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Henry

J.M.Nouwen
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Omçdo e ação
terceira série - 11

1.

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Coleção o "ORAÇÃO E AÇÃO" henry j. m. nouwen
1 - Co1110 rezar? Diversos
2 - Ousadia de rezar, P. Jacquemon~
.3 • A co11stn1ção do Reino, A. Paoh
4 • Jesus, Diversos
5 - P@a além da criação, C. Carretto
6 . Lealdade para co1n Deus, Diversos
7 - Mentalidade pascal, B. P~che
8 - Procurei na escuridão, J 1.oe'v
9 - Psicologia e sentido do pecado, M. Oraison
10 - Como t1ma rede, D. J. Lafayette
11 - Consider(lções inten1pestivas sobre a oração, A.-M. Besnard
12 - Com Cristo Jesus, R. Voillaume
13 - Os olhos iluminados do coração, A. M. Carré
14 - Diálogos do espírito, João Albnnese
15 - Que tua páscoa permaneça para sempre, Ir. Rogério,
Prior de Taizé
NOVA SÉRIE
1 - A oração, Cerfaux, Hamman, Lepargneur, Cognet, Ré-
gamey, Dekhar ...
o paradoxo
2 - A conte1nplação hoje, R. Voillaume
3 - Cristo e os homens diante da tentação, L. Boros
4 - Jesus chamado o Cristo,]. Loew
5 - Relações interpessoais co111 De11s, R. Voillaume
6 - Onde está vossa fé? R. Voillaume
da solidão
7 - Te resa de Lisieux e a alegria de crer, Card. Garrone
8 - Cartas a u111 ateu, M. Marie Yvonne
9 - Se não fósseis ªDeus", M. Marie Yvonne
10 - Por amor de teu amor, A. M. Carré
11 - O Deus que vem, C. Carreuo
12 - Evangelhos que i11con1oda111, A. Pronzato
13 - Palavras in-oportunas, Y. Congar, J. Loew, R. Voil-
1aume
14 - O Inocente, M. ] . Guillou
15 - A noite 111ais bela, ] . Héricourt
16 - Te111po de Cristo, VV.AA.
17 - O Papa e a contestação, textos de Paulo VI, reunidos
e apresentados por V. Levi
18 - Resposta a Cristo, Edward Carter
19 • A luta de Jacó, M.-D. Molinié
20 - O futuro no presente da Igreja, ]. Daniélou
TERCEIRA SÉRIE
1 - Cartas do deserto, C. Carretto
2 - O que vale é o an1or, C. Carretto
3 - Vocês lambéln quere111 obandonar-n1e?, L. Santucci
4 - A voz de Deus nas vozes do mundo, P.-R. Régamey
5 - ... Eu. poréln, vos digo, A. Pronzato
6 - Minha carne para a vida do mundo, R. Voillaume
7 - Retiro en1 Beni-Abbes, R. Voillaume
8 - Somente Deus é h11111ano, B. Bro
9 - Vinte palavras de CrisJo, A. Lãpple
10 - Procuram·se pecddores, B. Bro
11 - O paradoxo da solidã:i, H. ]. M. Nouwen edições paulinas
Titulo original:
Out of SoJitude
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'Çl Ave Maria Press. Notre Dame. Indiana. 1974 ~~.·;_: 'J-.
PREFÁCIO
Traduziu: · ~ ·,;_,
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Pe. Lacerda sj. .e

A tradução dos evangelhos foi tirada da Sibila de Jerusalém,


Novo Testamento (em preparação, Edições Paulinas}.

-J

Esttl5 meditações foram antes sermões, apre-


sentados em "Battell', a Igreja Unida de Cristo
na Universidade de Yale. Agradeço a todos que
me ajudaram na "Pregação da Palavra"; a Phil
Zaeder, o Capelão da Universidade, que me con-
vidou para o púlpito e me ofereceu ajuda e
orientação, durante tl5 três semanas que estive
em rna paróquia; às Irmãs das Mercês de Ma-
dison, Connecticut, que me ofereceram um lugar
tranqüilo para eu escrever; e aos membros de
Battell que, com sua calorosa acolhida, fizeram-
-me sentir à vontade em seu meio.
Ao meu assessor Joe Freeman, uma palavra
de especial gratidão pelo valioso auxílio na pre-
paração de "O paradoxo da solidão", e a Debbie
W heeltr, que me deu o seu precioso tempo para
datilografar o manuscrito.

COM APROVAÇÃO ECLESIASTICA

© BY EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1975


1 5

1
1.
Por causa da solidão
Ao entardecer, quando o sol se pôs, trou-
xeram-lhe todos os que estavam enfer-
mos e endemoninhados. E a cidade in-
teira aglomerou-se à porta. E ele curou
a muitos doentes de diversas enfermidades
e expulsou muitos demônios. Não con-
sentia, porém, que os demônios falas-
1 sem, pois eles o conheciam.
De madrugada, estando ainda escuro, ele
se levantou e retirou-se para um lugar de-
serto. E ali orava. Simão e seus com-
panheiros o procuraram ansiosos, e,
quando o acharam, disseram-lhe: "To-
dos te procuram". Disse-lhes: "Vamos
a outros lugares, às aldeias da vizinhan-
ça, a fim de pregar também ali, pois
foi para isso que eu vim". E saiu pre-
gando em suas sinagogas por toda a Ga-
liléia e expulsando os demônios (Me 1,
32-39).

..
INTRODUÇAO

"De madrugada, estando ainda escuro,


ele se levantou e retirou-se para um lu-
gar deserto. E ali orava".

