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RESENHA

FOUCAULT, Michel. Vigiar


e punir: história das
violências nas prisões. 13ª
ed. Petrópolis:

Vozes, 1996, 280 p.

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José Fernando da Silva
Professor das Faculdades Integradas IPEP.

Um dos mais originais filósofos franceses do século XX, Michel Foucault pautou sua
obra no exame das relações entre os modos de exercício de poder, a constituição de
saberes e o estabelecimento da verdade. O corpo de sua obra procurou mostrar que todo
conhecimento é contingente às formas de exercício de poder e que tal fato tem como
elemento mediador instituições sociais, dispositivos que regulam as relações entre os
modos de exercício de poder e a produção de saberes e verdades. A análise de Foucault
contempla diversos períodos da história, tangenciando-os com a forma de poder que lhes
é característica e os saberes e instâncias de verdade resultantes de cada forma.

Na obra Vigiar e punir, Foucault se propõe investigar os contornos que o direito penal
ganhou nos regimes absolutistas europeus, contrastando-os com o modo com os
contornos que adquiriram nos regimes democráticos que se consolidaram na Europa a
partir do final do século XVIII. Descrevendo o modo como os delitos penais foram (e são)
assimilados historicamente, Foucault tenciona mostrar e contrastar duas formas de
exercício de poder. Cada uma delas se mostra no modo de tratamento concedido ao
criminoso.

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Duas formas de poder são apresentadas à luz do direito penal: nos regimes
absolutistas, é delineado um poder que se exercia e se reafirmava por meio do severo
exercício da punição; no mundo emergente pós-revolução francesa, vemos a
caracterização daquilo que Foucault chama de sociedade disciplinar, uma modalidade de
poder que perduraria até nossos dias e que tem como viés em relação ao direito penal a
preocupação com o vigiar e disciplinar.

No regime absolutista, encontramos um direito penal que, por oposição ao direito


penal medieval, é exercido pela autoridade de um poder judiciário central, totalmente
subordinado à figura do rei. Em tal direito, nasce a prerrogativa de todo ato ilícito, de todo
delito ser um delito contra o poder centralizado. Todo delito praticado é, acima de tudo, ato
ilícito que ousa afrontar o ilimitado poder real. Por isso, uma característica central desse
período é a prerrogativa do suplício como forma de sublinhar o papel da punição como
mecanismo de revitalização do poder.

Que é um suplício? Pena corporal dolorosa com requintes de atrocidade. Uma vez o

98 inquérito efetivado pela autoridade real e a constatação da autoria de um delito, impõe-se


ao réu um suplício cujo grau de atrocidade variará de acordo com o delito praticado. No
caso do delito mais grave, o assassinato, o suplício terá as mais nítidas nuances de
crueldade. O réu será torturado diariamente das mais variadas formas em praça pública
por mais de duas semanas, até que, por fim, tenha os membros atados a quatro cavalos a
fim de despedaçar seu corpo, ou outra forma cruel de realizar o cume do espetáculo. Sim,
espetáculo! Foucault salienta que o suplício era antes de tudo um grande espetáculo,
momento em que a autoridade do rei era restabelecida e fortalecida por uma aterrorizante
demonstração de força. A punição tinha a finalidade de punir o crime e também reavivar
nas mentes dos súditos o que ocorria com qualquer um que ousasse desafiar a lei, quer
dizer, a vontade do soberano.

A partir do século XVIII, filósofos e juristas começam a se manifestar contra o caráter


desumano do suplício. Paulatinamente, surge a idéia de que toda e qualquer forma de
punição poderia ser abrandada, não apenas em seu resultado final, mas também no
sentido de criar mecanismos que proporcionassem garantias de que o menor número
possível de delitos fosse praticado. Surge o que Foucault chama de sociedade disciplinar.
Ela nasce ao final do século XVIII e caracteriza-se como um modo de organizar o espaço,
controlar o tempo e obter um registro ininterrupto do indivíduo e de sua conduta. Do ponto
de vista do exercício do poder, essa sociedade se caracterizaria por implantar o que
Foucault chama de “poder panóptico”. A tese foucaultiana articula o nascimento das
ciências humanas como uma conseqüência da sociedade disciplinar.

Segundo Foucault, ao final do século XVIII e início do XIX se instaura na Europa o que

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podemos chamar de poder panóptico, derivado do Panapticon do jurista britâ-nico


Jeremy Bentham. O Panapticon de Bentham é o modelo de um edifício arqui-tetônico em
que idealmente se poderiam vigiar e controlar as ações de todos os delinqüentes. Com
celas dispostas em torno de um círculo e ao centro uma torre elevada, seu desenho previa
que o vigia colocado na torre central podia ver todos os movimentos daqueles
trancafiados nas celas, sem que estes pudessem ver seu incontinente observador.

Foucault foi muito perspicaz ao notar que o modelo de seqüestro de delinqüen-tes


proposto por Bentham engendrou aquilo que caracterizaria o mote da socieda-de
contemporânea: a vigilância, o controle e a correção dos indivíduos. O poder panóptico se
basearia na vigilância contínua de todos os indivíduos. A vigilância contínua é o meio que
torna possível o pleno controle dos indivíduos. Ela representa um novo ponto de vista do
poder, um poder que, em vez de punir um indivíduo que pratique qualquer ato ou infração,
tem suas ações previstas, antevistas pelo siste-ma. A vigilância permite um controle dos
atos e do grau de engajamento de cada indivíduo ao sistema de poder instaurado. Antevê
e determina o que pode e o que não pode o indivíduo fazer. O controle, o monitoramento
dos indivíduos torna possí-vel também a correção de suas tendências, reorientando-as 99
na direção estipulada pelo poder panóptico.

