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Alfred SOHN-RETHEL

Trabalho intelectual e manual

Para a epistemologia da história ocidental

Tradução
Elvis Cesar Bonassa
SOHN-RETHEL, Alfred
Trabalho intelectual e manual
Para a epistemologia da história ocidental

Tradução de
Geistige und körperliche Arbeit
zur Epistemologie der abendländischen Geschichte
Weinheim : VCH, Acta Humaniora, 1989
Bundesrepublik Deutschland
Tradutor: Elvis Cesar Bonassa

Para esta tradução, consultamos a versão feita por Cesare Giuseppe Galvan

2
ÍNDICE

Prefácio .................................................................................................................... 5
I Parte
Forma-mercadoria e forma de pensamento - Crítica da teoria do conhecimento .......... 7
1. Partir criticamente de Kant ou de Hegel? .............................................................. 7
2. Abstração intelectual ou real? ............................................................................. 13
3. A abstração mercadoria ...................................................................................... 15
4. Descrição fenomenológica da abstração da troca ............................................... 18
5. Economia e conhecimento .................................................................................. 23
6. Análise da abstração da troca ............................................................................. 28
a. Formulação do problema ................................................................................ 28
b. Solipsismo prático ........................................................................................... 33
c. A forma de trocabilidade das mercadorias....................................................... 36
d. Quantidade abstrata ........................................................................................ 40
e. O conceito de valor ......................................................................................... 41
f. Substância e acidente ...................................................................................... 45
g. Atomicidade .................................................................................................... 46
h. Movimento abstrato ......................................................................................... 46
i. Causalidade estrita........................................................................................... 48
j. A transformação da abstração real em abstração do pensamento ................... 50
7. Notas conclusivas à análise ................................................................................ 56
II Parte
Síntese social e produção ........................................................................................... 62
1. Sociedade de produção e sociedade de apropriação .......................................... 62
2. Mão e cabeça no trabalho ................................................................................... 63
3. Começo da produção de excedente e da exploração.......................................... 65
4. Troca de dádivas e troca de mercadorias ........................................................... 66
5. A sociedade clássica de apropriação .................................................................. 69
6. Fundamentos da formação da filosofia antiga da natureza ................................. 75
a. A solução do "milagre grego" pela via do dinheiro ........................................... 77
b. O materialismo histórico é a anamnese da gênese ......................................... 80
7. Do renascimento da Antiguidade à moderna ciência da natureza ....................... 83
8. A matemática como limite entre cabeça e mão ................................................... 95
9. Anotações conclusivas...................................................................................... 102
ANEXO
Exposição sobre a teoria da socialização funcional Uma carta a Theodor W. Adorno
(1936) ....................................................................................................................... 105
Para a liquidação crítica do apriorismo
Uma pesquisa materialista (março-abril 1937) .......................................................... 121
1. Intenção da pesquisa ........................................................................................ 121
3
2. Analogia ou relação de fundamentação? .......................................................... 125
3. As condições sociais de surgimento do conhecimento racional ........................ 129
4. Para a análise da forma mercadoria ................................................................. 131
5. Troca de mercadorias e exploração .................................................................. 137
6. A exploração como origem da reificação........................................................... 149
7. O dinheiro e a subjetividade .............................................................................. 157
Anotações de um diálogo entre Th. W. Adorno e A. Sohn-Rethel em 16 de abril de
1965 ......................................................................................................................... 168

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Prefácio

O trabalho intelectual de minha vida até meu nonagésimo aniversário destinou-


se a esclarecer ou decifrar uma compreensão meio intuitiva que me veio em
1921, durante meus estudos universitários em Heidelberg: a descoberta do
sujeito transcendental na forma mercadoria, um dos princípios do materialismo
histórico. Um esclarecimento satisfatório desse princípio só foi alcançado como
resultado final de sempre renovados ataques, chamados Exposés. Distingo sete
de tais ataques:
1921: Postulado: a forma mercadoria compreende em si o sujeito transcendental
(este conhecimento foi resultado do estudo palavra por palavra, durante
um ano e meio, da análise da mercadoria feita por Marx nos capítulos
iniciais de “O Capital”, em combinação com um seminário conduzido por
Ernst Cassirer em Berlim, em 1920, sobre os Prolegômenos de Kant).
1936: Esboço para uma teoria sociológica do conhecimento. Esta foi a primeira
tentativa de uma exposição completa. O termo “sociológica” (em vez de:
“marxista”) serviu como despiste perante os nazistas. O “Exposé” de
Lucerna.
1937: Liquidação crítica do apriorismo. Em Paris sob a influência de Th. Adorno
e Walter Benjamin. “Exposé” de Paris.
1950: Intellectual and Manual Labour. Escrito em Birmingham, não publicado. O
“Exposé” inglês.
1961: Forma Mercadoria e Forma de Pensamento, tentativa de uma explicação
social da origem da razão pura. Publicado na Revista da Academia da
Universidade Humboldt, Berlim (DDR). O “Exposé” de Berlim.
1970: Trabalho intelectual e manual.
1976: O dinheiro, a verdadeira moeda do a priori. O “Exposé” de Bremen.
1989: Trabalho intelectual e manual. Epistemologia da história ocidental. Nova
edição, revista e aumentada, de “Trabalho intelectual e manual”.

