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1. OBJETIVOS
• Compreender, historicamente, os livros de Provérbios e
Sirácida.
• Possibilitar aos alunos distinguir os diversos gêneros lite-
rários desses livros.
2. CONTEÚDOS
• Questões introdutórias: título, data e autoria.
• Gêneros literários.
• Estrutura e conteúdo teológico.
4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você observou a comparação entre
duas sabedorias: a bíblica e a da Mesopotâmia e do Egito. Assim,
para dar prosseguimento aos seus estudos, foi essencial aprender
acerca da importância da Teologia da Religião. Agora, nesta unida-
de, adentraremos a história sapiencial bíblica por meio dos Pro-
vérbios (Pr) e da Sirácida e conheceremos, também, seus gêneros
literários.
5. PROVÉRBIOS
Provavelmente, o livro dos Provérbios é o que melhor repre-
senta toda a literatura sapiencial bíblica. Os provérbios são, tal-
vez, a memória escrita mais antiga da sabedoria israelita. Já antes
do período da monarquia, isto é, antes do ano 1.000 a.C., eram
colecionados ensinamentos da sabedoria popular, surgidos no
Título
Na Bíblia Hebraica, o título do livro que ora estudamos é Pro-
vérbios (em hebraico, meshalim) de Salomão. Todavia, a palavra por-
tuguesa "provérbios" não traduz com precisão a palavra hebraica
"meshalim". Os primeiros escritores cristãos davam o mesmo nome,
"Sabedoria", a três livros: Provérbios, Eclesiástico e Sabedoria. Tal-
vez, tal denominação tivesse sua origem nas comunidades judaicas.
Meshalim é o plural de mashal. Mas o que é um mashal?
Originalmente, mashal é um dito popular breve e incisivo:
"Como é o homem, tal é a sua força" (Jz 8,21); "Dos malvados pro-
cede a maldade" (1Sm 24,14); "Que tem a palha em comum com o
grão?" (Jr 23,28). Ou seja, é uma sentença curta que corre de boca
em boca. Nos dias de hoje, existem, também, muitos meshalim:
"Quem muito fala muito erra"; "Saiba ir para poder voltar"; "Ma-
caco velho não mete a mão em cumbuca"; "Água mole em pedra
dura tanto bate até que fura".
Portanto, mashal era um dito popular fundamentado na ex-
periência da vida e formado de uma única frase. Posteriormen-
te, os sábios ampliaram o mashal e ele deixou de ser apenas um
dito breve, para englobar, também, aforismos, enigmas, poemas
numéricos, sátiras, discursos comparativos, comparações, fábulas
profanas e religiosas. Tal ampliação tinha a finalidade de completar
o sentido ou mesmo dar a explicação do mashal original. Vejamos
um exemplo descrito em Pr 12,1: "Quem ama a disciplina ama o
conhecimento, e quem odeia a repreensão é como um animal".
Podemos perceber, pois, que a primeira parte é uma frase
breve, densa e completa, isto é, não necessita da segunda frase.
Todavia, a segunda foi acrescentada para formar uma contraposi-
ção ou antítese, a fim de dar ênfase à primeira.
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Data
O livro dos Provérbios é uma coleção de coleções. Isso não
deveria ser novidade nem provocar espanto. Basta abrir o livro
dos Provérbios e prestar atenção aos títulos: Provérbios de Salo-
mão... (1,1); Palavras dos sábios (22,17), Palavras de Agur (30,1).
Foram cinco séculos de atividade literária e cultural. Assim, muitos
provérbios foram recolhidos da sabedoria popular em um período
muito antigo; outros são mais recentes e refletem o ambiente da
corte. Em outras palavras, a redação do livro dos Provérbios pas-
sou por várias etapas, o que torna impossível datar com precisão
cada uma das coleções. Acredita-se, porém, que esse longo pro-
cesso redacional foi completado na metade do século 3 a.C.
As datas mais aceitas para cada coleção serão vistas mais
adiante.
Autor
O livro dos Provérbios é fruto do trabalho de sábios anôni-
mos que, pacientemente, recolheram essas preciosidades no meio
cultural do povo.
Estrutura
Entre os estudiosos, surgiram várias propostas para dividir
e organizar o livro dos Provérbios. A divisão que vamos adotar é
aceita por um bom número de autores, tais como: José Vílchez Lín-
dez e Victor Morla Asensio (1984, p. 99-103); G. Laurentini (1978,
p. 381); e Artur Weiser (1966, p. 9). Dessa forma, o livro dos Pro-
vérbios é composto de nove coleções:
Quadro 1 Livro dos Provérbios – Nove coleções.
