim Afonso de Souza
na Bahia em 1531, por ele tomada a seu serviço depois de fazer desembarcar os
escravos que transportava, já se empregasse nesse comércio. 1

Leis antiescravagistas só surgiram no século XIX. A primeira foi sancionada


em 7 de novembro de 1831. Esta lei tinha como finalidade proibir a entrada de
novos escravos africanos no império. O artigo 1º dizia: “Todos os escravos, que
entrarem no território ou portos do Brasil, vindos de fora, ficam livres”.

Como havia muitos abusos e encontravam-se meios de burlar esta lei,


em 4 de setembro de 1850 foi aprovada a lei nº 581 que estabelecia medidas de
repressão contra o tráfico de escravos africanos no país.
68 Em 28 de setembro de 1871 foi sancionada a lei nº 2.040, é a famosa Lei
do Ventre Livre, que declarava livres todos os filhos que nascessem de mulheres
escravas.

A lei 3.270, conhecida como Lei dos Sexagenários, de 28 de setembro de


1885 concedia liberdade aos escravos que atingiam a idade de 65 anos.

Finalmente foi decretada a Lei Áurea (lei nº 3.353) em 13 de maio de 1888


que concedeu liberdade a todos os escravos do Brasil. A lei contém só dois artigos
e é direta:

“Art. 1º - É declarada extinta a escravidão no Brasil.

Art. 2º - Revogam-se as disposições em contrário”.

Durante o período da escravatura, todas ordens religiosas tiveram escravos


no Brasil e se aproveitaram da sua força de trabalho. Só para citar um exemplo:
em 1878 no Maranhão Frei Caetano de S. Rita Serejo, Provincial dos Carmelitas,
administrava um patrimônio de mais de 400 escravos2.

Os religiosos, padres e a Igreja como tal são acusados de não terem


combatido a escravidão. Em 1883, portanto 5 anos antes da abolição da
escravatura, o grande abolicionista Joaquim Nabuco escrevia:

1 MALHEIRO, A escravidão no Brasil, 26.


2 PACHECO, História Eclesiástica, 369.
Em outros países, a propaganda da emancipação foi um movimento religioso,
pregado do púlpito, sustentado com fervor pelas diferentes igrejas e comunhões
religiosas. Entre nós, o movimento abolicionista nada deve, infelizmente, à Igreja
do Estado; pelo contrário, a posse de homens e mulheres pelos conventos e por
todo o clero secular desmoralizou inteiramente o sentimento religioso de senhores
e escravos. No sacerdote, estes não viam senão um homem que podia comprar, e
aqueles a última pessoa que se lembraria de acusá-los. A deserção, pelo nosso clero,
do posto que o Evangelho lhe marcou, foi a mais vergonhosa possível: ninguém o
viu tomar a parte dos escravos, fazer uso da religião para suavizar-lhes o cativeiro, e
para dizer a verdade moral aos senhores. Nenhum padre tentou, nunca, impedir um
leilão de escravos, nem condenou o regimen religioso das senzalas. A Igreja católica,
apesar do seu imenso poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela,
nunca elevou no Brasil a voz em favor da emancipação3.

O jornalista José Júlio Chiavenato afirma: “A Igreja, no Brasil, era aliada fiel
dos senhores. E entre os padres encontravam-se alguns dos mais cruéis proprietários
de escravos. A crônica das crueldades é rica em sacerdotes sádicos”.4

O historiador Riolando Azzi, que é bastante crítico em relação à atuação


da Igreja como aliada ao projeto colonizador português, reconhece: “Dentro
da concepção ética da Cristandade colonial, não havia muito clima para que
desabrochasse na Igreja do Brasil uma verdadeira consciência dos direitos humanos
69
e da justiça social”.5 Os bispos e os padres diocesanos eram na prática funcionários
públicos pagos pelo rei. Assim muito dificilmente poderiam se rebelar contra a
situação, pois significaria ficarem privados do salário. Os religiosos por sua parte
tinham independência econômica, mas dependiam do trabalho escravo para
manterem suas fazendas. Por isso

Em geral, a Igreja aceitou pacificamente tanto a guerra contra os índios


por uma “causa justa” como a escravidão negra, que constituiu a base do sistema
latifundiário introduzido desde o início no Brasil.

Não obstante, houve algumas vozes que tiveram coragem de reagir contra
o regime escravocrata vigente no Brasil. 6

Estas vozes proféticas foram mais fortes em defesa do índio do que em


relação aos negros. A reação contra a escravidão negra começou entre os jesuítas
já no século XVI. Até o século XVIII quem defendesse os escravos deveria deixar
o Brasil. Talvez isto tenha sido um motivo para não ter havido muitos defensores
dos pobres cativos. No entanto, alguns reagiram e denunciaram a escravidão
como contrária à vontade de Deus.

3 NABUCO, O abolicionismo, 67-68.


4 CHIAVENATO, O negro no Brasil, 112.
5 AZZI. A cristandade colonial, 165.
6 AZZI. A cristandade colonial, 166.
2. SÉCULO XVI

2.1 PADRE MANUEL DA NÓBREGA

Talvez seja o primeiro a manifestar uma opinião contrária à escravidão.


Não foi um protesto direto e aberto, mas a manifestação de sua contrariedade em
relação à introdução de escravos no país. Assim escreve o grande abolicionista
Perdigão Malheiro:

O Padre Manuel da Nóbrega, pouco depois da fundação em 1549 da Bahia, cabeça


do estado, no governo de Tomé de Souza, escrevia ao Padre Prepósito, do colégio de
Santo Antão em Lisboa, queixando-se dessa introdução de escravos negros e negras
na nova povoação, mescla perniciosa, inoculando-se assim no Brasil o fatal cancro da
escravatura, fonte de imoralidade e de ruína.7

2.2. PADRE MIGUEL GARCIA, S.J.

70 Espanhol de nascimento, foi o primeiro professor de Filosofia no colégio


da Bahia. Foi também o primeiro sacerdote a contestar o regime escravocrata no
Brasil.

Pe. Serafim Leite, o grande escritor da história dos jesuítas no Brasil,


informa: “Sustentava ele a opinião, esclarece o P. Cristóvão de Gouveia8 de que
nenhum escravo da África ou Brasil era justamente cativo” 9. Portanto, Pe. Miguel
Garcia foi claro na sua posição: não havia escravidão justa! Não ficou na teoria
ou pura filosofia: partiu para a ação. Por isso recusou-se atender a confissão das
pessoas que possuíam escravos, incluindo os próprios padres jesuítas do Colégio.
Isto evidentemente provocou reação adversa tanto entre os proprietários como
entre os padres do Colégio, que por fim levou à decisão de reenviá-lo à Espanha.

Antes da tomada desta decisão o visitador fez uma ampla consulta a


juristas e moralistas da Europa. A resposta foi que poderia haver cativeiros justos;
portanto, o consenso geral era totalmente contrário à posição de Pe. Garcia.

Ainda na Bahia em 1583 o P. Miguel escrevia ao Pe. Acquaviva10:

A multidão dos escravos, que tem a Companhia nesta Província, particularmente


neste Colégio [da Baía], é coisa que de maneira nenhuma posso tragar, maxime,
por não poder entrar no meu entendimento serem licitamente havidos. ... E dos da
terra, entre certos e duvidosos, é tão grande o número, que a mim me enfada; e com
7 MALHEIRO. A Escravidão no Brasil, 26.
8 Foi o visitador dos jesuítas no Brasil de 1583 a 1589.
9 LEITE, História da Companhia, vol. II, 227.
10 Superior Geral dos Jesuítas.
estas coisas e com ver os perigos da consciência in multis, nesta terra, alguma vez me
passou por pensamento que seguramente serviria a Deus e me salvaria in saeculo
que em Província, onde vejo as coisas que vejo. 11

Ele tinha, portanto, um verdadeiro problema de consciência que envolvia


o risco de não se salvar.

2.3. PADRE GONÇALO LEITE, S.J.

Pe. Gonçalo Leite nasceu em Portugal e entrou na Companhia de Jesus em


1565. Logo após sua profissão solene foi enviado à missão do Brasil. Foi o primeiro
professor do curso de Artes no Colégio da Bahia. “A sua autoridade como Professor
e suas opiniões contrárias às do Visitador tornaram-no indesejável; e as informações
enviadas a Roma são desfavoráveis a ele, dando-o com inquieto”. Teve que voltar
a Portugal em 1586 por causa da sua posição frente ao problema da escravidão
negra e indígena. Morreu envenenado em 19 de abril de 1603, em Lisboa12.

Pe. Gonçalo teve a mesma posição do Pe. Miguel Garcia. Foi taxado como
“inquieto” por causa de suas posições. Já em Lisboa, em 20 de junho de 1586
escrevia ao seu Padre Geral:
71

Todos os Padres do Brasil andam perturbados e inquietos na consciência com muitos


casos acêrca-de cativeiros, homicídios e muitos agravos, que os brancos fazem
aos Índios da terra. A determinação dêstes casos não é tão dificultosa quanto é a
execução dêles. Alguns Padres lhes teem respondido; mas as respostas mandadas
ao Brasil pouco aproveitam, se não forem confirmadas pela Mesa da Consciência13;
e, com favor de Sua Majestade, os Governadores as mandarem pôr em execução,
porque os nossos Padres não teem fôrça para isso. De outra maneira, bem se podem
persuadir os que vão ao Brasil, que não vão a salvar almas, mas condenar as suas.
Sabe Deus com quanta dor de coração isto escrevo, porque vejo nossos Padres
confessarem homicidas e roubadores da liberdade, fazenda e suor alheio, sem
restituição do passado, nem remédio dos males futuros, que da mesma sorte cada
dia cometem. 14

Em seguida informa também que o visitador tinha tomado algumas


medidas como: somente alguns padres poderiam confessar na igreja, enquanto
que outros foram proibidos de atenderem confissões na igreja e só tinham
permissão de fazê-lo na portaria. Tudo indica que estes últimos tinham a mesma
posição dos padres Miguel e Gonçalo.

11 Citado por LEITE, História da Companhia, vol. II, 227-228.


12 Informações colhidas em LEITE, História da Companhia, vol. II, 229, nota 2.
13 A Mesa da Consciência e Ordens foi a instituição portuguesa dos assuntos religiosos. Era uma espécie de
ministério do culto. Começou a funcionar em 1532. Tinha um tribunal próprio e dava parecer ao rei sobre
resgates de cativos, paróquias, capelas, hospitais, ordens religiosas, cargos eclesiásticos, universidades, etc.
As questões coloniais eram da competência do Conselho Ultramarino.
14 Citado por LEITE, História da Companhia, vol. II, 228-229.
3. SÉCULO XVIII

3.1. FREI ANDRÉ DA PIEDADE, O.CARM.

Frei André da Piedade emitiu seus votos em 1723 no convento do Carmo


de Belém do Pará. Ali também estudou Filosofia e Teologia. Foi mestre de noviços,
prior e Procurador Geral das Missões Carmelitas do Maranhão, que na época
compreendia praticamente toda a Amazônia brasileira.

“Em 1745, Frei André da Piedade luta pela libertação dos escravos nas casas
e fazendas dos colonizadores brancos”.15

3.2. FREI CRISTÓVÃO DE LISBOA, O.F.M.

Frei Cristóvão de Lisboa foi Custódio (superior) no Maranhão. “Em


1747, condenou tanto a escravatura dos nossos índios como o tráfico do elemento
africano”16.
72
3.3 FREI JOSÉ BARBAROLA, O.F.M. Cap.

Frei José Barbarola (ou Frei José de Bolonha) foi um missionário capuchinho
italiano que viveu na Bahia de 1779 a 1794.

Em 18 de junho de 1794 o governador da Bahia, D. Fernando José,


escreveu uma carta ao ministro da Coroa Portuguesa Martinho de Melo e Castro
contando algo sobre a ação de Frei José. A simples transcrição do documento já é
suficiente para se ver a posição de Frei José e as reações.

Ilmo. e Exmo. Sr.

O Arcebispo desta diocese, levado daquela vigilância que sempre mostra em atalhar
qualquer doutrina em matéria espiritual que possa perturbar a tranquilidade e
sossego desta Capitania, ou opor-se às leis e ordens de Sua Majestade, me fez saber
que o padre frei José de Bolonha missionário capuchinho italiano tivera o desacordo
e indiscrição de seguir a má opinião a respeito da escravidão, a qual se propagasse e
abraçasse inquietaria contaminando as consciências dos habitantes dessa cidade e
traria para o futuro consequências funestas para a conservação e subsistência desta
colônia.

Depois deste religioso viver neste país perto de 14 anos, com procedimento
exemplar, cumprindo com as obrigações de seu ministério, apesar de algumas
imprudências em que rompia, e de que se abstinha sendo delas advertido pelos seus
superiores, merecendo o conceito de homem misterioso e zeloso pelo seu serviço de

15 BOAGA, Caminhada da Evangelização, 78.


16 Venâncio WILLEKE, citado por CARVALHO, A Igreja e a escravidão, 69.
Deus, se persuadiu ou o persuadiram de que a escravidão era ilegítima, e contrária
à religião, ou ao menos que sendo estas umas vezes legítimas e outras ilegítimas, se
devia fazer a distinção entre escravos tomados em guerra justa ou injusta, chegando
a tal ponto a sua presença que, confessando pela festa do Espírito Santo a várias
pessoas, pôs em prática esta doutrina, obrigando-os que entrassem na indagação
desta matéria tão dificultosa, por não dizer impossível de se averiguar, a fim de dar
liberdade àqueles escravos que, ou fossem furtados ou seduzidos a uma escravidão
injusta, sem refletir que, quem compra escravos, os compra regularmente a pessoas
autorizadas para os venderem, e debaixo dos olhos e consentimento do Príncipe,
e que seria maldito e contra a tranquilidade da sociedade exigir de um particular
quando compra qualquer mercadoria, a pessoa estabelecida para os vender, que
primeiramente se informassem donde elas provém, por averiguações, além de
inúteis, capazes sem dúvida de aniquilarem toda e qualquer espécie de comércio.

Examinada a origem desta opinião que este padre por tanto tempo não seguira, se
veio no conhecimento de que algumas práticas que tivera com os padres italianos
da Missão de Goa transportados na Nau Belém (para) este porto, e hospedados no
Hospício da Palma deram lugar a que este religioso se capacitasse desta doutrina,
não tanto por malícia e dolo como por falta de maiores talentos e conhecimentos
teológicos, e em razão de uma consciência escrupulosa.

Para que uma doutrina tão perniciosa não se espalhasse, o arcebispo imediatamente
o mandou suspender de confessor, rogando-me o remetesse neste navio que segue
viagem, e que o Mestre não o deixasse saltar para a terra sem ordem positiva de V.
Excia.; e conferindo com o mesmo Arcebispo sobre esta matéria, para se darem mais
providências que parecem acertadas, julguei conveniente chamar à minha presença
73
o reitor dos referidos missionários de Goa, estranhando-lhe vivamente a sua
indiscrição, e mostrando-lhe vivamente que esta matéria era sumamente delicada
e melindrosa, e que ao Príncipe unicamente tocava providência sobre ela, se algum
dia assim o julgasse conveniente, e que finalmente era grande inconsideração e
temeridade, à vista de um prelado tão sábio e doutor, e de todo o clero desta cidade,
suscitar semelhante questão.17

4. SÉCULO XIX

4.1.1 FREI EUGÊNIO, O.F.M.Cap.

“Frei Eugênio, de Gênova, de 1843 a 1871, obteve cerca de 686 cartas de


alforria para escravos”18.

4.1.2 FREI GREGÓRIO DE BENE, O.F.M.Cap.

Frei Gregório de Bene, no Estado do Espírito Santo, “censurava a escravidão


e ressaltava a liberdade dos povos da Itália e outros países da Europa”.19

17 AZZI, A crise da cristandade, 188-190.


18 CARVALHO, A Igreja e a escravidão, 68.
19 Maria Stela de NOVAIS, citada por CARVALHO, A Igreja e a escravidão, 68.
4.1.3 FREI GREGÓRIO DE JOSÉ MARIA

Frei Gregório de José Maria foi acusado de instigar uma revolta de 300
escravos em Vitória do Espírito Santo em 1849. Ele foi expulso para o Amazonas. 20

4.2. ORDENS RELIGIOSAS

Não só individualmente alguns religiosos tomaram posição, mas também


comunitariamente em favor dos escravos. Vejamos alguns casos.

