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TRAIR
quase uma apologia da traição
Aldo Caroten1:1to
~
PAULUS
AMAR
TRAIR
quase uma apologia da traição
~
PAULUS
Carotenuto, Aldo
Amar trair : quase uma apologia da traição I Aldo Carotenuto ; tradução Benôni
Lemos. - São Paulo: Paulus, 1997. - (Amor e psique) Título original: Amare
tradire : quasi un'apologia dei tradimento.
Bibliografia.
ISBN 978-85-349-0658-6
95-5007 DD-158.2
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mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- NOTA À NOVA EDIÇÃO
xões durante a prática psicoterápica, e está começando
a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É
uma nova visão do homem na sua existência cotidiana,
o seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo
dimensões diferentes de nossa existência para podermos
reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos
aqueles que são sensíveis à necessidade de colocar mais
alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente
restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração
de sacerdotes capaz de entender novamente a linguagem Levar o leitor à descoberta deste livro, agora em
da alma", como C. G. Jung o desejava. nova edição, oferece-me a oportunidade de abordar no-
vamente o tema da traição, mas com o vigor que me vem
Léon Bonaventure da aceitação que essa obra teve entre os leitores. Obra
que queria e quer sacudir e - por que não? - suscitar
polêmicas entre os que, embora sabendo que a "~raição"
é fenômeno antigo como o mundo, consideram reprová-
vel levantar o véu que o oculta ao olhar da consciência.
Eu, ao contrário, penso que o que cria maiores danos são
justamente o desconhecimento e a indiferença, ao passo
que sondar e tentar esclarecer os movimentos psíquicos
que geram, fomentam ou rejeitam a traição é de grande
utilidade para se viver cada experiência (porque, como
o leitor terá ocasião de constatar, a traição assume mil
aspectos), compreendendo-a e elaborando-a, e não só
deixando-se dominar por ela.
A violência e a cegueira que acompanham a trai-
ção em todas as suas formas - desde a da família em
relação ao filho àquela amorosa - são prova de nossa
ingenuidade psicológica, isto é, o indivídu_o quase nunca
tem consciência das forças que governam seus impulsos
para o crescimento ou para a individuação, de forma que
permanece um agente passivo de suas pulsões destrui-
doras. Essa forma particular de resistência testemunha
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que o desenvolvimento da consciência psicológica é, como de sofrimento, dá início ao nascimento da consciência,
sustentava Jung, um opus contra naturam (uma "obra com a expectativa - é essa a promessa de toda doutrina
contra a natureza"), um caminho difícil e cheio de peri- soteriológica - do pleno despertar, isto é, da aquisição
gos; ninguém conhece melhor que o autor dessas linhas, de uma consciência interior que torne o homem capaz de
por causa de sua profissão, o tributo de sofrimentos que reconhecer as forças que o dirigem e de mudar em seu
a pessoa deve pagar para libertar-se das ilusões neuró- favor também o conhecimento do mal.
ticas, dos equilíbrios de compromisso e das satisfações Porque a traição é essencialmente "passagem" - é
alucinatórias do desejo. esse seu significado ~oJ-ºgico _-, "~~r~gl:l" a_ outrem,
A primeira e fundamental forma de traição é jus- a qual sempre se traduz em confissão de fraqueza e em
tamente a que o indivíduo sofre para tornar-se sujeito pedido de ajuda, e, portanto, inclui sempre o risco da
responsável por seus desejos e por seus atos: a perda da perda, do abandono. Mas para se viver em plenitude a
inocência, a expulsão do Paraíso da indiferenciação psí- existência própria é necessária essa "passagem" pela
quica e a queda. Transgredindo o pacto originário com a morte, esse reconhecimento do limite, da_ fin,itude, esse
mãe natureza, o indivíduo fica inevitavelmente exposto saber-se traidor e traído.
à fadiga da procura de sentido, procura que, no entanto, Os cenários da traição são muitos; parece-me, porém,
o constitui como sujeito da história. que a cena original se abre no interior relacional mais
A perda da inocência certamente na culpa e na precoce, sendo a .I?_!imeir~_~_rªiçªo a que é praticada em
punição; assim, muitas vezes nós nos condenamos a ser relação ao nasciturô;<iuando, com o nome, é-lhe atribuída
verdugos inexoráveis de nós próprios e nos expomos aos a projeção imaginária elaborada pelos pais. É um destino
pio:es vexames para expiar culpas hipotéticas, sem ja- inevitável, inscrito na história da existência humana, pelo
mais conseguir pagar completamente o grave pecado de qual somos condenados a encarnar o desejo de outrem e a
termos vindo ao mundo e de o termos feito da maneira _suportar grandes fadigas para separar-nos de seu/nosso
menos discreta possível, com um pedido intolerável de fantasma.
amor, sempre gritado. Se o homem fosse livre, não teria necessidade de trair;
Nascemos traídos e com a necessidade de trair para entretanto, é verdade também que se o homem não fosse
cre~cermos: é uma lei cármica, que soa como condenação, livre, não poderia trair ..
se, Justamente através das vicissitudes da traição, não
fosse pedido ao indivíduo o encargo de confrontar-se com Aldo Carotenuto, abril de 1994
sua ambivalência constitutiva e de assumi-la consciente-
mente, de modo a transformar a orientação natural das
pulsões e a tornar-se, de alguma forma, artífice profundo
de se:? destino de individuação.
E esse o significado profundo que o mito hebraico da
expulsão do Paraíso terrestre representa simbolicamen-
te, expulsão que, se entrega o homem a todas as formas
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AGRADECIMENTO
*.
seu apaixonado panfieto7irraticaram sua traição de vários deveríamos talvez deduzir que as mudanças de direçao da
modos: em nome da ordem, do dever, do amor, do caráter libido das quais ele fala, correspondem também a trai-
sagrado do escritor, do relativismo do bem e do mal e em Ções. De fato, "Terrestre" não é o Paraíso, mas a traição!
1 \""" E nem um deus pode escapar disto: "de traições", escreveu.
nome dá comunhão com a evolução e com o dinamismo
do mundo, comunhão que consiste em não se medirem as Franco Sacchetti, "não conseguiu livrar-se nem Cristo"
mudanças com o metro da razão, mas em se aderir a elas (Sacchetti, 1970, p. 499).
vitalisticamente. Talvez seja oportuno partirmos daí para
falarmos das outras traições, que, com o pretexto do mito
da história sagrada e profana e dos "grandes sistemas"'
afundam sua lâmina nos meandros do cotidiano, traições'.
em suma, com as quais deve confrontar-se constantemen-
te outro "intelectual", o psicanalista.
Portanto, a vida, toda a vida, pode verdadeiramente
entrar no horizonte da traição. O Paraíso terrestre enten-
dido como plenitude e indiferenciação da vida pré-natal,
representa uma condição insustentável, já que, se fomos
o?rigados a traí-la, e a traí-la pelo nascimento, foi porque
diante de nós abriam-se a história e o mundo. Se devês-
semos descrever com uma metáfora como se caracteriza a
nossa condição humana, se devêssemos explicar com pala-
vras simples a verdadeira tragédia dos homens, diríamos
que ela consiste na inexistência do Paraíso. Não existe
o jardim edênico, o Paraíso não é desta terra. O Paraíso
como lugar do não dualismo, do não desejo e, portanto,
do não apego, como lugar onde o coração do homem não
freme, porque cheio em si mesmo, não tem esperança,
P?rque re~lização em si mesmo, não teme a morte, porque
vida em si mesmo, o Paraíso como aquela plenitude que,
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AINDA ANTES DE NASCER
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alto e profundo; sacer, sagrado e sacrílego" (Freud, 1910, provavehnente .tenha algo a ensinar -~~~-ye~,._.urU.camente
p. ~8~). Na conc~rdância entre praxe onírica e praxe lin- ·a uele que tram com plena e total consciencia. Como
gms~ica Freud vm a confirmação do "caráter regressivo e ·aialogamente diz Hillman (1964 b, p. 99):
arcruco da expressão do pensamento no sonho", e concluiu ... nossa conclusão ao problema: "que significa a traição
sua recensão sustentando que o conhecimento da evolu- p~ra 0 pai?" é esta: a capacidade de trair os outros é afim
ção da língua certamente melhoraria a compreensão e a da capacidade de guiar os outros.
tradução da linguagem onírica (ibid., p. 191).
Com o tempo, "trair" passou a significar, de fato.' o
Considerações semelhantes podem ser apresentadas
oposto, perdendo ou, talvez melhor, ocultando as valências
a respeito da palavra "traição". De fato, examinada aten-
originais. Devemos então perguntar-nos como sucedeu
tamente, ela se nos revela ambígua, não só etimológica
que dos significados "positivos" se pa~sou à ace~ção_ co~~
mas também semanticamente. Sabemos que o latim tra-
rente "negativa". A inversão de sigmficado se impoe Jª
df!_re significava somente ~'entregar". Sabemos também
na latinidade, e muito provavelmente também a partir
que os evangelhos, escolhendoesse -verbo para design8:r.
o ato de Judas de entregar Jesus aos seus inimigos, car- da linguagem militar. D~fü~~-Q._ajgnific~do_ori~a~.de.
regavam-no de conotações éticas, obviamente negativas. ";eas~~g~I!!'.~.:~e~~!'.e_~a", pode ter com~ ~bJ~to o mimig~,
conotando então o ato de entregar ao mimigo (armas, ci-
Mas, com o tempo, o mal-entendido inicial originou outros
dades etc.) e de fazê-lojusla:lllente-traiii.do. Já observei, a
mal-entendidos e ambiguidades: o itinerário semântico
propósito da afinidade entre a linguagem amorosa e a lin-
desse verbo "condenado" levou-o a significados diferentes
distantíssimos entre si e às vezes nos antípodas, literal~
guagem militar, que, na língua latina, o "nomem agentis"
desultor conota tanto aquele que passa de uma mulher
mente opostos. "Traio" deriva do latino trado, que é com-
a outra - nesse sentido Ovídio, por exemplo, negava ser
~ost~ de dois morfemas, trans e do (= dar). O prefixo trans
traidor (Amori I, 3.15) - como aquele que passa para o
implica passagem; de fato, todos os significados originais
lado do inimigo (Carotenuto, 1990, p. 33). "Tra~o-=-~-~p. em
de trado ~~t~m-~.i~eia de dar alguma coisa que passa de
grego um equivalente perfeito,paradídomi. De fato, trans
_umªI_Il~<:)-~!?.!:!b:'ª'. Assim, trado significa o ato de entr~gar-
+do; pará + dídomi. Paradídomi é justamente o verbo
~as_n:iãos de alguém (para guarda, proteção, castigp),-o
ato de confiar para o governo ou o ensinamento ' o dar em que designa a traição de Judas nos evang~lhos. O prefixo
---·-
pará, domemo modo que trans, pode implicar o ato da .
esposa, o vender, o confiar com palavras ou o transmiti~,
"tra(n)s-gressão" (= pará-basis =ir além). O substantivo
.o narrar. Na forma reflexiva, s~ tradere, o verbo signl_fica
correspondente,parádosis, equivalente de traditio, signi-
abanc1onar-_se a alguém, dedicar=sea-uma atividade. O
!!c::i. traição, prisão, mas também a doutrill_ª_transmitida.
substantivo correspondente, traditio, significa "entrega"
com autoridade, ou a tradição preservada de várias formas.
::ensi~~~!mto", ~~~:r:_r~ç~f·"transmissão de n~rraÇões"~ e transmitida separadamente pelos pagãos, pelos.escribas
tradiçao . Note-se que o nomem agentis" (nome do agen-
e pelos fariseus (os predecessores dos rabinos), :por Paulo
t,e) traditor significa tanto "traidor" como "quem ensina';.
e pelos bispos da Igreja. Para os gnósticos, hereges do
E bom lembrar esse duplo sentido na introdução ao nosso
começo do cristianismo, existiria uma doutrin!l secreta., ,
trabalho porque, como teremos ocasião de ver melhor
'
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oral, transmitida. por Cristo aos apóstolos e considerada por que me abandonaste?"). N~ssas últim~s e t~ágicas 1
superior à Escritura. De tal transmissão secreta :.___ o palavras da vida terrena de Cristo, Jung vm o smal de 1
j
ato dessa transmissão é indicado com o verbo paradí- um malogro radical. Segundo o que ele afirmou em uma \
domi - fala-se também em campo ortodoxo. Clemente ~ i
conferência em Londres, em 19 de outubro de 1936, e que :j
de Alexandria, no livro Stromata (l, 1.13.4), afirrnª que traz como título a intrigante interrogação: A psicologia
"ai:; coisas ocultas" (ele diz "místicas") são transmitidas analítica é uma religião?, .Q:ri_~t_o__, ___na ~!u_~_ e_ J)~óximo
'l
_(paradiiotai) de modo oculto" (ele diz "de modo místic~") .. da passagem.final, te:ria tomado consc~ência _de que a
ª
Os gnósticos, por sua ve~,ǺI1S.ideravam__ si próprios os_ suá 'vida, consagra<fa à vel"dade e ao amor, revelara-se
únicos depositáriOs cl~ yerdadeira tradição: Aigrejapri- "terrível ilusãd'(Jung, 1937, p. 108). Esse grito lançado
mitiva precisou lutar co_ntra ~ss_a_Í>retensão. Na literatura crâ cruz significa_a .trágica compreensão de haver sido
gnóstica (no Evangelho de Judas, -que não chegou até traído, e exatamente por isso constitui a exceção extre-
nós), fala-se também de um "mistério(= sacramento) da m_a_ ao fato de que Cristo, segundo Jung, "nunca parece
traição", que era praticado por alguns grupos gnósticos. têr-se posto diante de si próprio" (Jung, 1952, p. 388)~~~ _
~egundo eles,_traindo Cristo, Judªs teria favorecido a traição nos põe, portanto, diante de nós próprios; antes,
economia da salvação. Portanto, para eles, a traição era parece que é só na traição que se torna possível esse pôr-
necessária, e eles a celebravam como sacramento. Segun- -nos diante de nós próprios, esse cessarmos de viver em
do a opinião de outros autores, Judas haveria julgado q11e reflexos que desconhecemos. T.ªmbém nós, como Jung,
Cristo estava pervertendo ou traindo a verdade. Traindo nao consegl!imos ficar sem levantar interrogações sobre
Cristo, Judas haveria evitado essa perversão da vel."<lãcie. _;;p~1 (ibid., p. 398):
Hillman observou que a traição é central no cristiani~mo
(Hillman, 1964 b, pp. 90-91): Que Pai é esse que prefere d(li.xar o fill1g JPOITer :;t_ pE)rd()~r
magnanimamente às suas criattt.I"!iS _mal ac!}nselhadas e
Na história de Jesus, ficamos imediatamente impres~iona pervertidas por s(lu Satanás?
dos com o motivo da traição. O esquema ternário (traição de
Judas, dos discípulos adormecidos e de Pedro- repetida Não obstante, a dialéticainer.en~_e àtraiç~,Q é taJ _qu.~.
nas três negações do mesmo discípulo-) nos fªla_d(l l'J.lgo ~~~a luz, compree!l~el_l:Íqs o__se,nt~~o q<?l~r,Q§lQ Qfi}:idelicl.~<l~-
fatal, mo~tra-nos que a traiçãoé essenciafa dinâmica da E verdade, com efeito, que Cristo foi abandonado à agonia
história de Jesus-e; pór-ísso, a traiçao está no cerit:ro-ao.
mistério cristão-. · da cruz e, portanto, traído e entregue ao desnudamento
de uma ilusão que o sustentara durante sua vida terrena.
Mas foijustamente essa fidelidade completa, essa fidelida:-
Enfim, continua Hillman, podem ser lidos segundo ~'ffevota, essa :fideliãã.<Ie dedicada à experimentação da
a mesma chave de leitura, como em parte já vimos, y_ida, foi justamente essa fidelidade traída que permitiu
outros aspectos "críticos" da vida terrena de Cristo: a a Cristo aceder ao "corpo da Ressurreição" (Jung, 1937,
sua tristeza na última ceia e a que se abate sobre ele p. 108).
no Getsêmani ("A minha alma está triste até a morte") Como vimos, parece que também na área pensante
. lançado da cruz ("Deus meu, Deus meu,'
o grande grito do gnosticismo houve verdadeiro trabalho de elaboração
22 G"
da traição em seu~ aspectos mais radicais. Pensemos, por A mulher carnal tomou da árvore. Comeu e deu dele a seu
ex~m~lo, na doutrma, sustentada de modos diversos pelos marido com ela ... Os psíquicos comeram, e sua malícia se
gnosticos, a qual, atribuindo a criação deste mundo a um revelou em sua ignorância.
demiurgo imperfeito, homólogo do Javé hebraico e não ao
sumo Deus, considerava, em certos casos a ne~essidade Na Interrogatio Iohannis, a perspectiva da traição
d~ trair pontualmente todos os mandame~tos. Essa dou- praticada pela divinda~e contra o home~ a~quire r~sso
trma gnóstica fala de uma traição cometida ant~s de nás~ nância talvez ainda ma10r. Trata-se de apocnfo de origem
cermos, e também de sua solução. Permanecendo nessa bogomila, isto é, de um texto, uma espécie de catecismo,
perspectiva "herética", pensemos na inversão de sinal à pertencente à heresia dualista conhecida pelo nome de
qual já alu~imos, efetuada na figura da serpente, na óti~a bogomilismo, surgida na segunda metade do século X,
de uma criação não divina, mas demiúrgica do mundo heresia que conservou muitos pontos de contato com o
dos homens .. Foi a s~rpente maligna ou, para exprimir- gnosticismo e com suas ramificações; é um texto ao qual
-nos com mais propriedade, foi Satanás - que entrou na faziam referência alguns grupos heréticos medievais,
serpente que se arrastava pelo Éden e era preexistente como os cátaros. Nesse texto, o apóstolo João, repousan-
à criação do homem e da mulher - que concedeu a Adão do no peito de Cristo, dirige-lhe perguntas a respeito de
e Eva o dom do conhecimento através da transgressão e Satanás.
portanto, que difundiu a traição da proibição divina d~ ~€l!a narração_ ficamos sabendo de uma espécie de
se ~o~er aquele fruto. Pensemos ainda no que diz 0 texto compromisso entre Deus e Satanás,_ antes que fossem cria-
gn~stico encontrado em dezembro de 1945, junto com dos o mundo e o homem, um compromisso que apresenta
mmtos outros, gnósticos e não gnósticos, na localidade semelhanças com a história bíblica narrada no livro de
d~ ~ag Hammadi, no alto Egito, e que tem como título Jó. Caído por causa de seu desejo de elevar-se até o Pai e
Hipostase dos arcantes. "Hipóstase" significa realidade de tornar-se semelhante a ele, Satanás desce do céu para
:r:~a,Hda@_ª-lJPj_B:_<::_~~~· Os arcóntes, dominadores do ~und; o firmamento e não podendo encontrar descanso nele,
sub,~un_ar, os mesmos que Jung equiparou aos "comple- junto com seus anjos, obteve-o do Pai. Como diz o texto,
xo~ : sao, portanto, seres reais e malignos. A eles estão oPai lhe permitiu ''.fazer o que querig. até o sétimo dia"
S?J.~~tos os homens que não sabem transcendê-los-, ist-;;T (lnterrogatio Iohannis V, 65, in Bozóky, 1980, pp. 54-55).
os ~omen~ que se deixam trair por suas más ações e q11e: )~:ste mundo é, pois, o reino deSatanás. Ademais, também
-~~~1m tr!11d()$,_se entregam a um destino aparentemente ~-~vangelho segundo João fala do "prínd:p_e 4este_ I_IlUndo".
. irr:vers1v:L. O ~scrito gnóstico citado dá uma interpre- Mas o que perturba é que, no texto dos hereges bogomilos,
taç~~ esoter~ca as passagens do Gênesis que, na ótica da o reino de Satanás de certa forma é promovido por Deus.
t~aiça~, ~os mteressam mais. Portanto, segundo o que ele ;portanto, antes de nascermos, o drama da traição encon-
diz (Hipostase dos arcantes, in Erbetta, 1982, p. 189): trou sua celebração cosmológica, mitológica. Encontrou
A se~ent~, a instrutora, disse: "Não morrereis de morte· ele sua celebração, como dissemos, também a solução desse
vos.d~sse 1ss~ porque é invejoso. Antes, os vossos olho~ se drama, solução não definitiva, é óbvio, mas traduzida
abnrao e sereis como os deuses, conhecendo o mal e 0 bem" ... na necessidade de os homens da história - da mesma
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. d, t stemunho....p:reciso.rlessaantítese. dial~t~ca
forma que Adão e Eva, que os introduziram na história comlJ.m ... a....e. , , A t" da traiçaor·
;::=- . gnificados inerentes a . arease.man IGª-... · ·
- assumirem sobre si esse drama. O fato de os nossos gg.s.
D" emos si . . . ·10· . que o tradutor traiu o pensamento .
por exemp , · . ·· d
progenitores, depois de sua transgressão ou de sua traição ,,..,d!?i _.tor' ou q~e o entrevistador traiu o pensame.nto o.
do pacto firmado com Deus ou com o demiurgo, haverem . .o. au . t do em suma · · que o d eturpou, o'.r.a zseou. Dizemos
sido expulsos "para baixo, na terra", sugere a ideia de que entrevis a
.. b, legitimamente' ' que um gesto tramo
· pensamento .
a tomada de .consciência da traição e,na ótica qu,e estam9s taJl1lternd, alguém que ~ revelou e nos disse a verd.a~e.
·para abraçar, a tomada de consciência simp~e_s:Í:n_ep.te, ocu o e ' tA t'
~·-··rt. t o calso como traição, e o au en ico co .
mo traiçao
. . .
devam necessariamente passar pela elaboração do maJ ~ Po ano, l·
F.. . stamente essa desconcertante am igm a e • b" "d d que
da inferioridade. . d.~~lt ma forma, acabou por restit~ir a esse v~rb.o urn
O ·temada inferioridade nos leva à consideração .. ~e sua neutralidade original. E essa ambiguida~e .
desenvolvida por Borges, em suas Ficções, sobre a figura pouco "te afirmar que se pode "trair" sem trair' .
de Judas. Poderíamos dizer que são muitas as versões que nos permi ·d d ·
f~ltar a um pacto, mas em nome de uma _fideh .a e mais -
de Judas. De Quincey julga que é destituído de verdade
o que a tradição atribui a Judas (Borges, 1944, p. 142). alta ou mais profunda.
Borges fala de "três versões de Judas", referindo-se aos
estudos sobre o assunto realizados por Nils Runeberg, ao
qual Deus, escreve Borges, entregou o século XX e acida-
de universitária de Lund, mas em Alexandria ou na Ásia
Menor do século II ele "teria dirigido, com singular paixão
intelectual, um conventículo gnóstico" (ibid., p. 141). Uma
das três versões referidas por Borges nos parece digna,
de modo especial, de ser mencionada, a saber, aquela
na qual as problemáticas da inferioridade e da traição
parecem fundir-se e, fundindo-se, adquirir aparência
divina. Segundo essa versão, Deus escolheu encarnar-se
em Judas. Escreve Borges (ibid., pp. 145-146):
Deus se fez inteiramente homem, mas homem até a in-
fâmia, homem até a condenação e o abismo. Para salvar-
-nos, poderia ter escolhido qualquer um dos destinos que
tramam a entrelaçada rede da história; poderia ter sido
Alexandre, Pitágoras, Rurik ou Jesus, mas escolheu um
destino ínfimo: foi Judas.
26
2 ·significar uma traição. Isso vale paradoxalmente tam-
.. béro e sobretudo para um escrever que tenha escolhido a
UM "ALEGRE ACONTECIMENTO" traição como objeto.
FUNESTO No plano ontogenético - o plano no qual cada
um percorre, no nível de sua existência, as passagens
evolutivas que foram vividas por toda a humanidade -,
é ainda no momento do nascimento que toda criatura
-;:;xperimenta a traição pela primeira vez. Essa palavra
àssume seu conteúdo emotivo mais eficaz, se dissermos
que com a traição é violado um pacto, o pacto do Gênesis_
entre Deus e o homem, o pacto de amor ~_J;;;olidariedade
nas.Vicissitudes humanas. Se não temos m.edo de.olhar as
êõiSas do lado escuro, podemos ver também o nasçi:qiento
êQ::wp uma traição, É fora "<le d-ó.vTCiã.quê. efe-~~~siste em
No mundo dos homens l!m acontecimento traumático, digamos até "violento".
.~ ª ~xperiencia da separação
·A •
constitui a , ·
.. propna expenencia de viver Até Referindo-se ao narcisismo primário, isto é, àquela
:oc:eov~dr. este li~ro bparece uma manifestaç.ão de i;-::~~ unidade original na qual mãe e filho estão contidos,
· iscurso so re alguma c01sa
~--~ ·-
· e, pensamento e Freud falou de "sensação oceânica", de inserção no fluir
pensamento mexoravelmente causa separação .' . o ininterrupto da vida. Partindo dessa condição, através do
desap.:go~ e. distâncias e revela-se inefável tr~io~~~a ..atp do nascimento, mãe e filho experimentam a angústia
experiencia imediata, para não falarmos da uel: mod~ Jyndamental de separação. Para a criança, é trauma
~e escre~er q~e trai o leitor, levando-o desenv~tamente a .!_~rrível vir à luz, é trauma terrível ser expelida daquela
~ga~es a psique não adequadamente "experimentados". ~imensão "oceânica". O cessar, o interromper-se, o partir-
er egaard lamentava a queda para baixo d ~e da simbiose constitui-se como experiência de angústia,
livros Algu b o escrever como experiência que não pode ser verbalizada nem
. ns, o servou o grande filósofo dinamar uês
~m seu ~xtenso diário, escrevem sobre assuntos a resieito formulada ou elaborada intelectualmente pela criança.
os quais nunca "refletiram nem viveram" E Ainda que disséssemos que essa experiência é "sentida"
(Kierkegaard, rn 34 _55 , p. 97): · acrescentou ou "notada" por ela, estaríamos usando expressões
inadequadas para descrever algo muito global, um
Deci~i ~er só ?S escritos dos justiçados ou dos
um seno pengo. que correram acontecimento que permeará de si e de sua indicibilidade
~Qnstitutiva toda a existência e personalidade do
indivíduo.
fi E~tre os ')ustiçados" dos quais fala Kierkegaard Otto Rank considerava o "trauma do nascimento"
guran~m, talvez, a seu modo, os psicólogos. Considere como-ô acontecimento decisivo da exi~tência de cada um,
bem o leitor que escrever o p , . t d . ,. ··- .
. ' ropno a o e escrever, pode como a experiência original capaz de determinar seus
~ - ')Q
pessoa, de alguma forma, escolheu não viver, mas tam-
bém deriva de uma "ética natural", de uma "ética querida
um estilo de ".'idll d~_Qnq1:J:E:)~~i_lll' Il1ªS funciaIUeJlt.al~eQt_~ ....
pelo destino" e que, como tal, transcende a capacidade êfiVers()~-É muito difícil não perc:_~:.~-~11~-~,f~!~-~~.v~::~: ~
~a vida,.pela sua in~a~1_l!RÇ_ª()_a yida.,.J~. e_consiª~~~~Q.
de entender dos homens, uma ética que se exprime como u~a culpa pelo qµtro, Jung procura. explicar pe!a ideia
, ; "lei de compensação". g "carma" familiar decorre em
, .,1~ .• ,s.~.~-~? ta!ll.l>~!!l. <1~.1:1!.E:ª _"culpa iITípessoal;', de um~-~~~
-r . culpa impessoal, mas todo ato rumoso cometido pelo
:fi~ho violenta essa presumida impessoalidade e proj~ta-o
·;,·)ó P?rt::t!!.~-º~JLoderiam.Qê_cJj~~E,AªP com.etidª e._q_ue,.. em..tº®_ 0 roais triste desespero. São esses os casos nos quais os
t · ~l:'l~?! amd_a,_~!1-~q_l1e .P.ªis .e. filho_s venham ao mundo,......_ ~ais, fortes e poderosos, sentem a chamada "impotência".
8;P~êarde.t.udQ_diu_-~sp~i!~_também a ele$. Escreve Jung Coro ela,_ tQC-ª.P?::~~-Qi:Lljlllit~~. d~_y-~_~_1'11 . ~. l).E,l~§~ .G~§.Q., tµdo.
