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Estudos Bíblicos:

Sapienciais
Material Teórico
Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

Responsável pelo Conteúdo:


Profª Dr.ª Luana Martins Golin
Prof. Carlos Floriano Neto

Revisão Textual:
Prof. Me. Claudio Brites
Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

• Introdução;
• Breve Histórico e Introdução ao Livro De Cântico Dos Cânticos;
• As Questões Místicas e Teológicas do Texto;
• Apresentação e Análise da Estrutura Textual de Cântico dos Cânticos.

OBJETIVO DE APRENDIZADO
· Entender os aspectos simbólicos, culturais e místicos do livro de
Cantares/Cântico dos Cânticos.
Orientações de estudo
Para que o conteúdo desta Disciplina seja bem
aproveitado e haja maior aplicabilidade na sua
formação acadêmica e atuação profissional, siga
algumas recomendações básicas:
Conserve seu
material e local de
estudos sempre
organizados.
Aproveite as
Procure manter indicações
contato com seus de Material
colegas e tutores Complementar.
para trocar ideias!
Determine um Isso amplia a
horário fixo aprendizagem.
para estudar.

Mantenha o foco!
Evite se distrair com
as redes sociais.

Seja original!
Nunca plagie
trabalhos.

Não se esqueça
de se alimentar
Assim: e de se manter
Organize seus estudos de maneira que passem a fazer parte hidratado.
da sua rotina. Por exemplo, você poderá determinar um dia e
horário fixos como seu “momento do estudo”;

Procure se alimentar e se hidratar quando for estudar; lembre-se de que uma


alimentação saudável pode proporcionar melhor aproveitamento do estudo;

No material de cada Unidade, há leituras indicadas e, entre elas, artigos científicos, livros, vídeos
e sites para aprofundar os conhecimentos adquiridos ao longo da Unidade. Além disso, você
também encontrará sugestões de conteúdo extra no item Material Complementar, que ampliarão
sua interpretação e auxiliarão no pleno entendimento dos temas abordados;

Após o contato com o conteúdo proposto, participe dos debates mediados em fóruns de discus-
são, pois irão auxiliar a verificar o quanto você absorveu de conhecimento, além de propiciar o
contato com seus colegas e tutores, o que se apresenta como rico espaço de troca de ideias e
de aprendizagem.
UNIDADE Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

Introdução
O livro conhecido como Cantares, Cantares de Salomão, ou Cântico dos Cân-
ticos é uma pequena, porém grandiosa, obra da Bíblia hebraica, que gerou (e ainda)
gera controversas tanto no mundo judaico como no cristão. Nesta lição, tentaremos
compreender de que modo esse livro foi estruturado e como ele foi recebido nas an-
tigas comunidades israelitas e entre os pais da igreja. Para tanto, abordaremos os te-
mas polêmicos do livro, os quais enfrentaram resistências quanto à sua canonicidade.

Veremos nesta lição que a presente obra foi interpretada e reinterpretada pelos
diversos leitores na história, os quais direcionaram suas leituras em diferentes
frentes: sejam elas literais, simbólicas ou tipológicas. Entenderemos aqui que
Cantares/Cântico dos Cânticos é tanto um livro de amor entre um casal quanto
é a representação mística do casamento entre Deus/Jesus e seu Povo Eleito/Igreja.

Breve Histórico e Introdução ao


Livro De Cântico Dos Cânticos
As diversas possibilidades de títulos do livro em português – Cantares, Cantares
de Salomão, Cântico dos Cânticos, ou até mesmo o “Melhor dos Cânticos”
– provêm do título hebraico Shir HaShirim (‫)שיר השירים‬. A tradução literal em
português seria, de fato, Cântico (Shir) dos Cânticos (HaShirim), contudo, vale
ressaltar que esse recurso hebraico de repetição de uma palavra no singular e
depois no plural (“X de X”, como em “Rei dos Reis”, ou “Vaidade de Vaidades”)
tem como função reforçar, ou intensificar, o sentido de uma palavra. Daí, temos a
tradução possível de “O melhor (ou Maior/o Mais Belo) dos Cânticos”. Com relação
ao título de Cantares, ou Cantares de Salomão, temos dois fatores principais que
corroboram para esse título derivado da Vulgata (tradução latina):
1. a atribuição que a tradição faz ao lendário sábio Salomão como autor de
mais esta obra do cânon – o tema da autoria será abordado mais à frente,
ainda nesta lição;
2. a referência presente logo no primeiro versículo do livro “O mais belo
cântico de Salomão”.
Seu nome vem de 1.1: “Cântico dos cânticos [i.e., o melhor dos cânticos]
de Salomão”. (Um nome alternativo, Cantares, deriva da Vulgata). Cântico
dos Cânticos é colocado em primeiro lugar entre os cinco rolos (Megilloth)
no cânon judaico empregado em ocasiões festivas, sendo designado para
leitura na Páscoa. (LASOR, 1999, p. 557)

