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CAPÍTULO

1
Salmos
Martin Rose

Em uma medida não desprezível, leitura, compreensão e interpre-


tação dos Salmos dependem de seu respectivo contexto hermenêu-
tico. Essa pluralidade pode ser ilustrada pelas seguintes perguntas:

1. Devemos tomar cada salmo como uma unidade distinta, principal base da
exegese?
2. Devemos ampliar a comparação interpretativa aos salmos de mesmo gene-
ro literário?
3. Que impacto têm para a exegese as coleções nas quais os diferentes
salmos são incluídos?
4. A coletânea canônica dos salmos propõe critérios para a interpretação?
5. Devemos entender as cinco partes do Saltério em analogia com os cinco
livros da Torá?

Essas diversas “contextualizações” permitem múltiplas interpre-


tações, cada uma delas trazendo matizes importantes. Notemos
que, mais do que qualquer outro livro bíblico, os Salmos ainda en-
contraram — e isso até nossos dias — novos “contextos” na liturgia
(judaica e cristã), na oração (individual e comunitária) e na literatura
mundial. Entretanto, a apresentação a seguir limitar-se-á a apresen-
tar alguns resultados que concernem tão só à pesquisa veterotesta-
mentária. Para tanto, retom em os na ordem cada uma das perguntas
formuladas acima.

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Os Escritos

1. C AdA sALMo coMo UMA UNidAdE LiTERÁRiA

Uma primeira abordagem reterá que a maioria dos salmos (116


em 150) apresenta títulos. O livro bíblico dos Salmos não é um escrito
contínuo apresentado em 150 capítulos, mas claram ente uma cole-
tânea que reúne numerosas pequenas unidades literárias que, apesar
de todas as “contextualizações” secundárias, sempre conservaram sua
“individualidade” particular.
Para alguns salmos, o caráter de unidade literária é ainda subli-
nhado por outros aspectos formais, por exemplo por sua estrutura
em acróstico: as iniciais de cada verso seguem aqui a ordem do al-
fabeto. Esses salmos apresentam , portanto, uma unidade de A a Z
(em hebraico: de Á le f até lav): Salmos 25; 34; 37; 111; 112; 119;
145, bem como os salmos 9 e 10 tom ados como um todo. Indique-
mos ainda que entre esses salmos acrósticos a organização alfa-
bética do Salmo 119 é absolutam ente singular: cada letra é utiliza-
da oito vezes, isto é, oito versículos em sequência com eçam pela
m esm a letra.
Menos formal (ou menos artificial), o conteúdo de alguns salmos
pode igualmente evidenciar que foram concebidos como unidades
com sua própria “lógica”. O Salmo 78 apresenta um grande afresco
da história de Israel, especialmente desenvolvida para o êxodo do
Egito e a migração no deserto (v. 12-53); o Salmo 105 com eça seu
relato com a aliança entre Deus e Abraão (v. 9) e term ina com o dom
da terra (v. 44); o Salmo 106 evoca Deus como “salvador” a partir da
escravidão no Egito (v. 7) e até a época do exílio (v. 46); o autor do
Salmo 136 faz até com eçar sua enum eração dos milagres divinos
pela criação do universo (v. 5).
É provável que a unidade de um ou outro salmo seja igualmente
constituída por sua orientação sobre um desenvolvimento litúrgico.
Entretanto, contrariamente aos critérios evidentes de uma estrutura
“formal” ou “histórica”, a identificação dos elementos litúrgicos e de
seu encadeam ento em um salmo continua relativamente hipotética,
uma vez que os textos bíblicos quase não fornecem informações
precisas sobre a liturgia do culto no Israel monárquico e nas sinagogas
da época pós-exílica.

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Salmos

A pesquisa científica investiu esforços consideráveis para esclare-


cer o entendimento deste ou aquele salmo, tomado em consequência
como uma unidade literária isolada. Mencionemos, a título de exem-
pio, a descoberta das proximidades entre o Salmo 104 e o hino egípcio
do deus Aton, ou o reconhecimento de elementos pré-israelitas,
“cananeus”, no Salmo 29. Os resultados da pesquisa sobre os salmos
individuais são notáveis, mas não podem ser, em sua diversidade e
sua abundância, o objeto da presente introdução; para a exegese dos
salmos particulares, é preciso rem eter aos comentários e aos estu-
dos especializados.

2. F oRMAs E GÊNERos LiTERÁRios

Não se deve excluir que já no cabeçalho dos salmos se possam


reconhecer as primeiras tentativas de sua “classificação” formal. Em
todo caso, os biblistas têm tentado há séculos entender certas palavras
utilizadas nos sobrescritos no sentido de term os genéricos : m izm ôr
(57 atestações; canto acompanhado de instrum entos de corda?);
sir (29 atestações; canto cultuai?); mask'll (13 atestações; poema di-
dático?) etc. Mas as informações etimológicas e históricas são insu-
ficientes e não permitem obter a m enor clareza sobre essa questão.
Alguns desses títulos são, certam ente, muito antigos (e podemos
m ostrar que já os tradutores dos séculos III e 1 a.C. não estavam
mais em condições de entendê-los de forma correta), mas são igual-
m ente secundários em relação ao próprio corpus poético dos salmos
e não garantem, portanto, o entendim ento autêntico dos textos.
Em consequência, a indagação sobre o gênero literário de um salmo
e a de sua intenção devem ser estudadas de modo mais aprofunda-
do, tom ando por base o conjunto do texto poético em sua estrutura
e em seus enunciados.
Em publicações dos séculos XVIII e XIX orientadas para aspectos
“estéticos” dos textos literários, já notamos uma grande sensibilidade
às formas convencionais pelas quais se exprimia, digamos, a piedade
individual das orações sálmicas (ver especialmente Johann Gottfried
H e r D e r , Vom Geist der ebráischen Poesie [Sobre o espírito da poesia

