Você está na página 1de 8

Introdução ao Livro dos Salmos Página 1 de 8

INTRODUÇÃO AO LIVRO DOS SALMOS


Filipe Dunaway
2 de setembro de 2023

1. O Título do Livro dos Salmos em hebraico é tehillim (‘louvores’), que reflete o uso destes poemas na
adoração judaica. Nosso título português, ‘Salmos’, vem da palavra grega psalmós (= ‘um cântico cantado ao
acompanhamento da harpa’), a qual serve no plural como o título do livro na Septuaginta,1 a saber, Ψαλμοί
(Psalmoi = ‘Salmos’). Ela se encontra também na expressão neotestamentária “no livro dos Salmos” (ἐν
Βίβλῳ ψαλμῶν, Lc 20.42; At 1.20). Da mesma forma, às vezes chamamos o livro de ‘o Saltério’, um termo
derivado do grego psaltérion que significa ‘instrumento de cordas’ como a ‘harpa’. Portanto, estes títulos
refletem o caráter musical dos conteúdos do livro.

2. O Caráter Poético dos Salmos. Desde que os Salmos são uma das maiores coleções de poesia no Antigo
Testamento, junto com os livros de Jó e Provérbios, precisamos considerar algumas das características
salientes da poesia hebraica.2 A poesia do Antigo Testamento é quase exclusivamente lírica (o poeta se
expressa subjetiva e emotivamente) e gnômica (usando máximas, o poeta faz observações gerais sobre a vida,
conduta e sociedade humanas). Não há praticamente nenhuma poesia dramática ou épica, como foi comum
entre os gregos. Em outras palavras, os antigos hebreus nunca escreveram quaisquer poemas longos
(epopéias) sobre os grandes feitos dos heróis como se vê na Ilíada de Homero, nem escreverem poemas
trágicos como fizeram escritores gregos como Sófocles. No entanto, a poesia hebraica sempre tem ritmo, que
transmite o desenrolar da emoção; mas não tem métrica (as linhas não têm um número definido de sílabas,
como frequentemente têm no grego). A rima, que possui um papel muito importante na poesia portuguesa,
evidentemente aparece apenas por acaso nos poemas do Antigo Testamento e, portanto, é muito rara. Afinal, a
característica mais evidente da poesia hebraica é o paralelismo de seus membros. O poema hebraico
normalmente consiste numa série de parelhas de linhas, na qual a segunda linha repete mais ou menos aquilo
que foi dito na primeira linha. Isto se chama de paralelismo sinônimo. Um bom exemplo se vê em Salmo
27.1:

O Senhor é a minha luz e a minha salvação; Observe que a segunda parte deste verso repete a idéia
básica da primeira parte, ainda que muitas das
a quem temerei? palavras sejam diferentes. Chamamos esta variedade
O Senhor é a força da minha vida; de paralelismo de “o paralelismo sinônimo.”
de quem me recearei?

De vez em quando, achamos nos Salmos uma outra variedade de paralelismo, a saber, o paralelismo
antitético, no qual a segunda parte ou linha expressa o aposto da primeira linha. Por exemplo:

Porque o Senhor conhece o caminho dos justos,


mas o caminho dos ímpios conduz à ruína. (Sl 1.6)

1 A Septuaginta é a tradução grega do Antigo Testamento, a qual foi citada frequentemente pelo apóstolo Paulo e outros
autores cristãos da igreja primitiva.
2 Aqui eu estou seguindo S. R. Driver, Introduction to the Literature of the Old Testament, pág. 359-67.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 2 de 8