COLEÇÕES EXPLICAÇÕES ACERCA DAS COLEÇÕES
O autor é anônimo e o tema principal desse bloco é o convite
do "pai" (o sábio) ao "filho" (o discípulo). Este deve buscar a
Introdução: 1,1-7 sabedoria, isto é, a sensatez e a prudência; fugir dos perigos e
se manter na vigilância; ter cuidado com as más companhias,
Primeira coleção: especialmente a mulher estrangeira. Em 1,22-33 e 8,4-
1,8-9,18 36, a sabedoria personifica-se e fala da sua origem divina,
recomendando a si mesma. Essa foi a última coleção a ser
inserida no livro, provavelmente após o ano 400 a.C.
Essa é a primeira coleção salomônica. Comparando-a com o
Segunda coleção: primeiro grupo, percebemos que se trata de outro mundo
10,1-22,16 literário. São provérbios com paralelismo antitético e
sinonímico. A coleção pode ser pós-exílica, não obstante seja
intitulada Provérbios de Salomão.
Trata-se da primeira coleção dos sábios, com quartetos em
paralelismo sinonímico. São conselhos endereçados ao néscio,
Terceira coleção: para que aprenda a se comportar devidamente. Essa coleção
22,17-24,22 pode se dividir em dois grupos: 22,17-23,11 e 23,12-24,11. Essa
subdivisão baseia-se na semelhança entre os provérbios do
primeiro grupo e as máximas de Amen-em-opet (sábio egípcio,
difícil de localizar no tempo: as datas variam de 1000 a 600 a.C.).
É a segunda coleção dos sábios. A única coisa que a distingue
Quarta coleção:
da primeira é o título, no v. 23. Esses provérbios não oferecem
24,23-34
datas para poder se realizar uma datação.
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6. GÊNEROS LITERÁRIOS
Quando começamos a ler os provérbios, percebemos que
eles não são todos iguais. Antes, há provérbios de vários tipos.
Veja alguns nos tópicos a seguir.
Mashal simples
O mashal simples caracteriza-se por ter apenas uma propo-
sição: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7). A apresentação
pode ser negativa: "Não há sabedoria, nem entendimento, nem
conselho diante do Senhor" (21,30), ou generalizante: "Muitos
buscam favores de quem governa" (29,26).
Alguns provérbios descrevem um tipo de comportamento:
"O homem colérico provoca discórdia" (15,18), enquanto outros
não se contentam em descrevê-lo, mas emitem uma opinião a seu
respeito: "não é justo..." "não convém..." "desagrada o Senhor..."
Comparação
A comparação trata-se de uma proposição que confronta
duas ou mais realidades e estabelece uma semelhança ou mesmo
uma antítese. No caso da semelhança, o esquema básico é "como
x, assim y". Geralmente, um fato tirado da natureza presta-se para
um ensinamento: "Como o pássaro que foge do seu ninho, assim
é o homem que foge do seu lar" (27,8). Às vezes, as comparações
são bastante simples e iniciadas por duas proposições: "Como o
vinagre nos dentes e o fumo nos olhos, assim é o preguiçoso para
quem o envia" (10,26). Por sua vez, a antítese é uma comparação
ao contrário, isto é, colocam-se lado a lado duas realidades con-
trastantes: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7).
A comparação enriquece-se com a imaginação: "Uma por-
caria, diz o comprador: mas depois vai-se gabando da compra"
(20,14). É, pois, algo bem mais elaborado do que o nosso provér-
bio "Quem desdenha quer comprar".
Metáfora
A metáfora diferencia-se da comparação por não usar a partícula
"como". O predicado é atribuído diretamente ao sujeito em sentido fi-
gurado: "Pois o preceito é uma lâmpada, e a instrução é uma luz, e é um
caminho de vida a exortação que disciplina" (6,23); "Um anel de ouro no
focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso" (11,22). Na
maioria das vezes, a metáfora é mais agressiva que a comparação.