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Os Escritos

judaica], 1782/1783). Porém, a sistematização categorial das formas e


dos gêneros literários destacados pela pesquisa exegética está ligada
ao nome de Hermann Gunkel (1862-1932). Em uma contribuição de
1906, ele propôs definir qualquer “gênero (literário)” em função de três
critérios: (a) uma linguagem característica/estereotipada (uma “for-
m a”); (b) certo conjunto de idéias (um “conteúdo”); e (c) um Sitz im
Leben (um “contextosituacional”, típicoecontínuo, navidacomunitá-
ria). Esta última questão, a do meio social, introduz nos métodos exe-
géticos (até aqui de preponderância filológica e histórica) a dimensão
das considerações sociológicas. Gunkel parte da idéia de que todos os
“gêneros” (G attungen) de que se servem os autores, de maneira às
vezes absolutamente individualizada, se enraizam em um mundo de co-
letividade e de oralidade. A exegese alemã reuniu os resultados de
suas pesquisas em um comentário de 1926 (Die Psalmen [Ossa/mos]),
bem como em seu estudo introdutório e sistemático (Einleitung in die
Psalmen. Die Gattungen der religiõsen Lyrik Israels [Introdução aos salmos.
Os gêneros da lírica religiosa de Israel]) concluído, depois de sua morte,
por seu discípulo Joachim Begrich (1933).
Segundo Gunkel, são quatro os principais gêneros atestados no
livro dos Salmos: os hinos, as súplicas nacionais, as súplicas individuais
e as ações de graças individuais.

G U N K E L , B E g R I C H , Einleitung
Gêneros Exemplos típicos in die Psalmen, 1933
Hinos Salmos 150; 148; 147; 145 § 2, p. 32-94
Súplicas nacionais Salmos 79; 83; 80; 44 §4, p. 117-139
Súplicas individuais Salmos 13; 54; 88; 3 §6, p. 172-265
Ações de Salmos 30; 66,13 ss. § 7, p . 265-292
graças
individuais

A isso se acrescentam diversos gêneros menores: salmos reais


(por exemplo, SI 2; 18; 20, 21; 45; 72; 101; 132; 144,1-11), cânticos de
peregrinação (por exemplo, SI 84; 122), salmos didáticos (por exem-
pio, SI 1; 37; 49; 73; 91; 112; 127; 128; 133) etc.
O m étodo das “form as” desenvolvido por Gunkel e a classifica-
ção dos “gêneros” por ele proposta marcaram profundam ente toda

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Salmos

a pesquisa ulterior sobre os salmos. Na discussão científica, tentou-se


desde então principalmente (a) enunciar outros modelos para o Sitz
im Leben, (b) especificar mais alguns critérios form a is e (c) rever do
ponto de vista do conteúdo a sistematização gunkeliana.
(a) Sitz im Leben: para a escola escandinava (especialmente Sigmund
M o w i n C k e L ) , o quadro cultuai é de importância fundamental para a

questão da origem dos salmos; o culto é considerado o lugar privile-


giado, se não exclusivo, da linguagem religiosa. Recusando essa visão
unilateral, outros pesquisadores acentuam antes as situações não
cultuais (ou pós-cultuais) que, certam ente, é preciso supor para nu-
merosos salmos, tais como a meditação ou o recolhimento, a edifi-
cação espiritual ou a instrução religiosa etc. Embora essa reflexão
sobre a função desses textos poéticos e sua utilização seja absoluta-
m ente indispensável, quase não se pode mais esperar uma resposta
simples e definitiva: um salmo de procedência cultuai pode ter
conhecido um rem anejamento “não cultuai”, e um salmo de origem
“não cultuai” pode se inspirar em formas claram ente cultuais. É pre-
ciso, portanto, evitar respostas “dogm áticas” de um ou outro tipo
e ficar aberto a múltiplas possibilidades em função da história (da
transmissão e da redação) que se reconstrói para o contexto situa-
cional dos salmos.
(b) Forma: no detalhe, os estudos de Gunkel nem sempre atestam
uma utilização rigorosa dos critérios formais. Assim, pesquisas ulte-
riores tentaram contribuir com observações mais matizadas e propor
definições mais finas no interior dos principais “gêneros”. Um exem-
pio notável a esse respeito é a tese de doutorado de F Crüsemann
(1969), que distingue dois tipos de hinos: um primeiro grupo cujo
elemento característico é o imperativo introdutório (por exemplo,
“Louvai o Senhor!”), e um segundo grupo especialmente marcado por
particípios aparecendo em séries e evocando os altos feitos do Deus
venerado. A descrição das formas sálmicas ganhou muito ainda em
perfil e em solidez pela comparação com textos análogos do Egito
antigo e da Mesopotâmia. De fato, a exegese tornou-se cada vez mais
sensível ao fato de que Israel participava plenamente de uma cultura
poética comum a todo o Oriente Próximo antigo.