(ibid., p. 20):
~rece ligado ao de$ti:ri_o. ~ão obstante~ :ambém nessa
Tendências proletárias em descendentes de estirpes ·impessoalidade parece verificar-se a traiçao, e_ provavel-
no~res,.instintos criminosos em filhos de gente honesta, mente é ainda a essa "inculpável" impessoalidade ql,le se
ate mmto boa, uma preguiça singular nos herdeiros de âe~em atribuir, de !'!.lg:um;i maneira, as im,aginações dos
pessoas enérgicas, que sempre tiveram sucesso não só são pais a respeito de. s~µs fµJqr.os filhps_.
consequências de uma vida que voluntariame~te não foi ·· er imaginado e pensado ainda antes de nascer é
vivida, .mas tam?ém derivam de uma lei d~ _compensação
~~~e~tin~>, condize.gtfLC..O.:rt!J!rrrn_ética.natural.que tende a visto por cada um, mais ou menos inconscientemente,
aEaixar q!:1e_~ e~tava ~?-~lt() e_e.lev§lr quem estavª~w.bajm._ como um "rapto", como ser roubado, despojado, porque
E contra Isso nao .valem nem educação nem psicoterapia. a nossa individualidade, a nossa particularidade de
Se forem bem aplicadas, elas somente ajudarão na tarefa homens, a nO§.füLfi:sionomia psíquic:~_.I!_~Q-~_~ertencem
que o "Ethos" natural requer de nós na vida. Trata-se de senão com<(~ultado de. nõsso p~rio__ei:~forço)~ n:g_:g_çª-·
_c:µlpa imp.e~êQ...~.L9.C>ê.P~is_qu<:! os filhos dev«:lrÜill!.JLª@,!:_dê-·
modo tambem Impessoal. ... como dom régio dos ou~ros. Os deseJos, as fantasias e os
-·-»e - ~·- ~~- ~O
34
uma frase de Goethe, de significado semelhante, em um ·de força, porque se impõe como terrível e e~cessivamen~e
capítulo de seu livro Il tema dell'incesto (1912), no qual simétrica. A espécie humana se caracteriz-ª'..em relax_ao .
fala do amor de Goethe por sua irmã. Escreve Goethe (em ~s outras espécies anim~is_pel§t_ÍIµP.otência abf:)oh1ta d()
Rank, 1912, p. 182): ~-nã~cid,ü;--o-qúalpode m~rr~r se i:;ião recebe lQgQ o~.
-cu:í(fãdôs das pessoas que estao a sua volta. E o fato de
A minha ideia da mulher não faz abstração das manifes- sua dependência ser mais longa do que a dos outros seres .
tações da realidade, mas é inata, ou surgiu em mim sabe ~-- é provavelmente a base de todas as neurose~, mas
Deus como. vivos_ d 1 -
As minhas mulheres, todas elas, são melhores do que as ~presenta o fundamento i~c?ntestável e uma re açao .
que se podem encontrar na realidade. ~ssimétrica ~e_fc?!Ç.~~. uma dnrida que pagaremos por toda .
--nõssãex{stência.. Daí a necessidade de despertarmos o (
~-d- ' 1 o sentido
mais epressa possiv~'-»--- --- - . -· d- ""· nascermos
0 como
---::.,-·-------.-~~~ · -
É uma dor intensa e intolerável a que se inflige a
homens, toman~Q cons_ciêncj.a_ dessa.r.elaçao.~de,...fü:r窪 e .
uma criatura humana, pedindo-se-lhe que se adapte ao
sonho de alguém, que empregue todo esforço para conse-
guir dizer, pirandelianamente, "sou como tu me queres".
enro~trandop~??~ªmep.te nosso cam~nP.Q;. __.
·-a:=r.efii;_ã,Q, primária..coillO _relação de fo~çaf'l e uma
, -.J
Ela é constrangida a representar a fantasia de outro, a realidade e é também boa metáfora que nos aJu~a ale~ a
recitar um texto do qual não é autora e a agir segundo trâição -á~ ÍÕngo de toda a trajetória de nossa existência ..
regras alheias. Nós somos cúmplices, além de vítimas, Pésà uma traição sobre a origem da individualidade
dessa expropriação da identidade, porque encarnar a de cada um; sabemos, além disso, que é difícil, desde a
projeção, a fantasia de outro, é muito tranquilizador. Da existência pré-natal, diferenciar-nos do mundo que nos
mesma forma, a mãe, ou quem por ela (aqui entramos no cerca. O ponto de vista que eu quereria desenvolver,
discurso mais amplo sobre a identidade individual que e, como psicólogo, não poderia agir de outra forma,
nos envolve a todos), teme o radical, definitiva.e profun- ~existe _em cada um ~8--~ós __u~a.. for~a que ~os
damente diferente dela e que a obrigaria a um confronto j_im;tele-a êoiis·e-güiiiriós rima individ:tial.idade_E)~c~_l1_s~v:l:l..
autêntico; eis por que, concebendo um filho e levando . e irrepetível, a mesma que os gnósticos chain.-a.r.~1!1
adiante seu crescimento, é muito mais fácil para ela ~entelha" .e qµe Mestre. Eckhart afirmou que reside,
pensar e fantasiar imagens que não lhe sejam estranhas de modo constitutivo e ultimati'\To, na alma. ,ê,~ bem o ·
e a confirmem na sua identidade e na sua capacidade de c~minho a percorrer não seja sem perigos e. o fato d~_
plasmar os outros. ~ºcorrê-lo imponha seu preço, "o desenvolvimento da ..
-J?~ersoriãlidade está entre as coisas_mai§preciosaf'!" (Jung,
) 'f fenô!e~: ~~':;~,;~~~~~~{!~~,&;;:1::zth::t;:;;~: 1929-57, p. 29). Amais precios~, dizemos nós. Trata-s_e,.
1 diferente e f~cundõ: e.à.su~i~z-podemos tentar ler a ami- -~-~~ndo_Jung, a exemplo, entr13 outros, da compreens.ªo ...
zade e o incesto, o matrimônio e a família, a morte que vem de Nietzsche (ibid., p. 30),
J
!,
36
É essa a maior obra de arte que podemos realizar;
. mito· se_l::l.X~lªção entre os homens se?aseia soment:_-no.
embora trabalhemos e apliquemo-nos em todos os campos,
a o~ra da qual somos os grandes artistas e os verdadeiros
~fi
con ron·--to , na competição
· · · ···- -· e no. antagomsmo
· · das
d atuaçqes,
r ·.
( mestres é a nossa -füdividual' d -d-- ···:"\ . -__. _____ - -- ' r;:;-., não se trata de relaç;lQ de solidariedade, lll~_s e cump ~c1-
(.de';;~;=;fi;;~;~-~~;~-di~*~i~e~~if~~6ri:â~f ~7a 1 ã;de igc<msciente na perpet~ação d~ u~ s1s.t~rna d~ vida .-
. affe â.Etcada um ·ae··to:rnaT::geefuProprrn nao-·e-eiiêoraja- -é-envilece cada um e sua i.rrepetJ.vel Jnd1v1duahdade.
<1!!!. · ·
Vêm-me~ ·
IIle_nte_os que~-~ c::onwvem co m os terremotos
-- .. - -:- .
da pela lógica coletiva, porque a lógica coletiva, voltada
à manutenção da uniformidade, vê na diversidade e na litro lado da terra e são incapazes de ~stender a mao .
no o · t d
diferenciação o peso da ameaça. É por isso que desde ~o vizinho de casa. Quem ousa opor-se a esse s1s ema e
nascimento experimentaríamos estranha sensação como
0 -m--portamento é sempre e facilmente condenado pelo ho-
co •t A
indivíduos separados: a sensação de sermos intrusos, de mem comum, porque a sua periculosidade ÇO!J:ê~S. e;e~ p(,)r_
não termos direito ~adfü.ܪ-..na...reajidad=e~---- radicalmente em luz a inconsciência do home~-i;ned10,_ do
A medida que as relações se multiplicam em nossa '''liomem que vive somente para entregar-se ac~ticamente
existência, pode intensificar-se a impressão de não termos aos valores vige~te_ê•--~~I!!-~'HJ-Qilleter êJ!~Jl_lp:rahdaª~~ U~
direito a um espaço, ao espaço próprio; o indivíduo pode exame deconsc_iên~ia pessoal, fundado na experiencrn
sentir-se, como quase todas as personagens de Kafka, sem interi~~; n~ escuta das "vozes de dentro"._./ . .
"os papéis em ordem". Não obstante, a consciência dessa -----Quãndo a sabedoria a_~ti~a e 8: ~~~-E'.!:?~ ..E~~~()~()~i:t.
,!!!,arginalização, a .reivindicação do próprio "lugar ao sol" e profUilda, .com acentos e contornos ~1versos_:___~'.3:s~ot11,
(~'"C~1J..ê~~i~~:~.:?-:~;g~~Sí1~4gsi_giy€l]:Siqade PKQQrj~1s illd~ cfos de analogias substanci8;i_8-• __ nos,__ d~~~ip qu~ tor:nar-se
"frid.:lvíd..uos'; é a.tarefa de nossa existência, nao devemos
raop))êrcurso d-ª-llldiYfü:!:!e®)E necessário, com efeito,
pere8ber que foi subtraída alguma coisa da identidade pensar que os outros tenham o que não temos. ~sse ~ u~
própria, porque assim se configura a traição primária erro no qual caem fatalmente muitos de nós. Nao, a md1-
a mais árdua de enfrentar e de cuja ameaça ninguém é cação dess§ls disciplinas reside em outro l~gar: ~rata-se,
para elas{de.-cad,a um tornar-se o que.~le e, .e nao outro .
"Í\. poupado. Dev':'._~~ torn_ª!:_-ngê_c§nscios <ie que à pet:.Ç&~
7,i/~=-~~r~oS.~ido esperados "~i~ere:ntes" dq que somo§j!Jnta- .~f i<Tem força salut~r'':i escreve Jung, ~~-~q~1!<:>.. qu~ cada
-~e g_es.t_upQ:rdesermos.reJeitados pelo qµe somos. Esse "(\Q~~·-efetiVamente"~ Ser fiel à PJ:'.Qprüt _u,nic:idade m1põe,
desconhecimento original se encontra também na base "'!il ~~tudo, custo altíssi~õ·:-9 cust~ da solidão e da exclus~o.
de uma visão supersticiosa da existência pessoal, aquela ~ Dostoievski, que pode ser considerado um precursor da
que nos faz sentir-nos afortunados ou desafortunados de ~ psicologia profunda, como justamente notou ~re.g:r ( 19~9 '.
acordo com as atuações que conseguimos oferecer e do \~...\ pp. 6-12) ' intuiu a dificuldade --
do processo de md1viduaçao,
sucesso que elas conseguem no mundo externo. Muito ~; ~~~ta pensar no percurso de solidão'. isolamen:o, neurose,
_Il'.l.a.is difícil~..has.ear. a.própria e§Jimana.Yerdade_~ ~ '~ perda do sentido, ali~nação, cul~a e madequaçao que suas
SQI!lo_s (:l_sei:i.t!P.!ºê· Devemos ter a coragem de admitir que, ~~ Personagens são obrigadas ~ tril?ar ~ntes de. cheg~rem a
~
sob o re~me p~icol?gico dessa superstição, ~~~~ h~ urn momento autêntico de ilummaçao e pac1ficaçao com
v._er~l:l~Emê~!!~aneg.Ade_ent:r:e -ªs_pessoas a n~o ser como ~ , a vida. As personagens de Dostoi_:vs~ m.ostram,~al11;b~~
...-,, . ' ,, _____ .. ---•
., - -·"-·---
··-"-
9:Ue não é garantida a superaçao criativa da traiçao
38
on
· 1 temos verdadeiramente necessidade, a morada na
da identidade: só alguns, misteriosamentE:i, atravessam qua . , , . t' t
qual somos verdadeiramente nos propr10s, es a em ou ro
o desconhecido desse caminho e volta~ "mais" vivos · . O espaço fundamental, o tesouro do qual falam os
"mais" capazes de continuar a vida. São os que canse~ ugar. " · d , "
-1 •t s em suas múltiplas variações, o remo os ceus
gu:m aproveitar o feixe de luz q11e hólhou sobre eles: a 11110, . d d
· do qual fala o evangelista Lucas encontram-se entro. e
ferida aberta pela consciência da incÜviduàlldade e da~ , A pedra filosofal o cálice do santo Graal, o velocmo
extrema dificuldade de realizá-la torna-os infinitament~ nos. . ' .
mais humanos. ·~ de ouro, a morte do dragão, como cammho p~ra ~e chegar
ão tesouro, representam aventuras que nao tem como
Antes ainda do nascimento, acendem-se sobre nós
teatro 0 mundo das coisas visíveis, a r~àlidade externa.
esperanças e hipotecas. De algum modo subterrâneo so- Ai de nós se nos detivermos na letra, na imagem concreta
mos hipotecados e despojados de nosso valor de indivíduos que 0 mito nos propõe. Literaliza~ é um modo excelente
quando os pais - e não só a mãe - confiam à nossa vinda
de trair a experiência. Verdadeiramente, como lemos
no apóstolo Paulo, a.lfl~~~. ~.~~~· _(!puto represent~ '~-~!Il
ao mundo o dever de satisfazer alguma de suas necessi-
dades - por exemplo, a de mostrar sua capacidade de
É!ll!K~m" o destilado da sabedoria ~umana atraves dos
procriar. Ou a necessidade de preencher um vazio na vida
milênios: diz-nos que o homem esta sempre procurando
do casal. Ou a ilusão de recuperar um matrimônio que não ~-~erdade. A necessidade de superar provas específicas
se te1!1 a coragem de reconhecer como falido, ou quando
'ê perigosas remete às provas que nós, como indiví~u?.~ ..
os p~s nos delegam conquistas e revanches que não con- e nos diferentes níveis em que viermos a encontrar-nos,
s:guiram. ~m suma, projeta-se na criança um problema ·deveremos superar. Jasão andava à procura do velocino
nao resolvido, e com isso ela é isolada, segregada. Mas de ouro Persival e ·os cavaleiros da Távola Redonda an-
a onda da traição que submerge o filho não se detém aí·
a própria vida dele se torna uma "coisa" fastidiosa. Iss~
à
davam procura do santo Graal, mas cada um de, nó.s,
s.egundo sua história individual e no arco d_e sua propna
significa que, a partir do nascimento, conquistamos tra-
existência, dev:erá_procurar 111ll__ objeto decisivoe ifrenun=-
balhosamente um espaço autenticamente nosso· e a sen- ~áve( cuj~ conquista preludia a consecução do espaço
sação de sermos excluídos se funda na traição pri~ária. A mterior. É essa, creio, a única resposta que podemos dar .
nossa tarefa é então a d€) encontrar ou "inventar" o nosso-- '·áo evento trágico, e fundamental, de nossa existência que
espaço, o qual não se encontra ao alcance da mão nem é
· ~
concedido como imediatamente visível, mas é alg~ de in-
·é a traição do nascimento._
---.,~-" .......- -~- - '
40
1'
G
minho da individuação como receita, como coisa que se
Jr1:t~rpes_~?ais: um indivíduo afetado por essa ci~ão. tende_,__ mpra e que põe fim aos conflitos existenciais. Aqui es-
_Q.e.Jato, a P!<:>j~t~r toda a luz sobre os outr{)s, vivendo na mos falando de um mistério, do mistério da vida, o qual
a~oração incondicional, que é também grave detuifpaçãô apresenta sempre de maneira inefável e contraditória.
e _distorção. Sem cair em generalizações categóricas, A vida em: Eli. é_ traição ªe__f3_qE:)_g__?asc@_~I.lt..Q,__Q que
parece-me legítimo supor que facilmente as duas tipo- podemos f~zer mediante a individuação é cniscer atr_a,yés .
logias "combinem muito bem", no sentido de que uma se dessa traição, recuperar-nos apesar dessa traição, ~~s_u.-
encaixe admiravelmente na outra, em uma cumplicidade mir o escândalo dessa traição e confiar além dessa.traiçã_Q,
ambígua e obstinada. D~~~!!1:_QS 1 por isso, envidar enorme Estamos falando de um desafio: o desafio de sustentar a
~sfor?o par~ l~IJ.ert11_r._:Q_e>,§._clg ªitµiiÇ~~-!3-g~~se-tipo, p~~ contraditoriedade da existência. Não uma contraditorie-
Se criam mecanisi:n:os sutis e_j!J:.C<:)~Scie11tes, OS-·q:µ~is éiããe especulativa e filosófica, a considerar só em termos
percebemos SÓ com O tempo, cada mrl através de seus _ intelectuais, mas banalmente cotidiana, a n9ss11 própria
instrumentos de autoconhecimento e íntrospecç_ijo. P~ra · contraciitoriedade, aquela pela qual amamos o amigo
alguns, esses instrumentos são a meditaçiio, o bµdi~~o ê"'tãn;'bé~- o invefamos, desprezamos um superior mas
zen ou as técnicas iogues; para outros, a pslê~:nálise; .- quereríamos ser poderosos como ele. fü~rk~~~~!~. <Jiz.i_a . 1
para outros ainda, a oração cristã ou simplesmente . que os filósofos constroem grandes, .altíaaimQ~.-ªn!!atn.i~s , ! i,..:
uma relação de amor capaz de abrir novos horizontes, IITõsóficos e, depois, vivem em um galinheiro. Ele tinha. ~
de expandir e enriqucer a experiência consciente. Côm ·· razâo, porque a vida do homem é também um galinl:ieirQ,
efeito, o que chall1amos tomada de consciência não passa êlieio de mesquinharias e nutrido com superficialidades.~
necessariamente pela psicanálise; é o caso de aceitarmos -e· banalidades. Cabe a nós administrar esse par8:g.PX:(), se
lit.eralmente o que diz o Evangelho, isto é, que ~'OJLf!t_ -~lieremos levar-iios·a sério: TraiÇ}fo f i>en§ª-:ç,,,g_m_.AQss.a
mmhos do Senhor são infinitos". Se a meta é a verdade, éondição humana· eni· termos· de liberd8:de a_l>soluta, de
aquela verdade interior que as religiões chamaIÜ~P~\;s~, e conhecimento absoluto e de controle absoluto do rio da
a psicologia analítica chama Si-mesmo, os caminhos para vidtl; na verdade, não controlamos nada! A perspectiva
ela são tantos quantos os indivíduos, e cada qual deve _contrária à tra:içãõ' consiste, em meu parecer, em to- ''
I'
P~rcorrer seu próprio caminho. Essa é também "a porta marmos conhecimento também de nossa impotência; o '
-----·--- ..--,~···-- ·--~··-·~-- ... ---~~-··-·· -·-···-····•
,
48 AO
v_~rdacieirode_sa.fio está na confiança_ cie que alguma coisa ·eles sobrevivam psicologicamente sem muitos conflitos.
maior age dentro de 'nós, alglíma' coi.~~l ~aioi'do que o ê:ti.= Quantos de nós ainda são filhos nesse sentido, de mãos
)~ l1lais espaçosa do qµe o "meu", al~~~c:oi_sa_g_~ em e pés atados a um invisível incesto psicológico?
t!_@quilª_9pos!çi:íp à. ~oral <:l_e__!1Q§.ê9'ê. painéis pll,J;>IiÇ_jj;árias,__~ Vêm-me à mente as últimas páginas daquela obra-
nos un~ em uma suhsi.?iiciª-L~J1atural igualdade. Então prima de Rainer Maria Rilke que são seus Cadernos de
~Trã,ição, em suâs ~il ·formas ~ -·d!sfâ!"c~s·,"<l~i~ª- .de~$~~r Malta. O poeta elabora sua versão da parábola do filho
somente uma desventura:·--·· ....... - pródigo e escreve (Rilke, 1910, p. 263):
e.
Crescendo .. superando toda uma série de obstá- Na parábola do filho pródigo obstino-me a ver. a lenda...
culos, tornar-se-á claro que conseguimos uma autenti- 'daquele qu~ não queria ser 3;;mado. E seria difícil dissuadir-
cidade maior justamente evitando identificar-nos com ·-me disso.
o que os outros pensam de nós. O que os outros sabem
de nós? Em geral somos impelidos a um papel coletivo Não é fácil entrar plenamente nesse escrito de Rilke,
e estreito, que, além de tudo, é um modelo "cultural" e, porque ele contém, em linguagem poética, um significa-
por isso, "datado" e ancorado em determinada geração. do psicológico absolutamente revolucionário. Para ele,
Sem dúvida custa muito mais, em energias e sofrimentos, o filho pródigo é aquele que é forçado a deixar J:l c~-~ª- ,
procurar uma confirmação autêntica, a qual só pode ser paterna porque percebe que aquele que é amado. nela_,_
interior. Essa conquista se torna mais difícil quando a chamado com seu nome, esperado para a ceia e.festejado.
vida dos pais que não puderam efetuar esse percurso se 'pelo seu aniversário não é ele.. O filho pródigo rejeita
nutre da dependência dos filhos. Muitos filhos, não mais 'esse amor, que não é para ele, esses presentes, que não
jovens, ainda vivem com a mãe e não sentem o conflito são para ele; nesse sentido, a parábola é "daquele que
que o impulso para a individuação deveria tornar explo- _:q,ãq quis ser amado". Analogamente, Kierkegaard, _em
sivo e incoercível. Muitos jovens vivem em um limbo de seu comentário da parábola evangélica do filho pródigo,
possibilidades, como barcos de luxo que se deterioram afirma que os pais "não têm magnanimidade bastante_
no ancoradouro. Para eles, o universo se reduz ao meio para dizer ao filho que parta ou para compreender que__
familiar, ao "conhecimento" dos pequenos prêmios e re- ele deve partir", e acrescenta que, sendo assim, "não
compensas, dos pequenos e grandes delitos psicológicos, há solução" (Kierkégaard, 1934-55, p. 42). _Rilke narra
herança dos avós e antepassados, que serão transmitidos errrBeguida, com arte esplêndida, as peripécias daquele
para as gerações futuras. Permanecem encalhados nos joveru·-a·pr.ocura de si mesmo, o contato com a natureza,
"baixios" dos códigos existenciais e comunicativos de a espera do amor de Deus e o retorno a casa. O retorno
origem, dominados por seus preconceitos e completa- do filho pródigo a casa não é apresentado por Rilke como
mente inconscientes do oceano imenso e novo em torno ato de renúncia à sua procura, mas como superação da .
de si. Ter em seu poder a dimensão psíquica dos filhos traição. Como se ele compreendesse que a casa paterna, .
permite aos pais garantir para si uma importância e na quàl a pessoa é desconfirmada daquilo que ela é mais .
um papel preciosos, o que é possível somente quando intimamente, é uma manifestação da vida, da traição da ~
o filho continua sendo aquele filho que serve para que vida (Rilke, 1910, p. 271):
50
Então deteve-se.
Porque lhe sucedeu compreender cada vez mais que aquele retação dada por Wilde à parábola evangélica? Liga ele,
p
talvez, , . reco?h ecer o "sagrad"
o fato de o filho prod1go o
amor, do qual os outros se mostravam tão vaidosos, esti-
mulando-se a porfia, não dizia respeito só à sua pessoa. de sua própria vida ao seu arrependimento e ao seu re-
Ele teria quase sorrido de piedade, vendo-os atarefados torno ao seio da família? Ou podemos e, talvez, devemos
por nada.
ensar que o reconhecimento veio justamente por ter ele
Parecia claro que não pensavam no Retornado.
O que sabiam dele? ~onsumado a experiência da traição e, ainda melh?~" q~e
Amá-lo era agora terrivelmente difícil. 0 "sagrado" de sua vida corresponde a essa expenencrn,
Ele sentia que Um só seria capaz de fazê-lo. e não a acontecimentos posteriores a ela? Enfim, como
Mas - esse Um - ainda não queria. devemos entender a reconciliação do filho ~ródigo c~~ o
pai, que ele traiu, abandonando-o?~ n~rraçao evangehca
Rilke compreendeu a traição do filho, a tragédia de foi redefinida a seu modo por Andre G1de em um de seus
não ser amado, de ser entendido mal pelo "amor" dos pais. Poemas em prosa (Bergonzi, 1990, p. 110):
~ compreendeu t_ª!llbém ?_resposta mais humana E} mills Aqui o retorno do filho pródigo é uma ad~issão de malo-
sábia que se possa dar e esse-eqiiiv-oco terrível ir embora gro; procurou a independência pelos c~mmhos ~o mundo,
'e.vóítâr, isto é, emtermos psicológicos, diferencia~-se dos
~ ...... .
aspec1os_,malsãos_ daquele amor e depois perdoai_-.:_sentir
---·-
-~--, ...........
mas não foi capaz de suportar o confhto, ª.ansiedade e a
frustração inseparáveis da liberdade, por iss?. vo~t~ ~,ara
_:PNMde daqueles pais q~e se "afadigam por_nada". faª9 _ casa "por preguiça" ... Incapaz de suportar a traiçao da
significa que o pçii, capaz de âmá-lo, tornou-se figw:aiuter- família, preferiu trair a si próprio ...
nâ, diyi11ª, fülU~le "!J_II1" -ª-<? qual fala Rilke, cuja disponi-
bilidade pªra sairfo,ra é lenta, lentíssima, uínverdadeiro __ _ Outra é a apreciação de Kierkegaard, que viu no
~~rio. Analogamente, em seu escrito De profu~dis _que
é u~-~ J<ÚigiiÇ:~!!~~ Lord Ai:fred Douglas, o joverri por ele
1 retorno do filho pródigo - ao menos nisso não diversa-
mente de Rilke - um "retorno a si m_~smo" (Kierkegaard,
1834-55, p. 42): ------------
amado, Oscar Wilde sustenta, a propósito da parábola
evangélica do filho pródigo (Wilde, 1949, p. 94): "~:gLe_egµiqa ele_:r_etornou a s1. mesmo. "S.rm, a ..viag~~
. ;=t_Q,__
'éxterior terminou; terminou não com seu retorno a e.asa,_ ....
Estou certo de que se lhe tivessem perguntado, Cristo mas com seu retorno_ a si.mesmo ..
