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JISIS

llUll Dser ~Ull


TfnJLO ORIGINAL:
Jesus - Bild des Menschen
Das Emngelium des Lukas
© 2001 Kreuz Verlag GmbH & Co. KG Srongart
Ein Uniemehmen der Verlagsgruppe Domier GmbH
ISBN: 3-7831-20 13-6

Sumário
PREPARAÇÃO: Maurício B. Leal
DIAGRAMAÇÃO: Ronaldo Hideo lnoue
REVISÃO: Carlos Albeno Bárbaro

Prlfaál ...................................................... 7
la•mrllr ........................................ 11
. . . . . . . ................................ 17
Lucas, o médico ..................................... 17
Edições Loyola Lucas, o pintor ...................................... 19
Rua 1822 ng 347 - lpiranga
04216-000 São Paulo. SP l llftll:illll.laa ......................................... 25
Caixa Po tal 42.335 - 042 18-970 São Paulo, SP Anúnào do anjo a Maria ................. ........ 26
~: ( l i ) 6914- 1922 O encontro entre Maria
~ :( l i ) 6 163-4275 e Elisabete .. ....................................... 29
Home page e vendas: www.loyola.com.br O nasàmento de Jesus ............... ....... ..... 31
Editorial: loyola@loyola.com.br Simeão e Ana ........... .... ......................... 36
Vendas: vendas@loyola.com.br

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser . . . . . . . . ........ ........... ............ 43
reprod1dda ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer A cura da mulher curvada ....................... 44
meios (eletrónico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou A cura do hidrópico .............................. . 4S
arqufrada em qualquer sistema 0 11 banco de dados sem permissão A missão de Jesus como médico ............... 51
escrita da Editora.

ISBN: 85-15-02657-0 ls~lll.lals ...................................... 57


A parábola da dracma perdida ................ . 61
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
A parábola do filho pródigo .................... 65
A parábola do gerente astuto .................. 71

Jms,.... • ···································· 13
Jesus ensina a orar ..................... ........... 77
A viúva e o juiz iníquo ........................... 80
O fariseu e o publicano ........................... 82

Jms • • •m111i11u1t1 .............................. 85


•1
111~ hllll ....................................... 95
Prefácio
A ceia de despedida de Jesus .. ....... .......... 98
O caminho da Paixão de Jesus ............... 100
A crucificação ...................... ............... 103
A reação à morte de Jesus .................... 105

Is lllTlllns sUrl 1lmlmiÇll ..................... 109


O Salmo 16 como fundamentação
para a Ressurreição ........................... 110
As mulheres junto ao sepulcro ............... 112 Já existem muitos livros que explicam o
Os disópulos de Emaús .............. ........... 113 evangelho de Lucas ou elaboram aspectos de
A aparição de Jesus aos sua teologia. O que pretende, então, esta in-
disópulos reunidos ........................... 116
trodução ao evangelho de Lucas, de um au-
1~· - - flllr? ..................................... 123 tor que nem é exegeta?
A atitude diante de propriedade
e riqueza .............. ................. .......... 126 Para mim, o que falta em muitas obras
Conversão ................... ........................ 129 de exegese é a transposição do texto para o
Zaqueu, exemplo de uma
caminho espiritual, pessoal, de cada um.
conversão alegre ............................... 131
Um novo convívio com os pecadores ...... 134 Por isso acolhi com agrado o pedido pa-
ra uma introdução ao evangelho de Lucas
la - m11111st1 • • lllirlil ... ...... ... ..... . 139
Teologia da história ............................. 140 com uma linguagem de fáàl compreensão,
Sete vezes HhojeH ................................. 141 que possa despertar em tantas pessoas que
A teologia do teatro ....................... ...... 144
vivem em busca de algo um novo interesse
Lucas e a oração litúrgica ..................... 145
por esse maravilhoso livro do Novo Testa-
~ --·· ····················· ··· ················· ···-151 mento. A Bíblia continua a ser o livro dos li-
liMillnfll ................................................ 155 vros, aquele do qual se alimenta a nossa vida

1
espiritual. Mas tenho tido contato com muitos cristãos que não tempo de ginásio, a filosofia grega. Por isso gostaria de conside-
conseguem entender os escritos do Novo Testamento. Gostariam rar sobretudo, na minha introdução, a transposição do evento de
de se encontrar com Jesus Cristo, perguntam o que significa para Jesus para a mentalidade grega. Mas não quero parar nísso. Pois
eles aquele Jesus, e como poderiam viver por ele e com ele. Mas o que Lucas conseguiu no seu tempo é tarefa da teologia de qual-
não raramente Jesus continua para eles um estranho. Escutam o quer época - verbalizar a mensagem de Jesus de tal maneira que
evangelho aos domingos, mas ele não os atinge. Por outro lado, os contemporâneos se sintam atingidos e interessados por ela.
tenho me encontrado com pessoas que algum texto bíblico aju- Lucas conhecia a teologia do Antigo Testamento, e era versado
dou para se reconciliarem com a hlstória de sua própria vida, des- na filosofia e na mitologia dos gregos. Ele preservou a continui-
cobrindo para si mesmas um caminho salutar. O que tentarei fa- dade com as raízes judaicas de Jesus e de seu horizonte mental.
zer é mostrar o tesouro da Bíblia para nós, hoje, proporcionando Ao mesmo tempo, ele desvela Jesus para os gregos.
para quem busca um novo acesso à Palavra de Deus. Nessa em- Quero prosseguir neste meu livro o esforço de Lucas para li-
preitada, gostaria, sobretudo, de chegar perto da experiência que gar o antigo ao novo, para transpor para o presente o acontecido
Lucas teve com Jesus, para que você, leitor ou leitora, e eu, como outrora. Trata-se, para mim, de interpretar os textos preocupado
o autor que luta para achar a palavra certa, possamos viver jun- com as necessidades e aspirações daquelas pessoas que, em nu-
tamente tal experiência. merosas conversas, me contaram sobre si mesmas. Quero confron-
O que acho tão fascinante em Lucas é sua tentativa de trans- tar o que hoje comove as pessoas com aquilo que, em Jesus, fas-
por a mensage~ de Jesus para o horizonte de compreensão dos cinou um Lucas como homem de seu tempo. O que me move, ao
gregos. Lucas foi evidentemente um homem culto, versado na meditar sobre o evangelho de Lucas e os Atos dos Apóstolos, é a
filosofia e na literatura dos gregos, mas esteve igualmente em pergunta: o que foi que levou Lucas a assumir sua obra com tan-
contato com a tradição judaica. Por isso ele consegue descrever to fervor, pesquisando todas as fontes, a fim de escrever a histó-
Jesus de tal maneira que judeus e gregos o entendam e apren- ria de Jesus e de seus efeitos na Igreja primitiva? É evidente que
dam a amá-lo. O próprio Lucas impressionou-se profundamente Lucas pessoalmente se sentiu emocionado pela mensagem de
com Jesus. Por isso ele sabe pintar de Jesus uma imagem atraen- Jesus. É o Espírito de Deus que ele vê operando em Jesus e se mos-
te. Ele gostaria de entusiasmar seus leitores por esse Jesus, so- trando também na atuação dos apóstolos. Entusiasmado por esse
bretudo os leitores cultos, formados pela cultura helenística. Essa Espírito, ele escreve o seu evangelho para que o Espírito de Deus
cultura helenística corresponde em muitos aspectos à nossa men- se apodere também dos leitores, mostrando-lhes o novo caminho
talidade atual, alimentada por diversas tradições: pelo pensamento para a vida, que Jesus nos abriu. O que mais desejo é que você,
filosófico do Ocidente, mas também por correntes religiosas do leitor ou leitora, sinta vontade de meditar sobre o Evangelho de
Leste e do Oeste. A mim pessoalmente tem fascinado, desde o meu Lucas e sobre os Atos dos Apóstolos. E desejo para todos os meus

1 1
leitores e leitoras que se deixem levar até Jesus por Lucas, e que
aprendam a ver Jesus de outra maneira, reconhecendo-o como
aquele que lhes abre o sentido da vida, que lhes cura as feridas e
os conduz para a verdadeira vida.

lucas como escritor

A tradição dos primeiros séculos vê Lucas


corno companheiro de Paulo nas suas viagens
missionárias. A exegese atual, porém, ques-
tiona isso, pois a teologia representada por
Paulo ~ere essencialmente da teologia de
Lucas. Não temos certeza definitiva a respei-
to da origem e dos dados pessoais de Lucas.
Mas, por causa da sua linguagem grega tão
caprichada, podemos supor que ele perten-
cia a uma classe social mais alta e teve uma
boa formação na retórica e na filosofia gre-
gas. Porém, ele conheceu igualmente, e mui-
to bem, a tradução grega da Bíblia, a Septua-
ginta. Pertenceu talvez ao circulo dos "te-
mentes a Deus", que simpatizavam com a re-
ligião judaica. Lucas pertenceu à segunda ou

ti
terceira geração depois dos acontecimentos em tomo de Jesus. da historiografia helenista. Pois os fatos só se tomam significa-
A tradição opina que ele era de Antioquia. François Bovon, o autor tivos quando alguém nos mostra seu significado. Para Lucas, a
do mais recente comentário sobre Lucas, pensa que ele era da história de Jesus significa urna história de salvação e de cura para
Macedônia, a saber, de Filipos. Pois nos Atos dos Apóstolos é o gênero humano. Na história de Jesus, Deus se revela como o
exatamente essa cidade que ele descreve pormenorizadamente, Deus que liberta e salva. O que lá aconteceu mudou decisivamente
mostrando ter conhecimentos exatos sobre o lugar. A esse res- o nosso mundo. À medida que nos aprofundamos na história de
peito, porém, não existe certeza. Jerônimo diz que Lucas escre- Jesus, ela há também de nos transformar.
veu seu evangelho na Acaia e morreu em Tebas. Isso significaria, Como escritor, Lucas quer dar a sua contribuição pessoal, com
portanto, que ele viveu sobretudo na Grécia. Provavelmente ele vistas a tomar Jesus compreensível para as pessoas:
escreveu seu evangelho entre os anos 80 e 90. Lucas viajou mui-
Visto que muitos empreenderam compor uma narração dos acontecimen-
to, certamente também para Jerusalém, já que suas descrições da tos realizados entre nós, segundo o que nos transmitiram aqueles que
situação local daquela cidade também são claras. Parece, porém, foram desde o começo testemunhas oculares e se tomaram servidores
da palavra, pareceu-me bom, também a mim, depois de me ter infor-
que nunca esteve na Galiléia, pois para essa região suas indica-
mado de tudo com exatidão, escrever para ti, excelentíssimo Teófilo,
ções geográficas são inexatas. uma narração ordenada, a fim de que possas verificar a solidez dos
ensinamentos que recebeste (Lc 1,1·4).
Lucas é o único evangelista que fala sobre si mesmo. No seu
prólogo, ele se apresenta como um historiador que investiga cui-
Claro que Lucas não está satisfeito com as tentativas de seus
dadosamente as tradições, e faz questão de dar conta de tudo,
predecessores. Ele sente falta do início da narrativa e de seus efei-
desde o começo. Seu prólogo é parecido com o de autores hele-
tos na história posterior. E sente falta de urna boa composição,
nistas. Está redigido em grego clássico. Lucas tem a ambição de
que coloque tudo no devido lugar, e de um estilo que leve em con-
escrever um best-seller. Seu livro há de aparecer no mercado dos
ta a sensibilidade do leitor. De um lado, ele se coloca na fila dos
livros. Por isso ele o dedica a urna personalidade ilustre e abas-
que antes dele já escreveram; de outro, distancia-se deles. Isso
tada, o "excelentíssimo Teófilo". Como editor, Teófilo terá de cui-
mostra sua autoconsciência de ser um autor cristão que cria a sua
dar da publicação e da divulgação de ambos os livros. Pois, de
própria obra literária. Sua obra é necessária porque ele investi-
antemão, Lucas concebeu sua obra como composta de dois volu- gou tudo "com exatidão= akribos =com acribia", e, "desde oco-
mes: o primeiro sobre os acontecimentos em tomo de Jesus; o meço", examinou tudo e fez uma nova composição. Ele esc.reve
segundo como história da jovem Igreja. A seu livro sobre Jesus, tudo "ordenadamente", isto é, põe o seu material numa boa or-
Lucas não dá o nome de "Evangelho", e sim de "Narração". Ele dem, e vê a coesão interna dos acontecimentos. Não conta sim-
pretende narrar a história de Jesus, não apenas os fatos isolados, plesmente o que foi transmitido; ao esc.rever, ele tem urna idéia
mas sempre já como história interpretada, conforme o costume abrangente, urna concepção teológica.

12 1 !li su 11
Lucas não fornece um tratado dogmático sobre Jesus, e sim comédia de autor helenista um cretense entra no palco, ele fala
uma teologia narrativa. Fazer teologia em forma de narração, isso o dialeto de Creta. É, portanto, um artifício tipicamente helenista
é simpático. Não se exige demais do leitor, com frases doutriná- quando Lucas imita a linguagem da Septuaginta, que tem um tom
rias abstratas. O leitor se sente à vontade e pode se identificar com tipicamente semitico. Com esse artificio, Lucas mostra que quer
a história contada. Pela sua compreensiva narração dos atos de fazer justiça tanto aos gregos como aos judeus. Ele narra a histó-
Jesus, Lucas quer conquistar o leitor. Seu livro é uma propagan- ria de Jesus numa linguagem familiar aos judeus, mas veste a sua
da em favor de Jesus e sua mensagem. E não se limita à vida de narração com indumentária grega.
Jesus; envolve também os efeitos da atuação de Jesus na história
da Igreja. O que Jesus falou e fez imprimiu seu cunho na histó-
ria. E somente quando esse efeito está incluído é que se faz justi-
ça aos acontecimentos da vida de Jesus. Oobjetivo da obra de Lucas
é que seus leitores "reconheçam a fidedignidade das palavras" com
que foram instruídos. Lucas quer lhes dar firmeza e garantia. O
leitor deve saber em que é que pode construir sua vida.
Depois do prólogo solene, Lucas inicia sua narração com a
frase "E aconteceu nos dias de Herodes, rei da Judéia ... " (Lc 1,5).
Lucas gosta desse kai egeneto, "e aconteceu". Após o ma.ravilho-
so estilo grego do prólogo, Lucas começa a sua narrativa com uma
mudança brusca de estilo. Pois o ue aconteceu", "kai egeneto",
não é estilo tipicamente grego, mas semitico, como era costumeiro
na Septuaginta, a tradução grega do Antigo Testamento. Lucas,
portanto, não quer narrar uma história profana, mas uma histó-
ria sagrada, e ele o faz num estilo adequado a essa história total-
mente diferente. Quando hoje um narrador começa com as pala-
vras "Era uma vez ... ", já sabemos que vai contar um conto de
fadas. Assim, as pessoas de língua grega, familiarizadas com a
Septuaginta, já sabiam que Lucas agora começava a contar his-
tória sagrada, a história de Deus com os homens. Os gregos cha-
mavam esse fe nômeno de mimesis, "imitação". Quando numa

14 u su 11
lucas como
~~ médico epintor

LIAS, 11mi~
Segundo a Tradição, Lucas foi médico. Mui-
tos exegetas insistem: a linguagem de Lucas
sugere que ele se formou em medicina. Ora,
se ele foi realmente um médico ou não, o
importante é o que está por trás dessa iJna-
gem de Lucas elaborada pela Tradição, pois
Lucas foi evidentemente um homem que se
empenhava pela cura do ser humano. Seu
Evangelho e os Atos mostram claramente que
ele não pretendia, antes de mais nada, dou-
trinar os outros; para ele, o que estava em
primeiro lugar era a arte de viver uma vida
sadia. Para os médicos da Antiguidade, a ta-
refa principal da medicina era ensinar a arte
de viver com saúde. Lucas descreve Jesus

t7
como aquele que orienta a vida, que introduz na arte de viver na-nos a arte de viver uma vida verdadeira, percebendo e assu-
sadiamente, e nos precede no caminho de uma vida bem vivida. mindo conscientemente a polaridade da nossa existência.
Em termos modernos poderíamos dizer: Lucas escreveu um livro Característica do evangelho de Lucas é a sua imagem positi-
sobre o tema "Como a fé nos ajuda a viver bem". va do homem. Lucas não é nem moralista nem pessimista. Ele tem
Nas suas idéias sobre a vida sadiamente vivida, Lucas deve confiança no ser humano. Faz questão de mostrar como o ser
muito à concepção grega do humano. Os gregos se preocupavam humano pode viver no seu mundo de uma maneira que corres-
com a medida certa. Somente o que é comedido corresponde ao ponda à sua dignidade, em contato com a sua beleza e a sua re-
ideal grego do homem "belo e bom" (kalos k'agathos). A esse tidão originais, podendo realizar aquela imagem do humano que
comedimento pertence o equilíbrio dos opostos. Para os gregos os gregos tanto amavam e apreciavam. Para Lucas, Jesus é aque-
era, de fato, fundamental a questão de como o ser humano po- le que leva à sua perfeição a nossa verdadeira imagem. Ele não
dia realizar a sua verdadeira essência, superando sua desarmo- faz questão de descrever o homem constantemente como peca-
nia iTitema, e chegando a se unir consigo mesmo e com Deus. O dor. O ser humano possui um núcleo divino, do qual, porém, ele
caminho para essa união passa pela compensação dos contrastes. se alienou. Por isso Jesus desceu do céu para lembrar novamente
É por isso que Lucas, nos seus relatos, gosta de mostrar os con- ao homem a sua dignidade divina. Tal imagem positiva do huma-
trastes. Depois que descreveu um pólo da vida humana, segue logo no faria bem à nossa pregação cristã de hoje. Temos insistido
o pólo oposto. Isso já se vê no fato de que ao lado de um homem demais em pensar que devemos primeiramente humilhar as pes-
ele coloca sempre também uma mulher, como no caso de Simão soas, para que possam receber a graça de Deus. Lucas abre mão
e Ana, ou no de Simão de Cirene e as mulheres que choram. Uma desse tipo de método, que em última análise nos desvaloriza. Ele
parábola sobre um homem é seguida por outra sobre uma mulher. vê o ser humano como ele é, na sua dignidade, mas também com
Isso aparece também na sua preferência por duas irmãs, dois ir- as suas lesões e os seus ferimentos. Assim, ele pinta Jesus como
mãos, duas mulheres grávidas. Sempre descreve os dois pólos do o verdadeiro médico, que cura as nossas feridas e nos ensina a
ser humano. Ambos os pólos nos pertencem. Depois de apresen- arte da vida saudável. Aleijados e sem poder enxergar além do
tar algum tema fascinante, Lucas sempre mostra o outro lado, nosso horizonte estreito, encontramos em Jesus o terapeuta que
descrevendo o pólo oposto, por exemplo no tema do amor ao nos endireita e nos devolve a nossa verdadeira dignidade.
próximo (Lc 10,25-37), equilibrado logo pelo tema do amor a Deus
(Lc 10,38-42). Assim ele nos preserva de um idealismo unilate-
ral, em que sempre correríamos o perigo de saltar o pólo oposto, llCIS, 1~iltlr
desatrelando domínios importantes da nossa alma. Lucas mostra- A outra imagem de Jesus que a Tradição nos transmite remonta
nos um caminho equilibrado para a plenitude do humano. Ensi- a Lucas como pintor. Também isso é historicamente incerto, mas

11 ull m Clll 11
....
há algo de verdadeiro nessa imagem. Lucas é um escritor talen- de Jesus tomar-se visível, descrevendo os seus gestos, o seu olhar.
toso, que domina a arte de apresentar os acontecimentos de tal Assim nasce uma atmosfera, um espaço sensível em que o leitor
maneira que nos aparecem como um quadro pintado. Não é sem é tocado por Jesus. Lucas não fala sobre a encarnação do amor
motivo que Klaas Huizing escreveu seu Lucas pinta o Cristo. Lu- divino, mas conta uma história em que o amor divino se encarna:
cas desenha para nós um retrato literário de Jesus. Muitos acham a história do bom samaritano (Lc 10,30-38). A quem lê essa his-
que Lucas foi um bom narrador, mas não um bom teólogo. Não tória com todos os seus sentidos acontece o que sobreveio a Rilke
posso partilhar tal opinião. Lucas domina a arte de narrar a his- ao ver o grupo do Laocoonte nos museus do Vaticano. Diante da-
tória de Jesus de uma maneira que clareia toda a teologia da quela fascinante escultura, Rilke de repente soube: "Você tem de
Encarnação. Lucas não precisa formular nem fundamentar que mudar sua vida" - ninguém pode ler uma história como a do bom
Jesus é Filho de Deus. Ele narra a história de Jesus de tal manei- samaritano sem se sentir incitado a se tomar semelhante à ima-
ra que vemos em Jesus o brilho do divino. Quando o leitor é co- gem que nela Lucas pintou de Jesus.
movido por Jesus, Deus lhe é revelado. Assim ele é puxado para François Bovon descreve essa capacidade de Lucas de escre-
dentro do acontecimento da Encarnação. Para mim, isso é eleva- ver pintando. Jesus, diz Bovon, ilustra
da arte teológica.
Nas narrativas de Lucas aparece-nos o esplendor do rosto de o duplo mandamento do amor, de um lado com a parábola do bom sama-
ritano, de outro lado com a conversa com Maria e Marta (Lc 10.25-42).
Deus através do homem Jesus. Ao contemplar essa imagem, so- Questões difíceis de teologia, Lucas as toma acessíveis por encenações
mos por ela transformados. Na leitura da história é que acontece que se gravam na memória. como por exemplo o nascimento virginal,
pelo encontro vivaz entre Maria e o anjo, e seu diálogo (Lc 1,26-38) (Bo-
a redenção. Quando leio com todos os meus sentidos, quando acho von, pp. 16s).
para mim um lugarzinho dentro do texto - como dizia Martinho
Lutero-, então, ao sair do texto, estarei transformado. Pois então O problema da missão entre os gentios não é tratado por ele
encontrei-me com a figura de Jesus, que agora modela a minha com argumentos intelectuais, mas resolvido com o exemplo con-
figura. O texto cria uma nova realidade. O leitor não continua o creto da conversão de Cornélio. Lucas não dá nome aos sentimen-
mesmo. Ele é criado de novo, pelo texto. Ele entra em contato tos, mas "pinta suas expressões: já antes de nascer, por exem-
com a imagem de Jesus Cristo, que nele se imprime durante a plo, João Batista dá um pulinho dentro da barriga da sua mãe
leitura (cf. Huizing, pp.140s). (Lc 1,41), a pecadora se desfaz em lágrimas (Lc 7,38), Jesus se
Lucas formou-se na retórica grega. O objetivo da retórica era inclina sobre a gravemente enferma sogra de Pedro (Lc 4,39)"
"pintar uma realidade diante dos olhos" (Huizing, p. 120). Horácio (Bovon, p.17). Lucas é sensível, evidentemente, a qualquer situa-
fala de um "pintar com palavras". Lucas é mestre na arte de pin- ção. E para cada narração ele acerta exatamente o estilo que cor-
tar para nós, com palavras, um retrato de Jesus. Ele faz a figura responde ao acontecimento. Seus sentimentos ficam visíveis na

21 Uill SU
sua linguagem. Lucas não precisa dar nome aos sentimentos. Sua mundo. E mostra um ser humano estético, imbuído do sentido
linguagem expressa os sentimentos com os quais ele reage a cada de beleza. Lucas consegue narrar de modo cativante. Ele tem o
acontecimento e a cada palavra de Jesus. faro da composição. Embora disponha de ampla cultura, escreve
Éa Lucas que devemos as mais belas narrativas bíblicas, corno, de forma simples; prescinde das técnicas de persuasão da retó-
por exemplo, a dos disópulos de Emaús; também as mais belas rica grega.
parábolas (o filho reencontrado; o gerente astuto). Lucas sabe Lucas adapta seu estilo à respectiva situação:
fascinar o leitor. Isso mostra não apenas a sua formação, mas
Sabe exprimir em termos matemos os pensamentos e inquietações de
também o seu senso estético e humanitário. Ele é sensível ao
Maria; o Batista é datado por ele em termos solenes; a pesca malogra-
humano, ama as pessoas para as quais escreve. Ao escrever, ele da, ele sabe contá-la com termos profissionais; da transfiguração ele
fala em termos misteriosos; a discussão de Paulo com os judeus em Ro-
se relaciona com o leitor. Ele não elaborou a sua obra dupla na
ma usa palavras polêmicas; a oração e a atitude dos apóstolos depois da
sua mesa de trabalho, mas sempre já se relacionando com os lei- Ascensão têm o estilo hierático de um ícone; o encontro com Zaqueu é
teatral, comovente, quase ingênuo; o naufrágio dramático de Paulo é ro-
tores. Ao escrever, ele tem seu leitor diante dos olhos, e conver-
manesco; os discursos missionários de Pedro são querigmáticos, ecle-
sa com ele. Lucas quer conquistar o leitor para Jesus: não com siais; a pregação exegética de Paulo na sinagoga usa um raciocinio ju-
deu; os discursos apologéticos do apóstolo. um estilo retórico-jurídico
argumentos frios, mas com narrações que mexem com o coração.
(Bovon, p. 16).
Só pode escrever assim alguém que, ele mesmo, se emocionou com
a figura de Jesus. Assim a linguagem de Lucas revela não apenas um escritor
Para Lucas, porém, não se trata apenas da figura de Jesus, talentoso, mas alg uém que se sente à vontade em qualquer si-
mas, em última análise, do agir de Deus em Jesus Cristo. Quem tuação, que compreende as pessoas que descreve, que está aber-
age é Deus, propriamente falando. São os grandes feitos de Deus to para a vida e anseia viver plenamente. A seguir quero mostrar
que Lucas quer anunciar. E não é em termos abstratos que Lucas concretamente, com alguns exemplos escolhidos, como Lucas
fala sobre Deus; ele conta corno Deus agiu com os homens. É gra- consegue também modelar a história de Jesus de acordo com as
ças às suas obras na história que Deus se torna visível e experi- nossas necessidades e os nossos anseios.
mentável. Nas suas narrativas, Lucas pinta urna imagem do Deus
invisível que se manifesta a nós na sua Criação e na história.
A linguagem revela o coração de urna pessoa. A linguagem
de Lucas nos prova que ele não é apenas um homem culto, mas
também um médico e um pintor. E mostra-nos um homem que
se preocupa com os outros e quer conquistá-los para a vida, e
gostaria de mostrar-lhes como podem viver sensatamente neste

li su
' -- --&..; Ainfância de Jesus

ulucas indubitavelmente se destaca entre os


que praticaram a teologia narrativa" (Ernst,
p. 34). É essa a opinião do exegeta J. Ernst.
Lucas fala do mistério da filiação divina de
Jesus ao narrar seu nascimento. É narran-
do que ele faz teologia, e não com especula-
ções. Lucas é um excelente narrador. Isso ele
mostra logo nas histórias sobre a infância de
Jesus. Não podemos dizer com muita certe-
za quais são exatamente as fontes que ele
utiliza, mas podemos ver como ele lida com
essas fontes, como as organiza artisticamen-
te. Lucas engrenou o nascimento de Jesus
com a história do nascimento de João Batis-
ta, de tal maneira que Jesus supera o Batista,
e que o Batista, com todo o seu ser, aponta
li~~~~~
para Jesus: Lucas apresenta um contraste entre João e Jesus: amor. Oque o anjo promete a Maria vale também para nós. Tam-
João prega o Juízo; Jesus, a Boa Nova da graça de Deus - do en- bém em nós Deus tem seu agrado. Mas nós não correspondemos
canto conquistador de Deus - que enche de alegria todos os que a isso. Maria entrega-se à graça divina: "Eis aqui a serva do Se-
a escutam. nhor. Aconteça comigo segundo a tua palavra" (Lc 1,38). Maria
Aqui Lucas pinta duas imagens duplas, "à maneira dos díp- se vê aqui como representante do povo de Israel. Enquanto Is-
ticos" (Ernst, p. 35). De novo, Lucas se revela como pintor. Quando rael se rebelou contra a vontade de Deus, ela a cumprirá, repre-
ele narra, surgem imagens. Com as suas imagens, Lucas aponta sentando o povo. Nesta palavra, Lucas mostra sua alta estima por
para dimensões até então ocultas do agir divino. O primeiro díp- Maria como mulher. Diferente do homem Zacarias, ela se entrega
tico é o de dois anúncios de nascimento; o segundo narra o nas- à palavra de Deus. Confia. Uma mulher torna-se a representante
cimento de João Batista e o de Jesus. Depois de cada um dos díp- do povo de Israel. É por ela se entregar à palavra de Deus que
ticos há urna meditação sobre o ocorrido. Depois dos dois anún- haverá salvação para o povo. Oagir parte de Deus, mas deixar Deus
cios de nascimento, Lucas narra a visita de Maria a Elisabete. agir nele depende também do ser humano. Maria abre, na sua vida
Depois dos dois nascimentos, vem o testemunho de Simeão e Ana pessoal, o espaço para o agir divino. Isso tem conseqüências para
sobre Jesus e a narrativa de Jesus aos doze anos no Templo. Em a humanidade inteira.
ambos os dípticos reluz o mistério da criança recém-nascida. As Na cena da Anunciação, Maria é chamada de "virgem". E o nas-
impressões de Lucas sobre o nascimento de Jesus continuam sendo cimento de Jesus é descrito como um nascimento virginal. Para
fantasiadas pelo povo. A cada época surgem novas representações interpretar isso, os exegetas e teólogos já conjeturaram muita coi-
do Natal, que interpretam de modo peculiar o mistério da encar- sa. Otema de um santo que vem a este mundo por um nascimento
nação; no entanto, todas se fundamentam na imagem que Lucas virginal era conhecido tanto em órculos judaicos como em tradi-
tem em vista em sua tocante apresentação. ções helenistas e egípcias. Fílon, filósofo judeu, já considerava vir-
ginal o nascimento de Isaac. E ele fala da união extática da alma
com Deus (Bovon, p. 66). No culto egípcio do sol, celebrava-se o
llÍICÍI •111j1 1 llril nascimento do sol na noite do dia 24 para o dia 25 de dezembro.
Oidoso sacerdote Zacarias reage com dúvida ao anúncio do anjo Nessa ocasião, a comunidade exclamava: "A virgem pariu; a luz vem
Gabriel. Maria, a jovem moça simples de Nazaré, acredita no an- surgindo" (Bovon, p. 68). O rei do Egito - assim imaginava-se -
jo. Vemos aqui novamente o contraste. Também dentro de nós era gerado por Deus. Todos esses elementos do culto egípcio do sol
encontram-se os dois pólos: a dúvida e a fé . Lucas nos convida a e das idéias helenistas já estavam espalhados no judaísmo. Lucas,
confiar mais no pólo da fé, como Maria. Maria obteve graça jun- pois, empregou de um lado tradições judaicas, de outro respondeu
to a Deus. Deus nela se compraz e, por isso, dirige-se a ela com também às aspirações dos gregos. Com sua narrativa da Anuncia-