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Os Escritos

Representação babilônia do culto. O rei, acompanhado de dois sacerdotes,


presta um culto no templo terrestre onde o Deus solar é representado por seu
símbolo
Atrás, à direita, está o palácio celeste, onde Deus está sentado em seu trono — cf. Salmo
11,4

(c) Conteúdo: os estudos centrados em aspectos formais mostra-


ram a enorme riqueza cultivada pela poesia religiosa, mas igualmente
deram a impressão de uma explosão total dos principais “gêneros”
elaborados por Cunkel e de um aum ento desenfreado das hipóteses.
Para contrabalançar essa tendência da pesquisa, C. W esterm ann pro-
pôs uma nova sistematização dos gêneros sálmicos, essencialmente
orientada por critérios de conteúdo. Em sua Teologia do Antigo Testa-
mento (2002, p. 196 ss.), o autor reconhece dessa forma duas atitu-
des fundamentais do homem diante de Deus: louvar ou se queixar.
Para os salmos do primeiro grupo, ele examina a única distinção entre
um louvor narrativo (que relata um acontecim ento particular enten-
dido como intervenção de Deus em favor da comunidade ou do indi-
víduo) e um louvor descritivo (que engrandece Deus pela plenitude de
sua obra e de seu ser). É verdade que só o critério do conteúdo per-
mite indicar certa especificidade israelita da tradição sálmica, porém
o conceito global de W esterm ann, menos preocupado com as ques-
tões estritam ente formais, quase não tem convencido os exegetas.
Para resumir a contribuição das pesquisas sobre os gêneros literá-
rios, podemos reter, sobretudo, a “descoberta” do Sitz im Leben dos
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Salmos

Salmos, ou seja, a importância de seu contexto situacional. Com isso,


os exegetas foram sensibilizados para a questão da relação entre co-
letividade e individualidade: mesmo os conteúdos (orações, poemas,
ensinamentos etc.) mais pessoais só podem se exprimir com a ajuda
de formas linguísticas comuns a numerosas culturas e gerações.

3. As C O LEÇ Õ ES

O trabalho consistente de reunião dos salmos em uma coletânea


não foi executado de uma só vez; o livro é antes uma “coleção de
coleções”, concluída apenas depois de um longo processo de trans-
missão e de redação. Entre os indícios evidentes que revelam cole-
ções particulares preexistentes à constituição do Saltério, mencio-
naremos especialmente três elementos:
a) A nota em 72,20 (“Fim das orações de Davi, filho de Jessé”)
deve ser entendida, segundo a interpretação mais plausível,
como uma “subscrição” (colofão), portanto como uma anotação
final (conforme os costumes da literatura oriental), lembrando
nesse lugar o título de uma antiga coleção que trazia este nome
específico: “O rações de Davi, filho de Jessé”. Podemos, por-
tanto, estar certos da existência originalmente independente
de uma coletânea “davídica” enquanto tal.
b) Uma m arca distintiva é tam bém a fórm ula (em hebraico) “o-
D awíd” atestada no título de 73 salmos (portanto, quase a m
etade do Saltério!). O utro grupo é constituído pelo cabeçalho “De
A sa f ’ (SI 73-83; c f 50) e de maneira análoga pela menção dos
“filhos de Q ôrah” (SI 42-49 , c f SI 84-85 e 87-88). Com
frequência se têm entendido e interpretado essas fórmulas no
sentido de uma espécie de “selo” atribuindo os salmos a este ou
àquele “autor” {lamed auctoris). O utros reconhecem aí uma
marca de “pertença” (a uma coletânea de textos) ou uma “no-
ta de propriedade” (refletindo as reivindicações de um grupo
de cantores).
c) A existência de coleções anteriores à constituição do Saltério
ainda é confirmada pelas duplicações (sobretudo SI 14 = 53,

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Os Escritos

mas ainda: SI 70 = 40,14-18; 108 = 57,8-12 + 60,7-14). C erta-


m ente essas repetições teriam sido evitadas se esta ou aquela
repetição do mesmo poema já não estivesse solidamente anco-
rada em sua respectiva coleção. Para esses salmos “duplicados”,
a convergência muito ampla do material textual, de um lado,
exige a suposição de uma origem comum, enquanto as diver-
gências igualmente notáveis, de outro, sublinham o desenvol-
vimento diferente de cada um desses salmos em seus contex-
tos literários próprios antes de sua inserção em uma mesma
coletânea canônica.
Há, portanto, uma certeza incontestável a respeito destas três
etapas principais: os salmos particulares — as coleções — o livro
acabado e canonizado. Entretanto, para os detalhes, a história do
processo redacional (como, aliás, qualquer descrição científica de
uma “história”) só pode reivindicar a probabilidade de uma plausibi-
lidade argumentativa. Os esboços que os exegetas traçam dessa his-
tória reconstituída são muito variados e estão sujeitos a debate.
Qual é a coleção mais antiga com a qual seria possível fazer come-
çar o processo redacional? De modo bastante unânime, a pesquisa
exegética supõe que a sequência “canônica” das principais coleções
reflete igualmente, grosso modo, as etapas do crescimento sucessivo
do Saltério. Isso quer dizer que se considera a primeira coleção “da-
vídica” (SI 3-41) tam bém a mais antiga, a qual constitui o núcleo de
toda a formação do Saltério. Todavia, outros modelos explicativos
podem ainda ser concebidos, dos quais alguns são talvez até mais
coerentes em sua argumentação.
Qualquer consideração a esse respeito deveria começar com a
questão da “davidização” da tradição sálmica. Como se chegou a men-
cionar o nome de Davi no colofão de uma coleção particular (72,20)
e a atribuir, finalmente, o livro inteiro dos Salmos a essa figura da
história de Israel? Esse desenvolvimento é impensável sem a etapa
prévia da historiografia deuteronom ista e a imagem de Davi que esta
apresenta. Primeiro, e pelo ângulo narrativo, é preciso lembrar que
repetidas vezes o jovem Davi é apresentado na corte real de Saul
como um hábil tocador de citara (ISm 16,16.23; 18,10; 19,9). Essa

