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livros

Nove
pensadores
e uma
religião
Ari Marcelo Solon

Testemunhas do Futuro: Filosofia e Messianismo, de Pierre Bouretz, tradução


de J. Guinsburg, Fany Kon e Vera Lúcia Felício, São Paulo, Perspectiva, 2011, 1.192 p.

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“Religião é algo infinitamente simples, simplório.
Não é conhecimento, nem conteúdo de nossas
emoções (pois todos os conteúdos já foram
acrescentados desde o início, onde quer que um ser
humano se envolva com a vida). Não é dever, nem
renúncia; não é limitação, mas, na perfeita vastidão
do universo, ela é uma direção do coração”
(Rilke, Cartas do Poeta sobre a Vida).

O
livro de Bouretz, Témoins du Futur: Philosophie
et Messianisme, na excelente tradução brasileira
da Editora Perspectiva, estuda o pensamento judai-
co do século XX em seu momento crítico, marcado
pelo domínio da razão, secularismo e assimilação.
Nessa conjuntura, o autor aponta para a influência
de Hegel, Nietzsche e Heidegger como catalisadores
que provocaram a perda de fé, identidade e compre-
ensão precipitadas pelo domínio da razão secular –
“Nenhum deles remanesceu indiferente a Hegel, a
Nietzsche ou a Heidegger” (p. 17), afirma Bouretz.
O livro é ambicioso, pois trata da trajetória de nove pensadores (Hermann Cohen, Franz
Rosenzweig, Walter Benjamin, Gershom Scholem, Martin Buber, Ernst Bloch, Leo Strauss,
Hans Jonas e Emmanuel Lévinas) que:

“[…] nasceram entre 1842 e 1905; eles morreram entre 1918 e 1995; suas existências atraves-
sam o século XX. Todos eram criaturas de seu tempo. Sabiam o que quer dizer a seculari-
zação do mundo: Deus excluído do universo na ordem da ciência, fora dos muros da Cidade,
simples convidado do foro íntimo” (p. 14).
ARI MARCELO SOLON
Dados o peso e a densidade desses pensadores, não é de estranhar compreender o livro é professor associado
da Faculdade de Direito
mais de mil páginas. Bouretz olha para o futuro (assim como o anjo de Paul Klee da linda da USP e autor de, entre
capa), e sua investigação volta-se à apresentação do messianismo judaico que os persona- outros, Dever Jurídico
e Teoria Realista
gens do seu livro compartilhariam. Bouretz confia que esses pensadores “são testemunhos do Direito (Safe).

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transcendentais do futuro” que os levou “do É significativo que Bouretz não cite
deserto árido do judaísmo alemão” (p. 24), pensadores religiosos no sentido tradicio-
durante “os tempos mais sombrios” (p. 28), nal, mas tão só filósofos. Ao longo do livro,
para dias que “são ainda os nossos”. o autor estabelece uma cadeia da tradição
O autor descreve a biografia histórica de shalshelet ha-qabalah pós-rabínica, de
cada um deles para elaborar várias perspec- Cohen a Lévinas, pois a autoridade rabíni-
tivas dos respectivos messianismos. Em ra- ca ficou destituída de poder em função do
zão disso, os capítulos iniciam-se com uma reinado da razão, e foi somente graças aos
narrativa biográfica de cada um dos nove pensadores que puderam usar os instrumen-
pensadores antes de analisar suas obras in- tos da razão que a chama do judaísmo pôde
telectuais a fim de estabelecer-lhes os traços manter-se acesa.
messiânicos ou utópicos. Assim, Bouretz co- Assim sendo, o capítulo final sobre Levi-
necta cada pensador a um passado judaico nas é emblemático em razão de esse filósofo
idealizado e, depois, a partir de uma herança marcar o retorno ao Talmude e à herança
judaica passada, a um messianismo orienta- judaica em meio à viagem dialética pelo
do para o futuro. pensamento racional e pela filosofia ociden-
Segundo Bouretz, a questão do domínio tal, como representado pelo pensamento de
da razão teria sua origem no Iluminismo e Cohen. A obra de Cohen confirma ter sido a
prosseguiria no século XIX, quando autores emergência da razão uma necessidade dia-
como Nietzsche desafiaram a primazia do lética para o futuro do judaísmo. Por essa
pensamento racionalista. Em face disso, o razão, o progresso dialético permitiu a es-
autor vincula a “morte de Deus” não à supre- ses nove filósofos a assunção do manto da
macia da razão, mas também às tendências autoridade religiosa anteriormente mantida
antirracionalistas de Nietzsche e Heideg- pelos rabinos – algo de que se pode duvidar
ger. Por esse motivo, conclui Bouretz que a partir do próprio Lévinas.
a secularização, a assimilação e a noção de Por outro lado, a dialética sustenta em
Bildung tornaram-se no século XIX “uma Bouretz o estabelecimento de conexões
espécie de religião de substituição” (p. 15). entre esses luminares do pensamento fi-
Tendo em vista essas circunstâncias, losófico judaico, de modo a elaborar uma
a religião e a observância ritual hebraicas história coe­rente do pensamento judaico e
esfacelam-se, projetando suas sombras de- legitimar-se perante a tradição e a autorida-
cadentes no judaísmo, que passa a assumir, de da Bíblia e do Talmude. Nesse diapasão,
nas palavras de Franz Kafka, “um caráter a “Religião da Razão a partir das Fontes do
puramente histórico” (p. 16). Judaísmo”, de Hermann, é uma redesco-
Os interesses do autor são, portanto, a berta das fontes do judaísmo esquecidas ao
dialética do pensamento judaico e sua res- longo da história. É um meio de defender
posta ao secularismo, que levou à perda de o judaísmo que se revelou mais eficaz do
identidade em um sentido ontológico. O ob- que as tentativas de Mendelssohn durante o
jetivo de Bouretz é demonstrar o modo como Iluminismo (p. 31). Isso nos direciona à obra
pensadores, de Cohen a Lévinas, tentaram de Rosenzweig, “que inaugurou a renova-
restabelecer o sentido ontológico da judai- ção do judaísmo” (p. 119), e, após Hermann
cidade incorporando uma resposta singu- Cohen e Franz Rosenzweig, à obra inteira
larmente hebraica à crise da modernidade. de Emmanuel Lévinas, que “protesta contra
O capítulo sobre Scholem é exemplar: a interpretação do judaísmo como uma se-
“Dentre aqueles que desafiaram diretamen- paração (no sentido hegeliano)” (p. 892). O
te o historicismo, Scholem é, sem dúvida, o argumento permite a Bouretz conservar im-
mais lúcido devido a sua sensibilidade em portantes aspectos do pensamento histórico
relação a uma dialética da utopia” (p. 25). e filosófico, como o idealismo neokantiano

