Você está na página 1de 128

AMAR

TRAIR
quase uma apologia da traição

Aldo Caroten1:1to

~
PAULUS
AMAR
TRAIR
quase uma apologia da traição

Biblioteca de Alexsandra Massolini


Psicóloga
Cel: 9675-0982

~
PAULUS
Carotenuto, Aldo
Amar trair : quase uma apologia da traição I Aldo Carotenuto ; tradução Benôni
Lemos. - São Paulo: Paulus, 1997. - (Amor e psique) Título original: Amare
tradire : quasi un'apologia dei tradimento.

Bibliografia.
ISBN 978-85-349-0658-6

1. Amor 2. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 3. Relações interpessoais


1. Título. li. Série.

95-5007 DD-158.2

Índices para catálogo sistemático:


Na busca de sua alma e do sentido de sua vida, o
1. Traição : Relações interpessoais : Psicologia aplicada 158.2 homem descobriu novos caminhos que o levam para a
sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se
um lugar novo de experiência. Os viajantes destes cami-
Coleção AMOR E PSIQUE coordenada por
Dr. Léon Bonaventure e Ora. Maria E/ci Spaccaquerche
nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar
a alma, mas também o amor precisa da alma. Assim, em
Título original lugar de buscar causas, explicações psicopatólogicas às
Amare Tradire - Quasi un'apologia dei tradimento
© Bompiani, Milão, 1994 nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em
ISBN 88-452-2197-0 primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é.
Tradução
Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri-
Benôni Lemos das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor.
Patrizia G. E. Collina Bastianetto Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para
Revisão
um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade
Edson Gracinda e realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria
vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa
Impressão e acabamento
PAULUS unidade primeira.
Finalmente, não é o espiritual que aparece primeiro,
mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do olhar
3ª edição, 2011
do imo espiritual interior que a alma toma seu sentido,
o que significa que a psicologia pode de novo estender a
© PAULUS - 1997 mão para a teologia.
Rua Francisco Cruz, 229 • 04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (11) 5579-3627 • Tel. (11) 5087-3700 Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço
www.paulus.com.br • editorial@paulus.com.br para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do
ISBN 978-85-349-0658-6 espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si

5
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- NOTA À NOVA EDIÇÃO
xões durante a prática psicoterápica, e está começando
a renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É
uma nova visão do homem na sua existência cotidiana,
o seu tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo
dimensões diferentes de nossa existência para podermos
reencontrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos
aqueles que são sensíveis à necessidade de colocar mais
alma em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente
restituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração
de sacerdotes capaz de entender novamente a linguagem Levar o leitor à descoberta deste livro, agora em
da alma", como C. G. Jung o desejava. nova edição, oferece-me a oportunidade de abordar no-
vamente o tema da traição, mas com o vigor que me vem
Léon Bonaventure da aceitação que essa obra teve entre os leitores. Obra
que queria e quer sacudir e - por que não? - suscitar
polêmicas entre os que, embora sabendo que a "~raição"
é fenômeno antigo como o mundo, consideram reprová-
vel levantar o véu que o oculta ao olhar da consciência.
Eu, ao contrário, penso que o que cria maiores danos são
justamente o desconhecimento e a indiferença, ao passo
que sondar e tentar esclarecer os movimentos psíquicos
que geram, fomentam ou rejeitam a traição é de grande
utilidade para se viver cada experiência (porque, como
o leitor terá ocasião de constatar, a traição assume mil
aspectos), compreendendo-a e elaborando-a, e não só
deixando-se dominar por ela.
A violência e a cegueira que acompanham a trai-
ção em todas as suas formas - desde a da família em
relação ao filho àquela amorosa - são prova de nossa
ingenuidade psicológica, isto é, o indivídu_o quase nunca
tem consciência das forças que governam seus impulsos
para o crescimento ou para a individuação, de forma que
permanece um agente passivo de suas pulsões destrui-
doras. Essa forma particular de resistência testemunha
6 7
que o desenvolvimento da consciência psicológica é, como de sofrimento, dá início ao nascimento da consciência,
sustentava Jung, um opus contra naturam (uma "obra com a expectativa - é essa a promessa de toda doutrina
contra a natureza"), um caminho difícil e cheio de peri- soteriológica - do pleno despertar, isto é, da aquisição
gos; ninguém conhece melhor que o autor dessas linhas, de uma consciência interior que torne o homem capaz de
por causa de sua profissão, o tributo de sofrimentos que reconhecer as forças que o dirigem e de mudar em seu
a pessoa deve pagar para libertar-se das ilusões neuró- favor também o conhecimento do mal.
ticas, dos equilíbrios de compromisso e das satisfações Porque a traição é essencialmente "passagem" - é
alucinatórias do desejo. esse seu significado ~oJ-ºgico _-, "~~r~gl:l" a_ outrem,
A primeira e fundamental forma de traição é jus- a qual sempre se traduz em confissão de fraqueza e em
tamente a que o indivíduo sofre para tornar-se sujeito pedido de ajuda, e, portanto, inclui sempre o risco da
responsável por seus desejos e por seus atos: a perda da perda, do abandono. Mas para se viver em plenitude a
inocência, a expulsão do Paraíso da indiferenciação psí- existência própria é necessária essa "passagem" pela
quica e a queda. Transgredindo o pacto originário com a morte, esse reconhecimento do limite, da_ fin,itude, esse
mãe natureza, o indivíduo fica inevitavelmente exposto saber-se traidor e traído.
à fadiga da procura de sentido, procura que, no entanto, Os cenários da traição são muitos; parece-me, porém,
o constitui como sujeito da história. que a cena original se abre no interior relacional mais
A perda da inocência certamente na culpa e na precoce, sendo a .I?_!imeir~_~_rªiçªo a que é praticada em
punição; assim, muitas vezes nós nos condenamos a ser relação ao nasciturô;<iuando, com o nome, é-lhe atribuída
verdugos inexoráveis de nós próprios e nos expomos aos a projeção imaginária elaborada pelos pais. É um destino
pio:es vexames para expiar culpas hipotéticas, sem ja- inevitável, inscrito na história da existência humana, pelo
mais conseguir pagar completamente o grave pecado de qual somos condenados a encarnar o desejo de outrem e a
termos vindo ao mundo e de o termos feito da maneira _suportar grandes fadigas para separar-nos de seu/nosso
menos discreta possível, com um pedido intolerável de fantasma.
amor, sempre gritado. Se o homem fosse livre, não teria necessidade de trair;
Nascemos traídos e com a necessidade de trair para entretanto, é verdade também que se o homem não fosse
cre~cermos: é uma lei cármica, que soa como condenação, livre, não poderia trair ..
se, Justamente através das vicissitudes da traição, não
fosse pedido ao indivíduo o encargo de confrontar-se com Aldo Carotenuto, abril de 1994
sua ambivalência constitutiva e de assumi-la consciente-
mente, de modo a transformar a orientação natural das
pulsões e a tornar-se, de alguma forma, artífice profundo
de se:? destino de individuação.
E esse o significado profundo que o mito hebraico da
expulsão do Paraíso terrestre representa simbolicamen-
te, expulsão que, se entrega o homem a todas as formas
8
9
AGRADECIMENTO

Esse assunto tão particular nasceu de minha experiência com as pessoas


que encontrei em minha vida e que de forma totalmente inconsciente
contribuíram para as minhas reflexões. Agradeço às minhas alunas
e colaboradoras mais chegadas, Francesca Aveni, Daniela Bucelli,
Simonetta Massa, Benedetta Silj e Stefania Tucci, pela sua atenção a
todos os problemas surgidos durante a elaboração do livro. Agradeci-
mento particular aos meus alunos Giorgio Antonelli, Silvia Martufi e
Patrizia Lorenzi, que leram as minhas anotações e não me pouparam
críticas e sugestões.
Advertência do Editor
INTRODUÇÃO
Os nomes de autor seguidos de data citados no texto
remete:ri .à b~bliografia no fim do volu~e. Quando exist~ A VIDA COMO TRAIÇÃO
ª,
traduç~o italiana, d~ta indica a edição original, enquan-
to os numeros de pagmas remetem à tradução (italiana).

Recordo-me bem dos rostos daqueles homens: não estavam


todos voltados para mim? Não gritavam outrora "salve"?
Assim fez Judas com Cristo, que, em doze, encontrou fi-
delidade em todos, menos em um; eu, em doze mil, não a
encontrei em nenhum.
(William Shakespeare, Ricardo II, IV, 1.167-71)

Em meu livro Eros e pathos ocupei-me de um tema


fundamental da vida humana, a dimensão amorosa, em-
bora soubesse que me aventurava por estrada considerada
geralmente intransitável, porque o testemunho mais acei-
tável de algumas experiências "inefáveis" seria o silêncio.
Com a mesma consciência, e com a mesma confiança, pre-
tendo agora retomar aquela estrada intransitável, para
estudar um dos aspectos mais inquietantes da existência
humana: a traição. Palavra tremenda, marca infamante!
E no entanto, se aprofundarmos seu conceito, chegaremos
a uma conclusão surpreendente: não só em todo o arco de
.11ossa vida a traição está sempre em cena, representando
papel de primeiro plano, senão de protagonista, como tam-
'/'.'~bém foi em virtude de uma traição que o homem foi "posto
)(\(/' 'no mundo". Traição inevitável, traição que era necessário
levar até o fim, porque foi somente traindo, violando o
pacto original, que o homem, de uma modalidade que não
era vida, mas inconsciência e indiferenciação, constitui-se
como sujeito da história. Eis o sentido profundo conhe-
cido pelo nome de felix culpa (feliz culpa), doutrina que
12
liga a vinda redentora de Cristo, e com ela a perspectiva cumpridas do faraó, a adoração do bezerro de ouro, na au-
sa~v~fica de uma vida radicalmente nova, à transgressão sência de Moisés; Saul, Sansão, Jó, as iras do Senhor e a
ongi~al ~e Adão e Eva. Se os nossos míticos progenito- quase destruição da criação, e assim por diante, culminando
res nao tivessem transgredido, Cristo não teria vindo ao no mito central de nossa cultura, a traição de Jesus.
mundo para instituir a economia salvífica. Isso, enfim, é
c~mpr~ensível: não pode haver redenção do pecado onde E, no entanto, o mistério da traição é tal que se lê no
nao ha pecado; analogamente, não há modo de "nascer Talmude que, se Israel não se tivesse manchado com seus
p_a:ra o mundo" senão pecando. A doutrina da felix ~~lpa -- erros, com suas transgressões, com suas traições, ter-lhe-
se. e~contra e~ Hegel, que interpreta o mito do pecado -iam sido concedidos somente os livros do Pentateuco, ou
on~nal como .queda para o alto". Nessa ótica de recupe- os livros da "Lei", e o livro de Josué (Talmude, Nedarim
raç~? e redefimção da traição original, parece igualmente 22b, in Elkaim-Sartre, 1982, pp. 675-76). De forma seme-
legi}1ma a doutrina gnóstica, segundo a qual a serpente lhante, no Novo Testamento não foi só Judas quem traiu.
do Eden é que deve ser venerada, por haver transmitido Sem dúvida, o ato de Judas é a culminação da traição, e
o conhecimento, a gnose. Ora, essa transmissão coincide com Hillman teria concordado Kierkegaard, o qual escre-
também c_om a possibilidade de ler a vida toda a vida veu em seu Diário que "para se comp:r~ender a (11.11do o
con_io traição. Isso leva o pensamento a as~ectos consti~ ~ristianismo de uma época, basta ver o que ela pensava
tutivos e fundantes das religiões hebraica e cristã como de Judas" (Kierkegaard, 1834-55, vol. 5, p. 99). Em todo
a transgressão original cometida por Adão e Ev~ e no caso, não são menos significativas as outras traições que
Novo Testamento, a traição de Cristo praticada po/Ju- aparecem no Novo Testamento, como as negações de Pedro
das; ~or~m, ~ais ainda, todo o Antigo Testamento, que e o adormecimento dos discípulos no Getsêmani. E não
o~ ~osticos ham como a expressão manifesta de traição será talvez possível ler o grande grito de Jesus, lançado
d1vma, pode ser lido como eterna mensagem de um Deus ao céu antes de morrer: "Deus meu, Deus meu, por que
traído por Israel, a "esposa infiel", a "prostituta" que ele me abandonaste?" (Mateus 27 ,46), como sinal de extrema
não obstante, jamais cessa de procurar. Pensemo~ na pas~ traição praticada pelo Pai em relação a ele? Tão presente
sagem do profeta Oseias na qual parece estar sintetizada no mundo do mito e da "história sagrada", a traição não
na perspectiva da traição, a história passada e present~ ~ ~~ixa de permear com sua inquieta realidad;~--muiido da
de Israel (Oseias 6,7): "história profana". Julien Benda, por exemplo, falou da
"traição dos clérigos", em seu homônimo e célebre escrito
~as eles, como Adão, violaram a aliança;
eis onde me traíram. publicado em 1927. Se o papel dointelectm1l consiste em
~8::r:9.ar os valoresuil_iyersais~ i~to é, em servir à verdade,
ªJustiça, à razão e à liberdade da pessoa, então, escreve
Como escreveu também Hillman (1964 b, p. 86):
Benda, os intelectuais traíram seus compromissos his-:
Desde. a_expuls.ão, a Bíblia registra uma história contínua tóricos e, deveríamos dizer, também "meta-históricos".
de tra~çoe..'.': Caim e ~bel, Jacó e Esaú, Labão, José vendido Os "clérigos", por exemplo, puseram a arte e a ciência a
pelos irmaos, os quais enganaram o pai; as promessas não serviço dos interesses políticos e econômicos, aderiram
14
à supressão da pessoa (exaltando o Estado "monolítico" ara a nossa mente, é vertigem, não é desta terra. Otto
engrandecendo a família enquanto organismo global
' ·k.ank., um dos grandes hereg~s da psiçanális~, sus~entava.
que nega o indivíduo, e nutrindo simpatia pelo corpo- que toda a vida consiste umcamente nas tentativas de
rativismo), não se mostraram à altura de defender ra- ubstituir o paraíso perdido "mediante complicadíssimas .
cionalmente a tese da paz acima de tudo e cederam às ~udanças de direção da libido e de seu destino" (Rai:ik,
ideologias, praticando, mediante suas doutrinas, o jogo i924, p. 198). Rank sabe, todavia, que o paraíso perdido
das paixões políticas. Os intelectuais, escreve Benda em já não pode ser encontrado pelo homem. Se isso é :er~ade,

*.
seu apaixonado panfieto7irraticaram sua traição de vários deveríamos talvez deduzir que as mudanças de direçao da
modos: em nome da ordem, do dever, do amor, do caráter libido das quais ele fala, correspondem também a trai-
sagrado do escritor, do relativismo do bem e do mal e em Ções. De fato, "Terrestre" não é o Paraíso, mas a traição!
1 \""" E nem um deus pode escapar disto: "de traições", escreveu.
nome dá comunhão com a evolução e com o dinamismo
do mundo, comunhão que consiste em não se medirem as Franco Sacchetti, "não conseguiu livrar-se nem Cristo"
mudanças com o metro da razão, mas em se aderir a elas (Sacchetti, 1970, p. 499).
vitalisticamente. Talvez seja oportuno partirmos daí para
falarmos das outras traições, que, com o pretexto do mito
da história sagrada e profana e dos "grandes sistemas"'
afundam sua lâmina nos meandros do cotidiano, traições'.
em suma, com as quais deve confrontar-se constantemen-
te outro "intelectual", o psicanalista.
Portanto, a vida, toda a vida, pode verdadeiramente
entrar no horizonte da traição. O Paraíso terrestre enten-
dido como plenitude e indiferenciação da vida pré-natal,
representa uma condição insustentável, já que, se fomos
o?rigados a traí-la, e a traí-la pelo nascimento, foi porque
diante de nós abriam-se a história e o mundo. Se devês-
semos descrever com uma metáfora como se caracteriza a
nossa condição humana, se devêssemos explicar com pala-
vras simples a verdadeira tragédia dos homens, diríamos
que ela consiste na inexistência do Paraíso. Não existe
o jardim edênico, o Paraíso não é desta terra. O Paraíso
como lugar do não dualismo, do não desejo e, portanto,
do não apego, como lugar onde o coração do homem não
freme, porque cheio em si mesmo, não tem esperança,
P?rque re~lização em si mesmo, não teme a morte, porque
vida em si mesmo, o Paraíso como aquela plenitude que,
17
16
1
AINDA ANTES DE NASCER

E saiu do trono a voz do Pai, dizendo: "Que fazes, maldito?


Corrompes os anjos do Pai? Autor do pecado, faze logo o
que pretendes fazer!"
(lnterrogatio Iohannis, V. 50, pp. 51-52)

Em seu estudo sobre o sonho, Freud descobriu que o


inconsciente ignora a negação e, por isso, no sonho não se
dá representação do "não". Consequentemente, a mesma
imag,~~_g_:i;iíric;,ª· deyg_y_ª~!'.11.~!!-ª-ª-ªfirml!Ǫ-Q..E~. P..ªX·ª··ª .11~.: .
~窷º· Esse"movimento OJJpl9'.' a_nl.icar~se~ia à linguagem,
col!l<?.. Frnud constatou, ao ler. um op:úsculo publicado em
18~~.pelo filólogo Karl Abel, intitulado O sentido op9sto,.
<L<!~. p,q,[a,vras primordiais. Do opúsculo Freud tirou a
noção segundo a quai'~as línguas mais antigas - no
egípcio, em primeiro lugar, mas também nas línguas se-
míticas e indo-europeias - sentidos opostos, como "forte/
fraco", "grande/pequeno", eram expressos pela mesma
raiz linguística. Assim, ~ncontrou ele uma a,nalogia en-
tre .a história da língua. e o_ "comportament9. !'ir:i,@lª;r::_gp
trabalho onírico", que igp.9:rn &negação.. (Freud, 1915-17,
p. 349). Em uma recensão de 1910, intitulada também,
em homenagem ao opúsculo citado, O sentido oposto das
P<;1lavras primordiais, Freud, entre outras coisas, citou vá-
nos exemplos, que impressionam também os não peritos
em linguística. "Em latim", escreve Freud, "altus significa

10
alto e profundo; sacer, sagrado e sacrílego" (Freud, 1910, provavehnente .tenha algo a ensinar -~~~-ye~,._.urU.camente
p. ~8~). Na conc~rdância entre praxe onírica e praxe lin- ·a uele que tram com plena e total consciencia. Como
gms~ica Freud vm a confirmação do "caráter regressivo e ·aialogamente diz Hillman (1964 b, p. 99):
arcruco da expressão do pensamento no sonho", e concluiu ... nossa conclusão ao problema: "que significa a traição
sua recensão sustentando que o conhecimento da evolu- p~ra 0 pai?" é esta: a capacidade de trair os outros é afim
ção da língua certamente melhoraria a compreensão e a da capacidade de guiar os outros.
tradução da linguagem onírica (ibid., p. 191).
Com o tempo, "trair" passou a significar, de fato.' o
Considerações semelhantes podem ser apresentadas
oposto, perdendo ou, talvez melhor, ocultando as valências
a respeito da palavra "traição". De fato, examinada aten-
originais. Devemos então perguntar-nos como sucedeu
tamente, ela se nos revela ambígua, não só etimológica
que dos significados "positivos" se pa~sou à ace~ção_ co~~
mas também semanticamente. Sabemos que o latim tra-
rente "negativa". A inversão de sigmficado se impoe Jª
df!_re significava somente ~'entregar". Sabemos também
na latinidade, e muito provavelmente também a partir
que os evangelhos, escolhendoesse -verbo para design8:r.
o ato de Judas de entregar Jesus aos seus inimigos, car- da linguagem militar. D~fü~~-Q._ajgnific~do_ori~a~.de.
regavam-no de conotações éticas, obviamente negativas. ";eas~~g~I!!'.~.:~e~~!'.e_~a", pode ter com~ ~bJ~to o mimig~,
conotando então o ato de entregar ao mimigo (armas, ci-
Mas, com o tempo, o mal-entendido inicial originou outros
dades etc.) e de fazê-lojusla:lllente-traiii.do. Já observei, a
mal-entendidos e ambiguidades: o itinerário semântico
propósito da afinidade entre a linguagem amorosa e a lin-
desse verbo "condenado" levou-o a significados diferentes
distantíssimos entre si e às vezes nos antípodas, literal~
guagem militar, que, na língua latina, o "nomem agentis"
desultor conota tanto aquele que passa de uma mulher
mente opostos. "Traio" deriva do latino trado, que é com-
a outra - nesse sentido Ovídio, por exemplo, negava ser
~ost~ de dois morfemas, trans e do (= dar). O prefixo trans
traidor (Amori I, 3.15) - como aquele que passa para o
implica passagem; de fato, todos os significados originais
lado do inimigo (Carotenuto, 1990, p. 33). "Tra~o-=-~-~p. em
de trado ~~t~m-~.i~eia de dar alguma coisa que passa de
grego um equivalente perfeito,paradídomi. De fato, trans
_umªI_Il~<:)-~!?.!:!b:'ª'. Assim, trado significa o ato de entr~gar-­
+do; pará + dídomi. Paradídomi é justamente o verbo
~as_n:iãos de alguém (para guarda, proteção, castigp),-o
ato de confiar para o governo ou o ensinamento ' o dar em que designa a traição de Judas nos evang~lhos. O prefixo
---·-
pará, domemo modo que trans, pode implicar o ato da .
esposa, o vender, o confiar com palavras ou o transmiti~,
"tra(n)s-gressão" (= pará-basis =ir além). O substantivo
.o narrar. Na forma reflexiva, s~ tradere, o verbo signl_fica
correspondente,parádosis, equivalente de traditio, signi-
abanc1onar-_se a alguém, dedicar=sea-uma atividade. O
!!c::i. traição, prisão, mas também a doutrill_ª_transmitida.
substantivo correspondente, traditio, significa "entrega"
com autoridade, ou a tradição preservada de várias formas.
::ensi~~~!mto", ~~~:r:_r~ç~f·"transmissão de n~rraÇões"~ e transmitida separadamente pelos pagãos, pelos.escribas
tradiçao . Note-se que o nomem agentis" (nome do agen-
e pelos fariseus (os predecessores dos rabinos), :por Paulo
t,e) traditor significa tanto "traidor" como "quem ensina';.
e pelos bispos da Igreja. Para os gnósticos, hereges do
E bom lembrar esse duplo sentido na introdução ao nosso
começo do cristianismo, existiria uma doutrin!l secreta., ,
trabalho porque, como teremos ocasião de ver melhor
'
20
oral, transmitida. por Cristo aos apóstolos e considerada por que me abandonaste?"). N~ssas últim~s e t~ágicas 1
superior à Escritura. De tal transmissão secreta :.___ o palavras da vida terrena de Cristo, Jung vm o smal de 1
j
ato dessa transmissão é indicado com o verbo paradí- um malogro radical. Segundo o que ele afirmou em uma \
domi - fala-se também em campo ortodoxo. Clemente ~ i
conferência em Londres, em 19 de outubro de 1936, e que :j
de Alexandria, no livro Stromata (l, 1.13.4), afirrnª que traz como título a intrigante interrogação: A psicologia
"ai:; coisas ocultas" (ele diz "místicas") são transmitidas analítica é uma religião?, .Q:ri_~t_o__, ___na ~!u_~_ e_ J)~óximo
'l
_(paradiiotai) de modo oculto" (ele diz "de modo místic~") .. da passagem.final, te:ria tomado consc~ência _de que a
ª
Os gnósticos, por sua ve~,ǺI1S.ideravam__ si próprios os_ suá 'vida, consagra<fa à vel"dade e ao amor, revelara-se
únicos depositáriOs cl~ yerdadeira tradição: Aigrejapri- "terrível ilusãd'(Jung, 1937, p. 108). Esse grito lançado
mitiva precisou lutar co_ntra ~ss_a_Í>retensão. Na literatura crâ cruz significa_a .trágica compreensão de haver sido
gnóstica (no Evangelho de Judas, -que não chegou até traído, e exatamente por isso constitui a exceção extre-
nós), fala-se também de um "mistério(= sacramento) da m_a_ ao fato de que Cristo, segundo Jung, "nunca parece
traição", que era praticado por alguns grupos gnósticos. têr-se posto diante de si próprio" (Jung, 1952, p. 388)~~~ _
~egundo eles,_traindo Cristo, Judªs teria favorecido a traição nos põe, portanto, diante de nós próprios; antes,
economia da salvação. Portanto, para eles, a traição era parece que é só na traição que se torna possível esse pôr-
necessária, e eles a celebravam como sacramento. Segun- -nos diante de nós próprios, esse cessarmos de viver em
do a opinião de outros autores, Judas haveria julgado q11e reflexos que desconhecemos. T.ªmbém nós, como Jung,
Cristo estava pervertendo ou traindo a verdade. Traindo nao consegl!imos ficar sem levantar interrogações sobre
Cristo, Judas haveria evitado essa perversão da vel."<lãcie. _;;p~1 (ibid., p. 398):
Hillman observou que a traição é central no cristiani~mo
(Hillman, 1964 b, pp. 90-91): Que Pai é esse que prefere d(li.xar o fill1g JPOITer :;t_ pE)rd()~r
magnanimamente às suas criattt.I"!iS _mal ac!}nselhadas e
Na história de Jesus, ficamos imediatamente impres~iona­ pervertidas por s(lu Satanás?
dos com o motivo da traição. O esquema ternário (traição de
Judas, dos discípulos adormecidos e de Pedro- repetida Não obstante, a dialéticainer.en~_e àtraiç~,Q é taJ _qu.~.
nas três negações do mesmo discípulo-) nos fªla_d(l l'J.lgo ~~~a luz, compree!l~el_l:Íqs o__se,nt~~o q<?l~r,Q§lQ Qfi}:idelicl.~<l~-­
fatal, mo~tra-nos que a traiçãoé essenciafa dinâmica da E verdade, com efeito, que Cristo foi abandonado à agonia
história de Jesus-e; pór-ísso, a traiçao está no cerit:ro-ao.
mistério cristão-. · da cruz e, portanto, traído e entregue ao desnudamento
de uma ilusão que o sustentara durante sua vida terrena.
Mas foijustamente essa fidelidade completa, essa fidelida:-
Enfim, continua Hillman, podem ser lidos segundo ~'ffevota, essa :fideliãã.<Ie dedicada à experimentação da
a mesma chave de leitura, como em parte já vimos, y_ida, foi justamente essa fidelidade traída que permitiu
outros aspectos "críticos" da vida terrena de Cristo: a a Cristo aceder ao "corpo da Ressurreição" (Jung, 1937,
sua tristeza na última ceia e a que se abate sobre ele p. 108).
no Getsêmani ("A minha alma está triste até a morte") Como vimos, parece que também na área pensante
. lançado da cruz ("Deus meu, Deus meu,'
o grande grito do gnosticismo houve verdadeiro trabalho de elaboração
22 G"
da traição em seu~ aspectos mais radicais. Pensemos, por A mulher carnal tomou da árvore. Comeu e deu dele a seu
ex~m~lo, na doutrma, sustentada de modos diversos pelos marido com ela ... Os psíquicos comeram, e sua malícia se
gnosticos, a qual, atribuindo a criação deste mundo a um revelou em sua ignorância.
demiurgo imperfeito, homólogo do Javé hebraico e não ao
sumo Deus, considerava, em certos casos a ne~essidade Na Interrogatio Iohannis, a perspectiva da traição
d~ trair pontualmente todos os mandame~tos. Essa dou- praticada pela divinda~e contra o home~ a~quire r~sso­
trma gnóstica fala de uma traição cometida ant~s de nás~ nância talvez ainda ma10r. Trata-se de apocnfo de origem
cermos, e também de sua solução. Permanecendo nessa bogomila, isto é, de um texto, uma espécie de catecismo,
perspectiva "herética", pensemos na inversão de sinal à pertencente à heresia dualista conhecida pelo nome de
qual já alu~imos, efetuada na figura da serpente, na óti~a bogomilismo, surgida na segunda metade do século X,
de uma criação não divina, mas demiúrgica do mundo heresia que conservou muitos pontos de contato com o
dos homens .. Foi a s~rpente maligna ou, para exprimir- gnosticismo e com suas ramificações; é um texto ao qual
-nos com mais propriedade, foi Satanás - que entrou na faziam referência alguns grupos heréticos medievais,
serpente que se arrastava pelo Éden e era preexistente como os cátaros. Nesse texto, o apóstolo João, repousan-
à criação do homem e da mulher - que concedeu a Adão do no peito de Cristo, dirige-lhe perguntas a respeito de
e Eva o dom do conhecimento através da transgressão e Satanás.
portanto, que difundiu a traição da proibição divina d~ ~€l!a narração_ ficamos sabendo de uma espécie de
se ~o~er aquele fruto. Pensemos ainda no que diz 0 texto compromisso entre Deus e Satanás,_ antes que fossem cria-
gn~stico encontrado em dezembro de 1945, junto com dos o mundo e o homem, um compromisso que apresenta
mmtos outros, gnósticos e não gnósticos, na localidade semelhanças com a história bíblica narrada no livro de
d~ ~ag Hammadi, no alto Egito, e que tem como título Jó. Caído por causa de seu desejo de elevar-se até o Pai e
Hipostase dos arcantes. "Hipóstase" significa realidade de tornar-se semelhante a ele, Satanás desce do céu para
:r:~a,Hda@_ª-lJPj_B:_<::_~~~· Os arcóntes, dominadores do ~und;­ o firmamento e não podendo encontrar descanso nele,
sub,~un_ar, os mesmos que Jung equiparou aos "comple- junto com seus anjos, obteve-o do Pai. Como diz o texto,
xo~ : sao, portanto, seres reais e malignos. A eles estão oPai lhe permitiu ''.fazer o que querig. até o sétimo dia"
S?J.~~tos os homens que não sabem transcendê-los-, ist-;;T (lnterrogatio Iohannis V, 65, in Bozóky, 1980, pp. 54-55).
os ~omen~ que se deixam trair por suas más ações e q11e: )~:ste mundo é, pois, o reino deSatanás. Ademais, também
-~~~1m tr!11d()$,_se entregam a um destino aparentemente ~-~vangelho segundo João fala do "prínd:p_e 4este_ I_IlUndo".
. irr:vers1v:L. O ~scrito gnóstico citado dá uma interpre- Mas o que perturba é que, no texto dos hereges bogomilos,
taç~~ esoter~ca as passagens do Gênesis que, na ótica da o reino de Satanás de certa forma é promovido por Deus.
t~aiça~, ~os mteressam mais. Portanto, segundo o que ele ;portanto, antes de nascermos, o drama da traição encon-
diz (Hipostase dos arcantes, in Erbetta, 1982, p. 189): trou sua celebração cosmológica, mitológica. Encontrou
A se~ent~, a instrutora, disse: "Não morrereis de morte· ele sua celebração, como dissemos, também a solução desse
vos.d~sse 1ss~ porque é invejoso. Antes, os vossos olho~ se drama, solução não definitiva, é óbvio, mas traduzida
abnrao e sereis como os deuses, conhecendo o mal e 0 bem" ... na necessidade de os homens da história - da mesma
24
. d, t stemunho....p:reciso.rlessaantítese. dial~t~ca
forma que Adão e Eva, que os introduziram na história comlJ.m ... a....e. , , A t" da traiçaor·
;::=- . gnificados inerentes a . arease.man IGª-... · ·
- assumirem sobre si esse drama. O fato de os nossos gg.s.
D" emos si . . . ·10· . que o tradutor traiu o pensamento .
por exemp , · . ·· d
progenitores, depois de sua transgressão ou de sua traição ,,..,d!?i _.tor' ou q~e o entrevistador traiu o pensame.nto o.
do pacto firmado com Deus ou com o demiurgo, haverem . .o. au . t do em suma · · que o d eturpou, o'.r.a zseou. Dizemos
sido expulsos "para baixo, na terra", sugere a ideia de que entrevis a
.. b, legitimamente' ' que um gesto tramo
· pensamento .
a tomada de .consciência da traição e,na ótica qu,e estam9s taJl1lternd, alguém que ~ revelou e nos disse a verd.a~e.
·para abraçar, a tomada de consciência simp~e_s:Í:n_ep.te, ocu o e ' tA t'
~·-··rt. t o calso como traição, e o au en ico co .
mo traiçao
. . .
devam necessariamente passar pela elaboração do maJ ~ Po ano, l·
F.. . stamente essa desconcertante am igm a e • b" "d d que
da inferioridade. . d.~~lt ma forma, acabou por restit~ir a esse v~rb.o urn
O ·temada inferioridade nos leva à consideração .. ~e sua neutralidade original. E essa ambiguida~e .
desenvolvida por Borges, em suas Ficções, sobre a figura pouco "te afirmar que se pode "trair" sem trair' .
de Judas. Poderíamos dizer que são muitas as versões que nos permi ·d d ·
f~ltar a um pacto, mas em nome de uma _fideh .a e mais -
de Judas. De Quincey julga que é destituído de verdade
o que a tradição atribui a Judas (Borges, 1944, p. 142). alta ou mais profunda.
Borges fala de "três versões de Judas", referindo-se aos
estudos sobre o assunto realizados por Nils Runeberg, ao
qual Deus, escreve Borges, entregou o século XX e acida-
de universitária de Lund, mas em Alexandria ou na Ásia
Menor do século II ele "teria dirigido, com singular paixão
intelectual, um conventículo gnóstico" (ibid., p. 141). Uma
das três versões referidas por Borges nos parece digna,
de modo especial, de ser mencionada, a saber, aquela
na qual as problemáticas da inferioridade e da traição
parecem fundir-se e, fundindo-se, adquirir aparência
divina. Segundo essa versão, Deus escolheu encarnar-se
em Judas. Escreve Borges (ibid., pp. 145-146):
Deus se fez inteiramente homem, mas homem até a in-
fâmia, homem até a condenação e o abismo. Para salvar-
-nos, poderia ter escolhido qualquer um dos destinos que
tramam a entrelaçada rede da história; poderia ter sido
Alexandre, Pitágoras, Rurik ou Jesus, mas escolheu um
destino ínfimo: foi Judas.

'. ;z· A traição se nos mostra e se impõe à nossa 8:t~!1Çã,~­


\ .. ./como antitética e dolorosamente dialética. A linguagem _ /
97

26
2 ·significar uma traição. Isso vale paradoxalmente tam-
.. béro e sobretudo para um escrever que tenha escolhido a
UM "ALEGRE ACONTECIMENTO" traição como objeto.
FUNESTO No plano ontogenético - o plano no qual cada
um percorre, no nível de sua existência, as passagens
evolutivas que foram vividas por toda a humanidade -,
é ainda no momento do nascimento que toda criatura
-;:;xperimenta a traição pela primeira vez. Essa palavra
àssume seu conteúdo emotivo mais eficaz, se dissermos
que com a traição é violado um pacto, o pacto do Gênesis_
entre Deus e o homem, o pacto de amor ~_J;;;olidariedade
nas.Vicissitudes humanas. Se não temos m.edo de.olhar as
êõiSas do lado escuro, podemos ver também o nasçi:qiento
êQ::wp uma traição, É fora "<le d-ó.vTCiã.quê. efe-~~~siste em
No mundo dos homens l!m acontecimento traumático, digamos até "violento".
.~ ª ~xperiencia da separação
·A •

