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Este livro não trata de di stúrbios alimentares, proble-

mas de dieta o~ nutrição adequ ada. ~m vez disso, explo- ALIMENTO -


E TRANSFORMAÇAO
ra em profundidade os complexos significados vincu la-
dos ao ali mento e à alimentação.
Quando a psique fala sobre comida, nutrição, alimenta-
ção, paladar, assimilação ou avidez, em ger:ll não deve
ser entendida literalmente. As referências a certos alimen- imagens e simbolismo da alimentação
tos específicos, que aparecem nos sonhos e fantasias, po-
dem ser muitas vezes mapeadas em termos de poderosas
associações individuais e coletivas. Estas ú ltimas encon- Eve Jackson
tram-se profundamente inseridas na trama da cultura e
podem remontar, até mesmo, a experiências de nossos
ancestrais paleolíticos e outros ainda mais remotos.
Quando investigamos o lastro psíquico do alimento, tam-
bém começamos a compreender como o processo literal o

da alimentação é afetado pelas associações simbólicas e
pOI' atributos metafóricos, além de pela interação cons- ~
tante entre consciente e inconsciente. :;:
Alimento e transformação é uma cornucópia de critérios o::
O
psicológicos acerca do processo da nutrição e da alimen- LL
II)
tação, através dos sonhos, mitos e hábitos, e das imagens 2
semi -ocu ltas que o linguajar cotidiano incorporou. En - «
tão, caia de boca e bom proveito! 1=
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EVEJACKSON

Coleção AMOR E PSIQUE


• Uma busca interior em psicologia e religião, J. Hillman • A sombra e o mal nos
contos de fada, Marie-Louise von Franz' A individuação nos contos de fada,
Marie-Louise von Franz' A psique como sacramento - C. G. Jung e P. Tillich, J.
P. Dourley' Do inconsciente a Deus, Erna van de Winckel • Contos de fada vividos,
H. Dieckmann • Caminho para a iniciação feminina, S. B. Perera· Os mistérios da
mulher antiga e contemporânea, M. E. Harding • Os parceiros invisíveis, J. A.
ALIMENTO
Sanford • Menopausa, tempo de renascimento, A. Mankowitz • A doença que
somos nós, J. P. Dourley • Mal, o lado sombrio da realidade, J. A. Sanford •
Meditações sobre os 22 arcanos maiores do Tarô, Anônimo • Os sonhos e a cura
E TRANSFORMAÇÃO
da alma, J. A. Sanford • Bíblia e psique - Simbolismo da individuação no AT, E.
F. Edinger • A prostituta sagrada, N. Q_-Corbett • A interpretação dos contos de
fada, Marie-Louise von Franz' As deusas e a mulher - Nova psicologia das
Imagens e simbolismo
mulheres, J. S. Bolen • Psicologia profunda e nova ética, E. Neumann • Meia-
idade e vida, A. Brennan e J. Brewi • Puer Aeternus - A luta do adulto contra o da alimentação
paraíso da infância, Marie-Louise von Franz • O que conta o conto?, Jette
Bonaventure • Falo, a sagrada imagem do masculino, E. Monick • Castração e
fúria masculina, E. Monick • Eros e pathos - amor e sofrimento, A. Carotenuto •
Sonhos de um paciente com Aids, Robert Bosnak • A busca fálica - Príapo e a
inflação masculina, J. Wyly • A tradição secreta da jardinagem - Padrões de
relacionamentos masculinos, G. Jackson' Conhecendo a si mesmo - O avesso
do relacionamento, D. Sharp • Breve curso sobre sonhos, Robert Bosnak • Sonhos
e gravidez, Marion R. Gallbach • A passagem do meio, James Hollis • Os mistérios
da sala de estar, G. Jackson' O velho sábio - Cura através de imagens internas,
P. Middelkoop • A solidão, A. Storr • Deus, sonhos e revelação, Morton T. Kelsey
• A velha sábia - Estudo sobre a imaginação ativa, Rix Weaver • Sob a sombra
de Saturno - A ferida e a c.ura dos homens, J. Hollis • Amar trair - Quase uma
apologia da traição, A. Carotenuto • Curando a alma masculina, Dwight H. Judy •
Ansiedade cultural, Rafael López-Peck:a,za • Não sou mais a mulher com quem
você se casou, Ago Bürki-Fillenz.· Envelhecer - os anos de declínio e a
transformação da última fase da vida, Jane R. Prétat • A jornada da alma - Um
analista junguiano examina a reencarnação, John A. Sanfort • Rastreando os
deuses, J. Hollis • Psiquiatria junguiana, H. K. Fierz' Consciência solar, consciência
lunar, Murray Stein • O despertar de seu filho - Para um bebê ativo e calmo,
Chantal d~ Truchis • O caminho da transformação - Segundo C. G. Jung e a
alquimia, Etienne Perrot • Hermes e seus filhos, Rafael López-Pedraza • Os
pantanais da alma - Nova vida em lugares sombrios, James Hollis • Alimento e
transformação - Imagens e simbolismo da alimentação, Eve Jackson
PAULUS
~~~~ .
Food and Transformation - Imagery and Symboltsm of Eatmg
. INTRODUÇÃO À COLEÇÃO
© Eve Jackson, 1996 AMOR E PSIQUE
Tradução: Maria Silvia Mourão Netto

Revisão: Jacqueline Mendes Fontes

Coleção AMOR E PSIQUE dirigida por


Dr. Léon Bonaventure, Pe. Ivo Storniolo, Profª Maria Elci S. Barbosa

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jackson, Eve. 1943- N a busca de sua alma e do sentido de sua vida, o


Alimento e transformação: imagens e simbolismo da alimentação / Eve
Jackson; [tradução Maria Silvia Mourão Netto]. - São Paulo: Paulus, 1999.- homem descobriu novos caminhos que o levam para a
(Amor e psique) sua interioridade: o seu próprio espaço interior torna-se
Título original: Food and transformation.
um lugar novo de experiência. Os viajantes destes cami-
Bibliografia. nhos nos revelam que somente o amor é capaz de gerar a
ISBN 85-349-1403-6 alma, mas também o amor precisa de alma. Assim, em
1. Alimentos - Aspectos psicológicos 2. Hábitos alimentares - Aspectos lugar de buscar causas, explicações psicopatológicas às
psicológicos 3. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 I. Título. II. Série. nossas feridas e aos nossos sofrimentos, precisamos, em
98-3931 CDD-641.3019 primeiro lugar, amar a nossa alma, assim como ela é.
Deste modo é que poderemos reconhecer que estas feri-
índices para catálogo sistemático:
1. Alimentos: Aspectos psicológicos 641.3019 das e estes sofrimentos nasceram de uma falta de amor.
Por outro lado, revelam-nos que a alma se orienta para
um centro pessoal e transpessoal, para a nossa unidade e
© PAULUS - 1999 a realização de nossa totalidade. Assim a nossa própria
Rua Francisco Cruz, 229 vida carrega em si um sentido, o de restaurar a nossa
04117-091 São Paulo (Brasil)
Fax (011) 570-3627 unidade primeira.
Tel. (011) 5084-3066 Finalmente, não é o espiritual que aparece primei-
http://www.paulus.org.br
dir.editorial@paulus.org.br ro, mas o psíquico, e depois o espiritual. É a partir do
olhar do imo espiritual interior que a alma toma seu sen-
PAULUS
Estrada de São Paulo tido, o qúe significa que a psicologia pode de novo esten-
2685 Apelação (Portugal) der a mão para a teologia.
Fax (01) 948 88 78
Te!. (01) 9472414 Esta perspectiva psicológica nova é fruto do esforço
para libertar a alma da dominação da psicopatologia, do
ISBN 85-349-1403-6
ISBN 0-919123-75-9 (ed. original)
espírito analítico e do psicologismo, para que volte a si

5
mesma, à sua própria originalidade. Ela nasceu de refle- AGRADECIMENTOS
xões durante a prática psicoterápica, e está começando a
renovar o modelo e a finalidade da psicoterapia. É uma
nova visão do homem na sua existência cotidiana, do seu
tempo, e dentro de seu contexto cultural, abrindo dimen-
sões diferentes de nossa existência para podermos reen-
contrar a nossa alma. Ela poderá alimentar todos aque-
les que são sensíveis à necessidade de inserir mais alma
em todas as atividades humanas.
A finalidade da presente coleção é precisamente res-
tituir a alma a si mesma e "ver aparecer uma geração de
sacerdotes capazes de entender novamente a linguagem Gostaria de agradecer afetuosamente a todos os
da alma", como C. G. Jung o desejava. analisandos, colegas e amigos que alimentaram o desen-
volvimento deste livro com histórias, sonhos e sugestões.
Léon Bonaventure Sou especialmente grata a Dave Stevens que me prepa-
rou os jantares enquanto eu escrevia, e a Molly Tuby por
seus muitos e preciosos comentários sobre o manuscrito.
A história "The Lion's Share", que aparece na pági-
na (79), extraída do livro "The King's Drum and Other
African Stories", de Harold Courlander (publicado por
Rupert-Hart Davis, pela HarperCollins Publishers Li-
mited), é reproduzida com autorização.

6 7
INTRODUÇAO

o que chamamos de mundo externo vem a nós por


meio dos sentidos, com suas cores, texturas, odores, distân-
cias, altos e baixos, velocidades e lentidões, seus ciclos de
Comida, comer, alimentar-se ... verbos: comer, abaste-
cer, tratar-se (quanto à comida), devorar, engolir, tomar; crescimento, morte, aceleração, vôo, luta, alimentação e
engolir, engolir às pressas, abocanhar; começar (uma re- assim por diante, ao infinito. Nossa vida interior também
feição); devorar, tragar; pôr goela abaixo, fazer descer (a tem suas intensidades de experiências, pensamentos fu-
comida), forçar descer pela garganta; armazenar, empan- gazes e sentimentos cambiantes. Além dessas vivências
turrar-se; lamber, debicar, lambiscar; empanzinar-se (ver prontamente identificáveis existe o vasto domínio da ati-
glutonaria); morder, mastigar ruidosamente, mascar (fa-
zendo barulho), esmigalhar ruidosamente, ruminar, tri- vidade psíquica inconsciente que vislumbramos em sonhos
turar, mordiscar, roer; viver de; alimentar-se de, cevar, pôr e na fantasia. A imaginação reveste esses movimentos, de
para engorda, regalar-se; pastar, apascentar, podar; rega- outro modo imperceptíveis, com formas tomadas da vida
lar-se, farrear; comer com grande apetite, fazer justiça a; externa, com suas cores, texturas, altos e baixos, e etc.,
banquetear; comungar, quebrar ojejum; fazer o desjejum, recombinadas geralmente de maneiras muito curiosas.
almoçar,jantar, tomar chá, cear. "Coloq.:"consumir, beber
desbragadamente; atacar! a comida está na mesa! Não é o mundo como o conhecemos que nos fala a partir
["Food, eat, eating ... verbs - eat, feed, fare, ~evour, do inconsciente, mas o mundo desconhecido da psique, a
swallow, take; gulp, bolt, snap; fall to; despatch, dispatch; cujo respeito sabemos que reflete nosso mundo empírico
take down, get down, gulp down; lay in, tuck in; lick, pick, somente em parte, e que, quanto à outra parte, molda este
peck, gormandize (see gluttony); bite, champ, munch, mundo empírico de acordo com suas próprias referências
crunch, chew, masticate, nibble, gnaw; live on; feed on, psíquicas. 1
batten on, fatten on, feast upon browse, graze, crop; rega-
le, carouse; eat heartily, do justice to; banquet; break bread, A linguagem natural da psique é metafórica e faz
break one's fast; breakfast, lunch, dine, take tea, sup. uso da imagem como veículo portador de novos significa-
Colloq.: put away, drink like a fish; come and get it! soup's
on! - Extraído de Roget's Thesaurus."] 1 ''The Psychology ofthe ChildArchetype", The Archetypes and the Collective
Unconscious, OC, 9i, 260 (OC refere-se às Obras Completas de C.G. Jung).

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dos. Os sonhos podem versar sobre pessoas e situações ral visto que as provisões são escassas e incertas, tal como
conhecidas, mas uma boa parte do tempo fazem uma brin- se tem acompanhado ao longo de praticamente toda a
cadeira de provocação do tipo "como se", na qualidade de nossa história e como continua sendo em muitas partes
melhor caminho para a comunicação de conteúdos psí- do mundo, bem como nos setores mais pobres de nossa
quicos inconscientes à consciência; se o considerarmos sociedade. É difícil não pensar em comida quando se está
literalmente, perdemos o ponto em questão. No nível co- constantemente faminto ou ameaçado pela fome. Para
letivo, os mitos e os contos de fada, em sua configuração quem tem fome, abundância de alimentos implica em uma
mais organizada, aparentemente falam de eventos exter- grande liberdade, em uma oportunidade de prestar aten-
nos que aconteceram no passado, mas também nos con- ção em outros assuntos além da próxima refeição. Nesta
frontam com figuras que nunca encontramos na nature- que tem sido alcunhada de sociedade de consumo, porém,
za empírica - como gigantes, ninfas, animais que falam explorar maniacamente os recursos da terra e nos apre-
e anéis mágicos que existem em outro nível da realidade. sentar grupos sempre crescentes de novas escolhas tem
No aparente caos dos textos alquímicos, Jung descobriu dado margem ao aparecimento de novas ansiedades re-
um rico acervo de imagens do mesmo tipo das que mol- lacionadas com a alimentação. A salvo de uma escassez
dam certos sonhos. de alimentos imposta por fatores externos, estamos mais
Não é uma questão muito fácil estipular nitidamen- livres que nunca para projetar nos alimentos significa-
te o limite entre externo e interno, entre literal e simbó- dos que nada têm a ver com mitigar necessidades ali-
lico, pois nossas vivências no mundo dos sentidos dispa- mentares, buscando com isso, através do comer, satisfa-
ram processos associativos e simbolizadores no psiquismo, zer nossas necessidades afetivas ou de realização sexual,
e as imagens metafóricas que irrompem em nosso íntimo ou dissimular raiva e dores. O alimento também pode
projetam-se com tanta convicção nas circunstâncias ex- ser o depositário de nossos medos secretos e de nossas
ternas que constantemente nos enganamos. Em última fantasias de uma saúde perfeita. 2
análise, físico e psíquico, interno e externo, são aspectos O grande triunfo do controle da natureza fazendo-a
de uma única realidade todo-abrangente, embora na di- produzir obrigatoriamente uma abundância regular de
mensão consciente seja preciso que façamos uma distin- alimentos não tem se mostrado uma conquista irrever-
ção entre ambos. sível. A natureza tem infinitas maneiras de esquivar-se
Ao escrever sobre o vasto tema da comida e da ali- às nossas tentativas de controle e de nos apresentar no-
mentação, tentei manter-me constantemente consciente vos desafios. Para muitas pessoas, o medo de passar fome
da interação entre consciente e inconsciente, entre físico foi substituído pelo medo de envenenamento por fertili-
e psíquico, entre literal e metafórico, mas, acima de tudo, zantes inorgânicos, pesticidas, aditivos, irradiação e ma-
tentei escutar o que a psique tem a dizer valendo-se dos nipulação genética. Apesar de esses receios serem funda-
sonhos, mitos e costumes, e das imagens semi-ocultas na dos, podem facilmente mesclar-se com nossas neuroses,
linguagem. através da projeção dos venenos ocultos e dos sombrios
N a sociedade contemporânea ocidental existe muito
desassossego quanto à comida, o que é mais do que natu- 2 Hilde Bruch, Eating and Disorders, cap. 4.

10 11
conflitos da psique inconsciente. Nesse sentido, demo- mentos psíquicos da comida estamos, também, começan-
nizamos o alimento ou, por outro lado, buscamos aquele do a compreender como o processo literal da alimentação
ingrediente único, mágico (fibras, gordura poliinsaturada, é afetado pelas associações simbólicas e pelos atributos
germe de trigo, geléia real), que nos torne íntegros e sãos. metafóricos, e pela interação constante entre consciente
Em 1930, Jung observou: e inconsciente.

As pessoas que se desequilibram psicologicamente são em


geral fanáticos da saúde. Estão sempre buscando a comi-
da e a bebida certas, não fumam, e não tomam vinho, pre-
cisam de muitos sais e são inimigos das farmácias. Sem-
pre algum novo esquema, e nunca estão muito saudáveis. 3

É igualmente notável a extensão do medo de engor-


dar e o predomínio dos distúrbios alimentares, inimagi-
náveis em sociedades nas quais, procurar e garantir um
abastecimento adequado de alimentos é um problema
central. Este, porém, não é um livro sobre distúrbios ali-
mentares e nem sobre problemas de dieta. Em si, esses
são temas de grande complexidade, com numerosas ra-
mificações, algumas das quais são apenas citadas no bre-
ve capítulo final deste livro.
Minha pesquisa sobre o tema da comida e da alimen-
tação foi estimulada por um interesse pelos complexos
significados que atribuímos ao alimento, e pelos parado-
xais sofrimentos de muitas pessoas, em particular suas
manifestações nos tratamentos psicoterápicos. Quando a
psique fala de comida, de alimentar-se, nutrir-se, passar
fome, assimilar, geralmente não deve ser entendida em
sentido literal. As referências aos alimentos isolados
precisam ser avaliadas nos termos das associações indi-
viduais e coletivas. Estas encontram-se profundamente
entranhadas na cultura e podem remontar no passado,
às próprias experiências dos nossos ancestrais paleolíticos
e de outros ainda mais remotos. Ao investigar os funda-

3 Dream Analysis, p. 459.

12 13
1
A CADEIA ALIMENTAR

Nós somos o que comemos.


Ludwig Feuerbach

N O processo cíclico da transformação da superfície


da terra, as plantas assimilam os nutrientes do mundo
mineral, os animais devoram as plantas e uns aos ou-
tros, e os resíduos dos animais e plantas retornam ao es-
tado de matéria inerte, tragados pela terra, às vezes con-
sumidos primeiro pelo fogo. As espécies biológicas, que
se reproduzem separadamente, estão todas intimamente
entrelaçadas na interminável cadeia alimentar. "Do co-
meço ao fim, a questão não tem sido 'ser ou não ser?' mas
'comer ou ser comido?' e dela decorrem o desejo e o terror."4
À essa roda estamos todos atados.
Por meio dessa constante transformação da substân-
cia, a terra mantém sua estabilidade e a continuidade da
vida. Em sua científica evocação da grande deusa Gaia
- a mãe de todos seres, de acordo com Hesíod0 5 - James
Lovelock escreve:

Hoje pode ser demonstrado, com a ajuda de modelos


numéricos e computadores, que uma diversificada ca-
deia de presas e predadores é um ecossistema mais es-
tável e forte do que uma única espécie isolada, autocon-

4 Joseph Campbell, The Way of the Animal Powers: Historical Atlas ofWorld
Mythology, vol. 1, p. 47.
5 Teogonia, linhas 116 ss.

15
tida, ou que um pequeno grupo de misturas muito limi- terracota, que exibe uma águia com cabeça de leão mor-
tadas. 6 dendo o rabo de um touro que sorri beatificamente:

Lovelock considera esse relacionamento como uma É a visão representada em nossa tabuinha, do touro lu-
função da auto- regulação da terra e, portanto, de seu nar e da águia-leão solar; mas está igualmente represen-
tada no plano da terra: pelo touro e pelo leão vivos que, no
sistema de vida. A Mãe Natureza proporciona lagartas coração da Mãe Natureza, coabitam em estado de paz
para os pássaros e folhas para as lagartas, peixes para as duradoura, até agora, quando estão encenando sua mis-
lontras e peixes pequenos para peixes grandes e, através teriosa e monstruosa dramaturgia de vida, que é chama-
deles, ela vive, regulando sua vida através de um siste- da "Agora você me come!"B
ma de retroalimentação.
A cadeia alimentar é ironicamente descrita nos ver- Em meio ao devorar e destruir, a senhora de toda vida
sos da canção folclórica da região de Yorkshire "On Ilkley está em paz consigo mesma. Presa e predador são parte de
Moor Baht'At": uma mesma imagem, de um mesmo meio ambiente, per-
tencem à mesma dimensão. Uma história apócrifa fala de
Tha'lI go an' get tha deeath o' cowld ...
Then we shall ha' to bury thee ...
arenques, no aquário de um zoológico, que não conse-
Then t'worms'll come an' ate thee oop ... guiam ficar robustos nem reproduzir-se a despeito de to-
Then t'ducks'lI come an' ate oop t'worms ... dos os esforços da equipe técnica, até que um zoólogo teve
Then we shalI go an' eat oop t'ducks ... a brilhante idéia de colocar no mesmo aquário o predador
Then we shalI alI 'ave etten thee ... natural dos arenques, o cação, e a partir desse momento a
[e aí vamos todos com você morto e gelado ... colonia de arenques tornou -se sadia e viável.
e vamos ter que te enterrar...
e então os vermes virão te comer por inteiro ... No ecossistema de nossos sonhos, às vezes temos vis-
e então os patos virão e comerão todos os vermes ... lumbres de nossa natureza interior alimentando-se de si
e então nós vamos comer todos os patos ... mesma: o crocodilo abocanha um peixe, a tartargua en-
e então acabaremos comendo até você ... ] gole um réptil escorregadio; um elemento psíquico com
maior nível de carga energética está sempre pronto para
Essa realidade parece espreitar por trás do título do assimilar um mais fraco. Um gato, orgulhoso, brincalhão,
romance selvagemente bem-humorado de William autoconfiante, é abatido por um tigre que o devora, re-
Bourrough, The Naked Lunch [O almoço nú]."O título tratando um momento em que instintos mais domestica-
significa exatamente o que as palavras dizem: Almoço dos e interesse pelo prazer são derrotados por um dina-
N ú - aquele momento congelado em que todos enxer- mismo mais selvagem que irrompe da funda e sombria
gam o que está na ponta de todo garfo."7 mata psíquica, demonstrando uma força que não tem
O mitógrafo Joseph Campbell descreve esse proces- qualquer tolerância por carícias e afagos. O processo
so cíclico no contexto de uma tabuinha suméria de urobórico em que uma forma cede espaço a outra, na psi-
6 Gaia: A New Loak at Life an Earth, p. 22.
7 The Naked Lunch, p. v. 8 The Masks af Gad: Occidental Mythalagy, p. 58.

16 17
que como no mundo físico, pode ser considerado um pro- humana com o formato da Grande Mãe, produzindo, ali-
cesso pré-existente, anterior a qualquer casamento divi- mentando e devorando as incontáveis formas de vida. O
no ou enlace sexual. As linhas seguintes são um trecho arquétipo da mãe tem uma ligação particularmente ínti-
dos Upanixades, mas também poderíamos ouvi-las na voz ma com a imagética da alimentação. Mãe (em latim,
da serpente mercurial dos alquimistas que se autodevora: mater; em grego, meter) é um cognato de matéria (do la-
Eu sou o alimento da vida, e eu sou aquele que come o tim, materia), como Mãe Terra (Gaia), fornece a substân-
alimento da vida: eu sou o dois em UM. cia literal do alimento (visto que todas as substâncias po-
Sou o primogênito do mundo da verdade, nascido tencialmente são alimentos) e, com ela, uma metáfora
antes dos deuses, nascido no centro da imortalidade. muito básica que recorre em nossa fala e em nossos so-
Eu sou o alimento que come o comedor da comida. nhos, em associação com todas as áreas da vida. Ela ali-
Eu fui além do universo. 9
menta e sustenta com o leite de seus seios, processo tan-
tas vezes enfatizado nas antigas imagens. Toda nutrição
Num sentido semelhante, no texto apócrifo dos Atos vem da grande nutrix, ou ama de leite, que segura no
de São João, Cristo canta enquanto está no centro de uma colo a criança e a leva até o seio mantenedor da vida,
dança de roda: "Comerei e serei comido.''1O
imbuindo-a de uma sensação de ser uma criatura segu-
Como diz Erich N eumann, 11 as necessidades viscerais
ra. Sustentar significa segurar por baixo; uma mulher
precedem as sexuais tanto ontogeneticamente, no prima-
que sentiu essa sensação de segurança, pela primeira vez
do do estágio oral, quanto nos termos da evolução das na vida, enquanto caminhava por um parque, disse: "Sen-
espécies, uma vez que entidades que se reproduzem de
tia-me como se a terra estivesse me sustentando". A Ter-
maneira assexuada existiam muito antes do aparecimento
ra Mãe é a doadora de frutos e grãos, e senhora da vida
dos dois sexos. Jung escreve: animal comestível, permitindo-nos continuar existindo e
A fome, como expressão característica do instinto de tornando-nos quem somos. A mãe é quem nos alimenta
autopreservação, é sem dúvida um dos fatores primários antes de termos uma identidade distinta e é contra o con-
e mais poderosos de influência do comportamento; na rea- texto que ela significa que se constela nossa identidade
lidade, a vida dos primitivos é atingida mais fortemente particular, juntamente com nossa noção de interno e ex-
por ela do que pela sexualidade. Nesse nível, a fome é o
alfa e o ômega - a existência em si. 12 terno, ao assimilarmos aquilo que ela propicia.
À essa mesma nutrix pertence também o seio mau
o grande redondo, o ciclo sem começo nem fim da exis- que nos despoja e esfomeia ao reter ou secretamente to-
tência, tem repetidas vezes se apresentado à imaginação mar de volta; no sonho de uma mulher, a mãe estava as-
sociada a uma tênia, aquele verme ladrão e solitário que
9The Upanishads, pp. 111ss. vive nas profundezas das entranhas. Ela também nos
10 Jung,Transformation Symbolism in the Mass, Psychology and Religion, devora, como podemos reconhecer no odioso esgar de cer-
oe 11, 415. tas estátuas astecas, ou nas imagens da Kali bebedora
11 The Origins and History of Consciousness, p. 27.
12 Psychological Factors in H uman Behaviour, The Structure and Dynamics de sangue, cuja língua pende e cujos caninos ameaçam,
ofthe Psyche, oe 8, 237. assim como na deusa tântrica Vajravarahi (Porca de Dia-
18 19
mante) com sua taça feita de um crânio. Ela é a bruxa gem, pois ao oferecer esse suposto agrado o complexo ma-
que alimenta as crianças perdidas com saboroso pão de terno propõe realmente assimilar a filha. O preço do bolo
gengibre, antes de deixar Maria morrendo de fome e de (como a ameaça na história de João e Maria) é a identi-
engordar João para depoisjantá-Io. Ela nos alimenta, mas dade individual da sonhadora. No dia em que se deveria
nós devemos alimentá-la. Assume muitas formas estar celebrando seu nascimento como um ser separado
teriomórficas como o crocodilo de "sorriso gentil", ou a é anunciado (docemente, com cobertura de açúcar) que
tigresa de boca enorme e o atributo "masculino" de den- ela novamente está sendo levada de volta para a identifi-
tes poderosos ("para melhor poder comê-la.") Debaixo do cação com a mãe.
tranqüilizador gorrinho da vovó escancara-se sua goela O mesmo sonho começou com Jennifer dirigindo o
devoradora. O complexo da mãe negativa engole de um carro de sua mãe, e inúmeros outros sonhos ocorreram
trago só nossa capacidade de viver como indivíduos. "na casa de minha mãe". A mulher que havia trazido
No complexo materno, essa rede de associações que Jennifer para este mundo tinha um lado masculino mui-
tem vínculo com a noção de "mãe", as imagens da mãe to destrutivo e controlador que, na linguagem de um de
arquetípica (Grande Mãe) encontram-se entrelaçadas com seus sonhos, achatava as pessoas como um daqueles ve-
as da mãe pessoal, e, na linguagem metafórica dos so- lhos ferros de engomar; tinha esmagado a autoconfiança
nhos, imagens de alimento costumam se situar em torno de Jennifer e tentado manter os homens firmemente com-
dessa figura. Jardins nos quais a boa terra produz repo- primidos contra o chão. Fora uma mulher insatisfeita com
lhos, cenouras, alho-porró e batata, e em que as árvores seu casamento, que tivera inúmeros romances extra-
mostram-se carregadas de frutos maduros, anunciam sua conjugais antes de finalmente rompê-lo. Ela terminou se
presença. Caldeirões fumegantes com sopas e guisados, tornando alcoólatra e era perturbador contemplá-la como
tortas de maçã perfumadas, e pão recém-saído do forno modelo para a vida de sua filha.
são suas obras manuais. A cozinha ou a mesa de refei- Quando a criança é difícil para comer, isso pode es-
ções estão entre suas vias preferenciais de manifestação. tar expressando sua insatisfação com o alimento psicoló-
Os seguintes fragmentos de uma análise ilustram a gico que sua mãe lhe oferece. A pequena Jennifer tinha
interação das imagens de alimentação com a mãe. Duran- sido exigente, e era alérgica a leite, embora na época isso
te um prolongado período de terapia que foi do final de não tivesse sido percebido. Ao longo de seu trabalho co-
seus 30 anos e início dos 40, Jennifer, mulher separada, migo, os sonhos várias vezes trouxeram de volta a memó-
com uma filha pequena, lutava com as muitas ramifica- ria de como a cozinha e o fogão da mãe costumavam es-
ções de um complexo materno negativo. Sua identifica- tar encardidos, criando um ambiente que desestimulava
ção inconsciente com a mãe era sinalizada por um sonho o apetite. Quando ficou adulta, era altamente preocupa-
antigo, em que mãe e filha entram numa doceriajuntas. da com a alimentação, sempre à cata de comida que
A mãe compra para J ennifer um bolo de aniversário, mas provesse aquela esquiva sensação de bem-estar que a boa
para o aborrecimento da filha, o nome da mãe era que mãe transmite, enquando ao mesmo tempo desejava
estava escrito no glacê de cobertura. Os aspectos nutridor manter o tamanho e as curvas de seu corpo firmemente
e devorador da mãe estão ambos contidos por essa ima- sob controle, querendo desesperadamente não se parecer

20 21
com sua mãe, do ponto de vista físico. Uma vez que mãe Hera. O fruto desse sonho precisava ser levado para casa,
está associada com matéria, problemas com a figura ma- preparado para assimilação, levado até o centro pessoal
terna são propensos a se refletir, de alguma maneira, no da vida de J ennifer e tornado propriedade sua. Aqui insi-
corpo e na imagem corporal, e freqüentemente concreti- nua-se uma atitude ligeiramente mais crítica, na ima-
zam-se em problemas relativos à alimentação. gem de X, uma mulher mais velha que, significativamen-
Dietas à base de alimentos crus eram bastante apre- te, tinha se curado de uma doença muito séria fazendo
ciadas por Jennifer, comida que vinha diretamente da uma terapia alimentar. Além de modelo de uma cura bem-
despensa da generosa natureza propriamente dita, pron- sucedida, X também é, em parte, uma figura materna.
ta para ser deglutida. Saladas e frutos também apare- Para Jennifer, ela lembra um pouco sua avó materna (que,
ciam em seus sonhos, notavelmente em associação com a é claro, significa grande mãe), por quem Jennifer sentia-
transferência. No primeiro desses sonhos, eu lhe oferecia se amada quando criança, apesar de um difícil relaciona-
uma salada e nós sentávamos para comê-la juntas. Ou- mento com a própria filha, mãe de minha paciente, em
tro sonho foi o seguinte: outro elo da cadeia da neurose familiar. "Ela era brava,
mas gostava màis de nós que minha mãe. Ela costumava
"Estou a caminho de ir encontrar Eve, e estou saindo a pé
da estação do metrô. Escolho frutas de árvores que estão
me alimentar depois da escola, fazendo a comida que eu
carregadas de imensas peras tipo William e abacates. mais gostava."As peras também traziam a lembrança da
Depois, vou para casa e começo a prepará-las. X também avó à mente de Jennifer. X destaca que Jennifer está pa-
está lá, preparando comida, e me pergunta onde consegui gando muito pelas frutas. Embora tenham sido colhidas
as frutas. Eu digo: "do outro lado da esquina", e ela diz que direto na árvore, isso se dá no contexto do processo tera-
são caras. Vejo que X está com bacon em seu prato e me
sinto culpada. Digo: "mas temos nozes, se você prefere". X
pêutico que tem de ser pago - e não só com dinheiro,
me diz que tudo bem comer carne de vez em quando, de- mas também com um esforço honesto.
pois volta-se para mim com olhar severo e diz: "quando eu Então, em meio a esses alimentos vegetarianos crus,
era criança, só tínhamos carne em ocasiões especiais". vem o bacon. No nível literal, X, cujas palavras evidente-
mente têm peso, dá permissão para uma atitude menos
O trabalho que Jennifer estava fazendo comigo esta- rígida diante da alimentação, mas ao comer o bacon está
va colocando-a em contato com a boa mãe, cujos frutos demonstrando também - como alguém que conhece as
pendem maduros e estão prontos para serem colhidos. O propriedades curativas dos alimentos - a assimilação
abacate, Jennifer tinha lido, era cheio de nutrientes con- pela dimensão consciente do complexo materno como por-
centrados. As peras tipo William eram suculentas, mas co, ou seja, no nível instintivo da dependência animal.
