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Fr. Clodovis M.

Boff, OSM
Curso na Paróquia de Sto. Antônio
Curitiba - PR -2010

SS. TRINDADE
(APONTAMENTOS) . ~

SUMÁRIO
l. O ícone da Trindade de Sto. Andrei Rublev ................ 2
II. A SS. Trindade na Sagrada Escritura .......................... 7
li I. A SS. Trindade cm alguns documentos da Igreja ..... 12
IV. Vestígios da Trindade no Mundo ............................... 14
V. A SS. Trindade: reflexão sistemática ......................... 15
VI. Analogias e símbolos trinitários ................................ 23
Vil. A SS. Trindade em nossa vida pessoal e social ....... 24
Bibliografia acessível sobre a Trindade ............ .............. 30


1L o ÍCONE DA TRINDADE DE ANDREJ RUBLEVI
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1 - INFORMAÇÕES INIClAIS

l. Dados históricos
• A Trindade de Rublev (pronunc ia-se Rublo/) é o ícone russo mais famoso e também o mais
estudado. É tido corno o símbolo da "Santa Rússia" e seu paládio ou manto protetor.
• Por sua beleza e potência evocativa, disse o grande teólogo russo, P. Florenskij (+ 1937): "Existe
a 'Trindade' de Rublev; logo, Deus existe." Outro teólogo ortodoxo, P . Evdokimov, afirma:
"Nada se compara a este ícone quanto à potência de síntese teológica, à riqueza s imbólica e à
beleza artística."
• O ícone foi pintado ("escrito") entre 1422-27 pelo monge-pintor Andrej Rublev, de Moscou.
Rublev foi canonizado em 1988, por ocasião dos 1000 anos de evangelização da Rússia. Este
ícone se encontra hoje na galeria Tretiakov de Moscou.
• A "Trindade" foi pintada em honra de São Sérgio de Radonez, patrono da Rússia ( + 139 1). Este
santo tinha .tanta devo.ç ão ao Mistério trinitário que se considerava como o " ungido", "servidor",
"testemunha" e "apóstolo" da Trindade.

2. Sobre a produção dos ícones e seu senti~o teológico


• Ícone - eikon em grego - quer dizer imagem. Os ícones da Igreja oriental são feitos após muita
oração, contemplação, jejum e estudo. " Escrever" um ícone é um ato eminentemente religioso e
não apenas artístico . Diz o biógrafo do santo arti sta que este, quando não pintava, ficava horas a
fio em contemplação diante dos sagrados ícones da Mãe de Deus, dos santos e especialmente da
1
T rindade divina.
• Igualmente, para expô-lo à veneração dos fiéi s, o ícone passa po r um exam e prévio por parte das
autoridades religiOS?lS - para ver se responde aos cânones - e por uma espécie de "consagração'',
cm que é bento, incensado, carregado em procissão e entronizado. O ícone é uma "j anela para o
mistério". Tem um valor "quase sacramental" . É uma imagem que traz, de certa fom1a, presente
o Mistério; o "tipo;' que remete ao "Arquétipo".

II - CONSIDERAÇÕES GERAIS SOBRE O ÍCONE

1. O tema; sua representação e sua evolução


• O ícone de Rublev tem como tema de fundo a hospitalidade (philoxenia) de Abraão e Sara,
recebendo em Mambré os três mi's teriosos Pere&rrinos, dirigindo-se a Sodoma (Gn 18) .
• A representação teológica e, em seguida, pictórica desse episódio bíblico passou sucéssivamente
por três etapas:
1) no começo tinha um sentido apenas angcológico: figurava s implesm ente os três peregrinos,
hospedados por Abraão e Sara, como aparece numa catacumba em Roma no início do séc.
lV;
2) depois, já com S. Justino (II séc.), ganha um sentido cristológico: esta cena era vista como
uma profecia da Encarnação: passou a representar Cristo, ladeado por dois anjos;
3) por fim, graças aos Santos Padres alexandrinos (Dídimo, Orígenes e Cirilo) e aos Padres
latinos Sto. Ambrósio e Sto. Agostinho, evoluiu para um sentido triadológico ou trinitário .
Célebre é a afirmação de Sto Ambrósio: Abraham quoque tres vidit et unum adoravit:
"Abraão viu três, m as adorou um só" (De flde, 1, 13,80).

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1
Exisle um filme da vida de Rublev, de Tarkovski, de 1966, fil me colocado por um instituto inglês entre os 360
cláss icos de Lodos os tempos (in Jornal do Brasil, 19/06/ 1998, cad. B) .
2
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2. Dois critérios para interpretar a "Trindade" rubleviana:

: 1) Critério pneumatológico. A teologia trinitária d e Rublev é a do evangelho de S. João, que põe


em relevo a figura e a missão do Espírito Santo, enquanto consuma a revelação trinitária. No ícone
rubleviano se representa, não tanto a "Trindade imanente" ou eterna, mas a "Trindade econômica"
enquanto age ad extra, na História da Salvação, através do Verbo encarnado e d o ES envi ado. O
quadro do monge-pintor é como umjlash que surpreende o evento mistérico d o: "Eu rogarei ao Pa i
e Ele vos enviará um o utro Paráclito" (Jo 14,16).
É significativo o fato de que, na Rússia, o ícone da Trindade é levado solenem ente em
procissão na festa de Pentecostes. Por quê? Po rque Pentecostes é a consumação da R evelação
trinitária, pois foi quando desceu o ES sobre os Discípulos que ficou claro que Deus são T rês
Pessoas Divinas. Só no dia seguinte - segunda-feira de Pentecostes - é que se celebra na Rússia a
festa do Divino, enquanto o agente supremo d a Revelação trinitária. Mais: o lugar desse ícone na
iconostase (parede de madeira, nas igrejas gregas, ·toda o rnada de ícones e que separa a nave do
santuário dos ministros) é à direita das " portas reais" - lugar reservado precisamente ao ES.
Portanto, o nome completo e correto d esse ícone seria: "A SS. Trindade, revelada pelo ES" o u "O
ES, revelador ~a SS. Trif\dad~"·

·2) Critério litúrgico. O ícone rubleviano representa a "Ceia divina" do Céu, ceia que é fonte e
modelo da ceia da terra, a qual não nos dá só a presença de C risto, mas também a comunhão com o
Pai e com o ES.2
Por isso mesmo, o ícone tem um caráter doxológico: é feito para contemplar, adorar e lou var
o Mistério do Deus triúno. Para tanto, a imagem icônica tem que s er ultrapassada em direção ao
"Arquétipo inefável" para o qual aponta. Nessa intenção, o santo pintor, evitando toda tentação d e
realismo, "estilizou" os símbolos, representando, por ex., as m ãos pontudas, a casa com o teto
invertido, o cálice assimétrico, o s tronos e os p és também sem simetria. Desse modo, o
contemplante é levado a se desapegar d a materia lidade do ícone para ascender até à realidade do
Mistério, transformando-se em participa nte ativo d a vida trinitária.

III - ANÁLISE E INTERPRETAÇÃO DO ÍCONE DE RUBLEV

Rublev conseguiu figurar, com rara felicidade, a difei-ença ( l) mas també m a igualdade (2)
que existem nos Divinos Três. Além disso, ele confere à pintura o dinamismo da pericórese ou
comunhão de vida e amor que circula entre as Pessoas da SS. Trindade (3). Por fim , e le su gere
também a postura espiritual adequada do espectador frente ao ícone (4).

1. Diferença entre as Pessoas Divinas

A originalidade de Rublev foi ter conferido a cada Hipóstase ou P essoa um perfil


inconfundível, tanto mais que, antes dele, as Três Divinas Pessoas eram mais o u m enos iguais,
sendo que só a do centro - representando o Cristo - recebia _alguma e laboração particular : auréola
cruzada, o rolo dos evangelhos na mão e a escrita " Aquele que é".

• Pelas cores da roupa. A roupa sempre foi consid erada como expressão da ..personalidade" de
cada um. No ícone rubleviano, ao lado da cor comum - o azul celeste, cor da divindade -, cada
Pessoa divina te m sua cor própria: 1) O P ai veste um grande manto dourado, porque Ele é
considerado na Triadologia, especialmente oriental, como o detento r da "monarquia" e a "fonte

2
M.-F. GIRAUD, Aproximaciones a los íconos, Madrid 1990, p. 68-80, enquadra a perspecti va e ucarística naquela
maior d a peregrinação. A Eucaristia seria o viático dos Div inos Viageiros, que estão justame nte do tados de asas e
bordões para enfrentar a lo nga v iage m . Iriam rumo ao Para íso, representado pela çasa ao fundo, mas em c ujo m e io está
a Árvore da Vida; dispõe também da Água d o Roc hedo para matar a sede no deserto da vida. A nosso ver, contudo , essa
interpretação vai be m para os peregrinos humanos, mas não para os Peregrinos celestes.
3
de toda divindade"; 2) O Filho carrega um manto roxo, sinal da humanidade pobre e sofredora,
que revestiu na Encarnação. 3) Enfim, o Espírito traz um manto verde, sinal de vida, como é
confessado no Credo de Nicéia-Constantinopla: "Senhor, que dá a vida" . Notar que o verde
domina na tela, especialmente em seu transfundo, saindo em seguida de debaixo do altar, como o
"rio de água viva, que brota do trono de D eus e do Cordeiro" (Ap 22, l ).

• Pelo modo de vestir:


1) O Pai é quase totalmente envolvido por seu grande manto de ouro, que lhe cobre inclusive os
dois braços. Significa ~ue Ele não age pessoalmente, m as através de suas "duas mãos": o Verbo e o
Pneuma (Sto. lrineu). Por isso essas duas Pessoas têm um braço descoberto, fora da túnica,
justamente para atuar no mundo o Plano do Pai.
2) O Filho traz, além disso, uma estola amarela, visível sobre seu ombro direito. É que Ele ocupa a
posição de Sumo-Sacerdote, presidindo a eterna Eucaristia do céu. Por isso mesmo está voltado
para o Pai, dirigindo a Ele sua súplica, como faz a Igreja na Eucaristia terrestre.
3) Semelhantemente, o ES traz também sobre o ombro uma espécie de estola, essa um tanto
apagada. De fato, Ele é o "segundo Paráclito", o outro Intercessor ( cf. lo 14, 16), que também "pede
por nó~ com g~midos inefáveis" (Rm 8,26). Ele também está voltado para o Pai.
. . .
. .
• Pela posição da cabeça e direção do olhar:
l ) O Filho inclina a cabeça e olha para o Pai em atitude de súplica amorosa;
2) ·O Pai, com a cab~ça levemente inclinada como a consentir ao pedido do Filho, olha para o ES e o
abençoa, mandando-o, firme e suavemente, e'm missão;
3) e o ES volta o rosto como para escutar a súplica do Filho, ao mesmo tempo em que inclina
profundamente a cabeça e olha para o Pai, em gesto de humilde obediência (e talvez também de
súplica). De fato, Ele "procede do Pai através do Filho'', como dizem os Orientais, daí sua dupla
relação (que é aliás de cada Pessoa divina).

• Pelas mãos:
1) O Filho aponta com a mão, por cima do cálice, em direção ao ES, num gesto de indicação (não
de bênção; estudos atuais mostram que no original havia um só dedo, o indicador, apontado para o
Espírito). . .
2) O Pai, sim , ley~ta levemente a mão em direção do Espírito como para abençoá-lo em sua
missão pentecostal. · ·
3) Quanto ao Espírito, Ele tem a mão inclinada para baixo, em sinal de anuência total ao mandato
do Pai sob pedido do Filho. ·

• Pela postura geral do corpo: 1) O Filho tem o corpo meio inclinado, especialmente a cabeça,
em sinal de deferência em relação ao Pai; 2) o Pai tem o corpo todo ereto, como se nota pela
linha das costas, pois Ele é, no seio da Trindade, o "monarca'', o Pantocrátor: o Senhor todo-
poderoso; 3) já o Espírito inclina o corpo por inteiro, dos pés à cabeça, em direção ao Pai,
descrevendo uma espéde de elegante "c" invertido.

• Pelos símbolos de cada Pessoa no fundo da cena:


l) acima de Cristo, vemos uma árvore verde. É o velho "carvalh~ de Mambré" de Abraão,
transformado agora em símbolo da cruz, árvore que nos trouxe o fruto da Salvação;
2) acima do Pai, temos um edificio, com uma janela em cada plano. É aquilo em que se
transformou a tenda de Abraão e Sara. Representa agora a "casa do Pai", com suas "muitas
moradas", "preparadas" para acolher seus filhos e filhas (cf. Jo 14,2-3);

3 J.MAMBRlNO, "Les deux mains du Pere dans l'oeuvre de St. lrenée'', in Nouvelle Revue Théologique, t. 79 (1957),
p. 355-370.
4
3) por fim, acima do Espírito pode-se vislumbrar - não mais que isso - um rochedo, trazendo um a
fenda no meio. É a elevação sobre o qual apareceram os três anjos a Abraão (Gn 18,3: " Abraão
~ ergueu os olhos e viu ..."). Essa elevação é símbolo da rocha do deserto, na qual S. Paulo viu a
figura de Cristo (lCo 10,4) - rocha essa que Moisés feriu com seu bastão (Ex 17,6), fazendo assim
jorrar água, símbolo do Espírito, como diz o próprio Cristo no Templo (cf. lo 7,39).
Notar que os símbolos cristológicos são os mais numerosos: a Árvore da cruz, o Rochedo,
o Cordeiro no cálice, além da Túnica roxa. Todos esses símbolos mostram, embora transfi gurado, o
"realismo" dramático da encarnação: a Árvore contorcida da cruz, o rochedo fendido , o Cordeiro
sacrificado sobre o cálice e a Túnica roxa da kénosis ou humilhação.

2. Igualdade de Natureza entre os Divinos Três

A igualdade de Natureza, base da diferença entre as Pessoas divinas, se mostra no ícone por
vários traços:
• Pela roupa do mesmo tipo. Todos os Três, o Pai, o Filho e o Espírito vestem uma roupa de duas
peças: a túnica (chiton) e o manto ou clâmide (himation) , à exceção da 2ª Pessoa que endossa
uma discreta estola (e ·a 3ª uma outra, mais discreta ainda). Al ém disso, cada uma delas usa
também uma fita enlaçando a cabeleira, arrumada, em todas Elas, de modo análogo.

• Pela cor azul, comum às Três Pessoas. De fato, tanto o Pai como o Espírito trazem na túnica a
cor azul intenso, enquanto o Filho traz a mesma
1
cor no manto . O azul

é uma cor celeste, símbolo
da divindade: os Três são um só Deus.

• Pela igual proporção das figuras. Os Divinos Três têm a mesma estatura e carregam uma
auréola igual , formando as três auréolas brancas com o que um arco. Os Três são Aquele que é
"santo, santo, santo" (Is 6,3; Ap 4,8). Ademais, evocando os Anjos peregrinos, as Três
Hipóstases possuem asas, que se tocam de leve. As asas são mais um símbolo da natureza
celeste das três Pessoas, além de sugerirem sua ubiqüidade: podem voar para todos os lugares,
ou melhor, estar em todos eles.

• Pelo. rosto parecido. Os Divinos Três são todos jovens, como para indicar sua eternidade ou ,
figurativamente, sua "eterna juventude". Levam também a cabeleira entrançada com arte e presa
por uma fita elegante. Notar que as Três Pessoas divinas não têm barba e mostram um rosto
extremamente temo, mais feminino que masculino, mas que é enfim um rosto divino, enquanto
está além de toda determinação de gênero.