constitui a , ·
.. propna expenencia de viver Até Referindo-se ao narcisismo primário, isto é, àquela
:oc:eov~dr. este li~ro bparece uma manifestaç.ão de i;-::~~ unidade original na qual mãe e filho estão contidos,
· iscurso so re alguma c01sa
~--~ ·-
· e, pensamento e Freud falou de "sensação oceânica", de inserção no fluir
pensamento mexoravelmente causa separação .' . o ininterrupto da vida. Partindo dessa condição, através do
desap.:go~ e. distâncias e revela-se inefável tr~io~~~a ..atp do nascimento, mãe e filho experimentam a angústia
experiencia imediata, para não falarmos da uel: mod~ Jyndamental de separação. Para a criança, é trauma
~e escre~er q~e trai o leitor, levando-o desenv~tamente a .!_~rrível vir à luz, é trauma terrível ser expelida daquela
~ga~es a psique não adequadamente "experimentados". ~imensão "oceânica". O cessar, o interromper-se, o partir-
er egaard lamentava a queda para baixo d ~e da simbiose constitui-se como experiência de angústia,
livros Algu b o escrever como experiência que não pode ser verbalizada nem
. ns, o servou o grande filósofo dinamar uês
~m seu ~xtenso diário, escrevem sobre assuntos a resieito formulada ou elaborada intelectualmente pela criança.
os quais nunca "refletiram nem viveram" E Ainda que disséssemos que essa experiência é "sentida"
(Kierkegaard, rn 34 _55 , p. 97): · acrescentou ou "notada" por ela, estaríamos usando expressões
inadequadas para descrever algo muito global, um
Deci~i ~er só ?S escritos dos justiçados ou dos
um seno pengo. que correram acontecimento que permeará de si e de sua indicibilidade
~Qnstitutiva toda a existência e personalidade do
indivíduo.
fi E~tre os ')ustiçados" dos quais fala Kierkegaard Otto Rank considerava o "trauma do nascimento"
guran~m, talvez, a seu modo, os psicólogos. Considere como-ô acontecimento decisivo da exi~tência de cada um,
bem o leitor que escrever o p , . t d . ,. ··- .
. ' ropno a o e escrever, pode como a experiência original capaz de determinar seus
~ - ')Q
pessoa, de alguma forma, escolheu não viver, mas tam-
bém deriva de uma "ética natural", de uma "ética querida
um estilo de ".'idll d~_Qnq1:J:E:)~~i_lll' Il1ªS funciaIUeJlt.al~eQt_~ ....
pelo destino" e que, como tal, transcende a capacidade êfiVers()~-É muito difícil não perc:_~:.~-~11~-~,f~!~-~~.v~::~: ~
~a vida,.pela sua in~a~1_l!RÇ_ª()_a yida.,.J~. e_consiª~~~~Q.
de entender dos homens, uma ética que se exprime como u~a culpa pelo qµtro, Jung procura. explicar pe!a ideia
, ; "lei de compensação". g "carma" familiar decorre em
, .,1~ .• ,s.~.~-~? ta!ll.l>~!!l. <1~.1:1!.E:ª _"culpa iITípessoal;', de um~-~~~
-r . culpa impessoal, mas todo ato rumoso cometido pelo
:fi~ho violenta essa presumida impessoalidade e proj~ta-o
·;,·)ó P?rt::t!!.~-º~JLoderiam.Qê_cJj~~E,AªP com.etidª e._q_ue,.. em..tº®_ 0 roais triste desespero. São esses os casos nos quais os
t · ~l:'l~?! amd_a,_~!1-~q_l1e .P.ªis .e. filho_s venham ao mundo,......_ ~ais, fortes e poderosos, sentem a chamada "impotência".
8;P~êarde.t.udQ_diu_-~sp~i!~_também a ele$. Escreve Jung Coro ela,_ tQC-ª.P?::~~-Qi:Lljlllit~~. d~_y-~_~_1'11 . ~. l).E,l~§~ .G~§.Q., tµdo.
(ibid., p. 20):
~rece ligado ao de$ti:ri_o. ~ão obstante~ :ambém nessa
Tendências proletárias em descendentes de estirpes ·impessoalidade parece verificar-se a traiçao, e_ provavel-
no~res,.instintos criminosos em filhos de gente honesta, mente é ainda a essa "inculpável" impessoalidade ql,le se
ate mmto boa, uma preguiça singular nos herdeiros de âe~em atribuir, de !'!.lg:um;i maneira, as im,aginações dos
pessoas enérgicas, que sempre tiveram sucesso não só são pais a respeito de. s~µs fµJqr.os filhps_.
consequências de uma vida que voluntariame~te não foi ·· er imaginado e pensado ainda antes de nascer é
vivida, .mas tam?ém derivam de uma lei d~ _compensação
~~~e~tin~>, condize.gtfLC..O.:rt!J!rrrn_ética.natural.que tende a visto por cada um, mais ou menos inconscientemente,
aEaixar q!:1e_~ e~tava ~?-~lt() e_e.lev§lr quem estavª~w.bajm._ como um "rapto", como ser roubado, despojado, porque
E contra Isso nao .valem nem educação nem psicoterapia. a nossa individualidade, a nossa particularidade de
Se forem bem aplicadas, elas somente ajudarão na tarefa homens, a nO§.füLfi:sionomia psíquic:~_.I!_~Q-~_~ertencem
que o "Ethos" natural requer de nós na vida. Trata-se de senão com<(~ultado de. nõsso p~rio__ei:~forço)~ n:g_:g_çª-·
_c:µlpa imp.e~êQ...~.L9.C>ê.P~is_qu<:! os filhos dev«:lrÜill!.JLª@,!:_dê-·
modo tambem Impessoal. ... como dom régio dos ou~ros. Os deseJos, as fantasias e os
-·-»e - ~·- ~~- ~O

pensamentos da mãe impelem o filho a encarná-los, em


T-.,- ·- - '

uma dinâmica que se reapresentará no encontro com


-'Lr.ata-se de a_s.p_~ctQs_ dol9__i::()~.J>.ê, .11.:lnc!n~JJ,tes, que i qualquer outra mulher e, em certo sentido, com a pró-
p~~~~~?.1. ~~?-~11:_C()I1trl'tr. resposta a1gurr.ia. Pais ~.~ . pria vida. De fato, sucede com frequência que a nossa
ê.~.Y~~P!-~8-!~_f~ent~ _aJr_~:ç,te., tão diJerentes _no_mo.do j <l!!Ile!l~ªº psíquica mi:i~ê-ª!1J~p.tic~_J1P.,_q_ep,ÇQI1tra.at11ação_
<i~-1?-~11;~ª-r-~-4.e. Y§r ª_yjda. T~J.?:!~ f()rça d~.1:1Il1: lado, tant; ~ na existência, enq~~nto a npssa in:iagemJantasiada pelo
~Ylfil!_q~ _qo Qµtro. S~J?Omentos de grande deses- ?utro-i:úisume cãdavez mais p~rpo, o nosso~ co~po. ~ J%:..
_per~.l porque, por mais que se' indague, por mais que se
imagem se torna a prisão psíquica yor excelenci!'!:i POS.lliL, · \\
queiram encontrar todas as culpas possíveis (e sempre se ~ito maíS comum dg ciüe -seimagi:ua...e....ª~mi~e. Uma
~nc~ntrarã~), nada pode ter sido tão determinante que esplêndida frase de Goethe contém toda a iroma desse
Justifique diferenças radicais e ruinosas._Jung nos fala mecanismo interativo: "Amo-te. Isso te diz respeito, por
d.~L-~.!!1.~ l_ei __g~_ç..om:m~.rnmçªo. do deê_tino, mas~rurr~Gê.:IDe. - ; acaso?" Com isso Goethe põe em dúvida o fundamento
:rn,ais acertaqo Jlce!tar a ideia d~ procura de difer§nciaçfüL \ da percepção que temos daqueles que dizemos amar ou
que a um comportamento geralmente medíocre prefere \ . 9.ue
. têm de nós aqueles que dizem amar-nos. Rank cita
·--~-

34
uma frase de Goethe, de significado semelhante, em um ·de força, porque se impõe como terrível e e~cessivamen~e
capítulo de seu livro Il tema dell'incesto (1912), no qual simétrica. A espécie humana se caracteriz-ª'..em relax_ao .
fala do amor de Goethe por sua irmã. Escreve Goethe (em ~s outras espécies anim~is_pel§t_ÍIµP.otência abf:)oh1ta d()
Rank, 1912, p. 182): ~-nã~cid,ü;--o-qúalpode m~rr~r se i:;ião recebe lQgQ o~.
-cu:í(fãdôs das pessoas que estao a sua volta. E o fato de
A minha ideia da mulher não faz abstração das manifes- sua dependência ser mais longa do que a dos outros seres .
tações da realidade, mas é inata, ou surgiu em mim sabe ~-- é provavelmente a base de todas as neurose~, mas
Deus como. vivos_ d 1 -
As minhas mulheres, todas elas, são melhores do que as ~presenta o fundamento i~c?ntestável e uma re açao .
que se podem encontrar na realidade. ~ssimétrica ~e_fc?!Ç.~~. uma dnrida que pagaremos por toda .
--nõssãex{stência.. Daí a necessidade de despertarmos o (
~-d- ' 1 o sentido
mais epressa possiv~'-»--- --- - . -· d- ""· nascermos
0 como
---::.,-·-------.-~~~ · -
É uma dor intensa e intolerável a que se inflige a
homens, toman~Q cons_ciêncj.a_ dessa.r.elaçao.~de,...fü:r窪 e .
uma criatura humana, pedindo-se-lhe que se adapte ao
sonho de alguém, que empregue todo esforço para conse-
guir dizer, pirandelianamente, "sou como tu me queres".
enro~trandop~??~ªmep.te nosso cam~nP.Q;. __.
·-a:=r.efii;_ã,Q, primária..coillO _relação de fo~çaf'l e uma
, -.J
Ela é constrangida a representar a fantasia de outro, a realidade e é também boa metáfora que nos aJu~a ale~ a
recitar um texto do qual não é autora e a agir segundo trâição -á~ ÍÕngo de toda a trajetória de nossa existência ..
regras alheias. Nós somos cúmplices, além de vítimas, Pésà uma traição sobre a origem da individualidade
dessa expropriação da identidade, porque encarnar a de cada um; sabemos, além disso, que é difícil, desde a
projeção, a fantasia de outro, é muito tranquilizador. Da existência pré-natal, diferenciar-nos do mundo que nos
mesma forma, a mãe, ou quem por ela (aqui entramos no cerca. O ponto de vista que eu quereria desenvolver,
discurso mais amplo sobre a identidade individual que e, como psicólogo, não poderia agir de outra forma,
nos envolve a todos), teme o radical, definitiva.e profun- ~existe _em cada um ~8--~ós __u~a.. for~a que ~os
damente diferente dela e que a obrigaria a um confronto j_im;tele-a êoiis·e-güiiiriós rima individ:tial.idade_E)~c~_l1_s~v:l:l..
autêntico; eis por que, concebendo um filho e levando . e irrepetível, a mesma que os gnósticos chain.-a.r.~1!1
adiante seu crescimento, é muito mais fácil para ela ~entelha" .e qµe Mestre. Eckhart afirmou que reside,
pensar e fantasiar imagens que não lhe sejam estranhas de modo constitutivo e ultimati'\To, na alma. ,ê,~ bem o ·
e a confirmem na sua identidade e na sua capacidade de c~minho a percorrer não seja sem perigos e. o fato d~_
plasmar os outros. ~ºcorrê-lo imponha seu preço, "o desenvolvimento da ..
-J?~ersoriãlidade está entre as coisas_mai§preciosaf'!" (Jung,
) 'f fenô!e~: ~~':;~,;~~~~~~{!~~,&;;:1::zth::t;:;;~: 1929-57, p. 29). Amais precios~, dizemos nós. Trata-s_e,.
1 diferente e f~cundõ: e.à.su~i~z-podemos tentar ler a ami- -~-~~ndo_Jung, a exemplo, entr13 outros, da compreens.ªo ...
zade e o incesto, o matrimônio e a família, a morte que vem de Nietzsche (ibid., p. 30),

J
!,

·:-- 'J::j:,Z:';J]ja"ni!.si'in"';o°A.~;t.'!'ª~ rli"'1t.,~y_;_"'.~srn~


ao nosso encontro e a morte que escolhemos encontrar.
Antes de tudo, obviamente, a traição do nascimento. A
relação entre a criança e a mãe equivale a uma relação
....... -'· , .. -····· .. .. . Q'7

36
É essa a maior obra de arte que podemos realizar;
. mito· se_l::l.X~lªção entre os homens se?aseia soment:_-no.
embora trabalhemos e apliquemo-nos em todos os campos,
a o~ra da qual somos os grandes artistas e os verdadeiros
~fi
con ron·--to , na competição
· · · ···- -· e no. antagomsmo
· · das
d atuaçqes,
r ·.
( mestres é a nossa -füdividual' d -d-- ···:"\ . -__. _____ - -- ' r;:;-., não se trata de relaç;lQ de solidariedade, lll~_s e cump ~c1-
(.de';;~;=;fi;;~;~-~~;~-di~*~i~e~~if~~6ri:â~f ~7a 1 ã;de igc<msciente na perpet~ação d~ u~ s1s.t~rna d~ vida .-
. affe â.Etcada um ·ae··to:rnaT::geefuProprrn nao-·e-eiiêoraja- -é-envilece cada um e sua i.rrepetJ.vel Jnd1v1duahdade.
<1!!!. · ·
Vêm-me~ ·
IIle_nte_os que~-~ c::onwvem co m os terremotos
-- .. - -:- .
da pela lógica coletiva, porque a lógica coletiva, voltada
à manutenção da uniformidade, vê na diversidade e na litro lado da terra e são incapazes de ~stender a mao .
no o · t d
diferenciação o peso da ameaça. É por isso que desde ~o vizinho de casa. Quem ousa opor-se a esse s1s ema e
nascimento experimentaríamos estranha sensação como
0 -m--portamento é sempre e facilmente condenado pelo ho-
co •t A

indivíduos separados: a sensação de sermos intrusos, de mem comum, porque a sua periculosidade ÇO!J:ê~S. e;e~ p(,)r_
não termos direito ~adfü.ܪ-..na...reajidad=e~---- radicalmente em luz a inconsciência do home~-i;ned10,_ do
A medida que as relações se multiplicam em nossa '''liomem que vive somente para entregar-se ac~ticamente
existência, pode intensificar-se a impressão de não termos aos valores vige~te_ê•--~~I!!-~'HJ-Qilleter êJ!~Jl_lp:rahdaª~~ U~
direito a um espaço, ao espaço próprio; o indivíduo pode exame deconsc_iên~ia pessoal, fundado na experiencrn
sentir-se, como quase todas as personagens de Kafka, sem interi~~; n~ escuta das "vozes de dentro"._./ . .
"os papéis em ordem". Não obstante, a consciência dessa -----Quãndo a sabedoria a_~ti~a e 8: ~~~-E'.!:?~ ..E~~~()~()~i:t.­
,!!!,arginalização, a .reivindicação do próprio "lugar ao sol" e profUilda, .com acentos e contornos ~1versos_:___~'.3:s~ot11,­
(~'"C~1J..ê~~i~~:~.:?-:~;g~~Sí1~4gsi_giy€l]:Siqade PKQQrj~1s illd~ cfos de analogias substanci8;i_8-• __ nos,__ d~~~ip qu~ tor:nar-se
"frid.:lvíd..uos'; é a.tarefa de nossa existência, nao devemos
raop))êrcurso d-ª-llldiYfü:!:!e®)E necessário, com efeito,
pere8ber que foi subtraída alguma coisa da identidade pensar que os outros tenham o que não temos. ~sse ~ u~
própria, porque assim se configura a traição primária erro no qual caem fatalmente muitos de nós. Nao, a md1-
a mais árdua de enfrentar e de cuja ameaça ninguém é cação dess§ls disciplinas reside em outro l~gar: ~rata-se,
para elas{de.-cad,a um tornar-se o que.~le e, .e nao outro .
"Í\. poupado. Dev':'._~~ torn_ª!:_-ngê_c§nscios <ie que à pet:.Ç&~
7,i/~=-~~r~oS.~ido esperados "~i~ere:ntes" dq que somo§j!Jnta- .~f i<Tem força salut~r'':i escreve Jung, ~~-~q~1!<:>.. qu~ cada
-~e g_es.t_upQ:rdesermos.reJeitados pelo qµe somos. Esse "(\Q~~·-efetiVamente"~ Ser fiel à PJ:'.Qprüt _u,nic:idade m1põe,
desconhecimento original se encontra também na base "'!il ~~tudo, custo altíssi~õ·:-9 cust~ da solidão e da exclus~o.
de uma visão supersticiosa da existência pessoal, aquela ~ Dostoievski, que pode ser considerado um precursor da
que nos faz sentir-nos afortunados ou desafortunados de ~ psicologia profunda, como justamente notou ~re.g:r ( 19~9 '.
acordo com as atuações que conseguimos oferecer e do \~...\ pp. 6-12) ' intuiu a dificuldade --
do processo de md1viduaçao,
sucesso que elas conseguem no mundo externo. Muito ~; ~~~ta pensar no percurso de solidão'. isolamen:o, neurose,
_Il'.l.a.is difícil~..has.ear. a.própria e§Jimana.Yerdade_~ ~ '~ perda do sentido, ali~nação, cul~a e madequaçao que suas
SQI!lo_s (:l_sei:i.t!P.!ºê· Devemos ter a coragem de admitir que, ~~ Personagens são obrigadas ~ tril?ar ~ntes de. cheg~rem a
~
sob o re~me p~icol?gico dessa superstição, ~~~~ h~ urn momento autêntico de ilummaçao e pac1ficaçao com
v._er~l:l~Emê~!!~aneg.Ade_ent:r:e -ªs_pessoas a n~o ser como ~ , a vida. As personagens de Dostoi_:vs~ m.ostram,~al11;b~~
...-,, . ' ,, _____ .. ---•
., - -·"-·---
··-"-
9:Ue não é garantida a superaçao criativa da traiçao
38
on
· 1 temos verdadeiramente necessidade, a morada na
da identidade: só alguns, misteriosamentE:i, atravessam qua . , , . t' t
qual somos verdadeiramente nos propr10s, es a em ou ro
o desconhecido desse caminho e volta~ "mais" vivos · . O espaço fundamental, o tesouro do qual falam os
"mais" capazes de continuar a vida. São os que canse~ ugar. " · d , "
-1 •t s em suas múltiplas variações, o remo os ceus
gu:m aproveitar o feixe de luz q11e hólhou sobre eles: a 11110, . d d
· do qual fala o evangelista Lucas encontram-se entro. e
ferida aberta pela consciência da incÜviduàlldade e da~ , A pedra filosofal o cálice do santo Graal, o velocmo
extrema dificuldade de realizá-la torna-os infinitament~­ nos. . ' .
mais humanos. ·~ de ouro, a morte do dragão, como cammho p~ra ~e chegar
ão tesouro, representam aventuras que nao tem como
Antes ainda do nascimento, acendem-se sobre nós
teatro 0 mundo das coisas visíveis, a r~àlidade externa.
esperanças e hipotecas. De algum modo subterrâneo so- Ai de nós se nos detivermos na letra, na imagem concreta
mos hipotecados e despojados de nosso valor de indivíduos que 0 mito nos propõe. Literaliza~ é um modo excelente
quando os pais - e não só a mãe - confiam à nossa vinda
de trair a experiência. Verdadeiramente, como lemos
no apóstolo Paulo, a.lfl~~~. ~.~~~· _(!puto represent~ '~-~!Il
ao mundo o dever de satisfazer alguma de suas necessi-
dades - por exemplo, a de mostrar sua capacidade de
É!ll!K~m" o destilado da sabedoria ~umana atraves dos
procriar. Ou a necessidade de preencher um vazio na vida
milênios: diz-nos que o homem esta sempre procurando
do casal. Ou a ilusão de recuperar um matrimônio que não ~-~erdade. A necessidade de superar provas específicas
se te1!1 a coragem de reconhecer como falido, ou quando
'ê perigosas remete às provas que nós, como indiví~u?.~ ..
os p~s nos delegam conquistas e revanches que não con- e nos diferentes níveis em que viermos a encontrar-nos,
s:guiram. ~m suma, projeta-se na criança um problema ·deveremos superar. Jasão andava à procura do velocino
nao resolvido, e com isso ela é isolada, segregada. Mas de ouro Persival e ·os cavaleiros da Távola Redonda an-
a onda da traição que submerge o filho não se detém aí·
a própria vida dele se torna uma "coisa" fastidiosa. Iss~
à
davam procura do santo Graal, mas cada um de, nó.s,
s.egundo sua história individual e no arco d_e sua propna
significa que, a partir do nascimento, conquistamos tra-
existência, dev:erá_procurar 111ll__ objeto decisivoe ifrenun=-
balhosamente um espaço autenticamente nosso· e a sen- ~áve( cuj~ conquista preludia a consecução do espaço
sação de sermos excluídos se funda na traição pri~ária. A mterior. É essa, creio, a única resposta que podemos dar .
nossa tarefa é então a d€) encontrar ou "inventar" o nosso-- '·áo evento trágico, e fundamental, de nossa existência que
espaço, o qual não se encontra ao alcance da mão nem é
· ~
concedido como imediatamente visível, mas é alg~ de in-
·é a traição do nascimento._
---.,~-" .......- -~- - '

definível, abstrato e fugidio. Ora, se sentimos necessidade


?;sesperada de solidez, de projetos definidos, de caminhos
Jª traçados, acabamos fatalmente concretizando-os em
alguma atividade ou em algum valor, por exemplo, no
estudo ou em uma profissão, no matrimônio, na riqueza
ou no sucesso. Dessa forma, forma ilusória, o espaço que
procuramos nos parece algo "real", porém basta um pou-
co de experiência para compreendermos que o espaço df?...,. Â_ 1

40
1'

3 · essitado e totalmente dependente dos outros, insere-


nec
-se necessariamente em uma perspectr~ra · exis · 1e
· t e~cia
PARÁBOLA DO FILHO psicológica que coinci~e com as e~pe~tativas consciente.s
QUE NÃO QUIS SER AMADO inconscientes dos pais. Todos nos vivemos essa experi~
:ncia quando vimos que'represe11táva~o_s unia p;r::9~e.ss~
para os pais. O nosso crescimento, visto pela sua otiça,
I
j
Os vossos filhos não são vossos filhos
São os filhos e as filhas da fome que tem a vida em si mes-
s1gnificava desenvolver-nos de acordo com o que eles so-
nhavam, imaginavam e anelavam. , . _ _
' ma '"'----o-destirro"rratural''-dõindivíduo pareceria entao nao
f Eles não vêm de vós, mas através de vós só 0 de desenvolver-se realizando a programação genética,
/ E não vos pertencem, embora vivais juntos mas também o de executar, em nível psicológico e existen-
Podeis amá-los, mas não constrangê-los aos vossos pensa-
mentos cial um projeto que não é seu, mas fruto das aspirações
Podeis guardar seus corpos, mas não suas almas de ~utros. Por causa de sua supn:!macia inicial, os. paiS,
P_o~que habitam casas futuras, que nem em sonho podereis
visitar. a
representám hiz, o bem e o poder. ~ensem?s como_ essa
cÕndição de inferioridade e impotência da criança diante
(K. G. Gibran, ll profeta in J. B. Verde-G. F. Pallanca, do adulto se traduz, no plano religioso, na relação assimé-
1984,p.33)
trica entre o homem e Deus: as religiões teístas concebem
sempre um deus, ou mais deuses, com poder absoluto
sobre a vida dos homens. A condição da criança é da vul-
Insere-se na família uma nova vida; ela se inscreve
nerabilidade por excelêncía~·perisemos somente em sua
onde já havia outras vidas., O acontecimento do n~scime-U:­
.~ dimensão corpórea, tão pequena que ela n_ão alcança as
to é sempre seguido de aclamações de alegria, mas, atrás
dessa alegria, há também um lado escuro. Se lançarmos
~ '\ êõiSás; tentémos voltar à criança que fomos: encontramos
~ ·à imponência e o fascínio dos "grandes", com sua estat:ira,
o olhar para além do véu da realidade convencional des-
. ' ~ .eom sua habilidade mágica em preparar-nos a comida,
cobriremos que esse novo ser que começa a formar parte
· em cuidar de nós quando estávamos doentes, em arru-
da família deverá desenvolver-se de acordo com linhas
1~ m.ar nossos brinquedos, em proteger-nos dos pesadelos
evolutivas determinadas. Essas linhas são, antes de tudo,
aquelas, inexoráveis, que vêm predispostas pelo plano
genético, quando, sob um perfil psicológico, supõe-se certa
liberdade de desenvolvimento do indivíduo isto é que
.l. ,.
~noturnos· encontraremos também a desolação e o terror
pôr nos t~rmos sentido abandonados e rejeitados por essas
·pessoas absolutamente indispensáveis; encontraremos a
' ' não "\:1--.... indiferença, a i~jusÜça e talvez muita violência, às vezes
ele possa ser o autor de seu destino. Essa suposição '\ · manifesta, às vezes oculta.
é, entretanto, confirmada inteiramente pela experiência.
-· A criança parece um "instrumento" dramaticamente
Se é verdade que cabe a cada um sua evolução psicoló-
extorquível. E parece que o crescimento deva passar ne-
gica, é verdade também que toda criança vem ao mundo
cessariamente pela experiência dessa extorsão; também
como sonho de seus pais, e, como ela é o ser mais fraco e
os pais, mais presentes e responsáveis, podem cometer
42
43
injustiças, e, sem perceber, podem ferir o filho em sua ·terapeuta. O mesmo pode suceder com os casais, com os
total vulnerabilidade e fraqueza. Nem falemos da des- "ãíiíântes, com os amigos; se refletirmos no que estamos
truição gravíssima que pais imaturos, inconscientes:_ dizendo, veremos que estamos fala;id? de u~a faceta
e perseguidos por seus sentimentos de inferioridade particular da traição. _Somo~ ex~orqmve1s, especrnl~ente
infligem à criança, usando e explorando-a como objet~~­ porque as pessoas. que _estão em torno de nós. pro~et~m
como um apêndice e como instrumento de compensação. 'nconsciéntertiénte sobre nós os aspectos de .s1 proprias
1 . t
O desenvolvimento do homem se realiza, portanto, tam- q:.;;e não conseguem viver diretamente; os pais proJe am
bém através da extorsão. A extorsão dos pais se apoia sÓbre O :filho a sombra que não logram reconhecer em .SU:l__
na adoração incondicionada dos filhos. As crianças estão própria vida. --· . . - -- --
prontas para tudo, contanto que não percam a aprovaçãQ,
~"""Ócorre muitas vezes de pais "perfeitos" no plano
a proteção e o amor deles. Estão prontas até a "esque- s~cial e mundano lamentarem a desventura de um filho
-cer" as injustiças e as violências deles, contanto que infeliz incompreensivelmente autodestrutivo, violento
preservem a boa imagem da mãe e do pai. A criança não ou oci~so· de forma geral, diríamos que na origem dessas
consegue viver sem essa imagem boa, pórque·perdê-la situaçõe~ está uma patologia de todo o sistem8: familiar;
equivaleria, do ponto de vista psicológico, a experimentar o filho foi coagido pelos pais a tomar sobre s1 todos os
o abandono total e a morte. aspectos de sombra que não foram capazes de assumir.
Muitas vezes a exigência de se conservar uma ima- Exemplo típico é o do profissional impecável, cuja sombra
gem idealizada dos pais afasta todos os sentimentos não se consegue notar: muitas vezes a dimensão "dia-
negativos, legítimos até, experimentados contra eles: a bólica", inseparável, da vida, age como veneno sobre as
indignação por haver sido humilhado, o ressentimento pessoas que o cercam.
"------·segundo o que afirmou Jung a esse respeito, e como
por haver sido ignorado, mal entendido, ridicularizado,
explorado e nunca ouvido. A mesma situação sentimental já tivemos ocasião de observar (Jung, 1929, p. 6):
é revivida como adulto, em situação emotivas particulares, N:ão há nada que tenha infiu_~ll,_C.!ª.:R~Ígl1i~1:l 1!_1.~~s fo_!te !1Q _
por exemplo, quando, amando uma pessoa, o adulto está ''ambiente circündante, espec.ialmente. sobr~ Qê_:fi}"n()S1 _sig_ ,
disposto a realizar tudo o que ela pede, sem possibilidade 'éfíie·a: vida não"vivi4a dos pais.
de pensar em si próprio, de compreender o que é realmente
necessário, de satisfazer seus desejos e suas necessida- A propósito de "vida não vivida dos pais", Jung
des ..N.a..análise, essa situação pode representar-se de desfaz ou ao menos reduz às suas proporções humanas,
_f~~fi . d~~~-~~tica; nem todos os analistas têm condiçõeS. muito humanas, 0 lugar-comum segundo o qual os pais
~-~- e_){er?~r-~ua p~o:fissão adequadamente, exatamente- _ devem sacrificar-se por seus filhos. "Quando os pais
~?in?. os :pais; e alguns pacientes, como as crianças envól- _ descuram sua felicidade para procurar a felicidade dos
vidas em uma relação emotiva profundíssima, têm sérias _ filhos" - observa Jung, na última sessão de seu semi-
·difüfoldades em notar a falta de aptidão do analista. A . nário sobre Assim falou Zaratustra de Nietzsche - '~
tendência infantil de salvar a imagem do pai age com toda . ~~m aos filhos uma herança má, uma má impr~ss~o do
a sua diabolicidade, só que agora no lugar do pai está o Passado". Com efeito que imagem oferecem aos filhos os
....... ~,~- ' A,,.
44
pais que sesacri:fi_cam, na esperança da felicidade_d,el~..§.. Desse conluio decorreria, por exemplo, segundo
senão" aimagem de uma vida sacríficadã? "QuénÍ pensa- Jung, "que pais de moralidade ex~ger~da.tenlJJlII!_ :filhgs.
muito na felicidade de seus filhos, côntinuâ Jung, comete chamadós iirior~~s'_'_(ibid.). .
dois erros gravíssimos: não sabe procurar a felicidade - -····A ·VI a ru§__rn_d ª·-~ :tJ.aQ
-·ãa·n···-·-·t fr strada
- ...so, a VI'd ª~~lJ._. _________ JJ,.los
..L~.pais
. .. _, __ .
própria, e os filhos, paradoxalmente, não aprendem essa não deixa, .Portanto, de distribuir seuY.ene.u,Q,, Q<mta, ain~;i .
arte difícil. Tudo isso gera o despropósito psicológico de Jung, em O eu e o inconsciente (1928, p. 192), que certo dia
considerar a felicidade um patrimônio reservado ao fu- encontrou um homem aparentemente impecável, homem
turo: se eles próprios não forem felizes, assim parecem cuja dimensão da sombra não era possível individuar;
pensar os pais, ao menos seus filhos serão. Ocorre que diante daquela impecabilidade, sentiu-se em penoso esta-
os filhos, quando pais, se comportam da mesma forma. do de inferioridade e começou humildemente a pensar que
'frªta:.S~e.Jia-Gada ..um.runar a si próprio aqui e agora, devia mudar-se para melhor. Com a costumeira ironia,
afirma Jung, e, se o~ pais souberem amar a si pró.Q!'.!"Qs Jung conta que, alguns dias depois, foi procurado em seu
aqui e agor.13.,os filhos aprenderão a fazê_~lo (Jung; 1934- consultório pela esposa daquele senhor; imediatamente
-39, pp. 1543-44): desapareceu a impressão de que aquele homem fosse o
mais piedoso e o mais perfeito que ele tivesse encontrado.
Era a mulher que pagava, com grave neurose, as projeções
da sombra do piedoso marido.
:e_0 de-se falar da traição também ~-J:Il .!~!:1?.?S_ endo-
Em vez de dizerem, como de costume, "faço isso por
psíqu_i_~~~:--um Tndivíd~~ g~~ reJ:Il9.\ra_'p?F~ _o_in~on_sc~énte ..
meus filhos", continua Jung, os pais devell1_fazê-lo para si
os-traços!n:fe:flores d~ p~r:sgnalidade - a ~~!P:J?rª1 _p11ra _
próprio~, devem procurar a felicidade para si; sacri:fiêãr--
:::"s~ para si,_ torturar-se para si, e fazê-lo "aqui e ~gor~'.', -
Usãrmõs á térmfnologia analítica - trai a inteireza de_
sua experiência psíquica e vive cindido, como se co~ns-.
Adiar a felicidade para o futuro dos filhos significa deixar
tantemente ameaçado por inimigo interno invisív~t
alguma coisa que não tiveram a coragem de realizar para
A traição en.dopsíquica verifica-se também na direção
a sua própria vida, significa deixar "menos do que nada
oposta, trazendo prejuízos ao que há de melhor na pes-
aos filhos, somente um mau exemplo" (ibid.). A,yig-ªJrus-
soa, aos seus talentos; é o caso dos que se identificam
~!.ad_~AC>s_pa,is,_ embora em nome do sacrifício pelos filhos, completamente com sua sombra, em um estado de des-
equivale, em suma, a unia verdadeira traição da vida_do.s
valorização pessoal e depressão, estado no qual a cisão
fi!!i()S. Escreve ainda Jung (1925, p. 193), a propÓsito da
se explica por serem eles habitados inconscientemente
vida frustrada- dos . pªis, g_µe . - ·-
,. -
Por uma personalidade "grandiosa", a qual compensa a
,. · ,. · , _{Geralmente o tipo de vida que os pais poderiam ter vivido, deflação consciente. As duas atitudes se explicam pela
/ '"I se razões artificiais não os tivessem impedido, transmite-se reapresentação da dinâmica da cisão nas relações inter-
r • 1 aos filhos de forma contrária, isto é, a vida dos filhos se pessoais. A pri:rn,ei.ra forma de traição, que definiríamos
orien~a inconscientemente de modo tal que compensa o que ~o_mo cisão da sombra, manifesta-se na projeção da
os pais não puderam realizar em sua própria vida. sombra e na procura constante de companheiros que.SE)
46 ,ff'7
prestem a encarná-las, pQr c_al1sa de sua história pessoal estreita", para usarmos ainda uma metáfora cristã, ou
particulllr; um exemplo é ohomem descrito por Jung:.,.. "o caiiiiii.ho menos percorrido", expressão essa que talvez
cuja mulher assumia o papel de "doente", abraçando as devêssemos recordar sempre em nosso caminhar para
neuroses do marido. Os filhos geralmente são vítimas a morte. Desviar-se desse caminho, único e irredu~ível, .
desse sacrifício porque,· em sua total dependêndã·ê-
da individualidade significa ~Ornar~~~ artífLC.~~!iV<:) ..ª€'. .
fragilidade infantil, só podem absorver as projeções d~-...._ Um.ã tra:íção e entregar~se_ c,omo C()Y.~!ª-e __~.() .PQcier d8:_
sombr~ dos p~is: Também a outra traição endopsíquiçª,:.~ "Civilização" tjúe ri.ús circunda, aos seus modelos e aos.
~..~_ll:e e ~~aticada cont_ra as potencialidades _p , · "S"eUs_~ª1ºr~ê1 ~-~~_y~:rtfjsª-:l.Q~J?..~§oalmeAte_, ___ _
mais positivas e que a lmguagem analítica d~Jine...camo_ ~-~ão se entenda mal o que digo: não estou propondo o
~'identificação com a sombra", repercute nas rela.çõe.a_

G
minho da individuação como receita, como coisa que se
Jr1:t~rpes_~?ais: um indivíduo afetado por essa ci~ão. tende_,__ mpra e que põe fim aos conflitos existenciais. Aqui es-
_Q.e.Jato, a P!<:>j~t~r toda a luz sobre os outr{)s, vivendo na mos falando de um mistério, do mistério da vida, o qual
a~oração incondicional, que é também grave detuifpaçãô apresenta sempre de maneira inefável e contraditória.
e _distorção. Sem cair em generalizações categóricas, A vida em: Eli. é_ traição ªe__f3_qE:)_g__?asc@_~I.lt..Q,__Q que
parece-me legítimo supor que facilmente as duas tipo- podemos f~zer mediante a individuação é cniscer atr_a,yés .
logias "combinem muito bem", no sentido de que uma se dessa traição, recuperar-nos apesar dessa traição, ~~s_u.-
encaixe admiravelmente na outra, em uma cumplicidade mir o escândalo dessa traição e confiar além dessa.traiçã_Q,
ambígua e obstinada. D~~~!!1:_QS 1 por isso, envidar enorme Estamos falando de um desafio: o desafio de sustentar a
~sfor?o par~ l~IJ.ert11_r._:Q_e>,§._clg ªitµiiÇ~~-!3-g~~se-tipo, p~~ contraditoriedade da existência. Não uma contraditorie-
Se criam mecanisi:n:os sutis e_j!J:.C<:)~Scie11tes, OS-·q:µ~is éiããe especulativa e filosófica, a considerar só em termos
percebemos SÓ com O tempo, cada mrl através de seus _ intelectuais, mas banalmente cotidiana, a n9ss11 própria
instrumentos de autoconhecimento e íntrospecç_ijo. P~ra · contraciitoriedade, aquela pela qual amamos o amigo
alguns, esses instrumentos são a meditaçiio, o bµdi~~o ê"'tãn;'bé~- o invefamos, desprezamos um superior mas
zen ou as técnicas iogues; para outros, a pslê~:nálise; .- quereríamos ser poderosos como ele. fü~rk~~~~!~. <Jiz.i_a . 1
para outros ainda, a oração cristã ou simplesmente . que os filósofos constroem grandes, .altíaaimQ~.-ªn!!atn.i~s , ! i,..:
uma relação de amor capaz de abrir novos horizontes, IITõsóficos e, depois, vivem em um galinheiro. Ele tinha. ~
de expandir e enriqucer a experiência consciente. Côm ·· razâo, porque a vida do homem é também um galinl:ieirQ,
efeito, o que chall1amos tomada de consciência não passa êlieio de mesquinharias e nutrido com superficialidades.~
necessariamente pela psicanálise; é o caso de aceitarmos -e· banalidades. Cabe a nós administrar esse par8:g.PX:(), se
lit.eralmente o que diz o Evangelho, isto é, que ~'OJLf!t_ -~lieremos levar-iios·a sério: TraiÇ}fo f i>en§ª-:ç,,,g_m_.AQss.a
mmhos do Senhor são infinitos". Se a meta é a verdade, éondição humana· eni· termos· de liberd8:de a_l>soluta, de
aquela verdade interior que as religiões chamaIÜ~P~\;s~, e conhecimento absoluto e de controle absoluto do rio da
a psicologia analítica chama Si-mesmo, os caminhos para vidtl; na verdade, não controlamos nada! A perspectiva
ela são tantos quantos os indivíduos, e cada qual deve _contrária à tra:içãõ' consiste, em meu parecer, em to- ''
I'
P~rcorrer seu próprio caminho. Essa é também "a porta marmos conhecimento também de nossa impotência; o '
-----·--- ..--,~···-- ·--~··-·~-- ... ---~~-··-·· -·-···-····•
,

48 AO
v_~rdacieirode_sa.fio está na confiança_ cie que alguma coisa ·eles sobrevivam psicologicamente sem muitos conflitos.
maior age dentro de 'nós, alglíma' coi.~~l ~aioi'do que o ê:ti.= Quantos de nós ainda são filhos nesse sentido, de mãos
)~ l1lais espaçosa do qµe o "meu", al~~~c:oi_sa_g_~ em e pés atados a um invisível incesto psicológico?
t!_@quilª_9pos!çi:íp à. ~oral <:l_e__!1Q§.ê9'ê. painéis pll,J;>IiÇ_jj;árias,__~ Vêm-me à mente as últimas páginas daquela obra-
nos un~ em uma suhsi.?iiciª-L~J1atural igualdade. Então prima de Rainer Maria Rilke que são seus Cadernos de
~Trã,ição, em suâs ~il ·formas ~ -·d!sfâ!"c~s·,"<l~i~ª- .de~$~~r Malta. O poeta elabora sua versão da parábola do filho
somente uma desventura:·--·· ....... - pródigo e escreve (Rilke, 1910, p. 263):
e.
Crescendo .. superando toda uma série de obstá- Na parábola do filho pródigo obstino-me a ver. a lenda...
culos, tornar-se-á claro que conseguimos uma autenti- 'daquele qu~ não queria ser 3;;mado. E seria difícil dissuadir-
cidade maior justamente evitando identificar-nos com ·-me disso.
o que os outros pensam de nós. O que os outros sabem
de nós? Em geral somos impelidos a um papel coletivo Não é fácil entrar plenamente nesse escrito de Rilke,
e estreito, que, além de tudo, é um modelo "cultural" e, porque ele contém, em linguagem poética, um significa-
por isso, "datado" e ancorado em determinada geração. do psicológico absolutamente revolucionário. Para ele,
Sem dúvida custa muito mais, em energias e sofrimentos, o filho pródigo é aquele que é forçado a deixar J:l c~-~ª- ,
procurar uma confirmação autêntica, a qual só pode ser paterna porque percebe que aquele que é amado. nela_,_
interior. Essa conquista se torna mais difícil quando a chamado com seu nome, esperado para a ceia e.festejado.
vida dos pais que não puderam efetuar esse percurso se 'pelo seu aniversário não é ele.. O filho pródigo rejeita
nutre da dependência dos filhos. Muitos filhos, não mais 'esse amor, que não é para ele, esses presentes, que não
jovens, ainda vivem com a mãe e não sentem o conflito são para ele; nesse sentido, a parábola é "daquele que
que o impulso para a individuação deveria tornar explo- _:q,ãq quis ser amado". Analogamente, Kierkegaard, _em
sivo e incoercível. Muitos jovens vivem em um limbo de seu comentário da parábola evangélica do filho pródigo,
possibilidades, como barcos de luxo que se deterioram afirma que os pais "não têm magnanimidade bastante_
no ancoradouro. Para eles, o universo se reduz ao meio para dizer ao filho que parta ou para compreender que__
familiar, ao "conhecimento" dos pequenos prêmios e re- ele deve partir", e acrescenta que, sendo assim, "não
compensas, dos pequenos e grandes delitos psicológicos, há solução" (Kierkégaard, 1934-55, p. 42). _Rilke narra
herança dos avós e antepassados, que serão transmitidos errrBeguida, com arte esplêndida, as peripécias daquele
para as gerações futuras. Permanecem encalhados nos joveru·-a·pr.ocura de si mesmo, o contato com a natureza,
"baixios" dos códigos existenciais e comunicativos de a espera do amor de Deus e o retorno a casa. O retorno
origem, dominados por seus preconceitos e completa- do filho pródigo a casa não é apresentado por Rilke como
mente inconscientes do oceano imenso e novo em torno ato de renúncia à sua procura, mas como superação da .
de si. Ter em seu poder a dimensão psíquica dos filhos traição. Como se ele compreendesse que a casa paterna, .
permite aos pais garantir para si uma importância e na quàl a pessoa é desconfirmada daquilo que ela é mais .
um papel preciosos, o que é possível somente quando intimamente, é uma manifestação da vida, da traição da ~
o filho continua sendo aquele filho que serve para que vida (Rilke, 1910, p. 271):

50
Então deteve-se.
Porque lhe sucedeu compreender cada vez mais que aquele retação dada por Wilde à parábola evangélica? Liga ele,
p
talvez, , . reco?h ecer o "sagrad"
o fato de o filho prod1go o
amor, do qual os outros se mostravam tão vaidosos, esti-
mulando-se a porfia, não dizia respeito só à sua pessoa. de sua própria vida ao seu arrependimento e ao seu re-
Ele teria quase sorrido de piedade, vendo-os atarefados torno ao seio da família? Ou podemos e, talvez, devemos
por nada.
ensar que o reconhecimento veio justamente por ter ele
Parecia claro que não pensavam no Retornado.
O que sabiam dele? ~onsumado a experiência da traição e, ainda melh?~" q~e
Amá-lo era agora terrivelmente difícil. 0 "sagrado" de sua vida corresponde a essa expenencrn,
Ele sentia que Um só seria capaz de fazê-lo. e não a acontecimentos posteriores a ela? Enfim, como
Mas - esse Um - ainda não queria. devemos entender a reconciliação do filho ~ródigo c~~ o
pai, que ele traiu, abandonando-o?~ n~rraçao evangehca
Rilke compreendeu a traição do filho, a tragédia de foi redefinida a seu modo por Andre G1de em um de seus
não ser amado, de ser entendido mal pelo "amor" dos pais. Poemas em prosa (Bergonzi, 1990, p. 110):
~ compreendeu t_ª!llbém ?_resposta mais humana E} mills Aqui o retorno do filho pródigo é uma ad~issão de malo-
sábia que se possa dar e esse-eqiiiv-oco terrível ir embora gro; procurou a independência pelos c~mmhos ~o mundo,
'e.vóítâr, isto é, emtermos psicológicos, diferencia~-se dos
~ ...... .
aspec1os_,malsãos_ daquele amor e depois perdoai_-.:_sentir
---·-
-~--, ...........
mas não foi capaz de suportar o confhto, ª.ansiedade e a
frustração inseparáveis da liberdade, por iss?. vo~t~ ~,ara
_:PNMde daqueles pais q~e se "afadigam por_nada". faª9 _ casa "por preguiça" ... Incapaz de suportar a traiçao da
significa que o pçii, capaz de âmá-lo, tornou-se figw:aiuter- família, preferiu trair a si próprio ...
nâ, diyi11ª, fülU~le "!J_II1" -ª-<? qual fala Rilke, cuja disponi-
bilidade pªra sairfo,ra é lenta, lentíssima, uínverdadeiro __ _ Outra é a apreciação de Kierkegaard, que viu no
~~rio. Analogamente, em seu escrito De profu~dis _que
é u~-~ J<ÚigiiÇ:~!!~~ Lord Ai:fred Douglas, o joverri por ele
1 retorno do filho pródigo - ao menos nisso não diversa-
mente de Rilke - um "retorno a si m_~smo" (Kierkegaard,
1834-55, p. 42): ------------
amado, Oscar Wilde sustenta, a propósito da parábola
evangélica do filho pródigo (Wilde, 1949, p. 94): "~:gLe_egµiqa ele_:r_etornou a s1. mesmo. "S.rm, a ..viag~~
. ;=t_Q,__
'éxterior terminou; terminou não com seu retorno a e.asa,_ ....
Estou certo de que se lhe tivessem perguntado, Cristo mas com seu retorno_ a si.mesmo ..
/ responderia que no momento em que o filho pródigo caiu
1

/ de joelhos e chorou, transformou o ter dissipado seus bens


1
com mulheres de má vida, o ter-se feito guarda de porcos Kierkegaard mostrou também que, concentrand~-se
e ter-se alimentado das bolotas comidas pelos porcos nos toda a atenção no filho pródigo, o pai fica quase esquec1d~.
momentos mais belos e sagrados de sua vida. Ora, para Kierkegaard, o pai citado na parábola evange-
lica é "Deus nos céus" (ibid, p. 43). JJeY&riamo.s.,._ta}y_ez,._..
"Para muitos", continua Wilde, refletindo sobre sua ~eduzir disso que o retorno do filho pródigo signi~ca seu.
própria experiência, "é difícil compreender isso; talvez retorno a si mesmo no sentido de que o protagomsta..da_ -
. Parábola evangélic~ se tornou pai, melhor, pai e mãe-de -
seja necessário viver no cárcere. Nesse caso, talvez valha
a pena ser encarcerado" (ibid.). Como entender a inter-
.!.~-~esmo. Na parábola, tratar-se-ia, em. suma, ..d.e..~umª··
52
funçã(}_ çle parada diante do passar de um de~tino imp:ó-
~~~~~~~p:i çlo, "pfli" E!º "Pai"~ ª~uma passagem da dimensão pfiÔ~ ela é uma doença cuj.oescopo_é dfü1uriciar o conflito
ht~I'al;à di~~~-são s~ffi.!:>2~~~.: ~iig~·e·.~s,s~ p()de ser referia;- ·psíduico resultante da cumpli~i~ade clª~indinaç.õ.e,s_Q:ró~
ªº proJeto micial dessª p~s~agem, afirmou (Jung;-nn7:4a,
p. 61) que em tais casos · · ·· ·· pnas com os ditan:ies .d~ cole!~v15l11cie,.,,-- ., .
·· A estrada da md1v1duaçao e, portanto, dific1l e dolo-
A terapia começa substancial e realmente somente g_uando rosa; ~través dela o crescimento não proced~ e~_.':'L~~d~-­
.~:l?'.í=ié~e?te ~ê q_~-e9:qti'!o~em1JâraÇâ .J~ nãô é ü:pãí'~- à-ill~~_,__ de aquisiçõesín.Te!ecrua:ts·:-P.;:·ihrs'ãcf'dê' que ·o ·"amadure-
/ ,.!!l.füLfil~.QP.I'l.º' 1§1;.Q_e_,~11..1!l:ª parte 111conscie11te .de sua ·amento psicológico" é adquirido por meio do acúmulo de
.J?W.SO.nalida_de, aqJ.!~:iJ _assumiu e continua ai'iiterpretar
f!~p_fil_de...ll.~.UL01â!h_ . .. . .
o
. -·- conhecimentos teóricos, ou através de um treinamento r
especial em moda, cria milhões de ~ítimas. Ge:almE)~t.e , ~
resultado dessas indigestões dEl ~IêÇPT.êQ.~J~~1cB;pal~g- l..
. A condição de filho dependente não está ligada à 0
idade cronológica; alguém pode ser filho dependente aos "cos é que a pessoanão rn,uda em nada, sorneJ.ltêJl~ tor..:.na . ·<~
muito mais sabichona e presumida. b-s__rac]_OA~l1~~SQ~!.3- .· ...
setenta anos, quando seus pais reais já desaparece~am·
engenhosas também síl_~ "t:raiçê?~§" que ~ lll~~tec~i:µete, :::e":.
com efeito, a_~~~~~ll1 deles pode permanecer no psiqaj§..I!1,~
d_a..:f:iJ.~~' e, não tendo ele consciência disso, ela condicio-· cbm preill:!zó,ció coraç_ã9: .a..:P~.ssgª ê,_e_ê.,~!):!«LI.b~.m~.:rv1gª'·. '-e,;
ÍÍa com mmtâ.. eficácia. os comportamentos e as és~~fh.;~-- p~rece qÚe cornpreend~u ~11~º- e, m1dli ~o:g:un:e§.. ~k.nrn-:
. coriséientes dele. Por exemplo, se a figura materrni . iíâbi~·-­ ~: Em geral a vida se enc.arrega de esvaziar esses ba-
lões e ela certamente é mais engenhosa do que eles em
t~ir prepotente e nagativamente a nossa psique, ela pode
literalmente impedir-nos de viver de modo autônomo e
des~ncantá-los. Na origem da presunção também existe"_
criativo, o que somente o desapego psicológico da mãe uma traição. Se a_ni§iõãJ,Iies.Se..mJ1.l§c~êI1~~~A~-~1:1-~- \J
permitirá. Muitas vezes um homem apegado anacronica-
emotivíaâàe teri~ menos necessidade de entrinch~~:.~:.:~~ . ~-~
,,..,"''',· " ..... ·' .. .. . . , i Áfé Ôs s1.canalisfas de :rllod_o l \
mente à mãe encontra muit.a ciiticuldade em estabelecer .. ~trl:ls.decertezas rac10na s .......- .P ............. ,,-.. ·.·' .. .
ligàÇão' afetivà e .s.exual satisfatória com outra mulher- ã · be:in mais concreto dó que se acredita, p()dem es~.Qpd~r~se
atrás de sua..personalidade terapeuta, identificar~se com
impotência, o homossexualismo, um dom-juanismo ex~s-·
perado são sintomas de relação perturbada com a figur~~
àescola na qual seformaram e não sercãpâzês ae tóler~r .~
materna. O tra~alho analítico consiste então em a pessoa
oriovo, nem em si nero em seus pacientes. ~ sabedoria
~sôcrática da dÚ.vida não benefida esses indivíduos, cuja .
tornar-se consciente dessas imagens internas tirânicas
enférmJ.d.ãd.e mais. triste é a presunção intelectua! e a
e prevaricadoras. O nascimento cronológico não coincide .
iilêonsciência do nível emotivo de sua vida_. Estamos fa-
_com o nascimento psicológico. A aquisição de-u:nl"é~Ülo"
hmdo novamente da dificuldade do· desapego doitpãís é
existencial conforme e fiel à nossa personalidade parece
ser ? resultado necessário de longo trabalho psicológico
da traição que eles, mais ou menos inconscien.temente, '
1

'

2infügem a seus filhos. A atitude de um psic.analista rela~


de diferenciação. Jung dizia que os neuróticos são homens
~ivamente à sua escola de formação pode, coro efeito,. ser ··
propriamente superiores, homens que não suportaram
permanecer em uma situação existencial muito estreita
.~uito semelhante à da criança em relação à sua família ..
A comodidade de transferir toda a responsabilidade à
e destituída de significado. A. -
~~urose tem justamente.a·
. ...
-~------·----· '···~·-·

54
"escola" e às teorias dos pais fundadores torna a prática ' necessária para que o filho ponha em dúvida se esse é
profissional muito estéril e inadequada para enfrentar as ;ealmente o seu caminho. E, principalm~nte, que possi?i-
situações tão diferentes que a relação analítica suscita lidade de autorreconhecimento tem um Jovem de_dezmto
também no terapeuta. Uma explicação desse fenômeno anos que terminou o colégio para opor-se a um proJeto ~ue
é a de atribuí-lo também à tendência infantil de salvar não corresponde às sua inclinações? Nesse caso, a saude
sempre a imagem dos pais, isto é, no caso da família psi- psíquica consiste em conceder-se o luxo de dizer "não" a
canalíti~a, dos pais fundadores. Coll?-~~~ ~ê, é necessária__ essa troca paradoxal de papéis entre o passado e o futuro,
uma traição também e principalmente da parte dos filhos de recusar como "projeto" alguma coisa que já foi feita
uma traição daquelas instâncias que não sentimo~ m.'ai~ por outros. Metaforicamente, é uma espécie de s~gundo
corresponder a nós e que dificultariam o desenvolvimento corte do cordão umbilical, consistindo a nova ferida em
·de nosso "estilo" pessoal .. , · ·· .-,·~~- ver a "segurança" do passado como um abraço mortal. As
É importante e digno, em si, o fato de cada um procu- interrogações, no caso, são, pois: trair o futuro, isto é, a
. , . ?
rar inspirar-se em modelos que considera positivos e afins nós próprios, ou trair o passado, isto e, os pais. .
de suas inclinações; também Napoleão lia as vidas dos A traição é uma das experiências mais dramáticas,
homens ilustresLAs&im, embora um psican-ª_list,.§l ip.spire- porque é a experiência da separação. A vida é uma longa
~se ~E'.!Jlo9-o particular em Rogers, em Jung.o.:ue.~ série de separações, porque a nossa existência é pontilha-
~ _!lec~ssári.~ q11_e ten,ha seu modo próprio de ~trabalhar, da, até o fim, de laços afetivos (em relação a ~ma pessoa
segJ'istilo, único eirrepetúcel Quando não ç()µseguimos_ ou também a algum bem), e não há laço afetivo sobre o
ter rio_ss,o e$tilo, somos traídos pelas nossas possibilidades qual não se projete a sombra inquietante da perda, da se-
.expI,:essivas., E se essa traição se atribui, na infânCia, ·à paração. Separar-se de alguém ou de alguma coisa n~ qual
figura dos pais, é necessário dizer que, na vida adulta, aplicamos nossa capacidade afetiva provoca, sem duvida,
ela se torna nossa autotraição. O crescimento se dá em os maiores sofrimentos; entretanto, a esses sofrimentos
condições de inferioridade, porque somos vítimas de uma não podemos e não devemos subtrair-nos; ao contrário,
dependência emotiva e econômica; quando decidimos "sair devemos abrir-nos a eles e vivê-los até o fundo; trata-se
de casa", devemos, depois, haver-nos com o sentimento de do que Freud chamava trabalho de luto, "trabalho" que
culpa e com a chantagem econômica, sempre à espreita, consiste em se saber viver a separação, concedendo-lhe
em uma relação de forças fatalmente desigual. Como fi- tempo e espaço para ser elaborada. Como psicólogo,
lhos, vemo-nos entre dois pólos, melhor, entre dois fogos: creio que a escolha deve ser sempre para a frente, que o
atrás, o incêndio dos valores e dos preconceitos familiares· desafio deve ser acolhido, porque abre-se para nós uma
adiante, uma luz fraca, a chamazinha de nosso projet~ nova dimensão. Ninguém poderá perguntar-nos por que
de vida, luz que deve ser alimentada com impertérrita não somos diferentes do que somos, mas é provável que,
confiança. Pensemos em todos aqueles casos nos quais o Passando os anos, nós próprios nos perguntemos o que
filho nasce em uma situação familiar na qual a orientação realizamos da vida que nos foi dada. Se a tivermos usado
profissional está predeterminada há gerações: o comércio, Para proteger-nos dos imprevistos e das mudanças, não
a carreira de médico, de advogado etc. Quanta coragem conseguiremos nem preparar uma resposta, não teremos
56 l~.'7
elementos ~e~ pontos de referência, porque será como 4
nunc~ nos ~ive~semos aventurado pelo caminho que lese
do remo da ilusao para a verdadeira vida. Se não tivermva PAPÉIS E CONFIANÇA
usado noss~s energias em uma espécie de interminá os
surplace, nao menos fatigante do que uma corrida vel
trarem~s uma resposta da qual não nos enverg~:~~~~­
~10s, _seJ~ ela qual for, resposta que não trairá a tristez~ ... os corações foram feitos para ser despedaçados ...
e nao. dispormos de outra existência para trocar Est, (0. Wilde, De profundis, p. 75)
certo dizermos que não sabemos por que fomos postos na
mun~o, m~s sabemos que não foi para olharmos em torno
de nos e nao fazermos nada. o

A pergunta à qual nos referimos é, pois: "Que fizeste


de tua vida?" É provável que jamais alguém nos dirija
...::.:...:...:
semelhante pergunta, mas é provável também que surja
em nosso interior no momento de crise, em um daqueles
momentos extremos que pertencem à soma de experiên-
cias de cada um de nós, momentos que nos põem contra a
i!.
parede e nos obrigam, se não a uma resposta, ao menos ao
confronto com a pergunta e com a crise existencial que ela
provocou. Nesse sentido, o processo de nosso crescimento
é exemplar, porque frequentemente contém situações de
ruptura, fraturas inevitáveis, destinadas a sinalizar não
só a infância ou a juventude, mas também toda a nossa
vida. Em outros termos, se a nossa vida consiste em andar
para a frente, em progredir incessantemente de etapa em
etapa, se o homem é radicalmente "animal teleológico",
então, a cada passagem de uma fase evolutiva para outra,_
deveremos viver a experiência da "fratura". Se a pergunta
sobre o sentido de nossa vida nos foi dirigida pelo mun-
do coletivo, pelo mundo representado pela família, pelo
grupo e pela comunidade à qual pertencemos, nesse caso
59
58
1

não foi chamada em causa a nossa verdadeira, profunda


e_ autêntica individualidade, mas aquela espécie de subs-
·ae um critério coletivo de comportamento; o atrativo
, . do
qual se servem a família e sua projeção macroscopica, que
tituto da personalidade que a terminologia junguiana
chama "persona", construída em obediência aos cânones é a sociedade, corresponde à oferta de gr8:nde, s~guran~a
aos valores e às normas vigentes. Conformando-nos co~ psicológica. Tr-ªtª:.~'2fºrém, d~ promessa ilusona: Q~_:ecn~-­
o cânone cultural, definimos a possibilidade de reiaÇã ~ disso, espera-nos a traição mais _dol_o~osa e o confisco de
que temos com os ou ros e modo tal que fornecemos;-
0 nossa autêntica identidade de mdividuos. ~J~nj;ª~iva
·que cada um realiza de compreender o mundo e v~v~r
eres um mstru:iiiento de identificação rápid;-eunívoco .. harmonia com ele configura-se como processo cnati-
o qual coincidêêõm o nosso pa.nel social. É comõ' s-e- -~. emdo qual cada um, em sua singulanºd a d e, e, ~ prmcipa
· · 1
vo
nosso cre8ciiilen:w, que afunda suas raízes em muitas
artífice: nós é que contribuímos em larga medida para a
possibilidades de desenvolvimento, devesse condensar-
autentiddade de nossa existência.
:se e es~erilizar-se. em uma fórmula. Isso corresponde
No "círculo familiar" sucede, ao contrário, que os pa-
a necessidade coletiva de segurança: é muito mais fácil
péis entrem em conluio, e onde há conluio a aute~ticidade
identificar a pessoa por um nome, por um título, por um
é traída. O conluio do qual estamos falando mamfesta-se
trabalho, por uma etiqueta do que abrir-se como diria
Lévinas, ao rosto do outro, ao inquietante mi~tério de sua
dos modos mais diversos e articula-se de acordo com as
personalidade e à sua irredutibilidade. Consideremos por estratégias comportamentais mais rec?n~ita~,' sii:uosas
e envolventes. A tais "complexos conlmativos Enc Ber-
um momento o medo e a desorientação que se apoderam
ne o iniciador da chamada "análise transacional", deu o
de nós quando não conseguimos pôr quem está diante de
' de "jogos"; é uma denominação que 1embra os ""JO-
nome
nós dentro de um esquema conhecido; aí a dificuldade
gos linguísticos" de Wittgenstein. ps jogos são um modo
parece provir do fato de o indivíduo em questão não es-
de se representar toda a realidade dos homens. ~eles
tar completamente identificado com a máscara e deixar
adivinhar uma personalidade rica em esfumaturas e que regras e papéis são rigidamente observados, re~etidos,
reproduzidos e transmitidos de geração em geraçao, com
escapa ~ toda t~ntativa de redução. Acolhendo o pedido
preJmzo da autenticidade das relações recíprocas. e ao
do coletivo, aceitamos sacrificar aquele núcleo absoluta-
custo de mmtos sofrimentos do corpo e da alma. Os JOgos
mente individual, que constitui o fundamento de autêntico
são definidos por Berne (1964, p. 55) como
se~-no-mundo. De fato, se estamos fundados em alguma
cmsa que pertence a nós de modo particular e distintivo um conjunto de operações, muitas ve_~es monótonas? SUP(:l!:::_
Hcialmente plausíveis, co~ motivação ocult~; ou~ s1mple~,­
mas , nos. curvamos à prescrição social' abdicamos de nós' mente, como uma séne de Jogadas i~süliosas, disfarçadas .
pr~pr10s e res~alamos P,ara uma existência impessoal
(ahenan~e e alienada) ..E · · ens, el erguntar-nos
se o do da coletividàd , 'timo e se nos sentimos Berne constatou (ibid, p. 199) também que
obri~ados a satisfaz_ê-lo. Crescendo, somos continuamente a muitos jogos dedicam-se com particular obstinação as
~papel, a realizar um destino evo- pessoas que sofrem de disturbi~s ~e~tais; g~ralm~nte
falando, quanto mais graves os d1sturb1os, mais obstma-
lutivo pré-constituído e a aproximar-nos o mais possível
damente elas jogam.
60
Se nos meandros d ·
das relações entre as º!~ogos sucede de se perder o senso inconsciente dos pais. A.Jdentidade primitiva "faz que
própria é traída, é nece~sá~~:~u:et nel~~ a au~enticidade ~nfiitos dos pais e sofra como se
traídos, é necessário morrer ara el am em,os.J?~os sejam 1õ$sem seus" (Jung, 1926-46, p. 82). A existência dessa
os jogos se mostram tranq~ilizan~s. Is~o ~ d~~Il, porque ~explicar-se-ia ela ouca diferenciação do eu
mantêm distância de se es, e a iorma que a crian0. Ora, como afirma Jung (1927-31, p. 17),
seus problemas reais Tgurartaança ~ntre a~uele que joga e
.
d ir · r-se-ia entao d t a extraordinária capacidade de contágio das reações emo-
aquele "grande c1rcu
, 1o d a traição"
.' ' ,e ransgre-
" , tivas faz que involuntariamente sejam afetados por elas
familiar" ' redefini'ndo regras e pap , · o que e. o circulo aqueles que estão próximos. Quanto mais fraca é a cons-
possível somente traindo ist , eis. ra, isso parece ciência do eu, tanto menos considerado é quem é afetado
irrefletidamente a "ob d~ A ~ e, cessando de entregar-se por elas e tanto menos está o indivíduo em condições de
secretos" U - e iencias coagidas" e a "complôs proteger-se do contágio.
· m caso nao raro de 1A
por exemplo o dos cA . co:iip o secreto no casal é,
Jung observ~u ue ºDJ.utges que t~m paralelismo onírico. O fato de haver sido não o consciente, mas o incons-
relações pais-filh mm as_vezes _ isso ocorre t am b,em nas ciente dos pais que exerceu a maior e decisiva influência
---- os, e entao sao os filh sobre os filhos era considerado por Jung "problema espan-
que sonham com os problemas dos . os, P.º,r exemplo,
conferência em 1923 Jung (1923 pais. Ahas em uma toso" (ibid). Será necessário, contudo, procurar a solução
' p. 53) sustentou que do problema, ou, segundo a expressão de Hõlderlin, "aqui-
os sonhos das crian as muitas vez lo que salva", justamente da parte do perigo. Outrossim,
pais o que as próprias c . es se referem mais aos
nanças. sabemos da mitologia que só aquele que feriu é que está
em condições de curar. Diremos então que..tornar-se ca-
O mesmo Jung conta o d
nove anos que sonhava cas~ e .um menino de az de construir a própria vida sobre o pressuposto da
do pai, ou os sonhos ' por .assim .dizer, os sonhos sagrada fidelida e as próprias inclinações individuais
termos, os sonhos q~~e o p~~ deveria ter, em outros [possibilidade fundada sobre a "confiança primária"
eróticos e relicnosos e~pe avam seus problemas _:_nquanto experiência originária de nutrição, espelha-
0~ • 0 pai, conta Jung -
d e recordar seus sonho J . . . ' nao era capaz mento e empatia que uma mãe sã consegue dar à criança.
o pai através dos sonho:· dou::i1 d.ec1dm então a~alisar Se a "violência contra os menores" se compõe de tantas
pai voltou a recordar-se de s o, ohresultado fo1 que o faces, incluída infelizmente a da agressão física, mais
eus son os ao passo frequente do que se pensa, em nosso caso, isto é, no caso
sonh os d o filho cessaram ( 'b 'd ) O f: ' que os
não resolvidos dos pais s~ ~ fl f ato de os problemas em que é a confiança primária que é traída, encontramo-
-nos diante de uma violência mais sútil, impalpável nas
e-p$íquica dos filhos d e e irem na saúde física
encontram em rel _se eve ~ q~e estes últimos se - modalidades e transbordante nos êxitos, uma violência
• açao aos primeir --- que se serve de meios psicológicos. Somente se não fomos
participation mystique ("p t' . os, em estado de
empregarmos . t . ar ic1pação mística"), para-- ~s, mas amados, nessa fase precocíssima e crucial de
o sm agma de Lévy B .. hl . - ---- ~sa existência, é gue podemos ter a confiança primá-
J"r;u;;-:n~g;:;:-,-=oc:-u:--e_m_e_s-,-t.:...:a:.:;d::..:o~de-fden t. d d - r1:1 . ~cei to QQ_r__
- I a e primitiva com o ria, a qual funcionará mais tarde como uma espécie de
62
63
plataforma, de fundamento ou depositário, em suma, de harmonia com o mundo. Constatamos, portanto, que é
referente estaveTmente mteriorizado para o trabalho não uma condição psicológica, mais que puramente intelec-
Tácil de fazermos de nós alguma coisa. ~ confiança con--::- tual, que garante a nossa experiência cognitiva, porque
qmstada graças à relação primária suficientemente boa é somente admitindo-se a existência de ordem na natu-
é a premissa da solidez interna e da percepção unitária;- ()Jreza e no mundo que a aventura humana do pensamento
não fragmentada, da identidade, em comparação com a- ~)~científico encontra.sentido. Erikson, psic~nalist~ alemão
qua as como i a es materiais a cuja som rapo emas \~ ~ de formação freudiana, afirmava que a sa relaçao com a
ter crescido tem relevância marginal. O trabalho psico- ~ mae leva a mtegração não só da confian a de base mas
lógico, do Extremo-Oriente a todo o Ocidente, funda-se ~~\\ am em a esconfian a de base", enqu~to capacidade_
na procura dessa plataforma, e, quando ela está ausente ~ \ e o erar a rustração, de tomar conhecimento da au- _
em sua reconstrução. E, isso que significa a expressão da' ~ t.'" sência da mãe sem ser destruído. Também a esperança, _
linguagem corrente "devo readquirir a confiança, devo ~1 que ele reconhece como "a primeira e a mais indispen-
voltar a acreditar". Por outro lado, é verdade também que ~ sável virtude inerente à condição vivente", pertence ao
~ domínio do materno e é uma modulação da confiança-
a traição cresce, e só pode crescer, no terreno fecundo da 1

confiança. Nessa ótica, ao menos em parte,_Kierkegaard -.'-desconfiança de base.1A presenç3:__~.~-~-ª~~~1?:~.i_a cl~~êª


tomou em consideração a traição de Judas a Jesus. Não
tem sentido, escreve ele, censurar Cristo por "escolher
para seu caixa um homem como Judas, que era inclinado
ao furto", e continua afirmando (Kierkegaard, 1834-55,
i disposição interna r.epres. e.nt.a, po. rtanto, a ve~d~~ei~a .
difere11ç_~-'ª-~Í:rê_Q;:;_§l~;r~s.h.µi:pfü1os. Quando a maeJa nao
êSti~~ presente fisicamente, protegendo a indagação de
vol. 5, p. 234) que seu filho,~~fil.~:Kêr.~~r~ ~. ~esm~.fu:i;iç~o. Mas
há exceção: essa plataforma sólida e compacta tem seu
~~io mais perigoso, mas !_a!Uhém o melhor para salvar calcanhar de aquiles, isto é, um aspecto que a expõe e
_!1-m homem como ele (Judas), é justamente demonstrar-lhe ~1 a torna vulnerável, a saber, ª-ª-i~~!!.ê.ª2 Q()_~_enV~-e.P.t()~.
confiança mcond1c10nal. Fora ela, em geral não-há oufrã__. I::;-\ N ~:9_.fosse-assim,.nãote:rúunos_nenhuma possib1hdade
poss1bihdade de salvá-lo: ----·-·-- --
~ de entrar em relação com os outros, porque é. somente.
~ 'através dessa abertura que compreendemos a emotivi-
-~ma, a dialética confiança-traição, tão central ~ . ;füide do outro dando vida a um sentimento novo. Essa
_em nosso mito cristão, é o próprio fundamento, um fun: ·~::(área fluida pode constituir o terreno no qual se aninhe
damento móvel, portanto, de toda aspiração humana à
salvação. ~ outras palavras, parece que não pode haver
J, ~ ã-traição; nela estamos indefesos como quando crianças,
~i\':füas é um risco que devemos correr, ainda que ele nos
~urso soteriológico, discurso de salvação, a não ser ·~ ~ause sofrimento.
:eermanecendo-se no perigoso trajeto que leva da confiança - Escrevia Rilke (1929, p. 61):
à traição e desta à reconquista da confiança.
Newmann~stentava que a possibilidade de a crian- Por que quereis excluir de vossa vida algu~a inq~ietaçã?,
a perceber o mundo como conjunto harmonioso depende algum sofrimento, alguma amargura, se amda nao sabe~s
o que tais estados estão operando em vós? Por que quereis
~o senso e acolhida, o sentimento de estar em perseguir-me com a pergunta de onde viria tudo isso e
64
, .a imagem Primeiro tentou abraçar
onde terminará, visto que sabeis o que estais passando enamorou de s~a propn . h diante de si; depois, reco-
e que nada desejastes tanto quanto transformar-vos7,S.e_ e beijar o ~elo Jovem que t:ie~eu horas fixando o espelho
algo dos vossos processos tem o aspecto de doença, refleti nheceu a s1 mesmo e perm ntado O amor lhe era, ao
, a da fonte como se enca . . d
o
que a doença é o meio pelo qúal organi.Smo'se libertã-a:ô··-.. d a agu d' d e negado· ele se consumia e
estranho; é necessário, então, somente ajudá-lo a adoecer; ·~ mesmo tempo, conce 1 ºozava de s~u tormento, sabendo
para que estoure, porque esse é o seu progresso. · ·· "-.. dor e, ao mesmo ~e~~~iJa a si próprio, acontecesse o que
que, ao menos, nao
acontecesse.
As pessoas que se mostram secas, rígidas, inaces- ',\
síveis a:o rela~fonamento rejeitam a dor ligacÍa a esse ~ Portanto, na narração de Robert Gr~ve~, Narciso
risco, mas, rejeitando-a, desperdiçam a riqueza da vida. . e não trairia a si próprio. Mas que sigm~ca, r:esse
O nosso amadurecimento coincide com o abandono das sabia qu . . , . . "? Significa a determmaçae> Çle
não "trair a si proprio · · · · · t
defesas; é nessa área de fluidez do sentimento que po- ~a::~eparar-se da própria imagem e, conseque1:1temen ~·
demos julgar da verdade de um homem. Estamos con- -· - fr tá-la com outras imagens ou, na hnguag~
nao con on t outras m-
tinuamente sujeitos ao desafio da aventura emocional; ··· Emmanuel Lév:inas, com outros ros o~, .cº~, , . .
antes, é através dela que continuamos jovens. Evitando ~ . l'd d~s com outras "presenças eticas (Levmas,
identificar-nos completamente com o papel, isto é, não tencionai a ' , . ('b'd 199)·
-1971, PP· 19lss). Escreve Levmas i i ' p. .
assumindo-o como couraça defensiva com a quai tornar-
-nos impermeáveis à existência, mantendo-nos descobertos O rosto está presente em sua recusa de se;;ºfo~~~~N~::
e disponíveis à experiência, que poderá ser ora: agradável, sentido, não poderia ser ence::~~:s:ão Jsiva o~ tátil,
ora frustrante. Percorrer o caminho próprio significa, em visto, nem tocado - porqdue, lteridade do objeto que se
a identidade do eu escon e a a
suma, necessariamente tomar distância do coletivo. Não torna contido.
é por acaso que emprego a expressão "tomar distância",
porque a el~J:>C>:r~ção da própria individualidade implica sto do outro põe em discussão o eu que é
S e o ro , . t que Lévinas define
lima-experiência d.e separação: ~ traição se torna, então, . lançado nele - e esse movimen o " 1 -
uma via de acesso à morte. É somente atravessando-a e " 1 - ética" e que redefiniríamos como re açao
como re açao ' bl ma de Nar-
vivendo até o fundo o que em psicologia é definido como psicológica" -, compreendemos que. o pro e
"trabalho de luto" que poderemos reemergir com a nossa ~ ciso é a impossibilidade de consegmr um:i pass.agem da
dimensão criativa inequivocamente humana. •,,_1 Identidade da qual não quer separar-se, a alteridade.' ao
A incapacidade de assumir o risco do fracasso e a dor J: éonfronto ~. por essa via, ao risco de in~ucesso, ao risco
unida a ele nos oferecem uma chave de leitura do mito de .\~ do que Christian David chama "rompimento da casca
Narciso no ótica da traição. Conta-se de Narciso (Graves, ~ D,_l!rcísica". De fato, esse autor (David, 1971, p. 36) sus-
1955,p.260)que tenta que
aproximou-se certo dia de uma fonte clara como prata e t .olência ao sujeito, entendido este
não contaminada pelo gado, pelos pássaros, pelas feras O amor~E):rl\P~ecome evi · :líb . dinâmico e econômico: o
êõmouma unidade em equ1 i no , .
nem pelos ramos caídos das árvores próximas. Narciso, amor propõe o rompimento da casca narc1s1ca.
sentando-se, exausto, na margem daquela fonte, logo se
66
Ora, o que se oculta dentro dessa casca? O rosto es-
. sa em de Narciso, se ele não trai a si ou próp~io ~ão
.Pª: e:a sua imagem ao confronto e à perspe~tiva de m-
condido de Narciso ou, como descreveu Julia Kristeva, a
depressão (Kristeva, 1987, p. 13).
;n .r 'dade.? Diz uma célebre máxima alquím1ca:
er10ri
1 ·
A permanência constante sobre a borda arriscada do
fracasso, a natureza inquieta da permanência, própria ln habentibus symbolum facilior est transitus.
de quem ama, está bem expressa em uma das "regras
do amor", retomadas depois por Stendhal, que figuram Evidentemente Narciso não pertence ~queles que,
em um dos textos seminais da tradição ocidental, o De como diz a máxima alquímica, J>0~~11eip. o s1mbolo e, em
Amore de Andrea Cappellano, texto do qual se nutriram, virtude dessa posse, estão em condições de tor~a_: ~ pas-
por exemplo, os primeiros poetas italianos, entre os quais em mais fácil. Portanto o "bom uso da trai~ao tem
Giacomo da Lentini, Guido Cavalcanti e Cino da Pistoia. :~go
que ver, em primeira instância, com~ ca~ac~dade ~e
No De Amare Andrea Cappellano compila um verdadeiro -tr!ir a si próprio, e essa capacidade se hga a d1~ensao
e próprio "código do amor", com trinta regras. A vigésima . bólica Querendo fechar o círculo de nosso discurso,
regra diz (Cappellano, 1980, p. 282) que ~1fi~maría~os que no fundo da "posse do símbolo" da qual
Amorosus semper est timorosus. a
'".t';:o't'.- .' .
ós alqmmistas
- . • · - expressao - es sa que se. deve
, .
uuavam , fi primaria
éritender cum grano salis -, esta a con , ança . -'
Portanto quem ama está sempre temeroso (Stendhal,
a·-· al falamos no início do capítulo. E essa cond1çao
1822, p. 272) porque admite que o fracasso pode penetrar q:eci:os permite relacionar-nos de modo diferente co:n a
em sua experiência. Admite, em suma, para retomarmos traição. Se é verdade que "a trai?ão da confiança.no ª1:1-
-bíto da relação primária determma ( ... )uma ferid~ ~ao .
a frase citada no início deste capítulo, que os corações
entram nisso para que sejam despedaçados. Lichtenberg cicatrizável,, (Carotenut o, 1989 ' p · 94) ' segue-se (ibzd.,..

p.95)que <' •

sustentou que a cura psicológica implica a passagem ine-


vi~ável pelo insucesso. Nessa ótica, mudança e insucesso a uilo ue é danificado pela precocidade da traição~ p?n-
estão ligados profundamente. Como afirma esse autor .q q
c1palmente a poss1'b'l'dade
11 de se estruturarem os tlimites
dºd
(Lichtenberg, 1983, p. 224), do eu, isto é, a capacidade de referir-se a um tu, en en 1 o
como outro.
O impulso à mudança provém dos insucessos maciços ou
parciais que precedem os sucessos.
Estamos, então, em condições de compreender melho~
o drama de Narciso como o drama de qu~m, ~or ~av.e
As coisas são diferentes no tocante à situação de sido traído muito cedo, não aprendeu a trair a s1. propr10.
Narciso. O "correlativo objetivo" de sua impossível pas- Nos termos do pensamento de Lévinas poder-se-ia tentar
sagem é veiculado pela paisagem na qual ele se espelha, üma formulação diversa, embora equivalente, do drama
paisagem não contaminada por presenças animais ou de Narciso. Poder-se-ia dizer, por exemplo, que, na p~rs~
vegetais, paisagem na qual aparece uma fonte prateada, pect iva
. que el e ace1'ta, a "subietividade"
" não se constitm
t -
transparente e sem sombras. Ora, como devetfa ser a como "vulnerabilidade" e, portanto, simplesmen e nao
. . .. ·-·--··--···---?"'-··
68
. . d utro do outro que origina o desej~, a
se constitui. Reinterpretando a famosa fórmula "eu é reconhecimento . o eº ' fi ou o médico e psicanalista
outro" - tirada da Carta do vidente do poeta simbolista um desamor de si? orno a rm .
francês Arthur Rimbaud, fórmula, de certa forma, pre- entino Luís Chiozza (1986, p. 195).
arg d traição
cursora da psicanálise - Lévinas (1972, pp. 125-26) se . A forma patológic~ do, n~cisismo escon e uma
perguntava: ítltima do- amor a s1 propno.
É certo que a fórmula de Rimbaud, "eu é outro", significa . ,. az de trair sua imagem uma vez qu_e
somente alteração, alienação, traição de si mesmo, estra- Narciso ~_ incªp - _ sa
· b e suportar a expen-
~----·- · d l u nao
neidade a si mesmo e submissão a esse estranho? não sa.l?_e__~~par_a]'.'~Se .. e a o
êncià d~ _separação. · A .• da separação amorosa
A fórmula rimbaudiana, responde Lévinas, seria --- -.J, falamos da expenencia .
a . ais dramático que se possa viver.
entendida como discurso sobre a subjetividade e, melhor, como do acontecim~nto m iro elir-nos a cometer as ações
sobre sua condição constitutiva, condição que se traduz O trágico da emoçao_P?d~· gn~s mas como dizia Jung, as
como abertura, como "incapacidade de fechar-se por ·mais extr_e~as_e mais m iermitem s~breviver, e, melhor,
dentro". A abertura remete, contudo, a um universo de ações mais mdignas nos p nsciência evolui. A trai-
significados possíveis. 4:JP:tencionalidade da consciência, é-justamente nessa luta que a co ma morte:
~JP.Q_a_entendia, por exemplo, Brentano (1874, pp. 175-
ºd t ído a confrontarem-seco . ,
ção leva trai ore ra ºdade de interferir para
89) em seu escrito Psicologia do pontp_ de vista empíri<;.Jb _ t · preendeu a necessi
quem rai com . _ t , da dilaceração dolorosa,
o fato, em suma-:<le-que todos os fenôménos psíquicos modificar uma_ situaçda'o ~~::;:rmação nem procura de .
se referem a outro constitui, segundo Lévinas, um dos sem a qual nao se a
modos da abertura. Outro modo é o da vulnerabilidade, destino individual.
o "desnudamento da pele, exposta à ferida e ao ultraje",
(ibid., p. 127). O eu, analogamente, é vulnerak>_iHdª-c;l_~'.,,p}
mensões do ser; cõmo sinceridade ou franqueza, remet"'P1
. ao universo da descoberta de si totalmente indefes() e de
ser entregue ao arbítrio do outro. Lévinas, pode, então~
sustentar (ibid., p. 129) que · - .
a franqueza expõe - até à ferida.