"melecavam". Tomar uma pílula prescrita por médico é O porco, desprezado por ser "sujo" pelas sociedades
procedimento limpo, mas trabalhar com a psique é con- que lutavam para desalojar seu culto, era largamente
fuso e, para se chegar ao sumo, a pessoa precisa antes considerado o animal sagrado das deusas mães. O porco
estar disposta a melecar as mãos. ensinou aos humanos como revirar a terra; foi o primeiro
O fruto está, em geral, associado à deusa da fertili- arado, e desse modo esteve associado com o cultivo e a
dade e à maternidade, e a pera era consagrada a Ísis e deusa grega do milho, Deméter. A porca amamentando

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suas numerosas proles de filhotinhos, gorduchos e sem da natureza nos impele a crescer e superar nossas no-
pelos como os bebês humanos, simboliza a fertilidade e a ções infantis de inocência, enxergando até que ponto e
abundância, mas também é descrita como propensa a como estamos envolvidos nos processos geralmente
consumir sua própria descendência. destrutivos da vida. No momento em que a criança com-
Em uma história, a deusa egípcia do céu, Nut, assu- preende o relacionamento entre animal e carne geralmen-
me a forma de uma porca e come seus filhos, as estrelas, te causa repulsa. Está relacionado com o desenvolvimen-
para dá-las novamente à luz pela manhã. A cabeça de to da consciência, vale dizer, a percepção consciente das
javali da época de Natal, com a maçã da deusa em sua conseqüências de nossos atos. No entanto, a culpa - como
boca, sem dúvida está relacionada com o sacrifício roma- o bacon - não é sadio, se a pessoa excede em seu uso. Tal-
no de um porco a Ceres, a equivalente romana da grega vez ainda, as "ocasiões especiais", às quais o sonho se refe-
Deméter, no festival Saturnal, cuja variante se manteve re, sejam aquelas festas nas quais a carne - em outras opor-
na época da igreja bizantina como um festival natalino tunidades tabú - do animal sagrado pode ser consumida
de carne de porco, na seqüência do jejum pelo nascimen- tendo em vista os propósitos de uma assimilação ritual.
to do Cristo. No contexto dos mistérios de Elêusis, consa- O motivo de ser alimentado pelo analista e de ali-
grados a Deméter e sua filha Perséfone, o porco era - mentá-lo é comum nos sonhos, geralmente trazendo im-
em pelo menos uma ocasião - citado como "delphax", o plicações maternais. Que o analista deve prover o ana-
animal útero. 13 Uma porca grávida era costumeiramente lisando de alimento é uma noção óbvia, mas a menos que
sacrificada a Deméter, e porquinhos, na qualidade de o processo esteja empacado em uma dependência muito
encarnações do espírito do milho, eram lançados num infantil, o inverso também é verdade. O analista tam-
abismo durante os ritos de Elêusis, em honra da mãe di- bém deve ser alimentado pelo processo, senão instala-se
vina e sua filha. Muitos mitos também falam do javali, o o tédio e o impasse. Além disso, o analisando deve ser
aspecto masculino destrutivo, ou o consorte de uma deu- capaz de experimentar o dar. Reciprocidade e "feedback"
sa mãe. são essenciais para manter vivo o processo, e a mãe deve
N o sonho, X assinala, por assim dizer, que existem ser encontrada dentro, não só projetada na pessoa do
diferentes formas de mãe, diferentes aspectos a serem analista. Sonhos em que o analista recebe comida do ana-
assimilados. A sonhadora não sentia qualquer culpa pelo lisando são sinais encorajadores de que ele encontrou seus
que poderia ter sido visto como o roubo do fruto. Foi o recursos internos, algo para dar, e de que existe uma mo-
inocente colher do fruto que acontece antes do outono. bilização da energia psíquica. Por outro lado, um cliente
Mas essa experiência do paraíso não é suficiente. O pro- sonhou no início do relacionamento terapêutico que trou-
cesso que se inicia ao pegar o fruto, leva ao confronto com xe seu próprio almoço embrulhado, para comer na minha
a carne que induz culpa, tema que no próximo capítulo casa. Não ficou muito tempo em terapia, pois não estava
será explorado em mais detalhes, pois o lado mais severo querendo arriscar-se a provar a dieta que eu eventual-
mente lhe ofereceria. Ele só queria assimilar aquilo para
13 Em Epicharmus, citado em C. Kerényi, "Kore", in Jung e Kenrényi
que estava preparado e com que tinha aparecido, de tal
Introduction to a Science or Mythology, p. 165. ' modo que não havia modo de o novo entrar.

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o anseio pela boa mãe pode se transformar em uma mas a alimentação compulsiva de suas partes sexuais está
ânsia por toda espécie de substitutos. Jennifer às vezes bloqueando o possível nascimento ?e algo novo.
comia compulsivamente, ou bebia desregradamente, mas Em certo momento, quando tmha pensado que ha-
acima de tudo ela tentava preencher seu anseio interior via acabado com Stephen, J ennifer sonhou que quand.o
com sexo, como sua mãe havia feito, por meio de álcool e, andava com duas crianças pequenas enco~trou ',lm leI-
muito provavelmente, sexo também. Jennifer separou-se téiro numa encruzilhada. A menção ao leIte, ahmento
do marido logo depois de ter começado a trabalhar comi- materno primordial, evocou a associação negativa de sua
go, e continuou um romance quejá vinha acontecendo há reação alérgica. Mas seu leite está sendo transportado
algum tempo. Neste, como em envolvimentos posteriores, por uma figura masculina, que lhe aparece n~ma encru:
sua carência constantemente atrapalhava sua capacidade zilhada. Na mitologia, o senhor das encruzIlhadas fOI
de enxergar a destrutividade de seu comportamento. Ela Hermes, o deus ardiloso, que conseguia trafegar em to-
queria se sentir cuidada. Queria sexo. Era intolerável das as direções e, certamente, foi com ele que a sonhado-
bancar-se sozinha. Com a ajuda de alguns copos de vinho ra encontrou. A androginia dessa figura, quer dizer, sua
"para mandar os vigias dormir", ela acabava indo para a capacidade de passar rapidamente da discriminação
cama com o homem de quem tinha jurado que iria se se- "masculina" para a vinculação "feminina", é expressa em
parar, ou afinal, com qualquer corpo masculino conve- seu papel de leiteiro. O deus das menti~as, e~tão, mos-
niente ou inconveniente, para logo depois afundar-se na tra-lhe de volta o caminho por onde ela tmha vmdo, e lhe
depressão e no nojo de si mesma. diz que não é aconselhável seguir por ele; trata:se de uma
Durante as prolongadas agonias de tentar encerrar estrada longa e fria, especialmente para as crianças.
o término do relacionamento com o primeiro amante, ela Como acontece em tantos mitos e contos de fada, onde
sonhou o seguinte: existe certa porta que não se deve abrir, ou uma determi-
nada fruta que não se pode comer, Jennifer escolhe natu-
"Stephen voltou no meio da noite, mas está claro. Ele en- ralmente a estrada desaconselhada para voltar. Depois
tra na cama comigo. Uso como contraceptivo um pouco de de algum tempo, chega a um bar que tinha freqüentado
cereal de desjejum, que empurro para dentro da minha
vagina." com Stephen. Ali, rouba alguns bulbos de flor para lev~r
para casa e plantar para que brotem no futuro. DepOIs
Ela estava começando a enxergar (embora fosse noi- chega a uma loja. O roubo, a loja, esses dois elementos
te, estava claro) que sua ânsia sexual era, em parte, um novamente nos dizem que estamos no dúbio mundo dos
ansiar pelo reconfortante abraço da mãe, provedora de negócios de Hermes-Mercúrio, deus das negoc~ações,
cereais. A imagem desse sonho contrasta com a expecta- mensageiro veloz de pés alados. Houve um mOVImento
tiva freudiana de que a atividade instintiva está deslocada psíquico, mas foi paradoxaL Conscientement~, Jennifer
para cima, para longe dos órgãos sexuais: aqui, o instinto estava lutando para deixar para trás o relacIOnamento
nutritivo está deslocado para baixo. A sexualidade dessa com Stephen, mas alguma coisa ardilosa estava trans-
paciente tornou-se devoradora. Com o crescente entendi- correndo e ela se viu atraída de volta, por um tempo con-
mento do sonhador, é insinuado um novo dia (desjejum), siderável, para esse lugar que oferecia um conforto frio e,
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se coloca para preencher a vaga com suas presas di1a~e­
um evidentemente precário apoio para os aspectos de sua radoras ou dentes caninos ávidos para entrar em. aça~.
psique que estavam em desenvolvimento e que foram Em um dos sonhos de Jennifer, ele aparece como o Javah,
personificados como as crianças do sonho. Mas, estavam consorte da mãe porca, ferindo com suas presas uma moça,
enterrados os pré-requisitos para futuras escolhas e cres- mas várias vezes ele veio na pele de lobo, e repetidamen-
cimento.
A queixa de Jennifer sobre Stephen era que ele nun- te como Drácula.
Jennifer havia desde o início confessado um fascínio
ca estava do lado dela, sempre decepcionando-a ao não por histórias de vampiro, e deliciava-se com aquela ~ecu­
aparecer quando tinha dito que viria, ausentando-se e liar sensação de excitação e calafrio causada pela mIstu-
frust~ando suas necessidades. Essa fonte de irritação
ra do poder demoníaco com sexualidade. Encarnando o
pareCIa ser o padrão das mulheres de sua ancestralidade desejo passional sem vinculo afetivo, o amante demonía-
pelo lado materno: mesmo que o homem estivesse fisica- co de presas aguçadas visitava-a regularmente, coI? ~ua
mente presente, estava emocionalmente ausente (queixa luxúria de sangue minando a libido de seu ego femmmo.
de sua mãe) - escapando, sem sombra de dúvida da Há muito tempo que Drácula deveria estar morto. Ele
melhor ma~ei~a que podiam, de mulheres controlado~as. está enterrado, murado na tumba, fora de vista e da men-
Os so~hos mdIcavam que esse padrão destrutivo estava te. Mas ergue-se das profundezas do inconsciente subter-
assocIado com muitas coisas que tinham acontecido an- râneo, sempre à noite, quando está fraca a luz da cons-
tes, e qu~ cabia a Jennifer assumir a tarefa de lavar a ciência, para escravizar e destruir. O sangue é o ~l~mento
roupa sUJa de toda a família. Não espanta que tivesse de das sombras que o morto exige para poder partIcIpar do
voltar várias vezes "para a casa da minha mãe", onde mundo dos vivos, e essa dieta exige que os vivos abram
tantas vezes, nos sonhos, ela se percebia na cama com mão de pelo menos uma parte de sua substância vital.
Stephen. O relacionamento era uma luta pelo poder, uma Aqueles em quem o vampiro se refestela tornam-se ~les
guer_ra que costumava ser combatida no quarto. Demons- mesmos vampiros e quando Drácula assaltava Jenmfer
tr~ç?:s de amor eram geralmente seguidas por recuos e ela se tornava vampiresca, devoradora, sedenta do san-
reJ.eIçoes, e mágoas provocavam raiva e vinganças. De- gue dos homens. Do ponto de vista de sua consciência,
pOl~ de ~azer amor, Jennifer recolhia-se, "precisava ficar eram necessidades que ela, muito razoavelmente, espe-
sozmha . ~tephen ia embora para o campo de golfe.
rava que fossem satisfeitas.
A carenCIa pode ser entendida em sua dimen'são cau- Aos poucos, aumentou sua resistência a esses ata-
s~l, como resposta natural à privação materna, mas con-
ques e as figuras vampirescas começaram a perder seu
sIderar ess~ problema por um prisma causal e linear é poder e tornaram-se mais maleáveis. Foi o mesmo com
perder de ':ISt~ o quadro inteiro, no qual ansiar, devorar e os sonhos com o lobisomem. Como o vampiro, o lobiso-
causar carenCIa estão todos presentes ao mesmo tempo. mem age à noite, embora não venha do mundo inferior
O componente psíquico mais destrutivo manifesta- mas sim, em forma pervertida, da escura floresta de nos-
va-se repetidamente nos sonhos com vampiros e lobiso- sa natureza animal selvagem. Drácula tinha uma asso-
mens. Quando a boa mãe está ausente, o "animus" ma-
ciação particular com os lobos.
terno destrutivo, seu lado masculino inferior, prontamente
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N a mesma noite em que teve o sonho com o leiteiro, as qualidades abastecedoras que lhe permitiram romper
Jennifer também sonhou o seguinte: com o padrão familiar e realmente cuidar tanto de si como
de sua própria filha pré-adolescente, sua compulsividade
"Estou num relacionamento com um homem, ou queren-
do ter um. Então aparece um poço e um lobo está no fundo deu cada vez mais lugar a uma criatividade recém-desco-
dele. A questão é como pegá-lo. Enviam para baixo duas berta e a uma sensação inesperada de contentamento.
crianças pequenas. Quando trazem-nas de volta para cima, Agora tinha estabelecido um bom relacionamento com o
o lobo aparece. Dois homens cortam-no ao meio. Ao retira- homem interior e raramente ele voltava a se transfor-
rem o fígado e os rins, um líquido escoa para fora e ele mar no lobisomem. Se a mulher precisa exercitar a dis-
começa a se transformar em homem. Pergunto se eles vão
costurá-lo de novo e eles dizem que não, que isso seria criminação quando a mãe oferece comida, parece ser ain-
errado." da mais essencial ao desenvolvimento da consciência
masculina aprender a dizer não. As piadas sobre a mãe
Esse sonho assinalou o início do verdadeiro processo judia com seu refrão: "Coma, coma, meu filho!" transmi-
analítico. A sonhadora enxerga a possibilidade de um re- tem a existência de um perigo que não está confinado aos
lacionamento com um homem desconhecido, seu verda- homens judeus. Segue-se o sonho inicial de um rapaz que
deiro parceiro interior. Novamente aparecem as duas tinha câncer:
crianças (cujo sexo não está claro), e mais uma vez elas
"Estou na prisão. A porta da minha cela está aberta e atra-
são postas em situação de perigo, mais ainda do que no vés dela posso ver o condenado da cela em frente. O guar-
sonho do leiteiro. É como se a psique insistisse no fato de da entra lá, levando uma bandeja cheia de comida para
que aquilo que esteve se desenvolvendo e crescendo deve aquele prisioneiro, a quem efetivamente não vejo. Posso
ser posto em risco agora, para que o verdadeiro trabalho perceber que ele tem uma televisão a cores lá também.
possa ser realizado. As questões mal resolvidas do rela- Fico maravilhado de pensar como aquele homem pode
aparentemente desfrutar dessas coisas quando está para
cionamento com Stephen serviram de material a partir morrer amanhã. O guarda volta e curvo-me para amarrar
do qual a consciência pôde crescer. O lobo deve ser sedu- os cadarços do meu sapato, de modo que ele não veja que
zido a sair à luz do dia e ser penosamente humanizado. estive espiando. Ele passa sem me ver."
O homem interior prestativo aparece agora revesti-
do da imagem dos dois cirurgiões. Suas facas afiadas, di- O homem condenado fez o sonhador lembrar de seu
versamente das presas do lobo, podem ser usadas de pai, sentado passivamente diante da TV enquando sua es-
maneira curadora, positiva, transformadora. A manifes- posa lhe trazia o jantar. O guarda parece ser um aspecto
tação de fluidos, a bile simbólica e as muitas lágrimas masculino controlador da mãe, carregando aquele alimen-
literais, formaram parte essencial do processo. Jennifer to tingido de morte, e, de fato, a prisão mesma poderia
muitas vezes desejou que essa operação fosse finalizada ser considerada como o aprisionador complexo materno
e que as feridas sarassem, sendo rapidamente costura- em que o homem condenado, ou a inconsciente passivi-
das, mas o processo não pôde ser acelerado. Enquanto dade do sonhador, reconhecida apenas na projeção de seu
transcorria a humanização do lobo-mãe-animus, da pai, é alimentado e entretido. O sonhador, embora apa-
volúpia lupina dos desejos, ela encontrava em si mesma rentemente livre para sair, permanece em sua cela.

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Evita o confronto com seu carcereiro. Na vida real, ele N osso herói, apesar de seu fracasso abjeto, é, não
estava tentando combater sua enfermidade adotando um obstante, auxiliado em seu caminho pela persistência da
regime de vida saudável, mas quer isso fizesse alguma princesa corvo que está ativamente empenhada em con-
diferença, quer não - faltava-lhe autodisciplina par~ seguir que ele se envolva com sua própria incumbência.
abrir mão de suas fraquezas. A inadequada figura de paI Não tendo conseguido despertá-lo nem ao sacudi-lo, ela
não ajudava em nada nesse sentido. Ele morreu seis me- deixa ao seu lado um pedaço de pão, um naco de carne e
ses depois. uma garrafa de vinho. Essa comida, longe de pô-lo a dor-
O conto de fadas "O corvo" da coleção dos Irmãos mir, sustentá-Io-á interminavelmente. Por mais que ele
Grimm dá uma ênfase particular ao alimento, quando as consuma, essas provisões nunca diminuem.
fala da jornada do herói para libertar a princesa de sua Aqui topamos com um motivo que é freqüente nos
prisão na forma de um pássaro de plumagem escura. Se contos de fada e no folclore, a saber, o do fornecimento
lermos essa história como um depoimento da luta da inesgotável de alimento. Aparece em outro lugar na ima-
consciência masculina para se emancipar até o ponto de gem da mesa que se põe sozinha, no caldeirão mágico de
seu casamento interior poder acontecer (a história aca- sopa, no corvo que alimenta Elias no deserto. Trata-se do
ba com o anúncio do casamento), o elemento feminino fluxo espontâneo de material nutricional que vem do in-
inconsciente aparece inicialmente, apenas como um tipo consciente. Um dos termos usados pelos alquimistas que
sombrio e funéreo de intuição localizada na floresta es- corresponde ao nosso conceito de inconsciente é o de massa
cura. O herói é, em geral, uma figura passiva que não confusa. O termo massa está relacionado com as pala-
vai a parte alguma sem constantes exortações da parte vras maza do grego, que quer dizer bolo de cevada, e
da princesa corvo. Sua primeira tarefa é recusar a co- massein, amassar uma massa. A massa confusa dos pro-
mida e a bebida oferecidas por uma velha que vem da cessos psíquicos inconscientes é amassada em formas que
floresta. Partilhar dessas oferendas implica em ele ador- podemos assimilar, se tivermos a atitude correta.
mecer e perder o encontro com a princesa, mas, apesar Quanto mais esse "alimento" é assimilado, mais se
das advertências, quando a tentação se apresenta ele torna disponível, nesse caso, mais porções da mesma ra-
cai todas as três vezes, incapaz de resistir a dar um gole ção básica já processada e amoldada no inconsciente. O
no copo que a velha bruxa lhe estende, com insistência "eu" consciente ainda deve fazer sua conexão com a cor-
maternal: "Ora vamos, um pouquinho só não vai lhe fa- nucópia interna antes que isso possa acontecer. Uma mu-
zer mal..." A mãe tem muitas maneiras sutis de nos lher, ainda não capaz de fazer isso, sonhava repetidamen-
manter inconscientes. Evidente que, na vida real, isso te com restaurantes que tinham abundância de alimentos
pode não vir na forma literal de uma mãe. Pode ser na que, por um ou outro motivo, ela não conseguia comer: o
forma dos rapazes do bar: ''Vamos, tome mais um!" Qual- alimento escorregava de seu prato, ou era a hora errada
quer coisa que não seja acordar para a tarefa de tornar- do dia; ela sonhava também que saía de um supermercado
se homem, de deixar a cozinha em busca da grande aven- com o carrinho vazio. Outra pessoa, ciente de abundância
tura: ceder às fraquezas quando o que é necessário é ter interna à qual não conseguia ter acesso, falava da sensa-
resolução. ção de morrer de fome em terra de fartura. No conto "O

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corvo" não existe esse problema. Comer o alimento repre- ra, bem à parte do alimento oferecido com intenções ri-
senta um movimento na direção da tomada de consciên- tuais pelas pessoas. Se o sacrifício é oferecido na espe-
cia revertendo a tendência da comida oferecida pela ve- rança de receber benefícios, para afastar a ameaça de
lh~. O incansável impulso do corvo, agindo fora do a1c~nce forças perigosas, ou para imitar um ato divino, é um ato
de visão do herói em sua busca de reconhecimento e hber- de reconhecimento de que, neste mundo de perpétuas
tação, é suficiente para mantê-lo a caminho. transformações, nada é verdadeiramente gratuito, sem-
O atributo primário da mãe é, evidentemente, sua pre existe um preço a ser pago.
capacidade de dar à luz, e ser devorado por ela, como no O alimento que vem do pai tem uma natureza dife-
caso de Jonas; pode levar ao renascimento, d~ mesma rente daquele que vem da mãe. Cristo é o pão dos céus,
forma como o Roro, solar ou Rá, entra, ao anOItecer, na alimento espiritual, a palavra de Deus Pai que tanto nos
boca da grande vaca celeste noturna Rator, ou Nut, para é necessária para nosso sustento como o é o pão do mun-
novamente nascer na aurora. A regressão a um estado do. Certa vez, sonhei que encontrava um volume dos tra-
infantil ou embriônico de consciência pode preceder uma balhos de Jung sobre uma mesa de restaurante, sinali-
nova fase de crescimento. Não obstante, a boca da Gran- zando arquetipicamente o reino do logos como fonte de
de Mãe sempre é uma ameaça do ponto de vista da cons- nutrição. O pai também pode ser devorador: rígido e te-
ciência. Também não é só a "mãe" quem nos ameaça engo- mível, o velho Cronos-Saturno mastiga o potencial futu-
lir. A voraz natureza das forças inconscientes é retratada ro de seus filhos. Um sonho: "O pai está comendo as pes-
em imagens de bastante popularidade, masculina~ e fe- soas - elas são só caroços. Ele diz: 'Já estão mortas, de
mininas de bocas escancaradas e caninos longos. As ve- todo jeito.' " Uma mulher que tinha acabado de ter um
zes é o Tempo devorador na forma da figura mitraica de encontro com seu pai pessoal, situação que havia mobili-
cabeça de leão exibida por Aion, ou o Shiva Ma~akal~ zado velhos sentimentos de desvalorização diante de sua
(Grande Tempo) comedor de carne, em vez da.Kal~ femI- incapacidade de corresponder às expectativas dele, so-
nina, personificando o grande calabouço em_cuJo bOJo des- nhou que uma águia estava bloqueando a luz e mergu-
pencam as recordações que, vez ou outra, sao resgatadas lhando em sua direção "como se estivesse vindo me en-
mediante esforços heróicos. Tempus edax rerum, o tempo golir." A águia era o animal do pai-céu Zeus. O sonho foi
é o devorador das coisas. seguido por uma depressão durante a qual ela mencio-
Para propiciar as perigosas forças da natureza que nou ter perdido sua noção de quem era; esse auto conceito
podem engolir a vida humana e a consciência, o alimento tinha sido tragado pelo complexo paterno.
é regularmente oferecido aos deuses e deusa~. O.s deuses Muitos deuses estão associados ou identificados com
são mais propensos a nos olhar com benevolencIa s~ nos determinados itens alimentares, especialmente com aque-
relacionamos com eles, e tendem a desfechar seus pIores las comidas que são de importância vital para uma cul-
golpes quando ignorados, carentes de nossa atenção cons- tura. Mas, em certas tradições, também fica explícito que
ciente. Em seu templo, Yahweh era alimentado com um sOmos alimento para os deuses. O Livro Maya dos Conse-
carneiro pela manhã e outro à noite, além de receber lhos, o Popol Vuh, afirma que os seres humanos eram
oferendas de cereais e libações, como convidado de hon- feitos de milho:

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E os Ancestrais, Criadores e Geradores, que foram cha- Idéia~ similares estavam presentes na teologia
mados de Tepeu e Gucumatz, disseram: "Chegou o tempo
da alvorada, que o trabalho possa ser concluído, e que asteca, umndo. a morte e a renovação, o deus e o homem.
apareçam aqueles que devem nos alimentar e sustentar, Os deuses havIam se sacrificado para criar a humanida-
os nobres filhos, os vassalos civilizados; que o homem apa- de, e a humanidade deve retribuir com sacrifícios huma-
reça, a humanidade, na face da terra." ... E desse modo, nos para que a vida possa continuar. De acordo com Lewis
encontraram a comida, e isso foi o que entrou na carne do Spence,
homem criado, do homem feito; era disso que era feito o
sangue do homem. Então o milho entrou (na formação do Os deuses ... declararam que a guerra era necessária para
homem), pelo trabalho dos Ancestrais ... Então, moendo o que se pUdess? obter sangue para nutrir o sol... [Esse mito]
milho amarelo junto com o branco, Xmucané criou nove re.vel~ toda a Idéia teológica central à fé asteca: o homem
bebidas, e desse alimento veio a força e a carne, e com ela fOI crIad~ espec~~lmente com o propósito de manter os
eles criaram os músculos e a força do homem. Isso fize- deu~es VIVO~, ahas, ele não é nada além de um animal
ram os Ancestrais Tepeu e Gucumatz, como foram cha- sacrIfi~al cUJO sangue serve para nutrir os poderes ele-
mados. Depois disso, eles começaram a falar sobre a cria- mentais, e essa era toda a sua razão de ser. 16
ção e a produção do primeiro pai e da primeira mãe; do
milho amarelo e do milho branco fizeram sua carne; a pasta
da farinha de milho fizeram os braços e as pernas do ho-
E~ .seu c~~entário de um sonho,17 Jung interpreta
mem. Só a pasta desta farinha de milho foi usada para a frase, J.antar como "comer os complexos"- uma parte
fazer a carne de nossos primeiros pais, os quatro homens, necessana do processo de tornar-se mais consciente. Mas
que foram criados. 14 nossos complexos também nos comem - "como uma lar-
va comendo e mastigando a minha vida", disse um ho-
Como costuma ser o caso com os cereais em geral, o mem atormentado e frustrado. "O que está te comendo?"
milho para as antigas populações da América tinha perguntamos a uma pessoa com expressão angustiada.
conotações maternas. "Os índios americanos, em suas fala~os da amar~ra que está roendo as entranhas d~
muitas línguas diferentes, sempre falaram do milho como algu~m, ~ de alguem que se deixa devorar pelo ciúme e
'Nossa Mãe,' 'Nossa Vida,' 'Aquela Que Nos Sustenta.' "15 pela mveJa. Os Yanomami das matas da Venezuela ex-
Ser feito de milho, portanto, é ser feito da própria subs- pressam essa experiência na crença de que os demônios
tância da mãe, assim como ser feito de barro é ser feito comem as almas. 18
da substância da Terra Mãe. A imagem do milho, porém, A respeito do experimento com associação de pala-
ainda transmite a noção de que somos comida, alimento vra~, Jung refere-se aos "complexos assimiladores",19 que
para os deuses, tornando-nos então um oferecimento para estao se~pr~ prontos a atrair na direção de sua teia no-
eles como modo de assegurar nossa preservação, impe- vas assocIaçoes, para não dizer dos propósitos conscien-
dindo - pelo menos temporariamente - que sejamos
devorados. 16
17D
The Religion of Ancient Mexico ,p. 49 •
. 18 ream An.alysis, p. 12.
J4acQues Llzot, Tales of the Yanomami: Daily Life in the Venezuelan Forest
pp. 12 ss. ,
14
15
Popol Vuh: The Sacred Book of the Ancient Quiché Maya, pp. 165ss.
Margaret Visser, Much Depends on Dinner, p. 24.
PSy~~:' gg~:~.o{~;e Complex Theory, The Structure and Dynamics of the

36
37
tes e fala como por trás de nossos complexos pessoais os rapidamente aprendem a estender a mão para dar comi-
de~ses estão vivos, exigindo tributos. O leão alquímico da a patos, esquilos, cavalos, criando assim, uma ma-
verde que devora o sol, como imagem da lascívi~ nat~ral neira de se relacionar e acolher essas espécies alheias à
e feroz que eclipsa a consciência, é uma tradução Imagmal sua. Alimentar o gigante significa dar-lhe substância, afir-
desse processo. O sol doador de vida desaparece, e tudo mar sua realidade, levá-lo a sério, conquistar sua coope-
que resta é o desejo. . ração. A palavra "corpo (body)" está relacionada com o
O pouco de consciência que eventualmente nos so- termo sânscrito bandha, cujo significado primário é pri-
bra pode ser devorada por forças arquetípicas sobre a~ são oujugo; o corpo é visto como aquilo que prende a alma.
quais não temos nenhum controle, mas fazer oferendas e Alimentar, dar corpo à imagem psíquica, vincula-a a nós,
ato mais ou menos consciente. Toda vez que oferecemos da mesma forma como um ato de hospitalidade contém
alguma coisa que nos pertence estamos dando um ~?uCO em si um ônus ou obrigação. Ao se relacionar dessa ma-
de nós, sacrificando uma parcela de seus apegos egOlcoS. neira com o gigante, o herói reconhece a existência desse
Homenagear aquilo que é maior, mediante um pequeno grosseiro componente psíquico. Em vez de ser tragado
gesto de submissão, coloca-nos num determinado. nível e absorvido por esse modo arcaico de funcionamento, o
de relacionamento com os deuses. Oferecer agradecImen- herói ganha mais pontos de referênCia dentro do cenário
tos como quando damos graças antes de uma refeição, interior.
ta~bém nos mantém conscientes desse relacionamento. Nos contos Jataka das vidas passadas de Buda, está
Voltando mais um instante ao conto "O corvo", ao relatado como ele, quando era o príncipe Mahasattva,
receber seu novo suprimento de alimentos o herói fica corta a própria garganta para se oferecer como alimento
mais vigoroso; põe-se a caminho para encontrar a prince- a uma tigresa faminta com filhotes mortos de fome. A
sa e ousa entrar na casa de um gigante. Os gigantes são prática tibetana de meditação Chod, que em condições
conhecidos por sua famosa tendência a comer pessoas, e ideais deve transcorrer em um cemitério, implica em o
ele se salva desse destino ao lhe oferecer, e oferecer em praticante se visualizar sendo devorado, como parte da
seguida ao irmão do gigante, um pouco de alimento de experiência da relatividade de seu ego. Todos os compo-
seu inesgotável estoque, com o quê os gigantes ajudam- nentes psíquicos podem aumentar ou diminuir em ter-
no com seus mapas a encontrar o caminho. Oferecer co- mos de sua força, e com isso assimilam-se uns aos outros.
mida para apaziguar os brutais elementos sub-huma~os Perceber esse processo constitui um momento de ilumi-
não envolve um verdadeiro sacrifício da parte do heróI- nação em que a unidade subjacente é apreendida, mes-
a fonte oferece mais, sempre - mas implica em ter pre- mo que fugazmente, e em que o "eu" se torna menos im-
sença e agilidade de espírito diante de uma situação pe- portante.
rigosa fazendo uso dos recursos que espontaneamente A experiência de ser devorado é um aspecto comum
lhe fo;am apresentados e que, nesse ínterim, o indivíduo da tradição iniciática xamanista. O futuro xamã é afas-
assimilou. Ele está aprendendo com as experiências. tado radicalmente de suas posições egóicas habituais por
Alimentar um animal pode ser um importante com- poderes transpessoais e entra em uma viagem através
ponente no processo de domá-lo. As crianças pequenas de dimensões psíquicas numa experiência que, subse-

38 39
qüentemente, permite-lhe atuar como curador e guia das João Crisóstomo segundo as quais, na Eucaristia, Cristo
almas. Um xamã Tungus, da Ásia central, entrevistado bebe do próprio sangue. Pelo mesmo processo poder-se-
em 1925, apresentou o seguinte relato de sua enfermida- ia dizer, ele come da própria carne".21 Freqüe~temente
de iniciática, aos 15 anos: Cristo é citado em imagens comestíveis, como o pão do~
Depois disso, meus ancestrais começaram a me xamanizar. céus, o cordeiro sacrificial, o peixe, o primeiro fruto, a
Puseram- me em pé como uma tora de árvore e golpea- vinha/vinho, e o maná oculto.
ram-me com seus arcos até que perdi a consciência. Cor- Ao devorar carne crua de animais, os seguidores de
taram minha carne, separaram-me os ossos, contaram- Dioniso parecem que estão também comendo o seu deus
nos e comeram minha carne crua ... Acontece a mesma embora isso talvez não tenha sido sempre explícito. 22 O~
coisa com todos os xamãs Tungus. Somente depois que
seus ancestrais xamãs cortaram seu corpo e separaram
seguidores de Cristo confrontam e consomem a imagem
seus ossos é que ele pode começar a xamanizar. 20 terrível da carne dilacerada de maneira mais distancia-
da, comendo o corpo mutilado que é, ao mesmo tempo, o
Nessa experiência, o iniciado deixa de ser indivíduo; pão da conquista humana, o cru sofrimento da encar-
ele é igualado a seus ossos contados separadamente, é nação, a essência da vida divina e o vinho do êxatase.
reduzido aos imperecíveis componentes de seu ser, e as- Com significados coligados encontramos o alimento
similado de volta ao xamã arquetípico ancestral. totêmico, em que o animal sagrado, encarnando o espíri-
O auto-sacrifício consciente do Príncipe Mahasattva to do clã, torna-se por sua vez encarnado nos membros
ao inconsciente tigre - ou mãe devoradora - é seguido, desse clã; sua carne é transformada na carne dessas pes-
no devido tempo, por um novo nascimento. Também no soas e com isso significa que houve a integração, em cada
cristianismo, o auto-sacrifício do ser divino, sua descida uma delas, de todos os elementos que o totem represen-
até as profundezas devoradoras da morte e sua ressur- ta. Na unia mystica da refeição sacrificial, os comuni-
reição, constitui uma imagem central, e é ritualmente ca~tes recebem sua própria natureza divina e, por esse
celebrado em uma cerimônia que implica comer. Em "Sím- melO, tentam conscientemente vivenciá-Ia.
bolos de transformação da missa", Jung comenta profun-
damente o significado da comunhão cristã. "Na medida
que Cristo é tanto o sacrificador como o sacrificado, exis-
te uma unidade mística de todas as partes do ato
sacrifical."Ele compara as imagens da missa com a visão
que teve o alquimista Zózimo, de Panópolis no século III
d.C., cuja celebração sacrifical "consiste em dilacerar-se
ele mesmo em pedaços com os próprios dentes e depois se
comer". Jung comenta: "Isso lembra as palavras de São
21 Psychology and Religion, OC 11, s 337 346 353
22 IbOd ' , o

po 131 l o, 353, nota 25; ver também Walter Otto, Dionysos: Myth and Cult,
20 Citado em Campbell, The Way of the Animal Powers, p. 1720

40 41
2 sobrepõem (como consciente e inconsciente, corpo e psi-
que), comendo um alimento intermedi~rio.l
CARDÁPIOS São escassas as evidências com respeito à dieta de
nossos ancestrais hominídeos. A durabilidade da pedra,
do osso e de ponteiras metálicas mais tardiamente pre-
sentes nos arte fatos de caça, significam que sobrevive-
Preste atenção à nutrição ram para que os arqueologistas os descobrissem, e isso
E àquilo que o homem procura pode ter dado a falsa impressão de que houve um predo-
Para encher sua própria boca.
-1 ching, Hexagrama 27. mínio da caça em termos do provisionamento de víveres.
A coleta deve ser o meio mais antigo de subsistência dos
humanos, mas deixa as menores evidências a esse respei-
o homem de dois milhões de anos é caçador e coletor. to. Seus artefatos incluem recipientes para carregar a co-
Somente durante uma pequena fração de tempo, desde que mida (cabaças, redes e sacos de couro) e varas para cavar.
existe o Homo sapiens, é que houve sociedades humanas Raramente esses instrumentos sobrevivem em sítios ar-
de outros tipos. Da caça veio a criação dos animais e de- queológicos, mas estão freqüentemente retratados nas
pinturas e relevos em pedra, em particular na África. 2
pois a domesticação e a produção de rebanhos; da coleta
de alimentos veio o cuidar de jardins naturais, o início da
agricultura e a produção de alimentos vegetais. Também Não parece provável que folhas, sementes, raízes e
fungos também não tenham tido sua presença na dieta
da caça vem, primeiramente, a imagem da busca, do obje-
tivo, enquanto colhemos, aramos e armazenamos fatos, do caçador pré-histórico. A vegetação, afinal de contas, é
mais previsível do que a vida animal, e não foge do
impressões, pensamentos e idéias que nos ocorrem.
