Você está na página 1de 73

Álvaro Barreiro, SJ

A Paixão de Jesus Cristo


Escândalo, loucura ou
revelação do amor de Deus?

Edições Loyola
Sumário

Preparação: Maurício Balthazar Leal


Capa: Maria Clara R. Oliveira
Diagramação: Maurélio Barbosa
Revisão: Renato da Rocha

Apresentação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ........................... . . . .. . . . . . . . ............ 9

Para os sábios, a Paixão de Jesus Cristo


é um escândalo - Para os c r i stãos,
é a prova do "amor louco" de Deus........ . . . . . . . . . ........... ...... 15

1. A Paixão de Cristo segundo Mel Gibson . ............ . ... . . . . .... ..... 15


li. A contemplação dos mistérios da Paixão de Jesus Cristo
nos Exercícios Espirituais de Inácio de Loyola . . . . . . . ............ .. 18
1. A petição, os pontos e o colóquio final............................ 18
Edições Loyola 2. A identificação com Jesus Cristo na Paixão .................... 21
Rua 1822. 341 - lpiranga
04216-000 São Paulo, SP 3. A vivência da compaixão................................................ 23
T 55 11 3385 8500
F 55 11 2063 4275 O lava -pés e o mandamento novo (Jo 13 ,1-1 7 ) . .. ...... . . . . 27
editorial@loyola.com.br
vendas@loyola.com.br 1. Jesus lava os pés dos discípulos (Jo 13,1-11) ..................... 27
www.loyola.com.br li. Jesus dá um novo mandamento aos discípulos .................. 30
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser
reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, mcfumdo fotocópia e gravação) ou
A i n stituição da Eucarist i a por Jesus Cristo . . ....... ... ... ..... 35
arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão
escrita da Editora. 1. A Eucaristia nos Exercícios Espirituais de Santo Inácio
e nos quatro relatos da instituição....................................... 35
ISBN 978-85-15-03712-4 li. A Eucaristia é o memorial da vida, da morte e da
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2010 ressurreição de Cristo......................................................... 38
1 11. A Eucaristia é o memorial do amor com que Jesus Cristo
As sete palavras que Jesus Cristo d i sse na Cruz . ........... 79
nos amou........................................................................... 40
IV. A celebração da Eucaristia pelos primeiros cristãos............. 42 Primeira palavra...................................................................... 80
V. Como dom Luciano Mendes de Almeida vivia e anunciava "Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem. " (Lc 23,34) 80
a Eucaristia ........................................................................ 45 Segunda palavra ..................................................................... 84
"Em verdade eu te digo: hoje estarás comigo no Paraíso!"
Oração de Jesus no Horto das OI iveiras e Hora Santa ... 49 (Lc 23,43) ...... .. .. ................. ....... ... .. .. ........ ...... .. ............ 84

1. A oração de Jesus no Horto das Oliveiras............................ 49 Terceira palavra .... . ...... ....... .................................................... 86

1. Introdução..................................................................... 49 "Jesus disse à sua mãe: 'Mulher, eis o teu filho!'. Depois
2. Oração agônica de Jesus .... ........... .. .... .... ... .... .. ............. 50 disse ao discípulo: 'Eis a tua mãe!'." (Jo 19,26-27)......... 86
3. Obediência de Jesus à vontade do Pai ........................... 51 Quarta palavra . .......................... .. ......... ... .... ........................... 88
4. Jesus convida os discípulos a orar.................................. 52 "Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?"
li. Sugestões para fazer uma Hora Santa diante do (Me 15,34; Mt 27,46) .................................................... 88
Santíssimo Sacramento...................................................... 54 Quinta palavra......................................................................... 91
1. Sugestões para fazer a liturgia da Hora Santa................. 54 "Tenho sede!" (Jo 19,28) ................................................... 91
2. Ladainha sobre os sofrimentos de Jesus no Horto Sexta palavra .......................................................................... 92
das Oliveiras.................................................................. 55 "Tudo está consumado!" (Jo 19,30) ................................... 92
3. Ritos finais..................................................................... 59 Sétima palavra . .... ................................................................... 93
"Pai, em tuas mãos entrego o meu espírito." (Lc 23,46) ..... 93
Condenação e flagelação de Jesus,
e os u ltrajes que sofre u . . . ... ... . . . ................... .. ....... .............. 61 A morte de Jesus na Cruz
1. Jesus é abandonado pelos discípulos, traído por Judas, e a abertura do lado pela la nça................ ........... . . .... ... ..... 99
negado por Pedro, condenado e ultrajado no Sinédrio ........ 61 1. A morte de Jesus na Cruz................................................... 99
li. Encontro de Jesus com Pilatos .......................................... 62 li. O lado de Jesus traspassado pela lança............................... 104
1. Flagelação de Jesus....................................................... 63 l. Do lado de Jesus traspassado pela lança do soldado
2. Eis o homem!................................................................. 63 saíram sangue e água.................................................... 104
3. Eis o VOSSO rei!............................................................... 65 2. "Olharão para aquele que traspassaram" ....................... 107
Ili. Reflitamos em nós mesmos e peçamos a graça de nos 3. Estudos de Frederick Zugibe sobre a morte de Jesus Cristo 109
comportar como se comportou Jesus na Paixão.................. 66

As dores da Mãe na Paixão do F i lho ................................ 113


Jesus ca rrega a Cruz,
1. Os sofrimentos da Mãe no nascimento e nos primeiros anos
é crucificado e sua t ú n ica é sorteada.. . . . . . . . . . .............. . . .... 69
da criancinha..................................................................... 113
1. Jesus carrega a Cruz até o monte Calvário.......................... 69
li. As dores da Mãe na Paixão e ao pé da Cruz ....................... 114
1. As mulheres acompanham Jesus, que carrega a Cruz.... 69
1. Reflexões introdutórias................................................... 114
2. Crucifixão e morte de Jesus no monte Calvário............... 70
2. As dores da Mãe ao pé da Cruz...................................... 115
3. A morte de Jesus Cristo na Cruz nos revela que Deus
3. A dor da Mãe ao receber o Filho morto nos seus braços
nos amou com um amor que foi "até o fim" ................... 72
e ao ser sepultado.......................................................... 116
li. A túnica inconsútil de Jesus............................................... 73
4. Com sua ressurreição, Jesus Cristo venceu o pecado
1. Dados sobre a história da Santa Túnica.......................... 73
e a morte .................... ... .... ........... ................................. 118
2. Resultados das análises científicas feitas na Santa Túnica 75
Oração j u nto à Cruz............. ......................... .................. 121.. ..

1. Orar ao pé da Cruz com a Mãe das Dores.................. ...... . . . 121


li. A oração ao pé da Cruz em Taizé........................................ 122
l. Rituais para fazer essa oração........................................ 122
2. Jesus Cristo perdoa nossos pecados e cura nossas feridas 123 Apresentação
Ili. A oração Alma de Cristo ................. ... ............ . .......... . . ........ 124
1. Texto da oração ...... . . . . . .................... .. ......... .............. . .... 124
2. História da oração.......................................................... 125
3. Sugestões para rezar a oração Alma de Cristo ................ 126

Anexo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. . . . . . . . . . . . . . . . . . . 129

Três poemas sobre a Paixão de Jesus Cristo............................ 129


1. Poema de Paul Claudel.................................................. 129
2. Soneto anônimo do século XVI....................................... 130
3. Poema de Gertrud von le Fort ...... . ..... ......... ............. .. . . . 131

A finalidade deste livro é apresentar subsídios que nos aju­


Bibl iografia ........ .... ........ ..... ..... ........ . ....... ................... 133
. . ... . . . . .

dem a aprofundar o conhecimento do amor de Deus que nos foi


revelado na Paixão sofrida por Jesus Cristo. Ela é escândalo, é
loucura para os que não compreendem esse amor, mas para os que
abrem seus corações ao amor é revelação do amor louco com
que Deus nos amou e continua a nos amar.

O capítulo 1 pode ser visto como uma introdução geral, na


qual fazemos alguns comentários sobre o filme de Mel Gibson
A Paixão de Cristo, muito criticado por jornalistas e por outros
escritores que se julgam inteligentes. Ele apresenta na linguagem
cinematográfica a epifania do "amor louco" com que Deus nos
amou e continua a nos amar no mundo em que vivemos, amor
que é compreendido pelas pessoas que o acolhem abrindo seus
corações, e que não é acolhido e sim rejeitado pelas pessoas
que se fecham em sua pretensa autonomia. Na segunda seção do
capítulo fazemos alguns comentários sobre a pedagogia propos­
ta por Santo Inácio nos Exercícios Espirituais para contemplar os
sofrimentos de Jesus Cristo na Paixão e para nos identificar com
ele pela compaixão.

9
Apresentação
A Paixão de Jesus Cristo
O tema do capítulo 5 está resumido no titulo: "Condenação
No capítulo 2 apresentamos o lava-pés dos discípulos por e flagelação de Jesus, e os ultrajes que sofreu". Na primeira seção,
Jesus na noite antes de ser crucificado no monte Calvário, e co­ mostramos como Jesus foi abandonado pelos discípulos, traido
mentamos 0 novo mandamento que Jesus deu aos discípulos por Judas, negado por Pedro, condenado e ultrajado no Sinédrio.
depois de lavar-lhes os pés, o mandamento de "lavar os pés �ns Na segunda, apresentamos alguns dados para contemplar a fla­
aos outros. Dei-vos exemplo para que, como eu vos fiz, tambem gelação de Jesus e orar sobre as palavras que disse Pilatos: "Eis o
vós 0 façais" (Jo 13, 14-15) . Jesus lhes disse também: "Eu vos dou homem!"; "Eis o vosso rei!". Depois de contemplar esses sofri­
um mandamento novo: Amai-vos uns aos outros. Nisto conhe­ mentos de Jesus e de ouvir as palavras ditas por Pilatos, devemos
cerão todos os que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos "refletir em nós mesmos". A partir dessa reflexão, iluminados
outros" (Jo 13,34- 35). O mandamento novo que Jesus Cristo pelos reflexos dos sofrimentos de Jesus, peçamos a graça de se­
deu aos discípulos na noite antes de ser crucificado deve ser guir Jesus Cristo percorrendo os caminhos que ele percorreu e a
praticado pelos discípulos e pelas discípulas de Jesus Cristo em graça de nos comportarmos como ele se comportou.
todos os tempos e em todos os lugares. . O tema da contemplação do capítulo 6 é a subida de Jesus
No capítulo 3, mostramos como foi a instituição da Eucaris­ Cristo até o alto do monte Calvário carregando a Cruz. Nessa
tia na última Ceia segundo os Exercícios Espirituais e segundo os subida, Jesus foi acompanhado por um grupo de mulheres da
quatro relatos que nos foram transmitidos pelos evangelist�s Galileia e da Judeia, que permaneceram ao seu lado até que
Marcos Mateus e Lucas e pelo apóstolo Paulo. Esses relatos di­ morreu na Cruz e foi sepultado. Na segunda seção deste capítulo,
zem q�e Jesus pediu aos discípulos que celebrassem o memorial apresentamos alguns dados sobre a túnica inconsútil que Jesus
de sua vida de sua morte e de sua ressurreição; que celebrassem vestia quando carregou a Cruz e sobre os resultados das análises
0 memoriaÍ do amor com que nos amou, um amor
que foi "até o científicas feitas nela.
fim" (Jo 13 1) até"da r a vida pelos amigos" (Jo 15,13) . Na quarta
No capítulo 7, o mais longo de todos, comentamos a profun­
seção do ;apitulo mostramos como era celebrada a Euca�stia didade, a riqueza e a beleza das sete palavras que Jesus Cristo
pelos cristãos das primeiras comunidades ecle�iais �, � a quinta, disse na Cruz. Elas foram ouvidas pela Mãe de Jesus, pelas outras
como 0 pastor dom Luciano Mendes de Almeida vivia e anun- mulheres e pelo discípulo João. Todos eles permaneceram ao pé
ciava a Eucaristia. da Cruz, Cruz em que foi crucificado o Filho de Deus e filho de
No capítulo 4 apresentamos alguns dados sobre a �ração Maria de Nazaré. Ela nos foi dada como nossa Mãe na terceira
agônica de Jesus no Horto das Oliveiras, na qual Jesus dialoga palavra que Jesus Cristo disse na Cruz.
com 0 Pai dizendo que deseja fazer a sua vontade. Apresentamos No capítulo 8 apresentamos alguns dados sobre a morte de
também algumas sugestões para fazer uma Hora Santa di�nte do Jesus Cristo na Cruz, sobre a abertura do seu lado pela lança
-
Santíssimo Sacramento. Ela pode ser feita com a repet1çao de do soldado, sobre o significado sacramental do sangue e da água
refrões de cantos, ficando em silêncio, fazendo orações espontâ­ que sairam do peito de Jesus e sobre o nascimento da Igreja, que
neas etc. No fim do capítulo apresentamos uma ladainha na qual é a comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus Cristo.
recordamos na forma de oração de petição a experiência do so­ No fim do capítulo apresentamos as conclusões tiradas dos
frimento feita por Jesus na oração daquela noite. Os sofrime�tos estudos científicos feitos por F. Zugibe sobre a morte de Jesus
daquela noite continuam vivos no coração do Senhor ress �s �ita­ Cristo.
do continuam vivos no coração de Jesus presente no Sacrano.
1

11
10
Apresentação
A Paixão de Jesus Cristo

No capítulo 9 comentamos os sofrimentos da Mãe de Jesus Convido os leitores, no fim desta Apresentação, a fazer uma
na Paixão do Filho. Na primeira seção comentamos, como intro­ leitura orante deste livro. Para que os frutos dessa leitura sejam
dução ao tema, os sofrimentos da Mãe quando o bebezinho foi mais fecundos, os leitores devem fazer no início do tempo reserva­
dado à luz num curral de Belém e quando ela e José fugiram para do para o encontro amoroso com Deus os rituais preparatórios de
o Egito porque Herodes queria matar o Menino. Na segunda, cada um dos exercícios de oração. Um desses rituais é a conscien­
apresentamos mais pormenorizadamente as dores da Mãe ao pé tização de que eu estou diante de Deus, do Deus que é amor e que
da Cruz, as dores que sofreu quando puseram o cadáver de Jesus me olha com um olhar carregado de ternura. Experimentando
em suas coxas; comentamos o carinho e a dor com que o beijou, esse amor e movido por esse amor, devo fazer os três preâmbulos
como acariciou e limpou as feridas do corpo de seu Filho. Co­ recomendados por Santo Inácio para as contemplações da Paixão
mentamos também a solidão da Mãe depois que o Filho foi se­ de Jesus Cristo. Devo fazer com muita humildade e com muita
pultado. Essa solidão desaparecerá na hora do encontro do Filho confiança o terceiro preâmbulo, pedindo "dor, sentimento e con­
ressuscitado com sua Mãe. Nessa hora, a alegria da Mãe será uma fusão porque o Senhor vai a sua Paixão por meus pecados".
alegria sem limites.
No capítulo 10, apresentamos alguns subsídios para orar
junto à Cruz com a Mãe das Dores. Essa forma de oração ao pé
da Cruz era feita pelos jovens vindos dos cinco continentes que
se reuniam no mosteiro de Taizé, onde cantavam refrões, oravam
em silêncio, pediam a Jesus crucificado perdão por seus pecados
e a cura de suas feridas. No fim do capítulo, transcrevemos o
texto da oração Alma de Cristo, apresentamos alguns dados so­
bre sua história e fazemos algumas sugestões para rezá-la de ma­
neira que produza em nós frutos abundantes e fecundos.
Encerramos o livro com um Anexo em que transcrevemos
três poemas sobre a Paixão de Jesus Cristo. Eles podem nos aju­
dar a aprofundar a experiência do "amor louco" de Deus por nós,
que nos foi revelado na Paixão de seu Filho muito amado. A
leitura orante desses poemas também nos ajudará a responder ao
amor de Deus acolhendo-o em nosso coração.
Na bibliografia final indicamos os estudos dos quais nos ser­
vimos para a elaboração deste livro. Quem se sentir movido a
aprofundar algum dos temas apresentados neste livro poderá usar
algum dos livros ou dos artigos citados na bibliografia.
Agradeço ao amigo padre Luis González-Quevedo pelas su­
gestões que me fez depois de ler o texto que eu lhe passara; elas
me ajudaram na redação final do livro.

13
12
Pa ra os sábios, a Pa i xão d e Jesus Cristo
é u m escâ n d a l o - Para os cristãos ,
é a prova d o "a mor louco" de De us

1 . A Paixão de Cristo segu ndo Mel Gibson1

Nas três primeiras semanas da apresentação do filme de Mel


Gibson A Paixão de Cristo, exibido no Brasil em 2004, ele foi visto
por aproximadamente quatro milhões de pessoas. O filme co­
meça com os sussurros da oração agônica de Jesus no Horto das

1 . Como pano de fundo do tema que apresentamos no primeira seção do


capítulo 1 estão os seguintes artigos: R. DAMATIA, A Paixão de Cristo, O Estado
de S. Paulo, 29 abr. 2004, Caderno 2, 1 0. O tema do filme é tratado, num estilo
jornalístico que responde às críticas feitas à violência que aparece no filme, em
dois artigos de J. TAVARES DE BARROS: Ecos da Paixão, Jornal de Opinião, 26 abr.
2004; 2 maio 2004; e num jornal espanhol em três artigos de J. M. DE PRADA:
La Pasión de Cristo, ABC, 2 fev. 2004; La violencia de Mel Gibson, ABC, 9 abr.
2004; Qué cruz, ABC, 27 ju]. 2006. De maneira mais ampla e numa aborda­
gem teológica e histórica, o tema do filme é abordado pela doutora em teologia
Maria Clara L. BrNGEMER: La Pasión según Mel Gibson: Una lectura en con­
frontación con la Tercera Semana de los Ejercicios, Manresa 76 (2004) 289-
298. Este artigo foi também pubücado em português: A Paixão segundo Mel
Gibson: Uma leitura em confronto com a Terceira Semana dos Exercidos, Itaici:
Revista de Espiritualidade Inaciana, 60 (2005) 59-67.

15
A Paixão de Jesus Cristo Paixão de Jesus Cristo: escãndalo ou "amor louco" de Deus?

Oliveiras. Ao orar com o rosto na terra, o Filho se entrega à von­ de seu uso no filme. Os outros cinco artigos fazem criticas muito
tade do Pai usando a palavra aramaica Abbá, que significa "Paizi­ fortes ao filme, acusando-o de propagar a violência. Essas críticas
nho querido" (Me 14 ,36) e era usada e continua a ser usada pelas não foram feitas a filmes também muito violentos, como, por
criancinhas de lingua aramaica para falar com o pai. exemplo, Kill Bill, Laranja mecânica, Máquinas mortíferas, Exter­
As reações dos espectadores ao filme A Paixão de Cristo minadores, Saló e os 120 de Sodoma. Tampouco foram criticados
foram lágrimas e silêncio pelas malvadezas sofridas por Jesus de filmes como, por exemplo, O Rei dos reis (1961) ou Jesus Cristo
Nazaré, que, como disse São Pedro na casa de Comélio, passou Superstar (1973), que apresentam Jesus de Nazaré como hippie,
pelos caminhos da nossa terra fazendo o bem a todos (cf At revolucionário marxista ou defensor de ideologias.
10,38). As reações dos que se julgam sábios e inteligentes foram Os críticos do filme de Mel Gibson não aceitam que Jesus
as críticas que haviam sido feitas pelos judeus e pelos gregos no Cristo seja apresentado como nosso Salvador e como o Filho do
tempo da pregação de São Paulo, descritas na primeira carta aos Pai misericordioso, que acolhe e perdoa os pecadores e nos exorta
Coríntios com estas palavras: "Os judeus pedem sinais, os gregos a amar os inimigos; não aceitam que Deus nos ama com um amor
buscam sabedoria. Nós, porém, proclamamos Cristo crucificado, que foi até "dar a vida pelos amigos" (Jo 15, 13), com um "amor lou­
escândalo para os judeus e loucura para os pagãos. Mas para os co", que faz "loucuras" pela pessoa amada2. A ressurreição de
que são chamados, tanto judeus como gregos, Cristo é poder de Jesus Cristo ao amanhecer do terceiro dia depois de sua morte na
Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais Cruz provou que o Amor venceu o pecado, que a morte foi ven­
sábio que os homens e o que é fraqueza de Deus é mais forte que cida pela Vida.
os homens" (lCor 1,21-25). No fim da primeira seção deste primeiro capítulo, responde­
Respondemos às críticas feitas ao filme de Mel Gibson di­ mos às críticas dos que dizem que o filme de Mel Gibson é antis­
zendo que sua finalidade não é apresentar Jesus abençoando as semita. Ora, Jesus de Nazaré, que sofreu a Paixão e perdoou seus
crianças, curando os doentes, dando de comer aos famíntos, mas algozes, era judeu. Maria, a Mãe de Jesus, que sofreu os sofrimen­
aquela finalidade índicada no titulo: A Paixão de Cristo. O filme tos da Paixão com coração de mãe, era judia. Uma cena muito
apresenta as torturas sofridas por Jesus de Nazaré na Paixão, na bonita do filme de Mel Gibson mostra uma das quedas de Jesus
qual está presente e atuante o amor com que Deus nos ama. Esse na subida para o monte Calvário. E mostra, num flash-back, o
amor venceu o pecado e a morte. Essa vitória é apresentada no meníno Jesus que cai num caminho do morro de Nazaré e ma­
fim do filme com uma imagem que mostra os lugares das feridas chuca a perninha. E sua Mãe, muito jovem, cuida com carinho
feitas pelos pregos e pela lança no corpo de Jesus Cristo como os matemo da ferida do filhinho. Eram também judias as mulheres
troféus da vitória do Senhor ressuscitado sobre a maldade huma­ que acompanharam Jesus na subida do Calvário e permaneceram
na. A Ressurreição de Jesus Cristo é, como escreveu Santo Inácio com Ele até que morreu na Cruz e foi sepultado. Era judeu João,
de Antioquia, o fánnakon tes athanasías, "a medicina que nos o discípulo que ficou junto à Cruz com a Mãe de Jesus e com as
cura da morte". outras mulheres. Era judeu, como mostra o nome, Simão. Ele
No dia 19 de março de 2004 foram publicados no jornal
2. Nicolau Cabasilas, no livro A vida em Cristo, usa a expressão manikós
Folha de S.Paulo seis artigos sobre o filme de Mel Gibson. O artigo
eros, isto é, "amor louco". Ele pode ser consultado em: N. CABASILAS, La vie en
"Reconstrução do aramaico beira a perfeição" não critica o filme, Christ: livres I-IV, Paris, Cerf, 1989 (Sources Chretiennes 355); Io., La vie
mas faz uma análise acadêmica da história da lingua aramaica e en Christ: livres V-VII, Paris, Cerf, 1 990 (Sources Chretiennes 361 ) .

16 17
Paixão de Jesus Cristo: escândalo ou "amor louco" de Deus?
A Paixão de Jesus Cristo

ajudou Jesus a carregar a Cruz. O acréscimo "o Cireneu", diz que diz: "Não quis saber outra coisa entre vós a não ser Jesus Cristo,
e Jesus Cristo crucificado" (1Cor 2,2); "Quanto a mim, não acon­
Simão nasceu em Israel, mas na cidade de Cirene, na atual Líbia.
Era judeu o Bom Ladrão, um dos dois bandidos crucificados junto teça gloriar-me senão na Cruz de nosso Senhor Jesus Cristo, por
com Jesus, e que criticou as zombarias dirigidas a Jesus pelo outro quem o mundo está crucificado para mim e eu para o mundo"
bandido, confessou sua fé em Jesus como o Messias e lhe pediu (Gl 6,1 4).
que se lembrasse dele quando entrasse em seu Reino. A resposta As contemplações dos mistérios da Paixão, diz Santo Inácio,
de Jesus ao pedido do Bom Ladrão foi: "Em verdade' eu te digo' devem ser feitas de acordo com a "idade, disposição, temperamen­
hoje estarás comigo no Paraíso�" (Lc 23,43). to [ . ] da pessoa que se exercita" (EE 205), que deve identificar-se
. .

Depois das torturas, dos sofrimentos e das mortes de milhões afetivamente com Jesus Cristo que sofre. Na Terceira Semana,
de judeus nos campos de concentração do nazismo e nos gulags da como na Segunda, são mais desenvolvidas as duas primeiras con­
União Soviética, um judeu agnóstico perguntou a um rabino: "De­ templações (EE 190-204). A pessoa que faz as contemplações
pois de tudo isso, você ainda acredita em Deus?". A resposta do da Paixão, apresentadas em seis pontos, deve acompanhar os so­
rabino foi: "E depois de tudo isso você ainda não acredita em frimentos de Jesus ouvindo suas palavras, olhando seus gestos,
Deus?". A resposta dada pelos cristãos à questão das mortes dos vivendo a comunhão com ele no silêncio e na solidão. No último
inocentes é a fé na Ressurreição de Jesus Cristo, o Filho de Deus exercício de oração, deve fazer uma repetição dos mistérios con­
que assumiu nossa carne, que sofreu a mais infame das mortes, mas templados ao longo do dia (EE 204).
que ressuscitou ao amanhecer do terceiro dia. E sua ressurreição A graça a ser pedida na primeira contemplação da Paixão é:
é o penhor da ressurreição dos que creem no amor de Deus e no "Pedir o que quero: será aqui dor, sentimento e confusão porque
poder desse amor para vencer a morte. o Senhor vai a sua paixão por meus pecados" (EE 193). Na segunda
contemplação, a graça a ser pedida é formulada com estas palavras:
pedir "dor com Cristo doloroso, abatimento com Cristo abatido,
1 1 . A contempl ação dos mistérios da Paixão de Jesus Cristo lágrimas, com pena interior por tanta pena que Cristo passou por
nos Exercícios Espirituais de I nácio de Loyola mim" (EE 203). Para receber a graça, o exercitante deve "tra­
zer frequentemente à memória os sofrimentos, fadigas e dores
1. A petição, os pontos e o colóquio final que Cristo Nosso Senhor passou" (EE 206). A comunhão com Jesus
Cristo na Paixão, com efeito, não se alcança fazendo discursos
A Paixão de Jesus de Nazaré durou menos de 24 horas, mas lógicos, nem fazendo "despachos".
sua contemplação ocupa nos Exercícios Espirituais (EE) um espa­ Jesus Cristo sofre a Paixão "por meus pecados" (EE 53; 193;
ço proporcionalmente maior do que a contemplação dos mistérios 197), "por mim" (EE 203). Percorreu o caminho de "trabalhos,
da vida pública. M. Kahler disse que os evangelhos são "relatos fadigas e dores" (EE 206). Para que a contemplação dos misté­
da paixão precedidos de uma longa introdução". Nós devemos rios da Paixão aprofunde nosso conhecimento de Jesus Cristo,
contemplar longamente a Paixão - e não dormir como dormi­ aqueça nosso coração, atinja nossas dimensões mais profundas e
ram os apóstolos quando Jesus orava no Horto das Oliveiras - faça nascer em nós o desejo de seguir Jesus Cristo carregando
deixando-nos envolver pelo amor de Jesus Cristo, que entrego� a Cruz, devemos pedir esses frutos com humildade, confiança e
sua vida à vontade do Pai para realizar nossa salvação. São Paulo perseverança.

19
18
A Paixão de Jesus Cristo Paixão de Jesus Cristo: escândalo ou "amor louco" de Deus?

Para receber essa graça, podem nos ajudar estes textos: "Meu "dor com Cristo doloroso", nos sentimos movidos à práxis da
sangue derramado pelos muitos para o perdão dos pecados" compaixão. O quinto ponto diz que "a divindade se esconde"
(Mt 26,28); "O Filho do Homem não veio para ser servido, mas (EE 196), mas não está ausente. O centurião percebeu a presença
para servir e dar a sua vida em resgate por muitos" (Me 10,4 5); da divindade na Paixão de Jesus Cristo. E a confessou dizendo:
"O bom pastor dá a vida por suas ovelhas" (Jo 10, ll); "A minha "Verdadeiramente este homem era o Filho de Deus" (Me 15,39).
carne pela vida do mundo" (Jo 6,51e); "Cristo morreu por nossos Depois de contemplar como Jesus Cristo "padece tudo isso por
pecados" (lCor 15,3); "Nisto consiste o amor: não fomos nós meus pecados", devemos nos perguntar: "O que devo fazer e
que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos padecer por ele?" (EE 197).
seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados" (lJo Iluminados pela contemplação dos mistérios da Paixão de
4 ,lO); "Cristo, o Filho de Deus[ . . . ] que me amou e se entregou Jesus Cristo e olhando a situação em que nos encontramos, dia­
a si mesmo por mim" (Gl 2,20); "Deus demonstra seu amor para loguemos com Jesus Cristo agradecendo sua entrega e entregan­
conosco pelo fato de Cristo ter sofrido por nós quando ainda do-lhe nossa vida. Podemos fazer o colóquio final dialogando
éramos pecadores" (Rm 5,8); "Cristo nos remiu da maldição da com a Mãe de Jesus e nossa Mãe, com o Filho, com o Pai e com
lei tornando-se maldição por nós" (Gl 3, 13; cf Rm 3,24 ; 8,3); O o Espírito Santo.
amor de Deus, que nos foi revelado na vida, na paixão, na morte
e na ressurreição de Jesus Cristo (cf Mt 26,53; Jo 18,8; 10, 17
etc.), é, de fato, mais forte que a morte. São Paulo vê tudo como 2. A identificação com Jesus Cristo na Paixão
"perda", como "esterco" (Fl 3, 8), comparado com o conhecimen­
to de Cristo, que me amou "até a morte e morte de cruz" (Fl 2,8), A contemplação da Paixão de Jesus Cristo, "como ele padece
e com "a participação dos seus sofrimentos" (Fl 3, 10). tudo isso por meus pecados etc." (EE 197), nos revela as profun­
Depois de contemplar os sofrimentos de Jesus Cristo na Paixão dezas do mistério do amor de Deus e de nosso mistério, nos dá
e de meditar os textos de São Paulo, reflitamos em nós mesmos a conhecer as consequências da Encarnação. Para conhecer e vi­
perguntando-nos como vivemos a comunhão com as pessoas ver a riqueza e a beleza do mistério do amor de Deus e de nosso
que sofrem, libertando-as dos grilhões da solidão e abrindo-as mistério é necessário "sair do próprio amor, querer e interesse"
para a comunhão. A comunhão com as pessoas em suas dores foi (EE 189). Se praticarmos esse êxodo, a experiência do amor de
vivida de modo admirável por dom Luciano Mendes de Almeida, Deus nos moverá a amar e a servir a Deus e aos irmãos. Santa
que quando estava no hospital de Belo Horizonte com os ossos .Teresa de Ávila disse que a oração não consiste em muito pensar,
quebrados, sofrendo dores terriveis, via com os olhos da imagina­ mas em muito amar.
ção e sentia em seu coração os sofrimentos dos escravos trazidos Peçamos ao Senhor que arranque nosso coração de pedra e
da África para o Brasil nos porões dos navios negreiros. nos dê um coração de carne, rezando esta oração: "Tu, purifica­
"Considerar o que Cristo Nosso Senhor padece em sua hu­ dor dos corações e amante dos corações puros, apossa-te do meu
manidade, ou o que quer padecer, segundo o passo que contem­ coração e habita nele envolvendo-o e enchendo-o. Tu, mais alto
plo" (EE 195,1). O fruto dessa consideração não se alcança pelo que o que tenho de mais alto, mais íntimo que o que tenho de
voluntarismo, mas é dom de Deus, dom que devemos pedir com mais íntimo� Tu, forma da beleza e selo da santidade, marca meu
confiança e perseverança. Quando recebemos esse dom, o dom da coração com a tua imagem, sela meu coração com a tua miseri-

20 21
A Paixão de Jesus Cristo
Paixão de Jesus Cristo: escândalo ou "amor louco" de Deus?

córdia, Deus do meu coração e meu quinhão, minha herança


ciclo, Jesus Cristo amado com uma paixão sempre crescente e
para sempre. Amém"3. São Bernardo expressou com estas pala­
coerente consigo mesma, eis o vosso programa, meus irmãos".
vras a compaixão de Deus com os filhos que sofrem: "Deus não
Os sofrimentos de Jesus Cristo na Paixão revelam-nos o amor
pode padecer, mas pode compadecer-se"4•
de Deus por nós (Cf Fl2,8; l Cor 1,23). No contexto da cultura
"O amor criativo é sempre amor sofrido."5 "A caracteristica
grega era difícil explicar o mistério da Encarnação e os mistérios
própria de todo amor", escreveu o padre Pedro Arrupe aos 70
da Paixão, pois Deus era pensado como imutável. Contudo, Orí­
anos, "é que quanto mais a gente sofre, mais se acende". F. Varillon
genes pergunta: "O próprio Pai, Deus do universo, cheio de longa­
comenta as palavras de João 3,16 "Deus amou tanto o mundo
nimidade, de misericórdia e de piedade, não sofre também de
que entregou seu Filho único" dizendo: "Entregando seu Filho, o
alguma maneira?". E sua resposta a essa pergunta é: "O Pai não é
Pai dá de alguma maneira mais que Ele mesmo, pois só é Pai por
impassível. Quando nos dirigimos a ele na oração, ele tem pieda­
e para o Filho. É Jesus quem se entrega, mas é também o Pai
de e compaixão, ele sofre da paixão do amor"9•
quem o entrega. O Espírito é o beijo que une o Pai que crucifica
e o Filho crucificado"6. Os "crucificados da terra" que receberam
o dom da fé sabem que não estão abandonados, sabem que são
3. A vivência da compaixão
amados por Deus. Por isso, cada um deles pode dizer: Jesus Cristo
"me amou e se entregou por mim" (Gl 2,20)7.
Quando recebemos a graça da compaixão, pedida no terceiro
Nossa resposta ao amor de Jesus Cristo deve ser a de um
preâmbulo da segunda contemplação da Paixão, fazemos a expe­
amor incondicional, mas discernido e movido pelo Espírito Santo.
riência da comunhão com Jesus Cristo1 0. As centenas de milhões
O padre P.-H. Kolvenbach fala do "amor louco" por Cristo vivido
de pessoas perseguidas, feridas, doentes, famintas, cujos rostos e
por seus discípulos nos sofrimentos da vida cotidiana8 . Comen­
corpos sofridos vemos na tela da TV e do computador, têm um
tando o testamento espiritual do padre L. de Grandmaison, o
nome, uma história, sentimentos e desejos. A pergunta que deve
padre G. Longhaye diz: "O meu voto supremo é: amai Jesus
nascer no cristão que contempla essas pessoas é: O que posso
Cristo. Até o último alento, apaixonai-vos cada dia mais pela sua
fazer para que essas pessoas vivam uma vida digna?
pessoa adorável [ . . . ] . Jesus Cristo meditado, Jesus Cristo conhe-
O relato da ressurreição de Lázaro (Jo 11,33-38) descreve a
comoção de Jesus pela morte de seu amigo e pela dor das irmãs
3. Texto de Balduíno, bispo de Cantuária: Tract. 1 0. PC 204, 5 1 3 , 4 1 4,
dele, Marta e Maria. O relato diz que Jesus tremeu, respirou fundo,
4 1 6, apud Liturgia das Horas. Ofício das Leituras da Quínta-feira da 1 8ª
Semana do Tempo Comum, São Paulo, Paulínas, 2 1 978, 890. faltou-lhe ar (Jo 11,33). Diz que diante do sepulcro de Lázaro Jesus
4. "Deus non potest pati, sed compati" (ln Cant. cant. 26,5). "se comove" de novo, "se perturba interiormente" (Jo 11,38). As
5. J. MOLTMANN, El Dios crucificado, Salamanca, Sígueme, 1 975, 70. duas palavras do versículo 35 dizem: "Jesus chorou". As lágrimas
6. F. VARJLLON, La souffrance de Dieu, Paris, Le Centurion, 1 975, 1 09. deslizaram pelo rosto de Jesus. A compaixão que sentiu moveu
7. Cf. J. M. MARTIN-MORENO, SJ, Muríó por nuestros pecados, Sal Terrae
(mar. 2008) 1 93-204.
Jesus à ação.
8. Cf. o desenvolvimento desse tema na palestra dada em Roma em 1987
pelo Padre P.-H. KOLVENBACH na abertura de um curso de preparaçã; para dire� 9. Homilia sobre Ezequiel, Vl, 6.
tores de Exercícios. Essa palestra foi publicada em português: A Paixão segundo 1 0. Os parágrafos a seguir estão ínspirados na Carta Circular que a su­
Santo Inácio, ltaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, 1 2 (1993) 79-86. periora geral das Irmãs do Sagrado Coração, Helen McLaughlin, dirigiu a
todas as comunidades da Congregação na Páscoa de 1 992.