Trata-se de um risco que Narciso não está disposto


a correr, e isso ao preço de não constituir-se como sujeito
de sua própria vida. Com efeito, não representa a ima-
gem a promessa daquela relação com o outro que Narciso
nega, quando, por assim dizer, não reconhece o outro da
imagem e o outro na imagem? E não equivale esse não
/ ......
70
5 · speita e julgados potencialmente perigosos. Em termos
;:nguianos, _o_ chamado "c?le!ivo" é escolhi~o como ~~s~
"INIMICI HOMINIS DOMESTICI EIUS" f atário· de todas as "proJeçoes da sombra da fam1ha,
d:alquer eventual confl.~to "int,erno" é ~es.conhecido .como
fáí e projetado no exterior, alem dos .hm1tes da um~ade
f: miliar. As situações afetivas exter10res a esse nucleo
t:ndem a ser julgadas como a ameaça mai~ r~dical ~ sua
Mas Jesus lhes disse: "Um profeta só é desprezado em sua
pátria, em sua parentela e em sua casa".
integridade. Isso não surpreende, por~ue a d1mensao do
(Marcos 6,4) entimento e à sua vitalidade estão hgados os even~os
~ais significativos e todas as experiências de au~~nt~ca
transformação de nossa existência, eventos e experiencias
que inevitavelmente causam ~onfl.it~ ~e poder e tend~m
a subtrair-nos da autoridade mcond1c10nada da.famíh~,
·a qual pretenderia absorver todo o nosso potencial afeti-
.vo. A possibilidade de sobrevivência de todo s~r humano
Voltemos a atenção sobre o que se configura comoº-"··
contexto primário no qual temos oportunidade de experi-. está confiada a essa abertura à dimensão emotiva, a qual
mentar a traição: a família) É no interior da família que se pode ser fonte de sofrimento, ~as.tam~ém,de autêntica
firma o primeiro pacto de amor de nossa existência, pacto criatividade dimensão emotiva identificavel com um
verdadeiro e'próprio núcleo móvel, contraposto ao núcleo
que ameaça e, ao mesmo tempo, possibilita nosso nasci-
mento psicológico individual. Os estudos antropológicos sólido que comumente definimos como "se~rança", mas
nos permitem excluir qualquer fundamento natural que que bloqueia as nossas possibilidade~ de vi.da. O tr~ba­
justifique a estrutura da família como nós a conhecemos; lho do psicólogo e mais ainda do ps1canahsta. cons1s~e
os modelos etnológicos são muito variáveis e muitas vezes propriamente em possibilitar ao paciente essa h~ertaçao.
contraditórios. Ocupar-nos-emos, portanto, da instituição da matriz familiar e essa abertura para o exterior, mo,
familiar como ela se apresenta na sociedade ocidental, vimentos esses que parecem ser consequência direta da
procurando mostrar as dinâmicas psicológicas sobre as abertura do paciente para si mesmo.
quais ela se funda. A vocação "totalitária" da família e. sua pretensão
Como núcleo originário de pertença do indivíduo, a de proibir aos seus membros ou "súditos" ~xcursões sen-
família se constitui imediatamente como lugar separado timentais fora de seus limites são contraditadas por um
do ambiente externo e assume função de proteção com ·fenômeno cultural preciso: a proibição do incesto, proibi-
relação a outras possíveis relações. Esse senso de perten- ·~ _ção que torna não só legítimas, mas també~ ~e~essárias
ça, em torno do qual se solidifica a comunidade familiar, \;: às relações "exogâmicas", ii:;to ~, !1~ ~e,lações chrigiqasp~~a
implica, portanto, "separação" e "exclusão". Os outros ';_ o mundo externo. Apesar do tabu do incesto, a fam1ha
são sentidos como estranhos, diferentes, e são vistos com \' continuou e continua a ver com suspeita essas "evasões",
':\-' a considerá-las como atentados à sua integridade. Isso
72
/
~-
sucede talvez por ser o incesto considerado tabu em sua
ulo familiar é tão radicado e profundo que criar novas
concretização, mas muito menos dominado em nível psí-
quico. Quero dizer que também nas famílias chamadas ~elações fora não garante por si a libertação dos ~elhos
lugares-comuns m · t erat1'vos
. . Mu1'tíssimas
__ __ _ ............vezes
__ recnamos
__ ·: . .
civilizadas, nas quais não há abuso sexual concreto contra
fora exatamente as mesmas situações que nos permitem
os filhos, podem ser cometidos sutilíssimos abusos psí_gui-
repetir, em nível psíquico, o papel que.representávamos
cos, ~o~ um elemento incestuoso fortíssimo, a po!i.to de·
dentro do círculo familiar. Nesse sentido, a esco~ha das
cond1c10nar profundamente a vida sentimental e sexual ·
i amizades, dos parceiros e até dos analistas é mm~~ con-
dos vários componentes familiares. Por sorte, geralmen-
; ·dicionada inconscientemente pelos modelos fam1hares;
te o fascínio incestuoso não impede que se criem fora
i assim as relações psicologicamente incestuosas podem
da família novos laços emotivos e sentimentais; assim,
. durar'toda a vida, e a incapacidade de "trair" esses sub~-
qu~do um adolescente encontra seu primeiro amor, os
l titutos do pai ou da mãe é sinal da impossibilidade de sair
pais com_preendem, mais ou menos generosamente, que 0
filho ou a filha estejam desapegando-se da matriz afetiva l ·do sorvedouro familiar. Pensemos em uma filha que te~a
mantido com o pai uma relação sentimentalmente mmto
original para criarem novos laços fora dela. Diríamos
envolvente, e num pai que, por causa de sua fraqueza
com outros termos, que a essa altura os pais se-se~t~~
pessoal, não tenha sido capaz de ex~rc~r o papel paterno
obrigados a fingir que não veem. Se o desapego não puder
e tenha imposto à filha um ônus afetivo madequado, como
efetuar-se, sucede um bloqueio da evolução psicológica
se ela fosse sua pequena amante. Uma figura paterna
do indivíduo. Na verdade, embora raros, ainda existem _
desse tipo, embora não seduza concretamente a filha~ a
cas~s_de jovens que não conseguem c9nstruir ligação
seduz psicologicamente, apresentando-se de modo mmto
afehva fora do círculo familiar. Por razões que chamarí-
ambíguo e dificilmente decifrável, isto é, como um homem
a~os ~en~ricam~n~e de "neuróticas", o indivíduo impõ~ __
íntimíssimo e, ao mesmo tempo, inalcançável. Tornando-
a s1 propno uma dieta emotiva" intolerável e perniciosa·
-se mulher essa filha pode ficar psicologicamente presa ao
atrás da incapacidade de aceitar a emoção devemos le;-
a incapacidade de separar-se da família de origem. Se papel atribuído a ela pelo pai e ser ob:igada a p:r~etuá­
esse vínculo original não for rompido, as relações com o lo com parceiros também inalcançáve1s: a relaçao mces-
tuosa continua com toda a sua ambiguidade e fundada
mundo exterior se tornam temidas de modo persecutório.
sempre sobre uma dependência basilar. Trata-se de
Os "outros" são vistos mais como estranhos do que como
relações nas quais a "traição" constitui não ~ó uma das
seres humanos com os quais relacionar-se; a família pas-
possíveis consequências, mas também a premissa se~ra.
sa a ser uma escola das ocasiões perdidas, nas quais são
educados virtuoses do não encontro. Os indivíduos tentam desesperadamente reconstrmr no
parceiro o referente parental faltante, mas ~uitas vezes
Como vimos, a família tende "naturalmente" a opor-
são levados inconscientemente a escolher Justamente
-se de forma tenaz a qualquer experiência de cresci-
o parceiro menos apto para semelhante renovação. A
mento e de diferenciação, como pode ser a elaboração de
psicanálise chama esse mecanismo psicológico ~e~er~o
uma visão da realidade na qual a presença do "outro" se
de "coação para repetir" e, embora nenhuma ex1stencia
torne positiva, necessária e vital. Por outro lado, o vín-
"normal" esteja fora de seu alcance, deve-se reconhecer
74
rn:::
que em certos casos ele assume uma forma patológica à
qual se liga imenso sofrimento. ânimo nada de permanente: pode-se experimentar
nosso "t - d b
..___à solidão plena, cheia de paz, de acei açao e e enev -
o
ffucia silenciosa para consigo e para com os outros; ~:U:ª
Com os parceiros revive-se a traição dos pais. A ex-
periência ligada a essa traição é de vazio, um abismo no
solidão monótona, fria, pouco agradável, ou uma ~ohdao
qual a pessoa cai logo que o outro retira o apoio no qual a
melancólica, suave e que espera. O ii:n~ortante e saber
sua dependência se agarrava. O vazio, a falta imprevista
que se pode atravessar também a s~lidao: q~ando _fal~a
de um referente que a pessoa estava habituada a conside-
essa confiança, a traição fica à espre~ta, e trair a propria
rar adquirido e a crise de identidade desencadeada pe-la
solidão p9d~êeI"._~xt:r;~i:n8:rne_nt~ perigoso. Corno escreve
ausência do outro mostra o quanto ela confiava a ele a
Rilke (1929, p. 5):
confirmação de sua presença no mundo. Como escreve
Roland Barthes em Fragmentos de um discurso amoroso Perigosas e más são somente aquelas tristezas que são
antes de receber o telefonema tão esperado, sentimo-nos' levadas para 0 meio das pessoas, a fim de serem superadas
pelo ruído.
como um nada e dependemos dele para tornarmos a nos
perceber como existentes, plenos (Barthes, 1977, p. 41):
Procura-se um outro, um ponto fora, a fim de su-
A espera é um encantamento: recebi a ordem de não mover- focar a tristeza e iludir a solidão: prevalecem o med~ e
-me. Assim a espera de um telefonema vai entrelaçando- a ansiedade, em cujo buraco negro desaparece tambem
se com uma rede de pequenas proibições ao infinito até
a' vergonha ... a angústia da espera exige
' que eu fique
' a dignidade do outro, daquele q~e ~ham~mos,para que
sentado na poltrona, com o telefone ao alcance da mão e -nos ajude a evitarmos a nós propr10s. Nao h~ nada de
sem fazer nada. patológico em procurar encorajamento na amizade~ no
amor dos outros; antes, eu diria que se t~ata de mamfes-
O sentimento de plenitude está, portanto, ligado à tação de plena saúde. Mas é de outra c01sa que estamos
presença, e toda ameaça de privá-lo da presença é ameaça falando, isto é, da incapacidade total de _se f~ndar a
de vazio, de morte psíquica e emotiva. existência própria em torno de u:r_n- c_entro_mtenor e da
O encontro emotivo é tão prodigioso porque através compulsão para se preencher o propr10 vaz10 com pontos
dele sentimos que existimos. Com efeito, o grau de au- de referência externos, sejam eles Oê ou_tro~, ?trabalh~, -
to~~mi~-~-i11dependência de um indivíduo se mede-pela - as drogas ou qualquer outra forma de addictwn:.· A trai-
sua capacidade de experimentar a ausência·' não estàii:iõs- ção que esse modo de vida sustenta se caracteriza como
-
falando de uma pessoa isolada (também o isolamento põe dúplice; em primeiro lugar, é traído o choro dentr_o de
em cena uma cobertura do vazio), mas do indivíduo qw;i _ nós, 0 choro que se esforça penosamente para c?mumca_:-
consegue apreciar tanto a companhia dos outros e o calor nos alguma coisa, exatamente como uma criança nao
do outro como a solidão, porque reconhece nela um aspecto-- ouvida· em segundo lugar, são traídos os outros, aqueles
inexorável de sua experiência humana. De fato, também ' nos dirigimos para fazer-nos " ench er-~os "m
aos quais _u ,
a solidão se t_orna assim uma experiência ema-tiva, e suas pouco; nesse caso, 0 que é interessante para nos nao e
esfumaturas podem variar muito, já que não acolhe em tanto 0 outro com sua humanidade, mas o fato de que
ele possa ag~adar-nos com sua presença. Não tendo
76
77
ouvidos ~ara ouvir a nossa tristeza, não sentimos ne- Jesus levou esse ensinamento às suas extremas con-
nhuma piedade, vendo a tristeza do outro; interessa-nos sequências; de fato, segundo o que refere o evangelista
somente desfrutar dele e fazer-nos desfrutar por ele Lucas, ele teria afirmado (Lucas 14,26):
fim de superarmos a tristeza com 0 ruído Na base d ' a
se " , " , · es-
e~mvoco . ~sta a experiência ambígua e inefável de Se alguém vem a mim e não odeia seu próprio pai e mãe,
~elaço~s. famil~ares nas quais a emotividade é entre e mulher, filhos, irmãos, irmãs e até a própria vida, não
:a.:~~1v1dade I~coi:isciente de todos os componentes~a pode ser meu discípulo.
a, em pr~me1ro lugar dos pais, incapazes de dar
u~ exemplo vivo de maneira sã de acolher e amar a Tentemos, então, em consideração do que precede,
criança. voltar ao assunto de Rank e perguntar-nos como os pais
- A coesão.da família é garantida pela sua interioriza- traem os filhos. Um desses modos reativos é o <l.e iisa~los
fu"º como COI1Junto de relações que pesarão como terrível como bodes expiatórios dos conflitos conjugais. De fato, é
poteca sobre cada novo encontro. O evangelho de M t só prestancio.-se a proteger o núcleo familiar que a criança
(10,36) diz: lnimici hominis domestici eius ("O .. a_eus consegue conquistar espaço na relação, melhor, na não
do ho - s m1m1gos
mem serao seus próprios familiares"). Citando a :r:~~ação dos pais. Cabe a ela restabelecer equilíbrio que
passagem do evangelho de Marcos (6,4) que diz: está progressivamente acabando, compete a ela conferir
J~su_s lhes dizia: "Um profeta só é desprezado em sua significado e atribuir necessidade a uma coexistência que,
patna, em sua parentela e em sua casa" . de outra forma, seria insensata e impraticável. A criança,
' movendo-se dentro de dinâmicas psicológicas muito sutis
, ?tto Rank, em seu escrito O mito do nascimento do e viscosas, catalisa os conflitos e torna-se, de certa forma,
heroi, observou o seguinte (Rank' 1909, p. 76): o "teatro de ação'', o palco no qual se recita a agressivida-.
de ou a indiferença dos pais. A antiga promessa de amor
O antigo d~ta~o "nemo propheta in patria" não tem, .ortan- eterno não suportou a prova do tempo pela elementar
to, outro ~1~1ficado senão este: o profeta só é des:Z.ezado razão de que, com o tempo, os indivíduos mudam, e os
e~ sua pa~na, em sua parentela e em sua casa ... Parece
~te que existe uma antiga lei estabelecendo que o profeta dois que hoje se enfrentam se parecem bem pouco com os
eve rene?"ar seus pais. Na célebre ópera de Me erbeer dois que outrora estipularam o compromisso. Assim, em
(Le [;o~hete_), na base da trama está o fato de que~ herói- uma relação que já se tornou anacrônica, o filho é preso
pro e a eveabandonarerenegaratésuamãe ternam t no jogo mortal da limitação sádica da liberdade do outro.
amada. ' en e
Ninguém pode subtrair-se a essa instrumentalização,
porque ela se funda em uma chantagem sentimental e
As. palavras de Rank têm ampla confirmação tanto se mantém mediante a sabotagem constante de qual-
no Antigo com? no Novo Testamento. O Gênesis (2 24) quer iniciativa dirigida para fora. Trata-se, todavia, de
por exemplo, diz que ' •
uma experiência necessária, porque, como nos ensinam
o htomem deixa s~u pai e sua mãe, se une à sua mulher e os mitos, a conquista da individualidade tem sempre o
se ornam uma so carne. ' aspecto <:].e resgate.
78 :j
eW.otiva, da qual fala1llos atrás, cujayresença t~r~aria
Depois de se terem negado reciprocamente um f1 _
,.-r mília permeável a novas relaçoes. A fragilidade
turo, os pais se dedicam a destruir o do filho. Ai. voltau
me~áfora do "filho-profeta" ou da existência naturalment: âã:
d
uniões parece uma consequência inevitável do f~to
desejo ser sujeito ao desgaste do tempo, corr01do
proJe~ad.a para a frente. Fique bem claro que o futuro s 0
c~n.__:;titm como disposição interna, e só depois como con~ eefinalmente disperso de modo irreve_rsí;el. por uma
tropia inexorável; traímos a nossa ex1stencrn quando
d1çao externa, e é nesse sentido que se deve interpretar 0 ens obstinamos em negar que o objeto já não corresponde
no , - · ·fi
~~gar-comum segun_do o qual os anciãos não têm futuro,
Jª que e~sa afi~açao, tomada ao pé da letra, seria uma
a nossa necessidade. Abandonar-se a em?çao SI~~ c~,
portanto, aceitar ser jogado f~ra c~m~ c01sa que Jª nao
~~utologia. O ;,mculo c.onj.ugal se funda na sensação de
é utilizável, significa descobnr a md1ferença ~o ~lh~r
mcompletud~ que se msmua nos dois cônjuges: é como
do outro. A negação desse aspecto trágico ~a ex1ste~c~a
seca~~ q~al tivesse entregue ao outro uma parte de si. É
é sustentada por toda uma série de expe~ient~s socrn:s
que, através da legalização, impede a h~'Te ~ircu:açao
expenencia comum que essa privação é descrita muitas
do desejo; 0 mesmo e~eito tem a margmahz_açao. de
vezes como uma verdadeira e própria mutilação ou ampu-
t~ção; "tomaste o meu coração" é uma metáfora que con-
soluções alternativas. E sabido, cont1:1-d_o, que nao existe
tem P.rofunda verdade psicológica. Em geral, todo casal, detonador mais poderoso da constnçao. Esse aspecto
especialmente o que se funda em motivos intrínsecos 0
tão trágico e doloroso da existência se :sta?elece em
que se rege pelo amor, e não por vínculos oujurament~s nosso destino desde o nascimento. No primeiro tempo,
vive. conti~ua~ente essa "falta", motivo pelo qual, n~ trata-se de conquistar o afeto dos pais, diríamos que "por
sentido mais literal, ambos têm necessidade um do outro legítima defesa", para não ser (a criança) destruída por
para poderem continuar a existir. eles dada a força dominadora que eles têm aos olhos
?eralmente são os filhos que pagam a perda do dos ftlhos. Estes, quando adultos, se encontrarão diante
~:seJo no casal, e o sentimento de culpa, do qual todos -
de desafio análogo. É necessário, porém, guarda~-~e de
Jª sofremos, remete ao pedido não natural de nos confundir os aspectos formais com os substanciais. O
tornarmos fiadores de uma ficção. Libertar-se desse aspecto formal implica a convivência de duas pessoas
pape~ n~o ~ fácil, porque somos presos silenciosamente
para as quais a corrente emotiva pode estar presente ou
por dmam1cas e.tensões inconscientes nos próprios pais. ausente ou ser medida de modo diferente entre elas. Mas
Uma contraposição explícita seguramente é preferível uma sit~ação como essa não intere~sa ao nosso dis:urso.
e menos patológica, mas uma escolha entendida assim Ele tem sentido somente se inserirmos na relaçao um
é exceção, e não a regra. Unindo-se contra o inimigo contexto emotivo que torne um e outro reciprocamente
externo, a família conserva inteira a sua máscara e necessários. É nesse contexto que se oculta a dimensão
enfraquece a inimizade que alimenta incansavelmente mais dolorosa da existência e que se esconde a v_erdadeira
:m s~u interior. Trata-se dE:! um paradoxo,_ mas 0 ódio origem da paixão, que sofre, urra e p~ej_udic~. E ve~dade,
e mais forte nas famílias mais compactas e como se porém, que é somente nessa co~d1çao, ta? arriscada
costuma dizer, as boas famílias são piore~ do que as porque alimentada por necessidade reciproca, que
outras. O rancor substitui a vulnerabilidade da dimensão
/ A1
80
. conflito de natureza intelectual; as dificuldades en-
sentimos que estamos vivos. Escreve Bloch, relembrando
versos celebrados de Hõlderlin (Bloch, 1975, p. 268): -~:tradas no mundo do trabalho, por exemplo, ~o~portam
-· ín esforço, uma fadiga na consecução do objetivo,. mas
Onde há risco cresce aquele que salva, essa é a esperança ~rovocam dor principalmente quando está envolvida a
melhor, mas onde há alguém que salva cresce também o ~mensão emotiva. Se um analista'. por exem~~o, se man-
risco ...
. tém vulnerável ao sentimento, evitando enriJecer-~e no
-a·a.ratO teórico de sua formação e protege°:do-se a~s1m de.
Esse tipo de amor pode ser definido como necessi-
~oques poderá fazer ressoar dentro de s1 os ped1do\de
dade espasmódica do outro, o qual poderá dar somente
se o dar for funcional para sua necessidade. Se faltar
~ompre~nsão dos pacientes. Se ele não ~v~r ~orno Aqm es
ou Siegfried, só encontrará respostas mute1s e forçadas
esse desejo, desencadeia-se, inevitável e cruel, a tra- como são sempre as que são procuradas e encontradas
gédia. Agora, porém, essa necessidade e a consequente
transfusão de energia de um para o outro funcionam so- fora de nós.
mente se for conservado um núcleo delicado, vulnerável
e receptivo do dar do outro e capaz de oferecer. Disso
decorre uma consequência: a nossa vitalidade está ligada
à nossa capacidade de aceitar a perda e a conquista, a
ausência e a presença. Em minha vida, encontrei-me
com pessoas que experimentaram o medo dessa dolorosa
dinâmica da existência, dessa polaridade que distingue
as pessoas que combatem daquelas que preferem (ou
são obrigadas a) sucumbir. Aquele que renuncia fecha-
-se lentamente, ainda que não o perceba, não só ao amor
e ao intercâmbio das emoções, mas também à própria
vida, com consequências desastrosas para todos os que
estão à sua volta.
Na prática da psicoterapia, a forma II1ais difundida
de sofrimento é justamente a que se liga à d1mensão do
sentimento atuada nas relações interpessoais. O devir da
e
personalidade toma forma na relação, e se é aquí;··se .ilª
relação que encontramos a dor, o nosso trabalho de psjçó:...
logos só poderá concentrar-se na relação e desenvolver.,.se
dentro dela. Está nisso o sentido profundo das dinâmi<::af:!.
do transfert e do contratransfert: a relação cura a relação. . 1

Se a relação é o lugar de nossa ferida, deverá ser também · 1

1····
o lugar de nossa cura. O sofrimento não nasce nunca.de___ 1,\'
/
ºº
82
6 "Trair" de maneira construtiva a norma familiar
não significa naturalmente mera oposicão aos valores
CÍRCULO FAMILIAR da educação e da moral, assaltar um banco, drogar-se
E CÍRCULO HERMÉTICO ou cometer ações de delinquente; muitas veze_s ~ss~s
síndromes violentas são expressões de grave d1sturb10
na relação com a família, distúrbio em razão do qual o
filho não conseguindo libertar-se do caos e do desamor
· · · aquf ~hegam somente os hóspedes justos. Este é o Círculo do a~biente natal, procura atrair a atenção e cuida-
Hermetico ...
dos solícitos mediante ações de impacto. Nesses casos,
(Hermann Hesse) traído não é o pai, mas a possibilidade de desenvolver
a existência própria de modo satisfatório e criativo. Se
quisermos falar de traição "positiva", re,f~rir-nos-e~~s, ~o
contrário, à coragem de su~met_er a critica e conscien~ia
não só os v-alores nos quais fomos educados, mas tambem'
No âmbito da família, muitas vezes se consolidam a coerência com a qual os pais no-los transmitiram e a
dinâmicas relacionais aparentemente incompreensíveis
correspondência a eles que encontramos em nós. Traição
as quais, todavia, se revelam plenamente consequente~
"positiva" da família significa esforço para fundarmos
sob um perfil psicológico. O indivíduo é preso inconscien-
nossa conduta de vida no que consideramos certo e opor-
temente em um jogo cujas finalidades autênticas ignora
tuno correndo o risco de essa visão não corresponder à
dos ~ais. Se tais são os termos da alternativa, ~xplica-se a
e reage segundo modalidades defensivas muito difusas'
a_s quais o levam a procurar pretextos externos para jus~
forte oposição da família a que cada um expenment~ sua
tificar seu e~volvimento. Contra seu interesse, ele projeta própria solidão no mundo, construindo dentro de s1 um
em acontecimentos totalmente extrínsecos as razões de
lugar separado e secreto, no qual possa mover-se de modo
um incômodo que tem outras origens e cujo desmasca- cada vez diferente, a fim de encontrar-se com os outros.
ramento o obrigaria a interrogar-se sobre as referências
Estar só e redescobrir-se em uma dimensão totalmente
afetivas que sempre teve como certas. Como de costume
. particular, individual, sem referências externas, impli-
o mecamsmo vencedor é aquele pelo qual o filho tenta de'
ca necessariamente uma atitude crítica que submete a
todos os modos salvar a imagem dos pais. A sua condição
análise tudo o que está em torno de nós. A proibição de
parece desesperada, é a condição daquele que tem seus
ocupar-nos de nós próprios nasce de uma questão crucial:
confidentes no campo inimigo. Traindo a norma familiar
qualquer indagação sobre o mundo implica antes de tudo
ele poderia salvar a si próprio, ao passo que, salvand~ ~
uma indagação sobre o que está mais perto de nós, sobre
norma a todo custo, renuncia a dar sentido à sua exitência·
o que está sempre perto de nós. Não só isso, mas também
nos dois casos, não poderá livrar-se de um sentimento d~
qualquer resposta que dermos torna-se o que chamamos
culpa vivido em uma escura inconsciência e, no primeiro
caso, em dolorosa solidão. - experiência só quando produz uma ressonância, um eco
profundo em nossa vivência. 1

84
11
A vida do neurótico, dado seu sentimento social ~~focado,
Aluz do que acabamos de dizer, não foi por acaso que _ se exerce antes de tudo no quadro de sua fa~1ha. Se o
Adler identificou no "problema da distância" uma chave doente se encontra no grande círculo da soc1e~ad~, ele
de leitura do comportamento do "neurótico" (Adler, 1920, · mostra sempre um movimento retrógrado na direçao do
pp. 119ss). O "neurótico", na perspectiva da "psicologia círculo da família.
individual", está constantemente propenso a interpor ·
uma distância entre si e sua problemática, entre si e a · A criação de distância é reforçada de vários modos,
decisão a tomar, entre si e o ato a fazer. Essa distância é porque é tranquilizadora. Por outro la~o, entrarmos em
formada por sintomas: o sofrimento do corpo e a renúncia relação com nós próprios parece ser v1~to !?elos. outr~s
à vida emotiva. O ritual de uma pessoa obssessiva, por mo algo muito perigoso. Como se a vida mtenor nao
exemplo, pode ser lido, na ótica sugerida por Adler, ~~sse permitida. Com efeito, ao re~irar-nos do_ mundo,
como a interposição de uma distância entre a pessoa e reduzimos a intensidade e redefimmos a _qu~1dade da
sua afetividade. Existe a fenomenologia da distância e intervenção dos outros em nós. O nosso mcomo~o e ~
existe a fenomenologia das traições consumadas ne~~~-". nosso bem-estar adquirem novo centro de gra;1dad_e,
distância. Vimos no capítulo precedente que a família cria · isso significa que já não representamos uma ram1ficaçao
distância entre si e o mundo externo e também distân.C!a · da psique de quem está ao nosso lad?, mas podemos, por
entre seus membros. Existe, ademais, "distância de exemplo, aceitar ou rejeitar um p:d1do, reconhecer su~s
segurança" entre os corpos, digamos também uma modalidades e restituir seu sentido profundo. ~tr~ves
"distância social", sustentada pelas convenções sociais dessa restituição pode suceder que vejamos nosso mcomo-
e observável em vários comportamentos cotidianos. do redimensionado, justamente porque o expurgamos de
Adler fala dos diversos graus de intensidade pelos conflitos e projeções que na realidade não nos pertencem.
quais o doente exprime sua "separação do mundo··;;·· A visão mais realista de nossa dependência dos out~os
da realidade" (ibid., p. 123). Essa distância é. iridicfiªa· redimensiona automaticamente seu poder e nos J?er~ite
por ele nas quatro categorias seguintes: 1) movimento subtrair-nos a muitas chantagens e instrumentahza~oes.
regressivo (o qual, em sua vasta gama, compreende- A assimetria e a dominação nas relações interpes~oais se
º suicídio e a agorafobia, a ansiedade e a anor·e~fiC fundam nas necessidades; é óbvio que quanto mais e~tas
mental, a amnésia e a toxicomania etc.); 2) parada (a se reduzem, tanto mais se reduz o poder do outro .. E da. ·
qual compreende as "adaptações protetoras", como ã-::-=· vida interior, portanto, que podem :nascer 3:.s s~m:iente~ ~a.
insôniâ ·e á iínpotênda etc., que "impedem o sujeito de _. revolta. Falamos de uma verdadeira e propria rebehao.,
ir muito longe"); 3) dúvidas obsessivas e "vaivéns na porque temos bem presente a dram_ati~idad~ _d~ ~o~a .
ideia ou na ação" (e aqui Adler inclui, entre outros,·â.. tentativa de diferenciação com relaçao .a fam1ha, c~.1.Il:{)
enfatização das dificuldades, o pedantismo mórbido, o. escreve Freud em O romance familiar dos neuróticos
retorno ao caminho percorrido, o atraso em chegar etc,); (Freud, 1908, p. 4 71):
4) construção de obstáculos (ibid., pp. 123-26). Escreve
A emancipação do indivíduo q~e _cresce ;relativa~e~te
Adler (ibid., p. 126): à autoridade dos pais é um dos exitos mais necessanos,

87
86
mas também mais dolorosos do desenvolvimento. É abso- toma forma e se confirma na experiência, infelizmente
lutamente necessário que essa emancipação se realize e
é presumível que cada um que se tornou normal a tenha inédita, do respeito à individualidade. Na análise, os
realizado em maior ou menor medida. Antes, o progresso tempos pessoais são sagrados, não são aniquilados, e não
da sociedade se baseia nessa oposição entre gerações. Por se pede sua uniformização no anonimato dos ritmos cole-
outro lado, há uma espécie de neuróticos cuja condição é tivos. Ao contrário, são reconhecidos como componentes
claramente determinada pelo fato de terem fracassado da personalidade, como aspectos de um estil? particu~ar,
nessa tarefa.
válido justamente enquanto tal. Isso se aphca tambem,
e principalmente, com relação à experiência que todos
A nossa vida não equivale a um dado natural, mas temos de sermos traídos. Antes, uma das hipóteses que
a uma potencialidade a desenvolver, a algo que deve se:r são postas como fundamento da terapia. ps.icoló?'ica,
adquirido e agarrado, na primeira pessoa. Esse ato de hipótese que me parece particularmente s1gmficativa e
conhecimento só se originará de nossa realidade mais fecunda, pode ser enunciada como "ausência de traição".
interna, "lugar forte" que nos constitui como indivíduos. Com efeito, na relação analítica a traição é completamente
Ter determinada família, ou simplesmente uma família, avaliada. Isso é possível por causa da circunstância pela
pais, irmãs e irmãos, não deve ser considerado como qual, na relação analítica, como já tive ocasião de dizer
elemento imodificável nem deve representar o limite úl- (Carotenuto, 1989, p. 99):
timo, intransponível, de nossa vida psíquica. Deixemos
por instantes os fatores sentimentais e reflitamos sobre A traição já não é abandono, entrega do outro a um vazio
a insignificância do dado biológico diante da imensa sem significado, extrema rejeição - porque nã? ~17lta a
importância da cultura enquanto prolongamento do or- presença do terapeuta-, mas aceitação da poss1b1hdade
do insucesso e da ambivalência humana. O terapeuta
ganismo biológico, para usarmos uma expressão típica se relaciona com o paciente com a totalidade de seu ser,
da antropologia. A manipulação do elemento :natural, a comunicando-lhe vivências nas quais a autenticidade, o
possibilidade de interferir nele, modificando-o, represen- respeito e o acolhimento são mais fortes do que qu,alquer
ta o específico humano com relação ao resto do mundo mudança de comportamento. Nesse sentido, falamos de
vivente. Também sob esse aspecto, o nosso vir ao mundo substancial "ausência de traição", a qual confere os novos
parâmetros pelos quais leremos o mundo, o novo modelo
como homens é marcado por uma libertação, a mesma que de comportamento.
somos obrigados a efetuar, traindo o pacto sem condições
que estipulamos com a família. Assumindo o sentimento Geralmente é pedida aos filhos uma enorme tarefa:
de culpa, encaminhamo-nos por uma via que se coloca ser bem-sucedidos onde os pais fracassaram. Aí não se
fatal e fatigantemente em lugar diferente do que nos foi trata de um vão lugar-comum, porque a ambição dos pais
indicado.
muitas vezes não conhece limites. O filho deve resgatar o
Consideradas essas premissas, a relação analítica Papel social, procurar o poder, ter um comportamento éti-
pode ser representada como espaço novo, diferente do co; em outras palavras, deve realizar algo absolutamente
da família. Trata-se de um espaço no qual o específico extrínseco, alcançar uma meta na qual nunca pensou e a
da pessoa não é identificável com algo já existente, mas qual nunca desejou. As projeções dos pais podem marcar
88 /
00
pesadamente e de modo até permanente a identidade Acabamos de dizer que, na escolha da própria au-
psicológica dos filhos. O que Jung chama "consciência tonomia feita por um jovem, a luta por alguma coisa se _
artificiosa" dos pais torna-se letal quando, por exemplo, torna luta contra alguma coisa, e então é interessante
o filho estiver para escolher sua companheira. Caso notar que o verbo evangélico "separar" foi traduzido por
exemplar no qual o círculo familiar modela coativamente Lutero por "levantar contra". Contra essa e outras inter-
qual destino, a vida do filho é o da mãe que se manté~ pretações análogas - que não parecem, todavia, despro-
"artificiosamente inconsciente para salvar as aparências vidas de legitimidade interna - manifestou-se Hanna
de uma boa vida conjugal" (Jung, 1925, p. 193). Nesse Wolff, psicanalista alemã de orientação junguiana. Em
caso, sustenta Jung (ibid.), a mãe estudo dedicado ao exame da figura de Cristo sob o ponto
acobrr~nta seu filho a si, sem sabê-lo, de certa forma como
de vista da psicologia analíticl:l, essa autora pergunta
su stituto do marido. - se heuve alguém qu~ tenha realmente compreendido o
sentido da passagem evangélica citada acima. A teologia
Continua Jung (ibid.): talvez não a compreendera ou, em todo caso, não parece
haver respondido adequadamente, sendo, então, neces-
Se essa atitude nem sempre leva ojovem à homossexualida- sário dirigir a atenção, uma atenção arriscada, para a
de, impele-o, em todo caso, a uma escolha diferente da que
corresponderia à sua verdadeira natureza. Ele desposará, perspectiva interpretativa que se obtém recorrendo-se aos
por exemplo, uma jovem evidentemente inferior a sua mãe instrumentos oferecidos pela psicologia profunda. Afirma
e que, portanto, não poderá fazer-lhe concorrência ou cairá Hanna Wolff(1975, pp. 231-32), referindo-se à passagem
nas mã_os d? uma mulher tirânica e presunçosa', a qual, supramencionada do evangelho de Mateus:
por assim dizer, o arrancará de sua mãe.
Embora pareça presunção, só a psicologia profunda é que
O jovem que se liberta da coação do círculo familiar pode compreendê-la profundamente. Com efeito, Jesus
"desliga de", "divide do" coletivo da família. Ele desfaz
e escólhe sua autonomia enfrentará dificuldades, dores, - a ingênua participation mystique, a fim de virem à luz
ãnsiedfüfés e"aifüagém persecutória do filho fantàsiado indivíduos singulares, independentes e responsáveis.
pelos pais. Assim, a luta por alguma coisa passa a ser
luta contra alguma coisa. A posição tomada por Jesus, Em suma, para essa autora, Jesus é o primeiro te-
pelo "traído" por excelência de nossa história, parece, rapeuta, porquallto a tarefa indispensável que ele põe é
aliás, decidida em relação às conclusões próprias do "ã de combater contra o vínculo paterno e materno, de _
círculo familiar. A mensagem de Jesus se configura consumi-lo e superá-lo uma vez por todas" (ibid.). Por ou-
claramente como de divisão e conflito; portanto, como tro lado, parece-nos esclarecedora a conexão estabelecida
mensagem que entra na área potencial da traição implicitamente nos evangelhos entre uma mensagem des-
(Mateus 10,34-35):
se alcance e a dimensão de "traído", constitutiva de Jesus,
Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer que se fez portador dessa mensagem. É de um "traído", e
paz, mas espada. Com efeito, vim separar o filho do pai, só de um "traído", que pode vir e ressoar fortemente não o
a filha da mãe, a nora da sogra ... convite, mas o" mandamento" de trair. E o mandamento _ 1

/ '-1
90 Q1 I:!
de "trair" seria entendido como a necesi;;idade na qual "Por qual motivo estou aqui?", perguntei, escandindo as
vem encontrar-se o indivíduo de assumir sua vida até - palavras muito lentamente. "Como vim de tão longe e tive
tornar-se, como já sublinhamos, pai e mãe de si próprio. · a ventura de encontrar-me convosco aqui, hoje?"
Parece, com efeito, que é nisso que Jesus pensa, quando à. Hesse permaneceu silencioso, imerso na luz invernal, e
depois disse: "Nada acontece por acaso; aqui vêm somente
multidão, e portanto ao homem coletivo e indiferenciado · os hóspedes justos. Este é o Círculo Hermético ... "
que lhe diz (Marcos 3,32): '
"Eis que tua mãe, teus irmãos e tuas irmãs estão lá fora Que significado atribuir à expressão de Hermann
e te procuram", Hesse? Como entender seu "Círculo Hermético?" E como
entender que a ele "cheguem somente hóspedes justos?"
responde: "Quem é minha mãe e meus irmãos?" (Marcos O círculo hermético não nos é destinado de modo natu-
3,33); e, passando o olhar sobre aqueles que estavam ao ~:al; nós é que o escolhemos, como escolhemos amar uma
seu redor, acrescenta (Marcos 3,34-35): pessoa de fora de nosso clã. Podemos identificá-lo com
a comunidade dos sábios, como a entendiam os filósofos
"Eis a minha mãe e os meus irmãos. Quem fizer a vontade
de Deus, esse é meu irmão, irmã e mãe". estoicos antigos. "Eles pensam", diz Cícero, "que os sábios
são amigos dos sábios, ainda que não os conheçam". E
continua (Cícero, De natura deorum 1, 44.121, in Isnardi
É necessário dizer também que, em certo sentido, o
Parente, 1989, p. 1258):
núcleo familiar não nutre dúvidas a respeito de sua con-
sistência. Embora seja dominada por um sistema externo Nada é mais digno de ser amado do que a virtude; aquele que
e mais poderoso, do qual talvez até não compreenda nada, a conseguiu, esteja ele onde estiver, deveremos amá-lo.
a família se consolida, proibindo o uso da dúvida. Eis por
que todo recuo, toda reflexão autônoma são irremedia- Notemos que o termo "sábio" deve ser entendido aí
ve~mente sufocados. Na realidade, a crítica das próprias não no sentido referente a um saber intelectual, mas
origens e a descoberta da própria diferença represen- nô que é indicado por Séneca em uma de suas Cartas a .
tariam importante etapa à constituição de uma família Lucílio (Seneca, Lettere a Lucillio, in Isnardi Parente,
desvinculada do dado biológico e justificada "somente" 1989, p. 1258):
pela afinidade espiritual. Hermann Hesse falava de um .
círculo hermético ao qual todos nós pertenceríamos e no Ninguém sabe verdadeiramente testemunhar reconhe-
cimento senão o sábio, como ninguém sabe prestar um
qual todos nós pensaríamos com afeto e amor, porqu_enão benefício senão o sábio ... Só o sábio sabe amar; só ele é
nos é imposto pelo fato de termos nascido em determinada amigo ... dizemos que a verdadeira lealdade não existe
condição histórica. O círculo hermético é aquele ao qual senão no sábio.
"chegam somente os hóspedes justos';. Assim o definia
Hermann Hesse em sua resposta a Miguel Serrano, que O círculo hermético pode ainda, ao menos em parte,
lhe perguntava por qual motivo se encontrava em sua ser comparado ao Gemeinschaftsgefühl pensado por Adler,
casa (Serrano, 1966, p. 28): ou àquele "senso comunitário" que Adler, como escreveu
/
92 QQ
Hi!l~an em seu li~oAs histórias que curam, "considerava 7
a umca meta reahsta da psicoterapia" (Hillman 1983
167), senso comunitário que não deve ser ent:ndido ':· A NOSTALGIA DESORIENTADA
uma comunidade particular, de uma comunidade ani~
mada por metas específicas e rigidamente preordenadas
co:r~o.' por ~x~mplo, a organização política ou a confrari~ Primeiro Adão foi criado do pó da terra, depois Eva foi
rehg10sa (ibid., p. 169). O círculo hermético não deve criada de Adão. Por isso a expressão "à nossa imagem e
ser confundido c~m círculo mágico. Na introdução à sua semelhança" deve significar que o homem não pode vir ao
segunda categona da distância, a categoria da parada, mundo sem a mulher, nem a mulher sem o homem ...
Adler (1920, p. 124) afirma: (Talmud in Cohen, 1932, p. 30)