4.2.1. CARMELITAS

Em 1798 aconteceu na Bahia a chamada Revolta dos Alfaiates ou


Conjuração Baiana. Os revolucionários tinham como uma de suas metas acabar
com a escravidão e com o preconceito racial. O historiador Riolando Azzi afirma:

74 “Diversos clérigos apoiaram o movimento, principalmente os carmelitas, colaborando


com a tradução de textos franceses”.21

4.2.1.1. FREI NORBERTO DA PURIFICAÇÃO PAIVA

Frei Norberto da Purificação Paiva foi provincial da Província Carmelitana


Pernambucana de 1860 a 1863.“Um dos feitos honráveis do seu governo foi dar
liberdade a todos os escravos que a Ordem tinha em Ubaca, um dos engenhos que o
convento do Carmo possuía”. 22

4.2.1.2. PROVÍNCIA DO RIO DE JANEIRO

“O ano de 1871 marcou o princípio de um belo costume que se fixou entre os


“Carmelitas” de alforriarem os cativos, ficando apenas com os indispensáveis para o
trabalho das casas”.23 Emanuel Boaga especifica que esta decisão de alforriar os
escravos foi tomada pela Província do Rio de Janeiro.24

No entanto a posição do carmelita Frei Caetano de Santa Rita Serejo no


Maranhão foi totalmente oposta. Nem a um apelo direto do bispo para libertar
20 FRAGOSO, A Igreja na formação, 172.
21 AZZI, A crise da cristandade, 17.
22 Catalogo incompleto dos Religiosos do Carmelo Pernambucano (1580-1925), organizado por Frei André
Prat. O original manuscrito está no arquivo da Província Carmelitana Pernambucana em Recife)
23 CARVALHO, A Igreja e a escravidão, 69.
24 BOAGA, Caminhada da Evangelização, 79.
seus escravos, por ocasião do jubileu sacerdotal do Papa Leão XIII em 1887, o
moveu. D. Felipe Condurú comenta o fato:

Insistiu [o bispo D. Antônio de Alvarenga] muito também com Fr. Caetano, o conhecido
Carmelita, para fazer o mesmo [dar carta de alforria como o fizera Fr. Manoel Rufino,
o último mercedário no Maranhão], fazendo-lhe ver que, mais cedo ou mais tarde, o
Governo lhe faria perder seus escravos. Era melhor dar-lhes a liberdade, ganhando-lhes
assim o reconhecimento, o que não aconteceria, se fossem libertados por lei. O Frade,
porém, agarrado demais aos bens temporais, respondia-lhe que o governo indenizaria
os senhores. E viu libertos por lei todos os seus cativos. A tal indenização [não] lhe veio,
como [não] lhe veio o reconhecimento dos escravos, os quais logo abandonaram as
fazendas da Ordem, deixando na miséria o Frade, que tinha outrora, na sua pobreza
religiosa possuído fortuna colossal. - Coisas deste mundo!... 25

4.2.2. BENEDITINOS

No dia 3 de maio de 1866 o Capítulo Geral declarou livre todos os que


nascessem dentro dos muros dos conventos beneditinos. Este modo de agir
inspirou a Lei do Ventre Livre. Três anos depois o Mosteiro de S. Bento, no Rio de
Janeiro, promovia a libertação de todos os seus escravos com mais de 50 anos e,
75
em 1871, manumitia três mil cativos. 26

4.2.3. FRANCISCANOS

Os franciscanos da Província da Imaculada Conceição, em 1871, por ocasião


da festa de S. Francisco, davam também liberdade aos seus escravos “conservando
só os que são indispensáveis no momento”. Essa atitude dos franciscanos foi
seguida pelos franciscanos do Nordeste, cuja Província de S. Antônio concedia,
em 1872, liberdade aos escravos de seus conventos. 27

5. CONCLUSÃO

Mesmo não havendo “muito clima para que desabrochasse na Igreja do


Brasil uma verdadeira consciência dos direitos humanos e da justiça social”28, deve-
se reconhecer que surgiram algumas vozes proféticas de religiosos no Brasil em
relação à escravatura negra. É verdade que não foram muitas, mas existiram.
Dentre os profetas neste campo sem dúvida destacam-se: Pe. Miguel Garcia, Pe.
Gonçalo Leite e frei José de Barbarola.

25 PACHECO, História Eclesiástica, 420.


26 CARVALHO, A Igreja e a escravidão, 69.
27 FRAGOSO, A Igreja na formação, 164.
28 AZZI, A cristandade colonial, 165.
Eles foram incompreendidos até mesmo dentro de suas comunidades.
Os três tiveram o mesmo destino: foram obrigados a deixar o país! Frei José
de Barbarola inclusive foi “punido” com a suspensão do direito de confessar e
denunciado pelo próprio bispo às autoridades civis.

Infelizmente estes defensores dos escravos são pouco conhecidos e


por isso seus atos proféticos são pouco divulgados. É dever de justiça resgatar a
memória destes religiosos e apresentá-los como exemplos de luta pela justiça e
liberdade. Assim não se pode aceitar de maneira absoluta a afirmação do grande
abolicionista Joaquim Nabuco de que “a Igreja católica, apesar do seu imenso
poderio em um país ainda em grande parte fanatizado por ela, nunca elevou no
Brasil a voz em favor da emancipação”29.

APÊNDICE 1

76
Bispos, padres e leigos a favor da abolição

Também entre os bispos e padres diocesanos houve profetas, por isso,


mesmo fugindo do escopo desta investigação, vou elencar os nomes de alguns
sem me ater ao que fizeram ou falaram.

BISPOS 30

D. Romualdo Antônio de Seixas (arcebispo da Bahia)


D. Antônio Ferreira Viçoso (bispo de Mariana)
D. Marcos Antônio de Sousa (bispo do Maranhão)
D. Antônio Maria Corrêa de Sá e Benevides (bispo de Mariana)
D. João Antônio dos Santos (bispo de Diamantina)
D. Frei Antônio de Guadalupe (bispo do Rio de Janeiro)
D. Frei João da Cruz (bispo do Rio de Janeiro)
D. Antônio Luís dos Santos (arcebispo da Bahia )
D. José da Silva Barros (bispo de Olinda e Recife )

29 NABUCO, O abolicionismo, 67-68.


30 Informações sobre o que cada um fez e como contestou a escravidão, ver CARVALHO, A Igreja e a escravidão,
101-118; FRAGOSO, A Igreja na formação, 162-163.
D. Manuel do Monte Rodrigues de Araújo (bispo do Rio de Janeiro)
D. Lino Deodato Rodrigues de Carvalho (bispo de São Paulo)
D. Pedro Maria de Lacerda (bispo do Rio de Janeiro)
D. Frei Luís da Conceição Saraiva
D. Sebastião Dias Laranjeiras (bispo no Rio Grande do Sul)

PADRES DIOCESANOS ABOLICIONISTAS 31


Pe. Diogo Antônio Feijó
Pe. Correia de Almeida
Pe. Antônio Fernandes dos Santos
Pe. João de Santo Antônio
Pe. Antônio Caetano da Fonseca
Pe. João Crisóstomo de Paiva Torres
Pe. José Alves Martins Loreto 77
Pe. João Clímaco
Pe. Augusto Sequeira Canabrava
Pe. Azambuja Meireles
Pe. Antunes de Sequeira
Pe. Augusto Joaquim de Siqueira Canabarro

PADRES ABOLICIONISTAS NO PARLAMENTO BRASILEIRO 32


Pe. José Custódio Dias
Pe. Venâncio Henriques de Resende
Pe. Francisco Muniz Tavares
Pe. José Martiniano de Alencar
Pe. José Antônio Marinho
Pe. Miguel do Sacramento Lopes Gama
Pe. Lindolfo José Correia das Neves
Pe. Joaquim Pinto de Campos
31 Informações sobre o que cada um fez e como contestou a escravidão, ver CARVALHO, A Igreja e a escravidão,
178-187.
32 Informações sobre os pronunciamentos de cada um no Parlamento, ver CARVALHO, A Igreja e a escravidão,
118-149.
Pe. Inácio Xavier da Silva
Pe. José Lourenço da Costa Aguiar
Pe. Mâncio Caetano Ribeiro
Pe. Tomás Pompeu de Sousa Brasil

CRISTÃOS LEIGOS 33
João Severiano Maciel da Costa
Felisberto Caldeira Brant Pontes
Joaquim Nabuco (inclusive visitou o Papa pedindo apoio para a causa da
abolição)
Perdigão Malheiro34

78 BIBLIOGRAFIA

AZZI, Riolando, A cristandade colonial: um projeto autoritário, Paulinas, São Paulo


1987.
_________, A crise da cristandade e o projeto liberal, Paulinas, São Paulo 1991.

_________, O altar unido ao trono, Paulinas, São Paulo 1992.

BEOZZO, José Oscar, A Igreja e a escravidão 1875-1888, em História da Igreja no


Brasil, (História Geral da Igreja na América Latina II/2), Vozes, Petrópolis 1992.

BOAGA, Emanuele, Caminhada da Evangelização na História, São João del Rei 1999.

CARVALHO, José Geraldo VIDIGAL DE, A Igreja e a escravidão - uma análise


documental, Presença, Rio de Janeiro 1985.

CHIAVENATO, Julio José, O negro no Brasil - da senzala à guerra do Paraguai,


Brasiliense, São Paulo 1980.

FRAGOSO, Hugo, A Igreja na formação do Estado Liberal, em História da Igreja no


Brasil, (=História Geral da Igreja na América Latina II/2), Vozes-Paulinas, Petrópolis
1992.

33 Informações sobre o que cada um fez e como contestou a escravidão, ver CARVALHO, A Igreja e a escravidão,
150-177.
34 É autor da obra A Escravidão no Brasil - Ensaio Histórico, Jurídico, Social, em 3 volumes publicada em 1867.
HOORNAERT, Eduardo e outros, História da Igreja no Brasil, (=História Geral da
Igreja na América Latina II/1), Vozes, Petrópolis 1992.

HURBON, Laënnec, A Igreja e a escravidão moderna, em Historia Liberationis: 500


anos de História da Igreja na América Latina, Paulinas-CEHILA, São Paulo 1992.

LEITE, Serafim, História da Companhia de Jesus no Brasil, em 10 volumes, Livraria


Portugalia e Civilização Brasileira, Lisboa-Rio de Janeiro 1938 a 1950.

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80
Artigos
DESAFIOS E PERSPECTIVAS DA
ÉTICA NUMA SOCIEDADE EM
TRANSFORMAÇÃO
Santiago Maria Gonzalez Silva *

RESUMO: O estudo se propõe a levantar desafios e perspectivas éticas para uma sociedade em mudança.
Por isto, se estabelecem princípios norteadores da pesquisa desde uma visão personalista, comunitária
e solidária, onde se deve acolher a hodierna consciência do indivíduo que sabe de ser o ineludível ponto
81
de partida para toda ulterior determinação. Isto supõe partir de uma base moral fundamentada nas
Escrituras Sagradas, na sua variedade de graças – superando os fundamentalismos – para o alegre
encontro com a mensagem de Jesus, sem esquecer o significativo dos sacramentos cristãos. A partir
daí são propostas duas situações de moral especial. Em primeiro lugar a bioética , suas conquistas e
significados éticos. Em seguida, questões referentes à qualidade de vida e o cuidado pelo meio ambiente,
envolvendo diversas e complexas situações, sobretudo, decorrentes da globalização e disfunção da
economia. Conclui-se com um ato de esperança de que o amor é capaz de, mesmo na grande paciência,
descobrir em Deus a fonte de uma energia vivificadora.

PALAVRAS CHAVE: Teologia moral. Biogenética. Ciência. Homem. Avaliação moral. Eutanásia. Meio
ambiente. Impacto ecológico. Mercado. Capital. Amor.

ABSTRACT: The study proposes to bring up challenges and ethic perspectives for a society in change.
Because of this, guiding principles of research are established from a personalist point of view, community
and solidarity, where it should receive the hodiernal consequence of the individual who knows how to be
the unavoidable starting point for all the ulterior determination.
It supposes to get started from a moral fundamental basis in Holly Scriptures, in its variety of graces-
overcoming the fundamentalism-for the happy meeting with Jesus message, not forgetting the
significant of Christian sacraments. From this point it`s proposed two situations of special moral. First
off the bioethics, its conquers and ethical meanings. Following it, questions related to life quality and
environmental care, involving many and complex situations, mainly, derived from globalization and
economy dysfunction. It`s concluded that with a hope act the love is capable of discover in God the
fountain of a vivifier energy, even in huge patience.

KEY WORDS: Moral Theology. Biogenetics. Science. Men. Moral evaluation. Euthanasia. Environment.
Ecological impact. Market. Capital. Love.
Já há algum tempo ultrapassamos o ano 2000! Não há dúvida que, além de
toda precisão cronológica, o número redondo -2000- traduz como nenhum outro
a nossa consciência de ter ultrapassado um limiar milenário em nosso percurso
histórico. A percepção de viver um tempo novo catalisa todas as experiências que
marcavam com sinal de mudança e transformação esta nossa sociedade. Não se
trata de um fenômeno que tenha nos assaltado de improviso, mas a reflexão ética
o estava assumindo nos últimos decênios. Resulta, porém, significativo poder
fazer esta parada neste ano crucial aberto a um futuro diverso. E é um verdadeiro
privilégio externar esta reflexão exatamente no Brasil que diante do mundo se
apresenta como um país emblemático daquele futuro. Não pretendo lisonjear
o orgulho coletivo do leitor, mas espelhar verdadeiramente uma situação de
fato. Talvez não exista outra nação na qual se colham assim claramente as
possibilidades oferecidas para o futuro juntamente com os riscos que poderiam
frustrar a conquista de uma convivência mais harmônica e favorável a todas as
pessoas deste povo.

Como bem se pode intuir não se trata apenas de um problema


organizativo que se resolve com o voluntariado e o enquadramento. É a pessoa
82 que deve ser libertada em todas as suas energias para que busque a própria
realização precisamente na relação com os outros. A estratégia para resolver a
situação não se encontra, pois, nas mobilizações de vários tipos, mas, antes ainda,
no protagonismo responsável que cada sujeito assume, sem delegar a outrem,
a tarefa que pessoalmente lhe compete. A decidir o sentido da transformação
presente e aquelas do futuro será, sobretudo, a atitude ética dos homens e das
mulheres do nosso tempo.

Uma ética aberta

A qual ética pretendemos nos referir? A uma ética personalista,


comunitária, solidária. Partir da pessoa significa assumir todo o percurso da
consciência moderna rumo ao subjetivo, mas, além de toda elaboração filosófica,
acolher a hodierna consciência do indivíduo que sabe de ser o ineludível ponto
de partida para toda ulterior determinação. A morte do indivíduo como “’mônada
burguesa” somente é mantida em algum círculo intelectualístico; não minou a
certeza que cada um tem de si mesmo. Próprio para que não fique fechada no
isolamento requer-se a realização comunitária, o que quer dizer, em relação
livremente estabelecida e doada. Isto desde uma abertura que reconhece a igual
dignidade de todos enquanto possuída originariamente por cada um e não
conferida por um coletivo prévio às pessoas que poderia eventualmente retirar
delas o necessário reconhecimento1. Ou melhor, a relação mútua confirma cada
pessoa na sua originalidade insubstituível como na abertura constitutiva que lhe
abre os horizontes do crescimento e do aperfeiçoamento por meio do dom de si.
A comunidade, portanto, se define em um projeto solidário não tanto por causa
da auspicável coesão quanto como única possibilidade interativa capaz de atingir
as dimensões mundiais por um projeto ético que se deseja aberto ao futuro.

Considerando esta definida base humana, a proposta que estamos


delineando pretende brotar de uma profunda vocação ao diálogo. A complexidade
que marca os nossos sistemas sociais não nos confronta com a Natureza como
acontecia nas sociedades pré-capitalistas, mas sim com a impossível totalidade
do sistema mundial contemporâneo1. E um desafio que nos envolve como seres
humanos desde a profundidade e a verdade da consciência: “Na fidelidade
à consciência os cristãos se unem aos outros homens para buscar a verdade e
para resolver segundo verdade tantos problemas morais que surgem na vida dos
indivíduos e na sociedade”(GS 16).

Já que estamos numa pesquisa não é bom partir com excessivos


condicionamentos. Deveremos, antes, recuperar o sopro ecumênico do magistério
joanino. Nele se recordava, contra certos endurecimentos dogmáticos, que se
deve distinguir entre o erro e aquele que erra. Ele

é sempre e antes de tudo um ser humano e conserva, em todo caso, a sua dignidade
83
de pessoa; e deve ser considerado e tratado como se convém a tanta dignidade.
Além disto, em cada ser humano, não se apaga nunca a exigência, congênita à sua
natureza, de quebrar os esquemas do erro para abrir-se à consciência da verdade.
(PT 83)

Dentro da relatividade das posições históricas, o olhar pode lançar-se com


vigilante esperança:

Além disto quem pode negar que naqueles movimentos, na medida em que estejam
de acordo aos ditames da reta razão e se fazem intérpretes das justas aspirações da
pessoa humana, existam elementos positivos e merecedores de aprovação?». (PT 85)

Eis o amplo campo que se abre para a reflexão participada e à colaboração


prática: «Portanto pode verificar-se que uma aproximação ou um encontro de
ordem prática, ontem considerado não oportuno ou não fecundo, hoje, pelo
contrário, o seja ou o possa se tornar amanhã» (PT 85). Para indicar todo o alcance
desta impostação, constitutivamente dialogal, é útil citar o ensinamento de João
Paulo II na encíclica «Fides et ratio»:

1 F. JAMESON. Il postmoderno, o la teologia culturale del tardo capitalismo. Milano, 1989, 67-73
Em todos os lugares o homem descobre a presença de um chamado ao absoluto
e ao transcendente e ali abre-se para ele uma espiral em direção à dimensão
metafisica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na pessoa dos outros,
no mesmo ser, em Deus. Um grande desafio que nos espera no fim deste milênio é
aquele de saber realizar a passagem, tão necessário quanto urgente, do fenômeno
ao fundamento (FR 83).