Pergunta retórica
Em alguns provérbios, temos interrogações retóricas, isto
é, perguntas feitas não para serem respondidas, mas para levar o
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Repetição
A repetição não é sinal de pobreza mental ou de estilo mal
curado, mas um modo de reforçar a ideia que se quer transmitir:
Quem subiu ao céu, e de lá desceu? Quem encerrou o vento no
punho? Quem amarrou o mar numa túnica? Quem fixou os limites
do orbe? Qual é o seu nome, e o nome de seu filho, se é que sabes?
(30,4).
Cena breve
Também chamada de "etopeia", cena breve é a descrição do
temperamento, do caráter, das inclinações ou do comportamento
de alguém. Normalmente, está cheia de ironia e sua finalidade é
fazer que o discípulo evite determinados comportamentos e imite
outros. Um comportamento a ser imitado é descrito em 6,6-11:
Anda, preguiçoso, olha a formiga, observa o seu proceder, e torna-
te sábio: sem ter chefe, nem guia, nem dirigente, no verão, acumula
o grão e reúne provisões durante a colheita. Até quando dormirás,
ó preguiçoso? Quando te levantarás do sono? Um pouco dormes,
cochilas um pouco; um pouco esticas os braços cruzados e descan-
sas; mas te sobrevêm a pobreza do vagabundo e a indigência do
mendigo.
Pragmatismo
No Antigo Oriente Próximo, a sabedoria nasce da magia e
da mandinga: "Mas o faraó convocou os sábios e os feiticeiros, e
também eles – os magos do Egito – fizeram o mesmo com seus en-
cantamentos [...]"(Ex 7,11), ou nas escolas burocráticas da corte.
Em Israel, ela é dessacralizada e democratizada: é uma sabe-
doria tribal. Isso fica claro no livro dos Provérbios: a sabedoria refe-
re-se à técnica, às relações públicas, à política, à educação, à argú-
cia. Trata-se de um comportamento que, substancialmente, poderia
ser chamado de "iluminista". A sabedoria é a arte de viver (Pr 1,5), a
arte de saber viver na riqueza e na pobreza (Pr 13,7-8), na alegria e
na tristeza (Pr 14,10), no trabalho e no repouso (Pr 6,6).
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Antropocentrismo
Daquele "iluminismo", nasce uma nova figura do homem: o
"Adão universal". Trata-se de uma espécie de humanismo integral.
A multiplicidade de temas revela uma multiplicidade de di-
mensões do ser humano:
• da busca racional de Deus (Filosofia e Teologia) às rela-
ções com o próximo (ética);
• da justiça e da política (sociedade) à relação homem-cos-
mo (prática).
Esboça-se uma nova visão da sociedade: o próximo não é
o parente de sangue, mas o "outro" (cf. Pr 6,1.3.29; 22,17). Essa
nova sociedade é descrita em Pr 3,27-35.
Ortopráxis
A ortopráxis é bem mais que uma ortodoxia teórica. O termo
"sábio" é praticamente sinônimo de "justo", e "estulto" de "ímpio".
Trata-se, obviamente, da doutrina da retribuição, que torna
a moral de Provérbios algo substancialmente imanente: a morte
tem uma finalidade de equilíbrio, pois ela pacifica a atribulada vida
terrestre.
Assim, o homem faz uma caminhada ética: do ventre materno
ao ventre da terra. O grande juiz é a morte, não a imortalidade!
Trata-se de uma visão otimista da retribuição, mesmo que a
realidade seja enigmática e complexa. Como veremos, Jó e Qohélet
questionarão esse esquema simplista e coercitivo, que obriga Deus
a retribuir: Deus não pode ser enquadrado e preso a um esquema,
nem mesmo à justa e sábia teologia de Provérbios (cf. Pr 19,21).
Todavia, Provérbios não consegue dar um passo adiante,
pois sua escala de valores é bem enraizada no ser e na história:
seu sistema moral jamais se abala.
Teologia
Como consequência dos pontos citados anteriormente, Deus
está em contato direto com o mundo: é Criador, é quem garante o
sistema retributivo.
Em Provérbios, não aparece o "Israel povo eleito", mas o
"Adão homem" (45 vezes). E o termo hebraico "berit" ("aliança")
é usado uma única vez, em Pr 2,17, aplicado ao contrato matrimo-
nial, não à Aliança do povo com Deus.
Há diferenças entre a Teologia clássica (javista) e a Teologia
de Provérbios:
Quadro 2 Teologia clássica (javista) e a Teologia de Provérbios
Teologia clássica Teologia de Provérbios
• Contempla as ações salvíficas de Deus • Analisa a existência humana comum,
na história. cotidiana, atemporal e constante.