Também a versão aqui apresentada ainda deixa muitas questões em aberto.


Mas minhas pesquisas, empreendidas ao longo de 68 anos, tornaram possível
uma tese geral: Decifrar o fato (fechado) da síntese funcional de nossa
sociedade ocidental possibilita ao mesmo tempo reconceitualizar a filosofia
ocidental.

Adorno formulou a grandiosa proposição: o materialismo histórico é a anamnese


da gênese; e é um atestado do espírito de Adorno levar esta formulação – que
destrói o platonismo – à elegância de uma definição platônica.

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A investigação aqui apresentada trata, portanto, da alternativa entre
epistemologia idealista ou materialista. Enquanto a idealista (como a exposição
de Kant) se apresenta como um conjunto de invenções, a materialista só pode
repousar sobre um conjunto de descobertas.

Marx não estabeleceu nenhuma concepção materialista do conhecimento


científico, mas pagou tributo àquela fundada por Kant e Hegel, dominante em
sua época. A análise da mercadoria feita por Marx no começo de “O Capital”
trata da economia política, mas não se pergunta sobre a possibilidade da síntese
social em sociedades que repousam sobre o princípio da propriedade privada.
Diante disso, meus estudos dirigiram-se exatamente à investigação do nexus
social – por essa mudança de temática, as questões de economia política
tornam-se sociológicas.

Eu gostaria muito de salientar que o ponto de partida que me levou à


remodelação da análise marxista da mercadoria não foi, entretanto, a
transformação da economia em sociologia. Já por ocasião de uma palestra sobre
“Forma mercadoria e forma do pensamento” na Universidade Humboldt, em
1958, eu apontava que Marx tinha deixado de seguir sua primeira Tese sobre
Feuerbach ao tratar da investigação sobre a rede de relações coercitivas que as
sociedades ocidentais produzem.

As teorias idealistas do conhecimento, que enfrentam o escândalo de não


poderem elas mesmas explicar a faculdade das sínteses espirituais, têm sua
verdade aparente no fato de que a capacidade sintética-social dos sujeitos
individuais permanece totalmente escondida para eles mesmos: essa
capacidade é hipostasiada pelas teorias idealistas do conhecimento como
“sujeito transcendental”. Se nós, ao contrário, seguirmos o fio condutor da praxis
social efetiva, deveremos tornar possível a construção de uma teoria materialista
do conhecimento, que só pode ser uma teoria histórica.

Bremen, agosto 1989

Alfred Sohn-Rethel

Gostaria de agradecer a meus colaboradores Karim Akerma e Udo Casper, que,


com o apoio da Stiftung für Philosophie (Fundação para a Filosofia) de
Mönchengladbach e da Universidade de Bremen, tornaram possível esta edição.

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I Parte
Forma-mercadoria e forma de pensamento - Crítica da teoria do
conhecimento

1. Partir criticamente de Kant ou de Hegel?

O desenvolvimento das idéias de Kant a Hegel recebe nova luz e os pontos


relevantes deslocam-se se considerarmos esse percurso da filosofia sob o
ângulo do trabalho intelectual e do trabalho manual, de suas relações e de sua
separação radical no capitalismo.