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ção ele soube tomar compreensível a virgindade da mãe do Mes- Maria, devemos confiar que Deus pode efetuar grandes coisas em
sias, a grandeza desse Messias como Filho de Deus, a sua realeza nós, e de dentro de nós. "Pois para Deus nada é impossível" (Lc
eterna e a sua geração pelo Espírito Santo (Bovon, p. 69). Assim 1,37). Nisto consiste a fé verdadeira: que não coloquemos limites
como o solstício do verão se segue ao do inverno depois de seis a Deus. Para Deus nada é impossível. Deus escolhe a Virgem Ma-
meses, assim Jesus nasce seis meses depois de João. Com ele, a luz ria, uma moça insignificante de Nazaré, a fim de tomar possivel
da graça divina brilha na friagem do nosso mundo. Hoje muitos o que neste mundo é impossível. Também a nós escolhe exatamen-
teólogos pedem um diálogo entre as diversas religiões; ora, Lucas te na nossa fraqueza e na nossa limitação, a fim de executar, por
já fez isso no seu tempo, de forma muito perfeita. Ele apanhou as meio de nós, sua obra de salvação e de cura neste mundo. O Cris-
diversas correntes religiosas e, com essas tradições corno pano de to quer tornar forma também em nós. Mas o pressuposto é que
fundo, formulou a mensagem do mistério de Jesus de tal maneira digamos, corno Maria: "Eis o(a) servo(a) do Senhor; aconteça co-
que pessoas de todas as culturas religiosas pudessem entender o migo conforme disseste" (Lc 1,38).
que, em Jesus, Deus lhes havia concedido.
Lucas, porém, combina esses temas mitológicos com o tema
humano da fé confiante, descrita por ele em Maria. Maria se dei- 1 eac11tn e1tre ll1ri1 elliSl~m
xa convencer pelo anjo. Ela se assusta, sim, com a maneira corno Antes de descrever o nascimento de João e o de Jesus, Lucas nos
o anjo a trata, mas não se fecha; ela reflete sobre aquilo que o conta a bela história do encontro de Maria com Elisabete. Por meio
anjo, afinal, quer dizer. O anjo lhe anuncia que ela conceberá um dessa história, ele relaciona o nascimento de João com o nasci-
filho, que será chamado "Filho do Altíssimo". No judaísmo hele- mento de Jesus, e ao mesmo tempo interpreta os acontecimen-
nista gostava-se de chamar Deus de "Altíssimo". O anjo explica a tos. Maria é a mulher abençoada mais do que todas as outras, pois
Maria corno a Conceição há de acontecer: "O Espírito Santo virá carrega o próprio Senhor dentro dela. É uma história maravilho-
sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá com a sua sombra" (Lc sa, essa que Lucas nos conta sobre o encontro. Urna menina de
1,35). O próprio Espírito Santo há de fecundar essa virgem. Isso uns 12 ou 14 anos parte para urna viagem apressada pelas monta-
não apenas esclarece o nascimento virginal de Jesus, mas é tam- nhas. Precisa-se normalmente de uns quatro dias para tal cami-
bém uma imagem para a nossa vida. O fruto mais precioso que pos- nhada. Maria deve ser uma mulher briosa para ter a coragem de
samos produzir não vem de nós mesmos, e não vem tampouco da fazer semelhante viagem sozinha. A experiência divina, na cena
fecundação por outra pessoa - ele é gerado pelo Espírito Santo. da Anunciação, a pôs em movimento. Também Elisabete se movi-
Assim Maria, a mulher que crê, é o modelo dos cristãos. Também menta. À saudação de Maria, a criança dá um pulinho no seu ven-
em nós Deus quer criar algo de novo por seu santo Espírito. Não tre. Ela entra em contato com a sua fertilidade, com o novo ser
podemos ter de nós mesmos uma idéia pequena demais. Corno que dentro dela já está crescendo. E ela fica repleta do Espírito

21 nllll ser e 21
Santo; toma-se uma profetisa, que percebe em Maria o mistério o nosso càntico. No Magnificat, Maria interpreta o acontecimento
da sua maternidade. Nessa maravilhosa história, não se trata ape- que ela viveu na Anunciação, e que há de se completar no Nasci-
nas daquilo que aconteceu ali. A cena é um protótipo de todo mento de Jesus. Nele, Maria é a representante de Israel, mas tam-
encontro humano profundo. Em todo encontro trata-se de desco- bém a porta-voz de todos os pobres e injustiçados, que pelo nas-
brirmos no outro o mistério do Cristo. Quando entendemos isso, a cimento de Jesus terão garantidos os seus direitos. No nascimento
criança dá um pulinho dentro de nós. Descobrimos o mistério do de Jesus, Deus derruba os poderosos do trono, e os pobres são enal-
outro, e o nosso próprio mistério. Entramos em contato com a tecidos. A teologia da libertação descobriu novamente, hoje em dia,
criança dentro de nós. Para que tal encontro se tome possível, o Magnificat como o càntico da esperança dos pobres. Teólogas
devemos nos levantar, como Maria. e nos pôr a caminho. Precisa- feministas vêem nele o càntico da libertação das mulheres. Ambos
mos de nossos próprios pés para chegar à casa dos outros. E te- esses movimentos retomam anseios importantes do evangelista,
remos de dobrar as montanhas, transpondo montes de inibições e pois Lucas é o advogado tanto dos pobres como das mulheres. Cada
preconceitos, a fim de ver o outro como ele é. um pode pessoalmente cantar esse canto maravilhoso, louvando a
Elisabete elogia Maria por ser "aquela que creu, que haveria Deus, porque também sobre a sua insignificància Deus pôs os olhos,
cumprimento para aquilo que lhe foi prometido pelo Senhor" e lhe fez grandes coisas. Nesse càntico expressa-se que Deus in-
(Bovon, p. 80}. É a única vez no seu evangelho que Lucas usa a verte todos os nossos critérios, e enaltece exatamente o <QUe em
palavra teleiosis, "cumprimento", "plena realização". O nascimento nós é humilde, e sacia o que em nós é faminto.
de Jesus é o cumprimento de todas as promessas feitas por Deus
no Antigo Testamento. Nisso resume-se tudo o que Deus já pro-
meteu aos homens. Em Jesus, Deus mostra que há de arrancar seu 1HSCil llb •e JHIS
povo de todo tormento, que lhe mostra o caminho da vida, que o Será difícil achar alguém que não se comova com a história do
liberta do cativeiro e cura todas as suas feridas. Não se trata de nascimento de Jesus como nos é contada por Lucas. Lucas entre-
relacionar apenas algumas promessas com o nascimento de Jesus, laçou artisticamente três histórias: as narrativas sobre o recen-
mas de ver em Jesus o cumprimento de toda a Sagrada Escritura. seamento, sobre o nascimento de Jesus e sobre o anúncio do nas-
Elisabete vê em Maria aquela que crê, modelo também para a nossa cimento aos pastores. Os exegetas estão de acordo, hoje, em dizer
fé. Deus há de cumprir também em nós aquilo que nos prome- que não houve um cadastramento de contribuintes no império
teu. Há de fazer também em nós grandes coisas, se confiarmos, inteiro, apenas em algumas regiões. Mas Lucas não cita simples-
como Maria, nas suas palavras. mente fatos históricos, ele os interpreta. Ele coloca o nascimento
Ao "abençoada és tu", Maria responde com um càntico de lou- de Jesus no mundo político do imperador Augusto, para mostrar
vor, que Lucas formula de tal maneira que pode se tomar também que Jesus é o verdadeiro rei da paz, e que não é Augusto quem

• i li
traz a salvação, como afirmavam muitas inscrições, e sim Jesus, tores. Israel se entendia como um povo pastoril. É aos pastores,
que nasceu como criança pobre numa estrebaria. Esse nascimen- como representantes dos pobres do povo, que a mensagem do nas-
to, num recanto insignificante da Palestina, tem significado de- cimento de Jesus é anunciada em primeiro lugar. Mas sem dúvi-
cisivo para o mundo inteiro. Jesus é o verdadeiro Salvador e Se- da também um tema grego está entremeado. Os gregos contavam
nhor. É ele quem traz a paz verdadeira, e não Augusto, que se uns aos outros sobre a descoberta, por pastores, de um príncipe
deixava homenagear como "Imperador da Paz". Com a sua narra- recém-nascido. Lucas narra o seu evangelho de tal maneira que
tiva Lucas corrige a ideologia do domínio imperial, mas ao mes- possa ser uma boa nova tanto para judeus como para gregos, uma
mo tempo também a teologia política dos zelotes, que se revol- nova que se adapte ao seu horizonte espiritual e cumpra os seus
tavam contra o recenseamento. Maria e José obedecem à ordem mais profundos anseios. Um anjo se aproxima dos pastores, e com
do imperador. A reviravolta da situação não havia de acontecer ele aparece a glória de Deus, resplandecendo em tomo daqueles
pela violência ou por força externa, e sim partindo de dentro. Em pastores. A noite - a escuridão do coração humano - é trans-
Jesus, Deus interveio na história. A paz que em Jesus reluziu na formada pela luz de Deus. O anjo anuncia aos pastores uma grande
história tem resultados históricos e políticos. Os cristãos deverão, alegria. Lucas usa aí a palavra grega euangelizomai, usada para
na visão de Lucas, difundir a paz de Cristo pelo mundo inteiro. indicar as comunicações do imperador mas com raízes também
Graças aos cristãos, a história de Jesus deverá ter efeitos sanadores no Antigo Testamento. Lucas a usa conscientemente. Ele é mes-
e pacificadores. A paz de Deus fica visível na história de Jesus, e tre na arte de despertar, com a mesma palavra, a atenção tanto
ten.d e a penetrar, por ele, em toda a história do mundo. dos j udeus como dos gregos. Para os judeus toma-se claro que
Maria e José põem-se a caminho, rumo a Belém. "Eles estando no nascimento de Jesus as promessas do Antigo Testamento se
lá, completaram-se para Maria os dias de ela dar à luz; e ela deu cumprem. Para os gregos, a palavra "tem uma pontinha antiim-
à luz seu filho primogênito . Envolveu-o em faixas e deitou-o em perial" (Bovon, p. 125). É a anunciação do nascimento de Jesus
uma manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospeda- que traz a verdadeira alegria para os homens, não as promessas
ria" (Lc 2,6s). A hospedaria, na qual não havia lugar para o ca- do imperador.
sal de viandantes, significa um espaço numa casa particular em O conteúdo do anúncio do anjo é este: "Nasceu-vos hoje, na
que viajantes costumavam passar a noite. Mas não havia mais lu- cidade de Davi, um Salvador; ele é o Messias, o Senhor" (Lc 2,11).
gar nenhum naquela casa. Assim, Maria e José tiveram de ir para Lucas lança mão de três conceitos para esclarecer o mistério de
um porão, onde um cocho tinha sido cavado na parede. Foi um Jesus. E são novamente conceitos que de igual maneira repercu-
lugar de extrema pobreza esse em que Jesus nasceu. Nesse nas- tem tanto na alma dos judeus como na alma dos gregos. A palavra
cimento em situação de penúria, Lucas vê o cumprimento das pro- soter, "salvador" se refere na Septuaginta às obras de Deus. No
messas de Deus a seu povo. Isso se toma claro na cena dos pas- mundo greco-romano, imperadores, filósofos e médicos eram cha-

n 11ttt1 ser
mados de "salvadores". O imperador Augusto tinha o epíteto de lares do acontecido, espectadores do drama divino, quando as pa-
Soter. Mas Jesus sobrepuja a todos esses salvadores humanos. Ele lavras nos são anunciadas na liturgia e quando, na liturgia, nos
é o Messias, o Ungido de Deus. O verdadeiro salvador é o Messias tornamos atores dos acontecimentos, a fim de que, contemplan-
que vem do judaísmo. Esse Messias cumpre as promessas de Deus. do e representando, sej amos transformados e volt emos para casa
Ele liberta o seu povo da opressão e da escravidão. Kyrios, "Senhor", como transformados. O "hoje" de Lucas ressoa naquilo por que
é um co nceito que os gregos usavam para o imperador. Na todos nós ansiamos. Hoje acontecerá conosco aquilo que outrora
Septuaginta, o verdadeiro Senhor é Deus. Para Jesus valem os dois os pastores vivenciaram. Hoje há de cumprir-se o nosso anseio.
sentidos: Ele vem de Deus e é o Filho de Deus, mas ao mesmo tem- Ao lado do anjo da Anunciação aparece todo um exército de an-
po ele é o Senhor que traz a paz e o bem-estar para o mundo in- j os, que louvam a Deus, cantando: "Glorificado está Deus nasal-
teiro, de maneira mais duradoura do que qualquer imperador seria turas, e na terra a paz está com os homens por ele amados". Pelo
capaz. Ligando entre si, artisticamente, esses três conceitos, Lucas nascimento de Jesus o céu e a terra ficam ligados entre si. Lá em
descreve o mistério da encarnação de Deus em Jesus Cristo. Não cima aparece a glória de Deus. Embaixo, na terra, aparece em Je-
usa termos especulativos; é por uma narração que ele exprime quem sus a paz de Deus. É um paradoxo: enquanto num estábulo nasce
é este Jesus. Preferimos ouvir uma história do que escutar as dis- um menino, brilha no céu, para os anjos, a glória de Deus. O re-
cussões teológicas, muitas vezes incompreensíveis, sobre a filia- flexo da glória de Deus é, na terra, a paz. Eirene, "Paz", porém,
ção divina de Jesus. Nessa comovente história sobre o nascimento não significa apenas o afastamento de guerras e lutas, mas a fe-
de Jesus adivinhamos o mistério desse homem. Ele· é totalmente licidade, operada por Deus. A palavra hebraica shalom indica a
homem, mas vem de Deus. Ele é o Salvador por quem o mundo in- sit uação do ser humano assim como propriamente devia ser. Pe-
teiro anseia. Nessa narração, Lucas liga o céu à terra, o anseio hu- lo nascimento de Jesus Deus restaura o ser humano, da maneira
mano à ação divina. Da maneira como Lucas narra o nascimento como foi planejado. A palavra grega eirene significa a tranqüi-
de Jesus, ele causa em nós a alegria que o anjo anuncia. O divino lidade, a paz da alma. Com Deus se tomando homem, o coração
toma-se visível e palpável por meio de palavras humanas. irrequieto do ser humano é apaziguado. O seu anseio se cumpre.
Aqui aparece pela primeira vez a palavra "hoje". Lucas irá usá- E eirene sugere também "harmonia". Há consonãncia em tudo. No
la sete vezes no seu evangelho. Aquilo que outrora aconteceu nascimento de Jesus, Deus e o ser humano, o céu e a terra se
acontece para nós hoje, ao lermos a história de Lucas. É "hoje" harmonizam. Há concordãncia entre Deus e o ser humano, entre
que participamos do drama que Lucas nos descreve. Somos os espírito e matéria, entre anjos e seres humanos. Essa paz, essa
espectadores daquilo que, em palavras, está sendo pintado dian- tranqüilidade, essa harmonia são garantidas aos seres humanos
te dos nossos olhos. E enquanto assistimos unimo-nos àquilo que porque neles Deus se compraz. Eudokia significa o agra~o, o movi-
contemplamos na nossa frente. Tomamo-nos testemunhas ocu- mento amoroso de Deus, buscando o ser humano, e não "o agrado

M U~lll S!J' l fl li
de Deus, reconhecendo" (Schürmann, p.115}. Essa palavra nos judeus: o tema do idoso que ainda passa por uma experiência muito
lembra a imagem de Deus segundo Lucas, que "tem um cunho for- importante. E Lucas gosta de narrar encontros para os quais o pró-
temente afetivo" (Bovon, p. 129}. Foi no nascimento de Jesus que prio Deus tomou a iniciativa. Nesses encontros as pessoas expe-
Deus mostrou aos homens o seu amor, a fim de despertar no ho- rienciam algum mistério de Deus. Para Lucas, o grego, trata-se
mem, por esse ato de amor, um amor reóproco. Eudokia expres- sempre de encontros com homens e com mulheres. Tanto eles como
sa que Deus sempre se relacionou amorosamente com o ser hu- elas compreendem o que acontece e discernem a atuação de Deus.
mano e, com o nascimento do seu filho, gostaria de aprofundar Mas não é apenas a polaridade entre o homem e a mulher que se
esse relacionamento. concretiza nessa história. É também o contraste entre a Lei e o
O canto angélico faz os pastores partirem para contemplar o Evangelho, e entre a alegria e o sofrimento, a animação e a dor que
menino na manjedoura. Tanto os pastores como Maria são exem- Jesus há de causar à sua mãe. Não é um mundo ileso que espera
plos para a fé com a qual devemos corresponder à visita de Deus Maria. Na alegria por seu filho, o ungido de Deus, mistura-se a dor
aos homens pelo nascimento de Jesus. Os pastores vêem o que o pelo destino que ele terá de sofrer. Aqui Lucas sugere também o
anjo lhes prometera. E eles interpretam o que vêem pela palavra caráter contraditório da nossa própria vida. Nós também expe-
ouvida. Maria guarda as palavras no seu coração; ela as interpre- rienciamos a Deus como aquele que alegra o nosso coração, mas
ta, a fim de entender o que aconteceu. Mas não se trata de uma também como o incompreensível, como aquele que provoca os
compreensão intelectual, e sim de um movimento da palavra di- nossos protestos, e que exige de nós uma penosa mudança.
vina dentro do coração, de uma interpretação clara e acertada do Maria e José, levando o menino a Jerusalém para consagrá-lo
agir divino, no nível do sentimento. É assim que devemos pon- ao Senhor, cumprem a Lei de Moisés. A Lei, porém, é apenas a tran-
derar no nosso coração a história do nascimento de Jesus. Deve- sição para a graça de Deus que apareceu no Cristo. No meio do rito
mos deixá-la mover-se, para cá e para lá, até que a nossa sensi- prescrito acontece o surpreendente: o encontro com Simeão e Ana.
bilidade saiba acompanhar a misteriosa oscilação do amor divi- Lucas não teoriza sobre a relação entre a Lei e a Graça, expressa-a
no, que no nascimento de Jesus invadiu a história, aparecendo na sua narração. É uma história que já comoveu inúmeros cora-
visivelmente para nós todos. ções. Orígenes redigiu sobre esse texto quatro sennões, de tanto
que se sentiu fascinado por ele. Lucas não apenas nos conta so-
bre o mistério de Jesus cantado por Simeão no seu hino. Ele nos
lil úl 1 bl apresenta Simeão também como exemplo. Simeão é o modelo da
Mas não apenas os pastores e Maria são exemplos do acolhimento pessoa que, ao ver-se perto da morte, pode se lembrar de sua vida
dado ao Filho de Deus, Jesus Cristo. Lucas, o narrador, adota ainda com gratidão. Sim, ao morrer como cristãos poderemos confessar:
um outro tema importante, popular entre os gregos como entre os "Agora, Senhor, podes deixar teu servo ir em paz, segundo a tua

• llÚ~ su n 11
palavra, pois meus olhos viram a salvação que preparaste em face Depois do encontro com Simeão e Ana, Maria e José voltam
de todos os povos" (Lc 2,29s). Após o hino, Lucas descreve o con- com Jesus para a sua terra, para o dia-a-dia de Nazaré. "O meni-
traste no coração de Simeão, mas também no coração de todos nós. no crescia, cada vez mais forte e mais cheio de sabedoria, e a graça
Jesus é para nós a paz e a luz, mas também uma espada, um so- de Deus estava com ele" (Lc 2,40). Lucas gosta da palavra charis,
frimento. Uma espada há de traspassar Maria. Ela participará do "graça". Ele a usa no sentido grego:
sofrimento de Jesus. Jesus traz salvação, mas também julgamen-
to. Por ele revelam-se os pensamentos humanos. Ficará visível Charis é algo que causa alegria ... Charis é encanto. simpatia, gentile-
za, algo que causa impressão agradável. Trata-se do deleite. da ameni-
como os homens tentam se fechar diante de Deus. Nessa tensão dade que a elegância, a beleza e o encanto irradiam. Nesse sentido, a
entre luz e sofrimento, Lucas deixa claro que ele não escreve sim- palavra charis expressa uma disposição tipicamente grega diante da vida
(Schillebeeckx, p. 93).
plesmente uma narração, e sim uma tragédia, no sentido da tra-
gédia grega, que também ela, graças a contrastes emocionais, Jesus, como menino em desenvolvimento, agradava a todos
pretendia atingir e purificar os sentimentos humanos. pela sua inteligência e pelo seu caráter agradável, pela sua bele-
Ao lado de Simeão aparece Ana. Enquanto Simeão é descri- za e pela simpatia.
to corno um homem piedoso e justo, Ana é chamada de profetisa. Porém, logo depois dessa imagem ideal do Jesus menino, se
A fé, como Lucas a entende, nunca é representada somente pelo desenvolvendo, Lucas coloca o pólo oposto. Na narrativa sobre
homem. Ao lado do homem sempre precisa ser colocada uma mu- Jesus como menino de 12 anos, no templo, Lucas pinta o primei-
lher, para expressar um outro aspecto da aceitação de Jesus pela ro conflito familiar. Jesus se toma independente. Não volta de
fé. Lucas tinha descrito o homem como justo e piedoso. O cará- Jerusalém com os país. Quando, depois de três dias de busca frus-
ter da mulher, Lucas o esclarece descrevendo a história de sua trada, eles encontram Jesus no templo, ele está sentado no meio
vida e o que ela fazia na época. É a arte do escritor, revezando dos doutores, ouvindo e fazendo perguntas (Lc 2,46). Na palavra
descrição com narração. Ana passara por todas as fases da vida de Maria percebemos urna censura, e a dor que o filho lhe cau-
feminina: virgindade, vida de esposa e de viúva. É urna mulher sou: "Filho, corno agiste assim conosco? Olha, teu pai e eu, afli-
orante. Ela fica constantemente no templo. E é uma profetisa. tos, te procurávamos [sofrendo]" (Lc 2,48). A resposta de Jesus
Enxerga profundamente. Ela percebe aquilo que Deus está fazen- é incompreensível para os país. Ele chama Deus de seu Pai. Os país
do em Jesus. Em Jesus, a salvação por que todos os piedosos is- têm de aceitar que seu filho parece estranho. O que Lucas des-
raelitas ansiavam tornou-se realidade para todo o género huma- creve aqui não é uma familia unida, mas uma fanu1ia com os
no. Todos serão libertados do seu cativeiro, libertados da sua alie- conflitos que todos nós conhecemos; com sofrimento, porque os
nação. E hão de tomar-se seres livres, assim como Deus os ti- filhos são diferentes; com o afastamento doloroso dos filhos, sem
nha idealizado ao criá-los. que os país entendam o seu caminho. Depois desse conflito de

• e 11
1

puberdade, porém, segue nova.mente a descrição de uma imagem ficação e, na promessa de Simeão, o clarão do Evangelho. Vemos
ideal: uJesus foi crescendo em sabedoria e em estatura, e na gra- Jesus, a salvação de todos os povos e ao mesmo tempo a contra-
ça diante de Deus e dos homens" (Lc 2,52}. O ideal e a realidade dição em que muitos esbarram. É essa polaridade que cria um
se revezam. Ambos os pólos fazem parte da vida de Jesus; ambos suspense na narrativa de Lucas. Esse aspecto artístico da narrati-
fazem parte da nossa também. É somente na tensão entre proxi- va, porém, pode ser interpretado também pela psicologia profun-
midade e distãncia, entre o entender e o não-entender, entre da. Lucas, então, nos ensina que devemos sempre unir, dentro de
comunhão e distanciamento, que crescemos até a forma que agra- nós, ambos os pólos, a fim de que algo de novo possa nascer, e o
da a Deus, e que corresponde à nossa beleza (charis) interna. Cristo possa crescer dentro de nós. Devemos, dentro de nós mes-
Lucas nos coloca diante dos olhos o nascimento de Jesus com mos, ligar anima e animus, o masculino e o feminino, o velho e o
uma narrativa artística. Nas poucas observações que fiz, quis jovem, a Lei e a Graça, o consentimento e a objeção. Devemos, como
despertar a curiosidade do leitor quanto ao abençoado autor Lu- Maria, remexer para lá e para cá, dentro de nós, tudo o que é con-
cas, que de igual maneira chama a atenção tanto do leitor judeu trastante, reconhecendo e tentando compreender. Assim o Crist o
como do grego, e que, além de toda tradição religiosa e cultural, será para nós a Salvação; assim ele haverá de curar a nossa desar-
comove com as suas palavras diretamente o coração de qualquer monia, de tomar-nos justos, formando em nós o ser humano reto
ser humano, suscitando nele um pressentimento do mistério di- e erguido que corresponde à imagem original de Deus.
vino. Lucas nunca carrega a mão nas cores. Ele tem uma delica-
da apreciação para cada situação que pinta. E conta os aconteci-
mentos de tal maneira que possamos adivinhar seu significado
mais profundo. Ele nos apresenta seus quadros com reserva e
cautela, para que através deles possamos vislumbrar o fundo do
mistério divino. Essas imagens nunca haverão de nos entediar.
Ao entrarmos em contato com as narrativas do nascimento e da
infância de Jesus, novas facetas do amor divino hão de desabro-
char em cada situação.
Não é apenas a arte do escritor que leva Lucas a opor sempre
entre si dois casos e dois pólos. Vemos Jesus e João, Maria e Elisa-
bete. Vemos Maria e José, Maria e os pastores, e finalmente Simeão
e Ana. Vemos o cumprimento da ordem do imperador e o inespe-
rado evento da graça divina; o rito, legalmente prescrito, da puri-

" llll~ su fe 41
Doença ecura
L--L.j segundo lucas

A Tradição viu em Lucas também o médico,


já que ele domina a linguagem médica. Em
nenhum outro evangelho as palavras iomai,
"curar", e therapeuein, "restabelecer a saúde"
são tão freqüentes como em Lucas. Cristo é
aquele que traz saúde para o ser humano e
cura as suas feridas. Lucas desenvolve assim
o seu entendimento de doença e cura, com
base na antropologia grega. Para os gregos,
o ideal do ser humano era o kalos k'agathos,
"belo e bom". O ser "belo e bom" expressava-
se na saúde. Uma alma sadia mora num cor-
po sadio (mens sana incorpore sano). O ho-
mem sadio, segundo Platão, é aquele no qual
o corpo e todas as partes da alma vivem em
harmonia reóproca. À saúde pertence taro-
endireitar. Vendo-a, Jesus lhe dirigiu a palavra e disse: MMulher, eis que
bém a moral. E a medida certa. Quem só se preocupa com a saúde,
estás liberta da tua enfennidade#. lmpõs-lhe as mãos, e imediatamen-
como certos atletas, não é realmente sadio. Decisivo é que no ho- te ela se endireitou e se põs a dar glõria a Deus (Lc 13, 11-13).
mem saudável tudo obedece à justa medida. Quando alguém está
doente, sua dignidade é prejudicada, e a harmonia da sua alma fi- A expressão "espírito que a tomava enfenna" significa com
cará perturbada. Curar alguém é restituir-lhe a dignidade e a har- certeza que a doença não era puramente corporal, já que era a
monia humanas. Isso se tomará claro ao interpretarmos as duas expressão de uma atitude psíquica fundamental. A enfermida-
histórias de curas só encontradas em Lucas: a cura da mulher cur- de corporal mostra que tipo de espírito domina essa mulher. O
vada e a cura do hidrópico. Ambas acontecem num dia de sábado. que a toma pequena, curvada e bloqueada é um espírito. A mu-
O sábado é o dia em que Deus descansou de sua obra, e viu que lher anda curvada porque o peso da vida a oprime, e ela, resig-
a criação estava boa. A cura é para Lucas o restabelecimento da boa nada, anda cabisbaixa, triste e depressiva. Quem anda assim, cur-
criação. Quando Jesus cura uma pessoa, ele completa a obra do Pai,
vado, toma-se depressivo mesmo - a respiração fica fraquinha,
e toma visível como o ser humano havia sido planejado, como obra
o rosto perde a beleza original. O dorso curvado poderia indicar
saindo das mãos de Deus. Nessa combinação da imagem grega do
também sentimentos não admitidos. Muita gente carrega nas
homem com a idéia bíblica da beleza e da perfeição originais da
costas toda uma mochila cheia de sentimentos sufocados. Abu-
criação mostra-se a maestria do escritor e teólogo Lucas. Ele anuncia
sam de suas próprias costas como um monturo de emoções repri-
a sua mensagem de tal maneira que tanto judeus como gregos a
possam entender e amar, da mesma maneira. E ele nos oferece, tam- midas. Preferem ter dores lombares a entrar em contato com os
bém hoje a nós, uma visão de doença e cura que entendemos. A próprios sentimentos.
psicologia moderna descobriu novamente a união entre o corpo e E a mulher talvez tenha sido oprimida. Quem sabe alguém
a alma. Muitas doenças são psicossomáticas. Afetam corpo e alma. lhe quebrou a espinha dorsal. Ela não tem condições para se er-
A cura nunca atinge somente o corpo; restitui também a alma. Tra- guer por sua própria força. Não pode andar reta. Não se sente
ta-se sempre da pessoa inteira, de fazê-la voltar àquela fonna que capaz. A palavra grega panteies, "totalmente", "absolutamente",
lhe compete da parte de Deus. Pela doença, sua fonna, originalmen- "para sempre", expressa que a doença é incurável, que a mulher
te intata, foi defonnada. A cura é uma reorganização, uma refonna, nunca mais poderá se erguer. Não pode mais olhar para cima. Está
segundo aquilo que é original e próprio no ser humano. cortado o seu contato com Deus. Ela dirige o seu olhar somente
para o chão, para o que está lá embaixo. Seu horizonte é estrei-
to, e ela perdeu sua dignidade humana, seu espaço e sua liber-
dade. E isso já há dezoito anos. Entendendo "dezoito" como nú-
Jesus está ensinando numa sinagoga: mero simbólico, poderíamos dizer: dez é o número da totalidade,
da integridade do ser humano. Essa mulher perdeu sua integri-
e eis que havia lá uma mulher que tinha um espírito que a tomava
enferma, fazia já dezoito anos. Andava curvada, e não conseguia se dade, sua beleza e sua bondade originais. Oito é o número da

