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EAD

Estudo dos Livros de


Provérbios e Sirácida

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1. OBJETIVOS
• Compreender, historicamente, os livros de Provérbios e
Sirácida.
• Possibilitar aos alunos distinguir os diversos gêneros lite-
rários desses livros.

2. CONTEÚDOS
• Questões introdutórias: título, data e autoria.
• Gêneros literários.
• Estrutura e conteúdo teológico.

3. ORIENTAÇÕES PARA O ESTUDO DA UNIDADE


Leia, a seguir, algumas orientação que podem ajudá-lo no
estudo desta unidade:
44 © Salmos e Sapienciais

1) Utilize o Esquema de conceitos-chave para o estudo de


todas as unidades deste Caderno de Referência de Con-
teúdo. Isso poderá facilitar sua aprendizagem e seu de-
sempenho.
2) Para saber mais a respeito dos Provérbios, sugerimos
que você leia as obras, descritas nas referências biblio-
gráficas, de Alonso Schökel (1984, p. 99-103) e de Morla
Asensio (1997, p. 103-104).
3) Para informar-se mais sobre os provérbios populares,
frases de para-choques de caminhão e outras máximas,
leia a obra de Coloda (1988, p. 31). A referência comple-
ta você encontra no tópico Referências Bibliográficas, ao
final desta unidade.
4) Se você gostar deste assunto e quiser aprofundar seus
conhecimentos, há três obras interessantes para con-
sulta que constam nas Referências Bibliográficas: Morla
Asensio (1997, p. 192-194); Minissale (1993, p. 20-27);
Storniolo (2002, p. 9-10). Boa leitura!

4. INTRODUÇÃO À UNIDADE
Na unidade anterior, você observou a comparação entre
duas sabedorias: a bíblica e a da Mesopotâmia e do Egito. Assim,
para dar prosseguimento aos seus estudos, foi essencial aprender
acerca da importância da Teologia da Religião. Agora, nesta unida-
de, adentraremos a história sapiencial bíblica por meio dos Pro-
vérbios (Pr) e da Sirácida e conheceremos, também, seus gêneros
literários.

5. PROVÉRBIOS
Provavelmente, o livro dos Provérbios é o que melhor repre-
senta toda a literatura sapiencial bíblica. Os provérbios são, tal-
vez, a memória escrita mais antiga da sabedoria israelita. Já antes
do período da monarquia, isto é, antes do ano 1.000 a.C., eram
colecionados ensinamentos da sabedoria popular, surgidos no

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ambiente familiar. Os assim chamados "sábios" eram os que cole-


cionavam, organizavam e transmitiam esses ensinamentos, com a
finalidade de educar os mais jovens.

Título
Na Bíblia Hebraica, o título do livro que ora estudamos é Pro-
vérbios (em hebraico, meshalim) de Salomão. Todavia, a palavra por-
tuguesa "provérbios" não traduz com precisão a palavra hebraica
"meshalim". Os primeiros escritores cristãos davam o mesmo nome,
"Sabedoria", a três livros: Provérbios, Eclesiástico e Sabedoria. Tal-
vez, tal denominação tivesse sua origem nas comunidades judaicas.
Meshalim é o plural de mashal. Mas o que é um mashal?
Originalmente, mashal é um dito popular breve e incisivo:
"Como é o homem, tal é a sua força" (Jz 8,21); "Dos malvados pro-
cede a maldade" (1Sm 24,14); "Que tem a palha em comum com o
grão?" (Jr 23,28). Ou seja, é uma sentença curta que corre de boca
em boca. Nos dias de hoje, existem, também, muitos meshalim:
"Quem muito fala muito erra"; "Saiba ir para poder voltar"; "Ma-
caco velho não mete a mão em cumbuca"; "Água mole em pedra
dura tanto bate até que fura".
Portanto, mashal era um dito popular fundamentado na ex-
periência da vida e formado de uma única frase. Posteriormen-
te, os sábios ampliaram o mashal e ele deixou de ser apenas um
dito breve, para englobar, também, aforismos, enigmas, poemas
numéricos, sátiras, discursos comparativos, comparações, fábulas
profanas e religiosas. Tal ampliação tinha a finalidade de completar
o sentido ou mesmo dar a explicação do mashal original. Vejamos
um exemplo descrito em Pr 12,1: "Quem ama a disciplina ama o
conhecimento, e quem odeia a repreensão é como um animal".
Podemos perceber, pois, que a primeira parte é uma frase
breve, densa e completa, isto é, não necessita da segunda frase.
Todavia, a segunda foi acrescentada para formar uma contraposi-
ção ou antítese, a fim de dar ênfase à primeira.
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Normalmente, os Provérbios são compostos de duas partes,


as quais dizemos que são paralelas. Quando a segunda parte é, de
algum modo, a repetição da primeira, dizemos que formam um
"paralelismo sinonímico", isto é, a segunda frase é sinônimo da
primeira: "Liberta os que são levados à morte, salva os que são
arrastados aos suplício" (Pr 24,11). Quando a segunda parte apre-
senta uma antítese, isto é, uma situação contraposta à descrita na
primeira, temos o "paralelismo antitético": "A esperança dos jus-
tos é alegria; o anseio dos ímpios fracassa" (Pr 10,28). E, quando a
segunda parte descreve uma consequência da primeira ou mostra
novos aspectos do que foi afirmado, temos o "paralelismo sintéti-
co": "O primeiro que se defende tem razão, até que chegue outro
e o conteste" (Pr 18,17).

Data
O livro dos Provérbios é uma coleção de coleções. Isso não
deveria ser novidade nem provocar espanto. Basta abrir o livro
dos Provérbios e prestar atenção aos títulos: Provérbios de Salo-
mão... (1,1); Palavras dos sábios (22,17), Palavras de Agur (30,1).
Foram cinco séculos de atividade literária e cultural. Assim, muitos
provérbios foram recolhidos da sabedoria popular em um período
muito antigo; outros são mais recentes e refletem o ambiente da
corte. Em outras palavras, a redação do livro dos Provérbios pas-
sou por várias etapas, o que torna impossível datar com precisão
cada uma das coleções. Acredita-se, porém, que esse longo pro-
cesso redacional foi completado na metade do século 3 a.C.
As datas mais aceitas para cada coleção serão vistas mais
adiante.

Autor
O livro dos Provérbios é fruto do trabalho de sábios anôni-
mos que, pacientemente, recolheram essas preciosidades no meio
cultural do povo.

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Ele é atribuído a Salomão, mas trata-se de um caso de pseudo-


nímia, isto é, o verdadeiro autor, para dar maior peso e autoridade a
uma obra literária, atribui seu escrito a um importante personagem do
passado. Com isso, os verdadeiros autores podiam evitar serem perse-
guidos (como no caso dos livros apocalípticos), bem como garantir que
seus livros fossem aceitos e distribuídos na comunidade leitora.

Estrutura
Entre os estudiosos, surgiram várias propostas para dividir
e organizar o livro dos Provérbios. A divisão que vamos adotar é
aceita por um bom número de autores, tais como: José Vílchez Lín-
dez e Victor Morla Asensio (1984, p. 99-103); G. Laurentini (1978,
p. 381); e Artur Weiser (1966, p. 9). Dessa forma, o livro dos Pro-
vérbios é composto de nove coleções:
Quadro 1 Livro dos Provérbios – Nove coleções.
COLEÇÕES EXPLICAÇÕES ACERCA DAS COLEÇÕES
O autor é anônimo e o tema principal desse bloco é o convite
do "pai" (o sábio) ao "filho" (o discípulo). Este deve buscar a
Introdução: 1,1-7 sabedoria, isto é, a sensatez e a prudência; fugir dos perigos e
se manter na vigilância; ter cuidado com as más companhias,
Primeira coleção: especialmente a mulher estrangeira. Em 1,22-33 e 8,4-
1,8-9,18 36, a sabedoria personifica-se e fala da sua origem divina,
recomendando a si mesma. Essa foi a última coleção a ser
inserida no livro, provavelmente após o ano 400 a.C.
Essa é a primeira coleção salomônica. Comparando-a com o
Segunda coleção: primeiro grupo, percebemos que se trata de outro mundo
10,1-22,16 literário. São provérbios com paralelismo antitético e
sinonímico. A coleção pode ser pós-exílica, não obstante seja
intitulada Provérbios de Salomão.
Trata-se da primeira coleção dos sábios, com quartetos em
paralelismo sinonímico. São conselhos endereçados ao néscio,
Terceira coleção: para que aprenda a se comportar devidamente. Essa coleção
22,17-24,22 pode se dividir em dois grupos: 22,17-23,11 e 23,12-24,11. Essa
subdivisão baseia-se na semelhança entre os provérbios do
primeiro grupo e as máximas de Amen-em-opet (sábio egípcio,
difícil de localizar no tempo: as datas variam de 1000 a 600 a.C.).
É a segunda coleção dos sábios. A única coisa que a distingue
Quarta coleção:
da primeira é o título, no v. 23. Esses provérbios não oferecem
24,23-34
datas para poder se realizar uma datação.
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COLEÇÕES EXPLICAÇÕES ACERCA DAS COLEÇÕES