Entre a intensa atividade: - curando o


povo sofredor, expulsando demônios, responden-
do aos discípulos impacientes, viajando de cida-
de para cidade e pregando nas sinagogas de Is-
rael - encontramos as palavras que falam de
tranqüilidade: "De madrugada,. estando ainda
escuro, Jesus se levantou e retirou-se para um lu-
gar deserto. E ali orava".
Envolvido por esse tumulto, ouvimos urna
respiração repousante. Cercado de horas de mo-
vimentação achamos o Mestre na suave tranqüi-
lidade do amor. No meio da envolvente ação há
contemplação e depois da convivência a paz da
solidão.
Quanto mais penetro essa mensagem que
sussurra paz e alegria, tanto mais descubro e
sinto que o segredo do ministério de Jesus, está
oculto no lugar solitário para onde se dirigia a
fim de rezar, "de madrugada, estando ainda es-
curo».

11
NOSSA VIDA EM AÇÃO
No lugar solitário, Jesus encontra a cora-
gem para cumprir a vontade do Pai e não a
própria; coragem para falar as palavras de Deus
e não as suas; para fazer o trabalho de Deus
e não o seu. Ao sair da prece ele nos recorda
constantemente a confiança: "Por mim mesmo,
nada posso fazer; . . não procuro a minha von-
tade, mas a vontade de quem me enviou" (]o
5,30 ). E ainda: "As palavras que vos digo, não
as digo por mim mesmo; mas o Pai, que perma-
nece em mim, realiza as suas obras" (]o 14,10). Não é difícil perceber que, em nosso mun-
E aí, na solidão, Jesus entra na intimidade com do, todos temos um forte desejo de realizar al-
o Pai, é aí que nasce o seu ministério. guma coisa. Alguns pensam em termos de gran-
des e dramáticas mudanças na estrutura da so-
Quero refletir sobre esta solidão dentro de ciedade hodierna. Outros querem ao menos cons-
nossa vida. Seja onde for, se não construímos em truir uma casa, escrever um livro, inventar uma
nós essa solidão nossa vida está em perigo. Seja máquina ou conquistar um troféu. E alguns pa-
onde for, sabemos que sem silêncio as palavras recem felizes quando simplesmente fizeram algo
perdem seu sentido, que sem a distância da so- por alguém que eles acreditam válido.
lidão a proximidade não pode curar. Seja onde
for, sabemos que sem um local solitário nossas Todos pensam em termos de sua contribui-
ações rapidamente se transformam em gestos ção à vida. E, quando envelhecem grande parte
vazios. de seus sentimentos de felicidade ou tristeza de-
pende da avaliação sobre o papel que desempe-
O equilíbrio divino entre silêncio e pala- nharam em modelar o mundo e sua história den-
vras, retirar-se e engajar-se, distância e proximi- tro dele.
dade, solidão e multidão, forma a base da vida
cristã e deveria ser, portanto, o tema de nossa Como cristãos, sentimos um chamado espe-
atenção mais pessoal. Vamos, pois, olhar bem cial para fazer algo de bom por alguém: dar um
de perto, primeiro nossa vida em ação e, em se- conselho, confortar um triste, expulsar um ou
guida, nossa vida em solidão. dois demônios, e mesmo pregar a boa nova às
nações.
O desejo de ser útil, embora possa ser um
sinal de saúde mental e espiritual numa sociedade
como a nossa, em que tudo deve ter uma finali-

12 13
dade, pode também tornar-se a origem de uma bólica, em que as ansiedades crescem junto com
paralisante falta de auto-estima. Na maioria dos os sucessos. Poder que já levou inúmeros e
casos nós não só desejamos fazer coisas com famosos artistas à autodestruição.
significado, mas freqüentemente fazemos dos re-
sultados de nosso trabalho o critério de nossa Neste mundo maníaco pelo sucesso, nossa
auto-estima. E, então, não apenas temos suces- vida torna-se escrava dos superlativos e dizemos
sos; tornamo-nos nossos sucessos. Estando ha- ter: a torre mais elevada do mundo, vanglo-
bituado a dar palestras neste país, você desco- riamo-nos do corredor mais veloz, do homem
bre que, com o passar do tempo, seus apresen- mais alto, da ponte mais comprida e do melhor
tadores falam mais longamente, porque se sen- estudante. (Na Holanda, fazem o contrário: glo-
tem obrigados a elencar todas as relizações, des- riam-se da menor cidade, da rua mais estreita, da
de os dias de universidade até o presente. casa mais diminuta e dos sapatos mais incômo-
dos).
Deixando-nos impressionar demais com os
resultados de nosso trabalho, lentamente chega- Mas sob toda nossa ênfase a respeito de uma
mos à errônea convicção de que a vida é um ação bem sucedida, sofremos de uma auto-esti-
grande placar, onde alguém está enfileirando os ma profundamente baixa e andamos com o
pontos para medir nosso valor. E, antes de nos constante receio de que um dia alguém desmas-
conscientizarmos inteiramente disso, já vendemos care a ilusão e mostre que não somos tão es-
nossa alma aos inúmeros doadores de notas. Isso pertos, bons ou amáveis como o mundo fora le-
significa que estamos no mundo, e somos parte vado a acreditar.
integrante dele.
Uma ou outra vez alguém confessará, num
Somos inteligentes porque alguém nos dá momento de intimidade: "Todos pensam que
uma nota alta. Somos de valia porqne alguém eu sou muito tranqüilo e equilibrado, mas se
disse: "Obrigado."' Somos amáveis porque al- soubessem o que sinto realmente ... " Esta irri-
guém gosta de nós. E somos importantes por- tante insegurança está na base da depressão na
que alguém nos considera indispensáveis. Em vida de muitos que combatem em nossa socieda-
suma, o nosso valor existe em nossa vida por- de competitiva.
que temos sucessos reais ou aparentes. Quanto Ainda mais, esse temor corrosivo de que
mais os resultados de nossas ações se tornam descubram a nossa fraqueza impede que surja a
o critério de nossa auto-estima, tanto mais hesi- comunidade e a participação criativa. Tendo ven-
taremos mental e espiritualmente, de nossa ca- dido a nossa identidade aos juízes deste mundo,
pacidade de enfrentar as incertezas que criamos somos forçados a ficar inquietos, devido a uma
com nossos últimos sucessos. Na vida de mui- crescente necessidade de afirmação e estima.
tas pessoas existe uma espécie de cadeia dia- Então surge a tentação do desânimo, por causa
14 15

--- -
---~- ---
da constante auto-rejeição. E corremos o risco NOSSA VIDA EM SOLIDÃO
de nos isolarmos, pois, amizade e amor são im-
possíveis sem uma mútua vulnerabilidade.
Assim, ao se tornarem as nossas ações
expressão de temor mais do que liberdade inter-
na, tornamo-nos facilmente prisioneiros das ilu-
sões que nós mesmos criamos.