22
23
Paixão de Jesus Cristo: escândalo ou "amor louco" de Deus?
A Paixão de Jesus Cristo

do. Inácio de Loyola diz que desse olhar nasceu a determinação


A compaixão que atingiu Jesus deve atingir seus discípulos.
da Encarnação do Verbo (EE 107). Isso é o que diz este texto de
Eles devem ter os mesmos sentimentos de Jesus Cristo, que "se
Orígenes: "Se desceu à terra, é porque se compadeceu do gênero
despojou assumindo a forma de escravo e tornando-se semelhante
humano. Sim, padeceu nossos sofrimentos antes de ter sofrido a
ao ser humano. E encontrado em aspecto humano humilhou-se,
Cruz, antes de ter se dignado assumir nossa carne. Porque se não
fazendo-se obediente até a morte - e morte de cruz�" (Fl 2,5-8).
tivesse sofrido não teria descido para partilhar conosco a vida
Os discípulos de Jesus Cristo devem viver a "compaixão""sofrendo
com" os pobres, praticando a compaixão que praticou o Bom Sa­ humana. Primeiro sofreu, e depois desceu e se manifestou. Mas
maritano (Lc 10,25-37). Diante da roubalheira e da violência no que paixão é essa que padeceu por nós? É a Paixão do amor"1 1 • As
mundo de hoje, muitas pessoas olham para outro lado e se afastam pessoas que vivem o amor deixando-se envolver, penetrar e mo­
com o coração endurecido. Sobre o corpo de uma empregada do­ ver pelo amor de Deus e amando e servindo aos irmãos trans­
méstica, que estava grávida e foi atropelada na Barra da Tijuca, no formam os sofrimentos em glória eterna. Isso diz São Paulo em
Rio de Janeiro, passaram centenas de carros. Os discípulos de Jesus 1 Coríntios 13, 1-8.
Cristo devem se comportar como a irmã Teresa de Calcutá, que Para experimentar a compaixão na contemplação dos mis­
ao ver uma criança agonizante jogada numa caçamba se aproxi­ térios da Paixão de Jesus Cristo precisamos beber nas águas do
mou dela, pegou-a nos braços e devolveu-lhe a vida. "amor louco" com que Deus nos ama. R. Guardini comentou esse
Santo Agostinho disse que o pecado é o "encurvamento sobre amor dizendo: "Só o amor faz coisas assim". O amor de Deus por
si mesmo". A compaixão, ao contrário, move o coração, os pés, as nós desceu do céu, saiu da fornalha ardente do coração de Jesus
mãos e o coração das pessoas e muda as estruturas. As pessoas Cristo, seu Filho, e foi parar no coração da tempestade da Paixão.
que a praticam se encurvam diante dos que estão encurvados e As pessoas que contemplam esse amor nos mistérios da Paixão de
dão de comer aos famintos, de beber aos sedentos, curam as feri­ Jesus Cristo sentem-se movidas a amar e a servir a Deus e aos
das dos doentes, dão carinho aos marginalizados em nosso mondo irmãos, amor e serviço que são vividos no seguimento de Jesus
cane. Um exemplo desse comportamento é o do piloto Niki Lauda, Cristo que carrega a Cruz12, e que estão enraizados no amor do
que levou para os refugiados de Ruanda, em seu avião, os milhões Pai, do Filho e do Espírito Santo13•
de dólares que recebeu da Caritas da Áustria. Na visão de La Storta, Inácio de Loyola foi convidado a seguir
Os discípulos de Jesus Cristo devem ir, e vão de fato, ao en­ Jesus carregando a Cruz. Como discípulos de Jesus Cristo, tam­
contro dos famintos, dos doentes, dos presos, dos abandonados bém nós devemos carregar sua Cruz pelos caminhos do "esvazia­
(Mt 25,31-40). Olham-nos com os olhos da fé e da compaixão nos mento" e do "sofrimento". Quando seguimos "o Cristo desfigu­
infernos em que eles se encontram e praticam com relação a eles rado", disse Santo Agostinho, somos "configurados" por Cristo.
a práxis do amor. Os discípulos de Jesus Cristo são anjos de luz Filaretes, metropolita de Moscou, disse: "O Pai é o Amor que
num mundo de trevas, e nesse mundo anunciam a Boa-Nova do
Reino de Deus aos oprimidos e marginalizados. Assim agiram bispos 11. Sexta homilia sobre Ezequiel, VI.
pastores como dom Hélder Câmera, dom Paulo Evaristo Arns, 1 2. Cf K. RAHNER, Das Kreuz - das Heil der Welt. Betrachtungen zurn
dom Ivo Lorscheider, dom Pedro Casaldáliga, dom Luciano Men­ Karfreitag, in Chancen des Glaubens. Fragmente einer modemen Spirituahtlit,
des de Almeida. Assim agiram e agem incontáveis Marias e Josés. Freiburg/Basel/Wien, Herder Verlag, 1 97 1 , 37-42.
13. Cf A. CoRDOVlLLA, Teologia de la cruz y rnisterio trinitario, Sal Terrae
Os sofrimentos de Jesus Cristo na Paixão estavam enraizados
(mar. 2008) 1 8 1 -1 92.
no olhar compassivo com que a Santissima Trindade olha o mun-

25
24
A Paixão de Jesus Cristo

crucifica; o Filho é o Amor que é crucificado; o Espírito Santo é


a Força invencível e o Poder da Cruz".
A dor, que aparece em 55 números dos Exercícios Espi.rituais1 4,
nos ·revela o amor com que Deus nos ama, amor que nos fortalece
para viver a comunhão com Deus e com os irmãos na dor. Os O lava- pés e o ma n d a me nto n ovo
discípulos e seguidores de Jesus Cristo sofrem em todos os tem­
pos e lugares15• Suas incompreensões e perseguições foram vistas (Jo 13, 1 - 1 7)
por Inácio de Loyola e seus companheiros como prova da auten­
ticidade dos trabalhos apostólicos. Pensando nas perseguições
que sofreria na Índia, Francisco Xavier dizia que "viver muito
tempo sem elas não é militar fielmente".
O amor moveu a Santíssima Trindade a tomar a decisão da
Encarnação do Filho, que desceu do céu para salvar-nos, que vi­
veu em nosso mundo e em nossa história, e nos amou "até o fim"
(Jo 1 3, 1 ), até "dar a vida pelos amigos" (Jo 1 5, 1 3). Origenes
disse que os discípulos e seguidores de Jesus carregam a Cruz
movidos pela "paixão do amor". Sentindo-se amados e amando
1 . Jesus lava os pés dos d iscípu los (Jo 13, 1-1 1 )
eles são libertados e salvos, e ajudam a libertar e a salvar os cruci �
ficados da terra. Amam, servem, sentem-se livres e ajudam a liber­
"Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a hora
tar com a alegria cantada por Maria de Nazaré no Magnificat.
de passar deste mundo para o Pai, tendo amado os seus que esta­
Quem ama, serve e canta como a "Serva do Senhor" vive a alegria
vam no mundo, amou-os até o fim" ( 1 3, 1 ). O evangelho de João
que ela viveu, vive a alegria que experimentaram os discípulos e
não nos transmitiu a instituição da Eucaristia, mas nos transmitiu
as discípulas de Jesus quando o Senhor ressuscitado foi ao encon­
o lava-pés ( 1 3, 1 -20), que nos revela o sentido profundo da Euca­
tro deles e delas.
ristia como "memorial" do amor com que Jesus Cristo nos amou.
"A celebração da Eucaristia como anúncio da morte do Senhor
(1 Cor 1 1 , 26) deve ser a proclamação do amor extremo de Jesus,
que se entregou à morte para dar à comunidade a participação
em sua vida eterna" 1 • Jesus sabia que havia chegado a hora de sua
"Páscoa", de sua "passagem" deste mundo para o Pai, de entregar
a vida nas mãos do Pai, entrega que será feita no dia seguinte ao
14. Cf. S. ARzu!llALDE, "Dolerse de" y "padecer por" en la mente de S. lgnacio.
Reflexiones en tomo ai análisis textual, Manresa 65 ( 1 993) 1 07-1 38. Na
morrer crucificado, mas com a ressurreição ao amanhecer do
página 1 1 2 são indicados os números em que aparece o tema da dor. terceiro dia o pecado e a morte serão vencidos. O evangelho de
1 5. Esse tema pode ser aprofundado orando os seguintes textos: 1 Corín­
tios 1 , 1 7-3 1 ; 2 Coríntios 1 1 , 1 6-3 1; Romanos 5, 1 - 1 1 ; 8,3 1 -39; Filipenses 2,5- 1 1 ;
1 . R. PESCH, Wie Jesus das Abendmahl hielt. Der Grund der Eucharistie,
1 Pedro 4, 1 2- 1 9; Colossenses 1 ,24-29.
Freiburg i. Br., Herder, 1 977, 24.

26
27
A Paixão de Jesus Cristo O lava-pés e o mandamento novo (Jo 13,1- 17)

João descreve pormenorizadamente o amor com que Deus nos com sandálias por caminhos de terra e de pedras. Contemplemos
ama, um amor que "dá a vida pelos amigos" (Jo 1 5 , 1 3) . Esse demoradamente como Jesus cura as feridas dos pés dos discípu­
amor nos foi revelado por Jesus Cristo. los, como os enxuga, os acaricia e os beija.
Sabendo que chegara a hora de voltar para junto do Pai, A vida de Jesus Cristo foi desde o seu nascimento num curral
Jesus se levanta da mesa, "depõe" o manto, "cinge" uma toalha à de Belém até sua morte na Cruz uma vida de amor e de serviço.
cintura, derrama água numa bacia e começa a lavar os pés dos O lava-pés é mais uma epifania das "loucuras" do amor com que
discípulos. Deus nos ama. Do que é dito em João 1 3, 2 . 1 0. 1 8 se deduz
Lavar os pés dos hóspedes era um serviço feito pelos escra­ que Jesus lavou também os pés de Judas: o Verbo de Deus que
vos. Os servos judeus não podiam ser obrigados a lavar os pés de assumiu a nossa carne - escreve Ibáfiez Langlois - "não lava os
seus patrões. "Toda a existência do Senhor", diz Charles Hauret, belos pés de Adão e de Eva no paraíso, mas lava os pés da história,
"está resumida, recapitulada na cena do lava-pés. Ao vir ao mun­ do animal caído que ao pecar caminha pelo pó, que peca dos pés
do, o Verbo toma o uniforme dos escravos. Esta cena ilustra e à cabeça. O Eterno que se ajoelhou tem mãos de mãe ao lavar os
simboliza o programa da vida do Salvador: resgatar o mundo pés de Judas"4• Podemos contemplar a cena do lava-pés olhando
pela entrega absoluta. Esta ação de Jesus resume toda a sua exis­ sua representação pintada por Sieger Kóder, que definiu a arte da
tência e antecipa - misteriosa antecipação - a Eucaristia e o pintura com estas palavras: "Espelhar e simbolizar o que experi­
Calvário, onde Jesus se entregará, para proveito de todos, para a mentamos na realidade da vida".
remissão dos pecados"2• Os sete verbos usados nos versículos 4 e 5 do capítulo 1 3 do
W. Froester comenta o lava-pés dos discípulos por Jesus com evangelho de João: levantou-se da ceia, tirou o manto, pegou uma
estas palavras: O César pagão foi destronado, o orgulho abatido,
" toalha, amarrou-a à cintura, derramou água numa bacia, pôs-se a
a exploração proscrita e todo serviço que não seja recíproco, lavar os pés dos discípulos e enxugava-os com a toalha que trazia
condenado [ . . ] . Somente esta mútua entrega e esta clara cons­
. à cintura, revelam-nos a profundidade e a beleza do amor do Bom­
ciência de nossa igualdade diante de Deus podem santificar as Pastor que cuida de suas ovelhas, que no dia seguinte dará sua
relações entre os que servem e os que se fazem servir. Esta revo­ vida por elas (cf lo 1 O1 1 1 ) .
lução não atenta contra nenhuma autoridade, não toma torpe A reação de Pedro quando viu Jesus ajoelhado diante dele para
nenhuma obediência, não semeia nenhum ódio. O divino desce lavar-lhe os pés foi de espanto: "Senhor, tu vais lavar-me os pés?"
até nós na forma do serviço mais humilde para nos mostrar que (v. 6). Jesus lh� disse: "O que faço, não compreendes agora, mas o
somente servindo com toda a humildade alcançamos o divino"3. compreenderás mais tarde" (v. 7). A atitude de Pedro, porém, não
O lava-pés dos discípulos nos revela como Deus nos ama e como muda, mas torna-se mais radical: "Jamais me lavarás os pés]". No
nós devemos amar os filhos amados de Deus. Jesus lava os pés de entanto, quando Jesus lhe disse: "Se eu não te lavar, não terás parte
cada um dos discípulos, que estavam sujos, suados, fedorentos, comigo] " (v. 8)1 Pedro lhe disse: "Senhor, não apenas os pés, mas
encardidos, com feridas, depois de caminharem ao longo do dia também as mãos e a cabeça]" (v. 9). Santo Agostinho comenta esta
cena dizendo que Pedro ficou "ferido entre o amor e o temor, assus­
tado mais pela ideia de perder Cristo que por vê-lo prostrado aos
2. Apud J. L. MARTIN DESCALZO, Vida y misterio de Jesús de Nazaret,
Salamanca, Sígueme, 8 1 991 , v. III, 1 59- 160.
3. Apud ibid., 1 60. 4. Apud ibid.

28 29
A Paixão de Jesus Cristo O lava-pés e o mandamento novo (Jo 13, 1 - 17)

seus pés"5. "Este Deus jogado aos pés dos seres humanos é um amardes uns aos outros" (Jo 1 3,34-35). O relato do l ava-pés mos­
Deus que não conhecíamos." Ele, ajoelhado, "lava os pés de Judas tra o exemplo de Jesus para as comunidades cristãs que partici­
com mãos de mãe". Ele é um Deus que "nunca pudemos imaginar"6. pavam da celebração da Eucaristia.
O comportamento de Jesus naquela noite é exemplo para
Judas, em cujo coração "o diabo j á [ . . . ] havia insinuado o propó­
eles, que devem comportar-se como se comportou Jesus, o Servo
sito de entregá-lo" (Jo 1 3,2), se fecha ao amor de Deus que nos é
de Deus (Is 52, 1 3- 1 4). De seu comportamento falam também os
revelado em Jesus Cristo. Pedro não aceita o gesto de Jesus porque
versículos 7-9 do capítulo 2 da carta aos Filipenses7. Inácio de
não compreende seu significado, como não havia compreendido o
Loyola diz que a vocação do cristão é servir a Deus e aos irmãos
anúncio da Paixão e da Cruz. Jesus diz então a Pedro: quem não
na Igreja. Esse serviço deve ser praticado pelos discípulos de Jesus
aceita o caminho da Cruz "não terá parte comigo" (Jo 1 3,8).
Cristo, como diz o título do livro de J. Gaillot, Uma Igreja que não
Detenhamo-nos na contemplação dos gestos de Jesus, de Pedro,
serve, não serve para nada8. Devemos viver o pedido "em tudo
de Judas e dos outros discípulos. Ouçamos as palavras de Jesus, de
amar e servir" (EE 233), feito na Contemplação para alcançar amor,
Pedro e dos outros discípulos, deixemos que elas ressoem em nosso
amando e servindo aos irmãos. Para praticar esse serviço, é neces­
coração. Depois de ver, de olhar e de ouvir, reflitamos em nós mes­
sário fazer a experiência de ser amado por Jesus e de amar Jesus,
mos perguntando-nos como reagimos ao comportamento e às pa­
que mostra aos discípulos o caminho que devem percorrer para
lavras de Jesus. Peçamos-lhe que nos dê a graça de sermos ilumi­
serem salvos e para colaborar na salvação dos outros. Nosso Salva­
nados e conduzidos pelos reflexos de suas palavras e de suas
dor carregou a Cruz e foi crucificado entre dois bandidos, mas
ações. Se nos deixarmos conduzir assim nos sentiremos movidos
ressuscitou ao terceiro dia. Seus discípulos seguem Jesus, que ago­
a ajoelhar-nos diante dos pobres, dos doentes e dos necessitados
ra é o Senhor ressuscitado, o Vivente que nos dá a vida eterna.
para a eles servir. A adjetivo " novo" significa na expressão "mandamento novo"
(entolé kaine'), sem precedentes, um novo ponto de partida e
uma nova direção (cf. Jo 1 3 ,34; l Jo 2, 7-8; 2Jo 5). O "novo man­
1 1 . Jesus dá um novo mandamento aos disc ípulos
damento" é o cartão de identidade dos discípulos de Jesus. O
serviço aos pobres vivido pelos discípulos e pelas discípulas de
"Depois que lhes lavou os pés, retomou o seu manto, voltou Jesus Cristo tem sua fonte no amor apaixonado a Jesus Cristo.
à mesa novamente e lhes disse: 'Compreendeis o que vos fiz? Esse amor foi vivido nos anos passados por mulheres e por ho­
Vós me chamais de Mestre e de Senhor e dizeis bem, pois eu o mens como Teresa de Calcutá, irmã Dulce, Charles de Foucauld,
sou. Se eu, o Mestre e o Senhor, vos lavei os pés, também vós Abbé Pierre, dom Hélder Câmera, padreAlfredinho, dom Luciano
deveis lavar os pés uns aos outros. Dei-vos o exemplo para que, Mendes de Almeida. E é vivido em nossos dias por incontáveis
como eu vos fiz, também vós o façais"' (Jo 1 3, 1 2- 1 5). Mais adiante Marias e Josés que amam e servem nas comunidades eclesiais das
diz: "Eu vos dou um mandamento novo: Amai-vos uns aos outros. quais fazem parte e fora das fronteiras dessas comunidades.
Como eu vos amei, assim também vós deveis amar-vos uns aos
outros. Nisto conhecerão todos que sois meus discípulos: se vos
7. Cf D. M. STANLEY, / encountered God". The Spiritual Exercises with the
"

Cospe! of Saint John, St. Louis, The lnstitute of Jesuit Sources, 1986, 197 - 1 98.
5. ln lohannem, 56,2. 8. J. GAILLOT, Una Igl.esia que no sirve, no sirve pra nada, Santander, Ed.
6. J. L. MARTIN DESCALZO, op. cit., 1 60. Sal Terrae, 2 1 991 .

30 31
A Paixão de Jesus Cristo O lava-pés e o mandamento novo (Jo 13, 1 - 1 7)

Quando vivemos o "novo mandamento" dado por Jesus de­ lavou os pés dos discípulos na noite antes de ser crucificado.
pois de lavar os pés dos discípulos, vivemos a unidade entre o Com esse gesto, Jesus praticou a revolução do amor.
amor a Deus e o amor ao próximo. A prova do amor a Deus, que Peçamos a Jesus, nosso Salvador, que nos dê a graça de vi­
não vemos, está na práxis do amor aos irmãos, que vemos e com ver a práxis do amor, que todas as nossas ações sejam movidas
os quais convivemos. Na primeira carta de São João está escrito: pelo amor. Quando são movidas pela dinâmica do amor, nossas
"Quem diz que está na luz, mas odeia seu irmão, continua nas tre­ ações têm um valor eterno. Isso é o que canta com admirável
vas" (lJo 2,9). Dom Helder Câmara disse: "No coração do cristão força e beleza o hino ao amor da primeira carta aos Coríntios
não deve haver um travo de ódio". No coração de dom Helder não (cf. 1 Cor 1 3, 1 - 1 3).
houve nenhum travo de ódio com relação a ninguém, nem com
relação aos que o difamaram e perseguiram.
Ao lavar os pés dos discípulos, Jesus Cristo praticou o que
proclama São Paulo no hino da carta aos Filipenses: "Haja entre
vós o mesmo sentir e pensar que no Cristo Jesus. Ele, existindo
na forma divina, não considerou como presa a agarrar o ser igual
a Deus, mas despojou-se, assumindo a forma de escravo e tor­
nando-se semelhante ao ser humano" (Fl 2,5-7).
Santo Inácio de Loyola diz no primeiro preâmbulo da con­
templação da Encarnação que a Santíssima Trindade, movida
pela compaixão, determina "em sua eternidade que a Segunda
Pessoa se faça homem, para salvar o gênero humano" (EE 1 02).
A vida de Jesus Cristo foi, de fato, uma vida "para-os-outros", foi
uma proexistência. Assim deve ser a vida de seus discípulos, uma
vida de serviço aos filhos amados de Deus, sobretudo aos mais
necessitados. São João Crisóstomo fala da união entre Jesus Cristo,
que está presente sobre o altar e que está presente no pobre,
dizendo: "Queres honrar o corpo de Cristo? Não permitas que
ele seja objeto de desprezo em seus membros, isto é, nos pobres,
privados de vestimentas"9.
A resposta à pergunta: "Onde está Deus?", pergunta que é
feita ao se ver o sofrimento dos inocentes causado pelo egoísmo
e pela ambição do poder, está no comportamento de Jesus, que

9. O texto de São João Crisóstomo é citado mais longamente em


R. CANTALAMESSA, O mistério da Ceia, Aparecida (SP), Santuário, 1 1 2006,
1 00- 1 0 1 .

32 33
A i n stitu ição da Euca ristia
por J esus Cristo

1 . A Eucaristia nos Exercícios Espirituais de Santo 1 nácio


e nos q uatro relatos da i nst ituição

A primeira contemplação dos mistérios da Paixão propostos


por Santo Inácio nos Exerdcios Espirituais é a última Ceia, celebra­
da por Jesus com os discípulos em Jerusalém, no Cenáculo. Assim
como o Princípio e Fundamento pode ser visto como o prólogo
dos Exerdcios Espirituais e o Exercício do Reino como o prólogo da
Segunda Semana, a contemplação da Eucaristia pode ser vista como
o prólogo e a sintese da Terceira Semana (EE 1 90) 1• Na Eucaristia
celebramos a vitória, realizada pela entrega de Jesus Cristo à morte
na Cruz, do amor sobre o pecado e da vida sobre a morte.
A contemplação da Eucaristia apresentada por Inácio de
Loyola tem estes três pontos: "Comeu o cordeiro pascal com os
apóstolos, aos quais predisse a sua morte: 'Em verdade vos digo: um
de vós há de me vender'" (EE 289,2). "Lavou os pés dos discípulos,

l . Cf L. GoNZALEZ-QUEVEDO, Eucaristia: memória, presença e profecia,


ltaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, 44 (200 1 ) 4 1 -52.

35
A Paixão de Jesus Cristo A instituição da Eucaristia por Jesus Cristo

inclusive os de Judas, começando por São Pedro" (EE 289,3) . dizendo: " Recebi o que vos transmiti" ( 1 Cor 1 1 ,23). Desses dados
"Instituiu o santíssimo sacrifício da Eucaristia, em grandíssimo se segue que a Eucaristia era celebrada pelas comunidades cristãs
sinal de seu amor, dizendo: 'Tomai e comei"' (EE 289,5). como memorial da vida, da morte e da ressurreição de Jesus
A Ceia celebrada por Jesus com os discípulos foi, segundo os Cristo dez anos depois da morte de Jesus Cristo. Ela era celebrada
evangelhos sinóticos, uma ceia pascal. Segundo o evangelho de João, no domingo, vale dizer, no "Dia do Senhor". Os cristãos que ce­
essa ceia foi celebrada antes da Páscoa e Jesus morreu na Cruz na lebravam a Eucaristia tinham a certeza de que o Senhor ressus­
hora em que os cordeiros eram imolados no Templo. Essa imola­ citado estava com eles e de que eles estavam "unidos na fração
ção acontecia, no Templo de Jerusalém, na tarde de 1 4 de Nisan; do pão" (At 2,42).
a seguir as famílias judaicas celebravam a ceia pascal. Santo Inácio de Antioquia exorta os cristãos de Éfeso na
No Novo Testamento há quatro relatos da instituição da Eu­ carta que lhes escreveu no caminho para Roma, onde foi marti­
caristia. O relato do evangelho de Marcos (Me 1 4,22-24, na ver­ rizado, a celebrar a Eucaristia: " Reuni-vos em comunidade [ . . . ]
são curta) e o relato do evangelho de Mateus (Mt 26,26-28, na partindo um único e mesmo pão, que é a medicina da imortali­
versão curta) têm sua origem na tradição petrina. Os relatos do dade e o antídoto que nos salva da morte"2• Inácio de Antioquia
evangelho de Lucas (Lc 22, 1 9-20, na versão curta) e da primeira foi para Inácio de Loyola modelo do amor a Jesus Cristo, de seu
carta aos Corintios ( l Cor 1 1 ,23-25, na versão mais curta) têm seguimento e do modo de viver a relação entre a celebração da
sua origem na tradição paulina. O evangelho de Lucas diz: "Este Eucaristia e o serviço aos pobres.
cálice é a nova aliança no meu sangue". O evangelho de Marcos Inácio de Antioquia proclama: "Meu amor está crucificado".
diz: "Este é meu sangue, da aliança". O evangelho de Mateus diz: "Não há em mim fogo para amar a matéria; mas há uma água viva
"para a remissão dos pecados". O evangelho de João não relata a que murmura e diz dentro de mim: Vem para o Paff' (Rm 7,2).
instituição da Eucaristia, mas nos transmitiu o que Jesus disse no Ele desejava morrer para viver a comunhão eterna com Jesus
fim do discurso sobre o pão da vida: "O pão que eu darei é a mi­ Cristo. Na carta aos Romanos escreve: "Eu vos suplico, não mos­
nha carne para a vida do mundo" (Jo 6,5 1 ) . O que diz esta afirma­ treis para comigo uma benevolência inoportuna. Deixai-me ser
ção é fundamentalmente o que dizem os quatro relatos da insti­ pasto das feras, por meio das quais poderei encontrar Cristo; in­
tuição da Eucaristia, que falam da entrega do corpo e do sangue centivai-as para que sejam meu túmulo, e que não deixem nada
de Jesus Cristo "por vós", "para vós", "pelos muitos". do meu corpo, para que no meu último sono não seja uma carga
A morte de Jesus Cristo na Cruz foi uma morte expiatória para ninguém. Então serei verdadeiramente discípulo de Jesus
"pelos muitos". As palavras que Jesus disse e os gestos que Jesus Cristo" (Rm 4, 1 -2). Na carta aos cristãos de Esmirna fala dos que
fez nos foram transmitidos pelos quatro relatos da instituição da "não têm nenhum cuidado da viúva, nem do órfão, nem do opri­
Eucaristia. Ao abençoar, partir e distribuir o pão aos discípulos, mido, nem dos prisioneiros ou libertados, nem dos que passam
Jesus se entrega a si mesmo e edifica a Igrej a, que é a comunidade fome ou sede" (Esm 6,2) . Na carta aos cristãos de Éfeso lhes diz:
de seus discípulos e de suas discípulas. Jesus Cristo é a fonte de "É melhor calar e ser do que falar e não ser" (Efes 1 5, 1 ) .
toda bênção, é o mediador da salvação que se realizou por sua
morte na Cruz.
Na primeira carta aos Coríntios, escrita no ano 56 ou 57, São
Paulo transmite o que havia recebido dez ou doze anos antes 2 . Efésios 20. Ver também a Filipenses 4 .

36 37
A Paixão de Jesus Cristo A i nstituição d a Eucaristia por Jesus Cristo

1 1 . A Eucarist i a é o memorial d a vida, d a morte e do seu Corpo e Sangue para perpetuar o Sacrifício da Cruz ao
da ressurre i ção de Cristo longo dos séculos até sua volta"7•
Jesus de Nazaré foi crucificado quando Tibério era imperador
Jesus Cristo, nosso Salvador, está presente e atuante na em Roma e Pôncio Pilatos procurador da Judeia. Ele foi imolado
celebração da Eucaristia. Quando, ao celebrar a Eucaristia, os no monte Calvário, mas agora está em pé "sobre o monte Sião com
cristãos abrem seus corações ao amor de Deus, são movidos a os 1 44 mil que trazem escrito sobre a fronte o nome dele e o
viver esse amor nas comunidades das quais fazem parte e nome de seu Pai" (Ap 1 4, 1 ) . O Apocalipse fala da multidão dos
anunciá-lo aos que ainda não o conhecem. A riqueza da Euca­ eleitos e dos mártires: "Depois disso, vi uma multidão, que ninguém
ristia está em que ela é o "memorial" do amor de Deus, que nos podia contar, gente de todas as nações, tribos, povos e línguas"
foi revelado e oferecido na vida, na morte e na ressurreição de (Ap 7,9). As marcas em seu corpo feitas pela maldade humana
Jesus Cristo. são agora os troféus da vitória do amor de Deus, vitória celebrada
Podemos aplicar à celebração da Eucaristia, compreendida na liturgia celeste pela multidão que passou pela "grande tribula­
como memorial da vida, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo, ção", e que agora está vestida com roupas brancas lavadas no
o que diz Santo Agostinho falando das recordações da memória: sangue do Cordeiro (cf Ap 5,6- 14; 7,9- 1 4).
"Desde o tempo em que te conheci, tu permaneces na minha me­ Contemplemos essas cenas com os olhos da fé e ouçamos os
mória e é aí que eu te encontro quando me lembro de ti com cantos cantados na liturgia celeste pela multidão que foi salva por
alegria"3. Mil anos depois, Nicolau Cabasilas escreveu: "Como o Jesus Cristo. Degustemos as palavras destes três textos, deixando
fogo não pode consumir o objeto se o contato não é continuo, que elas ressoem em nosso coração: "Não beberei deste fruto da
assim o pensamento não pode dispor o coração a nenhuma paixão videira até aquele dia em que convosco beberei o vinho novo no
se não dispõe de certo tempo, longo e continuo"4 • Reino do meu Pai" (Mt 26,29). "Todas as vezes que comeis desse
Na celebração da Eucaristia está presente o mesmo Jesus que pão e bebeis desse cálice, anunciais a morte do Senhor até que ele
viveu em nossa terra e agora vive como o Senhor glorioso, venha" ( 1 Cor 1 1 , 26). " Prestai atenção para não deixar de ouvir
que é nossa vida. O evangelho de João diz que do lado de Jesus aquele que vos fala" (Hb 1 2,25).
Cristo crucificado aberto pela lança do soldado saíram sangue Na celebração da Eucaristia vivemos o que a palavra "euca­
e água, que são símbolos dos sacramentos do Batismo e da ristia" significa: agradecemos a Deus pelo amor com que nos
Eucaristia (cf. Jo 1 9, 3 1 -37). Na Eucaristia celebramos a vitória amou, um amor que foi até a morte na Cruz. "O que salva o ho­
do amor sobre o pecado, da vida sobre a morte5. Dessa celebra­ mem", disse dom Luciano Mendes de Almeida, é o amor fiel e
ção fala também a constituição Sacrosanctum Concilium do sempre novo de Deus", um amor que ninguém pode destruir.
Vaticano II6 e o Catecismo da Igreja Católica: " Nosso Salvador, Santo Agostinho disse: "O Deus Sapientíssimo não soube dar-nos
na noite em que foi entregue, instituiu o S acrifício Eucarístico nada melhor, o Todo-poderoso não pôde dar-nos nada mais exce­
lente, o Riquíssimo não teve mais nada a nos dar. A Eucaristia é
3. Confissões X, 8. 1 7 .24. a obra mestra da sabedoria, do poder e do amor de Deus".
4. N. CABASILAS, Vida em Cristo, Y1, 4. O texto citado se encontra em A Eucaristia, disse Santo Tomás de Aquino, é "o sagrado con­
PG 1 50, 653. vívio no qual recebemos Cristo, celebramos a memória de sua
5. Cf P. McPARTLAND, Sacramento/Salvation. An Introduction to Eucha­
ristic Ecclesiology, Edinburgh, T&T Clark, 1 995, 1 0- 1 3 .
6. Cf constituição Sacrosanctum Concilium, 47. 7. Catecismo da Igreja Católica, 1 323.

