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Jesus O Evangelho de Marcos Anselm Griin Jesus caminho para a liberdade oO pie ey eee : A iil jus: caminl ao ain erdade TRADUCAO Alfred J. Keller 2. ~ Titulo original: Jesus ~ Weg zur Freiheit. Das Evangelium des Markus © 2003 Kreuz Verlag GmbH & Co. KG Stuttgart, Ziirich Uma empresa do grupo editorial Dornier GmbH ISBN 3 7831 2219 8 This translation of Jesus — Weg zur Freiheit. Das Evangelium des Markus SUMARIO first published in 2003 is published by arrangement with Kreuz Verlag aS) ob GmbH & Co. KG, 70565 Stuttgart, part of Verlagsgruppe Dornier GmbH. Doo Esta tradugdo de Jesus — Weg zur Freiheit. Das Evangelium des Markus, editada primeiramente em 2003, € publicada em acordo com Kreuz Verlag : GmbH & Co. KG, 70565 Stuttgart, uma empresa do grupo editorial Dornier GmbH. Preparacao: Carlos A. Barbaro Snitr@G esos 5 5 Ne 3 st ders ete taser eet reapeeeal de DiacramacAo: So Wai Tam O autor......... nS eae A eciora do Evangelho de Marcos... A composigao do evangelho como mensagem Teologia da confianga .... O triplo arco de tensAo ............ RevisAo: Renato da Rocha Edigdes Loyola Rua 1822 n° 347 — Ipiranga 4216-000 Sao Paulo, SP Caixa Postal 42.335 — 04218-970 — Sao Paulo, SP Interpretagao.......... Breer i seesiersss Roseeessecn ZO) @ cn 6914-1922 O inicio (11-15) soso @ «11) 6163-4275 A cura do possesso (1,21-28) Home page e vendas: www.loyola.com.br i Editorial: loyola@ loyola.com.br A.cura'de leproso\(1,40-45) Vendas: vendas@loyola.com.br A cura do paralitico (2,1-12) Todos os direitos reservados, Nenhuma parte desta obra pode Controvérsia com os fariseus (2,18-28) ........... ser reproduzida ow transmitida por qualquer forma e/ou A cura do homem da mio paralisada (3,1-6) «...s........ 46 quaisquer meios (eletrénico ou mecdnico, incluindo fotocépia ¢ gravacdo) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de Jesus, o divisor dos espiritos (3,20-35) ..... dados sem permissao escrita da Editora. Jesus fala em parabolas (4,1-34) ISBN: 85-15-03384-4 A tempestade no lago (4,35-41 @ 6,45-52) «se. © EDIGOES LOYOLA, Sao Paulo, Brasil, 2006 A cura do possesso de Gerasa (5,1-20) ... Acura da filha de Jairo e da mulher que sofria de hemorragia (5,21-43) ... Jesus alimenta primeiro 5 mil (6,33-44 depois, outras 4 mil pessoas (8,1-10) .......cscsesseeeneeeeee 71 A mulher paga e sua filha (7,24-30) A cura de um surdo-mudo (7,31-37) . Acura de um cego em Betsaida (8,22-26) Os trés antincios da paixao (8,31-33; 9,30-32; 10,32-34) ....... Acura de um rapaz possesso (9, 14-29) O sentido do matrim6nio (10,2-12) O sentido da riqueza (10,17-31) .. Ser servido e servir (10,35-45) ... Accura do cego Bartimeu (10,46-52) . A entrada triunfal em Jerusalém (11,1-25) A parabola dos vinhateiros homicidas (12,1-12). Jesus fala do fim dos tempos (13,1-37) A historia da paixao (14-15) ... A ressurreigao de Jesus (16,1-8) . Gonclusa rete tects sretcers teres memes LAT Referéncias bibliograficas .0.........cccscsesseseeeeeeeeeee 153 INTRODUGAO Ooo Arcos foi o primeiro a escrever um evangelho. Com isso criou nao apenas um género literario totalmente novo, mas realizou também um grande feito teol6gico. No tempo em que Marcos escreveu seu evangelho, circulavam certamente co- letaneas das palavras de Jesus, assim como as havia dos pro- nunciamentos de outros homens santos que comoviam as pes- soas com seus milagres. S6 que estas eram transmitidas ape- nas oralmente. Mas, além de interessar-se pelas palavras de Jesus, Marcos se interessa também pelos fatos. Jesus € mais que um mestre cuja doutrina se pode aprender e seguir. Sua importancia re- side justamente em sua pessoa e na histéria tinica de sua vida. Em Jesus, o amor de Deus irrompeu no mundo. O que acon- tece com Jesus é anunciagao. Jesus nos legou mais do que pa- lavras. Ele encontrou pessoas, curou doentes, insurgiu-se con- tra a estreiteza da doutrina dos fariseus. E, finalmente, morreu na cruz. Na hora de sua morte, o sol escureceu. Foi um acon- tecimento visivel a todos, que abalou a todos os presentes. 7 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE Com seu evangelho e com a descrigao da paixao, da mor- te e da ressurrei¢ao de Jesus, Marcos pretende abalar seus lei- tores. Eles precisam reconhecer que o proprio Deus-agiu nes- se Jesus, € que, por meio dele, ele continua agindo também em nés. O Evangelho de Marcos é 0 mais original. Esta mais pro- ximo dos acontecimentos em torno de Jesus também sob o ponto de vista cronolégico. Por isso encontramos nele o Jesus histérico de forma menos encoberta. Marcos foi o primeiro a langar no papel a tradicao a respeito de Jesus. Em oposigao a uma tradico interpretativa que focalizava sobretudo a inter- pretacao teolégica de Marcos (a assim chamada escola hist6- rico-redacional), ha exegetas modernos (como, por exemplo, Rudolf Pesch) que destacam a importancia do primeiro evan- gelho para a investigagao histérica sobre Jesus de Nazaré. A figura do Jesus hist6rico aparece em Marcos com maior niti- dez. Seu evangelho nos descreve a histéria de Jesus. Mas ele nao se limita a conservar simplesmente essa hist6ria de Jesus, ela é também interpretada. Rudolf Pesch observa, porém, que Marcos teve uma atitude conservadora diante da tradigao pree- xistente. E essa proximidade da tradicao mais antiga que reves- te o evangelho de Marcos de um encanto especial. Lendo e meditando sobre o Evangelho de Marcos, nao me preocupo tanto em encontrar a interpretagao que este da aos fatos; 0 que procuro mesmo é encontrar o Jesus hist6rico, como ele viveu e sofreu, como se relacionou com as pessoas e como se dirigiu a elas. Sei, naturalmente, que mesmo no primeiro evan- gelho estou vendo Jesus pelos “6culos” de Marcos, pois foi ele que escolheu as passagens da tradigao que achou importantes, e é sua também a maneira de lidar com esse material e de inter- pretar teologicamente os acontecimentos em torno de Jesus. No 8 INTRODUGAO Evangelho de Marcos tenho uma vivéncia de Jesus que me reme- te a sua maneira de ver as coisas. Confio, no entanto, que Mar- cos tenha captado o mistério de Jesus de forma correta e que essa sua interpretagao dos fatos seja util também para mim. Eduard Schweizer pensa que Marcos se valeu de seu evan- gelho para enfrentar perigos que rondaram as comunidades cristas por volta do ano 65, Nas comunidades paulinas, a mor- te e a ressurreigaéo de Jesus ocupavam de tal maneira o cen- tro das atengGes que sua vida terrena acabou perdendo a im- portancia. Nos circulos entusiasmados da cidade multicultural de Corinto, o Jesus terrestre desaparecera atras do Jesus celes- te. Existia até o risco de se confundir a manifestagao do po- der e da vida dos céus com algum Deus grego ou romano. Ja nao havia consciéncia nitida da razao de o amor de Deus ha- ver-se manifestado neste mundo precisamente em Jesus Cris- to. A cruz se transformou em “mero simbolo da graga divina e da vitéria da liberdade da justificagéo sobre o legalismo” (Schweizer, 221). Marcos, porém, faz depender a salvagao do Cristo terrestre. Esse Jesus, que durante sua vida comprovou com seus atos milagrosos a forga de Deus, rompeu também os grilhdes da morte. S6 poderemos entender a salvagao que veio por meio de Jesus se considerarmos sua vida e obra como um todo. Jesus nao trouxe apenas uma nova doutrina, e ele fez mais do que abrir nossos olhos para a forca de Deus. Ele é 0 proprio Filho de Deus, no qual a forga de Deus que nos cura continua entrando em contato conosco, erguendo-nos como naquela época quando Jesus ainda estava na terra caminhan- do pelas estradas da Galiléia. Além disso, afirma Eduard Schweizer, Marcos pretendia conjurar um segundo perigo: nas comunidades helenisticas da €poca havia os assim chamados 9 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE homens divinos (theioi aneres), [...] taumaturgos que percorriam as cidades da Grécia, da Asia Menor e da Siria despertando 0 en- tusiasmo das massas por meio de todo tipo de milagres que, em parte, nada mais eram do que truques bem-feitos ou, entao, de- viam ser creditados a forga de sua personalidade e a sua fama. Via-se neles uma espécie de encarnagao de forgas divinas, e eram- lhes atribuidos feitos extraordinarios (Schweizer, 221). Pode ser que muitos cristaos das comunidades gregas te- nham tido de Jesus uma imagem mais ou menos parecida. A essa visao Marcos opés a vida terrena de Jesus que passa pe- los baixios do cotidiano e, finalmente, pela derrocada da pai- xao. Contando a histéria concreta, Marcos tenta exprimir aqui- lo que Joao mais tarde haveria de formular em sua frase mis- teriosa: “E o Verbo se fez carne e habitou entre nés.” Foi Marcos que, de todos os evangelistas, contou o maior namero de milagres. E provavel que o fizesse movido pelo de- sejo de dar uma resposta as numerosas histérias sobre milagres que se contavam dos “homens divinos”. Mas ‘ele relatou as curas dentro do contexto da atuacao de Jesus na Galiléia, que se estendeu desde o antincio da palavra, passando pelas dispu- tas com os fariseus e escribas, até as instrugGes dadas aos dis- cfpulos. De todos os evangelistas, é também Marcos aquele que conta as historias de cura com mais detalhes. Pela maneira com que Jesus se dirige aos doentes, vislumbra-se seu método tera- péutico. Mas Marcos nao conta as hist6rias dos milagres para mostrar que Jesus era superior aos “homens divinos” de sua época; antes ele pretende dizer-nos: “Esse Jesus que outrora curava os doentes é capaz de curar também a ti. Porque agora ele é 0 Senhor elevado que esta junto de Deus e gostaria de curar tuas feridas com plenipoténcia divina”. 