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Debate com André Guedes

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Agosto, 2013

Aproximação e Complementaridade
Especulações acerca da interpretação das doutrinas

André Bechelane

A noção de aproximação de André Guedesi

Ao considerar que o puro discurso reflexivo edifica um argumento com o


propósito de justificar uma posição; e que não há argumentos irrefutáveis,
sendo sua adequação ou seu valor epistêmico dependentes de determinados
pressupostos - assumidos ou não em seu valor moral por cada leitor -, André
Guedes retoma o tema da legitimidade ou do valor de uma doutrina ou de um
discurso que expõe proposições e junto a elas um percurso reflexivo. Percurso
esse de natureza essencialmente racional, desprovido de elementos empíricos.

Guedes invade a seara do conflito aporético das filosofias, delimitando os


diferentes caminhos ou posicionamentos possíveis: (i) desde a recusa de um tal
conflito e consequente opção por determinada doutrina presente na história do
pensamento; (ii) a proposta de uma nova que, sem precedentes, finalmente
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resolveria tal conflito insolúvel; (iii) uma leitura estruturalista, tomando a


verdade das teses por sua verdade de natureza formal pura e simples; e (iv)
passa finalmente pela visão do filósofo Oswaldo Porchat e sua opção por uma
forma de panacéia, que resolveria a aporia da indecidibilidade das doutrinas.

Finalmente, André Guedes nos apresenta a sua proposta – aqui definida como
conciliadora - para tamanho enfrentamento: definindo a aproximação a uma
obra de pensamento mais como um exercício de refinamento e complexificação
de nosso próprio modo de pensar e menos um motivo de contradição insolúvel
entre concepções.
Para Guedes, um argumento pode eventualmente, em seu processo de
justificação racional, esconder por vezes algum pressuposto. Se há intervalos
vazios entre uma e outra proposição vizinha, se há falta de matizações em
vários momentos, tudo isso não retira certa solidez e validade da posição cuja
sustentação o autor tenta construir frente a seu interlocutor – aqui chamado de
observador.

Ao verificar de que modo mais especificamente poder-se-ía conferir


positividade a uma leitura comparada de concepções ou doutrinas que são, sob
primeira consideração, antagônicas e portanto mutuamente excludentes, André
Guedes encontra duas respostas: em primeiro lugar, as doutrinas poderiam
exibir aspectos que, antes de serem momentos antipódicos entre si, são
momentos complementares ou, talvez, momentos que são ambos matizes internos
de um continuum em vez de extremos desse mesmo continuum; em segundo
lugar, conclui propondo que, “ao nos aproximarmos mais de doutrinas opostas, tem-
se a oportunidade de apreensão dos pressupostos morais de realidade mais profunda
presentes em cada doutrina, pressupostos esses que, se não podem ser racionalmente
admitidos ou combatidos em absoluto, podem ao menos fazer-nos mais convictos de
nossas próprias premissas morais primeiras e fazer-nos, em consequência, mais
convergentes com nossas próprias crenças as mais caras”.

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O isolamento do objeto

O tratamento dado ao comentário de André Guedes é parte de um movimento,


o da interpretação, que encontra naquele conteúdo sua própria origem. É por
isso que não se trata de nenhum exagero conferir à mensagem emitida por
aquele filósofo o status de obra de pensamento, na medida lefortianaii em que a

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promovemos a este status desde que a acolhamos enquanto a interrogamos; se


perguntamos o que ela é, sabendo que a questão é ela quem faz nascer.

Assumindo as propostas de aproximação e complementaridade de doutrinas de


Guedes, partiremos para a análise de seu texto e do tema em questão. Não foi
por acaso que iniciamos por extrair de seu comentárioiii sobre o conto “O
banqueiro anarquista”, do autor luso Fernando Pessoa, o conteúdo de suas
proposições. Pareceu-nos fundamental, para a aplicação de seu método, que a
própria estrutura de suas ideias pudesse se expor a uma tal “aproximação”.
Colocada desta forma, sua formulação ganha caráter intemporal e se descola de
um contexto que poderia banalizá-la, ao remetê-la diretamente a um
posicionamento estratégico, relativo a um momento exclusivo ou a um caráter
de mera informalidade.