• Pelos símbolos comuns de poder. Cada uma das três Pessoas divinas carrega na mão um cetro
e está sentada num trono. O cetro é aquilo em que se transformou o simples bastão dos Três
peregrinos. Sob a figura de uma vara fina - um leve caj ado de pastor - o cetro aqui sugere um
poder suavíssim.o. Quanto ao trono individual, além de significar uma autoridade pacifica,
significa também a igual dignidade de cada Pessoa divina. Ambos, cetro e trono, fazem lembrar
um ambiente de corte, pelo que o pintor conferiu uma suavidade e "elegância áulica" aos
Divinos Três, como se nota pelo modo de sentar, pela delicadeza dos gestos, pelo entrançado dos
cabelos, presos com uma fita, e particularmente pela fineza das mãos.

• Pelo cálice comum aos três Comensais divinos. O cálice é o símbolo ou "sacramento" da
Comunhão sublime que reina no seio da SS. Trindade. Isso é tanto mais significati vo quando se
sabe que, em muitas representações anteriores, havia um cálice para cada Pessoa divina. O cáli ce
contém o vinho eterno - celeste ambrosia - , no que se transformou a coalhada oferecida por
Abraão . .s obre o cálice, como numa patena, vê-se uma hóstia, que lembra um pouco o pão
preparado por Sara e também o vitelo sacrificado pelo Patriarca em favor de seus hóspedes,
símbolo aqui do Cordeiro divino.
5
.....

3. "Pericórese" (inter-relacionamento) entre os Divinos Três

Vimos até agora o que há de diferente e o que há de comum na Trindade rublcvi ana.
Contudo, o quadro de Rublev não é estático, mas extremamente dinâmico. O monge-pintor
conseguiu traduzir em arte a pericóresc ou o entrelaçamento dos Divinos Três, a circulação de vida
e amor que reina no seio da Trindade. Percebe-se no quadro um dinamismo infinito de harmo nia e
de felicidade perpassando a santa Tríade, especialmente uma infinita doçura estampada na face e no
olhar de cada Pessoa, enquanto uma se volta amorosamente para a outra.

Podem-se, enfim, relevar quatro figuras geométricas, uma diferente da outra e situadas em
forma concêntrica, sugerindo, cada uma a seu modo, a idéia da comunhão pericorética: 1) o círculo
maior, que o olhar dos Divinos Três perfaz, envolvendo-os numa esfera de harmonia, serenidade,
amor e bem-aventurança; 2) o triângulo equilátero, que descreve, dentro do círculo pericorético
maior, a posição dos três assentos reais e que faz pensar na iguald ade total que reina entre Eles; 3) o
retângulo compacto da mesa da Ceia celeste, inscrito no centro do triângulo e cuj a toalha de um
branco forte estreita intimamente as Três pessoas umas às outras; 4) por fim, no centro da mesa, o
Cálice e a Hóstia estilizados - "arquétipos" celestes da santa ceia terrestre, pela qual nos é dado
entrar em comunhão com Ceia dos Divinos Três.

4. A posição de quem contempla o ícone


1

Rublev conseguiu envolver quem olha para seu ícone no círculo de vida e amor da Trindade
SS., tirando-o da posição de mero espectador para a de contemplante e adorador. De fato, há um
sinal que chama o contemplante para d~ntro da cena/ceia: é o triângulo verde na parte inferior do
ícone, simbolizando o rio de vida que brota de sob o altar e corre na direção de quem olha. É um
convite a tornar lugar no Festim celeste e gozar da bem-aventurada Pericórese da Trindade. Assim,
quem admira o .ícone sente-se convidado a entrar na Comunhão da Ceia eterna.
Assim, posicionada frente aos divinos Três, a pessoa torna-se como que a "4ª pessoa" da
cena, pensando-se, não como uma pessoa. exterio r ao quadro , mas como participante vivo do
Banquete celeste. Desse modo, o contemplante é chamado a ocupar o lugar de Abraão e Sara,
figuras que, à diferença das representações anteriores, já não aparecem m ais na cena, pois agora é
ele/ela que é cçmvidado(a) a ser Abraão ou Sara. Mas aqui os papéis se inverteram: não é mais
ele/ela que acolhe a santa Tríade, mas Ela que os acolhe em sua intimidade e lhes oferece sua Ceia
divina e sua hospitalidade eterna. Maria, coroada pela Trindade, é tipo da Humanidade incorporada
4
no Mistério trinitário (3+ 1: "Tétrada"). .
Há ainda outro traço extremamente significativo: a cavidade retangular no centro do altar.
Indica o lugar em que se guardam, no Oriente, as relíquias dos santos e as reservas eucarí sticas.
Sugere que o espectador está contemplando a SS. Trindade do lado oposto àquele cm que deveria
estar. Ou seja, contrariamente ao que ocorre na liturgia bizantina, o contemplante está precisamente
em frente do altar, do lado do sol nascente - o "lado de Deus" -, e não atrás, do " lado dos fiéi s".
Dá-se, pois, aqui uma "inversão de perspectiva", como notou P. Florenskij . É como se o
contemplante estivesse escondido por trás de uma cortina, nos bastidores do Santuário celeste, e
fosse a testemunha secreta de um evento, de outro modo inacessível: o Diálogo entre as Três
Pessoas Divinas, no momento eterno em que estão tratando do "negócio dos séculos": a nossa
Salvação. O quadro retra~aria, em particular, o instante decisivo em .q ue o espectador-espia
surpreende o Filho suplicando · tema e insistentemente ao Pai para que m ande sobre o Mundo o

~ A idéia de "tétrada" dos pitagóricos, dos gnósticos e mesmo dos jung hianos, poderia servir para pensar nosso
relacionamento com a Trindade em termos, porém, exclusivamente "econô micos" e meramente "represeuiativos''. Cf. a
tentativa (problemática) de E. TESTA, Maria terra vergine, Jerusalém, 1985, vol. 1.
6
Espírito Santo Paráclito (Jo 14, 16), para que infunda no coração de cada um e difunda por todo o
Universo o Amor salvador da própria Tri-unidade.

Bibliografia
• Dom Gabriel BUNGE (osb), Lo S pirito Consolatore. II sig nificato deli ' iconografia della santa Trin.ità dallc
catacombe a Rublev, La Casa di Matriona, Milão, 1995, com bibliografia (orig.: Der Anderc Paraklet, Würzburg,
1994).
• Dom Valfredo TEPE (ofm), Nós Somos Um . Retiro trinitário, Vozes, Petrópo lis 1987.
• Gaetano PASSARELLI, O ícone da Trinidade, Ave Maria, São Paulo 1996.
• DANIEL-ANGE, L'étreinte de feu : l'icône de la Trinité de Roublov, Le Serment, Paris 2000 (320 pp. ilustradas;
reedição do original de 1980).

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IL A SS. TRINDADE NA SAGRADA ESCRITURA 1 ~-
r · -

Antes de ser uma verdade da fé ou um "mistério" inefável, a SS. Trindade é, primeiro, um a


história e, depois, uma experiência, Ela se revela respectivamente através da História da Salvação e
no íntimo de n~sso coração. O Credo cristão não tem a forma de um "sistema de verdades", mas de
um "relato religioso", justamente, histórico-salvífico.

l . A SS. TRINDADE NO AT

Apesar de insistir na fé em um Deus llnico e se opor firmemente a todo politeísmo, a Bíbli a


fala num Deus de vida e de amor. Dai aparecer como uma Realidade internamente rica e expansiva.
O Deus bíblico não é um Deus solitário, mas um Deus solidário. Unum Deum solum, non
solitarium - qeclara o VI Sínodo de Toledo (638) (OH 490). É um Deus comunicativo : tem corte e
anjos; envia sua P ~l~vra, seu Messias, seu Espírito.
O Deus b~blico não é como Allah, Deus absolutamente único, ao qual " nada se deve
associar", como manda o Corão. Não é também como Brahman, que é, segundo os Upanishads, o
"único sem segundo". Ao contrário, o Deus revelado é unidade aberta e inclusiva: Ele cria, faz
aliança, participa da história humana, defende os fracos, salva a criação. Por ser vida e amor,
realidades expansivas, o Deus da Bíblia como que "se desdobra" em diferentes ' pessoas". Eis
alguns passos do AT que sugerem (apenas isso) o mistério da SS. Trindade:
, ,.).,... ~.
A) Textos mais a~tigos Y. t - - : '-' .......,. ..J,,..;:/c._ u- 0 ..:t.L. · ~ _..._ ~ 1

- "Façamos o se~ _humano à .nossa imagem e semelhança" (Gn 1,26, cf. 3,22).. IL.....:.r. :f..oJ.- '""...: ' - ~ ..... íl' ÍA'~.
- "Santo, Santo, Santo é o Senhor Deus do universo" (Is 6,3). ~ ~~ ~ Vl - , -
-Os três misteriosos Peregrinos, que Abraão e Sara acolheram em Mambré (Gn 18).:cl<.....i, ,,...,,_.,.t-~ 1 e ~ ..... "~
, - O "AnjQ .de Javé", emissário de Deus (cf. Ex 14,19; Gn 16,7-13; lRs 19,5-7; 2Sm 14,20), q'uêi$ . r ç,r~_._ ~ ,,..._
vezes se confunde com o próprio Deus ( cf. Gn 31, 11-1 3 e Ex 3,2-4). ~ t~~ .l ~=
-i: A figura do Messias, que aparece como "Servo de Javé" (cf. Is 42, 1 =Me 1, 11 ), ou como Filho de 1~ ._· ~ .k.11."'"
0

Deus (Sl 2,7) ou ainda como o próprio Deus (cf. Ez 34, 11-16,23 em confronto com Jo 10 e Lct..('~"""' "-U.... '14 A.,,..
15; e Sl 11 0,1 em confronto com Me 1 2,35-37). ·~4~ ,__ ~ lk' ~7; ~ k..\L.....,L-.., \t...Jé. ~ I(_ 1 '-rJ:. ~ -
l.J - ft . ,lt_ ......... ~
· "I""" ~. ( ,_, 1>- h.....-.. /N ~s, '\"'(... ~ - \,_..... ~ l~" •' ~
B) Textos mais recentes ("\"· , ....~ ~ -~~) . ·
Nos livros sapienciais do AT aparecem três manifestações ou personificações de YHWH,
que atuam com certa autonomia e que fazem pensar, ora na segunda, ora na terceira pessoa da SS .
Trindade:. (t....,.i.•~ ~ ''"'"'~) _:~ ~ ~ >- .,_.,\t. M ~...._t-t..-, N ~~- o,.~ ...... .:. "'1~
1. A Palavra de Deus (Sb 18, 14-1 6; Is 55,11; cf. Sb 16, 12; S1 147, 15 - confrontar com Joi,l,- 14). ~ ~ ~~ .....
2. A Sabedoria de Deus (Pr 1,20-23; Pr 8, 22-24; 30-31 ; Pr 9,1-6; Jó 28; Sb 6, 1- 11 ,3, esp. 7, 12.22
e 8,5.6; Eclo 24 e Br 3, 15-4,4: "Ela foi vista na terra, convivendo entre os homens"; confrontar
com lCo 1,24.30: Cristo, sabedoria de Deus). ~ !:f.-,.. ~.--c..;..Ai.,~ . ~.Lo. ~,:. .......~~ ~"""
3. O Espírito de Deus (Gn 1,3; Sl 104,29-30; Ez 37,1-14; Nm 11 ,25-30; JI 3). ~ ~ .......,~, ~
.~- ... -r-o... ~ ~-

7
Pr-' t'' .~

Observação: Estas referências são apenas alusões à Trindade, que só aparecem como tais à luz do
~ Mistério já revelado. S. Gregório Naz ianzeno disse: "O A T anunciava abertamente o Pai e, de
maneira mais velada, o Filho. O NT indica de maneira não tão clara a di vindade do Espírito. AEora
finalmente, a Espírito vive conosco e se revela abertamente a nós." 5 ( "" ~
..."1" ti\ \h ~ ~p
~ ~
r ..... . ., . .,,
" ~
1. - '-M. 2. A SS. TRlNDADE NO NT
M ~~ f .U.. _.., 0 E.,

1) Trindade em forma narrativa

Já o NT fala da Trindade em termos de "teologia narrativa": conta que Deu s mandou Cristo
como seu Filho, que aparece como o grande revelador da Trindade.6 Na história de Jesus vemos a
hi stória d~ Trindade em a9ão. De fat~: e i-ir l ~ l\.o...l,J.-[~, ~ ·~r-< "L~·.u-",....... ~ L~ '-
t---- () ~ ,..._ ~.,_ \..,,.~ J.,.. l\&Á............ . •
(

1) Quanto ao Pai
Como aparece o Pai nos Evangelhos? Jesus fala todo o tempo d ' Ele: de seu Reino e de sua
vontade, de seu .perdão e amor ilimitados. É ocioso deter-se nisso.

2) Quanto ao Filho
Ao mesmo tempo que Jesus fala do Pai , Ele fala de si próprio como Filho de D eus.
Comporta-se como tal quando dá o perdão (Me 2,8), quando muda a lei di vina (Mt 5, 17-48) e
quando cham a Deus de Abba: p aizinho querido. Poi s Jesus tinha consciência de ser Filho de Deus:
"Ninguém conhece o Pai se não o Filho ... " (Lc 10,26).
ÉS. João que mostra mais claram ente que Jesus é Filho de Deus, Deus com Deus:
• "Eu é o Pai somos um" '(Jo 10,30; cf. 17,2 1).
• "Os judeus procuravam matá-lo porque chamava Deus de seu Pai , igualando-se a Deus" (Jo
5,18).
• "Segundo nossa Lei (cf. Lv 24, 16: blasfêmia) ele deve morrer porque se fez Filho de
Deus" (Jo 19,7).
'!~ ~~ ""'- ~.

3) Quanto ao Espírito Santo


Por fim, Jesus fala também abertamente da Terceira Pessoa. Eis três logia que parecem bem
ser ipsissima verba J esu:
• "O Espírito do Pai falará em vós" (Mt 10,20);
• "Se é pelo Espírito de Deus que eu expulso os demônios ..." (Mt 12,28);
• "Quem blasfemar contra o ES não terá perdão" (Me 3,2).
Lucas, em particular, já nos relatos da infância, mostra o Messias conceb ido por Maria por
obra do ES (1 ,35); Isabel "cheia do ES" à aproximação de Jesus no ventre de Maria ( 1,41) e Simeão
também "cheio do ES'', o qual lhe "revela" a vinda do Messias e o " impele" a encontrá-lo no
Templo (2 ,25-27) . Na vida pública, Lucas põe em evidência Jesus "cheio do Espírito" e todo
" movido" por Ele (Lc 3,22; 4, 1 .14.1 8), etc ..
Mas é especialmente João que, em seu evangelho, m ostra Jesus prometendo aos Discípulos
o "Espírito da Verdade", chamado também "Paráclito", com a missão de instruí-los e fortalecê- los
(Jo 14-16).
O resto do NT mostra a realização da promessa de Jesus: o Espírito Santo desce sobre os
Apóstolos, reunidos com M aria, no dia de Pentecostes e atua na vida da Igreja (Atos, Cartas de
Paulo, etc.). No Pentecostes, em particular, dá-se uma verdadeira Pneumatofania e, com ela, uma
T riadofania. Agora, que esse Espírito seja distinto do Pai e do Filho e ao mesmo tempo unido a
Eles em igualdade profunda, to rna-se claro quando vemos Pentecostes à luz das promessas de Jesus

s Orat. theol., 5,36: PG 36, 16, 1.


