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Como um filósofo lê outro filósofo?

Uma resposta a partir de Robert Brandom

Marcos Fanton
Outubro 16, 2009

Bom, pessoal, pra entrar no ritmo do V Congresso Nacional de Filosofia da Linguagem, que vai ter lá na Unisinos, vou
postar aqui uma primeira parte da minha apresentação, que vai ser sobre a interpretação de Robert Brandom de
Heidegger. Minha comunicação vai ser dia 22.10, às 11h15, o título é: Heidegger e o pragmatismo normativista: uma
história contada por Robert Brandom.

Esta minha comunicação parte da minha preocupação, que eu expus neste post aqui, cuja pergunta fundamental é:
como um filósofo lê outro filósofo?

Uma das exigências do debate contemporâneo parece ser a necessidade de explicitação de que teoria e quais
princípios metodológicos cada autor está comprometido ao realizar uma interpretação de tal ou tal autor. E a obra
de Robert Brandom, Tales of Mighty Dead [Histórias dos especialmente ou bem mortos, segundo o Fabs] tem,
justamente, o intuito de explicitar, na sua primeira parte, uma metodologia específica para a leitura de textos
filosóficos. Tal livro, no entanto, não deixa de ser um dos frutos de seu Making it explicit, a elaboração de um novo
quadro referencial teórico, para usar a expressão de Puntel, a partir de uma visão inferencialista, em oposição a
uma representacionista. Porém, mesmo que Brandom indique, no início do livro Tales of mighty dead, que Making it
explicit é um livro claramente sistemático, ao passo que o primeiro tenha uma intenção profundamente histórica,
Brandom, com forte inspiração hegeliana, não deixa de pretender alcançar uma forma de racionalidade humana
como história sistemática: uma racionalidade reconstrutiva genealógica, histórica, expressamente progressiva,
direcionada a uma constelação particular de conceitos filosóficos (p. 14-5).

Tales of mighty dead é dividido em duas partes: primeiramente, Brandom trata de explicitar seus pressupostos
teóricos de interpretação para, após isso, aplicá-los na leitura de diversos autores da tradição, como Leibniz,
Hegel, Heidegger e Sellars. Ou seja, é só na segunda parte que Brandom passa a contar as histórias dos
especialmente mortos.

O principal objetivo de Brandom, nesta primeira parte, então, é mostrar como podemos construir diferentes
estratégias de interpretação e que é somente através de uma explícita descrição de como compreendemos a
dimensão na qual a interpretação acontece, que poderemos alcançar uma autoconsciência metodológica, na qual
poderemos avaliar as virtudes e os vícios característicos de tal estratégia (p. 90).

Acredito que dois são os problemas fundamentais que motivam esta autoconsciência metodológica por parte de
Brandom (problemas estes decorrentes de seu quadro teórico).

Sempre que interpretamos, estamos colocando afirmações de determinado autor em uma linguagem diferente e,
nesse sentido, estamos, ao mesmo tempo, importando compromissos teóricos. Aqui, temos a influência direta de
Quine em Brandom: “Compreendemos uma mudança de idioma como sempre envolvendo mudanças em
comprometimentos substantivos – ambos inferenciais e doxásticos” (p. 91).

O segundo problema envolve a delimitação da proposta de Brandom: a um tipo de interpretação, dos conteúdos
conceituais de textos filosóficos. Este conceito de conteúdo conceitual é entendido como um conceito teórico cuja
finalidade é a explicação dos papéis funcionais que determinadas expressões, ao exibir determinado conteúdo,
desempenharão em um sistema de inferências. Sua função é eminentemente o desempenho em articulações
inferenciais. Desse modo, segue-se que a compreensão de conteúdos conceituais significa o manejo de um domínio
inferencial, isto é, a habilidade de distinguir quais são as consequências de uma afirmação, o que poderia ser
evidência a favor ou contra ela; com o que alguém estaria se comprometendo ao afirmar algo e o que poderia
autorizar alguém para tal comprometimento (p. 95).
Do conceito de conteúdo conceitual, segue-se que só é possível haver uma compreensão de um texto filosófico a
partir de um contexto inferencial, isto é, a partir de um contexto de comprometimentos teóricos tanto do
intérprete quanto do que está sendo interpretado. Assim, o significado de um texto filosófico não está no texto,
tendo o intérprete que o achar, nem mesmo no intérprete, tendo este que o produzir. Brandom elabora o que ele
chama de uma via média, a partir da influência de Gadamer e Quine, cuja tese é “a unidade do significado não deve
ser menor do que uma teoria”. Com isso, em certo sentido, o intérprete produz o significado, porque ele introduz
um texto filosófico em determinado contexto, mas, ao mesmo tempo, deve achar o significado, uma vez que tal
contexto determinará a realização de inferências corretas.