10 INTRODUGAO Marcos mostra Jesus como Filho de Deus, como aquele que tem autoridade para anunciar uma nova doutrina e reali- zar milagres portentosos (dynameis). Na paixao, porém, Jesus é também o homem impotente entregue aos pecadores. Para Marcos, um aspecto nao pode ser separado do outro: assim como destaca o poder com que Jesus enfrenta os adversarios e cura os doentes, assim mostra também a impoténcia com que morre na cruz. E justamente nessa impoténcia de Jesus na cruz que se manifesta o poder de Deus que vence a morte. Jesus € entregue ao poder dos deménios. Mas ele vence os dem6nios pela impoténcia do amor. Todo o Evangelho de Marcos é entremeado de confrontos de Jesus com os demOnios. E um fato que parece estranho ao leitor de hoje. Mas, justamente numa época em que mais e mais pessoas sofrem de problemas psiquicos, 0 conflito de Jesus com os demGnios se reveste de grande atualidade. Trata-se de livrar o ser humano do poder destruidor das forgas do mal. O ser humano se vé hoje situado em um mundo dominado pelo mal. Um sinal claro disso é o aumento da violéncia e do terror. Ha também muitos que esto fascinados pelo poder do mal. Mui- tas vezes, trata-se de pessoas magoadas que procuram, por sua vez, magoar outros. Sao pessoas que sofreram o ultraje de sua dignidade na infancia e por isso agora oprimem e torturam os outros. Elas s6é se sentem vivas na medida em que podem martirizar outros. Ha outros que se tornam maus porque tive- ram de suportar durante anos ofensas e humilhagGes. Jesus vai ao encontro dessas pessoas. Ele nao tem medo de seu contato. Ele vai até elas e as levanta. Ele Ihes da cora- gem para assumirem a si mesmas. Ele as aceita em sua afligao e lhes devolve sua dignidade. No Evangelho de Marcos encon- tro um Jesus que luta pelo ser humano, que se arrisca a en- 1 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE frentar os deménios, que opde ao medo a confianga e ao de- sespero a esperanga. Mas esse mesmo Jesus que luta com plenos poderes con- tra o poder dos deménios revela-se impotente quando lhes é entregue na paixao. Marcos une a plenipoténcia e a impotén- cia de Jesus no assim chamado mistério do Messias. Jesus or- dena a seus discipulos e aos doentes curados por ele que guar- dem siléncio a respeito de suas obras poderosas. Ninguém deve saber quem é esse Jesus na verdade. S6 depois, na morte e na ressurreicao de Jesus, ficara manifesto que Jesus era o Messias, com o qual muitos j4 o tinham identificado em vida. E uma imagem do Messias que difere totalmente da libertagao politi- ca. O Messias sé é reconhecido em seu verdadeiro ser depois da elevacao de Jesus pela ressurreigao. O autor Desde os tempos da Igreja primitiva, o Evangelho de Mar- cos é atribuido a Joao Marcos. Marcos é um cognome roma- no para Joao. Temos assim um indicio de que Marcos “perten- cia a uma familia descendente de libertos (Jibertini) ou que ele proprio foi um liberto” (Grundmann, 20). A tradigéo da Igre- ja antiga liga Marcos ao apéstolo Pedro. Por volta do ano de 130, Papias chama Marcos de intérprete de Pedro. “Anotava cuidadosamente tudo de que se lembrava, sem, no entanto, ater-se 4 ordem cronolégica, registrando tanto as palavras quanto os atos do Senhor” (Grundmann, 22). O termo grego para intérprete (hermeneutes) tem duplo sentido: pode ser a pessoa que traduz e pode ser a pessoa que explica. Marcos tra- duz os sermGes de Pedro de maneira que os gregos possam 12 INTRODUCAO compreendé-los. Ele escreve para cristaos convertidos do pa- ganismo. Dessa maneira assume um papel importante de intermediador. Ele explica as palavras e os atos de Jesus aos “pagaos”, ou seja, aqueles que nao faziam parte do meio cul- tural judaico, no qual Jesus atuara. Marcos se dirige a comu- nidades helenisticas. Naquela época, estas eram marcadas por diversas religides e movimentos espirituais, por cultos centra- dos nos mistérios persas, pela gnose ¢/por concepgées gregas e romanas de Deus. Como os costumes judaicos fossem des- conhecidos e muitas vezes até incompreensiveis para as comu- nidades helenisticas, Marcos os explicava aos leitores. O gre- go usado por Marcos denota tragos nitidamente semitas. Por isso supGe-se que Marcos tenha sido um cristao judeu helenis- tico. E interessante observar que recorre freqiientemente ao uso de termos latinos. Isso seria um sinal de que redigiu 0 evan- gelho em Roma ou, pelo menos, num ambiente romano. Suas notas e observacdes mostram que nAo estava muito familiari- zado com a geografia da Palestina. Admite-se, geralmente, que o Evangelho de Marcos tenha sido escrito no ano 65. Certamente foi redigido antes da des- truicdo de Jerusalém, em circunstancias que ja permitem distin- guir os sinais da guerra que se aproxima. Dessa opiniao diverge Gnilka, que coloca sua redagao no periodo imediatamente an- terior a destruicao de Jerusalém, no comego do ano 70. Tudo depende da interpretagao que se da ao capitulo 13, em que Jesus fala da destruigdo de Jerusalém. Os exegetas divergem em relagdo aos fatos que teriam dado origem a descrig&o que Mar- cos faz do fim dos tempos: uns acham que ele se refere aos tumultos entre os anos 40 e 41, quando o imperador Caligula mandou erguer no Templo uma estatua sua; outros remetem ao inicio da Guerra da Judéia, quando a comunidade proto- 13 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE crista fugiu de Jerusalém para Pela, ou ent&o a destruigao real de Jerusalém no ano de 70. Mas a questo da datagao exata do evangelho é de pouca relevancia para sua mensagem. A teologia do Evangelho de Marcos O texto de Marcos é o mais antigo dos quatro evangelhos. Tanto assim que Mateus e Lucas se servem do relato de Mar- cos. Vendo até onde Mateus e Lucas mantém o texto de Mar- cos e onde resolvem modificé-lo, podemos identificar 0 traba- lho de redago deles e sua propria teologia. Em Marcos é bem mais dificil distinguir entre as passagens em que ele simplesmente reproduz a tradi¢ao recebida e as ou- tras que trazem sua marca pessoal. Por isso nao é facil desco- brir a teologia em que o Evangelho de Marcos se baseia, 0 que explica também o grande nt&mero de tentativas surgidas nas ulti- mas décadas com o propésito de descrever a teologia de Mar- cos. Johannes Schreiber, por exemplo, fala de uma teologia da confianga. Ernst Kaésemann, por sua vez, acha importante que Marcos defenda a dimensao histérica da revelacao crista. Ha exe- getas americanos que focalizam na teologia de Marcos especial- mente 0 fato de ele contrapor a teologia da cruz a uma fé crista que se baseia exclusivamente nos milagres operados por Jesus. Todas essas tentativas de descrever a teologia de Marcos tém alguma razao de ser. E muito provavel que nunca pode- remos saber precisamente até que ponto Marcos reproduziu o mais fielmente possivel a imagem de Jesus como ele a recebeu e até onde ele deu as informagoes preexistentes a sua propria interpretagao. A mim pessoalmente, na leitura do Evangelho de Marcos interessa sobretudo a certeza de encontrar Jesus, 0 14 INTRODUGAO terapeuta e médico, o mestre que me fala corretamente de Deus, o homem que, a mando de Deus, liberta as pessoas do poder dos deménios e paga com a propria vida essa sua vito- ria sobre os deménios. Durante os Gltimos quarenta anos, muitos exegetas fize- ram enormes esforgos para separar os textos tradicionais repro- duzidos por Marcos de seus proprios acréscimos. Por esse método pretendiam chegar a teologia da tradic¢ao anterior a Marcos e, ao mesmo tempo, identificar em Marcos um tedlo- go que interpreta a tradigao a sua maneira. Mas 0 resultado desses esforgos é minimo. Os exegetas nao conseguem chegar a um consenso sobre a linha demarcatéria exata que separa- ria a tradigao das interpretagdes dadas por Marcos. Por isso prefiro evitar toda essa discussao. Tomando o Evangelho de Marcos como um todo, da ma- neira como nos foi transmitido, descobre-se que 0 texto de Mar- cos tem uma estrutura realmente artistica. Pelo grande nime- ro de equivaléncias e no decorrer légico da agao, chegaremos a sua teologia. O exegeta holandés Bas van Iersel parte do prin- cipio de que o Evangelho de Marcos é um livro perfeitamente estruturado em si mesmo. Nossa tarefa consiste em ler o livro como ele é, procurando entendé-lo em sua estrutura e em sua logica interna. Analisado a luz dos recursos das ciéncias lite- rarias atuais, dir-se-ia que Marcos toma 0 leitor pela mao para o aprofundar cada vez mais no mistério de Jesus Cristo. A composigao do evangelho como mensagem lersel desdobra a teologia de Marcos descrevendo e medi- tando sobre a estrutura artistica do evangelho. Descobre assim 15 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE um principio de construgao concéntrica que ele chama de “cons- trugdo-sanduiche”. Esta se