Viver uma vida cristã significa viver no


mundo sem ser do mundo. Esta liberdade inte-
rior cresce na solidão. Jesus dirigiu-se a um lu-
gar deserto para rezar, isto é, para crescer na
consciência de que todo seu poder lhe era dado
pelo Pai; de que todas as palavras que falava
vinham do Pai; e que todos os seus trabalhos
não eram realmente seus, mas daquele que o en-
viara. No lugar deserto Jesus tornou-se livre de
errar.
Uma vida sem um lugar solitário, isto é,
uma vida sem um centro tranqüilo, facilmente se
torna destruidora. Quando nos apegamos aos re-
sultados de nossas ações como o único meio de
auto-identificação tornamo-nos possessivos e de-
fensivos, tendemos a olhar os nossos semelhantes
mais como inimigos a serem conservados à distân-
cia, do que amigos com quem repartir os dons da
vida.
Na solidão podemos lentamente desmascarar
a ilusão de nossa possessividade e descobrir, no
centro de nosso eu, que nós não somos o que
podemos conquistar, mas o que nos é dado. Na
solidão podemos ouvir a voz daquele que nos
16
17
2 - O paradoxo da solidão
falou antes de podermos dizer uma palavra, que da e transformada em tábuas e cadeiras;
nos curou antes de podermos fazer qualquer ges- mas porque é inútil, pôde crescer tão alta
to de socorro, que nos libertou muito antes de e tão bela, a ponto de você poder sentar-
podermos libertar a outros e que nos amou mui- -se à sua sombra e descansar".
to antes de podermos amar a quem quer que
fosse. Na solidão podemos envelhecer livremente,
sem nos preocuparmos com a nossa utilidade, e
É nessa solidão que descobrimos que ser oferecer um serviço novo. Na medida em que
é mais importante do que ter, e que nós vale- nos livramos de nossas dependências neste mun-
mos mais do que o resultado de nossos esfor- do, seja qual for o sentido de mundo - pai, mãe,
ços. Na solidão descobrimos que a nossa vida filhos, carreira, sucesso ou recompensas - for-
não é uma propriedade a ser defendida, mas um mamos uma comunidade de fé, em que há pouco
dom a ser repartido. É ali, na solidão, que re- para defender e muito para repartir. Porque,, i;u-
conhecemos que as palavras que curam, por ma comunidade de fé, levamos o mundo a serio,
nós proferidas, não são propriamente nossas, mas mas sem exagero. Em tal comunidade podemos
nos são dadas; que o amor que podemos expri- adotar algo da mentalidade do papa Joã~>,. capaz
mir é parte de um amor maior; e que a nova de rir-se de si próprio. Quando um ofmal lhe
vida que apresentamos não é propriedade à qual 1 perguntou: "Santo Padre, quantos trabalham 1!-º
nos apegamos, mas é um dom a ser recebido. ' Vaticano?" o papa parou um momento e dis-
Na solidão conscientizamo-nos da diferença se: "Bem, acho que cerca da metade deles".
entre o nosso valor e a nossa utilidade. Pode- Como comunidade de fé trabalhamos du-
mos aprender muito, a respeito disso, com a ramente mas não somos destruídos pela falta de
velha árvore da estória de Tao sobre um car- resultad~s. Somos defendidos e protegidos por
pinteiro e seu aprendiz: ela. E como comunidade de fé lembramos cons-
Um carpinteiro e seu aprendiz caminhavam tantemente uns aos outros, que formamos uma.
juntos na grande floresta. Ao passarem por corporação' de fracos, transparente para aqu~le
um carvalho alto, nodoso, velho e belo, o que nos fala nos lugares solitários de noss~ ex1_s-
carpinteiro perguntou ao aprendiz: "Você tência e nos diz: "Não tenham medo, voces sao
sabe por que esta árvore é tão alta, grande, aceitos".
cheia de nós, velha e bela?" O aprendiz
olhou para o Mestre e disse: "Não. . . Por
quê?"
"Bem, disse o carpinteiro, porque é inútil.
Se fosse útil, de há muito teria sido corta-

18 19
CONCLUSÃO

"De madrugada, estando ainda escuro,


ele se levantou e retirou-se para um lu-
gar deserto. E ali orava».

Quando Simão e os companheiros o en-


contraram, Jesus disse: "Vamos às aldeias da
vizinhança, a fim de pregar também ali, pois,
foi para isso que eu vim». As palavras que Jesus
falou nas aldeias da vizinhança nasceram da in-
timidade com o Pai. Foram palavras de conforto
e de condenação, palavras de esperança e de ad-
moestação, palavras de unidade e de divisão. Ele
teve a ousadia de falar essas palavras de desa-
fio porque não buscava a sua própria glória: "Se
a mim mesmo glorifico", ele diz, "a minha gló-
ria nada é; quem me glorifica é meu Pai, de
quem dizeis: 'É nosso Deus'; e vós não o co-
l nheceis" (Jo 8,54). Em poucos anos as pala-
vras de Jesus acarretaram-lhe a rejeição e a mor-
te. Mas aquele que lhe falara no lugar deserto. o
ressuscitou, como sinal de esperança e vida nova.
Quando você se torna capaz de criar um
lugar deserto no meio das ações e preocupações,

21
seus sucessos e fracassos aos poucos perdem o
poder sobre você. Porque, então, o seu amor por
este mundo pode fundir-se com uma compreen-
são compassiva de suas ilusões. Então, o seu en-
gajamento, levado a sério, pode fundir-se com
um sorriso de autenticidade. Então, a sua preo-
cupação pelos outros pode ser mais motivada
pelas necessidades deles do que pelas suas.
i
.1
2.
Em resumo: você então, pode cuidar. Va- j Com solicitude
mos, portanto, viver a nossa vida ao máximo, !
mas não esqueçamos, vez por outra, de nos le-
vantarmos muito antes de amanhecer, sairmos
de casa e retirar-nos para um lugar solitário.