A ~~pre~são que nos dá esse estado é a de um círculo


magico circundando a pessoa doente e impedindo-a de
entrar em contato com as realidades da vida, de enfrentar
a verdade, de enfrentar certas dificuldades, de permitir
um exame de seu valor e de tomar uma decisão.
Vejamos agora, mais de perto, quais são as dinâmi-
cas sobre as quais geralmente se constrói e se mantém
~ círculo ~ermético não é, portanto, círculo Jnágico,
a relação de casal, privilegiando obviamente o ponto de
mas circulo de mterpretação e de compreensão, âmbito no
s:
qual ~orna possível a participação no diálogo. O círculo
h.ermetico corres~onde propriamente a uma família espi-
vista que escolhemos e sob a 1uz crua, mas realista, que
nos permitiu mostrar a experiência da traição também em
fases de nossa vida que, vistas sumariamente, pareceriam
ntual, e, para nos, que escolhemos ser órfãos a fami1ia isentas dela. A relação adulta de casal é, entretanto, por
espiritual se torna novo ponto de referência: Devemos longa tradição, o lugar "escolhido" no qual a traição se
subl~nhar novamente que não se trata de um lugar fora
arroga o papel de protagonista; quanto teatro, quanta
de nos, mas de uma referência interna, expressão de nossa narrativa, quantas páginas de crônica e até de história
configuração psicológica particular.. giram em torno desse tema! Tratar-se-á de ver se a nossa
"chave de leitura" está em condições de permitir-nos uma
focalização diferente do problema e de orientar-nos na
direção de algum aspecto inédito ou insuspeitado.
Em termos psicológicos, a premissa essencial na qual
se baseia a relação de casal é, no fundo, uma expectativa.
Uma expectativa de completude, de reunificação, de to-
talidade.Reconduz-nos a essa premissa essencial, entre
outros, a versão platônica do antiquíssimo mito do andró-
gino. Lemos no Banquete (in Racugno, 1989, PP· 65-66):
95
94
Existia então só o andrógino, participante de ambos, ho- Depois que a natureza humana foi cortada em duas, cada
mem e. mu~her? tanto na form8: como no nome, ao passo metade, anelando a outra metade, ia ao seu encontro e,
que ho3e so existe o nome, atnbuído para ultrajar. (... ) atirando-se os braços em torno e abraçando-se uma à outra
Eles eram de força e vigor terríveis, nutriam pensamen- pelo desejo de conaturar-se, morriam de fome e permane-
tos soberbos e, por isso, atacaram os deuses. (... )Zeus e ciam em estado geral de inércia, porque não queriam fazer
os outros deuses debatiam sobre o que se devia fazer e mais nada separadas.
estavam em dificuldade, porque não podiam matá-los e
aniquilá-los, fulminando-os como gigantes - nesse caso
desapareceriam as honras e os sacrifícios que os homen~ Compadecido da tristeza da condição deles, Zeus deci-
lhes ofereciam-, nem podiam deixá-los em sua insolência diu ao menos tornar possível a geração entre eles (ibid.)
Depois de fatigante reflexão, Zeus disse: "Parece-me ter u~
expediente para fazer que continuem a existir homens e por meio do homem na mulher, para que no amplexo, caso
ao mesmo tempo, enfraquecidos, cessem seu atrevimento' um homem se encontrasse com uma mulher, se gerasse e
Partirei cada um deles em dois, e assim serão ao mesm~ se reproduzisse a espécie.( ... ) Há muito tempo, portanto,
tempo mais fracos e mais úteis a nós, tendo eles aumen- foi conaturado o amor recíproco, que reúne nossa antiga
tado em número". natureza, tentando de dois seres fazer um só e sanar assim
a natureza humana.
A medida tomada por Zeus, de cindir a unidade física
primigênia do andrógino, parece traduzir, na linguagem Há, pois, quem afirme, e eu concordo, que toda a
da mitologia grega, o mitologema, primeiro hebraico e, nossa vida de relação tende à união, e que essa união
depois, também cristão da expulsão do homem do Paraíso. se transforma em ternura e amor sexual quando os pro-
Em ~mbos os casos, alude-se a uma unid~de originária, tagonistas do encontro são um homem e uma mulher.
perdida por causa do orgulho e da insolência do homem Esse ir para o outro assume conotação muito precisa,
e daquela perigosa dimensão que os gregos conotavâ:~ porque aquilo a que a nossa procura dá forma equi-
com o nome de hybris e que significa a transgressão· cul- vale, em termos psicológicos, à nostalgia da condição
pável dos limites. ~!!1 particular, o mito do andrógino, fusional experimentada na relação primária. Trata-se
do qual dá testemunho também o mitologema híblfoo da de sonho antigo, com raízes profundíssimas na história
criação de Eva da costela de Adão (Gênesis 127 é 2 2i~ de cada um de nós: todos nós podemos reconhecer-nos
22), exprime a noção segundo a qual a experiência' ' da na fantasia do príncipe azul ou na figura onipotente e
separação e da perda é sentida no plano da identidade salvífica que porá fim à nossa angústia da separação.
sexual como necessidade incessante de reunião ao outro, Ficamos muito tempo, talvez sempre, à espera desse
à metade perdida. Isso representa o desejo de fusão em encontro. A aspiração inconsciente ao restabelecimento
toda a sua dramaticidade e necessidade. O mito conta que <!_~_estado símbiótico originário é o que definimos como
ríõ-início, Zeus separou fisicamente o and~Ógi:~10 de mod~ / regressão à condição indiferenciada vivida pela crian-
tal que as partes genitais foram postas ncdado-posterfor ___.. , çã- dentro do corpo da mãe durante a gravidez e, logo
do. corpo, motivo pelo qual esses seres podiam gerar nãó · depois, fora dele. Essa indiferenciação, que definimos
entre si, "mas na terra" (Platão, Banquete, in Racugno, · como "condição fusional", corresponde a uma espécie
1989, p. 67): de situação paradisíaca, na qual não se percebe dis-
96 Q7
tância entre a necessidade e sua satisfação, e mãe e determinam uma diferença qualitativa importante da
filho coexistem em unidade narcísica aparentemente.,., relação em si. De fato, quando o seu desenvolvimento. é
indissolúvel. A felicidade entendida nesse sentido é inibido e freado pelo nosso "cálculo" sobre como deveria
pois, uma "nostalgia" deslocada para o futuro, não uma' · a relação evoluir, como deveria o outro comportar-se e
meta realisticamente atuável. como nós próprios deveríamos ser, não nos encontramos
Para o bom ajuste psicológico é perigoso acreditar mais diante de uma verdadeira relação com o outro ser.
na ilusão de podermos fundir-nos com o outro; isso seria Pelo contrário, estamos, pela enésima vez, dominados
distorcer a realidade, a realidade da vida. Se é nisso que pelos nossos fantasmas. Sai de cena a vida com toda ~
consiste a nossa representação da felicidade, seremos sua imprevisibilidade e dá lugar à representação, parti-
inevitavelmente frustrados. A expectativa não consegue cular e estreita, produzida por nós próprios: facilmente
sustentar-se, e a esperança não se confirma pelos fatos, . 0 parceiro suporta a parábola desse sonho, no qual de
e, além de nossa tentativa de "fusão", delineia-se o fra- pilar e ídolo impecável se torna enfado e frustração: O
casso. O passo seguinte que observamos regularmente outro se torna "culpado" de não haver correspondido
nessa parábola do sentimento é a culpabilização do outro,· adequadamente, mas não pedíamos talvez algo impossí-
o que nos permite atribuir nosso fracasso à sua inade- vel? Trata-se de mecanismos profundos, ligados à nossa
quação. Encontramos muita dificuldade (é um dado que dimensão mais arcaica e, por isso, difíceis de descobrir
observamos constantemente na experiência analítica) enquanto estivermos imersos e presos ao sonho de como
em descobrir também dentro de nós as razões da falta as coisas deveriam passar-se. Interrogar-nos sobre nós
de "coroamento" de um desejo. Se estivéssemos dispos- próprios nos levaria a reconhecer que não existe desafio
tos a assumir a consciência da ilusoriedade de algumas... - mais radical para as nossas ilusões do que uma situação
de nossas pretensões, a frustração se transformaria em __ relacional que nos obrigue a passar de um destinatário
desilusão, que é experiência diferente .. A desilusão, como imaginário a um destinatário real.
a entendemos aqui, leva a um esvaziamento do medõ_~­ O desejo é a força propulsiva de nossa vida; ele é
de sofrer e a um aumento proporcional da capacidade_ energia, história que se concretiza, que se modifica e se
de alegrar-nos: abandonamo-nos com mais confiança às transforma, que se esvazia e se enche novamente. Geral-
vicissitudes da vida. Já não vemos nelas um sinal de mal- mente vivemos dominados pelos desejos e nos demoramos
dição pessoal, mas o mistério de algo mais vasto, que não em incessante procura da felicidade. O desejo, escreveu
corresponderia inteiramente aos nossos planos e nem Espinosa em sua Ética, constitui a própria essência do
seria plenamente controlado por nós. Tomar consciência. homem. Mas quanto mais nosso desejo humano de ple-
de que as coisas não se passam sempre como prevemos. nitude se concretiza em um objeto externo, tanto menos
·é"o contrário de p·ercorrer infinitas vezes o caminho in,:, consegue satisfazer-nos prolongadamente. Nutre-se da
transitável e tortuoso indicado pelas nossas ilusões. No fantasia da unidade simbiótica, incita a se conseguir a
caso do relacionamento interpessoal, essas duas modali- Posse do objeto e, quando conquistado, fatalmente se
dades de referir-se às próprias expectativas - a primeira esvazia de toda atração. Aí estão em jogo leis fundamen-
fundada no senso de realidade, a segunda na ilusão - tais da existência, as que regem a vida dos sentimentos,
99
o lugar onde se origina todo o nosso sofrimento. De fato as, ao mesmo tempo, de um não encontro, o~ indivíduos
111
é na vida dos sentimentos, e não na vida intelectual, qu~ assim envolvidos se delineiam com os verdadeiros autores
a dor tem suas raízes. de grande sofrimento psicológico e emotivo.
Venhamos, porém, ao matrimônio. Uma brilhante Outra mistificação coletiva que acompanha o ma-
jornalista escreveu: "O problema é que a jovem pensa que trimônio é o mito da sinceridade. Assumimos um dever
vai casar-se com o noivo, e se casa com o marido" (e não de transparência, como se a intimidade implicasse a
é por retorsão que me permito glosar que a proposição expressão não mediada de todo elemento de nos~a inte-
certamente é conversível). Pois bem, se substituirmos rioridade, seja ele um pensamento, uma fantasia, uma
"noivo" (fidanzato, em italiano) por seu análogo perfeito fraqueza, uma emoção in nuce ou o enfado que faz parte
"esposo prometido" (promessa sposo, em italiano), o qual, da vida. Sob certas condições, o confronto com o outro
graças às ressonâncias da palavra "prometido", alarga representa uma ponte para a nossa interio:idade,. mas
o campo para a esfera das expectativas, ou seja, para isso não deve ser confundido com abertura irrefletida e
o imaginário, descobriremos que o trocadilho descreve espontânea, capaz somente de produzir danos. Ainda uma
corretamente a "frustração", o "insucesso" do qual fala- vez a idealização do amor significa sua traição. Nesse
mos há pouco. caso, a ótica do senso comum cai por terra: o respeito e
No matrimônio o fantasma desaparece, o objeto se o amor ao outro e a presença de preocupação moral em
concretiza e a união revela seu aspecto humano e limitado, relação a ele exigem distância. Na negação dessa dis-
porque não existe detonador mais poderoso da constrição. tância encontra-se o desconhecimento da subjetividade,
O matrimônio, a vidajunto com outra pessoa, geralmente e é talvez por isso que as relações mais duradouras são
é vivido mais como meio do que como fim; nenhum dos aquelas nas quais os dois parceiros aceitam a realidade
dois se volta profundamente para a subjetividade do ou- da separação. O desejo de partilhar tudo com o outro,
tro. Em alguns casos, tão grotescos quanto frequentes, mesmo os aspectos mais íntimos e pessoais, não é senão
nenhum deles tem alguma curiosidade pelo outro; o outro o desejo de restabelecer a "fusão primigênia", uma coação
é interessante somente à medida que foi "construído". para repetir a experiência da relação dual com a mãe, em
Quando conquistamos o objeto do desejo, não pensamos cujo seio não existem limites individuais, mas uma co-
em seu verdadeiro mundo, em sua realidade de sujeito; presença de conteúdos psíquicos de ambos. Ao crescermos,
ao contrário, exigimos préstimos de acordo com nossas estamos sempre infantilmente à procura daquele tipo de
necessidades, com nossas expectativas, com nossos esta- relação que, se se concretizasse, deixaria de ser relação
dos motivacionais. O parceiro cai vítima do mesmo mal- e se tornaria prevaricação. Escreve Karen Blixen em Il
-entendido. Também ele se mostra incapaz de compreen- matrimonio moderno (1981, pp. 75-76):
der nossa subjetividade, preso em seus planos, nos quais O verdadeiro amigo ou filho ou marido não tem nem um
quereria obrigar-nos a entrar à força. É um paradoxo: dois angulozinho de sua alma que possa coi:siderar co~o s~u,
seres humanos envolvidos em movimento aparente de não possui nada que não tenha compartilhado consciencio-
reciprocidade roçam-se, percorrendo caminhos paralelos, samente com os outros, e para ele um segredo não é uma
destinados, talvez, a nunca encontrar-se. Agentes e víti- suavidade da alma, mas um remorso da consciência. i
11\1 li
100
A separação, a única que nos salvaguarda, é vivida 8
como traição. Traição de quem e de quê?
O matrimônio, ao menos no mundo ocidental, funda- UNIÃO DE DUAS SOLIDÕES
-se em típica estrutura psicológica, a qual é a do apoio
recíproco e simbiótico. N eumann afirma em seu estudo A
psicologia do feminino (Neumann, 1953, p. 26):
... O Anjo tomou pela mão
A estrutura simbiótica é a base da família e da cultura nossos pais, que tardavam, e os conduziu
patriarcal, porque garante segurança e unilateralidade. diretamente à porta oriental, e do mesmo modo
rapidamente para baixo pela encosta, até chegar
à planície embaixo, e logo desap~eceu. .
Creio que essa "entrega", essa dedicação mútua de Então voltaram-se para trás e viram o lado oriental
indivíduos adultos, exercida segundo modalidades que do Paraíso, feliz morada antes, agora perdida,
como ondulando aos revérberos da chama
são próprias de fases anteriores do desenvolvimento daquela espada, e a porta cheia de r?stos tremendos
psíquico, é inegavelmente adequada para a lógica de um e de armas cruéis. Lágrimas naturais desceram
estado autoritário, mas também deletério ao patrimônio de seus olhos mas logo as enxugaram; diante
deles estava ~ mundo, no qual, guiados pela Providência,
criativo de seus membros. Um caminho de crescimento escolheram o lugar no qual deter-se;
seguido em dois é seguramente bom investimento, mas, segurando um n~ mão do outro, .
por assim dizer, de alto risco. pela planície do Eden, a passos lentos e mcertos,
tomaram seu caminho solitário.
(J. Milton, Paraíso perdido, 1. XII, vv. 637-49, p. 281)

Qual é a dinâmica psicológica mais profunda que


sustenta a união simbiótica do casal? Dissemos que essa
união representa a espinha dorsal da cultura ocidental,
cultura orientada para favorecer tipologias de relação
baseadas no modelo fusional. O quadro teórico junguia-
no nos indica uma estrada mestra para penetrarmos no
significado psicológico desse fenômeno. As instâncias
psíquicas, que Jung chama animus e anima, representam
respectivamente os aspectos heterossexuais inconscientes
da psique feminina e masculina, aspectos que, por serem
inconscientes, não são experimentados a não ser através
do reconhecimento das projeções. Isso significa, por exem-

103
10?.
plo, que o homem pode tornar-se consciente de sua anima compromissos "razoáveis"' fábricas de sofrimento que se
através do reconhecimento de sua projeção sobre uma transmitem de geração em geração, sofrimento oculto,
mulher real. Não é tarefa fácil, uma vez que a instauração sofrimento do qual não se pode falar, porque não se sabe
de relação com conteúdos inconscientes não é processo torná-lo consciente, sofrimento vivido na sombra do si-
intelectual. Trata-se, todavia, de tarefa necessária, se lêncio. Por outro lado, a aquisição de maior consciência
quisermos assumir posição interior consciente que guie no âmbito da relação pode revelar as motivações ocultas,
nossas escolhas em conformidade com nossas exigências às vezes extremamente destrutivas, que deram origem
mais íntimas e fundamentais. Quanto menos evoluído é o à solidariedade neurótica dos dois parceiros. Tornar-se
indivíduo no plano da consciência, tanto mais a escolha do consciente desses aspectos requer muitíssimo tempo,
parceiro será ditada por motivos inconscientes, os quais trabalho e honestidade psicológica. Caso esse processo
decidirão, "sem que ele o saiba", a atitude psicológica e interior seja acompanhado por um terapeuta, deverá ele
emotiva que caracterizará o encontro. Na maior parte dos empregar toda a sua habilidade e seriedade. Isso porque
casos, o "matrimônio externo" será realizado sem senhu- · a arte da terapia exige o homem todo.
ma consciência do "matrimônio interno" com o animus, no Jung sustenta que o processo de individuação assume
caso da mulher, e com a anima, no caso do homem. Isso relevo determinante na segunda metade da vida, quando
significa que não houve integração desses conteúdos in- as experiências da juventude começam a pedir natural-
conscientes, nem, portanto, alargamento correspondente e mente uma elaboração dos conteúdos psíquicos.
progressivo da consciência. Em outros termos, a união se Como já tive oportunidade de dizer, a intensidade
dá antes que nos tornemos cônscios da dimensão projetiva, das paixões juvenis, embora vivida inconscientemente,
o que naturalmente complica, quando não impossibilita, constitui experiência irrenunciável e extraordinariamen-
o trabalhoso processo de conhecimento de nós próprios te criativa da vida afetiva. Descrevendo como a nossa
e do outro. Não foi sem razão que Balzac (1829, 'P· 86) procura do outro oculta sempre a nostalgia da simbiose
sustentou em sua Fisiologia do casamento: originária, constatamos que nas relações coi:cretas
muitas vezes vivemos a angústia por alguma c01sa que
O matrimônio é uma ciência.
ainda não existe ou que parece não poder existir. Com
isso dispomos de um elemento a mais para compr~e~der
Também a dominância de fatores inconscientes pode que a nossa inconsciência se configura como o prmc1pal
permitir algum "funcionamento" da relação; numerosíssi- responsável pela trágica distância entre a realidade e
mos matrimônios neuróticos "funcionam" por anos e anos o desejo. A maior parte das pessoas vive de modo in-
porque seus pressupostos permanecem inconscientes. consciente não cabendo a nós julgar se isso é um bem
Ninguém consegue explicar como duas pessoas aparen- ou um mai; sabemos, porém, que em muitos casos pode
temente incompatíveis permanecem juntas; no entanto, ser perigoso atacar o equilíbrio individual, ainda que
todo esforço é dirigido para a manutenção da ambiguida- mantido mediante extenuantes defesas neuróticas. Tal
de e da falta absoluta de coerência. Pessoalmente, como situação psíquica de indiferenciação, isto é, situação na
analista e como homem, não me inclino a apoiar esses qual a anima feminina do homem e o animus masculino
1tH::
104
da mulher jazem afundados no inconsciente, apresen- no qual cada um personifica ora a vítima, ora o algoz.
ta um fenômeno característico no plano de identidade Não foi por acaso que, desde o fim do século XIX, Drá-
consciente. Com efeito, a mulher se refere ao seu com- cula, o Vampiro, foi aceito estavelmente entre as figuras
panheiro e ao masculino em geral como "só feminina", e tópicas, emblemáticas e paradigmáticas do imaginário
paralelamente o homem se põe perante a mulher sim- erótico ocidental (mas no norte e no leste da Europa, a
plesmente como masculino. Portanto, nesse estágio do partir dos Bálcãs, foi aceito ao menos dois séculos antes
desenvolvimento psíquico, a identidade sexual pertence do aparecimento do célebre livro de Bram Stoker, em
ao tipo "tudo ou nada"; porém mais importante ainda é a 1891). Na mordida de amor do vampiro exprimem-se
condição de total dependência do parceiro decorrente da não só o desejo perverso de quem se nutre do sangue dos
dinâmica projetiva. Aqui não há nenhum espaço para a outros e, através da opressão do outro, dá vazão à sua
relação individual, porque nela o confronto com a hete- vontade de poder, mas também a irresistível sedução de
rossexualidade do outro pressupõe sempre a relação com quem se oferece como vítima. Drácula, para existir, tem
os componentes heterossexuais próprios. Interessa-nos necessidade do sangue alheio, e a contaminação é tal que
não tanto a relação em sua concretude, em seus aspectos transforma a presa inocente em vampiro. Sem metáfora,
públicos, por exemplo, em suas "realizações", quanto a dupla de atormentado e atormentador formam uma
a relação psicológica que o sustenta. As tragédias da simbiose. Essa contínua "transfusão" de papéis susten-
relação nascem desta forma: excluindo nosso aspecto ta inúmeras relações. De fato, na vida cotidiana, não é
contrassexual inconsciente, caímos em poder do outro, tanto o amor quanto a dependência sadomasoquista que
ficamos psicologicamente possuídos por ele, e então ele cimenta e preserva a união.
pode fazer de nós o que quiser. No passado (e ainda hoje, Em todo caso, em decorrência de uma estranha
algumas vezes), chegava-se a matar o outro, na tentativa necessidade psicológica, a relação sentimental se define
de libertar-se de uma dependência vista como destruti- como relação de poder; e não é muito necessário, como
va. É claro, com efeito, que situações tão extremas nas muitas vezes se pensa, determinar qual dos dois parceiros
.
quais o homem ou a mulher exercem sobre o outro um
' detém o poder, uma vez que, para um dominar, o outro
poder de vida e morte, verificam-se quando ao outro é deve consentir. Em psicologia, falamos de "chantagem do
confiada, entregue, delegada uma parte do Si-mesmo. masoquista" para nos referirmos não só às estratégias
Eis por que a ferida causada e sofrida é mortal. Porque culpabilizantes mediante as quais a parte fraca liga a si
total é a traição. o companheiro mais forte, mas também ao fato, por exem-
É nessa sujeição recíproca, nessa distribuição plo, de que, usando o poder do outro, o masoquista evita
complementar e inderrogável de papéis que reside o usar seu próprio poder e assim entrar nas zonas de sombra
fundamento de qualquer união e principalmente do de sua psique, potencialmente perigosas. Sua tentativa
matrimônio. Pode-se pensar então que atrás de sua de conservar sua imagem "limpa" é plenamente bem-
máscara social o matrimônio revele uma estrutura sado- sucedida. Quando se estipula um pacto de amor eterno,
masoquista, isto é, a uma condição psicológica que leva a evidentemente não é a razão que o subscreve; antes, é de
tormentos recíprocos, a representar o "papel das partes", supor-se que a razão não tenha sido nem consultada: não
1(\g 107
só aceitamos como também pretendemos hipotecar todo
0 U mp. licidade neurótica. O matrimônio de alma, ao
nosso futuro "até que a morte nos separe". Como quando ernc ·-d d
tra'ri'o torna-se possível somente como umao e uas
uma luz ofuscante apaga todo o resto da realidade em con ' · o · p
solidões. Escreve o poeta e ensaísta mexicano ct'av10 az
nosso campo visual, o presente nos parece tão luminoso em o labirinto da solidão (1959, P· 250):
que essa luz cobre todo o futuro em nossa imaginação.
Em tais ocasiões de intensa paixão experimentamos, o amor é um dos exemplos mais evidentes dos doi~ instintos
ou melhor, acreditamos experimentar o sentimento de que nos induzem a escava; e a afund~r-nos em ~os mesmos
eternidade. e, ao mesmo tempo, a sairmos de nos e a r:ahzar-nos no
outro: morte e recriação, solidão e comunhao.
Ainda hoje o matrimônio representa um ponto de
chegada, mas, se o casal tentasse vivê-lo e senti-lo como
ponto de partida, certamente teria mais garantia de so- o homem, afirma Paz, é simultaneamente ~ostalgia
brevivência, especialmente em termos de qualidade da e procura de comunhão. Quando ele sente a s1 mesmo,
sobrevivência, porque qualquer relação se configura como sente-se também como falto do outro e, po~t~n~?', como
caminho e não pode subtrair-se à evolução. Escreve Jung solidão. Isso implica uma "dialética das so~1does . ~ base
(1925, p. 195): do amor uma dialética capaz de confundir e ~eJeitar o
que 0 adtor chama "mentira social". Escreve amda Paz
Poderemos falar de relação individual somente quando (ibid., p. 24 7):
a natureza dos fatores inconscientes for reconhecida e
quando a identidade primitiva for abolida em larga medida. O amor, mesmo sem a intenção, é ato 3:ntissoci'.11, p~rque
Raramente - para não dizermos nunca - o matrimônio toda vez que chega a realizar-se destrói o matnmon~o ~o
chega à sua realização individual sem choques e crises. transforma no que a sociedade não ~ue~: n.a revelaçao d e
Não se consegue sem dor a tomada de consciência. duas solidões, as quais criam po~ s1 propnas um mun o
que dissipa a mentira social, supnme o tempo e o trabalho
Uma psicóloga junguiana chegou a sustentar que, e se declara autossuficiente.
alcançada essa consciência, o amor já não é possível. Per-
guntaríamos, contudo, se, alcançada essa consciência, o A solidão permanece, pois, no mundo para criar d~~e
amor não se tornaria possível pela primeira vez. um outro. Não são só os fundadores de religiões, º.s her01s
A relação autêntica não exclui a dimensão da dor. das mitologias e os poetas que dão teste~unho disso. Na
Porque na relação autêntica os dois parceiros não escon- realidade e nisso o discurso de Paz se hga a um dos fios
dem um do outro a contínua mudança da vida, a oscilação condutor~s de nosso trabalho (ibid., p. 255),
constante e a precariedade que nos faz sentir-nos às vezes
solidão e pecado original se identificam.
cheios, às vezes vazios, ora em harmonia com os outros, ora
hostis e ofendidos. Não querer levar em conta o sofrimento
significa anestesiar ao menos metade da experiência de Quando a pessoa é jovem, é mais .fácil, por causa do
estar vivo; e quando se trabalha em dois nesse projeto pouco conhecimento de si mesma, proJetar no outro seus
de remoção, o matrimônio se transforma diabolicamnte aspectos interiores e viver assim subrepticiamente o ~or
Por si mesmo, um amor que nunca sai do círculo narc1s1co.
108
1(10
Mas não existe relação psicológica entre dois indivíduos psicológico característi~o~ que definimos com? processo
que não tenham atingido certo grau de consciência, e de individuação do femmmo. A mulher devera, contudo,
não existe consciência sem diferenciação do outro. O enfrentar a traição: ou a de sua dimensão psicológica
outro entra em nosso horizonte de vida somente através ou a do parceiro. Como diz Neumann, quando a mulher
da abertura delineada pela consciência, e, vice-versa, a retira a projeção da figura externa do companheiro e
consciência emerge só quando se experimenta o limite reconhece esse masculino como algo interno, ela chega à
oposto pela irredutibilidade do outro, chocando-se contra autonomia do parceiro real (Neumann, 1953, p. 23). Esse
ela. Esse reflexo oferecido pela relação pode constituir 0 movimento psicológico põe, todavia, outros problemas, já
aspecto positivo do matrimônio, no sentido de que ajuda que justamente esse ato de liber~a.de, a saber, a ~etirada
a se reconhecer o elemento projetivo.
da projeção, é inevitavelmente vivido pelo parceiro c~mo
Se o matrimônio representa apenas o expediente traição. Ele pode então lamentar que as coisas não seJam
mágico para a negação da realidade da separação ou da como antes, sem pensar em tomar em consideração as
realidade da diferença radical que nos constitui como in- possibilidades construtivas inerentes à transformação em-
divíduos, nunca abrigará uma relação psicológica. Cada preendida pela companheira, transformação pela qual ele
um de nós foi arrancado e expulso violentamente de uma se sente atingido, invadido e repelido. A afirmação acima
condição paradisíaca originária, e toda a nossa vida se referida de Neumann pode ser lida também no sentido de
passa na tentativa de sanar essa ruptura, saneamento que a dimensão psicológica da traição pertença de modo
que se dá através da profundíssima passionalidade que radical, positivo e construtivo ao feminino. Tomemos como
nos faz dizer "tu me pertences", levando-nos inconscien- exemplo o romance de ApuleioAs metamorfoses ou O asno
temente a empregar uma linguagem, por assim dizer, de ouro, no qual, como já indiquei, o adultério é feminino
''bélica", linguagem que conota toda a intensidade de nosso (Carotenuto, 1990, p. 184):
desejo. Em amor, a primeira escolha se revela muitas
ve-zes um insucesso, porque realizada conscientemente; No romance sempre são as mulheres que traem; de fato, o
não obstante, é um caminho inevitável para se chegar ao adultério é feminino. Quando se pronuncia essa palavra, é
difícil pensar no homem; e também de um ponto de vista
alargamento da consciência e, portanto, da identidade clínico pode-se afirmar que o adultério não constitui nunca
sexual. Nesse caminho espera-nos a experiência da trai- a base de seus problemas, como se dá com a mulher.
ção. Além do matrimônio fundado na coação inconsciente,
explorada culturalmente, deveria haver o matrimônio Pode-se supor que na origem da "feminilidade" da
fundado na união de duas solidões, nas quais a percep- traição esteja o fato de que a duração da relação primária
ção da diversidade do outro não é vivida como ruptura é maior na mulher do que no homem. A maior duração
da simbiose, mas como um desafio ao nosso narcisismo. da relação primeira admite, com efeito, da p~rte do f~­
Um desafio a aceitarmos, se queremos manter nossa minino a aquisição de uma capacidade relacional mais
integridade psíquica.
profunda e, com ela, a capacidade de transformar a vida.
O homem e a mulher têm destino diferente na rela- Essa hipótese explicaria os efeitos menos devastado~es
ção de casal, porque a mulher pode ter desenvolvimento da traição no homem do que na mulher, porque ele vive
110
111
a relação geralmente de forma mais superficial (ibid., pp. 9
201-02). O aspecto "traiçoeiro" do feminino em todas as
suas variantes aparece, obviamente em sentido negativo O SILÊNCIO COMO TORTURA
na mitologia e na literatura. Trai a Eva do Génesis com~
trai a Sofia dos gnósticos; trai Pandora, quando abre 0
vaso, e trai Helena, levando à morte dos heróis da Anti-
guidade, obrigados a combater em Troia por sua causa. Estou com os nervos em frangalhos esta noite.
Escreve Andrea Cappellano em seu De Amare, ajá citada Sim, em frangalhos.
"summa erotica" medieval (Cappellano, 1980, p. 319): Fica comigo.
Fala alguma coisa. Por que não falas? Fala.
E também todas as mulheres, o que dizem, dizem dupla- Em que estás pensando? Pensando em quê? Em quê?
mente, porque sempre têm uma coisa no coração e outra Não sei no que estás pensando. Pensa.
nas palavras. Porque nenhum homem poderia ter tanta (T. S. Eliot, A terra desolada, p. 261)
familiaridade com a mulher ou ser tão amado por ela que
pudesse saber seus pensamentos ou conhecer o que ela diz.
Porque a mulher não confia em nenhum amigo e pensa que
todos a enganam; por isso ela está sempre enganando ...
Na sociedade patriarcal que herdamos, caracteriza-
da por conotações de competição, para não dizermos de
Cappellano aduz o exemplo bíblico de Sansão, traído agressividade e prevaricação, a mulher, na relação de
por Dalila, e faz o seguinte comentário (ibid., p. 321): casal, tem destino diferente do do homem. Com efeito,
Sabemos de outras mulheres que traíram seus maridos o desenvolvimento, que tem como componente essencial
e amantes, porque eles não souberam ocultar a elas seus a diferença da identidade sexual, é sempre fortemente
pensamentos ... condicionado pelos valores do cânone cultural. Existem
papéis prefixados e preexistentes aos indivíduos, em
Não é diferente de Andrea Cappellano outro escritor relação aos quais alguns desses papéis são ordenados
medieval, que se inspira nele, Maftre Ermengau, autor de hierarquicamente uns sobre os outros, em um sistema
um Breviário do amor. O que as mulheres gostam mais de "submerso" de dependências recíprocas. Tomemos como
fazer, escreve Maftre Ermengau, é o que lhes é proibido exemplo dessa configuração de hierarquias um fenôme-
(in Nelli-Lavaud, 1966, pp. 708-09). Além da vaidade, no da vida cotidiana que pode roçar-nos ou atingir-nos
há outra acusação tradicional dirigida pelos moralistas diretamente: algumas doenças femininas que aparecem
medievais ao sexo feminino, a saber, o gosto pela mentira em uma vida familiar insatisfatória podem ser lidas em
e pela traição, que caracterizam a ressentida visão da perspectiva psicossomática, porque as mulheres estão
mulher transmitida a nós por esses nossos antepassados. expostas de modo particular às dinâmicas psicológicas
Visão com a qual em parte podemos concordar com a internas da relação. Em tais casos, a mulher deveria
condição de mudarmos seu sinal para positivo. ' interrogar-se não tanto sobre a etiologia fisi0lógica quanto
sobre a raiz psicológica e sobretudo relacional de seu es-
119.
11 ~
tado. Pesquisas médicas recentes concordam em atribuir Para que o discurso sobre a fidelidade conjugal
aos distúrbios psicológicos e emotivos da vida de casal a adquira relevância psicológica, deve ele ser inserido no
raiz de numerosas somatizações, como afecções derma- tema mais árduo da fidelidade da pessoa a si própria; a
tológicas, hemicranias, distúrbios digestivos, náuseas, traição põe um dilema somente se a pessoa é suficien-
inapetências e muitos outros sintomas psicossomáticos temente sensível para perceber que está em jogo sua
recorrentes. Essas constatações não devem levar a uma própria autenticidade. Assim como há indivíduos que não
espécie de caça às bruxas, porque no casal ambos são viveriam por muito tempo sacrificando a verdade de seus
responsáveis e eventualmente "culpados", e cada um paga sentimentos a uma cena exterior que não corresponde
o seu preço. Que dizer então do dever de fidelidade e do a ela, da mesma forma existem muitíssimos outros que
tabu da traição? simplesmente não notam esse problema porque a sua
É necessário ser fiel, mas a quê? vida é somente a cena exterior. Levar em consideração
Na sociedade patriarcal, as prescrições nesse sentido também o mundo interior, o mundo das emoções e dos
impostas à mulher não valem para o homem. Sempre sentimentos, para não falarmos do confronto com os con-
foram envidados imensos esforços para se negar à mu- teúdos do inconsciente, é algo que requer grande coragem
lher a possibilidade de ser infiel, e aqui quereríamos e generosidade, além, talvez, de uma predisposição mis-
dizer algumas palavras para esclarecer do que o grupo teriosa para a linguagem da alma. O caminho obrigatório
masculino se defende. Em certa altura do desenvolvi- dessa viagem interior passa pela dor, pela neurose, que,
mento feminino pode ocorrer que o problema da fideli- como dizia Jung, é a manifestação da impossibilidade
dade conjugal se transforme em questão de fidelidade de adaptar-se a uma situação muito "limitada" para a
ao crescimento psicológico pessoal. Mas o crescimento perfeita expressão das potencialidades pessoais. Vol-
psicológico, na maioria dos casos, não anda em paralelo tando ao discurso sobre a evolução psicológica feminina,
com a evolução externa da relação de casal. Nesse caso, parece razoável que a perturbação emotiva e psíquica
a traição se torna um aspecto fenomênico da procura causada pelo processo de transformação seja somatizada
interior de novas vias de realização e, por isso, consti- na indisposição física mais ou menos pronunciada. Des-
tuiria uma passagem ao resgate da identidade pessoal: locando para a corporeidade as razões de seu sofrimento
a ruptura do vínculo se mostra então como necessária. psicológico, a mulher afasta da consciência os conflitos
É útil, porém, ter presente que não é a traição em si que profundos que estão em jogo. Foram necessários muitos
favorece a aquisição de um novo nível de consciência. anos para se compreender a extrema importância dos
Os matrimônios são cheios de traições "feitas", mas não estudos de psicossomática, como muito tempo se passou
compreendidas, e a sua concretização, por si só, não traz e se passará até que as mulheres se libertem da prisão
nenhuma transformação. Em certos casos poderíamos do corpo. Em nossa cultura, o corpo é, com efeito, um
até dizer que "cometer" a traição, sem interrogar-se sobre significante do feminino, não sendo caso totalmente ar-
sua inquietação e sem deixar-se interrogar por ela, é o bitrário que as mulheres escolham inconscientemente
melhor modo para não mudar nada: a ruptura do vínculo a corporeidade como instrumento de comunicação. Mas
"traído" já não é necessária. teremos ocasião de retomar esse discurso, porque narrar
114 11 ~
a traição do corpo é um modo de escrever a história dos mismo, o silêncio obstinado oferece poder extraordinário,
códigos culturais do Ocidente. porque confina seu destinatário em estado de constante
A infidelidade da mulher pode tornar-se sintoma incerteza emotiva.
inevitável: ou o casal se sustenta sobre uma necessidade Entre as imagens mais densamente depressivas e
recíproca, ainda que patológica, ou a relação terá vida inquietantes das relações de casal vem-me à mente a de
breve, porque se mantém sobre base puramente conven- dois parceiros ceando em um silêncio hostil: sinal claro
cional. Mas um casal mantido junto por aliança patológica de desagregação da qual não conseguiam voltar atrás,
não é exceção, porque em todas as uniões cada um encarna como se a relação tivesse caído em um vazio interior e
a doença do outro. Quando falta o sentimento, não é pos- incomunicável. A cena apresenta desenvolvimento típico:
sível sobreviver. Freud dizia que quem não ama adoece. é o homem que fica silencioso e, sadicamente, espera a
Creio que o amor tem sentido só quando é passional, pergunta da companheira, a qual infalivelmente soará
mas, embora sem assumir posição tão radical, sabemos assim: "Em que pensas?" "Em nada", responderá ele,
que o amor é o mais irrenunciável dos alimentos. Freud ou simplesme_nte não responderá. O silêncio é sempre
escrevia ainda que sentir-nos ligados a alguém que nos expressão de grande severidade; imaginemos, por exem-
ama eleva muito nosso senso do eu; com efeito, aquele plo, o olhar eloquente do pai para o filho. O silêncio é
que tem a sorte de estar continuamente nessa condição atitude judicante que mortifica mais que qualquer juízo
encontra-se em estado eufórico permanente. verbalizado, porque nega a relação e não deixa nenhuma
O diabólico encaixe de patologias que fundamenta a escapatória nem possibilidade de defender-se. E, não por
relação se encontra também na base de todos os abusos acaso, trata-se de uma modalidade que é praticada com
psicológicos radicados nela. Exemplo dramático desse tipo prejuízo do feminino, porque o feminino é o mundo da
de relação é oferecido pelo célebre conto de Dostoievski relação. O silêncio, para usarmos as palavras da psica-
(1874)A meiga. Nessa obra, narra o drama psicológico de nalista Christiane Olivier (1980, p. 18), é
um homem de quarenta anos, um usurário, e da jovem a sorte habitual das mulheres.
de dezesseis anos com a qual ele se casa; a relação sado-
masoquista criada entre os dois terminou com o suicídio Mas o desejo e a procura de uma relação é necessida-
da jovem e com a abissal solidão do torturador. O suicídio
de inata dos seres humanos, e o feminino se faz portador
que encerra essa narração pode ser considerado também,
dessa capacidade, porque, como disse Neumann, perma-
em chave simbólica, como a morte psicológica e afetiva de
nece na relação com a mãe por muito mais tempo do que
uma pessoa, mesmo com a sobrevivência do corpo. O usu- o masculino, o qual, desenvolvendo identidade sexual
rário, em seu jogo de poder com a jovem esposa, emprega
diferente, afasta-se mais depressa da simbiose.
um sistema de comunicação diferente, prevalentemente Nas dinâmicas de casal a resposta do masculino
o silêncio. Muitas vezes o abuso do poder conferido pelo muitas vezes é inadequada, pueril e tola. São poucos os
papel sexual passa por essas formas de comunicação homens que evoluem integrando seu componente femi-
oblíqua. O silêncio é uma das armas mais ferozes que se nino, aquele que, em termos junguianos, é definido como
podem empregar contra o outro; expressão de falso viti-
1 1,..,

116
anima; trata-se, todavia, de uma passagem necessária e sufocante. A palavra é instrumento fundamental para
para se chegar realmente à relação. Em sentido psico- a comunicação humana, e qualquer alteração patológica
lógico, o masculino deve tornar-se sempre mais feminino, dessa potencialidade imobiliza os interlocutores em um
e o feminino, sempre mais masculino. O silêncio no matri- penoso vazio de contato. Exi~tem pessoas ~ujo di~t;J.r~io
mônio mata, anula o outro e o nega até em sua presença e psicológico se exprime na direção oposta a do s1lenc10,
o impele lentamente à dimensão do não-ser, do não existir isto é, no "falar muito", o que também deixa duas pes-
mais. O suicídio de A meiga é o que experimentamos soas no vazio de contato e de significado. Mas o silêncio
continuamente no cotidiano como desqualificação, descre- é o mais esmagador e impetuoso; o silêncio impõe uma
denciamento, desvalorização de nossa presença até o apa- condenação sem apelo e capaz de provocar naquele que
gamento total. Atingidos por esse silêncio, começamos a 0 sofre sentimentos de culpa tanto mais atormentadores
duvidar de nossas percepções: ainda existimos? Lançamos quanto mais inexplicáveis. Diante do silêncio, a pessoa
mensagens e pedidos, que retornam no meio do silêncio e se sente "punida", sem saber por quê. Pensemos no que
sem modificações. Geralmente as vítimas dessa interação sentimos quando alguém "faz cara feia" para nós: estamos
patológica são as mulheres, porque nelas o impulso para sozinhos diante de uma hostilidade não verbalizada, e,
a relação é dominante com referência à prevaricação. Eis embora a nossa mente percorra mil vezes um trajeto la-
uma boa justificação para o fato de o número de mulheres biríntico, procurando identificar a sua causa, sentimo-nos
que se submetem a tratamento psicológico ser maior do cruelmente privados do único elemento que nos ajudaria
que o dos homens: elas procuram escapar ao estilicídio nessa procura, da única ponte que nos daria acesso às
da não comunicação. Seria, contudo, inexato generalizar motivações do outro: o contato. O silêncio pode ser "cruel"
esse fenômeno: muitos homens também são vítimas do literalmente, e não só literariamente, pode revelar forte
silêncio feminino, sádico e culpabilizante. componente sádico, ainda quando aquele que o adota toma
O lugar por excelência no qual se trabalha para o ar de vítima, trocando os papéis, graças a uma escolha
restabelecimento de relação na qual a comunicação seja claramente renunciatária e, por isso, "passiva".
significativa e adequada emotivamente é o da análise, O usurário deA meiga sente-se "vítima" dos outros,
uma vez que também o chamado "silêncio analítico" se e na confusa pretensão que alimenta esse vitimismo
usado adequadamente, apresenta forte conteúdo comu- entra também a escolha de uma profissão tão vinga-
nicativo. Em muitas relações o silêncio obstinado traz tiva e agressiva como a de quem empresta exigindo
consigo uma mensagem de rejeição que não é fácil deci- penhor. Por outro lado, trabalho e amor são as áreas
frar; também na análise o silêncio pode veicular uma face nas quais pagamos a preço altíssimo todas as omissões
agressiva, mas a tomada de conhecimento disso esvazia-o e distorsões que pesam sobre a nossa autenticidade. O
de seu caráter destrutivo e paralisante. O que torna tão usurário além de exercer trabalho humilhante, cons-
dramática a modalidade comunicativa das duas persona- truiu uma ' relação matrimonial totalmente neurótica.
gens dostoievskianas é a impossibilidade de se iniciar um Trata-se de dinâmicas muito difusas, e quem sofre com
"discurso" sobre o silêncio e, portanto, de se fazer a inte- elas não é só a mulher, a qual, entretanto, é quem paga
ração sair dos trilhos neuróticos que a tornam apertada o preço mais alto desses mecanismos perversos, preço

118
realmente "de usura", porque ela pode ficar emotiva Em termos junguianos, diríamos que os distúrbios
e intelectualmente mutilada, senão aniquilada, e, de de comunicação e de relação se estruturam também em
qualquer forma, minada na confiança em si mesma. A decorrência da projeção de conteúdos inconscientes,
psicologia relacional vê os distúrbios da personalidade particularmente da sombra. Na família ou na dinâmica
como expressões de patologia do sistema interativo glo- de casal, quando se força um pólo ao papel negativo, e
bal que envolve o doente mental. O axioma principal em ele "aceita" esse papel, entram em cena a projeção da
tor~o do qual giram as pesquisas dos relacionais é que, sombra e a sua acolhida pelo outro. Muitíssimas vezes
na mteração humana, "é impossível não comunicar-se". o parceiro "doente" absorve a sombra do outro parceiro,
Consequentemente, também o silêncio é uma forma de como um filho "louco" muitas vezes é ou foi carregado com
comunicação, uma forma diferente como as mensagens a sombra de toda a família. Na linguagem corrente, esse
duplas, as comunicações oblíquas, por negação etc. A fenômeno é expresso pela metáfora "bode expiatório"; isso
sua característica é, porém, de serem indecifráveis e não deve admirar-nos, porque a psicologia não especula
deixarem o recebedor das mensagens em estado de sobre questões abstratas e fora do mundo, mas estuda
incerteza. É a linguagem típica dos pais esquizógenos, as dinâmicas cotidianas nas quais se movem os seres
que causam nos filhos conflitos de interpretação às ve- humanos com sua psique. Também no caso do usurário e
zes insolúveis. Todos os seres humanos cedo ou tarde da meiga, consideraríamos a "modalidade comunicativa"
passam pelo choque da ambivalência, do amor-ódio da do silêncio como um efeito da projeção da sombra dele.
mãe, do pai, dos mestres, da noiva etc. Mas, quando essa Ele se propõe à esposa como enigma porque quer salvar,
ambivalência se torna o pão de cada dia, um logogrifo assim, uma imagem grandiosa de si próprio e teme que
constantemente posto e imposto à criança, estrutura-se a comunicação confidencial, afirmativa, "amigável", o
um mal-estar da personalidade de cicatrização difícil. revele em sua pequenez, em sua mesquinhez, em sua
Diante dessa comunicação patológica, expressão de miséria. Dostoievski (1876, p. 40) põe, pois, em sua boca
vício psicológico de todo o sistema familiar, a doença as seguintes palavras:
mental é ~ resposta certa, no sentido de que é a única
Aos seus entusiasmos eu respondia com o silêncio, bené-
possível. E interessante também outro ponto de vista volo, entende-se ... mas ela compreendeu logo que éramos
da psicologia relacional, segundo o qual a doença de um diferentes e que eu era um enigma. Era isso que eu queria:
componente da família ou do grupo exerce importantís- parecer um enigma.
sima função "de equilíbrio" dentro do sistema global.
Com efeito, muitas vezes sucede de encontrar-se em Como se vê, também o usurário procura, através da
terapias familiares dirigidas por esses psicólogos o grau arrogância e da severidade do silêncio, salvar-se de sua
de resistência oposto pelos pais às primeiras melhoras fraqueza, projetando-a em sua mulher, a meiga. E que dizer
do filho esquizofrênico. Por mais paradoxal que pareça, daquelas figuras femininas que parecem nascidas expres-
a cura do filho incluiria revisão e acomodação dos pa- samente para receber as projeções do homem? O discurso
péis de todos os membros da família, coisa vista como se torna muito complexo porque às dinâmicas psíquicas
ameaçadora pelos componentes "sãos". individuais se junta o peso do ambiente cultural e social
120 1 ')1
de cada pessoa. É claro que em uma sociedade baseada A mulher do usurário reage ao silêncio com o silêncio
nos valores patriarcais a mulher é induzida a suportar , a mais extrema das consequências: o suicídio. A essa
at e ra único culpado é o usurano;
, . e1e e, o sa'd'ico, ~ ~s-
esse papel de receptora passiva das projeções masculinas, ltu 0
a ·no' a sombra Com um só gesto, a "v1't'ima".imobi1iza
para o bem e para o mal. O próprio usurário afirma em seu sass1 , ·
desesperado e alucinado monólogo interior (ibid., p. 45): seu algoz e sai de cena.
E a mulher que ama, oh, a mulher que ama justificará até
os vícios, até os delitos do ser amado!

A "meiga" recebe a projeção da sombra do homem e,


conformando-se com o jogo do silêncio, é arrastada para a
doença do "subsolo". Está muito fraca e muito ferida para
responder de outra forma à afronta do marido; não tem fa-
mília, não tem dinheiro, não tem para onde ir. O marido é
seu protetor e seu carcereiro. Ainda que seja muito longa a
estrada percorrida pela mulher desde a época de Dostoie-
vski até hoje, é certo que essas mudanças são muito lentas·
em deitar raízes na consciência. As anima-women, como
Jung chamou as mulheres que vivem para encarnar as
projeções do homem, são muitíssimas nos dias de hoje, se
bem que os costumes e os modos desse fenômeno tenham
mudado. Todavia, como mostra a agudíssima introspecção
de Dostoievski, o homem agiria bem se desconfiasse da
submissão passiva das "santinhas". Agiria bem também
a mulher, porque escondendo-se no papel passivo, "trai"
as potencialidades intrínsecas de sua natureza, e o preço
desse sacrificio não demora a fazer-se sentir em termos
de distúrbios psíquicos e também psicossomáticos, como
dissemos acima.
Nas relações sadomasoquistas, a vítima exerce papel
de grande poder, e o torturador esconde terrível fraqueza.
Com efeito, o masoquista, traindo seu próprio poder, usa
o de outrem e ilude-se, pensando que assim salva uma
imagem aceitável de si próprio: o mau é o outro, e se pode
continuar a odiá-lo porque ele é mau. Na realidade, a
sedução é recíproca.
123
122
10 em obras como O vermelho e o negro de Stendhal, Anna
Karenina de Tolstói, Os amantes de Lady Chatterley de
EUFORIA CONTRA ALEGRIA Lawrence. Também o protagonista do Ulisses de Joyce,
Leopold Bloom, é um homem traído, homem que percor-
re as ruas de Dublin, entre feitos mínimos e malfeitos
mínimos, em certo dia de sua vida, dia que resume todos
- Sei que tu me trais. os dias e, talvez, toda a vida, dia escandido precisamente
-Como?
-Tu o sabes. pela traição da mulher. O paradoxo enunciado por Bataille
-Não sei. (1962, p. 72), segundo o qual
- Mas o fazes.
-Como? algumas vezes uma proibição foi violada,
- Fazendo-o e não sabendo o que fazes.
(C. Michaelstaedter, Diálogo entre Carlos e Nádia, p. 97) faz parte desde sempre da consciência e, portanto, da força
do romance (ibid., p. 379). Como escreve ainda Tanner
na conclusão de seu estudo para afirmar a presença do
Como afirmei atrás, o adultério pertence ao feminino. adultério no romance (ibid., p. 381):
E não é só o exemplo oferecido pelo mencionado romance Vem a tentação de dizer que sem o adultério, ou sem a
de Apuleio que corrobora essa assertiva. Os romances constante possibilidade do adultério, o romance teria sido
oitocentistas, para permanecermos no horizonte literário privado de muito de sua urgência narrativa. O que é certo
.
giram geralmente em torno da mulher adúltera: pense-
' é que sem o tema do adultério a história do romance teria
sido muito diferente e muito menos rica.
mos, entre outros, em Madame Bouary de Flaubert. O
adultério, como sugere Tony Tanner (1979, p. 24), pode
até ser considerado Em suma, o adultério propicia "alguma coisa a
contar", permite por outros modos o acesso a um mundo
a forma generativa da literatura ocidental como a conhe- dotado de significado. Obviamente isso diz respeito tanto
cemos. ao romance quanto à própria vida. Diríamos, pois, que a
vida seria muito menos rica sem esse doloroso acesso ao
De Homero para cá não faltam exemplos. A grecidade mundo do significado que é o adultério. Vejamos, então,
conhece, entre outros, os pares adúlteros Páris-Helena, a experiência crucial do problema do qual estamos tra-
cuja transgressão foi funesta para o mundo dos heróis, tando, a saber, da traição praticada, por assim dizer, no
e Clitemnestra-Egisto. A literatura cavalheiresca da seu ambiente natural, na sua sede própria e mais óbvia,
Idade Média cita os casos de Lancelote-Genebra, cuja isto é, na vida de casal. Não é muito importante se o laço
transgressão pôs fim ao ciclo da Távola Redonda e de afetivo foi ou não institucionalizado, já que as vivências
'
Tristão-Isolda. Tanner não deixa de mencionar os últimos psicológicas fundamentais se equivalem, para lá das es-
dramas de Shakespeare, o teatro inglês da restauração fumaturas ou das complicações que cada uma das duas
e sobretudo o romance dos sécs. XIX e XX. Pensemos escolhas - matrimônio ou convivência - pode conter.
124 191'\
Nessas circunstâncias, a pergunta que se apresenta e de etapas existenciais importantes, como o trabalho e a
que propomos antes de tudo a nós próprios é: "por que formação de uma família, não corresponde o amadureci-
fiz isso?" Assim, entramos em um dos caminhos mais mento psicológico no âmbito da relação da sexualidade e
trágicos, solitários e dolorosos da vida. Traído e traidor do sentimento. É por isso que o mundo está povoado de
estão um diante do outro na tentativa patética de tornar homens e mulheres cujo desenvolvimento, sob o ponto
compreensível e exprimível um acontecimento para o qual de vista emotivo e afetivo, parou nos albores da expe-
não existem palavras. Para quem "sofre" a traição do ou- riência dos primeiros anos de vida. Na verdade, não há
tro, a procura de uma explicação faz parte do processo de nascimento psicológico individual sem a experiência da
elaboração do luto, processo no qual a pergunta encontra "traição". Vindo ao mundo, o homem insere-se em condição
seu sentido não na resposta, sempre insatisfatória, mas ontologicamente exposta à derrota da traição: traição da
em ganhar tempo para organizar uma possível defesa. vida através da morte, traição do amor através do ódio,
Ficamos deprimidos e enfraquecidos diante de uma ver- traição da unidade originária através do nascimento. Não
dade que intuímos mas não conseguimos compreender, crescer através da experiência da traição significa nunca
porque afundada no inconsciente, nos níveis mais arcaicos ter acesso ao mistério da vidà, ficando confinado de modo
e primitivos da psique. Fora confiada ao outro a impos- completamente inconsciente na procura repetida de um
sível recomposição da fratura experimentada na relação outro com o qual fundir-se e renunciando ao peso e às
com os pais, mas como a criança não possui instrumentos responsabilidades que a unicidade e a separação próprias
para superar com solidez e criatividade a perda do amor, comportam inexoravelmente. Quando esse desejo infantil
também o adulto que não curou o ferimento sofrido na de "plenitude" se agarra a um objeto concreto, a perda
relação com os pais não esperará exorcizá-la vez por todas já se verificou. Como esclareci atrás (Carotenuto, 1987,
através do enamoramento. pp. 92ss), a presença dentro de nós da criança inerme e
Quando amamos com o desejo inconsciente de anular pronta a entregar-se incondicionalmente a quem está ao
a ferida originária, e uma vez mais somos abandonados seu lado é precisamente o que nos expõe à frustração,
e entregues à angústia da perda, podemos salvar-nos mas, ao mesmo tempo, é húmus da experiência amorosa,
somente através de um crescimento que nos mostre quão do momento extático de fusão com o amante. Não existe
anacrônico é o desejo de fusão total e indiferenciada e e não pode existir "amadurecimento" fora da relação
como está destinado a malograr, uma vez que a vida nos consciente com nossa dimensão infantil.
repropõe continuamente experiências de separações e di- A reação de quem é abandonado é intensíssima e
ferenciações. A criança sente necessidade de ser refletida visceral, e a consciência de que os sentimentos em jogo
e contida pela mãe, é necessidade natural e indispensável vão muito além da ligação afetiva não abranda essa dor.
à sã estruturação do eu. Infelizmente, nem sempre essa Reproduzindo antigos modelos de relação ilusoriamente
necessidade é satisfeita, por causa da inadequação da confinados no passado, a traição repropõe situação assi-
figura materna e do ambiente familiar. Nesses casos, o métrica. O pacto de amor foi violado, e, com ele, a garantia
resultado é que ao crescimento cronológico, ao desenvol- implícita da dependência recíproca, que assegurava sua
vimento das faculdades intelectuais e talvez à realização solidez. A autonomia imprevista com a qual quem trai se
126 127
apresenta ao outro representa ataque duplo, porque se espécie de associação para delinquir: esquecido de todo
funda na reconstrução de outra dependência fora da rela- senso ético, vive numa dimensão além do bem e do mal.
ção. Aquele que falta à relação já reinvestiu suas energias, Em sua autonomia, não tem necessidade de confirmações
admita-o ele ou não, em novo objeto, e este lhe basta para externas e pode até nutrir-se da contraposição transgres-
restabelecer o equilíbrio interno, que encontra na vida de siva da norma social. Essa experiência oferece níveis de
casal um de seus esteios principais. O encontro não se satisfação mais elevados, que parecem excluir toda possi-
dá com armas iguais. Preso em novo amor, o "traidor" já bilidade de ressarcimento quando ela vem a faltar. Como
encontrou novo ajustamento e nem por um instante ficou já dissemos, o fim da ligação é sentido como inesperado
desequilibrado por causa da ruptura do equilíbrio ante- esvaziamento de sentido; o indivíduo é restituído a uma
rior. O "traído", ao contrário, foi atirado para fora de seu cotidianidade tanto mais opressiva quanto mais intensa
centro de gravidade e mortificado não só pela irremediável foi a paixão. A pessoa amada tornou-se um estranho, seus
depreciação como também por ser assim exposto em sua pensamentos estão em outro lugar, e neles não há lugar
dor; o abandono com o qual se doava à pessoa amada se para nós: somos cancelados, litera,lmente "deixados de
transforma em insustentável nudez. Ferido na confiança fora". A mentira à qual recorrem, nesses casos, ambas
profunda colocada nela, tão semelhante à dependência as partes é, para um, uma estratégia de sobrevivência e,
absoluta experimentada na relação primária, o traído para o outro, um modo de atenuar o sentimento de culpa.
é entregue à morte. A suspensão da temporalidade que É nesse momento que repentinamente somos precipitados
vivemos na relação passional é abalada pela traição, e o da experiência da eternidade na oposta, a da precariedade
"eterno" no qual nos iludíamos se transforma de repente mais vulnerável e da dúvida sobre se já deixamos de exis-
em um nada; apertados em um presente imóvel, não tir, em suma, da morte. Se antes estávamos vivos como
conseguimos imaginar saída. A intensidade de nosso nunca e animados de sentimento fortíssimo de nossa exis-
desespero é igual à da exaltação amorosa vivida até um tência, agora estamos reduzidos a espectros evanescentes
momento antes, ambas absolutas e irrevogáveis. A paixão e incorpóreos, porque fomos despojados não só da alma,
amorosa pode chegar a profundidades raramente atin- mas também do corpo. Nada mais nos pertence quando o
gíveis por outras paixões, porque constitui um universo outro leva consigo a riqueza de nossa alma e a beleza de
narcisicamente autossuficiente. Os amantes vivem na nosso corpo. Porque a beleza de nosso corpo é sobretudo a
clandestinidade, como que protegendo-se dos ataques capacidade, que toda pessoa que ama tem, de dar prazer
invejosos do mundo. De modo análogo, na décima terceira ao parceiro. É nessas ocasiões que à gratidão de termos
regra que figura no fim do livro segundo do De Amore de sido satisfeitos pelo prazer do orgasmo acrescenta-se uma
Andrea Cappellano (1980, p. 283), é dito que espécie de estupor encantado por não havermos suscitado
no outro, quando estávamos mais indefesos e vulneráveis,
o amor manifestado raras vezes costuma durar. nenhuma hostilidade. Talvez sejam essas as imagens que
surgirão com prepotência inaudita quando em um ou no
A dupla é vista pela coletividade como potencial ame- outro parceiro insinuar-se a suspeita e começar a emergir
aça, como desafio e afronta. O casal pode tornar-se uma o ciúme feroz. No fundo, tendo pedido "tudo" ao nosso
19.Q
128
parceiro, julgamos ter-lhe dado "tudo". Não percebemos
que justamente nesse pedido e nessa "entrega" absolutos
'1Ill ões e visões exageradas da figura do psicanalista, o qual
t: ~ um ser humano, capaz, obviamente, de cometer erros
se encontra a semente de seu próximo abandono, do qual
a traição é uma das formas possíveis. De fato, ninguém
!'
:Ill
e seu trabalho. A habilidade do psicanalista consiste
corrigir a rota, quando percebe que imprimiu direção
errada à terapia. Digamos, porém, que, se a profissão
consegue suportar por muito tempo semelhante investi-
mento, sem sentir-se esmagado por ele. que escolhemos nos põe diante de. situações emotiv_as
No amor passional, a presença do outro parece essen- profundamente envolventes, a condição que nos permite
cial à sobrevivência de nosso eu, o que mostra o quanto enfrentá-las é a da estabilidade emotiva e afetiva pes-
seu funcionamento continua frágil e dependente. Com soal. Com efeito, não fosse assim, o analista acabaria
efeito, a força indiscutível que o eu consegue adquirir no afetando gravemente com sua "l oucura" a "loucura"dos
amor passional parece penetrado de inquietação indizível, pacientes.
sempre presente, que classificaríamos como a linfa da A inevitabilidade da ruptura e o fim· da ilusão amo-
dependência. De fato, o eu é reforçado em seu "existir" à rosa não significam que a vida solitária seja necessaria-
medida que existe o outro, ao qual estamos ligados pela mente a solução mais realista e mais corajosa, porque
paixão. Abdicamos completamente de nós próprios, e o a realidade da traição não representa algo diferente da
perigo dessa situação emerge quando o outro se subtrai, dialética insuprimível da vida. Pessoalmente, penso que é
deixando-nos indefesos e despojados. Não obstante, essa necessário muito mais coragem para viver no matrimônio
experiência dolorosa oferece extraordinária oportunidade do que para viver sozinho. A vida de casado está sempre
de crescimento psicológico, embora tão devastadora que exposta à traição, que nos fere em nossa integridade física
leva ao suicídio pessoas muito vulneráveis; é somente e psíquica.
atravessando e vivendo-a até o fundo que conseguimos Muitas são as possibilidades de enfrentar a traição, e
elaborar uma relação consciente com nós próprios. Se a entre elas a estratégia de Górdia é uma das mais usadas.
relação de casal se mantém com o tempo, e o eu de um é Ademais, que poderia fazer o jovem rei da Frígia diante
capaz de conservar uma relação psicológica com o outro, do nó que amarrava seu carro e que ninguém conseguira
inegavelmente ambos se fortalecem. desatar? Prometer a Ásia, segundo o oráculo, a quem
Quando se pergunta a um analista como consegue resolvesse o problema. E Alexandre Magno foi capaz de
suportar o contato contínuo com o sofrimento, a resposta resolvê-lo, compreendendo, porém, que a solução só po-
exaustiva e sincera não é tanto a que atribui sua força deria ser drástica.
aos longos anos de exercício da profissão, que o imuniza- No maior amor de nossa vida, a experiência da
ram contra eventuais quedas (essa resposta é dada por separação ou da traição se apresenta verdadeiramente
incompetentes a outros incompetentes). A explicação como "golpe no coração", e assim é recebida no corpo e
mais adequada da relação criativa que o analista conse- , na alma. Quando nos sentimos abandonados pela pessoa
gue ter com o sofrimento próprio e alheio é a que reduz amada, desenvolvemos uma série de sintomas físicos,
essa capacidade à aquisição do equilíbrio afetivo em sua embora não tenhamos consciência de sua conexão com
vida pessoal. Também aí não devemos cair em idealiza- nossa situação psíquica arrasada. Às vezes é justamente