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Para facilitar a descrição do título do livro, passaremos a abordar a obra como:
Cântico dos Cânticos.

Vale dizer, porém, que, apesar de tratarmos o livro de Cântico dos Cânticos
dentro do tema de literatura sapiencial, a obra, em si, não é entendida (ou pelo
menos não pode ser classificada) como literatura de sabedoria, a rigor. Grande
parte dos estudiosos defende que os temas característicos de uma obra sapiencial,
tais como: declarações, ditados, conselhos, exortações, etc. não estão presentes
no livro. Por outro lado, há quem considere o Cântico dos Cânticos como uma
cena proverbial estendida: “O livro é uma lição objetiva, um provérbio estendido
ou uma parábola (mãshãl), que ilustra as ricas maravilhas do amor humano, uma
dádiva do amor de Deus” (LASOR, 1999, p. 565). Nessa perspectiva, Cântico dos
Cânticos apenas explora os argumentos sapienciais a respeito do amor, dentro de
um relacionamento.

A ordem do livro no Tanakh, na Septuaginta, na Vulgata e nas


traduções modernas cristãs
A ordem do livro nas diferentes tradições da Bíblias também ocorre de maneira
diferente, como podemos observar a seguir:
• Na Bíblia Hebraica, o livro aparece logo após Rute e antes de Eclesiastes;
• Na Septuaginta (grego) e na Vulgata (latim), Cântico dos Cânticos está depois
de Eclesiastes e antes de Sabedoria de Salomão. Em grego, o título é Asma
Asmaton (ασμα ασματων), que também tem o significado de cântico (ασμα); em
latim, o termo é bem próximo do português: Canticum Canticorum;
• Nas traduções das línguas vernáculas, como o português, o livro está entre
Eclesiastes (obra sapiencial) e Isaias (obra profética).

Autoria e datação
A autoria do livro Cântico dos Cânticos, assim como ocorre em outras obras
da Bíblia, é de difícil precisão. A tradição atribui a Salomão a autoria desse e, por
essa razão, posiciona essa obra entre os livros sapienciais; contudo, há indícios
suficientes que atestam justamente o contrário.

Um dos motivos que colocaram Salomão como o autor do livro foi o fato de a obra
conter referências diretas ao seu nome (1.1; 3.7,9,11). Em 1.1, por exemplo, temos
um caso semelhante ao problema de autoria que se levanta em Salmos. Vejamos:
• No texto hebraico de 1.1, há a seguinte expressão, que traduzimos normalmente
por Cântico dos Cânticos (“O melhor, ou o mais belo”) DE Salomão. O que

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UNIDADE Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

traduzimos por “DE” provém da partícula hebraica le (‫)ל‬, a qual pode significar:
“para”, “por”, “à maneira de”, “segundo o padrão de”, ou às vezes “para uso
de”, e não, necessariamente, implica um “DE” autoral:
[...] há outras interpretações possíveis: “para” ou “ao estilo de Salomão”.
A habilidade de Salomão como compositor de cânticos é conhecida em
razão de 1 Reis 4.32 (cf. SI 72, 127), mas seu relacionamento com esses
poemas de amor é obscuro. É difícil justificar as tentativas de ajustar o
amor e a lealdade aqui expressa aos padrões salomônicos de casamentos
e concubinatos políticos (veja 1 Rs 11). (LASOR, 1999, p. 558)

• Apesar de alguns estudiosos não descartarem o fato de que certos poemas


de Cântico dos Cânticos podem ter sido usados no período de Salomão,
os textos mais antigos que temos hoje apresentam um vocabulário que não
corresponde historicamente ao hebraico do período de Salomão:
Os supostos empréstimos de palavras persas e gregas, o emprego quase
uniforme da forma de pronome relativo característica do hebraico mais
recente e de palavras e frases que refletem influência aramaica indicam,
mas não provam que a edição final, se não a própria composição, foi
posterior a Salomão. (LASOR, 1999, p. 558)

• Muitos estudiosos acreditam que as referências a Salomão sejam acréscimos


posteriores ao texto original.