encontra nao apenas na estrutura geral do evangelho, mas também em cada um dos capitulos. lersel descobre ao todo sete construgdes desse tipo, “em que duas narrativas sao encaixadas de tal maneira que uma serve de moldura 4 outra” (Iersel, 296). Nessa maneira de inserir um texto dentro do outro se revela a intengdo teolégica de Marcos. Vejamos um exemplo: entre a narragdo das duas visitas de parentes de Jesus, Marcos intercala 0 confronto de Jesus com os escribas em que estes 0 acusam de estar possesso por um demé6nio e de curar os doentes pelo poder dos demGnios (3,20- 35). Jesus responde: “Se uma familia esta dividida contra si mesma, essa familia nao poder subsistir” (3,26). Percebe-se que Marcos aborda o tema da familia em varios niveis; de um lado fala de sua familia concreta que se vira contra ele, de ou- tro fala da familia da comunidade que corre 0 risco de dividir- se quando deixa dominar-se pelo poder dos deménios. Nessas construg6es, chamadas de “sanduiche”, a informacao decisiva encontra-se sempre na parte central. Portanto, Marcos quer prevenir a comunidade para que nao permita aos deménios, aos espiritos sombrios do contra, tomarem conta do espago. Distinguindo cinco unidades no Evangelho de Marcos, Tersel vé um paralelismo entre o primeiro e 0 ultimo, bem como entre o segundo e o quarto desses cinco blocos. O evangelho inicia com uma narrativa que se passa no deserto (1,2-13) e termina com a narragao dos acontecimentos em torno do se- pulcro (15,44-16,9). Tanto o deserto quanto o sepulcro sao lugares da escuridao e dos dem6nios. Marcos mostra isso na historia da cura do possesso de Gerasa que vive nos témulos. O deserto e as sepulturas sao dominados pela escuridao. Pe- netrando nesses ambitos, Jesus quebra o poder dos deménios 16 lia ee aa Au ti AMS A tel le i INTRODUGAO por meio de sua mensagem, de seus feitos e pela sua morte e ressurrei¢ao. No deserto, Joao Batista aparece como 0 arauto que anuncia a chegada do Reino de Deus. No sepulcro, um anjo em roupas resplandecentes anuncia a mensagem central do evangelho: “Ele ressuscitou” (16,6). Nos dominios da mor- te, ou seja, no deserto e no sepulcro, surge uma nova vidé a partir da mensagem, da paixdo e da ressurreicao de Jesus. As duas unidades principais do evangelho relatam a atua- gao de Jesus na Galiléia (1,16-8,21) e seu destino em Jerusa- lém (11,1-15,39). A Galiléia é a regiao em que Jesus anuncia sua doutrina e na qual cura doentes. Ali ele encontra reconhe- cimento e retine seus discipulos. Jerusalém, pelo contrario, é a cidade dos escribas e sumos sacerdotes. Nela, Jesus nao rea- liza milagres. Nela, ele é rejeitado e, finalmente, morto. Na Galiléia, Jesus faz o bem aos homens; em Jerusalém, os homens praticam o mal contra ele. A Galiléia é para Jesus a terra do sucesso, do éxito e da vida semeada por ele em toda a parte. Jerusalém é 0 contrario, é a cidade do insucesso, do fracasso e da morte. A parte central do evangelho, situada entre a Galiléia e Jerusalém, descreve Jesus como caminhante (8,27-10,45). Com seus discipulos, Jesus se poe a caminho para ir a Jerusa- lém. Trés vezes anuncia aos homens e mulheres que o seguem a morte violenta que o aguarda em Jerusalém. E nas trés oca- sides fala também da ressurreicao no terceiro dia. Durante o caminho, Jesus evita o contato com as pessoas. Ele se dirige ex- clusivamente aos discipulos, falando-lhes clara e abertamente. Enquanto a palavra euthys (= imediatamente) ocorre qua- renta vezes na parte que descreve a atuacao de Jesus na Ga- liléia, ela reaparece apenas dez vezes na parte do evangelho que fala do que aconteceu no caminho. No comeco, os fatos se 17 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE sucedem com rapidez. Um acontecimento segue ao outro. Depois, no caminho, Jesus precisa de tempo para ensinar os discipulos. E os discipulos também precisam de tempo para entender quem é esse Jesus. Entre as obras de Jesus na Galiléia e o destino que o aguar- da em Jerusalém, ocorrem duas curas de cegueira (8,22-26 e 10,46-52). Elas sao uma espécie de passagem para os préximos episédios. A primeira cura de um cego faz referéncia 4 cegueira dos discipulos, pois, imediatamente antes da cura do cego, Mar- cos conta como os discipulos, estando no barco com Jesus, nao compreendem suas palavras. Jesus os repreende: “Tendes olhos e nao vedes?” (8,18). Os discipulos sao tao cegos quanto os fariseus. Jesus cura 0 cego em duas etapas. As duas fases seguin- tes, ou seja, o caminho para Jerusalém e o destino de Jesus em Jerusalém, correspondem a essas duas etapas da cura do cego. Mas os discipulos nao aprendem a enxergar nem no caminho nem em Jerusalém. O nico discipulo que segue Jesus de olhos bem abertos é 0 mendigo cego Bartimeu. Quando é curado por Jesus, o evangelho diz: “Logo ele recuperou a vista e foi seguin- do Jesus pelo caminho” (10,52). Dessa maneira, Bartimeu se torna um convite aos leitores, para que sigam Jesus no caminho para Jerusalém e contemplem o mistério de sua morte e ressur- reigao. O evangelho termina com a convocagao para ver Jesus na Galiléia (16,7). Os discipulos s6 poderao ver Jesus se estiverem dispostos a seguir seu caminho a exemplo de Bartimeu. lersel vislumbra na composigao concéntrica do Evangelho de Marcos uma teologia consciente. No centro das cinco uni- dades desse evangelho esta o caminho de Jesus. Terminada a sua leitura, o leitor é convidado a seguir Jesus pelo caminho. S6 quem percorre o caminho de Jesus com os olhos abertos, sem medo dos perigos e obstaculos, da perseguigao e da falta 18 INTRODUGAO de compreensao que o cercam, compreendera Jesus. A fé ver- dadeira exige “que se refaga o caminho de Jesus. Se é essa a intengdo propriamente dita do livro, podemos dizer que a parte central € também a parte principal que contém a mensagem essencial” (Iersel, 300). Marcos nao escreve para tedlogos que, em suas reflexdes, procuram desvendar o sentido da mensagem de Jesus. Ele es- creve para pessoas dispostas a p6r-se a caminho para seguir Jesus. Ele escreve seu evangelho para discipulos e discipulas que nao evitam a cruz porque créem que Jesus, com sua mor- te na cruz, venceu o poder dos demGnios, franqueando aos ho- mens 0 caminho para a liberdade. Por isso nao se pode estu- dar o Evangelho de Marcos na mesa de trabalho. E necessario estar disposto a pér-se a caminho. E preciso estar em movimen- to para entrever o mistério do caminho de Jesus que conduz da Galiléia, a terra de seus éxitos, para Jerusalém, a cidade de seus adversarios que 0 pregam na cruz. E uma imagem da nossa vida. Preferimos continuar na Galiléia, onde tudo da certo. Mas nosso caminho também leva a Jerusalém, ao lugar da nossa morte. E nesse caminho encon- traremos insucessos, rejeicao, fracassos. O caminho de nossa vida acabara desembocando infalivelmente na morte. Mas é jus- tamente nesse ponto que aflora a Boa-nova do Evangelho de Marcos: nao permaneceremos na morte. Um anjo vestido de bran- co anunciara também em nosso timulo que ressuscitamos. Teologia da confianga Johannes Schreiber chamou seu trabalho sobre o Evange- Iho de Marcos de Teologia da confianga. Mesmo que nao o 19 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE acompanhe em suas anilises sobre a tradigao e a redagao por Marcos, vejo confirmado no texto do evangelho esse tema ba- sico. Marcos descreve Jesus de Nazaré como alguém que se fia em seus impulsos intimos porque tem confianga no Deus que esta proximo dele, como alguém que diz simplesmente o que es- ta dentro dele, que faz o que a voz de Deus em seu interior pede, que persiste em sua confianga justamente nos confron- tos com seus adversarios. Mesmo vendo-se sozinho diante de tantos escribas e fariseus, mantém-se firme na convicgéo que Ihe vem de Deus. E ele nao abandona essa confianga nem mes- mo quando é preso, condenado, agoitado, escarnecido e mor- to por seus adversarios. Pelo contrario, é justamente na morte na cruz que sua confianga chega 4 sua plenitude. Schreiber vé o fundamento da teologia da confianga de Marcos sobretudo em sua concepgao da morte na cruz. Para ele, a teologia da cruz é, ao mesmo tempo, uma teologia da confian- ¢a. Todo o Evangelho de Marcos esta orientado para a cruz. Por isso, o Evangelho de Marcos ja foi até chamado de histéria da paixao com uma introducao detalhada. A cruz esta presente em muitos episddios. Desde o momento em que Jesus cura o homem da mao seca, os fariseus e herodianos resolvem matar Jesus (3,6). Durante sua atuacao na Galiléia, Jesus cura tanto judeus quan- to pagdos. Sua morte na cruz é 0 maior milagre, “para o qual es- ta orientado todo o Evangelho de Marcos“ (Schreiber, 234). O milagre se realiza “pelos pagaos apartados de Deus”. O primei- ro a compreender o milagre da morte de Jesus é 0 centuriao ro- mano. Dele se diz que nao apenas ouviu o grito da morte de Je- sus, mas que o viu. A fé exige a visdo, a visio mais profunda. Creio ter entendido a mensagem do Evangelho de Marcos quan- do vejo na morte vergonhosa de Jesus e em seu grito derradei- ro a expressdo de sua confianga incondicional em Deus. 20 INTRODUGAO Na morte na cruz manifesta-se a confianga incondicional de Jesus no amor de Deus. Ao mesmo tempo completa-se nela