39
38
A Paixão de Jesus Cristo A instituição da Eucaristia por Jesus Cristo

paixão (acontecida no passado), a alma é inundada de graça morreu na Cruz na hora em que os cordeiros eram imolados no
(acontece no presente) e nos é dado o penhor da glória futura (di­ Templo (cf Jo 1 ,29; 1 9,34.36). Os evangelhos sinóticos dizem
mensão do futuro)"ª. Da contemplação do amor de Deus que se que Jesus celebrou a Ceia pascal com os discípulos na noite antes
torna presente e nos é oferecido na celebração da Eucaristia de­ de ser crucificado. J. Jeremias apresenta catorze argumentos para
vemos tirar a conclusão que o padre Leonel Franca, SI, expressou demonstrar que a Última Ceia de Jesus foi uma ceia pascal9.
com estas palavras: "Com o Absoluto não se regateia. Quem não X. Léon-Dufour refuta esses argumentos 1 0• Os manuscritos de
deu tudo não deu nada. Todo sacrifício tem que ser holocausto". Qumran dizem que no tempo de Jesus havia vários calendários
O Santo Cura de Ars perguntou a um camponês de sua paró­ para celebrar a Páscoa 1 1 •
quia o que fazia durante as horas que passava na igreja olhando Os quatro relatos da instituição da Eucaristia nos transmiti­
para o sacrário. E o camponês respondeu: "Nada, eu olho para ele ram uma tradição anterior à redação dos evangelhos. As palavras
e ele olha para mim� ". Resposta admirável por sua profundidade, que foram ditas e as ações que foram feitas por Jesus sobre o pão
por sua riqueza e por sua beleza. De fato, o Deus que está pre­ e sobre o vinho expressam a realização do desígnio salvífico de
sente na Eucaristia não é o deus dos filósofos. É o Deus que nos Deus, e dizem que a Igreja é o Povo da "Aliança nova e eterna".
oferece seu amor, amor que nós devemos acolher na fé e na ação O tempo transcorrido entre a morte de Jesus e a celebração
de graças. Para quem não fez a experiência de ser envolvido e pe­ da Eucaristia nas comunidades cristãs foi somente de uma década,
netrado pelo amor de Deus, a adoração eucarística não tem sen­ um tempo muito curto para criar e para se expandir a prática da
tido. No entanto, quem crê nesse amor e o acolhe é envolvido e celebração da Eucaristia. Outro argumento para provar a antigui­
penetrado pelo amor de Deus na adoração eucarística, faz a expe­ dade da celebração da Eucaristia pelos cristãos é que as palavras
riência de ser amado e de amar, e se sente feliz. de São Paulo: "Eu recebi do Senhor o que também vos transmiti"
( l Cor 1 1 ,23), têm fundamento histórico, pois nos anos 54-57
podia ser verificada a veracidade dessa tradição, que remonta ao
1 1 1 . A Eucaristia é o memorial do amor com que Jesus Cristo começo da década de 40. São Paulo a recebeu provavelmente da
nos amou comunidade de Antioquia, onde trabalhou durante um ano com
Barnabé (At 1 1 ,26). Acenamos a mais dois argumentos para provar
Os evangelhos sinóticos nos transmitiram como Jesus Cristo que a Eucaristia foi instituída por Jesus Cristo na última Ceia: o
celebrou a ceia pascal com os discípulos: "No primeiro dia dos ázi­ primeiro é o tom aramaico dos relatos, o que confirma suas raízes
mos, quando se imolava o cordeiro [ . . . )" (Me 1 4, 1 2; cf Lc 22, 7; semitas; o segundo é a coincidência das duas tradições no que diz
Mt 26, 1 7); "Ao cair da tarde [ . . . )" (Mt 26,20; Me 14, 1 7); "Esta­ respeito ao seu conteúdo essencial.
vam à mesa e comiam" (Me 1 4, 1 7); "Desejei ardentemente comer
esta Páscoa convosco [ . . . ) " (Lc 22, 1 5). O evangelho de João diz
que Jesus Cristo celebrou a última Ceia com os discípulos na 9. Cf J. JEREMIAS, La demiêre Cêne. Les paroles de Jésus, Paris, Cerf,
véspera da Páscoa dos judeus; que foi julgado, condenado e cru­ 1 972, 42 -66.

cificado na véspera da Páscoa; que o verdadeiro Cordeiro pascal 1 O. Cf X. UoN-DUFOUR, Le partage du pain eucharistique selon /e Nouveau
Testament, Paris, Seuil, 1 982.
1 1 . Ver os dados apresentados em S. CARRILLO AillAY, Jesús de Nazaret. Su
8. Santo Tomás fala dessas três dimensões na Suma teológica li, q. 60, a. 3. vida a partir de los cuatro evangelios, Estella, Verbo Divino, 2007, 1 87-1 88.

40 41
A instituição da Eucaristia por Jesus Cristo
A Paixão de Jesus Cristo

Os quatro relatos da última Ceia mostram que Jesus conhecia (At 2,42). Dizem: "No primeiro dia da semana, estávamos reu­
o futuro dos discípulos 1 2 • Naquele tempo, a pessoa que ia morrer nidos para partir o pão" (At 20,7). Dizem que "partiam o pão
reunia os familiares e amigos, dizia-lhes as últimas palavras e pelas casas e tomavam a refeição com alegria e simplicidade de
fazia seu testamento. Nos discursos de despedida são usadas ex­ coração" (At 2,46). Os primeiros cristãos criam que haviam sido
pressões com relação ao passado: imitar o exemplo da pessoa perdoados de seus pecados pela morte de Jesus Cristo, e louva­
que vai morrer; e com relação ao futuro: estar atentos aos falsários. vam a Deus, que ressuscitou Jesus Cristo e o entronizou à sua
Os familiares e amigos devem viver a união entre eles e com Deus. direita; tinham a certeza de que o Senhor ressuscitado estava
O testamento transmite não somente valores que pertencem ao com eles e esperavam viver a comunhão eterna com Deus na
âmbito do ter, mas também valores que devem permanecer na comunhão dos santos. Os Atos dos Apóstolos dizem que Paulo
memória das gerações futuras. Nessa linha, os relatos da insti­ "subiu novamente, partiu o pão e comeu e ficou falando até de
tuição da Eucaristia dizem que Jesus Cristo continua presente e madrugada" (At 20, 1 1 ) . Os cristãos das primeiras comunidades
atuante na Igreja, que as pessoas que celebram a Eucaristia devem eclesiais tinham a certeza de que o Ressuscitado estava presente,
viver o amor e o serviço como os viveu Jesus, que seus discípulos de maneira invisível, no meio deles na "fração do pão".
devem viver a proexistência como Jesus Cristo a viveu, que eles de­ Os cristãos das primeiras comunidades eclesiais celebravam a
vem percorrer os caminhos que Jesus Cristo percorreu. Nos re­ Eucaristia em suas casas como uma refeição de arnigos13• Porque
latos da instituição da Eucaristia, Jesus se define como Aquele a Eucaristia é o memorial da entrega de Jesus Cristo, é celebrada
que é "para-os-outros", como Aquele cujo "corpo foi entregue" e como oferenda, isto é, como entrega da vida de Cristo e dos cris­
cujo "sangue foi derramado". tãos; é celebrada como ação de graças e como o viático, isto é,
"O sermão da Ceia", diz Origenes, "é o que há de mais seleto como alimento no caminho que desemboca na comunhão eterna
no quarto evangelho. Para compreender seu sentido é necessário com Deus.
haver repousado, como João, no peito de Jesus e haver recebido Os cristãos celebram a Eucaristia em comunhão com todas as
Maria como Mãe". A despedida de Sócrates e as últimas conversas outras comunidades eclesiais, porque os cristãos que pertencem
de Buda não têm a riqueza da despedida de Jesus de seus discí­ a elas fazem parte da Igreja Católica, que está presente e atuante
pulos narrada nos capítulos 1 3 a 1 7 do evangelho de João. Quando em todas as comunidades, nas quais está presente o Espírito que
estava morrendo, Francisco de Assis pediu aos irmãos que lessem, edifica a Igreja. Dessa dimensão "católica" da celebração da Euca­
para ele as ouvir, as palavras que Jesus disse no Cenáculo na ristia fala a Didascália síria dos apóstolos com estas palavras: "Que
noite antes de morrer. cada um dos fiéis tenha muita preocupação por ir à assembleia,
porque é lá que o Espírito Santo dá seus frutos". E diz também
que quando os fiéis "estão ausentes privam o corpo de Cristo de
IV. A celebração da Eucaristia pelos primeiros cristãos um de seus membros".
Os cristãos de todos os tempos e lugares precisam conhecer,
Os Atos dos Apóstolos dizem que os cristãos das primeiras como as conheciam os cristãos das primeiras comunidades ecle-
comunidades eclesiais eram "perseverantes na fração do pão"
1 3 . São Paulo fala em 1 Coríntios l 1 , 1 7-34 dos abusos que eram come­
1 2. Ver sobre este tema X. Li:ON-DUFOUR, op. cit., cap. IV. tidos nessas refeições e como estas devem ser feitas.

43
42
A Paixão de Jesus Cristo A instituição da Eucaristia por Jesus Cristo

siais, as razões de sua fé e de sua esperança. Eles precisam ser com a instituição da Eucaristia. A primeira diz: "Senhor, fazei que
alimentados com a Eucaristia, beber nas águas do amor de Deus me considere sempre servidor de todos, servidor das almas e dos
para viver como filhos de Deus, louvar e servir a Deus. Esse ali­ corpos, para fazer a cada um o maior bem possível". A segunda
mento e essa bebida lhes dão a felicidade verdadeira. A celebração diz: " Receber o Cristo-que-se-dá e alimentar-se dele é de nossa
do Memorial da vida, da morte e da ressurreição de Jesus Cristo parte dizer que queremos nos comprometer em ser-como-ele, isto
deve mover os cristãos a lutar pela justiça do Reino de Deus, é, em viver a nossa vida como Ele viveu a dEle: na doação gratui­
para que o mundo em que vivemos, com tantos marginalizados ta aos outros". A terceira diz: "O compromisso com o agape cria
e oprimidos, seja um mundo mais solidário e mais fraterno. o dinamismo de edificação do corpo de Cristo, que é a Igreja".
Na "assembleia" reunida para celebrar a Eucaristia devem es­
tar presentes a unidade e a diversidade, duas dimensões consti­
tutivas da Igreja, que é una e é católica. As comunidades que V. Como dom Luciano Mendes de Almeida vivia e anunc iava a
celebram a Eucaristia devem estar em comunhão com todas as Eucaristia15
outras comunidades eclesiais. Celebrada assim, a Eucaristia res­
ponde às aspirações mais profundas do ser humano14 e move os Aqui na última seção deste capítulo apresentamos alguns
cristãos que a celebram a viver uma vida "para os outros", como textos de dom Luciano que nos mostram a riqueza e a beleza da
Jesus Cristo a viveu, a viver a entrega a Deus, nosso Pai, e a seus Eucaristia.
filhos amados, que são nossos irmãos, deixando-se guiar pelo Na VIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos,
Espírito Santo. realizada em Roma do dia 30 de setembro ao dia 28 de outubro
Encerramos esta seção citando as palavras de São Paulo na de 1 990, dom Luciano falou da "relação de amor entre o Mestre
primeira carta aos Coríntios e três frases de uma oração de Charles Divino e o discípulo, entre o Senhor e o ministro", dizendo que
de Foucauld. ela "é como que a espinha dorsal de toda a vida espiritual e do
São Paulo diz em 1 Coríntios l l , 1 7-34 que quando na cele­ pastoreio do presbítero"16.
bração da Eucaristia não abrimos nosso coração e nossas mãos às "A verdadeira caridade pastoral não existe sem o amor de
necessidades dos irmãos não vivemos a comunhão com o Cristo amizade entre o presbítero e Cristo. A experiência constante da
que se entregou à morte por nós, mas nos condenamos a nós mes­ entrega de Cristo a nós suscita o amor de nossa entrega aos irmãos
mos. Essa afirmação continua válida para os cristãos de hoje. Eles e leva à total dedicação. 'Amor se aprende com amor'. A melhor
foram, com efeito, como os cristãos de todos os tempos, incorpora­ escola é aquela em que se faz a entrega progressiva de si mesmo
dos ao Corpo de Cristo. Devem, portanto, amar e servir seguindo aos pobres, menores, migrantes e outros marginalizados pela so­
o exemplo de Jesus Cristo aos filhos amados de Deus. ciedade. A experiência do amor gratuito nos coloca dentro do
Numa oração de Charles de Foucauld, há três frases que mistério de Cristo crucificado."17
mostram com muita clareza e muita força a vinculação do lava-pés
1 5. Os dados que apresentamos nesta seção foram tirados do livro organi­
zado pela irmã Neusa Quirino S1MOES, "Em nome de Jesus" passou fazendo o
14. Cf. sobre este tema C. M. MART1N1, L'Eucaristia centro e forma della bem . Lembranças de D. Luciano Mendes de Almeida, São Paulo, Loyola, 2009.
. .

vida della Chiesa, in Un popolo, una terra, una Chiesa, Bologna, EDB, 1 983, 1 6. Ibid., 72.
l 1 5- 1 38. 1 7. Ibid., 73.

44 45
A Paixão de Jesus Cristo
A instituição da Eucaristia por Jesus Cristo

"Era pelo Pai que Jesus se deixava possuir nas horas silenciosas
sofrer, mas, assim como a mãe que dá à luz se entrega, Jesus,
da noite ou cedo antes do amanhecer (Me 1 , 35; Lc 6, 1 2). Era no
quando dá a vida, é feliz. E maior é a felicidade de que dá; e Ele
Pai que encontrava alento, coragem e alegria de sua vida (Jo 4,34;
esperou por esse momento."2 1
5,30; 6,38) . Do imenso amor ao Pai nascia a misericórdia pelos
"A vida consagrada nada mais é do que a reapresentação, o
pecadores, o j úbilo pela revelação feita aos pequeninos e pela
espírito de configuração com aquela alegria exultante do Filho que
beleza dos lírios do campo."18 "Esta união e oração continua é a
se entrega a nós para ser Ele aquele que revela a gratuidade do
força que sustenta os consagrados, para que sejam perseverantes e
Pai. E nós, também escolhidos desde crianças, fomos atraídos por
fiéis nos trabalhos, nas provações espirituais, nas perseguições,
essa misteriosa vontade de dar tudo, e não há palavra melhor, por­
no serviço às crianças, aos 1ºd osos e aos doentes. " 1 9
que o amor, se não é total, não tem o sabor do amor. O amor só
Na conferência sobre "Eucaristia e Vida Consagrada", profe­
é total quando se faz todo compreensão, todo gratidão e todo
rida no Congresso Eucarístico Nacional realizado em Campinas
também experiência de gratuidade. Sem isso, o amor é insuficiente,
nos dias 1 9-22 de julho de 200 1 , D. Luciano fez as afirmações que
frágil, transitório e não traz felicidade. Quem não dá tudo não dá
transcrevemos a seguir:
nada [ . . . ] . A experiência da vida consagrada, o núcleo dessa vida,
"Quando nós dizemos Eucaristia, melhor seria dizer 'Jesus
é a experiência da doação total, da alegria de ser, quase diríamos,
na Eucaristia', porque o que nós entendemos da Eucaristia é a
possuídos por Deus. E esta é a razão do voto de castidade [ . . . ] .
presença de Jesus, é o amor de Jesus. É que viemos adorar, ben­
Quando um rapaz e uma moça se casam, há felicidade na doação;
dizer a Jesus Cristo, realmente presente entre nós."
o nascimento de uma criança . . . Contudo, muito mais é a felici­
"O que nós percebemos em Jesus quando se trata da Euca­
dade de quem diz a Deus: eu sou teu. A alegria de experimentar
ristia é justamente o que significa 'gratidão' . Por quê? Porque o
esse amor que nos faz plenamente da pessoa amada."22
Pai é todo gratuidade e se dá completamente no Filho - todo
"Jesus Eucaristia é como o mágico da unidade. Ele inventa
gratidão. É aquele que, recebendo tudo do Pai, vive a alegria do
um jeito e um sinal para nos colocar ligados uns aos outros. Nós,
amor, recebido na autodoação. Então, Jesus é a Eucaristia, é a
discípulos de Jesus, nunca podemos ter um projeto intimista da
gratidão, é o Filho que tudo recebe do Pai. Pode-se dizer: Jesus é
vida. E é tão bonito que Jesus quer nos falar da Trindade para nos
a Eucaristia, é o amor recebido e agradecido."
livrar da tentação do isolacionismo; nós temos a alegria da solida­
"Então, a doação completa: o corpo entregue, o sangue derra­
riedade, da reciprocidade da doação divina."23
mado, o bom pastor que dá a vida, o grãozinho que morre, o cordei­
Na conferência "Eucaristia e transformação da sociedade",
ro imolado, tudo isso é a imagem do Pai. Assim como o Pai se dá to­
feita no dia 20 de maio de 2006, no 1 5º Congresso Eucarístico
talmente, Jesus veio para nos dar a vida e no-la dá totalmente."20
Nacional em Florianópolis, dom Luciano disse: "A história da Igreja
"Jesus é a gratuidade-gratidão ou, se nós quisermos na ordem
está repleta de testemunhos dos discípulos que, fortalecidos pela
certa, a gratidão-gratuidade, porque justamente recebe tudo gra­
Eucaristia a exemplo da Mãe de Deus, dão sua vida na confiança no
tuitamente do Pai e então se faz todo entregue por nós." "Ele vai
Pai e na entrega ao próximo, transformando o mundo pelo amor.

1 8 . Ibid., 76.
2 1 . fbid., 87.
19. Ibid., 77.
22. fbid., 88.
20. Ibid., 86.
23. Ibid., 90.

46
47
A Paixão de Jesus Cristo

Recordamos tantos nomes, entre os quais dom Oscar Romero, as­


sassinado ao celebrar a Eucaristia, padre João Bosco Burnier, irmã
Cleusa e recentemente irmã Dorothy. Lembro-me especialmente
do cardeal vietnamita Francisco Xavier Van Thuan, que em comu­
nhão com Cristo na Eucaristia manteve-se sereno e confiante, con­ Oração de J esus no Horto das Ol ive i ras
seguiu superar nove anos de cárcere no isolamento total e venceu
e Hora Sa nta
pelo amor perdoando a quantos o mantinham na prisão"24.

1 . A oração de Jesus no H orto das Ol ivei ras

1 . Introdução

Jesus agradece aos discípulos por sua companhia e lhes pro­


mete que participarão do banquete do Reino: "Vós sois os que
permanecestes constantemente comigo em minhas tribulações.
Também eu disponho para vós o Reino, como o meu Pai o dispôs
para mim, a fim de que comais e bebais à minha mesa em meu
Reino, e vos senteis em tronos para julgar as doze tribos de Israel"
(Lc 22,28-30).
A obediência de Jesus à vontade do Pai na oração do Horto
das Oliveiras é enfatizada pelos evangelhos sinóticos (Mt 26,39-
46; Me 1 4,32-42; Lc 22,40-46) . Nessa oração, Jesus dialoga com
o Pai chamando-o de Abbá, palavra que significa "Papai querido"
(Me 1 4,36) e que foi usada por Isaac para falar com seu pai Abraão
(cf Gn 22, 7-8) . Jesus, que fez sempre a vontade do Pai (cf Hb
1 0,5-1 O e Fl 2,4 . 1 1 ) , também a faz, suando sangue, na oração do
24. Ibid., 1 05 . Horto das Oliveiras.

48 49
Oração de Jesus no Horto das Ol iveiras e Hora Santa
A Paixão de Jesus Cristo

chão (Me 1 4,34). Com o rosto na terra e suando sangue, o Filho


Façamos os rituais para fazer nossa oração sobre a oração de
Jesus na noite antes de ser crucificado: recordar a história, ima­ orou dialogando com seu "Papai muito querido"1•
Depois de contemplar essa cena, "reflitamos em nós mesmos"
ginar o cenário e pedir a graça da compaixão, da dor e da confusão
perguntando-nos: oramos como orou Jesus no Horto das Oliveiras?
"porque o Senhor vai a sua paixão por meus pecados" (EE 1 93).
Fazemos a vontade do Pai como a fez Jesus? Somos fiéis a Deus
Peçamos a graça de viver a fé que recebemos e da qual devemos
mesmo nas situações de abandono e de angústia?
dar testemunho no mundo em que vivemos, um mundo que re­
jeita os valores evangélicos; peçamos a graça de responder ao amor
com que Deus nos amou e nos ama identificando-nos com Jesus
3. Obediência de Jesus à vontade do Pai
Cristo em sua agonia.

Mateus descreve a oração de Jesus no Horto das Oliveiras com


2. Oração agônica de Jesus
estas palavras: "E, indo um pouco adiante, prostrou-se com o rosto
em terra e orou assim: 'Meu Pai, se é possível, que passe de mim este
cálice; contudo, não seja como eu quero, mas como tu queres'"
Jesus ia com frequência no fim do dia ou de madrugada para
(Mt 26,39). "Deixando-os, afastou-se e orou pela terceira vez, dizen­
lugares retirados, e nesses lugares orava conversando com 0 Pai.
do de novo as mesmas palavras" (Mt 26,44). Lucas diz que Jesus
Na última noite de sua vida, sabendo que havia chegado "sua
"orava dobrando os joelhos" (Lc 22,4 1 ). O sistema cardiovascular
hora", Jesus orou no Horto das Oliveiras "como era seu costume"
de Jesus não aguenta a pressão causada pelo sofrimento e ele sua
(Lc 22, 1 9). Quando chegaram lá, Jesus disse aos discípulos: "Sen­
sangue: "O suor se lhe tomou semelhante a espessas gotas de sangue
tai-vos aqui enquanto vou orar" (Me 1 4,32) . E continuou cami­
que caiam por terra" (Lc 22,44). Segundo o evangelho de Lucas,
nhando e partilhando com três discípulos sua tristeza e sua an­
Jesus é confortado por um anjo. Segundo o evangelho de João, Jesus,
gústia dizendo: "Minha alma está triste até a morte. Permanecei
diante da morte iminente, pede ao Pai que o liberte dessa "hora",
aqui e vigiai" (Me 1 4,34) . Os três discípulos que acompanharam
mas acrescenta: "Vim para aceitar esta hora" (cf Jo 1 2,20-33).
Jesus no Horto das Oliveiras eram os mesmos que haviam visto
Da oração agônica de Jesus fala também a carta aos Hebreus,
sua transfiguração no monte Tabor.
dizendo: "Cristo, nos dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e
A tristeza e a angústia experimentadas por Jesus naquela
súplicas, com forte clamor e lágrimas", expressão que pode ser
noite refletem-se em seu rosto e no tom de sua voz. Antes de
traduzida com as palavras "com fortes gritos", "àquele que tinha
afastar-se dos discípulos, Jesus os anima, abraçando-os, olhan­
do-os e sorrindo para eles. Não consegue, porém, amainar as
ondas do mar de tristeza que haviam invadido os corações dos 1 . Sobre o significado e a novidade desta forma de relação com Deus
discípulos. ver as reflexões que fizemos em nosso livro Vimos a sua glória. Como Jesus vê e
olha e como é visto e olhado no evangelho de João (São Paulo, Paulinas, 2005),
Contemplemos as costas fortes de Jesus, encurvadas pelo
e no capítulo A vida de Jesus em Nazaré à luz das parábolas, em nosso livro
sofrimento, a cor de sua túnica que vai sumindo na escuridão da Os trinta anos de Jesus em Nazaré (São Paulo, Loyola, 2006, 95-1 1 1 ). Ver
noite. Jesus de Nazaré não foi um superman; o Verbo que assumiu também O. GONzALEZ DE CARDEDAL, Dios Padre de nuestro Seii.or Jesucristo,
a nossa carne sentiu medo e angústia diante da morte iminente in Meditación teológica desde Espana, Salamanca, Sígueme, 1 970, 1 23-1 34, e
sentiu-se abandonado, o peso dos pecados do mundo o fez cair n� La oración en la ex.istencia cristiana, in ibid., 502-507.

51
50
A Paixão de Jesus Cristo Oração de Jesus no Horto das Oliveiras e Hora Santa

poder de salvá-lo da morte" (Hb 5, 7). O versículo seguinte (Hb 5,8) Estes, porém, dormiam. Quando Jesus os acordou, os discípulos
diz que a oração de Jesus foi ouvida e que o Filho acolheu incon­ "não sabiam o que lhe dizer" (Me 14,40). Quando foi pela terceira
dicionalmente a vontade do Pai. Mateus diz que Jesus, no início da vez ao encontro deles, Jesus lhes disse: "Vede, o Filho do Homem
oração, pede: "Se for possível, afasta de mim este cálíce". Mas acres­ está sendo entregue às mãos dos pecadores. Levantai-vos1 Vamos]
centa: "Contudo, não seja feito como eu quero, mas como tu que­ Aquele que vai me entregar está chegando" (Me 1 4 ,4 1 -42) . Con­
res" (Mt 26,39) . E ao orar pela segunda vez diz: "Meu Pai, se este temp lemos a solidão de Jesus e peçamos-lhe que nos conceda a
cálice não pode passar sem que eu o beba, seja feita a tua vontade" graça de buscar e encontrar Deus nas horas de angústia e de aban­
(Mt 26,42). Jesus morrerá na tarde do dia seguinte, entregando dono, de encontrar o Deus que mendiga nosso amor batendo na
seu último alento nas mãos do Pai, dando a salvação aos que se porta de nosso coração (Ap 3,20) .
abrem ao amor de Deus e lhe entregam suas vidas (Hb 5,9). Jesus fez a experiência de não ser amado por seus discípulos.
Quando ora com o rosto no chão e suando sangue, Jesus não Judas o entregou por trinta moedas, Pedro o negou três vezes, os
fala com um deus dominador, mas dialoga com o Deus que faz as outros discípulos o abandonaram. Quando Jesus disse: "A mão de
loucuras que são próprias do amor, dialoga com o Pai que entrega quem vai me entregar está perto de mim, nesta mesa" (Lc 22, 2 1 ),
seu Filho à morte porque nos amou (cf. Rm 8,32.35; Gl 2, 20; os discípulos retiraram as mãos da mesa. Com mais ou menos dor,
Ef 5, l ; Jo 3, 1 6; 1 0, 1 8; Rm 8,32 e Jo 3, 1 6). Jesus é consciente do a solidão é experimentada pelos discípulos de Jesus. Peçamos a
significado salvífico daquela hora, de que Deus nos salva pelos Jesus que nos dê a graça de contemplar seus sofrimentos na Paixão,
sofrimentos da sua Paixão, é consciente de que carrega, como sermos fortalecidos para vencer a solidão, que ele cure as feridas
nosso Salvador, nossos pecados e todos os pecados do mundo. de nosso coração, que sejamos fiéis a Deus nas horas de nossa
Depois de contemplar demoradamente essa cena, reflitamos solidão e nos sintamos movidos a ajudar as pessoas em suas soli­
em nós mesmos perguntando-nos como oramos. E peçamos ao dões. Essa foi a práxis de Jesus na Paixão e ao longo dos três anos
Filho amado, ao "Papai querido" que nos ama com amor de Pai, e de seu ministério.
ao Espírito Santo, que é o amor, a graça de nos deixarmos envolver No contexto da oração agônica de Jesus no Horto das Oliveiras,
e invadir pelo amor da Santíssima Trindade. recordemos suas tentações no deserto (Me 4, 1 -1 1 par.) . O compor­
tamento de Jesus não foi o de um Messias político que liberta o
povo judeu da escravidão romana, mas foi o do Messias condenado,
4. Jesus convida os d iscípulos a orar torturado e crucificado pelas autoridades religiosas dos judeus e
pelas autoridades políticas do Império Romano. Diante das glórias
Jesus interrompeu três vezes a oração para ir ao encontro mundanas, que o Tentador lhe apresenta nas tentações do deserto,
dos discípulos que dormiam, e lhes disse: "Vigiai e orai, para não o comportamento de Jesus é o mesmo que no Horto das Oliveiras.
cairdes em tentação" (Mt 26,4 1 ) . Ao falar da oração de Jesus, Lucas Nessas duas situações, Jesus faz a vontade do Pai praticando a ora­
usa a palavra "agonia", que significa agitação da alma, angústia. ção e percorrendo os caminhos do amor. A agonia de Jesus no Horto
Essa oração agônica (Lc 22,39) foi feita por Jesus perto do lugar de Getsêmani "está envolta num halo de mistério que nenhuma
onde acontecerá a Ascensão (At 1 , 1 2). Naquela hora de angústia, mente humana é capaz de penetrar adequadamente"2• Jesus sabe
o coração de Jesus precisava da companhia dos amigos. Por isso,
interrompeu a oração três vezes e foi ao encontro dos discípulos. 2. Fulton J. SHEEN, Vu:la de Cristo, Porto, Ed. Educação Nacional, 1959, 462.

52 53
A Paixão de Jesus Cristo
Oração de Jesus no Horto das Oliveiras e Hora Santa

que vai sofrer torturas, injúrias e a morte na Cruz. Mas as aceita Os participantes da Hora Santa são também convidados a
para fazer a vontade do Pai e para nos libertar do pecado. orar em silêncio. Para que essa forma de oração possa ser feita, é
Depois de contemplar a oração agônica de Jesus, reflitamos necessário que haja tempos de silêncio. E são convidados a fazer
em nós mesmos perguntando-nos como fazemos a vontade do Pai, orações espontâneas, nas quais as pessoas participantes expres­
como carregamos os sofrimentos em nossas vidas, como vigiamos sam seus sentimentos e desejos na forma da oração de súplica, e
e oramos. Peçamos ao Pai querido que nos conceda a graça de viver expressam também sua gratidão e seu louvor.
a comunhão com seu Filho amado e a graça de superar as dificul­
dades que encontraremos em seu seguimento. Podemos pedir
essa graça rezando a oração Alma de Cristo, tendo como pano de 2. Ladainha sobre os sofrimentos de Jesus no Horto das Oliveiras
fundo a solidão de Jesus no Horto das Oliveiras, e saboreando
cada uma das invocações e petições dessa oração. As preces que propomos para orar na forma ladainha nesta
Hora Santa são inspiradas num texto de Karl Rahner ou foram co­
piadas desse texto. Rezando essa ladainha, dialogamos com Jesus que
1 1 . Sugestões para fazer uma Hora Santa d i ante do Santíssimo
Sacramento está presente na Eucaristia. Podemos, portanto, dizer a Jesus:
"Jesus, tu vives realmente conosco com tua humanidade; com tua
Nos quatro itens desta seção propomos alguns rituais para carne, teu sangue, teu coração e teu espirita. A tua vida humana
fazer uma Hora Santa sobre os sofrimentos de Jesus no Horto das deixou no teu coração marcas que continuam vivas nele. Por isso,
Oliveiras. Propomos fazer essa Hora Santa sobre a oração agônica nós podemos fazer esta oração recordando tua oração agônica no
de Jesus no Horto das Oliveiras tendo a certeza, que nos é dada Horto das Oliveiras, que continua ecoando no teu coração e que
pela fé cristã, de que o mesmo Jesus de Nazaré que fez essa oração deve ecoar em nosso coração. Queremos tornar presente, nesta
na noite antes de sofrer a Paixão está presente agora, como o Hora Santa, tua agonia naquela noite. Nós dirigimos a Ti nossa
Senhor ressuscitado, no Sacrário. oração com muita fé, muito amor, muito agradecimento e muita
compaixão".
"Jesus, teu espirita humano contempla agora na glória celeste
1 . Sugestões para fazer a liturgia da Hora Santa o Pai que quis para tua vida aquela oração agônica. Teu coração,
que continua adorando a vontade do Pai, está aqui, no meio de
A liturgia da Hora Santa é feita pondo o ostensório sobre o nós. Nenhuma tristeza, nenhuma angústia de morte sulca teu
altar. Os participantes são convidados a cantar o canto "Deus de coração, que está mergulhado na felicidade da comunhão com o
amor, nós te adoramos . . . ". Depois pode ser lido o texto de Marcos Pai. No entanto, a experiência daquela oraçlio agônica feita no
1 4,32-42, e ao longo da Hora Santa são repetidos refrões de can­ Horto das Oliveiras marcou para sempre teu coração. E teu cora­
tos conhecidos; por exemplo: 1 ) "Dá-nos um coração/grande para ção está aqui."
amar/Dá-nos um coração/forte para lutar". 2) "Eu vos dou um "O Apóstolo Paulo diz que nos dias de tua vida terrestre ele­
novo mandamento/que vos ameis uns aos outros/assim como eu vaste lágrimas e gemidos a quem podia libertar-te da morte. Assim
vos amei,/diz o Senhor". 3) "A misericórdia do Senhor/sempre, aprendeste, na tua carne, ao viver a nossa vida, a obediência. Nós
sempre eu cantarei" . desejamos fazer, com essa fé, esta nossa oração de adoração e de

54
55
A Paixão de Jesus Cristo Oração de Jesus no Horto das Oliveiras e Hora Santa

súplica, no silêncio e na partilha dirigindo nossas preces ao teu Jesus, pela repugnância que te produziram esses pecados, tem . . .
coração, no qual estão vivas as experiências daquela noite. Movi­ Jesus, pela visão que então tiveste dos meus pecados, tem . . .
dos por essa fé, vamos repetir muitas vezes nesta Hora Santa esta Jesus, pelo que sofreste então por meus pecados, tem . . .
súplica: 'Senhor, tem misericórdia de nós! ' ." Jesus, pela prontidão para carregar todos os pecados do
"Jesus, por tua obediência aprendida no Horto das Oliveiras, mundo, tem . . .
tem misericórdia de nós. Jesus, pelo teu sofrimento por nós não acolhermos tuas dores
Jesus, por tua entrega total, conseguida na luta do Horto das e injúrias, tem . . .
Oliveiras, tem . . . Jesus, pela solidão do teu coração diante do abandono do
Jesus, por teu amor para conosco, invencível no Horto das Pai, tem . . .
Oliveiras, tem . . . Jesus, pela obediência à imperscrutável vontade do Pai,
Jesus, por tua bondade, que não ficou amargurada no Horto tem . . .
das Oliveiras, tem . . . Jesus, por teu invencível amor a um Deus que era visto
Jesus, por tua fortaleza, que continuou sendo heroica no como irado, tem . . .
Horto das Oliveiras, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, sacerdote de todos os que so­
Jesus, por tua doçura, que não desapareceu no Horto das frem, tem . . .
Oliveiras, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, o mais abandonado de todos
Jesus, pela angústia e pelo terror daquelas horas, tem . . . os abandonados, tem . . .
Jesus, por teu pavor e por teu tédio, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, guia dos que na sua angústia
Jesus, por tua oração no Horto das Oliveiras, tem . . . clamam a Deus, tem . . .
Jesus, pelas vezes que caíste com teu rosto na terra, tem . . Jesus do Horto das Oliveiras, modelo para todos os que são
Jesus, pela tua perseverança na oração, tem . .
. tentados, tem . . .
Jesus, pela tristeza mortal de tua alma, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, consolo de todos os atormen­
Jesus, pela tua súplica para que fosse afastado o cálice da tados pela morte, tem . . .
Paixão, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, força dos que expiam os peca­
Jesus, por tua oração: 'Não se faça a minha vontade, mas a dos do mundo, tem . . .
tua', tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, irmão na angústia e no deses­
Jesus, por todas as vezes que disseste: ' Pai', tem . . . pero do mundo inteiro, tem . . .
Jesus, pelo teu tríplice 'Sim' à vontade do Pai, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, que compreendes todas as penas,
Jesus, pelo abandono dos apóstolos que dormiam, tem . . . tem . . .
Jesus, pelo Anjo que te confortou, tem . . . Jesus do Horto das Oliveiras, em quem todo abandono tem
Jesus, pelo suor sangrento de tuas angústias, tem . . . seu próprio lar, tem . . .
Jesus, pela dolorosa previsão das dores que ainda sofrerias, Jesus do Horto das Oliveiras, que continuas amando cada
tem . . . pecador, tem . . .
Jesus, pelo teu conhecimento dos pecados do mundo inteiro, Jesus do Horto das Oliveiras, que apertas no teu coração os
tem . . . mais desonrados, tem . . .