44 10111 ser
eternidade, da infinitude. As pias batismais da Igreja primitiva diação de uma cura, ou é uma invocação do Espírito Santo. As duas
eram octogonais. Mostram que pelo batismo o cristão participa coisas andam juntas. Pela imposição das mãos, o Santo Espírito
da vida eterna de Deus. A mulher está doente há dezoito anos, de Deus se infunde naquela mulher. Este Espírito, que é santo, é
sem contato com Deus. Não pode mais levantar os olhos para o sempre também um Espírito sanador. E ele concretiza a força di-
céu, sua vista está escurecida. vina, expulsando a fraqueza da mulher. Também os discípulos te-
Nessa mulher curvada Lucas vé uma imagem do ser humano rão de impor as mãos aos outros. Intermediarão assim a força di-
reprimido, quebrantado, lesado na sua dignidade. E ele nos mos- vina que cura e libertarão a todos do poder de Satanás. Doravan-
tra como Jesus tem o poder de curar não somente essa mulher, te não devemos mais determinar a nossa vida segundo as nossas
mas também a nós, ainda hoje. Jesus vê a mulher. Ele olha para velhas normas, e sim pela força sanadora e libertadora de Deus,
ela; com isso, ela é agora uma pessoa considerada. Jesus não está pelo amor divino que, passando por Jesus, nos alcança e nos faz
indiferente diante da miséria humana. Ele se volta para a mulher. ser assim como originariamente Deus tencionou. Quando Jesus
Lucas aqui não dá nome ao sentimento de comiseração de Jesus; é toca na mulher, ela se ergue no mesmo instante. Ela se endireita,
pela própria narrativa que ele expressa os sentimentos de Jesus. e louva a Del,l.S. Agora realizou-se o número "dezoito". Inteirou-
Pelo seu modo de agir fica claro que ele trata a mulher com ter- se e achou novamente contato com Deus. A palavra grega para "er-
nura e carinho. Tendo-a observado na sua miséria e na sua opres- guer", anortho, é usada também no sentido de "reconstruir" uma
são, ele dirige a ela a sua palavra. A palavra grega prosphono, casa. Jesus é aquele que levanta de novo o ser humano e o resta-
"dirigir a palavra a", "chamar pelo nome", "interpelar", indica o belece na sua beleza original, reconstruindo a casa de sua vida de
relacionamento que Jesus estabelece com a mulher. Ele fala com tal maneira que Deus possa nela morar com sua glória.
ela. As suas palavras se dirigem a ela. Ele quer arrancá-la do iso- O chefe da sinagoga reage com irritação à cura da mulher
lamento em que ela, sem dúvida por vergonha das pessoas sadias, curvada. No sábado não se podia trabalhar. Ele interpreta a cura
se retirou. A mulher deixa-se movimentar por Jesus. Está claro: da mulher como um trabalho humano. Jesus vê nela uma obra
Jesus é capaz de abordar uma pessoa de tal maneira que ela é divina. O chefe da sinagoga exagera na sua interpretação da Lei.
atingida e se põe em movimento. A mulher se volta para ele, e Para ele, a Lei ê mais importante do que o ser humano. Jesus
ele lhe diz: "Mulher, eis que estás libertada de tua enfennidade". refuta a sua atitude rigorosa com uma referência aos animais, que
Ele oferece a ela cura e libertação. Na proximidade de Jesus o ser todo mundo desata da manjedoura, levando-os a beber. Se todos
humano não pode continuar amarrado; fica livre, reencontra a sua soltam o boi e o jumento, é pennitido também libertar o ser
dignidade. O homem reto, Jesus, ergue a mulher oprimida, resti- humano de seus liames. Para Lucas, Deus é sobretudo o liberta-
tuindo-a na sua dignidade singular e divina. No evangelho de Lucas dor, que salva o seu povo da escravidão, que restabelece o ser hu-
e nos Atos dos Apóstolos a imposição da mãos ou é uma interme- mano para que seja novamente como foi criado por Deus. O sába-

41 Ideia m 41
do lembra a Criação. No sétimo dia Deus descansa da obra da Cria- seu equilíbrio, vivendo sem virtudes, toma-se ou hidrópico ou
ção. Contempla-a no seu esplendor. Para Lucas, a melhor manei- leproso. No último caso, é porque o sangue prevaleceu (Bovon, p.
ra para se celebrar o sábado é reerguer o ser humano na sua fi- 472). Hoje diríamos: quando alguém perde as medidas, quando
gura original, é alegrar-se de sua dignidade divina e louvar a Deus, exige demais de si mesmo, também seu corpo reage caoticamen-
o Criador da beleza humana. A reação do povo é a alegria "por te. A harmonia entre os diversos humores é perturbada. Aí, por-
todas as maravilhas que Jesus fazia" (Lc 13, 17). À libertação ofe- tanto, o que importa é a medida certa. Oser humano é sadio quan-
recida por Jesus, todos sempre reagem com alegria. Jesus não fala do vive de acordo com a sua natureza. Tomando-se desregrado,
sobre a alegria: seus atos é que provocam a alegria do povo. Lu- fica doente. Cura significa: redescobrir a justa medida, e viver.
cas narra a cura da mulher curvada de tal maneira que todo aquele Jesus pergunta aos doutores da Lei e aos fariseus: "É permi-
que se abre inteiramente para esse texto há de prosseguir mais tido ou não curar no sábado?" Com essa pergunta, Jesus busca a
aprumado o seu caminho. A libertação pintada no texto há de interpretação correta do sábado e da cura. O que é essencial ao
apoderar-se também do leitor e do ouvinte, e eles hão de se ale- sábado? E em que consiste o curar? Para Jesus, o sábado é "o dia
grar de sua dignidade divina, e poderão voltar para casa de ca- de realizar obras de acordo com a imagem das obras de Deus"
beça erguida. (Bovon, p. 474). E curar é obra divina, não trabalho humano.
Quando os fariseus, depois da pergunta de Jesus, ficam calados,
ele age no sentido de Deus: "Ele deu-lhe a mão, curou-o e despe-
1Clrl j1 lijfi,ICI diu-o" (L~ 14,4). Jesus pega na mão do doente, apieda-se dele, a
Também a segunda das duas curas só encontradas em Lucas é fei- fim de ajudá-lo. Lucas coloca aqui a palavra essencial para a obra
ta num sábado: a cura do hidrópico (Lc 14, 1-6). Aqui a cura é ape- sanadora de Jesus: iasato, "ele curou". Lucas emprega essa pala-
nas rapidamente encenada. Decisiva é a idéia de que a cura não é vra quinze vezes. Jesus é o médico que restabelece o ser huma-
um trabalho humano, e sim uma obra de Deus. Os médicos gregos no de acordo com a maneira como Deus o havia planejado. Ele é
sempre voltam a falar sobre a hidropisia. Só o célebre médico o terapeuta que conserta a quem perdeu o equilíbrio. A terceira
Galena menciona quarenta e oito vezes a hidropisia, e indica vá- palavra para a ação de curar é apolyo,''libertar", "desamarrar",
rias receitas para curá-la (cf. Bovon, p. 471). A hidropisia ma- "soltar". Lucas já usou essa palavra na cura da mulher curvada.
nifesta-se por inchações, sobretudo da barriga. Ela enfraquece o Curar é libertar o ser humano, e soltá-lo dos liames da doença e
coração e pode levar a uma morte súbita. Na tradição judaica a dos grilhões dos demônios. Aqui a palavra significa "dar alta".
hidropsia é vista sobretudo como conseqüência de excessos se- Jesus dá alta ao doente. Agora ele poderá seguir seu próprio ca-
xuais ou de calúnias ou da idolatria (o bezerro de ouro). Segundo minho. Mas Lucas gosta do duplo sentido das palavras. Para ele
os rabinos, o ser humano é composto de água e sangu e. Quem perde trata-se, sem dúvida, também do sentido de "soltar" e "libertar".

u 11el1 Jer 41
A pessoa curada sempre é também uma pessoa liberta, solta e tico com as palavras: "Hoje vimos coisas maravilhosas" (Lc 5,26).
salva de todos os bloqueios. Estar doente é estar amarrado. Todo O que aconteceu então acontece "hoje", quando os cristãos se
o estar amarrado a padrões de vida, hábitos e compulsões, e tam- reúnem no culto dominical. A Eucaristia é o momento da cura. E
bém todo o estar preso a outras pessoas, produz dentro de nós uma a leitura, a meditação sobre a narrativa evangélica podem se tor-
energia negativa, contra nós mesmos e contra os outros. Cura nar o momento em que nós, como leitores, nos tomamos partici-
significa a libertação de todos os laços e, com isso, a solução da pes da cena da cura, que Lucas, com as suas palavras, nos coloca
negatividade interna. Esse ficar livre de amarras nos toma capa- diante dos olhos.
zes de estabelecer comunhão, boas relações, amizade. A aptidão
para nos relacionar, para estarmos ligados aos outros de uma
maneira boa, pertence essencialmente à boa saúde. E, para os AI ÍSSÍI •e JISIS Cll l • i•icl
gregos, exatamente essa capacitação para a amizade era essen- Também na sua descrição da atuação de Jesus Lucas mostra como
entende a cura dos doentes. Antes de relatar as primeiras curas
cial para a sua imagem do ser humano belo e bom.
milagrosas, Lucas narra uma cena na sinagoga de Nazaré. Ele in-
Deus criou o ser humano livre e aprumado. Éassim que Jesus,
tensifica a atenção dos leitores, pintando detalhadamente como
no sábado, o restabelece, mostrando-o como foi que Deus queria
Jesus se levanta, como o livro lhe é entregue, como ele o abre, até
que fosse. Lucas combina a teologia da Criação com a teologia da
encontrar a perícope com as seguintes palavras do profeta Isaías:
Salvação. "Salvação" quer dizer: deixar a Criação aparecer em todo
o seu esplendor. Foi boa a obra divina da Criação do homem. Mas
O Espirita do Senhor está sobre mim, pois ele me ungiu. Enviou·me para
o homem adoeceu, agrilhoado nas suas paixões, amarrado nas suas levar aos pobres a boa nova; para anunóar aos cativos a libertaç.ão e
aos cegos a luz dos olhos; para pôr em liberdade os oprimidos, para
necessidades. Jesus liberta o homem, erguendo-o novamente.
proclamar um ano de acolhimento da parte do Senhor (Lc 4,18s).
Toma-o inteiro e sadio, belo e bom. Quando Jesus cura o homem,
ele o restabelece assim como Deus o criou, na sua beleza original Nestas palavras do profeta Isaías, Jesus formula seu próprio
e na sua bondade. Por isso as curas mais importantes, em Lucas, programa. É interessante que Lucas combina aqui dois textos: o
acontecem no sábado, no dia em que Deus descansou da sua Cria- texto messiânico de Isaías 61, 1s e a frase "para pôr em liberdade
ção. Mas existe ainda outro motivo pelo qual Lucas coloca as curas os oprimidos", de Isaías 58,6. Nesse último texto trata-se do ver-
sabáticas no centro da sua teologia da cura. No domingo os cris- dadeiro jejum, do jejum que agrada a Deus. Não foi por acaso que
tãos se reúnem para partir o pão em comunidade e para celebrar, Lucas ajuntou esses textos. Jesus cumpre as tarefas do Messias.
no culto, aquele que outrora, na história, curou e reergueu os Ele é o homem que, na sua piedade, agrada a Deus. E com essa
doentes. Na liturgia, a atuação sanadora de Jesus se toma pre- combinação de dois textos Lucas sugere que nós, como disópu-
sente. Por isso Lucas nos diz que o povo reagiu à cura do paralí- los de Jesus, temos a incumbência de pôr em liberdade os humi-

m 11
lhados, de aplanar o caminho da liberdade para os que estão tados, isto é, pessoas internamente escravizadas conseguem rom-
machucados, abatidos, oprimidos, esgotados. per as cadeias de suas angústias e dependências, reencontrando
Jesus entende a si mesmo como cheio do Espírito Santo. E a sua dignidade humana.
considera sua tarefa anunciar uma boa nova aos pobres. Esses Lucas descreve a libertação dos escravos durante a primeira
pobres são, por um lado, os economicamente fracos, os sem di- cura depois de tudo o que Jesus fez e falou na sinagoga de Naza-
reitos sociais, mas, de outro, também os presos, os cegos e os afli- ré. Ele conta, então, que na sinagoga de Cafarnaum havia um
tos. Quando Jesus cura alguém, Lucas vê isso como a libertação homem "possllido por um demônio, um espírito impuro" (Lc 4,31).
de grilhões que o mantinham preso. Como exemplo da cura de A palavra "demônio" significa um poder estranho, dominando
doentes, Lucas coloca aqui apenas os cegos. A eles Jesus quer dar alguém por meio de sofrimentos, opressão, degeneração, padrões
o "poder enxergar novamente", ou, como é dito literalmente: "po- neuróticos, obsessões, idéias fixas. O ser humano pode de tal
der levantar os olhos". Aqueles que tinham fechado seus olhos maneira estar possllido por semelhantes forças "que não conse-
diante da realidade deverão '1evantar de novo os olhos", desco- gue mais, de forma alguma, ser ele mesmo, perdendo seu poder
brir, com seus próprios olhos, a beleza do mundo. É curioso que de falar, sua identidade, sua personalidade, e ficando completa-
Lucas aqui insiste somente nos olhos. Mas o olhar era para os mente alheio a si mesmo e ao seu ambiente" (Venetz, p. 67). Seu
gregos o sentido mais importante. Para os gregos, Deus é aquele pensamento fica perturbado por preconceitos, amarguras, pavo-
que é contemplado (Theos, "Deus", vem de theastai, "ser contem- res, ciúmes. "Cura" significa, para Lucas, que tal pessoa conse-
plado"). O ser humano vive a sua dignidade ao contemplar. Mui- gue novamente enxergar com toda a clareza, sendo libertada dos
tas vezes, porém, a sua vista é nebulosa. Ele vê a realidade atra- demônios que a escravizavam.
vés dos óculos embaçados de suas projeções ou de seus padrões Onde Jesus proclama a boa nova da proximidade do Deus
neuróticos. Seu olhar é desfigurado pelas ilusões que ele cria so- bondoso, todos sentem-se livres de sua culpa. Aí os pecadores
bre o mundo. Quando é capaz de enxergar o que é real. de levan- criam coragem para chegar perto de Jesus, pedindo perdão. Aí eles
tar os olhos, de olhar livremente ao redor, então ele é realmente se sentem incondicionalmente aceitos, apesar das suas culpas. É
um ser humano. essa experiência que Lucas faz penetrar no coração dos seus lei-
Jesus resume a sua missão na proclamação do ano de aco- tores com a maravilhosa narrativa da pecadora que teve a cora-
lhimento, do "ano da graça". O "ano da graça" é o "jubileu" ju- gem de entrar na casa do fariseu, a fim de ungir os pés de Jesus
daico. Nesse ano, que sempre ocorria após quarenta e nove anos, (Lc 7,36-50). Onde Jesus aparece e atua, cria-se um espaço livre
os israelitas tinham de libertar os escravos, perdoar todas as dí- em que todos podem novamente respirar aliviados. Deve ser esse
vidas e deixar as terras sem cultivo. São maravilhosas imagens o sentido da imagem das roças deixadas sem cultivo. Jesus trans-
para a atuação de Jesus. Onde Jesus aparece, escravos são liber- mite a idéia de que não devemos continuamente trabalhar em

12 uu11 szr 1 squâ u


cima de nós mesmos, de que devemos deixar a lavoura da nossa vras que levam o ser humano à salvação, e o conduzem à sua
alma descansar também uma vez, na confiança de que Deus há verdadeira essência. Jesus como médico e terapeuta, eis uma
de semear aí a sua boa semente. Então, pela graça de Deus, a terra imagem de Jesus que interessa às pessoas de hoje, pois saúde é o
há de render cem vezes maís. que todos desejam ansiosamente.
Depois da expulsão do demônio em 4,33-37, Lucas descreve Livros que ensinam a viver são hoje muito procurados. E o
como Jesus cura a sogra de Pedro. Ele se inclina sobre ela, para mercado de cursos que nos prometem a cura dos nossos males está
chegar bem perto, comunicando-lhe algo do seu espírito. Nesse em alta. Lucas nos mostra Jesus como um terapeuta cujos méto-
gesto Lucas descreve o carinho com que Jesus se aproxima da dos de terapia são hoje tão modernos quanto na época. E ele nos
mulher doente. E ao gesto ele acrescenta uma palavra. Jesus re- convoca a nós, cristãos, para que, na força do Espírito que com-
preende a feb re. Ele personifica a febre que tomou conta da mu- penetrava Jesus, também curemos os enfermos de hoje e erga-
lher, e manda-a sair dela. E a mulher fica sã, no mesmo instante. mos os curvados.
Levanta-se e cuida de Jesus. Depois da cura de um homem, Lu-
cas conta logo a cura de uma mulher. Para ele sempre é impor-
tante que homens e mulheres apareçam juntos, como tendo os
mesmos direitos. Isso ele já mostrou na fala inicial de Jesus em
Nazaré, lembrando tanto o sírio Naamã como a viúva de Sarepta,
dois exemplos de pessoas curadas pelos profetas.
Em seguida, Lucas conta sobre a atuação de Jesus como
médico. "O bondoso Messias assume as tarefas do médico hele-
nista" (Bovon, p. 225). Jesus é descrito de tal maneira que os
gregos possam entendê-lo e amá-lo. Ele cura todos de suas en-
fermidades, impõe-lhes as mãos e comunica-lhes o Espírito e a
força de Deus, que os restabelecem e lhes restituem a forma ori-
ginal. Jesus, porém, não cura apenas pelo contato, mas também
pela sua palavra, pela sua doutrina, ensinando a todos, como fazia
a terapia grega, a "arte de viver sadiamente". Como o médico
descrito por Sócrates no Górgias, Jesus, então, tem de prescrever
às vezes algum remédio amargo, que à primeira vista não con-
vém nada ao doente. Para Lucas, as palavras de Jesus são pala-
Jesus não foi apenas um terapeuta, mas tam-
bém um abençoado narrador de parábolas. É
nas parábolas que ele consegue apresentar
de maneira mais clara a sua visão de Deus e
dos homens. As parábolas têm a função de
se encontrar com o ser humano exatamente
lá onde ele está. Nelas, Jesus fala muitas
vezes sobre situações do dia-a-dia, que po-
dem acontecer a qualquer um. Ou então ele
descreve o trabalho do homem no campo. É
evidente que Jesus sabia falar sobre a vida
concreta das pessoas de tal maneira que ca-
tivava os seus ouvintes. Ele sabia mexer com
a sensibilidade deles e fasciná-los. Mas en-
tão, de repente, ele dirige o olhar de seus
ouvintes para Deus. De repente eles enten-
dern: "Assim é Deus; é isso que Deus faz conosco". Jesus não fala tro da vida do ouvinte ou do leitor. O Reino de Deus torna-se rea-
sobre Deus em termos abstratos. Ele começa com o humano. Conta lidade pela imagem da parábola (Huizing, p.122).
de tal maneira sobre os homens e seu dia-a-dia, que os ouvintes Foi Lucas quem nos transmitiu a mais bela parábola, sempre
podem entender quem é Deus e corno é que ele age. As parábolas de novo contada e reinterpretada na literatura: a parábola do fi-
visam transformar o ouvinte e seu modo de ver, e conduzi-lo a lho pródigo, ou do filho reencontrado, ou, como querem outros,
urna nova imagem de Deus e do ser humano. Nas parábolas. en- do pai misericordioso. Além das parábolas que Lucas deve a Mar-
contramos Jesus na sua maneira muito pessoal de contar sobre cos e Mateus, há toda uma série de parábolas encontradas ape-
Deus. E as parábolas, contadas por Jesus, foram redigidas tão nas no evangelho de Lucas:
artisticamente por Lucas que não apenas comoveram os gregos - a do fazendeiro rico (Lc 12, 13-21);
da época, mas sensibilizam ainda hoje o nosso coração. - a da dracma perdida (Lc 15,8-10);
Nas parábolas Jesus fala apenas de Deus e do homem na sua - a do gerente astuto (Lc 16,1-8);
relação com Deus. Para o teólogo evangélico Klaas Huizing, aspa- - a do rico e do pobre Lázaro (Lc 16,19-31);
rábolas são autênticos auto-retratos de Jesus. - e a do juiz iníquo e da viúva (Lc 18,1-8).

Nas parábolas Jesus retratou a si mesmo - e não foi por acaso que Lucas, Nessas parábolas exclusivamente lucanas, Lucas utiliza fre-
venerado na iconografia como pintor, copiou esse auto-retrato de Jesus
qüentemente recursos estilísticos tipicamente gregos. sobretudo
da maneira mais feliz; ou melhor: foi Lucas quem transfonnou as minia-
turas em quadros (Huizing, p. 234). o recurso do monólogo. O "monólogo interior" tem na literatura
grega "a função de revelar o caráter de uma pessoa, suas preocu-
Nas parábolas encontramo-nos, portanto, com o homem Je- pações ou intenções" (Bovon II, p. 282). Esse recurso literário
sus, com a sua irradiação pessoal, com a sua maneira peculiar de encontra-se sobretudo na antiga literatura romanesca e nas co-
pensar e de falar. Nelas, Jesus não apenas fala sobre o Reino de médias gregas, por exemplo em Menandro, Plauto e Terêncio. Mas
Deus, ele coloca o Reino de Deus na nossa presença. Nas palavras também as tragédias de Ésquilo, Sófocles e Eurípedes utilizam o
de Jesus, o Reino de Deus se aproxima de nós, toma-se experimen- monólogo. No romance antigo de amor, o monólogo interior tem
tável, palpável. Então o céu se abre acima de nós, e entendemos a função de aprofundar o envolvimento do leitor. "Os leitores des-
que Deus está agindo agora, para nós e em nós. Em tal momento lizam mesmo para dentro dos papéis dos personagens que agem
Deus se encarna, Deus se toma linguagem. Deus, então, se ex- no romance" (Heininger, p. 49). No romance Kallirhoe, Artaxerxes
prime nas palavras. O teólogo Hans Weder acha que a linguagem diz a si mesmo: "Tenta o que for possível, ó alma; volta a ti mes-
das parábolas não é apenas poética, mas também poiética, isto ma. Outro conselheiro não tens" (id., p. 52) . Isso lembra muito o
é, ela cria uma nova realidade. Ela faz o Reino de Deus chegar den- solilóquio do fazendeiro rico com sua alma. Na comédia, os mo-

u 11fell m
nólogos dos atores são diálogos com o espectador. O espectador mulher é a personagem central (Lc 15,8-10). Ao lado do gerente
é envolvido na ação. "O monólogo cria uma íntima união entre o astuto (Lc 16,1-8), Lucas coloca a viúva destemida, que não tem
espectador e o personagem no palco; o espectador se toma aqui, medo do juiz iníquo (Lc 18,1-8) . Jesus compara o Reino dos Céus
por assim dizer, o confidente do ator" (id., p. 78). a um grão de mostarda que um homem jogou na sua horta, mas
O monólogo interior começa com uma introdução ao assunto. também ao fermento que uma mulher misturou numa bacia de
Costuma ser a pergunta: "O que devo fazer?". A seguir vem um farinha (Lc 13,18-21). Lucas só sabe falar do mistério humano des-
resumo da situação. As diversas possibilidades são examinadas. crevendo homens e mulheres no seu modo de agir e de pensar.
E finalmente apresenta-se a solução do problema. O monólogo Falar devidamente sobre Deus significa, para Lucas, combinar
interior quer levar o leitor a um novo modo de agir, à conversão, anima e animus, e ver em Deus tanto o masculino como o femi-
para que saiba agora seguir o caminho certo. Porém, a pergunta nino. E só poderemos falar devidamente sobre o ser humano se
"O que devo fazer?" não é exclusiva, em Lucas, do monólogo in- olharmos com o mesmo carinho tanto o homem como a mulher,
terior. Os publicanos e os soldados dirigem a mesma pergunta a tentando compreender de cada qual o próprio modo de pensar.
João Batista (Lc 3,10.1 2.13). É também a reação dos habitantes
de Jerusalém ao sermão de Pedro no Pentecostes (At 2,38). É a
pergunta fundamental de toda a verdadeira filosofia. O filósofo A'1rí•111•1 •rac11 ,e~i•1
estóico Epicteto, por exemplo, diz assim: "O que devemos fazer? A parábola curta sobre a dracma perdida (Lc 15,8-10) segue a da
Eis a pergunta de um bom disápulo da filosofia, ao sentir as do- ovelha perdida. Aqui, quem está no centro é uma mulher. Curio-
res de parto da verdade" (id., p. 82). Lucas não inventa as suas samente, Lucas descreve as mulheres muitas vezes como viúvas
parábolas. Ele toma as parábolas contadas por Jesus e as apre- ou como solteiras. A mulher não se define a partir do homem.
senta numa forma literária que possa chamar a atenção dos gre- Ela é por si mesma o que ela é. Assim também no caso desta
gos. Ele quer apresentar Jesus a seus leitores gregos como um mulher: não se trata de seu relacionamento com o marido, trata-
poeta, que os introduz nos segredos da alma humana, que lhes se dela mesma, do que ela é em si. Ela possuía dez dracmas. "Dez"
revela os pensamentos secretos e lhes ensina a verdadeira filoso- é o número da totalidade. Quem possui dez dracmas é completo,
fia, a sabedoria divina que leva à vida verdadeira. está salvo. Mas essa mulher perdeu uma dracma. "Um" é outra
Nas parábolas exclusivamente lucanas reconhecemos ainda imagem de totalidade. Se essa mulher perdeu uma dracma, ela saiu
a sua tendência de sempre apresentar exemplos do mundo femi- de sua completude, de sua unidade consigo mesma e com Deus.
nino ao lado daqueles do mundo masculino. Ao lado da parábola Ela perdeu seu centro - sem esse centro as outras nove dracmas
da ovelha perdida (Lc 15,3-7), que vem do mundo dos pastores também não lhe adiantam nada, perderam sua unidade, já não
de rebanho, ele coloca a parábola da dracma perdida, na qual uma estão juntas entre si. A mulher sabe o que perdeu. Ela perdeu a

IS lt 11
si mesma. Gregório de Nissa interpreta essa dracma como sendo relacionamento com o próximo. A mulher convida apenas mulhe-
o Cristo. Do ponto de vista psicológico, poderíamos dizer que a res. Éj unto com elas que ela quer celebrar a festa da sua própria
dracma simboliza o "eu mesmo". Quem perdeu a si mesmo ainda maturação. Ela achou a dracma perdida. Ela encontrou-se com
faz muita coisa, externamente, mas em tudo isso falta o centro, Deus como o fundamento da sua humanidade. Segundo C. G. Jung,
a força, a clareza. não podemos nos encontrar a nós mesmos sem descobrir a ima-
Agora a mulher acende uma lâmpada. Para Gregório, é a in- gem de Deus na nossa alma. O "eu mesmo" não é o resultado da
teligência. Ela precisa da luz da inteligência para esclarecer a es- história da nossa vida; é o que Deus, no início, imaginou que
curidão do inconsciente, procurando aí a completude perdida. Mas deveríamos ser. Na dracma reencontrada Lucas vê a conversão do
Lucas, sem dúvida, pensa aí também na luz da fé. É somente pela pecador. O pecador tinha perdido a si mesmo. Ele não é mais ele
fé que a inteligência fica realmente iluminada. É a luz de Deus, mesmo. Converter-se significa: começar a pensar de outra forma,
da qual precisamos para procurar a dracma na nossa casa inter- ver por trás das coisas. A conversão é o caminho no qual desco-
na. A mulher varre a casa toda. Ela remove a sujeira que se depo- brimos a nós mesmos, de verdade. Devemos abandonar o que é
sitou no chão da sua casa. Gregório interpreta essa sujeira como superficial e partir em busca da dracma no fundo da nossa alma.
sendo a negligência com a qual vivemos. Quando nos ocupamos Então - diz Jesus - os anjos de Deus hão de alegrar-se de nós.
negligentemente com muitas atividades, a nossa casa fica suja. Jesus veio para nos lembrar do núcleo divino. Convocou-nos para
Não somos mais senhores da nossa casa. Uma camada de poeira a conversão, a fim de que encontremos Deus em nós, e em Deus
deposita-se no chão da nossa alma. Então precisamos varrer ener- encontremos, de verdade, nós mesmos. Jesus é aquele que nos
gicamente, para redescobrir o lustro original da nossa alma. E a chama para o caminho da auto-realização. A meta desse cami-
mulher procura, incansavelmente. A palavra grega epimelos sig- nho é a alegria de sermos humanos. Mas só seremos plenamente
nifica "solícitamente", "cuidadosamente", "com precisão e afin- humanos quando tivermos encontrado a Deus, quando tivermos
co". A mulher olha com atenção, procura com cuidado. Ela está redescoberto em nós o núcleo divino. O pecado consiste em nos
preocupada; quer mesmo encontrar sua dracma. O ser humano não desencontrarmos conosco, perdendo-nos, vivendo fora de nós
está apenas em busca de Deus, mas também de si mesmo, de sua mesmos, entregando a nossa vida, em vez de vivê-la pessoalmente.
verdadeira essência. Perdeu a si mesmo. É essa a desgraça do ser Jesus, segundo Lucas, é aquele que convida o ser humano a ser
humano: alienar-se de si mesmo, perder a si mesmo. verdadeiramente humano, a encontrar o seu próprio centro e, nele,
A mulher encontra a sua dracma. Encontra a si mesma. Ago- Deus, como o verdadeiro fundamento da sua existência.
ra ela convoca as suas amigas e as suas vizinhas: "Alegrai-vos Uma parábola sempre tem vários planos, deixa ao leitor a
comigo; encontrei de novo a dracma que eu tinha perdido" (Lc liberdade de projetar nela as suas próprias experiências, os seus
15,9}. Quem se encontra a si mesmo encontra também um novo próprios anseios. A mulher com as suas dracmas pode ser uma