o amor de Jesus que o fez empenhar-se pelos homens, curar suas doengas e lutar por sua libertagdo do poder dos demGnios. Marcos descreve 0 amor de Jesus, que na impoténcia da mor- te vence o poder dos demG6nios, em imagens paradoxais: “Esse amor a servico da vida do préximo vive de sua propria morte; ao morrer suplanta a morte, pois da morte de Jesus brota, ven- cedora, uma nova vida no amor, disposta ao sacrificio extre- mo” (Schreiber, 232). Como o amor de Deus se manifesta em Jesus sob o véu da impoténcia e da derrota, fica dificil para os discipulos acreditar nele. E eles persistem nessa descrenga até os tltimos instantes. O leitor é convidado a ver na morte de Jesus uma vitéria sobre o poder das trevas, a vitéria do amor sobre o édio, a vitéria da confianga sobre qualquer tipo de medo. Para Marcos é o proprio Jesus que cré verdadeiramen- te. “Ele sustenta a fé em todas as adversidades, confiando no Pai incondicionalmente” (Schreiber, 240). Mesmo sentindo-se abandonado por Deus, ele morre “com a expressao da confian- ga total em Deus (15,34)” (Schreiber, 242). Contemplando a morte de Jesus que se dirige a Deus’ mesmo em face da morte, © leitor é convidado a confiar, com Jesus, pois Deus ha de supe- rar toda a angustia e necessidade, de modo que nao havera mais nada que nos possa separar dele. Essa teologia da confianga de Marcos tem um forte apelo justamente para o homem atual, as voltas com tantas angts- tias. A angistia é um dos temas centrais de nossa época. Mas Marcos nao elimina nossas angtstias prometendo consolos faceis, e sim descrevendo todo o alcance da angistia e do aban- dono, da rejeigao e do fracasso, fazendo brilhar a vitéria do amor justamente na cruz, no lugar do maior desamparo e da 21 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE maior impoténcia. Com sua teologia da cruz, Marcos dé uma resposta ao ponto mais fraco do homem de hoje, ao seu medo do fracasso, da doenga, da solidao, do desamparo e, em ulti- ma analise, ao seu medo da morte. Marcos nos convida nao apenas a ver na cruz a vitoria da confianga sobre o medo, mas a trilhar com Jesus 0 caminho da cruz. Se estivermos prontos a seguir Jesus em seu caminho para a cruz, compreenderemos que o amor nao pode ser vencido nem mesmo pela morte, uma vez que ele se revela poderoso justamente na impoténcia. O triplo arco de tensao Para Rudolf Pesch, 0 mérito teolégico de Marcos reside na composi¢ao abrangente que deu ao material tradicional. Em sua andlise, ele distingue um triplo arco de tensao. O primei- ro diz respeito ao caminho de Jesus, que comega com Joao Batista preparando o caminho e termina com 0 ressuscitado precedendo os discipulos rumo a Galiléia. O caminho de Jesus abrange suas atividades e, finalmente, o enfrentamento da morte na cruz. Esse caminho torna-se o modelo para o cami- nho dos discipulos, para o caminho do seguimento. O segundo arco recebe de Pesch o nome de arco missio- nario. Este descreve a reag&o das pessoas diante das ativida- des de Jesus. Primeiramente, as pessoas admiram suas interven- Ges milagrosas. Mas elas sentem admiragao também por sua pregacaio merecedora de crédito. Todas as profissGes de fé fei- tas em face da atuacdo de Jesus sao sujeitas 4 ordem de guar- dar siléncio. Seu segredo deve ser guardado até sua morte, para que nao seja mal interpretado. O arco missionario se desfaz no momento “da profissaio de fé do centuriao” (Pesch, 60). E ele 22 INTRODUCAO desemboca na comunidade crista que conserva a profissao valida em Jesus e nao cessa de proclaméa-la. Assim, Pesch che- ga a seguinte conclusdo: “Todo o livro de Marcos é um livro missionario” (Pesch, 61). O terceiro arco de tensao “abrange a revelagao celestial e progressiva da dignidade de Jesus no batismo (1,11), na trans- figuragdo (9,7) e na morte (15,33;38; 16,6s) de Jesus” (Pesch, 61). No inicio, no meio e no fim do evangelho, Jesus é confir- mado como o verdadeiro Filho de Deus, no qual se manifesta a gloria de Deus e que traza luz para dentro da escuridao desse mundo. O evangelho pretende anunciar a todos os povos a dignidade divina de Jesus. Poderiamos descobrir outros arcos de tensdo no Evange- Tho de Marcos. Toda vez que me aprofundo nesse texto, au- menta minha admiragao por sua técnica de composigao. Sobre- tudo o método “sanduiche” mostrou-me como Marcos tem uma visdo de conjunto dos diversos temas e como ele sabe imprimir sua marca pessoal a tradigao preexistente. Nao vejo nenhuma necessidade de distinguir entre o material recebido 0 texto elaborado por ele proprio. Assim como nos foi trans- mitido, seu evangelho é uma obra de arte que visa convidar- nos a admirar em Jesus 0 taumaturgo, a aproximar-nos dele com nossas angistias porque inspira confianga, a professar Jesus como o Filho de Deus e a seguir 0 crucificado e ressus- citado no caminho em que ele nos precedeu. 23 INTERPRETACAO SoH O inicio (1,1-15) ARCOS comega seu evangelho com a palavra significati- va arqué (= inicio). Com isso, ele remete ao inicio da criagao. Em Jesus, Deus estabelece um novo comego. Ele re- cria o ser humano e realiza novamente sua salvagao. Mas a pa- lavra arqué significa também “base”. A base do evangelho é a histéria de Jesus, desde o batismo por Joao até 4 morte. “Ini- cio do evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1). Tra- ta-se de uma Boa-nova que Marcos pretende anunciar, de uma nova que traz alegria para os seres humanos. Marcos foi 0 pri- meiro a chamar um livro inteiro de “evangelho”. Geralmen- te, esse termo significa simplesmente: Boa-nova, boa mensa- gem. No Antigo Testamento costumam ser anjos, mensagei- ros de Deus, que levam aos seres humanos uma noticia boa. Como mensageiros de uma Boa-nova, comunicam a vitéria de Deus sobre os inimigos. No império romano, os decretos do imperador eram chamados de evangelium. Quando o impe- 25 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE rador emitia suas ordens, eram anunciadas ao império como boa nova. Prometiam a seus stiditos felicidade e salvagao. Mar- cos anuncia a Boa-nova de que, em Jesus, Deus institui um novo império, 0 império em que Deus impera e em que os homens experimentam a proximidade de Deus como salvacao e felicidade. O Evangelho de Marcos trata de Jesus Cristo. Marcos usa nessa passagem expressamente o solene nome duplo, que ja era considerado sagrado na Igreja primitiva. Desde o come- ¢0, Jesus Cristo recebe o titulo de Filho de Deus. No fim do evangelho, o centuriao romano repetira esse predicado de Jesus, resumindo nele todo o evangelho. Em Marcos, “Filho de Deus” ainda nao tem a conotagao de filho preexistente do Deus trino que se faz homem em Jesus. No judaismo, o rei Saul é chamado “Filho de Deus”, assim como o Messias € 0 povo de Israel. Também o Doutor da Sabedoria era conside- rado Filho de Deus entre os judeus. No judaismo, Filho de Deus nao queria dizer igualdade de esséncia com Deus, ape- nas exprimia um vinculo com Deus. Jesus tem um vinculo todo especial com Deus, ele esta muito proximo dele, esta cheio de seu espirito. Os gregos ligavam ao termo “Filho de Deus” sobretudo a idéia de um ser gerado por Deus. Zeus gerou um grande numero de filhos e filhas. Os theioi aneres (homens divinos), que andavam por toda parte, também eram chamados muitas vezes de filhos de Deus. Havia neles uma centelha divina. Descendiam, em ultima andlise, de Deus. A filosofia estdica ensinava que “o ser humano descende de Deus porque tem inteligéncia e carrega em si um germe di- vino” (Gnilka, 60). E mais provavel, no entanto, que Marcos tenha derivado 0 titulo “Filho de Deus”, que lhe é t&o caro, sobretudo da tradicao judaica. Mas nao devemos esquecer 26 INTERPRETACAO que seu evangelho se destinava a cristaos convertidos do pa- ganismo, ou seja, cristaéos com cultura grega, que devem ter associado a esse titulo também o significado usual da mito- logia e filosofia gregas. No inicio do evangelho sobressai a figura de Jodo Batista. E ele a voz que clama no deserto, convocando os homens a prepararem o caminho do Senhor. Marcos cita Isaias, fazendo uso da tradugao grega chamada Septuaginta. Com o termo “Senhor”, o profeta visara certamente Deus. Para Marcos € Jesus o “Senhor”. Joao prepara o caminho para Jesus, o verda- deiro senhor desse mundo. Ele convida as pessoas a prepara- rem as estradas de seu coragdo para que Jesus, entrando nelas, possa enché-las com seu espirito. Em seguida, Marcos descre- ve Joo como um grande asceta que, como os beduinos daquela época, veste uma tdnica de pélo de camelo e se alimenta de gafanhotos e mel silvestre. Marcos nao menciona sua pregacaéo sobre a conversao. Apenas fala das referéncias a Jesus que, mesmo vindo depois dele, teré muito mais forga do que ele. Batizaré os homens com o Espirito Santo. O batismo de Joao era um batismo de conversao. Era um ritual em que as pesso- as externavam o desejo de desfazer-se e lavar-se de seu passa- do, para comegar uma nova vida segundo os mandamentos de Deus. O batismo sem conversao era inécuo. Ja o batismo fei- to por Jesus entra numa outra dimensao. Neste, o ser humano fica repleto do Espirito Santo, que Ihe da condiges de assu- mir um novo comportamento. CO inicio da atuagao publica de Jesus é seu batismo