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Tradução
Elvis Cesar Bonassa
SOHN-RETHEL, Alfred
Trabalho intelectual e manual
Para a epistemologia da história ocidental
Tradução de
Geistige und körperliche Arbeit
zur Epistemologie der abendländischen Geschichte
Weinheim : VCH, Acta Humaniora, 1989
Bundesrepublik Deutschland
Tradutor: Elvis Cesar Bonassa
Para esta tradução, consultamos a versão feita por Cesare Giuseppe Galvan
2
ÍNDICE
Prefácio .................................................................................................................... 5
I Parte
Forma-mercadoria e forma de pensamento - Crítica da teoria do conhecimento .......... 7
1. Partir criticamente de Kant ou de Hegel? .............................................................. 7
2. Abstração intelectual ou real? ............................................................................. 13
3. A abstração mercadoria ...................................................................................... 15
4. Descrição fenomenológica da abstração da troca ............................................... 18
5. Economia e conhecimento .................................................................................. 23
6. Análise da abstração da troca ............................................................................. 28
a. Formulação do problema ................................................................................ 28
b. Solipsismo prático ........................................................................................... 33
c. A forma de trocabilidade das mercadorias....................................................... 36
d. Quantidade abstrata ........................................................................................ 40
e. O conceito de valor ......................................................................................... 41
f. Substância e acidente ...................................................................................... 45
g. Atomicidade .................................................................................................... 46
h. Movimento abstrato ......................................................................................... 46
i. Causalidade estrita........................................................................................... 48
j. A transformação da abstração real em abstração do pensamento ................... 50
7. Notas conclusivas à análise ................................................................................ 56
II Parte
Síntese social e produção ........................................................................................... 62
1. Sociedade de produção e sociedade de apropriação .......................................... 62
2. Mão e cabeça no trabalho ................................................................................... 63
3. Começo da produção de excedente e da exploração.......................................... 65
4. Troca de dádivas e troca de mercadorias ........................................................... 66
5. A sociedade clássica de apropriação .................................................................. 69
6. Fundamentos da formação da filosofia antiga da natureza ................................. 75
a. A solução do "milagre grego" pela via do dinheiro ........................................... 77
b. O materialismo histórico é a anamnese da gênese ......................................... 80
7. Do renascimento da Antiguidade à moderna ciência da natureza ....................... 83
8. A matemática como limite entre cabeça e mão ................................................... 95
9. Anotações conclusivas...................................................................................... 102
ANEXO
Exposição sobre a teoria da socialização funcional Uma carta a Theodor W. Adorno
(1936) ....................................................................................................................... 105
Para a liquidação crítica do apriorismo
Uma pesquisa materialista (março-abril 1937) .......................................................... 121
1. Intenção da pesquisa ........................................................................................ 121
3
2. Analogia ou relação de fundamentação? .......................................................... 125
3. As condições sociais de surgimento do conhecimento racional ........................ 129
4. Para a análise da forma mercadoria ................................................................. 131
5. Troca de mercadorias e exploração .................................................................. 137
6. A exploração como origem da reificação........................................................... 149
7. O dinheiro e a subjetividade .............................................................................. 157
Anotações de um diálogo entre Th. W. Adorno e A. Sohn-Rethel em 16 de abril de
1965 ......................................................................................................................... 168
4
Prefácio
5
A investigação aqui apresentada trata, portanto, da alternativa entre
epistemologia idealista ou materialista. Enquanto a idealista (como a exposição
de Kant) se apresenta como um conjunto de invenções, a materialista só pode
repousar sobre um conjunto de descobertas.
Alfred Sohn-Rethel
6
I Parte
Forma-mercadoria e forma de pensamento - Crítica da teoria do
conhecimento
7
Mas o dualismo, que resta do início ao fim em todo o trabalho de Kant, é um
reflexo da efetividade (Wirklichkeit) capitalista incomparavelmente mais fiel à
verdade do que os esforços de seus seguidores, que se livram do dualismo
puxando tudo para a “imanência do espírito”. Já Fichte chama Kant de “cabeça
de três quartos”, por não ter levado sua própria filosofia às últimas
consequências. O que ocorreu nesse meio tempo foi evidentemente a Revolução
Francesa, na qual a burguesia pareceu ter se apoderado de toda a realidade
(Realität) sem deixar resto, nem sequer os restos de uma realidade dada em
troca. Pode-se também dizer que após a Revolução Francesa a sociedade inteira
se transformou em forragem para o capital. Mas, sob esse aspecto, ao tempo de
Hegel e para um espírito com seu ângulo de visão, ainda não havia nada para
ser conhecido. Ele tomou a revolução no sentido pelo qual ela havia sido
entendida, leu com seus amigos Hölderlin e Schelling cada acontecimento, cada
notícia que o jornal anunciava, como fato filosófico, olhou Napoleão em sua
entrada em Iena como o "Espírito do Mundo", que ele "viu chegar a cavalo". Essa
era a "soberania do pensamento", mas também a decolagem do terreno
histórico, a extrema culminação, que punha na ordem do dia as implicações
correspondentes à efetivação da liberdade e as entendia sistematicamente, não
importando se as ruas e porões de Paris ofereciam abrigo a isso ou não. Para
Hegel não era suficiente tomar a liberdade simplesmente como exigência ou
ideal, como fora para Kant, cuja filosofia Marx chamou de “a filosofia da
Revolução Francesa”, a filosofia no estágio da revolução. Para Hegel, ela se
tornou a lei pela qual se move a efetividade (Wirklichkeit)1. Para ele, pensar e
ser não estão mais em oposição, mas se unificaram, e o mesmo vale, da mesma
forma, para todas as antíteses e dicotomias da reflexão filosófica. Essa unidade
era o que desde sempre tinha sido entendido com pensar e ser, ideal e real,
essência e aparência, forma e conteúdo, etc.; sua unidade era seu significado,
era sua verdade. Assim, a lógica se tornou dialética. As determinações
realizaram-se, mas em sua realização modificaram-se as condições de sua
realização, de modo que cada determinação, para realizar-se, desenvolver-se,
2 Para o entendimento de que a dialética não pode ser lógica, os trabalhos de Galvano della
Volpe ofereceram preciosas contribuições.
9
Estas necessidades naturais tornam-se humanas, e a natureza experimenta sua
continuação na forma da história humana lá onde começa o trabalho.
10
Quem foi então o padrinho de Marx: Hegel ou Kant? A resposta é menos simples
do que comumente se supõe. Uma perigosa tentação de ignorar o problema do
conhecimento em relação à natureza impera em toda a concepção do
materialismo histórico regada a dialética. A natureza surge por meio do trabalho,
de seus materiais, forças, instrumentos, ferramentas, sempre como fator já dado,
dominado e incluído na história humana. Sua causalidade material nunca atua
sobre a história como constante, mas de acordo com o grau de desenvolvimento
das forças de produção, nas quais eventualmente ocorrem perdas, mas no
essencial cada época se ergue sobre as costas da outra, por mais inócuas que
possam parecer aos homens as consequências nas relações sociais de
produção. A natureza aparece, portanto, sempre inserida na história como
matéria já digerida pela praxis da produção. O conhecimento da natureza e a
ciência aí exigidos são tratados por Marx com ares de obviedade. Parece não
haver aqui lugar para nenhum problema do conhecimento no estilo kantiano. E,
no entanto, ele efetivamente se coloca.
Evidentemente, ele não está, como em Kant, nos fundamentos da filosofia, como
questão a-histórica do “conhecimento enquanto tal” ou ainda da “possibilidade
da experiência”. Ele se coloca porém como fenômeno histórico específico – em
sua forma já completa na Antiguidade Clássica e depois sobretudo na
Modernidade européia – devido à separação entre trabalho intelectual e manual,
que se desenvolve junto à produção de mercadorias sobre o solo da divisão de
classes. Aqui se coloca um problema teórico do conhecimento, pelo fato histórico
de que as formas do conhecimento da natureza se descolam da praxis de
produção material, autonomizam-se perante ela e brotam, portanto, de fontes
diversas daquelas do trabalho manual. Não é de modo algum evidente que
fontes possam ser essas, ainda que se partilhe da crença em uma “capacidade
de entendimento” originária e inata ao homem, oferecida pela teoria do
conhecimento tradicional. O fenômeno mesmo, pelo menos em sua moderna
forma européia, é exatamente aquele para o qual valem as questões kantianas:
Como é possível a matemática pura? Como é possível a pura ciência da
natureza? Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? A teoria com as quais
Kant as respondeu estava apoiada em minuciosas análises de mais de dez anos
do método de Galileu e da física de Newton, completadas e testadas por
trabalhos próprios em ciência natural, e em partes essenciais essa teoria se
11
constituía simplesmente de conclusões tiradas a partir dos resultados assim
obtidos. Não há dúvida de que a “pura ciência da natureza” é possível, pois ela
é um fato; consequentemente, é preciso perguntar como ela é possível. Este era
o modo de argumentação de Kant, e o materialista histórico necessita da mesma
argumentação, se ele se der suficientemente conta, por exemplo, de quão
essencial e intimamente a separação entre trabalho intelectual na ciência da
natureza e trabalho proletário manual se relaciona com a dominação econômica
do capital sobre a produção. A dominação econômica não poderia ser exercida
pelo capital se a tecnologia fosse coisa dos trabalhadores. O problema do
conhecimento formulado por Kant se coloca, desse modo, no campo, induzido
por Hegel, do materialismo histórico. Em vez de Kant ou Hegel, por assim dizer,
tem-se Kant no quadro de Hegel. Na verdade, não se trata nem de um nem de
outro, mas dos modos de aparecimento do trabalho intelectual em sua separação
do trabalho manual enquanto problema inerente ao materialismo histórico.
Para Marx, ao contrário, o tempo, que domina a gênese e a mudança das formas,
é entendido antes de tudo como histórico, natural ou humano.3 Por isso não se
pode afirmar de princípio nada sobre as formas. Uma Prima Philosophia de
3 "Nós conhecemos só uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser considerada
em duas partes e subdividida em história da natureza e história dos homens. Ambas as partes
não são entretanto separáveis do tempo..." Ideologia alemã, Feuerbach (cf. Frühschriften, ed.
S.Landshut e J.P.Mayer, v.I, p.10).- O parágrafo que começa com essas frases foi riscado no
manuscrito por Marx, mas mantém seu valor como expressão de seu pensamento.
13
qualquer tipo está excluída do marxismo. O que se pode afirmar precisa primeiro
ser encontrado pelas investigações. O materialismo histórico é, como dissemos,
só o nome para um postulado metodológico, e mesmo este foi encontrado por
Marx como "resultado de seus estudos".
14
crítica da economia política de 1859 uma significação sem par para o
pensamento materialista, baseados no fato de que aqui se fala de abstração num
sentido diverso daquele da abstração do pensamento.
3. A abstração mercadoria
Marx não levou um tal ajuste até seu completo desenvolvimento, e eu estou
inclinado a concordar tanto com Louis Althusser como com Jürgen Habermas,
de que nos fundamentos teóricos do Capital está em questão algo muito mais
importante e profundo do que o expresso pela análise econômica. Louis
Althusser acredita que o Capital deva ser lido como resposta a uma questão
subentendida mas não formulada por Marx.4 Jürgen Habermas vai mais longe e
acusa Marx de ter ignorado as implicações de seu pensamento na teoria do
conhecimento. Eu também concordo com Habermas sobretudo em que, se tais
4 Ler o Capital de L.Althusser, Jacques Rancière, Pierre Macherey, Étienne Balibar e Roger
Establet, 2 vv., François Maspéro, Paris, 1965, 1967. - Eu poderia concordar com a intenção
desse empreendimento, se a estrutura fundamental, para a qual se dirige a pesquisa, fosse
reconhecida como roupagem formal da abstração, com a qual ela pode exercer seu poder
estrutural ativo. Mas exatamente o explanação de Marx da "abstração mercadoria" é entendida
metaforicamente, enquanto deve ser tomada literalmente. Assim Althusser acha necessário
sublinhar "que la production de la connaissance ... constitue un processus qui se passe tout entier
dans la pensée". (vol.I, p.51). A rede formal (Formzusammenhang) que a estrutura buscada
deveria constituir aqui é, ao contrário, cindida e dilacerada. O tema geral não proclamado do
Capital e de sua fundamentação na análise da mercadoria é a abstração real ali descoberta. Seu
alcance estende-se para além da pura economia, chegando a afetar a filosofia tradicional muito
mais diretamente que a economia política. Somente com o conhecimento desse alcance é que
se pode atacar a questão materialista da forma e da estrutura, inclusive no que se refere à
questão da verdade e das normas. Se esta questão tivesse sido colocada por Marx com tal
abrangência, então ele teria sido obrigado a reconhecer que sua concepção da abstração-
mercadoria no Capital seria ou insustentável(sendo uma pura metáfora e uma imagem enganosa
da abstração) ou então incompleta.
16
implicações forem tomadas e levadas consequentemente até o fim, a própria
teoria do conhecimento passará por uma transformação radical: a metamorfose
em teoria da sociedade.5 Acredito, no entanto, que se escapa mais eficazmente
das armadilhas da tradição de pensamento idealista e epistemológico ao não se
falar mais em “teoria do conhecimento”, mas da separação entre trabalho
intelectual e manual. Com isso, todo o problema se equaciona sobre o
denominador de seu significado prático.
5 Jürgen Habermas, Erkenntnis und Interesse. Frankfurt/M, Surkamp, 1968. Sobretudo I Parte,
por ex. p.58-59, e o cap.3: "A ideia de uma teoria do conhecimento como teoria da sociedade".
6 Cf. a "Crítica do Programa de Gotha" e a Ideologia Alemã, op. cit., p. 22.
17
classes. Tal compreensão está ligada ao pressuposto de que as formas
conceituais do conhecimento, que constituem o objeto específico da teoria do
conhecimento desde a filosofia grega, podem ser rigorosamente deduzidas do
mesmo plano ao qual pertence o trabalho manual, o plano da existência social.
A verificação desse pressuposto é o problema que está agora em investigação.
Esta investigação considera metodologicamente que a unidade entre cabeça e
mãos seria factível em uma sociedade futura.
Ora, nem o trabalho é abstrato por natureza, nem sua abstração em "trabalho
humano abstrato" é obra dele próprio. O trabalho não se abstrai a si mesmo. O
lugar da abstração está fora do trabalho, na forma de relacionamento
socialmente determinada da relação de troca. Obviamente, de acordo com a
concepção de Marx, também a relação de troca não se abstrai a si mesma. Ela
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abstrai, ou melhor, abstratifica o trabalho. O resultado dessa relação é o valor da
mercadoria. O valor da mercadoria tem a relação de troca abstraidora como
forma e o trabalho abstratificado por substância. Nessa relação abstrata de
determinação da “forma valor”, o trabalho, enquanto “substância do valor”, torna-
se o fundamento puramente quantitativo da "grandeza do valor". No primeiro
volume de “O Capital”, a análise da mercadoria ocupa-se apenas com a
essência, tanto da grandeza do valor como da forma valor; as relações
quantitativas de troca das mercadorias, como elas de fato “aparecem” na história,
serão explicadas muito depois, no terceiro volume. (Para uma compreensão
adequada da dialética e da sistemática internas da obra principal de Marx,
mencionemos aqui os estudos excelentes de Rosdolsky e de Reichelt.) Como
Marx também forneceu uma apresentação rigorosa da relação essencial entre
as formas sociais de troca, de um lado, e o trabalho, de outro, seria preciso
propor discussões críticas e analíticas sobre isso, mas elas iriam complicar e
atrasar tanto o presente trabalho que preferimos deixá-las para um anexo. O que
nos interessa aqui não é o conjunto de relações, mas apenas um aspecto parcial,
o do poder de abstração devido à troca de mercadorias, não ao trabalho. "O
processo de troca confere às mercadorias, que ele transforma em dinheiro, não
seu valor, mas sua forma específica de valor." (Marx, O Capital, MEW, 23,
p.105). Falamos, portanto, a seguir em abstração da troca, não em abstração
mercadoria. Como descrever agora a abstração da troca isoladamente, como
puro fenômeno?
Pois, se o uso das mercadorias é eliminado das ações dos interessados durante
a troca, ele não é absolutamente banido de seus pensamentos. Ao contrário. O
uso e a utilidade das mercadorias que são trocadas no mercado ocupam
vivamente o pensamento dos clientes. Esse interesse não é de modo algum
apenas presumido. Os clientes têm o direito de assegurar-se do valor de uso das
mercadorias. Podem observar, eventualmente tocar, experimentar, provar, ver
uma demonstração de seu uso, e o uso demonstrado precisa ser o mesmo para
o qual a mercadoria deve ser adquirida. No entanto, a demonstração das
mercadorias no mercado serve apenas para instrução teórica e formação da
opinião do cliente, restrita ao simples valor de conhecimento e milimetricamente
distinta da praxis do próprio uso, embora empiricamente ambos sejam totalmente
indistinguíveis. A praxis do uso é banida da esfera pública do mercado e pertence
exclusivamente ao domínio privado do proprietário da mercadoria. No mercado,
o uso das coisas permanece “pura apresentação” para os interessados. Com o
desenvolvimento do mercado, a imaginação separa-se da ação humana e
individualiza-se cada vez mais como sua consciência privada. A origem desse
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fenômeno não está na esfera privada do “uso”, mas na esfera pública do
mercado.
Abstrata não é, portanto, a consciência dos agentes da troca, mas apenas sua
ação. Por serem necessárias tanto a abstração do ato como a não-abstração da
consciência que o acompanha, os agentes não percebem a abstração da troca.
Ela foge de suas consciências. Ao mesmo tempo, a falta de consciência dos
homens em relação à abstração de suas trocas não é nem fundamento nem
condição dessa abstração.
Aqui deve ser apontada uma outra contradição da abstração mercadoria e sua
respectiva abstração de troca. A ação da troca exige prescindir por completo do
uso (e das propriedades empíricas dos objetos trocados). Ela exerce assim a
negação radical da realidade física do uso. Apesar disso, ela mesma é uma ação
física: tira a mercadoria trocada da propriedade do vendedor e a desloca para a
propriedade do comprador, movimentando o dinheiro do pagamento na direção
oposta. A isso denomino fisicalidade da ação de troca. Evidentemente, a ação
da troca deve ser distinguida do transporte, o qual - por difícil e complicado que
seja - tem só que providenciar que a carga chegue intacta ao cliente.
Torna-se necessário dizer uma palavra sobre essa nova concepção da essência
da abstração. Eu considero a pura abstração em sua forma geneticamente
originária como uma propriedade do ser social. Ela é parte imprescindível da
21
síntese da sociedade funcional, que caracteriza a história ocidental. De um ponto
de vista burguês, todos os conceitos puros, desprovidos de realidade
perceptível, apresentam-se como criações do pensamento. De fato, não se pode
encontrar na composição corporal das pessoas nenhum fundamento que possa
corresponder a tais conceitos. Hegel, no ponto mais elevado do pensamento
burguês, serve-se da filosofia do espírito para fundamentar a posição do
idealismo absoluto. De um ponto de vista materialista, ao contrário, o
pensamento puro se apresenta como a socialização do pensamento, provocada
pela abstração social real da troca. Eu sustento, portanto, a tese da origem social
do entendimento puro. Esta tese pode ser sustentada por meio da dedução dos
conceitos puros do entendimento a partir do ser social, mais exatamente a partir
da fisicalidade abstrata da troca. Esta dedução oferece a contrapartida à difícil
"dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento" de Kant, que foi
chamada por Hegel de "puro idealismo".7
7 "No princípio desta dedução esta filosofia é puro idealismo" (G.W.F. Hegel, Differenz des
Fichte'schen und Schelling'schen Systems der Philosophie, Jena, 1801, p.1).