• Ignora a Palavra revelada, não se
• Baseia-se na Torah e nos profetas.
apresenta como revelação.
• É didática (ensinamentos e propostas
• É normativa (imperativos e sanções). frutos da experiência humana, e não
da revelação divina).
• Busca a obediência. • Busca a compreensão.
Fonte: Ravasi (1988, p. 1254-1256).
7. CONTEÚDO TEOLÓGICO
Amor e sabedoria
A sabedoria presente nos provérbios é a intermediária entre
o discípulo e Deus. Ela permite conhecer os desígnios do Senhor e
tem origem divina (8,22-31); por isso, ela deve ser amada (8,17-21;
3,13-18). Ela é a mãe que chama a atenção do filho:
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"Confia no Senhor com todo o teu coração, não te fies em tua pró-
pria inteligência; em todos os teus caminhos reconhece-o, e ele
endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus olhos, teme o
Senhor e evita o mal" (3,5-7; cf. vv. 9.11-12).
8. SIRÁCIDA (ECLESIÁSTICO)
O livro do Eclesiástico, como é conhecido na tradição católi-
ca, também é chamado de Sirácida, uma vez que seu autor é Jesus
Ben Sira (51,30). Para não corrermos o perigo de confundi-lo com
o Eclesiastes, vamos usar "Sirácida" (abreviatura: "Sir", que corres-
ponde, portanto, a "Eclo").
Contudo, antes de iniciarmos esse estudo, é necessário lem-
brar que o livro do Sirácida não consta na Bíblia protestante, pois
Lutero adotou o cânon da Bíblia hebraica.
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9. ORIGINAL EM HEBRAICO
O Sirácida é o único livro bíblico com um prólogo do tradutor.
Graças a tal prólogo, sabemos que estamos diante de uma versão:
Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção, e a ser-
des indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecer-
mos enfraquecer algumas expressões: é que não tem a mesma força,
quando se traduz para outra língua, aquilo que é dito em hebraico.
10. CANONICIDADE
O livro de Jesus Ben Sira não entrou no cânon judaico por-
que, após a queda de Jerusalém em 70 d.C., o judaísmo se desen-
volveu na linha dos fariseus, único grupo religioso que sobreviveu
à catástrofe. No concílio judaico de Jâmnia, após 90 d.C., os líderes
religiosos judaicos definiram que só seriam canônicos os livros es-
critos em hebraico ou aramaico, que datassem de antes de Esdras
(398 a.C.) e tivessem sido escritos na terra de Israel. Parece que,
naquele momento, nenhum dos participantes do concílio tinha um
manuscrito hebraico do Sirácida, pois, não obstante o prólogo do
neto de Ben Sira, o livro não foi considerado sagrado. Mesmo as-
sim, o livro foi muito popular entre os judeus (como demonstram
os manuscritos encontrados em Qumrã e em Massada) e muito
citado por rabinos até a Idade Média.
Entre os cristãos, até mesmo São Jerônimo chegou a conside-
rá-lo como apócrifo. E, embora o livro já fosse aceito pelas comu-
nidades cristãs desde o início da Igreja, só em 1438, no concílio de
Florença, foi definida a sua canonicidade. As traduções presentes
em nossas Bíblias baseiam-se no texto grego porque ele contém a
versão integral do livro e constitui o texto tradicionalmente aceito
como canônico.
Título
No Antigo Testamento Grego, isto é, na Septuaginta, o título
desse livro é Sophia Sirach (Sabedoria de Sirach). No século 3º d.C.,
São Cipriano chamava-o de Eclesiástico, para sublinhar o seu uso
oficial na Igreja, em contraposição à Sinagoga. Assim, São Jerôni-
mo (340-420 d.C.) incorporou-o na sua versão latina, a Vulgata,
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Data
Em relação à data, o neto de Ben Sira diz ter traduzido o livro
do original hebraico para o grego no trigésimo oitavo ano do reina-
do Evergetes. O que isso significa? Vejamos.
O nome "Evergetes" significa "benfeitor". Somente dois reis
da era ptolomaica receberam esse título: Ptolomeu III Evergetes I
(246-222 a.C.) e Ptolomeu VII Evergetes II (145-116 a.C.). O primei-
ro reinou pouco mais de vinte cinco anos. Uma vez que o tradutor
fala do ano trigésimo oitavo do reinado de Evergetes, ele só pode
se referir, então, a Ptolomeu VII.