12 1 11 m IS u a
imagem da alma humana que perdeu o seu centro, e agora vive ele busca incansavelmente o "eu mesmo" do ser humano. Para
em busca do seu verdadeiro "eu". Mas pode ser também uma ima- Platão, o maior dos filósofos gregos, a finalidade da vida huma-
gem de Deus que procura o homem perdido, e para isso revira a na era encontrar o seu verdadeiro "eu", a sua alma original. Para
casa inteira. Se interpretamos assim a parábola, então Deus é Lucas, Jesus é o viandante divino que nos põe em contato com o
descrito na figura de uma mulher. No Antigo Testamento não há nosso verdadeiro "eu", com o nosso núcleo divino.
texto nenhum em que Deus seja comparado a uma mulher que
revira a casa. O exegeta suísso Hermann-Josef Venetz comenta:
"Quem faz coisa semelhante mostra-se altamente competente e A••rí•111 fl nt•1 •rífill
livre, e também muito próximo de Deus e do mundo" (Venetz, p. A mais bela parábola contada por Lucas é, sem dúvida, a do fi-
124). Tauler interpreta essa parábola no sentido de que Deus, logo lho pródigo. Ela já recebeu inúmeras interpretações. Isso mostra
quando estamos bem instalados na casa da nossa vida, começa a que o texto mexe com o leitor. Contar uma parábola, de fato, é
agir como uma mulher que remexe tudo para procurar a dracma. mais do que proclamar uma verdade teológica. As parábolas não
Tauler acha que é exatamente no centro da vida que estamos "bem pretendem nem informar nem provar - querem nos obrigar a
instalados". E de tanto agir externamente perdemos a dracma. tomar posição. Os filólogos falam em "comunicação persuasiva".
Então Deus nos joga numa crise, em "apuros", a fim de achar Quando Jesus conta uma parábola, ele põe algo em movimento
dentro de nós a dracma, o nosso verdadeiro "eu mesmo". dentro do ouvinte. Não podemos ler a parábola do filho pródigo,
Essa parábola, no entanto, pode ser aplicada também a Jesus. da maneira como Lucas a relata, sem que dentro de nós se inicie
Jesus, então, entende seu próprio modo de agir como um agir um processo de mudança. O filho mais novo e o filho mais velho
feminino e maternal. Deus, de fato, mandou seu Filho, Jesus, para nos colocam diante da pergunta: "Onde é que eu estou? Pareço
que acendesse neste mundo a luz da fé, e para que varresse tudo, com o mais novo ou com o mais velho? Ou com ambos? Será que
procurando incansavelmente o ser humano. Jesus andava exata- conheço bem esses dois lados dentro de mim?". O tema dos dois
mente atrás dos publicanos e dos pecadores, aqueles que, na irmãos aponta exatamente para a polaridade interna da nossa
opinião dos fariseus, estavam "perdidos". No agir da mulher, po- alma. Temos dentro de nós o filho mais novo, que gostaria de
rém, está descrito igualmente aquilo que Jesus opera na alma de viver, simplesmente, sem olhar para leis e medidas. E temos den-
cada um. Jesus acende a luz na casa das pessoas, para que cada tro de nós o irmão mais velho, o bem comportado, que se esfor-
um se reconheça a si mesmo, para que o olhar de cada um pene- ça para obedecer a todos os mandamentos. Deveríamos olhar para
tre nas profundezas de sua própria alma. Jesus varre o interior ambos os lados, e ligar entre si os dois pólos opostos dentro de
da alma, expulsando dela, por sua palavra, todos os demônios, nós. A parábola não levanta o dedo moralizante, mandando que
todos os padrões de vida que impedem o ser humano de viver. E me converta e faça penitência. Não, Lucas narra a parábola de

14 u i a
Jesus de tal maneira que não posso deixar de me fazer estas per- sim: "esbanjador é quem se arruína por seu modo de viver"
guntas: "Onde é que me obstinei? Onde é que me alimentei com (Heininger, p. 159). O filho decai de tal maneira que recorre a
coisas vis? Será que me perdi?" Enquanto leio a parábola, meu um cidadão, tomando-se dependente dele. O homem manda-o
coração me incita a voltar para o pai, para lá onde estou real- cuidar dos porcos, lá fora no campo. Para leitores judeus isso é
mente em casa. um sinal de que o filho se perdeu totalmente, desistiu de si mesmo
Da literatura grega, poderíamos citar muitos exemplos seme- e de sua dignidade. Foi parar junto aos porcos. Mas ele nem ga-
lhantes à parábola do filho pródigo. Lá encontra-se freqüente- nha as bolotas que os porcos comem. Depois de chegar no fundo
mente o tema da confissão de culpa de um filho ao seu pai, de- do poço, depois que tudo lhe foi arrancado das mãos, quando está
pois de ter gastado as economias do pai com uma mulher disso- sentado, vazio e fracassado, em cima dos cacos da sua existên-
luta, uma hetaíra. Plauto conta de um pai que perdeu seus dois cia, ai ele cai em si e começa a pensar. Ele, que se alienou, que
filhos. Reencontrando-os, ele faz uma festa. Desde Aristófanes são se entregou inteiramente em mãos alheias, entra de novo em
conhecidos, na tradição das comédias, "os dois irmãos: um bem contato consigo mesmo, volta para dentro de si. Encontrando-se
comportado; o outro, devasso" (Heininger, p. 151). Esses exem- consigo, ele começa um solilóquio que reflete fielmente a sua
plos mostram que Lucas deve ter seguido um curso de retórica. situação interna: "Quantos operários de meu pai têm pão de so-
Ele conhece a literatura grega, com seus romances, comédias, bra, e eu, aqui, estou morrendo de fome (apollymai, "perco-me",
tragédias e fábulas. Lucas lança mão de sua fonnação de retor para "estou sucumbindo"). Vou embora daqui (anastas, "levantar-se'',
estabelecer um contato direto com o leitor. E isso não vale ape- "ressurgir"); vou ter com meu pai, e lhe direi: 'Pai, pequei con-
nas para o leitor grego, mas igualmente para nós. Lucas acertou tra o céu e contra ti. Já não mereço ser chamado teu filho. Tra-
uma linguagem que atinge o coração de qualquer um. tfmguém ta-me como a um dos teus empregados"' (Lc 15,17s). Este soli-
conseguirá se subtrair à mensagem dessa parábola. lóquio pinta o estado de alma do filho, e de.i xa o leitor adivinhar
O filho está aborrecido com a vida acomodada na sua casa. o que ele está sentindo. O filho está prestes a desanimar com-
Ele exige do pai, desde já, a sua parte na herança. Ele quer viver pletamente. Mas uma voz interna o faz retomar. Ele não quer se
a própria vida, e sem demora. Isso corresponde à atitude de mui- perder. Ele quer viver. E o que ele viu, dentro de seu coração, isso
tos jovens de hoje. Querem simplesmente viver, sem limites e, se ele faz. Ele se põe a caminho para o pai. O pai sente dó, e sai
possível, sem demora. O filho mais novo parte para um país lon- correndo. Para um pai de farru1ia ter pressa era inconveniente.
gínquo. Nisso não há nada de condenável. Isso mostra que ele é Mas o pai não liga para o seu status. O filho é mais importante.
corajoso. Mas então ele esbanja os seus haveres "numa vida des- Por isso, ele vai ao encontro do filho, correndo, lança-se ao pes-
comedida". Otexto reza: zon asotos, ele vivia sem esperança, uma coço do filho, cobre-o de beijos. Nem deixa o filho acabar de fa-
vida infame, desregrada, depravada. Aristóteles define asotos as- lar, e manda logo que os empregados busquem a roupa do filho,

• 11 m i 17
que lhe ponham o anel no dedo e o sapato nos pés. Com isso o desanimar. Por mais que erremos o caminho, por mais que ten-
pai o recebe de novo, inteiramente, dentro da farru1ia. E ele manda temos matar a nossa fome com coisas vis, existe a volta para a
fazer uma festa: "Vamos comer; vamos ser alegres. Pois meu fi- casa do Pai, onde podemos realmente sentir-nos em casa, e onde
lho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi reencon- podemos ser integralmente aquilo que somos da parte de Deus:
trado" (Lc 15,23s). filhos e filhas do Pai celeste.
É para os fariseus e os doutores da Lei que Jesus conta a Mas o convite de Jesus aos pecadores encontra oposição. Na
parábola do filho pródigo. Escandalizou-os o fato de Jesus comer parábola aparece de repente o filho mais velho, que reage à ale-
com os pecadores (Lc 15,2). Nessa parábola ele nos conta não gria festiva com mau humor. O Antigo Testamento conhece a ira
apenas quem é Deus e como um ser humano pode mudar de rumo do piedoso, quando Deus tem misericórdia do pecador. Jonas, por
e achar a sua felicidade, mas interpreta também com ela o seu exemplo, reage com indignação à misericórdia de Deus para com
próprio modo de agir. Jesus toma a refeição com os pecadores a Nínive. E o salmista fala sobre a ira dos devotos diante do suces-
fim de tomar visível e eX1Jerimentável. aqui nesta terra, a mi- so dos maus (Sl 37,1). Cada um dos três personagens é caracteri-
sericórdia de Deus. Ele desceu do céu para anunciar o Deus mise- zado por seus sentimentos: o filho mais novo se arrepende, o pai
ricordioso, que tem compaixão de todos os que se perderam a sente compaixão e o filho mais velho fica com raiva. O filho mais
si mesmos, que morreram internamente, que se aliena.raro de si velho não representa apenas os fariseus, que se esforçam muito
mesmos. Comendo e bebendo com os pecadores, Jesus age por por obedecer aos mandamentos de Deus, mas cumprem muitas
ordem do Pai, e deixa a misericórdia divina aparecer concretamen- vezes os seus deveres sem descobrir a riqueza da vida que Deus
te. O que Jesus fazia nas refeições com os pecadores acontece lhes oferece. Todo leitor pode ver a si mesmo no filho mais ve-
também, no entender de Lucas, em cada celebração da Eucaris- lho. Freqüentemente consideramos nosso ideal cumprir todos os
tia. Aí Deus celebra conosco uma refeição festiva, na qual pode- mandamentos e fazer somente a vontade de Deus. Mas a raiva por
mos nos alegrar, juntamente com Cristo, porque estávamos mor- causa dos outros, que não ligam para os mandamentos. mostra
tos, mas voltamos à vida novamente; estávamos perdidos, mas que o nosso bom comportamento não nasce de motivos puros, e
reencontramo-nos. Assim Jesus, nessa parábola, descreve também que não nos torna felizes. Freqüentemente, o que está atrás dis-
a sua própria missão. Ele se entende como aquele que chama so é o medo de viver. Quando, então, o filho mais novo encarna
novamente à vida os que estavam internamente mortos, evoca e vive as nossas sombras (a vivacidade reprimida), ficamos indig-
neles a vida. E ele entende ser sua tarefa buscar os que se perde- nados. Os motivos inconscientes que levaram o filho mais velho
ram, os que sucumbiram. Com essa parábola Jesus quer desper- a permanecer em casa, a ser bonzinho e bem adaptado, tornam-
tar a esperança da vida naqueles que desanimaram de si mesmos. se patentes nas suas palavras ao pai: "J á faz tantos anos que eu
Também para eles um novo rumo é possível. Não há motivo para te sirvo sem jamais ter desobedecido às tuas ordens; e nunca me

• 11011 ser fe a
deste um cabrito sequer para festejar com meus amigos. Mas outro em correção ansiosa. O Pai misericordioso nos convida a
quando chegou este teu filho, que esbanjou teus bens com pros- viver, a festejar com alegria, para que encontremos a vida den-
titutas, mataste o bezerro gordo para ele". Não foi por generosi- tro de nós, e nisso nos alegremos.
dade que esse filho cumpriu a vontade do pai; queria ser reco-
nhecido por isso. Ficou esperando, secretamente, que o pai o
premiasse por ter ficado em casa, e que o preferisse ao filho mais A••rã•111 ~11en1te 1stlb
novo. Por trás da fachada da boa conduta podemos perceber fan- Quero comentar rapidamente uma outra parábola exclusivamen-
tasias sexuais recalcadas, pois, quando ele censura o irmão por te lucana, a do gerente astuto (Lc 16,1-8). Ainda hoje, ela é ca-
ter dilapidado os seus haveres com prostitutas, isso não é con- paz de provocar o leitor. Quando tento explicá-la num grupo, sem-
firmado pela narrativa. Isso corresponde à sua própria fantasia. pre surge algum protesto. Como é que Jesus pode aprovar uma
No irmão mais velho, Lucas descreve o nosso lado escuro, que não fraude? Aqui percebemos como Jesus é habilidoso na arte de mexer
poucas vezes se esconde por trás de uma fachada devota. com o leitor. Ao provocar o ouvinte, Jesus o seduz para ir além
Também ao filho mais velho o pai se dirige com muito amor: da posição segura da sua religiosidade. Exatamente lá onde uma
"Meu filho, tu sempre estás comigo, e tudo o que é meu é teu. parábola nos escandaliza, somos desafiados a questionar e corri-
Mas agora temos que nos alegrar, e fazer festa. porque teu ir- gir o nosso modo de pensar sobre Deus e os homens. Com essa pa-
mão estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi reencon- rábola sobre o administrador velhaco, que dribla seu patrão, Jesus
trado" (Lc 15,31s). É uma frase cheia de ternura, essa resposta sem dúvida provocou gozação entre os seus ouvintes, que deve-
ao filho mais velho. Entretanto, o pai lhe chama a atenção: "esse mos procurar sobretudo entre os pobres. Mas não se trata disso.
teu filho" também é irmão dele. Se o seu irmão, que tinha erra- Trata-se da questão: Como é que nós lidamos com as nossas cul-
do o caminho, foi reencontrado, e se aquele que estava morto pas? Queiramos ou não, nós contraímos "dividas", isto é, culpamo-
tomou a viver, então isso é motivo suficiente para fazermos uma nos de alguma coisa, ou somos inculpados. Não há jeito de tirar-
festa alegre. mos o corpo fora. A questão é: Como reagimos a isso? Vamos sen-
Ninguém poderá ler essa parábola sem entrar em contato com tir vergonha o resto da vida, vestindo roupas de penitente, con-
seus próprios desejos e necessidades, anseios e emoções. Os dois forme o gerente delibera consigo mesmo no seu solilóquio? En-
filhos revelam coisas escondidas no fundo de nossa alma. E am- tão todos vão falar mal de nós, e ficaremos sempre pedindo es-
bos lembram-nos a misericórdia do Pai. A ele podemos recorrer, molas. A outra possibilidade de reagir à divida seria dar duro,
quer sejamos o filho mais novo ou o mais velho, o desregrado ou trabalhar cerrando os dentes, a fim de doravante fazer tudo di-
o correto. o atrevido ou o adaptado. Ambos estavam mortos e reitinho e cumprir rigorosamente todos os mandamentos. Mas
perdidos, cada um à sua maneira, um numa vida desregrada, o ambos esses caminhos levam a um beco sem saida. O gerente, no

11 m n
seu solilóquio, encontra um terceiro caminho, que Jesus aprova.
Em vez de querer pagar, penando, a sua dívida a Deus, ou de querer
morrer de vergonha, deveríamos nos aproveitar da dívida como
chance para entrarmos em contato com os outros. A culpa nos
convida a nos relacionar mais humanamente com os outros. O 1 Jesus,
gerente faz a única coisa possível: ele chama os vendedores e reduz
a sua dívida. Assim ele tem esperança de que o receberão nas suas
casas. Ele lida criativamente com a própria dívida. Ele usa a ima-
1odelo de oração
ginação para resolver o seu problema da melhor maneira possí-
vel. Jesus elogia a astúcia do gerente velhaco: "Os filhos deste
mundo são mais avisados no trato com seus semelhantes do que
os filhos da luz" (Lc 16,8). A expressão "filhos da luz" lembra os
essênios, que eram muito piedosos, mas expulsavam sem dó a
todos os que transgredíam as suas normas. Na comunidade cristã Como nenhum outro evangelista, Lucas des-
não deve ser assim. Os cristãos não devem se excluir uns aos ou- creve Jesus como alguém que sempre orava.
tros; devem receber nas suas casas quem se toma culpado. Jesus Jesus é o grande orante. Nos mais importan-
fala aqui sobre a culpa em termos muito simples e realistas. Na tes acontecimentos de sua vida ele ora. Ele
Igreja ainda não chegamos a entender a sua linguagem, tão aberta ;::~llllMllN•liliilii• ora antes de tomar decisões. Sempre de novo
e clara. Exatamente ao se tratar de culpa, corremos o perigo de ..,~1'11114 Jesus se retira para lugares ermos, a fim de
rebaixar e desvalorizar as pessoas. Impingimos-lhes sentimentos orar ao Pai. Quando Lucas escreve sobre Jesus
de culpa para que, contritos, exibam arrependimento. Com Jesus como orante, ele sempre já pensa também na
fé do cristã9, para quem a oração é sobretu-
podemos aprender a falar de outra maneira sobre culpa e senti-
do o caminho para agüentar as aflições des-
mentos de culpa. Jesus quer nos mostrar um caminho para apren-
ta vida. Assim como Jesus supera os seus so-
dermos a lidar com a nossa culpa sem perder a auto-estima.
,..._.liiií.i[I frimentos pela oração, também o cristão
__._... deve se agarrar a Deus na oração, a fim de,
.~!ili!lll..iillllll~..-1 através de todas as aflições. chegar à glória
celeste. A oração é o caminho para o cristão
se exercitar na atitude de Jesus, e ficar com-
.......~ penetrado de seu espírito.

n 1Wll ser
Jesus mostra o que também para nós poderá acontecer na liberdade. O que os outros pensam de nós já não é tão importante.
oração. Na hora de seu batismo Jesus ora, e o céu se abre acima Elias é o profeta. Na oração descobrimos a nossa missão profética,
dele (Lc 3,21). Isso é uma bela imagem do efeito da oração. Quan- adivinhamos que com a nossa vida podemos expressar algo que
do oramos, o céu se abre acima de nós. Na oração o Espírito San- somente através de nós pode se tomar visível neste mundo. Na
to desce sobre nós. E na oração experimentamos que Deus nos oração - assim nos ensina o relato da transfiguração de Jesus -
ama incondicionalmente. Na oração reconhecemos quem, na ver- entramos em contato com o nosso "eu" verdadeiro, e então a glória
dade, somos. Depois de curar o leproso, e quando de toda parte o de Deus reluz em nós. Verdade é que aquilo que experimentamos
povo vinha afluindo, Jesus "se retirou para um lugar solitário e orando não pode ser segurado. Escapa-nos sempre de novo. Uma
se entregou à oração" (Lc 5,16). A oração é um lugar protegido, nuvem escurece novamente a nossa visão, e com apenas a lem-
para onde podemos nos retirar, a fim de estarmos abrigados do brança dessa luminosa experiência temos de voltar para o vale,
barulho do mundo e das expectativas dos homens. Antes de es- muitas vezes nebuloso, do nosso dia-a-dia.
colher, entre os seus discipulos, os doze apóstolos, ele passou a É na história da Paixão que Lucas nos pinta a fase mais in-
noite toda no monte, orando a Deus (Lc 6,12). A oração nos ca- tensa do orar de Jesus. No monte das Oliveiras a oração de Jesus
pacita para tomarmos boas decisões. Antes de Pedro professar sua é uma luta com a vontade de Deus. Aparece-lhe então um anjo
fé no Messias, Jesus orou, com os discipulos, num lugar afastado do céu, fortalecendo-o. Orar nem sempre é somente uma expe-
(Lc 9,18). Evidentemente foi na oração que ele se preparou para riência de paz. Pode ser também uma luta dolorosa com a von-
introduzir os discipulos no mistério de sua Paixão e no caminho tade de Deus. Mas Deus manda o seu anjo para dar nova força a
da imitação da Cruz (Lc 9,18-26). quem ora. O anjo, porém, não preserva Jesus da angústia. Jesus
Só Lucas relata que Jesus, na hora de sua transfiguração, ora- se sente agoniado. Ele sua de ansiedade. Mas é exatamente agora
va. "Enquanto orava, o aspecto de seu rosto mudou, e suas ves- que ele ora ainda com mais instãncia (Lc 22,44). Ao narrar a cena
tes se fizeram brancas e resplandecentes" (Lc 9,29). Na oração en- da oração de Jesus no monte das Oliveiras, Lucas nos lembra da
tramos em contato com a nossa verdadeira essência. Aí tudo o que dificuldade que muitos têm com a oração, também hoje. Ao orar,
é superficial é eliminado. Desfaz-se a máscara por atrás da qual sentimo-nos muitas vezes no escuro. Temos a impressão de que a
nos escondiamos. "Transfiguração" significa que transparece o es- nossa oração se perde num vazio, de que para nada serve, pois
sencial. a nossa original beleza. O brilho divino que existe den- não acontece nada. Deus se esconde atrás de um muro espesso,
tro de nós irradia do nosso rosto. Então reconhecemos que somos parece ficar calado. E, como não conseguimos aproximar-nos de
a glória de Deus. Enquanto Jesus é transfigurado, aparecem Moi- Deus, pode nos acontecer o que aconteceu com os disópulos. Ador-
sés e Elias. Moisés é o legislador e o libertador. Quando oramos, a mecemos. A nossa oração adormece. E Jesus tem de nos sacudir:
nossa vida se ordena, e experimentamos em Deus a verdadeira "Levantai-vos e orai, para não cairdes em tentação" (Lc 22,46).
As mesmas aflições que se apoderaram de Jesus podem nos atin- JeHs Hsi11 anr
gir: solidão, pavor, abandono, angústia, dores. A oração é para Se a oração de Jesus tinha força para curar e libertar, não é de
nós o caminho para resistirmos, como Jesus, às tentações, e para admirar que os discípulos lhe peçam: "Senhor, ensina-nos a re-
nos agarrarmos a Deus, mesmo na aflição mais aguda. zar" (Lc 11,1). Em Lucas, Jesus mostra aos seus discípulos não
Sem dúvida foi a oração no monte das Oliveiras que deu a apenas o que devem rezar, mas sobretudo como e em que atitude
Jesus a força para suportar até o fim o caminho da sua Paixão. devem fazê-lo. -Nas palavras do Pai-nosso, Jesus diz aos disópu-
Deu-lhe a certeza de que mesmo na morte ele não poderia cair los o que os cristãos devem pedir a Deus. Muitos exegetas julgam
da mão bondosa de Deus. A oração de Jesus culmina no seu orar que Lucas guardou a versão original do Pai-nosso. Lucas tem sem-
na cruz. Pregado na cruz, Jesus ora não somente por si mesmo, pre muito respeito pelo teor original das palavras de Jesus: "Pai,
mas também pelos seus assassinos: "Pai, perdoa-lhes; não sabem santificado seja o teu Nome, venha o teu Reino, o pão necessário
o que fazem" (Lc 23,34}. E Jesus morre com uma palavra de ora- nos dá para cada dia, perdoa-nos os nossos pecados, pois nós
ção nos lábios. É um versículo do Salmo 31, a oração que se reza- também perdoamos as faltas dos outros, e não nos deixes entrar
va antes de deitar. Como judeu piedoso, Jesus reza no fim de sua em tentação" (Bovon, p.118} Jesus sempre se dirigiu a Deus com
vida: "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito". Às palavras do a palavra "Pai". Na oração que ele nos ensina, ele nos faz partici-
salmo Jesus acrescenta Abbá, "meu pai". Mesmo na cruz ele se par da sua relação com o Pai. O "Nome" é a realidade de Deus,
dirige a Deus com a palavra carinhosa Abbá. É nas mãos amoro- que deve ser "santificada". Ela deve se tomar visível no nosso
sas de seu Pai que ele entrega o seu espírito. Na moffi!, ele volta mundo, e reconhecida por todos. O Reino é o domínio de Deus.
ao Pai. A oração lhe transfigura a morte. Apesar dos horrores que Deve se estabelecer no mundo, mas também dentro de nós. Quan-
sofre, Jesus continua em oração, mantendo-se ligado a Deus no do a imagem de Deus resplandece no fundo do nosso coração,
meio da mais terrível angústia. Sim, estar ligado a Deus livra-o então o Reino de Deus veio a nós (Bovon, p. 128}. O pão que de-
do poder dos homens. Nem os seus assassinos podem triunfar vemos pedir não é apenas o pão material, mas ao mesmo tempo
sobre ele. A oração o eleva para um outro mundo, em que não o pão da amizade, da comunhão. E é o pão celeste, divino. É o
podem penetrar os gritos de seus algozes. A oração, portanto, pão vivo da Eucaristia. No pedido de perdão, Lucas substitui a
acompanhou Jesus desde o início de sua atividade pública até o palavra "culpa" por "pecados". Pois a palavra grega para "divida"
seu fim na cruz. Isso nos mostra em que é que Jesus encontrava ou "falta" não se refere à violação de mandamentos divinos. Os
a sua firmeza. E revela que foi pela força da oração que Jesus pôde pecados (hamartias) são faltas, oportunidades perdidas, fins não
seguir o seu caminho, mesmo através da pior aflição, que é a realizados, omissões (Bovon, p. 134}. O último pedido não signi-
morte, porque acima de todo o seu sofrimento o céu estava aber- fica que podemos ficar preservados de tentações, mas que nelas
to, e ele se sabia unido com o Pai. Deus nos protege. O Pai-nosso aramaico, porém, deve ter enten-

11 11flll m Jms fe 11
d.ido esse pedido no sentido de "Faze com que não entremos em a parábola no sentido da filosofia grega: nós, cristãos, somos os
tentação" (id., p. 136). Também os gregos não pensavam que o amigos de Deus (Grundmann, p. 234). Orar significa falar com
próprio Deus introduzisse em tentação. Mas o ser humano não Deus como se fala com um amigo. Podemos pedir a Deus sem sentir
fica preservado de tentações. Que Deus nos dê a força para não vergonha, assim como se pede a um amigo. E ele não deixará de
entrarmos nas tentações de tal maneira que nelas pereçamos. Com atender, pois a amizade entre Deus e nós é muito mais firme ain-
a sua versão do Pai-nosso, Lucas se dirige a recém-convertidos. da do que aquela entre os homens.
Eles recitavam a oração em memória das palavras de Jesus. Tor- Somente Lucas narra-nos a parábola do amigo que acaba
nou-se para eles o componente mais importante da sua religiosi- cedendo. Como grego, Lucas gosta da palavra "amigo". Enquanto
dade. Com.essas palavras eles entravam em contato com o espí- Marcos e Mateus só usam uma vez a palavra "amigo", encontramo-
rito de Jesus, com a sua relação pessoal com Deus. A Didaqué, la dezoito vezes em Lucas. Para os gregos, a amizade era um va-
que surgiu no fim do século I. prescreve a todo cristão que reze lor muito alto. "Os gregos são considerados o povo clássico da
o Pai-nosso três vezes por dia. E em cada celebração da Eucaris- amizade" (RAC, p. 418). Sócrates e Platão escreveram sobre a
tia era rezada antes da comunhão. Antes de recebermos o Corpo amizade. É somente entre pessoas boas que a amizade é possí-
de Cristo, unimo-nos com seu espírito, que exatamente no Pai- vel. No evangelho de Lucas, Jesus chama seus discípulos de ami-
nosso se exprime da maneira mais clara. gos (Lc 12,4). A comunidade em Jerusalém é descrita por Lucas
Com duas parábolas, que ele coloca logo depois do Pai-nos- como sendo uma associação helenista de amigos. Assim, é com-
so, Lucas esclarece como e com que atitude interna devemos orar. preensível que Lucas aplique a imagem da amizade à nossa rela-
A parábola do amigo que acaba cedendo (Lc 11,5-8) nos faz ima- ção com Deus. O mistério da amizade só se revela quando, na
ginar um lugarejo palestinense sem lojas. Cada casa produz seus oração, experimentamos Deus como nosso amigo que nos dá aquilo
próprios alimentos. Então alguém recebe uma visita, altas horas de que precisamos para a vida e para o amor.
da noite, e não tem nada a oferecer a ela. Isso ele lamenta - no A segunda parábola esclarece o que significa ter Deus como
Oriente e na Grécia, a hospitalidade é a melhor coisa do mundo. pai. Todo pai sabe o que é bom para os seus filhos. No seu cora-
Por isso ele vai à casa de seu amigo, e bate na porta. Ele sabe das ção, o ser humano é realmente bom. Todo pai cuida dos seus fi-
dificuldades que está causando ao amigo, pois ele terá de se le- lhos. Não lhes dará uma pedra em lugar de um pão, ou uma co-
vantar e abrir a porta, trancada com uma trave. O barulho que bra em vez de um peixe, ou um escorpião em vez de um ovo. Aí
fará afastando a trave há de acordar os meninos. A hospitalida- Jesus faz um apelo ao sentimento de honra das pessoas. "Tais
de, porém, é um dever sagrado. Ele vai se levantar, portanto, e exemplos, atribuídos a um pai, cortam o coração de qualquer leitor
dar ao amigo que pede tudo de que precisa. Com essa parábola ou leitora" (Bovon II, p. 155). Deus é nosso bom pai. Ele sabe o
Lucas quer nos dizer que Deus é nosso amigo. E Lucas interpreta que nos faz bem. Não nos decepcionará; não nos dará nada que

n li su Jem i 11
possa nos prejudicar. Ele nos dará aquilo que pode nos alimen- tem consideração por nenhum ser humano. A viúva, porém, pode
tar. Agostinho dá às três dádivas uma interpretação simbólica. O ser interpretada também como significando qualquer pessoa hu-
pão significa o amor; o peixe, a fé; e o ovo, a esperança. Um bom mana. Então ela simboliza a situação pessoal de quem é ameaça-
pai não dará, no lugar do pão do amor, a pedra da dureza e da do por inimigos, de quem é lesado pelos outros sem saber se de-
rejeição. Ele acredita no seu filho, e não o fere como uma cobra. fender. A mulher que perdeu o marido é, pois, uma imagem de
E ele lhe dará esperança, e nunca o há de envenenar com a sua pessoas em situação melindrosa, indefesas, expostas às emoções
amargura ou com sentimentos de culpa. Deus é o pai bondoso, causadas pelo seu ambiente. Não têm proteção, tudo o que é
que nos dará a melhor dádiva que ele tem para dar: o Espírito negativo ao seu redor as atinge. A mulher, desde sempre, é tam-
Santo. No Espírito Santo ele nos dará a si mesmo. Aí ele estará bém imagem da alma, do interior do ser humano, daquilo que faz
perto de nós. O Espírito Santo cura as nossas feridas, se porventura adivinhar a sua dignidade divina. Os inimigos são as exigências
o nosso próprio pai nos entregou a pedra, a cobra ou o escorpião, da vida, que nos impedem de viver, são as nossas fraquezas, que
machucando-nos profundamente. Para Lucas, a oração é o lugar nos dão trabalho, e as feridas que a vida nos infligiu. O juiz, que
onde podemos experienciar até a cura de feridas que um pai ou não se incomoda nem com Deus nem com os homens, simboliza
uma mãe nos tenham causado. o superego, a instãncia interior que gostaria de nos rebaixar, que
não se interessa pelo nosso bem-estar. Para ele só valem normas
e principias. A alma deve ficar quieta, contentando-se com o que
1liín 11 jtiz .... encontra à sua frente. Embora aparentemente fraca, a mulher luta
No capítulo 18 Lucas continua seus ensinamentos sobre a oração. para si mesma. Sempre de novo ela procura o juiz e o intima:
Como pendant, ele traz uma parábola em que uma mulher é a "Faze-me justiça contra o meu adversário!" (Lc 18,3). O juiz fica
figura central Isso corresponde à sua tendência, em todos os monologando - novamente o recurso estilístico das comédias
assuntos importantes, de dizer alguma coisa tanto do lado da gregas -: "Não temo a Deus, e aos homens não respeito; mas vou
mulher como do lado do homem. Também sobre a oração Lucas fazer justiça a esta viúva, pois ela não me deixa em paz. Senão,
só sabe falar adequadamente trazendo exemplos do mundo mas- ela ainda acaba me batendo na cara" (Lc 18,5). A palavra grega
culino e do mundo feminino. No capítulo 11, Lucas entendia a significa literalmente "Bater no olho, contundindo-o" (Heininger,
oração como realização do amor divino; no capítulo 18, ele fala p. 202). O ouvinte talvez sorria porque este poderoso juiz tem
sobre a oração na situação angustiante antes da vinda do Filho medo da viúva fraca, de ela lhe machucar o olho. Mas é exata-
do Homem. A mulher, ameaçada como viúva por um adversário, mente com esse monólogo do juiz que Lucas convence o leitor a
simboliza a comunidade cristã ameaçada, que se dirige sem re- confiar no aparentemente tão fraco recurso da oração, que tem
sultado à autoridade estatal Pois o juiz não teme a Deus, e não mais poder do que todos os aparentemente poderosos. Na oração