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Salmos

tradição do Davi músico oferece uma primeira explicação à atribuição


davídica do Saltério. Mas é preciso igualmente insistir na profunda
piedade pessoal que se evidencia mais de uma vez na imagem deute-
ronomista de Davi. E verdade que ele pecou muitas vezes contra seu
Deus (por exemplo no caso com Bat-Sheba, 2Sm 11-12), que ele nem
sempre respeitou as regras cultuais (por exemplo comendo pão con-
sagrado, ISm 21,7), que ele conheceu em casa a prática dos téraphím,
dos deuses domésticos (ISm 19,13.16) etc. Surpreendentem ente, os
redatores deuteronomistas não aduzem notas críticas para tomar
distância desse Davi, que se permite liberdades consideráveis diante
das normas em vigor entre os sacerdotes e os teólogos judeus. Essa
piedade “popular” e “individual” representada por Davi não quer sim-
plesmente o sucesso, a felicidade garantida por Deus, mas guarda
igualmente uma fidelidade em relação a Deus nas situações de vida
difíceis. Nas épocas de reveses políticos, quando, por exemplo, teve
de fugir de Absalão, Davi não se certifica cultualmente da presença de
Deus (simbolizada pela arca da aliança), mas confia na presença pessoal
de “seu Deus” (2Sm 15,24-26).
Davi é descrito em toda a sua humanidade, com seus sucessos e
suas faltas, seus pecados e arrependimentos, exposto às persegui-
ções e protegido por seu Deus; trata-se aí de uma notável interpre-
tação do rei poderoso, fundador da dinastia judaica. Na época do
exílio em Babilônia, sem Templo nem realeza, podia nascer essa ima-
gem “hum ana” da piedade pessoal, representada pelo rei da época
precedente à construção do Templo salomônico; e daí não faltou se-
não um pequeno passo suplementar para fazer desse Davi o “favorito
dos cantores de Israel” (cf 2Sm 23,2), por assim dizer o patrono dos
salmistas, e lhe atribuir salmos, especialmente aqueles provenientes
dessa mesma piedade pessoal. No colofao de 72,20 esses salmos são
chamados de “orações” ( tephillôt ), palavras que o homem dirige ao
seu Deus, e Davi não traz nenhum título (como “rei de Israel”, “servo
do Senhor”, “ungido/messias” etc.), mas única e simplesmente seu
patrônimo: “filho de Jessé”.
É provável que, na origem, esse colofao de 72,20 tenha encerrado
a coleção “davídica” dos Salmos 51-72, pois esta atesta como nenhu-

589
Os Escritos

ma outra uma concentração das indicações “biográficas”, as quais


rem etem a situações específicas descritas na obra deuteronomista.

Salmo 51
(“quando o profeta Natan foi ter com ele...”) =>2Sm 12,1
Salmo 52
(“quando Doeg veio anunciar a Saul...”) ■=>lSm21,8;22,9
Salmo 54
(“quando os zifitas vieram dizer a Saul...”) <=>lSm23,19
Salmo 56
(“quando os filisteus se apoderaram dele em Gat”)
Salmo 57
■=>lSm2l,11-13 (“quando ele fugia de Saul, na caverna...”)
■=>lSm22,l-2
(ou 24,1-9)
Salmo 59 (“quando Saul mandou guardar a ISm 19,11-17
Salmo 60 casa...”) ("quando David combatia os ■=>2Sm 8,13
Salmo 63 arameus...”) ("quando ele estava no => ISm 23,14
deserto de Judá”)

Um critério suplementar para sustentar a antiguidade da coleção


formada pelos Salmos 51-72 pode ser obtido pela comparação dos
salmos “duplicados” 14 e 53: este último contém passagens cujo en-
tendimento se perdeu no decurso da longa transmissão, enquanto
no primeiro uma releitura ulterior permitiu restituir um sentido a essas
passagens problemáticas.
Na época do exílio babilônio, período do aniquilamento de qual-
quer estrutura nacional e cultuai, a figura de Davi tornou-se nessa
primeira coleção de salmos o modelo do homem que, individualmente,
expõe suas queixas diante de seu Deus.
Depois do exílio, o culto sacrifical se reorganiza, o Templo é recons-
truído (520-515) e uma hierarquia sacerdotal se instala. A lista dos
repatriados compreende (além dos sacerdotes e dos levitas) os “can-
tores”, filhos de Asaf(Esd 2,41; Ne 7,44), os quais não são menciona-
dos na historiografia deuteronomista; a obra cronista, ao contrário,
contém várias alusões a eles. Segundo as Crônicas, seu ancestral, Asafi
já era cantor sob Davi (1C r 15,17), e até cantor-chefe dorei( l Crl 6 , 5 ;
25,2); reencontram os seu nome (sempre à frente!) na enumeração
dos cantores oficiantes no Templo de Salomão ( 2 0 5 ,1 2 ‫)־‬. Ele é ainda
mencionado, ao lado de Davi, no contexto da reforma cultuai do rei
Ezequias (2Cr 29,30): “Depois o rei Ezequias e os chefes ordenaram
aos levitas que louvassem o Senhor com as palavras de Davi e de
Asaf ” . Essa observação faz pensar em salmos diferentes quanto à sua
590
Salmos

origem e à sua tradição (com suas duas atribuições específicas), mas


reunidos com o mesmo objetivo: as “orações” individuais (tephillôt) se
tornaram “louvores” litúrgicos (hallél). Os “Salmos de Asaf ” (SI 73-83)
somam-se, assim, à coleção dos “Salmos de Davi” (SI 51-72), porém
os introduzem tam bém de maneira programática (SI 50).