Outra data importante é-nos dada pelo próprio Ben Sira, em
50,1-10, texto em que é nomeado o sumo sacerdote Simão II, que
exerceu seu ministério nos anos 219-196 a.C.
No livro, nada sugere um clima de rebelião entre os judeus
fiéis à Torah (Lei) e que resistiram à cultura helênica imposta por
Antíoco IV, que reinou entre 187 e 163 a.C. Igualmente, o livro não
faz nenhuma referência ao período dos Macabeus, o que significa
que ele já estava concluído quando foi iniciada a revolta macabaica
(167-164 a.C.).
Considerando todos esses dados, concluímos que o livro
do Sirácida foi escrito entre os anos de 190 a 180 a.C. (cf. MORLA
ASENSIO, 1997, p. 193-194.).
Autor
O que podemos falar sobre o autor é o que ele mesmo relata
ao longo de seu livro. Desde jovem, dedicou-se à sabedoria (51,13-
22), e a genealogia mencionada em 50,27 permite afirmar que era
um cidadão importante de Jerusalém.
Ben Sira foi conselheiro e embaixador dos governantes (cf.
39,4; 33,9-12), e suas viagens ao exterior permitiram-lhe tomar
contato com as várias correntes sapienciais de seu tempo, prin-
cipalmente a egípcia (há diversos paralelos no livro de Ben Sira).
Depois de aposentar-se, abriu uma "escola de sabedoria" em Jeru-
salém (50,27; 51,23) para preparar os filhos dos aristocratas para
altos encargos. Além disso, era casado, tendo, pelo menos, um fi-
lho, tendo em vista que foi seu neto quem traduziu sua obra para
o grego (cf. prólogo, 7).
A doutrina de Ben Sira demonstra uma postura de alguém
conservador, que buscava apoiar-se na sabedoria dos antigos e nas
tradições de Israel, e que, ao mesmo tempo, estava aberto às no-
vas questões do seu tempo. Poderíamos chamá-lo de "conserva-
dor progressista": fidelidade à tradição e, simultaneamente, aber-
tura ao presente e ao futuro. Trata-se de um sábio leigo com clara
devoção ao Templo, aos sacerdotes e ao culto (50,2-21). Quanto
ao helenismo, Ben Sira tem conhecimentos literários, não os des-
prezando e, até, aceitando alguns de seus costumes. Entretanto,
os pontos de contato são apenas culturais, não se referindo à re-
ligião.
Desse modo, a finalidade da obra de Ben Sira era formar os
jovens judeus fascinados pela cultura grega. Ele queria mostrar
que as tradições judaicas são verdadeira sabedoria e não perdem
nada para a Filosofia e para as tradições gregas.
Ben Sira considerava seu ensinamento como "profecia"
(24,33). Ele compilou tradições judaicas numa espécie de "enciclo-
pédia sapiencial" ou manual de sabedoria, sob o ponto de vista da
fé no Deus de Israel.
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Estrutura
Antes de falarmos da organização do livro, é necessário lem-
brar que o texto de Sirácida tem uma longa história: o original he-
braico, as versões para o grego, o latim e o siríaco, e os acréscimos
feitos em cada uma dessas versões. O texto atual é o resultado des-
se processo, e os acréscimos do texto grego supõem um ambiente
hebraico de língua grega, ou seja, o judaísmo helenista. Por sua vez,
o texto latino sofreu acréscimos cristãos. Isso resultou em uma du-
pla versão: uma mais longa, outra mais breve. Discute-se ainda qual
seja a original, uma vez que o judaísmo conservou as duas.
Não obstante, pode-se dizer que o tema central do livro é
a sabedoria e, por tabela, como o sábio se relaciona com ela: um
existe para o outro. No seu conjunto, o Sirácida poderia ser cha-
mado de "enciclopédia sapiencial", dada a riqueza, a variedade e a
profundidade dos temas tratados.
O livro que temos em nossas Bíblias está assim organizado:
Quadro 3 Organização do livro.
