Você está na página 1de 325

1 Tratados e Sermões

Mestre Eckhart

Tratados e Sermões

Tradução do original alemão

Jorge Telles de Menezes

Prefácio

Paulo Borges

Introduções

Fr. José Luís de Almeida Monteiro, OP


Selecção diJs textos para a presente edição, com enumeração própria:
• Tratados e Sermões (1 a 1 1 )
Paulo Borges e Jorge Telles de Menezes
•Sermões (1 2 a 1 7)
Fr. José Lu ís de A lmeida Monteiro
Tradução: Jorge Telles de Menezes
[a partir das versões, em alemão contemporâneo, de JOSEF QUINT (MeiSter
Eckhart, Deutsche Predigten und Traktate, Zurique, Diogenes, 1979;
e ed. crítica, Meister Eckhart, die deutschen und lateinischen Werke, Estu­
garda, Kohlhammer Verlag, 1958)]

Capa: Departamento Grá fico Paulinas


Pré-impressão: Paulinas Editora - Prior Velho
Impressão e acabamentos: Artipol - Artes Tipográ ficas, Lda. - Águeda
Depósito legal n.º 292 741/09
ISBN 978-972-75 1 -994-1

©Abril 2009, Inst. Miss. Filhas de São Paulo


Rua Francisco Salgado Zenha, 1 1 - 2685-332 Prior Velho
Tel. 2 1 9 405 64 0 - Fa x 2 1 9 405 649
e-mail : editora @paulinas.pt
www.paulinas.pt
PREFÁCIO

Mestre Eckhart ou
«o homem de quem Deus nada escondeU>>

É com funda emoção que prefaciamos esta pri­


meira publicação em Portugal de uma antologia de
tratados e sermões de Mestre Eckhart (1 260?-1 328) 1 ,
o teólogo, filósofo e pregador dominicano cuja pro­
fundidade e subtileza espiritual e «mística» o tornam
cada vez mais uma referência fundamental para
todos os que, independentemente da sua cultura ou
religião, procuram ir ao fundo das possibilidades da
vida, da consciência e da existência, sem se conten­
tarem com a mera especulação intelectual sobre o
seu sentido. Com efeito, em Eckhart dá-se a rara e
feliz conciliação de uma sólida erudição universitá­
ria com a radicalidade da experiência espiritual que
rompe e inova as categorias do pensamento da sua
época e da sua tradição, fazendo dele um «Leben
Meister» («Mestre de vida» e não só de doutrina) que

1 Que saibamos, até agora só foi publicada em Portugal uma tradu­

ção de dois sermões eckhartianos : cf. M ES TRE ECKHART, «Dois sermões


sobre o intelecto» , tradução de Lu ís Augusto, Mediaevalia, textos e estudos,
n.º 20 (Porto, 200 1 ) , pp. 9-23.
6 TRATADOS E SERMÕES

influiu decisivamente em gerações de discípulos e


tem inspirado um significativo e crescente número
de pensadores, psicólogos, escritores, poetas, pinto­
res e músicos contemporâneos.
Consagrado pela posteridade como «O homem de
quem Deus nada escondeu», Eckhart assume de
facto a sua visão e discurso como «uma verdade não
encoberta, que veio directamente do coração de
Deus» 2• «Voz» vinda «da eternidade», mas não com­
preendida senão nos limites do tempo, como o disse
Tauler, seu discípulo 3, acabou por ser objecto de um
processo e de uma Bula papal que condenou vinte e
oito afirmações suas como heréticas ou «mal sonan­
tes, ousadas e suspeitas de heresia» 4• Todavia, se
Eckhart ousa transgredir o plano teológico-filosófico
e doutrinal para falar em nome de uma experiência
imediata de Deus, esta fuga à norma da sua própria
tradição institucionalizada pode noutro sentido ser

2 M ES T R E ECKHART, Predigten, Werke , l, 52, textos e versões de Josef

Quint, editados e comentados por Niklaus Largier, Frankfurt no Meno,


Deutscher Klassiker Verlag, 2008, p. 563.
' D ie Predigten Taulers, XV, Deutsche Texte des Mittelalters, 1 1 .ª
edição de Ferdinand Wetter, Berlim, 1 9 1 0, p. 69.
•Veja-se o texto integral da Bula em M EIS TER ECKHART, The Essential
Sermons, Commentaries, Treatises, and Defense, tradução e introdução de
Edmund Colledge, O. S. A. e Bernard McGinn, prefácio de Huston
Smith, Mahwah, Paulist Press, 1 98 1 , pp. 77-8 1 . Citamos o texto da p. 80.
Sobre o processo movido a Eckhart, cf. também KURT RuH, lnitiation à
Maitre Eckhart. Théologien, prédicateur; mystique, traduzido do alemão por
Janine de Bourg knecht e Alain N adeau, apresentação de Ruedi lmbach e
Alain Nadeau, Friburgo I Paris, Éditions Universitaires Fribourg I Édi­
tions du Cerf, 1 997, pp. 259-290.
PREFÁCIO 7

vista como fidelidade a uma experiência cristã mais


profunda, em que a resposta à questão tradicional -
Cur Deus homo; Porque se fez Deus homem? - é a de
que Deus se faz homem para que cada homem «seja
engendrado como o próprio Deus», sendo «a abissa­
lidade [Abgründigkeit] do ser divino e da natureza di­
vina» inteiramente gerada «no seu Filho unigénito»
para que «nós próprios sejamos o mesmo Filho uni­
génito» 5. Cristo, o Filho único de Deus, não é assim
somente considerado uma pessoa individual e dis­
tinta, designando sobretudo a suprema possibili­
dade, histórica e trans-histórica, comum a todo o ser
humano, cumprida no acesso de cada um ao estado
de unção espiritual que esse nome designa.
Se a pregação eckhartiana tem dois temas capitais
- o nascimento de Deus na alma e o trespasse do es­
pírito na Divindade -, é neste último que se torna
mais sensível a sua inovação e radicalidade. Bernard
McGinn usa a expressão «mística do fundo» para
designar a nova forma de experiência espiritual ini­
ciada ou redescoberta por E ckhart, seus contem­
porâneos e seguidores 6, sintetizada na afirmação: «O

s MESTRE ECKHART, Predigten, Werke , t 29, p. 333. Cf. ALors MARIA

HAAs , que aponta em Eckhart «Um programa de vida espiritual m axima­


lista», pois «Deus quer tudo do homem», não menos que cada homem
devenha Deus Maestr o E ckhart. Figura normativa para la vida espiri tual
-

[Meister Eckhart ais normative Gestalt geistigen Lebens] , Barcelona, Herder,


2002, pp. 34-35 .
' Como tem sido notado, alguns dos temas de Eckhart são antecipa­
dos na espiritualidade beguina feminina. Destacamos Marguerite Porete,
queimada com a sua obra a 1 de Junho de 1 3 1 0, no lugar de Greve, em
8 TRATADOS E SERMÕES

fundo de Deus e o fundo da alma são um fundo» 7•


Grunt (forma antiga do moderno termo germânico
Grund) abre assim um «campo de palavra místico»,
constituindo uma «metáfora explosiva» (Blumen­
berg) , enquanto «expressa de modo concreto o que
não pode ser capturado em conceitos» e «trespassa
anteriores categorias da linguagem mística para criar
novos modos de apresentar um encontro directo
com Deus» 8 • Dos vários sentidos que Grunt assume
no alemão medieval, destaca-se em E ckhart o do
«mais íntimo» e «oculto» de um ser, «a sua essên­
cia» 9, referindo-se quer ao «mais íntimo da alma»,
quer às «profundezas ocultas de Deus», para desig­
nar a radical unicidade desse seu.fundo único. Univo­
camente comum a D eus e à alma, o fundo trans­
cende-os enquanto «Deus» e «alma» surgem como
algo distinto em si mesmo e na sua relação mútua.
Com efeito, metáfora do infinito e do absoluto livre
de todo o limite e referência, o fundo é «sem fundo» e
«um único um» que transcende o D eus pensado
pelo homem «enquanto causa eficiente do uni­
verso» 10 e diferenciado nas pessoas trinitárias: como

Paris: cf. PAULO BORGES, «Do Bem de Nada ser. Supra-existência, aniqui­
lamento e deificação em Marga rida Porete», Mediaevalia, tex tos e estudos,
n.º 25 (Po rto, 2006) .
1 «[ . . ] wo Gottes Grund und der Seele Grund ein Grund sind»
. -

MESTRE ECKHART, Predigten, Werke, 1, 1 5 , p. 1 8 1 .


' Cf. B ERNARD MCGINN, The Harvest ofMysticism in Medieval Germatry
(1300-1500). The Presence of God: A History of Western Christian Mysticism,
vol. Iv; Nova Iorque, The Crossroad Publishing Compan y, 2005, p. 85.
'Cf. Ibid., p. 87.
10
Cf. Ibid., pp. 88-89.
PREFÁCIO 9

diz, a origem do ser divino e de todas as coisas reside


nesse «fundo simples» e «imóvel» ou «deserto silen­
cioso onde jamais a distinção lançou um olhar, nem
Pai, nem Filho, nem Espírito Santo» 1 1• Sendo a «in­
distinção» e a ausência de características a «carac­
terística distintiva de Deus» como fundo, este é
«nu, livre, vazio, puro». Daí a relação da metáfora do
fundo com as do «deserto», do «mar» e do «abismo»
[Abgrund] 12 , imagens de espaços vastos, uniformes e
desobstruídos, sem limites nem entidades. Referindo
também o incondicionado que há na alma, esse
«algo incriado» que nela reside, o fundo é a mais po­
derosa metáfora que Eckhart usa - a par de outras,
como a «pequena centelha» e a «cidadela» - para in­
dicar a presença em cada ser do absoluto e infinito,
isso que transcende e identifica o humano e o divi­
no: «Aqui o fundo de Deus é o meu fundo e o meu
fundo, o fundo de Deus» 13•
A questão central de toda a pregação eckhartiana
é assim a de reassumir esse incondicionado fundo
primordial de toda a experiência, que antecede e
transcende não só a constituição do suj eito e do
mundo, mas ainda a do próprio Deus enquanto tal,

11 «in den einfaltigen Grund , in die stille Wüste, in die nie Unters­

chiedenheit hineinlugte, weder Vater noch Sohn noch Heiliger Geist» -

MESTRE ECKHART, Predigten, Werke, 1, 48, p. 509.


12
Cf. BERNARD McGINN, The Harvest ofMysticism in Medieval Germany
(1300-1500). The Presence of God: A History of Western Christian Mysticism,
vol. Iv; p. 89.
13 MESTRE ECKHART, Predigten , Werke, I, Sb, p. 71 .
10 TRATADOS E SERMÕES

não só na sua determinação trinitária 14• Um dos ser­


mões mais elucidativos disso é o «Beati pauperes spi­
ritu » , donde se colhe o título da presente obra,
. . .

embora nele o autor não recorra explicitamente à


metáfora do fundo. Propondo o despojamento radi­
cal do sujeito, pelo qual nada queira, saiba ou tenha,
libertando-se de tudo e do próprio Deus, enquanto
sujeito com atributos pensado pelo homem, Eckhart
mostra como isso conduz à reintegração no estado
primordial, pré-existencial, onde ele próprio, antes
de se determinar como ente humano, vivia numa
imanência absoluta, « livre de Deus e de todas as
coisas» 15 • É apenas pela sua livre saída desse estado
e consequente recepção do seu «ser criado» que
obtém «Um Deus», «pois antes que fossem as criatu­
ras, Deus não era "Deus"», mas apenas «O que era»,
ou seja, nem isto nem aquilo, pura indeterminação
não entificada nem qualificada. É somente pelo sur­
gimento das «criaturas» nessa e a partir dessa inde­
terminação primordial, num processo solidário da
autodeterminação existencial do próprio suj eito
Eckhart, que «Deus» vem a ser, já não «em si mes­
mo», mas «nas criaturas», como um ente divino. É
este «Deus», criado, como tudo o mais, pela auto-

" Cf. M ES TRE ECKHART, Predigten, Werke , II, 69, textos e versões de
Ernst B enz, Karl Christ, B runo Decker, Heribert Fischer, Bernhard
Ge yer, Joseph Koch, Josef Quint, Konrad Weib e Albert Zimme rrnann,
editados e comentados por Ni klaus Largier, Frank furt no Meno, Deut­
scher Klassiker Verlag, 2008, pp. 53 e 55.
1 5 M ES TRE ECKHART, Predigten , Werke, l, 52, p. 555.
PREFÁCIO 11

criação do próprio suj eito enquanto ente mundano,


que não lhe pode bastar, pois ele procede de algo
anterior ao próprio «Deus» entificado e divinizado,
isso que Eckhart designa como «o abismo eterno do
ser divino» [den ewigen Abgrund gottlichen Seins]. «Por
isso rogamos a Deus que de "Deus" nos livremos»,
como diz, fruindo eternamente a «verdade» «aí onde
os anjos mais elevados, a mosca e a alma são iguais»,
ou seja, nessa manência primordial, sempre presen­
te, transcendente do mundo da diferenciação criada,
onde o sujeito residia quando «não era», o que, em­
bora sem o nomear, a não ser como «abismo eter­
no», é decerto uma das indicações mais sugestivas
do Grund ou fundo sem fundo 16• É a saída ou exílio
ex-istencial desse «abismo», mediante o escorrer ou
emanar [Ausflieben] diferenciador, que a ruptura ou
trespasse [Durchbrechen] reintegrador vem anular, li­
bertando o sujeito de si e assim de Deus e de todas
as coisas e restaurando-o nesse eterno imo de não di­
ferenciação onde não é «nem "Deus" [Gott] nem
criatura», instância noutros lugares designada como
«Divindade» [Gottheit]. Esta é aquela «verdade» que
só pode compreender quem se lhe assimila, a «ver­
dade não encoberta, que veio directamente do cora­
ção de Deus» 17•

"Cf. lbid., p. 555. Cf. também pp. 561 e 563. Cf. PAULO BORGES, «Ser
ateu graças a Deus ou de como ser pobre é não haver menos que o In­
finito - a-teísmo, a-teologia e an-arquia mística no sermão "Beati paupe­
res spiritu... ", de Mestre E ckhart», in Philosophica, 1 5 (Lisboa, 2000),
pp. 61 -77.
17 MESTRE ECKHART, Predigten, Werke , !, 52, p. 563.
12 TRATADOS E SERMÕES

Cremos residir neste aprofundamento extremo da


experiência espiritual 18 , livre de todo o condiciona­
mento e idolatria conceptual e figurativa, a razão
pela qual Eckhart também se vem crescentemente a
impor como incontornável mediador do diálogo
entre o Ocidente cristão e as tradições orientais 19•
Diálogo autêntico, num duplo sentido: após S cho­
penhauer haver assumido em Buda, Eckhart e nele
próprio um mesmo ensinamento fundamental (pre-

18 Fernand Brunner fala do seu «gosto» pelas «posições extremas»:

«Eckhart ou le go ut des positions extremes» , in AAVV, Voici Maitre


Eckhart, textos e estudos reunidos por Emilie Zum Brunn, Grenoble,
Jér ôme Millon, 1 998, pp. 209-230.
" Hans Urs von Balthasar declara ser «exclusivamente referindo-se
ao pensador cristão Eckhart que o diálogo (cristão) com as vias de liber­
tação asiáticas será possível», enquanto Alois M. Haas abre o leque dessa
mediação, afirmando que Eckhart, com Evágrio P ôntico e Dionísio, o
Areopagita, tem vindo a surgir «no Ocidente cristão como o interlocutor
decisivo das religiões orientais» - Cf. HANs URS VON BA LTHASAR, «Chris­
tliche und nichtchristliche Meditation», in Neue K larstellungen, Einsie­
deln, 1 979, pp. 82-98; Chris ten sind einfaltig, Einsiedeln, 1 983, pp. 1 09-
-1 1 8; ALOrs M. HAAs, Maestro Eckhart. Figura normativa para la vida espiritual,
p. 9; cf. também I o., Gott Leiden - Gott Lieben. Zur volkssprachlichen Mystik
im Mittelalter, Frank furt, Insel, 1 989, pp. 1 8 9-240; «Correspondances
entre la pensée eckhartienne et les religions orientales», in AAVV, Void
Maitre Eckhart, pp. 373-383, p. 373; «Eckhart como interlocutor de las re­
ligions orientales», in AAVV, El Maestro Eckhart en diá/,ogo. Entre sombra de
ser, organização de Carlos Ruta, Buenos Aires, Jorge Baudino Ediciones
I Universidad Nacional de San Martín, 2006, pp. 1 07-1 22 . Entre outras
aproximações, adiante referidas, sobretudo ao budismo Zen, RuoOLF
0 TTO assinalou a profunda convergência de Eckhart com S hankara,
mestre do Vedanta não dualista - cf. Mystique d'Orient et d'Occident.
Distinction et Unité, tradução e prefácio de Jean Gouillard, Paris, Pa yot,
1 9 5 1 ; cf. também B. B ARZEL, Mystique de l'lnejfable dans l'Hindouisme et /e
Christianisme. Çankara et Eckhart, préface de Michel Hulin, Paris, Cerf,
1 982.
PREFÁCIO 13

cipitadamente, cremos) 2º, são autores orientais, so­


bretudo budistas Zen, como Daisetz Taitaro S uzuki,
que encontram em Eckhart, para além das fronteiras
terminológicas, uma experiência comum à sua e
fecunda para uma «cultura mundial» 21 • A Escola de
Kyoto tem particularmente promovido, muito em
torno de Eckhart, um fecundo diálogo com a filoso­
fia e mística ocidentais, desde Keiji Nishitani, que es­
tudou o pregador alemão em Deus e o nada absoluto 22 ,
até S hizuteru Ueda, que sobre ele se doutorou na
Alemanha com uma tese sobre os seus dois temas
capitais: o nascimento de Deus na alma e o trespasse
na Divindade 23•
Aqui se apresentam ao leitor português alguns
textos fundamentais dum autor que muito pode
contribuir para dois dos maiores e urgentes desafios

20
«Buda, Eckhart e eu próprio, ensinamos no essencial a mesma
coisa» -Senilia (1 858), Der handschriftl. Nachlass, editado por A. Hubscher,
IV/2, Frank furt, 1 975, p. 29 ; citado em W. HA LBFASS, Indien und Europa.
Perspektiven ihrer geistigen Begegnung, Base !, 1 98 1 , pp. 1 2 9 e 1 32; citado em
ALrns M. HAAS , «Correspondances entre la pensée eckhartienne et les
religions orientales», in AAW, Voici Maftre Eckhart, p. 373 .
21
D. T. S uzuKI, Mysticism: Christian and Buddhist, Londres/Nova
Iorque, Routledge Classic, 2006, pp. 5-6 .
22
KEu1 NISHIT ANI , Kami to zettai mu, 1 948. Cf. também as referências
a Eckhart na obra fundamental deste autor: La Religión y la Nada, intro­
dução de James W. Heisig, tradução de Raquel Bouso García, Madrid,
Ediciones Siruela, 1 999, sobretudo pp. 1 1 2-1 1 9.
23
D ie Gottesgeburt in der Seele und der D urchbruch zur Gottheit: Z wei
Hauptthemen der Mystik Meister Eckharts, Gütersloher Verlagshaus Gerd
Mohn, 1 965 ; lo., Z en y Filosofia, Barcelona, Herder, 2004, pp. 5 1 - 1 34.
Sobre a escola de Kyoto, cf. J AMES W. H EISIG, Filósofos de la Nada. Un en­
sayo sobre la Escuela de Kyoto, prólogo de Raimon Pannikar, Barcelona,
Herder, 2002.
14 TRATADOS E SERMÕES

da nossa época: o florescimento da nossa consciên­


cia espiritual e o diálogo intercultural e inter-reli­
gioso, com Eckhart aberto - como entre nós com
Agostinho da Silva - a agnósticos e ateus, pois uma
Divindade equivalente ao «Nada» [Nichts] 24 pode
igualmente experimentar-se no silêncio da união
místico-contemplativa, no abster-se de afirmar ou
negar a sua existência ou no puro negá-la.
Concluímos expressando a nossa gratidão à Pau­
linas Editora, pelo tão bom acolhimento desta pro­
posta, bem como a gratificação de havermos levado a
cabo este projecto com o nosso amigo Jorge Telles
de Menezes, que a ele dedicou todo o seu imenso ta­
lento e experiência de tradutor da língua alemã, poé­
tica e filosófica, tal como os seus grandes dons de
poeta e escritor.
Bem hajam!

PAULO BORGES
Universidade de Lisboa

24 Cf. MESTRE ECKHART , Predigten , Werke, II, 71 , p. 65.


INTRODUÇÃO A MESTRE ECKHART

O itinerário de Mestre Eckhart 1 revela a sua riquíssima


personalidade de frade pregador e de teólogo, ao assumir
grandes responsabilidades no governo dosfrades e na prega­
ção não só aos seus confrades mas igualmente às monjas e a
numerosos leigos. Todo esse intenso labor é acompanhado de
muitas viagens por territórios bastante vastos do Norte da
Europa. De antemão descobrimos um homem plenamente
mergulhado nos combates espirituais e na sociedade do seu
tempo.
Nascido cerca de 1260, na região alemã da Turíngia, e
falecido cerca de 1328, provavelmente em Avinhão, visto
que não se conhece o seu túmulo; formado na corrente que
tinha visto surgir outro grande dominicano, Santo Alberto
Magno, Eckhart faz parte da província dominicana da
Teutónia. Vive em pleno período-charneira, entre o «belo
século XIII» e o «Outono da Idade Média>>, e as suas graves
crises: guerras, fomes e epidemias. Vários países, várias cul­
turas e línguas abrangem o seu território de trabalho. Mas
são essencialmente o médio-alemão e o latim, os seus princi­
pais meios de escrita e de pregação. Seria assaz longo des-

1 Antes de mais, convido o leitor a conhecer a cronologia de Mestre

Eckhart, proposta no fina l deste livro.


16 TRATADOS E SERMÕES

crevermos aqui os conflitos do Santo Império Romano-Ger­


mânico, em particular o período em que o Império não tem
soberano. Este período, no entanto, faz surgir o fortaleci­
mento da confederação de estados soberanos e de principa­
dos. E é neste preciso período que Luís W da Baviera e o se­
gundo papa de Avinhão, João XXII ( 13 16- 1334), vão
entrar em conflito. Todo o império será marcado pelo inter­
dito, o que significa a cessação de qualquer vida religiosa, li­
túrgica e sacramental. Estamos perante uma época com­
plexa, na qual surge como resposta uma efervescência
religiosa e espiritual. É neste contexto que entram em cena
de forma massiva os leigos, na vida espiritual. Os mosteiros
e os conventos são o principal lugar da vida espiritual nessa
época. Muitos leigos são imbuídos duma grande sede espiri­
tual e querem ser alimentados de forma mais substancial.
Não é só no vestuário, na riqueza e no dinheiro que surge a
novidade. É igualmente nesse clima de fervor religioso que se
desenvolve um panteísmo popular. No campo das heresias,
os Bogomiles, os Patarinos e os Cátaros propagam o dualis­
mo e o maniqueísmo, em vários pontos da Europa.
É dentro dessa efervescência espiritual que as duas prin­
cipais Ordens mendicantes - os Dominicanos ou Ordem dos
Pregadores e os Franciscanos ou Ordem dos Frades Meno­
res -, vão ter o seu terreno de eleição, através da pregação. O
movimento das beguinas e a mudança do estatuto da
mulher; na sociedade e na Igreja, ilustram o propósito de
Eckhart de responder à inquietude e ao desejo da mulher de
sair da tutela exclusiva masculina. A partir do século XIII,
o matrimónio é, em teoria, fundado sobre a livre vontade dos
cônjuges.
INTRODUÇÃO A MESTRE ECKHART 17

Mas devido aos desequilíbrios demográficos, provocados


especialmente pelas Cruzadas, muitas mulheres pennanecem
solteiras e um número apreciável consagra-se a uma procura
de vida cristã e espiritual autêntica. É justamente na cidade
de Colónia, tão ligada à vida de Eckhart que, em 1223, sur­
ge o primeiro testemunho da presença das beguinas. O cro­
nista Mateus de Paris assinala mais de mil beguinas na ci­
dade de Colónia, ou seja, seis por cento da população dessa
época 2• Elas são mais de um milhão, no seu período mais in­
tenso, no mundo gennânico. Esse movimento vai espalhar-se
pelos Países Baixos até à Itália, da França até à Hungria.
Os mosteiros femininos também são muito numerosos e isso
coloca um desafio, em particular à Ordem dos Dominicanos,
no acompanhamento que é solicitado- e que, durante um
certo período, terá um peso excessivo -, em relação ao equi­
lfbrio do apostolado dos frades, mais inclinados para a itine­
rância, do que para ficarem restringidos ao acompanha­
mento de numerosos mosteiros. Apesar dos debates, a Ordem
Dominicana sempre manifestará a importância e a necessi­
dade desse trabalho. No Vale do Reno, numerosos mosteiros
de monjas dominicanas e monjas de outras origens necessi­
tam de assistência espiritual. Em Estrasburgo encontram-se,
nessa altura, cerca de 85 grupos de beguinas e existem sete
mosteiros de monjas dominicanas na cidade. Eckhart penna­
nece ali cerca de dez anos, para cuidar em particular da
assistência espiritual desses mosteiros3• No século XIv, na

2 SILVANA PANCIERA, Les béguines, Namur, Éditions Fidélité, 2009,


p. 27. Ver também o capítulo sobre Mestre Eckhart e as beguinas, in Kurt
R UTH, Initiation à Maítre Eckhart, Paris, Cerf, 1 997, pp . 1 3 9 - 1 70.
3 MARIE-ANNE VANNIER, Eckhart à Strasbourg, Ville de Strasbourg,
2006, p. 20.
18 TR ATADO S E SERMÕE S

cidade, vive cerca de um milhar de monjas e de beguinas


para uma população total de quinze mil habitantes, o que
demonstra, por um lado, o seu desequilfbrio demográfico, e
por outro lado, igualmente, a grande sede de vida espirftual.
Todos esses questionamentos acompanham o pensamento
de Mestre Eckhart, embora o seu carácter; com frequência
paradoxal, nos surpreenda. A corrente que ele desenvolveu
ou à qual deu origem - os místicos renanos-, trazem-nos à
memória os seus principais confrades dominicanos com essa
mesma sensibilidade: João Tauler4 e Henrique Suso 5 • À ex­
pressão mais autêntica dessa sede, procuram estes autores
responder de forma exigente, como é próprio do carisma de
São Domingos, de pregar pela palavra e pelo exemplo.

•João Tauler, frade dominicano, nasceu cerca de 1300, em Estras­


bu rgo, e ali faleceu, em 1 3 6 1 . A sua pedra tumu lar encontra-se na igreja
do Temple Neuf, igreja protestante, localizada no antigo convento dos
Dominicanos. É um discípu lo directo de Mestre E ckhart. Dei xou-nos
be los Sermões e a sua obra teve uma irradiação not ável através de tra ­
duções, em Portugal e em Espanha . Ver, por exemp lo, Frei Luls DE
GRANADA, Obras Completas - Sermones de Tiempo, Madrid, Fundacion
Universitaria Espa fio la, 200 1, tomo XXIX, p. 1 34, o qual cita explicita ­
mente Tauler num dos seus Sermões.
5 Henrique Suso ( Seuse), frade dominicano, nascido na região do

lago de Constança, a 21 de Março de 1 295, e fa lecido em Ulm, a 25 de


Janeiro de 1 366. Estuda entre outros, no Estudo Geral da sua Ordem,
em Colónia, onde ensina então Mestre Eckhart . Redige o Livro da Vuta,
por volta de 1 327. Relaciona-se com o círculo espiritua l dos «Amigos de
Deus» . R edige também o Livro da Verdade, o Horologium (esta obra é citada
num dos Sermões de Frei Luís de Granada, Obras Completas - Sermones de
Santo ll/3, Madrid, Fundacion Un iversitaria Espa fio la, 2004, tomo XLN,
p. 240) e o Livro da Eterna Sabedoria. Ele é considerado o « São Francisco
da Su ábia», pela pureza, subti leza e cha rme dos seus escritos, e as suas
obras tiveram um imenso êx ito durante toda a Idade Média. Dos três
místicos dominicanos, Suso é o único a ter sido beati ficado. Foi o papa
Gregório XVI que instituiu, em 1 83 1 , a sua festa a 2 de Março.
INTRODUÇÃO A MESTRE ECKHART 19

O objectivo principal da Ordem Dominicana é a prega­


ção, e o estudo é-lhe subordinado, com o objectivo <ÚJ bem das
almas, ou seja, para a fecundidade e realização humana e
espirüual da pessoa humana, em Cristo. Mestre Eckhart,
que é hoje li<W por quadrantes extremamente variados - e é
bom que assim seja-, é, no entanto e acima de tudo, um
frade pregador. A sua palavra encontra a sua fonte na Pala­
vra de Deus, lida, meditada, proclamada, motivo e ocasião
permanente de conversão ao mistério de Cristo. Porém,
Mestre Eckhart, devido à sua profunda inteligência espiri­
tual e à sua exigência radical, vem ao encontro, ainda hoje
como no passado, dessa procura de Deus que não pode ser
silenciada. Com essa finalidade tenta utilizar uma lingua­
gem que convida ao despojamento radical, ao desapego, e
que nos conduz a desfazermo-nos de todos os nossos falsos
deuses, <Ws í<Wlos de toda a espécie, inclusivamente da falsa
imagem de Deus em nós, que deve ser purificada até ao seu
cerne mais essencial. Daí que a teologia da graça divina
esteja no centro da sua obra e de que nela Eckhart exponha
a sua visão da nossa filiação divina: «sermos pela graça o
que Deus é por natureza. » Eckhart não apresenta a graça
divina como um simples socorro auxiliar de ordem eficiente,
mas realça, na sua teologia, a felicidade da salvação por e
através de Cristo. Mas nada como meditar cuidadosamente
os Tratados e os Sermões onde estão explanadas constan­
temente essas preocupações.
A obra de Mestre Eckhart declina-se em obras latinas e
alemãs. Inicialmente e durante séculos, só era conhecida a
sua obra latina, até serem descobertos, em diversas bibliote­
cas, como Erfurt, Trier, Berlim, vários manuscritos dos
Sermões e <Ws Tratados. Da obra latina podemos referir a
20 TRATADOS E SERMÕES

introdução ao comentário sobre as Sentenças, algumas


«questões disputadas», um sermão sobre Santo Agostinho e
uma parte do 'tratado sobre o Pai-Nosso, e ouh"os textos ou
prólogos dedicados à Opus tripartitum 6• Nessa obra la­
tina, o professor quis responder ao desejo dos seus alunos
que queriam enconh"ar o que eles tinham escutado nas suas
aulas dadas em Colónia ou em Paris. Por esse motivo, a sua
obra latina contém numerosas interpretações de diversos
textos dos dois Testamentos. Eckhart tem consciência de sair
dos caminhos bem delineados e não ignora que, de enh"e as
suas proposições, questões e exposições, algumas podem, à
primeira vista, parecer «monstruosas, duvidosas ou
falsas» 7, mas também declara que, se as examinarem crite­
riosamente, a Sagrada Escritura, um santo ou um mesh"e
célebre testemunharão em seu favor.
Deus é para Eckhart o Ser, o Ser em Si, a plenitude do
ser, mas nós só podemos falar dele segundo o nosso modo de
pensamento, a partir de coisas que nos são conhecidas,
porém, Ele 'transcende qualquer conceito e todos os termos
que nós lhe aplicamos.

* * *

Muitas questões foram colocadas sobre a ortodoxia e


sobre o processo feito a Eckhart, inicialmente na cidade de

• Obra que tem a sua origem na segunda fase do seu ministério de

ensino em Paris, nos anos 1 3 1 1 -1 31 3 , Eckhart prossegue em Paris a bri ­


lhante presença dominicana alemã como o foram S anto Alberto Magno
e Dietrich de Freibe rg.
7 }EANNE ANCELET-HUSTACHE, Maitre E ckhart et la mystique rhénane,

Paris, Seuil, 1 978, p. 47.


INTRODUÇÃO A MESTRE ECKHART 21

Colónia, e, em seguida, em Avinhão. A sua linguagem para­


doxal, linguagem dum teólogo, poeta e místico, vai o mais
longe possível na elaboração da inteligência e da compreen­
são do mistério de Deus. Eckhart tem uma confiança quase
ilimitada na potência do verbo. A palavra tem para ele uma
<força quase sacramental e ela encontra-se carregada dum
poder criador que vem do facto de que Deus se compromete
ali ao lado do homem>> 8• Embora seja difícil descrever a ex­
periência mística de Eckhart, ou afirmá-la negativa ou afir­
mativamente, temos disso o reflexo nos seus Sermões e nos
seus Tratados. A metamorfose da Palavra realiza-se nessa
alquimia, entre ele e os seus ouvintes, onde o familiar e o su­
blime se conjugam. A sua força de persuasão é acompanha­
da pelas suas imensas capacidades literárias. Se as suas pre­
gações, os seus tratados e outros textos, criaram no seu tempo
uma corrente poderosa de adesão, eles continuam hoje em
múltiplos círculos do pensamento, até os mais imprevisíveis,
a encontrarem um eco profundo e estimulante. Convém
porém que os seus textos sejam lidos, observando cuidadosa­
mente o género literário e integrando o contexto no qual estes
textos foram transmitidos. Se essa leftura assim ocorrer; a
palavra de Eckhart pode atingir-nos divinamente, porque
nela se trata de Deus e do seu nascimento no nosso ser. Que
maior e mais belo desafio senão esse?

FR. JOSÉ Lufs DE ALMEIDA MONTEIRO, OP


Tours - França

'MAlTRE ECKHART, Les Sermons, Paris, Albin Michel, 2009, p. 1 9.


TRATADOS

O homem tem de aprender uma solidão interior.

«Tratado do D iscern imento»


SOBRE OS TRATADOS

Os Tratados são assim conhecidos na obra de Mestre


Eckhart, devido ao lugar singular que ocupam na sua obra,
os quais podem ser resumidos a quatro textos, reconhecidos
como autênticos: Os Discursos do Discernimento, o
Livro da Consolação Divina, o sermiio in#tulado O Ho­
mem Nobre e, por fim, o tratado Do Desapego. Como
os Sermões Alemães, os Tratados foram redigidos em
língua alemã, na qual Eckhart, com um domínio admirável,
ilustra os seus dons literários.
Os Discursos do Discernimento (Reden der Un­
terscheidung), foram dados por Eckhart, quando era prior
do convento de Erfurt e vigário provincial da Turíngia, ou
seja, antes de 1298. São textos que foram transmitidos no
contexto da tradição conventual dominicana, onde era cor­
rente a leitura de autores espirituais, durante as refeições, ou
aos noviços, exortações ao anoitecer, para os afervorar, tal
como acontece na vida de frei Luís de Granada, em Lisboa,
no século XVI. Este autor dominicano sublinhava que era
muito proveitoso preparar a sua oração do dia seguinte,
através duma meditação na véspera. Os Discursos provêm
sobretudo do género ascético, pois Eckhart bem sabe que o
26 TRATADOS E SERMÕES

que ensina requer dos mais novos um longo exercício para


entrarem plenamente no âmago da vida divina, para a qual
deve nascer o cristão e dentro da vida religiosa dominicana,
para viver do Verbo, e pregá-lo pela palavra e pelo exemplo,
ser um ad-verbo. Este tipo de texto de Eckhart exige acima
de tudo uma grande disponibilidade interior. O prior tinha,
nessa época, a responsabilidade da fonnação espiritual dos
noviços. Podemos por isso facilmente imaginar a qualidade e
a riqueza desses encontros entre o mestre teólogo e os seus
noviços.
O Tratado da Consolação Divina (Liber «Bene­
dictus» ou Das Buch der Gõttlichen Trõstung) faz­
-nos pensar no livro da Consolação da Filosofia, de
Boécio, no século VI. Este tratado de Eckhart foi dedicado a
Águeda, rainha da Hungria, filha do duque Alberto da
Áustria, nascida em 128 1 e que passou por grandes prova­
ções. Esta obra teria sido redigida entre 1308 e 13 1 1. A ex­
periência pessoal de Eckhart, embora dissimulada por fór­
mulas teológicas, está aqui sem dúvida presente, ao falar
sobre a experiência do sofrimento. Neste Tratado fala sobre
a relação entre a Sabedoria e o homem bom e justo. Através
da graça, ela gera nele o Filho e faz dele um ser absoluta­
mente renovado. A partir dal tudo o que o justo realiza é a
própria obra da justiça eterna.
O Tratado sobre o Homem Nobre (Von dem
edeln menschen), é referido no próprio livro da Conso­
lação Divina. Este tratado foi considerado, inicialmente,
um sennão e pronunciado perante a rainha da Hungria, em
SOBRE OS TRATADOS 27

Toess, na Suíça, entre 1324 e 1325. A data da sua redacção


não seria muito afastada da do Livro da Consolação
Divina. Neste opúsculo, Eckhart comenta a parábola evan­
gélica lida na festa de Santo Estêvão, rei da Hungria, cele­
brado no dia 2 de Setembro. Eckhart distingue o «homem
exterior» e o «homem interior». E compara o homem nobre à
semente que frutificará se o mau cultivador não a abafar. É
a semente divina, a sua imagem, que Deus inseriu na nossa
alma, que pode estar bem escondida, masjamais aniquilada.

FR. JOSÉ Luts DE ALMEIDA MONTEIRO, OP


TRATADO DO DISCERNIMENTO 1

Estas são as conversações, que o vigário da Turíngia,


prior de Erfurt, irmão Eckhart, da ordem dos Frades Men­
dicantes, manteve com aqueles filhos (espirituais), que lhe
cowcavam muitas questões, quando à noite se sentavam jun­
tos para instrutivas colações.

1
Da verdadeira obediência

A verdadeira e perfeita obediência é a virtude


entre todas as virtudes, e nenhuma obra, por muito
grandiosa que seja, poderá acontecer ou ser realizada
sem esta virtude; no entanto, por muito pequena e
insignificante que uma obra seja, ela será mais útil se

' Para a presente tradução dos Tratados e de alguns dos Sermões ale­
mães de Mestre Eckhart, se rvimo-nos fundamentalmente das versões
em alemão contemporâneo de JOSEF Q UINT, Meister Eckhart, Deutsche Pre­
digten und Traktate, ed . D iogenes, 1 979, Zurique. També m -nos socorre­
mos da ed ição crít ica da Kohlhammer Verlag, Meister Eckhart, die deuts­
chen und lateinischen Werke, ed itado sob os auspícos da Deutschen
Forschungsgeme inscha ft, 1 958, Estugarda, em que a obra alemã do mís­
t ico renano é ed itada e traduz ida igualmente por Josef Qu int, nome c i­
me iro na fixação e tradução dos textos de Eckhart do alto-méd io alemão
para alemão contemporâneo.
30 TRATADOS E SERMÕES

for feita em verdadeira obediência, seja ela ler a


missa ou ouvi-la, orar, contemplar, qualquer coisa
que queiras imaginar. Por outro lado, toma uma acti­
vidade, a mais humilde que te aprouver, seja ela qual
for: a verdadeira obediência faz-te mais nobre e
melhor. A obediência consegue sempre o melhor em
todas as coisas. Verdadeiramente, a obediência nun­
ca perturba nem impede aquilo que alguém faça,
nada que provenha da verdadeira obediência; ela não
descuida nada do que é bom. A obediência não pre­
cisa nunca de se preocupar, não lhe falta qualquer
bem.
Quando o homem sai do seu eu, em obediência, e
prescinde do que é seu, Deus deverá, por isso mes­
mo, entrar necessariamente nele; pois, quando al­
guém nada quer para si mesmo, deverá de modo
igual Deus querer para ele como quer para si mes­
mo. Se eu me tiver despojado da minha vontade nas
mãos daquele que me é superior, e para mim mesmo
nada quiser, então deverá, por essa mesma razão,
Deus querer por mim, e se Ele aí perder algo para
mim, assim Ele perderá ao mesmo tempo algo para
si mesmo. Assim ocorre em todas as coisas: onde eu
nada quiser para mim mesmo, há-de Deus querer
para mim. Agora prestai atenção! O que quer Ele
então para mim, se eu nada quero para mim mes­
mo? Aí, onde eu abandono o meu eu, aí, deverá Ele
necessariamente querer para mim tudo aquilo que
Ele quer para si mesmo, nem mais nem menos, e do
mesmo modo que Ele quer para si mesmo. E se
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 31

Deus não fizesse isso, - na verdade que Deus é,


então Deus não seria justo, nem Ele seria Deus,
aquele que é (afinal) 2 o seu ser natural.
Na verdadeira obediência, não deverá haver qual­
quer «eu quero assim ou assim» ou «isto ou aquilo»,
mas unicamente um perfeito renunciar ao que é teu.
Assim, na mais perfeita oração que o homem conse­
guir rezar, não deverá dizer-se: «Dá-me esta virtude,
ou aquele modo», nem «Sim, Senhor, dá-te a mim
ou dá-me vida eterna», mas somente «Senhor, não
me dês nada, excepto o que Tu quiseres, e faz, Se­
nhor, o que quiseres e como quiseres de qualquer
modo!» Esta (oração) sobrepõe-se à primeira como
o céu à terra; e ao rezar-se a oração desta maneira,
então rezou-se bem: quando, em verdadeira obe­
diência, se saiu do seu eu para entrar em Deus.
E assim como a verdadeira obediência não deve
conhecer qualquer «eu quero assim» , também
nunca se deve escutar nela «eu não quero»; pois «eu
não quero» é um verdadeiro veneno para qualquer
obediência. Como, pois, diz Santo Agostinho: «Ü fiel
servidor de Deus não cobiça que lhe digam ou lhe
dêem aquilo que ele gostaria de ouvir ou de possuir;
porque a sua primeira, suprema ambição é a de
acatar aquilo que mais agrada a Deus.»

2 Todas as palavras colocadas entre parênteses, quer nos Tratados


quer nos Sermões, não constam dos textos orig ina is de Eckhart, e foram
introduz idas por Qu int (ou por nós nalguns casos) para fac il itar a le itura
e compreensão do le itor coevo.
32 TRATADOS E SERMÕES

2
Da oração mais poderosa e da obra suprema

A oração mais enérgica, e quase a mais omnipo­


tente, para se alcançar todas as coisas, e a obra mais
digna entre todas, é aquela que procede de um ca­
rácter desprendido. Quanto mais desprendido este
for, tanto mais forte, útil, louvável e perfeita será a
oração e a obra. O carácter desprendido consegue
todas as coisas.
O que é um carácter desprendido?
Um carácter desprendido é aquele que não se
deixa transtornar por nada e que não está agarrado a
nada, que não agarra de modo algum o melhor de si
mesmo e em nada vê o proveito próprio; é aquele
que, pelo contrário, está mergulhado inteiramente na
vontade bondosa de Deus e se despojou do que é
seu. Nunca o homem poderá executar uma obra,
por muito pequena que ela seja, que não receba daí a
sua força e a sua capacidade.
Devemos orar tão energicamente, que seria dese­
jável que todos os membros e potências do homem,
os olhos assim como os ouvidos, a boca, o coração e
todos os sentidos estivessem para tal orientados; e
não se deverá desistir antes que se sinta que nos
começámos a unir com aquele que temos presente e
a quem se ora, e que é: Deus.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 33

3
Das pessoas que não se abandonam
e estão ch.eias de vontade própria

As pessoas dizem: «Ah, Senhor, sim, também eu


gostaria de me deter assim perante Deus e de ter
igualmente tanta devoção e paz com Deus como o
fazem outras pessoas; gostaria que acontecesse assim
comigo ou que eu fosse igualmente tão pobre», ou:
«Nunca nada está certo comigo, seja porque eu não
estou ali ou acolá, seja porque faço as coisas assim
ou de outro modo, ou tenho de viver no estrangeiro,
ou numa cela, ou num convento.»
Na verdade, encontra-se nisso manifestamente
envolvido o teu eu e em rigor nada mais. É a vontade
própria, ainda que tu não o saibas ou também assim
não se te afigure: nunca em ti desperta uma insatis­
fação que não venha da vontade própria, quer o per­
cebas quer não. Quando dizemos que as pessoas
deviam fugir disto e buscar aquilo, seja estes lugares
e estas pessoas, sejam estes modos ou a multidão, ou
esta actividade - não é isso que tem a culpa de os
modos ou as coisas te impedirem: és tu próprio (pelo
contrário) que te encontras nas coisas que te impe­
dem, pois tu relacionas-te de modo errado com as
coisas.
Por isso começa primeiro por ti próprio e aban­
dona-te! Na verdade, se tu não fugires primeiro de ti
próprio, seja para onde for que tu fujas, encontrarás
aí obstáculos e insatisfação, seja onde for. As pessoas
34 TRATADOS E SERMÕES

que buscam a paz em coisas exteriores, seja em luga­


res ou em modos, em pessoas ou em obras, no es­
trangeiro ou na pobreza, ou na humilhação - por
muito impressionante que isso seja, tudo isso ainda
assim não é nada e não oferece qualquer paz. Bus­
cam de modo inteiramente errado, aqueles que
assim buscam. Quanto mais longínqua for a distân­
cia em que eles vagueiam, tanto menos eles acharão
aquilo que buscam. Eles vão como alguém que se
enganou no caminho: quanto mais distante estiver,
tanto mais confuso se achará. Mas que há-de então
esse alguém fazer? Ele deverá primeiro abandonar­
-se a si mesmo, então ele terá abandonado tudo. Em
verdade, se um homem abandonar um reino ou o
mundo inteiro, mas conservando-se a si mesmo,
então ele não terá abandonado nada. Se, porém, o
homem renunciar a si mesmo, seja o que for que ele
então mantenha, seja um reino ou a honra, seja o
que for, então ele terá abandonado tudo.
Sobre as palavras que S. Pedro disse: «Nós deixá­
mos tudo e seguimos-te» (Mt 1 9,27) 3 - e ele nada
mais tinha abandonado do que uma simples rede e
o seu pequeno barco -, afirma um santo: quem vo­
luntariamente abandona o que é pequeno, ele não

' Todas as c itações b íbl icas são ret iradas de: Bfblia Sagrada, D ifusora
Bíbl ica, (M iss ionários Capuch inhos) , L isboa, 1 3 .3 ed., 1 986. Fo i igual­
mente consultada a ed ição da Bíbl ia, de Março de 2006, também da
D ifusora B íbl ica. Sempre que as c itações bíbl icas de Eckhart, incluídas
no corpo do texto, se d istanc iam com alguma relevânc ia da versão por­
tuguesa c itada da Bíblia, optámos por inclu ir em nota o respect ivo texto
da versão portuguesa da B íbl ia.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 35

abandona somente isso, senão que abandona tudo o


que as pessoas mundanas ganham, ou mesmo até o
que elas somente possam ambicionar. Pois quem
abandona a sua vontade e a si mesmo, terá abando­
nado na realidade todas as coisas de tal modo, como
se elas tivessem sido a sua livre propriedade e ele as
tivesse possuído com pleno poder discricionário.
Pois tudo aquilo que tu não quiseres ambicionar,
tudo isso tu entregaste e abandonaste pela vontade
de Deus. Por isso disse Nosso Senhor: «Bem-aven­
turados os pobres em espírito» (Mt 5,3), o que signi­
fica: os pobres em vontade. E neste ponto ninguém
deve duvidar: se houvesse um qualquer melhor
modo, Nosso Senhor tê-lo-ia mencionado, tal como
Ele também afirmou: «Se, alguém quiser vir após
mim, renegue-se a si mesmo» (Mt 1 6,24) ; aí está o
mais importante. Tem-te a ti próprio em mira, e
onde te encontrares, renuncia a ti; isso é o melhor de
tudo.

4
Da utilidade do abandono que se deve realizar
interior e exteriormente

Deverás saber que, nesta vida, nunca uma pessoa


se abandonou assim tanto, que não tenha achado
que se devia abandonar ainda mais. Existem poucas
pessoas que respeitam isso correctamente e nisso
são constantes. É uma troca de valor igual e uma
36 TRATADOS E SERMÕES

justa transacção: tanto quanto tu saíres de todas as


coisas, tanto quanto, nem mais nem menos, entrará
Deus com tudo o que é seu, contanto que tu te
tenhas inteiramente despojado do que é teu. Come­
ça pois por aí, e expende nisso tudo o que consegui­
res arranjar. Ai. encontrarás verdadeira paz e em mais
lado nenhum.
As pessoas não necessitam de reflectir tanto sobre
o que deveriam fazer; elas deveriam, pelo contrário,
reflectir sobre aquilo que elas são. Ora, se as pessoas
e os seus modos fossem bons, então as suas obras
poderiam refulgir limpidamente. Se tu fores justo,
então as tuas obras também serão justas. Não se
pode pensar a santidade com fundamento numa
acção; deve-se, pelo contrário, fundamentar a santi­
dade em um ser, pois as obras não nos santificam,
senão que nós devemos santificar as obras. Por
muito santas que as obras possam ser, elas não nos
santificarão de modo algum, porquanto elas sejam
obras, mas: tanto quanto nós formos santos e pos­
suirmos ser, assim santificaremos todas as nossas
obras, sejam elas comer, dormir despertar ou seja o
que for. Aqueles cujo ser não é grande, façam que
obras fizerem, daí nada sairá. Reconhece, por conse­
guinte, que se deve empregar toda a determinação
em ser bom, - e não tanto naquilo que se faz ou no
modo de as coisas serem, senão em qual há-de ser o
fundamento das obras.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 37

5
Atenta no que torna bom a essência e o .fundamento

O fundamento para que a essência e o funda­


mento do ser do homem, de onde as obras humanas
recebem a sua benignidade, seja inteiramente bom, é
o seguinte: que o carácter do homem esteja total­
mente (virado) para Deus. Coloca todos os teus es­
forços em que Deus seja grandioso para ti e que toda
a tua ambição e devoção se dirijam para Ele em todo
o teu actuar. Em verdade, quanto mais assim fizeres,
tanto melhores serão as tuas obras, não importa de
que género elas sejam. Agarra-te a Deus, assim Ele
prenderá em ti todo o bem. Busca a Deus, assim en­
contrarás a Deus e todo o bem. Sim, de facto, com
um tal modo de pensar tu poderias dar um pontapé
numa pedra, e isso ser muito mais do supremo
agrado de Deus, do que se tu recebesses o corpo de
Nosso Senhor e nisso tivesses mais em vista o que é
teu e a tua intenção fosse menos altruísta. Quem se
agarra a Deus, é agarrado por Deus a toda a virtude.
E aquilo que tu antes procuraste, procura-te agora a
ti; aquele a quem tu perseguiste antes, persegue-te
agora; e aquilo de que tu antes querias fugir, foge
agora de ti. Por conseguinte: quem agarra Deus
apertadamente, é agarrado por tudo o que é divino, e
dele foge tudo o que é dissemelhante e estranho a
Deus.
38 TRATADOS E SERMÕES

6
Do desapego e da posse de Deus

Perguntaram-me o seguinte: algumas pessoas


afastam-se austeramente dos outros e preferem estar
quase sempre na solidão, encontrando nisso a sua
paz, ou então encontram-na na igreja - será isso o
melhor? A isso eu respondi «Não!» e prestai atenção
à causa.
Aquele que é recto, em verdade, é recto em todos
os lugares e com todas as pessoas. Aquele, porém,
que é incorrecto, é incorrecto em todos os lugares e
com todas as pessoas. Quem é recto, contudo, tem
Deus em verdade consigo; mas aquele que, sendo
recto, tem Deus em verdade, tem-no em todos os
lugares, na rua e entre todas as pessoas, assim como
na igreja ou no ermitério, ou ainda na cela; se entre­
tanto ele o tiver rectamente e só a Ele, então nin­
guém será um impedimento para essa pessoa.
Porquê?
Porque ele tem unicamente a Deus, e anela ape­
nas a Deus, e todas as coisas se tornam para ele pu­
ramente Deus. Uma pessoa assim transporta Deus
em todas as suas obras e em todos os lugares, e todas
as obras dessa pessoa são operadas unicamente por
Deus; pois àquele que é causa da obra pertence a
obra, mais autêntica e verdadeiramente do que
àquele que a executa. Se, por conseguinte, nós tiver­
mos pura e unicamente Deus em vista, então Ele de­
verá ser a causa das nossas obras, e em todas as suas
TRATADO DO DISCERNIMENTO 39

obras ninguém o consegue impedir, nenhuma mul­


tidão e nenhum lugar. Essa pessoa, portanto, não
poderá ser impedida por ninguém, pois ela nada am­
biciona e busca, e nada lhe é agradável senão Deus;
pois Ele se une ao homem em todo o seu esforço. E
assim como Deus não consegue dispersar toda a
multiplicidade, também essa pessoa não poderá ser
dispersa nem multiplicada por nada, pois ela é um
naquele Um, no qual toda a multiplicidade e uma
não-multiplicidade é Um.
O homem deverá apoderar-se de Deus em todas
as coisas e deve habituar o seu ânimo a ter Deus nele
presente, na aspiração e no amor. Atenta em como tu
te diriges a Deus quando estás na igreja ou na cela:
conserva essa mesma disposição e leva-a contigo
quando estás entre a multidão, ou em desassossego e
desequilíbrio. E - conforme eu já disse muitas vezes
- quando se fala de «igualdade», então não se quer
dizer que se deva considerar todas as obras como
iguais, ou todos os lugares, ou todas as pessoas. Isso
seria bastante incorrecto, pois orar é melhor obra do
que fiar, e a igreja um lugar mais digno do que a rua.
Tu deves, contudo, manter um ânimo constante em
todas as obras, e uma confiança constante, e um
amor constante para com o teu Deus, e uma cons­
tante seriedade. Em verdade, se o teu ânimo fosse tão
constante, ninguém te impediria de teres presente o
teu Deus.
Mas aquele em quem Deus não é verdadeiramen­
te tão imanente, senão que tem de receber perma-
40 TRATADOS E SERMÕES

nentemente Deus a partir de fora, nisto ou naquilo, e


quem busca Deus de modo desigual, seja em obras,
ou entre as pessoas ou em lugares, esse não tem
Deus. E poderá facilmente haver algo que impeça
uma tal pessoa, pois ela não tem Deus, e ela não o
busca somente a Ele nem aspira somente a Ele. E
por isso a impede não somente a má companhia,
mas também a impede a boa companhia, e não so­
mente a rua, mas também a igreja, e não somente as
más palavras e obras, senão também as boas palavras
e obras. Pois o impedimento radica nela, porque
Deus ainda não se tornou todas as coisas nela. Por­
que se assim acontecesse com ela, então ela sentir­
-se-ia bem e recta em todos os lugares e com todas
as pessoas; pois ela tem Deus, e ninguém o poderia
tirar-lhe, nem ninguém a poderia impedir na sua
obra.
Em que radica então este verdadeiro ter a Deus,
este possuí-lo verdadeiramente?
Este verdadeiro ter a Deus radica no ânimo e
num virar-se para e aspirar a Deus interior e espiri­
tualmente, mas não (pelo contrário) num pensar
nisso constante e uniformemente; pois para a natu­
reza isso seria impossível ou muito difícil de anelar e
não seria, além do mais, o melhor. O homem não se
deve deixar contentar com um Deus pensado; pois
quando o pensamento passa, assim também Deus
passará. Deve-se, pelo contrário, ter um Deus subs­
tancial, que se situa muito acima dos pensamentos
do homem e de todas as criaturas. Esse Deus não
TRATADO DO DISCERNIMENTO 41

passará, a não ser que o homem se afaste d'Ele por


sua vontade.
Quem assim possuir Deus no Ser, receberá Deus
divinamente, e Deus brilhará para ele em todas as
coisas; pois todas as coisas lhe sabem a Deus, e a
imagem de Deus torna-se-lhe visível a partir de
todas as coisas. Deus cintila sempre nele, nele cum­
pre-se uma renúncia libertadora e imprime-se nele o
seu Deus amado, presente. Por comparação, seria
assim como se alguém ardesse cheio de sede: ele
bem poderá fazer outra coisa que não beber, e pode­
rá mesmo pensar noutras coisas; mas faça ele o que
fizer, esteja com quem estiver, sejam quais forem as
suas aspirações, pensamentos ou acções, a ideia de
beber não lhe passará enquanto a sede persistir; e
quanto maior for a sede, tanto mais forte, presente e
dominadora será a ideia de beber. Ou no caso de
alguém que ama algo com tanto ardor, que nada
mais lhe agrada e só isso entra no seu coração, e ele
apenas anseia por isso e nada mais; com toda a cer­
teza, seja onde for que essa pessoa se encontre, seja o
que for que comece ou faça, nada apagará nela aqui­
lo que ela mais ama, e em todas as coisas ela encon­
trará a imagem dessa coisa, e isso ser-lhe-á presente
com tanta mais força, quanto mais forte esse amor se
tornar. Uma tal pessoa não busca o sossego, pois não
há desassossego que a perturbe.
Essa pessoa encontrará muito mais louvor peran­
te Deus, porque ela percebe todas as coisas como di­
vinas e mais elevadas do que elas o são em si mes-
42 TRATADOS E SERMÕES

mas. Em verdade, para tal é necessário zelo, entrega e


uma atenção rigorosa à interioridade do homem,
além de um saber desperto, verdadeiro, reflectido e
efectivo sobre a maneira de ser no meio das coisas e
entre as pessoas. O homem não pode aprender isso
através da fuga, ao fugir perante as coisas, volvendo­
-se exteriormente para a solidão; ele deverá, pelo
contrário, aprender uma solidão interior, não impor­
ta onde ou com quem esteja. Ele tem de aprender a
romper através das coisas e a alcançar o seu Deus aí
dentro, para assim o poder formar energicamente no
seu interior de um modo substancial. Poderíamos
compará-lo a alguém que quer aprender a escrever.
Em verdade, se ele quiser dominar essa arte, então
terá de ensaiá-la muito e com frequência, por muito
amarga e pesada que ela se lhe torne e por muito im­
possível que se lhe afigure: se ele quiser unicamente
exercitá-la com aplicação e frequentemente, então
acabará por aprendê-la e adquiri-la. Na realidade, ele
deverá primeiro orientar o seu pensamento para
cada letra singular e memorizá-la profundamente.
Mais tarde, quando dominar a arte, ele não precisará
mais de imaginar a letra e de reflectir sobre ela, ele
escreverá então livremente e com naturalidade, e o
mesmo acontecerá com tocar violino ou qualquer
outra função que a sua capacidade desempenhe.
Basta-lhe inteiramente saber, que ele quer operar a
sua arte; e mesmo que não esteja permanentemente
consciente disso, ele executará a sua acção a partir da
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 43

sua capacidade, não importando o que ele pense que


é a causa dessa acção.
Do mesmo modo deverá o homem ser penetrado
pela presença de Deus, moldado pela forma do seu
Deus amado e substancializar-se nele, de modo que a
sua presença ilumine sem qualquer esforço, e que ele
alcance em todas as coisas um desligamento e per­
maneça inteiramente livre perante as coisas. Tal exige
no início uma necessária reflexão e uma atenta me­
morização, como acontece ao aprendiz da sua arte.

7
Como o homem deve cumprir as suas obras
com o máximo de intelecto 4

Encontra-se em muita gente, e é fácil ao homem


consegui-lo, se ele o quiser: que as coisas com as
quais ele convive não o estorvem nem deixem nele
gravada uma imagem perdurável; pois, onde o cora­
ção está cheio de Deus, não terão ou encontrarão aí
lugar as criaturas. Mas não nos deveremos satisfazer
só com isso: devemos utilizar ao máximo todas as
coisas para nós, sejam elas o que forem, seja onde
for, seja o que nós conseguirmos ver ou ouvir, por
muito estranho e desmesurado que isso seja para
nós. Só então nós estaremos certos, nunca antes. E

4 A palavra Vernunft, traduzida modernamente por razão, corresponde


em Eckhart ao intellectus, uma das potências da alma.
44 TRATADOS E SERMÕES

nunca o homem deverá conhecer um fim para isso,


pelo contrário, ele poderá nisso crescer sem inter­
rupção e alcançar sempre mais numa verdadeira
progressão.
E o homem deverá em todas as suas obras usar
atentamente o seu intelecto, e em tudo possuir uma
consciência compreensiva de si mesmo e da sua
interioridade, e em todas as coisas (deverá ele) alcan­
çar a Deus da maneira mais elevada possível. Pois o
homem deve ser como Nosso Senhor disse: «Sede
semelhantes aos homens que esperam o seu senhor»
(Lc 1 2,36) . Em verdade, essas pessoas que esperam
são despertas e olham em seu redor para verem
donde virá aquele que elas esperam, e elas esperam­
-no em tudo o que chega, e por muito estranho que
algo lhes seja, perguntarão se porventura ele não
estará nisso. Assim devemos nós também procurar
conscientemente com o olhar a Nosso Senhor em
todas as coisas. Para tal é necessário zelo, e não se
devem poupar esforços no que conseguirmos reali­
zar somente com nossos sentidos e forças; então as
pessoas estarão certas, e alcançarão Deus de modo
igual em todas as coisas, e na mesma medida encon­
trarão Deus em todas as coisas.
Bem diferem as obras umas das outras; mas quem
fizer as suas obras com um ânimo igual, verdadeira­
mente, as suas obras também serão todas iguais, e
quem for recto, e Deus se tenha tornado tão (pró­
prio) para ele, em verdade, para esse resplandece
Deus tão desvelado nas obras mundanas como na-
TRATADO DO DISCERNIMENTO 45

quelas da suprema divindade. Na realidade, não se


deve entender daí que o próprio homem deva fazer
algo de mundano ou de impróprio; senão que aquilo
que lhe cabe ver e ouvir das coisas exteriores deverá ele
volver para Deus. Aquele para quem Deus está assim
presente em todas as coisas e que utiliza e domina
superiormente o seu intelecto, só esse conhece a ver­
dadeira paz, e possui um verdadeiro reino dos céus.
Pois quem nisso quiser ser recto, deverá aconte­
cer-lhe sempre uma de duas coisas: ou ele deverá
aprender a alcançar e a conservar Deus nas obras, ou
ele terá de deixar todas as obras. Dado que o homem
nesta existência não pode ser sem actividade, a qual
faz parte do ser humano e da q�al existe uma grande
multiplicidade, deverá por isso ele aprender a ter o
seu Deus em todas as coisas e a permanecer livre em
todas as obras e em todos os lugares. Por conseguin­
te: quando o homem iniciante quiser operar algo
entre os outros, deverá ele primeiro prover-se energi­
camente de Deus, colocá-lo firme em seu coração, e
unir a Ele toda a sua aspiração, pensamento, vontade
e suas potências, para que nada mais possa tomar
forma em seu ser.