por Joao. Marcos menciona apenas que Jesus vem de Nazaré da Galiléia para que Joao o batize. Fica dificil descobrir o fundo histéri- co desse episédio. E provavel que Jesus tenha tido algum contato com as comunidades essénias das quais Jodo se ori- 27 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE ginou. Fazia parte do circulo mais intimo dos discipulos de Joao. Esse fato causou algum constrangimento na Igreja pri- mitiva, porque dava a impressdo de que Jodo estava acima de Jesus por té-lo batizado. Mas para Marcos esse batismo se transforma, pela intervengao de Deus, em demonstracao do verdadeiro ser de Jesus. Por ocasiao do batismo, Jesus se da conta de sua vocacao pessoal. “No momento em que ele su- bia da agua, viu os céus rasgarem-se e o Espirito como uma pomba descer sobre si. E dos céus veio uma voz: “Tu és o meu Filho bem-amado, aprouve-me escolher-te’” (1,10s). A voca- ¢ao especial de Jesus fica visivel e audivel. O céu se abre, para que o Espirito Santo possa descer, E uma das aspiragdes mais genuinas de Israel: que Deus rasgue, finalmente, os céus, para mandar 4 terra seu Espirito que haveré de salvar os homens. O Espirito desce pairando como uma pomba. Isso nao sig- nifica que ele assumiu a forma de uma pomba, como se vé em muitas pinturas. Na verdade, Marcos quer aludir ao Es- Ppirito que pairava sobre as Aguas na criagao do mundo, Em Jesus, Deus cria um mundo novo. E um novo inicio. O ser humano ganha a figura que Deus imaginara originalmente. Ele é criado a imagem de Deus. Essa imagem se torna visi- vel a todos nds no batismo de Jesus. Jesus é 0 homem como Deus 0 tinha criado no inicio, o bem-amado de Deus. Ele nao desperdigou a benevoléncia de Deus como o fizera Adao, que se afastou de Deus pelo pecado. No episédio de Noé, a pom- ba é uma pomba da paz que anuncia a conciliagao entre Deus e os homens, Entre os gregos, a pomba é consagrada a deusa Afrodite. Ela simboliza o amor de Deus que desce ao ser humano. Jesus € o Filho bem-amado de Deus. Sua relagao com Deus, seu Pai, é carinhosa. E Deus se apraz dele. Trata-se de 28 INTERPRETACAO. um aprazimento mituo. Descrevendo o batismo de Jesus, Marcos nos ensina qual é a imagem que devemos ter desse Rabi de Nazaré: ele possui o dom do Espirito Santo, esta cheio de forga divina. E na forga desse Espirito e com o beneplaci- to de Deus que ele realiza sua obra. Ele libertaré o ser huma- no de todas as forgas que o impedem de ser verdadeiramente humano ou que atrapalham seu caminho. Ele trara de volta a verdadeira figura humana que Deus, no inicio da criagao, lhe destinara. Com Jesus, Deus inicia a renovagao de sua obra e a reconstituic¢ao do verdadeiro ser do homem, para que esse seja capaz de experimentar o amor que é a grande aspiragéo de seu coragao. O que se aplica a Jesus vale também para 0 cristao no ba- tismo. O céu se abre sobre nés e podemos ouvir a voz de Deus: “Tu és meu filho amado, tu és minha filha amada. Gosto de ti, tu me agradas. E bom estares aqui.” Jesus sai do rio Jord&o, que parecia cheio dos pecados de tantos homens batizados por Jodo. E uma imagem de nosso batismo. Nao somos perfeitos. Estamos cheios de culpas. Mas Deus nao olha para nossas culpas. Saindo da agua de nossas culpas percebemos que Deus nos ama incondicionalmente. O batismo é a experiéncia de que Deus nos ama, antes de qual- quer mérito nosso, antes de qualquer bom comportamento, sem qualquer condigao prévia. Jesus nao recebe o batismo para si mesmo, mas para cum- prir, pela forga do Espirito Santo, uma missao por nds. Logo apés o relato do batismo, Marcos escreve: “Imediatamente 0 Espirito impeliu Jesus para o deserto” (1,12). Marcos usa 0 verbo forte ekballein: o Espirito “langa” Jesus no deserto. E como se fosse uma imposigao interior. Esperariamos que Jesus se deleitasse primeiro com a experiéncia da presenga de Deus 29 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE no batismo, banhando-se na vivéncia do amor incondicional de Deus. Mas nao, ele precisa entrar no deserto, no espago domi- nado pelos deménios, no espago da morte. E no ambito da morte que se comprova a vida que Deus deu ao Filho. O espi- rito impele Jesus a percorrer os altos e baixos da vida huma- na. O batismo precisa penetrar em todos os abismos de sua alma, e o Espirito deve impregnar justamente nos lados escu- ros e demonjacos de sua alma, para transforma-los. Jesus permanece no deserto durante quarenta dias. Trata- se de um nimero simbélico que faz referéncia aos quarenta anos em que 0 povo de Israel foi conduzido pelo deserto. Mas, enquanto Israel sucumbiu seguidamente as tentagGes de Sata- nas, Jesus a elas resiste. Marcos nao nos diz quais foram essas tentagdes. Em vez disso, langa mao de duas imagens que falam da estada de Jesus no deserto: ele vive entre as feras, e os an- jos o servem. Assim ele expressa a tensao em que Jesus se en- contra e na qual nés todos vivemos. A tensao entre as feras e Os anjos, entre os instintos e 0 espirito, entre as agressdes e 0 amor, entre o impulso destruidor e selvagem de um lado e 0 ambiente protetor e acolhedor dos anjos do outro lado. Duran- te a vida inteira ficamos oscilando entre esses dois pélos. Je- sus é totalmente homem, mas, ao mesmo tempo, est4 mergu- Ihado no ambito divino. Nossa realidade se assemelha a sua. Jesus vive entre as feras. Ele nao é hostilizado por elas, antes parece tratar-se uma convivéncia paradisiaca. E uma maneira de dizer que ele absorveu em si toda a ferocidade e agressivi- dade, de modo que estas j4 nao podem fazer-lhe nenhum mal. Nessa imagem vira realidade aquela visao da paz do paraiso que Isafas descreve no capitulo 11 de seu livro. Jé nao existe inimizade entre o céu e a terra, entre o espirito e o instinto, entre a sexualidade e a espiritualidade. Nesses dois versiculos 30 INTERPRETACAO curtos, Marcos exprime a experiéncia profunda vivida por Je- sus no deserto. Amadurecendo, ele se tornou um homem in- tegrado. Sua relagao com Deus impregnou todas as esferas de seu corpo e de sua alma, de sua consciéncia e de seu incons- ciente. Ele esta imbuido do Espirito de Deus em sua totalida- de humana. Desta maneira esté em condigdes de proclamar a mensagem de Deus sem falsificd-la, sem turva-la com intengdes humanas colaterais. Enquanto Jesus reuniu em sua companhia as feras e os anjos, eu encontro hoje muitas pessoas que véem na espiritua- lidade a Gnica saida para resolver seus problemas e cuidar de suas feridas. Elas nao percebem como as “feras” se introduzem em sua espiritualidade, como sua espiritualidade se torna au- toritaria e agressiva. Jesus convive com as feras. Ele se famili- ariza com elas. S6 assim ele se torna capaz de distinguir a espiritualidade integrativa daquela que divide. Ele percebe imediatamente se as pessoas admitem anjos e feras em eu in- terior ou se o caminho espiritual Ihes serve apenas de pretex- to para escamotear sua agressao e sexualidade. Em seguida, Marcos descreve a mensagem proclamada por Jesus. Sao frases concisas: “Cumpriu-se 0 tempo, e o Reinado de Deus aproximou-se. Convertei-vos e crede no Evangelho” (1,15). O termo grego para tempo, kairos, quer dizer 0 mo- mento certo, aquilo que é a esséncia do tempo, seu significa- do mais profundo. O tempo se cumpriu, chegou a sua pleni- tude. O Reino de Deus esta proximo. A proximidade de Deus faz que o ser humano possa viver verdadeiramente. S6 na pro- ximidade de Deus o ser humano se aproxima de seu ser verdadeiro. E o tempo s6 chega a sua plenitude porque Deus esta proximo. Os misticos, sobretudo Mestre Eckhart, gosta- vam de pregar sobre a plenitude do tempo. Deus, que esta aci- 31 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE ma de todo tempo, entra no tempo e o completa. Jesus nao anuncia o juizo, mas sim a proximidade salvadora de Deus. Cabe ao homem reagir a essa situacao, nao fazendo penitén- cia, mas convertendo-se. A palavra grega metanoeite significa originalmente: “Mudem de idéia, pensem de outra maneira. Vejam o que hé atras das coisas; assim havereis de descobrir a proximidade de Deus”. Jesus quer abrir os olhos dos homens, para que enxerguem Deus em tudo. Deus ja esta presente. Nao precisamos pedir que ele venha. Basta abrirmos os olhos, para que o vejamos em toda parte. Na palavra grega metanoeite ressoa também o significado da palavra hebraica da qual foi traduzida: virar-se, voltar, dar a volta, tomar outro caminho. Os hebreus partem do principio de que o ser humano se mete freqiientemente em caminhos errados que nao levam 4 salva- cao e sim a desvios e descaminhos. Estes 0 ser humano deve abandonar, para colocar-se no caminho certo. Se estiver no caminho que leva a perdigdo, devera voltar, retornar ao ponto de origem. A volta deve ser acompanhada da fé. O evangelis- ta usa uma expressdo estranha: crede dentro do Evangelho, tende confianga dentro do Evangelho. Talvez devamos com- preendé-la assim: quem mora dentro da Boa-Nova, quem ouve as palavras de modo que estas passam a morar nele, sente cres- cer em si a confianga. Ele ganha uma nova capacidade de ver, uma base firme em meio as insegurangas do mundo. O Evan- gelho é para Marcos o Evangelho de Jesus Cristo. De modo que a conversao implica também a confianga na pessoa de Jesus. E ele que abre os olhos do ser humano. £ ele que lhe mostra o caminho que leva realmente a vida. E é ele que Ihe da uma base segura, que lhe inspira uma confianga incondicional em Deus que nao pode ser abalada nem pela resisténcia dos ad- versarios nem por derrotas externas. 