Para muitos críticos, Cântico dos Cânticos não é uma obra única, mas um
conjunto de poemas de amor, organizado num período posterior. Entretanto, vale
ressaltar que, mesmo nessa hipótese, o livro compõe uma unidade literária, que
está focada no relacionamento amoroso de um casal:
[...] se trata de uma coleção de vários poemas de amor individuais, uns mais
curtos, outros mais longos, reunidos em um “livro” porque compartilham
os temas comuns do gênero “Poesia de Amor”. [...] há, porém, uma
coesão interna ao redor do tema central da excitação e entrega mútua dos
apaixonados. (CARR, 1989, p. 205-206)

A datação dos poemas de Cântico dos Cânticos é muito complexa, pois o texto
que chegou até nós contém poucas referências históricas conclusivas, que pode-
riam nos guiar para o período de sua produção. Entretanto, ainda assim, podemos
elencar alguns pontos importantes relacionados à datação:
• Como o livro contém palavras de origem aramaica e grega (jônica), alguns
estudiosos tendem a localizá-lo no período de dominação helênica da região da
Palestina (330 a.C). Entretanto, o impacto das línguas aramaicas e gregas não
é exclusivo dessa época. As monarquias israelitas já estabeleciam comércios
com os povos falantes de aramaico e grego, antes de 330 a.C;

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• Palavras de origem persa e algumas descrições sobre a glória de Salomão
são características relevantes, para que alguns críticos identifiquem o livro no
período de dominação Persa da Palestina (entre Neemias e o ano de 350 a.C);
• Para outros analistas, a glória do reinado de Salomão descrita no livro não
está distante da realidade de sua época. Eles entendem que os poemas podem
pertencer ao período de Salomão, com compilação de redator(es) final(is),
numa época próxima ao exílio babilônico:
Ainda que o próprio Salomão provavelmente não tenha sido o autor, boa
parte do ambiente e do tom reflete sua época. Assim como Provérbios, o
núcleo ou centro de Cântico dos Cânticos pode ter sido transmitido (talvez
oralmente), aumentado por um editor anônimo inspirado e dele recebido sua
forma atual. Por volta do período do exílio, ele teria organizado e colecionado
cânticos de amor tradicionais israelitas. (LASOR, 1999, p. 558-559)

• Fragmentos de Cântico dos Cânticos encontrados nos manuscritos de Qumran


excluem qualquer data posterior a 200 a.C.:
Eruditos mais críticos têm argumentado que os poemas teriam sido
escritos talvez no quarto, ou no terceiro século a.C. A presença de quatro
fragmentos de Cantares entre os Rolos do Mar Morto, de Qumrã, adverte-
nos contra a opção de uma data tão recente. (CARR, 1989, p. 180)

• Há uma linha de estudos que defende o livro de Cântico dos Cânticos como
originário de um culto ritualístico antigo, anterior, inclusive, ao período patriar-
cal no Egito (3000 a 2000 a.C.).

De onde surgiu o livro Cântico dos Cânticos?


A forma literária utilizada nessa obra não é incomum no mundo antigo. As
literaturas da Babilônia e do Egito já faziam uso das formas apresentadas nesse
livro. Entretanto, como vimos no tópico anterior a respeito de autoria e datação,
não há concordância com relação à origem dos poemas. Podemos, contudo,
elencar as seguintes questões sobre o Cântico dos Cânticos:
• Assim como outras poesias de amor antigas, caracteriza-se por: “franqueza,
ternura, tudo isto misturado com ardente expectativa, e descrições eróticas
explícitas, objetivando o amado e a amada” (CARR, 1989, p. 201);
• As relações de Cântico dos Cânticos com as poesias de amor egípcias ocor-
rem tanto pela ausência de elementos cultuais pagãos como pelo uso de voca-
bulários e temas comuns. Por outro lado, a poesia de amor egípcia é marcada
por temas como “caça por esporte, ou como sacrifício ritual de animais selva-
gens; os protagonistas, às vezes, fazem o papel de caça, às vezes de caçador”
(CARR, 1989, p. 201);