Com isso, a filosofia sairia do enredamento conceitual e da especialização


inerentes ao pensamento filosófico para o campo de visão espaço-temporal,
histórico, e deveria se tornar compreensível mesmo para os trabalhadores
manuais. As especulações de Kant sobre a “coisa em si”, por exemplo, se
tornariam, pelo menos em parte, perfeitamente evidentes. Se apenas o trabalho
da razão teórica é posto em foco, como no caso da “Critica da Razão Pura”, se
a análise se ocupa exclusivamente com as formas conceituais do trabalho
intelectual na “matemática pura”, na “ciência pura da natureza”, com a definição
de seus limites e critérios de validade, sobretudo com sua “simples possibilidade”
assim como com seu método, então é claro que algo fica de fora: exatamente o
trabalho manual. O trabalho manual se ocupa das coisas, das quais a razão
teórica considera apenas o “fenômeno” (Erscheinung), e tem um caráter de
realidade (Realitätscharakter) diferente, que jamais poderá convir ao objeto do
conhecimento. O curso de nossa investigação mostrará que nas sociedades
produtoras de mercadorias o próprio trabalho, e apenas enquanto tal, está
ausente de todos os conceitos e é “transcendente” a eles, pois esses conceitos
todos brotam da rede de relações de apropriação formada por tais sociedades.
Este fato certamente oculta-se ao pensamento de Kant, cuja principal ambição
era provar a autonomia autofundante do trabalho intelectual, e na verdade
científico, como a de todos os demais interesses da “cultivada” classe burguesa.
E com isso a “coisa em si” rebrilha em suas diversas significações, antes de tudo
na Ética, onde o indivíduo moral se assegura de portar em si mesmo a “coisa em
si”, útil para sua liberdade.

7
Mas o dualismo, que resta do início ao fim em todo o trabalho de Kant, é um
reflexo da efetividade (Wirklichkeit) capitalista incomparavelmente mais fiel à
verdade do que os esforços de seus seguidores, que se livram do dualismo
puxando tudo para a “imanência do espírito”. Já Fichte chama Kant de “cabeça
de três quartos”, por não ter levado sua própria filosofia às últimas
consequências. O que ocorreu nesse meio tempo foi evidentemente a Revolução
Francesa, na qual a burguesia pareceu ter se apoderado de toda a realidade
(Realität) sem deixar resto, nem sequer os restos de uma realidade dada em
troca. Pode-se também dizer que após a Revolução Francesa a sociedade inteira
se transformou em forragem para o capital. Mas, sob esse aspecto, ao tempo de
Hegel e para um espírito com seu ângulo de visão, ainda não havia nada para
ser conhecido. Ele tomou a revolução no sentido pelo qual ela havia sido
entendida, leu com seus amigos Hölderlin e Schelling cada acontecimento, cada
notícia que o jornal anunciava, como fato filosófico, olhou Napoleão em sua
entrada em Iena como o "Espírito do Mundo", que ele "viu chegar a cavalo". Essa
era a "soberania do pensamento", mas também a decolagem do terreno
histórico, a extrema culminação, que punha na ordem do dia as implicações
correspondentes à efetivação da liberdade e as entendia sistematicamente, não
importando se as ruas e porões de Paris ofereciam abrigo a isso ou não. Para
Hegel não era suficiente tomar a liberdade simplesmente como exigência ou
ideal, como fora para Kant, cuja filosofia Marx chamou de “a filosofia da
Revolução Francesa”, a filosofia no estágio da revolução. Para Hegel, ela se
tornou a lei pela qual se move a efetividade (Wirklichkeit)1. Para ele, pensar e
ser não estão mais em oposição, mas se unificaram, e o mesmo vale, da mesma
forma, para todas as antíteses e dicotomias da reflexão filosófica. Essa unidade
era o que desde sempre tinha sido entendido com pensar e ser, ideal e real,
essência e aparência, forma e conteúdo, etc.; sua unidade era seu significado,
era sua verdade. Assim, a lógica se tornou dialética. As determinações
realizaram-se, mas em sua realização modificaram-se as condições de sua
realização, de modo que cada determinação, para realizar-se, desenvolver-se,