Desde a graça festiva

Agora o nosso raciocínio, no âmbito específico deste Estudo, se faz mais


nitidamente teológico visando fornecer algumas indicações programáticas
relativas à moral fundamental. Se queremos fazer teologia não podemos senão
partir da Palavra de Deus. Somente assim a moral católica estará pronta para
“ilustrar a altura da vocação dos fiéis em Cristo e a sua obrigação de produzir
fruto na caridade para a vida do mundo” (OT 16). Não interessa, portanto, voltar
à Escritura para escavar um fundamentalismo normativo que trairia a própria
inspiração divina que nos chegou na variedade dos estilos com os quais os homens
se comunicam entre si (DV 12). Importa, sobretudo, recuperar a consciência do
84 dom recebido de Deus; o imperativo, portanto, não será senão consequência
deste indicativo da graça. Assim, a moderna rejeição da imposição pode se tornar
uma esplendida oportunidade para redescobrir as raízes evangélicas da moral.

É inútil esconder: o excesso de obrigação que carrega a moral demonstra


um afastamento da mensagem de Jesus. Na sua pregação, Ele trouxe a Boa Nova e
tentou distanciar-se daqueles “que atam pesados fardos e os colocam nos ombros
das pessoas, mas eles mesmos não os querem mover sequer com um dedo» (Mt
23, 4). A sua proclamação sobre o monte começou: «Felizes os pobres em espírito
porque deles é o reino dos céus» (Mt 5, 3). É o cumprimento da promessa que se
multiplica numericamente para revelar a totalidade da redenção oferecida a toda
a humanidade partindo próprio dos últimos. Este chamado às Bem-aventuranças,
como as Igrejas orientais tradicionalmente ensinaram, é o início da vida moral no
cristão. Qualquer empenho sucessivo deve brotar desta felicidade originária. A
prova mais contundente contra a inautenticidade do moralismo será sempre a
falta de alegria. São pessoas que se sentem tiranizadas pelas exigências de um
Deus que na realidade ignoram porque não aprenderam, como Jesus, a chamá-lo:
«Abbá» (G14, 6).

A partir desta experiência que o Cristo viveu (Hb 5, 8) no seu mistério


pascal de morte e ressurreição (Fl2, 6-11), o cristão sabe que é uma nova criatura
(2 Cr 5, 17). A expressão não deve ser entendida no sentido redutivo de uma
«diversa» conduta moral a ser adquirida com esforço. Ela possui, antes de tudo, o
significado triunfal de princípio absolutamente inédito na glória potente de Deus.
No corpo do Ressuscitado e sob a ação do Espírito, o Pai, fonte de amor, se agrega
a humanidade salva. Esta é a Igreja que Paulo conheceu na estrada de Damasco
(At 9, 3-6) e para a qual conduz o olhar dos fiéis: «Há pois diversidade de carismas
mas um só é o Espírito; há diversidade de ministérios, mas um só é o Senhor; há
diversidade de ações, mas um só é Deus que realiza tudo em todos» (1 Cr 12, 4-6).
O mistério de Deus é vivido na concreticidade das relações inter-humanas.2 Sobre
este ponto concordam os evangelhos sinóticos (Mt 22,36-40; Mc 12,28-34; Lc 10,25-
37; Mt 25,31-46) e a convicção vital do discípulo testemunha (Jo 1, 14). No seu amor
por Jesus (1Jo 1, 1-2) ele descobriu que Deus é Amor: “Amemo-nos uns aos outros
porque o amor é de Deus: todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus.
Quem não ama não conheceu a Deus pois Deus é Amor” (l Jo 4, 8).

Pode ser que alguém considere idealista uma tal fundamentação, mas não
existe um princípio de crítica social mais exigente que a caridade. E muitas vezes
os realistas que evitam confrontar-se com ele estão admitindo implicitamente a
sua disponibilidade em sacrificar as pessoas quando as circunstâncias requerem.
E isto com uma curiosa coincidência: são sempre os outros que as circunstâncias
pedem de sacrificar, nunca estes personagens, que se sentem ‘justos” porque
sentados no lugar justo.

Se queremos realismo aprendamo-lo também da Escritura. Remontemos ao


Antigo Testamento com todo o seu peso histórico. Muito pesado para algumas belas
almas! Aquelas que, segundo Dietrich Bonhoeffer, gostariam de chegar ao Novo 85
sem passar pelo Antigo Testamento. Tanto em um como no outro encontramos
esta palavra constante, de Abraão até Jesus: “Deus está contigo” (Gn 21,22)/ “Estou
convosco” (Mt 28, 20). Deus se manifesta em relação às pessoas. Intervém na sua
história. Acompanha o seu povo. Faz-se participante da sua caminhada.

Uma leitura da Bíblia atenta à realidade encontra este modo de Deus


falar a sua gente. Pode-se entender bem como as comunidades de base, com
sua aproximação crente ao texto revelado e vivido obtenham mais fruto para a
existência cristã que tantas pesquisas estéreis no seu criticismo acadêmico.

Para nos apropriarmos de todo o dinamismo cristão é preciso que à Palavra


aproximemos os Sacramentos. Eles assinalam o acolhimento da palavra, seja no
início da fé cristã que nas diversas circunstâncias da vida. A adesão ao evangelho
se revela mediante a entrada visível na comunidade dos fiéis. Eles entram em
uma comunidade que de per si significa novidade de vida: a Igreja sacramento
visível de salvação. Mas, por sua vez, o ingresso na comunidade eclesial se
exprimirá por meio de muitos outros sinais e gestos sacramentais (EN 23). Assim,
a evangelização atinge a vida, purificando-a e elevando-a, particularmente com
os sete sacramentos que a irradiam de graça e santidade. É um equívoco, como se
faz às vezes, opor evangelização à sacramentalização (EN 47). Seria sábio admitir
que aquelas fórmulas mostram em sua origem um acúmulo de insuficiências
pastorais. Não é uma boa solução retomar certos atalhos que os moralistas
deveriam ter esquecidos no tempo do jansenismo.

2 S. S. BASTIANEL – L. DE PINTO. Per uma fondazione bíblica dell’etica: T. GOFFI – G. PIANA (edd.), Corso di
morale. I. Vita nuova in Cristo (morale fondamentale e generale). Brescia 1983, 144
Os sacramentos não são prêmios para “os melhores”, mas graça que Deus
dá com especial eficácia próprio porque ligados a acontecimentos da nossa vida.
Se a ética cristã busca uma formulação, ao invés de normativa, consequencial,
nela encontrarão espaço privilegiado estes sinais. O seu conteúdo pedagógico
não terá somente um valor de preparação, mas constituirá uma síntese referencial
ao longo de todo o arco da existência cristã. Além disto, o seu aspecto celebrativo,
é particularmente indicado para acompanhar a gradualidade do caminho moral
aliviando no cansaço e confirmando no entusiasmo e na generosidade. Nesta
perspectiva, João Paulo II nos recorda que “eles fazem os homens partícipes da
vida divina, assegurando-lhes a energia espiritual necessária para realizar na sua
plena verdade o significado do viver, do sofrer e do morrer. Graças a uma genuína
redescoberta do sentido dos ritos e de sua adequada valorização, as celebrações
litúrgicas, sobretudo aquelas sacramentais, estarão sempre em grau de exprimir
a verdade plena sobre o nascimento, a vida, o sofrimento e a morte ajudando
a viver estas realidades como participação no mistério pascal de Cristo morto e
ressuscitado” (EV 84). Em um povo rico de gestualidade, como é o povo brasileiro,
é preciso cuidar especialmente o seu aspecto festivo. Muitas das dificuldades,
enfim, cessarão, quando diminuir em alguns ministros a atitude de juíz, a mesma
86 que por tanto tempo prejudicou a prática da confissão.

Em favor da vida

Passando à moral especial é obrigatório um primeiro toque à bioética.


Nela deve ser cuidadosamente verificada e assegurada a centralidade da pessoa
ainda que sempre relacionada ao contexto social. “De fato, a pessoa humana, que
pela sua natureza tem absolutamente necessidade de uma vida social, é e deve
ser princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais” (GS 25).

No campo da bioética, muitos pensam a Igreja como o agente


encarregado de distribuir proibições para exorcizar os medos diante do novo. A
moral católica não pode senão partir do positivo e, isto é, do compromisso pela
vida. Alegra-se, antes de tudo, com os progressos conseguidos neste campo,
também quando se referem ao início do ser humano. Pensemos somente nos
recém-nascidos afetados pela fenilcetonuria que hoje podemos impedir de se
tornarem sub-normais profundos garantindo-lhes, ao invés, um desenvolvimento
normal. Hoje já estamos em grau de efetuar intervenções intrauterinas para
transplante da medula óssea (Brescia 1996). As técnicas de fecundação in vitro
utilizam a injeção intracitoplasmática pela qual um óvulo é fecundado por um
único espermatozóide (Bologna 1997). Segundo a equipe do prof. Flamigni, isto
exclui a perda de embriões. No máximo são fecundados e implantados três como
acontece na mesma fecundação natural.

Mas a experimentação foi muito além. Primeiro caso registrado de


clonagem entre os mamíferos superiores, no ano de 1996, foi a ovelha Dolly. Em
fevereiro de 1997, sete meses depois do nascimento, deu a notícia Ian Wilmut do
Instituto biotecnológico de Edimburgo. Ainda no ano de 1996 também o Centro
de Pesquisa dos Primatas de Beverston (Oregon) conseguiu clonar e fazer nascer
um macaco e uma macaca. São resultados não diminuídos pela observação
(Wilmut) de algum envelhecimento celular avaliado na diminuição dos telemeri.
Mais grave aparece a possibilidade que no processo de reprogramação genética
se dêem erros de consequência letal (Renard). Nas reuniões preparatórias dos
Encontros para o Jubileu dos Professores Universitários (Roma, 12 de fevereiro de
2000) alguns dos pesquisadores participantes afirmaram que clonagem humana
é iminente.

Hoje a engenharia genética “tocou” o gen. A alteração genética deu origem


a novos tipos biológicos para os quais já existe a patente nos Estados Unidos. O
primeiro a ser registrado foi um rato de nome Myc (Du Pont Lab.).

No que se refere à genética humana a tentativa mais importante é o


projeto RUGO (Human Genoma Organization) iniciado oficialmente em 1 de
outubro de 1990. O genoma humano se compõe de 50-100.000 gens de tamanho
muito variável.3 Para obter o mapa completo do braço longo do cromossomo 23,
o menor de todos os que possui o homem, trabalharam dez centros de pesquisa 87
coordenados pelo Centro de Estudos do Poliformismo Humano de Paris (1992).
No 2 de dezembro de 1999, pesquisadores da Universidade de OkIahoma
(Estados Unidos), do Centro Sanger (Inglaterra) e da Universidade de Keio (Japão)
apresentaram a sequência funcional do cromossomo 22, o segundo menor na
espécie humana. Desde 1995 se trabalhava para este resultado. Concluiu-se
o programa em 2002 com a identificação de todas as unidades DNA de nossas
células. Enquanto isto surgiu um projeto paralelo da empresa norte americana
Celera que busca conseguir a sequência completa até o final de 2001. O projeto
governativo publica os resultados obtidos o que não é feito pela iniciativa
privada. RUGO identificou um bilhão de unidades DNA o que corresponde a um
terço do genoma humano. Além disto, segundo McKusick, diretor do projeto, já se
encontram catalogadas 4.000 doenças genéticas. 4

Somente quando somos informados pela ciência sobre os fatos e sobre


as modalidades de intervenção no início da vida humana surge com precisão o
problema ético.5 Primeiramente, com uma sensação de admiração que colhe a
novidade. Para reconhecer, em seguida, que tal sensação é plenamente humana:
o homem está nas mãos de sua liberdade e esta liberdade define o homem. João
Paulo II soube dizê-lo lucidamente: “O homem começa hoje a ter nas mãos o
poder para controlar a própria evolução. A medida e os efeitos, bons ou não, deste
controle dependerão não tanto de sua ciência quanto mais de sua sabedoria”.6

3 J.GAFO, Problemas éticos de Ia manipulación genética, Madrid 1992, 86-89 5 Ibid. 37


4 Ibid. 37
5 N. BLASQUEZ, Bioteica fundamental, Madrid 1996, 374
6 Discurso no Centenário de Gregório Mendel: Insegnamenti di Giovanni Paolo II, VTI/l(1984) 672
Com isto não se quer opor a moral à ciência. Pelo contrário, a avaliação
moral que exprima a equipe científica deve ser tomada em consideração com
prioridades.7 Não esqueçamos que foram os cientistas a propor em 1974 uma
moratória para este tipo de experimentação até que a conferência de Asilomar
(1975) fixasse algumas barreiras físicas e biológicas capazes de oferecer maiores
garantias de segurança. Ficando, portanto, próximo a sua impostação pode-se
apresentar aos pesquisadores duas exigências: a) que não justifiquem as próprias
tentativas com simples aumento de conhecimento que delas deriva (DV Intr.2); b)
que olhando ao projeto homem evitem a involução de uma fisiologia sobre a qual
se apóia a consciência.

Em um campo de tal forma voltado para o futuro a moral se exprime


necessariamente como proposta. Indo além, com critérios teológicos mais
explícitos, uma vida deve ser gerada pelo amor porque somente assim chega à
existência em liberdade. Esta expressão do amor pode evoluir culturalmente (GS
35-36) até admitir a fecundação in vitro homóloga quando esta exclua a produção
de óvulos fecundados não destinados a um implante viável.

88 Ainda se poderiam dar três indicações ao mesmo tempo abertas e


significativas:

- Quanto suponha uma perda do caráter pessoal na origem do homem


deve ser considerado como um insucesso. Não podemos abandonar
a responsabilidade de nossa sobrevivência (DV Intr. 1).

- A corporeidade não pode ser considerada como uma imperfeição a


superar. O homem é seu corpo (DV Intr.3; I, 5 e 6).

- Respeitar a diversidade e unicidade de todo ser humano. Qualquer


intenção contrária àquela pluralidade pode ameaçar “o valor
incomparável de cada pessoa humana” (EV 2).

Em seu ensinamento, João Paulo II aceita as intervenções com fins


terapêuticos e também aqueles que, respeitando a dignidade humana, superem
a estrita finalidade terapêutica. Assinalou, porém, limites a tais manipulações.

A mesma condenação moral refere-se também ao procedimento que explora os


embriões e os fetos humanos ainda vivos -às vezes ‘’produzidos’’ propositalmente
para este fim mediante a fecundação in vitro- seja como “material biológico” para
utilizar seja como fornecedores de órgãos ou de tecidos para transplante para curar
algumas doenças. (EV 63).

7 E.SGRECClA - A.G.SPAGNOLO, Dall’etica professionale alla bioetica: E.SGRECClA - A.G. SPAGNOLO - M.L. DI
PIETRO, Bioetica, Roma 1999, 58
Sobre o aborto não se registra nenhuma mudança na oposição moral a
ele. À luz, porém, dos atuais conhecimentos referentes aos primeiros estágios de
nossa vida não parece evidente que o momento da fecundação coincida com
a origem da pessoa humana. O Magistério evitou, mesmo recentemente, de
pronunciar-se a este respeito.

De resto, tal é o que está em jogo que, sob o perfil da obrigação moral bastaria
somente a probabilidade de encontrar-se diante de uma pessoa para justificar a
mais clara proibição de toda intervenção voltada a suprimir o embrião humano.
Por isto mesmo, além dos debates científicos e das mesmas afirmações filosóficas
nas quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou
e ainda hoje ensina, que ao fruto da geração humana, desde o primeiro momento
de sua existência deve ser garantido o respeito incondicionado que é moralmente
devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual. (EV 60).

Não obstante o sucesso conseguido ao bloquear a manobra dos Estados


Unidos que queriam que o aborto fosse reconhecido como contracepção de
emergência, pode-se esperar muito pouco para a proteção legal da vida nascente.
O problema não é, como se quer fazer acreditar, a vida da mãe. Com bons níveis de 89
saúde pública, haveria indicação médica de interrupção da gravidez somente em
300-400 casos sobre um milhão. O que deve ser garantida é a assistência à mãe
durante a gestação. Uma assistência que não se reduz aos aspectos econômicos.
São muito mais empenhativos aqueles orientados a prover a conveniente ajuda
psicológica, sobretudo quando se teme alguma grave malformação no nascituro.

Dever-se- ia retomar aqui, desde a perspectiva relacional, o discurso ético


sobre a sexualidade. Não o faremos porque depois da superexposição que sofreu
nos últimos trinta anos, ele precisa de um tempo de silêncio. Convidaremos,
porém, os leigos a se tornarem protagonistas na reflexão sobre a nupcialidade.
Que parta deles uma reivindicação para a autenticidade da linguagem erótica;
saibam celebrar a alegria recíproca da comunicação; exaltem a sua união
personalizante na fecundidade. Tudo isto exige como premissa a emancipação
da mulher para lhe garantir o respeito que muitas vezes lhe faltou. Em algumas
sociedades especialmente é preciso contestar uma igualdade feita somente de
palavras que resulta tão cômoda para um tipo de macho irresponsável e parasita.

As mulheres que estudam teologia moral darão, neste campo, uma


contribuição importante a partir de seu gênio feminino. Mas todos os católicos
são solicitados para deslocar o seu empenho do «deixar viver» para o «fazer
viver» não limitando-se à mobilização anual em favor da vida mas sustentando-a
na convicção de seu valor intrínseco. Há algo de messiânico na alegria por cada
nascimento (EV 1), mas é uma felicidade cada vez menos percebida nas famílias
de bem-estar e, no entanto, ansiosas quanto o futuro econômico da criança.
Talvez seja necessário, mais uma vez, ir até os pobres para resgatar a memória
desta genuína humanidade.
No outro extremo da vida se delineia o fenômeno da eutanásia. A
problemática legal também aqui, está menos do que se gostaria ao fator
médico. De fato, as terapias contra a dor adquiriram um alto grau de eficácia.
Na universidade de Minnesota conseguiu-se eliminar seletivamente aqueles
neurônios que mandam o sinal da dor da medula espinhal ao cérebro. Este
caminho, com diversas variantes, mostra-se muito promissor para o tratamento
de doentes terminais. Se a eutanásia ocupou vastos espaços na discussão pública
não é tanto devido aos problemas na terapia da dor quanto a nossa incapacidade
de enfrentá-lo. A questão de fundo é que conseguimos facilmente prolongar a
existência, mas estamos muito pouco disponíveis a acompanhá-la.