50 51-72 Orações de Davi 73-83

Salmos de Asaf

A próxima fase do crescimento sucessivo do Saltério é marcada


pelo aditam ento dos “Salmos de Q ôrah”, colocados à frente da co-
leção precedente: Salmos 42-49.

“Saltério eloísta”

42—49
50 51-72 73-83

O conjunto dessa coletânea (SI 42-83) sofreu certa harmonização


redacional: o nome divino “Yhwh” foi substituído pelo epíteto “ElohTm”
(Deus/divindade). Fala-se então do “Saltério eloísta”. E ssa harmoni-
zação "eloísta” é uma medida interessante, provavelmente influencia-
da igualmente pela política religiosa no Império Persa com o intuito de
favorecer os deuses internacionais em detrim ento dos deuses nacio-
nais: nesse contexto prefere-se falar do “Deus do céu”, do “Deus su-
premo”, do “Deus Altíssimo” ou simplesmente de “Deus”. É evidente
que os judeus no Império Persa desejavam proclamar seu Deus Yhwh
como idêntico ao Deus supremo. Consequentem ente, quase não es-
tavam interessados em acentuar o nome próprio de seu Deus nacional,
e a denominação “ElohTm” (entendida no sentido de “Deus por ex-
celência”) era recomendada de agora em diante melhor que o nome
próprio Yhwh.
Nessa mesma época, a questão do autor dos textos sagrados come-
çava a se tornar cada vez mais importante. Entretanto, consideremos
que nesse “Saltério eloísta” a tradição “davídica” está longe de exigir
591
Os Escritos

a predominância na poesia de Israel: os salmos “davídicos” dessa cole-


ção se encontram apenas depois dos “Salmos de Q ôrah” (SI 42-49),
assim como depois do primeiro “Salmo de A saf” (SI 50).
O mesmo se diga da etapa seguinte do desenvolvimento do Saltério.
De agora em diante, toda uma coleção de “Salmos de Davi” é posta
no alto: Salmos 3-41:
“Saltério davídico”

3-41 Saltério eloísta: 42-83 84-85 86 87-88

Salmos de David Qôrah David Qôrah

Essa recrudescência do prestígio “davídico” pode ser uma repercus-


são das esperanças depositadas na pessoa de Zorobabel, governador
de Judá, ele próprio de ascendência davídica (1C r 3,19; ver ainda Mt
1,12 e Lc 3,27) e neto do antepenúltimo rei de Judá. Os profetas
Ageu e Zacarias o haviam estimulado vivamente a fazer avançar a
reconstrução do Templo (Ag 1,2; Zc 4,6-10; Esd 5,1 -2; 6,14). Podemos
igualmente constatar uma tendência crescente a respeitar os textos
transmitidos sob sua forma codificada: os dois salmos “gêmeos” (SI 14
e 53), por exemplo, são mantidos nessa coletânea. Além disso, a
harmonização “eloísta” da coleção dos Salmos 42-83 está fielmente
mantida, porém não é mais imposta aos novos acréscimos, nem à
coletânea posta à frente (SI 3-41), nem aos outros salmos de Qôrah
colocados em anexo (SI 84-85 .87 -88 ).
Na época de Zorobabel foi dado um pequeno passo rumo ao desen-
volvimento de um a ardente esperança messiânica (Ag 2,20-23)
— no entanto rapidamente frustrada: por razões obscuras (Destitui-
ção pela autoridade persa? M orte súbita?), Zorobabel desapareceu do
cenário político, sendo o vazio preenchido então pelo único sumo
sacerdote Josué (Zc 6,9-13). Nesse clima de expectativas messiânicas,
podemos situar tam bém certa redação do Saltério: com o Salmo 2
como nova introdução e o Salmo 89 como uma grande conclusão.
"Saltério messiânico”

2 3-88: “Saltério davídico” 89

592
Salmos

Os dois salmos do quadro determinando a leitura messiânica dos


salmos “davídicos” lembram com insistência o juramento que Deus fez
a Davi (SI 89,4.36.50; cf SI 2,7), mas não resta nenhuma dúvida quan-
to ao fato de que a realidade política da época estava longe de cor-
responder à realização dessas esperanças messiânicas (ver especial-
m ente o versículo final, SI 89,52). Sublevações contra o poder central
(cf Esd 4,6 e 4,7-23) não se consumaram; apesar de todas as decep-
ções, o messianismo davídico, real ou restaurador jamais se extinguiu,
todavia se tornou cada vez mais marginal na política oficial em Judá.
Essa política é mais bem representada pela historiografia cronista,
que procura evitar o conceito de um messianismo real e político. Se-
gundo a obra cronista, a função principal de Davi não era ser o fun-
dador de uma dinastia ou o “messias de Yhwh”, mas sim verdadeira-
m ente preparar tudo para a construção do Templo e para o culto
litúrgico (lCr 22-26). Os livros de Esdras e Neemias só se interessam
pelo poder sacerdotal e pela vida espiritual da comunidade, eles não
falam de movimentos messiânicos.
É certo que a política dirigida pela classe sacerdotal não pôde sim-
plesmente eliminar a herança messiânica, mas a teologia oficial limi-
tou-se a dar uma nova interpretação a essa tradição. Para essa outra
releitura poder-se-ia falar, como Hans Strauss, de um “messianismo
sem messias”, ou seja, de um messianismo sem um a figura real de
messias: o rei é Yhwh, e apenas Yhwh! É precisamente nesse meio
que devem ser situados os “Salmos do Reino” (SI 90-99).
“Saltério teocrático”

2-89: "Saltério messiânico” 90-99 100-118

Salmos do Reino Anexos: “Aleluia” etc.