1 Os termos alemães Wirklichkeit e Realität podem ser igualmente traduzidos, em português,


por “realidade”. No entanto, referem-se a conceitos distintos, que não têm expressão adequada
nas línguas neolatinas. Adotamos a opção de verter Wirklichkeit por efetividade e Realität por
realidade, seguindo a solução de José Arthur Giannotti, Rubens Rodrigues Torres Filho e outros
tradutores que enfrentaram a mesma questão.
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para ser ela mesma, devia tornar-se algo diverso de si. A verdade tornou-se
processo gerado no tempo, que tinha sempre de coincidir com aquilo que já
existia, que se encontrava no tempo e nele se efetivava. O sinal congênito da
origem do pensamento na classe burguesa mostra-se obviamente no fato que
ele era tão-somente pensamento; a dialética, pura lógica; a realização, nada
senão filosofia; o efetivar-se não ocorrer senão na "imanência do Espírito". O
Ser, uno com o pensar, não era o ser espaço-temporal das coisas e relações da
história factual e dos fatos históricos, e sim o Ser da cópula do "eu sou eu", que
Hegel tornou ponto de fundação da lógica; portanto não era nada senão o ser do
pensar mesmo, o ser com o qual o pensar se confunde pensando, e, falando de
modo materialista, o auto-reflexo da plena hegemonia burguesa de classe. De
todas as filosofias que "só interpretam o mundo diferentemente" sem "mudá-lo",
a de Hegel é a mais evidente, mesmo porque ela dissipa a forma da mudança
do ser, a própria dialética, em nada senão "idéia". E para servir a Marx, a dialética
precisou de fato ser "virada", melhor: ser revirada e revirada. Ela precisou
sobretudo deixar de ser lógica.2 Na luta de classes, para mudar a efetividade é
certamente necessário pensar dialeticamente, e para aprender isso pode-se ir à
escola de Hegel, talvez até seguindo a sugestão de Lênin de fundar "uma
sociedade para a cura da dialética hegeliana". Mas não é por causa da lógica de
Hegel que a dialética está no marxismo. A dialética marxista vale para o ser
social, pois o marxismo quer fazer desse ser uma efetividade (Wirklichkeit), na
qual a realidade (Realität) tenha sentido e tal sentido se torne real (real), e
também na qual a sociedade humana saia de sua “pré-história”, onde não passa
de joguete das necessidades naturais. Para este objetivo, a história humana em
sua totalidade precisa ser pensada sob um postulado metodológico, segundo o
qual a possibilidade desse objetivo, a real possibilidade de sua efetivação, seja
conceituada já como o próprio determinante, a lei natural que submete a história
humana, ou seja, como a verdade subjacente a todos os acontecimentos. Esse
postulado metodológico é o materialismo histórico. Com tal expressão,
"materialismo histórico", entende-se que a história humana é parte da história
natural, ou seja, é dominada, em última instância, por necessidades naturais.

2 Para o entendimento de que a dialética não pode ser lógica, os trabalhos de Galvano della
Volpe ofereceram preciosas contribuições.
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Estas necessidades naturais tornam-se humanas, e a natureza experimenta sua
continuação na forma da história humana lá onde começa o trabalho.

A base natural dos homens e o "materialismo" da história humana estão no fato


de que eles não vivem gratuitamente em um país de delícias, nem são nutridos
cegamente pela natureza como os animais, mas vivem na medida de seu
trabalho, em virtude da produção por eles mesmos planejada, empreendida e
concluída. "Na produção de sua vida...", assim soam as palavras com as quais
Marx começa sua exposição dos princípios da concepção materialista da
história. Seria também possível afirmar que a lei fundamental do materialismo
histórico é a lei do valor. Mas a lei do valor só começa quando o produto do
trabalho humano excede a pura necessidade natural e se torna "valor" inter-
humano. Esse é o limiar onde começam a troca de mercadorias e a exploração,
e, portanto, dito de modo não marxista, onde começa o "pecado original", ou,
dito marxistamente, onde se introduzem a "reificação" (Verdinglichung) e a
"autoalienação" (Selbstemtfremdung) dos homens, sua depravação ou danação,
seu ofuscamento ou cegueira, a causalidade natural socialmente gerada da
economia e o domínio da naturalidade, que é deixado aos homens superar,
quando o tempo for chegado. A lei do valor torna-se, em outras palavras, a lei
fundamental do materialismo histórico no período da sociedade de classes. De
que modo, então, a dialética insere-se nas instâncias marxistas: materialismo
histórico, lei do valor, sociedade de classes, economia, autolibertação dos
homens de sua pré-história? De acordo com a concepção aqui defendida, a
dialética não está no pensamento marxista como a dialética hegeliana está na
lógica de Hegel. Ela também não está na história como componente de sua
facticidade. Se um positivista insistir em classificar pedras como pedra, fatos
como fato, para registrar a “verdade “, não verá a dialética nunca e em lugar
nenhum. Com efeito, a dialética está na história, mas se mostra apenas para
alguém que a considere sob o postulado metodológico do materialismo histórico.
E a dialética se mostra a esse alguém porque é, como Hegel a desenvolveu,
unidade de pensamento e ser, sentido e realidade (Realität), e essa unidade,
entendida de modo materialista, forma a essência da história humana desde o
início, mesmo que ele, não conhecendo nada melhor do que fenômenos, nunca
precise esclarecer nada dessa essência.

10
Quem foi então o padrinho de Marx: Hegel ou Kant? A resposta é menos simples
do que comumente se supõe. Uma perigosa tentação de ignorar o problema do
conhecimento em relação à natureza impera em toda a concepção do
materialismo histórico regada a dialética. A natureza surge por meio do trabalho,
de seus materiais, forças, instrumentos, ferramentas, sempre como fator já dado,
dominado e incluído na história humana. Sua causalidade material nunca atua
sobre a história como constante, mas de acordo com o grau de desenvolvimento
das forças de produção, nas quais eventualmente ocorrem perdas, mas no
essencial cada época se ergue sobre as costas da outra, por mais inócuas que
possam parecer aos homens as consequências nas relações sociais de
produção. A natureza aparece, portanto, sempre inserida na história como
matéria já digerida pela praxis da produção. O conhecimento da natureza e a
ciência aí exigidos são tratados por Marx com ares de obviedade. Parece não
haver aqui lugar para nenhum problema do conhecimento no estilo kantiano. E,
no entanto, ele efetivamente se coloca.