1'

22
··1:·

(] esus e seus discípulos) foram de bar-


co a um lugar deserto, afastado. Muitos,
porém, os viram partir, e, sabendo dis-
so, a pé, de todas as cidades, correram
para lá e chegaram antes deles. Assim
que ele desembarcou, viu uma grande
multidão e ficou tomado de compaixão
~i por eles, pois estavam como ovelhas sem
pastor. E começou a ensinar-lhes muitas
coisas. Sendo a hora ;á muito avançada,
os discípulos aproximaram-se dele e dis-
seram: "O lugar é deserto e a hora ;á
muito avançada; despede-os para que
vão aos campos e aldeias vizinhas e com-
prem para si o que comer". Ele lhes
respondeu: "Dai-lhes vós mesmos de co-
mer". Disseram-lhe eles: "Iremos nós e
compraremos duzentos denários de pão
para dar-lhes de comer?" Ele pergun-
tou: "Quantos pães tendes? Ide ver".
Tendo-se informado, responderam: "Cin-
co, e dois peixes". Ordenou-lhes então
que se acomodassem todos, em grupos de

25
, ... 1

convivas, na relva verde. E sentaram-se INTRODUÇÃO


no chão, repartindo-se em grupos de
cem e cinqüenta. Tomando os cinco pães
e os dois peixes, elevou ele os olhos
ao céu, abençoou, partiu os pães e deu-
-os aos discípulos para que lhes distri-
buíssem. E repartiu também os dois pei-
xes entre todos. Todos comeram e fica-
ram saciados. E ainda recolheram doze
cestos cheios de pedaços de pão e de
peixes. E os que comeram dos pães eram De sua solidão Jesus estendeu a mão ca-
cinco mil homem (Me 6,32-44). rinhosa à gente necessitada. No lugar deserto,
sua solicitude tornou-se forte e amadurecida. E
dali entrou numa proximidade curadora com
seus semelhantes.
Jesus certamente tinha solicitude pelos ho-
mens. Como seguidores seus, dizemos: "Claro:
ele alimentou os famintos, fez os cegos verem, os
surdos ouvirem, os aleijados andarem e os mor-
1
tos viverem. Ele certamente tinha solicitude".
1 Contudo, surpresos ante seus feitos notáveis, qua-
se esquecemos que Jesus deu alimento à multi-
dão depois de ter recebido alguns pães e peixes
de um estranho que estava na multidão; ele de-
volveu o jovem de Naim à mãe viúva após sen-
1 tir a sua tristeza de mãe; ressuscitou a Lázaro en-
tre lágrimas e um suspiro de dor, que lhe veio do
íntimo, do seu coração que amava. O que vemos,
e gostamos de admirar, é a cura e a mudança.
Mas o que não vemos, e fazemos questão de não
ver, é o cuidado, a solicitude', a participação no
l O autor faz aqui o jogo constante com as palavras "cure"
(cura) e "care" (cuidado, solicitude); jogo que convém lem-
brar, para não se perder o efeito pretendido no original.
(N. do T.).

26 27
sofrimento, a solidariedade na dor, a partilha na SOLICITUDE
experiência da prostração. E, contudo, a cura
sem a solicitude é tão desumanizante como o
presente dado de coração frio.
Gostaria de refletir sobre a sólicitude co-
mo a base e a condição prévia de toda cura. Em
uma comunidade, como a nossa, pusemos toda a
ênfase sobre a cura. Queremos ser profissionais:
sarar os doentes, ajudar os pobres, ensinar os
ignorantes, e reunir as que estão dispersos.
Somos tentados a usar a nossa habilidade O que significa cuidar, ter solicitude? Ex-
para conseguirmos aquilo que nos importa no plico gue a palavra cuidar tornou-se muito am-
momento e esquecemos que, a longo prazo, a cu- bivalente. Quando alguém diz: "Vou cuidar de-
ra sem solicitude pode ser prejudicial. Vamos, le! " parece mais o aviso de um ataque iminente
pois, refletir e perguntar-nos o significado real que de terno sentimento de amor. E, além desta
da solicitude e, então, torná-lo a base de uma ambivalência, a palavra cuidar é, no mais das
comunidade. vezes, usada de forma negativa.
"Você quer café ou chá?" "Não cuido
disso" ( = tanto faz). "Você quer ficar em
casa ou ir ao cinema?" "Não cuido disso". "Vo-
cê quer ir a pé ou de carro?" "Não cuido dis-
so,, 1

Essa expressão de indiferença com relação


a escolhas na vida tornou-se um lugar comum.
E freqüentemente parece que esse não-c1údar tor-
nou-se mais aceitável do que o cuidar, e um
estilo de vida descwdado mais atraente do que
o cuidadoso.
O verdadeiro cuidado (solicitude) não é
ambíguo. O cwdado real exclui a indiferença e

1 Em inglês: "J don't care". Cf. a nota anterior. {N.


do T.).