"Cf. Jacques DUPONT, " Dieu de Jésus", in Nouvelle Revue Theologique, 109 (1987), p. 32 1-344.
8
~.

no " discurso de despedida" em S. João: "Quando vier o Paráclito, que eu vos enviarei de junto do
Pai, o Espírito da Verdade que vem do Pai, ele dará testemunho de mim" (Jo 15,26; cf. ainda 14,26;
16, 12-1 5).
NB: O Espírito no NT não aparece só como objeto de revelação, mas também como sujeito:
Ele revela a Deus como Abba (Rm 8, 15 ; OI 4,6; cf. l Co 2,11) e a Jesus corno Kyrios e Filho de
Deus ( 1Co 12, 1; Jo 14, 16). O hino Veni Creator o diz: Per te sciamus da Palrem / Noscamus atque
Filium.

2) Mistério pascal como " evento trinitário" 7

Todo o mistério de Cris to revela e comunica a Trindade, mas muito especialmente o


M istério pascal, central no cristianismo. De fato, segundo o "axioma fundamental " da trinito logia,
só sabemos da "Trindade imanente" o que nos foi revelado pela "Trindade econômi ca" (K. Rahner).
Ora, se o Evento pascal é o ápice da fé cri stã, ele ·deve coincidir com a Trindade, considerada
igualmente o Mistério culminante. Como pensar esta íntima conexão?
O Evento pascal é o conjunto de Crucifixão, Ressurreição e Pentecostes. Tomemos, cm
primeiro lugar, .º momento da crucifixão. Aí se revela, numa palavra-chave do NT, o mistério da
"entrega" (doação): a entrega d e J?e.us em favor do mundo. Que vemos na cruz? Como mostra a
"Trindade" de muitos artistas clássicos, como a de Masaccio (1427-1428), aí vemos as três pessoas
divinas envoltas na dinâmica da entrega de amor:
1) O Pai que " entrega" o Pilho: " D eus tanto amou o mundo que entregou seu Filho único" (Jo 3, 16).
"Aquele que não poupou seu próprio Filho, mas o entregou por todos nós ..." (Rm 8,32).
2) O Filho que "se entrega" pelo mundo em obediência ao Pai e impelido pelo ES. Em Jo l O por
cinco vezes Jesus fala em "dar a vida" (vv. 1 1, 15, 17, 18 e 28).
3) O ES, que é a 'força de entrega' (amor) do Filho ao Pai : "Entregou-se a Deus pelo Espírito eterno
corno vítima imaculada" (Hp 9, 14); e que é "entregado" por Jesus ao mundo : " inclinada a cabeça,
entregou o Espírito" (Jo 19,3 0). Como sublinha U. Von Balthasar, o ES mantém o Pai e o Filho
unidos no seio da experiência mais extrema de "abandono''.

Vejamos agora o momento da ressurreição. Como esse aspecto do mistério pascal se


conecta com o mistério da Trindade?
1) O Pai que "ressuscita" o Filho, como que insuflando sobre Ele o Sopro santo c vivi ficador. Nos
Atos é sempre Deus (Pai) que ressuscita Jesus dos mortos (cf. At 2,24.32; 3, 15.26; 5,3 0; 10,40;
13,30.33.34.37; 17,31 ; 26,8; cf. também Rm 8, 11 ).
2) Cristo que (se) "ressuscita": "Eu entrego minha vida para retomá-la de novo" (J o 1O,17; cf.
tam bém JCo 15,4.12- 15·: Cristo " ressuscitou").
3) O ES que é 'força de ressurreição' (vida nova): ·" Ele (Jesus) voltou à vida pelo Espírito" (1Pd
3, 18). "Estabelecido Filho de Deus com poder segundo o Espírito de santificação mediante sua
ressurreição dentre os mortos" (Rm 1,4). " O Espírito d' Aquele que ressuscitou Je us dentre os
mortos ... dará vida nova aos vossos corpos mortais pelo seu Espírito ... " (Rm 8, 11 ).

Se tomarmos o Pentecostes, coroação do Mistério pascal, vemos novamente toda a Trindade


agindo :
1) O Pai, que manda o Espírito, d ' Ele "procedente" (Jo 15,26).
2) O Filho, que, por sua súplica, obtém do Pai o dom do Espírito para a Igreja e o Mundo: "Pedirei
ao Pai e Ele vos mandará o Espírito" (Jo 14, 16). Jesus "recebeu do Pai o Espírito prometido e o
derramou, como vós vedes e ouvis" (At 2,33).

7
Cf. a síntese que faz nessa perspecti va S. TAV ARES, Trindade e Criação, Col. Iniciação Teológica, Vozes,
Petrópolis 2007, p. 18-32, partindo das reflexões de B. Fone e J. Moltmann. Cf. ainda Piero CODA, O evento pascal:
Trindade e História, Cidade Nova, São Paulo 1987.
9
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3) O ES (aqui em primeiro lugar), que aparece como Sopro poderoso, enchendo o Cenácul o; e,
como Fogo, dividindo-se em línguas e pousando sobre cada apóstolo .

........,. Em síntese: Mistério trinitário e Mistério pascal se chamam um ao outro: o Mistério pascal
é (por excelência) o Mistério trinitário desdobrado na História; e o Mistério trinitário é
(principalmente) o Mistério pascal concentrado na Doutrina.
Em virtude da conexão íntima entre Trindade e Páscoa, a praxe litúrgica conjuga
estreitamente os dois mistérios centrais da fé: Deus tri-uno e Cristo, Deus-Homem Redentor (que
são, em verdade, dois aspectos, doutrinário e histórico respectivamente, do único Mistério da
Salvação) enquanto compõe, numa só oração de bênção, de um lado, a invocação da Trindade:
Pai, Filho e ES, e, do outro, o gesto de traçar uma cruz - a Cruz de Cristo-, quer sobre o próprio
orante, quer sobre as pessoas ou as coisas.- O --:-.. ~ ~ c,..-..-i,. ..: - ~~ ""'"' ...;~~ .
Estes são os máximos mistérios da fé cristã. Mas, e o Mistério do amor de Deus pelo mundo,
não é esse o mistério essencial e distintivo do cristianismo? O que têm a ver com esse Mistério, os
dois mistérios anteriores, o trinitário e o histórico-salvífico? Tem tudo a ver. O Mistério do amor de
""/ Deus pelo mundo está na base da Páscoa e da Trindade. A Páscoa mostra a vitória do amor e a
Trindade explica o amor .de Cristo pelo mundo corno sendo o amor de Deus encarnado em seu
--t>l Fi lho. J:. 1:ri~dàde é como a teoria que explica a hi stória de Jesus, como história do amor divino
agindo no mundo.
Daí ser a Trindade o "fundamento transcendente" da história da salvação, como história do
amor de Deus pelo mundo. Só um Deus Trindade podia "amar até o fim", isto é, dando-se
"' f totalmente em Cristo e no Espírito (em virtúde da distinção real das pessoas), sem, contudo, se
anular em sua essência divina (em virtude de sua unidade substancial) .
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3) Algumas cenas expressavas da Trmdade no
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3. 1. Anunciação do Senhor (Lc 1,26-38). Aqui operação dos Divinos Três é clara, como
expressam em geral as pinturas clássicas dessa cena: o Pai manda o anjo Gabriel, o Filho-Verbo
desce ao seio da Virgem, e o ES, o "poder do Altíssimo", opera a maravilha da Encarnação . ~ r ~ Lo~~
3.2. Batismo de Jesus (Me 1,9-11). Aí se manifesta a "Trindade em ação": o Filho é mergulhadot°)J-Y' ,,_.-
no Jordão, o Pai faz ouvir sua voz e, do céu aberto, o Espírito desce em forma de pomba. -!°V"""" ·
3.2. Transfiguração de Jesus (Me 9,2-8). Aí também se dá uma teofani~ da Trindade santa: o Pai
fala a partir do Céu; Jesus transfigurado é declarado o Filho amado; e o Espírito é insinuado (como
viram os Santos Padres) pela nuvem (v. 7), que ensombreia Jesus, como. aparece mais claramente
8
na Anunciação em relação à Maria. "O Espírito (aparece) na clara nuvem", diz Sto. Tomás.
----~ / --~ ~ k, '\,)o._: c;"I......_, ... 'Y"'..Jc. ('~ t, _ ~I t ~....... ..... ""~ d.J._ ~ ••
4) Fórmulas trinitárias no NT

4.1. Nos Evangelhos. Vimos que Jesus fala do Pai, do Espírito e de sua íntima relação com os Dois,
especialmente em João, no discurso de despedida. Mas a única fórmula trinitária está cm Mt
28, 19: "Ide... batizai em nome do Pai, do Fi lho e do ES". Reflete uma prática batismal da Igreja
1
primitiva, como testemunha a Didaqué (± 120) e Justino (± 160). O "em nome de" significa:
J consagrando a .. ., entregando a ... O Batismo é o máximo ato de consagração e de entrega.

4.2. Em S. Paulo. É o autor do NT que mais usa fórmulas trinitárias. Veja as 5 seguintes:
• "A graça de NSJC, o amor do Pai e a comunhão do ES..." (2Co 13,13). É hoje, uma das
saudações na abertura da missa.
• "Há diversidade de carismas, mas um só é o Espírito ; há diversidade de ministérios, mas um só e
mesmo é o Senhor; há diversidade de operações, mas um só é Deus ..." (1Co 12,4-6).
• "É por Ele (JC) que temos acesso ao Pai num mesmo Espírito" (Ef 2, 18).
j._\.. ~m íy~ dL. J""'-", L( ..t........,~ .... -r-- k -G:.,,.t,:.,t. ~.JG, .
8 Suma Teológica(= ST) III , q. 45, a. 4, ad 2, cit. por JOÃO PAULO 11, Vita Consacrata, 19, 1, nola 33.
10
• "Deus enviou a nossos corações o Espírito de seu Filho (Jesus), que clama: Abba, Pai" (G I 4,6).
• "Se o Espírito d 'Aquele (Pai) que ressuscitou Jesus dentre os mortos ..." (Rm 8, 11 ).
Obs.: S. Paulo tem ainda mais de uma dezena de textos com uma estrutura trinitária: GI 3, 11-1 4 ;
2Co 1,21-22; 3,3; Rm 14,17-1 8, 15, 16; 15,30; FI 3,3; 2Ts 2, 13-14; Ef2,20-22; 3,14-1 7; Tt 3,4-6.

4.3 . Outros autores do NT


• Hb 6,4: "Os que ... participaram do Espírito Santo, saborearam a excelente Palavra de Deus (Pai)
e em seguida renegaram a fé, crucificand o de novo e expondo ao escárnio o Filho de Deus ... "
• lPd 1,2: "Aos eleitos segundo os desígnios de Deus Pai, pela santifi cação do Espírito para
obedecer a JC. .. ";
• Jd 20-2 1: "Orai no ES, permanecei no amor de Deus, ponde vossa esperança na misericórdia de
NSJC. .. ";
• Ap 1,4-5 : "Graça e paz da parte d 'Aquele que é, que era e que vem, da parte dos Sete Espíritos
que estão diante de seu trono e da parte de JC, a testemunha fiel..." ; etc.

5) Representações da Trindade no Apocalipse

5. 1. Ap 4-5: a corte celeste


Encontramos aí uma belíssima representação da SS. Trindade. p._t.. .,,: ~
1. Aí o Pai aparece como o grande "Sentado": está num trono majestoso, cheio de beleza e de
glória, cercado por 24 Anciãos e sustentapo por quatro Seres vivos, que repetem sem cessar o
trisagh ion .
2. Depois se vê o Filho representado por um Cordeiro, "de pé", "no meio do trono" e com o poder
de abrir o "Livro dos sete selos"; ele recebe a adoração dos 4 Seres vivos, dos 24 Anciãos e das
miríades e miríades de anjos;
3. Por fim , "diante do trono" do "Sentado" e do Cordeiro, "ardem Sete lâmpadas de fogo, que são
os Sete Espíritos de Deus" (5 ,5; cf. 1,4), símbolo do Espírito Santo na plenitude de seus 7 dons
(cf. Is 11 ,2-3 ). O grande Candelabro de 7 braços - a menorah judaica - tomou-se aqui símbolo
do Espí rito. ( ~ .fW , ~ .e...... ,.,k. ~- ; ~ +- L. ~~ ""...,K;-, ~) 1 1- '-\-= 1- \
. 1 }. l<\ ,.. ,, \
5.2. Ap 22: a Trindade no mundo consumado .
Um segundo quadro da Trindade está no último cap. do Apocalipse, quando se fala do
"Novo Céu" e da "Nova Terra". Aí o Pai aparece simplesmente como Deus, ·o Filho como o
Cordeiro e o ES como "um rio de água viva, brilhante como o cristal e jorrando do trono de Deus e
do Cordeiro" (22, l ) - rio que confere uma maravilhosa produtividade à "árvore da vida" (v. 2).

Concluindo a explanação bíblica

A Trindade na Bíblia antes de ser uma doutrina a ser ensinada e refletida, foi uma
experiência (subjetiva) de fé e, antes ainda, fo i urna história (objetiva). Portanto, antes de ser
teologia, a Trindade fo i em particular anúncio: foi pregada em termos de kérygma. Foi, cm seguida,
liturgia: foi louvada em termos de doxologia.
Como se vê, o mistério trinitário se manifesta em três momentos, ligados entre si:
a) momento da revelação na história, "através de palavras e fatos , intimamente conexos entre si"
(DV 2);
b) momento da experiência de fé, através da confissão de fé, do culto, da missão e da prática de
vida;
c) momento da formulação doutrinária, através de declarações dogmáticas e elaborações
teológicas.

Eis como se poderia representar toda essa articulação:

lI
----
{Y- 11\ \\.. """ \G

REVELAÇÃO
NA HISTÓRIA

Assim, a definição dogmática e a reflexão teológica sobre o Mistério divino vieram


bastante tarde. Na Bíblia não encontramos tanto uma doutrina da Trindade, quanto uma
experiência, expressa no louvor e no anúncio da salvação operada pelos divinos Três. E, na base da
doutrina e da experiência temos uma história, vivida entre o Pai, o Filho e o Espírito Santo e deles
com os humanos. Portanto, a Trindade é antes de tudo um "mistério existencial" (Ali ança) e só
1\ depo~s é um "mistério intelectual" (problema). É uma "história de amor" antes que um "sistema
teórico". Por isso, chega-se a ela primeiro pela vida e pela doxologia e depois pela teologia.
De fato, entre os primeiros cristãos, a Trindade, antes de ser pensada, é vivida, confessada,
anunciada e mais ainda invocada, especialmente:
- nas saudações : "A graça de NSJC, o amor 'do Pai e a. comunhão no ES estejam convosco" (2Co
13, 13);
- no Batismo, que é admini strado "em nome do Pai, do Filho e do ES" (Mt 28, 19);
- na Eucaristia, onde se costuma orar ao Pai, pelo Filho no ES, como confirma S. Justino pelos
meados do séc. li;
- e (podemos acrescentar) nas Profissões de fé, especialmente no Batismo, as quais deram origem
ao nosso "Simbolo dos Apóstolos".

111 A TRINDADE EM DOCUMENTOS DA IGREJA 1


Considerações prelinúnares

l . Com o dissemos, toda formulação dogmática deve ser entendida como um momento bastante
tardio do Mistério da fé. Vem efetivamente em terceira posição. Antes vêm a· .experiência da
Trindade, sua celebraçãO e seu anúncio. É ao serviço de tudo isso que está o dogma.