Evidentemente, ele não está, como em Kant, nos fundamentos da filosofia, como
questão a-histórica do “conhecimento enquanto tal” ou ainda da “possibilidade
da experiência”. Ele se coloca porém como fenômeno histórico específico – em
sua forma já completa na Antiguidade Clássica e depois sobretudo na
Modernidade européia – devido à separação entre trabalho intelectual e manual,
que se desenvolve junto à produção de mercadorias sobre o solo da divisão de
classes. Aqui se coloca um problema teórico do conhecimento, pelo fato histórico
de que as formas do conhecimento da natureza se descolam da praxis de
produção material, autonomizam-se perante ela e brotam, portanto, de fontes
diversas daquelas do trabalho manual. Não é de modo algum evidente que
fontes possam ser essas, ainda que se partilhe da crença em uma “capacidade
de entendimento” originária e inata ao homem, oferecida pela teoria do
conhecimento tradicional. O fenômeno mesmo, pelo menos em sua moderna
forma européia, é exatamente aquele para o qual valem as questões kantianas:
Como é possível a matemática pura? Como é possível a pura ciência da
natureza? Como são possíveis os juízos sintéticos a priori? A teoria com as quais
Kant as respondeu estava apoiada em minuciosas análises de mais de dez anos
do método de Galileu e da física de Newton, completadas e testadas por
trabalhos próprios em ciência natural, e em partes essenciais essa teoria se
11
constituía simplesmente de conclusões tiradas a partir dos resultados assim
obtidos. Não há dúvida de que a “pura ciência da natureza” é possível, pois ela
é um fato; consequentemente, é preciso perguntar como ela é possível. Este era
o modo de argumentação de Kant, e o materialista histórico necessita da mesma
argumentação, se ele se der suficientemente conta, por exemplo, de quão
essencial e intimamente a separação entre trabalho intelectual na ciência da
natureza e trabalho proletário manual se relaciona com a dominação econômica
do capital sobre a produção. A dominação econômica não poderia ser exercida
pelo capital se a tecnologia fosse coisa dos trabalhadores. O problema do
conhecimento formulado por Kant se coloca, desse modo, no campo, induzido
por Hegel, do materialismo histórico. Em vez de Kant ou Hegel, por assim dizer,
tem-se Kant no quadro de Hegel. Na verdade, não se trata nem de um nem de
outro, mas dos modos de aparecimento do trabalho intelectual em sua separação
do trabalho manual enquanto problema inerente ao materialismo histórico.

Sublinhe-se que tal problema possui um significado que assume, no presente,


proporções monstruosas. Quem fala hoje em revolução da sociedade,
transformação do capitalismo em socialismo ou da simples possibilidade de uma
ordem comunista poderá ser acusado de absurdo, se não souber de que modo
ciência e técnica científica se inserem na história, de onde provêm, qual a origem
e a natureza de sua forma conceitual, se não souber, portanto, como a sociedade
deve dominar o desenvolvimento da ciência, ao invés de ser dominada e
subjugada por ele. Nas teorias do conhecimento correntes, porém, as formas
conceituais do trabalho intelectual científico e filosófico não se concebem de
maneira nenhuma como fenômeno histórico. Ao contrário. A forma conceitual do
modo de pensar das ciências da natureza se caracteriza em geral pela a-
temporalidade histórica de seu conteúdo. Nas teorias do conhecimento, essa a-
historicidade é aceita como fundamento dado. Uma explicação histórica da
origem é considerada impossível ou simplesmente ignorada. Obviamente, a
ciência da natureza de uma ou outra época também não é tomada pelas teorias
do conhecimento como fenômeno do trabalho intelectual que tem
necessariamente de estar numa determinada relação social de separação do
trabalho manual de dado tipo. Tais critérios de pensamento pertencem ao
materialismo histórico, os quais, embora contenham essa possibilidade, foram
pouco explorados na crítica das teorias do conhecimento. É isso que deve ser
12
reparado na presente investigação, na convicção de que uma teoria fundamental
da história do trabalho intelectual e do trabalho manual contribuiria para a
complementação e a continuação essenciais ao conhecimento marxista.