Para a terra de todos

É a própria vida que faz problemas. Notamos, no entanto, que quando


os aspectos pontuais e normativos parecem decair reaparece com força
extraordinária a perspectiva de conjunto. Hoje se toma cada vez maior o cuidado
pela qualidade de vida e a problemática ambiental. Um índice deste interesse são
90 os estudos que fazem a seu respeito. Cada ano se publicam no mundo 300.000
pesquisas sobre temas ecológicos. Hoje já está difundida a consciência que os
recursos disponíveis são limitados.

As solicitações que o homem faz ao meio ambiente estão sob o sinal do


crescimento exponencial ou geométrico. Este é um dado diretamente relacionado
com o tipo de economia predominante. Ela mede o próprio dinamismo pela
intensidade das trocas comerciais ao invés de avaliá-lo pelo melhor emprego e
preservação dos recursos. Como dado comparativo, podemos evidenciar que os
Estados Unidos, no decênio 1959-1968, consumiram sozinhos mais recursos do
que tenha utilizado toda a humanidade na história precedente.8 Procura-se uma
eficácia a curto prazo sem se considerar as repercussões sobre o resto do sistema.

Isto porque o aspecto mais preocupante da ação humana sobre o meio é


que o impacto produzido pelo homem se projeta num raio total. Ele pode agir com
independência dos sistemas ecológicos e, portanto, subvertê-los. Um ecossistema,
porém, é mais estável quanto é mais complexo. O abuso com o qual submetemos
o nosso é a continua substituição de controles naturais com intervenções
tecnológicas que empobrecem a flexibilidade de uma resposta natural. Mesmo
do ponto de vista econômico se requer a cooperação internacional para buscar
soluções. Não podemos descarregar sobre os países pobres condições onerosas
que impeçam a sua oportunidade de desenvolvimento; nem mesmo reduzir a
parques naturais regiões inteiras para que outras continuem em sua conduta
irresponsável. É preciso levar em conta equitativamente a evolução diferenciada
nos sistemas produtivos. A legislação internacional contra a contaminação terá que
8 CH.BTRCH, Three facts, eight fallacies and three axioms about Population and environment: Ecumenical Review
25 (1973) 30.
perseguir com maior rigor o delito ecológico perpetrado pelas grandes potências
econômicas. Acontece, ao contrário, que desastres como aquele provocado no
último mês de dezembro pelo petrolífero “Érica” diante das costas francesas são
enfrentados tardiamente porque os controladores do governo eram pagos pela
mesma companhia responsável pelo acidente.

No encontro de Davos, concluído no início de fevereiro de 2000, as


alterações climáticas foram a primeira grande preocupação dos economistas
diante do futuro. Por sua vez, o Worldwatch Institute, centro privado dos Estados
Unidos, retém que a estabilidade do clima, junto com a da população, constitui
o desafio mais urgente para o século XXI. A pressão sobre os ecossistemas pode
fazer com que fenômenos como a subida da temperatura combinados com outros
fenômenos naturais, nos quais intervém o homem, por exemplo, a erosão do
solo, dêem lugar a mudanças fortes e imprevisíveis. Segundo estes especialistas,
a ferocidade do furacão Mitch que causou 10.000 mortes na América Central
durante o mês de outubro de 1998 não foi devida somente ao aquecimento do
globo mas a sua ligação com o desmatamento do continente americano.

Na mesma publicação é sublinhado que o dióxido de carbono, principal


causa do “efeito estufa” atingiu o seu ponto máximo em 1998, porém a diminuição 91
de recursos hídricos ameaça reduzir em 10% as disponibilidades alimentares. Por
outro lado a alimentação seguiu caminhos de tal forma errados que cada ser
humano tem hoje no próprio organismo 500 produtos sintéticos que nem mesmo
existiam em 1920. Graficamente se diz: “na medida em que cresce o índice Dow
Jones piora a saúde do planeta”. Algumas destas correntes ecológicas, mesmo
com acentuações catastróficas, não vão além da lamentação e da nostalgia por
uma vida mais natural. Aquilo do que se precisa, no entanto, é uma clara admissão
da responsabilidade, uma nova ética nas relações econômicas.

São os mesmos economistas no encontro de Davos a lamentar o fim da


ética tradicional. Mas tal perda aconteceu, mais que por outra coisa, pela sua
inadequação. A economia telemática escondeu atrás de sua eficiência virtual a
crise real que se abatia em tantos países do mundo.

Isto até mesmo os banqueiros parecem admitir. Na reunião de Lambeth


(l8-19-Il-1998) o Banco Mundial registrava, entre uma população de 5 bilhões e
700 milhões de pessoas, que 3 bilhões viviam com menos de 2 dólares por dia e 1
bilhão e 300 milhões com menos de 1 dólar por dia.

Um estudo da Banca Nazionale deI Lavoro nos permite ver com mais
detalhes os certos dados - janeiro de 2000 - sobre a riqueza no mundo. Foi
calculado o Produto interno bruto de 150 países que representam 99,7% do total
da riqueza do mundo. Entre os habitantes mais ricos do mundo - os suíços - e os
mais pobres - os congolenses - a diferença é algo em tomo a 186 vezes. Traduzido
em números: o PIB per capita 2000 na Suíça é de 37.250 dólares contra os 200
dólares de renda a disposição de quem vive no País africano. Mais escandalosa
ainda (com uma relação de um a 21 mil) é a diferença entre os Estados Unidos, o
país mais próspero graças a um PIB complexivo superior a 9 bilhões e 782 milhões
de dólares e a Gâmbia, o Estado mais indigente com apenas 460 milhões de
dólares de PIR Uma distância que se a1argou próprio nos últimos cem anos: em
1900, de fato, a relação era de um a dez.

São os Estados Unidos a guiar classificação mundial do PIB (9.782 bilhões


de dólares/ 28% do total mundial). Seguem-se o Japão (4.010/11,5%), a Alemanha
(2.333/6,7%), a França (1.648/4,7%), a China (1.604/ 4,6% (9), o Reino Unido (1.313/
3,8%) e a Itália (1.206/ 3,5% do total mundial). Registra-se, portanto, uma forte
concentração de riqueza já que os cinco primeiros Estados representam, sozinhos,
55% do total.

Partindo, ao invés, de baixo, nos últimos dez lugares encontramos nove


Estados africanos (do Togo à Gâmbia) com um asiático (Laos).

Dividindo o PIB mundial por continentes descobre-se que a fatia maior é


privilégio da América com 36,4%. Quanto aos outros continentes, a Europa vale

92 32,4% do PIB mundial. Em terceiro lugar na classificação continental figuram a


Ásia e a Oceania com 26,1% seguindo-se a África e o Oriente Médio com 5,1 %.

Considerando a graduação de taxa de crescimento, com 8,1% figura a


China à frente da Coréia do Sul (7,8%), de Taiwan (7,7%), de Singapura (7,6%), do
Egito, Malásia e Tailândia (todos com 6,8%).

Este desequilíbrio basta para justificar o alarme de Michel Camdessus,


Diretor do Fundo Monetário Internacional. Em seu discurso de despedida (13 de
fevereiro de 2000) notou: a crescente distância entre ricos e pobres “é intolerável
do ponto de vista moral, um desperdício do ponto de vista econômico e
potencialmente explosiva do ponto de vista social”.

Examinando mais de perto esta realidade descobrem-se blocos que se


articulam de maneira diversa. Os Estados Unidos hegemonizam as duas Américas.
Em todo caso, se está articulando o Mercosul como tentativa de agregação
que surge na parte meridional do continente. Os analistas, porém, advertem
instabilidade na economia dos mais importantes países implicados: Brasil e
Argentina. A União Européia centraliza a Eurafrica, que na zona subsaariana agrupa
os países mais pobres do mundo. Japão orienta Ásia-Oceania. Aqui surge a China,
chamada a ser, devido a população, a primeira potência econômica do mundo.
A sua inserção na economia de mercado, no entanto, não é nada fácil- bancos
e indústrias públicas estão no passivo, desconhecendo-se absolutamente o seu
montante, tanto que a crise asiática de maio de 1998, com toda probabilidade,
tinha suas raízes na situação chinesa.
9 É preciso ter presente o fato que na China ainda 19% da riqueza é devida à agricultura; que a população
urbana é de apenas 32%; ficando ainda muito esporádica a penetração do carro, telefone e computador: de
fato a China se encontra no 90° lugar na classificação mundial do PIB per capita.
Dentro deste panorama econômico há uma profunda anomalia de caráter
político. Desde 1989 os Estados Unidos se apresentam como a única potência
planetária enquanto diminui percentualmente o seu peso na economia mundial.
Por isto, no encontro da Trilateral em 1998, Henry Kissinger advertiu que os Estados
Unidos não podem pensar em isolar-se do mundo e nem mesmo pretender de
governá-lo sozinho.

Esta colocação tem uma exata pertinência para moderar as suas pretensões
no atual processo de globalização. Este consiste na expansão simultânea do
mercado e da técnica até alcançar uma projeção mundial. Grandes empresas,
médias e pequenas situam o seu planejamento em referência a tal horizonte.
Se antes o Estado controlava território e moeda e a empresa não conhecia
outros limites senão aqueles de seu próprio interesse, agora se encontram em
colaboração. Assim pois, se reforçam mutuamente porque a verdadeira riqueza
hoje, mais que na produção, consiste em dominar o intercâmbio.

Aqui se radica o poder do setor informático. Ele fez com que a moeda
perdesse a sua relação direta com a atividade produtiva. O mercado financeiro se
tomou fonte autônoma de valores. Os capitais acorrem “em tempo real” quando a
ocasião é favorável, prontos para a retirada nos momentos de crise. Antes apelam 93
para uma liberdade sem condições para multiplicar os ganhos e, depois, gritam
com força para recuperar os investimentos falidos. O dinamismo que se gerou é
de grande vitalidade. No ano 2000 se prevê um crescimento mundial de 4-4,5%.

Mas existem elementos que reclamam maior atenção. Antes de tudo, o


componente especulativo. Atualmente há 60.000 bilhões de dólares investidos
em “derivados”, produtos financeiros pensados para gerir situações de risco. É
uma massa enorme que pode gerar crises repetidas para os muitos amadores que
intervém nas contratações telemáticas e os automatismos (vendas em cascata
em caso de perda) que detonam irresponsavelmente. Esta situação é técnica
e moralmente inadmissível, significa colocar um carro de fórmula I na mão de
alguém que apenas tirou a carteira de motorista.

Uma outra recaída preocupante é a extrema mobilidade que se pretende


dos trabalhadores. Esta terceira revolução industrial liberou a contratação e
reduziu os salários para enfrentar a rapidez das mudanças, no entanto, não se
pode retroceder até o liberalismo do século XIX com estipêndios legais que não
chegam a ser justos.

E além disto, o acesso a este mercado que se apóia na rede Internet é


muito desigual. Somente 23 países geram 62% do tráfico telefônico sendo que
sua população é menos de 15% da população mundial. Registram-se fusões entre
grandes como America OnIine e Time Wamer (163-166 bilhões de dólares) que
resultam em posições tão fortes que reduzem a concorrência e criar monopólios
de fato. A distância tecnológica risca de afastar ainda mais os países ricos e países
pobres com o aumento de instabilidade social e mundial. Os ataques sofridos
pelos sites mais importantes da Internet, neste mês de fevereiro, demonstraram
como seja alta a vulnerabilidade do sistema.

Quase a concentrar a disfunção da economia ergue-se diante dos pobres do


mundo o débito internacional. 10João Paulo II recordou em sua última mensagem
pela paz: “É preciso, de modo particular, encontrar soluções definitivas para o
velho problema da dívida internacional dos países pobres” 11. Santa impaciência!
Mesmo se grávida de consequências negativas a crise não é das mais antigas.
Ela explodiu reservadamente na tarde da quinta-feira 12 de agosto de 1982.
O ministro da Fazenda do México, Jesus Silva Herzog, chama o seu colega dos
Estados Unidos, Donald T. Regan. Combina uma entrevista para o dia seguinte
e nela comunica que o seu Governo não pode enfrentar o próprio débito com
o exterior. Quando em 27 de dezembro de 1986 a Pontifícia Comissão Justiça e
Paz publica o documento “Ao serviço da comunidade humana: uma aproximação
ética da dívida internacional” encontra um rigoroso silêncio. Foi o risco de falência
para as Caixas Econômicas nos Estados Unidos que induziu os bancos credores a
renegociar a dívida.

94 Em teoria busca-se responsabilizar as nações implicadas, controlar uma


dívida sustentável e favorecer o desenvolvimento. Por um lado, foram impostos
drásticos programas de ajustamento nos balanços, privatização dos bens
públicos e redução de despesa social. Estes procedimentos do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial não deram os resultados esperados e nem
estes organismos demonstraram estar à altura da situação. Na realidade, o
sistema monetário internacional não tem um governo e qualquer nação pode
ser investida por uma onda de choque. Seria necessário aumentar os recursos do
Fundo Monetário Internacional para que pudesse agir em nível mundial como
fazem os Bancos Centrais nos próprios países. Mas a globalização, na verdade,
enfraqueceu os grandes organismos multilaterais. O então presidente do
Brasil, Fernando Henrique Cardoso perguntou: “Onde estavam as organizações
financeiras nos últimos meses quando não souberam, nem mesmo à distância,
lançar um aviso sobre as turbulências que condensavam na Ásia?”

“Não podemos mais nos permitir responder: é o mercado”, sintetizou o


economista Kenneth Courtis. Depois de 13 anos à frente do Fundo Monetário
Internacional, Michel Camdessus admitiu: “Agora sabemos que não é suficiente
aumentar o bolo: o modo como se distribui tem muito a ver com o dinamismo
do desenvolvimento. Se deixamos os pobres sem esperança a pobreza minará
a estrutura de nossas sociedades por meio da contestação, da violência e da
desordem”. Há, porém, uma alternativa: “convencer as pessoas e os dirigentes
políticos tanto dos países desenvolvidos como aqueles que estão em via de
desenvolvimento, que somente o multilateralismo pode humanizar a globalização.”

10 A. GALINDO, Moral socioeconomica, Madrid 1996,410-415


11 Mensagem para o XXXIII Dia Mundial da paz 2000, n.17
Depois das experiências negativas, parece que a economia se aproxime
dos nossos princípios de solidariedade cristã. “Quando se trata de responder
às necessidades, as religiões têm a melhor rede que existe” reconhecia o Banco
Mundial na reunião de Lambeth. Muito fácil, poderíamos ser instrumentalizados
como honestos distribuidores de esmolas. O caminho a percorrer é outro:
encaminhar-se rumo a uma ordem mundial na qual não haja lugar para a
hegemonia abusiva de alguns.

O desenvolvimento econômico deve permanecer sob o controle do homem. Não


deve ser abandonado ao arbítrio de poucos homens ou grupos que tenham na
mão um excessivo poder econômico, nem somente da comunidade política, nem
de algumas nações mais poderosas. Convém, ao contrário, que o maior número
possível de homens, em todos os níveis e, quando se trata de relações internacionais,
todas as nações possam participar ativamente de sua orientação. (GS 65).

Não se pode avançar neste caminho sem respeitar a multipolaridade


e a negociação. Esperamos que depois do fracasso de Seattle 1999 a lição seja
assimilada por todos. 95
Mais concretamente para onde podemos dirigir nossa contribuição? Três
aspectos merecem um empenho preponderante sempre na fidelidade ao Evangelho
e aos sinais dos tempos.12 A cultura, para assimilar conceitos tradicionalmente sub-
avaliados: a renda, a produtividade e o bem-estar. A política, defendendo a liberdade
neste campo com a mesma coragem que se reinvindica a liberdade religiosa. A
economia, respeitando a sua racionalidade funcional sem dobrar-se aos privilégios
dos poucos nem aceitar a exclusão dos mais: contrastando sempre o imperalismo
internacional do dinheiro (QA 109; PP 26).

Com a energia do amor

Será uma luta árdua e não pode nascer senão de urna paixão profunda e
original. O dever se vê insuficiente a lançá-Ia em direção a metas que remetem
sempre mais além. É preciso uma motivação radical, positiva e unificadora: Pela
vida. Do seu gosto e de sua celebração pode surgir o impulso para promovê-la
incansavelmente.