8
Da constante determinação à suprema progressão

O homem também nunca deverá julgar uma obra


sua como sendo tão boa, nem executá-la como
46 TRATADOS E SERMÕES

sendo tão justa, que ele se sinta por isso tão livre ou
tão seguro de si nessa obra, que o seu intelecto se
torne ocioso ou adormeça. Ele deverá elevar-se cons­
tantemente com essas duas forças: a do intelecto e a
da vontade, e alcançar com estas o seu melhor no má­
ximo grau, e prover-se com prudência exterior e in­
teriormente contra todos os prejuízos; então ele nun­
ca perderá nunca nada em qualquer coisa, senão que
progredirá sem interrupção para um grau superior.

9
Como a inclinação para o pecado
é sempre proveitosa para o Homem

Deverás saber que o impulso para o vício, no ho­


mem recto, nunca é sem grande felicidade e proveito
para ele. Ora escuta bem! Eis aí dois homens: um
tem uma tal natureza que não é tentado por qual­
quer fraqueza, ou muito pouco apenas; mas o outro,
por sua constituição, é acometido por fraquezas.
Com o ser presente exterior das coisas excita-se a
sua natureza humana exterior, seja para a cólera, ou
para o orgulho, ou porventura para a sensualidade,
dependendo daquilo que vem ao seu encontro. Mas
nas suas forças superiores ele permanece inteira­
mente firme, imóvel, não quer cometer o erro, seja o
da cólera ou de qualquer um dos pecados, e combate
energicamente contra as fraquezas; pois talvez se
trate de uma fraqueza inerente à sua natureza, como
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 47

algumas pessoas são por natureza coléricas ou so­


berbas, ou (ainda) de outro modo, e, todavia, não
querem cometer o pecado. Uma tal pessoa é muito
mais louvável, e a sua recompensa muito maior, e a
sua virtude mais nobre do que a do primeiro; pois a
perfeição da virtude vem unicamente do combate,
como diz S. Paulo: « É na fraqueza que a Minha força
se revela totalmente» (2Cor 1 2, 9) .
A inclinação para o pecado não é pecado, mas
querer pecar é pecado, querer encolerizar-se é peca­
do. Na verdade, se um homem recto tivesse o poder
de desejar, ele não quereria desejar que lhe desapa­
recesse a inclinação para pecar, pois sem ela o ho­
mem encontrar-se-ia inseguro em todas as coisas e
em todas as suas obras, indiferente face às coisas, e
também carente da honra do combate, da vitória e
da recompensa. Pois o choque e a excitação pelo
vício trazem a virtude e a recompensa a quem se es­
força. A inclinação para o pecado torna o homem
mais aplicado para se exercitar energicamente na vir­
tude, e ela impele-o com poder para a virtude, e é um
látego cortante que incita o homem à vigilância e à
virtude; pois quanto mais fraco se encontrar o ho­
mem, tanto melhor se deverá ele armar de força e es­
pírito de vitória, porque tanto a virtude como o vício
encontram-se ambos na vontade.
48 TRATADOS E SERMÕES

10
Como a vontade tudo consegue,
e como todas as virtudes residem na vontade,
se esta for recta

O homem não se deve atemorizar com nada,


desde que ele esteja de boa vontade, nem se deve
afligir se não a conseguir concretizar nas suas obras;
por outro lado, ele não se deve considerar longe da
virtude, se descobrir em si uma recta boa vontade,
pois a virtude e tudo o que é bom reside na boa von­
tade. Nada te poderá faltar, se tiveres uma vontade
verdadeira e recta, nem amor, nem humildade, nem
qualquer virtude. Pelo contrário, aquilo que tu qui­
seres energicamente e com toda a vontade, tê-lo-ás, e
nem Deus nem todas as criaturas poderão tirar-to, se
a tua vontade for uma vontade inteira e rectamente
divina, e for orientada para o presente. Não digas,
por conseguinte: «Eu queria que em breve. . . », isso
seria ainda falar do futuro, mas diz: «Eu quero, que
isso seja assim, agora!» Escuta: se alguma coisa esti­
ver a mil milhas de distância, se eu a quiser ter, então
tê-la-ei mais autenticamente do que aquilo que
tenho no meu regaço e que não quero ter.
O bem não é menos poderoso para o próprio
bem, do que o mal para o mal. Atenta: se eu nunca
tiver feito uma obra má, e não obstante tiver uma
vontade de mal, então eu terei pecado, como se ti­
vesse cometido o acto; e com uma vontade determi­
nada eu poderia cometer um pecado tão grande,
TRATADO DO DISCERNIMENTO 49

como se tivesse morto o mundo inteiro, sem que


para tal tivesse cometido o acto. Porque não haveria
de ser possível o mesmo para uma boa vontade? Na
verdade, não só isso seria possível como incompara­
velmente mais!
Na realidade, com a vontade eu consigo tudo. Eu
consigo carregar as penas de todas as pessoas, ali­
mentar todos os pobres, realizar as obras de todos os
homens e tudo o que tu puderes imaginar. Se não te
faltar em vontade, mas tão-somente em capacidade,
verdadeiramente, então tu fizeste tudo perante Deus
e ninguém te pode tirar esse mérito, nem impedir-te
por um instante que seja; pois querer fazer, desde
que eu o consiga, e ter feito é igual perante Deus. Se,
além disso, eu quisesse ter tanta força de vontade
como tem o mundo inteiro, e o meu desejo disso
fosse grande e abrangente, em verdade, eu tê-la-ia;
pois aquilo que eu quero ter, isso eu tenho. Do
mesmo modo: se eu quisesse, na verdade, ter tanto
amor como aquele que todas as pessoas já recebe­
ram, e se eu quisesse igualmente louvar assim a
Deus, ou a qualquer outra coisa que tu possas ima­
ginar, tudo isso terei eu verdadeiramente, se a von­
tade for perfeita.
Agora, tu poderias perguntar-me, quando é a
vontade, uma vontade recta? A vontade é então per­
feita e recta, quando ela é sem qualquer ligação ao
eu e quando ela se despojou de si própria e é confi­
gurada e formada na vontade de Deus. Sim, quanto
mais assim for, tanto mais recta e verdadeira será a
50 TRATADOS E SERMÕES

vontade. E numa tal vontade consegues tu tudo, seja


amor ou o que tu quiseres.
Ora, perguntas-me tu: «Como poderei eu ter o
amor, se eu não o sinto nem dele me apercebo, como
eu o vejo em tanta gente que produziu grandes
obras, na qual eu encontro tanta devoção e milagre,
de que eu nada tenho?»
Aqui tens de prestar atenção a dois objectos que
se acham no amor: um é a essência do amor, o outro
é uma obra ou uma erupção do amor. O lugar da
essência do amor reside somente na vontade; quem
mais vontade tiver, terá também mais amor. Mas
saber quem tem mais amor, isso ninguém saberá um
do outro; tal permanece oculto na alma, tanto quan­
to Deus permanece oculto no fundo da alma. Este
amor ama somente na vontade; quem tiver mais
vontade, terá também mais amor.
Existe ainda, porém, um segundo objecto: uma
erupção e uma obra do amor. Isso é manifesto ao
olhar, como a interioridade, a devoção, a exultação, e,
não obstante, não é de forma alguma o melhor. Pois
aquele agrado, aquela sensação de doçura nem
sempre provém do amor, senão por vezes da natu­
reza, ou poderá ser ainda de uma influência celestial
ou até dos sentidos; e aqueles que tal experimentam
com frequência não são de forma alguma os melho­
res. Pois se tal provir realmente de Deus, assim será
porque Nosso Senhor o quer oferecer a tais pessoas
para as atrair ou estimular, ou até para desse modo
as manter afastadas dos outros. Mas se, em conse-
TRATADO DO DISCERNIMENTO 51

quência, tais pessoas progredirem n o amor, então


não mais será fácil para elas terem tantos sentimen­
tos e sensações, e tornar-se-á evidente que, pela pri­
meira vez, elas possuem amor, se elas, sem um tal
apoio, se conservarem absoluta e firmemente fiéis a
Deus.
Admitindo que seja um amor pleno e absoluto,
ainda assim ele não será o melhor. Isso torna-se
compreensível, se por vezes nos deixarmos de tais
exultações e quisermos um amor melhor para às
vezes praticarmos uma obra de caridade, onde ela for
necessária, seja de natureza espiritual ou carnal.
Conforme eu disse anteriormente: se alguém se
achar num arrebatamento, como aquele de S. Paulo,
e souber de um doente que necessita de uma sopa
sua, eu considero que seria muito melhor que por
amor ele abandonasse o arrebatamento, e servisse o
carenciado com maior caridade.
Não deve o homem presumir que por isso ele
perderá a graça; pois aquilo que o homem abandona
voluntariamente por amor, ser-lhe-á retribuído com
muito maior magnificência, conforme Cristo disse:
«E todo aquele que tiver deixado casas, irmãos,
irmãs, pai, mãe, mulher, filhos ou terras por causa do
meu nome, receberá cem vezes mais» (Mt 1 9 , 2 9) .
Sim, é verdade, aquilo que o homem abandona e
aquilo de que ele prescinde por amor de Deus, - sim,
mesmo quando ele ardentemente busca uma tal
consolação, uma tal afeição, e faz tudo o que pode
para a ter, mas Deus não lha concede, e ele volunta-
52 TRATADOS E SERMÕES

riamente a tal renuncia por amor de Deus - em ver­


dade, esse homem encontrá-la-á em Deus, como se
ele possuísse em si todo o bem que jamais existiu,
mas voluntariamente dele se despojasse, dele se li­
vrasse e se entregasse por amor de Deus; ele recebe­
rá cem vezes mais do que isso. Pois tudo aquilo que
o homem gostaria de ter, mas que ele esquecesse e
abandonasse por amor de Deus, fosse isso carnal ou
espiritual, tudo isso encontraria ele em Deus, como
se o possuísse e dele se despojasse por amor de
Deus; porque pelo amor de Deus deverá o homem
ser roubado de todas as coisas, e no amor deve des­
pojar-se e renunciar a toda a consolação por amor.
Que devemos, às vezes, abandonar tais sentimen­
tos por amor, é-nos explicado pelo amoroso S. Paulo,
quando ele diz: «Porque eu mesmo quisera ser sepa­
rado de Cristo em favor de meus irmãos» (Rm 9,3) .
Ele quer dizer conforme este modo de amor, não
conforme o primeiro modo de amor, pois deste não
queria ele estar por um momento separado, por tudo
o que poderia acontecer no céu e na terra; aquilo de
que ele nos fala é da consolação.
Mas deverás saber que os amigos de Deus nunca
se encontram sem consolação, pois aquilo que Deus
quer, isso é a sua suprema consolação, quer seja
consolação ou a sua ausência.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 53

11

O que deve o homem fazer, quando sente a falta


de Deus e Ele se l'he ocultou

Deverás, por conseguinte, saber que a boa von­


tade nunca poderá perder Deus. Mas falta-lhe, por
vezes, o sentimento de ânimo e imagina com fre­
quência que Deus a deixou. Que deverás então fazer?
Exactamente o mesmo que tu farias se te achasses na
maior consolação; aprende a fazer o mesmo, quando
te encontrares no maior sofrimento, e comporta-te
de modo absolutamente igual, como se consolado te
achasses. Não existe conselho mais excelente para se
encontrar a Deus, do que o de encontrá-lo onde o
deixamos partir. E como te sentias quando o tiveste
pela última vez, deves sentir de modo igual agora
que sentes a sua falta, assim encontrá-lo-ás. A boa
vontade, no entanto, nunca perde nem sente a falta
de Deus. Muitas pessoas dizem: «Nós temos boa
vontade», elas não têm, contudo a vontade de Deus;
elas querem ter a sua vontade e ensinar Nosso Se­
nhor a agir desta ou daquela maneira. Esta não é
uma boa vontade. Devemos sondar em Deus pela
nossa mais querida vontade.
Em todas as coisas aponta Deus para que renun­
ciemos à nossa vontade. Quando S. Paulo conver­
sava muito com Nosso Senhor, e Nosso Senhor
muito com ele, nada se alterou, antes que ele renun­
ciasse à sua vontade e dissesse: «Que hei-de fazer,
Senhor? » (Act 22 , 1 0) . Nosso Senhor sabia muito
54 TRATADOS E SERMÕES

bem o que ele devia fazer. O mesmo se passou quan­


do o Anjo apareceu a Nossa Senhora: tudo o que ela
e ele possam ter conversado, nunca a teria transfor­
mado em mãe de Deus; mas assim que ela renun­
ciou à sua vontade, ela tornou-se logo numa verda­
deira mãe da palavra eterna e concebeu Deus nesse
momento que se tornou no seu filho por natureza.
Também nada faz de alguém um verdadeiro ser hu­
mano, senão a renúncia à sua vontade. Em verdade,
sem renúncia à vontade própria em todas as coisas
nada conseguiremos perante Deus. Se nós conse­
guirmos chegar ao ponto em que renunciamos a
toda a nossa vontade, e em que ousamos livrar-nos
de todas as coisas, interior e exteriormente, por amor
de Deus, então teremos feito tudo - mas não antes.
Encontram-se poucas pessoas que, consciente ou
inconscientemente, desprezariam que com elas
acontecesse algo de grandioso, se elas não tivessem
ao mesmo tempo o modo e o bem desse algo: tudo
isso não é mais do que vontade própria. Tu deves en­
tregar-te a Deus com absolutamente tudo, e não te
preocupares com o que Ele faz do que é seu. É certo
que morreram milhares de pessoas que foram para o
Céu, sem se terem despojado na perfeição da sua
vontade própria. Mas só será uma vontade perfeita e
verdadeira, aquela que entrar inteiramente na von­
tade de Deus, despojada de vontade própria. E quem
mais longe tiver ido neste ponto, tanto mais e mais
verdadeiramente terá ascendido a Deus. Sim, uma só
Ave-Maria rezada com uma tal disposição, em que o
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 55

homem se tenha despojado de si mesmo, é mais útil


do que mil salmos lidos sem ela; sim, dar um passo
com essa disposição, será melhor do que ter atraves­
sado o oceano sem ela.
O homem que assim tivesse renunciado a si mes­
mo inteiramente com tudo o que é seu, em verdade,
teria ascendido tão plenamente a Deus, que quem o
quisesse tocar, tocaria prímeiro a Deus; pois ele está
totalmente envolvido em Deus, e Deus está em seu
redor, tal como o meu capuz cobre a minha cabeça, e
quem me quiser tocar, terá primeiro de tocar no meu
hábito. Do mesmo modo que se eu quiser beber, o
líquido deverá passar primeiro pela minha boca; é aí
que a bebida recebe o seu sabor. Se a língua estiver
coberta de amargura, em verdade, por muito doce
que o vinho seja, ele será permanentemente amargo
por causa da amargura com que eu o recebo. Em
verdade, um homem que se tenha despojado inteira­
mente do que é seu estará de tal modo envolvido por
Deus, que nenhuma criatura o conseguirá tocar, sem
tocar primeiro em Deus; e aquilo que deverá chegar
até ele, deverá primeiro passar por Deus; aí receberá
primeiro o seu sabor e tornar-se-á divino. Por muito
grande que seja um sofrimento, se ele passar pri­
meiro através de Deus, então será Deus o primeiro a
sofrê-lo. Sim, pela verdade que (o próprio) Deus é:
nunca um sofrimento que acomete um homem,
porventura um desgosto ou uma contrariedade, é
tão insignificante que, desde que o transponhamos
para Deus, ele não toque incomensuravelmente mais
56 TRATADOS E SERMÕES

a Deus do que ao homem, e não seja muito mais


adverso a Deus do que é ao homem. Mas se Deus
padece pelo bem que Ele nisso previu para ti, e se tu
tiveres vontade de sofrer o que Deus sofre e que
através dele chega até ti, então isso torna-se natural­
mente divino, o desprezo como a honra, a amargura
como a doçura e a mais profunda escuridão como a
mais brilhante luminosidade: tudo recebe o seu sa­
bor de Deus e torna-se divino, pois tudo o que chega
até esse homem a Ele se assemelha, se ele não aspi­
rar a nada mais e não saborear nada mais do que
Deus; e por isso ele alcança Deus em toda a amar­
gura como na maior doçura.
A luz brilha nas trevas, nós avistá-la-emos. Para
que servirá às pessoas a doutrina ou a luz, senão
para lhes ser útil? Se elas se encontrarem nas trevas
ou em sofrimento, então elas verão a luz.
Sim, quanto mais formos para nós próprios, tanto
menos seremos próprios para (Deus) . Ao homem
que se despojou do que é seu, nunca Deus lhe fal­
tará em tudo que ele fizer. Mas se acontecer que o
homem aja ou fale erradamente, ou lhe sucedam
coisas inadvertidas que são injustas, então terá Deus
obrigatoriamente de assumir em si os prejuízos, visto
que Ele esteve no começo da obra; mas nem por isso
deverás tu desistir de forma alguma da tua obra. Em
S. Bernardo e em muitos outros santos encontramos
disso um exemplo. Nunca nesta existência estare­
mos suficientemente poupados a tais ocorrências.
Mas se por vezes o joio se mistura com o trigo, não
TRATADO DO DISCERNIMENTO 57

deveremos por isso deitar fora o bom grão. Em ver­


dade, a quem tiver um juízo recto e se entender bem
em Deus, todos esses sofrimentos e ocorrências lhe
surgirão como uma grande bênção. Pois, para o que
é bom todas as coisas resultam boas, como diz
S. Paulo (cf. Rm 8,28) e como S. Agostinho exprime:
«Sim, mesmo os pecados.»

12
Onde se trata dos pecados: como nos devemos
comportar quando nos encontramos em pecado

Em verdade, ter cometido pecados não é pecado,


se deles nos arrependermos. O homem não deve
querer pecar, por nada do que possa acontecer no
tempo ou na eternidade, sej a pecado mortal ou
venial, ou qualquer outro pecado. Quem for recto
para Deus, nunca deverá perder de vista que o Deus
amante e fiel tirou o homem de uma existência de
pecado para uma existência divina, que do inimigo
fez um amigo, o que é mais do que criar uma nova
terra. Esse será um dos impulsos mais fortes para
transpor o homem inteiramente para Deus, e bem
poderíamos admirar-nos de como isso inflamaria o
homem num amor tão forte e grandioso, que ele se
despojaria completamente de si mesmo.
Sim, aquele que se tenha transposto rectamente
para a vontade de Deus, não deverá querer que o pe­
cado em que ele tenha caído não aconteça. Certa-
58 TRATADOS E SERMÕES

mente que não por o pecado ter sido dirigido contra


Deus, senão porque através do pecado, ele está liga­
do a um amor maior e porque através do pecado ele
se apouca e humilha, ou seja não somente por ter
agido contra Deus. Tu deves, porém, confiar recta­
mente em Deus, em que Ele não deixou que isso te
acontecesse, sem querer tirar daí o teu melhor. Mas
quando o homem se ergue inteiramente do pecado e
a ele renuncia por completo, então o Deus fiel age
como se o homem nunca tivesse caído em pecado, e
nem por um momento quer que o homem expie
todos os seus pecados. Ainda que eles fossem tantos
como aqueles cometidos desde sempre por todas as
pessoas, Deus nunca quereria que ele os expiasse;
Deus poderia ter com tal homem a maior familiari­
dade, como nunca teria tido com qualquer criatura.
Se, todavia, já o encontrar agora preparado, Deus
não considerará aquilo que esse homem foi antes.
Deus é um Deus do presente. Tal como Ele te en­
contrar, assim Ele te tomará e receberá, não como
aquilo que tu foste, mas como aquilo que tu agora
és. Todas as injúrias e toda a ignomínia que através
dos pecados possam ocorrer a Deus, Ele as sofrerá e
sofreu já com agrado durante muitos anos, para que
o homem alcance depois um melhor conhecimento
do seu amor e, por conseguinte, para que o seu pró­
prio amor e agradecimento devenham tanto maiores
e o seu zelo se torne tanto mais ardente, como isso
costuma acontecer naturalmente e com frequência
depois dos pecados.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 59

Por isso é que Deus suporta com agrado os males


do pecado, e já o tolerou muitas vezes, e com mais
frequência o deixou cair sobre as pessoas que Ele
destinou a alçarem-se a grandes coisas por sua von­
tade. Mas considera: quem foi mais amado e digno
da confiança de Nosso Senhor do que os apóstolos?
A nenhum deles foi poupada a queda em pecado
mortal; todos eles cometeram pecados mortais. Ele
também provou isso muitas vezes, no Antigo e no
Novo Testamento, naqueles que mais tarde foram de
longe os que Ele mais amou; e também hoje são
raros aqueles que alcançam grandes coisas sem que
antes, de algum modo, tenham errado. E com isso
pretende Nosso Senhor que nós reconheçamos a
sua grande misericórdia, exortando-nos a uma
maior e mais verdadeira humildade e devoção. Pois
quando o arrependimento é renovado, também au­
menta e se renova fortemente o amor.

13
As duas espécies de arrependimento

Há duas espécies de arrependimento: um é tem­


poral ou sensorial, o outro é divino e sobrenatural.
O arrependimento temporal mergulha continua­
mente num sofrimento cada vez maior, e deixa o ho­
mem numa tal desolação, como se ele tivesse de ficar
desesperado no imediato, e o arrependimento se
confinasse ao sofrimento, não progredindo; daqui
nada sairá.
60 TRATADOS E SERMÕES

Mas o arrependimento divino é bem diferente.


Logo que o homem tem consciência do seu desgos­
to, eleva-se de imediato para Deus e determina-se a
uma vontade inabalável de renunciar para sempre a
todos os pecados. E, ao fazê-lo, eleva-se numa gran­
de confiança em Deus, e ganha uma maior segu­
rança. E daí resulta uma alegria espiritual, que levan­
ta a alma de todo o sofrimento e desolação e a liga
firmemente a Deus. Pois quanto mais frágil se en­
contrar o homem e quanto mais ele tiver pecado,
tanto mais motivo tem ele para, com um amor indi­
visível, se ligar a Deus, em o qual não se encontra
qualquer pecado e fragilidade. O melhor degrau que
se pode atingir quando plenos de devoção queremos
ir ao encontro de Deus, é o seguinte: ser sem pecado
por virtude do arrependimento divino.
E quanto mais rigorosos formos a avaliar o peca­
do, tanto mais disponível está Deus para absolver o
pecado, para entrar na alma e expulsá-lo; todos se
aplicam ao máximo em suprimir aquilo que lhes é
mais repugnante. E quanto maiores e mais graves
forem os pecados, tanto mais amorosa e rapidamen­
te Deus os perdoa, porque eles lhe são repugnantes.
E quando então o arrependimento divino se eleva
para Deus, logo todos os pecados desaparecem no
abismo de Deus, mais depressa do que eu consigo
fechar os meus olhos, e eles desvanecem-se tão com­
pletamente como se nunca tivessem acontecido,
desde que o arrependimento seja perfeito.
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 61

14
Da verdadeira confiança e da esperança

Reconhece-se o amor verdadeiro e perfeito, na


grande esperança e confiança que se tem em Deus;
pois nada existe, além da confiança, em que se possa
reconhecer melhor se alguém possui um grande
amor. Pois quando alguém ama outrem perfeitamen­
te e com afeição, isso cria confiança; pois tudo o que
se ousa confiar em Deus, encontrar-se-á em verdade
nele e mil vezes mais. E da mesma forma que um ho­
mem nunca ama assaz bastante a Deus, assim tam­
bém nunca será excessiva a confiança que um ho­
mem poderá ter nele. Tudo o mais que se possa fazer
não é tão proveitoso como ter uma grande confiança
em Deus. Com todos aqueles que conquistaram uma
grande confiança nele, nunca Deus deixou de operar
grandes obras em conjunto. Em todas essas pessoas
Ele tornou muito evidente que a confiança provém
do amor; porque o amor não possui apenas con­
fiança, senão que possui também um verdadeiro
saber e uma firmeza isenta de dúvidas.

15
Da dupla consciência da vida eterna

Nesta existência há dois géneros de saber sobre a


vida eterna. Um tem origem em que o próprio Deus
o comunica a alguém ou o apresenta através de um
62 TRATADOS E S ERMÕES

anjo, ou o revela por meio de uma iluminação espe­


cial. Isso (contudo) acontece raramente e somente a
algumas pessoas.
O outro saber é incomparavelmente melhor e
mais proveitoso, e é concedido muitas vezes a todas
as pessoas perfeitamente amantes: ele baseia-se em
que o homem por amor e por uma relação de con­
fiança que ele tem com o seu Deus, nele confia tão
plenamente e está tão certo de si que não poderá du­
vidar, e ele fica (assim) tão certo porque ama a Deus
indiferenciadamente em todas as criaturas. E mesmo
se todas as criaturas o contradissessem e jurassem
separarem-se dele, sim, se até o próprio Deus o ne­
gasse, ele nunca desconfiaria, porque o amor não
pode desconfiar, ele espera confiante apenas pelo
bem. E não é necessário que se diga algo (expressa­
mente) ao amante e ao amado, pois ao receber
(Deus) , ao ser seu amigo, o homem sabe em simultâ­
neo o que é bom para si, e que pertence à sua beati­
tude. Pois por muito que tu lhe possas ser dedicado,
fica certo de que Ele te é dedicado com maior des­
mesura e força, e em ti confia incomparavelmente
mais. Porque Ele é a própria fidelidade, disso podere­
mos estar certos nele, como também estão certos
disso todos aqueles que o amam.
Esta certeza é muito maior, perfeita e autêntica do
que a primeira, e ela não pode enganar. A sugestão,
pelo contrário, poderia enganar, e poderia tratar­
-se de uma falsa iluminação. Esta certeza, contudo, é
recebida em todas as potências da alma, e ela não
TRATADO DO DISCERNIMENTO 63

pode enganar aqueles que amam a Deus verdadeira­


mente; eles duvidam tão pouco disso como duvidam
de Deus, pois o amor afasta todo o temor. «No amor
não há temor» (1Jo 4, 1 8) , como S. Paulo também diz;
e igualmente está escrito: «A caridade cobre a multi­
dão dos pecados» (1 Pe 4,8) . Porque onde acontecem
os pecados, não poderá haver plena confiança nem
amor; dado que o amor cobre completamente o pe­
cado, ele nada sabe do pecado. Não o faz, porém,
como se alguém nunca tivesse pecado, senão que ele
extirpa e expulsa completamente os pecados, como
se eles nunca tivessem existido. Pois todas as obras
de Deus são tão absolutamente perfeitas e ricas em
abundância, que aquele a quem Ele perdoa, o perdoa
inteira e absolutamente, e de preferência aos pecados
maiores que aos mais pequenos, e isso cria uma con­
fiança absoluta. Eu considero isso de longe incom­
paravelmente melhor, e traz mais recompensa e é
também mais autêntico do que o primeiro saber;
pois a ele nada o impede, nem pecado nem qualquer
outra coisa. Pois aqueles que Deus encontra com
um amor igual ao seu, julga-os Deus pela mesma
medida, quer tenham pecado muito ou mesmo
nada. Mas aquele a quem mais for perdoado, tam­
bém deverá ter mais amor, como disse Nosso Se­
nhor Jesus Cristo: «Que lhe são perdoados os seus
muitos pecados, porque muito amou» (Lc 7,47) .
64 TRATADOS E SERMÕES

16
Da verdadeira penitência e da vida bem-aventurada

Muitas pessoas crêem que deverão fazer grandes


obras em coisas exteriores, como jejuar, andar des­
calço e outras do mesmo género que se denominam
obras de penitência. A verdadeira e melhor penitên­
cia, com a qual se consegue energicamente e no má­
ximo grau um progresso, consiste em que o homem
renuncie inteira e petfeitamente a tudo o que não é
inteira e petfeitamente Deus e divino nele próprio e
em todas as criaturas, e em que se vire inteira e per­
feitamente para o seu Deus num amor inabalável, de
forma que a sua devoção e a sua saudade por Ele
sejam grandes. Na obra que desse modo ele fizer,
será ele mais justo. Quanto mais isso se confirmar,
tanto mais verdadeira será a penitência e tantos mais
pecados ela extinguirá, até mesmo todos os castigos.
Sim, em verdade, tu poderias em curto tempo re­
nunciar energicamente a todos os pecados com uma
tal aversão, e volveres-te para Deus com a mesma
energia, que, se tivesses cometido todos os pecados
que ocorreram e hão-de ocorrer desde o tempo de
Adão, tudo isso te seria perdoado juntamente com a
punição, de forma que se agora morresses serias
conduzido perante a face de Deus.
Essa é a verdadeira penitência, e ela funda-se par­
ticular e mais petfeitamente na digna paixão, na per­
feita obra de penitência de Nosso Senhor Jesus
Cristo. Quanto mais o homem nisso se formar inte-
TRATADO DO DISCERNIMENTO 65

riormente, tanto mais pecados e punições nele desa­


parecerão. Também se deve o homem habituar a
educar-se interiormente, sempre, e em todas as suas
obras, pela vida e obras de Nosso Senhor Jesus Cris­
to, olhando continuamente para Ele, em todo o agir,
sofrimento e existência, tal como Ele olhou por nós.
Uma tal penitência não é (outra coisa) senão um
carácter que se elevou inteiramente em Deus, para
além de todas as coisas. E as obras em que puderes
ter ao máximo uma tal penitência, e a tens por meio
das obras, cumpre-as com ânimo inteiramente livre.
Mas se nisso fores impedido por uma obra externa,
seja o jejum, a vigília, a leitura ou seja o que for,
então abandona esse caminho, sem a preocupação
de por tal perderes uma obra de penitência. Pois
Deus não considera a natureza das obras, mas uni­
camente o amor, a devoção e a disposição postas nas
obras. Para Ele as nossas obras não são tão impor­
tantes como, pelo contrário, o é nossa disposição em
todas as nossas obras e que nós o amemos a Ele uni­
camente em todas as coisas. Pois é demasiado insa­
ciável aquele para quem Deus não é suficiente. A
recompensa de todas as tuas obras deve ser que o
teu Deus delas saiba e que tu, nelas o tenhas em tua
mente; isso te bastará em qualquer momento. E
quanto maior for a simplicidade e a naturalidade
com que tu o contemplares, tanto mais genuina­
mente expiarão todas as tuas obras todos os teus
pecados.
Nesse caso também poderás pensar que Deus foi
66 TRATADOS E SERMÕES

o redentor universal do mundo inteiro, e por isso lhe


estou muito mais grato do que se Ele me tivesse re­
dimido a mim somente. Assim também tu deverás
ser (para ti) um redentor universal de tudo aquilo
que através do pecado em ti corrompeste; e com
tudo isso, afeiçoa-te a Ele inteiramente, pois com o
pecado corrompeste tudo o que há em ti: coração,
sentidos, corpo, alma, potências e aquilo que está em
ti e dentro de ti; tudo está muito doente e corrom­
pido. Refugia-te por isso nele, em quem não há qual­
quer enfermidade, mas o puro bem, com o qual Ele é
um redentor universal para todo o pecado em ti, seja
ele interior ou exterior.

17
Como o homem se pode manter em paz,
quando ele se encontra em trabalhos exteriores,
como aqueles que Cristo e muitos santos realizaram;
como ele deverá (então) seguir a Deus

As pessoas bem poderão sentir receio e desalento


que, por a vida de Nosso Senhor Jesus Cristo e dos
santos ter sido tão austera e penosa, elas não consi­
gam igualá-la, nem se sintam impulsionadas para tal.
Por isso é que as pessoas se consideram muitas
vezes, mesmo que sejam nisso tão divergentes, como
distantes de Deus, incapazes de o seguirem. Nin­
guém, contudo, deve fazer isso! O homem nunca, de
modo algum, se deve considerar longe de Deus, nem
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 67

por causa de uma enfermidade, nem por uma fra­


queza, nem por qualquer outra razão. E mesmo que
as tuas faltas te tenham afastado tanto, que tu não te
possas considerar perto de Deus, deverás aceitar que
Deus está perto de ti. Pois existe nisso um grande
mal, quando o homem afasta Deus para longe de si;
porque quer o homem caminhe na proximidade ou
na distância, Deus nunca se encontra na distância,
Ele está sempre na proximidade; e se Ele não puder
permanecer no interior, então Ele não se distancia
mais do que além da porta.
Assim também é com a austeridade da imitação.
Atenta em que pode consistir a tua imitação. Tu
deves ter reconhecido e fixado profundamente na
memória aquilo para que foste exortado mais vee­
mentemente por Deus; pois, nem de longe, são
todos os homens chamados para Deus por um úni­
co caminho, conforme diz S. Paulo (1 Cor 7,24) . Se
achares, por conseguinte, que o teu caminho mais
próximo não passa por muitas obras exteriores e
grandes trabalhos ou privações - tal não possui tam­
bém uma grande importância, a não ser que o ho­
mem seja para isso expressamente movido por Deus
e tenha a força de o fazer rectamente sem transtorno
da sua interioridade - se não encontrares nada disso
em ti, deves sentir-te muito feliz e não dares muita
importância a isso.
É certo que poderias responder: se tal não é im­
portante, então por que motivo o fizeram assim
tantos santos nossos antepassados?
68 TRATADOS E SERMÕES

Pondera: nosso Senhor deu-lhes esse modo de


acção, mas também lhes deu a força para agirem de
forma a conservarem esse modo de acção, e precisa­
mente nisso encontrou Ele neles o seu agrado; era
nisso que eles deviam alcançar o seu melhor. Porque
Deus não associou a salvação do homem a um qual­
quer modo particular. Aquilo que um modo tem,
não tem um outro; mas Deus concedeu a capaci­
dade de realização a todos os bons modos, e ne­
nhum bom modo é recusado, pois um bem não é
contra um outro bem. E as pessoas deveriam re­
conhecer que são injustas quando, ocasionalmente,
vêem um bom homem ou dele ouvem falar, e ele não
segue, porém, o seu modo, pensam de imediato que
(para elas) tudo está perdido. Se não lhes agradar o
modo de agir desse homem, então elas também não
prestarão mais atenção ao seu bom modo e ao seu
bom carácter. Isso não está certo! No modo de agir
das pessoas deve-se primeiramente considerar se
elas têm uma boa opinião, e não se deve desprezar o
modo de agir de ninguém. Cada homem não pode
ter somente um único modo de agir, nem todos os
homens podem ter unicamente um modo de agir,
nem um homem pode ter todos os modos de agir,
nem cada modo de agir.
Que cada um conserve o seu bom modo de agir e
integre nele todos os outros modos, e que alcance
no seu modo todo o bem e todos os modos. A mu­
dança de modo torna o modo de agir e o ânimo ins­
tável. Aquilo que um modo de agir te consegue dar,
TRATADO DO DISCERNIMENTO 69

também tu podes alcançar com um outro, contanto


que ele seja unicamente bom e louvável e se oriente
unicamente para Deus. Além disso, todas as pessoas
não podem seguir um único caminho. Assim tam­
bém acontece com a imitação da austera conduta de
vida dos santos. Tu deves amar os seus modos, e eles
podem agradar-te muito, sem que tu, contudo, preci­
ses de os imitar.
Aqui tu poderás retorquir: Nosso Senhor Jesus
Cristo teve para sempre o modo supremo de agir;
seria justo que nós o imitássemos constantemente.
Isso é inteiramente verdade. Devemos justamente
imitar Nosso Senhor, mas não de qualquer modo.
Nosso Senhor jejuou durante quarenta dias; mas
ninguém deve empreender segui-lo nisso. Jesus rea­
lizou muitas obras com a intenção que nós o imite­
mos espiritual e não corporalmente. Por isso deve­
mos ser aplicados em podermos segui-lo de um
modo espiritual, porque Ele dá mais apreço ao nosso
amor do que às nossas obras. Devemos sempre
segui-lo ao nosso modo próprio.
Como, então?
Escuta: em todas as coisas! - Como e de que
modo? - Tal como eu já te disse muitas vezes: eu
considero muito mais uma obra espiritual do que
uma obra corporal.
Como assim?
Jesus jejuou durante quarenta dias. Tu podes se­
gui-lo nisso, ao atentares naquilo para que te incli­
nas mais ou para o qual estás mais preparado: con-
70 TRATADOS E S ERMÕES

centra-te nisso e vigia-te perspicazmente. É -te mais


conveniente, muitas vezes, desistires disso sem preo­
cupação do que absteres-te de todos os alimentos.
Assim também te é mais difícil algumas vezes silen­
ciares uma palavra do que absteres-te de todo um
discurso. E também parece mais difícil a uma pessoa,
às vezes, aceitar uma pequena palavra injuriosa, que
não tem mal em si, do que porventura um rude
golpe para o qual já se tinha preparado, como lhe é
muito mais difícil estar sozinha na multidão do que
no deserto, e é-lhe com frequência mais difícil aban­
donar uma pequena coisa do que uma grande, e
erguer uma pequena obra do que uma que todos
consideram grande. Assim pode o homem em sua
fraqueza imitar rectamente a Jesus Cristo e não pre­
cisa nem pode considerar que se encontra longe dele.

18
De que modo deve o 1wmem aceitar,
conforme as suas circunstâncias, igua,rias delicadas,
ekgante vestuário e companhia akgre,
de acordo com seu hábito natural

Tu não precisas de te inquietar com alimentos e


vestuário, de tal modo que eles se afigurem a ti como
demasiado importantes; habitua, pelo contrário, o
teu fundamento (interior) e o teu carácter a serem
muito acima disso. Nada, senão Deus, deve influen-
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 71

dar o teu carácter para o prazer ou para o amor, ele


deve elevar-se acima de todas as outras coisas.
Porquê?
Ora, porque seria uma interioridade fraca, aquela
que tivesse de se afirmar como recta por meio do
vestuário exterior; deve ser, pelo contrário, o interior
a determinar rectamente o exterior, tanto quanto
isso dependa de ti. Mas se ele (i. e. o vestuário exte­
rior) te cair de modo diferente, então também pode­
rás aceitá-lo a partir do teu fundamento mais íntimo;
e quando, pelo contrário, ele te faltar, então que tu
aceites isso igualmente com agrado e boa vontade.
Assim deve ser também com os alimentos e com os
amigos e parentes e com tudo o que Deus te possa
dar ou tirar.
Assim, eu considero o seguinte como o melhor
de tudo: que o homem se abandone inteiramente a
Deus, de modo que sempre que Deus o carregue
com alguma coisa, seja a infâmia, as dificuldades,
seja qual for o sofrimento, ele o aceite com alegria e
agradecimento e se deixe conduzir mais por Deus do
que por ele próprio. Por isso deveis, com agrado,
aprender sobre todas as coisas com Deus e segui-lo,
assim sereis bem convosco! Então, podereis também
aceitar as honras e a comodidade. Mas se ao homem
for destinado o desconforto e a desonra, então tam­
bém ele assim o deverá suportar, e suportá-lo com
agrado. Por isso deverão merecidamente comer con­
solados aqueles que igualmente estiverem bem pre­
parados para jejuar.
72 TRATADOS E SERMÕES

Essa é também a razão pela qual Deus liberta os


seus amigos de muitos e grandes sofrimentos; a sua
fidelidade infinita não o poderia permitir de outro
modo, porque existem tantas e tão grandes bênçãos
no sofrimento, e Ele não pode nem quer que os seus
percam nada do que é bom. Mas Ele deixa-se plena­
mente contentar com uma boa e recta vontade;
senão, Ele não deixaria escapar aos seus qualquer
sofrimento por causa da indizível bênção que existe
no sofrimento.
Enquanto isso for suficiente para Deus, então
(também tu) deverás estar contente; mas se lhe agra­
dar outra coisa para ti, então também deves ficar
contente. Porque, interiormente, o homem deve per­
tencer com toda a sua inteira vontade tanto a Deus,
que ele não se deverá inquietar muito nem com os
seus modos de agir nem com suas obras. Mas, pri­
meiramente, tu deverás evitar toda a singularidade,
seja no vestuário, na alimentação, nas palavras -
como, por exemplo, no uso de palavras grandiosas -
ou na esquisitice dos gestos, que para nada serve.
Apesar disso, também deverás saber que não te é
proibida toda a singularidade. Há muita singulari­
dade que, por vezes, e com muitas pessoas deve ser
observada; pois quando alguém é singular, também
deverá fazer muitas coisas singulares em diversas
alturas e por múltiplas maneiras.
O homem deverá, em todas as coisas, ter-se for­
mado interiormente por Nosso Senhor Jesus Cristo,
de modo que se ache nele um reflexo de todas as
TRATADO DO DISCERNIMENTO 73

suas obras e da sua aparição divina; e numa assimila­


ção perfeita, tanto quanto ele o consiga, deverá o ho­
mem trazer consigo todas as suas obras. Tu deves agir,
e Ele deve tomar (forma). Faz a tua obra com uma de­
dicação total e com todo o teu carácter; habitua o teu
ânimo permanentemente a isso e a que tu, em todas
as tuas obras, te formes interiormente por Ele.

19
Porque permite Deus com frequência
que pessoas que são verdadeiramente boas,
sejam muitas vezes impedidas nas suas boas obras

O Deus fiel apenas deixa que os seus amigos


caiam muitas vezes na fraqueza, para que lhes falte
todo o suporte, sobre o qual eles se poderiam apoiar.
Porque para aquele que ama será uma grande alegria
alcançar muitas e grandes coisas, seja em vigília, em
jejum ou noutros exercícios, assim como em coisas
especiais, importantes e graves; isso é para ele uma
grande alegria, apoio e esperança, de forma que as
suas obras são o seu suporte, apoio e confiança. É
(precisamente) isso que Nosso Senhor lhes quer
tirar, e quer que seja Ele unicamente o seu suporte e
confiança. E Ele não faz isso por qualquer outra
razão, que não seja por sua pura bondade e miseri­
córdia. Pois nada move Deus para qualquer obra,
que não seja o seu próprio bem; as nossas obras de
nada servem para que Deus nos dê ou faça algo.
74 TRATADOS E S ERMÕES

Nosso Senhor quer que os seus amigos se libertem


disso, e por isso lhes retira um tal suporte, para que
somente Ele seja o seu apoio. Porque Ele quer dar­
-lhes algo de grande, e quer pura e unicamente por
livre bondade; e Ele deve ser o seu suporte e o seu
consolo, mas eles deverão julgar-se como um puro
nada e considerarem em tudo as grandes dádivas de
Deus. Pois quanto mais despido e desprendido se
projectar o carácter em Deus, e for por Ele mantido,
tanto mais profundamente é levado o homem para
Deus, e tanto mais sensível será ele a Deus com
todas as suas preciosas dádivas, pois o homem deve
somente edificar sobre Deus.

20
Do corpo de Nosso Senhor, de como se deve recebê-lo
com frequência, de que modo e com que devoção

Quem quiser receber com agrado o corpo de


Nosso Senhor, não precisa de averiguar o que sente
ou experimenta em si, ou quão grande é a sua afei­
ção ou a sua devoção, mas deve, pelo contrário, pres­
tar atenção à formação da sua vontade e da sua dis­
posição. Tu não deves sobrestimar o que sentes;
considera como grande, por outro lado, aquilo que
tu amas e ao qual aspiras.
O homem que quer e pode ir despreocupada­
mente para Nosso Senhor, deverá em primeiro lugar
ter a sua consciência liberta de toda a repreensão do
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 75

pecado. Em segundo, deverá ter a sua vontade virada


para Deus, para que ele a nada aspire e nada cobice
senão Deus e aquilo que é inteiramente divino, e que
lhe desagrade aquilo que é impróprio de Deus. Por­
que é precisamente aí que o homem deve reconhe­
cer quão perto ou quão longe ele está de Deus,
quanto mais ou quanto menos ele possui dessa rela­
ção. Em terceiro, ele deverá exigir que o amor ao sa­
cramento e a Nosso Senhor cresça cada vez mais, e
que a veneração não diminua com a frequente visita­
ção, porque muitas vezes aquilo que é vida para um
homem é morte para um outro. Por isso deves orien­
tar tua atenção para ti, e saber se cresce o teu amor
por Deus e se não se desvanece a tua veneração.
Quanto mais frequentemente te dirigires, por conse­
guinte, ao sacramento, tanto melhor te tornarás e
tanto melhor e mais proveitoso ele te será também.
Não deixes, por isso, que discursos e sermões te
afastem do teu Deus; pois quanto mais te dirigires ao
sacramento, tanto melhor e de maior agrado será
para Deus. Nosso Senhor anseia por habitar no
homem.
Aqui, tu poderias dizer: «Ah, Senhor, eu acho-me
tão vazio, tão frio e preguiçoso, que não me atrevo a
ir ao encontro de Nosso Senhor.»
Ao que eu responderei: tanto mais necessitas tu
de te dirigires ao teu Deus! Pois nele te inflamarás e
aquecerás, nele serás santificado, e unicamente a Ele
te ligarás e unirás. É no sacramento, e nunca alhures,
que tu autenticamente encontrarás a graça de as tuas
76 TRATADOS E SERMÕES

forças corporais serem tão unificadas e reunidas pela


força sublime da presença corporal de Nosso Senhor,
que todos os sentidos dispersos do homem e o seu
carácter serão aqui reunidos e unificados, e aqueles
que se isolam em si, com demasiada propensão para
o que está em baixo, serão aqui elevados e apresenta­
dos correctamente a Deus. E pelo Deus que habita o
seu interior, eles habituar-se-ão a reentrar em si, e
serão desabituados dos constrangimentos corporais
causados pelas coisas temporais, seguindo destros
para as coisas divinas. Reforçado pelo seu corpo, o
teu corpo será renovado. Pois nós devemos ser trans­
formados n'Ele e inteiramente reunidos com Ele (cf.
2Cor 3,1 8) , de forma que o que é seu se torne nosso
e tudo o que é nosso seu, nosso coração e o seu um
só coração, e nosso corpo e o seu um só corpo.
Assim, deverão os nossos sentidos, a nossa vontade e
nossas aspirações, nossas forças e nossos membros
ser levados para dentro dele, para que o sintamos e o
notemos em todas as forças do corpo e da alma.
Aqui, tu poderás dizer: «Ah, Senhor, eu nada en­
contro de grandes coisas em mim, tão-somente a
pobreza .. Como posso eu, assim, ousar ir ao encon­
tro do sacramento?»
Em verdade, se quiseres transformar completa­
mente a tua pobreza, então dirige-te ao tesouro ple­
no de toda a riqueza incomensurável, depois serás
rico; pois deves estar ciente de que somente Ele é o
tesouro, no qual te podes satisfazer e que te pode
preencher. «Por isso», diz assim, «eu quero ir para ti,
TRATADO DO DISCERNIMENTO 77

para que a tua riqueza preencha a minha pobreza e


toda a tua incomensurabilidade preencha o meu vazio
e a tua ilimitada, inapreensível divindade preencha a
minha humanidade demasiado vil e corrompida.»
«Ah, Senhor, eu pequei muito; não poderei peni­
tenciar-me.»
Justamente por isso é que te deves dirigir a Ele,
porque Ele expiou toda a culpa como deve ser. N'Ele
bem podes sacrificar ao Pai celestial o digno sacrifi­
cado por toda a tua culpa.
«Ah, Senhor, eu bem gostaria de glorificar, mas
não consigo.»
Vai (simplesmente) ter com Ele, somente Ele é
aceite pelo Pai com muito agrado, e é um louvor
incomensurável, verdadeiro e perleito de todo o bem
divino.
Em breve, se te quiseres livrar completamente de
todas as enfermidades, revestires-te de virtudes e
graças e deleitosamente seres conduzido por todas
as virtudes e graças à origem de tudo, então guarda­
-te de modo que possas receber o sacramento com
dignidade e frequência; então ser-lhe-ás dedicado e
enobrecido com o seu corpo. Sim, no corpo de
Nosso Senhor, a alma aproxima-se tanto de Deus,
que todos os anjos, querubins ou serafins não con­
seguem descobrir nem perceber qualquer diferença
entre ambos; pois onde tocam em Deus também
tocam na alma, e onde tocam na alma também o fa­
zem em Deus. Nunca houve uma união tão íntima!
Pois a alma é unida muito mais intimamente a Deus
78 TRATADOS E SERMÕES

do que o corpo e a alma que constituem uma pes­


soa. Esta união é muito mais estreita, do que aquela
nascida de uma gota de água vertida num barril de
vinho: aí haveria água e vinho, mas de tal modo
transformado em um, que nenhuma criatura conse­
guiria descobrir a diferença.
Mas tu poderias dizer: «Como pode ser isso? Eu
não sinto nada disso?»
Que importa? Quanto menos tu sentires e quan­
to mais firme tu acreditares, tanto mais louvável é a
tua fé, e tanto mais ela será respeitada e louvada; pois
num homem uma fé completa é muito mais do que
um mero imaginar. Nela temos um verdadeiro saber.
Em verdade, a nós nada nos falta senão uma fé ver­
dadeira. Que nos pareça que receberemos mais de
uma coisa do que de uma outra, é algo que provém
somente de normas exteriores, porque na realidade
não há mais numa coisa do que na outra. Quem, por
isso, acreditar com a mesma fé, receberá igual e terá
igual.
Ora, tu poderias dizer: «Como poderia eu acredi­
tar em coisas superiores, se não me encontro num tal
estado, mas carente e inclinado para muitas coisas?
Vê, tu deves observar em ti uma dualidade que
também Nosso Senhor tinha em si. Também Ele
tinha potências superiores e inferiores, e elas tam­
bém operavam de dois modos distintos; as suas po­
tências superiores estavam na posse e fruição da
eterna beatitude, mas as inferiores encontravam-se à
mesma hora no maior sofrimento e combate na
TRATADO DO DISCERNIMENTO 79

terra, e nenhuma destas operações impedia a outra


no seu desiderato. Assim também deverá ser contigo,
que as potências superiores se devem elevar para
Deus e serem-lhe por completo oferecidas e associa­
das. Até mais: todo o sofrimento, em verdade, deve
ser ordenado em absoluto ao corpo, às potências in­
feriores e aos sentidos, enquanto o espírito, pelo
contrário, se deverá levantar com toda a força e, li­
bertado, mergulhar em seu Deus. Mas nem o sofri­
mento dos sentidos e das potências inferiores, nem a
tentação, o (= o espírito) tocarão; pois quanto maior
e mais forte for o combate, tanto maior e louvável é
também a vitória e a honra da vitória; porque quanto
maior for a tentação e quanto mais forte o impulso
para o vício, se o homem (os) conseguir superar, tan­
to mais a virtude lhe será própria e do maior agrado
de seu Deus. E por isso: se quiseres receber digna­
mente ao teu Deus, então presta atenção a que tuas
potências superiores sejam orientadas para o teu
Deus, a que tua vontade busque a sua vontade, às
tuas aspirações n'Ele, e à tua fidelidade para com Ele.
Numa tal condição, nunca o homem recebe o ve­
nerado corpo de Nosso Senhor, sem receber ao mes­
mo tempo graças particularmente grandes; e quanto
mais frequente for o sacramento, tanto mais aben­
çoado ele será. Sim, o homem conseguirá receber o
corpo de Nosso Senhor com uma tal devoção e dis­
posição, que se for ordenado para entrar no coro in­
ferior dos anjos, ao recebê-lo assim uma única vez,
será logo elevado para o segundo coro; sim, tu con-
80 TRATADOS E SERMÕES

seguirás recebê-lo com uma tal devoção, que te tor­


nará digno do oitavo ou até do nono coro. Por con­
seguinte: se duas pessoas forem iguais na vida, e
uma delas tiver uma única vez recebido o corpo de
Nosso Senhor com mais dignidade do que a outra,
então só por isso essa pessoa surgirá perante a outra
como um sol brilhante, e ela alcançará uma particu­
lar união com Deus.
Este receber e ditoso fruir do corpo de Nosso
Senhor não depende somente de uma fruição exte­
rior, mas jaz antes na fruição espiritual de um ânimo
anelante, e numa união plena de devoção. O homem
pode receber isso com uma tal confiança, que se tor­
nará mais rico em graças do que qualquer homem
sobre a terra. E ele pode cumprir isso mil vezes ao
dia, ou ainda mais, esteja ele onde estiver, de saúde
ou enfermo. Contudo, devemos preparar-nos como
se fôssemos receber o sacramento, segundo o modo
das boas regras e em correspondência com a força
da ânsia. Se não tivermos, porém, qualquer ânsia,
então estimulemo-nos e preparemo-nos para isso,
mantendo-nos em conformidade, e assim nos tor­
naremos santos no tempo e bem-aventurados na
eternidade; porque imitar e seguir a Deus, isso é a
eternidade. Que no-la dê o mestre da verdade e o
amante da pureza e a vida da eternidade. Ámen.
TRATADO DO DISCERN IMENTO 81

21
Do zelo

Se um homem quiser receber o corpo de Nosso


Senhor, então ele deverá apresentar-se sem grande
preocupação. Mas é conveniente e muito proveitoso,
que ele antes confesse, mesmo se não tiver qualquer
consciência de culpa, somente para alcançar o fruto
do sacramento da confissão. Se acontecer, porém,
que o homem se ache culpado de algo, mas não con­
siga, por seus encargos, dirigir-se à confissão, então
deve ele ir ao encontro de seu Deus e declarar-se
culpado, com grande remorso, e ficar contente até
que tenha vagar para ir à confissão. Se ele se esque­
cer, entretanto, da consciência ou da acusação dos
pecados, então ele poderá pensar que Deus também
os esqueceu. Devemos confessar primeiro a Deus
antes de o fazermos aos homens, e se formos cul­
pados deveremos levar muito a sério a confissão pe­
rante Deus, e repreendermo-nos duramente. Mas
quando se quer ir para o sacramento, não se deve
superficialmente passar por cima da confissão pe­
rante Deus por causa da penitência exterior, pois
somente a disposição do homem nas obras é justa,
divina e boa.
Tem de se aprender a estar livre (interiormente)
no meio da acção. Mas para uma pessoa não exerci­
tada é um empreendimento invulgar, o de conseguir
que nenhuma multidão, nenhuma obra impeçam - é
preciso zelo para tal - que Deus esteja constante-
82 TRATADOS E S ERMÕES

mente presente e brilhe para ela permanentemente


desvelado em qualquer altura e em qualquer lugar.
Para tal é necessário um zelo muito vivo e, parti­
cularmente, duas coisas: uma, que a pessoa interior­
mente se mantenha por completo fechada, para que
o seu carácter esteja protegido de imagens que se
encontram no exterior, e elas permaneçam exteriores
a ela, e não a acompanhem de forma desproporcio­
nada e não encontrem qualquer lugar nela. A outra,
que a pessoa não se dissipe, não se disperse nem se
aliene no múltiplo, quer nas suas imagens interiores,
sejam estas ideias ou resultado de uma elevação do
seu ânimo, quer nas imagens exteriores ou seja o
que for que lhe esteja presentificado. O homem deve
habituar e dirigir todas as suas potências para isso e
manter sempre presente a sua interioridade.
Aqui tu poderias dizer: «Mas o homem, afinal,
tem de se voltar para o exterior, se ele quiser agir ex­
teriormente; pois nenhuma obra pode ser operada, a
não ser na forma de manifestação que lhe é própria.»
Isso é bem verdade. Contudo, as formas de mani­
festação exteriores não são, para a pessoa exercitada,
algo de exterior, porque todas as coisas têm para a
pessoa interior um modo de ser interior e divino.
Eis o que é necessário antes do mais: que o ho­
mem habitue e exercite correcta e plenamente o seu
intelecto em Deus; assim o seu interior será divino
em todos os momentos. Nada é tão próprio, tão pre­
sente e tão próximo do intelecto como Deus. O inte­
lecto nunca se vira para qualquer outro lugar. Ele não
TRATADO DO DISCERNIMENTO 83

se vira para as criaturas, a não ser que lhe aconteça


violência e injustiça, com o que ele fica imediatamen­
te transtornado e destroçado. E quando ele está cor­
rompido num jovem ou noutra pessoa, então tem de
ser tomado a peito com grande esforço, e deve-se fa­
zer tudo o que se consegue para o atrair e levá-lo a
readquirir os seus hábitos. Pois por muito próprio e
natural que o intelecto seja em Deus, logo que ele
seja mal orientado e se fundamente nas criaturas,
com elas se ilustre e a elas se habitue, então ele ficará
tão enfraquecido, tão pouco senhor de si mesmo, e
tão impedido nas suas nobres aspirações, que toda a
dedicação que o homem consiga arranjar será sem­
pre pouca, para que ele retome inteiramente os seus
hábitos. E mesmo que ele arrisque tudo nisso, ainda
assim ele precisará de uma constante protecção.
O homem deverá sobretudo entender que ele tem
de possuir hábitos firmes e correctos. Se um homem
desabituado e não exercitado quisesse ter a mesma
atitude e agir como aquele que é habituado, ele cor­
romper-se-ia inteiramente, e nada resultaria dele.
Quando o homem se desabituou ele próprio primei­
ramente de todas as coisas e se tornou um estranho
para elas, então ele poderá continuar a operar pru­
dentemente todas as suas obras e entregar-se a elas
despreocupadamente ou dispensá-las sem qualquer
impedimento. Opostamente, quando o homem gosta
de alguma coisa e encontra prazer nela, e prescinde
deste prazer com a sua vontade, seja nos alimentos
ou nas bebidas, seja no que for, isso não poderá
84 TRATADOS E SERMÕES

ocorrer com um homem não exercitado sem que tal


lhe traga prejuízos.
O homem deve habituar-se a não procurar e a
não aspirar ao que é seu em nada, ele deverá, pelo
contrário, achar e perceber Deus em todas as coisas.
Pois Deus não dá qualquer dom, e nunca o fez, para
que alguém possua esse dom e possa repousar sobre
ele. Mas todos os dons que Ele deu no céu e na
terra, Ele apenas os deu para que Ele possa dar um
dom, que é Ele próprio. Com todos esses dons, Ele
somente quer preparar-nos para o dom que é Ele
próprio; e todas as obras que Deus sempre operou
no céu e na terra, Ele apenas as operou para poder
operar uma obra, ou seja: para se tornar feliz, e assim
nos poder tornar felizes. Por conseguinte, eu afirmo:
em todos os dons e obras devemos aprender a con­
templar a Deus, e em nada nos devemos tornar sufi­
cientes e em nada devemos permanecer. Não existe
para nós qualquer permanecer de algum modo nesta
vida e tal nunca existiu para ninguém, por muito que
se tenha prosperado. Antes do mais, o homem de­
verá manter-se sempre orientado para os dons de
Deus, e sempre de modo renovado.
Eu quero aqui com brevidade aludir a uma mu­
lher que gostaria muito de receber algo de Nosso Se­
nhor; mas eu disse-lhe que ela não estava bem pre­
parada, e que se Deus lhe desse o dom estando ela
tão impreparada, este acabaria por se corromper.
Então vós perguntareis: «Por que não estava ela
preparada? Ela tinha afinal uma boa vontade, e vós
TRATADO DO D ISCERNIMENTO 85

dizeis que Ele consegue todas as coisas, e que nele se


encontram todas as coisas e (toda) a perfeição?»
Isso é verdade, mas na vontade temos de diferen­
ciar dois significados de natureza distinta: uma von­
tade é casual e inessencial, a outra é uma vontade
decidida, criadora e habituada.
Em verdade, não é suficiente que o ânimo do ho­
mem seja separado no momento do presente em que
ele se quer juntar a Deus, pois ele deve possuir, pelo
contrário, uma longa prática da separação, a qual
tanto existe anteriormente como continuará a exis­
tir; (só) então se poderão receber grandes coisas de
Deus e a Deus nas coisas. Mas se estivermos impre­
parados, então corromperemos ao dom e a Deus
com o dom. Esta também é a razão por que Deus
não nos pode dar sempre como nós pedimos. A falta
não é d'Ele, pois Ele tem mil vezes mais urgência
em dar do que nós em recebermos. Mas nós violen­
tamo-lo e somos injustos com Ele, quando com
a nossa impreparação o impedimos no seu operar
natural.
O homem tem de aprender, com todos os seus
dons, a extrair o seu eu de si mesmo, e a não conser­
var nada de si mesmo e a nada procurar, nem pro­
veito, nem prazer, nem afeição, nem doçura, nem
recompensa nem o paraíso, nem a vontade própria.
Deus nunca se deu, nem se dá a uma qualquer von­
tade estranha; Ele dá-se somente na sua própria
vontade. Mas onde Deus encontra a sua vontade, aí
Ele dá-se e entrega-se com tudo o que Ele é. E
86 TRATADOS E SERMÕES

quanto mais nós in-devirmos 5 no que é nosso, tanto


mais verdadeiramente nós deviremos nisso. Por esse
motivo não é suficiente que nós renunciemos uma
única vez a nós mesmos e a tudo o que temos e con­
seguimos, pois devemos renovar-nos com frequên­
cia e tornarmo-nos assim nós próprios simples e
livres em todas as coisas.
Também é de muito proveito que o homem não
se deixe contentar por (meramente) possuir no seu
carácter virtudes como a obediência, a pobreza e
outras virtudes; ele deve, pelo contrário, exercitar-se
nas obras e nos frutos da virtude, pôr-se à prova
muitas vezes, e deve ambicionar e desejar ser exerci­
tado e posto à prova por outras pessoas, (pois) não é
bastante que ele opere as obras da virtude, que cum­
pra a obediência, que assuma a pobreza e a humilha­
ção, ou que, de um qualquer outro modo, ele se
mantenha humilde e abandonado; deve-se, oposta­
mente, ambicionar e nunca desistir até se conquistar
a virtude na sua essência e fundamento. E pode-se
reconhecer que a possuímos no seguinte: quando,
antes de tudo mais, nos achamos propensos à vir­
tude e operamos as obras da virtude sem uma prepa­
ração (especial) da vontade, e as operamos sem qual­
quer preconceito particular de que sejam uma coisa
recta e grandiosa, pelo contrário, as operamos por

' Entwerden, no original. Werden: devir, tomar-se, auxiliar na forma­


ção das formas do futuro, da voz passiva, etc. Não temos a certeza de
criarmos um neologismo com o verbo indevir.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 87

sua própria causa e por amor à virtude, sem nos per­


guntarmos porquê; então, teremos a perfeita virtude,
não antes.
Entretanto, aprendamos a abandonar-nos até não
possuírmos nada mais de próprio. Toda a tormenta e
toda a dissensão provêm sempre da vontade própria,
quer de tal nos apercebamos quer não. Devemos
repousar com tudo o que é nosso, num puro inde­
vir do querer e do ambicionar, na bondosa e bem­
-amante vontade de Deus, em tudo o que se possa
querer ou ambicionar em todas as coisas.
Uma questão: também deveremos livrar-nos, por
força da vontade, de todo aquele doce sentimento de
pertença a Deus? Não provirá isso antes da indolên­
cia e de pouco amor por Ele?
Sim, com certeza: se não atentarmos na diferença.
Pois, quer isso provenha da indolência ou de um
verdadeiro desapego ou leixamento 6, devemos dar
atenção a se, quando interiormente nos encontra­
mos assim tão abandonados, nos imaginamos nessa
condição como sendo exactamente tão fiéis a Deus,
como se tivéssemos a mais forte sensação de que
nessa condição também fizéssemos tudo o que faría­
mos naquela e não menos, e se nos mantemos livres
face a toda a consolação e a todo o auxílio, como o
faríamos se sentíssemos Deus presente.