32 INTERPRETACAO A cura do possesso (1,21-28) A primeira hist6ria de cura tem sentido programético para Marcos. E a cura de um possesso. Por meio dela, quer mostrar que doenga significa sempre também possessao. Os deménios que dominam o ser humano representam coercao, idéias fixas, complexos neuréticos. Marcos fala também em espiritos tur- vos. Estes turvam a imagem que o homem tem de si, mas tam- bém a imagem que ele tem de Deus. Sao forgas estranhas que dominam o ser humano. Marcos descreve 0 homem possuido como um homem que esta dentro de “um espirito impuro”. Ele esté no poder desse espirito impuro. Ao contrario dos discipu- los que acreditam “dentro do evangelho”, trata-se de um ho- mem que mora dentro de um espirito impuro, dentro da con- fusao, da obnubilagao, do obscurecimento. Um espirito impuro como esse pode ser, por exemplo, a amargura que turva o pen- samento. Mas pode tratar-se também de um ideal hipertrofia- do de pureza que fecha os olhos diante de toda impureza, fa- zendo com que o ser humano fique justamente por isso reple- to de imundicie recalcada. Para Marcos, curar significa sem- pre que Jesus liberta o ser humano para este voltar a ser ele mesmo. Ele o arranca do poder dos espiritos turvos e impuros e o devolve a si proprio, ao seu verdadeiro ser. A primeira historia de cura jé revela a construgao em for- ma de “sanduiche” que Marcos usa para descrever cenas im- portantes para ele. O evangelista comega a cena com a infor- magao de que Jesus estava ensinando na sinagoga de Cafar- naum. Os ouvintes se espantam com seus ensinamentos. Eles entram num estado de susto ou admiragao, em éxtase, como diz o original grego: “Pois ensinava como quem tem autori- dade e nao como os escribas” (1,22). Depois conta a hist6- 33 - JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE ria da cura do possesso e, no fim, volta a descrever a reagao das pessoas: “Eis um ensinamento novo, cheio de autorida- de! Ele manda até nos espiritos impuros, e eles Ihe obede- cem” (1,27). Com essa narragao concéntrica, Marcos mostra que os ensinamentos de Jesus nao sao inécuos: ele cura jus- tamente por meio de seus ensinamentos. Falando corretamen- te de Deus, Jesus liberta o homem para este ser ele mesmo. A imagem de Deus e a imagem de si préprio esto intima- mente ligadas. Anunciando aos homens o Deus que cura € liberta, que confirma e encoraja, ele livra as pessoas de suas idéias doentias de Deus e as ergue, para que sejam plenamen- te elas mesmas. Quando Jesus fala de Deus, as pessoas tém a impressao de que Deus esta realmente presente. Ele nao fala de coisas que ouviu de outros, antes se trata de sua propria experiéncia. E ele fala de Deus de uma maneira que mexe com as pessoas. A platéia nao pode se recostar simplesmente para meditar sobre as palavras que Jesus diz. As palavras sobre Deus penetram em seus coragdes e os poem em rebuligo. As pessoas percebem que Jesus fala de Deus como alguém que tem pleno poder. Em suas palavras sente-se o poder de Deus; Deus mesmo se torna pre- sente. Elas sabem: é assim mesmo, ele diz a verdade. Ele fala mesmo de Deus. A palavra grega para “plenipoténcia” é exousia, que inclui a faculdade de agir e de dispor a seu talante. Tesus fala de Deus com total liberdade interior. Nao ha nenhum temor. E 0 termo designa também 0 poder exercido por um so- berano. Jesus aparece aos ouvintes como alguém que tem poder, que participa da autoridade de Deus. As palavras de Je- sus produzem um efeito no ser humano. Elas 0 libertam de po- deres escravizantes e debilitantes. Ao pé da letra, exousia quer dizer: de dentro do ser. Jesus age e fala a partir do ser. Ele se 34 INTERPRETACAO. apéia no ser, no préprio ser e no ser de Deus. Suas palavras coincidem com seu ser. Marcos descreve a reagao das pessoas diante das palavras de Jesus sobre Deus no exemplo de um homem que esta pos- suido por um espirito impuro. O espirito comega logo a gri- tar: “Que ha entre nés e ti, Jesus de Nazaré? Vieste para nos perder?”. O espirito representa as imagens impuras, débeis e demoniacas que fazemos de Deus, e as imagens que fazemos de nés préprios e nos impedem de viver. Muitas vezes faze- mos em nds uma imagem de Deus que desfigura seu verdadei- ro ser, por exemplo a imagem de um Deus-contador que lan- ga tudo a débito e a crédito, a imagem de um Deus arbitrario que a todo momento frustra nossos planos, de um Deus-juiz que nos controla e julga a todo instante. Essas imagens demo- niacas de Deus turvam também a imagem que temos de nés mesmos. Vemos a nés mesmos de maneira errada. Usamos Deus como garantia contra todas as vicissitudes da vida. Usa- mos Deus para encher nosso préprio eu, vendo-nos acima dos outros. Gostariamos de poder dispor de Deus, colocando-o a nosso servigo. Pessoas com esse tipo de imagem de Deus nao conseguem ficar quietas na presenga de Jesus. Elas comegam a gritar. O demGnio precisa manifestar-se. Ele percebe que chegou sua hora. Jesus sacode os homens e os acorda quan- do fala de Deus. E uma maneira excitante de falar de Deus. Abrem-se os olhos dos ouvintes e, de repente, eles se dao con- ta daquilo que eles mesmos sao. Antes se tinham escondido atras das imagens que eles préprios tinham feito de Deus, as- sim como tinham feito a imagem de si mesmos que se opde a sua imagem verdadeira. Jesus repreende severamente 0 espirito impuro: “Cala-te e sai deste homem!” Ele distingue entre a pessoa e o deménio 35 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE que o domina. Nao ha como ter complacéncia com o deménio. E necessario expulsa-lo com o seu poder. Assim ele manda ca- larem-se as vozes interiores que dilaceram o ser humano. Nao ha como enfrenté-las com argumentos. Elas repetem suas pala- vras como uma maritaca, de modo que nenhum argumento consegue derrubé-los. Nesse caso faz-se necessaria a clareza de Jesus e seu poder, para livrar o ser humano de suas vozes que 0 escravizam. O espirito impuro sente o poder de Jesus, mas ele nao se retira sem luta. Ele langa o homem de um lado para 0 outro, até finalmente abandoné-lo com um grande grito. As- sim revela seu verdadeiro carater. Ele gostaria de dilacerar 0 homem, e ele é barulhento. Ele impede o ser humano de encon- trar-se consigo mesmo no siléncio. Ao mesmo tempo, a reagao do deménio indica o poder pleno de Jesus. Ele nao consegue esquivar-se de sua palavra. O homem esta entre o poder do de- monio e a plenipoténcia de Jesus. Ele vacila entre o pressenti- mento de que aquilo que Jesus fala de Deus est4 correto e 0 apego as antigas imagens de Deus, a construgao que ele fez de sua vida. Jesus fala de Deus de uma maneira que exige uma de- cisdo do ser humano. Ja nao é possivel esquivar-se de Deus. Por isso, o homem se solta de seu dem6nio com um grande grito. Nessa passagem ja ressoa de longe o grito com que Jesus ha de morrer na cruz, 0 grito que anunciaré a vitoria definitiva so- bre os demGnios. Os ouvintes recebem os ensinamentos de Jesus como uma novidade. Ele fala de Deus de uma maneira nova, vigorosa, que reanima e cura. Ele fala com plenipoténcia. Jesus nao interpreta a lei a maneira dos fariseus, em suas palavras sente-se a pre- senca do poder de Deus. Ele nao fala sobre Deus, em suas pa- lavras reluz o poder do proprio Deus. Suas palavras provocam uma reagiio no ser humano. Elas 0 libertam para ele poder ser 36 INTERPRETACAO ele proprio. Como aquilo que Jesus diz do ser humano e de Deus € correto, j nao sobra lugar para as imagens débeis de Deus e de si mesmo. Elas tém de ceder. Mesmo que seja sob protestos. Assim revelam seu verdadeiro ser, sua intengao des- truidora e hostil ao ser humano. Elas sacodem o homem. Elas o arrancam de seu centro e o dominam. Por isso precisa vir al- guém que tem um poder como o de Jesus, para expulsa-las da alma humana. S6 assim o ser humano pode erguer-se e encon- trar-se a si proprio. A cura do leproso (1,40-45) Na época de Jesus, os leprosos eram excluidos da convi- véncia humana. Eram obrigados a viver em col6nias préprias. Eles sao a imagem de homens que nao “suportam” nem a si proprios. Como nao conseguem aceitar-se a si mesmos, sen- tem-se rejeitados, excluidos, marginalizados. Nao se sentem bem nem entre os homens nem consigo préprios. E na pele que se pode ver se estamos bem ou nao. A pele coberta de lepra significa que ha muita coisa em nds que nao queremos aceitar. Aquilo que nao aceitamos se manifesta na pele em forma de eczemas ou espinhas. Um homem desses, que nao consegue amar-se e que se sente rejeitado pelos outros, apro- xima-se de Jesus. Ele sente que nao pode continuar vivendo assim, porque ninguém consegue viver apenas como margi- nalizado, rejeitado e sem-teto. Todos querem alguma atengao e amor. O leproso reconhece a impossibilidade de sair pelas proprias forcgas do circulo vicioso da rejeigao. Por isso vai ao encontro de Jesus e se langa a seus pés. Dirige-Ihe o apelo: “Se queres, podes purificar-me” (1,40). Parece