22
5. Economia e conhecimento
23
todas as ações de troca, independentemente do conteúdo, do momento e do
local em que ocorrem, uma estrita unidade formal, graças à qual surge uma rede
de referências recíprocas, de modo que cada transação exerce inumeráveis
retroações sobre o fechamento de outras transações por parte de possuidores
de mercadorias desconhecidos. Forma-se, desse modo, o entrelaçamento dos
homens, "por trás de suas costas", em uma rede de simples existências que se
regula em função da unidade, rede na qual também a produção e o consumo
ocorrem segundo as leis da mercadoria. Não são os homens, porém, que
originam esta rede, não são eles que a confeccionam: mas suas ações o fazem,
à medida em que eles escolhem uma mercadoria entre todas como portadora da
abstração, como um "cristal", e se referem a ela como ao idêntico denominador
comum de seus "valores". "Somente em sua troca os produtos do trabalho
recebem uma objetividade de valor socialmente idêntica, separada de sua
objetividade de uso sensível e específica" (MEW, 23, 87). "A ação social de todas
as outras mercadorias separa, assim, uma determinada mercadoria, na qual
exprimem os seus valores recíprocos. Ser equivalente geral torna-se, pelo
processo social, função social específica da mercadoria separada. Assim ela se
torna - dinheiro." (Ibid., p.101) "O processo de troca confere às mercadorias, que
ele transforma em dinheiro, não seu valor, mas sua forma específica de valor."
(Ibid., p.105) "A necessidade, para a circulação, de dar expressão externa à
oposição, que repousa na mercadoria, entre valor de uso e valor, impele a uma
forma independente de valor da mercadoria, e não se detém nem descansa até
que seja definitivamente satisfeita pela duplicação da mercadoria em mercadoria
e dinheiro" (Ibid., 102) "O processo de troca produz necessariamente o cristal-
dinheiro, pelo qual diferentes tipos de produtos do trabalho são de fato postos
como iguais e portanto, de fato, transformados em mercadorias." (Ibid., p.101)
"O essencial da sociedade burguesa está exatamente em que a priori não há
nenhuma regulação consciente, social da produção. O que é razoável e
necessário impõe-se somente como média que atua cegamente." (Carta a
Kugelmann de 11 de julho de 1868). Isso caracteriza com bastante clareza o
processo de constituição da economia sobre bases capitalistas como
causalidade não-consciente das ações humanas, das ações na troca de
mercadorias.
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Mas a afirmação da falta de consciência do processo não nega naturalmente a
consciência individual dos possuidores de mercadoria. Eles são e permanecem
os atores na ação. "As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado,
nem podem se trocar a si mesmas. Devemos, portanto, procurar seus guardiões,
os possuidores de mercadorias." (MEW, 23,99). Na troca, os possuidores de
mercadorias estão com sua consciência integralmente absorvida na coisa,
atentos para que nada lhes escape. Mas de onde eles tiram os conceitos que
estão à sua disposição? Não os tomam do tesouro de sua própria consciência;
mesmo que tivessem tal coisa, de nada lhes serviria, na anarquia de uma
sociedade mercantil, até mesmo para a satisfação das necessidades mais
imediatas. Eles não sabem absolutamente nada por si mesmos, precisam deixar
que as mercadorias digam como eles têm de proceder aqui. Precisam atentar
aos preços das mercadorias, compará-los, acompanhar suas flutuações. É com
esta fala das mercadorias em sua consciência que os possuidores se tornam
seres racionais, e suas ações, eficazes e capazes de obter aquilo que querem.
Sem tal fala, os homens estariam perdidos em sua própria sociedade mercantil
como num bosque encantado. Esta transferência da consciência humana para
as mercadorias e a equipagem do cérebro humano com conceitos mercantis,
estas "relações humanas entre as coisas e relações de coisas entre os homens"
são aquilo que Marx chama reificação (Verdinglichung). Não são os produtos
que obedecem aqui aos seus produtores, ao contrário, os produtores seguem as
ordens do produto, assim que este se apresente sob a forma mercadoria. A
forma mercadoria é a abstração real, que tem seu lugar e origem exatamente na
própria troca, de onde ela se estende por toda a amplitude e profundidade da
produção mercantil desenvolvida, sobre o trabalho e também sobre o
pensamento. O pensamento não é atingido imediatamente pela abstração da
troca, mas apenas quando se defronta com seus resultados de forma acabada,
portanto apenas post festum a formação das coisas. Então, evidentemente, as
diversas faces da abstração se dão ao pensamento, sem nenhum sinal de sua
origem. "O movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado e não
deixa atrás de si nenhum rastro." (MEW, 23, 107). No lugar apropriado,
ocupamo-nos mais de perto do modo como isso se dá. Aqui tratou-se apenas de
assinalar da forma mais geral a rede de conexões funcionais bem como a
separação essencial entre o mundo da ação e o mundo do pensamento humanos
25
em sociedades de produção mercantil desenvolvida. Isso havia sido omitido na
primeira edição deste livro.
27
imediatamente apenas um paralelismo entre os dois campos, que tanto poderia
indicar uma simples relação de analogia como um nexo de fundamentação
(Begründungszusammenhang). Para demonstrar o nexo de fundamentação,
deve ser possível mostrar de que modo a abstração real converte-se em
pensamento, qual o papel que ela desempenha ali e que tarefa socialmente
necessária lhe cabe.
a. Formulação do problema
Já nesta forma inicial e simples, esta é uma formulação que lembra mais Kant
do que Marx. Mas é uma bela questão marxista. Como já foi indicado, a
comparação implícita não é entre Kant e Marx, mas entre Kant e Adam Smith ou,
melhor dizendo, entre teoria do conhecimento e economia política, das quais
eles podem ser chamados de sistematizadores. A "Riqueza das Nações" de
Adam Smith em 1776 e a "Crítica da Razão Pura" de Kant em 1781 (primeira
edição) são duas obras que, antes de todas, buscam o mesmo objetivo, com
total independência sistemática em campos conceitualmente desligados: a
demonstração da natureza normatizada da sociedade burguesa.
28
Com o pressuposto de que a natureza do trabalho humano é gerar seus produtos
na forma de valor, Adam Smith provou que só havia um bom caminho a ser
tomado pela sociedade: dar a cada proprietário uma ilimitada liberdade de dispor
de seus bens privados. Este é, para a sociedade, o caminho normativo fundado
na própria essência social, seja para sua salvação, como queria Adam Smith, ou
para sua desgraça, como começou a desconfiar Ricardo. Sabemos que a análise
da mercadoria de Marx serve para demolir exatamente esse pressuposto que
sustenta toda a economia política e, a partir daí, abrir os olhos para a verdadeira
dialética da sociedade burguesa. Esse é o assunto da Crítica da economia
política de Marx.
A obra de Kant não pressupõe, mas conclui, que faz parte da natureza do espírito
humano fazer seu trabalho de forma independente e separada do trabalho
corporal. Kant, é certo, raramente menciona expressamente o trabalho manual
e as "camadas trabalhadoras", embora seu indispensável papel social nunca
seja posto em dúvida. Mas esse papel absolutamente não alcança a
possibilidade de um conhecimento exato da natureza. A teoria da "pura
matemática" e da "ciência pura da natureza" triunfa, então, por não precisar
nunca mencionar o trabalho corporal. Ela é conhecimento sobre base puramente
intelectual e esclarecer a sua própria possibilidade é a tarefa da teoria. As visões
empiristas de Hume eram um escândalo para Kant, pois faziam estremecer a
qualidade de juízo apodítico dos conceitos puros do entendimento, qualidade
que justifica a separação entre princípios a priori e a posteriori do conhecimento,
com o consequente isolamento de uma parte de nosso ser, não-dedutível da
natureza corporal e sensível, que fundamenta, ao mesmo tempo, a possibilidade
do conhecimento teórico da natureza e a autonomia da pessoa espiritual. Para
assegurar a ordem social, de acordo com essa autonomia, não são necessários
nem privilégios exteriores, por um lado, nem restrições artificiais à "maioridade",
por outro lado. Quanto mais se concede aos homens um desimpedido "uso
público de sua razão", tanto melhor se vêem servidas as necessidades sociais,
isto é, a moral, o direito e o progresso espiritual.8 É o único caminho, fundado na
natureza das nossas próprias capacidades espirituais, e assim normatizado, no
qual a sociedade pode receber a ordenação que lhe é adequada. Ocultou-se a
8 Cf. "Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?" ("Resposta à questão: O que é
esclarecimento?") de 1784.
29
Kant, bem como aos outros filósofos do iluminismo burguês, o fato de esta
ordem, em relação às camadas trabalhadoras, trazer em si a divisão de classes.
Não por menos do que essa ilusão, Marx denominou o pensamento kantiano de
"a filosofia da Revolução Francesa". Mas, na Alemanha subdesenvolvida, a
sociedade burguesa foi tomando forma sob o conceito de divisão entre "camadas
formadas" e "camadas trabalhadoras", diferentemente dos conceitos de capital
e trabalho no Ocidente, onde o pensamento burguês era dominado pela
economia política. - Onde está aqui, então, a questão da "crítica da teoria do
conhecimento" que visamos formular?
A questão inicial poderia naturalmente receber uma formulação mais fácil: como
é possível a socialização mediada pela troca de mercadorias? O uso da palavra
"síntese" oferece, no entanto, uma tripla vantagem. Primeiro, pode-se falar
comodamente das funções sócio-sintéticas da troca mercantil. Segundo, a
expressão "sociedade sintética" põe a produção de mercadorias em oposição à
ordem natural das comunidades protocomunistas ou sobretudo primitivas, do
mesmo modo como se fala da borracha como goma sintética, em contraposição
ao caucho como produto natural. Na objetividade-valor das mercadorias, da qual
30
depende o efeito socializante da troca, não entra, de fato, "nenhum átomo de
matéria natural". A socialização é aqui um feito puramente humano, desligado
do metabolismo material entre homem e natureza, e há boas razões para
suspeitar que aqui também se escondam as condições históricas
transcendentais de toda a produção sintética atual. Eu uso, assim, a expressão
"sociedade sintética" em sentido e com abrangência conceitual diversos da
expressão "síntese social". A primeira serve apenas ao caso das sociedades
mercantis, enquanto a última é empregada como condição geral fundamental,
sem restrições históricas, do modo de existência humano. Neste último sentido,
a expressão recebe seu terceiro significado: um aguilhão polêmico de minha
formulação contra a hipostasiação kantiana de uma síntese a priori a partir da
espontaneidade do espírito - portanto, pagando ao idealismo transcendental na
mesma moeda.
31
do método experimental, a contribuição dos sentidos individuais é reduzida à
"leitura" de dados em instrumentos de medida construídos cientificamente. A
evidência sensível possui certeza apenas para a pessoa que lê, para todas as
outras pessoas não possui nada mais do que credibilidade. Onde não for
totalmente eliminável, a evidência sensível é reduzida a um mínimo, e esse
mínimo é o que sobra do trabalhador manual no experimento, pois sua pessoa
mesma constitui o "fator subjetivo", que a objetividade científica é encarregada
de suprimir. A necessidade lógica reside apenas na hipótese formulada
matematicamente e em suas consequências internas. Essa dualidade das fontes
do conhecimento vale para nós como um fato indiscutível. O que está em
questão é a origem (Ursprung) histórica, espaço-temporal, das capacidades
lógicas das hipóteses, melhor dizendo, a procedência (Herkunft) dos elementos
formais, sobre os quais se fundam essas capacidades. Mas Kant, e qualquer
outro pensador burguês, não pôde nem ao menos formular esta questão de
origem, quanto mais conduzi-la com êxito. A questão é posta nas primeiras linhas
da Introdução à segunda edição da Crítica, mas esgota-se na sequência. Kant
reduz as formas conceituais em questão a um último princípio básico, o da
"unidade sintética originária da apercepção", mas sobre esse princípio mesmo
ele não sabe explicar mais nada, a não ser que existe graças à sua própria
"espontaneidade transcendental". A explicação extravia-se pelo fetichismo
daquilo que deveria ser explicado. A partir daí, toda insistência é para assegurar
que simplesmente não pode ser dada uma explicação genética, quer dizer,
espaço-temporal, das "capacidades puras do entendimento". A questão é selada
por um dos mais sagrados tabus da tradição do pensamento filosófico. O
escárnio de Nietzsche - Kant pergunta "como são possíveis os juízos sintéticos
a priori" e responde "por uma capacidade" - é perfeitamente fundamentado. Só
que o próprio Nietzsche não sabe nada de melhor. O tabu afirma que a
separação existente entre trabalho mental e trabalho manual não tem nenhum
fundamento espaço-temporal, mas que sua natureza é atemporal e, portanto,
assim também a ordem burguesa irá manter sua normatividade
(Normgerechtigkeit) até o final dos tempos.
b. Solipsismo prático
9 O Capital, MEW (Dietz, v.23-25), I vol., p.102. - Poderia parecer, com isso, que o conceito
normativo da propriedade (em contraposição à posse) fosse um a priori ideal da abstração da
troca, em contradição com nossa concepção materialista sobre ele. Efetivamente, porém, a
relação de sucessão é a contrária. O conceito de propriedade é ele mesmo resultado da
abstração da troca. A compulsão a abster-se de ações de uso com objetos destinados à troca e
na troca é um simples dado da experiência: se ele for ignorado, a relação de troca cessa. Mas
do fato de que a experiência contém uma negação deriva-se uma proibição de uso, que se
estende a todas as pessoas envolvidas e ganha caráter normativo geral para todos os casos
idênticos, mesmo se a troca permanecer um caso isolado individual. É primeiro pela subsunção
sob a troca que dos fatos de posse provêm normas de propriedade. Esta sequência da troca
prende-se à sua natureza como relação inter-humana. Onde ela começou, ou seja, lá "onde as
comunidades acabam, no ponto de seu contato com comunidades estranhas" (MEW, 23, p.102),
tornou-se necessário que tais comunidades se relacionassem entre si não com na natureza, ou
seja, não se matassem ou roubassem, como fariam com animais, e sim que falassem umas com
as outras - por palavras ou sinais -, portanto reconhecendo-se reciprocamente como homens.
Também isso é uma questão de fato, mas dela resultam normas, pois ela rompe a relação natural
e coloca em seu lugar uma relação social entre grupos, que já tinham se tornado, por seu turno,
formações sociais. (O curso do último processo encontra-se exposto na convincente
reconstrução de George Thompson, no cap.1 de seu livro Die ersten Philosophen - Os primeiros
filósofos - 1961). Marx expressa exatamente o mesmo, quando diz: "Esta relação de direito, cuja
33
mercadorias. Sobre este terreno, todo uso de mercadoria, seja para produção ou
consumo, processa-se exclusivamente no campo privado de seus possuidores.
A socialização, ao contrário, considerada formalmente por si, apenas ocorre na
troca das mercadorias feita pelos proprietários, portanto em uma ação que se
processa em estrita separação temporal do uso, sem misturar-se com ele. Desse
modo, o formalismo da abstração da troca de mercadorias, e da síntese social a
que serve, deve ser encontrado no espaço precisamente delimitado das relações
de troca.
psicológicos dos homens, cuja vida ela domina, mecanismos tais que lhes parecem depois sua
natureza humana inata. Correspondentemente a isso, muito frequentemente os dominados agem
em lugar ou em proveito dos dominantes. Eles pensam agir no próprio interesse, embora
obedeçam puramente às leis da relação de troca. Não há lugar aqui para nos ocuparmos
especificamente com a superestrutura do capitalismo tardio. Mas seria certamente fecundo para
uma psicologia social materialista ampliar no futuro as teorias de W. Reich, Fromm, Marcuse,
etc. com a conexão fundamental entre abstração da troca e abstração do pensamento, para
fortalecer sua base materialista.
35
servem de base. Só no afastamento do mercado a estrutura da circulação de
mercadorias pode chegar à reflexão abstrata, mas a sistematização que ela
então experimenta torna impossível conhecer sua origem histórica.
Evidentemente, é o ponto que faz com que uma pretensão de ambas as partes
à propriedade de uma e mesma coisa leve à contradição privada. O princípio:
meu - logo não teu; teu - logo não meu, pressupõe uma unidade com respeito à
qual o "meu" e o "teu" tornam-se, então, reciprocamente privativos. Trata-se de
definir corretamente essa unidade, pois ela é, evidentemente, a forma de
trocabilidade das mercadorias e a primeira condição fundamental para uma
síntese social por meio da perda privada de propriedade entre os possuidores
de mercadorias.
A unidade das mercadorias aqui em questão não é, por certo, sua indivisibilidade
material. Para a essência da coisa, é indiferente que se troque uma tonelada ou
cinquenta quilos de ferro. O material poderia ser reduzido a seus átomos
indivisíveis e o problema persistiria do mesmo modo, caso eles fossem levados
à troca. Não se trata também da singularidade ou insubstituibilidade das
mercadorias, pois em geral elas são artigos de massa e considera-se que um
exemplar possa valer pelo outro. Mas qualquer que seja o exemplar individual,
ele precisa ser a cada vez exatamente aquele que está para ser trocado e que
por isso possui a unidade que impede que pertença, ao mesmo tempo, a um e
36
outro possuidor, mas apenas a um ou outro possuidor separadamente. Se
olharmos agora bem de perto esta unidade que aqui então se revela, veremos
que não há absolutamente nenhuma unidade das coisas-mercadoria em sua
natureza corporal, sua matéria ou qualidades. A unidade que impede uma
mercadoria de pertencer simultaneamente a dois possuidores separadamente,
fazendo com que ela precise ser "trocada" entre eles por outra mercadoria, é na
verdade a unidade de sua simples existência, o fato mesmo de que cada
mercadoria tem uma simples existência indivisível e única. É por causa da
unicidade de sua simples existência que uma coisa não pode pertencer ao
mesmo tempo a distintos possuidores privados, pois a apropriação privada tem
o sentido de tornar a coisa parte da simples existência do interessado. 13
Chegamos com isso ao resultado de que a forma de trocabilidade das
mercadorias é a unicidade de sua simples existência.
Podemos abordar a questão ainda sob um outro aspecto. Já foi mostrado que a
troca como forma de relacionamento necessita do solipsismo prático daqueles
que a fazem. Mas enquanto, deste modo, cada um opõe sua simples existência,
com todo o mundo de seus dados (ou apercepções) privados, a todos os outros
e seus respectivos mundos existenciais (Daseinwelt), a cada vez que eles se
encontram para trocar é como se o mundo, em sua efetividade (Wirklichkeit)
entre eles, fosse apenas um. A que se reduz, porém, essa unidade do mundo
em sua efetividade entre os que trocam? Tudo o que é perceptível no mundo e
nas coisas é dividido monadologicamente entre eles na forma de dados privados.
Portanto, o mundo entre eles só tem unidade se prescindir de suas qualidades.
E os possuidores não trocam as apercepções das coisas, mas as coisas
mesmas, enquanto as apercepções continuam a ser individuais. Assim, as
mercadorias são movimentadas entre os proprietários meramente segundo a
pura simples existência, sem levar em conta nada daquilo que forma as
apercepções privadas. O mundo entre eles é um apenas em sua efetividade para
os proprietários participantes, enquanto o modo de participação exerce a
negação subjetiva da unidade do mundo e a obrigação da troca é cumprida
apenas por coação externa dos fatos objetivos. A própria troca cuida da cegueira
sobre sua forma sócio-sintética de relação. O solipsismo prático permite a troca,
13 De fato, no grego, por exemplo, a palavra "ousia" tem o sentido de simples existência e de
propriedade.