Quinta coleção: Segunda coleção salomônica. Foi recolhida pelos sábios a
25-29 serviço do rei Ezequias (715-687 a.C.).
São os ensinamentos de "Agur, filho de Jaces, de Massa". Na
Sexta coleção: verdade, temos aqui vários apêndices. Os vv. 1-6 recordam
30,1-14 textos de Jó; os vv. 7-9 são uma oração; e os vv. 11-14 são uma
série de provérbios que começam com: "Há quem...".
Coleção de "provérbios numéricos", que utilizam,
Sétima coleção:
principalmente, o paralelismo sintético. Temos aqui provérbios
30,15-33
de um período impossível de determinar.
São os ensinamentos de "Lamuel, rei de Massa". Quatro
estrofes de quatro versos, com as recomendações de uma mãe
a seu filho rei. Na pequena coleção, predomina o paralelismo
Oitava coleção:
sinonímico. Tanto Lamuel quanto Agur, cujos ensinamentos
31,1-9
estão reunidos na sexta coleção, são os nomes de dois sábios
árabes fictícios. Por essa razão, não é possível estabelecer uma
data tanto para a sexta quanto para a oitava coleção.
Nona coleção: Não é uma coleção de provérbios, mas uma longa poesia, que
31,10-30 constitui o "fecho de ouro" do livro dos Provérbios. Inspirado na
sabedoria rural, o tema da mulher ideal é antigo; não obstante,
a redação desse último capítulo de Provérbios é bem recente.
Fonte: Alonso Schökel (1984, p. 99-103).

6. GÊNEROS LITERÁRIOS
Quando começamos a ler os provérbios, percebemos que
eles não são todos iguais. Antes, há provérbios de vários tipos.
Veja alguns nos tópicos a seguir.

Mashal simples
O mashal simples caracteriza-se por ter apenas uma propo-
sição: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7). A apresentação
pode ser negativa: "Não há sabedoria, nem entendimento, nem
conselho diante do Senhor" (21,30), ou generalizante: "Muitos
buscam favores de quem governa" (29,26).
Alguns provérbios descrevem um tipo de comportamento:
"O homem colérico provoca discórdia" (15,18), enquanto outros
não se contentam em descrevê-lo, mas emitem uma opinião a seu
respeito: "não é justo..." "não convém..." "desagrada o Senhor..."

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etc. São comuns, também, as formulações valorativas: "Melhor x


que y": "Melhor é ser simples e ter um servo, que passar por rico e
não ter nada" (12,9); e "Vale mais x do que y": "Vale mais um prato
de verdura com amor do que um boi gordo com rancor" (15,17).

Comparação
A comparação trata-se de uma proposição que confronta
duas ou mais realidades e estabelece uma semelhança ou mesmo
uma antítese. No caso da semelhança, o esquema básico é "como
x, assim y". Geralmente, um fato tirado da natureza presta-se para
um ensinamento: "Como o pássaro que foge do seu ninho, assim
é o homem que foge do seu lar" (27,8). Às vezes, as comparações
são bastante simples e iniciadas por duas proposições: "Como o
vinagre nos dentes e o fumo nos olhos, assim é o preguiçoso para
quem o envia" (10,26). Por sua vez, a antítese é uma comparação
ao contrário, isto é, colocam-se lado a lado duas realidades con-
trastantes: "Há o que finge ser rico e nada tem" (13,7).
A comparação enriquece-se com a imaginação: "Uma por-
caria, diz o comprador: mas depois vai-se gabando da compra"
(20,14). É, pois, algo bem mais elaborado do que o nosso provér-
bio "Quem desdenha quer comprar".

Metáfora
A metáfora diferencia-se da comparação por não usar a partícula
"como". O predicado é atribuído diretamente ao sujeito em sentido fi-
gurado: "Pois o preceito é uma lâmpada, e a instrução é uma luz, e é um
caminho de vida a exortação que disciplina" (6,23); "Um anel de ouro no
focinho de um porco é a mulher formosa sem bom senso" (11,22). Na
maioria das vezes, a metáfora é mais agressiva que a comparação.

Pergunta retórica
Em alguns provérbios, temos interrogações retóricas, isto
é, perguntas feitas não para serem respondidas, mas para levar o
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discípulo/leitor a pensar: "Para que serve o dinheiro na mão do in-


sensato? Para adquirir sabedoria? Mas ele não tem juízo!" (17,16).
Tais perguntas servem para exprimir uma convicção generalizada:
"Pode alguém carregar fogo consigo sem queimar a própria roupa?
Pode alguém caminhar sobre as brasas sem queimar os próprios
pés?" (6,27-28). Essas duas perguntas servem para dar força ao v.
29: "Assim acontece com aquele que procura a mulher do próxi-
mo: quem a toca não ficará impune."

Repetição
A repetição não é sinal de pobreza mental ou de estilo mal
curado, mas um modo de reforçar a ideia que se quer transmitir:
Quem subiu ao céu, e de lá desceu? Quem encerrou o vento no
punho? Quem amarrou o mar numa túnica? Quem fixou os limites
do orbe? Qual é o seu nome, e o nome de seu filho, se é que sabes?
(30,4).

Cena breve
Também chamada de "etopeia", cena breve é a descrição do
temperamento, do caráter, das inclinações ou do comportamento
de alguém. Normalmente, está cheia de ironia e sua finalidade é
fazer que o discípulo evite determinados comportamentos e imite
outros. Um comportamento a ser imitado é descrito em 6,6-11:
Anda, preguiçoso, olha a formiga, observa o seu proceder, e torna-
te sábio: sem ter chefe, nem guia, nem dirigente, no verão, acumula
o grão e reúne provisões durante a colheita. Até quando dormirás,
ó preguiçoso? Quando te levantarás do sono? Um pouco dormes,
cochilas um pouco; um pouco esticas os braços cruzados e descan-
sas; mas te sobrevêm a pobreza do vagabundo e a indigência do
mendigo.

Diferentemente, 23,29-35 descreve um comportamento a


ser evitado:
Para quem os ais? Para quem os lamentos? Para quem as dispu-
tas? Para quem as queixas? Para quem os golpes sem motivo? Para
quem os olhos turvados? Para aqueles que entardecem sobre o
vinho e vão à procura de bebidas misturadas. Não olhes o vinho:

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como é vermelho, como brilha no copo, como escorre suave! No


fim ele morde como a cobra e fere como a víbora. Teus olhos verão
coisas estranhas, e teu coração dirá disparates. Serás como alguém
deitado em alto mar ou deitado no topo de um mastro. "Feriram-
me... e eu nada senti! Bateram-me... e eu nada percebi! Quando
irei acordar? Vou continuar a beber!". 7. Estruturas fundamentais
do pensamento de Provérbios

As intenções do livro estão claramente afirmadas em Pr 1,2:


Para conhecer a sabedoria e a disciplina, para entender as senten-
ças da prudência, para acolher uma instrução esclarecida, na jus-
tiça, no direito e na equidade, para proporcionar sagacidade aos
inexperientes e, aos jovens, conhecimento e reflexão.

Os provérbios, portanto, querem atingir e exercitar as quatro


dimensões do conhecimento bíblico:
1) mente;
2) vontade;
3) paixão;
4) ação.
No Qohélet (Eclesiastes), o conhecimento humano tem uma
nota negativa: "Que vantagem...?" (Qo 1,3); "Tudo é vaidade" (Qo
1,2...). Contrariamente, em Provérbios, o conhecimento tem uma
nota positiva: a realização plena do homem e de sua história.

Pragmatismo
No Antigo Oriente Próximo, a sabedoria nasce da magia e
da mandinga: "Mas o faraó convocou os sábios e os feiticeiros, e
também eles – os magos do Egito – fizeram o mesmo com seus en-
cantamentos [...]"(Ex 7,11), ou nas escolas burocráticas da corte.
Em Israel, ela é dessacralizada e democratizada: é uma sabe-
doria tribal. Isso fica claro no livro dos Provérbios: a sabedoria refe-
re-se à técnica, às relações públicas, à política, à educação, à argú-
cia. Trata-se de um comportamento que, substancialmente, poderia
ser chamado de "iluminista". A sabedoria é a arte de viver (Pr 1,5), a
arte de saber viver na riqueza e na pobreza (Pr 13,7-8), na alegria e
na tristeza (Pr 14,10), no trabalho e no repouso (Pr 6,6).
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Antropocentrismo
Daquele "iluminismo", nasce uma nova figura do homem: o
"Adão universal". Trata-se de uma espécie de humanismo integral.
A multiplicidade de temas revela uma multiplicidade de di-
mensões do ser humano:
• da busca racional de Deus (Filosofia e Teologia) às rela-
ções com o próximo (ética);
• da justiça e da política (sociedade) à relação homem-cos-
mo (prática).
Esboça-se uma nova visão da sociedade: o próximo não é
o parente de sangue, mas o "outro" (cf. Pr 6,1.3.29; 22,17). Essa
nova sociedade é descrita em Pr 3,27-35.