No quadro traçado por esses salmos, o messias nunca aparece.


Só Deus realizará a justiça sobre a terra e criará uma nova ordem do
mundo (ver, por exemplo, SI 99,4.8). Toda a terra participará do louvor
do Senhor cantado por Israel ( c f , por exemplo, SI 96,1). Essaatm os-
fera de entusiasmo impregna todos os salmos do Reino. Em uma
perspectiva escatológica, ela antecipa o que é esperado para o Reino

593
Os Escritos

de Deus que está “próximo” (ver também M t 3,2; 4,17a par.). “O


Senhor reina” (SI 93,1; 96,10; 97,1; 99,1): a forma verbal em hebraico
não exprime um estado, mas sim uma atividade — ela quer afirmar
o dinamismo ligado à fé no Senhor como rei e juiz.
No texto massorético, nenhum dos salmos dessa coleção dos Sal-
mos 90 -99 é intitulado “Salmo de Davi”. O Salmo 90, o primeiro
desse grupo, traz o título “Oração de Moisés, o homem de Deus”.
Assim, o interesse principal se deslocou: Davi não é mais o primeiro
salmista, mas de agora em diante é um célebre predecessor na pessoa
de Moisés, que teria inaugurado esse gênero de literatura sagrada.
Outros salmos de origens diversas foram acrescentados em anexo
(no grupo SI 100-118), provavelmente em momentos diferentes. Em
sua maioria manifestam o mesmo louvor entusiasta, resumido ainda
em um “Aleluia” (= “Louvai o Senhor!”) inicial ou final.
No entanto, não foi exclusivamente em um contexto litúrgico de
louvor que os salmos foram utilizados, mas tam bém no do ensino. E
preciso supor a existência de escolas sapienciais que se ocuparam da
transmissão da herança religiosa, histórica e ética do Antigo Israel.
Mas ao mesmo tem po essas escolas exerceram uma reflexão sobre a
tradição, com o objetivo de considerar os impactos da herança para
uma situação nova e atual. Nessa perspectiva, não apenas se trans-
mitiu, por exemplo, o Saltério sob a forma recebida, mas também
criaram-se textos novos. Para essa “salmografia sapiencial” é preciso
mencionar especialmente o novo quadro colocado em torno do Sal-
tério já existente: ou seja, os Salmos 1 e 119.
“Saltério sapiencial"

I 2-118: “Saltério teocrático”


119

O quadro indica a chave de interpretação proposta por todo o


Saltério. O Salmo 1é uma espécie de proêmio (exórdio) que, à maneira
da sabedoria, ensina os “dois caminhos” (v. 1e 6: derek): o dos “justos”
(sábios, razoáveis, íntegros etc.) e o dos “malvados” (insensatos, dis-
paratados, pecadores etc.). O Salmo 119 é uma obra literária prolixa,
pois é, de longe, o mais extenso de todos os salmos: compreende

594
Salmos

176 versículos, reunidos em 22 estrofes correspondentes às 22 letras


do alfabeto hebraico. Sua forma estilística, que corresponde à de um
“acróstico alfabético”, é muito sofisticada: cada estrofe é composta
de oito versículos que começam pela mesma consoante. Seu tem a
principal corresponde ao do Salmo 1: “Felizes aqueles cuja conduta
[dèrèk] é íntegra e que andam na Lei do Senhor” (119,1). Ao longo des-
se salmo, a ideia de ensino é amplamente desenvolvida; os termos
desse campo linguístico são extrem am ente numerosos. Essa outra
releitura da tradição sálmica retom a fielmente a intenção de fazer
o louvor de Deus, venerado desde então como o m estre supremo
(SI 119,102; ver tam bém Jó 36,22).
Outros salmos acrósticos (SI 37; 111; 112), com forte acento sa-
piencial (SI 37; 73; 112), provêm certam ente do mesmo meio de
“sal- mografia sapiencial”. Não se deve excluir que tenham sido
inseridos no texto recebido a fim de chegar a uma coletânea de 120 (12 x
10) salmos. Uma vez que o segundo salmo-quadro (o atual SI 119) atesta
uma predileção pela simbologia dos números (22 x 8 versículos), e
que o Salmo 116 era provavelmente contado como dois salmos primi-
tivamente distintos (cf a tradução grega [LXX]: SI 116,1-9 e 116,10-19),
obter-se-ia, dessa maneira, efetivam ente o número 120 para esse
“Saltério sapiencial”. Como as 12 tribos representam todo o povo de
Israel e os 10 mandamentos a totalidade do ensinamento divino, esses
120 salmos poderíam pretender resumir o essencial de toda a tradição
sagrada. Com essa simbólica de totalidade, a redação do Saltério
sapiencial reivindicava com toda verossimilhança ter estabelecido a
forma definitiva e quase “canônica” dessa coleção (cf Dt 4,2; 13,1).
Todavia, a história do processo redacional ainda não havia chega-
do ao seu termo. Toda uma pequena coleção foi acrescentada, a dos
“cantos das subidas” (ou “salmos de peregrinação”): Salmos 120-134.
Visivelmente, os responsáveis por esse acréscimo não desejaram
que o Saltério terminasse com uma peroração sapiencial, muito artís-
tica e individualizante (SI 119), mas quiseram acentuar os vínculos
indispensáveis com o Templo, seus servidores e o conjunto da comu-
nidade cultuai. Além dessa coletânea dos Salmos 120-134, em que
cada poema é caracterizado por um título idêntico, outros salmos