37
mas impede que os participantes percebam a socialização que daí decorre. O
que, porém, constitui a unidade do mundo, em oposição ao solipsismo daqueles
que efetuam a troca? Mais uma vez, não é a indivisibilidade material do mundo,
de suas partes ou das coisas que estão nele, tampouco a unicidade e
insubstituibilidade essencial dos exemplares individuais14. Ao contrário, é
somente a unicidade da simples existência de cada parte que faz da unidade de
todas as partes um mundo, por mais que se queira estender os limites do
"mundo". O resultado é, portanto, o mesmo que antes: a forma de trocabilidade
das mercadorias é a unicidade da simples existência de cada uma, tomando-se
precisamente essa unicidade da simples existência in abstracto, ou seja,
"subtraindo" tudo o que pertence à apercepção das coisas-mercadoria e que
entra no solipsismo prático dos atores da troca.
Resta saber o que essa natureza da trocabilidade das mercadorias leva para a
socialização pela troca: ela lhe confere a sua unidade. Quando a circulação de
mercadorias atinge o grau de desenvolvimento no qual se torna o nexus rerum
decisivo, tem de ocorrer a "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro";
esta duplicação (que ocorreu pela primeira vez na história por volta de 700 aC
nas margens jônicas do mundo grego) leva possivelmente também, em sentido
contrário, a que a troca de mercadorias bem cedo se torne um meio determinante
de socialização. O dinheiro é então a coisa portadora da forma de trocabilidade
das mercadorias, agindo como forma geral de equivalente e de trocabilidade. A
essência do mesmo, como unicidade da simples existência da mercadoria, faz
com que o dinheiro, de acordo com sua essência funcional, seja uno, em outras
palavras, faz com que só possa haver um dinheiro.15 Naturalmente, existem
diversas moedas; mas enquanto cada uma delas exerça efetivamente esta
função de dinheiro em seu âmbito de circulação, vale o postulado de que possa
ser calculada reciprocamente, entre todas elas, uma cotação precisa de câmbio,
16 "Em contradição direta à rude objetividade sensível dos corpos das mercadorias, nenhum
átomo de matéria natural entre em sua objetividade de valor."(Ibid., p.62) Mais adiante: "O
39
d. Quantidade abstrata
movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado e não deixa atrás de si nenhum
rastro... Daí a magia do dinheiro. A atitude meramente atomística dos homens em seu processo
social de produção, e portanto a feição material de suas relações de produção, independente de
seus controles e de seu agir individual consciente, aparece primeiro no fato de que os produtos
de seu trabalho em geral assumem a forma de mercadorias. O enigma do fetiche do dinheiro
tornou-se portanto somente o enigma do fetiche da mercadoria, que se torna visível e deslumbra
os olhos."(Ibid., p.107-108).
40
conhecidas por uma anônima, que nada mais é do que simples quantidade,
despida de qualquer tipo de qualidade. Essa quantidade em si ou in abstracto
nasce do igualamento na troca e é, como ele, de natureza relacional, prendendo-
se também à execução do ato de troca. Se o processo de troca não chega a
efetivar-se, é por que entre as duas quantidades determinadas de mercadorias
houve um demais ou maior (>) ou um de menos ou menor (<), em vez da
necessária igualdade (=). É esta quantidade absoluta, totalmente "desligada" da
qualidade, que está, como determinação formal, na base do puro pensamento
matemático. De acordo com isso, seria de se esperar que o surgimento do
pensamento matemático puro, em sua lógica particular, acontecesse
historicamente no estágio determinado de desenvolvimento em que a troca de
mercadorias se torna a forma básica de socialização, em um momento que fosse
conhecido pela introdução e difusão de dinheiro monetarizado. Pitágoras, que
deu ao modo matemático de pensar sua primeira cunhagem, foi provavelmente,
de acordo com a hipótese hoje dominante entre os pesquisadores da
Antiguidade, um dos responsáveis pela introdução do sistema monetário em
Crotona. Contudo, a questão de como os elementos formais da abstração da
troca e da respectiva abstração-mercadoria entram na consciência não pertence
ainda a este ponto, pois temos de nos ocupar antes apenas com a análise da
abstração real.
e. O conceito de valor
17 Ibid., p.56.
41
valor.18 Isso dá ao conceito de valor a aparência de uma essência puramente
quantitativa contida nas mercadorias. Mas essa suposta essência não é nada
mais nada menos do que uma relação socialmente necessária, nascida do agir
humano, na qual a relação social dos homens se "reifica", ou seja, torna-se uma
relação entre suas mercadorias. As mercadorias ficam carregadas de uma
natureza social, que por si mesma nada tem a ver com elas enquanto coisas.
Daí o "caráter fetichista" que recai sobre as mercadorias.
Embora a comparação desta análise formal com a análise das mercadorias feita
por Marx deva ser apresentada minuciosamente em um anexo, é, contudo,
inevitável aqui uma observação delimitadora: nós não podemos reconhecer
nenhuma relação inerente entre forma-valor da mercadoria e trabalho. Não
estamos, com isso, em discrepância com Marx. A forma-valor encobre e renega
a relação quantitativa entre mercadoria e trabalho através da "aparência
objetivada" do valor da mercadoria. "Não está escrito na testa do valor o que ele
é." A abstração da troca é a trama que tece a aparência, pois ela surge apenas
porque produção e consumo não têm lugar na troca. O trabalho que produz a
mercadoria e o ato de usá-la são as principais mudanças físicas das quais a
troca precisa ser isolada para que possa ocorrer. A própria troca de mercadorias
não é nada senão uma relação mútua de apropriação. O fato decisivo na
produção de mercadorias é que, em seu contexto, a socialização baseia-se num
sistema de apropriação formalizado e generalizado como relação de troca, e não
no caráter social do processo de trabalho, nem na maior ou menor coletividade
do modo de produção, como mais ou menos ocorria no comunismo primitivo. Em
sua base está a cisão da produção originariamente coletiva em um sistema de
produção individual e especializada, sob a divisão do trabalho. "Somente
produtos de trabalhos privados autônomos e independentes uns dos outros
defrontam-se como mercadorias."19 Naturalmente, como resultado final, o
mecanismo de apropriação privada na forma de troca precisa conectar os
trabalhos privados independentes em uma rede mais ou menos regulada pelas
necessidades sociais, para que a sociedade produtora de mercadorias possa
sobreviver. "E a forma dessa distribuição proporcional do trabalho, em uma
42
sociedade na qual a rede de conexão do trabalho social se faz pela troca privada
dos produtos individuais do trabalho, é exatamente o valor de troca desses
produtos."20 Todos os conceitos dominantes numa sociedade produtora de
mercadorias para dirigir a ação dos indivíduos surgem do mecanismo de troca e
da aparência objetivada, os quais tornam possível a sociedade não-consciente.
Assim como esse mecanismo se sustenta somente sobre os atos de apropriação
na troca privada de produtos do trabalho sob a forma de valor, também aqueles
conceitos são cunhados pelas relações de apropriação, que lhes emprestam
significação social. A relação de tais conceitos com a substância real da
sociedade, isto é, o trabalho - que faz existir tudo aquilo que será trocado -, é em
geral apenas uma relação indireta. Somente a crítica genético-formal desses
conceitos encobridores pode mostrar claramente sua relação com o trabalho.
Devido à reciprocidade na troca, a apropriação toma a forma de um processo
auto-regulado, que se mede a si mesmo, o que a torna capaz de ser a portadora
da síntese social - diversamente da apropriação tributária unilateral das "relações
diretas de domínio e servidão", próprias das antigas civilizações orientais e do
Feudalismo.21 Por outro lado, a troca não produz seus objetos, mas pressupõe
a produção e o trabalho. Em geral, não se pode trocar mais do que foi produzido.
A soma de todos os preços (preços de apropriação) precisa ser essencialmente
igual à soma de todos os valores (valores-trabalho); e mesmo nessa equação
global, a relação entre apropriação e produção pertence à necessidade causal,
que atua cegamente, da economia. Mas a forma-valor da mercadoria, isto é, a
abstração-mercadoria, não está em nenhuma conexão inerente com o trabalho
necessário para produção das mercadorias. Esta relação é caracterizada não
pela conexão, mas pela separação. Dito de outro modo, a abstração-mercadoria
é abstração da troca, não abstração do trabalho. A abstração do trabalho, que
de fato ocorre na produção capitalista de mercadorias, tem seu lugar no processo
de produção, não no processo de troca, como veremos adiante (na parte 3 deste
livro).
f. Substância e acidente
22 Este efeito à distância da línguagem das mercadorias permitiria muito bem falar de uma
socialização funcional.
45
verdadeiramente verificável, são aqui apenas fatos do pensamento. Não é difícil
reconhecer nessa dupla natureza da mercadoria a relação entre substância e
acidente. Mesmo se num determinado estágio de desenvolvimento as duas
determinações se encontram, por assim dizer, corporalmente, por meio da
"duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro", a mercadoria continua
com sua dupla natureza; apenas, agora, a substancialidade não-qualitativa
constante da mercadoria espelha-se, fora dela, na materialidade não-descritiva
do dinheiro. Como não existe matéria não-descritiva na natureza, o ouro, a prata,
o cobre ou um simples papel têm de assumir suas funções.
g. Atomicidade
h. Movimento abstrato
46
As outras fases e partes da abstração, analisada antes, estão em sua base. Com
a eliminação de qualquer ato de uso, mesmo o espaço e o tempo se tornam,
também, abstratos. Similarmente às mercadorias em sua determinação como
"substância", eles perdem qualquer resíduo de uma determinada localização
separada de outra, qualquer separabilidade de um ponto no tempo em relação
aos outros. Eles se tornam não-históricos, portanto determinações
historicamente atemporais de tempo totalmente abstrato e de espaço totalmente
abstrato. O próprio processo do movimento é atingido pela mesma
abstratificação. Ele se torna o mínimo de tudo o que ainda apresenta algum
processo material, de todo acontecimento determinável no tempo e no espaço.
Qualquer outro processo e acontecimento tem de deixar-se reduzir em última
instância, de um ou outro modo, a este esquema puro do movimento, como
formas "compostas" de movimento, e todos os processos medem-se
correspondentemente como processos puramente materiais no tempo e no
espaço.23
23 "O movimento é o modo existência da matéria. Nunca e em nenhum lugar houve matéria sem
movimento, nem pode haver. Movimento no universo, movimento mecânico de pequenas
massas sobre os corpos celestes individuais, oscilações moleculares como calor ou como
correntes elétrica ou magnética, cisão ou composição química, vida orgânica - cada átomo de
matéria do mundo encontra-se em cada momento dado numa ou noutra forma de movimentação
ou em várias simultâneas."(Friedrich Engels, Anti-Dühring, Berlin, Dietz Verlag, p.70)
"A teoria de que o mundo físico consiste só de matéria em movimento foi a base das teorias
aceitas do som, calor, luz, e eletricidade."(Bertrand Russell, A history of Western philosophy,
London, 1946, p.630)
É algo notável que ainda Galileu considere o movimento abstrato como um conceito puramente
matemático. Toda a tradicional separação entre conceitos puros e empíricos perde sua base e
deixa lugar para uma outra, quando a conclusão do conhecimento teorético da natureza e seu
método se tornam sujeitos à autonomia original da "razão pura". Em seu lugar entra a distinção
entre as abstrações implicadas (dito em poucas palavras) no valor de troca e as formas de
conceitualização e representação pertencentes ao valor de uso.
47
Por outro lado, a identidade existencial das mercadorias é, na abstração de sua
forma de trocabilidade, uma determinação relacional, originariamente inter-
humana, na qual para cada ponto dado no espaço em um dado momento, a
simples existência e a medida do valor das mercadorias são fixadas, mantidas e
verificadas em relação a seu equivalente, na exclusão recíproca de propriedade
de seus possuidores. Com relação a este caráter socialmente relacional de sua
forma de trocabilidade e determinação do valor, o movimento das mercadorias
no processo de troca tanto se decompõe em momentos discretos, como, por
outro lado, tem de cumprir a condição de continuidade. Esta contraditoriedade
surge da origem social das abstrações das coisas, correspondente, em sentido
contrário, à reificação das relações sociais. Ela encontrou sua expressão, entre
os antigos, nos paradoxos de Zenão e, modernamente, nas análises do
movimento pelo cálculo.24
i. Causalidade estrita
49
A causalidade, mais exatamente sua determinação formal como causalidade
estrita, tem um caráter de exceção entre as categorias aqui em consideração.
Ela não é parte da abstração da troca, mas uma consequência, corolário dela. A
troca não admite nenhuma transformação material dos objetos de troca, seja ou
não analisada de acordo com sua causalidade adequada. A causalidade estrita
não exerce nenhuma função de síntese social. Ela só entrou em consideração
para evitar que fosse criticada sua omissão entre as categorias do "entendimento
puro". De fato, o pensamento causal nunca é imediatamente empregado nas
ciências matematizadas da natureza, mas antes através de desvios e mediado
pela verificação experimental de hipóteses do movimento. O puro esquema de
movimento é a forma de abstração propriamente portadora, gerada através da
troca de mercadorias.
50
apenas "humano", porque a segunda natureza é de origem humana, distinta da
natureza e em contradição com esta. E, como fundamento da autoalienação
(Selbstemtfremdung) humana - por encontrar-se integralmente sob as formas da
apropriação dos produtos do trabalho privado -, a segunda natureza está
separada do trabalho, que, no entanto, a criou.
Sob a expressão "segunda natureza" reuno tanto sua realidade espaço temporal
sócio-sintética como a forma ideal de uma capacidade de conhecimento por meio
de conceitos abstratos. Assim, a determinação formal da segunda natureza é, e
só pode ser, uma única: exatamente sua duplicidade e a conexão entre as duas
partes na unidade dessa determinação formal. Mas para nos aproximarmos da
transposição ou transformação da abstração real em abstração do pensamento
e suas dificuldades, gostaríamos antes de nos assegurar de sua identidade
essencialmente formal; ou, melhor dizendo, será dada ao leitor a oportunidade
de se convencer dessa identidade formal com o exemplo de um dos elementos
formais da abstração real que está contido no dinheiro. Apelamos ao leitor que
não possua nenhuma formação filosófica que se coloque na situação histórica
dos primórdios da cunhagem de moedas gregas, na Jônia, onde também o
pensamento filosófico pela primeira vez tomou forma. Naturalmente, esse
nascimento da filosofia não ocorreu sem um enorme esforço mental, que
precisou ter em sua base uma motivação muito forte, talvez mesmo coercitiva.
Que tipo de motivação foi esse, não podemos hoje saber, mas em todo caso
podemos supor. Acredito ser evidente que o dinheiro, precisamente em forma de
moeda, desempenhou, nessa transformação, um papel mediador imprescindível,
pois somente no dinheiro em forma de moeda a abstração real pôde
efetivamente aparecer. É certo, por outro lado, que o mero uso prático do
dinheiro, com o objetivo imediato de servir como meio de troca e pagamento nas
trocas mercantis simples, não exigia uma reflexão conceitual sobre sua natureza
abstrata. Não devemos nos preocupar, por agora, em saber que outra motivação
levou à formação de conceitos. Tenha sido qual for, nós consideramos tal
motivação como dada, e averiguamos primeiro a natureza do ato de consciência
em que pôde se consumar a transposição da abstração real para a forma
conceitual. Somente quando a natureza do próprio fenômeno estiver mais ou
menos esclarecida, poderemos falar dos motivos a serem pesquisados. Só então
poderemos também avaliar a relevância da averiguação desses motivos para a
51
tese aqui em debate, qual seja, a tese de que a formação dos conceitos da
filosofia grega, e em geral a formação dos conceitos de todo pensamento
racional, tem sua raiz formal e histórica na abstração real da síntese social
mediada pela troca de mercadorias, ou seja, na segunda natureza.
Se o dinheiro, no curso de sua história, foi feito às vezes de ouro, outras de prata
ou cobre ou então de alguma liga metálica, e hoje consiste apenas de uma
promessa, em papel, de uma quantidade garantida de ouro, ele pode ser visto
somente como coisa arbitrária oportunamente estipulada. Só esta multiplicidade
de materiais já indica que nenhum deles pode ser considerado como
essencialmente adequado ao dinheiro. A verdade é que nenhum item do
"catálogo das mercadorias ordinárias [...], que a seu tempo desempenharam o
papel de equivalente das mercadorias" (Marx, O Capital, L.I, cap.1) faz justiça
àquela determinação que torna a matéria-dinheiro específica entre todas as
outras: ela não pode ser sujeita a nenhuma alteração física no tempo. Esse
tempo inclui toda a duração na qual a moeda em questão circula como dinheiro
e mesmo o período em que, subtraída à circulação, pode servir ao
entesouramento. A inadequação do material monetário é, de fato, reconhecida
pelos respectivos órgãos emissores de dinheiro na promessa de substituir
gratuitamente qualquer peça monetária, desgastada pelo uso normal, por outra
de igual valor. O material de que o dinheiro teria de ser feito não pode existir,
portanto, em toda a natureza. Ele não pertence à natureza primeira, primária ou
original; ele carece, portanto, também de qualquer possível caráter sensível.
Assim, ele deveria ser qualificado como mero conceito, como puro conceito não-
empírico. Mas daí concluir que o material monetário existe só no pensamento é
tão absurdo como procurar um modelo deste material na natureza. Dinheiro
52
mental não pode existir. Nem mesmo um Till Eulenspiegel conseguiria comprar
alguma coisa com uma moeda que não tivesse nenhuma realidade material. Sua
realidade tem de ser igual à das mercadorias que deve comprar, precisa possuir
uma identidade espaço temporal, objetiva, de modo que uma moeda que eu
possua não possa estar ao mesmo tempo nas mãos de outra pessoa. Mas a
realidade material do meu dinheiro tampouco pode ser uma realidade apenas
para mim, seu possuidor, não pode ser uma realidade a Berkeley ou a Hume, ou
de qualquer outro idealista subjetivo. Se faço uso do meu dinheiro para comprar
uma mercadoria de alguém, então esse dinheiro tem de ter, para ele, a mesma
realidade que tem para mim. Também não se trata de uma realidade meramente
para nós dois, mas ipso facto, uma realidade em geral para todos os que tomam
parte na circulação social desse dinheiro, uma realidade, portanto, com o mais
alto grau pensável de objetividade. E, no entanto, é impossível descobrir, em
todo o mundo sensível, uma única representação empírica para esse material,
de realidade indubitável, com o qual uma moeda teria, a rigor, de ser feita. Os
materiais com os quais se satisfaz, na praxis, a cunhagem de moedas e que em
geral são completamente adequados às finalidades pragmáticas da economia
social, constituem, em vista da efetiva natureza formal da função de dinheiro,
meros rebotalhos da realidade do valor de uso, dos quais, exatamente, essa
natureza formal faz abstração. Mas esta natureza formal ou "objetivação formal
do valor" das mercadorias nunca encontra sua própria apresentação, como
sublinhou Marx, no mundo das mercadorias, pois ali ela pode apenas espelhar-
se no valor de uso das outras mercadorias, com as quais deve equivaler na troca.
Isso é totalmente suficiente para as exigências da troca de mercadorias como
campo de ação prática dos homens, pois evidentemente não pode existir
nenhum objeto de ação prática que não seja feito de matéria natural real. Mas
isso não elimina ainda a distinção em relação àquela objetivação do valor, da
qual o dinheiro assume a função de portador e na qual não entra "nenhum átomo
de matéria natural". Evidentemente, uma representação genuína dessa matéria
não-material, ou mesmo não empírica, da qual o dinheiro em forma de moeda
virtualmente teria de ser feito, só pode existir fora ou além do campo total da
matéria natural e da empiria sensível ou, em outras palavras, somente na forma
de um conceito não-empírico ou "puro". E isso não vale apenas para a reposição
idêntica da matéria da moeda, mas também para a apresentação adequada de
53
todos os componentes existentes na abstração real, que formam a parte
essencial daquilo que Marx denominou "objetivação do valor". Deve estar claro
que não há apenas uma, mas duas matérias do dinheiro a serem distinguidas.