Dois são os contextos inferenciais explicitados por Brandom, que dão duas perspectivas diferentes sobre o mesmo
conteúdo conceitual. O primeiro é a especificação de dicto do conteúdo conceitual, na qual o intérprete realiza,
basicamente, um discurso indireto sobre o texto. Ou seja, a tarefa do intérprete é especificar com o que tal autor
pensava que ele estava se comprometendo com o que ele dizia, com o que ele pretendia se comprometer e com o que
ele tomaria como conseqüência de suas afirmações. Este contexto inferencial é realizado, por exemplo, por mim, ao
tentar explicar a metodologia de Brandom. No exemplo que eu dei no post anterior, diríamos: “Kant afirmou que
Platão abandonou o mundo dos sentidos… etc.”.

Já a segunda especificação é a especificação de re [ui!], na qual o conteúdo conceitual visa, eminentemente, à


verdade de determinadas afirmações. Aqui, o intérprete realiza uma série de hipóteses auxiliares na interpretação
do texto, traçadas a partir daquilo que ele mesmo acredita ser ver verdadeiro. Ou seja, o contexto inferencial é
dado a partir dos comprometimentos teóricos do intérprete, a partir daquilo que as coisas realmente são em
comparação sobre o que outro está falando. Nesse sentido, Kant, ao interpretar Platão a partir de seu paradigma
crítico-transcendental, mostra o que ele acha verdadeiro acerca de uma teoria do conhecimento plausível.

Aqui, podemos perceber o caráter perspectivista das interpretações, a partir da semântica inferencial de
Brandom, ocasionando uma relativização do significado. Sempre poderemos elaborar diversos contextos
inferenciais, porém nenhum, necessariamente, é melhor que o outro. Porém, um pode ser mais explícito que outro.

Um caso especial das especificações de re é a especificação de traditione, que possui um caráter eminentemente
dialógico. Estabelecemos um diálogo com a tradição, quando a utilizamos como um modo de expressão ou de
especificação de conteúdos, afirmações ou significâncias inferenciais. E, também, estabelecemos um diálogo com a
tradição ao nos movermos, constantemente, do passado para o presente (e vice-versa), a fim de encontrarmos ou
assegurarmos aquilo que acreditamos que seja verdadeiro ou quais comprometimentos teóricos tomamos
responsabilidade. Portanto, este ‘com’ do diálogo com a tradição tem um caráter instrumental, por um lado, na
medida em que usamos a tradição para encontrarmos afirmações ou conceitos que precisamos, e, por outro, tem um
caráter crítico, ao avaliarmos quais conteúdos conceituais nos incumbimos de responsabilidade e quais não. Do
mesmo modo, no título do livro Histórias dos especialmente mortos, este ‘dos ‘pode ser entendido no genitivo
subjetivo (histórias contadas pelos mortos) e, também, no genitivo objetivo (histórias contadas sobre os mortos).

Este aparato metodológico construído por Brandom requer, ainda, o emprego de um fio condutor sistemático na
interpretação dos textos, realizado a partir do que ele denomina metafísica reconstrutiva. Este método possui
três etapas: [1] Em um primeiro momento, selecionamos, suplementamos e aproximamos os conteúdos conceituais
que queremos analisar em uma rede, estabelecida pelo tópico no qual cada intérprete deseja trabalhar. No caso de
Brandom, a intencionalidade. No caso de Kant, as condições de possibilidade do conhecimento. [2] Na segunda
etapa, utilizamos esta “matéria bruta” para definirmos os conceitos e derivarmos, a partir de inferências, as teses
do tema selecionado e suplementado. O ponto central aqui é estabelecer quais as teorias que podem ser traduzidas
para uma linguagem controlada. [3] Por fim, o último passo é avaliar a adequação desta reconstrução. Portanto, aqui
a tentativa é ver se a interpretação adéqua-se ao próprio corpo da teoria interpretada.

Tendo este esquema metodológico, podemos perceber que interpretar um filósofo não significa defender a
interpretação correta. O problema situa-se em defender uma interpretação plausível intersubjetivamente e que
não contradiga os próprios princípios metodológicos estabelecidos pelo intérprete.
É por isso, então, que a primeira parte do livro de Brandom é dividida em três tópicos: contexto, texto e pré-
textos. Neste último, os pré-textos, é desenvolvido o que acabei de expor, a parte metodológica do trabalho. Já no
primeiro tópico, o contexto, Brandom desenvolve o fio condutor de sua metafísica reconstrutiva, a
intencionalidade, que significaria, em um sentido amplo, “tanto o que é ter um pensamento que as coisas são assim e
assim e, também, o que é estar pensando de ou sobre coisas de um determinado modo”. Com isso, Brandom alcança
determinadas questões em comum, um conjunto de temas integrados e estratégias explanatórias específicas para
seu fio condutor. E é a partir disso que ele pôde ler os diversos filósofos da tradição, como Spinoza, Leibniz,
Hegel, Frege, Heidegger e Sellars e, com eles, encontrar diversas versões de intencionalidade, como funcionalistas,
inferencialistas, holistas, normativas e social pragmáticas.

Blog Distropia
https://distropia.wordpress.com/2009/10/16/como-um-filosofo-le-outro-filosofo-uma-resposta-a-partir-de-robert-brandom
[acesso em 21/junho/2018]

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