Com a energia do amor, porque nos revela em Cristo o mistério do


homem. Nele - que “trabalhou com mãos de homem, pensou com a inteligência
de homem, agiu com a vontade de homem, amou com o coração do homem” -
“encontra verdadeira luz o mistério do homem” (GS 22). Ele nos dá a paciência
que vence qualquer desconforto. O Verbo entrou na história para assumi-Ia e
12 A. TOSATO, Dall’economismo ad una economia per ruamo: AA.VV., Le sfide dei secolarismo e !’avvenire del-
lafede, Città del Vaticano 1996, 162-166
para levá-Ia à cumprimento. «Ele nos revela «que Deus é amor» (l Jo 4,8), e ao
mesmo tempo nos ensina que a lei fundamental da perfeição humana, e por isto
também da transformação do mundo, é o novo mandamento do amor. Aqueles,
portanto, que crêem na caridade divina são por Ele certificados que o caminho da
caridade está aberto para todos os homens e que os esforços feitos para realizar a
fraternidade universal não são vãos» (GS 38). No amor pode-se ir além a verdade e
o bem, a ortodoxia e ortopráxis. Abre-se o espaço para a manifestação da beleza
como evento de uma doação que supera a infinita distância. Esta atitude é o estilo
que convém a uma Igreja operante em situações multiculturais, multiétnicas
e multireligiosas sempre mais difusas. O serviço feito à história se identifica,
finalmente, com a compaixão como forma absoluta do amor, porque «a beleza
que salva o mundo é amor que consegue até a compartilhar a dor”.13

96

13 C. MARTINI. Quale beleza salverá il mondo. Lettera Pastorale 1999-2000, Milano, 11


Artigos
COEXISTÊNCIA E CONFRONTO ENTRE
JUDEUS E CRISTÃOS EM ANTIOQUIA
NA ANTIGUIDADE TARDIA 1

Rivaldave Paz Torquato, O. Carm. *

RESUMO: Este artigo trata de um tema específico que é a relação entre judeus e cristãos, numa época
específica que é a Antiguidade Tardia e num lugar específico que é Antioquia. Normalmente a história
do cristianismo e, mais especificamente, da Igreja está vinculado a confronto, intolerância, agressão,
excomunhão, etc. Prevalece a idéia de que a (história da) Igreja é só isso. Na pluralidade do mundo
97
moderno se faz necessário resgatar também os exemplos positivos de coexistência pacífica. Assim é o
exemplo da relação de judeus e cristãos até o início do séc. IV em Antioquia. Infelizmente a coexistência
tornou-se mais tarde confronto abrindo feridas que perduraram ao longo do tempo. Este artigo faz a
contextualização histórica da cidade e dos dois grupos e o desenvolvimento da coexistência pacífica
até o confronto tendo por base sobretudo os discursos de João Crisóstomo contra os judeus entitulados
Adversus Judaeos caracterizados por seu forte caráter retórico.

PALAVRAS CHAVE: Coexistência e confronto religioso. Relação judeu-cristão. João Crisóstomo, História
da Igreja Antiga. Retórica, Antioquia, Patrologia.

ABSTRACT: This article is about a specific subject that is the relation between Jews and Christians, at a
specific time that is the Late Antiquity and in a specific place that is Antioquia. Normally the history of
the Christianity and, more specifically, of the Church is tied the confrontation, intolerance, aggression,
excommunication, etc. It takes advantage the idea that history of the Church is alone in this. In the plurality
of the modern world if it makes necessary to also rescue the positive examples of pacific coexistence. Thus
it is the example of the relation of Jews and Christians until the beginning of IV Century in Antioquia.
Unfortunately the wounded coexistence became later confrontation opened that had lasted throughout
the time. This article over all states the historical contextualization of a city and the two groups as well
as the development of the pacific coexistence until the confrontation based on the speeches of John
Chrysostom against the entitled Jews Adversus Judaeos characterized by its strong rhetorical character.

KEY WORDS: Coexistence and religious confrontation. Relation Jew-Christian, John Chrysostom,
History of the Old. Rhetorical Church. Antioquia. Patrologia

1 Este artigo é o resultado de um seminário de História da Igreja Antiga apresentado na Faculdade de


Teologia Católica da Westfälische Wilhelms-Universität de Münster, Alemanha, em janeiro de 2006, sob a
orientação do Prof. Dr. Dr. Alfons Fürst.
* Mestre em Ciências Bíblicas pelo Pontifício Instituto Biblico de Roma (PIB) e doutor em Sagrada Escritura pela
Westfälische Wilhelms-Universität de Münster - Alemanha (WWU). Professor no Studium Theologicum de Curitiba.
1- Religião: força de atração ou de separação do homem?

Em geral as religiões mostram-se como instrumento de crescimento


interior do homem na direção de sua correspondente divindade e de seu
semelhante. Evidentemente que faz parte disto valores como – quase sem
exceção – verdade, justiça, concórdia e, sobretudo, amor e paz (não-violência,
pacifismo, tolerância, etc.). Todavia, reivindicam tais religiões – e especialmente as
monoteístas – exclusividade (ou pelo menos tendem nesta direção). Elas tornam-
se pretensas detentoras do, por assim dizer, monopólio da verdade, que tem que ser
aceito por seus adeptos e divulgado por todo o mundo. Normalmente variantes,
desvios ou pluralidade são rejeitados e todos os outros caminhos religiosos
ou, mais exatamente, vias de salvação são colocados em questão, uma vez que
eles são considerados apenas como ameaças. Os valores acima apresentados
são transformados em fonte de conflitos, intolerância e violência e a respectiva
religião torna-se não raro uma perigosa ideologia ou passa a ser instrumentalizada
por ideologias. Para atingir seu objetivo, tais religiões manipulam países, sistemas
políticos e econômicos ou se deixam manipular por eles. As consequências para
a humanidade são normalmente, tanto no passado como também no presente,
98 catastróficas. Aos poucos as religiões perdem assim seu potencial libertador
e tornam-se fonte de opressão, escravidão, aflição e sofrimento. A convivência
pacífica passa a ser substituída pela confrontação, a paz pela intolerância e o amor
pelo ódio. Um credo exercita preconceito, desconfiança, separação, monólogo e
violência contra o outro.

A partir desta perspectiva nenhuma outra religião foi e é tão veemente


criticada como o cristianismo. Olhando a história da Igreja transmitida até nós,
tem-se a impressão que o cristianismo não é outra coisa que agressão, defesa,
degredo, divisões, inquisição, aniquilação de inimigo, excomunhão, perseguição,
discórdia, triunfo, abuso de poder, etc.1 A Igreja e o Cristianismo são utilizados
como força ideológica já pelos imperadores (desde Constantino para a unidade
do império), mais tarde pelo colonialismo no mundo inteiro, capitalismo, etc.2
Mas a Igreja e a sua história trata-se apenas disto? Isto é tudo o que se pode
experienciar da história da Igreja? Não existe nenhum exemplo de coexistência
pacífica, de convivência e tolerância? Este lado escuro da história normalmente
nos cega e impede de contemplar os exemplos positivos da Igreja.

Nós tentaremos agora apresentar um período da história da Igreja num


contexto concreto entre dois grupos de fé também concretos: cristãos e judeus
1 Justamente a história dos Dogmas cristãos e dos Credos é narrada nos catecismos geralmente como um vai
e vem deste campo semântico (cf. N. BROX. “Konflikt und Konsens…”, p. 1). Acrescenta-se a isso também as
lutas conciliares deste o antigo tempo bizantino.
2 Sobre este tema veja: A. H. ARMSTRONG. “The Way and the Ways: Religious Tolerance and Intolerance in
the Fourth Century A. D.”, VChr 38 (1984) 1-17; A. FÜRST. “Identität und Toleranz im frühen Christentum”,
Orientierung 66 (2002) 26-31; “Monotheismus und Gewalt. Fragen an die Frühzeit des Christentums”,
Stimmen der Zeit 222 (2004) 521-31; “‘Wer das glaubt, weiß gar nichts’. Eine spätantike Debatte über den
Universalanspruch des christlichen Monotheismus“, Orientierung 68 (2004) 138-41; N. BROX. “Konflikt und
Konsens. Bewältigung von Meinungsverschiedenheiten in der Alten Kirche”, in: W. BEINERT (ed.). Kirchen
zwischen Konflikt und Konsens. Regensburg, 1989, 63-83.
em Antioquia na Antiguidade Tardia, sua coexistência e confrontação. Talvez
este exemplo possa contribuir para iluminar os conflitos atuais – de origem ou
motivação religiosa – de nossas sociedades pluralistas.

2- Judeus e cristãos em Antioquia na Antiguidade Tardia

2.1 – Antioquia

Na série das mais importantes cidades no império romano estava


Antioquia. Ocupava o terceiro lugar – após Roma e Alexandria. Ela era a capital da
Síria e centro do Oriente. Esta metrópole era sede da administração do Imperium
Romanum oriental e entroncamento de todas as linhas de comunicação do oriente.
Era uma rica cidade. Povoada por gregos e orientais, esta cidade cosmopolita era
também um significante centro de comércio e cultura.3 A estimativa do número de
habitantes no quarto século oscila entre 150.000 e 300.000.4 Mas o mais importante
é que até o quarto século d.C. não se encontra qualquer indício de que ali – ao
contrário de muitas outras cidades – discussões religiosas tenham se escalado em
conflitos violentos. Todavia, a partir do séc. IV a atmosfera da cidade muda e isto diz
respeito especialmente a duas partes da população: os judeus e os cristãos.
99

2.2 – Os judeus

Os judeus já estavam em Antioquia desde a fundação da cidade (300


a.C.) e pertenciam aos primeiros colonos. Seu contingente no quarto século é
estimado em torno de 22.000 e 45.000.5 Pertenciam a diferentes camadas sociais
(assim como também os cristãos e pagãos)6 e viviam misturado com o restante da
população7 de forma pacifica.8
3 Cf. C./L. PIETRI. La Nascita di una Cristianità (250-430) (Storia del Cristianesimo; Religione-Politica-Cultura,
2). Borla/Città Nuova, Roma, 2000, 93-94; J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde im spätantiken Antiochia”, in: R.
JÜTTE – A. P. KUSTERMANN (ed.). Jüdische Gemeinden und Organisationsform von der Antike bis zur Gegenwart
(Aschkenas: Beiheft 3). Viena, 1996, pp. 80.86.
4 Uma estimativa de 300.000 é feita por R. BRÄNDLE (cf. “Christen und Juden in Antiochien in den Jahren 386/87.
Ein Beitrag zur Geschichte altkirchlicher Judenfeindschaft”, Judaica 43 [1987] 144); enquanto W. KINZIG (cf.
“‘Non-Separation’: Closeness and Co-operation between Jews and Christians in the Fourth Century”, VChr 45
[1991] 36) fica na casa dos 150.000 habitantes. Interessante, porém, é o cálculo de M. WAEGMAN: “Ao final do
quarto século, Antioquia é uma metrópole de aproximadamente 200.000 habitantes, sem contar escravos,
mulheres e crianças. Os cristãos formam a metade” (cf. “Les traités ‘Adversus Judaeos’. Aspects des relations
judéo-chrétiennes dans le monde grec”, Byzantion 56 (1986) 305, a tradução é nossa.
5 A estimativa de cerca de 22.000 é feita por W. KINZIG (ibid, 36) e enquanto R. BRÄNDLE (ibid, 144) prefere
aquela de cerca de 45.000 (isto é, 15% da inteira população da cidade metropolita, enquanto em todo
império romano poderia ser em torno de 7%).
6 Libânio falava de arrendatários judeus que trabalhavam no campo e uma série de inscrições e mosaicos
atestam (na sinagoga de Apamea, por exemplo), que existia também judeus ricos.
7 Cf. Ios., Bel. Iud. 7,3,3.
8 Eles foram em Antioquia três vezes importunados: a temporária perseguição de Antíoco IV (175-164 a.C.);
após a ocupação do domínio romano na Síria (40 d.C.) e durante a rebelião judaica dos anos 66-70 d.C.
chegou-se a Pogroms contra os judeus antioquenos por parte do restante da população, cujo decurso
A comunidade judaica antioquena era protegida quase sem exceção pelos
soberanos selêucidas e privilegiada com próprio direito civil. Portanto, ela deveria
formar na verdade uma própria Politeuma (entidade).9 Mas era dependente do
patriarca judeu de Tiberíades, o mais alto representante dos judeus de Palestina e
do Oriente. No quarto século a comunidade já tinha duas sinagogas10 e era muito
viva e bem organizada. Sua presença na vida da cidade era marcante.

A cidade situava-se numa região cuja parte judaica da população estava


acima da média. Estava geograficamente muito próxima da Palestina e era um
grande centro cultural e comercial. Estes fatores exerciam uma enorme força de
atração sobre os comerciantes11 e intelectuais judeus. Assim Antioquia adquire
um eminente e (historicamente) crescente significado para o judaísmo do período
helênico e romano – sobretudo após a destruição do templo em Jerusalém. A
comunidade desabrochava tornando-se uma das mais importantes – após
Alexandria – na diáspora judaica.12 O círculo judaico dirigente e rico tinha uma
forte e clara tendência helenizante. Embora eles conservassem sua inconfundível
identidade judaica, eram judeus integrados na classe alta grega da cidade e

100 participavam de sua formação e cultura. Duas importantes fontes podem confirmar
muito bem isto: 1) O intercâmbio de cartas entre o sofista Libânio, retórico pagão,
e o patriarca judeu de Tiberíades entre 388-393 d.C. Uma carta trata do filho do
Patriarca que queria melhorar sua capacidade retórica como aluno junto aos
sofistas. Nestas cartas existem vários indícios de que o próprio patriarca pertencia
àquela elite grega urbana, pois ele conhecia muito bem o conteúdo do cânon
de formação clássica e tinha interiorizado as noções de valores nelas expressas
como critérios da própria atuação social e queria igualmente formar também o
seu filho; 2) A segunda, são inscrições dedicatórias dos Mosaicos da Sinagoga na
cidade vizinha Apamea – construída no ano 391 d.C., sob patrocínio de Ilaios e
de seu pai Eisakios, que eram Archisynagogos (chefe da sinagoga) de Antioquia –
que estão escritos em grego. O teor dos textos segue integralmente as habituais
formulações de tais inscrições no espaço urbano do oriente grego daquele tempo.

culmina na expulsão dos judeus da cidade. Mais tarde fora exigido por Tito supressão dos privilégios da
comunidade judaica através da Assembléia popular e Senado (cf. J. HAHN. Gewalt und religiöser Konflikt.
Studien zu den Auseinandersetzungen zwischen Christen, Heiden und Juden im Osten des Römischen
Reiches (von Konstantin bis Theodosius II.) (Klio. Beiträge zur Alten Geschichte. Beihefte. Neue Folge, 8).
Berlin, 2004, 139). Depois até o quarto século nada mais ocorreu. Mas certo é que, como em outros centros
do oriente grego, a comunidade judaica já era outra vez notável – sobretudo após a Constitutio Antoniniana
de 212 d.C. (Ibid, 140).
9 Isto é, a organização interna da comunidade deveria se constituir de três partes: Archisynagogos (Chefe da
Sinagoga), Gerousia (Conselho dos Anciãos) e Gerousiarca (Presidente da Gerousia).
10 A principal sinagoga da cidade situava-se no Kerateion, um bairro judaico onde se encontrava também a
tumba dos irmãos Macabeus. Uma segunda sinagoga situava-se em Dafne, um conhecido centro judaico e
Suburbium da Metrópole (Adv. Iud. Or. 6,12 48/904). O nome popular desta Sinagoga era Matrona (cf. Adv. Iud.
Or. 1,6 48/852). Provavelmente existia ainda outras sinagogas no final do séc. IV.
11 A falta de fontes deixa muitas coisas sem clareza, mas com certeza muitos judeus eram lojistas e artesões.
Eles desempenhavam uma importante (e até mesmo decisiva) função no aspecto econômico, cultural e
social da cidade.
12 Cf. J. HAHN. Gewalt und religiöser Konflikt, 139.
Além disso, dos seis nominados membros da família, cinco apresentam nomes
gregos enquanto apenas um apresenta nome hebraico. Portanto, trata-se de uma
judaica helenizada família antioquena de classe alta.13

Ulteriores confirmações desta integração encontram-se na carta de


Libânio a Pricianus, seu ex-aluno e nesta época procurador da Palestina (364 d.C.).
O pagão Libânio tentava influenciar o governador em benefício da comunidade
judaica antioquena, para impedir a nomeação de seu antigo e odiado presidente
que queria assumir novamente o posto.14 Aqui torna-se claro que havia na
comunidade luta pelo poder, que ela era dependente da Palestina, que estranhos
(p. ex. os pagãos Libânio e Pricianus) podiam se intrometer em suas questões
internas e que a comunidade tinha acesso a membros da elite da cidade (um
sistema de Patronagem ou apadrinhamento) e cultivava muito provavelmente
boas relações com esta classe alta.

No intercâmbio de cartas entre Libânio e o Patriarca existe pedidos de


apoio para pessoas do ambiente mais amplo das duas partes para um recíproco
favorecimento. A comunidade judaica e a elite se influenciavam reciprocamente
– também para o recíproco proveito. 101
A predominante tendência da pesquisa mostra que a ascensão do
cristianismo está em paralelo com a iniciante estagnação e crescente isolamento
do judaísmo no tempo do império. Isto ao menos em Antioquia do quarto século
não corresponde bem à realidade,15 pois “a classe alta antioquena cultivava entre
eles, acima das fronteiras das confissões religiosas, estreitíssimas relações sobre
a base da comum herança helenista”.16 A boa relação entre os judeus e a elite
dirigente é clara. É também claro que ela não era nenhuma comunidade isolada.
Ao mesmo tempo pode-se deduzir a partir desta tendência helenizante que os
judeus tinham uma mentalidade cosmopolita, aberta, sem disposição violenta
para confrontos religiosos.17 Mas como era a relação com os cristãos?