Em primeiro plano está uma função econômica, a única que fará sentido para
todos. Em segundo plano, está o dinheiro como portador potencial da função de
síntese da sociedade mercantil, graças à qual ele pode ser chamado de nexus
rerum da sociedade. As duas naturezas do dinheiro se diferenciam por suas
materialidades opostas. A função econômica exige o uso de materiais preciosos,
como ouro e prata, pelos quais se definem uniformemente os preços das
mercadorias. A função sócio-sintética do dinheiro, ao contrário, é caracterizada
pela imaterialidade abstrata de seu substrato, já que a substancialidade do ato
de troca tem de ser, durante o tempo em que decorre a transação, totalmente
separado de qualquer praxis de uso material das mercadorias, para que a troca
seja possível. Com a emissão do dinheiro em forma de moeda - e eu penso agora
na época da administração monetária clássica -, esta flagrante contrariedade
entre as materialidades das duas naturezas do dinheiro leva a uma contradição
diretamente palpável. A autoridade emitente define o metal e o peso necessário
para cada valor de moeda e a vincula a uma declaração garantindo a substituição
gratuita, por outra de igual valor, de qualquer moeda danificada durante a
circulação. O que isso significa? Significa que o dinheiro deveria ser feito de um
material não desgastável, com uma durabilidade quantitativa intemporal. Tal
material, porém, não existe em toda a natureza. Comparado com as matérias
naturais, ele se mostra como pura imaterialidade abstrata. Esta imaterialidade
não é absolutamente ideal, mas possui a espaço-temporalidade das ações
humanas que efetuam bilhões de vezes a circulação de mercadorias e dinheiro
na sociedade. Mas qual é agora o passo que leva da abstração real imaterial
para a abstração do pensamento?
25 Bem menos irrefletidos foram os autores do grande roubo postal na Inglaterra nos anos
sessenta, no qual foram apanhadas notas usadas de esterlinas, destinadas à destruição em
Londres, no valor nominal de 20 milhões, para colocá-las de novo em circulação. Um roubo
pesado de vinte milhões, que não tornou a autoridade monetária estatal mais pobre em um penny
54
mesmo desinteresse por parte dos gregos na fase constituidora e inicial do
dinheiro. Ao contrário, podemos especular com bastante segurança que os
gregos dos séculos VII e VI, na Jônia, em alguns estados marítimos gregos e no
sul da Itália, onde o dinheiro surgiu, observaram essa rara instituição humana,
tão obscura e estranha, em suas nuances mais sutis. Não duvido nem mesmo
que tenham percebido também a substancialidade imaterial da natureza sintética
do dinheiro. Ainda mais que parece provável que Pitágoras, em Taranto, e
Parmênides, em Eléia, foram eles mesmos responsáveis pela emissão de
moedas. Por menos ideal que seja esta imaterialidade, sua observação, no
entanto, só é possível mentalmente e sua definição precisa só se dá pelo
pensamento conceitual. Naturalmente, isso não vale apenas para a infinitude
temporal geral dessa imaterialidade. Estende-se também para os elementos de
conteúdo hauridos da fisicalidade do ato de troca.
É importante sublinhar aqui que nem Parmênides nem qualquer outro dos
fundadores da filosofia grega clássica atribui a si mesmo a origem das
abstrações que eles exprimem conceitualmente, no sentido de que ela teria sido
construída subindo da percepção múltipla dada até graus mais elevados de
generalidade. Nenhum deles legitima seus conceitos fundamentais por uma
sequer. Quanta irreflexão, porém, havia em matéria de dinheiro na Grécia antiga e na Jônia,
quando ali ou na vizinha Lídia por volta de 630 a.C. ocorreu a primeira cunhagem de moedas?
55
representação de um tal processo constitutivo. As abstrações que servem de
base aos conceitos são totalmente de outro molde e encontram-se prontas sem
qualquer dedução. Elas ocorreram em outro lugar e por caminhos diversos aos
do pensamento. Assim, Parmênides, por exemplo, descreve, no Proêmio
alegórico que oferece aos leitores, como foi conduzido no carro das filhas de
Helios através dos umbrais do dia e da noite, até a morada de Dike, a deusa do
direito, e recebeu o conceito do único Real, com uma advertência explícita:
"Somente com a razão tu tens de ponderar este ensinamento muitas vezes
provado, que irei te dizer" 26. Não sendo obra de seu pensamento, o conceito de
ò ó é, não obstante, ponto de partida de um pensamento fundamentado em
conclusões da razão. O fundamento é a aptidão do pensamento conceitual para
a dialética da verdade e inverdade de acordo com critérios lógicos internos de
necessidade ou contraditoriedade do pensamento. Parmênides argumenta: "O
pensamento e aquilo sobre o que é o pensamento são o mesmo. Pois tu não
encontras o Pensar sem o Ser, no qual ele se expressa; pois nada é e nada será
fora do pensamento." "Este é o pensamento principal", acrescenta Hegel. De
fato, Hegel encontra em Parmênides a fundamentação de seu próprio
ontologismo conceitual.
26 Sigo aqui a tradução de Hegel nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vo.I,
Leipzig, Reclam jun., 1971, p.387ss. ("Nur mit der Vernunft mut du diese vielgeprüfte Lehre
erwägen, die ich dir sagen werde").
56
“O conceito exato de natureza enraíza-se no pensamento mecanicista e é
alcançável apenas com base nessa idéia. Mesmo que a explicação da natureza
busque, em seus desenvolvimentos posteriores, libertar-se desse esquema
inicial e adotar outro mais geral, ainda assim o movimento e suas leis
permanecerão o verdadeiro problema fundamental, no qual o conhecimento
alcança clareza sobre si mesmo e sobre sua tarefa. A efetividade (Wirklichkeit)
é completamente conhecida ao resolver-se num sistema de movimentos... Em
sentido científico geral, movimento não é outra coisa senão uma relação
determinada, envolvendo espaço e tempo. Como membros dessa relação
fundamental, no entanto, espaço e tempo não são mais pressupostos em suas
propriedades psicológicas e ‘fenomênicas’ imediatas, mas apenas em suas
determinações matemáticas rigorosas... Isto exige como situação fundamental o
espaço homogêneo e contínuo da pura geometria... Assim também o próprio
movimento é introduzido desde o início nesse círculo de um condicionamento
puramente conceitual. Só aparentemente ele forma um fato direto da percepção,
o fato fundamental mesmo que toda observação externa primeiramente nos
oferece... Mas este momento sozinho não basta de maneira nenhuma para
fundamentar o conceito rigoroso de movimento, necessário para a mecânica...
Esta transformação matemática, que o físico pressupõe como efetuada, é na
verdade o próprio problema original." (Ernst Cassirer, Substanzbegriff und
Funktionsbegriff, Berlin, 1910, p.155-158; mais adiante terei oportunidade para
outras citações dessa obra.)
58
Mas como se relacionam, agora, estas capacidades do entendimento dadas de
forma latente na ação de troca e a realidade econômica da troca de mercadorias,
ou seja, comercialmente, o valor de troca e o dinheiro? Os dois aspectos da troca
comunicam-se ou são estranhos uma ao outro? O valor de troca é parte da troca
de mercadorias, assim como o entendimento puro é parte da abstração da troca.
Ele é o que seu nome diz - troca=valor. Ele é a propriedade caracterizadora das
mercadorias, que se tornam objetos de uma ação de troca distinta das ações de
uso. Daí a invisibilidade do valor de troca, sua generalidade social e a dimensão
exclusivamente quantitativa que recebe. Sua identidade é a mesma tanto em um
ato de troca como em qualquer outro. Sua objetivação é o dinheiro. Por sua
abstração de toda diferença qualitativa de uso das mercadorias, o valor de troca
iguala sem distinção os dois lados da relação de troca, no que diz respeito a seus
objetos, suas ações e a seus dois atores. Com isso, o valor de troca postula a
equivalência dos objetos trocados. A troca é o lugar para o ditado "justo para um,
barato para o outro". A equivalência das mercadorias é posta como sinônimo de
sua trocabilidade.27 Para determinar a proporção da equivalência entre duas
mercadorias a serem trocadas, o valor de troca precisa diferenciar os diversos
tipos de mercadoria. Para isso é necessária a instituição do dinheiro. No dinheiro,
uma determinada mercadoria, os metais preciosos, coloca-se no mercado como
corporificação material geral e medida do valor de troca recíproco de todas as
mercadorias. Pela "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro", as
mercadorias, graças ao denominador comum de suas relações de troca com a
mercadoria dinheiro, medem-se pelo seu preço. O preço das mercadorias não é
mais apenas o valor de troca em geral, mas o valor mercantil da própria
mercadoria, que se mede conforme seus custos de produção ou, mais
precisamente, de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário para
sua produção. Graças à linguagem que as mercadorias assim adquirem, os
indivíduos que buscam seu sustento no mercado podem e têm de se comportar
adequadamente de acordo com as exigências da sociedade sintética, fazendo o
27 O mesmo encontra-se em Marx, e até como se fosse uma trivialidade (cf. MEW, 23, p.64; O
Capital, L.I, cap.1). E por que não, já que seus predecessores e contemporâneos defendiam o
mesmo? Mas poucos anos depois do aparecimento de O Capital, Livro I, surgiu a teoria subjetiva
do valor, a qual negava a equivalência da troca, pois interpretava a troca aqui segundo a lógica
da percepção (Vilfredo Pareto). Isto pode ser negado ou aceito, mas em qualquer caso não se
pode mais tratar a sinonimia mencionada como evidente. Daí meus esforços para sua
fundamentação.
59
balanço de seu orçamento e regulando seu negócio por entradas e saídas, sem
qualquer conhecimento do que está abaixo da superfície
Já foi sublinhado que a abstração da troca iguala os dois atores entre si. Que
seja rei ou mendigo, como atores da troca eles não podem ser outra coisa, nada
mais e nada menos, que os sujeitos de direito de suas transações. O caráter
abstrato de sua igualdade é a raiz do conceito jurídico de direito, mesmo que a
formulação do estado de direito civil tenha demorado mais entre os gregos do
que entre os romanos. Entre os gregos, ele se cristalizou primeiro em questões
de cidadania.
Acabo de trazer à luz a total separação interna e estranheza dos dois aspectos
da abstração de troca, do aspecto de fisicalidade do ato de troca e da perspectiva
da natureza, como dos aspectos de valor das mercadorias e rede de conexões
funcionais. Dessa incomunicabilidade brota a dicotomia entre natureza e
sociedade, bem como a dicotomia metodológica entre ciências da natureza e do
espírito. A liquidação dessa dicotomia é tanto mais necessária à medida que
60
Kant e Marx, que a deveriam ter conduzido, apenas endureceram e
aprofundaram a separação. Kant, por não ter levado sua análise das ciências
matemáticas da natureza até a análise da ciência real, sobretudo a economia.
Marx, por não ter estendido, em sentido contrário, a crítica da economia política
até as ciências naturais. Desse modo, o abismo entre ciências da natureza e
ciências do espírito se tornou, entre esses dois poderosos pensadores, ainda
mais profundo. Através de minha derivação das categorias puras do pensamento
a partir de processos e fatos espaço-temporais, esta dicotomia desaparece.
Sobre esta base deveria ser possível uma reconstrução pormenorizada da
história. Eu tratarei, especialmente, apenas da gênese da ciência natural na
Antiguidade e na Modernidade.
61
II Parte
Síntese social e produção
(No fundamental, restringimo-nos nesta parte, como aliás em geral neste texto,
ao ponto de vista do entendimento da história, sem entrar no tratamento
detalhado do mesmo.)
62
Na parte anterior, foi mostrado, com uma fundamentação minuciosa, que uma
síntese social por meio das formas de apropriação recíproca da troca de
mercadoria leva ao surgimento do trabalho intelectual em nítida separação do
trabalho manual. A unidade da síntese de tais formas sociais constitui a fundação
genético-formal direta de suas formas características de conhecimento e
pensamento. Não hesitamos em generalizar esse resultado e concluir daí que
em todas as formações sociais, sejam sociedades de apropriação ou de
produção, as formas de consciência socialmente necessárias são determinadas,
de modo dedutível, pelas funções sócio-sintéticas, base dessas formações. Por
meio de tal generalização, a investigação levada a cabo torna-se importantíssima
para os interesses socialistas e comunistas, hoje impelidos para sua realização.
Nesta parte, usaremos os novos conceitos e conclusões, que resultaram de um
tema específico, como categorias e pontos de vista para o entendimento geral
da história. O olhar sobre épocas passadas tornará o terreno mais firme e mais
amplo para a reflexão sobre o futuro, na parte seguinte.
66
A primeira pesquisa profunda sobre troca de dádivas foi desenvolvida por Marcel
Mauss no começo do século. Suas investigações de vinte anos resultaram, em
1924, na publicação em Paris de seu famoso Essai sur le don ou A dádiva: forma
e função da troca em sociedades arcaicas.30 Seu método é, como ele mesmo
diz, o da "comparação precisa", suficiente para proporcionar a descrição rigorosa
dos fenômenos em sua variedade estarrecedora; uma explicação histórica do
fenômeno da troca de dádivas enquanto tal não fazia parte de seus objetivos.
Contudo, sua análise descritiva foi uma realização de grande mérito, que lançou
em movimento fecundo a ambiciosa antropologia francesa. No entanto, sentimos
falta, na pesquisa de Mauss, de uma definição material daquilo que ele entendia
por sociedade arcaica. Portanto eu acrescento uma tal definição, como ela me
parece mais evidente: arcaicas devem ser consideradas as sociedades que não
possuem outros instrumentos e ferramentas para o trabalho do solo senão
aqueles da Idade da Pedra. Com tal aparelhamento não é possível nenhuma
produção isolada, nenhuma autossubsistência individual, e, portanto, tornam-se
necessários um modo de produção coletivo e uma propriedade comum de algum
tipo.
Uma pessoa que deixar sem qualquer retribuição uma dádiva que ela tenha
recebido, tratando-a, portanto, como se fosse sua propriedade pessoal e
definitiva, se colocaria em uma oposição insuportável contra sua comunidade e
provocaria seu banimento. Sem dúvida nenhuma, portanto, dentro de uma
A Idade do Bronze, que segue à Idade da Pedra, não traz ainda nenhuma
reviravolta essencial. O bronze é relativamente raro e precioso e está à
disposição apenas dos dominadores, para uso em armas e objetos de luxo. Os
produtores primários, ao contrário, ficam basicamente com seus instrumentos da
Idade da Pedra. Além disso, a construção de sistemas de irrigação nos grandes
vales fluviais do Nilo ao Hoangho proporciona aos dominadores na Idade do
Bronze um notável aumento na safra agrícola.
"O estudo da metalurgia primitiva do ferro revela que a produção de ferro fundido
e aço (aqui entendido no sentido de ferro fundido superficialmente carbonizado)
comportou a introdução de um complexo inteiramente diferente de técnicas e de
processos. O forjador da Idade do Bronze teve de reaprender seu ofício. As
novas técnicas envolviam a total purificação dos materiais ferrosos, novos
instrumentos e métodos para tratar a primeira separação produzida pela fusão
do minério, e o domínio dos processos de carburação, de apagar e de temperar,
os quais capacitavam o novo forjador a produzir aço a partir do ferro fundido.
Pois somente o novo aço era superior ao bronze e ligas similares - o ferro fundido
sozinho não teria produzido esta revolução técnica."33
33R.J.Forbes, "Metals and early science", Essays on the social history of science, ed. S.Lilley,
Copenhagen, Ejnar Munksgaard, Centaurus, 1953, v.3, p.25-26.
68
camponesa e do exercício independente dos ofícios" que, de acordo com uma
célebre nota de rodapé de Marx, formam "a base econômica das comunidades
clássicas em sua melhor época, após a dissolução da propriedade comunal de
origem asiática e antes de a escravidão, implacavelmente, tomar conta da
produção" (MEW, v.23, p.354, rodapé).
69
estatal, não mais a serviço de senhores teocráticos. Eles agem como heróis,
indivíduos independentes, com os quais seus povos e suas pátrias se
identificam, estimulando esta prática de apropriação autônoma da riqueza alheia.
Com isso, embora sua representação mitológica do mundo ainda seja
semelhante às das culturas da Idade do Bronze, os deuses deixam de ser a
ligação dos apropriadores com uma potência superior para se transformarem em
senhores do destino dos heróis. É a forma rudimentar e originária do comércio
privado de mercadorias, antes de alcançar as paridades ou disparidades da
forma dinheiro. Esses prenúncios de formas posteriores foram reconhecidos com
perspicácia por Horkheimer e Adorno em sua Dialética do esclarecimento.
Já "por volta do final da fase superior da barbárie, [...] pela compra e venda de
propriedade do solo, pelo avanço da divisão do trabalho entre agricultura e
artesanato, fabricação de navios e comércio, [...] o funcionamento regrado dos
órgãos da constituição gentílica [caiu] em tal desordem que já no tempo dos
heróis foi preciso remediá-la." Seguiu-se "a divisão de todo o povo, sem olhar
para tribo, fratria ou gens, em três classes: nobres, camponeses e artesãos. [...]
O domínio da nobreza cresceu mais e mais, até que pelo ano 600 a.C. tornou-
se insuportável. E o principal meio de opressão era exatamente o dinheiro, a
usura. A capital da nobreza era Atenas e seus arredores, onde o comércio
marítimo, acrescido da ocasional pirataria, a enriquecia e concentrava o dinheiro
71
em suas mãos. A partir daí, a economia monetária em desenvolvimento
penetrava como um ácido corrosivo no modo de vida tradicional das
comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição gentílica
é absolutamente incompatível com a economia monetária; a ruína dos pequenos
camponeses áticos coincidiu com o afrouxamento dos protetores laços gentílicos
que os envolviam. Os títulos de dívida e a penhora de bens (pois os atenienses
também já tinham inventado a hipoteca) não respeitavam gens nem fratrias. E a
antiga constituição gentílica não conhecia dinheiro, crédito ou dívidas fiduciárias.
Daí, o poder monetário da nobreza, em expansão sempre crescente, criou um
novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor,
consagrando a exploração dos pequenos camponeses pelos detentores do
dinheiro. Os campos estavam cheios de marcos de hipotecas. [...] Os que não
estavam marcados, na maior parte, não estavam porque já tinham sido tomados
pelos nobres usurários, no vencimento das hipotecas ou juros não pagos. [...] E
ainda mais. Se o valor do lote de terra não alcançasse o total da dívida, [...] então
os devedores tinham de vender seus filhos para o exterior como escravos. [...] O
surgimento da propriedade privada levou à troca entre indivíduos e à
transformação dos produtos em mercadorias. Aqui está o gérmen de toda a
revolução posterior. [...] Os atenienses tiveram de experimentar a rapidez com
que o produto domina o produtor após o surgimento do comércio entre indivíduos
e da transformação do produto em mercadoria. Com a produção de mercadorias,
veio o cultivo individual do solo, por conta própria, e logo a seguir a propriedade
individual da terra. Depois, veio o dinheiro, a mercadoria universal, pela qual
todas as outras poderiam ser trocadas; mas, ao inventar o dinheiro, os homens
não perceberam que estavam criando uma nova força social, a única força
universal, perante a qual toda a sociedade teve de se curvar. Esta força nova,
que surgiu de repente, sem o conhecimento nem a vontade de seus próprios
criadores, impô-se aos atenienses, com toda a brutalidade de sua juventude."