28
29
é oposto à apatia. A palavra "cuidado" ( "care") coisa boa, pela qual vale a pena viver". Será
tem raízes no gótico "Kara", que significa la- que estamos preparados para sentir realmente a
mentar. nossa ignorância diante da morte e dizer: "Eu não
entendo. Não sei mais o que fazer, mas estou
O sentido básico que estamos dando à aqtú com você"? Estamos dispostos a não fugir
palavra cuidado é: sentir tristeza, experimentar da dor, a não nos preocuparmos quando nada
melancolia, chorar. Fico muito impressionado
com este substituto da palavra cuidado, porque l mais resta a fazer e, pelo contrário, diante da
morte ficar firmes em companhia dos que estão

l
nossa tendência é entender cuidado como uma tristes? O amigo que tem solicitude deixa bem
atitude do forte para com o fraco, do poderoso claro, aconteça o que acontecer no mundo exte-
para com o humilde, daquele que tem para com rior, que o que importa mesmo - mai~ do que
o que não tem. De fato, um convite para par- \ a dor, a doença, ou mesmo a morte - e estarem
ticipar da dor de alguma pessoa nos desagrada presentes um ao outro. É notável quanta conso-
bastante, se ainda não fizemos para ela alguma lação e esperança nos dão certos autores que,
coisa com solicitude. abstendo-se de responder aos problemas da vida,
Quando nos perguntamos com sinceridade, têm a coragem de expor, com toda a sinceridade
quais pessoas têm mais importância em nossa e retidão, a situação de suas vidas.
vida, freqüent.emente constatamos que são aque- Kierkegaard, Sartre, Camus, Harnmarskjold
las que, ao invés de nos darem muitos conse- e Merton: nenhum deles ofereceu soluções. En-
lhos, soluções e curas, compartilharam a nossa tra tanto, ao ler as suas obras, nós encontramos no-
dor e trataram nossas feridas com mão carinhosa vas forças para prosseguir em nossa busca. A
e gentil. O amigo verdadeiro, que tem solicitude, coragem deles em penetrar, nos seus escritos, tão
é aquele que fica em silêncio ao nosso lado num profundamente no sofrimento humano e estar
momento de desespero ou confusão, que perma- presentes à sua própria dor, deu-lhes o poder d~
nece conosco numa hora de dor e desolação, pronunciar palavras que curam.
que pode não-saber, não-curar, não-sarar, mas que
encara conosco a realidade de nossa fraqueza. Cuidar, ter solicitude, portanto, significa
essa atitude humana corajosa de estar presentes
Recorde alguns momentos em que você foi um ao outro. Por experiência própria, você sabe
chamado para estar ao lado de amigos que per- que os que têm essa solicitude a seu respeito,
deram a esposa, o esposo, um filho ou o pai. O tornam-se presentes a você. Quando escutam, es-
que você pôde dizer, fazer, propor em tal oca- cutam a voçê. Quando falam, você sabe que fa-
sião? A tendência é dizer: "Não chore: aquele lam de você. E quando interrogam, é por amor
que você amou está nas mãos . de Deus''.- "N_ão de você, e não deles. A presença deJes é uma
perca a coragem, a vida contmua e ha mmta presença que cura, porque eles o acettam como

30 31
você é, e o encorajam a assumir seriamente a COMUNIDADE E SOLICITUDE
própria vida e a confiar em sua própria vocação.
Nossa tendência é fugir das realidades pe-
nosas ou tentar mudá-las o quanto antes. Curar,
porém, sem ter solicitude, nos transforma em
disciplinadores, controladores, manipuladores, e
impede a formação de uma verdadeira comunida-
de. Curar sem ter solicitude faz com que nos
preocupemos com mudanças súbitas, nos torna
impacientes e indispostos a condividir a carga uns Isto nos coloca diante da urgente questão:
com os outros. E assim a cura pode freqüentemen- Como sermos ou nos tornarmos uma comunidade
te tornar-se ofensiva em vez de libertadora. Não gue tem solicitude, uma comunidade de gente
estranha, por isso, que não raro a cura é recusada gue não tenta encobrir a dor ou afastá-la por
por pessoas que dela precisam. Indivíduos e desvios sofisticados, mas prefere partilhá-la co-
minorias oprimidas têm resistido a auxílios e re- mo fonte de regeneração e nova vida?
cusam ajuda por não sentirem real interesse, e
E importante compreender que não há tí-
nações sofredoras têm declinado de remédios e
tulos acadêmicos de "solicitude". Esta não pode
alimentos, quando perceberam que era melhor ser delegada a especialistas, e portanto, ninguém
sofrer do que perder a própria dignidade ao acei-
está dispensado de ter solicitude. Nossa socie-
tar um benefício de mãos sem solicitude. dade, hoje, possui uma tendência acentuada de
procurar especialistas. Quando alguém se sen-
te mal, imediatamente pensamos: "Onde pode-
mos encontrar um médico? " A uma pessoa de-
sorientada, facilmente indicamos um conselhei-
ro. Para alguém prestes a morrer, rapidamente
chamamos o padre. Até para quem deseja rezar
procuramos logo algum ministro.
Foi esse também o caso, há dois sécu·
los, em junho de 1787, nos dias da deli-
beração sobre a Constituição dos Esta-
dos Unidos. Benjamim Franklin, perce-
bendo que as discussões concluíam em
nada, propôs iniciar as sessões com ora-