Ortopráxis
A ortopráxis é bem mais que uma ortodoxia teórica. O termo
"sábio" é praticamente sinônimo de "justo", e "estulto" de "ímpio".
Trata-se, obviamente, da doutrina da retribuição, que torna
a moral de Provérbios algo substancialmente imanente: a morte
tem uma finalidade de equilíbrio, pois ela pacifica a atribulada vida
terrestre.
Assim, o homem faz uma caminhada ética: do ventre materno
ao ventre da terra. O grande juiz é a morte, não a imortalidade!
Trata-se de uma visão otimista da retribuição, mesmo que a
realidade seja enigmática e complexa. Como veremos, Jó e Qohélet
questionarão esse esquema simplista e coercitivo, que obriga Deus
a retribuir: Deus não pode ser enquadrado e preso a um esquema,
nem mesmo à justa e sábia teologia de Provérbios (cf. Pr 19,21).
Todavia, Provérbios não consegue dar um passo adiante,
pois sua escala de valores é bem enraizada no ser e na história:
seu sistema moral jamais se abala.

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Teologia
Como consequência dos pontos citados anteriormente, Deus
está em contato direto com o mundo: é Criador, é quem garante o
sistema retributivo.
Em Provérbios, não aparece o "Israel povo eleito", mas o
"Adão homem" (45 vezes). E o termo hebraico "berit" ("aliança")
é usado uma única vez, em Pr 2,17, aplicado ao contrato matrimo-
nial, não à Aliança do povo com Deus.
Há diferenças entre a Teologia clássica (javista) e a Teologia
de Provérbios:
Quadro 2 Teologia clássica (javista) e a Teologia de Provérbios
Teologia clássica Teologia de Provérbios
• Contempla as ações salvíficas de Deus • Analisa a existência humana comum,
na história. cotidiana, atemporal e constante.
• Ignora a Palavra revelada, não se
• Baseia-se na Torah e nos profetas.
apresenta como revelação.
• É didática (ensinamentos e propostas
• É normativa (imperativos e sanções). frutos da experiência humana, e não
da revelação divina).
• Busca a obediência. • Busca a compreensão.
Fonte: Ravasi (1988, p. 1254-1256).

Porque nasce da experiência humana, a Teologia de Provér-


bios é mais ecumênica, humana e universal.

7. CONTEÚDO TEOLÓGICO

Amor e sabedoria
A sabedoria presente nos provérbios é a intermediária entre
o discípulo e Deus. Ela permite conhecer os desígnios do Senhor e
tem origem divina (8,22-31); por isso, ela deve ser amada (8,17-21;
3,13-18). Ela é a mãe que chama a atenção do filho:
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Portanto, meus filhos, escutai-me: felizes os que guardam os meus


caminhos! Escutai a disciplina e tornai-vos sábios, não a desprezeis.
Feliz o homem que me escuta, velando em minhas portas a cada
dia, guardando os batentes de minha porta! Quem me encontra,
encontra a vida, e goza do favor do Senhor. Quem peca contra mim
fere a si mesmo, todo o que me odeia ama a morte (8,32-36).

Os mestres insistem para que os discípulos adquiram a sa-


bedoria (cf. 4,5-9), pois só ela pode ensinar a justiça e o direito (cf.
2,9-13).

Provérbios e vida pessoal


Há provérbios que retratam várias questões práticas:
1) Contra a preguiça: os sábios zombam do preguiçoso: "A
mão preguiçosa empobrece, o braço diligente enrique-
ce" (10,4b); "O preguiçoso espera e nada tem para sua
fome; a fome dos diligentes é saciada" (13,4). Alguns
provérbios descrevem os graves males que o acompa-
nham: "A preguiça faz cair no sono; o preguiçoso passará
fome" (19,15); "Pois bebedor e glutão empobrecem, e o
sono veste o homem com trapos" (23,21). A preguiça pa-
ralisa as forças do preguiçoso e as desculpas são as mais
variadas: "O preguiçoso diz: 'Um leão está lá fora! Serei
morto no meio da rua!’" (22,13); "A porta gira nos seus
gonzos, e o preguiçoso no seu leito. O preguiçoso mete a
mão no prato: levá-la à boca é muita fadiga" (26,14-15).
Como último exemplo, uma cena breve:
Passei junto ao campo do preguiçoso, pela vinha do homem sem
juízo: eis que tudo estava cheio de urtigas, sua superfície coberta
de espinhos, e seu muro de pedra em ruínas. Ao ver isso, comecei a
refletir, vi e tirei uma lição: "Dormir um pouco, cochilar um pouco,
um pouco cruzar os braços e deitar-se, e tua pobreza virá como um
vadio, como um mendigo a tua indigência" (24,30-34).
2) Prudência no falar: os sábios chamam a atenção para o
reto uso da fala: "A alegria de um homem está na res-
posta de sua boca: que bom é uma resposta oportuna!"
(15,23). É recomendável guardar segredos, bem como
manter-se em silêncio: "Quem retém os lábios é pruden-
te" (10,19b); "Quem guarda a boca e a língua guarda-se

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da angústia" (21,23). Falar demais é perigoso: "Quem


anda tagarelando revela o segredo" (11,13a); "Nas mui-
tas palavras não falta ofensa" (10,19a).
3) A justiça acima de tudo: para os sábios, a principal vir-
tude é o comportamento reto: "Quem revela a verda-
de proclama a justiça, a falsa testemunha diz mentiras"
(12,17); "Mais vale o pouco com justiça do que muitos
ganhos sem o direito" (16,8); "O ímpio faz um trabalho
enganador, mas quem semeia a justiça terá a verdadeira
retribuição" (11,18).
4) Rico e pobre: como vimos nos textos que falam do pre-
guiçoso, a pobreza é considerada consequência da pre-
guiça: "A mão preguiçosa empobrece, o braço diligen-
te enriquece" (11,16). Portanto, a riqueza é vista como
prêmio. Não obstante, há uma série de provérbios que
fazem um juízo negativo das riquezas, pois elas são um
apoio frágil: "quem confia na riqueza cairá" (11,28a);
"no dia da ira, a riqueza será inútil" (11,4a).
Além disso, há provérbios que advertem contra riquezas
injustas ou mal adquiridas: "Tesouros injustos não trazem provei-
to" (10,2a); "Fazer tesouros com língua falsa é vaidade fugitiva de
quem procura a morte" (21,6); "O homem de olho ávido corre atrás
da riqueza e não sabe que a necessidade cairá sobre ele" (28,22).

A importância e a responsabilidade da família


A família é a principal instituição no Antigo Oriente Próxi-
mo. Basta lembrar a tradição da páscoa judaica ou a celebração do
sábado: a família e a casa são os lugares por excelência do culto.
Assim, o pai é a cabeça da família: cabe a ele transmitir aos filhos
os valores dos antepassados e a história do seu povo.
Em Pr 3-4, encontramos ensinamentos paternos de toda or-
dem. Vejamos alguns:
"Meu filho, não esqueças minha instrução, guarda no coração os
meus preceitos" (3,1).
"O amor e a fidelidade não te abandonem" (3,3).
56 © Salmos e Sapienciais

"Confia no Senhor com todo o teu coração, não te fies em tua pró-
pria inteligência; em todos os teus caminhos reconhece-o, e ele
endireitará as tuas veredas. Não sejas sábio aos teus olhos, teme o
Senhor e evita o mal" (3,5-7; cf. vv. 9.11-12).

Abundantes são, também, os provérbios que contêm corre-


ções explícitas (e, às vezes, rígidas) dos pais/mestres aos filhos/
discípulos: "Escuta, meu filho, a disciplina do teu pai, não despre-
zes a instrução de tua mãe" (1,8; cf. 5,7; 4,1; 13,1; 15,5.16.20.27);
"A vara e a repreensão dão sabedoria, mas o jovem deixado a si
mesmo envergonha sua mãe" (29,15); "Não afastes do jovem a
disciplina! Se lhe bates com a vara, não morrerá" (23,13); "Quem
poupa a vara odeia seu filho, aquele que o ama aplica a disciplina"
(13,24; cf. 19,18; Sr 30,1-13).