74
produtor está fora do nexo social, este torna-se incapaz de se reproduzir
economicamente e fica na eterna dependência de uma contingente, mas sempre
necessária, absorção de produtores. No plano da consciência, esse fato se
mostra na ausência de problemas de constituição na filosofia grega, em
contraste com a moderna. Acertadamente, George Thomsom observa que o
desenvolvimento da filosofia grega começa com o materialismo e tende em graus
crescentes ao idealismo, enquanto a filosofia moderna percorre a direção
oposta. O autodescobrimento do homem e sua alienação da natureza, que se
baseiam no nexo sintético da sociedade, começam já no século VI e, na Jônia,
ainda um século antes. Dessa experiência nasce a filosofia. Mas o caminho do
pensamento discursivo até sua completa autonomia conceitual leva 300 anos,
de Tales a Aristóteles, e se completa quando a base existencial da Polis já está
em questão, quando a Polis começa mesmo a se dissolver.
Para entender a ciência natural antiga e sua formação na Jônia por volta de 600
a.C., devemos ter diante dos olhos a separação entre sociedade e natureza
provocada pela troca de mercadorias, expressa na distinção entre natureza
puramente social e primeira natureza. A síntese social por meio da troca de
mercadorias exclui todo contato prático com a natureza, pois, como síntese entre
possuidores de mercadorias, funda-se apenas nas decisões tomadas por esses
possuidores em suas negociações e fechamentos de contratos de troca de
mercadorias. É flagrante o contraste com a praxis da sociedade arcaica que
dominou o passado com suas diversas formas (a última delas foi a civilização
micênica), na qual o nexo social entre indivíduos ainda interdependentes estava
unido ao contato com a natureza. Para a sociedade sintética - contrapomos as
75
expressões "natural" e "sintética" quase como borracha natural e sintética -, a
única via para a experiência e conhecimento dos vínculos naturais é o esforço
do pensamento, no qual são eliminadas todas as invenções mitológicas das
épocas anteriores em favor de um autêntico assegurar-se dos fatos, de uma
condução metodológica do entendimento e da reflexão, com base na abstração
conceitual nascida da abstração da troca.
Não devemos nos deter aqui sobre a filosofia grega como um todo, mas apenas
sobre alguns conceitos-chave que lhe serviram de base. Nesse ponto, temos em
vista a explicação genética da origem do conceito eleata de ser. Entre todos os
conceitos dos primeiros filósofos, este conceito de Parmênides é o mais conciso,
senão o mais rigoroso e persistente, que determinou amplamente os caminhos
e descaminhos do desenvolvimento da filosofia grega. Já vimos que
historicamente os puros conceitos filosóficos ganharam forma pela via do
dinheiro, e consideramos esta concepção como alternativa histórico-materialista
à tradição da história espiritual idealista, que pretende explicar a origem dos
conceitos pela via do pensamento. O caminho idealista leva apenas ao beco sem
saída do "milagre grego" e, além disso, uma história espiritual não dá conta da
contradição de que deve buscar a origem histórica de conceitos universais
historicamente atemporais.
Do qual não há nada a dizer, a não ser que ele é totalmente completo em si,
preenche o tempo e o espaço, é imutável, indivisível e imóvel, e que não pode
ser efêmero e tampouco originado. Esse conceito é uma evidente
unilateralização e uma absolutização da natureza do dinheiro nele identificável.
Com isso, são excluídas outras propriedades igualmente essenciais da
abstração real, como movimento e atomicidade, que depois outros pensadores
tiveram de levar em conta.
78
que a pura formação de conceitos. Tanto o poder de formação de conceitos
como seu papel de "sujeito" do conhecimento - "logos", "nous", "intellectus" -
tiveram exatamente aqui sua origem histórica. Terceiro, que essa identificação
apaga a origem dos conceitos e tudo o que se refere a essa origem. A
apresentação correta, identificadora, da abstração real produz a falsa
consciência. Pois a identificação no conceito transforma o caráter histórico da
abstração real em uma forma de pensamento historicamente atemporal e a-
espacial, já que seu caráter de abstração não-empírica a retira da esfera de
possibilidade de localização espacial ou temporal. Quarto, a função sócio-
sintética da abstração real se transforma na abstração lógico-sintética do
pensamento conceitual. Quinto, esta transformação separa de forma
intransponível o pensamento que assim surge de todo trabalho e ação corporal.
Sexto, ela empresta ao pensamento o conceito de verdade no sentido do
conceito filosófico de verdade do pensamento, como possivelmente pela
primeira vez e de forma mais clara com Parmênides e seu . A idéia de
verdade surge no campo da consciência necessariamente falsa. E é
precisamente nesse caráter da alienação necessariamente condicionada que o
modo de pensar lógico-conceitual surgido da produção mercantil desenvolvida
preenche, no pensamento, a função imprescindível da forma de socialização
universal.
Mas mesmo tendo a filosofia como céu espiritual, nossa sociedade permanece
cega para si mesma. Martin Heidegger deu expressão a este fato em seu modo
particular de ler , verdade, e seria bom que ele tivesse penetrado sob o
anunciado ocultamento da verdade, desacobertando-a, como ele diz, para
pesquisar suas causas. Mas ele não o fez, nem sequer tentou. Somente
entendeu de escravizar-se a um estilo peculiar de filosofar, à luz crepuscular da
.
79
b. O materialismo histórico é a anamnese da gênese
80
primeiros filósofos deram denominações muito imperfeitas para seus conceitos,
sem que com isso os próprios conceitos se perdessem. Os conceitos exigiam
formulações mais adequadas, que foram sendo obtidas com o tempo. Mas por
que esses universais atemporais se tornaram fundamento da filosofia? O que
lhes empresta o sentido filosófico?
"O que faz da filosofia ser filosofia", diz Adorno,34 "não é lidar com categorias
abstratas, mas tomá-las como problemas e assim lidar com elas - daí também a
contrariedade em forma de movimento. A abstração da troca não é problemática
em si, enquanto considerada meramente em suas condições e em sua estrutura.
As categorias são problemáticas por sua contradição com a consciência
"As categorias chegam individualizadas à consciência; cada uma tem sua esfera
absoluta e exclui todas as outras, mas possui, com todas, a mesma raiz comum
e não pode, assim, liquidar nenhuma, tendo de estabelecer mediações. Essas
mediações constituem um conteúdo essencial da filosofia."
"O valor é a unidade do múltiplo, das coisas sensivelmente distintas, dos valores
de uso. A categoria de valor é uma evasiva para as contradições ali existentes.
A insistência pela verdade significa união das categorias contraditórias entre si;
este postulado da verdade obriga a uma mediação entre as categorias, e esta
sim é a verdade. A categoria da verdade é a diferença do ser da troca e do
conceito de suas categorias."
35 A suposição do domínio de uma classe comercial, que teria surgido depois das guerras persas,
suposição que nós (Adorno e eu) chegamos a adotar, é fundamentalmente errada. Ela foi
82
"Mas o conflito das categorias entre si não se realiza em sua pureza, e sim no
objeto [na ciência, S.-R.]. A constituição das categorias, a reflexão da abstração
da troca como filosofia, exige a abstração (o esquecimento) de sua gênese
social, de qualquer gênese. O materialismo histórico é anamnese da gênese."
Fecho a citação com essa definição aguda e pertinente de Adorno, embora não
faltassem, nessas anotações de diálogo, muitas outras dignas de nota. Além de
tudo, elas indicam também em que medida Adorno tinha adotado então (1956)
minha teoria materialista do conhecimento e da ciência. - Não me cabe entrar no
conteúdo da filosofia grega, pois não tive nenhuma formação humanista e não
sei grego.
Florença era uma densa rede de mais de 250 fortificações desse tipo, recobertas
de torres, pois cada senhor feudal queria ter, no conflito com os outros, a
vantagem da maior altura - o óleo fervente só pode ser jogado de cima para
baixo. Em San Geminiano pode-se ver essas torres até hoje.
difundida por seguidores do marxismo, mas sem notar que ela contrariava rigorosamente o
melhor entendimento de Marx. Para tal sirvam só duas citações extraidas dos Grundrisse: aquela
já lembrada: "Nos antigos o valor de troca não era o nexus rerum" (Grundrisse, p.134) e outra
ainda mais enfática: "A igualdade e a liberdade neste desenvolvimento [da troca mercantil, S.-
R.] são exatamente o oposto da liberdade e igualdade dos antigos, que não tinham como base
o valor de troca desenvolvido, e mais ainda, foram à ruína com seu desenvolvimento" (ibid.,
p.156). - Na questão chave de como os grandes possuidores de escravos, por exemplo de
Atenas, enriqueceram-se com a posse de escravos, sem servir-se deles como negociantes
comerciais, eu me decido pela conjectura de Max Weber, segunda a qual eles alugavam seus
escravos (obtidos em guerra ou no mercado dos escravos em Delos) a metecos, que os usavam
no funcionamento de oficinas para produção de armas, cosméticos, cerâmica, móveis, sapatos,
etc., empregando até trinta ou mais em um mesmo estabelecimento. Os proprietários gregos de
escravos ficavam rendeiros e podiam gozar de seu ócio aristocrático como .
83
e proclamou o regime corporativo do "Primo Popolo", república do popolo. O
regime era encabeçado pelas corporações comerciais, e Max Weber sublinha
que em geral a vitória do popolo nas cidades italianas foi possível porque o
capital comercial comandava o popolo, isto é, as corporações de artesãos.
84
feudalismo levou a vastas porções da Europa e também à Itália no "Trecento" (o
século XIV). Para Florença, a crise começou em 1334, com o cancelamento da
dívida do rei inglês Eduardo III, o que levou as casas bancárias dos Bardi e dos
Peruzzi à beira da bancarrota e custou à cidade a riqueza com que ela pensava
levar adiante seu programa de construção.
87
contra o qual o Renascimento lutou com seu ímpeto revolucionário, começa
como uma ponte sobre o abismo medieval entre os sábios que falavam latim e o
analfabetismo do povo trabalhador. A unidade do trabalho manual e do trabalho
intelectual percorre toda a Idade Média e se esgota na passagem do
Renascimento à Modernidade. Nessa passagem, a unidade transforma-se em
novo abismo entre ciência e trabalho industrial assalariado. No desenvolvimento
renascentista da unidade de mão e cabeça, pode-se acompanhar em Florença,
de um mestre a outro, sucessivos degraus do progresso do pensamento
matemático, que se estendem pelo Quattrocento e Cinquecento.
88
Alberti, por sua vez, com essa atividade entre os artistas, ganhou a experiência
e os conhecimentos para seus escritos, redigidos em latim e em uma língua
toscana escrita, que ele mesmo teve de criar.
Este último foi a primeira elaboração filológica da língua vulgar, muito importante
para seu desenvolvimento como língua escrita e cultural. Mesmo assim, Alberti
perdeu a batalha em favor da língua vulgar e por seu reconhecimento, em
Florença, ao lado do latim.
89
Mas Alberti estava tão convencido das chances da língua vulgar que, em 1441,
ousou fazer um experimento para igualá-la à língua nobre latina. Cosimo I
partilhava dessa avaliação e planejou tornar o toscano uma língua culta. Por
intermédio de Piero de Medici, filho de Cosimo, ele anunciou um concurso de
leitura pública de poesias em língua vulgar sobre o tema "de amicitia", a realizar-
se no dia 22 de outubro de 1441, na catedral. O vencedor ganharia uma coroa
de prata, o que fez o concurso ser chamado de "certamen coronario".
90
Pelo menos em Florença, era exatamente isso que acontecia. E mais uma vez
revelou-se a grande utilidade da matemática para a formação intelectual e para
a arte desses mestres. Um claro exemplo é Piero della Francesca, que merece
ser citado antes de todos os artistas posteriores a Brunelleschi e Alberti. Luca
Pacioli o denomina "il monarca della pittura dei nostri tempi". Ele é o pintor que
mais se aproxima de Leonardo da Vinci, em profundidade e nível intelectual. Em
meados do Quattrocento, ele escreveu um tratado sobre perspectiva. Meu pai
ainda aprendeu perspectiva, na academia de arte de Düsseldorf, com o livro do
grande Piero.
Martini, antes de todos, foi chamado à corte de Urbino por Federigo, onde depois
se encontraram Leon Battista Alberti e sua escola e, mais tarde, Piero della
Francesca, Luca Pacioli, Mantegna, Bramante, Michelozzo, Leonardo e outros.
Isso parece uma expressão grosseira e ingênua das sutis discussões que
Michael Wolff dedicou à teoria do impetus e sua história, em quase 400 páginas
de pesquisa. Mas o próprio Wolff sublinha que a teoria do impetus está acoplada,
como ele diz, a uma "causalidade de transferência" e que essa teoria não pode
absolutamente fundamentar-se no âmbito dos objetos da experiência, quer por
meio da percepção sensível, quer por meio de argumentação conceitual.
93
acontecimento a explica? Cito Ernst Cassirer: "De todos os problemas colocados
pela história da ciência, a origem das ciências exatas, de um ponto de vista
puramente filosófico, ocupa o primeiro lugar." (Philosophie und exakte
Wissenschaft, Frankfurt a.M., 1969, p.39).
Por mais complicado que seja o problema, há uma via clara para sua solução:
ocorreu uma mudança nas relações de produção. O capitalismo mercantil
transformou-se em capitalismo de produção. Mas como isso explica a ciência
natural matemática? Creio que ela tem de ser explicada assim. Nem é tão
complicado: é preciso apenas considerar atentamente o novo produtor que surge
em cena, gerado pelas novas relações de produção. É uma força altamente
contraditória: um produtor que literalmente e fisicamente não produz mais nada.
Por meio apenas de seu dinheiro, empregado como capital, ele exerce o controle
sobre o processo produtivo, comprando conjuntamente todos os fatores
necessários para seu projeto: fatores materiais, pessoais e intelectuais, como as
necessárias patentes, etc. A montagem e combinação pertinente desses fatores
mais a força de trabalho resulta em um processo ativo de produção, que funciona
sem que o próprio produtor encoste as mãos. Pois se fosse obrigado a isso, não
agiria mais como produtor capitalista, ficaria privado dessa capacidade. Dito de
outro modo, a qualidade de produtor capitalista postula a formação de um
mecanismo funcionalmente autônomo a partir do conjunto material envolvido na
produção sob sua responsabilidade. Sem isso, seria impossível o produtor
controlar seu empreendimento produtivo apenas por meio do poder do dinheiro.
Explicitamente: seria impossível todo o capitalismo de produção
95
Em que sentido pensamos aqui "matemática"? Há diversas formas e
instrumentais de matemática. A matemática nos é familiar como uma disciplina
não-contraditória e rigorosamente dedutiva, que fornece resultados unívocos a
partir de determinados axiomas e postulados. Ela se ocupa da diferenciação de
grandezas definidas por números. Criada pelos gregos, esta modalidade de
matemática remonta aos séculos VII e VI aC. Tales e Pitágoras são os primeiros
nomes associados a ela. Tales nasceu em Mileto, cerca de duas gerações após
a primeira cunhagem de moedas, ocorrida por volta de 630 na Lídia e na Jônia
(que mantinha Mileto sob sua influência).
Pitágoras nasceu em Samos, mas por volta de 640 imigrou para Crotona, no sul
da Itália, onde provavelmente foi responsável pela criação de uma moeda. Ele
igualou a essência das coisas a números. Mileto e Samos haviam se tornado, no
Egeu da época, os dois maiores centros rivais de atividade comercial. Como a
cunhagem de moeda revela uma economia mercantil desenvolvida e avançada,
podemos considerar o cunho lógico-dedutivo da matemática,
independentemente das mudanças de seus primórdios até hoje, como
contemporâneo à produção de mercadorias. Com as atuais transformações de
seu instrumental por meio da eletrônica, é claro que esta não é a última forma
que assumirá a matemática. Mas também não foi a primeira.
A criação grega foi precedida, no Egito, por uma forma muito diferente de
"matemática". Todas as construções, ali, contavam com a indispensável ajuda
de uma arte de medir, que Heródoto batizou de "geometria" por causa de seu
emprego na medição do terreno. A corda era o instrumento principal dessa
atividade. Ela se tornou uma habilidade profissional de pessoas que os gregos,
traduzindo a nomenclatura egípcia, chamavam "harpedonaptes", literalmente
"esticadores de corda". Como nota Burnet, esse nome expressa maior
semelhança com nossa jardinagem do que com nossa matemática.
98
O Capital. MEW 23, p.354) possibilitados pelas técnicas do ferro. A nova forma
de enriquecimento dos gregos, econômico-monetária, não brotou do solo nem
das oficinas dos produtores manuais, pelo menos não antes que estes pudessem
ser substituídos por escravos e tornados fonte de mercadorias comercializáveis.
Ela surgiu somente da corrente de circulação e era, como diz Engels, efeito do
capital comercial e do capital usurário.
99
A atividade de pesquisa tem de manter-se em total independência e separação
dos interesses industriais para poder servi-los. Como o postulado de qualquer
empreendimento produtivo está submetido à estrita observância de sua
diferenciação na divisão do trabalho, de acordo com o modo de produção
capitalista dominante, a pesquisa tem de acontecer nas categorias fundamentais
da abstração social primária. O postulado específico empregado em função de
um processo natural concreto toma a forma de uma hipótese matemática de
pesquisa, que exprime a causalidade de uma equação e seu valor numérico, e
sua realidade objetiva tem de ser submetida ao teste experimental. Se
admitirmos que a forma de reflexão intelectual da abstração primária equivale
aos conceitos do puro entendimento, temos então conjuntamente as
propriedades de ambos, com validade universal e realidade objetiva, que, de
acordo com Kant, dão o caráter rigorosamente científico de uma atividade de
pesquisa.
Basta olhar Galileu para confirmar isto. Ao adotar o ponto de vista do movimento,
o modo de pensar de Galileu apresentou algo fundamentalmente novo e distinto
de seus predecessores, que adotavam o ponto de vista do trabalho manual. Isto
o separou do ponto de vista tradicional dos trabalhadores manuais, permitindo
que concebesse o estado dos seres como em movimento, lado a lado com o
repouso, ambos igualmente inerciais. Galileu fundou e confirmou esta
concepção com suas pesquisas sobre a queda de corpos pesados, "de motu
gravium", realizadas em Pisa no ano de 1590, no início de sua carreira. Ali, ele
descobriu que sem o atrito do ar, no vácuo, todos os corpos têm a mesma
velocidade de queda. Só há uma gravitação, só uma lei de queda. As leis
dinâmicas da natureza são as leis do movimento, que vão se somando como
resultado dos avanços da pesquisa científica, para responder, em cada
empreendimento específico, ao postulado do automatismo.
100
no Saggiatore com as conhecidas frases: "A filosofia está escrita no grande livro,
que sempre está aberto diante de nossos olhos, o universo. Mas nós podemos
lê-lo somente quando apreendemos a língua e nos familiarizamos com os sinais
nos quais ele está escrito. É escrito na língua da matemática, cujas letras são
triângulos, círculos e outras figuras geométricas; sem esses meios não é
possível ao homem apreender nem mesmo uma só palavra."
Cassirer não nos diz qual é a fonte do próprio pensamento mecanicista, mas não
descreve sua peça central, o movimento, com seu conceito empírico usual, e sim
como "puro movimento" no espaço puro e no tempo puro. E estas são feições
inegáveis da fisicalidade da troca.
101
(unterschwelligen) entre ciência exata da natureza e economia do capital
produtivo. Esta afinidade genética é de fato subconsciente ou, se preferir,
transcendental, pois na superfície elas são tão difusas e intraduzíveis entre si
como a definição econômica do ferro pelo preço e a definição física pelo peso
atômico, para usar um exemplo banal.