130 131
a dor sufocada e removida, em nível consciente, que se dado a vida ao parceiro e de receber o sentido da vida, o
manifesta em alguma indisposição do corpo. Sentimos nosso narcisismo e a estima que temos de nós próprios
que o outro levou consigo alguma coisa de nós, sentimos parecem alcançar o ponto culminante. Não está muito
que nos mutilou, que nos arrancou da unidade e da con- claro o que ocorre quando um dos dois parceiros perde
tinuidade do corpo. É como se o traidor, depois de nos 0
interesse, como também não é claro por que só aquela
haver abandonado, ainda dispusesse de um "eu auxiliar" pessoa, e não outra, lhe interessou até ent~o. Por que,
o nosso eu, que nos teria roubado. Assim, o traidor é' no auge de uma paixão, de modo totalmente mesperado,
sentido pelo traído de maneira obsessiva e persecutória outra pessoa é capaz de evocar sensações que a anterior
sendo muito importante recuperar alguma relação com' já não pode? Creio que isso se deve às dinâmicas rela-
a realidade, recuperação para a qual parece necessária cionais que se estruturam no casal. Um casal se forma
uma verdadeira força do eu, de um eu não nutrido pela e interage de acordo com modalidades preciosas. Os dois
dependência. Do contrário, escolheríamos o traidor como parceiros que o compõem representam, metaforicamente,
parasito de nossa vida e nos tornaríamos causadores de as duas partes de um anel de engaste. De fato, muitas
um vitimismo que se espalha e nos serve, paradoxalmen- vezes a relação se funda mais nas diversidades do que
te, para não mudarmos, para não cuidarmos realmente nas semelhanças dos parceiros. Em termos junguianos,
de nós próprios. falaríamos de tipologia. Cada um deles representa para
A verdade é que a traição não pode ser atribuída a o outro o aspecto faltante, a parte em sombra de sua
um só dos componentes do casal; em certo sentido, tra- própria personalidade. Juntos, é como se essas duas
ído e traidor recitam um texto preciso, no qual, porém, polaridades pudessem reconstituir-se em unidades. Cada
cabe ao traidor a parte mais onerosa. Ele deve assumir a . \ um dos parceiros procura na relação a completude de seu
responsabilidade de preparar as bases para uma revisão ser.Já mencionamos, a esse repeito, o mito do andrógino,
e dissolução de uma relação que já perdeu toda ·razão exposto por Platão no Banquete. Um análogo hebraico
de ser. Muitas vezes o traído já há muito pressentia poderia ser constituído pelo seguinte trecho do Talmude
o drama, mas sentia necessidade de negá-lo, porque (Nidda 3lb, in Elka'im-Sartre 1982, p. 1370):
investira tudo na outra pessoa. O mundo está cheio - Por que é o homem que procura a mulhe~-, e não. o con-
dessas telenovelas, nas quais "amar" é uma palavra mal trário?, perguntaram os discípulos de Rabi Dostai, filho
usada: queremos "ligar", ligar o outro, de mãos e pés, ao de Rabi J anai, a seu mestre.
nosso sonho narcísico. A antiga ligação de dependência - É como quando se perde um objeto. Quem procura? E
total em relação a quem nos deu a vida reemerge de o que é procurado? Aquele que perdeu procura o objeto
modo absolutamente inalterada, e não há "amadureci- perdido.
mento" que suporte - o amadurecimento que muitas
vezes equivale a insensibilidade - para receber, se:rn Ora, o objeto perdido alude presumivelmente à cos-
pestanejar, o golpe que nos é desferido. Aqui entra:rnos tela retirada de Adão, enquanto dormia, e os termos "ho-
em relação com um aspecto particular do narcisis:rno. mem" e "mulher", aos quais o texto se refere, não devem
No amor passional, quando temos a sensação de ter ser entendidos tanto em sua acepção biológica quanto na

132
psicológica. Fílon de Alexandria, por exemplo, distinguia esquemas de comportamento, de coaç?es, .e é só sobr~
as duas narrativas da criação do homem (Gênesis 1,27 e elas que se fundam as dinâmicas relac10nais do casal: E
2,7) no sentido de que só no segundo texto (Gênesis 2,7: muito instrutivo observar que é sempre o mesmo motivo
"Deus modelou o homem com argila do solo, insuflou em que gera rancores e incompreensões no casal. Ele .se mede
suas narinas um hálito de vida, e o homem se tornou um pelo mesmo tema por anos, às vezes por toda a vida, sem
ser vivente") se referia ao gênero masculino, ao passo que nunca chegar a uma virada efetiva. Se, porém, o outro
o primeiro (Gênesis 1,27: "Deus criou o homem à sua ima- é aceito somente enquanto corresponde à expectativa,
gem, à imagem de Deus ele o criou, homem e mulher ele é claro que, na vida de casal, cada u~ é delimitado. em
os criou") conotava o ser humano em sua indivisibilidade um papel, e não pode sair dele. A traição pode ser h~a,
original. Na linguagem de Fílon, esse último é conotado portanto, não só como abandono .do outro, mas tambem
como "ideia" (com referência a Platão) ou como "gênero", como tentativa irada de reconhecimento daquelas partes
enquanto os gêneros masculino e feminino são conotados de si sufocadas na relação.
como "formas" ou como "formas sensíveis". Escreve, pois, No casal, se a fantasia fusional faz ambos perder,
Fílon de Alexandria nas Alegorias das leis (II, 13, pp. de alguma forma, a identidade própria e, porta~to, os
215-16): próprios limites, a traição se propõe como te~tativa de
restabelecê-los. Através da traição poder-se-iam com-
Deus procede em todas as coisas do mesmo modo; de fato, preender as motivações internas, psicológicas, que nos
antes das formas, ele faz os gêneros, como de resto faz
também com o homem: tendo esboçado o gênero homem,
ligavam a uma pessoa, já que isso representa um pont~ de
no qual estão compreendidos, como diz Moisés, o gênero observação externo, desligado do vínculo posto em. cns:.
homem e o gênero mulher, por último produziu a forma Os aspectos da personalidade postos em sombra na ~1gaçao
sensível, representada por Adão. com 0 parceiro, os mais salientes, podem reemergir e .ser
manifestados em outra relação. Se se estudasse mais a
A perda, poderíamos dizer, a mesma que motiva a fundo a personalidade daquele que move o in~eresse de
incessante procura do outro, conota-se como tão radical quem "trai", poder-se-ia observar que ela mmtas vezes
que precede a vida consciente do homem ou seu despertar se diferencia muito daquela da pessoa an:ada ~ntes, e
do torpor causado por Deus. Portanto, uma perda poderia talvez seja mais semelhante à do traidor. E por isso que
ser o verdadeiro e próprio fundamento da relação. Com sustento que a traição representa, simbolicamente, uma
efeito, a relação, e em particular a relação passional, é passagem inevitável da vida dos que se am~m: ~m mo-
distinta do motivo da fusionalidade. A fantasia de repre- mento de abertura para o exterior e para o mtenor, u~
sentar uma unidade ou, como dissemos atrás, de sentir momento de reconquista da própria identidade. Cre10
que se perde a identidade própria sem a presença do outro também que prestar ouvidos conscientemente às pró-
constitui o eixo em torno do qual giram as dinâmicas dos prias fantasias de traição é muito diferente de pô-las e~
amantes. Isso implica também que na relação alguém prática impulsivamente, sem reflexão. Todas as pro~1-
é reconhecido somente à medida que corresponde às dências "hostis" que se impõem na gestão de uma relaçao
exigências do outro. Assim, em todo casal estruturam-se deveriam ser compreendidas em nível consciente, antes
rnfí
134
,,
f te anos fomos capazes de fazer nossas as imagens
de serem executadas. Do contrário, produz-se quantida-
~. dur.anbelas brotadas de nossa fusão com a mulher ou o
de incalculável de sofrimentos inúteis. Seria necessário
discernir a qualidade emotiva e psicológica do desejo de
f w::em amados, a confiança primeira lentame;ite se. r~-
h stituirá. Não saberemos quando se verificara a tra1çao
trair o parceiro: a traição corresponde realmente a um
con ·nte mas ao menos como homens aprenderemos !1
movimento de crescimento ou é a expressão de confusão
se~ ~-ia Sem esperança de suportá-la melhor na pro-
destruidora, vingativa, infantil? Que a traição seja, em
todo caso, destruidora e tal que arrase por muito tempo
:~ae~:z, ~em esperança de evitá-la; a única.esperança
é a de poder sentir de novo, com outro parceiro, aqw~la
uma pessoa parece inevitável. Pensemos, por exemplo,
. ~ncia de fusão amorosa à procura de um para1so
~~
que perdemos, justamente por termos t rai~ o suas~ .
nas imagens sexuais que trazemos dentro de nós. Todo
psicólogo sabe quão frequentemente a potência sexual de
um homem ou de uma mulher não é indiferenciada, mas
ligada de modo específico ao seu parceiro. É certo que isso
pode ser considerado fato positivo e como sinal de imenso
e total desenvolvimento; mas quando tudo desaparece, a
experiência analítica ensina amargamente quão frequen-
temente impotência ou frigidez acompanham a pessoa
abandonada também durante anos. Provavelmente existe
em cada um de nós a possibilidade de regredir a um es-
pecífico de nossa memória sexual infantil que é ativado
no encontro. A linguagem comum usa a expressão "atrai-
me muito", e acerta no alvo, porque nessas situações
sentimo-nos literalmente arrastados, presos, incapazes
de libertar-nos. Esse é um aspecto dramático do casal,
porque nos torna dependentes do parceiro como de uma
droga. As imagens "certas", as imagens-chave, as imagens
"atraentes" podem ser um modo de sorrir ou de mover as
mãos, um corpo sinuoso, uma sensualidade exasperada,
o timbre da voz ou a forma dos lábios, em suma, qualquer
característica do parceiro que exerça sobre nós o mesmo
poder arcano do tocador mágico de flauta, que atraía atrás
de si os ratos e, depois, todas as crianças.
Por sorte "tudo passa": como cedo ou tarde o amor
acaba, também está destinada a cessar a dor produzida
por esse fim naquele que saiu derrotado. Se resistimos à
devastação, se enfrentamos nossas responsabilidades e
137
136
11
'
,~("
;1;
:j'.
~· permitiu a sobrevivência, torna-se mórbida; invade
nossa existência como sintoma obsessivo. Não importa
COAÇÃO DO SEDUTOR se o ciúme conta com fundamento na realidade ou não,
E VANTAGEM DO TRAÍDO se é confirmado por algo objetivo ou não, porque sabe-
mos que ele resiste tenazmente a qualquer confutação
ou redimensionamento. Observamos os gestos do outro
para que as nossas suposições sejam convalidadas,
~ão, nã?, ~constância é boa para os rústicos. Todas as bel se bem que no plano da consciência quereríamos ser
tem o direito de fazer-nos enamorar. as
desmentidos. Mas é muito tarde, e a realidade agora
(Moliere, Dom Juan ou o festim de pedra, p. 12) está fora do jogo. O mundo interior se move mudando
radicalmente nossa percepção dos acontecimentos e
dando um mesmo significado aos fatos mais diversos.
O eu sucumbe ao grande poder do inconsciente, ficamos
emotivamente impotentes, desautorizados, incapazes e
Inexor.avelm,ente o ciúme aflora na cena tumultu- tomados pela suspeita. Literalmente à mercê de fanta-
osa. da t.raição. E sentimento que abole toda lógica e sias persecutórias e por sentimentos autodenegridores,
racionalidade e qu~ tem antecedentes vividos e sofridos a posse recíproca pela qual fomos nutridos nos torna
por ca.da um de nos nas experiências imediatamente agora escravos. Já não temos a possibilidade de manter
p~~tenores ao n~~cimento, quando vemos que o primeiro relação objetiva com os fatos, que são interpretados em
o aeto de amor Jª pertence a outro e logo estamos em- uma só e obsessiva perspectiva, a perspectiva favorável
penhados em uma luta com o pai, para assegurar-nos às nossas suspeitas. Por que essa devastação? Além dos
~.ª:11-ºr ~at.erno. Na relação de casal adulto, es~a con- muitos lugares-comuns e da frequente atitude fatalista
iç~o psiqmca ~ reexumada da memória inconsciente, com a qual são abordadas essas situações - atitude
obrigando-nos a procura obsessiva do "corpo de delito". reveladora, entre outros, do desejo coletivo de exorcizar
O c~mportamento e a capacidade relacional de quem até o espectro do abandono, encarnado por aquele que foi
um i~stante antes não era ciumento se transformam As rejeitado-, interessa-nos sublinhar um aspecto menos
qua~1da~es ~aciona~s, o controle pessoal e a dignid~de óbvio. Não é a verificação da suspeita que nos aniquila,
~abit~ais sao ~o:nmad.os pela violência explosiva da mas as imagens que constelaram a relação. Se o ciúme
moç~o. Na traiçao, a dimensão do amor passional tão substitui o amor na relação com uma pessoa com a qual,
perfeita que parecia supraterrena, inesperadam~nte no passado, compartilhamos muito, a recordação dos
se transtorna, fixando-nos na dor de nosso isolamento momentos de felicidade que vivemos juntos se tranforma
Nesse ponto, a suspeita - que também é uma medid~ nas imagens que nos imobilizam, nos atormentam e não
huma~a, todo humana, diria, do estar em relação - nos abandonam mais. Sabemos que se trata de momentos
essa disposição "moderadamente paranoica" que no~ irrecuperáveis, e não pensamos nas dificuldades, nas
incompreensões e nas muitas pequenas traições que
138
1QQ
preparam. o caminho para a ruptura final. As imagens pode ver-se obrigado a defrontar-se com. sua doença.
podem. ser, por exemplo, a expressão do rosto, o modo Quantas vezes um. homem. consegue esconder de si m.esm.o
de mover-se, as mãos: particularidades insignificantes sua depressão, vivendo-a sub-repticiam.ente através da
para um. observador externo, m.as preciosíssimas para a depressão da mulher, boicotando suas tentativas de cura
pessoa que am.a. O ciúme chama essas imagens interio- ou caindo em. seu vazio interior quando a relação falha!
rizadas, e não conseguimos separá-las do investimento Geralmente, quando não existem. pretextos plausíveis
libidinoso, que foi o que as criou; se o fizéssemos, dei- para esse controle, o ciúme oferece ocasião exc,el~nte para
xaríamos de dividir-nos com. a fantasia do terceiro, que se justificar um. com.portam.ento que, do contrario, o outro
agora goza com. isso. Quando percebem.os que perdem.os consideraria inaceitável.
o controle do outro, a relação já acabou. Indagam.os em. Há ainda o caso daquele que, mais ou menos in-
seus olhos e em. seus bolsos, investigam.os sua bolsa e conscientemente, assume em. todas as circunstâncias
sua agenda, notam.os a mudança de hábitos, analisam.os um.a atitude sedutora para provocar ciúme, com.o se
silêncios e palavras: a confiança acabou e já não poderá fosse esse seu único modo de existir. De onde nasce essa
ser restabelecida. Infelizmente, a suspeita nunca nasce exigência? A psicologia da pessoa ciumenta e a de quem.
no vazio, e, em.hora a traição ainda não esteja consuma- a solicita continuam.ente não são muito distantes um.a
da ~xternam.ente, a percepção da pessoa ciumenta, na da outra; de fato, essas pessoas muitas vezes se encon-
m.a10r parte dos casos, é fundada. A confiança primária, tram. e se unem.. O indivíduo potencialmente ciumento
que nos permitiu o amor passional, está minada, e se a se enamora justamente de quem. tem. necessidade, tam-
relação sobrevive é por outros motivos.
bém. incoercível, de pô-lo a dura prova. Por seu lado, o
Há outro aspecto, dificilmente compreensível para traidor tem. necessidade da pessoa ciumenta, a fim. de
quem. está dominado pelo ciúme e que merece ser mos- exercer controle e contenção sobre sua tendência. Esse
trado. A acusação de traição muitas vezes não pode ser é um. exemplo de conluio neurótico: a atração se funda
distinguida da projeção do desejo próprio de trair. Isso em. um.a correspondência patológica, tanto mais vincu-
significa que a pessoa ciumenta cultiva inconsciente- lante quanto mais vivida na inconsciência. O desejo de
mente a fantasia da traição, a fim. de mostrar por meio trair esconde a sede insaciável de confirmações, com.o
dela sua autonomia em. relação ao objeto. É evidente que se a estima pessoal nunca se tivesse consolidado e com.o
aquilo contra o que o indivíduo reage é sua dependência se se manifestasse sempre a necessidade de garantias
paralisante, nesse caso reforçada pela circunstância de cotidianas no plano da própria dimensão afetiva e eró-
ele haver sido rejeitado. Tem.e a traição principalmente tica. Nessas situações é difícil falar de "amor"; em. todo
porque a deseja. Na relação de casal cada um. nutre a caso, os indivíduos com. esse tipo de equilíbrio existencial
necessidade insuprim.ível de controlar o outro, necessi- provocam. grande sofrimento em. quem. cai em. sua rede.
dade tanto mais forte quanto mais a dinâmica relacional Mas onde reside a vantagem. psicológica do traído? Por
se sustenta na cumplicidade neurótica. Condição essa exemplo, na identificação com. um.a posição ~asoquista,
última que pode representar base muito resistente m.as na possibilidade de negar sua necessidade imoderada
também. muito frágil. Se um. deles viola o pacto, o ~utro de transgressão e sua sensualidade. Esse tipo de casal
140 1A1
'. . . .do ao "sedutor" pela primeira e mais poderosa
representa uma espécie de tropismo psicológico no qual to infligi . . d h. stória pessoal não pode saldar
as pessoas envolvidas tecem alegremente a teia do en. figura femmma e sua 1. '
gano, do controle e da suspeita. Dom Juan é o exemplo : a conta e encerrar a partida. do Otto Rank, é
o roblema de Dom Juan, segun . , -
literário mais conhecido dessa dinâmica: é um homem , " p lô" secreto e inconsciente de fideh~ade a mae,
. ~~oc~:fe insubstituível. Contra uma mãe tai° poder?ss~
em fuga, incapaz de relação autêntica. É a figura do
"sedutor", do homem que tem necessidade constante de in d grande número de mulheres pe as qua1
uma nova mulher na qual possa suscitar uma esperança ºªtªt~; d:v: continuamente passar (Rank, 1922, pp. 22-
e de necessariamente frustrá-la. Pelo fato de suscitar
essa esperança, é intensamente amado, porque a mulher
~~)~Escreve ainda Rank (ibid., p. 80):
armazenou desde a primeira infância uma necessidade A caça constante para ~o.ss~ir sexualmen~~ s~:~r~~~~~
insatisfeita de espelhamento; ela espera tornar-se objeto mulhere~ é insat~sfatoi:~ JUSt:em:~;~Jênda infantil de
da dedicação, da compreensão e do respeito desse homem. pode satisfazer so pareia men
Ele é amado e também odiado por essa mulher, porque regredir à mãe.
não consegue satisfazer suas necessidades e acaba sem-
Poder-se-ia então inverter a afirmação, como, elhnfim,
pre abandonando-a e traindo-a. Um exemplo literário . na realidade foram as mu eres
desse tipo de homem é o Frédéric Moreau da Educação o faz Rank, e dizer que - t , rio Vê-se isso
. t DomJuan enaoocon ra ·
sentimental de Flaubert (Alice Miller, 1981, pp. 88-92). que conqms aram ' t faz do poema
Observando analiticamente essa personagem, vemos que, claramente na análise que o nosso au or
't· de Edmond Rostand publicado postumamente
com toda a probabilidade, o sedutor foi uma criança que drama 1co J Assim resume
viveu com a certeza de que qualquer resistência à sua 1921 A última noite de Dom uan.
mãe acarretaria imediatamente seu abandono da parte
~~nk se~ momento culminante (ibid., p. 107):
dela. Existem, com efeito, figuras maternas extremamen- . re mais claramente aparece como a
O diabo, que semp bmete-o a uma prova, que
te frágeis e que exigem de seu filho o máximo esforço de consciência de Dom Juan,l su da mulher em questão por
adaptação e ameaçam abandoná-lo sempre que ele en- consiste em reconhecle\~ a ma rra MasDomJuan, tendo
contra uma oportunidade de dizer não. Como adulto, ele alguma palavra que e a e sussu . rova
conhecido só o corpo de suas mulheres, erra a p .
procurará neuroticamente transformar em "ativa" essa
dinâmica que sofreu como criança: oferece à mulher sa- Assim vê Rostando o preço pago por ~om Juant:_ o
tisfação e admiração e, depois, retira-se repentinamente. . t d alma Poderiamas en ao
Há uma verdadeira e própria ilusão de liberdade nessas absoluto desconhecimen ° ª · h
er ntar o que Dom Juan realmente con eceu
em sua
atitudes, das quais a traição é uma das feridas mais ph gu d . do humana carreira de sedutor. Escreve
dolorosas. Atrás dessa "liberdade" esconde-se, de fato, umana, emasia
profunda dependência, a de um indivíduo que não tem Rank (ibid., p. 108):
, áscaras As mulheres só lhe
o direito de dizer não porque sua mãe não o suportaria. Dom Juan con~e~eu s~ ~o quem. quis essas mentiras,
Naturalmente, essa represália tardia e desviada, essa mentiram, e foi e elhpropn ostra ao homem como ele a
retorsão, sobre outras criaturas femini-nas, do sofrimen- uma vez que a mu er se m
143
142
deseja ... Foram as mulheres que o conquistaram, e se ele A vileza de Frédéric Moreau esconde em si .~ma~?::~~
como é provável que suceda com qualquer v1 ezda. a .
o permi-tiu foi por causa de seu medo inconfesso de dever d scer sincera e franca depen e presunn-
ser fiel a uma só. a )esso~ Pâ_o ~~~de tolerância da verdade demonstrado
;~r~!~s~ais e das sanções relativas a ela que eles tenham
Todos nós carregamos as cicatrizes de nossa infân- imposto ao seu filho.
cia, mas uma ferida não cicatrizada não pertence só ao
passado, porque está sempre presente, pedindo curativos Não existe relação passional na qual nã? ~aja ci~~e,
e drenos, e, em suma, a coação para repetir domina nos assim como não pode estar ausente dela a tra1çao. O cri:im~
tempos longos, às vezes por toda a vida, as relações afe- x rime o direito próprio sobre o outro, uma po~se _Prim
tivas desses "sobreviventes" de um conflito remoto, cujas ~iJa que suplanta a razão e pode levar a atos crr.moso_s.
chagas ainda trazem. Semelhante a essa coação é a estra- Mas tudo isso pode ser vivido também em uma imensao
tégia típica à qual o sedutor recorre, a da mentira; para muito delicada, muito menos rara do que geralmente se
"poupar" às mulheres frustração e desencanto - como, no admite: a dimensão do incesto.
tempo de criança, à mãe -, ele se afasta delas, contando
mentiras. Sufocado sempre mais pela insistência delas,
esse tipo de homem procurará um pouco de liberdade,
provocando as mulheres para serem cruéis com ele. Trata-
-se de provocação indireta - o drama do sedutor consiste
justamente na incapacidade de exprimir diretamente
suas exigências - que o lança, também a ele, em uma dor
profunda, a qual explode quando a mulher desmascara
sozinha sua hipocrisia. Quanto mais vingativamente a
mulher reagir à vergonha de haver sido enganada, tanto
mais o sedutor se sentirá legitimado em abandoná-la,
pensando ilusoriamente que assim consegue distanciar-se
de alguma forma de sua mãe. Ele se dirigirá, portanto, a
uma nova parceira, perpetuando a cadeia diabólica das
satisfações e das frustrações. Por mais compreensiva e
afetuosa seja a nova parceira, ela, de fato, combate, como
Dom Quixote, contra moinhos de vento, porque não tem
o poder de transformar em "não acontecido" o trauma
originário que tornou tal o sedutor. Este, com os meios
mais inconscientes e sutis, constrangê-la-á a renunciar
à "compreensão" e a escolher a crueldade. Escreve Alice
Miller (1981, p. 91):
1AJ::

144
12 gam a dinâmica do incesto aos fundamentos universais
de todo sistema cultural, já que em ambas a proibição
ÁREA DE INCESTO ou, em todo caso, a superação da tendência incestuosa
abrem caminho para o aparecimento da consciência e da
cultura. Os pontos de vista de Freud e de Jung sobre o
incesto são indispensáveis à compreensão da natureza
~e~~~~~~:~~mjda, porque demasia~amente violenta; absolutamente extrínseca e deturpadora do juízo mo-
N- . ura para se pronunciar para ·
ao existem palavras para dizeA-lo A VI. IA ' . d se ()UVIr. ralista sobre essa transgressão, juízo que, ao contrário,
· - . · o enc1a a parte d
pa~, n_ao exidste, nunca, impossível. Foi ela que ~ seduz1'u oº é funesto para o crescimento psicológico do indivíduo.
pronaopo e"p "d , ·
É dem-"~sl Enta_eca: es~elmodo, e excessivamente odioso Não existe cultura na qual não esteja presente o tabu
o . , 1 ., (
cu. onaose1aa
. , . ·
pro. e a e~. .. .) O pro e a garantia da moral O ai é do incesto; isso significa provavelmente que ele repre-
~amaíh'.1,dº pdro Sé sagrado, nele não se toca. Ele é u~ b~uart: senta uma constelação psíquica com a qual cada um de
socie a e. e se tocar nele t d afu d
pátria, trabalho, família. ' u o n a, todos os valores: nós, cedo ou tarde, é obrigado a defrontar-se. O tema da
Assim, a adolescente fica amordaçada com a sua verdade. sedução da criança pelo adulto está na base da teoria
(E. Thomas, O silêncio da violência, 1986, p. 52) do complexo de Édipo, que Freud, em nível filogenéti-
co, entrevê no sistema totêmico, e que, na neurose, se
transforma em fantasia inconsciente capaz de invadir
toda a vida psíquica do indivíduo. O conceito de fantasia
·º !ncesto é aquela dimensão que nos impede de viver incestuosa é importante porque configura o problema não
a paixao amorosa fora do âmbito da família. Representa só em termos de realidade, mas também de imaginário
u~t ruptu~a t~l dos esquemas psíquicos e sociais que se pessoal. Os tabus são proibições antiquíssimas e, como
evi a menc10na-lo, apesar de ser ele uma traição terri~el­ tais, poderiam fazer parte de um patrimônio inato, tanto
mente ~ruel. Em 1932, Ferenczi, aluno de Freud escreveu que Freud (1912-13, p. 65) chega a perguntar-se:
~m lartigo sobre u~ tipo de comunicação total~ente par- Quem poderia decidir( ... ) se tais ideias "inatas" existem,
icu ar, o da comumcação entre a linguagem da . se causaram a fixação dos tabus sozinhas ou em concomi-
a do adult . criança e
, . . o, na qua1 a mtenção infantil, por exem lo da tância com a educação?
caricia feita pela menina ao pai e' trai'd 1 p ' -
, b'd d ' a pe a percepçao
mor i a el~. Fre_ud e Jung trataram o tema do incesto Segundo Freud, a coesão do grupo, pressuposto do
em perspectivas difer~ntes, as quais levaram às solu ões desenvolvimento civil e cultural, pode estabelecer-se e
~~rle;:~t:-Sd~ nos dois textos, quase contemporân~os manter-se só através da proibição do incesto, porque é
, . - '. ~tem e tabu e Símbolos da transforma ão' então que a lei se impõe sobre o desejo, o princípio da reali-
es~ecie de divisore~ de águas emblemáticos na vida çdo~ dade sobre o princípio do prazer. A sublimação dos desejos
dois autores : na história do pensamento psicanalítico incestuosos transforma a horda primitiva em sociedade
Apesar das diferenças das duas elaborações, ambas li~ regulada por normas, sociedade na qual a organização
cultural intervém sobre a existência meramente biológica,
146
147
'/
1

i;"
re~efinindo-a. Sob o perfil energético, a proibição do inces-
1

O "matrimônio sagrado" constituem expressões


to impõe um desvio à "libido endogâmica", orientando-a gamOs, , . ' ._
simbólicas da tensão ps1qmca para a umao dos opostos.
para fora, de modo a promover um investimento objetual
fora do estreito grupo ao qual ela pertence. Em sum o desejo de incesto se configura, po~tanto, co~o uma
Onstante da experiência humana, seJa ele praticado ou
a cultura não existiria sem uma restrição da tendênc7'a e - de seu
end ogam1ca d a energia psíquica.
A •
sofrido; a dificuldade consiste na compre~nsao
significado simbólico e de sua função evolutiv~ na econo-
Jung vê o problema de modo completamente diferen-
te~ de fato, sust~nta ele que o desejo de deitar-se com a mia psíquica do indivíduo. O estado regressivo ao qual
somos arrastados pela tendência incestuosa, se, de um
~ae ~~ com o p~1 deve ser compreendido como expressão
lado, nos impede de emergir da existência pur~~ente
szn:bo~i~a da psique e como metáfora do desenvolvimento
~s1col~gico. Portanto o tabu do incesto não decorreria de coletiva, do outro, representa o caminho ~ecessa~~o ~a
libido para as origens, caminho que preludia e~periencrn
imposição externa, ~as da proibição espontânea, que
avança com o progredir do crescimento individual. Com transformadora. Esse percurso é descrito pelo m1tolo~ema
efeito, a proibição do incesto obriga o ser humano a aban- da viagem do herói que, deixando a mãe para cumprir seu
do~ar uma_ situação simbiótica com a mãe e de fascinação destino heroico, realiza uma travessia noturna por. mar.
do i~consciente e arranca-o de sua condição de criatura
A "travessia noturna" o levará do Ocidente ao Oriente,
~ol~t~va confusa de~tro da tribo para fazê-lo tornar-se do lugar do poente àquele no qual pode ser individ~~do
um símbolo de renascimento. Esse abismamento. d~ l~b1do
md1v1duo autoconsciente. Não foi, portanto um evento
real que in~tituiu o tabu, mas o instinto ev~lutivo, que
conduz o herói a descobrir o mistério extraordmar10 da
leva ~ara a mtegração dos aspectos inconscientes da per-
existência individual.
sonalidade, o que, em termos junguianos, é definido como A interpretação literal do desejo de _incesto não, se
"processo de individuação". O potencial criativo de nossa verifica só entre filho e mãe ou filha e pai, mas tambem
energia psíquica se exprime em um impulso exógamo, em um processo analítico no qual frequentemente é repro-
posta a imagem de um pai forte e uma filha fraca, com a
~ue nos leva a procurar a união fora do grupo. O desejo
mcestuoso, ao contrário, tende a fazer-nos permanecer consequente ativação de sentimentos incestuosos. N e~ses
presos n?s vínculos _originários. Se, como pensa Jung, à casos, respeitar a regra da abstinência signific~ respeitar
personal~dade ~onsc1e~te de tendência exógama se opõe a não só a pessoa e seu sofrimento, mas ta~bem o val~r
simbólico autêntico e não personalizado do impulso end~­
per~onahd~de mconsc1ente endógama, esta, pelo fato de
ser mconsciente, é sentida como estranha e emerge então gamo. "Atuar" a fantasia incestuosa equivaleria a ~estrmr
a possibilidade de se viverem as pulsões psíqmcas em
na forma de projeção. A dimensão endógama incestuosa
encontra espaço, portanto, na fantasia ou é projetada nível simbólico. Se o incesto é posto em ato, a filha - em
em figuras ~ue goz~m. de prerrogativas exclusivas, por
casos bastante raros, o filho - é destruída internamente
exen;p~o, reis-º~ prmc1pes, como é testemunhado pelas e posta em condições de não poder mais dispor da ener-
tr~g~d1a~ de Ed1po e Fedra. Ainda na arte, as "núpcias gia criativa exógama, que a levaria ao e~terior. Quando
são abandonados os rituais protetores e mtegradores da
m1st1cas ou as representações alquímicas do hieros
libido endógama, a criança é abandonada a si mesma.
148
1 AC\
É obrigada a enfrentar e resolver sozinha um conflito contato corporal, que exige as modalidades próprias
moral que exorbita muito de suas reais possibilidades de de seu nível evolutivo, uma sexualidade sádica, com a
elaboração, conflito esse que tem a ver com os mistérios qual ela não tem nenhuma possibilidade de interação.
ma~s profundos da vida. A criança é repelida e entregue A dimensão afetiva assume claramente, portanto, as
a s1 mesma, porque, ciente da obrigação do segredo em conotações da chantagem. Se pensarmos na importância
relação aos outros familiares, é privada daqueles pontos que tem para seu desenvolvimento a função de espelha-
de referência externos que lhe são indispensáveis nessa mento oferecida pelo adulto, poderemos fazer-nos um~
fase de seu crescimento biológico e psíquico. É necessária ideia da devastação interior produzida pelo incesto. E
uma consciência muito evoluída para que ela sobreviva só espelhando, através de uma compreensão empática,
psíquicamente ao incesto, sem cair em uma cisão interna o mundo interior da criança, que os pais a ajudarão a
da personalidade.
exprimir pela primeira vez suas emoções, suas necessi-
E~ não podia gritar com a voz, não tinha mais voz. Meu dades, seus medos.
pai me arrancara a língua, me hipnotizara com a força de Creio que muitíssimas mulheres guardam segredo a
seu poder-amor. respeito de seu desenvolvimento psicossexual, e sempre
Eu estava, portanto, assim, na tentativa de reunir meus se trata de experiência de prepotência, se bem que não
pedaços, num último gesto de esperança de vida. Mostrar tão forte e clara como o incesto. É por isso que o femini-
um corpo esquelético de "vítima de campo de concentra-
ção" para tentar designar o algoz. Mas ninguém podia no geralmente tem uma sensibilidade desconhecida do
compreender, porque o algoz parecia fechado no corpo da homem. O aprisionamento da filha na concretização da
vítima. relação com o pai real e pessoal prejudica sua vida sexual
E~ ~ão yodia, aliás, designar o algoz de outra forma, e sentimental futura. De fato, muitas vezes a ferida do
pns10neira que era de seu poder-amor, se bem a palavra incesto leva a uma estratégia defensiva na qual o eros é
amor, como as palavras pai e amante não tivesse nenhum
~entido para mim. ' cindido pela sexualidade, no sentido de que os sentimen-
A noite o pai se torna amante, para voltar a ser pai na tos de amor, ternura e intimidade não acompanham a
manhã seguinte, e ~udo semyalavra. A carne nega a pa- experiência sexual, como se dá na relação adulta. O eros
~avra. A carne desvia o sentido da palavra. O sentido se é, pois, gravemente comprometido enquanto capacidade
mverte. A palavra pai explode ao contato dos sexos do pai de criar relação com o diferente, seja em termos intrap-
e da filha, contato impossível, inimaginável perda total
das referências, do sentido das palavras d~ sentido da síquicos, como polaridade não integrada, seja no âmbito
vida (Thomas, 1986, p. 131). ' de relação real com outro indivíduo. Separando o sexo do
sentimento, a criança e, depois, o adulto marcado pela
A experiência do incesto provoca cisão psíquica experiência incestuosa evitam experimentar o sentimento
devastadora e torna impossível qualquer outra relação de culpa.
dentro ?ªfa~ília, o que equivale a privar a criança de O amor não pode ser tortura. Creio que encontro uma boa
~m ap01~ afetivo de base. A violência do adulto sobrepõe mãe e pouco depois me encontro diante de um algoz que
a necessidade de ternura da criança e ao seu desejo de não posso deixar. É desse inferno que saí, dessa pele de
vítima, que tiro de mim tão dolorosamente.
150 11:;:1
~~::~~~':teceu? Pela minha cabeça desfilam imagens É uma mulher que fala, contando sua experiência
. eu pai, segurando-me rec, "d .
Joelhos, as fotografias da infâncÍ d em-nas~1 ~· ~m seus de menina violentada pelo pai e mostrando claramente
A ernura eumpaipelafilh
f
cotmunhõeds, nas q~ais papai está~o :di:~!r~r:;~~\~~ das
b .. , .
a cisão dramática na qual viveu a experiência do corpo,
osjoelhos de papai, a ternur:·~~ c~B~~:n:ºibe~~~~~~nho~,
sem perceber nada, o equivalente, em suma, de comer
ao qua1 nos submetemo t .d . o pai, sem ter fome. Na vida dessa mulher, todo momento ligado
ternura, tão necessária s~:a~~o º~atde d~ pai-ternura. A à sexualidade será marcado pela prevaricação sofrida.
vivência. Se ele não me am imen o para a sobre- Quando não existe uma tensão entre a libido endógama
1986, pp. 204-05). a, pode matar-me (Thomas,
e sua proibição, tensão tal que a desvie para fora e per-
mita investimento objetual, a pessoa fica exilada não só
. Repitamos ainda uma vez que o roble , do mundo, mas também de si própria.
mais do ponto de vista psicológico do q~e m mal e grave Antes morrer do que ser a coisa do desejo proibido de meu
nesses ca · · · ora , porque pai! Ele me arrasara, atirara no inferno. Escolhia a via do
1 so~ a criatividade associada ao herói é bl d
p~ a remoçao, e a primeira fragmenta ão do oquea a céu, tornando-me uma espécie de anjo de luz que voltava
;.1rtude ~a qual o elemente afetivo é ci~dido pe~::~t~:
para Deus-vida, malgrado ele, malgrado eles, malgrado
o cura e as irmãs. Como a vida na terra me era proibida,

!~:;:'_s::~doª!~:~;~d:b:;;!~ª~:e~:n~:~i= ;~
escolhia a outra vida, a via da alma, a purificação através da
abstinência, da iniciação: uma espécie de delírio místico.
primeira expenenc1a sexual é o incesto só h ; Não podia ser aquilo que havia decidido sozinha, em mi-
para o medo. ' a espaço nha cabeça, no espelho do futuro; meu pai o quebrara com
seu sexo; restava-me só a via do não-ser, a via da morte
(Thomas, 1986, p. 130).
Fora é tão belo, e eu estou i 1 d ,
fechadas lendo lº soa a atras das persianas
• 1vros nos quais t f: . Esse pai-ternura era homem perverso, um estuprador,
esse percurso que eu na-o c . of:u ros azem ao inverso
M dº . ons1go azer um pai incestuoso, um homem ignóbil. Como ele existem
e i sua importância sua "d d.
beça se recusa a funcio~ar e:e~ss1 a e, mas a minha ca- centenas de pais, pais ternos e amáveis que agrediram e
contento-me com ler test ' nh eu corpo a avançar. Então violentaram suas filhas no silêncio da noite, em um porão,
infância perdida, de ace~~u os? roma~ces. qu~ falam de em uma floresta, no fundo do leito conjugal. Mas o mundo
graças ao livro de Sheila Ma~~rd~do. : 01 pnnc1palmente se cala e sufoca esses gritos, que nunca conseguem fazer-
de anoré:xica que pude rompe e? ~o Je s_ua experiência
vivia com meus pedaços esparhªJdau a e vidro na qual eu -se ouvir; ele os trai e os confina em um silêncio vazio. É
E . l a os. necessário, antes de tudo, salvar a família, salvar a honra.
ra uma Jau a transparente, a minha - . . ,
para os outros; ela servia de li proteçao, mv1s1vel Já que o mal está feito, é inútil acrescentar-lhe outros: a
pedaços, a minha jaula tornaâ:r:~~:p~r~todos o~ meus prisão do pai e a vergonha de toda a família. E os outros
Agora que rompi essa prote ã d n e_ o _mun o. filhos, que seria deles sem o pai, que os sustenta? É melhor
ência não sei ma· . ç o, ªqual nao tmha consci-
- ' is comumcar-me com os t calar-se, fazer como se não tivesse visto nada, nem ouvido
nao conheço esse corpo de mulh fi 1 ou ros, porque nada, como se tivesse sonhado. Sim, ela sonhou, todas as
unido que é o meu (Th er, na mente recolhido e
' ornas, 1986, p. 128). filhas desejam ir para o leito com o pai. A filha percebe que,
se falasse, destruiria a família.
152
campo profissional, eles são muito pouco competentes nas
13 relações interpessoais, porque inteiramente presos por
m "demônio" que os impele a ir até o fundo em seu tra-
UM TEMPLO POUCO FREQUENTADO ~alho sem deixar-se desviar. É como se esses indivíduos
não ti~essem outro interesse além do objetivo com o qual
estão obsessivamente identificados, pagando .º pr.eço do
... sem amigos ninguém escolheria viver, ainda que possuísse isolamento, isto é, da falta de amizade e de sohdan~dade
todos os outros bens. dos outros. É interessante que veem qualquer pedido de
(Aristóteles, Ética a Nicômaco 1155a, p. 703) dirigirem a atenção para outra coi~a como am,e~ça insu-
portável, como traição de seu destmo. A pr.o~o~ito desse
tipo de homem votado a algum trabalho mentono, escreve
Kracauer (1971, pp. 69-70):
A obra a criar absorve-o, exige todas as suas forças. e, se
quisesse subtrair-se a esse ~ever p~ra gozar da su.a~dade
da efusão de alma a alma, isso sena para ele traiçao.
Em seu Dicionário filosófico (1764, p. 435), Voltaire
afirma que em nossa cultura a amizade é "um templo já Inteiramente incapazes de existir em espaço e tempo
pouco frequentado". De fato, para ouvirmos dizer todo pobres de acontecimentos, essas pessoas. são perseguidas
o bem possível da amizade, devemos voltar a outras pelo vazio, sempre ausentes da cena coletiva e relut~tes a
culturas, mais remotas: aos árabes, aos gregos, à Bíblia. respeito de qualquer tipo de participação~ de env?l~men­
A tradição que mais nos pertence, tanto a "culta" como to. Outro aspecto que os caracteriza é a impossibilidade
a popular, não demonstra muito entusiasmo por essa de identificar-se com o grupo. A identificação com o grupo
ligação afetiva: máximas de autores e provérbios anô- é mecanismo que tem raízes antiquíssimas em nossa psi-
nimos convidam mais a desconfiar da amizade do que a que e intervém continuamente na relaç~o da ~essoa com
apreciá-la. E mesmo quem está disposto a incluí-la entre o ambiente humano circunstante. Ela e func10nal para
os ''valores" a salvar considera-a em geral como "opcional". a consecução de status e para a aquisição de se_ntimento
Detenhamo-nos logo em um tipologia muito difundida de de segurança fundado na identidade coletiva. E verdade
indivíduos que, seja aparentemente, por falta de tempo, que a identificação com o grupo não comporta ~ó aspectos
seja porque dedicados a algum fim nobilitante ou presu- positivos, porque se, de um lado, reforça o ~m~lar, do
mido como tal, não podem "dar-se ao luxo" de uma amiza- outro, enfraquece-o, privando-o de sua pecuhandade, d~
de. Essas pessoas, mais homens que mulheres, estão ou diferença que o constitui como sujeito entre os ou~ros: ~
sentem-se empenhados em um trabalho, em uma missão, verdadeira também a relação inversa, porque um mdi_vi-
e perseveram em um caminho que deve levá-los a certos duo pode procurar uniformizar-se aos outros quando vive
objetivos, e esse empenho se resolve na maior parte dos a diversidade deles como um perigo. Pode ocorrer que se
casos em reduzida capacidade de relação. Muito ativos no crie na massa um campo particular, no sentido de que
1 !'\!'\
154
duas pessoas comecem a ocupar espaço mais restrito d zar a rocha à qual se agarra. Agora segue essa via, mas
c?~unhã~ ~o ~u.al to~a corpo um entendimento psico~ depois muda a cor de tua pele. Sabedoria vale mais que
logico. N ao e facil explicar por que isso sucede. O início intransigência.
do processo de d~ferenciação de cada um da psicologia
do gru?o se mamfesta, em todo caso, muitas vezes pela O texto atribuído a Teógnides se torna mais inte-
~eces.sidade de relação psicológica que tome o lugar da ressante se comparado com uma composição da mesma
identificação anterior com o coletivo. Essa possibilidade coleção, na qual a distância entre amizade e traição é
?e e~contro privilegiado é percebida geralmente de forma mínima, no sentido de que as qualidades que fazem o
irrac10nal, apa~entemente não bem motivado, mas qual- amigo são, invertendo-se o sinal, as mesmas que fazem o
quer encontro importante tem resíduo misterioso e indi- traidor (Teógnides, vv. 965-67, p. 235):
zível. !rata-se de _um fato raro, que deve ser distinguido
Muitos têm índole falsa e traidora, mas a ocultam, mos-
de mmtos outros tipos de participação emotiva ocasional trando ânimo cambiante. Não obstante, cedo ou tarde, o
com? un:a .confissão inesperada, da qual podemos ser 0 ~ tempo revela a índole de cada um.
destmatanos e que muitas vezes nasce de uma atitude
diferenciada de revelar o próprio mundo interior sem Em muitas máximas, geralmente antigas, como
nenhuma reciprocidade e sem a espera real de res;osta. dissemos há pouco, encontramos afirmações como: "O
~~bo.ra outras relações, como as amorosas, permitam homem é feliz quando encontra ao menos a sombra de
mtimi?ade m~i?r e não excluam a dimensão psicológica um amigo" (Menandro), "Quem encontra um amigo en-
da amizade, diria que a relação entre pessoas do mesmo contra um tesouro" (Eclesiastes), e assim por diante; no
sexo representa o terreno privilegiado da amizade enten- nível psicológico, isso significa que o desejo de relação
dida como relação consciente. O outro se torna ocasião nos é dado com a vida, mas a capacidade de estar em
para entrarmos em relação dialógica consciente com·nós relação e de mantê-la deve ser adquirida. A experiên-
próprio~ e com o diverso de nós. Com efeito, a amizade cia amorosa remete em última análise à satisfação do
n,os obriga a elaborar um conjunto de dificuldades espe- instinto biológico da reprodução, ao passo que a amiza-
cificas que nem todos estão em condições de enfrentar de é fato cultural e insere-se no campo psicológico, no
com su~esso. O esforço próprio para essa elaboração está qual os acontecimentos seguem processo que os impele
conv~m~ntemente expresso em uma composição atribuída irresistivelmente para um fim também de natureza
a ~eo~:des, co?1posição na qual a tentativa de adaptar a psicológica. Na avaliação do grau de equilíbrio psíquico
propna ii;dole a índole dos amigos assume as conotações alcançado pelo indivíduo, deve-se olhar não só para sua
de necessidade transformadora, que se declina na entrada vida afetiva e profissional, mas também para a eventual
em contato profundo com as "partes" do próprio Si-mesmo presença e qualidade das relações de amizade. Os amigos
(Teógnides, vv. 213-18, p. 109): são poucos, mas muitos são os companheiros de viagem
Cor.ação meu, mostra a todos os amigos um caráter com os quais não podemos compartilhar nada mais do
~anegado, adaptando tua índole à de cada um: adota a que um percurso cuja meta já conhecemos. As relações
mdole do polvo de muitos tentáculos, que sabe mimeti- com conhecidos, colegas, companheiros de estudos e
156 11;:'7
d~vertimentos, correligionários, compatriotas etc. se Não é talvez verdade que, no caso dos amantes, ver o amado
diferenciam de modo substancial da amizade, porque é a coisa mais cara, e que eles escolhem essa sensação mais
fundadas em comunhão de finalidades claramente do que as outras, convencidos de que é principalmente de
deli~itada e ci:c':nscrita. Nesses casos, a colaboração acordo com ela que existe e nasce o amor, e que, domes-
mo modo, para os amigos, viver em intimidade é a coisa
em vista do obJetivo tende a nivelar as diferenças de mais desejável? De fato, a amizade é comunhão, e como
personalidade e a evitar o envolvimento recíproco em alguém se relaciona consigo mesmo, assim se relaciona
questões estranhas que poderiam introduzir variáveis com o amigo.
não controladas na vida do grupo. Isso não exclui que
alguém esteja disposto até a sacrificar a vida pelo outro, Em consequência de tudo isso, a realização dessa
mas, sob o perfil psicológico, o investimento pulsional não vivência não se verifica senão na intimidade, e, na ver-
é tanto no companheiro quanto no ideal coletivo. dade, Aristóteles conclui nesse sentido sua argumentação
.. ~stóteles disti?gue a amizade fundada em objetivos (ibid.):
utihtanos ?u sexuais de um terceiro tipo de relação, na
qual o~ amigos se amam por e como são, amam o caráter Ora, quando se trata de si mesmo, a percepção de exi~tir
é desejável, mas o é também quando se trata do amigo.
do amigo, sua alma, sua verdadeira essência. Nessa rela- Entretanto, a atuação dela se dá na vida em intimidade.
?ão po?e haver um leve a~pecto sexual, físico, o qual não Consequentemente, é natural que os amigos tendam para
e, porem, fundamental. E uma ligação de alma a alma. isso.
A implicação homossexual em algumas ou talvez em
todas as relações de amizade não deve ser demonizada A relação psicológica autêntica pede profunda e
como perversão da relação, porque a sexualidade não só consciente aceitação do outro, também de seus aspectos
é, segundo Jung, "o símbolo mais forte à disposição da menos agradáveis a nós. O exercício de tolerância pro-
alma", podendo, por isso, funcionar como veículo para funda e de profunda compaixão, no sentido etimológico
outros significados, como também representa um dos de "sofrer com", significa antes de tudo que acolhemos
mediadores fundamentais de nosso ser no mundo. A a nossa negatividade, a sombra que nos segue em toda
esserespeito, falou-se de "amor sem a sexualidade mas parte. É somente com essas condições que conseguire-
nao- sem o corpo" (Guggenbuhl-Craig) e de "amor erótico' mos garantir ao amigo um afeto estável diante daquela
espiritualizado" (Kracauer), sendo experiência comum humanidade imperfeita que ele opõe ao nosso desejo
que os amigos se escolhem também com base em atração idealizante. Do contrário, ele será o eixo de nosso nar-
física. Isso é bem compreendido, por exemplo, por Aris- cisismo, e alimentaremos elementos de semelhança
tóteles, que reconheceu na vida de intimidade um fator para confirmarmos continuamente a nós mesmos. Se
decisivo ~a amizade. Entretanto, segundo o filósofo grego confiamos plenamente no outro, compreendemos que
em sua Etica a Nicômaco, a escolha do amigo passa pela também nesse caso pode aparecer a traição, e com efei-
sensação, não diferentemente do que se verifica com a tos devastadores. Foi o que sucedeu, por exemplo, com
escolha da pessoa amada (Aristóteles, Ética a Nicômaco uma personagem do mito, Filoctetes, a cujos sofrimentos
1171 b, p. 823): Sófocles dedicou a tragédia homônima. Conta-se que,
158
159
ferido no pé pela mordida de uma serpente, o herói foi levem à ruptura da ligação. A traição pode, assim, cons-
abandonado pelos gregos na ilha deserta de Lemnos (Li- tituir a ocasião para se rever a relação em um nível de
mno~), porque a sua ferida empestava o ar, e seus gritos compreensão mais profundo e mais amplo. Talvez nem
lancmantes atormentavam aos companheiros. Uma vez
com o nosso companheiro ou companheira de vida con-
que, segund? a ~r_?fecia, Troia não podia ser conquistada sigamos revelar-nos plenamente como com uma pessoa
se~ a contnbmçao do arco de Filoctetes, Ulisses e Ne-
de nosso sexo.
optole~o, filh_? de Aquiles, desembarcaram em Lemnos A amizade feminina muitas vezes é mais sólida do
c~m a i_ntença? de consegui-lo. Ulisses sabia que isso que a dos homens, na qual a rivalidade e a violência con-
nao se_na poss1vel nem pela força nem pela persuasão,
taminam a relação mais do que entre as mulheres. Na
mas so pelo engano. E o engano proposto por Ulisses a
amizade feminina parece possível, por exemplo, não só o
Ne~ptólem~ consistia em uma traição: Neoptólemo de- afeto, mas também sua manifestação pelo contato físico,
veria ~onqmstar a amizade incondicionada de Filoctetes
pelo caminhar abraçadas ou pelo saudar-se com beijo
e, ap01a~o na confiança conquistada, deveria subtrair 0
afetuoso. Comportamentos semelhantes são praticamente
arco. ~?1 o que se deu, ao menos em um primeiro momen-
inaceitáveis entre homens, ao menos na cultura ocidental
to, e e mteressante que as palavras postas por Sófocles
(nos países árabes, por exemplo, vigoram outras regras).
na boca ?º_herói traído apresentem inversão lógica tão
Não fazem parte de nossos costumes, e isso está ligado
car~~ter~stica quanto significativa. De fato, exclama 0
her01 (Sofocles, Filoctetes, v. 923, p. 685): não só a um modo diferente de viver a corporeidade,
mas também à aceitação diferente do outro, do amigo.
Estou morto, fui traído, Geralmente cada um de nós deve ocultar seus aspectos
negativos, também, e em alguns casos principalmente, os
~onotando desse modo a traição como condição posterior da pessoa amada, mas pode deixá-los aflorar diante do
a morte, como condição mais letal do que a morte · amigo. As pessoas se sentem ligadas pela amizade porque
O efeito se revela devastador, quando cons~mado é como se se estabelecesse relação de alma para alma: é
no terreno da confiança. Em todo caso muitas vezes aí que percebemos a presença de uma espiritualidade
a traição é praticada como reação defe~siva contra a profunda. Nos poemas gregos figuram muitos exemplos de
frustração ~aquelas expectativas narcísicas das quais amigos que se sacrificaram uns pelos outros. Se aceitamos
falamos atras. Uma relação diferenciada se coloca além a diversidade do outro, a amizade se torna estimulante,
da, sa_tisfação simbiótica e pressupõe a aceitação da porque o diverso me leva a dimensões do existir comple-
propr_1a som~ra'. podemos também projetá-la no amigo tamente diferentes do meu mundo. Enfim, o amor, o eros
e fugir dela irritados, mas então o desafio é somente como capacidade de relação, baseia-se justamente na
deslocado para. a frente. Diferentemente da relação de aceitação da irredutibilidade de quem está ao nosso lado.
amor, na de amizade temos uma possibilidade a mais de É talvez sob o signo dessa irredutibilidade que se deve
s~pera: a traição, aproveitando seus aspectos positivos e entender o ensinamento rabínico referido por Cohen em
nao deixando que os aspectos destrutivos prevaleçam e sua exposição sobre o Talmude. Segundo o que é narrado
por esse autor (1932, p. 262):
160
O ensinamento rabínico sobre o amor fraterno não poderia algumas circunstâncias, aceitar ajuda e pe~~-la si~ifi,ca
encontrar síntese mais bela do que a do vigoroso epigrama: que alcançamos a consciência de _nossa fragilidade .mtrm-
"Quem é poderoso? Aquele que muda o inimigo em amigo". a consciência que é sempre smal de amadurecimento
sec ' • tA '
psicológico. Devemos saber reconhecer nos~a imp? ~ncrn,
A necessidade de reconhecer a diversidade dos filhos, visto que o problema, por exemplo, ~e m~itos psicolog~s
da parte dos pais, que "lhes deram a vida", representa um _ que como tais deveriam ser psicologicamente mais
dos momentos mais duros que devem enfrentar. Por outro ' e articulados
evoluídos ' do que o homem "comu:r_n" ~ e,,.
lado, esse modo de exprimir-se, tão difundido também justamente o de se sentir~m oni~otentes. ~;ue s:gnifi~a
entre os que creem que a vida é um dom, mas de Deus, a palavra evangélica "batei, e a~:ir-se-vos-~ ? Nao pedir
revela a ideia que têm de seu papel aqueles pais que se nunca não equivale a uma condiçao de pei:teita autossufi-
sentem com crédito em relação aos filhos. Na amizade se ciência, mas, ao contrário, a uma patologia. No Talmude
oferece uma possibilidade a mais de dar espaço à diver- (Berakhot 5b, in Elka'im-Sartre, 1982, p. ~8) na:rra-se que
sidade do outro, tirando-se disso motivo para enriqueci- certo dia Rabi Johanan caiu doente. Rabi Hanma lhe fez
mento psicológico: através do amigo experimentamos o uma visita e perguntou-lhe se suportava de bom grado
mundo de uma forma que não nos é habitual - e ele pode 0 castigo que lhe sobreviera. Sendo neg~tiva a _resposta,
atrair-nos muito precisamente porque desconhecido - e Rabi Hanina lhe pediu que lhe desse a mao. Rabi Johanan
em uma situação na qual provavelmente estamos dispos- lhe deu a mão e sarou. A essa altura o redator da narra-
tos a arriscar mais. O amigo espelha a minha alma, a tiva talmúdica pergunta-se por que Rabi Johanan ~ão
mim mesmo; afirma um provérbio: "Dize-me com quem curou a si próprio; a resposta é dada em ?utra n~rrativa~
andas, e dir-te-ei quem és". Se consigo dar minha alma, que repete em tudo a primeira. Certo di~ tambem Rab~
e outro pode recebê-la, espelho-me nele, e ele se espelha Hiya adoeceu e quem foi visitá-lo foi Rabi Johanan. Rabi
em mim. Na amizade, existe, no fundo, uma qulillidade Johanan perguntou a Rabi Hiya se suportava de bom
religiosa. Um étimo possível de religião, por exemplo, o grado 0 castigo que lhe sobreviera. Recebendo respo~ta
que é proposto pela cristandade, destaca nesse termo a negativa Rabi Johanan lhe pediu que lhe desse a mao.
significação de "ligar junto", de "pôr junto"; com efeito, Rabi Hi;a lhe deu a mão e sarou. ~ort~n~o també~~abi
através do amigo descobrimos que é possível uma co- Hiya não conseguiu curar-se por si propr10. Por.qu~. ~o~
municação profunda que nos "amplia". Nos momentos que ninguém está em condições de curar-se por si propno.
dificeis, é "rejeitado" somente quem não pode contar Assim responde o talmudista (ibid.):
com um amigo. Na tragédia grega, o expediente salvador
Porque um prisioneiro não se liberta por si próprio.
que levava à solução do nó dramático era o deus ex ma-
china, que, em termos pessoais, equivale à intervenção
Um prisioneiro não se liberta por si próprio. Talvez_ a
do amigo, intervenção que sentimos como religiosa e
absolutamente "gratuita", como a longa manus ("longa condição de prisioneiro seja a de todos os. h_omens'.e entao
nenhum deles pode afirmar-se em condiçoes de hberta:-
mão") de um deus. A possibilidade de sermos ajudados
-se por si e, para usarmos a outra expressão da narraçao
não contradiz em nada nosso desenvolvimento; antes, e:rn