' Gelassenheit, no orig inal. Do verbo lassen, de ixar, abandonar, em Por­


tuguês ant igo, lei.xar. Este termo tem v indo a ser traduz ido como sereni­
daàe, que entendemos ser o sent imento que advém do abandono ou lei­
xamento, sempre anterior.
88 TRATADOS E SERMÕES

Para o homem justo, com uma boa vontade per­


feita, nenhum tempo lhe será demasiado breve. Por­
que, quando uma vontade se encontra nesse ponto
em que ela tudo quer inteiramente o que ela pode -
não apenas agora, mas se ela vivesse por mil anos, ela
quereria tudo o que pudesse -, uma tal vontade
rende tanto como aquilo que se poderia realizar em
obras durante mil anos: perante Deus, ela tinha feito
tudo.

22
Como se deve seguir bem a Deus
e do bom modo de agir

O homem que quer começar uma nova existência


ou obra, deverá dirigir-se ao seu Deus e desejar d'Ele
com grande energia e com toda a devoção que Ele
lhe destine o melhor e aquilo que lhe seja mais agra­
dável e digno, e que nisso ele não quererá nem ambi­
cionará o que é seu, mas unicamente a bem-amada
vontade de Deus e nada mais. Seja o que for que
Deus lhe acrescentar depois, ele o receberá como
directamente de Deus e considerá-lo-á como o me­
lhor para si e será nisso absoluta e inteiramente
satisfeito
Se bem que mais tarde um outro modo de agir
lhe possa agradar mais, ele deverá ainda assim pen­
sar: este modo de agir foi-te atribuído por Deus, e
assim ele deverá ser para ti o teu melhor. Ele deverá
TRATADO DO DISCERNIMENTO 89

confiar em Deus a esse respeito, e deverá incluir


todos os bons modos de agir nesse modo e aceitar
nele e em sua conformidade todas as coisas, seja
qual for a sua natureza. Porque aquilo que Deus fez
de bom e ofereceu a um modo de agir, também se
pode encontrar em todos os bons modos de agir.
Num modo de agir deve-se captar precisamente
todos os bons modos de agir e não a particularidade
desse mesmo modo de agir. Pois o homem deve
sempre fazer uma única coisa, ele não pode fazer
tudo. Deverá ser sempre um, e nesse um deve-se
captar todas as coisas. Porque se o homem quisesse
fazer tudo, agora isto, agora aquilo, e abandonasse o
seu modo de agir e adoptasse um outro que no mo­
mento lhe agradasse mais, em verdade, isso criaria
uma grande inconstância. Porque antes se tornaria
perfeito o homem que, deixando o mundo, entrasse
para sempre numa ordem, do que aquele que an­
dasse de uma ordem para a outra, por muito santo
que ele fosse. Isso resulta da mudança de modo de
agir. O homem deve adoptar um bom modo de agir e
deve para sempre permanecer nele, colhendo para
ele de todos os bons modos de agir, e considerando­
-o como recebido de Deus; não deve começar hoje
um modo e amanhã outro, nem ter a preocupação
de perder algo por permanecer no seu modo de agir.
Pois com Deus nada se poderá perder; tão pouco
poderá Deus perder algo, como tão pouco se pode
perder algo ao estar-se com Deus. Por isso toma um
(modo de agir) de Deus, e para ele atrai todo o bem.
90 TRATADOS E S ERMÕES

Mas se acontece que um bem não se quer enten­


der com um outro, de maneira que um não tolera o
outro, então que isso seja para ti um sinal certo de que
ele não provém de Deus. Um bem não pode ser con­
tra um outro bem, pois como Nosso Senhor diz:
«Todo o reino dividido contra si mesmo será devasta­
do» (Lc 1 1 , 1 7) , e como Ele também disse: «Quem não
está comigo está contra mim, e quem não junta comi­
go, dispersa» (Lc 1 1 ,23) . Que seja então para ti um
sinal certo: se um bem não tolera um outro bem, até
mesmo um bem menor ou até o destrói, ele não pro­
vém de Deus. Ele deveria trazer (algo) e não destruir.
Assim reza uma breve observação que aqui foi
levantada: «Que não subsista qualquer dúvida que o
Deus fiel aceita qualquer pessoa no que ela tem de
melhor.»
Tal é certamente verdade, e Ele nunca aceita uma
pessoa deitada, se ela puder igualmente encontrar-se
de pé; pois a bondade de Deus tem em vista o me­
lhor de todas as coisas.
Perguntaram então: «Por que razão Deus, que
sabe quem são aqueles que perderão a graça do bap­
tismo, não aceita que eles morram na sua infância,
antes de chegarem à idade da razão, sabendo Ele que
eles irão cair e não se voltarão a levantar: não seria
isso o melhor para eles?»
Ao que eu respondi: Deus não é um destruidor
de qualquer bem, mas um realizador. Deus não é um
destruidor da natureza, mas o seu consumador. A
graça também não destrói a natureza, ela consuma-a
TRATADO DO DISCERNIMENTO 91

(pelo contrário) . Ora, se Deus destruísse a natureza


dessa maneira logo no seu início, estaria a submetê­
-la à violência e à injustiça; Ele não faz isso. O ho­
mem tem uma vontade livre, com a qual ele pode
escolher o bem e o mal, e Deus apresenta-lhe (para
escolha) a morte para as más acções e a vida para as
boas acções. O homem deve ser livre e senhor das
suas obras, sem ser destruído nem constrangido. A
graça não destrói a natureza, ela consuma-a. A glori­
ficação não destrói a graça, ela consuma-a, pois a
glorificação é graça consumada. Nada existe em
Deus, por conseguinte, que destrua algo que de
algum modo tenha ser em si; Ele é, pelo contrário,
um consumador de todas as coisas. Do mesmo
modo (também) não deveremos destruir em nós
qualquer bem por mais pequeno que seja, nem um
qualquer modo de agir em nome de um mais impor­
tante, senão que os devemos consumar até ao mais
alto grau da sua perfeição.
Falou-se então de um homem que deveria come­
çar uma nova vida, e eu respondi deste modo: que
esse homem busque um Deus em todas as coisas, e
um Deus para todos os momentos e todos os luga­
res e em todas as pessoas e em todos os modos de
agir. Nisso poderemos progredir e crescer todo o
tempo sem interrupções, sem nunca chegar ao fim
da progressão.
92 TRATADOS E S ERMÕES

23

Das obras interiores e exteriores

Pressupondo que um homem desejava reentrar


em si mesmo com todas as suas forças, as interiores
e as exteriores, e que ele se encontrava nesse estado
de modo que no seu interior não houvesse uma
qualquer imagem nem qualquer impulso constran­
gedor, e ele se encontrasse dessa forma sem qual­
quer acção interior ou exterior, deveríamos observar
bem se (nesse estado) alguma coisa que não partisse
dele próprio o impeliria a agir. Mas se ocorrer que
ele não se sinta atraído para nenhuma obra e nada
quiser empreender, então ele deverá energicamente
forçar-se a fazer uma obra, seja ela interior ou exte­
rior - pois em nada deve o homem dar-se por satis­
feito, por muito bom que algo seja ou possa parecer
-, para que, quando ele se encontrar sob uma grande
pressão ou aperto pessoal, se ganhe a impressão de
que o homem nessa situação é antes agido em vez de
ser ele a agir, e o homem então aprenda a co-operar
com o seu Deus. Não como se ele devesse escapar,
perder ou renunciar ao seu interior, pois ele deve
precisamente aprender a agir nele, com ele e a partir
dele, de modo que deixe patentear-se a interioridade
na actividade e conduza a actividade para dentro da
interioridade, para que assim se habitue a agir livre­
mente. Pois devemos orientar o nosso olhar para
esse agir interior e agir a partir dele, seja na leitura,
na oração ou, quando ocorrer, numa obra exterior.
TRATADO DO DISCERNIMENTO 93

Mas se a obra exterior quiser destruir a interior,


então que se siga a interior. Mas se as duas pudes­
sem existir em um, isso seria o melhor para se ter
um co-operar com Deus.
Agora levanta-se a questão: «Como se poderá
ainda esperar ter um co-operar, quando o homem
ele próprio e todas as obras se perderam, pois como
interroga S. Dionísio: «fala com mais beleza de Deus,
aquele que face à plenitude do reino interior mais
profundamente consegue silenciar sobre ele, e quan­
do todas as imagens, obras, louvor e gratidão desa­
pareceram?»
Resposta: que uma obra permaneça justa e recta
para ele, quer dizer: um aniquilamento de si mesmo.
No entanto, este aniquilar e apoucar de si mesmo
por muito grande que seja, permanecerá insuficien­
te, se Deus não o consumar no próprio homem.
Porque a humildade só se torna completamente sufi­
ciente, quando Deus humilha o homem através do
próprio homem; e somente com isso se satisfará o
homem e a virtude também, mas não antes.
Uma questão: «Como há-de então Deus aniqui­
lar o homem através dele próprio? Parece que esse
aniquilar do homem será um elevar-se através de
Deus, porque o Evangelho diz: «Quem se exaltar
será humilhado e quem se humilhar será exaltado»
(Mt 23 , 1 2 ; Lc 1 4, 1 1 ) .
Resposta: sim e não. Ele deverá «humilhar-se» a si
próprio, e se isso não puder acontecer satisfatoria­
mente, Deus o fará então; e ele deverá «ser elevado»,
94 TRATADOS E SERMÕES

(mas) não como se este humilhar-se fosse uma coisa


e o elevar-se uma outra. Pelo contrário, a altura su­
prema da elevação situa-se no abismo profundo da
humilhação. Pois quanto mais fundo for o abismo e
maior a vexação, tanto mais alta e incomensurável
será também a elevação e a altura, e quanto mais
funda for a nascente tanto mais elevada será ela ao
mesmo tempo; a elevação e a profundidade são um;
por isso é que quanto mais alguém se puder humi­
lhar, tanto mais elevado ele estará. E também por
isso diz Nosso Senhor: «Se alguém quiser ser o pri­
meiro, há-de ser o último de todos e o servo de
todos» (Me 9,35) . Quem quiser ser um deverá tam­
bém devir o outro. Esse um só se pode encontrar
nesse devir. Quem se tornar no mais pequeno, ele é
em verdade o maior; mas quem se tornou no mais
pequeno, é já agora o maior de todos. E assim se
confirma e cumpre a palavra do Evangelista: «Quem
se exaltar será humilhado e quem se humilhar será
exaltado» (Mt 23, 1 2; Lc 1 4, 1 1 ) . Pois todo o nosso ser
essencial em nada mais se fundamenta excepto num
devir-nada.
«Porque em todas as coisas fostes enriquecidos»
(1 Cor 1 ,5 ) , assim se encontra escrito. Em verdade,
isso nunca poderá acontecer, a não ser que antes nos
tenhamos tornado pobres em todas as coisas. Quem
quiser receber todas as coisas, também terá de entre­
gar todas as coisas. Essa é uma transacção justa e
uma troca de valor igual, como eu já o disse há mui­
to tempo. É porque Deus se quer dar a si próprio e a
TRATADO DO DISCERNIMENTO 95

todas as coisas para a nossa livre apropriação, que


Ele nos quer tirar absolutamente toda a propriedade.
Sim, em verdade, Deus não quer de modo algum
que nós possuamos algo de próprio, nem sequer
aquilo que captamos com o olhar. Pois todas as dá­
divas que Ele nos deu, tanto os dons da natureza
como os dons da graça, não os deu Ele com qual­
quer outra intenção, que não fosse que nós nada
devemos possuir de próprio, porque um tal modo de
possuir não o deu Ele de maneira nenhuma nem a
sua mãe, nem a qualquer pessoa ou criatura. E para
nos ensinar e nos prover com isso, tira-nos Ele
muitas vezes tanto o bem corporal como o bem espi­
ritual, porque a posse da honra não deve ser nossa,
mas unicamente d'Ele. Nós, pelo contrário, (só) de­
vemos possuir todas as coisas como se elas nos
fossem emprestadas e não dadas, sem qualquer
direito de propriedade, seja do corpo ou da alma, dos
sentidos, das potências, do bem exterior ou da
honra, dos amigos, dos parentes, do lar, das fazendas
e de todas as coisas.
Mas que intenção é a de Deus, que o leva a dese­
jar isso tão ardentemente? Não é senão que Ele pró­
prio quer ser única e totalmente a nossa proprie­
dade. Ele quer e ambiciona isso, e Ele tem somente
em vista poder e dever sê-lo. Nisso reside o seu
maior deleite e prazer. E quanto mais e mais abran­
gente Ele o puder ser, tanto maior será o seu deleite
e a sua alegria, pois quanto mais possuirmos a todas
as coisas, tanto menos possuiremos a Ele, e quanto
96 TRATADOS E S ERMÕES

menos amor possuirmos a todas as coisas, tanto


mais possuiremos a Ele, com todas as coisas que Ele
consegue oferecer. Por isso é que quando Nosso Se­
nhor quis falar das beatitudes, colocou a pobreza de
espírito como a principal entre elas, e ela foi a pri­
meira, para assinalar que toda a beatitude e perfeição
têm, sem excepção, a sua origem na pobreza do espí­
rito. E, em verdade, se houvesse um fundamento
sobre o qual se pudesse erguer todo o bem, ele não o
seria sem esta beatitude.
Se nos mantivermos livres das coisas que existem
no nosso exterior, Deus dar-nos-á em troca para
nossa propriedade tudo o que há no céu, e o céu
com toda a sua força, enfim, tudo que desde sempre
emanou d'Ele, e o que todos os anjos e santos pos­
suem, para que seja próprio de nós o que é deles, e
numa escala maior do que qualquer coisa que seja
minha propriedade. Se por sua vontade eu me des­
pojar de mim próprio, Deus será, em troca, minha
propriedade absoluta, com tudo o que Ele é, e o que
consegue oferecer, tão absolutamente meu como
seu, nem mais nem menos. Ele será meu mil vezes
mais do que as coisas que desde sempre um homem
tenha adquirido e guardado no seu cofre ou desde
sempre se tenha apropriado. Nunca nada se tornou
para alguém tão próprio, como Deus será meu com
tudo o que Ele consegue e é.
Nós deveremos merecer essa propriedade, ao
sermos despojados neste mundo da propriedade ex­
clusiva sobre nós mesmos e de tudo aquilo que Ele
TRATADO DO DISCERNIMENTO 97

não é. E quanto mais perfeita e despojada for esta


pobreza, tanto mais teremos direito a essa proprie­
dade. Mas não devemos ter em vista essa recompen­
sa nem procurá-la, e o olhar não se deve nem sequer
uma vez dirigir para o que se pode ganhar ou rece­
ber, que não o seja por meio do amor à virtude, por­
que quanto mais livre (a posse) , tanto mais própria
ela será, como diz o nobre S. Paulo: «Como nada
tendo, mas possuindo tudo» (2Cor 6 , 1 0) . Não tem
propriedade exclusiva aquele que nada ambiciona
ou quer ter, nem em si mesmo nem em tudo o que é
no seu exterior, nem mesmo em Deus ou em todas
as coisas.
Queres tu saber o que é um homem verdadeira­
mente pobre?
É verdadeiramente pobre em espírito, aquele que
pode bem privar-se de tudo o que não é necessário.
Por isso é que aquele que estava sentado nu dentro
de um barril disse ao grande Alexandre, que tinha o
mundo inteiro a seus pés: «Eu sou», disse ele, «um
senhor muito maior do que tu és; porque eu despre­
zei mais do que aquilo de que tu te apropriaste.
Aquilo que tu consideras como grande possuíres é
para mim demasiado pequeno, mesmo para despre­
zar». É muito mais feliz aquele que pode privar-se de
todas as coisas e não precisa delas, do que quem
conserva todas as coisas por necessidade delas. É
melhor ser humano aquele que se pode privar da­
quilo que não lhe faz falta, por isso é que aquele que
pode privar-se e rejeitar ao máximo, é aquele que
98 TRATADOS E SERMÕES

abandonou ao máximo. Parece ser uma grande coisa


quando um homem oferece mil marcos de ouro por
amor de Deus, e com a sua fazenda constrói muitas
ermidas e conventos e dá de comer a todos os po­
bres; isso será uma grande coisa. Mas seria muito
mais feliz aquele que por amor de Deus desprezasse
outro tanto. Teria um justo reino dos céus, aquele
que pudesse renunciar a todas as coisas por amor de
Deus, sem se interessar pelo que Deus desse ou não
desse.
Ora, tu dizes: «Sim, Senhor, não seria eu então
uma causa (inibidora) e um obstáculo para tal com
as minhas fraquezas?»
Se tens fraquezas, então pede a Deus repetida­
mente, se não será da sua honra e agrado que Ele as
remova de ti, pois sem Ele tu não consegues nada.
Se Ele as remover de ti, então agradece-lhe; se Ele
não o fizer, então suporta-as por seu amor, mas não
como a fraqueza de um pecado, senão como um
grande exercício, pelo qual deverás receber recom­
pensa e exercitar a paciência. Tu deves ficar contente,
quer Ele te dê a sua graça, quer não.
Ele dá a cada um consoante o que é o seu melhor
e a ele se ajusta. Se quisermos talhar um fato para
alguém, devemos fazê-lo segundo a medida dessa
pessoa; e aquilo que se ajusta a um, não se ajusta de
todo a um outro. Devemos tomar a medida que se
ajusta a cada um. Assim, também dá Deus a cada um
o melhor de tudo, segundo o que Ele reconhece que
lhe seja o mais apropriado. Em verdade, quem aí
TRATADO DO DISCERNIMENTO 99

confiar n'Ele inteiramente, receberá e possuirá no


mínimo tanto como o fará no máximo. Se Deus me
quiser dar aquilo que Ele deu a S. Paulo, eu aceitá­
-lo-ei com agrado, se for esse o seu desejo. Mas se
Ele não mo quiser dar - pois só para muito poucas
pessoas quer Ele que elas G á) nesta vida alcancem
um tal saber (como S. Paulo) - se Deus, portanto,
não mo der, eu ter-lhe-ei o mesmo amor, ser-lhe-ei
igualmente tão grato e ficarei tão completamente sa­
tisfeito por Ele mo negar, como se Ele mo conce­
desse, se de outro modo isso for o recto para mim.
Verdadeiramente, eu deveria ficar satisfeito com a
vontade de Deus: em tudo o que Deus quisesse ope­
rar ou dar, a sua vontade devia ser para mim tão que­
rida e preciosa, que não tivesse para mim menos
importância do que se Ele me desse um dom ou
operasse em mim. Desse modo, seriam meus todos
os dons e todas as obras de Deus, e nem que todas
as criaturas quisessem para tal fazer o seu melhor, ou
o seu pior, elas não mo conseguiriam roubar. Como
poderei ainda queixar-me, se os dons de todas as
pessoas forem meus? Em verdade, fico tão satisfeito
com tudo o que Deus me faz ou dá, ou não dá, que
eu nem sequer pagaria um vintém para levar a
melhor vida que eu pudesse imaginar.
Mas tu dizes: «Eu receio que não me aplique o su­
ficiente nisso e que não o estime tal como eu devia.»
Sofre isso e suporta com paciência, aceita como
um exercício e sê contente. Deus sofre com agrado
o ultraje e a adversidade, e priva com agrado do ser-
1 00 TRATADOS E SERMÕES

viço e do louvor aqueles que o amam e lhe perten­


cem, para que tenham a paz com eles. Por que razão
não deveremos afinal ter paz, seja o que for que Ele
nos dê, ou de que nós nos privemos? Está escrito, e
nosso Senhor disse-o, que são «bem-aventurados
aqueles que sofrem perseguição por causa da jus­
tiça» (Mt 5 , 1 0) . Em verdade, se um ladrão que esti­
véssemos a ponto de enforcar, e que bem o merece­
ria pelos seus roubos, e um outro que tivesse
assassinado e que com justiça nos preparássemos
para enviar para o suplício da roda, pudessem dizer
para si mesmos: «V ê, tu queres sofrer isto por amor
da justiça, pois o que te acontece só é justo» , eles
seriam de imediato bem-aventurados. Em verdade,
por muito injustos que sejamos, se aceitarmos como
justo de Deus o que Ele nos faça ou não faça, e so­
frermos por amor da justiça, assim seremos bem­
-aventurados. Por isso não te queixes, queixa-te
antes por ainda te queixares e não encontrares o que
te é suficiente; para além disso, só te deves queixar
por teres ainda demais. Pois quem tiver um recto
sentido, receberá do mesmo modo na indigência
como na abundância.
Ora, tu dizes-me: «Considera, Deus opera coisas
tão grandes em tantas pessoas, que elas se tornam
assim impregnadas de ser divino, e, no entanto, é
Deus (que) opera nelas, mas não elas.»
Agradece nelas a Deus, e se Ele to der, em nome
de Deus, aceita-o! Se Ele não to der, então deverás
renunciar voluntariamente. Tem a Deus apenas em
TRATADO DO DISCERNIMENTO 1 01

teu sentido, e não te preocupes em saber se Deus


opera as tuas obras ou se és tu quem as opera; pois
deve ser Deus a operá-las, se tu só a Ele tiveres no
sentido, quer Ele queira quer não.
Não te preocupes também que ser ou que modo
Deus dá a alguém. Se eu fosse tão bom e santo, que
tivessem de me elevar entre os santos, as pessoas
falariam e indagariam se se tratava de obra da graça
ou da natureza que eu fosse assim, e inquietar-se­
-iam com isso. Nisso cometem elas injustiça. Deixa
que Deus opere em ti, reconhece a sua obra, e não
te preocupes em saber se Ele opera com a natureza
ou de modo sobrenatural; tanto a natureza como a
graça pertencem-lhe. Que tens tu a ver com isso, se
Ele opera com o que é apropriado, ou o que Ele
opera em ti ou num outro? Ele deve operar, como,
onde e de que modo lhe é mais conveniente.
Um homem desejava encaminhar a água de uma
fonte para o seu jardim, e disse: «Contanto que a
água me seja fornecida, não me interessa saber qual
é a natureza dos canos pelos quais ela corre, sejam
eles de ferro, de madeira, ósseos ou ferrugentas,
basta-me receber a água.» Assim fazem muito erra­
damente, aqueles que se preocupam em saber por
que meio Deus opera em nós as suas obras, se pela
natureza, se pela graça. Deixemo-lo operar nisso, e
sejamos somente em paz.
Pois tanto quanto tu estiveres em Deus, assim
tanto estarás em paz, e tanto quanto estiveres fora de
Deus, tanto estarás longe da paz. Se algo for apenas
1 02 TRATADOS E S ERMÕES

em Deus, então esse algo terá paz. Tanto quanto em


Deus, tanto quanto em paz. Podes reconhecer quan­
to tu estás, ou não estás, em Deus, pela paz que tive­
res ou não tiveres. Pois onde tiveres desassossego,
terás necessariamente de estar desassossegado, pois
o desassossego vem da criatura e não de Deus. Tam­
bém nada há em Deus que se possa recear; tudo o
que há em Deus, é unicamente para amar. Igual­
mente nada há nele que nos possa afligir.
Quem tiver a sua plena vontade e o seu desejo,
esse terá alegria. Mas isso não terá ninguém, cuja
vontade não seja plenamente uma com a vontade de
Deus. Que Deus nos dê essa união! Ámen.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA

Benedictus deus et pater domini nostri Jesu Christi etc.


(2Cor 1 ,3)

O nobre apóstolo S. Paulo diz as seguintes pala­


vras: «Bendito seja o Deus e Pai de nosso Senhor
Jesus Cristo, Pai das misericórdias e Deus de toda a
consolação, o Qual nos consola em todas as nossas
tribulações.» Existem três géneros de tribulações que
afectam o homem e o oprimem nesta miséria. Uma
vem de prejuízos nos bens exteriores, a outra dos
prejuízos que sucedem a seus parentes e amigos, a
terceira do prejuízo que a ele próprio ocorre pelo
menosprezo, pela adversidade, pelas dores físicas e
pelas mágoas do coração.
Por causa disso, quero escrever neste livro alguns
ensinamentos, com os quais o homem se possa con­
solar em toda a sua adversidade, calamidade e sofri­
mento. E este livro leva três partes. Na primeira en­
contra-se uma e outra verdade a partir da qual se
pode inferir o que pode consolar conveniente e
completamente o homem em todo o seu sofrimento.
Em seguida encontram-se cerca de trinta trechos e
ensinamentos, nos quais se consegue encontrar jus-
1 04 TRATADOS E SERMÕES

to e pleno consolo. Por fim, na terceira parte deste


livro, encontram-se exemplos em obras e palavras,
que pessoas sábias fizeram e disseram, quando se
encontravam em sofrimento.

Deve saber-se em primeiro lugar que o sábio e a


sabedoria, o verdadeiro e a verdade, o justo e a justi­
ça, o bom e a bondade se relacionam entre si e se
comportam do seguinte modo uns com os outros: a
bondade não é criada, nem feita nem nata; ela é,
contudo, geratriz e gera o bem, e o bem, enquanto
ele é bem, não é feito nem criado e, no entanto, é
criança e filho da bondade. A bondade gera-se a si e
a tudo o que ela é no bem: ser, saber, amar e operar
derrama ela tudo junto no bem, e o bem recebe todo
o seu ser, saber, amar e operar do coração e do mais
íntimo da bondade, e unicamente dela. O bom e a
bondade nada são senão uma bondade, inteiramente
uma em tudo, excepto quanto a nascer (por um lado)
e devir-nascido (por outro); entrementes, o nascer da
bondade e o devir-nascido no bom é inteiramente
um ser, uma vida. Tudo o que pertence ao bom, ele o
recebe da bondade na bondade. Aí ele é, vive e habi­
ta. Aí ele reconhece-se a si mesmo e a tudo o que re­
conhece, e ama tudo o que ele ama, e ele opera com
a bondade, na bondade, e a bondade com ele e em
ele todas as suas obras conforme ao que está escrito
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 1 05

e o Filho diz: «Ü Pai que está em mim, é que faz as


obras» CTo 1 4, 1 0) . «Meu Pai trabalha continuamente
e Eu também trabalho» CTo 5 , 1 7) . «E tudo o que é
meu é teu, e tudo o que é teu é meu; e neles sou glo­
rificado» ao, 1 7, 1 0) .
Além disso deve saber-se que, quando falamos de
«bom», o nome ou a palavra nada mais designa ou
em si encerra do que, nem mais nem menos, a mera
e pura bondade; nesse caso, porém, referimq-nos ao
bom, pressupondo que ele seja a bondade geratriz.
Quando falamos do «bom», entendemos por tal que
o seu ser-bom lhe foi dado, inspirado e nato pela
bondade ingeratriz. Por isso diz o Evangelho: «Assim
como o Pai tem a vida em si mesmo, assim também
concedeu ao Filho o ter a vida em si mesmo» CTo
5 ,2 6) . Ele diz: «em si mesmo», não: «de si mesmo»,
pois o Pai lha deu.
Tudo o que acabei de dizer sobre o bom e a bon­
dade, se pode também dizer do verdadeiro e da ver­
dade, do justo e da justiça, do sábio e da sabedoria,
do Filho de Deus e de Deus o Pai, de tudo aquilo
que nasceu de Deus e que não tem nenhum pai na
terra, no qual também nada nasce do que é criado
que não seja de Deus, no qual não existe qualquer
outra imagem que a simples e pura imagem de Deus.
Porque assim fala S. João no seu Evangelho: «Deu­
-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus; eles
que não nasceram do sangue, nem de vontade car­
nal, nem de vontade do homem, mas, sim de Deus.»
ªº 1 2, 1 3) .
1 06 TRATADOS E S ERMÕES

Por «sangue» ele entende tudo o que no homem


não está submetido à vontade do homem. Por «von­
tade carnal» entende ele tudo o que no homem está
decerto submetido à sua vontade, mas não sem re­
sistência e antagonismo, e as inclinações dos desejos
carnais e o que faz parte conjuntamente da alma e
do corpo, e que na realidade não se encontra só na
alma; e, subsequentemente, tornam-se cansadas, fra­
cas e velhas estas potências da alma. Por «vontade do
homem» entende S. João as potências superiores da
alma, cuja natureza e acção não se misturam com a
carne e que se encontram na pureza da alma, separa­
das de tempo e espaço e de tudo o que possa ter
qualquer parecença ou sabor a tempo e espaço, que
não têm nada em comum com nada, nas quais o ho­
mem é formado segundo a imagem de Deus, nas
quais o homem é do género de Deus e da estirpe de
Deus. No entanto, visto que elas próprias não são
Deus, e são criadas na alma e com a alma, deverão
essas potências superiores da alma des-forrnarem-se 7
a si mesmas e transformarem-se unicamente em
Deus e serem nascidas de Deus, para que Deus so­
mente seja (o seu) Pai; pois assim também elas serão
filhas de Deus e o Filho único de Deus. Pois eu sou
filho de tudo aquilo que me forma e gera como si e
em si como igual. Tanto quanto um tal homem, filho

1Entbilden, ou perder a forma (v. também aférese) ; ao optarmos por des­


formar-se, seguimos um estrito critério de coerência semântica em torno
do verbo-raiz bilden, formar.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 1 07

de Deus, bom enquanto filho da bondade, justo en­


quanto filho da justiça for unicamente o seu (da jus­
tiça) filho, ela será ingerada-geradora, e o filho que
ela gera tem o mesmo ser que a justiça tem e é, e
entra na posse de tudo o que é próprio da justiça e
da verdade.
Em toda esta doutrina que se encontra escrita no
santo Evangelho, e que é reconhecida com seguran­
ça à luz natural da alma dotada de intelecto, encon­
tra o homem verdadeiro consolo para todo o sofri­
mento.
S. Agostinho diz: «Para Deus nada está longe nem
distante no tempo. Se quiseres que para ti nada
esteja longe nem distante no tempo, então junta-te a
Deus, porque aí mil anos são como o dia que hoje
é». Igualmente digo eu: em Deus não há nem tris­
teza, nem sofrimento, nem adversidade. Se te quise­
res livrar de toda a adversidade e sofrimento, então
mantém-te e vira-te em pureza unicamente para
Deus. É certo que todo o sofrimento vem de não es­
tares unicamente em Deus e de não te virares so­
mente para Ele. Se tu te encontrasses exclusiva­
mente formado na justiça e nela fosses nascido,
então nada te poderia trazer sofrimento, tal como a
justiça não o pode trazer ao próprio Deus. Salomão
diz: «Nenhum mal atingirá o justo» (Prov 1 2, 2 1 ) . Ele
não diz: «ao homem justo», ou «ao anjo justo», nem
isto ou aquilo. Ele diz: «O justo.» Aquilo que perten­
ce ao justo, em particular aquilo que faz da justiça a
sua justiça e que ele seja justo, tudo isso é filho, e
1 08 TRATADOS E SERMÕES

tem um pai na terra e é criatura, e é feito ou criado,


porque o seu pai é criatura, feito ou criado. Mas para
o que é puramente justo, que não tem qualquer pai
feito ou criado, para quem Deus e a justiça são intei­
ramente um e a justiça é unicamente o seu pai, o so­
frimento e a adversidade não podem atingi-lo, como
não atingem a Deus. A justiça não lhe pode causar
qualquer sofrimento, pois a justiça não é outra coisa
senão alegria, prazer e deleite. E mais! Se a justiça
causasse sofrimento ao justo, então ela causaria a si
mesma esse sofrimento. Nenhuma desigualdade ou
injustiça, nem algo feito ou criado conseguiria cau­
sar sofrimento ao justo, pois tudo o que é criado si­
tua-se muito abaixo dele, tão longe quanto abaixo de
Deus, e não exerce qualquer tipo de impressão ou
influência sobre o justo, e não se gera nele, cujo pai é
unicamente Deus. Por isso se deve o homem aplicar
muito em des-formar-se e a todas as criaturas e em
não conhecer qualquer outro pai, senão unicamente
Deus; então nada o poderá precipitar em sofrimento
ou atormentar, nem Deus nem criatura, nem criado
nem incriado, e todo o seu ser, viver, conhecer saber
e amar vem de Deus e (é) o (próprio) Deus.
Em segundo lugar, deve-se saber algo que con­
sola igualmente o homem em todo o seu infortúnio.
Ou seja, que o homem justo e bom se alegra com
certeza muito mais, indizivelmente mais com o ope­
rar da justiça, do que as delícias e a alegria que ele ou
até o anjo supremo possam ter no seu ser ou vida
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 09

natural. Por isso é que os santos sacrificaram alegre­


mente a sua vida pela justiça.
Ora, eu digo: quando ao homem bom e justo
ocorre um prejuízo exterior e ele permanece imóvel
na estoicidade e paz do seu coração, então é verda­
deiro o que eu disse, que ao justo nada do que lhe
ocorre o aflige. Se ele, pelo contrário, se afligir com o
prejuízo exterior, então é apenas justo que Deus
tenha permitido que ocorram prejuízos ao homem
que queria e se presumia ser justo, quando afinal
coisas tão insignificantes o conseguem afligir. Se é,
por conseguinte, a lei de Deus, em verdade, então o
homem não se deverá afligir por isso, senão que se
deve alegrar com isso muito mais do que com sua
própria vida, com a qual qualquer pessoa se alegra
mais e lhe tem mais apreço do que a todo este mun­
do; pois em que ajudaria ao homem todo este mun­
do, se ele não vivesse?
A terceira palavra que se pode e deve saber é que
Deus, conforme unicamente à verdade natural, é a
única fonte e veio de todo o ser-bom, da verdade
essencial e da consolação, e tudo o que não é Deus
tem a partir de si mesmo uma amargura natural, um
desconsolo e sofrimento e nada acrescenta à bon­
dade que provém de Deus e é Deus, senão que a
amargura diminui, cobre e oculta a doçura, o deleite
e a consolação que Deus dá.
Mais direi eu que todo o sofrimento vem do amor
por aquilo que me foi tirado pelo prejuízo. Ora se
um prejuízo em coisas exteriores me faz sofrer, então
110 TRATADOS E SERMÕES

isso é um verdadeiro sinal de que eu amo as coisas


exteriores e, portanto, amo na verdade o sofrimento
e o desconsolo. Qual é pois o espanto de eu cair no
sofrimento, se eu amo e busco o sofrimento e o des­
consolo? O meu coração e o meu amor apropriam­
-se do ser-bom da criatura, que é propriedade de
Deus. Eu viro-me para a criatura, da qual vem um
desconsolo natural, e desvio-me de Deus, de quem
flui toda a consolação. Como poderá pois espantar
que eu caia em sofrimento e seja triste? Em verdade,
para Deus e para todo este mundo é realmente im­
possível que encontre verdadeira consolação, o ho­
mem que busca consolação nas criaturas. Mas quem
amou somente a Deus na criatura e a criatura so­
mente em Deus, esse encontrará verdadeira, recta e
igual consolação em todos os lugares. Que seja aqui
suficiente a primeira parte deste livro.

Seguem aqui na segunda parte cerca de trinta re­


flexões, das quais cada uma por si deverá já consolar
adequadamente o homem sensato no seu sofrimento.
A primeira é que não há qualquer adversidade e
prejuízo sem haver também tranquilidade, e que um
prejuízo nunca é simplesmente um prejuízo. Por isso
diz S. Paulo que a fidelidade e a bondade de Deus
não suportam que uma qualquer prova ou aflição se
torne intolerável. Ele cria e dá sempre algum consolo
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 111

com o qual nos podemos valer (cf. l Cor 1 0, 1 3}; por­


que também os santos e os mestres pagãos dizem
que Deus e a natureza não permitem que possa
haver a maldade ou o sofrimento puro.
Vou supor agora que um homem tem cem mar­
cos; desses, ele perde quarenta marcos e conserva
sessenta. Se daqui em diante, esse homem quiser
pensar somente nos quarenta marcos que ele per­
deu, então irá permanecer inconsolado e oprimido.
Como poderá também ser consolado e sem sofri­
mento, aquele que se vira para o prejuízo e o sofri­
mento, e os imprime em si e os contempla, e eles,
pelo seu lado, contemplam-no a ele, e ele conversa e
fala com o prejuízo, e o prejuízo pelo seu lado con­
versa com ele, e ambos se miram face a face? Mas se
fosse assim, que ele se virasse para os sessenta mar­
cos que ainda possui, e virasse as costas aos qua­
renta que perdeu, e olhasse para estes face a face e
conversasse com eles, então ele seria certamente
consolado. Aquilo que é algo, e é bom, isso consegue
consolar; mas aquilo que não é, nem é bom, que não
é meu e que eu perdi, disso resultará necessariamen­
te desconsolo, sofrimento e aflição. Por isso diz Salo­
mão: «No dia da felicidade não esqueças a desgraça,
nem no dia da desgraça a recordação da felicidade»
(Ecl 1 1 ,25) . Isso quer dizer: quando te encontrares
em sofrimento e na adversidade, então pensa no
bom e no tranquilo que ainda tens e conservas. Tam­
bém, por outro lado, consolar-se-á o homem que
quiser pensar nos muitos milhares de pessoas que
1 12 TRATADOS E SERMÕES

vivem, que se tivessem os sessenta marcos que ele


ainda tem, se considerariam (grandes) senhores e se­
nhoras e pareceriam ser muito ricos, e seriam felizes
do coração.
Mas há uma outra coisa que pode consolar o ho­
mem. Se ele estiver doente e com grandes dores no
seu corpo, e mantiver, contudo, a sua habitação e sa­
tisfeitas as suas necessidades em alimentos e bebida,
o conselho dos médicos e o serviço da criadagem, a
compaixão e a presença dos seus amigos: como se
deverá ele comportar? Ora, o que fazem as pessoas
pobres que têm de aguentar a mesma doença, ou
ainda maior adversidade, e não têm ninguém que
(sequer) lhes chegue alguma água fria? Elas têm de
procurar o pão seco por entre a chuva, a neve e o
frio, de casa em casa. Por isso se quiseres ser conso­
lado, esquece aqueles que passam melhor, e pensa
sempre naqueles que se encontram pior.
Além disso, eu digo: todo o sofrimento vem do
amor e do afecto. Por isso é que eu sofro por coisas
efémeras, e ainda tenho no meu coração amor e pro­
pensão para as coisas efémeras e não amo a Deus de
todo o meu coração, e ainda não amo aquilo que
Deus quer de mim, se eu o amar. Que espanto pode
então haver se Deus permitir que eu, bem merecida­
mente, receba prejuízos e sofrimento?
S. Agostinho diz: «Senhor, V ós sois a verdade que
preside a tudo, e eu, na minha avareza, não Vos que­
ria perder. Mas além de Vós, desejava possuir tam­
bém a mentira e a ilusão das criaturas. Foi assim que
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 113

vos perdi, porque V ós não permitis que vos possua­


mos j untamente com a mentira» 8 • Ele diz também
numa outra passagem, que «é demasiado avarento
aquele a quem somente Deus não é suficiente». E de
novo numa outra passagem, diz ele: «Como se pode­
ria satisfazer nos dons de Deus nas criaturas, aquele
que não se satisfaz no próprio Deus?» A um homem
bom não deve servir de consolo, mas de tormento
tudo o que é estranho, diferente, e não é exclusiva­
mente o próprio Deus. Ele deve dizer sempre: Se­
nhor, meu Deus e minha consolação! Se tu me apre­
sentares a algo de diferente, então dá-me um outro
Tu, para que eu possa ir de ti para ti, pois eu nada
quero senão a ti. Quando Nosso Senhor prometeu a
Moisés todo o bem e o enviou para a terra prome­
tida, que é o mesmo que o reino dos céus, Moisés
disse: «Se a vossa face não vier connosco, não nos
obrigueis a partir deste lugar» (cf. Ex 33, 1 5) .
Toda a afecção, o prazer e o amor vêm daquilo
que é igual a nós, pois todas as coisas inclinam-se
para e amam o que é seu igual. O homem puro ama
toda a pureza, o justo ama e inclina-se para a justiça;
a boca do homem fala daquilo que habita no seu
interior, como diz Nosso Senhor, que «Da abundân­
cia do coração é que fala a sua boca» (Lc 6,45), e Sa-

• Socorremo-nos de Confissões de SANTO AGOSTINHO, Livro X, 41 ,

p. 287; tradução do original latino por ]. Oliveira Santos e A. Ambrósio


de Pina; 1 1 .ª ed., Apostolado da Imprensa, Porto, 1 984. Permitimo-nos
a interpolação de «.•.e a ilusão das criaturas» por coerência com o original
alemão.
1 14 TRATADOS E SERMÕES

lomão diz que «Todo o trabalho do homem é para a


sua boca» (Ecl 6,7) . Por isso é um verdadeiro sinal
que não seja Deus, mas a criatura, quem habita no
coração do homem, se ele ainda encontra no exte­
rior afecto e consolação.
Por esse motivo é que um homem bom se deveria
envergonhar perante Deus e perante si mesmo,
quando ele se apercebe de que Deus não está nele, e
que Deus, o Pai, não opera nele as suas obras, senão
que nele ainda vive a criatura sofredora que deter­
mina o seu afecto e nele opera as suas obras. Por isso
diz o Rei David, queixando-se, nos Salmos: «As
minhas lágrimas são para mim pão durante o dia e
durante a noite desde que todos me dizem: «onde
está o teu Deus?» (Sl 41 ,4). Porque o propender para
a exterioridade e o encontrar consolo no desconsolo
e o falar muito sobre isso cheio de prazer e com fer­
vor é um verdadeiro sinal de que Deus não é visível
em mim, não desperta em mim, não opera em mim.
E, além disso, também o homem bom deveria enver­
gonhar-se diante das pessoas boas, por elas se aper­
ceberem disso nele. Uma boa pessoa nunca se deve
queixar sobre prejuízos nem sobre o sofrimento; ela
deve, pelo contrário, queixar-se somente de que ela
se apercebe do queixar-se e do sofrer em si mesma.
Os mestres dizem que directamente por baixo do
céu há um fogo poderoso numa grande extensão, e
que, no entanto, o céu não é tocado de todo por ele.
Ora, está afirmado num escrito, que a parte mais
baixa da alma é mais nobre do que aquilo que de
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 15

mais elevado há no céu. Mas como se pode um ho­


mem atrever a imaginar que ele é um ser celestial e
que o seu coração se encontra no coração, quando ele
ainda se aflige e sofre por coisas tão insignificantes!
Agora falarei de outra coisa. Um homem bom não
pode ser aquele que não quer aquilo que Deus quer
em cada caso particular, porque é impossível que
Deus queira alguma outra coisa que não seja o que é
bom; é sobretudo por Deus o querer, que tal se torna
necessariamente bom e é simultaneamente o melhor.
E por isso ensinou Nosso Senhor aos Apóstolos e a
nós através deles, que oremos todos os dias, que seja
feita a sua vontade. Mas quando a vontade de Deus
chega e ocorre, então nós queixamo-nos.
Séneca, um mestre pagão, pergunta: qual é a me­
lhor consolação no sofrimento e na adversidade? E
responde: é que o homem aceite todas as coisas
assim como se ele as tivesse desejado dessa forma e
por elas tivesse rogado; pois tu também as terias
desejado, se soubesses que todas as coisas acontecem
a partir de Deus, com Deus e em Deus. Afirma um
mestre pagão 9: príncipe e pai supremo e senhor do
alto céu, estou pronto para tudo o que tu quiseres;
dá-me a vontade para querer segundo a tua vontade!
Um homem bom deve confiar, acreditar e estar
tão certo de Deus, além de conhecê-lo tão bem, que
sabe que Ele, com sua bondade e amor, não pode
permitir que qualquer sofrer ou sofrimento atinja o

• Trata-se novamente de Séneca.


116 TRATADOS E SERMÕES

homem, sem que Ele queira por esse meio evitar um


mal maior, ou consolá-lo mais fortemente na terra,
ou que queira fazer disso algo de melhor, para que a
sua glória se manifeste ainda com mais força e alcan­
ce. Mas seja como for: somente por ser vontade de
Deus que isso aconteça, a vontade do homem bom
deve ser absolutamente uma e unida com a vontade
de Deus, de modo que o homem queira o mesmo
que Deus, mesmo que tal seja para seu prejuízo e até
para sua condenação. Por isso desejava S. Paulo en­
contrar-se separado de Deus por amor de Deus, pela
sua vontade e glória (cf. Rm 9,3). Porque um homem
verdadeiramente perfeito deverá ter-se habituado a
ser extinto para si mesmo, a ter-se des-formado em
Deus e a ser transformado de tal modo na vontade
de Deus, que toda a sua beatitude consiste em nada
saber de si mesmo e de tudo o mais, em, pelo contrá­
rio, saber somente de Deus, em nada querer nem em
conhecer qualquer vontade que não seja a vontade
de Deus, e em querer conhecer a Deus, como Deus
o conhece a si mesmo, tal como diz S. Paulo (1 Cor
1 3 , 1 2) . Deus conhece tudo o que Ele conhece, ama e
quer tudo o que ama e quer, em si mesmo e na sua
própria vontade. Nosso Senhor, Ele próprio, diz: «E a
vida eterna consiste nisto: Que te conheçam a ti, por
único Deus verdadeiro» (Jo 1 7,3) .
Por isso dizem os mestres que os bem-aventura­
dos no reino dos céus reconhecem as criaturas sem
qualquer imagem delas, pois reconhecem-nas (pelo
contrário) numa imagem que é Deus e na qual Deus
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 117

sabe, ama e quer a si mesmo e a todas as coisas. E


isso ensina-nos Deus, Ele próprio, a orar e a desejar,
quando dizemos: «Pai nosso» , «santificado seja o
vosso nome», isso significa: que te conheçam a ti,
por único Deus verdadeiro (cf. Jo 1 7,3}; «venha a nós
o vosso reino», porque eu nada tenho que considere
rico, e de nada sei que seja rico, senão Tu. Por isso
diz o Evangelho: «Bem-aventurados são os pobres
em espírito» (Mt 5 , 3) , o que quer dizer: os que são
pobres em vontade, e nós rogamos a Deus que «seja
feita a Vossa vontade» «na terra», significa: que seja
feita em nós, «como no céu» significa: em Deus, Ele
próprio. Um homem assim é tão aquiescente com
Deus, que ele quer tudo o que Deus quer e do modo
que Deus o quer. É por Deus querer, de certo modo,
que eu também tenha cometido pecados, que eu não
quis não os ter cometido, pois assim acontece a von­
tade de Deus «na terra» , ou seja no delito, assim
«como no céu» quer dizer na boa acção. Desse modo
o homem quer privar-se de Deus por amor de Deus,
e ser separado de Deus por amor de Deus, e isso é
unicamente o verdadeiro remorso por meus peca­
dos; assim eu sofro com o pecado sem sofrimento,
como para Deus todo o mal é sofrer sem sofrimento.
O maior sofrimento tenho eu por causa do pecado -
pois por nada do que é criado ou criável, mesmo se
na eternidade pudessem existir mil universos, come­
teria eu qualquer pecado -, contudo, sem sofrimen­
to; e eu recebo e gero o sofrimento em e a partir da
vontade de Deus. Só um tal sofrimento é um sofri-
118 TRATADOS E SERMÕES

mento perfeito, pois ele vem e brota do puro amor,


do bem e da alegria mais puros de Deus. Assim se
torna verdadeiro e inteligível aquilo que abordei
neste livrinho: que o homem bom, na medida em
que ele é bom, entra no absoluto ser-próprio da
bondade ela mesma, que é Deus em si mesmo.
Notai agora que maravilhosa e deleitosa vida este
homem tem, «(tanto) na terra» «como no céu», em
Deus mesmo! A ele servem-lhe de modo igual tanto
a adversidade como a bonança, o sofrimento como o
amor, e atentai que nisso mesmo há ainda uma par­
ticular consolação: pois se eu tiver a graça e a bon­
dade de que acabo de falar, então encontro-me sem­
pre e em todas as coisas constantemente pleno de
consolação e alegria; mas se eu nada disso tiver,
então devo privar-me delas por amor e por vontade
de Deus. Se Deus me quiser dar aquilo que procuro,
então recebê-lo-ei e sentir-me-ei deleitado; se Ele,
pelo contrário, não mo quiser dar, então recebê-lo-ei
assim, disso me privando na mesma vontade de
Deus, de acordo com a qual Ele precisamente não
quer, e eu recebo-o desse modo, privando-me e não
tomando aquilo que procuro. O que é que então me
faltará se, no verdadeiro sentido, eu tomo Deus em
privação enquanto dádiva? Pois, quando o homem
recebe uma dádiva, então esta possui aquilo com
que ele se sente feliz e consolado em si mesmo. Mas
se não receber a dádiva, então ele nada tem, nada
sabe e nada acha com o qual se possa alegrar, senão
somente Deus e a vontade de Deus.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 119

Mas existe ainda um outro consolo. Se um ho­


mem tiver perdido um bem exterior, seja um seu
amigo ou parente, seja um olho, a mão, seja o que
for, então ele poderá estar certo de que, se sofrer isso
pacientemente por amor de Deus, pelo menos rever­
terá em seu favor junto de Deus tudo aquilo por
cujo preço ele não teria querido padecer (a perda) .
Um homem perde um olho (por exemplo): se ele
não tivesse querido perder esse olho por mil ou por
seis mil marcos ou mais, então reverterá em seu
favor junto de Deus e em Deus, tudo aquilo que ele
teria pago para não ter de padecer esse sofrimento
ou prejuízo. E isso queria precisamente dizer Nosso
Senhor quando afirmou: «Mais te vale entrares com
um só olho na vida, do que, tendo os dois olhos,
seres lançado na Geena do fogo» (Mt 1 8,9). E era de­
certo isso que Deus queria dizer quando afirmou: «E
todo aquele que tiver deixado casas, irmãos, irmãs,
pai, mãe mulher, filhos ou terras por causa do meu
nome, receberá cem vezes mais e terá por herança a
vida eterna» (Mt 1 9,29). Eu ouso com certeza dizer
na verdade de Deus, e pela minha beatitude, que
aquele que por amor de Deus e da bondade aban­
dona pai e mãe, irmão ou irmã, seja o que for, rece­
berá cem vezes mais de dois modos: um modo é que
para ele seu pai, sua mãe, irmão ou irmã se lhe tor­
narão cem vezes mais queridos do que o são agora.
O outro modo é que não somente cem pessoas mas
todas as pessoas, na medida em que são pessoas e
humanas, se lhe tornam imensamente mais queridas,
1 20 TRATADOS E SERMÕES

do que lhe são agora queridos por natureza seu pai,


mãe ou irmão. Que o homem não se aperceba disso,
resulta única e exclusivamente de ele ainda não ter
deixado inteiramente pai e mãe, irmã e irmão e todas
as coisas por puro amor de Deus e da bondade.
Como é que poderá ter deixado pai e mãe, irmã e
irmão por amor de Deus, aquele que em seu coração
ainda os encontra na terra, que ainda se aflige e nisso
pensa, e contempla aquilo que não é Deus? Como é
que abandonou todas as coisas por amor de Deus
aquele que ainda considera e pretende este ou
aquele bem? S. Agostinho diz: afasta este bem e
aquele bem, então ficará pairando em si mesma na
sua pura imensidão a pura bondade: isso é Deus.
Pois, conforme eu disse anteriormente: este ou
aquele bem nada acrescentam à bondade, somente
ocultam e encobrem a bondade em nós. Isso é re­
conhecido e percebido por quem o vê e contempla
na verdade, porque isso é verdadeiro na verdade, e
por isso nos devemos aperceber disso aí e em mais
lugar nenhum.
Deve saber-se, contudo, que possuir virtude e
querer sofrer tem uma certa graduação, tal como
podemos constatar na natureza que um homem é
maior e mais belo do que um outro na sua atitude,
aparência saber e arte. Assim, também digo que um
homem bom pode ser perfeitamente um homem
bom, e, se bem que ele possa oscilar e ser mais ou
menos tocado em seu amor natural por seu pai, mãe,
irmã ou irmão, ele não poderá, contudo, abjurar de
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 121

Deus nem da bondade. Apesar disso, ele é bom e


melhor na medida em que for menos ou mais to­
cado e consolado pelo amor e inclinação natural por
seu pai e mãe, irmã e irmão e por si mesmo, e se
tornar consciente disso.
E, no entanto, conforme já escrevi mais acima: se
um homem pudesse aceitar que é por vontade de
Deus que a natureza humana tem essa carência, par­
ticularmente pela justiça de Deus a respeito do pe­
cado original, e se, por outro lado, ele também esti­
vesse disposto a privar-se por vontade de Deus, para
que assim não fosse, então tudo estaria absoluta­
mente correcto para ele, e ele seria decerto conso­
lado no sofrimento. A isso se refere S. João quando
diz que a verdadeira «luz resplandece nas trevas» Oo
1 ,5), e S. Paulo diz que «é na fraqueza que a minha
força se revela totalmente» (2Cor 1 2, 9) . Se o ladrão
pudesse com agrado padecer a sua morte verdadeira,
plena, pura, voluntária e alegremente por amor à
justiça divina, na qual e pela qual Deus e a sua jus­
tiça quer que o malfeitor seja morto, é certo que ele
seria salvo e bem-aventurado.
Eis mais uma consolação: não se encontra nin­
guém que não goste tanto de ver viver alguém, que
durante um ano não se privasse de um olho ou qui­
sesse ser cego, se depois disso ele pudesse reaver o
seu olho e assim salvar o seu amigo da morte. Se, por
conseguinte, um homem se quisesse privar do seu
olho durante um ano para salvar da morte uma
pessoa que em breves anos terá de morrer, então ele
1 22 TRATADOS E S E RMÕES

deverá razoável e voluntariamente privar-se desse


olho por dez, vinte ou trinta anos que ele ainda possa
viver, para se tornar ele próprio bem-aventurado para
a eternidade e contemplar eternamente a Deus na
sua luz divina, e em si mesmo e a todas as criaturas.
De novo outra consolação: para um homem bom,
contanto que ele seja bom e somente nascido da
bondade e seja uma imagem da bondade, tudo o que
é criado, seja isto ou aquilo, é insuportável, amargo e
prejudicial. E perder isso significa portanto perder e
libertar-se de sofrimento, adversidade e danos. Na
verdade, perder o sofrimento é uma autêntica conso­
lação. Por isso o homem não se deve lastimar de
quaisquer prejuízos. Ele deve, pelo contrário, lasti­
mar-se que o consolo lhe é desconhecido, que o
consolo não o consegue consolar, assim como um
bom vinho não agrada a quem está doente. Ele deve
lastimar-se, conforme eu escrevi mais acima, que
não se tenha des-formado completamente das cria­
turas e não se tenha formado interiormente na bon­
dade com todo o seu ser.
Também no seu sofrimento deve o homem pensar
que Deus diz a verdade e faz promessas por si mesmo
enquanto a verdade que é. Se Deus faltasse à sua
palavra, então Ele faltaria à divindade e não seria
(mais) Deus, porque Ele é a sua palavra e a sua ver­
dade. A sua palavra é que o nosso sofrimento deve ser
transformado em alegria (cf. Jr 3 1 , 1 3) . É certo que se
eu soubesse de fonte segura que todas as minhas
pedras se haveriam de transformar em ouro, quantas
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 23

mais pedras eu tivesse e quanto maiores elas fossem,


tanto mais agradável seria para mim; eu rezaria para
ter pedras e se eu pudesse arranjaria pedras que
fossem grandes e em grande quantidade; quanto
mais e maiores elas fossem, tanto mais queridas elas
me seriam. Desse modo um homem seria decerto
poderosamente consolado em todo o seu sofrimento.
Mais uma consolação do mesmo género: ne­
nhum recipiente pode conter em si duas bebidas di­
ferentes. Se ele tiver de conter vinho, então teremos
necessariamente de esvaziá-lo da água; o recipiente
deverá ficar vazio e singular; por isso, se tu quiseres
receber a alegria divina e Deus, então terás necessa­
riamente de esvaziar-te das criaturas. S. Agostinho
diz: «Esvazia-te para que sejas preenchido. Não
aprendas a amar, para que aprendas a amar. Desvia­
-te, para que entres na via.» Em breves palavras: tudo
o que recebe e acolhe deverá esvaziar-se. Os mestres
dizem: se o olho tivesse qualquer cor em si mesmo
quando percepciona, então ele não reconheceria
nem a cor que ele tivesse, nem uma que não tivesse;
mas como ele é simplesmente todas as cores, per­
cebe todas as cores. A parede tem uma cor em si e
por isso ela não reconhece a sua (própria) cor nem
qualquer outra cor, e não sente qualquer alegria na
cor, nem na cor do ouro, nem do verniz ou na do
carvão. O olho não tem qualquer cor, mas tem-na no
sentido mais verdadeiro, pois ele reconhece-a com
prazer, com deleite e alegria. E quanto mais perfeitas
e puras forem as potências da alma, tanto mais per-
1 24 TRATADOS E SERMÕES

feita e abrangentemente aceitam elas aquilo que


apreendem, e tanto mais elas recebem, e sentem um
deleite tanto maior e tomam-se tanto mais um com
aquilo que elas percepcionam, na medida em que a
força suprema da alma que é simplesmente todas as
coisas e nada tem em comum com algo, não recebe
menos do que o próprio Deus na vastidão e pleni­
tude do seu ser. E os mestres referem que a esta uni­
dade, esta afluência e este deleite nada se pode com­
parar em prazer e deleite. Por isso diz Nosso Senhor
de modo tão notável: «Bem-aventurados os pobres
em espírito» (Mt 5,3). Pobre é aquele que nada tem.
«Pobre em espírito» quer dizer: assim como o olho é
pobre e simples em cor e sensível a todas as cores,
assim aquele que é pobre em espírito é sensível a
todo o espírito, e o espírito de todos os espíritos é
Deus. Frutos do espírito são o amor, a alegria e a paz.
Ser simples, pobre, nada ter, ser vazio, eis o que
transforma a natureza; o vazio faz a água subir mon­
tanha acima e outros milagres dos quais não quere­
mos falar agora.
Por isso, se quiseres ter e encontrar plena alegria e
consolação em Deus, então observa se tu estás sepa­
rado de todas as criaturas, de toda a consolação das
criaturas; porque é certo que enquanto a criatura te
conseguir consolar, nunca encontrarás verdadeira
consolação. Mas se nada te conseguir consolar ex­
cepto Deus, em verdade, então Deus consolar-te-á, e
com Ele e n'Ele tudo o que é deleite. Se te consolar
aquilo que não é Deus, então nem aqui nem além
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 25

encontrarás tu consolação. Se, pelo contrário, não te


consolar a criatura e ela não te for agradável, então
tu encontrarás consolação tanto aqui como além.
Se o homem estivesse em condições de poder es­
vaziar completamente um copo e de o manter vazio
de tudo o que consegue encher, mesmo do ar, o
copo renegaria e esqueceria sem dúvida a sua natu­
reza, e o vazio levá-lo-ia para cima até ao céu. Igual­
mente o ser simples, pobre e vazio de todas as criatu­
ras eleva a alma para Deus. Também a igualdade e o
ardor elevam para a altura. Na divindade atribui-se a
igualdade ao Filho, e o ardor e o amor ao Espírito
Santo. A igualdade em todas as coisas, mas em parti­
cular, antes do mais, na natureza divina, é o nasci­
mento do Um, e a igualdade do Um, no Um e com o
Um é o começo' e origem do amor florescente e
ígneo. O Um é começo sem todo o começo. A igual­
dade é começo somente do Um, e recebe o seu ser e
o ser começo, do e no Um. O amor possui isso por
natureza, de fluir e brotar de dois enquanto um. Um
enquanto um não produz qualquer amor, dois en­
quanto dois não produz também qualquer amor; dois
enquanto um produz necessariamente, em conformi­
dade com a natureza, um amor ígneo e impetuoso.
Ora, diz Salomão que toda a água, quer dizer
todas as criaturas, fluem e refluem na sua origem
(Ecl 1 ,7) 10• Por isso é necessariamente verdade, como