A teoria atualmente aceita sobre a evolução huma- buscador faminto; onde quer que tenha existido, deve ter
na data de Charles Darwin e T. H. Huxley e envolve a constituído uma importante fonte de alimentação.
transição de nossos ancestrais pré-humanos, de uma vida A carne costuma constituir uma parcela muito pequena
dentro da mata primitiva com dieta à base de frutas, ba- da ingestão total de comida, exceto em altas latitudes em
sicamente em função de colheita, para outra espécie de que escasseiam as plantas e onde houve uma adaptação
vida, baseada na caça, nas savanas, e que envolvia um fisiológica a dietas ricas ~m gorduras e proteínas animais
(como entre os Inuit, no Artico). Registros históricos de 58
considerável consumo de carne. Insetos, ovos, pequenos sociedades caçadoras, coletoras e pescadoras mostram que
mamíferos e aves também devem ter presumivelmente a caça era o modo dominante de subsistência somente em
feito parte da alimentação desses distantes comedores latitudes superiores a 60 graus. 3
de frutas e habitantes das árvores. Como estágio inter-
mediário, Alister Hardy e Elaine Morgan propõem a plau- 1 Ver os três livros de Elaine Morgan, The Descent afWaman, The Aquatic
sível noção de um interlúdio à beira-mar, com uma dieta Ape e The Scars af Eualutian: What Our Badies Tell Us Abaut Human Origins.
2 Frank Hole, "Reconstructing Prehistoric Diet," em The Cambridge
abundante de animais marinhos - uma fase interme- Encyclapaedia af Human Eualutian, p. 369.
diária em um local intermediário, em que terra e mar se 3 D. R. Harris, "Human Diet and Subsistence," em ibid., p. 70.

42 43
A "hipótese da caça" porém, desenvolvida em mea- °
Olhe canário. É pequeno, fraco, e não vive muito. E °
dos da década de 60, enfatizava o papel da caça para a evo- que <;ome? Apenas sementes. Por outro lado, olhe porco, °
lução. Matar grandes animais, sem dúvida foi importan- que e grande, forte e tem uma vida longa. O que ele come?
te para a sobrevivência de nossos ancestrais, pois esses °
De tudo. Devemos ser como porco, devemos comer de
níveis de esforço físico e aquisição de habilidades dificil- tudo. 5
mente teriam se desenvolvido de alguma outra maneira.
No processo de ampliação do campo da consciência
essa é a atitude apropriada. Quando se trata de assimi~
Provavelmente, a ingestão de carne desenvolveu-se pri-
meiro como rapinagem, usando utensílios para rachar
lar conteúdos inconscientes não podemos nos dar ao luxo
crânios e ossos, e "é até possível argumentar que a caça
de sermos muito seletivos, mas aceitar o que aparece.
sistemática não foi praticada pelos primeiros hominídeos
Onifagia significa variedade, do que entra pela boca do
senão quando se deu o aparecimento dos humanos moder-
tipo de local em que são encontrados os ingredientes 'ali-
nos, talvez em torno de 60.000 anos atrás."4 Quaisquer
mentícios individuais, e das técnicas exigidas para a ob-
tenham sido os fatos pré-históricos, o que foi indubita-
tenção deles. Implica em disponibilidade para aprender
velmente vital na capacitação dos humanos e prato-huma-
e em abrir espaço para a criatividade. Nossos ancestrais
nos para sobreviver e se desenvolver, foi sua capacidade
necessitavam não só de um sistema digestivo muito tole-
de adaptação a novas circunstâncias de alimentação, as-
rante, como de curiosidade e prontidão para experimen-
sim como em outros setores da vida.
tar, como as gaivotas que se alimentam de pedacinhos de
Ser capaz de se adaptar a novos recursos de alimen-
lixo costeiro, e os ratos, os aventureiros da nutrição. Em
tação quando os conhecidos faltam é, sem sombra de dú-
outras palavras, eles precisavam de capacidade de apren-
vida, uma grande vantagem diante de um mundo incer-
der depressa, e de acomodar tanto metafórica como lite-
to. A dieta altamente especializada do panda gigante, que
ralmente coisas novas em seus sistemas.
se alimenta apenas de determinado tipo de bambu, é uma
Animais dotados de hábitos alimentares mais espe-
das principais razões para sua quase extinção, e os
cializados só precisam ser programados para responder
creodontes, antigamente o grupo carnívoro dominante no
ao tipo certo de alimento (a lagarta da borboleta monarca
planeta, devem possivelmente ter sido extintos há cerca
só reconhece a asclépia como comida; o gato salta sobre
de 35 milhões de anos porque seus dentes eram exclusi-
qualquer criatura pequena que guinche e saia correndo),
vamente adaptados à ingestão de carne. A pessoa que
tem uma dieta estrita, ou uma concepção estreita do que ao pa~:o ~ue os não-especialistas têm de aprender, por
expenenCIa e em particular com os mais velhos, exatamen-
é comida, viaja mal. Comer o que quer que apareça como
te o quê é comestível. Em condições naturais, o rebanho de
comida pela frente é uma demonstração de flexibilidade
carneiros é conduzido em expedições alimentares por um
e abertura às novas experiências. Falando da necessida-
guia idoso, que os encaminha ao longo de um trajeto cui-
de de desenvolver uma atitude robusta de aceitação da
dadosamente planejado para que os animais possam su-
vida, um mestre Zen disse:
prir todas as suas várias exigências nutricionais.
4 Lewis R. Binford, "Subsistence - A Key to the Past." em ibid., p. 366.
5 Suzuki, c. 1968. Comunicação pessoal da parte de D. Stevens.

44
45
N os seres humanos, o impulso para explorações e tura sem lágrimas nem suor. Parece que, na imaginação
uma bem-desenvolvida capacidade para a transmissão arquetípica, a intuição ou memória da totalidade pré-cons-
de conhecimentos são elementos concomitantes ao nosso ciente aparece-nos revestida num verdume carregado de
padrão alimentar altamente variável. Ao longo de milê- frutas que, no passado, era o lar de nossos ancestrais pré-
nios, e de acordo com as diferentes regiões geográficas humanos. Os primatas são essencialmente frugíveros.
para as quais a necessidade nos encaminhou, tivemos de Talvez também o lugar em que as árvores frutíferas cres-
constantemente nos ajustar a mudanças de habitat e cir- ciam fossem muitas vezes preciosas para as hordas nô-
cunstâncias econômicas, que ora se concentram em de- mades caçadoras-coletoras, como acolhedor local de des-
terminados alimentos em particular, ora se diversificam, canso ao qual regressar e onde sossegar a alma.
e nosso estilo de vida, junto com muitos mitos e rituais Existem, é claro, dois tipos de paraíso: o "lar" origi-
coletivos, bem como nossa linguagem, mudou com nossa nal, fonte de nossa mais profunda nostalgia, e o paraíso a
alimentação. A necessidade, a curiosidade e a tradição ser alcançado um dia, depois de dolorosos esforços, pelos
cultural ditam o que comemos mais do que o faz o instin- fiéis, pelos bravos, pelos bons e pelos sábios. A própria
to, e nossos padrões de alimentação nos conectam com o palavra decorre do termo persa para umjardim murado.
ambiente, tanto como sociedades quanto como indiví- N os ensinamentos de Zoroastro, está descrita a natureza
duos, de maneira particular. Em certa época, a palavra do mundo antes que o mal nele houvesse ingressado, e
carne, significando alimento em geral, acabou sendo apli- como virá outra vez a ser depois que o mal for vencido. O
cada à carne do corpo, que era considerada a comida bá- paraíso original é, geralmente, imaginado como sendo na
sica. Em outra, o pão se tornou o item central da dieta, "o terra, e o da recompensa futura costuma ter uma nature-
pão nosso de cada dia". As duas vertentes, caça e coleta, za celestial, mas em suas imagens esses alfa e ômega
continuam se combinando e se separando. sobrepõem-se, como se conquistar o paraíso pelo qual fu-
turamente se espera fosse - de modo paradoxal - um
tipo de retorno. Hesíodo relata que, durante a Idade de
o fruto do paraíso Ouro do passado, "a terra provedora oferecia aos [homens]
nús fartura de frutas 6 em abundância e sem manchas", e
o mito da saída da floresta para a savana é, por sua que os heróis gregos da guerra de Tróia "viviam livres de
vez, bastante forte, e evoca uma era de passeios pacíficos padecimentos nas ilhas dos abençoados à beira-mar, con-
em que aparentemente quase não se derramava sangue, templando o Oceano com suas profundas correntes mari-
seguida por outra de grande ousadia e selvageria. Claro nhas, heróis felizes para quem a terra provedora de grãos
que essa é a versão simplificada, mas cabe bem na imagi- oferece frutos doces como o mel que aparecem três vezes
nação popular daqueles que têm algum grau de conheci- por ano."7 Frutas podem ser encontradas em ambos os
mento da teoria da evolução. É notável como a história lugares, mas aparentemente não a carne.
desses ancestrais na floresta, para quem o alimento cres-
cia nas árvores, teoria que surgiu no século XIX, tem o 6 Em grego, a palavra harpas incluía grão, além daquilo que chamamos de fruto.
distinto sabor do paraíso original, aquele jardim da far- 7 Warks and Days, linhas 117-118 e 172-173.

46 47
No jardim do Éden "Iahweh Deus fez crescer do solo Diz a tradição islâmica que quando os crentes no
toda espécie de árvores formosas de ver e boas de comer, paraíso comem o fruto da árvore do lótus não sentem mais
... e Iahweh Deus deu ao homem este mandamento: 'Po- desejo pela vida terrestre; também diz que Deus enviou o
des comer de todas as árvores do jardim" (Gn 2,9, 2,16)8. anjo Ridhwan à terra com uma maçã celestial para dar a
Novamente, não é feita nenhuma menção à comida de Moisés, quando sua hora houvesse chegado, e que tão
origem animal. A respeito do paraíso bíblico por vir, dá- seduzido ficou Moisés pelo aroma da fruta que de bom
se uma impressão semelhante de não-violência a respei- grado abandonou seu corpo e seguiu Ridhwan.
to de comida: É condizente que, no local onde não há morte, o ali-
mento venha sem que tenha havido alguma matança.
Então o lobo morará com o cordeiro, e o leopardo se deita- "Ninguém fará o mal nem destruição nenhuma em todo o
rá com o cabrito. O bezerro, o leãozinho e o gordo novilho meu santo monte." (Is 11,9). No caso da Idade de Ouro de
andarão juntos e um menino pequeno os guiará. A vaca e
o urso pastarão juntos, juntas se deitarão as suas crias. O
Hesíodo, a morte acabava acontecendo, mas era algo como
leão se alimentará de forragem como o boi. (Is 11,6-7). ir dormir, era uma morte não-violenta. Porfírio era explí-
cito a respeito de sua crença de que, naqueles bons tem-
pos dourados, as pessoas se satisfaziam com grama, fo-
N o Corão, o paraíso para o fiel maometano, com sua
lhas e espigas, que podiam ser colhidas em estado bruto,
ênfase nos prazeres sensuais e nos atributos culturais e que a matança de animais veio depois,junto com a guer-
(robes de seda, divãs, taças de prata), só uma vez é citado ra, assim como o plantio e o trabalho,lO e essa visão tem
como provedor de carne, e nesse caso, uma galinha é a muitos elementos em comum com nossa atual compreen-
forma, por assim dizer, mais espiritualizada de carne. Em são científica da pré-história.
sua maior parte, a ênfase outra vez recai sobre os frutos, Privar uma criatura de sua vida tende a estar as-
ao lado de bebidas com sabor de gengibre, e rios de águas sociado com culpa e medo de retaliação, emoções que
imaculadas, leite, mel e vinho. não têm lugar no paraíso. É uma das práticas mais
antigas e difundidas pedir perdão ao animal caçado e
Em tronos decorados, reclinando-se neles ... em torno de-
les caminharão os jovens que nunca terão mais idade, com abatido, e até mesmo a uma planta colhida, para evi-
tacinhas e ânforas e copos de bebidas puras .. , E as frutas tar a culpabilização posterior. Nos sacrifícios gregos, a
que lhes apatecerem ... E bananeiras (com frutas), uma vítima tinha de ser vista "consentindo" com seu assas-
sobre a outra ... E frutos abundantes .... E os frutos dos sínio. ll Por outro lado, as frutas são oferecidas pela
doisjardins estarão ao alcance da mão ... E para eles, nes- própria natureza para que sejam comidas, de tal sorte
se local, estão todos os frutos e a proteção de seu Deus ...
E todos os frutos serão dispostos próximos [deles] sendo que a semente que há dentro delas, ao ser descartada
fáceis de pegar. 9 ou eliminada intacta depois de passar pelo trato ali-

8 Referências bíblicas ao longo deste texto foram extraídas da Bíblia de On Abstinence fram Animal Faad, pp. 658S e 1468S.
10
Jerusalém, Paulus, São Paulo. Ver Marcel Detienne e Jean-Pierre Vernant, The Cuisine af Sacrifice
11
9 The Qur'an, 56, 55, 47, 76. Amang the Greeks, p. 9.

48 49
mentar, possa então encontrar outro local adequado presumivelmente para outorgar a dádiva da fertilida-
para crescer. de. Também Eva, a mãe de todas as criaturas, deve ter
sido um dia essa senhora do pomar divino. Na antiga Itá-
Se nos omitíssemos de colhê-las, [as plantas] espontanea-
mente deixariam seus frutos cair ao solo. Colher as fru- lia, havia uma deusa das frutas conhecida como Pomona,
tas, ainda, não é um ato seguido da destruição da I?la:t;J-t~, que tomara por amante um deus misterioso chamado
como acontece com os animais que perdem seu prmcIpIO Vertumnus, de origem toscana, associado, pelos romanos,
vital. 12 com o ano vindouro, e com isso a união tornava-se capaz
de uma fertilidade sazonal. A história desses persona-
Por esses motivos, a fruta é a mais inocentement.e gens é contada por Ovídio em seu Metamorfose. No jar-
comestível das substâncias. Ela também pode ser colhI- dim sumério dos deuses, senta-se Siduri, a senhora das
da em estado bruto e geralmente comida crua, portanto vinhas e quem faz o vinho. Também se diz que a maçã, o
seu consumo não implica necessariamente em processos figo e a uva eram presentes de Dioniso, que abrange o do-
laboriosos. A fruta madura pede para ser colhida e comi- mínio da fertilidade desde a natureza inculta até a arbori-
da, e promete uma satisfação imediata sem que haja es- cultura, a viticultura e a produção do vinho gerador do
forço ou conflito. êxtase.
Talvez pode ser que, enquanto os homens caçavam, O termo "maçã" (apple) não tem aqui uma defini-
as mulheres - coletoras - eram as encarregadas ção botânica. Várias espécies escondem-se atrás dos
das árvores frutíferas. De qualquer modo, o jardim pa- mitos com a maçã. Em diversas línguas européias mo-
radisíaco com seus frutos era ancestralmente governado dernas, como no grego antigo, essa palavra poderia ser
por uma deusa. 13 Exemplos disso são Nêmesis, .em sua usada para fazer referência a qualquer fruto grande e
capacidade de deusa do sagrado pomar, e especIalmen- arredondado. Esse significado estendido se reflete em
te Afrodite, aqui mencionada em um poema de Safo: termos tais como o inglês "pineapple" (pomme de pin, em
Desde Creta até aqui, para mim, até este t~mplo sagrado, francês); "maçã do amor" (love apple), o termo original
onde está sua sagrada plantação de macieIras ... Neste lo- em inglês para tomate (em italiano pomodoro; em fran-
cal a água fria rodopia em volta dos galhos de maçãs, e o cês, pomme de terre, ou batata). A "maçã" de Afrodite
jardim é todo sombreado pelas rosas.l 4 pode muito bem ter sido o marmelo. No caso da "maçã"
bíblica, a escolha da tradução pode ter sido influencia-
As maçãs eram consideradas uma oferenda ,a~ro­ da pela coincidência em latim das duas formas da pala-
priada à deusa do amor. As maçãs de ouro das Hesperld~s vra malum, uma que significa "mau, ruim" e a outra,
(as três filhas da Noite) cresciam numa árvore que Gala "maçã". Na tradição judaica, tem-se especulado que o
dera de presente a Hera por ocasião de seu casamento, fruto da árvore do conhecimeto foi um figo. A maçã do
mito é o summum bonum dos frugíveros primatas habi-
12 Porfírio, On Abstinence from Animal Food, p. 71. . tantes das árvores, uma fruta grande, redonda e dese-
13 Ver Robert Graves e Raphael Patai, Hebrew Muths: The Muths ofGenesls,
javelmente reluzente, ressaltando por entre as folhas a
p.80.
14 D. Page, trad., Sappho and Alcaeus, p. 34. prometer doçura.

50 51
o termo "fruta" vem do verbo latino fruor, que signi- Levou-me ele à adega
e contra mim desfralda
fica "ter à própria disposição, usufruir de", e por exten- sua bandeira de amor.
são "desfrutar, encontrar prazer em, deliciar-se com". Sustentai-me com bolos de passas,
A fruta úmida e arredondada da deusa da maçã dai-me forças com maçãs, oh!
encarna a fertilidade, a sensualidade, a sexualidade, o pra- que estou doente de amor...
zer, o desejo. Era um antigo costume dos casais atenienses
repartir uma maçã assim que entravam na câmara nupcial, o sonho seguinte ocorreu a Zoe, que havia passado
como Zeus e Hera devem ter feito para desfrutar do pre- por um longo e muitas vezes doloroso processo analítico.
sente de casamento dado por Gaia. Segundo Ad de Vries, Repetidamente havia sido varrida por estados de cólera,
"em muitas partes da Europa, as árvores se tornam frutí- desespero e medo de ser abandonada. Lentamente, essas
feras (sic) quando seus primeiros frutos são dados a uma emoções foram se abrandando conforme foi conseguindo
mulher grávida."15 Da mesma forma como a árvore a ali- constituir um eixo interno mais firme, e a vida, enfim ,
menta, então, de certo modo, ela também deve alimentar tornou-se-Ihe muito mais controlável. Contudo, sentia
a árvore com alguma parte de sua fertilidade. Desse modo, falta da antiga intensidade que experimentara quando
desenvolverá um relacionamento com a árvore, e esta re- fora menos capaz de refletir e sentia receio, por isso, de
presentará algo que cresce em sua própria psique e em que a vida pudesse vir a se tornar um tanto tediosa.
cuja direção ela direciona a energia psíquica. A árvore de Estava sentada, recostada em uma árvore, chorando. Es-
sua vida é incentivada a prosperar, ela que também é uma tava em uma floresta que um incêndio havia destruído
fruta contendo uma semente. Nana, a mãe ninfa de Attis, em melO. aos destroços carbonizados de troncos de árvore'
concebe ao colocar em seu seio uma amêndoa ou romã enegrecidos e tocos de plantas chamuscados. Uma risada
madura; essa fruta vinha da árvore que tinha brotado dos cristalina me atravessou e vi de relance uma Mulher Sel-
vagem que, descalça, saltitava dentro daquela mata mor-
vários genitais masculinos do andrógino Agditis (Cibele). ta. Corri atrás dela. Ao me aproximar, ela se escondeu
Quando Perséfone perde sua inocência de menina o acon- atrás de uma árvore, reapareceu e depois sumiu de novo.
tecimento é selado no momento em que ela come uma se- Brincando de ir traçando algum caminho pela mata ela
mente de romã dada por Hades. Menos doce que a maçã me provocava a segui-la, sumindo rapidamente de vista,
ou a romã, mas apaixonadamente vermelho, o tomate (an- reaparecendo, e todo o tempo rindo - me provocando a ir
adiante. Chegamos a uma clareira muito iluminada onde
tigamente "maçã do amor"), às vezes irrompe nos sonhos erguia-se uma figueira majestosa: viçosas folhas verdes
modernos para sugerir a flechada do amor. No Cântico dos abriam-se em ramos que se curvavam ao peso de frutos
cânticos (2,3-5) lemos: maduros e convidativos. A Mulher Selvagem colheu um.
Comeu-o lentamente, com total concentração, deleitando-
Macieira entre as árvores do bosque, se com o sumo, que lhe escorria pelo queixo - numa cele-
é meu amado entre os jovens; bração de sensual deleite.
à sua sombra eu quis assentar-me,
com seu doce fruto na boca.
A Mulher Selvagem, a mulher natural que é inimiga
15 Dictianary af Symbals and Imagery, verbete "Fruto".
dos valores patriarcais, tem sido uma figura recorrente

53
52
nos sonhos dessa paciente, com seu espírito livre e sua Quando a mãe bruxa aparece para seduzir Branca de
ligação com a lua, mas antes ela havia evidenciado um Neve, que agora está vivendo com os sete anões, e levá-la
lado assustador, uma cólera violenta, época em que a so- à ruína, ela assume a forma de uma velha que enga-
nhadora não era capaz, ou não tinha vontade, de rela- nosamente está distribuindo coisas atraentes. Ela apa-
cionar-se com ela. Agora, a atitude da sonhadora ti~h~ rece três vezes, e a cada uma Branca de Neve é induzida
mudado, permitindo à mulher selvagem tornar-s~ sua lllI- a comprar alguma mercadoria que parece atraente, mas
ciadora e guia, mostrando ludicamente o caml~ho que que tem efeitos nefastos. A terceira e mais poderosa é a
conduz até a árvore da vida em sua eterna capacIdade de maçã envenenada. De fora parece adorável, branca de
dar frutos, e demonstrando a suculenta d~çur~ que e~tá bandas vermelhas, e qualquer que a veja logo a quer, mas
ao seu alcance. Entre as árvores, a figueIra e especIal- quem a morde está fadado a morrer. Na realidade, é o
mente abundante, produzindo frutos quatro vezes por .ano, lado vermelho que contém o veneno, e para vencer a re-
desde que observadas as condições corretas. PenseI em sistência de Branca de Neve a malvada rainha corta a
outra passagem do Cântico dos cânticos: maçã pela metade e come a parte branca. Branca de Neve
morde a metade vermelha; a porção envenenada se aloja
Vê o inverno: já passou! em sua garganta e ela entra num estado de coma letal. É
Olha a chuva: já se foi! deitada num caixão de vidro para mais tarde ser acorda-
As flores florescem na terra,
o tempo da poda vem vindo, da do sono da morte pelo príncipe.
e o canto da rola A maçã que Branca de Neve acha irresistível tem
está-se ouvindo em nosso campo .. . um apelo profundo e universal. Está repleta da natural
Despontam figos na figueira ... (2,11-13) doçura da vida; é como a própria Branca de Neve, em sua
alva inocência tingida pelo rubro da paixão. Um contato
Zoe lembrava-se de ter estado na mata da África do com o sabor do desejo apaixonado e o coma se instala. No
Sul com um amigo que tinha comentado que estava na desenvolvimento da consciência feminina, quando o elo
época de incêncio na mata, e que isso era ne~ess~rio p~ra com a mãe positiva não existe, o contato com a vida em
a renovação do crescimento. A floresta onírica ~lll~a ~Ido toda sua plenitude é hesitante, temeroso e carece da orien-
enegrecida pelos fogos devastadores da emoçao, lI~Clll~­ tação que um bom instinto seria capaz de fornecer.
rando os detritos e purificando-se no calor da calcmatw O que acontece com Branca de Neve acontece com
alquímica e agora, quando tudo à sua volta parecia negro muitas jovens mulheres. Ingênuas e inundadas de um
e a sonhadora se lamenta, em meio às suas lágrimas, o ardente desejo de amar, estendem os braços na direção
som de um riso faz com que ela se levante para ir ver à de um objeto inadequado. O problema é que elas são in-
luz a verde exuberância (viriditas) e a fartura de frutos capazes de distinguir entre esse eros que brota da neces-
da árvore aparentemente indestrutível. sidade da alma de rumar na direção de um relaciona-
No famoso conto da Branca de Neve, a mulher doa- mento entre parceiros de igual estatura psicológica, e o
dora de vida que presenteia com frutos é revestida de as- regressivo anelo de vivenciar novamente o amor mater-
pecto sombrio assumindo o papel da madrasta malvada. nal, com sua dependência do parceiro. Seu desejo está

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fadado a não ser satisfeito. Sua paixão está repleta de- Que vida assombrosa essa a que tenho!
mais de desapontamento para vingar. Fica engasgada em Maçãs maduras caem sobre a minha cabeça;
Exuberantes cachos de uva
sua garganta, indigesta e a paralisa, alijando-a do mun- Sobre minha boca espremem seu vinho;
do como se se interpusesse uma folha de vidro entre ela e A nectarina, e o curioso pêssego,
a vida. A perspectiva de ser novamente ferida é por de- Colocam-se sozinhos nas minhas mãos. 16
mais aterrorizante; ela prefere não sentir mais nada.
Somente depois de um longo período de dormência, e sem Em contraste com essa bênção frutífera, Tântalo é
estar mais sequer atiçada para buscar o que deseja ou atormentado por Tártaro com galhos carregados de ma-
sem mais saber o que é isso, é que os processos que se çãs, peras, romãs, figos e azeitonas, sempre fora do seu
desenrolam nos bastidores do inconsciente, personifica- alcance; seu inferno é o paraíso ao contrário.
dos na história na figura do príncipe, voltam a atraí-la Comparações com frutas são comuns nas descrições
para a vida, finalmente livre da tormentosa influência eróticas do corpo feminino, suave e arredondado, macio e
da mãe negativa. firme ou carnudo, reluzente, suculento; seios como pês-
Na mitologia grega, conta-se a história de Atalanta segos e mangas; maçãs do rosto, lábios de cereja; natu-
que cresceu sob a proteção da deusa virgem Ártemis. ral, intacto, fonte de prazeres, sedutor, voluptuoso. "Teus
Haviam-lhe dito que ela nunca seria feliz no casamento, templos são como um naco de romã", "teus seios [são como]
e então diz que só se casará com o homem que correr cachos de uva" (Cântico dos cânticos, 4,3; 7,7). No imagi-
mais do que ela, na crença de que ninguém conseguirá nário inglês, NelI Gwynne, com sua cesta de frutas e seu
fazê-lo. Mrodite, famosa por sua aversão ao celibato, dá colo convidativo, tornou-se um ícone, um prato tentador
a um candidato a mão de Atalanta - chamado Hipomenes para o rei: ''Venha comprar minhas doces laranjas!" San-
- três maçãs de ouro que ele joga no caminho dela, du- to Agostinho igualava pecado a sexualidade porque ha-
rante a corrida. Atalanta pára para pegar as maçãs e via uma perigosa autonomia na excitação sexual, e por-
Hipomenes a supera. Com isso, a eterna ligação de que o sexo é o meio biológico de transmissão da vida e
Atalanta com a molecagem infantil, inspirada em Artemis, das características de uma geração à seguinte, mas as
é superada e ela se sente instigada a entrar no relaciona- associações pagas com a maçã também contribuíram sem
mento, embora sua breve felicidade seja interrompida pela dúvida para suas formulações. Desse modo, o cristianis-
concretização da profecia. mo fez uma oposição entre os valores do espírito e o que é
Outro fruto relacionado com Mrodite e, como a maçã, natural e sensual; o erótico e afrodisíaco tornaram-se o
associado também à fertilidade e aos prazeres da sexua- fruto proibido.
lidade, é o pêssego. De acordo com o ervanário inglês O jardim da deusa, aquele vale feliz dos sonhos em
Nicholas Culpeper, ele torna quem o come propenso à las- que as frutas estão se oferecendo livremente, pode,como
cívia. O poeta inglês do século XVII, Andrew MarvelI, sugeri, ser um lugar perigoso. Ele encontra seu eco na
transmite em seu poema "O jardim" algo do pomar divi- lerida medieval da Terra de Cockayne, da qual existem
namente sensual em que a abundância da deusa está
gratuitamente disponível a todos: 16 SeZected Poems, p. 42.

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várias versões, e segundo uma delas, as casas são feitas ao rei, a maçã ou o galho da macieira assegurariam sua
de açúcar de cevada e bolos, de anchovas ou presunto, e entrada no Elísio. Robert Graves sugere que, etimo-
as ruas pavimentadas de biscoitinhos, e onde os animais logicamente, o nome Campos Elíseos significava original-
giram por si mesmos nos espetos. Claro que esse não é o mente pomares de maçãs,17 e certamente isso é verdade
paraíso natural, mas um ambiente fantástico de bens para Avalon, a macieira paradisíaca até onde o mortal-
culturalmente sofisticados, uma fantasia nascida da fome, mente ferido rei Artur é levado e que servia de residência
para compensar a lúgubre presença da Mãe Terrível - para a deusa Morgana. Avalon é uma versão do paraíso
ou um lugar de dependência, onde permanecer apegado irlandês EmainAbhlach (Emain das Macieiras), uma ilha
é evitar a tarefa de desenvolver a consciência. A casa de onde cresce uma grande árvore que dá frutos e flores ao
pão de gengibre com janelinhas de açúcar, da história de mesmo tempo.
João e Maria, que se desenrola contra um pano-de-fundo A maçã é o fruto da árvore da vida eterna, ou, nos
de escassez radical de alimentos, é um eco da Terra de mitos nórdicos da deusa Idun, o alimento que preserva a
Cockayne, assim como o é uma canção da década de 50, eterna juventude dos deuses. O fruto da eternidade é,
escrita por Burl Ives, e intitulada "The Big Rock Candy muitas vezes, revestido da incorruptibilidade do ouro.
Mountain" (A grande montanha de torrão de açúcar): N a mitologia egípcia, o fruto da imortalidade era o
figo ou a tâmara, doados através da árvore da vida por
Oh! o zumbido das abelhas Hator ou Nut, como Senhora da Tamareira, para regene-
N as árvores de cigarro
A fonte de água gaseificada rar os mortos. Na China, um simbolismo semelhante está
Onde a limonada jorra vinculado ao pêssego, que é um emblema do casamento e
E canta o azulão símbolo da imortalidade e da primavera. O pessegueiro
N a grande montanha de torrão de açúcar! cujo fruto confere imortalidade cresce nosjardins da deusa
Hsi Wang Mu, a Real Senhora do Ocidente, que habita
Oh the buzzing of the bees nas montanhas K'un Lun, às vezes identificadas com o
ln the cigarette trees
The soda water fountain,
monte Sumeru, centro do universo. O pêssego é um im-
Where the lemo nade springs portante ingrediente do elixir da imortalidade dos alqui-
And the bluebird sings mistas taoístas, e o deus da longevidade é geralmente
On the big rock candy mountain! imaginado como criatura que emerge de um pêssego. Os
poderes de proteção são atribuídos à madeira do pesse-
Eis uma imagem da eterna infância, de ganhos que gueiro e à pedra do pêssego, amuletos que são confeccio-
não custaram dores. nados da fruta. 1S Também se diz que, em uma das ilhas
Mas a maçã também é o fruto que, como presente da chinesas do Blest, os santos partilham amoras, e a fruta
deusa, confere imortalidade após feitos heróicos de cus-
tosa consecução, por habilidades poéticas e pela sabedo-
17 The White Goddess, p. 254.
ria. Por isso é que uma das tarefas de Hércules é roubar 18 Ver C.A.S. Williams, Outlines of Chinese Symbolism and Art Motives;
algumas maçãs de Hera, dojardim das Hespérides. Dada verbetes "Pêssego," e "Hsi Wang Mu."