/ responderia que no momento em que o filho pródigo caiu
1
'
54
"escola" e às teorias dos pais fundadores torna a prática ' necessária para que o filho ponha em dúvida se esse é
profissional muito estéril e inadequada para enfrentar as ;ealmente o seu caminho. E, principalm~nte, que possi?i-
situações tão diferentes que a relação analítica suscita lidade de autorreconhecimento tem um Jovem de_dezmto
também no terapeuta. Uma explicação desse fenômeno anos que terminou o colégio para opor-se a um proJeto ~ue
é a de atribuí-lo também à tendência infantil de salvar não corresponde às sua inclinações? Nesse caso, a saude
sempre a imagem dos pais, isto é, no caso da família psi- psíquica consiste em conceder-se o luxo de dizer "não" a
canalíti~a, dos pais fundadores. Coll?-~~~ ~ê, é necessária__ essa troca paradoxal de papéis entre o passado e o futuro,
uma traição também e principalmente da parte dos filhos de recusar como "projeto" alguma coisa que já foi feita
uma traição daquelas instâncias que não sentimo~ m.'ai~ por outros. Metaforicamente, é uma espécie de s~gundo
corresponder a nós e que dificultariam o desenvolvimento corte do cordão umbilical, consistindo a nova ferida em
·de nosso "estilo" pessoal .. , · ·· .-,·~~- ver a "segurança" do passado como um abraço mortal. As
É importante e digno, em si, o fato de cada um procu- interrogações, no caso, são, pois: trair o futuro, isto é, a
. , . ?
rar inspirar-se em modelos que considera positivos e afins nós próprios, ou trair o passado, isto e, os pais. .
de suas inclinações; também Napoleão lia as vidas dos A traição é uma das experiências mais dramáticas,
homens ilustresLAs&im, embora um psican-ª_list,.§l ip.spire- porque é a experiência da separação. A vida é uma longa
~se ~E'.!Jlo9-o particular em Rogers, em Jung.o.:ue.~ série de separações, porque a nossa existência é pontilha-
~ _!lec~ssári.~ q11_e ten,ha seu modo próprio de ~trabalhar, da, até o fim, de laços afetivos (em relação a ~ma pessoa
segJ'istilo, único eirrepetúcel Quando não ç()µseguimos_ ou também a algum bem), e não há laço afetivo sobre o
ter rio_ss,o e$tilo, somos traídos pelas nossas possibilidades qual não se projete a sombra inquietante da perda, da se-
.expI,:essivas., E se essa traição se atribui, na infânCia, ·à paração. Separar-se de alguém ou de alguma coisa n~ qual
figura dos pais, é necessário dizer que, na vida adulta, aplicamos nossa capacidade afetiva provoca, sem duvida,
ela se torna nossa autotraição. O crescimento se dá em os maiores sofrimentos; entretanto, a esses sofrimentos
condições de inferioridade, porque somos vítimas de uma não podemos e não devemos subtrair-nos; ao contrário,
dependência emotiva e econômica; quando decidimos "sair devemos abrir-nos a eles e vivê-los até o fundo; trata-se
de casa", devemos, depois, haver-nos com o sentimento de do que Freud chamava trabalho de luto, "trabalho" que
culpa e com a chantagem econômica, sempre à espreita, consiste em se saber viver a separação, concedendo-lhe
em uma relação de forças fatalmente desigual. Como fi- tempo e espaço para ser elaborada. Como psicólogo,
lhos, vemo-nos entre dois pólos, melhor, entre dois fogos: creio que a escolha deve ser sempre para a frente, que o
atrás, o incêndio dos valores e dos preconceitos familiares· desafio deve ser acolhido, porque abre-se para nós uma
adiante, uma luz fraca, a chamazinha de nosso projet~ nova dimensão. Ninguém poderá perguntar-nos por que
de vida, luz que deve ser alimentada com impertérrita não somos diferentes do que somos, mas é provável que,
confiança. Pensemos em todos aqueles casos nos quais o Passando os anos, nós próprios nos perguntemos o que
filho nasce em uma situação familiar na qual a orientação realizamos da vida que nos foi dada. Se a tivermos usado
profissional está predeterminada há gerações: o comércio, Para proteger-nos dos imprevistos e das mudanças, não
a carreira de médico, de advogado etc. Quanta coragem conseguiremos nem preparar uma resposta, não teremos
56 l~.'7
elementos ~e~ pontos de referência, porque será como 4
nunc~ nos ~ive~semos aventurado pelo caminho que lese
do remo da ilusao para a verdadeira vida. Se não tivermva PAPÉIS E CONFIANÇA
usado noss~s energias em uma espécie de interminá os
surplace, nao menos fatigante do que uma corrida vel
trarem~s uma resposta da qual não nos enverg~:~~~~
~10s, _seJ~ ela qual for, resposta que não trairá a tristez~ ... os corações foram feitos para ser despedaçados ...
e nao. dispormos de outra existência para trocar Est, (0. Wilde, De profundis, p. 75)
certo dizermos que não sabemos por que fomos postos na
mun~o, m~s sabemos que não foi para olharmos em torno
de nos e nao fazermos nada. o
1····
o lugar de nossa cura. O sofrimento não nasce nunca.de___ 1,\'
/
ºº
82
6 "Trair" de maneira construtiva a norma familiar
não significa naturalmente mera oposicão aos valores
CÍRCULO FAMILIAR da educação e da moral, assaltar um banco, drogar-se
E CÍRCULO HERMÉTICO ou cometer ações de delinquente; muitas veze_s ~ss~s
síndromes violentas são expressões de grave d1sturb10
na relação com a família, distúrbio em razão do qual o
filho não conseguindo libertar-se do caos e do desamor
· · · aquf ~hegam somente os hóspedes justos. Este é o Círculo do a~biente natal, procura atrair a atenção e cuida-
Hermetico ...
dos solícitos mediante ações de impacto. Nesses casos,
(Hermann Hesse) traído não é o pai, mas a possibilidade de desenvolver
a existência própria de modo satisfatório e criativo. Se
quisermos falar de traição "positiva", re,f~rir-nos-e~~s, ~o
contrário, à coragem de su~met_er a critica e conscien~ia
não só os v-alores nos quais fomos educados, mas tambem'
No âmbito da família, muitas vezes se consolidam a coerência com a qual os pais no-los transmitiram e a
dinâmicas relacionais aparentemente incompreensíveis
correspondência a eles que encontramos em nós. Traição
as quais, todavia, se revelam plenamente consequente~
"positiva" da família significa esforço para fundarmos
sob um perfil psicológico. O indivíduo é preso inconscien-
nossa conduta de vida no que consideramos certo e opor-
temente em um jogo cujas finalidades autênticas ignora
tuno correndo o risco de essa visão não corresponder à
dos ~ais. Se tais são os termos da alternativa, ~xplica-se a
e reage segundo modalidades defensivas muito difusas'
a_s quais o levam a procurar pretextos externos para jus~
forte oposição da família a que cada um expenment~ sua
tificar seu e~volvimento. Contra seu interesse, ele projeta própria solidão no mundo, construindo dentro de s1 um
em acontecimentos totalmente extrínsecos as razões de
lugar separado e secreto, no qual possa mover-se de modo
um incômodo que tem outras origens e cujo desmasca- cada vez diferente, a fim de encontrar-se com os outros.
ramento o obrigaria a interrogar-se sobre as referências
Estar só e redescobrir-se em uma dimensão totalmente
afetivas que sempre teve como certas. Como de costume
. particular, individual, sem referências externas, impli-
o mecamsmo vencedor é aquele pelo qual o filho tenta de'
ca necessariamente uma atitude crítica que submete a
todos os modos salvar a imagem dos pais. A sua condição
análise tudo o que está em torno de nós. A proibição de
parece desesperada, é a condição daquele que tem seus
ocupar-nos de nós próprios nasce de uma questão crucial:
confidentes no campo inimigo. Traindo a norma familiar
qualquer indagação sobre o mundo implica antes de tudo
ele poderia salvar a si próprio, ao passo que, salvand~ ~
uma indagação sobre o que está mais perto de nós, sobre
norma a todo custo, renuncia a dar sentido à sua exitência·
o que está sempre perto de nós. Não só isso, mas também
nos dois casos, não poderá livrar-se de um sentimento d~
qualquer resposta que dermos torna-se o que chamamos
culpa vivido em uma escura inconsciência e, no primeiro
caso, em dolorosa solidão. - experiência só quando produz uma ressonância, um eco
profundo em nossa vivência. 1
84
11
A vida do neurótico, dado seu sentimento social ~~focado,
Aluz do que acabamos de dizer, não foi por acaso que _ se exerce antes de tudo no quadro de sua fa~1ha. Se o
Adler identificou no "problema da distância" uma chave doente se encontra no grande círculo da soc1e~ad~, ele
de leitura do comportamento do "neurótico" (Adler, 1920, · mostra sempre um movimento retrógrado na direçao do
pp. 119ss). O "neurótico", na perspectiva da "psicologia círculo da família.
individual", está constantemente propenso a interpor ·
uma distância entre si e sua problemática, entre si e a · A criação de distância é reforçada de vários modos,
decisão a tomar, entre si e o ato a fazer. Essa distância é porque é tranquilizadora. Por outro la~o, entrarmos em
formada por sintomas: o sofrimento do corpo e a renúncia relação com nós próprios parece ser v1~to !?elos. outr~s
à vida emotiva. O ritual de uma pessoa obssessiva, por mo algo muito perigoso. Como se a vida mtenor nao
exemplo, pode ser lido, na ótica sugerida por Adler, ~~sse permitida. Com efeito, ao re~irar-nos do_ mundo,
como a interposição de uma distância entre a pessoa e reduzimos a intensidade e redefimmos a _qu~1dade da
sua afetividade. Existe a fenomenologia da distância e intervenção dos outros em nós. O nosso mcomo~o e ~
existe a fenomenologia das traições consumadas ne~~~-". nosso bem-estar adquirem novo centro de gra;1dad_e,
distância. Vimos no capítulo precedente que a família cria · isso significa que já não representamos uma ram1ficaçao
distância entre si e o mundo externo e também distân.C!a · da psique de quem está ao nosso lad?, mas podemos, por
entre seus membros. Existe, ademais, "distância de exemplo, aceitar ou rejeitar um p:d1do, reconhecer su~s
segurança" entre os corpos, digamos também uma modalidades e restituir seu sentido profundo. ~tr~ves
"distância social", sustentada pelas convenções sociais dessa restituição pode suceder que vejamos nosso mcomo-
e observável em vários comportamentos cotidianos. do redimensionado, justamente porque o expurgamos de
Adler fala dos diversos graus de intensidade pelos conflitos e projeções que na realidade não nos pertencem.
quais o doente exprime sua "separação do mundo··;;·· A visão mais realista de nossa dependência dos out~os
da realidade" (ibid., p. 123). Essa distância é. iridicfiªa· redimensiona automaticamente seu poder e nos J?er~ite
por ele nas quatro categorias seguintes: 1) movimento subtrair-nos a muitas chantagens e instrumentahza~oes.
regressivo (o qual, em sua vasta gama, compreende- A assimetria e a dominação nas relações interpes~oais se
º suicídio e a agorafobia, a ansiedade e a anor·e~fiC fundam nas necessidades; é óbvio que quanto mais e~tas
mental, a amnésia e a toxicomania etc.); 2) parada (a se reduzem, tanto mais se reduz o poder do outro .. E da. ·
qual compreende as "adaptações protetoras", como ã-::-=· vida interior, portanto, que podem :nascer 3:.s s~m:iente~ ~a.
insôniâ ·e á iínpotênda etc., que "impedem o sujeito de _. revolta. Falamos de uma verdadeira e propria rebehao.,
ir muito longe"); 3) dúvidas obsessivas e "vaivéns na porque temos bem presente a dram_ati~idad~ _d~ ~o~a .
ideia ou na ação" (e aqui Adler inclui, entre outros,·â.. tentativa de diferenciação com relaçao .a fam1ha, c~.1.Il:{)
enfatização das dificuldades, o pedantismo mórbido, o. escreve Freud em O romance familiar dos neuróticos
retorno ao caminho percorrido, o atraso em chegar etc,); (Freud, 1908, p. 4 71):
4) construção de obstáculos (ibid., pp. 123-26). Escreve
A emancipação do indivíduo q~e _cresce ;relativa~e~te
Adler (ibid., p. 126): à autoridade dos pais é um dos exitos mais necessanos,
87
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mas também mais dolorosos do desenvolvimento. É abso- toma forma e se confirma na experiência, infelizmente
lutamente necessário que essa emancipação se realize e
é presumível que cada um que se tornou normal a tenha inédita, do respeito à individualidade. Na análise, os
realizado em maior ou menor medida. Antes, o progresso tempos pessoais são sagrados, não são aniquilados, e não
da sociedade se baseia nessa oposição entre gerações. Por se pede sua uniformização no anonimato dos ritmos cole-
outro lado, há uma espécie de neuróticos cuja condição é tivos. Ao contrário, são reconhecidos como componentes
claramente determinada pelo fato de terem fracassado da personalidade, como aspectos de um estil? particu~ar,
nessa tarefa.
válido justamente enquanto tal. Isso se aphca tambem,
e principalmente, com relação à experiência que todos
A nossa vida não equivale a um dado natural, mas temos de sermos traídos. Antes, uma das hipóteses que
a uma potencialidade a desenvolver, a algo que deve se:r são postas como fundamento da terapia. ps.icoló?'ica,
adquirido e agarrado, na primeira pessoa. Esse ato de hipótese que me parece particularmente s1gmficativa e
conhecimento só se originará de nossa realidade mais fecunda, pode ser enunciada como "ausência de traição".
interna, "lugar forte" que nos constitui como indivíduos. Com efeito, na relação analítica a traição é completamente
Ter determinada família, ou simplesmente uma família, avaliada. Isso é possível por causa da circunstância pela
pais, irmãs e irmãos, não deve ser considerado como qual, na relação analítica, como já tive ocasião de dizer
elemento imodificável nem deve representar o limite úl- (Carotenuto, 1989, p. 99):
timo, intransponível, de nossa vida psíquica. Deixemos
por instantes os fatores sentimentais e reflitamos sobre A traição já não é abandono, entrega do outro a um vazio
a insignificância do dado biológico diante da imensa sem significado, extrema rejeição - porque nã? ~17lta a
importância da cultura enquanto prolongamento do or- presença do terapeuta-, mas aceitação da poss1b1hdade
do insucesso e da ambivalência humana. O terapeuta
ganismo biológico, para usarmos uma expressão típica se relaciona com o paciente com a totalidade de seu ser,
da antropologia. A manipulação do elemento :natural, a comunicando-lhe vivências nas quais a autenticidade, o
possibilidade de interferir nele, modificando-o, represen- respeito e o acolhimento são mais fortes do que qu,alquer
ta o específico humano com relação ao resto do mundo mudança de comportamento. Nesse sentido, falamos de
vivente. Também sob esse aspecto, o nosso vir ao mundo substancial "ausência de traição", a qual confere os novos
parâmetros pelos quais leremos o mundo, o novo modelo
como homens é marcado por uma libertação, a mesma que de comportamento.
somos obrigados a efetuar, traindo o pacto sem condições
que estipulamos com a família. Assumindo o sentimento Geralmente é pedida aos filhos uma enorme tarefa:
de culpa, encaminhamo-nos por uma via que se coloca ser bem-sucedidos onde os pais fracassaram. Aí não se
fatal e fatigantemente em lugar diferente do que nos foi trata de um vão lugar-comum, porque a ambição dos pais
indicado.
muitas vezes não conhece limites. O filho deve resgatar o
Consideradas essas premissas, a relação analítica Papel social, procurar o poder, ter um comportamento éti-
pode ser representada como espaço novo, diferente do co; em outras palavras, deve realizar algo absolutamente
da família. Trata-se de um espaço no qual o específico extrínseco, alcançar uma meta na qual nunca pensou e a
da pessoa não é identificável com algo já existente, mas qual nunca desejou. As projeções dos pais podem marcar
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00
pesadamente e de modo até permanente a identidade Acabamos de dizer que, na escolha da própria au-
psicológica dos filhos. O que Jung chama "consciência tonomia feita por um jovem, a luta por alguma coisa se _
artificiosa" dos pais torna-se letal quando, por exemplo, torna luta contra alguma coisa, e então é interessante
o filho estiver para escolher sua companheira. Caso notar que o verbo evangélico "separar" foi traduzido por
exemplar no qual o círculo familiar modela coativamente Lutero por "levantar contra". Contra essa e outras inter-
qual destino, a vida do filho é o da mãe que se manté~ pretações análogas - que não parecem, todavia, despro-
"artificiosamente inconsciente para salvar as aparências vidas de legitimidade interna - manifestou-se Hanna
de uma boa vida conjugal" (Jung, 1925, p. 193). Nesse Wolff, psicanalista alemã de orientação junguiana. Em
caso, sustenta Jung (ibid.), a mãe estudo dedicado ao exame da figura de Cristo sob o ponto
acobrr~nta seu filho a si, sem sabê-lo, de certa forma como
de vista da psicologia analíticl:l, essa autora pergunta
su stituto do marido. - se heuve alguém qu~ tenha realmente compreendido o
sentido da passagem evangélica citada acima. A teologia
Continua Jung (ibid.): talvez não a compreendera ou, em todo caso, não parece
haver respondido adequadamente, sendo, então, neces-
Se essa atitude nem sempre leva ojovem à homossexualida- sário dirigir a atenção, uma atenção arriscada, para a
de, impele-o, em todo caso, a uma escolha diferente da que
corresponderia à sua verdadeira natureza. Ele desposará, perspectiva interpretativa que se obtém recorrendo-se aos
por exemplo, uma jovem evidentemente inferior a sua mãe instrumentos oferecidos pela psicologia profunda. Afirma
e que, portanto, não poderá fazer-lhe concorrência ou cairá Hanna Wolff(1975, pp. 231-32), referindo-se à passagem
nas mã_os d? uma mulher tirânica e presunçosa', a qual, supramencionada do evangelho de Mateus:
por assim dizer, o arrancará de sua mãe.
Embora pareça presunção, só a psicologia profunda é que
O jovem que se liberta da coação do círculo familiar pode compreendê-la profundamente. Com efeito, Jesus
"desliga de", "divide do" coletivo da família. Ele desfaz
e escólhe sua autonomia enfrentará dificuldades, dores, - a ingênua participation mystique, a fim de virem à luz
ãnsiedfüfés e"aifüagém persecutória do filho fantàsiado indivíduos singulares, independentes e responsáveis.
pelos pais. Assim, a luta por alguma coisa passa a ser
luta contra alguma coisa. A posição tomada por Jesus, Em suma, para essa autora, Jesus é o primeiro te-
pelo "traído" por excelência de nossa história, parece, rapeuta, porquallto a tarefa indispensável que ele põe é
aliás, decidida em relação às conclusões próprias do "ã de combater contra o vínculo paterno e materno, de _
círculo familiar. A mensagem de Jesus se configura consumi-lo e superá-lo uma vez por todas" (ibid.). Por ou-
claramente como de divisão e conflito; portanto, como tro lado, parece-nos esclarecedora a conexão estabelecida
mensagem que entra na área potencial da traição implicitamente nos evangelhos entre uma mensagem des-
(Mateus 10,34-35):
se alcance e a dimensão de "traído", constitutiva de Jesus,
Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer que se fez portador dessa mensagem. É de um "traído", e
paz, mas espada. Com efeito, vim separar o filho do pai, só de um "traído", que pode vir e ressoar fortemente não o
a filha da mãe, a nora da sogra ... convite, mas o" mandamento" de trair. E o mandamento _ 1
/ '-1
90 Q1 I:!
de "trair" seria entendido como a necesi;;idade na qual "Por qual motivo estou aqui?", perguntei, escandindo as
vem encontrar-se o indivíduo de assumir sua vida até - palavras muito lentamente. "Como vim de tão longe e tive
tornar-se, como já sublinhamos, pai e mãe de si próprio. · a ventura de encontrar-me convosco aqui, hoje?"
Parece, com efeito, que é nisso que Jesus pensa, quando à. Hesse permaneceu silencioso, imerso na luz invernal, e
depois disse: "Nada acontece por acaso; aqui vêm somente
multidão, e portanto ao homem coletivo e indiferenciado · os hóspedes justos. Este é o Círculo Hermético ... "
que lhe diz (Marcos 3,32): '
"Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora Que significado atribuir à expressão de Hermann
e te procuram", Hesse? Como entender seu "Círculo Hermético?" E como
entender que a ele "cheguem somente hóspedes justos?"
responde: "Quem é minha mãe e meus irmãos?" (Marcos O círculo hermético não nos é destinado de modo natu-
3,33); e, passando o olhar sobre aqueles que estavam ao ~:al; nós é que o escolhemos, como escolhemos amar uma
seu redor, acrescenta (Marcos 3,34-35): pessoa de fora de nosso clã. Podemos identificá-lo com
a comunidade dos sábios, como a entendiam os filósofos
"Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade
de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe". estoicos antigos. "Eles pensam", diz Cícero, "que os sábios
são amigos dos sábios, ainda que não os conheçam". E
continua (Cícero, De natura deorum 1, 44.121, in Isnardi
É necessário dizer também que, em certo sentido, o
Parente, 1989, p. 1258):
núcleo familiar não nutre dúvidas a respeito de sua con-
sistência. Embora seja dominada por um sistema externo Nada é mais digno de ser amado do que a virtude; aquele que
e mais poderoso, do qual talvez até não compreenda nada, a conseguiu, esteja ele onde estiver, deveremos amá-lo.
a família se consolida, proibindo o uso da dúvida. Eis por
que todo recuo, toda reflexão autônoma são irremedia- Notemos que o termo "sábio" deve ser entendido aí
ve~mente sufocados. Na realidade, a crítica das próprias não no sentido referente a um saber intelectual, mas
origens e a descoberta da própria diferença represen- nô que é indicado por Séneca em uma de suas Cartas a .
tariam importante etapa à constituição de uma família Lucílio (Seneca, Lettere a Lucillio, in Isnardi Parente,
desvinculada do dado biológico e justificada "somente" 1989, p. 1258):
pela afinidade espiritual. Hermann Hesse falava de um .
círculo hermético ao qual todos nós pertenceríamos e no Ninguém sabe verdadeiramente testemunhar reconhe-
cimento senão o sábio, como ninguém sabe prestar um
qual todos nós pensaríamos com afeto e amor, porqu_enão benefício senão o sábio ... Só o sábio sabe amar; só ele é
nos é imposto pelo fato de termos nascido em determinada amigo ... dizemos que a verdadeira lealdade não existe
condição histórica. O círculo hermético é aquele ao qual senão no sábio.
"chegam somente os hóspedes justos';. Assim o definia
Hermann Hesse em sua resposta a Miguel Serrano, que O círculo hermético pode ainda, ao menos em parte,
lhe perguntava por qual motivo se encontrava em sua ser comparado ao Gemeinschaftsgefühl pensado por Adler,
casa (Serrano, 1966, p. 28): ou àquele "senso comunitário" que Adler, como escreveu
/
92 QQ
Hi!l~an em seu li~oAs histórias que curam, "considerava 7
a umca meta reahsta da psicoterapia" (Hillman 1983
167), senso comunitário que não deve ser ent:ndido ':· A NOSTALGIA DESORIENTADA
uma comunidade particular, de uma comunidade ani~
mada por metas específicas e rigidamente preordenadas
co:r~o.' por ~x~mplo, a organização política ou a confrari~ Primeiro Adão foi criado do pó da terra, depois Eva foi
rehg10sa (ibid., p. 169). O círculo hermético não deve criada de Adão. Por isso a expressão "à nossa imagem e
ser confundido c~m círculo mágico. Na introdução à sua semelhança" deve significar que o homem não pode vir ao
segunda categona da distância, a categoria da parada, mundo sem a mulher, nem a mulher sem o homem ...
Adler (1920, p. 124) afirma: (Talmud in Cohen, 1932, p. 30)
103
10?.
plo, que o homem pode tornar-se consciente de sua anima compromissos "razoáveis"' fábricas de sofrimento que se
através do reconhecimento de sua projeção sobre uma transmitem de geração em geração, sofrimento oculto,
mulher real. Não é tarefa fácil, uma vez que a instauração sofrimento do qual não se pode falar, porque não se sabe
de relação com conteúdos inconscientes não é processo torná-lo consciente, sofrimento vivido na sombra do si-
intelectual. Trata-se, todavia, de tarefa necessária, se lêncio. Por outro lado, a aquisição de maior consciência
quisermos assumir posição interior consciente que guie no âmbito da relação pode revelar as motivações ocultas,
nossas escolhas em conformidade com nossas exigências às vezes extremamente destrutivas, que deram origem
mais íntimas e fundamentais. Quanto menos evoluído é o à solidariedade neurótica dos dois parceiros. Tornar-se
indivíduo no plano da consciência, tanto mais a escolha do consciente desses aspectos requer muitíssimo tempo,
parceiro será ditada por motivos inconscientes, os quais trabalho e honestidade psicológica. Caso esse processo
decidirão, "sem que ele o saiba", a atitude psicológica e interior seja acompanhado por um terapeuta, deverá ele
emotiva que caracterizará o encontro. Na maior parte dos empregar toda a sua habilidade e seriedade. Isso porque
casos, o "matrimônio externo" será realizado sem senhu- · a arte da terapia exige o homem todo.
ma consciência do "matrimônio interno" com o animus, no Jung sustenta que o processo de individuação assume
caso da mulher, e com a anima, no caso do homem. Isso relevo determinante na segunda metade da vida, quando
significa que não houve integração desses conteúdos in- as experiências da juventude começam a pedir natural-
conscientes, nem, portanto, alargamento correspondente e mente uma elaboração dos conteúdos psíquicos.
progressivo da consciência. Em outros termos, a união se Como já tive oportunidade de dizer, a intensidade
dá antes que nos tornemos cônscios da dimensão projetiva, das paixões juvenis, embora vivida inconscientemente,
o que naturalmente complica, quando não impossibilita, constitui experiência irrenunciável e extraordinariamen-
o trabalhoso processo de conhecimento de nós próprios te criativa da vida afetiva. Descrevendo como a nossa
e do outro. Não foi sem razão que Balzac (1829, 'P· 86) procura do outro oculta sempre a nostalgia da simbiose
sustentou em sua Fisiologia do casamento: originária, constatamos que nas relações coi:cretas
muitas vezes vivemos a angústia por alguma c01sa que
O matrimônio é uma ciência.
ainda não existe ou que parece não poder existir. Com
isso dispomos de um elemento a mais para compr~e~der
Também a dominância de fatores inconscientes pode que a nossa inconsciência se configura como o prmc1pal
permitir algum "funcionamento" da relação; numerosíssi- responsável pela trágica distância entre a realidade e
mos matrimônios neuróticos "funcionam" por anos e anos o desejo. A maior parte das pessoas vive de modo in-
porque seus pressupostos permanecem inconscientes. consciente não cabendo a nós julgar se isso é um bem
Ninguém consegue explicar como duas pessoas aparen- ou um mai; sabemos, porém, que em muitos casos pode
temente incompatíveis permanecem juntas; no entanto, ser perigoso atacar o equilíbrio individual, ainda que
todo esforço é dirigido para a manutenção da ambiguida- mantido mediante extenuantes defesas neuróticas. Tal
de e da falta absoluta de coerência. Pessoalmente, como situação psíquica de indiferenciação, isto é, situação na
analista e como homem, não me inclino a apoiar esses qual a anima feminina do homem e o animus masculino
1tH::
104
da mulher jazem afundados no inconsciente, apresen- no qual cada um personifica ora a vítima, ora o algoz.
ta um fenômeno característico no plano de identidade Não foi por acaso que, desde o fim do século XIX, Drá-
consciente. Com efeito, a mulher se refere ao seu com- cula, o Vampiro, foi aceito estavelmente entre as figuras
panheiro e ao masculino em geral como "só feminina", e tópicas, emblemáticas e paradigmáticas do imaginário
paralelamente o homem se põe perante a mulher sim- erótico ocidental (mas no norte e no leste da Europa, a
plesmente como masculino. Portanto, nesse estágio do partir dos Bálcãs, foi aceito ao menos dois séculos antes
desenvolvimento psíquico, a identidade sexual pertence do aparecimento do célebre livro de Bram Stoker, em
ao tipo "tudo ou nada"; porém mais importante ainda é a 1891). Na mordida de amor do vampiro exprimem-se
condição de total dependência do parceiro decorrente da não só o desejo perverso de quem se nutre do sangue dos
dinâmica projetiva. Aqui não há nenhum espaço para a outros e, através da opressão do outro, dá vazão à sua
relação individual, porque nela o confronto com a hete- vontade de poder, mas também a irresistível sedução de
rossexualidade do outro pressupõe sempre a relação com quem se oferece como vítima. Drácula, para existir, tem
os componentes heterossexuais próprios. Interessa-nos necessidade do sangue alheio, e a contaminação é tal que
não tanto a relação em sua concretude, em seus aspectos transforma a presa inocente em vampiro. Sem metáfora,
públicos, por exemplo, em suas "realizações", quanto a dupla de atormentado e atormentador formam uma
a relação psicológica que o sustenta. As tragédias da simbiose. Essa contínua "transfusão" de papéis susten-
relação nascem desta forma: excluindo nosso aspecto ta inúmeras relações. De fato, na vida cotidiana, não é
contrassexual inconsciente, caímos em poder do outro, tanto o amor quanto a dependência sadomasoquista que
ficamos psicologicamente possuídos por ele, e então ele cimenta e preserva a união.
pode fazer de nós o que quiser. No passado (e ainda hoje, Em todo caso, em decorrência de uma estranha
algumas vezes), chegava-se a matar o outro, na tentativa necessidade psicológica, a relação sentimental se define
de libertar-se de uma dependência vista como destruti- como relação de poder; e não é muito necessário, como
va. É claro, com efeito, que situações tão extremas nas muitas vezes se pensa, determinar qual dos dois parceiros
.
quais o homem ou a mulher exercem sobre o outro um
' detém o poder, uma vez que, para um dominar, o outro
poder de vida e morte, verificam-se quando ao outro é deve consentir. Em psicologia, falamos de "chantagem do
confiada, entregue, delegada uma parte do Si-mesmo. masoquista" para nos referirmos não só às estratégias
Eis por que a ferida causada e sofrida é mortal. Porque culpabilizantes mediante as quais a parte fraca liga a si
total é a traição. o companheiro mais forte, mas também ao fato, por exem-
É nessa sujeição recíproca, nessa distribuição plo, de que, usando o poder do outro, o masoquista evita
complementar e inderrogável de papéis que reside o usar seu próprio poder e assim entrar nas zonas de sombra
fundamento de qualquer união e principalmente do de sua psique, potencialmente perigosas. Sua tentativa
matrimônio. Pode-se pensar então que atrás de sua de conservar sua imagem "limpa" é plenamente bem-
máscara social o matrimônio revele uma estrutura sado- sucedida. Quando se estipula um pacto de amor eterno,
masoquista, isto é, a uma condição psicológica que leva a evidentemente não é a razão que o subscreve; antes, é de
tormentos recíprocos, a representar o "papel das partes", supor-se que a razão não tenha sido nem consultada: não
1(\g 107
só aceitamos como também pretendemos hipotecar todo
0 U mp. licidade neurótica. O matrimônio de alma, ao
nosso futuro "até que a morte nos separe". Como quando ernc ·-d d
tra'ri'o torna-se possível somente como umao e uas
uma luz ofuscante apaga todo o resto da realidade em con ' · o · p
solidões. Escreve o poeta e ensaísta mexicano ct'av10 az
nosso campo visual, o presente nos parece tão luminoso em o labirinto da solidão (1959, P· 250):
que essa luz cobre todo o futuro em nossa imaginação.