Assim, esse poder se legitima por meio do surgimento e da proliferação de uma série
de instituições que referendam o modelo do Panapticon. Diversas instituições arraigadas
na modernidade seguem o modelo do Panapticon: a fábrica, a prisão, o hospital, a escola.
Essas instituições literalmente seqüestram os indivíduos. A fábrica, as cidades operárias,
a escola, o hospital, o quartel, as casas de repouso e os orfanatos vigiam, disciplinam e
ordenam a vida do grupo dos indivíduos que lhes são subordinados. O indivíduo é fixado
dentro do sistema de produção, construindo sua visão de mundo dentro das normas e
saberes constituídos. Opera-se uma inclusão por exclusão.

Segundo Foucault, o poder panóptico se efetiva mediante o cumprimento de algumas


funções: o controle do tempo, o controle dos corpos e a instauração de uma polimorfia do
poder que inclui um braço epistemológico. Nas instituições panópticas, o indivíduo é
abstraído do tempo de sua vida. A escola insere-o muito novo numa rotina de
aprendizados e tarefas a serem cumpridas. O indivíduo, muito novo, é adestrado para
participar nas diversas instâncias do sistema de produção. O tempo de sua vida infantil é
moldado dentro das prerrogativas das atividades que ele deve realizar na escola e fora
dela. Seu caráter é moldado por meio de um jogo de castigos e recompensas.
Posteriormente, quando ocorre a inserção do indivíduo no trabalho de fábrica, esta será
uma extensão do que a escola previamente preparou. Seu tempo, definitivamente, não
lhe pertencerá. O tempo de sua vida será propriedade da sociedade. Na linha de

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montagem da fábrica, ele cumprirá uma rigorosa rotina de horários, severamente vigiada,
e igualmente recompensada ou punida. Seu escasso tempo fora da fábrica também é
predeterminado. Assim é que, fora da fábrica, mais e mais os indivíduos procuram realizar
cursos de aperfeiçoamento, requisito para manter o status de “seqüestrado”, além das
modalidades de lazer que mais e mais se tornam uma extensão do padrão econômico e
panóptico da sociedade. Vejamos o confisco do corpo.

Se os indivíduos seqüestrados não possuem o tempo de suas vidas, tampouco


possuem seus corpos. No poder panóptico, o corpo do indivíduo é confiscado pela
sociedade. Nas escolas e quartéis, ele será moldado de acordo com a função social que
ocupará dentro do sistema de produção. Nos hospitais e prisões, a disciplina imposta ao
corpo também será minuciosa.

O controle do tempo e do corpo instaura e é instaurado graças a uma polimorfia de


poderes. Assim é que um poder econômico claramente se instaura com a insti-tuição das
fábricas, e, atrelado a este, um poder político. Ambos os poderes se arti-culam a um poder

100 judiciário que impõe normas, dá ordens e toma decisões. Segundo Foucault, é o sistema
judiciário que dá o esqueleto do sistema escolar; afinal, a todo o momento se punem, se
recompensam, se avaliam e se hierarquizam os indivíduos.

Por fim, o poder panóptico enseja o surgimento de uma episteme própria. Foucault
atribui a seu exercício as circunstâncias que tornaram possível o surgimento das ciências
humanas. Encontramos em todas as instituições discipli-nares ligadas ao poder
panóptico a produção de um conjunto de saberes. Este se delineia em dois sentidos: ele
se exerce a partir dos indivíduos e sobre os indivíduos. Quando se diz que esses saberes
são produzidos a partir do indivíduo, é no sentido de as práticas e atividades dos
indivíduos dentro de uma instituição serem o subs-trato necessário à elaboração de um
saber sobre a própria produção do indivíduo. Esses saberes podem ser qualificados
como atuando sobre os indivíduos na medida em que, graças ao seqüestro do indivíduo
em instituições panópticas, é possível a elaboração de saberes diversos sobre o
indivíduo, tais como a pedagogia, a psicolo-gia, a psiquiatria etc., saberes esses que o
definem, qualificam e classificam.

Vemos, assim, que Foucault assume a premissa do conhecimento como uma grande
invenção, ferramenta indispensável à legitimação de uma forma de poder, construída
graças às diversas modalidades de práticas sociais. Nem o conhecimento nem tampouco
a verdade são apregoados como destino natural do homem, referências a pairar no
horizonte, espécie de mote de nosso caminhar. Não. O conhecimento seria apenas uma
ferramenta do poder. Ele não nasceria de nossa amistosa, curiosa aproximação da
realidade, mas seria, antes, produto de nossa ânsia de domínio. Conhecer é dominar, é

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ferramenta indispensável ao exercício e à manutenção de uma forma de poder.

Enquanto Marx crê que o saber é obstruído por modalidades de práticas sociais (por
exemplo, a religião como meio de alienação), Foucault crê que são justamente nossas
práticas sociais enquanto instrumento de determinada modalidade de poder que
engendram o sujeito e também todo um conjunto de formas de conhecimento e de
obtenção da verdade. Foucault apresenta diversas práticas sociais que determinariam a
produção de diversos saberes e o estabelecimento de uma série de verdades. Também a
essência do sujeito se delinearia com essas práticas. Em Vigiar e punir, Foucault destaca
o direito penal entre as práticas sociais que exerceriam esse papel de arquétipo. Nessa
obra, o filósofo francês nos mostra em que medida o modo como uma sociedade pensa e
trata determinada questão é sintoma de uma forma de exercício de poder que a direciona.

Vigiar e punir constitui-se numa excelente obra para refletirmos sobre a espinha
dorsal da realidade que ora vivemos. Desse modo, vale conferir.

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