13 Cf. de forma minuciosa: J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 69-72.


14 Cf. detalhadamente: J. HAHN, ibid, 66-9.
15 Cf. L. H. FELDMAN. “Proselytes and ‘Sympathizers’ in the Light of the New Inscriptions from Aphrodisias”, REJ
148 (1989) 265ff.
16 Cf. J. HAHN, ibid. p. 80; R. BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden (Bibliothek der
Griechischen Literatur, 41). Stuttgart, Hiersemann, 1995, 48.
17 Algumas observações sobre a organização interna da comunidade judaica e da vida judaica cotidiana em
Antioquia limitam-se – por falta de fontes históricas – em parte a suposições. Por um lado, existe quase
nada de informações arqueológicas (como em outras cidades da região) e, por outro, falta uma própria
tradição judaica a respeito. Ambos autores da cidade (Libânio e João Crisóstomo) não são judeus e suas
informações são incompletas e tardias. Eles escrevem no final da segunda metade do séc. IV, cerca de meio
século após a mudança feita pelo imperador Constantino, assim que o suposto pioramento da situação logo
após permanece desconhecido. Eles também não tinham qualquer interesse preciso em dar informações
sobre questões judaicas. Em relação a Crisóstomo, é evidente que ele, como parte oponente, seguramente
não seria ou não é objetivo o suficiente. Esta observação é de se ter em conta.
2.3 – Os cristãos

Antioquia era uma das mais significativas comunidades cristãs da Igreja


primitiva.18 Os cristãos formavam a apertada maioria da população. A comunidade
era mista. Por um lado numerosos pagãos tinham se tornado cristãos. Por isso
era tempo e necessidade que a Igreja se distinguisse do judaísmo. Isto pode
ser constatado nos Atos dos Apóstolos: “Foi em Antioquia que os discípulos, pela
primeira vez, foram chamados de cristãos” (At 11,26; cf. Didaqué 12,4).19 Por outro
lado, existia na Igreja muitos judeus-cristãos – os assim chamados judaizantes20
– ao que parece, com uma tendência conservadora,21 que queriam obrigar os
cristãos provenientes do paganismo à circuncisão e observância da Lei. Assim
surgia um grande conflito22 que fora tratado no Concílio Apostólico em Jerusalém
e encerrado com a seguinte resolução: “O Espírito Santo e nós decidimos, a vós – os
pagãos que se convertem a Deus – não vos impor nenhum outro peso além destas
coisas necessárias: das carnes imoladas aos ídolos, do sangue, das carnes sufocadas
e das uniões ilegítimas” (At 15,19-20.28-29).23

“Na comunidade de Antioquia havia [no período apostólico] profetas


102 e doutores: Barnabé e Simeão, cognominado Níger, Lúcio de Cirene, Manaém, e
Saulo” (At 13,1)24 assim como também Nicolau, um dos sete diáconos (At 6,5).
Mais tarde viveram ali também padres da Igreja como Inácio e João Crisóstomo.
Provavelmente de Antioquia provém também o Evangelho de Mateus.

No quarto século, a Igreja passava por uma forte crise interna. Estava
muito dividida: por volta de 330 até 414 d.C. a Igreja antioquena chegou a ter
até três (ou mesmo quatro) bispos ao mesmo tempo. Havia uma divisão, por
exemplo, entre os arianos e os nicenos, que disputaram o episcopado e os fiéis25
como dois partidos políticos. Enquanto a maioria ariana tinha Doroteu por seu
bispo, a minoria ortodoxa segue o bispo Paulinos, de tal modo que havia dois
bispos ortodoxos em Antioquia.26 Paralelo a isto, existia também numerosos
agrupamentos heréticos como os Marcionitas e os Maniqueus, que procuravam
18 Talvez a mais significativa. Os Atos dos Apóstolos a coloca em segundo plano para que Jerusalém possa ter
a primazia.
19 Embora partimos do princípio que uma separação oficial entre cristianismo e judaísmo tem lugar só a partir
de 325 d.C. através do Concílio de Nicéia. Este Concílio prescreve uma data cristã para a Páscoa que sempre
difere daquela judaica (cf. V. DÉROCHE. s. v. Iudaizantes, RAC 19 [2001] 138).
20 Judaizante, em breves palavras, são Cristãos com simpatia pela vida e fé dos judeus, ou de modo ainda mais
simples, cristãos com tendências judaicas. Queriam viver a vida cristã ao modo judaico, mantendo seus usos
e costumes, suas práticas.
21 Eles vinham como missionários (como Pedro, cognominado Kefas, por exemplo, cf. Gl 2,11) ou viajantes da
Palestina, provavelmente de Jerusalém.
22 Este conflito é descrito detalhadamente em At 15 e Gl 2.
23 Conforme é regulamentado em Lv 3,17; 5,2; 17,10-16; Ex 20,14.
24 Segue uma mais ampla lista de nomes no mesmo capítulo.
25 Cf. J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 78.
26 R. Brändle fala de três bispos: “Na época anterior à atuação de João havia durante vários anos três bispos
cristãos em Antioquia. Quando Meletius em 378 d.C. retornara a Antioquia, ele encontrava três bispos: o
ariano Doroteu, o eustaquiano Paulinos e o apolinarista Vitalis. Doroteu em 381 d.C. teve que retirar-se por
pressão pública” (cf. R. BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden, 51). Tradução nossa.
adeptos. Na verdade os cristãos em Antioquia formavam a maioria da população,
mas era uma maioria instável. Além disso, muitos cristãos eram neoconvertidos
que no coração permaneciam pagãos ou cristão que simplesmente não vinham
ou vinham muito raramente à Igreja.27 Eles apenas se deixaram batizar. São os
“meios-cristãos” diz Crisóstomo28 e entende com isso a maioria da Igreja em
Antioquia.

Enquanto em Alexandria, por exemplo, neste século, numerosas novas


Igrejas eram construídas, restaurava-se em Antioquia apenas aquelas que foram
destruídas durante as perseguições aos cristãos.29

É provável que os cultos pagãos motivados e até mesmo restaurados por


Juliano no ano 362 d.C. tivessem influência sobre os cristãos e assim tornava a
Igreja ainda mais enfraquecida. Portanto, a Igreja em Antioquia – diferente daquela
dos três séculos anteriores e diferente daquela das outras cidades – estava muito
fraca e estagnada. A pesquisa defende a opinião de um constante e dinâmico
crescimento – sobretudo no final do séc. IV. Esta provavelmente não corresponde
à realidade e, além disso, sobrestima o trabalho de Crisóstomo. Seguramente faz
parte de uma visão triunfalista dos historiadores da Igreja.

É claro que faltava à Igreja coesão interna (ou esta era muito fraca) e
103
justamente neste vácuo pode-se entender melhor como atuaram os judaizantes.

Diante deste contexto dos dois grupos de fé (judeus e cristãos) coloca-se


agora a pergunta: como era a convivência deles? Pode-se distinguir duas fases
desta convivência: uma coexistência pacífica até o início do séc. IV e (a partir daí)
um progressivo confronto.

2.4 – Coexistência entre os dois grupos de fé

Antioquia era uma cidade tolerante, e os distintos grupos de fé podiam


viver ali pacificamente um ao lado do outro. Entre os judeus e os cristãos não
era diferente. Desde o princípio (ainda na Palestina) a Igreja surgia não como
novo grupo separado do judaísmo. Ela própria se compreendia como parte do
judaísmo.30 Por isso os cristãos iam regularmente ao templo e às sinagogas.31 Em
Antioquia, ao que parece, continuou-se este costume.32 Isto é confirmado pelas

27 Johannes Chrysostomus, Hom. 11,6 in Eph. 62/88.


28 Cf. R. BRÄNDLE. “Christen und Juden in Antiochien…”, 143.
29 J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 78.
30 “No período a ser considerado, o cristianismo, originariamente apenas uma variante do judaísmo, consegue
aos poucos sua autonomia e torna-se no séc. IV a religião dominante do império…” (cf. V. DÉROCHE. s. v.
Iudaizantes, p. 131), tradução e cursivo nosso. O próprio Jesus, como judeu, havia dito: “Não penseis que vim
revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17).
31 Os cristãos não raro eram contados como seita do judaísmo, isto é, tidos como parte do povo de Deus.
32 Evidentemente nos referimos aos cristãos judaizantes. Os cristãos de procedência pagã provavelmente
tinham outras práticas, como transparece no próprio Concílio de Jerusalém – como já fora tratado acima.
homilias de João Crisóstomo.33 Dá-se claramente a entender que os cristãos e
os judeus tinham uma muito estreita relação entre si e “que as instituições e
usos sociais e religiosos do judaísmo urbano no seu conjunto exerciam uma
enorme força de atração sobre os cristãos antioquenos...”.34 Cristãos tinham
em geral uma comunhão religiosa com os judeus numa forma bem concreta
como por exemplo: visita às festas judaicas;35 participação no jejum judaico;36
circuncisão segundo o rito judaico;37 participação no sábado;38 peregrinação aos
lugares santos judaicos, entre os quais por exemplo a Matrona numa sinagoga
em Dafne39 ou à (discutível) veneração dos mártires Macabeus e visita a seu
túmulo.40

Estas relações, porém, não ficaram apenas no nível religioso, mas


compreendiam também outras atividades do cotidiano como: confirmação
de relações comerciais mediante juramentos na sinagoga;41 busca de auxílio
de médicos e curandeiros judeus e magia judaica (feitiços e amuletos);42
seguramente assistiu-se também juntos as corridas no hipódromo.

Os dias de festas judaicos eram celebrados juntos de forma pacífica e


104 amigável enquanto em outras cidades era já ocasião de confronto entre grupos
de fé diferentes.43

O rigoroso discurso de Crisóstomo mostra como eram profundas as


relações entre os dois grupos. “Os pronunciamentos de João devem ser vistos
sob o pano de fundo dos evidentes e predominantes bons contatos entre
cristãos e judeus na Antioquia dos anos 80. Cristãos consideram judeus como

33 João Crisóstomo (350-407 d.C.) – nascido em Antioquia – era um sacerdote cristão da Igreja antioquena
(desde 386), mais tarde arcebispo de Constantinopla (397-404) e Padre da Igreja. Ele proferiu no ano
386/7 – durante o cíclo das festas judaicas (Rosh Hashana, Yom Kippur, Sukkoth) – oito homilias intituladas
Adverus Iudaeos dirigida aos Judaizantes. A estas homílias devemos as informações que agora temos
sobre a coexistência e o confronto de dois grupos de fé (para isso veja: J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde
im spätantiken Antiochia”, 72ss e uma tradução alemã destas homilias encontra-se, por exemplo, em R.
BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden, 83-226.
34 J. HAHN. Gewalt und religiöser Konflikt, 143; cf. Flavius Josephus, bell. Iud. VII, 3,3. Tradução nossa.
35 Yom Kippur: Adv. Jud. Or. 1,5 (48/851); Danças 1,2.4 (48/846).
36 Adv. Jud. Or. 3,6 (48/872); 3,5 (48/869); 1,7 (48/854); Jejum/Festa 1,2 (48/846).
37 Adv. Jud. Or. 2,1 (48/858); 1,8 (48/855); 8,5 (48/934); 8,6 (48/936); 8,7 (48/938).
38 In ep. Ad Tit. h. 3,2 (62/679).
39 A gruta da Matrona é venerada (Adv. Jud. Or. 1,6 (48/852). Atrás desta Matrona está obviamente uma
divindade-mãe (Matrona – segundo Horácio, carm, III,4,59 – era entre outros um apelido de Juno). Ali iam
também cristãos e passavam a noite diante da Arca da Torá na sinagoga no sono de Incubação.
40 Sobre isto pode ser visto minuciosamente em L. V. RUTGERS. “The Importance of Scripture in the Conflict
between Jews and Christians. The Example of Antioch”, in: L. V. RUTGERS et al. (eds.). The Use of Books in the
Ancient World (Contributions to Biblical Exegesis and Theology, 22). Lovaina, 1998, 287-303.
41 Se deixava confirmar uma declaração de um companheiro com um juramento (Adv. Jud. Or. 1,3 (48/847s).
42 Médicos e curandeiros judeus, que João chama de feiticeiros e charlatões, eram chamados nas casas: Adv.
Jud. Or. 8,6 (48/936); 8,5 (48/935); 1,7 (48/854); feitiços e amuletos: Adv. Jud. Or. 8,7 (48/937). Todas estas
práticas – em parte com um fundo de magia – João combatia veementemente.
43 É inequívoca a fascinação, a força de irradiação e de persuasão da comunidade judaica sobre os cristãos. Ela
não era um grupo social isolado, mas gozava de uma alta aceitação social e podia “mostrar a força dinâmica
da vida religiosa pública” (cf. J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, p. 77), tradução nossa.
sábios”.44 Eles respeitavam os judeus e consideravam honrosa sua forma de
vida.45

A coexistência ultrapassava o pacífico estar um ao lado do outro a tal ponto


que muitos cristãos não estavam mais em condições de distinguir a fronteira entre
ambos os credos e suas respectivas práxis. A identidade da Igreja e sua fé eram
postas em questão por esta tendência judaizante. Aquilo que deste o princípio
era muito positivo, torna-se pouco a pouco no parecer da direção da comunidade
cristã antioquena um autêntico perigo para a coesão interna da Igreja. Todavia,
a ameaça existe não de fora, mas antes no interior da Igreja.46 Ao nosso ver, a
criança já tinha se tornado também adulta para Crisóstomo e o tempo de deixar
o colo da mãe já tinha chegado. Por isso ele tenta por um fim nesta demasiada e
estreita relação impedindo essa comunhão religiosa com os judeus antioquenos
praticada em geral pelos cristãos judaizantes. Para ele próprio, essa convivência
em si não teria sido problemática se ela não tivesse destruído a unidade da
comunidade eclesial.47 Todavia, ele encontra oposição de seus ouvintes e muitos
cristãos simplesmente ignoraram suas repreensões.48

Assim em Antioquia até inícios do séc. IV d.C. helenos, judeus e cristãos


ainda viveram um ao lado do outro e com o outro. Esta convivência comum e 105
pacífica evidentemente não é de se atribuir à fraqueza da Igreja neste tempo.
Cristãos se entendiam desde sempre como parte do judaísmo e desde o princípio
sempre tiveram estreitas relações com os judeus. Todavia, tornava-se cada vez
mais claro que a bela convivência estava no fim e seria substituída por uma
fase de confrontos. Essa confrontação, porém, tem um contexto que para sua
compreensão é decisivo.

2.5 – O pano-de-fundo do confronto judeus-cristão

Para falar de uma confrontação entre os dois grupos de fé, é preciso


considerar alguns fatores que formam o pano-de-fundo da mesma.

2.5.1 – O processo de separação do cristianismo do judaísmo

O processo de separação entre cristianismo e judaísmo lentamente


iniciado já no primeiro século condicionava e exigia um novo modo de refletir que
44 Cf. R. BRÄNDLE. “Christen und Juden in Antiochien…”, 146, tradução nossa.
45 Cf. Adv. Iud. Or. 1,3 (48/847). Os cristãos reconheciam como algo honrável as festas judaicas, seus banhos
rituais, costumes, etc.: 1,4 (48/848); 1,6-7 (48/852-3) e alto era o número de cristãos que simplesmente
participaram com os judeus.
46 João Crisóstomo nunca mencionou que a comunidade judaica tentasse ganhar prosélitos.
47 Cf. Adv. Iud. Or. 3,6 (48/872).
48 Cf. A. MONACI CASTAGNO. “Ridefinire il confine: ebrei, giudaizzanti, cristiani nell’Adversus Iudaeos di
Giovanni Crisostomo”, ASE 14/1 (1997) 149.151.
não mais podia nem devia ser judaico. Tratava-se de um processo de formação da
identidade cristã interna que exigia uma separação ou definição em relação ao
judaísmo. Essa definição devia implicar não só a estrutura da Igreja e sua liturgia,
mas também a teologia.49 Além disso, surgiam no decorrer do quarto século em
diante, sobretudo, dois fatores predominantes que conduziram a uma progressiva
mudança na relação entre judeus e cristãos: a política externa e a interna situação
da Igreja.

2.5.2 – A política religiosa do estado romano

A comunidade judaica desenvolvia-se a seu modo em plena normalidade


no séc. IV. Embora não se saiba quase nada sobre sua vida comunitária interna por
falta de fontes, parece que ela era dinâmica e bem organizada além de gozar uma
alta estima na sociedade antioquena. Porém, fora de Antioquia – sobretudo na
longínqua Roma – era decidido o seu destino.

O Judaísmo era considerado religião legal (religio licita) no império


106 romano.50 Em 312 Constantino venceu Maxêncio na famosa batalha da Ponte
Milvio. Um ano mais tarde (313 d.C.) surgia o Edito de Milão, que dava liberdade
de culto aos cristãos, promulgado por Constantino e Licínio.51 Depois apareceram
outros Editos (a partir de 315 d.C.), que determinariam a parcial retirada (ou
revogação) de antigos privilégios dos judeus e a partir de 321 d.C. se deveria
observar o dia do sol (Domingo) ao invés do Sábado.52 O Cristianismo tornava-se
na época um instrumento de consolidação da unidade do Império Romano. Os
cristãos agora tinham poder do Estado e a Igreja tornava-se triunfalista e pronta
para combater o “inimigo”. A partir de 312 d.C. os escritos dos padres da Igreja
ganham já uma outra perspectiva: não são mais defensivos (apologéticos), mas
ofensivos.