10
«Todos os rios entram no mar, e o mar não transborda. Vão desa­
guar no lugar donde saíram, para tornarem a correr.» (Ecl 1 ,7) .
1 26 TRATADOS E SERMÕES

eu disse: a igualdade e o amor ardente elevam, con­


duzem e levam a alma para a primeira origem do
Um, que é «Pai de todos no céu e na terra» (cf. Ef 4,
6) . Por isso digo eu, então, que a igualdade nascida
do Um, conduz a alma para Deus, porque ele é o
Um na sua unidade oculta, pois é isso que significa o
Um. Para tal dispomos de uma perceptível imagem
intuitiva: quando o fogo material incendeia a ma­
deira, então uma centelha recebe a natureza do fogo
e torna-se igual ao fogo puro, que está fixo directa­
mente por baixo do céu. Ele esquece de imediato e
abandona a seu pai e mãe, irmão e irmã na terra, e
corre para cima em direcção ao Pai celestial. O pai da
centelha neste mundo é o fogo, a sua mãe é a ma­
deira, os seus irmãos e irmãs são as outras centelhas;
a primeira pequena centelha não espera por eles. Ela
corre rápida para cima ao encontro do seu verda­
deiro Pai, que é o céu; pois, quem conhece a verdade,
sabe muito bem que o fogo, enquanto ele é fogo, não
é o legítimo, o verdadeiro pai da centelha. O legí­
timo, verdadeiro pai da centelha e de tudo o que tem
a natureza do fogo é o céu. E além disso, deve notar­
-se bem que esta pequena centelha não abandona
apenas pai e mãe, irmãos e irmãs na terra; pelo con­
trário, ela abandona, esquece e renega-se a si própria
por um impulso de amor para chegar ao seu legítimo
pai, o céu, pois ela deverá necessariamente extinguir­
-se com a frieza do ar; mas isso é-lhe indiferente pois
ela quer manifestar o seu amor natural pelo seu ver­
dadeiro, Pai celestial.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 1 27

E como anteriormente eu disse do ser vazio ou do


ser simples, que a alma, quanto mais pura, despojada
e pobre ela for, e quanto menos criaturas ela tiver em
si e quanto mais vazia ela se encontrar de todas as
coisas que não são de Deus, tanto mais pura ela se
tornará em Deus, e tanto mais ela será abrangida em
Deus, e mais será um com Deus, e contemplará em
Deus e Deus nela face a face, transformada numa
única imagem, tal como diz S. Paulo, - assim eu digo
agora também da igualdade e do fogo do amor: que
na medida em que uma coisa se tornar mais seme­
lhante a outra, na mesma medida correrá ela para a
outra, e quanto mais rápida ela for tanto mais afor­
tunada e deleitosa será a sua corrida; e quanto mais
ela se afastar de si mesma e de tudo aquilo que não é
a outra coisa para a qual ela corre, e quanto mais di­
ferente ela se tornar de si mesma e de tudo aquilo
que não é a outra coisa, tanto mais ela se tornará du­
radouramente igual àquela coisa para a qual ela
corre. E visto que a igualdade flui do Um e atrai e
chama através da força e na força do Um, não haverá
paz nem contentamento, nem para o que atrai nem
para o que é atraído até que eles sejam unificados no
Um. Por isso repetiu nosso Senhor o sentido do pro­
feta Isaías: que nenhuma elevada igualdade e nenhu­
ma paz do amor me satisfaz até que eu próprio me
revele no meu Filho e eu próprio me inflame e me
incendeie no amor do Espírito Santo (cf. Is 6 2 , 1 ) .
E nosso Senhor pediu a seu Pai que nós sejamos
Um com Ele e nele, e não somente unificados. Para
1 28 TRATADOS E SERMÕES

estas palavras e esta verdade também temos exterior­


mente um exemplo perceptível e um testemunho
verificável na natureza. Quando o fogo produz o seu
efeito e inflama a madeira e a incendeia, então o fogo
torna a madeira tão fina e diferente de si mesma, que
lhe tira o que tem de grosseiro e de frio, de pesado e
de húmido, e torna a madeira cada vez mais seme­
lhante ao próprio fogo. Mas nem o fogo nem a ma­
deira se tranquilizam, sossegam ou se satisfazem
com qualquer calor, ardor ou igualdade até que o
fogo se gere a si próprio na madeira e lhe transmita a
sua própria natureza e o seu próprio ser, para que
tudo se torne em um fogo, ambos propriamente
iguais, indiferenciadamente, sem mais ou menos.
E por isso é que há sempre, até se chegar a esse
ponto, um fumo, um combate contra si mesmo, uma
crepitação, um esforço e uma luta entre o fogo e a
madeira. Mas quando toda a diferença for removida
e deposta, então o fogo cala-se e silencia-se a madei­
ra. E eu digo, além disso, em conformidade com a
verdade, que a força oculta da natureza detesta em
segredo a igualdade, porque ela transporta em si
diferenciação e dualidade, e busca nela o Um que ela
ama em si mesmo e por si mesmo, assim como a
boca busca e ama no vinho o sabor ou a doçura. Se
a água possuísse o sabor que o vinho tem, então a
boca não amaria mais o vinho do que a água.
E por essa razão afirmei que a alma detesta a
igualdade na igualdade e que não a ama em si nem
por seu próprio amor; ela ama-a, pelo contrário, por
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 129

amor do Um, que está oculto nela e é o seu verda­


deiro «Pai» , um começo sem qualquer começo, de
«tudo» o que há «no céu e na terra». E por isso digo:
enquanto for encontrada igualdade entre o fogo e a
madeira, enquanto ela se manifestar, nunca existirá
verdadeiro prazer, nem silêncio, sossego ou satisfa­
ção. Por isso afirmam os mestres: o devir do fogo
cumpre-se com o conflito, a excitação e o desassos­
sego, e no tempo; mas o nascimento do fogo e o pra­
zer é sem tempo e sem distância. O prazer e a alegria
não se afiguram a ninguém como longos ou distan­
tes. Tudo o que acabo de dizer julga Nosso Senhor
quando diz: «A mulher, quando está para dar à luz,
sente tristeza, porque é chegada a sua hora; mas,
depois de ter dado à luz o menino, já se não lembra
da aflição» (Jo 1 6, 2 1 ) . Por isso Deus nos diz e adverte
também no Evangelho que roguemos ao Pai celestial
para que a nossa alegria se torne completa, e S. Filipe
disse: «Senhor, mostra-nos o Pai e isso nos basta» (Jo
1 6, 2 1 ) ; porque «Pai» quer dizer nascimento e não
igualdade e exprime o Um, no qual a igualdade se
silencia e tudo quanto tem uma ânsia de ser se torna
calmo.
Agora pode o homem reconhecer abertamente
por que e como ele é desconsolado em todo o seu
sofrimento, adversidade e prejuízos. Isso deve-se
permanente e unicamente a que ele se encontra dis­
tante de Deus e não separado da criatura, diferen­
ciado de Deus e frio para o amor divino.
Mas há, contudo, algo mais: quem quisesse res-
130 TRATADOS E SERMÕES

peitar e reconhecer isso, seria legitimamente conso­


lado no sofrimento e prejuízos exteriores.
Um homem vai-se por um caminho ou executa
uma obra, ou abstém-se de fazer uma outra e nisso
ocorre-lhe um prejuízo: ele parte uma perna, um
braço ou perde um olho, ou fica doente. Ora, se ele
pensar constantemente: se eu tivesse ido por um
outro caminho ou se tivesse executado uma outra
obra, então isto não teria ocorrido, então ele perma­
necerá inconsolado e será inevitavelmente oprimido
pelo sofrimento. Por conseguinte, ele deverá pensar:
se eu tivesse ido por um outro caminho ou tivesse
executado ou abandonado uma outra obra, então
ter-me-ia ocorrido muito facilmente um prejuízo e
uma preocupação muito maiores; e desse modo ele
seria justamente consolado.
E faço ainda uma outra suposição: tu perdeste mil
marcos; então não te deves lastimar dos mil marcos
que se perderam. Tu deves agradecer a Deus, porque
Ele te deu mil marcos, que tu pudeste perder, para te
tornar merecedor da vida eterna pelo exercício da
virtude da paciência, o que a muitos milhares de
pessoas não é consentido.
Algo mais que pode consolar um homem: supo­
nho o caso de alguém que durante alguns anos pos­
suiu honras e bem-estar, mas agora, por disposição
de Deus, os perdeu; pois essa pessoa deverá reflectir
sabiamente e agradecer a Deus. Só quando ela inte­
riorizar o prejuízo e a adversidade que agora tem, é
que saberá quanta vantagem e protecção ela possuía
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 131

antes, e ela deve agradecer a Deus pela protecção de


que usufruiu durante tantos anos, sem que no
entanto reconhecesse rectamente que se encontrava
bem, e não guardar rancor. Ela deve ponderar que o
homem segundo o seu ser natural nada tem de si
próprio senão maldade e fraqueza. Tudo o que é
bom e bondade foi-lhe concedido por Deus, mas
não para sua propriedade. Pois quem reconhece a
verdade, sabe que Deus, o Pai celestial, entrega ao
Filho e ao Espírito Santo tudo o que é bom; mas à
criatura Ele não dá qualquer bem senão que o
(somente) concede de empréstimo. O sol dá calor ao
ar, mas a luz dá-lha somente de empréstimo; por
isso, logo que o sol se põe, o ar perde a luz, mas o
calor permanece nele, pois ele foi dado ao ar como
sua propriedade. E por isso dizem os mestres que
Deus, o Pai celestial, é Pai do Filho e não seu Senhor,
como também não é Senhor do Espírito Santo. Mas
Deus Pai, Filho e Espírito Santo são um só Senhor, o
Senhor das criaturas. E nós dizemos que Deus era o
Pai eterno, mas desde o momento em que Ele criou
as criaturas, ele é Senhor.
Ora, digo eu: posto que tudo o que é bom, con­
solador e temporal foi concedido de empréstimo ao
homem, porque haverá ele ainda de queixar-se, se
aquele que lho emprestou o quiser ter de volta? Ele
deve agradecer a Deus que lho tenha concedido du­
rante tanto tempo. Também deve ele agradecer-lhe
que não lhe tenha tirado tudo o que lhe emprestou;
e seria somente justo, se Deus lhe tirasse tudo o que
1 32 TRATADOS E SERMÕES

Ele lhe concedeu de empréstimo, quando o homem


se encoleriza por Ele lhe tirar uma parte daquilo de
que ele nunca foi nem nunca será proprietário. E por
isso diz Jeremias, o profeta, com muita justiça, quan­
do ele se encontrava em grande sofrimento e lamen­
tação: «É graças ao Senhor que não fomos aniquila­
dos; não se esgotou a Sua misericórdia» (Lm 3 ,22) .
Se alguém que me tivesse emprestado a sua veste, o
seu gibão e o seu manto, levasse de volta o seu man­
to, e me deixasse o gibão e a veste para a fria geada,
então eu deveria agradecer-lhe muito, com justiça, e
considerar-me feliz por isso. E devo particularmente
reconhecer quão injusto eu sou quando me encole­
rizo e queixo por ter perdido alguma coisa; pois se
eu quiser que o bem que eu tenho me sej a dado
como minha propriedade, e não apenas concedido
de empréstimo, então eu quero ser Senhor e quero
ser Filho de Deus por natureza e no sentido perfeito,
e nem (sequer) ainda sou Filho de Deus por graça;
pois é propriedade do Filho de Deus e do Espírito
Santo o comportarem-se de modo igual em todas as
c01sas.
Também se deve saber que a virtude natural dos
homens é já tão nobre e poderosa, que para ela ne­
nhuma obra exterior é suficientemente difícil ou
grandiosa, que ela não se possa nela demonstrar e
moldar. E por isso existe uma obra interior que nem
o tempo nem o espaço podem cingir ou abranger, e
na mesma existe algo que é igual a Deus e ao divino,
que não é (igualmente) cingido por tempo ou espaço
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 133

- esse algo está por toda a parte e sempre igualmente


presente - e também é igual a Deus em que nenhu­
ma criatura consegue receber e moldar em si perfei­
tamente nem Deus nem a sua bondade. E por isso
deverá haver algo mais íntimo, mais elevado e incria­
do, sem medida nem modo, em que o Pai celestial
consegue gravar e preencher completamente a sua
imagem, e em que Ele se consegue revelar: isso é o
Filho e o Espírito Santo. Tal como não se consegue
impedir a Deus, também ninguém consegue impedir
a obra interior da virtude. A obra reluz e brilha noite
e dia. Ela louva e canta a glória de Deus num novo
cântico, como David diz: «Cantai ao Senhor um cân­
tico novo» (Sl 96, 1 ) . O seu louvor é terreno e não
ama Deus a obra que é exterior, que se cinge ao tem­
po e ao espaço, que é limitada, que se pode impedir e
submeter, que se cansa e envelhece pelo tempo e
pelo exercício. Mas a obra interior da virtude é amar
a Deus, é querer o bom e a bondade, pelo que, aquilo
que o homem com toda a sua pura vontade quer
fazer e gostaria de fazer em todas as boas obras, já ele
o fez agora, também se igualando nisso a Deus, e a
esse propósito escreveu David: «Ü Senhor criou tudo
quanto quis: nos céus e sobre a terra» (Sl 1 3 5 , 6 ) .
Deste ensinamento nós temos um testemunho
manifesto na pedra: a sua obra exterior consiste em
cair sobre a terra e aí permanecer. Esta obra pode ser
impedida, e ela não cairá em qualquer altura sem
interrupção. Mas há uma outra obra que ocorre no
interior da pedra: é a tendência para cair, a qual lhe é
1 34 TRATADOS E S ERMÕES

nata; isso ninguém lhe pode tirar, nem Deus nem


criatura. Esta obra é operada pela pedra sem inter­
rupção dia e noite. E se a pedra jazesse em cima
durante mil anos, ela não deixaria, nem mais nem
menos, de ter a tendência para cair para baixo, como
no primeiro dia.
O mesmo exactamente digo eu da virtude, que ela
tem uma obra interior: um anelar e tender para tudo
o que é bom e um fugir e resistir a tudo o que é mau,
diferente da bondade e de Deus. E quanto pior for a
obra e dissemelhante a Deus, tanto maior será a re­
sistência; mas quanto mais notável e semelhante a
Deus for a obra, tanto mais fácil, agradável e delei­
tosa será para a virtude o seu cumprimento. E todo o
seu lamento e o seu sofrimento - se é que o sofri­
mento poderá de todo ocorrer-lhe - é porque este
sofrimento por amor de Deus e toda a obra exterior
no tempo são demasiado pequenos, para que ela aí
se possa revelar, comprovar, demonstrar-se e formar­
-se inteiramente. Pelo exercício ela tornar-se-á forte,
e pela magnanimidade rica. Ele não quer Gá) ter so­
frido e superado o sofrimento; ela quer e gostaria
sempre sem interrupção de sofrer por amor de Deus
e do bem-fazer. Toda a sua beatitude reside no sofri­
mento por amor de Deus, não no ter sofrido. E por
isso diz nosso Senhor muito decididamente: «Bem­
-aventurados os que sofrem perseguição, por causa
da Justiça» (Mt 5 , 1 0) . Ele não diz: «que sofreram».
Um bem-aventurado detesta o ter sofrido, pois ter
sofrido não é o sofrimento, o qual ele ama; é uma
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 135

superação e uma perda do sofrimento por amor de


Deus, que ele ama unicamente. E por isso eu digo
que um tal homem também detesta o devir sofrimen­
to antes do mais, pois também isso não é sofrimento.
Entretanto, ele detesta menos o devir sofrimento do
que o ter sofrido, pois o ter sofrido é mais longínquo
e dissemelhante do sofrimento, visto ser totalmente
passado. Mas se alguém (ainda) houver de sofrer um
dia, então isso não o despojará inteiramente do
sofrimento que ele ama.
S. Paulo diz que ele se queria privar de Deus pelo
amor de Deus 1 1 , para que a glória de Deus se multi­
plicasse. Conta-se que S. Paulo terá dito isso numa
altura em que ele ainda não era perfeito. Eu afirmo,
pelo contrário, que estas palavras saíram de um
coração perfeito. Também se opina que ele queria
estar separado de Deus (só) durante algum tempo.
Eu digo (no entanto) que a um homem perfeito
tanto lhe desagradaria estar separado de Deus por
uma hora como por mil anos. Se a vontade e a glória
de Deus fosse, contudo, que ele se privasse de Deus,
então os mil anos ou até a eternidade parecer-lhe­
-iam tão fáceis quanto um dia ou uma hora.
A obra interior também é divina e semelhante a
Deus e revela propriedades divinas, porque, tal como
todas as criaturas, mesmo que houvesse mil mun­
dos, eles não superariam na espessura de um cabelo
que fosse o valor de Deus - assim o digo e já o disse

11
«Porque eu mesmo quisera ser separado de Cristo» (Rm 9,3) .
136 TRATADOS E SERMÕES

anteriormente, que a obra exterior na sua extensão e


na sua grandeza, no seu comprimento e na sua lar­
gura nada acrescenta à bondade da obra interior,
pois esta tem a sua bondade em si mesma. Por isso é
que a obra exterior nunca pode ser pequena, se a
obra interior for grande, e a exterior nunca pode ser
grande ou boa, se a interior for pequena ou não tiver
qualquer valor. A obra interior tem sempre toda a
grandeza, toda a largura e todo o comprimento em si
acabadas. A obra interior toma e cria todo o seu ser
unicamente de e no coração de Deus; ela toma o
Filho e nasce enquanto Filho no regaço do Pai celes­
tial. Não acontece assim com a obra exterior: esta,
pelo contrário, recebe a sua bondade divina por in­
termédio da obra interior levada e vazada numa des­
cida da divindade revestida de diferença, de multipli­
cidade, de partes: tudo isso (contudo) , e o que lhe é
semelhante, como também a própria igualdade são
distantes e estranhas a Deus. (Pois) tudo isto se fixa,
persevera e repousa naquilo que é bom, que é ilumi­
nado, que é criatura, inteiramente cego para a bon­
dade, para a luz em si e para o Um, no qual Deus
gera o seu Filho único e nele todos os que, sendo
crianças de Deus, são seus filhos. Em o Um encon­
tra-se a emanação e a origem do Espírito Santo, a
partir do qual unicamente, na medida em que ele é
espírito de Deus, e Deus, Ele próprio, é espírito, o
Filho é recebido em nós, e (aí) encontra-se (também)
essa emanação (do Espírito Santo) de todos aqueles
que são filhos de Deus, consoante eles tenham sido
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 37

com maior ou menor pureza nascidos unicamente


de Deus, transformados segundo Deus e em Deus, e
afastados de toda a multiplicidade, que mesmo nos
anjos superiores se encontra ainda pela sua natu­
reza, até mesmo, se quisermos reconhecê-lo justa­
mente, afastados da bondade, da verdade e de tudo
aquilo que sofre, mesmo que seja só em pensamen­
tos ou na denominação de um pressentimento ou na
sombra de uma qualquer diferença, e confiantes so­
mente no Um, que é livre de qualquer género de
multiplicidade e diferença, no qual também Deus, o
Pai, o Filho e o Espírito Santo perdem todas as pro­
priedades e diferenças e delas se despem para serem
Um. E este Um torna-nos bem-aventurados, e quan­
to mais distantes estivermos do Um, tanto menos
somos nós filhos e o Filho, e tanto menos perfeita­
mente brota em nós e flui de nós o Espírito Santo;
opostamente, quanto mais perto estivermos do Um,
tanto mais verdadeiramente somos nós filhos e Filho
de Deus, e de nós flui também Deus, o Espírito San­
to. A isso se refere nosso Senhor, Filho de Deus na
divindade, quando diz: «Quem beber da água que Eu
lhe der jamais terá sede, porque a água que Eu lhe
der tornar-se-á nele uma nascente de água a jorrar
para a vida eterna» Oo 4, 1 4) , e S. João diz que Ele
falava do Espírito Santo Oo 7,39) .
O Filho na divindade, conforme à sua proprie­
dade, nada mais dá do que o ser Filho, do que o ser
nascido de Deus, fonte, origem e emanação do Espí­
rito Santo, do amor de Deus, e um sabor pleno, legí-
1 38 TRATADOS E SERMÕES

timo e completo do Um, do Pai celestial. Por isso


desce a voz do Pai do céu para o Filho: «Este é o meu
Filho muito amado, no qual pus toda a minha com­
placência» (Mt 3 , 1 7) , pois sem dúvida que ninguém
que não seja Filho de Deus ama bastante e pura­
mente a Deus. Pois o amor, ou seja o Espírito Santo,
brota e flui do Filho, e o Filho ama o Pai por Ele pró­
prio, o Pai em si próprio e a si próprio no Pai. Com
muita razão diz por isso Nosso Senhor: «Bem-aven­
turados os pobres em espírito» (Mt 5 ,3) , o que quer
dizer: aqueles que nada têm de próprio nem do espí­
rito humano e vêm despojados para Deus. E S. Paulo
diz: «E foi ele que nos informou do amor com que o
Espírito vos anima» (Cl 1 ,8).
S. Agostinho diz que compreende melhor a Escri­
tura quem, privando-se de todo o espírito, busca o
sentido e a verdade da Escritura nela mesma, ou seja
no espírito, em que ela está escrita e falada: no es­
pírito de Deus. S. Pedro diz que todas as pessoas
santas falaram em nome de Deus (2Pe 1 ,2 1 ) 1 2 •
S. Paulo diz: «Quem dentre os homens, conhece as
coisas do homem, a não ser o espírito do homem
que nele reside? Assim também as que são de Deus,
ninguém as conhece, a não ser o Espírito de Deus»
(1 Cor 2 , 1 1). Por isso diz uma glosa da Escritura, com
muita justiça, que ninguém pode compreender nem
ensinar os escritos de S. Paulo, a não ser que ele

1 2 «Inspirados pelo Espírito Santo é que os homens santos falaram

em nome de Deus» (2Pe 1 ,2 1 ) .


TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 139

tenha o Espírito com que S. Paulo falou e escreveu.


E esta é sem cessar toda a minha queixa, que gente
de entendimento grosseiro, que é destituída do Es­
pírito de Deus, e nada dele possui, queira julgar se­
gundo o seu grosseiro entendimento humano, aqui­
lo que ouve ou lê nas Escrituras, as quais são escritas
e faladas do e no Espírito Santo, e não ponderam
que se encontra escrito: «Aos homens é impossível,
mas a Deus tudo é possível» (Mt 1 9,26). E o mesmo
também (é válido) geralmente na vida natural: aquilo
que é impossível para a natureza inferior, é para a
natureza superior habitual e conforme à natureza.
Além disso, aceitai mais uma vez o que eu já disse
anteriormente, que um homem bom, nascido como
Filho de Deus em Deus, ama Deus por Ele mesmo e
nele mesmo, assim como outras palavras que eu já
disse anteriormente. Para entendermos ainda me­
lhor, deve-se saber que, conforme já referi com fre­
quência, um homem bom, nascido da bondade e em
Deus, entra em todas as propriedades de natureza
divina. Ora, segundo as palavras de Salomão, é uma
característica de Deus que Ele opera todas as coisas
por si mesmo, quer dizer que ele não contempla
qualquer porquê exterior a si mesmo, senão que
somente o faz por si mesmo; Ele ama e opera todas
as coisas por si mesmo. Se por isso o homem ama
Deus e todas as coisas, assim como todas as suas
obras, e não o faz por recompensa, glória ou bem­
-estar, senão que unicamente por amor de Deus e
1 40 TRATADOS E SERMÕES

pela glória de Deus, então isso é um sinal de que ele


é filho de Deus.
Mais ainda: Deus ama por si mesmo e opera
todas as coisas por si mesmo, o que quer dizer: Ele
ama por amor do amor, e Ele opera por amor do
operar; porque, sem dúvida, Deus nunca teria ge­
rado o seu Filho único na eternidade, se o ter gerado
não fosse igual ao gerar: por isso dizem os santos
que o Filho nasceu eternamente, ou seja que Ele
continua a nascer sem interrupção. Deus também
nunca teria criado o mundo, se ser criado não fosse
uma e a mesma coisa que criar. Por isso Deus criou
o mundo de um modo pelo qual Ele o continua a
criar incessantemente. Tudo o que é passado e que é
futuro é alheio e remoto para Deus. E por isso quem
nasceu de Deus como filho de Deus, ama a Deus em
si mesmo, o que significa: ele ama Deus pelo amor
de Deus e opera todas as suas obras pelo amor de
operar. Deus nunca se cansa do amor e do operar, e
também para Ele aquilo que ama é tudo um amor. E
por isso é verdade que Deus é o amor. E por isso
disse eu anteriormente que o homem bom quer e
gostaria de sofrer sempre por amor de Deus, mas
não de ter sofrido; sofrendo, tem ele o que ama. Ele
ama o sofrer por amor de Deus e sofre por Deus. Por
essa razão é ele filho de Deus, formado segundo
Deus e em Deus, que ama pelo amor de Ele mesmo,
o que quer dizer: ele ama pelo amor, ele opera pelo
operar; e por isso Deus ama e opera sem cessar. E o
operar de Deus é a sua natureza, o seu ser, a sua
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 41

vida, a sua beatitude. Para um filho de Deus, para um


homem bom, na medida em que ele é filho de Deus,
é inteiramente verdade que o sofrimento por amor
de Deus, o operar pelo amor de Deus é o seu ser, a
sua vida, o seu operar, a sua beatitude, pois assim
fala Nosso Senhor: «Bem-aventurados os que so­
frem perseguição, por causa da justiça» (Mt S , 1 O) .
De mais a mais, digo-o pela terceira vez, que um
homem bom, enquanto ele é bom, não possui a sin­
gularidade de Deus somente porque tudo o que ele
ama e opera, ama e opera por amor de Deus, por
quem ele ama e por cuja vontade ele opera, pois
aquilo que ele ama é o inato Deus-Pai, quem ama é
o Deus-Filho nascido. Assim o Pai é no Filho e o
Filho no Pai. Pai e Filho são um. Além disso, para
saberes como o mais íntimo e o mais elevado da
alma cria e recebe o Filho de Deus e o devir-Filho­
-de-Deus no regaço e coração do Pai celestial, podes
procurar no final deste livro, onde eu escrevo sobre
«Um homem nobre partiu para uma região longín­
qua, a fim de tomar posse de um reino, para em se­
guida voltar» (Lc 1 9, 1 2) .
Deve também saber-se, para além d o mais, que,
na natureza, a impressão e a influência de uma natu­
reza superior é para esse (ser) mais deleitosa e mais
aprazível do que a sua própria natureza e modo de
ser. Por consequência, de sua própria natureza a
água corre para baixo, para o vale, e nisso consiste
também o seu ser. Mas sob a impressão e a influên­
cia da lua, lá em cima no céu, ela renega e esquece
1 42 TRATADOS E SERMÕES

sua própria natureza, corre montanha acima para as


alturas, e este refluxo é para ela muito mais fácil do
que o fluxo para baixo. Deve o homem reconhecer
nisso como é justo, que ele se sentiria mais deleitado
e alegre se abandonasse e renegasse a sua vontade
natural, e se despojasse inteiramente de si mesmo
em tudo o que Deus quer que o homem sofra. E isso
é justamente referido, quando Nosso Senhor diz:
«Se, alguém quiser vir após mim, renegue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me» (Mt 1 6,24) , o
que quer dizer: ele deve depor e desfazer-se de tudo
o que é cruz e sofrimento, porque é seguro que,
quem se renega a si mesmo e se tiver despojado
inteiramente de si mesmo, para ele nada poderia ser
nem cruz nem sofrimento; tudo seria para ele um
deleite, uma alegria, uma grande satisfação, e um tal
homem chegaria a Deus, e segui-lo-ia verdadeira­
mente. Pois assim como nada consegue afligir ou
fazer sofrer Deus, tão pouco um tal homem poderia
preocupar-se ou sofrer por alguma coisa. E quando,
por isso, Nosso Senhor diz: «Se, alguém quiser vir
após mim, renegue-se a si mesmo, tome a sua cruz e
siga-me», então isso não é apenas um mandamento,
como em geral se diz e presume: é (pelo contrário)
uma promessa e uma orientação divina, de que
modo para um homem todo o seu sofrimento, toda a
sua acção, toda a sua vida se torna deleitosa e feliz, e
é antes uma recompensa do que um mandamento.
Pois o homem que for dotado dessa natureza tem
tudo o que ele quer, e nada quer de mau, e isso é a
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 43

beatitude. Por isso fala de novo Nosso Senhor com


razão: «Bem-aventurados os que sofrem persegui­
ção, por causa da Justiça» (Mt 5 , 1 0) .
Quanto ao mais, quando Nosso Senhor, o Filho,
diz: «Se, alguém quiser vir após Mim, renegue-se a si
mesmo, tome a sua cruz e siga-me», então Ele quer
dizer o seguinte: torna-te filho, como Eu sou Filho,
nascido Deus, e torna-te o mesmo Um que Eu sou,
que Eu crio sendo inerente e habitando no regaço e
no coração do Pai. Diz o Filho: «Se alguém quer ser­
vir-me, que me siga; e, onde Eu estiver, ali estará
também o meu servidor» (cf. ]o 1 2,26) 13• Ninguém
chega verdadeiramente até ao Filho, enquanto este é
o Filho, senão aquele que se torna ele próprio filho, e
ninguém se encontra aí, onde está o Filho, que é Um
em Um no regaço e no coração do Pai, senão aquele
que é filho.
«Eu», diz o Pai «ao deserto a conduzirei para lhe
falar ao coração» (Os 2 , 1 6) . De coração a coração,
Um no Um, eis o que Deus ama. Deus odeia tudo o
que lhe é estranho e remoto; Deus atrai e chama
para o Um. O Um é o que buscam todas as criatu­
ras, mesmo as criaturas mais inferiores buscam o
Um, e as mais elevadas percebem esse Um; separa­
das e transformadas para além da (sua) natureza elas
buscam o Um no Um, o Um em si mesmo. É isso
exactamente que o Filho quer dizer: «Pai, quero que

" Cf. também jo 1 7,24.


1 44 TRATADOS E SERMÕES

aqueles que me deste, onde Eu estiver, também eles


estejam» 14•
Mas ainda existe uma outra consolação. Deve
saber-se que é impossível para toda a natureza que­
brar, corromper ou também (simplesmente) tocar
em algo, sem que ela ambicione algo de melhor para
isso em que ela mexe. Para ela não é suficiente criar
um bem igual, ela quer continuamente criar um bem
melhor. Como assim? Um médico sábio nunca irá
tocar no dedo doente de uma pessoa provocando­
-lhe dor, se ele não conseguir melhorar o dedo ou o
estado geral de saúde dessa pessoa, aliviando-a da
dor. Se ele conseguir melhorar o dedo ou o estado
de saúde da pessoa, então certamente que o fará; se
não acontecer assim, então ele cortará o dedo para
que a pessoa melhore. E é muito melhor renunciar
somente ao dedo e conservar a pessoa, do que deixar
que se arruínem tanto o dedo como a pessoa. É
melhor só um prejuízo do que dois, particularmente
se um deles for incomparavelmente maior do que o
outro. É igualmente bom saber-se que, por natureza,
o dedo e a mão, ou qualquer outro membro, tem
muito mais amor ao homem do que a si mesmo, e se
sacrificará com agrado e imensa alegria pelo homem,
em caso de necessidade ou prejuízo. Eu digo confia­
damente e em conformidade com a verdade, que um
tal membro não se ama de todo a si mesmo, a não
ser por amor daquele de quem ele é um membro.

" Cf. ]o 1 7,24.


TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 45

Por isso até seria justo, e para nós conforme à natu­


reza, o direito de em caso algum nos amarmos a nós
próprios, que não seja por amor de Deus e em Deus.
E se fosse assim, então seria para nós fácil e um
deleite tudo o que Deus quisesse de nós e em nós,
tanto mais se nós tivéssemos a certeza que Deus
toleraria incomparavelmente menos qualquer fra­
queza ou prejuízo, se nisso não tivesse em vista e não
ambicionasse um ganho muito maior. Em verdade,
se nisso alguém não nutrir confiança em Deus,
então será apenas justo que ele sofra e conheça o
sofrimento.
Existe também outra consolação. S. Paulo diz que
Deus cria todos aqueles que Ele aceita e recebe
como filhos (cf. Heb 1 2, 6) 15• Do ser filho, faz parte
que se sofra. Foi porque o Filho de Deus não podia
sofrer na divindade e na eternidade, que o Pai celes­
tial O enviou no tempo, para que Ele se tornasse ho­
mem e pudesse sofrer. Se tu, portanto, quiseres ser
filho de Deus, e não sofreres, então não tens razão.
No Livro da Sabedoria está escrito que Deus prova e
examina quem é justo, como se examina e se prova o
ouro numa fornalha (cf. Sb 3, 5/6) 16• É um sinal de
que um rei ou um príncipe tem plena confiança
num cavaleiro, o enviá-lo para o combate. Conheci

15 «Porque o Senhor corrige os que ama e açoita todos aqueles que

reconhece por filhos» (Heb 1 2,6).


" « Depois de terem sofrido um pouco, receberão grandes bens.
Porque Deus os provou, achou-os dignos de si. Ele os provou como
ouro na fornalha, e aceitou-os como holocausto» (Sb 3, 5/6) .
1 46 TRATADOS E SERMÕES

um senhor que, por vezes, quando admitia alguém


novo para a sua criadagem, o enviava de noite em
serviço para depois ele próprio o atacar a cavalo e
combater com ele. E aconteceu uma vez que ele
quase foi morto por um criado que desse modo ele
quis pôr à prova; e ele passou a gostar muito mais
desse escudeiro do que o fazia antes.
Pode ler-se que, no deserto, S. António foi uma
vez acometido de grande sofrimento pelos espíritos
maus; e quando ele tinha superado o seu sofrimento,
apareceu-lhe Nosso Senhor em pessoa e com ale­
gria. Então o santo disse-lhe: «Ah, Senhor amado,
onde estavas Tu quando eu me encontrava em tão
grande aflição? » E Nosso Senhor respondeu-lhe:
«Estava tão perto de ti, como o estou agora; mas de­
sejava saber até onde iria a tua piedade.» Uma peça
de ouro ou de prata é inteiramente pura; mas se dela
quisermos fazer uma taça pela qual o rei há-de beber,
deixaremos cozê-la com muito mais força do que a
outra peça qualquer. Por isso escreveram os Apósto­
los, que eles se alegraram por serem dignos de su­
portarem o vexame por amor de Deus (Act 5 , 41) 17•
O Filho de Deus por natureza quis tornar-se
homem por graça, para que Ele pudesse sofrer por
amor de ti, e tu queres tornar-te no Filho de Deus e
não seres homem, para que não precises nem tenhas
de sofrer nem por amor de Deus nem de ti próprio.

17 «Quanto a eles, saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria por

terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do nome


de Jesus» (Act 6,41 ) .
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 47

Se o homem também quisesse manter-se cons­


ciente e ponderar, que grande alegria, em verdade,
Deus, Ele mesmo, à sua maneira, e todos os anjos e
todos que conhecem e amam a Deus, sentem pela
paciência do homem quando ele suporta sofrimen­
tos e prejuízos por amor de Deus, verdadeiramente,
deveria bastar isso para com justiça consolá-lo. Um
homem é capaz de oferecer os seus bens e sofrer
contrariedades para alegrar o seu amigo e poder de­
monstrar-lhe o seu amor.
Por sua vez, deve-se reflectir: se um homem ti­
vesse um amigo que sofresse em dor e adversidade
por causa dele, então seria decerto bastante justo,
que ele estivesse junto do amigo e o consolasse com
a sua própria presença e com (toda) a consolação
que lhe pudesse oferecer. Por isso diz Nosso Senhor
nos Salmos, que partilha o sofrimento de um ho­
mem bom (Sl 34, 1 9) 18• Podem deduzir-se destas pa­
lavras sete ensinamentos e sete razões de consolação.
Em primeiro lugar, aquilo que diz S. Agostinho:
que a paciência no sofrimento por amor de Deus, é
melhor, mais preciosa, mais elevada e mais nobre do
que tudo o que se possa tirar ao homem contra a sua
vontade; isso é tudo (meramente) bem exterior. Deus
sabe, não se acha ninguém que seja tão rico, que
ame este mundo, que não queira voluntariamente e
com agrado padecer grandes dores e suportá-las

" «O Senhor está perto dos aflitos do coração, e salva os de espírito


torturado» (SI 34, 1 9) .
1 48 TRATADOS E SERMÕES

durante muito tempo, contanto que ele possa depois


ser o senhor absolutamente poderoso de todo este
mundo.
Em segundo, eu não faço somente uma deriva­
ção daquelas palavras que Deus disse, que está com
o homem no seu sofrimento, senão que infiro das e
nas palavras, e digo assim: se Deus está comigo no
sofrimento, que mais posso eu então querer, que
mais ainda? Eu não quero outra coisa, eu nada mais
quero senão Deus, se minha atitude for recta.
S. Agostinho diz: «É verdadeiramente cúpido e nés­
cio aquele que não se satisfaz com Deus», e noutra
passagem diz ele: «Como se pode o homem satisfa­
zer com as dádivas exteriores ou interiores de Deus,
se Deus, Ele próprio, não o satisfaz?» Por isso diz ele
de novo: «Senhor, se tu nos expulsas de ti, então dá­
-nos um outro Tu, pois nós nada mais queremos
senão a ti.» E por isso também diz o Livro da Sabe­
doria: «Com ela me vieram todos os bens, e nas suas
mãos estão inumeráveis riquezas» (Sb 7 , 1 1 ) 19• Isto
significa, em um sentido, que nada que não chegue
de Deus é bom, nem pode ser bom, e tudo que che­
gue com Deus é bom, e unicamente bom porque
chega com Deus. De Deus não quero falar. Se tirás­
semos o ser a todas as criaturas do mundo inteiro,
então delas restaria um mero nada, amargo, inútil e
odioso. Há um outro precioso sentido oculto nas pa-

" Refere-se a sabedoria.


TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 1 49

lavras, tudo que chegue com Deus é bom, que seria dema­
siado longo para expor aqui.
Diz Nosso Senhor: «Aquando da angústia estarei
ao seu lado» (Sl 90, 1 5) . A propósito diz S. Bernardo:
«Senhor, Tu estás connosco no sofrimento, então
dá-me todo o tempo para sofrer, para que Tu estejas
todo o tempo comigo, para que eu te possua todo o
tempo.»
Em terceiro lugar, digo eu: que Deus está con­
nosco no sofrimento, quer dizer que Ele próprio
sofre connosco. Verdadeiramente, quem conhece a
verdade, sabe que eu falo verdade. Deus sofre com o
homem, sim, Ele sofre ao seu modo primeira e in­
comparavelmente mais do que aquele que sofre, que
sofre por Ele. Ora, eu digo: se Deus, Ele mesmo,
quer sofrer, então devo eu também sofrer justamen­
te, pois se a minha atitude é recta, então eu quero
aquilo que Deus quer. Eu rezo todos os dias, e Deus
manda que eu reze: «Seja feita a vossa vontade!» e,
no entanto, quando Deus quer o sofrimento, então
eu quero queixar-me do sofrimento; isso é muito in­
justo. Também digo eu por certo que Deus sofre
com tanto agrado connosco e por nós, que, se nós
quisermos unicamente sofrer por amor de Deus, Ele
sofre sem sofrimento. O sofrer é para Ele tão delei­
toso que sofrer não é sofrer para Ele. Por isso, se a
nossa atitude for recta, então sofrer também não será
sofrer para nós; será para nós deleite e consolação.
Em quarto lugar, digo eu que a compaixão de um
amigo diminui naturalmente este sofrimento (pró-
1 50 TRATADOS E S ERMÕES

prio) . Se, por conseguinte, me consegue consolar o


sofrimento que um amigo partilha comigo, então há­
-de consolar-me muito mais a compaixão de Deus.
Em quinto lugar: se eu devesse e quisesse sofrer
com alguém que eu amo e que me amasse, então eu
deveria com agrado e até maior justiça sofrer com
Deus, que comigo e por minha causa sofre pelo
amor que Ele por mim nutre.
Em sexto: se é verdade que Deus sofre antes de
eu sofrer, e se eu sofro por amor de Deus, então todo
o meu sofrimento tornar-se-á facilmente em conso­
lação e alegria, por muito grande e múltiplo que ele
seja. É verdadeiro por natureza: quando o homem
executa uma obra tendo em vista uma outra obra,
então está mais próxima do seu coração a (finali­
dade) pela qual ele age, e aquilo que ele faz, está mais
distante do seu coração e só o toca no que respeita à
finalidade pela qual ele o faz. Quem constrói e talha
a madeira e esculpe a pedra com a finalidade de
erigir uma casa contra o calor do Verão e o frio do
Inverno, o (desiderato do) seu coração é antes do
mais e absolutamente a casa, e ele nunca picaria a
pedra e executaria o trabalho, se não fosse por causa
da casa. Vejamos agora quando um doente bebe o
vinho doce, então parece-lhe, e ele afirma-o, que o
vinho é amargo, e isso é verdade; pois o vinho perde
toda a sua doçura no exterior, na amargura da lín­
gua, antes de ele chegar aí, onde a alma percepciona
e julga o sabor. Assim é, num sentido mais elevado e
mais verdadeiro, quando o homem opera todas as
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 151

suas obras por amor de Deus, sendo Deus nisso o


intermediário e o que está mais próximo da alma, e
nada consegue tocar a alma e o coração do homem
que não perca necessariamente através de Deus e da
doçura de Deus a sua amargura, e se torne doçura
pura antes de conseguir tocar o coração do homem.
Há ainda um outro testemunho e alegoria: os
mestres dizem que existe fogo por baixo do céu, lon­
gamente e por todos os lados, e por isso nem chuva
nem vento nem quaisquer tempestades ou tempo­
rais vindos de baixo se podem aproximar o suficiente
para que consigam sequer tocar o céu; tudo será
queimado e aniquilado pelo calor do fogo antes de
chegar ao céu. Exactamente assim, digo eu, torna-se
doce na doçura de Deus tudo o que se sofre e se
opera por amor de Deus, antes que chegue ao cora­
ção do homem que opera e sofre por amor de Deus.
Pois é precisamente isso que as palavras significam
quando dizemos «seja feita a sua vontade», pois nada
alcança o coração do homem senão como um influ­
xo através da doçura de Deus, na qual perde a sua
amargura. Também será queimado pelo fogo quente
do amor divino, que contém e encerra inteiramente
em si o coração do homem bom.
Agora consegue reconhecer-se claramente como
um homem bom, por toda a parte, pode ser conve­
nientemente consolado por múltiplos modos no so­
frimento, no sofrer e no operar. Um modo é quando
ele sofre e opera por amor de Deus; um outro modo
é quando ele se encontra no amor divino. Também o
152 TRATADOS E S ERMÕES

homem pode reconhecer e saber se ele opera todas


as suas obras por amor de Deus e se ele se encontra
no amor de Deus; pois é seguro que se o homem se
encontra doloroso e sem consolação, é porque o seu
operar não aconteceu unicamente por amor de
Deus. Notai que, do mesmo modo, ele também não
se encontra permanentemente no amor divino. «Há
um fogo», diz o Rei David «que o precede para devo­
rar em volta os seus inimigos» (Sl 97, 3), e que lhe é
diferente, ou seja: o sofrimento, o desconsolo, o de­
sassossego e a amargura.
Ainda resta a sétima (razão de consolação) nas
palavras que dizem que Deus está connosco no
sofrimento e connosco se compadece, isto é, que a
singularidade de Deus nos consegue consolar pode­
rosamente, atendendo a que Ele é o puro Um sem
qualquer manifesta multiplicidade de uma diferença,
e, mesmo que sej a somente em pensamento, que
tudo o que é n'Ele, é Deus, Ele mesmo. E como isso
é verdade, eu digo: tudo o que um homem bom sofre
por amor de Deus, sofre-o ele em Deus, e Deus é
sofredor com ele no seu sofrimento. Se o meu sofri­
mento é em Deus e Deus sofre comigo, como pode
então ser o sofrimento um sofrimento para mim, se
o sofrer perde o sofrimento e o meu sofrimento é em
Deus e o meu sofrimento é Deus? Verdadeiramente,
assim como Deus é a verdade, e sempre onde eu en­
contro a verdade, encontro o meu Deus, que é a ver­
dade, assim igualmente eu encontro o meu so­
frimento enquanto Deus, nem mais nem menos,
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 53

quando eu encontro um puro sofrer por amor de


Deus e em Deus. Quem não reconhecer isso, pode
queixar-se da sua cegueira, mas não de mim, nem da
verdade divina, nem da amável bondade.
Sofrei, portanto, deste modo por amor de Deus,
visto que ele é sumamente benéfico e é a beatitude!
«Bem-aventurados os que sofrem perseguição, por
causa da Justiça», disse Nosso Senhor (Mt 5 , 1 0) .
Como pode o Deus amante da bondade permitir que
os seus amigos, boa gente, não se encontrem sem
cessar em sofrimento? Se um homem tivesse um
amigo que tomasse alguns dias para sofrer, em troca
de poder possuir e merecer por um longo período de
tempo de grande proveito, honra e bem-estar, e se
esse homem quisesse impedir isso, ou fosse seu de­
sejo que tal fosse impedido por outra pessoa, então
não se diria que ele fosse seu amigo ou que o amas­
se. Por isso não poderia Deus de modo algum sofrer
que os seus amigos, boa gente, estivessem sempre
sem sofrer, se eles conseguissem sofrer sem sofri­
mento. Toda a bondade do sofrimento exterior pro­
vém e flui da bondade da vontade, como escrevi mais
acima. E por isso: tudo o que o homem bom queira
e deseje sofrer e esteja preparado para sofrer por
amor de Deus, isso sofre ele perante a face de Deus e
em Deus por amor de Deus. O rei David diz nos Sal­
mos: «Realmente, estou prestes a cair e a minha dor
está sempre diante de mim» (Sl 38, 1 8) . S. Jerónimo
diz que uma cera pura, que é muito macia e boa para
dar forma com ela a tudo o que se quiser, mantém
1 54 TRATADOS E SERMÕES

em si encerrada tudo o que a partir dela se pode


fazer, se bem que na sua exterioridade visível nin­
guém faça algo com ela. Eu tambéin disse anterior­
mente que a pedra não é menos pesada, se na sua
exterioridade visível ela não jaz sobre a terra; todo o
seu peso consiste perfeitamente em que ela tende
para baixo e em que está pronta em si mesma para
cair para baixo. Por isso também escrevi antes que o
homem bom já fez tudo o que ele queria fazer no
céu e na terra, assemelhando-se nisso a Deus.
Agora pode-se reconhecer e compreender como
são grosseiras as pessoas que geralmente se espan­
tam quando vêem gente boa a padecer dores e adver­
sidades, ocorrendo-lhes com frequência a ideia ou a
fantasia, que tal tem origem nos pecados secretos
dessas pessoas, dizendo também por vezes: «Ah! Eu
julgava que aquele homem fosse bom. Como é pos­
sível, pois, que ele padeça um tão grande sofrimento
e adversidade; e eu que pensava que nele não havia
qualquer falha!» E eu concordo com elas: certamen­
te, se aquilo que elas sofrem fosse (verdadeiro) sofri­
mento e fosse para elas sofrimento e infortúnio,
então elas não seriam boas nem sem culpa. Mas se
elas forem boas, então o sofrer não será para elas
qualquer sofrimento ou infortúnio, senão que é para
elas uma grande felicidade e beatitude. «Bem-aven­
turados» disse Deus, a verdade, «os que sofrem per­
seguição, por causa da Justiça» (Mt 5 , 1 0) . Por isso se
diz no Livro da Sabedoria: «Mas as almas dos justos
estão na mão de Deus, e nenhum tormento os toca-
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DMNA 155

rá. Aparentemente, estão mortos aos olhos dos in­


sensatos, a sua saída deste mundo é considerada
uma desgraça, a sua morte como uma destruição:
mas eles estão em paz» (Sb 3 , 1 /2/3) , em glória e bea­
titude. Na passagem em que S. Paulo escreve quan­
tos santos padeceram grandes tormentos, diz ele que
o mundo não foi digno deles (Heb 1 1 ,36) 2º. E estas
palavras, se as entendermos correctamente, têm três
sentidos. Um é que este mundo da existência não
tem valor para muitos homens bons. Um segundo
sentido, que é melhor, exprime que a bondade deste
mundo surge como desprezível e desprovida de
valor; unicamente Deus tem valor, por isso eles são
preciosos para Deus e o valor de Deus. O terceiro
sentido é que, como eu entendo e quero exprimir,
este mundo, ou seja as pessoas que amam este mun­
do, não têm valor para que padeçam de sofrimentos
e adversidades por amor de Deus. Por isso está es­
crito que os santos apóstolos se alegravam por serem
dignos de padecerem sofrimentos em nome de Deus
(Act 5 ,41) 2 1 •
Agora basta quanto a palavras. Na terceira parte
deste livro quero escrever sobre algumas consola-

2 º «Outros sofreram escárnios e açoites, cadeias e prisões» » (Heb


1 1 ,36). «Homens, de quem o mundo não era digno andaram errando
pelos desertos, pelos montes, pelas cavernas e pelos antros da terra»
(Heb 1 1 ,38) .
21 «Quanto a eles, saíram da sala do Sinédrio cheios de alegria por
terem sido considerados dignos de sofrer vexames por causa do nome
de jesus» (Act 5 ,41 ) .
156 TRATADOS E SERMÕES

ções, com as quais um homem bom se pode e deve


consolar no seu sofrimento, tal como ele as encon­
tra nas obras, e não apenas nas palavras de homens
sábios e bons.

Lê-se no Livro dos Reis 22 que um homem amaldi­


çoava o rei David lançando-lhe graves injúrias. Aí, um
dos amigos de David disse que queria matar aquele
cão mau. Então o rei disse: «Deixai-o amaldiçoar,
conforme a permissão do Senhor. Talvez o Senhor
considere a minha miséria e me dê agora bens em
troca destes ultrajes» (2Sm 1 6, 1 1/1 2 = 2Rs 1 6,5 ft) .
Lê-se no Livro dos Padres 23 que um homem se
queixava a um deles de quanto sofrimento ele tinha
de padecer. Então disse-lhe o Pai: «Queres tu, meu
filho, que eu peça a Deus que Ele te alivie?» Mas o
homem respondeu-lhe: «Não, Pai, pois o sofrimento
é para mim benéfico, reconheço-o. Pede antes a
Deus que Ele me conceda a graça para que eu sofra
de boa vontade.»
Perguntaram uma vez a um homem doente por
que não pedia ele a Deus que o pusesse são. O ho­
mem respondeu que não o faria com agrado por três
razões. Uma era que ele acreditava com certitude

22 Cf. sobretudo 2Sm 1 6,5 ff.


23 Trata-se das Vidas dos Padres do Deserto. Cf. Vitae Patrum, III.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 157

que o bom Deus nunca permitiria que ele estivesse


doente, se não fosse para que ele tivesse um bem
maior. Uma outra razão era que o homem, no caso
de ele ser bom, quer tudo o que Deus quer, e não
que Deus queira o que o homem quer, pois isso
seria muito injusto. Por conseguinte, se Ele quer que
eu esteja doente, pois se Ele não o quisesse, decerto
que eu também não o estaria, então eu também não
devo desejar estar saudável. Pois sem dúvida, se fosse
possível que Deus me pusesse são sem ser por Sua
vontade, então seria para mim inútil e indiferente
que ele me pusesse são. Querer vem do amor, não
querer vem de não amar. Muito preferível, melhor e
mais proveitoso para mim é que Deus me ame
enquanto eu estou doente, do que se eu estivesse são
de corpo e Deus não me amasse. Aquilo que Deus
ama é algo; o que Deus não ama nada é, assim diz o
Livro da Sabedoria (Sb 1 2 ,25) 2 4• Também há verdade
nisso de que confirmo: tudo o que Deus quer, preci­
samente por essa razão de Deus o querer, é bom. Em
verdade, para falar humanamente, eu preferia que
um homem rico e poderoso, talvez um rei, me
amasse e me deixasse algum tempo sem qualquer
dádiva, do que se ele me desse um presente de ime­
diato, e não me amasse de um modo leal; preferia
que ele não me desse agora nada por amor, que por
isso não me presenteasse com nada, porque mais

24 «Como poderia subsistir uma coisa, se Vós não o quisésseis?

ou como se conservaria se não fosse chamada por Vós à existência?»


(Sb 1 2,25) .
158 TRATADOS E SERMÕES

tarde ele o faria com muito maior magnanimidade e


riqueza. Suponho até o caso que o homem que me
ama e nada me dá agora, não tem qualquer intenção
de mais tarde me presentear com algo; talvez ainda
mais tarde pondere ele em dar-me um bem ainda
maior. Eu esperarei pacientemente, em particular
porque a sua dádiva provém da graça e é imerecida.
Também é certo que aquele cujo amor eu descuidei
e cuja vontade é oposta à minha, e de quem eu tinha
somente a intenção de esperar pela sua dádiva, nada
me dê, me odeie além do mais e me deixe infeliz.
A terceira razão pela qual me surgiria como infe­
rior e repugnante querer pedir a Deus que ele me
torne saudável, é que eu não devo nem quero pedir
ao Deus rico, amoroso e magnânimo algo de tão in­
significante. Suponhamos que eu ia ter com o Papa,
depois de ter percorrido cem ou duzentas milhas, e
me apresentava perante ele, dizendo-lhe: «Senhor
Santo Padre, eu andei mais de duzentas milhas a
grande custo, por caminhos penosos, para chegar
aqui e peço-vos - seja qual for a razão por que eu
venho aqui - que me ofereçais um feijão!» Em ver­
dade, o próprio Papa e qualquer um que ouvisse isto,
diria, com toda a razão, que eu era um grande louco.
Mas também é verdade certa, se eu disser que todo o
bem, mesmo a totalidade da criação, face a Deus, é
menos do que um feijão face à totalidade deste mun­
do material. Por isso, se eu for um homem bom e
sábio, deverá ser repudiante para mim o querer pedir
a Deus que eu me torne saudável.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO D IVINA 159

Nesta concatenação, afirmo ainda: é sinal de um


coração fraco, se um homem fica alegre ou preo­
cupado com as coisas transitórias deste mundo. Por­
tanto, devíamos envergonhar-nos do coração pe­
rante Deus e os seus anjos, e perante os humanos,
quando nos apercebemos disso em nós. Não nos
envergonhamos nós tanto, quando temos um qual­
quer defeito no rosto que as outras pessoas perce­
bam exteriormente? Mas de que mais quero eu (ain­
da) continuar a falar? Os livros do Velho e do Novo
Testamento, como os dos santos, e também dos
pagãos, estão cheios de exemplos de como pessoas
piedosas, por amor de Deus e também por suas vir­
tudes naturais, sacrificaram suas vidas e se renega­
ram voluntariamente a si mesmas.
Um mestre pagão, Sócrates 2 5, diz que as virtudes
tornam as coisas impossíveis possíveis e, além disso,
fáceis e agradáveis. Também não quero esquecer
aquela piedosa mulher, de que fala o livro dos Maca­
beus, que um dia viu perante os seus olhos torturas
revoltantes e desumanas que infligiam aos seus sete
filhos, suscitadoras de horror a quem as ouvisse con­
tar, e que, assistindo a tudo isso, se manteve de âni­
mo firme, exortando seus filhos individualmente a
não se atemorizarem e a sacrificarem determinada­
mente o seu corpo e espírito por amor da justiça de
Deus. Aqui termina este livro.

25 Josef Quint remete aqui para CALCIDIUS, Comentário ao Timeu. « [ ]


...

liberam esse virtutem nec ulli obnoxiam necessitati».


1 60 TRATADOS E SERMÕES

Gostaria, no entanto, de acrescentar duas pala­


vras. Uma é que um homem bom e divino deveria
envergonhar-se veementemente de que o sofrimento
o possa abalar, quando nós vemos que o comer­
ciante, para alcançar um pequeno lucro, atravessa,
tantas vezes com incerteza, países longínquos, por ca­
minhos tortuosos, por montanhas e vales, passa por
desertos e mares, (ameaçado) por ladrões e assassinos
em sua vida e haveres, e que sofre grande privação de
comida, bebida (e) sono e outras inclemências, e que
esquece tudo isso com gosto e boa vontade em nome
de um proveito tão pequeno e inseguro. Um cava­
leiro arrisca no combate a sua fortuna, a sua vida e a
sua alma por uma honra bem transitória e breve, e a
nós parece-nos tão significativo que soframos um
mínimo por Deus e pela beatitude eterna!
A outra palavra que (ainda) quero dizer, é que
algumas pessoas de entendimento grosseiro irão
dizer que muitas palavras que eu escrevi neste livro e
noutros não são verdadeiras. A eles respondo com o
que S. Agostinho disse no primeiro livro das suas
«Confissões». Ele observa (aí) que Deus Gá) fez agora
tudo o que é futuro, mesmo que ele seja daqui a
milhares de anos, contanto que o mundo subsista, e
que tudo o que já aconteceu há milhares de anos
ainda o fará hoje. Que posso eu fazer, se alguém não
entender isso? 2 6 E noutra passagem afirma ele que,
aquele que a si mesmo se ama abertamente em ex-

26
Cf. S. AGOSTINHO, l, 6, op. cit.
TRATADO DA CONSOLAÇÃO DIVINA 1 61

cesso, pretende ofuscar as outras pessoas, para que a


sua cegueira reste escondida 2 7• A mim basta-me que
seja verdadeiro, em mim e em Deus, aquilo que digo
e que escrevo. Quem olhar para um bordão mergu­
lhado na água, parece-lhe que o bordão é torto,
apesar de ele ser muito direito, e isso deriva de que a
água é mais grosseira do que o ar; seja como for, o
bordão é direito em si e não torto, aos olhos de
quem o vir à transparência do ar.
S. Agostinho diz: «Aquele que reconhece interior­
mente, sem uma grande multiplicidade de conceitos,
de objectualidades e de representações intuitivas, o
que nenhum olhar exterior consegue apreender,
sabe que isto é verdade. Mas quem nada disso sou­
ber, rirá e escarnecerá de mim; mas eu terei piedade
dele. Entretanto, tais pessoas querem contemplar e
sentir as coisas eternas e as obras divinas, e encon­
trarem-se sob a luz da eternidade, e, contudo, o seu
coração adeja ainda entre o ontem e o amanhã» 2 8 •
Um mestre pagão, Séneca, diz: «Das coisas gran­
des e elevadas deve falar-se com um sentido de gran­
deza e elevação, é com uma alma sublime» 2 9• Tam­
bém se dirá que não se devem falar nem escrever tais
ensinamentos para os homens que não são instruí­
dos. Sobre isso, eu digo que se não se instruírem as

27 S. AGOSTINHO, X, 23, op. cit.


28
Citação não literal. EcKHART adapta e mistura excertos das Con­
fissões. Cf. XI, 8 e XI 1 1 .
" S ÉNECA, Ep. 71 , 24: « Magno animo d e rebus magnis iudican­
dum est» .
1 62 TRATADOS E SERMÕES

pessoas incultas, então nunca ninguém será ins­


truído, e, por conseguinte, nunca ninguém poderá
ensinar ou escrever. Porque ensinam-se os não ins­
truídos para que eles se tornem instruídos. Se nada
de novo houvesse, nada seria velho. «Não são os que
têm saúde» , diz Nosso Senhor, «que precisam de
médico» (Lc 5 , 3 1 ) . Para tal existe o médico, para que
torne sãos os doentes. Mas se houver alguém que
entenda erroneamente estas palavras, que são cor­
rectas, que pode contra isso o homem que legitima­
mente as exprime? S. João anuncia o santo Evange­
lho a todos os crentes, mas também a todos os
descrentes, para que estes se tornem crentes, e, no
entanto, ele começa o Evangelho com as palavras
mais sublimes que deste mundo um homem pode
dirigir a Deus; e com quanta frequência têm sido
mal entendidas tanto as suas palavras como as de
Nosso Senhor!
Que o Deus cheio de amor e misericordioso, a
(própria) Verdade, me conceda a mim e a todos
quantos lerem este livro, que descubramos e encon­
tremos a verdade em nós mesmos. Ámen!
TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE

Nosso Senhor diz no Evangelho: «Um homem


nobre partiu para uma região longínqua, a fim de to­
mar posse de um reino, para em seguida voltar» (Lc
1 9, 1 2) . Nosso Senhor ensina-nos nestas palavras,
como o homem é criado com nobreza na sua natu­
reza e quanto é divino aquilo que ele consegue al­
cançar pela graça, e, além disso, como é que o ho­
mem o pode atingir. Também uma grande parte da
Santa Escritura se apoia nessas palavras.
Deve saber-se em primeiro lugar, aquilo que tam­
bém é claramente manifesto, que o homem possui
uma natureza de dois géneros: a do corpo e a do espí­
rito. Por isso diz um escrito3 0: «Quem se conhece a si
mesmo, conhece todas as criaturas, pois todas as cria­
turas são ou corpo ou espírito». Por isso (também)
diz a Escritura, sobre o homem, que existe em nós
um homem exterior, e um outro, o homem interior3 1 •

30 Libera considera que ein geschrift (um escrito) se referirá ao Liber de

definitionibus, de Isaac Israel, ou a um dos manuais de filosofia produzi­


dos em Paris na segunda metade do século XIII. V ALAIN DE LIBERA,
Eckhart, Traités et Semwns, GF-Flammarion, Paris, 1 995, p. 2 1 2 .
3 1 «Por isso não desfalecemos. Ainda q u e e m n ó s se destrua o ho­

mem exterior, o interior renova-se diariamente». Cf. 2Cor 4,1 6.


1 64 TRATADOS E SERMÕES

Ao homem exterior pertence tudo o que está


ligado à alma, mas que é envolvido por e misturado
com a carne, e em cada membro e com ele possui
uma cooperação corporal, seja com os olhos, os ou­
vidos, a língua, a mão ou outros. E o escrito designa
tudo isto como o homem velho, o homem terreno, o
homem exterior, o homem inimigo, um homem
servil.
O outro homem, o que está dentro de nós, esse é
o homem interior; a Escritura chama-lhe um homem
novo, um homem celestial, um homem jovem, um
amigo e um homem nobre 32• É esse o homem refe­
rido, quando Nosso Senhor diz, que «Um homem
nobre partiu para uma região longínqua, a fim de
tomar posse de um reino, para em seguida voltar» .
Deve igualmente saber-se, que S. Jerónimo e os
mestres em geral dizem que cada pessoa tem desde
o início da sua existência um bom espírito, um anjo,
e um mau espírito, um demónio. O anjo bom acon­
selha e impele constantemente para aquilo que é
bom, que é divino, que é virtuoso, celestial e eterno.
O espírito mau aconselha e impele o homem sempre
para aquilo que é temporal e transitório, e também é
vicioso, maldoso e diabólico. O mesmo espírito mau
mantém um diálogo constante com o homem exte­
rior, e através dele persegue todo o tempo secreta­
mente o homem interior, tal como a serpente con-

32 Em ln Exodum, ECKHART designa a alma sensitiva por o homem velho

e a alma racional por o homem novo.


TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 65

versava com a mulher Eva e através dela com o


homem Adão (cf. Gn 3 , 1 ss.). O homem interior é
Adão. O homem na alma é a boa árvore, que conti­
nuamente, sem interrupção, produz bons frutos, de
que Nosso Senhor fala (cf. Mt 7, 1 7) . Ele é também o
campo, no qual Deus semeou a sua imagem e a sua
semelhança e onde Ele lança a boa semente, a raiz de
toda a sabedoria, de todas as artes, de todas as virtu­
des, de tudo o que é bom: a semente da natureza di­
vina (cf. 2Pe 1 ,4) . A semente de natureza divina é o
Filho de Deus, o Verbo de Deus (cf. Lc 8 , 1 1 ) .
O homem exterior, é o homem inimigo, e o mau
que atirou e semeou o joio (cf. Mt 1 3 ,24 ff.) . Dele diz
S. Paulo: «Encontro em mim algo que me impede e
contraria o que Deus ordena e o que Deus aconse­
lha, e o que Deus falou e ainda fala no mais sublime,
no mais profundo da minha alma» (cf. Rm 7,23) 33 •
Noutro ponto ele queixa-se e diz: «Que desditoso
homem que eu sou! Quem me há-de libertar deste
corpo de morte?» (Rm 7,24) . E de novo diz ele
noutra passagem que o espírito do homem e a sua
carne lutam incessantemente entre si. A carne acon­
selha o vício e o mal; o espírito aconselha o amor de

33 Quint: in dem hoehsten, in dem grunde miner sêle literalmente: «no


-

mais elevado, no mais fundo da minha alma. » Libera comenta que


«nesta singular coincidência do mais alto e do mais baixo, um leitmotiv
da teologia eckhartiana, também se pode ler a equivalência pronunciada
entre as noções latinas de apex mentis e de abditum mentis. Op. dt. , p. 2 1 2 .
Julgamos igualmente útil a transcrição d a Bíblia, «Mas vejo outra lei nos
meus membros, a lutar contra a lei da minha razão e a reter-me cativo
na lei do pecado, que se encontra nos meus membros» (Rm 7,23).
1 66 TRATADOS E SERMÕES

Deus, a alegria, a paz e todas as virtudes (cf. Gl 5 , 1 7) .


A quem seguir o espírito e viver segundo ele e se­
gundo o seu conselho pertencerá a vida eterna (cf. Gl
6,8) 34• O homem interior é aquele do qual diz Nosso
Senhor que «Um homem nobre partiu para uma
região longínqua, a fim de tomar posse de um reino,
para em seguida voltar». Ele é a boa árvore, da qual
Nosso Senhor diz que produz sempre bons frutos e
nunca maus, pois ele quer a bondade e tende para a
bondade, como ela paira em si mesma, intocada por
isto ou aquilo. O homem exterior é a árvore má, que
nunca consegue produzir bons frutos (cf. Mt 7, 1 8) .
Sobre a nobreza do homem interior, o do espírito,
e o pouco valor do homem exterior, o da carne,
dizem também os mestres pagãos Cícero e Séneca3 5:
nenhuma alma dotada de razão é sem Deus; a se­
mente de Deus está em nós. Se ela tiver um bom
agricultor, sábio e aplicado, então ela vicejará tanto
melhor, e crescerá para Deus, do qual ela é a semen­
te, e o fruto será igual à natureza de Deus. A semente
da pereira resulta numa pereira, a semente da no­
gueira resulta numa nogueira, a semente de Deus
resulta em Deus (cf. lJo 3,9) 3 6• Mas se a boa semente
tiver um agricultor tolo e mau, então crescerá o joio
que cobre e suplanta a boa semente, de forma que
ela não chegará à luz nem poderá germinar. Oríge-

34 «Quem semear no Espírito, colherá a vida eterna» (Gl 6,8).


35 CICERO, Tusculanas, III, 1, 2 . SÉNECA, Cartas, 73, 1 6.
36 «Todo o que é nascido de Deus não comete pecado, porque a sua

semente permanece nele» (lJo 3,9) .


TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 67

nes, um grande mestre, diz: «Como foi Deus, Ele


mesmo, que semeou em nós essa semente, e a impri­
miu e tornou inata em nós, ela bem pode ficar cober­
ta e oculta, mas nunca poderá ser extirpada e apa­
gada; ela arde e cintila, resplandece e queima sem
cessar em direcção a Deus» 37•
O primeiro grau do homem interior e novo, diz
S. Agostinho 38, é quando o homem vive segundo o
exemplo de gente boa e santa, mas avança ainda en­
costando-se às cadeiras e às paredes, refrescando-se
com leite.
O segundo grau, é quando ele agora não olha
somente para os exemplos exteriores de homens
bons, senão que corre e se apressa para os ensina­
mentos e os conselhos de Deus e da sabedoria di­
vina, vira as costas à humanidade e o rosto para
Deus, arrasta-se para fora do regaço materno e sorri
para o Pai celestial.
O terceiro grau, é quando o homem se afasta cada
vez mais da mãe, para longe do seu regaço, foge ao
cuidado, vence o medo, de forma que se ele pudesse
num instante ser injusto e fazer mal a toda a gente,
sem provocar escândalo, ele não sentiria qualquer
prazer em fazê-lo; pois por amor ele está tão ligado a
Deus numa fervorosa dedicação, até que Deus o
coloque e conduza, em alegria, doçura e beatitude,
para onde lhe é repugnante o que é dissemelhante e
estranho a Ele.

37 Cf. ORIGENES, ln Genesim; Horn XIII n. 4.


38 Cf. s. AGOSTINHO, De vera religione, 26, n. 49.
1 68 TRATADOS E SERMÕES

O quarto grau, é quando ele cresce cada vez mais


e se enraíza no amor e em Deus, de modo que está
pronto para assumir para si todas as tentações, con­
trariedades e sofrimento de boa vontade e com agra­
do, com desejo e alegria.
O quinto grau, é quando ele, por toda a parte, vive
contente em si mesmo, repousando calmo na ri­
queza e abundância da mais elevada e inexprimível
sabedoria.
O sexto grau, é quando o homem é des-formado
e transformado pela eternidade divina, e alcançando
um esquecimento inteiro e perfeito da vida transitó­
ria e temporal, é atraído por e transfigurado numa
imagem divina, logo que se tornou numa criança de
Deus. A partir daqui, não há qualquer grau mais ele­
vado, e aí existe a calma eterna e a beatitude, pois a
finalidade do homem interior e do homem novo é a
vida eterna.
Sobre este homem nobre interior, no qual a se­
mente e a imagem de Deus está impressa e semeada,
e como esta semente e esta imagem de natureza e
essência divina, o Filho de Deus, se manifesta e torna
perceptível, ou como ela por vezes se mantém ocul­
ta, sobre tudo isso apresenta-nos mestre Orígenes
uma metáfora: a imagem de Deus, ou seja o Filho de
Deus, é no fundo da alma como uma fonte de água
viva. Mas se alguém atirar terra, isto é os desejos ter­
renos, para cima dela, então ela ficará entulhada e
encoberta, de forma que não a reconheceremos nem
nos aperceberemos dela; no entanto, ela permanece
TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 69

viva em si mesma, e quando se retira a terra que foi


atirada de fora para cima dela, então ela aparece de
novo e nós apercebemo-nos dela. E ele diz que a esta
verdade alude o primeiro livro de Moisés, onde está
escrito que Abraão tinha aberto no seu campo poços
de águas vivas, mas que malfeitores os entulharam
com terra; mas depois, quando escavaram a terra,
descobriram de novo nascentes de águas vivas3 9•
A este propósito, porém, existe ainda uma outra
metáfora: o Sol brilha sem cessar; porém, quando
uma nuvem ou o nevoeiro está entre nós e o Sol,
então não nos apercebemos mais do brilho da luz.
O mesmo se passa quando o olho está, ele próprio,
doente e se mirra ou tolda; então ele também não re­
conhecerá o brilho. Além destas, também apresentei
ocasionalmente uma outra comparação óbvia: quan­
do um mestre faz uma imagem de madeira ou de
pedra, ele não leva a imagem para dentro da madeira,
senão que ele talha as aparas que tinham ocultado e
encoberto a imagem; ele nada dá à madeira, mas tira
e aplana-lhe a cobertura, afasta a ferrugem, para que
depois resplandeça o que estava oculto por baixo 40•
Este é o tesouro que estava escondido no campo, de
que Nosso Senhor fala no Evangelho (Mt 1 3 ,44) .
S. Agostinho diz: quando a alma do homem se

3• Cf. Gn 26,14 ss.


'" Segundo LIBERA, «Eckhart mistura aqui duas comparações: aquela
da estátua a produzir, que está escondida em potência no bloco de már­
more ou de madeira, e aquela da estátua já feita, mas abismada pelo tem­
po e coberta de ferrugem, que é necessário restaurar», op. cit. , p. 2 1 3 .
1 70 TRATADOS E SERMÕES

vira completamente para a eternidade, para Deus so­


mente, então resplandece e ilumina-se a imagem de
Deus; mas se a alma se vira para o exterior, mesmo
que seja para o exercício exterior da virtude, então
essa imagem torna-se completamente encoberta.
E isto deve querer dizer que as mulheres trazem a ca­
beça coberta, mas os homens a trazem destapada,
segundo o ensinamento de S. Paulo (cf. l Cor 1 1 ,4ff.).
E por isso: tudo o que da alma se vira para baixo, re­
cebe daquele mesmo para o qual se vira um véu, um
lenço para a cabeça; mas aquilo que na alma se vira
para cima, isso é a nua imagem de Deus, o nasci­
mento de Deus, nuamente descoberto numa alma
desnudada. Sobre o homem nobre, enquanto ima­
gem de Deus, filho de Deus, a semente da natureza
divina que em nós nunca será destruída, apesar de
poder ficar encoberta, diz o rei David nos Salmos:
«Apesar de o homem ser acometido por alguma
nulidade, sofrimento e lamentos de dor, ele perma­
nece, não obstante, na imagem de Deus e a imagem
nele» (cf. Sl 4,2 ff.) 41• A verdadeira luz resplandece
nas trevas, mesmo que não nos apercebamos dela
(cf. Jo 1 ,5) .
«Não repareis», diz o Livro do Amor, «na minha
tez morena, porque sou formosa e bela; foi o sol que
me queimou» (Cant 1 , 5/6) . «Ü Sol» é a luz deste
mundo, e isso significa que (mesmo) o mais elevado
e o melhor, do que é criado e feito, encobre e des-

•1 QUINT remete para o Salmo 4,2-7, adaptado de forma muito distante.


TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 171

colora a imagem de Deus em nós. «Tira», diz Salo­


mão, «as escórias à prata e terás um vaso puríssimo»
(Prov. 25, 4) , a imagem, o Filho de Deus na alma. E é
isso que Nosso Senhor quer dizer com aquelas pala­
vras «um homem nobre partiu», porque o homem
deverá sair de todas as imagens e de si próprio, dis­
tanciar-se e diferenciar-se de tudo isso, se, por outro
lado, ele quiser e dever (verdadeiramente) aceitar o
Filho e devir o Filho, no regaço e no coração do Pai.
Qualquer género de mediação é estranha a Deus 42 •
«Eu sou», diz Deus, « o Primeiro e o Ú ltimo» (Ap
22, 1 3) . Não existe diferenciação nem na natureza de
Deus nem nas pessoas, conforme a unidade da sua
natureza 43• A natureza divina é Um, e cada pessoa
também é Um e é o mesmo Um que a natureza é. A
diferença entre ser e essencialidade é compreendida
como Um, e é Um. Somente aí, onde este Um não
se contém mais em si mesmo, é que se recebe, se
possui e se produz diferença. Por isso, é no Um que
se encontra Deus, e tem de devir Um, aquele que

42 Allerlei mittel ist gote vremde, é traduzido, consensualmente, como

nós o fazemos. Esta proposição, porém, foi mal traduzida, no tempo de


Eckhart, para Omnis distinctio est deo aliena (Toda a distinção é estranha
a Deus) , erro esse que a levaria a ser incluída no processo de Colónia
(Col.) e condenada na bula papal ln Agro Dominico. Libera afirma que «a
falsificação do texto eckhartiano pelos seus acusadores é aqui evidente»,
op. dt. , p. 2 1 4.
43 Col. O texto de Eckhart traduzido então para o latim Non est dis­

tinctio neqw: in natura divina neqw: in personis, omite nâch der natUre einicheit
(conforme a unidade da sua natureza); devido ao truncamento do tradu­
tor também esta proposição foi examinada e condenada pelo Papa, na
bula in agro dominico, de 27 de Março de 1 329. Cf. LIBERA, op. dt. , p. 2 1 4.
1 72 TRATADOS E SERMÕES

quiser encontrar a D eus. « Um homem partiu», diz


Nosso Senhor. Na diferença, não se encontra nem o
Um, nem o Ser, nem Deus, nem sossego, nem bea­
titude ou satisfação. Sê Um! Para que possas en­
contrar a Deus! E, em verdade, se tu fosses legitima­
mente Um, então tu continuarias também Um no
diferenciado, e o diferenciado seria para ti Um, e de
absolutamente nada te conseguiria ele impedir.
O Um permanece constantemente Um em mil vezes
mil pedras, como somente em quatro pedras, e mil
vezes mil é um número simples, como o quatro
também o é.
Um mestre pagão, diz que o Um nasceu do Deus
supremo 44 • A sua singularidade é a de ser um com o
Um. Quem buscar abaixo de Deus, engana-se a si
mesmo. O mesmo mestre diz, em quarto lugar, que
este Um não tem por mais ninguém autêntica ami­
zade, se não por virgens ou raparigas jovens, como
diz S. Paulo: «Confiei-vos e arranjei-vos no Um, vir­
gens castas como noivas» (2Cor 1 1 ,2) 45 • E assim de­
veria ser o homem absolutamente, pois Nosso Se­
nhor diz: « Um homem partiu. »
N o sentido próprio d a palavra latina, «homem»,
significa, numa certa acepção, aquele que com tudo
o que ele é e tudo o que é seu, se inclina e submete a
Deus, e levanta os seus olhos para Deus, mas não
para o que é seu, que ele sabe estar atrás, abaixo e ao

44Cf. MAcRóB!O, ln Somnium Scipionis, I, 6, n. 7-1 0.


45 «Sinto por vós um santo ciúme, por vos ter desposado com um
único esposo, como virgem pura oferecida a Cristo» (2Cor 1 1 ,2).
TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 73

lado de si. Esta é a plena e autêntica humildade: o


homem recebe o seu nome da terra 46• Mas agora não
quero falar mais disso. Quando dizemos «homem»,
então esta palavra significa também algo que está
acima da natureza, acima do tempo e acima de tudo
o que está virado para o tempo, ou que tem o sabor
do tempo, e o mesmo digo eu acerca do espaço e da
corporalidade. Além disso, este «homem» nada tem
em comum, de certo modo, com nada, quer dizer,
que ele não é formado segundo isto ou aquilo ou é
semelhante a algo, e que nada sabe de nada, de for­
ma que nele, nenhures, nada se encontra ou se per­
cebe, e que o nada lhe foi tirado tão inteiramente,
que nele se encontra unicamente pura vida, ser, ver­
dade e bondade. Quem for assim constituído, é um
«homem nobre», em verdade, nem mais nem menos.
Existe ainda um outro género de explicação e de
instrução para aquilo que Nosso Senhor designa um
«homem nobre». Também se deve saber que aqueles
que conhecem Deus desveladamente conhecem com
Ele em simultâneo as criaturas; porque o conheci­
mento é uma luz da alma, e todos os homens dese­
j am, por natureza, o conhecimento, pois mesmo o
conhecimento das coisas más é bom. Ora, dizem os
mestres: quando se conhece a criatura na sua pró­
pria essência, então chama-se a isso um «conheci­
mento do anoitecer», e aí vêem-se as criaturas em

46 LIBERA comenta que Eckhart se apoia aqui na etimologia tradicio­


nal que deriva homo (homem) de humus (terra), op. cit. , p. 2 1 5 .
1 74 TRATADOS E SERMÕES

imagens de múltiplas diferenças ; mas quando se


conhece as criaturas em Deus, então chama-se a isso
um «conhecimento do amanhecer» , e deste modo
olha-se para as criaturas sem qualquer diferença,
despoj adas de qualquer imagem e desnudadas de
qualquer semelhança, no Um que é Deus, Ele mes­
mo. Também este é o «homem nobre» do qual diz
Nosso Senhor: «Um homem nobre partiu», nobre
porque ele é Um e conhece Deus e a criatura no Um.
Gostaria ainda de falar e de aprofundar um outro
sentido do que significa um «homem nobre». Eu digo
o seguinte: quando o homem, a alma, o espírito con­
templa Deus, então ele também se sabe e se conhece
enquanto conhecedor, quer dizer: ele conhece que
contempla e conhece Deus. Ora parece a algumas
pessoas, e afigura-se até como muito credível, que a
flor e o cerne da beatitude se situam naquele conhe­
cimento, no qual o espírito conhece que ele conhece
Deus; porque se eu tivesse todas as delícias e nada
soubesse disso, de que me serviriam elas e que géne­
ro de delícias seriam as minhas? Mas eu digo com
firmeza que não é bem assim. Ainda que sej a ver­
dade que a alma sem isso não seria bem-aventurada,
não é aí que reside, porém, a beatitude; pois antes do
mais a beatitude consiste em que a alma contempla
desvelada a Deus. Nisso recebe ela todo o seu ser e a
sua vida e cria tudo o que ela é a partir do funda­
mento de Deus, e nada sabe do saber, nem do amor
nem de absolutamente nada. Ela acalma-se total e
exclusivamente no ser de D eus. Ela de nada mais
TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 75

sabe aí, senão do Ser e de D eus. Mas se ela sabe e


conhece que contempla Deus, que o conhece e ama,
então segundo a ordem natural isso é um virar-se
para fora dele, seguido de um virar-se para dentro,
para o primeiro 47; porque ninguém se conhece como
branco, excepto aquele que é realmente branco. Por
isso é que aquele que se conhece como branco edi­
fica e contribui para o ser-branco, mas ele não toma
o seu conhecimento directa e inscientemente da cor,
senão que tira o seu conhecimento dela (isto é, da
cor) e tira o saber em torno dela daquilo que precisa­
mente é branco, e não cria o conhecimento exclusi­
vamente a partir da cor em si; pelo contrário, ele cria
o conhecimento e o saber a partir do que é colorido
ou branco, e reconhece-se assim como branco. Mas
o branco é algo de muito mais inferior e muito mais
exterior do que o ser-branco 48• Uma coisa bem dife­
rente é o muro, e outra o fundamento sobre o qual o
muro se constrói.
Os mestres dizem que há uma força com cujo au­
xi1 io o olho vê, e uma outra pela qual ele reconhece
que ele vê. O primeiro: que ele vê, tira ele exclusiva-

., Segundo QUINT, «O virar-se para fora (Ausschlag) é, segundo a ordem


natural, o virar-se-para-fora do espírito sobre o obj ecto de conheci­
mento, o virar-se para dentro (Rückschlag) é o acto do devir consciente
do primeiro acto na reflexão». Op. cit. , p. 469.
48 QUINT: «Nesta comparação, que serve para a elucidação da dife­
rença entre o saber sobre a contemplação de Deus e a própria contem­
plação, o saber sobre a contemplação corresponde ao concreto branco
singular, enquanto a própria contemplação corresponde ao ser-branco.
Em muitas passagens da sua obra latina, aborda Eckhart a relação de
album com albedo. Op. cit. , p. 469.
1 76 TRATADOS E SERMÕES

mente da cor, não daquilo que é colorido. Por isso é


indiferente se aquilo que é colorido é uma pedra ou
um (pedaço) de madeira, um homem ou um anjo: o
essencial reside unicamente em que isso tem cor.
Assim digo eu também, que o homem nobre tira
e cria todo o seu ser, a sua vida e a sua beatitude só
de Deus, junto de Deus e em Deus, e não do conhe­
cer, contemplar ou amar D eus, ou de algo seme­
lhante. Por isso diz Nosso Senhor com digna certeza,
que a vida eterna consiste em conhecer a Deus, por
único Deus verdadeiro Go 1 7,3) , mas não em conhe­
cer que se conhece a Deus. Como poderia o homem
conhecer-se a si enquanto conhecedor de Deus, se
ele não se conhece a si mesmo? Porque decerto que
o homem não se conhece de todo a si mesmo, nem a
outras coisas, mas em verdade ele só conhece a
Deus, se ele for, e se tornar bem-aventurado na raiz e
no fundamento da beatitude. Mas se a alma conhece
que ela conhece Deus, então ela alcança em simul­
tâneo conhecimento de Deus e de si mesma.
Ora, conforme eu expliquei, a potência pela qual
o homem vê, é uma potência diferente daquela pela
qual ele sabe e conhece que ele vê. Verdade é que,
agora, aqui em baixo, aquela potência pela qual nós
sabemos e conhecemos que nós vemos, é mais no­
bre e elevada do que a potência pela qual nós vemos;
porque a natureza começa a sua acção pelo que é
mais ínfimo, mas Deus começa as suas obras com o
que é mais perfeito. A natureza faz um homem da
criança e uma galinha do ovo; mas Deus faz o ho-
TRATADO SOBRE O HOMEM NOBRE 1 77

mem antes da criança e a galinha antes do ovo. A na­


tureza faz primeiro a madeira quente e ardente, e só
depois é que ela deixa formar-se o ser do fogo; mas
Deus dá primeiro o ser a todas as criaturas, e depois,
no tempo, mas sem tempo, separa Ele tudo que per­
tence ao ser. Também dá Deus primeiro o Espírito
Santo, antes dos dons do Espírito Santo.
Por conseguinte, digo eu, não há beatitude, sem
que o homem se torne consciente e saiba plenamen­
te que ele contempla e conhece Deus; mas Deus me
livre de que a minha beatitude consista nisso! Se al­
guém se contentar com isso, que o guarde para si;
em mim, provoca-me compaixão. O calor do fogo e
o ser do fogo são bem diferentes e espantosamente
distantes entre si na natureza, não obstante no tem­
po e no espaço estarem muito próximos um do
outro. O contemplar de Deus e o nosso contemplar
são inteiramente distantes e diferentes entre si.
Por isso diz Nosso Senhor muito justamente que
«um homem nobre partiu para uma região longín­
qua, a fim de tomar posse de um reino, para em se­
guida voltar». Porque o homem deve ser um em si
mesmo, e deve buscar isso em si e no Um, e recebê­
-lo no Um, quer dizer: contemplar meramente Deus,
e «regressar», quer dizer: saber e conhecer que se
sabe de e se conhece Deus.
E tudo o que foi aqui apresentado predisse o pro­
feta Ezequiel, quando ele afirmou que «uma grande
águia de asas enormes e compridas, cobertas de
penas multicolores, veio para a mais pura montanha,
1 78 TRATADOS E SERMÕES

tirou o cerne da árvore mais alta, apanhou o ramo


mais elevado da sua folhagem e levou-o para baixo»
(Ez 1 7,3 f.) . O que Nosso Senhor designa como um
«homem nobre», chama o profeta uma grande águia.
Quem será mais nobre do que aquele que, por um
lado, nasceu do mais elevado e do melhor que a cria­
tura possui e, por outro, do fundamento mais íntimo
da natureza divina e do seu ermo? «Eu», diz Nosso
Senhor através do profeta Oseias, «quero conduzir a
alma nobre a um deserto, para lá lhe falar ao seu
coração» (Os 2 , 1 6) 49• Um com Um, Um de Um, Um
em Um, e em Um, Um eternamente. Ám en!

4 9 «É assim que a vou seduzir; ao deserto a conduzirei para lhe falar

ao coração» (Os 2,1 6) .


SERMÕES

Quem não conheceu mais do que as criaturas,


não precisou de pensar em qualquer sermão,
pois qualquer criatura é plena de Deus e é um livro.

MESTRE ECKHART
SOBRE OS SERMÕES

A obra de Mestre Eckhart é multifacetada: assim, os


textos latinos 1, ligados ao seu ensino universitário, são fre­
quentemente comentários da Sagrada Escritura. A obra
alemã de Eckhart é a mais pessoal, aquela onde se reflectem
mais a sua alma e as suas preocupações espirituais e teoló­
gicas. São os Sermões alemães que mais contribuíram
para desencadear o processo de Eckhart, porque nem sempre
foram 'transmitidos na sua fidelidade e muitas frases foram
retiradas do seu contexto ou interpretadas superficialmente.
Enquanto que os Tratados, como o Benedictus D eus,
foram redigidos pelo próprio Eckhart, os Sermões chega­
ram até nós essencialmente an-avés de reportationes (notas
'transmitidas pelos ouvintes). Isso também deu azo a que até
um período recente, vários textos de autenticidade duvidosa
fossem apresentados como sendo da sua autoria. A partir do
século XX, e do ano 1936, na sequência duma edição par­
cial datada de 185 7, foi efectuado um 'trabalho mais crite-

' São 56 os Sermões Latinos, actualmente reconhecidos como autênti­


cos. Vários de entre eles situam-se na linha, relativamente ao seu con­
teúdo, de alguns dos Sermões Alemães (cf. MAlTRE ECKHART, Les Sermons,
Paris, Albin Michel, 2009, p. 685).
1 82 TRATADOS E SERMÕES

rioso, que começa a dar os seus frutos através da multiplica­


ção das edições e das traduções das suas obras.
A autenticação destes textos foi sobretudo estabelecida a
partir de critérios internos, bastante minuciosos. Um grande
estudioso como Josef Quint recolheu como autênticos cerca de
92 sermões, tendo sido publicados, até à data do seu faleci­
mento, 8 6 desses sermões. Esse trabalho continua e espera­
mos que ainda se encontrem ou sejam autenticados novos
textos. Uma edição alemã, recentemente cotejada, contém 65
Sermões alemães 2 e uma edição francesa que acaba de
sair, contém por seu turno 90 Sermões 3• Neste volume são
apresentados 1 7 Sermões, de entre aqueles que foram es­
colhidos para este volume e que nos pareceram mais signifi­
cativos, pois é sempre difícil ter de escolher. Esperemos que
uma futura edição possa acolher ainda mais Sermões de
Eckhart.
Os Sermões colocam-nos de antemão perante as suas
fórmulas ousadas, através das quais Eckhart tenta dizer o
inefável do mistério de Deus, perante o qual a nossa lingua­
gem é inadequada. Pensa-se hoje que a maior parte dos seus
Sermões foi pronunciada durante o período em que ele
pregou nos conventos e mosteiros, ao viajar ou durante a sua
permanência em Estrasburgo e em Colónia, ou seja, entre
13 13 e 132 7. Porém, alguns autores sublinharam a impor­
tância do período de Erfurt, que não foi suficien temen te valo-

2 MEISTER ECKHART, Predigte- Text und Commentar; Frankfurt, Deuts­

cher Klassiker Verlag, 2008, 1 1 07 pp.


3 MAlTRE EcKHART, Les Sermons, Paris, Albin Michel, 2009, 792 pp.
SOBRE OS SERMÕES 1 83

rizado até hoje (cf Colóquio Meister Eckhart in Erfurt,


organizado por Andreas Speer, em Setembro de 2003).
Quando Eckhart prega, segundo as suas próprias pala­
vras, ele tem o costume de: «falar do desapego e de que o
homem se deve sentir desprendido de si mesmo e de
todas as coisas. Em segundo lugar, que nos devemos
encontrar formados interiormente no bem simples
que é Deus. Em terceiro lugar, que pensemos na
grande nobreza que Deus depositou na alma, para
que o homem através disso chegue a Deus de ma­
neira maravilhosa. Em quarto lugar, da limpidez da
natureza divina, que claridade se encontra na natu­
reza divina, isso é inexprimível. Deus é uma Palavra,
uma Palavra inexprimida». É, portanto, a interioridade
do homem e a sua relação com Ele que são o eixo principal
da sua pregação. Como um fruto que precisa de ser amadu­
recido e preparado, antes de ser consumido, assim Eckhart
mergulha nas Escrituras para nos desvelar, num clima de
grande liberdade, o quanto Deus procura dialogar com os
homens e nos 'transmitir a sua nobreza divina.
Os Sermões aqui 'traduzidos são um excerto notável de
toda a produção de Eckhart e permitem-nos pene'trar no seu
imaginário teológico, permeabilizado pela Palavra de Deus
viva e pelos acontecimentos do seu tempo.

FR. JOSÉ Luís DE ALMEIDA MONTEIRO, OP


SERMÃO 1

«Há uma potência na alma que não toca


nem no tempo nem na carne»

Intravit Jesus in qwddam castellum et mulier quaedam,


Martha nomine, excepit illum in domum suam. Lucae II.
(Lc 1 0, 38)

Acabo de dizer algumas palavras, para já em


latim, que estão escritas no Evangelho e que rezam
assim em alemão: «Nosso Senhor Jesus Cristo subiu
até uma pequena cidadela e foi recebido por uma
virgem, que era uma mulher» 1•
Pois bem, considerai atentamente estas palavras:
teria de ser necessariamente assim, que fosse uma
«virgem» a pessoa que recebeu Jesus. Virgem quer
dizer um ser humano que está desprendido de todas
as imagens estranhas, tão desprendido como ele era
ainda antes de ser 2 • Vede que se poderia perguntar,

' «Quando iam no caminho, Jesus entrou numa aldeia. E uma mu­
lher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa» (Lc 1 0,38).
2 QUINT: «Com wie er war, da er noch nicht war (como ele era ainda

antes de ele ser) entende-se a existência do homem enquanto ideia em


Deus.» Op. cit. , p. 471 .
186 TRATADOS E SERMÕES

como é que um homem que nasceu e se desenvol­


veu até uma vida intelectual capaz, poderia estar des­
prendido de todas as imagens como quando ele
ainda não era, se afinal ele sabe muitas coisas, e tudo
isso que ele sabe são imagens ; como poderia ele
então estar desprendido? Ora prestai bem atenção ao
ensinamento que vos quero apresentar. Se eu tivesse
um intelecto tão abrangente, que nele se encontrasse
a totalidade das imagens que todos os homens desde
sempre receberam, além daquelas que estão em
Deus, tudo isso, no entanto, de tal modo que eu fosse
tão livre de qualquer ligação da minha pessoa a elas,
que não me tivesse apropriado de nada delas quer na
sua acção quer na omissão, quer no seu passado quer
no seu futuro, que eu, pelo contrário, neste momento
presente me encontrasse livre e desprendido para a
amada vontade de Deus, para a cumprir sem inter­
rupção, em verdade, então, eu seria virgem sem qual­
quer impedimento de todas as imagens, com tanta
certeza como eu era quando ainda não era.
Digo, além disso, que o homem ser virgem, nada
lhe retira a todas as obras que ele alguma vez fez;
tudo isso permite que ele permaneça virgem e livre,
sem qualquer obstáculo face à verdade suprema, tal
como Jesus é desprendido e livre e virgem em si
mesmo. Como os mestres dizem que só o que é se­
melhante entre si é fundamento para a unificação,
deve por isso o homem ser virgem, um virgem que
quer receber o Jesus virgem.
Agora, prestai bem atenção e considerai com
SERMÃO 1 1 87

rigor! Se o ser humano permanecesse continuamen­


te virgem, então nenhum fruto sairia dele. Para se
tornar fecundo, é necessário que ele sej a mulher.
«Mulher» é o nome mais nobre que se pode prover
para a alma, e é muito mais nobre do que «virgem».
Que o ser humano receba Deus em si, isso é bom, e
nessa receptividade ele é virgem. Mas que Deus se
torne fecundo nele, isso é melhor; porque o dom
tornar-se fecundo, é só por si gratidão pelo dom, e aí
o espírito é mulher na gratidão renascente, onde ele
faz renascer Jesus no coração paternal de Deus.
Recebem-se muitos dons preciosos na virgindade,
mas eles não renascem em Deus pela fecundidade fe­
minina com um louvor de gratidão. Esses dons dege­
neram e tomam-se todos em nada, de modo que o ser
humano com eles não devém nunca nem mais bem­
-aventurado nem melhor. Nesse caso, a sua virgin­
dade de nada serve, pois para além da sua virgindade
ele não é uma mulher com plena fecundidade. É nisso
que reside o dano. Por isso disse eu: «Nosso Senhor
Jesus Cristo subiu até uma pequena cidadela e foi re­
cebido por uma virgem, que era uma mulher.» É ine­
vitável que isto seja assim, como eu vos demonstrei.
Os esposos raramente dão mais do que um fruto
por ano. Mas é um outro género de «esposos» que
eu tenho aqui em mente: refiro-me a todos aqueles
cujo eu está apegado3 à oração, ao jejum, à vigília e a

3 Ichhaft, no original. Um vocábulo, como tantos outros de Eckhart,

que irá fazer a sua trajectória no vocabulário filosófico alemão. O sufixo


adjectivante haft, neste caso aposto a ich (eu), sugere semelhança, do mesmo
1 88 TRATADOS E SERMÕES

toda a espécie de exercícios e mortificações exterio­


res. Cada constrangimento do eu em qualquer obra
que te tira a liberdade de te encontrares neste mo­
mento presente à disposição de Deus e de o seguires
só a Ele, à luz em que Ele te indicará a tua conduta,
livre e nova em cada momento, como se tu não ti­
vesses qualquer outra coisa, nem o quisesses ou pu­
desses; a cada constrangimento do eu ou a cada obra
premeditada, que te tira esta liberdade sempre nova,
chamo eu um ano; pois a tua alma não produz aí
qualquer fruto, sem que tenhas executado a obra
que tu com o eu constrangido iniciaste, e tu não tens
confiança nem em D eus nem em ti próprio, a não
ser que tenhas cumprido a obra que iniciaste com o
constrangimento do eu; de outro modo, não terás
qualquer paz. Por isso tu não produzirás qualquer
fruto, sem que tenhas concluído a tua obra. Isso es­
timo eu como um ano, não obstante o fruto ser pe­
queno, porque ele tem a sua origem no constrangi­
mento do eu e não na liberdade. Tais pessoas designo
eu como «esposos», porque elas estão associadas no
constrangimento do eu. Elas produzem pouco fruto,
além de ele ser pequeno, conforme eu disse.
Uma virgem, que é mulher, que é livre e solta de
qualquer constrangimento do eu, está sempre pró­
xima de Deus e de si própria. Ela produz muitos fru­
tos, e eles são grandes, nem menos nem mais do que

género. Era originalmente um adjectivo independente significando «asso­


ciado com».
SERMÃO 1 1 89

Deus, Ele mesmo, o é. Este fruto e este nascimento


são produzidos por essa virgem, que é mulher, e
todos os dias ela produz cem ou mil vezes frutos,
vezes incontáveis, nascendo e devindo fecunda do
mais nobre fundamento; dizendo ainda melhor: em
verdade, do mesmo fundamento, do qual o Pai gera a
sua palavra eterna; a partir dele, ela torna-se fecunda
co-geratriz. Porque Jesus, a luz e o reflexo do cora­
ção paternal - tal como S. Paulo diz que Ele é a glória
e o reflexo do coração paternal, e que ilumina pode­
rosamente o coração paternal (Heb 1 ,3) 4 esse Jesus -

está unido com ela e ela com Ele, e ela alumia e res­
plandece com Ele como um único Um e como uma
luz pura e límpida no coração do Pai.
Eu também j á disse muitas vezes que há uma
potência na alma que não toca nem no tempo nem
na carne; ela emana do espírito e permanece no espí­
rito e é em absoluto espiritual. Nesta potência, Deus
é tão verdejante e florescente em toda a alegria e em
toda a glória, como Ele é em si mesmo. Essa alegria é
tão efusiva e de uma grandeza tão inaudita, que nin­
guém a consegue anunciar a fundo. Pois o Pai eterno
gera sem cessar o Seu Filho eterno nesta potência,
de forma que esta potência é co-geradora do Filho
do Pai e de si mesma, enquanto o próprio Filho, na
potência única do Pai. Se um homem possuísse todo

• «Sendo Ele o resplendor da sua glória e a imagem da sua substân­

cia e sustendo todas as coisas pela sua palavra poderosa» (Heb 1 ,3).
1 90 TRATADOS E SERMÕES

um reino ou até todos os bens da terra, e sacrificasse


tudo isso por puro amor de D eus, e se tornasse o
homem mais pobre de todos os que vivessem na
terra, e se D eus lhe desse depois tanto para sofrer
como Ele nunca tinha dado antes a um homem, e
ele sofresse tudo isso até à sua morte, e se Deus o
deixasse, depois, uma vez só contemplar com um
olhar como Ele é nessa potência, a sua alegria seria
tão grande que todo o sofrimento e toda a pobreza
seriam ainda demasiado pouco. Sim, mesmo se
depois disso Deus nunca lhe desse mais o reino dos
céus, ele teria já recebido uma recompensa dema­
siado grande para tudo o que tinha sofrido ; pois
Deus é nessa potência como no instante eterno. Se
o espírito estivesse sempre unido a Deus nesta po­
tência, o homem não poderia envelhecer; pois o ins­
tante em que Deus criou o primeiro homem, o ins­
tante em que o último homem perecerá, e o instante
em que eu falo são iguais em Deus e nada são senão
um único instante. Ora, vede, esse homem habita em
uma luz com Deus; por isso não há nele nem sofri­
mento nem sequência temporal, senão uma eterni­
dade isócrona. A este homem, em verdade, foi sub­
traído todo o espanto, e todas as coisas se encontram
nele de modo essencial. Por isso não recebe ele ne­
nhuma novidade das coisas futuras, nem de um
qualquer «acaso», porque ele vive em um instante,
sempre novo, sem interrupção. Tal é a grandeza di­
vina que existe nesta potência.
Há também uma outra potência, que é igual-
SERMÃO 1 191

mente incorpórea 5; ela emana d o espírito e perma­


nece no espírito, e é espiritual em termos absolutos.
Nesta potência, Deus arde e incandesce sem cessar
com todo o seu reino, com toda a sua doçura e com
toda a sua delícia. Em verdade, nesta potência há
uma tão grande alegria e uma tão grande, incomen­
surável delícia que ninguém a consegue exprimir ou
revelar minuciosamente. Eu repito-o: se houvesse
um qualquer homem que, por um só momento, pu­
desse contemplar com o intelecto, em harmonia com
a verdade, as delícias e as alegrias que nessa potência
existem, tudo o que ele poderia sofrer e que Deus
quisesse que ele sofresse, tudo isso seria para ele um
mínimo, até mesmo um nada; digo ainda mais: isso
seria para ele inteiramente uma alegria e um conforto.
S e quiseres saber exactamente se o teu s ofri­
mento é teu ou de D eus, poderás reconhecê-lo no
seguinte: se tu sofreres por tua própria vontade, seja
sob que forma for, então esse sofrimento causa-te
dor e é para ti pesado de suportar. Mas se tu sofreres
por Deus e unicamente por vontade de Deus, então
esse sofrimento não te causa dor e também não é
para ti pesado de suportar, pois Deus carregará o
peso. Em plena verdade : se houvesse um homem
que quisesse sofrer por vontade de D eus, única e
puramente por vontade de Deus, e tombasse sobre
ele todo o sofrimento que os homens já sofreram e
que o mundo inteiro suporta em conjunto, isso não

5 A vontade.
1 92 TRATADOS E SERMÕES

lhe causaria dor e também não seria pesado para ele,


pois Deus suportaria a carga. Se alguém me pusesse
o peso de um quintal sobre as costas, mas houvesse
um outro que suportasse o peso, então eu poderia
tanto carregar um quintal como cem deles, porque
não seria pesado para mim e também não me causa­
ria qualquer dor. Em breves palavras: tudo o que o
homem sofre por Deus e unicamente por vontade de
Deus, Deus o torna fácil e doce para ele. Conforme
eu disse no início deste nosso sermão: «Nosso S e­
nhor Jesus Cristo subiu até uma pequena cidadela e
foi recebido por uma virgem, que era uma mulher.»
Porquê? Tinha de ser necessariamente assim, que
ela fosse em simultâneo uma virgem e uma mulher.
Ora eu falei-vos de Jesus ter sido recebido; mas eu
ainda não vos disse o que seja a «cidadela», por isso
vos quero agora falar disso.
Eu disse algumas vezes que existe uma potência
no espírito, que é só livre. Por vezes disse que ela é
uma guarda do espírito; outras vezes que ela é uma
luz do espírito; às vezes, que ela é uma centelha. Mas
agora eu digo: ela não é nem uma coisa nem a outra,
no entanto ela é algo mais elevado do que uma ou a
outra, tal como o céu o é em relação à terra. Por isso
nomeio-a eu agora de um modo mais nobre do que
o fiz, apesar de ela escarnecer de tal nobreza e do seu
modo, porque é superior a isso. Ela é livre de todos
os nomes e despida de todas as formas, em absoluto
livre e desprendida, como Deus em si mesmo é des­
prendido e livre. Ela é tão inteiramente um e simples,
SERMÃO 1 1 93

como Deus é um e simples, que é impossível encon­


trar um modo de olhar para dentro dela. Essa mes­
ma potência da qual falei, na qual Deus é verdejante
e florescente com toda a sua divindade e o espírito é
(florescente) em Deus, nessa mesma potência gera o
Pai o seu Filho unigénito tão verdadeiramente como
em si mesmo, pois Ele vive realmente nessa potên­
cia, e o espírito gera com o Pai o mesmo unigénito
Filho e a si mesmo como o mesmo Filho, e é o mes­
mo Filho a esta luz, e é a verdade. Se vós pudésseis
conhecer com o meu coração, então entenderíeis
bem o que eu digo; pois isto é verdade, e é a verdade,
ela própria, que o diz.
Vede e reparai bem! Aquela «cidadela» de que vos
falo e na qual penso, é tão um e tão simples na alma,
tão superior a todos os modos, que aquela nobre po­
tência da qual falei, não é digna de lançar um único
olhar que seja nesta cidadela, e também a outra po­
tência de que falei, onde Deus arde e incandesce
com todo o seu reino e com toda a sua delícia, nun­
ca ousará olhar lá para dentro; esta cidadela é tão um
e tão simples, e tão elevado acima de todos os modos
e de todas as potências é este Um único, que nunca
uma potência ou um modo consegue espreitar para
dentro dela, nem Deus, Ele mesmo. Em boa verdade,
e tão verdadeiro quanto Deus vive: Deus, Ele mes­
mo, nunca espreitará lá para dentro nem por um só
momento e nunca o fez, tanto quanto Ele existe no
modo e na «propriedade» das suas Pessoas. É por
isso que se Deus espreitar lá para dentro, isso custar-
1 94 TRATADOS E SERMÕES

-lhe-á todos os seus nomes divinos e a sua proprie­


dade pessoal; Ele terá de deixar tudo isso de fora, se
Ele quiser alguma vez olhar para dentro. Contudo,
assim como Ele é Um simples, sem qualquer modo
ou propriedade, também Ele não é nem Pai nem
Filho, nem Espírito Santo neste sentido; porém, Ele
é um algo, que não é uma coisa nem a outra.
Vede! É assim, enquanto Ele é um e simples, que
Ele penetra nesse Um, que eu aqui chamo uma cida­
dela na alma, porque de nenhum outro modo con­
segue Ele entrar; só assim entra Ele lá, e se encontra
lá dentro 6 • É pela parte que a alma se assemelha a
Deus, e não de qualquer outro modo. Aquilo que eu
vos disse é verdade; para tal submeto-vos a verdade
como testemunha e a minha alma como penhor.
Que Deus nos aj ude a sermos uma «cidadela»
assim, até à qual Jesus suba e seja recebido, e em nós
permaneça eternamente da maneira que eu vos
disse! Ámen.

' Uma amálgama feita da tradução destas frases para latim, levou a
que elas fossem «incriminadas» no processo de Colónia. S egundo
LIBERA, as frases condenadas foram mais uma vez «senão reescritas»,
pelo menos «montadas» pela acusação. Op. cit. , p. 42 1 .
SERMÃ0 2

«Deves manter-te igual no amor e no sofrimento,


na felicidade e na infelicidade»

Quasi vas auris solidum ornatum omni lapide pretioso.


(Ecl 50,9) 7

E u disse umas poucas palavras em latim, que


leremos hoj e na epístola 8 ; podemos aplicá-las a
S. Agostinho e a qualquer uma boa e santa alma:
como elas são comparáveis àquele vaso de ouro, que
existe firme e perdurável e traz em si a delicadeza de
todas as pedras preciosas. Está no fundamento da
nobreza dos santos, que eles não se podem caracteri­
zar com uma só comparação; por isso, comparamo­
-los às árvores, ao Sol e à Lua. E assim é aqui com­
parado S. Agostinho a um vaso de ouro, que existe
firme e perdurável e traz em si a delicadeza de todas
as pedras preciosas. E o mesmo podemos dizer, em
rigorosa verdade, de cada alma boa, santa, que

7 «Como o incenso sobre a oblação sagrada, como um vaso d e ouro

maciço, ornado de pedrarias» (Ecl 50, 9).


' Cf. Ecl 50,9. Esta citação é retirada da epístola que o missal domi­
nicano propõe para a festa de S. Agostinho.
1 96 TRATADOS E SERMÕES

deixou todas as coisas aqui e as toma além, onde elas


são eternas. Quem deixa as coisas, no que elas têm
de casual, possui-as além, onde elas são um puro ser,
e eternas.
Cada vaso tem dois modos (características) em si:
ele recebe e ele contém. Vasos espirituais e vasos
corporais são diferentes. O vinho está no tonel, mas
o tonel não está no vinho nem o vinho está no tonel,
ou seja, na aduela; porque se ele estivesse no tonel,
ou seja, na aduela, então não poderíamos bebê-lo.
Diferente é o que se passa no vaso espiritual! Tudo o
que ali for recebido, está no vaso e o vaso está nele e
é o próprio vaso. Tudo o que o vaso espiritual recebe,
é da sua natureza. É natureza de Deus o dar-se a
toda a boa alma, e é natureza da alma, o receber
Deus; e isto pode dizer-se em relação ao mais nobre
que a alma consegue patentear. Aí dentro, a alma
carrega a imagem divina e é igual a Deus. Não pode
haver qualquer imagem sem igualdade, mas pode
bem haver igualdade sem imagem. D ois ovos são
igualmente brancos, e no entanto um não é a ima­
gem do outro ; pois o que há-de ser a imagem do
outro deverá vir da sua natureza, ser nascido dele, e
tem de ser igual a ele.
Toda a imagem tem duas propriedades : uma é
que ela recebe o seu ser directamente daquilo cuja
imagem ela é, involuntariamente, porque tem uma
origem natural e sai da natureza como o ramo da ár­
vore. Quando o rosto se move para diante do espe­
lho, então o rosto tem de ficar gravado nele, quer o
SERMÃ0 2 1 97

queira quer não. Mas a natureza não se reproduz na


imagem do espelho; opostamente, a boca e o nariz e
os olhos e toda a forma do rosto - isso reproduz-se
no espelho. Mas Deus ressalvou para si, que, seja em
que for que Ele se reproduza, Ele e a sua natureza e
tudo o que Ele é e pode oferecer, se reproduz aí com
inteira espontaneidade; porque a imagem coloca um
objectivo à vontade, e a vontade segue a imagem, e a
imagem tem o seu primeiro ímpeto da natureza e
atrai tudo isso para dentro de si, o que a natureza e o
ser têm para patentear; e a natureza derrama-se in­
teira na imagem e permanece afinal toda em si mes­
ma. Pois os mestres não situam a imagem no Espí­
rito Santo, fazem-no pelo contrário na Pessoa do
meio, porque o Filho tem o primeiro ímpeto da na­
tureza; por isso é que Ele, no sentido legítimo, se
chama uma imagem do Pai, mas não é assim com o
Espírito Santo: Ele é só um florir a partir do Pai e do
Filho e tem, no entanto, uma natureza (comum) com
ambos. Todavia, a vontade não é uma medianeira
entre a imagem e a natureza; sim, nem o conheci­
mento, nem o saber, nem a sabedoria podem ser
aqui um medianeiro, porque a imagem divina irrom­
pe espontaneamente da fecundidade da natureza.
Mas se houver aqui um medianeiro da sabedoria,
então ele é a própria imagem. Por isso é que o Filho
na divindade se chama a sabedoria do Pai.
Vós deveis saber que a imagem divina simples,
que está impressa na alma no mais íntimo da natu­
reza, é recebida sem medianeiro; e o mais íntimo e o
1 98 TRATADOS E SERMÕES

mais nobre que está na natureza (divina), reproduz­


-se com inteira propriedade na imagem da alma, e
nem a vontade nem a sabedoria são nisso um media­
neiro, como eu disse acima: se a sabedoria é aqui um
medianeiro, então ela é a própria imagem. Aqui
Deus não é mediado na imagem, e a imagem não é
mediada em Deus. Contudo, Deus está de um modo
muito mais nobre na imagem do que a imagem em
Deus. A imagem não toma Deus aqui como sendo
Ele o criador, senão que o toma enquanto um Ser
dotado de intelecto, e o mais nobre da natureza
(divina) reproduz-se com inteira propriedade na
imagem. Esta é uma imagem natural de Deus, que
Deus gravou naturalmente em todas as almas. Agora
não consigo dar mais à imagem; desse-lhe eu algo
mais, então ela deveria ser D eus, Ele mesmo; mas
para Ele não é assim, porque se fosse, então Deus
não seria Deus.
A segunda característica da imagem, devereis vós
conseguir reconhecê-la na igualdade da imagem. E
aqui atentai particularmente em dois pontos. O pri­
meiro é: a imagem não é a partir de si mesma, nem
(em segundo lugar) ela é por si mesma. Do mesmo
modo como a imagem que é recebida no olho : ela
não provém do olho e não tem qualquer ser no olho,
senão que depende e está fixada unicamente naquilo
do qual ela é uma imagem. Por isso ela não é a partir
de si mesma nem por si mesma, senão que provém
na realidade daquilo de que é uma imagem e per-
SERMÃ0 2 1 99

tence-lhe inteiramente, e disso tira ela o seu ser e é o


mesmo ser.
Ora, escutai-me com grande atenção ! Aquilo que
uma imagem é no entendimento correcto, devereis
vós reconhecê-lo em quatro pontos, ou talvez sejam
ainda mais. Uma imagem não é a partir de si mesma,
nem é por si mesma; ela provém, pelo contrário, da­
quele cuja imagem ela é, e pertence-lhe com tudo o
que ele é. O que é estranho àquilo do qual ela é a
imagem, não lhe pertence nem dele provém. Uma
imagem toma o seu ser imediata e unicamente da­
quilo de que é a imagem, e tem um ser com isso e é
o mesmo ser. Eu não falei aqui de coisas que se
devem expor (exclusivamente) na Escola, porque
elas podem ser expostas, com vantagem, para ensi­
namento a partir da cátedra.
Vós perguntais com frequência como deveis viver.
Isso deveis ficar a saber aqui, com zelo. Absoluta­
mente assim, como se disse aqui da imagem, vede, é
desse modo que deveis viver. Tu deves ser a partir
dele e deves ser por Ele, e não deves ser a partir de ti
e não deves ser por ti e não deves pertencer a nin­
guém. Quando eu ontem cheguei aqui a este mos­
teiro, vi salva e outras verduras por cima de um tú­
mulo; então eu pensei: aqui j az o amigo querido de
um homem, e por isso é que ele tem tanto mais
amor a este pedaço de terra. Quem tem um amigo
verdadeiramente querido, tem amor a tudo o que lhe
pertence, e também não gosta daquilo que é antipá­
tico ao seu amigo. Podeis reconhecer um exemplo
200 TRATADOS E SERMÕES

disso no cão, que é um animal irracional. Ele é tão


fiel ao seu dono que odeia tudo o que seja antipático
ao seu dono, e sente amor por quem é amigo do seu
dono, e nisso não olha ele à pobreza ou à riqueza.
Sim, se houvesse um pobre cego que fosse afeiçoado
ao seu senhor, ele ter-lhe-ia mais amor do que a um
rei ou um imperador que fosse antipático para o seu
senhor. Eu digo, em acordo com a verdade: se fosse
possível que o cão fosse infiel ao seu dono com me­
tade do seu ser, então ele teria de se odiar a si mesmo
com a outra metade.
Ora, algumas pessoas queixam-se de que não têm
interioridade, nem recolhimento, nem doçura ou
qualquer consolação particular de Deus. Tais pes­
soas são em verdade muito inj ustas nisso; é certo
que podemos não reparar nelas, mas isso não será o
melhor. Eu digo, de acordo com a verdade: enquanto
se reproduzir em ti algo que não seja a palavra eterna
ou que espreite para fora do que é a palavra eterna,
por muito bom que seja, não haverá nisso verdadei­
ramente nada de justo. Por isso, um homem recto é
unicamente aquele que aniquilou todas as coisas
criadas, e se encontra orientado em linha recta para a
palavra eterna sem qualquer espreitar para fora, nela
se formando e contra-formando 9 interiormente na

• Widerbilden, literalmente contra-formar. Preferimos manter um cri­


tério de coerência semântica em torno do verbo raiz bilden (formar) ,
mesmo que tenhamos d e recorrer a neologismos para dar conta a o leitor
português da variedade de conceitos que Eckhart cria a partir de uma
dada raiz verbal, processo que é tão característico da filosofia alemã, até
aos mais recentes filósofos, como Martin Heidegger.
SERMÃ0 2 201

j ustiça. Um homem assim recebe onde o Filho rece­


be e é o próprio Filho. A Escritura diz: «Ninguém
conhece o Pai senão o Filho» (Mt 1 1 ,27) e por isso:
se quereis conhecer a Deus, então não devereis ser
só iguais ao Filho, senão que devereis ser o próprio
Filho.
Algumas pessoas, contudo, querem ver Deus com
os olhos com que vêem uma vaca, e querem amar
Deus como eles amam uma vaca. Tu gostas das vacas
por causa do leite e do queij o e para teu proveito
próprio. Assim consideram todas aquelas pessoas
que amam Deus por causa da riqueza exterior ou da
consolação interior; mas esses não amam Deus com
rectidão, pois amam, antes do mais, o seu proveito
próprio. Sim, eu digo por amor à verdade : tudo
aquilo para que orientas a tua aspiração se não for
Deus, em si mesmo, nunca poderá ser tão bom que
não seja para ti um obstáculo à verdade suprema.
E, como eu disse mais acima: tal como S. Agosti­
nho é comparado a um vaso dourado, que em baixo
é fechado e em cima aberto, assim também deverás
ser tu. Se tu quiseres permanecer em S. Agostinho e
na santidade de todos os santos, então o teu coração
deve estar fechado para todo o criado, e tu deves
tomar Deus como Ele é em si mesmo. Por isso é que
os homens são comparados às potências superiores,
porque eles estão sempre de cabeça descoberta, e as
mulheres às potências inferiores, porque sua cabeça
está sempre coberta. As potências superiores ele­
vam-se acima do tempo e do espaço e têm a sua ori-
202 TRATADOS E SERMÕES

gem directamente no ser da alma; por isso são elas


comparadas aos homens, porque a sua cabeça está
sempre descoberta. Por isso é eterna a sua obra. Um
mestre diz que todas as potências inferiores da alma,
na medida em que elas tocaram no tempo ou no es­
paço, perderam a sua p ureza virginal e nunca po­
derão ser inteiramente despidas e joeiradas de modo
a conseguirem alcançar, alguma vez, as potências su­
periores; mas ser-lhes-á dada a impressão interior de
uma imag e m semelhante.
Tu deves ser constante e firme, q uer dizer: tu
deves manter-te igual no amor e no sofrimento, na
felicidade e na infelicidade, e deves possuir em ti a
delicadeza de todas as pedras preciosas, isso quer
dizer que todas as virtudes hão-de ser encerradas em
ti e hão-de fluir essencialmente de ti. Tu deves atra­
vessar e superar todas as virtudes, e deves tomar a
virtude só daquela causa primordial onde ela é um
com a natureza divina. E como tu te encontras mais
unido à natureza divina do que o anjo, assim deverá
ele receber através de ti. Que Deus nos ajude a que
nós sejamos Um. Ámen.
SERMÃO 3

«Repousei e dormi eternamente no conhecimento


velado do Pai eterno»

Ave, gratia plena


(Lc 1 ,28)

Estas palavras que acabei de dizer em latim, en­


contram-se no santo Evangelho e significam em ale­
mão: «Salvé, ó cheia de graça, o Senhor está contigo»
(Lc 1 ,28) . O Espírito Santo descerá do alto, do trono
supremo, e virá em ti da luz do Pai eterno (Lc 1 ,35;
Tg 1 , 1 7; Sb 1 8, 1 5) .
Daqui podem-se reconhecer três coisas. Em pri­
meiro lugar: a inferioridade da natureza angélica. Em
segundo: que ele (o anjo) se reconheceu indigno de
chamar a Mãe de Deus pelo nome. Em terceiro: que
ele falou (as palavras) não somente para ela, mas
antes para uma grande multidão : para toda a boa
alma que aspira a Deus.
Eu digo: se Maria não tivesse concebido primeiro
Deus espiritualmente, Ele nunca seria nascido cor­
poralmente dela. Uma mulher disse a Nosso Senhor:
«Felizes as entranhas que te trouxeram. » Nosso Se-
204 TRATADOS E SERMÕES

nhor retorquiu-lhe: « D iz antes : Felizes os que es­


cutam a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc
1 1 ,27/2 8) . É para Deus mais precioso que Ele seja
nascido espiritualmente de cada virgem ou (quer
dizer) de cada alma boa, do que se Ele tivesse nas­
cido corporalmente de Maria.
Deve-se entender nisso que nós devemos ser um
Filho único, que o Pai gerou eternamente. Quando o
Pai gerou todas as criaturas, então Ele gerou-me a
mim, e eu fluí para fora com todas as criaturas e per­
maneci, contudo, no interior do Pai. Exactamente
assim como a palavra que agora eu digo : por um
lado, isso tem origem em mim, por outro, detenho­
-me no seu conceito, em terceiro lugar, enuncio-a
em voz alta e vós todos a recebeis; não obstante, ela
permanece em mim no verdadeiro sentido. É assim
que eu também permaneci no Pai. No Pai estão as
imagens arquetípicas de todas as criaturas. Esta ma­
deira (do púlpito) tem uma imagem arquetípica es­
piritual em Deus. Ela não só contém intelecto, senão
que é intelecto puro.
A maior ventura que Deus concedeu ao homem
foi que ele se tornasse homem. Quero contar-vos
um caso que vem bem a propósito. Havia um ho­
mem rico e uma mulher rica. Um dia, ocorreu um
acidente à mulher, no qual ela perdeu um olho; ela
ficou muito aflita com isso. O homem veio ter com
ela e disse-lhe: «Senhora, porque estais tão aflita?
Não vos deveis afligir por terdes perdido um olho.»
Ela respondeu-lhe: «Senhor, não me aflige que eu
SERMÃ0 3 205

tenha perdido um olho; o que me aflige, é antes eu


j ulgar que por causa disso vós gostareis menos de
mim.» Então ele disse: «Senhora, eu amo-vos. » Al­
gum tempo depois ele arrancou a si mesmo um
olho, foi ter com a mulher, e disse-lhe: «Senhora,
para que vós agora acrediteis que eu vos amo, fiz-me
igual a vós; eu também tenho a partir de agora um só
olho. » Assim (também) é o homem: ele mal podia
acreditar que Deus lhe tivesse tanto amor, até que
Deus «arrancou» um olho a si próprio e assumiu
natureza humana. Isto significa: «Tornou-se carne»
(Jo 1 , 1 4) 10• Nossa Senhora disse: «Como há-de isto
acontecer? » e o anjo retorquiu-lhe: «Ü Espírito San­
to descerá em ti vindo do alto», do trono supremo,
do Pai da luz eterna (Lc 1 ,34/35; Sb 1 8, 1 5; Tg 1 , 1 7) .
«ln principio» (J o 1 , 1 ) . «Um menino nasceu para
nós, um filho nos foi dado» (Is. 9, 6) , um menino se­
gundo a pequenez da natureza, um Filho segundo a
divindade eterna. Os mestres dizem: todas as criatu­
ras operam no sentido de quererem gerar, e elas
querem ser iguais ao Pai. Um outro mestre diz: toda
a causa operante opera por vontade da sua finali­
dade, para que encontre repouso e calma na sua fi­
nalidade. Um mestre diz: todas as criaturas operam
segundo a sua pureza primordial e segundo a sua
perfeição suprema. O fogo enquanto fogo não in­
cendeia; ele é tão puro e tão subtil que ele não arde;
pelo contrário, a natureza do fogo incendeia e vaza

" «E o Verbo fez-se homem» Go 1 , 1 4) .