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o ser humano alcança o seu direito. Ele tem direito de viver, di- ração para a oração é curta. Ele siinplesmente chega e começa a
reito de ser ajudado, direito de viver dignamente. Na oração po- orar. O publicano, porém, pára na entrada, não tem coragem de
demos experienciar que ninguém tem poder sobre nós. Assim levantar os olhos e bate no próprio peito. Ele expressa a sua
como os assassinos não puderam triunfar sobre Jesus que orava oração sobretudo corporalmente. O fariseu, na sua oração, fica
na cruz, assim também aqueles que nos afligem não têm poder girando em tomo de si mesmo. Ele se aproveita de Deus para ilus-
sobre nós. Interpretando a viúva como imagem da alma, isso sig- trar a si mesmo devidamente. Para ele, o que importa não é Deus,
nifica: na oração experimentamos que a alma tem mais direitos mas sua própria perfeição. O texto grego diz literalmente: "Ele
do que as vozes do superego, que gostariam de nos manter pe- orava a si mesmo". Ele usa estas palavras: "Deus, agradeço-te
quenos. Na oração a alma floresce, cria asas. E entramos em con- porque não sou como os outros" (Lc 18,11). Mas, a bem dizer,
tato com o nosso verdadeiro "eu", com a imagem original de Deus ao orar, ele não sai de si mesmo. Ele não olha para Deus, mas
em nós. O mundo não pode perturbar e muito menos destruir a exclusivamente para a sua própria pessoa. Muitas pessoas pie-
imagem de Deus na nossa alma. dosas pensam que rezam a Deus. Mas ficam dentro de si mesmas,
oram a si mesmas, adoram a si mesmas. Abusam da oração para
demonstrar sua própria grandeza, para se colocar sob a devida
1hrisH e1 ~·~liCHI luz diante de Deus e dos homens. O publicano, porém, sente quão
Lucas sabe de um perigo que corremos na vida espiritual: o de longe se encontra de Deus. Ele reconhece, diante de Deus, quem
nos imaginar perfeitos. Ele fala de um orar incessante. Mas uma ele realmente é. Por isso ele bate no próprio peito e reza: "Ó Deus,
imagem tão idealizada da oração sempre tem também um rever- tem compaixão do pecador que eu sou" (Lc 18,13). Depois o
so. Corremos, então, o perigo de nos colocar acima dos outros próprio Jesus faz o seu comentário sobre essas duas maneiras de
na própria oração. Sentimo-nos, então, superiores aos demais. orar. O publicano, depois da sua oração, vai para casa como um
Na parábola do fariseu e do publicano, Lucas nos alerta contra o justo. Ele reconheceu diante de Deus a sua própria verdade, e
perigo de uma idealização unilateral, e mostra-nos o pólo opos- apresentou-lha, cheio de arrependimento. O fariseu valeu-se de
to (Lc 18,9-14). A oração do fariseu é uma piedosa auto-espelha- Deus apenas para se exibir. Somente aquela oração em que nos
ção. Gira somente em tomo de si mesmo. Nesta parábola Lucas apresentamos a Deus sem dó de nós mesmos há de nos orientar
nos pinta duas maneiras de orar: a oração do fariseu, satisfeito para Deus, tomando-nos justos.
consigo mesmo, e a oração do publicano humilde. Do ponto de Na sua doutrina sobre a oração, Lucas não nos transmite
vista puramente material, já há diferença entre a oração do fa- apenas as palavras de Jesus sobre o assunto. A própria persona-
riseu e a do publicano. A do fariseu é longa; a do publicano se lidade do autor transparece também. Lucas não é apenas o "lite-
destaca pela sua brevidade. Por outro lado, no fariseu a prepa- rato aberto para o mundo, consciente de seus problemas, que sabe

n 1 su mu a
tomar o pulso de seu tempo" (Ernst, p. 147), ele é também um
homem piedoso. A oração é para ele o lugar onde se encontra com
Deus e se identifica sempre mais com o espírito de Jesus. A ora-
ção, para ele, é também experiência de ressurreição. Isso Lucas
nos descreve nos Atos dos Apóstolos, onde ele fala vinte e cinco
vezes sobre a oração. A Igreja primitiva era uma comunidade oran-
Jesus c1111
te. Quando a comunidade orava, o local onde estava reunida es-
tremecia, e "todos ficavam repletos do Espírito Santo" {At 4,31).
~ divino viandante
Quando Pedro estava na prisão, a comunidade orava "sem cessar
a Deus em sua intenção" (At 12,5). Deus manda seu anjo para
Pedro, e as correntes se desprendem das suas mãos, e a porta se
abre. Na oração podemos eXlJerimentar a proteção e os cuidados
amorosos de Deus no meio das aflições da nossa vida. Na oração
participamos do espírito de Jesus. Nela aprendemos a nos voltar O que diferencia o evangelho lucano de seu
para o Pai, como Jesus. Na oração Deus está junto de nós, como modelo em Marcos é o chamado "Relato da
pai e amigo. Na oração experimentamos que temos direito à vida. viagem", que vai de Lucas 9, 51 até Lucas
Somente quem ora entende o que Jesus quis transmitir com a sua 19,27. Nesse relato, Lucas pinta Jesus como
mensagem e a sua vida. É orando que nos identificamos cada vez ~=~~l1~~~==~ aquele que está a caminho para Jerusalém,
mais com o espírito de Jesus. É orando que experimentamos a ll:..,:,j~...... a cidade na qual deverão se cumprir todas
redenção, pois na oração os poderes deste mundo são destrona- as promessas de Deus. O caminho para Je-
dos, e os sentimentos de culpa perdem a sua força. Então os se- rusalém, no entanto, é para Jesus também
pulcros se abrem, e ressuscitamos com Cristo para a vida verda- o caminho para o sofrimento, a morte e a
ressurreição. No seu "Relato da viagem" Lu-
deira, para a vida em Deus.
cas descreve o caminho de Jesus como exem-
plo para o nosso caminho. Jesus é o guia da
vida. Ele nos precede. A nossa tarefa consiste
em segui-lo. Assim também o nosso caminho
há de nos levar à verdadeira vida.
Não apenas no "Relato da viagem", mas
.'-.,~l.';i~~~ em todo o seu evangelho Lucas descreve

14 11Rl1 szr a
Jesus como o viandante divino. Jesus desce do céu para andar de divino, ele traz como presentes de hóspede: saúde e paz, gra-
com os homens, e para sempre de novo ser recebido nas suas casas. ça (charis) e alegria. Na refeição, Jesus não apenas fala da bon-
É um tema tipicamente grego. Os mitos gregos narram sobre deu- dade e da gentileza de Deus, ele as comunica pela sua presença,
ses que aparecem em fonna humana, e visitam os homens a fim pelo fato de comer e beber junto com os festejantes. Nenhum
de sondar sua mentalidade, e para lhes dar presentes. Lucas re- outro evangelista relata tantas refeições como Lucas. É um tema
toma esse tema, mas é para transfonná-lo. Jesus não examina os tipicamente grego. Xenofonte e Platão desenvolvem a sua filo-
humanos; ensina-os e prova-lhes a amorosa atenção de Deus. Em sofia por ocasião de refeições. Lucas retomou esse tema. É so-
Jesus, é o próprio Deus quem visita os humanos. Já se ouve duas bretudo na hora da refeição que Jesus ensina. É na refeição que
vezes o tema da visita de Deus no hino de Zacarias: "Visitou seu ele mostra a bondade de Deus em procurar os pecadores, como
povo, preparando-lhe a redenção" (Lc 1,68); "A misericordiosa na refeição com o publicano Levi e seus amigos (Lc 5,27-32), e na
ternura de nosso Deus há de nos mandar do alto a visita do sol refeição na casa de um fariseu, onde de repente entra a pecado-
nascente" (Lc 1, 78). Na ressurreição do jovem de Naim o povo re- ra para ungir os pés de Jesus. A ela Jesus garante explicitamente
conhece: "Um grande profeta se ergueu no meio de nós, e Deus o perdão divino (Lc 7,48). A parábola do filho pródigo, no centro
visitou seu povo" (Lc 7,16). do evangelho, é narrada por Jesus durante um banquete (Lc 14 e
O sentido literal da palavra grega episkeptomai, "visitar'', se- 15). E ele a narra para fundamentar as suas refeições junto com
ria "ver", supervisar", "olhar para", "observar". Na imaginação dos os pecadores (Lc 15,1-2). À última refeição de Jesus com seus dis-
gregos, portanto, foi em Jesus que Deus veio para esta terra, a ápulos Lucas dá a forma de um simpósio. Jesus conversa com os
fim de observar o ser humano mais cuidadosamente, e para lhe disápulos sobre o essencial da fé e do discipulado. Também de-
proporcionar um horizonte mais amplo. Jesus veio do céu para pois da ressurreição, Jesus aparece aos disópulos na hora da re-
junto de nós a fim de nos lembrar do nosso núcleo divino. Isso é feição. Na maravilhosa narrativa sobre Emaús, Jesus é até o vian-
um tema da filosofia grega. Cada ser humano é uma idéia de Deus. dante que caminha junto com os disápulos, e depois janta com
Mas nós obscurecemos e desfiguramos essa idéia. Jesus veio até eles. O ressuscitado anda também conosco, muitas vezes sem ser
nós, da parte de Deus, e ele olha para nós, para que nos tome- reconhecido. Mas quando estamos juntos para partir o pão ele está
mos novamente capazes de nos enxergar direito, de descobrir em presente no nosso meio. Ai o hóspede divino está conosco para
nós o núcleo divino e de entrar assim em contato com a nossa nos presentear com as dádivas do seu amor, e para nos lembrar
verdadeira essência. de que somos filhos e filhas de Deus, de que temos uma digni-
O segundo tema ligado à imagem do viandante divino é o das dade divina e um núcleo divino.
visitas que ele faz às casas dos homens. Jesus sempre volta a vi- Lucas gosta da preposição syn, "com". Estamos a caminho com
sitar as pessoas para tomar com elas uma refeição. Como hóspe- Jesus, ele nos leva consigo no caminho da transfonnação. Jesus

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quer nos formar de acordo com a sua própria imagem. Lucas mos- guia, ele nos abre o caminho para a verdadeira vida. É pelo tema
tra isso sobretudo nos Atos dos Apóstolos. O tema do viajar ca- do caminho, do caminhar, que Lucas nos indica como ele enten-
racteriza a atividade dos disópulos de Jesus. Os apóstolos viajam de a redenção por Jesus. Lucas evita noções como expiação e
pelo Império romano para levar adiante a mensagem de Jesus. Na sacrifíóo, que seriam incompreensíveis para os gregos. E nós, hoje
força do espírito de Jesus, e repletos dele, eles levam a salvação em dia, também temos problemas com semelhantes idéias. Mas
de Deus aos homens. Se Jesus andou da Galiléia até Jerusalém a que Jesus nos precede, e abre para nós o caminho para a vida,
fim de lá cumprir o seu destino e com isso as promessas de Deus, isso podemos entender muito bem. Desde sempre os homens en-
os discípulos de Jesus viajam de Jerusalém a Roma, a capital do tenderam a sua vida como sendo um caminho. Nas tradições es-
Império romano. O centro do mundo é iluminado pela alegre men- pirituais conhecemos as diversas espiritualidades que nos con-
sagem de Jesus. A história de Jesus só se realizará plenamente duzem a Deus. Como seres humanos estamos sempre a caminho.
quando o mundo inteiro estiver compenetrado pelo espírito de Não podemos ficar parados. E caminhando é que nos transfor-
Jesus. A reação do povo aos discípulos de Jesus é semelhante à mamos. Jesus entende a sua própria vida como um caminhar per-
sua reação a Jesus. Todos têm a impressão de que nos discípulos manente: "É preciso que eu caminhe hoje, amanhã e depois de
o próprio Deus os visita. Quando Paulo, em Listra, cura um para- amanhã" (Lc 13,33). O fim da sua peregrinação é Jerusalém: "Pois
lítico, o povo pensa que os deuses desceram em forma humana não é possível que um profeta pereça fora de Jerusalém" (Lc
{At 14, 1 ls). E quando Paulo sacode uma viôora que o mordeu e a 13,33). Descrevendo o caminhar de Jesus até Jerusalém, o lugar
joga no fogo sem ela lhe fazer mal, os nativos de Malta pensam: do seu sofrimento, Lucas quer animar-nos para que, através de
"É um deus!" (At 28,6). todas as aflições que nos atingem no nosso caminho, caminhe-
No seu grande "Relato da viagem", Lucas descreve a ida de mos sempre cheios de confiança e coragem. Pois também a nós
Jesus para Jerusalém. "Quando os dias de seu arrebatamento de- a glória de Deus espera. Também nós seremos, na morte, eleva-
viam se cumprir, Jesus tomou resolutamente o caminho para Je- dos para o Reino de Deus, para o céu. A morte e ressurreição de
rusalém" (Lc 9,51). A palavra "arrebatamento", típica de Lucas, Jesus quer nos livrar do medo que sentimos diante dos perigos,
não significa apenas a ascensão, mas a unidade indivisível en- diante das nossas crises vitais, diante do fracasso e do despeda-
tre a morte, a ressurreição e a entrada no céu. Nessa elevação, o çar-se dos nossos projetos de vida. Tudo isso são apenas as afli-
caminho de Jesus chega ao seu fim. Ele desceu do céu, agora é ções através das quais, em comunhão com Jesus, prosseguire-
elevado novamente até dentro do céu. Mas o caminho para esse mos até a glória de Deus.
fim passa pelo sofrimento, pela morte. Isso vale também para nós, No seu caminho, Jesus é acompanhado não apenas por homens,
que com (syn) Jesus chegaremos ao Reino de Deus através de. mas também, igualmente, por mulheres. Somente Lucas nomeia
muitas tribulações {At 14,22). Jesus é o guia para a vida. Como expliótamente algumas mulheres como acompanhantes de Jesus:

a e111 fmu a
Acompanhavam-no os Doze, como também algumas mulheres que ti- mortos; tu, porém, vai e anuncia o Reino de Deus". Um outro ainda
nham sido curadas de espíritos malignos e enfermidades: Maria, dita de
Mágdala, da qual haviam saído sete demônios; Joana, mulher de Cuza, lhe disse: "Eu vou te seguir, Senhor, mas primeiro permite-me
um intendente de Herodes, Susana e muitas outras. Todas elas ajudavam despedir-me de minha família". Jesus lhe respondeu: "Quem põe
Jesus e os disópulos com aquilo que possuíam (Lc 8,1-3).
a mão no arado e olha para trás não é apto para o Reino de Deus"

As mulheres acompanham Jesus até sua morte na cruz. E elas (Lc 9,57-62). São três imagens do "seguir" que Lucas nos descreve
aqui. Seguir Jesus significa que não temos aqui uma morada per-
são as primeiras a correr para o sepulcro, onde se encontram com
os anjos que lhes anunciam a ressurreição de Jesus: "Por que manente. Nem a família, nem a nossa casa oferecem-nos um ni-
procurais o vivente entre os mortos? Ele não está aqui; ressur- nho que nos possa servir de esconderijo. Nós, seres humanos, te-
giu. Lembrai-vos como ele vos falou quando estava na Galiléia" mos um cerne divino que nos impele para frente, no nosso cami-
(Lc 24,5-6). Este "vos falou" mostra que Jesus, na Galiléia, não nho, até que encontremos em Deus a nossa pátria. Aos que que-
falava somente com os disópulos, mas sempre também com as rem segui-lo, Jesus responde com um provérbio que os gregos tam-
mulheres. Elas são disópulas. Isso vale também para a comuni- bém conheciam. Enquanto todos os animais têm onde morar, o ser
dade cristã. Para Lucas, homens e mulheres são disópulos e dis- humano não possui morada. O seu lar, em que ele possa realmen-
ópulas de Jesus, com os mesmos direitos. Freqüentemente as te sentir-se em casa, é somente Deus, a quem ele pertence por sua
mulheres são as primeiras a entender o sentido das palavras de própria natureza.
Jesus, enquanto os homens às vezes tomam por '1orotas" aquilo A segunda imagem do "seguir" culmina na frase provocante
que as mulheres experienciaram e comentam (Lc 24,11). de Jesus: "Deixa os mortos enterrarem seus mortos". Em Israel,
Lucas descreve o caminho do cristão como sendo um "seguir". sepultar o pai falecido era um sagrado dever. Jesus certamente
A nossa incumbência é seguir Jesus. Isso toma-se claro no início não quer incitar ninguém a subtrair-se a tal dever. A sua pala-
do grande "Relato da viagem". Jesus foi rejeitado pelos samarita- vra tem sentido simbólico. Muitas pessoas não encontram o seu
nos. Ele é o "sem pátria", que anda por este mundo afora sem próprio caminho, o caminho que Deus lhes havia destinado, por-
encontrar quem o receba. Ser "sem pátria" faz parte também do que dependem ainda demais de seu pai. Ainda não enterraram
nosso "ser cristão". Lucas expressa isso numa narração: enquan- seu pai. Ainda se deixam determinar por ele. Seguir o caminho
to eles andavam, alguém disse a Jesus, no caminho: "Eu te se- de Jesus significa libertar-se de todas as amarras familiares. O
guirei para onde quer que vás". Jesus lhe disse: "As raposas têm Reino de Deus é mais importante do que o relacionamento com
suas tocas, e as aves do céu seus ninhos; o Filho do Homem, o pai. Quando Deus reina no coração humano, já não se trata mais
porém, não tem onde recostar a cabeça". A um outro ele disse: de cumprir as expectativas do pai terrestre. O caminho de Jesus
"Segue-me". Este respondeu: "Deixa-me primeiro sepultar meu leva para a liberdade. E ele nos mostra o que, afinal, é decisivo.
pai". Jesus, porém, lhe disse: "Deixa os mortos enterrarem seus Sepultar o pai, enervar-se em discussões sobre a herança, tudo

• Clll flllll n
r
isso é morte em comparação com a vida que Jesus nos abre por alguém quiser vir em meu seguimento, renuncie a si mesmo, e
sua palavra e seu exemplo. tome sua cruz cada dia e siga-me" (Lc 9,23). A primeira palavra
Enquanto as primeiras duas imagens se encontram também, mostra a seriedade do "seguir''. Quem segue Jesus deve contar com
de forma abreviada, em Mateus (Mt 8,18-22), a terceira foi trans- isto: o seu caminho há de levar também à cruz, à perseguição, a
mitida somente por Lucas. Com essa imagem ele não visa apenas hostilidades e finalmente à morte. A segunda palavra interpreta
aos discípulos do tempo de Jesus, mas também a nós, os cristãos. o seguimento da cruz como caminho espiritual. Lucas acrescen-
Muitos gostariam de seguir o caminho que, no seu coração, eles ta aqui "cada dia". Aí a cruz se toma imagem das aflições e dos
reconheceram como sendo o seu. Mas primeiro querem ainda conflitos cotidianos. Todo dia alguma coisa nos contraria. Todo
despedir-se da fanu1ia, gostariam de explicar o seu caminho para dia os outros nos decepcionam ou nos ofendem. Se entendermos
todo o mundo. E gostariam talvez que todos o aprovassem. Jesus, os desafios de cada dia como uma cruz, não nos farão desanimar:
porém, exige de novo, com um provérbio radical. que sigam a voz a cruz há de nos levar a uma união mais profunda com Cristo. A
interna sem olhar, de soslaio, nem para a direita nem para a es- cruz acabará com a nossa vaidade. Vivemos muitas vezes, no nosso
querda, e sem se precaver, e sem solicitar o consentimento de dia-a-dia, com uma imagem idealizada, ilusória de nós mesmos.
parentes e amigos. Quando nasce no meu coração aquela luz que Pensamos estar obedecendo à vontade de Deus, cumprindo o nosso
mostra quem é Jesus, e para onde ele quer me conduzir, então dever. Quando alguém, então, nos critica e nos trata com injus-
devo segui-lo sem olhar para trás. Quem olhar para trás, quem tiça, quando nos despreza e humilha, então sentimo-nos ofendi-
gostaria de controlar se o sulco que abriu no campo de sua alma dos e lamentamos a nossa situação. Jesus quer nos convidar para
está direito, este não é apto para lavrar realmente seu campo. que deixemos nos lavrar por essas aflições de cada dia, para Deus.
Nele nada há de nascer. O Reino de Deus abre a nossa visão para a É isso, creio, que significa "abnegação". Acontece que a palavra
frente. Deus - é isso o que Jesus com esta palavra quer dizer - "abnegação" muitas vezes foi mal entendida, como se devêsse-
é uma realidade tão radical. que ante ele tudo o mais empalidece. mos nos renegar completamente, nos desvalorizar ou deformar.
Deus nos põe a caminhar. Ele nos abre o futuro. O passado, com A palavra grega ameisthai significa "negar", "resistir", "distan-
as suas mágoas e a sua nostalgia, precisamos enterrá-lo, a fim de ciar-se". Pelas experiências da cruz na minha vida devo renegar
sermos livres para o "aqui e agora", isto é, para aquilo que Deus, o meu ego que se enfuna, e imagina que tudo deve servir só a
a cada momento, quiser de nós. ele, mas para descobrir o meu verdadeiro "eu". Devo me distan-
Para Jesus, segui-lo é seguir o caminho da cruz. No evange- ciar do egoísmo que gostaria de puxar tudo para si mesmo, a fim
lho de Lucas, Jesus convida os seus discípulos duas vezes a car- de descobrir debaixo disso o verdadeiro núcleo da minha pessoa.
regarem a sua cruz: "Quem não carrega sua cruz e não vem em Essa palavra de Jesus não é uma exortação para eu tornar a mi-
meu seguimento não pode ser meu discípulo" (Lc 14,27); "Se nha vida bem penosa para mim mesmo e para me sobrecarregar,

12 11nll ser J Clll flllll a


e sim um convite para me deixar lavrar pela vida e pelas suas
aflições, para Deus. Então a vida me levará até Deus. Então a cruz
se tomará a chave da vida. Abrirá a porta para o centro da mi-
nha alma, para a minha própria profundeza. Nessa profundeza
experienciarei quem, afinal, sou eu, além de sucesso e bem-es-
tar, além de reconhecimento e acolhimento, além de critica e
humilhações. '-.l.-1 Anarrativa da Paixão

Corno Marcos e Mateus, também Lucas con-


ta-nos a história da Paixão de Jesus, isto é,
do seu caminho, passando pela cruz, para a
Ressurreição. Lucas, porém, interpreta a Pai-
xão de Jesus à sua própria maneira. Em pri-
meiro lugar, Lucas descreve o caminho de
Jesus, através do sofrimento até a morte na
cruz e até a Ressurreição, de tal maneira que
podemos reconhecer nele o nosso próprio
caminho. Com a sua narrativa da Paixão, Lu-
cas quer nos convidar a seguir a nossa pró-
pria Via Sacra. Olhar para o caminho de Jesus
deve nos animar para não nos desviarmos por
causa das aflições que encontramos no nos-
so caminho, mas para as atravessarmos. As-
sim como Jesus seguiu o seu caminho, pas-

M •
sando pela cruz, até a Ressurreição, assim devemos também nós como se fosse um drama. Esse drama culminou na morte de Jesus
"passar por muitas tribulações, para entrarmos no Reino de Deus" na cruz: "Toda a multidão que assistia ao espetáculo, vendo o que
(At 14,22). Na Paixão, Lucas vê Jesus na sua humanidade. Ele é sucedeu, voltava batendo no peito" (Lc 23.48). Para os gregos, o
o homem verdadeiramente justo, que nos mostra como podemos drama teatral era um aconteámento que os emoáonava profun-
seguir devidamente o nosso caminho e como, no meio do sofri- damente. Ninguém olhava um drama como espectador indiferente;
mento, podemos continuar fiéis ao amor ao próximo (ao ideal quem assistia era puxado para dentro da ação representada. A peça
grego da philanthropia). teatral queria purificar as emoções e as paixões humanas. Apre-
O segundo tema pelo qual Lucas se deixa guiar na sua histó- sentando os altos e baixos, as luzes e as trevas do ser humano, e
ria da Paixão é o da redenção. Lucas quer demonstrar como esse todos os abismos da sua alma, o drama levava à katharsis, à pu-
Jesus de Nazaré, pela sua Morte e Ressurreição, nos livrou, sal- rificação e clarificação das pessoas. O drama encenado as trans-
vou, curou. Para isso ele renunáa a conceitos judaicos como "ex- formava. Enquanto olhamos o espetáculo que Lucas nos apresenta
piação" e "sacrifíáo". problemáticos para os gregos. Aliás, são no- no seu evangelho, e sobretudo na narrativa da Paixão, somos
ções que hoje dão dor de cabeça a nós também. Lucas vê de ou- transformados. Como os que presenáaram tudo na época, deve-
tra maneira o sentido redentor da cruz. Jesus é o guia para a vida mos bater no peito e regressar. O nosso coração deverá ser atin-
(archegos tes zoes). Ele vai na nossa frente. Ele nos abre o cami- gido, para assim enveredarmos por um caminho novo, aquele
nho. a fim de que nós, por esse caminho, possamos segui-lo até caminho que leva realmente à vida.
a glória de Deus. A glória de Deus (doxa theou) é ao mesmo tem- O segundo modelo de pensamento empregado por Lucas para
po a idéia de cada um de nós que Deus fez para si. O caminho de esclarecer o efeito saneador e libertador da morte de Jesus é o
Jesus. portanto, é o nosso caminho para a forma definitiva que do homem justo. Jesus é o homem verdadeiramente justo. Em
Deus imaginou para cada um de nós. Jesus é o homem verdadei- Lucas, o centurião não confessa que Jesus era o Filho de Deus
ramente reto. Ao olharmos para ele, tomamo-nos corretos, endirei- (como em Mateus e Marcos), e sim: "Realmente. este homem era
tados para Deus, eretos na nossa dignidade, retificados por Deus. justo" (Lc 23,47). Lucas quer apresentar Jesus como aquele que
A mensagem que Lucas queria transmitir para os gregos, e realizou o anseio grego pelo homem justo. Na filosofia grega. a
também para nós, é esta: "Jesus é o Salvador". Pela sua morte na bondade, a beleza, a retidão e a justiça são o que constitui o
cruz. ele nos libertou. Mas como devemos entender isso? Como é verdadeiro ser humano. A justiça é para Platão a primeira das
que aquilo que aconteceu então na cruz pode ter para nós um quatro virtudes cardeais. Ela concerne a todas as partes da alma
efeito sanador e libertador? Dois modelos de pensamento grego e as põe em harmonia reóproca. A justiça é "o melhor estado da
ajudaram Lucas na explicação da redenção por Jesus. Um desses alma" (RAC, p. 256). A finalidade da justiça é "cuidar da alma"
modelos é o drama teatral. Lucas descreve o caminho de Jesus (ibid., p. 257). Na cruz, Jesus é o homem justo. Ele mostra o que

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é um homem justo, qual é o melhor estado da alma humana. E portantes idéias filosóficas. Nessa refeição de despedida, Jesus
Jesus é aquele que cuida da nossa alma, para que tenhamos a mostra novamente o seu amor pelos disápulos. Em outras refei-
coragem de viver direito. Platão, no seu diálogo Górgias, apresenta ções já havia comprovado a misericórdia divina para com os pe-
seu mestre Sócrates como modelo da justiça. Para o justo, ser cadores; agora seu amor culmina en sua entrega de si mesmo aos
morto não tem importância. Sócrates se compara ao médico acu- disópulos nos sinais do pão e do vinho. Ele havia desejado in-
sado pelo cozinheiro por ter dado às crianças remédios amargos tensamente comer esta Páscoa com os disópulos (Lc 22,15), e
para curar suas feridas. Como Sócrates, também Jesus não falou deixar-lhes, no ato simbólico do pão partido e do cálice, o testa-
para agradar. Ele é médico: entrega-nos a medicação que cura as mento do seu amor. Quando os discípulos se reúnem em comuni-
nossas enfermidades. Mas ele foi acusado pelo cozinheiro, por dade, partindo entre si o pão, eles se lembram do amor de J esus,
aqueles que só pensavam em si mesmos e na sua comodidade. e o amor de Jesus, que culminou na sua auto-entrega na cruz,
Quando o centurião proclama que Jesus é o homem justo, então toma-se para eles uma experiência real.
é Lucas quem quer dizer aos gregos: este é o homem verdadeira- Depois da ceia começam as conversas ao redor da mesa. O
mente justo, pelo qual. desde Platão, vós esperáveis. Ele é o tema mais importante, escolhido aqui por Lucas, é o tema do do-
médico de vossas almas. Olhando para ele, vós mesmos vos minar e servir (Lc 22,24-27). Jesus, sendo o Senhor, toma-se o ser-
tomareis justos, endireitados para Deus. Olhando para Jesus na vo dos disápulos, o diakonos, o servente. O servente é aquele que
cruz, vos tomareis retos, harmoniosos. Ele vos põe em concor- está a serviço da vida, que possibilita à comunidade uma festa
dância com vosso próprio ser. Para Lucas, é nisso que consiste a alegre, que provoca vida e alegria nos festejantes. Nesta palavra
redenção, a libertação e a cura. Jesus quis expressar a essência da sua missão. Ele não é como os
reis dos povos, que oprimem os demais. Ele é o servo de todos, a
fim de que, cheios de alegria, possam desfrutar os dons de Deus.
1~eia •e •es'9•i•a •e Je11s Mas esse modo de agir deverá ser também um exemplo para os
Quero mostrar agora, citando uns poucos exemplos, como Lucas disópulos. Eles não devem desejar o rebaixamento dos outros, para
ilustra a Paixão de Jesus tentando tomá-la compreensível para o poderem acreditar na sua própria grandeza. Jesus mostra a in-
leitor grego, e também para nós. Já começa com a refeição da versão de todas as relações: os chefes tomam-se servos, os gran-
despedida de Jesus, que Lucas descreve como uma refeição festi- des tomam-se os menores. Cristo é aquele que desperta no ser
va, com conversas ao redor da mesa. Essas conversas têm para humano a vida que Deus lhe outorgou.
Lucas o caráter de palavras de despedida. Jesus, ao se despedir, Em seguida Jesus exorta Pedro a confirmar seus irmãos. Essa
dá aos disópulos o seu testamento - semelhante a Sócrates, que, é a herança de Jesus para os disópulos: a morte de Jesus na cruz
antes da sua morte pela taça de cicuta, anuncia as suas mais im- há de ser para eles uma tentação contra a fé. Jesus, porém, reza