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UNIDADE Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

• Apesar da linha de estudos que associa o Cântico dos Cânticos a cultos ritu-
alísticos canaanitas, não encontramos os elementos presentes desses cultos na
obra hebraica, como: rituais de fertilidade, rituais a Baal etc.;
• A bebida alcóolica como um elemento de sedução ou embriaguez é comum
nas poesias de amor do antigo Oriente. Esse fato, porém, não ocorre em
Cântico dos Cânticos, com uma possível exceção de (Ct. 5.1);
• As questões de ciúmes e da fidelidade é outro tema presente nos poemas do
antigo oriente, mas que não tem paralelo em Cântico dos Cânticos. Há,
porém, estudiosos que entendem a existência de dois homens no livro: o rei
Salomão e um pastor. Contudo, essa proposição é questionável no texto.

As Questões Místicas e Teológicas do Texto


Cântico dos Cânticos é um livro, apesar de pequeno, extremamente complexo.
Vimos nos tópicos anteriores as dificuldades que os estudiosos têm em relação a diversas
questões, como: autoria, datação histórica, origem e influências. Os problemas,
contudo, não param por aqui. Essa obra passou por diversos questionamentos até
chegar a nós como um livro canônico e sagrado. Muitos (judeus e cristãos) foram contra
a sua presença no cânon, por causa da forte presença de temas amorosos e sexuais.
A grande questão era: “Como um livro sagrado poderia conter elementos voltados a
sexualidade?”; “Há espaço para esse tema dentro das escrituras inspiradas?”; “Quais
ensinamentos sagrados poderíamos tirar de um livro desses?”.

O fato é que a sexualidade poderia até representar um tabu na sociedade, mas


na Bíblia Hebraica esse fato não era, de forma alguma, presente. O que os textos
bíblicos apresentavam e criticavam de forma ferrenha e explícita eram os atos sexuais
ilícitos. O amor e a sexualidade de um casal nunca foram considerados impróprios:
Freqüentemente se argumenta que tais temas são indignos de serem
tratados nas Escrituras, visto que o foco central da mensagem bíblica está
na redenção do pecado e, por definição, “a sexualidade é pecaminosa”.
Entretanto, mesmo uma leitura superficial do Velho Testamento revela
que tal asserção jamais foi feita pelos escritores bíblicos. Condena-se a
sexualidade ilícita, não a sexualidade em si mesma. (CARR, 1989, p. 196)

Em Gênesis 1, por exemplo, lemos a respeito da criação de seres sexuados (ma-


cho e fêmea) com um proposito claro de (pro)criação. A primeira ordenança divina
de “Sede fecundos, multiplicai-vos, enchei a terra” (Gn. 1.28a) é, praticamente, um
reflexo do ato criador divino, mas que é executado por seres humanos. Nesse sentido:
[...] Cantares é um comentário extenso da história da criação —é expressão
do primeiro cântico de amor registrado na história. [...] O autor do Gênesis

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tira a conclusão óbvia disto: “Por isso deixa o homem pai e mãe, e se une à
sua mulher, tornando-se os dois uma só carne. Ora, um e outro, o homem e
sua mulher, estavam nus, e não se envergonhavam” (Gn. 2:24s). O cumpri-
mento do ato criador está na unidade, no apoio, na abertura de um perante
o outro, e de ambos perante Deus. (CARR, 1989, p. 197)

Outro ponto importante a ser frisado é que, no pensamento hebraico antigo, o


ato de conhecer alguém – yada’ (‫ – )ידע‬está relacionado também ao ato sexual (Gn.
4.1, Rt. 3.14). Assim, a forma mais profunda de conhecimento não ocorre por
meio de discussões teológicas ou filosóficas, mas na relação íntima de amor entre
duas pessoas.

Com base nisso, apesar do apreço que os autores Bíblicos têm pela moralidade
sexual, há na Bíblia um profundo respeito pela relação de amor entre casais. E,
por essa razão, a questão do conhecimento e da sexualidade ganharam na Bíblia
uma dimensão teológica que superou, inclusive, as fronteiras humanas. Essa leitura
transcendente e mística da sexualidade permitiu, por exemplo, a associação do
matrimônio humano com o relacionamento entre Deus e Israel (como no caso de
Oseias); Cristo e a Igreja (Jesus como esposo e Igreja como noiva).