33
32 3- O paradoxo da solidão
ção. Os delegados à convenção, entretan- litário no restaurante, mas procuramos os que
to, rejeitaram a proposta, não porque já conhecemos? Por que tão raramente nos acon-
não acreditassem na oração, mas porque tece bater a uma porta ou tomar o fone, só para
não tinham dinheiro para pagar o cape- dizer "Alô", só para mostrar que estamos empe-
lão! (Ver S. E. Morrison, The Oxford nbados a pensar uns nos outros? Por que os sor-
History of the American People, No- risos são tão difíceis de se conseguir e as pala-
va Iorque, 1965, pp. 307-308). vras de conforto tão difíceis de brotar? Por que
Embora seja compreensível pedir auxílio é tão difícil exprimir agradecimento a um pro-
externo, muitas vezes o recurso aos outros é fessor, admiração a um estudante, e apreço ao
antes um sinal de medo de enfrentar o sofrimen- homem e à mulher que cozinham, limpam e cui-
to do que sinal de solicitude, e nesse caso con- dam de um jardim? Por que continuamos a pre-
servamos escondido uns dos outros o nosso maior terir uns aos outros sempre a caminbo de algo
dom, o dom de curar. Todo o ser humano pos- ou de alguém mais importante?
sui, embora desconbeça, o grande dom de ter
solicitude, de compadecer-se, de estar presente ao É porque vivemos tão preocupados em ser
outro, de escutar, de ouvir e acolher. Se tal dom diferentes dos outros, que nem sequer nos per-
fosse posto em liberdade e disponibilidade, acon- mitimos depor a pesada armadura e unir-nos nu-
teceriam milagres. Aqueles que de fato podem re- ma mútua vulnerabilidade. Estamos tão cbeios
ceber o pão de um estranbo e sorrir em agrade- de nossas próprias opiniões, idéias e convicções,
cimento, podem alimentar a muitos mesmo sem que não deixamos lugar para ouvir o outro e
cair na conta disso. Aqueles que podem sentar- aprender dele ou dela.
-se em silêncio ao lado de seu próximo, sem
saber o que dizer, mas sabendo que devem estar Há uma estória sobre um professor univer-
ali, podem trazer vida nova a um coração mori- sitário que se aproximou de um mestre Zen-
bundo. Aqueles que temem segurar uma mão da para interrogá-lo sobre a sabedoria
em agradecimento, derramar lágrimas de tristeza ( Zeu). Nan-in, o mestre Zenda, serviu-lhe
e permitir que um suspiro de desolação suba di- chá. Depois de encher a xícara do visitante,
reto do coração, podem romper através de li- continuou a derramar. O professor observou
mites paralisantes e testemunbar o nascimento de aquele transbordamento até que não se con-
uma nova amizade, da amizade dos alquebrados. teve mais, e falou: "Está cheia, não cabe
mais nada! " "Como essa xícara, disse Nan-
Por que conservamos tão ciosamente escon- -in, você está cbeio de suas próprias opi-
dido esse grande dom? Por que continuamos a niões e especulações. Como posso lhe ensi-
dar moedinhas, sem ousar olhar na face do men- nar a sabedoria, sem que você se esvazie de
digo? Por que não nos unimos ao que come so- si mesmo?"
34 35
!er solicitude, em primeiro lugar, significa CONCLUSÃO
esvazrnr-nos de nós mesmos para que o outro
se aproxime de nós. Significa afastar as muitas
barreiras que nos impedem de entrar em comu-
nhão com o outro. Quando ousamos ter solici-
tude, descobrimos que nada que é humano nos
é estranho, que todo ódio e amor, crueldade e
compaixão, temor e alegria encontram-se em nos-
sos próprios corações.
Quando ousamos ter solicitude, temos de Quando Jesus recebeu os cinco pães e os
confessar que, quando outros matam eu pode- dois peixes, devolveu-os à multidão, e houve far-
ria ter matado também. Quando outro~ torturam, tura para todos comerem. O dom nasce do re-
eu poderia tê-lo feito igualmente. Quando outros ceber. O alimento proveio da simpatia para com
curam, eu poderia também ter curado. E quando os famintos, o sarar proveio da compaixão, a
outros dão vida, da mesma forma o poderia ter cura da solicitude. Aquele ou aquela que pode
feito eu. Aí experimentamos que podemos estar gritar com os necessitados, pode dar sem ofender.
presentes ao soldado que mata, ao guarda que
aborrece, ao jovem que brinca como se a vida Enquanto estivermos ocupados e preocupa-
não tivesse fim, e ao ancião que parou de brincar dos com nosso desejo de fazer o bem, mas não
por medo da morte. formos capazes de sentir a gritante necessidade
Ao reconhecermos e confessarmos hones- dos que sofrem, nossa ajuda permanece de algum
tamente a nossa semelhança com os outros, par- modo balouçante entre nossas mentes e nossas
tic~pamos da solicitude do próprio Deus, que
mãos e não desce lá dentro do coração, onde po-
veio não para os poderosos, mas para os humil- demos ter solicitude. Contudo, na solidão, pode
des, não pa_ra ser diferente, mas semelhante, não nosso coração desvencilhar-se aos poucos dos mni-
para nos urar a dor, mas para compartilhá-la. tos mecanismos de defesa, e pode tornar-se tão
Através dessa participação podemos abrir os co- largo e profundo que nada de humano lhe seja
rações uns para os outros e formar uma nova estranho.
comunidade. É então que nos tornamos contritos, esma-
gados e alquebrados, não precisamente por nos-
sos próprios pecados e faltas, mas também pela
dor de nossos semelhantes. E então nasce uma
nova conscrencia, que alcança mnito além dos
limites de nossos esforços humanos. E é então
36 37
que nós, que, amedrontados em nossa curta vi-
são, temíamos não ter alimento suficiente para
nós mesmos, teremos que sorrir. Porque então
descobriremos que, depois de ter alimentado mais
de cinco mil, haviam sobrado ainda doze cestos
de pão e de peixe. É então que nossa solicitude,
nascida da solidão, pode tornar-se um sinal de
nossa fiel esperança do dia futuro da completa 3.
alegria.
Na esperança