Provérbios e a vida na sociedade


O livro dos Provérbios aborda, praticamente, todas as situa-
ções da vida em sociedade, tais como:
1) Visão de conjunto: o comportamento humano é descri-
to por meio de antíteses polares, isto é, confrontam-se
os extremos: sensato/néscio; justo/ímpio; rico/pobre.
Vejamos, agora, cada um desses extremos:
a) Sensato/néscio: é muito comum, na Literatura Sa-
piencial do Antigo Oriente Próximo, assinalar as
atitudes fundamentais do homem diante do senti-
do vida. Não se tratam de categorias morais (bom/
mau), mas de categorias existenciais (correta/equi-
vocada). Entretanto, na prática, falta muito pouco
para uma equiparação: sábio = justo; néscio = ímpio.
Você pode conferir alguns exemplos em Provérbios:
10,1,8.23; 12,15; 13,16; 17,24.
b) Justo/ímpio: nessa antítese, engloba-se toda a vida
moral, sem meio termo ou ponto neutro. Exemplos:
10,11,16.24; 14,19; 28,1.
c) Rico/pobre: os sábios não estudaram Sociologia; não
tinham teoria social que explicasse a diferença entre
ricos e pobres. Mesmo assim, vários provérbios que-

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 57

rem corrigir juízos equivocados comuns naquele tem-


po: 28,6; 13,8. Os sábios não elaboram uma teoria
que solucione o problema, mas procuram dar pistas
para minorar conflitos. Exemplos: 22,22-23; 19,17;
21,13.
2) Injustiça social: tanto quanto os profetas, os sábios tam-
bém criticaram as injustiças, mas não com os discursos
inflamados dos profetas, e, sim, com ditos e provérbios,
para formar espírito critico. A situação parece-se muito
com a de hoje: "O ímpio aceita suborno debaixo do man-
to, para distorcer o direito" (17,23); "Não é bom favore-
cer o ímpio para declinar o justo num julgamento" (18,5;
cf. 14,34; 20,23). Diz-se, então, que não basta criticar; é
necessário atacar a raiz: "Aquele que despreza o próxi-
mo peca; feliz é quem tem piedade dos pobres" (14,21;
cf. 3,29-31). As motivações para isso são quase sempre
religiosas (cf. 3,32-33).
3) Amizade: quanto ao convívio social, os provérbios dão
ênfase à amizade sincera: "Não abandones teu amigo,
nem o amigo do teu pai, e não vás à casa do teu irmão
no teu dia difícil: mais vale o vizinho perto do que o ir-
mão distante" (27,10); "Há amigos mais queridos do
que irmão" (18,24b); "Em toda ocasião ama o amigo,
um irmão nasce para o perigo" (17,17). Nesse sentido,
o melhor conselho é o de um amigo: "Óleo e perfume
alegram o coração, e a doçura do amigo é melhor que o
próprio conselho" (27,9).
4) Autoridade civil: o modelo de autoridade é o do Anti-
go Oriente Próximo, isto é, a monarquia absoluta. O rei
é eleito e conduzido diretamente por Deus (ou pela sa-
bedoria divina) e, portanto, deve-se temê-lo (24,21-22).
O rei ideal é o que julga com justiça (29,4.14); contudo,
nem sempre o rei é justo e sábio (28,15-16). Em con-
trapartida, também aos ministros se deve o êxito ou o
fracasso do povo (29,2.12).

Provérbios e o âmbito religioso


Veja, a seguir, como o âmbito religioso é tratado nos Provérbios:
58 © Salmos e Sapienciais

1) Deus: o livro dos provérbios jamais questiona a existên-


cia de Deus. Isso é algo pacífico: Ele é Criador, Senhor,
Juiz (3,19) (cf. 20,12; 5,21; 24,12); é, também, protetor e
providente: "Pois o Senhor ficará ao teu lado, e guardará
o teu pé da armadilha!" (3,26; cf. 18,10; 10,29). Ele tem
a última palavra (19,21; 16,33) e abomina o mal:
Seis coisas detesta o Senhor, e sete lhe são abomináveis: olho altivo,
língua mentirosa, mãos que derramam o sangue inocente, coração
que maquina planos malvados, pés que correm para a maldade,
testemunha falsa que profere mentiras, e o que semeia discórdia
entre irmãos (6,16-19; cf. 11,1).
2) Doutrina sobre a retribuição: o livro dos Provérbios é
fiel à Teologia tradicional. Logo, a linha do homem não
ultrapassa a morte; por isso, no livro dos Provérbios, a
Teologia da Retribuição é forte e infalível: "Quando mor-
re o ímpio, acaba seu anseio, e a esperança nas riquezas
perece" (11,7; cf. 11,21.23; 12,7.21; 13,9). Quem garan-
te esse sistema infalível é o próprio Deus. As contrarie-
dades da vida são parte da pedagogia de Deus:
Meu filho, não desprezes a disciplina do Senhor, nem te canses com
a sua exortação; porque o Senhor repreende os que Ele ama, como
um pai ao filho que preza (3,11-12; 17,3).
3) Temor do Senhor: esse é um ensinamento típico da
literatura sapiencial. "Temor" significa "reverência" e
"respeito", e não "terror" ou "medo". Além disso, signi-
fica reconhecer o senhorio de Deus sobre tudo e sobre
todos. E esse temor a Deus coloca o homem em seu
lugar adequado: "O temor do Senhor é disciplina e sa-
bedoria" (15,33). Nele está a fonte da Sabedoria e da
vida: "O princípio da sabedoria é o temor do Senhor"
(9,10); "O temor do Senhor é fonte de vida" (14,27a);
"No temor do Senhor há poderosa segurança" (14,26).

Até o presente momento, estudamos o livro dos Provérbios. Dan-


do continuidade aos nossos estudos, veremos o livro do Eclesiás-
tico ou Sirácida.

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 59

Considerações finais sobre provérbios


No livro dos Provérbios, sábio é aquele que fez experiências
na sua vida e sabe aproveitá-las para si e orientar o filho/discípulo,
ajudando-o a não cometer os erros e a investir sua energia no ca-
minho certo. Podemos dizer que a origem da sabedoria está ligada
à história e à situação de um povo e de seus problemas. Logo, sá-
bio é aquele que consegue formular um mashal para transmitir a
sua própria experiência e a de seu grupo.
Os provérbios nascem da necessidade de formar as novas
gerações no direito e na justiça, no temor ao seu Deus, na forma-
ção de um estado justo. Portanto, a sabedoria contida no livro dos
Provérbios abarca as múltiplas situações vividas por uma pessoa,
desde os ambientes mais restritos, até a esfera pública e governa-
mental:
a) Casa: família, clã, tribo, corpo, saúde, educação, amor.
b) Campo: trabalho, plantio, animais, estações, tempo, na-
tureza, entre outros.
c) Portão: justiça, comércio, cidade, praça, feira, roda, pro-
cesso etc.
d) Palácio: governo, organização, corte, exército, conflitos.
e) Templo: religião, culto, Deus, orações, romaria, promessas.

8. SIRÁCIDA (ECLESIÁSTICO)
O livro do Eclesiástico, como é conhecido na tradição católi-
ca, também é chamado de Sirácida, uma vez que seu autor é Jesus
Ben Sira (51,30). Para não corrermos o perigo de confundi-lo com
o Eclesiastes, vamos usar "Sirácida" (abreviatura: "Sir", que corres-
ponde, portanto, a "Eclo").
Contudo, antes de iniciarmos esse estudo, é necessário lem-
brar que o livro do Sirácida não consta na Bíblia protestante, pois
Lutero adotou o cânon da Bíblia hebraica.
60 © Salmos e Sapienciais

9. ORIGINAL EM HEBRAICO
O Sirácida é o único livro bíblico com um prólogo do tradutor.
Graças a tal prólogo, sabemos que estamos diante de uma versão:
Sois, portanto, convidados a ler com benevolência e atenção, e a ser-
des indulgentes onde, a despeito do esforço de interpretação, parecer-
mos enfraquecer algumas expressões: é que não tem a mesma força,
quando se traduz para outra língua, aquilo que é dito em hebraico.