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da sorveira e a avelã são também frutas da imortalidade refrigério para a alma e de sementes de um potencial futu-
dentro da tradição celta. ro. Para uma mulher, a senhora do pomar pode também
Os alquimistas freqüentemente comparavam seu ser uma imagem do Si-mesmo que dê frutos. Ao inquirir
misterioso trabalho, que Jung identificava com o proces- de sua psique o que ela precisava para desemaranhar o
so da individuação, com a árvore. O fruto da árvore nó que sua vida tinha se tornado, uma mulher que sofria
correspondia ao objetivo do trabalho, a Pedra filosofal ou de uma dolorosa compulsão recebeu a seguinte imagem:
o ouro verdadeiro, num determinado caso transposto para "Sento-me no gramado de um jardim, e uma mulher vem
a imagem de um sol radiante pendido de uma árvore como e me oferece morangos."
uma maçã de ouro. 19 O fim está no começo, e o começo no fim, mas entre
O paraíso primordial não é a natureza selvagem, mas ambos os pólos está todo o histórico do empenho humano,
umjardim, originalmente umjardim murado, um espaço que envolve a expulsão do paraíso. Tentar voltar a ele pela
interno, onde a natureza está casada com a ordem, em regressão é renunciar ao tra~alho da evolução consciente
paz consigo mesma, e é cuidada por mãos invisíveis. Os que deus (ou deusa) enviou. E estar preso à saia da mãe,
opostos são mantidos em equilíbrio, nada é excessivo ou cuja comida pode envenenar ou pôr para dormir. Mas a
dissonante; é o estado de equilíbrio que existia antes de deusa do pomar também é a inspiradora, aquela que abre
nosso caos, e que pode eventualmente voltar a existir, a mente, a iniciadora que conduz o herói à frente, prome-
quando tivermos aprendido a cuidar de nosso própriojar- tendo-lhe o casamento divino após muitas tentativas,
dim interior. Na Idade do Ouro não havia distância entre nutrindo certos objetivos e ideais; ela é Eva, que conduz
natureza e cultura; a terra produzia naturalmente o ali- Adão ao conhecimento do bem e do mal, separando em
mento que parecia ter sido cultivado. O fruto é o produto metades a unidade inconsciente original. Os conflitos que
final de um processo de crescimento, da maturidade, da brotam do desejo produzem consciência, pondo-nos em con-
plenitude do tempo ("por seus frutos nós vos conhecere- traposição à ordem natural das coisas. Após a ingestão
mos"), e ao mesmo tempo contém a semente do novo. A desta maçã não existe mais nenhum almoço grátis, mas
rotundidade da maçã indica a integralidade do início e a mesmo em meio a toda sua solitária empreitada o herói
inteireiza do fim, a esfera perfeita do Um. Nos sonhos, pode vislumbrar novamente a mão dela estendida a ofere-
um fruto redondo pode representar o que Jung denomina cer a maçã, dourada pela luz da consciência.
de o Si-mesmo em toda a sua naturalidade nutricional, O doce fruto - maçã, pêssego, figo, uva - é a divina
uma imagem de nossa integridade. força de vida em toda a sua alegria; o amor, a consuma-
Uma mulher sonhou que, finalmente, tinha saído do ção, a fascinação da alma, a promessa do casamento divi-
lar dos pais com tudo o que isso implicava em termos de no, a meta e a recompensa derradeiras. O fruto da árvore
se libertar do poder das "neuras" herdadas e das impres- do conhecimento ou a imortalidade, transforma radical-
sões deformantes de sua criação, e de, enfim, chegar a mente e a história do Gênesis acentua que comer é o fa-
ser si mesma. Ela estava carregando um melão, cheio de tor decisivo; comer é a iniciação. O que estava fora está
dentro, agora; cruzou o limiar dos lábios e tornou-se incor-
19 Ver Jung, ''The Philosophical Tree," Alchemical Studies, oe 13, esp. par. 404.
porado. A eternidade - ou discriminação e conflito - é
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assimilada, encarnada. No seu caso,Adão e Eva tornam- téria vegetal, uma espécie de intensidade, o poder da vida
se mais humanos por meio de sua nova capacidade de animal muscular capturado no calor da caça. O termo
consciência. No caso do herói, ele abraça a eternidade e a "carnudo" significa alguma coisa concentrada, uma es-
consciência heróica retorna ao Si-mesmo. Em ambos os sência desprovida de revestimentos supérfluos.
casos, quem come da substância é irrevogavelmente mo- A maioria dos caçadores-coletores torna-se especialmen-
dificado. te excitada quando entra carne em seu campo, porque,
Visualizamos o paraíso com seus frutos como algo como muito rapidamente podem lhe dizer, "tem um sabor
que existe no passado mítico, ou que vem a existir depois gostoso." Mas, talvez, a razão seja mais profunda e tenha
de encerrada uma existência desgastante, mas em toda a alguma ligação com o espírito da vida que a carne teve
antes, e que falta às plantas. É significativo que os chim-
sua radiante prontidão o fruto maduro está pleno de panzés consumam suas ocasionais refeições à base de car-
imediaticidade, impressionando-nos - se pudermos ne de modo muito diferente de seus hábitos normais de
entendê-la, com a idéia de que o paraíso pode estar muito alimentação. Um observador na Reserva do Rio Gombe
mais perto do que pensamos, talvez inclusive ao alcance viu uma vez um grupo de chimpanzés passar o dia todo às
de nossas mãos. voltas com a questão de repartir e comer o corpo de um
bebê de macaco que não podia certamente, pesar mais do
Um viajante percebeu que estava sendo seguido por um que alguns poucos quilos. Esse tipo de atenção despropor-
tigre. Correu muito, com o tigre no seu encalço, e quando cional à ingestão da carne é comum entre nossos primos
justamente não estava mais conseguindo avançar chegou símios. 21
à beira de um precipício. Jogou-se pela borda, agarrando-
se a algumas raízes, na esperança de que assim consegui- Têm sido levantadas várias conjecturas a respeito
ria descer. Ao olhar para baixo, viu para seu imenso deses- das ligações entre comer carne, usar instrumentos, ter
pero outro tigre, a olhá-lo lá em cima. Enquanto estava
agarrado nas raízes, rezando para que um dos tigres de- habilidades para a caça, o aumento no tamanho do cére-
sistisse e fosse embora, ele viu que dois camundongos, bro e a inteligência. Certamente, o desenvolvimento de
um preto e outro branco, estavam roendo as raízes que o novas habilidades para corresponder a exigências de uma
sustentavam. Naquele mesmo instante, obervou um mo- nova fonte de alimento foi um fator imensamente impor-
rango maduro que estava bem perto dele. Estendeu a mão tante para a evolução humana. As árvores frutíferas fi-
para pegá-lo e comeu-o. Foi uma delícia. 20
cam em pé paradas, mas os animais de grande porte têm
de ser vencidos com astúcia, valendo-se de estratégias,
onde antes apenas o poder muscular, os dentes e as gar-
Carne, poder e dor ras eram as ferramentas necessárias.
Elaine Morgan tem enfatizado em seu The Descent
Deixando o jardim, ou a floresta, saiamos agora a ofWoman (A descendência da mulher) que a história do
campo aberto e contemplemos o fruto da grande caçada. "homem como caçador" refere-se essencialmente ao ele-
A carne tem uma qualidade totalmente diferente da ma-
21 Richard Leaky e Roger Lewin, People of the Lake; Man, His Origins,

20 História zen, fonte desconhecida. Nature and Future, p. 199.

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mento masculino da espécie. Se a fruta tem algumas igualmente a excitação de se correr riscos e a sede de
nuances femininas (jardim, deusa, amor, mãe como local sangue. Geralmente, a caça é vista como um treinamen-
de origem), a carne tem associações masculinas, especial- to básico para a guerra. A consecução de objetivos, de tanta
mente a carne vermelha ("homens de verdade não comem importância para a psicologia masculina, teve um pro-
torta"). O poder muscular masculino é o bolo de carne, longado treinamento nos procedimentos de perseguição
alta proteína. Nas sociedades de caça e cole ta de alimen- e caça.
tos, os homens são em grande medida os responsáveis A carne alimenta o herói, lhe dá algo em que cravar
pela caça e as mulheres concentram-se na coleta, o que os dentes. Ao longo de toda a Ilíada, sempre que os guer-
lhes permite manter por perto as crianças. Filhos peque- reiros comem, é da carne assada que se servem. Quando,
nos certamente seriam um impedimento em expedições por exemplo, Pátroclo, sob comando de Aquiles, deposita
de caça, além de poderem também correr perigo, e seu diante de Odisseu e Ajax alguns alimentos, apresenta "o
longo período de imaturidade torna cada criança um enor- lombo de um carneiro, um bode gordo, e o traseiro de um
me investimento. porco gordo, rico em toucinho",23 que a seguir Aquiles
Para nossos parentes mais próximos, os chimpan- empilha, retalha e assa em espetos. Ocasionalmente, o
zés, a caça também é uma ocupação basicamente mascu- pão também é mencionado, e em uma oportunidade (li-
lina, embora as fêmeas ocasionalmente unam-se nas ex- vro 11) o idoso Nestor e o combalido Machaon recupe-
pedições de caça. Desde os tempos das pinturas rupestres ram-se com um ensopado, mas, afora isso, só há citação
do período paleolítico, quando o deus de chifres regia a de carne. Em certa altura, Agamemnon, líder da armada
caça, até as brigas de galo na Escócia nas quais paga-se grega, insufla seus homens dirigindo-lhes as seguintes
pelo privilégio de assistir, são os homens que vemos nes- palavras:
sas situações, com paus, lanças, arcos e flechas ou ar-
E quanto às bravatas indolentes que vocês declararam,
mas. Entre os pigmeus Mbuti da floresta Ituri, daquela vez em Lemnos, enquanto se empanturravam da
o pai atencioso fará um pequeno arco para seu filho, e carne do gado de chifres retos e bebiam das taças trans-
bordando de vinho?24
flechas de madeira macia, com pontas cegas. Também pode
dar-lhe uma tira da rede de caça. A mãe irá deleitar-se e
deliciar a filha ao tecer para ela miniaturas de cestas para Bravura e alegações de bravura condizem com o ape-
o transporte de variados itens. 22 tite heróico, carnívoro. Ateneu, autor do século II d.e. de
Deipnosophistae (O banquete erudito), oferece seu pare-
Também existe uma forte ligação entre caça e inicia- cer a respeito do fato de os heróis de Homero só se ali-
tivas de guerra, essa outra atividade prerrogativa dos mentarem de carne: a limpeza e o preparo de peixes era
homens, que também necessita de força física e muscula- uma tarefa complexa e basicamente feminina, inadequa-
tura desenvolvida, uso de armas, expedições em grupo, da para heróis. As investidas na batalha pela conquista
operações coordenadas e disciplinadas, e experimenta
23 Homero, Iliada, livro 9.
22 Colin Turnbull, The Forest People, p. 114. 24 Ibid., livro 8.

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de Tróia são freqüentemente descritas em metáforas de a ser totalmente cumprida, uma ausência de tranqüili-
perseguição a animais: dade futura, nenhum pomar celestial.
O poder muscular do homem e o heroísmo de guerra
Menelau... era como um leão recuando de um terreiro
quando está cansado de se encurralar entre os homens e ainda estão associados com um bom apetite para carne.
os cães, que a noite toda permaneceram acordados para Enquanto escrevo esta seção, vários reféns das Nações
salvar os mais cevados de seus bezerros das garras do Unidas foram libertados pelos sérvios da Bósnia. O pri-
predador. Em sua fome de comer carne, ele os ameaçou e meiro grupo de homens, a mídia sentiu que era impor-
contra eles investiu, mas sem sucesso. 25 Os troianos ago- tante nos informar, foi recebido como heróis que regres-
ra atacam em bando o navio como leões comedores de
carne. 26 sam e servidos com um desjejum de bifes de vaca, e o
segundo com um cardápio de desjejum composto de "sopa
Como um cão de caça que perseguiu um cervo desde seu de carne, carne de vitela assada, carneiro assado e bata-
esconderijo nas montanhas ... o ágil Aquiles ... 27 tas assadas."
Caçar ou ir à guerra requer as qualidades autocon-
Massimo Montanari, em seu livro The Culture of fiantes de um homem que se emancipou da mãe. Ele não
Food, descreve a ênfase sobre o lutar, caçar e consumir é mais um menino, mas um defensor e provedor que pode
heróicas quantidades de carne como um traço significati- "trazer o toicinho para casa". Um homem com problemas
vo das tribos do norte que se tornaram as forças domi- de dependência que não alcançou satisfatoriamente esse
nantes da Europa, após o colapso do império romano. O estágio, e que esperava da esposa (que normalmente faz
grau em que essas atividades eram valorizadas por si .
o supermercado) que funcionasse como sua mãe, foi des-
mesmas pelos povos germânicos é ilustrado, em sua mi- cnto por ela como regularmente comprando carne no açou-
tologia, pelo equivalente dos pacíficos Campos Elíseos dos gue para que ela a preparasse, como se assim estivesse
gregos e do Avalon dos celtas. No Valhalla, saguão dos pedindo que ela reconhecesse sua masculinidade.
abatidos, os heróis mortos aguardam o dia em que irão A história dos Irmãos Grimm, João de Ferro, que
juntar-se aos deuses em sua luta contra as forças da des- fala do processo por meio do qual a consciência masculi-
truição em Ragnarok, quando o domínio dos deuses está na se liberta da sabotadora influência da mãe, mostra a
fadado a encerrar-se. Eles passam seus dias no após-vida função e o simbolismo da caça e da ingestão de carne nes-
lutando e guerreando entre si, retalhando-se aos peda- sa façanha. Aos 2 anos, João sai para a floresta com sua
ços, antes de retornar para festejar com a carne do javali mãe quando são capturados por assaltantes e levados para
Saehrimnir, que é abatido e cozido diariamente, e toda uma caverna onde ficam presos. Ali eles ficam até que
noite revive. Parece que, nessa sociedade, a luta heróica João, ainda com menos de 12 anos, desafia e derrota o
era um fim em si mesmo, uma tarefa que nunca chegava assaltante com seu porrete; os dois então voltam para
casa com despojos do covil dos ladrões e reúnem-se ao tão
25 Ibid., livro 17. querido pai. Depois de reconstruir a casa da família com
26 Ibid., livro 15. seu pai e de aprender a arar, João pede ao pai que lhe
27 Ibid., livro 22.
faça um bastão para caminhadas e parte rumo ao pró-
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prio destino. Na floresta, torna-se amigo de duas criatu- O início da história descreve uma situação típica em
ras gigantescas, a quem tinha primeiro escutado traba- que o menino, aprisionado no complexo materno (a caver-
lhando no meio da mata; ao primeiro dá o nome de Torce- na/útero da terra) atende os assaltantes (com sua energia
pinheiros, porque ele trança cordas com fibras que retira psíquica independentemente disponível), até rebelar-se
dos pinheiros, e o outro ele chama de Racha-pedras, por- contra essa limitação interna e estabelecer uma relação
que ele quebra as rochas para com elas construir. O trio construtiva e funcional com o pai e desenvolver novas ha-
formidável se instala num castelo deserto, onde João é bilidades. Depois, ele passa para uma fase de maior
atacado por um javali. Ele o golpeia com seu porrete até autoconfiança, auxiliado pelo porrete que corporifica a
que morra e, com seus companheiros, assa-o num espeto. tão necessária autoridade paterna, e pela força nua e crua
Os três então concordam que, a cada dia, dois deles desse instrumento, que é o recurso primitivo do poder
devem ir caçar e um ficar para assar a carne, num total masculino. Agora, novas e valiosas capacidades emergem
de 4,5 quilos por homem, por dia. Enquanto cozinham, d~s trevas da floresta indomada do inconsciente, perso-
Torce-pinheiros e Racha-pedras são ambos acossados por mficadas como Torce-pinheiros e Racha-pedras, os quais
um anão que exige que eles lhe dêem comida; quando conseguem combinar e separar o que a natureza oferece
esta lhe é negada, o anão dá-lhes uma surra. Quando é a de tal modo que seja possível converter esses recursos
vez de João na cozinha, e ele está justamente pegando o em função de usos deliberadamente concebidos. No iní-
caldeirão, o anão aparece de novo. Por duas vezes, João cio, toma consciência de sua presença ao recolher os sons
consente com o pedido do anão e lhe dá um pouco de car- da atividade que executam. Depois, ele os enxerga, des-
ne, mas na terceira ele se recusa a fazer o mesmo. O anão cobre no que estão envolvidos e o valor dessa atividade e
ataca, mas João revida e vê o anão desaparecer por um lhes confere nomes. '
buraco no chão. Denominar é algo que confere poder; quando estamos
Os três companheiros regressam a esse local e João apenas vagamente cientes de uma tendência e não con-
e seu porrete são descarregados lá embaixo por meio de seguimos denominá-la, é muito mais difícil lidar com ela.
uma cesta. O anão está tomando conta de uma princesa A personalidade consciente (João) é incrementada ao as-
acorrentada. Depois de matar o anão, João consegue que similar esses poderes adicionais da atividade dotada de
seus amigos retirem a princesa, valendo-se da cesta que propósit~ - mas, como depois se evidencia - estão ape-
trazem para cima. O próprio João agora deveria subir, nas parcIalmente sob controle consciente e voltam a agir
mas, desconfiado, coloca seu porrete na cesta em vez de de maneira autônoma no final da história. As qualidades
ele mesmo entrar. Os outros dois deixam a cesta despen- que haviam trabalhado para ele voltam-se então contra
car, e imediatamente João toma um anel do dedo do anão ele e devem ser subjugadas.
morto, e usando-o consegue convocar os espíritos do ar No momento em que João está começando a estabe-
que lhe dizem Dnde se localizam seus antigos companhei- lecer sua independência, ele é atacado pelo javali, o qual
ros. Com a ajuda desses espíritos, ele os alcança num ameaça dar um fim prematuro à sua aventura. O javali é
bote, golpeia-os com seu porrete, joga-os na água, e leva o aspecto masculino agressivo da porca mãe instintiva,
a princesa para casa e depois se casa com ela. naturaL Constitui uma ameaça letal à consciência herói-
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ca que busca extrair alguma autonomia para si mesma diosas, tornam-no vulnerável: "Posso corresponder a isso?
ao romper com os elos do instinto. Talvez seja melhor eu voltar para casa." A conquista da
O bastante difundido motivo da caça ao javali é ex- escolha independente e da responsabilidade corre risco
plorado em ricos detalhes por John Layard em A Celtic de ser perdida.
Quest, uma poderosa análise da história de Culhwch e Após sua primeira noite no castelo, João vai até o
Olwen. O javali é "a imagem ... da natureza indignada e jardim descuidado, onde tudo cresceu além da conta, e
enfurecida por ter de ser transformada, feminina em sua que agora está numa decadência que o torna só um pouco
origem, mas em formato masculino para indicar s.u a sel- diferente da própria floresta. Ele ainda tem de aprender
vagem destrutividade."28 Atis, jovem amante de Clbele.' e a cuidar do jardim de sua alma, e prevalece o natural
em algumas versões de sua história, o favorito de AfrodIte emaranhamento do inconsciente. Aqui é onde o javali
_ Adônis - os dois brinquedinhos vivos nas mãos de arremete para furá-lo com seu chifre, parecendo aquela
uma deusa, cada qual é espetado até a morte por umja- voz interna castradora que vem do nada e imita como
vali e nunca se tornam heróis. Na mitologia egípcia, Horo papagaio as desanimadoras ordens e advertências da in-
é atacado pelo malvado Set, disfarçado de javali (a agres- fância: "Nem ouse!" ou "Melhor você parar com isso, é
são de Ísis em seu aspecto porcino) e vence, mas perde muito grande para você." Dê ouvidos a essa voz e você
um olho. Entre os bem-sucedidos matadores de javalis estará liquidado; ojavali o terá derrotado. Mas João revida
encontramos Meleagro que mata o animal enviado pela imediatamente, atacando o animal até matá-lo, com seu
vingativa senhora da floresta, Ártemis, para arrasar o sólido porrete. Ele supera a agressividade do porco sel-
reino de Caleidon, e Hércules, outro perito em porretes, vagem usando seu próprio controle assertivo do destino
que captura o javali do Monte Erimanto. que está traçando. Agora, adquiriu o direito de permane-
No meio da floresta da natureza sombria e indomada, cer no castelo.
João e seus companheiros encontram um castelo deserto, João leva o javali para dentro, assa-o e come-o com
uma construção de poder masculino, das gerações passa- seus ~ompanheiros (processando e digerindo a experiên-
das, como se aguardasse por ele. Sem dúvida é sua arro- cia). A fálica ajuda do porrete e do bastão acrescenta-se o
gância ao querer ocupar esse lugar que ,coloca João em espeto, depois que João está devidamente qualificado para
posição vulnerável ao ataque do javali. E como o eco de usar metais. Assimilar a carne do javali, prêmio por seu
uma interação de infância, quando a mãe impõe restri- heroísmo, assinala a transição para caçar por iniciativa
ções à ânsia de exploração de seu filho, usando instinti- própria; Agora, calcular, organizar e planejar são elemen-
vamente uma língua ferina para mantê-lo sob controle. tos importantes.
"Olhe, mamãe, eu sou o rei do castelo!" "Desçajá daí, seu N este momento é que a perturbadora quarta figura,
bobo!" Uma reação natural, talvez, para um menino des- na forma de anão, abre caminho às cotoveladas para pe-
regrado mas para o homem em desenvolvimento é neces- netrar no trio e exige uma imerecida parcela da carne,
sário que a desafie. Dúvidas a respeito de si mesmo, insi- prêmio dos caçadores. O anão aparece no meio do proces-
so de cozimento, que é lento, silencioso, até introspectivo
28 A Celtic Quest, p. 11. - e então vemos a introdução de um novo implemento, o

70 71
caldeirão, que significa interioridade, o remexer das coi- Qual é esse elemento inferior? Mantém a princesa, o
sas dentro. À medida que é recipiente contém nuances componente feminino não-maternal da psique masculi-
maternais, e com isso existe novo tipo de contato com a na, que Jung chama de "anima", acorrentada no incons-
boa mãe provedora. ciente, mas também leva João até ela, e torna-lhe possí-
Uma mulher que havia começado um curso univer- vellibertá-Ia e casar-se com ela. É a "anima" que permite
sitário e estava sendo arrastada por intelectualizações ao homem fazer internamente as ligações psíquicas com
desprovidas de base, teve um sonho em que havia deixa- o inconsciente e, externamente, estabelecer relacionamen-
do seu caldeirão ancestral em cima do fogão até queimar. tos reais que não se baseiam em suas necessidades de
Ela sai e é perseguida por um estudante que lembra um dependência. Ele só pode fazê-lo, no entanto, quando hou-
homem que a havia tratado violentamente. Termina num ver superado seu anseio de servir de mãe, tiver encontra-
café barato, escuro, com ele, e um político poderoso. Na do sua própria força e também reconhecido que o exercí-
discussão do sonho, ela sabia que a comida de seu caldei- cio da vontade não consegue garantir tudo. Talvez o anão
rão, que vinha do local onde estavam as raízes de sua represente alguma força ambiciosa, sedenta de poder, que
família e era daquele tipo que as suas ancestrais tinham só pensa na própria conveniência, ou tendências sexuais
usado, era mais nutridor do que o que existia no café. Ela agressivas, as quais devem ser domadas antes que a
precisava manter-se vinculada com a imagem do caldei- vinculação possa ter início. Enquanto essas tendências
rão, com remexer, para poder voltar ao seu centro e pro- forem negadas, não podem ser confrontadas, mas ao ali-
teger-se da violência e da fome de poder do homem inte- mentar o anão João outorga-lhe certa realidade, e por
lectual interior que a ameaçava, na pior das hipóteses isso consegue lidar com ele.
com a possibilidade de um estupro, e, na melhor, com o Matar o anão também leva ao controle dos prestativos
substituto barato de alguma outra pessoa para a comida espíritos aéreos, certos pensamentos alados ou intuições
feita em casa, íntegra e capaz de dar sustento. que guiam João até a princesa. Até esse ponto, a história
Sem que João perceba, o problema está sendo fer- inteira tem-se mostrado bastante pé-no-chão, próxima da
mentado. Primeiro ele é confrontado por essa questão natureza animal que produz carne, mas depois que o de-
quando está tocando no caldeirão. Até então, esteve gi- safio heróico é enfrentado, liberta-se algo de teor mais
rando no espeto a carne do instinto animal e agora está espiritual sem o qual, assim parece, o casamento não pode
realizando algumas separações, diferenciações, quando ser concretizado.
é abordado pelo anão, que em seguida se mostra como O tema da carne como o objetivo original da busca
uma figura perigosa e maliciosa da sombra, que ficou até masculina e sua ligação com libertar-se da mãe, irrompeu
aquele momento escondido no plano inferior. Como o he- em meu trabalho com Donald, um atar e escritor que veio
rói de O corvo, ele sabiamente alimenta a figura - mas para análise após anos de uma depressão que o impedia
não demais. Dá-lhe apenas carne suficiente para trazê-lo de pôr seu talento em prática. Ele tivera certo sucesso no
mais ainda até a consciência, sem, no entanto, estimular início de sua carreira, mas assim que algumas rejeições
muito sua energia. Depois, ele novamente precisa lutar lhe foram postas, ele perdeu o equilíbrio. Sua família ti-
com as próprias mãos. nha sido pobre e ele havia recebido pouco incentivo, ou

72 73
reconhecimento, da parte dos pais. Lembrava-se de que mas nem bem ele estava se experimentando nesse plano
sua mãe batia nele com freqüência, quando era pequeno, e seus feitos sólidos são desmanchados outra vez, pelas
às vezes com um sorriso sádico no rosto. Essa ruindade velhas propensões à autodesvalorização, que não queria
havia evocado seu próprio lado sádico; quando criança, deixá-lo desfrutar de suas realizações.
ele se lembrava de que jogava pedras no cachorro aca- Dividir e distribuir a carcaça era, originalmente, a
brunhado do vizinho, e esse drama desenrolava-se tarefa do caçador que, no próprio local do abate, reparti-
intrapsiquicamente no adulto, acompanhado de fanta- ria e consumiria as vísceras, as "tripas". Pode ser esse
sias e sonhos com um homem cruel e zombeteiro que o hábito a origem do uso dessa expressão para indicar as
importunava por sua covardia. virtudes masculinas da coragem necessárias ao caçador
Geralmente a carne aparecia em abundância em seus para que ele fosse eficaz, e que deve ser capaz de assumir
sonhos. Num deles, que tivera logo no início de nosso tra- riscos calculados, assim como de lidar com o golpe decisi-
balho, e que é típico de certo tema, ele está na cantina do VO. 29 A faca, instrumento essencial da carnificina, com
exército, na fila, na esperança de encontrar carne. Na seus poderes de penetração e separação, é um potente
sua vez, não tem mais. Ele me disse que muitas vezes emblema masculino. Nas sociedades caçadoras-coletoras
sonhava com carne, e particularmente com ser incapaz existentes, é geralmente o homem que abateu o animal
de conseguir carne. Mencionei que essa busca de carne quem tem a prerrogativa de dividir sua carne. Repartir
me fazia pensar no papel do homem como caçador. Ele uma carcaça grande propõe problemas específicos, e a
disse, como se uma importante verdade lhe houvesse en- natureza das divisões sociais está intimamente relacio-
tão repentinamente ocorrido: "Você está dizendo que pre- nada com esse processo. 30 Invariavelmente, a porção que
ciso ir atrás de conseguir a minha própria carne?" Con- cada pessoa recebe depende de sua posição social, ou de
centrar-se mentalmente num objetivo e ir em busca de algum procedimento igualitário, deliberadamente conce-
sua realização de maneira perseverante e metódica era bido. Essa mesma configuração contendo os elementos
precisamente o que ele sentia dificuldade em fazer. N e- homem, carne, distribuição da parte que cabe e status
cessitando sair de casa, aos 15 anos tinha entrado para o está profundamente enraizada na cultura ocidental. O
exército, rota tradicional para a masculinidade. Como o termo em latim para carne (humana ou animal), caro,
sonho estava indicando, ele ainda estava buscando a in- tem relação com o umbriano karu, uma parte ou porção,
dependência que tinha tentado encontrar na caverna. ' e com kartu, distribuição.
Num sonho posterior, Donald vai até o balcão de um Dividir em partes, separar isto daquilo, é o processo
restaurante e obtém carne. "Tinha três ou quatro tipos por meio do qual se dá o desenvolvimento da consciência.
diferentes de bifes no meu prato, mas todos eles viraram
um líquido grosso, visguento, como creme marrom." Esse
29 Ver Margaret Visser, The Rituais of Dinner, p. 228. R.B. Onians sugere
sonho aconteceu alguns dias depois de ele ter acabado de outra origem: uma vez que "miúdos" originalmente significava o coração e os
escrever uma importante peça literária, a primeira em pulmões, ele deriva o uso da identificação desta parte do corpo como sede da
coragem e do "espírito." (The Origins of European Thought, p. 69).
muito tempo. Foi preciso que fizesse um esforço heróico 30 Ver Thomas Gibson, "Meat Sharing As a PoliticaI Ritual: Forms ofTran-
para superar a resistência de forças internas negativas, saction Versus Modes of Subsistence," e James Woodburn, "EgaIitarian Societies."

74 75
Os alquimistas descreviam-no como separatio; Jung de- Como Donald, John era ator e, além disso, admirava
nominou-o diferenciação. bastante o talento pessoal de Donald. A cabeça sempre
A respeito deste tema, outro sonho de Donald culmi- foi considerada "singularmente preciosa ou sagrada,
nou em uma poderosa imagem de escultura na carne identificada com a pessoa e igualada à alma ou ao princí-
humana. Ele está olhando um amigo (John) que pratica- pio vital que a psique (em grego) parece ser."31 Para os
mente está submerso no mar. Por trás de John está uma canibais, a cabeça, especialmente de um homem forte e
figura de guerreiro samurai, num manto negro. O sonha- corajoso, tem sido especialmente valorizada por ser ca-
dor subitamente sabe que está prestes a testemunhar uma paz de oferecer a quem a come as mesmas qualidades da
execução. vítima. Como o tutano dos ossos, o cérebro constitui a
essência vital. De acordo com Platão, a cabeça foi feita
John me olhou e escancarou um sorriso bobo. Era lamen- arredondada "numa imitação da forma esférica do Todo ...
tável. Não sabia, enquanto sorria, que o guerreiro estava e é a parte mais divina, reinando sobre todas as outras
atrás dele, com a ponta de uma faca inacreditavelmente
afiada a apenas uma fração de centímetro do ponto exata-
que existem dentro de nós."32 Em sua rotundidade, a ca-
mente central de seu crânio. A faca era mantida na verti- beça significa completude e, neste sonho, o todo estava
cal, na direção do topo da cabeça de John, e o guerreiro a sendo dividido com aguda e matemática exatidão. A divi-
segurava com suas duas mãos, estendendo os braços um são em quatro, criando dois pares de opostos, é motivo
pouco acima da linha dos ombros. Ele mergulhou a ponta universal, que representa processo pelo qual a consciên-
da faca num movimento retilíneo, atravessando o centro cia funciona, separando este daquele, onde antes havia
do crânio de John, mantendo a lâmina na vertical o tem-
po inteiro, até que ela estivesse entre 20 e 25 cm, enterra- só o inteiro.
da no centro de sua cabeça. Ele empurrou a lâmina para A sombra sádica, que havia atormentado os sonhos
frente, de modo que ela cortou o centro de sua testa rumo e a imaginação de Donald, aparece transformada em um
ao rosto e prosseguiu até repartir o queixo em dois. De- sacerdote sacrifical ou iniciático, comandando o poder e
pois puxou a faca para fora e colocou-a de ponta novamente a precisão do guerreiro que Donald precisa encontrar em
no centro do crânio de John, mantendo-a na vertical, mas
formando um ângulo adjacente à incisão original. Agora,
si mesmo, ao mesmo tempo em que demonstra o valor de
ele empurra a faca para baixo até que ela tenha repartido circunscrever "o ator", aquele que toma personagem em-
de cima até em baixo o lado direito do rosto de John. (O prestada. A lâmina afiada também é o instrumento de
quarto direito anterior). O guerreiro executou essa ope'- cirurgião; o tumi da antiga cultura Moche no Perú era
ração com quase a mesma precisão com que se corta a uma faca sacrifical, que posteriormente evoluiu tornan-
primeira fatia de um bolo de casamento. Prosseguiu cor- do-se uma faca cirúrgica, usada em particular pelos incas;
tando algumas outras "fatias" menores, do que tinha so-
brado da cabeça da John e oferecia os pedaços aos seus mais tarde, tornou-se o emblema do deus da cura. Os gre-
subordinados que estavam em volta, certificando-se de gos, na antigüidade, diferenciavam entre o abate de ani-
que para ele estava reservado o pedaço original. Depois mais domésticos para fins sacrificais e consumo da caça
ergueu seu troféu no ar e usou-o para fazer um brinde,
após o quê todos deram vivas e começaram a comer seu
31 Onians, Origins of European Thought, p. 96.
prêmio. 32 TImaeus, 44 D.

76 77
de animais selvagens, que geralmente não deveriam ser preciso ser duro (como o vaqueiro) e para possuir muitas
comidos,33 mas no altar era novamente o homem que cabeças de gado tem-se que ser rico - a menos que tenha
manejava a faca e distribuía a carne de acordo com a hi- a astúcia de um Hermes como ladrão de gado. No antigo
erarquia masculina. A única exceção parecem ter sido Mediterrâneo, a principal forma de moeda era a vaca e a
. .
primeIra cunhagem em metal consistia em barras de bron-
'
certos ritos que eram exclusivamente destinados às mu-
lheres. No decorrer normal dos acontecimentos, as mu- ze que tinham o formato do couro da vaca, imagem de
lheres só tinham direito a uma parte através de seus com- riqueza e status num mundo dominado pelos homens, e
panheiros e, correspondentemente, desfrutavam de um a palavra "pecuniário" vem do latim pecu que significa
status menor. Como as fêmeas dos chimpanzés, as mu- criação de animais.
lheres tendiam a comer menos carne do que seus compa- O princípio da distribuição da carne segundo· o status
nheiros. No texto A Ilíada, talvez porque todos os guer- mantido pela pessoa imperou até bem recentemente na
reiros eram considerados iguais como irmãos de armas, alta sociedade européia. Um manual de boas maneiras,
lemos que a carne era dividida em porções iguais, mas datado do séc. XVII, aconselha que é importante saber
geralmente os sacerdotes e os de status mais elevado ou "qual é o melhor pedaço, o pedaço de honra, que deve ser
merecedores de honrarias especiais recebiam cortes ou servido à pessoa de mais elevada posição."35 Trinchar a
quantidades especiais. Sua porção era geras, um prêmio carne, separando os pedaços pelas juntas, era sem dúvi-
ou recompensa, sinal de respeito. Heitor diz a Diomedes da uma honra em si, e uma exigência para os homens
que "os cavaleiros danenses costumavam prestar home- quanto às suas habilidades sociais. Geralmente era um
nagem oferecendo seu melhor lugar à mesa, o primeiro ato executado pelo dono da casa, ou por um convidado de
corte da peça de carne, e uma taça que jamais esvazia."34 honra, e até a metade deste século, na Grã-Bretanha, o
Hércules, depois de ter trazido Cérbero do inferno, costume sobreviveu como inquestionável tarefa do homem
no cumprimento de uma de suas tarefas, mata três dos da casa.
filhos de Eristeu quando fica enfurecido por lhe ter sido
dada a porção de carne que cabia aos escravos. (Talvez APARTE DO LEÃO
Hércules, envergando como manto uma pele de leao, re-
Uma história da Somália
queira a parte do leão.) O termo grego para porção, moira,
acabou significando o que a vida reservou para a pessoa,
O leão, o chacal, o lobo e a hiena tiveram um encontro e
como se infere da figura das três Parcas, as Moirai. O
combinaram de caçar juntos, como um time dividindo
alto preço do melhor bife, que ainda implica em masculi- igualmente entre si qualquer animal que abatessem.
nidade e status, lembra-nos do grande valor atribuído ao Saíram e mataram um camelo. Os quatro animais en-
gado em nossa história. Para cuidar de um rebanho, é tão discutiram qual deles iria repartir a carne. O leão dis-
se: "Quem for dividir a carne deve saber contar."