Em tais ocasiões de intensa paixão experimentamos, o amor é um dos exemplos mais evidentes dos doi~ instintos
ou melhor, acreditamos experimentar o sentimento de que nos induzem a escava; e a afund~r-nos em ~os mesmos
eternidade. e, ao mesmo tempo, a sairmos de nos e a r:ahzar-nos no
outro: morte e recriação, solidão e comunhao.
Ainda hoje o matrimônio representa um ponto de
chegada, mas, se o casal tentasse vivê-lo e senti-lo como
ponto de partida, certamente teria mais garantia de so- o homem, afirma Paz, é simultaneamente ~ostalgia
brevivência, especialmente em termos de qualidade da e procura de comunhão. Quando ele sente a s1 mesmo,
sobrevivência, porque qualquer relação se configura como sente-se também como falto do outro e, po~t~n~?', como
caminho e não pode subtrair-se à evolução. Escreve Jung solidão. Isso implica uma "dialética das so~1does . ~ base
(1925, p. 195): do amor uma dialética capaz de confundir e ~eJeitar o
que 0 adtor chama "mentira social". Escreve amda Paz
Poderemos falar de relação individual somente quando (ibid., p. 24 7):
a natureza dos fatores inconscientes for reconhecida e
quando a identidade primitiva for abolida em larga medida. O amor, mesmo sem a intenção, é ato 3:ntissoci'.11, p~rque
Raramente - para não dizermos nunca - o matrimônio toda vez que chega a realizar-se destrói o matnmon~o ~o
chega à sua realização individual sem choques e crises. transforma no que a sociedade não ~ue~: n.a revelaçao d e
Não se consegue sem dor a tomada de consciência. duas solidões, as quais criam po~ s1 propnas um mun o
que dissipa a mentira social, supnme o tempo e o trabalho
Uma psicóloga junguiana chegou a sustentar que, e se declara autossuficiente.
alcançada essa consciência, o amor já não é possível. Per-
guntaríamos, contudo, se, alcançada essa consciência, o A solidão permanece, pois, no mundo para criar d~~e
amor não se tornaria possível pela primeira vez. um outro. Não são só os fundadores de religiões, º.s her01s
A relação autêntica não exclui a dimensão da dor. das mitologias e os poetas que dão teste~unho disso. Na
Porque na relação autêntica os dois parceiros não escon- realidade e nisso o discurso de Paz se hga a um dos fios
dem um do outro a contínua mudança da vida, a oscilação condutor~s de nosso trabalho (ibid., p. 255),
constante e a precariedade que nos faz sentir-nos às vezes
solidão e pecado original se identificam.
cheios, às vezes vazios, ora em harmonia com os outros, ora
hostis e ofendidos. Não querer levar em conta o sofrimento
significa anestesiar ao menos metade da experiência de Quando a pessoa é jovem, é mais .fácil, por causa do
estar vivo; e quando se trabalha em dois nesse projeto pouco conhecimento de si mesma, proJetar no outro seus
de remoção, o matrimônio se transforma diabolicamnte aspectos interiores e viver assim subrepticiamente o ~or
Por si mesmo, um amor que nunca sai do círculo narc1s1co.
108
1(10
Mas não existe relação psicológica entre dois indivíduos psicológico característi~o~ que definimos com? processo
que não tenham atingido certo grau de consciência, e de individuação do femmmo. A mulher devera, contudo,
não existe consciência sem diferenciação do outro. O enfrentar a traição: ou a de sua dimensão psicológica
outro entra em nosso horizonte de vida somente através ou a do parceiro. Como diz Neumann, quando a mulher
da abertura delineada pela consciência, e, vice-versa, a retira a projeção da figura externa do companheiro e
consciência emerge só quando se experimenta o limite reconhece esse masculino como algo interno, ela chega à
oposto pela irredutibilidade do outro, chocando-se contra autonomia do parceiro real (Neumann, 1953, p. 23). Esse
ela. Esse reflexo oferecido pela relação pode constituir 0 movimento psicológico põe, todavia, outros problemas, já
aspecto positivo do matrimônio, no sentido de que ajuda que justamente esse ato de liber~a.de, a saber, a ~etirada
a se reconhecer o elemento projetivo.
da projeção, é inevitavelmente vivido pelo parceiro c~mo
Se o matrimônio representa apenas o expediente traição. Ele pode então lamentar que as coisas não seJam
mágico para a negação da realidade da separação ou da como antes, sem pensar em tomar em consideração as
realidade da diferença radical que nos constitui como in- possibilidades construtivas inerentes à transformação em-
divíduos, nunca abrigará uma relação psicológica. Cada preendida pela companheira, transformação pela qual ele
um de nós foi arrancado e expulso violentamente de uma se sente atingido, invadido e repelido. A afirmação acima
condição paradisíaca originária, e toda a nossa vida se referida de Neumann pode ser lida também no sentido de
passa na tentativa de sanar essa ruptura, saneamento que a dimensão psicológica da traição pertença de modo
que se dá através da profundíssima passionalidade que radical, positivo e construtivo ao feminino. Tomemos como
nos faz dizer "tu me pertences", levando-nos inconscien- exemplo o romance de ApuleioAs metamorfoses ou O asno
temente a empregar uma linguagem, por assim dizer, de ouro, no qual, como já indiquei, o adultério é feminino
''bélica", linguagem que conota toda a intensidade de nosso (Carotenuto, 1990, p. 184):
desejo. Em amor, a primeira escolha se revela muitas
ve-zes um insucesso, porque realizada conscientemente; No romance sempre são as mulheres que traem; de fato, o
não obstante, é um caminho inevitável para se chegar ao adultério é feminino. Quando se pronuncia essa palavra, é
difícil pensar no homem; e também de um ponto de vista
alargamento da consciência e, portanto, da identidade clínico pode-se afirmar que o adultério não constitui nunca
sexual. Nesse caminho espera-nos a experiência da trai- a base de seus problemas, como se dá com a mulher.
ção. Além do matrimônio fundado na coação inconsciente,
explorada culturalmente, deveria haver o matrimônio Pode-se supor que na origem da "feminilidade" da
fundado na união de duas solidões, nas quais a percep- traição esteja o fato de que a duração da relação primária
ção da diversidade do outro não é vivida como ruptura é maior na mulher do que no homem. A maior duração
da simbiose, mas como um desafio ao nosso narcisismo. da relação primeira admite, com efeito, da p~rte do f~
Um desafio a aceitarmos, se queremos manter nossa minino a aquisição de uma capacidade relacional mais
integridade psíquica.
profunda e, com ela, a capacidade de transformar a vida.
O homem e a mulher têm destino diferente na rela- Essa hipótese explicaria os efeitos menos devastado~es
ção de casal, porque a mulher pode ter desenvolvimento da traição no homem do que na mulher, porque ele vive
110
111
a relação geralmente de forma mais superficial (ibid., pp. 9
201-02). O aspecto "traiçoeiro" do feminino em todas as
suas variantes aparece, obviamente em sentido negativo O SILÊNCIO COMO TORTURA
na mitologia e na literatura. Trai a Eva do Génesis com~
trai a Sofia dos gnósticos; trai Pandora, quando abre 0
vaso, e trai Helena, levando à morte dos heróis da Anti-
guidade, obrigados a combater em Troia por sua causa. Estou com os nervos em frangalhos esta noite.
Escreve Andrea Cappellano em seu De Amare, ajá citada Sim, em frangalhos.
"summa erotica" medieval (Cappellano, 1980, p. 319): Fica comigo.
Fala alguma coisa. Por que não falas? Fala.
E também todas as mulheres, o que dizem, dizem dupla- Em que estás pensando? Pensando em quê? Em quê?
mente, porque sempre têm uma coisa no coração e outra Não sei no que estás pensando. Pensa.
nas palavras. Porque nenhum homem poderia ter tanta (T. S. Eliot, A terra desolada, p. 261)
familiaridade com a mulher ou ser tão amado por ela que
pudesse saber seus pensamentos ou conhecer o que ela diz.
Porque a mulher não confia em nenhum amigo e pensa que
todos a enganam; por isso ela está sempre enganando ...
Na sociedade patriarcal que herdamos, caracteriza-
da por conotações de competição, para não dizermos de
Cappellano aduz o exemplo bíblico de Sansão, traído agressividade e prevaricação, a mulher, na relação de
por Dalila, e faz o seguinte comentário (ibid., p. 321): casal, tem destino diferente do do homem. Com efeito,
Sabemos de outras mulheres que traíram seus maridos o desenvolvimento, que tem como componente essencial
e amantes, porque eles não souberam ocultar a elas seus a diferença da identidade sexual, é sempre fortemente
pensamentos ... condicionado pelos valores do cânone cultural. Existem
papéis prefixados e preexistentes aos indivíduos, em
Não é diferente de Andrea Cappellano outro escritor relação aos quais alguns desses papéis são ordenados
medieval, que se inspira nele, Maftre Ermengau, autor de hierarquicamente uns sobre os outros, em um sistema
um Breviário do amor. O que as mulheres gostam mais de "submerso" de dependências recíprocas. Tomemos como
fazer, escreve Maftre Ermengau, é o que lhes é proibido exemplo dessa configuração de hierarquias um fenôme-
(in Nelli-Lavaud, 1966, pp. 708-09). Além da vaidade, no da vida cotidiana que pode roçar-nos ou atingir-nos
há outra acusação tradicional dirigida pelos moralistas diretamente: algumas doenças femininas que aparecem
medievais ao sexo feminino, a saber, o gosto pela mentira em uma vida familiar insatisfatória podem ser lidas em
e pela traição, que caracterizam a ressentida visão da perspectiva psicossomática, porque as mulheres estão
mulher transmitida a nós por esses nossos antepassados. expostas de modo particular às dinâmicas psicológicas
Visão com a qual em parte podemos concordar com a internas da relação. Em tais casos, a mulher deveria
condição de mudarmos seu sinal para positivo. ' interrogar-se não tanto sobre a etiologia fisi0lógica quanto
sobre a raiz psicológica e sobretudo relacional de seu es-
119.
11 ~
tado. Pesquisas médicas recentes concordam em atribuir Para que o discurso sobre a fidelidade conjugal
aos distúrbios psicológicos e emotivos da vida de casal a adquira relevância psicológica, deve ele ser inserido no
raiz de numerosas somatizações, como afecções derma- tema mais árduo da fidelidade da pessoa a si própria; a
tológicas, hemicranias, distúrbios digestivos, náuseas, traição põe um dilema somente se a pessoa é suficien-
inapetências e muitos outros sintomas psicossomáticos temente sensível para perceber que está em jogo sua
recorrentes. Essas constatações não devem levar a uma própria autenticidade. Assim como há indivíduos que não
espécie de caça às bruxas, porque no casal ambos são viveriam por muito tempo sacrificando a verdade de seus
responsáveis e eventualmente "culpados", e cada um paga sentimentos a uma cena exterior que não corresponde
o seu preço. Que dizer então do dever de fidelidade e do a ela, da mesma forma existem muitíssimos outros que
tabu da traição? simplesmente não notam esse problema porque a sua
É necessário ser fiel, mas a quê? vida é somente a cena exterior. Levar em consideração
Na sociedade patriarcal, as prescrições nesse sentido também o mundo interior, o mundo das emoções e dos
impostas à mulher não valem para o homem. Sempre sentimentos, para não falarmos do confronto com os con-
foram envidados imensos esforços para se negar à mu- teúdos do inconsciente, é algo que requer grande coragem
lher a possibilidade de ser infiel, e aqui quereríamos e generosidade, além, talvez, de uma predisposição mis-
dizer algumas palavras para esclarecer do que o grupo teriosa para a linguagem da alma. O caminho obrigatório
masculino se defende. Em certa altura do desenvolvi- dessa viagem interior passa pela dor, pela neurose, que,
mento feminino pode ocorrer que o problema da fideli- como dizia Jung, é a manifestação da impossibilidade
dade conjugal se transforme em questão de fidelidade de adaptar-se a uma situação muito "limitada" para a
ao crescimento psicológico pessoal. Mas o crescimento perfeita expressão das potencialidades pessoais. Vol-
psicológico, na maioria dos casos, não anda em paralelo tando ao discurso sobre a evolução psicológica feminina,
com a evolução externa da relação de casal. Nesse caso, parece razoável que a perturbação emotiva e psíquica
a traição se torna um aspecto fenomênico da procura causada pelo processo de transformação seja somatizada
interior de novas vias de realização e, por isso, consti- na indisposição física mais ou menos pronunciada. Des-
tuiria uma passagem ao resgate da identidade pessoal: locando para a corporeidade as razões de seu sofrimento
a ruptura do vínculo se mostra então como necessária. psicológico, a mulher afasta da consciência os conflitos
É útil, porém, ter presente que não é a traição em si que profundos que estão em jogo. Foram necessários muitos
favorece a aquisição de um novo nível de consciência. anos para se compreender a extrema importância dos
Os matrimônios são cheios de traições "feitas", mas não estudos de psicossomática, como muito tempo se passou
compreendidas, e a sua concretização, por si só, não traz e se passará até que as mulheres se libertem da prisão
nenhuma transformação. Em certos casos poderíamos do corpo. Em nossa cultura, o corpo é, com efeito, um
até dizer que "cometer" a traição, sem interrogar-se sobre significante do feminino, não sendo caso totalmente ar-
sua inquietação e sem deixar-se interrogar por ela, é o bitrário que as mulheres escolham inconscientemente
melhor modo para não mudar nada: a ruptura do vínculo a corporeidade como instrumento de comunicação. Mas
"traído" já não é necessária. teremos ocasião de retomar esse discurso, porque narrar
114 11 ~
a traição do corpo é um modo de escrever a história dos mismo, o silêncio obstinado oferece poder extraordinário,
códigos culturais do Ocidente. porque confina seu destinatário em estado de constante
A infidelidade da mulher pode tornar-se sintoma incerteza emotiva.
inevitável: ou o casal se sustenta sobre uma necessidade Entre as imagens mais densamente depressivas e
recíproca, ainda que patológica, ou a relação terá vida inquietantes das relações de casal vem-me à mente a de
breve, porque se mantém sobre base puramente conven- dois parceiros ceando em um silêncio hostil: sinal claro
cional. Mas um casal mantido junto por aliança patológica de desagregação da qual não conseguiam voltar atrás,
não é exceção, porque em todas as uniões cada um encarna como se a relação tivesse caído em um vazio interior e
a doença do outro. Quando falta o sentimento, não é pos- incomunicável. A cena apresenta desenvolvimento típico:
sível sobreviver. Freud dizia que quem não ama adoece. é o homem que fica silencioso e, sadicamente, espera a
Creio que o amor tem sentido só quando é passional, pergunta da companheira, a qual infalivelmente soará
mas, embora sem assumir posição tão radical, sabemos assim: "Em que pensas?" "Em nada", responderá ele,
que o amor é o mais irrenunciável dos alimentos. Freud ou simplesme_nte não responderá. O silêncio é sempre
escrevia ainda que sentir-nos ligados a alguém que nos expressão de grande severidade; imaginemos, por exem-
ama eleva muito nosso senso do eu; com efeito, aquele plo, o olhar eloquente do pai para o filho. O silêncio é
que tem a sorte de estar continuamente nessa condição atitude judicante que mortifica mais que qualquer juízo
encontra-se em estado eufórico permanente. verbalizado, porque nega a relação e não deixa nenhuma
O diabólico encaixe de patologias que fundamenta a escapatória nem possibilidade de defender-se. E, não por
relação se encontra também na base de todos os abusos acaso, trata-se de uma modalidade que é praticada com
psicológicos radicados nela. Exemplo dramático desse tipo prejuízo do feminino, porque o feminino é o mundo da
de relação é oferecido pelo célebre conto de Dostoievski relação. O silêncio, para usarmos as palavras da psica-
(1874)A meiga. Nessa obra, narra o drama psicológico de nalista Christiane Olivier (1980, p. 18), é
um homem de quarenta anos, um usurário, e da jovem a sorte habitual das mulheres.
de dezesseis anos com a qual ele se casa; a relação sado-
masoquista criada entre os dois terminou com o suicídio Mas o desejo e a procura de uma relação é necessida-
da jovem e com a abissal solidão do torturador. O suicídio
de inata dos seres humanos, e o feminino se faz portador
que encerra essa narração pode ser considerado também,
dessa capacidade, porque, como disse Neumann, perma-
em chave simbólica, como a morte psicológica e afetiva de
nece na relação com a mãe por muito mais tempo do que
uma pessoa, mesmo com a sobrevivência do corpo. O usu- o masculino, o qual, desenvolvendo identidade sexual
rário, em seu jogo de poder com a jovem esposa, emprega
diferente, afasta-se mais depressa da simbiose.
um sistema de comunicação diferente, prevalentemente Nas dinâmicas de casal a resposta do masculino
o silêncio. Muitas vezes o abuso do poder conferido pelo muitas vezes é inadequada, pueril e tola. São poucos os
papel sexual passa por essas formas de comunicação homens que evoluem integrando seu componente femi-
oblíqua. O silêncio é uma das armas mais ferozes que se nino, aquele que, em termos junguianos, é definido como
podem empregar contra o outro; expressão de falso viti-
1 1,..,
116
anima; trata-se, todavia, de uma passagem necessária e sufocante. A palavra é instrumento fundamental para
para se chegar realmente à relação. Em sentido psico- a comunicação humana, e qualquer alteração patológica
lógico, o masculino deve tornar-se sempre mais feminino, dessa potencialidade imobiliza os interlocutores em um
e o feminino, sempre mais masculino. O silêncio no matri- penoso vazio de contato. Exi~tem pessoas ~ujo di~t;J.r~io
mônio mata, anula o outro e o nega até em sua presença e psicológico se exprime na direção oposta a do s1lenc10,
o impele lentamente à dimensão do não-ser, do não existir isto é, no "falar muito", o que também deixa duas pes-
mais. O suicídio de A meiga é o que experimentamos soas no vazio de contato e de significado. Mas o silêncio
continuamente no cotidiano como desqualificação, descre- é o mais esmagador e impetuoso; o silêncio impõe uma
denciamento, desvalorização de nossa presença até o apa- condenação sem apelo e capaz de provocar naquele que
gamento total. Atingidos por esse silêncio, começamos a 0 sofre sentimentos de culpa tanto mais atormentadores
duvidar de nossas percepções: ainda existimos? Lançamos quanto mais inexplicáveis. Diante do silêncio, a pessoa
mensagens e pedidos, que retornam no meio do silêncio e se sente "punida", sem saber por quê. Pensemos no que
sem modificações. Geralmente as vítimas dessa interação sentimos quando alguém "faz cara feia" para nós: estamos
patológica são as mulheres, porque nelas o impulso para sozinhos diante de uma hostilidade não verbalizada, e,
a relação é dominante com referência à prevaricação. Eis embora a nossa mente percorra mil vezes um trajeto la-
uma boa justificação para o fato de o número de mulheres biríntico, procurando identificar a sua causa, sentimo-nos
que se submetem a tratamento psicológico ser maior do cruelmente privados do único elemento que nos ajudaria
que o dos homens: elas procuram escapar ao estilicídio nessa procura, da única ponte que nos daria acesso às
da não comunicação. Seria, contudo, inexato generalizar motivações do outro: o contato. O silêncio pode ser "cruel"
esse fenômeno: muitos homens também são vítimas do literalmente, e não só literariamente, pode revelar forte
silêncio feminino, sádico e culpabilizante. componente sádico, ainda quando aquele que o adota toma
O lugar por excelência no qual se trabalha para o ar de vítima, trocando os papéis, graças a uma escolha
restabelecimento de relação na qual a comunicação seja claramente renunciatária e, por isso, "passiva".
significativa e adequada emotivamente é o da análise, O usurário deA meiga sente-se "vítima" dos outros,
uma vez que também o chamado "silêncio analítico" se e na confusa pretensão que alimenta esse vitimismo
usado adequadamente, apresenta forte conteúdo comu- entra também a escolha de uma profissão tão vinga-
nicativo. Em muitas relações o silêncio obstinado traz tiva e agressiva como a de quem empresta exigindo
consigo uma mensagem de rejeição que não é fácil deci- penhor. Por outro lado, trabalho e amor são as áreas
frar; também na análise o silêncio pode veicular uma face nas quais pagamos a preço altíssimo todas as omissões
agressiva, mas a tomada de conhecimento disso esvazia-o e distorsões que pesam sobre a nossa autenticidade. O
de seu caráter destrutivo e paralisante. O que torna tão usurário além de exercer trabalho humilhante, cons-
dramática a modalidade comunicativa das duas persona- truiu uma ' relação matrimonial totalmente neurótica.
gens dostoievskianas é a impossibilidade de se iniciar um Trata-se de dinâmicas muito difusas, e quem sofre com
"discurso" sobre o silêncio e, portanto, de se fazer a inte- elas não é só a mulher, a qual, entretanto, é quem paga
ração sair dos trilhos neuróticos que a tornam apertada o preço mais alto desses mecanismos perversos, preço
118
realmente "de usura", porque ela pode ficar emotiva Em termos junguianos, diríamos que os distúrbios
e intelectualmente mutilada, senão aniquilada, e, de de comunicação e de relação se estruturam também em
qualquer forma, minada na confiança em si mesma. A decorrência da projeção de conteúdos inconscientes,
psicologia relacional vê os distúrbios da personalidade particularmente da sombra. Na família ou na dinâmica
como expressões de patologia do sistema interativo glo- de casal, quando se força um pólo ao papel negativo, e
bal que envolve o doente mental. O axioma principal em ele "aceita" esse papel, entram em cena a projeção da
tor~o do qual giram as pesquisas dos relacionais é que, sombra e a sua acolhida pelo outro. Muitíssimas vezes
na mteração humana, "é impossível não comunicar-se". o parceiro "doente" absorve a sombra do outro parceiro,
Consequentemente, também o silêncio é uma forma de como um filho "louco" muitas vezes é ou foi carregado com
comunicação, uma forma diferente como as mensagens a sombra de toda a família. Na linguagem corrente, esse
duplas, as comunicações oblíquas, por negação etc. A fenômeno é expresso pela metáfora "bode expiatório"; isso
sua característica é, porém, de serem indecifráveis e não deve admirar-nos, porque a psicologia não especula
deixarem o recebedor das mensagens em estado de sobre questões abstratas e fora do mundo, mas estuda
incerteza. É a linguagem típica dos pais esquizógenos, as dinâmicas cotidianas nas quais se movem os seres
que causam nos filhos conflitos de interpretação às ve- humanos com sua psique. Também no caso do usurário e
zes insolúveis. Todos os seres humanos cedo ou tarde da meiga, consideraríamos a "modalidade comunicativa"
passam pelo choque da ambivalência, do amor-ódio da do silêncio como um efeito da projeção da sombra dele.
mãe, do pai, dos mestres, da noiva etc. Mas, quando essa Ele se propõe à esposa como enigma porque quer salvar,
ambivalência se torna o pão de cada dia, um logogrifo assim, uma imagem grandiosa de si próprio e teme que
constantemente posto e imposto à criança, estrutura-se a comunicação confidencial, afirmativa, "amigável", o
um mal-estar da personalidade de cicatrização difícil. revele em sua pequenez, em sua mesquinhez, em sua
Diante dessa comunicação patológica, expressão de miséria. Dostoievski (1876, p. 40) põe, pois, em sua boca
vício psicológico de todo o sistema familiar, a doença as seguintes palavras:
mental é ~ resposta certa, no sentido de que é a única
Aos seus entusiasmos eu respondia com o silêncio, bené-
possível. E interessante também outro ponto de vista volo, entende-se ... mas ela compreendeu logo que éramos
da psicologia relacional, segundo o qual a doença de um diferentes e que eu era um enigma. Era isso que eu queria:
componente da família ou do grupo exerce importantís- parecer um enigma.
sima função "de equilíbrio" dentro do sistema global.
Com efeito, muitas vezes sucede de encontrar-se em Como se vê, também o usurário procura, através da
terapias familiares dirigidas por esses psicólogos o grau arrogância e da severidade do silêncio, salvar-se de sua
de resistência oposto pelos pais às primeiras melhoras fraqueza, projetando-a em sua mulher, a meiga. E que dizer
do filho esquizofrênico. Por mais paradoxal que pareça, daquelas figuras femininas que parecem nascidas expres-
a cura do filho incluiria revisão e acomodação dos pa- samente para receber as projeções do homem? O discurso
péis de todos os membros da família, coisa vista como se torna muito complexo porque às dinâmicas psíquicas
ameaçadora pelos componentes "sãos". individuais se junta o peso do ambiente cultural e social
120 1 ')1
de cada pessoa. É claro que em uma sociedade baseada A mulher do usurário reage ao silêncio com o silêncio
nos valores patriarcais a mulher é induzida a suportar , a mais extrema das consequências: o suicídio. A essa
at e ra único culpado é o usurano;
, . e1e e, o sa'd'ico, ~ ~s-
esse papel de receptora passiva das projeções masculinas, ltu 0
a ·no' a sombra Com um só gesto, a "v1't'ima".imobi1iza
para o bem e para o mal. O próprio usurário afirma em seu sass1 , ·
desesperado e alucinado monólogo interior (ibid., p. 45): seu algoz e sai de cena.
E a mulher que ama, oh, a mulher que ama justificará até
os vícios, até os delitos do ser amado!