• llllSCI' u •
por eles, especialmente por Pedro - que aparece aqui como pro- sua narrativa da Paixão, Lucas cita grandes partes do evangelho
tótipo do discípulo - , para que a sua fé não se apague. Mas o de Marcos. No entanto, ele dá à sua descrição um outro caráter.
próprio Pedro terá de "voltar", de se converter. É só assim que Aqui Jesus age mais pessoalmente do que em Marcos. Ele toma a
ele poderá fortalecer a fé dos seus irmãos. Depois, Lucas pinta a iniciativa de falar com o traidor: "Judas, é com um beijo que tu
tentação pela qual passa o próprio Jesus, e como ele, em oração, entregas o Filho do Homem?" (Lc 22,48). Quando um dos seus
se compenetra da decisão de cumprir a vontade de Deus. Lucas discípulos corta a orelha direita do servo do sumo sacerdote, Jesus
começa a cena do monte das Oliveiras com a exortação de Jesus cura o homem. Mesmo no meio do seu sofrimento, Jesus ainda é
aós discípulos: "Orai, pois, para não cairdes em poder da tenta- o médico que se preocupa com as feridas dos seus adversários.
ção" (Lc 22,40). E é somente na oração que também ele conse- Em Lucas, o comando que prende Jesus é um grupo exclusivamen-
gue superar a sua própria tentação. E somente a oração poderá te judaico. Lucas tem a tendênóa de negligenciar o papel dos
fortalecer os discípulos nas muitas provações que os esperam. No romanos na execução de Jesus, e de atribuir toda a culpa aos
monte das Oliveiras Jesus chega ao seu limite. Ele sente que o judeus. Há nisso a tendência de tomar o cristianismo aceitável
seu caminho, até a cruz, humanamente lhe é demais. Ele é con- para a elite do Império romano. Aí o historiador Lucas não se atém
frontado com a sua própria angústia. Ele entra em "agonia". Ago- aos fatos; ele os interpreta num sentido pessoal. dele. Não conhe-
nia é "a suprema tensão das forças diante de decisões e catás- cia muito bem a situação jurídica em Jerusalém. Ele se esforça
trofes que se impõem" (Grundmann, p. 412). Na sua angústia dian- por pintar o que se passou na casa do sumo sacerdote - a nega-
te da morte, o suor lhe corre da testa como sangue "que pingava ção de Pedro e os escárnios dos guardas - de tal maneira que a
no chão" (Lc 22.44). Um anjo do céu o fortalece e reanima. Aqui narrativa se tome cativante e convincente para o leitor. Em tudo
Lucas pinta Jesus como o modelo fundamental do ser humano que o que Lucas escreve, percebemos o talentoso escritor, que sabe
ora. Orar é lutar com Deus. Sem a oração estamos entregues ao estruturar dramática e artisticamente.
nosso medo, sem esperança. A oração nos dá a força para supor- O Sinédrio dos judeus conduz Jesus perante Pilatos. Pilatos,
tar as tentações e aflições da vida. Não somos deixados sozinhos o rude procurador romano, é pintado por Lucas como um homem
na nossa oração. Deus mandará também para nós o seu anjo, para sensato. Lucas quer fazer do governador romano uma testemu-
estar perto de nós, dando-nos nova força para o nosso caminho. nha da inocência de Jesus (Grundmann, p. 421). Somente Lucas
narra o encaminhamento de Jesus para Herodes. Lucas descreve
Herodes como um helenista culto, ávido por coisas interessan-
1n1i1•1 •1 P1iúl •e Jens tes, sinais milagrosos e palavras eruditas. Jesus, porém, decep-
Depois da oração, Jesus está fortalecido para seguir o caminho ciona sua sede de milagres. Fica calado. Seu silêncio é um sinal
do seu sofrimento. O caminho da Paixão começa com a prisão. Na do "Servo de Javé" e, como tal. compreensível para o leitor ju-

• 11R11 szr •• 111


deu. Mas também os helenistas conheciam o silêncio como sinal Jesus disse: "Filhas de Jerusalém, não choreis por mim; chorai por
da divindade, por exemplo, no culto de Mitras. Em virtude do si- vós mesmas e por vossos filhos" (Lc 23,28). Jesus não quer a com-
lêncio de Jesus a admiração de Herodes se transforma em des- paixão delas, e sim sua conversão. Éessa, sem dúvida, também a
prezo e escárnio. Herodes não é um homem culto e sábio; o que exortação aos leitores. Quando lemos, meditando, a Paixão de
ele quer é sensacionalismo. É em seu encontro com Jesus, por- Jesus, não devemos derreter-nos de compaixão, e sim converter-
tanto, que ele manifesta o seu verdadeiro caráter. Enquanto con- nos e mudar de vida. A Paixão de Jesus quer transformar o nosso
templamos o drama da Paixão, somos confrontados com a nossa pensamento e a nossa ação. Quer deixar-nos, depois, como pes-
própria verdade. Ficamos sabendo quem somos na verdade. A soas mudadas e transformadas. A morte na cruz é a chamada mais
nossa essência se revela. Herodes prova a sua falsidade vestindo forte para a conversão que Jesus põde fazer em toda a sua vida.
Jesus com uma roupa branca de luxo, e mandando-o de volta a
Pilatos. Nesse dia os "dois se tomam amigos.
Pilatos convoca então os sumo sacerdotes e os demais che- Ac11cincaçi1
fes do povo. Ele declara diante de todos a inocência de Jesus, e Também à cena da crucificação Lucas deu uma estrutura artísti-
cita também Herodes como testemunha dessa inocência. Mas a ca. Também aí ele emprega o recurso estilístico da polaridade.
reação da multidão dos judeus exige a crucificação de Jesus. Por Jesus é crucificado entre dois bandidos, um arrependido e o ou-
três vezes Pilatos declara a inocência de Jesus. Mas os judeus, tro endurecido. A cruz de Jesus pode nos levar ao arrependimen-
com seus gritos, se impõem. Lucas evita falar explicitamente de to. Mas podemos observá-la também com coração duro. Então ela
uma sentença de morte da parte de Pilatos. Pilatos cede simples- não nos cura e não nos salva. Também na cruz Jesus é o orante.
mente à pressão da multidão, e entrega J esus aos judeus. Isso Ele ora por seus algozes: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o
certamente não é histórico, pois somente os romanos tinham o que fazem" (Lc 23,34). Na cruz, Jesus abre para todos a possibi-
direito de crucificar. Lucas omite as zombarias da parte da lidade da conversão. Quem vê o amor de Jesus, até pelos assas-
soldadesca romana contra Jesus. Ele faz como se os judeus le- sinos, pode confiar que também ele receberá perdão. A crucifi-
vassem Jesus para a crucificação. É somente ao lado da cruz que cação de Jesus, portanto, apresenta o amor do Deus perdoador
ele menciona os soldados. na sua última conseqüência. Em Lucas a cruz não efetua o per-
No caminho para a cruz, Jesus encontra-se com Simão de dão, mas o revela, e dessa maneira o transmite a nós, pecadores.
Cirene e com as mulheres que choram (Lc 23,26-31). Ambos os Quem contempla o amor de Jesus, que perdoa, sabe no seu cora-
casos têm função de exemplo. Como Simão carregou a cruz atrás ção que toda a sua culpa lhe é perdoada.
de Jesus, assim também os disápulos devem aceitar a sua cruz e "O povo ficava lá a olhar" (Lc 23,35). É um drama, represen-
seguir o seu Mestre. Às mulheres que se lamentam por causa dele, tado aí diante do povo. O drama tem a função de excitar as emo-

112 uUJI m u ta
ções, purificando-as. Primeiro os espectadores vêem como Jesus algo terrível, e sim a consumação do amor. Cumpre-se agora o que
é escarnecido três vezes: pelos chefes do povo, pelos soldados e Jesus, quando menino, já falou no templo para Maria e José: "Não
pelo bandido do lado esquerdo. A essa última zombaria responde sabeis que eu devo estar no que pertence ao meu Pai?" (Lc 2,49).
a confissão do criminoso do lado direito: "Nós padecemos com A oração carrega Jesus, atravessando os portões da morte, para
justiça, recebemos o que mereceram os nossos atos. Mas este não o abraço amoroso do Pai. É esta a promessa que Lucas enxerga
fez nada de mal" (Lc 23,41). E o crucificado do lado direito pede no morrer de Jesus: Orando, também nós, ao morrer, não caire-
a Jesus que dele se lembre quando chegar a seu Reino. Jesus lhe mos num nada, mas no amor de Deus. Jesus expira, entrega o
responde: "Amém, eu te digo: hoje estarás comigo no paraíso" (Lc espírito, devolve a Deus o seu espírito. Também aqui Lucas une
23,43). O amor misericordioso de Jesus chega aí, na cruz, à sua novamente elementos judaícos e gregos. Jesus reza com as pala-
consumação. Oferece a cada ser humano, mesmo na hora da morte, vras de um salmo judaíco. Mas a própria morte é descrita na lin-
a chance da conversão. E a promessa de Jesus ao criminoso à sua guagem do ambiente helenista. Com palavras semelhantes Sêne-
direita promete também a nós que na morte seremos levados por ca descreve a morte de Hércules: "Eleva o meu espírito, peço-te,
Jesus para o paraíso. Na morte consuma-se o "hoje", e a morte até as estrelas! ... Olha, meu Pai me chama e abre o céu. Já vou,
de Jesus se toma para nós presença pwa, dando-nos a certeza de meu Pai, já vou" (Grundmann, p. 435}.
que, com ele, entramos, hoje ainda, na glória de Deus.
Finalmente, Lucas pinta a morte de Jesus. Aí ele se torna
novamente o historiador. Ele indica exatamente a hora da morte. 1reaçã i 11111 •e Jau
Mas ao mesmo tempo a indicação da hora tem sentido simbólico. Em seguida, Lucas narra uma triplice reação à morte de Jesus.
No meio do dia o sol se obscurece, e trevas cobrem toda a região. Depois do triplice escárnio vem agora uma tríplice confirmação.
Jesus não morre com um grito, mas orando: "Pai, em tuas mãos Primeiro, o centurião romano louva a Deus. Na morte de Jesus,
entrego o meu espírito" (Lc 23,46). Enquanto se ouve de longe o portanto, ele vé uma obra de Deus. Por isso ele glorifica a Deus
ressoar das trombetas do templo, convidando para a oração da por esse homem. Diferente de Mateus e Marcos, ele não confessa
tardinha, Jesus ora com as palavras do Salmo 31. Esse salmo era que Jesus era o Filho de Deus, mas: "Realmente, este homem era
a oração do fim do dia, que todo judeu piedoso rezava. Jesus, justo" (Lc 23,47). Platão, num simpósio, fala de um homem que
porém, introduz a oração do salmo com a palavra Abbá, que lhe não era cheio de intrigas como nós, de alguém que realmente era
é própria. Na hora da morte, ele se entrega nos amorosos braços justo. Os outros expulsam-no da cidade e matam-no. Esse justo,
do Pai. Está voltando para a casa do Pai, a quem ele se dirige com pelo qual os gregos tanto ansiaram, é Jesus. Nesse justo, porém,
a palavra filial, carinhosa, Abbá, "Pai querido", "Papaí". Para Jesus também os judeus vêem realizada a sua ânsia de ver o Messias.
- isso Lucas quer expressar com sua descrição - a morte não é Pois o Messias é o justo, enviado por Deus para a humanidade.

tM ude~ szr n •
Quando o centurião reconhece a essência de Jesus como a de um mente", "não perder de vista". É antes o olhar sensitivo, que ain-
homem justo, revela-se-lhe a glória de Deus. Com isso Lucas des- da não entendeu, mas observa tudo; que deixa a impressão de tudo
creve a relação de Jesus com Deus. Não utiliza o conceito "Filho o que é visto entrar no fundo do coração, até que o coração en-
de Deus", mas descreve o homem Jesus de tal maneira que em tenda o que foi visto. E Lucas dá ainda outra informação sobre
Jesus os espectadores vêem Deus. um "olhar". As mulheres acompanham José de Arimatéia, que tira
A segunda reação parte do povo. Sobre essa multidão, o texto o corpo de Jesus da cruz e o coloca num túmulo cavado na rocha,
afirma que todos confluiram para ver o espetáculo. E eles ficam onde ninguém havia sido sepultado ainda. "As mulheres observa-
olhando o que acontece. A história de Jesus é um drama, não in- ram o sepulcro, e como o corpo lá foi colocado" (Lc 23,55). Aqui
ventado, mas real. O efeito, porém, é igual ao do drama grego. Lucas usa o verbo grego etheasanto, "elas olharam", "observaram
Todos bateram no peito, retiraram-se emocionados. A morte do atentamente, com surpresa". Esse termo é usado também ao se falar
homem justo os transformou. Voltando para as suas casas depois da contemplação espiritual. É um compreender, um entender.
do espetáculo, já não são como antes. Também nós não podemos Enquanto Jesus é colocado no sepulcro cavado na rocha, onde nin-
simplesmente olhar para a morte de Jesus com objetividade. Quan- guém fora colocado ainda, revela-se-lhes o sentido do aconteci-
do realmente a meditamos, quando realmente a observamos, en- mento. Bultmann vê no sepulcro intato, cavado na rocha, urna re-
tão ela nos muda, então já não podemos mais viver como antes. ferência ao caráter "cultual'' de Jesus (Grundmann, p. 437). É urna
Para os g1egos, a experiência do divino transcendia essencialmente contemplação cultual. como nos cultos dos mistérios gregos. As
o mundo visível. Enquanto vejo Jesus morrer na cruz, contemplo mulheres olham para o sepulcro novo e para o corpo de Jesus e
a Deus, vejo o céu aberto. O espetáculo da cruz toma-se assim o pressentem que Deus vai fazer aí alguma coisa inteiramente nova,
momento mais denso da experiência de Deus. Enquanto contem- algo não adulterado, não tocado ainda. Na Ressurreição, Jesus há
plo esse homem justo, pendurado na cruz, embora inocente, que de sUTgir de novo, entrando na claridade de Deus.
ainda reza por seus assassinos, Deus me é revelado. Aí o céu se Para Lucas, a morte de Jesus é também o modelo para o
abre, e o mistério do amor divino toma-se visível. morrer do cristão. Nos Atos dos Apóstolos o evangelista descreve
A terceira reação à morte de Jesus é atribuida por Lucas a a morte de Estêvão com palaVTas semelhantes àquelas usadas na
todos os conhecidos e às mulheres que "haviam seguido Jesus morte de Jesus. Para Estêvão é exatamente na sua morte que o
desde a Galiléia" (Lc 23,49) . De todos esses só é afirmado que mistério de Jesus se revela. "Ele, porém, cheio do Espírito Santo,
estavam lá, olhando essas coisas. Continuam perto de Jesus. Es- olhou para o céu e viu a glória de Deus, e Jesus, de pé, à direita
tão lá, em pé, não fogem em vista de sua morte. E vêem tudo. Aqui de Deus; e exclamou: 'Vejo o céu aberto, e o Filho do Homem de
Lucas não usa o verbo theorein, "ser espectador de um drama" , pé à direita de Deus"' (At 7,55s). Cumpre-se, então, a sua visão.
"contemplar", "meditar'', e sim horan, "olhar", "observar atenta- Ele já não vê apenas o homem Jesus; ele vê o céu aberto, e con-

1• 1 e~ su u 117
templa Jesus na sua glória. junto a Deus. Narrando a morte de
Estêvão, Lucas interpreta a morte de Jesus. Quem olha, meditan-
do, para a morte de Jesus na cruz vê cr céu aberto. E nele cresce-
rá a confiança de que a sua contemplação se há de cumprir quando
ele mesmo morrer. Aí ele realmente verá a Deus, e em Deus, Jesus.
As narrativas
Jesus está de pé, à mão direita de Deus. Ele está erguido. Res-
suscitou, e agora ele é para sempre o nosso penhor, e fará o nos- sobre aRessurreição
so morrer dar certo também. Estêvão morre com as palavras: "Se-
nhor Jesus, recebe meu espírito" (At 7,59). Jesus entregou o seu
espírito a Deus. Nós, na nossa morte, seremos para sempre admi-
tidos por Jesus na sua comunhão com o Pai.

Lucas é o único evangelista que nos narra


não apenas a Ressurreição, mas também a
Ascensão ao céu. Jesus desceu do céu para
ser peregrino como nós, andando conosco
_.::l;ilillilllill..•~ pelos nossos caminhos. Pela sua morte e res-
MiC:'."-..1111 surreição ele voltou para o céu. Lá ele está
sentado à mão direita de Deus, e intercede
por nós. E ele nos envia o Espírito Santo,
para que, na força desse Espírito, façamos o
mesmo que ele fez, e espalhemos a mensa-
..,.._..,..[J gem do Reino de Deus pelo mundo inteiro.
São sobretudo dois pensamentos que Lucas
...~.~--••llllliti-..;i-.4 desenvolve na sua mensagem sobre a Ressur-
reição e a Ascensão de Jesus. Primeiro ele
quer mostrar que Jesus não podia permane-
!ii•lt'I cer na morte, já que ele era cheio do Espírito

• 11fel1 ser ••
Santo e Filho de Deus. Depois, a idéia da Ascensão lhe serve para central da sua teologia da Ressurreição (At 3,15). Também aque-
expressa.r a continuidade da obra de Jesus. Do céu, Jesus ajuda les que se unem com ele, Jesus os há de conduzir para a vida,
os seus disópulos. Envia o seu Espírito, a fim de que o Espírito para uma vida que não pode ser aniquilada nem pela morte. Na
anime os disópulos para anuncia.Tem pelo mundo inteiro a men- sua teologia da Ressurreição trata-se para Lucas principalmente
sagem da Salvação, mostrando a todos o caminho para a Vida. deste assunto: a Vida. Como ressuscitado, Jesus nos conduz à
verdadeira vida. A tarefa dos apóstolos consiste em "anunciar a
mensagem da vida" {At 5,20). Na Ressurreição, Jesus nos mostra
D11111 lB c111 fl1•1111bçi1 ••ra 1less1miçi1 "os caminhos para a vida" {At 2,28). Também aos pagãos Deus
É sobretudo na pregação de Pedro no dia de Pentecostes que Lu- concede a "conve.rsão que conduz à vida". Mas não somente a eles;
cas desenvolve a sua teologia sob.re a Ressurreição. Pedro acusa também hoje ela é atual. O que os jovens hoje sobretudo dese-
os judeus de que "este Jesus, que Deus acreditou por milagres e jam é viver realmente, viver plenamente. A vida é o bem mais va-
sinais, eles o pregaram na cruz e o mataram pelas mãos dos ím- lioso. A esse desejo, a essa ânsia, Lucas responde: Jesus é quem
pios" (At 2,23). "Deus, porém, o ressuscitou, livrando-o das do- guia todos pa.ra a vida. Seguindo-o, encontraremos a vida. Lucas
res da morte, porque não era possível que a morte o retivesse em quis fazer penetrar no coração dos gregos essa mensagem da Res-
seu poder'' {At 2,24). E, como fundamentação para a Ressurrei- surreição. Ele quer anunciá-la também a nós, agora, para que não
ção de Jesus, Ped.ro cita, então, o Salmo 16. O orante desse sal- corramos atrás de promessas falsas que, em vez de levar para a
mo vê constantemente Deus diante de si. A íntíma união vital vida, levam para a decepção. Somente Jesus, o ressuscitado, pode
com Deus que o orante experiencia dá-lhe a certeza de que essa nos conduzir para a verdadeira vida.
comunhão não pode ser desfeita, nem pela morte: Vamos agora considerar as narrativas sobre a Ressurreição no
evangelho de Lucas. Ele descreve os encontros com o ressuscita-
Por isso o meu coração se alegra, e minha língua canta, e meu corpo do de uma maneira muito pessoal. Ele reelabora os dados que
repousará na esperança, pois tu não me entregarás ao mundo da mor-
te, nem deixarás o teu santo experimentar a decomposição. Tu me encontrou, inspirando-se na idéia da Páscoa, celebrada todo do-
mostras os caminhos da vida e me enches de alegria na tua presença
mingo no culto da comunidade. Em três quad.ros resume as apa-
(At 2,26-28).
rições pascais, bem como o mistério de Jesus Cristo e de seus
Pelo Espírito que o enchia, Jesus experimentava uma união disópulos. Ao passo que Mateus e Marcos relatam as aparições
tão profunda com Deus, que mesmo na morte essa união não seria pascais na Galiléia, Lucas as localiza exclusivamente em Jeru-
desfeita. O próprio Deus o ressuscitou. E assim ele se tomou para salém. Jerusalém é o lugar da Ressurreição e o lugar de onde a
nós "o guia da vida" {At 3,15). A noção de archegos tes zoes, "guia mensagem da Salvação parte para o mundo inteiro. Nos seus três
da vida", "iniciador da vida", tomou-se para Lucas o conceito quadros pascais, Lucas nos mostra o que a Ressurreição pode ser

111 lllm'
mntrns m
para nós hoje. Ao meditar sobre esses quadros, revela-se-nos a vazio projeta uma nova luz sobre as palavras de Jesus. Ressurrei-
vida para a qual o Guia da Vida quer nos conduzir. ção significa um novo entendimento das palavras de Jesus. Quan-
do, com base na Ressurreição, nos lembramos das palavras de
Jesus, que ele falou durante a sua vida, então revela-se-nos o
verdadeiro mistério de Jesus. A Pàscoa é a chave que nos abre o
Is 111•em j11t1 11 se,1lcn
O primeiro quadro da Páscoa que Lucas pinta para nós é o encontro sentido das suas palavras. As mulheres lembram-se das palavras
das mulheres com os dois anjos da Ressurreição, junto ao sepul- de Jesus, e entendem-nas. A Páscoa se realiza nelas por um novo
cro vazio. Ressurreição significa para nós que a pedra que nos entendimento das palavras. Elas voltam para Jerusalém e relatam
bloqueava é removida, de modo que a vida que existe em nós não aos discípulos o que viram e ouviram. Para eles, porém, as suas
esteja mais tampada. Quando as mulheres, desesperadas, entram palavras são conversa fiada de mulheres. Nessa expressão ainda
no sepulcro vazio, e não encontram ali o corpo de Jesus, dois podemos ouvir a humilhação daqueles homens, que tiveram de
homens em vestes resplandecentes se aproximam, dizendo: deixar às mulheres a prioridade na experiência da Ressurreição
e, ao que tudo indica, também quanto à fé no ressuscitado.
Por que procurais o vivente entre os mortos? Ele não está aqui. Levan-
tou-se. Lembrai-vos como ele vos falou quando ainda estava na Gali-
léia: que o Fílho do Homem devia ser entregue nas mãos dos pecado-
res, ser crucificado e no terceiro dia, resswgit (Lc 24,5-7). Is •isc1,111s •e E11is
Em seguida Lucas narra aquela que sem dúvida é a mais bela his-
Os anjos dirigem-se às mulheres com um ditado: não tem sen- tória pascal que existe: o encontro de Jesus com os discípulos de
tido procurar um vivente entre os mortos. Levantar-se significa: Emaús. O tema do caminhar é retomado. Jesus é um desconhe-
estar vivo. Cristo está vivo. E quem está vivo não deve ser procu- cido viandante, caminhando com os dois discípulos que, decep-
rado no sepulcro. Se quisermos encontrar-nos com Jesus, o res- cionados, deixam a cidade de Jerusalém. Pois a esperança em que
suscitado, não o encontraremos no passado, nem tampouco em tinham apostado não se cumpriu. Jesus, que eles j ulgavam ser
letras mortas ou leis rigidas. Vamos encontrá-lo lá onde está a vida. um grande profeta, foi crucificado. Mas, enquanto ainda conver-
O nosso olhar deve se dirigir para a frente, não de volta para o sam sobre a sua decepção, o ressuscitado consegue entrar na con-
passado. Não tem muito sentido discutir sobre o teor exato de suas versa, e interpreta de outra maneira as suas experiências. Res-
palavras. Devemos confiar na vida que elas querem suscitar em nós. surreição significa também, aqui, uma nova interpretação da vida
Em Marcos, o anjo manda as mulheres para a Galiléia. Lá elas de Jesus, mas também uma nova interpretação para o caminho
verão o ressuscitado. Em Lucas, os anjos lembram as palavras que da nossa própria vida. No nosso caminho temos freqüentemente
Jesus, na Galiléia, falou para disópulos e discípulas. O sepulcro experiências semelhantes às dos discipulos de Emaús. Ficamos

na
r decepcionados. As ilusões que tínhamos sobre a nossa vida caem
em pedaços. Nós também pensamos às vezes que somos "pode-
Deus não possa nos salvar. A Jesus, Deus suscitou dentre os mor-
tos. Assim ele há de livrar-nos também: de toda escuridão para
rosos em palavras e atos diante de Deus e diante de todo o povo" a luz, do sepulcro para a vida, da rigidez para a vivacidade, da
(Lc 24,19). E de repente alguma coisa perturba a nossa auto-ima- prisão para a liberdade, da cegueira para a visão, da paralisia para
gem. Tudo nos é tirado da mão. Estamos diante do que sobrou da o caminhar, da frieza da lei para o amor. Na ressurreição de Jesus
nossa vida: um monte de cacos. Gostaríamos então de fugir de revela-se para Lucas o sentido da Sagrada Escritura. É só agora
nós mesmos. Mas não andamos sozinhos. no nosso caminho. que ele reconhece o que significam as palavras consoladoras de
Enquanto conversamos uns com os outros, Jesus, o ressuscitado, Isaías: "Se passares através das águas, contigo estarei; através
nos acompanhará e nos abrirá o sentido da nossa vida. A palavra dos rios, não te submergirão. Andando no meio do fogo, não te
"Não devia o Messias sofrer tudo isso, para entrar assim na sua queimarás; chama nenhuma te calcinará. Pois eu, Javé, sou teu
glória" (Lc 24,26) é a chave para a compreensão do destino de Deus; eu, o Santo de Israel, sou teu Salvador" (Is 43,2s). Não há
Jesus, mas também da nossa própria sorte. Foi a vontade de Deus, mais escuridão nenhuma em que não penetre a luz pascal, não
para nós impossível de elucidar: o Messias precisava sofrer para há mais sepulcro em que já não se mexa a vida.
chegar à sua glória. E este é o nosso caminho também: é só atra- Os discípulos insistem com Jesus, que fique com eles, "pois
vés de muita aflição que chegaremos à verdadeira vida, à glória a tarde está caindo; o dia começa a declinar" (Lc 24,29). Isso é
que Deus já preparou para nós, à figura que Deus excogitou para urna imagem da nossa vida. Quando dentro de nós está escure-
nós. Foi bom ficarmos decepcionados, e que tenham se quebrado cendo, quando sobre a nossa alma a noite começa a cair, então
as imagens que tínhamos feito de nós mesmos. É só assim que podemos pedir ao Ressuscitado que fique conosco. Jesus entra na
chegaremos à glória de Deus. É só assim que poderemos nos tor- casa com os disópulos. Toma-se hóspede deles, para estar junto
nar aquilo que Deus imaginou para nós. a eles. Isso não é apenas uma imagem da Ressurreição, mas tam-
Jesus explica aos dois viandantes toda a Sagrada Escritura. bém da celebração da Eucaristia. Na celebração da Eucaristia
Mostra-lhes que morte e ressurreição são o compêndio da Bíblia encontramo-nos com o ressuscitado. Lá ele está conosco, nos fala,
inteira. Isso não significa apenas que a morte e a ressurreição de nos interpreta a Escritura e nos desvela o mistério da nossa vida.
Jesus foram preditas em muitos versículos bíblicos. Lucas enten- Em seguida Lucas pinta a refeição do ressuscitado junto aos dis-
de antes que no mistério da morte e ressurreição de Jesus toda a ópulos de Emaús com as mesmas palavras com que descreveu a
mensagem bíblica pode ser resumida. Todas as palavras sobre o última ceia. Jesus "tomou o pão, pronunciou o louvor, partiu o
Deus que redime e salva, sobre o Deus que nos tira da fossa, que pão e lhes deu" (Lc 24,30). Aí abrem-se os olhos dos disópulos.
liberta o povo escravizado, que nos salva da aflição, tudo isso se Reconhecem-no. Mas no mesmo instante ele se lhes toma invisí-
cumpre na morte e ressurreição de Jesus: não existe nada de que vel. Aphantos, "invisível", é urna expressão típica do mundo das

114
idéias gregas. Jesus desaparece da vista dos disápulos. Aí está o tra-lhes as mãos e os pés: uOlhai as minhas mãos e os meus pés:
mistério da Ressurreição. O ressuscitado está conosco, pertinho sou eu mesmo. Tocai-me, olhai: um espírito não tem carne e ossos
de nós. Parte o pão para nós. Na celebração da Eucaristia ele se como vós vedes que eu tenho" (Lc 24,39}. Aqui Lucas quer mos-
encontra conosco, fica visível. Contudo, não podemos segurá-lo trar aos gregos o que significa ressurreição. Os gregos consegui-
com os nossos olhos. Ressurreição, para Lucas, tem algo a ver, riam muito bem imaginar que o ressuscitado fosse um espírito,
essencialmente, com uabrir". O nosso coração se abre (At 16,14), que a alma se tivesse separado do corpo e agora subsistisse em si
os nossos olhos se abrem (Lc 24,31), e o nosso espírito (Lc 24,45). mesma. Ressurreição, porém, é mais do que isso. Levantou-se a
E o ressuscitado abre para nós a Escritura, toma-nos acessível o pessoa de Jesus, de corpo e alma. Com a referência a mãos e pés,
sentido da Sagrada Escritura (Lc 24,31}. Nessa abertura é-nos dado Lucas responde à filosofia platônica, que só conseguia imaginar
contemplar o ressuscitado. Mas essa abertura significa também uma libertação da alma de dentro da prisão do corpo. Ressurrei-
que deveremos soltá-lo. Sempre de novo ele desaparece da nossa ção, porém, é ressurreição do corpo. Ela nos dá mãos que assu-
vista. Ao abrir-nos, porém, o coração, o espírito e os olhos, o mem a vida, que tocam nos outros com ternura, que acariciam,
ressuscitado acende em nós a chama do seu amor. As palavras e fazendo sentir o amor. E a ressurreição nos põe em pé, para que
os atos de Jesus nos tocam no fundo do coração, e o coração ar- tenhamos firmeza e sigamos o nosso caminho, cada um o seu
dente nos impele de volta para os outros. Assim, os dois disápu- próprio caminho, que nos leva à vida.
los, na mesma hora, de coração ardente, voltam para Jerusalém, A palavra ego eimi autos, "sou eu mesmo", é uma resposta à
a fim de contar para os demais disápulos o que vivenciaram. A filosofia estóica. No estoicismo autos significa o núcleo da pes-
experiência da Ressurreição nos põe a caminho para contar aos soa, o santuário interno da pessoa, o domínio interno do "eu", a
outros aquilo que vimos e ouvimos. morada de Deus dentro da alma. Lucas insiste muitas vezes na
palavra autos, referindo-se sempre ao Senhor. O Cristo é "ele
mesmo". Trinta e quatro vezes Lucas inicia uma frase com kai
A1priçí1 •e Jes1s 111 •iscí,at1s re11i•u autos, "e ele, ele mesmo", ao passo que isso nunca acontece em
A terceira imagem que Lucas nos desenha do dia da Ressurreição Mateus, e apenas três vezes em Marcos. Também nos Atos dos
é a aparição de Jesus diante dos disápulos reunidos. Os disápu- Apóstolos Lucas nunca usa essa expressão. Isso mostra que ela
los de Emaús voltam a Jerusalém, cheios de alegria. Os disópulos se refere exclusivamente ao Cristo. Então, quando agora o ressus-
e disópulas que tinham ficado contam-lhes que o Senhor real- citado diz: "Sou eu mesmo", temos ai a resposta ao anseio filo-
mente ressuscitou e apareceu a Simão. Enquanto ainda falam so- sófico da filosofia estóica. No estoicismo, as pessoas desejavam
bre isso, o próprio Jesus entra no meio deles. Assustam-se e sen- ansiosamente libertar-se das preocupações e necessidades deste
tem medo, pois pensam que estão vendo um espírito. Jesus mos- mundo. Queriam penetrar no seu verdadeiro "eu", no santuário