Assim, as dificuldades encontradas para a inclusão do livro de Cântico dos Cân-


ticos no Cânon foram também as razões que permitiram sua entrada.

Rab Akiba, um dos principais nomes do judaísmo e responsável pela aceitação


de Cântico dos Cânticos na Bíblia, assim declarou: “O mundo inteiro não é digno
do dia em que Cântico dos Cânticos foi dado a Israel; todos os Escritos são santos,
e Cântico dos Cânticos é o santo dos santos” (apud LASOR, 1999, p. 557-558).

Figura 1
Fonte: Wikimedia Commons
Explor

O Grande Erudito: Rabi Akiva Ben Yosef: https://goo.gl/8TuzsZ

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UNIDADE Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

As leituras possíveis de Cântico dos Cânticos


Não é incomum ver em sermões de igrejas evangélicas a relação de amor entre
Deus/Jesus e Israel/Igreja ser associada com o livro de Cântico dos Cânticos. As
leituras alegóricas e tipológicas da relação entre os amantes deste livro não são,
contudo, exclusivas de nossos tempos. Desde o judaísmo antigo até os primeiros
cristãos essa leitura esteve presente, numa tentativa de suprimir, inclusive, as expo-
sições sexuais do livro.

Para entendermos melhor essa questão, vejamos as possíveis leituras que podem
ser feitas em Cântico dos Cânticos:
• Leitura alegórica:

A leitura alegórica (do grego – allos, “outro”, e agoreyõ, “falar”, ou “proclamar”)


significa dizer que uma coisa, na verdade, significa outra. Para exemplificar
essa questão, pensemos em Salomão, no livro de Cântico dos Cânticos.
Na leitura alegórica, Salomão não é ele mesmo, mas uma alegoria de Deus
ou Jesus. Essa análise entende que os elementos históricos não passam de
simples meios para a transmissão de uma verdade maior:
O método alegórico tem como ponto básico que determinada passagem
não contém qualquer registro factual, nem é historicamente verdadeiro,
não se refere a algum evento do passado, mas trata-se meramente
de um veículo de alguma verdade espiritual mais profunda. Ignora-
se propositadamente o significado gramatical-histórico do texto, de tal
maneira que aquilo que o autor disse assume o lugar secundário, em
relação ao que o intérprete deseja dizer. (CARR, 1989, p. 183)

Para aqueles que viam com maus olhos as questões sexuais pertinentes ao li-
vro, a leitura alegórica era uma excelente saída, uma vez que era muito difícil
lidar com um livro que, inclusive, não tivesse qualquer menção direta a Deus
ou a temas transcendentes.

Alguns estudiosos tratam Ct. 8.6 como uma referência ao nome de Yahweh (‫)יהוה‬,
Explor

na qual o texto traria a forma abreviada de seu nome “labaredas de Yah” – Shal.
he.be.te.YAH (‫)שלהבתיה‬.

• Leitura tipológica:

Nessa leitura, determinado elemento existe a partir de um padrão. Um sentido


novo é atribuído para uma palavra ou ideia, sem excluir o seu sentido inicial.
Aqui, ao contrário da alegoria, não se despreza o fato histórico, nem o princípio

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original do texto. Em outras palavras, Salomão pode ser tanto ele mesmo
como um tipo de Deus ou Jesus:
A interpretação típica não provê um sentido “diferente” que substitui o
sentido que o texto parece apresentar, porém, dá uma dimensão adicional
ao significado já presente no texto. Isto se assemelha ao assim chamado
“cumprimento duplo” das profecias messiânicas do Velho Testamento.
(CARR, 1989, p. 186)

• Leitura dramática:

Há estudiosos que entendem Cântico dos Cânticos como um tipo de drama


(a grosso modo, algo equivalente a uma peça de teatro). Nessa concepção, a
obra teria sido produzida para ser encenada ou mesmo cantada:
Tais propostas abrangem desde a expansão do tema “festival de entro-
nização”, passando pela identificação do Cântico com um remanescente
expurgado de um ritual cúltico, que celebraria o casamento sagrado de
uma deusa com o rei, até o imaginoso tratamento de oratório, de Seer-
veld. (CARR, 1989, p. 194)