Estas considerações preliminares deveriam explicar como se deve proceder


para isso, ou seja, a metodologia. Mas, de fato, é antes ao aplicá-la e pressupô-
la que se chega a resultados relevantes. Só então se torna visível aonde a
correspondente metodologia conduz. Seria abusar da paciência do leitor propor
uma metodologia ab ovo. Isso não significa que não se atribua nenhum valor a
ela. Ao contrário, a metodologia possui um valor tão grande que só se deixa
avaliar adequadamente com o pleno conhecimento da investigação. Por isso, ela
está colocada em apêndice. Naturalmente cada qual está livre para inverter a
sequência, se lhe aprouver.

2. Abstração intelectual ou real?

Forma do espírito e forma da sociedade têm em comum o fato de serem


"formas". O pensamento de Marx caracteriza-se por uma concepção das formas
que o diferencia de todos os outros. Ele parte de Hegel, mas para logo se afastar.
Forma é, para Marx, algo temporalmente condicionado. Ela surge, desaparece
e transforma-se no tempo. Entender a forma como ligada ao tempo é sinal de
pensamento dialético e deriva de Hegel. Mas em Hegel o processo de origem e
mudança das formas, conforme exposto acima, é originariamente um processo
do pensamento. Ele constitui a lógica. Mudanças de forma de outro tipo, como
na natureza ou na história, somente são inteligíveis para Hegel em relação e
analogia com a lógica. A concepção hegeliana da dialética atua de tal modo que
autoriza não só o primado do espírito sobre a matéria, como sua total
monocracia.

Para Marx, ao contrário, o tempo, que domina a gênese e a mudança das formas,
é entendido antes de tudo como histórico, natural ou humano.3 Por isso não se
pode afirmar de princípio nada sobre as formas. Uma Prima Philosophia de

3 "Nós conhecemos só uma única ciência, a ciência da história. A história pode ser considerada
em duas partes e subdividida em história da natureza e história dos homens. Ambas as partes
não são entretanto separáveis do tempo..." Ideologia alemã, Feuerbach (cf. Frühschriften, ed.
S.Landshut e J.P.Mayer, v.I, p.10).- O parágrafo que começa com essas frases foi riscado no
manuscrito por Marx, mas mantém seu valor como expressão de seu pensamento.
13
qualquer tipo está excluída do marxismo. O que se pode afirmar precisa primeiro
ser encontrado pelas investigações. O materialismo histórico é, como dissemos,
só o nome para um postulado metodológico, e mesmo este foi encontrado por
Marx como "resultado de seus estudos".

Assim, não se pode deixar de considerar os processos de abstração que atuam


na constituição das formas históricas da consciência. A abstração equivale a
uma oficina de formação dos conceitos, e se o discurso sobre a determinação
social do ser da consciência deve possuir um sentido formalmente adequado,
então deve-se poder colocar em seu fundamento uma concepção materialista da
natureza do processo de abstração. Uma formação da consciência a partir do
ser social pressupõe um processo de abstração, que é parte do ser social.
Somente esse fato pode tornar inteligível o que se entende com a afirmação de
que "o ser social dos homens determina sua consciência". Mas com uma tal
concepção o materialista histórico está em contradição inconciliável com toda a
filosofia teórica tradicional. A tradição inteira do pensamento teórico afirma que
a abstração é a atividade própria e o privilégio exclusivo do pensamento. Falar
em abstração em um sentido distinto da abstração do pensamento passa por
inadmissível, a menos que se empregue tal palavra num sentido estritamente
metafórico. Ora, com base em tal concepção o postulado do materialismo
histórico se tornaria inaplicável. Se o processo de formação da consciência,
nomeadamente a abstração, for assunto exclusivo da própria consciência, então
permanece um abismo entre a forma da consciência, por um lado, e a suposta
determinação de seu ser, por outro lado, abismo que o materialista histórico
contesta em princípio, mas de cuja superação ele in concreto não pode
satisfatoriamente dar conta.

Obviamente, deve-se considerar que a própria tradição do pensamento teórico,


desde seu começo com Pitágoras, Heráclito e Parmênides, é produto da
separação entre trabalho intelectual e manual, uma tradição de trabalhadores
intelectuais para trabalhadores intelectuais, e isso pouco mudou até hoje. O
testemunho desta tradição, ainda que se apresente numa ininterrupta
unanimidade, não tem, portanto, nenhum valor incontestável para o ponto de
vista de um pensamento que se situa na outra margem. E nós reconhecemos na
análise da mercadoria feita por Marx no início de O capital e já no texto Para a

14
crítica da economia política de 1859 uma significação sem par para o
pensamento materialista, baseados no fato de que aqui se fala de abstração num
sentido diverso daquele da abstração do pensamento.