3. Os “Títulos” dos Salmos Individuais. Antes do próprio texto de um salmo, frequentemente encontra-se
um suposto “título,” que, na realidade é uma nota que foi acrescentada por um antigo editor do Saltério. De
fato, com a exceção de apenas 24 deles, todos os salmos são precedidos por tais anotações. O “título” mais
usado, ocorrendo 73 vezes, é normalmente traduzido “Salmo de Davi” (no hebraico: mizmor le-david). Este é
frequentemente entendido como uma indicação da autoria do poema, mas há outras maneiras de interpretar a
preposição ambígua le nesta frase mizmor le-david. Por exemplo, ela poderia querer dizer que os salmos em
questão pertenciam a uma coleção de canções compelidas por Davi e os músicos de sua corte, as quais
poderiam ter sido escritos por diversas pessoas. De qualquer forma, deveríamos perguntar por quê Davi foi
associado assim com tantos salmos no Saltério. Uma parte da resposta a esta pergunta pode ser achada nas
primitivas fontes históricas que nos informam sobre as habilidades musicais e poéticas do rei Davi: ele sabia
tocar bem a lira ou harpa (1 Sm 16.18; Am 6.5); ele compôs uma bela elegia sobre Saul e Jônatas (2 Sm
1.19-27) e outra sobre Abner (2
Desenho esquemático de um antigo kinnor, um instrumento
Sm 3.33-34); finalmente, no tocado por Davi e outros músicos da época do Antigo
Testamento. O termo hebraico kinnor pode ser traduzido: “lira,
apêndice de 2 Samuel dois poemas alaúde, harpa.” Observe que as cordas dedilhadas pelo músico
passam sobre a caixa embaixo. Pode-se ouvir um cântico
sagrados são atribuídos a este hebraico (HaTikvah) cantado por uma moça enquanto ela toca
grande rei (2 Sm 22 e 23.1-7). um kinnor aqui: : https://www.youtube.com/watch?
v=FxOyt5cV5vo [Fonte: Wikipedia, s.v. “kinnor”]
Posteriormente, o papel musical
de Davi foi enfatizado ainda mais: em alguns dos últimos livros do Antigo Testamento a serem escritos, Davi
se torna o fundador da salmodia ou música do Templo (1 Cr 23.1-5; 25.1-7; 2 Cr 7.6; 29.26, 27, 30; 35.15; Ed
3.10; Ne 12.36). Esta tendência de atribuir cada vez mais papeis a Davi nesta área continuou no período
interbíblico, quando um dos Rolos do Mar Morto atribuiu a Davi a composição de 4,050 cânticos!

É notável que outros grandes líderes do passado são identificados nos “títulos” como autores de alguns dos
salmos: “Salmo de Salomão” (em Sl 72 e 127) e “Oração de Moisés” (Sl 90). Outros comentários
introdutórios no início de certos salmos parecem ser anotações musicais. Veja, por exemplo, a nota ao
cabeçalho do Salmo 22: “Ao regente do coro: segundo a ‘Corça da manhã’,” que provavelmente era o nome
de uma melodia bem conhecida. Tal informação foi provavelmente acrescentada ao salmo a fim de assistir aos
que foram escolhidos para conduzir o coro ou a congregação quando cantaram o hino durante o culto. Nossos
hinários hoje ainda incluem tais anotações como este.

4. As Divisões do Livro dos Salmos. É bem conhecido que a coleção dos salmos que agora temos é
dividida em cinco partes ou ‘livros’ (Salmos 1–41, 42–72, 73–89, 90–106, e 107–150). Isso foi feito
provavelmente para fazer a coleção semelhante aos cinco livros da
Segundo os antigos rabinos, “Moisés deu
Torá ou Pentateuco (que consiste em Gênesis, Êxodo, Levítico, os cinco livros da Torá a Israel e Davi deu
Números e Deuteronômio). Cada uma das primeiras quatro os cinco livros dos Salmos a Israel”
(Midrash Shoḥer Tov, 1.2).
divisões termina com uma doxologia ou bênção, adicionada pelos
editores para ajudar na identificação de cada divisão (Sl 41.13; 72.18-19; 89.52; 106.48). Salmo 150 serve de
conclusão tanto para a quinta divisão quanto para o livro inteiro.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 3 de 8

5. O Saltério como uma Antologia. Para entender corretamente o Saltério, é necessário reconhecer que ele
é, de fato, uma antologia composta de coleções mais antigas de salmos, uma antologia que foi compelida
destas fontes mais velhas para formar “o hinário do Segundo Templo” (isto é, o Templo reconstruído em
Jerusalém após a volta do exílio (cerca de 515 a.C.). Segue-se uma lista destas coleções antigas que foram
incorporadas na nova antologia que chamamos de Saltério:

(a) Salmos Davídicos. A maior destas fontes foi, com certeza, a coleção dos 73 salmos associados com
Davi, mas havia outras compilações incluídas no Saltério.