Feita a ressalva, começamos por apontar o espírito ecletista de sua análise ao


considerar que nenhuma doutrina é irrefutável e, portanto, que todas podem
conviver num projeto de tom conciliatório, no qual uma possível aproximação
se faria por determinados temas desenvolvidos, que encontrassem ressonância
nas diversas obras ou formulações.

Por esta forma de pensar, pode-se imaginar que: sobre ideologia, por exemplo,
tal autor pensa assim e tal outro daquela maneira e este termina aquilo que um
outro iniciou; e mesmo os pensamentos contrários acabam por constituir uma
“complementaridade”. Estas aproximações levariam à compilação de um
aprofundamento, de um volume maior de “verdade” sobre tal tema discorrido,
algo que nenhum dos autores envolvidos tenha podido isoladamente construir.

Aceitando que cada leitura atende a um determinado ponto-de-vista,


chamaremos os diferentes autores também pelo nome de observadores. Neste
caso, a construção de um pensamento é o resultado de uma interação entre o
objeto isoladamente analisado (tema) e seus observadores (autores), que têm,
em sua busca pelo desenvolvimento e conhecimento do objeto, a mesma
intenção dos cientistas.

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Infinitos pontos-de-vista

Alain, no prefácio de seu clássico Spinozaiv, ao colocar em paralelo as obras


deste e de Descartes, encontra uma continuidade naqueles dois pensamentos,
afirmando que o holandês teria enfrentado aquilo que amedrontara o pensador
francês; a questão da liberdade. A palavra chave a se pronunciar, aqui, é o
próprio termo continuidade. Nesta visão, um pensamento ou um raciocínio
pode ser continuado por outro observador. São inúmeros os exemplos deste
fenômeno e, talvez, um dos mais famosos seja a afirmação Kantianav a respeito
de seu despertar do sono dogmático por meio do pensamento de David Hume.

Guedes menciona as diferentes abordagens de um delimitado objeto como


“matizes internas de um mesmo continuum” e pode-se fazer a ligação entre
estas abordagens que, ao se aproximarem e se somarem, dão sentido
conciliador ao significado de sua tese sobre a “aproximação” a uma doutrina.
Seu sentido torna-se ainda mais profundo se avançamos em suas considerações
sobre as características desse continuum do pensamento: teses aparentemente
antagônicas passam a se colocar internamente neste fluxo de ideias e não nos
extremos do segmento de reta, aparentemente infinito. Todo este linguajar –
que, esperamos, não esteja simplesmente ultrapassando as palavras do filósofo
– encontra em Espinosa paralelo importante se aproximarmos o conceito
guedeano de continuum ao termo espinosano substânciavi - única e original –
com todos os infinitos atributos infinitos; ponto original a condensar todas as
qualidades expressas nos seus finitos modos finitosvii; toda a matéria do
universo ou o mundo físico, nisto contido os homens e seus intelectos. As
ideias, para Espinosa, seriam expressões de um modo finito, o intelecto
humano, que expressa uma das infinitas qualidades infinitas contidas no ponto
original (substância), Deus sive natura. As expressões, emboras distantes,
parecem se encontrar, pois “matizes internas de um mesmo continuum” e
“infinitos atributos infinitos de uma substância” guardam um relação de
parentêsco. Mas, então, pode-se concluir que Guedes delinea um conceito de
verdade como um composto de posições antagônicas e complementares?

André Guedes, em momento algum em seu texto, refere-se diretamente a uma


conceitualização do real ou da verdade como composto, mas talvez ele deixe
entreaberta a porta que nos permitiria chegar a, pelo menos, esta dúvida. Pois,
se diferentes argumentações, todas elas sólidas por si só, só são constestáveis
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em suas partes e, nunca integralmente – pelo menos se considerarmos o


conceito desta aproximação conciliadora como capaz de sempre extrair algo de
útil de uma leitura ou argumentação, via conclusões do autor acima descritas –
então talvez seja legítimo intuir a verdade sobre uma determinada coisa
analisada como resultado do composto destas opiniões ou “matizes internas de
um mesmo continuum”. Não corremos, assim, um risco muito grande de
ultrapassamento deste enigma guedeano.