130 131
a dor sufocada e removida, em nível consciente, que se dado a vida ao parceiro e de receber o sentido da vida, o
manifesta em alguma indisposição do corpo. Sentimos nosso narcisismo e a estima que temos de nós próprios
que o outro levou consigo alguma coisa de nós, sentimos parecem alcançar o ponto culminante. Não está muito
que nos mutilou, que nos arrancou da unidade e da con- claro o que ocorre quando um dos dois parceiros perde
tinuidade do corpo. É como se o traidor, depois de nos 0
interesse, como também não é claro por que só aquela
haver abandonado, ainda dispusesse de um "eu auxiliar" pessoa, e não outra, lhe interessou até ent~o. Por que,
o nosso eu, que nos teria roubado. Assim, o traidor é' no auge de uma paixão, de modo totalmente mesperado,
sentido pelo traído de maneira obsessiva e persecutória outra pessoa é capaz de evocar sensações que a anterior
sendo muito importante recuperar alguma relação com' já não pode? Creio que isso se deve às dinâmicas rela-
a realidade, recuperação para a qual parece necessária cionais que se estruturam no casal. Um casal se forma
uma verdadeira força do eu, de um eu não nutrido pela e interage de acordo com modalidades preciosas. Os dois
dependência. Do contrário, escolheríamos o traidor como parceiros que o compõem representam, metaforicamente,
parasito de nossa vida e nos tornaríamos causadores de as duas partes de um anel de engaste. De fato, muitas
um vitimismo que se espalha e nos serve, paradoxalmen- vezes a relação se funda mais nas diversidades do que
te, para não mudarmos, para não cuidarmos realmente nas semelhanças dos parceiros. Em termos junguianos,
de nós próprios. falaríamos de tipologia. Cada um deles representa para
A verdade é que a traição não pode ser atribuída a o outro o aspecto faltante, a parte em sombra de sua
um só dos componentes do casal; em certo sentido, tra- própria personalidade. Juntos, é como se essas duas
ído e traidor recitam um texto preciso, no qual, porém, polaridades pudessem reconstituir-se em unidades. Cada
cabe ao traidor a parte mais onerosa. Ele deve assumir a . \ um dos parceiros procura na relação a completude de seu
responsabilidade de preparar as bases para uma revisão ser.Já mencionamos, a esse repeito, o mito do andrógino,
e dissolução de uma relação que já perdeu toda ·razão exposto por Platão no Banquete. Um análogo hebraico
de ser. Muitas vezes o traído já há muito pressentia poderia ser constituído pelo seguinte trecho do Talmude
o drama, mas sentia necessidade de negá-lo, porque (Nidda 3lb, in Elka'im-Sartre 1982, p. 1370):
investira tudo na outra pessoa. O mundo está cheio - Por que é o homem que procura a mulhe~-, e não. o con-
dessas telenovelas, nas quais "amar" é uma palavra mal trário?, perguntaram os discípulos de Rabi Dostai, filho
usada: queremos "ligar", ligar o outro, de mãos e pés, ao de Rabi J anai, a seu mestre.
nosso sonho narcísico. A antiga ligação de dependência - É como quando se perde um objeto. Quem procura? E
total em relação a quem nos deu a vida reemerge de o que é procurado? Aquele que perdeu procura o objeto
modo absolutamente inalterada, e não há "amadureci- perdido.
mento" que suporte - o amadurecimento que muitas
vezes equivale a insensibilidade - para receber, se:rn Ora, o objeto perdido alude presumivelmente à cos-
pestanejar, o golpe que nos é desferido. Aqui entra:rnos tela retirada de Adão, enquanto dormia, e os termos "ho-
em relação com um aspecto particular do narcisis:rno. mem" e "mulher", aos quais o texto se refere, não devem
No amor passional, quando temos a sensação de ter ser entendidos tanto em sua acepção biológica quanto na
132
psicológica. Fílon de Alexandria, por exemplo, distinguia esquemas de comportamento, de coaç?es, .e é só sobr~
as duas narrativas da criação do homem (Gênesis 1,27 e elas que se fundam as dinâmicas relac10nais do casal: E
2,7) no sentido de que só no segundo texto (Gênesis 2,7: muito instrutivo observar que é sempre o mesmo motivo
"Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em que gera rancores e incompreensões no casal. Ele .se mede
suas narinas um hálito de vida, e o homem se tornou um pelo mesmo tema por anos, às vezes por toda a vida, sem
ser vivente") se referia ao gênero masculino, ao passo que nunca chegar a uma virada efetiva. Se, porém, o outro
o primeiro (Gênesis 1,27: "Deus criou o homem à sua ima- é aceito somente enquanto corresponde à expectativa,
gem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele é claro que, na vida de casal, cada u~ é delimitado. em
os criou") conotava o ser humano em sua indivisibilidade um papel, e não pode sair dele. A traição pode ser h~a,
original. Na linguagem de Fílon, esse último é conotado portanto, não só como abandono .do outro, mas tambem
como "ideia" (com referência a Platão) ou como "gênero", como tentativa irada de reconhecimento daquelas partes
enquanto os gêneros masculino e feminino são conotados de si sufocadas na relação.
como "formas" ou como "formas sensíveis". Escreve, pois, No casal, se a fantasia fusional faz ambos perder,
Fílon de Alexandria nas Alegorias das leis (II, 13, pp. de alguma forma, a identidade própria e, porta~to, os
215-16): próprios limites, a traição se propõe como te~tativa de
restabelecê-los. Através da traição poder-se-iam com-
Deus procede em todas as coisas do mesmo modo; de fato, preender as motivações internas, psicológicas, que nos
antes das formas, ele faz os gêneros, como de resto faz
também com o homem: tendo esboçado o gênero homem,
ligavam a uma pessoa, já que isso representa um pont~ de
no qual estão compreendidos, como diz Moisés, o gênero observação externo, desligado do vínculo posto em. cns:.
homem e o gênero mulher, por último produziu a forma Os aspectos da personalidade postos em sombra na ~1gaçao
sensível, representada por Adão. com 0 parceiro, os mais salientes, podem reemergir e .ser
manifestados em outra relação. Se se estudasse mais a
A perda, poderíamos dizer, a mesma que motiva a fundo a personalidade daquele que move o in~eresse de
incessante procura do outro, conota-se como tão radical quem "trai", poder-se-ia observar que ela mmtas vezes
que precede a vida consciente do homem ou seu despertar se diferencia muito daquela da pessoa an:ada ~ntes, e
do torpor causado por Deus. Portanto, uma perda poderia talvez seja mais semelhante à do traidor. E por isso que
ser o verdadeiro e próprio fundamento da relação. Com sustento que a traição representa, simbolicamente, uma
efeito, a relação, e em particular a relação passional, é passagem inevitável da vida dos que se am~m: ~m mo-
distinta do motivo da fusionalidade. A fantasia de repre- mento de abertura para o exterior e para o mtenor, u~
sentar uma unidade ou, como dissemos atrás, de sentir momento de reconquista da própria identidade. Cre10
que se perde a identidade própria sem a presença do outro também que prestar ouvidos conscientemente às pró-
constitui o eixo em torno do qual giram as dinâmicas dos prias fantasias de traição é muito diferente de pô-las e~
amantes. Isso implica também que na relação alguém prática impulsivamente, sem reflexão. Todas as pro~1-
é reconhecido somente à medida que corresponde às dências "hostis" que se impõem na gestão de uma relaçao
exigências do outro. Assim, em todo casal estruturam-se deveriam ser compreendidas em nível consciente, antes
rnfí
134
,,
f te anos fomos capazes de fazer nossas as imagens
de serem executadas. Do contrário, produz-se quantida-
~. dur.anbelas brotadas de nossa fusão com a mulher ou o
de incalculável de sofrimentos inúteis. Seria necessário
discernir a qualidade emotiva e psicológica do desejo de
f w::em amados, a confiança primeira lentame;ite se. r~-
h stituirá. Não saberemos quando se verificara a tra1çao
trair o parceiro: a traição corresponde realmente a um
con ·nte mas ao menos como homens aprenderemos !1
movimento de crescimento ou é a expressão de confusão
se~ ~-ia Sem esperança de suportá-la melhor na pro-
destruidora, vingativa, infantil? Que a traição seja, em
todo caso, destruidora e tal que arrase por muito tempo
:~ae~:z, ~em esperança de evitá-la; a única.esperança
é a de poder sentir de novo, com outro parceiro, aqw~la
uma pessoa parece inevitável. Pensemos, por exemplo,
. ~ncia de fusão amorosa à procura de um para1so
~~
que perdemos, justamente por termos t rai~ o suas~ .
nas imagens sexuais que trazemos dentro de nós. Todo
psicólogo sabe quão frequentemente a potência sexual de
um homem ou de uma mulher não é indiferenciada, mas
ligada de modo específico ao seu parceiro. É certo que isso
pode ser considerado fato positivo e como sinal de imenso
e total desenvolvimento; mas quando tudo desaparece, a
experiência analítica ensina amargamente quão frequen-
temente impotência ou frigidez acompanham a pessoa
abandonada também durante anos. Provavelmente existe
em cada um de nós a possibilidade de regredir a um es-
pecífico de nossa memória sexual infantil que é ativado
no encontro. A linguagem comum usa a expressão "atrai-
me muito", e acerta no alvo, porque nessas situações
sentimo-nos literalmente arrastados, presos, incapazes
de libertar-nos. Esse é um aspecto dramático do casal,
porque nos torna dependentes do parceiro como de uma
droga. As imagens "certas", as imagens-chave, as imagens
"atraentes" podem ser um modo de sorrir ou de mover as
mãos, um corpo sinuoso, uma sensualidade exasperada,
o timbre da voz ou a forma dos lábios, em suma, qualquer
característica do parceiro que exerça sobre nós o mesmo
poder arcano do tocador mágico de flauta, que atraía atrás
de si os ratos e, depois, todas as crianças.
Por sorte "tudo passa": como cedo ou tarde o amor
acaba, também está destinada a cessar a dor produzida
por esse fim naquele que saiu derrotado. Se resistimos à
devastação, se enfrentamos nossas responsabilidades e
137
136
11
'
,~("
;1;
:j'.
~· permitiu a sobrevivência, torna-se mórbida; invade
nossa existência como sintoma obsessivo. Não importa
COAÇÃO DO SEDUTOR se o ciúme conta com fundamento na realidade ou não,
E VANTAGEM DO TRAÍDO se é confirmado por algo objetivo ou não, porque sabe-
mos que ele resiste tenazmente a qualquer confutação
ou redimensionamento. Observamos os gestos do outro
para que as nossas suposições sejam convalidadas,
~ão, nã?, ~constância é boa para os rústicos. Todas as bel se bem que no plano da consciência quereríamos ser
tem o direito de fazer-nos enamorar. as
desmentidos. Mas é muito tarde, e a realidade agora
(Moliere, Dom Juan ou o festim de pedra, p. 12) está fora do jogo. O mundo interior se move mudando
radicalmente nossa percepção dos acontecimentos e
dando um mesmo significado aos fatos mais diversos.
O eu sucumbe ao grande poder do inconsciente, ficamos
emotivamente impotentes, desautorizados, incapazes e
Inexor.avelm,ente o ciúme aflora na cena tumultu- tomados pela suspeita. Literalmente à mercê de fanta-
osa. da t.raição. E sentimento que abole toda lógica e sias persecutórias e por sentimentos autodenegridores,
racionalidade e qu~ tem antecedentes vividos e sofridos a posse recíproca pela qual fomos nutridos nos torna
por ca.da um de nos nas experiências imediatamente agora escravos. Já não temos a possibilidade de manter
p~~tenores ao n~~cimento, quando vemos que o primeiro relação objetiva com os fatos, que são interpretados em
o aeto de amor Jª pertence a outro e logo estamos em- uma só e obsessiva perspectiva, a perspectiva favorável
penhados em uma luta com o pai, para assegurar-nos às nossas suspeitas. Por que essa devastação? Além dos
~.ª:11-ºr ~at.erno. Na relação de casal adulto, es~a con- muitos lugares-comuns e da frequente atitude fatalista
iç~o psiqmca ~ reexumada da memória inconsciente, com a qual são abordadas essas situações - atitude
obrigando-nos a procura obsessiva do "corpo de delito". reveladora, entre outros, do desejo coletivo de exorcizar
O c~mportamento e a capacidade relacional de quem até o espectro do abandono, encarnado por aquele que foi
um i~stante antes não era ciumento se transformam As rejeitado-, interessa-nos sublinhar um aspecto menos
qua~1da~es ~aciona~s, o controle pessoal e a dignid~de óbvio. Não é a verificação da suspeita que nos aniquila,
~abit~ais sao ~o:nmad.os pela violência explosiva da mas as imagens que constelaram a relação. Se o ciúme
moç~o. Na traiçao, a dimensão do amor passional tão substitui o amor na relação com uma pessoa com a qual,
perfeita que parecia supraterrena, inesperadam~nte no passado, compartilhamos muito, a recordação dos
se transtorna, fixando-nos na dor de nosso isolamento momentos de felicidade que vivemos juntos se tranforma
Nesse ponto, a suspeita - que também é uma medid~ nas imagens que nos imobilizam, nos atormentam e não
huma~a, todo humana, diria, do estar em relação - nos abandonam mais. Sabemos que se trata de momentos
essa disposição "moderadamente paranoica" que no~ irrecuperáveis, e não pensamos nas dificuldades, nas
incompreensões e nas muitas pequenas traições que
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1QQ
preparam. o caminho para a ruptura final. As imagens pode ver-se obrigado a defrontar-se com. sua doença.
podem. ser, por exemplo, a expressão do rosto, o modo Quantas vezes um. homem. consegue esconder de si m.esm.o
de mover-se, as mãos: particularidades insignificantes sua depressão, vivendo-a sub-repticiam.ente através da
para um. observador externo, m.as preciosíssimas para a depressão da mulher, boicotando suas tentativas de cura
pessoa que am.a. O ciúme chama essas imagens interio- ou caindo em. seu vazio interior quando a relação falha!
rizadas, e não conseguimos separá-las do investimento Geralmente, quando não existem. pretextos plausíveis
libidinoso, que foi o que as criou; se o fizéssemos, dei- para esse controle, o ciúme oferece ocasião exc,el~nte para
xaríamos de dividir-nos com. a fantasia do terceiro, que se justificar um. com.portam.ento que, do contrario, o outro
agora goza com. isso. Quando percebem.os que perdem.os consideraria inaceitável.
o controle do outro, a relação já acabou. Indagam.os em. Há ainda o caso daquele que, mais ou menos in-
seus olhos e em. seus bolsos, investigam.os sua bolsa e conscientemente, assume em. todas as circunstâncias
sua agenda, notam.os a mudança de hábitos, analisam.os um.a atitude sedutora para provocar ciúme, com.o se
silêncios e palavras: a confiança acabou e já não poderá fosse esse seu único modo de existir. De onde nasce essa
ser restabelecida. Infelizmente, a suspeita nunca nasce exigência? A psicologia da pessoa ciumenta e a de quem.
no vazio, e, em.hora a traição ainda não esteja consuma- a solicita continuam.ente não são muito distantes um.a
da ~xternam.ente, a percepção da pessoa ciumenta, na da outra; de fato, essas pessoas muitas vezes se encon-
m.a10r parte dos casos, é fundada. A confiança primária, tram. e se unem.. O indivíduo potencialmente ciumento
que nos permitiu o amor passional, está minada, e se a se enamora justamente de quem. tem. necessidade, tam-
relação sobrevive é por outros motivos.
bém. incoercível, de pô-lo a dura prova. Por seu lado, o
Há outro aspecto, dificilmente compreensível para traidor tem. necessidade da pessoa ciumenta, a fim. de
quem. está dominado pelo ciúme e que merece ser mos- exercer controle e contenção sobre sua tendência. Esse
trado. A acusação de traição muitas vezes não pode ser é um. exemplo de conluio neurótico: a atração se funda
distinguida da projeção do desejo próprio de trair. Isso em. um.a correspondência patológica, tanto mais vincu-
significa que a pessoa ciumenta cultiva inconsciente- lante quanto mais vivida na inconsciência. O desejo de
mente a fantasia da traição, a fim. de mostrar por meio trair esconde a sede insaciável de confirmações, com.o
dela sua autonomia em. relação ao objeto. É evidente que se a estima pessoal nunca se tivesse consolidado e com.o
aquilo contra o que o indivíduo reage é sua dependência se se manifestasse sempre a necessidade de garantias
paralisante, nesse caso reforçada pela circunstância de cotidianas no plano da própria dimensão afetiva e eró-
ele haver sido rejeitado. Tem.e a traição principalmente tica. Nessas situações é difícil falar de "amor"; em. todo
porque a deseja. Na relação de casal cada um. nutre a caso, os indivíduos com. esse tipo de equilíbrio existencial
necessidade insuprim.ível de controlar o outro, necessi- provocam. grande sofrimento em. quem. cai em. sua rede.
dade tanto mais forte quanto mais a dinâmica relacional Mas onde reside a vantagem. psicológica do traído? Por
se sustenta na cumplicidade neurótica. Condição essa exemplo, na identificação com. um.a posição ~asoquista,
última que pode representar base muito resistente m.as na possibilidade de negar sua necessidade imoderada
também. muito frágil. Se um. deles viola o pacto, o ~utro de transgressão e sua sensualidade. Esse tipo de casal
140 1A1
'. . . .do ao "sedutor" pela primeira e mais poderosa
representa uma espécie de tropismo psicológico no qual to infligi . . d h. stória pessoal não pode saldar
as pessoas envolvidas tecem alegremente a teia do en. figura femmma e sua 1. '
gano, do controle e da suspeita. Dom Juan é o exemplo : a conta e encerrar a partida. do Otto Rank, é
o roblema de Dom Juan, segun . , -
literário mais conhecido dessa dinâmica: é um homem , " p lô" secreto e inconsciente de fideh~ade a mae,
. ~~oc~:fe insubstituível. Contra uma mãe tai° poder?ss~
em fuga, incapaz de relação autêntica. É a figura do
"sedutor", do homem que tem necessidade constante de in d grande número de mulheres pe as qua1
uma nova mulher na qual possa suscitar uma esperança ºªtªt~; d:v: continuamente passar (Rank, 1922, pp. 22-
e de necessariamente frustrá-la. Pelo fato de suscitar
essa esperança, é intensamente amado, porque a mulher
~~)~Escreve ainda Rank (ibid., p. 80):
armazenou desde a primeira infância uma necessidade A caça constante para ~o.ss~ir sexualmen~~ s~:~r~~~~~
insatisfeita de espelhamento; ela espera tornar-se objeto mulhere~ é insat~sfatoi:~ JUSt:em:~;~Jênda infantil de
da dedicação, da compreensão e do respeito desse homem. pode satisfazer so pareia men
Ele é amado e também odiado por essa mulher, porque regredir à mãe.
não consegue satisfazer suas necessidades e acaba sem-
Poder-se-ia então inverter a afirmação, como, elhnfim,
pre abandonando-a e traindo-a. Um exemplo literário . na realidade foram as mu eres
desse tipo de homem é o Frédéric Moreau da Educação o faz Rank, e dizer que - t , rio Vê-se isso
. t DomJuan enaoocon ra ·
sentimental de Flaubert (Alice Miller, 1981, pp. 88-92). que conqms aram ' t faz do poema
Observando analiticamente essa personagem, vemos que, claramente na análise que o nosso au or
't· de Edmond Rostand publicado postumamente
com toda a probabilidade, o sedutor foi uma criança que drama 1co J Assim resume
viveu com a certeza de que qualquer resistência à sua 1921 A última noite de Dom uan.
mãe acarretaria imediatamente seu abandono da parte
~~nk se~ momento culminante (ibid., p. 107):
dela. Existem, com efeito, figuras maternas extremamen- . re mais claramente aparece como a
O diabo, que semp bmete-o a uma prova, que
te frágeis e que exigem de seu filho o máximo esforço de consciência de Dom Juan,l su da mulher em questão por
adaptação e ameaçam abandoná-lo sempre que ele en- consiste em reconhecle\~ a ma rra MasDomJuan, tendo
contra uma oportunidade de dizer não. Como adulto, ele alguma palavra que e a e sussu . rova
conhecido só o corpo de suas mulheres, erra a p .
procurará neuroticamente transformar em "ativa" essa
dinâmica que sofreu como criança: oferece à mulher sa- Assim vê Rostando o preço pago por ~om Juant:_ o
tisfação e admiração e, depois, retira-se repentinamente. . t d alma Poderiamas en ao
Há uma verdadeira e própria ilusão de liberdade nessas absoluto desconhecimen ° ª · h
er ntar o que Dom Juan realmente con eceu
em sua
atitudes, das quais a traição é uma das feridas mais ph gu d . do humana carreira de sedutor. Escreve
dolorosas. Atrás dessa "liberdade" esconde-se, de fato, umana, emasia
profunda dependência, a de um indivíduo que não tem Rank (ibid., p. 108):
, áscaras As mulheres só lhe
o direito de dizer não porque sua mãe não o suportaria. Dom Juan con~e~eu s~ ~o quem. quis essas mentiras,
Naturalmente, essa represália tardia e desviada, essa mentiram, e foi e elhpropn ostra ao homem como ele a
retorsão, sobre outras criaturas femini-nas, do sofrimen- uma vez que a mu er se m
143
142
deseja ... Foram as mulheres que o conquistaram, e se ele A vileza de Frédéric Moreau esconde em si .~ma~?::~~
como é provável que suceda com qualquer v1 ezda. a .
o permi-tiu foi por causa de seu medo inconfesso de dever d scer sincera e franca depen e presunn-
ser fiel a uma só. a )esso~ Pâ_o ~~~de tolerância da verdade demonstrado
;~r~!~s~ais e das sanções relativas a ela que eles tenham
Todos nós carregamos as cicatrizes de nossa infân- imposto ao seu filho.
cia, mas uma ferida não cicatrizada não pertence só ao
passado, porque está sempre presente, pedindo curativos Não existe relação passional na qual nã? ~aja ci~~e,
e drenos, e, em suma, a coação para repetir domina nos assim como não pode estar ausente dela a tra1çao. O cri:im~
tempos longos, às vezes por toda a vida, as relações afe- x rime o direito próprio sobre o outro, uma po~se _Prim
tivas desses "sobreviventes" de um conflito remoto, cujas ~iJa que suplanta a razão e pode levar a atos crr.moso_s.
chagas ainda trazem. Semelhante a essa coação é a estra- Mas tudo isso pode ser vivido também em uma imensao
tégia típica à qual o sedutor recorre, a da mentira; para muito delicada, muito menos rara do que geralmente se
"poupar" às mulheres frustração e desencanto - como, no admite: a dimensão do incesto.
tempo de criança, à mãe -, ele se afasta delas, contando
mentiras. Sufocado sempre mais pela insistência delas,
esse tipo de homem procurará um pouco de liberdade,
provocando as mulheres para serem cruéis com ele. Trata-
-se de provocação indireta - o drama do sedutor consiste
justamente na incapacidade de exprimir diretamente
suas exigências - que o lança, também a ele, em uma dor
profunda, a qual explode quando a mulher desmascara
sozinha sua hipocrisia. Quanto mais vingativamente a
mulher reagir à vergonha de haver sido enganada, tanto
mais o sedutor se sentirá legitimado em abandoná-la,
pensando ilusoriamente que assim consegue distanciar-se
de alguma forma de sua mãe. Ele se dirigirá, portanto, a
uma nova parceira, perpetuando a cadeia diabólica das
satisfações e das frustrações. Por mais compreensiva e
afetuosa seja a nova parceira, ela, de fato, combate, como
Dom Quixote, contra moinhos de vento, porque não tem
o poder de transformar em "não acontecido" o trauma
originário que tornou tal o sedutor. Este, com os meios
mais inconscientes e sutis, constrangê-la-á a renunciar
à "compreensão" e a escolher a crueldade. Escreve Alice
Miller (1981, p. 91):
1AJ::
144
12 gam a dinâmica do incesto aos fundamentos universais
de todo sistema cultural, já que em ambas a proibição
ÁREA DE INCESTO ou, em todo caso, a superação da tendência incestuosa
abrem caminho para o aparecimento da consciência e da
cultura. Os pontos de vista de Freud e de Jung sobre o
incesto são indispensáveis à compreensão da natureza
~e~~~~~~:~~mjda, porque demasia~amente violenta; absolutamente extrínseca e deturpadora do juízo mo-
N- . ura para se pronunciar para ·
ao existem palavras para dizeA-lo A VI. IA ' . d se ()UVIr. ralista sobre essa transgressão, juízo que, ao contrário,
· - . · o enc1a a parte d
pa~, n_ao exidste, nunca, impossível. Foi ela que ~ seduz1'u oº é funesto para o crescimento psicológico do indivíduo.
pronaopo e"p "d , ·
É dem-"~sl Enta_eca: es~elmodo, e excessivamente odioso Não existe cultura na qual não esteja presente o tabu
o . , 1 ., (
cu. onaose1aa
. , . ·
pro. e a e~. .. .) O pro e a garantia da moral O ai é do incesto; isso significa provavelmente que ele repre-
~amaíh'.1,dº pdro Sé sagrado, nele não se toca. Ele é u~ b~uart: senta uma constelação psíquica com a qual cada um de
socie a e. e se tocar nele t d afu d
pátria, trabalho, família. ' u o n a, todos os valores: nós, cedo ou tarde, é obrigado a defrontar-se. O tema da
Assim, a adolescente fica amordaçada com a sua verdade. sedução da criança pelo adulto está na base da teoria
(E. Thomas, O silêncio da violência, 1986, p. 52) do complexo de Édipo, que Freud, em nível filogenéti-
co, entrevê no sistema totêmico, e que, na neurose, se
transforma em fantasia inconsciente capaz de invadir
toda a vida psíquica do indivíduo. O conceito de fantasia
·º !ncesto é aquela dimensão que nos impede de viver incestuosa é importante porque configura o problema não
a paixao amorosa fora do âmbito da família. Representa só em termos de realidade, mas também de imaginário
u~t ruptu~a t~l dos esquemas psíquicos e sociais que se pessoal. Os tabus são proibições antiquíssimas e, como
evi a menc10na-lo, apesar de ser ele uma traição terri~el tais, poderiam fazer parte de um patrimônio inato, tanto
mente ~ruel. Em 1932, Ferenczi, aluno de Freud escreveu que Freud (1912-13, p. 65) chega a perguntar-se:
~m lartigo sobre u~ tipo de comunicação total~ente par- Quem poderia decidir( ... ) se tais ideias "inatas" existem,
icu ar, o da comumcação entre a linguagem da . se causaram a fixação dos tabus sozinhas ou em concomi-
a do adult . criança e
, . . o, na qua1 a mtenção infantil, por exem lo da tância com a educação?
caricia feita pela menina ao pai e' trai'd 1 p ' -
, b'd d ' a pe a percepçao
mor i a el~. Fre_ud e Jung trataram o tema do incesto Segundo Freud, a coesão do grupo, pressuposto do
em perspectivas difer~ntes, as quais levaram às solu ões desenvolvimento civil e cultural, pode estabelecer-se e
~~rle;:~t:-Sd~ nos dois textos, quase contemporân~os manter-se só através da proibição do incesto, porque é
, . - '. ~tem e tabu e Símbolos da transforma ão' então que a lei se impõe sobre o desejo, o princípio da reali-
es~ecie de divisore~ de águas emblemáticos na vida çdo~ dade sobre o princípio do prazer. A sublimação dos desejos
dois autores : na história do pensamento psicanalítico incestuosos transforma a horda primitiva em sociedade
Apesar das diferenças das duas elaborações, ambas li~ regulada por normas, sociedade na qual a organização
cultural intervém sobre a existência meramente biológica,
146
147
'/
1
i;"
re~efinindo-a. Sob o perfil energético, a proibição do inces-
1
!~:;:'_s::~doª!~:~;~d:b:;;!~ª~:e~:n~:~i= ;~
escolhia a outra vida, a via da alma, a purificação através da
abstinência, da iniciação: uma espécie de delírio místico.
primeira expenenc1a sexual é o incesto só h ; Não podia ser aquilo que havia decidido sozinha, em mi-
para o medo. ' a espaço nha cabeça, no espelho do futuro; meu pai o quebrara com
seu sexo; restava-me só a via do não-ser, a via da morte
(Thomas, 1986, p. 130).
Fora é tão belo, e eu estou i 1 d ,
fechadas lendo lº soa a atras das persianas
• 1vros nos quais t f: . Esse pai-ternura era homem perverso, um estuprador,
esse percurso que eu na-o c . of:u ros azem ao inverso
M dº . ons1go azer um pai incestuoso, um homem ignóbil. Como ele existem
e i sua importância sua "d d.
beça se recusa a funcio~ar e:e~ss1 a e, mas a minha ca- centenas de pais, pais ternos e amáveis que agrediram e
contento-me com ler test ' nh eu corpo a avançar. Então violentaram suas filhas no silêncio da noite, em um porão,
infância perdida, de ace~~u os? roma~ces. qu~ falam de em uma floresta, no fundo do leito conjugal. Mas o mundo
graças ao livro de Sheila Ma~~rd~do. : 01 pnnc1palmente se cala e sufoca esses gritos, que nunca conseguem fazer-
de anoré:xica que pude rompe e? ~o Je s_ua experiência
vivia com meus pedaços esparhªJdau a e vidro na qual eu -se ouvir; ele os trai e os confina em um silêncio vazio. É
E . l a os. necessário, antes de tudo, salvar a família, salvar a honra.
ra uma Jau a transparente, a minha - . . ,
para os outros; ela servia de li proteçao, mv1s1vel Já que o mal está feito, é inútil acrescentar-lhe outros: a
pedaços, a minha jaula tornaâ:r:~~:p~r~todos o~ meus prisão do pai e a vergonha de toda a família. E os outros
Agora que rompi essa prote ã d n e_ o _mun o. filhos, que seria deles sem o pai, que os sustenta? É melhor
ência não sei ma· . ç o, ªqual nao tmha consci-
- ' is comumcar-me com os t calar-se, fazer como se não tivesse visto nada, nem ouvido
nao conheço esse corpo de mulh fi 1 ou ros, porque nada, como se tivesse sonhado. Sim, ela sonhou, todas as
unido que é o meu (Th er, na mente recolhido e
' ornas, 1986, p. 128). filhas desejam ir para o leito com o pai. A filha percebe que,
se falasse, destruiria a família.
152
campo profissional, eles são muito pouco competentes nas
13 relações interpessoais, porque inteiramente presos por
m "demônio" que os impele a ir até o fundo em seu tra-
UM TEMPLO POUCO FREQUENTADO ~alho sem deixar-se desviar. É como se esses indivíduos
não ti~essem outro interesse além do objetivo com o qual
estão obsessivamente identificados, pagando .º pr.eço do
... sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse isolamento, isto é, da falta de amizade e de sohdan~dade
todos os outros bens. dos outros. É interessante que veem qualquer pedido de
(Aristóteles, Ética a Nicômaco 1155a, p. 703) dirigirem a atenção para outra coi~a como am,e~ça insu-
portável, como traição de seu destmo. A pr.o~o~ito desse
tipo de homem votado a algum trabalho mentono, escreve
Kracauer (1971, pp. 69-70):
A obra a criar absorve-o, exige todas as suas forças. e, se
quisesse subtrair-se a esse ~ever p~ra gozar da su.a~dade
da efusão de alma a alma, isso sena para ele traiçao.