2. Contrastando com a mentalidade moderna, que "não sabe mais o qu~ é a verdade" (A. Marl aux),
a Igreja Antiga era ciosa da verdade da fé e lutava por ela de maneira tão encarniçada que exagerou,
anatematizando os "inimigos da fé", o que gerou mais tarde a Inquisição, as Cruzadas contra os
hereges e as Guerras de religião: Contudo, continua verdade o que disse Platão: "O espírito humano
só encontra alimento adequado no prado da verdade". E Sta. Terezinha:: "Só posso me ali mentar da
verdade." Se, como ensina a Bíblia, verdade é emet ', isto é, consistência, a Igreja só pode produzir
palavra~ e ações consistentes quando se baseia na verdade granítica da fé.

3. A confissão da Trindade é, desde os Padres antigos, a regula fidei (Te~liano e Agostinho) ou


regula veritatis (lrineu) . "A fé de todos os cristãos consiste na Trindade" (S. Cesário de A rles). A
confissão trinitária é o "cabo triplo, irrompível, de que depende toda a Igreja e que a sustém"

12
(Orígenes). 9 Eis a propósito o vigoroso testemunho de Sto. Ambrósio: "O que há de mais potente do
que a confissão da Trindade, cotidianamente celebrada pela boca do povo todo? Todos rivalizam de
zelo em professar sua fé. Eles sabem proclamar em versos o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Eis,
pois feitos mestres aqueles que podiam apenas ser discípulos."' º

1. Símbolo dos Apóstolos

- Por que esta expressão? "Símbolo", porque sinal distintivo do s cristãos e, por isso, sinal de união
(sym-balein) que provém de uma única fé. "Apostó lico", porque sua doutrina remonta à pregação
dos Apóstolos, corno está consignada nos Atos e nas Epístolas. É o sentido da lenda, contada por S.
Rufino (+41 O), de que os Apóstolos, antes de se dispersarem em missão pelo mundo, teriam , cada
um deles, enunciado um artigo, cuja seqüência formaria o Credo atual.
- História. O Credo nasceu de primitivas confissões de fé, em forma interrogativa, feitas no
momento da tríplice imersão batismal ( cf. Mt 28, 19). O primeiro Credo fixo, meio oficial, em fonna
declarativa, aparece em Roma em tomo de 180, primeiro em grego, depois em latim. Combina a fé
na Trindade e a fé em Cristo, com sua vida terrestre e principalmente com sua morte e ressurreição.
Na segunda mt:tade do século IV, se incluem no Credo a descida aos infernos e a comunhão dos
santos, verdades essas vindas do Oriente. A forma atual j á se encontra fixada pelos anos 600.
Depois se espalha pelo mundo cristão graças à uniformização litúrgica de Carlos Magno.
- Uso na catequese. Primitivamente exigia-se a tríplice confissão na Trindade antes do Batismo.
Com a prática do catecumenàto (desde o séc. IV), o C redo era "entregue", como dou trina esotéri ca,
submetida à "disciplina do arcano", para ser e'ntendido e recitado de cor, individualmente, diante do
bispo. Daí também sua formulação no singular: "creio", expressão de que cada um deve professar
em primeira pess.oa sua fé, sempre, contudo, em união com os irmãos.
- Estrutura trinitária: 1) Deus+ Pai e Criador; 2) Jesus Cristo + F.ilho e Redentor; 3) Espíri to Santo
+ na Igreja para o perdão e a ressurreição. 11 ·
( '\) • 1 l