56 57
A Paixão de Jesus Cristo
Oração de Jesus no Horto das Oliveiras e Hora Santa

Jesus do Horto das Oliveiras, faz-nos regressar à casa do Pai Conforta-nos na nossa agonia com a tua coragem diante da
na nossa morte. morte, te rogamos, escuta-nos.
Jesus do Horto das Oliveiras, escuta-nos. Envia-nos o Anjo do Horto na hora da nossa morte, te rogamos,
Jesus do Horto das Oliveiras, perdoa-nos. escuta-nos.
Jesus do Horto das Oliveiras, tem piedade de nós. Ensina-nos a vigiar e a orar acompanhando-te no Horto, te
Dos pecados pelos quais choraste no Monte das Oliveiras, rogamos, escuta-nos.
livra-nos, Jesus. Imprime a palavra ' Pai' no nosso coração e nos nossos lábios
Da ingratidão para com teu amor, livra-nos, Jesus. quando nos cegarem a majestade, a justiça, a distância de Deus,
Da indiferença diante da tua Paixão, livra-nos, Jesus. te rogamos, escuta-nos.
Da insensibilidade diante da tua agonia, livra-nos, Jesus. Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo . . .

Da resistência à graça alcançada para nós na noite de Getsêmani, Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo . . .
livra-nos, Jesus. Cordeiro de Deus que tiras os pecados do mundo . . . "

Da nossa rejeição do teu 'Sim' à dor e à expiação, livra-nos,


Jesus. "Oremos: Jesus que estás aqui presente com os santos senti­
Da nossa falta de fé e de amor nas nossas noites de Getsêmani, mentos do teu coração divino e humano, sentimentos que te man­
livra-nos, Jesus. tiveram em expiação, obediência e amor durante a agonia mortal
Da amargura nas nossas amarguras do Horto, livra-nos, Jesus. da noite no Horto das Oliveiras e te acompanharam sempre aqui
Do desespero em nossos abandonos, livra-nos, Jesus. no Sacrário. Nós te pedimos que nos concedas a graça de encher
Nós, pobres pecadores, te rogamos, escuta-nos. nosso coração de arrependimento por nossos pecados, a graça de
Esquece nossas culpas, te rogamos, escuta-nos. aceitar nossa cruz e a graça de nos identificar contigo, em e espí­
Faze-nos compreender os sofrimentos, te rogamos, escuta-nos. rito de reparação e de penitência; e que nos concedas correspon­
Ensina-nos a viver tua entrega à vontade do Pai, te rogamos, der ao amor com que nos amaste, no Getsêmani, no inicio da tua
escuta-nos. Santíssima Paixão. Amém."
Ensina-nos tua constância na oração do Horto, te rogamos,
escuta-nos.
Comunica-nos os sentimentos do teu coração naquelas horas, 3. Ritos finais
te rogamos, escuta-nos.
Faze-nos compreender a penitência e a reparação, te rogamos, Cantar "Tão sublime sacramento". Encerrar a Hora Santa
escuta-nos. com bênção de Jesus, presente no ostensório.
Faze que reconheçamos nossas dores como participação nas
tuas, te rogamos, escuta-nos.
Infunde-nos teu horror aos nossos pecados, te rogamos, es­
cuta-nos.
Dá-nos tua força e tua paciência em nossas adversidades, te
rogamos, escuta-nos.

58
59
Co ndenação e flagelação d e J esus,
e os u ltrajes q ue sofreu

1 . Jesus é abandonado pelos d iscípulos, traído por J udas,


negado por Pedro, condenado e ultrajado no Sinédrio

"Judas, o traidor, tinha combinado com os soldados enviados


para prender Jesus este sinal: 'É aquele que eu vou beijar. Pren­
dei-o e levai-o com cautela�'. Jesus ainda falava, quando chegou
Judas, um dos Doze, acompanhado de uma multidão com espadas
e paus; eles vinham da parte dos sumos sacerdotes, escribas e
anciãos" (Me 1 4,43) . Judas se aproximou, disse: Rabbi!, e beijou
Jesus. Contemplemos como Jesus olhava Judas e ouçamos as pa­
lavras que lhe disse: "Judas, com um beijo entregas o Filho do
Homem?" (Lc 22,48) . As mãos que haviam curado os doentes,
dado de comer aos famintos, abençoado as crianças, foram presas
como se fossem as mãos de um ladrão: "Então, eles lançaram as
mãos em Jesus e o prenderam" (Me 1 4,46). E os discipulos o aban­
donaram e fugiram (cf Me 1 4 , 50) .
"Ao amanhecer, os anciãos do povo, os sumos sacerdotes e os
escribas reuniram-se e levaram Jesus ao Sinédrio" (Lc 22,66) . "Os
sumos sacerdotes e o Sinédrio inteiro procuravam um testemunho

61
Condenação e flagelação de Jesus e
0s u ltraies
. que sofreu
A Paixão de Jesus Cristo •

1 . Flagelação de Jesus
contra Jesus para condená-lo à morte, mas não encontravam"
(Me 1 4,55). "Então, todos o sentenciaram réu de morte. Alguns
Os condenados à flagelação recebiam nas costas nuas, amar­
começaram a cuspir nele. Cobrindo-lhe o rosto, batiam nele e
rados a uma coluna, os golpes dos flagelos. Os legionários roma­
diziam: 'Profetiza! ' . Os guardas, também, o receberam a tapas"
nos usavam para a flagelação o fiagrum, que cortava a carne, ou
(Me 1 4,64-65).
o fiagellum, que tinha nas pontas tiras de couro, com pedaços de
Quando Jesus estava sendo julgado pelo Sinédrio, Pedro es­
osso ou bolas de metal. Muitos condenados à flagelação morriam
tava fora, junto ao fogo. Ele havia afirmado sua fidelidade a Jesus
qua ndo eram açoitados com esses instrumentos.
dizendo: "Mesmo que todos venham a cair, eu jamais" (Mt 26,33);
Contemplemos essa cena da Paixão de Jesus Cristo ouvindo
"Ainda que eu tenha de morrer contigo, não te negarei" (Mt 26,35;
os golpes das chicotadas, a respiração dos carrascos, que respiram
Me 1 4 ,3 1 ); "Senhor, eu estou pronto para ir contigo até mesmo
fundo para bater com mais força; ouçamos o som das bofetadas
à prisão e à morte!" (Lc 22,33) . No entanto, agora negaria Jesus
e das cusparadas no rosto de Jesus, sua respiração ofegante e seus
três vezes (Me 1 4,66-72). Uma criada do sumo sacerdote disse
gemidos. Contemplemos as feridas nas costas de Jesus, o sangue
a Pedro: "Tu também estavas com Jesus, esse nazareno�" (Me 1 4,67).
e a sujeira em seu rosto. Nessa hora, Jesus se identifica com as
Pedro lhe disse: "Não sei nem entendo de que estás falando". Na
pessoas que sofrem torturas físicas e psicológicas, com os conde­
segunda negação, Pedro negou ter qualquer relação com Jesus:
nados à morte, com as crianças abandonadas, com os doentes,
"Não conheço esse homem�". Pedro negou Jesus pela terceira vez
com as pessoas idosas; em suma, com todos os que sofrem.
diante da gentalha: "Ele começou então a praguejar e a jurar: 'Nem
O evangelho de João enfatiza o senhorio de Jesus Cristo nos
conheço esse homem de que estais falando!' " (Me 1 4, 7 1 ) .
sofrimentos da Paixão 1 : quando foi preso, se entregou (1 8,4-9);
Contemplemos o olhar carregado de tristeza, de compaixão
diante de Caifás, ficou em silêncio sabendo que "vai morrer pelo
e de perdão com que Jesus olhou Pedro. Depois de negar Jesus três
povo" ( 1 8, 1 4) ; diante de Pilatos, disse a verdade sabendo que ia
vezes, Pedro chorou. As lágrimas que deslizaram por seu rosto
morrer crucificado ( 1 9, 1 7). O evangelho de João nos revela com
saíram de seu coração arrependido. Pedro chorou até a morte
extraordinária força e profundidade o significado salvífico dos
por ter negado Jesus três vezes.
sofrimentos de Jesus em sua Paixão. Esse significado seria anun­
ciado no letreiro redigido em hebraico, latim e grego posto no
alto da Cruz: "Jesus de Nazaré, o rei dos judeus" ( 1 9, 1 9-20) .
1 1 . Encontro de Jesus com Pilatos

2. Eis o homem!
O processo de Jesus diante de Pilatos é relatado pelos evan­
gelhos sinóticos e pelo evangelho de João nestes textos: Pilatos e
Ao dizer "Eis o homem�", a intenção de Pilatos era ridicula­
os judeus (Jo l 8,28-32.38b-40); Jesus e Pilatos (Jo l 8,33-38a); ul­
rizar Jesus e os seus inimigos: Olhai o Jesus que vos amedronta,
trajes sofridos por Jesus (Jo 1 9, 1 -3); Pilatos e os judeus (Jo 1 9,4-8);
novo encontro de Jesus e Pilatos (Jo 1 9,9- 1 2a); novo encontro
de Pilatos e os judeus (Jo 1 9, 1 2b-1 5). Nos três itens a seguir co­ 1 . Cf J. Gu1LLET1 A consumação: a Paixão, in Jesus Cristo no evangelho de
João, São Paulo, Paulinas, 198 1 , 64-70.
mentamos o que dizem esses textos.

63
62
A Paixão de Jesus Cristo
Condenação e flagelação d e Jesus, e o s ultrajes q u e sofreu

vede seu corpo rasgado pelas chicotadas, a coroa de espinhos em golpes das chicotadas. Jesus Cristo, nosso Salvador, carrega os pe­
sua cabeça, o manto de púrpura sobre seus ombros] Na expressão cados do mundo e as dores das pessoas injustiçadas e torturadas.
"Eis o homem]" há uma relação com a investidura do Filho do Depois de contemplar os efeitos do ódio das pessoas que
Homem descrita pelo profeta Daniel: "Notei, vindo sobre as nuvens torturam Jesus e o olhar de Jesus, contemplemos, com os olhos da
do céu um como Filho do Homem. Ele adiantou-se até o Ancião fé e do amor, o olhar com que o Pai olha o Filho amado, os olhares
e foi introduzido à sua presença. A ele foram outorgados o impé­ da Mãe de Jesus, de João, de Pedro e, no extremo oposto, o olhar de
rio, a honra e o reino; e todos os povos, nações e línguas o serviram. Judas. Peçamos, por intercessão da Mãe de Jesus, a graça da com­
Seu poder é um poder eterno que jamais passará, e seu reino paixão com as dores de seu Filho, e a graça de responder ao seu
jamais será destruído" (Dn 7, 1 3- 1 4)2. amor amando e servindo a Deus e aos irmãos. Deixemos que as
Nesse "homem das dores", apresentado por Pilatos como palavras de Pilatos: "Eis o homem]" (Jo 1 9,5), ressoem em nosso
um farrapo humano, nos é revelado o amor com que Deus nos coração. Peçamos a Jesus que nos dê a graça de sermos comovidos
ama, nos é revelada a relação de Jesus com o Pai e de Deus conos­ por seu amor e a graça de sermos movidos a segui-lo e a dar tes­
co. Detenhamo-nos na contemplação dessa cena e peçamos a temunho de seu amor amando e servindo.
graça de aprofundar o conhecimento da pessoa e da missão de
Jesus, de crer no amor de Deus que nos foi revelado na figura
"de um homem acossado e entregue à crueldade dos homens. A 3. Eis o vosso rei!
realidade divina de Jesus, seu poder e seu amor estão inteiros,
presentes e atuantes no seu semblante ensanguentado"3. Pilatos coroa a paródia feita pelos soldados com um cerimonial
As torturas e zombarias sofridas por Jesus Cristo na Paixão ridiculo, descrito pelo evangelho de João com estas palavras: "Ou­
- quando foi açoitado, cuspido, esbofeteado, quando lhe puseram vindo estas palavras, Pilatos trouxe Jesus para fora e sentou-se no
a coroa de espinhos na cabeça, quando carregou nos ombros a Cruz, tribunal, no lugar conhecido como Pavimento [em hebraico: Gábata].
quando suas mãos e seus pés foram pregados - nos revelam que Era o dia da preparação da páscoa, por volta do meio-dia. Pilatos disse
Deus nos amou em Jesus Cristo com um amor que foi "até o fim". aos judeus: 'Eis o vosso rei"' (Jo 1 9, 1 3- 1 4). Pilatos repete mais uma
O Verbo encarnado é a epifania em nosso mundo e em nossa his­ vez que Jesus não cometeu nenhum delito (Jo 1 8,29.38; 1 9,4.6),
tória do amor apaixonado com que Deus nos ama. Jesus Cristo foi mas entrega Jesus aos que pedem sua morte. O evangelho de João
tratado como um malfeitor (Jo 1 8, l 2), como um louco (Lc 23, l l ) ; repete dez vezes a palavra "rei". "O rei dos judeus" (Me 1 5,2) é sub­
foi torturado, zombado e crucificado junto com dois bandídos. metido a um processo de linchamento em praça pública e é rejei­
A pintura de Rouault "Eis o homem!" pode nos ajudar a con­ tado com os gritos "Crucifica-o] Crucifica-o] " (Jo 1 9, 1 5).
templar essa cena. O olhar de Jesus nessa pintura está carregado Até esses abismos desceu o amor condescendente de Deus
de dor e de ternura. Ele não está fixo num ponto, mas se estende a por nós. Peçamos a graça de descobrirmos e acolhermos esse amor.
toda a humanidade. O amor com que Deus nos ama nos é revela­ Quando estão em jogo o egoísmo, a ambição do poder e o ódio, é
do nesse rosto esbofeteado e cuspido, nesse corpo rachado pelos inútil invocar a lei. Contudo, seguindo o exemplo de Jesus, deve­
mos defender os inocentes, sejam quais forem os sofrimentos a que
2. lo., J. GurLLET, lésus devant sa vie et sa mort, Paris, DDB, 2 1 99 1 , 65. sejamos submetidos por defendê-los. Devemos defendê-los ainda
3. Ibid., 66. que as multidões peçam aos gritos sua condenação e sua morte.

64 65
A Paixão de Jesus Cristo Condenação e flagelação de Jesus
, e os ultrajes que sofreu

Diante dessas injustiças, o judeu, o pagão e o ateu moderno Esse questionamento foi repetido por muitos outros "sábios e in­
perguntam: "Onde está a justiça de Deus?". A resposta a essa per­ teügentes". Voltaire o repetiu quando um terremoto matou mui­
gunta está no comportamento de Jesus, que não responde às tas pessoas em Portugal. Esse problema continua a nos questionar
acusações, mas fica em silêncio. O seu silêncio é mais uma epi­ no mundo em que vivemos. Paul Ricoeur o reformulou nestes
fania do amor com que Deus nos ama nas situações de injustiça termos: "Como podem ser afirmadas ao mesmo tempo estas três
praticadas no mundo em que vivemos. proposições: Deus é todo-poderoso, Deus é absolutamente bom,
0 mal existe?"4• A resposta ao problema da existência do mal e da

dor dos inocentes não é dada filosofando sobre as causas do sofri­


1 1 1 . Refl itamos em nós mesmos e peçamos a graça de nos mento, mas nos perguntando o que podemos e o que devemos
com portar como se comportou Jesus na Paixão fazer no mundo em que vivemos para amar, para servir, para über­
tar as pessoas submetidas aos sofrimentos ou para diminui-los.
Depois de contemplar as cenas comentadas na primeira e na Jesus de Nazaré nos mostrou que é possível crer em Deus, es­
segunda seção, detenhamo-nos para refletir em nós mesmos a perar em Deus, amar Deus e amar os irmãos quando nós e/ou eles
fun de que os reflexos dos sofrimentos da Paixão de Jesus Cristo somos perseguidos, condenados e torturados. Na vida e na Paixão de
iluminem os caminhos da nossa vida. Iluminados por essa luz, Jesus Cristo encontramos a resposta ao mistério do mal e do so­
perguntemo-nos o que podemos fazer e o que fazemos para Ü­ frimento dos inocentes. Quando o Filho de Deus, que "desceu do
bertar as pessoas que são esbofeteadas, torturadas, assassinadas, céu", foi dado à luz num curral da periferia de Belém, foi coloca­
feridas em sua dignidade, e para salvar suas vidas. A resposta a do por sua Mãe, envolto em faixas, numa manjedoura. O Verbo en­
essas perguntas está na práxis de Jesus de Nazaré, que passou carnado viveu trinta anos em Nazaré, na Galileia dos gentios, numa
pelos caminhos de nossa terra übertando os cativos, curando os aldeia cujos habitantes eram desprezados. Lá fez como adulto os
doentes, dando de comer aos famintos, acolhendo os pecadores, trabalhos que faziam os carpinteiros, os ferreiros e os pedreiros.
em suma, fazendo o bem a todos. Durante os três anos incompletos da vida púbüca, anunciou o Evan­
A resposta a essas perguntas está também na vida dos discí­ gelho do Reino de Deus, proclamou bem-aventurados os pobres e
pulos e das discípulas de Jesus. Quando cheguei perto de dom os que promovem a paz (Mt 5, 1 - 1 2), fez o bem a todos (At 1 0,38).
Luciano Mendes de Almeida, quando estava num pronto-socor­ Jesus de Nazaré, o Verbo que assumiu nossa carne, o Messias, nosso
ro de Belo Horizonte com o corpo todo quebrado, a primeira Salvador, foi crucificado fora dos muros de Jerusalém junto
pergunta que me fez foi: "E com � está o padre Ângelo?". O pa­ com dois bandidos. Verdadeiramente, Deus nos amou "até o fim"
dre Ângelo Mosena havia morrido no acidente de carro no qual (Jo 1 3, 1). A vida, a morte e a ressurreição de Jesus Cristo mostram,
dom Luciano ficou com o corpo todo arrebentado. E no hospital como disse K. Kasper, que "Deus pode superar o sofrimento com
ele continuou a carregar as dores dos irmãos. .
o sofrimento e d estruir com a morte o poder d a morte "5 .
O problema de como compaginar a existência de Deus com
a existência do mal no mundo foi formulado por Epicuro na for­
ma deste dilema: "Deus ou não quer ou não pode eliminar o mal". 4. P. R1coEUR, Le mal. Un défi à la philosophie et à la théologie, Genéve,
E tirou esta conclusão: "Se não quer, não é Deus, mas é um mal­ Labor et Fides, 1 986, 13.
5. K. K.AsPER, Fe cristiana y sociedad moderna, Madrid, SM, 1 986, v. IX,
vado; se não pode, também não é Deus, pois não é onipotente". 2 1 2. Ver também S. DEL CURA, EI "sofrimiento" de Dios en el trasfondo de la

66 67
A Paixão de Jesus Cristo

Para compreender e viver no mundo de hoje o amor de Deus


que nos foi revelado por Jesus Cristo, para compreender as "lou­
curas" que o "amor louco" de Deus fez por nós, seus filhos, na
Paixão de seu Filho amado, é necessário que sejamos iluminados e
movidos por esse amor, sabendo que as incompreensões, as per­ J es u s ca rrega a Cruz,
seguições e os sofrimentos fazem parte da vida dos discípulos de é cruc ifica d o e sua tú n ica é sortea da
Jesus Cristo. Isso disse Jesus a seus discípulos na Última Ceia:
"Se eles me perseguiram, também vos perseguirão" (Jo 1 5,20).
Depois de fazer a experiência do amor de Deus na contem­
plação dos mistérios da Paixão de Jesus Cristo, podemos dizer com
K. Rahner que é mais difícil sermos condenados do que sermos
salvos. De fato, Deus não condena ninguém, são os seres huma­
nos que se condenam quando se fecham no egoísmo e não abrem
o coração ao amor com que Deus nos amou, amor que nos foi
revelado na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo, que
nos amou até "dar a vida pelos amigos" (Jo 1 5, 1 3) . Nesse amor
que foi crucificado, mas que agora é o amor com que nos ama o 1 . Jesus carrega a Cruz até o m onte Calvário
Senhor ressuscitado, o Vivente, está a plenitude da verdade e da
vida, está a nossa salvação. 1. As m u l heres a companham Jesus, que carrega a Cruz
Podemos encerrar o tema da oração proposto neste capítulo
rezando a oração Alma de Cristo. Aconselhamos que ela seja re­ Depois da flagelação, Jesus não tinha forças para carregar a
zada ao ritmo da respiração. Depois de pronunciar cada uma das Cruz. Então, "os soldados obrigaram alguém que lá passava vol­
invocações, façamos uma pausa deixando que a invocação ressoe tando do campo, Simão de Cirene, pai de Alexandre e de Rufo,
em nosso coração. Terminada a expiração, inspiremos de novo e a carregar a cruz" (Me 1 5 , 2 1 ) . As mulheres acompanharam Jesus
façamos o pedido proposto depois de cada invocação. Para sabo­ Cristo e permaneceram ao seu lado quando foi crucificado: "Junto
rear essa oração, e para que seus frutos sejam mais abundantes e à cruz de Jesus estavam de pé sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria
mais fecundos, detenhamo-nos mais longamente nas invocações de Cléofas, e Maria Madalena" (Jo 1 9,25). Lá estavam também
e nos pedidos que nos tiverem tocado mais, que nos tiverem re­ Joana, mulher de Cuza, alto funcionário de Herodes, Susana e
velado com mais força o amor com que Deus nos ama6. outras mulheres que haviam seguido Jesus pelos caminhos da
Galileia e da Judeia "para servi-lo" (cf Lc 8,3; Mt 27, 55). Elas não
pregunta por el mal. Planteamientos teológicos actuales, Rev. Esp. Teol. fugiram como haviam fugido os discípulos, mas permaneceram
( 1 9 9 1 ) 33 1-373. ao lado de Jesus até que seu corpo foi sepultado.
6. Cf. A. BARRETRO, A oração Alma de Cristo, ltaici: Revista de Espirituali­ O comportamento dessas mulheres é mais significativo se
dade Inaciana, 73 (2008) 83-86. Neste artigo apresentamos alguns dados
sobre a história dessa oração e damos exemplos de como rezá-la nos contextos
levamos em consideração o lugar que as mulheres ocupavam no
existenciais em que se encontram as pessoas. judaismo de então e no mundo antigo em geral. Elas observam

69
68
A Pai Xão de Jesus Cristo
Jesus carrega a Cruz, é crucificado e sua túnica sortead
é a

"de longe", isto é, da distância que lhes era


permitida, os sofri­ para lhes perdoar seus pecados. Como disse São Pedro na casa de
mentos de Jesus na Cruz. A elas se aplic
am as palavras que disse Cornélia, os pés de Jesus caminharam pelos caminhos de nossa
Jesus ao comentar o comportamento da mulh
er pecadora que terra fazendo o bem a todos (At 1 0,38).
lavou e beijou seus pés na casa do faris
eu: "Ela mostrou muito A inscrição posta no alto da Cruz:"O Rei dosjudeus" (Mc 1 5,26),
amor! " (Lc 7,47) . Seus soluços "foram o único
som amigo que é objeto de burla para os que crucificaram Jesus e para as multidões
chegou aos ouvidos do Salvador, seus olha
res pousaram com que pediram sua crucifixão. Para os cristãos de todos os tempos
amor e compaixão nele" 1 • É significati que
vo nenhuma mulher e lugares, a crucifixão e a morte de Jesus Cristo na Cruz são a
tenha participado da condenação à mort
e de Jesus, e que Cláudia, vitória do amor de Deus sobre o pecado, a vitória da vida e sobre
�ma mulher pagã, tenha enviado a Pilatos, seu esposo, quan a morte. O amor que moveu Deus a assumir nossa carne chegou
do
estava sentado no trib unal", este recado: "Não
te envolvas com à plenitude na "hora nona", a hora em que Jesus Cristo morreu na
esse justo" (Mt 27, 1 9).
Cruz (Me 1 5,34).
Depois de contemplar a subida de Jesus até
o alto do monte "Com ele crucificaram dois bandidos, um à direita e outro à
Calvário carregando a Cruz, reflitamo em
s nós mesmos. Blaise esquerda" (Me 1 5,27). Assim "cumpriu-se a Escritura que diz: E ele
Pascal disse que "Cristo estará em agonia
até o fim do mundo". foi contado entre os malfeitores" (Me 1 5,28). O cumprimento des­
Perguntemo-nos: Como carrego minha cruz Com
? o ajudo a carre­ sa profecia de lsaias (Is 53, l 2) é também mencionado no evangelho
gar as cruzes que carregam os pobres, os doen
tes, as crianças aban­ de Lucas (Lc 22,37). O evangelho de Marcos fala dos escárnios
donadas, os drogados, os bêbados e tanto
s outros escravos? Essas sofridos por Jesus. As manifestações do "amor louco" com que Deus
pessoas são acolhidas nos corações de inco
ntáveis discípulos e nos ama não são compreendidas pelos transeuntes (Me 1 5,29), nem
discípulas de Jesus Cristo, que cuidam delas
com todo carinho pelos sacerdotes, nem pelos escribas (Me 1 5,3 1 ), nem por um
e toda dedicação.
dos dois bandidos crucificados com Jesus (Me 1 5,32).
O grito de Jesus: "El.oí, El.oí, lemá sabactâni?", "Meu Deus, meu
Deus, por que me abandonaste?", expressa a solidão de Jesus.
2 . Crucifixão e morte de Jesus no monte Calvário Expressa também a confiança do Filho no amor do Pai. O Salmo 22
começa com as palavras que diz o justo perseguido e termina com
As mãos de Jesus de Nazaré, que haviam sido postas nos olhos as palavras com as quais louva a Deus por sua justiça e por sua
dos cegos, nos lábios dos mudos, nos ouvidos dos surdos, na pe­ misericórdia2. Esse grito de Jesus na Cruz nos revela também a
le dos leprosos, nas cabeças das crianças para abençoá-las, foram profundidade de seu sofrimento e de seu abandono (Me 1 5,37) e
pregadas na Cruz. Na Cruz foram pregados os pés que haviam sua confiança no Pai querido. Jesus confia no amor do Pai ao ser ba­
percorrido os caminhos da GaWeia, da Samaria e da Judeia anun­ tizado nas águas da morte, ao beber o cálice da Paixão (Me l 5,33-3 7),
ciando o Evangelho do direito, da justiça e da misericórdia de Deus, quando é crucificado entre dois bandidos como um "maldito"
q�e haviam ido ao encontro dos cativos para libertá-los, dos fa­ (Gl 3, 1 3). Com sua entrega nas mãos do Pai, Jesus Cristo venceu
mmtos para lhes dar de comer, dos pecadores para acolhê-los e a morte e nos deu a vida.

l . Pregação da Sexta-Feira Santa do ano 2007, feita pelo padre R. Can­ 2. O tema da quarta palavra de Jesus na cruz, e o das outras seis, será
talamessa na Basílica de São Pedro, no Vaticano. apresentado de maneira pormenorizada no capítulo 7.

70
71
A Paixào de Jesus Cristo
Jesus carrega a Cruz ' é crucificado . .
e sua t unica é sorteada

São Paulo proclama em suas cartas esse amor que vence o primeiro" ( l Jo 4, 1 9), com o Deus que é nosso "Pai querido" . A
pecado e nos deu a justiça de Deus. "Deus, enviando o seu próprio morte de Jesus Cristo na Cruz nos revela que quando acolhemos
Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, o amor de Deus somos libertados de todas as escravidões. Assim
condenou o pecado na carne" (Rm 8,3). "Aquele que não conhe­ vivem os cristãos que creram e continuam a crer nesse amor de
cera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a fim de que, Deus (cf l Jo 4, 1 6).
por ele, nos tornemos justiça de Deus" (2Cor 2,2 1 ) . O evangelho Nesse amor está a resposta à pergunta: "Por que Deus per­
de São Mateus diz que o centurião romano encarregado da cru­ mite o sofrimento dos inocentes?". Na viagem de quatro dias à
cifixão, que era um pagão, compreendeu o significado salvífico Polônia, Bento XVI foi ao campo de concentração de Auschwitz,
da morte de Jesus Cristo na Cruz, significado que o centurião visita que para o papa, como cristão alemão, foi "estarrecedora",
expressou com estas palavras: "Este era verdadeiramente Filho mas que não podia deixar de fazer. Numa cerimônia religiosa em
de Deus�" (Mt 27,54). memória das vítimas do Holocausto, Bento XVI disse com a voz
embargada pela emoção estas palavras: "Por que, Deus, o Senhor
se calou? Como pôde tolerar tudo isso? Onde estava o Senhor na­
3. A morte de Jesus Cristo na Cruz nos revela que Deus nos queles dias?". O rabino Henry I. Sobel assim comentou essas
amou com um amor que foi "até o fim"3 palavras: "Antes de perguntar-nos 'onde está Deus', cabe-nos for­
mular a outra pergunta: 'Onde está o homem?'. O que está fazen­
O Deus da fé cristã não é um deus justiceiro que exige a do o homem com o mundo que Deus lhe deu?"4•
morte de Jesus Cristo na Cruz como reparação por nossos peca­
dos. A morte do Filho amado na Cruz nos revela o amor com que
o "Pai querido" de Jesus nos ama. A comunhão com Deus nosso J l i . A tún ica i nconsút i l de Jesus
Pai, não é o resultado de um movimento ascendente feito por nós,
mas é fruto do movimento descendente de Deus nosso Pai, que 1. Dados sobre a história da Santa Túnica
veio ao nosso encontro no Filho que assumiu nossa humanidade
para nos fazer participantes de sua divindade. Jesus Cristo, o ver­ Para não ferir a sensibilidade dos judeus, os crucificados em
dadeiro sacerdote, não ofereceu sacrifícios de coisas ou animaisJ Israel eram cingidos com uma faixa de roupa amarrada na cintura.
mas realizou nossa redenção com seu próprio sangue (cf Hb 9, 1 2). Os soldados que crucificaram Jesus de Nazaré rasgaram e repar­
No mundo em que vivemos, somos continuamente tentados tiram suas vestes. No entanto, não rasgaram sua "túnica incon­
a oferecer sacrifícios aos ídolos. A prática dessa idolatria não nos sútil, tecida como uma só peça, de alto a baixo" (Jo 1 9,23), mas
deixa espaço nem tempo para fazer na oração a experiência da a sortearam (Jo 1 9,24). Esse fato foi visto pelos Santos Padres
relação amorosa com o Deus que seu Filho amado nos revelou, como símbolo da unidade da Igreja, muito enfatizada no evan­
com o Deus que "é Amor" (lJo 4,8 . 1 6), com o Deus que "nos amou gelho de João, segundo o qual há "um só rebanho e um só pastor"
(Jo 1 0, 1 - 1 8).
3. Cf sobre este tema J. RATZINGER, Ein/ührung in das Christentum. Yor­
lesungen über das Apostolische Glaubensbekenntnis, München, Kõsel-Ver­
lag, 1968, 230-242; ed. br.: introdução ao cristianismo. Preleções sobre o Sím­ 4 . Cf. o artigo de Henry 1. SoBEL, O papa em Auschwitz, O Estado de
bolo Apostólico, São Paulo, Loyola, 2005. S.Paul.o, 30 maio 2006.