No ano 380 d.C., o Imperador Teodócio I, que regia a metade oriental


do Império, promulgava o Edito “Cunctos populos”, em cuja base o cristianismo

49 Cf. A. FÜRST. “Jüdisch-christliche Gemeinsamkeiten im Kontext der Antike. Zur Hermeneutik der patristischen
Theologie”, QD 200 (2003) 73.
50 Sobre a utilização da constituição do imperador entre 312 e 438 d.C., J. HAHN apresenta importantes
questionamentos, p. ex.: esta constituição – impregnada por uma determinada política religiosa cristã do
Estado romano (ou com interesses cristãos misturados) – seria um apropriado instrumento para reconstruir
a histórica realidade da vida judaica naquele tempo? Que função desempenhou a escolha dos compiladores
deste Código no decurso da história? Os normativos textos juridicos podem abranger a situação real de vida
dos judeus em seus respectivos diferenciados ambientes? etc. (cf. “Die jüdische Gemeinde im spätantiken
Antiochia”, 58-9).
51 “... decidimos suprimir todas as restrições contra os cristãos, encaminhadas a Vossa Excelência nos escritos
anteriores, e abolir as determinações que nos parecem totalmente infelizes e estranhas à nossa brandura,
assim como permitir, a partir de agora, a todos os que pretenderem seguir a religião dos cristãos, que o
façam de modo livre e completo, sem serem aborrecidos ou molestados” (Edito de Milão).
52 Constantino I (306-37) assumia do seu pai a adoração do Sol invictus, na qual o deus-sol era identificado com
o Deus dos cristãos (cf. A. FÜRST. “Monotheismus und Gewalt”, 523).
tornava-se religião de Estado (Cod. Theod. XVI, 1,2).53 O Estado pluralista
transformava-se num Estado cristão.54

No ano 384 d.C. editava Teodócio uma lei (Cod. Theod. III,1,5), na qual ficava
proibido aos judeus comprar escravos cristãos, mantê-los e circuncidá-los. Esta
medida visava dificultar aos judeus a obtenção de prosélitos.55 Todavia, existiam
também determinações legais que defendiam o direito dos judeus contra os
abusos dos cristãos. Ora, sem fatos concretos de abusos tais determinações
seriam vãs. Determinações legais tentam normalmente corrigir situações ilegais
concretas ou irregularidades. São se cria leis em cima do nada, mas em vista de
necessidades reais.

Certamente Crisóstomo não estava alheio a todo este background.56


Ora, após mais de meio século, a mudança constantiniana devia certamente
ter provocado efeito também na sociedade antioquena. Isto é muito provável,
sobretudo, porque em Antioquia – ao contrário de outras cidades do Império
Romano – havia um palácio do Imperador.

2.5.3 – Decadência provisória da Igreja antioquena


107
Como já fora constatado antes, a convivência entre a Comunidade judaica
e a Igreja (ou ao menos parte dela) tinha chegado a uma situação que colocava
em perigo a identidade da Igreja. “A consciência da fundamental diversidade da
fé judaica e cristã e do conteúdo simbólico das respectivas práticas religiosas
perdeu-se para numerosos cristãos, tendências judaizantes atingiram amplos
círculos da população cristã de Antioquia e colocam em dúvida a identidade da
Igreja e da sua fé.”57 A coexistência tornou-se ameaça. Assim pensava, sobretudo,
a liderança da Igreja. Como reação, vários Sínodos – e até mesmo um Concílio
– já no séc. IV promulgaram determinações contra os judeus, para resguardar
os cristãos de influências judaicas.58 Nesta cadeia de mecanismos de defesa, a
retórica desempenhava também uma importante função.

53 Cf.: R. BRÄNDLE. “Christen und Juden in Antiochien…”, 143; W. KINZIG. “’Non-separation’…”, 38.
54 Isto era, segundo a opinião de A. H. ARMSTRONG, “the final establishment of Christian intolerance“ (cf. “The
Way and the Ways...”, 1.
55 Cf. R. BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden, 52.
56 Cf. A. MONACI CASTAGNO. “Ridefinire il confine...”, 135-6.
57 J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde im spätantiken Antiochia”, 74, a tradução é nossa.
58 O Concílio de Nicéia (no ano 325 d.C.), por exemplo, prescrevia uma data cristã para a Páscoa que sempre se
diferenciava do calendário judaico. Os sínodos locais, como o de Elvira na Espanha (306 d.C.) ou de Antioquia
(341 d.C.) e em Laodicéia na Ásia Menor (na metade do séc. IV [360 d.C.?]) decretam sanções contra aqueles
que se comprometem com judeus ou práticas judaicas (cf. R. BRÄNDLE. “Christen und Juden in Antiochien
…”, ibid, 145 e n. 19; V. DÉROCHE. s. v. Iudaizantes, 138). O Sínodo de Elvira, por exemplo, proibe entre outros
coisas que cristãos tenham seus campos e frutos abençoados por judeus. Laodicéia proibe os cristãos, entre
outras coisas, a participar do Sábado e aceitar presentes de judeus e Antioquia tinha proibido expressamente
celebrar a Páscoa ao tempo da Pessah judaica (can. 1) e ameaçava com a excomunhão aqueles que não
acolhessem a respectiva determinação de Nicéia.
2.5.4 – A Retórica

Este sentimento de ameaça mediante a influência judaica tem seu


efeito também na esfera literária e logo – já desde o séc. II – começam aparecer
escritos polêmicas sobre a relação judeu-cristã, impregnadas por um forte
caráter retórico.59 É o caso da Epístola de Barnabé (uma carta anônima, redigida
provavelmente em Alexandria por volta de 130 d.C. com caráter demonstrativo
ou argumentativo). A doutrina cristã é explicada aqui através da exegese do AT.
Israel não é o povo de Deus. A Aliança foi feita exclusivamente com os cristãos
e a Bíblia pertence ao cristianismo.60 O conteúdo da carta trata da conversão de
judeus através de uma nova exegese do AT. Objetivamente a carta era, todavia,
dirigida a um determinado grupo dentro da Igreja. Outro exemplo é o Diálogo
com Trifão, uma controvérsia na forma de diálogo de autoria do mártir Justino
por volta de 150 d.C., na qual um cristão (ou um grupo cristão) discute com um
judeu (ou grupo judeu) sobre a nova religião. Ao final os judeus têm que desistir
e se converter. Nesta série se deve ler e interpretar também as homilias Adversus
Judaeos (386/387 d.C.) de João Crisóstomo – que corresponde mais exatamente
108 ao período em questão.61

Nestes exemplos, os judeus representam um perigo para os cristãos que


se encontram na pior posição (também a nível social). A Igreja devia triunfar em
todos os casos.62 É claro que se trata de uma literatura formadora de identidade
entre cristãos mediante delimitação.63 Obviamente estas fontes possuem um
valor histórico. Todavia, não pode ser esquecido seu aspecto retórico. Diante
deste quadro pode-se falar de confrontação.

2.6 – Confrontação entre judeus e cristãos

Neste contexto intervém João Crisóstomo com suas afiadas pregações


Adversus Iudaeos. O estreito contato com a religião concorrente torna-se para
ele o foco. Ele não necessariamente polemiza contra os judeus. Suas homilias
são direcionadas a cristãos judaizantes para formar e fortalecer uma identidade
cristã.64 Mas como? Através de quadros retóricos mordazes ele pinta o judaísmo
59 Para isso veja: M. WAEGMAN. “Les traités ‘Adversus Judaeos’”, pp. 295-313.
60 Cf. A. FÜRST. “Jüdisch-christliche Gemeinsamkeiten im Kontext der Antike”, 74-5.
61 Um exemplo mais tardio é o Trophées de Damas (Troféu de Damasco) de 681 d.C., um anônimo diálogo entre
judeus e cristãos, na qual os judeus no final se faziam completamente perplexos.
62 “Havia de fato contatos entre judeus e cristãos. Em geral estas relações eram muito boas mesmo aos olhos
das autoridades eclesiásticas que acreditavam que deviam conter a força de atração das sinagogas. A este
objetivo contribui o tratado Adversus Judaeos” (cf. M. WAEGMAN. Ibid. 313), tradução nossa.
63 Cf. A. FÜRST. “Jüdisch-christliche Gemeinsamkeiten im Kontext der Antike”, 73.
64 Cf. R. KAMPLING. “Neutestamentliche Texte als Bausteine der späteren Adversus-Judaeos-Literatur”, in: H.
FROHNHOFEN (ed.). Christlicher Antijudaismus und jüdischer Antipaganismus. Ihre Motive und Hintergründe
in den ersten drei Jahrhunderten (HTS 3). Steinmann, Hamburg, 1990, 121.
e os judeus o pior possível. Tenta dissuadir os judaizantes de sua fascinação
mediante subestimação, desprezo e difamação dos judeus.

Ele considera o contato com judeus como doença,65 uma doença


contagiosa que já contagiara uma parte do rebanho66 e como um médico ele tinha
que tratar estes enfermos.67 Deus teria virado as costas para os judeus por causa
da crucificação do seu filho e odiaria Israel.68 Os Judeus são pessoas fraudulentas
e anárquicas,69 um inimigo,70 pior que todos os lobos e os cristãos deveriam lutar
para não ser presa das feras71 que vivem para a barriga, anseiam pelo presente,
não melhor que porcos e bodes.72 Eles são infanticidas,73 criaturas irracionais,
que não prestam para o trabalho, apropriadas para o abate.74 Eles não seguem a
vontade de Deus, são incorrigíveis75 e Israel é – assim como diz Jr 3,3 – uma esposa
infiel.76 O Judaísmo está anulado, enquanto o Cristianismo prosperará e dado que
o Cristianismo é a verdade, então o Judaísmo é plena mentira e engano.77 Sua
Sinagoga é uma habitação do diabo, comparável ao Teatro, um Prostíbulo, um covil
de ladrões e abrigo de animais impuros.78 “… caso alguém quisesse especificar as
suas sinagogas (…), se ele as chamar de bordel, lugar de transgressão, refúgio
de demônios, sentinela do diabo, perdedora de almas, desfiladeiro e cova de
toda perdição, se ele a chamar de qualquer coisa, ainda diz muito pouco”.79 E se
109
o Templo fosse outra vez reconstruído – como o imperador Juliano intencionava
– seria a palavra de Cristo anulada, na qual não seria permitido erigir o Templo
novamente.80 O jejum dos judeus é impuro81 e as tendas da Festa das Tendas são
comparáveis a um bordel.82 Os cristãos não devem recorrer a seus médicos e nem
aos seus métodos de cura. Seria melhor morrer que conseguir a saúde por esta
via.83 Quem resiste a esta tentação é comparável a um Mártir.84

65 “A metáfora do judaísmo como enfermidade domina toda esta obra” (cf. M. WAEGMAN. “Les traités ‘Adversus
Judaeos’”, 304, tradução nossa.
66 Adv. Jud. Or. 4,4 (48/876); 3,1 (48/862-3); 1,1 (48/850); 2,1 (48/857); 7,6 (48/926); etc.
67 Adv. Jud. Or. 1,1 (48/845). Nós citamos Adversos Judaeos (aqui e adiante) segundo a tradução de R. BRÄNDLE
(cf. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden, 83-226).
68 Adv. Jud. Or. 6,3 (48/908); 6,7 (48/915); 6,4 (48/909).
69 Adv. Jud. Or. 5,3 (48/847).
70 Adv. Jud. Or. 5,1 (48/884).
71 Adv. Jud. Or. 4,1 (48/871).
72 Adv. Jud. Or. 1,4 (48/848); 6,7 (48/915).
73 Adv. Jud. Or. 1,6 (48/852); 3,3 (48/866). Ele baseia-se em Jr 32 e Lv 20.
74 Adv. Jud. Or. 1,2 (48/847).
75 dv. Jud. Or. 3,2 (48/864).
76 Adv. Jud. Or. 1,2-3 (48/847).
77 Adv. Jud. Or. 1,6 (48/852).
78 Adv. Jud. Or. 1,2-3 (48/847); 1,4 (48/848-9); 6,7(48/915).
79 Adv. Jud. Or. 6,7 (48/915), a tradução é nossa.
80 Adv. Jud. Or. 5,11 (48/901).
81 Adv. Jud. Or. 2,1 (48/857).
82 Adv. Jud. Or. 7,1 (48/915); 1,6 (48/852).
83 Adv. Jud. Or. 8,5 (48/935).
84 Adv. Jud. Or. 8,7 (48/939).
Após a discussão com os valores judaicos, João Crisóstomo se dirige direto
aos cristãos e os ameaça com a exclusão: se eles praticarem os ritos judaicos não
entram no céu.85 Um cristão age correto se “atrair para si seu irmão, mesmo se
proceder com pressão, mesmo se ele usar violência, mesmo se ele o ferir, mesmo
se ele tiver que brigar. Faça tudo para tirá-lo da armadilha do diabo e libertá-lo da
comunhão com os assassinos de Cristo”.86 João faz-lhes uma decisiva pergunta:
“Como não vos arrepiais, ir embora e tomar parte com aqueles que derramaram
o sangue de Cristo e então ir e tomar parte numa santa refeição e degustar junto
do precioso sangue? Então não tendes respeito por esta refeição?”87 E assim, desta
forma, ele segue em frente com seu discurso.

É evidente, que se trata de um discurso retórico como estratégia pastoral,


que não corresponde à realidade da relação de ambos os grupos de fé.88 Mas
também não é de se ignorar que tais discursos contribuíram para os concretos
atos e agressões contra os judeus mais tarde. A partir dos discursos de Crisóstomo
crescia sempre mais a distância entre os dois grupos. Mesmo que as pregações
fossem dirigidas em primeira linha aos judaizantes e mesmo que Crisóstomo
não tivesse qualquer intenção de difamar os judeus e tivesse em mente apenas
110 questões intra-eclesiais, revelava ele obviamente – de forma direta ou indireta –
suspeitas e agressividade para com o grupo de fé judaica. Ou pelo menos ele fora
assim interpretado.

Os ataques retóricos de Crisóstomo eram, na verdade, bem intencionados,


mas não em condições de melhorar a tensa situação em Antioquia.

2.7 – Agravamento das condições de vida dos judeus

Não existem fontes específicas que tratem do agravamento da convivência


entre judeus e cristãos em Antioquia. Mas existe uma série de acontecimentos
que nos ajudam a chegar a esta conclusão. Elencaremos a seguir alguns destes
acontecimentos a título de exemplos:

85 Adv. Jud. Or. 8,5 (48/935).


86 Adv. Jud. Or. 1,4 (48/849), a tradução é nossa.
87 Adv. Jud. Or. 2,3 (48/934), a tradução é nossa.
88 As mesmas duras palavras que Crisóstomo dizia contra os judeus, ele dirigia também (e até mais fortes)
contra os pagãos e cristãos e até mesmo contra monges. Ele chama os cristãos, por exemplo, de animais
selvagens, de demônios. Os maniqueus ele chama de cães mudos e que, todavia, latem, enquanto os
Marcionitas são filhos do diabo. Os pais cristãos que levam seus filhos ao teatro são assassinos. Os monges
“devoram mais que elefantes e são grandes beberrões” (cf. detalhadamente com as fontes correspondentes
em R. BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus…”, 54-5), tradução nossa. Na Hom. In Mt. h. 88,4 (58/780s) ele diz:
“Cristo faz do homem anjo. Mas se tivermos que apresentar exemplos do nosso rebanho, temos que estar
calmos por temor, para ao invés de anjo na verdade não mostrar porcos da pocilga e garanhões viçosos.
Na atualidade não distingue-se a Igreja do curral de bois, jumentos e camelos e eu não posso encontra
nenhuma ovelhinha. Todos dão coices ao redor de si como cavalos e jumentos e tornam o seu redor todo
pleno de sujeira…”, tradução nossa.
1. A Igreja no decurso do quarto século apropriou-se do túmulo89 dos
irmãos Macabeus90 no bairro judaico Kerateion que originariamente
era um lugar de veneração judeu.91 A veneração da parte dos cristãos
existia evidentemente já antes da posse da tumba e pouco a pouco
crescia o seu significado através dos peregrinos que iam ali à busca
de milagres. A real tomada de posse podia ser, portanto, uma
consequência natural da realidade do cotidiano: os veneradores
cristãos teriam cristianizado já de fato o anexo.92 Todavia, esta
apropriação cristã devia significar já – independente da modalidade
do processo – um corte na convivência de ambos os grupos.93

2. No ano 388 d.C. fora destruída a sinagoga de Kallinicum (250 km


distante de Antioquia)94 por uma plebe cristã motivada pelo seu bispo
local, seguramente não sem eco da parte dos judeus em Antioquia e
não sem consequências para a convivência das duas comunhões de
fé. O bispo de Kallinicum sob ordem do imperador Teodócio devia
reconstruir a sinagoga às próprias custas e os envolvidos deveriam
ser punidos. Todavia, o bispo Ambrósio de Milão interveio fortemente
contra o imperador e Teodócio teve que render-se.95 111
3. No ano 391 d.C. fora edificada uma nova Sinagoga em Apamea
(80 km distante de Antioquia) também com ajuda de membros da
comunidade judaica antioquena e pouco depois (por volta de 402
d.C.) destruída. Seria impensável que um tal acontecimento não
tivesse provocado qualquer reação junto aos judeus em Antioquia.