33 Ver Marcel Detienne, "Culinary Practices and the Spirit of Sacrifice,"


em Detienne e Vernant, Cuisine af Sacrifice Amang the Greeks. 35 Antoine de Courtin, Nauveau Traité de Civilité citado em Nobert Elias

34 !liada livro 8, p. 149. The Civilizing Process: The Histary af Manners, p. li9. '

78 79
Imediatamente, o lobo se ofereceu dizendo: "Realmen- recepcionado e defendido a humanidade e transmitido seu
te eu sei contar." conhecimento a essas pobres criaturas lutadoras: "Per-
E começou a dividir a carne. Cortou quatro pedaços de
igual tamanho e colocou-os na frente de cada um dos ca- cebi que eram ignorantes, e dei-lhes o uso de sua inteli-
çadores. gência tornando-os senhores de suas próprias mentes."37
O leão ficou com raiva e disse: "Isso é jeito de contar?" Chegara inclusive a interceder em favor delas, quando
E atacou o lobo no meio dos olhos, de tal modo que incha- Zeus - totalmente irado - estava a ponto de destruí-las.
ram e ele não conseguia mais enxergar. Em Mecone, surge uma discussão a respeito da dis-
O chacal disse: "O lobo não sabe contar. Eu dividirei a
carne." tribuição das partes de um touro sacrifical, e Prometeu é
Cortou três pedaços pequenos e um que era muito gran- convocado para ajuizar sobre a situação. Ele corta a car-
de. Os três menores ele colocou na frente da hiena, do caça e a divide em duas partes; uma contém a carne e as
lobo, e para si mesmo. A parte maior pôs na frente do leão, vísceras, e a outra os ossos astutamente recobertos por
que pegou sua carne e foi embora. uma cintilante gordura - que aos olhos gregos era alta.·
"Por que foi preciso dar ao leão um pedaço tão grande?"
perguntou a hiena. "Nosso acordo era dividir em partes mente desejável. Zeus é ludibriado e escolhe a segunda,
iguais. Onde foi que você realmente aprendeu a dividir?" e como punição retira o fogo da humanidade, condenan-
E o chacal respondeu: "Aprendi com o lobo". do-a a comer a carne crua. Prometeu rouba o fogo dos
"Com o lobo? Como é que se pode aprender com ele? Ele deuses em benefício da humanidade. É punido sendo
é burro," disse a hiena. acorrentado a um penedo no qual seu fígado é diariamente
"O chacal está certo", o lobo disse. "Ele sabe como con-
tar. Antes, quando meus olhos estavam abertos, eu não comido por uma águia ou corvo, e todas as noites é re-
via. Agora, embora estejam feridos, vejo claramente".36 composto para poder no dia seguinte recomeçar tudo ou-
tra vez.
A correta distribuição da carne está no cerne mesmo Essa divisão do animal sacrificial em duas porções,
do mito grego do banquete em Mecone. Naqueles tem- a dos deuses e a dos homens, era um costume grego pa-
pos, os homens e os deuses jantavam juntos, quer dizer, drão. Os ossos (coxa) pertencem aos deuses porque são a
os humanos ainda não haviam desenvolvido a consciên- parte duradoura, "imortal", do corpo e contêm o tutano,
cia de serem criaturas separadas das forças inconscien- que é o cerne da vida animal. A gordura, volatilizada em
tes que regem suas vidas. A personagem central da his- fumaça, e o tutano, constituem a essência vital do ani-
tória é Prometeu, o Titã, que antes tinha lutado lado a mal, são apropriadas aos imortais que vivem em um pla-
lado com Zeus contra Cronos, tendo aprendido com Atena no sutil e que portanto consomem néctar e ambrosia, e
uma série de úteis procedimentos. Prometeu, que de acor- desfrutam da insubstancial potência da fumaça do incen-
do com uma história criara a raça dos homens, e a quem SO.38 Nessa oferenda, está sendo feita uma distinção, e tam-
Karl Kerényi descreve em um livro do mesmo nome como bém uma conexão. Ao prestar essa homenagem voluntá-
"uma imagem arquetípica da existência humana," havia
37 Ésquilo, Prometeu acorrentado, linha 442. .
36Excerto de Harold Courlander, The King's Drum and Other Áfrican 38 A respeito deste tópico, ver Onians, Origins of European Thought, pp.
Stories. 279ss.

80 81
ria aos deuses, os humanos buscam proteger-se do sem- ainda que precariamente, mais além da mera pulsão dos
pre-presente perigo de serem dominados pelos poderes instintos. Para os gregos, a definição do reino humano,
que os deuses representam. Do ponto de vista da dimen- quer dizer, o consciente em oposição ao instintivo, assim
são consciente, jantar com os deuses parece-se bastante como o status dos indivíduos, estava inextricavelmente
com ser devorado por eles. ligada aos procedimentos sacrificais. Nesse sentido, co-
Os humanos consomem carne cozida. Diferenciados mer carne tem sido um fator determinante de imensa
dos deuses, por um lado, por sua dieta peculiar, por ou- importância em nossa cultura.
tro, distinguem-se dos animais, que comem a carne crua, Outro aspecto do simbolismo da carne também apa-
sem qualquer respeito a regras, e sem nenhuma oferenda receu nos sonhos de Donald. Certo tempo antes de ele ter
sacrifical aos deuses. começado a fazer análise, teve um sonho que desde então
Pois o filho de Cronos ordenou que fosse essa a lei para o
o persegue:
homem, que peixes e animais selva~ens e cri~tura~ ala- Estou olhando para um motor a diesel que tem um gran-
das devorassem umas às outras, pOIS nelas nao eXIste a de radiador. O motor está realmente funcionando, trepi-
noção do que é direito; mas à humanidade ele deu o direi- dando. Então começa a sair carne do radiador, toneladas
to, o que sem dúvida é muito melhor. 39 e toneladas de carne. Tem um cheiro de que está semi-
cozida pelo calor do motor.
A "omofagia", comer a carne crua, praticada pelos
seguidores de Dioniso, destruía deliberadamente esse li- Esse sonho fez com que parasse de comer carne por
mite, pelo menos por algum tempo, religando-os com a algum tempo. Disse-me que a carne tinha cheiro de rato
paixão animal selvagem. O próprio Dioniso, no mito órfico, fervido. O choque dessa imagem foi o confronto com a
é comido "cozido" pelos Titãs, o que sugere que a cons- substância dilacerada, sangrenta, de sua natureza ani-
ciência titânica que reprime a experiência dionisíaca pode mal, de seu sofrimento, de seu ser instintivo mutilado,
assimilá-la somente de uma maneira processada. que estava entorpecido pela depressão. Em nós, como em
A divisão da carne é uma manifestação do processo outras espécies, a emoção é expressa no corpo; sentimo-
que também está expresso na instrução de Prometeu como la no sangue correndo, nas palpitações, nos músculos que
conhecedor de várias artes e como portador do fogo rou- se contraem, em tremores; nossa carne corporifica a ex-
bado' fogo para cozinhar algo que é também a luz da,cons- periência primitiva. O termo grego para carne, kreas, está
ciência humana, pois "toda consciência separa". 40 Aquele relacionado com o latim "crudus," que significa cru ou
que traz a cultura é um ladrão, do ponto de vista ~as sangrento, e com o inglês "cruelty" ("crueldade"); liga-nos
poderosas forças do inconsciente, e cria uma perspectIva à "natureza rubra nos dentes e garras." No sonho de
vantajosa pois, a partir dela, podemos nos ver como seres Donald, a carne está sendo processada de maneira crua,
não selvagens, com um lugar próprio onde nos colocar, mecânica, que vagamente o faz recordar de como sua mãe
cozinhava, de como ela preparava a carne. A análise ser-
Hesíodo, Works and Days, linhas 276-278.
39 . .. . . viu de eixo referencial para que esse processamento pu-
Jung, The Meaning of Psychology for Modern Man, CWlllzatwn Ln
40
Transition, oe 10, par. 304, desse ter continuidade.

82 83
Dor e angústia nunca estão longe da imagem da car- que leva para ele morrer, observando certos tabús de
ne, como no seguinte excerto de um sonho de uma mu- dieta e comportamento. 41
lher que se havia distanciado emocionalmente de expe- Esse conhecimento profundamente entranhado em
riências estressantes de infância: nós de que sobrevivemos às custas de outros dá margem
Havia um homem e uma mulher, bastante idosos, e que a uma tensão desconfortável dentro da psique. Derramar
não conhecia. Estavam em camas, como as de hospital, sangue implica em culpa e medo de vingança; ritos
naquele lugar. Eram meus pais, isso era certo. E também propiciatórios cercam a iniciativa de matar para comer.
era certo que eu os havia matado. Mas estavam "vivos", As seguintes práticas têm sido descritas entre comuni-
assim como também todos os outros mortos. Estavam sen- dades que consomem a carne de ursos:
tindo muita dor e mostravam-se muito feridos, e eu não
conseguia entender por que eles estavam sentindo dor se Quando o urso foi abatido, é comum recusar a responsabi-
já estavam mortos. A mensagem era que a dor não termi- lidade por sua morte. No norte da Siberia, atualmente, os
nava com a morte, como eu tinha achado. Ostyaks, Votyaks, Koryaks, Kamchadals, Gilyaks, Yakuts,
O homem tinha só metade da perna. A parte de baixo Yukaghir e Tungus· dirão: "Avô, não fui eu, foram os rus-
tinha sido substituída por um cano de metal e uma espé- sos que fizeram uso de mim, que o mataram. Lamento
cie de pé chato na ponta. A outra perna estava toda dila- muito! Muito! Não fique zangado comigo!" Por outro lado,
cerada e meio apodrecendo. O resto dele também estava o costume generalizado na América do Norte era elogiar o
muito confuso mas menos claro do que a perna. Suas per- urso e explicar o que estava acontecendo. Por exemplo, os
nas estavam apoiadas numa espécie de bandeja para tos- Abnaki dizem francamente para o animal: "Matei você
tar, com gordura em volta e em cima e o que pareciam ser porque preciso de sua pele para fazer um casaco para mim
pedacinhos queimados (como se faz quando se tosta um e de sua carne para me alimentar. Não tenho mais nada
pernil). Isso estava em cima da cama na qual ele estava do que viver". Ao norte do Lago Huron, os Ottawa adulam
deitado. o animal e suplicam-lhe: "Não parta com maus pensamen-
A mulher também estava em péssimo estado. Também tos a nosso respeito porque nós o matamos. Você tem inte-
nela eram as pernas que estavam mais nitidamente cla- ligência e pode perceber por si mesmo que nossas crian-
ras. As duas estavam lá, mas de alguma maneira estra- ças estão passando fome. Elas o amam. Desejam que você
çalhadas, e igualmente deitadas naquele tipo de bandeja entre em seus corpos. Não é uma coisa gloriosa ser comi-
de assar. Parecia haver sangue e alguma substância es- do por filhos de chefes?"42
correndo, não exatamente pus, mas daquele tipo.
A Bíblia ensina como evitar culpa pelo derramamento
Esse sonho enfatiza graficamente o fato de que so- de sangue em decorrência do abate de um animal:
mos feitos da mesma substância que os animais que co-
Isto é o que ordena Iahweh:
memos, numa implícita e explícita identificação entre
Todo homem da casa de Israel que, no acampamento
morto e matador. Para que a pessoa seja boa caçadora, ou fora dele, imolar novilho, cordeiro ou cabra, sem o tra-
ela realmente precisa ser capaz de se colocar na pele de zer à entrada da Tenda da Reunião, para fazer dele uma
sua presa. Entre os bosquímanos da África do Sul, o ca-
çador que tiver abatido um cervo com seu dardo envene- 41 Campbell, The Way ofthe Animal Powers, p. 90.
42 A. Irving Hallowell, Bear Ceremonialism in the Northern Hemisphere,
nado irá identificar-se com o animal durante o período citado em ibid., p. 148.

84 85
oferenda a lahweh, diante do seu tabernáculo, tal homem do durante a festiva degustação do porco que segue ao
responderá pelo sangue derramado e será eliminado do
meio do seu povo ...
seu abate:
Porque a vida da carne está no sangue. E este sangue Diga-me o que fiz para você.
eu vo-lo tenho dado para fazer o rito da expiação sobre o Por que você me matou?
altar, pelas vossas vidas (Lv 17,2-4,11). E sujou as suas mãos com o meu sangue?
Você não tem filhos?
Entre os antigos judeus, somente carne ritualmente Não tem coração?
sacrificada era considerada adequada para se comer. O Por muito tempo, fiquei feliz, na minha lama,
sangue do animal, portador da misteriosa qualidade da E nunca magoei ninguém, coitadinho.
vida animal ativa, era vertido sobre o altar, devolvido a Comi de tudo que você me deu e sua recompensa foi me
apunhalar.
Deus, num simbolismo semelhante ao oferecimento da Trouxe um monte de criaturinhas ao mundo,
gordura e do tutano dos ossos, pelos gregos, aos seus deu- E as alimentei com meu leite. Elas cresceram.
ses. Os métodos modernos de abate de animais usados E em vez de obter agradecimentos dos seus lábios,
pelos judeus ainda se baseiam nessas regras. De modo você me mergulha em meu próprio sangue.
semelhante, na antiga Grécia, toda carne adequada para Você me pegou hoje de manhã muito cedo,
abriu minhas pernas
consumo era obtida numa morte sacrifical ritualizada, e e cortou-me a garganta com uma faca afiada. 44
era oferecida aos deuses a sua merecida porção. Elabora-
dos procedimentos asseguravam a imprescindível visibi-
lidade do consentimento dado à própria morte pelo ani-
mal sacrifical, e a faca ficava escondida até que chegasse Grão e cultura
o momento crucial. Quando eram comidos os animais
domesticados, isso significa matar uma criatura que foi Diante de nossas atuais preocupações por alimentos
objeto de cuidados e proteção, o que pode produzir um "desnaturados", e com nossa correspondente necessidade
tipo particular de conflito e a necessidade de um ritual vital de renovar o cantata com dimensões mais primiti-
amenizatório. "É a agressão empreendida por toda a co- vas da psique, é difícil nos pôr, na imaginação, na mesma
munidade e a culpa compartilhada que criam a solida- posição dos gregos e romanos para os quais os produtos
riedade."43 A culpa e o ritual testemunham ambos a exis- comestíveis da natureza domada, da natureza subjugada
tência de certo nível de desenvolvimento da consciência. pelo esforço humano, eram o único alimento adequado
Os versos seguintes transmitem muito bem os senti- para os humanos. A caça e a coleta tinham-se, no senso
mentos de culpa que rodeiam a ingestão de carne. São de estrito dos termos, tornado meios marginalizados de aqui-
um réquiem recente improvisado, para um porco da ilha sição de alimentos, como decorrência do grande sucesso
grega de Tinos, onde cada família, de acordo com, a tradi- obtido por uma sociedade baseada na agricultura.
ção, mata anualmente um porco em dezembro. E recita-
44 Excerto de Maria Yannissopoulou, L'Expression des Relations Sociales
43 Walter Burkert, Greek Religion, Archaic and Classical, p. 58. dans le Partage de la Nourriture au village de Potamia.

86 87
Os romanos distinguiam "ager", a terra cultivada, oferendas, o cozimento da carne em Mecone, envolveram
de "saltus", a natureza selvagem, território que existe o organizado e deliberado adiamento da gratificação, a
além do frágil limite que separa a civilização do universo contenção dos instintos, um tempo para refletir. Em épo-
primitivo. 45 Os animais domesticados, abatidos ritual- cas mais remotas, o poder de fogo dos caçadores e o fato
mente, e as plantas criadas em campos trabalhados, eram de serem os possuidores da carcaça automaticamente
em si mesmos imagens tranqüilizadoras do progresso hu- dava-lhes poder para distribuir a carne, da mesma for-
mano. A agricultura havia introduzido, de modo notável, ma como qualquer carnívoro poderoso teria direito de
na dieta humana, uma abundância de substâncias vege- primazia sobre a presa que houvesse capturado. A histó-
tais que eram ricas em amido e capazes de tornar-se ali- ria de Prometeu é um testemunho da sagrada delibera-
mentos calóricos - gêneros de primeira necessidade - ção, de uma capacidade consciente para fazer distinções,
cruciais para a evolução da cultura européia e o desen- subseqüentemente desenvolvida na repartição da carca-
volvimento do cultivo de grãos na região oeste da Ásia. ça até então inteira entre todos os comensais humanos.
Por onde se difundiu, foi considerado um grande avanço O poder libertador de mecanismos que nos distan-
e uma imensa bênção, de tal sorte que se podia susten- ciam da compulsão instintual foi exemplificado por um
tar, no Ira do mazdeísmo, que "aquele que planta trigo, experimento envolvendo dois chimpanzés. Os animais
planta o bem".46 foram treinados a escolher entre duas porções de doces,
A cultura tem suas raízes na natureza, mas nos dis- uma maior que a outra, e ensinados para dar ao outro
tancia dela, e a distância entre o animal e o humano, que chimpanzé aquela que fosse a escolhida, reservando as-
os humanos tão denodadamente têm tentado manter e sim para si a restante. O instinto de ir até a porção maior
definir, é demarcada por distinções tais como cru e cozi- era tão forte que os dois chimpanzés acharam pratica-
do, "in natura" e cultivado, e por todo um arsenal de imple- mente impossível fazer qualquer outra coisa que não es-
mentos e rituais que acompanham a função animal do colher a maior, apesar de saberem que isso significava
alimentar-se. perdê-la, até que foram solicitados a apontar diretamen-
O primeiro grande passo evolutivo no processamento te não para a comida mas para numerais romanos, que
de alimentos foi o uso do fogo, há cerca de 500.000 anos, já tinham aprendido que representavam as diferentes
embora, até onde nos é dado saber, não tenha sido larga- quantidades do doce. Os numerais permitiram aos chim-
mente utilizado para cozinhar senão há 30 ou 40.000 anos. panzés se distanciarem o suficiente de seu impulso natu-
Mais tarde, como na história do João de Ferro, surgiu o ral para fazer uma escolha mais vantajosa. 48
caldeirão, há aproximadamente 10.000 anosY O cuida- O advento da agricultura, além de nos prover com
doso processo de distribuição das merecidas porções, as um suprimento de comida mais normalizado e de criar
um lugar que se chamasse lar, levou-nos para mais longe
Ver Massimo Montanari, The Culture of Food, p. 5.
45 ainda da espontaneidade da natureza, instilando uma
N atalie F. J offe em Funk and Wagnalls, Standard Dictionary ofFolklore,
46
Mythology and Legend, verbete Trigo.
47 Ver Glynn L.1. Isaac e Jeanne M. Sept, Long-Term History ofthe Human 48 Ver Sarah Boysen e G.G.Bernston, Responses to Quantity: Perceptual
Diet, em The Eating Disorders, cap. 2. Versus Cognitive Mechanisms in Chimpanzees (Pan Troglodytes).

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noção de distância em relação a ela e, ao mesmo tempo, celada quando irrompem as distinções, com o risco ine-
de colaboração com a mesma, vinculando-nos em novas rente de fragmentação e a necessidade de reunir os peda-
formas de cooperação, criando novas divisões do traba- ços num novo nível. Uma das mais básicas dessas distin-
lho e insuspeitas complexidades sociais. A própria pala- ções é entre "humano" e "outro", com a identificação com
vra "cultura" significa, em primeiro lugar, agricultura, o "humano" que nos separa de nossa natureza animal.
do latim "ager" (campo), e "colere", "cultivar", que proce- Acima de tudo, o que nos torna humanos é a nossa capa-
de de uma presumida raiz indo-européia - "kwel" - que cidade de refletir, e isso significa separar-nos dos objetos
significa mover para todo lado. De modo que cultura é de nossas reflexões. Se a imagem do fruto redondo e in-
mover coisas (a terra, originalmente) para todo lado, em teiro representa essa completude original, a mitologia do
oposição a deixá-las em seu estado natural; é rearranjar cultivo, como os rituais da carne, traz consigo imagens
a natureza. de partilha e divisão.
Um grande número de mitos de culturas de plantio Um conto folclórico chinês narra como, em certa épo-
envolvem a morte de um ser divino de cujos restos cres- ca, o arroz simplesmente rolava pelos campos num grão
cem os alimentos vegetais. Freqüentemente, a figura que ou bola imensa, e o que as pessoas precisavam fazer era
reencarna nas plantas primeiro é desmembrada. Uma apenas esperar que se aproximasse para se servir. Um
dessas histórias, dos Ceram nas ilhas Molucas, é exten- dia, contudo, um aldeão sentiu preguiça de usar a sua
samente relatada por Joseph Campbell em " Masks of vez no aguardo do arroz, e o bolo de alimento simples-
God: Primitive Mythology". Nela, o cadáver da virgem mente passou por ele rolando. Depois de se ter dado con-
semidivina Hainuwele é retalhado e enterrado; das par- ta da seriedade da situação, o homem perseguiu desespe-
tes enterradas brotam as plantas tuberosas que formam rado o monte de arroz e o atingiu com seu machado; a
o alimento básico do povo. Mais conhecido de nós é o deus bola então desmanchou-se numa miríade de minúsculos
Osíris que, como rei na terra, traz o cultivo (em especial grãos. Depois disso, o arroz parou de rolar, e o povo teve
49
dos grãos e uvas) e a civilização aos egípcios. Ele é assas- de plantar os grãos em separado para poder comer.
sinado e desmembrado por seu irmão hostil, Set, e os pe- A ruptura da unidade originalmente inteira implica
daços de seu corpo são espalhados pelo país. Em "The em trabalho. Depois que o fruto da árvore proibida divi-
Golden Bough", J.G. Frazer dá exemplos da África, Eu- diu a psique por meio da percepção do bem e do mal, o
ropa, Índia e do Pacífico a respeito de ritos de fertilidade Senhor disse a Adão: "e comerás a erva dos campos. Com
que envolvem o desmembramento de uma vítima sacri- o suor do teu rosto comerás teu pão" (Gn 3,18-19). Não é
fical e o subseqüente enterro de suas partes que são es- de espantar que sonoros rituais de lamentações e lágri-
palhadas, numa retomada perene desse tema mítico. mas acompanhem a morte do Espírito das plantas em
A imagem básica é a de um ser que um dia foi inteiro suas muitas formas culturais, esse ser único que morre
e que depois se repartiu com a finalidade de brotar futu- para dar vida à multiplicidade. Quantas mais distinções
ramente. Análogo à divisão da carcaça do animal sacrifi- forem feitas, mais responsabilidades nos cabem. No con-
cado, este mitologema reflete o processo psicológico por
meio do qual nossa inteireza inconsciente original é esfa- 49 Contado à autora, fonte desconhecida.

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texto do desenvolvimento da consciência individual, tal e repetidamente qualifica os homens como comedores
como acontece em análise, geralmente é difícil aceitar que, de pão; também fala da cevada como "o tutano dos ho-
por exemplo, se a pessoa está num relacionamento que mens".51 Em Bali, o arroz pode ser mencionado em ter-
não vai indo bem, e dado que isso em geral significa erros mos que, afora isso, são usados apenas para seres huma-
de ambas as partes, o ônus de fazer as mudanças recai nos, e é considerado possuidor de uma alma semelhante
sobre o parceiro que começou a enxergar com mais clare- à deles. Agora podemos entender melhor por que o mito
za e a distinguir algumas das até então emaranhadas maia nos diz que os homens foram feitos de farinha de
projeções. Isso significa abandonar suas tentativas de milh0 52; isso depende de conquistas essencialmente hu-
assediar o outro para que mude e em vez disso concen- manas.
trar-se em seu próprio trabalho interior. N os casos em que o uso de alimentos tão sofisticados
Cultivar significa um ativo envolvimento nos proces- não é empregado para definir a humanidade como um
sos naturais; e o cultivo se desenvolveu ao longo de milê- todo, ele freqüentemente distingue o homem civilizado
nios de observação dos mesmos: o ciclo botão-flor-fruto- do bárbaro inculto. Enkidu, o homem selvagem do épico
semente, o relacionamento entre a planta acima do solo e sumério Gilgamesh, escrito em 3.000 a.C., come grama
o sistema de raízes subterrâneo, as variáveis de tipo de até aprender a comer pão e a beber vinho. Para os roma-
solo, luz e sombra, a competição entre as espécies de plan- nos, os bárbaros eram aquele povo que não comia pão;
tas, a atividade dos insetos nas flores. O trigo é um híbri- para os chineses, eram os que não comiam arroz. Na In-
do que começou a existir na região ocidental da Ásia de- glaterra, os nobres eram originalmente os guardiães do
pois de iniciativas deliberadas de cultivo vegetal, indi- pão e os que o amassavam, e recebiam o respeito conferi-
cando o claro acúmulo de conhecimentos postos em prá- do aos protetores de uma tradição cultural altamente
ticos. Além disso, depois de colhido, ele ainda precisa ser valorizada (embora hoje em dia seja uma indicação de
debulhado,joeirado, moído, misturado, fermentado, amas- ociosidade chamar alguém de "porta-pão").
sado e assado para virar pão; na realidade, o cultivo do Dadas as conotações culturais dos cereais, não é abso-
trigo foi precedido por técnicas de moagem de grãos. lutamente de espantar que cada grão ou produto precio-
Jung observa que o pão e o vinho "representam uma so seja tão amplamente valorizado. Minha mãe me en-
definitiva aquisição cultural que é o fruto da atenção, da sinou que era pecado queimar (ou jogar fora) pão. No
paciência, da diligência, da devoção e do esforço labo~io­ Japão, a punição no além está esperando pelos desperdi-
SO".50 OS seres humanos têm-se sentidojustificadamente çadores de arroz e, em Burma, é considerado repreensí-
orgulhosos por essas conquistas, e valem-se delas para vel pisar em um grão de arroz. Um amigo de visita à
definir sua humanidade. O epíteto que Hesíodo aplica à Tunísia foi recriminado por deixar cair casquinhas de
espécie humana é "comedora de pão". Homero nos diz que painço. Não é só uma questão de "não desperdice, não
os deuses (diferentemente dos homens) "não comem pão", esbanje", mas de tratar sem respeito ou cortesia uma

60 Transformation Symbolism in the Mass, Psychology and Religion, oe 61 Ilíada, livro 5; livro 13; Odisséia, livro 9; livro 2; livro 20.
11, par. 382. 62 Ver acima, p. 25 e sego .

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manifestação concreta do provedor divino que sacrifica a qüência nos seus sonhos: voar com ou sem avião, estar
si próprio e também o empenho humano, o que qualifica acima do chão, viver no topo de uma montanha, escalar
esse transgressor como alguém que não conhece as refe- uma montanha de cristal. Voar, ou erguer-se acima das
rências da civilização. coisas, embora possa oferecer uma perspectiva proveito-
Segue-se a primeira parte de um sonho: sa e até mesmo um cenário inspirador e arrebatador, é
em geral uma reação ao medo, ao medo de se comprome-
Estava em um avião, voando bem rente ao chão, como se ter com a vida de uma forma concreta, de tornar as coi-
estivéssemos para aterrissar. Estávamos muito perto dos sas reais, e de encarar as conseqüências, o risco da de-
telhados das casas abaixo quando, de repente, arremete-
mos de volta para o ar num ângulo muito agudo. Percebi cepção, de mágoa, de perceber-se carente.
que deveria haver outro avião por perto e que tivemos de Claire tinha um irmão menor, que, na qualidade de
voltar para o alto para evitar uma colisão. único menino da família, tinha sido objeto de maior in-
Então, estávamos todos em terra, em alguma parte de vestimento de interesses e expectativas da parte de seus
uma rua movimentada, com muita gente e lojas, e estáva- pais, e também uma irmã mais velha, dona de um estilo
mos todos nos sentindo muito aliviados. Também percebi
que ainda estávamos em Londres e fiquei surpresa, por-
vigoroso de exigir e conseguir o que queria. Sendo uma
que sabia que tínhamos permanecido no ar por muito tem- criança tímida e introvertida, geralmente chorosa nos
po e achava que nosso destino teria sido Nova York. seus primeiros anos de vida, especialmente parece que
As ruas estavam lotadas de pessoas, e algumas outras após o nascimento de seu irmão, Claire não tinha conse-
mulheres e eu estávamos falando com uma mulher des- guido fazer-se receptora de toda a atenção e apoio de que
conhecida, mais velha. Ela havia cozinhado uma grande
necessitava. Seu pai, por quem nutria grande afeição, e
boneca/estátua com Rice Krispies e nos estava incenti-
vando a imitá-la. Também observei que ela estava toda com ela se identificava até certo ponto, ausentava-se bas-
coberta de Rice Krispies e que talvez ela mesma tam- tante e a vida dele não era centrada no lar. Sua mãe ti-
bém fosse feita desse cereal matinal. Peguei um pedaço nha instituído para Claire um exemplo do que parecia
da boneca porque gosto de Rice Krispies cozido. Quando ser uma vida muito limitada e convencional, dedicada a
olhei de novo para ela, para pegar outro pedaço,· ela se servir um marido geralmente ausente, e parecia incapaz
havia ido.
de relacionar-se o suficiente com os sentimentos de Claire.
A principal mensagem que Claire tirou de seus pri-
Esse é outro sonho com um poderoso sentim,ento meiros anos de vida, embora ela tivesse permanecido in-
iniciático, desta feita envolvendo os mistérios da mulher. consciente durante muito tempo, foi que ela não era boa
A sonhadora, Claire, com trinta e tantos anos, tinha em- o bastante, que alguma coisa nela era errada, que não
barcado na terapia quando tentara sair de uma relação conseguia ter o que queria, da maneira como os outros
que não era o que ela realmente queria, e fora assolada conseguiam. A árvore familiar revelava um padrão de
por sentimentos de pânico. Já estava em tratamento há mulheres passivas com medo de viver as próprias vidas,
algum tempo quando esse sonho apareceu, e as coisas e isso também estava se concretizando no estilo de vida
até então tinham andado muito vagarosamente. O sonho da própria Claire. O medo mudo de certa inadequação
começa no ar. Esse tema da altitude aparecia com fre- básica estava sempre abocanhando seus calcanhares, de

94 95
tal modo que toda vez que ela hesitantemente ia em bus- é em geral muito mais confortável para nós; podemos ver
ca de alguma coisa que quisesse e não conseguia obter, a vida com certo distanciamento e evitar dar de frente
parecia-lhe uma confirmação de sua má sina, o que a com realidades difíceis. O piloto, no entanto, agora a traz
empurrava para uma prematura desistência de suas ba- a salvo para terra, ainda que um pouco sacolejantemente,
talhas, ou para uma evitação do risco a qualquer custo. e a coloca em uma rua movimentada com muitas lojas.
Ela apresentava muitas imagens oníricas que correspon- Ela aterrissou em um local bastante freqüentado, quer
diam a essa paralisia interna, particularmente de figu- dizer, o sonho descreve uma experiência comum no coti-
ras em posição prona, parecendo mortas, e momentos diano de uma humanidade que vive em cidades, uma es-
ocasionalmente muito assustadores de paralisia também pécie de estado normal em que existe muita movimenta-
quando estava acordada, quando se percebia incapaz de ção, muito ir e vir. Lojas são locais em que se fazerm in-
falar ou agir. tercâmbios; metaforicamente, elas oferecem a possibili-
Quando as imagens de alimento apareciam nos so- dade de investir energia psíquica em alguma coisa que
nhos de Claire geralmente ela não conseguia nada, exceto precisamos ou necessitamos. A rua está em Londres, que
quando enchia a sua boca onírica com bolinhos rechea- para Claire era o mesmo que lar, em vez de em Nova
dos e pudim de chocolate numa desesperada compensa- York, que poderia ter sido mais excitante, um local para
ção por sua ânsia de doçura. (Outras pessoas concretizam onde escapar para viver um estimulante intervalo no co-
essa imagem comendo compulsivamente). Em outros mo- tidiano. Ela está de volta ao seu mundo habitual.
mentos, havia imagens de alimentos que tinham estra- Em meio a essa atividade rotineira, ela se descobre
gado; a vida que não tinha sido acolhida, que tinha sido em companhia de outras mulheres. A figura central é a
desperdiçada, uma nutrição potencial que não tinha sido mulher com a boneca esquisita. "Ela estava toda coberta
realizada, não tinha sido empregada para ajudá-la a ter de Rice Krispies, e talvez ela mesma também fosse feita
substância, de modo que pudesse ocupar completamente desse cereal matinal." Essa misteriosa figura é nada mais
seu espaço na vida. Tivera um sonho em que sua mãe nada menos que uma versão moderna, século XX, da gran-
tinha preparado uma panela com seus tipos prediletos de Senhora dos Grãos.
de comida, mas que não era para ela. Claire se lembra de que sua avó costumava assar
Voltando ao sonho, a sonhadora começa no ar, mas bolos feitos de Rice Krispies, que quando criança ela apre-
desce. O medo de uma colisão envia o avião novamente ciara bastante. Muitas figura mitológicas agrupam-se
para o alto, num pânico agudo, mas depois de algum tem- em torno do tema do cultivo em geral e do cereal em par-
po ele consegue descer. Claire me disse que uma outra ticular, mas, acima de todas, encontramos a Senhora dos
pessoa estava no comando da aeronave, presumivelmente Grãos em suas diversas manifestações. Para os gregos,
um homem, o piloto interno que tem tanta propensão a ela era Deméter, e para os romanos, Ceres. Por trás da
decolar com ela - ele já tinha aparecido também como figura civilizadora de Osíris está sua esposa-irmã Ísis,
par numa dança, que dançando a havia arrancado do chão. que descobriu o trigo que Osíris cultivava. Na Ásia, há
Quando saímos do chão é porque estamos nos movimen- deusas do arroz e, nas Amérias do Sul e do Norte, a Se-
tando no plano do abstrato, em oposição ao concreto. Isso nhora do Milho. O crescimento vegetal que anualmente

96 97
se renova tende a ser identificado com uma deidade jo- exemplo da importância psicológica deste trabalho, inú-
vem, geralmente uma virgem, que é a forma juvenil da mer.os contos de fada descrevem a tarefa de uma mulher
Grande Mãe , muitas vezes uma mocinha. Inerente .a que deve separar diferentes tipos de grãos ou leguminosas,
muitas dessas histórias é o tema da morte e ressurreI- ou a boa semente da má; metaforicamente, isso é o dis-
ção, de uma viagem até o inferno e de uma ligação com a criminar coisas no estágio em que ainda estão em semen-
deidade regente do mundo das sombras. te para que, futuramente, não causem confusões. 54 Esse
Uma ênfase maior nas figuras femininas, nesses processo de delicada e laboriosa (ou extenuante) discri-
mitos, dá-lhes importância particular em relação ao de- minação é característico do desenvolvimento da cons-
senvolvimento feminino, sempre lembrando que os deu- ciência feminina.
ses, que antes estavam projetados e eram vistos co~o O que significa a boneca feita de Rice Krispies? Claire
realidades eternas, agora podem ser encontrados na tela disse-me que sua forma era a de uma mulher indefinida.
viva da própria psique. Quanto mais a agricultura se tor- N os países que cultivam o arroz, uma boneca desse cere-
na mecanizada, mais é vista como labor masculino, mas al é às vezes construída no final da colheita, para a alma
a vasta quantidade de cultivo sempre foi mistér das mu- da Deusa do Arroz usar como morada até que a nova sa-
lheres. Os homens entraram em cena com o arado da fra seja semeada ou colhida. Na Grã-Bretanha, a "bone-
transformação, que simula o ato sexual com a terra "fê- ca de milho" tem um papel semelhante. Tradicionalmen-
mea", e dessa maneira dá surgimento a todo um novo te, são usados grãos nesses artefatos que, mais tarde, são
conjunto de mitos baseados no casamento divino. Mas o semeados ou dados como ração aos animais, pois acredi-
cultivo desenvolveu-se primeiramente como subproduto ta-se que assim seja maior a fertilidade; nesse sentido,
da coleta, como trabalho feminino, e as mulheres então uma mordidinha na boneca seria o sinal da esperança de
estavam na vanguarda do progresso humano. O assom- que isso trouxesse fertilidade para a vida de quem a deu.
broso processo por meio do qual a semente é enterrada e A boneca está também relacionada com o segredo de para
parece morrer, mas na verdade estará produzindo no de- onde a vida vai quando se torna invisível. É uma porta-
vido tempo uma nova e abundante safra e mais grãos, é dora visível daquela vida misteriosa que resseca, é des-
inteiramente acompanhado por rituais de preparo do solo, truída e consumida, enterrada e ressuscitada; tanto o
irrigação, retirada das ervas daninhas, acompanhamen- processo botânico como o agrícola transmitem metafori-
to , e em consonância com ritmos que requerem íntimo camente o igualmente misterioso processo da renovação
conhecimento - tudo isso transcorrendo nas mãos de psíquica. O mito relevante que ainda parece pleno de vi-
mulheres, que se tornaram as senhoras dos campos e da talidade na psique ocidental é o de Deméter e sua filha
abundância, e sacerdotisas dos mistérios do ciclo da vida. 53 Perséfone, que enquanto está colhendo flores é captura-
Em outras palavras, a psique feminina desenvolveu- da por Hades e levada por ele que a coroa rainha do Mundo
se com a descoberta da agricultura, incluindo também o Inferior.
processamento e cozimento do produto. Para dar um

53 Ver Mircea Eliade, A Histary af Religiaus Ideas, vol. 1, pp. 4088. 54 Marie-Loui8e von Franz, The Feminine in Fairy Tales, pp. 15688.