73
72
A Paixão de Jesus Cristo Jesus ca rrega a ..
C ruz, é cruc1f1ca do e sua túnica é sorteada

A mãe do imperador, Santa Helena, viajou à Terra Santa em privilégios à Santa Túnica, os nobres e mbelezaram
o santuan
. .o e
326, de onde trouxe relíquias da Paixão: pedaços da coroa de os historiadores elaboraram os prime iros estudos sobre Tú
a nica
espinhos, pregos da crucifixão, o véu da Verônica e a túnica de Jesus. inconsútil de Jesus.
Essas relíquias foram levadas para Constantinopla, a nova capital A Revolução Francesa se voltou mais urna vez contra a
Santa
do Império. Irene, a imperatriz do Oriente, deu no inicio do século Túnica. O padre Ozet, pároco da b asilica, entregou o relicário,
o
IX a Santa Túnica como presente ao imperador Carlos Magno ouro e a prata da igreja à Convenção Nacional da Revolução. No
quando foi consagrado imperador do Ocidente pelo papa São dia 1 8 de novembro de 1 793, ele rasgou a Túnica, enterrou a
Leão III. O imperador confiou a custódia da Santa Túnica à Abadia parte principal no jardim e distribuiu outros pedaços entre algun
s
de Nossa Senhora da Humildade, em Argenteuil, na qual mora­ paroquianos. Mesmo fazendo todas essas concessões à Revolução
,
vam as grandes damas que se afastavam do mundo. o pároco ficou dois anos no cárcere. Quando foi libertado, desen­
Os vikings, ferozes guerreiros da Escandinávia, invadiram as terrou o pedaço principal, buscou os outros pedaços e com eles
costas da França nos séculos IX e X. Eles avançaram pelos rios reconstituiu a Santa Túnica. Faltam , porém, um pedaço da parte
massacrando os habitantes, destruindo as cidades e pilhando os da frente e os documentos de sua autenticidade. Depois da tor­
templos. No ano 845, a cidade de Paris foi atacada por eles seis menta da Revolução, o papa Pio IX incentivou a devoção à Santa
vezes por uma frota de cerca de 1 20 navios. Diante desses perigos, Túnica e as peregrinações.
a abadessa Théodrade, filha de Carlos Magno, saiu do mosteiro de
Argenteuil com as monjas. Não levaram, porém, a Santa Túnica,
2 . Resultados das anál ises cie ntíficas feitas na Santa Tún ica
porque podia ser roubada no caminho, mas a guardaram num
cofre com os certificados de sua autenticidade, que foi escondido Contra a Santa Túnica se volta ram não só os impios da Revo­
num lugar alto de uma das paredes da igreja para que não fosse lução Francesa, mas também os Protestantes, que combatiam o
descoberta pelos invasores bárbaros. culto das imagens, e católicos progressistas, que combatiam as devo­
Quando o abade de Saint Denis, Suger, restaurou o mosteiro no ções tradicionais. A partir do fim do século XIX, graças às técnicas
século XII, os pedreiros descobriram que uma parte da parede da mais avançadas e aos exames mais sofisticados a ciência descobriu
igreja era oca. Ao vasculhá-la, descobriram um cofre dentro do qual que a Túnica conservada no relicário de Argen�euil é a que Jesus de
estava a Santa Túnica com os certificados de sua autenticidade. Nazaré vestia quando carregou ª Cruz. A essa conclusão chegou o
Muitos arcebispos e bispos da França reconheceram a autenticida­ engenheiro André Marion, professor na Universidade de Paris-Orsay,
de da relíquia e dos documentos e apresentaram a Túnica para a pesquisador do Centre National de la Recherche Scientifique,
veneração dos fiéis. Nos séculos seguintes, nobres, burgueses e ple­ especialista no processamento digital de imagens. Os resultados
beus peregrinaram em grande número a Argenteuil para venerar dessas pesquisas foram publicados no livro Jesus e a ciência. A ver­
a Túnica, cuja autenticidade foi confirmada por muitos milagres. dade sobre as relíquias de Cristo5 .
Em 1 544, quando as guerras de religião haviam atingido o A primeira investigação sobre a Santa Túnica foi feita em
clímax, o rei Francisco I mandou fortificar Argenteuil. Os hugue­ 1 892, com todo o rigor cientifico, e chegou a estas seis conclusões:
notes invadiram a cidade em 1 567, mas não encontraram a Túnica,
que depois da invasão reapareceu intacta. As peregrinações foram 5 . Cf. A. MARION, lésus et l.a science. La vérité sur
les religues du Christ,
retomadas, os milagres se multiplicaram, os papas concederam Paris, Presses de la Rénaissance, 2000.

74 75
A Paixão de Jesus Cristo Jesu s carrega a Cruz , é crucificado e
sua túnica é sorteada

1 ) É inconsútil. 2) Esteve em contato direto com a pele de Jesus. Mt 27,32; Me 1 5,2 1 ; Jo 1 9, 1 7) . A análise computadorizada das
3) Tem grandes manchas de sangue. 4) Foi tecida no Oriente fotografias da Santa Túnica mostra que as feridas e tumefações na
Médio nos primeiros séculos da era cristã com fio de lã de ovelha omoplata esquerda de Jesus de Nazaré foram causadas pelo cru­
e com uma trama em espinha de peixe. Maria fiou longamente zamento dos dois madeiros da cruz. "A correspondência das fe­
quatro ou cinco fibras de lã de ovelha e depois teceu a túnica ridas é um argumento a favor da autenticidade das duas relíquias,
num tear caseiro. São impressionantes a excelência do fio usado que devem se referir ao mesmo supliciado."6 Podemos usar os
e a perfeição do feitio da Santa Túnica. 5) A cor da túnica é mar­ resultados das pesquisas científicas feitas pelo professor A. Ma­
rom-escuro avermelhado. 6) O uso de túnicas inconsúteis não rion para aprofundar o conhecimento do amor com que Jesus
era frequente no tempo de Jesus Cristo. Cristo nos amou.
O professor A. Marion havia feito descobertas muito impor­
tantes no Santo Sudário usando técnicas computacionais não
destrutivas. Pediu licença ao bispo responsável pela custódia da
Santa Túnica para fazer pesquisas nela. A resposta do bispo foi
negativa. A. Marion localizou nos arquivos da Diocese de Versailles
as chapas tiradas da Santa Túnica em 1 934. Usando as técnicas
de digitalização de imagens, descobriu nela manchas de sangue
diferentes das manchas do Santo Sudário. A explicação dessa des­
coberta está em que o Sudário envolveu o corpo morto de Jesus
no sepulcro, e as manchas na Santa Túnica são as do sangue derra­
mado por Jesus ao carregar a Cruz segurando-a com as mãos na
altura do ombro.
"Na primeira experiência", escreve A. Marion, "a distribuição
das manchas sanguíneas na Túnica correspondeu perfeitamente
a ferimentos e a posturas próprias ao carregamento da Cruz. Na
segunda, as manchas ficaram posicionadas de modo que se super­
puseram exatamente com as chagas do Santo Sudário. Em ambas
as experiências, aparecem na tela do computador as feridas mais
sangrentas de todas, as feridas causadas pelo madeiro, bem dife­
renciadas das horríveis dilacerações dos açoites da flagelação,
indicando com precisão a posição da Cruz."
As pesquisas feitas pelo professor Marion esclareceram alguns
pormenores que intrigavam os cientistas. Os condenados à crucifi­
xão não eram obrigados a carregar a cruz inteira, mas carregavam
somente o travessão horizontal, o patibulum. Nos relatos da Pai­
xão, os evangelhos usam, porém, a palavra "cruz" (cf Lc 23,26; 6. Ibid., 2 1 2.

76 77

� � ------ ------...........
F

As sete pa lavras q u e J esus Cristo


d isse na Cruz

Na liturgia da Sexta-feira Santa, os fiéis são convidados a adorar


e beijar o corpo de Jesus Cristo crucificado cantando: "Eis o lenho
da Cruz, onde esteve pendurada a salvação do mundo. Vinde, ado­
remos!". Adoremos o amor de Deus que o Filho amado nos revelou
com suas palavras e ações, e com as sete palavras que Jesus Cristo
disse na Cruz. Das palavras que o Verbo encarnado disse nos trinta
anos vividos em Nazaré somente nos foram transmitidas as que
disse quando tinha doze anos para responder à pergunta de sua
Mãe: "Por que me procuráveis? Não sabíeis que eu devo estar na­
quilo que é de meu Pai?" (Lc 2,49). Nos três anos da vida pública,
Jesus percorreu os caminhos, as vilas e as cidades da Galileia, da
Judeia e da Samaria proclamando o Evangelho do Reino de Deus.
Quando estava pregado na Cruz, disse as sete palavras que nos fo­
ram transmitidas pelos evangelhos. Falar era um sofrimento terrível
para os crucificados, porque para pronunciar as palavras expirando
era necessário que o ar entrasse nos pulmões; e para inspirar deviam
apoiar-se nos pés pregados e puxar os pulsos também pregados.
As palavras que Jesus disse na Cruz ficaram gravadas no co­
ração dos discípulos e das discípulas que as ouviram. Essas palavras

79
A Paixão de Jesus Cristo As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

nos foram transmitidas pelos quatro evangelhos para que fossem pelo amor "desceu do céu", que assumiu nossa carne para nos dar
ouvidas e acolhidas pelos cristãos de todos os tempos e lugares. a vida eterna, que nos revelou o amor de Deus nosso Pai. Na pri­
Se ouvirmos essas palavras saboreando-as no coração, elas produ­ meira palavra que disse na Cruz, Jesus pediu ao Pai que perdoasse
zirão em nós frutos de salvação. Depois de ouvi-las, devemos os que o tinham crucificado. A palavra Pai é também a primeira
"refletir em nós mesmos" para que os reflexos dessas palavras do Pai-nosso, a oração que o Filho amado nos ensinou para falar
iluminem nossos olhos e nossos caminhos, nos movam a amar e com seu Pai e nosso Pai.
a servir a Deus e aos irmãos, e para comunicá-las às pessoas que Saulo de Tarso, que havia perseguido os cristãos (cf At 26,9- l l),
ainda não as conhecem. Charles Péguy disse: "É de nós, enfermos enviado muitos deles para a prisão em Jerusalém e consentido
e carnais, que depende fazer viver, alimentar e manter vivas no que os matassem, depois do encontro com o Senhor ressuscitado
tempo aquelas palavras pronunciadas vivas no tempo [ . . . ] . A nós no caminho de Damasco tornou-se Apóstolo dos gentios. Ele des­
compete, é de nós que depende fazer entender nos séculos dos creve sua conversão, dizendo: "Dou graças a Cristo Jesus, nosso
séculos a palavra do Filho de Deus". Senhor, que, apesar de eu anteriormente ser blasfemo, perseguidor
e insolente, me fortaleceu, confiou em mim e me tomou para
seu serviço. Teve compaixão de mim porque eu o fazia por igno­
Pri meira palavra rância e falta de fé" ( 1 Tm l , 1 2- 1 3). Na primeira carta aos Corín­
tios escreve: "Nenhum dos poderosos deste mundo a conheceu
"Pai, perdoa-lhes, pois não sabem o que fazem. " ( Lc 23,34) [a sabedoria de Deus ] . Pois se a tivessem conhecido não teriam
crucificado o Senhor da glória" (1 Cor 2,8).
Nas primeiras palavras que saíram de seu coração e de seus Depois de curar um paralítico, Pedro disse: "O Deus de
lábios, Jesus Cristo pregado na Cruz pediu ao Pai que perdoasse Abraão, de Isaac e de Jacó, o Deus de nossos pais glorificou seu
os que o tinham crucificado. Nessa hora, Jesus praticou o amor e servo Jesus, que entregastes e negastes diante de Pilatos, que es­
0 perdão dos quais havia falado ao proclamar o Evangelho do tava decidido a soltá-lo. Renegastes, porém, o Santo e o Justo e
Reino de Deus (cf Me 1 1 ,25; Mt 5,44; 1 8,21 -25; Lc 6,27-29). pedistes a graça para um assassino, enquanto fazíeis morrer o
Jesus crucificado pediu a Deus que perdoasse os que o haviam Autor da vida [ . . . ] Entretanto, meus irmãos, sei que agistes por
condenado à morte na Cruz usando a palavra Abbá, que signifi­ ignorância, assim como vossos chefes. Deus, porém, realizou
ca "Paizinho querido". Essa palavra era usada pelas criancinhas deste modo o que predissera pela boca de todos os profetas: que
de língua aramaica para falar com o pai. Para falar com a mãe o seu Cristo haveria de sofrer. Arrependei-vos, pois, e convertei­
usavam a palavra Immá, que significa "Mãezinha querida". vos, a fim de que os vossos pecados sejam apagados e deste modo
As multidões pediram aos gritos a crucifixão do Jesus que ti­ venham da parte do Senhor tempos de refrigério" (At 3, 1 3- 1 5 .
nha feito ver os cegos, ouvir os surdos, andar os paralíticos; que 1 7-20). Pedro negou Jesus três vezes, mas Jesus perdoou seu
tinha desatado a lingua dos mudos, curado a pele dos leprosos, pecado olhando-o com um olhar que Pedro não esquecerá, que
dado de comer aos famintos. As autoridades religiosas dos judeus o fará chorar até a hora da morte.
e o governador do Império Romano na Judeia sabiam que estavam A primeira palavra que Jesus disse na cruz revela-nos que o
condenando à morte na Cruz um inocente, mas não sabiam que amor de Deus é maior que todas as injustiças feitas pelos donos
estavam crucificando a carne do Filho amado de Deus, que movido do poder religioso e político, pelos carrascos e pelas multidões

80 81
As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz
A Paixão de Jesus Cristo

As mãos dos crucificados eram pregadas na barra transversal en­


manipuladas. Santo Agostinho disse: "O que deixará de ser per­
quanto estava no chão. Depois, o travessão era erguido e colocado
doado a um convertido se é o sangue derramado de Cristo quem
pede perdão? Que homicida poderá perder a esperança se Cristo em forma de T sobre a peça de madeira vertical fixada no chão.
Na peça de madeira vertical eram pregados os pés do condenado
deu esperança mesmo àquele que lhe deu a morte? Por esta
com dois cravos num pequeno suporte ajustado à estaca vertical.
razão, muitos creram. Quem poderá desesperar?"1 • A primeira
Com as mãos e os pés atravessados pelos pregos, Jesus via as
palavra que Jesus disse na Cruz nos revela a grandeza e a beleza
autoridades religiosas satisfeitas com sua condenação, seus tor­
da Boa-Nova que Ele proclamou. Saulo de Tarso também não sabia
mentos e sua morte; via os soldados que o haviam torturado, que
que praticava a injustiça quando perseguia os cristãos (cf l Cor
o tinham obrigado a carregar a cruz e que o haviam crucificado
1 ,2-3; Gl 1 , 1 3- 1 4; FI 3,4-6; At 26,9- 1 1 ; l Tm 1 , 1 2- 1 4) . Os cris­
cumprindo as ordens dadas pelos representantes do poder roma­
tãos perseguidos pelo fanatismo, pela intolerância, pela ambi­
no. Jesus pediu ao Pai que lhes perdoasse porque não sabiam o
ção do poder perdoam como Jesus os que os perseguem. Mas na
que faziam. Essas palavras foram ditas pelo Filho que falava com
hora certa os cristãos devem denunciar as injustiças feitas contra
o Pai, ditas pelo Messias, nosso Salvador, que não veio para con­
os inocentes.
denar o mundo, mas para que o mundo fosse salvo (Jo 3, 1 7) . Na
O direito romano proibia a crucifixão dos cidadãos romanos.
Cruz, Jesus praticou o que havia dito ao proclamar o Reino de
Só podiam ser crucificados os escravos, os bandidos, os guerrilhei­
Deus, que devemos orar pelos inimigos (cf Mt 5,44; 6, 1 2;
ros que agiam contra o Império. Os sofrimentos dos crucificados
Lc 6,27-37; 1 1 ,4) . Assim se comportou o primeiro mártir cristão:
eram tão terríveis que na cruz amaldiçoavam os que os crucifica­
"Estêvão exclamava: 'Senhor Jesus, acolhe o meu espírito'. Do­
vam, o dia em que tinham nascido, as mães que os tinham dado
brando os joelhos, gritou com voz forte: 'Senhor, não os condenes
à luz, os que olhavam seus tormentos. Cícero diz que em alguns
por este pecado '. Com estas palavras, adormeceu" (At 7, 59-60).
casos era preciso cortar a lingua dos crucificados para interrom­
O maior pecado que podemos cometer é não acolher o amor
per as torrentes de blasfêmias que saíam de suas bocas2. Os cris­
que Deus nos oferece. Sobre a rejeição do amor aos filhos ama­
tãos dos primeiros séculos "tinham horror às representações de
dos de Deus, preferencialmente aos mais necessitados, seremos
Jesus na cruz porque haviam visto com seus olhos" os corpos dos
julgados no fun de nossas vidas (Mt 25,3 1 -46) . O inferno não é
crucificados sangrando, agitando incessantemente as cabeças, ro­
um castigo de Deus. Ele é a rejeição do amor de Deus, nosso
deados de cachorros atraídos pelo cheiro do sangue e de abutres
Criador e nosso Pai.
que pairavam esperando pela carniça desses corpos tortura­
No fim da oração sobre a primeira palavra que Jesus disse na
dos que pediam a morte "com horríveis gritos desarticulados"3.
Cruz, ajoelhemo-nos aos pés do Jesus Cristo crucificado, encoste­
A Cruz podia ser um madeiro vertical no qual o condenado era
mos nossa cabeça na Cruz e descarreguemos nela nossos peca­
empalado, uma "furca" na qual era presa a cabeça do crucificado
dos, isto é, nossa falta de amor. E peçamos a Jesus crucificado
ou uma trave horizontal posta em cima de um madeiro vertical.
que fortaleça e aqueça nosso coração com a força e com o calor
de seu amor.
l . Tratado sobre o evangelho de João, XIY, trat. 38, 7.
2. Cf F. SHEEN, A mensagem da cruz. Palavras derradeiras, Porto' Livraria
Figueirinhas, 1 958, 22.
3. Cf M. J. LAGRANGE, L 'Évangile de lésus-Christ, Paris, Gabalda, 1928, 565.

83
82
A Paixão de Jesus Cristo
As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

Segu nda pa l avra Ladrão dos tormentos na cruz para o Paraíso. Santo Agostinho
comenta essa cena dizendo: "Três homens estão suspensos na cruz:
"Em verdade eu te digo: hoje estarás comigo no Paraíso!" (Lc 23,43) um dá a salvação, outro a recebe, o terceiro a despreza"4• "Duvida­
ram os que viram Cristo ressuscitado depois de morto, e ele creu
"Conduziam com ele outros dois malfeitores para executá-los. naquele que estava dependurado na cruz ao seu lado [ . . . ] . A um
Quando chegaram ao lugar chamado Caveira, o crucificaram com homem dependurado, crucificado, ensanguentado e pregado na
os malfeitores: um à direita e outro à esquerda" (Lc 23,32-33). cruz lhe diz: 'Quando chegares ao teu Reino"'5. Bossuet diz co­
O profeta !saias diz falando do Servo Sofredor: "E foi posto entre mentando essa cena: "Um moribundo vê Jesus morrer e pede-lhe
o número dos malfeitores" (Is 53, l 2) . O evangelho de Lucas diz: a vida; um crucificado vê Jesus crucificado e fala-lhe de seu Reino.
"Um dos malfeitores crucificados o insultava dizendo: 'Tu não és Seus olhos veem cruzes, mas sua fé lhe faz ver um trono"6.
o Cristo? Salva a ti mesmo e a nós! ' . Mas o outro o repreendeu: Depois de ouvir as palavras e contemplar o comportamento
'Nem sequer temes a Deus, tu que sofres a mesma pena? Para nós, dos dois bandidos e de Jesus, pratiquemos a recomendação de
é justo sofrermos, pois estamos recebendo o que merecemos; mas Santo Inácio: "Refletir em mim mesmo para tirar maior provei­
ele não fez nada de mal' . E depois disse: 'Jesus, lembra-te de mim, to". Se abrirmos como o Bom Ladrão nosso coração ao amor de
quando começares a reinar'. E Jesus lhe respondeu: 'Em verdade Deus que nos foi revelado em Jesus Cristo, estaremos com Ele
te digo: hoje estarás comigo no Paraíso'" (Lc 23,39-42). no Paraíso. Se, ao contrário, nos fecharmos ao amor de Deus, se
Um bandido zombou de Jesus repetindo as injúrias dos que não usarmos a liberdade que Deus nos deu para acolher seu
passavam pelo caminho (Me 1 5 ,29-30) e dos sumos sacerdotes amor, mas a usarmos para rejeitar o amor de Deus, não entrare­
(Me 1 5,3 1 -32), o outro reconheceu que o castigo que estava mos no Paraíso. O fogo do inferno é destruído pela acolhida das
sofrendo era justo, corrigiu o outro bandido por zombar de Jesus palavras de Jesus e de seu comportamento. Jesus crucificado deu
e defendeu Jesus. Depois confessou que Jesus era o Messias e lhe a felicidade do Paraíso ao bandido que reconheceu seus pecados.
pediu que se lembrasse dele quando entrasse em seu Reino. O Essa mesma felicidade, ele a dá também a nós.
que moveu o Bom Ladrão - cujo nome, segundo a tradição, era Depois de ouvir as palavras dos dois bandidos e as palavras
Dimas - a defender Jesus e a pedir-lhe a salvação foi o compor­ de Jesus, perguntemo-nos quais são as palavras que nos dizemos
tamento de Jesus. Quando as dores da crucifixão dilaceravam o na hora de nossos sofrimentos e dos sofrimentos das outras pes­
corpo do bandido, a bondade e o perdão de Jesus penetraram em soas. Peçamos a Jesus crucificado a graça de dizer na hora de
seu coração e de seus lábios saiu este grito: "Lembra-te de mim nossa morte: "Senhor, lembra-te de mim quando entrares em teu
quando estiveres em teu reino". Reino1", e a graça de ouvir ditas a nós as palavras que Jesus cruci­
Jesus não respondeu ao bandido que o insultava, mas respon­ ficado disse ao Bom Ladrão: "Hoje estarás comigo no Paraiso1".
deu ao pedido do outro bandido dizendo-lhe: "Em verdade, eu te
digo, hoje estarás comigo no Paraíso". A palavra persa "paraíso"
significa "jardim" e era usada para designar o lugar da imortalidade.
A promessa feita por Jesus ao bandido que reconheceu suas mal­ 4. Enarr. ln Psalm. XXXIV, senn . 2, l, apud Ch. JouRNET, As sete palavras,
São Paulo, Flamboyant, 1 96 1 , 40.
dades e que defendeu Jesus se realizou antes de o sol se pôr; pelas 5. Serm. XXIV, 236, 6.
palavras de Jesus realizou-se a "páscoa", a "passagem" do Bom 6. Citado por Ch. JoURNET, op. cit., 43-44.

84 85
A Paixão de Jesus Cristo As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

Terceira pal avra fundar a Igreja na pessoa da mãe e do discípulo amado"8 . Falando
de Maria ao pé da cruz, o Concilio Vaticano II diz: 'Ali manteve­
'

"Jesus disse à sua mãe: ' M u l her, eis o teu fi lho!'. Depois d isse ao se de pé, sofreu profundamente com seu Filho unigênito e com
d iscípulo: ' Eis a tua mãe!'." (Jo 1 9 , 26-27) ânimo matemo associou-se ao seu sacrifício, consentindo amoro­
samente à imolação da vítima por ela mesma gerada"9.
Junto à Cruz de Jesus estavam algumas mulheres da GaWeia Maria de Nazaré havia dito ao anjo Gabriel: "Eis aqui a Serva
que haviam seguido Jesus7. Jesus olhou para elas, olhou para sua do Senhor. Faça-se em mim segundo a tua palavra". Na festa do
Mãe, olhou para o discípulo amado e disse: "Mulher, eis o teu casamento em Caná da GaWeia, ela disse aos serventes: " Fazei
filho]". Depois disse ao discípulo: "Eis a tua Mãe1 ". Nas bodas de tudo o que ele vos disser" (Jo 2,5). Quando o Filho estava pregado
Caná, Jesus havia dito a sua Mãe: "A minha hora ainda não che­ na cruz, a Mãe recebeu a missão de ser a Mãe de seus discípulos.
gou" (Jo, 2,4). A palavra "hora" é repetida 26 vezes no evangelho O abade Ruperto, no século XII, e o monge cartuxo Ludolfo de
de João. Quando "sua hora" chegou, Jesus entregou sua Mãe ao Saxônia, no século XIV, veem nessa cena o fundamento da ma­
discípulo amado dizendo à Mãe: "Mulher, eis o teu filho1 ". E ternidade espiritual de Maria de Nazaré. Ela é a "Filha de Sião"
disse ao discípulo: "Eis a tua Mãe1". da qual falam os profetas, ela é a Mãe dos que esperam a salvação
O evangelho de João é chamado "evangelho semiótica" porque de Deus. O Verbo que assumiu nossa carne no seio de Maria de
dá muita importância aos sinais feitos por Jesus. O discípulo João Nazaré deu-nos como presente antes de morrer na Cruz sua Mãe,
representa os discípulos e as discípulas de Jesus, representa a Igreja cujo coração havia sido atravessado, como profetizara o ancião
da qual a Mãe de Jesus cuida com o amor com que as mães cuidam Simeão (Lc 2,35), pela espada da dor.
de seus filhos. Ela cuida dos filhos e das filhas que Jesus lhe deu "É um grande carinho de Jesus pela sua Mãe [ . . . ] dar-lhe
ao dizer a terceira palavra na Cruz. Peçamos a Jesus crucificado a como filhos, na pessoa do discípulo amado, aqueles pelos quais
graça de amar sua Mãe e de amar a Igrej a como nossa Mãe. derrama o sangue da redenção. É ainda um grande carinho de
A Mãe de Jesus e o discípulo amado são pessoas reais, mas Jesus pelo discípulo amado - em quem estão figurados todos
têm um significado simbólico. "O último ato de Jesus antes de aqueles que, próximos ou distantes, acolherão as atenções do
morrer", escreve 1. de la Potterie, "foi formar o povo messiânico, amor divino - dar-lhes espiritualmente, como Mãe, a própria
Mãe, sejam eles conscientes disso ou não."1º O olhar de sua Mãe
7. "Grande número de mulheres estava ali, observando de longe. Elas haviam é para Jesus um consolo, mas é também um sofrimento porque
acompanhado Jesus desde a Galileia, prestando-lhe serviços. Entre elas estavam a vê esmagada pela dor. A Mãe de Jesus, que é também nossa Mãe,
Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu" carrega as dores de Jesus e nossas dores, e cuida de seus filhos e
(Mt 27,55-56). "Estavam ali também algumas mulheres olhando de longe; entre
de suas filhas com amor de Mãe. Porque nôs foi dada essa Mãe,
elas Maria Madalena, Maria, mãe de Tiago Menor e de Joset, e Salomé. Quando
ele estava na Galileia, estas o seguiam e lhe prestavam serviços. Estavam ali também nunca seremos órfãos.
muitas outras mulheres que com ele tinham subido a Jerusalém" (Me 1 5,40-4 l ).
Se Cléofas era irmão de José, a mulher de Cléofas seria cunhada de José, e seus 8. Apud R. FABRIS, B. �GGIONI, Os evangelhos (II): O evangelho de
filhos, Tiago Menor e Joset, seriam primos de Jesus por parte do pai, irmão do pai Lucas - O evangelho de João. Tradução e comentários, São Paulo, Loyola,
legal de Jesus. Não é possível reconstruir o grau exato de parentesco entre Jesus 1 992, 472.
e os seus chamados "irmãos". Cf o verbete "Irmãos do Senhor", de John L. 9. Constituição Lumen Gentium, 58.
�CKENZJE, Dicionário bíblico, São Paulo: Ed. Paulinas, 2ª ed., 448-449. 1 0. Ch. JouRNET, op. cit., 77.

86 87
A Paixão de Jesus Cristo
As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

Depois de ouvir a terceira palavra de Jesus na Cruz e de teológico. A quarta palavra de Jesus na cruz expressa a realidade
contemplar o cenário em que foi dita, reflitamos sobre os frutos de seu sofrimento, mas expressa também a presença do amor de
da maternidade de Maria. Peçamos a Jesus crucificado, por inter­ Deus no Filho que faz a vontade do Pai, que entregando sua vida
cessão de sua Mãe e nossa Mãe, a graça de sentir sua presença na nas mãos do Pai vence o pecado e a morte. Depois dessa vitória,
hora de nossa morte. Essa é a graça que pedimos ao rezar: "Rogai "ninguém sofrerá sozinho e sem esperança a própria morte"12•
por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte". Recebendo Jesus derramara tanto sangue na flagelação e na crucifixão
essa graça, viveremos eternamente a comunhão com o Pai, com que não tinha força para respirar. Inspirar era uma tortura para
o Filho e com o Espírito Santo na Comunhão dos Santos. os crucificados porque precisavam apoiar-se nos pés pregados e
puxar as mãos também pregadas. Jesus não gritou quando foi
esbofeteado, açoitado, coroado de espinhos, mas quando estava
Quarta palavra pregado na Cruz gritou: "Meu Deus, meu Deus�". Esse grito de
Jesus deve ser nossa força na hora de nossa morte, pois "todos
" M e u Deus, meu Deus, por q ue me abandonaste?" (Me 15,34; morremos sozinhos, inclusive quando morremos rodeados de amor.
Mt 27,46) Por mais que o agonizante estenda sua mão e segure e aperte
outra mão, sabe que lá no fundo de si mesmo, onde é travado o
Os evangelhos nos transmitiram algumas palavras que Jesus último combate, está só"13•
disse em aramaico, sua lingua materna: talitá qúmi (talitha kum, Quando estava sofrendo as dores mais terríveis, Jesus rezou
na transcrição grega), 'ippatáh. (effatha, na transcrição grega), as primeiras palavras do Salmo 22: "Meu Deus, meu Deus, por que
'abbá '. Na Cruz, Jesus disse: 'elahí 'elahí, lemá' shevaqtáni (Eloi me abandonaste?". Essas palavras descrevem o sofrimento do jus­
Eloi, lema sabakhthani, na transcrição grega) . Com essa frase: to perseguido e torturado. No entanto, o Salmo 22 termina lou­
"Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?", começa o vando e agradecendo a Deus porque escutou a oração do pobre
Salmo 2 2 . A interpretação literal dessas palavras foi defendida na (cf SI 22,23-27), proclamando a vitória de Deus sobre os pode­
época patrística por Tertuliano, Teodoreto, Ambrósio e Jerônimo; rosos e dando graças pela salvação recebida (Sl 22,28-32) . Jesus,
na Idade Média, por Santo Tomás de Aquino; em nossos dias, por depois de fazer a experiência do silêncio de Deus, morreu entre­
P. Benoit, segundo o qual "Jesus em sua consciência psicológica gando sua vida nas mãos do Pai.
sente-se realmente abandonado por seu Pai". O abandono que As palavras da quarta frase que Jesus disse na Cruz podem
fazer nascer em nós esta pergunta: "Se Jesus é o Filho de Deus,
Jesus experimentou na cruz não foi o desespero. Como mostrare­
como pode ser abandonado por Deus?". Essas palavras de Jesus
mos no comentário da última das sete palavras, Jesus crucificado
Cristo na Cruz foram interpretadas de maneira errada pelo nesto­
não perdeu a confiança em Deus 1 1 •
rianismo, segundo o qual Jesus foi um homem justo e fiel, mas não
As interpretações que dizem que o grito de Jesus é a personifi­
é Deus; e pelo docetismo, segundo o qual Jesus Cristo não sofreu,
cação do pecado (Calvino) ou que Jesus crucificado se tornou obje­
to da cólera de Deus (Lutero e Melanchton) não têm fundamento
1 2. W. PANNENBERG, Cristologia, lineamenti fondamentali, Brescia, Mor­
celliana, 1 974, 365.
1 1 . Cf. P. BENorr, Paixão e ressurreição do Senhor, São Paulo, Paulinas, 1 3 . J. L. MARTtN ÜESCALZO, Vida y misterio de Jesús de Nazaré, Salamanca,
1 975, 222-223. Sígueme, 8 1 99 1 , v. 111, 342.