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interno, onde já não pudessem ser lesadas por ninguém. "Res- pulos entre si, o próprio ressuscitado está no meio deles. Para
surreição" significa para Lucas que Jesus se tornou "ele mesmo", Lucas, a Eucaristia é sempre um encontro com o ressuscitado. A
que ele vive seu próprio "eu" em total pureza. "Ressurreição" intimidade e a alegria de que fala a sua descrição da refeição pascal
significa também para nós que nos tornamos totalmente nós devem caracterizar também a celebração da Eucaristia. Jesus ex-
mesmos, livres das superficialidades do cotidiano, livres do po- plica a Escritura aos seus discípulos e discípulas, e se mostra a
der dos outros, das suas expectativas, das suas pretensões, dos eles como Deus e homem, corno aquele que se tomou realmente
seus julgamentos, e que nos levantamos do irreal para o real, "ele mesmo", a fim de que nós ressuscitemos da alienação para
entrando no santuário interno, onde Deus mora dentro de nós, e ser "nós mesmos", da rigidez para a vivacidade, do isolamento pa-
onde entramos em contato com a imagem inalterada e intata que ra uma convivência nova.
Deus tem de nós. Jesus, o ressuscitado é, para Lucas, o protótipo Agora Lucas termina o seu evangelho com as palavras de des-
daquilo que cada um de nós poderia e deveria ser. pedida, o testamento de Jesus. Mais uma vez ele lembra aos dis-
Jesus diz aos disópulos que devem apalpá-lo. A palavra gre- cípulos tudo o que lhes falou quando estava "com eles". Abre-lhes
gapselaphao, "pegar", "apalpar", "segurar", é usada outra vez por o entendimento (nous), para que entendam as Escrituras, e resu-
Lucas no discurso de Paulo no Areópago, onde Paulo responde me mais uma vez o mistério da sua vida. Sua vida e seu sofrimento,
conscientemente à filosofia estóica: os homens deveriam "procurar sua morte e ressurreição são o cumprimento de toda a Sagrada
Deus; talvez pudessem encontrá-lo e segurá-lo, pois não está longe Escritura. É então que se toma visível quem é o Deus da Bíblia.
de cada um de nós" (At 17 ,27) . Com a palavra de Jesus: "Apalpai- Em Jesus cumpriu-se "o que foi escrito sobre mim na Lei de Moi-
me", Lucas sugere aos sequazes da filosofia estóica que nós, os sés, nos Profetas e nos Salmos" (Lc 24,44) . Na Morte e Ressurrei-
humanos, podemos tocar em Deus na pessoa de Jesus Cristo. Nas ção de Jesus culmina toda a ação de Deus no passado. Com os ter-
suas mãos, nos seus pés, os disápulos tocam no próprio Deus. mos "cumprimento", "ultimação", "plenificação" Lucas exprime
Assim cumpre-se o ardente desejo humano de um Deus que os que a Morte e Ressurreição de Jesus resumiram toda a atuação
nossos sentidos possam perceber. Em cada Eucaristia podemos to- divina descrita na Bíblia. Morte e Ressurreição nos mostram que
car em Jesus, no pão que nos é colocado na mão. Na Igreja primi- não há nada que Deus não possa inverter e transformar. Não há
tiva os cristãos tocavam nos seus próprios olhos e ouvidos com o morte que não possa ser transformada em vida, não há escuridão
corpo de Cristo, não apenas para poderem tocar no Cristo, mas que não possa virar claridade, não há medo que não possa virar
para se deixarem tocar e apalpar carinhosamente por ele. confiança, não há desespero que não possa ser consolado. Morte e
Jesus pede ainda que lhe dêem algo para comer, e ele come Ressurreição nos dizem: tudo pode ser transformado. Nada há que
juntamente com os discípulos, participa da refeição com eles. A possa nos separar de Deus. Em toda parte Deus está presente, até
Ressurreição cria uma nova comunidade. Nas refeições dos discí- na morte, no sepulcro, na solidão, na escuridão, no desespero.

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Na Escritura consta também - assim diz Lucas - que em ria de Jesus começa com a oração no templo, e termina com o
nome de Jesus há de ser anunciado a todos os povos "que devem louvor dos discipulos no templo. Lucas termina o evangelho com
se converter, a fim de que seus pecados lhes sejam perdoados" a liturgia. No evangelho ele dá à Ascensão um sentido cultual,
(Lc 24,47). É curioso que para Lucas seja essa a Boa Nova que os ao passo que nos Atos ele a interpreta do ponto de vista eclesiás-
discipulos devem anunciar ao mundo inteiro. A conversão como tico e histórico. No evangelho a Ascensão acontece, por assim di-
pressuposto para o perdão dos pecados parece não ter nada a ver zer, numa festa litúrgica. Nos Atos, Lucas conta a Ascensão como
com o destino de Jesus. É uma mensagem universalmente huma- o desenrolar-se de um acontecimento (cf. Grundmann, p. 450).
na. Essa mensagem, porém, tem de ser anunciada em nome de Os quarenta dias como tempo da transição não estão mais carac-
Jesus. Porque Jesus, através da morte, chegou à ressurreição, por terizados pelo jejum e pela experiência do deserto, e sim pelas
isso existe para todos a chance de se converter, para que recebam aparições de Jesus. O ressuscitado anda conosco, até que nós
assim o perdão dos seus pecados. Olhando para Jesus, eles devem também sejamos elevados ao céu.
mudar de idéia, e aprender a enxergar tudo melhor, para que re- Jesus despede-se dos discipulos com a grande bênção. Sob essa
conheçam a verdade sobre a sua própria vida. A conversão con- benção eles voltam para Jerusalém, cheios de alegria. "Estavam
duz ao perdão. Perdão significa para Lucas que a vida se reorien- sempre no templo e louvavam a Deus" (Lc 24,53). Nisso reflete-se
ta para Deus, que não perdemos mais de vista o nosso fim, e que o culto da comunidade, caracterizado por alegria e louvor. Essas
agora a nossa vida dá certo. Os discipulos têm a incumbência de duas atitudes: alegria e louvor, são nos discipulos os efeitos da
anunciar a todos os povos essa oferta do perdão, da vida que vai vida de Jesus e de sua morte, ressurreição e ascensão. Pelo seu
dar certo. Para isso o ressuscitado envia o seu Espírito, a "Força nascimento, Jesus já trouxe alegria para os homens; essa alegria
do Alto" (Lc 24,49). No nascimento de Jesus visitou-nos "a luz do completa-se na sua ressurreição e ascensão. A alegria (no grego
alto, qual sol que nasce" (Lc 1,78). Oressuscitado enche-nos agora chara) é a nossa reação à charis, "graça", que em Jesus nos foi ou-
com a "força do alto", para que levemos a luz de Cristo ao mundo torgada. Para Lucas, a obra de Jesus consiste nisto: ele ilumina o
inteiro. Na pregação dos apóstolos a atuação de Jesus avança no nosso coração, a glória de Deus brilha novamente em nós, e tudo
mundo e compenetra sempre mais a história da humanidade. o que deprima, angustie ou escureça desaparece de nosso cora-
Lucas termina o seu evangelho com o relato sobre a Ascen- ção. Na alegria o coração se alarga, experimenta a amplidão e a
são. E ele começa os Atos dos Apóstolos com o mesmo aconteci- liberdade da ressurreição. Isso basta como motivo para louvarmos
mento. Isso resulta numa contradição. No evangelho, Jesus sobe a Deus. No louvor expressa-se a alegria; e ao mesmo tempo o lou-
ao céu no dia da Páscoa; nos Atos dos Apóstolos, apenas no qua- vor faz crescer no nosso coração a alegria, para que corpo e alma
dragésimo dia depois da Ressurreição. Essa contradição nos mos- sejam cada vez mais compenetrados e transformados.
tra que para Lucas se trata de um enunciado teológico. A histó-

121 llfell su m
'---LI oque devemos fazer?

Lucas não quer somente entusiasmar o lei-


tor por Jesus. Quem compreender Jesus com
certeza mudará também de vida. A história
de Jesus continua nos disópulos, e eles mu-
~ilililill..ldl~~ darão o mundo, ensinando um novo procedi-
--~.....,i!C mento. Não é apenas por palavras, mas por
um novo agir, que o Espírito vai se realizar
historicamente. Temos hoje certa aversão a
uma espíritualidade moralizante. Lucas, po-
rém, não é um moralista ameaçador. Ele não
,..1111111...,.0 prega a moral, mas conta histórias "que nos
atingem no coração e despertam a pergunta;
o que devemos fazer?" (Heininger, p. 227}.
Lucas não teoriza sobre a relação entre o
amor a Deus e o amor ao próximo, mas dá
z::-•~ dois exemplos para ilustrar como podemos

ID
hoje, concreta.mente, a.mar o próximo sem nos desgastar: o exem- simplesmente está sentada aos pés de Jesus, escutando o que ele
plo do bom samaritano (Lc 10,30-38) e o de Maria e Marta (Lc tem a dizer, mostra que a sua ajuda não é totalmente desinte-
10,38-42}. O sacerdote e o levita, que se dedicam à veneração de ressada. O seu melindre sugere que ela, com o seu esforço, gos-
Deus no culto, vêem um homem que caiu nas mãos de ladrões, e taria de merecer a atenção e ser elogiada pelo visitante. O que
passam adiante. O samaritano tem compaixão. "Aproximou-se, ela quer é fazer boa figura, em comparação com outras anfitriãs.
atou-lhe as feridas, derramando nelas azeite e vinho, montou-o Não se preocupa com o encontro do momento, mas com o que vem
sobre a sua própria montaria, conduziu-o a uma hospedaria e depois, com a boa fama que ela, por seu modo de agir, quer fun-
cuidou dele" (Lc 10,34). Aí Lucas desenha um verdadeiro mode- damentar. E talvez esteja preocupada com sua má consciência,
lo de humanidade.. A parábola descreve o próprio Jesus na figura que ela gostaria de tranqüilizar ajudando os outros. Muitos es-
do bom samaritano. É o auto-retrato mais autêntico que Jesus condem-se por trás de seus muitos trabalhos - que sem dúvida
desenhou de si mesmo (Huizing, pp. 20ss). Mas, ao mesmo tem- têm sentido e servem aos outros - para assim se protegerem
po, a parábola desafia o leitor a agir da mesma maneira que Jesus. contra qualquer crítica. Já não querem se deixar questionar, não
Lucas é um teólogo prático. Não se preocupa com elucidações querem mais escutar o que, afinal, Deus deseja deles.
teóricas. No agir concreto fica evidente se alguém entendeu a Maria e Marta são dois pólos dentro de nós. Cada um de nós
mensagem de Jesus e a pratica. Cumpriremos as palavras de Jesus tem dentro de si uma Maria e uma Marta. E também dentro de
se fizermos o que cada situação exigir, se não fecharmos os olhos nós ouve-se geralmente mais a Marta. Pois ela tem os melhores
diante dos que caira.m nas mãos de ladrões e, feridos, estão dei- argumentos. Ela pode apresentar alguma coisa. Ela faz alguma
tados na beira de uma estrada. coisa. Ela cumpre a vontade de Deus: a hospitalidade. Por isso
No entanto, Lucas sabe do perigo de nos desgastarmos aju- Jesus precisa defender Maria. Também em nós a suave idéia de
dando os outros para tranqüilizar algum escrúpulo falso. Pensa- que poderíamos simplesmente obedecer à inspiração do momen-
mos, então, que temos de salvar o mundo inteiro. Estamos dian- to, sentando-nos na presença de Jesus a escutar, sem outras in-
te do dilema: a nossa consciência falsa nos impele a ajudar, mas tenções, o que Jesus tiver para nos dizer, é abafada por vozes mais
não temos condições para ajudar a todos. Por isso Lucas coloca a altas exigindo de nós que ajudemos os muito necessitados. Jesus
história de Maria e Marta como pólo oposto a um ideal exagera- reforça a voz mais baixa, a de Maria, que ouvia.mos do outro lado:
do de ajuda (Lc 10,38-42}. Marta é a mulher hospitaleira, que "Maria escolheu a melhor parte, que não lhe deve ser tirada" (Lc
arregaça as mangas, que cuida mesmo dos hóspedes. A hospita- 10,42). É bom ficar quieto e escutar em silêncio o que Jesus, neste
lidade era muito apreciada na Antiguidade. Marta, portanto, faz momento, está querendo dizer. Quem pensa sempre só no futuro
o que está certo, o que alegra os outros. Mas ela não enxerga o e na sua fama junto aos outros desencontra-se com a vida, passa
que o hóspede deseja. A sua dura crítica à sua irmã Maria, que ao largo de Deus e de si mesmo. Quando Maria está sentada aos

124 1
r pés de Jesus, isso quer dizer, na linguagem de Lucas, que ela é
aluna e disópula de Jesus, em pé de igualdade com os homens.
Sêneca a Hofmannsthal. do livro do Sirácida a Luciano de Samo-
sata foram contadas histórias semelhantes à do fazendeiro rico
Assim Maria rompe o papel unilateral da mulher trabalhadeira e (Lc 12, 13-21). Em Luciano, o agiota Gnifão, já no subterrãneo da
hospitaleira. Tanto quanto o homem, a mulher é chamada a en- morte, fica sabendo como "seu dinheiro, penosamente ganho, em
trar na escola de Jesus, para depois, com o mesmo direito, anun- pouco tempo é esbanjado pelo libertino Rodócoris" (Heininger,
ciar a Boa Nova. p. 116). O tema da distribuição da renda é hoje tão moderno como
naquele tempo. Os cristãos não deveriam se entregar à cobiça,
como os especuladores das bolsas; deveriam tomar-se ricos diante
l aut1•1•i11t1 •1 ,r1,ri1•1•11 ri•11n de Deus (Lc 12,21). A verdadeira riqueza está dentro de nós. O
Um outro modo de aconselhar um novo comportamento é prati- tesouro está na nossa alma. É o amor; e o amor é substãncia flui-
cado por Lucas ao contar parábolas. Nas parábolas, trata-se mui- da. Porém, somente fluirá quando também o dinheiro fluir; isto
tas vezes da questão: "O que devo fazer?" É a pergunta que tan- é, quando repartirmos os nossos bens.
to o fazendeiro rico (Lc 12,17) como o gerente astuto se colocam Entre os leitores gentio-cristãos do evangelho lucano havia
(Lc 16,3). Nessas parábolas trata-se da questão de qual é a ma- certamente muitos comerciantes, que tinham alcançado uma certa
neira certa de lidar com a propriedade. Para Lucas, o grego, isso riqueza. Nos Atos dos Apóstolos fala-se de uma comerciante de
é um assunto importante. Lucas é o evangelista dos pobres. Como púrpura chamada Lídia. No seu evangelho, Lucas pensa no bem-
nenhum outro evangelista, ele gira em tomo de temas como po- estar material adquirido graças a bens imóveis, às vendas e ao co-
breza e riqueza, propriedade e renúncia, comunhão de bens e obri- mércio. Latifundiários, atacadistas e cobradores de impostos per-
gação social. O próprio Lucas nasceu provavelmente numa fanu1ia tenciam à camada mais abastada da população (Schnackenburg,
de classe média abastada. Mas ele tem evidentemente uma forte p. 219). Lucas preocupa-se principalmente com o efeito da riqueza
consciência social. Para ele é importante a mensagem de que os sobre o comportamento humano. O homem pode fazer da rique-
cristãos não devem se apegar às suas posses, mas repartir com za um ídolo. A sedução da riqueza leva à ganãncia e à ambição.
os pobres o que possuem. Quem ajunta riquezas só para si mes- O rico é absorvido por cuidados e prazeres terrenos. Ele se es-
mo não entendeu a intenção de Jesus, nem sabe do mistério da quece de Deus. Para o evangelista, duas atitudes caracterizam o
vida humana, cujo limite é a morte. Quem toma a sério sua exis- procedimento do cristão com relação aos bens deste mundo: pri-
tência humana sabe que não poderá ajuntar aqui nenhum tesouro meiramente a partilha dos bens; depois, a despreocupação e a
permanente. A riqueza material se desfaz com a morte. Por isso, liberdade interna com relação às posses (Lc 12,22-32). Quem se
trata-se de ficar rico diante de Deus. Isso, porém, acontece pelo pergunta constantemente se tem o suficiente para comer e para
amor, que se expressa concretamente na partilha das posses. De se vestir dá poder demais às coisas externas. Em vez de se preo-

121 u S!r rur 121


cupar, o homem deve confiar em Deus. Deus cuida dele. Para o dos, segundo as necessidades de cada um" (At 2,44s). Na sua des-
cristão, o que importa é o Reino de Deus e o fato de que Deus crição da comunhão de bens da Igreja primitiva, Lucas combina
reina dentro dele, que Deus habita na sua alma. Deus é o ver- "ideais grego-helenísticos com promessas veterotestamentárias-
dadeiro tesouro. "Onde está teu tesouro, lá estará teu coração" judaicas" (Ernst. p. 101). Lucas não favorece ideais românticos de
(Lc 12,34). Somente quando descansa em Deus o nosso coração pobreza; trata-se antes, para ele, da responsabilidade social da
fica livre da preocupação terrena. Somente quando tem em Deus propriedade e da partilha da riqueza, a fim de que todos tenham
a sua firmeza o homem consegue soltar o que possui e dar os o suficiente. Com esse ideal. realizado na Igreja primitiva, o evan-
seus dons aos pobres. gelista sonha também para seu próprio tempo. Éum ideal que atrai
Lucas conhece ainda outra atitude diante dos bens deste também os gregos, transpondo-se as palavras de Jesus sobre a
mundo: a fidelidade na sua administração (Schnackenburg, p. venda de todos os haveres para a situação dos comerciantes e
220). "Quem é confiável em coisas pequenas, o é também nas negociantes gregos, e mostrando a eles um caminho para a ver-
grandes" (Lc 16,10). A confiabilidade e a fidelidade na adminis- dadeira liberdade e a plenitude da vida. É com razão, pois, que a
tração dos dons terrestres faz supor que a pessoa sabe igualmen- atual teologia da libertação se apóia em Lucas. Ela traduz a men-
te lidar bem com os dons espirituais de Deus. O verdadeiro dom sagem lucana para o nosso tempo. Futuramente, a paz no mundo
de Deus é a salvação, é o próprio Deus que em Jesus se dá aos dependerá sobretudo da possibilidade de a humanidade conseguir
homens. "E se não fostes dignos de confiança quanto àquilo que uma justa distribuição dos bens. A tradução lucana da mensagem
vos é alheio, quem vos dará a vossa (verdadeira) propriedade?" de Jesus. portanto, é hoje sumamente atual. não apenas para a
(Lc 16,12). Os bens que o homem possuir não lhe pertencem. Per- ética individual. mas também para a política das nações.
tencem a Deus. Aquilo que realmente nos convém, que correspon-
de à nossa essência, é a salvação que Deus nos dá em Jesus.
Lucas enxerga bem a realidade deste mundo. Para ele, pro- C11nrsi1
priedade e dinheiro não são coisas do demônio. Mas ele exorta a Uma resposta importante de Lucas à pergunta "O que devemos
um procedimento social. Quem possui riqueza deve vender seus fazer?" é "Conversão". Pedro, no seu sermão do Pentecostes, quan-
haveres e dar o resultado aos pobres. As exortações de Jesus são do o povo lhe pergunta: "O que devemos fazer, irmãos?", responde
realizadas na primeira comunidade de disópulos em Jerusalém. assim: "Convertei-vos, e cada um de vós receba o batismo no nome
Lá também não se prega simplesmente a pobreza, e sim a comu- de Jesus Cristo para o perdão dos pecados, e recebereis o dom do
nhão de bens. Os dons desta terra pertencem a todos: "Todos os Espirito Santo" (At 2,37s}. A palavra grega para conversão, metà-
que abraçaram a fé formaram uma só comunidade e partilhavam noia, significa literalmente 'mudar de pensamento", "pensar de
tudo. Vendiam os seus haveres e bens e repartiam tudo entre to- outra maneira", "olhar atrás das coisas". Para os gregos, a con-

tD llill str lmr 121


versão começava no pensamento. É o pensamento que nos faz estes galileus eram pecadores, porque isso aconteceu com eles, e
errar. Se pensamos erroneamente sobre nós mesmos e sobre a que os demais galileus não pecam? Não, eu vo-lo digo; e todos
situação ao nosso redor, então o nosso comportamento também padecereis do mesmo modo, se não vos converterdes" (Lc 13,2s}.
não corresponde à realidade. Só podemos ter um procedimento Jesus alude à teologia dos fariseus, que em todo o desastre via
certo se temos do mundo uma visão acertada. Na verdade, mui- um castigo pelos pecados. Mas não a confirma. E em vez de se en-
tas vezes vemos o mundo só através dos óculos das nossas pro- volver numa discussão teológica sobre o porquê do acontecido, faz

jeções. Por isso o Jesus tucano quer ensinar os seus ouvintes a os informantes olharem para si mesmos. Não se trata dos outros,
enxergar melhor a realidade e a avaliá-la devidamente. Dois tex- e sim de nós mesmos. Pereceremos igualmente, se não mudarmos
o nosso pensamento. Quando acontecem catástrofes, não devemos
tos esclarecerão o assunto .
Em Lucas 12,54-5 7, Jesus chama a atenção de seus ouvintes perguntar "por quê?". Devemos entendê-las como interrogação a
nós mesmos. Pode nos acontecer a mesma coisa, por exemplo, que
para as previsões do tempo. Quando no oeste subiam as nuvens,
às vítimas das catástrofes de Eschede e Kaprun. Somos questio-
um bom observador do tempo já podia concluir que ia chover.
nados: o que é que nos faz viver? Que sentido tem a nossa vida?
Equando sopra o vento sul dizeis: vai fazer muito calor. Eé o_que acon- Não temos nenhuma garantia de uma vida longa com saúde. Não
tece. ó hipócritas! Sabeis inte.rpretar o aspecto da tem e do ceu, _e con:o é evidente que a nossa vida terá bom êxito. O pressuposto para
não podeis reconhecer os sinais desta época? E por que ta.mbem nao
julgais por vós mesmos o que é justo?# (Lc 12,55-57). um bom êxito da nossa vida é a conversão. Conversão significa
constatar primeiramente que me afastei de Deus, que meu modo
Os homens sabem avaliar com acerto a natureza, mas para o de pensar não contava com Deus. E depois conversão significa ver
sentido da história eles são cegos; de propósito, fecham os olhos. a minha vida à luz de Deus, entendê-la em função de Deus; signi-
Jesus nos exorta a observarmos os acontecimentos concretos do fica olhar por trás das coisas e reconhecer Deus como o verdadei-
nosso tempo, a fim de avaliá-los devidamente, e a reagirmos a ro fim e o fundamento sólido da minha vida. Conversão, porém,
isso com procedimento adequado. A metànoia , o olhar de outra não é somente enxergar e reconhecer, é também decidir. Tomo a
maneira, o pensar diferente, há de levar também a um novo agir. decisão de viver de outra maneira, de viver de uma maneira que
Jesus nos mostra como devemos julgar os fatos históricos na corresponda à vontade de Deus e à minha própria essência.
cena de Lucas 13,1-9. O povo conta as últimas notícias: catástro-
fes politicas e infortúnios que ninguém entende. Pilatos mandou
matar uns galileus que estavam querendo oferecer sacrifícios no ZQ1e1, e1e1,11•e111 m11ersi11lqre
templo. A torre de Siloé desabou, e dezoito pessoas morreram. Nos Lucas não seria um narrador se se contentasse em citar apenas
dois casos a resposta de Jesus é a mesma: uPensais que somente as palavras de Jesus, exortando à conversão. Ele nos narra uma

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m u ser
história maravilhosa sobre a conversão de um homem, Zaqueu, cima, para o céu, ou para as idéias imateriais. Jesus olha para ci-
chefe dos coletores de impostos (Lc 19,1-10). Zaqueu era muito ma a fim de ver um homem. Neste homem ele vê o céu. Olha para
rico, mas de baixa estatura. Pode-se dizer talvez: exatamente por ele como se fosse o rosto de Deus. Isso cria um novo Zaqueu. Ele
ser baixinho, e se sentir pequeno, ele tentava compensar seus muda de feição. No semblante de Jesus ele descobre seu próprio
sentimentos de inferioridade ganhando o máximo possível de rosto. E esse rosto se enche de alegria. Jesus o chama pelo nome.
dinheiro. Para isso ele espremia o povo, como faziam os publicanos Rapidinho, Zaqueu desce da árvore. Ele, o baixinho, que queria
da época, que arrendavam dos romanos uma alfândega, a qual. subir demais, e exatamente por isso se excedeu, agora desce. Ele
então, exploravam em seu próprio proveito. A riqueza devia aju- fica humilde, humilis, familiar com a terra. Lá embaixo, no chão,
dar 0 próprio Zaqueu a se sentir valorizado. Mas ele não conse- acontece o milagre da transformação. É pelo homem Jesus, que-
guia. Quanto mais dinheiro ajuntava, mais os judeus o rejeita- rendo fazer festa com ele, comer e beber com ele, que o homem
vam. É o árculo vicioso em que se encontram muitas pessoas com Zaqueu é transformado. Neste homem, Jesus, Zaqueu experimen-
sentimentos de inferioridade. Quanto mais querem se destacar, ta a divina salvação. Essa experiência lhe muda o rumo. Jesus não
para finalmente serem reconhecidas, tanto mais ficam isoladas e prega a conversão, mas deixa Zaqueu experienciar o seu amor,
são rejeitadas. Zaqueu era chefe dos publicanos. Era só rebaixando que o aceita incondicionalmente. Mas a experiência desse amor
os outros que ele podia acreditar na sua própria grandeza. Ele leva o chefe dos publicanos à conversão. Agora ele quer dar a me-
tinha que se colocar acima dos outros, porque ao lado dos outros tade de suas posses aos pobres, e restituir o quádruplo se preju-
ele se sentia pequeno demais. Mas o seu próprio esforço não con- dicou alguém. Já que se sabe aceito, já que pôde sentir sua pró-
seguia tirá-lo do árculo vicioso da solidão e da rejeição. Ele es- pria dignidade, ele não precisa mais do mecanismo do autodes-
tava precisando do encontro com Jesus, para poder viver de ou- taque e de nadar em dinheiro. Agora ele está livre para dar aqui-
tra maneira, para mudar de rumo. lo a que se agarrava. A conversão nasceu da experiência da aten-
É interessante como Lucas usa aqui grande número de ver- ção, e da alegria que agora brilha no seu rosto. Quem lê essa his-
bos que indicam alguma atividade. Jesus entra na cidade e passa tória ganha um rosto novo, como Zaqueu. Alegra-se porque hoje
por ela. Zaqueu corre na frente da multidão. Naturalmente, ele Jesus levanta os olhos para ele e o chama pelo nome. Seus olhos,
não conseguiria atravessar a multidão. Ele trepa num sicômoro, que até agora só olharam para a sua própria pessoa, abrem-se, e
para que possa ver Jesus. Jesus olha para cima. Até agora todo ele já vê os outros como são. Observa-os e toma-se seu irmão,
mundo olhara para baixo, para ver Zaqueu; ou passara por ele sem sua irmã. Não houve uma exortação para se converter; a conver-
vê-lo. Levantando o rosto para vê-lo, Jesus o prestigia. "Pela pri- são aconteceu ao se ler essa maravilhosa história. É a teologia
meira vez, Zaqueu se sente valorizado como homem" (Huizing, gentil de Lucas. Lucas não precisa humilhar as pessoas, lembran-
p. 237). No ambiente helenístico, anablepo significava olhar para do-lhes constantemente sua pecaminosidade. Ele conta sobre

112 11te!I S!r lmr tD


Jesus, o amigo de todos, que aborda as pessoas de tal maneira cena erótica, pois somente a própria esposa ou uma filha podiam
que mudam de rumo alegremente, descobrindo assim também o ungir os pés de um homem. E para o sentimento judaico soltar
seu próprio humanismo, a sua própria humanidade, o seu "ser os cabelos era um gesto particularmente erótico. A mulher até
amigo de todos". beija os pés de Jesus. Enquanto os fariseus olham a cena com
indignação, Jesus interpreta positivamente a conduta da mulher.
Ele vê as lágrimas, ele vê a aflição, ele vê a ânsia da mulher por
11 1111 c111fli1 e11 1s ,eca•1ra um amor verdadeiro. Jesus toma a iniciativa. O fariseu, que nos
Quem na própria vida já passou por uma conversão se relaciona seus pensamentos se tinha colocado acimá de Jesus, fica emba-
também de outra maneira com os pecadores. Não projetará sobre raçado com uma comparação, tirada por Jesus do mundo do
os outros a sua própria culpa; não fará deles, abusivamente, bo- crediário da época (Lc 7,41s). Depois Jesus critica abertamente
des expiatórios. Há de se relacionar com os pecadores de manei- a atitude do fariseu , e defende o ato da mulher. No comporta-
ra bondosa, segundo o exemplo de Jesus. Que Jesus se voltava mento da mulher ele vê uma expressão de amor. Esse amor é um
para os pecadores tem seu fundamento na confiança de que exa- sinal de que muita coisa lhe foi perdoada. Publicamente, diante
tamente os pecadores estão abertos para a Boa Nova sobre o amor de todos os comensais, Jesus garante o perdão àquela mulher.
misericordioso de Deus. Lucas desenha Jesus como aquele que se Lucas, de propósito, deixa o leitor em dúvida: Jesus perdoa a
volta para os pecadores, e come e bebe com eles. Ele conta uma mulher porque ela lhe mostrou tanto amor ou confirma apenas
história maravilhosa, uma obra-prima de sua arte teatral, a his- o perdão que foi o motivo para o seu amor? É um emaranhado de
tória do encontro entre Jesus e a pecadora (Lc 7,36-50). Nessa perdão e amor. E não vale a pena discutir sobre o que aconteceu
narrativa, brilhante "pelo seu esmero estético" (Bovon I, p. 385), primeiro, o perdão ou o amor. O amor e o perdão estão engrena-
Lucas empregou recursos estilísticos da literatura dos simpósios dos, um no outro, mutuamente.
gregos, sobretudo o tema da aparição de hóspedes não convida- Nessa cena, Lucas não quer apenas pintar a atitude carinhosa
dos, e o diálogo típico dos banquetes gregos (cf. Heininger, p. de Jesus para com a pecadora. Com certeza ele visa também à
84s). Jesus está deitado, segundo o costume de círculos gregos, situação na sua comunidade. Presumivelmente havia lá entre os
para a refeição na casa de um fariseu. Aí acontece a surpresa. Uma cristãos alguns "fariseus", que desdenhavam recém-convertidos
mulher, conhecida na cidade como pecadora, entra e se aproxi- que não tinham um passado lá muito respeitável. ·Muitas vezes
ma de Jesus por trás. Com suas lágrimas ela molha os pés de Jesus, são exatamente as pessoas convertidas depois de uma situação
enxuga-os com seus cabelos e unge-os com óleo precioso. A un- atrapalhada que mostram uma cordialidade especial. Seu amor
ção da cabeça pertencia aos costumeiros ritos de recepção, mas é expressão do perdão que experienciaram. Quem vivencia o
a unção dos pés era uma coisa inaudita (Bovon I, p. 391). É uma perdão como libertação de uma vida de fracassos sabe também