(b) Cânticos de Subidas (ou de Degraus). Neste grupo de 15 salmos (Sl 120 até 134), cada um tem o
sobrescrito “Canto das subidas.”3 Estes eram cânticos entoados pelos peregrinos que, saindo de vários
lugares no país, estavam peregrinando rumo ao monte do Templo em Jerusalém. Em outras palavras,
estavam cantando ao subir para o monte sagrado em Jerusalém.

(c) Salmos atribuídos aos Músicos do Templo. Existem três subdivisões neste grupo: (i) os “salmos dos
filhos de Corá” (Sl 42–49, mais 84, 85, 87 e 88); (ii) os “salmos de Asafe” (Sl 50 e 73–83); e (iii) o
único “salmo de Hemã” (Sl 88). No livro de Crônicas, Davi designa estes três sacerdotes (Corá, Asafe e
Hemã) como seus ministros da música, e parece que cada um deles fez sua própria coleção de salmos
para ser usada nos cultos no Templo em Jerusalém.

(d) Salmos da Realeza Divina (Sl 93–99). Nenhum destes salmos tem um “título” ou sobrescrito; contudo,
eles foram colocados juntos no Saltério e todos eles tratam da mesma idéia básica, que o Senhor
(Iahweh) é o Rei. Eles celebram Seu reinado sobre Israel e o mundo: “O Senhor reina! Regozige-se a
terra; … justiça e eqüidade são a base do seu trono” (Sl 97.1-2).

(e) Hinos de Louvor. Na parte final do livro dos Salmos há um grupo distintivo de hinos que se abrem ou se
fecham com a expressão hebraica “hallelu-yah” ( Hy-Wll.h = “Aleluia,” que significa “Louvai Yah”
[‘Yah’ é uma forma abreviada de Yahweh ou Iahweh]4 (Sl 104–106; 111–113; 135; 146–150). Há, com
certeza, outros ‘hinos de louvor’ no Saltério, mas o estilo e vocabulário dos hinos neste grupo sugerem
que eles eram adições tardias ao Saltério e foram escritos especificamente para a adoração coletiva.

(f) O “Saltério Eloista” (Sl 42–83). Estudiosos identificaram outra coleção de salmos que têm uma
tendência forte para usar o nome divino Elohim (‘Deus’) ao invés do nome mais comum de YAHWEH
(‘o Senhor’). Estes salmos empregam Elohim cinco vezes mais frequentemente do que Yahweh, ao
passo que os outros salmos empregam Yahweh 95% das vezes. Alguns destes hinos Eloístas poderiam
ter sido escritos em Israel, o reino do norte, visto que há evidência de que o nome divino Elohim foi
preferido no norte. – Esclarecimento: Por um lado, o nome Elohim é o termo geral ou genérico para

3“Canto das subidas” é o sobrescrito dos Salmos 120–134 em A Bíblia – Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo:
Paulinas/Edições Loyola, 1995. Outras traduções dos Salmos têm “Cântico de degraus” (AMT) ou “Cântico de romagem”
(ARA2).
4 Aleluia[ Hy"-Wll.h]
(ἀλληλουιά)] é uma “transliteração da jaculação litúrgica hebraica hallelü-yâh = ‘louvai vós Yah’,
que ocorre vinte e quatro vezes no Saltério.” Assim afirma H. L. Ellison, “Aleluia,” Novo Dicionário da Bíblia, Vol. I,
pág. 48.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 4 de 8

‘deus’ ou ‘Deus’ nos idiomas semitas tais como hebraico. Por outro lado, YAHWEH é o nome pessoal do
Deus que se revelou a Moisés e estabeleceu a aliança com os israelitas no Monte Sinai.