88 89
A Paixão de Jesus Cristo
As sete palavras que Jesus Cristo d isse na Cruz

pois Deus não pode sofrer. Segundo os docetas, os sofrimentos de Q u i nta palavra
Jesus foram só aparentes14• A quarta palavra de Jesus na cruz nos
dá acesso ao mistério do Verbo que "se encarnou" (Jo 1 , 1 4) por " Tenho sede!" (Jo 19,28)
amor e que sofreu por amor. São Paulo usa afirmações chocantes
ao falar do sofrimento de Cristo: "Cristo nos remiu da maldição da "Depois disso, sabendo Jesus que tudo estava consumado, e
Lei tomando-se maldição para nós, porque está escrito: Maldito para que se cumprisse a Escritura até o fim, disse: 'Tenho sede!"'
todo aquele que é suspenso no madeiro" (Gl 3, 1 3); "Aquele que (Jo 1 9, 28) . O Criador das nuvens, dos rios e das fontes disse na
não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por causa de nós, a Cruz: "Tenho sede!". O Verbo que assumiu nossa carne tem sede do
fim de que, por ele, nos tomemos justiça de Deus" (2Cor 5,2 1 ) . nosso amor. São Paulo disse: "Deus não poupou seu próprio Filho,
Jesus não rezou somente as primeiras palavras do Salmo 22, mas o entregou por todos nós" (Rrn 8,32). E São João: "Deus amou
mas rezou o Salmo inteiro. O Salmo do justo perseguido que caiu tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o
"nas mãos dos inimigos" termina louvando a Deus, proclamando que nele crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 1 6) .
seu poder, sua justiça e sua vitória final. Nenhuma situação, por Jesus estava desidratado depois de suar sangue no Horto das
mais injusta e dolorosa que seja, deve destruir nossa confiança em Oliveiras, de perder tanto sangue na flagelação, ao carregar a cruz
Deus e nosso amor a Deus. O Filho amado em quem o Pai pôs e ao ser crucificado. A sede que Jesus sentia sob o sol do meio-dia
toda a sua complacência (Me 9, 7) nos revelou na Cruz o amor era insuportável. Ao rezar: "Minha garganta está seca como uma
com que Deus nos ama. "Tal é precisamente o sumo sacerdote telha, a língua grudada ao palato" (Sl 22, 1 6), e ao gritar: "Tenho
que nos convinha: santo, inocente, imaculado, separado dos peca­ sede!", Jesus se identifica com as pessoas que não têm água para
dores, elevado mais alto do que os céus" (Hb 7,26) . Santo Tomás beber, que perdem muito sangue em batalhas ou em acidentes.
de Aquino diz que Jesus experimentou na Cruz as mais intensas Santa Catarina de Siena comenta a quinta palavra de Jesus na
de todas as dores corporais porque a sensibilidade de seu corpo, Cruz dizendo: "Eram a fome e a sede do ansioso desejo que Jesus
formado no seio da Virgem de Nazaré pela ação do Espírito San­ _
tinha de nossa salvação que o faziam exclamar sobre o madeiro
to, foi "a maior de todas quantas existiram e existirão"15• da Santa Cruz: Tenho sede!"16•
As palavras do Salmo 22, que Jesus disse com um grande Um soldado movido pela compaixão embebeu urna esponja
grito, atingiram o coração da Mãe de Jesus, de João e das mulheres em vinagre, amarrou-a a uma cana e deu-lhe de beber. Para que
que estavam ao pé da Cruz. Peçamos por intercessão de Maria, não o impedissem de dar de beber a Jesus, o soldado fingiu parti­
a Mãe de Jesus e nossa Mãe, ajoelhados diante de Jesus crucifi­ cipar da zombaria dizendo: "Deixai! Vejamos se Elias vem tirá-lo
cado, que sejamos curados das feridas causadas em nós pelas da cruz" (Me 1 5,36). Segurou a esponja na ponta da lança e a
experiências de abandono e de solidão, e que essas experiências aproximou dos lábios de Jesus. Jesus, porém, não bebeu a bebida
se tornem em nós, como se tornaram no coração de Jesus, troféus que lhe foi oferecida (cf Me 1 5,22-23; Mt 27,33-34) .
da vitória do amor. Ouçamos em silêncio a quinta palavra que Jesus disse na Cruz,
deixemos que ela ressoe em nosso coração, e perguntemo-nos se
1 4 . Essa questão é amplamente desenvolvida por Ch. JoURNET, op. cit., e como vamos ao encontro das pessoas para que bebam na fonte
83- 1 1 4.
1 5 . Cf Suma teológica III, q. 46. 1 6. Texto citado por Ch. JOURNET, op. cit., 1 28.

90
91
A Paixão de Jesus Cristo As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

da água viva e saciem assim sua sede de amor e de comunhão. autonomia. Essa fidelidade nos mostra os caminhos que devemos
Perguntemo-nos o que fazemos e o que devemos fazer para que percorrer para viver a verdadeira felicidade, a vida que desemboca
Jesus Cristo sacie sua sede de nosso amor, se percorremos os ca­ na comunhão eterna com Deus, com os anjos e com os santos.
minhos do amor e do serviço a Deus e aos irmãos e como os
percorremos. Se nos for dada a graça de viver a práxis do amor e
do serviço, o Senhor glorioso nos dirá na hora de nossa morte: Sét i ma palavra
"Vinde, benditos de meu Pai, para herdar o reino preparado para
vós desde a criação do mundo. Porque [ . . . ] tive sede e me destes "Pai, em tuas mãos e ntrego o meu espírito. " ( Lc 23,46)
de beber" (Mt 25,35).
As últimas palavras que Jesus disse na cruz são as do versí­
culo 6 do Salmo 3 1 . A expressão "inclinando a cabeça, entregou
Sexta palavra o espírito" (Jo 1 9,30) é uma novidade na cultura grega. Ela não
se encontra em nenhum texto grego para expressar a morte. O
"Tudo está consumado!" (Jo 1 9 ,30) verbo "entregou" (paredôken) significa a entrega voluntária da
vida de Jesus Cristo, da qual fala Isaías 53, 1 2: "Entregou-se a si
Como o justo perseguido do Salmo 22, Jesus supera as dores mesmo à morte". Com essas palavras, o evangelho de João quer
e as angústias. Ao dizer a sexta palavra: "Tudo está consumado1", dizer que a morte de Jesus "teve como efeito o dom do Espírito
Jesus realiza até o fim a missão que o Pai lhe deu. A sexta palavra à comunidade"18• Jesus Cristo encontra nessa sua entrega a ver­
de Jesus na Cruz é a expressão da obediência do Filho à vontade dadeira paz e a verdadeira alegria, a paz e a alegria eternas.
do Pai, uma obediência que foi até a morte; é a expressão da rea­ A invocação "Pai", com a qual começam a primeira e a última
lização da missão que o Pai lhe deu ( cf Jo 8,29; 1 4 ,3 l ; 1 6,32; das palavras que Jesus disse na cruz, é repetida seis vezes na ora­
1 7,4); é o canto de vitória no campo de batalha da vida de Jesus ção sacerdotal feita por Jesus na última Ceia19. Como discípulos
Cristo, vitória que nos revela a justiça e a bondade de Deus, que de Jesus, nós devemos falar com nosso "Pai querido" rezando a
são mais fortes que a injustiça e a maldade dos seres humanos. oração que seu Filho amado rezou na noite antes de ser crucifi­
Depois de dizer: "Tudo está consumado", disse São João da cado. Também nós devemos entregar nossa vida nas mãos do Pai.
Cruz, "Jesus Cristo não tem mais nada a dizer"17• Só falta inclinar "Se na cruz do abandono o Filho não sofresse pela distância do
a cabeça como para dormir, só falta expirar o último alento. Dessa Pai, não seria verdadeiramente o Filho. E se o Pai não sofresse pela
expiração falará Jesus Cristo na última palavra dita na Cruz. distância do Filho não seria verdadeiramente o Pai."2º
Nesse alento, nesse espírito podemos ver um símbolo do dom do Na morte de Jesus Cristo na cruz "foi vencido, a favor de
Espírito Santo à Igrej a, que é a comunidade dos discípulos e das todos os homens, o abandono divino na morte. Ninguém, dora-
discípulas de Jesus Cristo.
A fidelidade de Jesus Cristo ao Pai entregando sua vida na 1 8. R. FABRIS, B. MAGGIONI, op. cit., 473.
19. Ela aparece nos versículos l, 5, 1 1 , 2 1 , 24, 25 e 26 do capitulo 1 7
Cruz é a medicina que nos cura das doenças de nossa pretensa
do evangelho de João.
20. B. FORTE, Jesus de Nazaré. História de Deus, Deus da história. Ensaio
1 7. Cf. Subida dei Monte Carme/.o, liv. II, cap. 22. de uma cristologia como história, São Paulo, Paulinas, 1 985, 289.

92 93
A Paixão de Jesus Cristo As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

vante, sofrerá sozinho e sem esperança a própria morte"21 . Se na me resgatas, Senhor, Deus fiel" (Sl 3 1 ,5-6). O Filho se entrega
hora de nossa morte entregarmos nossa vida nas mãos do Pai que nas mãos ternas e fortes do Pai tendo a certeza de que ao terceiro
nos ama com entranhas maternas, seremos acolhidos como o foi dia ressuscitará. Essas palavras nos mostram como devem entregar
o Filho amado por nosso Pai querido. Peçamos ao Pai, ao Filho e ao suas vidas a Deus os discípulos de Jesus Cristo. Assim a entregaram
Espírito de amor por intercessão da Mãe de Jesus e nossa Mãe a Santo Estêvão e Santa Teresinha do Menino Jesus.
graça de entregar nossas vidas nas mãos de nosso Pai querido na Ao ser apedrejado fora da cidade, o diácono Estêvão disse:
hora de nossa morte. Meditemos nesse contexto estas palavras de "Senhor Jesus, recebe o meu espírito]" (At 7,59). Poucos dias
K. Rahner: "O ateu, aquele que não tem fé, contempla seu último antes de morrer, Santa Teresinha de Lisieux disse: "Tenho medo
dia como uma grande incógnita cheia de angústia. O cientista de ter tido medo da morte. Não tenho medo, porém, do após a
sem fé tenta detectar na grandeza infinita do universo a orques­ morte, nem tenho saudades da vida. Isso não] Apenas me pergun­
tração sideral das galáxias, ou se adentra no coração infinitamente tava, com alguma apreensão: como será esta misteriosa separação
pequeno das particulas infra-atômicas. Mas nem o telescópio nem da alma e do corpo? Fora a primeira vez que pensara nisso; mas
o microscópio lhe dão uma solução para o enigma da morte[ . . . ] . logo me entreguei a Deus"23• E no dia em que morreu disse: "Meus
Somente a fé nos descortina o sentido da morte e fundamenta menores desejos foram atendidos. O maior deles - morrer de
nossa esperança de Ressurreição"22 . amor - deverá sê-lo também". Poucas horas depois, com os
O evangelho de Marcos (Me 1 5,37) e o de Mateus (Mt 27,50) olhos fixos no Crucifixo, disse as últimas palavras da sua vida:
dizem que Jesus morreu dando um grande grito. O evangelho de "Ó, eu O amo! Meu Deus, eu Vos amo1"24•
São Lucas diz que quando Jesus "deu um grande grito" era quase a "O centurião, que se achava bem defronte dele, vendo que
hora sexta e toda a terra ficou coberta de trevas até a hora nona o sol havia expirado deste modo, disse: ' De fato, este homem era filho
I

escureceu e o véu do Santuário rasgou-se ao meio (cf Lc 23,44-46). de Deus'" (Me 1 5,39) . Ao dizer essas palavras, um pagão procla­
O que provavelmente foi um fenômeno natural, a irrupção de ma que a morte de Jesus Cristo na Cruz foi a morte de um justo
um khamsin, um vento quente que carrega pó e areia e cobre a (Lc 23,47). As pessoas que contemplam a morte de Jesus Cristo
terra com uma névoa densa e escura, é apresentado por Lucas na Cruz e ouvem suas palavras são iluminadas pela luz de Jesus
como símbolo da tristeza e do luto da natureza pela morte na Cristo, que se torna a Luz de suas vidas.
Cruz do Verbo por quem foram feitas todas as coisas. A Carta Jesus disse: "Ninguém tira a minha vida, mas eu a dou por
aos Hebreus descreve nessa linha a oração de Jesus: "Cristo, nos mim mesmo". Quando "expirou" na Cruz, quando entregou seu
dias de sua vida terrestre, dirigiu preces e súplicas, com forte cla­ último alento nas mãos do seu "Papai querido", essas palavras se
mor e lágrimas, àquele que tinha poder de salvá-lo da morte. E tornaram realidade. O Filho foi abraçado pelo Pai, e viverá eter­
foi atendido, por causa de sua piedade" (Hb 5, 7). namente a comunhão com Ele na glória. "A sexta palavra", disse
As últimas palavras que Jesus disse na Cruz foram as do F. Sheen, "foi um adeus à terra, a sétima marcou sua entrada no
Justo ameaçado de morte: "Livra-me do laço que me armaram, céu". Ao morrer na cruz, o Cordeiro imolado abre o livro selado
porque és minha força. Nas tuas mãos entrego meu espírito; tu com sete selos e revela o sentido do plano de Deus (Ap 5, 1 ) .

2 1 . W. PANNENBERG, op. cit., 365, apud B. FoRTE, op. cit., 294-295. 23. Novíssima Verba, p. 1 76, apud Ch. JouRNET, op. cit., 1 74 .
22. K. RAHNER, Worte vom Kreuz, Freiburg in Brisgau, Herder, 2 1 98 1 , 2 1 1 . 24. Novissima Verba, apud ibid.

94 95

� � -------- ------.........
A Paixão de Jesus Cristo
As sete palavras que Jesus Cristo disse na Cruz

"Todas as portas", disse P. Claudel, "abrem-se ao mesmo tempo,


No fim do dia, no ofício das Completas, é rezada esta oração:
todas as oposições se dissipam, todas as contradições se resolvem".
" Nas tuas mãos, Senhor, entrego a minha vida". Os rabinos reco­
Fazendo uma exegese alegórica da Parábola do Pai miseri­
mendavam rezar no fim do dia o Salmo 3 1 , entregando a vida a
cordioso (Lc 1 5, 1 1 -32), podemos dizer que Jesus de Nazaré é
Deus, na certeza de que Deus acolherá nosso último alento. As
o verdadeiro "filho pródigo". Como o filho mais novo da pará­
mãos de nosso "Papai querido " estão sempre abertas para nos
bola contada por Jesus (Lc 1 5, 1 1 -3 2), saiu da casa do Pai e foi
acolher, nos abraçar e nos conduzir para o banquete celeste, para
para um país distante, para o planeta terra. Essa decisão, porém,
a festa sem fim da comunhão com Deus e com todos os santos.
não foi tomada pelo egoísmo e pela irresponsabilidade, como
As últimas palavras que Jesus disse na Cruz são o "suplemento
foi a do filho caçula da parábola do Pai misericordioso, mas foi
de alma" de que precisamos para viver a vida verdadeira, a vida
tomada pelo amor e pela compaixão. O Verbo que assumiu
que desemboca na comunhão eterna com Deus, nosso Pai que­
nossa carne no seio de Maria de Nazaré nasceu num curral em
rido. As palavras que foram ditas por Jesus Cristo falando com o
Belém. José e Maria fugiram com o Menino para o Egito por­
Pai saciam já agora nossa sede de amor e de comunhão com
que Herodes queria matá-lo. Depois da morte de Herodes, os Deus e com todos os seus filh os.
três voltaram para Nazaré, onde Jesus cresceu e trabalhou até
os trinta e poucos anos. Nos três últimos anos de sua vida, per­
correu os caminhos da Palestina proclamando o Evangelho do
Reino de Deus, curando os doentes, dando de comer aos famin­
tos, acolhendo os marginalizados. As autoridades religiosas dos
judeus e as autoridades políticas do Império Romano conde­
naram Jesus de Nazaré à morte e o crucificaram junto com dois
bandidos. Quando estava no fundo mais fundo do poço dos so­
frimentos, o Filho amado entregou sua vida nas mãos do Pai. O
Pai abraçou o Filho amado e deu-lhe a glória da comunhão
eterna com Ele.
No mundo em que vivemos, a morte é obscena para as pes­
soas que não conhecem a fé cristã. E são usados todos os meios
possíveis para escondê-la e retardá-la. Para as pessoas que creem
no amor de Deus que nos foi revelado na vida, na morte e na
ressurreição de Jesus Cristo, morrer não é cair na "noite eterna",
não é desaparecer no nada, mas é entrar na comunhão eterna
com Deus e com os Santos. A vida, a morte e a ressurreição de
Jesus Cristo são a epifania do amor, primeiro e sempre fiel, com
que Deus nos amou e nos ama. As pessoas que são cativadas por
esse amor amam e servem a Deus e aos irmãos seguindo Jesus
Cristo e procurando se comportar como Ele se comportou.

96
97
A morte de J esus na Cruz
e a a be rt u ra do lado pela la nça1

1. A morte de Jesus na Cruz

No fim da primeira guerra dos romanos contra os judeus,


estes eram açoitados, torturados e crucificados diante dos muros
de Jerusalém. "Os soldados se divertiam pregando os prisioneiros.
E o número dos crucificados era tão grande que não havia espaço
bastante para as cruzes, nem cruzes para os corpos."2 Para os ro­
manos, o crucificado era um criminoso; para os judeus, um mal­
dito (cf Dt 2 1 ,23). Os corpos dos crucificados não eram enter­
rados, mas devorados por cães selvagens e por aves predadoras.

l . O tema que apresentamos neste capitulo poder ser aprofundado com


a leitura dos estudos que indicamos a seguir: J. M. FERNÁNDEZ- MARTOS, Mira­
rán ai que traspasaron. Liberar nuestra mirada cautiva, Sal Terrae, 8 1 /2 ( 1 993)
83-97; P.-H. VON KoLVENBACH, Contemplando il cuore traffito dei Signore,
Oradón y seroido eout. -dez. 1 988) 306-3 1 O; A. LEFtVRE, Die Seitenwunde
Jesu, GuL 33 (1960) 86-96; J. MATEos, J. BARRETO, El evangelio de Juan. Aná­
lisis lingüístico y comentario exegético, Madrid, Cristiandad , 2 1982, 828-832;
D. MOLLAT, El costado abierto (Jo 1 9, 30-33), in lnidadón espiritual a san
Juan, Salamanca, Sígueme, 1 965, 1 23-1 29.
2. FLÃVIO JosEFO, De bello judaico, 5, 449-45 1 .

99
A Paixão de Jesus Cristo
A morte de Jesus na Cruz e a abertura do lado pela lança

Jesus disse aos discípulos na última Ceia: "Isto é o meu corpo, "o que é loucura de Deus é mais sábio que os homens, e o que é
que é entregue por vós" ( l Cor l l ,24); "lsto é meu sangue, o sangue fraqueza de Deus é mais forte que os homens" ( l Cor 1 ,20-25).
da Aliança, que é derramado em favor de muitos" (Me 1 4 , 24). A Junto à Cruz em que Jesus Cristo está crucificado está a
primeira carta de São Pedro diz: "Cristo morreu uma vez pelos Igreja, que é a comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus,
pecados, o justo pelos injustos, a fim de vos conduzir a Deus" estão a Mãe de Jesus, João e as mulheres que seguiram Jesus nos
( l Pd 3, 1 8) . O evangelho de João diz: "Ele é a vítima de expiação anos de sua vida pública e permaneceram junto a ele quando foi
pelos nossos pecados. E não somente pelos nossos, mas também pe­ crucificado (Lc 23, 1 9). O Filho de Deus assumiu nossa carne.
los de todo o mundo" ( l Jo 4,2); "Nisto consiste o amor: não fomos Ele veio "não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em
nós que amamos a Deus, mas foi Ele quem nos amou e nos en­ resgate por muitos" (Me 1 0,45). No início da vida pública, de­
viou o seu Filho, como vítima de expiação pelos nossos pecados" pois de orar e jejuar quarenta dias no deserto, Jesus Cristo rejei­
( l Jo 4, 1 0) . tou o poder apresentado pelo Diabo, respondeu a essa tentação
N a parte mais alta da cruz foi posto u m letreiro no qual es­ afumando sua fidelidade a Deus, fidelidade que foi até a morte
tava escrito em hebraico, em latim e em grego: "Jesus de Nazaré, na Cruz3.
o rei dos judeus" (Jo 1 9, l 9). Os sacerdotes pediram a Pilatos que Santa Teresa de Ávila disse: "Creer que admite Dios a su
corrigisse a inscrição escrevendo: "Este homem disse: Eu sou o amistad estrecha gente regalada y sin trabajos es disparate"4. "O
rei dos judeus" (Jo 1 9, 2 1 ) . Deus, que havia falado pelo sumo sofrimento de Deus não é expressão de uma limitação em seu
sacerdote Caifás quando profetizou que Jesus devia morrer para ser, mas é expressão de seu excesso de amor. Por isso, Deus pode
atrair a si os filhos de Deus dispersos (Jo 1 9,32) , fala agora por superar o sofrimento com o sofrimento e destruir com a morte
Pilatos, que recusa o pedido dos sacerdotes dizendo-lhes: "O que o poder da morte."5 Jesus Cristo nos deu ao morrer com os braços
escrevi, está escrito" (Jo 1 9, 22). abertos na Cruz a plenitude do amor e da vida, que recebemos
Jesus de Nazaré foi condenado pelo Sinédrio, que o acusou quando abrimos nosso coração ao amor de Deus e o acolhemos.
de ser blasfemo e agitador político. Acusado desses dois compor­ Os santos dos tempos passados e os santos dos nossos dias nos
tamentos, Pilatos o condenou. Dizer que a morte de Jesus Cristo mostram como devemos nos comportar na hora da morte. Para
na Cruz foi consequência da vontade do Pai é uma afirmação falsa. São Francisco de Assis, a morte era a "irmã morte". Quando sua
Com efeito, Jesus Cristo não nos revelou um deus dominador, morte estava próxima, Santa Teresa de Ávila disse a Jesus: "Até
um deus violento, um deus repressor, mas nos revelou o Deus que que enfim vamos nos ver face a face". O padre Pedro Arrupe,
nos amou com um amor primeiro e eternamente fiel. A morte superior geral da Companhia de Jesus, definiu a morte com estas
de Jesus de Nazaré na Cruz foi a consequência do não acolhi­ palavras: "Meu último Amém e meu primeiro Aleluia".
mento do direito, da justiça e da misericórdia do Reino de Deus,
que o Filho amado de Deus proclamou com suas palavras e suas
3. Para um maior aprofundamento do tema da comunhão na dor, cf M.
ações. Sua morte na Cruz é salvadora e nos revelou a vitória do MASSARD, Pourquoi la croix?, in Pour vous qui est Jésus Christ?, Paris, Cerf,
amor de Deus sobre o pecado e a morte. São Paulo diz que a 1970, 135-137; 1. RATZINGER, Sobre la cruz, in Diosy el mundo. Una conversación
morte de Jesus Cristo na Cruz é um "escândalo" para os judeus e con Meter Seewald. Las opiniones de Benedicto XVl sobre los grandes temas
uma "loucura" para os gentios, mas para os cristãos é a revelação de hoy, Barcelona, Galaxia Gutenberg, 2005, 303-3 16.
4. Camino de perfección, 28,3.
do poder e da sabedoria de Deus. Ela nos revela, com efeito, que 5. W. l<AsPER, Fé cristiana y sociedad moderna, Madrid, SM, 1986, v. IX, 2 1 2.

100 101
A Paixão de Jesus Cristo A morte d e Jesus n a Cruz e a a bertura d o lado pela lança

Indicamos dois textos evangélicos que nos mostram as difi­ pecados". A pessoa que contempla a Paixão de Jesus Cristo deve
culdades de percorrer os caminhos do amor e da entrega a Deus se perguntar: "E o que devo eu fazer e padecer por Ele" (EE 1 97).
e aos irmãos que Jesus de Nazaré percorreu. O primeiro descreve A resposta a essa pergunta é amar e servir às pessoas que sofrem.
a reação de Pedro ao anúncio da Paixão de Jesus (Me 8,27-33). Nos sofrimentos da Paixão, Jesus não pediu a Deus que enviasse
Depois de haver confessado que Jesus é "o Cristo, o Filho do legiões de anjos (Mt 26,53) para destruir os que o fizeram sofrer
Deus vivo", Pedro não aceitou o sofrimento de Jesus. Jesus reagiu na Paixão, mas bebeu o cálice dos sofrimentos até o fim. A mística
ao comportamento de Pedro dizendo-lhe: "Vai para trás de mim, inaciana do seguimento de Cristo está enraizada na experiência
Satanás�". O segundo texto descreve como foi o encontro de de sermos amados por Deus e de amar a Deus.
Jesus ressuscitado com os dois discípulos que iam para Emaús. Do amor com que Jesus Cristo nos amou em seus sofrimentos
Eles estavam tristes e decepcionados porque Jesus não mostrou falam estes textos de São Paulo: "Quem nos separará do amor de
seu poder destruindo seus inimigos, mas foi crucificado com dois Cristo? Tribulação, angústia, perseguição, fome, nudez, perigo, es­
bandidos. O encontro com o Senhor ressuscitado operou uma pada? Pois está escrito: 'Por tua causa somos entregues à morte o
virada de 1 80 graus nas vidas dos dois discípulos. Depois de re­ dia todo; fomos tidos como ovelhas destinadas ao matadouro'.
conhecerem Jesus, "naquela mesma hora, levantaram-se e volta­ Mas, em tudo isso, somos mais que vencedores, graças àquele que
ram para Jerusalém" (Lc 24,33) a fim de comunicar aos discípu­ nos amou. Temos certeza de que nem a morte, nem a vida, nem os
los a experiência do encontro com o Senhor ressuscitado que anjos, nem os principados, nem o presente, nem o futuro, nem
eles haviam feito6. as potências, nem a altura, nem a profundeza, nem outra criatura
São Pedro e São Paulo dizem que Jesus carregou nossos pe­ qualquer será capaz de nos separar do amor de Deus, que está no
cados para nos salvar: "Levou nossos pecados em sem próprio Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8,35-39) . "Fui crucificado junto
corpo a fim de que, mortos para os nossos pecados, vivêssemos com Cristo. Eu vivo, mas já não sou eu que vivo, pois é Cristo que
para a Justiça. Por suas feridas fostes curados, pois estáveis desgar­ vive em mim. Minha vida presente na carne, eu a vivo pela fé no
rados como ovelhas, mas agora retornastes ao Pastor e Supervisor Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim"
das vossas almas" ( l Pd 2,24-25). "Deus, enviando o seu próprio (Gl 2, 1 9-20). "E é pelo sangue deste que temos a redenção, a
Filho numa carne semelhante à do pecado e em vista do pecado, remissão dos pecados, segundo a riqueza de sua graça" (Ef 1 ,7).
condenou o pecado na carne" (Rm 8,3). " Cristo nos remiu da Do amor de Deus Pai e do amor do Filho, que nos amou com
maldição da Lei tomando-se maldição por nós, porque está escri­ um amor que foi até a morte na Cruz, fala São João nestes três
to: Maldito todo aquele que é suspenso no madeiro" (Gl 3, 1 3) . textos: "Pois Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho
"Aquele que não conhecera o pecado, Deus o fez pecado por único, para que todo o que nele crer não pereça, mas tenha a vida
causa de nós, a fim de que, por ele, nos tornemos justiça de Deus" eterna" (Jo 3, 1 6). "Por isso o Pai me ama, porque dou a minha
(2Cor 5,2 1 ) . Santo Inácio de Loyola diz: "Por meus pecados vai vida para retomá-la. Ninguém ma arrebata, mas eu a dou livre­
o Senhor à Paixão" (EE 1 93). "Ele padece tudo isso por meus mente" (Jo l O, 1 7- 1 8). "Nisto consiste o amor: não fomos nós
que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos o
seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados. Caríssi­
6. Desenvolvemos esse tema e mostramos sua riqueza e sua atualidade
em nosso livro O itinerário da fé pascal. A experiência dos discípulos de Emaús mos, se Deus assim nos amou, devemos, nós também, amarmo-nos
e a nossa (São Paulo, Loyola, 4200 1 ) . uns aos outros" ( l Jo 4, 1 0-1 1 ).

102 1 03

-
A Paixão de Jesus Cristo A morte de Jesus na Cruz e a abertura do lado pela lança

As mulheres que haviam seguido Jesus "estavam de pé junto e imediatamente saiu sangue e água. Aquele que viu dá testemu­
à cruz de Jesus" (Jo 1 9,25). Nos países pobres, e também nos países nho, e o seu testemunho é verdadeiro; ele sabe que diz a verdade,
ricos, são muitas as mulheres que estão ao lado dos crucificados, para que vós também creiais. Isto aconteceu para que se cumpris­
que olham com a compaixão do amor os doentes, os marginaliza­ se a Escritura que diz: Não quebrarão nenhum dos seus ossos"
dos, os meninos de rua, que cuidam com suas mãos dos corpos (Jo 1 9,34-36). O discípulo que o Senhor amava foi testemunha
dessas pessoas e dão novo alento às suas almas. A irmã Dolores ocular desse fato, compreendeu seu significado e o relatou para
trabalhou durante muitos anos em Santos servindo aos pobres. Na que fosse conhecido pelos cristãos. A maldade, a mentira e as
práxis desse serviço, ela pensava no comportamento de Jesus Cristo, trevas não conseguiram vencer a bondade, a verdade e a luz da
recordava este texto: "Os que passavam por ali o insultavam, balan­ vida e da morte de Jesus Cristo. A água e o sangue que saíram do
çando a cabeça e dizendo: 'Tu que destróis o templo e o reconstróis lado aberto de Jesus crucificado são símbolos dos sacramentos
em três dias, salva-te a ti mesmo! Se és o Filho de Deus, desce da do Batismo e da Eucaristia, por meio dos quais nos é dada a vida
cruz! "' (Mt 27,39-40). Jesus respondeu à questão do sofrimento eterna. Do lado de Adão que dormia foi formada por Deus a
dos inocentes não elaborando teorias, mas com sua práxis, que primeira mulher; do lado do segundo Adão que "dormia", que
deve ser também praticada por seus discípulos e por suas discí­ estava morto na cruz, foi formada a nova Eva, a Igrej a.
pulas. A vida da irmã Dolores é um exemplo dessa práxis. Santo Agostinho proclama: "Ó morte que dá vida aos mortos!
Que há de mais puro que este sangue? Que ferida mais salutar
que esta?"8. Diante de Jesus Cristo crucificado, oremos como Santo
1 1 . O lado de Jesus traspassado pela la nça7 Agostinho orou e recomendou orar: "Ensina-me o amor e a dor.
Senhor, escreve tuas chagas no meu coração para ler nelas teu
1. Do lado de Jesus traspassado pela lança do soldado saíram amor e tua dor; o amor, para desprezar por Ti todo amor; a dor,
sangue e água para suportar por ti toda dor. Olhai com os olhos da alma as fe­
ridas do Crucificado, as cicatrizes do Ressuscitado, seu sangue de
"Para que os corpos não ficassem na cruz no sábado, os judeus moribundo. Que fique cravado nos vossos corações aquele que
pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas dos crucificados por vós está pregado na Cruz"9. São João Crisóstomo diz: "Foi,
e os tirasse da cruz. Os soldados foram e quebraram as petnas, portanto, do lado de Cristo que a Igrej a foi formada, assim como
primeiro a um dos crucificados com ele e depois ao outro. Che­ do lado de Adão foi formada Eva". São Cipriano diz: "Não pode
gando a Jesus e vendo-o já morto, não lhe quebraram as pernas" ter Deus por Pai quem não tem a Igreja por mãe"1º.
(Jo 1 9,3 1 -33). Sair sangue e água do lado de Jesus Cristo aberto pela lança
Jesus Cristo é apresentado como o Cordeiro pascal do qual o é um fato fisiológico, mas ele tem um significado simbólico. A
livro do Êxodo e o livro dos Números dizem: "Não lhe quebrareis primeira carta de São João diz: "Este é o que veio pela água e pelo
osso algum" (Ex 1 2,46; Nm 9, 1 2). Os ossos de Jesus não foram sangue" (lJo 5,6). E diz também que esse sangue "nos purifica
quebrados, "mas um soldado traspassou-lhe o lado com a lança,
8. SANTO AGOSTINHO, Tratado sobre o evangelho de João, 1 20, 2.
7. Este tema é mais desenvolvido em A. BARREIRO, SJ, Vimos a sua glória. 9. lo., Sobre a santa virgindade XII, 54, n . 55 e 56.
Como Jesus vê e olha e como é visto e olhado no evangelho de João, São l O. Apud R. CANTALAMESSA, O poder da cruz, São Paulo, Loyola, �2006,
Paulo, Paulinas, 2005, 1 43 - 1 50. 1 1 l e 1 1 4, respectivamente.

104 105
A Paixão de Jesus Cristo A morte de Jesus na Cruz e a abertura do lado pela lança

de todo pecado" (Uo 1 , 7). O Apocalipse diz que Jesus Cristo criatura alguma, nada poderá separar-nos do amor de Deus, ma­
"por seu sangue nos libertou dos nossos pecados" (Ap 1 , 5). E diz nifestado em Jesus Cristo, nosso Senhor" (Rm 8,38-39) .
a seguir que Jesus Cristo "nos libertou por seu sangue dos nossos A carta aos Hebreus diz que a morte não tem mais poder so­
pecados e fez de nós um reino de sacerdotes" (Ap 1 ,6), que "todo bre nós depois que o Filho de Deus assumiu a nossa carne "para
olho o verá, também aqueles que o traspassaram" (Ap 1 , 7); fala reduzir à impotência mediante a morte aquele que tem o poder da
da "multidão imensa, que ninguém pode contar, gente de todas morte, o diabo, e libertar todos os que por temor da morte estavam
as nações, tribos, povos e linguas" (Ap 7,9); fala dos eleitos "ves­ sujeitos à escravidão por toda a vida" (Hb 2, 1 4 - 1 5). No entanto, a
tidos com túnicas brancas" (Ap 7, 1 3), que "lavaram e alvejaram pessoa que é amada tem a liberdade de acolher ou rejeitar o amor.
as suas vestes no sangue do Cordeiro" (Ap 7, 1 4) . Porque o amor é vulnerável, "não se vive no amor sem dor".
O simbolismo d a água e do sangue se encontra também em Os Santos Padres viram no sangue e na água que saíram do
várias passagens do evangelho de João. Na conversa com Nico­ lado de Jesus Cristo aberto pela lança do soldado os símbolos dos
demos durante a noite, Jesus lhe disse: "Em verdade, em verdade, sacramentos do Batismo e da Eucaristia. Nas Homilias sobre Eze­
te digo: se alguém não nascer da águas e do Espirito, não poderá quiel, Orígenes diz: "Deus Pai sofre de uma paixão de amor"1 1 •
entrar no Reino de Deus" (Jo 3,5). Na conversa com a mulher Santo Agostinho vê no sangue e na água que sairam do lado de
samaritana ao meio-dia, junto ao poço de Jacó, Jesus lhe disse: Cristo os sacramentos do Batismo e da Eucaristia, vê a Igreja que
"A água que eu darei se tornará nele uma fonte de água jorrando nasce do lado daquele que inclinou a cabeça para "dormir", assim
para a vida eterna" (Jo 4, 1 4) . Depois da multiplicação do pão, como Eva saiu do lado de Adão quando este dormia (Gn 2,2 1 ) .
Jesus disse aos judeus: "Se não beberdes o seu sangue [do Filho Depois de contemplar esse amor de Deus que nos foi reve­
do Homem] não tereis a vida em vós" (Jo 6,53); "Quem bebe o lado na vida, na morte e na ressurreição de Jesus Cristo, façamos
meu sangue tem a vida eterna" (Jo 6,54); "Quem bebe o meu as três perguntas propostas por lnácio de Loyola no colóquio da
sangue permanece em mim" (Jo 6,55) . No último dia da grande primeira meditação sobre os pecados: "O que tenho feito, o que
festa, Jesus exclamou: "Se alguém tem sede, venha a mim, e beba faço e o que devo fazer por Cristo?" (EE 53). Contemplemos
quem crê em mim. [ . . . ] Do seu interior correrão rios de água demoradamente o amor com que o coração de Jesus nos ama.
viva" (Jo 7,37 .38). Recordemos os milhões de devotos do Coração de Jesus espalha­
São Paulo exorta os cristãos de Éfeso a olhar "a largura, o dos pelo mundo. Muitos deles são pobres, que vivem no interior
comprimento, a altura, a profundidade" do "amor de Cristo, que ou nas periferias das grandes cidades, mas há também devotos do
ultrapassa todo conhecimento" (Ef 3, 1 8- 1 9) . O tema da morte Coração de Jesus que pertencem à classe média.
de Cristo, com a qual se realizou a vitória sobre nossa morte, apa­
rece também em outras cartas de Paulo: "Quanto a mim, não haja 2. "Olharão para aq uele que traspassa ra m "
outro motivo de gloriar-me a não ser na cruz do Senhor Jesus
Cristo" (Gl 6, 1 4); ''A morte foi tragada na vitória. Ó morte, onde Na crucifixão de Jesus Cristo se cumpriu a profecia de Za­
está tua vitória? Morte, onde está teu aguilhão?" ( l Cor 1 5,55); carias (Zc 1 2, 1 O). O Apocalipse diz: "Todos os olhos o verão, até
"Sim, eu tenho certeza: nem a morte nem a vida, nem os anjos os que o traspassaram, e todas as tribos da terra baterão no peito por
nem as dominações, nem o presente nem o futuro, nem as potên­
cias, nem as forças das alturas, nem as das profundezas, nem outra 1 1 . Apud ibid., 1 59.