que esta empur- 37 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE rando para Jesus a responsabilidade por sua pureza. Ele re- cusa qualquer responsabilidade prépria. Afinal, nao é dele a culpa de ser rejeitado. Jesus da atencdo ao doente, mas nfo se deixa simplesmente usar por ele. Ele o confronta com sua propria pessoa e com sua parte da doenga. O primeiro passo da terapia de Jesus € a com- paixao. A palavra grega splanchnistheis significa originalmen- te: ele ficou comovido em suas entranhas. Para os gregos, as entranhas eram a sede dos sentimentos vulneraveis. Jesus dei- xa o doente entrar em seu intimo. Ele sente com ele, com sua amargura, com seu desespero, com seu 6dio contra si mesmo. Num segundo passo da cura, Jesus lhe estende as maos: oferece um relacionamento ao leproso, quer entrar em contato com ele, quer um intercambio com ele. E entao ele toca no doente. Se a pessoa nao consegue aceitar-se nem a si mesma, temos mui- ta dificuldade em aceité-la, pois muitas vezes estamos com me- do de tocar no caos interior do outro, de sujar as maos, por- que tememos que toda essa imundicie de amargura e édio con- tra si proprio seja despejada sobre nés. Jesus nao conhece esse medo do contato. Ele sabe que sua pessoa nao pode ficar impu- ra, que seu intimo é cristalino e puro. O contato fisico signifi- ca: eu te aceito como és. Quem toca se mistura. Os sentimen- tos de Jesus se misturam com os do doente. Jesus faz fluir a sua clareza interior para dentro do doente. E entao diz a ele: “Eu quero, sé purificado” (1,41). Para mim, isso quer dizer: “Es- tou a teu lado. Eu te aceito. Mas tu também deves dizer sim a ti mesmo, deves aceitar-te. E necessdrio que tu também cum- pras tua parte na cura. Deves dizer sim a ti mesmo e a vida”. No mesmo instante, a lepra desaparece. O doente pode acei- tar-se. Ele se sente puro, em harmonia consigo mesmo. Mas uma coisa ainda falta ao curado. Ainda nao esta inteiramente 38 INTERPRETAGAO aut6nomo. Nao para de contar aos outros a historia de sua cura. Com isso ele se coloca a si mesmo no centro. Ele nao con- segue aceitar-se como ele é realmente, s6 como alguém espe- cial que se coloca acima dos outros. Ele confunde a aceitagao com dependéncia. Falando a todos a respeito de Jesus, ele nao se desprende dele. Jesus manda o curado embora insistindo com ele: “Cuida de nao falar nada a ninguém, mas vai mostrar-te ao sacerdote e oferece por tua purificacgaéo o que Moisés prescreveu” (1,44). A primeira vista, a reagaio de Jesus parece estranha. A palavra grega até exprime célera: ele “ficou irritado, indignou-se, cen- surou 0 curado”. Talvez tenha percebido que o curado queria atrair as atengdes sobre si. Por isso diz que deve seguir 0 ca- minho usual, apresentando-se ao sacerdote. Deve reintegrar- se 4 comunidade. Mas 0 curado espalha em toda parte e em qualquer oportunidade o que aconteceu com ele. Com isso, ele faz de Jesus um excluido. Este j4 nao pode mostrar-se nas ci- dades. “Jesus nao podia mais entrar abertamente numa cida- de, mas ficava fora em lugares desertos” (1,45). Inverteu-se a situacao: Jesus, que se encontrava no meio da comunidade, curou aquele que estava excluido e o readmitiu na comunida- de, mas agora o curado excluiu Jesus e o obrigou a manter-se fora da comunidade. Jesus queria curar completamente o ho- mem. Mas para tanto este deveria ter guardado siléncio, para que a cura pudesse estender-se também 4 sua alma e nao sé ao corpo. No entanto, parece que o leproso nao estava disposto a proceder assim. Vive agora 4 custa de Jesus. Penso que se trata de uma referéncia 4 morte na cruz, pela qual ele foi ex- cluido da comunidade humana e marginalizado para que fés- semos curados e nos soubéssemos amados incondicionalmen- te. Na cruz, Jesus foi expulso para que nossa expulsao fosse 39 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE anulada e nés pudéssemos morar novamente perto de Deus. A cura do ser humano custa a Jesus, 0 Filho de Deus, a vida. A cura do paralitico (2,1-12) Alguns dias depois dessa cura, Jesus retorna a Cafarnaum. E tanta gente que se junta para ouvir suas palavras que j4 nao é possivel passar pela porta. Chegam, entao, quatro homens carregando um paralitico. Subindo no telhado, abrem um bura- co no teto para baixar por ele o paralitico que jaz numa maca. Esta toca o chao precisamente diante dos pés de Jesus. Na mi- nha infancia j4 me senti fascinado por essa cena. Destroem a casa para que o paralitico possa ser curado. A multidao reuni- da nao os impede de leva-lo até Jesus. Eles precisam chegar até ele, custe o que custar. Trata-se de um paralitico. Se perguntar- mos o que significa paralisia para nossa alma, encontraremos o medo como a verdadeira causa da paralisia. O medo me para- lisa, me bloqueia, me inibe. Sinto-me paralisado porque tenho medo de falar diante dos outros. E o medo de ser julgado pe- los outros. Mas existem outros medos que tém efeito parali- sante sobre mim: o medo diante de uma situagao dificil, dian- te de um homem poderoso, diante de um perigo, e o medo di- ante da propria culpa, o medo de que a culpa seja descoberta. Jesus vé a fé dos quatro homens que levam o paralitico até ele. Nao se trata da fé do doente, mas da fé de seus carrega- dores. Jesus se dirige ao paralitico: “Meu filho, teus pecados estaio perdoados” (2,5). O doente quer recuperar a satide. Para que, entao, o perdao dos pecados? Jesus percebe que a parali- sia est ligada a sua atitude interior. Pecado significa errar, enganar a propria vida. O paralitico engana-se quando pensa 40 INTERPRETAGAO que deveria ser perfeito, que nao deveria revelar suas fraque- zas. Como nao quer se mostrar fraco, nao ousa levantar-se em sua fraqueza, e esta o prende a cama. Quem se levanta sabe que pode cair. Quem evita qualquer risco de cair permanece deitado para sempre na cova de seu medo. E provavel que o doente nem tenha infringido nenhum mandamento, mas ele se recusou a viver. A verdadeira culpa esta no fato de nao viver- mos a vida que Deus nos confia. Ea essa vida nao vivida, a essa atitude negativa que Jesus se refere quando se dirige ao doen- te. Concedendo-lhe o perddo dos pecados, mostra-lhe que é incondicionalmente aceito por Deus, de modo que passa a exis- tir a possibilidade de um novo comego: “Deixa de lado teus sentimentos de culpa! Para de atormentar-te e de ficar 4 mar- gem da vida! Tem a coragem de ser tu mesmo, de levantar-te com todas as falhas e fraquezas! Abandona a negagao da vida! Ousa viver!”. Alguns escribas se incomodam com o perdao dos pecados que Jesus concede ao doente. Perdoar pecados é uma prerro- gativa exclusiva de Deus. Jesus lé seus pensamentos. Por isso se dirige a eles perguntando: “Por que fazeis tais raciocinios em vossos coragdes? Que é mais facil? Dizer ao paralitico: ‘Teus pecados estado perdoados’, ou dizer: ‘Levanta-te, toma tua maca e anda’?”. Jesus mostra, entao, aos escribas que tem o pleno poder de perdoar pecados. Ele proclama a palavra de Deus com plenipoténcia. A prova consiste em dizer ao paralitico: “Eu te digo: levanta-te, toma tua maca e vai para casa!” (2,11). Depois que a alma esta curada, o corpo também pode ser cu- rado. Ao levantar, o paralitico mostra que o perdao dos peca- dos se realizou efetivamente nele. Ele j4 nao esta preso a si e ao seu medo. Ele j4 nao se nega a viver. Ele ousa levantar-se, mesmo nao tendo garantia nenhuma de que conseguira equi- 4 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE librar-se nos pés depois de tanto tempo. Mas agora a confian- ¢a vence o medo. A palavra de Jesus, pronunciada com pleno poder, Ihe dé a coragem de levantar-se. Jesus 0 poe em conta- to com sua confianga e com sua propria forga. E nessa forca ele consegue ficar em pé. Ja nao se importa com a idéia fixa de Ppreocupar-se com 0 que os outros pensam, se poderiam vir a descobrir suas inibigdes. Aceitando sua condigao, pisa nos pré- prios pés. E eis que consegue andar. Conhego a atitude do paralitico. Antigamente, quando de- via dar um curso, ficava preocupado com os exercicios que de- veria oferecer aos participantes. Pressionava-me a mim mesmo para que o curso saisse da melhor maneira possivel, para que todos ficassem contentes. Estudando cada unidade, ficava in- deciso se devia aplicar esse ou aquele exercicio. Foi nessa situa- cao que me lembrei da palavra de Jesus: “Levanta-te, toma tua maca e anda!”