Não obstante sempre soubéssemos da existência de um


original em hebraico, há até pouco mais de cem anos, tínhamos
somente as versões grega, latina e siríaca. Mas, desde o final do
século 19, foram encontrados vários manuscritos que permitiram
reconstruir grande parte do texto hebraico do Sirácida.
Em 1896, na Genizah de uma sinagoga do Cairo, foram acha-
dos manuscritos com Sir 6,6-16, 26; 35,11-38, 27; 39,15-51, 30.
Em 1931, outro manuscrito proveniente do Cairo continha Sir
32,16-34,1. Em 1952 e 1955, alguns fragmentos em duas grutas de
Qumrã continham Sir 3,14-15; 6,20-31; 51,13-20.30b. Em 1958 e
1960, outros manuscritos no Cairo com Sir 10,19-11,10; 15,1-16,7,
e alguns versículos dos capítulos 3; 4; 20; 26; 36; 41. Em 1964, foi
descoberto o famoso rolo de Massada, com Sir 39,27-32; 40,10-
19; 40,26-44,17. Em resumo, temos dois terços do livro em ma-
nuscritos do século 1 a.C. (Qumrã e Massada) e dos séculos 11 e
12 d.C. (Cairo). Dos 1616 versículos do Sirácida, foram recuperados
1108 em hebraico.

Genizah é o depósito em que são guardados manuscritos enve-


lhecidos ou em desuso.
Massada trata-se da fortaleza herodiana no Mar Morto, célebre
pela desesperada resistência zelota contra a ocupação romana,
entre 70 e 74 d.C.

Quando, porém, o texto grego é confrontado com os manuscritos


hebraicos, nota-se que o tradutor fez algumas atualizações que refletem
uma nova situação: a que ele vivia, após o ano 132 a.C., no Egito.

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 61

10. CANONICIDADE
O livro de Jesus Ben Sira não entrou no cânon judaico por-
que, após a queda de Jerusalém em 70 d.C., o judaísmo se desen-
volveu na linha dos fariseus, único grupo religioso que sobreviveu
à catástrofe. No concílio judaico de Jâmnia, após 90 d.C., os líderes
religiosos judaicos definiram que só seriam canônicos os livros es-
critos em hebraico ou aramaico, que datassem de antes de Esdras
(398 a.C.) e tivessem sido escritos na terra de Israel. Parece que,
naquele momento, nenhum dos participantes do concílio tinha um
manuscrito hebraico do Sirácida, pois, não obstante o prólogo do
neto de Ben Sira, o livro não foi considerado sagrado. Mesmo as-
sim, o livro foi muito popular entre os judeus (como demonstram
os manuscritos encontrados em Qumrã e em Massada) e muito
citado por rabinos até a Idade Média.
Entre os cristãos, até mesmo São Jerônimo chegou a conside-
rá-lo como apócrifo. E, embora o livro já fosse aceito pelas comu-
nidades cristãs desde o início da Igreja, só em 1438, no concílio de
Florença, foi definida a sua canonicidade. As traduções presentes
em nossas Bíblias baseiam-se no texto grego porque ele contém a
versão integral do livro e constitui o texto tradicionalmente aceito
como canônico.

A palavra "apócrifo" vem da língua grega e significa "algo que é


secreto, que está escondido, oculto". Os livros eram chamados
assim porque seu uso era restrito, particular. (CRB, 1993).

Título
No Antigo Testamento Grego, isto é, na Septuaginta, o título
desse livro é Sophia Sirach (Sabedoria de Sirach). No século 3º d.C.,
São Cipriano chamava-o de Eclesiástico, para sublinhar o seu uso
oficial na Igreja, em contraposição à Sinagoga. Assim, São Jerôni-
mo (340-420 d.C.) incorporou-o na sua versão latina, a Vulgata,
62 © Salmos e Sapienciais

e chamou-o de Ecclesiasticus. São Rufino, contemporâneo de São


Jerônimo, para explicar o título latino, afirmou que, a princípio,
Sirácida e Sabedoria receberam o mesmo título para dizer que não
eram canônicos, mas eclesiais (da Igreja), e que, posteriormente,
tal título passou a designar somente o Sirácida, porque é mais im-
portante que Sabedoria. Hoje em dia, porém, a explicação mais
aceita é a seguinte: Sirácida foi chamado de "Eclesiástico" porque
era lido na Igreja (Ecclesia), tal qual o livro de Qohélet, que, em
latim, passou a ser chamado de "Eclesiastes".

Data
Em relação à data, o neto de Ben Sira diz ter traduzido o livro
do original hebraico para o grego no trigésimo oitavo ano do reina-
do Evergetes. O que isso significa? Vejamos.
O nome "Evergetes" significa "benfeitor". Somente dois reis
da era ptolomaica receberam esse título: Ptolomeu III Evergetes I
(246-222 a.C.) e Ptolomeu VII Evergetes II (145-116 a.C.). O primei-
ro reinou pouco mais de vinte cinco anos. Uma vez que o tradutor
fala do ano trigésimo oitavo do reinado de Evergetes, ele só pode
se referir, então, a Ptolomeu VII.
Outra data importante é-nos dada pelo próprio Ben Sira, em
50,1-10, texto em que é nomeado o sumo sacerdote Simão II, que
exerceu seu ministério nos anos 219-196 a.C.
No livro, nada sugere um clima de rebelião entre os judeus
fiéis à Torah (Lei) e que resistiram à cultura helênica imposta por
Antíoco IV, que reinou entre 187 e 163 a.C. Igualmente, o livro não
faz nenhuma referência ao período dos Macabeus, o que significa
que ele já estava concluído quando foi iniciada a revolta macabaica
(167-164 a.C.).
Considerando todos esses dados, concluímos que o livro
do Sirácida foi escrito entre os anos de 190 a 180 a.C. (cf. MORLA
ASENSIO, 1997, p. 193-194.).

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 63

Autor
O que podemos falar sobre o autor é o que ele mesmo relata
ao longo de seu livro. Desde jovem, dedicou-se à sabedoria (51,13-
22), e a genealogia mencionada em 50,27 permite afirmar que era
um cidadão importante de Jerusalém.
Ben Sira foi conselheiro e embaixador dos governantes (cf.
39,4; 33,9-12), e suas viagens ao exterior permitiram-lhe tomar
contato com as várias correntes sapienciais de seu tempo, prin-
cipalmente a egípcia (há diversos paralelos no livro de Ben Sira).
Depois de aposentar-se, abriu uma "escola de sabedoria" em Jeru-
salém (50,27; 51,23) para preparar os filhos dos aristocratas para
altos encargos. Além disso, era casado, tendo, pelo menos, um fi-
lho, tendo em vista que foi seu neto quem traduziu sua obra para
o grego (cf. prólogo, 7).
A doutrina de Ben Sira demonstra uma postura de alguém
conservador, que buscava apoiar-se na sabedoria dos antigos e nas
tradições de Israel, e que, ao mesmo tempo, estava aberto às no-
vas questões do seu tempo. Poderíamos chamá-lo de "conserva-
dor progressista": fidelidade à tradição e, simultaneamente, aber-
tura ao presente e ao futuro. Trata-se de um sábio leigo com clara
devoção ao Templo, aos sacerdotes e ao culto (50,2-21). Quanto
ao helenismo, Ben Sira tem conhecimentos literários, não os des-
prezando e, até, aceitando alguns de seus costumes. Entretanto,
os pontos de contato são apenas culturais, não se referindo à re-
ligião.
Desse modo, a finalidade da obra de Ben Sira era formar os
jovens judeus fascinados pela cultura grega. Ele queria mostrar
que as tradições judaicas são verdadeira sabedoria e não perdem
nada para a Filosofia e para as tradições gregas.
Ben Sira considerava seu ensinamento como "profecia"
(24,33). Ele compilou tradições judaicas numa espécie de "enciclo-
pédia sapiencial" ou manual de sabedoria, sob o ponto de vista da
fé no Deus de Israel.
64 © Salmos e Sapienciais

11. BEN SIRA NETO E A TRADUÇÃO PARA O GREGO


Como dissemos, quem traduziu o livro de Jesus Ben Sira para o
grego foi seu neto, cujo nome não conhecemos. No prólogo, o neto
explica quando e por que traduziu a obra do avô. Como já vimos,
a tradução foi feita após o ano 132 a.C., na chamada "diáspora",
ou seja, fora da palestina. Ben Sira Neto viveu no Egito (cf. prólogo,
27), onde o grego havia se tornado a língua corrente, mesmo entre
os judeus. Ele decidiu, então, traduzir a obra de seu avô para que a
comunidade judaica pudesse conhecê-la e, assim, "instruir-se, refor-
mar os costumes e viver conforme a Torah" (prólogo, 31-35).
Tudo indica que Ben Sira Neto possuía uma cópia não muito
boa do livro de seu avô: faltavam colunas e versos. Além disso, ele
fez alguns acréscimos que acabaram deturpando certas posições
teológicas de Ben Sira. Mais ainda, parece que Ben Sira Neto não
conhecia o hebraico tão bem assim. Em compensação, conseguiu
identificar citações implícitas da Sagrada Escritura e traduziu com
a versão da Septuaginta (a tradução grega das escrituras hebrai-
cas, que já estava pronta no tempo de Ben Sira Neto).
Em resumo, Ben Sira Neto não faz uma mera tradução; ele ope-
ra um upgrade, uma atualização e adaptação do original: atualização
para situações e ideias novas, principalmente no que se refere à Esca-
tologia (Ben Sira Neto tem ideias próprias e diverge de seu avô).
Veremos exemplos das diferenças entre o texto original (hebrai-
co) e a tradução grega depois de estudarmos a Teologia de Ben Sira.