3. A abstração mercadoria

Em sua análise da forma mercadoria, Marx fala em "abstração mercadoria" e em


"abstração valor". A forma mercadoria é abstrata, e em todo o seu círculo reina
a abstração. Em primeiro lugar, o próprio valor de troca é valor abstrato, em
contraposição ao valor de uso das mercadorias. O valor de troca é passível
somente de diferenciação quantitativa, e a quantificação que aqui se apresenta
é, por sua vez, de natureza abstrata em comparação com as múltiplas
determinações dos valores de uso. O próprio trabalho, como Marx sublinha com
particular ênfase, torna-se, como fundamento da determinação da grandeza e
substância do valor, “trabalho humano abstrato", e enquanto tal nada senão
trabalho humano em geral. A forma sensível em que aparece o valor da
mercadoria, isto é, o dinheiro, seja em moedas de ouro seja em cédulas, é uma
coisa abstrata e, assim tomada, uma contradição em si. No dinheiro, a riqueza
se torna riqueza abstrata, à qual já não se colocam mais limites. Como possuidor
de tal riqueza, o próprio homem torna-se homem abstrato, e sua individualidade,
a essência abstrata do proprietário privado. Uma sociedade na qual a circulação
de mercadorias forma o nexus rerum é, finalmente, uma rede de conexões
puramente abstrata, na qual todo concreto se encontra em mãos privadas.

Mas a essência da abstração mercadoria consiste em que ela não é um produto


mental, nem tem sua origem no pensamento do homem, e sim em suas ações.
Contudo, isso não confere a seu conceito uma significação puramente
metafórica. Ela é abstração no sentido literal rigoroso. O conceito econômico de
valor, que daí resulta, caracteriza-se por uma total ausência qualitativa e por uma
diferenciabilidade puramente quantitativa, e pela aplicabilidade a qualquer tipo
de mercadoria ou serviço que chegue ao mercado. Com estas propriedades, a
abstração econômica do valor possui de fato semelhanças externas marcantes
com categorias básicas do conhecimento quantificador da natureza, sem que
obviamente fosse perceptível a mínima relação interna entre esses dois planos
totalmente heterólogos. Enquanto os conceitos do conhecimento da natureza
são abstrações mentais, o conceito econômico de valor é uma abstração real. E
15
embora ele não exista em nenhum outro lugar senão no pensamento humano,
ele não surge do pensamento. Ele é imediatamente de natureza social, tem sua
origem na esfera espaço-temporal do intercâmbio entre os homens. Não são as
pessoas que criam essa abstração, mas suas ações, suas ações mútuas. “Elas
não sabem disso, mas o fazem”.

Para entender adequadamente o empreendimento de Marx na Crítica da


economia política, é preciso reconhecer que o fenômeno da abstração
mercadoria ou abstração valor, descoberto na análise da mercadoria, tem o
caráter de uma abstração real. É isso que julgamos indispensável. Por outro
lado, a descoberta feita por Marx da abstração mercadoria, assim entendida,
encontra-se em contradição inconciliável com toda a tradição do pensamento
teórico, e tal contradição deve ser levada a um ajuste crítico. Por ajuste crítico
entenda-se aqui um procedimento em que nenhuma das duas teses,
contraditórias entre si, é tomada como verdadeira, mas no qual, com a aplicação
de critérios críticos, deverá ser descoberto qual delas é a verdadeira.

Marx não levou um tal ajuste até seu completo desenvolvimento, e eu estou
inclinado a concordar tanto com Louis Althusser como com Jürgen Habermas,
de que nos fundamentos teóricos do Capital está em questão algo muito mais
importante e profundo do que o expresso pela análise econômica. Louis
Althusser acredita que o Capital deva ser lido como resposta a uma questão
subentendida mas não formulada por Marx.4 Jürgen Habermas vai mais longe e
acusa Marx de ter ignorado as implicações de seu pensamento na teoria do
conhecimento. Eu também concordo com Habermas sobretudo em que, se tais