98 99
Por que o cereal onírico é arroz continua como um que nos religa com o glorioso estado de unidade e com a
aspecto até certo ponto obscuro. O arroz não teve uma energia primaI e natural da vida; é a Senhora dos Grãos,
presença especial nos anos de infância e juventude de que ensina o envolvimento com o solo do qual se origina a
Claire, e nem em sua vida, exceto como floquinhos de nova vida. Os temas da aterrissagem e do comer um bo-
arroz tostados e crocantes para se comer de manhã. Ela o cado da boneca de Rice Krispies relacionam-se ambos com
descreveu simplesmente como o principal alimento de esse processo de se tornar mais sólida, que os alquimis-
uma extensa porcentagem da população mundial. Talvez tas denominam de coagulatio. 55
seja importante que ele tenha vindo de mais longe do que Existem no entanto aqueles momentos em que pre-
os grãos de sua própria cultura, e que portanto se rela- cisamos subir e contemplar as coisas estando num plano
cione com um processo que está transcorrendo um pouco acima delas (sublimatio) mas, nesse estágio do processo
mais além do alcance da consciência. As conotações de de Claire, o sonho tem a ver com o valor de estar em con-
infância e a conexão com sua avó são evidentemente im- tato com o chão, enraizada. Está na hora de uma atitude
portantes, pois vinculam sua experiência pessoal de ma- mais "mãos na massa". Que ela estava pronta para tanto
ternagem com uma figura mítica. Também é significa- é confirmado pelo sonho seguinte, no qual ela se encon-
tivo que algum tempo antes Claire tenha tido um sonho tra descalça, de pé no chão, ludicamente traçando algu-
em que ela vem para uma consulta e encontra algumas mas linhas com um rasteIo em um monte de terra negra
outras mulheres presentes, e há um bufê no qual um dos e úmida. Nunca antes havia contado um sonho tão ligado
principais ingredientes era arroz branco. Isto prefigura à terra.
claramente o sonho da reunião de mulheres em torno dos Incluir a totalidade do trabalho com os sonhos de
Rice Krispies, e põe o arroz no contexto da análise. Claire exigiria muito mais espaço mas, imediatamente
N a época do primeiro sonho, Claire tinha dito que depois que ela teve contato com a mulher do Rice Krispíes,
achava sem gosto o arroz branco simples e, em um sonho a sonhadora está a caminho de voltar para casa e teme
logo depois desse comentário, ela estava jogando fora ar- estar sendo seguida por um homem. Aqui se insinua ra-
roz branco depois de um jantar com convidados; eviden- pidamente apenas um vestígio do mito de Deméter/
temente ali havia mais do que ela teria estômago para Perséfone e a fantasmagórica presença de Hades. A
agüentar. A propósito de bolos de Rice Krispies ela disse insinuação de Hades nas proximidades refere a possibi-
que eram mais interessantes do que arroz somente. Uma lidade de uma descida ao plano inferior. Abaixo do mun-
mudança sutil mas importante tinha acontecido, pois do da realidade concreta e dos campos de grãos está o
agora ela queria mais; talvez eu houvesse apresentado mundo das formas sombrias e insubstanciais das quais
alguma coisa de maneira mais palatável. estamos só vagamente conscientes - o mundo do in-
Um dos temas do sonho é o de ser alimentada pela consciente. Estar em contato com a rainha do Mundo
Senhora dos Grãos, com quem Claire tinha tido tão pou- Inferior significaria uma nova valorização desse reino,
co contato. Ela estava encontrando algo de nutritivo no
trabalho analítico; estava sendo capaz de assimilar mais 55 Para uma excelente discussão deste processo, com menção específica à
prontamente. Mas aqui não é a Senhora do Fruto, aquela imagética da alimentação, ver Edward F. Edinger, Anatomy ofthe Psyche, cap. 4.

100 101
tão estranho quanto rico. (Hades também é Plutão, "a fiável torna-se viável, no entanto, separando a matança
riqueza".) dos requisitos nutricionais, acontece uma nova possibili-
Além disso, é a descida da filha que lhe permite se- dade: a compaixão pelo sofrimento animal passa a ser
parar-se da mãe. É inevitável que, quando uma mulher experimentada por um novo ângulo, sem estar mais mis-
tem uma imagem negativa de sua mãe, exista uma incô- turada com o receio de que o animal abatido venha se
moda similaridade inconsciente que precisa ser conscien- vingar futuramente. Entre os gregos e romanos havia
tizada para não ser destrutiva. Esse é um aspecto do tra- pessoas que sentiam agudamente essa compaixão:
balho de separação. Outro é a capacidade de diferenciar
o maternal da álacre juvenilidade feminina, como dife- Aquele que consegue rasgar a garganta de seu bezerro,
rentes manifestações da natureza feminina. Neste dra- ouvir seus gritos
Sem comover-se, que tem o ânimo de matar seu cabrito
ma, Hades seria a contraparte direcionada para o plano Que berra como uma criancinha, ou comer a ave
inferior, que corresponde ao piloto do sonho levando a Que suas mãos criaram e alimentaram!
sonhadora para o alto. A que distância está
Tudo isso de ser assassínio?57

Vegetarianismo Como estas linhas expõem, pode-se traçar uma li-


nha de continuidade entre a violência contra os animais
Viver à base de uma dieta estritamente vegetariana e a violência contra as pessoas, de tal modo que comer
tem sido uma possibilidade desde o desenvolvimento da carne está muitas vezes ligado a uma agressão generali-
agricultura, com seu concomitante distanciamento de zada, e com comportamentos bélicos. Observamos acima
nossa "natureza animal", que apenas abocanha o que que a caça e as investidas de guerra estão intimamente
pode, sem refletir a respeito. Mas não seria o vegetaria- relacionadas. O vegetarianismo, pelo contrário, freqüen-
nismo uma espécie de nostálgico reviver de uma era míti- temente supõe-se induzir uma natureza pacífica.
ca de inocência? Ou ao contrário, representa um passo Viver sem carne, além do mais, sempre foi pratica-
adiante rumo a um novo patamar de consciência? mente uma sugestão de maior distância em relação ao rei-
Vimos que o desconforto diante de matar para comer no animal. Nenhum item da alimentação atraiu maior
é tão antigo quanto a humanidade, e também que esse número de proibições e advertências impostas pelas exi-
sentimento está crucialmente correlacionado ao desen- gências das boas maneiras do que a carne. Agarrar nas
volvimento do ritual e da coesão social. "Eu diria", afir- mãos um pedaço engordurado de carne com osso, rasgan-
ma Rafael López-Pedraza, "que matar animais usando do-lhe um naco com os dentes, tem sido há muito tempo
armas, o ritual religioso e o pensamento mitológico com- considerado um ato de dúbia reputação, um "comporta-
põem todos juntos um complexo básico e conflituoso na mento animal", e embora antigamente destrinchar aber-
humanidade".56 Assim que uma dieta vegetariana con-
57 Ovídio, The Doctrines of Pythagoras, citado em Colin Spencer, The
56 Hermes e Seus Filhos. Heretic's Feast: A History ofVegetarianism, p. 98.

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tamente o animal até então inteiro, à mesa, fosse anteci- o fanatismo com que alguns defensores do vegeta-
pado com prazer, esse processo - na cultura ocidental- rianismo e do bem-estar animal às vezes se manifestam
passou a ocorrer nos bastidores; na China e no Japão, demonstra essa sombra agressiva. A crueldade e a des-
esses barbarismos foram recolhidos à cozinha há muito trutividade pertencem a todos nós, e seria melhor se as
tempo, junto com a faca potencialmente ameaçadora, reconhecêssemos, para evitar intermináveis emara-
dando lugar ao delicado manuseio dos pauzinhos para a nhamentos amargos decorrentes das mútuas projeções
ingestão dos alimentos à mesa. 58 da sombra. Se seguimos a moralidade vegetariana até
Distanciar-nos de nossa natureza animal tende a im- suas últimas conseqüências, devemos encarar o fato de
plicar em uma aproximação do espiritual e, desde os tem- que os laticínios implicam na prematura e estressante
pos de Pitágoras, isso sempre teve uma importante separação entre filhotes e mães, e o abate de machos jo-
conotação para o vegetarianismo. Porfírio, um neo-platô- vens. Além disso, não são só alimentos os únicos produ-
nico, dizia que a dieta com carne não era condizente com tos de origem animal que usamos. O desenvolvimento da
a atividade do filósofo; talvez o ideal filosófico fosse não humanidade é inseparável do uso e abuso de outras es-
ter que comer, de jeito nenhum, feito notável que alguns pécies, em escala maciça, por meio de sua força de traba-
santos alegaram ter alcançado. Abster-se de comer carne lho e carcaças, de modo que estamos todos profundamen-
tem regularmente sido associado com um compromisso te envolvidos nessa questão, e quer gostemos, quer não,
espiritual, ao lado de outro ato carnal, o sexo, e também somos-lhe todos devedores. Enquanto raça, estamos a uma
tem implicado em certo nível de ascetismo. Desse ponto grande distância de descartar todas essas formas de de-
de vista, a carne alimenta os aspectos mais elementares pendência. Os vegetarianos precisam considerar todas as
e ctônicos da humanidade. Dentro da tradição cristã, abs- suas inconsistências pessoais e hipocrisias para que não
tenção de carne nos dias prescritos sempre teve a inten- afundem em suas fantasias de superioridade.
ção de autonegação ou penitência, em vez de uma preo- N o Tibete budista, em que os vegetais são escassos e
cupação pelo bem-estar animal. comer carne é uma necessidade virtual, os que fizeram
No entanto a questão é: a que distância de uma con- votos de não matar têm permissão para comer carne, des-
duta animal conseguimos nos manter quando somos ine- de que eles mesmos não a tenham abatido com essa fina-
gavelmente animais e não espíritos desencarnados? López- lidade. Em conseqüêcia disso, os açougueiros de quem
Pedraza observa, a respeito dos vegetarianos, que eles dependiam eram geralmente muçulmanos sobre os quais
podiam lançar a culpa, da mesma forma como os judeus
têm uma fantasia de pureza e higiene, uma rigidez, uma
sensação de superioridade, uma projeção indutora de cul- serviram de bodes expiatórios para a imputação de usu-
pa sobre quem consome carne, e uma falta de consciência rários, para a grande conveniência da cristandade.
a respeito de toda espécie de crueldade e destrutividade Além disso, nesta altura, a maioria assume que as
em si mesmos. 59 plantas não são seres sensíveis. Deixamos para trás as
antigas crenças animistas de que as plantas tinham alma,
58 Essa evolução dos bons modos à mesa está registrada com fascinantes
detalhes em Elias, em seu clássico The Civilising Processo o que significaria que a coleta e a agricultura seriam in-
59 Hermes, pp. 22ss. festadas pelo mesmo sentimento de culpa que atormenta

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os que abatem animais, e passariam a exigir ritos se gri- contra o comércio de carne de vitela, em certos ambien-
tassem em silêncio. 60 tes ser adepto das hortaliças é praticamente o mesmo
O modo como nos relacionamos com a matança de que ser terrorista.
animais é uma questão de consciência, mas seria bom se Para compreender a recente popularização do vege-
nos lembrássemos da inextricabilidade entre vida e mor- tarianismo, devemos observar as importantes pressões
te, entre sobrevivência e destruição, e que ao tentar nos ecológicas e o relativo desperdício decorrente de criação
esquivar do sofrimento do animal estamos também fu- de animais, em comparação com o suprimento de nossas
gindo do nosso. Em virtude da inseparabilidade entre o necessidades nutricionais diretamente com produtos ob-
desenvolvimento da cultura e a ingestão de carne, o vege- tidos no campo, incluindo também nesse contexto os há-
tarianismo sempre atraiu a desaprovação da maioria bitos atuais de ingestão da carne. No passado, na maio-
carnivora. No contexto da Grécia clássica, recusar-se a ria das comunidades instaladas em todas as partes do
comer carne era mundo, a carne tem se mostrado uma relativa raridade,
um artigo de luxo. A decisão de matar uma rês não era
não só comportar-se de uma maneira diferente da dos seus
semelhantes; era decidir não executar o mais importante tomada levianamente, e as expedições de caça só de vez
ato da religião civil (i.é., o do sacrifício), pois os dois eram em quando retornavam com o prêmio de um animal aba-
inseparáveis, sendo que a carne legítima só procedia de tido, e do qual cada pedaço tinha uma utilidade. A reali-
animais ritualmente mortos na presença dos deuses e dos dade do relacionamento entre alimento e morte era par-
homens. 61 te das experiências de todos, junto com os sentimentos
mistos de prazer e culpa. A imediata disponibilidade da
Os pitagóricos e órficos, ao preferir não reproduzir carne já embalada à venda nos supermercados, e a dis-
essa prática, estavam se declarando nos planos social e tância que existe entre o morador comum de uma cidade
religioso de um modo que os isolou. Em Roma, Sêneca e e o processo do abatedouro têm significado que o consu-
Ovídio, dois defensores da dieta sem carne, foram perse- midor da carne pode gozar de uma considerável proteção
guidos por sua oposição às convenções. 62 Os vegetarianos contra sentimentos de culpa a respeito da morte do ani-
tornaram-se mais tarde suspeitos aos olhos da igreja cris- mal. Nesse ínterim, cindida da consciência coletiva, a qua-
tã como prováveis defensores dos hereges (maniqueus ou lidade da vida do alimento típico de origem animal dimi-
cátaros). nuiu, em geral a níveis grotescos, e as circunstâncias que
O vegetarianismo ainda pode despertar fortes rea- cercam sua morte acabaram por se tornar justificada-
ções em nossa cultura carnívora, inclusive na Inglaterra mente muito mais condenáveis.
onde é tão comum que um recente levantamento obteve Embora alguns de seus participantes imaginem de
um índice de 40 63 Em conseqüência de recentes protestos maneira simplista que abster-se de comer carne é abs-
ter-se de ser destrutivo, o movimento vegetariano trouxe
60 Ver, por exemplo, John Whitman, The Psychic Pawer af Plants, pp. 41ss.
61 Detienne, "Culinary Practices and the Spirit of Sacrifice", em Detienne
e Vernant, The Cuisine af Sacrifice Amang the Greeks, p. 6. 63 School Leaflet Against Meat Under Attack, (grifo meu) em The
62 Ver Spencer, The Heretic's Feast, p. 96. Independent, Londres, 14 de julho de 1992.

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novamente à baila, para o grande público, a questão do Gerald e Valerie Mars discutem o que os hábitos alimen-
conflito que envolve o consumo de carne. Retomar a liga- tares nos informam a respeito dos que os têm: os indivi-
ção com o sofrimento do animal é, sem dúvida, também dualistas demonstram seu ecletismo; os hierarquistas, o
uma tentativa de nos religar com nossa tão maltratada quanto são apegados às tradições; os igualitários rejei-
natureza instintiva, à qual poderemos agora voltar a de- tam o lado de fora ruim, por exemplo, ostentando seu
dicar respeito. vegetarianismo, enquanto os fatalistas comem tudo o que
lhes chamar a atenção. 66
Quer estejamos alimentando nosso individualismo,
A la Carte quer nossos valores tradicionais, nossos julgamentos éti-
cos ou nossa indiferença arrogante, o que pomos pela boca
o gastrônomo francês do século XIX Brillat-Savarin adentro nos diz algo a respeito de para onde estamos en-
declarou, "diga-me o que comes e eu te direi quem és".64 caminhando a nossa energia. Após um longo período pra-
Podemos comparar essa afirmação com a epígrafe deste ticando ascetismo e sem ter chegado ao resultado deseja-
capítulo, que é a advertência do "Ching", para que pres- do, Buda desistiu de alimentar o espírito e de matar o
temos atenção à fonte da nutrição, e ao que o homem pro- corpo de fome, e aceitou um pouco de leite de arroz de
cura para pôr dentro de sua boca, que Richard Wilhelm uma mulher. Ao fazer isso, não só ele estava sendo ali-
ainda explica melhor ao dizer: "Se queremos saber o que mentado como também alimentava a terra-mãe, ao não
alguém é, só precisamos observar a quem ele dedica seus viver mais só do espírito. Depois alcançou a iluminação,
cuidados e que aspectos de sua própria natureza ele cul- pois ao abandonar sua luta unilateral ele havia desco-
tiva e alimenta".65 berto o caminho do meio, e estava honrando tanto o céu
Em algum ponto, a dieta cientificamente estabelecida como a terra, tanto o espírito como o corpo.
(sujeita a constantes revisões) funde-se com as projeções
coletivas e individuais a respeito dos itens que compõem
um cardápio: peixe é bom para o cérebro, os bifes tornam
a pessoa viril ou agressiva, as ostras são afrodisíacas,
"açúcar não, obrigada, já sou doce o bastante dojeito que
sou." O que comemos pode ser associado com os deuses a
quem servimos. A quem estamos nutrindo quando ali-
mentamos "nós mesmos"? Uma mulher que tinha úlcera
começou a comer papinhas de bebê. Era o bebê quem real-
mente queria ser alimentado. Acompanhando a classifi-
cação desenvolvida pela antropóloga Mary Douglas,

64 Pysiologie du Gout, p. 5.
65 The I Ching or Book of Changes, pp. 10788. 66 Ver Mar8 e Mar8, Two Contrasting Dining Styles.

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3 amargas expressa sua identidade com os ancestrais, e,
desse modo, traz até o presente, o simbolismo de suas
COMENDO EM COMPANHIA experiências significativas.
O livro de Michel Tournier, Le médianoche amoureux,
culmina em uma história intitulada "Os dois banquetes",
em que o califa de Isfahan escolhe entre dois candidatos
No inferno, as pessoas encontram-se diante de alimentos
maravilhosos mas com colheres tão longas que não conseguem à vaga de cozinheiro do príncipe, em seu palácio. Cada
colocá-los na boca. No céu, eles usam as longas colheres para um deles prepara um banquete. O primeiro é extraordi-
alimentar-se uns aos outros. - Ditado judeu. nário e o segundo imita exatamente o primeiro. O califa
indica o segundo cozinheiro como "sacerdote da cozinha",
pois ele compreendeu a sagrada natureza da repetição.
Tradicionalmente, comer é algo que em grande me- Esse conto é narrado dentro do contexto de uma his-
dida fazemos em companhia. Esse é um traço distintiva- tória maior, relativa a um casal cujo casamento chegou a
mente humano, pois enquanto em outras espécies os fi- um ponto de silêncio e impasse. Oferecem uma festa para
lhotes são alimentados, os adultos se defendem sozinhos. todos os amigos, com a intenção de concluí-la com o anún-
Os cães selvagens da África são, como nós, uma exceção, cio de seu iminente divórcio. Ao longo da noite, os convi-
e partilham amistosamente uma presa abatida, mas os dados vão contando histórias. Algumas da vida real, com
chimpanzés - após uma caçada bem-sucedida - são suas amargas nuances, confirmam a decisão do casal, mas
como a maioria dos caçadores: engalfinham-se para outras, contadas mais tarde, e de teor imaginário, miste-
abocanhar parte do animal, ou esperam conseguir res- riosamente terminam por aproximá-los um do outro, e o
tos. Repartir a comida é um ato de compromisso social anúncio de sua separação não se concretiza. O argumen-
que envolve autolimitação, e é provável que tenha se de- to decisivo é o conto "Os dois banquetes". A associação
senvolvido no contexto do uso de utensílios com o abate e entre refeições, narração de histórias, ritual e "eros" é
o consumo de animais de grande porte. "Os animais revelada, e o marido e a esposa redescobrem o significa-
frugíveros não têm necessidade de desenvolver esses ins- do inerente à rotina cotidiana. Na vida real, receitas, como
tintos cavalheirescos".1 A presa caçada é repartida nos histórias, são transmitidas com a intenção de se torna-
bandos de coletores-caçadores. rem a substância de uma tradição, aproximando as pes-
Repartir a comida é ritual fundamental de vinculação soas no companheirismo e na mútua apreciação.
social em que afirmamos nossa identidade comum como Comemorações públicas têm muitas vezes envolvido
membros de uma família ou grupo. No seder da Páscoa, toda a comunidade que se reúne para degustar uma re-
por exemplo, uma família judaica afirma a continuidade feição comum. Na Grécia, por exemplo, certos festivais
da tradição, apesar de amplos e extensos deslocamentos, regionais ainda implicam em distribuição de alimento na
e por meio do consumo de pão sem fermento e de ervas igreja, o que aproxima toda a comunidade daquele lugar,
numa experiência de pertinência grupal. A Eucaristia
1 Morgan, Descent ofWoman, p. 24. cristã, como outras refeições sacramentais, expressa a

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solidariedade dos iniciados. Nas sociedades em que ho- nosos que adviriam caso eles fossem banidos para o in-
mens e mulheres comem em separado, a refeição serve consciente.
para fortalecer a coesão dos grupos de homens e mulhe- Ao mesmo tempo em que une os que dele partilham,
res. Na Índia, onde as regras hindus de conduta proíbem o alimento distingue o grupo dos demais. Nossos pratos
que se façam refeições fora da própria casta, os Sikhs tradicionais enfatizam nossa identidade de grupo, mas
introduziram locais comunitários para refeições em que também acontece a mesma coisa com os alimentos que
essas divisões não são mais observadas. O companheiro culturalmente nos negamos - as comidas de povos des-
é alguém com quem comemos pão, nossa forragem cultu- conhecidos, os alimentos que não sejam limpos, que se-
ral' e pelo mesmo motivo os japoneses falam de "comer jam repugnantes, bizarros ou ridículos. Poucas caracte-
arroz da mesma tijela". Quando Jesus mergulhou suas rísticas culturais causam uma impressão mais forte em
mãos no mesmo prato que Judas estava enfatizando o elo quem viaja do que os costumes alimentares, e referên-
entre eles que seria logo mais traído. cias depreciatórias à alimentação tradicional de outros
A continuidade com o passado ancestral e a presen- grupos serve bem como demonstração de nossa xenofo-
ça psíquica do recém-falecido é reconhecida na prática de bia. "Não tenho nada contra eles, é o cheiro da comida
um convite que se faz ao morto para que venha mais uma que eles fazem". Há apelidos para grupos culturais con-
vez comer com os vivos. Os antigos gregos serviam forme o que eles comem. Os ingleses chamam os france-
nekrodeipna aos recém-falecidos, e esse é um costume ses de "rãs", e os alemães de "repolhos". Os franceses re-
ainda bastante difundido, sendo inclusive reservado um ferem-se aos ingleses como "les rosbifs" (os rosbifes). O
dia em especial para essa comunhão com os mortos. No termo "esquimó" é uma corruptela de um termo indígena
Egito, por exemplo, as famílias fazem piqueniques nas norte-americano que significa "aquele que come carne
tumbas dos parentes, e em muitas partes do mundo são crua", e os menonitas que migraram do México para
assados ''bolos para a alma" especiais. Os mais famosos Ontário são menosprezados como "comedores de tacos".
talvez sejam os do Dia dos Mortos dos mexicanos, um
Um reduzido contingente de homens brancos vivia no
colorido ritual comunitário de celebração onde são feitos Forte Yukon. Esses homens estavam em campanha havia
estandartes, fantasias e coroas específicas de flores, além muito tempo. Eles mesmos se chamavam "pãozinho aze-
de oferendas de alimentos. Um tipo particular de pão, do". Pelos outros homens, que eram novos ali, não sen-
pratos e bebidas laboriosamente preparados e enfeita- tiam nada além de desprezo. Os que desembarcavam em
dos são depositados em mesas decoradas que servem terra firme, oriundos dos vapores, eram os recém-chega-
dos. Eram chamados de chechaquos, e sempre ficavam
como altar de oferendas. Depois que as almas extrairam abatidos quando esse nome lhes era aplicado. Faziam seu
invisivelmente a essência do alimento ele é dividido en- pão com farinha de trigo e essa era a invejável diferença
tre os vivos. Esse ritual de vinculação com os mortos re- entre eles e os "pãezinhos azedos" os quais, em seu de-
força a sensação de uma continuidade com o passado e, samparo, não tinham farinha de trigo para cozinhar. 2
ao proporcionar uma oportunidade em que os mortos po-
dem ser lembrados e apaziguados, também funciona como
proteção para os vivos contra efeitos possivelmente da- 2 Jack London, White Fang, p. 242.

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Varia muito o que é considerado um alimento ade- ciente ou inconscientemente declaram suas afiliações
quado para os seres humanos. A pastinaga é uma hor- grupms.
taliça consumida na Grã-Bretanha e um alimento des- Universalmente, um casamento, enquanto união não
prezado na Suíça como "comida de bicho", ao passo que só de noivo e noiva mas também de duas famílias, envol-
no Ocidente em geral o importante painço é comida de ve a reunião dos dois lados para que participem de uma
passarinho, só serve como semente de forragem para aves. mesma refeição para demonstrar sua nova vinculação de
Comer o que outra cultura come é um passo no sentido parentesco. Sentar-se junto para comer significa deixar
da assimilação; a publicidade de uma cadeia americana de lado as diferenças, e por isso existe o tabú contra dis-
de lanchonetes no Japão sugeria que o consumidor japo- cutir assuntos controversos durante as refeições. A mesa
nês ficaria alto e loiro, objetivando claramente a explora- de jantar pode ser um local de conciliações em que os
ção de certas aspirações ao apelar a uma camada psíqui- adversários descobrem sua recíproca humanidade co-
ca mais primitiva. A alimentação hindu, cuja base é o mum. Esse é um lugar em que o relacionamento é ali-
arroz, advertia Brillat-Savarin, tornava-os doces, aco- mentado e em que ocorrem demonstrações de afeto por
vardados e fáceis de serem conquistados. 3 Muitas vezes parte dos participantes da refeição. Um rabino disse, certa
tem sido alegado também, que o alimento dos campone- vez, que quando morresse gostaria de ser enterrado em
ses embruteceria o aristocrata e que pratos aristocráti- sua mesa da sala de jantar, pois ali tinha sido o local em
cos deixariam o camponês doente, ou seja, cada qual deve que passara os momentos mais felizes de sua existência.
comer de acordo com sua situação de vida. Massimo Até mesmo o almoço de negócios busca capitalizar
Montanari retoma a narrativa de uma história do século esse efeito de harmonização, para criar uma atmosfera
XIV, de autoria de Sabadino degli Arienti, em que um em que se possa chegar a algum acordo. Um pequeno
camponês rouba pêssegos do jardim de seu senhor. Ele é milagre acontece em 1993, quando o Primeiro Ministro
punido e dizem-lhe: "No futuro, deixe as minhas frutas Rabin de Israel, e Yasser Arafat, líder da Organização
em paz e coma a sua própria comida, que é composta de para a Libertação da Palestina, foram convidados para ir
nabo, alho, alho-poró e cebolinha com pão de sorgo".4 à Noruega, bem longe da irredutível atmosfera política
Uma vez que nosso estômago pede comida em in- de suas pátrias. Passaram algum tempo comendo juntos
tervalos freqüentes, a oportunidade de participar dos e caminhando um na companhia do outro em locais agra-
rituais culinários de nossa própria cultura apresenta- dáveis, e chegaram a um acordo que depois levaram de
se, se tivermos sorte, várias vezes ao dia, em momen- volta para seus respectivos países.
tos culturalmente determinados, de tal sorte que essa Questão espinhosa é justamente quem convidar para
afirmação de nossa pertinência grupal se torna rotinei- vir à mesa. Preferimos convidar somente aqueles com
ra. Vimos como, segundo Gerald e Valerie Mars, os indivi- quem nos sentimos confortáveis, mas os excluídos podem
dualistas, tradicionalistas, igualitários e fatalistas cons- sentir-se ofendidos e causar problemas. No casamento de
Peleus e Tétis, homenageado pela presença dos doze Olím-
3 Physialagie du Gaut, p. 57. picos, Eris (Contenda) foi compreensivelmente deixada
4 The Culture af Faad, p. 86. de fora. Ela conseguiu furar a cerca, de alguma maneira,

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e atiçou a competitividade entre Hera, Atena e Mrodite, gasts e ao antigo eslavo gosti originalmente significava
e disso resultou a guerra de Tróia. Na celebração do nas- um desconhecido que se colocava em um relacionamento
cimento da "Bela Adormecida", foram convidadas apenas compensatório ou recíproco, algum que poderia devolver
doze fadas. A décima-terceira chegou sem convite e des- a gentileza. 5 As idéias de troca e igualdade são inerentes
fechou sua maldição. O elemento incompatível que bani- a esse termo.
mos da consciência tem seus próprios meios de aparecer Os gregos entendiam que anfitrião e convidado eram
nos momentos mais inconvenientes. Melhor oferecer-lhe adeptos de uma espécie de pacto que envolvia a troca de
um lugar à mesa, de modo que dali possamos vigiá-lo. A presentes; essa xenia estava sob a proteção de Zeus
mãe que tinha proibido o filho de mencionar um assunto Xenios, e também era transmitida aos descendentes. O
delicado durante a refeição deu um suspiro de alívio quan- crime de Páris foi ele ter violado o contrato sagrado ao
do ele se levantou para ir brincar, pensando que tinha seduzir a esposa de seu anfitrião. O termo iraniano para
conseguido enquadrar o pestinha; voltando-se para seu convidado, meh-man, tem relação com o munus do latim,
convidado ela perguntou: ''Você vai querer creme com a órgão público que tem a obrigação de financiar o entrete-
sua verruga?" nimento para o povo, e sua raiz significa "o presente que
Por outro lado, podemos fazer com que a pessoa que carrega a obrigação da retribuição". Comunidade, nesse
não foi convidada se sinta bem-recebida. Uma mulher sentido, é "um grupo de pessoas unidas por esse elo de
sonhou o seguinte: reciprocidade", e a comunhão é o rito que a consolida. 6
Os árabes dizem que aquela pessoa com quem você
Estou numa sala onde há uma grande mesa, com muita
gente sentada em volta. Não consigo me lembrar repartiu o sal será um amigo para sempre; em inglês fa-
detalhadamente quem estava lá, mas é o grupo de amigos lamos de pessoas que repartiram o pão. Os convidados
de sempre. Ao meu lado, há uma cadeira vazia. também devem reconhecer e apreciar o que estão rece-
bendo, pois o que o anfitrião está oferecendo é amizade.
Quem sabe quem pode ser o estranho que bate à por- Recusá-la seria criar inimizade. Um conhecido que esta-
ta? Os judeus reservam uma cadeira para Elias, no seder. va desesperado com a quantidade de pratos servidos num
N a Grécia, antes da última guerra, as pessoas sempre banquete em Marrocos, e tentava se desculpar alegando
tinham um lugar para Jesus ou para um desconhecido. um estômago fraco, foi firmemente informado que: "A
Essa disponibilidade para recepcionar o novo não conse- comida de amigos é remédio". As pessoas que estão se-
gue existir em um contexto de imobilismo defensivo. guindo restrições de dieta podem causar incômodos à
A existência de regras a respeito da hospitalidade é mesa, pois não estão participando totalmente. É preciso
universal. As palavras "anfitrião" e "hóspede" têm essen- fazer um esforço de consciência para separar os princí-
cialmente a mesma raiz, como se vê, por exemplo, em pios da partilha e da generosidade, de um lado, da subs-
francês, em que o termo hôte tem ambos os sentidos; os tância concreta dos alimentos, de outro, para perceber
papéis são intercambiáveis, pois de todo modo o vínculo é
estabelecido e cercado por obrigações. O termo em latim 5 Ver Emile Benveni8te, Indo-European Language and Society, pp. 7188.
para convidado - hostis - que corresponde ao gótico 6 Ibid.