206 TRATADOS E SERMÕES

na madeira seca a sua natureza e a sua claridade con­


forme à sua perfeição suprema. Do mesmo modo o
fez Deus. Ele criou a alma segundo a perfeição su­
prema e vazou nela toda a sua claridade na pureza
primordial, e permaneceu no entanto sem mistura.
Eu disse recentemente num lugar: no momento
em que criou todas as criaturas, Deus já tinha gerado
antes algo que era incriado, que trazia em si todas as
imagens arquetípicas ; isso é a centelha, como eu
disse há pouco no mosteiro dos Santos Macabeus 1 1 ,
se vós ainda vos conseguis recordar, essa centelha
que é tão aparentada a Deus que é um único Um,
indiferenciado, que carrega em si as imagens arque­
típicas de todas as criaturas, imagens arquetípicas
sem imagens e sobrepostas às imagens.
Ontem, na Escola 1 2 , debateu-se uma questão entre
grandes teólogos. «A mim espanta-me», disse eu,
«que a Escritura seja tão substancial que ninguém
consiga (nela) fundamentar a mínima palavra. » E ,
como vós me perguntais se, visto q u e eu s o u u m
Filho único que o Pai celestial eternamente gerou, eu
(também) terei sido eternamente Filho em Deus, res­
pondo-vos: sim e não; sim, enquanto Filho em con­
formidade com o Pai me ter nascido eternamente,
mas não Filho em conformidade com a incriação.
«ln principio » . Com isso é-nos dado a entender

11 Trata-se do mosteiro beneditino dos Macabeus, em Colónia.


12 Refere-se ao studium generale dos Dominicanos em Colónia. Quint
estabelece que este Sermão foi proferido no mosteiro das Cistercienses
de St. Mariengarten, em Colónia.
SERMÃ0 3 207

que nós somos um Filho único que o Pai gerou eter­


namente das trevas ocultas da velatura eterna, que
permanece interiormente no primeiro começo da
pureza primordial, que é uma plenitude de toda a
pureza. Aqui repousei e dormi eternamente no
conhecimento velado do Pai eterno, permanecendo
interiormente impronunciável. Ele gerou-me eterna­
mente desta pureza como seu Filho único na ima­
gem da sua paternidade eterna, para que eu seja Pai e
gere Aquele de quem eu nasci. Da mesma maneira,
por assim dizer, que se alguém estivesse no pico de
uma montanha e gritasse: «Estás aí? » o eco lhe res­
ponderia: «Estás aí? » E se ele exclamasse: «Sai ! » o
eco também responderia: «Sai ! » . Sim, quem a esta
luz olhasse para um pedaço de madeira, vê-lo-ia tor­
nar-se num anjo, e seria dotado de intelecto e não
apenas dotado de intelecto, tornar-se-ia em p ura
razão na pureza primordial, que é uma plenitude de
toda a pureza. Assim faz Deus: Ele gera o seu Filho
único no mais elevado da alma. Do mesmo passo em
que Ele gera o seu Filho único em mim, eu gero-o
de volta no Pai. Isso não é de outro modo, pois Deus
gerou o anjo, enquanto Ele, pelo contrário, foi ge­
rado pela Virgem.
Tive uma vez a ideia - já lá vão muitos anos - se
eu não seria uma vez questionado por que razão
cada caule de planta é tão diferente do outro; e acon­
teceu que me perguntaram por isso, por que razão
eles são tão diferentes entre si. Então eu disse: é
ainda mais espantoso por que todos os caules de
208 TRATADOS E SERMÕES

plantas são tão semelhantes. Um mestre disse: que


todos os caules das plantas sejam tão diferentes, isso
deve-se à abundância da bondade de Deus, que Ele
derrama em abundância por todas as criaturas, para
que o seu esplendor se revele ainda mais. Mas eu
disse então: é mais espantoso por que são todos os
caules das plantas tão iguais, e acrescentei: assim
como todos os anjos são um anjo na pureza primor­
dial, absolutamente Um, assim são também Um
todos os caules das plantas na pureza primordial, e
todas as coisas são Um aí.
Ocorreu-me, por vezes, o pensamento, quando
para aqui me dirigia, que o homem conseguirá for­
çar Deus a entrar na temporalidade. Se eu estivesse
aqui em cima e dissesse a alguém: «Sobe para aqui!»,
isso seria difícil (para ele) . Mas se eu dissesse: «Sen­
ta-te aqui em baixo! » isso seria mais fácil. Assim faz
Deus. Quando o homem se humilha, Deus não Se
pode impedir de, na sua própria bondade, descer até
ao homem humilde e nele se derramar, e Ele partilha
o máximo com o mais inferior e dá-se-lhe plena­
mente. Aquilo que Deus dá, é o seu ser, e o seu ser é
a sua bondade, e a sua bondade é o seu amor. Todo o
sofrimento e toda a alegria provêm do amor. Quan­
do eu me encontrava no caminho de vinda para
aqui, ocorreu-me que eu preferia não vir, porque fi­
caria banhado de lágrimas por amor. Se fostes ba­
nhados (de lágrimas) por amor, não vos importeis.
Alegria e sofrimento vêm do amor. O homem não
deve temer a Deus, pois se ele o temer, fugirá dele.
SERMÃ0 3 209

Este temor é um temor prejudicial. Mas é um temor


justo, quando se teme perder a Deus. O homem não
deve temê-lo, ele deve amá-lo, pois Deus ama o ho­
mem com toda a sua suprema perfeição. Os mestres
dizem que todas as coisas operam com a vontade
dirigida para gerarem e quererem ser iguais ao Pai, e
dizem: a terra foge do céu; se ela fugir para baixo,
então ela chegará ao céu por baixo, se ela fugir para
cima, então ela chegará ao mais inferior do céu. A
terra não pode fugir tão para baixo que o céu não se
derrame nela e imprima nela a sua potência e a torne
fértil, quer isso lhe agrade ou a faça sofrer. Do mes­
mo modo se passa com o homem que imagina fugir
de Deus, e afinal não consegue fugir dele; todos os
recantos o revelam. Ele imagina que foge de Deus e
corre para o seu regaço. Deus gera o seu Filho único
em ti, quer te agrade, quer tu sofras, quer tu durmas
quer estejas desperto; Ele faz o que é seu. Eu ques­
tionei recentemente o que teria a culpa de o homem
não sentir isso, e disse: o que tem a culpa disso é que
a sua língua está colada a uma outra impureza, isto é
às criaturas; exactamente do mesmo modo que uma
pessoa para quem todos os alimentos são amargos e
não têm sabor. O que tem a culpa de os alimentos
não nos saberem bem? A culpa é de nós não termos
nenhum sal. O sal é o amor divino. Se nós tivésse­
mos o amor divino, então Deus saber-nos-ia bem,
assim como todas as obras que Ele desde sempre
operou, e nós receberíamos todas as coisas de Deus
210 TRATADOS E SERMÕES

e operaríamos todos as mesmas obras que ele opera.


Nessa igualdade somos todos nós um único Filho.
Quando Deus criou a alma, Ele criou-a segundo
a sua suprema perfeição, para que ela fosse uma
noiva do seu Filho único. Como Ele (= o Filho) reco­
nheceu isso bem, então Ele quis sair da sua secreta
câmara do tesouro da Paternidade eterna, na qual
Ele dormia eternamente, permanecendo no interior
inexpresso. «ln principio»: no primeiro começo da
pureza primordial, aí abriu o Filho a tenda da sua
glória eterna, e saiu do Altíssimo porque Ele queria
elevar a sua amiga, que o Pai fizera sua esposa desde
a eternidade, para que Ele a levasse de volta para o
Altíssimo, do qual ela proveio. E está escrito noutra
passagem: «Eis que o teu rei vem a ti» (Zc 9,9) . Por
isso é que Ele saiu e veio saltando como um corço e
sofreu a sua pena por amor; e Ele não saiu, sem que­
rer de novo voltar a entrar com sua noiva em sua
câmara. Esta câmara é a treva silenciosa da velada
paternidade. Aí, de onde Ele saiu do Altíssimo, quis
Ele entrar de novo com sua noiva na maior pureza, e
quis revelar-lhe a intimidade velada da sua velada
divindade, onde Ele repousa consigo mesmo e todas
as criaturas.
«ln principio», isso q uer dizer em alemão tanto
como um começo de todo o ser, como eu disse na
Escola. Eu disse ainda que é um fim de todo o ser,
pois o primeiro começo existe por vontade da última
finalidade. Sim, mesmo Deus não repousa aí, onde é
o primeiro começo; Ele repousa (antes) aí, onde Ele
SERMÃ0 3 21 1

é finalidade e descanso de todo o ser; não como se


esse ser fosse aniquilado, pois ele é, pelo contrário,
consumado aí como na sua última finalidade, con­
forme à sua mais elevada perfeição. O que é a última
finalidade? É a treva velada da divindade eterna, e é
desconhecida, nunca foi conhecida e nunca será
conhecida. Deus permanece aí desconhecido em si
mesmo, e a luz do Pai eterno brilhou aí dentro eter­
namente, mas as trevas não a admitiram (cf. ]o 1 ,5).
Que a verdade da qual falei, nos ajude a chegar a
esta verdade. Ámen.
SERMÃ0 4

«Eu sou a causa de que Deus seja Deus»

Beati pauperes spiritu, quia ipsorum est regnum coelorum


(Mt S ,3)

A beatitude abriu a sua boca de sabedoria e disse:


«Bem-aventurados os pobres em espírito, porque
deles é o reino dos céus» (Mt 5,3). Todos os anjos e
todos os santos e tudo o que alguma vez nasceu de­
verão silenciar-se, quando esta sabedoria eterna do
Pai fala; porque toda a sabedoria dos anjos e de todas
as criaturas, isso é um puro nada perante a insondá­
vel sabedoria de Deus. E essa sabedoria disse que os
pobres são bem-aventurados.
Ora, existem dois tipos de pobreza. Uma é a po­
breza exterior, e ela é boa e muito louvável no ho­
mem, que a assume com vontade por amor a Nosso
Senhor Jesus Cristo, porque Ele mesmo a teve na
terra. Sobre esta pobreza não falarei mais. Entretan­
to, existe ainda uma outra pobreza, uma pobreza in­
terior, que pode ser entendida naquelas palavras de
Nosso Senhor quando Ele diz: «Bem-aventurados os
pobres em espírito.»
SERMÃ0 4 213

Pois b e m , eu peço-vos para serdes do mesmo


modo (pobres) , para que possais entender este ser­
mão; porque eu digo-vos pela verdade eterna: se vós
não vos igualais a esta verdade da qual nós quere­
mos falar agora, então não me podereis entender.
Algumas pessoas perguntaram-me o que será a
pobreza em si mesma e o que será um homem
pobre. Nós queremos responder a isso.
O bispo Alberto 13 diz que um homem pobre é
aquele que não encontra satisfação em nenhuma
coisa que Deus criou, e isso está bem dito. Mas nós
dizemo-lo ainda melhor e entendemos pobreza num
sentido (ainda) mais elevado: um homem pobre é
aquele que nada quer, nada sabe e nada tem. Destes
três pontos quero eu falar, e peço-vos por amor de
Deus que entendais esta verdade, se puderdes. Mas se
não a entenderdes, não fiqueis preocupados por cau­
sa disso, pois eu quero falar de uma verdade, cuj a
natureza s ó poucas pessoas boas a poderão entender.
Digamos, primeiramente, que um homem pobre
é aquele que nada quer. Este sentido não é enten­
dido correctamente por algumas pessoas: são aque­
las pessoas que se agarram ao seu eu egotista no
exercício da penitência e exercícios exteriores, que
elas, contudo, consideram como algo de grande. Que
Deus tenha piedade de tal gente que tão pouco
conhece da verdade divina! Essas pessoas chamam­
-se santas por causa do aspecto exterior, mas por

1 3 Santo Alberto Magno (e. 1 1 93 - 1 280), bispo de Regensburg e

doutor da Igreja.
214 TRATADOS E SERMÕES

dentro elas são asnos, pois não abrangem o autên­


tico sentido da verdade divina. É certo que essas pes­
soas (também) dizem que um homem pobre é aque­
le que nada quer. Mas elas interpretam-no assim,
que o homem deveria viver de modo que ele nunca
realizasse a sua vontade no que quer que fosse, que
ele deveria (antes) ambicionar a realização da mais
amada vontade de Deus. Essas pessoas estão certas
nisso, e a sua opinião é boa; por isso queremos lou­
vá-las. Que D eus na Sua misericórdia lhes queira
oferecer o reino dos céus. Mas eu afirmo, pela ver­
dade divina, que essas pessoas não são (verdadeira­
mente) pobres, nem sequer se parecem com gente
pobre. Elas são vistas como importantes (somente)
aos olhos das pessoas que não conhecem nada de
melhor. Mas eu digo que elas são asnos que nada
compreendem da verdade divina. Elas poderão al­
cançar o reino dos céus por causa da sua boa inten­
ção; mas da pobreza, da qual eu agora quero falar,
nada sabem.
Se me perguntassem agora o que é então um ho­
mem pobre, que nada quer, então eu responderia,
dizendo: enquanto o homem tiver para si, que a sua
vontade é a de querer realizar a mais amada vontade
de Deus, então um tal homem não possui a pobreza
da qual nós queremos falar; pois esse homem tem
(ainda) uma vontade, com a qual ele quer satisfazer a
vontade de D eus, e isso não é verdadeira pobreza.
Porque, se o homem quiser possuir verdadeira po­
breza, então ele deve ser tão desprendido da vontade
SERMÃ0 4 215

criada, como ele era, quando (ainda) não era. Pois eu


digo-vos pela verdade eterna: enquanto tiverdes a
vontade de realizar a vontade de D eus, e tiverdes
uma ânsia de eternidade e de Deus, não sereis au­
tenticamente pobres. Pois só é um homem pobre,
aquele que nada quer e nada ambiciona.
Quando eu me encontrava (ainda) na minha pri­
meira causa, eu não tinha qualquer D eus, e eu era
causa de mim mesmo. Eu nada queria, eu nada ambi­
cionava, pois eu era um ser desprendido e um conhe­
cedor de mim mesmo na fruição da verdade. Aí, eu
queria-me a mim mesmo e nada mais queria; o que
eu queria, era eu, e o que eu era, era o que eu queria,
e aqui eu encontrava-me desprendido de Deus e de
todas as coisas. Mas quando eu saí por uma decisão
da minha livre vontade, e recebi o meu ser criado,
então eu tive um Deus; pois antes de as criaturas
serem, Deus (ainda) não era Deus: Ele era, pelo con­
trário, aquilo que Ele era. Quando as criaturas nasce­
ram e receberam o seu ser criado, Deus não era Deus
em si mesmo, senão que era Deus nas criaturas.
Ora nós dizemos que Deus, enquanto Ele é Deus,
não é o objectivo supremo da criatura, pois a mais
ínfima criatura tem um grau muito elevado de ser
em Deus. E se acontecesse que uma mosca dispu­
sesse de um intelecto e conseguisse buscar, por via
do intelecto, o abismo eterno do ser, do qual ela pro­
veio, então nós diríamos que Deus, com tudo o que
Ele é enquanto Deus, não conseguiria criar satisfa­
ção e plenitude a essa mosca. Por isso é que nós pe-
216 TRATADOS E SERMÕES

dimos a Deus que nos tornemos desprendidos de


Deus e que alcancemos a verdade e a desfrutemos
eternamente aí, onde os anjos superiores e a mosca e
a alma são iguais, aí, onde eu me encontrava e queria
o que eu era, e era o que eu queria. Por conseguinte,
nós dizemos: se o homem deve ser pobre em von­
tade, então ele deverá querer e desej ar tão pouco
como ele queria e desej ava quando ele (ainda) não
era. E deste modo é pobre o homem que nada quer.
E m segundo lugar, um homem pobre é aquele
que nada sabe. Nós dissemos ocasionalmente, que o
homem devia viver assim, como se ele não vivesse
para si mesmo, nem para a verdade, nem para Deus.
Mas agora dizemo-lo de um modo diferente, e que­
remos ir mais longe, dizendo: o homem que há-de
ter esta pobreza deve viver de modo que nem (se­
quer) ele sabe que não vive para si mesmo, nem para
a verdade ou para D eus. Ele deve, pelo contrário,
estar tão desprendido de todo o saber, que ele não
sabe, não conhece nem sente que D eus vive nele.
Mais ainda: ele deve estar desprendido de todo o
conhecimento que nele vive. Pois quando o homem
(ainda) se encontrava na essência eterna de D eus,
não vivia nele algo de diferente; o que vivia nele era
ele mesmo. Por isso é que nós dizemos que o ho­
mem deve ser tão desprendido do seu próprio saber,
como ele fazia quando ainda não era, e deve deixar
Deus operar o que Ele quiser, permanecendo o ho­
mem desprendido.
Tudo o que alguma vez saiu de Deus é determi-
SERMÃ0 4 217

nado p o r u m puro operar. M a s o operar determi­


nado para o homem é: amar e conhecer. Ora é uma
questão litigiosa saber onde se situa principalmente
a beatitude. Alguns mestres disseram que ela se situa
no amor, outros dizem que ela se situa no conheci­
mento e no amor, e são mais acertados. Mas nós
dizemos que ela não se situa nem no conhecimento
nem no amor; existe, antes, um algo na alma, do qual
fluem o conhecimento e o amor; o próprio algo não
conhece nem ama, como fazem as potências da
alma. Quem conhece este (algo) sabe onde se situa a
beatitude. Ele não tem antes nem depois, e não espe­
ra por nada que se possa acrescentar, pois não pode
ganhar nem perder. Por isso ele também é privado de
saber que Deus opera nele; ele é, contudo, o mesmo
que usufrui de si próprio, como Deus o faz.
Eu digo que tão quite e desprendido deve encon­
trar-se o homem, que ele não saiba nem conheça
que Deus opera nele, e assim poderá o homem pos­
suir a pobreza.
Os mestres dizem que Deus é um ser, um ser in­
telectual que conhece todas as coisas. Mas eu digo:
Deus não é um ser, nem um ser intelectual, nem
conhece isto ou aquilo. Por isso é que Deus é des­
prendido de todas as coisas - e (precisamente) por
isso Ele é todas as coisas. Quem for pobre em espí­
rito, deve ser pobre em todo o saber próprio, de
modo que ele não saiba de nada, nem de Deus, nem
da criatura, nem de si próprio. Por isso é necessário
que o homem aspire a nada saber nem conhecer das
218 TRATADOS E SERMÕES

obras de Deus. Deste modo o homem consegue ser


pobre no seu próprio saber.
Em terceiro lugar, um homem pobre é aquele que
nada tem. Muitas pessoas disseram que a perfeição
consistirá em não se possuir (mais) coisas materiais
terrenas, e isso é bem verdade no sentido que al­
guém o faça intencionalmente. Mas esse não é o
sentido a que eu me refiro.
Eu disse antes que um homem pobre é aquele
que nem sequer quer realizar a vontade de D eus,
que vive, contudo, de modo que é tão desprendido
da sua própria vontade e da vontade de Deus, como
ele era quando ainda não era. Dessa pobreza dize­
mos nós que ela é a pobreza suprema. Em segundo
lugar dissemos que um homem pobre é aquele que
nada sabe do operar de Deus em si. Quando alguém
se encontra tão desprendido do saber e do conhecer,
essa é a mais pura pobreza. Mas a terceira pobreza,
da qual quero falar agora, é a mais extrema: é aquela
em que o homem nada tem.
Ora prestai muita atenção aqui! Eu G á) disse
muitas vezes, e grandes mestres dizem-no também:
o homem deve estar desprendido de todas as coisas e
de todas as obras, interior como exteriormente, de
forma que ele possa ser um lugar próprio de Deus,
no qual Deus possa operar. Mas agora dizemo-lo de
modo diferente. Se acontecer assim, que o homem
estej a desprendido de todas as coisas, de todas as
criaturas, de si próprio e de Deus, mas se a sua situa­
ção for ainda de modo que Deus ache nele um lugar
SERMÃ0 4 219

para operar, então nós dizemos: enquanto isso exis­


tir no homem, o homem (ainda) não é pobre na mais
autêntica pobreza. Pois Deus não aspira, para o seu
operar, a que o homem tenha um lugar em si, no
qual Deus possa operar; senão que a pobreza em es­
pírito é quando o homem se encontra tão despren­
dido de Deus e de todas as suas obras, que D eus,
conquanto Ele queira operar na alma, é sempre Ele
próprio o lugar no qual Ele quer operar, o que Ele
faria com agrado. Pois se Deus encontrar o homem
assim pobre, então Ele opera a sua própria obra, e o
homem sofre desse modo D eus em si mesmo, e
Deus é um lugar próprio das suas obras; (mas) o ho­
mem é um puro sofredor de Deus nas suas obras,
perante o facto que D eus opera em si mesmo. Aí,
nessa pobreza, o homem alcança o ser eterno (de
novo) que ele foi, e que ele é agora, e que ele perma­
necerá eternamente.
Há aquelas palavras de S. Paulo, em que ele diz:
«Mas, pela graça de D eus, sou o que sou» ( 1 Cor
1 5 , 1 O) . Ora, este (meu) discurso parece situar-se
acima da graça, e acima do ser, e acima do conheci­
mento e da vontade, e de toda a aspiração, como
podem, pois, ser verdadeiras as palavras de S. Paulo?
Poder-se-ia responder a isso que as palavras de
S. Paulo são verdadeiras. Era necessário que a graça
estivesse nele, pois a graça de Deus operou nele que
a casualidade se tornasse em essencialidade. Quando
a graça terminou e realizou a sua obra, Paulo perma­
neceu aquilo que ele era.
220 TRATADOS E SERMÕES

Nós dizemos, por conseguinte, que o homem


deve ser tão pobre, que não seja nem tenha qualquer
lugar no qual Deus possa operar. Onde o homem
conservar um lugar, ele conservará ainda a distinção.
Por isso eu peço a Deus, que ele me faça quite com
Deus; pois o meu ser essencial está acima de Deus,
conquanto nós entendamos Deus como começo das
criaturas. Aí, naquele ser de Deus, onde Deus é
acima de todo o ser e acima de toda a distinção, eu
era eu próprio, aí eu q ueria-me a mim próprio e
conhecia-me a mim próprio, para criar este homem
(que sou) . E por isso eu sou causa de mim mesmo
segundo o meu ser, que é eterno, mas não segundo o
meu devir, que é temporal. E por isso sou eu in­
criado, e segundo o modo da minha incriação eu
nunca poderei morrer. Segundo o modo da minha
incriação eu fui, e eu sou agora eterno, e ficarei
eterno para sempre. Aquilo q ue eu sou segundo a
minha incriação, isso morrerá e será aniquilado, pois
é mortal; por isso deverá corromper-se com o tempo.
No meu (eterno) nascimento nasceram todas as
coisas, e eu fui causa de mim mesmo e de todas as
coisas; e se eu o tivesse querido, eu não seria nem
seriam todas as coisas ; mas se eu não fosse, então
Deus também não seria: eu sou a causa de que Deus
sej a Deus; se eu não fosse, então Deus não seria
Deus. Não é necessário saber isso.
Um grande mestre diz que o seu manifestar-se é
mais nobre do que o seu fluir, e isso é verdade.
Quando eu fluí de Deus todas as coisas disseram:
SERMÃ0 4 221

Deus é. Mas isso não me pode fazer bem-aventu­


rado, pois nisso eu reconheço-me como criatura.
Mas no manifestar-me, onde eu me encontro des­
prendido da minha própria vontade e da vontade de
Deus, e de todas as suas obras e de Deus, Ele mes­
mo, aí, eu sou acima de todas as criaturas e não sou
Deus nem criatura, mas sou o que eu era e o que
ficarei agora e doravante. Aí, eu recebo uma elevação
que me deverá levar para mais alto do que todos os
anjos. Nesta elevação eu recebo um reino tão gran­
de, que Deus não me poderá ser suficiente com tudo
o que Ele é enquanto Deus, nem com todas as suas
obras divinas; pois a mim cabe-me em sorte neste
manifestar-me, que eu e Deus sej amos um. Aí eu
sou o que eu era, e aí não cresço nem decresço, pois
sou aqui uma causa imóvel, que move todas as
coisas. Aqui, D eus não encontra (mais) qualquer
lugar no homem, pois o homem conquista com esta
pobreza, aquilo que ele foi eternamente e permane­
cerá para sempre. Aqui, Deus é um com o espírito, e
esta é a mais autêntica pobreza que se pode achar.
· Que aqueles que não entenderem este sermão,
não se aflijam com isso. Porque enquanto o homem
não se assemelhar a esta verdade, ele não entenderá
este sermão. Porque esta é uma verdade desvelada,
que saiu directamente do coração de Deus.
Queira Deus aj udar-nos a que nós consigamos
viver de tal modo, que experimentemos isso eterna­
mente. Ám en.
SERMÃO S

« Quem quiser contemplar Deus, deve ser cego»

Videns Jesus turbas, ascendit in montem etc.


(Mt S , 1 )

Lemos no Evangelho que Nosso Senhor deixou a


multidão e subiu a um monte. Ai., Ele tomou a pala­
vra e ensinou sobre o reino de Deus (cf. Mt 5 , 1 ) .
« . . . e ensinou.» S . Agostinho diz: «Quem ensina,
tem a sua cadeira no céu. Quem quiser receber o en­
sinamento de Deus deverá ascender e passar além de
tudo o que está exposto; ele deverá libertar-se disso.
Quem quiser receber o ensinamento de Deus, deve­
rá concentrar-se e refutar todo o cuidado e preo­
cupação, e a azáfama das coisas inferiores. As potên­
cias da alma, que são tantas e se decompõem tanto,
deverá ele ultrapassar, mesmo aí onde elas se situam
na área do pensamento, apesar do pensamento,
quando é (puro) em si mesmo, operar milagres. Mas
também se deve passar para além deste pensamento,
se quisermos que Deus surja naquelas potências que
não são decompostas.
Em segundo lugar: «Ele subiu a um monte», sig-
SERMÃO 5 223

nifica que Deus (com isso) anuncia a elevação e a


doçura da sua natureza, onde necessariamente cai
tudo o que é criatura. Aí, ele (o homem) apenas sabe
de Deus e de si mesmo, na medida em que ele é uma
imagem de Deus.
Em terceiro: «Ele subiu», isso mostra a sua eleva­
ção - aquilo que é elevado, está perto de Deus -, e
refere-se àquelas potências que estão muito próxi­
mas de Deus. Nosso S enhor levou uma vez três dos
seus discípulos, e conduziu-os a um monte, e trans­
figurou-se diante deles na mesma transfiguração do
corpo que nós teremos na vida eterna (cf. Mt 1 7, 1 /2)..
Nosso Senhor disse: «Lembrai-vos, quando eu falei
do Céu para vós, não vistes imagem, nem forma nem
comparação (cf. Mt 1 7, 8) 14• Quando o homem deixa
a multidão, então Deus dá-se na alma sem imagem e
sem comparação. Todas as coisas (pelo contrário)
são conhecidas por imagens e comparações.
S. Agostinho ensina sobre três géneros diferentes
de conhecimentos. Um está ligado ao corpo: ele re­
colhe imagens, como o olho, que vê e recolhe ima­
gens. O segundo é espiritual e recolhe imagens de
coisas corporais. O terceiro é (absolutamente) inte­
rior no espírito, e reconhece sem imagens ou com­
parações; e este conhecimento assemelha-se aos
anjos. A dominação superior dos anjos divide-se em
três. Um mestre diz: a alma não se conhece sem

14 « E , erguendo os olhos, apenas viram Jesus e mais ninguém»


(Mt 1 7,8).
224 TRATADOS E SERMÕES

comparação, porque todas as coisas são conhecidas


em imagens e comparações. Mas o anjo conhece-se,
e a Deus, sem comparação. Ele quer dizer: Deus dá­
-se na altura na alma sem imagem e sem comparação.
«Levou-os em particular a um alto monte. Trans­
figurou-se diante deles» (Mt 1 7 1 ,2). A alma deve ser
transfigurada e imprimida, e de novo fixada naquela
imagem. Eu digo, quando a alma sai para além de
todas as imagens, então ela fixa-se naquela imagem
que é o Filho de Deus. Os mestres dizem: só o Filho
é uma imagem de D eus, porém a alma é formada
segundo esta imagem (Sb 2 , 2 3 ) 15• Mas eu digo : o
Filho é uma imagem sobreposta à imagem de Deus;
Ele é uma imagem da sua oculta divindade. Ora, é
. precisamente em harmonia com aquilo em que o Fi­
lho é uma imagem de Deus e dentro do qual o Filho
é formado interiormente, que a alma também é for­
mada. Da mesma (fonte) de onde o Filho recebe,
também recebe a alma. Mesmo aí, onde o Filho
emana do Pai, a alma não fica suspensa; ela eleva-se
acima de qualquer imagem. O fogo e o calor são um,
contudo estão longe de serem Um: a boca apercebe­
-se do sabor, mas o olho nada contribui para isso; o
olho apercebe-se da cor, mas disso, pelo contrário, a
boca nada sabe. O olho exige luz, mas o sabor tam­
bém existe na noite. A alma de nada sabe senão do
Um, ela é superior a qualquer imagem.

" «Com efeito, Deus criou o homem para a incorruptibilidade, e fê­


-lo à imagem da sua própria natureza» (Sb 2,23).
SERMÃO 5 225

Por isso diz o profeta: «D eus quer conduzir as


suas ovelhas para uma verde pastagem» (Ez 34, 1 4) 1 6 •
A ovelha é simples; assim também são simples aque­
las pessoas que estão flectidas para o Um (interior) .
Um mestre diz que não se consegue reconhecer em
nenhum lado a órbita celeste tão bem como nos ani­
mais simples: eles experimentam de um modo sim­
ples a influência do céu; igualmente as crianças, que
não têm um sentido próprio. Mas as pessoas que são
sábias e têm muitos sentidos estão constantemente
orientadas para fora em múltiplas coisas. Nosso Se­
nhor prometeu revigorar as suas ovelhas em simples
pastagens nos férteis prados da montanha (cf. Ez
34, 1 3/1 4) . Todas as criaturas reverdej am em D eus.
Todas as criaturas descem primeiramente de Deus,
depois através dos anj os. O que a natureza de ne­
nhuma criatura tem é o que tem a impressão de
todas as criaturas em si mesmo. O anjo tem na sua
natureza a impressão de todas as criaturas; o que a
natureza do anj o consegue receber tem ele Gá) sem­
pre inteiramente em si. O que Deus consegue criar é
transportado p elos anjos em si, porque eles não
foram roubados da perfeição que (todas) as outras
criaturas possuem. Mas por que razão possui o anjo
isso? Porque ele está próximo de Deus.
S. Agostinho diz: «Ü que Deus cria, tem um influ­
xo através dos anjos.» Nas alturas todas as coisas são
verdes. Nas montanhas elevadas todas as coisas são

" «Eu as apascentarei em boas pastagens» (Ez 34, 1 4) .


226 TRATADOS E SERMÕES

novas e verdes; mas se elas caírem na temporalidade,


então elas desbotam e tornam-se pálidas. No verde
novo de todas as criaturas, quer Nosso Senhor ali­
mentar as suas ovelhas. Todas as criaturas que se
encontram aí, nesse verde e nessa elevação, tal como
elas são nos anjos, tornam-se mais aprazíveis à alma
do que tudo o que existe neste mundo. Tão diferente
como é o sol face à noite, assim é a mais ínfima cria­
tura, como ela existe, se comparada com o mundo
inteiro.
Quem quiser receber o ensinamento de D eus,
deverá ir até essa montanha; aí, quer Deus consumar
(o ensinamento) no dia da eternidade, no qual Ele é
uma plena luz. Aquilo que eu reconheço em Deus é
a luz; mas aquilo que toca a criatura é a noite. (Só)
há verdadeira luz onde nenhuma criatura toca.
Aquilo que se reconhece deve ser luz. S. João diz:
Deus é uma verdadeira luz que resplandece nas tre­
vas (cf. ]o 1 ,5 . 9) . O que são estas trevas? Primeira­
mente, que o homem em nada se fixa ou agarra, e
que é cego e nada sabe das criaturas. Eu j á disse
muitas vezes : quem quiser contemplar Deus, deve
ser cego. Em segundo lugar: «Deus é uma verdadeira
luz que resplandece nas trevas», porque Ele é uma
luz que cega. Isso significa uma luz de uma tal natu­
reza que é inapreensível e infinita, pois não tem
qualquer fim e nada sabe de um qualquer fim. E isto
quer dizer que ela cega a alma, de modo que ela nada
sabe e nada conhece. E as terceiras trevas são as
melhores e referem-se àquele no qual nenhuma luz
SERMÃO S 227

brilha (de todo) . Um mestre diz: O céu não tem


qualquer luz, é demasiado alto para tal; ele não
brilha, e em si mesmo não é frio nem quente. Assim
também a alma perde toda a luz nestas trevas; ela
brota de tudo o que se possa chamar luz ou cor.
Um mestre diz: o mais elevado, q uando D eus
quer cumprir a sua promessa é a luz. Um mestre diz:
o sabor agradável de tudo o que é apetecível deverá
ser levado com a luz para a alma. Um mestre diz:
nada é tão puro que consiga alcançar o fundo da
alma como somente Deus o faz. Ele quer dizer: Deus
resplandece numa escuridão na qual brota toda a luz
da alma. Nas suas potências, ela recebe tanto luz
como doçura e graça: mas no fundo da alma nada
mais entra, senão puramente Deus. O Filho e o Es­
pírito Santo desprendem-se de Deus, e são recebidos
pela alma em Deus. Mas o que para além da luz e da
doçura dele emana, é recebido por ela unicamente
nas suas potências.
Os mestre supremos dizem: as potências da alma
e a própria alma são inteiramente um. O fogo e apa­
rência (do fogo) são um; mas se ele (= o fogo) cair no
intelecto então ele cai numa natureza diferente (pela
aparência) . Onde o intelecto se desprende da alma,
ele cai numa outra natureza.
Em terceiro lugar: ela é uma luz acima de todas as
luzes. Aí brota na alma toda a luz das montanhas ele­
vadas, onde não há qualquer luz. Onde Deus se des­
prende no seu Filho, a alma não fica suspensa. Se to­
marmos Deus algures, onde Ele emana, a alma não
228 TRATADOS E SERMÕES

ficará suspensa. Ela está (pelo contrário) muito


acima disso: dela brota toda a luz e todo o conheci­
mento. Por isso diz Ele: «Eu quero arrancá-las e reu­
ni-las na sua terra, e aí quero conduzi-las para uma
pastagem verde» (cf. Ez 34, 1 3/1 4) . Ele abriu a sua
boca numa montanha. Um professor diz: Nosso Se­
nhor (também) abre a sua boca cá neste mundo; Ele
ensina-nos por meio da Escritura e por meio das
criaturas. S. Paulo, por outro lado, diz: «Ora, Deus
falou connosco no seu Filho único; nele hei-de
conhecer completamente tudo em Deus, do menor
até ao maior» (Heb 8 , 1 1 ) .
Que Deus nos ajude a que nós brotemos somen­
te de tudo o que é Deus. Ámen.
SERMÃO 6

«Um é um negar do negar»

Unus deus et pater omnium etc.


(Ef 4,6)

Eu disse umas palavras em latim, que S. Paulo diz


na epístola: «Há um só Deus e Pai de todos, que é
abençoado acima de todos, actua por meio de todos e
se encontra em todos» (Ef 4,6) . Retiro do Evangelho
outras palavras que Nosso S enhor disse: «Amigo,
sobe mais para cima, vai para mais alto» (Lc 1 4, 1 0).
Nas primeiras palavras, que S. Paulo disse: « Um
Deus e Pai de todos», ele silencia uma pequena pala­
vra, que contém em si um momento de transforma­
ção. Quando ele diz: « Um Deus», então ele q uer
dizer com isso que Deus é Um em si mesmo, e sepa­
rado de tudo. Deus não pertence a ninguém, e nin­
guém pertence a Deus; Deus é Um. Boécio 17 diz:
«Deus é Um e não se transforma.» Tudo o que Deus
alguma vez criou, criou Ele enquanto submetido à
transformação. Todas as coisas carregam nas suas

17 BOÉCIO, De Consol. Phil. 1 . III, poesia IX.


230 TRATADOS E SERMÕES

costas, tal como elas são criadas, a capacidade de


serem transformadas.
Isso exprime que nós devemos ser Um em nós
mesmos e separados de tudo, e que, constantemente
imóveis, devemos ser um com Deus. No exterior de
Deus não há nada, senão o nada. Por isso é impossí­
vel que em Deus possa ocorrer de certo modo qual­
quer alteração ou transformação. O que busca um
outro lugar fora de si será alterado. Deus (contudo)
_
tem todas as coisas em si numa plenitude; por isso
Ele nada busca no exterior de si mesmo, mas somen­
te na plenitude como ela é em Deus. Tal como Deus
o transporta em si, não pode ser entendido por ne­
nhuma criatura.
Um segundo ensinamento (está aí contido) , quan­
do ele diz: « Pai de todos, Tu és abençoado. » Esta
palavra traz em si um momento de transformação.
Quando ele diz «Pai», então nós somos agora incluí­
dos. Se Ele é o nosso Pai, então nós somos os seus
filhos, e assim tanto a glória como a afronta que lhe
infligimos vão-nos (directas) ao coração. Quando o
filho percebe o amor que seu pai lhe tem, então ele
sabe porque lhe é devedor de viver assim tão pura e
inocentemente. Por essa razão devemos nós também
viver em pureza, porque D eus, Ele mesmo, diz:
«Bem-aventurados os puros de coração, porque
verão a Deus» (Mt 5,8). O que é a pureza do cora­
ção? Pureza do coração é o que é desprendido e se­
parado de todas as coisas corporais, e é reunido e en­
cerrado em si mesmo, e o que, depois, a partir desta
SERMÃO 6 231

pureza se atira em Deus e aí é unido. David diz: «São


puras e inocentes as obras que saem e se realizam na
luz da alma»; mas são ainda mais inocentes aquelas
que permanecem no seu interior e no espírito e não
saem para fora. «Um Deus e Pai de todos. »
As outras palavras (são) : «Amigo, sobe mais para
cima, vai para mais alto» . Delas (= das duas frases)
faço eu uma: quando ele diz: «Amigo, sobe mais para
cima, vai para mais alto», então isso é um diálogo da
alma com Deus, à qual lhe é respondido: «Um Deus
e Pai de todos» . Um mestre diz: «A amizade está na
vontade. » Enquanto a amizade estiver na vontade,
ela não unirá. Eu também já disse algumas vezes: o
amor não une; decerto que ele une na obra, mas não
no ser. Por isso ela (a alma) diz somente: «Um Deus»,
«Sobe mais para cima, vai para mais alto» . Nada
(atinge) o fundo da alma que não seja a pura divin­
dade. Mesmo o anjo supremo, por muito próximo e
aparentado que ele seja com Deus e por muito que
ele tenha em si de Deus - as suas obras são perma­
nentemente em Deus, ele é unido com Deus no ser e
não no operar, ele tem um habitar interior em Deus
e um permanente residir nele : o ser tão nobre do
anjo é na verdade um milagre; contudo, ele não con­
segue entrar na alma. Um mestre diz: todas as cria­
turas que possuem diferenciação são indignas que
Deus opere nelas. A alma em si mesma, aí, onde ela
se encontra acima do corpo, é tão pura e tão suave
que ela nada mais recebe do que a nua e pura divin­
dade. E mesmo Deus não consegue aí entrar, pois
232 TRATADOS E SERMÕES

ser-lhe-á retirado tudo o que lhe é acrescentado. Por


isso lhe (à alma) foi respondido: «Um Deus.»
S. Paulo diz: «Um Deus. » Um é algo mais puro do
que a bondade e a verdade. Bondade e verdade nada
acrescentam, elas acrescentam, sim, em pensamento;
quando se pensa, acrescenta-se. Um, pelo contrário,
nada acrescenta, aí, onde Ele é em si mesmo, antes de
emanar no Filho e no Espírito Santo. Por isso disse
Ele: «Amigo, vai para mais alto.» Um mestre diz: «Um
é negar do negar» 18• E u digo, Deus é bom, e isso
acrescenta algo (a Deus) . Um (pelo contrário) é um
negar do negar e um denegar do denegar. O que sig­
nifica Um? Um significa aquilo a que nada é acres­
centado. A alma toma a divindade como ela é purifi­
cada em si mesma, onde nada (lhe) é acrescentado,
onde nada é (acrescentado) em pensamento. Um é
um negar do negar. Todas as criaturas carregam uma
negação em si; uma nega ser a outra. Um anjo nega
que ele sej a um outro (anj o) . Mas D eus tem um
negar do negar; Ele é Um e nega todo o outro, pois
nada é no exterior de Deus. Todas as criaturas são
em Deus e são a Sua própria divindade, e isso signi­
fica a plenitude, conforme eu disse antes. Ele é um
Pai de toda a divindade. Eu digo uma divindade, por­
que aí ainda nada é emanado, tocado, ou pensado. Se
eu recusar algo a Deus - se eu, por exemplo, recusar

" Segundo QUINT, a expressão um negar do negar; que na obra alemã


de Eckhart ocorre unicamente nesta passagem, corresponde à latina
negatio negationes, a qual se encontra em muitas passagens da sua obra
latina (cf. p. 490, op. cit.).
SERMÃ0 6 233

a Deus a bondade, em verdade, eu não posso rejeitar


absolutamente nada a Deus -, se o fizer, apreendo
algo que Ele não é; ora, é precisamente isso que deve
ser afastado. Deus é Um, Ele é um negar do negar.
Um mestre 19 diz que a natureza do anjo não exer­
ce qualquer potência nem qualquer operar, porque
ele não sabe de outra coisa que não seja exclusiva­
mente Deus. De tudo o mais que existe, nada sabem
os anj os. Por isso disse Ele: «Um Deus, Pai de to­
dos»; «Amigo, vai para mais alto». Certas potências
da alma recebem do exterior, como o olho: por mui­
to subtil que seja a sua recepção e que consiga elimi­
nar o que é mais grosseiro, ele toma, não obstante,
algo do exterior, tendo em vista o aqui e o agora.
Mas o conhecimento e o intelecto tudo despojam e
recebem o que não conhece nem aqui nem agora;
nesta amplitude o intelecto toca na natureza do anjo.
Contudo, ele recebe dos sentidos; o que os sentidos
registam do exterior, eis o que o intelecto recebe.
A vontade não faz isso; neste ponto, a vontade é mais
nobre do que o intelecto. A vontade não infere de
nenhures, senão do puro conhecimento, onde não
existe nem aqui nem agora. D eus quer dizer: por
muito elevada, por muito pura que sej a a vontade,
ela deve ir mais para cima. É uma resposta, quando
Deuz diz: «Amigo sobe mais para cima. Então isto
será uma honra para ti» (Lc 1 4, 1 0) .
A vontade quer beatitude. Perguntaram-me que

1' S. ToMAs DE AQUINO, Suma Teowgica, lq. 1 1 2a, IC.


234 TRATADOS E SERMÕES

diferença subsiste entre a graça e a beatitude. A


graça, como nós a experimentamos aqui nesta exis­
tência, e a beatitude que nós possuiremos mais tarde
na vida eterna, relacionam-se entre si como a flor
com o fruto. Quando a alma está plena de graça e
nada mais sobra de tudo o que nela é, que não seja
operado e consumado pela graça, então nem tudo o
que é na alma chega a ser operado, como se a graça
consumasse tudo o que a alma deve operar. Eu tam­
bém já o disse algumas vezes: a graça não opera qual­
quer obra, ela somente vaza todo o esplendor intei­
ramente na alma; isso é a plenitude no reino da alma.
Eu digo: a graça não une a alma com Deus, ela é, pelo
contrário, um pleno prover; a sua obra é a de recon­
duzir a alma para Deus. Aí., cabe-lhe o fruto da flor. A
vontade, tanto quanto ela queira a beatitude e tanto
quanto ela queira ser com Deus e desse modo ser
puxada para o alto, (verá) Deus introduzir-se numa tal
pureza, e tanto quanto o intelecto receber a Deus tão
puramente, conforme Ele é verdade, assim se intro­
duzirá Deus no intelecto. Mas, assim como Deus cai
na vontade, deverá esta subir para mais alto. Por isso
diz Ele: «Um Deus», «Amigo, sobe mais para cima».
«Um Deus»: a divindade de Deus é consumada
nisso de Deus ser Um. Eu digo: Deus nunca poderia
gerar o seu Filho único, se Ele não fosse Um. Por
Deus ser Um, cria Ele tudo o que Ele opera nas cria­
turas e na divindade. Além disso, eu digo: só Deus
tem unidade. O modo próprio de Deus é a unidade;
daí infere Deus que Ele é Deus, doutro modo Ele
SERMÃO 6 235

não seria Deus. Tudo o que é número depende do


Um, e o Um não depende de nada. A riqueza, a sa­
bedoria e a verdade de Deus são absolutamente Um
em Deus; Ele não é apenas Um, Ele é unidade. Tudo
o que Deus tem, Ele o tem no Um, é Um nele. Os
mestres dizem que o céu realiza a sua revolução para
trazer todas as coisas até ao Um; por isso é que ele
se move tão rápido. Deus tem toda a plenitude como
Um, e a natureza de Deus depende disso, e é a beati­
tude da alma que Deus seja Um; é o seu esplendor e
a sua honra. Ele disse: «Amigo, sobe mais para cima.
Então isto será uma honra para ti. » A honra e o es­
plendor da alma é que Deus seja Um. Deus faz
como se Ele fosse Um para agradar à alma, e Ele se
adornasse com a finalidade de a alma se apaixonar
somente por Ele. Por isso é que o homem ora quer
uma coisa, ora quer outra; ora se exercita na sabedo­
ria, ora na arte. Como ele não possui o Um, a alma
nunca atinge o sossego até que tudo se torne Um
em Deus; esta é a beatitude da alma e o seu esplen­
dor e sossego. Um mestre diz: Deus tem em vista
todas as coisas em todas as suas obras. A alma é
todas as coisas. Aquilo que abaixo da alma é em
todas as coisas o mais nobre, o mais p uro, o mais
elevado, Deus vaza tudo junto nela. Deus é tudo e é
Um.
Que «Um Deus, Pai de todos» nos ajude a tornar­
mo-nos assim um com Deus. Ámen.
SERMÃO 7

S. Paulo diz: «Revesti-vos» 2 º, interiorizai em vós


«Cristo».
Ao despojar-se de si próprio, o homem aceita no
seu interior Cristo, Deus, beatitude e santidade. Se
um rapaz contasse coisas estranhas, acreditaríeis
nele; mas Paulo promete grandes coisas e vós tendes
muita dificuldade em crê-lo. Ele promete-te, se tu te
despojares, Deus, beatitude e santidade. É espantoso:
se o homem deve despojar-se, então ele revestir-se-á
no seu interior, por se ter despojado de si próprio, de
Cristo, de santidade e de beatitude, e será muito
grande. O profeta espanta-se sobre duas coisas. Por
um lado, sobre o que Deus opera com as estrelas,
com a Lua e com o Sol. O outro espanto tem a ver
com a alma: que Deus tenha feito e ainda faça coisas
tão grandes com ela e por causa dela, pois Ele faz
tudo o que consegue por causa dela. Ele faz muitas e
grandes coisas por ela, e ocupa-se inteiramente dela
e isto por causa da grandeza de que ela é feita. Repa­
rai na grandeza de que ela é feita! Eu desenho uma
letra segundo a imagem que a letra tem em mim, na

2º «Revesti-vos antes do Senhor Jesus Cristo» (Rrn 1 3 , 1 4) .


SERMÃO 7 237

minha alma, mas não segundo a minha alma. Exac­


tamente assim se passa com Deus: Deus fez todas as
coisas, em geral, segundo a imagem que Ele tem em
si de todas as coisas, mas não segundo si mesmo. Al­
gumas fez Ele em particular segundo algo que d'Ele
emana, como a bondade, a sabedoria e tudo o mais
que se exprime a seu respeito; Ele fê-las, primeiro,
segundo Ele mesmo, sim, segundo tudo aquilo que
Ele é, segundo a sua natureza, segundo o seu Ser e
segundo a obra que habita no seu interior e que dele
emana, e segundo o fundamento no qual Ele perma­
nece em si mesmo, onde Ele gera o seu Filho único,
e a partir do qual floresce o Espírito Santo: Deus fez
a alma segundo esta obra que habita no interior e
que dele emana.
É como se fosse natural em todas as coisas, que
sempre as superiores afluam para as inferiores, con­
tanto que as coisas inferiores sejam sensíveis às su­
periores, pois as superiores nunca recebem das infe­
riores, porque opostamente são as inferiores que
recebem das superiores. Visto que Deus está acima
da alma, então Deus aflui constantemente à alma e
nunca se pode esquecer dela. A alma bem pode es­
quecer-se dele; porém, enquanto o homem se man­
tiver abaixo de Deus, ele receberá directamente a
pura influência divina de Deus e não se encontra
abaixo de mais nada seja o medo ou o amor, o sofri­
mento ou qualquer outra coisa que não seja Deus.
Ora, se tu te atirares inteira e absolutamente para
baixo de Deus, receberás inteira e puramente a in-
238 TRATADOS E SERMÕES

fluência divina. Como é que alma recebe de Deus?


Não há nada que a alma receba de D eus como se
fosse estranho, como o ar recebe a luz do sol, pois
recebe-a num estranhamento. Mas a alma não rece­
be D eus num estranhamento, nem como se (esti­
vesse) abaixo dele, pois o que está abaixo de outrem
tem estranhamento (em relação a ele) e distância. Os
mestres dizem que a alma recebe como uma luz da
luz, porque nisso não há nem estranhamento nem
distância.
Há um algo na alma, no qual Deus é nu, e os
mestres 21 dizem que é inominado, e que não tem um
nome próprio. Esse algo é, mas não tem um ser pró­
prio, porque não é isto nem aquilo, nem aqui nem
além; porque é o que é num outro, e esse outro é
nele; pois o que é é-o no outro, e o outro é-o nele;
porque aquele flui para este e este para aquele, e
nisso ( = nesse algo na alma) , afirma ele 22, devereis
dispor-vos para Deus, em beatitude! Porque aí den­
tro a alma toma toda a sua vida e ser, e a partir daí ela
haure a sua vida e o seu ser; porque isto é inteira­
mente em Deus; mas o outro (a alma) , está aqui no
exterior, e por isso a alma é sempre em D eus se­
gundo isto, a não ser que ela o traga para o exterior
ou o extinga em si.
Um mestre 23 diz que este algo é tão presente em

2 1 Entre outros, sem dúvida Avicena. Cf. ]ARCZI'K!LABARRIE RE, L'Étin­


celle de L'âme, Paris, Albin Michel, 1 998, p. 295.
22 S. Paulo.
23 Cf. s. AGOSTINHO, De Trinitate, XIV: e. 7 n. 9; e. 1 4, n. 1 8 .
SERMÃO ? 239

Deus, que nunca se consegue apartar dele e D eus


está sempre presente nele no seu interior. Eu digo
que Deus esteve eternamente presente nele sem in­
terrupção, e que o homem nele é um com Deus, e
que a graça não faz parte disso, pois a graça é uma
criatura, mas nenhuma criatura nada tem a fazer aí;
porque no fundo do ser de Deus, onde as três Pes­
soas são um ser, aí ela (= a alma) é um (com Deus)
segundo esse fundo. Por isso, se tu quiseres, todas as
coisas são tuas e Deus (também) . Isso significa: des­
poja-te de ti próprio e de todas as coisas e de tudo
aquilo que tu és em ti mesmo, e assume-te segundo
aquilo que tu és em Deus.
Os mestres 24 dizem que a natureza humana nada
tem a ver com o tempo, e que ela é inteiramente in­
tangível e muito mais interior e próxima do homem
do que ele é de si mesmo. E por isso é que D eus
assumiu a natureza humana e a uniu com a sua pes­
soa. Ai., a natureza humana tornou-se Deus, pois Ele
assumiu a pura natureza humana e não um homem.
Portanto, se tu quiseres ser o próprio Cristo e Deus,
despoja-te de tudo aquilo que a palavra eterna não
assumiu. A palavra eterna não assumiu um homem;
por isso despoja-te daquilo que é um homem em ti,
e daquilo que tu sej as, e assume-te puramente se­
gundo a natureza humana, então tu serás o mesmo
na palavra eterna que a natureza humana é nela (na
palavra) . Porque a tua natureza humana e a sua (na-

24 Entre outros, S. ToMAs DE AQUINO, De ente et essentia, e. 3.


240 TRATADOS E SERMÕES

tureza) não possuem qualquer diferença: ela é uma


(e a mesma) ; porque aquilo que ela é em Cristo, é-o
em ti. Por isso eu disse em Paris, que no homem
j usto está cumprido o que a S anta E scritura e os
profetas (de Cristo) sempre disseram; porque se tu
fores recto, tudo o que é dito no Velho e no Novo
Testamento realizar-se-á em ti.
Como deverás ser recto? Isso deve-se entender de
duas maneiras, segundo as palavras do profeta que
diz: «Mas, ao chegar a plenitude dos tempos, Deus
enviou o seu Filho» (Gl 4,4) . A plenitude do tempo
existe de duas maneiras. Pois uma coisa é plena
quando ela chegou ao seu fim, assim como o dia é
pleno com a sua noite. Por isso o tempo será pleno,
quando todo o tempo se desprender de ti. A segunda
maneira é quando o tempo chega ao seu fim, o que
quer dizer: à eternidade; pois aí todo o tempo tem
um fim, porque aí não existe nem antes nem depois.
Aí, tudo o que é, é presente e novo, e aí tens numa
contemplação presente o que sempre aconteceu e
acontecerá. Aí não há antes nem depois, tudo aí é
presente; e nessa contemplação presente eu con­
servo todas as coisas em minha posse. Isso é a pleni­
tude do tempo, e assim serei recto, e assim sou ver­
dadeiramente o filho único e Cristo.
Que Deus nos aj ude a alcançarmos essa pleni­
tude do tempo. Ám en.
SERMÃO 8

«É a vida que oferece o mais nobre conhecimento»

Intravit Jesus in quoddam castellum, et mulier quaedam,


Martha nomine excepit illum etc.
(Lc 1 0,38)

S. Lucas escreve no Evangelho: «Quando iam no


caminho, Jesus entrou numa aldeia. E uma mulher
de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Tinha ela
uma irmã chamada Maria, a qual se sentara aos pés
do S enhor e escutava a sua palavra. Marta, porém,
andava atarefada com muitos serviços» (Lc 1 0,38/40) .
Três coisas levaram a que Maria se sentasse aos
pés de Nosso S enhor. Uma era que a bondade de
Deus tinha cingido a sua alma. A segunda era uma
grande, indizível saudade: ela ansiava, sem saber por
que o fazia, e desejava algo, sem o saber! A terceira
era o doce consolo e o deleite que ela hauria das pa­
lavras eternas, que fluíam da boca de Cristo.
Também impeliam Marta três coisas que a deixa­
vam andar em volta e servir o amado Cristo. Uma
delas era uma idade madura e um fundamento (do
ser) exercitado até ao mais extremo. Por isso ela acre-
242 TRATADOS E S ERMÕES

ditava que ninguém poderia aguentar a actividade


tão bem como ela. A segunda era uma sábia circuns­
pecção que sabia orientar a operação exterior recta­
mente para o que de mais elevado o amor exige. A
terceira era a elevada dignidade do Hóspede amado.
Os mestres dizem que Deus está pronto para a
satisfação espiritual e física de qualquer pessoa até à
última coisa que ela deseje. Que Deus nos satisfaça
num plano espiritual e que, por outro lado, também
proporcione satisfação à nossa natureza sensorial, é
algo possível de distinguir claramente no amado
amigo Deus. S atisfazer a natureza sensorial, q uer
dizer que Deus nos dá consolo, deleite e contenta­
mento; que sejamos amimados nisso, desprende-se
do amado amigo Deus na esfera dos sentidos infe­
riores. A satisfação espiritual, pelo contrário, é uma
satisfação no espírito. Eu falo, pois, de satisfação es­
piritual quando através de todo o deleite o cume
mais elevado (da alma) não é vergado para baixo, e
assim não se afoga na sensação de prazer, senão que
se encontra acima dela em pleno poder. Porque o
homem (só) encontra satisfação espiritual quando o
amor e o sofrimento da criatura não conseguem ver­
gar o cume supremo (da alma) . Por criatura entendo
eu tudo o que divisamos abaixo de Deus.
Ora, Marta diz: « S e nhor, diz-lhe, pois, que me
venha ajudar» 2 5• Marta não disse isso de má vontade;

25 «Marta, porém, andava atarefada com muitos serviços e, aproxi­

mando-se, disse: «Senhor, não se te dá que a minha irmã me deixe só a


servir? Diz-lhe, pois, que me venha ajudar>> (Lc 1 0,40) .
SERMÃO 8 243

ela falou antes por um bem-querer amante, pelo


qual era instada. Bem poderemos chamar-lhe um
bem-querer amante ou um amável motejo. Como
assim? Prestai atenção! Ela viu que Maria se regalava
de prazer na sua alma, plena de satisfação. Marta
conhecia Maria melhor do que Maria Marta, porque
Gá) vivera muito tempo com rectidão; é a vida que
oferece o mais nobre conhecimento. A vida conhece,
melhor do que o prazer ou a luz, tudo o que possa­
mos alcançar nesta vida abaixo de Deus, e com mais
pureza, de certo modo, do que a luz da eternidade
consegue conceder. A luz da eternidade (só) nos
deixa conhecer sempre a nós próprios e a Deus, mas
não a nós próprios sem Deus; a vida, porém, dá-nos
a conhecer a nós próprios sem Deus. Quando (a
vida) olha apenas para si própria, então ela percebe
com mais acuidade a diferença entre igual e desigual.
D isso testemunham S. Paulo (por um lado) e os
mestres pagãos por outro : no seu arrebatamento,
S. Paulo contemplava-se a si próprio e a Deus em
Deus num modo (de conhecimento) (puramente)
espiritual; mas não reconhecia nele contemplativa­
mente qualquer virtude com exactidão; e isso devia­
-se a que ele não tinha praticado as virtudes em
obras. Os mestres pagãos, no entanto, alcançavam
um conhecimento tão elevado pela prática das virtu­
des, que conheciam pela contemplação qualquer vir­
tude com mais precisão do que S. Paulo ou qualquer
santo no seu primeiro arrebatamento.
Com Marta passava-se inteiramente assim. Por
244 TRATADO S E SERMÕES

isso disse ela: «Senhor, diz-lhe, pois, que me venha


ajudar», como se ela tivesse querido dizer: «Dá a im­
pressão que minha irmã consegue o que ela q uer,
enquanto se encontra sentada j unto de ti, sob a tua
consolação. Ora, deixa que ela saiba se será (real­
mente) assim, e ordena-lhe que se levante e se afaste
de til » . Por outro lado, o seu amor era suave, apesar
de ela o exprimir bem prudentemente. Maria estava
tão cheia de saudade, que anelava sem saber por que,
e desejava sem saber o quê! Nós desconfiamos que
ela, a querida Maria, estava ali sentada talvez mais
por causa da agradável sensação, do que pelo benefí­
cio espiritual. Por isso disse Marta: «Senhor, ordena­
-lhe que se levante ! » , pois ela receava que ela ( =
Maria) se detivesse na sensação de bem-estar e não
progredisse mais. E ntão Cristo respondeu-lhe, e
disse : «Marta, Marta, andas inquieta e perturbada
com muitas coisas; mas uma só é necessária. Maria
escolheu a melhor parte, que lhe não será tirada» (Lc
1 0,41/42) . Cristo não disse essas palavras a Marta
como uma admoestação; pelo contrário, Ele partici­
pou-lhe algo, e deu-lhe a consolação de que Maria
(ainda) seria como ela desejava ser.
Mas por que disse Cristo «Marta, Marta», chaman­
do-a duas vezes pelo nome? Isidoro diz: «Não sub­
siste qualquer dúvida que Deus, antes do tempo em
que Ele se tornou homem, nunca designou pessoas
pelo nome, que tenham alguma vez caído no olvido;
mas sobre aqueles que ele não chamou pelo nome,
subsistem dúvidas. Por o "Cristo que designa pelo
SERMÃO S 245

nome", entendo eu o seu saber eterno: que imutáveis


antes da criação, todas as criaturas se encontram a
partir da eternidade no "livro vivo do Pai-Filho-Espí­
rito Santo". Aquele que aí for designado pelo nome, e
tendo Cristo exprimido um tal nome literalmente,
então esse não se perderá. Isso testemunha Moisés, a
quem o próprio Deus disse: «Conheço-te pelo nome»
(Ex 33, 1 2), e Nataniel, a quem o amado Cristo disse:
«Eu vi-te quando estavas debaixo da figueira» Go
1 ,48). A figueira significa Deus, no qual o nome (de
N ataniel) estava escrito desde a eternidade. E assim
está demonstrado que nenhuma pessoa se perdeu ou
perderá, que o amado Cristo com a sua boca humana
tenha chamado pelo nome a partir da palavra eterna
(= a partir do «livro da vida eterna») .
Mas por que chamou Ele Marta duas vezes? Ele
dá a entender com isso, que Marta possuía plena­
mente tudo aquilo q ue existe de bem temporal e
eterno, e que uma criatura deve possuir. Da primeira
vez que disse Marta, significava Ele a perfeição dela
no operar temporal. Quando Ele disse Marta pela
segunda vez, quis dizer Ele com isso, que a ela nada
faltava do que é necessário à beatitude eterna. Por
isso disse Ele: «Tu andas preocupada» 2 6 e queria di­
zer com isso: tu estás j unto das coisas, mas as coisas
não estão em ti. Andam preocupados 2 7, porém,

2 ' Sorgsam (= cuidadosa) o u , segundo QUINT, o mesmo q u e precavida­

mente activa. Cf. MEISTER EcKHART, Die deutschen Werke, ed. por Josef
Quint, vol. III, p. 5 94, Verlag W Kohlhammer.
27 Besorgt (= preocupados) ou o mesmo que em verdadeiro cuidado.

QUINT, op. cit. , p. 5 94.