Por outro lado, Cântico dos Cânticos carece de uma série de elementos per-
tinentes ao drama, como: progressão narrativa, estrutura definida de começo
meio e fim, desenvolvimento de temas, caráteres, conflitos (exceto brevemente
em 3.1-4; 5.2-7), entre outros.
• Leitura natural ou literal:
Nesta leitura, Cântico dos Cânticos é lido como um conjunto de poemas que
tratam de amor, sentimentos e sexualidade. Se retomarmos o exemplo anterior
de Salomão, nesta perspectiva, ele é, simplesmente, um homem apaixonado
que se relaciona com sua amada.
O paradoxo germinal do Cântico é a união de duas pessoas por intermédio
do amor. Os amantes buscam um ao outro por meio do mundo e da
linguagem que os separa e envolve. O corpo é o meio dessa busca e é o
limite entre o mundo e o eu. (ALTER, 1997, p. 328)

Os analistas que defendem essa visão têm o seguinte tipo de argumento:


Há inúmeras outras passagens em que os relacionamentos Senhor/Israel,
Cristo/Igreja estão bem definidos. Não é essencial para estas doutrinas
que Cantares seja interpretado desta maneira; contudo, se Cantares for
entendido primariamente nestes termos, perderemos o claro ensino
da Bíblia que nos ajuda a lidar eficientemente com nossa natureza de
criaturas. (CARR, 1989, p. 197)

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Apresentação e Análise da Estrutura


Textual de Cântico dos Cânticos
Apesar da complexidade de Cântico dos Cânticos, é possível destacar na obra
algumas seções e divisões. Segundo Carr (1989), em seu comentário de Cantares,
podemos dividir o livro em 4 seções, conforme a seguir:
• Parte1 – Ct 1.2 - 2.7: Antecipação;
• Parte 2 – Ct 2.8 -3.5: Achado, e perdido – achado novamente;
• Parte 3 – Ct 3.6 -5.1: Consumação;
• Parte 4 – Ct 5.2 = 8.4: Perdido – e achado;
• Parte 5 – Ct 8.5 - 14: Afirmação.

Vimos, nesta lição, as diversas características presentes em Cântico dos Cânti-


cos e observamos que há diversas propostas de leituras para essa obra de grande
complexidade. Porém, há um elemento de concordância entre, praticamente, to-
das as linhas de pensamento: a riqueza poética. Assim como Salmos, Provérbios,
Jó, Isaias, muitos trechos de Jeremias, além de vários profetas menores, Cântico
dos Cânticos é também poesia.

Mais de uma vez, o recurso básico utilizado para manifestar essa natureza poética
é o Paralelismo:
À semelhança de inúmeras outras passagens do Velho Testamento,
Cantares tem forma poética. concorda-se, de modo geral, quanto à
natureza-básica do hebraico, e da poesia antiga do Oriente Próximo, que
se denominaria paralelismo [...] considerado “rima de pensamentos”, ao
invés de “rima de palavras”. Esta rima de pensamentos pode envolver a
repetição de uma idéia. (CARR, 1989, p. 198)

Vejamos, mais uma vez, o funcionamento dessa técnica com base na exposição
do artigo contido em El libro de los Salmos en su contexto literário (cf. FARIA,
2005, p. 9-15):

Paralelismo interno e externo: o paralelismo pode ocorrer dentro do próprio ver-


sículo – paralelismo interno – ou entre versículos distintos – paralelismo externo.

Tipos de paralelismo:
• Sinonímico: a segunda ideia é sinônima da primeira ideia;
• Sintético: a segunda ideia sintetiza a primeira ideia, adicionando um novo
elemento, complementando-a;

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• Antitético: a segunda ideia contradiz a primeira ideia;
• Morfológico: neste tipo de paralelismo, podem ocorrer todas as possibilidades
anteriores (sinonímico, sintético e antitético), mas, no lugar de ideias, o poeta
(ou o salmista) utiliza classes de palavras e estruturas sintáticas, como nomes
próprios, pronomes, advérbios, adjuntos adverbiais etc.

Vejamos alguns exemplos de paralelismos binários, nos versículos a seguir (tra-


dução própria):

Paralelismo Sinonímico (interno) – Ct. 2.8b:

galopando pelos montes, saltando pelas colinas

Paralelismo Sintético (interno) – Ct. 2.6:

Sua mão esquerda está sob minha e com a mão direita me abraça cabeça,

Notem que o trecho “com a mão direta” complementa o sentido da primeira parte
(“sua mão esquerda”) e proporciona o sentido final de envolver completamente a
pessoa amada.