Em seu Dicionário filosófico (1764, p. 435), Voltaire
afirma que em nossa cultura a amizade é "um templo já Inteiramente incapazes de existir em espaço e tempo
pouco frequentado". De fato, para ouvirmos dizer todo pobres de acontecimentos, essas pessoas. são perseguidas
o bem possível da amizade, devemos voltar a outras pelo vazio, sempre ausentes da cena coletiva e relut~tes a
culturas, mais remotas: aos árabes, aos gregos, à Bíblia. respeito de qualquer tipo de participação~ de env?l~men
A tradição que mais nos pertence, tanto a "culta" como to. Outro aspecto que os caracteriza é a impossibilidade
a popular, não demonstra muito entusiasmo por essa de identificar-se com o grupo. A identificação com o grupo
ligação afetiva: máximas de autores e provérbios anô- é mecanismo que tem raízes antiquíssimas em nossa psi-
nimos convidam mais a desconfiar da amizade do que a que e intervém continuamente na relaç~o da ~essoa com
apreciá-la. E mesmo quem está disposto a incluí-la entre o ambiente humano circunstante. Ela e func10nal para
os ''valores" a salvar considera-a em geral como "opcional". a consecução de status e para a aquisição de se_ntimento
Detenhamo-nos logo em um tipologia muito difundida de de segurança fundado na identidade coletiva. E verdade
indivíduos que, seja aparentemente, por falta de tempo, que a identificação com o grupo não comporta ~ó aspectos
seja porque dedicados a algum fim nobilitante ou presu- positivos, porque se, de um lado, reforça o ~m~lar, do
mido como tal, não podem "dar-se ao luxo" de uma amiza- outro, enfraquece-o, privando-o de sua pecuhandade, d~
de. Essas pessoas, mais homens que mulheres, estão ou diferença que o constitui como sujeito entre os ou~ros: ~
sentem-se empenhados em um trabalho, em uma missão, verdadeira também a relação inversa, porque um mdi_vi-
e perseveram em um caminho que deve levá-los a certos duo pode procurar uniformizar-se aos outros quando vive
objetivos, e esse empenho se resolve na maior parte dos a diversidade deles como um perigo. Pode ocorrer que se
casos em reduzida capacidade de relação. Muito ativos no crie na massa um campo particular, no sentido de que
1 !'\!'\
154
duas pessoas comecem a ocupar espaço mais restrito d zar a rocha à qual se agarra. Agora segue essa via, mas
c?~unhã~ ~o ~u.al to~a corpo um entendimento psico~ depois muda a cor de tua pele. Sabedoria vale mais que
logico. N ao e facil explicar por que isso sucede. O início intransigência.
do processo de d~ferenciação de cada um da psicologia
do gru?o se mamfesta, em todo caso, muitas vezes pela O texto atribuído a Teógnides se torna mais inte-
~eces.sidade de relação psicológica que tome o lugar da ressante se comparado com uma composição da mesma
identificação anterior com o coletivo. Essa possibilidade coleção, na qual a distância entre amizade e traição é
?e e~contro privilegiado é percebida geralmente de forma mínima, no sentido de que as qualidades que fazem o
irrac10nal, apa~entemente não bem motivado, mas qual- amigo são, invertendo-se o sinal, as mesmas que fazem o
quer encontro importante tem resíduo misterioso e indi- traidor (Teógnides, vv. 965-67, p. 235):
zível. !rata-se de _um fato raro, que deve ser distinguido
Muitos têm índole falsa e traidora, mas a ocultam, mos-
de mmtos outros tipos de participação emotiva ocasional trando ânimo cambiante. Não obstante, cedo ou tarde, o
com? un:a .confissão inesperada, da qual podemos ser 0 ~ tempo revela a índole de cada um.
destmatanos e que muitas vezes nasce de uma atitude
diferenciada de revelar o próprio mundo interior sem Em muitas máximas, geralmente antigas, como
nenhuma reciprocidade e sem a espera real de res;osta. dissemos há pouco, encontramos afirmações como: "O
~~bo.ra outras relações, como as amorosas, permitam homem é feliz quando encontra ao menos a sombra de
mtimi?ade m~i?r e não excluam a dimensão psicológica um amigo" (Menandro), "Quem encontra um amigo en-
da amizade, diria que a relação entre pessoas do mesmo contra um tesouro" (Eclesiastes), e assim por diante; no
sexo representa o terreno privilegiado da amizade enten- nível psicológico, isso significa que o desejo de relação
dida como relação consciente. O outro se torna ocasião nos é dado com a vida, mas a capacidade de estar em
para entrarmos em relação dialógica consciente com·nós relação e de mantê-la deve ser adquirida. A experiên-
próprio~ e com o diverso de nós. Com efeito, a amizade cia amorosa remete em última análise à satisfação do
n,os obriga a elaborar um conjunto de dificuldades espe- instinto biológico da reprodução, ao passo que a amiza-
cificas que nem todos estão em condições de enfrentar de é fato cultural e insere-se no campo psicológico, no
com su~esso. O esforço próprio para essa elaboração está qual os acontecimentos seguem processo que os impele
conv~m~ntemente expresso em uma composição atribuída irresistivelmente para um fim também de natureza
a ~eo~:des, co?1posição na qual a tentativa de adaptar a psicológica. Na avaliação do grau de equilíbrio psíquico
propna ii;dole a índole dos amigos assume as conotações alcançado pelo indivíduo, deve-se olhar não só para sua
de necessidade transformadora, que se declina na entrada vida afetiva e profissional, mas também para a eventual
em contato profundo com as "partes" do próprio Si-mesmo presença e qualidade das relações de amizade. Os amigos
(Teógnides, vv. 213-18, p. 109): são poucos, mas muitos são os companheiros de viagem
Cor.ação meu, mostra a todos os amigos um caráter com os quais não podemos compartilhar nada mais do
~anegado, adaptando tua índole à de cada um: adota a que um percurso cuja meta já conhecemos. As relações
mdole do polvo de muitos tentáculos, que sabe mimeti- com conhecidos, colegas, companheiros de estudos e
156 11;:'7
d~vertimentos, correligionários, compatriotas etc. se Não é talvez verdade que, no caso dos amantes, ver o amado
diferenciam de modo substancial da amizade, porque é a coisa mais cara, e que eles escolhem essa sensação mais
fundadas em comunhão de finalidades claramente do que as outras, convencidos de que é principalmente de
deli~itada e ci:c':nscrita. Nesses casos, a colaboração acordo com ela que existe e nasce o amor, e que, domes-
mo modo, para os amigos, viver em intimidade é a coisa
em vista do obJetivo tende a nivelar as diferenças de mais desejável? De fato, a amizade é comunhão, e como
personalidade e a evitar o envolvimento recíproco em alguém se relaciona consigo mesmo, assim se relaciona
questões estranhas que poderiam introduzir variáveis com o amigo.
não controladas na vida do grupo. Isso não exclui que
alguém esteja disposto até a sacrificar a vida pelo outro, Em consequência de tudo isso, a realização dessa
mas, sob o perfil psicológico, o investimento pulsional não vivência não se verifica senão na intimidade, e, na ver-
é tanto no companheiro quanto no ideal coletivo. dade, Aristóteles conclui nesse sentido sua argumentação
.. ~stóteles disti?gue a amizade fundada em objetivos (ibid.):
utihtanos ?u sexuais de um terceiro tipo de relação, na
qual o~ amigos se amam por e como são, amam o caráter Ora, quando se trata de si mesmo, a percepção de exi~tir
é desejável, mas o é também quando se trata do amigo.
do amigo, sua alma, sua verdadeira essência. Nessa rela- Entretanto, a atuação dela se dá na vida em intimidade.
?ão po?e haver um leve a~pecto sexual, físico, o qual não Consequentemente, é natural que os amigos tendam para
e, porem, fundamental. E uma ligação de alma a alma. isso.
A implicação homossexual em algumas ou talvez em
todas as relações de amizade não deve ser demonizada A relação psicológica autêntica pede profunda e
como perversão da relação, porque a sexualidade não só consciente aceitação do outro, também de seus aspectos
é, segundo Jung, "o símbolo mais forte à disposição da menos agradáveis a nós. O exercício de tolerância pro-
alma", podendo, por isso, funcionar como veículo para funda e de profunda compaixão, no sentido etimológico
outros significados, como também representa um dos de "sofrer com", significa antes de tudo que acolhemos
mediadores fundamentais de nosso ser no mundo. A a nossa negatividade, a sombra que nos segue em toda
esserespeito, falou-se de "amor sem a sexualidade mas parte. É somente com essas condições que conseguire-
nao- sem o corpo" (Guggenbuhl-Craig) e de "amor erótico' mos garantir ao amigo um afeto estável diante daquela
espiritualizado" (Kracauer), sendo experiência comum humanidade imperfeita que ele opõe ao nosso desejo
que os amigos se escolhem também com base em atração idealizante. Do contrário, ele será o eixo de nosso nar-
física. Isso é bem compreendido, por exemplo, por Aris- cisismo, e alimentaremos elementos de semelhança
tóteles, que reconheceu na vida de intimidade um fator para confirmarmos continuamente a nós mesmos. Se
decisivo ~a amizade. Entretanto, segundo o filósofo grego confiamos plenamente no outro, compreendemos que
em sua Etica a Nicômaco, a escolha do amigo passa pela também nesse caso pode aparecer a traição, e com efei-
sensação, não diferentemente do que se verifica com a tos devastadores. Foi o que sucedeu, por exemplo, com
escolha da pessoa amada (Aristóteles, Ética a Nicômaco uma personagem do mito, Filoctetes, a cujos sofrimentos
1171 b, p. 823): Sófocles dedicou a tragédia homônima. Conta-se que,
158
159
ferido no pé pela mordida de uma serpente, o herói foi levem à ruptura da ligação. A traição pode, assim, cons-
abandonado pelos gregos na ilha deserta de Lemnos (Li- tituir a ocasião para se rever a relação em um nível de
mno~), porque a sua ferida empestava o ar, e seus gritos compreensão mais profundo e mais amplo. Talvez nem
lancmantes atormentavam aos companheiros. Uma vez
com o nosso companheiro ou companheira de vida con-
que, segund? a ~r_?fecia, Troia não podia ser conquistada sigamos revelar-nos plenamente como com uma pessoa
se~ a contnbmçao do arco de Filoctetes, Ulisses e Ne-
de nosso sexo.
optole~o, filh_? de Aquiles, desembarcaram em Lemnos A amizade feminina muitas vezes é mais sólida do
c~m a i_ntença? de consegui-lo. Ulisses sabia que isso que a dos homens, na qual a rivalidade e a violência con-
nao se_na poss1vel nem pela força nem pela persuasão,
taminam a relação mais do que entre as mulheres. Na
mas so pelo engano. E o engano proposto por Ulisses a
amizade feminina parece possível, por exemplo, não só o
Ne~ptólem~ consistia em uma traição: Neoptólemo de- afeto, mas também sua manifestação pelo contato físico,
veria ~onqmstar a amizade incondicionada de Filoctetes
pelo caminhar abraçadas ou pelo saudar-se com beijo
e, ap01a~o na confiança conquistada, deveria subtrair 0
afetuoso. Comportamentos semelhantes são praticamente
arco. ~?1 o que se deu, ao menos em um primeiro momen-
inaceitáveis entre homens, ao menos na cultura ocidental
to, e e mteressante que as palavras postas por Sófocles
(nos países árabes, por exemplo, vigoram outras regras).
na boca ?º_herói traído apresentem inversão lógica tão
Não fazem parte de nossos costumes, e isso está ligado
car~~ter~stica quanto significativa. De fato, exclama 0
her01 (Sofocles, Filoctetes, v. 923, p. 685): não só a um modo diferente de viver a corporeidade,
mas também à aceitação diferente do outro, do amigo.
Estou morto, fui traído, Geralmente cada um de nós deve ocultar seus aspectos
negativos, também, e em alguns casos principalmente, os
~onotando desse modo a traição como condição posterior da pessoa amada, mas pode deixá-los aflorar diante do
a morte, como condição mais letal do que a morte · amigo. As pessoas se sentem ligadas pela amizade porque
O efeito se revela devastador, quando cons~mado é como se se estabelecesse relação de alma para alma: é
no terreno da confiança. Em todo caso muitas vezes aí que percebemos a presença de uma espiritualidade
a traição é praticada como reação defe~siva contra a profunda. Nos poemas gregos figuram muitos exemplos de
frustração ~aquelas expectativas narcísicas das quais amigos que se sacrificaram uns pelos outros. Se aceitamos
falamos atras. Uma relação diferenciada se coloca além a diversidade do outro, a amizade se torna estimulante,
da, sa_tisfação simbiótica e pressupõe a aceitação da porque o diverso me leva a dimensões do existir comple-
propr_1a som~ra'. podemos também projetá-la no amigo tamente diferentes do meu mundo. Enfim, o amor, o eros
e fugir dela irritados, mas então o desafio é somente como capacidade de relação, baseia-se justamente na
deslocado para. a frente. Diferentemente da relação de aceitação da irredutibilidade de quem está ao nosso lado.
amor, na de amizade temos uma possibilidade a mais de É talvez sob o signo dessa irredutibilidade que se deve
s~pera: a traição, aproveitando seus aspectos positivos e entender o ensinamento rabínico referido por Cohen em
nao deixando que os aspectos destrutivos prevaleçam e sua exposição sobre o Talmude. Segundo o que é narrado
por esse autor (1932, p. 262):
160
O ensinamento rabínico sobre o amor fraterno não poderia algumas circunstâncias, aceitar ajuda e pe~~-la si~ifi,ca
encontrar síntese mais bela do que a do vigoroso epigrama: que alcançamos a consciência de _nossa fragilidade .mtrm-
"Quem é poderoso? Aquele que muda o inimigo em amigo". a consciência que é sempre smal de amadurecimento
sec ' • tA '
psicológico. Devemos saber reconhecer nos~a imp? ~ncrn,
A necessidade de reconhecer a diversidade dos filhos, visto que o problema, por exemplo, ~e m~itos psicolog~s
da parte dos pais, que "lhes deram a vida", representa um _ que como tais deveriam ser psicologicamente mais
dos momentos mais duros que devem enfrentar. Por outro ' e articulados
evoluídos ' do que o homem "comu:r_n" ~ e,,.
lado, esse modo de exprimir-se, tão difundido também justamente o de se sentir~m oni~otentes. ~;ue s:gnifi~a
entre os que creem que a vida é um dom, mas de Deus, a palavra evangélica "batei, e a~:ir-se-vos-~ ? Nao pedir
revela a ideia que têm de seu papel aqueles pais que se nunca não equivale a uma condiçao de pei:teita autossufi-
sentem com crédito em relação aos filhos. Na amizade se ciência, mas, ao contrário, a uma patologia. No Talmude
oferece uma possibilidade a mais de dar espaço à diver- (Berakhot 5b, in Elka'im-Sartre, 1982, p. ~8) na:rra-se que
sidade do outro, tirando-se disso motivo para enriqueci- certo dia Rabi Johanan caiu doente. Rabi Hanma lhe fez
mento psicológico: através do amigo experimentamos o uma visita e perguntou-lhe se suportava de bom grado
mundo de uma forma que não nos é habitual - e ele pode 0 castigo que lhe sobreviera. Sendo neg~tiva a _resposta,
atrair-nos muito precisamente porque desconhecido - e Rabi Hanina lhe pediu que lhe desse a mao. Rabi Johanan
em uma situação na qual provavelmente estamos dispos- lhe deu a mão e sarou. A essa altura o redator da narra-
tos a arriscar mais. O amigo espelha a minha alma, a tiva talmúdica pergunta-se por que Rabi Johanan ~ão
mim mesmo; afirma um provérbio: "Dize-me com quem curou a si próprio; a resposta é dada em ?utra n~rrativa~
andas, e dir-te-ei quem és". Se consigo dar minha alma, que repete em tudo a primeira. Certo di~ tambem Rab~
e outro pode recebê-la, espelho-me nele, e ele se espelha Hiya adoeceu e quem foi visitá-lo foi Rabi Johanan. Rabi
em mim. Na amizade, existe, no fundo, uma qulillidade Johanan perguntou a Rabi Hiya se suportava de bom
religiosa. Um étimo possível de religião, por exemplo, o grado 0 castigo que lhe sobreviera. Recebendo respo~ta
que é proposto pela cristandade, destaca nesse termo a negativa Rabi Johanan lhe pediu que lhe desse a mao.
significação de "ligar junto", de "pôr junto"; com efeito, Rabi Hi;a lhe deu a mão e sarou. ~ort~n~o també~~abi
através do amigo descobrimos que é possível uma co- Hiya não conseguiu curar-se por si propr10. Por.qu~. ~o~
municação profunda que nos "amplia". Nos momentos que ninguém está em condições de curar-se por si propno.
dificeis, é "rejeitado" somente quem não pode contar Assim responde o talmudista (ibid.):
com um amigo. Na tragédia grega, o expediente salvador
Porque um prisioneiro não se liberta por si próprio.
que levava à solução do nó dramático era o deus ex ma-
china, que, em termos pessoais, equivale à intervenção
Um prisioneiro não se liberta por si próprio. Talvez_ a
do amigo, intervenção que sentimos como religiosa e
absolutamente "gratuita", como a longa manus ("longa condição de prisioneiro seja a de todos os. h_omens'.e entao
nenhum deles pode afirmar-se em condiçoes de hberta:-
mão") de um deus. A possibilidade de sermos ajudados
-se por si e, para usarmos a outra expressão da narraçao
não contradiz em nada nosso desenvolvimento; antes, e:rn
162
talmúdica, ninguém está em condições de curar-se por si. 14
Paradoxalmente, é a autossuficiência declarada, da qual
falamos há pouco, a constituir o sinal mais tangível de O SEXO NEGADO
uma prisão infinita.
Diferentemente do amor, como dissemos, a amizade
não é motivada por nenhum instinto biológico, mas uni- · , · o queemtodas
Portodapartenanaturezaexistemnupcrns,p ,r , s
camente pelo desejo de relação com outro ser humano. A as criaturas existem macho e fümea. Tambem as ~ore
verdadeira amizade é exclusiva e suscita sentimentos de se acasalam, também as gemas. Acasalam-se tam em as
abandono, ciúme e inveja naqueles que não são seus prota- pedras.
gonistas, mas espectadores. Pensemos na hostilidade que (Lutero, Discursos à mesa 7, P· 5)
muitas vezes a família demonstra em relação aos amigos
dos filhos, amigos que os levariam "para o mau caminho".
Normalmente a amizade leva a uma idealização do outro,
sendo por isso que dela pode surgir a traição, mais dolo-
rosa do que a praticada pela pessoa amada. A frustração Escreve Píndaro na primeira de suas Olímpicas:
ligada à amizade verdadeira pode arrasar a vida de uma
pessoa; enfim, é mais difícil reconstituir a amizade do Filho de Tântalo, direi de ti ~ontra os antigos:
que a relação sentimental. Na amizade temos, portanto, quando ao banquete ~arm~moso
o dever de explicar, de mostrar nossa dimensão humana em Sipilo amiga o pai convidou
os deuses a uma ceia recíproca,
justamente porque o outro tende a idealizar-nos. raptou-te o deus do tridente,reluze~te,
vencido por paixão, e sobre aureas eguas
te conduziu ao altíssimo reino de Zeus venerado,
para onde em tempo futuro
foi também Ganimedes, leva~o
por Zeus, para o mesmo serviço.
medi~as penais. Em 1974, o DSM (o manual de psiquiatria causa de problemas iguais aos de todos os pacientes, e, se
amencana) finalmente excluiu a homossexualidade das existe uma especificidade comum a eles, ela deriva dos
doenças mentais, diante dos dados do relatório Kinsey, de comportamentos penalizantes da sociedade em relação
1948, segundo o qual 40% dos homens norte-americanos aos que se afastam do modelo dominante. Nas escolas
adultos haviam tido relação homossexual completa. A psicanalíticas existe tendência progressiva para se dar voz
homofilia, como qualquer outra forma de "perversão" aos analistas homossexuais, justamente para que possam
deve ser entendida como modo particular e específico d~ facilitar alguma compreensão de seu mundo psíquico.
ser no mundo da experiência amorosa. Não compreende- Trata-se, em todo caso, de situações muito avançadas,
remos a homossexualidade se a separarmos do amor. Pelo porque a atitude predominante nega essa possibilidad:.
que nos foi dado constatar na experiência clínica, o amor Conheço, todavia, dois analistas, pertencentes respecti-
homossexual, em suas expressões, não se diferencia do vamente à escola junguiana e à freudiana, que tiveram
amo: heterossexual: são idênticas a entrega, a ternura, a coragem de denunciar a hipocrisia das associações
a paixão. Nas suas expressões, repito. Porque, do ponto psicanalíticas. Refiro-me aos estudos de Hopcke (1989)
de vista da psicologia profunda, não podemos deixar de e de Moor (1989).
individuar uma diferença profunda. O amor permite a Dada a dificuldade de respostas exaustivas a todas
cada um de nós superar as limitações da nossa existência
. .
p_or isso mmt?,s autores falam dele como da "transparên-
' as interrogações sobre a homossexualidade, pessoalmente
penso que se deva ler nessa "escolha forçada" a impossibi-
cia _do mundo . Ora, o amor heterossexual é relação com lidade psicológica de se enfrentar o diverso porque muito
o diverso; Freud dizia que a mulher é um mistério· uma ameaçador. O feminino para o homem e o masculino para
psicóloga diria, talvez, o mesmo do homem. O eras,hete- a mulher representam um desafio, enquanto o semelhante
rossexual nos abre uma perspectiva sobre esse diverso ou até o idêntico nos parecem obviamente mais dispostos
horizonte da experiência; e é asim que, iluminando a outra a acolher-nos. Na relação homem-mulher, o aspecto con-
metade do céu, ele torna o mundo transparente. A união trassexual inconsciente pode ser projetado sobre o outro,
com o que é completamente "diferente de nós" significa de modo que a anima ou o animus venham a constituir
q~e somos a metade do símbolo, que pode recompor-se a ponte para o outro. Isso se constata nos sonhos, nos
so no encontro com um companheiro do outro sexo. Essa quais a nossa heterossexualidade inconsciente pode evo-
diversidade não é só física, mas também psíquica, já que luir através da terapia: de primitiva, ela pode tornar-se
homem e mulher são psicologicamente complementares. muito mais evoluída, modificando também a tipologia
Tudo isso representa uma possibilidade natural de irmos do parceiro para o qual o indivíduo se sente atraído. A
além de nós mesmos: desde a infância o menino vai para anima e o animus entram no jogo como farol que ilumina
a menina. Como explicar então que, na relação emotiva o outro. Uma relação perturbada com o animus ou com a
e sentimental, o diverso muitas vezes cause medo a pon- anima inevitavelmente se reflete em escolhas "doentes",
to de motivar em alguns casos a escolha homos~exual? que guiam o indivíduo para relações nas quais, não por
O paciente homossexual geralmente não pede para ser acaso ele se afunda cada vez mais no mesmo problema.
"curad o"de sua h omossexuahdade;
. ele vai ao analista por '
No homem, como já dizia Jung, a homossexualidade pode
170 171
11:1'
!111
11
represen~ar uma situação na qual o sujeito se identifica
1:
1 com a amm_a, sendo, portanto, incapaz de projetá-la para 15
1.,
escolher a vida. E o suicídio nos diz que a morte pode ntido não deve espantar-nos, dado que, como obser
se d d .
ser escolhida. J ng a tomada de consciência é ver a e1ramente u
Todos aqueles que entram em conflito com os dita- f:rto'aos deuses, uma culpa de Prometeu. E~a
implica
mes das convenções externas para darem ouvido à voz da ntrada em contato com a dimensão inconsciente e, pc
próp:ia interior~dade respondem a um chamamento que : nto a coragem de pôr de lado tudo o que já se conhec
os poe necessariamente em confronto com a realidade o~'nu::Uinoso" entra em nossa experiência, e não está di
da mo:te. Co~ efeito, a coragem de interrogar-se sobre que 0 eu conseguirá confrontar-se com ele sem se per~«
o se~ti.do ~a vida e d~s escolhas individuais comporta Não cabe a nós dizer a última palavra sobre destm
relativ1zaçao de nossa Ilusão de onipotência isto é com- individuais que parecem decalcar em suas modali~a,d
porta a cap!lcidade de pensar na inevitável,experÍência a forma do caos e da desorientação. Em geral o ~~1cu
da morte. E só quando se percebe profundamente em é julgado nesses termos, como ~o~clus.ão dramat~ca
nível emotivo, a fugacidade de nosso aparecimento s~bre conflito entre leis do mundo e leis mtenores que nao E
a terra que se cria espaço para reflexão sobre o sentido contram ajuste vivível para o indivíduo. Mas c~~o .sal
da vida. Do contrário, somos torrente anônima que se se, no destino de uma pessoa, justa~en~e º. smc1d1:> ~
precipita pela encosta, ostentando nossos haveres como foi 0 passo que lhe concedia sua propna hbert~çao.,
se fossem coisa sólida, duradoura: a nossa casa a nossa filósofo escocês David Rume, em um de seus escritos . .
profissão, a nossa respeitabilidade, os nossos filhos. Não bre 0 suicídio, exprimiu um ponto de vista que, de algi
conseguimos .v~r que todas essas identificações corres- modo, coincide com a nossa interrogação: Supo~h~m
poi:i-dem a .sohd1ficações de nosso pensamento, enquanto argumenta Rume, que eu não tenha mais cond1çoes
o no da vida segue indiferente seu curso desaguando .
promover o interesse pu'bl"1co, em s uma. , que
. eu est.
1
no desc~nhecido da morte. Quando algué~ é obrigado impedido de fazê-lo ou que a minha vida impeça ou
por um impulso emotivo, interno, a refletir sobre esses pessoa de ser útil à comunidade. N~sse :as~, .sustei
temas, o que pode dar-se durante uma terapia analítica Rume, a minha renúncia a viver sena nao so isenta
ou pela ação produzida por um destino violento a "fé" culpa, mas também louvável (Rume, 1756, P· 5.9~): A
no materialismo começa a vacilar; não nos basta ~ermos mais acrescenta ele, não se pode negar que o smc1d10,
"fulano de tal", pertencer a tal classe social e a tal família certos' casos, pode ser um "dever para com -nós mesm n .
e ter essa ou aquela meta no âmbito profissional· temos (ibid.). Os casos aos quais Rume se refere sao a doe:.~
necessidade de outra fé, de uma nova fé, à qual co~fiamos idade e algum acontecimento danoso que possa torh e
o en~ontro do sentido de tudo isso. O processo posto em vida peso insustentável. Jung expos opim~o semel
A • ·-
e a
m_ov1me~to por sem~lhante impulso para a individuação em carta a Eleanore Bertine, em 25 de Julho d 17
nao desagua. em êx1~os previsíveis: a pessoa pode sair Em alguns casos, escreve ele, o. s~1c1 · 'd"10 p~de·m
estar
ed
dele fortalecida, mais humana e mais feliz por existir, acordo com o insconsciente do smc1da, e entao I P
204 é totalmente ilegítimo, quase um crime.
, ero de casos nos quais o suicida deixa
Toda traição é vivida como injustiça, mas a injustiça pelo grande nu~ ua última vontade ainda há
de sentir-se traído nas próprias expectativas pela vida mensagens escritdas. ~~ s merge uma última tentativa
mesma, que parece estender-nos seus frutos e, depois, lugar para o mun o, am a e e rinci almen-
d pôr-se em comunicação com ele, emerg p p d,
um_a vezbque ngaemstaoi~~~~~ecaso~ ;~:s~!e:Ue ~
cruelmente não dar-nos os meios para colhê-los, é intolerá-
vel. A "traição" que parece dar-se em relação ao indivíduo t:---:phcaçoes so re o dºd
:"to s~c~~~:~:::d:u::.:'7a~~ ~~;:zs:~~:;:~::º~a~
é a de um universo que, como a Esfinge cruel, apresenta
seguidos enigmas aos seus filhos, mantendo-os, porém,
na precariedade das respostas possíveis. Não obstante, ·t é de surpreeender a exuberancia r gi
Camus (1942, p. 27) escrevia: com efie1 o, . ·a os por exem-
, ºda de vida de famosos su1c1 as; pensem ' .
av1 . . tisa americana que escrevia a
plo, e~ Silvbia Plat?.~~;.: paroxística de existir" e sobre
Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder
ao quesito fundamental da filosofia. O resto - se o mun-
sua mae so re sua iver uma vida profunda
"meu sentimento profun~o ~~~ath 1975, p. 158), cans-
do tem três dimensões ou se o espírito tem nove ou doze
categorias - vem depois. Esses são os jogos: primeiro é
preciso responder. e rica como nenhuma oura ' " ·b ºd 159) das
ciente "das fontes de tristeza e de d~ (i i ·sf1~ia Plath
Primeiro é preciso responder à pergunta que nos quais b~ot~Ariva~el'?equ~es~~t~~~~:i:s~ :::~:suas coletâ-
pomos sobre o sentido. E, paradoxalmente, a escolha da na poesia '
morte pode encarnar uma resposta: pensemos na escolha neas (1960, P· 39):
de nos alistarmos como voluntários na guerra ou de nos E agora eu
deixarmos morrer de fome por um ideal, opções essas que Espumo ao grã_o, cintilação de mares.
podemos ler como formas transversais de suicídio. Camus O pranto da cnança
é ainda iluminante quando nos diz (ibid., p. 28): , Na parede se liquefaz.