246 TRATADOS E SERMÕES

aqueles que em toda a sua ocupação se encontram


impedidos. Mas desimpedidos encontram-se aqueles
que orientam todas as suas obras, conformes à regra,
'
segundo o modelo da luz eterna. Uma obra é execu­
tada a partir de fora, uma ocupação, no entanto, é
quando nos aplicamos a partir de dentro com pru­
dente compreensão. E tais pessoas encontram-se
junto das coisas e não nas coisas. Elas encontram-se
muito próximas (das coisas) e não têm por isso
menos do que se estivessem lá em cima, no círculo
da eternidade. «Muito próximas», digo eu, pois todas
as criaturas medeiam . Existem dois géneros de
meios: um é aquele sem o qual eu não consigo atin­
gir Deus: é o operar e a ocupação na temporalidade,
e isso não diminui a beatitude eterna. O outro meio
é o seguinte: renunciarmos precisamente ao primei­
ro (meio) . Pois nós somos colocados no tempo, para
que, por meio de uma ocupação no tempo ilumi­
nada pelo intelecto, nos aproximemos mais e nos
tornemos mais semelhantes a Deus. S. Paulo tam­
bém se referia a isso quando disse: «Superai o tem­
po, pois os dias são maus» 28 • Superar o tempo signi­
fica q ue, sem cessar, nós subimos para Deus no
intelecto, não na diversidade das representações sim­
bólicas, mas na verdade cheia de vida conforme ao
intelecto. E «os dias são maus», entendei do seguinte
modo: o dia remete para a noite, pois se não hou-

2' «Cuidai, pois irmãos, em andar com prudência, não como insensa­

tos, mas com circunspecção, aproveitando o tempo, pois os dias são


maus» (Ef S , 1 5-1 6) .
SERMÃO 8 247

vesse noite não haveria o dia e também não se falaria


dele, porque então tudo seria uma luz. E S. Paulo
tinha isso em vista, porque uma vida luminosa é
ainda de pouco valor, se nela ainda houver a escuri­
dão que a um espírito sublime esconde e ensombra a
beatitude eterna. Também Cristo se referia a isso,
q uando disse: «Andai enquanto tendes a luz» Go
1 2,35) . Pois quem operar na luz, ascende para Deus,
livre e separado de todo o medianeiro: a sua luz é a
sua ocupação, e a sua ocupação é a sua luz.
Assim se passava exactamente com a amada Mar­
ta. Por isso lhe disse Ele: «Uma só é necessária», não
duas. Eu e tu, rodeados da luz eterna - somos um, e
este dois-um é um espírito ardente, que se encontra
acima de todas as coisas e abaixo de Deus no círculo
da eternidade. Ele é dois, porque não vê Deus direc­
tamente. O seu conhecimento e o seu ser, ou o seu
conhecimento e a sua imagem do conhecimento
nunca se tornam um nele. Só vemos Deus aí, onde
Deus é visto espiritualmente, inteiramente despro­
vido de imagens. Aí, dois tornam-se um, e um torna­
se dois, os dois são um no ser cingido pela luz eterna.
Ora prestai atenção, ao que será o círculo da eter­
nidade. A alma tem três caminhos para Deus. Um
deles é o seguinte: buscar Deus em todas as criaturas
com multiforme operar e com um amor ardente. A
ele se referia o rei David, quando disse: «Em todas as
coisas busquei o sossego» 2 9•

2• «Repousei da mesma maneira na cidade santa, e em Jerusalém está

a sede do meu poder» (Ecl 24, 1 1 ) .


248 TRATADOS E SERMÕES

O segundo caminho é um caminho intransitável,


livre e, no entanto, constrangido, onde despojados de
vontade e de imagens nos encontramos elevados e
arrebatados muito acima de nós e de todas as coisas,
se bem que ele não tenha ainda qualquer existência
substancial. A este caminho se referia Cristo, quando
disse: «Feliz és tu, Pedro! Não foram a carne nem o
sangue quem to revelou, mas um ser exaltado na
razão, quando dizes Deus para Mim: foi antes o meu
Pai celestial que to revelou» 30• S. Pedro não contem­
plou a Deus desvelado, pois ele estava arrebatado,
por meio da força do Pai celestial, para além de toda
a capacidade de compreensão criada, até ao círculo
da eternidade. Eu digo: ele foi abalado insciente pelo
Pai dos céus num abraço amoroso com uma força
tempestuosa, num espírito olhando fixamente para
cima, que se ergue para além de toda a capacidade de
compreensão no poder do Pai celestial. Nesse lugar
S. Pedro foi encorajado de cima por um tom suave e
terreno, isento, contudo, de toda a fruição sensorial,
na simples verdade da unidade do Deus-Homem, na
pessoa do Pai-Filho celestial. Eu digo com destemor:
se S. Pedro tivesse contemplado imediatamente a sua
natureza, como ele o fez mais tarde e como S. Paulo
o fez, quando ele se extasiou no terceiro céu, até a
própria linguagem dos anjos mais nobres lhe surgi-

'º «Tomando a palavra, Simão Pedro respondeu: «Tu és o Cristo, o


Filho de Deus vivo. » Jesus disse-lhe em resposta: «És feliz, Simão, filho
de Jonas, porque não foram a carne nem o sangue quem to revelou, mas
o meu Pai que está nos céus» (Mt 1 6, 1 7) .
SERMÃ0 8 249

ria como grosseira. Mas assim ele proferiu várias


palavras doces que o amado Jesus não necessitava,
pois Ele olha para o fundo do coração e do espírito,
Ele, que se encontra de imediato perante Deus na li­
berdade da verdadeira presencialidade. A isso se refe­
ria S. Paulo quando ele disse: «Um homem extasiou­
-se e ouviu tais palavras, que são inefáveis para toda
a gente» 31 • D aí podereis entender que S. Pedro se
encontrava no círculo da eternidade, mas (ainda) não
contemplava a unidade de Deus no seu próprio ser.
O terceiro caminho chama-se «caminho» e é um
estar em casa, ou seja: contemplar Deus imediata­
mente no seu próprio ser. Ora, o amado Cristo diz:
«Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida» Oo 1 4, 6):
um Cristo na Pessoa, um Cristo no Pai, um Cristo
no Espírito enquanto três: caminho, verdade e vida,
Um enquanto o amado Jesus, no qual tudo isto é.
No exterior deste caminho todas as criaturas for­
mam rodeios e «meios» (separadores) . Nesse cami­
nho, (porém) , conduzido a Deus (Pai) pela luz da sua
Palavra e abraçado pelo amor do Espírito (Santo) de
ambos: isso está para além de tudo o que se possa
abarcar por palavras.
Espreita (então) o milagre ! Que maravilhoso:
estar fora assim como estar dentro, cingir e ser cin­
gido, contemplar e ser (ao mesmo tempo) o próprio

31 «Conheço um homem em Cristo que, há catorze anos - ignoro se

no corpo ou fora dele, Deus o sabe -, foi arrebatado até ao paraíso, e


ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir»
(2Cor 1 2,2-4) .
250 TRATADOS E SERMÕES

contemplado, considerar e ser considerado : esse é


objectivo, onde o espírito persevera em sossego, uni­
do à amada eternidade.
Queremos agora retornar à nossa e�posição,
como a amada Marta, e com ela todos os amigos de
Deus, se encontram j unto do cuidado, mas não no
cuidado. E nesse caso, o operar no tempo é igual­
mente tão nobre quanto um qualquer unir-se a
Deus; pois ele aproxima-nos tanto (de Deus) como
o mais elevado que nos possa caber, com excepção
única da contemplação de Deus na (sua) pura natu­
reza. Por isso diz Ele: «Tu estás j unto das coisas, e
junto do cuidado», e quer dizer com isso que com os
sentidos inferiores ela estava exposta à aflição e ao
desgosto, pois ela não estava (como Maria) como
que mimada no aprazimento do espírito. Ela estava
junto das coisas, não nas coisas; ela estava separada
(delas) , e elas ( = as coisas) estavam separadas dela.
Três pontos são particularmente impreteríveis nas
nossas obras. Eles são: que se opere metodicamente,
com plena intelecção e reflectidamente. Eu chamo
metódico ao que em todos os pontos corresponde
ao mais elevado. Mas designo por plena intelecção
aquilo para além do qual, numa dada altura, não se
conhece melhor. E, por fim, reflectidamente, digo eu,
quando sentimos em boas obras a verdade plena de
vida com a sua presença aventurada. Onde se en­
contrarem dados estes três pontos, eles aproximam
tanto de Deus e são tão benéficos como todos os
deleites de Maria Madalena no deserto.
SERMÃ0 8 25 1

Ora, Cristo diz: «Andas inquieta e perturbada


com muitas coisas; mas uma só é necessária. » Isso
quer dizer: quando uma alma se encontra pura, sim­
ples, sem qualquer operar e orientada para cima,
para o círculo da eternidade, então ela ficará pertur­
bada se for impedida por um algo que não sej a um
meio (separador) , de modo que ela não conseguirá
permanecer lá em cima com prazer. Uma tal pessoa é
(então) perturbada por este algo, quando ela se afun­
da no cuidado e na perturbação. Marta, contudo,
encontrava-se em virtude tão madura e tão firme, e
de ânimo tão despreocupado, desimpedida de todas
as coisas. Por isso desej ava ela que sua irmã ficasse
no mesmo estado, pois ela via que aquela não se en­
contrava ainda essencialmente. Era um fundamento
maduro (da alma) , a partir do qual ela desejava que
aquela (= Maria) se encontrasse em tudo aquilo que
faz parte da beatitude eterna. Por isso diz Cristo :
«Uma só é necessária! »
O que é este Um? É Deus. Este Um é necessário
a todas as criaturas, porque se Deus tirasse para si
tudo o que é seu ( = se entregasse as criaturas a si
mesmas) , todas as criaturas se tornariam em nada.
Se Deus retirasse a sua da alma de Cristo, onde o seu
Espírito está unido com a Pessoa eterna, então Cris­
to ficaria uma mera criatura. Por isso é que necessi­
tamos todos muito daquele Um.
Marta receava que sua irmã estivesse retida no
bem-estar e na doçura, e desejava que ela se tornasse
como ela (própria) . Por isso falou Cristo, querendo
252 TRATADOS E SERMÕES

dizer: «Maria (também) escolheu a melhor parte, que


lhe não será tirada. Este aqui (= este comportamento
presente) perder-se-á nela. O mais elevado que pode
ser atribuído a uma criatura, ser-lhe-á atribuído: ela
será bem-aventurada como tu! »
Agora deixai que vos instrua sobre a s virtudes !
Uma vida virtuosa depende de três pontos que têm
a ver com a vontade. Um é o seguinte: renunciar à
vontade em Deus, pois é imprescindível que se rea­
lize inteiramente aquilo que afinal se conhece, seja
na rej eição (do mal) como na aceitação (do bem) .
Ora, existem três tipos de vontades. A primeira é
uma vontade sensorial, a segunda uma vontade ilu­
minada pelo intelecto, e a terceira uma vontade
eterna.
A vontade sensorial exige instrução, quer que se
escutem os verdadeiros professores.
A vontade iluminada pelo intelecto consiste em
que se coloquem os pés em todas as obras de Jesus
Cristo e dos santos, quer dizer: que se oriente orde­
nada e uniformemente a palavra, a transformação e
o operar pelo supremo. Quando tudo isso estiver
realizado, então D eus desce mais um pouco ao
fundo da alma: isso é uma vontade eterna com o
mandamento amante do Espírito S anto. Então, a
alma diz: «Senhor, dá-me uma vontade, que seja a
tua vontade eterna. » Quando à alma satisfaz o que
nós expusemos anteriormente, e isso agrada a Deus,
então o amado Pai diz a Sua palavra eterna na alma.
Ora, dizem as nossas pessoas honradas que deve-
SERMÃO 8 253

ríamos tomar-nos tão perfeitos, que mais nenhuma


alegria nos pudesse mover, permanecendo intangí­
veis tanto para a alegria como para o sofrimento. Elas
cometem uma injustiça com isso. Eu digo, (porém) ,
que nunca houve um santo assim tão grande que ele
não pudesse ser movido. Entretanto, também digo
por outro lado: bem recebe Gá) o santo nesta vida,
que nada o consegue demover de Deus. Vós presu­
mis que enquanto as palavras vos moverem para a
alegria e o sofrimento, sereis imperfeitos? Não é
assim! Nem de Cristo isso era próprio; Ele deu isso a
conhecer, quando disse: «A minha alma está numa
tristeza de morte» (Mt 26,38) . As palavras magoavam
tanto a Cristo, que se a dor de todas as criaturas
tombasse sobre uma só, isso não seria tão mau como
a dor que Cristo sentia; e isso provinha da nobreza
da sua natureza e da santa união da natureza divina e
humana (nele) . Por isso digo eu, que nunca houve,
nem nunca haverá, um santo a quem o tormento
não fizesse sofrer e o amor não lhe fizesse bem. Às
vezes acontece que por causa do amor, do afecto e da
graça, se uma pessoa revestida de graça for repreen­
dida por se duvidar da sua fé, ela permaneça de âni­
mo inalterável no amor e no sofrimento. Um santo,
pelo contrário, consegue fazer que nada o demova de
Deus, de forma que, não obstante o coração estar em
sofrimento enquanto o homem se encontra em es­
tado de graça, a vontade persevera simplesmente em
Deus e diz: «Senhor, eu pertenço-te, e Tu a mim ! »
Seja o que fo r que acometa então uma (tal pessoa) ,
254 TRATADOS E SERMÕES

isso não impedirá a beatitude eterna, enquanto tal


não ocorrer no cume supremo do espírito, lá em
cima, onde ela se encontra unida com a mais amada
vontade de Deus.
Mas Cristo diz: «Andas inquieta e perturbada
com muitas coisas». Marta era tão essencial que o
seu operar a não impedia; a sua obra e o seu operar
conduziam-na (pelo contrário) para a eterna beati­
tude. Ela (= eterna beatitude) tornava-se (nesse caso)
algo de mediato (= transmitido) ; mas (também) são
necessárias uma natureza nobre, um constante zelo
e a virtude no sentido já mencionado. (Também)
Maria foi primeiro (uma tal) Marta, antes de se ter
tornado na (madura) Maria; pois quando ela ainda se
sentava aos pés de Nosso Senhor, ela (ainda) não era
(a verdadeira) Maria; ela era segundo o nome, mas
(ainda) não era no seu ser; porque ela (ainda) estava
sentada no bem-estar e na doce sensação, e foi aceite
na escola e aprendeu a viver. Mas Marta era inteira­
mente essencial, por isso disse ela: «Ordena-lhe que
se levante», como se ela tivesse querido dizer: «Se­
nhor, eu gostava muito que ela não estivesse aí sen­
tada por causa da sensação de bem-estar; eu gostava
(pelo contrário) que ela aprendesse a viver, para que
ela se apropriasse da vida essencialmente: ordena­
-lhe que se levante, para que ela se torne perfeita! »
Ela não s e chamava Maria enquanto se encontrava
sentada aos pés de Cristo. Eu chamo antes Maria a
um corpo bem exercitado, e a um prudente e obe­
diente ensinamento. Por outro lado, eu chamo obe-
SERMÃO 8 255

diente a que a vontade sempre execute o que a com­


preensão ordenar.
Ora, presume a nossa honrada gente, que são ca­
pazes de conseguir que o ser presente das coisas físi­
cas nada mais signifique para os seus sentidos. Mas
eles não atingem isso. Que uma atroada desagradá­
vel possa ser tão benfazej a para os meus ouvidos
como o doce som de um alaúde, (é algo que) eu
nunca conseguirei atingir. Mas deveremos ter a dis­
ponibilidade para que, quando a compreensão per­
ceber (a atroada desagradável), uma vontade formada
pelo conhecimento chegue então à compreensão e
ordene à vontade (sensorial) para não se preocupar
com isso, e que a vontade diga então: eu faço-o com
gosto! Reparai, aí o combate tornou-se em prazer;
pois aquilo que o homem deve combater com gran­
de esforço, tornar-se-á para ele uma grande alegria,
e (só) depois será frutuoso.
Algumas pessoas (porém) querem levar isso tão
longe, que fiquem separadas das obras. (Mas) eu
digo: isso não pode ser. Só a partir do momento em
que os discípulos recebem o Espírito S anto, é que
eles começam a praticar as virtudes. Por isso: quando
Maria estava sentada aos pés de Nosso Senhor, ela
(ainda) estava a aprender, pois primeiramente ela foi
admitida na escola e (só então) aprendeu a viver. Só
mais tarde, contudo, quando Cristo tinha subido
para o céu e ela tinha recebido o Espírito Santo, é
que ela começou a servir e atravessou o mar, e pre­
gou, e ensinou, e se tornou uma servente dos discí-
256 TRATADOS E SERMÕES

pulos. Só quando os santos se tornam santos é que


eles começam a praticar as virtudes; porque só então
é que eles começam a reunir um tesouro para a bea­
titude eterna. Tudo o que antes disso foi praticado
penitencia apenas a culpa e evita o castigo eterno.
Disso encontramos testemunho em Cristo: desde o
princípio, quando D eus se tornou homem e o ho­
mem se tornou Deus, Ele começou a praticar para a
nossa beatitude até ao fim, pois Ele morreu na cruz.
Não havia um único membro no seu corpo que não
tivesse praticado particularmente a virtude.
Que Deus nos ajude a segui-lo verdadeiramente
no exercício das verdadeiras virtudes. Ám en.
SERMÃO 9

«Uma luz que está na alma,


que é incriada e incriável>>

Todas as coisas iguais amam-se reciprocamente e


unem-se entre si, e todas as coisas desiguais fogem
umas das outras e odeiam-se.
Ora, diz um mestre, que nada é tão desigual como
o céu e a terra. O reino da terra sentiu na sua natu­
reza que ele é distante e diferente do céu. Por isso ele
fugiu diante do céu até ao lugar mais baixo, e por
isso é o reino da terra imóvel, para não se aproximar
do céu. O céu, porém, percebeu na sua natureza que
o reino da terra lhe fugiu e se estabeleceu no lugar
mais inferior. Por isso se derrama o céu inteiramente
de um modo fertilizante no reino da terra, e os mes­
tres consideram a propósito, que o vasto céu não
guarda a largura da ponta de uma agulha, senão que
se gera sem reserva de um modo fertilizante no reino
da terra. Por isso é que o reino da terra se chama a
criatura mais fértil entre todas as coisas temporais.
O mesmo digo eu do homem que se aniquilou
em si mesmo, em Deus e todas as criaturas: esse ho­
mem estabeleceu-se no lugar mais inferior, e neste
homem deverá Deus derramar-se inteiramente, ou
258 TRATADOS E SERMÕES

então - Ele não é Deus. Eu digo pela eterna e sempre


perene verdade, que Deus se deve derramar inteira­
mente, segundo toda a sua capacidade, sobre aquele
homem que se abandonou até ao fundo, de forma
que ele nada guardou para si, na sua vida, no seu ser,
na sua natureza, até mesmo em toda a sua divin­
dade: tudo isso deverá Ele derramar de modo fertili­
zante sobre aquele homem que se abandonou a
Deus e se estabeleceu no lugar mais inferior.
Quando eu hoje caminhava para aqui, ponderava
como vos poderia pregar tão compreensivelmente
que vós me entenderíeis, e imaginei uma parábola.
Se puderdes entender isso correctamente, então en­
tendereis o sentido e o fundamento autêntico de
todo o meu desiderato, sobre o qual desde sempre
eu preguei. A parábola, contudo, tem a ver com o
meu olho e com o bosque: se o meu olho se abrir,
então ele é um olho; mas se estiver fechado, então
ele é o mesmo olho. Por meio da visão, pelo contrá­
rio, nada se acrescenta ou se perde no bosque. Ora, é
preciso que me entendais bem! Acontece, porém,
que o meu olho é um e simples em si mesmo, e que
(agora) está aberto e orientado para a contemplação
do bosque; assim, cada um permanece aquilo que
ele é, todavia, no cumprimento da contemplação
ambos se tornam de tal modo um, que em verdade
se poderá dizer: olho-bosque, e o bosque é o meu
olho. Se o bosque fosse imaterial e puramente espiri­
tual como o ver do meu olho, então poderia dizer-se
de facto que na concretização o bosque e o meu
SERMÃO 9 259

olho se encontram em um ser. Se isso é verdade a


respeito de coisas físicas, tanto mais será válido para
as coisas espirituais !
D eveis saber, além disso, que o meu olho tem
muito mais a ver com o olho de uma ovelha que se
encontra do outro lado do mar e que eu nunca vi, do
que com os meus ouvidos, com os quais afinal se en­
contra em comunidade de ser. E isso resulta de que o
olho da ovelha pratica a mesma actividade que o meu
olho, e por isso eu atribuo a ambos maior comuni­
dade no praticar do que os meus olhos e os meus
ouvidos, pois eles estão separados no seu praticar.
Eu falei algumas vezes de uma luz que está na
alma, que é incriada e incriável. Esta dita luz costu­
mo eu abordar sempre nos meus sermões. E esta
mesma luz recebe Deus directa, descoberta e desnu­
dadamente, tal como Ele é em si mesmo; e é um re­
ceber no cumprimento da geração única. Eu posso
(por outro lado) dizer em conformidade com a ver­
dade que esta luz tem mais unidade com Deus, do
que tem unidade com qualquer potência (da alma) ,
com a qual se encontra afinal em unidade de ser.
Pois deveis saber que esta luz no ser da minha alma
não é mais nobre do que a potência mais inferior ou
mais grosseira, como a audição ou a fisionomia, ou
outra potência que pode ser acometida pela fome ou
a sede, o frio ou o calor; e isso fundamenta-se em
que o ser é unitário. Na medida em que tomarmos as
potências (da alma) no ser, então elas são todas um e
igualmente nobres; se tomarmos, contudo, as potên-
260 TRATADOS E SERMÕES

cias no seu actuar, então uma é muito mais nobre e


elevada do que a outra.
Por isso eu digo: quando o homem renuncia a si
mesmo e a todas as coisas criadas - quanto mais am­
plamente o fizer, tanto mais amplamente será unido
e abençoado na centelha da alma, que é intangível
tanto pelo tempo como pelo espaço. Esta centelha
contradiz todas as criaturas e nada mais quer senão
Deus, desvelado, como Ele é em si mesmo. A ela não
lhe basta nem o Pai, nem o Filho, nem o Espírito
Santo, nem as três Pessoas Quntas) , na medida em
que cada Um subsiste na sua propriedade. Eu digo
em verdade que a esta luz também não satisfaz a
unicidade do regaço portador de fertilidade da natu­
reza divina. S im, quero dizer algo mais, que pode
soar ainda mais espantoso: eu digo pela eterna e
perene verdade, que esta luz não se satisfaz no sim­
ples e quieto S er divino, que não dá nem recebe: ela
quer (pelo contrário) saber de onde vem esse ser, no
simples fundamento, no calmo deserto onde a dis­
tinção nunca espreitou para dentro, ela não quer nem
o Pai, nem o Filho nem o Espírito Santo. No mais
íntimo, onde ninguém entra, aí satisfaz-se essa luz, e
aí ela é mais interior do que em si mesma. Pois este
fundamento é uma simples quietude, que é em si
mesma imóvel; a partir desta imobilidade, porém, são
movidas todas as coisas e receberão vida todos aque­
les que dotados de intelecto em si mesmos vivem.
Que Deus nos ajude a vivermos nesse sentido
conformes ao intelecto. Ámen.
SERMÃO 10

«Aquilo que se ama deve parecer ou ser bom»

Deus caritas est et qui manet in caritate in deo . . .


(lJo 4, 1 6)

«Deus é amor, e quem permanece no amor per­


manece em Deus e Deus nele» (lJo 4, 1 6) .
Tomemos, pois, as primeiras palavrinhas: «Deus é
amor» (lJo 4, 1 6) . Isso quer dizer: visto que Ele per­
segue tudo o que possa amar e que consiga implan­
tar o amor, então Ele persegue (tudo) isso com o seu
amor, para o amar. Em segundo lugar, «D eus é
amor» para que tudo aquilo que Deus desde sempre
criou e que está capacitado para amar, seja p erse­
guido pelo seu amor, para o amar, seja isso amor ou
sofrimento para Ele. Em terceiro, «Deus é amor» ,
porque Ele com o seu amor expulsa tudo o que pode
amar, de toda a multiplicidade ( = pluralidade e isola­
mento) para fora. Como Deus, depois da multiplici­
dade ( = depois da fragmentação e difusão do seu
amor nas criaturas) , é digno de ser amado, assim o
amor que Ele é, expulsa isso para fora de toda a mul­
tiplicidade, para a sua própria unidade. « D eus é
262 TRATADOS E SERMÕES

amor», em quarto lugar, na medida em que Ele ofe­


rece a todas as criaturas com o seu amor o seu ser e
a sua vida, e conserva-as com o seu amor.
Se alguém me perguntasse o que é Deus, então
eu responderia: Deus é o amor e é tão inteiramente
digno de ser amado, que todas as criaturas buscam a
sua dignidade de ser amado, quer o façam conscien­
te ou inconscientemente, quer para elas isso sej a
amor o u sofrimento. Assim Deus é o amor, e Ele é
tão digno de ser amado que tudo o que consegue
amar, o terá de amar, quer isso lhe traga amor ou so­
frimento. Não existe uma criatura que seja tão infe­
rior, que consiga de certo modo amar aquilo que é
mau; porque aquilo que se ama deve parecer ou ser
bom. Ora, tomai todo o bem que todas as criaturas
conseguem dar, que isso será uma pura maldade
(uma inferioridade) perante Deus. S. Agostinho diz:
«Ama aquilo que tu consegues alcançar com o amor,
e conserva aquilo que pode satisfazer a tua alma. »
«Deus é amor» . Ah , minhas amadas, escutai-me,
peço-vos! Deus ama tanto a minha alma, que a sua
vida e o seu ser dependem de que Ele me deve amar,
quer isso seja para Ele amor ou sofrimento. Quem
privasse Deus de amar a minha alma, seria tomado
pela sua divindade, pois Deus é tão verdadeiramente
o amor, como Ele é a verdade; e assim, como Ele é a
bondade, assim verdadeiramente é D eus o amor.
Esta é uma pura verdade, tão (verdadeira) como que
Deus vive. Havia certos mestres que diziam que o
amor que está em nós será o Espírito Santo, e isso
SERMÃO 1 0 263

não é verdadeiro. O alimento corporal que nós inge­


rimos é transformado em nós; mas o alimento espi­
ritual que nós recebemos transforma-nos em si; e
por isso é que o amor divino não é em nós recebido,
porque então teríamos dois (ou seja nós e o amor
divino = ao Espírito Santo) . O amor divino, porém,
recebe-nos em si, e nós somos um com ele. A cor
que está na parede é mantida na parede; assim (tam­
bém) são mantidas todas as criaturas no seu ser por
meio do amor que D eus é. Se tirássemos a cor da
parede, então ela perderia o seu ser: igualmente per­
dem todas as criaturas o seu ser, quando as retira­
mos do amor que D eus é. « D eus é amor, e quem
permanece no amor permanece em D eus e D eus
nele.» Subsiste uma diferença entre as coisas espiri­
tuais e as corporais. Qualquer coisa espiritual pode
ser no outro; mas nenhuma coisa corporal consegue
ser numa outra. A água está numa vasilha, e a vasilha
circunda-a; mas onde está a madeira, não está qual­
quer água. D esse modo, não pode qualquer coisa
corporal ser numa outra; mas uma coisa espiritual
está numa outra. Qualquer anjo está no outro com
toda a sua alegria e com todo o seu deleite e com
toda a sua beatitude tão perfeitamente como em si
mesmo, e qualquer anjo está com toda a sua alegria e
com toda a sua beatitude em mim, e Deus mesmo
(está em mim) com toda a sua beatitude, e eu não re­
conheço isso. Tomemos o anjo mais inferior na sua
pura natureza: a mais ínfima chispa ou a mais pe­
quena centelha que alguma vez caísse dele, teria ilu-
264 TRATADOS E SERMÕES

minado todo este mundo com deleite e com alegria.


Ora, imaginai quão nobre ele é em si mesmo ! No
passar do tempo, eu j á disse com frequência que
existem muitos anjos, (mas) sem número nem quan­
tidade. Agora (porém) vou calar-me (por um mo­
mento) sobre o amor (de que trata principalmente o
meu sermão) e virar-me para o conhecer: mesmo
que os ( = os anjos) conhecêssemos, seria fácil para
nós entregar todo um mundo. Tudo o que Deus al­
guma vez criou e ainda podia criar, Deus o daria in­
teiramente à minha alma, além de D eus, mas se
ficasse para trás tanto como a espessura de um ca­
belo, então isso não satisfaria a minha alma; eu não
seria bem-aventurado. Mas se eu for bem-aventura­
do, então todas as coisas são em mim, além de Deus.
Onde eu estou, aí está Deus; assim eu sou em Deus,
e onde Deus está, aí estou eu.
«Quem permanece no amor permanece em Deus
e Deus nele» (lJo 4, 1 6) . Se eu estiver então em Deus,
onde Deus estiver, aí estou eu (também) , e onde eu
estou, aí está Deus, a não ser que a Sagrada Escritura
minta. Seja onde for que eu esteja, aí está Deus: esta
é uma pura verdade e é tão verdadeiramente verda­
deira, como que Deus é Deus. «Fiel servidor, quero
colocar-te acima de todo o meu bem . » Isto q uer
dizer: enquanto Deus é bom em todas as criaturas,
eu quero colocá-lo acima de todo o meu bem, con­
forme esta multiplicidade ( = pluralidade, plenitude) .
Em segundo lugar, «quero colocar-te acima de todo
o meu bem», quer dizer: aí, onde todas as criaturas
SERMÃO 1 0 265

recebem a sua beatitude na unidade pura que é


Deus, Ele mesmo, e onde Ele próprio recebe a sua
beatitude, onde Deus (mesmo) é bom, aí, quer Ele
colocar-nos acima de todo esse seu bem. Em tercei­
ro: Ele quer colocar-nos acima de todo o seu bem,
significa: Ele quer colocar-nos acima de tudo o que
Ele (ainda) é chamado (= onde Ele ainda tem um
nome) , acima de tudo o que se possa dizer (sobre
Ele) e acima de tudo o que dele se possa entender
(ou sej a, acima do supremo bem inominável, que
Deus é para além do seu próprio ser bom e de todas
as suas propriedades exprimíveis) . Assim (= neste
sentido abrangente) quer Ele colocar-nos acima de
todo o seu bem.
«Pai, eu rogo-te que todos sejam um só, como Tu
e eu somos um» 3 2 Q"o 1 7,21). Sempre que dois devem
devir um, então deve um perder o seu ser. Pre­
cisamente assim é quando Deus e a alma devem devir
um só, pois a alma deve perder o seu ser e a sua vida.
Enquanto restasse algo (do seu ser e da sua vida) ,
assim não estariam eles unidos. Mas se eles devem
ser (inteiramente) um, então um deve perder o seu
ser inteiramente, (mas) o outro deve conservar o seu
ser: então eles são um. Ora, diz o Espírito Santo: eles
devem tomar-se um, como nós somos um. «Rogo-te
que faças deles um em nós» (cf. ]o 1 7,20-2 1 ) .

3 2 «Não rogo somente por estes, mas também por aqueles que,

pela sua palavra, hão-de crer em mim para que todos sejam um só»
ºº 1 7,20-21).
266 TRATADOS E SERMÕES

«Rogo-te». Quando eu rogo por alguma coisa a


Deus, então eu rogo por nada; (mas) quando eu rogo
por nada, então eu rogo rectamente. Quando eu
estou unido com (isso) , onde todas as coisas são pre­
sentes, quer sej am passadas, de agora ou futuras,
então todas elas são aí igualmente próximas e igual­
mente um; elas são todas em Deus e são todas em
mim. Aí não precisamos de pensar (em particular)
sobre qualquer Conrado ou Henrique. S e alguém
rogar por qualquer outra coisa que não seja só Deus,
então a isso (pelo qual ele roga) poderá chamar-se
um ídolo ou algo inj usto. «Aqueles que rogam em
espírito e na verdade», rogam rectamente. Quando
eu rogo por alguém (em concreto) por Henrique ou
por Conrado, então eu rogo pelo mínimo. Quando
eu rogo por ninguém ou por nada, então eu rogo
com a maior autenticidade, pois em D eus não há
qualquer Henrique ou Conrado. Quando nós roga­
mos a Deus por qualquer outra coisa que não seja
Deus, então isso é injusto e é descrença e é uma im­
perfeição, pois queremos acrescentar algo mais a
Deus. Conforme eu disse recentemente: queremos
Deus para nada, e a partir do nada (= a partir da cria­
tura) queremos fazer Deus: «Deus é amor, e quem
está no amor, está em Deus, e Deus está nele. »
Que nosso amado Senhor Jesus Cristo nos ajude
a que nós todos alcancemos o amor de que falei.
Ámen.
SERMÃO 1 1

Renovamini spiritu men tis vestrae


(Ef 4,23)

«Deveis ser renovados em vosso espírito, que se


chama mente, ou sej a um carácter» 33 (Ef 4,23) .
Assim fala S. Paulo. Ora, diz S. Agostinho, que Deus
criou naquela primeira região da alma, que se chama
mens ou carácter, j untamente com o ser da alma,
uma potência, que os mestres denominam um re­
ceptáculo ou relicário de formas espirituais ou de
imagens formadas. Esta potência fundamenta a
igualdade entre a alma e o Pai por intermédio da
emanação da sua divindade (por um lado) , onde Ele
derramou todo o tesouro do seu ser divino no Filho
e no Espírito Santo, por distinção com as pessoas,
assim como (por outro lado) a memória da alma

3 3 «Vós, porém, não aprendestes assim de Cristo, se é que dele ouvis­

tes falar e nele fostes instruídos - consoante a verdade que existe em


Jesus - a despojar-vos do homem velho, no que diz respeito ao vosso
passado, do homem corrompido pelas paixões enganadoras; a renovar
espiritualmente a vossa inteligência» (Ef 4,20-23).
268 TRATADOS E SERMÕES

verte o tesouro das suas imagens nas (outras) potên­


cias da alma.
Sempre que então a alma com esta potência con­
templa algo imaginário, seja uma imagem de anjo ou
que ela contemple a sua própria imagem: isso é algo
de imperfeito nela. Se ela contemplar D eus assim
como Ele é Deus, ou como Ele é imagem ou trinda­
de, então isso será algo de imperfeito nela. Quando
todas as imagens da alma, contudo, forem apartadas
e ela contemplar só o único Um, então o puro ser da
alma, sofredor e sossegado em si mesmo, encontrará
a unidade divina pura, liberta de formas, que é um
ser acima do ente. Oh maravilha das maravilhas, que
nobre sofrer é esse, quando o ser da alma nada mais
consegue sofrer, senão unicamente a pura unidade
de Deus!
Ora, diz S. Paulo: «Deveis ser renovados em vosso
espírito.» A renovação colhe todas as criaturas abai­
xo de Deus; mas não colhe qualquer renovação, uni­
camente eternidade. O que é a eternidade? Escutai!
A propriedade da eternidade é que ser e ser j ovem
são um nela, porque a eternidade não seria eterna, se
ela pudesse tornar-se jovem e não fosse constante.
Porém, eu digo : a renovação colhe o anj o, no que
respeita à instrução sobre o futuro, pois o anj o só
sabe de coisas futuras se Deus lhas revelar. Também
a alma colhe renovação, na medida em que ela se
chama alma; porque ela chama-se alma atendendo a
que ela dá vida ao corpo e é a forma do corpo. A re­
novação também a colhe na medida em que ela se
SERMÃO 1 1 269

chama espírito: mas ela chama-se espírito na medida


em que ela está apartada do aqui e do agora e de
tudo o que é natural. Onde ela, contudo, é uma ima­
gem de Deus e é inominável como Deus, então não
a colhe qualquer renovação, mas unicamente eterni­
dade, como Deus. Prestai agora atenção! Deus é ino­
minável, porque dele ninguém pode dizer ou conhe­
cer algo. Por isso diz um mestre pagão: «O que nós
conhecemos ou expressamos sobre a primeira causa,
fazemo-lo mais sobre nós próprios, do que sobre
aquilo que será a primeira causa; pois ela está eleva­
da acima de toda a expressão e entendimento.» Por
conseguinte, eu digo: Deus é bom - isso não é ver­
dade; eu (pelo contrário) sou bom, mas Deus não é
bom! Sim, eu gostaria além disso de dizer: eu sou
melhor do que Deus! Porque o que é bom, pode tor­
nar-se melhor, e o que pode ser melhor, pode tornar­
-se no melhor de todos. Ora, se Deus não é bom, Ele
não pode por isso tornar-se melhor. Visto que Ele,
portanto, não pode ser melhor, então (também) não
pode tornar-se no melhor de todos; pois todos três
se encontram distantes de D eus : bom, melhor e
melhor de todos, porque Ele está acima de tudo. Eu
digo em seguida: Deus é sábio - isso não é verdade;
eu sou mais sábio do que Ele! E acrescento: Deus é
um ser - isso não é verdade; Ele é (pelo contrário)
um ser acima do ente e uma niilidade acima do ente!
Por isso diz S. Agostinho: « O mais belo que o ho­
mem pode exprimir sobre Deus, consiste em que a
partir da sabedoria do reino interior ele possa silen-
270 TRATADOS E SERMÕES

ciar-se. Faz silêncio, por isso, e não tagareles acerca


de Deus, pois mentes com isso de tagarelares acerca
dele, cometes pecado. Mas se tu quiseres ser sem pe­
cado e perfeito, então não tagareles acerca de Deus !
Também não deves (querer) conhecer nada de Deus,
pois Deus está acima de todo o conhecimento. Um
mestre diz: «Se eu tivesse um Deus que eu pudesse
conhecer, eu nunca o consideraria um Deus ! » Mas
se tu conheceres (= supões conhecer) algo d'Ele, Ele
não é nada disso e, por conseguinte, ao conheceres
algo d'Ele, cairás no desconhecimento e através
desse desconhecimento na animalidade. Porque
aquilo que nas criaturas não é susceptível de ser
conhecido é animal. Ora, se não quiseres tornar-te
animal, então não conheças nada do Deus indizível
por palavras ! - «Ah, mas, então, como deverei fa­
zer? » - Tu deves deixar cair todo o ser-teu e diluíres­
te no seu ser-seu, e o teu «teu» deve tornar-se no seu
«seu», um «seu» tão inteiramente que tu com Ele
eternamente conheças a sua indevinda entidade e a
sua inefável niilidade.
Ora. S. Paulo diz: «Deveis ser renovados em vosso
espírito» . Se quisermos, pois, ser renovados em
nosso espírito, então as seis potências da alma, as su­
periores e as inferiores, deverão cada uma possuir
um círculo de ouro, dourado com o ouro do amor
divino. Olhai agora para as potências inferiores, que
são três. A primeira chama-se capacidade de distin­
ção, rationale; a ela deves levar um círculo de ouro:
ele é a iluminação, para que a tua capacidade de dis-
SERMÃO 1 1 271

tinção esteja sempre iluminada sem tempo através


da luz divina. A segunda potência chama-se a en­
colerizada, irascibilis; a ela deves levar um círculo: ele
é a tua paz. Porquê? Ora: enquanto estivermos em
paz, assim estaremos em Deus; quanto mais longe
estivermos no exterior da paz, tanto mais longe esta­
remos de Deus! A terceira potência chama-se dese­
jar, concupiscibilis; a ela deves levar um círculo: ela é
uma suficiência, para que tu sejas suficiente face a
todas as criaturas que estão abaixo de Deus. Mas
Deus nunca deve ser suficiente para ti! Pois D eus
nunca te poderá ser suficiente: quanto mais tiveres
de Deus, tanto mais desejarás no que é seu; se Deus
te pudesse ser suficiente, de maneira que em relação
a Deus pudesse haver um ser suficiente, então Deus
não seria Deus.
Também a qualquer uma das potências superio­
res deverás levar um círculo de ouro. As potências
superiores são igualmente três. A primeira chama-se
uma potência guardadora, memoria. Esta potência
compara-se com o Pai na Trindade. A esta deves
levar um círculo de ouro: ela é uma guardadora, para
que tu guardes em ti todas as coisas eternas. A se­
gunda chama-se intelecto, intellectus. Esta potência é
comparada ao Filho. A ela também deves levar um
círculo dourado: ela é o conhecimento, para que tu
conheças D eus todo o tempo. E como? Tu deves
conhecê-lo despojado de imagens, directamente e
sem comparação. Mas se eu devo conhecer Deus di­
rectamente desse modo, então devo tornar-me sim-
272 TRATADOS E SERMÕES

plesmente n'Ele, e Ele deve tornar-se eu. Eu digo


com mais precisão : D eus deve tornar-se simples­
mente eu e eu simplesmente Deus, tão inteiramente
um, que este Ele e este eu são e tornam-se Um, e
nesta entidade opera eternamente uma obra. Pois,
enquanto este Ele e este eu, ou seja Deus e a alma,
não são um único aqui e um único agora, este eu
com o Ele não poderia nunca operar nem tornar-se
um. A terceira potência chama-se vontade, voluntas.
Esta potência compara-se ao Espírito Santo. A esta
deves levar um círculo dourado : ela é o amor, para
que ames a Deus. Tu deves amar a Deus, indepen­
dente do seu ser digno de ser amado, quer dizer: não
porque Ele é digno de ser amado; pois Deus não é
digno de ser amado: Ele está elevado acima de todo
o amor e de todo o digno de ser amado. «Como, por­
tanto, devo eu amar a D eus ? » - Tu deves amar a
Deus sem espírito, isso quer dizer que a tua alma é
desprovida de espírito e despojada de toda a espiri­
tualidade; porque, enquanto a tua alma tiver uma
forma espiritual, ela terá imagens. Mas enquanto ela
tiver imagens, ela terá algo de medianeiro; enquanto
ela tiver esse medianeiro, ela não terá unidade nem
simplicidade. Enquanto ela não tiver simplicidade,
não terá (ainda) amado a Deus rectamente; pois
amar com rectidão depende da unanimidade. Por
isso é que a tua alma deverá estar despida de todo o
espírito, deverá estar aí sem espírito. Pois se tu amas
Deus, como Ele é Deus, como Ele é espírito, como
Ele é pessoa e como Ele é imagem -, tudo isso deverá
SERMÃO 1 1 273

desaparecer. «Como, então, deverei eu amá-lo? » - Tu


deves amá-lo, como E le é um não-D eus, um não­
espírito, uma não-pessoa, uma não-imagem, ainda
mais: como Ele é um puro, límpido, claro Um, sepa­
rado de toda a dualidade. E nesse Um devemos nós
mergulhar eternamente do algo para o nada. Que
para tal Deus nos ajude. Ámen.
SERMÃO 12

In-travit Jesus in templum et coepit eicere vendentes e ementes.


(Mt 2 1 , 1 2)

Lemos no sagrado Evangelho, que Nosso Senhor


foi ao templo e expulsou aqueles que lá compravam
e vendiam, e aos outros que expunham pombos e
coisas semelhantes, disse: «Tirai isso daqui!» Oo 2 ,
1 6) . Por que expulsou Jesus os que l á compravam e
vendiam, e ordenou aos que negociavam pombas
para se retirarem? Ele não exprimiu outra coisa,
senão que queria ter o templo vazio, tal como se ti­
vesse querido dizer: tenho um direito a este templo e
quero estar dentro dele sozinho, e ter o seu domínio.
O que significa isso? Esse templo, onde Deus quer
dominar segundo a sua vontade, é a alma humana,
que ele tão j ustamente criou e formou à sua ima­
gem, conforme podemos ler, que Nosso Senhor
disse: «Façamos o ser humano à nossa imagem, à
nossa semelhança» (Gn 1 , 26) . E assim também ele
o fez. E ntão ele fez a alma humana à sua própria
imagem, que nem no reino dos céus nem na terra
SERMÃO 1 2 2 75

entre todas as magníficas criaturas, que Deus tão


maravilhosamente criou, nenhuma existe que a ele
se assemelhe como faz unicamente a alma humana.
Por esse motivo quer Deus ter esse templo vazio,
para que nele também não haja nada mais do que
apenas ele. Isso acontece assim, porque lhe agrada
muito esse templo, que tão justamente o iguala e ale­
gra-o muito estar nesse templo, sempre que se en­
contra lá sozinho.
Ora bem, prestai atenção! Que gente era essa que
lá comprava e vendia, e quem são eles ainda? Ou­
çam-se agora com atenção ! Eu quero ora pregar,
sem excepção, apenas sobre gente boa. Contudo,
quero desta vez apresentar quem eram e ainda são
(hoje) os negociantes, que assim vendiam e compra­
vam, e ainda hoj e o fazem, aos quais Nosso Senhor
puniu e expulsou. E isso ele ainda faz a todos aque­
les, que lá nesse templo compram e vendem; Ele não
quer deixar nenhum deles lá dentro. Olhai, todos
eles são negociantes, que se guardam de cometer
pecados grosseiros, e serão com satisfação boa gente,
que fará as suas boas obras para honrar a D eus,
como jejuar, fazer vigília, orar e tudo o mais que de
semelhante existe, toda a variedade de boas obras, e
fazem-no para que Nosso Senhor lhes dê algo por
isso, ou para que Deus faça algo por eles que lhes
agrade: todos eles são negociantes. Isto é para enten­
der num sentido amplo, pois eles querem dar uma
coisa por outra e querem dessa maneira feirar com
Nosso Senhor. Numa tal acção são eles os engana-
276 TRATADOS E SERMÕES

dos. Porque se tudo o que eles possuem, e tudo o


que eles conseguem realizar, tudo fosse oferecido
por vontade de Deus, e eles agissem inteiramente
por amor de Deus, então Deus não seria por isso de
todo obrigado a dar-lhes ou a fazer qualquer coisa
por eles, a não ser que Ele o quisesse fazer gratuita e
voluntariamente. Porque aquilo que eles são, são-no
por meio de Deus, e o que eles têm, têm-no de Deus
e não de si mesmos. Por isso é que Deus nada lhes
deve pelas suas obras e pelas suas dádivas, a não ser
que ele o queira voluntariamente fazer pela sua mi­
sericórdia e não por causa das suas obras nem pelas
suas oferendas; porque eles não dão do que é deles, e
também não agem por si mesmos, como o próprio
Cristo diz: «Sem mim, nada podeis fazer» Go 1 5 , 5) .
S ão muito insensatos, aqueles que assim querem
feirar com Nosso S enhor; eles pouco ou nada
conhecem do que é a verdade. Por isso é que Nosso
Senhor lhes bateu e os expulsou do templo. A luz e
as trevas não podem subsistir juntas. Deus é a ver­
dade e uma luz em si mesmo. Se portanto D eus
entrar nesse templo, afastará para longe a incerteza,
ou seja as trevas, e revelar-se-á a si mesmo com luz e
verdade. Quando a verdade for reconhecida, então
os negociantes partirão, e a verdade não cobiça qual­
quer negócio. D eus não procura o que é seu; em
todas as suas obras Ele é desprendido e livre e age
por genuíno amor. Também faz exactamente assim,
o homem que está unido com Deus; também ele se
acha desprendido e livre em todas as suas obras e
SERMÃO 1 2 277

realiza-as somente para honrar a Deus e não pro­


cura o que é seu, e Deus age nele.
Digo também, prosseguindo: enquanto o homem
com todas as suas obras procurar algo de tudo aquilo
que Deus consegue ou quer dar, então ele será igual
a esses negociantes. Se quiseres ser totalmente des­
prendido do negociante, de modo que Deus te admi­
ta nesse templo, então tudo aquilo que conseguires
em todas as tuas obras, deverás fazê-lo unicamente
para o louvor de Deus e deves ficar disso tão desli­
gado, como o nada é desligado, que não é aqui nem
além. Nada disso deverás cobiçar. Se agires assim,
então as tuas obras são espirituais e divinas, e então
os negociantes são expulsos do templo de uma vez
por todas, e somente D eus se encontra aí; porque
esse homem apenas tem Deus no pensamento. Vede,
desse modo estará este templo liberto de todos os
negociantes. Vede, o homem, que não tem em vista a
si nem a algo excepto unicamente a D eus e à sua
honra, esse é verdadeiramente livre e desprendido do
negociante em todas as suas obras e não procura o
que é seu, tal como Deus é desprendido e livre em
todas as suas obras e não procura o que é seu.
Eu também disse, além do mais, que Nosso Se­
nhor falou para a gente que ali negociava pombas :
«Tirai isso daqui! » Ele não expulsou essa gente, nem
os empurrou muito, senão que falou até amigavel­
mente: «Tirai isso daqui!», como se tivesse querido
dizer: isto não é (certamente) mau, e no entanto le­
vanta obstáculos à verdade pura. Esta gente, é toda
278 TRATADOS E SERMÕES

boa gente, que faz as suas obras somente por genuí­


no amor a Deus e não buscam nisso o que é seu,
mas que afinal o fazem com ligação ao próprio eu, ao
tempo e ao número, ao antes e ao depois. Nessas
obras eles ficam impedidos no (alcançar da) melhor
das verdades: que eles deviam certamente ser livres e
desprendidos, como Nosso S enhor Jesus Cristo é
livre e desprendido e sempre ininterrupta e eterna­
mente recebe de novo seu Pai celestial e no mesmo
agora sem interrupção se gera outra vez completa­
mente pleno de gratidão em louvor na sublimidade
paternal, em igual dignidade. Inteiramente assim
deveria encontrar-se aí o homem, que é receptivo à
suprema verdade e nela queira viver sem antes nem
depois nem impedimento por meio de todas as obras
e todas aquelas imagens, de que ele se tornou cons­
ciente, recebendo de novo livre e desprendido neste
agora a dádiva divina gerando-se outra vez sem im­
pedimento nessa mesma luz com um louvor pleno
de gratidão em Nosso Senhor Jesus Cristo. Assim se
afastariam as pombas, que dizer o impedimento e a
ligação ao eu por meio de todas aquelas obras, que
de outro modo são boas, aquelas em que o homem
não procura o que é seu. Por isso falou Nosso
Senhor até amigavelmente: «Tirai isso daqui!», como
se tivesse querido dizer: isto é (certamente) bom, e
no entanto traz obstáculos consigo.
Quando este templo estiver assim livre de todos
os obstáculos, quer dizer da ligação ao eu e da incer­
teza, então ele resplandecerá tão belo e alumiará tão
SERMÃO 1 2 279

p uro e límpido sobre tudo e através de tudo que


D eus criou, que ninguém conseguirá entrar nele
com o mesmo esplendor como unicamente o Deus
incriado. E em plena verdade: ninguém é realmente
igual a este templo como unicamente o Deus incria­
do. Tudo o que se encontra abaixo do anjo, não se
iguala de todo a este templo. Os próprios anjos mais
elevados igualam-se a este templo da alma nobre até
um certo grau, mas não completamente. Que eles se
igualam à alma num certo grau, é correcto para o
conhecimento e o amor. Contudo, foi-lhes imposta
uma finalidade; para além disso eles não podem
passar. Mas alma pode passar para além disso. Se
uma alma se encontrasse - a alma de um homem,
que ainda vivesse na temporalidade à mesma altura
-

que o anjo mais elevado, então esse homem ainda


poderia na sua livre capacidade atingir, incomensu­
ravelmente mais alto do que o anj o, aquele agora
novo, inumerável, quer dizer sem modo, e para além
do modo dos anjos e de todo o intelecto criado. Só
Deus é livre e incriado, e por isso só Ele é igual à li­
berdade, mas não no referente à incriabilidade, pois
ela é criada. Quando a alma chega à luz não mes­
clada, então ela no seu nada bate tão distantemente
do seu algo criado no nada, que não consegue com a
sua própria força regressar de todo ao seu algo
criado. E Deus coloca-se com a sua incriação por
baixo do seu nada e guarda a alma no seu algo. A
alma ousou tornar-se em nada e também não pode a
partir de si mesma regressar (de novo) a si mesma -
280 TRATADOS E SERMÕES

para tão longe escapou ela de si mesma, antes que


Deus se tenha colocado por baixo dela. Isso tem de
ser necessariamente assim. Pois, como eu disse ante­
riormente: «Jesus entrou no templo, e expulsou
aqueles que ali compravam e vendiam, e disse para
os outros: «Tirai isso daqui!» - Sim, vede, agora eu
pego no pequeno dito : «Jesus entrou no templo e
começou a falar: «Tirai isso daqui!», e eles fizeram­
-no. Vede, agora não estava ali mais ninguém, senão
Jesus sozinho, e ele começou a falar no templo. Vede,
isto deveis saber verdadeiramente: se outra pessoa
qualquer quiser falar no templo, ou sej a na alma,
além de unicamente Jesus, então Jesus cala-se, como
se ele não se encontrasse em casa, e ele também não
está em casa na alma, pois ela tem convidados estra­
nhos, com os quais fala. Mas se Jesus houver de falar
na alma, então ela deve estar só e deve silenciar­
-se, se houver de escutar Jesus a falar. Ora, então Ele
entra dentro dela e começa a falar. O que fala o
Senhor Jesus? Ele fala aquilo que Ele é. O que é Ele
então? Ele é uma palavra do Pai. Nessa mesma pala­
vra fala o próprio Pai e toda a natureza divina e tudo
o que Deus é, tal como Ele conhece isso; e Ele
conhece isso, como isso é. E visto que Ele é comple­
to no seu conhecimento e na sua capacidade, Ele é
por isso também completo no seu falar. Ao falar a
palavra, Ele fala de si e de todas as coisas em uma
outra pessoa e dá-lhe a mesma natureza que Ele
próprio tem, e fala todos os seres espirituais dotados
de intelecto na mesma palavra como a mesma palavra
SERMÃO 1 2 281

(essência) igual segundo a «imagem», na medida em


que ela habitar o interior, mas não igual à mesma pala­
vra de cada maneira, na medida em que ela ilumine,
na medida em que cada um portanto tem um ser se­
parado; mas elas (ou seja, as «imagens» iluminantes)
receberam a possibilidade de alcançarem uma igual­
dade cheia de graça com a mesma palavra. E a mes­
ma palavra, como ela é em si própria, foi falada intei­
ramente pelo Pai, a palavra e tudo o que é na palavra.
Ora se o Pai falou isso, o que fala então Jesus na
alma? Como eu disse: o Pai fala a palavra e fala na pa­
lavra e nada mais; mas Jesus fala na alma. O modo do
seu falar é aquele, de Ele próprio e tudo que o Pai em
Ele falou, que se revela no modo como o espírito é
receptivo. Ele revela no espírito a força do domínio
paternal com uma mesma incomensurável força.
Quando o espírito recebe essa força no Filho e atra­
vés do Filho, então ele (próprio) torna-se forte em
cada progresso, de forma que ele se torna igual e forte
em todas as virtudes e em toda a pureza completa, de
forma que nem o amor nem o sofrimento, nem nada
que D eus criou no tempo, conseguirá destruir o
homem, pelo contrário ele permanecerá aí dentro
cheio de poder como numa força divina, perante a
qual todas as coisas são pequenas e incapacitadas.
Outras vezes Jesus revela-se na alma com uma in­
comensurável sabedoria, que Ele próprio é, em cuja
sabedoria se conhece o próprio Pai com toda a sua
força dominadora paternal, assim como aquela pala­
vra nomeada, que também é a própria sabedoria, e
282 TRATADOS E SERMÕES

tudo que nisso é, assim como ela é Um. Quando


essa sabedoria se une com a alma, então desta retira­
-se em absoluto toda a dúvida e todo o erróneo e
todas as trevas, e ele á transposta para uma luz lím­
pida e pura, que é o próprio Deus, como diz o pro­
feta: « É na tua luz que vemos a luz» (Sl 36, 1 0) . Af,
na alma, se reconhece Deus com Deus; então ela re­
conhece-se a si mesma e todas as coisas com essa
sabedoria, e ela reconhece essa mesma sabedoria
com Ele mesmo, e com a mesma sabedoria reconhe­
ce ela a paternal força dominadora na (sua) fértil
força geradora e o essencial ser-primordial em sin­
gela unidade sem qualquer diferença.
Jesus revela-se além disso com uma incomensu­
rável doçura e plenitude, que jorra da força do Espí­
rito S anto e se derrama e flui com abundante e
copiosa plenitude e doçura para todos os corações
receptivos. Quando Jesus se revela com esta pleni­
tude e com esta doçura e se une com a alma, então a
alma flui com essa plenitude e essa doçura para si
mesma e para fora de si mesma e acima de si mesma
e sobre todas as coisas misericordiosamente com um
poder sem meios de regresso à sua origem primor­
dial. Então o homem exterior é obediente ao homem
interior até à sua morte e fica então em paz perpétua
ao serviço de Deus eternamente.
Que Deus nos ajude para que Jesus também possa
vir em nós e atire fora e afaste todos os obstáculos e
faça de nós Um, como ele enquanto Um com o Pai e
o Espírito Santo é um Deus, para que nós assim seja­
mos Um com ele e eternamente fiquemos. Ámen.
SERMÃO 13

ln hoc apparuit caritas dei in nobis, quoniam filium suum unigenitum


misit deus in mundum ut vivamus per eum.
(1Jo 4,9)

S. João diz: «E o amor de Deus manifestou-se


desta forma no meio de nós: Deus enviou ao mundo
o seu Filho Unigénito, para que, por Ele, tenhamos a
vida» (1 Jo 4, 9) , e assim a nossa natureza humana se
elevou incomensuravelmente, por o Altíssimo ter
vindo e ter assumido em si a natureza humana.
Um mestre afirma: quando penso que a nossa na­
tureza foi elevada acima das criaturas e se senta no
céu acima dos anjos que por ela rezam, então tenho
de alegrar-me do mais fundo do coração, pois Jesus
Cristo, meu amado senhor, fez de tudo o que ele em
si possui minha pertença. Ele (o mestre) também diz
que o Pai, em tudo que ele alguma vez na natureza
humana concedeu a seu Filho Jesus Cristo, tinha em
mim mais interesse e me amava mais do que a Ele e
mo concedeu antes a mim do que a Ele. Como assim,
afinal? Ele deu-lhe por minha causa, porque me
284 TRATADOS E SERMÕES

fazia falta. Por isso é que tudo o que lhe deu, era para
mim destinado e deu-mo a mim tal como a Ele; daí
não excluo nada, nem a unição nem a santidade da
divindade, nem seja o que for. Tudo o que Ele algu­
ma vez lhe deu na natureza humana não é para mim
mais estranho ou mais distante do que para Ele, pois
Deus não pode dar (apenas) pouco; ou Ele tem de
dar tudo ou absolutamente nada. A sua dádiva é in­
teiramente simples e completa sem divisão e fora do
tempo, permanentemente (só) na eternidade; e ficai
disso tão cientes, como eu estar vivo: se nós houver­
mos de receber assim d'Ele, então teremos de estar
na eternidade, elevados sobre o tempo. Na eterni­
dade todas as coisas são presentes. Aquilo que está
acima de mim está tão próximo de mim e tão pre­
sente como aquilo que está aqui junto de mim; e aí
receberemos de Deus aquilo que devemos ter de
Deus. Deus também nada reconhece exterior ao que
é seu, pois o seu olhar se dirige apenas para si mes­
mo. O que Ele vê, tudo vê Ele em si. Por isso Deus
não nos vê, quando estamos em pecado. Por isso:
quanto mais longe estivermos n'Ele, tanto mais nos
reconhece Deus, quer dizer: desde que estej amos
sem pecado. E todas as obras, que Nosso S enhor
alguma vez realizou, deu-mas Ele para serem mi­
nhas, que elas não são para mim menos dignas de
louvor do que as minhas próprias obras, que eu rea­
lizo. Ora, visto que toda a sua nobreza é igualmente
nossa e igualmente próxima, de mim como d'Ele,
por que razão não recebemos então o mesmo? Ah,
SERMÃO 1 3 285

vós tendes de compreender isso! Se alguém quiser


alcançar essa oferenda, de receber esse bem de modo
igual e todos os homens em geral com uma próxima
e igual natureza humana, então é para tal necessário
que, assim como na natureza humana nada há de
estranho, nem de distante nem de próximo, tu per­
maneças igual na sociedade humana, não mais pró­
ximo de ti do que de um outro. Deves amar todos os
homens tal como a ti e de igual modo respeitá-los e
protegê-los; aquilo que acontece a outrem, seja bom
ou mau, deve ser para ti, como se acontecesse a ti.
Ora é esse o segundo sentido: «Ele enviou-o ao
mundo.» Nós queremos entender (por isso) o gran­
de universo, no qual os anjos contemplam. Como
devemos nós ser? Nós devemos com todo o nosso
amor e com toda a nossa aspiração ser aí, como diz
Santo Agostinho: o que o homem ama, é o que ele
devém no amor. Deveremos então dizer que: quando
o homem ama Deus, ele devém Deus? Isto soa
como se fosse falta de fé. No amor que um homem
oferece, não existe qualquer dois, mas (apenas) um e
unição, e no amor eu sou mais Deus do que o que
sou em mim próprio. O profeta diz: Eu disse: «Vós
sois deuses, todos vós sois filhos do Altíssimo» (Sl
8 1 , 6) . Isto soa espantoso, que o homem desse modo
consiga tornar-se D eus no amor; contudo, isso é
verdade na verdade eterna. Nosso S enhor Jesus
Cristo o comprova.
« D eus enviou-o ao mundo» . Em uma acepção
«mundum» quer dizer «puro». Prestai atenção! Deus
286 TRATADOS E SERMÕES

não tem qualquer lugar próprio a não ser um cora­


ção puro e uma alma pura; aí, o Pai gera seu Filho,
como ele o gera na eternidade, nem mais nem me­
nos. O que é um coração puro? É puro aquilo que é
separado e diviso de todas as criaturas, pois todas as
criaturas enodoam, porque elas são um nada; por­
que o nada é carência e enodoa a alma. Todas as
criaturas são um puro nada; nem os anjos nem as
criaturas são um algo. Elas têm . . . e enodoam, porque
elas são feitas de nada; elas são e foram nada. O que
é desagradável para todas as criaturas e causa des­
prazimento, isso é o nada. Se eu pusesse uma brasa
na minha mão, isso causar-me-ia dor. Isso provém
unicamente do «não», e se nós fossemos livres do
«não», então não seríamos impuros.
E agora: «nós vivemos n'Ele e com Ele. » Não há
nada que se desej e tanto como a vida. O que é a
minha vida? Aquilo que a partir do interior se move
desde si mesmo. Não vive (porém) , aquilo que é
movido de fora. Se nós, por conseguinte, vivermos
com Ele, então também teremos de co-operar n'Ele
a partir de dentro, de modo que não operemos a
partir de fora; nós devemos, pelo contrário, ser movi­
dos para fora de onde nós vivemos, quer dizer: por
meio d'Ele. Nós podemos e devemos operar de den­
tro a partir de nós mesmos. Se houvermos portanto
de viver n'Ele ou por meio d'Ele, então Ele deve ser
o nosso próprio e deveremos operar a partir do que é
o nosso próprio; tal como Deus opera todas as coi­
sas e partir do seu próprio e por meio de si mesmo,
SERMÃO 1 3 287

assim devemos (também) nós operar do que nos é


próprio, que Ele está em nós. Ele é absolutamente o
nosso próprio, e todas as coisas são o nosso próprio
n'Ele. Tudo o que todos os anjos e todos os santos e
Nossa Senhora têm, é meu próprio n'Ele e não me é
mais estranho nem distante do que eu mesmo
tenho. Todas as coisas são-me igualmente próprias
n'Ele; e se houvermos de alcançar esse próprio, em
que todas as coisas são o nosso próprio, então deve­
remos igualmente tomá-lo em todas as coisas, não
mais numa do que noutra, pois Ele é em todas as
coisas igual.
Encontra-se pessoas a quem Deus agrada bas­
tante de um modo, mas não de outro, e elas querem
possuir Deus completamente (apenas) em um modo
do concentrar-se, e não no outro. Eu aceito isso, mas
é inteiramente errado. Quem quiser tomar Deus de
modo correcto, deve tomá-lo em todas as coisas de
modo igual, na aflição como no bem-estar, no pran­
to como na alegria; em toda a parte deve Ele ser igual
a ti. Se acreditas que, porque não estás em dívida de
pecado mortal, não tens recolhimento nem gravi­
dade, e precisamente porque não tens nem recolhi­
mento nem gravidade, (também) não tens Deus, e
isso te provoca sofrimento, então é justamente esse
agora o (teu) recolhimento e a (tua) gravidade. Por
isso não deveis dedicar-vos a um modo q ualquer,
porque Deus não é de modo algum nem uma coisa
nem a outra. Por conseguinte são inj ustos com
D eus, aqueles que o tomam desse modo. Eles to-
288 TRATADOS E SERMÕES

mam o modo, mas não Deus. Portanto, guardai estas


palavras: que apenas tenhais em vista e busqueis pu­
ramente a Deus. Com os modos que poderão ocor­
rer, devereis dar-vos por felizes. Pois a vossa intenção
deverá ser apenas orientada puramente para Deus, e
para nada mais. O que então vos possa agradar ou
desagradar, será portanto justo, mesmo sabendo que
de outro modo isso está completamente errado.
Metem Deus debaixo de um banco, aqueles que
querem ter tantos modos. Quer sejam lágrimas ou
soluços e tudo o mais semelhante: tudo isso não é
Deus. S e tal ocorrer, então aceitai-o e dai-vos por
contentes; se não se manifestar, então que sej ais
igualmente contentes e aceiteis o que Deus vos qui­
ser dar nesse momento, permanecendo todo o tem­
po numa aniquilação humilde e auto-derrelicção, e
também deverá parecer-vos todo o tempo, que sois
indignos de qualquer bem que Deus vos pudesse
fazer, se Ele o quisesse. Assim ficam pois interpreta­
das as palavras que S. João escreveu: «E o amor de
Deus manifestou-se desta forma no meio de nós»; se
nós fossemos assim, então esse bem seria revelado
em nós. Se ele nos está oculto, ninguém carrega
disso a culpa senão nós. Nós somos a causa de todos
os nossos obstáculos. Protege-te de ti mesmo, então
terás protegido bem. E se for assim, que nós não o
queremos tomar, é porque Ele (afinal) nos escolheu
para isso; se nós não o tomarmos, então teremos de
nos arrepender disso, e ser-nos-á muito reprovado.
Se nós não conseguirmos chegar aí, onde esse bem é
recebido, a responsabilidade não é d'Ele, mas nossa.
SERMÃO 14

ln occisione gladii mortui sunt.