Estrutura
Antes de falarmos da organização do livro, é necessário lem-
brar que o texto de Sirácida tem uma longa história: o original he-
braico, as versões para o grego, o latim e o siríaco, e os acréscimos
feitos em cada uma dessas versões. O texto atual é o resultado des-
se processo, e os acréscimos do texto grego supõem um ambiente
hebraico de língua grega, ou seja, o judaísmo helenista. Por sua vez,
o texto latino sofreu acréscimos cristãos. Isso resultou em uma du-

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 65

pla versão: uma mais longa, outra mais breve. Discute-se ainda qual
seja a original, uma vez que o judaísmo conservou as duas.
Não obstante, pode-se dizer que o tema central do livro é
a sabedoria e, por tabela, como o sábio se relaciona com ela: um
existe para o outro. No seu conjunto, o Sirácida poderia ser cha-
mado de "enciclopédia sapiencial", dada a riqueza, a variedade e a
profundidade dos temas tratados.
O livro que temos em nossas Bíblias está assim organizado:
Quadro 3 Organização do livro.
DIVISÃO SUBDIVISÃO
Tradução grega: 15
Prólogo
versículos.
a) 1,1-23,27: A Sabedoria
na vida humana. Vários
textos referem-se,
diretamente, à Sabedoria:
1,1-10; 4,11-19; 6,18-37;
14,20 - 15,10. Deve-se
notar o tema da criação
em 16,24 - 17,14, que será
retomado no início da
segunda parte.
b) 24,1-42,14: A Sabedoria
Ensinamentos sobre na natureza e na história
temas variados, que, de Israel. Inicia-se com
às vezes, se repetem. É uma autoapresentação da
Primeira parte – temática: provável que essa parte Sabedoria, no capítulo 24.
1,1-42,14 tenha sido composta em Numa primeira edição do
épocas diferentes. Ela livro, esse capítulo pode
subdivide-se em duas. ter sido a conclusão do
conjunto, mas, no texto
atual, é a peça central de
todo o grande conjunto dos
capítulos 1-42. Em 33,7-15
e 39,12-35, aborda-se o
tema da "justificação de
Deus" perante o mal no
mundo, tema que voltará
em 42,15-25. Em 33,16-18,
temos um pós-escrito do
autor, que poderia ser uma
conclusão de nova seção
da obra.
66 © Salmos e Sapienciais

DIVISÃO SUBDIVISÃO
Tradução grega: 15
Prólogo
versículos.

Essa parte difere-se da


primeira porque não a) 42,15-43,33: hino à glória
há mais temas soltos, de Deus na criação.
tampouco provérbios.
Segunda parte – hínica: Adota-se a forma hínica b) 44,1-50,21: elogio dos
42,15-50,26 e o tema é um só: o antepassados de Israel.
louvor de Deus na
criação e na história.
Também essa parte
subdivide-se em duas.

a) 50,27-29: conclusão
Conclusão e apêndice: propriamente dita.
50,27-51,30
b) 51,1-30: apêndice.
Fonte: Pereira (1992, p.22-23).

Algumas edições apresentam uma dupla numeração dos versí-


culos. Isso é devido à diferente divisão de versículos na Vulgata e na
Septuaginta. No quadro anterior, usamos a numeração da Septuaginta.

12. GÊNEROS LITERÁRIOS


No Sirácida, encontram-se vários gêneros literários: parale-
lismos, provérbios breves (meshalim), ditos, conselhos, discursos
etc. Ben Sira colhe seu método, principalmente, da literatura sa-
piencial. Vejamos os gêneros literários mais frequentes no Eclesi-
ástico a seguir.
Paralelismo
A poesia hebraica não se baseia, em primeiro lugar, na rima
dos sons, mas, sim, na rima dos conceitos. É o chamado "parale-
lismo". Como já vimos (cf. Introdução aos Provérbios), são três os
tipos de paralelismo:
• Paralelismo sinonímico: "Ao homem mesquinho não
convém a riqueza, e para que grandes bens ao invejoso?"
(14,3; cf. 3,3; 26,13-18).

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 67

• Paralelismo antitético: "Porque a bênção do pai consoli-


da a casa dos filhos, mas a maldição da mãe desenraiza os
alicerces" (3,9; cf. 20,9; 26,22-26).
• Paralelismo sintético ou completivo: "Aquele que teme o
Senhor honra seu pai. Ele servirá a seus pais como ao seu
Senhor" (3,7; cf. 3,18; 7,15).
Formas valorativas
As formas valorativas são um recurso utilizado em provér-
bios breves para expressar a estima ou a reprovação:
Ai dos corações covardes e das mãos fracas, e do pecador que se-
gue dois caminhos. Ai do coração fraco, pois não acredita, por isso
não será protegido. Ai de vós que perdestes a paciência: que fareis
quando o senhor vos visitar? (2,12-14).

Para comparar duas situações, usa-se, com frequência, a fór-


mula "mais vale... do que..." ou algo equivalente:
"Mais vale a vida de pobre sobre abrigo de tábuas do que alimentos
finos em casa alheia" (29,22).
"É melhor o pobre são e vigoroso do que o rico flagelado em seu
corpo" (30,14; cf. 3017; 25,16; 10,27).

Para mostrar a verdadeira felicidade, utiliza-se a fórmula: "fe-


liz aquele..." ou "ditoso aquele que...". Vejamos alguns exemplos:
Feliz o homem que não pecou com sua boca e que não foi ferido
pelo remorso dos pecadores. Feliz aquele cuja consciência não o
acusa e aquele que não perdeu sua esperança (14,1-2; cf. 14,20;
25,7-9; 26,1; 31,8; 50,28).

Quando a comparação envolve três situações, Ben Sira utili-


za a fórmula: "melhor que os dois...". Tal modo de raciocinar é bem
próximo aos provérbios numéricos:
Amigo e companheiro encontram-se no momento oportuno; me-
lhor que os dois uma mulher prudente. Irmão e auxiliar são úteis
no tempo da tribulação, melhor que os dois a esmola preserva do
perigo. Ouro e prata tornam o caminho firme, melhor que os dois é
um bom conselho (40,23-25; cf. 40,18-26).
68 © Salmos e Sapienciais

Comparação e metáfora
A comparação e a metáfora são os artifícios mais simples e,
por isso, seu uso é frequente: "Como flecha fincada na coxa, assim
é uma palavra nas entranhas do insensato" (19,12); "Como perdiz
presa na gaiola, assim é o coração do orgulhoso; como escorpião
ele espreita tua ruína" (11,30; cf. 16,7; 24,13-17; 26,25.27; 32,5-6;
43,18-22; 50,6-10).
Discurso e pequenos tratados
Como todo sábio, Ben Sira dirige a palavra a seus discípulos
em tom de exortação (16,24 – 18,1); ele utiliza o apelativo "meu
filho" (2-3;4,20-9,16) e é porta voz da sabedoria, ou seja, fala em
nome dela (1,1-21; 4,11-19; 14,20-15,10; 24,1-34).
Ben Sira utiliza com frequência, também, o recurso literário
dos tratados, isto é, conjuntos de provérbios unidos pelo tema.
Exemplos: o matrimônio (9,1-9; 25–26), os antepassados de Israel
(44,1-50,21), a Sabedoria (24,1-34) etc.
Retratos históricos
Na "galeria dos heróis de Israel" (capítulos 44-50), aparecem,
pelo menos, trinta e quatro personagens do Antigo Testamento. Após
a introdução, que diz: "Elogiemos os homens de bem, nossos ante-
passados, em sua ordem de sucessão" (44,1), Ben Sira descreve, de
forma breve, mas bem elaborada, somente os principais traços de
cada personagem, tais como: "E Salomão repousou com seus pais,
deixando para trás de si alguém de sua raça, o mais louco do povo e
pouco inteligente: Roboão, que instigou o povo a revolta" (47,23).

Outros recursos estilísticos–––––––––––––––––––––––––––––


Há vários outros recursos estilísticos usados por Ben Sira. Eis um resumo:
1) Repetições de termos ou fórmulas: "antes de x" (18,19-23), "interroga x"
(19,13-17); "Há x" (19,23-26; 20,1-12.21-23).
2) Plasticidade nas imagens: "Quem toca no piche sujar-se-á, quem convive
com o orgulhoso ficará como ele" (13,1); "O preguiçoso é semelhante a um
monte de esterco, todo aquele que o toca sacudirá a mão" (22,2; cf.22,1.19-
21; 36,30-31).