4. Mesmo em Antioquia antes do ano 423 d.C. foram confiscadas


sinagogas sem indenização. A causa presumível seria um homicídio
89 Não se sabe exatamente quando isto ocorreu, mas João Crisóstomo faz sua pregação já entre 386-398 d.C.
na festa anual dos Mártires (Adv. Jud. Or. 1,1 – 50/617). Portanto, esta apropriação teria ocorrido talvez por
volta da metade do séc. IV. Se tivesse sido antes, o imperador Juliano, o apostata – que era contrário aos
interesses cristãos – provavelmente decretaria a devolução do túmulo. Por conseguinte, isto seria após sua
morte (363 d.C.).
90 A opinião da pesquisa, de que este jazigo se encontrava na sinagoga daquele lugar, é insustentável, pois
as fontes nas quais ela se baseia são sobretudo tardias e problemáticas. Além disso, os mortos – segundo
as prescrições bíblicas – tornariam o lugar impuro. Ela(s?) encontrava(m?)-se provavelmente ao lado da
sinagoga e não dentro. A convivência pacífica entre cristãos e judeus teria permitido erigir uma Igreja sobre
um jazigo. A tomada de posse do túmulo – mesmo que isto fosse possível – poderia ser sem violência e não
necessariamente contrário à lei (cf. J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 86). Esta questão aparece detalhado
em L.V. RUTGERS (cf. “The Importance of Scripture in the Conflict between Jews and Christians. The Example
of Antioch”), que também questiona a existência desta veneração dos Macabeus pelos judeus.
91 Segundo uma tradição local estavam ali os restos dos irmãos Macabeus, da mãe deles e do sumo sacerdote
Eleazar que foram mortos por Antíoco IV Epífanes entre 175-164 a.C. – como é descrito minuciosamente em
2Mc 7 –, porque não renunciaram a sua fé. Eles eram modelos como testemunhas de fé também para os
cristãos perseguidos desde o séc. III e foram aceitos nas listas dos mártires cristãos.
92 Assim soa o parecer de J. Hahn (cf. J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 85).
93 Cf. J. HAHN. Gewalt und religiöser Konflikt, 181.
94 Não se deve esquecer que Antioquia era o entroncamento de todas as importantes linhas de comunicação
do Oriente de tal modo que esta distância não era tão grande para receber notícias.
95 Cf. A. MONACI CASTAGNO. “Ridefinire il confine...”, 136.
ritual praticado por judeus. O prefeito pretoriano Asclepiodotus
tentou, mediante uma resolução, devolver estas sinagogas
confiscadas ou indenizar as comunidades. Isto foi inaceitável em
Antioquia e assim os representantes da Igreja local obtiveram através
de eficaz intervenção – até mesmo com carta de ameaça – junto ao
imperador Teodócio II a retirada da resolução.96

5. Sob o governo de Zenon (476-491 d.C.), a Sinagoga de Asabinus em


Antioquia fora destruída e os membros da comunidade – semelhante
a um Progrom – massacrados.97

Ao mesmo tempo os judeus foram também prejudicados mediante


gradativas restrições legais sob imperadores cristãos. Considerando esta série
de acontecimentos, percebe-se que Crisóstomo se inseriu numa cadeia de leis
políticas do imperador e da doutrina apologética dos padres da Igreja, agora
tornada agressiva.

112 2.8 – Reação dos judeus

São muito escassos os indícios que chegaram até nós sobre a reação
dos judeus contra os ataques cristãos ou reações contra cristãos em geral. Nós
podemos mencionar – a título de exemplo – os seguintes: eles eram orientados a
não consultar médicos cristãos.98 Os cristãos eram também criticados por eles com
duras palavras. Eram considerados como hereges ou como pagãos inimigos de
judeus. Uma alegoria rabínica compara Roma com um javali.99 Mas nenhuma reação
podia provocar um tal efeito junto aos cristãos como o fato que os judeus desde o
princípio não aceitaram o cristianismo ou Cristo e conservaram muito fielmente a
identidade judaica. Certamente tudo isto valia também para Antioquia.

2.9 – A separação entre judeus e cristãos

Em que exato momento ocorreu a ruptura definitiva não dá para


determinar. Todavia, é plenamente claro que a convivência não só fora destruída,
mas que também evoluía uma escalada de violência religiosa, física e moral
(contra os judeus). A separação pode ser também facilmente constatada quando
se contempla retrospectivamente a história e vê o resultado que ainda hoje causa
dor a ambos os grupos.

96 Cf. J. HAHN. “Die jüdische Gemeinde…”, 88. É provável neste interessante contexto, que no ano 423 d.C. já
vigorava uma (perdida) Lei, que proibia novas construções de sinagogas (conforme o Cod. Theod. 16,8,25ss).
97 Cf. J. HAHN. Gewalt und religiöser Konflikt, 188.
98 Em M. Avoda Zara 2,1-2; Tos. Avoda Zara 3,2-5 mencionado por R. BRÄNDLE (cf. Johannes Chrysostomus. Acht
Reden gegen Juden, 53).
99 Cf. R. BRÄNDLE. Johannes Chrysostomus. Acht Reden gegen Juden, 55.
3 – O que se pode aprender disso?

Fica agora a pergunta: como poderia esta coexistência e confrontação


iluminar os conflitos de hoje, religiosamente motivados, numa sociedade
pluralista? Algumas pistas de solução podem ser talvez encontradas quando
se considera as causas e o decurso do processo de separação. A partir desta
perspectiva fazemos as seguintes observações:

1. Não pode ser por acaso que a confrontação entre ambos os grupos
religiosos tenha começado – após mais de três séculos de convivência
pacífica – quando o cristianismo se tornara religião de estado e a
Igreja tinha o poder do estado atrás de si.100 Aqui se trata de uma
recíproca instrumentalização entre religião e estado ou ideologias.
Este perigo está sempre presente, tanto ontem como hoje.

2. João Crisóstomo não teve em conta neste particular o mais amplo


sentido da Bíblia quando ele propôs uma alternativa mortal: ou os
cristãos representam a mentira e os judeus a verdade ou o contrário
– ainda que isto fosse apenas retórico e dirigido apenas contra
os judaizantes. Esta perspectiva sem saída, vinculada à perca da
113
amplitude bíblica, levava tanto a afirmações negativas sobre os
judeus ontem como leva sobre outros grupos (religiosos) hoje. É
importante ter coragem e estar disposto a relativizar certas posições
(sem ferir a substância) frente a outras comunidades de fé ou
pessoas.101 O dogmatismo ou posições “dogmáticas” não constroem
pontes, mas fronteiras.102

3. O conflito começa com a liderança (da Igreja) na esfera institucional,


teológica e doutrinária, não a nível da vivência religiosa do povo. O
conflito começa exatamente junto aqueles que em primeira linha
deveriam promover a convivência pacífica.103

4. Embora João Crisóstomo tivesse as melhores intenções, ele utilizava


mal o Primeiro Testamento exclusivamente contra os judeus: quase
todas as pesadas censuras morais contra os judeus eram baseadas
num texto do Primeiro Testamento. Ele qualificava, por exemplo, os

100 Isto não significa que a Igreja era pacífica e só agora se tornara violenta, mas sim que ela agora tinha a
chance de mostrar este potencial (cf. A. FÜRST. “Monotheismus und Gewalt”, 523-5).
101 Cf. R. BRÄNDLE. “Christen und Juden in Antiochien…”, 153.
102 A este propósito Armstrong observa: “A velha religião era a religião do culto, não da crença dogmática. Não
havia desvio da ortodoxia doutrinal a partir da qual pudesse abaixar o desprazer divino. Para os cristãos a
ortodoxia dogmática importava muito, especialmente para os bispos que se sentiram responsáveis pela
transmissão da verdadeira fé e pela preservação na unidade da fé de seus rebanhos” (cf. A. H. ARMSTRONG.
“The Way and the ways...”, 4 ou 11), tradução nossa.
103 Para isto é recomendável: J. HAHN. “Der Bischof als Schlüsselfigur”, in: Gewalt und religiöser Konflikt, 276-91 e
P. BROWN. Macht und Rhetorik in der Spätantike. Der Weg zu einem “christlichen Imperium”. München, 1995.
judeus de infanticidas e utilizava Jr 32 e Lv 20.104 Um fundamentalismo
que instrumentaliza um Livro Sagrado – mesmo que se trate das
melhores boas intenções – pode dificultar a convivência de diferentes
grupos de fé.

5. Os discursos de Crisóstomo mostram sua fraqueza e medo quanto


à existência de seu rebanho. Os judeus foram considerados uma
ameaça que colocavam em dúvida a identidade da Igreja. Medo
e ameaça podem provocar apenas uma aversão irracional e uma
reação alérgica para com outros grupos de fé, algo que não pode
ajudar – e mesmo impossibilitar – a convivência.

6. Finalmente, não existe qualquer fórmula para a coexistência religiosa


pacífica com valor fixo e definitivo. Portanto, se faz necessário
uma postura criativa e aberta para cada nova situação. Isto implica
disposição para uma constante atualização do modo de coexistir e
conviver.

7. Apesar do desafio, a pluralidade pode ser também vista como fator


114 de enriquecimento até que “Deus seja tudo em todos” (I Cor 15,28).

É oportuno lembrar que Religião [do Latim re-ligo, re-ligare = re-ligar, unir,
juntar, etc.] tem a função de (re-)ligar os homens com Deus e (na nossa opinião
também) com os outros, isto é, ela deve melhorar e aprofundar a coexistência
e convivência das pessoas. Se isto não acontece, a religião fracassa e perde seu
sentido.

4 - Bibliografia

ARMSTRONG, A. H. “The Way and the Ways. Religious Tolerance and Intolerance in
the Fourth Century A.D”, VChr 38 (1984) 1-17.
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104 Adv. Jud. Or. 1,6 (48/852); 3,3 (48/866). H. SCHRECKENBERG observa, “que os autores da literatura Adversus
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Century (The Transformation of the Classical Heritage, 4). Berkeley, Los Angeles,
1983.
RECENSÃO
UMA ANTROPOLOGIA TEOLÓGICA
PARA ALÉM DA TEOLOGIA
Angelo Ricordi *

RIBEIRO, H. Quem Somos? De onde Viemos? Para Onde Vamos? 1ed. Petrópolis, Vozes,
2007, 195 p.

O autor da obra analisada é o teólogo Hélcion Ribeiro. Licenciado em 117


Pedagogia e Filosofia, mestre e doutor em Teologia e pós doutor em Antropologia
Teológica. Professor do Studium Theologicum de Curitiba. Também é pároco na
Paróquia Sagrados Corações de Jesus e Maria (Curitiba), autor requisitado em
trabalhos acadêmicos no Brasil e no exterior, por meio de cursos, palestras em
instituições de ensino, leigas e eclesiástica, possuindo diversos artigos e livros
publicados , entre eles destacam-se: A condição humana e a solidariedade cristã,
Encarnação de nosso Deus, Da imagem à semelhança com Deus. Ensaio de
antropologia cristã, A identidade do Brasileiro, “Capado, sangrado” e festeiro..

A obra se destaca pela ousadia das três grandes perguntas que se


estabelecem atuais na historia da humanidade: Quem Somos? De Onde Viemos?
Para Onde Vamos? Para responder as questões o autor já começa sua obra com
a honestidade intelectual da impossibilidade de uma resposta encerrada em si
mesma. Sem contudo, esmorecer do enfrentamento de um tema espinhoso
em nossos dias, fazer uma antropologia ou teologia em diálogo com as ciências
diversas. Para as três perguntas feitas pelo livro, o autor permite duas respostas
distintas, uma em nível da ciência e a outra na esfera teológica. Diante da primeira
pergunta De onde Viemos? O autor utiliza de uma interpretação das origens a
partir de uma ótica hermenêutica que leva em conta o lugar das ciências e das
religiões. Retoma a questão do criacionismo e sua historia, bem como a evolução
e a Igreja. Destacando uma harmonia em respeito as descobertas das ciências,
sem contudo confundi-las com visão teológica das questões formuladas de

* Licenciado em Filosofia pela Faculdade Padre Joao Baggozi (Curitiba –PR).


outras maneiras. A história contada a partir da sua horizontalidade, situando o
lugar do ser humano no planeta, com suas conquistas, acertos e também seus
erros. Diante das respostas cientificas há a sensação de uma insatisfação evidente
sempre.

A reflexão De onde viemos? A partir de uma historia contada desde a


transcendência, traz chaves de grande ajuda para ler a criação a partir da Bíblia
sem ter a ingenuidade de um ateu militante, nem tão pouco o fanatismo do
religioso que faz a interpretação tal qual a letra. Aqui está a atitude de respeito em
que o autor retoma uma reflexão onde procura responder o significado da criação
no texto mais antigo (Gn 2,4bss) uma ótima reflexão sobre o tema da criação a
partir da Sagrada Escritura. Dentre as tradições abordadas para esta reflexão o
autor revela a experiência existencial em quatro núcleos : 1ª - Deus é bom; 2ª-
Mesmo na experiência amarga do pecado do homem, Deus quer salvá-lo; 3ª - este
foi o modo da ação de Deus desde o inicio; 4ª- é assim que ele continua agindo.
Em resumo na reflexão bíblica dos textos da criação, o autor reafirma que na
Sagrada Escritura não há intenção de narrar a origem do cosmos e do ser humano.
A criação tanto para o israelita como para o crente de hoje passa a ser entendida
118 como uma projeção do mistério da salvação de Deus para fora de si mesmo.

Para a resposta Quem Somos? O autor nos remete para uma questão a ser
resolvida ainda. Esta questão passa pelo dialogo respeitoso entre a ciência e a fé,
cada uma em seu âmbito e a partir das suas bases e métodos para enfrentamento
do problema. Por meio de uma visão cristã o ser humano é uma realidade que
transcende a sua animabilidade, cujo principio o constitui como pessoa. Diante
do desafio desta pergunta há um confrontamento ou melhor uma justaposição
das duas óticas, a saber da ciência e da teologia. Há espaço para cosmologia
atual, assim como para o diálogo com autores como Nietzche, que compreende
dentre outras maneiras, o ser humano como um animal indeterminado. Neste
capitulo há a partir das ciências da consciência, assim como as implicações dos
desdobramentos da bioética, a reflexão sobre o processo de hominização do
homem, bem como a sua evolução para um ser de relações. Novamente nesta
pergunta a partir da fé cristã encontramos a verdadeira identidade do ser humano
e a resposta definitiva da sua origem em Jesus de Nazaré. “O Deus nascido numa
noite da historia dos homens tornou-se a luz humana para todos. É então, e só
a partir daí que começou a ficar claro quem é o ser humano” (p.115). A reflexão
sobre o ser humano deixa de ser apenas antropológica para se tornar cristologica.

Para uma melhor compreensão da revelação do sentido do homem


em Jesus Cristo, o autor faz a leitura homem adâmico ressaltando que uma das
consequências naturais de ser verdadeiro homem, foi a de Jesus ter sido também
adâmico. Homem concreto que Deus quis na historia e evolui num processo
de milhares de anos e continua a evoluir ainda hoje. Quem somos nós de fato?
Somos a partir da encarnação, revelação e ressurreição de Jesus, filhos de Deus.
“ o amor divino provocou o ser humano e encontrou eco neste coração, nesta
carne que o próprio Deus criara, para que ela tornasse também a sua carne”. É
pura solidariedade de Deus.

Para onde vamos? A partir da reflexão realista dos desdobramentos da ação


humana no planeta e no cuidado com o mesmo o autor levanta questionamentos
que vão desde expansão demográfica, ao ecossistema, eugenia, irracionalidade
humana causadora de morte e desaparecimento de espécies da natureza criada
por Deus. Como resposta cientifica o nosso fim é o biológico como de qualquer
outro ser vivo, que atingido seu ciclo desparece. O problema maior da ciência é o
fim da individualidade. Diante da realidade negativa dos nossos dias, numa das
partes mais otimistas e cheia de fé e esperança do livro, somos direcionados para
a consumação em Deus, por meio de Cristo. Consumação como totalidade de
sentido e da razão de toda obra criada. Mesmo diante da morte da individualidade
e do silêncio cósmico somos confortados pela esperança e confiança em Deus.
Nosso futuro começa já com a inauguração do Reino e com a solidariedade entre
nós cristãos e todos os homens de outras raças, credos ou religiões. Caminhamos
para Deus. É ele quem dá a direção e Cristo é o caminho que nos leva a Ele. O nosso
fim exitoso é a glória de Deus. Mas seremos exitosos apenas no céu? O autor não
se questiona a partir desta pergunta, mas ao contrario revela que a historia é o
laboratório de Deus para o ser humano. “No seguimento de Jesus, vivendo na 119
história temos um aprendizado para a eternidade”. Conforme literalmente cito
aqui mais uma vez o autor.

Por fim, pode-se afirmar que antes de ser um livro de antropologia


teológica e um questionamento a partir do dialogo entre a ciência e a teologia,
temos uma obra de uma esperança que encontra eco não somente a partir das
Sagradas Escrituras, mas e também a partir dos avanços e da continuação da
criação nos mais diversos campos das ciências e também da Teologia. É indicado
para aqueles que se sentem inquietos pelos questionamentos mais recentes de
ateus militantes que procuram fazer da ciência uma inimiga da fé, mas também
para os cristãos que buscam dar resposta a sua fé a partir do seu contexto histórico
numa constante hermêutica dos fatos. Uma das grandes conquistas desta obra é
do diálogo respeitoso e consciente da ciência e da religião, dos seus limites e de
suas diferentes conclusões. Ainda que não faça uma síntese(intencionalmente)
entre ciência e teologia, é uma obra extremamente atual para os subsídios para
uma reflexão positiva e respeitosa entre ambas as partes.
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