Se pudermos olhar para as “matizes internas de um mesmo continuum” como


um composto de ideias que se complementam, colocaremos em curso aqui – e
esta parece ser nossa ideia de apropriação do conceito de aproximação
conciliadora de Guedes –, segundo um outro ponto-de-vista, a ligação do
propósito desta aproximação com a noção física de “complementaridade”,
presente na histórica conferência “Causalidade e complementaridade”viii,
proferida pelo físico e filósofo dinamarquês Niels Bohr, em julho de 1937.

***

Complementaridade e o alargamento do campo de análise

A noção de “complementaridade” por Bohr trata do aspecto ou manifestação


diferente de um mesmo fenômeno, que pode ser investigado ou medido
separadamente, mas não simultaneamente. Deixando a particularidade física de
lado, trata-se de um filósofo apontando para as profundas implicações
epistemológicas derivadas das descobertas associadas à Teoria da Relatividade
de Einstein, muito impactantes na época. Guiado pelo fato empírico da
dualidade da matéria, ele formulou o chamado Princípio de
Complementaridade, no qual onda e partícula são consideradas como aspectos
complementares da matéria, apesar de sua aparente incapacidade de
coexistência. Esta aparente incapacidade de coexistência estaria ligada
diretamente ao fato de que onda e partícula obedecem a diferentes princípios,
sendo que o de causalidade restringe-se a um espaço determinado, enquanto as
noções comuns de espaço-tempo e causa e efeito não se aplicam ao
comportamento dos elétrons, por exemploix.

 “On one hand, the definition of the state of a physical system, as ordinarily
understood, claims the elimination of all external disturbances. But in that case,

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according to the quantum postulate, any observation will be impossible, and,


above all, the concepts of space and time lose their immediate sense. On the
other hand, if in order to make observation possible we permit certain
interactions with suitable agencies of measurement, not belonging to the
system, as unambiguous definition of the state of the system is naturally no
longer possible, and there can be no question of causality in the ordinary sense
of the word. The very nature of the quantum theory thus forces us to regard the
space-time coordination and the claim of causality, the union of which
characterizes the classical theories, as complementary but exclusive features of
the description, symbolizing the idealization of observation and definition
respectively… the quantum postulate present us with the task of developing a
“complementarity” theory…”x

A solução para o problema da dualidade da matéria proposta por Bohr define a


necessidade de uma dupla medição não simultânea, ou dupla abordagem da
matéria, a partir de princípios diferenciados para cada tipo de análise: numa
delas, serão obedecidos os princípios da física clássica em que as noções de
causalidade e de espaço-tempo baseiam os cálculos tradicionais; na outra, as
noções clássicas cedem espaço à consideração de uma interação entre o objeto,
observador e seus métodos de análise, o que nos levaria a falar sobre um
comportamento autônomo no espaço e no tempo por parte do objeto
observado, independente das condições de observaçãoxi.

Transpondo para nosso raciocínio. A verdade de um determinado tema ou


doutrina e a possibilidade de sua aferição é o próprio processo de interpretação
de uma obra de pensamento. A física, diante do desafio de explicar fenômenos
que fugiam às explicações cabíveis no “campo da experiência possível”, propõe,
com o Princípio da Complementaridade, o alargamento do quadro de
referências ou do território do empírico e é de um modo parecido, que
poderíamos enfrentar a possibildade de interpretação e convivência com
aparentes aporias no campo das ideias.

A interpretação de uma obra de pensamento possui seu caráter dualístico. De


um lado, tem-se o pensamento em si, existente mesmo na ausência de um
observador e, de outro, tem-se o ato da interpretação que traduz uma interação
entre obvservador, o método e o objeto. Se considerarmos, como na física, que a
abordagem do fenômeno deve-se dar em duas medições não simultâneas: uma

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que leva em conta a interação entre observador, instrumentos de análise e


objeto; outra que faz as análises de forma a considerar os princípios contidos no
quadro atual de referências – e com isso, queremos dizer, obedecendo aos
princípios básicos de conhecimento do mundo mecânico, a saber, o da
causalidade e noções comuns de espaço e tempo -; então poderemos propor
quais tipos de análise seriam apropriadas para fazer avançar o conceito
guedeano de aproximação conciliadora. Com isso, pretendemos apontar a
necessidade da soma da noção de complementaridade à investigação proposta
por Guedes e, assim, alargar o campo de entendimento e interpretação de uma
obra do pensamento, sem que caiamos nas armadilhas de um popularesco
psicologismo do signo e do sujeito.