6. A Datação dos Salmos. Os estudiosos têm opiniões diferentes quanto à data de composição dos
componentes do Saltério, mas alguns diriam que certos salmos se originaram no tempo da monarquia
(especialmente se eles pensam que Davi, de fato, era o autor de alguns destes escritos). Entretanto, outros
salmos contém declarações que evidentemente os colocam em tempos muito depois da época de Davi. Por
exemplo, eles podem falar acerca do Templo como um prédio que já existia, que obviamente não poderia ser
no tempo de Davi porque foi Salomão, filho de Davi, que construiu o Templo em Jerusalém depois da morte
de seu pai. Ainda outros salmos aludem ao exílio ou ao retorno do exílio, eventos que ocorreram séculos após
o reino de Davi. O uso de palavras aramaicas ao invés de hebraicas, que é um sinal de uma data tardia, é
também um fator importante na datação de escritos bíblicos como os salmos. Então, pode-se concluir que “a
maioria dos estudiosos críticos provavelmente concordaria que “O livro dos Salmos, em sua forma mais ou
menos atual, foi plausivelmente formado antes do fim do período persa, no final do século IV a.C.5

7. Os Tipos (ou Gêneros) de Salmos. Desde o começo do século XX, tem havido muita ênfase na tarefa de
identificar o gênero ou classe literário de cada um dos salmos. Existe bastante variedade nos poemas que
compõem este livro; portanto é útil desenvolver uma classificação dos gêneros ou tipos que são
exemplificados no Saltério. Aqui apresentamos os gêneros ou tipos principais, mas existem outras maneiras de
classificá-los.6 Além disso, muitos salmos são ‘mistos’, a saber, eles têm caraterísticas de dois ou mais gêneros
e, consequentemente, podem ser colocados em mais de uma das seguintes categorias.

a) Lamentos: Estes salmos são apelos de pessoas aflitas para o apoio divino. Lamentos podem ser feitos
pelo indivíduo ou pela comunidade e, por isso, podem ser escritos na primeira pessoa singular ou
plural. Eles são chamados, respectivamente, de lamentações individuais e lamentações coletivas. Os
lamentos são o tipo que ocorre mais frequentemente, com mais de 60 exemplos no Antigo
Testamento. Exemplos das Lamentações individuais: Sl 3; 5; 7; 13; 22; 25; 38; 51; etc. Lamentações
coletivas: Sl 12; 44; 58; 60; 74; 90; etc. Os lamentos normalmente incluem a maioria, se não todos,
dos seguintes elementos: (i) uma descrição do sofrimento; (ii) um pedido para o apoio divino; (iii) a
maldição das pessoas consideradas responsáveis pelo sofrimento; (iv) uma expressão de confiança
que Deus ouça o pedido; (v) uma declaração de inocência ou confissão de culpa; e (vi) um voto de
agradecimento a Deus apropriadamente por sua antecipada resposta positiva.

b) Cânticos de Confiança: Os salmos neste grupo expressam confiança no apoio divino em situações
difíceis. O salmista confia plenamente em seu Deus: “Só ele é a minha rocha, e a minha salvação, e o
meu alto refúgio; não serei jamais abalado” (Sl 62.6). Cânticos de confiança individuais incluem: Sl
11; 16; 23; 62; 91; 131.

5Michael D. Coogan, The Old Testament: A Historical and Literary Introduction to the Hebrew Scriptures (New York:
Oxford University Press, 2006), p. 460.
6Uma alternativa ao nosso esquema, a qual é bem mais detalhada, se encontra em: E. Sellin e G. Fohrer, Introdução ao
Antigo Testamento. Vol. II. (São Paulo: Edições Paulinas, 1977), pág. 414-439.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 5 de 8

c) Cânticos de Agradecimento (Ação de graças): Estes são expressões de gratidão pela assistência divina
que já foi concedida ou será concedida a um indivíduo ou à comunidade toda, neste último caso
frequentemente por uma vitória militar ou uma colheita abundante. Cânticos de agradecimento
individuais incluem: Sl 30; 92; 116; 138; etc. Cânticos de agradecimento coletivos: Sl 65; 67; 69;
75; 107; 117; 118; 136; 145; 146; 150.