595
Os Escritos

foram inseridos — provavelmente pelos mesmos redatores — e co-


locados sob uma autoridade “davídica” (SI 138-144; ver igualmente
SI 137 na LXX). Para corrigir o início do “Saltério sapiencial” (SI 1,1:
“Feliz o h o m e m ...\”), esse “Saltério litúrgico” termina com uma reto-
mada corretora, repetida: “Feliz o p o v o ...\” (SI 144,15). Com o
número de 144 salmos (= 121 x 12), esse Saltério chega assim a ir
mais longe em sua simbólica numerária (ideia de totalidade), já expressa
pelo número 120 no Saltério sapiencial. Depois disso, os Salmos 145-150
formam um grande final em “Aleluia” , em analogia com o final ante-
rior, o dos Salmos 111-117.
“Saltério litúrgico”

1-119: "Saltério teocrático” 120-134 135-144 145-150

“Salmos de Anexos: Grande final


peregrinação” “Salmos de” em “Aleluia”
David

C ertam ente continuou-se a criar novos salmos, mas estes não


obtiveram mais um estatuto canônico. O Saltério da Bíblia grega
(LXX) compreende um salmo suplementar, porém está claramente
indicado como excluído do computo. O livro dos Salmos canônico
(considerado de origem “davídica”) estava fechado. Novos textos
poéticos foram reunidos em um livro à parte: os “Salmos de Saio-
m ão”. Essa coletânea de dezoito salmos, contudo, não encontrou
um reconhecim ento geral e definitivo como livro canônico. Mencio-
nemos ainda os hinos de Qumran, chamados “H ôdayôt " , dos quais
uns trinta foram encontrados em rolos infelizmente muito danifica-
dos. Para os comentaristas cristãos, está igualmente comprovado
que os salmos eram cantados (cf por exemplo ICor 14,26), quer os
recebidos da tradição, quer os poemas recém-concebidos (cf por
exemplo F1 2,6-11).

4 . O S A L t é r io C o m o Liv ro BíBLiC o e n t r e o s o U t r o s

Em um longo processo, as diferentes coleções de salmos foram


dessa forma transformadas em “Saltério”, (a) visto desde então como

596
Salmos

uma unidade literária e (b) atribuído a um único autor, Davi. Embora


não correspondam à história da formação do texto, como vimos, es-
ses dois aspectos influenciaram profundamente a leitura dos salmos.
(a) Entre os outros textos canônicos, o livro dos Salmos é con-
siderado um docum ento único da “resposta” em palavras pela qual
o homem se conforma à situação dialógica da relação com Deus
( W E S T E R m A N N ). A unidade literária é, pois, encontrada nessa situa-
ção de “oração”, que pode se exprimir sob formas muito diferentes.
Esse entendim ento reflete-se bem na assinatura das "Orações de
Davi” (SI 72,20). Todavia, o título do livro bíblico dos Salmos como
um todo prefere, segundo a tradição judaica, uma definição mais
restrita: fhilfím , “os louvores”. O essencial da “resposta” do homem
deveria ser, portanto, cantar a glória de Deus. Segundo essa leitura
dos salmos, a atitude de lamentação ou de queixa, por exemplo, seria
uma fase provisória na vida do fiel; através de todas as dúvidas e
provações, o fiel voltaria finalmente ao louvor de Deus, assim como
o Saltério term ina com o júbilo repetido dos “Aleluia” .
Essa alegria entusiasta se expande sobretudo em uma perspectiva
escatológica: “Quem semeou com lágrimas colhe na alegria!” (SI 126,5;
cf Ap 19,1-8; 21,4). A leitura principalmente hínica e escatológica do
livro enquanto tal terá impactos evidentes sobre a interpretação dos

Músicos prisioneiros — cf Salmo 137

597
Os Escritos

salmos particulares; ela faz de modo incontestável parte da história


desse escrito bíblico. Entretanto, é preciso sublinhar que a suprema-
cia desse tipo de leitura correría o risco de restringir a diversidade da
vivência hum ana que se exprime nos salmos. Além disso, uma etapa
da história das releituras não deveria prevalecer sobre as outras, tais
quais a interpretação messiânica (ver o “quadro” formado por SI 2 e
89) ou a sapiencial (ver o “quadro” de SI 1 e 119).
(b) "Tal diversidade se delineia também para o entendimento do “au-
tor” desse livro bíblico, ou seja, Davi. Ele pode ser o exemplo-tipo do
perseguido (ver, por exemplo, SI 59,1: “... para fazê-lo m orrer”) ou
do pecador que pede o perdão de Deus (ver, por exemplo, SI 51). Em uma
leitura messiânica, ele se torna “filho” de Deus (cf SI 2,7.12; 89,27),
personificação da aliança eterna de Deus com seu povo (cf SI 89,4.
29.35.40). O fato de o Saltério “davídico” compreender numerosos
detalhes que vão além do quadro histórico da época desse rei (assim,
por exemplo, a descrição do exílio, SI 137) levou leitores posteriores,
tanto judeus como cristãos, a atribuir a Davi um espírito profético (ver,
por exemplo, Mt 22,43; Mc 12,36; A t 1,16). As razões da “davidização”
do Saltério são múltiplas, e sua valorização nem sempre foi a mesma
no decurso da canonização dos salmos e de sua interpretação.
Embora indispensável para a exegese, a leitura "canônica” não po-
de nem de longe reivindicar a prioridade sobre as outras leituras do
Saltério, pois na história dos salmos o aspecto de sua “unificação” em
uma coletânea canônica é largamente secundário (e tardio) em relação
à profunda diversidade que caracteriza a origem desses textos poéti-
cos e sua função primitiva.