9. Anotações conclusivas
102
De fato, o próprio Cassirer dá um importante primeiro passo nesta explicação ao
associar estreitamente a natureza exata e o pensamento mecanicista, como
citamos acima. Evidentemente, Cassirer não tinha com a sociologia, nem de
perto, a mesma familiaridade que tinha com as ciências naturais. Assim, pôde
ocultar-se a ele o fato de que o mecanicismo apresenta nos fenômenos o mesmo
caráter da lógica da apropriação presente numa ação. Acima, deduzi o modo de
pensar mecanicista a partir da fisicalidade da troca graças à reciprocidade da
apropriação privativa, à qual esta ação se reduz.
Cassirer deu valor à explicação das ciências exatas "em sentido filosófico". De
fato, a significação filosófica de nossa explicação está sobretudo no enérgico
empuxo que empresta ao materialismo histórico, no sentido de sua definição
adorniana como "anamnese da gênese".
38 Esta carta é uma resposta ao "Exposé zur Theorie der funktionalen Vergesellschaftung"
("Exposição sobre a teoria da socialização funcional"), que eu tinha enviado a Adorno no dia
anterior. Essa Exposição está publicada em anexo neste volume.
104
ANEXO
Exposição sobre a teoria da socialização funcional
Uma carta a Theodor W. Adorno (1936)
O texto que segue é a parte principal de uma carta minha a Th. W. Adorno, de
novembro 1936, na qual, após longos anos de contato, eu lhe expunha minha
base de compreensão teórica. A resposta de Adorno à carta era expressão de
um acordo espontâneo e estímulo para o debate oral do assunto. Com isso, suas
observações não chegaram infelizmente a ser expressas por escrito.
106
o problema da dialética (juntamente com a razão pela qual ela não pode ser
antecipada). Assim, eu também vejo na explicação genética da validade do
conhecimento o fundamento da distinção do materialismo marxista em relação
ao materialismo burguês e ao empirismo. É de fato o mesmo fundamento pelo
qual a redução sociológico-burguesa transforma o "ser" em facticidade crua,
enquanto a redução marxista estabelece seu caráter de praxis material, no qual
a exigência de verdade da ideologia é criticada e inflama-se como energia
revolucionária.
108
Isso determina também a relação do marxismo com o problema da verdade. Por
si, o marxismo não se dirige à história ou ao "ser" com a questão da "verdade".
Muito menos propõe uma teoria da verdade ou atribui aos homens uma "visão
de mundo". O marxismo conhece a questão da verdade, a rigor, somente a partir
da história, toma conhecimento dela pelo flanco das ideologias que surgiram em
seu nome. Eu já expus isso, mas queria agora colocá-lo em referência à essência
do método relacional marxista, que opera entre ser e consciência, aqui e lá. Ao
reduzir as questões humanas voltadas para o "absoluto" de suas relações
ideológicas para relações materialistas no ser social desses homens, ele
transforma as questões insolúveis da teoria em questões solúveis da praxis. Isso
correspondente precisamente ao princípio de Marx de superar (aufzuheben) a
filosofia ao realizá-la, pois só através de sua realização ela pode ser superada.
E essa realização como superação, superação como realização das teorias da
verdade que surgem nas ideologias, é exatamente a única relação do marxismo
com o problema da verdade. Mas também, no sentido contrário, apenas o
problema da verdade é o ponto de apoio que permite realizar a transformação
dos problemas teóricos dos homens em problemas práticos, e a eliminação ou o
fracasso do problema da verdade faria de todo o marxismo um raso materialismo
vulgar.
109
marxismo depende da possibilidade de levar a análise da forma mercadoria até
o ponto no qual se descobre, além da forma específica do fetichismo capitalista,
o mecanismo total da fetichização, isto é, a gênese das ideologias sob o aspecto
de seu caráter de validade, através de toda a assim chamada história da cultura,
portanto até a Antiguidade e talvez mesmo antes.
110
ser, como uma praxis enraizada nas formas da não-praxis, então a pura redução
genética dessas formas de alienação à sua causalidade prática tem de ser, por
si, a crítica das teorias fetichistas sobre sua verdade prática. É preciso, pois,
romper a constituição da alienação para fazer saltar a verdade das ideologias da
alienação, que, com sua constituição, a encobrem. Mas a praxis descoberta não
é em si "verdade" (como quer o marxismo), mas o é apenas na relação da crítica
de seu encobrimento. Pois a relação com a verdade brota somente do fato de a
consciência alienada estar ligada à questão sobre a verdade; isto significa que a
própria questão da verdade é um produto da alienação. A última redução traz a
tarefa, a que me proponho, de tornar solúvel a insolúvel problemática da
"dedução transcendental" - tentativa de construir o ser a partir do pensar -, pela
relação inversa: pela construção da lógica partindo do ser social material, em
vista da posterior construção dialética da história das relações de exploração.
111
(que, por sua vez, devido ao desenvolvimento das forças de produção, também
é um conceito histórico), que se dá na produção e no consumo. Esta realidade,
concebida por Marx como "processo de trabalho", tem de ser sempre tomada
como fundamento da história humana, de acordo com a concepção de Marx, do
homem como espécie animal que conseguiu iniciar a produção de seus próprios
meios de vida. Em nenhum momento de sua história, portanto, a vida dos
homens é algo diferente desse metabolismo, de caráter essencialmente prático
e material. Nesse sentido, os próprios homens são natureza e também
permanecem em relação com a natureza, uma relação que significa sua própria
vida. Nesse sentido, em última instância, toda a história humana é mera
natureza. Dessa imensa sequência histórica, no entanto, o ponto de vista de meu
interesse aborda apenas a porção caracterizada pela situação de exploração.
Os caracteres próprios desse recorte da história, como especialmente a
separação entre teoria e praxis e com isso o fenômeno do conhecimento (como
fenômeno de um conhecimento separado e aparentemente autônomo), são
determinados pelo fato de a praxis material da vida humana ser realizada, aqui,
por meio de formas que contradizem essa praxis. A parte exploradora da
sociedade (independentemente de ter ou não a mesma origem étnica dos
explorados) vive da produção do trabalho humano, mas não seu próprio trabalho,
de tal modo que a vida da camada dominante de modo nenhum está fundada na
natureza, mas, em vez disso, na relação com outros homens e com a relação
prático-produtiva desses outros com a natureza. A relação de produção homem-
natureza torna-se, com a exploração, objeto de uma relação homem-homem, a
cujas leis se submete e, assim, frente ao estado "natural", "desnatura-se"
(nenhum átomo de matéria natural entra, segundo Marx, na objetividade de
valor), realizando-se então segundo as leis das formas de mediação, o que
significa sua afirmativa negação. Essa negação é, como já assinalado, ela
própria de caráter prático, é a praxis de apropriação nessa relação homem-
homem. Afirmo agora que a praxis de apropriação nessa relação é a origem
histórica efetiva dos modos de identidade, de simples existência e da forma-coisa
ou caráter de coisa - de tal modo que não apenas a "reificação" (Verdinglichung),
mas já a própria "coisa" (Ding) é uma modalidade de exploração.
112
produção sem consumo, na parte explorada, e um consumo sem produção, na
parte exploradora, rompendo o nexo necessário entre produção e consumo que
havia até então. A parte exploradora não pode, entretanto, viver da exploração,
se não houver produção para seu consumo. O nexo rompido precisa então ser
recomposto de outra forma, exatamente na forma de um nexo entre as duas
partes humanas da relação de dominação. A exploração transforma o nexo vital
necessário entre produção e consumo num nexo inter-humano, portanto num
nexo social. Ela instala o nexo entre produção e consumo pela via de uma
articulação entre as simples existências dos homens. Essa articulação
existencial dos homens, efetuada pela exploração, é o que chamo de
socialização funcional e distingo de todas as formas de comunidade natural. A
socialização funcional é a negação da natural e a corrompe até a total
dissolução, tornando-se então dominante e assumindo a forma de produção de
mercadorias, que transforma a apropriação até ali unilateral em apropriação
recíproca. A partir de então, o trabalho é despojado de seu caráter sócio-natural
original, e em seu lugar entra a rede de trocas dos produtos do trabalho como
mercadorias. No percurso dessa socialização funcional feita pelos homens, no
percurso de seu surgimento, do lento e persistente aprofundamento até sua
dominação total, é que se deve procurar as características fundamentais da
forma mercadoria - identidade, simples existência e caráter de coisa.
113
se desfaz na troca, mas se mantém íntegro e é uma coisa. Então, muito tempo
depois de terem começado a desempenhar seu papel indispensável e silencioso
na socialização funcional, estes caracteres formais foram capturados pela
reflexão e elevados a conceitos. E com isso eles deformaram tudo, pois então
esses mesmos caracteres tornaram-se as formas de pensamento do sujeito na
relação com os objetos que lhe são dados. É difícil desfazer essa deformação e,
sem encontrar as mediações, impossível. Mas já é alguma coisa saber o que
procurar, exatamente as mediações entre a situação de exploração e as relações
teóricas cognitivas. Esta é uma percepção com a qual os teóricos do
conhecimento, mas também os marxistas vulgares, não poderiam nem mesmo
sonhar.
[Neste ponto, eu teria podido facilmente continuar de modo a apontar minhas concordâncias e
afastamentos em relação a Adorno. Algo assim: "Verdade e encobrimento são aqui congruentes.
Para tornar a verdade visível, é necessário aqui um método, que descrevo como identificação
dialética (mais adiante nesta mesma carta). O procedimento desse método está expresso numa
frase de Marx (na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843): "É preciso fazer
essas relações petrificadas dançarem de acordo com sua própria música". O Capital inteiro é
construído de acordo com esse princípio. Os encobrimentos não suportam sua identificação
dialética e com isso se traem. Eles traem-se também num outro tipo de experiência: nenhuma
síntese ("síntese" no sentido de Kant e Hegel; na qual o capital confirma a plenitude de seu
domínio do ser) pode ser construída a partir de seu próprio material (material de encobrimento
fetichistamente encantado, aliás conceitos da reflexão filosófica). Aqui, sua fantasmagoria
(Unwesen) é revelada pelo fracasso de toda e qualquer tentativa de simular uma essência. O
114
capital não pode nunca se furtar às tentativas de evocar o destino, mas nunca consegue levá-
las a bom termo. Entendo bem a intenção de seu trabalho sobre Husserl ao considerar que este
é o ponto que você tem em mira? [aqui Adorno teria certamente respondido "sim"]. Portanto com
uma crítica que por caminhos imanentes quer tornar-se transcendente? [“Sim” - quase com
certeza]. A esta falha da síntese filosófica correspondem, na efetividade (Wirklichkeit) econômica
do capitalismo, as crises. [Com isso ele concordaria completamente; ver abaixo]. Elas acontecem
na imanência e a partir dela, até a ruína; então acaba-se a imanência [uma concepção que trazia
muito das experiências dos anos trinta]. Contudo, estou inclinado a considerar apenas o lado
econômico como real, e o lado filosófico, que o senhor persegue, ao contrário, como meramente
simbólico. Pelo caminho filosófico não se pode de fato transcender as paredes da imanência,
seriam palavras sobre o papel, e estes são exatamente ainda instrumentos da imanência.
Somente a mudança real do ser é transcendente, portanto a ação, e isso não pode ser alcançado
pelo seu caminho. [Com isso ele não teria concordado; os leitores de seus trabalhos podem
imaginar sua resposta].”
Eu não continuei assim minha carta, no entanto, porque não tinha clareza dos meus próprios
pensamentos, coisa que demorou ainda muito tempo. Tenho de esclarecer que minha própria
autocompreensão foi um processo inacreditavelmente lento. As coisas aceitáveis nesta carta não
são aquilo que eu já sabia, mas o que eu ainda procurava. A descoberta do sujeito transcendental
na forma mercadoria, ou melhor, a certeza de que o sujeito do conhecimento se oculta na forma
mercadoria, veio-me como uma "inspiração" em meus tempos de estudante e nunca me deixou,
mas levou meu pensamento, se me permitem a autocaracterização, a um estado permanente de
fervilhante confusão. Foi nesse estado que me encontrei com Adorno e Benjamin, dois espíritos
brilhantes, em inferioridade muda e precária insegurança, mas com a certeza de que o
esclarecimento dessa confusão me levaria a um lugar que mesmo para eles ainda estava mais
adiante. Esta carta, portanto, como todo meu trabalho daquela época, deve ser avaliada
meramente como um estágio de auto-desvendamento; o critério para o julgamento desses
trabalhos não está neles mesmos, mas no esclarecimento a que finalmente me levaram, como
exposto no meu livro de 1970 (Trabalho intelectual e manual. Para a teoria da síntese social,
Frankfurt). Todo o meu caminho foi pavimentado por tais elaborações, as chamadas "Exposés",
que em sua maioria ainda apodrecem em minhas gavetas. As dos anos 30 indicam bem
claramente minha ligação com a "Escola de Frankfurt", pela qual então Adorno respondia (meu
contato com Horkheimer foi sempre através dele). Naquele ponto, ainda não estava claro para
mim que minha ocupação com a crítica da ideologia não se dirigia a ela mesma, mas, por meio
dela, à crítica do ser, portanto a um melhor entendimento dos ocultos desenvolvimentos
econômicos do presente, pois ela ainda não havia se tornado "metacrítica do conhecimento",
nem instruído nenhuma teoria do trabalho intelectual e manual. Só obtive essa clareza nos anos
40 e 50.]
115
idealista da "síntese" [Adorno exigia que eu “elaborasse” isso - como está
anotado à margem neste ponto]. A teoria das crises é claramente também a peça
mais difícil em toda a teoria marxista; a solução do problema das crises implica
tornar transparente toda a história que levou à crise, portanto toda a história da
exploração, desde a saída do "comunismo primitivo".
116
domésticos e com sua produção de riqueza, e a antiga sociedade (uma pura
sociedade de exploração), a sociedade desses cidadãos uns com os outros. A
formação primária de riqueza (como exploração) é aqui reflexionada, a riqueza
produzida é trocada entre os exploradores e as cidades e alcança assim pela
primeira vez sua forma social adequada, a forma-valor do dinheiro. O produtor
explorado, ao contrário, permanece na forma natural de escravo; o que se torna
funcional não é a produção, mas apenas sua transformação em valor. A reflexão
da riqueza se dá apenas do lado dos exploradores. A funcionalização da própria
produção e a reflexão da exploração do lado dos produtores explorados são, no
entanto, as características fundamentais do desenvolvimento ocidental. Por isso,
as relações de exploração atingem, no Ocidente, seu desenvolvimento completo
e universal. Isto deveria naturalmente ser mais aprofundado, dando especial
valor à exposição da Idade Média - por causa da gênese da propriedade privada
(com produto próprio!), como da personalidade do produtor e da relação
econômica de valor. Também é importante para mim a maneira de conceber o
conjunto de inter-relações do desenvolvimento ocidental (especialmente o
conjunto de inter-relações dialéticas entre a Idade Média e o capitalismo,
mediadas pela "produção mercantil simples"). Deixo de mencionar vários outros
momentos que mereceriam igual importância.
117
pelo menos não ainda num sentido temático]), mas não a síntese material, pois
esta se dá como síntese da sociedade e da rede de conexões existenciais
humanas. Pode-se ficar inteiramente preso ao modo como o idealismo clássico
tratou o problema da constituição formal; num certo sentido, é preciso mesmo
ater-se a ele, para ter um ponto de partida e a indicação do caminho ao
conhecimento materialista do ser, não empreendido espontaneamente pelo
marxismo, mas apenas pela via da crítica de uma consciência dada, que
obviamente tem de ser uma falsa consciência e conter o conceito de verdade (o
senhor se lembra de que no início eu disse que o marxismo nunca pressupõe a
questão da verdade). Partindo assim da concepção dada pelo idealismo ao
problema da síntese, o marxismo dá uma solução para o problema não resolvido;
pois assim, no próprio sentido dessa formulação do problema, a tarefa idealista
de reconstrução da síntese conceitual transforma-se na tarefa materialista de
reconstrução da história do ser social (transformando a justificativa da sociedade
burguesa em seu juízo condenatório). De fato, é no ser social que ocorre (ou
"tem êxito", por assim dizer) a síntese, que o idealismo postula na subjetividade
e nunca pode resolver. Esta verificação do problema da síntese já traz consigo
o legítimo ganho da dialética, a saber, a verificação dos problemas lógicos como
problemas do ser. Numa formulação aguda: ao resolver o problema colocado por
ele mesmo, o idealismo transcendental se transforma em materialismo dialético.
118
do valor na forma de dinheiro cunhado. O significado da gênese da subjetividade,
com isso, é essencialmente o seguinte:
Ainda uma observação final sobre o método e uma defesa contra a suspeita de
que, no fundo, fez-se aqui uma prima philosophia. Exposto brevemente, meu
ponto de vista metodológico é que não se pode dizer absolutamente nada do ser
histórico como tal, mas que, no entanto, tudo o que pode acontecer é delimitável
pela crítica de seus encobrimentos. A crítica da forma mercadoria, ou, em minha
nomenclatura, da “socialização funcional”, é assim meu único e exclusivo
caminho metodológico. O princípio decisivo de meu método é, portanto, a
identificação dialética, como eu o denomino, ou seja, confrontar a essência
consigo mesma em sua contraditoriedade. Mas sobre isso haveria mais a dizer
do que eu possa ainda forçar nesta “carta”.
120
Para a liquidação crítica do apriorismo
Uma pesquisa materialista (março-abril 1937)*
1. Intenção da pesquisa
*Walter Benjamin examinou este manuscrito como consultor do Instituto para a Pesquisa Social.
Seus grifos, pontos de exclamação e interrogação e suas observações são aqui reproduzidos às
margens das páginas.
121
sujeitos autônomos ou da liberdade, mas de seu contrário, da exploração.
Também corresponde a ela o caráter formalista, ao qual uma investigação como
a nossa tem de aderir e pelo qual poderia causar uma impressão idealista. O
formalismo do pensamento idealista é condicionado pela alienação, provocada
pela exploração nas relações humanas. No sentido em que serve à formalização
da exploração, a reificação é mera determinação formal. A redução genética do
formalismo do pensamento idealista à exploração serve ao seu enfraquecimento.
Uma tal redução materialista do formalismo tem, no entanto, de ser empreendida
em seu próprio meio, persegui-lo em sua formação interna ou enredá-lo segundo
suas próprias regras. Somente na aplicação do método a objetos concretos
pode-se mostrar se esse esforço de superação será ou não frutífero para o
próprio pensamento.
122
questão sobre o que nela é pressuposto e implícito como condição de sua própria
"possibilidade". Mas no idealismo, a ratio é colocada em questão apenas sobre
seu próprio solo, o solo de sua hipostasiação. Em Kant, por isso, a questão
originária, inicial e autêntica, atrofia-se no cumprimento da tarefa interna da mera
"dissecação de nossa faculdade de conhecimento"; e é sob o mesmo feitiço da
imanência que Hegel desenvolve dedutivamente a dialética como absoluto
sistema da verdade, já que considera as relações lógicas de pressuposição
internas à estrutura do pensamento ao mesmo tempo como contexto genético
da constituição do pensamento, fingindo para si e para nós que a questão
originária abandonada faz parte da imanência.