d) Hinos: Estes são cânticos de louvor a Deus por vários motivos, e então vemos vários subtipos:

i. Hinos de Realeza Divina (Sl 29; 47; 82; 93; 96–99): Nestes hinos o reino de Iahweh (o Senhor)
sobre o céu e a terra é celebrado. Alguns deles contém uma declaração que é usualmente traduzida
“O Senhor reina” (Sl 93.1), mas pode ser traduzida também “O Senhor é rei” (TEB) (veja: Sl 47.8;
96.10; 97.1; 99.1). Às vezes estes hinos são chamados “Hinos de entronização,” porque pensa-se
que eles foram escritos para uma alegada Festa de Entronização de Iahweh, que teria sido
celebrada anualmente em Jerusalém. Esta teoria é uma tentativa interessante de achar um local
para estes hinos no antigo culto Israelita, mas o problema maior para esta idéia é que nunca foi
provado que tal “festa” havia realmente existido.

ii. Hinos sobre a Criação: Neste pequeno grupo, a ênfase cai sobre a ação criativa de Deus ao trazer à
existência todas as coisas no universo. Às vezes, tais hinos usam uma linguagem baseada na
mitologia do Oriente Médio, que foi o contexto cultural dentro do qual Israel nasceu como uma
nação. Os dois hinos principais deste tipo são Salmos 8 e 104, mas outros podem ser incluídos,
com ressalvas: Sl 19; 33; 147; 148.

iii. Hinos celebrando a Ação de Deus na História: Os doze salmos neste grupo lembram aos
Israelitas dos atos divinos na história sagrada do povo de Deus. Os assuntos abordados se
concentram na ação de Deus em prol dos patriarcas, na libertação do povo no êxodo do Egito, e
na escolha divina de Davi e Sião (cf. Sl 100, 136).

iv. Hinos de Peregrinação (ou Romaria). Parece que até seis hinos foram desenvolvidos para serem
usados pelos peregrinos enquanto andavam para algum local sagrado como Jerusalém. (Sl 24; 84;
95; 100; 118; 122). Entretanto, quase todos estes hinos podem ser classificados diferentemente,
pois possuem também características de outros gêneros.

e) Liturgias: Os salmos nesta categoria têm características que sugerem que foram desenvolvidos para serem
usados no culto público. Alguns foram obviamente usados em procissões (Sl 24) ou peregrinações (Sl
122); outros evidentemente incluem leituras responsivas conduzidas por um sacerdote ou profeta (Sl 24;
15; 136). Há evidência de que o Sl 81 fez parte da liturgia de uma festa chamada do “dia do sonido de
trombetas” em que se fizeram “expiação” pelo pecado do povo (cf. Nm 29.1-6). Parece que Sl 81.3 se
refere a esta festa, ao dizer: “Tocai a trombeta pela lua nova, pela lua cheia, no dia da nossa festa.” Os
Salmos 50 e 81 se assemelham ao “processo pactual” que se encontra nos escritos proféticos e, por isso,
poderiam ter sido usados numa cerimônia para a renovação do pacto ou aliança com Deus.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 6 de 8

f) Salmos Reais: Estes poemas tratam, de várias maneiras, do rei atual: há um hino para o casamento do rei
(Sl 45); há também hinos de coroação (Sl 2; 72; 110), um hino que pede a vitória militar (Sl 20), assim
como hinos de agradecimento pela vitória (Ps 18; 21). Um subgrupo especial dos salmos reais apresenta a
ideologia real sobre a aliança de Deus com Davi (Sl 78; 89; 132): “Fiz aliança com o meu escolhido e
jurei a Davi, meu servo: Para sempre estabelecerei a tua posteridade e firmarei o teu trono” (89.3-4).
Intimamente relacionado a este último subgrupo há seis Hinos de Sião que falam sobre a escolha divina de
Jerusalém e Sua proteção da cidade (Sl 46; 48; 76; 84; 87; 122).

g) Salmos Sapienciais: O Saltério também inclui 13 salmos que consistem em ‘ditos sapienciais’ do tipo que
se encontra no livro de Provérbios. Ao invés de concentrar-se na adoração de Deus, como fazem a maioria
dos salmos, estes são poemas didáticos que destacam a necessidade da sabedoria para o dia a dia das
pessoas. Os autores dos salmos sapienciais estavam preocupados em providenciar bons conselhos éticos
aos leitores ou ouvintes. Veja estes exemplos: Sl 1; 34; 37; 49; 112; 128.

h) Salmos sobre a Torá (Lei): Três salmos se concentram na Torá, a lei ou instrução divina registrada nos
cinco ‘Livros de Moisés’ (Sl 1; 19; 119). Os leitores que obedecem os ensinos da lei recebem a promessa
de recompensas.