106 107
A Paixão de Jesus Cristo A morte d e Jesus n a Cruz e a abertura d o lado pela lança

causa dele. Sim� Amém�" (Ap 1 ,7). O evangelho de João, diz C. Igreja foi formada do lado do segundo Adão"13• Santo Agostinho
M. Martini, "dirige-se a toda a humanidade que contemplará o disse: "Longino, com sua lança, abriu-me o lado de Cristo; entrei e
Crucificado como a manifestação plena do Deus que é por nós"12• ai descanso com segurança. Os pregos e a lança estão gritando para
Em Jesus Cristo crucificado nos é revelado o amor com que Deus mim que na verdade estou reconciliado com Cristo, se eu o amo.

nos ama, o amor que moveu o Pai a entregar seu Filho amado à Jesus Cristo é verdadeiramente a porta da vida". O Apocalipse
morte para destruir a morte e nos dar a vida eterna. "Deus amou diz que na hora em que o lado de Jesus crucificado foi atravessa­
tanto o mundo, que deu seu Filho único, para que todo o que nele do pela lança manifestou-se a glória de Deus: ''Vede! Ele vem
crer não pereça, mas tenha a vida eterna" (Jo 3, 1 6) . com as nuvens, e todo olho o verá - como também aqueles que
Esse amor nos foi revelado na Paixão de Jesus Cristo, que o traspassaram" (Ap 1 , 7).
começou com a oração agônica no Horto das Oliveiras e termi­ Na carta ao padre P.-H. Kolvenbach, escrita no dia 15 de maio
nou com sua crucifixão entre dois bandidos, fora dos muros de de 2006, 50º aniversário da encíclica Hauri.etis aquas, o papa
Jerusalém. Em sua Paixão se realiza o que Jesus havia dito: "E Bento XVI diz que quem acolhe o amor de Deus fica configurado
quando eu for elevado da terra atrairei todos a mim" (Jo 1 2,32). por ele em seu mundo interior e nas suas ações. "A experiência
Nela se realizou a vitória do amor sobre o pecado, da vida sobre do amor surgida do culto do lado traspassado do Redentor nos
a morte. Depois de sua "descida" (katábasis) realizou-se sua "su­ tutela ante o risco de nos prendermos em nós mesmos e nos faz
bida" (anábasis), realizou-se a glória que Jesus havia anunciado: mais disponiveis para uma vida para os outros".
"Pai, chegou a hora. Glorifica teu filho, para que teu filho te
glorifique" (Jo 1 7, 1 ) .
3. Estudos de Frederick Zugibe sobre a morte de Jesus Cristo
Ouvindo as palavras: "Olharão para aquele que traspassaram"
(Jo 1 9,37), perguntemo-nos como, para onde, para quem olha­
mos. Olhamos as pessoas e os acontecimentos com os olhos da fé1 Frederick Zugibe, médico legista norte-americano, católico
ou olhamos os ídolos da riqueza e do poder que Jesus rejeitou? fervoroso, professor na Universidade de Colúmbia, patologista­
Olhamos para os pobres, os doentes, os famintos, para as crianças chefe do Instituto Médico Legal de Nova York durante 35 anos e
e para as mães abandonadas? Quem é cativado pelo olhar de Jesus um dos peritos mais conceituados no campo da criminologia, apre­
ama e serve aos crucificados da terra praticando no relaciona­ sentou os resultados das suas pesquisas sobre a morte de Jesus
mento com eles gestos de ajuda, de carinho, de libertação. Cristo em três livros e em mais de dois mil artigos publicados em
O golpe de lança do soldado que atravessou o lado de Jesus revistas especializadas. F. Zugibe responde nessas pesquisas às
atravessou também o coração de sua Mãe. Ludolfo de Saxônia diz perguntas: Jesus Cristo morreu antes de ser suspenso na cruz?
que ela "caiu como morta nos braços de Maria Madalena". Na dor Morreu no momento em que a lança do soldado lhe atravessou
da Mãe de Jesus cumpriu-se a profecia do ancião Simeão: "Uma o peito? Morreu de infarto? Sua resposta é: "Jesus morreu de para­
espada traspassará tua alma�" (Lc 2,35). Ludolfo de Saxônia da cardiorrespiratória decorrente de hemorragia e perda de fluidos
acrescenta: "Como Eva foi formada do lado do primeiro Adão, a corpóreos (choque hipovolêrnico ), isso combinado com choque
traumático decorrente dos castigos físicos a ele infligidos".

1 2. C. M. MARTIN!, O Evangelho segundo João na experiência dos Exercí­


cios Espirituais, São Paulo, Loyola, 1 984, 1 05. 1 3 . Vita Christi II, 64, 1 4 .

108 109
A Paixão de Jesus Cristo A morte de Jesus na Cruz e a abertura do lado pela lança

F. Zugibe diz que o processo da morte de Jesus começou no de Jesus não nos ajuda pondo em jogo sua onipotência, mas sua
Jardim das Oliveiras, onde Jesus, consciente dos sofrimentos que debilidade". P. Claudel escreveu: "Diante do mal, Jesus não deu
se aproximavam, suou gotas de sangue que caíram no chão. Nessa uma explicação teórica, mas o enfrentou pessoalmente. Não des­
hora aconteceu o fenômeno da hematidrose, raro na literatura truiu a cruz, mas se estendeu nela". G. Bernanos escreveu: "Deves
médica, mas que acontece algumas vezes em indivíduos que so­ saber que, do Getsêmani ao Calvário, nosso Senhor conheceu e
frem forte estresse mental e são envolvidos pelo pânico. Nesses expressou antecipadamente todas as agonias, até as mais humil­
casos, "as veias das glândulas sudoríparas se comprimem e depois des e desoladas, inclusive a tua".
se rompem, e o sangue mistura-se então ao suor que é expelido
pelo corpo". A palidez facial é causada pelo desvio do fluxo san­
guineo das regiões periféricas para o cérebro.
F. Zugibe pesquisou também a flagelação sofrida por Jesus.
As três tiras dos chicotes com que foi açoitado tinham nas pontas
pedaços de ossos de carneiros ou outros objetos pontiagudos. Nas
39 chibatadas previstas na Lei mosaica, Jesus recebeu 1 1 7 golpes
que produziram tremores, desmaios e hemorragias em seus pul­
mões e lacerações em seu baço e em seu fígado. Os espinhos da
coroa posta na cabeça de Jesus romperam sua pele e seu couro
cabeludo e atingiram ramos de nervos que, irritados, causaram
dores lancinantes.
Depois de sofrer essas torturas, foi amarrada nos ombros de
Jesus a parte horizontal da cruz, que pesava 22 quilos aproxima­
damente. F. Zugibe diz que Jesus não carregou as duas partes da
cruz, mas somente a parte transversal dela, que pesava 80 ou 90
quilos. No alto do monte Calvário, as mãos de Jesus foram pre­
gadas com pregos de 1 2, 5 centímetros. F. Zugibe diz que a morte
de Jesus Cristo foi causada por uma "parada cardíaca e respira­
tória, em razão de choque traumático e hipovolêmico resultante
da crucificação".
Encerramos este capítulo citando quatro textos: dois de
Dietrich Bonhoffer, um de P. Claudel e um de G. Bernanos.
Quando foi condenado à morte por Hitler, D. Bonhoffer expres­
sou sua confiança no poder de Deus com estes versos: "Admira­
velmente protegidos pelos poderes bons/esperamos consolados
o que pode vir./Deus está conosco na tarde e na manhã/E com
toda certeza cada novo dia". Em outro texto, escreveu: "O Deus

1 10 111
As dores da Mãe na Pa ixão d o F i l h o

1 . Os sofri mentos d a Mãe n o nasci mento e nos primeiros anos


da crianc i n ha

As entranhas da Mãe se comoveram de dor quando o Menino


nasceu num curral da periferia de Belém e o colocaram envolto
em faixas numa manjedoura. O Menino foi apresentado no Templo
quarenta dias depois do nascimento. O ancião Simeão havia tido
"uma revelação de que não morreria sem ver o Ungido do Senhor"
(Lc 2,26) . Segurando o bebezinho em seus braços esqueléticos,
Simeão não olhou para o passado como fazem as pessoas idosas,
mas olhou para o futuro. Ele disse à Mãe que uma espada de dois
gumes lhe atravessaria o coração. Ana era também de idade muito
avançada quando o Menino foi apresentado no Templo. Contem­
plemos essas duas cenas e reflitamos sobre a importância da pre­
sença dos avós na vida das crianças. Contemplemos o compor­
tamento do ancião Simeão e de Ana, a profetisa, que também
partilhou a experiência de seu encontro com o Menino e louvou
a Deus. Os dois anciãos são modelos de comportamento para os
discípulos e para as discípulas de Jesus.

1 13
A Paixão de Jesus Cristo
As dores da Mãe na Paixão do Filho

A profecia de Simeão fortalecerá a Mãe para carregar as dores na intimista e atemporal do amor divino ferido que pede reparação"4.
Paixão do Filho. A virgem de Nazaré, a ''.Agraciada" por Deus, acre­ Neste item recordaremos algumas passagens evangélicas comen­
ditou nas palavras do mensageiro do Senhor e carregou a Cruz que tadas no inicio do capítulo.
o Filho carregou na Paixão. São Sofrônio disse num sermão da festa O relato do anúncio do anjo Gabriel (Lc 1 ,26-38) diz que,
da apresentação do Menino Jesus no Templo: "Do mesmo modo
depois de ficar admirada, de fazer perguntas, de definir-se como
que a Virgem Mãe de Deus tomou em seus braços a luz verdadeira
a "Serva do Senhor" e de dizer: "Faça-se em mim segundo a tua
e a comunicou aos que estavam nas trevas, também nós, iluminados
palavra" (Lc 1 ,38), "Ma ria partiu apress adamente para a região
por Ele e levando em nossas mãos uma luz visível para todos, deve­
mos sair depressa ao encontro daquele que é a luz verdadeira"' . montanhosa, dirigindo-se a uma cidade de Judá" (Lc 1 ,39) . E lá
A Mãe de Jesus sofreu também quando teve de fugir para o ficou três meses servindo a sua parenta Isabel, já idosa, até que
Egito com José porque Herodes procurava o Menino para ma­ ela desse à luz seu filho João.
tá-lo. "O anjo do Senhor apareceu em sonho a José e lhe disse: Lucas diz que a Mãe de Jesus guardava e meditava em seu
'Levanta-te, toma o menino e sua mãe e foge para o Egito� Fica coração as palavras e os acontecimentos relacionados com o Filho
lá até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino que era reflexiva e contemplativa . De fato, depois da visita do�
para matá-lo'" (Mt 2, 1 3) . Maria de Nazaré sofreu a dor das mães pastores ao recém-nascido na gruta de B elém, "Maria guardava
cujos filhos saem dos países onde nasceram e são engolidos pelas todas estas coisas, meditando-as no seu coração" (Lc 2, 1 9). Depois
ondas do mar, ou perambulam buscando trabalho nos países aos da visita de Jesus ao Tem plo de Jerusalém com seus pais quando
quais chegam. Contemplemos as lágrimas derramadas da Mãe tinha 1 2 anos, "sua Mãe guardava todas estas coisas no coração"
do Menino Jesus ao longo dos caminhos do deserto, como segu­ (Lc 2,5 1 ) . Maria continuou a ser contemplativa e ativa nos anos
ra nos braços a criancinha ameaçada de morte, como o Menino em que conviveu com Jesus em Nazaré e em algumas situações
encosta a cabecinha no peito da Mãe. Maria e José sofreram no da vida pública de Jesus. A Mãe do Messias viveu as alegrias e as
Egito as dores que sofrem os refugiados em países estrangeiros, tristezas de nossas vidas. Louvou a Deus com a alegria que nascia
cujas línguas não conhecem, que não encontram um lugar onde
do fundo mais fundo de seu coração no canto do Magnificat, e
morar, que não conseguem um emprego. Sofrendo essas dores, a
seu coração foi atravessado pela espada da dor na Paixão do Filho,
Mãe de Jesus foi a "Mulher forte" da qual fala a Escritura2.
como havia profetizado o ancião Simeão.

1 1 . As dores da Mãe na Paixão e ao pé da Cruz3

1. Refl exões introdutórias 2. As dores da Mãe ao pé da Cruz

A contemplação dos mistérios da Paixão proposta por Santo A Mãe acompanho u os sofrimentos da Paixão sofridos por Jesus
Inácio nos Exercícíos Espirituais está "nos antipodas de uma rnistica
quando carregou a Cruz na subida para o monte Calvário, olhando
o Filho e derramando lágrimas. No alto do Calvário, ela estava junto
I P. GARCIA MACHO, Maria junto a la Cruz, Madrid, San Pablo, 2005, 3 1 .
à Cruz. O Filho também olhava para a Mãe. Os dois viveram a co-
.

2. Esses sofrimentos de Maria e de José são apresentados nos capítulos


5 a 1 0 de nosso livro Assumiu a nossa carne e acampou entre nós. Subsídios
para orar os mistérios da infância de Jesus (São Paulo, Loyola, 22002). 4 . R . LAFONTAJN E, Les critéres d·authenticité de la compassion dans les
3. Cf. ibid., 93- 1 1 6. Exercices spirituels de saint J gnace, NRT ( 1 997) 5 4 1 -558 (544).

114 115
A Paixão de Jesus Cristo As dor�s
da Mãe na Paixão do Filho

munhão do amor na dor. A Mãe de Jesus é também nossa Mãe. tantas vezes o rosto da Mãe as mesmas mãos qi e h .
1 aviam s1.d 0
Por isso, está ao nosso lado quando carregamos nossas cruzes. postas nos lábios dos mudos, nos olhos dos cegos, t10s ouvidos dos
Derramando lágrimas, Maria viu como os soldados pregaram surdos, na pele dos leprosos, as mesmas mãos que haviam abençoa­
na Cruz as mãos e os pés de seu Filho, como lhe tiraram a roupa, do o pão e o vinho nas refeições com os discípulos e com os peca­
como sortearam a túnica que ela havia tecido em Nazaré. Ouviu dores, as mesmas mãos que haviam abençoado as crianças. Con­
as burlas dos que crucificavam seu Filho e as zombarias dos que templemos como a Mãe beijou as feridas do corpo do Filho e
0 olhavam na Cruz. Ouviu também as sete palavras que ele disse como fechou seus olhos. Em sua escultura La Pietà, Michelangelo
na Cruz. O amor compassivo da Mãe é modelo de comportamen­ representa com uma beleza e uma delicadeza geniais o amor da
to para os discípulos de Jesus. Mãe Piedosa. A mesma Mãe que olhou e acariciou Jesus, seu Filho,
Depois de contemplar essas cenas, reflitamos em nós mesmos nos olha e acaricia também a nós, que somos seus filhos.
perguntando-nos como acompanhamos as pessoas que carregam O evangelho de João conta como foi sepultado o corpo de
cruzes: crianças abandonadas, pessoas doentes, idosas, sem casa Jesus no jardim do Monte Calvário (Jo 1 9,38-42). Jesus foi dado
onde morar, escravas das drogas. Perguntemo-nos como olhamos à luz num curral na periferia de Belém e foi sepultado numa
essas pessoas, como conversamos com elas e como as ajudamos5. sepultura que não era da familia. Contemplemos o último beijo
Depois de contemplar e de refletir, peçamos a Jesus, por dado pela Mãe no Filho morto e ouçamos as palavras que lhe
inte rcessão da Mãe das Dores, sua Mãe e nossa Mãe, a graça de disse lembrando as experiências dos trinta anos de convivência
viver a compaixão em nossas vidas. Se pedirmos essa graça por em Nazaré, experiências que a Mãe guardava no coração.
intercessão da "Serva do Senhor" que acolheu e conservou em Maria, a Virgem de Nazaré, que havia sido saudada pelo anjo
seu coração de Mãe as palavras e as ações de seu Filho, essa graça Gabriel com as palavras: ''Alegra-te, Cheia de graça", está agora
nos será dada. Peçamos, pois, essa graça pela intercessão da Mãe dos com o coração da Mãe atravessado pela espada da dor. Depois
condenados, torturados e crucificados, pela intercessão da Mãe que a pedra do sepulcro foi rodada, a Mãe de Jesus passou a viver
de Jesus, da Mãe da Igreja, da nossa Mãe. a noite mais escura de sua vida. Ela é exemplo e força para todas
as mães e para todas as pessoas que sofrem. A Mãe de Jesus sofre,
mas crê que o amor de Deus vence todas as dores.
3. A dor da Mãe ao receber o Filho morto nos seus braços
Peçamos a Deus, pela intercessão da Mãe Dolorosa, a graça
e ao ser sepu ltado6
de crer que o amor de Deus que nos foi revelado por Jesus Cristo
vence todos os sofrimentos e vence a morte, a graça de crer que,
João, Nicodemos e José de Arimateia, depois de tirar os pregos
crendo nesse amor, nossas dores desembocarão no gozo da comu­
dos pés e das mãos, puseram o cadáver de Jesus nos braços da Mãe.
nhão eterna com o Pai, o Filho e o Espírito Santo, da comunhão
A Mãe limpou o rosto ensanguentado e sujo do Filho, acariciou as
com Maria, Mãe de Jesus, nossa Mãe e de todos os filhos e filhas
feridas da cabeça, dos pés e do lado traspassado pela lança; acari­
de nosso "Papai querido".
ciou as mãos do Filho, as mesmas mãos que haviam acariciado
Ao apresentar os mistérios da Paixão, Santo Inácio diz: "Do
sepulcro, inclusive, à casa para onde Nossa Senhora foi depois
5. O tema que apresentamos nos três itens seguintes é desenvolvido em
P. GARCIA MACHO, op. cit. de sepultado seu Filho" (EE 208,8) . E recomenda "Considerar a
6. Cf. ibid., 1 1 7- 1 43 . solidão de Nossa Senhora, em tanta dor e fadiga" (EE 208, 1 1 ).

116 1!7
A Paixão de Jesus Cristo As dores da Mãe na Paixão do Filho

Podemos contemplar essas cenas usando os textos que falam do A morte de Jesus Cristo na Cruz venceu a morte. Por isso,
sepultamento de Jesus (Lc 23,53-54; Jo 1 9,39-42; Mt 27, 59-60; a morte dos cristãos não é o fim da vida, mas é a passagem para a
Me 1 5,42-46) e do que aconteceu depois de seu sepultamento vida eterna. A Igreja não celebra o dia do nascimento dos Santos,
(Me 1 5,47; Mt 27, 6 1 ; Lc 23,55-56). Podemos usar também estes mas celebra o dia de sua morte. A morte era vista pelos cristãos
textos de São Paulo: Filipenses 2,6-8 fala do "esvaziamento" do dos primeiros séculos como "dorrnição". Essa é também a etimo­
Verbo, que começou com a Encarnação e chegou ao ápice na Paixão logia da palavra "cemitério", que significa "dormitório". A hora da
e na morte na Cruz; 1 Coríntios 2,2 recomenda: "Entre vós, não morte é para os cristãos a hora de "descansar em paz" no encontro
julgueis saber coisa alguma, a não ser Jesus Cristo, e este, crucifi­ com o Senhor.
cado"; e Hebreus 1 O, 1 O nos diz: "Somos santificados pela oferenda O evangelho de João foi chamado "evangelho semiótica" por­
do corpo de Jesus Cristo, realizada de uma vez por todas". que enfatiza os sinais feitos por Jesus. Quando chegou a hora de
sua morte na Cruz, Jesus entregou sua mãe ao discípulo amado
4. Com sua ressurreição, Jesus Cristo venceu o pecado e a morte
dizendo-lhe: "Eis aí a tua Mãe". "O discipulo a quem Jesus amava"
representa a Igreja. De fato, a Mãe de Jesus cuida da Igreja com
Os restos mais arcaicos dos seres humanos estão relaciona­ o carinho com que as mães cuidam de seus filhos. A Mãe de Jesus
dos com a morte: "Nas grutas do homem de Neandertal, que cuida com amor de Mãe dos incontáveis filhos e filhas que são
viveu há mais de 200 mil anos, já encontramos verdadeiros ce­ membros do Corpo de Cristo.
mitérios familiares"7. Os monumentos mais importantes da civi­ O Concilio Vaticano II proclama repetidas vezes que a Mãe
lização egípcia são monumentos fúnebres. As pirâmides foram de Jesus Cristo é a Mãe dos cristãos. A maternidade de Maria é
construidas há cinquenta séculos como "casas da eternidade [ . . . ] . assim proclamada pela constituição dogmática Lumen gentium:
Se um faraó -reinasse durante quarenta anos, ficava todo este tempo "A Mãe de Deus, Mãe de Cristo, é Mãe dos homens, sobretudo
construindo seu túmulo [ . . . ] . Toda a civilização egípcia era uma dos 6.éis1 1 ; "É verdadeiramente a Mãe dos membros de Cristo por­
cultura fúnebre. Para construir os túmulos dos reis, milhares de que cooperou com amor para que na Igrej a nascessem os fiéís, que
escravos perdiam suas vidas"8. são os membros desta Cabeça" 12• São Jerônimo diz que "a morte
"O monoteísmo javista é particularmente intolerante com todas veio por Eva e a vida por Maria"13• "Com ânimo materno se asso­
as formas de culto aos mortos, tão exuberante no mundo antigo.''9 ciou ao seu sacrificio [ao sacrificio de seu Unigênito], consentindo
Na teologia de São Paulo, a morte de Cristo está no centro do com amor na imolação da vítima por ela mesma gerada."14 ''A
mistério da salvação. Paulo proclama que "sua morte nos libertou Bem-aventurada Virgem está também intimamente relacionada
(Rm 6, 1 8-22), nos resgatou, nos justificou e nos reconciliou com com a lgreja"15• O titulo do Capítulo VIII da Lumen gentium é: ' A
Deus (2Cor 5, 1 8- 1 9). Sua morte é nossa Páscoa, nossa salvação, que Bem-aventurada Virgem Maria Mãe de Deus no mistério de Cristo
exerce seus efeitos em nós mediante o Batismo e a Eucaristia"1º. e da Igrej a". No último número desse capítulo, que é o último

7. DOM JoAo E. M. TERRA, SJ, Os mistérios da vida de Jesus, São Paulo, 1 1 . Lumen gentium, 54.
Ave-Maria, 2009, 198. 1 2. Lumen gentium, 53.
8. fbid., 1 99. 13. Lumen gentium, 56.
9. fbid., 200. 14. Lumen gentium, 58.
10. fbid., 2007. 1 5. Lumen gentium, 63.

1 18 119
.
,
-
A Paixão de Jesus Cristo

número da constituição, é feita esta exortação: "Todos os fiéis cris­


tãos supliquem instantemente à Mãe de Deus e Mãe dos homens
para que ela, que com suas preces assistiu às primícias da Igreja,
também agora, exaltada no céu, interceda junto ao seu Filho" 16•
Numa oração ao Coração de Jesus, Henri J. M. Nouwen es­ O ração j u nto à Cruz
creve: "Teu coração, aquele coração humano transbordando amor
divino, está partido. Rejeitado, desprezado, cuspido, escarnecido,
açoitado e coroado com espinhos, tu estás suspenso na tua cruz.
Todos aqueles que encorajaste com tuas palavras, livraste dos
demônios e curaste de suas enfermidades foram embora. Teu
amigo Judas te traiu; teu amigo Pedro te negou. Ninguém pôde
ficar de vigília contigo em tua agonia e não puderam nem mes­
mo perceber a profundidade de teu amor por eles". E acrescenta:
"Eu te contemplo, Senhor, e vejo teu lado ferido, o lugar onde
teu coração está partido. E quando eu olho meus olhos começam
a reconhecer a angústia e a agonia de todas as pessoas por quem
tu te entregaste. Teu coração partido toma-se o coração de toda a 1. Orar ao pé da Cruz com a Mãe das Dores
humanidade, o coração de todo o mundo [ . . . ] . Ó Senhor com­
passivo, teu coração está partido por causa de todo o amor que A Mãe de Jesus tinha a certeza de que seu Filho ressuscitaria ao
não é dado nem recebido"17. terceiro dia. No entanto, as dores do Filho na Paixão, os golpes em
seu corpo, os escarros em seu rosto, os suspiros que saíram de seus
lábios exangues continuavam a ferir o coração da Mãe. Quando o
cadáver de Jesus foi descido da Cruz para ser sepultado, as mãos da
Mãe acariciaram as feridas feitas no corpo do Filho pela flagelação
e as feridas feitas na cabeça pela coroa de espinhos' . A Mãe sofreu
em suas entranhas ao segurar em suas coxas e ao acariciar com suas
mãos o corpo morto de Jesus, ao limpar as manchas de sangue feitas
pelos açoites e pelos pregos, a sujeira das cusparadas e dos escarros.
Peçamos, por intercessão da Mãe das Dores, a graça de viver
a comunhão no amor com o Deus que "nos amou primeiro", nos
criou por amor e para o amor, a graça de praticar os gestos prati­
cados por Jesus: acolher os pecadores, abençoar as crianças, pôr

1 6. Lumen gentium, 69.


1 7 . Henri J. M. NouwEN, De coração a coração. Três orações ao coração 1 . Ver sobre este tema F. MAuRJAC, Vie de Jésus, Paris, Flammarion, 1 936,
de Jesus, São Paulo, Loyola, 200 1 , 35-36. 274-275; ed. port.: Vida de Jesus, Porto, Educação Nacional, 1 937.

121
120
A Paixão de Jesus Cristo Oração junto à Cruz

as mãos no rosto dos doentes: dos cegos, dos surdos, dos mudos, brancas. Quando a Cruz era posta na frente do altar, os parti­
de todos os doentes. A Mãe das Dores será consolada quando a cipantes da celebração aproximavam-se dela, faziam um gesto
Divindade, que se escondia na Paixão, se manifestar na santíssima de adoração, tocavam a Cruz com as mãos e descarregavam nela
Ressurreição (EE 223) . Então, o Filho consolará a Mãe como os os pecados, as tristezas, as dores, os fardos de suas vidas cantando
amigos consolam os amigos (EE 224). dezenas de cantos. Diante da Cruz eram feitos1 em silêncio1 os
Todos os seres humanos, inclusive os criminosos, precisam da gestos de tocar a Cruz com a fronte, ou beijá-la, descarregar nela
presença em suas vidas de uma mãe amorosa. A Mãe das Dores, as penas e as dores, recitar em silêncio ou em voz baixa a oração
que esteve ao pé da Cruz quando o Filho foi crucificado, que Alma de Cristo, pedir perdão, chorar.
abraçou seu corpo morto antes de ser sepultado, que sofreu a dor
da solidão, está conosco em nossas dores. 2. Jesus Cristo perdoa nossos pecados e cura nossas feridas

Quando acolhemos o amor de Deus, somos perdoados de


11. A oração ao pé d a Cruz e m Ta izé nossos pecados e curados de nossas feridas. Depois de expressar
com palavras e com gestos o desejo de serem perdoadas dos pe­
1. R ituais para fazer essa oração cados e curadas de suas feridas, as pessoas que contemplam os
mistérios da Paixão de Jesus Cristo pedem a graça de responder ao
A oração ao pé da Cruz é uma tradição muito antiga nas amor que nos foi revelado nela amando e servindo. Jesus Cristo,
Igrejas ortodoxas orientais, e também era feita nos mosteiros oci­ diz Santo Agostinho, é o médico que cura nossos corpos e nossas
dentais da Idade Média. Essa tradição foi recuperada, vivida e di­ almas, nosso coração, nossa inteligência e nossos afetos, nossas en­
vulgada pela comunidade ecumênica de Taizé, fundada em 1 940 fermidades e nossas fraquezas.
por Roger Schutz, filho de um pastor calvinista suiço. O irmão Peçamos a Jesus Cristo que cure nossas feridas ainda não
Roger admirava o papa João XXIII e foi amigo do papa Paulo V1 cicatrizadas, que nos fazem sofrer. Elas podem ter sua origem em
e do papa João Paulo II, que visitou a comunidade de Taizé duas nosso código genético, no modo como fomos educados, em nossas
vezes e disse que ela era "uma nascente de água fresca". limitações, no comportamento das pessoas, na ingratidão dos ami­
Nas décadas de 1 960 e de 1970, sobretudo nos meses de gos e assim por diante. Dialoguemos com Jesus Cristo crucificado
sobre essas feridas e peçamos que nos dê a graça de carregá-las
verão, chegavam a Taizé milhares de jovens peregrinos provindos
como nossa cruz. Peçamos ao Espírito Santo, que rega o que está
de muitas nações, culturas e linguas. Por isso, não era possível
seco, cura o que está enfermo, fortalece o que está fraco, que cure
celebrar a liturgia numa lingua conhecida por todos. Ela era cele­
nossas feridas ainda não cicatrizadas. Quando somos atingidos
brada ao anoitecer ou durante a noite na igreja do mosteiro ou no fundo mais profundo de nosso ser pelo amor de Deus, ele cura
numa capela iluminada à luz de velas, com gestos e refrões de também as feridas causadas no seio matemo2, e cura as raizes psí­
cantos, repetidos como mantras, que os participantes da celebra­ quicas das feridas que nos impedem de amar Deus e os irmãos.
ção cantavam baixinho, ao ritmo da respiração, sentados no chão Fomos gerados pelo batismo no seio materno da Igrej a para
ou em almofadas. Esse modo de cantar criava uma atmosfera de viver uma vida nova. Participando da comunidade eclesial, nela
recolhimento e comunhão.
A procissão era feita com uma Cruz de tamanho natural car­ 2. Cf J. M. HENNAUX, La guérison des souvenirs et des blessures reçues
regada por um ministro ou por alguns deles, vestidos com túnicas dans le sein matemel, NRT 1 1 9 ( 1 997) 65-84.