DIVISÃO SUBDIVISÃO
Tradução grega: 15
Prólogo
versículos.
a) 1,1-23,27: A Sabedoria
na vida humana. Vários
textos referem-se,
diretamente, à Sabedoria:
1,1-10; 4,11-19; 6,18-37;
14,20 - 15,10. Deve-se
notar o tema da criação
em 16,24 - 17,14, que será
retomado no início da
segunda parte.
b) 24,1-42,14: A Sabedoria
Ensinamentos sobre na natureza e na história
temas variados, que, de Israel. Inicia-se com
às vezes, se repetem. É uma autoapresentação da
Primeira parte – temática: provável que essa parte Sabedoria, no capítulo 24.
1,1-42,14 tenha sido composta em Numa primeira edição do
épocas diferentes. Ela livro, esse capítulo pode
subdivide-se em duas. ter sido a conclusão do
conjunto, mas, no texto
atual, é a peça central de
todo o grande conjunto dos
capítulos 1-42. Em 33,7-15
e 39,12-35, aborda-se o
tema da "justificação de
Deus" perante o mal no
mundo, tema que voltará
em 42,15-25. Em 33,16-18,
temos um pós-escrito do
autor, que poderia ser uma
conclusão de nova seção
da obra.
66 © Salmos e Sapienciais
DIVISÃO SUBDIVISÃO
Tradução grega: 15
Prólogo
versículos.
a) 50,27-29: conclusão
Conclusão e apêndice: propriamente dita.
50,27-51,30
b) 51,1-30: apêndice.
Fonte: Pereira (1992, p.22-23).
Comparação e metáfora
A comparação e a metáfora são os artifícios mais simples e,
por isso, seu uso é frequente: "Como flecha fincada na coxa, assim
é uma palavra nas entranhas do insensato" (19,12); "Como perdiz
presa na gaiola, assim é o coração do orgulhoso; como escorpião
ele espreita tua ruína" (11,30; cf. 16,7; 24,13-17; 26,25.27; 32,5-6;
43,18-22; 50,6-10).
Discurso e pequenos tratados
Como todo sábio, Ben Sira dirige a palavra a seus discípulos
em tom de exortação (16,24 – 18,1); ele utiliza o apelativo "meu
filho" (2-3;4,20-9,16) e é porta voz da sabedoria, ou seja, fala em
nome dela (1,1-21; 4,11-19; 14,20-15,10; 24,1-34).
Ben Sira utiliza com frequência, também, o recurso literário
dos tratados, isto é, conjuntos de provérbios unidos pelo tema.
Exemplos: o matrimônio (9,1-9; 25–26), os antepassados de Israel
(44,1-50,21), a Sabedoria (24,1-34) etc.
Retratos históricos
Na "galeria dos heróis de Israel" (capítulos 44-50), aparecem,
pelo menos, trinta e quatro personagens do Antigo Testamento. Após
a introdução, que diz: "Elogiemos os homens de bem, nossos ante-
passados, em sua ordem de sucessão" (44,1), Ben Sira descreve, de
forma breve, mas bem elaborada, somente os principais traços de
cada personagem, tais como: "E Salomão repousou com seus pais,
deixando para trás de si alguém de sua raça, o mais louco do povo e
pouco inteligente: Roboão, que instigou o povo a revolta" (47,23).
A sabedoria em si mesma
A sabedoria tem origem divina: ela é criatura de Deus (1,9;
texto paralelo a Pv 8,22) e as primícias de sua criação (1,4a).
Além disso, a sabedoria é um dom de Deus para quem vive
na amizade com Ele. O homem recebe-a como graça (1,1-10), mas
só depois de ser provado em sua docilidade, tenacidade e perse-
verança (4,11-19). O discípulo deve amá-la e procurar por todos
os meios conquistá-la. Com efeito, ela é digna de ser amada, não
só por sua origem divina, mas também porque estabelece um re-
lacionamento pessoal e recíproco com quem a busca como mãe
(15,2; 4,11) e como noiva (51,13-22).
A sabedoria é, pois, como um tesouro (20,30-31); seus frutos
são abundantes como uma boa colheita (6,19) e ela traz sacieda-
de, paz, saúde e vida longa (1,16-20). No discípulo, ela provoca
ainda mais fome e sede da própria sabedoria e de agradar a Deus
(24,19-21).
Sabedoria e Torah (Lei)
A Sabedoria é a shekinah, isto é, a própria revelação e pre-
sença de Deus em Israel. A Torah é a melhor expressão da sabedo-
ria (1,26; 2,15; 23,27): a Torah já não é um peso nem um jugo, mas
a própria sabedoria (24,23).