Para ilustrar algumas das idéias discutidas acima e demonstrar como se pode analisar e interpretar um
salmo, decidimos apresentar um breve estudo do Salmo 117, que é conhecido como “o menor hino do
Saltério.”

Uma Chamada Universal à Adoração


Salmo 117, “O menor hino do Saltério”

1 Louvai a Iahweh todas as nações! O idioma hebraica manifesta uma economia de


expressão que não se encontra no português e
outras línguas de origem europeia. Temos um
exaltai-o todos os povos! exemplo disso no verso 2 deste salmo. Nas
primeiras duas linhas do verso 2, não há verbo
2 Porque a sua benignidade (é) grande para connosco, nenhum no texto hebraico. Portanto, o tradutor
precisa acrescentar os verbos “é” e “dura” para
e a verdade de Iahweh (dura) para sempre. fazer bom senso dele no português. Estes
acréscimos são perfeitamente legítimos, porque o
Louvai a Iah. tradutor deve seguir as regras do seu próprio
idioma ao tentar expressar em sua língua o
sentido do original.

Analise Literária do Salmo 117

Quanto ao gênero (tipo) do Salmo 117, ele deve ser classificado como um cântico de agradecimento (ação
de graças) coletivo (veja §7, c, acima). Sabemos que é coletivo porque os dois imperativos estão no plural
(‘Louvai’ e ‘exaltai’) e os vocativos também estão no plural (‘todas as nações’ e ‘todos os povos’).
Introdução ao Livro dos Salmos Página 7 de 8

No primeiro verso temos um bom exemplo do paralelismo sinônimo, pois a mesma idéia se expressa nas
duas linhas do verso, ainda que as palavras usadas sejam diferentes (veja §2). Podemos dizer que o segundo
verso também exemplifica o paralelismo ‘sinônimo’, mas somente com ressalvas: (1) A primeira ressalva é
que as palavras traduzidas “benignidade” (chesed) e “verdade” (emet) não são exatamente sinônimos, mas
ambas denotam aqui modos pelos quais Deus se relaciona beneficamente com seres humanos. Chesed pode
ser traduzido: “solidariedade, lealdade, amizade, comprometimento; fidelidade, bondade, favor, benevolência
ou piedade”.7 Emet pode ser vertido: “firmeza, confiança; constância; lealdade, fidelidade; ou verdade.”8 (2)
A segunda ressalva é que a primeira linha (a sua benignidade é grande para connosco) fala da grande força da
fidelidade divina, enquanto a segunda linha (‘a verdade de Iahweh dura para sempre’) fala da interminável
duração de sua verdade ou fidelidade. Portanto, concluímos que temos uma variedade de paralelismo que é
quase ‘sinônimo’, mas na realidade a segunda linha acrescenta algo que é um pouco diferente, assim
enriquecendo a mensagem teológica do texto. O exegeta precisa prestar atenção a tais detalhes a fim de
entender bem o que o autor quis comunicar aos ouvintes.

No início do segundo verso, há uma palavrinha que é muito importante para o intérprete, a saber, o termo
hebraico ki (‘porque’) que introduz o motivo ou razão para louvar ao Deus de Israel. Então esta palavra ki
explica como as duas partes do salmo estão relacionadas: a primeira parte (v. 1) é um convite duplo para
adorar a Iahweh, ao passo que a segunda parte (v. 2) é uma explicação dupla porque se deve adorá-lo.

Notem que este poema começa com a exortação “Louvai a Iahweh” (= Louvai ao Senhor) e termina com a
exortação “Louvai a Iah.” Visto que a palavra “Iah” é uma forma abreviada de “Iahweh,” estas duas
exortações são praticamente iguais. Portanto, temos aqui um exemplo da figura retórica chamada inclusio
(inclusão) ou enquadramento verbal, isto é, a “repetição das mesmas expressões no início e no fim do
texto.”9 A função básica da inclusão é delimitar uma unidade do texto, identificando onde começa e onde
termina. Mas ela pode também identificar um tema importante no trecho, que certamente é o caso neste salmo.
O salmo todo foi desenhado para motivar as pessoas a “louvar ao Senhor;” este é o tema central para o qual
todas as outras expressões e idéias no salmo apontam.10

Agora, vamos considerar a estrutura do Salmo 117 e as implicações que ela tem para determinar a
mensagem teológica deste cântico de agradecimento coletivo.