(2Heb 1 1 ,37)

Lê-se sobre os mártires, que eles «foram mortos ao


fio da espada» (Heb 1 1 ,37) . Nosso Senhor disse aos
seus discípulos: «Felizes sereis, [apesar de] odiados por
todos, por causa do meu nome» (Mt S , 1 1 ; 1 0,22) 3 4•
Ora é dito: «Eles são mortos». Que «eles são mor­
tos» quer primeiramente exprimir que tudo o que
sofremos neste mundo e nesta vida terá um fim.
S. Agostinho diz: todo o tormento e toda a obra da
labuta têm um fim, mas a recompensa que Deus dá
por isso, ela é eterna. E m segundo lugar, que deve­
mos ter presente que toda esta vida é mortal, que
não devemos temer todo o tormento e toda a labuta

34 Quint, op. cit., estranha que a citação de Mateus não se torne em

nenhum ponto do Sermão objecto directo da exposição. Versículo com­


pleto de Mt 5, 1 1 : «Felizes sereis, quando vos insultarem e perseguirem e,
mentindo, disserem todo o género de calúnias contra vós, por minha
causa.» Versículo completo de Mt 1 0, 2 2 : «E vós sereis odiados por
todos, por causa do meu nome. Mas aquele que se mantiver firme até ao
fim será salvo.»
290 TRATADOS E SERMÕES

que nos possa ocorrer, pois isso terá um fim. Em ter­


ceiro lugar, q ue nos devemos comportar como se
estivéssemos mortos, de modo que nem o amor nem
o sofrimento nos toque. Um mestre diz: ao céu nada
consegue tocar, e isso quer exprimir, que o homem é
um ser celestial, para quem todas as coisas não são
tão valiosas, que o consigam tocar. Um outro mestre
afirma: posto que todas as criaturas são tão nulas, de
onde provém que elas afastem tão facilmente o ho­
mem de Deus; a alma é afinal na sua mínima expres­
são mais valiosa do que o céu e todas as criaturas?
Ele responde: provém de que ele pouco atenta em
Deus. Se o homem atentar em Deus, como ele deve,
então seria quase impossível que ele alguma vez
caísse. E é um bom ensinamento que o homem se
deve comportar neste mundo como se estivesse
morto. S. Gregório diz que ninguém poderá possuir
Deus em tão grande magnitude, como aquele que
estiver morto para este mundo até ao fundo.
O quarto ensinamento (porém) é o melhor. Diz­
-se, «eles são mortos». A morte (contudo) dá-lhes
um ser. Um mestre diz: a natureza nada destrói, sem
dar (em troca) algo de melhor. Quando o ar se torna
em fogo, então isso é algo de melhor; mas quando o
ar se torna em água, então isso é uma destruição e
um desvio. S e a natureza faz isso, então Deus fará
muito mais: Ele nunca destrói, sem dar algo (em tro­
ca) algo de melhor. Os mártires estão mortos e per­
deram uma vida, mas receberam um ser. Um mestre
diz que o mais nobre é ser e viver e conhecer. Conhe-
SERMÃO 1 4 291

cer é mais elevado do que viver ou ser, pois nisso que


se conhece há (simultaneamente) vida e ser. Mas,
pelo contrário, a vida é mais nobre do que ser ou
conhecer, como a árvore, que vive, enquanto a pedra
(apenas) tem um ser. Mas entendamos, por outro
lado, o ser como puro e cristalino, como ele é em si
mesmo: então o ser é superior a conhecer ou viver;
porque por isso de ele ter ser, tem (simultaneamente)
conhecer e viver.
Eles perderam uma vida e encontraram um ser.
Um mestre diz que Deus a nada é tão semelhante
como ao ser; na medida em que algo tenha ser, nessa
mesma medida se iguala a Deus. Um mestre diz: o
ser é tão puro e tão elevado, que tudo o que Deus é,
é um ser. Deus nada conhece senão ser, Ele não sabe
de nada senão de ser, ser é a sua esfera. Deus nada
ama senão o seu ser, nada pensa senão o seu ser.
Afirmo: todas as criaturas são um ser. Um mestre diz
que certas criaturas estão tão perto de Deus e pos­
suem gravada em si tanta luz divina, que elas atri­
buem ser a outras criaturas. Isso não é verdade, por­
que ser é tão elevado e tão p uro e tão aparentado
com Deus, que ninguém pode atribuir ser, unica­
mente Deus em si mesmo. A essência mais própria
de Deus é ser. Um mestre diz: uma criatura pode
perfeitamente dar vida a outra. Precisamente por isso
é que tudo o que de algum modo é, se fundamenta
unicamente em ser. Ser é um primeiro nome. Tudo o
que é carente, é uma defecção do ser. Toda a nossa
vida devia ser um ser. Tanto quanto a nossa vida for
um ser, tanto ela será em Deus. Na medida em que a
292 TRATADOS E SERMÕES

nossa vida estiver cerrada em ser, na mesma medida


será ela aparentada com Deus. Por muito insignifi­
cante que uma vida sej a, se a entendermos na me­
dida em que ela é ser, então ela será mais nobre do
que tudo o que a vida alguma vez conquistou. Estou
certo disto: se uma alma conhecer o mais ínfimo que
tenha ser, ela não se desviará dele nunca mais, por
um momento sequer. O mais ínfimo que se conhece
em Deus, sim, ainda que se conheça assim (apenas)
uma flor, como ela tem um ser em Deus, isso será
mais nobre do que todo o mundo. O mais ínfimo
que é em Deus, na medida em que é um ser, é melhor
do que alguém conhecer um anjo.
Se o anjo se proporcionar ao conhecimento das
criaturas, então será noite. S. Agostinho diz: quando
os anjos conhecem as criaturas sem Deus, então isso é
um crepúsculo; mas quando eles conhecem a cria­
tura em Deus, então é uma aurora. Se (pelo contrário)
eles conhecerem Deus, como ele é puro no seu pró­
prio ser, então a luz será a do meio-dia. Eu digo: o
homem deveria entender e conhecer que o ser é tão
nobre. Nenhuma criatura é tão ínfima, que não anele
pelo ser. As lagartas, quando caem das árvores abaixo,
rastejam depois por uma parede acima, para conser­
varem o seu ser. Tão nobre é o ser. Nós exaltamos o
morrer em Deus, para que Ele nos transponha para
um ser que seja melhor do que viver: um ser, no qual
viva a nossa vida, no qual a nossa vida devenha um
ser. O homem deve dar-se voluntariamente à morte e
morrer para que lhe seja concedido um ser melhor.
Digo por vezes que a madeira é melhor do que o
SERMÃO 14 293

ouro; isso é bastante espantoso. Uma pedra é mais


nobre, contanto que tenha um ser, do que Deus e a
sua divindade sem ser, se fosse possível extrair-lhe o
ser. Tem de ser uma vida muito poderosa, aquela em
que as coisas mortas devêm vivas, sim, em que a pró­
pria morte devém uma vida. A Deus, nada morre;
todas as coisas vivem n'Ele. «Eles foram mortos», diz
a Escritura dos mártires, e foram transpostos para
uma vida eterna, aquela vida em que a vida é um ser.
Devemos estar mortos até ao fundo, de modo q ue
nem o amor nem o sofrimento nos toquem. Aquilo
que se deve conhecer deve conhecer-se na sua causa
primordial. Nunca se pode conhecer rectamente uma
coisa em si mesma, quando não se a conhece na sua
causa primordial. Nunca poderá ser um verdadeiro
conhecimento, aquele que não conhece algo na sua
causa primordial manifesta. Assim a vida também
não poderá nunca ser consumada, se não for levada
até à sua causa manifesta, na qual a vida é um ser,
que recebe a alma, quando ela morre até ao fundo,
para que nós vivamos naquela vida, em que a vida é
um ser. Aquilo que nos impede de sermos aí perdurá­
veis é indicado por um mestre que diz: isso provém
de que tocamos no tempo. Aquilo que toca no tempo
é mortal. Um mestre diz: a marcha do céu é eterna; é
bem verdade que o tempo vem dele, mas isso acon­
tece numa queda. Na sua (própria) marcha, oposta­
mente, ele é eterno, ele não sabe (aí) nada de tempo, e
isso demonstra que a alma deve ser colocada num ser
puro. O segundo (que nos impede) é quando algo
294 TRATADOS E SERMÕES

contém em si um oposto. O que é a oposição? Amor


e sofrimento, branco e negro, encontram-se em opo­
sição, não têm qualquer existência em ser.
Um mestre diz: a alma é dada ao corpo para ser
purificada. A alma, quando está separada do corpo,
não possui nem intelecto nem vontade: ela é um, ela
não conseguiria criar a força para se poder virar para
Deus; ela tem-nos (intelecto e vontade) tanto no seu
fundamento como na sua raiz, mas não no seu
actuar. A alma é purificada no corpo, onde ela reúne
o que anda disperso e levado para fora. Quando
aquilo que os cinco sentidos levam para fora entra
de novo na alma, então ela tem um poder em que
tudo se torna um. Por outro lado a alma é purificada
no exercício das virtudes, quer dizer quando a alma
sobe até uma vida que é unificada. A pureza da alma
jaz nisso de ela ser purificada por uma vida que é
dividida, e entrar numa vida que é unificada. Tudo o
que é dividido nas coisas inferiores será unificado
quando a alma sobe até uma vida na qual não exis­
tem q uaisquer contrários. Quando a alma chega à
luz do intelecto ela nada saberá da oposição. O que
escapa a essa luz, cai na mortalidade e morre. Em ter­
ceiro lugar a pureza da alma consiste em que ela não
tem propensão para nada. O que é propenso para
outra coisa morre, e não tem subsistência.
Pedimos a Deus, nosso amado Senhor, que nos
aj ude a sair de uma vida que é dividida para uma
vida que é um. Que Deus nos ajude nisso. Ámen.
SERMÃO 15

Quasi stella matutina in medio nebulae e t quasi plena luna in diebus


suis lucet et quasi sol refulgens, sic iste refulsit in templo dei.
(Sir 50,6-7)

«Era como a estrela da manhã, no meio das nu­


vens, como a Lua, nos dias da Lua-cheia, como o sol
radioso sobre o templo do Altíssimo» (Sir 50,6-7) .
Ora eu pego nas últimas palavras: «templo do Al­
tíssimo [Deus] » . O que é «Deus, e o que é «templo
de Deus»?
Reuniram-se vinte e quatro mestres e queriam
falar do que Deus é. Encontraram-se a uma determi­
nada hora, e cada um apresentou o seu discurso; deles
selecciono aqui dois ou três. Um deles disse: «Deus é
algo, perante o qual todas as coisas mutáveis e tempo­
rais nada são, e tudo o que tem ser é ínfimo perante
Ele.» O segundo afirmou: «Deus é algo que está ne­
cessariamente acima do ser, que em si mesmo não
precisa de ninguém, mas de que todas as coisas pre­
cisam. » O terceiro disse: «Deus é um intelecto que
existe unicamente no conhecimento de si mesmo. »
296 TRATADOS E SERMÕES

Deixo (agora) de lado a primeira e a última afir­


mação e falarei da segunda: que Deus é algo que
necessariamente tem de ser acima do ser. Aquilo que
tem ser, tempo ou lugar, não toca em D eus; Ele é
acima disso. Deus é (de facto) em todas as criaturas,
contanto que elas tenham ser, e é afinal acima delas.
Justamente com isso que Ele é em todas as criaturas,
é Ele afinal acima delas; aquilo que é um em muitas
coisas, deverá necessariamente ser acima das coisas.
Alguns mestres defendiam que a alma só existe no
coração. Isso não é assim, e nisso erraram grandes
mestres. A alma é perfeitamente completa e indivisa
nos pés e perfeita nos olhos e em cada membro. Se
eu pegar num pedaço de tempo, então ele não será o
dia de hoje nem o de ontem. Mas se tomar o agora,
então ele compreenderá todo o tempo em si. O agora,
em que Deus criou o mundo, está tão próximo desse
tempo como o agora, em que eu falo, e o dia do Juízo
Final está tão próximo desse agora como o dia que
ontem foi.
Um mestre diz: Deus é algo que opera na eterni­
dade indiviso em si mesmo, que não precisa da ajuda
de ninguém nem de uma ferramenta, que persevera
em si mesmo, que de nada necessita, mas de que
todas as coisas necessitam e para que todas as coisas
impelem como para a sua finalidade última. Esse
objectivo não tem um modo determinado, ele excede
o modo e dirige-se p ara o vasto. S. Bernardo diz:
(o modo de) amar a D eus, é um modo sem modo.
Um médico que quer pôr saudável um doente, não
SERMÃO 1 5 297

tem nenhum modo (determinado) de saúde, de quão


saudável ele quer tornar o doente; ele tem decerto
um modo, com o qual ele quer tornar o doente saudá­
vel; quão saudável ele o quer tornar, isso é sem um
(determinado) modo; tão saudável, quanto ele o con­
siga tornar. Como é o amor que devemos ter por
Deus, não existe para tal qualquer modo (determi­
nado) ; com tanto amor quanto consigamos, ou seja
sem modo.

Cada coisa opera no (seu) ser; nenhuma coisa


pode operar para além do seu ser. O fogo pode ope­
rar na madeira como nenhures. Deus opera acima
do ser na imensidão, onde Ele se pode mover; Ele
opera no não-ser. Ainda antes de haver ser, já Deus
operava; Ele operava ser, quando ainda não havia o
ser. Mestres de entendimento rude dizem, que Deus
é um ser puro; Ele está tão acima do ser, como o
anjo supremo está acima de um mosquito. Quando
eu designo Deus como um ser, estarei a dizer algo
igualmente tão incorrecto, como se dissesse que o
Sol era branco ou negro. Deus não é uma coisa nem
a outra. E um mestre diz: quem acredita ter conhe­
cido Deus, e que assim terá conhecido algo, não
conhece Deus. Mas se eu tiver dito, que Deus não é
um ser, e que é acima do ser, então não lhe neguei o
ser, pelo contrário, elevei-o nele. Se eu j untar cobre
ao ouro, então ele será aí (existente) e existe aí num
modo mais elevado, do que ele o é em si mesmo.
S. Agostinho diz: Deus é sábio sem sabedoria, bom
sem bondade, poderoso sem poder.
298 TRATADOS E SERMÕES

Os pequenos mestres ensinam na escola, que


todos os seres são divididos em dez modos de ser,
que eles negam inteiramente a D eus. Nenhum
desses modos de ser toca Deus, mas Ele também não
carece de nenhum deles. O primeiro, que possui
mais ser entre todos, em que todas as coisas recebem
o seu ser, é a substância; e o último, que contém o
mínimo de ser, chama-se relação, e ele é em D eus
igual, o maior de todos, o que possui mais ser;
ambos têm um arquétipo igual em Deus. Em Deus
são iguais todas as coisas arquetípicas; mas elas são
coisas arquetípicas desiguais. O anj o supremo e a
alma e o mosquito têm um arquétipo igual em Deus.
Deus não é ser nem bondade. A bondade adere ao
ser e não alcança mais longe do que o ser; pois se
não houvesse ser, também não haveria q ualquer
bondade, e o ser é ainda mais puro do que a bon­
dade. Deus não é bom, nem melhor, nem o melhor
de todos. Quem afirmou que Deus é bom, fez-lhe
tanta injustiça, como se dissesse que o Sol era negro.
Ora Deus ele próprio diz: «Ninguém é bom, uni­
camente Deus o é.» O que é bom? Bom é aquilo que
se partilha. Dizemos que um homem é bom, se ele
se partilha e é útil. Por isso disse um mestre pagão:
um eremita não é nem bom nem mau nesse sentido,
porque ele não se partilha nem é útil. Deus é o mais
partilhável de tudo. Nenhuma coisa se partilha por
si, porque todas as criaturas não são a partir de si
mesmas. Tudo o que elas partilham, têm-no de um
outro. Elas não dão de si próprias. O Sol dá o seu
SERMÃO 1 5 299

brilho mas permanece no seu lugar; o fogo dá o seu


calor e permanece fogo; mas Deus partilha o que é
seu, porque Ele é a partir de si mesmo, aquilo que Ele

é, e em todas as dádivas que Ele dá, dá-se primeiro


que tudo continuamente a si mesmo. Ele dá-se
como Deus, como Ele é em todas as suas dádivas,
tanto quanto houver interesse daquele que o quer
receber. S. Tiago diz: «Toda a boa dádiva e todo o
dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das
luzes» (Tg 1 , 1 7) .
Quando nós tomamos Deus n o ser, então toma­
mo-lo no seu pórtico, porque o ser é o seu pórtico,
no qual Ele habita. Mas onde então está Ele no seu
templo, no qual resplandece como sagrado? O inte­
lecto é o templo de Deus. Nenhures habita Deus mais
autenticamente do que no seu templo, no intelecto,
como disse aquele outro mestre: Deus é um inte­
lecto que vive unicamente no conhecimento de si
mesmo, permanecente apenas em si mesmo, aí, onde
nunca nada o tocou; pois aí Ele é sozinho no seu
sossego. Deus conhece-se a si mesmo no seu conhe­
cer-se a s1 mesmo.
Tomemos agora (o conhecimento) como ele é na
alma, que possui uma gotícula de intelecto, uma
«centelha», um «ramo» . Ela (a alma) tem potências
que operam no corpo. Existe uma potência com a
qual o homem digere; ela opera mais durante a noite
do que de dia; graças a ela o homem torna-se mais
forte e cresce. Além disso, a alma tem uma potência
no olho; por seu intermédio o olho é tão subtil e
300 TRATADOS E SERMÕES

fino, que ele não percepciona mais as coisas na sua


rudeza, como elas são em si mesmas; elas terão de
ser primeiro joeiradas e refinadas ao ar e à luz; isso
provém de que ele (o olho) tem a alma consigo. Há
uma outra potência na alma, com a qual ela pensa.
Essa potência apresenta-se nas coisas que não estão
presentes, de modo que eu reconheço essas coisas
tão bem como se eu as visse com os olhos, talvez até
melhor - eu posso perfeitamente imaginar uma rosa
no Inverno -, e com esta potência a alma opera no
não-ser e nisso segue Deus, que (também) opera no
não-ser.
Um mestre pagão disse: a alma que ama D eus
coloca-o sob o envoltório da bondade - até aqui,
todas as palavras mencionadas são de mestres pa­
gãos que apenas conheciam a uma luz natural; ainda
não cheguei às palavras dos santos mestres, que
conheciam a uma luz muito superior -, disse então
esse mestre: a alma que ama D eus coloca-o sob o
envoltório da bondade. Mas o intelecto retira a Deus
o envoltório da bondade e toma-o nuamente, onde
Ele está despido de bondade e de ser e de todos os
nomes.
Eu disse na escola que o intelecto é mais nobre
do que a vontade, se bem que ambos pertençam a
esta luz. Ora disse um mestre numa outra escola,
que a vontade é mais nobre do que o intelecto, por­
que a vontade toma as coisas como elas são em si
mesmas; mas o intelecto toma as coisas como elas
são nele. Isso é verdade. Um olho é mais nobre em si
SERMÃO 1 5 301

mesmo do que um olho que está pintado na parede.


Mas eu digo que o intelecto é mais nobre do que a
vontade. A vontade toma Deus sob a roupagem da
bondade. O intelecto toma D eus na sua nudez,
como Ele é despido de bondade e de ser. A bondade
é uma roupagem, sob a qual Deus está oculto, e a
vontade toma Deus sob esta roupagem da bondade.
Se não houvesse qualquer bondade em Deus, então
a minha vontade não o quereria. Quem quisesse
vestir um rei no dia da sua coroação, e lhe vestisse
trajes cinzentos, não o teria vestido correctamente.
Eu não sou bem-aventurado por Deus ser bom. Não
quero (também) nunca desej ar que D eus me faça
bem-aventurado com a sua bondade, pois ele não
conseguiria fazer isso de todo. Eu sou unicamente
bem-aventurado por Deus ser intelecto e eu conhe­
cer isso. Um mestre diz: o ser do anjo depende intei­
ramente do intelecto de Deus. Coloca-se a questão
onde se encontra propriamente o ser da imagem: no
espelho, ou naquele de onde ela sai? Ela está mais
propriamente naquele de onde ela sai. A imagem é
em mim, de mim, para mim. Enquanto o espelho se
encontra exactamente defronte do meu rosto, en­
contra-se aí a minha imagem; mas se o espelho cair,
a imagem desaparecerá. O ser do anj o depende de
estar presente o intelecto de D eus, no qual ele se
reconhece.
«Como a estrela da manhã no meio das nuvens» .
Dirijo a minha atenção para a palavrinha «quasi» que
significa como; as crianças chamam-lhe na escola
302 TRATADOS E SERMÕES

um «advérbio». Era isso que eu tinha em vista em


todos os meus sermões. O mais próprio de tudo que
se pod é dizer sobre D eus é «verbo» e «verdade» .
Deus chamou a si mesmo um «verbo». S. João disse
«No princípio havia o verbo» Oo 1 , 1 ) , denotando
com isso (simultaneamente) que junto dessa palavra
o homem deve ser um «advérbio». Tal como a «es­
trela livre» que inspira o nome de «sexta-feira» 3 5 é
para Vénus : ela tem diversos nomes. Quando ela
precede o Sol e se ergue antes do S ol, então ela
chama-se «estrela de alva»; mas quando ela vai atrás
do Sol, e este se põe antes dela, então ela chama-se
«estrela da tarde»; por vezes ela faz o seu percurso
acima do Sol, por vezes abaixo. Entre todas as estre­
las, ela está permanentemente à mesma distância do
Sol; nunca ela se afasta ou se aproxima mais e de­
monstra assim, que um homem que tal pretenda
alcançar, deverá sempre estar presente e próximo de
Deus, de modo que nada o possa afastar de D eus,
nem felicidade nem infelicidade nem qualquer cria­
tura. O texto prossegue: «Como a Lua, nos dias da
Lua-cheia» . A Lua é soberana de toda a natureza
húmida. Nunca a Lua está tão próxima do Sol como
quando ela está cheia, e quando recebe a sua luz di­
rectamente do Sol. Mas por ela estar mais próxima

35 Para entender a passagem, é necessário referir o jogo de palavras

no original alemão. Sexta-feira significa em alemão Freitag, o dia de Freia,


ou Fria em alemão antigo, a esposa de Wotan, o deus supremo da mito­
logia germânica. À mesma família semântica pertence o adjectivo frei,
livre, daí a «estrela livre», que se refere a Vénus.
S ERMÃO 1 5 303

da Terra do que qualquer outra estrela, possui duas


desvantagens: ela é pálida e manchada e perde a sua
luz. Ela nunca é tão poderosa como quando se en­
contra o mais afastada da Terra, pois é quando ela
lança o mar para mais longe. Quanto mais a alma se
elevar sobre as coisas terrenas, tanto mais poderosa
ela será. Se alguém não conhecesse mais do que as
criaturas, não precisaria de pensar em qualquer
sermão, porque cada criatura é plena de Deus e é um
livro. O homem que quiser alcançar aquilo de que
falei antes - disso trata todo o sermão -, terá de ser
como uma estrela da alva: deve ser sempre presente
a Deus e sempre <� unto» (d'Ele) e igualmente pró­
ximo e acima de todas as coisas terrenas e junto do
«verbo» deverá ser um «advérbio».
Há um verbo proferido : é o anj o e o homem e
todas as criaturas. Existe um outro verbo, pensado e
dito, por meio do qual é possível que eu imagine
qualquer coisa. Existe, porém, ainda mais um verbo
que não é proferido nem pensado, que nunca é
usado; pelo contrário, ele permanece eternamente
naquele que o diz. Ele está no Pai, que o diz, sempre
a ser recebido e permanecente no interior. O inte­
lecto opera continuamente para o interior. Quanto
mais subtil e espiritual algo for, com tanto mais
poder opera para dentro; e quanto mais poderoso e
subtil for o intelecto, tanto mais se torna um com ele
e a ele unido aquilo que ele conhece. Assim (con­
tudo) não é com as coisas corporais; quanto mais
poderosas elas forem, tanto mais operam elas para o
304 TRATADOS E SERMÕES

exterior. A beatitude de Deus (contudo) situa-se no


operar para dentro do intelecto, caso em que o
«verbo» permanece no interior. A alma deverá aí ser
um «advérbio» e operar com Deus uma obra, para
criar a sua bem-aventurança no conhecimento em si
mesmo flutuante: aí mesmo, onde D eus é bem­
-aventurado.
Para conseguirmos sempre ser um «advérbio»
j unto desse «verbo», que o Pai nos aj ude e esse
mesmo verbo e o Espírito Santo. Ámen.
SERMÃO 16

Sta in porta dom us dí!mini e t loquere verbum.


(Jr 7,2)

Nosso Senhor diz: «Coloca-te à porta do templo


do Senhor e proclama aí este discurso» (Jr 7,2) . O Pai
celestial diz uma palavra e di-la eternamente, e nessa
palavra consome ele todo o seu poder, e diz nessa
palavra e exprime nessa palavra toda a sua natureza
divina e todas as criaturas. A palavra está oculta na
alma, de modo que não a sabemos nem ouvimos, a
não ser que lhe sej a dada atenção na profundeza;
antes disso ela não será ouvida; pelo contrário, todas
as vozes e todos os sons devem ser afastados e deve­
rá existir uma tranquilidade pura, um silêncio. Por
agora não pretendo falar mais sobre este sentido.
Ora: «Coloca-te à porta l » Quem aí se encontra,
tem os seus membros ordenados. Ele quer dizer, que
a parte superior da alma deverá estar firmemente
erecta. Tudo o que é ordenado deverá ser ordenado
em baixo daquilo que lhe está em cima. Nenhuma
criatura agrada a Deus, quando não resplandece
306 TRATADOS E SERMÕES

acima dela a luz natural da alma, na qual ela recebe o


seu ser, e q uando a luz do anj o não resplandece
sobre a luz da alma e a prepara e torna adequada
para que a luz divina lá possa operar; pois Deus não
opera em coisas corporais, Ele opera (pelo contrário
somente) na eternidade. Por isso deverá a alma ser
concentrada e elevada e deverá ser um espírito. Ai.
opera D eus, aí aprazem a D eus todas as obras.
Nunca uma obra é aprazível a Deus, a não ser que
ela seja aí operada.
Ora: «Coloca-te à porta do templo do Senhor! » O
«templo do Senhor» é a unidade do seu ser! O que é
um conserva-se melhor, se for só inteiramente para
si. Por isso a unidade encontra-se junto de Deus e
conserva Deus intacto, sem nada acrescentar. Ai. se
senta Ele no que lhe é próprio, no seu esse, completa­
mente em si, nunca no exterior do que é seu. Mas
quando Ele se funde, a fusão é total. A sua fusão é a
sua bondade, como eu recentemente disse em rela­
ção com o tema do conhecimento e o amor. O
conhecimento resgata, pois o conhecimento é me­
lhor do que o amor. Mas dois são melhor do que
um, porque o conhecimento traz o amor em si. O
amor agarra-se e firma-se na bondade, e no amor eu
fico (por conseguinte) retido à «porta», e o amor
seria cego se não houvesse qualquer conhecimento.
Uma pedra também tem amor, e o seu amor busca o
fundo (da terra) . Se eu permanecer retido na bon­
dade, na primeira fusão, e tomar Deus na medida em
que E le é bom, então eu tomo a «porta», mas não
SERMÃO 1 6 307

tomo Deus. Por isso é melhor o conhecimento, por­


que ele conduz o amor. Mas o amor desperta o dese­
j ar, o ansiar. O conhecimento, pelo contrário, não
acrescenta qualquer pensamento, opostamente, ele
desprende-se e separa-se, adianta-se e toca em Deus,
como Ele é simplesmente, e apreende-o unicamente
no seu ser.
«Senhor, a tua casa está adornada de santidade»,
para que nela sejas louvado, e para que seja um tem­
plo «por todo o sempre» (Sl, 92, 5) . Eu não falo aqui
dos dias (os dias terrenos) : quando digo «todo o
sempre», então é o (verdadeiro) sempre; uma «vasti­
dão sem vastidão», é (verdadeira) vastidão. Quando
digo «todo o sempre», então significo: acima do tem­
po, e ainda mais: absolutamente acima do aqui, como
eu disse antes, onde não há nem aqui nem agora.
Uma mulher perguntou a Nosso Senhor, onde se
devia rezar. Nosso Senhor respondeu-lhe: «Mas che­
ga a hora - e é já - em que os verdadeiros adoradores
hão-de adorar o Pai em espírito e verdade. Deus é
espírito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo
em espírito e verdade» 3 6• Nós não somos aquilo que
é a própria verdade; é certo que somos (também)
verdade, mas existe uma parte de inverdade nisso.
Mas assim não acontece em Deus. Pelo contrário,

36 Os versículos rezam integralmente: «Mas chega a hora - e é já -

em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e


verdade, pois são assim os adoradores que o Pai pretende. Deus é espí­
rito; por isso, os que o adoram devem adorá-lo em espírito e verdade»
ªº 4, 23-24).
308 TRATADOS E SERMÕES

deverá a alma no primeiro arrebatamento, onde a


(pura, inteira) verdade irrompe e nasce, encontrar-se
na «porta do templo» e deverá dizer e apresentar a
palavra. Tudo o que está na alma deverá falar e
louvar, e ninguém deverá ouvir a voz. Na tranquili­
dade e no sossego - como eu disse há pouco daque­
les anj os, que se sentam junto de Deus no coro da
sabedoria e da ardência -, aí fala Deus na alma e
exprime-se inteiramente na alma. Aí gera o Pai a seu
Filho e tem tanto prazer na palavra, e sente um amor
tão grande nisso, que nunca desiste de dizer a pala­
vra por todo o sempre, quer dizer: acima do tempo.
Ajusta-se bem às nossas explanações, que digamos:
«A tua casa está adornada de santidade» e louvor e
que nada mais haja nela do que aquilo que te louva.
Os nossos mestres dizem: O que louva a Deus?
-
É a igualdade. Então ama Deus tudo que na alma é
igual a Deus; sej a o que for diferente de Deus não
louva Deus; assim como y ma pintura louva o seu
mestre, que nela deixou o cunho de toda a sua arte,
que ele alberga em seu coração, e que assim se tor­
nou (a pintura) tão igual a ele. Esta igualdade da pin­
tura louva o seu mestre em silêncio. Aquilo que se
consegue louvar com palavras ou que se reza com a
boca é algo de baixo valor. Porque Nosso S enhor
disse outrora: «Vós adorais o que não conheceis; nós
adoramos o que conhecemos. Mas chega a hora - e é
já - em que os verdadeiros adoradores hão-de adorar
o Pai em espírito e verdade. Deus é espírito; por isso,
os que o adoram devem adorá-lo em espírito e ver-
SERMÃO 1 6 309

dade» Oo, 4,22-23) 3 7• Sobre o que é a oração diz


Dionísio 3 8 : (a) oração é um ascender para Deus no
intelecto. Um pagão diz: onde está o espírito e a uni­
dade e a eternidade, é aí que Deus quer operar. Onde
a carne está contra o espírito, onde a dispersão está
contra a unidade, onde o tempo está contra a eterni­
dade, aí não opera D eus; ele não se entende com
isso. Pelo contrário, todo o prazer e toda a satisfação
e alegria e agrado que se pode ter aqui (na terra) , -
tudo isso deve desaparecer. Aquele que quiser louvar
a Deus, deverá ser santo e concentrado e ser um es­
pírito e nunca estar fora; antes deverá, inteiramente
«igual», ser elevado à eternidade acima de todas as
coisas. Não me refiro (somente) a todas as criaturas
que são criadas, senão a tudo que ele conseguir, se
quiser; a alma tem de sair para além disso. Enquanto
algo estiver sobre a alma, e enquanto algo estiver
diante de Deus, que não seja Deus, então a alma não
alcançará o fundamento «por todo o sempre».
Ora diz S. Agostinho : quando a luz da alma, na
q ual as criaturas recebem o seu ser, resplandece
sobre as criaturas, então isso designa-se como uma
manhã. Quando a luz do anjo resplandece sobre a
luz da alma e a encerra em si designa-se como um
meio-dia. D avid diz: «Mas a vereda dos j ustos é
como a luz da aurora, que cresce até ao romper do

37 Versículo 22 na íntegra: «Vós adorais o que não conheceis; nós

adoramos o que conhecemos, pois a salvação vem dos judeus».


38 QuINT afirma tratar-se não de Dionísio, mas de João Damasceno,

De fole orthodoxa III c. 24.


310 TRATADOS E SERMÕES

dia» (Pr 4, 1 8) . A vereda é bonita e aprazível e festiva


e aconchegada. Prosseguindo: quando a luz divina
resplandece sobre a luz do anjo e a luz da alma e a
luz do anjo se encerram na luz divina, chamamos a
isso o meio-dia. Então o dia é o mais alto e o mais
longo e o mais completo, quando o Sol se encontra
mais elevado e derrama o seu brilho sobre os astros
e os astros derramam o seu brilho sobre a Lua, de
modo que sob o Sol tudo fica ordenado. A luz divina
encerrou assim inteiramente em si a luz do anjo e a
da alma, de modo que tudo se encontre ordenado e
erguido e logo louvem a Deus todos j untos. Nada
mais existe aí que não louve a Deus, e tudo se
encontra igual a Deus, quanto mais igual, tanto mais
pleno Deus, e louvam a Deus todos j untos. Nosso
Senhor disse: «Eu habitarei convosco neste lugar»
Qr 7, 3) 39 • Pedimos a D eus, nosso amado S enhor,
que ele habite aqui connosco, para que nós possa­
mos habitar eternamente com ele; que D eus nos
ajude nisso. Ám en.

39 Versículo 3 na íntegra: «Assim fala o Senhor do universo, o Deus

de Israel: Endireitai os vossos caminhos e emendai as vossas obras e Eu


habitarei convosco neste lugar>>.
SERMÃO 1 7

Homo quidam feci,t cenam magnam.


(Lc 1 4,1 6)

S. Lucas escreve no seu Evangelho : «Certo ho­


mem ia dar um grande banquete e fez muitos convi­
tes» (Lc 14, 1 6) . Quem o dá? Um homem. O que sig­
nifica que ele o denomine um banquete? Um mestre
diz assim: significa um grande amor, pois Deus não
admite aí ninguém, que não sej a da confiança de
Deus. Em segundo lugar, ele dá a entender quão
puros devem ser aqueles que desfrutem desse ban­
quete. Ora nunca será noite, se antes não tiver de­
corrido um dia inteiro, se não houvesse o Sol, nunca
haveria o dia. Quando o Sol desponta, então temos a
aurora; depois ele brilha cada vez mais até que chega
o meio-dia. Do mesmo modo irrompe a luz divina
na alma, para iluminar cada vez mais as potências da
alma, até que chegue o meio-dia. De modo algum
haverá um dia espiritual na alma, se ela não tiver re­
cebido uma luz divina. Em terceiro lugar dá ele a en­
tender que, quem quiser receber esse banquete com
312 TRATADOS E SERMÕES

dignidade, deverá vir à noitinha 4-0 . Sempre que a luz


deste mundo desaparece, é noite. Ora diz David: «Ele
eleva-se com a noite, e o seu nome é: o Senhor» (Sl
6 7,5) 41 • Segundo Jacob: «Chegou a determinado sítio
e resolveu ali passar a noite (Gn 28, 1 1 ) . Isso significa
o sossego da alma. Em quarto lugar, (a palavra
escrita) dá a entender, como diz S. Gregório, que
depois do banquete não há mais nenhuma refeição.
A quem Deus dá essa refeição, sabe-lhe ela tão doce
e tão gostosa, que depois nunca mais qualquer outra
refeição lhe agradará. S. Agostinho diz: Deus é algo
de tal modo constituído que, quem o percepciona,
nunca mais pode sossegar em algo de diferente.
S. Agostinho diz: Senhor, se tu nos levares, então dá­
-nos um outro tu, ou nós nunca encontraremos sos­
sego; nós não queremos outro senão a ti. Ora diz um
santo sobre uma alma amorosa de D eus, que ela
obriga Deus a tudo o que ela quiser, e o seduz com­
pletamente, de modo que Ele nada lhe poderá re­
cusar do que E le é. E le subtraiu-se de um modo e
deu-se de um outro modo; Ele subtraiu-se enquanto
Deus e homem e deu-se enquanto Deus e homem
como um outro si-mesmo num recipiente secreto.
Não se permite com agrado que uma relíquia impor­
tante seja vista ou tocada se estiver desprotegida. Por

"' Em alemão Abendessen, sinónimo de jantar ou ceia, daí as alusões à


noite.
41 Versículo na íntegra: «Louvai a Deus, cantai salmos ao seu nome,

/ abri caminho àquele que cavalga sobre as nuvens; / o seu nome é


Senhor! Exultai na sua presença!»
SERMÃO 1 7 313

isso, ele revestiu-se com o manto do pão, tal como o


alimento corporal é transformado pela minha alma,
de modo que não há qualquer pequeno canto na
minha natureza, que n'Ele não sej a unido. Porque
existe uma potência na natureza, que solta o que é
mais grosseiro e o atira fora; mas o que é mais nobre
é elevado por ela, de modo que não fica nenhures
nem o buraco de uma agulha que não sej a unida
com isso. Aquilo que comi há catorze dias é tão um
com a minha alma como aquilo que recebi no ventre
da minha mãe. Assim acontece com aquele que
recebe este alimento do modo mais puro: torna-se
tão verdadeiramente um com ele, como a carne e o
sangue são um com a minha alma.
Era «um homem», esse homem não tem nome,
porque esse homem é Deus. Ora diz um mestre da
primeira causa que ela está acima da palavra. A insu­
ficiência reside na linguagem. Isso provém da efusão
da pureza do seu (de Deus) ser. Apenas nos pode­
mos exprimir sobre as coisas de três modos diferen­
tes : primeiro, por meio daquilo que está acima das
coisas, segundo, por meio do ser igual das coisas, e
terceiro por meio do operar das coisas. Gostaria de
dar uma comparação. Quando a força do Sol puxa
para os ramos o mais nobre sumo das raízes e daí re­
sulta a flor, então a força do Sol permanece por cima
disso. Exactamente assim, afirmo-o, opera a luz di­
vina na alma. Aquilo, dentro do qual a alma exprime
D eus, nada alberga em si da autêntica verdade do
seu ser; ninguém pode exprimir num sentido autên-
314 TRATADOS E SERMÕES

tico o que Deus é. Por vezes diz-se: uma coisa é igual


a (outra) coisa. Visto que todas as criaturas pratica­
mente nada encerram em si de Deus, também não
conseguem por isso revelar nada sobre ele. Um
pintor que criou uma pintura perfeita vê a sua arte
reconhecida nisso. Contudo, não se consegue reco­
nhecê-la inteiramente nisso. Todas as criaturas
Guntas) não conseguem exprimir Deus, porque elas
não são aptas para percepcionar o que Ele é. Esse
Deus e homem preparou (então) o banquete, aquele
homem inexprimível, para o qual não existe qual­
quer palavra. Agostinho diz: aquilo que se exprime
sobre Deus não é verdadeiro; mas aquilo que não se
exprime sobre Ele é verdadeiro. Seja o que for que se
diga que Deus é, Ele não é isso; aquilo que não se diz
d'Ele é ele mais autenticamente do que aquilo que se
diz que Ele é. Quem preparou esse banquete? «Um
homem» : o homem que aí é D eus. Ora diz o rei
David: « Ó Senhor, como é grande e variado o teu
banquete e o sabor da bondade, que é preparado
para aqueles que te amam, (mas) não para aqueles
que te receiam» (Sl 30,20) 42• S. Agostinho reflectiu
sobre essa refeição, ela horrorizou-o, e não lhe soube
bem. Então ele ouviu uma voz vinda de cima, bem
perto de si: «Eu sou uma refeição para grandes ho­
mens, cresce e torna-te grande e come-me. Mas não

• 2 O versículo na edição portuguesa da Bíblia referida reza: «Como é

grande, Senhor, a bondade I que reservas para os que te são fiéis! Tu a


concedes, à vista de todos, I àqueles que em ti confiam.»
SERMÃO 1 7 315

deverás presumir que eu me transforme em ti:


tu serás (pelo contrário) transformado em mim . »
Quando Deus opera n a alma, então será purificado
e atirado fora na chama do calor, aquilo que de desi­
gual existe na alma. Em pura verdade! A alma entra
mais dentro de Deus do que qualquer refeição em
nós, ainda mais: a alma transforma-se em D eus. E
existe uma potência na alma, que separa o que é
mais grosseiro e une-se com Deus: é a centelha da
alma. A minha alma torna-se mais um com Deus do
que a refeição com o meu corpo.
Quem preparou esse banquete? « Um homem» .
S abes qual é o seu nome? O homem que é ino­
minado. Esse homem enviou o seu servo. Ora diz
S. Gregório: este servo são os pregadores. Num
outro sentido, os anjos são esse servo. Em terceiro lu­
gar, como me parece, esse servo é a centelha da alma,
que foi criada por Deus e é uma luz, que rompeu de
cima, e é uma imagem da natureza divina, que con­
testa totalmente tudo o que não é divino, e não é
uma potência da alma, como diversos mestres enten­
dem, e é inteiramente inclinada para o bem; mesmo
no inferno é inclinada para o bem. Os mestres
dizem: essa luz é de uma tal natureza, que tem uma
perdurável aspiração, e ela chama-se synteresis, e isso
significa tanto como um obrigar-se e um renunciar.
Ela tem duas actividades. Uma é a defesa pertinaz
contra tudo o que não é puro. A outra actividade é
aquela que constantemente atrai para Deus - e está
gravada directamente na alma -, mesmo naqueles
316 TRATADOS E SERMÕES

que estão no inferno. Por isso é que se trata de um


grande banquete.
E ntão ele disse para o servo : « À hora do ban­
q uete, mandou o seu servo dizer aos convidados :
"Vinde, j á está tudo pronto"» (Lc 1 4, 1 7) . Tudo o
que ele é, a alma o recebe. Aquilo por que a alma
aspira, está agora pronto. Seja o que for que Deus
dê, é para sempre concebido no devir; o seu devir é
novo e fresco neste agora e pleno num eterno agora.
Um grande mestre diz: algo que eu vejo é purificado
e espiritualizado nos meus olhos, e a luz que chega
aos meus olhos, nunca iria para a alma, se não fosse
aquela potência que está acima dela. S. Agostinho diz
que a centelha está mais dentro da verdade do que
tudo o que o homem pode aprender. Arde uma luz.
Ora diz-se que uma é acesa pela outra. Se isso acon­
tecer, então é necessário que aquela que G á) arde
esteja em cima. Como se eu pegasse numa vela que
estivesse apagada, mas ainda incandescesse e ar­
desse, e erguesse uma outra à sua frente, então a
chama fumegaria e acenderia a outra (vela) . Diz-se
que um fogo inflama um outro. Mas eu contradigo
isso. Um fogo inflama-se a si mesmo. Aquilo que in­
flama um outro, terá de estar acima deste, como o
céu; ele não arde e é frio; não obstante, ele inflama o
fogo, e isso acontece pelo contacto do anjo. Assim se
prepara também a alma pelo exercício. Através dele
ela será inflamada por cima. Isso acontece por meio
da luz do anjo.
Ora ele diz ao servo: « À hora do banquete, man-
SERMÃO 1 7 317

dou o seu servo dizer aos convidados: "Vinde, já está


tudo pronto"» (Lc 1 4, 1 7) . Então um disse: «Comprei
um terreno e preciso de ir vê-lo» (Lc 1 4, 1 8) . Essas
são aquelas pessoas que ainda estão coladas à preo­
cupação: elas nunca desfrutarão desse banquete. Um
outro disse: « Comprei cinco j untas de bois» (Lc
1 4, 1 9) . Estas cinco juntas, assim me parece, referem­
se, bem entendido, aos cinco sentidos; pois cada sen­
tido está dividido em dois, também (a própria) língua
é em si mesma dupla. Por isso - como eu disse
anteontem -, quando Deus disse à mulher: «Vai,
chama o teu marido e vem cá», ela respondeu­
-lhe: «Eu não tenho marido. » Então ele disse: «Dis­
seste bem: "não tenho marido", pois tiveste cinco e
o que tens agora não é teu marido» Go 4, 1 6-1 8) . Isto
quer dizer: aqueles que vivem segundo os cinco sen­
tidos, na verdade, nunca desfrutarão desta refeição.
O terceiro disse: «Casei-me e, por isso, não posso ir»
(Lc 1 4,20) . A alma é inteiramente homem, quando
ela está virada para Deus. Quando a alma se dirige
para baixo, então ela chama-se mulher; quando,
porém, reconhecemos Deus em si próprio e bus­
camos Deus na sua casa, então a alma é o homem.
Ora no Antigo Testamento era proibido que um
homem traj asse roupas de mulher ou as mulheres
roupas de homem. A alma é pois um homem, quan­
do ela sem mediação penetra candidamente em
Deus. Mas quando ela de algum modo mente para
fora, então é uma mulher. Então disse o S enhor:
«Pois digo-vos que nenhum daqueles que foram
318 TRATADOS E SERMÕES

convidados provará do meu banquete» , e disse ao


servo: «Sai pelas azinhagas estreitas e largas, e pelas
cercas e as ruas largas» (Lc 1 4,2 1 ; 23-24) 43• Quanto
mais estreitas, mais largas. « Pelas cercas» : certas
potências estão «cercadas» num determinado lugar.
A potência com que vej o, não é a mesma com que
ouço, e aquela com que ouço não me serve para ver.
O mesmo acontece com as outras. Contudo, a alma
está inteira em cada um dos órgãos, mas uma deter­
minada potência não está ligada em parte alguma.
O que é então «O servo»? São os anjos e os pre­
gadores. Mas conforme me parece, o servo é a cente­
lha. Então ele disse ao servo: «Sai imediatamente às
praças e às ruas da cidade e traz aqui os pobres, os
estropiados, os cegos e os coxos. Pois digo-vos que
nenhum daqueles que foram convidados provará do
meu banquete. » Que nós emendemos estas três coi­
sas (acima mencionadas) e nos tornemos «homem»
dessa maneira, assim nos ajude Deus. Ámen.

43 Na versão em português: «E o senhor disse ao servo: "Sai pelos ca­

minhos e azinhagas e obriga-os a entrar, para que a minha casa fique


cheia."» (Lc 1 4,23) .
POSFÁCIO
Mestre Eckhart: tradutor do divino

Como poderá o homem contemporâneo desco­


brir, soterrada pelo mundo dentro de si, uma cente­
lha que brilha desde a eternidade, vinda de fora dele,
vinda de dentro dele, que o une às potências supe­
riores da alma - mas ainda se acredita na alma? -,
que o torna imortal - mas ainda se acredita na vida
eterna? Nada disto tem a ver com fé, não é uma
questão de acreditar, porque os sentidos se impres­
sionaram com o manifesto na exterioridade. Não,
nem sequer de acreditar como um dogma que Deus
existe, repetindo-o até à exaustão, até ao vazio. Muito
menos tem a ver com a apreensão da beleza e da ver­
dade pelos sentidos, e nada, nada em absoluto, com
a realização das obras externas da fé, as orações, as
mortificações, as vigílias e tudo o mais que a imagi­
nação do homem inventa para que o mundo o santi­
fique e Deus não aprove. Mestre Eckhart apela ao
intelecto ou razão do homem, às forças superiores
da psique, para actualizarmos a alma; é pelo inte­
lecto, o conhecimento, o estudo, que o homem se
salvará. O homem não necessita de mediadores para
falar com Deus, porque a centelha divina já subsiste
320 TRATADOS E SERMÕES

dentro dele; precisa tão só de encontrar o meio para


a iluminar.
Teólogo, místico, filósofo, até poeta da linguagem,
todas as perspectivas contemporâneas, e suas res­
pectivas combinações, sobre Mestre Eckhart serão
válidas, dizendo, em simultâneo, outro tanto sobre a
fragme ntação, a hiperespecialização, a falta de uni­
dade, de uma síntese maior no espírito do homem de
nosso tempo. Nós, que q ueremos sobretudo aqui
falar a partir da perspectiva de um tradutor, somos
levados para o centro de uma reflexão sobre o «mís­
tico renano» enquanto precisamente tradutor, no
contexto mais vasto desse vastíssimo fenómeno civi­
lizacional, que se fundamenta no facto de as cultu­
ras europeias serem, essencialmente, culturas de
trânsito de ideias, culturas de tradutores que abrem
horizontes de conexão afectiva e espiritual entre
comunidades linguisticamente distintas. Eckhart vai
influenciar até aos dias de hoj e a linguagem espe­
culativa filosófica alemã, traduzindo para sua língua
materna do latim em que escreveu a parte mais
substancial da sua filosofia, reunida na Opus triparti­
tum, e encontrando na sua língua, por outro lado, a
plasticidade e a criatividade necessárias para uma
poética do espírito. Infelizmente, da obra latina, pelo
menos como proj ectada por Eckhart, restam só frag­
mentos, cuja edição completa não é ainda definitiva.
Durante séculos, a lenda de Mestre Eckhart so­
brepôs-se ao conhecimento da sua obra, particular­
mente daquela escrita em alemão, e apesar de estar-
POSFÁCIO 321

mos perante um dos maiores escritores de língua


alemã de todos os tempos, é quase inacreditável que
só em 1 857, Franz Pfeiffer tenha traduzido pela pri­
meira vez do alto médio-alemão e publicado vários
sermões, cuja autenticidade foi aliás posteriormente
questionada, até que finalmente nos anos 30 do sé­
culo XX se começou a primeira edição crítica dos
sermões por Josef Quint! Ele reuniu no início da sua
investigação cento e sessenta sermões, que de algu­
ma forma e algures tinham sido atribuídos a Mestre
Eckhart. Quando da sua morte, Quint tinha editado
noventa e dois sermões, mas a edição da obra de
Eckhart em alemão, incluindo a sua obra latina, con­
tinua sob a responsabilidade da Deutsche Forschungs­
gemeinschaft, em colaboração com a editora W Koh­
lhammer, de Estugarda.
O leitor de português pode assim dispor não só
pela primeira vez na nossa língua, de traduções dos
Tratados e de alguns dos Sermões de Mestre Eckhart,
como também ficar seguro quanto à autenticidade e
fidedignidade da sua proveniência. Da mesma sorte
não se podem gabar, por exemplo, os leitores das pri­
meiras traduções para francês dos Sermões alemães,
que se basearam na edição de Pfeiffer, mal entretanto
corrigido pela posterior vaga de tradutores franceses,
com destaque para Alain de Libera, que se já se ba­
seiam nas edições de Quint.
Não é costume os tradutores falarem enquanto
suj eitos altamente expostos à irradiação do pensa­
mento dos autores que traduzem. Eles, porém, como
322 TRATADOS E SERMÕES

qualquer leitor, também têm direito ao seu êxtase


particular, à perturbação da arquitectura do seu ser
até aos fundamentos, até ao abismo. Acresce-lhes,
contudo, por comparação ao leitor, a temerária aven­
tura de verterem para a sua língua materna, a esfera
íntima, profunda de alguém quantas vezes distante
no tempo, na cultura, na mentalidade, ambientando­
-o aos seus coevos, sem que, todavia, possam transi­
gir nessa relação de afecto, com a exigência de res­
peitar o rigor conceptual e o perfume do estilo desse
(des)conhecido. S e, na presente tradução, eu conse­
gui transmitir para a nossa língua o enlevo, o êxtase
em que a leitura dos originais alemães me deixaram,
dirá a bondade do juiz que é a esclarecida consciên­
cia do leitor.
Aguda, Outubro de 2009

JORGE TELLES DE MENEZES


CRONOLOGIA * DE MESTRE ECKHART

Cerca de 1 260: Nascimento na Turíngia, provavelmente e m


Tambach.

Cerca de 1 275 : Entrada provável no noviciado dos D omi­


nicanos do convento de Erfurt, onde é consi­
derado um aluno brilhante.

1 293 : Eckhart em Paris, onde redige a sua Collatio in


libras Sententiarum.
1 8 de Abril
de 1 2 94: Sennão Pascal.
1294-1298: Primeiro período prolongado em Erfurt.
Eleito Prior do convento e Vigário para a re­
gião da Turíngia. Redige Rede der Underschei­
dungen ou Tratado do Discernimento.
1 302: A Universidade de Paris atribui-lhe o título de
Mestre em Teologia, título que permanecerá
ligado à sua personalidade p ara a p osteri­
dade : frei Eckhart toma-se Mestre Eckhart de
Hochheim.

1302-1303: Primeiro magistério parisiense. Eckhart


lecciona a cátedra de Teologia.

* Cronologia traduzida e adaptada do francês, por Fr. José Luís de Al­

meida Monteiro, OP, extraída de: BENO!T BEYER DE RYKE, Maítre Eckhart,
Ed. Entrelacs, Paris, 2004.
324 TRATADOS E SERMÕES

1 3 02 ou 1 3 0 3 : Sermão sobre Santo Agostinho.


1303-131 1 : Segundo período de Erfurt. Eckhart eleito
Prior provincial da província dominicana de
S axe, cargo que ele mantém até 1 3 1 1 . Tem a
responsabilidade de velar pela administração
de 47 conventos de frades e de monjas.

1 6 a 1 8 d e Maio
de 1 304: E ckhart participa no Capítulo geral de To u­
louse.

1 4 de Maio
de 1 3 07: É eleito Vigário-geral da Boémia, no Capítulo
geral de Estrasburgo.

1 3 0 9- 1 3 1 0 : Funda os conventos de Braunschweig, Dort­


mund (Alemanha) e Groningen (Holanda) .

7 de Junho
de 1 3 1 0 : Participa no Capítulo geral de Piacenza (Itália) .

8 de Setembro
de 1 3 1 0 : Eleito Provincial da Teutónia.

30 de Maio
de 1 3 1 1 : Capítulo geral de Nápoles. A sua eleição
curios amente não é confirmada nesse Ca­
pítulo. Ficando disponível, o Capítulo envia-o
de novo a leccionar em Paris, pela segunda
vez. É uma honra excepcional q u e só tinha
ocorrido com São Tomás de Aquino.

1311 -1313: Segundo magistério parisiense. Redige vá­


rios importantes trabalhos universitários
como Questões parisienses we- v e, em particular
o início de Opus tripartitum.

1313/1314: Período de Estrasburgo. E ncarregado em


particular da direcção esp iritual das monjas
dominicanas e das beguinas. Período de inten-
CRONOLOGIA DE MESTRE ECKHART 325

sa pregação em língua germânica. Redige os


segundos e terceiros tratados alemães : Trata,do
da Consolação Divina e o Tratado diJ Homem Nobre.
1323/ 1324 -

1327:
- Período de Colónia. É nomeado Mestre no
Studium generale de Colónia, que tinha sido
fundado por Santo Alberto Magno. Redige o
Tratado do Desapego, quarto tratado alemão.

1 325 : Capítulo geral de Veneza. Denúncia da prega­


ção em língua vernácula.

1 325-1 326: Primeira interrogação sobre a pregação de


Mestre E ckhart, que termina sem maiores
consequências. Redige nessa altura o Requisitus
para s u a defesa, actualmente desconhecido.

1 32 6 : O processo. Em S etembro de 1 3 2 6 , na se­


quência de uma acusação conduzida por dois
dominicanos, Hermann de S ummo e Guiller­
me de Nidecke, o arcebispo de Colónia, Hen­
rique II de Virneburg, abre um processo in­
q u isitorial contra Mestre E ckhart. Primeira
lista de 49 temas de acusação.

20 d e Setembro
de 1 326: Primeira presença de Eckhart perante a comis­
são enc arregada de instruir o seu processo,
composta por Reinher Friso e Pedro d 'Estate.

1 32 6 : Segunda lista de acusações, com 5 9 temas.


Uma terceira tinha sido preparada mas desco­
nhece-se, na actualidade. Eckhart defende-se
através da sua Apologia.

2 4 d e Janeiro
de 1 327: Comparece pela segunda vez perante Reiner
Friso e Alberto de Milão. Eckhart faz apelo ao
Papa.
326 TRATADOS E SERMÕES

1 3 de Fevereiro
de 1 3 27: E ckhart proclama publicamente a sua ino­
cência, na igrej a dos dominicanos de Colónia.

22 de Fevereiro
de 1 3 2 7 : Rej eição do apelo ao Papa por parte de Reiner
Friso e Alberto de Milão.

Primavera
de 1 3 27: Eckhart decide não aceitar essa decisão e viaja
até Avinhão p ara apresentar pessoalmente o
assunto ao papa João XXII.

1328: E m Avinhão, uma comissão pontifical reduz


as listas do dossier da inquisição de Colónia a
um conjunto reduzido de 28 proposições iso­
ladas do seu contexto : é o chamado Votum
Avenionense.
1 328: Aviso hoj e perdido de Jacques Fournier, o
futuro papa Bento XII.

Cerca de 1 3 2 8 : Eckhart morre sem conhecer a conclusão d o


s e u processo, s e m dúvida e m Avinhão ou n o
caminho d o regresso.

27 de Março
de 1329: João XXII promulga a bula ln agro dominico
que condena Mestre Eckhart de forma pós­
tuma, assinalando 1 7 proposições reputadas
como heréticas e 1 1 como suspeitas de here­
sia. Porém, a publicação da bula é limitada à
diocese de Colónia.
ÍNDICE

PrefácW . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 5
Introdução a Mestre Eckhart ....................... . ............. . . . ............ 15

TRATADOS
Sobre os Tratados . ................................................................ 25
Tratado do Discernimento . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 29
Tratado da Consolação D ivina . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 03
Tratado sobre o Homem Nobre . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 63

SERMÕES
S obre os Sermões . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 181
Sermão 1 ............................................................................. 1 85
Sermão 2 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 95
Sermão 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 203
Sermão 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 1 2
Sermão 5 222
Sermão 6 229
Sermão 7 236
Sermão 8 241
Sermão 9 257
Sermão 1 0 261
Sermão 1 1 267
Sermão 1 2 274
Sermão 1 3 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 283
Sermão 1 4 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 2 8 9
Sermão 1 5 295
Sermão 1 6 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 305
Sermão 1 7 . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 1 1

Posfácio Mestre Eckhart: Tradutor do Divino . . . . . . . . . . . . . . . . .


- . . 31 9
Cronologia de Mestre Eckhart . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
. . 323
@
Sabedoria
C R I STÃ

O Diálogo com Motovi lov


- Serafim de Sarov

2 Tratado da Oraçã o , do Jej u m e da Esmola


- Frei Luís de Granada

3 Re latos de Um Peregrino Russo


ao Seu Pai Esp iritual

4 Tratados e Sermões
- Mestre Eckhart

Você também pode gostar