38
(Na noite em que foi traído, Jesus disse
í a seus apóstolos:)
"Um pouco de tempo e já não me ve-
reis, mais um pouco de tempo e me ve-
reis". Disseram entre si alguns de seus
discípulos: "Que é isto que ele nos diz:
'Um pouco e não me vereis e novamente
um pouco e me vereis e vou para o
Pai?' " Eles diziam: "Que é um pouco?
Não sabemos de que fala". Compreendeu
Jesus que queriam interrogá-lo e lhes dis-
1 se: "Vós vos interrogais sobre o que

eu disse: 'Um pouco de tempo e já não
me vereis, mais um pouco ainda e me
vereis?' Em verdade, em verdade, vos
digo: Chorareis e vos lamentareis, mas
o mundo se alegrará. Vós vos entriste-
cereis, mas a vossa tristeza se transforma-
rá em alegria. Quando uma mulher es-
tá para dar à luz, entristece-se, porque
a sua hora chegou; quando, porém, nas-
ce a criança ela já não se lembra mais
dos sofrimentos pela alegria de ter vindo
ao mundo um homem. Também vós
agora" estais tristes; mas eu vos verei
de novo e vosso coração se alegrará e
ninguém vos tirará a vossa alegria" (Jo
16,16-22).

4 - O paradoxo da solidão
INTRODUÇÃO

A solicitude nascida da solidão dificilmen-


l te pode durar, se não estiver envolvida em con-
fiante esperança, quanto ao dia do cumprimento,
quando Deus será tudo em todos. Sem espe-
rança, a solicitude facilmente degenera em mór-
bida preocupação com o sofrimento, e dá maior
ocasião para lamentações do que para a forma-
ção de uma comunidade. Jesus nos liberta da
autocomiseração, apontando para o grande dia
da alegria, que seguirá o breve tempo de soli-
citude.
.J "Um pouco de tempo e já não me vereis,
i mais um pouco de tempo e me vereis. . . agora,
estais tristes; mas. . . o vosso coração se ale-
grará e ninguém vos tirará a vossa alegria".
A n~ssa vida é um rápido tempo de espe-
ra, um tempo em que a tristeza e a alegria
se beijam mutuamente a cada momento. To-
dos os momentos de nossa vida são envolvidos
por uma estranha tristeza. Parece que mesmo nos
instantes mais felizes de nossa existência expe-
rimentamos um matiz de tristeza que ofusca a
pura e nítida alegria. Em cada satisfação, há a
certeza de suas limitações. Em cada sucesso, o

43
temor da inveja. Por trás de cada sorriso, uma
lágrima. Em cada abraço, uma solidão. Em cada ESPERANÇA COMO PACI1'NCIA
amizade, a distância. E em todas as formas de
luz, o conhecimento da escuridão circundante.
Alegria e tristeza estão tão próximas uma
da outra, como as folhas esplendidamente colo-
ridas de um outono na Nova Inglaterra o estão
da sobriedade das árvores despidas. Quando vo-
cê aperta a mão de um amigo que volta, já sabe
que ele o deixará novamente. Ao comover-se an-
te a tranqüila vastidão de um oceano ensolarado, A mãe da esperança é a pac1encia. A auto-
você tem saudades do amigo impossibilitado de ra francesa Simone Weil escreve em suas ano-
gozar a mesma visão. coções: "Esperar pacientemente na esperança é
o fundamento da vida espirirual". Sem paciên-
Alegria e tristeza nascem ao mesmo tempo, cia, nossa esperança degenera em desejo vazio.
ambas surgindo do íntimo de seu coração, que Paciência vem da palavra "patior ", que significa
você não encontra palavras para captar suas sofrer. A primeira coisa que Jesus promete é o
próprias complexas emoções. sofrimento: "Eu vos digo: chorareis e vos la-
1
Contudo, esta íntima experiência em que 1nentareis. . . vós vos entristecereis' Mas ele

cada bocado de vida é tocado por um bocado chama estes sofrimentos de dores de parto, pois,
de morte, pode apontar-nos para além dos limi- o que parece um impedimento torna-se um cami-
tes de nossa existência. Ela o pode fazer, diri- nho; o que parece um obstáculo torna-se pedra
gindo-nos o olhar para diante, na esperança do fundamental. Jesus muda nossa história, de uma
dia em que nossos corações se encherão de per- série casual de tristes incidentes a acidentes, nu-
feita alegria, a eterna alegria que ninguém tirará ma constante oporrunidade de mudança do cora-
de nós. Faremos agora uma reflexão sobre a ção. Esperar pacientemente, portanto, significa
esperança, primeiro sobre a esperança como pa- permitir que nosso choro e gemido se tornem a
ciência e, em seguida, sobre a esperança como preparação purificadora, pela qual nos dispomos
alegria. a receber a alegria que nos está prometida.
Alguns anos atrás encontrei um velho pro-
fessor na Universidade de Notre Dame. Re-
memorando sua longa vida de ensino, ele disse
com um engraçado lampejo nos olhos: "Estive
sempre a queixar-me que meu trabalho era cons-

44-
45
,..,.

tantemente interrompido, até que lentamente que mudar. Lentamente foi capaz de substituir
descobri que minhas interrupções eram o meu as questões: "Por que aconteceu isso para mim?
trabalho". Que fiz eu para merecer tal sofrimento?", por:
"Que promessa se esconde neste acontecimento?"
Esta é a grande conversão em nossa vida: Quando a revolta transformou-se em novo questio-
reconhecer e acreditar que os inúmeros e ines- namento, ele sentiu que podia comunicar força e
perados acontecimentos não são interrupções per- esperança a outros pacientes de câncer, e que,
turbadoras de nossos projetos, mas o caminho encarando diretamente a. própria condição, po-
em que Deus amolda nosso coração e nos pre- dia transformar sua própria dor em fonte de
para para sua volta. saúde para outros. Até hoje, este homem faz
Nossas grandes tentações são o aborrecimen- mais pelos doentes do que poderiam fazer mui-
to e a amargura. Quando nossos bons planos são tos ministros, mas igualmente ele reencontrou sua
interrompidos por um mau tempo, quando nos- vida num nível para ele até então desconhecido.
sas bem organizadas carreiras param por uma
doença ou falta de sorte, quando nossa paz
de espírito é destruída por um turbilhão interior
e nossa esperança de paz por uma nova guerra,
quando nosso desejo de um governo estável é
atrapalhado pela constante mudança dos res-
ponsáveis e nosso desejo de imortalidade por
uma verdadeira morte, somos tentados a des-
penhar-nos num aborrecimento paralisante ou a
bater em retirada numa amargura destruidora.
Entretanto, quando acreditamos que a pa-
ciência pode fazer crescer nossa esperança, então
o destino pode converter-se numa vocação; os
sofrimentos, num chamado para uma compreen-
são mais profunda; e a própria tristeza, na ci-
dade natal da alegria.
Gostaria de contar-lhe a estória de um ho-
mem de meia idade, cuja carreira foi abruptamen-
te interrompida pela descoberta da leucemia,
câncer fatal do sangue. Todos os seus planos de
vida ruíram e todos os seus hábitos tiveram