Paralelismo Antitético (interno) – Ct. 1.6:

me puseram por guarda de vinhas; mas a minha própria vinha eu não pude guardar

Paralelismo morfológico (interno) entre pronomes – Ct. 2.16:

O meu amado é meu e eu sou dele

A poesia hebraica utiliza abundantemente os recursos técnicos literários do


paralelismo. Em Cântico dos Cânticos, há vários outros recursos, dentre os quais,
separamos três:
• Aliteração

A aliteração é a repetição de sons de consoantes no início, meio ou fim de pa-


lavras dispostas em uma ou mais frases ou versos. Tomemos como exemplo o
Ct. 4.13:

(Shelahayikh) pardes rimonim ‘im peri megadim keparim ‘im neradim [Teus brotos] são pomar de
v. 13
‫ְשׁלָחַ יִ � פַּ ְרדֵּ ס ִרמֹּ ונִ ים ﬠִ ם פְּ ִרי ְמג ִָדים כְּ פָ ִרים ﬠִ ם־נְ ָר ִדים׃‬ romãs com frutos preciosos:

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Como você pode notar, a tradução dificilmente consegue dar conta desse recur-
so fonético, que é percebido nos versículos citados apenas no idioma hebraico.
Nesse versículo, palavras distintas com sons de P, R, D, M se aproximam e
criam uma dimensão nova e metafórica de significado, por meio do som;
• Comparação

Neste recurso, são confrontados dois ou mais elementos, utilizando a palavra


“como”. Essa técnica é também amplamente utilizada, mas o uso da palavra
“como” varia conforme a tradução da Bíblia referida. Exemplo: “O teu pesco-
ço é como a torre de Davi” (Ct. 4.4)
• Metáfora

A metáfora utiliza um recurso semelhante à comparação, mas, ao contrário


dela, suprime a palavra “como”. Exemplo: “Os teus lábios são fita escarlate.
(Ct. 4.3)

Percebam como a palavra “como” poderia ser acrescentada à metáfora, para


torná-la uma comparação: “Os teus lábios são [como] fita escarlate”
Explor

Podcast Irmãos.com - #199: Cantares: https://goo.gl/DAaXKG

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Material Complementar
Indicações para saber mais sobre os assuntos abordados nesta Unidade:

Sites
#199: Cantares
DEGASPARI, Paulo et al. #199: Cantares, 22 de out. 2012. Podcast. 1 MP3 (59 min.).
http://www.irmaos.com/199-cantares/

Livros
Bíblia de Jerusalém
São Paulo: Paulus, 2004.
História de Israel
BRIGHT, John. Trad. Euclides Carneiro da Silva. São Paulo: Paulus, 1978.
Eclesiastes e Cantares, introdução e comentário
EATON, Michael A; CARR, G. Lloyd. Trad. Oswaldo Ramos. São Paulo: Vida Nova, 1989.
Introdução ao Antigo Testamento
LASOR, William S. Trad. Lucy Yamakami. São Paulo: Vida Nova, 1999.
Dicionário Bíblico
MCKENZIE, John L. Trad. Álvaro Cunha et al. São Paulo: Paulus, 1983.
O livro dos provérbios na interpretação exegética de D. Jerónimo Osório: aspectos filológicos
RODRIGUES, Manuel Augusto. Coimbra: Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra,
Instituto de Estudos Clássicos, 1992.

Leitura
El libro de los Salmos en su contexto literario
FARIA, Jacir de Freitas. Revista de Interpretação Bíblica Latino-Americana/Ribla, 52.
Petrópolis: Vozes, 2005.

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UNIDADE Livro de Cantares/Cântico dos Cânticos

Referências
ALTER, Robert; KERMODE, Frank (org.). Guia Literário da Bíblia. Trad. Raul
Ficker. São Paulo: Unesp, 1997. p.263-341

VÍLCHEZ LÍNDEZ, José. Sabedoria e Sábios em Israel. Trad. José Benedito


Alves. São Paulo: Loyola, 1999.

ZUCK, Roy B. (org.). Teologia do Antigo Testamento. Trad. Luís Aron de


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