"Creio ~j., r-- '-4..;,. 1,.n,\Jl...,, i':--1 ~ ,1...ri ~ ., .......~..- ~ J.[


- em Deus"Pai todo-poderoso, CriadÓr do céu e da terra; J~ ~................ l.o- '"",._. 'f--.1-J. ~.
- e em Je~ Cristo, seu único Filho, nosso Sef!ho?, que foi concebido pelo poder do Espírito Santo,
na~ceu da Virgem. Maria; padeceu sob Pôncio Pilatos, foi crucificado, morto e sepultado; desceu à
mansão dos mortos; ressuscitou ao terceiro dia; subiu aos céus; está sentado à direita de Deus Pai
todo-poderoso; donde há de vir a julgar os vivos e os mortos;
r- ~~~ '~ .(
- creio no Espírito Santo, na santa lgreJ·a católica, na comunhão dos santos, na remissão dos -
pecados, na ressurreição da carne, na vida eterna. Arrlém. ,.. ~
~-:. ~
~ ~ 4-<.._:.
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l.....!....~~-=-~~~~-=-~:--~--'--:-:-~~~~~~~~..:p'-"...,._~~+-'""-..1.LT"'Y'-.,_.,,_,.llJ:L.,........-.:..--~--'

~~~t-)- ~~~.._,.~t..--~- ~S , 0....,.Lh ~•


2. Símbolo do Concilio de Constantinopla (38 1)

Convocado pelo imperador Teodósio 1, reuniu 150 bispos, todos orientais, a fim de com bater
restos do arianismo e do apqlinarismo (Cristo não teria alma humana), mas especialmente os
pneumatômacos (que combatiam a divindade do ES) ou "macedonianos" (seu chefe era o próprio
bispo de Constantinopla, Macedônio). Retoma o Credo de Nicéia (325), reafirm ando ass im a
divindade de Cristo, agregando alguns detalhes e ampliando a confissão de fé no Espírito Santo,
compreendido, Ele também, co~o Deus:

"Cremos em um só Deus, Pai todo-poderoso, criador do céu e da terra, de todas as coisa'>


visíveis e invisíveis.

9
Ap. Franz COURTH, Dios, amor trinitario, Col. AMATECA Vl, EDICEP, México/Santo Domingo/Valencia 1994,

· PoSermo contra Auxentium: PL 16, 10 t7-1 0 18.


11
C f. P. NAUTIN, Je crois à l'Esprit Saint dans la Saiote Église pour la Réssurrection de la chairc, Étude sur
l' histoire et la théologie du Symbole, Col. Unam Sanctam 17, Cerf, Paris 1947 (69 pp.).
13
(Cremos) em um só Senhor, Jesus Cristo, Filho unigênito de Deus, nascido do Pai antes de
todos os séculos, luz de Luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro; gerado, não criado,
consubstancial ao Pai. Por meio d' Ele foram feitas todas as coisas; que por nós, homens, e para
nossa salvação desceu dos céus e se encarnou por obra do Espírito Santo e de Maria a Virgem, c se
fez homem. Por nós foi crucificado sob Póncio Pilatos, padeceu e foi sepultado e ressuscitou ao
terceiro dia, segundo as Escrituras, e subiu ao céu; e está sentado à direita do Pai, e de novo há de
vir, com glória, para julgar os vivos e os mortos; e seu Reino não teráfimj~ ~
1
(Cremos) no Espírito Santo, que é Sr:._nhQr e dá a vida ... (zÔôpoi&n }, que procede
(ekporêuomenon) do Pai, que com o Pai e o Filho é adorado e glorificado, que/alou p elos profe~as. k. M.
(Cremos) na Igreja, Uma, Santa, Católica e Apostólica. Professamos um só Batismo para ~ """"" -
remissão dos pecados. Esperamos a ressurreição dos m ortos e a v ida do mundo que há de vir. ·
Amém.' 112 ~ ·~

Obs.:
Constantinopla detalha e desdobra Nicéia, como se vê pelas partes em itálico. É, sobretudo ,
a pneumatologia que ganhou um desenvolvimento parti cular:
l) O ES é "Senhor" = nome divino, reservado à YHWH (cf. Catec. da lgr. Cat. 209), além de ser
nome de pessoa viva.
2) "Dá a vida": cf. Jo 4,10: "Dom de Deus ... água viva"; e Jo 7,37-39: "Rios de água viva ... falava
do ES ... ".
3) "Que procede do Pai": Jo 15,26. Só mais tarde a Igreja ocidental acrescentou "e do Filho", como
dedução doutrinária lógica, embora ilegítima (proibição canônica).
4) "Com o Pai e o Filho é adorado ...": a partir da prática litúrgica deduz-se a con-substancialidade
do ES em relação ao Pai e ao Filho. A. Ganoczy fala em "sinontia", coexistência.
5) "Ele que falou pelos profetas": já atuava no AT; no NT atua em "maior medida" (S. Leão
Magno), tanto em extensão (sobre todos) quanto em abundância (há plenitude de oferta).

NB: sobre o vocabulário trinitológico:


- Fazer= produzir de matéria preexistente. Ex.: de uma tábua, fazer um banco.
- Criar = produzir do nada. Ex.:. Deus cria o mundo - do nada.
. \. ~'º - Gerar = produzir .de si mesmo (e da mesma espécie). Ex.: " filho d~ pe,i,xe peix~ é_; ~. ~

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""'*l) "'~..... o1 •
.~. ,.,.,...- . •
r ~-..,.. I.'"'""" ~.,,,....(, .. r .
~\;, "...,,.........- Se o mundo é realmente obra de toda a Trindade santa, então ele deve conter sinais ou
"vestígios" dela, também enquanto trindade. Não à-toa o número três, em todas as culturas, está
carregado de simbolismo, significando perfeição, plenitude e totalidade. Para os antigos (P itágoras e
Platão) e os medievais, · o três é essencialmente um número sagrado. Numero deus impare gaudet:
Deus se comp~ai com o número ímpar - diz Virgílio. E o poeta comenta que, para os
13

encantamentos, todas as ações devem ser repetidas três vezes. O três é o "número sagrado por
excelência" (Fr. H~iler). É o acabado, com começo, meio e fim. Por isso, tudo é três: tria omnia
sunt - afirma Sto. Tomá~. 14 A estrutura triádica aparece em muitas áreas:

Já na experiência quotidiana há muitas triades: passado, presente e futuro; céu, terra e


inferno; pai; mãe e tilhos; legislativo, executivo e judiciário; direita, esquerda e centro; inteligência,
vontade e memória; meninice/juventude, maturidade e velhice; eu, tu, ele, etc.

12
J. COLLANTES, op. cit., 4 .006; OH 150.
13
Bucólicas, 8,75.
14
ST III, q. 53, a. 2, e.: "Por este número (três), se significa a perfeição".
14
Nas Religiões em geral, além das tríades divinas, há outras triades. Fiquemos apenas com
duas grandes religiões: o Cristianismo e o Hinduísmo.
1) Cristianismo. Conhecemos os 3 Reis magos, as 3 virtudes teologais, os 3 votos monásticos, os 3
apóstolos mais íntimos de Cristo, os 3 estágios depois da morte (céu, inferno e purgatório), os 3 dias
da Semana Sta., os 3 dias da morte de Jesus, os 3 céus 15, as 3 vias do caminho místico: purgativa,
iluminativa e unitiva, etc. Fazer 3 vezes a mesma coisa é um rito usadíssimo na liturgia cristã (3
cruzes, 3 apelos, 3 toques, etc.), como, aliás, nos mais diversos ritos.
2) Hinduísmo. Aí existe uma infinidade de tríades sagradas: as 3 letras de A-U-M , os 3 Vedas, os 3
fogos do sacrifício, os 3 mundos, as 3 fórmulas sacras (Bhruh, Buvah e Svah, indicando a terra, a
atmosfera e o céu), os 3 gunas ou qualidades constitutivas do universo ; o tríplice " espírito vital", os
3 escopos da vida (trivarga) , os 3 caminhos de realização religiosa: do conhecimento Unana- ...
marga), da ação (kharma-marga) e da devoção (bhakti-marga) , etc. - ~ --~ L~ 1'-"t---J-) • ç.._ t-L,,.,,.,u-ll~
1.i• ~ c-11>o<--~ 1 ""-'~.r.-Y.\ '- ~ l ~) 0 ; ,._._.._.,.. L r ·~ W... •
Conclusão
Se o Criador é triúno deve ter deixado suas pegadas igualmente triúnas em sua Criação.
Contudo, devido à "desproporção infinita" entre Criador e criatura e por causa do caráter mi s terioso
de Deus, "nunca se pode ,pôr, entre o Criador e a criatura, mais semelhança que dessemclhança",
como ensinava 'o IV Concílio de Latrão (1215) (OS 806). Ou seja, entre Deus e o mundo a di fercn ça
émaiorqueasemelhança. 7 ~ ~~\ .
Também a respeito dos números l e 3 aplicados a Deus, devemos dizer que não se trata de
matemática, mas de matemática analógica ou de meta-matemática. É um pouco como os pitafóri cos
entendiam os números, atribuindo-lhes um valor mais que quantitativo : também qualitativo.'
Declara o XI Sínodo de Toledo (675): "A Santa Trindade ... nem se afasta do número, nem é
presa pelo número. ( ... ) Nas três pessoas não pode existir plural" (vários deuses) (OH 530). 17 Na
mesma linha afirmava o Mestre Eckhart: "Deus ... propriamente não está submetido a núm ero. Pois
é uno sem unidade e trino sem trindade. ( ... ) Como Ele transcende todo nome, transcende
18
igualmente todo número". O grande pensador Moisés Maimônides (+ 1204), judeu que era,
mostrava-se ainda mais radical : "Um e muitos são categorias quantitativas, sendo, por isso. tão
inaplicáveis a Deus com são o curvo e o reto em relação à doçura, ou o ,salgado e o insípido em
relação à voz. " 19 ~ -l ci ·~ ' ,..._._ ~-.. 4 ~"-k. l e, • SO)..:. c..~,.,,..;.;t. ,.._,.) ·

1V. TRINDADE: REFLEXÃO SISTEMÁTICA 1 ,~~""' ~ ......


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1. CAUTELAS METODOLÓGICAS ~~- u . ír'~· !\..-. ~ ,..,....':!-_
~~-~.·~~.
l) Modéstia intelectual , \v._.....\~
Quando se fala da Trindade, deve-se proceder com extremo "cuidado e modéstia", como
recomenda Sto. Tomás. Pois se trata do "Mistério dos mistérios", que está além de todos os
conceitos e palavras. Sto. Agostinho diz ~ue a Trindade é o tratado "mais laborioso, mais perigoso,
2
mas ao mesmo tempo o mais frutuoso" • Mostrando a extrema inadequação de nossa linguagem
para falar desse Mistério supremo, ele declarava que nossos conceitos sobre a Trindade são " partos
1
de nossa indigência", forçada que é a usar palavras humanas.2

is O céu dos astros: firmamento; o céu cristalino : dos santos; e o céu empíreo: de Deus.
16
Cf. René GUÉNON, Le rcgne de la quantité et les signcs des temps, Gallimard, Paris 1945, p. 10- 12.
17
"Saneia Trinitas... nec recedic a numero, nec capitur numero . ... ln tribus p ersonis non possic esse plurale ".
18
"Deus... ab omni numero proprie eximitur. Est enim unus sine unitate, trinus sine trinitate. E assim como é "super
11omen ", Deus também é "super numerum. ": Sermão XI, 2, l l 8.
19
O guia dos perplexos, I, 57.
20 De Trin. , I, 3, cit. por Sto. TOMÁS, ST, l, q. 31 , a 2, c.: Necpericulosius alicubi erratur, nec laborosius quaeritur,

nec fructuosius invenitur.


21
Op. dt., VII, 9: loquendi necessilate parta haec vocabula, por causa da humana inopia.
15
A própria palavra "trindade" não se acha no NT. O primeiro uso grego desse tem10 (trias)
foi feito em grego por Teófilo de Antioquia pouco depois de 180. 22 No Ocidente, Trinitas aparece
pela lª vez em Tertuliano pelos anos 212-2 13 e apenas (com uma só exceção) no Adversus Praxeam
23
(9 vezes). Orígenes (+ ca. 253) usa muitas vezes Trinitas nas obras conservadas em latim e só 3
vezes Trias no que nos restou de suas obras cm grego.

2) Linguagem analógica
Embora devamos ser discretos, temos, contudo, que falar do Deus triúno . Poi s, se a Trindade
é inefável, ela é também "falável". Diz S. Cirilo de Jerusalém (+386/7): "Acaso porque sou incapaz
de esgotar o rio, não posso tomar da água que deseje? E se meus olhos não podem abarcar todo o
sol, por acaso não posso vê-lo na medida em que precise? Ou se entro num grande jardim e não
posso comer todos os seus frutos; pretendes que eu fique com fome? Eu adoro e exalto o nosso
Criador, pois a ordem divina reza: 'Tudo o ~ue respire, louve o Senhor' (SI 150,6). Ora, o que
pretendo é glorificar o Senhor, não explicá-lo." 4 ·
Ao falarmos da Trindade, devemos, cm prim eiro lugar, ter uma aguda consciência de que
nossa linguagem é puramente analógica: falamos apenas por evocações, símbo los, alusões - meras
indicações que orientam - 11penas isso - a mente para esse Abismo de vida, luz e felicidade que é a
Trindade, sem nunca poder compreendê-la com nossa· mente limitada.
Depois, tendo que falar da Trindade, é precfao ·se conformar com a linguagem da Igreja, que
aqui faz lei. Agostinho assevera: " É para nós uma norma sagrada falar de acordo com uma regra
determinada, para que a liberdade da palavra não gere uma opini ão ímpia também cm relação às
realidades que a palavras querem significar." 25 Jerônimo emenda: " É pelas palavras proferidas de
26
modo desordenado que se cai na heresia."

3) Amor. É só com um coração novo, cheio de amor, é podemos saber e sentir verdadeiramente o
1( Mi stério da beatíssima Trindade. É o "conhecimento por conaturalidade" (Sto. Tomás), pelo qual
"só o semelhante conhece bem o semelhante", como tinha visto Empédocles. Portanto, só com a
experiência do amor é que podemos acolher em nós a Trindade, senti r seu abraço beatificante.
Então, sim, podemos dizer algo de vivo sobre o Mistério augustíssimo, ainda que balbuciando.

.2. ARTICULAÇÕES EQUIVOCADAS


27
Há algumas concepções da Trindade que se revelaram na história como heréticas. A
primeira vai contra a unidade de Deus (triteísmo) e as outras três vão contra a trindade de pessoas
(formas erradas de monoteísmo) . Ei-l~s:

1) Triteísmo. Haveria três deuses bem distintos, cada qual eterno e infinito. Aqui se garante a
pluralidade, mas se destrói a unidade. Não há na Igrej a representantes assumidos do triteísmo, mas
apenas teologias trinitári as que pendem para o triteísmo .

2) Modalismo. Seria uma forma de monoteísmo. Para o modalismo, haveria um só Deus, mas
aparecendo sob três modos ou funções. Seria como um mesmo autor, fazendo três papéis ou usando
três máscaras. Assim, a m esma pessoa de Deus se manifesta como Pai Criador, depo is como Filho
Redentor e 1 enfim f como Espírito Santificador. lsso se chama também sabelianismo, do fautor dessa

22
Cf. Ad Autolicum , 1. II, 15.
23
Cf. B. SESBOÜÉ (dir.), História dos dogmas, Loyola, São Paulo 2002, t. 1, p. 142. Práxeas era paLripassiano (o Pai
teri a sofrido na cruz).
24
Ap. Franz COURTH, op. cit., p. 151.
25
De Civ. Dei, X, 23 (cit. também em DH 283 1).
16 •
- Ap. Sto. TOMAS, ST, !, q. 3 1, a. 2 , e
27 Cf. os resumos de L. Boff, A Trindade, a sociedade e a liberta ção, op. cit., tese 5, p. 2 17-2 18; e de B .

KLOPPENBURG, Trindade: o amor cm De us, Vozes, Petrópolis 1999, p. 59-6 1.


16
teoria, Sabélio, excomungado pelo Papa Cali sto em 217. Uma doutrina derivada do sabelianismo é
o "patri -passianismo", segundo o qual foi o Pai que so freu na cruz sob a fonna ou a imagem do
Fi lho. O erro do modalismo é não garantir a trindade de pessoas, realmente distintas .

3) Subordinacionismo. Seria outra forma de monoteísmo. Aqui se admite um só Deus, o Pai, mas
o Filho e o Espírito receberiam d' Ele toda a sua realidade, ficando a Ele subordinados. Aqui se
inclui, seja o arianismo, para quem o Filho é como um vice-deus, seja o macedonismo, para quem o
Espírito Santo é apenas uma energia de Deus. Aqui não fica assegurada a igualdade consubstancial
dos divinos Três.

4) Unitarianismo. É ainda outra forma de monoteísmo, essa mais recente. Seus maiores
representantes são Michel de Servet (+ 1553), condenado à fogueira por Calvino, e F. Soci no
(+ 1604).

3. DETERMINAÇÃO DE CONCEITOS CENTRAIS EM TRINITOLOGIA


28
1) Natureza

Na teologia trlnitfuÚ, é sinônimo de "substância" e de "essência". Só que o conceito de


"natureza" inclui uma conotação particular: a de ser "princípio operativo" ou "de ação". Natureza é /1
em concreto a "divindade", com todos os seus atributos essenciais: onipotência, sabedo ri a, amor,
etc. Portanto, "natureza" diz o elemento comum dos Divinos T rês, aqui lo que consti tui sua unidade.

2) Pessoa 29

Boécio transmitiu aos pósteros esta definição: "Realidade individual de natureza racional"
(Rationalis naturae individua substantia) . Em resumo, pessoa é um indivíduo racional, um
"sujeito", um "eu" ontológico, e não meramente psicológico.

Cuidado, pois, para perceber a diferença imensa que exi ste entre a concepção ontológica
(objetiva) de pessoa (como "subsistente distinto'', "sujeito espiritual" ou "indivíduo racional",
mesmo em potência), que é a concepção clássica; e a concepção psicológica (subjetivista) de
"pessoa" (como "ser consciente" e auto-detem1inado cm ato), que é a concepção moderna. 30 Esta
distinção é importante para a discussão sobre o aborto (o nascituro já é pessoa?) e a eutanásia (o
ancião que perdeu a consciência é ainda pessoa?). precisa fi car claro que não é a consciência de si l \> lt
que constitUi a pessoa, como querem os modernos." A consciência é apenas uma expressão tardia e

28
Cf. Xavier PIKAZA e Nereo SILANES (dir.), Dicioná rio teológico o Deus cristão, Pa ulus, São Paulo 1998:
" Na1ureza", por J. M . Rovira Belloso, p. 613-6 18; L. BOFF, Trindade e sociedade, op. cit.m p, 111-113.