O materialismo não admite que, para evitar a negação da ratio, seja necessário
considerar sua natureza como transcendental. O idealismo transcendental crê
na aprioridade da razão do mesmo modo que a teologia medieval acreditava,
antes da descoberta do método indutivo da pesquisa natural, ser preciso
renunciar à idéia de leis naturais, caso fosse negada sua origem na vontade de
Deus. O pensamento materialista começa onde o idealismo cessa de aplicar a Há aqui dois
conceitos
distintos de
ratio na investigação de seus próprios condicionamentos. O pensamento ratio [WB]
materialista é racional e cientificamente crítico porque, e até onde, seja possível
essa aplicação, isto é, uma explicação racional do surgimento da ratio a partir do
próprio ser social. Essa possibilidade não é postulada dogmaticamente, a fim de
constituir um sistema dedutivo; ela é uma questão da prática para a pesquisa em
desenvolvimento. De acordo com essa concepção, o materialismo não é uma
visão de mundo, mas um postulado metodológico. Em seu curso - e novamente
não a priori - o comportamento racional se torna material em vez de idealista.
Entre seus traços distintivos está, certamente, a renúncia ao ideal conclusivo de
verdade e, consequentemente, o abandono das antinomias do pensamento
idealista, ligadas à absolutização do conceito de verdade.
125
mercadorias aparece como a existência (Bestand) da própria sociedade, que em
si mesma já não tem substância alguma.
Mas como são, em si, as leis da troca de mercadorias, que formam aqui o a priori
da produção, as regras de simples existência das mercadorias e a ordem
constitutiva da sociedade? Elas são simplesmente as leis da reificação como
tais, que Marx demonstrou estarem completamente centradas na função
unificadora da forma equivalente das mercadorias. As mercadorias,
incomensuráveis em suas qualidades de valor de uso, experimentam, no ato da
troca, sua comensuração como valores, sendo equiparadas segundo a forma
para diferirem unicamente em quantidade. Portanto, do ponto de vista da
constituição formal, na base da troca de mercadorias socialmente desenvolvida
está uma síntese no preciso sentido kantiano, e esta síntese funda-se na
suprema unidade que as mercadorias possuem em - e mesmo graças à - sua
referência geral relativa de valor à forma equivalente que lhes é comum e
126
socialmente universal, ao dinheiro. Com isso, as leis fundamentais da troca de
mercadorias, que no capitalismo formam o a priori da possibilidade de produção,
derivam de uma síntese originária, fundada mesmo na troca e puramente formal,
de todas as mercadorias em função da unidade idêntica de sua referência
universal ao dinheiro.
127
apenas um passo para pôr o próprio capital como sua efetividade prática e
pensar o mundo efetivo como autodesenvolvimento do capital fetichizado em
"espírito do mundo".
128
Uma investigação que queira opor-se à absolutização idealista do conhecimento
não tem, porém, mais nada a ver com o conhecimento no sentido a-histórico de
"conhecimento em geral". A questão sobre as condições sociais de surgimento
do modo racional de conhecimento, aliás pensamento discursivo, pode referir-se
a essa forma do espírito somente a partir do patamar de desenvolvimento
histórico no qual ela se apresentou pela primeira vez na Antiguidade grega.
O cereal pode servir de alimento para homens e animais, o ouro pode significar
dinheiro somente para o homem. No dinheiro, o caráter humano distingue-se do
caráter natural dos seres vivos, assinalando a oposição entre a rede de relações
humanas e o processo de metabolismo material com a natureza na produção e
no consumo. O dinheiro vale apenas entre um homem e outro, não entre homem
e natureza, e esta relação entre homem e homem assumiu o caráter de uma
irredutível oposição à relação entre homem e natureza. Ao ganhar e ao gastar
dinheiro, o homem não age mais como ser natural.40Afirmamos mesmo que a
Por outro lado, a ação de troca exige essa paralisação da praxis do consumo e
da produção das mercadorias, já que ela faz a mediação entre produção e
consumo. Mas a negação não é real, pois a troca pressupõe produção e
consumo e cuida para quem ambos ocorram. A identidade é determinação formal
das mercadorias, desde que essas cheguem da produção ao consumo por meio
da troca, e que produção e consumo estejam, na mercadoria, ligados.
A troca positivamente implica que a mesma coisa, tal como foi produzida, passe
a outras mãos para ser consumida. A identidade é a forma de ligação, constituída
por uma coisa, entre produção e consumo, e também, em sentido oposto, o
portador idêntico dessa ligação, a mercadoria, é precisamente coisa. O caráter
de coisa é a determinação formal da mercadoria e a forma fundamental da
"reificação".
Por outro lado, a produção da mercadoria, de onde ela vem, e o consumo, para
onde ela vai, estão ligados a seu caráter de coisa idêntica, são, portanto, o
presente e a realidade da mercadoria na troca. Mas, para o ato de troca, a
produção e o consumo são reais e presentes em estado de paralisia, isto é, em
suspensão temporal, do mesmo modo que a identidade material imutável da
coisa-mercadoria está no mero espaço. Como acontecimento temporal, a ação
de troca suspende temporalmente produção e consumo, remete-os no tempo
Ou seja, o
submetida às leis da mercadoria. A proposição "tudo é água" soa muito conceito
“tudo” seria
semelhante a "tudo é matéria para mercadorias" ou "de tudo pode-se fazer socialmente
um sinônimo
mercadoria" - desde que especificamente o trabalho seja um atributo de de dinheiro -
uma
escravos comprados e nesta forma tudo que eles produzam seja produzido como afirmação
temerária.
[WB]
mercadoria.
Mas, então, quais são essas causas? A partir da troca, pode-se inferir no máximo
que produção e consumo humanos devem ter sido de alguma maneira
separados, já que a troca é uma ação mediadora entre ambos. Mas sobre o tipo
e as bases dessa separação, a troca não permite deduzir nada além de uma
referência genérica à divisão do trabalho. Pois a própria troca, exatamente por
É evidente, em primeiro lugar, que tem de ser feita uma distinção fundamental
entre a troca mercantil desenvolvida, isto é, a troca baseada na produção de
mercadorias e portanto uma troca de valores, e a troca primitiva, no sentido de
um intercâmbio de objetos de uso, sobretudo em comunidade naturais.45 A
marca definidora da troca mercantil desenvolvida é a equivalência dos objetos
trocados, que pressupõe uma determinada separação social entre produção e
consumo, cuja origem e conteúdo efetivo devem ser buscados na exploração
(veja abaixo). Somente a troca mercantil desenvolvida está ligada à reificação,
caracterizada por identidade, forma de coisa e simples existência. Não podemos,
entretanto, decidir de que modo a troca primitiva é definível e mesmo se o
Ao menos
conceito de troca pode ser aplicado ao intercâmbio nela suposto. Esse modo ou deveria ser
provado que
modos de "troca" estão fora de nossa abordagem.46 na troca
primitiva não
havia
Em segundo lugar, observe-se que as características formais específicas da equivalência
[WB] (Isto
mercadoria não podem ser suficientemente alcançadas se for considerado como está
inteiramente
seu fundamento o mero fato de que os homens têm de obter seus meios de vida provado
desde Marcel
Mauss e
através do trabalho e que, portanto, esses meios de vida são objetos de uso e Claude Lévy-
Strauss -
produtos, sendo somente por isso "valor de uso" e "valor". A pressuposição Sohn-Rethel,
1978)
fundamental da troca de objetos como "valor", e da consequente ambiguidade
da mercadoria, não é a exigência vital de trabalho natural aos homens nem a
mera distinção empírica entre atividades produtivas e de consumo, mas a
Esta não é absolutamente a opinião de Marx, mas a aparência disseminada pela concepção
teórica de sua análise da mercadoria, que fundamentalmente emprega apenas o critério da
presença ou ausência de propriedade privada para distinguir entre as inter-relações cooperativas
dos indivíduos em uma comunidade natural e as inter-relações da sociedade burguesa
inteiramente mediadas pela troca de mercadorias. Pois o trabalho humano é sempre considerado
"trabalho social", hoje como desde sempre; e a única coisa que pode se modificar são os modos
de articulação do trabalho. A cooperação natural e a rede reificada da propriedade privada
aparecem como sendo de idêntica substância - como redes sociais de trabalho.
Isto está ligado também ao segundo aspecto, apenas indicado na análise da mercadoria feita
por Marx, da rede de conexões teóricas entre troca de mercadorias e exploração. Ele diz respeito
ao surgimento histórico da relação de troca. "De fato, o processo de troca de mercadorias não
aparece originariamente no seio da comunidade natural, mas nos seus confins, em suas
fronteiras, nos poucos pontos em que entra em contato com outras comunidades. Aqui começam
138
as ações de troca, que refluem então para o interior das comunidades, com efeitos
desagregadores" (K. Marx, Para a crítica da economia política, MEW, 13, p.35s.). No Capital, lê-
se ainda sobre isso (op. cit., p. 102): "O primeiro modo pelo qual um valor de uso tem a
possibilidade de ser valor de troca é sua simples existência como não-valor de uso, como um
quantum que excede as necessidades imediatas de valor de uso de seu possuidor". Também
aqui, a exploração, a "desagregação da comunidade", é apresentada como consequência do
"processo de troca de mercadorias". Isso acontece porque Marx não fez nenhuma distinção
fundamental entre as relações de troca que poderiam ter precedido a exploração (!) e as relações
de troca que surgiram da exploração, embora a diferenciabilidade possa ser claramente
percebida na oscilação das expressões empregadas no trecho citado - "processo de troca de
mercadorias" e "ações de troca". De fato, a análise de Marx só considera a relação de troca no
segundo sentido, ou seja, aquela que nós denominamos exclusivamente "troca de mercadorias",
pois ela tem as relações de equivalência das mercadorias como seu ponto de partida. Mas, ao
vincular a equivalência já às "relações primitivas de troca", Marx faz parecer que a reificação
surge, sem descontinuidade, das relações naturais.
Por fim, em seu estudo sobre Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels
tentou investigar historicamente a gênese da forma mercadoria, que Marx havia tratado apenas
formalmente. Este livro, que não podemos discutir criticamente aqui por razões de espaço,
pretende entre outras coisas preencher o vazio deixado por Marx em sua análise da mercadoria
ao não mostrar a propriedade privada como característica - para Engels determinante - da troca
desenvolvida de mercadorias. Engels acompanha a formação da propriedade privada
especialmente na Antiguidade e adota como fundamento de sua análise a hipótese da prioridade
da troca de mercadorias e do desenvolvimento do dinheiro frente à exploração. Com isso, porém,
acreditamos que esta suposição, perfeitamente adequada ao capitalismo, ainda que com
algumas restrições, é aplicada também a relações de produção para as quais é completamente
incorreta. Compare-se a análise de Engels com a de Rosa Luxemburgo na Introdução à
economia de estado, que influenciou muito nossa própria análise.
139
originariamente aqui. Não por acaso a formação amadurecida da troca de
mercadorias foi precedida historicamente pela exploração cunhada no antigo
Egito, na Mesopotâmia e seus prolongamentos. Para nossa investigação das
condições de surgimento da reflexão racional, no entanto, interessa apenas o
desenvolvimento que deu origem ao capitalismo, e, portanto, apenas o
desenvolvimento ocidental. Embora houvesse muitas vantagens no satisfatório
esclarecimento das origens da exploração em geral, inclusive nas economias
primitivas, afirmamos ser no entanto possível, sem grande prejuízo ao
conhecimento, penetrar analiticamente nos impérios exploradores do antigo
Egito e da Mesopotâmia, resguardando essa investigação com determinadas
delimitações conceituais.
Uma comunidade natural, livre de exploração, deve ser pensada como um grupo
humano unido por parentesco que obtém seus meios de vida exclusivamente
pelo próprio trabalho. Essa perspectiva está inteiramente de acordo com a
definição de Marx na Ideologia Alemã (p. 11 [ed. Landshut/Mayer]), de que os
próprios homens começam "a distinguir-se dos animais assim que começam a
produzir seus meios de vida". Numa comunidade natural, só estão livres do
trabalho, fora os doentes, as pessoas incapacitadas pela idade, de tal modo que
o grupo forma uma totalidade à medida em que o consumo de cada indivíduo
está ligado à sua produção, não só no momento atual, mas por toda a sucessão
de gerações. Com isso, embora produção e consumo separem-se materialmente
para o indivíduo - ele consome também produtos dos outros, outros consomem
também seu produto -, não se separam, entretanto, humanamente, porque o
140
indivíduo só existe aqui em virtude da identidade do conjunto de todo o material
produtivo e de consumo, uma identidade que liga as gerações e somente
conforme à qual os homens tornam-se seres capazes de viver. Vê-se que o
conceito de "próprio trabalho" e a identidade individual dos homens em uma
comunidade natural, desde que esta deva ser livre de exploração, dissolvem-se
em identidade coletiva e genealógica, e isso de acordo com o fio condutor das
gerações e das condições materiais de vida de uma tal comunidade e de seus
indivíduos. - O traço fundamental dessa constituição natural, para nós decisivo,
é que a conexão entre produção e consumo, vital para os homens em qualquer
formação social, está aqui ligada à identidade dos indivíduos como
consumidores e trabalhadores, trabalhadores e consumidores. Desse modo, só
é possível falar do indivíduo como membro do grupo de parentesco a que está
ligado de fato ou supostamente pelo nascimento, nunca tomado isoladamente.
Existe ainda uma certa divisão do trabalho dos adultos e capazes na produção
dos meios de vida. Mas considerando a sucessão de gerações e a estrutura da
divisão do trabalho, os homens que consomem são exatamente os que
produzem, os que produzem, exatamente os que consomem. A comunidade é
um todo de acordo com essa identidade, que contém a lei de sua sobrevivência
e organização. Para efetivar essa identidade, desde que a exploração ainda não
tenha lugar na comunidade, as regras devem ter o único sentido de dividir o
trabalho entre os capazes e depois distribuir os produtos individuais obtidos
nessa divisão de trabalho entre todos os consumidores individuais. Os homens,
aqui, não têm sua identidade por si, mas apenas no grupo, porque é a
organização do grupo que faz a mediação entre cada um e sua identidade como
indivíduo produtor e consumidor; mas esta identidade é a conexão entre
produção e consumo dos meios de vida em sua pessoa física. Estando a
produção e o consumo ligados à identidade física dos produtores e
consumidores, como aqui, então sua conexão é imediatamente prática; estão
unidos como distintas atividades vitais sensíveis e corporais dos mesmos
homens. Por causa dessa ligação, produção e consumo dão aos homens o
padrão recíproco de relação uns com os outros, que se realiza para cada
indivíduo sob as regras da divisão do trabalho e da distribuição entre os membros
do grupo.
141
Com isso, a "separação social entre produção e consumo", que para nós está na
base da equivalência de mercadorias e da reificação, aparece sob luzes
adequadas. Ela repousa sobre a destruição da identidade natural de produtor e
consumidor, e a reificação explica-se então porque a conexão entre produção e
consumo, vitalmente necessária, desliga-se da identidade dos próprios homens
e tem de se conectar à identidade das próprias coisas, isto é, às mercadorias. E
a origem de tal destruição é a exploração.
A partir de vários indícios arqueológicos, pode-se concluir como deve ter sido o
início dos longos impérios exploradores no vale do Nilo e nas planícies da
Mesopotâmia. Povos do interior da Ásia, expulsos talvez por mutações
climáticas, irromperam naqueles territórios fluviais, submeteram os moradores e
passaram a viver da apropriação de seu produto excedente. A exploração que
existiu no início do desenvolvimento ocidental foi, assim, uma exploração inter-
étnica de tipo clássico, uma exploração entre grupos distintos enquanto tais.
Mesmo que tivessem desenvolvido internamente a exploração antes do embate
entre elas, o que deve ter acontecido principalmente entre os conquistadores,
mesmo assim essas comunidades tinham até então satisfeito suas próprias
exigências vitais e consumido seus próprios produtos, qualquer que tenha sido
a distribuição interna. A relação direta de domínio e servidão, que surgiu nesse
encontro, tem por conteúdo o abandono da produção dos próprios meios de vida
por parte dos dominadores, que assim consomem sem produzir, e pela perda na
142
mesma medida do consumo de seus produtos por parte dos dominados. Nem é
preciso dizer que a produção de excedentes por parte dos dominados só foi
possível por um notável aumento na produtividade de seu trabalho e que a
durabilidade desses impérios exploradores dependeu sobretudo dos canais de
água, construídos e controlados pelos dominadores.
143
membro individual da comunidade natural, mas às camadas dominantes das
relações de exploração ocidentais originárias.
144
O surgimento da troca de mercadorias como fruto das relações primárias de
exploração ("primária" especificamente com respeito à troca) não significa que a
troca tenha de ficar limitada ao estágio do comércio estatal externo. Também no
interior de alguns impérios egípcios desenvolveu-se uma relação de troca, não
somente por parte dos autoritários oficiais superiores do faraó, mas até mesmo
pelos próprios produtores explorados. Mas no início, exatamente como entre os
servos da Idade Média, é apenas um comércio com produtos próprios de entrega
obrigatória - destinados a certas compensações para desajustes que acabaram
surgindo, com o tempo, do sistema de divisão do trabalho em relação ao sistema
de distribuição -, e por isso, ainda que seja um comércio de produtos
caracterizados como valor, trata-se de um valor que reflete apenas as relações
prévias de exploração. Aqui também, portanto, o caráter de valor não surge
autonomamente da troca, mas ao contrário a troca de equivalentes só se torna
possível sobre a base e de acordo com as condições determinantes de relações
prévias de exploração. Na generalização do caráter de valor dos produtos, um
papel fundamental é desempenhado pelo fato de os explorados tornarem-se,
para seu próprio sustento, dependentes dos armazéns oficiais do faraó, tendo
de pegar ali as coisas de que necessitam, através da restituição dos produtos
entregues ou por meio de "crédito". Com isso, o trabalho deixa de ser claramente
dividido em tempo de trabalho para os exploradores e tempo de trabalho para si
mesmo; além disso, o produto retorna aos produtores como parcela do produto
de todos os trabalhadores, como corporificação individualizada do trabalho
comum. A "abstração valor" dos produtos, a transformação do trabalho útil
concreto em trabalho geral criador de valor, também se realiza em sua forma
primária sobre o solo das relações diretas de exploração e dentro de seus limites.
Com a progressiva generalização do valor, que afeta e é afetada pelo
desenvolvimento das forças produtivas, surgem entre a base e o topo do império
relações secundárias de exploração, com a respectiva especialização da
produção e suas técnicas e com relações mercantis regulares. Todas já têm o
caráter mercantil e, com a decomposição do coletivo, saem da organização da
produção dominada na forma de elementos individualizados, capazes de serem
autonomizados, separadamente reificados e unidos materialmente nas
combinações da produção tecnicamente mais elevada de riquezas. Mas isso
ainda ocorre conjuntamente sobre o solo da exploração primária, de acordo com
145
suas pré-condições indispensáveis e não leva à constituição formal autônoma
do caráter de valor da riqueza. A emancipação da troca em relação à exploração
direta e a constituição do valor em forma de dinheiro ocorre apenas na
Antiguidade.
146
realização os homens atuam puramente como homens, em sua essência
completamente separada do "natural". Com encobrimento e obscurecimento da
situação efetiva, a paternidade meramente humana da exploração volta então
aos homens, na forma de essência humana puramente abstrata, "espiritual" ou
intelectual, na qual o homem se desintegra juntamente com a materialidade de
seu próprio corpo. (No próximo item, analisaremos mais precisamente a dialética
do conhecimento puramente teórico ligado ao dinheiro, a "ratio", e sua questão
sobre a verdade). - Com isso, fica evidente que também na produção de
mercadorias na Antiguidade, a troca de mercadorias tem a exploração por
fundamento e constitui-se como troca entre exploradores de produtos de
trabalhadores explorados.