Em outras palavras, a prática da Torah é a manifestação con-
creta da sabedoria e do temor a Deus. Apesar disso, Ben Sira faz só
quatro referências explícitas a preceitos da Torah (7,31; 28,7; 29,9;
35,6). Por quê? Porque Ben Sira não é legalista: ele lê a Torah com
olhos de sábio: a Torah não é um conjunto de códigos legislativos,
mas a própria revelação histórica de Deus a Israel; é a Sabedoria de
Deus que se tornou concreta em Israel (16,26-17,14; 44-49).
O sábio
A missão do sábio é transmitir a Torah, que é, como já disse-
mos, a melhor expressão da sabedoria (24,30-34). Assim, o sábio
O temor a Deus
O temor a Deus é o princípio e o fim da sabedoria (1,11-20).
Sem ele, ninguém a atinge nem a recebe. O temor leva a pessoa à
procura da sabedoria; por sua vez, ela é princípio e plenitude do
ser humano. Juntos, sabedoria e temor a Deus levam à felicidade e
à benção, mais do que a riqueza e a força (40,26-27).
Quem são os que temem a Deus? Os justos, os que Nele es-
peram, os que confiam Nele, os que O amam (2,7-9.15-18). Em
suma, os que são fiéis à Torah, principalmente no momento da
provação (2,1-19).
Logo, o temor a Deus é fidelidade concreta à Torah (19,20,24),
e a consequência do temor a Ele é a vida (50,29 no texto hebraico;
cf. nota na Bíblia de Jerusalém).
A história sagrada
A visão de Ben Sira a respeito da história sagrada está em
consonância com a Teologia da Retribuição e integrada no ensina-
mento para combater o fascínio do helenismo: a história de Israel
é a revelação da sabedoria de Deus. Nesse sentido, concluímos
que os antepassados judeus não perdem nada para os heróis gre-
gos. Apesar disso, referências a acontecimentos precisos são ra-
ras (cf. 16,6-10). Para Ben Sira, é preciso manter viva a tradição, a
memória histórica, a fim de combater a sedução do helenismo e
reafirmar a verdadeira sabedoria (a judaica) em contraposição à
filosofia grega. Em resumo, a verdadeira sabedoria está nos ante-
passados.
A história dos heróis aparece no final do livro. O "elogio dos
pais" (44-50) é uma galeria de personagens louvados por seus fei-
72 © Salmos e Sapienciais
Perspectivas futuras
Ben Sira não afirma o messianismo, mas a perpetuação do
sacerdócio sadoquita (50,24 no hebraico; cf. nota da Bíblia de Je-
rusalém). Além disso, ele espera a restauração de Israel, o cumpri-
mento das profecias e que toda a humanidade se una no reconhe-
cimento do verdadeiro Deus (36,1-22).
Dessa forma, o destino final do homem é a morte. Após ela, só
resta o sheol (14,11-19). Da pessoa morta, restam somente as lembran-
ças de sua sabedoria (39,9-11) e de suas ações (41,12-13; 4,10-15).
A vida em família
A convivência familiar deve seguir os preceitos do decálogo.
Assim, a estrutura da família é patriarcal e a educação dos filhos é
rígida (7,23; 22,6). Os pais devem fazer-se respeitar pelos filhos e, prin-
cipalmente, estar atentos à sua educação (30,1-13; cf. Dt 21).
Seguindo essa postura, é arriscado ter filhas (22,3; 42,11), uma
vez que a preocupação principal do pai é que a filha chegue íntegra ao
casamento (42,9-10; 7,24-25; 26,10; cf. Lv 21,13-15; Dt 22,13-19).
A vida em sociedade
Os discípulos de Ben Sira eram jovens ricos, que esta-
vam se preparando para assumir altos encargos na sociedade
(7,4.6.11.14.20).
As profissões
É necessário lembrar que a sabedoria é artesã, isto é, ser
sábio é ter habilidade para fazer (hoje diríamos que é ter "know
how"). Mais que qualquer outro livro, a Sirácida dedica especial
atenção aos ofícios e tem em grande consideração o médico (38,1-
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16. CONSIDERAÇÕES
A tradição judaica, fortalecida no período persa (pós-exílio)
com Esdras e Neemias, promoveu uma observância rigorosa da To-
rah (Lei). Posteriormente, quem assumirá a missão de incentivar
tal observância será o movimento farisaico.
76 © Salmos e Sapienciais
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