29
Cf. X. PIKAZA e N . SILANES (d ir.), op. cit., "Pessoas divinas", por J. M Rovira Belloso, p. 699-708; L. BOfF,
Trindade e sociedade, op. cit. , p. 113-117; IDEM, O destino do home m e do mundo, Vozes, Petrópolis 1973, p. 54-
57. Para o conceito de pessoa, ver ainda: Battista MONDIN, Definição filosófica da pessoa humana, EDUSC, Dauru
1998; Ch. SCHÜTZ e R. SARACH, O home m como pessoa, in Mysterium Salutis, 11/3, p. 73-89; Crescen.zio SEPE,
Pcrsona e storia: per uma teologia dclJa persona , Paoline, Cinisello Balsamo (MI), 1991 ; A. MILANO, Pe r sona in
Teologia, ED, Nápoles, 1984; A. PAYAN e A. MILANO, Persona e personalismo, ED. Nápoles, 1987: Maurice
NÉDONCELLE, Personne humaine ct nature : étudc logique e! métaphysique, Montaigne, Paris 1963 ; IDEM, Ver s
une philosophie de llamour et de la personne, Aubier, Paris 1957; IDEM, lntcrsubjcctivité et ontologic,
Nauwelaerts, Louvain 1974; Emmanuel MOUNIER, Lc Personalismc, Paris 1949. Para a aplicação do concei10 de
"pessoa" na Trinito logia, cf. a tese d outoral de D. C irilo Folch GOMES, A doutrina da eterna trindade: a significado
da expressão " três pessoa", Lúmen C hristi, RJ 1979.
JO Cf. K. RAHNER, " Deus trino ... ", in Myst. Sal., 11/1, p. 348. A concepção de pessoa como consciência vem desde
Descartes e seu cogito, desabrochou no idealismo alemão, se prolongou na "vontade de po tê ncia" de Nie tzsche e
desaguo u na definição existencialista do home m como libe rdade.
17
Pessoa, como " indivíduo racional", conota duas coisas: s ubstân cia e relação ; imanência e
transcendência; autonomia e abertura; auto-afimlação e auto-doação; liberdade e amor ;
singularidade e comunicação. Explicitemos essas duas dimensões entrelaçadas de "pessoa".

2. 1. Singularidade: "eu sou eu, e não outro~'


Pessoa é um ser único, irrepetível, insubstituível, incomparável. Cada um é um "mundo em
si" e não apenas membro de um organismo ou pedaço de um todo. Por isso, uma p essoa é mais
importante que qualquer elemento do cosmos. Transcende a história (OH 4580) e mesmo o cosmos
inteiro (Pascal).
"O homem é a única criatura na terra que Deus qui s por s i mesma" (GS 24,3; MD 7). Como
pessoa, cada um é um "absoluto". Por isso a pessoa "deve ser tratada sempre como fim, nunca como
meio" (Kant). A pessoa não é ,produto fortuito e anônimo da evolução, mas fruto de um amor
pessoal e livre. A "ovelha perdida" não é apenas uma cabeça sobre cem, mas é única e conta como
um " universo" para o "Bqm ·pastor". Assim também para uma mãe, cada filho é único e não um
filho a mais, de ºmodo que se ,pÓde dizer que ela ama cada filho mais que todos os outros.
· Pessoa não é "o homem" em geral, mas "este homem aqui" em particular. É um ser que tem
um nome, um rosto e um coração. Quando se mede e se objetiva um ser humano, como fazem as
ciências humanas, não se capta sua realidade profunda, seu ser-pessoa, mas tão-somente sua função .
A pessoa humana é um mistério e só pode ser compreendida no respeito, no acolhimento e no amor.
Para Duns Scotus pessoa é a "última solidão". É a identidade insondável e misteriosa de
cada um, simbolizada no "coração" e seus segredos. Como " última solidão", a pessoa é, em seu
fundo mais fundo, incomunicável. E la não se pode entregar totalmente a não ser para Deus. Mesmo
na auto-entrega mais plena a outro, como no casamento, permanece um fundo irredutível, uma
o. hi ança humanamente impreenchível.
-
~--

2.2. Abertura: "eu me dou a mim mesmo"


Pessoa é, em segundo lugar, abertura à realidade total. Essa abertura, constituti va da pessoa,
é tridimensional : é relação ao Transcendente, ao semelhante e às coisas. A relação ao T ranscendente
funda as duas últimas. Pois, só coram Deo (diante de Deus) ~ · homem 'se torna pessoa (Kierkegaard
e Guardini). E só a partir daí ele se relaciona corretamente com os semelhantes e com o mundo.
Portanto, ser pessoa é se relacionar, é dialogar. É, em suma, amar, em primeiro lugar a Deus,
depois aos irmãos e irmãs. Somos tanto mais pessoais quanto m ais amamos verdadeiramente. Por
isso mesmo, o ser humano só se realiza quando se faz dom, entrega, oferenda. Por isso, a Gaudiurn
et Spes completa a definição de pessoa, como valor em si, dizendo que o ser humano " não pode se
encontrar plenamente senão por um dom de s i mesmo" (nº 24,3).
Mas para que haja uma relação verdadeiramente humana é preciso que parta de um "suj eito"
da relação, um sujeito livre e autônomo. Seria, pois, mutilador e redutivo definir o homem como
mero ser de relação (Hegel) , como simples "nó de relações" (Saint-Exupéry) o u ainda como
s implesmente "o conjunto das relações sociais" (Marx) . Como veremos logo, só nas pessoas divinas
o sujeito coincide com suas relações, não nas pessoas humanas. 32

Resumindo: pessoa é uma realidade rica, sintética e paradoxal: impli ca uma


incomunicabilidade (ontológica) e uma comunicabilidade (existencial ou intencional). Ser pessoa é,

31 Se a auto-consciência fosse o constituti vo do ser pessoa, teríamos a seguintes aberrações: Jesus teria duas pessoas e a
Trindade, uma só ! A isso conduziria a tentativa de Anton Günthcr (+ 1863) de definir a pessoa como auto-consciência
ao modo de Hegel. . ·
12
• Foi Hegel quem colocou em destaque a idéia de pessoa corno relação ou esse ad aliud: ap. PANNENBERG, Esquisse
d ' une christologie, Cerf, Paris 197 1, p. 22 1-225 . Mas ela nada mais faz que desdobrar a idéia de racionalidade, que é
sempre abertura ao mundo , sendo, portanto, complementar à idéia de substância autônoma.
18
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ao mesmo tempo, "ser em si" e "ser para o outro". É ser subsistente e ser relacional. É, em concreto,
se auto-afirmar e se auto-entregar. A primeira dimensão é a base da segunda, pois, só posso me dar,
se me tenho. Mas a segunda consuma a primeira, pois, só me tenho realmente quando me dou
("quem se perde por mim se encontra": Me 8,35 e par.).
Portanto, o ser humano só se realiza quando realiza cm conjunto a liberdade e o amor. Se ele
desenvolve somente a liberdade, sem amor, acaba no egoísmo e na dominação; se desen vol ve só o
amor, sem liberdade (por impossível), acaba na alienação e na sujeição. Na frase "eu me dou" estão
condensadas essas duas dimensões constitutivas da pessoa: o "eu" e o "me": 1) o "eu" que se dá
ativa e livremente; e 2) o "me" que é o eu dado no amor.

Aplicação analógica de " p essoa" à Trindade

O conceito de "pessoa", como todos os conceitos, é analógico quando aplicado à Trindade.


Como cm todo conceito analógico, pessoa diz de Deus algo de semelhante ao homem e algo de
diferente (sendo que a diferença é maior que a semelhança) . Assim, a pessoa humana "o que há de
mais perfeito cm toda a natureza", "pessoa" vale para Deus apenas " em sentido eminente", também
porque se chamam persol'}ae (personalidades) os dignitários e celebridades, como diz Sto. Tomás
(ST 1, q. 29, a. 3) ..Diríamos: Deus não é simples pessoa (nisso insistem os hinduístas). Ele é, antes,
super-pessoa! Ele é.tri-pessoal.

Além disso, no ser humano, é a pessoa que funda a relação (a qual supõe uma substância
prévia), enquanto que na Trindade é o contrilio: é a relação que funda a pessoa. A pessoa divina é
uma "relação subsistente" (Sto. Tomás). No homem há, primeiro, um pólo de relações, um sujeito
portador de relações. Assim, temos antes um homem (substância ou realidade), que, em seguida, se
toma pai (relação). Já na Trindade, o sujeito portador das relações não é uma pessoa previamente
constituída, mas é a própria relação. As pessoas di vinas são relações, enquanto as pessoas humanas
têm relações.

Na Trindade, as duas dimensões do conceito de pessoa coincidem: sujeito e relação, ou sej a:


liberdade e amor, ou auto-possessão e auto-entrega. Cada pessoa divina é uma relatia substantialis
(Leiniz), sendo que cada pessoa é pessoa somente na e pela relação com as outras. O Pai só é Pai
em relação ao Filho no Espírito. f'.ora dessa entrega de amor, o Pai não ·é nada. "O Pai comunica
tudo ao Filho, menos ·a paternidade. " 33 Portanto, na Trindade, pessoa é pura abertura, comunicação
absoluta.

Enfim, mesmo quando em sua aplicação a cada uma das pessoas divinas, o conceito de
pessoa é ainda analógico. Uma coisa é a pessoa do Pai, outra a do Filho. e outra ainda a do ES, e isso
não só numericamente (o que é evidente), mas qualitativamente. Pois, como o Espírito é pessoa e
bem diferente de como o Filho é pessoa e como o Pai é pessoa. Assim, a pessoa do Pai é sua relação
(de paternidade) com o Filho, e vice-versa. Já a pessoa do Espírito Santo não é apenas a relação
com o Pai e com Q Filho, mas é a " relação das relações" entre o Pai e o Filho, sendo o Sopro
comum dos dois (Filioque).
34
3) Pericórese

É a interrelação ou entrelaçamento que existe entre as Três Pessoas divinas. É um termo


grego (perikhóoreesis = circu-lação) que os latinos verteram por circumin-Ç_essio (com " e") e às
vezes por circumin-~essio (com ''s").

<
33
Cf. AA. VV., Sacrae Thcologiae Summa, Madri 1955, BAC 90, t. II, p. 424.
34
Cf. L. BOFF, Trindade e sociedade, op. cit., p. 121-122 e 169- 172; X. PIKAZA e N. SILANES (dir.), Dicionário
teológico o Deus crislão, Paulus, São Paulo 1998: Perlkhóresis, por S. dei Cura Elena, p. 694-699.

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- A primeira palavra tem uma conotação mais dinâmica. lndica "um com o outro" ou ainda "um
para e pelo outro". Poder-se-ia traduzir como enlace, intercomunhão, mútuo envolvimento, abraço .
- A segunda palavra é mais estática. Indica "um no outro". Poderíamos traduzir como inabitação
mútua, imanência recíproca, inerência, in-existência.
Em suma, pericóoreesis indica a comunhão profunda de vida, amor e felicidade que existe
entre os Divinos Três. Eis como Sto. Agostinho descreve a ~ericórese intra-trinitária: "U m cm
todos, todos em um, um em um, todos em todos e tudo em um". _5 e · ~ ~._.e. <- <ffl.L- ~
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O "núcleo duro" do dogma trinitário está nesta fórmula: "três pessoas numa natureza". A
palavra "natureza" (ousia), ou essência ou ainda substância, responde pelo que há de comum e
igual nos Divinos Três; já a palavra "pessoa" (hipóstase para os Orientais) responde p ela diferença
entre os mesmos Três Divinos.
Como poderíamos, pois, compreender, ainda que em medida mínima, a ligação da unidade
"ousiânica" com a trindade "hi postática"? Aqui, porém, devemos proceder com cuidado. "Quem
começa a numerar começa a errar" - adverte Sto. Agostinho. Pois não estamos diante de um
teorema matemático, mas de uma Realidade meta-matemática.
A tradição teológica cunhou alguns axiomas ou princípios para servirem de regra na
elaboração do discurso trinitário. Eis alguns deles:
~ 1) " Não confundir as Pessoas, nem separar a Substância". Este princíEio é tirado do Símbolo
Quicumque, que é de tradição latina e foi elaborado entre 430 e·SOO. 6
2) "Na Trindade não há nada de antes ou depois, nem de ~ aior o~ menor." Esta afirmação é ~t:-......... .
também do mesmo Símbolo.37 ~- ~ . o ?~ c..,.\-t~ "-' M....,..\h<~ . ~L . h"o 1..~c.r1--v. ~ ~--
.; 3) O Pai é o "único princípio" (monarquia) da divindade do Filho e do ES. Este princípio,
central na tradição oriental, como veremos, é aceito também na ocidental. 38
4) "Para dentro (Trindade imanente), tudo é comum, menos o qÚe se refere às relações
recíprocas." 39 Assim, cada pessoa é detentora dos vários atributos divinos (etern idade,
onipotência~ etc.); mas só o Pai é"'in-gendrado"; só o Filho é "gerado"; só o Espírito Santo é
"(r)espirado". Estes atributos, porque "hipostáticos" (ou pessoais), são exclusivos. Já os
atributos "ousiânicos" (ou substanciais) só podem ser c.omuns aos três, ainda que
".â tribuídos" a um deles como màis próprio, como: misericordioso, imenso, eterno,
onipotente, santo, glorioso, sábiot- et~. .
4
5) " Para fora (Trindade econômica), todas as ações da Trindade são comuns". Mas, embora º
produzida em colaboração, a ação pode ser atribuída a uma ·Pessoa em particular: a Criação
41
ao Pai, a Redenção ao Filho e a Santificação ao ES. Este aiioma, assim como o anterior,
pertence à tradição ocidental. Ambos.são praticamente ignorados pela tradição oriental.
6) "A Trindade econômica é a Trindade eterna e vice-versa". Este é considerado por K. Rahner
como o "axioma fundamental" (.Grundaxiom)~~ Quer dizer: uma ótica espelha a outra.
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IV
"P<-lko.
~ t ,.;:\,, \ llS]I y\) ....... ~ Df! ~'"' j ,,..fk. \ ~-
35 De Trinitate, XII, 10, l 2,
J(o O latim soa: "Neque confundentes personas, neque substantiam separantes" : DH 75, v. 4.
37
"ln hac Trinitate nihil prius aut posterius, nihil maius aut minus ": DH 75, v. 26.
38
O principio da " monarquia do Pai" mostra que existe nos Três Divinos uma "ordem", não de tempo, nem de
~randeza, mas de natureza ou, melhor, de origem eterna. Cf. Sto. TOMÁS, ST, 1, q. 42, a. 3.
9
"ln divinis omnia sunt ·unum ubi non obviat relationis opp ositio" (DH 1330: Cone. de Florença, 1442). Foi Sto.
Anselmo quem por primeiro formulou tal principio.
4
0 "Operationes divinae ad extra communes sunl lribus personis": DALMAU - SAGÚÉS, Sacrac Theologiae
S umma, Madri 1955, Col. BAC 90, t. II, p. 430. O Concilio de Latrão IV sustenta tal posição: DII 800.
41
Para a questão da atribuição, cf. Sto. TOMÁS, ST, 1, q. 39, a. 7 e 8.
42
Karl RAHNER foi quem enfatizou isso: cf. seu longo e difícil estudo "O Deus trino, fundamento transcendente da
história da salvação", in Mysterium Salutis, 11/I, Vozes, Petrópolis 1972, p. 283-359 . Para a explicação deste axioma,
cf. L. BOFF, Trindade e sociedade, op. cit., p. 124-125 e 260-262; e também J. R. GARCÍA-MURGA, Rahncr, in X.
PIKAZA e N. SILANES (dir.), Dicionário teológico o Deus cristão, Paulus, São Paulo 1998, p. 767-768.
20
--
. - , •• . '1 •"""''""

Explicando com mais rigor: a Trindade imanente (ou eterna ou ainda ad intra) se manifesta
(sem, contudo, aí se esgotar, naturalmente) na Trindade econômica (ou histórica); e a
Trindade econômica reflete (sempre de modo inadequado, embora culminante) a Tri ndade
imanente. Por outras: a Trindade econômica cabe toda na eterna, mas não vice-versa (o
"vice-versa" rahneriano é equivoco) . ~

NB: Guardar a " matemática simbólica" referente ao dogma trinitário: 1. natureza (di vina); 2.
processões (geração e espiração, fundando as duas missões ad extra); 3. pessoas (Pai, Filho e ES). A
seqüência: 4.relações, 5,noções ou características exclusivas, e assim por diante, já não tem o rigor
das noções anteriores.

5. TRÊS MODELOS DE ARTICULAÇÃO TRINITOLÓGICA

Como se articulam concretamente a unidade e·a trindade em Deus? Vejam os os três modelos
que foram seguidos na história da trinitologia: 43

1. PADRES ORIENTAIS 2. PADRES LATINOS 3. MODERNOS


- Partem do Pai, "um só - Partem da única Natureza - Partem da Comunhão entre
Deus" ou essência divina as 3 Pessoas
rincí io ousiânico). rincí io ericorético .
A Natureza Divina se - Dos Divinos Três se chega à
ersonaliza nas 3 Pessoas. unidade de natureza.
- lmagem: as "duas mãos do - Fonte com três jatos que se - Nó borrom eo: 3 cí rculos
Pai". < L '"" unem no alto entrela ados.
- Via bíblica: da História da - Via ·. lógica : da mente - Via existencial: da
Salva ão . humana. ex eriência.

· Confronto entre os modelos oriental e ocidental


1. A abordagem oriental parte de como a Trindade se revelou na História ("Trindade econômica"),
para vislumbrar como Ela é em si mesma ("Trindade imanente"). Portanto, arranca
(indutivamente) . da revelação de Deus. através da história do Povo de Deus. Nisso segu~ o
percurso· da Bíblia, enquanto História do amor eterno de Deus por nós, homens. Assim, ela
arranca sempre do Pai. Segue a " lógica histórica", dominada pela idéia da "origem".
2. A abordagem ·latina ou ocidental da Trin9ade, em base a Sto. Agostinho (De Trin. X), deu