O que se chama razão de viver é, ao mesmo tempo, uma Eeu
excelente razão de morrer. Sou a flecha,
o orvalho que voa, .
Invertendo essa afirmação, afirmaríamos que às ve- Suicida, junto com o impulso
Dentro do vermelho
zes uma razão para morrer sublinha as razões da vida.
Pode suceder então que o ato fatal e definitivo do suicida Olho, cratera da manhã.
esconda, com a acusação de traição dirigida à vida, o
. ·t J·aponês Yukio
pedido magistral de uma "revelação" do que a vida não Outro grande artista, o escri or b d 1970
nos dá. O suicídio "trai" a vida, patenteia sua riqueza não . ºd 25 de novem ro e '
Mishima, que se s~1c1 ~uhem a mensagem fulgurante
resolvida ou a riqueza vivida como inatingível. A dupla deixou em sua escr1vanm a um
face do gesto suicida, isto é, a sua destrutividade evidente (Yourcenar, 1980, P· 104):
e, não obstante, o seu potencial de resgate desesperado e · · mpre
A vida humana é breve, mas eu querena viver se .
autárquico da inautenticidade, é-nos confirmada também 207
206
A vida, como nos é imposta, é demasiadamente dura para
. ~ortanto, em nossa exposição, longe de querermos nós; traz-nos em demasia sofrimentos, desenganos e difi-
mclm_r .ª escolha do suicídio entre as necessariamente culdades impossíveis de resolver.
patologi~as ou entre as necessariamente sãs, limitar-nos-
-emo_s ª. mter~ogar-nos, a apresentar perguntas sobre os Essa afirmação de Freud pareceria ditada por pessi-
pos~1veis sentidos do suicídio, o que indiretamente signi- mismo exasperado, mas, na realidade, poderia ser subscri-
fica mte~ogar-nos sobre o sentido da vida. Estou também ta por todos os que viveram verdadeiramente. O começo de
convencido ~e q~e, ~e nos tornássemos mais "permissivos" nossa vida é promissor, ao menos nas primeiras cenas: se
no ~ocante a crise mterior, esvaziar-se-ia no coração de temos sede, alguém nos dá água; se temos fome, alguém
mmtas ~l~as sensíveis, o recurso ao suicfdio como única nos dá de comer; se queremos dormir, alguém nos fará
escapatona ~e uma solidão insuportável. Quanto mais dormir. Crescemos sob o signo da confiança na justiça do
den~o e obstmado for o mundo circunstante em negar a mundo exterior, porque a satisfação constante de nossos
reahda_d~ do s.ofrimento, tanto mais o indivíduo que so- pedidos no-los faz sentir justos, como justa nos faz sentir
fre ~era n~1pehdo ~~r~ u~a estreita e intolerável solidão a vida, que tão pontualmente reconhece nossos direitos.
e ahenaçao. O smc1d10 diz respeito a todos nós não , É esse sentimento de justiça que nos leva a estabelecer
po~que ~esto
o de um suicida, embora distante, ~ão po~~ com a vida um pacto inconsciente, mas indissolúvel: ela
d~1xar de impre~sionar-nos em algum momento de nossa estará sempre do nosso lado. Tudo o que desejamos para
v~d~, ~as tambem porque ao menos o pensamento do sui- satisfazer nossas exigências parece-nos ao alcance da
c1d10 ,Jª atravessou talvez a nossa mente , a1·nda q ue por mão, ao menos nos albores de nossa existência. Nesses
um ~o momento, como resposta radical a uma frustração momentos se solidifica o conceito de que a "vida é bela",
~entida como intolerável - um luto, uma separação um isto é, quando ela se mostra somente como fonte desa-
msu~e~so. Jean Améry escreveu em seu Levar la r:iano tisfações imediatas. Mas, com o crescimento, aparecem
su di se (1976, p. 37): as primeiras dificuldades, as primeiras frustrações, os
O fato é que o ins"?cesso,. em sua dimensão de amea a primeiros pedidos não atendidos; então o sentimento d~
coloca-se, de maneira mais evidente do que a mort ç ' justiça se torna sempre mais tênue, até desaparecer. E
fundo de toda existência humana. e, no então que o famoso pacto inconsciente entre o homem
e a vida sofre o primeiro golpe. Não se reflete bastante
As causas que desencadeiam uma resolução tão que o sentimento de justiça foi vivido sempre como algo
desesperada podem ser as mais variadas como variadas objetivo, absoluto, universal e tão "acima das partes" que,
podem ser as s~luções que acabamos dando a esse deses- com o passar dos anos, se acaba confiando unicamente na
pero, mas aqm eu quereria tentar esclarecer os motivos "justiça divina" e dando como certo que não vale. a ~ena
profundos ~ue podem levar a mente humana ao pensa- procurá-la entre os homens. Crescemos com essa i~e~a de
mento de por a palavra "fim" em sua vida uma justiça que governa o mundo como uma espec1e de
Eu gostaria de partir de uma famas~ consideração gravitação newtoniana, mas depois a vida nos mostrou
de Freud: 1:1-m.a reflexão muito cara a mim em meus mo- o seu rosto, indiferente, belíssimo, cruel, piedoso, mas
mentos d1ficeis (Freud, 1929, p. 567): ?.OÇ}
208
sempre de modo casual incongruente, caótico e sem ao
0 caminho que conduz à descoberta da individualidade
menos a sombra de regras certas com as quais contar. Em
?~t~as ~alavras, não podemos confiar na vida. O pacto própria passa sempre. pe~a. expe~iência de um possível
m1c1~l e dolor?samente rompido. Nesse ponto, a traição suicídio. Com efeito, a md1v1duahdade requer a corage~
da vida, a traição que a vida nos impõe, não mantendo de estarmos sós e de nos opormos a um mundo que trai
seus pactos, nos faz vir à mente os versos trágicos de e banaliza. Daí o desejo profundo de não pertencermos a
Leopardi (A Silvia): este mundo. Não nos esqueçamos de que, desde os tempos
clássicos, a coragem foi invocada nas disc~ssõe~ s~bre o
Ó natureza, ó natureza,
por que não dás depois suicídio. Assumir a responsabilidade por nos propn?s ~e
o que prometeste antes? modo autônomo e crítico é experiência de reaprop~iaçao
por que tanto enganas os filhos teus? que requer certo tipo de separação do passa~o. Eis por
que podemos dizer que a análi~e co~~?rta mm~as_vez_es ~
.É, então, a vida que nos trai; é ela que - se voltarmos experiência do "suicídio" próprio, de tirar a propna vida
~º. s1~i~cado original do verbo "trair" - entrega-nos ao para permitirmos a sua transformação, para fazermos
m1m1go, isto é, à morte. Não a uma morte "natural" inevi- emergir uma vida nova, abandonando o modelo ve~ho,
tável, ainda quando inesperada, porque todos nós e~tamos agora moribundo. Em termos de simbolismo psíqmco,
"ent~egues" a ela pelo simples fato de vivermos, desde 0 porém, o abandono equivale a u~a morte. Enquan_to ~
nascimento, mas uma morte diferente, não sofrida passi- vida avança sem choques ex~ess1vos? e ~a~vez na cmti~
vament~ mas decidida, meditada, às vezes preparada lon- lação de satisfações verdadeiras ou Ilusonas, a ~~m~ e
ga e meticulosamente: o suicídio. Não sabemos se também como que eclipsada, posta de lado, reduzidaª? silenc10.
os suicídios que parecem causados por impulso imprevisto Infelizmente não só se trata de situação precária, porque
são tão "espontâneos", e não premeditados. É provável que é precário o ~quilíbrio entre ~~sejos e sat~sfações qu~ ~
eles amadureçam lentamente em uma situação de vida sustenta, como também essa desautoraçao da alma e
pa~a _ªqual se.torna insuportável a presença contínua da pura perda. Quem se priva incon~cientemente da ~resença
traiç~o: E a~m.embatemo-nos mais uma vez no problema da alma renuncia a um dom prec10so, porque ela e a nossa
dos vanos s1gmficados do verbo "trair". Por exemplo, além força. É verdade também que a mai~ria das pessoas nem
de "entregar'', fizemos referência à acepção que se verifica suspeita da existência da alma e deixa que ou!ros falei:n
" 1 "E .
no re:re ar . m que sentido, então, a traição praticada dela na forma de credos religiosos, de exortaçoes morais
pela vida nos "revela" alguma coisa, por não manter as ou de alocuções políticas. É como se a alma existisse como
ilusões de nossa infância? Pois bem, a traição que a vida institucionalizada por pessoas que falam dela por dever
nos impõe "revela" a presença da alma, e então numa de ofício.
perspectiva psicológica, o suicídio só pode ser consÍderado O suicídio causa perplexidade entre as pessoas; no
sob o ponto de vista da alma. De fato, é somente diante rosto de todos se lê estupefação quando se diz que alguém
da potencialidade do suicídio que percebemos que temos se suicidou, e todos experimentam um sentimento ~e
uma vida psíquica, que temos uma alma; e, vice-versa, culpa, como se, de algum modo, tod~s devessem sentir-
-se responsáveis. Em carta de 10 de Julho de 1946 a um
210
211
destinatário anônimo, Jung sugeria a ideia d
últ" T e que, em 19
ima ~na ise: a 1uta para viver tem em si um enorme
escopo (m Jaffe, 1975, p. 68):
A MORTE ENCONTRADA
Vive~o s para atingir o maior desenvolvimento espiritual
1
P.~ss1ye e para ampliar o mais que pudermos a nossa cons-
c1enc1~. Enquanto for possível manter-nos em vida ainda
que SeJa em nív~is mínimos, deveríamos empenha~ todas Oh, multiplicada miséria! Morremos e não podemos gozar
as nossa.~ e~ergias para conseguir o objetivo da tomada da morte ...
d e consc1enc1a.
(J. Donne, Devotions upon emergent occasions, 1
Meditation, p. 7)
A vida, continua Jung, é uma experiência que deve
ser 1e.v~d.a a ~ermo. A verdade, porém, é que a escolha
do s1:11c1d10 existe e é uma resposta extremada à traição
d a vida.
. . d"víduopercebeaexigencia
sumir que, nesses casos, entra muito intensamente em Se, por vontade do ~es~mo, 0 m 1 f; zê-lo essa atitude
jogo uma aversão radical ao processo de alargamento da de conhecer a si propno e se recusa a ~ '
negativa pode causar-lhe a morte rea.
própria consciência. Essa aversão - que equivale a uma
traição entendida na acepção etimológica de entregar as . . t mbém. uma escolha
promessas da própria anima ao lugar da indiferenciação Escolher crescer implica, pois, a escolher
- poderia explicar-se como ditada pelo terror de enfrentar de morte, u~ gesto sui~id~ si~~~l~: !:=;:.:~bretudo,
a passagem iniciática para um modo de existir diferente, crescer, queira-se ou nao, imp t , de fantasias de
passagem essa que equivale a uma morte. Trata-se de um matar-se. De modo análogo, a raves à mente cons-
um processo que os alquimistas reconheceram quando suicídio pode progressivamente revelar-~~ ue a dor da
falaram de distractio e de "morte voluntária". Por que não ciente uma. tensão pa_:a la Itransf;~::~nis~a rebelde em
poderíamos reconhecer de outro modo nossas projeções? alma torna improrrogave . sao, p
'JH~
214
Cavalos em liberdad d Mº h ·
tantas vezes imagin:d e is ima, chega ao gesto suicida espelhos e no pedido incessante de sermos refletidos e,
sob um pinheiro nas o como momento sublime, "sentad~ assim, reconhecidos.
depois de ter te~tado =rgens do mar, ao nascer do sol", A ideia de suicídio alude à transformação, mas é claro
cassado o· d golpe de Estado terrorista fra- que quanto mais radical é a mudança que se projeta tanto
. msucesso e sua A · d t
revela o drama de um destin=ª t e dra:sformação social mais será ela vista como perigosa, e então a concretização
elo gesto suicida representa seu e;íl:~oºco::;:~s~::aç:o, do impulso suicida, a sua interpretação literal, pode pare-
Pano, também Van Go h t , · ouro cer a mais apta para resolver o conflito. Nesse ponto somos
tica, tentou realizar si!b~~c~::~~= :ua ~arábola artís- traídos pela vida, que nos entrega à morte, mas, parado-
do eu que suas cores . ssa ransmutação xalmente, também nós cometemos uma traição, porque
tela, mas sem consegu:~~o~s e magníficas projetavam na o impulso para matar-se não implica necessariamente a
Traição e suicídio est- ·d sua realização, e sim a compreensão de seu significado.
literalista no qual pode ca~~ um os ~elo mesmo equívoco Como maus tradutores, não apreendemos o sentido do
dade da existência com olharq::i~ ~~o olha para a reali- impulso, portanto, o sentido da "palavra", e a entendemos
de transcender o dado factual o ~º: com olhar capaz mal. Isto é, traímos o "pensamento do autor".
iniciática e salvífica Rece t ' parta a ~ir-se a uma morte A teologia sempre soube que o suicídio e a morte são
, . . n emen e a imprensa t. .
a serie de suicídios que .d . . no 1c10u a primeira perturbação da alma. E a morte - também
tal certamente só na a ~~~m~ ep1 em1_a imprevista, mas isso já vimos - pode representar a figura através da
na~ cidades de provín!a d~~~~::~:d~~á~1;mas peque- qual a alma nos fala. Se é verdade que o nascimento da
mais que adolescentes que não tinham en '~ra~ pouco individualidade se serve de uma experiência de possível
modo de resgatar-se de um "mal d . " co~ r~ o outro suicídio, e que escolhemos a vida quando poderíamos es-
irreconhecível aos outro s. e VIVer sutil e mvisível, colher a morte, então, no caminho que nos conduz a nos
tornarmos nós mesmos, vamos construindo a nossa "nave
O único horror é o de não servir de morte". Como diz a filosofia, ir conscientemente para
'
a morte significa construir o vaso melhor. Para Platão,
escrevia Yourcenar (1957 p 28 ) E _ . como sabemos, o exercício da filosofia equivale em tudo
e para ninguém · ºfi ' · . · nao servir para nada
que não reflete n:i:~~: :::i:tir a ~xistência como espelho
a prepararar-se para morte. O céptico Montaigne não
pensava de outro modo. Jung, de seu lado, sustentou
~~ ~~:::;:~;~:r:~:~:~~tl; :~:::: ~:~Z:1::~~e~ em sua autobiografia que, se a vida continua de fato no
além, a sua continuação só pode ser pensada como "psí-
mande de volta a nossa ima. e imos ao mundo que nos
quica". Isso implica, segundo Jung, que a vida no "além"
numa espécie de insondável gem, eA pare~e que o mundo,
dos tempos dº · c?mplo arqmtetado na noite pode ser representada só "como progredir no mundo das
' iss1pa-a nos mil b imagens". É, pois, a alma que mora no além ou na terra
cotidianos. No fundo pod . urd~cos negros dos atos
' er-se-1a izer o h dos mortos. Se, pois, "inconsciente" e "terra dos mortos"
persegue na vida se cons ' son o que se
uma na procura de possíveis testemunham horizontes semelhantes de um sentido pos-
sível, o reconhecimento e o acompanhamento das imagens
216
217
realizados em vida nos
e para a assa e preparam, de fato, para a morte e encontraram a morte atirando-se contra as cercas de
376-77) Ep g m p~ra alem do limiar (Jung 1961 PP arame farpado ligadas a alta tensão, para livrarem-se de
· por essa via Jung ' ' ·
pelas nossas alusões ' como se pode compreender um sofrimento insuportável, mas também como a única
de Platã E ' recupera, transavaliando-a, a lição possibilidade restante de afirmação do eu. A tentação
º· xasperando essas p · -
que cada um emb
'
.
ora mconscienteme t
para entrar na morte. A escolha d n, :s~o e su~ via
menos evidente. O insucesso de u o me ~ o e s~ mais ou
,
. os1çoes, podemos afirmar
t· Ih
suicida se faz premente quando percebemos a gratuidade
absoluta de nossa dor, como se ela tivesse perdido todo
significado, como se não fosse compensada por nada. Po-
o único que dá sent"d m projeto existencial demos resistir à tortura quando, por exemplo, trocamos
. . 1 o ao nosso prese t d '
smcíd10; de fato enqu t . n e, po e 1evar ao nosso silêncio pela salvação de um amigo, da mulher que
d
e nada impede nossoan o s.omos projetados para a frente
crescimento enquant t d"
amamos etc.; mas não resistimos quando o sofrimento
te de nós esse f:acho d 1 ' o emos ian- é destituído de sentido. Pensemos no suicídio de quem
e uz que nos ah · h
sentimos em contínua ex ansã r~ o .camm o e nos não conseguiu suportar a ausência decorrente de luto
em nosso pensamento· ela~he o, essda ideia não aparece ou de separação: a falta de relação com o próprio mundo
q ue não pode · '
mais crescer A pr · t b T d
°
ga quan 0 homem percebe interno fez com que fosse delegado ao outro o sentido da
o horizonte subjetivo de s~ntidoo~e a I I ~de representa identidade própria, em uma medida que vai muito além
acontecimentos do pr t 0 qual mscrevemos os das confirmações que cada um espera legitimamente de
esen e e sobret d
fiamos a vitali"dade d d' . u o, ao qual con- uma relação. Nesses casos, o trabalho psicológico, ainda
e nossa 1m - d ·d
projeto no qual cada um d , ensao es1 erante. O que não profissional, pode ajudar muito, porque nessa
mais alta espiritualidade e nos se recon~ece pode ir da
existência mas isso - tºs asp~ct~s mais materiais da
o "dentro" 'e o "fora" ~ª;e em ~mt.a importância porque
procura do sentido perdido podemos ser ajudados por um
amigo ou também, aos que têm "fé", por um sacerdote. A
força do homem que tem "fê" está justamente em ter um
possiblidades de carreira ~~s com~1dem. Por exemplo, as sistema de compreensão do mundo que não deixa vazios
traduzem esse desejo de ~se_o erece~ na vida adulta perigosos, ejá vimos que todos os sistemas religiosos nas-
através delas o indivíduopsr:j:~::e ~o hoj·~ no amanhã, e cem em resposta a questões fundamentais da existência
que o levda adiante, que o faz sentir-~:~::. cºa~:h~~ceNsso humana. Antes, a própria elaboração de uma dimensão
campos e concentra ão - . . os religiosa poderia ser lida como estratégia evolutiva capaz
psicologia muitas ve~es faz :~~eq~ai~ quem se ocupa de de garantir sobrevivência mais longa.
de verdadeiras e próp . .t ~encia, porque se trata O sofrimento que leva ao suicídio pode, pois, nascer
das possibilidades de sro1bas s~ ~aç?es extremas, no limite do despertar da alma, procurando um sentido em altas
rev1venc1a · 'd"
cionado expressament 1 - o su1c1 w era men- vozes; como já disse, a ideia do suicídio, ou o ato verdadeiro
e nos regu amentos t e próprio, não se manifesta nunca como acontecimento
strengstens verboten (" . . . en re os atos
os nazistas sabiam bei:ig~:~s:::ima~~~te proibidos"); e imprevisto, mas como culminação de um percurso interior
propriação definitiva da i~entidadp~01b1ç.ª? m~rcava a ex- que, em muitos casos, é mantido em segredo. A fantasia do
célebres as fotografias d .. e .º pns10neiro; ficaram suicídio oculta o desejo de realidade e de existência mais
e pns10ne1ros que procuraram plena, as quais a natureza, depois de havê-las prometido,
218
219
perspectivas para nós, é como se já nos tivéssemo~ S':_i-
impiedos~1?-en~e as negou. Toda traição, dizíamos, é vivi- cidado. Considere-se ainda quão desesperador sera nao
~ª com? lllJustiça, mas essa injustiça é intolerável. Tão encontrar afetos interesses, pequenos e grandes acon-
mtolera~el que, naquele que a sofreu, começa a surgir tecimentos do c~tidiano não só no presente, mas ainda
a nec~ssidade paradoxal, mas tranquilizadora, de tê-la nem na espera confiante de alguma coisa que possa ser
mere~ido, de fazer a prestação de contas dar certo. Pulsa conquistada. É a alma desesperada que invoca a morte, é a
em nos essa necessidade inextinguível, tão irracional alma desesperada que se dá a morte. Quando, como sucede
mas, ao mesmo tempo, tão tipicamente "racional" d~ atualmente, algum de meus pacientes ~ontrai a Aids, o
dar sentido "ético" a tudo, até às catástrofes naturai~ às psicanalista se vê diante de problemas imensos, porque
"pragas" bíblicas. Analogamente criticava Voltaire 'em a pessoa (geralmente jovem, à diferença ~os d?entes de
s~u Cândido, a ideia leibniziana de que o homem estaria tumor) é condenada à morte quando a vida amda deve
vi;ei:i-do no ~elhor dos mundos, e contra essa afirmação desenvolver-se, quando a vida está adiante, e não ~t~ás.
otimist~ fazia valer, entre outros, a catástrofe do terremo- Então é como se a fantasia da própria morte permitisse
to de Lisboa. Assim acabam?s aceitando a ideia de que, uma transformação, ainda que de forma alucinatóri~. N es-
no. fun~o, m~recemos tambem essa traição, por culpas
A
se contexto, o suicídio quer somente dizer: "Não ace_ito qu~
CUJa e:~1stencia talvez nem conheçamos. toda uma vida, que ainda devo viver, possa termmar. A
Diante da pessoa que quer suicidar-se é necessário traição da vida oponho ao menos minha vontade desespe-
~omp~eender qual é su~ relação com a realidade e qual rada". A ideia da morte deve pressupor uma elaboração e
e a vida que ela quereria, mas não consegue ter. Jung um distanciamento do passado. Se não o metabolizarmos,
~or exemplo, conta nas Memórias (1961) o difícil trajet~ ele nos anula e os nossos ombros se curvarão sob o seu
a procura de um sentido individual da vida, e liga os mo- peso, tanto m~ior quanto mais improd~tivo ele ~iver sido.
mentos mais sombrios de sua luta à falta de compreensão É como se guardássemos em casa objetos mmto velhos
dos sonhos. Uma voz dentro dele dizia: "Deves compreen- e inúteis; aos poucos o espaço estará cheio e não poder_á
der o sonho e deves compreendê-lo logo" (p. 208). A voz se receber mais nada de novo. O suicídio é a última ratw
tornou cada vez mais insistente e feroz, até exprimir-se ("razão") que temos, não tendo nunca tido a coragem de
dest~ modo: "Se não o compreendes, deves dar um tiro metabolizar o passado, a fim de olharmos para a frente,
em ti mesmo": Pode-se intuir que o suicídio seja visto em vez de voltarmos ao que poderíamos ou deveríamos
como perspectiva convidativa como via de saída como ter feito. Nisto deveria consistir nossa higiene mental, a
" ~o1uçao- " no momen~o em que' nos sentimos paralisados
'
saber, em evitar que o passado nos anule. Temos duas
di~te de ~m dever. E como se repentinamente tivéssemos possibilidades: viver ou morrer, e entre elas deve~o~ es-
caido na s~tuação de deficientes e não pudéssemos mais colher em perfeita solidão. Metabolizar o passado sigmfic~
corr:er, fugi;, ,agarrar alguma coisa para nos defendermos. aceitar morrer continuamente, por exemplo, nas experi-
A vida esta a nossa frente, depois de nos haver privado ências de amor, que, se necessário, devemos deixar para
de ~o_ssas possibilidad~s ,de enfrentá-la. Essa é a grande trás a fim de abrir-nos para o novo. A força criadora mata
traiçao da natureza. Diriamos então que a vida nos trai ao ;roduzir o novo; para nascer, o futuro deve livrar-se
quando nos priva de toda perspectiva. Se não existem 221
220
do passado. Posso estar desesperado, sentindo que não 20
vivo mais, e somatizar o meu estado de privação. Nesses
momentos de sofrimento - bastaria pensar em certas
A MORTE DESEJADA
doenças - a ideia do suicídio se torna dominante, porque
à negação do meu desenvolvimento liga-se o sofrimento
físico. Nesses casos, a ideia de traição está definitivamen- ·s do que na morte devemos seguir a inspiração
Emnad amai
te concretizada em meu corpo. Nessa altura, a ideia do de nossa alma.
suicídio parece ser a única possibilidade que nos resta, e (Sêneca, Cartas a Lucílio 70.12, p. 449)
'! é difícil propor esse ato como dimensão simbólica. Nesses
contextos, é só uma atitude religiosa que pode, talvez, ser
a melhor solução, porque, onde não há esperança e não se
vê o sentido das coisas, a alma "naturalmente religiosa"
percebe a presença de Deus.
Morrer é uma espécie de desafio cotidiano. Também
as células se regeneram continuamente, morrendo. Po- · mo escre-
A morte é a última traição; por isso, co
deríamos então dizer que quem nunca teve a ideia de " r ta não pode proceder sem uma
suicídio nunca enfrentou corajosamente a própria vida, veu Hillman, o ª!1-ª~~llman 1964 a, p. 46). O analista
aceitando a ideia de transformação. A resposta ao desejo filoso-fia da morte ( i 'filosofia da morte, é certo,
suicida consiste em se ouvir a voz da alma: ela fala quando não pode proceder sem u~ta . . a" o "outro" e "trairia" a
· fizesse rairi ,
as satisfações da vida desaparecem, e a natureza mostra porque, se assim ' t é lugar inacessível a
. , . . ão obstante, a mor e .
finalmente seu rosto severo de madrasta. A sua crueldade si proprio, n d " - rada" da experiência, lugar'
quer "entregar-nos" à morte, e o suicídio é o que sela a decifra~ão, lugard ~Una~~~ "incurável desvio". Trate-
sua traição. Mas, nesse ponto, também nós nos arrisca- como disse Bau ri ar ' 1 te de alguém ou do
mos a não "revelar" o sentido de nosso gesto, a saber, se do sofrimento cau~ado p~ a :.~:cipado pela tristeza
quando privamos daquela voz o movimento interior de pensamento da própria mor et querido· trate-se ainda
causada pela perda de um ende dor da,fraqueza ou da
transformação, que não devemos sufocar, matando-nos,
mas favorecer. da experiencia da doença ou a . ' to das forças vi-
·A • .