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 69

3) Questões retóricas: esse é um recurso didático muito frequente nos pro-


vérbios breves: "O que é mais pesado do que o chumbo? E que outro nome
dar-lhe senão o de insensato?" (22,14); "Que paz pode haver entre a hiena e o
cão? Que paz pode haver entre o rico e o pobre?" (13,18; cf. 1,6; 2,10; 10,19;
11,23-25; 18,8; 23,18; 31,8-11.27).
4) Provérbios numéricos: com os números dois e três: "duas coisas entriste-
cem meu coração e a terceira me encoleriza: guerreiro reduzido a miséria, ho-
mens sensatos votados ao desprezo, aquele que passa da justiça ao pecado;"
(26,28). Com o número três: "Há três coisas que encantam minha alma, que
são agradáveis a Deus e aos homens: a concórdia entre irmãos, a amizade
entre vizinhos, marido e mulher que vivam bem" (25,1-2). Com os números
três e quatro, cf. 26,5-6; com os números nove e dez, cf. 25,7-11.
5) Hinos onomásticos: são listas de nomes de animais, vegetais, povos, mi-
nerais etc.: 39,26-30; 42,15-43,33; 38,24-34. Esse recurso foi muito utilizado
pelos egípcios e também aparecem na literatura sapiencial bíblica: nos livros
de Jó (28; 36,27-37; 38,4-39,30) e da Sabedoria (7,17-20,22;14,25-26).
6) Narrações autobiográficas: Ben Sira fala de sua própria pessoa: 24,30-34;
33,16-18; 51,13-22.
7) Poema alfabético: cada verso começa com uma letra do alfabeto (no caso, o
alfabeto hebraico). Assim, pode ser considerado 51,13-29, mas no manuscrito
hebraico está incompleto. Esse poema foi colocado no final do livro como
conclusão (Cf. MORLA ASENSIO, 1997, p. 197-198; VÍLCHEZ LÍNDEZ, 1999,
p. 96-101).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

13. CONTEÚDO TEOLÓGICO


Por ora, veremos a Teologia do original hebraico, isto é, o
texto de Jesus Ben Sira (o avô).
Como já afirmado, Ben Sira poderia ser chamado de "conser-
vador progressista": ele aceita a Teologia tradicional (Teologia da
Retribuição), mas deixa-se questionar pelas dificuldades práticas.
São muitos os temas abordados, todos ao redor de um tema cen-
tral: a sabedoria.

O tema central: a sabedoria


Como já dissemos, a sabedoria e o sábio existem um para o
outro. A sabedoria manifesta-se pelo sábio.
Para falar da sabedoria, Ben Sira busca inspiração em outros
livros sapienciais.
70 © Salmos e Sapienciais

A sabedoria em si mesma
A sabedoria tem origem divina: ela é criatura de Deus (1,9;
texto paralelo a Pv 8,22) e as primícias de sua criação (1,4a).
Além disso, a sabedoria é um dom de Deus para quem vive
na amizade com Ele. O homem recebe-a como graça (1,1-10), mas
só depois de ser provado em sua docilidade, tenacidade e perse-
verança (4,11-19). O discípulo deve amá-la e procurar por todos
os meios conquistá-la. Com efeito, ela é digna de ser amada, não
só por sua origem divina, mas também porque estabelece um re-
lacionamento pessoal e recíproco com quem a busca como mãe
(15,2; 4,11) e como noiva (51,13-22).
A sabedoria é, pois, como um tesouro (20,30-31); seus frutos
são abundantes como uma boa colheita (6,19) e ela traz sacieda-
de, paz, saúde e vida longa (1,16-20). No discípulo, ela provoca
ainda mais fome e sede da própria sabedoria e de agradar a Deus
(24,19-21).
Sabedoria e Torah (Lei)
A Sabedoria é a shekinah, isto é, a própria revelação e pre-
sença de Deus em Israel. A Torah é a melhor expressão da sabedo-
ria (1,26; 2,15; 23,27): a Torah já não é um peso nem um jugo, mas
a própria sabedoria (24,23).
Em outras palavras, a prática da Torah é a manifestação con-
creta da sabedoria e do temor a Deus. Apesar disso, Ben Sira faz só
quatro referências explícitas a preceitos da Torah (7,31; 28,7; 29,9;
35,6). Por quê? Porque Ben Sira não é legalista: ele lê a Torah com
olhos de sábio: a Torah não é um conjunto de códigos legislativos,
mas a própria revelação histórica de Deus a Israel; é a Sabedoria de
Deus que se tornou concreta em Israel (16,26-17,14; 44-49).
O sábio
A missão do sábio é transmitir a Torah, que é, como já disse-
mos, a melhor expressão da sabedoria (24,30-34). Assim, o sábio

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 71

deve instruir os outros e a si mesmo (24.34; 33,18). Contudo, não é


necessário ser velho para ser sábio, uma vez que o relacionamen-
to que une o sábio e a sabedoria é um relacionamento de amor,
como o que une o esposo à esposa (51,13-22).

O temor a Deus
O temor a Deus é o princípio e o fim da sabedoria (1,11-20).
Sem ele, ninguém a atinge nem a recebe. O temor leva a pessoa à
procura da sabedoria; por sua vez, ela é princípio e plenitude do
ser humano. Juntos, sabedoria e temor a Deus levam à felicidade e
à benção, mais do que a riqueza e a força (40,26-27).
Quem são os que temem a Deus? Os justos, os que Nele es-
peram, os que confiam Nele, os que O amam (2,7-9.15-18). Em
suma, os que são fiéis à Torah, principalmente no momento da
provação (2,1-19).
Logo, o temor a Deus é fidelidade concreta à Torah (19,20,24),
e a consequência do temor a Ele é a vida (50,29 no texto hebraico;
cf. nota na Bíblia de Jerusalém).

A história sagrada
A visão de Ben Sira a respeito da história sagrada está em
consonância com a Teologia da Retribuição e integrada no ensina-
mento para combater o fascínio do helenismo: a história de Israel
é a revelação da sabedoria de Deus. Nesse sentido, concluímos
que os antepassados judeus não perdem nada para os heróis gre-
gos. Apesar disso, referências a acontecimentos precisos são ra-
ras (cf. 16,6-10). Para Ben Sira, é preciso manter viva a tradição, a
memória histórica, a fim de combater a sedução do helenismo e
reafirmar a verdadeira sabedoria (a judaica) em contraposição à
filosofia grega. Em resumo, a verdadeira sabedoria está nos ante-
passados.
A história dos heróis aparece no final do livro. O "elogio dos
pais" (44-50) é uma galeria de personagens louvados por seus fei-
72 © Salmos e Sapienciais

tos, não pela ação de Deus; e isso vai ao encontro da Teologia da


retribuição. Essa galeria de heróis do povo eleito vai de Henoc até
Neemias (44,16-49,13); o último a ser elogiado é Adão (49,16).
Entretanto, Ben Sira acrescenta uma página sobre Simão, o Justo
(50,1-24), que era o sumo sacerdote de seu tempo.

Perspectivas futuras
Ben Sira não afirma o messianismo, mas a perpetuação do
sacerdócio sadoquita (50,24 no hebraico; cf. nota da Bíblia de Je-
rusalém). Além disso, ele espera a restauração de Israel, o cumpri-
mento das profecias e que toda a humanidade se una no reconhe-
cimento do verdadeiro Deus (36,1-22).
Dessa forma, o destino final do homem é a morte. Após ela, só
resta o sheol (14,11-19). Da pessoa morta, restam somente as lembran-
ças de sua sabedoria (39,9-11) e de suas ações (41,12-13; 4,10-15).

A palavra "xeol" (sheol)––––––––––––––––––––––––––––––––


A palavra "xeol" (sheol) vem do hebraico e indica o mundo inferior onde moravam
os mortos. No Antigo Oriente, imaginava-se o mundo estruturado em três níveis:
o céu, a terra, e o mundo subterrâneo (os oceanos). Abaixo do mundo subterrâ-
neo, estava o xeol, a habitação dos mortos. Acreditava-se que, quando a terra
era aberta para o sepultamento, essa sepultura se tornava a porta de entrada
para o xeol. Assim, o xeol é como um arquivo morto: nele não há nada, nem pen-
samento, nem sabedoria, nem conhecimento, não se louva a Deus. Tudo é pó e
escuridão (veja Sl 6,6; Ecl 9,10) (McKENZIE, 1984).
––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––––

A vida em família
A convivência familiar deve seguir os preceitos do decálogo.
Assim, a estrutura da família é patriarcal e a educação dos filhos é
rígida (7,23; 22,6). Os pais devem fazer-se respeitar pelos filhos e, prin-
cipalmente, estar atentos à sua educação (30,1-13; cf. Dt 21).
Seguindo essa postura, é arriscado ter filhas (22,3; 42,11), uma
vez que a preocupação principal do pai é que a filha chegue íntegra ao
casamento (42,9-10; 7,24-25; 26,10; cf. Lv 21,13-15; Dt 22,13-19).