· destaque à analogia psico-antropológica: assim como no ser humano existe o espírito ou a
mente, dotada de inteligência e de vontade, assim em Deus: há o Pai (mente ou memória), do
qual provém o Filho, que é Verbo ou Sabedoria (inteligência), assim como o Espírito Santo, que
é Amor (vontade). Eis como se trinitariza o discurso trinitário do Doutor de Hipona: Deus é: q
"mente, conhecimento e amor"; ou: "existir, conhecer e querer"; ou ainda: "eternidade, verdade e A..
caridade". 44 Essa é uma aproximação de tipo metafísico, enquanto regida pelo "pensamento do ' \
Ser", sendo, por isso mesrrio; um tanto abstrata e fria.

6. O MODELO: AMANTE, AMADO E AMOR

A terceira abordagem, privilegiada pelos modernos, já presente em Sto. Agostinho (e


também na Bíblia), é de tipo mais existencial. Ela segue o "pensamento do Amor", dominado pela
idéia de reciprocidade ou de comunhão (pericórese). Constitui, por isso, uma aproximação quente,

43 Para mais informações sobre esses 3 modelos, cf. L. BOFF, Trindade, sociedade ... , p. 14-17 e 102-111.
~~ Para este vocabulário trinitário, cf. principalmenteDe trinitate, IX, 5,8; 33; X.
21
......
~ , -····· - ...

concreta e dinâmica. Enquanto os Gregos fundam a unidade divina no Pai e os Latinos, na essência,
os Modernos, arrancando de Sto Agostinho e ajudados por Hegel, a fundam no Amor.45
Esta abordagem não exclui as duas primeiras, mas as complementa. O próprio Agostinho,
depois de ter abordado a Trindade como amor, vo lta a abordá-la segundo o esquema "mente,
inteligência e amor". Pois aqui o amor aparece como um momento (Espírito Santo = amor) e não
como o todo da Trindade (Deus = amor). Ele argumenta com razão: "Como amar o que se
46
ignora?"
Mesmo assim, convém aproveitar da reflexão trinitária que Sto. Agostinho esboçou em base
à experiência do amor.47 Efetivamente, vale para a Trindade o que esse Doutor declara alhures:
"Dá-me quem ama, e ele compreenderá. Se, porém, falo friamente, não entenderá o que quero
dizer." 48 A seguinte asserção de Agostinho nos põe in medias res: "Quando amo, existem três
coisas: o Amante, o Amado e o Amor."49 Explicitemos:

• O Pai: é o Amante que ama com amor de .iniciativa, amor desde sempre, amor silencioso,
gratuito e pleno. O que diz o Pai no Batismo de Jesus (e, em Jesus, de cada um de nós), di-lo
desde toda a eternidade: "Eis meu Filho querido, no qual eu ponho todo o meu amor" (Me l, 1 1).

• O Filho: é o Amado que acolhe o amor do Pai; é o amor que diz "obrigado". Ele retribui .o amor
do Pai com um amor-de-correspondência total (redamatio): "Ninguém conhece(= ama) o fi lho
senão o Pai e ninguém conhece(= ama) o Pai senão o Filho" (Mt 11 ,27).
1 •
• O Espírito Santo: Ele é o amor-cm-pessoa do Pai e do Filho. E o vínculo de comunhão, a
reciprocidade viva de ampos, o vai-vem comunional entre as duas pessoas, seu ponto-de-união .
É o " Deus-que-vai-no-meio''. 50 É o abraço, o ósculo eterno do Pai e do Filho. O ES é também o
"êxtase" ete'm o dos Dois; é o "êxodo" recíproco do Pai e do Filho; é a "abertura" das Três
pessoas em relação ao Mundo através da Criação, da Salvação e da Consumação. Para fal ar do
ES como o "terceiro" da relação, como o "outro dos dois", Ricardo de S. Vítor usa os tennos
"amigo" ou "co-amado" e não "amor". E isso é original. 51
Em breve, o ES é esse m ovimento de sístole e de diástole no seio da Trindade e da Trindade
em relação ao Mundo. Ele é a Pericórese de Ambos e de Ambos com o Cosmos . Ele é a Vida
divina, o Sopro ou a Respiração comum do Pai e do Filho.

Concluindo essa abordagem, nos damos conta da força de convencimento espiritual e


pastoral que comporta tal abordagem, profundamente humana, do Mistério trinitário. Além disso,
52
sua potencialidade .~cumênica parece grande. .

4
s Cf. W. PANNENBERG, Esquisse d'une christologic, op. cit., p. 22 1-225.
46
De Trin. IX, 3, 3.
47
Cf. De Trin., livros VIII-X, espec. VIII, 10.
48
ln Joan. Ev., tract. 26 (lo 6,44).
49
De Trin., IX, 2, 2.
so Cf. J. V. TAYLOR, Tbe Go-Between G-Od. The Holy Spirit and the Christian Mission, Londres 1972.
51 Cf. RlCARDO DE SÃO VÍTOR, De Trinitate , li vros III e TV.
52
Um teólogo muçulmano de hoje, Hussein Nasr afirma: "O Alcorão não é contrário a uma doutrina trinitária, contanto
que não introduza qualquer relatividade no seio da Essência divina." Para ele, os islâmicos poderiam admitir uma
•·polarização fundamental do Um", como a que se dá a partir da idéia de Deus-amor. O aiato lá Emami Kashami se
mostra de acordo em entender a Trindade segundo o dito do sufi Bayazid al-Bistami (+874): " Vi que o Amado, o
Amante e o Amor são uma coisa só": ap. Piero CODA, in Perspectivas d e conhecimento, t. 10. nº 6 (1998), p. 28. De
H. Nasr, cf. "Como o Islã encara o Cristianismo" , in Concilium, nº 203 (1986), p. 11-2 1. Para o confronto entre a
concepção de Deus no Cristianismo e no Islã, cf. também K. RAHNER, Unicità e trinità di Dio nel dialogo con
l'lslam, in Dio e Rivelazione, Nuovi Saggi VII, Paolinc, Roma 1981 , p. 144- 177, propondo a Trindade como a
radicalização da Unidade.
22
1vL ANALOGIAS E SÍMBOLOS TRrNITÁRiosl
5. l . Analogias
A tradição da fé descobriu muitas analogias ou comparações para entender algo do Mistério
mais abissal. Vejamos esquematicamente algumas destas comparações, muitas delas usadas pelos
Santos Padres. As primeiras são tiradas do mundo humano e as outras do mundo da natureza:

O PAI O FILHO O ESPIRITO SANTO


Indivíduo Mão Dedo (Cirilo de Alexandria)
Pessoa Boca Sopro
Pensamento Palavra Gemido (LiturJ?ia bizantina)
Silêncio Fala Emoção
Amor doado Amor reconhecido Amor partilhado
Expiração Aspiração Inspiração (Madalena de ' Pazzi)
Origem, Princípio Saída, início Devir, Processo (B. Forte)
Fonte Rio Sorvo (Atanásio, A~ostinho )
Nascente Correnteza Lago ou Mar
Poço Agua Frescor
Sol Raio, irradiação Brilho, esplendor
Fogo Luz Calor
Fornalha
Colméia
Flama
Mel
. Energia
Doçura
Raiz Rama Fruta (Tertuliano)
Planta Flor Perfume

Estas comparações são úteis para a catequese. Já para a espiritualidade e a homilética a


analogia do Amor parece mais eficaz.

5.2. Símbolos da Trindade

Nossos sentidos exteriores também precisam ter sua parte na representação da Trindade. Eis
aqui alguns símbolos sensíveis que podem nutrir o imaginário e a devoção em relação à fé trini tária:
1. As três figuras angélicas, no contexto da ceia, como no ícone de Rublev.
2. O Pai como o "Ancião dos dias" (Dn 7 ,9); o Filho, a seu lado; e a Pomba do ES acima ou no
meio deles. Por vezes, vê-se o Pai segurando o Filho crucificado (ou tendo Cristo desfal ecido nos
braços), com o ES entre os dois, como a indicar a participação de toda Trindade na Paixão e no
Mistério da salvação em ~eral:.?ssas representações vêm desde;séc. XIIT, tomando-se correntes
nos séc. XV, XVI e XVII . 3
3. Três círculos intersecantes (como nos "nós de toro" de 3 fios, especialmente o "nó borromeu"),
como viu Dante no Paraíso (XXXIII, 115-120). Às vezes, desenha-se dentro de cada círculo um
símbolo para cada pessoa: para o Pai, uma mão com dois dedos estendidos; para o Filho, uma
cruz; e para o ES, uma pombinha. Mas esse entrelaçamento (pericórese) é mais bem
representado por uma linha contínua que forma a figura de três pontas semelhante ao trevo, não
raro envolta por um circulo maior.
4 . Triângulo de lados iguais (eqüilátero), às vezes cercado por um círculo, outras contendo um
círculo ou então a figura de um olho: "o olho de Deus" (que é mais de amor que de controle). O

SlJesús LÓPEZ-GAY, Arte (a Trindade na), in X. PIKAZA e N . SILANES, Dicionário teológico do Deus cristã o.
Paulus, São Paulo 1998, p. 65-67, aqui, p. 66.
23
triângulo tem uma forte carga simbó lica (na Grécia, no Judaísmo, na China, no Tibet , entre os
alquimistas, os maçons, etc.).
A triângulo tem uma grande virtude didática: ele permite apresentar a doutrina da Trindade
de modo claro, assim :

.~ FILH SP. STO.

5. Uma série de outros objetos que, mostram, de modo vari ado, a unidade e a diversidade juntas:
• o "trevo de S. Patrício", emblema da Irlanda, com· a vantagem de lembrar também a cruz;
• a letra Tau com três braços iguais, em forma de Y; ( --t-. €1' )
• o candelabro de 3 luzes, ;\--.
• 3 velas formando uma única chama, ,!
• 3 ramos de videira num úpico tronco,..-etc.

VIL A SS. TRINDADE EM NOSSA VIDA PESSOAL E SOCIAL

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Dialética trmitár ia: untaaae e aiversidade (paradigma geral)
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A Tri-unidade é modelo máximo e insuperável de toda verdadeira comunidade humana,
especialmente da comunidade cristã. Diz Jesus: "Que todos sejam um, corno tu, 6 Pai, estás cm mim
e eu em ti , para que eles estejam em nós, e o mundo creia que tu m e enviaste" (Jo 17,2 1). Daí
conclui o Vaticano II que exíste "certa analogia entre a união das pessoas divinas entre si e a união
dos filh os de Deus na verdade e no amor" (GS 24,3).
A vida comunitária compreende vários planos: a famí li a, a igreja, a sociedade e o cosmos.
Ora, cm todos esses níveis a Trindade é de altí ssima e poderosa inspiração. Qualquer que seja o
ní vel cm que se situe, a comunhão humana é chamada a se referir à Comunhão divina. Ou seja, toda
sociedade humana precisa refletir a sociedade trinitária.
Para inspirar nossa vida-em-relação, tomemos o Mistério trinitário como mistério de Amor,
entendido como "comunhão pericorética". A comunhão de amor implica unidade e diver sidade:
unidade na diversidade e diversidade na unidade. O Amor é um dinamismo de circuminccssão. É
comunhão, comunicação, partilha, intercâmbio . .
O Amor verdadeiro, tal como se vive e se revela na Trindade, tem um efeito duplo: e le une
e diferencia ao mesmo tempo :
• une graças ao "princípio ou siânico" (uma só divindade, por natureza); ......;;... ~-e,. ,; ... J... e;., t".-<._u....
54
• e diferencia graças ao "princípio hipostáti co" (três pessoas realmente distintas).

Aplicando isso na vida pessoal e social, temos que essa só será sadia se conjuga unidade e
diversidade. Uma boa comunidade é uma ''unidade diversifi cada" ou uma "diversidade unifi cada".
A lógica da pericórese trinitária vale em geral para qualquer relacionamento e para qua lquer
comunidade, seja ela eclesial, social ou ecológica.
Por conseguinte, os dois defeitos em que se pode incorrer na vida-em-relação é ferir um dos
dois referidos princípios. Assim:

54
Nicolau de CUSA, no De pacc fidci, cap. Y ll, insiste e m que a Trindade-amor se desdobra na tríade unitas (o amor
unifica), equalitas (o amor toma iguais) e nexus (o amor liga). També m o Cusano afirma a marca trinitária de todas as
coisas: "Figuram Trinitatis gestant cuncta creata ".
24
1. quando não se respeita a unidade, cai-se na divisão, na desigualdade, na exclusão, na
desintegração, na anarquia e no caos;
2. quando não se respeita a diversidade, cai-se na dominação do outro, na integração forçada das
identidades, na absorção da alteridade, no anulamento de toda originalidade, no monoliti smo e
na homogeinização das diferenças, como ocorre nas várias formas de autoritarismo: ditadura,
absolutismo, coletivismo e totalitarismo.
Notar que aqui "os extremos se tocam": o autoritarismo provoca a exclusão, a divi são e a
anarquia; e a exclusão, por sua vez, suscita a reação do autoritarismo e da uniformi zação.

Devemos, contudo, estar bem atentos ao fato de que, na "aplicação" da Trinitologia ao nosso
mundo, existe uma desproporção ontológica (de essência e não apenas de grau) entre as duas
ordens, o que não abole, contudo, a relação .55 "Aplicação" aqui tem sentido de " inspiração", pois a
relação entre Deus e o mundo é puramente analógica, não unívoca.
Seja como for, Cristo ensina: "Sede perfeitos como vosso Pai do céu é perfeito' (Mt 5,48).
Pedro manda os cristãos serem "santos como Deus é santo" (1 Pd 1, 15- 16). Já Platão afirm ava que
"Deus é a medida de todas as coisas" (leis). ·
56
.. . . . 1. Aplicação à nossa sociedade

Um teólogo russo , Fedorov, declarava: "O dogma da Trindade é o nosso programa social" .
Pierre Leroux, que cunhou o termo " socialismo" (1834) e preconi zou a democracia, elaborou cm
1848 um projeto de Constituição política em que as instituições parlamentares refletiriam o mi stério
57
da Trindade. Aplicado à sociedade atual, G> esquema trinitário permite criticar os dois extremos
simetricamente opostos em que caiu e continua caindo:
• seja o Coletivismo comunista de ontem, que exagerou no princípio da unidade e da igualdade,
sem respeitar a diversidade e a singularidade das pessoas. Produziu opressão, violência e morte;
• seja o Capitalismo liberal de hoje, que exagera na diver sidade e na individualidade, em
detrimento da unidade e da igualdade, produzindo assim exclusão, violência e morte. 58 Uma
sociedade "liberal" , individualista e excludente, onde falta à comunhão e participação, é uma
sociedade estruturalmente anti-trinitária: ela peca praticamente contra a SS. Trindade. O modelo
trinitário, ao contrário, inspira a busca de uma soci edade "comunional", isto é, uma sociedade
que seja livre (autenticamente "democrática") e ao mesmo tempo igualitária e justa
(verdadeiramente " socialista").

2. Aplicação à Igreja

O princípio trinitário da unidade na diversidade vale com maior razão para a Igr eja. " O
mistério solar da Trindade ilumina o mistério lunar da Igreja" (L. Boff). 59 Segundo o Concí li o, a
Trindade é o "modelo supremo e o principio" da Igreja (UR 2,6). O mesmo Concíl io, retomand o

ss Cf. Giacomo CANOBBIO, " La Trinità e la Chiesa", in La rivista dei clero italiano, 79 (1 998) 244-253 e 366-379.
s6 Cf. L. BOFF, A Trindade, a sociedade e a libertação, Vozes, Petrópolis 1986, esp. pp. 23-29, 33-36, 15 1-1 53 e ' l
186-190; Enrico CAMBÓN, Assim na terra como na Trindade, Cidade Nova, São Paulo, 2000; B. FORTE e N .
SILANES, La SS. Trinidad, programa social dei cristianismo, Secretariado Trinitario, Salamanca 199; Ala in
DURAND, "Implicações po líticas da questão de Deus" , in Concilium, nº 76 (1 972/6), p. 761 -8; Erik PETERSON, II
monoteísmo come problema politico , Col. GT D 147, Queriniana, Brescia 1983, (orig. al. Munique 195 1); Carlos
JOSAPHAT (op}, Em nome do Pai, do Filho e d o Espiri to Santo. Comunhão di vina, so lidariedade humana, Loyola ,
São Paulo 2000 (para as "aplicações sociais" da Trinitologia).
57
Cf. J. TOUCHARD, História das idéias políticas, Publ. Europa-América, 1959, p.
ss Cf. Karl MARX, O Capital, l. lll , cap. 48: interessante análise crítica da "Trindade econômica" capitalista, analogiu
contrafeita da Trindade cristã: 1) o Capital (+ lucro e juros), 2) o So lo (- terra + renda) e 3) o Trabalho (+ salário).
s9 Cf. L. BOFF, A Trindade, a sociedade... , op. cit. , p. 190- 192, aqui, p. 191 ; cf. também pp. 35-37.
25
( uma bela definição da Igreja de S. Cipriano, diz que a Igreja é "o Povo reunido na unidade do Pai,
do Filho e do ES" (LG 4). S. Jerônimo afirma: "As fontes da Igreja são o Pai, o Filho e o ES".6 º
Portanto, a Igreja é chamada a ser o ícone vivo ou o sacramento da Trindade na terra. De ,-'
fato, antes de nascer da ação dos homens, a Igreja nasce do coração da Trindade. Podemos dizer,
cm base à Lumen Gentium (nº 2-4), que ela é o "sonho do Pai, o poema do Filho e o jardim do
Espírito Santo".
Ora, se a Trindade é o modelo da Igreja e se na Trindade temos a absoluta unidade e a mais
larga diversidade, assim também há de ser na Igreja: aí deve vigorar a máxima unidade e a mais
generosa diversidade - e tudo como obra do amor, que une e ao mesmo tempo diferencia. Quando
na Igreja não se respeita a unidade, cai-se nas divisões e na anarquia das "seitas". Mas também,
quando não se respeitam as diversidades, temos uma igreja monolítica, centralizadora e autoritária.
E em tudo deve reinar a "pericórese", o intercâmbio, a comunhão. ~-'-"' 'Ih ~
Na verdade, existe hoje na Igreja um déficit de "participação" nas decisões, o que vale dizer:
falta de uma verdadeira " democracia eclesial". Esta é uma exigência da própria fé na Trindade. A