122 123

M -
A Paixão de Jesus Cristo
Oração junto à Cruz

somos curados por Jesus, pela leitura e pela escuta da Palavra de Paixão de Cristo, confortai-me.
Deus, pela confissão sacramental, pela orientação espiritual etc. Ó bom Jesus, ouvi-me.
Na comunidade dos discípulos e das discípulas de Jesus somos Dentro de Vossas chagas, escondei-me.
curados pelo mesmo Jesus que curava os doentes que iam ou eram Não permitais que eu me separe de Vós.
levados ao seu encontro. Do espírito maligno, defendei-me.
A cura de nossas feridas não é resultado de nossos conheci­ Na hora da morte, chamai-me.
mentos, nem de nossos esforços, mas dom de Deus. "A ciência E mandai-me ir para Vós.
incha. O amor edifica. Se alguém julga saber alguma coisa, ainda Para que com os Vossos santos Vos louve,
não sabe como deveria saber. Mas se ama a Deus é conhecido Por todos os séculos dos séculos. Amém.
por Deus" (1 Cor 8, 1 -3). Para conhecer o Deus que nos foi revela­
do por Jesus Cristo, para viver a experiência da relação amorosa
2. História da oração
com Deus, é necessário fazer a experiência de amarmos a Deus
e de sermos amados por Deus. E é necessária a práxis do amor e O texto mais antigo da oração Alma de Cristo se encontra num
do serviço aos irmãos. códice do inicio do século XIY, dos anos 1 3 1 4- 1 3 20. Essa oração
se encontra também numa dúzia de manuscritos do mesmo século.
Nesse século foram feitas traduções para as línguas francesa, ale­
1 1 1 . A oração A l ma de Cristo3 mã, holandesa e italiana. Seu texto incompleto se encontra numa
inscrição do Pátio das Donzelas do Alcácer de Sevilha, que data
1. Texto da oração aproximadamente do ano 1 364 . O texto completo se encontra
numa inscrição no Alcácer de Segóvia feita em 1 4 1 2.
Alma de Cristo, santificai-me. A oração Alma de Cristo surgiu numa época em que era vi­
Corpo de Cristo, salvai-me. vida de maneira muito profunda a devoção à humanidade de
Sangue de Cristo, inebriai-me. Cristo, à sua Paixão e à Eucaristia. Essa oração era rezada pelos fiéis
Agua do lado de Cristo, purificai-me. na Missa na hora da elevação e da comunhão. Depois da Idade
Média, a oração Alma de Cristo continuou vinculada à Eucaristia,
3. Para a elaboração deste texto nos servimos sobretudo dos seguintes e era rezada no fim da Missa como oração de ação de graças. As
estudos: R. GARCIA YILLOSLADA, Anima Christi. Origem y evolución de esta pessoas que não recebiam a comunhão faziam uma comunhão
plegaria medieval, Manresa 5 1 (1 979) l l 9- 144; P. DE L ETVRIA, Libro de Horas,
espiritual rezando essa oração.
Anima Christi y Ejercicios Espirituales de San lgnacio, AHSI 1 7 (1 948) 3-50
(este estudo foi reeditado em Estudos lgnacianos II, Roma, 1 957, 99-1 48); F. Na Espanha do século XV, a oração Alma de Cristo era conhe­
SEGURA, Meditación introductoria, in Ocho dias de Ejercicios según el método de cida e rezada por lavradores, por cavaleiros e por pessoas condena­
San lgnácio de Layola, Santander, Sal Terrae, 1 992, 2 1 -25; H. THURSTON, Anima das à morte. Ela se encontra no Ofício de Nossa Senhora e no
Christi, in Dictionnaire de spiritualité I, Paris, Beauchesne, 1 936, col. 670-672; G.
Ofício dos Defuntos dos Livros das Horas dos séculos XIV-XVI.
M. VERD, Anima Christi, in Diccionario de espiritualidad ignaciana, ed. GEi, 1
Bilbao/Santander, Mensajero/ Sal Terrae, 2007, 1, 1 63-169. O conteúdo desta
"Além de seu conteúdo e de suas entranháveis jaculatórias, sua
terceira seção foi publicado num artigo nosso: A. BARREIRO, A oração Alma de força está, em primeiro lugar, em que é uma oração muito pessoal,
Cristo, ltaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, 73 (2008) 83-86. com seus repetidos me, e em segundo lugar em que é uma oração

124 125
Oração junto à Cruz
A Paixão de Jesus Cristo

rítmica e ri.mada."4 Em Alcalá de Henares foi impressa, no ano 1 524, de vida interior. Se nossa vida é vivida na mediocridade1 no cansaço1
uma paráfrase da oração Alma de Cristo por Miguel de Eguia, que na rotina, então devemos orar: Alma de Cristo, santificai-me!
se tomou jesuíta e foi confessor de Inácio de Loyola em Roma. O Talvez nossos problemas estej am em nosso corpo. Se senti­
texto que rezamos hoje é o que era rezado no século XVI . mos que o corpo nos arrasta pelos caminhos de alguns dos sete
Nos Exercícios Espi.rituais, Inácio de Loyola recomenda rezar a pecados capitais, dominando-nos e escravizando-nos, se sentimos
oração Alma de Cristo no tríplice colóquio (EE 63 e 1 4 7) e no se­ o corpo como peso e nós sem força para carregá-lo, ou como limi­
gundo e no terceiro modos de orar (EE 253 e 258). Ela foi descrita tação ou deficiência, ou sem harmonia e sem paz, então devemos
pelo padre Fabiano Quadrantino, em 1 59 1 , como uma "oração devo­ orar: Corpo de Cristo, salvai-me!
ta, própria da Companhia de Jesus". De fato, ela se encaixa perfei­ Talvez nossos problemas sej am de tibieza espiritual, de sentir­
tamente na espiritualidade cristocêntríca dos Exercícios Espirituais. nos nem frios nem quentes, mas mornos. Não nos sentimos maus,
A oração Alma de Cristo era muito popular no tempo de mas sabemos que não somos bons. Se reconhecemos que em nossa
Inácio de Loyola, mas ela só foi impressa nos Exercícios Espirituais "vida espiritual" tudo é calculado de maneira cerebral e fria, que
em 1 576. Levando em consideração os dados apresentados neste nos falta entrega, compromisso e generosidade para "sair de nosso
item, é compreensível que alguns j esuítas tenham lamentado próprio amor, querer e interesse", então devemos orar: Sangue de
que no texto da Anima Christi não tenha sido conservada a ex­ Cristo, inebriai-me!
pressão "Põe-me junto de ti" (Pone me iuxta te), expressão que Se nosso problema está nas infidelidades repetidas, nos maus
resume a experiência mística de Santo Inácio. hábitos adquiridos, na vinculação a um passado que nos escraviza
e do qual não conseguimos nos libertar, então devemos rezar: Água
do lado de Cristo, purificai-me!
3. Sugestões para rezar a oração Alma de Cristo
Talvez nossos problemas estejam em dores internas ou ex­
Rezar a oração Alma de Cristo pode nos ajudar a não cair em ternas, em não conseguir dominar o medo, a tristeza, a aridez, as
duas faltas que impedem alcançar "o fim que se pretende": 1 ) A desolações; ou nas dores causadas pelos comportamentos de outras
falta de lucidez para ver o que há de "desordenado" na vida do pessoas, por sua falta de sensibilidade e de colaboração, por suas
exercitante, para ver o que tem de ser "convertido". 2) A falta de críticas; ou em não conseguirmos sair do comodismo e do indivi­
humildade, sem a qual não é possível praticar a oração verdadeira. dualismo; então devemos pedir: Paixão de Cristo, confortai-me!
De fato, só poderemos ser verdadeiramente discípulos de Jesus Talvez nosso problema esteja na prática da oração: porque
Cristo depois de "ver", de "conhecer", de "sentir" a presença do não oramos ou porque não oramos como deveríamos orar,
pecado e da desordem causada por ele em nossa vida, e depois porque nossa fé é superficial, porque não escutamos a voz de
de reconhecer que essa desordem só pode ser vencida pela graça de Deus, porque a oração que praticamos não nos move a entre­
Deus. A oração Alma de Cristo nos ajuda a descobrir nossa falta gar-nos a Deus e aos irmãos; então devemos orar: Ó bom Jesus,
de amor e nossas desordens. escutai-me!
Talvez os pecados, as desordens, os problemas de nossa vida Talvez nosso problema seja a falta de uma vida interior pro­
estejam em nossa alma, em nossa falta de alento, de entusiasmo, funda, seja viver de maneira superficial, girando na superfície do
próprio eu, condicionados pelo que fazem, dizem ou pensam os
4. G. M. VERD, op. cit., 1 63. outros, pulando de um lugar para outro, sem experiências pes-

127
126

-
A Paixão de Jesus Cristo

soais profundas que dinamizem nossas opções e nossas ações;


então devemos orar: Nas vossas chagas, escondei-me!
Talvez nossos problemas se situem no âmbito dos afetos.
Vemos claramente muitas coisas, mas não temos a força interior
necessária para realizá-las, não nos sentimos movidos a praticá­
Anexo
las. Se nossa fé não é ardente, mas é fria, ou demasiado racional,
se nossa relação pessoal com Jesus Cristo não atinge o mundo de
nossos afetos, se sentimos que estamos afetivamente distantes da
pessoa de Jesus Cristo e de sua missão, então nossa oração deve
ser: Não pennitais que eu me separe de vós!
Talvez nossos problemas tenham sua origem no contexto do
mundo em que vivemos, contexto que nos move a agir de acor­
do com os "valores" mundanos, individualistas e egoístas, isto é,
buscando ter dinheiro, poder, prestígio etc.; então devemos orar
pedindo: Do inimigo, defendei-me!
Os últimos pedidos da oração Alma de Cristo são: Na hora
de minha morte, chamai-me !/e mandai-me ir para vós. Para que
com vossos santos vos louve/por todos os séculos dos séculos. Amém. Três poemas sobre a Paixão de Jesus Cristo
Para fazer esses pedidos podem nos ajudar estes dois versos de
um soneto de John Donne: 1. Poema de Pau l Claudel1

Leva-me até Ti, aprisiona-me.


Pois se não me subjugares jamais serei livre. Ainda há nebulosidades.
Tudo o que pedimos na oração Alma de Cristo é dom de Mas há também algo que jamais poderemos dizer a Deus:
Deus, é graça de Deus. Essa graça não se alcança fazendo análises Não conheceste o sofrimento.
psicológicas. Ela é recebida como dom de Deus quando a pedi­ É que Deus não veio suprimir a dor,
mos com humildade, confiança e perseverança. Para nos conver­ nem sequer explicá-la.
ter, isto é, para mudar o rumo de nossa vida deixando-nos mover
Veio plenificá-la com sua presença.
por Deus, é necessário que reconheçamos, ao rezar essa oração,
Por isso não diga nunca:
que os problemas aqui mencionados estão presentes e atuantes
em nossa vida; e também é necessário crer que o poder de Deus Se o sofrimento existe. . . Deus não existe!
pode converter nossa fraqueza em força; que Deus, nosso Criador Diga antes:
e nosso Pai, pode e quer libertar-nos e salvar-nos, mas respeita Se o sofrimento existe, e Deus sofreu . . .
nossa liberdade, porque o verdadeiro amor é livre. Peçamos a nosso Que sentido terá dado Ele ao sofrimento?
Pai querido a graça de conhecer e de viver esse amor, sabendo
que para experimentar esse amor é necessário abrir nosso cora­
ção para acolhê-lo. 1 . Texto transcrito da revista ORAR. Revista O. C. D. - 5, p. 5.

128
129
to
A Paixão de Jesus Cris
Anexo

2. Soneto a nônimo do século XVI 3. Poema de Gertrud von l e Fort2

No me mueve, mi Dias, para quererte Eu, porém, não formulo nenhuma demanda.
el cielo que me tienes prometido, O que aconteceu comigo não foi apresentado em nenhum juízo.
ni me mueve el infierno tan temido Pois onde está o poderoso
para dejar por eso de ofenderte. que pode defender minha causa e fazer o necessário por mim?
Tú me mueves, Seiior; muéveme el verte Nenhuma vida é suficiente para me ouvir.
clavado en la cruz y escarnecido, Nenhuma vida tem força para compreender minha dor.
muéveme ver tu cuerpo tan herido, O sofrimento de cada ser humano tem sua hora,
muévenme tus afrentas y tu muerte. e a aflição de cada povo tem sua luz crepuscular.
Muéveme, al fin, tu amor; y en tal manera, Para minhas dores, porém, não há crepúsculo;
que aunque no hubiera cielo yo te amara, e minha aflição está presente em todos os povos da terra.
y aunque no hubiera infierno te temiera. Eu era o sangrento em todos os combates,
No me tienes que dar porque te quiera, eu era o moribundo em cada campo de batalha.
pues, aunque lo que espero no esperara, Eu era o preso sufocado pela fome.
lo mismo que te quiero te quisiera. Eu era o perdido que se escondia na cinza da noite.
Eu era o sufocado nas câmaras venenosas do crime.
Não me move, Senhor; para querer-te Eu era o atormentado cujo grito não quebrava nenhum coração.
o céu que me prometeste, Eu era o sepultado nas covas das cidades queimadas.
nem me move o inferno tão temido Eu era o perdido nos caminhos dos seus bosques em chamas.
para deixar; por isso, de ofender-te. Era a minha casa a roubada ao fu,gi.tivo.
Move-me, Senhor; move-me ver-te Era a minha roupa a roubada dos ombros dele.
cravado numa cruz e escarnecido; Era meu filho o que ficava gelado no peito da mãe.
move-me ver teu peito tão ferido, Eu era o negado cada dia e cada hora.
movem-me tuas afrontas e tua morte. Eu continuo a ser o traído no traido em cada novo grito do galo.
Move-me, enfim, teu amor de tal maneira Eu sou uma voz suave nos vales não cultivados do ódio de vocês.
que ainda que não houvesse céu eu te amaria Eu sou uma voz portadora de graça nos precipícios de gelo da
e ainda que não houvesse inferno eu te temeria. ira de vocês.
Não me tens de dar porque te queira, Eu sou uma voz celeste mesmo na porta do inferno.
porque ainda que o que espero não esperaria, Eu sou o amor inexorável.
o mesmo que te quero te quereria.
2. O título em alemão é "Stimme des Heilandes", "Voz do Salvador".
A tradução para o português foi feita pelo autor deste livro.

130 131
A Paixão de Jesus Cristo

Eu sou o amor inexorável.


Eu sou o amor suplicante.
Amai-me de novo.
Amai-vos todos.
B i b l i ografia
Silêncio !

ALBISTUR, F. Lavatorio de los pies y discipulado en San Juan. Stro­


mata 50 ( 1 994) 20-54.
ALONSO, J. El misterio de Getsemaní en el plan de los Ejercicios
de San lgnacio. Manresa 64 ( 1 992) 43-63.
ANDRÉS, R. de. Jesús siempre y más. 1 .000 opiniones sobre Cristo.
Madrid, EDIBESA, 1 997.
ARZUBIALDE, S. " Dolerse de" y "Padecer por" en la mente de S.
lgnacio. Reflexiones en torno al análises textual� Manresa 65
(1 993) 107-1 38.
BALTHASAR, H . U. von. Mysterium Paschale. ln: FEINER, J., LOHRER,
M. (ed.). Mysterium Salutis. Einsiedeln/Zürich/Koln, Benziger
Verlag, 1 969, p. 1 3 3-326.
BARBET, P. A paixão de Cristo segundo o cirurgi.ão. São Paulo, Loyola,
1 997.
BARREIRO, A. O itinerário da fé pascal. A experiência dos discípu­
los de Emaús e a nossa (Lc 24, 1 3-35). São Paulo, Loyola,
42001 .
__ . Vimos a sua glória. Como Jesus vê e olha e como é visto
e olhado no evangelho de João. São Paulo, Paulinas, 2005 .

133
132
A Paixão de Jesus Cristo Bibliografia

__ . A oração Alma de Cristo. Itaici: Revista de Espiritualidade CEBOLLADA, P. A oração na Terceira e Quarta Semana. Itaici:
Inaciana, 73 (2008) 83-86. Revista de Espiritualidade Inaciana, 3 1 ( 1 998) 5 1 -56.
BARROS, J. Tavares de. Ecos da Paixão. Jornal de Opinião, 26 abr.; CoHN, Haim. O julgamento e a morte de Jesus. Rio de JaneiroI
2 maio 2004. Imago, 1 994.
BATTAGLIA, V. Gesu crocifisso, Fíglio di Dío. Roma, Pont. Athen. CoRDOVILLA, A.Teología de la cruz y misterio trinitario. Sal Ter­
Antonianum, 1 99 1 . rae (2008) 1 8 1 - 1 92 .
CROSSAN, D., Who Killed Jesus? San Francisco, Harper, 1 995; ed.
BENOIT, P. Paixão e Ressurreição do Senhor. São Paulo, Paulinas,
1 975. br. : Quem matou Jesus? Rio de Janeiro, Imago, 1 995.
BERGER, Klaus. Vozu íst Jesus am Kreuz gestorben? Gütersloh, CuRA, S. del. El sofrirniento de Dios en el trasfondo de la pregunta
Gütersloher Verlagshaus, 2005. por el mal. Plantearnientos teológicos actuales. Ver. Esp. Teol.
BERNARDO DE CLARAVAL. Texto de São Bernardo sobre as dores de ( 1 99 1 ) 3 3 1 -373.
Nossa Senhora. ln: Liturgia das Horas. São Paulo, Paulinas, ÜAMATTA, R.A Paixão de Cristo. O Estado de S. Paulo, 29 abr. 2004.
2 1 978, Ofício das Leituras (1 5 de setembro), p. 1 . 550- 1 . 55 1 . ELLACUR1A, I. El pueblo crucificado. Ensayo de soteriología histó­
BINGEMER, M. C. Luchetti. La Pasión según Mel Gibson: Una rica. ln:__ . Cruz y Resurrección. Presencia y anuncio de
lectura en confrontación con la Tercera Semana de los Ejer­ una Iglesia nueva. México, Soto, 1 978, p. 48-82.
cicios. Manresa 76 (2004) 289-298. FABRIS, R., MAGGIONl, B. Os evangelhos II: O evangelho de Lucas
__ . A Paixão segundo Mel Gibson: Uma lectura em confron­ - O evangelho de João. Tradução e comentários. São Paulo,
to com a Terceira Semana dos Exercícios. Itaici: Revista de Loyola, 1 992.
espiritualidade Inaciana, 60 (2005) 59-67. FARIA, J. M. A Terceira Semana nos Exercícios e na América Latina.
BLANCY, A. "Le Dieu crucifié" de Jürgen Moltmann. ETR 50 Itaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, n. espec. 1 ( 1 990)
( 1 975) 3 2 1 -333. 58-66.
BoFF, L. Paixão de Cristo - Paixão do mundo. O fato, as interpre­ FERNANDEZ-MARTOS, J. M. Mirarán al que traspasaram. Liberar
tações e o significado, ontem e hoje. Petrópolis, Vozes, 1 973. nuestra mirada cuativa. Sal Terrae 8 1 /2 (1 993) 83-97.
BRETON, S. Le Verbe et la Croix. Paris, DDB, 1 98 1 (Jésus et Jésus­ FEVILLET, A. L 'agonie de Gethsémani. Enquête exégétique et théo­
Christ 1 4) . logique suivie d'une étude du "Mystere de Jésus" de Pascal.
BROWN, R. E . The Death of the Messiah. New York, Doubleday, Paris, Gabalda, 1 978.
1 994. FORTE, B. Jesus de Nazxaré. História de Deus, Deus da história.
CABASILAS, N. La vie en Christ. Paris, Cerf, 1 989, liv. I-IV (Sources Ensaio de uma cristologia como história. São Paulo, Paulinas,
Chretiennes 355). 1 985.
__ . La vie en Christ. Paris, Cerf, 1 990, liv. V-VII (Sources GAILLOT, J. Una Iglesia que no sirve, no sirve para nada . Santander,
chretiennes 3 6 1 ) . Sal Terrae, 2 1 99 1 .
CANTALAMESSA, R . O poder da Cruz. São Paulo, Loyola, 42006. GARCIA, A. Meditación sobre el Crucificado. Cuademos de Espiri­
__ . O mistério da Ceia. Aparecida (SP), Santuário, 1 1 2006. tualidad (mar. 1 982) 1 8-24.
CARRILLO ALDAY, S. Jesús de Nazaret. Su vida a partir de los cuatro GARCIA MACHO, P. Maria junto a la Cruz. Reproponer los Dolores
evangelios. Estella, Verbo Divino, 2007. de Maria. Madrid, San Pablo, 2005.

135
134
A Paixão de Jesus Cristo Bibliografia

lación
GARCIA-MURGA, J. R . Dolor con Cristo doloroso como reve KAsPER, K . Fe cristiana y sociedad moderna. Madrid, SM, 1 986.
1 58.
y fuente de gracia. Manresa 65 ( 1 993 ) 1 53- KERTE LGUE (ed.) . Der Tod Jesu. Deutungen im Neuen Testament.
o da mor te de Jesu s. ln: Freiburg in Brisgau, 1 976 (QD 74).
GARCIA R uBi o, A., Significad
·
--

lo, Paulinas, 1 994 ,


O encontro com Jesus Cristo vivo. São Pau KoLVENBACH, P.-H. La Pasión según San lgnacio. Conferencia en

p. 83-93. el Curso Ignaciano de 1 987 organizado por el CIS. CIS 2 1


GoNNET O. La souffrance de Die
u. Christus 1 39 ( 1 988) 277 -285 . (1 990) 6 1 -7 1 .
GoNZÁ:EZ DE CARDEDAL, O. La
oración en la existência cristiana. __ . La passion selon Saint lgnace. Une lecture de la troisieme
manca, Sí-
ln: __ . Meditación teológica desde Espaiia. Sala semaine des Exercices. Christus 1 5 2 ( 1 99 1 ) 4 79-487
gueme, 1 970 , p. 502- 507. __ .A Paixão segundo Santo Inácio. Itaici: Revista de Espiritua­
aristia, presença e profecia. Itatet.
. . · .

GoNzA.LEz-Q uEVE DO, L. Euc


lidade Inaciana, 1 2 (1 993) 79-86.
1 ) 4 1 -52.
Revista de Espiritualidade Inaciana, 44 (200 __ . Contemplando il cuore traffito del Signore. Oración y
cício s Espirituais.
. Introdução à Terceira Semana dos Exer Servicio (1 988) 306-3 1 0.
, 60 (2005) 68-8 4.
__

KoNINGS, J. Evangelho segundo João. Amor e fidelidade. Petrópo­


Jtaici: Revista de Espiritualidade Inaciana
GouRGUES, M. Le crucifié. Du
scandale à l'exaltation. Paris, DD B, lis/São Leopoldo, Vozes/Sinodal, 2000.
1 989 (Jésus et Jésus-Christ 38) . LAFONTAINE, R. Les criteres d'authenticité de la compassion dans

GRANADA, Fr. Luis de. Comenta


rias a las siete palabras. ln: -- ·
les "Exercices spirituels" de sairlt lgnace. NRT 1 1 9 ( 1 997)
0.
Vida de Cristo. Madrid, EDI BES A, 200 54 1 -558.
GRü N, A. Erlõsung durch das
Kreuz. Karl Rahners Beitrag zu LAGRANGE, M. J. L 'Évangile de Jésus-Christ. Paris, Gabalda, 1 946.
sterschwarzach,
einem heutigen Erlosungsverstandnis. Mün LAPLACE, J. Da luz ao amor. Retiro com S. João evangelista. São

Vier Türme, 1 97 5 . Paulo, Loyola, 1 990.


1 996 .
. Das Kreu z. Münsterschwarz, Vier Türme, LEFÊVRE, A. Die seitenwunde Jesus. GuL 33 (1 960) 86-96.
ão. ln: . Jesu s Cristo no evan­ Li:GASSE, S. Le proces de Jésus: l'histoire. Paris, Cerf, 1 994 (Lectio
Gul LLET, J. A cons uma ção: a Paix
__

p. 64-7 0 (Cadernos
gelho de João. São Paulo, Paulirias, 1 98 1 , Divirta 1 56) .
Bíblicos 3 1 ) . LWN-ÜUFOUR, X. Le partage du pain eucharistique selon le Nouveau
B, 2 1 99 1 .
. Jésus devant sa vie et sa mort. Paris, DO Testament. Paris, Seuil, 1 982 (Parole de Oieu 2 1 ) .
en los Ejercicio s. Progr essio (199 1/l) Lif:Gt, P. A. Pour mieux compredre l'Eucharistie. Paris, Cerf, 1 9 8 1 ,
HALLET, e La Tercera Semana
6- 1 1 . v. 1 (Foi Vivante 202).
HtB ERT, G. Tres douce compass
ion. Études ( 1 997 ) 635 -645 . LoEw, J. Jesus, chamado o Cristo. São Paulo, Paulirias, 1 972.

HENNAUX, J . M . L a guérison des


souvenirs et des blessures recues LOPEZ VILLANUEVA, M . Las mujeres que miran la cruz de lejos. Un
65-8 4.
dans le sein maternel. NRT 1 1 9 ( 1 997 ) acercamiento terapéutico. Sal Terrae 92 (2004) 207-2 1 8.
. Les paroles de Jésus. Paris, Cerf
, MAGGIONI, B. I racconti evanCT elici della Passione, AssisiJ Cittadella,
JERE MlAS , J., La derniere cene 'b'

1 972 , p. 42-6 6 (Lectio Divina 75) . 1 994.


, 1 979 (A Palavra
__ . Isto é meu corpo . . . São Paulo, Paulirias MANNS, F. Le lavement des pieds. Essai sur la structure et la signi­

Viva 1 4). fication de Jean 1 3 . ln: __ . L 'Évangile de Jean à la lumíere


Jou RNET, Ch. As sete palabras
. São Paulo, Flamboyant, 1 96 1 . du Judaisme. Jerusalem, Franciscan Prirlting Press, 1 99 1 .

137
136
A Paixão de Jesus Cristo Bibliografia

MARJON, A. Jesús et la science. La vérité sur les reliques du Christ. MOLLAT, D. El costado abierto (Jo 1 9,30-3 3). ln: __ . Iniciación
Paris, Presse de la Rénaissance, 2000. espiritual a san Juan. Salamanca, Sígueme, 1 965, p. 1 23 - 1 29.
MARTIN Ü ESCALZO, J. L. Vida y misterio de Jesús de Nazaret. Sala- MOLONEY, J. The Johannine Passion and the Christian Commu­

manca, Sígueme, 8 1 99 1 , v. III. níty. Salesianum 57 (1 995) 25-6 1 .


. El sermón de las siete palabras. Madrid, PPC, 2 1 995. MoLTMANN, J. El Dias crucificado. La cruz de Cristo como base y
MARTIN-M ORENO, J. M., SJ. Personajes del cuarto evangelio. Bil­
critica de toda teología cristiana. Salamanca, Sígueme, 1 975.
NoRRJs, Th. J. Jesus Crucified and Forsaken: The Face of God for
bao/Madrid, DDB/Universidad Pontificia Comillas, 2002.
the Modem World. Communio: lnternational Catholic Review
__ . Murió por nuestros pecados. Sal Terrae (2008) 1 93-204. J

26 (1 999), 892-9 1 2 .
MARTIN!, C. M. La pasión de Jesús según San Juan. Cuadernos de
NouwEN, Henri J. M. De coração a coração. Três orações ao Co­
Espiritualidad, Lima, 2 1 ( 1 982) 1 2- 1 7 .
. L'Eucaristia centro e forma della vita della Chiesa. ln: __ . ração de Jesus. São Paulo, Loyola, 2001 .
PANNENBERG, R . Cristologi,a. Lineamenti fondamentali. Brescia,
-- Un popolo, una terra, una Chiesa. Bologna, EDB, 1 983,
Morcelliana, 1 974.
p. 1 1 5-1 38.
PESCH, R. Wie Jesus das Abendmahal hielt. Der Grund der Eucha­
__ . O Evangelho segundo João na experiência dos Exercícios
ristie. Freiburg in Brisgau, Herder, 1 97 7 .
Espirituais. São Paulo, Loyola, 1 984.
PESCH, O. Das Leiden und Sterben Jesu Christi im Zeugnís Karl
. Et Dieu se fit vulnérable. Les récits de la Passion. Paris,
Rahners. Geist und Leben 6 1 (1 998) 87-97.
__

Cerf, 1 995; ed. it. : l racconti deli.a Passione. Brescia, Mor-


PLACHER, William. Narratives of a Vulnerable God. The Princeton
celliana, 1 994. Seminary Bulletin 1 4 ( 1 993) 1 34- 1 5 1 .
MARTY, F. Toucher et gouter. Christus 1 5 1 ( 1 99 1 ) 322-33 1 .
PONTE, P. E . A morte de Cristo e a libertação temporal dos ho­
MASSARD, M . Pourquoi la croix? ln: . Por vous qui est Jésus
__
mens. REB ( 1 968) 3 28-34 1 .
Christ? Paris, Cerf, 1 970, p. 1 3 5- 1 37. PRADA, J. M. de. La Pasión de Cristo. ABC, 2 fev. 2004 . Disponível
MATEOS, J. , BARRETO, J. El evangelio de Juan. Análisis lingüístico y
em: www.abc.es.
comentaria exegético. Madrid, Cristiandad, 2 1 982, p. 828-832. __ . La violencia de Mel Gibson. ABC, 9 abr. 2004. Disponível
MAuRJAC, F. Vie de Jesús. Paris, Flammarion, 1 936; ed. port.: Vida em: www. abc.es.
de Jesús. Porto, Educação Nacional, 1 937. __ . Qué cruz. ABC, 27 jul. 2006. Disponível em: www. abc.es.
McPARTLAND, P. Sacrament ofSalvation. An Introduction to Eucha­ RAHNER, K., über die Eucharistie. ln: __ . Betrachtungen zum
ristic Ecclesiology. Edinburgh, T&T Clark, 1 995, p. 1 0- 1 3 . ignatianischem Exerzitienbuch. München, Kosel Verlag, 1 965.
MENDES DE ALMEIDA, Dom Luciano. Servir por amor. Trinta dias de __ . Heilige Stunde und Passionsandacht. Freiburg in Brisgau,
exercícios espirituais. São Paulo, Loyola, 200 1 1 p. 1 1 3- 1 42. Herder, 4 1 965.
MENDIBOURE, B. Le chemin de la conversion du coeur. Au fil des __ . Passion des Menschensohnes. Freiburg in Brisgau, Herder,
Exercices spirituels. Christus 1 5 1 ( 1 99 1 ) 348-357. 1 968, p. 1 9 1 - 1 98.
MESTERS, C. O processo contra Jesus. ln: __ . Palavra de Deus na __ . Das Kreuz - das Heil der Welt. Betrachtungeum zum
história dos homens. Petrópolis,Vozes, 1 970, v. 11 p. 1 49-1 7 1 . Karfreitag. ln: __ . Chancen des Glaubens. Fragmente einer
MEYNET, R. Passion de notre Seigneur Jésus Christ selon les évangi,les modernen Spiritualitat. Freiburg/BaseVWien, Herder Verlag,
synoptiques. Paris, Cerf, 1 993 (Lire la Bible 99) . 1 97 1 , p. 37-42 .

138 139
A Paixão de Jesus Cristo
Bibliografia

. Worte vom Kreuz. Freiburg in Brisgau, Herder, 2 1 9 8 1 . Teologí.a de la cruz, Salamanca, Sígueme
, 1 979 .
=· A presença da paixão de Jesus em nós. ltaici: Revista de TERRA, D. João E. M., SJ. Os
mistérios da vida de Jesus. São Paulo
Espiritualidade Inaciana, 28 ( 1 997) 90-92. Ave-M aria, 2009 . '

RATZINGER, J., Einführung in das Christentum. Vorlesungen ubre VANHOYE, A. Os mistérios da paixão e os Exercíc
ios Espirituais.
das Apostoliche Glaubensbekenntnis. München, Kosel-Ver- ltaici: Revista de Espiritualidade Inaciana, 28
( 1 997) 35-43.
lag, 1 968. VARI LLON , F. La souffrance de Dieu.
Paris, Le Centurion, 1 975.
__ . El camino pascual. Madrid, BAC, 1 990 (BAC Popular 94). VERD , G. M. Anim a Christi. ln: Dicio
nario de Espiritualidad lgna­
. Sobre la cruz. ln: . Dios y el mundo. Una conversación ciana. Ed. GEL Bilbao/Santander, Mensajero/Sal
Terrae,
__ __

con Meter Seewald. Las opiniones de Benedicto XVI sobre 2007 , v. 11 p. 1 63 - 1 69 (Manresa 37).
los grandes temas de hoy. B arcelona, Galaxia Gutenberg, VIARD, C., Le lieu de la compassion. La
troisieme semaine des
2005, p. 303-3 1 6. Exercices. Christus 1 24 hors-série ( 1 984) 1 87-1 97.
REMELS, Ph. Analises structurales de la Cene . . . RHS 5 1 ( 1 975) VITORIO, J. A catequese mateana no relato
da Paixão. ltaici: Revista
1 1 3- 1 36. de Espiritualidade Inaciana, 60 (2005) 33-58 .
RicHTER, G. Die Fusswaschung in Johannesevangelium. Regensburg, WELKER, M . (ed.) . Diskussion über Jürge
n Moltmanns Buch "Der
Pustet, 1 967. gekreuzigte Bott". München, Kaiser Verlag, 1 979.
R1coEUR, P. Le Dieu crucifié de J. Moltmann. Le quatre fieuves 4 ZUMSTEIN, J. L'interprétation johan nique
de la mort du Christ.
( 1 975) 1 09-1 1 4 . ln: Frans SEGBROECK et al. The Four Gospels: Festschrift
Frans
. Le mal. Un défie à la philosophie et à la théologie. Geneve, Neirynch. Leuven, Leuven University Press, 1 992, p. 2
. 1 1 9-
__

Labor et fides, 1 986. 2 . 1 38 (Bibliotheca Ephemeridum Theologicarum Lovan


ien­
ScHlAVONE, P. Il Signore Gesu negli Esercizi di S. Ignazio. Terza sium 1 00) . 3 v.
settimana. Tempi dello Spirito 1 30 (1 997) 1 -1 9 .
SENlOR, Donald. L a Passione di Gesu nel Vangelo di Giovanni.
Milano, Ancora, 1 993.
SHEEN, F. A mensagem da cruz. Palavras derradeiras. Porto, Livraria
Figueirinhas, 1 958.
SHELDDRAKE, Ph., SJ (ed.). The Way oflgnatius Loyola. Conternporary
Approaches to the Spiritual Exercices. London, SPCK, 1 99 1 .
SIMOENS, Y. L a mort de Jesús selon Jn 1 9 , 28-30. NRT 1 1 9 (1 997)
3-19.
SoBEL, H. I . O papa em Auschwitz. O Estado de S. Paulo, 30 maio
2006.
STANLEY, D. M . "1 encountered God!". The Spiritual Exercises with
the Gospel of Saint John. St. Louis, nº 61 series III. Original
Studies. Composed in English, The Institute of Jesuit Sources,
1 986.

140
141
lias tipográficas
Este livro foi composto nas fami
Berling e Trade Gothic
e impresso em papel Offset
759/rrfl


Edições Loyola
to
editoração impressão acabamen
rua 1822 nº 341

0421b-0Xl são paulo sp


T 55 1 1 3385 8500
F 55 1 1 2063 4275
ww.w loyola.com.br

L
O autor afirma que a finalidade deste livro é apre­
sentar subsídios que nos ajudem a aprofundar o co­
nhecimento do amor de Deus que nos foi revelado
na Paixão sofrida por Jesus Cristo. Ela é escândalo,
é loucura para os que não compreendem esse amor,
mas para os que abrem seus corações a ele é re­
velação do amor louco com que Deus nos amou e
continua a nos amar.
A melhor maneira de se aproximar dos conteúdos
expostos aqui, para que os frutos dessa leitura se­
jam mais fecundos, é por meio de uma leitura oran­
te, preparada pelos preâmbulos recomendados por
Santo Inácio para as contemplações da Paixão de
Jesus Cristo.

Pe. Álvaro Barreiro, SJ, fez graduação e mestrado em Teolo­


gia na Faculdade de Teologia dirigida pelos jesuítas em lns­
bruque, na Áustria, fez estudos especiais em vários outros
países da Europa e doutorado em Teologia na Universidade
Gregoriana de Roma. Lecionou na Faculdade de Teologia da
PUC-Rio e na Faculdade de Teologia da Companhia de Jesus,

em Belo Horizonte. Atualmente, é membro do Centro de


Espiritualidade Inaciana (CEI) de Itaici. Publicou 14 livros
por Edições Loyola. Dois deles,Igreja, povo santo e pecador e
A contemplação da vida de Jesus Cristo, foram publicados na
Coleção Theologica.

( www.loyola.com.b�

Você também pode gostar