Contudo, a forma da economia mercantil que mais obscureceu esse estado das
coisas e que gera, de fato, maiores dificuldades para seu completo
esclarecimento, é a economia mercantil da Idade Média, que foi considerada
geralmente sob o título de "produção mercantil simples". Não há dúvidas de que
ali os produtos eram trocados por seus próprios produtores e, apesar disso, na
forma monetária, portanto como valores. Assim, parece que nesses produtos o
caráter de valor tenha surgido primariamente da troca, já que não é nenhuma
propriedade natural dos produtos do trabalho. Mas, em toda sua aparente
simplicidade, essa produção medieval de mercadorias é de fato um resultado
tardio, amplamente mediado, do desenvolvimento ocidental da exploração, que
está em sua base como forma de reflexão dialética do modo antigo de
exploração, do mesmo modo que este já era a forma de reflexão do sistema de
exploração da Antiguidade Oriental. Esse encadeamento genético das relações
de produção dos antigos impérios orientais, da Antiguidade e da Idade Média
européia é a razão pela qual acreditamos ter de retroceder até as formas iniciais
da exploração no Ocidente para explicar o capitalismo (e para sua análise
econômica).
147
mercadorias apenas desfazendo-se de seus vínculos feudais].48 Sua liberdade
burguesa, ou melhor, sua propriedade burguesa privada dos produtos de seu
trabalho, que significa a liberdade de fixar os próprios preços, é o resultado da
emancipação dos produtores explorados em relação ao domínio da terra, o
resultado da dissolução desse sistema de exploração econômico-natural. [Nesse
resultado da dissolução a terra torna-se uma alternativa, e portanto favorável à
dissolução positiva do sistema. O produtor que trabalha se torna, pela primeira
vez na história, membro da sociedade "humana", isto é, da sociedade de
apropriação (em Roma, ao contrário, a libertação dos escravos foi um mero
resultado negativo de sua dissolução e não continha nenhuma alternativa; a
humanização do trabalho foi ali somente um aperitivo, a promessa de um mero
além, como no cristianismo).] Segundo sua origem, a propriedade privada
burguesa é propriedade de produtores, não de exploradores. Mas a
transformação do produtor em proprietário, especificamente na forma individual
e autônoma de propriedade privada, depende aqui da identificação entre
produção e geração de riqueza. O artesão medieval produz seus produtos como
valor, valor de venda, e desde que sejam valores, ele é seu proprietário. Na sua
produção, o trabalho gera valor, pois a relação feudal de exploração foi superada
nele e tornou-se deste modo a própria organização da produção. [O produtor
medieval e os habitantes dos burgos ganharam a liberdade de explorarem-se a
si mesmos]. Ele cultiva sua força de trabalho até a maestria, pois ela lhe serve
como geradora de valor, e assim faz da exploração a base de sua autonomia,
como os luteranos, segundo Marx, fizeram do clero romano seu "padre interior".
[De fato, no início, a cidade também só possui sua liberdade como um privilégio
dado pelo soberano e, como corporação de seus habitantes, tem de pagar ao
soberano os tributos feudais, que antes os servos pagavam in natura aos
senhores feudais.] A tendência de emancipação das cidades frente aos
soberanos começou já com a passagem para as formas de exploração pré-
capitalistas, formas de exploração nas quais os burgueses auto-exploradores
tornam-se exploradores de outros. [O caminho vai do explorado da economia
natural feudal, através do auto-explorador na produção mercantil “simples" da
economia urbana da primeira fase, até o explorador de força de trabalho alheia
48 A propósito desses [] e dos seguintes, cf. Nota 55. Trata-se de complementos ao manuscrito
acrescentados em 1970.
148
no capitalismo inicial.] Nessa transformação de explorados em exploradores
realiza-se a inversão da relação condicionante entre troca de mercadorias e
exploração, uma inversão decisiva para o capitalismo. Enquanto em todas as
formas anteriores de produção de mercadorias a troca de mercadorias se dava
sobre as bases e de acordo com as regras da exploração, essa inversão faz
surgir uma exploração sobre as bases e de acordo com as regras da troca de
mercadorias. A exploração que daqui surge, “economicamente” condicionada,
não está mais apenas oculta na determinação formal das mercadorias, mas
acontece também nas formas da troca de mercadorias [e é assim o fenômeno
único de uma exploração de acordo com as leis de paridade da não-exploração].
A explicação encontrada por Marx para esse fenômeno é a transformação da
própria relação entre explorador e produtor numa relação de troca, em compra e
venda da mercadoria força de trabalho, de acordo com as leis da propriedade
privada burguesa desenvolvida. [A rede social de troca se perfaz como uma
perfeita separação entre propriedade e trabalho]. A rede de troca abrange a
sociedade toda e a transforma num único sistema de apropriação. Com isso, o
trabalhador explorado, como comprador de sua própria força de trabalho, torna-
?
se propriamente homem, de acordo com as regras da apropriação e o trabalho
torna-se trabalho humano abstrato, trabalho humano em geral. 49 Com a plena
efetivação da forma mercadoria e seu caráter de coisa, humaniza-se ao mesmo
tempo o seu contrário, a praxis material, completando a subjetividade teórica da
parte exploradora e fazendo da classe explorada o sujeito prático. [Isso significa
que o desenvolvimento da classe capitalista e o desenvolvimento do proletariado
são conectados dialeticamente, não apenas pragmaticamente.]
49 Sohn-Rethel - 1970: Essa oração críptica (marcada com razão por Benjamin com um ponto
de interrogação) deveria tornar-se mais inteligível através dos textos aqui introduzidos entre [].
O sentido está em reduzir a consciência do ser humano, em sentido antitético à natureza, à praxis
de apropriação dentro da sociedade - não ao trabalho. O trabalho só assume caráter “humano”
onde se encontra em relações desenvolvidas de apropriação, sendo portanto trabalho produtor
de mercadorias e trabalho explorado. Esse deslocamento importante de acento encontra-se
numa conexão indivisível com a redução da universalização à abstração da troca. - Em 1937,
tais coisas estavam ainda muito obscuras, para que eu pudesse chegar mais claramente às
consequências de meu enfoque.
50 Sohn-Rethel - 1970. Deveria ser “dimensão”. A determinação formal da troca de mercadorias
é, em sentido rigoroso, imutável. O que muda é o grau em que ela penetra na rede de conexões
149
troca depende das relações de exploração, que a fundamentam, ou que ela
superou incluindo, ou ainda que ela mesmo efetua. Partimos, portanto, da
exploração, e não da troca de mercadorias. A partir daqui, vamos nos limitar
ainda mais do que antes a uma exposição abreviada em forma de teses.
existenciais dos homens; por exemplo, se ela contribui somente para a multiplicação do consumo
- e se como mero consumo de luxo ou também como consumo de massa -, ou se ela também
penetra a produção e em que medida. Nesse sentido, de suas dimensões depende a
configuração específica assumida pela determinação formal da troca, em si e por si imutável, por
exemplo se a forma valor assume a forma de dinheiro ou não, se o dinheiro já tem a função de
capital e de que maneira, etc. Aquilo que se entende com a expressão “determinação formal”, na
frase acima, é esta configuração da troca de mercadorias.
51 Sohn-Rethel - 1970: deveria dizer: oposto antitético. Bem pode ter sido só minha maneira
errada de me expressar neste trecho aquilo que levou Benjamin a sua glosa marginal (vide nota
seguinte); pois de fato a oração afirma o mesmo que já tinha sido dito na p.183, no segundo
parágrafo.
150
propiciada pelo domínio estável dos exploradores sobre os explorados. A ratio
da exploração e de toda articulação e ordem de vida que repousa sobre a
exploração é a ratio da apropriação.
152
em ambas as mercadorias como relações recíprocas cruzadas da forma de valor
relativo e da forma equivalente. Isto é, a equivalência das mercadorias na troca
sustenta-se sobre o solo da exploração e a inclui em si como pressuposto. Ela
exprime a reflexão da exploração.
52 Sohn-Rethel, 1970: Numa conversa, Walter Benjamin tinha considerado uma “idéia excelente”
o uso do conceito de síntese para a sociedade mercantil, cuja descrição como “sociedade
sintética no sentido da borracha sintética, portanto, por esse caminho, também a ligação da
síntese kantiana com a da química”.
154
humana, possibilitadora de todo conhecimento conceitual e de toda a ciência - a
socialização dos homens em classes pela exploração. Ela é "sintética" segundo
os mesmos critérios postos pelo apriorismo na base de seu conceito de síntese,
nomeadamente uma ligação de acordo com as relações de identidade, e ela é o
tipo originário de uma tal ligação, pois a identidade surge historicamente como
caráter formal da simples existência e da coisa a partir das relações de
exploração. A síntese constitutiva, sob a qual recai todo o conhecimento, tanto
logicamente como geneticamente, é a reificação e a socialização material,
operada através da exploração. A liquidação crítica do apriorismo resume-se à
demonstração dessas afirmações, no sentido da liquidação das antinomias, nas
quais a própria razão enreda os homens pelo fetichismo da reificação.
156
7. O dinheiro e a subjetividade
159
O dinheiro é a "mercadoria universal" porque é o meio socialmente válido de
apropriação de todas as mercadorias. O dinheiro se relaciona com a mercadoria
individual, que ele compra, do mesmo modo que a ação do apropriador se
relaciona com o objeto de apropriação nas relações diretas de exploração. Na
duplicação formal da riqueza explorada em forma mercadoria e forma dinheiro,
surge a polaridade da relação de exploração reificada como relação entre as
mercadorias, enquanto uma delas, o ouro, torna-se representante exclusivo do
valor, valor que todas as mercadorias produzidas pelos explorados contêm, mas
que só se realiza no ato de apropriação pelo qual ele chega às mãos do
explorador. O dinheiro é a forma reflexiva da apropriação e, por isso, requer para
seu uso que seu possuidor se identifique com ele. Esse possuidor, tanto o antigo
como o proprietário capitalista ocidental, é apenas o explorador; pois na
Antiguidade o dinheiro é o instrumento funcional da exploração, o meio de
apropriação de escravos. Afirmamos que essa identificação do possuidor de
dinheiro com a função dinheiro, unicamente sobre a base daquilo que o dinheiro
é, constitui o ato originário da subjetividade teórica. Dada a incompletude de
nossa análise do dinheiro e de sua gênese histórica, essa construção genética
da subjetividade só é possível aqui, obviamente, de um modo indicativo e em
linhas gerais.
160
ligada em geral à unidade idêntica da função dinheiro. A identidade de todos os
sujeitos na subjetividade uniforme e geral refere-se à mera validade da função
dinheiro, que não se constitui por nenhuma propriedade do ouro, mas pela
propriedade da função do ouro (ou de uma cédula) como dinheiro, portanto algo
inteiramente imaterial. - Por outro lado, essa função dinheiro só atua na fração
monetária individual, cuja matéria define se ela paga ou não, se ela existe ou
não existe, se ela pode de fato comprar ou não mercadorias. A matéria da fração
monetária, o ouro ou o papel da cédula, serve apenas para materializar a sua
função e lhe dar a indispensável realidade para relacionar-se com outras
mercadorias reais. A matéria do dinheiro é meramente o critério da simples
? existência da função de compra e mede, com sua quantidade, a simples
existência de outra mercadoria material. Mas esta matéria, que se encontra aqui
como descrição e medida de realidade do dinheiro e das mercadorias, é apenas
reificação do trabalho, efetivo fundamento existencial das mercadorias, e
exatamente trabalho de trabalhadores explorados, seu esforço físico na
produção de mercadorias. A matéria da mercadoria e de seu equivalente, o ouro,
é "materiatur" do trabalho de trabalhadores corpóreos, corporeidade dos
escravos transferida e reificada nas mercadorias através do trabalho. Assim
como o possuidor de dinheiro identifica-se na função dinheiro identicamente
uniforme e geral como sujeito imaterial da validade, também se identifica na
matéria de seu dinheiro como corpo material igualmente puro, que provê a
simples existência da subjetividade de seus atos válidos. De acordo com a
validade de seus pensamentos, o possuidor de dinheiro é idêntico a todos os
outros possuidores de dinheiro. - Ele: portanto também os outros; ele, apenas de
acordo com sua simples existência corporal: portanto não os outros. Em relação
à posse ou não-posse do dinheiro como ouro, os exploradores excluem-se uns
?
aos outros como particulares ou "concorrentes", enquanto em relação à validade
de seu ouro como dinheiro, todos formam o mesmo grupo de exploradores. O
grupo de exploradores tem a formação de classe, embora na Antiguidade é pura
e simplesmente a classe dos homens, porque apenas o explorador é "homem",
sujeito legítimo que se reflete na posse de dinheiro, enquanto o explorado, ao
contrário, é a privação da humanidade, a coisa-homem puramente física, o
"objeto" do "sujeito". A realidade material do corpo do explorador é a realidade
material dos corpos humanos abstratos dos escravos, no entanto medida não
161
segundo o trabalho, mas pela realidade material do material do dinheiro, com o
qual ele pode comprar outras mercadorias materiais. É o corpo abstraído de todo
o trabalho, porque ele vive apenas do produto do trabalho com o qual o corpo
dos escravos se identifica. Como sujeito, o possuidor de dinheiro tem apenas a
teoria do trabalho, do qual os escravos têm apenas a praxis. Teoria e praxis do
trabalho estão separadas sobre os pólos de classe da relação de exploração.
Esses pólos não se reconhecem mais. Como se apresenta então, agora, a teoria
do trabalho, a teoria dos exploradores reificados em possuidores de dinheiro?
162
Sohn-Rethel - 1970: Distancio-me hoje decididamente dessa construção, pois ela não evita o
risco do idealismo sociológico. O tradicional idealismo cognitivo-teórico da subjetividade é
transferido para a sociedade, de onde se deduz a subjetividade. O erro está em que a teoria não
se constrói sobre uma análise fundamental da mercadoria ou da abstração da troca. Além disso,
a construção padece do fato de entender o modo antigo de pensar de acordo com o modelo
europeu, e portanto é um mal-entendido. O explorador grego não tinha a necessidade de formar
uma teoria da produção, pois podia adquirir escravos com as capacidades e habilidades
desejadas ou mandá-lo a treinamento, portanto dispunha da técnica, por assim dizer, como uma
qualidade humana natural. A filosofia grega também não conhecia o conceito de sujeito com o
qual operamos aqui. A forma como eu lia então a ordem social e a exploração antiga estava
errada. A razão teórica na Antiguidade, isto é, principalmente na filosofia grega, não era um
instrumento científico para possibilitar a produção, mas uma ferramenta ideológica para as
classes utilizadoras de dinheiro obter e manter o domínio social, um domínio que no início
abarcava toda a Polis e podia ser democrático, mas que tendia mais e mais para a oligarquia
dos grandes possuidores de dinheiro e de escravos. A base produtiva da democracia antiga, "a
base econômica das comunidades clássicas em sua melhor época", eram, de acordo com a
célebre nota de rodapé do "Capital" (I, p.299 da ed. de 1903), "a pequena produção camponesa
e o exercício independente dos ofícios". Assim era a produção antiga de mercadorias em seu
início, antes que todas as consequências da economia monetária se efetivassem, portanto "antes
de a escravidão, implacavelmente, tomar conta da produção". Só na era helenística os grandes
possuidores de dinheiro passaram de meros detentores de escravos para proprietários dos meios
técnicos de produção numa escala social cada vez maior. Somente então surgem as condições
para o aparecimento de um pensamento científico no sentido europeu posterior. É uma questão
fascinante, mas irrespondível, saber como teria sido o desenvolvimento helenista sem a
expansão do império romano e sem as invasões, se ele pudesse ter chegado por si mesmo
totalmente ao capitalismo de produção; em outras palavras, a questão de saber se o capitalismo,
de acordo com sua essência, é resultado lógico da dialética histórica ou um produto pragmático
casual.
163
O materialismo liquida a teoria do conhecimento idealista por meio da análise da
reificação e refuta a afirmação de uma síntese transcendental pela
demonstração da dedutibilidade das "categorias" a partir do ser social. A síntese
constitutiva é o processo histórico de reificação da exploração na forma de um
processo concreto de socialização dos homens, gerado pela exploração. A
sistematicidade do pensamento racional é a reflexão da sistematicidade da
reificação, desde que, com o surgimento da forma dinheiro do valor das
mercadorias, esta se tornou uma rede fechada em si de conexões mediadoras
da produção de mercadorias, isto é, tornou-se exploração por meio da mera
troca.
167
Anotações de um diálogo entre Th. W. Adorno e A. Sohn-Rethel
em 16 de abril de 196557
57 A propósito destas anotações do diálogo feitas por Adorno, que reencontrei recentemente em
meus papéis, deve-se levar em consideração que antes de minha visita a Frankfurt, em abril de
1965, eu tinha enviado a Adorno o manuscrito do trabalho escrito em setembro de 1964:Historic-
materialist Theory of Knowledge. An Outline (uma versão alemã desse texto apareceu no
Internationale Marxistische Diskussion, 19). Ele havia marcado o texto com notas marginais e
evidentemente lido cuidadosamente. Contudo, acho bom notar até que ponto ele adotou para si
o conteúdo fundamental, como pode-se concluir a partir dessas anotações aprofundadas. Bem
que eu poderia ter feito um bom uso, se tivesse me lembrado delas. A. Sohn-Rethel - 1977.
168
desenvolvimento da filosofia. O que faz da filosofia ser filosofia não é lidar com
categorias abstratas, mas tomá-las como problemas e assim lidar com elas - daí
também a contrariedade em forma de movimento. A abstração da troca não é
problemática em si, enquanto considerada meramente em suas condições e em
sua estrutura. As categorias são problemáticas por sua contradição com a
consciência tradicional e comum. Elas não são conceitos genéricos, mas ao
contrário, possuem um caráter abstrato específico, são puramente ideais; não
contradizem apenas a consciência especificamente mitológica, mas também, e
diretamente, a consciência empírica normal.
Mas o conflito das categorias entre si não se realiza em sua pureza, e sim no
objeto [na ciência, ASR]. A constituição das categorias, a reflexão da abstração
da troca como filosofia, exige a abstração (o esquecimento) de sua gênese
social, de qualquer gênese. O materialismo histórico é anamnese da gênese.
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Enquanto contraditórias à empiria, mas afirmadoras de verdade, as categorias
têm de ser mediadas com a empiria. Apenas a contradição à empiria é que as
faz serem categorias, em sua especificidade, descobríveis. O categorial só pode
se tornar explícito com a empiria. As categorias são pragmático-funcionais, elas
surgem do conflito do homem com a natureza, mediadas de forma
especificamente social, e a função social das categorias é uma função nesse
conflito, elas devem servir à existência da sociedade, e seu objeto fundamental
é a natureza, elas são formas de relação da sociedade com a natureza; elas
concebem a natureza como tal, como unidade, e elas são a condição da
sociabilidade sintética, são categorias da sociabilidade sintética.
Para afirmar-se contra o nobre, o povo teria a possibilidade de, em vez de criticar
a magia como um todo, encenar um contra-magia, e de fato não é raro o povo
apelar para o oráculo mágico em seu estabelecimento contra o nobre, para
legitimar magicamente seu desligamento das antigas formas sociais mágicas.
A troca faz a mediação da relação dos homens com a natureza, separa-os dela
na sociedade, é sociabilidade como mero meio da relação com a natureza, a
apropriação dos valores de uso para um consumo não-social.
Que caráter assumem a relação com a natureza, seu sujeito e seu objeto,
quando essa relação é mediada pela troca? Como o caráter abstrato da troca
determina a relação, da qual é um momento? Como o objeto aparece ao sujeito,
como ele aparece a si mesmo? Como se constitui pela troca o sujeito como tal,
e que papel a abstração da troca desempenha nisso?
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