esse propósito prescrevem belamente as Constituições apostólicas (ca. IV séc.):
"Que todos ... reconheçam a cabeça... Mas que a cabeça nada faça sem o assentimento de
todos. Assim reinará a concórdia e Deus será glorificado pelo Filho no Espírito Santo"
(cânon 34). ··
Deste modo, o que dissemos da Sociedade atual, pode-se aplicar também à Igreja instituída,
embora num plano e num grau diferente: também as estruturas sociológicas da Igreja atual são
pouco trinitárias. Pois, enquanto a Sociedade liberal, por excesso de individualis mo e pela exclusão
que provoca, peca contra a unidade (o princípio ousiânico) , a Igreja instituída de hoje, por causa do
excesso de centralismo, peca contra a diversidade (o princípio hipostático). Mas o bem maior é
sempre a unidade.

3. Outras aplicações

1. Família. Em Puebla, João Paulo II afirmou: Deus " não é uma solidão, mas uma famíli a" (cit.
Doe. de Puebla 582). Escreve ainda: " A família, que tem início no amor do homem e da mulher,
dimana, radicalmente, do Mistério de Deus". 6 1 Daí que na família cada pessoa deve . respeitar e
favorecer a unidade ou a comunhão e ao mesmo tempo cada pessoa dev~ ser respeitada e
favorecida em sua diferença. E essa lógica pericorética qu·c faz reinar a harmonia.62
~- /---!\..... ~. {.,... "'-"~, 1-~~ ............. ~ )...yr.. ~-
2. Relações homem - mulher. Mulher e varão são pessoas diferentes, mas comungando ambos da
mesma "humanidade" fundamental. Só quando entram em relação pericorética é que uma e outro
63
crescem, se aperfeiçoam e se realizam.

3. Ecologia. Porque Deus é relação e comunhão absoluta, assim é também a natureza e assim há de
ser. Ou seja, a ecologia, mostrando que tudo está relacionado com tudo e que mesmo o conflito e o
caos acabam integrados na lógica maior da cooperação e da ordem, não só ajuda a entender o
Criador essencialmente como inter-relação interna e externa, mas também a ver na Trindade seu

60
Ap. Ofício divino, 2•. leitura da 13ª. semana do Tempo Comum (vol. 3, p. 392).
61
Carta às famílias, 1994, nº 8,2. ('...-. u. ~
62
Para a relação Trindade e Família, cf. Nico la GIORDANO, A familia, ícone da Trindade, Paulinas, S. Paulo 2000.
Cf. espec. a tese de doutorado defendida em Salamanca por quem haveria de ser o Superior geral dos Filhos da Sagrada
Família, Josep M. BLANQUET, La sagrada família, ícono de la Trinidad, s.e, Barcelona 1996.
63 Para a trinitologia feminista, cf. Elizabeth A. JOHNSON, Aquela que é. O mistério de Deus no trabalho teológico

feminino , Vozes, Petrópolis, 1995; Maria Clara L. BINGEMER, "A Trindade a partir da perspectiva da mulher", in
REB, 46 (1986), p. 73-99 ; Ivone GEBARA, Trindade, palavra sobre coisas velhas e novas. Uma perspectiva
ecofeminista, Paulinas, São Paulo, 1994.
26
modelo supremo. Deste modo, a Triadologi a sustenta e inspira a ecologia como saber e como
prática. 64

4. Lições próprias da dimensão " hipostática"

4.1. No plano pessoal

Os divinos Três constituem, não propriamente lei, mas inspiração para as grandes atitudes
que devem orientar nosso comportamento do dia-a-dia. Seguindo o principio "hipostático'',
aprendemos muitas li ções práticas de cada pessoa da Trindade:

1. Do Pai aprende-se como: amar verdadeiramente; sair do isolamento, do narcismo, do egoísmo; ,...
voltar-se para a alteridade; entregar-se a si próprio, doar-se, dar a vida; tomar a iniciativa do
amor, dar o primeiro passo; dar-se por inteiro, sem-medida; criar vida, inventar, propor.

2. Do Filho aprende-se como: deixar-se amar; receber; crescer em atenção, si lêncio, escuta, ·---- '\-. ~
acolhimento e hospitalidade; dizer "sim", consentir; responder; ser grato, agradecer; retribuir o e.. <--~ .
amor; confiar; obedecer. É a dimensão "feminina" do Filho.
l '"- C ~ }
3. Do Espírito Santo aprende-se como: sa1r para o terceiro, para o "ele"; voltar-se para o excluído:
o pobre, o inimigo; abrir-se ao grande Outro, o Transcendente divino; romper os círculos
fechados, as barreiras; partir em missão. ~ I ~ 'Y"'- ~ ·.. ~ .

4.2. No plano social

Também para a vida social se podem tirar lições da consideração da º"di ferença" específica
de cada Pessoa Divina.

1. O Pai, como "princípio sem princípio" (arché anarchós) o u origem absoluta, represenla a
dimensão da ordem (amorosa), da autoridade (como serviço). A figura do Pai divino inspi ra
uma autoridade benfazeja, um autêntico poder-serv:iço. É a dimensão de verticalidade de toda
comunidade human~". . ~ . _ · ~ ~~~44
li\ f'<\Á... -
€:1,
~w.
..l~ - ~ .)ot.\.....J'--4
Aplicação crítica: Onde nao vigora a autoridade serviçal e amorosa do Pai, cai-se na confusão,
na desintegração e no caos. É o caso da "sociedade-sem-pai" ou "sociedade de órfãos'', como a
nossa. 65
Mas também, quando· se exclusiviza a figura do Pai, sem articulá-la com a do Fi lho e do
Espírito, exagerando no .poder, cai-se no extremo oposto: a dominação e a opressão, sob todas as
suas formas, inclusive a mais sutil, o paternalismo, quer de corte populist~, quer de corte machista-
patriarcal.

64
Cf. os trabalhos de L. BOFF, espec. Ecologia, mundialização, espiritualidade, Ed. Ática, S. Paulo 1993, p. 49-50,
onde fala na idéia analógica (do contrár io, seria ambígua) da Trindade como "Deus ecológico". O " novo paradigma",
definido justamente como comunhão pericorética ou como dialogação de tudo com tudo dentro da comunidade
cósmica, está exposto no cap. 1 de seu livro Ecologia: grito da terra, grito dos pobres, Ed. Ática, S. Paulo 1995, que
saiu também em livreto à parte Principio-terra, Ed. Ática, S. Paulo 1995 (80 pp.). O mesmo A. dá uma síntese de sua
visão ecológico-cosmológica em função da "teologia da libertação" em O pobre, a nova cosmologia e a libertação, in
Luis Carlos SUSIN (org.), Sarça ardente. Teologia na América Latina: prospectivas, SOTER/Paulinas, S. Paulo 2000,
r:·
5
189-207.
A expressão "sociedade sem pai" é recorrente nos estudos sociológicos desde os anos 60: vater/ose Gesel/schafl (A.
Mitscherlich, 1963), Father/ess America (B. Blankhorn, 1995), société sans p ere (A. De Willebois, 1985).
27
2. O Filho representa o princípio da igualdade. Não é ele "con-substancial" ao Pai? Aqui estamos
na dimensão de horizontalidade da sociedade. Nesse nível, o Filho, co-igual ao Pai , inspi ra uma
sociedade igualitária, justa, solidária.

Aplicação crítica: Onde não reina a igualdade do Filho, ocorre a exclusão por falta de
"comunhão e participação".
Mas também, quando se extremiza o princípio " fil ial" da igualdade, dando as costas ao Pai e ao
Espírito, cai-se no igualitarismo, seja em sua forma violenta (como no Coletivismo e no Fascismo),
seja em sua forma branda (como na Globalização homogeinizadora de hoje).

3. O ES representa o princípio da subjetividade e de tudo o que ela impli ca: interioridade,


identidade, liberdade, criatividade. Estamos aqui ao nível da dimensão de profimdidade da
pessoa. Aqui , o ES inspira uma sociedade de p essoas, como centros de iniciativa e criatividade.

Aplicação crítica: Onde não vige o respeito pela subjetividade original e livre das pessoas,
surge a reificação da pessoa, reduzida a peça da máquina social (como sucede tanto no Coleti vismo
como no Capitalismo). Aparece também o monolitismo e a uniformização das posições, assim
como a restrição da liberdade, incluindo a "repressão do religioso".
Mas também, quando se exagera nesse princípio, separando-o dos princípios do Pai e do Filho,
ele produz o individualismo social (como no neoliberalismo), o anarquismo, o fanatismo e a
intolerância (de certos grupos fundamentalistas).
• 1

5. Â. Trindade em nossa vida espiritual 66

Para realizar as aplicações indicadas acima, importa impregnar profund amente o co ração da
luz e da energia que emanam do Mistério supremo . Aqui estamos além da ética: entramos no campo
da mística.
É especialmente a verdade da inabitação dos Divinos Três em nosso coração que deve
empapar nossa vida de fé.67 Assim, a Trindade é mais para sentir no coração e vivenciar na vida do
que para pensar ou falar, como nos deram exemplo os santos. Assim, S. Bento Labrc, que
declarava: "Nada sei da Trindade... , mas sinto dentro d~ mim uma convulsão!" 68 Igualmente, S.
Francisco Xavier repetia incessantemente esta jaculatória: " O Sanctissima Trinitas! ..69
Na Rússia, o grande ~anto da Trindade é S. Sérgio de Radonez (+ 1391). Aliás, a
espiritualidade russa é fortemente trinitária.70 Do Ocidente, deve-se destacar a Beata Elisabeth da
SS. Trindade (1880-1906), que, na véspera de sua morte, afirmou:
"Acreditar que um Ser, que se chama Amor, habita ein nós a qualquer momento do dia e da
// noite e que nos pede que vivamos em comunhão com ele, eis o que transformou a minha
71
vida num céu antecipado." I/

66
Cf. Angelo COMASTRJ, Tu és Tri~dade, Paulinas, São Paulo, 2000; M. Clara L. BINGEMER, Em tudo amar e
servir: mística trinitária e práxis cristã em Santo fná cio de Loyola, Loyola, São Paulo 1990 (tese de doutorado);
Ronaldo MuNOZ, Trindade de Deus Amor oferecido cm Jesus, o Cristo, Paulinas, São Paulo 2002 : a panir da
experiência das CEBs. Veja em particular a original experiência espiritual trinitária de HERJQUE PEREGRINO DA
TRJNDADE, Peregrinando ao encontro d a Trindade. Cartas da rua e da estrada, Paulinas, S. Paulo 1997.
67
Cf. o belo livrinho do P. Martinho STOKS, Meu céu na terra, Paulinas, São Paulo 1955, infelizmente esgotado. Ma
ver o tema "inabitação" em dicionários ou tratados de espiritualidade, da Trindade ou de Pneumatologia.
68
Ap. Achylle A. RUBIN, A novidade da novidade, Pallotti, Santa Maria 2000, p. 57.
69
Ap. Dictionnaire de Spiritualité, vol..., col. 788-9.
1
° Cf. Tomás SPIDLÍK, 1 grandi mistici russi, Città Nuova, Roma 198?3, esp. pp. 93-99: S. Sérgio de Radoncz.
Lembrar ainda o conto de Tolstói "Os três eremitas", os quais só sabiam uma curta oração que viviam repetindo: "Ó
vós que sois Três, tende piedade de nós que somos três" (Triavas, tria nas, pomiliu nas): Leon TOLSTÓI, O nde existe
amor, Deus ai está, Verus, Campinas 2001, p. 41 -54.
7
r Elisabeth da SS. TRINDADE, A Trindade que habita em nós, Paulinas, S. Paulo 1980, p. 58. Cf. suas Ohras
completas, Vozes, Petrópolis 1993. Cf. também Marie-M ichel PHILIPPON, A doutrina espiritual da Ir. E liza heth
da T rindade, Agir, Rio de Janeiro 1957.
28
Ao coração da Trindade chega-se através da oração, adoração, louvor, meditação, silêncio e
contemplação e, em particular, através das celebrações litúrgicas. Aliás, todo o culto cristão está
• perpassado da teologia trinitária. Se prestarmos atenção, veremos o quanto toda a liturgia e a
piedade cristãs trazem as marcas da SS. Trindade, especialmente a Celebração Eucarística, que é
toda estruturada trinitariamente.

Falando mais concretamente, digamos que nas fórmu las sagradas do Sinal da cruz, do
Glória ao Pai e do Credo está contida toda a espiritualidade trinitária:
• No "Em nome do Pai..." nos entregamos nos braços da Bem-aventurada Tri ndade ("em nome
de" quer dizer: "entregando-me a", "consagrando-me a"), enquanto traçamos, larga e belam ente,
sobre nosso corpo e nossa alma o símbolo glorioso da Redenção.
• No "Glória ao Pai..." damos aos Divinos Três nosso louvor gratuito e deslumbrado, enquanto
nos inclinamos profundamente em gesto de homenagem amorosa e adorante ao Mistério eterno
("como era no princípio") e constantemente presente ("agora e sempre"). 72
• No "Creio em Deus Pai..." contamos e cantamos a "história de amor" do Deus tri-uno junto às
suas criaturas: Ele as tirou do nada (o Pai), as salvou (o Filho) e as santificou e santifica (o
Espírito) e aipda levará.à plenitude da "vida eterna". Amém!

1 •

72
Cf. L. BOFF, Trindade, sociedade... , op. cit., p. 193-284 : longo comentário do "Glória ao Pai".
29
Bibliografia acessível sobre a Trindade
1. MAGISTtRJO
• Catecismo da Igreja Católica, Yozes/Paulinas/Loyola/Ave Maria, 1993, nº 232-267. No Compêndio do CIC, c f.
" Santíssima Trindade" no lndice analítico.
• DENZINGER-HÜNERMANN, Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral,
Paulinas/Loyola, São Paulo 2007.
• Justo COLLANTES, A fé católica : documentos do Magistério da Igreja, Lumen Christi, Rio de Janeiro 2003.
Para a doutrina do Magistério, podem-se consultar também uma das obra sistemâticas abaixo.

2. OBRAS CLÁSSICAS
• Sto. AGOSTINHO, A Trindade, Col. Patrística 7, Paulus, São Paulo 1994.
• Sto. HILÁRJO DE POITIERS, Tratado sobre a Santíssima Trindade, Col. Patrística 22, Paulus, São Pau lo 2005.
• TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I, q. 27-43 (em port. Loyola, S. Paulo 2002, vol. I, p. 497-693) .

3. OBRAS SISTEMÁTICAS
• Leonardo BOFF, A Trindade, a sociedade e a libertação, Vozes, Petrópolis, 1986. Estudo na ótica da libertação,
insistindo nos reflexos da Trindade na vida e organização da Igreja e da sociedade.
• Luis F. LADARIA, O Deus vivo e verdadeiro: o mistério da Trindade, Loyola, São Paulo 2005.
• Boaventura Kl:.OPPENBURG, Trindade: o amor de Deus, Vozes, Petrópolis, 1999. Estudo na linha da doutrina
sólida da Igreja, sem outras "novidades". .
• Jürgen MOLTMANN, Trindade e Reino de Deus, Vozes, Petrópolis, 2000. Tratado bem escrito (como sempre
nesse teólogo protestante), destacando a Trindade econômica e inclusive socia l, defendendo a proble~1ática idéia do
"sofrimento" no coração da Trindade.
• Bruno FORTE, A Trindade como história, Pau lfoas, São Paulo, 1987. Ênfase na trindade econômica. O autor,
agora arcebispo, é um dos melhores teólogos italianos. É conhecido como tendo "estilo".
• Matias J. SCHEEBEN, A Santíssima Trindade: mistério que não se demo nstra (1865), Paulus, São Paulo, 1999.
Reflexões profundas de um dos maiores teólogos católicos do séc. XIX, mostrando que a Trindade(: mistério de luz
que ilumina tudo.

4. OBRAS DE PASTORAL E ESPIRJTUALIDADE


• Maria Clara L. BINGEMER e Vitor G. FELLER, Deus Trindade: a Vida no coração do M und o, Col. Li vros
básicos de Teologia 6, Siquem, Valencia 2002. É para agentes de pastoral.
• Sini valdo TA VARES (ofm), Trindade e criação, Col. Iniciação à teologia, Vozes, Petrópo lis 2007 (280 pp.).
• Francisco CAT ÃO, A T rindade: uma aventura teológica, Paul inas, São Paulo, 2000. Livrcto de menos de cem
páginas, bem escrito, para agentes e professores de religião.
• Luís Carlos SUSIN (ofmcap), Deus: Pai, Filho e Espírito Santo, Paulinas, São Paulo 2003.
• Dadeus GRINGS (Dom), Creio na SS. Trindade, Santuário, Aparecida 1999 (livro de caráter pastora l, para grande
público).
• Nereo SILANES, O dom de Deus: a Trindade em nossa vida, Paulinas, São Paulo 2005. O autor é da Ordem da
SS. Trindade e especialista em Trinito logia, sendo co-editor do Dicionário teológico o Deus cristão citado infra. O
e
livrô um tratado na ótica vivencial-espiritual, enfatizando a idéia do ser humano criado à imagem da Trindade.
• Tomás SPIDLÍK, Nós na Trindade: breve ensaio sobre a Trindade, Paulinas, São Paulo 2004. A ótica é
espiritual, mas baseada em sólida doutrina bíblico-patristica, com sensibilidade para a teologia orienta l, de que o
autor (um jesuíta tcheco, cardeal), é especialista.
• Raniero CANTALAMESSA, Contemplando a Trindade, Loyola, São Paulo 2004. Belas e ricas meditações feitas
em retiro ao Papa e à Casa Pontifícia em 2000 e 200 1.
• Leonardo BOFF, A Santíssima Trindade é a melhor comunidade, Vozes, Petrópolis, 1988. Versão popular do
livro supra A Trindade, a sociedade e a libertação.
• Ronaldo MuNOZ, Trindade de Deus amor, oferecido em Jesus o Cristo, Paulinas, São Paulo 2002. Pequeno
curso (78 pp.) para favelados de Santiago do Chile, entre os quais o autor vive e trabalha.

5. FONTES PARTICULARES DE INFORMAÇÃO


• Xavier PTKAZA e Nereo SILANES (dir.), Dicionário teológico o Deus cristão, Paulus, São Paulo 1998.
• Bernard SESBOÜÉ, llistória dos dogmas, Loyola, São Paulo 2002, t. 1: O Deus da Salvação, por B. Sesboüé t: J.
Wolinski,. p. 12 1-290 (para a história do dogma trinitário).

FIM

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