162
talmúdica, ninguém está em condições de curar-se por si. 14
Paradoxalmente, é a autossuficiência declarada, da qual
falamos há pouco, a constituir o sinal mais tangível de O SEXO NEGADO
uma prisão infinita.
Diferentemente do amor, como dissemos, a amizade
não é motivada por nenhum instinto biológico, mas uni- · , · o queemtodas
Portodapartenanaturezaexistemnupcrns,p ,r , s
camente pelo desejo de relação com outro ser humano. A as criaturas existem macho e fümea. Tambem as ~ore
verdadeira amizade é exclusiva e suscita sentimentos de se acasalam, também as gemas. Acasalam-se tam em as
abandono, ciúme e inveja naqueles que não são seus prota- pedras.
gonistas, mas espectadores. Pensemos na hostilidade que (Lutero, Discursos à mesa 7, P· 5)
muitas vezes a família demonstra em relação aos amigos
dos filhos, amigos que os levariam "para o mau caminho".
Normalmente a amizade leva a uma idealização do outro,
sendo por isso que dela pode surgir a traição, mais dolo-
rosa do que a praticada pela pessoa amada. A frustração Escreve Píndaro na primeira de suas Olímpicas:
ligada à amizade verdadeira pode arrasar a vida de uma
pessoa; enfim, é mais difícil reconstituir a amizade do Filho de Tântalo, direi de ti ~ontra os antigos:
que a relação sentimental. Na amizade temos, portanto, quando ao banquete ~arm~moso
o dever de explicar, de mostrar nossa dimensão humana em Sipilo amiga o pai convidou
os deuses a uma ceia recíproca,
justamente porque o outro tende a idealizar-nos. raptou-te o deus do tridente,reluze~te,
vencido por paixão, e sobre aureas eguas
te conduziu ao altíssimo reino de Zeus venerado,
para onde em tempo futuro
foi também Ganimedes, leva~o
por Zeus, para o mesmo serviço.

O "serviço" ao qual se refere Píndaro alude à relação


amorosa entre dois deuses, Posídon e Zeus, e duas ~er-
sonagens do m ito , Pélops ' filho de Tântalo .e progemtor
.
dos atridas, e Ganimedes, o mais belo .~os Jovens vivos.
O mito por assim dizer, legitima a umao homossexual.
' da Grécia antiga para o mundo moderno,
N a passagem · - d valor
também em virtude das decisivas interpos1çoe~ . e .
trazidas pelo cristianismo, essa percepção de legitim1d3:de
sofreu várias metamorfoses até transformar-se, na ma10r
165
164
parte dos casos, em seu oposto. Recentemente apareceu
de fato, semelhante à que podemos supo7 ~a ~ultura dos
a versão cinematográfica de Maurice de Edward Morgan
hititas, encontra-se hoje somente na Cahforma, o esta~o
!º~ster (1971), escritor inglês muito frequentado nos roais liberal sob o ponto de vista dos costumes sexuais,
ultimos tempo~ pelos autores cinematográficos (veja Pas-
estado que, em 1984, reconheceu legalmente o casal ho-
sagem para a lndia e Câmera com vistas). O filme, como
mossexual (Di Meglio, 1990, p. 129).
o romance, narra a história de um jovem que se descobre
Na sociedade ocidental contemporânea, à repressão
como homossexual depois de uma experiência com um seu
coletiva das problemáticas homoeróticas se opõem a es-
contemporâneo, ambientada no típico contexto de uma
cassez de estudos psicológicos sobre o assunto e a escas-
universidade inglesa. O livro teve edição póstuma, porque
sez de hipóteses explicativas. A nossa cultura se mostra
o ª1:tº~" em pl~na época vitoriana, considerava sua publi- claramente moldada pelo cânone patriarcal vigente no
caçao impensavel no sentido de que teria consequências
cristianismo e, antes ainda, no hebraísmo e condena
análogas às que são contadas no romance. Por outro lado
tudo o que não entra no modelo de virilidade simples-
não podemos excluir que tenham influído nessa decisã~
mente. Se partirmos da perspectiva do homem cm~u~,
sentimentos de vergonha e de culpa, além da percepção
a homossexualidade representa o lugar por excelencia
acertada de que o destino feliz dos dois amantes e não seu
para se falar de sexualidade tr~~da: ca~a u~ de nós
fim trágico, fosse mais provocador do que o prÓprio tema
nasce com identidade sexual genetica e fis10logicamente
do romance. O elemento central do encontro era o de uma
determinada (à parte algumas situações cromossômicas
sensualidade sem censuras ou disfarces "platônicos", em
particulares), e sabemos que, por razões .int~ínse~as ~
desafio à norma literária então imperante. Em um breve
sobrevivência da espécie, a orientação mais d1fund1da e
prefácio, Forster escreve que o que desagrada ao homem
para a escolha heterossexual. O amor pelo semelhante
comum não é tanto o fato em si, no caso a homossexuali-
seria então contra naturam ("contra a natureza"). Não
dade, quanto "o convite para se pensar nele". De fato, se '
obstante, '
é legítimo . sapiens
supor que no "homo sapiens . "
a homos.sexualidade fosse legalizada, disfarçadamente e
o sistema dos significados culturais, representando uma
sem mmto rumor, não suscitaria mais nenhuma reação
passagem evolutiva, constitui agora o prolongamento "n~­
tabuizante e defensiva, porque seria inscrita normal-
tural" do organismo biológico e, portanto, algo be~ ~ais
mente na ordem social e ninguém mais pensaria nela. A
radical do que a simples superestrutura. Isso s1gn1fica
perv:ersão não é do indivíduo, mas da sociedade, que se
que a sexualidade humana prescinde em larga escala
obstma em negar uma realidade que sempre fez parte de
dos fins meramente biológicos, como, enfim, é provado
todas as coletividades humanas. A homossexualidade é
pela continuação da sensibilidade erótica muito além do
testemunhada na época da III dinastia egípcia em 2500
período estritamente fecundo. E, sentindo-nos atraídos
ª·~·;.no Antigo Testamento, no qual se ordenava'que essas por alguém, não notamos a urgência do instinto pr~­
praticas fossem punidas com a morte; em antiga lei hitita
criativo, que eventualmente tem necessidade de. relaçao
de 1400 a.C., que, ao contrário, previa o matrimônio entre
psicológica adequada para realizar-se. A sexualidade se
pessoas do me~mo sexo; e naturalmente no mundo grego
manifesta antes de tudo como desejo em relação a outra
e no romano. E o caso de se observar que uma situação
pessoa, e pode não ser importante que ela pertença ao
166
167
~; aspecto mais relevante de tais relações. O que estava
sexo o~osto, a fim de que sejam satisfeitas exigências 0
naturais. Pensemos, além disso, na tese sustentada por em jogo (Dover, 1973, p. 14) era
Kenneth Dover em seu estudo sobre a homossexualidade uma relação que compreendia dedicação e sacrifícios
na Grécia antiga, tendo bem presente que seria inútil recíprocos, e também emula9ão, e que despertava a sen-
procurar na língua grega antiga termos correspondentes sibilidade, a imaginação e o mtelecto.
aos nossos "heterossexual" e "homossexual", que de certa
Apoiados em qual premissa podemos, ~mtão, falar_ d~
forma, paradoxalmente, devem parte de sua existência a
morfemas gregos. Kenneth Dover parte do pressuposto traição da sexualidade no âmbito das relaçoes homoeroti-
razoável segundo o qual a homossexualidade, tão difun- cas? Como dissemos antes, essa atitud~ se ~unda em pr.e-
dida na vida grega, "satisfazia uma exigência que, de conceito coletivo que obriga as várias mmorias ~ a~s:umir,
outra forma, não seria adequadamente satisfeita dentro uma de cada vez, o ingrato papel de bode espia~or10. ?s
da sociedade grega" (Dover, 1978, p. 211). Trata-se então que desejam um companheiro do mesmo sexo sao assi~
de individuar esse pressuposto. A esse respeito afirma atirados em uma dimensão psicológica totalmente pa:t~­
Dover (ibid.): cular, característica das minorias dentro de u~a coletiv~­
dade orientada de outro modo. A homossexualidade trai,
Parece-me que essa exigência era uma necessidade de então não tanto a natureza quanto o costume cultural,
r~lações interpessoais de uma intensidade que em geral que c~nfina o diverso na clandestinidade e na. v~rgonha,
na? se encontrava no matrimônio nem nas relações entre
pais e filhos nem nas relações entre o indíviduo e a comu-
escolhendo-o para vítima potencial da agressivida~e so-
nidade como um todo. cial. Diríamos, portanto, que não é a homossex"?-Aah~ade
que trai a natureza, mas a consciência. ~ :onsciencia se
Seria, pois, a exigência de relação pessoal mais inten- constitui e se edifica como lugar de eleiçao no qual. s~
sa que motivaria e sustentaria a escolha homossexual dos consuma a traição da natureza. Pensemos _:m Pasohm:
gregos antigos. Sabemos, a esse respeito, que "em Creta como é costume usou-se contra ele a acusaçao de homos-
como em Esparta, as relações de pederastia eram (. .. ) sexualidade pa;a se aviltar seu espírito: nin~ém pode ser
parte integrante do sistema educativo dos adolescentes" verdadeiramente "grande", se na parte mais pr.ofunda e
(Calame, 1977, p. 75). Essas relações, continua Calame vital de seu ser cultiva sonhos, impul-sos e pr~Je~os afe-
(ibid.), tivos nos quais a maioria das pessoas não esta disposta
a reconhecer-se. Freud foi dos primeiros a ocupa:-.se do
instituindo-se somente entre um efebo e um homem maior problema em termos psicológicos, mas se deve admitir q~e
d~ i~:;tde, já .integrado na ordem adulta, exerciam função nem a sua interpretação nem as que apar~ceram depois
d1datica: faziam com que o amado se conformasse ao modelo
conseguiram explicar de maneira exaustiva a, escolh~
representado p~lo ~ante e assimilasse gradualmente, por
um processo m1metico, as virtudes do cidadão perfeito. homossexual. Por outro lado, só recentemente e que f01
abandonado o clima de caça às bruxas, no qu~l parado-
Analogamente, segundo Dover, para os escritores xalmente a circunstância de a homossexualidade ser
gregos que idealizavam o eros, o ato físico não constituía considerada distúrbio psicológico ao menos preservava de
Hi9
168
:i

medi~as penais. Em 1974, o DSM (o manual de psiquiatria causa de problemas iguais aos de todos os pacientes, e, se
amencana) finalmente excluiu a homossexualidade das existe uma especificidade comum a eles, ela deriva dos
doenças mentais, diante dos dados do relatório Kinsey, de comportamentos penalizantes da sociedade em relação
1948, segundo o qual 40% dos homens norte-americanos aos que se afastam do modelo dominante. Nas escolas
adultos haviam tido relação homossexual completa. A psicanalíticas existe tendência progressiva para se dar voz
homofilia, como qualquer outra forma de "perversão" aos analistas homossexuais, justamente para que possam
deve ser entendida como modo particular e específico d~ facilitar alguma compreensão de seu mundo psíquico.
ser no mundo da experiência amorosa. Não compreende- Trata-se, em todo caso, de situações muito avançadas,
remos a homossexualidade se a separarmos do amor. Pelo porque a atitude predominante nega essa possibilidad:.
que nos foi dado constatar na experiência clínica, o amor Conheço, todavia, dois analistas, pertencentes respecti-
homossexual, em suas expressões, não se diferencia do vamente à escola junguiana e à freudiana, que tiveram
amo: heterossexual: são idênticas a entrega, a ternura, a coragem de denunciar a hipocrisia das associações
a paixão. Nas suas expressões, repito. Porque, do ponto psicanalíticas. Refiro-me aos estudos de Hopcke (1989)
de vista da psicologia profunda, não podemos deixar de e de Moor (1989).
individuar uma diferença profunda. O amor permite a Dada a dificuldade de respostas exaustivas a todas
cada um de nós superar as limitações da nossa existência
. .
p_or isso mmt?,s autores falam dele como da "transparên-
' as interrogações sobre a homossexualidade, pessoalmente
penso que se deva ler nessa "escolha forçada" a impossibi-
cia _do mundo . Ora, o amor heterossexual é relação com lidade psicológica de se enfrentar o diverso porque muito
o diverso; Freud dizia que a mulher é um mistério· uma ameaçador. O feminino para o homem e o masculino para
psicóloga diria, talvez, o mesmo do homem. O eras,hete- a mulher representam um desafio, enquanto o semelhante
rossexual nos abre uma perspectiva sobre esse diverso ou até o idêntico nos parecem obviamente mais dispostos
horizonte da experiência; e é asim que, iluminando a outra a acolher-nos. Na relação homem-mulher, o aspecto con-
metade do céu, ele torna o mundo transparente. A união trassexual inconsciente pode ser projetado sobre o outro,
com o que é completamente "diferente de nós" significa de modo que a anima ou o animus venham a constituir
q~e somos a metade do símbolo, que pode recompor-se a ponte para o outro. Isso se constata nos sonhos, nos
so no encontro com um companheiro do outro sexo. Essa quais a nossa heterossexualidade inconsciente pode evo-
diversidade não é só física, mas também psíquica, já que luir através da terapia: de primitiva, ela pode tornar-se
homem e mulher são psicologicamente complementares. muito mais evoluída, modificando também a tipologia
Tudo isso representa uma possibilidade natural de irmos do parceiro para o qual o indivíduo se sente atraído. A
além de nós mesmos: desde a infância o menino vai para anima e o animus entram no jogo como farol que ilumina
a menina. Como explicar então que, na relação emotiva o outro. Uma relação perturbada com o animus ou com a
e sentimental, o diverso muitas vezes cause medo a pon- anima inevitavelmente se reflete em escolhas "doentes",
to de motivar em alguns casos a escolha homos~exual? que guiam o indivíduo para relações nas quais, não por
O paciente homossexual geralmente não pede para ser acaso ele se afunda cada vez mais no mesmo problema.
"curad o"de sua h omossexuahdade;
. ele vai ao analista por '
No homem, como já dizia Jung, a homossexualidade pode
170 171
11:1'
!111
11
represen~ar uma situação na qual o sujeito se identifica
1:
1 com a amm_a, sendo, portanto, incapaz de projetá-la para 15
1.,

for~, e assim, ao contrário do que geralmente ocorre,


proJeta a pers?na com a qual coincide a sua identidade
O CORPO DESAGRADÁVEL
sexual. E aq"?1 observamos grande diversidade entre a
homossex~ahdade masculina e a feminina, porque esta
parece socialmente menos inquietante do que a masculi- Que erro, que excesso tão nefando
~ª· Na homossexualidade masculina, a dimensão genital Manchou-me o nascimento, para que tão torvos
~ um dos .fatores mais importantes a sustentar a relação; O céu me fosse e de fortuna o rosto?
isso e~phca a promiscuidade de muitos homens homos- (Leopardi, Último canto de Safo)
sexuais: o q"?~ eles pro~uram é mais a dimensão sexual
do q"?: a esp1n~ual. Os Junguianos encontram na grande
tra~1ç~o da ?'emtalidade masculina, na qual se exprimem
P.otencia e vigor, o fundamento arquetípico dessa tendên-
cia. Na homos~exualidade feminina, o que importa não é
tant? a se~u~hdade quanto a amizade: existem ligações No Fedro, Sócrates chama Safo "a bela" (Platão,
P:rrt~culansAs1~as, nas quais o contato, a participação etc. Fedro 235 c), mas a referência é à beleza de suas poesias
te~ importancia determinante. Seja dito, porém, que, se líricas. Baudelaire a define como "mais bela que Vênus"
aceitamos o ponto de vista junguiano sobre esse tema 0 (Baudelaire, 1857, pp. 268ss). Na realidade, certa tradi-
problema ao qual não conseguimos dar resposta é co~o ção quereria que Safo tenha sido de aparência feia. Enfim,
dessas rela~õ~s.possa nascer uma completude, aquele ser parece que a própria Safo se definia como "pequena e
humano umtarw que o próprio Jung apontava como meta negra" em uma de suas poesias. Testemunhos de papiros
do processo de individuação (Hopcke, 1989, pp. 192-94). que remontam aos séculos II e III descrevem-na também
como "pequena e negra" (Campbell, 1982). Se não con-
seguimos estabelecer a autenticidade dessa descrição e
dessa informação, parece interessante que a "lenda" da
feiura de Safo tenha tido certa aceitação e tenha sido
fantasiada de várias formas. A ela deram fé, mediante
o testemunho de sua poesia, por exemplo, Ovídio e Le-
opardi. Tanto em Ovídio (As heróidas, ep. XV), que a
imagina escrevendo uma carta ao amante Fáon, quanto
em Leopardi (1976, vol. I, pp. 14-15), que fantasia um
"último canto" dela, Safo lamenta sua feiura. Na carta
que Ovídio a imagina escrevendo ao amante, a poetisa
liga sua existência à aceitação de seu amor por Fáon.
172
1 '7Q
Analogamente, O último canto de Safo pode ser lido, ao que no platonismo e no neoplatonismo a beleza se liga
menos em certo nível de literalidade, como a história de ao "eros" de modo tal que se torna uma espécie de via
~m suicídio que Safo comete, impelida pela percepção privilegiada de ascensão ao absoluto, compreenderemos
msuportável de sua feiura e, ligada a ela, pela falta de melhor a radicalidade do drama vivido pela Safo "feia".
correspondência de Fáon ao seu amor. O corpo feio pode Mas, poderíamos perguntar, como Safo motiva sua feiu-
portanto, manifestar-se por isso mesmo como um corp~ ra? A qual princípio atribui ela a responsabilidade "on-
confinante com as regiões escuras da morte, como corpo tológica" por esse fato? Os poetas que repensaram, com
ª? qual caberia, por razões insondáveis, a extinção, o não Safo, a radicalidade do feio não deixaram de responder
viver. O drama dessa Safo "feia", que pertence a certa a essas perguntas. Ovídio (As heroidas XV, vv. 31-32 do
tradição e à fantasia dos poetas, parece perfeitamente texto latino) faz a poetisa escrever:
compreensível à luz do conceito grego de beleza. A visão
grega do mundo, termo esse que não por acaso soa na ... invejosa natureza negou-me a beleza.
língua deles como "cosmo" (=mundo belo e ordenado)
liga o belo à medida e à proporção, ao verdadeiro e a~ "Invejosa" é o termo que, no original latino, corres-
bem, ao "eros". Se é verdade que, como para os cristãos ponde a difficilis ("difícil") (Leto, 1966, p. 175). Ora, "diffi-
relativamente à doutrina da privatio boni ("privação d~ cilis" nos faz pensar na dificuldade de relação decorrente
bem"), também para os gregos o mal correspondia a uma de um "corpo feio". A natureza não se deixa facilmente
espécie de "não ser" e, além disso, considerada a profun- aproximar do "corpo feio" e, antes, o repudia. Não obs-
da conexão estabelecida pela mentalidade grega entre tante e devemos então falar de traição, não é a mesma
"bem" e "belo", deveríamos deduzir que o feio, e portanto
'
natureza que gera o feio? De modo mais extenso escreve
o "corpo feio", tenha sido relegado também ao "não ser" e Leopardi no Último canto de Safo, emprestando a própria
tenha sido vivido como sinal tangível de um risco ,cons- voz à poetisa:
titutivo pairando sobre o mundo da medida e da beleza.
Que erro, que excesso tão nefando
A comédia antiga, segundo a análise do historiador das Manchou-me o nascimento, para que tão torvos
religiões Ângelo Brelich, a comédia de Aristófanes a co- O céu me fosse e de fortuna o rosto?
média na qual se apresenta o "feio" e, portanto, o ridículo Em que pequei, menina, quando ignara
da ex~s~ência, configura-se como aquela modalidade que de crime é a vida, para que, falto
permitia ao espectador grego experimentar e superar um De juventude, e envelhecido, ao fuso
Da indômita Parca se dirigisse
dos grandes riscos da existência, o risco de ficar abaixo O duro meu estame?
da medida. O outro, o risco de ultrapassá-la, era corres-
pondentemente experimentado no "calafrio da tragédia" Se bem que entre Ovídio e Leopardi se estenda o
(Brelich, 1969, pp. 117-18). O feio extrapola, portanto, a cristianismo - e é então por isso que aparecem no canto
medida, e isso comporta para os gregos que ele se encon- as referências ao pecado que precede o nascimento, ou ao
tra em outros lugares, se eles são possíveis, diferentes pecado original-, a poesia de Leopardi pode também ser
dos lugares nos quais pulsa a vida. Se pensarmos ainda entendida à luz da "difícil natureza" da qual fala Ovídio.
174
Nessa ótica, a lamentação de Safo se torna a lamentação quanto sua vivência pessoal, a qual sempre determina
do homem que descobre entre si e a natureza uma distân- os maiores sofrimentos como as maiores satisfações. Um
cia intransponível, uma indiferença glacial ou até uma dos desejos basilares da vida é o de agradar a si. Com
hostilidade aberta, sinais inequívocos de traição cons- efeito, o sentimento de estima pessoal não se configura
tante da natureza contra ele. Assim, a natureza "difícil" somente como avaliação realista e positiva da própria
de Ovídio se torna a natureza "madrasta" de Leopardi, 0 personalidade, mas também c~mo simpatia e aceit~ção
qual, em uma das últimas reflexões do Zibaldone, expõe do próprio corpo, nas partes mais belas como nos defeitos.
essa traição com as palavras seguintes (Leopardi 11 de Deveríamos estar satisfeitos com o nosso aspecto porque
abril de 1829, vol. II, p. 1222): '
0 nosso corpo é realmente a nossa casa, aquela na qual
A:,natureza, por necessidade da lei de destruição e reprodu- ficamos por toda a existência. O corpo desabitado, o corpo
çao, e para conservar o estado atual do universo, é essencial, não reconhecido e não aceito, corresponde à impossibilida-
regular e perpetuamente perseguidora e inimiga mortal
de todos os indivíduos de todo gênero e de toda espécie
de de se descer à própria existência como a alguma coisa
que ela dá à luz; e começa a persegui-los logo depois que irredutivelmente pessoal, significa para uma pessoa ser
os produz. Isso, sendo consequência necessária da ordem continuamente impelida para o limite do não-ser. Significa
atual das coisas, não dá grande ideia do intelecto de quem que ela pode chegar ao suicídio quando não há espaço que
é ou foi o autor de tal ordem. possa contê-la nem refúgio que possa hospedá-la, espaço
e refúgio dos quais ela se sente inequivocamente indigna.
Pensamento esse de Leopardi em cuja conclusão se Rejeição e vergonha da própria corporeidade comportam
nota inconfundível ressonância gnóstica. De fato, com tremenda dor psíquica, dor que só aproximadamente
quem identificaríamos o "autor" do "estado atual do pode ser traduzida pela sensação de não se ter lugar onde
universo" senão com o demiurgo pensado pelos gnósti- deter-se e repousar.
cos, o demiurgo autor de uma criação e de uma criatura A percepção da própria inadequação no plano físico
imperfeitas?
é acompanhada não só de vergonha, mas também de sen-
A lenda da feiura de Safo propõe à nossa consideração timento particular de ridículo. Perceber-se inadequado
um problema cuja radicalidade parece suscetível de ser no plano físico significa, em suma, ser continuamente
analisada em nossa privilegiada ótica da traição. Que habitado por uma tristeza de fundo, a qual, no contato
si~ificado assume então a traição quando, por razões social facilmente se muda em vergonha e, fatalmen-
obJetivas ou em consequência de percepção distorcida .
te, em' ridículo. Sente-se ridículo quem nota que nao -
de si mesma, a pessoa vive em um corpo "feio"? Apesar está no seu lugar, quem sempre e em toda parte está
de ser muito difundida, essa problemática só raramente desambientado, quem vê dolorosamente que quebra
é enfrentada em âmbito clínico; não obstante, o corpo a harmonia do ambiente, feita de homens e de coisas.
representa um dos lugares principais nos quais se põem Onde tudo é conforme, inteiro, em relação, ele é deforme,
em cenas as peripécias alternadas e atribuladas do sen- desunido, expulso da relação. A esse respeito, parece-nos
timento de identidade. Do nosso ponto de vista, não é exemplar a descrição homérica de Tersites, "o homem
tanto a fisionomia objetiva do indivíduo que é importante mais feio que veio sob Ílio" (Ilíada II, 216). De fato, na
176
177
experiên~ia de Tersites convergem feiura e ridículo, dor "Ah, sem dúvida mil coisas belas fez Ulisses,
e ressentimento. Quanto mais a feiura - esse estar fora dando bons conselhos e distinguindo-se na guerra;
de lugar em relação ao mundo de valores compartilhado mas esta agora é a coisa mais bela que ele fez entre os
pelos guerreiros aqueus - alimenta o ressentimento dânaos,
de Tersites, tanto mais cresce contra ele o ódio nutrido quando interrompeu o vozear daquele vilão arrogante".
"dentro do coração" pelos guerreiros aqueus. O estar fora
de lugar de Tersites e seu ir além das medidas são as Assim, pois, também a dor de Tersites está fora de
características que, na Ilíada (II, 211-21), introduzem lugar, como a sua feiura.
essa personagem: Apesar dos lugares-comuns sobre a atenção obses-
siva que as mulheres dão ao "cuidado-rejeição" de sua
o~ outr?s estavam sentados, foram mantidos no lugar. aparência, seria mal-entendido considerar a solidão dessa
So Tersites ainda falava, imoderadamente condição como prerrogativa feminina. Também os homens
que_ muit~s palavras tinha no coração, ma~, ao acaso, sofrem de graves "complexos de feiura" que definiríamos
vazias, nao ordenadas, para falar mal dos reis
o que lhe parecia que para os argivos seria ' melhor como distúrbios da percepção de si mesmos e do
burlesco. Era o homem mais feio que veio a Ílio. próprio corpo. Mas como o ridículo é o desarn;iônico, ~om~
Tinha nariz chato, era coxo de um pé e seus ombros eram vulgar é, no fundo, só o que não tem sentido, assim e
tortos, curvos e reentrantes no peito; o crânio, realmente feio só o que é inexpressivo. Sentir-se feio é,
pontudo em cima, e ralo crescia o pêlo. pois, outra coisa, é uma vivência da alma, é a exp~riência
Era odiosíssimo especialmente a Aquiles e a Ulisses
porque desses sempre falava mal. ' do judeu errante, que não tem cabana que o proteJa, uma
boa mãe que cuide dele e que, obrigado a afastar-se cons-
tantemente fugindo dos lugares e dos indivíduos, mostra
Quando Ulisses, para cortar seu falar injurioso, o o tema da rejeição, que é o causador oculto de seu destino.
golpeou com o cetro de Agamenon, Tersites derramou Pode ser útil considerar o motivo da rejeição manifesta-
uma grande lágrima, e o espetáculo de sua dor provocou da no corpo através de breve digressão: o termo italiano
º.riso dos heróis aqueus. Com efeito, a dor de Tersites é correspondente a "feio" é brutto, cujo significado original
ridícula, ao passo que a violência cometida contra ele é parece ter sido "sujo". A derivação geralmente aceita, em-
louvada como a mais bela das mil coisas belas feitas por bora duvidosa, é do latino brutus, que significa "pesado,
Ulisses (Ilíada II, 265-75):
inerte, maciço". O étimo do termo inglês ugly se refere à
... com o cetro o peito e os ombros área semântica do que é horroroso, que causa medo, que
bateu; ele se contorceu, caiu-lhe uma grande lágrima aterroriza e é temido porque ligado a dor, aflição, angústia.
uma inchação sanguinolenta levantou-se em suas co;tas O feio vive, pois, na própria pele os aspectos monstruosos
sob o cetro de outro; sentou-se e assustou-se da vida· a sombra manifestada no corpo transforma-o na
lamentando-se, com ar es.túpido enxugou a lágrima; ' . ..-
expressão simbólica da rejeição e, VIce-versa, a reJeiçao
os .outros começaram a nr dele, de coração, se bem que
a:fhtos, exercida sobre o corpo o faz portador da sombra, do mal.
e um deles falava assim olhando para o outro ao lado: Um corpo feio ou afeado não representa só o termo de
uma atitude autodestrutiva, mas também uma constante
178
17Q
provocação do outro, uma ameaça à sua integridade, um ativações de uma mãe que rejeita seu filho. A arbitra-
desafio à instintividade removida e aos elementos defen- riedade dessa atitude não pode ser compreendida pela
sivos da persona. Nesse sentido, a feiura se torna o que criança e suscita a fantasia de uma culpa que legitime
Freud chamava "perturbador", algo indefinido e obscuro a atitude materna. Olievenstein escreveu em O não dito
que solicita a projeção de conteúdos inconscientes, uma das emoções que "o sentimento de injustiça é o princípio-
imagem ansiógena que provoca reações defensivas, em- motor do não dito do feio" (Olievenstein, 1988, p. 63). Uma
baraço e rápido desvio da atenção. Ela evoca o fantasma mãe desse tipo, em vez de acolher e conter os impulsos
da própria agressividade e faz reemergir os aspectos ne- agressivos da criança, de atenuá-los e torná-los menos
gativos e ameaçadores da psique. Por que, por exemplo, atemorizantes, restitui-os a ela ampliados, inibindo as-
nos abrigos infantis, as crianças feias, gordas ou que têm sim toda a possibilidade de descarga no exterior. Essa
alguma deformidade fisica são perseguidas e ridiculariza- rejeição não é pronunciada sobre a feiura do filho, ela é
das? Aí estão em jogo não só a crueldade da criança e sua outra coisa, é a falta de acolhimento, daquele abraço que
desforra sádica no perseguidor, mas também a exigência é o carinho mais primitivo que recebemos, o primeiro
de negar sua existência, aniquilando-o. gesto humano que encontramos. A fábula do patinho
O feio não só vive a própria sombra, mas também é feio tem ressonância tão profunda porque é a história de
obrigado a encarnar a dos outros, porque a contragosto uma recusa de amor, de um menino que não está em seu
ou, como veremos, em virtude de um desígnio do qual lugar junto à mãe e aos irmãos. Usando um expediente
não tem consciência, ele representa húmus fertilíssimo extremo, a fábula consegue exprimir toda a intensidade
para esse tipo de projeção. Quando encontramos uma da dor infantil. O "patinho" pertence a outra espécie e
pessoa disforme, viramos o rosto para o outro lado por por isso não pode ser reconhecido. É tratado a pontapés,
razões de delicadeza, as quais, na realidade, escondem repelido, humilhado e passa fome: em gélida solidão atra-
um .problema interior. Pensemos no homem-elefante, que vessa precocemente o inverno da vida. No termo desse ca-
fugia da perseguição e lembrava aos perseguidores que minho, que psicologicamente equivale a uma experiência
ele também era homem. Se lermos essa reivindicação em transformadora, descobrirá que é um cisne magnífico. Na
termos endopsíquicos e referirmos a dinâmica paranóide conclusão da história, encontramos mais uma confirmação
a figuras interiorizadas em torno das quais se formou a da hipótese de que a condição do feio remete a ter sido
identidade do sujeito, não podemos deixar de perguntar originalmente exilado. Com efeito, a transformação do
qual é o verdadeiro destinatário dessa "mensagem". Por- patinho acompanha o acolhimento recebido dos outros
que se trata naturalmente da instância de reconhecimento cisnes, e a história consegue ser extraordinariamente
mais elementar e fundamental que se possa conceber. O expressiva em seu esquematismo: o patinho feio, que não
feio solicita o fantasma da indignidade, alude à impossi- queria nascer, torna-se no fim o primeiro, o, mais belo, o
bilidade de estar no mundo e remete à mais devastadora mais elegante dos cisnes, o rei dos cisnes. E uma típica
das traições, a que é sofrida na relação primária. fantasia de resgate; sob perfil psicológico, observamos
O corpo feio representa, pois, a coação a exibir uma que quanto mais idealizada ela é tanto mais prende o
rejeição de amor. Não há nada mais agressivo do que as indivíduo à percepção distorcida de sua inadequação.
181
180
Em que consiste, pois, a estratégia inconsciente de
quem se confina em um corpo feio? Paradoxalmente terior de confiança e energia. Situações t~o estrutur~d~s
ma~s ~sicol~gicamente de modo totalmente congruente: º,
mostram que não se chega à relação sadia com propr10
corpo só com a força de vontade, porque ?corpo e um e_:'-
o fe10 e dommado pelo desejo. O seu universo inconscien-
te é ii::tteiramente subjugado por ele, mas nesse caso as pelho da alma, e os incômodos dela precis~m de atençao
bem mais delicada e profunda do que o simples esforço
energias que comumente são empenhadas na procura de
su~ concretização são absorvidas em sua remoção. Opor de reação. Talvez no corpo se depositem recordações q"':e
a mente não está em condições de guardar: a remoçao
a si mes~o e aos outros um corpo feio equivale, pois, a
dos traumas infantis para o inconsciente, por exemplo,
um expediente para subtrair-se ao desejo próprio e ao
~lheio: para pôr-se desde o começo fora de jogo, para pode ser representada também como ocultação .n? corpo
impedir eventual rejeição, antecipando-a. Esse mesmo de impressões intoleráveis de medo e desamor vividas na
fase infantil. Então a incapacidade de contentar-se com
meca_nismo pode ser visto, na linguagem da psicologia
relac10nal, como uma "profecia que se autodetermina". a própria aparência e até a aversão .ª partes dela ~ue
Por exemplo, nos casos de bulimia e anorexia, que repre- nos são desagradáveis, ou ainda o proJeto de desgasta-lo
e arruiná-lo com drogas, álcool e excessos alimentares
~entam: de maneiras diferentes, intervenções destrutivas
mconscientes sobre o próprio corpo, a profecia "não posso talvez valham como representações daqueles complexos
ser amado" se autodetermina nas confirmações de rejeição inconscientes que têm no corpo uma instância capaz de
que esses distúrbios solicitam no exterior. Com a amarga exprimi-los, sem mostrar seu significad~Aem.uma revela-
e "silogística" sagacidade que distingue suas Máximas ção que seria insuportável para a conscienc1a. _
François de La Rochefoucauld (Máximas, n. 86, p. 113) Em nosso físico se manifesta toda a nossa relaçao
sustentava de modo análogo que com o desejo, desejo entendido como energia d.a vid8:_:
pensemos na satisfação ligada ao prazer dos sentidos : a
a nossa desconfiança justifica o engano dos outros. função de sobrevivência que eles exerc:m. e~ .nos~a exis-
tência. Perceber a própria figura como feia , isto e, como
De modo semelhante, na já citada coleção poética indigna significa ficar inibido no próprio mo".'imento da
atribuída a Teógnides, figura o verso seguinte (Teógnides, vida e impossibilitado de ter relações nas quais a afetuo-
V. 575, p. 165):
sidade passe espontaneamente através da linguagem do
corpo. Nesses caoos, o indivíduo facilmente compens~ a
!~ae~-me os amigos enquanto me acautelo contra os
m1m1gos. sua "desconexão" com o corpo e, portanto, com as emoçoes
através de uma atividade intelectual compulsiva. Esta
Chegamos, pois, a falar de uma fenomenologia parti- acaba paralisando nas estruturas do pensa~ento I?~c.o
~ular ~a "feiura do corpo": aquela que paradoxalmente é toda a inocente e, ao mesmo tempo, terrível imprevis~bi­
mcentivada pelo próprio indivíduo. Não é raro encontrar lidade da existência, da qual o corpo é fiel mensageiro.
ho;1Ilens e mulheres perseguidos pelo projeto de emagrecer Em algumas escolhas ascéticas, por exemplo, tem-se. a
e literalmente impossibilitados de realizá-lo pela falta in- expressão paradigmática dessa situação: toda ~ ener~a
psicofísica do indivíduo é destinada ao controle e a mort1fi-
182
,~~
cação do desejo e n :6
da vida. A asce~e é esse es orço fica encerrado o horizonte
16
"um álibi sublime d~:t~nt~, como escreve Olievenstein
estratégia do feio é talve: o e confr~nto" (1988, p. 65).A O CORPO TRAÍDO
"vitoriosa". Diz-se geralm~~~os sublime, ma~ igualmente
formidável mas em ª
e q~e beleza e uma arma
também pode sê-lo. algumas circunstâncias a feiura
A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à
vista, e que essa árvore era desejável para adquirir discer-
nimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também a seu
marido, que com ela estava, e ele comeu. Então abriram-se os
olhos dos dois e perceberam que estavam nus; entrelaçaram
folhas de figueira e se cingiram.
(Gênesis 3,6-7)