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que uma troca equivalente pode acontecer em um plano pleta sozinha. Tinha sido criada pela avó materna e pela
mais sutil; e que forçar alguém a comer quando essa pes- mãe depressiva, e desprezava esta última por causa de
soa não quer ou poderia prejudicar-se dessa maneira, é sua atitude negativa e temerosa diante da vida. A mãe
um ato maldoso. nunca se recuperara do precoce término de seu casamen-
Escolher alguém com quem comer é, em toda parte, to e, daí em diante, tinha se afastado do mundo tanto
considerado um ato sério que não deve ser recebido com quanto possível. Vivia em isolamento com sua própria
leviandade. "Quem come com o Demo precisa de uma lon- mãe, uma senhora já viúva.
ga colher". Uma mulher sonhou que estava em uma casa As três mulheres do sonho evocam a forma tríplice
grande e elegante que pertencia a pessoas desconhecidas da deusa, como virgem, mãe e velha, assim como a cor-
e poderosas, que a convidaram para vir à mesa e comer rente que une a linhagem feminina. A única associação
em sua companhia. Ela sentiu-se lisonjeada. Quando, pessoal de J eannette com abacaxi foi que era usado como
enfim, chegou à sala de jantar, estava cheia de figuras, motivo decorativo no edifício por onde ela havia passado
parecidas com zumbis, vestidas como monges, que tinham muitas vezes com o homem que tinha amado e que, sen-
de comer em turnos, e ela deveria reunir-se a eles. A at- do casado, tinha recentemente resolvido voltar para a
mosfera era desagradável, e a sonhadora temia tornar- esposa. Classicamente, o abacaxi está associado com
se como aqueles comensais uniformizados, de modo que Cibele, a grande deusa mãe da Ásia Menor. É composto
se absteve. O sedutor convite para se reunir aos podero- por numerosos outros frutos pequenos que crescem e se
sos elementos inconscientes, de aparência tão atraente, unem num só e, por isso, serve de representação do mui-
para se identificar com eles ao partilhar dos mesmos ali- to contido no um, como a romã, outra fruta associada a
mentos, arrastaria a sonhadora a uma estéril conformi- deidades femininas.
dade e avareza de recursos, talvez associadas a uma fal- Jeannette comentou que sua mãe, na verdade, ja-
sa espiritualidade. Felizmente, ela reconheceu o perigo e mais teria servido um abacaxi fresco, como acontecera
se recusa a participar. no sonho; ela abriria uma lata de conserva. O sonho apon-
Jeannette, uma mulher solteira de quarenta e pou- ta de volta, da mãe pessoal do século :XX, até uma figura
cos anos, teve o seguinte sonho: arquetípica. Ao falar sobre esse sonho e sobre o que pode-
Estou sentada à mesa com minha mãe e avó. Minha mãe ria significar ela estar repartindo comida com sua mãe,
preparou um abacaxi, retirando-lhe a casca. Cadà uma Jeannette percebeu, chocada, o quanto, como sua mãe,
de nós come uma quarta parte da fruta. A fatia final deve ela se havia afastado da vida, tornando-se uma pessoa
ser guardada para uma mulher desconhecida que irá usá- indisponível e negando-se uma atividade significativa.
la como recipiente em alguma espécie de rito. Comer a comida da mãe significava permanecer em um
estado de identificação inconsciente, não plenamente
Jeannette tinha vindo para terapia com depressão nascida para a sua individualidade, condenada a partici-
crônica, tentando entender por que era incapaz ou de par do destino isolado de sua mãe e de sua avó. O sonho
encontrar um parceiro com quem se acertar, ou de locali- indica a saída para essa situação, ao sugerir que a ener-
zar seus próprios recursos internos para sentir-se com- gia deve ser encaminhada para a mulher desconhecida.
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Uma refeição pode ser uma oportunidade tanto para Uma mulher que tinha finalmente conseguido en-
uma interação livre, quanto, por outro lado, para uma contrar sua própria identidade, separando-se das expec-
demonstração de hierarquia, como vimos nos momentos tativas dos pais e se libertando dos efeitos de um sufo-
em que a carne é dividida e distribuída de acordo com o cante contexto familiar, teve um sonho em que voltava à
status. Os poucos escolhidos podem comer em separado casa de infância e a pintava toda de novo, após o quê,
na sala de refeições executiva, ou na mesa mais elevada. pôde deixá-la e olhá-la novamente com tristeza, pois seus
Lugares planejados deixam claro quem tem o privilégio pais continuavam lá dentro. Ela pintara a casa toda de
de ficar perto do dono da mesa, acima do sal, e as pessoas branco, e colocara tapetes cor de creme ou claros, mas
mais importantes entram primeiro na sala, são servidas hesitara quanto à sala de jantar, que tinha um tapete
primeiro, e devem começar antes dos demais. Nasala de vermelho (como havia sido realmente). Era aquele o apo-
jantar da classe alta na Inglaterra, por exemplo, não é sento em que a família inteira costumava se reunir, in-
raro que surjam debates a respeito de se o primo de um cluindo os avós, e onde a mãe estava em seu elemento,
barão deve ter precedência em relação à filha de um desfrutando de toda a família e sendo elogiada pela co-
baronete. A questão da hierarquia foi lindamente resol- mida que preparara. O cálido halo vermelho da união
vida pelo legendário Rei Artur com sua igualitária távola familiar era a pulsão regressiva mais difícil de ser supe-
redonda. As obrigações seguem o recebimento de convi- rada, e a sala de jantar o local mais resistente à transfor-
tes preferenciais da parte dos superiores pois a lei da re- mação.
ciprocidade ainda afirma que não existem almoços gra- A mesa é uma imagem evocadora. O seguinte trecho
tuitos. "Quando te assentas para comer com um chefe, vem de um sonho que se passa em uma casa ocupada
presta atenção ao que está à tua frente; ... Não cobices pela sua parceira:
seus manjares porque são alimentos enganadores". (Pr Fico chocada pelo péssimo estado de conservação de uma
23,1-3) peça de mobília que meus pais deram, é uma espécie de
A mesa é tradicionalmente um foco importante do mesa estranha, preta, ... gasta, lascada, barata. Acho que
processo de socialização das crianças, onde elas devem ela vai ter de ir embora.
aprender a autocontenção, a deferência e as regras do A primeira associação da sonhadora com "mesa" foi
clã, e a mesa de nossa infância é geralmente o local onde "reúne as pessoas". Essa mesa herdada não parecia ser
se concentram as recordações da família. Más experiên- capaz de fazer isso muito bem, e era mais uma estrutura
cias vinculadas com a mesma podem levar a uma fobia velha que já tinha se tornado obsoleta.
social por restaurantes ou refeições coletivas. Um bem- Refeições feitas em conjunto, e menús rituais tradi-
sucedido profissional se percebia incapaz de comer com cionais, encarnam a estabilidade social. Nas sociedades
seus clientes, ou em comemorações em família, sem ser atuais, em que o grupo familiar extenso acabou por se
atacado por dores de estômago ou enjôos. Essas ocasiões ver rompido e em que até mesmo a família "nuclear"
constelavam o pai opressor cujas regras de conduta eram freqüentemente está incompleta, em que as mães têm
absolutas, e cuja punição pelas transgressões era extre- pouco tempo para preparar a comida, a refeição familiar
mamente destrutiva. regular é geralmente substituída por comida pré-prepa-
120 121
rada, instantânea. Para muitas pessoas que estão cres- 4
cendo atualmente, a mesa terá perdido seu significado
tradicional. A falta de uma coesão social espelha-se em ASSIMILAÇÃO
padrões alimentares irregulares, em sanduíches engoli-
dos às pressas e em trânsito, em cafés da manhã toma-
dos em pé, num balcão, em alimentos cujas porções já
vêm embrulhadas, em marmitas comidas em silêncio e
solitariamente. Quando as pessoas moram sozinhas, como Alguns livros são para serem saboreados; outros, engolidos, e
é tão comum hoje em dia, geralmente deixam de cozi- poucos são para serem mastigados e digeridos. - Francis Bacon
nhar e pronto. Quando o alimento não é preparado para
ser dividido, perdemos um importante ritual de expres-
são de nossa identidade social e de demonstração de nos- Talvez o modo mais agressivo de você poder se rela-
so afeto pelos outros. cionar com o que não é você, impondo-lhe completamente
Por outro lado, temos hoje maior flexibilidade uma sua vontade, seja comê-lo. Nesse processo, é destruída a
. . '
maIOr lIberdade em relação à tirania de horários fixos integridade do alheio; ele é desmembrado mecanicamen-
para se comer, e um ecletismo alimentar que correspon- te e repartido no nível químico em moléculas progressi-
de a uma equivalente possibilidade de livre interação so- vamente menores, através da ação de enzimas excretadas
cial. Hoje é mais que nunca uma questão de escolha que pelas glândulas salivares, pelo estômago, pâncreas e in-
grupo recebe nossa demonstração expressa de afiliação, testinos. Você assimila, quer dizer, esse "outro" é conver-
por uma afinidade gastronômica, e pelas receitas que ofe- tido em corpo, é digerido pelo corpo de quem o come. A
recemos. própria palavra "digerir" vem do latim digerere, que sig-
nifica repartir. "Aquilo" deixa de existir. O assassino em
série Jeffrey Dahmer disse que comia sua vítimas para
poder saciar seu desejo de exercer completo controle so-
bre elas.
O que você come surte seu efeito, positivo ou negati-
vo. No "Corpus Hippocraticus" dos antigos escritos médi-
cos dos gregos está dito que

cada uma das substâncias da dieta de uma pessoa age


sobre seu corpo e o modifica de alguma maneira; dessas
mudanças depende sua vida inteira, quer ela esteja sa-
dia, doente ou convalescendo. 1

1 Hippocratic Writings, p. 78.

122 123
A atual teoria médica, em si mesma, reparte o que camente verdadeira mas, certamente, o é quando vista
comemos em gorduras, carbohidratos, proteínas, vitami- pelo prisma da imaginação.
nas e minerais, e tem como objetivo definir o efeito que A fantasia de que, comendo, adquirimos as caracte-
cada componente tem, em que quantidade e em quais rísticas de nosso alimento é praticamente universal.
combinações. A medicina sempre considerou que a dieta James George Frazer escreve:
é importante para a manutenção da saúde e o tratamen-
to das enfermidades, embora o sistema ayurvédico de Alguns índios brasileiros não comem animais selvagens,
aves ou peixes, que corram, voem ou nadem devagar, pois
medicina hindu, em toda a sua elaborada sofistica- se ingerirem essa carne perdem sua agilidade e tornam-
ção, seja um modelo singular quanto à sua medicina se incapazes de escapar de seus inimigos. Os Caribs ...
dietética. Este classifica todos os ítells comestíveis de recusaram-se a comer tartaruga, temendo que, se o fi-
várias maneiras, e prescreve-os para neutralizar todos zessem, tornar-se-iam pesados e burros como esse ani-
os desequilíbrios específicos do corpo. O alimento oníri- mal. 3
co cumpre essa função no nível psíquico, mas quem a
prescreve? Num sonho de uma pessoa que estava em terapia,
A psique tem seu próprio método de enxergar a in- ocorreu uma luta entre serpentes e gatos. Parecia que as
fluência que exerce sobre nós aquilo que comemos. Isso serpentes tinham vencido e devorado os gatos, pois nesse
é reconhecível a partir de nossos sonhos e histórias e momento, as serpentes que tinham se tornado peludas
das projeções que fazemos sobre os alimentos. Por exe~­ se aproximaram da sonhadora e esfregaram-se contra ela
pIo, os afrodisíacos na qualidade de portadores de nos- como gatos, e apesar de sentir um pouco de medo ela pa-
sos desejos eróticos, são geralmente considerados como rou para pegá-las e colocá-las no colo. As serpentes come-
tais porque lembram os genitais feminino e masculino. ram os gatos e ficaram felinas, como se passassem a ter
A úmi~~ ~ secreta carne da ostra é uma representação sangue quente, doméstico. O componente inconsciente
da gemtalIa da mulher e, de acordo com Margaret Visser, mais arcaico e profundo tinha temporariamente vencido,
no vale do Nilo, o alface é ainda popularmente conside- mas isso provocou um contra-movimento ao trazer tal
rado facilitador da fertilidade masculina, pois antiga- conteúdo para mais perto da consciência, de tal sorte que
mente era associado à deusa egípcia Min, regente da pudesse ser abraçado. De maneira relativamente pareci-
fertilidade. A variedade local do alface é falicamente da, na mitologia grega, Zeus primeiro casa-se com Métis
pontuda e, além disso, essa hortaliça produz um fluido e depois, com receio de cumprir as profecias relativas a
l~itoso semelhante ao sêmen. 2 A assinatura de sua qua- seu futuro filho, come-a. Em certo sentido, sua conquista
lIdade terapêutica é visível na planta. Coma alface e você está completa mas ela continua tendo uma quase-exis-
vai ad.quirir suas qualidades de ereção e produção. A tência dentro dele, e, da barriga de Zeus, aconselha-o.
Doutrma das Correspondências pode não ser empiri- Ele adquire a sabedoria que ela tem e ainda mais sua
capacidade de dar à luz.

2 Ver Much Depends on Dinner, pp. 19488. 3 The Golden Bough: A Study in Magic and Religion, pp. 649, 651.

124 125
Desse modo, parece que, do ponto de vista da com- Pode-se indagar em que ponto dessa atividade
preensão psíquica, a assimilação é um processo de inter- peristáltica e enzimática aquela outra coisa que eu inge-
câmbio, quer dizer, quem come também é assimilado pelo ri passa a ser eu; nesse nível, porém, não se pode mais
comido. O mais próximo que a natureza chega disso é no pensar em termos de si-mesmo e outro, mas sim, apenas
caso do pI ateI minto Microstomum caudatum, que se ali- em processos químicos ou psíquicos.
menta do pólipo de água corrente denominado Hydra e Ao assimilar as experiências com todo o seu conteú-
absorve suas células tóxicas, separando-as do resto do do emocional, suas informações factuais e suas idéias,
corpo da Hydra, o qual atravessa todo o processo digesti- podemos encontrar dificuldades que podem ser imagi-
vo desse platelminto. "Depois elas são depositadas na nalmente expressas em termos digestivos, ou através tam-
superfície do corpo do platelminto onde servem como uma bém de problemas físicos de alimentação. Podemos citar
espécie de mecanismo de defesa pirateado".4 um exemplo da autobiografia de Jung, na qual ele men-
Essa aquisição literal das características físicas do ciona uma enterite infecciosa que o atacou quando viaja-
elemento comido é uma raridade no mundo da matéria va pelo norte da África, e que considerou de natureza
mas, metaforicamente, transmite uma verdade psicoló- psicossomática. Essa doença pode ser entendida como um
gica. Quando assimilamos alguma coisa, nossa intenção reflexo de sua luta para assimilar a avalanche de novas
é adquirir algumas de suas qualidades, ou ser por elas impressões. 5
influenciados. N o processo da assimilação, "toda pressa é coisa do
O corpo que eu alimento é aquele para o qual apon- diabo", como diriam os alquimistas. A boa digestão exi-
to, para indicar "eu" (ego). Essa é a forma de mim; a ge um estado de relativa tranqüilidade. Nos estados an-
pele é meu limite territorial; os orifícios, pontos de en- siosos, quando os mecanismos de "fuga ou luta" são
trada ou saída entre mim e os outros. Isso é verdadeiro ativados, o sangue acorre para os músculos das costas,
tanto para o corpo imaginaI como para o físico. Assimi- dos braços e das pernas, ao passo que os processos di-
lar, incorporar, introjetar alguma coisa que vem de fora gestivos são suprimidos; daí, portanto, a familiar asso-
tem como finalidade integrá-la neste "mim". No decurso ciação entre ansiedade e problemas digestivos (perda
do processo de digestão psicológica, torno-o meu; acaba de apetite, boca seca, globus hystericus, bolo ou nó no
por fazer parte de minha identidade. Nada, evidente- estômago, diarréia, perda do controle esfincteriano, etc.)
mente, é jamais assimilado por completo, seja fisiológi- Está demonstrado que a assimilação de informações é
ca, seja psicologicamente. Parte do objeto será descar- inibida durante estados de excitação, medidos por exem-
tada. Assim como, apesar do fato de o ego ser o centro plo pelos batimentos cardíacos. 6 Assim que esse efeito
da consciência, o processo não é inteiramente conscien- vai sumindo, começamos a ser capazes de digerir a ex-
te. Uma grande parte da assimilação se dá fora do al- periência, integrando-a em nossa malha psíquica, e o
cance da visão, dentro daquele laboratório interno e es-
condido, o inconsciente. 5Memories, Dreams, Reflections, p. 270.
6Lacey et aI., "The Visceral LeveI: Situational Determinants and
Behavioural Correlates of Autonomic Response Patterns". Sou grata a Michael
4 The Oxford Companion to Animal Behaviour, p. 210. Chance, que faz referência a esse artigo em um manuscrito inédito, de 1993.

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fogo da emoção pode produzir a luz da consciência. A Um restaurante é um lugar para assimilação, e tam-
doença ou depressão que nos acomete após um período bém um local público, mas não indiscriminadamente co-
de estresse forçam-nos a ir mais devagar e a nos dar tem- letivo como seria uma rua ou feira. Contém um número
po para absorver o que aconteceu. limitado de clientes, pode ser exigente quanto a quem
Examinemos mais de perto o processo de assimila- deixa entrar, e só está aberto para aqueles que podem
ção do aprendizado. Incorporamos fatos e idéias que po- pagar o preço. O restaurante do sonho era pequeno e pare-
dem ser mais ou menos digeríveis. Nós os analisamos cons- cia muito caro; lembrava um certo local para "gourmets",
cientemente, comparando as novas aquisições informati- ao qual eu tivera o privilégio de ir para comer, algumas
vas com o material até então absorvido ou trabalhado, vezes, durante a faculdade, e onde participara de algu-
mas, para uma grande parte desse processo, precisamos mas discussões penetrantes. Aesse restaurante ia-se por
confiar no inconsciente para fazer as conexões. Depois de causa de um menú em particular e Jung, aparentemen-
algum tempo, estaremos em condição de aplicar o novo te, estava no cardápio onírico.
conhecimento, mas ele será então a nossa versão sobre N a época em que tive esse sonho, estava lendo de
ele. Haverá trechos que teremos conscientemente rejei- Jung um ensaio intitulado "Sincronicidade: Um princí-
tado e aspectos que de alguma maneira não terão conse- pio de conexão acausal", que primeiramente havia lido
guido se encaixar em nosso corpo pré-existente de com- durante o curso de graduação, muitos anos antes. Agora
preensões, mas se nós não "o tivermos tornado nosso" não estava indo novamente em busca daquelas informações,
seremos capazes de pô-lo em uso; conseguiremos tão so- desta feita, aparentemente, levando-o para casa para lê-
mente regurgitá-lo. Do mesmo modo, se lemos alguma lo em um espaço mais pessoal. Os jovens evocavam a vida
coisa de forma "digerida", distorcemos nossa possibilida- estudantil; e a moça de sapatos de cetim azul glacial, que
de de digerir aquilo por nossos próprios meios. indicavam frias posições, que não poderiam ser nem con-
Meu sonho do restaurante, citado anteriormente, 7 fortáveis nem oferecer um contato muito seguro com o
pode ser visto como associado a esta etapa de digestão de chão, fazia-me recordar de mim mesma naquela idade.
uma teoria. É assim: Adotando a sugestão de seu companheiro masculino, es-
tava ansiosa para se envolver em umjogo intelectual (xa-
Volto a um restaurante onde tinha deixado o volume VIII
drez). Também isso era uma questão de estar na moda,
das Obras Completas de Jung sobre uma mesa. Numa
mesa próxima estão alguns estudantes que me convidam como seus sapatos, que precariamente estavam prontos
para sentar-me com eles. Sento-me perto da moça que está para entrar na dança. A alusão ao jogo intelectual era
usando sapatos de cetim azul glacial, pontudos, de saltos uma sugestão a respeito dos perigos da competitividade.
altos, do tipo adequado para acompanhar vestidos de noi- O sonho declara que agora alcancei uma posição da qual
te. O rapaz à sua frente sugere que todos vão até um local observo, mas o processo continua em frente.
da moda onde sejoga xadrez. Ela fica entusiasmada para
ir. Eu digo: "Prefiro observar". Claro que a teoria pode "nos" assimilar, embora pen-
semos que é o contrário que está acontecendo. Novamen-
te, muitas vezes é a emoção que a teoria desperta em nós
7 Acima, p. 34. que pode obstruir o trabalho das enzimas psíquicas. O
128 129
abraço mais que dedicado de um corpo de idéias ou cren- dá à luz é masculino. Por exemplo, imagens daquela
ças, sem um trabalho interior de discriminação e frag- misteriosa figura vegetativa do Homem Verde geralmen-
mentação para fins de absorção, significa alimentar o te mostram-no produzindo uma aparente folhagem, que
dogma às custas de nossos julgamentos individuais, mui- sai de sua boca, e é a boca de Deus que dá nascimento ao
tas vezes parecendo que oferece, ao contrário, algo de valor Verbo.
ou libertário para os outros. Na qualidade de cientólogos, Nossas papilas gustativas, localizadas nas membra-
evangélicos, marxistas ou existencialistas, acabamos por nas mucosas da língua e do palato, são uma fonte de gran-
nos tornar escravos desajeitados de um sistema simplifi- de prazer e facilmente nos distraem, levando-nos a satis-
cado, tragados pelo complexo coletivo; perdemos nossa fazer a boca em detrimento do estômago. O primeiro sabor
integridade e nossa própria maneira de apreender a rea- que aprendemos a reconhecer, quando bebês, é o da doçu-
lidade, consumidos pela paixão. ra. Os doces são um dos inocentes prazeres da infância,
antes que possamos nos imaginar usando dentadura, e
tanto a compulsiva ingestão de doces como de alimentos
o processo alimentar adoçados, nos sonhos, pode refletir o desejo de uma re-
gressão até esse estágio. Na qualidade de nossa mais
A boca: a entrada profundamente situada sensação de prazer, a doçura pron-
tamente se transfere, de maneira metafórica, para ou-
O acesso ao canal alimentar é a boca que, do ponto de tros objetos de desejo:
vista econômico, junto com a garganta, também serve à
função de produzir a voz e formar a fala. Uma grande par- As rosas são vermelhas, e as violetas, azuis
O açúcar é doce e você também.
te do córtex sensorial está associada com essa parte do
[Roses are red, violets are blue,
corpo. Esse é um orifício grande e que chama a atenção, e Sugar is sweet and so are you.l
ficamos até certo ponto constrangidos quando alguém a
escancara para expor toda a sua cavidade bucal. Isto é As canções pop são fontes abundantes de maneiras
admissível para cantar, mas em geral não cai bem quando carinhosas de tratar a pessoa amada tais como "doce do
se está comendo, pois, talvez assim, nos lembre de nossas meu coração", "favo de mel", "torta de açúcar" e assim por
necessidades primitivas e, talvez, também assinale os hor- diante, como na música tão famosa do grupo The Band:
rores de ser devorado. Não é o único modo pelo qual inge- Mas existe uma coisa em todo esse vasto mundo
rimos os elementos de que necessitamos para manter nos- Que eu certamente adoro ver
so corpo - o nariz e a pele também servem - mas ela É como aquela minha querida coisinha doce
recebe e acolhe os elementos mais óbvios e volumosos. Pelo Mergulha o pãozinho no meu chá. 8
nariz assimilamos o ar, mas hálito é espírito; o que pene-
N ow there's one thing in the whole wide world
tra pela caverna maternal da boca é a matéria. I sure do love to see
Em seu simbolismo maternal, a boca também pode
ser uma espécie de vagina, especialmente quando quem 8 "Dp on Cripple Creek," de J.R. Robertson.

130 131
That's how that little sweet thing of mine Paris, cidade amante da boa mesa, gasta literalmente
Puts her donut in my tea. uma pequena fortuna para recepcionar com um banque-
N a tradição judaica, maçãs caramelizadas são ofe- te sua comunidade adotiva, composta por austeros pro-
recidas para adoçar o novo ano, ao passo que ervas amar- testantes, tementes do prazer.
gas comemoram as atribulações dos ancestrais. "Ado- O palato capaz de discriminar tem mais a ver com os
çadores" são oferecidos como convites a acordos, e o deus refinamentos do prazer do que o bem-estar corporal, mais
chinês da cozinha, Tsao Chun, é presenteado com alimen- com Afrodite do que com Higeia. No antigo Egito, o
tos doces em sua viagem anual aos céus, para que só diga hieróglifo para "nariz" significava tanto "olfato" como "sa-
coisas boas a respeito daquele lar. Geralmente, a ima- bor" (os quais, evidentemente, estão bastante próximos
gem da doçura representa aquilo pelo que ansiamos na fisicamente) e ainda "gozar", "sentir prazer em". Bom
vida. Na pior das hipóteses, uma coisa pode ser doce "de- gosto introduz beleza e sutileza em nossas vidas, e suavi-
mais", doentia, melosa, sentimental, mas basicamente za nossos relacionamentos com os outros. O mau gosto é
ficamos felizes quando a vida é doce mais do que amarga chocante, corrosivo, repulsivo, embora sem dúvida possa
ou azeda. Sonhar que se come algo doce pode relacionar- ser um prazer cultivá-lo deliberadamente pelo efeito que
se com a assimilação de doces verdades, ou, segundo surte.
Edward Edinger, indicar "que chegou o momento de le- Uma mulher sonha que pede uma garrafa de cerveja
var à realidade concreta determinadas introvisões cons- gelada. Não é só qualquer tipo de cerveja, mas uma marca
cientes, ou ir em busca dos próprios desejos".9 em particular, que não é só típica por seu sabor sutil, agra-
Mas a doçura não é tudo. O sal da terra e o tempero dável ao paladar, mas também porque vem engarrafada
da vida são indispensáveis e existe lugar também para o num vasilhame específico, e tudo isso faz parte da anteci-
penetrante e o adstringente, para não mencionar as tex- pação do prazer da sonhadora. Não se trata de uma bebi-
turas mais variadas como o crocante, o macio ou o cremo- . da vertida em grandes quantidades por mãos de machos
so. Nosso gosto pessoal é aquilo que nos dá prazer (e gos- desregrados, mas um líquido com certo refinamento, que
to não se discute), e onde o prazer é objeto de aversão, co- ela planeja saborear lentamente. A sonhadora é uma pes-
midas saborosas são desencorajadas. Delicioso pode signi- soa de bom gosto que pretende alimentar seu requinte
ficar perverso, ruim, auto-indulgente. Na Grã-Bretanha, além de se oferecer um pouco mais de soltura. O ''barman'',
"comida boa, inteira", ainda contém nuances de algo sim- no entanto, que ela associa a seu pai mandão, lhe traz um
ples, não adulterado, de uma correção auto-importante, tipo diferente de garrafa, parcialmente contendo um lí-
e da boa e simples vida do temente a Deus. Uma história quido aquecido, sem cor, que tem o desagradável odor de
de Karen Blixen, A festa de Babette, filmada em 1987 por álcool puro e que lhe diz, quando ela reclama, que certa-
GabrielAxel, apresenta de maneira maravilhosa o embate mente é isso que ela quer de verdade. A implicação perce-
entre a virtude e a volúpia quando a heroína, ex-chef em bida é que ela só está fingindo um traquejo social, e na
realidade pretende mesmo é se embebedar.
9 The Mysterium Lectures: A Journey through c.a. Jung's Mysterium Nessa altura, a sonhadora se torna violentamente
Coniunctionis, p. 289. enraivecida. O bom gosto acaba de abandonar a situa-
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ção. Seu desejo por elegância e refinamento é distorcido volvemos a interioridade alimentando-nos do externo.
por esse homem interno grosseiro e cínico, com seu ata- Pode-se evidentemente contra-argumentar, dizendo que
lho curto e grosso até a falta de controle, e ele só conse- desde o começo nossa realidade interna oculta também
gue alimentar a fúria da sonhadora. No entanto, ele é o está bastante ocupada, criando o mundo externo, mas
portador da essência "mais pura", e se for bem recebido essa não é uma questão oral.
pode mostrar-se de um valor inestimável. A metáfora da alimentação refere-se sem dúvida ao
Uma boca grande é considerada sinal de sensualida- que ingerimos, de um jeito ou outro, a partir do mundo
de. Lábios carnudos sugerem tanto glutonaria como li- externo, mas também pode ocorrer que sejamos alimen-
bertinagem. Estalando na antecipação de coisas delicio- tados por nosso mundo interior, que nossos labios oníricos
sas, também falam de um contato voluptuoso no beijar. formem um limiar pelo qual o outro, misterioso, possa
As modelos, cuja desejabilidade física é usada para tor- passar a caminho de ser incorporado em nossa noção de
nar mais atraentes as roupas que exibem, estão atual- quem somos, um fruto estranho com sabor incomum, que
mente precisando corresponder a uma exigência de que insiste e perturba, umas poucas gotas de um elixir pos-
seus lábios recebam injeção de silicone para torná-los ain- suidor de uma fragrância esquiva.
da mais lascivos, como os famosos lábios da sedutora atriz
Mae West, tão grandes que parecem ter sido picados por Saliva e antecipação
abelhas. Na convenção iconográfica, as figuras santas são Escolher alguns pratos de um cardápio, ou sentir os
desenhadas com bocas pequenas, apropriadas para aque- diferentes odores que vêm desde a cozinha, tende a indu-
les que estão mais além dos interesses terrenos. zir salivação, aquela excitação do processo digestivo que
Logo após o nascimento, a substância nutritiva cru- Pavlov tornou famosa com seu experimento de condicio-
za regularmente o limiar da boca, de fora para dentro. namento do cão. Um bolo recém-saído do forno pode dar
Já no útero, o orifício alimentar está se preparando para água na boca, mas babar é para cachorros, vampiros,
essa que é uma das mais básicas tarefas da vida infan- criancinhas pequenas, os senis, e os lesionados cerebrais.
til: o feto suga seu polegar da mesma forma como logo Na imaginação, essa atividade nos reduz a uma máqui-
mais no mundo exterior estará sugando o seio, e não na de autolubrificação, defeituosa, incontrolavelmente
muito tempo depois fará a mesma coisa, a título de pes- manipulada pelo instinto.
quisa, com qualquer objeto que lhe esteja próximo ("su- Demonstrar que está com água na boca é um sinal
gar para conhecer".) Muito já se escreveu a respeito do de mau gosto. O produto das glândulas salivares nos ser-
desenvolvimento, no bebê, de uma noção do dentro e do ve muito bem, porém. A saliva limpa a boca. Suas enzimas
fora, e Melanie Klein em particular relaciona essas começam o processo de divisão molecular, e sua alcali-
vivências com o estágio oral e suas imagens. Para ela, o nidade contrabalançam a acidez do estômago. Ela recep-
mundo interno, embora rico território, é essencialmen- ciona a comida na câmara de recepção da boca e a ajuda
te o produto da introjeção; à medida que a realidade a seguir caminho. Uma boca seca pode acompanhar esta-
externa vai sendo incorporada, fornece substância para dos de ansiedade, quando o corpo está mal-preparado para
as imagens que compõem a realidade interna. Desen- comer. Cuspir, no entanto, também tem uma ampla varie-
134 135
dade de significados não alimentares. Existe a cusparada
Os dentes são agentes agressivos primários, atribu-
de desprezo, demonstrando repúdio, mas também a saliva tos masculinos da goela da Grande Mãe, da "vagina
que é oferecida para dar as boas-vindas ao sol nascente. dentata" ou das "garras da morte". O tamanho das pre-
O cuspe pode conter projeções de uma poderosa e essen- sas de uma criatura pode nos impressionar de um modo
cial substância de alma capaz de proteger do mau-olhado horrível, e certos animais são bem aparelhados nesse
e, mitologicamente, pode ser visto como o ingrediente vi- sentido, e podem provocar calafrios, como o lobo, o tuba-
tal a partir do qual o mundo foi criado. rão e o crocodilo, cujas bocas formam parte tão conside-
A saliva tem a conotação de água do espírito. Cristo usou rável e ostensiva de seu corpo,
cuspe para fazer um ungüento ao misturá-lo c?m.argila
para curar o cego. Cuspir ou soprar tem um slgmficado e recepciona pequenos peixes
mágico em todas as partes do mundo. lO Que exibem suas amenas presas sorn'dent es. 11

Os dentes e o lidar com as coisas Ranger os dentes ou esfregar as arcadas uma contra
a outra geralmente indica raiva ou uma determinação
O bebê suga, atividade à qual talvez nos vejamos canina, inquebrantável; é comum enxergar em músculos
reduzidos na velhice, mas comer alimentos sólidos, satis- mandibulares crispados a raiva que foi mastigada e con-
fatoriamente, é algo que exige dentes, postos em funcio- tida. Abocanhar alguma coisa é o momento decisivo de
namento por poderosos músculos mandibulares. Falamos um ataque, quando nos apossamos do objeto, ou de parte
que um funcionário, agência ou legislador não tem den- dele , e o introduzimos em nosso corpo para que seja
tes quando queremos sugerir que é ineficaz. desmembrado e absorvido. Não é uma decisão final pois,
Como as mãos, os dentes - e presumivelmente em se mordemos mais do que conseguimos mastigar, pode-
data ainda anterior à existência de mãos nos nossos an- se cuspir ou vomitar, mas esses são recursos de emergên-
cestrais - são nossos instrumentos e armas mais bá- cia. Mordemos, na expectativa de devorar, e tão logo o
sicos. Ao perfurar, rasgar e cortar são os modelos para a objeto seja mordido, nunca mais será o mesmo daí em
faca e a lança, e ao moer inspiram o pilão, o gral e a moen- diante.
da. Quando conseguimos atacar com os dentes alguma Morder, é óbvio, pode ser um ato de agressão ou de-
coisa, entramos profundamente em contato com elai ata- fesa pura, divorciado de qualquer interesse ou necessi-
camos nossa comida, lidamos com um problema. O den- dade alimentar. Os babuínos machos usam seus caninos
tista onírico, voltado para o estado de nossa mordedura para lutar, assim como muitas outras espécies. Quando
psicológica, geralmente está tentando nos ajudar a lidar rosnamos, expomos os dentes em sinal de aviso, e ~s
com a vida de maneira mais eficiente. Se nossos dentes, crianças pequenas, que ainda não estão aptas ao manejo
no sonho, estão soltos ou caindo estamos correndo o risco de paus e pedras encontram nos dentes um meio eficaz
de perder o nosso controle das coisas. de demonstrar raiva ou maldade, aprendendo desde o

10 Jung, Dream Analysis, p. 221.'


11 Lewis Carroll, Alice in Wonerland, p. 12.

136 137
peito que têm poder de infligir dor. O ato relativamente e arrancar um naco com os dentes, num trabalho contí-
inócuo e geralmente prazeroso do aleitar torna-se inad- nuo sobre algo, numa erosão sem remorsos (do latim
vertidamente alguma outra coisa. "Em sua origem, rodere, de onde também deriva roedor.)
agressividade é quase que sinônimo de atividade". diz Uma experiência afetiva ruim nos rói por dentro. Com
W.D. Winnicott, mas o advento dos dentes e a reação que os molares, morder torna-se mastigar e isso implica em
produzem aceleram o desenvolvimento da preocupação. 12 tempo e paciência. Em nosso modo apressado e inquieto
Ser mordido assusta e machuca, e reagimos a essa expe- de viver, muitas indigestões são causadas por negligên-
riência com cautela. "Uma vez mordido, duas vezes cui- cia da mastigação. Matéria vegetal, especialmente, re-
dadoso". quer um minucioso trabalho de moagem e mistura com
O aspecto erótico da boca, que Freud considerou saliva para se tornar uma substância adequada à atua-
indicativo de que o prazer do estágio oral era basicamen- ção dos sucos gástricos. Por volta do final do século XIX,
te sexual, estende-se aos dentes. aos 40 e tantos anos, Horace Fletcher dos Estados Uni-
O cardápio que prefiro dos descobriu a mastigação e obteve grandes progressos
É a carne do seu pescoço. em sua saúde, maximizando a eficiência de seu metabo-
lismo e reduzindo a quantidade de alimentos ingeridos.