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de Cohen, o materialismo dialético de Bloch inteiramente na interpretação errônea de
e Benjamin e até mesmo o impacto de He- Maimônides por Spinoza.
gel, Nietzsche e Heidegger em Rosenzweig, Em vista disso, ao fornecer uma correta
Strauss, Jonas e Lévinas. Mas o autor expõe interpretação da obra de Maimônides, Co-
isso de modo a mostrar que essas influências hen pretendia corrigir Kant e reabilitar o
são secundárias em relação à tradição judai- seu projeto perturbado pelas incompreen-
ca. Nesse sentido, o autor pode afirmar que sões spinozistas do judaísmo. Essa é a base
esses “pensadores judaicos salvaram o ide- para a própria compreensão de Cohen do
alismo alemão” porque, ao contrário de ou- judaísmo como uma religião da razão. Na
tros pensadores daquele tempo, “conservam visão de Bouretz, a inserção de Maimônides
a presença de um passado que conservava permitiria que a influência da herança ju-
a representação de um futuro incompleto daica se estabelecesse como fator-chave do
como judaísmo” (p. 22). neokantismo (pp. 60-7). Isso se ramifica ao
Embora autores como Rosenzweig, Jo- longo do livro, pois a estrela de Cohen tem
nas, Lévinas ou Strauss fossem influenciados seu ocaso com o surgimento da fenomeno-
por Hegel, Nietzsche e Heidegger, Bouretz logia, especialmente pelas obras de Heide-
nos informa que “nenhum permaneceu he- gger, Hans Jonas, Hanna Arendt, Lévinas e
geliano, nietzschiano ou tornou-se heidegge- Davos (p. 13).
riano” (p. 13). A ênfase se dá, portanto, nas Bouretz reabilita Cohen retirando da fi-
descontinuidades desses pensadores com losofia deste a ênfase no idealismo neokan-
aquelas influências e a permanência da he- tiano e ressaltando sua compreensão trans-
rança judaica que sobreviveu “em um futuro cendental do messianismo. E, assim como
que parecia nada mais que ruínas” (p. 15). Maimônides tornou-se a base da filosofia de
Daí a importância do capítulo sobre Cohen, Cohen por meio de uma correção de Kant,
que ancora a cadeia da tradição pós-rabíni- Cohen torna-se uma influência decisiva para
ca. Esse filósofo serve bem a esse propósito, Franz Rosenzweig, Walter Benjamin, Ger-
visto que sua obra volta-se à filosofia de Im- shom Scholem, Martin Buber, Ernst Bloch,
manuel Kant e a uma era em que o pensa- Leo Strauss, Hans Jonas e Emmanuel Lévi-
mento filosófico tinha recurso à razão, mas nas, sendo que essa repercussão estaria ali-
não era por ela determinado. Dessa maneira, cerçada na visão corrigida de Cohen e sua
Cohen representa a relação dialética entre o ênfase na tradição judaica do messianismo
pensamento racional e a transcendência via e da transcendência.
retomada da filosofia kantiana. Um dos pon- Concluímos, assim, a resenha dessa bri-
tos centrais de Bouretz é demonstrar que os lhante obra: o pensamento de Rosenzweig
componentes mais essenciais e duradouros permite “arrancar o judaísmo do paradigma
da obra de Cohen se relacionam mais com do legalismo, ao mostrar que ele não signifi-
a tradição judaica e o messianismo do que ca o jugo da lei’” (p. 229). Com efeito, o livro
com a filosofia idealista. comenta, em páginas de extrema sensibili-
É crucial para o autor demonstrar por dade, o deslocamento que o filósofo impõe
que esses luminares eram “portadores da à análise da lei ao transportar para a herme-
chama” do judaísmo mais do que filósofos nêutica da revelação do Sinai a linguagem
heréticos (pp. 463-5). do autor do Cântico dos Cânticos (p. 226).
Para Bouretz, a chave para entender a As três figuras de que fala Ricoeur – criação,
obra de Hermann Cohen, do uso que faz de revelação e redenção redesenhadas na estrela
Kant ao messianismo, residiria na compre- de Rosenzweig – serão desveladas por um a
ensão da refutação que faz a Spinoza. Con- um dos nove pensadores, cujas formações, às
forme o autor, Cohen acredita que a compre- vezes, se opõem, mas são todas elas radica-
ensão de Kant do judaísmo estaria baseada das, a seu modo peculiar, na tradição judaica.

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