A experiência original e irremediável de nossa :fi-


ni tude, do limite que nos constitui como seres mortais,
dá-se antes de tudo pela percepção do corpo. O corpo é a
evidência que contradiz qualquer tentativa de ultrapas-
sagem, a testemunha incômoda que invalida qualquer
veleidade de onipotência. O progressivo emergir da
criança da simbiose primária já constitui experiência
de morte, uma traição da onipotência infantil, a qual se
concretiza antes de tudo na percepção da separação dos
corpos, a qual é uma coisa só com a negação do desejo de
fusão e com a cessação do abraço inconsciente. A nossa
identidade corpórea passa a ser logo fratura, contrapo-
sição, se bem que essa distância seja necessária tanto
no plano ontogenético como no :filogenético. Depois que
a serpente induziu Eva a transgredir a ordem divina, o
Gênesis diz (3,6-7):
A mulher viu que a árvore era boa ao apetite e formosa à
vista, e que essa árvore era desejável para adquirir dis-
cernimento. Tomou-lhe do fruto e comeu. Deu-o também
a seu marido, que com ela estava, e ele comeu. Então
184
10r='
abriram-se os olhos dos dois e perceberam que estavam
nus; entrelaçaram folhas de figueira e se cingiram. da Idade Média: ascese, desprezo do corpo e sua subordi-
nação às razões do intelecto, mortificação da carne'. con-
denação de suas alegrias. Em estudo recente, dedica.do
Com esse perceber o corpo abre-se a história huma-
às "peripécias do corpo na Idade Médi~': o autor Vito
na: a renúncia de Adão e Eva à onipotência da condição
Fumagalli sustentou, apoiado nas posiçoes do grande
criatura! se transforma no conhecimento do bem e do
abade Otão de Cluni (Fumagalli, 1990, p. 22), que
mal, que é um "perceber" o corpo e a sexualidade e um
"perceber" serem mortais. Torquato Accetto, escritor ita- a ativação das mais profundas exigên~ias. da pessoa é
liano do séc. XVII e autor do breve mas denso e famoso negada e viciada por tudo o que a carne s1gmfica, segundo
tratado intitulado Da dissimulação honesta, interpretou as palavras dos monges, e não só deles.
o primeiro abrir-se dos olhos como emblemático de que o
esconder teria nascido quase junto com o mundo. Escreve, Os homens da sensação, dizia o abade Otão, apoiado
pois, esse autor (Accetto, 1641, p. 34): em algumas passagens paulinas c:uciais, "nã~ c.on~e~~m
penetrar verdadeiramente as c01sas do espinto (ibid.,
Quando o primeiro homem abriu os olhos e viu que estava p. 21). Em sua exegese ~a transgre~são de ~d~o e Eva,
nu, procurou esconder-se também à vista de seu Criador; Fílon de Alexandria eqmparava Adao ao e~pinto, e Eva
assim a diligência do esconder nasceu quase junto com
o mundo e com a primeira aparição da falha, e seu uso à sensação. Foi, pois, a sensação que tra~u. Pensemos
passou para muitos por meio da dissimulação ... ainda no problema das ilusões e das poluçoes n?turnas,
problema sentido fortemente no âmbito. monástico i; ~m
Sabemos que também no plano do desenvolvimento cuja perspectiva a "traição" do corpo era hgada, sob vanos
individual o processo de construção do eu se desenvolve aspectos, à "traição" do sonho. De fato: ~ sonho ~~cha o
em paralelo com o percurso que leva à integração da sonhador e 0 precipita no pecado. Na otica monastica, as
imagem corpórea. Mas a história do corpo e da vivência poluções voluntárias ou não, representam, em todo caso,
corporal é a história do pensamento filosófico ocidental, uma vitÓria do diabo. A carne traída é a carne entregue
que desde Platão estabeleceu a dicotomia corpo-alma à solidão (ibid., p. 34):
como fundamento de sua lógica disjuntiva, de modo que A carne é muito viva e prepotente, ofusc~ o espírit~ e,
psique e soma estão sempre presentes como aspectos com seus movimentos e ações imprevistas, impede .ª '?da
contrastantes. Às polaridades vida-morte, céu-terra, espiritual do homem; por isso ela deve ser repnm1da,
bem-mal, alto-baixo, natureza-espírito correspondem domada e purificada.
valores e desvalores. A alma deve ser despojada de sua
materialidade para que o intelecto contemple as ideias; Portanto, para a carne "não há resgate, mas só mor;,
é só através do esquecimento do corpo que o espírito, tificação; no sentido literal e original do termo: morte
depurado dos apetites sensuais, encontra a Verdade. (ibid., p. 36). . (" .
Pensemos, por exemplo, nas várias expressões da dico- Com Descartes, a distinção entre res cogitans c01sa
tomia espírito-corpo que obsessionaram o longo período pensante") e res extensa ("coisa e:rte~s3:") reduz ? ~o~po a
pura extensão de um ego imatenal, umco depositano da
186 10'7
1.1
A ciência traiu o corpo ao impor-lhe um conceito de "na-
1,'I subjetividade. .O eu, centro da consciência ' é difierente d o tural", "fisiológico" e "normal", que não leva em conta a
corpo, que cont~nua a ser carregado com acepção negativa. especificidade de cada indivíduo.
~nosso corpo e, portanto, "traído" no significado etimoló-
gi~o do te~o.' porque é um corpo entregue e transportado Em uma abordagem desse tipo não há nenhum es-
alem do su3eito; ~ara a miséria dos objetos com os quais paço para a dimensão subjetiva da experiência, aquela
podemos no maximo estabelecer relação que pressupõe dimensão que o pensamento fenomenológico traduz pela
sempre :uma alteridade. Na linguagem comum, geralmen- noção de corpo vivido como corpo "animado", não como
te referimo-nos ao nosso corpo como a alguma coisa que objeto entre os outros, ou como entidade psicofísica, mas
~ossuímos: "tem.os" um corpo, e não "somos" um corpo. Se como a modalidade primária de nosso ser no mundo. O
e verdade que o mtelecto não pode agir senão instituindo corpo vivido é o nosso corpo, aquele que não podemos
uma distância reflexiva relativamente aos objetos, 0 corpo
perman~ce lá, co~o primeiro, no campo. Mas tudo o que
ignorar.
Eis uma prova, entre tantas, da cisão que estabelece-
~scap~ a nossa dimensão psicológica não é nada, sendo mos ou sofremos entre alma e corpo. Ocorre muitas vezes
ilu~or10 .procurar satisfação nos objetos, de modo ainda
não estarmos dispostos a reconhecer-nos no pensamento
n_iais aviltante quando se vive o corpo em atitude utilitá- de outro, porque, naturalmente, ele não nos perte_nc~;
ria, que o despoja completamente do seu valor. Falamos mas ninguém diria que não se reconhece em seu propr10
do corpo anatômico, que a ciência explica com base em pensamento. Por que então podemos não reconhecer-nos
mecanismos psicofisicos, e não de corpo que pode adoecer, em nosso corpo, como se não nos representasse como
porq~e: ~or exemplo, sente-se expulso do mundo. Quando
quereríamos? Pode ele talvez não pertencer-nos? Se vol-
nos d.irigimos ~um médic?, e~e indaga sobre a nossa pa- tarmos na memória ao passado, é fácil reconhecermos
tologia, mas nao sobre o sigmficado existencial do corpo, uma coerência de significados e encontrar continuidade
que se.mpre. exprime um significado psíquico e comporta em nosso pensamento, mas isso é muito mais difícil se
u~a ':-vencia toda particular. Ninguém se pergunta sobre
tentarmos reconstruir a história de nosso corpo. E como
o significado de se viver em um corpo tuberculoso ou em
se notássemos sua presença só na doença, quando ele co-
um ~o~o atacado por tumor, porque se trata de aspectos meça a ser problema. Se o sentido da vida está em outro
reprimidos da patologia médica. Como escreve Thomas
lugar, algo que "transcende" o corpo, na imortalidade da
N agel, existe uma qualidade afetiva nos acontecimentos
u~ si~ifica?o interno deles que não se explica por meio d~ alma, compreende-se que com o exílio do corpo a morte
é negada e transformada em um momento de passagem.
fisicalismo, isto é, por meio de um esquema determinista
Mas, como tudo o que é reprimido, o corpo, a morte, a
que reformule a realidade do sentimento em termos de
doença se afirmam, subterrâneos e obsessivos, em toda
estímulos físicos e de processos neuroniais. Afirmou-se
parte em nossa cultura. A doença e a velhice se tornam
que o progr~sso da ci~ncia relativamente ao corpo foi
tabus; o corpo é maltratado na procura de uma perfeição
tornado possive~ pela visão dicotômica das relações corpo-
que o torne igual a todos os outros, como iguais nos torna
-alma e que, assim agindo, a ciência de fato traiu 0 corpo
a morte. O corpo ancião ou doente é temível, porque agita
(Falcolini, 1990, p. 94): ' '
189
188
o fantasma do fim, da decomposição, de estar irremedia- de algum modo, é sempre "dupla", porque consiste no
velmente inscrito em um horizonte temporal. jogo contínuo de interação e alienação, de identificação e
Na cultura atual, o corpo foi privado do devir: o corpo diferenciação. No momento em que reconhecemos a nossa
por excelência é o de um indivíduo jovem, mas de vitalida- inteireza na imagem refletida pelo espelho, o nosso olhar
de aparente, porque absolutamente sem história· estático se torna um pôr fora, uma apropriação-expropriação. A
porque esvaziado de sua verdade. Ora, a verdade' do corpo' imagem constitui sempre reflexo de nossa interioridade,
se concretiza, por exemplo, com a posse de uma forma, mas exatamente no mesmo instante ela é exterioridade,
com a ocupação de lugares, com as modificações que se é o duplo, o corpo-casa que habitamos e que sentimos
produzem com o tempo. Estando em contínua relação com familiar ou estranho, no qual deslocamos, eliminamos ou
o mundo, o corpo não pode não mudar. Além disso, toda introduzimos objetos que, nessa altura, não são mais coi-
mudança, como toda fase da vida, é dotada de significati- sas, mas significados afetivos. Nessa dimensão simbólica
vidade, e, então, privando-se o corpo do devir, nega-se-lhe toma forma a identidade.
significatividade. Com razão se pode ler nessa operação No âmbito da cultura patriarcal, o corpóreo é intei-
"tecnológica" de subtração ao menos um modo de traição ramente identificado com o feminino. A mulher é aquela
do corpo ou, como foi afirmado (Falcolini, 1990, p. 94): que vive as coisas da casa, cuida das necessidades do
a experiência do próprio corpo não como trâmite com o corpo, habita as baixas esferas da instintividade e que
mundo, mas como obstáculo, fez da dependência seu estilo de vida, e da vizinhança da
natureza seu grande atributo. A violência insustentável
isto é, em outros termos (ibid., p. 97), dessa situação cultural se evidencia, entre outros, na
contradição das mensagens que dela emanam. Pede-se à
a percepção do corpo como obstáculo ao ser-no-mundo. mulher que tenha corpo esbelto, para que seja atraente,
e, ao mesmo tempo, que seja mãe. A sua corporeidade
Compreende-se que, em um contexto de valoriz~ção é exaltada e representa o lugar mítico do imaginário
do corpo jovem e sem história, boa parte da economia coletivo, mas a sua fisiologia representa uma corporei-
de consumo se dirija para os cuidados com o corpo. O dade enferma, a ocultar ou, quando muito, a confiar
corpo, seu alvo privilegiado, pode "não ser nada, embora ao olhar clínico de um médico. Em consequência dessa
possuindo muito". Mas a essa ênfase corresponde uma identificação, muitas vezes distúrbios da estima pessoal
descoberta, uma adesão profunda ao valor do corpo? O se exprimem nas mulheres através de "performances"
que representam psicologicamente esses cuidados? Uma relativas ao corpo, como a obesidade e a anorexia, essa
adesão ao imperativo dominante de absorver tudo o que é última consolidada por ilustres precedentes históricos na
interior, psíquico, em um trabalho externo, de modo ator- ascese mística das santas católicas, da Idade Média até o
nar o corpo irreconhecível e principalmente manipulável. séc. XIX. Ora, também no caso da anorexia mental parece
Com efeito, os outros não veem o nosso corpo, mas a sua que, em certo sentido, foram subtraídos ao corpo o devir e
imagem, e nós não vemos corpos, mas suas imagens. E nos a história, ou que esse devir e essa história foram traídos,
tornamos escravos dessa imagem. Todavia, a identidade, ao serem entregues à rígida condição de espiritualização
190
onipotente. Com efeito, como foi observado (Ganzerli- 17
Sasso, 1979, p. 72):
O CORPO DOENTE
Só se esquelético é que o corpo é vivido como pertencente,
só se for rejeitado pelo outro, só se for corpo-desafio, corpo-
-fetiche, negação.
Assim é 0 corpo: um conjunto de lugares nos quais a ordem
O corpo da anoré:xica trai o sinal de uma repressão de se mostra conflitante.
sua humanidade, um anelo à perfeição e uma rejeição de (Serge Leclaire, Desmascarar o real, p. 52)
tudo o que lhe recorde sua natureza mortal (ibid., p. 48).
O corpo, esse interlocutor sempre presente de nossa
procura de identidade, muitas vezes nos derrota, nos é
"infiel", nos trai. Leopardi exprimiu em versos sublimes,
como já vimos, a dor de quem se sente traído pelo corpo
e que, por isso, é privado do amor, comparando-a à dor
do faminto que assiste aos banquetes de outros, sem ne- Por que adoecemos? E como ler ~ d~ença do ~orp~
nhuma esperança de participar deles. Aí se revelam as na perspectiva da traição? Sobre a primeira questao f01
analogias entre os motivos da estima pessoal, da traição e afirmado (Chiozza, 1986, p. 67):
da morte, os quais, nessa altura, compreendemos melhor
justamente lembrando a problemática do "feio". Como este o homem adoece porque oculta a si mesmo a história
cujo significado lhe é insuportável. ~eralm~nte a sua
se afunda em uma solicitação constante ao outro para ser doença é resposta simbólica que tenta mcon~cientemente
confirmado/desconfirmado na percepção de si (mas infeliz- alterar 0 significado da história ou, o que e o mesmo, a
mente qualquer resposta deixá-lo-á na mesma situação), sua conclusão.
assim é possível que quem se sente depreciado e exprime
uma falta de estima pessoal projete no outro a própria Dir-se-ia até, de outra maneira, que, da necessida~e
incapacidade de aceitar-se e sinta-se traído. Não só o seu de ocultar a indiferença e o silêncio da natureza a res?e1to
pedido de reparação se revela impossível de ser atendi- desse evento que é a vida humana, nasceu a fantasia de
do, como também dificilmente será ele verdadeiramente que ela é um dom divino, o qual, portanto: d~ve ser me-
acolhido pelo amor do outro, porque inconscientemente recido em cada gesto cotidiano. A doença e o mgresso da
se recusa a oferecer-se como objeto de amor. morte na vida é sua abertura precoce de uma passagem
que descobre 'cruamente quão precária e irrelevante é
nossa presença no mundo. A doença se presta, d';..fato.' a
ser vista como caso exemplar da insensatez da Justiça
divina"· ela é a denúncia do limite da misericórdia e do
amor d~ Deus, 0 punctum dolens ("ponto doloroso") que
1 no
192
deve ser remediado de alguma forma. A doença é desafio, se estabelece dentro do corpo e nos invade. A doença se
prova de fogo da fé para aquele que a tem e sobretudo configura como o inimigo por excelência e tem a caracte-
graças ao mitologema - não só bíblico - do "pecado ori~ rística de exilar-nos no limite entre a vida e a morte. O
ginal", ela aparece unida inseparavelmente à expiação de doente é suspenso em um tempo-não tempo, a sua vida é
uma culpa. Dessa forma, como já dissemos, entra na cena reduzida à dimensão de passado ampliado de modo des-
humana a concepção da existência terrena como expiação medido; é expropriado injustificadamente de seu projeto
do pecado: os flagelos divinos e as chagas de J ó significam existencial. Torna-se caçador de recordações, volta ao
que a vida é essencialmente caminho de redenção. Na passado como amante abandonado para ainda sentir-se
verdade, a doença escancara um vazio no fluir dos signi- vivo. Não existe nada mais aniquilador para um homem
ficados de nossa existência, ela é um limbo sem tempo, do que ser privado da perspectiva de futuro, dessa linfa
um presente suspenso no qual se torna mais angustiante cotidiana e indispensável que é a preparação de projetos.
o pedido de sentido. Eis que então a arbitrariedade da Quem descobre que tem doença incurável é obrigado a
dor, a dúvida, a desorientação são superadas, graças ao reinterrogar-se sobre o sentido de tudo o que até momen-
princípio segundo o qual o mal é necessário para um bem tos antes parecia óbvio. Na condição de doentes, estamos
maior. Em Diceria dell'untore, Gesualdo Bufalino põe na terrivelmente sós; quem está doente causa medo, e a
boca de uma de suas personagens, um sacerdote doente comunidade evita a tal ponto ter contato com ele que
e angustiado (1981, p. 47): existem ordens monásticas dedicadas exclusivamente a
O pecado: inventado pelos homens para merecerem o sofri- cuidar dos enfermos. Algumas pessoas se retraem defi-
mento de viver, para não serem castigados sem porquê. nitivamente de uma relação, quando ficam sabendo que
o outro está doente. Enfim, se cuidar dos doentes fosse
O doente é, pois, o untador (na Itália, em tempos idos, a tendência natural, e não um compromisso, um esforço
o untador era acusado de propagar contágio por meio de de certa forma contra a natureza, essa ocupação não se
unturas), o contaminado que ameaça contagiar, não só teria tornado instrumento para a conquista de méritos
no sentido de que, exibindo o seu mal, induz os outros espirituais. A doença se torna advertência; o doente
a evitá-lo, mas também em sentido mais profundo, que concretiza o perigo que potencialmente pesa sobre cada
é aquele que alimenta o romance de Bufalino: a doença um de nós. Por isso a configuração psicológica de quem
induz o doente a propor a si mesmo perguntas extremas, decide dedicar-se a cuidar dos enfermos deveria atrair a
radicais, sobre o significado da existência; e isso é sentido nossa curiosidade.
pelos que estão ao lado do doente como perigo ainda maior Dissemos que o cristianismo exprime realidade
de "infecção". A sua proximidade da morte inquieta, o seu psicológica que aflora sempre que somos atingidos por
jogo é com a morte. algum mal; não podemos deixar de sentir-nos culpados
Reduzindo a doença à punição divina, o cristianismo e de ler o sinal de nêmese divina em todo acontecimento
exprime realidade psicológica muito profunda, porque a doloroso. Trata-se de preconceito muito difundido no
doença é vivida sempre, ao menos inicialmente, à luz da passado e ainda presente na mentalidade popular. No
dinâmica persecutória. Sentimo-nos indefesos, porque Antigo Testamento, Deus quis as "pragas do Egito", e,
194 195
nas concepções que admitem a metempsicose, a doença é 0
sinal de alarme que o corpo nos envia por meio de sua
o tributo, a expiação que testemunha uma culpa passada. doença não só não pode e não deve deixar de ser ouvi_?-o
No livro de Jó, o profeta pede a Deus explicação do que lhe (vem-me à mente o início de um excelente filme frances,
está acontecendo: por que justamente eu? Essa sensação no qual um médico é esbofeteado depois de diagnosticar
de estar "na mira de Deus" induz na "vítima" um senti- um tumor), como também seria bom que o interpretás-
mento de culpa tão opressivo que ela sente necessidade semos e aprofundássemos em seus vários níveis e em
desesperada da solidariedade dos outros, solidariedade todas as suas implicações. Ai de quem considera a doença
que em geral lhe é negada, porque as projeções que 0 unicamente como fato somático: há alguma coisa que
doente atrai sobre si parecem muito inquietantes. O cor- entrou em crise, e essa é a ocasião certa para se lan?ar
po que adoece "sai do silêncio". O corpo que adoece nos um pouco de luz sobre a relação complexa que nos hga
faz sentir fortemente sua presença, presença que antes ao nosso corpo. Como descobrimos o corpo só quando nos
notávamos só incidentalmente, quando nos murmurava incomoda, assim descobrimos a consciência só quando o
que tinha sede, fome ou necessidade de repouso. O corpo, inconsciente usa estratégias comunicativas tão extremas.
que realizava diligentemente seu trabalho, sem exigir a Não nos esqueçamos de que a linguagem do corpo é mo-
nossa atenção, agora se apresenta como turba amotinada. dalidade primária, pré-verbal, de comunicação, dotada
O pacto implícito, a expectativa nunca discutida é que de fortíssimo poder coercitivo sobre o outro, o qual, nessa
o corpo esteja ao nosso serviço, mas, psicologicamente, altura, não pode ignorar a mensagem. Psicologicamente,
atrás dessa convicção devemos ler a pretensão do eu de a somatização da doença é consequência da perda de
monopolizar toda a personalidade ou, ao menos, de man- contato com o conflito patogênico, cujo acesso à consciên-
ter sob controle também seus aspectos menos evoluídos. cia foi impedido. A primeira pergunta que um analista
Mas em certo ponto o corpo já não responde e desmente se faz quando a pessoa adoece é: o que lhe sucedeu para
esse pretensão irrealista. Aquele mecanismo perfeito está chegar a adoecer. É pergunta pertinente, porque se deve
travado; eis então os mitos do elixir de longa vida, da pe- sempre procurar saber qual é a função da doença, sob
dra filosofal etc., para se poder imaginar uma juventude o perfil psíquico. O corpo é espião da psique, mas a sua
sem fim. linguagem deve ser "reconvertida", traduzida de novo
Por que pensamos que devemos pedir explicação do nos termos dos conflitos psíquicos que não fomos capazes
mal? A qual figura da cena psíquica devemos referir o de resolver. A doença psicossomática aparece quando o
sentimento de culpa? Provavelmente à mensagem que nosso nível psicológico é muito pouco evoluído, não tem
toda doença veicula para o indivíduo que é atingido por força para exprimir-se em termos simbólicos e atinge o
ela. De certa forma, sem dúvida inconsciente, ele escolheu nível mais fraco, o corpóreo. Que pareça estranho, mas,
carregar o inimigo dentro de si, em vez de procurá-lo fora, de fato o mal nos acusa, sempre.
como sucede na maioria dos casos. O órgão doente nos É ~abido que os estados depressivos produzem enfra-
põe, quem sabe pela primeira vez, diante do "persegui- quecimento do sistema imunológico e expõem o indivíduo
dor" mais devastador, digamos também, junto com seu a infecções, às quais em outra circunstância ele teria
"progenitor": aquele que hospedamos dentro de nós. Mas facilmente resistido. As pessoas selecionadas para uma
197
196
missão particular são escolhidas entre as que nunca ado-
ecem, justamente porque têm uma compleição psicológica 18
que as impede de adoecer. Quem nunca adoece tem um
nível psicológico muito elevado, porque consegue tradu- A MORTE PROCURADA
zir simbolicamente os estados internos sem "mostrá-los"
externamente, para usarmos expressão técnica. Quando
se emprega a linguagem do corpo, isso significa que a
nossa capacidade de enfrentar os conflitos é mais primi- Quando o Senhor, levantando ao céu os braços descarna-
tiva. Então o mal nos acusa, mas nos permite, ao mesmo dos, , das como fazem os poetas,
tempo, acusar os outros, canalizando uma agressividade ~~~:~:~~::;~~:rdido ~m si~êngrca1·~;s ~or'
· 1 t 'd pelos amigos m '
dirigida para si próprio e para os outros. Quando alguém E se JU gou rru o 1 e embaixo esperavam
Voltou-se para aque es qu . fi tas
adoece na família, a sua condição representa uma censura
Sonhando-se ~oberanost s~i~~:rr~r::. so~-~ animal,
tácita a todos; o doente se torna o portador do sintoma, Mas entorpecidos, pros ra - . t I"
aquele que inconscientemente se encarrega de exprimir .
E se pôs a gritar: "N-ao, Deus
. nao exis
.d de.?
.1g~s, fronte contra a abóbada eterna;
. "Am" ouvistes a novi a e·
e, ao mesmo tempo, de manter o equilíbrio patológico da Dormiam.
família. A nossa vida é uma parábola que tem seu termo. Chocou-se a ~m ª flito e or quantos dias!
Eu sangro, dilacerado, a . Abis~o! abismo! abismo!
A trágica realidade é que o corpo deve ceder à doença. Irmãos eu vos enganava. "fí .
_ existe
N ao ? d eus no a ltar do , meu sacn
I" cio ...
Essa realidade é simbolizada pelas imagens que retra- Deus não existe! Deus. est~ morto.
tam pessoas lendo com uma caveira na mão, indicando Mas continuava dormmdo ....
a dramática inseparabilidade e a inelutável co-presença (Gérard de Nerval, Quimera, p. 43)
do projeto e do seu limite.

Sêneca, o principal represe~t a~te do estoicismo


agradecer a Deusro-o
mano imperial, escreveu que se evt'do em vida contra a
· , pode ser man i
fato de que nmguem . ossibilidade do homem
vontade,
d afirmando
,
com. isso ª p
rópna necess1 a ·
'd de Por outro lado, a
e calcar aos pesa P. . "heroico" e de reivindica-
apreciação do ato smcida como sua presença todo
ção da própria liberdade ~nf?rma ~omdo entre os nomes
o arco da antiguidade classica, ~s an , t ( al
. . d
dos mais famosos suici as os e d Licurgo
d 'parte) Diógenes,,
Socra es o qu
, D'd condena-o em gran e '
porem, no r e on, A E te último afirma ainda
Demóstenes, Catão e Seneca. s mens direito de usar
que os filósofos que neg~m. aos.~~ estão errados, quando
0
de violência contra a propna vi
198
199
dizem que se deve esperar o termo estabelecido pela na- Na renascença, observa-se certa inversão de tendência,
tureza. Fazer tais afirmações, diz esse escritor latino em
e o suicídio é considerado em uma perspectiva mais
um~ de suas Cartas a Lucílio, "significa não perceber que tolerante. Nesse contexto deve ser inserido um escrito
a~sim se fecha o caminho da liberdade" (p. 451). Escreve de 1608, intitulado Biathanatos, no qual o grande poe-
amda Sêneca (ibid., p. 453):
ta metafísico e, depois, homem da igreja, João Donne,
~adAa ~m. é liv:e para julgar como quiser esse ato de tratou o tema do suicídio do ponto de vista teológico,
v10lencia maudita contra si próprio, contanto que fique filosófico e jurídico, analisando as várias atitudes que
cla~o que a morte mais sórdida é preferível à escravidão se sucederam em relação a ele no curso da história, a
mais hmpa.
partir da antiguidade clássica, para chegar a~ fim d~
período renascentista. O interesse desse escrito esta
.s~ ~ristóteles, em sua Ética a Nicômaco, condena não tanto no fato de que Donne nega a validez absoluta
o smcid10 como covardia e como ofensivo ao Estado na da equação suicídio = pecado, quanto na argumentação
legislação da Grécia e de Roma esse ato já não é co~si­ com que defende sua tese. Certamente Donne não foi
derado crime ético ou religioso. Homero não condena o primeiro escritor cristão a afirmar que, em certo~
0
s~icídio. de, ~ocasta, a mãe-mulher de Édipo, nem 0 de casos, o suicídio pode não ser pecado mortal, mas foi
AJax; Virgiho também não reprova o suicídio de Dido o primeiro a demonstrá-lo - por mais paradoxal que
~ma vez. que a rainha havia compreendido que perder~ nos pareça - com o exemplo de Cristo. Se Cristo esco-
irremediavelmente Eneias. Os filósofos em geral e em lheu morrer, se Cristo entregou-se voluntariamente à
partic.ular, os,r~presentantes das escolas de pensam~nto morte - é esse o argumento de Donne - então não se
helemstas (cmicos, estoicos, epicuristas) aceitavam 0 poderá mais sustentar a validade absoluta da equação
suicídi~. ~ m~ima mori licet cui vivere non placet quase suicídio = pecado. Ora, para Donne, Cristo cometeu, de
nunca e discutida. A condenação do suicídio no Ocidente fato suicídio e isso estaria demonstrado pelas passa-
está claramente ligada à chegada do cristianismo. Ela é gen~ evangéÚcas nas quais se diz "entregou o espírito"
todavia, pronunciada tardiamente, embora com clareza: (emisit spiritum), em vez de "morreu'', e, além disso, por
por Agostinho, no De civitate Dei, e oficialmente no se- algumas passagens do evangelho de João (10,15: "dou
gundo concílio de Orléans, em 533. Em 563, o concílio de minha vida pelas minhas ovelhas", e 10,18: "ninguém
Braga proibiu a sepultura cristã aos suicidas. Se para a tira de mim, mas eu a dou livremente"). Embora os
o mundo pagão, é aceitável a decisão de morrer to~ada argumentos aduzidos por Donne a favor de sua tese
por quem não quer mais viver, decisão que é apreciada pareçam absurdos, resta a afirmação. desse auto~ de ~ue
como expressão de liberdade e como ato que iguala os não foi a cruz que tirou a vida de Cristo, mas foi Cristo
homens aos deuses, com o cristianismo o suicídio é irre- que a tirou de si mesmo voluntariamente. Ora, dada a
vogavelmente pecado, violação do quinto mandamento centralidade da figura de Cristo para a nossa cultura,
violação ~e instinto de autoconservação, e traição_ é ~ os argumentos de Donne não podem deixar de sacudir-
caso de dizê-lo-das obrigações contraídas desde 0 nas-
. ' -nos e isso prescindindo-se de sua validade intrínseca. A
cimento, com Deus, com a sociedade e consigo próprio. tese' segundo a qual o símbolo fundante do cristianismo
200
201
se teria suicidado deve fazer
radical da traição po , -nos pensar na infiltração E assim voltamos da hipótese do suicídio de Deus
radical e cósmica q' ue prqaue e ~xatamente uma traição precisamente para a vida. Certamente o tema do suicídio
mo d o nesse ato. Mas h, recena . consumar-se d e algum em geral poderia parecer estranho ao assunto de nosso
dedicou um breve ens~ioª mais. _Jorge Luís Borges, que livro. Com efeito, até agora consideramos a traição não
. ao escrito de Don .
que no smcídio de Cristo p d . ne, conJeturou só como algo inelutável nas vicissitudes humanas, mas
ainda mais funesta E o eBr-se-ia entrever uma ideia também como um momento fundamental, vital, de nossa
. screve orges (1960 'p. 98)·.
existência, sendo, porém, difícil qualificar de "vital" um
qns~o morreu de morte volunt , .
s1gmfica que os elementos
:s
ana, sugere Donne; isso
o Egito, Roma, Babilônia e'oºrº~be, ger~ções dos homens,
nada para dar-lhe a morte T ~mo eluda foram tirados do
ato como o de "tirar a própria vida". Mas não devemos
esquecer-nos quão ambígua é a palavra "traição", tanto
etimológica quanto semanticamente. Como já sublinha-
para os cravos, e os espi~h a vez o erro tenha sido criado mos, é essa ambiguidade que nos permitiu afirmar que se
e o sangue e a água ~s, para a coroa do escárnio
pode "trair" sem trair, faltar a um pacto, mas em nome de
entrevê-se esta idei~ b:rra a endda. Atrás do Biathanato;
u mverso
. roca: .a e um De us que e d'i:fica o
para edificar o pr, uma :fidelidade mais alta ou mais profunda; que a traição
opno patíbulo. pode ser, sim, uma culpa, mas à semelhança das de Adão
e de Prometeu. Uma culpa bendita e decisiva para o ho-
Escreve ainda Borges fi . mem, uma felix culpa ("feliz culpa"), uma transgressão
lander (ibid.): ' re ermdo-se a Philipp Main-
inevitável para emancipar-se do Éden e entrar na história.
~orno eu, foi leitor apaixo d O conceito de traição se baseia em um pacto, em uma pro-
mftuência dele (e talvez do~ª o ,de. Sch~penhauer. Sob a messa. Ora, o pacto ou a promessa por excelência é sem
mos fragmentos de um Deus gnostic~s), I~aginou que so- sombra de dúvida o amor. Mas também a nossa relação
destruiu, ávido de não ser A J~e: ~o m~c10 dos tempos, se com a vida é uma relação de amor; não é por acaso que
agonia desses fragment os.. s ona umversal é a obscura
falamos de "amor pela vida". Vejamos então que papel o
suicídio pode desempenhar nessa relação.
A história universal é . , Como observamos mais vezes, uma prescrição im-
tar, a história de uma t '. P:>1s, podenamos acrescen-
plícita em nosso modelo cultural pede que ocultemos
se consuma e agoniz raiçao também universal que
a realidade da morte: o sonho de onipotência alimen-
cotidianidade. Como ~deem cada :ragmento de nossa
tado pela civilização tecnológica sabe que é posto em
com esse Deus repen~ad mos entao entrar em relação
discussão por cada derrota do corpo, pela doença, pela ·
herdeiro do insensato o pol~fiBorges, com esse Deus
e ma e co dem. , . velhice, em suma, por tudo o que pode induzir o homem
com esse Deus que nos dá a vid mrgo gnostico, a interrogar-se sobre a precariedade e, por isso, sobre
de no-la dar mal1'gna t a e que no mesmo ato
'
Que devemos então f: men e a subt ·
rai ao nosso abraço?
o sentido da existência. Essa procura de sentido, o não
d ' ' azer com essa . . estar mais disposto a reconhecer-se no cânone coletivo
e um Deus que se suicida . . imagem, imagem
que sempre oferece significados "prontos" e funcionais
a falta de sentido da "d ?e, smc1dando-se, nos entrega
VI a. para o que é diferente de nossos valores individuais, con-
202 figura a morte como uma oportunidade, talvez a única,
203
a~ravés da qual chegamos a escolher a vida. Enquanto
s pode também perder-se no labirinto de uma solidi
nao pudermos escolher a morte simbolicamente ou, em
alguns casos.' concretamente, é claro que não poderemos :~iosa e sem retorno. A periculosidade da procura e

escolher a vida. E o suicídio nos diz que a morte pode ntido não deve espantar-nos, dado que, como obser
se d d .
ser escolhida. J ng a tomada de consciência é ver a e1ramente u
Todos aqueles que entram em conflito com os dita- f:rto'aos deuses, uma culpa de Prometeu. E~a
implica
mes das convenções externas para darem ouvido à voz da ntrada em contato com a dimensão inconsciente e, pc
próp:ia interior~dade respondem a um chamamento que : nto a coragem de pôr de lado tudo o que já se conhec
os poe necessariamente em confronto com a realidade o~'nu::Uinoso" entra em nossa experiência, e não está di
da mo:te. Co~ efeito, a coragem de interrogar-se sobre que 0 eu conseguirá confrontar-se com ele sem se per~«
o se~ti.do ~a vida e d~s escolhas individuais comporta Não cabe a nós dizer a última palavra sobre destm
relativ1zaçao de nossa Ilusão de onipotência isto é com- individuais que parecem decalcar em suas modali~a,d
porta a cap!lcidade de pensar na inevitável,experÍência a forma do caos e da desorientação. Em geral o ~~1cu
da morte. E só quando se percebe profundamente em é julgado nesses termos, como ~o~clus.ão dramat~ca
nível emotivo, a fugacidade de nosso aparecimento s~bre conflito entre leis do mundo e leis mtenores que nao E
a terra que se cria espaço para reflexão sobre o sentido contram ajuste vivível para o indivíduo. Mas c~~o .sal
da vida. Do contrário, somos torrente anônima que se se, no destino de uma pessoa, justa~en~e º. smc1d1:> ~
precipita pela encosta, ostentando nossos haveres como foi 0 passo que lhe concedia sua propna hbert~çao.,
se fossem coisa sólida, duradoura: a nossa casa a nossa filósofo escocês David Rume, em um de seus escritos . .
profissão, a nossa respeitabilidade, os nossos filhos. Não bre 0 suicídio, exprimiu um ponto de vista que, de algi
conseguimos .v~r que todas essas identificações corres- modo, coincide com a nossa interrogação: Supo~h~m
poi:i-dem a .sohd1ficações de nosso pensamento, enquanto argumenta Rume, que eu não tenha mais cond1çoes
o no da vida segue indiferente seu curso desaguando .
promover o interesse pu'bl"1co, em s uma. , que
. eu est.
1

no desc~nhecido da morte. Quando algué~ é obrigado impedido de fazê-lo ou que a minha vida impeça ou
por um impulso emotivo, interno, a refletir sobre esses pessoa de ser útil à comunidade. N~sse :as~, .sustei
temas, o que pode dar-se durante uma terapia analítica Rume, a minha renúncia a viver sena nao so isenta
ou pela ação produzida por um destino violento a "fé" culpa, mas também louvável (Rume, 1756, P· 5.9~): A
no materialismo começa a vacilar; não nos basta ~ermos mais acrescenta ele, não se pode negar que o smc1d10,
"fulano de tal", pertencer a tal classe social e a tal família certos' casos, pode ser um "dever para com -nós mesm n .
e ter essa ou aquela meta no âmbito profissional· temos (ibid.). Os casos aos quais Rume se refere sao a doe:.~
necessidade de outra fé, de uma nova fé, à qual co~fiamos idade e algum acontecimento danoso que possa torh e
o en~ontro do sentido de tudo isso. O processo posto em vida peso insustentável. Jung expos opim~o semel
A • ·-
e a
m_ov1me~to por sem~lhante impulso para a individuação em carta a Eleanore Bertine, em 25 de Julho d 17
nao desagua. em êx1~os previsíveis: a pessoa pode sair Em alguns casos, escreve ele, o. s~1c1 · 'd"10 p~de·m
estar
ed
dele fortalecida, mais humana e mais feliz por existir, acordo com o insconsciente do smc1da, e entao I P
204 é totalmente ilegítimo, quase um crime.
, ero de casos nos quais o suicida deixa
Toda traição é vivida como injustiça, mas a injustiça pelo grande nu~ ua última vontade ainda há
de sentir-se traído nas próprias expectativas pela vida mensagens escritdas. ~~ s merge uma última tentativa
mesma, que parece estender-nos seus frutos e, depois, lugar para o mun o, am a e e rinci almen-
d pôr-se em comunicação com ele, emerg p p d,
um_a vezbque ngaemstaoi~~~~~ecaso~ ;~:s~!e:Ue ~
cruelmente não dar-nos os meios para colhê-los, é intolerá-
vel. A "traição" que parece dar-se em relação ao indivíduo t:---:phcaçoes so re o dºd
:"to s~c~~~:~:::d:u::.:'7a~~ ~~;:zs:~~:;:~::º~a~
é a de um universo que, como a Esfinge cruel, apresenta
seguidos enigmas aos seus filhos, mantendo-os, porém,
na precariedade das respostas possíveis. Não obstante, ·t é de surpreeender a exuberancia r gi
Camus (1942, p. 27) escrevia: com efie1 o, . ·a os por exem-
, ºda de vida de famosos su1c1 as; pensem ' .
av1 . . tisa americana que escrevia a
plo, e~ Silvbia Plat?.~~;.: paroxística de existir" e sobre
Julgar se a vida vale ou não a pena ser vivida é responder
ao quesito fundamental da filosofia. O resto - se o mun-
sua mae so re sua iver uma vida profunda
"meu sentimento profun~o ~~~ath 1975, p. 158), cans-
do tem três dimensões ou se o espírito tem nove ou doze
categorias - vem depois. Esses são os jogos: primeiro é
preciso responder. e rica como nenhuma oura ' " ·b ºd 159) das
ciente "das fontes de tristeza e de d~ (i i ·sf1~ia Plath
Primeiro é preciso responder à pergunta que nos quais b~ot~Ariva~el'?equ~es~~t~~~~:i:s~ :::~:suas coletâ-
pomos sobre o sentido. E, paradoxalmente, a escolha da na poesia '
morte pode encarnar uma resposta: pensemos na escolha neas (1960, P· 39):
de nos alistarmos como voluntários na guerra ou de nos E agora eu
deixarmos morrer de fome por um ideal, opções essas que Espumo ao grã_o, cintilação de mares.
podemos ler como formas transversais de suicídio. Camus O pranto da cnança
é ainda iluminante quando nos diz (ibid., p. 28): , Na parede se liquefaz.
O que se chama razão de viver é, ao mesmo tempo, uma Eeu
excelente razão de morrer. Sou a flecha,
o orvalho que voa, .
Invertendo essa afirmação, afirmaríamos que às ve- Suicida, junto com o impulso
Dentro do vermelho
zes uma razão para morrer sublinha as razões da vida.
Pode suceder então que o ato fatal e definitivo do suicida Olho, cratera da manhã.
esconda, com a acusação de traição dirigida à vida, o
. ·t J·aponês Yukio
pedido magistral de uma "revelação" do que a vida não Outro grande artista, o escri or b d 1970
nos dá. O suicídio "trai" a vida, patenteia sua riqueza não . ºd 25 de novem ro e '
Mishima, que se s~1c1 ~uhem a mensagem fulgurante
resolvida ou a riqueza vivida como inatingível. A dupla deixou em sua escr1vanm a um
face do gesto suicida, isto é, a sua destrutividade evidente (Yourcenar, 1980, P· 104):
e, não obstante, o seu potencial de resgate desesperado e · · mpre
A vida humana é breve, mas eu querena viver se .
autárquico da inautenticidade, é-nos confirmada também 207
206
A vida, como nos é imposta, é demasiadamente dura para
. ~ortanto, em nossa exposição, longe de querermos nós; traz-nos em demasia sofrimentos, desenganos e difi-
mclm_r .ª escolha do suicídio entre as necessariamente culdades impossíveis de resolver.
patologi~as ou entre as necessariamente sãs, limitar-nos-
-emo_s ª. mter~ogar-nos, a apresentar perguntas sobre os Essa afirmação de Freud pareceria ditada por pessi-
pos~1veis sentidos do suicídio, o que indiretamente signi- mismo exasperado, mas, na realidade, poderia ser subscri-
fica mte~ogar-nos sobre o sentido da vida. Estou também ta por todos os que viveram verdadeiramente. O começo de
convencido ~e q~e, ~e nos tornássemos mais "permissivos" nossa vida é promissor, ao menos nas primeiras cenas: se
no ~ocante a crise mterior, esvaziar-se-ia no coração de temos sede, alguém nos dá água; se temos fome, alguém
mmtas ~l~as sensíveis, o recurso ao suicfdio como única nos dá de comer; se queremos dormir, alguém nos fará
escapatona ~e uma solidão insuportável. Quanto mais dormir. Crescemos sob o signo da confiança na justiça do
den~o e obstmado for o mundo circunstante em negar a mundo exterior, porque a satisfação constante de nossos
reahda_d~ do s.ofrimento, tanto mais o indivíduo que so- pedidos no-los faz sentir justos, como justa nos faz sentir
fre ~era n~1pehdo ~~r~ u~a estreita e intolerável solidão a vida, que tão pontualmente reconhece nossos direitos.
e ahenaçao. O smc1d10 diz respeito a todos nós não , É esse sentimento de justiça que nos leva a estabelecer
po~que ~esto
o de um suicida, embora distante, ~ão po~~ com a vida um pacto inconsciente, mas indissolúvel: ela
d~1xar de impre~sionar-nos em algum momento de nossa estará sempre do nosso lado. Tudo o que desejamos para
v~d~, ~as tambem porque ao menos o pensamento do sui- satisfazer nossas exigências parece-nos ao alcance da
c1d10 ,Jª atravessou talvez a nossa mente , a1·nda q ue por mão, ao menos nos albores de nossa existência. Nesses
um ~o momento, como resposta radical a uma frustração momentos se solidifica o conceito de que a "vida é bela",
~entida como intolerável - um luto, uma separação um isto é, quando ela se mostra somente como fonte desa-
msu~e~so. Jean Améry escreveu em seu Levar la r:iano tisfações imediatas. Mas, com o crescimento, aparecem
su di se (1976, p. 37): as primeiras dificuldades, as primeiras frustrações, os
O fato é que o ins"?cesso,. em sua dimensão de amea a primeiros pedidos não atendidos; então o sentimento d~
coloca-se, de maneira mais evidente do que a mort ç ' justiça se torna sempre mais tênue, até desaparecer. E
fundo de toda existência humana. e, no então que o famoso pacto inconsciente entre o homem
e a vida sofre o primeiro golpe. Não se reflete bastante
As causas que desencadeiam uma resolução tão que o sentimento de justiça foi vivido sempre como algo
desesperada podem ser as mais variadas como variadas objetivo, absoluto, universal e tão "acima das partes" que,
podem ser as s~luções que acabamos dando a esse deses- com o passar dos anos, se acaba confiando unicamente na
pero, mas aqm eu quereria tentar esclarecer os motivos "justiça divina" e dando como certo que não vale. a ~ena
profundos ~ue podem levar a mente humana ao pensa- procurá-la entre os homens. Crescemos com essa i~e~a de
mento de por a palavra "fim" em sua vida uma justiça que governa o mundo como uma espec1e de
Eu gostaria de partir de uma famas~ consideração gravitação newtoniana, mas depois a vida nos mostrou
de Freud: 1:1-m.a reflexão muito cara a mim em meus mo- o seu rosto, indiferente, belíssimo, cruel, piedoso, mas
mentos d1ficeis (Freud, 1929, p. 567): ?.OÇ}
208
sempre de modo casual incongruente, caótico e sem ao
0 caminho que conduz à descoberta da individualidade
menos a sombra de regras certas com as quais contar. Em
?~t~as ~alavras, não podemos confiar na vida. O pacto própria passa sempre. pe~a. expe~iência de um possível
m1c1~l e dolor?samente rompido. Nesse ponto, a traição suicídio. Com efeito, a md1v1duahdade requer a corage~
da vida, a traição que a vida nos impõe, não mantendo de estarmos sós e de nos opormos a um mundo que trai
seus pactos, nos faz vir à mente os versos trágicos de e banaliza. Daí o desejo profundo de não pertencermos a
Leopardi (A Silvia): este mundo. Não nos esqueçamos de que, desde os tempos
clássicos, a coragem foi invocada nas disc~ssõe~ s~bre o
Ó natureza, ó natureza,
por que não dás depois suicídio. Assumir a responsabilidade por nos propn?s ~e
o que prometeste antes? modo autônomo e crítico é experiência de reaprop~iaçao
por que tanto enganas os filhos teus? que requer certo tipo de separação do passa~o. Eis por
que podemos dizer que a análi~e co~~?rta mm~as_vez_es ~
.É, então, a vida que nos trai; é ela que - se voltarmos experiência do "suicídio" próprio, de tirar a propna vida
~º. s1~i~cado original do verbo "trair" - entrega-nos ao para permitirmos a sua transformação, para fazermos
m1m1go, isto é, à morte. Não a uma morte "natural" inevi- emergir uma vida nova, abandonando o modelo ve~ho,
tável, ainda quando inesperada, porque todos nós e~tamos agora moribundo. Em termos de simbolismo psíqmco,
"ent~egues" a ela pelo simples fato de vivermos, desde 0 porém, o abandono equivale a u~a morte. Enquan_to ~
nascimento, mas uma morte diferente, não sofrida passi- vida avança sem choques ex~ess1vos? e ~a~vez na cmti~
vament~ mas decidida, meditada, às vezes preparada lon- lação de satisfações verdadeiras ou Ilusonas, a ~~m~ e
ga e meticulosamente: o suicídio. Não sabemos se também como que eclipsada, posta de lado, reduzidaª? silenc10.
os suicídios que parecem causados por impulso imprevisto Infelizmente não só se trata de situação precária, porque
são tão "espontâneos", e não premeditados. É provável que é precário o ~quilíbrio entre ~~sejos e sat~sfações qu~ ~
eles amadureçam lentamente em uma situação de vida sustenta, como também essa desautoraçao da alma e
pa~a _ªqual se.torna insuportável a presença contínua da pura perda. Quem se priva incon~cientemente da ~resença
traiç~o: E a~m.embatemo-nos mais uma vez no problema da alma renuncia a um dom prec10so, porque ela e a nossa
dos vanos s1gmficados do verbo "trair". Por exemplo, além força. É verdade também que a mai~ria das pessoas nem
de "entregar'', fizemos referência à acepção que se verifica suspeita da existência da alma e deixa que ou!ros falei:n
" 1 "E .
no re:re ar . m que sentido, então, a traição praticada dela na forma de credos religiosos, de exortaçoes morais
pela vida nos "revela" alguma coisa, por não manter as ou de alocuções políticas. É como se a alma existisse como
ilusões de nossa infância? Pois bem, a traição que a vida institucionalizada por pessoas que falam dela por dever
nos impõe "revela" a presença da alma, e então numa de ofício.
perspectiva psicológica, o suicídio só pode ser consÍderado O suicídio causa perplexidade entre as pessoas; no
sob o ponto de vista da alma. De fato, é somente diante rosto de todos se lê estupefação quando se diz que alguém
da potencialidade do suicídio que percebemos que temos se suicidou, e todos experimentam um sentimento ~e
uma vida psíquica, que temos uma alma; e, vice-versa, culpa, como se, de algum modo, tod~s devessem sentir-
-se responsáveis. Em carta de 10 de Julho de 1946 a um
210
211
destinatário anônimo, Jung sugeria a ideia d
últ" T e que, em 19
ima ~na ise: a 1uta para viver tem em si um enorme
escopo (m Jaffe, 1975, p. 68):
A MORTE ENCONTRADA
Vive~o s para atingir o maior desenvolvimento espiritual
1
P.~ss1ye e para ampliar o mais que pudermos a nossa cons-
c1enc1~. Enquanto for possível manter-nos em vida ainda
que SeJa em nív~is mínimos, deveríamos empenha~ todas Oh, multiplicada miséria! Morremos e não podemos gozar
as nossa.~ e~ergias para conseguir o objetivo da tomada da morte ...
d e consc1enc1a.
(J. Donne, Devotions upon emergent occasions, 1
Meditation, p. 7)
A vida, continua Jung, é uma experiência que deve
ser 1e.v~d.a a ~ermo. A verdade, porém, é que a escolha
do s1:11c1d10 existe e é uma resposta extremada à traição
d a vida.

A tensão para o suicídio não exprime, pois, somente


uma pulsão destrutiva, um "infarto da alma" ou aquele
"deus selvagem" do qual falou Álvares (1970), mas tam-
bém, paradoxalmente, pode ser lida como uma mensagem
"cifrada" que nos remete a uma realidade profundamente
diversa, até de sinal oposto, isto é, ao desejo de uma vida
nova.Trata-se de um momento muito delicado, porque
é necessário esclarecermos com nós mesmos se a vida
de fato nos entregou à morte ou se, ao contrário, quer
indicar-nos o percurso doloroso e totalizante da desco-
berta da alma. Recordo uma passagem de Etty Hillesum
(1981, p. 237):
Há momentos nos quais a vida é dura e muito desencora-
jadora. Fico então agitada, inquieta e cansada ao mesmo
tempo ... Não poderei fazer outra coisa senão ficar imóvel
sob as cobertas e esperar com paciência que passem esse
desencorajamento e esse sentimento de desespero em
tantas direções. Antigamente, em situações semelhantes,
eu praticava loucuras; punha-me a beber com os amigos
ou pensava no suicídio ou lia a noite toda passagem de
muitos livros.
212
. d muitos se arrasta nesse reconhecimento
Mas então o que é essa ideia de suicídio que nos as- Por que. a vid~ e? Em A psicologia da transferência Jung
salta e nos persegue? Queremos dizer não à vida quando que trai a anuna.
ela nos engana e nos arranca continuamente do sonho que (l946, p. 139) escreveu:
perseguimos. Também a relação com os outros nos arranca O homem puramente natural deve, de certo modo, morrer
do sonho e nos faz cair na realidade; é na relação com os durante a sua vida.
outros que reside o núcleo de nosso maior sofrimento e de
natural deve transformar-se
nossa menor felicidade. A relação com os outros: o lugar O homem puramente t e
privilegiado de nossa transformação contínua em seres . "tual e nisso, pensa Jung, mos ra-s
em homem espin e;dadeiro o símbolo cristão da cruz.
sucessivamente feridos e curados, nos papéis incessante- exemplar e semphre v ramente natural para homem
mente alternados de feridores e curadores. A P~~s agem do omem pu rt
Em seu livro Símbolos da transformação, Jung ex- t d" da pelos alquimistas como mo e
espiritual era en en i o suspensão temporária da
plica o simbolismo das vias iniciáticas da individuação em outros termos, com ºd b'
ou, , . N ntido deve ser entendi o tam em
corno simbolismo de morte e renascimento. Vimos que vida ps1qmca. esse se . ões que caracterizam o
o nascimento para o reino da individualidade comporta o desmascaramento das proJeÇ d Jun (1955-56, p.
traição, vimos também que o tempo da "proibição do inces- homem puramente natural. Segun ° rg
to" equivale ao tempo simbólico que parte a circularidade 474), é essa vivência dilacerante que exp ica
onipotente, o complô secreto ao qual está amarrada te- - da um sente em desmascarar suas
nazmente a dupla mãe-filho. A impossibilidade neurótica a violenta aversao quehca natureza de sua anima.
projeções e em recon ecer a
de separar-se da mãe testemunha o medo de enfrentar
a passagem iniciática para outra fase da existência, - ode também ser invertida e, então,
para um modo diferente, mais consciente, do sofrimento. Essa a firmaçao P . 1 ns casos, como
a "morte real" seria explicada, em a guhecimento de si
Murray Bowen escreveu que quanto mais baixo é o nível d sa do homem ao con
Cb ·d p 475):
A •

de diferenciação tanto mais forte é o apego emotivo não consequencia a recu


, ·o A esse respeito escreveu Jung i i ., .
resolvido aos pais (Bowen, 1971-72, p. 63). Devemos pre- propn . . A •

. . d"víduopercebeaexigencia
sumir que, nesses casos, entra muito intensamente em Se, por vontade do ~es~mo, 0 m 1 f; zê-lo essa atitude
jogo uma aversão radical ao processo de alargamento da de conhecer a si propno e se recusa a ~ '
negativa pode causar-lhe a morte rea.
própria consciência. Essa aversão - que equivale a uma
traição entendida na acepção etimológica de entregar as . . t mbém. uma escolha
promessas da própria anima ao lugar da indiferenciação Escolher crescer implica, pois, a escolher
- poderia explicar-se como ditada pelo terror de enfrentar de morte, u~ gesto sui~id~ si~~~l~: !:=;:.:~bretudo,
a passagem iniciática para um modo de existir diferente, crescer, queira-se ou nao, imp t , de fantasias de
passagem essa que equivale a uma morte. Trata-se de um matar-se. De modo análogo, a raves à mente cons-
um processo que os alquimistas reconheceram quando suicídio pode progressivamente revelar-~~ ue a dor da
falaram de distractio e de "morte voluntária". Por que não ciente uma. tensão pa_:a la Itransf;~::~nis~a rebelde em
poderíamos reconhecer de outro modo nossas projeções? alma torna improrrogave . sao, p
'JH~