- d inevitável enfraquecimen
percepçao o d l"d- u da tristeza por causa
. t fim a so i ao o
tais; tra e-se, en ' . , . o di"scurso sobre a morte
. 1 u imagmar10
de insucesso rea o ~'. t refratário, como que
e sobre o morrer se torna rare ei o, . . - o ual
. ·1A • o O horizonte de hmitaçao, n q
encolhido no si enci · . _ sombra de morte a
. ·t se impoe como
estamos inseri os, d . os· e nunca como em
tudo o que realizamos ou eseJam . ' medo e até a
, oca o homem tentou exorcizar o '
nossa ep
223
222
ideia da morte através da corrid
superprodução ou do m 't d a desenfreada para a A traição de si mesmo representa a morte da alma;
tudo do emprego vertigi~~so od~~ogresso, a~rav_és sobre- e a depressão, com seus tristes corolários, é uma morte
se precipitassem em seu ab. empo, na Ilusao de que vivida, ou melhor, a incapacidade de sentir a morte de
e seus obscuros avisos A te1stmot. suads ima~ens funestas outro modo senão como anulação, desintegração, perda
remover sua presença atrav, · n da iva. e trair a m ort e, d e radical de significado. É a escuridão na qual se cai; muitas
mais que destituí-la de od:; os.ritos da modernidade, vezes a pessoa deprimida descreve seu estado como um
sua sombra d d p ' agigantou temivelmente "estar morta"; sua linguagem, como diz Kristeva, exprime
' e mo o que se de um 1 d l'
elixires de longa vida e t; . ª o, pro iferam os o desmoronar de todo sentido, o realizar-se da insignifi-
estético que parecem dast ecmcas de aperfeiçoamento cância, do vazio, do nada: "o melancólico é um estranho
. ' e er o tempo t
nmguém escapa ao . A • • por ou ro lado em sua língua" (Kristeva, 1987, p. 52).
perigo atom1co de d . '
total e fulgurante 0 f: t 0 , uma estru1ção Entre suas infinitas possibilidades, o homem possui
· a e que parece im , 1 ·
morte sem trair-se a si ró ri _ , poss1ve trair a também a de responder à dificuldade e ao mal-estar com a
o nosso tempo psíquic~ c:m ~unao so p~rque ela esconde traição, entregando-se a uma longa noite lúcida e tediosa.
filtradas através da perda d as contmuas presenças, Não se pode emitir nenhum juízo moral sobre as escolhas
da morte de nossos am e pdessoas que nos são caras, individuais de vida ou de morte, já que conhecemos bem
ores e a doença t b,
porque a morte significa a . .. ' mas am em a complexidade da alma para não encerrá-la nos limites
existência não se realiza e poss1b~hdade de que a nossa estreitos de uma opinião. Em todo caso, a escolha da
d A • anuncia a ameaça d d
a ausencia de significad d o na a e profissão analítica, que encarna e manifesta uma paixão
sent~do, morte e traição sºe e:::~o ser no i:iundo: Nesse pelas vozes dolentes da alma, nos sustenta para termos
sentido que uma aborda e~ ª~ maos, e e nesse sempre confiança nas potencialidades autorregeneradoras
da teologia cristã e de gem ~erbmeneutica menos literal da psique e para manifestarmos nossa preferência pela
<ladeiro triunfo da mortsua ~1~, ologia mostraria o ver- coragem do risco: quem não aceita o risco da vida prepara
e nao Jª e - ,
de destruição da matéri~ t nba? soem seu poder o próprio fracasso, e uma existência falha é uma traição
"vocação" de cada ' mas ~m em no malogro da infinita. Vem-me à mente a famosa Antologia de Spoon
tencial A v't, . dum, na anulaçao de seu projeto exis- River de E. Lee Masters: coletânea poética de retratos
. I orrn a morte se in . .
de nosso presente quand _ smu~ nos mterstícios existenciais, ideada na forma de breves comunicações de
ter consciência dele qua~~a~ c~nsegu1mos dominá-lo e mortos, as quais traçam - através de suas recordações,
sos, como escreve a p' o t' o e e ~ que guia nossos pas- das histórias de sua juventude e de suas tristezas - o
(poesias,. e isa americana Em 1·1 n· k'
vol. 2, p. 285 ): Y ic mson drama dos destinos "traídos". Na série dos retratos dessas
personagens incompreendidas ou, por sua vez, incapazes
Andamos por todos os lugares de compreender a vida, o de George Gray combina bem
P el?s quais ela passou _
Assim vão aqueles com o nosso discurso (Masters, 1914, p. 67):
Aos quais ?ão resta senão procurar Muitas vezes estudei
Bens perdidos -
a lápide que esculpiram para mim:
224 uma barca com velas amainadas, em um porto.
225
Na realidade, essa não é a minha destinação tino de crescimento, escreverá ela em Para uma moral
mas a minha vida. da ambiguidade (Francis-Goutier, 1985, p. 377):
Porque o amor se me ofereceu,
e eu me retraí do seu engano; AB palavras vitória, sabedoria e alegria têm significado
a dor bateu à minha porta, e eu tive medo; somente porque existem perigos autênticos, fracassos
a ambição me chamou, mas eu temi os imprevistos. autênticos e condenação terrestre autêntica.
Malgrado tudo, eu tinha fome de significado na vida.
E agora sei que devo içar as velas Toda experiência ligada a acontecimentos dolorosos
e tomar os ventos do destino, comporta sempre a contração e a crise do espaço vital do
seja para onde for que levem a barca.
Dar sentido à vida pode levar à loucura, sujeito, a redução do discurso ao silêncio, ao pranto, à do-
mas uma vida sem sentido é a tortura ença. Escreve M. Yourcenar em As memórias de Adriano
da inquietação e do vão desejo - (Yourcenar, 1951, pp. 537-38):
é uma barca que anela o mar mas o teme.
A meditação sobre a morte não ensina a morrer; não torna
o fim mais fácil, mas não é isso que procuro ... Pode ser(. .. )
Simone de Beauvoir recordará muitas vezes, em que a morte seja feita da mesma ~atéri8: informe ~ue :'1-
seus escritos autobiográficos, a enorme e negativa influ- vida. Mas todas as teorias sobre a imortalidade me msp1-
ência exercida em sua sensibilidade de adolescente pela ram desconfiança; o sistema das retribuições e das ~enas
"traição" paterna; profundamente decepcionado com a deixa frio um juiz consciente das dificuldades de umJuízo.
Por outro lado, sucede-me também achar muito banal a
vida e em desastrosas condições econômicas, seu pai se solução oposta, o puro nada, o vazio ~n.de ressoa 1:1 risada
irritava com ela, sublinhando seus modos desajeitados e de Epicuro. Observo o meu fim: essa sene de expenmentos
sua suposta feiura e fazendo-a sentir-se em dissonância feitos em mim mesmo continua o longo estudo iniciado na
consigo própria e com os outros. A escritora recordará clínica de Sátiro. Até agora são mudanças externas ... sou
que, na idade em que as jovens sonham com corpo de o que eu era, morro sem mudar-me.
mulher e com os primeiros e intensos amores, ouvia
muitas vezes o pai dizer-lhe: "Simone é um homem!" Só a poesia, talvez, consiga encontrar as palavras
Não é necessário imaginar o quanto pode tê-la marcado certas para exprimir, sem que se percam irremediavel-
essa negação de suas instâncias mais próprias e femini- mente, certas ressonâncias e sugestões.
nas. Ela própria enumera a longa série de sintomas, de Quando se fala de morte, só se pode falar da de
distúrbios psicossomáticos, de verdadeiras fobias e de outro, porque a ninguém é possível falar da própria
tiques que encheram aquele período crítico de sua vida. morte como a niguém é possível falar de seu nascimen-
Ela se entregava a cismas e fantasias para compensar a to· assim esses dois extremos, nascimento e morte, que
opressão do presente, e foi nesse período que se firmou '
enquadram ' a nossa vida, paradoxalmente correspondem
claramente sua vocação de escritora como possibilidade também a condições fundantes, das quais não podemos
de resgate e de emancipação de sua condição. Mais tarde, ter consciência. Apesar disso, de certa forma também a
na idade em que se examina o passado e se consegue ler nossa morte nos é familiar, é "de casa", acompanha-nos
em suas traições um caminho obscuro para o próprio des- como a sombra ou como o anjo da guarda da infância e
227
226
assoma inesperada e indesejada em nossos pensamentos. de longo fôlego é que a nossa consciência poderá expandir-
Escreve Ungaretti (1932, p. 131): -se livremente. E é nisso, talvez, nessa livre expansão
Ó irmã da sombra, da consciência, que reside o destino mais autêntico de
Noturna quanto mais força tem a luz um homem. Mas, embora essa amplidão nos tranquilize,
Persegue-me, o, morte. '
fazendo-nos entrever horizontes muito mais vastos do que
Num jardim puro o nosso estreito panorama cotidiano, não podemos deixar
Aluz te deu a ingênua brama de perceber de quando em quando uma ameaça suspensa
E a paz foi perdida,
Pensativa morte, sobre nós, ou melhor, embaixo de nós, como um prejuízo,
Em tua boca. um abismo para o qual não olhamos, a fim de não termos
vertigens. Sabemos, aliás, que cedo ou tarde esse "sem
Desde aquele momento
Ouço-te no fluir da mente fundo" nos engolirá. Não obstante, seremos obrigados a
Aprofundar distâncias olhar para ele, para esse abismo, não só todas as vezes que
Êmula padecente do eterno. nos embatermos na morte de uma pessoa que nos é cara,
Mãe venenosa dos tempos mas também todas as vezes que sentirmos a irremediável
No medo da palpitação distância de uma pessoa amada, a distância sideral que
E da solidão, nos separa de toda outra criatura e que nem o amor con-
Beleza punida e risonha, segue preencher. Escreveu Bousquet (1941, p. 122):
No adormecer da carne
Sonhadora fugidia, A morte é a solidão das pessoas amadas, uma névoa em
torno delas que nenhuma palavra terna pode atravessar.
Quando me tiveres domado, dize-me: A morte é a dor e o desespero nas mesmas palavras que
Na melancolia dos vivos foram a embriaguez da felicidade. A morte são os prantos
Voará longe a minha sombra? que irrompem quando se ouve uma palavra que significava
amor.
A morte nega, pois, a existência, impondo-lhe sim-
plesmente um limite. No plano da vida cotidiana essa A morte se nos mostra na impossibilidade de dissipar
negação significa que todo projeto pode ser invalidado e essa névoa ou de atravessá-la para chegarmos a quem
que toda esperança pode ser frustrada; é como se o sentido amamos. Ela nos surpreende no auge do amor, quando
de nosso agir fosse posto continuamente em discussão e uma palavra que nascia de intenção bem diferente tem
como se o valor que lhe atribuímos fosse redimensionado ressonâncias inquietantes de memento mori ("lembra-te
drasticamente à luz de sua precariedade. Embora desde da morte"). Em célebre farsa do teatro de fantoches, Pul-
o fim da infância nos tenha sido instilado o conceito da cinela, no clou de um tarantela alegre, encontra em seus
caducidade dos bens terrenos, cada um de nós cultiva braços como "dama" a Morte encapuzada. A morte nos
a~gum projeto de "longa duração", esquecendo-se ou fin- aflora todos os dias nos abandonos que sofremos ou pra-
gi~do esquecer-se daquele "limite"; e é bom que assim ticamos e se insinua, silenciosa, mas não menos atenta,
SeJa, porque só se nos concedermos uma projetabilidade em nossos momentos felizes para estragar a festa. Se con-
228
seguíssemos, não sei por quais exorcismos ou lobotomias concebível e, portanto, inexistente. O inconsciente, como
manter seu fantasma sempre afastado, apesar diso, sería-' já vimos, não conhece o "n~o", e ~or i~so não t~m como
mos obrigados a acolher o pensamento tremendo da morte negar o fluir indiferente da vida. Nmguem, especialmente
no dia em que ela levar uma pessoa que amamos. Com se tiver uma consciência pouco diferenciada, convive com
efeito, a nossa única "experiência" da morte é a de uma a ideia da morte; ao contrário, está inconscientemente
morte da qual sejamos espectadores, a da morte de outra convencido de ter assinado um pacto de imortalidade,
criatura humana. A nossa experiência da morte consiste sem o qual não teria sentido falar de traição. Outra ca-
em assistirmos, impotentes, à progressiva e definitiva racterística da dor causada pela perda da pessoa amada
redução do espaço vital do outro, o qual, de companheiro é que, por algum tempo, ela impede qualquer relaç,ão com
de vida, se torna fantasma. A vida é expansão progressiva, os outros a não ser que seja puramente formal. E o que
a morte é a sua sufocação; assistir a essa síncope mais comume~te indicamos quando dizemos que alguém "se
ou menos anunciada na vida de quem amamos gera um fechou em si mesmo". Mas a necessidade de uma vida de
fantasma que não abandonará mais a nossa vida. Nunca relação é irrenunciável, uma vez que cada um nasce pedin-
mais seremos abandonados por essa experiência, porque do relações e sobrevive somente obtendo-as; toda a nossa
ninguém poderá dar-nos de volta tudo o que pusemos na vida psíquica se baseia no fato de que temos determinados
mulher amada. Seus abraços, seus beijos, a volúpia que pais e vivemos em ambiente humano, no qual aos poucos
aquele corpo nos deu e ao qual demos tanto ... num sopro, foi modelada a nossa dimensão emotiva e afetiva. Essas
num momento, tudo desapareceu. Talvez esse aconteci- relações são os nossos "depositários" e os nossos espelhos,
mento seja pior do que o que aconteceu com Jó. Diante tão indispensáveis para o equilíbrio psíquico que aquele
de nós, órfãos da mulher amada, só desejamos o silêncio que não as tem é obrigado a refugiar-se na lou_cura, a
e o esquecimento. construir para si um interlocutor interno e a ouvir vozes
A morte do outro significa a identificação imediata de dentro. Através das relações com os nossos semelhentes
com um destino que é também o nosso (Antonelli, 1981, conseguimos "conter" a nossa condição incômoda; quando,
p. 147). No filme dos Taviani, O sol mesmo de noite, duas por alguma razão, elas são interrompidas, ~hegam~s ~o
pessoas anciãs pedem que morram no mesmo momento· confronto final. Paradoxalmente, nessa circunstai:crn
esse inciso do filme põe em cena justamente o fantasma' extrema, na qual a mentira já não tem nenhum sentido,
do qual falamos; duas pessoas que se amaram muito só é pedido a cada um de nós que esteja no máximo de _sua
podem morrer juntas, porque duas pessoas que compar- força; que, talvez pela primeira vez, olhe com lucidez
tilharam profundamente do próprio mundo psíquico não para sua vida interior. O paradoxo está, portanto, no fato
podem sobreviver uma à outra. Assim, explicamos alguns de que é nesse momento de grande fraqueza que nos é
suicídios "estranhos" ou algumas mortes em perfeita su- pedido que sejamos fortes. Se o nascimento é movimento
cessão, primeiro ele, depois ela, ou vice-versa, mortes que do interior para o exterior, a morte é cambalhota que nos
podem ser consideradas como formas de suicídio. leva de novo para dentro.
Nada senão a dimensão do sentimento, poderá
A verdadeira traição da morte consiste em que ela, '
resgatar-nos; se um Deus tiver de julgar-nos e qmser
.
do ponto de vista do inconsciente, parece totalmente in-
')Q1
230
perdoar-nos, fá-lo-á porque amamos muito, não porque, 21
por exe~plo, p~nsamo.s muito. Talvez esteja aí a origem
d.o conceito de_imortahdade a respeito de uma experiên- TRAIÇÃO E LIBERDADE
cia de desolaçao e de fim. O desespero diante do possível
fim de t?d~ .relação é remediado por uma concepção
:xtraordman~ sob o aspecto psicológico, concepção que
e a do re_nascimento, da ressurreição, da metempsicose. Quem percorrer a estrada que leva à totalidade não poderá
Ela e:x~nme a .luta ~o homem que não se rende à perda escapar àquela suspensão característica que é representada
defimtiva. Mmtos sistemas religiosos e filosóficos teori- pela crucifixão.
zam ~ existência de um renascimento depois da morte, (Jung, A psicologia da transferência, p. 139)
:sp~cialn;ei:i-te na forma de ressurreição da alma. A morte
e, sim, a ultima traição, a qual encerra a história pessoal
mas .ela ~e d,iferencia das outras por duas características'.
A pn~e~ra. e ~~e podemos somente sofrê-la, ao passo que,
n~ ~raiçao micial, a do nascimento, podemos também in-
?ivi~uar um_ pa~el ativo, uma traição nossa em relação ,Todo o percurso do livro se desdobra entre dois
a mae,, (o primeiro abandono, o primeiro "voltar-lhe as imensos lügâ.res metafóricos: de fato, o espaço da traição
costas ). A segunda é que parece francamente difícil ver corresponde, por um lado, à experiência "passiva" - por~
nessa traição, com a qual a vida nos liquida uma vez por tanto, espaço de morte - de ser traído, de sofrer o beijo
todas, u~ aspecto ''vital", "positivo". A não ser que ... de Judas; por outro lado, corresponde à experiência de
A nao ser que no lugar da morte como acidente con- wtraidor, de atuar uma vontade de transgressão que
creto e conclusivo não tomemos em consideração a ideia não se detém diante de nenhuma proibição, A cena da
d~ morte, a consciência desse limite inevitável de nossa vida vê cada um de nós assumir sucessivamente o papel
vida. Nesse caso, podemos ser nós os traidores, e então de traído e o de traidor, ou talvez exatamente um e ou-
se toma claro que a morte não pode ser senão a via de tro ao mesmo tempo, de acordo com os deslocamentos de
acesso. a uma experiência de transformação, isto é, de cena no jogo "demoníaco" dos intercâmbios relacionais,
renascimento. _nos g~_a,.is somos simultaneamente vítimas e algozes. É a
complexidade da alma que nos pede confronto contínuo
coinàs nossas ·partes mais recônditas,, visto que a nossa
plena humanização comporta a capacidade de estarmo~
em relação com a poliedricidade da psique, a qual pode
espantar e desorientar, e às vezes arrastar. Sofrer uma·
traição significa ser entregue a uma morté dolorosa e
experimentar, na primeira pessoa, as feridas do abando-
no e a perda de toda referência habituàL Mas a psique,
232
em sua. lingua~em simbólica e carregada de imagens, tornando-se, por sua vez, objetos de trajção, mas a história
nos ensma a. viver cada morte como rito de passagem ·-
e-~ s~a fé us recompensaram largamente. ~~~8-.~-~~º2--~
para novas formas de experiência da existência. Como·
traíç~~ éJIJ!lJl p,~gªç~p_g9 <l1:1~ ~~ste, a fim de que não se
nos recorda Jung, a ampliação da personalidade passa· cri~talize, p~;rde.11<].9 yicJ:~-~ sent~_do. Que sentido teria tido
quase sempre por um sacrificium mortal, e a experiência· para os nossos progenitores uma vida idílica prolongada.
da traição e do luto pode exercer função transformadora·- pela eternidade de um tempo sempre igual, senão o fim
se conseguirmos elaborar sua viv~ncüt. A crucifixão d~ do humano em seus albores? Necessariamente não foi
Cristo e, po.rt~nto, sua obra de redenção, como já vimq.s, _ assim. S~ observarmos a criança em seu primeiro ano de
puderam realizar-se somente por meio da traição de um vida, vê-la-emos repercorrendo as etapas antepassadas do
apóstolo. Escreve Jung em A psicologia da transferência· desenvolvimento humano, com aquela curiosidade irre-
(Jung 1946, p. 139):
quieta que se move por entre as coisas, familiarizando-se,
··Quem p~rcorrer a estrada que leva à totalidade não poderá por meio delas, consigo própria, a fim de ultrapassá-las
escapar aquela suspensão característica que é representada na direção de sempre novas metas, de novos objetos que
pela crucifixão. Com efeito, ele acabará por embater-se abram outros horizontes de conhecimento, abandonando
sem e:ro, .naquilo que lhe corta a estrada, que o cruza;
em pnmeiro lugar, naquilo que ele não quereria ser ... , e traindo o velho jogo pelo novo, as descobertas obsoletas
em segund~ lugar, naquilo que não ele, mas o outro é ... , por. novas mara:ilhas ..~ }11na l~_i;·clª p~iq:µe. Na lógica d~. ~_:~
e, em terceiro lugar, naquilo que constitui o seu não-eu traição f;e exprime. o dçi_~mQn. çp_~<!gi:: cl-9 __4<m1.~m, a sua ,
psíquico.
-ânsia de liberdade e de.indixiçluação.
A traição sempre se encontra,__p_ortap.JQ,,,,em nosso
t;. rf~a:ir-~q:ti~Y~!~ _tfl.mb~.!1?:-ª. d~~--~ ~(>,~-~~-~~~~-ª~~ ~!.i:t~:-.
·:~se naquilo_ql.1,El ê::nte§. ~r~ a. _pr,:_ó,p:ri~. :gle.1nt:ude..<:l. segq:rnn:.
c.aminho, e não só para aniql!ilar-nps; se ela _d,§ãestabi- ça:Fausto chegou a trair a própria alma, entregando-a a
hz.a, é para que se recrie alguma coisa. EsÚ~mos..sempre ~Satanás, em troca do segredo do conhecimento. Vem-me
~i atirados na traição. A renovação do milagre de u_m_en à mente a trágica história do amor de Orfeu e Eurídice: o
._f'< ~~ª-escol_?_~~-~ ~i-~e~mo - que acontece a 8C~esmo .. poeta cantor desce aos Infernos para rever a amada mor-
escrev~ Jung - é J:>O~~Ível SQ e quando Se -abre- uma bre~- - ta e recebe a permissão de levá-la de volta para a luz da
~h-~ ~-~-}!!l:~aridade do. seu tempo e na cotidianicl~cl~ d~ - vida, com a condição de não voltar-se para vê-la durante
s~~-~-c,~~~-ç~~: o homem tem riécessidade de· transcender- - todo o percurso que leva do Hades até a terra dos vivos.
séus limites para 'désé'obrif novas regiões de si pr_óprio. ·: Orfeu falha, olhando para trás para ver Eurídice e, com
Freud e Jung, com Galileu, Bacon, Abelardo e Nietzsche - isso ' a condena à escuridão da morte. Cada um de nós traz
praticaram a grande traição das regras culturais de seu .
dentro de si a recordação. de u:rµa ~urjdice _entre@e ao .
tempo, foram transgressores de um sist~~~--fe~:h;dõcrê· esquecimento, de uma amizade traída ~Ju de um amor qµe
. saber que não lhes permitia mais nenhunúí'poss:lbilidade n"é>s traiu, e talvez em cada um de nós esse acontecimento
de aposta consigo _próprios e sobretúdo de "descoberta dê ·Significativ6 tenha ace~dido um cântico como em Orfeu,.
nõV~!°~~r8:_njo~ dos mund~s desconneCidos nos quais o ho- o pa1 da poesia. J oe Bousquet, poeta verdadeiramente
mem fora colocado. Pagarain~essa ·- -
temeridade
- .
.~- '--··~· ."•
audaciosa- .,_ ., )... ··' frãídopela existência e entregue à noite perene do corpo,
234 :
/ \
235
conseguiu criar obra maravilhosa a partir dessa traição o paciente a reconhecer em si aquela imagem de "trai-
total e desarmante (Bousquet, 1941, pp. 84-85): dor" que, por causa da distorção projetiva, ele descobre
Vi a v.erdade de perto. Posso dizer que ela veio quebrar-se refl~tida constantemente no rosto do Outro: Na verdade,
em mim, envolvendo num halo curioso o doente que eu sou, além das traições vitais que a vida mesma impõe aos seus
? doente que eu ~e torno.( ... ) Eu sou aquele cuja vida se filhos, a lógica distorcida de nossas coações e de nossas
mten::ompeu ~mto cedo e que teve de esforçar-se para inca-pacidades nos imobiliza em situações falimentares
acreditar no milagre, a fim de ajudar as coisas a retomar
seu curso normal.( ... ) e autodestrutivas: somos nós mesmos nossos mais cruéis .
J\c7editei no milagre porq.ue essa crença era a única possi- algozes. Assim o nosso percurso analítico sobre a traição
b1hdade para o meu mstmto de conservação. Ora, parece 'se abre para outro registro,_ o da traição de si mesmo. O
que essa concepção de fortuna marcou inteiramente a paciente que, na análise, apresenta os sintomas mais
minha vida, como se a forma quimérica que ela assumia diferentes sofre antes de tudo de uma _traição em relação
para aparecer-me tivesse sido fecundada pelos aconteci-
mentos nos quais ela se fortalecia. ao seu eu mais autêntico. Toda pessoaque·sofre.vive di-
(. .. )O destino estava consumado. Não me restava senão laceração interior entre suas instâncias conscientes e um
mant~~ em mim aquela luz que, de dia e de noite, lhe núcleo da personalidade que, bloqueado, impede que tais
permitia reconhecer-me entre outros mil. instâncias se realizem. Muitas vezes se ouve dizer: "eu
gostaria de livrar-me dessa situação, mas não consigo",
Um poeta paralisado pela vida em um leito nos ilumi- "eu quereria trabalhar, mas não trabalho". A "coação para
na sobre a qualidade de existência voltada para resgatar- repetir", esse mecanismo pernicioso que. Freud analisou
-se das traições que cortam a estrada de nosso desejo de em Para além do princípio do prazer, significa a constrição
~xpansão, de plenitude: a traição do tempo, c:lo amor, da inconsciente para se cair sempre nos mesmos erros, para
lmguagem, do esquecimento. Do fundo de uma procura "'Seencenar repetidamente determinado papel, para se re-
que une a todos nós, as suas palavras direcionam o nosso viverem com as mesmas modalidades relações negativas
percurso de manifestação de nossas verdades traídas e e frtistrantes. Avança-se, por esse caminho J:lOcivo, para
ocultadas nas profundezas do coração (ibid., p. 18): uma existência sob o signo da traição a si mesmo. Não
/'
; Enqua~t? não se põ~ em jogo a própria vida, falta a força obstante, como a coaÇão oculta, atráÉi de repetiÇão ~bsti
necessana para se tirar da sombra o traço fundamental nada da própria morte, o desejo de vitória sobre o próprio
! de um caráter. Sabemos por instinto de que lado devemos cf~iiiônio interior, assim a traição, em sua essência, repre-
\ agarrar uma verdade capaz de salvar-nos do desespero. senta a tentativa de um voo. Não estou, naturalmente,
celebrando a apologia de um "reato"; tento diversamente
~a traição, t!aidor e traído representam dois aspec~ salvar sua paradoxalidade, isto é, não reduzir a uma só
tos de uma mesma expectativa, como no quadro analítico dimensão um fenômeno complexo e cheio de contradições
paciente ·e analista são continuamente chamados a in- como toda vivência que a psique colore e apaga, engran-
verte: ~s _certezas de seus papéis e de seus valores para. dece e mortifica. Se o homem fosse livre, não teria neces-
permitir as vozes recíprocas inconscientes que venham à sidade de trair; não obstante, é igualmente verdade que
tona para um diálogo de almas. É só assim que se ajuda ' se o homem não fosse livre, não poderia trair. A traição
236 9'-l7
menta ocidental e oriental desde as tentativas iniciais
.J~ µ_m_~ r~y9lta.: .tQcia_r~vQll!Ç#.9.ê~j~~sçrnxe...na..órbita da
' traição; é traiçãotoda obra, cie arte que ro;n:iQe um circl!ito - do homem antigo para explicar, através da fábula, seu
anelo de harmonia e perfeição, apesar da incredulidade
/~ · ~bsol~to do conheciir1entoJ é traição toda nov;~d~~Çg~ertá;_
diante de um mundo temível e muitas vezes inimigo. Não
e traição. todq movimento intelectual originaJ. A pará-
bola de nossa vida se estende, percorrendo etapas que, é fácil resignar-se à imperscrutabilidade da natureza e às
como vimos, são marcadas por essa vivência dilacerante. contradições profundas da existência; e na grande sede
_Atrás do som da palavra traição oculta:-se.aJuta eterna de· unificação interior, tudo o que mancha o desejo de
entre Eros e Thanatos, entre vida e morte e~t;ê-hêie~ã·· harmonia é visto pelo homem como equívoco absurdo ..
e deformidade, ou tudo aquiloem que ~~J~gaode~
.human~º· É sempre o desejo de umá ~ompÍetudêimpossível -
que move a nossa nostalgia e alimenta o movimento da
consciência para metas sempre novas, metas que se abrem
sobre a impossibilidade de realização definitiva, em um
movimento que nos afasta de nossos sonhos de ontem e
dos rostos que conhecemos e amamos, em suma, em um
movimento que nos impele a trair. Nietzsche, esse traidor
por excelência, falava da iminência de uma "curiosidade
sempre perigosa", curiosidade que o levou a trair sua fé
passada, seus amores intelectuais e até a grande amizade
com Richard Wagner, que se tornou adversário mortal. A
traição era necessária.
Escrevia Nietzsche em Humano, demasiado humano
(1878-79, pp. 6-7):
Pode-se subverter todos os valores? Por acaso o mal é
bem? E Deus é só uma invenção e uma fineza do Diabo?
Por acaso, em última análise, tudo é falso? E se nós somos
enganados, não somos por isso também enganadores? Não
devemos ser também enganadores?
238
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VIDAL-NAQUET, P. 103 8. União de duas solidões
1977 Il buon uso del tradimento, Editori Riuniti, Roma 1980 113 9. O silêncio como tortura
VOLTAIRE 124 10. Euforia contra alegria
1764 Dizionario filosofico, Rizzoli, Milão 1979 138 11. Coação do sedutor e vantagem do traído
YOURCENAR, M. 146 12. Área de incesto
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YOURCENAR, M. 165 14. O sexo negado
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1980 Mishima o la visione del vuoto, Bompiani, Milão 1982 193 17. O corpo doente
WICKES, F. G. 199 18. A morte procurada
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WILDE, O. 223 20. A morte desejada
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WOLFF,H. 241 Epílogo - Experiência e perda
1975 Gesit, la maschilità esemplare. La figura di Gesit secondo
la psicologia del profondo, Queriniana, Bréscia 1988 245 Bibliografia
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