7Nelson KIRST, et al., Dicionário Hebraico-Português & Aramaico-Português (18ª edição. São Leopoldo/Petrópolis:
Editora Sinodal/Vozes, 2004), pág. 73.
8 Ibid., pág. 14.
9Veja Wilhelm Egger, Metodologia do Novo Testamento: Introdução aos métodos lingüísticos e histórico-críticos (São
Paulo: Edições Loyola, 1994), pág. 79.
10 Tremper Longman III, “Inclusio,” in Dictionary of the Old Testament: Wisdom, Poetry & Writings, (Downers Grove,
Il., USA: Inter-Varsity Press, 2008), pág. 323-325.
Introdução ao Livro dos Salmos Página 8 de 8

A Estrutura do “Cântico de Agradecimento Coletivo” Salmo 117


VERSO TRADUÇÃO PORTUGUESA TEXTO HEBRAICO ESTRUTURA

hallelu et-Yahweh,
1a Louvai a Iahweh todas as nações!
kol goyim I. Introdução (v. 1) (exortação para
shabchúhu kol- adorar): usando paralelismo sinônimo.
1b Exaltai-o todos os povos!
ha-ummím
Porque a sua benignidade (é) ki gavar aléynu
2a II. Parte Central (v. 2a, b): ‘Porque’ (ki)
grande para connosco, chasdó introduz os motivos para a adoração
(baseada em Êx 34.6). Observem as
e a verdade de Iahweh (dura) ve-émet-Yahweh cláusulas paralelas de novo.
2b
para sempre. le-olam
III. Conclusão: repete a chamada para
2c Louvai a Iah. hallelu-Yah. adorar do verso 1a, assim formando um
inclusio ou enquadramento verbal.

A Mensagem Teológica do Salmo 117

Podemos imaginar que Salmo 117 foi proferido por um líder no início do culto como convite para a
congregação, a qual foi composta, em parte, de peregrinos de diversos países (“nações” e “povos”). Eles
provavelmente incluíam judeus da dispersão, isto é, judeus que moravam em outros países, em consequência
da queda de Jerusalém aos babilônios em 586 a.C. Contudo, é bem possível que gentios que também
adoravam a Iahweh tenham acompanhado estes judeus que vieram de outras terras. Quando chegaram ao
templo ou, talvez, uma das sinagogas da cidade, teriam ouvido este salmo no começo do culto. Apesar de sua
brevidade, podemos identificar os pontos principais de sua perspectiva teológica.

1. É uma teologia centrada na adoração exclusiva de Iahweh, o Deus pactual de Israel (1a e 2c). Os
adoradores não são chamados para cultuar um dos muitos deuses de um panteão local, como nos outros
países da época. Antes, eles são convocados para prestar culto ao único, verdadeiro Deus nomeado Iahweh
(Javé), o qual havia estabelecido um pacto ou aliança com os descendentes de Israel.

2. É uma teologia toda abrangente ou universal na sua envergadura (v. 1a, b), semelhantemente a Isaías
56.1-8 (veja especialmente Is 56.6-7). Todos os povos e nações do mundo são convidados para prestar
culto ao Senhor junto com seu povo escolhido. Ninguém está excluído; o líder, como porta-voz de Deus,
convida todos para fazer parte da adoração exclusiva de Iahweh.

3. É uma teologia que destaca a atitude e ação favoráveis de Deus para conosco (v. 2a, b). A primeira linha
do v. 2 (‘a sua benignidade é grande para connosco’) fala da grande força da fidelidade divina, enquanto a
segunda linha do v. 2 (‘a verdade de Iahweh dura para sempre’) fala da interminável duração de sua
verdade ou fidelidade. Em outras palavras, o favor ou graça deste Deus não é somente poderosíssimo mas
também dura para sempre. Antes de mais nada, Ele quer e pode salvar todos e incluir todos na sua
interminável comunhão com os redimidos.

Você também pode gostar