Le menu que je préfere Foi o Fletcherismo. 13
C'est la chair de votre cou O trabalho ritmado das mandíbulas e dentes mola-
res não pode ser realizado numa situação de pressa ou
canta Georges Brassens em "J'ai rendezvous avec
urgência; isso requer uma perseverança repetitiva e de-
vous" (Tenho um encontro com você.) A mordidinha amo-
liberada.Alenta penetração do alimento através dos flui-
rosa diz, como às vezes os adultos informam as crianças,
dos enzimáticos significa voltar várias vezes sobre uma
e os bebês sem dúvida sentem em relação às mães, que
mesma coisa, repartindo-a em pedacinhos menores,
"você é tão gostoso(a) que dá vontade de comer". A ex-
moendo-a, ruminando e refletindo, ritmadamente, sem
pressão máxima da mordida de amor existe na imagem
pressa, como a vaca no campo. A impaciência rompe esse
do vampiro, cujo desejo sexual e fome se mesclam numa
plácido processo, levando-nos a conclusões precipitadas,
orgia sangrenta; a vítima que é mordida desmaia num
ou obrigando-nos a engolir as coisas por inteiro.
misto ambivalente de dor e prazer.
Uma mulher que sempre saltava de um tópico para
outro, em suas sessões de análise, sem nem tomar fôlego,
Mastigação e deliberação
e que regularmente começava seu relato dos acontecimen-
Mordiscar e roer, o que ratos e camundongos tão bem tos da semana ainda enquanto estava tirando o casaco,
exemplificam, são formas mais persistentes e menos dra- sonhou que depois de evacuar viu que suas fezes, na pri-
máticas de atuação dental e mandibular do que dilacerar vada, continham pedaços grandes de cenoura. O que ti-

12 "Aggre88ion in Relation to Emotional Development," em Winnicott, 13 Ver Barbara Grigg8, The Food Factor: An Account of the Nutrition
Through Paediatrics to Psycho-Analysis, p. 204. Revolution, pp. 2488.

138 139
p:esu~ível. que possam sentir o gosto e mastigar, mas
nha sido ingerido havia sido expelido sem passar por uma
nao sao efiCIentes quando se trata de engolir e não conse-
digestão completa. Isso teria pedido um tempo maior de
~em adiantar m~ita coisa para dentro de seu corpo, são
ruminação, dando oportunidade a que seus sucos diges-
Incapazes de aSSImilar, por isso permanecem vazios e
tivos trabalhassem, mas seu pânico gerava muita pres-
carentes, sempre ávidos. O tipo oposto de problema se
são para que o espaço fosse rapidamente preenchido e
reflete na expressão "Ele engoliu!" quando se expressa
sua comida "arremessada" para dentro.
uma deglutição aparentemente fácil demais, e uma
O processo da análise é, em grande medida, a as-
mastigação deficiente. Quando engolimos uma história
similação de conteúdos inconscientes, algo que, neces-
improvável, estamos nos enganando. Ela vai causar al-
sariamente, ocorre com lentidão. Mastigar até o fim é
gum efeito em nós, mas é improvável que nos abasteçam.
também saborear, desfrutar ao máximo o gosto e tam-
Problemas de garganta podem significar que tivemos de
bém o valor nutricional daqueles ingredientes. Nesse
engolir experiências emocionais desagradáveis, a raiva
estágio, a comida espalha-se pelo menos parcialmente
ou algumas lágrimas, empurrando-as para baixo, para
no campo da consciência, antes de desaparecer goela
que se afastassem da consciência e se perdessem na es-
abaixo e escoar para a dimensão misteriosa que se ini-
cu~idão do andar inferior, ou que estamos com alguma
cia logo a seguir.
COIsa engasgada. ~

Engolir
As misteriosas entranhas
Engolir é um processo que só se reverte por uma in-
Assim que a comida foi engolida, ela entra na longa
terferência de emergência, como sabiam os romanos que
passagem das entranhas onde é submetida ao processo
se fartavam em banquetes, e os atuais bulímicos prati-
mecânico e inconsciente da peristalse e à ação de várias
cam, acionando a válvula de segurança do vomitar. O
secreções, mediante o auxílio do funcionamento do pân-
pescoço liga a cabeça, onde comumente localizamos a cons-
creas, do fígado e da vesícula biliar.
ciência, 'com o tronco, e a boca com o estômago. A parte
O escuro interior das entranhas é um local de misté-
interna da boca é altamente sensível ao paladar ea tex-
rio para muitas pessoas e existe uma grande confusão
turas. A menos que estejamos muito absortos, sabemos o
popular a respeito de onde se localizam os órgaos digesti-
que pomos dentro dela, e nossas papilas gustativas veri-
vos mais baixos. O termo "estômago" vem do grego stoma,
ficam, então, que estamos comendo o que esperávamos
que significa boca, e nos tempos antigos stomachos signi-
comer. Assim que engolimos aquele bocado, ele sai de
fica a garganta. Certa vacuidade é característica do uso
nosso alcance, e basicamente de nossa consciência. Ge-
de "estômago", assim como de seu correspondente infan-
ralmente, percebemos sua presença somente se nos cau-
til "barriga", e são poucas as pessoas que conseguem
sa desconforto físico ou psicológico.
apontá-lo corretamente; em geral indicam o baixo ven-
Os fantasmas famintos, os pretas, que ocupam um
tre, onde estão os intestinos. Um homem mais idoso, meu
dos seis reinos desenhados na roda tibetana da vida, são
conhecido, insistia em dizer que tinha dor de estômago
caracterizados por pescoços extremamente afilados. É
141
140
quando na verdade sofria de hemorróidas. Pode até ser dentro da barriga pode ser uma causa de ansiedade e
que ele estivesse se valendo de um eufemismo, mas de deslumbramento; e o que a gente deve comer para cres-
todo modo isso ilustra a imprecisão com que o termo é cer uma criança? Um mitologema muito difundido nos
popularmente empregado. informa sobre a natureza arquetípica dessas fantasias
Precisamente a obscuridade do que se passa na de que comer leva a algum nascimento. A deusa egípcia
"barriga" (em inglês belly, do inglês antigo belig que sig- do céu, Nut, por exemplo, devora regularmente seus fi-
nifica sacola, bolsa, fole), e qual sua exata localização, lhos, os corpos celestes, que emergem de novo de dentro
constitue uma imagem adequada no inconsciente. A de sua barriga. A Grande Mãe, útero e tumba, encarna o
barriga do peixe ou da baleia é o mundo inferior, em que interminável processo da existência por meio do qual as
o sol desaparece à noite; é onde os heróis estão em coisas vêm a existir para depois desaparecer, criando em
sua viagem noturna pelo mar. Quando Jonas foi engoli- uma ponta e destruindo na outra.
do pela baleia ele gritou de "dentro das entranhas do A digestão nas vísceras envolve movimentos de revi-
inferno": rar (dentro do estômago) e propelir, e também processos
Fui expulso de diante dos teus olhos químicos que exigem calor; ou seja, o protótipo do cozi-
C.. ) As águas me envolveram até o pescoço, nhar. Na medicina chinesa, a comida quente tem prefe-
o abismo cercou-me, rência em geral, para colaborar com o processo da com-
e a alga enrolou-se em volta de minha cabeça. bustão interna. O alimento frio deve ser aquecido pelo
Eu desci até as raízes das montanhas, corpo antes que possa ocorrer a decomposição enzimática
à terra cujos ferrolhos estavam atrás de mim para sem-
pre (Jn 2,4-6)
e, evidentemente, isso usa mais energia. Dizemos que o
fogo consome. Segundo Heródoto, "os egípcios acreditam
que o fogo é uma criatura viva que devora tudo que nele
o termo "barriga", como os correspondentes em vá- entra e, quando comeu o suficiente, morre com a comida
rias outras línguas, cobre os intestinos e também o útero. da qual se alimentou".14 O fogo do sistema digestivo, como
O grego gaster, do qual temos "gástrico" e "gastrite", sig- o cadinho alquímico, deve ser mantido vivo durante todo
nificava estômago, barriga ou útero. Freud assinalou que, o processo.
quando as crianças pequenas estão às voltas com a intri- Próximo ao estômago encontra-se o plexo solar, uma
gante questão de onde vêm os bebês, têm às vezes sido rede irradiante de nervos; ao nível do corpo sutil, o chakra
informadas de que elas, ou irmãos menores, vieram da localizado nessa região governa a nossa vida emocional.
''barriga da mamãe", confundindo as funções da reprodu- Nesse sentido, o estômago é especialmente sensível a
ção e da digestão, deixando implícita a noção de que algo queixas que decorrem de emoções não digeridas. Pode-
é ingerido pela boca, transformado, e depois sai pelo ânus mos experimentá-las como se fossem borboletas, ou um
na forma de um bebê. enjôo, ou a sensação de ter levado um soco nessa região
A natureza oculta das operações viscerais oferece delicada, ou ainda ter um surto passageiro de indigestão.
campo fértil à imaginação. A zombeteira sugestão de que
engolindo um caroço de cereja vai nascer uma cerejeira 14 The Histories, 3, 16, p. 210.

142 143
Problemas habituais desse tipo podem transformar-se em Fezes e sombra
gastrite crônica ou úlceras.
O estômago armazena comida; com as enzimas O que resta ao final do processo digestivo é uma
pepsina e renina decompõe os alimentos e depois os re- massa indiscriminada de matéria descartada.
vira até formar um bolo conhecido como quimo, termo A segunda lei da termodinâmica afirma claramente que a
que tem sua origem no grego chymos, que significa suco baixa entropia, e a intrincada e dinâmica organização de
ou seiva, e em cheein, verter, despejar. A matéria sólida um sistema vivo, só podem funcionar por meio da excreção
é dissolvida para uma coagulação subseqüente; ela con- de produtos de baixa qualidade e baixo teor energético
verge para separar-se futuramente. O estômago é um no meio ambiente. 15 '

lugar para conter, revirar, mas sem o controle conscien-


te que exercemos sobre os músculos do maxilar. Se o Devolvido ao meio ambiente, nosso dejeto torna-se
que foi ingerido é venenoso, ou de alguma maneira ina- novamente parte do processo cíclico, alimentando o solo
ceitável, não pode afinal de contas ser suportado, se- para futuros plantios.
rá ativamente ejetado, rejeitado, lançado de volta pelo Além de ser considerada a expulsão de dejetos, a
mesmo caminho que tomou para entrar. Vomitar po- defecação. também pode ser entendida como uma forma
de significar rejeitar, mas também regurgitar, trazer de expressão. A constipação pode significar guardar mui-
de volta para nova utilização sem uma digestão apro- to, ao passo que "diarréia verbal" é falar em excesso. Uma
priada. escritora que estava tendo dificuldades para prosseguir
A maior parte da absorção do quimo semilíquido e com um livro, atravessava o que se sabe ser uma caracte-
misturado acontece nas paredes do intestino delgado, e rística depressão da criatividade; ela sonhava repetida-
também do grosso, por onde passa ao longo de 8 a 9 metros mente que se sentava na privada e fazia força para defe-
de tubo. Aqui é onde o mistério se torna ainda mais re- car. Na noite anterior às palavras voltarem em jorro ela
côndito, o mudo clímax do processo de assimilação, em teve de correr até o banheiro do sonho com medo de não
que o limite entre os conteúdos introjetados do canal ali- conseguir usar a privada a tempo, num outro exemplo de
mentar e o resto do corpo recipiente torna-se permeável. como se pode dar à luz analmente.
Sem que tomemos consciência disso, transformações me- As fezes são, num sentido profundamente pessoal,
tabólicas cruciais estão agora se desenvolvendo. Confor- uma manifestação do indivíduo. Em muitas espécies, de
me o movimento muscular ondulatório vai empurrando o acordo com o uso econômico que a natureza faz dos mate-
material adiante, o que pode ser absorvido o é, e o que riais, as fezes servem para demarcar territórios ao comu-
não, vai sendo avançado até que seja eliminado, junto nicar distintamente que "eu" estive aqui, não outra pes-
com outros dejetos como bactérias mortas e excreções que soa. Esse produto final, ou melhor, produto decorrente,
já cumpriram sua função. Na astrologia, os intestinos são torna-se novamente visível, procedente das trevas inte-
regidos por Virgem, signo da discriminação detalhada; riqres. Sua forma, cor, textura, e odor podem ser observa-
esta porém é uma discriminação que ocorre no plano in-
consciente. 15 J. Lovelock, Gaia: A New Look at Life on Earth, p. 27.

144 145
dos. Sua expulsão, nos adultos, ocorre normalmente em celso certa vez brandiu essa própria sujidade para de-
condições de controle muscular consciente, mas podemos monstrar a prima matéria, o ponto inicial do opus alquí-
decidir não olhar para as fezes, e foram criados dispositi- mico; nela geralmente existe o indício de umajóia inesti-
vos que rapidamente retiram-nas do alcance de nossa mável, um anelou moedas de ouro, o refulgir de uma luz
visão. As crianças de uma certa idade aludem a elas na em meio à escura massa confusa. Naquilo que foi rejeita-
certeza absoluta de atormentarem os adultos com a que- do, encontra-se o potencial para a iluminação. É fertili-
bra desse tabu. zante para o jardim da alma e, nesse sentido, alimento
Para a criança ainda menor, é uma fonte de mara- para a alma. O fim do processo alquímico interior de umi-
vilhamento e diversão, e um foco onde praticar a força de dificação, aquecimento, dissolução, separação e coagula-
vontade, que pode também causar frustração e raiva, pois ção é também um local de inícios e, de maneira típica,
ela tem de aprender o controle de seus esfíncteres diante onde começamos o trabalho da análise.
da insistência dos adultos. Para se tornar uma pessoa Em seu ensaio intitulado "Caráter e erotismo anal",
saudável, e funcionar adequadamente, além de conquis- Freud discute a famosa justaposição entre dinheiro e
tar aceitação social, é preciso saber o que rejeitar. Essa excrementos, nos mitos, contos de fada e sonhos.1 6 Ele
substância, por mais que seja muito pessoal, não deixa interpreta essa conexão de uma forma redutiva, como
de ser o outro, de pertencer ao exterior, e deve ser mantida projeção - no dinheiro - do que antes esteve associado
à distância, por razões de higiene e propriedade. Torna- aos prazeres anais, sendo nossas fezes nosso primeiro
se uma senha para indicar tudo aquilo que é abjeto, odio- "presente" para o mundo. Brevemente, comenta sobre o
so ("Mas ele é um monte de merda!"); é uma substância contundente contraste entre o mais estimado e o mais
deprezada, desprovida de sentido ("Só fala merda!"), ou é desprezado, mas sem o valorizar como paradoxo ou me-
o mesmo que uma má notícia ("Mas que merda saber dis- táfora. Nesse sentido, tinha algo a ver com seu próprio
so!"). Queremos cortar a ligação com ela; trata-se daquilo tipo de trabalho, que encontrava suas recompensas na
que não pôde ser integrado ao nosso conceito de quem investigação da lamacenta escuridão da sombra pessoal.
somos, embora tenhamos de lidar com ela diariamente,
com a nossa vergonha e a nossa sombra pessoais. Nutrição e valor
As cenas passadas em banheiro, que ocorrem em
nossos sonhos, às vezes mostram-se um tema particular- Além de simplesmente manter o corpo e suas fun-
mente insistente para quem vive de um modo conscien- ções, o alimento físico fornece-nos a energia de que preci-
temente muito "limpo", e são, em geral, acompanhadas samos para viver nossas vidas. Para onde vai a energia
de sério sentimento de constrangimento, de portas que no alimento onírico? Depende de quem está comendo.
não fecham, de uma sensação de se ver exposto. A des- Uma sonhadora chega ao hotel e encontra seu cami-
carga não funciona, é cocô para todo lado. "Parece que nho até o quarto que lhe parece familiar. Ela o considera
tenho de limpar tudo isso sozinho. Não está com cara de seu quarto. O desjejum está apresentado sobre a mesa,
que encontro os utensílios" - uma tarefa sórdida. Sen-
timo-nos emporcalhados, contaminados. No entanto, Para- 16 Standard Edition, voI. 9, pp. 16966.

146 147
aparentemente servido para ela, mas a cama está sendo
ela acordasse de manhã muito cedo. Ela precisava acor-
ocupada por um casal que insiste em dizer que aquele
dar para seu problema de peso .
. quarto é deles (e, portanto, o café da manhã também), e
Alguns sonhos nos indicam o que precisa ser alimen-
dizem-lhe que saia. Ela sai e vai em busca do escritório,
tado. Fatores psíquicos que estão sendo negligenciados
onde um jovem obeso, de aparência não saudável, está
geralmente personificam-se em figuras subalimentadas,
cobrando uma dieta especial. Ao final do sonho, a sonha-
em animais que passam fome, em bebês berrando para
dora parece que continua faminta, mas o casal, associa-
mamar. No nível dos sonhos, alimentar é dar atenção,
do com os seus complexos parentais, presumivelmente
quer dizer, direcionar a energia psíquica para o que dela
comeu o café da manhã, e o animus adolescente exigente
necessita. O sonhador talvez não encontre comida, como
e incômodo já está excessivamente alimentado. O desje-
William Burroughs descobre repetidamente em "Land of
jum não foi transformado em energia disponível ao ego
the Dead" (Terra dos mortos)17 que é um local, em seus
da sonhadora, mas os pais têm mais energia para prati-
sonhos, onde "sempre existe dificuldade par~ se obter o
car sua rejeição, e o jovem, se conseguir o que quer e como
café da manhã ou, aliás, qualquer tipo de comIda". Quan-
quer, terá ainda mais energia doentia com que fazer exi-
do o sonhador consegue enfim comer, estamos diante de
gências. A libido está fluindo para essas figuras autôno-
um indício de que algo está beirando o limiar da cons-
mas de tal modo que possam estar em excelentes condi-
ciência. É por isso que Edward Edinger observa: "Sem~
ções para prosseguir em atividade.
pre que me oferecem comida, em sonho, a regra geral e
Outra mulher sonhou que estava numa fila para
que ela deve ser comida por mais desagradável que pos-
jantar, numa conferência para profissionais. Um homem
sa parecer". 18 ".
grande e gordo, no sonho parecendo um amigo antigo
A

Embora sem dúvida "engulamos as COIsas que vem


mas desconhecido do ego vigil, veio para cumprimentá-
do mundo externo, a análise éem grande medida um pro-
la. Ela se encaminhou para dar-lhe um abraço e perdeu
cesso de assimilação de conteúdos inconscientes, quer
seu lugar na fila, mas ele, como já tinha comido, riu e
dizer, de coisas que já sabemos em
. alguma
. medida, mas .
disse que ela poderia comer quando a longa fila tivesse
que não sabemos que sabemos, mclumdo as pressuposI-
terminado. No entanto, isso não seria possível porque . "de' "E
ções subliminares acerca d as COIsas e lora. sse 'e o
ela teria que logo estar de volta para dar sua palestra.
processo por meio do qual a psique "se c~me". . ~
Mais uma vez, o ego feminino fica com fome enquanto o
Às vezes, existe uma grande sensaçao de hbertaçao
homem obeso, associado aqui com a posição profissional
quando algum complexo que secretamente esteve acum~­
e a função pensamento da sonhadora, entende equivo-
lando energia enfim se torna parte de nossa percepçao
cadamente as circunstâncias em que ela se encontra.
consciente de quem somos. A maioria das vezes, esse pro-
Um animus excessivamente alimentado também apa-
cesso é mais gradual, num progressivo preenchimento ~e
receu no sonho de uma terceira mulher, cujo sono era
nossa auto-imagem que vai incorporando todas as espe-
muitas vezes perturbado por pensamentos incontro-
lavelmente persistentes. Nesse caso, o homem gordo
desconhecido tinha acionado um despertador para que 17 My Educatian: A Baak af Dreams, p. 11.
18 Anatamy afthe Psyche, p. 111.

148 149
cies de elementos que até então vínhamos projetando em 5
outras pessoas. A projeção dos elementos positivos pode
levar a uma baixa auto-estima e a sentimentos de inveja; GORDURA,
quando os componentes negativos são projetados torna- IMAGEM CORPORAL E AUTO-IMAGEM
mo-nos envolvidos em brigas fúteis e destrutivas. Quan-
do nos reapropriamos de nossos contéúdos projeta-
dos, adquirimos mais corpo, mais substância psicológica;
preenchemos nosso próprio espaço pessoal de uma ma-
neira mais completa, com maior respeito por nossa pró-
pria complexidade. Também passamos a enxergar os ou-
tros com mais clareza, geralmente culpando-os menos, e
conseguimos encontrar melhores maneiras de nos rela- A esbeltez e obesidade das figuras oníricas pode re-
cionar com eles. tratar uma distribuição desigual da energia psíquica, por
Seria errado, no entanto, dar a impressão de que um lado personificando os elementos famélicos de nosso
chegamos ao ponto em que não existe mais esse tipo de ser, e de outro os super-alimentados. Quando o sonhador
trabalho a ser feito; existe o perigo de uma saciação pós- é representado como uma pessoa obesa, isso pode indicar
jantar se instalar, aquele tipo de sentimento 'ja sei tudo". que o ego apropriou como seus uma parcela dos recursos
Caso não queiramos nos encaminhar para uma bela que- psíquicos maior do que lhe cabe e, com isso, tornou-se
da, devemos respeitar continuamente a vastidão da psi- inflado. Contudo, é a questão da gordura na vida em vigí-
que inconsciente, no reconhecimento de que as coisas es- lia que atualmente nos causa tanto incômodo.
corregam da consciência também, e que o urobórico pro- N as épocas em que há uma ameaça de escassez de
cesso de comer e ser comido é permanente. víveres, provavelmente a norma, ao longo de toda a his-
tória humana, ser gordo é uma realização que implica
sucesso na obtenção dos meios para a sobrevivência, além
de uma garantia contra tempos difíceis; portanto, tende
a ser altamente valorizada. Uma recente revisão de pes-
quisas relevantes ao tema indicou um relacionamento
direto entre elevado status sócio-econômico e obesidade
nas sociedades em desenvolvimento - ou seja, as pobres
- e os autores sugerem que "[nessas] sociedades pode
ser um sinal de saúde e riqueza, e nos países desenvolvi-
dos significar exatamente o contrário".!

1 Jeffrey Sobal e Albert J. Stunkard, "Socioeconomic Status and Obesity: A


Review or the Lierature."

150 151
Um estudo de fêmeas de macaco em cativeiro deter- que não podem ser modificados por uma alteração nos
minou que, independentemente da idade e da gravidez, hábitos alimentares, uma grande parte do excesso de peso
as fêmeas de mais alto status eram as mais gordas. 2 Em é simplesmente uma questão de sucumbir, por variados
texto do início dos anos 70, Hilde Burch comentou a res- motivos, à fácil disponibilidade do alimento. Nessas con-
peito do "paradoxo de que, nas sociedades afluentes, a dições, a natureza não garante mais que não comamos
obesidade está comumente associada com pobreza e status além da conta, e temos de assumir pessoalmente essa
de classe inferior". responsabilidade.
[As mulheres] que foram imigrantes pobres e que tinham
Vimos como são atraentes as imagens da mãe abun-
passado fome no início da vida ... não entendiam por que dante, provedora, que nos alimenta com os melhores man-
havia objeções a uma criança ser grande e gorda, o que timentos, sem o menor esforço de nossa parte: a fruta se
para elas indicava sucesso e ausência de privações. 3 oferece para que a colhamos, a cornucópia, a mesa que se .
põe por si, a Terra de Cockayne com suas guloseimas pron-
Freqüentemente ser gordo queria dizer ser rico, como tas e porcos que assam sozinhos. Fizemos o melhor que
em Salmos 92,14, "gordo e próspero", no Gênesis 45,18 pudemos para criar Cockayne no supermercado com suas
"comereis da fartura da terra", e também falamos de ser refeições pré-fabricadas e os perús que apitam quando
'justo, forte e quarentão". Ter uma "grande barriga re- estão no ponto, locais que abrem cedo de manhã e assim
donda bem forrada de capões"4 era, nos tempos de permanecem até tarde da noite, e onde, para os que po-
Shakespare, ter alcançado a idade correspondente ao pla- dem pagar, o principal problema é escolher.
neta Júpiter, aclamado pelos astrólogos como o Grande Mora simplesmente. agradar o paladar, a pura dispo-
Benfeitor, estar qualificado para se espalhar um pouco, nibilidade da comida significa que ela se torna um substi-
depois. de ter-se tornado um respeitável cidadão e adqui- tuto imediato para outras formas de satisfação, um substi-
rido alguma solidez e substância. Em contrapartida, o tuto da atenção que deveria ser dedicada às necessidades
termo grego moderno para magro, adynatos, transmite emocionais e aos conflitos. Para o comilão compulsivo, é
um receio profundamente arraigado de haver a falta de como se, quando existe a raiva, a tristeza ou anseios que
consistência física, pois seu significado original é "fraco". não são facilmente satisfeitos, a mãe "boa demais" ofere-
Para as pessoas das sociedades ricas, em que se pode ce sua resposta indolor: "Não importa, coma uma outra
ganhar peso facilmente, esbeltez em vez de corpulência é fatia de bolo". Terminamos por aprender a esperar e exi-
considerada uma conquista e até mesmo as mulheres de gir gratificações instantâneas, crédito instantâneo, solu-
origem humilde, após décadas assistindo televisão onde ções instantâneas para os problemas mas, na mesma
se alardeia a desejabilidade da magreza, tendem a medida em que tudo isso é possível, coloca-nos o risco de
valorizá-la. Dado que existem certos casos de obesidade uma regressão.
No passado distante, a necessidade urgente de nos-
2 Ver Meredith F. Small, "Body Fat, Rank and Nutritional Status in a sos ancestrais se alimentarem estimulou o desenvolvi-
Captive Group of Rhesus Macaques." mento de habilidades humanas e de uma consciência tí-
3 Eating Disorders, pp. 1488.
4 As You Like It, ato 2, cena 7. pica. O inverso também é verdadeiro, ou seja, quando não

152 153
existe nada com que nos confrontar, facilmente ficamos compulsivamente regimes intermináveis, ou a oscilar
preguiçosos e infantilizados. Apesar disso, nos está in- entre se empanturrar e morrer de fome, e a casos extre-
terditado o regresso ao paraíso. Podemos ficar vagando à mos de anorexia e bulimia. Distúrbios alimentares em
toa pelos jardins da permissividade mas, com essa atitu- homens são uma tendência em alta, mas como não tenho
de, incorremos em novos problemas de dependência, além experiência nessa área devo limitar-me aos problemas
de, no caso da comida, alguns problemas relativos à obe- que afetam as mulheres. Existem muitas camadas na
sidade. A lata de biscoitos é muito fácil de ser alcançada. questão que a mulher vive com respeito à sua imagem
É mais difícil, mas mais satisfatório, a longo prazo, vol- corporal, e essas camadas podem ser um fator determi-
tar-se para essa cornucópia interna, o alimento psíquico, nante num relacionamento problemático com a comida.
aquele prato cuja digestão leva à conscientização. Entre elas, estão a interação ancestral da resposta se-
A esbeltez é desejável quando é fácil engordar. xual dos homens com as pistas visuais que percebem, e o
Talvez a busca obsessiva da magreza em nossa socie- alto valor que as mulheres dão aos relacionamentos; a
dade seja, em parte, uma expressão de nossa repugnân- ênfase atual na aparência superficial, em oposição a uma
cia diante da grosseria e da inflação psíquica de nossa questão de substância; a busca das mulheres de uma no-
era materialista. A abstenção extrema demonstrada pe- va imagem interna; e a tendência de a imagem corporal
los pacientes de anorexia nevosa recria, ou parodia, o asce- substituir a auto-imagem quando esta é negativa ou ina-
tismo que nega o mundo que, no passado, foi praticado dequada.
com o propósito de um ascetismo espiritual. Platão loca- Muitas mulheres, obcecadas em perseguir a ina-
lizou na região do estômago aquela parte da alma que preensível figura ideal, estão nas garras de um arqui-
relacionava à natureza desejosa ou apetente, e consi- crítico que projeta em seu tecido corporal sua própria in-
derava-a uma infeliz necessidade, uma besta a ser ali- capacidade de corresponder a padrões impossíveis ou
mentada para que aspectos mais nobres da natureza impróprios, incompatíveis com as realidades da carne,
humana pudessem funcionar. 5 Por vezes, um anseio de tal modo que, em vez de enfrentar sua própria inse-
secreto por uma forma mais espiritualizada de vida se gurança, brigam com o corpo. Esse crítico entra em cena
faz vislumbrar nessa fuga de ganhar peso corporal, e com seus julgamentos negativos quando falta à mulher,
nessa esquiva diante das exigências viscerais e instinti- em alguma dimensão, uma noção de si mesma como cria-
vas. O padrão da oscilação descontrolada entre opostos tura feminina, e é ele quem mata a anoréxica de fome. A
de abstinência e excesso também ecoa, de maneira atual epidemia de regimes e distúrbios de alimentação
distorcida, no antigo calendário religioso em que se se- constitui uma ampla demonstração de insegurança da
paravam dias para jejuar e dias para se empanturrar nas parte das mulheres; no plano coletivo, pode ser entendi-
celebrações. da como uma mudança na direção de novos desenvolvi-
São basicamente as mulheres que se sentem ator- mentos da consciência feminina. No nível individual, é
mentadas pelo desejo de ser magras, o que as leva a fazer mobilizada por uma sensação de insatisfação que, quan-
do corretamente abordada, atua como propulsor para a
5 Timaeus, 70 Df. autodescoberta.
154 155
Como as refeições sempre foram um ritual impor- to de sua plena individualidade, que é o único caminho
tante da vida familiar e um foco para a socialização dos pelo qual podem seguir e desenvolver-se relacionamen-
mais jovens, também servem de oportunidade de resis- tos verdadeiramente satisfatórios. A tremenda ênfase que
tência para a criança, que se opõe à cultura dos pais como atualmente vem sendo dada à sexualidade como compo-
tentativa de buscar sua definição pessoal. Mesmo nos nente essencial ao sucesso de um relacionamento íntimo
casos em que uma boa parte do ritual não existe mais e pode gerar ainda mais pressões e confusão. Há poucos
em que os padrões de alimentação são menos regulares, séculos, e em várias culturas, a moça que não se sentisse
comer ainda pode ser uma atividade sobre a qual recaem atraída para o casamento, ou em quem a dimensão espiri-
as preocupações e a ansiedade dos pais, de tal sorte que, tual fosse predominante, tinha a alternaiva socialmente
do ponto de vista da criança, a comida pode ser percebida aceitável de entrar para uma ordem religiosacelibatá-
como um instrumento de controle da mãe, como uma in- ria. Hoje em dia, a anoréxica que não menstrua, que tipi-
vasão de seu espaço pessoal que a criança ainda não con- camente evita tanto o sexo como a comida, e a obesa que
seguiu reivindicar como seu. se cerca de sua camada protetora de gordura, podem es-
Nos contextos em que as expectativas a respeito do tar buscando a mesma alternativa via corpo.
papel das mulheres não são mais respeitadas, e em que a Parece-me que novos desenvolvimentos da consciên-
imagem da super-mulher totalmente competente e se- cia feminina vêm se empenhando para emergir,já há al-
xualmente desejável está muito distante da realidade da gum tempo, e que os problemas que afetam a alimenta-
maioria das mulheres, não existe uma passagem fácil para ção substituíram a histeria como expressão medicalizada
a idade adulta feminina. Em meio a pressões para do mal-estar da mulher e de sua necessidade de mudar.
corresponder às expectativas familiares nos estudos e em Embora esse seja um problema coletivo, a percepção cons-
competições dentro do mercado de trabalho, para estar ciente e a compreensão que podem se desenvolver acon-
no mesmo nível das outras integrantes dos grupos aos tecem no nível individual, naquelas mulheres que se dis-
quais pertence,e para atrair parceiros em potencial, a põem a trazer essas forças psíquicas até o nível de seu
chance para descobrir sua verdadeira individualidade e campo de consciência.
vocação profissional é especialmente difícil de ser locali- Como muitos outros sintomas perturbadores, os pro-
zada pela mulher jovem. Muitas vezes, sua auto-imagem blemas alimentares manifestam a necessidade que a psi-
é composta quase que só de elementos negativos, de não que tem de ser vista, homenageada e amada. Quanto mais
ser bem o que ela acha que os outros querem que ela seja, o corpo é manipulado e submetido a abusos por meio de
e, como o corpo simboliza nossa identidade consciente, privações, farras e purgativos, mais profundos e intensos
serve de objeto tangível da iniciativa de auto-aperfeiçoa- serão os sentimentos de desorientação e perda de contro-
mento, sobre a qual o crítico interno inexoravelmente le. Quando a atenção se desloca do peso físico para a rea-
assenta sua mira. lidade interna, por mais que no começo isso dê uma sen-
Muitas mulheres ainda consideram a conquista de sação de vazio, desvalorização ou susto, o corpo invisível
um parceiro e a fusão com ele como a solução para todos da psique começa a ser alimentado, e a possibilidade de
os seus problemas. Isso pode bloquear o desenvolvimen- um relacionamento novo e mais amistoso com o corpo fí-

156 157
sico pode começar a existir. Daí em diante, o peso não é BIBLIOGRAFIA
mais tanto o problema.
Cada pessoa nasceu como uma criatura ímpar e tem
suas contribuições particulares a dar. A semente interna
da individualdade conhece obscuramente que tipo de fruto
é seu destino produzir, e que tipo de circunstâncias lhe
são mais propícias para que desabroche. Mas esse conhe-
cimento está em geral muito profundamente escondido
e, quaisquer tentativas de nos amoldar, segundo ideais
importados da inconsciência coletiva, projetados no cor-
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d'Ethnologie, 1981.

5 Introdução à coleção Amor e Psique

7 Agradecimentos
9 Introdução
15 1. A CADEIA ALIMENTAR
42 2. CARDÁPIOS
46 O fruto do paraíso
62 Carne, poder e dor
87 Grão e cultura
102 Vegetarianismo
108 A la carte
110 3. COMENDO EM COMPANHIA
123 4. ASSIMILAÇÃO
130 O processo alimentar
130 A boca: a entrada
130 Saliva e antecipação
135 Os dentes e o lidar com as coisas
136 Mastigação e deliberação
138 Engolir
140 As misteriosas entranhas
141 Fezes e sombra
147 Nutrição e valor
151 5. GORDURA, IMAGEM CORPORAL E AUTO-
IMAGEM
159 Bibliografia
164
PAUWS Gráfica, 1999
Via Raposo Tavares, km 18,5
05576-200 São Paulo, SP

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