5. A DIVISÃO EM C IN C O PARTES

O comentário rabínico dos Salmos (Midrash Tehillím) evoca assim


a estrutura do Saltério: “Assim como Moisés deu cinco livros de leis a
Israel, assim Davi deu cinco livros de Salmos a Israel”. Isso significa que
a organização do livro dos Salmos está orientada pela lo rá enquanto
modelo de um texto canônico e litúrgico. No texto bíblico, podemos
muito bem reconhecer essa divisão do Saltério em cinco partes; cada
um dos cinco livros termina com uma doxologia semelhante:

598
Salmos

Livro Doxologia
I. Salmos 1-41 41,14>=‫׳‬
II. Salmos 42-72 19 + 72,18>=‫־‬
III. Salmos 73-89 => 89,53
IV. Salmos 90-106 Φ 106,48
V. Salmos 107-150 =i> 145-150 (?)

Os responsáveis por essa estruturação esforçaram-se para colo-


car as cesuras em função de dados literários evidentes. De fato, o
final de seu primeiro livro (SI 1-41) corresponde ao fim da primeira
coleção davídica (SI 3-41), antes do começo do "Saltério eloísta”,
claram ente diferente do ponto de vista estilístico. A segunda cesura
orientou-se de modo visível para a assinatura de 72,20 a fim de fazer
coincidir o fim do segundo livro com o final das “Orações de Davi”.
A terceira doxologia está colocada depois do Salmo 89, que, no plano
de seu conteúdo, é de uma importância particular (e que, aliás, fecha
o Saltério “messiânico”). A diferença entre o Salmo 89 e o grupo
dos salmos que se seguem (o “Salmo de Moisés” e os “Salmos do
Reino”) é muito clara para que se recom ende uma separação nesse
trecho exato. Para a delimitação dos livros IV e V, as razões são muito
claras: o quinto livro não tem mesmo uma doxologia análoga aos an-
teriores, e podemos nos perguntar se devemos atribuir essa função
doxológica ao conjunto dos Salmos 145-150 (ver o eco das doxolo-
gias em SI 145,21!) ou apenas no Salmo 150.
A intenção de fazer do livro dos Salmos uma “torá de David”, por
assim dizer, é evidente. Ao contrário, no que diz respeito à interpre-
tação concreta dos salmos — isto é, cada salmo considerado indivi-
dualmente — , a contribuição dessa contextualização do Saltério
como torá é mínima, se não desprezível. E certo que a exegese tradi-
cional, muito focada nos detalhes, corria o risco de perder de vista o
Saltério em seu conjunto; entretanto, ao contrário, certas tendências
atuais da exegese “holística” pendem para o outro extremo, com o
risco tam bém de que “os detalhes prejudiquem o conjunto” .6

6. INdIcAçõEs BIBLIo GRÁFIcAs

6,1. Comentários
BEAUcAMP, E. Le Psautier. Paris, 1976, 1979. 2 v.

599
Os Escritos

G IRARd,M. Les Psaumes. Analyse structurelle et interpretation. Montreal/


Paris, 1984-1994; 21996. 3 v.
H ossFELd, F-L , ZENGER, E. HThKAT, 2000 (SI 51-100).
. NEB.AT 40, 2002 (SI 1-50).
KRAUs, H.-J. BK.AT 15/1,6I989; BK.AT 15/2,61989 = Psalms: A Commentary.
Minneapolis (Mn), 1988-1989 (Continental Commentaries). 2 v.
O E m i N G , M . NSK.AT 13/1, 2000 (SI 1-41).
S E Y b o L D , K. HAT 1/15, 1996.

6.2. Estados da pesquisa


G IRARd, M. Lexégèse des Psaumes. E tatde la recherche (1980-1992). In:
GoURGUEs, M., LABERGE, L. (éd.). “De bien des manières”. Larecher-
che biblique aux abords du XXPsiècle: Actes du Cinquantenaire de
I'ACEBAC. Montreal/Paris, 1995, p. 119-145 (LeDiv 163).
NEUMANN, P H. A. (Hrsg.). Zur neueren Psalmenforschung. Darmstadt,
1976 (EdF 142).

6.3. Obras e artigos importantes


AUWERs, J.-M. Le David des psaumes et les psaumes de David. In:
DEsRoUssEAUX, L , V ERMEYLEN, J. (éd.). Figures de David à travers la
Bible. Paris, 1999, p. 187-224 (LeDiv 177).
BEcKER, J. Wege der Psalmenexegese. Stuttgart, 1975 (SBS 78).
C RÜsEMANN, F Studien zur Formgeschichte von Hymnus und Danklied in Israel.
Neukirchen-Vluyn, 1969 (W M ANT 32).
GUNKEL, H., BEGRIch, J . Einleitung in die Psalmen. Die Gattungen der religiõ-
sen Lyrik Israel. Gottingen, 31975.
MoWINcKEL, S. Psalmenstudien. Kristiania, 1922.
NAsUTI, Η. P Defining the Sacred Songs: Genre, Tradition, and the Post-Cri-
tical Interpretation of the Psalms. Sheffield, 1999 (JSOTS 218).
RAVAsI, G. Les Psaumes. Paris, 1993 (adaptação da obra em três volumes por
Robert Michaud).
SEYBoLd, K. Die Psalmen. Eine Einfuhrung. Stuttgart, 2199I.
TOURNAY, R. J. Voir et entendre Dieu avec les Psaumes ou la Liturgie
prophétique du Second/Temple à Jerusalém. Paris, 1988 (Cahiers de la
RB 24).
W EsTERMANN, C. Théologie de I'Ancien Testament. Genève, 220 02 (Le
Monde de la Bible 11).

600

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