46 47
ESPERANÇA COMO ALEGRIA

Se por um lado a paciência é a mãe da es-


perança, é a própria esperança que traz nova
alegria para nossas vidas. Jesus nos fez olhar
para os sofrimentos e para além deles. "Agora,
estais tristes; mas eu vos verei de novo e vosso
coração se alegrará".
Um homem ou uma mulher sem esperança
no futuro não pode viver criativamente no pre-
l sente. O paradoxo da esperança, sem dúvida, é
que os que acreditam no amanhã podem viver
melhor o hoje, os que esperam provir alegria
da tristeza podem descobrir o principio de uma
nova vida no centro da antiga, os que olham
para diante, para o Senhor que volta, podem des-
cobri-lo em seu meio.
Você sabe como uma carta pode alterar o
seu dia. Quando você contempla alguém diante
das caixas postais, você pode ver quanto um
pedaço de papel pode mudar a expressão dum
rosto, pode endireitar costas encurvadas e fazer
uma boca murcha assobiar de novo. O dia pode
ser tão sem graça como o anterior, e o traba-
lho igualmente cansativo, mas a carta em sua
caixa postal a lhe dizer que alguém o ama, que

49
""

alguém está prevendo encontrá-lo novamente, que como pessoas que se amam podem redescobrir-
alguém precisa de sua presença, ou que alguém -~e mun_iamente durante longos períodos de ausên-
promete voltar muito breve, isso muda tudo. cra, asslill também nosso relacionamento íntimo
com ~eus pode tornar-se mais profundo e ama-
Uma vida vivida na esperança é como urna durecrdo, enquanto esperamos pacientemente a
vida em que recebemos uma carta, uma carta que sua volta.
faz aquele, de quem temos tanta saudade, re-
tornar mais cedo do que podíamos imaginar. A
esperança traz alegria para o centro de nossa
tristeza, e a pessoa amada ao coração de nossos
anseios. Aquele que conviveu conosco no passa-
do, e voltará para nós no futuro. torna-se pre-
sente a nós naquele instante precioso em que a
lembrança e a esperança se tocam mutuamente.
Naquele momento podemos entender que só ··'
podemos esperar alguém, porque ele já nos tocou.
Um estudante da Califórnia, que devia dei-
xar muitos bons amigos a fim de ir para a es-
cola na distante costa leste, disse-me recentemen-
te: "Foi duro partir; mas se o adeus não for do-
loroso, o alô não poderá ser cheio de alegria".
E assim, ele fez de sua tristeza de março uma
alegria de Natal.
Está Deus presente ou ausente? l
Talvez agora possamos dizer que no cen- ''
tro de nossa tristeza pela sua ausência, pode-
mos vislumbrar os primeiros sinais de sua pre-
sença, e, no meio de nossos anseios descobri-
mos as pegadas daquele que os criou: É na es-
pera fiel pelo amado que conhecemos quanto ele
já preencheu nossa vida.
Justamente como o amor de uma mãe pode
crescer enquanto espera a volta do filho, e

50 51
CONCLUSÃO

"Um pouco de tempo e já não me vereis,


mais um pouco de tempo e me vereis". Estamos
vivendo neste "pouco de tempo". Podemos vi-
vê-lo criativamente, quando o vivemos pela so-
lidão, a saber desprendidos dos resultados de
nosso trabalho. E quando o vivemos com solici-
tude, ou seja, derramando lágrimas com os que
cboram e gemem. Mas é a esperança de seu re-
torno que amolda nossa solidão e nossa solici tu-
de, em uma preparação para o dia da grande ale-
gria.

É isso que exprimimos ao tomarmos o pão


e o vinbo em ação de graças. Não comemos pão
para aquietar nossa fome, nem bebemos vi-
nho para matar nossa sede. Apenas comemos
um pouquinbo de pão e bebemos um pouquinbo
de vinho, na consciência de que a presença de
Deus é a presença daquele que veio, mas ainda
está para vir; que tocou-nos o coração, mas ain-
da não nos tirou toda a tristeza.

Assim, quando partilbamos juntos algum


pão e algum vinbo, não o fazemos como gente

53

',.__ --
que já chegou, mas como homens e mulheres ÍNDICE
que podem tolerar-se mutuamente na paciente ex-
pectativa, até que o vejamos novamente. Então
nossos corações estarão cheios de alegria, uma
alegria que ninguém nos poderá tirar.

Pág.
5 Prefácio
7 1. POR CAUSA DA SOLIDAO
11 Introdução
13 Nossa vida em ação
17 Nossa vida em solidão
21 Conclusão
23 2. COM SOLICITUDE
j 27 Introdução
29 Solicitude
33 Comunidade e solicitude
37 Conclusão
39 3. NA ESPERANÇA
43 Introdução
45 Esperança como paciência
49 Esperança como alegria
53 Conclusão

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