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Assim, a mulher é vista sempre como esposa, nunca como


mãe (7,19 26,1-4,13-18). Mesmo quando ela é uma "boa esposa",
o marido deve manter sua própria superioridade (9,2; 25,21.26).
Em contrapartida, a mulher deve ser respeitada por ter sofrido a
dor de parto (7,27).
Os conselhos que o autor dá ao homem estão de acordo
com sua época; hoje, nós diríamos que são proposições machistas
(25-26). Por isso, não entra em discussão como seria o "bom ma-
rido", mas sempre como deve ser a mulher virtuosa e silenciosa
(36,21-27). Um exemplo: "a mulher aceita todo o tipo de marido"
(36,26a). Na sua galeria dos heróis do passado (capítulos 44-49),
Ben Sira não cita nenhum nome de mulher; há somente uma refe-
rência às mulheres anônimas às quais se entregou Salomão para
a sua própria ruína (47,19). Ben Sira admite a bigamia (37,11a) e
a possibilidade de repúdio e divórcio, mas somente por parte do
marido (7,26; 28,15). Além disso, adverte contra o adultério, tanto
o cometido pelo homem (23,16-21) como o cometido pela mulher
(23,22-26), tudo segundo a ética do decálogo (Ex 20; Dt 5) (Cf. MI-
NISSALE, 1993, p. 65-67.).
Com o servos, contudo, era necessário ser exigente, mas,
também, justo e bondoso (7,21; 33,25-32). Ou seja, há uma mescla
de humanidade e conveniência.

A vida em sociedade
Os discípulos de Ben Sira eram jovens ricos, que esta-
vam se preparando para assumir altos encargos na sociedade
(7,4.6.11.14.20).
As profissões
É necessário lembrar que a sabedoria é artesã, isto é, ser
sábio é ter habilidade para fazer (hoje diríamos que é ter "know
how"). Mais que qualquer outro livro, a Sirácida dedica especial
atenção aos ofícios e tem em grande consideração o médico (38,1-
74 © Salmos e Sapienciais

15) e o escriba (38,34b-39,11). Esse último, Ben Sira considera su-


perior aos artesãos e operários (38,24-34a).
Os amigos
O autor dá grande valor à amizade (6,5-17) e convida à fidelidade
(7,18; 9,10). Por isso, é necessário escolher os amigos com o mesmo cui-
dado que se escolhe uma esposa (37,1-6). Nesse sentido, não é qualquer
conhecido que pode ser conselheiro (37,7-15, especialmente v. 11).
A injustiça social
Ben Sira tem a mesma sensibilidade dos profetas (21,3;
26,29; 42,4). Como eles, ele adverte que as instituições de justiça
podem ser subornadas (4,27-28; 7,6). Assim, justo é quem atua
positivamente e evita o exercício da injustiça (35,1-5). Quanto a
Deus, Ele recusa a oferenda do ímpio, porque é produto do roubo
aos pobres (34,20-22). O clamor do pobre é, neste mundo injusto,
como uma voz no deserto, mas Deus o escuta (21,5).
O autor recomenda, ainda, a prática da justiça por motivos
humanitários e profundamente religiosos (3,30-4,10, especialmen-
te os versículos 9-10 e 4,20-31). Não encontramos em seu livro
uma explicação para a desigualdade social; não obstante, ele nutre
certa desconfiança em relação aos ricos e poderosos (4,27; 7,4-6;
13,3-11; 27,2) e discreta estima pelos pobres (3,30-4,10). Em con-
trapartida, a pobreza é sempre "dos outros" (7,32-36; 3,30-4,10).
Acima de tudo, é necessário ser humilde na riqueza (3,18; 18,25) e
agradecer a Deus por ser rico (11,21-26; 32,13).

14. MENSAGENS DOS ACRÉSCIMOS


Conhecidos principalmente pelos manuscritos gregos, os
acréscimos são breves; geralmente, eles precisam um texto do
original (exemplos: 1,5 comenta 1,6 à luz de 24,3.23; igualmente,
17,18 explicita 17,17b). Em alguns casos, acabaram mudando a Te-
ologia de Ben Sira (o avô).

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© Estudo dos Livros de Provérbios e Sirácida 75

Surgiram alguns temas novos ou mais bem desenvolvidos,


tais como:
1) Providência: 15,15-16.18c; 18,2b-3.
2) Salvação: 13,14; 17,26b; 24,24.
3) Amor (unido à sabedoria e ao temor a Deus): 1,10cd.12;
24,18; 26,19-27.
4) Mulher: críticas à transviada (26,22-25), elogios à virtu-
osa (26,23b.26).
5) Perspectivas futuras: 44,16 (alargam os estreitos hori-
zontes de Ben Sira).
Nos acréscimos, Deus torna-se mais Pai, compreende a fra-
queza humana, escruta as ações e as intenções humanas e visita o
homem com retribuição, garantindo-lhe a felicidade ou a miséria.
No mundo futuro, ao pecador estão reservadas a vingança e a des-
truição imediatas; para o justo, a salvação e a vida.

15. QUESTÕES AUTOAVALIATIVAS


Realize, a seguir, as questões autoavaliativas desta unidade,
que têm por objetivo fazer que você perceba se o seu estudo des-
ta unidades está satisfatório. Caso ainda haja dúvidas, releia esta
unidade.
1) Leia Pr 10,25-32 e 11,1-10 e tente identificar os três tipos de paralelismo:
sinonímico, antitético e sintético.

2) O autor do Livro Sirácida ou Eclesiástico, sem dúvida, era um profundo co-


nhecedor da Sagrada Escritura. Elabore um quadro comparativo dos seguin-
tes textos: Dt 4,6-8; Sir 24,1-22 e Bar 3,9-4,4.

16. CONSIDERAÇÕES
A tradição judaica, fortalecida no período persa (pós-exílio)
com Esdras e Neemias, promoveu uma observância rigorosa da To-
rah (Lei). Posteriormente, quem assumirá a missão de incentivar
tal observância será o movimento farisaico.
76 © Salmos e Sapienciais

Entre os anos 190 a 180 a.C., o helenismo torna-se uma ame-


aça à cultura e à religião dos povos judeus. Trata-se de ameaça,
para muitos, quase "invisível", mas bem visível para sábios como
Jesus Ben Sira. Sua obra é um meio moderado de enfrentar o pe-
rigo. Por meio de seu livro, ele mostra o valor da história de seu
povo, de seus heróis e de suas conquistas (44-50,24) sem se fechar
ao novo (34,11).
Jesus Ben Sira foi um judeu piedoso, estudioso e, acima de
tudo, interessado nos jovens de seu tempo e dos tempos futuros,
especialmente no que se refere à educação e à fidelidade religiosa.
Seu objetivo principal era manter viva a tradição, a memória histó-
rica. Por isso, combateu a sedução do helenismo, reafirmou a ver-
dadeira sabedoria (a judaica) em contraposição à Filosofia grega,
defendeu a Torah (Lei), o sacerdócio, a família e o templo. Para ele,
a verdadeira sabedoria está na experiência e nos ensinamentos
dos antepassados, e não nas escolas dos helenistas.
Ironicamente, o Sirácida não pertence ao cânon da Bíblia he-
braica. Todavia, mais ironicamente ainda, encontramos nos escri-
tos rabínicos, ao longo dos séculos, várias citações literais da obra
de Jesus Ben Sira.

17. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICA


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Biblia Española - Sapienciales, 1).
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DIAS DA SILVA, C. M. Leia a Bíblia como literatura. São Paulo: Loyola, 2007. (Ferramentas
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______. Metodologia de exegese bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. (Bíblia e história).
GILBERT, M. O ensinamento dos sábios. In: MONLOUBOU, L. et al. Os Salmos e os outros
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Ultimi Storici. Salmi. Sapienziali. Bologna: Dehoniane, 1978.
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MINISSALE, A. Sirácida: as raízes na tradição. São Paulo: Paulinas, 1993. (Pequeno
Comentário Bíblico).
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(Introdução ao Estudo da Bíblia, 5).
RAVASI, G. Proverbi. In: ROSSANO, P.; RAVASI, G.; GIRLANDA, A. Nuovo Dizionario di
Teologia Biblica. Cinisello Balsamo: Paoline, 1988.
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VÍLCHEZ LÍNDEZ, J. Sabedoria e sábios em Israel. São Paulo: Loyola, 1999. (Bíblica Loyola, 25).
WEISER, A. Einleitung in das Alte Testament. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht, 1966.
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