214
Cavalos em liberdad d Mº h ·
tantas vezes imagin:d e is ima, chega ao gesto suicida espelhos e no pedido incessante de sermos refletidos e,
sob um pinheiro nas o como momento sublime, "sentad~ assim, reconhecidos.
depois de ter te~tado =rgens do mar, ao nascer do sol", A ideia de suicídio alude à transformação, mas é claro
cassado o· d golpe de Estado terrorista fra- que quanto mais radical é a mudança que se projeta tanto
. msucesso e sua A · d t
revela o drama de um destin=ª t e dra:sformação social mais será ela vista como perigosa, e então a concretização
elo gesto suicida representa seu e;íl:~oºco::;:~s~::aç:o, do impulso suicida, a sua interpretação literal, pode pare-
Pano, também Van Go h t , · ouro cer a mais apta para resolver o conflito. Nesse ponto somos
tica, tentou realizar si!b~~c~::~~= :ua ~arábola artís- traídos pela vida, que nos entrega à morte, mas, parado-
do eu que suas cores . ssa ransmutação xalmente, também nós cometemos uma traição, porque
tela, mas sem consegu:~~o~s e magníficas projetavam na o impulso para matar-se não implica necessariamente a
Traição e suicídio est- ·d sua realização, e sim a compreensão de seu significado.
literalista no qual pode ca~~ um os ~elo mesmo equívoco Como maus tradutores, não apreendemos o sentido do
dade da existência com olharq::i~ ~~o olha para a reali- impulso, portanto, o sentido da "palavra", e a entendemos
de transcender o dado factual o ~º: com olhar capaz mal. Isto é, traímos o "pensamento do autor".
iniciática e salvífica Rece t ' parta a ~ir-se a uma morte A teologia sempre soube que o suicídio e a morte são
, . . n emen e a imprensa t. .
a serie de suicídios que .d . . no 1c10u a primeira perturbação da alma. E a morte - também
tal certamente só na a ~~~m~ ep1 em1_a imprevista, mas isso já vimos - pode representar a figura através da
na~ cidades de provín!a d~~~~::~:d~~á~1;mas peque- qual a alma nos fala. Se é verdade que o nascimento da
mais que adolescentes que não tinham en '~ra~ pouco individualidade se serve de uma experiência de possível
modo de resgatar-se de um "mal d . " co~ r~ o outro suicídio, e que escolhemos a vida quando poderíamos es-
irreconhecível aos outro s. e VIVer sutil e mvisível, colher a morte, então, no caminho que nos conduz a nos
tornarmos nós mesmos, vamos construindo a nossa "nave
O único horror é o de não servir de morte". Como diz a filosofia, ir conscientemente para
'
a morte significa construir o vaso melhor. Para Platão,
escrevia Yourcenar (1957 p 28 ) E _ . como sabemos, o exercício da filosofia equivale em tudo
e para ninguém · ºfi ' · . · nao servir para nada
que não reflete n:i:~~: :::i:tir a ~xistência como espelho
a prepararar-se para morte. O céptico Montaigne não
pensava de outro modo. Jung, de seu lado, sustentou
~~ ~~:::;:~;~:r:~:~:~~tl; :~:::: ~:~Z:1::~~e~ em sua autobiografia que, se a vida continua de fato no
além, a sua continuação só pode ser pensada como "psí-
mande de volta a nossa ima. e imos ao mundo que nos
quica". Isso implica, segundo Jung, que a vida no "além"
numa espécie de insondável gem, eA pare~e que o mundo,
dos tempos dº · c?mplo arqmtetado na noite pode ser representada só "como progredir no mundo das
' iss1pa-a nos mil b imagens". É, pois, a alma que mora no além ou na terra
cotidianos. No fundo pod . urd~cos negros dos atos
' er-se-1a izer o h dos mortos. Se, pois, "inconsciente" e "terra dos mortos"
persegue na vida se cons ' son o que se
uma na procura de possíveis testemunham horizontes semelhantes de um sentido pos-
sível, o reconhecimento e o acompanhamento das imagens
216
217
realizados em vida nos
e para a assa e preparam, de fato, para a morte e encontraram a morte atirando-se contra as cercas de
376-77) Ep g m p~ra alem do limiar (Jung 1961 PP arame farpado ligadas a alta tensão, para livrarem-se de
· por essa via Jung ' ' ·
pelas nossas alusões ' como se pode compreender um sofrimento insuportável, mas também como a única
de Platã E ' recupera, transavaliando-a, a lição possibilidade restante de afirmação do eu. A tentação
º· xasperando essas p · -
que cada um emb
'
.
ora mconscienteme t
para entrar na morte. A escolha d n, :s~o e su~ via
menos evidente. O insucesso de u o me ~ o e s~ mais ou
,
. os1çoes, podemos afirmar
t· Ih
suicida se faz premente quando percebemos a gratuidade
absoluta de nossa dor, como se ela tivesse perdido todo
significado, como se não fosse compensada por nada. Po-
o único que dá sent"d m projeto existencial demos resistir à tortura quando, por exemplo, trocamos
. . 1 o ao nosso prese t d '
smcíd10; de fato enqu t . n e, po e 1evar ao nosso silêncio pela salvação de um amigo, da mulher que
d
e nada impede nossoan o s.omos projetados para a frente
crescimento enquant t d"
amamos etc.; mas não resistimos quando o sofrimento
te de nós esse f:acho d 1 ' o emos ian- é destituído de sentido. Pensemos no suicídio de quem
e uz que nos ah · h
sentimos em contínua ex ansã r~ o .camm o e nos não conseguiu suportar a ausência decorrente de luto
em nosso pensamento· ela~he o, essda ideia não aparece ou de separação: a falta de relação com o próprio mundo
q ue não pode · '
mais crescer A pr · t b T d
°
ga quan 0 homem percebe interno fez com que fosse delegado ao outro o sentido da
o horizonte subjetivo de s~ntidoo~e a I I ~de representa identidade própria, em uma medida que vai muito além
acontecimentos do pr t 0 qual mscrevemos os das confirmações que cada um espera legitimamente de
esen e e sobret d
fiamos a vitali"dade d d' . u o, ao qual con- uma relação. Nesses casos, o trabalho psicológico, ainda
e nossa 1m - d ·d
projeto no qual cada um d , ensao es1 erante. O que não profissional, pode ajudar muito, porque nessa
mais alta espiritualidade e nos se recon~ece pode ir da
existência mas isso - tºs asp~ct~s mais materiais da
o "dentro" 'e o "fora" ~ª;e em ~mt.a importância porque
procura do sentido perdido podemos ser ajudados por um
amigo ou também, aos que têm "fé", por um sacerdote. A
força do homem que tem "fê" está justamente em ter um
possiblidades de carreira ~~s com~1dem. Por exemplo, as sistema de compreensão do mundo que não deixa vazios
traduzem esse desejo de ~se_o erece~ na vida adulta perigosos, ejá vimos que todos os sistemas religiosos nas-
através delas o indivíduopsr:j:~::e ~o hoj·~ no amanhã, e cem em resposta a questões fundamentais da existência
que o levda adiante, que o faz sentir-~:~::. cºa~:h~~ceNsso humana. Antes, a própria elaboração de uma dimensão
campos e concentra ão - . . os religiosa poderia ser lida como estratégia evolutiva capaz
psicologia muitas ve~es faz :~~eq~ai~ quem se ocupa de de garantir sobrevivência mais longa.
de verdadeiras e próp . .t ~encia, porque se trata O sofrimento que leva ao suicídio pode, pois, nascer
das possibilidades de sro1bas s~ ~aç?es extremas, no limite do despertar da alma, procurando um sentido em altas
rev1venc1a · 'd"
cionado expressament 1 - o su1c1 w era men- vozes; como já disse, a ideia do suicídio, ou o ato verdadeiro
e nos regu amentos t e próprio, não se manifesta nunca como acontecimento
strengstens verboten (" . . . en re os atos
os nazistas sabiam bei:ig~:~s:::ima~~~te proibidos"); e imprevisto, mas como culminação de um percurso interior
propriação definitiva da i~entidadp~01b1ç.ª? m~rcava a ex- que, em muitos casos, é mantido em segredo. A fantasia do
célebres as fotografias d .. e .º pns10neiro; ficaram suicídio oculta o desejo de realidade e de existência mais
e pns10ne1ros que procuraram plena, as quais a natureza, depois de havê-las prometido,
218
219
perspectivas para nós, é como se já nos tivéssemo~ S':_i-
impiedos~1?-en~e as negou. Toda traição, dizíamos, é vivi- cidado. Considere-se ainda quão desesperador sera nao
~ª com? lllJustiça, mas essa injustiça é intolerável. Tão encontrar afetos interesses, pequenos e grandes acon-
mtolera~el que, naquele que a sofreu, começa a surgir tecimentos do c~tidiano não só no presente, mas ainda
a nec~ssidade paradoxal, mas tranquilizadora, de tê-la nem na espera confiante de alguma coisa que possa ser
mere~ido, de fazer a prestação de contas dar certo. Pulsa conquistada. É a alma desesperada que invoca a morte, é a
em nos essa necessidade inextinguível, tão irracional alma desesperada que se dá a morte. Quando, como sucede
mas, ao mesmo tempo, tão tipicamente "racional" d~ atualmente, algum de meus pacientes ~ontrai a Aids, o
dar sentido "ético" a tudo, até às catástrofes naturai~ às psicanalista se vê diante de problemas imensos, porque
"pragas" bíblicas. Analogamente criticava Voltaire 'em a pessoa (geralmente jovem, à diferença ~os d?entes de
s~u Cândido, a ideia leibniziana de que o homem estaria tumor) é condenada à morte quando a vida amda deve
vi;ei:i-do no ~elhor dos mundos, e contra essa afirmação desenvolver-se, quando a vida está adiante, e não ~t~ás.
otimist~ fazia valer, entre outros, a catástrofe do terremo- Então é como se a fantasia da própria morte permitisse
to de Lisboa. Assim acabam?s aceitando a ideia de que, uma transformação, ainda que de forma alucinatóri~. N es-
no. fun~o, m~recemos tambem essa traição, por culpas
A
se contexto, o suicídio quer somente dizer: "Não ace_ito qu~
CUJa e:~1stencia talvez nem conheçamos. toda uma vida, que ainda devo viver, possa termmar. A
Diante da pessoa que quer suicidar-se é necessário traição da vida oponho ao menos minha vontade desespe-
~omp~eender qual é su~ relação com a realidade e qual rada". A ideia da morte deve pressupor uma elaboração e
e a vida que ela quereria, mas não consegue ter. Jung um distanciamento do passado. Se não o metabolizarmos,
~or exemplo, conta nas Memórias (1961) o difícil trajet~ ele nos anula e os nossos ombros se curvarão sob o seu
a procura de um sentido individual da vida, e liga os mo- peso, tanto m~ior quanto mais improd~tivo ele ~iver sido.
mentos mais sombrios de sua luta à falta de compreensão É como se guardássemos em casa objetos mmto velhos
dos sonhos. Uma voz dentro dele dizia: "Deves compreen- e inúteis; aos poucos o espaço estará cheio e não poder_á
der o sonho e deves compreendê-lo logo" (p. 208). A voz se receber mais nada de novo. O suicídio é a última ratw
tornou cada vez mais insistente e feroz, até exprimir-se ("razão") que temos, não tendo nunca tido a coragem de
dest~ modo: "Se não o compreendes, deves dar um tiro metabolizar o passado, a fim de olharmos para a frente,
em ti mesmo": Pode-se intuir que o suicídio seja visto em vez de voltarmos ao que poderíamos ou deveríamos
como perspectiva convidativa como via de saída como ter feito. Nisto deveria consistir nossa higiene mental, a
" ~o1uçao- " no momen~o em que' nos sentimos paralisados
'
saber, em evitar que o passado nos anule. Temos duas
di~te de ~m dever. E como se repentinamente tivéssemos possibilidades: viver ou morrer, e entre elas deve~o~ es-
caido na s~tuação de deficientes e não pudéssemos mais colher em perfeita solidão. Metabolizar o passado sigmfic~
corr:er, fugi;, ,agarrar alguma coisa para nos defendermos. aceitar morrer continuamente, por exemplo, nas experi-
A vida esta a nossa frente, depois de nos haver privado ências de amor, que, se necessário, devemos deixar para
de ~o_ssas possibilidad~s ,de enfrentá-la. Essa é a grande trás a fim de abrir-nos para o novo. A força criadora mata
traiçao da natureza. Diriamos então que a vida nos trai ao ;roduzir o novo; para nascer, o futuro deve livrar-se
quando nos priva de toda perspectiva. Se não existem 221
220
do passado. Posso estar desesperado, sentindo que não 20
vivo mais, e somatizar o meu estado de privação. Nesses
momentos de sofrimento - bastaria pensar em certas
A MORTE DESEJADA
doenças - a ideia do suicídio se torna dominante, porque
à negação do meu desenvolvimento liga-se o sofrimento
físico. Nesses casos, a ideia de traição está definitivamen- ·s do que na morte devemos seguir a inspiração
Emnad amai
te concretizada em meu corpo. Nessa altura, a ideia do de nossa alma.
suicídio parece ser a única possibilidade que nos resta, e (Sêneca, Cartas a Lucílio 70.12, p. 449)
'! é difícil propor esse ato como dimensão simbólica. Nesses
contextos, é só uma atitude religiosa que pode, talvez, ser
a melhor solução, porque, onde não há esperança e não se
vê o sentido das coisas, a alma "naturalmente religiosa"
percebe a presença de Deus.
Morrer é uma espécie de desafio cotidiano. Também
as células se regeneram continuamente, morrendo. Po- · mo escre-
A morte é a última traição; por isso, co
deríamos então dizer que quem nunca teve a ideia de " r ta não pode proceder sem uma
suicídio nunca enfrentou corajosamente a própria vida, veu Hillman, o ª!1-ª~~llman 1964 a, p. 46). O analista
aceitando a ideia de transformação. A resposta ao desejo filoso-fia da morte ( i 'filosofia da morte, é certo,
suicida consiste em se ouvir a voz da alma: ela fala quando não pode proceder sem u~ta . . a" o "outro" e "trairia" a
· fizesse rairi ,
as satisfações da vida desaparecem, e a natureza mostra porque, se assim ' t é lugar inacessível a
. , . . ão obstante, a mor e .
finalmente seu rosto severo de madrasta. A sua crueldade si proprio, n d " - rada" da experiência, lugar'
quer "entregar-nos" à morte, e o suicídio é o que sela a decifra~ão, lugard ~Una~~~ "incurável desvio". Trate-
sua traição. Mas, nesse ponto, também nós nos arrisca- como disse Bau ri ar ' 1 te de alguém ou do
mos a não "revelar" o sentido de nosso gesto, a saber, se do sofrimento cau~ado p~ a :.~:cipado pela tristeza
quando privamos daquela voz o movimento interior de pensamento da própria mor et querido· trate-se ainda
causada pela perda de um ende dor da,fraqueza ou da
transformação, que não devemos sufocar, matando-nos,
mas favorecer. da experiencia da doença ou a . ' to das forças vi-
·A • .
- d inevitável enfraquecimen
percepçao o d l"d- u da tristeza por causa
. t fim a so i ao o
tais; tra e-se, en ' . , . o di"scurso sobre a morte
. 1 u imagmar10
de insucesso rea o ~'. t refratário, como que
e sobre o morrer se torna rare ei o, . . - o ual
. ·1A • o O horizonte de hmitaçao, n q
encolhido no si enci · . _ sombra de morte a
. ·t se impoe como
estamos inseri os, d . os· e nunca como em
tudo o que realizamos ou eseJam . ' medo e até a
, oca o homem tentou exorcizar o '
nossa ep
223
222
ideia da morte através da corrid
superprodução ou do m 't d a desenfreada para a A traição de si mesmo representa a morte da alma;
tudo do emprego vertigi~~so od~~ogresso, a~rav_és sobre- e a depressão, com seus tristes corolários, é uma morte
se precipitassem em seu ab. empo, na Ilusao de que vivida, ou melhor, a incapacidade de sentir a morte de
e seus obscuros avisos A te1stmot. suads ima~ens funestas outro modo senão como anulação, desintegração, perda
remover sua presença atrav, · n da iva. e trair a m ort e, d e radical de significado. É a escuridão na qual se cai; muitas
mais que destituí-la de od:; os.ritos da modernidade, vezes a pessoa deprimida descreve seu estado como um
sua sombra d d p ' agigantou temivelmente "estar morta"; sua linguagem, como diz Kristeva, exprime
' e mo o que se de um 1 d l'
elixires de longa vida e t; . ª o, pro iferam os o desmoronar de todo sentido, o realizar-se da insignifi-
estético que parecem dast ecmcas de aperfeiçoamento cância, do vazio, do nada: "o melancólico é um estranho
. ' e er o tempo t
nmguém escapa ao . A • • por ou ro lado em sua língua" (Kristeva, 1987, p. 52).
perigo atom1co de d . '
total e fulgurante 0 f: t 0 , uma estru1ção Entre suas infinitas possibilidades, o homem possui
· a e que parece im , 1 ·
morte sem trair-se a si ró ri _ , poss1ve trair a também a de responder à dificuldade e ao mal-estar com a
o nosso tempo psíquic~ c:m ~unao so p~rque ela esconde traição, entregando-se a uma longa noite lúcida e tediosa.
filtradas através da perda d as contmuas presenças, Não se pode emitir nenhum juízo moral sobre as escolhas
da morte de nossos am e pdessoas que nos são caras, individuais de vida ou de morte, já que conhecemos bem
ores e a doença t b,
porque a morte significa a . .. ' mas am em a complexidade da alma para não encerrá-la nos limites
existência não se realiza e poss1b~hdade de que a nossa estreitos de uma opinião. Em todo caso, a escolha da
d A • anuncia a ameaça d d
a ausencia de significad d o na a e profissão analítica, que encarna e manifesta uma paixão
sent~do, morte e traição sºe e:::~o ser no i:iundo: Nesse pelas vozes dolentes da alma, nos sustenta para termos
sentido que uma aborda e~ ª~ maos, e e nesse sempre confiança nas potencialidades autorregeneradoras
da teologia cristã e de gem ~erbmeneutica menos literal da psique e para manifestarmos nossa preferência pela
<ladeiro triunfo da mortsua ~1~, ologia mostraria o ver- coragem do risco: quem não aceita o risco da vida prepara
e nao Jª e - ,
de destruição da matéri~ t nba? soem seu poder o próprio fracasso, e uma existência falha é uma traição
"vocação" de cada ' mas ~m em no malogro da infinita. Vem-me à mente a famosa Antologia de Spoon
tencial A v't, . dum, na anulaçao de seu projeto exis- River de E. Lee Masters: coletânea poética de retratos
. I orrn a morte se in . .
de nosso presente quand _ smu~ nos mterstícios existenciais, ideada na forma de breves comunicações de
ter consciência dele qua~~a~ c~nsegu1mos dominá-lo e mortos, as quais traçam - através de suas recordações,
sos, como escreve a p' o t' o e e ~ que guia nossos pas- das histórias de sua juventude e de suas tristezas - o
(poesias,. e isa americana Em 1·1 n· k'
vol. 2, p. 285 ): Y ic mson drama dos destinos "traídos". Na série dos retratos dessas
personagens incompreendidas ou, por sua vez, incapazes
Andamos por todos os lugares de compreender a vida, o de George Gray combina bem
P el?s quais ela passou _
Assim vão aqueles com o nosso discurso (Masters, 1914, p. 67):
Aos quais ?ão resta senão procurar Muitas vezes estudei
Bens perdidos -
a lápide que esculpiram para mim:
224 uma barca com velas amainadas, em um porto.
225
Na realidade, essa não é a minha destinação tino de crescimento, escreverá ela em Para uma moral
mas a minha vida. da ambiguidade (Francis-Goutier, 1985, p. 377):
Porque o amor se me ofereceu,
e eu me retraí do seu engano; AB palavras vitória, sabedoria e alegria têm significado
a dor bateu à minha porta, e eu tive medo; somente porque existem perigos autênticos, fracassos
a ambição me chamou, mas eu temi os imprevistos. autênticos e condenação terrestre autêntica.
Malgrado tudo, eu tinha fome de significado na vida.
E agora sei que devo içar as velas Toda experiência ligada a acontecimentos dolorosos
e tomar os ventos do destino, comporta sempre a contração e a crise do espaço vital do
seja para onde for que levem a barca.
Dar sentido à vida pode levar à loucura, sujeito, a redução do discurso ao silêncio, ao pranto, à do-
mas uma vida sem sentido é a tortura ença. Escreve M. Yourcenar em As memórias de Adriano
da inquietação e do vão desejo - (Yourcenar, 1951, pp. 537-38):
é uma barca que anela o mar mas o teme.
A meditação sobre a morte não ensina a morrer; não torna
o fim mais fácil, mas não é isso que procuro ... Pode ser(. .. )
Simone de Beauvoir recordará muitas vezes, em que a morte seja feita da mesma ~atéri8: informe ~ue :'1-
seus escritos autobiográficos, a enorme e negativa influ- vida. Mas todas as teorias sobre a imortalidade me msp1-
ência exercida em sua sensibilidade de adolescente pela ram desconfiança; o sistema das retribuições e das ~enas
"traição" paterna; profundamente decepcionado com a deixa frio um juiz consciente das dificuldades de umJuízo.
Por outro lado, sucede-me também achar muito banal a
vida e em desastrosas condições econômicas, seu pai se solução oposta, o puro nada, o vazio ~n.de ressoa 1:1 risada
irritava com ela, sublinhando seus modos desajeitados e de Epicuro. Observo o meu fim: essa sene de expenmentos
sua suposta feiura e fazendo-a sentir-se em dissonância feitos em mim mesmo continua o longo estudo iniciado na
consigo própria e com os outros. A escritora recordará clínica de Sátiro. Até agora são mudanças externas ... sou
que, na idade em que as jovens sonham com corpo de o que eu era, morro sem mudar-me.
mulher e com os primeiros e intensos amores, ouvia
muitas vezes o pai dizer-lhe: "Simone é um homem!" Só a poesia, talvez, consiga encontrar as palavras
Não é necessário imaginar o quanto pode tê-la marcado certas para exprimir, sem que se percam irremediavel-
essa negação de suas instâncias mais próprias e femini- mente, certas ressonâncias e sugestões.
nas. Ela própria enumera a longa série de sintomas, de Quando se fala de morte, só se pode falar da de
distúrbios psicossomáticos, de verdadeiras fobias e de outro, porque a ninguém é possível falar da própria
tiques que encheram aquele período crítico de sua vida. morte como a niguém é possível falar de seu nascimen-
Ela se entregava a cismas e fantasias para compensar a to· assim esses dois extremos, nascimento e morte, que
opressão do presente, e foi nesse período que se firmou '
enquadram ' a nossa vida, paradoxalmente correspondem
claramente sua vocação de escritora como possibilidade também a condições fundantes, das quais não podemos
de resgate e de emancipação de sua condição. Mais tarde, ter consciência. Apesar disso, de certa forma também a
na idade em que se examina o passado e se consegue ler nossa morte nos é familiar, é "de casa", acompanha-nos
em suas traições um caminho obscuro para o próprio des- como a sombra ou como o anjo da guarda da infância e
227
226
assoma inesperada e indesejada em nossos pensamentos. de longo fôlego é que a nossa consciência poderá expandir-
Escreve Ungaretti (1932, p. 131): -se livremente. E é nisso, talvez, nessa livre expansão
Ó irmã da sombra, da consciência, que reside o destino mais autêntico de
Noturna quanto mais força tem a luz um homem. Mas, embora essa amplidão nos tranquilize,
Persegue-me, o, morte. '
fazendo-nos entrever horizontes muito mais vastos do que
Num jardim puro o nosso estreito panorama cotidiano, não podemos deixar
Aluz te deu a ingênua brama de perceber de quando em quando uma ameaça suspensa
E a paz foi perdida,
Pensativa morte, sobre nós, ou melhor, embaixo de nós, como um prejuízo,
Em tua boca. um abismo para o qual não olhamos, a fim de não termos
vertigens. Sabemos, aliás, que cedo ou tarde esse "sem
Desde aquele momento
Ouço-te no fluir da mente fundo" nos engolirá. Não obstante, seremos obrigados a
Aprofundar distâncias olhar para ele, para esse abismo, não só todas as vezes que
Êmula padecente do eterno. nos embatermos na morte de uma pessoa que nos é cara,
Mãe venenosa dos tempos mas também todas as vezes que sentirmos a irremediável
No medo da palpitação distância de uma pessoa amada, a distância sideral que
E da solidão, nos separa de toda outra criatura e que nem o amor con-
Beleza punida e risonha, segue preencher. Escreveu Bousquet (1941, p. 122):
No adormecer da carne
Sonhadora fugidia, A morte é a solidão das pessoas amadas, uma névoa em
torno delas que nenhuma palavra terna pode atravessar.
Quando me tiveres domado, dize-me: A morte é a dor e o desespero nas mesmas palavras que
Na melancolia dos vivos foram a embriaguez da felicidade. A morte são os prantos
Voará longe a minha sombra? que irrompem quando se ouve uma palavra que significava
amor.
A morte nega, pois, a existência, impondo-lhe sim-
plesmente um limite. No plano da vida cotidiana essa A morte se nos mostra na impossibilidade de dissipar
negação significa que todo projeto pode ser invalidado e essa névoa ou de atravessá-la para chegarmos a quem
que toda esperança pode ser frustrada; é como se o sentido amamos. Ela nos surpreende no auge do amor, quando
de nosso agir fosse posto continuamente em discussão e uma palavra que nascia de intenção bem diferente tem
como se o valor que lhe atribuímos fosse redimensionado ressonâncias inquietantes de memento mori ("lembra-te
drasticamente à luz de sua precariedade. Embora desde da morte"). Em célebre farsa do teatro de fantoches, Pul-
o fim da infância nos tenha sido instilado o conceito da cinela, no clou de um tarantela alegre, encontra em seus
caducidade dos bens terrenos, cada um de nós cultiva braços como "dama" a Morte encapuzada. A morte nos
a~gum projeto de "longa duração", esquecendo-se ou fin- aflora todos os dias nos abandonos que sofremos ou pra-
gi~do esquecer-se daquele "limite"; e é bom que assim ticamos e se insinua, silenciosa, mas não menos atenta,
SeJa, porque só se nos concedermos uma projetabilidade em nossos momentos felizes para estragar a festa. Se con-
228
seguíssemos, não sei por quais exorcismos ou lobotomias concebível e, portanto, inexistente. O inconsciente, como
manter seu fantasma sempre afastado, apesar diso, sería-' já vimos, não conhece o "n~o", e ~or i~so não t~m como
mos obrigados a acolher o pensamento tremendo da morte negar o fluir indiferente da vida. Nmguem, especialmente
no dia em que ela levar uma pessoa que amamos. Com se tiver uma consciência pouco diferenciada, convive com
efeito, a nossa única "experiência" da morte é a de uma a ideia da morte; ao contrário, está inconscientemente
morte da qual sejamos espectadores, a da morte de outra convencido de ter assinado um pacto de imortalidade,
criatura humana. A nossa experiência da morte consiste sem o qual não teria sentido falar de traição. Outra ca-
em assistirmos, impotentes, à progressiva e definitiva racterística da dor causada pela perda da pessoa amada
redução do espaço vital do outro, o qual, de companheiro é que, por algum tempo, ela impede qualquer relaç,ão com
de vida, se torna fantasma. A vida é expansão progressiva, os outros a não ser que seja puramente formal. E o que
a morte é a sua sufocação; assistir a essa síncope mais comume~te indicamos quando dizemos que alguém "se
ou menos anunciada na vida de quem amamos gera um fechou em si mesmo". Mas a necessidade de uma vida de
fantasma que não abandonará mais a nossa vida. Nunca relação é irrenunciável, uma vez que cada um nasce pedin-
mais seremos abandonados por essa experiência, porque do relações e sobrevive somente obtendo-as; toda a nossa
ninguém poderá dar-nos de volta tudo o que pusemos na vida psíquica se baseia no fato de que temos determinados
mulher amada. Seus abraços, seus beijos, a volúpia que pais e vivemos em ambiente humano, no qual aos poucos
aquele corpo nos deu e ao qual demos tanto ... num sopro, foi modelada a nossa dimensão emotiva e afetiva. Essas
num momento, tudo desapareceu. Talvez esse aconteci- relações são os nossos "depositários" e os nossos espelhos,
mento seja pior do que o que aconteceu com Jó. Diante tão indispensáveis para o equilíbrio psíquico que aquele
de nós, órfãos da mulher amada, só desejamos o silêncio que não as tem é obrigado a refugiar-se na lou_cura, a
e o esquecimento. construir para si um interlocutor interno e a ouvir vozes
A morte do outro significa a identificação imediata de dentro. Através das relações com os nossos semelhentes
com um destino que é também o nosso (Antonelli, 1981, conseguimos "conter" a nossa condição incômoda; quando,
p. 147). No filme dos Taviani, O sol mesmo de noite, duas por alguma razão, elas são interrompidas, ~hegam~s ~o
pessoas anciãs pedem que morram no mesmo momento· confronto final. Paradoxalmente, nessa circunstai:crn
esse inciso do filme põe em cena justamente o fantasma' extrema, na qual a mentira já não tem nenhum sentido,
do qual falamos; duas pessoas que se amaram muito só é pedido a cada um de nós que esteja no máximo de _sua
podem morrer juntas, porque duas pessoas que compar- força; que, talvez pela primeira vez, olhe com lucidez
tilharam profundamente do próprio mundo psíquico não para sua vida interior. O paradoxo está, portanto, no fato
podem sobreviver uma à outra. Assim, explicamos alguns de que é nesse momento de grande fraqueza que nos é
suicídios "estranhos" ou algumas mortes em perfeita su- pedido que sejamos fortes. Se o nascimento é movimento
cessão, primeiro ele, depois ela, ou vice-versa, mortes que do interior para o exterior, a morte é cambalhota que nos
podem ser consideradas como formas de suicídio. leva de novo para dentro.
Nada senão a dimensão do sentimento, poderá
A verdadeira traição da morte consiste em que ela, '
resgatar-nos; se um Deus tiver de julgar-nos e qmser
.
do ponto de vista do inconsciente, parece totalmente in-
')Q1
230
perdoar-nos, fá-lo-á porque amamos muito, não porque, 21
por exe~plo, p~nsamo.s muito. Talvez esteja aí a origem
d.o conceito de_imortahdade a respeito de uma experiên- TRAIÇÃO E LIBERDADE
cia de desolaçao e de fim. O desespero diante do possível
fim de t?d~ .relação é remediado por uma concepção
:xtraordman~ sob o aspecto psicológico, concepção que
e a do re_nascimento, da ressurreição, da metempsicose. Quem percorrer a estrada que leva à totalidade não poderá
Ela e:x~nme a .luta ~o homem que não se rende à perda escapar àquela suspensão característica que é representada
defimtiva. Mmtos sistemas religiosos e filosóficos teori- pela crucifixão.
zam ~ existência de um renascimento depois da morte, (Jung, A psicologia da transferência, p. 139)
:sp~cialn;ei:i-te na forma de ressurreição da alma. A morte
e, sim, a ultima traição, a qual encerra a história pessoal
mas .ela ~e d,iferencia das outras por duas características'.
A pn~e~ra. e ~~e podemos somente sofrê-la, ao passo que,
n~ ~raiçao micial, a do nascimento, podemos também in-
?ivi~uar um_ pa~el ativo, uma traição nossa em relação ,Todo o percurso do livro se desdobra entre dois
a mae,, (o primeiro abandono, o primeiro "voltar-lhe as imensos lügâ.res metafóricos: de fato, o espaço da traição
costas ). A segunda é que parece francamente difícil ver corresponde, por um lado, à experiência "passiva" - por~
nessa traição, com a qual a vida nos liquida uma vez por tanto, espaço de morte - de ser traído, de sofrer o beijo
todas, u~ aspecto ''vital", "positivo". A não ser que ... de Judas; por outro lado, corresponde à experiência de
A nao ser que no lugar da morte como acidente con- wtraidor, de atuar uma vontade de transgressão que
creto e conclusivo não tomemos em consideração a ideia não se detém diante de nenhuma proibição, A cena da
d~ morte, a consciência desse limite inevitável de nossa vida vê cada um de nós assumir sucessivamente o papel
vida. Nesse caso, podemos ser nós os traidores, e então de traído e o de traidor, ou talvez exatamente um e ou-
se toma claro que a morte não pode ser senão a via de tro ao mesmo tempo, de acordo com os deslocamentos de
acesso. a uma experiência de transformação, isto é, de cena no jogo "demoníaco" dos intercâmbios relacionais,
renascimento. _nos g~_a,.is somos simultaneamente vítimas e algozes. É a
complexidade da alma que nos pede confronto contínuo
coinàs nossas ·partes mais recônditas,, visto que a nossa
plena humanização comporta a capacidade de estarmo~
em relação com a poliedricidade da psique, a qual pode
espantar e desorientar, e às vezes arrastar. Sofrer uma·
traição significa ser entregue a uma morté dolorosa e
experimentar, na primeira pessoa, as feridas do abando-
no e a perda de toda referência habituàL Mas a psique,
232
em sua. lingua~em simbólica e carregada de imagens, tornando-se, por sua vez, objetos de trajção, mas a história
nos ensma a. viver cada morte como rito de passagem ·-
e-~ s~a fé us recompensaram largamente. ~~~8-.~-~~º2--~
para novas formas de experiência da existência. Como·
traíç~~ éJIJ!lJl p,~gªç~p_g9 <l1:1~ ~~ste, a fim de que não se
nos recorda Jung, a ampliação da personalidade passa· cri~talize, p~;rde.11<].9 yicJ:~-~ sent~_do. Que sentido teria tido
quase sempre por um sacrificium mortal, e a experiência· para os nossos progenitores uma vida idílica prolongada.
da traição e do luto pode exercer função transformadora·- pela eternidade de um tempo sempre igual, senão o fim
se conseguirmos elaborar sua viv~ncüt. A crucifixão d~ do humano em seus albores? Necessariamente não foi
Cristo e, po.rt~nto, sua obra de redenção, como já vimq.s, _ assim. S~ observarmos a criança em seu primeiro ano de
puderam realizar-se somente por meio da traição de um vida, vê-la-emos repercorrendo as etapas antepassadas do
apóstolo. Escreve Jung em A psicologia da transferência· desenvolvimento humano, com aquela curiosidade irre-
(Jung 1946, p. 139):
quieta que se move por entre as coisas, familiarizando-se,
··Quem p~rcorrer a estrada que leva à totalidade não poderá por meio delas, consigo própria, a fim de ultrapassá-las
escapar aquela suspensão característica que é representada na direção de sempre novas metas, de novos objetos que
pela crucifixão. Com efeito, ele acabará por embater-se abram outros horizontes de conhecimento, abandonando
sem e:ro, .naquilo que lhe corta a estrada, que o cruza;
em pnmeiro lugar, naquilo que ele não quereria ser ... , e traindo o velho jogo pelo novo, as descobertas obsoletas
em segund~ lugar, naquilo que não ele, mas o outro é ... , por. novas mara:ilhas ..~ }11na l~_i;·clª p~iq:µe. Na lógica d~. ~_:~
e, em terceiro lugar, naquilo que constitui o seu não-eu traição f;e exprime. o dçi_~mQn. çp_~<!gi:: cl-9 __4<m1.~m, a sua ,
psíquico.
-ânsia de liberdade e de.indixiçluação.
A traição sempre se encontra,__p_ortap.JQ,,,,em nosso
t;. rf~a:ir-~q:ti~Y~!~ _tfl.mb~.!1?:-ª. d~~--~ ~(>,~-~~-~~~~-ª~~ ~!.i:t~:-.
·:~se naquilo_ql.1,El ê::nte§. ~r~ a. _pr,:_ó,p:ri~. :gle.1nt:ude..<:l. segq:rnn:.
c.aminho, e não só para aniql!ilar-nps; se ela _d,§ãestabi- ça:Fausto chegou a trair a própria alma, entregando-a a
hz.a, é para que se recrie alguma coisa. EsÚ~mos..sempre ~Satanás, em troca do segredo do conhecimento. Vem-me
~i atirados na traição. A renovação do milagre de u_m_en à mente a trágica história do amor de Orfeu e Eurídice: o
._f'< ~~ª-escol_?_~~-~ ~i-~e~mo - que acontece a 8C~esmo .. poeta cantor desce aos Infernos para rever a amada mor-
escrev~ Jung - é J:>O~~Ível SQ e quando Se -abre- uma bre~- - ta e recebe a permissão de levá-la de volta para a luz da
~h-~ ~-~-}!!l:~aridade do. seu tempo e na cotidianicl~cl~ d~ - vida, com a condição de não voltar-se para vê-la durante
s~~-~-c,~~~-ç~~: o homem tem riécessidade de· transcender- - todo o percurso que leva do Hades até a terra dos vivos.
séus limites para 'désé'obrif novas regiões de si pr_óprio. ·: Orfeu falha, olhando para trás para ver Eurídice e, com
Freud e Jung, com Galileu, Bacon, Abelardo e Nietzsche - isso ' a condena à escuridão da morte. Cada um de nós traz
praticaram a grande traição das regras culturais de seu .
dentro de si a recordação. de u:rµa ~urjdice _entre@e ao .
tempo, foram transgressores de um sist~~~--fe~:h;dõcrê· esquecimento, de uma amizade traída ~Ju de um amor qµe
. saber que não lhes permitia mais nenhunúí'poss:lbilidade n"é>s traiu, e talvez em cada um de nós esse acontecimento
de aposta consigo _próprios e sobretúdo de "descoberta dê ·Significativ6 tenha ace~dido um cântico como em Orfeu,.
nõV~!°~~r8:_njo~ dos mund~s desconneCidos nos quais o ho- o pa1 da poesia. J oe Bousquet, poeta verdadeiramente
mem fora colocado. Pagarain~essa ·- -
temeridade
- .
.~- '--··~· ."•
audaciosa- .,_ ., )... ··' frãídopela existência e entregue à noite perene do corpo,
234 :
/ \
235
conseguiu criar obra maravilhosa a partir dessa traição o paciente a reconhecer em si aquela imagem de "trai-
total e desarmante (Bousquet, 1941, pp. 84-85): dor" que, por causa da distorção projetiva, ele descobre
Vi a v.erdade de perto. Posso dizer que ela veio quebrar-se refl~tida constantemente no rosto do Outro: Na verdade,
em mim, envolvendo num halo curioso o doente que eu sou, além das traições vitais que a vida mesma impõe aos seus
? doente que eu ~e torno.( ... ) Eu sou aquele cuja vida se filhos, a lógica distorcida de nossas coações e de nossas
mten::ompeu ~mto cedo e que teve de esforçar-se para inca-pacidades nos imobiliza em situações falimentares
acreditar no milagre, a fim de ajudar as coisas a retomar
seu curso normal.( ... ) e autodestrutivas: somos nós mesmos nossos mais cruéis .
J\c7editei no milagre porq.ue essa crença era a única possi- algozes. Assim o nosso percurso analítico sobre a traição
b1hdade para o meu mstmto de conservação. Ora, parece 'se abre para outro registro,_ o da traição de si mesmo. O
que essa concepção de fortuna marcou inteiramente a paciente que, na análise, apresenta os sintomas mais
minha vida, como se a forma quimérica que ela assumia diferentes sofre antes de tudo de uma _traição em relação
para aparecer-me tivesse sido fecundada pelos aconteci-
mentos nos quais ela se fortalecia. ao seu eu mais autêntico. Toda pessoaque·sofre.vive di-
(. .. )O destino estava consumado. Não me restava senão laceração interior entre suas instâncias conscientes e um
mant~~ em mim aquela luz que, de dia e de noite, lhe núcleo da personalidade que, bloqueado, impede que tais
permitia reconhecer-me entre outros mil. instâncias se realizem. Muitas vezes se ouve dizer: "eu
gostaria de livrar-me dessa situação, mas não consigo",
Um poeta paralisado pela vida em um leito nos ilumi- "eu quereria trabalhar, mas não trabalho". A "coação para
na sobre a qualidade de existência voltada para resgatar- repetir", esse mecanismo pernicioso que. Freud analisou
-se das traições que cortam a estrada de nosso desejo de em Para além do princípio do prazer, significa a constrição
~xpansão, de plenitude: a traição do tempo, c:lo amor, da inconsciente para se cair sempre nos mesmos erros, para
lmguagem, do esquecimento. Do fundo de uma procura "'Seencenar repetidamente determinado papel, para se re-
que une a todos nós, as suas palavras direcionam o nosso viverem com as mesmas modalidades relações negativas
percurso de manifestação de nossas verdades traídas e e frtistrantes. Avança-se, por esse caminho J:lOcivo, para
ocultadas nas profundezas do coração (ibid., p. 18): uma existência sob o signo da traição a si mesmo. Não
/'
; Enqua~t? não se põ~ em jogo a própria vida, falta a força obstante, como a coaÇão oculta, atráÉi de repetiÇão ~bsti­
necessana para se tirar da sombra o traço fundamental nada da própria morte, o desejo de vitória sobre o próprio
! de um caráter. Sabemos por instinto de que lado devemos cf~iiiônio interior, assim a traição, em sua essência, repre-
\ agarrar uma verdade capaz de salvar-nos do desespero. senta a tentativa de um voo. Não estou, naturalmente,
celebrando a apologia de um "reato"; tento diversamente
~a traição, t!aidor e traído representam dois aspec~ salvar sua paradoxalidade, isto é, não reduzir a uma só
tos de uma mesma expectativa, como no quadro analítico dimensão um fenômeno complexo e cheio de contradições
paciente ·e analista são continuamente chamados a in- como toda vivência que a psique colore e apaga, engran-
verte: ~s _certezas de seus papéis e de seus valores para. dece e mortifica. Se o homem fosse livre, não teria neces-
permitir as vozes recíprocas inconscientes que venham à sidade de trair; não obstante, é igualmente verdade que
tona para um diálogo de almas. É só assim que se ajuda ' se o homem não fosse livre, não poderia trair. A traição
236 9'-l7
menta ocidental e oriental desde as tentativas iniciais
.J~ µ_m_~ r~y9lta.: .tQcia_r~vQll!Ç#.9.ê~j~~sçrnxe...na..órbita da
' traição; é traiçãotoda obra, cie arte que ro;n:iQe um circl!ito - do homem antigo para explicar, através da fábula, seu
anelo de harmonia e perfeição, apesar da incredulidade
/~ · ~bsol~to do conheciir1entoJ é traição toda nov;~d~~Çg~ertá;_
diante de um mundo temível e muitas vezes inimigo. Não
e traição. todq movimento intelectual originaJ. A pará-
bola de nossa vida se estende, percorrendo etapas que, é fácil resignar-se à imperscrutabilidade da natureza e às
como vimos, são marcadas por essa vivência dilacerante. contradições profundas da existência; e na grande sede
_Atrás do som da palavra traição oculta:-se.aJuta eterna de· unificação interior, tudo o que mancha o desejo de
entre Eros e Thanatos, entre vida e morte e~t;ê-hêie~ã·· harmonia é visto pelo homem como equívoco absurdo ..
e deformidade, ou tudo aquiloem que ~~J~gaode~
.human~º· É sempre o desejo de umá ~ompÍetudêimpossível -
que move a nossa nostalgia e alimenta o movimento da
consciência para metas sempre novas, metas que se abrem
sobre a impossibilidade de realização definitiva, em um
movimento que nos afasta de nossos sonhos de ontem e
dos rostos que conhecemos e amamos, em suma, em um
movimento que nos impele a trair. Nietzsche, esse traidor
por excelência, falava da iminência de uma "curiosidade
sempre perigosa", curiosidade que o levou a trair sua fé
passada, seus amores intelectuais e até a grande amizade
com Richard Wagner, que se tornou adversário mortal. A
traição era necessária.
Escrevia Nietzsche em Humano, demasiado humano
(1878-79, pp. 6-7):
Pode-se subverter todos os valores? Por acaso o mal é
bem? E Deus é só uma invenção e uma fineza do Diabo?
Por acaso, em última análise, tudo é falso? E se nós somos
enganados, não somos por isso também enganadores? Não
devemos ser também enganadores?

Esse percurso sobre a traição volta, a§_~i!_l'.l, a fec~e. ,


com o motivo do início, com o mito Qrigi:gaj,_q~~~~ilc.m.. ª..
a todos nós e em torno do qual se movem em sua procura
não só a psicanálise, mas também a arte a filÜsofia e -a .
A
religião: o mito do Éden e de sua perda. meIIl.ória. da
traição parece acompanhar e influenciar todo o pensa-
'l'JO

238
EPÍLOGO
EXPERIÊNCIA E PERDA

A nossa primeira experiência é a de uma perda.


(Lou Andreas-Salomé, O mito de uma mulher. Autobiogra-
fia, p. 21)

Lou Andreas-Salomé, que, em 1911, dedicou-se à


pesquisa psicanalítica, depois do encontro com Freud, na
abertura de sua original autobiografia, sintetiza seu pen-
samento sobre o homem como a procura da recomposição
da terrificante fratura criada na consciência, quando ela
emergiu da participação mística primeva na onipotência
do universo (Lou Andreas-Salomé, O mito de uma mulher.
Autobiografia, 1951, p. 21):
É indicativo: a nossa primeira experiência é a de uma perda.
Pouco antes éramos um todo, uma entidade indivisível;
toda forma de existência era-nos inseparável, e eis que,
repentinamente, obrigados a nascer, tornamo-nos partí-
cula residual do ser, partícula que, daquele momento em
diante, deve esforçar-se para não sofrer novas limitações,
a fim de conservar-se no mundo sempre mais vasto que se
abre diante dela, naquele mundo no qual ela caiu de sua
plenitude cósmica.
Assim, em certo sentido, a primeira experiência que se
vive é do passado, é uma recusa do presente; a primeira
"recordação", como a chamaremos mais tarde, é ao mesmo
tempo um choque, uma frustração por ter perdido aquilo
que não existe mais, e a persistência da consciência, da
certeza de que deveria ainda existir.
'>A 1
.fil_~ p~~~!l?!~n.:~ia da certeza do que "deveria ainda tando, com muita coragem, os vé_us_ do não dito, atrás dos
e~~~ir"_~juf?ta~~nte-a tensaoquel~p~l~-º)ioniem ·a àgfr - qua!§ s{l agitam as sombras inquietantes da sexmtlid.ade.
reprimida da morte, do desejo negado. Do mesmo modo,
. e enfrentar titanicame:rite,-diríamos,a existência e a-cnâ.r-
obras que resistam à traição do tempo e da história. · -· - todo fenômeno que diz respeito ao universo humano - o .
A traição fecunda é simultanea~ente a _coll,denàção . crescimento, o amor, a criatividade-deve ser confronta- ,
do homem, aquilo que o condena à ação, à criação de do com seu lado escuro, com sua morte, para se descobrir
si como de um Prometeu sempre novo que saiba· fazer que o que nos limita e nos trai talvez seja também o que
frente à inveja dos deuses e de seus s13melhantes. Porque nos determina e nos revela.
quem "trai" sofre o juízo extremo do coletivo- ' unia ~ez.
,,_ ,._

que formar a própria vida respeitan<:lo suas aspiraçges~


mais profundas é o que é estigmatizado mais facil:r:nE:ln.te.,
como_ traição. Algo muito semelhante sucede durante o
., trabalho analítico, quando o paciente, através de atos
;'defensivos, tenta "resistir" às possibilidades de transfor-
mação, porque muitas vezes, para um eu frágil, sacudir
a ordem precária mas inegavelmente tranquilizadora de
seu status por um equilíbrio novo, mas (considerado) peri-
goso, é impossível. Com efeito, no processo individuativo,
trata-se também de "trair todas as expectativas" que os
outros puseram em nós, manipulando e alienando-nos de
nossa verdadeira natureza. O paciente pode, pois, negar
inconscientemente seu desenvolvimento psicológico por
causa da carga inegavelmente subversiva que ele contém,
em suma, por medo de cometer a sua traição, renovando
o ato primordial de Adão e Eva de infração da ordem
divina. Aliás a psicanálise, como técnica terapêutica e
mais ainda como saber, se distinguiu desde suas origens
como disciplina do desmascaramento, "traindo" velhas
certezas e revelando o desconhecido do conhecido; não é
por acaso que, com Copérnico e Darwin, Freud é conside-
rado como o subversor de uma visão do homem, da visão
do homem cartesiano, totalmente identificado com o "eu
penso" de seus processos de consciência. Freud trai esse
simulacr(), _demonstr~ndo que o eu. co11~.c~~~t~~~ã~··pas~a ..
de um flutuador no imenso mar do inconsciente, lévan- e
242
BIBLIOGRAFIA

Nota: O autor serviu-se de traduções italianas e/ou dos originais.


Quando de domínio universal, o título das obras aparecem em portu-
guês no corpo do livro. Os nomes de autor, seguidos de data, citados
no texto remetem a esta bibliografia, que aqui traz os títulos segundo
a tradução italiana, quando houver. A data abaixo do nome do autor
refere-se à publicação da obra na língua original.

ABEL, K.
1884 Der Gegensinn der Unworte, Lípsia
ACCETTO, T.
Delta dissimulazione onesta, Costa & N olan, Gênova 1983
ADLER,A.
1920 Prassi e teoria delta psicologia individuale, Newton
Compton, Roma 1983
ALVAREZ,A.
1970 Il Dia selvaggio, Rizzoli, Milão 1975
AMÉRY,J.
1976 Levar la mano su di sé, Bollati-Boringhieri, Turim 1990
ANDREAS-SALOMÉ, L.
1951 Il mito di una donna. Autobiografia, Guaraldi, Florença-
-Rimini 1975
ANTONELLI, F.
1981 Per morire vivendo. Psicologia delta morte, Città Nuova
Editrice, Roma 1990
ARISTÓTELES
EticaNicomachea, introdução, tradução e comentários
sob a org. de Marcello Zanatta, Rizzoli, Milão 1986
BALZAC,H.D
1829 Physiologiedu mariage, Garnier-Flammarion, Paris 1968
BARTHES,R.
1977 Frammenti di un discorso amoroso, Einaudi, Turim
1979
BATAILLE, G.
1962 L'erotismo, Mondadori, Milão 1969
t'
BAUDELAIRE, CH.
BRENTANO, F.
1857 I fiori del male, org. por Luigi de Nardis, Feltrinelli, 1874 Psicologia dal punto di vista empirico, Verdito, Trento
Milão 1968
1989
BECK,D.
1981 BUFALINO, G.
La malattia come autoguarigione, Cittadella Editrice, 1981 Diceria dell'untore, Sellerio, Palermo
Assis 1985
BENDA,J. CALAME, C. . . . . II " . c c l
1977 "L'amoreomosessualene1cond1fancm e ,1n . a ame
1927-58 ll tradimento dei chierici, Einaudi, Turim 1976 (org.), L'amore in Grecia, Laterza, Bari 1983
BERGONZI, M. CAMPBELL, D.A. (org.)
1990 "La crescita e il tradimento", in Rivista di Psicologia 1982 Greek Lyric in Four Volumes. Vol. l: Sappho Alcaeus,
Analitica 42 Harvard University Press, Cambridge (Massachusetts)
BERNE,E. - William Heinemann, Londres
1964 A che gioco giochiamo, Bompiani, Milão 1982 CAMUS,A.
BLIXEN, K. 1942 Il mito di Sisifo, Bompiani, Milão, 1964
1981 Il matrimonio moderno, Adelphi, Milão 1986 CAPPELLANO,A.
BLOCH,E. De Amare, Guanda, Milão 1980
1975 Experimentum mundi. La domanda centrale, le categorie CAROTENUTO, A:
del portar fuori, la prassi, Queriniana, Bréscia 1980 1987 Eros e pathos, Bompiani, Milão (trad. bras.: Paulus)
BORGES, J.L.
CAROTENUTO, A. .
1944 Finzioni, Einaudi, Turim 1985 1989 "Sulle ipotesi che sono a fondamento della t_erap1~
BORGES, J.L. psicologica", in P. Aite -A. Carotenut? (orgs_.), Itme~a!i
1960 Altre inquisizioni, Feltrinelli, Milão 1983 del pensierojunghiano, Raffaello CortmaEd1tore, Mdao
BOUSQUET, J. CAROTENUTO, A. . . . . .
1941 Tradotto dal silenzio, Marietti, Gênova 1987 1990 Le rose nella mangiatoia. Metamorfosi e md~vidua~wne
BOWEN,M. nell' ''.A.sino d'oro" diApuleio, Raffaello Cortma Editore,
1966 Milão
"Uso della terapia della famiglia nella pratica clinica",
in Dalla famiglia all'individuo, Astrolabio, Roma 1979 CASTELLANA, F.
BOWEN,M. 1990 "L'analistae larelazione analitica. Una breve sintesi, pen-
1971-72 "Verso la differenziazione del sé nella famiglia di origi- sando aI tradimento", inRivista di PsicologiaAnalitica 42
ne", inDallafamigliaall'individuo, Astrolabio, Roma 1979
CHIOZZA, L.A. . h · d l
BOZÓKY, E. (org.) 1986 Perché ci ammaliamo. La storia c e si nascon e ne
1980 Le livre secret des Cathares. Interrogatio lohannis. corpo, Borla, Roma 1988
Apocryphe d'origine bogomile, Beauchesne, Paris CLEMENTE DE ALEXANDRIA .
BREGER,L. Stromati, San Paolo, Tunm 1985
1989 Dostoevskij. The Author as Psychoanalyst, New York COHEN, A.
University Press, Nova Iorque e Londres 1932 Il Talmud, Laterza, Bari 1986
BRELICH,A.
DAi'!~i CH. La dimensione amorosa. Studio psicoanaliticosull'amore,
1969 "Aristofane: commedia e religione", in M. Detienne
(org.), Il mito. Guida storica e critica, Laterza, Bari 1976
Liguori, Nápoles 1982
246
DICKINSON, E.
Poesie, 2 vols., Bompiani, Milão 1978 FREUD,S.
1908 "Il romanzo familiare dei nevrotici", in Opere, vol. V,
DI MEGLIO, D. Boringhieri, Turim 1979 (1972)
1990 L'invisibile confine. Ermafroditismo e omosessualità,
Melusina Editrice, Roma FREUD,S.
1910 "Significato opposto delle parole primordiali", in Opere,
DONNE,J. vol. VI, Boringhieri, Turim 1979
1624 Devotions upon Emergent Occasions, Oxford Universi-
ty FREUD,S.
Press, Nova Iorque-Oxford 1987
1912-13 "Totem e tabu", in Opere, vol. VII, Boringhieri, Turim
DOSTOIEVSKI, F. 1980
1876 La mite, Bompiani, Milão 1981 FREUD,S.
DOVER,K.J. 1915-17 "Introduzione alla psicoanalisi", in Opere, vol. VIII,
Boringhieri, Turim 1980
1973 "Il comportamento sessuale dei greci in età classica",
in C. Calame (org.), L'amore in Grecia, Laterza, Bari FREUD,S.
1983 1920 "Al di là del principio di piacere", in Opere, vol. IX,
DOVER,K.J. Boringhieri, Turim 1980
1978 L'omosessualità nella Grecia antica, Einaudi, Turim FREUD, S.
1985 1929 "Il disagio della civiltà", in Opere, vol. X, Boringhieri,
Turim 1980
EDINGER, E.F.
1986 I simboli e gli eroi di Jahweh. Psicoanalisi della Bibbia FUMAGALLI, V.
da Adamo al Messia, Red Edizioni, Como 1987 1990 Solitudo carnis. Vicende del corpo nel Medioevo, Il
Mulino, Bolonha
ELIOT, T.S.
1963 Poesie, Bompiani, Milão 1983 GANZERLI, P. - SASSO, R. . ,, .
1979 La "rappresentazione anoressica . Contributo del~e
ELKAIM-SARTRE, A. (org.) tecniche psicodiagnostiche alio studio dell'anoressia
1982 Aggadoth du Talmud de Babylon, Verdier, Lagrasse' mentale, Bulzoni, Roma
ERBETTA,M. GRAVES,R.
1982 GliapocrifidelNuovoTestamento. Vangeli. Testigiudeo- 1955 I miti greci, Longanesi, Milão 1979
cristiani e gnostici, Marietti, Casale Monferratto HILLESUM, E. . ._
FALCOLINI, L. 1981 Diario 1941-1943, Adelph1, Milao 1985
1990 "Il tradimento del corpo", in Rivista di Psicologia HILLMAN, J. . 1972
Analitica 42 1964 a Il suicidio e l'anima, Astrolab10, Roma
FÍLON DE ALEXANDRIA HILLMAN, J.
1964 b
·z d' t M To
"Iltradimento",inSenexetPuerei tra imen o, ars11 ,
La creazione del mondo. Le allegorie delle leggi, org. por Pádua-Veneza 1979
Giovanni Reale, Rusconi, Milão 1978
FORSTER, E.M. HILLMAN,J.
1971 Maurice, Garzanti, Milão 1987 1983 Le storie che eurano, Raffaello Cortina Editore, Milão 1984
FRANCIS, C. - GOUTIER, F. HOMERO
1985 Simone de Beauvoir, Bompiani, Milão 1986 Ilíade, versão de Rosa Calzecchi Onesti, Einaudi, Turim,
1974
248 IJAQ
HOPCKE, R.H. JUNG,C.G.
1989 Jung, Jungians, andHomosexuality, Shambhala,Boston 1934-39 Nietzsche's Zarathustra. Notes of the Seminar Given in
& Shaftesbury 1934-1939, Princeton University Press, Princeton 1988
HUME,D. JUNG,C.G.
1756 "Sul suicídio", in Opere filosofiche, vol. 3, Laterza, Bari 1937 "Is analytical psychology a religion?", in C.G. Jung
1987 Speaking. Interviews and Encounters, org. por William
McGuire e R.F.C. Hull, Pan Books, Londres 1980
ISNARDI PARENTE, M. (org.) JUNG,C.G.
1989 Stoici antichi, UTET, Turim 1942 "Paracelso come fenomeno spiritualle", in Studi sull'
alchimia, in Opere, vol. XIII, Boringhieri, Turim 1988
JAFFÉ, A. (org.)
1975 Esperienza e mistero. 100 lettere, Boringhieri, Turim JUNG,C.G.
1982 1946 La psicologia del transfert, Mondadori, Milão 1985

JUNG,C.G. JUNG,C.G.
1912-52 Simboli della trasformazione, in Opere, vol. V, Borin- 1952 "Risposta a Giobbe", in Psicologia e Religione, in Opere,
ghieri, Turim 1980 (1970) vol XI, Boringhieri, Turim 1981
JUNG,C.G. JUNG, C.G.
1917-43 "Psicologia dell'inconscio", in Due testi di psicologia 1955-56 Mysterium Coniunctionis, in Opere, vol. XIV, Boringhieri,
analítica, in Opere, vol. VII, Boringhieri, Turim 1983 Turim 1989
JUNG,C.G.
1923 "Child Development and Education", in The Development JUNG,C.G.
of Personality, in Collected Works, vol. 17, Pantheon 1961 Ricordi, sogni, riflessioni, Rizzoli, Milão 1984
Books, Nova Iorque 1954
KIERKEGAARD, S.
JUNG,C.G. 1834-55 Diario, edição em 12 vols. org. por Comelio Fabro,
1925 "Il matrimonio come relazione psicologica", inll problema Morcelliana, Bréscia 1980-83
dell'inconscio nella psicologia moderna, Einaudi, Turim
1959 KLEIN,M.
1959-63 Il nastro mondo adulto ed altri saggi, Martinelli, Florença
JUNG,C.G. 1972
1926-46 Psicologia e educazione, Astrolabio, Roma 1947
KRACAUER, S.
JUNG,C.G. 1971 Sull'amicizia, Marietti, Gênova 1989
1927-31 "Introduzione" a F.G. Wickes, Il mondo psichico dell'
infanzia, Astrolabio, Roma 1948 KRISTEVA, J.
1987 Sole nero, Feltrinelli, Milão 1988
JUNG,C.G.
1928 "L'Io e l'inconscio", inDue testi di psicologia analítica, in LA ROCHEFOUCAULD, F. DE
Opere, vol. VII, Boringhieri, Turim 1983 1665 Massime, Rizzoli, Milão 1985

JUNG,C.G. LECLAIRE, S.
1971 Smascherare il reale, Astrolabio, Roma 1973
1929 "Paracelso", in Studi sull'alchimia, in Opere, vol. XIII,
Boringhieri, Turim 1988 LEOPARDI, G.
Tutte le opere, 2 vols., Sansoni, Florença 1976
JUNG,C.G.
1929- 57 "Commento al 'Segreto del fiore d'oro' ", in Studi sull' LETO, G. (org.)
alchimia, in Opere, vol. XIII, Boringhieri, Turim 1988 1966 Ovidio, le Eroidi, Einaudi, Turim 1977
C)l!: 1
250
LÉVINAS, E. OLIVIER, CH. . . . . _
1971 Totolità e infinito. Saggio sull'esteriorità, Jaca Book, 1980 I figli di Giocasta, Emme Ed1z10m, Milao 1984
Milão 1990 OVÍDIO
LÉVINAS, E. Amori, Garzanti, Milão 1983
1972 Umanesimo dell'altro uomo, II Melangolo, Gênova 1985 PAZ,0.
LICHTENBERG, J. 1959 Il labirinto della solitudine, Mondadori, Milão 1990
1983 La psicoanalisi e l'osservazione del bambino, Astrolabio,
Roma 1988 PÍNDARO
Olimpiche, tradução, comentário, notas e leitura crítica
LUTERO,M. de Luigi Lehnus, Garzanti, Milão 1981
1566 Discorsi a tavola, Einaudi, Turim 1983
PLATH,S.
MASTERS, E.L. 1960 Lady Lazarus e altre poesie, Mondadori, Milão 1989
1914 Antologia di Spoon River, Einaudi, Turim 1971
PLATH,S.
MICHAELSTAEDTER, C. 1975 Lettere alla madre, Feltrinelli, Milão 1980
1910 Il dialogo della salute e altri dialoghi, Adelphi, Milão
1988 PLATÃO
Tutte le opere, Sansoni, Florença 197 4
MILLER, A.
1981 Il bambino inascoltato, Bollati-Boringhieri, Turim 1989 RACUGNO, N. (org.) .
1989 Conoscere i miti, Thema Editore, Tunm
MILTON,J.
1667 Paradiso perduto, livros VII-XII, org. por Roberto Sanesi, RANK,O.
Mondadori, Milão 1987 1909 Il mito della nascita dell'eroe, SugarCo, Milão 1987
MOLIERE RANK,0.
1665 "Don Giovanni o il festino di pietra", in Tutto il teatro, 1912 Il tema dell'incesto, SugarCo, Milão 1989
vol. 3, Newton Compton Editori, Roma 1974
RANK,0.
MOOR,P. 1914 Il doppio, SugarCo, Milão 1987
1989 "Una ipocrisia psicoanalitica", in Psicoterapia e scienze
umane 2 RANK,0.
1922 La figura del Don Giovanni, SugarCo, Milão 1987
NELLI, R. - LAVAUD, R. (orgs.)
1966 Les Troubadours. Vol. II: Le trésor poétique de l'Occitanie, RAKN,0.
1924 Il trauma della nascita, SugarCo, Milão 1990
Desclée de Brouwer, Bruges
NERVAL, G. DE RILKE,R.M.
1852 Chimere e altre poesie, trad. de Diana Grange Fiori, 1910 Quaderni di Malte, UTET, Turim 1952
Einaudi, Turim 1972 RILKE, R.M. . . _
NEUMANN,E. 1929 Lettere a un giovane poeta, Adelphi, Milao 1980
1953 La psicologia del femminile, Astrolabio, Roma 1975 SACCHETTI, F.
NIETZSCHE, F. Il Trecentonovelle, Einaudi, Turim 1970
1878-79 Umano, troppo umano, Adelphi, Milão 1982 SÊNECA Lettere a Lucílio, Rizzoli, Milão 1985
OLIEVENSTEIN, C. SERRANO,M.
1988 Il non detto delle emozioni, Feltrinelli, Milão 1990 1966 Il cerchio ermetico, Astrolabio, Roma 1976
253
252
SHAKESPEARE, W. ÍNDICE
Tutte le opere, Sansoni, Florença 1982
SÓFOCLES
Tragedie e frammenti, org. por Guida Paduano, UTET
Turim 1982 '
STENDHAL
1822 Dell'amore, Garzanti, Milão 1976
TANNER,T.
1979 L'adulterio nel romanzo, Marietti, Gênova 1990
7 Nota à nova edição
TEÓGNIDES Introdução -A vida como traição
Elegie, org. por a curadi Franco Ferrari, Rizzoli, Milão 1989 13
19 1. Ainda antes de nascer
THOMAS, E.
1986 Il silenzio della violenza, Tullio Pironti, Nápoles 1989 28 2. Um "alegre acontecimento" funesto
42 3. Parábola do filho que não quis ser amado
UNGARETTI, G. 4. Papéis e confiança
1932 106 poesie 1914-1960, Mondadori, Milão 1966 59
72 5. "Inimici hominis domestici eius"
VERDE, J.B. -PALLANCA, G.F. 6. Círculo familiar e círculo hermético
1984 Ilusioni d'amore. Le motivazioni inconsce nella scelta 84
del partner, Raffaello Cortina Editore, Milão 95 7. A nostalgia desorientada
VIDAL-NAQUET, P. 103 8. União de duas solidões
1977 Il buon uso del tradimento, Editori Riuniti, Roma 1980 113 9. O silêncio como tortura
VOLTAIRE 124 10. Euforia contra alegria
1764 Dizionario filosofico, Rizzoli, Milão 1979 138 11. Coação do sedutor e vantagem do traído
YOURCENAR, M. 146 12. Área de incesto
1951 Le memorie diAdriano, in Opere, Bompiani, Milão 1986 154 13. Um templo pouco frequentado
YOURCENAR, M. 165 14. O sexo negado
1957 Fuochi, Bompiani, Milão 1984 173 15. O corpo desagradável
YOURCENAR, M. 185 16. O corpo traído
1980 Mishima o la visione del vuoto, Bompiani, Milão 1982 193 17. O corpo doente
WICKES, F. G. 199 18. A morte procurada
1927 Il mondo psichico dell'infanzia, Astrolabio, Roma 1948 213 19. A morte encontrada
WILDE, O. 223 20. A morte desejada
1949 De profundis, Feltrinelli, Milão 1982 233 21. Traição e liberdade
WOLFF,H. 241 Epílogo - Experiência e perda
1975 Gesit, la maschilità esemplare. La figura di Gesit secondo
la psicologia del profondo, Queriniana, Bréscia 1988 245 Bibliografia

254

Você também pode gostar