114 1aúll ser


perdoar os outros de todo o coração. Não se coloca acima dos pe- teu de uma maneira nova o perdão de Deus, confirmando-o e
cadores, pois sabe que ele mesmo estragou a própria vida antes selando-o com a sua vida. Nisso consiste a Boa Nova de Lucas: o
que o perdão o colocasse no novo caminho da salvação. Como Es- próprio Jesus nos abre os olhos, de sorte que podemos ver nós
têvão, perdoará até seus assassinos, imitando assim o exemplo mesmos e o mundo de outra maneira. Nesse novo auto-entendi-
de Jesus (At 7,60). mento consiste a conversão, o novo pensar, a nova visão que Jesus
Lucas escreveu muita coisa sobre pecadores (cf. Lc 15), e nos intermediou. Não precisamos operar a nossa conversão pela
menciona muitas vezes o perdão dos pecados como o aspecto cen- nossa própria força. Jesus nos possibilita a conversão, se nós nos
tral da salvação (At 2,38). Isso, porém, não e.xprime uma ima- encontramos com ele hoje, nas narrativas, da mesma maneira
gem pessimista do ser humano. Em si, o ser humano não é ruim. como as pessoas daquele tempo. E no Espírito Santo ele nos dá a
Ele tem um núcleo bom. Freqüentemente, porém, ele vive se força para andarmos por outros caminhos, para agirmos de outra
desencontrando consigo mesmo e com a sua própria verdade. Pe- maneira, iluminados por essa nova visão. Não precisamos de um
cador é aquele que não realiza a sua vida, que não acerta o alvo programa penoso de ajuda para a vida, como hoje é oferecido em
e, por isso, condena e rejeita a si mesmo. Quando muda de rumo numerosos livros. O próprio Espírito Santo nos impele para an-
e se dei.xa batizar em nome de Jesus, ele há de experimentar o darmos pelo "novo caminho", o caminho para a verdadeira vida.
perdão dos seus pecados, e de receber o Espírito Santo. Ele há de Dará certo a vida daquele que consente em enveredar pelo cami-
experimentar uma incondicional confirmação da sua existência, nho novo que Jesus abriu.
e dentro de si uma força que o preservará de sempre de novo cair
nos mesmos padrões de uma vida errada. Essa é uma mensagem
que os gregos sabiam apreciar muito bem. Para eles tratava-se,
sempre de novo, da questão do caminho certo. Como encontrarei
o meu caminho? Qual é o caminho que leva à vida? O pecado leva-
nos por caminhos errados, não alcançamos a meta. O encontro
com Jesus abre-nos um caminho em que nossa vida vai dar cer-
to. No encontro com Jesus libertamo-nos dos fracassos da histó-
ria da nossa vida, e ficamos repletos do Espírito Santo. O Espírito
Santo nos toma capazes de viver de outra maneira, de viver se-
gundo o modelo da vida de Jesus.
Segundo o evangelho de Lucas, Jesus não e.xpiou pela sua
morte os nossos pecados, nem os limpou por ablução. Ele prome-

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- -- - -- - - - -- - -- -- - - -
lucas como evangelista
do ano litúrgico

O efeito do evangelho de Lucas na história


da Igreja não se baseia somente na nova
ética que Lucas nos transmite, mas também
no caminho espiritual para o qual ele nos
,~••Nli$~:a=~ convida, caracterizado sobretudo pela oração
.-~~ pessoal. Além disso, refere-se ainda à litw-
gia comunitária, em que a história de Jesus
se toma presente para nós, hoje. Na tradi-
ção litúrgica, Lucas é considerado o teólogo
do ano litúrgico. Para isso há vários motivos.
..,..,.....~ Primeiramente, Lucas começa o seu evange-
lho no templo. É dwante o seu serviço sa-
liiiiii-.~•-; cerdotal no templo que Zacarias recebe a pro-
messa de que lhe nascerá um filho. E Lucas
termina o seu evangelho com o louvor dos
. . . .Cl disápulos no templo: "Estavam sem cessar

••
no templo e louvavam a Deus" (Lc 24,53). Com essa frase final homens cura e salvação. O que outrora aconteceu volta sempre a
de seu evangelho, Lucas visa ao culto religioso da comunidade. É tomar-se presente no culto religioso. A recordação transpõe os
no culto que a comunidade celebra a memória dos grandes feitos feitos históricos de Deus para o presente, para os que participam
que Deus operou em Jesus. Toma-se presente, então, o que ou- da liturgia. As pessoas que, no culto, se lembram da história de
trora aconteceu. Jesus são interiormente tocadas e transformadas por ela. Enquan-
Lucas descreve a atividade de Jesus como um Ano de Salva- to a história de Jesus, no decurso do ano litúrgico, volta sempre
ção. Apresenta o ministério de Jesus como tendo durado um ano. a ser lembrada no culto religioso, ela penetra cada vez mais pro-
Para Jesus, sua tarefa consiste em "proclamar um 'Ano da Graça' fundamente na história do mundo e vai se efetuando. Assim, a
do Senhor" (Lc 4,19). Esse Ano da Graça, que Deus nos outorgou Redenção, que aconteceu no "Ano da Graça" de Jesus, se realiza
em Jesus Cristo, é repetido no decurso do ano litúrgico, a fim de na humanidade e atinge todas as gerações. O ser humano é es-
que se implante cada vez mais profundamente na história. A maior sencialmente histórico. Desenvolve a sua natureza na história.
parte das festas durante o ano litúrgico baseiam-se em Lucas: o Somente encontra-se consigo mesmo pelo seu envolvimento na
dia 24 de junho como dia de João Batista, e o dia 24 de dezem- história. Lucas leva a sério a historicidade do ser humano. Tam-
bro como dia do nascimento de Jesus (Lc 1,26). O prazo entre o bém a Redenção acontece na história e a impregna com os seus
Natal e a Purificação de Maria baseia-se na história do nascimento efeitos. Lucas é familiarizado com a filosofia grega da história,
de Jesus como Lucas a transmitiu a nós. O tempo da Paixão, a para a qual os efeitos de um acontecimento fazem parte de sua
Páscoa, a Ascensão de Cristo e o Pentecostes têm sua base no
própria história. Comemoração e lembrança são os dois caminhos
evangelho de Lucas. Porém, Lucas deu à Igreja mais do que essas
pelos quais um acontecimento desenvolve os seus próprios efei-
festas e sua ordem cronológica. Com base no seu evangelho, teó-
tos, obtendo os seus resultados na nossa existência histórica. A
logos gregos elaboraram uma teologia própria do ano litúrgico.
comemoração da história da Salvação, que culminou em Jesus,
Nisso duas idéias, sobretudo, são importantes: a teologia lucana
toma o passado presente, a fim de que deixemos atingir-nos pe-
da história e seu conceito de teatro.
las suas exigências. A lembrança interioriza o que aconteceu, a
fim de que transforme o coração humano. É por esse caminho que
a Redenção por Jesus Cristo nos alcança hoje.
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Como grego, Lucas entende a história como sendo o lugar onde
Deus se manifesta aos homens. O kai egeneto, "e aconteceu", é
sem dúvida a expressão de que Lucas mais gosta. A vida de Jesus lell nza "•1je"
foi um acontecimento, um evento histórico. O que acontece tem No "hoje" sete vezes repetido, toma-se claro que os fatos de ou-
importãncia para os homens. Movimenta os homens. Opera nos trora acontecem hoje conosco, enquanto os celebramos no culto.

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no templo e louvavam a Deus" (Lc 24,53). Com essa frase final homens cura e salvação. O que outrora aconteceu volta sempre a
de seu evangelho, Lucas visa ao culto religioso da comunidade. É tomar-se presente no culto religioso. A recordação transpõe os
no culto que a comunidade celebra a memória dos grandes feitos feitos históricos de Deus para o presente, para os que participam
que Deus operou em Jesus. Torna-se presente, então, o que ou- da liturgia. As pessoas que, no culto, se lembram da história de
trora aconteceu. Jesus são interiormente tocadas e transformadas por ela. Enquan-
Lucas descreve a atividade de Jesus como um Ano de Salva- to a história de Jesus, no decurso do ano litúrgico, volta sempre
ção. Apresenta o ministério de Jesus como tendo durado um ano. a ser lembrada no culto religioso, ela penetra cada vez mais pro-
Para Jesus, sua tarefa consiste em "proclamar um 'Ano da Graça' fundamente na hist ória do mundo e vai se efetuando. Assim, a
do Senhor" (Lc 4,19) . Esse Ano da Graça, que Deus nos outorgou Redenção, que aconteceu no "Ano da Graça" de Jesus, se realiza
em Jesus Cristo, é repetido no decurso do ano litúrgico, a fim de na humanidade e atinge todas as gerações. O ser humano é es-
que se implante cada vez mais profundamente na história. A maior sencialmente histórico. Desenvolve a sua natureza na história.
parte das festas durante o ano litúrgico baseiam-se em Lucas: o Somente encontra-se consigo mesmo pelo seu envolvimento na
dia 24 de junho como dia de João Batista, e o dia 24 de dezem- história. Lucas leva a sério a historicidade do ser humano. Tam-
bro como dia do nascimento de Jesus (Lc 1,26). O prazo entre o bém a Redenção acontece na história e a impregna com os seus
Natal e a Purificação de Maria baseia-se na história do nascimento efeitos. Lucas é familiarizado com a filosofia grega da história,
de Jesus como Lucas a transmitiu a nós. O tempo da Paixão, a para a qual os efeitos de um acontecimento fazem parte de sua
Páscoa, a Ascensão de Cristo e o Pentecostes têm sua base no
própria história. Comemoração e lembrança são os dois caminhos
evangelho de Lucas. Porém, Lucas deu à Igreja mais do que essas
pelos quais um acontecimento desenvolve os seus próprios efei-
festas e sua ordem cronológica. Com base no seu evangelho, teó-
tos, obtendo os seus resultados na nossa existência histórica. A
logos gregos elaboraram uma teologia própria do ano litúrgico.
comemoração da história da Salvação, que culminou em Jesus,
Nisso duas idéias, sobretudo, são importantes: a teologia lucana
toma o passado presente, a fim de que deixemos atingir-nos pe-
da história e seu conceito de teatro.
las suas exigências. A lembrança interioriza o que aconteceu, a
fim de que transforme o coração humano. É por esse caminho que
a Redenção por Jesus Cristo nos alcança hoje.
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Como grego, Lucas entende a história como sendo o lugar onde
Deus se manifesta aos homens. O kai egeneto, "e aconteceu", é
sem dúvida a expressão de que Lucas mais gosta. A vida de Jesus 1111 MS "•1je"
foi um acontecimento, um evento histórico. O que acontece tem No "hoje" sete vezes repetido, toma-se claro que os fatos de ou-
importância para os homens. Movimenta os homens. Opera nos trora acontecem hoje conosco, enquanto os celebramos no culto.

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Nos acontecimentos mais importantes da vida de Jesus, Lucas nos rar estes sete "hoje" do evangelho de Lucas com os sete sacramen-
conta que "hoje" a Salvação aconteceu para a humanidade. O pri- tos: neles acontece a nós, hoje, o que então aconteceu em e por
meiro "hoje" refere-se ao nascimento de Jesus. O anjo anuncia aos Jesus. Hoje nascemos de novo, hoje somos ungidos com o Espí-
pastores: "Hoje nasceu-vos, na cidade de Davi, o Salvador, que é rito Santo, hoje a nossa culpa é perdoada, hoje as nossas enfermi-
o Messias, o Senhor" (Lc 2,11). Hoje aconteceu o cumprimento dades são curadas, hoje Jesus celebra conosco uma refeição e nos
da promessa veterotestamentária de um Messias que libertará o mostra a sua bondade e o seu amor. Hoje sentimos, na comemo-
povo. No batismo de Jesus a voz do céu fala (segundo os manus- ração da morte e ressurreição de Jesus, que desde já somos leva-
critos ocidentais, sem dúvida o texto original de Lucas): "Meu Filho dos ao paraíso, que já participamos da glória do Ressuscitado.
és tu; eu hoje te gerei" (Lc 3,22). No batismo, Jesus é confirma- Às principais estações da vida de Jesus, portanto, aplica-se
do como Filho de Deus, e recebe o Espírito Santo, para que, na a palavra "hoje". Esse "hoje", tanto os judeus como os gregos po-
força do Espírito, siga o seu caminho, cure os enfermos e realize diam entendê-lo. O Salmo 95,ls reza: "Hoje, ao ouvirdes a sua
os feitos de Deus. No seu discurso de posse, na sinagoga de Naza- voz ... ". O Deus que no passado falou aos israelitas fala "hoje" para
ré, o próprio Jesus anuncia: "Hoje cumpriu-se esta palavra da nós na liturgia, para que não endureçamos o nosso coração, mas
Escritura que acabais de ouvir" (Lc 4,21). Com o início do minís- nos deixemos transformar pela palavra de Deus. Mas o "hoje" era
tério de Jesus começa o "Ano da Graça". Hoje está se cumprindo, familiar também aos gregos. Nas celebrações noturnas dos Misté-
à vista de todos, o que Isaías prometeu: aos pobres traz-se uma rios, o sacerdote exclamava, para os participantes do culto: "Hoje
boa notícia, aos presos anuncia-se a liberdade, aos cegos a luz dos a virgem gerou a luz". Os cultos dos Mistérios conheciam o "hoje".
olhos, aos oprimidos o alívio. Na cura do paralítico, todos ficaram Celebrava-se no culto o que tinha acontecido "naquele tempo", a
entusiasmados. Glorificavam a Deus e diziam; cheios de temor: fim de que acontecesse "hoje" entre os participantes, e os atin-
"Hoje vimos uma coisa incrível" (Lc 5,26). Por ocasião da refeição gisse. No seu culto, os gregos procuravam uma ligação com o tem-
de Jesus com o publicano Zaqueu e seus amigos, o "hoje" aparece po sagrado em que os deuses haviam realizado seus feitos. Para
até duas vezes: "Hoje preciso me hospedar na tua casa" (Lc 19,5). eles, o culto religioso era o lugar em que se tomava novamente
E quando o coração de Zaqueu, pela atenção de Jesus, é trans- presente o tempo sagrado dos prinópios, da criação do mundo, e
formado, e ele promete dar a metade de suas posses aos pobres, em que o tempo profano com suas impurezas se dissolvia. Quem
então Jesus lhe diz: "Hoje veio a Salvação a esta casa" (Lc 19,9). se lembrasse, na liturgia, do tempo sagrado, do tempo da felici-
O último "hoje" é formulado por Lucas na hora da crucificação de dade, era como se nascesse de novo. "Recomeçava a sua existên-
Jesus. Quando o malfeitor pede a Jesus que se lembre dele quan- cia, com reservas irrestritas de força vital, como na hora de seu
do chegar ao seu Reino, Jesus lhe responde: "Amém, eu te digo: nascimento" (Eliade, p. 47). A saudade das origens, a saudade do
hoje estarás comigo no paraíso" (Lc 23,43) . Poderíamos compa- paraíso era para os gregos o motivo das suas festas e celebrações.

142 11e11 su lms em1111sta an


Era a ânsia de voltar "para o mundo forte, viçoso e puro que existia meu "eu" original, com a imagem pura que Deus, para si, criou
in illo tempore. Era ao mesmo tempo sede do sagrado e saudade de mim. Lucas descreveu a vida de Jesus como urna obra teatral,
do ser" (Eliade, p. 55). Quando os cristãos primitivos ouviam na que faz o pecador se converter, emocionado. E era óbvio que os
liturgia o "hoje", eles sabiam que o Cristo estava presente entre primeiros cristãos, na liturgia, queriam sempre de novo esse es-
eles. Participavam do "Ano da Graça" do Senhor. O que então emo- petáculo diante dos olhos, para baterem no próprio peito como
cionava tanto os fiéis, o que lhes transformava os corações e lhes o povo do tempo de Jesus, e para voltarem para casa transforma-
curava as feridas, isso acontece aos fiéis de hoje também. Parti- dos. Os primeiros Padres da Igreja, que desenvolveram uma teo-
cipam dos efeitos da força sanadora e libertadora de Jesus. Jesus logia da liturgia, eram quase todos gregos. Retomaram a idéia do
fala para eles, hoje, e toca hoje nos seus olhos cegos e no seu corpo teatro, que achavam, de um lado, em Lucas e, de outro, também
leproso. Com essa teologia do "hoje", Lucas nos mostra um cami- nos cultos dos Mistérios, praticados no seu ambiente. Seria bom
nho para lançarmos urna ponte sobre o fosso horroroso da histó- para nós que nos deixássemos inspirar hoje pela teologia do tea-
ria, e para experimentarmos hoje os acontecimentos da vida de tro. Os nossos cultos ficariam mais convidativos. Representariam
Jesus como saneadores e redentores. a história de Jesus diante dos olhos dos participantes da litur-
gia, de tal maneira que ficassem tocados, como outrora os leito-
res do evangelho de Lucas. Mesmo pessoas que assistem a um culto
1tnlqil •• latrl sem pertencer à Igreja sentem-se até hoje cativadas pela lingua-
A segunda contribuição de Lucas para a teologia do ano litúrgico gem de Lucas; por exemplo, quando no Natal é lida a história do
é a idéia grega do teatro. Os gregos gostavam de teatro. No tea- Nascimento de Jesus, ou quando é apresentada a parábola do fi-
tro os conflitos humanos são representados com todas as emo- lho pródigo ou a história de Emaús.
ções e paixões que neles irrompem. Nele o ser humano se revela
na sua polaridade entre o bem e o mal, entre a luz e as trevas.
Dessa maneira o espectador entra em contato com as suas pró- llm l l lnçú litirliCI
prias emoções e paixões reprimidas. Descobre a profundeza abis- No seu evangelho, Lucas deixou para a Igreja três salmos de ora-
mal de seu coração; reconhece as suas necessidades e os seus ção, que são cantados diariamente na liturgia: o Benedictus como
anseios, os seus perigos e a sua desarmonia interna. O teatro ti- hino matinal, o Magnificat como hino vespertino e o Nunc Dimittis
nha para os gregos um efeito catártico, isto é, ele purificava o es- corno hino noturno. Nestes três salmos de louvor exprime-se, ao
pectador de suas impurezas internas, causadas por paixões e meu ver, a arte lucana de ligar o passado ao present e e ao futuro.
emoções. Enquanto assisto a uma peça teatral, sou internamen- Nesses hinos louvamos a Deus por tudo o que já fez por nós no
te transformado. As emoções serenam-se, e entro em contato com passado e por tudo o que hoje ainda faz. Usamos essas palavras

144 11e11 szr


todos os dias e nas mais diversas festas. Não descrevem apenas o tória, como Deus agiu em Jesus Cristo, derrubando todas as nor-
que aconteceu no nascimento de João Batista ou no Natal. São mas deste mundo. Em Jesus, Deus inverteu as relações de poder
palavras abertas, podendo descrever o mistério de qualquer fes- deste mundo. Lucas compõe o hino de Maria com orações judai-
ta, seja Páscoa ou Pentecostes, Ascensão de Cristo ou uma festa cas. Tem semelhanças com salmos dos fariseus. Mas ao mesmo
de Maria ou de qualquer santo. O hino de Zacarias, propriamente tempo alude a temas gregos. A inversão das relações é um topos
uma poesia de felicitações pelo nascimento de João Batista, Lu- conhecido também na literatura grega. A liturgia cristã tem in-
cas o colocou conscientemente antes do nascimento de Jesus. terpretado o Magnificat não apenas em função do nascimento
Assim, Lucas vê nestas palavras uma expressão do mistério da de Jesus, mas vendo-o também à luz de sua morte e ressurrei-
Encarnação, que comemoramos diariamente de manhã cedo. Em ção. Na morte e ressurreição de Jesus, Deus acabou com todos
Jesus, Deus visitou a nós, seres humanos. Deus toma-se o nosso os critérios deste mundo. No nascimento de Jesus já se toma claro
hóspede. E como presente de hóspede ele traz a redenção. Essa que o Senhor do mundo nasce como criança pobre, e que os ri-
redenção é descrita como salvação das mãos dos nossos inimigos, cos, por isso, ficam de mãos vazias. O que se iniciou no nasci-
como misericórdia para conosco, possibilitando-nos uma vida sem mento de Jesus completou-se na sua morte e ressurreição - o
medo, "em santidade e justiça, ao longo dos nossos dias" (Lc 1,75). crucificado toma-se rei, o morto toma-se o principe da vida. A
E o nascimento de Jesus é cantado como a visita do sol nascen- luz brilha na escuridão, o sepulcro toma-se o espaço da vida.
te, vindo do alto. Em Cristo aparece-nos o sol da salvação. "Ilu- No Magnificat, Lucas oferece à Igreja um cântico que descreve o
mina-nos, a nós que nos encontrávamos na escuridão, na sombra mistério de Jesus em imagens que ao mesmo tempo simbolizam
da morte, a fim de guiar os nossos passos no caminho da paz" também a transformação da nossa própria vida. Ao olharmos para
(Lc 1,79). A imagem do astro que aparece no céu, nos iluminan- o Cristo e para Maria, revela-se-nos que também para nós Deus
do, era conhecida tanto entre os judeus como entre os gregos. fez grandes coisas. Assim, o Magnificat toma-se a oração pes-
Cristo é essa figura luminosa celestial. Ele é a verdadeira estrela soal para o fim do dia, na qual agradeço a Deus porque ele pôs
da manhã, que surge nos nossos corações. A Igreja canta esse hino os olhos sobre a minha humilde pessoa, e fez para mim grandes
toda manhã, para confessar que o sol nascente nos lembra o Cris- coisas. Nesse cântico, portanto, misturam-se não apenas o pas-
to. O que observamos na natureza é imagem do Cristo, o sol ver- sado com o presente, mas ao mesmo tempo a vivência de Maria
dadeiro. Cristo nos traz hoje a luz que expulsa as nossas trevas e com as minhas experiências pessoais, e o destino de Jesus com
nos possibilita prosseguir no caminho da paz. a minha própria sorte. Lucas é mestre na arte de transpor o pas-
Na liturgia das Vésperas, de tardinha, canta-se diariamente sado para o presente, de ligar a vida de Jesus à história da Igre-
o Magnificat. É o canto de louvor, cantado por Maria. Canta não ja e à nossa própria história muito pessoal. No Magnificat ele
apenas aquilo que Deus fez a ela, mas a atuação de Deus na his- consegue isso de maneira insuperável. Na morte de cada dia, pois,

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louvamos neste cântico, em comunhão com Maria, nossa irmã na mos textos do seu Evangelho e dos Atos dos Apóstolos: Natal,
fé, a bondosa ação de Deus para conosco. Purificação de Maria, Segunda Feira da Páscoa, Ascensão de Jesus
Nas Completas, a oração da noite, a Igreja canta o hino de e Pentecostes. No Advento, nos dias antes do Natal, lemos so-
despedida do velho Simeão. Também nesse cântico encontramos bretudo trechos do Evangelho de Lucas. No Tempo Pascal ouvi-
o duplo significado das palavras. Simeão agradece pelo que lhe mos diariamente leituras dos Atos dos Apóstolos. Toda manhã e
sucedeu: na criança que ele carregou nos braços ele viu a Salva- toda noite cantamos os hinos que Lucas nos transmitiu. Diaria-
ção: "A luz que ilumina os gentios, e a glória de teu povo Israel" mente são cãnticos novos, embora Lucas os tenha escrito há
(Lc 2,32). E ao mesmo tempo é o nosso cântico do fim do dia. quase dois mil anos. Ele é realmente o poeta que nos ensina as
Hoje vimos a salvação que Deus nos preparou. Hoje o Cristo nos palavras com as quais podemos interpretar e expressar a nossa
iluminou, clareando em nós tanto a fé como a carência de fé . A vida na presença de Jesus.
oração de Simeão é um colóquio com Deus no momento da mor-
te. A noite chegando ... também ela é para nós uma preparação
para a morte. A noite da morte perdeu seu horror porque em Jesus
vimos a salvação, pela qual a nossa vida se toma salva e sã. Vi-
mos a Salvação, não apenas no nascimento de Jesus, mas hoje,
neste dia. Deus nos deixa contemplar a sua Salvação, quando ele
nos toca durante o silêncio ou quando, no encontro com alguém,
o mistério divino reluz para nós. Ao olharmos para Jesus revela-
se-nos a Salvação que hoje nos aconteceu. Tendo visto a Salva-
ção durante o dia, podemos nos entregar de noite, tranqililamente,
aos braços amorosos de Deus.
A Igreja ama esses três cânticos que Lucas lhe deu. E mui-
tos fiéis gostam de cantá-los diariamente. Sentem que as pala-
vras de Lucas são cheias de poesia, que estão abertas para ex-
pressar diante de Deus tudo o que hoje vivemos. Louvamos a Deus
por tudo o que ele fez para nós outrora, na história de Jesus, e por
tudo o que hoje faz por nós em Jesus Cristo. Lucas, portanto,
está presente na liturgia diariamente. Como nenhum outro, Lu-
cas continua a operar dentro da Igreja. Nas grandes festas ouvi-

141 11Cell nr MI
Conclusão

Ultimamente Lucas tem recebido muitos ró-


tulos: Lucas, o evangelista dos pobres (Degen-
hart), o evangelista do dia-a-dia (Venetz), o
evangelista litúrgico (Grundmann), o evan-
gelista das mulheres (teologia feminista), o
primeiro teólogo da libertação (teologia da
libertação). No nosso tempo foram sobretudo
a teologia da libertação e a teologia feminis-
ta que descobriram novamente o evangelho
de Lucas. A exegese protestante não dava
muito valor ao evangelho lucano. Para Bult-
mann, Lucas não apresentava nenhuma teo-
logia utilizável. Para ele, Lucas está longe da
doutrina paulina da justificação, e ele cons-
tata, com razão, que Lucas representa uma
teologia diferente da paulina. Mas é bom que
não exista apenas um Paulo, e que exista também um Lucas, que que lhe é próprio e peculiar, sem desvalorizar as outras religiões.
traz o homem Jesus para perto de nós, que nos conta histórias, São até as tradições de outras religiões que podem nos abrir os
tocando-nos o coração e convidando-nos à conversão. Como ne- olhos para compreendermos o mistério de Jesus em toda a sua
nhum outro evangelista, Lucas agrada às mulheres, e não é so- profundeza.
mente porque só ele nos conta que, além dos apóstolos, também Lucas é moderno como teólogo da justiça soóal. A justa dis-
algumas mulheres acompanhavam Jesus (Lc 8,2s). Essas mulhe- tribuição dos bens será nos próximos anos o grande tema da po-
res eram disópulas de Jesus, tanto quanto os homens eram dis- lítica. Se as condições económicas do norte e do sul continua-
ópulos. Lucas sensibiliza o coração das mulheres porque não mo- rem a se tomar cada vez mais contrastantes, isso há de causar
raliza, mas conta histórias. E elas gostam de Lucas também por- conflitos belicosos. A voz de Lucas precisa ser ouvida hoje, se
que não teoriza, mas ao escrever se relaciona diretamente com o quisermos viver uma paz duradoura. A paz não é apenas uma
seu leitor e a sua leitora. Isso dá ao seu evangelho uma qualida- mensagem idilica do Natal; precisamos andar no caminho da paz.
de diferente, uma qualidade humana. Os passos nesse caminho consistem sobretudo, para Lucas, na
Lucas é hoje tão atual como o foi no seu tempo. Ele pode partilha da propriedade. Hoje essa convicção de Lucas não pode
nos aproximar novamente desse Jesus que, para muitos, hoje, se ser menosprezada. Não é à toa que Lucas é chamado "o evange-
tornou um estranho. A imagem que Lucas pinta de Jesus é atra- lista dos pobres".
ente, fasónante. Não é simplesmente harmoniosa e correta. Pelo Cada um gosta de determinados textos do Evangelho de Lu-
contrário, o Jesus de Lucas apresenta até certos traços inquie- cas. Cada um sente-se interessado e emocionado por determina-
tantes. É preciso entrar em discussão com ele. Éimpossível deixá- das narrativas. Desejo ao leitor que leia o Evangelho de Lucas com
lo de lado. Com não poucas de suas declarações ele nos provoca. novos olhos, como se nunca o tivesse lido. Talvez o leitor des-
E ao mesmo tempo ele nos fascina pelo modo como fala e age. O cubra então a atualidade dessa mensagem. Desejo a cada leitor
trabalho de tradução que Lucas empreendeu para os gregos cul- que lhe aconteça o que aconteceu aos disópulos de Emaús: "Não
tos de seu tempo, deveríamos continuá-lo hoje. Qual é atualmente nos ardia o coração no peito, quando ele nos falava no caminho
o horizonte para o qual vamos anunciar Jesus? Até que ponto e nos explicava as Escrituras?" (Lc 24,32). Que o seu coração lhe
esse horizonte corresponde ao mundo intelectual do helenismo? arda no peito e que os seus olhos se abram para que você com-
Pois o helenismo era um aglomerado de influências gregas, egíp- preenda o mistério do amor misericordioso de Deus, revelado a
cias, persas e judaicas. Isso tem, sem dúvida, um paralelo na plu- nós em Jesus Cristo, que nos visitou aqui nesta Terra.
ralidade do nosso tempo. Seria, então, tarefa nossa traduzir Lucas
para o horizonte intelectual do nosso tempo. No diálogo inter-
religioso, poderíamos aprender com Lucas a entender Jesus no

112
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