. Pensando nessas palavras, deixava de me tor- turar. Entrava na sala e me entregava ao sentimento que bro- tava de meu interior quando comecava a falar. Era sempre uma espécie de libertagao. Nesse instante podia deixar de lado a pres- sao interna, levantando-me simplesmente para ir, com minha cama, com minha inseguranga, ao encontro das pessoas. Controvérsia com os fariseus (2,18-28) Marcos menciona constantemente a ocorréncia de contro- vérsias entre Jesus e os fariseus. Mesmo assim, 0 confronto ainda nao recebe o mesmo destaque que tera depois no Evan- gelho de Mateus, que expressa sobretudo o relacionamento entre cristaos e fariseus depois da queda de Jerusalém no ano 70. Os fariseus tinham boa aceitagao entre 0 povo porque se 42 INTERPRETACAO dedicavam ao desenvolvimento de uma religiosidade leiga. Davam mais importancia aos mandamentos de Deus do que aos sacrificios dos sacerdotes. Com suas normas pretendiam aplicar os mandamentos de Deus na vida concreta. Isso one- rava as pessoas muitas vezes com novas obrigagdes. Em mui- tas questes, Jesus revelava uma certa afinidade com os fariseus. Por outro lado fazia questao de distanciar-se deles em muitos aspectos. Recriminava em sua religiosidade a importan- cia dada as aparéncias e ao desempenho em forma de obras. Um exemplo da controvérsia com os fariseus é a questao do jejum. Os discipulos de Joao e os fariseus jejuavam regular- mente nas segundas e quintas-feiras e em certos dias de jejum previstos no calendario anual. Os discipulos de Jesus nao je- juavam. Nesse ponto distinguiam-se dos demais. Jesus pergunta aos questionadores: “Podem os convidados as nupcias jejuar enquanto esta com eles 0 esposo?” (2,19). Nessa passagem manifesta-se 0 conceito que Jesus tem de si mesmo e a imagem que tem de Deus. Jesus nao é um asceta que renuncia a todas as alegrias. Marcos coloca essa controvérsia com os fariseus logo depois da cena em que Jesus esta 4 mesa com o coletor de impostos e os pecadores. Nessa ocasiao Jesus dispensa a adverténcia aos pecadores para que se convertam. Ceia com eles. Fala-lhes do amor de Deus. A experiéncia desse amor os transforma. Jesus se sente no papel do noivo que anuncia aos homens a proximidade de Deus e os convida a celebrar com ele o amor de Deus. Ele convoca as pessoas ao casamento com Deus que quer unir-se aos homens. E, quando Deus se une ao ser humano, este também se concilia consigo mesmo. Em muitas lendas, o casamento é a imagem da realizagao plena do individuo. Todos os antagonismos do ser humano se fundem: homem e mulher, céu e terra, luz e trevas. Assim, Je- 43 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE sus mostra, nessa imagem do casamento, o que ele entende por espiritualidade: esta nao é, em primeiro lugar, o caminho da re- ntincia, e sim o caminho da integragao. Ela tenta unir em si e em Deus 0 céu e a terra e todos os antagonismos da alma hu- mana. Sua imagem de Deus e do homem é marcada pela ale- gria e confianga, pela disposig&o de comemorar com uma fes- ta a dedicagao de Deus ao ser humano. Essa comemoragao nao combina com 0 jejum. Os discipulos nao jejuam porque expe- rimentam a proximidade de Jesus como sendo a proximidade do noivo divino. Mas Jesus declara aos fariseus que os disci- pulos também deverao jejuar um dia, ou seja, quando ele lhes for tirado pela morte. Sera entao um jejum motivado pelo luto. Na Igreja primitiva, cedo passou a ser adotada a pratica do jejum dos judeus. A diferenga estava nos dias escolhidos para 0 jejum: as quartas e as sextas-feiras. Pelo jejum, os primeiros cristaos se uniam aquele Jesus que supera o poder dos dem6- nios com sua impoténcia, cujo caminho levou pela cruz a res- surreigdo. Nosso caminho espiritual inclui os dois aspectos: a festa da uniao com Deus, mas também 0 jejum que nos faz suportar os momentos de auséncia de Deus, quando nosso caminho se transforma numa via-sacra em que nés também precisamos enfrentar as forcas demoniacas que se opdem a nossa realizacao individual plena. Jesus justifica o comportamento de seus discipulos com a novidade de sua doutrina. O que ele traz aos homens é real- mente algo novo. Ele nao é simplesmente um rabi entre mui- tos, e sua Mensagem nao combina com as praticas antigas. Essa idéia fica clara na imagem do vinho velho e do novo que Jesus usa em sua parabola. O vinho novo exige odres novos (2,22). Os ensinamentos novos de Jesus requerem novas formas de expressaio. Nessas palavras manifesta-se uma espiritualidade 44 INTERPRETACAO que difere da dos fariseus. Estes se preocupam em adaptar os mandamentos de Deus a vida do dia-a-dia. Sua orientagao € voltada ao passado. Pretendem atualizar os mandamentos pro- mulgados no passado. Jesus, no entanto, tem a coragem de inovar. No Evangelho de Mateus, esse espirito de inovagéo volta a ser religado ao antigo. Na interpretagao de Mateus, Je- sus nao pretende abolir nenhum mandamento. Mas em Mar- cos se realca o frescor original das convicgGes de Jesus. Certa- mente, Jesus se coloca dentro da tradi¢ao judaica, mas ele nao analisa receoso toda e qualquer letra da lei. Ele confia em sua intuicao. E ele confia na novidade trazida ao mundo por ele. Ele se fia no Deus sempre novo que renova tudo. A controvérsia com os fariseus continua na questao do pre- ceito da observancia do saébado. Deus deu aos homens 0 saba- do para que nesse dia possam descansar de seu trabalho, par- ticipando assim do descanso do préprio Deus. O sébado é um beneficio para os seres humanos. Os fariseus procuraram pro- teger o sdbado por meio de prescrigGes. Sua intengao era cer- tamente favoravel aos homens. Queriam que as pessoas descan- sassem realmente. Mas eles exageraram na dose. O que se des- tinava originalmente a fruigdo do descanso transformou-se em empecilho da liberdade humana. A letra tornou-se mais impor- tante do que o sentido dela. Claro, havia também fariseus mais liberais, como por exemplo os da escola de Hilel, que pensavam mais ou menos como Jesus. Jesus nao se opée radicalmente a tradic¢do judaica e aos fariseus. Ele apenas exige o direito de in- terpretar as leis A sua maneira. Para tanto, ele nao apela para outras escolas de interpretacado, mas confia em sua propria sen- sibilidade a respeito de Deus e dos homens. Para os fariseus da observancia estrita, arrancar espigas ao caminhar ja equivalia ao trabalho de colheita. Nos dias titeis era perfeitamente admis- 45 JESUS, CAMINHO PARA A LIBERDADE sivel arrancar espigas, mesmo que fosse de plantagGes alheias, contanto que se estivesse com fome. Mas no sabado tal prati- ca era proibida. Jesus argumenta com um exemplo de David, que certa vez entrou na casa de Deus e consumiu os paes sagra- dos. E um relato livre de 1Sm 21,1-10, em que se diz que David chegou 4 casa do sacerdote Abimélek para lhe pedir cin- co paes. Como o sacerdote no tivesse pao comum, deu-lhe os paes consagrados. Como David, Jesus também se sente livre para permitir a seus discipulos infringir o mandamento de ob- servar 0 sébado quando estao com fome. E ele justifica essa li- berdade com uma referéncia a vontade original de Deus: “O sabado foi feito para o homem e nao o homem para o sibado” (2,27). Jesus declara assim conhecer a vontade de Deus. E ela remonta a criagdo do mundo. Ao pé da letra, Jesus diz o seguin- te: “O sébado foi criado para o homem (por causa do homem), e nao o homem para o saébado”. Com essa afirmagao, ele nao se coloca fora da tradigao judaica. Por volta do ano 180 a.C., o rabi Shimeon formulara essa idéia de maneira semelhante: “Q sAbado foi entregue a vos, nao vés fostes entregues ao saba- do” (Gnilka, 123). Na verdade, o rabi Shimeon sé estava se re- ferindo a uma situaciio aguda de perigo de vida. Jesus pronun- cia essas palavras com muita liberdade. Até mesmo a fome de seus discipulos é motivo suficiente para nao obedecer as nor- mas legalistas que regem a observancia do sabado. O que im- porta é sempre o sentido das leis e nao a rigidez da letra. A cura do homem da mo paralisada (3,1-6) Durante o culto na sinagoga, Jesus repara num homem com a mao paralisada. Posso imaginar o que tenha sido o pro- 46 INTERPRETACAO blema desse home: com a mao que damos forma a nossa vida, e costuma-se dizer que “pomos maos a obra”. Tomamos a vida em nossas maos. Tomamos o que precisamos e damos © que temos para dar. Damos a mo uns aos outros, tocamo- nos com a mao. Entramos em contato. Damos apoio. Com a mao exprimimos carinho e amor. A mao paralisada revela um ser humano que se conformou, que se retraiu. Nao quer quei- mar os dedos, nao quer sujar as maos. Ele se retirou da luta pela existéncia, contentando-se com o papel de espectador. De tanto conformar-se, perdeu a forga. Nao se espera mais nada dele. Jé nao pode tomar nada em suas maos, ja nao pode for- mar e transformar nada. Tornou-se incapaz de agir. Era sabado. No sabado era proibido curar. S6 quando a vida corria perigo, os fariseus podiam curar alguém. Eles da- vam mais valor a observancia do sabado do que a cura dos homens. Assim deturparam o sentido original do sabado. Mas Jesus nao se deixa tolher pelos fariseus. Ordena ao homem que tinha a mao paralisada: “Levanta-te! Vem para o meio” (3,3). Este, acostumado a encolher-se, a observar tudo a distancia, a atirar da segunda linha em vez de assumir a responsabilida- de, vé-se na contingéncia de ter de ocupar o centro, de colo- car-se na frente dos outros. Com essa ordem, Jesus parece di- zer: “Tu és importante. O centro é o lugar certo para ti”. E para nés ele diz: “Levanta-te! Ergue-te nas proprias pernas. Fica no teu centro. Tu nao estas no teu centro. Saiste de teu proprio meio”. E um desafio e tanto para o homem da mio paralisa- da. Ele precisa abandonar sua posigao cémoda de espectador. Precisa enfrentar atencdo dos outros. No centro, ele se vé ob- servado por todos. Acontece-lhe justamente aquilo que ele queria evitar a todo custo. Ele é 0 centro das atengGes. Jé nao pode esconder-se. Precisa assumir sua realidade. 47

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