****

Complementaridade lógica e histórica

Mesmo a análise proposta por Guedes pode fazer avançar sua noção de
aproximação conciliadora se executada de forma combinada e não simultânea.
Com isso, pretendemos um alargamento das possibilidade de interpretação,
assegurando as características impostas pela dualidade – é óbvio que
poderíamos falar em multiplicidade, mas isto não vem ao caso neste momento –
relativa ao comportamento ou significado de uma obra de pensamento.
Paralelamente ao experimento da física, a separação dos processos visa garantir
a existência de um pensamento que está lá, como um objeto, independente do
observardor e de um outro, resultado de um processo inevitável de interação
entre objeto, observador e o próprio método de interpretação.

A necessidade de uma abordagem que obedeça a um tempo lógico seguida de


outra que respeite os fatores etiológicos, ou seu tempo históricoxii - tempo
histórico entendido não sob Goldschimidt apenas, mas sob leituras lefortianas e
contextualistas, dependendo da avaliação do observador – atende ao
experimento da dupla análise não simultânea. Seu objetivo seria vencer as
barreiras impostas por uma quixotesca busca de uma verdade interpretativa
única, baseada numa convicta aceitação da total e completa impossibilidade de
interpretação de uma obra de pensamento na sua totalidade. E com isto
queremos dizer que tudo o que poderemos fazer é reunir o maior número de

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dados confiáveis para fazer avançar uma busca que se dirige a um devir
infinito.

Colocado em questão, o pensamento contraditório passa a ser parte importante


do volume de informações que se pode reunir acerca de um determinado
assunto. As doutrinas, dessa forma, não lutam entre si, mas se complementam.
Desse ponto-de-vista, nos aproximamos mais de doutrinas opostas “com” a
oportunidade de apreensão dos pressupostos morais da realidade mais
profunda presentes em cada doutrina. Já não há necessidade de admití-los ou
combatê-los, mas de aproximá-los, fazendo-nos “nem tanto” mais convictos de
nossas próprias premissas morais primeiras, mas “certamente”, mais
convergentes com nossas próprias crenças (palavra perigosa!), as mais caras.

i
O comentário foi publicado em email enviado pelo autor e filósofo André Guedes a grupo de colegas de
graduação em Filosofia, pela USP, em Julho de 2013, e este autor era um dos endereçados.
ii
A obra de pensamento e a história - Lefort, Claude – pg. 155 a 159 – As formas da história – Edit.
Brasiliense – 1951 a 1974.
iii
O comentário foi publicado ... idem item i.
iv
Spinoza, Alain – préface, pgs. II a V – col Les Philosophes - editions Mellottée - 1946
v
Prolegômenos a toda a metafísica futura, Kant, Immanel – Textos filosóficos – Edições 70 – pgs14 e 15.
vi
Ética, Espinosa – pg. 76 – col. Pensadores – Na Explicação: Digo que é absolutamente infinito, e não
que é infinito em seu gênero; porquanto ao que somente é infinito no seu gênero podem negar-se-lhes
infinitos atributos, e, pelo contrário, ao que é absolutamente infinito pertence à respectiva essência
tudo o que exprime uma essência e não envolve qualquer negação.
vii
Espinosa, uma filosofia da liberdade – Chauí, Marilena – pg. 48 - Edit. Moderna
viiiviiiviii
The philosophy of Science – Bohr, Niels – “Causality and complementarity. Address delivered
before the Second International Congress for the Unity of Science, Copenhagen, june, 1936.
ix
Borh’s actual words – Bohr, Niels – from the published version of the Como Lecture, 1927
x
______ idem, idem
xi
The philosophy of Science – Bohr, Niels – “Causality and complementarity. § 6 - Address delivered
before the Second International Congress for the Unity of Science, Copenhagen, june, 1936.
xii
Tempo lógico e tempo histórico na interpretação dos sistemas filosóficos – Goldschimidt, Victor – A
religião de Platão – pgs 139 a 147 – Edit. Difusão européia do livro - 1963

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