4 Ler o Capital de L.Althusser, Jacques Rancière, Pierre Macherey, Étienne Balibar e Roger
Establet, 2 vv., François Maspéro, Paris, 1965, 1967. - Eu poderia concordar com a intenção
desse empreendimento, se a estrutura fundamental, para a qual se dirige a pesquisa, fosse
reconhecida como roupagem formal da abstração, com a qual ela pode exercer seu poder
estrutural ativo. Mas exatamente o explanação de Marx da "abstração mercadoria" é entendida
metaforicamente, enquanto deve ser tomada literalmente. Assim Althusser acha necessário
sublinhar "que la production de la connaissance ... constitue un processus qui se passe tout entier
dans la pensée". (vol.I, p.51). A rede formal (Formzusammenhang) que a estrutura buscada
deveria constituir aqui é, ao contrário, cindida e dilacerada. O tema geral não proclamado do
Capital e de sua fundamentação na análise da mercadoria é a abstração real ali descoberta. Seu
alcance estende-se para além da pura economia, chegando a afetar a filosofia tradicional muito
mais diretamente que a economia política. Somente com o conhecimento desse alcance é que
se pode atacar a questão materialista da forma e da estrutura, inclusive no que se refere à
questão da verdade e das normas. Se esta questão tivesse sido colocada por Marx com tal
abrangência, então ele teria sido obrigado a reconhecer que sua concepção da abstração-
mercadoria no Capital seria ou insustentável(sendo uma pura metáfora e uma imagem enganosa
da abstração) ou então incompleta.
16
implicações forem tomadas e levadas consequentemente até o fim, a própria
teoria do conhecimento passará por uma transformação radical: a metamorfose
em teoria da sociedade.5 Acredito, no entanto, que se escapa mais eficazmente
das armadilhas da tradição de pensamento idealista e epistemológico ao não se
falar mais em “teoria do conhecimento”, mas da separação entre trabalho
intelectual e manual. Com isso, todo o problema se equaciona sobre o
denominador de seu significado prático.

Não submeter a contradição entre a abstração real em Marx e a abstração


intelectual da teoria do conhecimento a um ajuste crítico significaria admitir a
falta de relação entre as formas de pensamento das ciências naturais e o
processo social histórico. Ficaríamos na separação entre trabalho intelectual e
trabalho manual. Mas, sobretudo, admitiríamos a dominação social de classes,
ainda que na forma da dominação burocrática socialista. O descuido de Marx
com a teoria do conhecimento resultou na ausência de uma teoria da relação
entre trabalho intelectual e trabalho manual, ou seja, num descuido teórico para
com uma pré-condição reconhecida pelo próprio Marx como essencial para a
socialização sem classes.6 O apelo ao significado prático do problema não deve
diminuir seu valor teórico. Este valor não está em uma concepção cerrada em si
mesma do marxismo, mas numa concepção cerradamente crítica do
pensamento marxista, motivada pelo objetivo de uma sociedade sem classes,
sua possibilidade e as condições de sua efetivação, de forma não
dessemelhante ao primado da razão prática sobre a razão teórica em Kant. A
similitude vai ao ponto de que a possibilidade da liberdade de uma sociedade
sem classes depende da concepção cerradamente crítica de nosso pensamento
marxista.

Às condições de uma sociedade sem classes, nós entretanto acrescentamos,


em consonância com Marx, a unidade do trabalho intelectual e manual ou, como
ele diz, o desaparecimento de sua separação. E afirmamos mesmo que, sem
uma suficiente compreensão da separação entre trabalho intelectual e manual e
dos fundamentos precisos de seu aparecimento, não se pode obter a mínima
visão das reais possibilidades e das condições formais de uma sociedade sem

5 Jürgen Habermas, Erkenntnis und Interesse. Frankfurt/M, Surkamp, 1968. Sobretudo I Parte,
por ex. p.58-59, e o cap.3: "A ideia de uma teoria do conhecimento como teoria da sociedade".
6 Cf. a "Crítica do Programa de Gotha" e a Ideologia Alemã, op. cit., p. 22.

17
classes. Tal compreensão está ligada ao pressuposto de que as formas
conceituais do conhecimento, que constituem o objeto específico da teoria do
conhecimento desde a filosofia grega, podem ser rigorosamente deduzidas do
mesmo plano ao qual pertence o trabalho manual, o plano da existência social.
A verificação desse pressuposto é o problema que está agora em investigação.
Esta investigação considera metodologicamente que a unidade entre cabeça e
mãos seria factível em uma sociedade futura.

A tarefa é a demonstração crítica da abstração mercadoria. Isto é o mesmo que


formulamos acima sob o nome de “ajuste crítico”. A primeira coisa a ser
demonstrada é o estatuto formal da abstração, em um sentido da palavra
admissível pela teoria do conhecimento, e depois seu caráter real, de um modo
que não possa ser contestado pelos argumentos da teoria do conhecimento. A
demonstração da abstração mercadoria deve, portanto, trazer consigo a crítica
terminante da teoria do conhecimento em seu entendimento tradicional, cujo
critério é o de que a teoria do conhecimento implica a impossibilidade formal de
uma unidade entre trabalho manual e o trabalho intelectual das ciências da
natureza. Pode-se certamente esperar um conceito mais preciso desta unidade
como resultado da pesquisa sobre a separação dos dois e os fundamentos de
sua origem.

A demonstração crítica da abstração mercadoria deve ser antecedida por uma


determinação do próprio fenômeno.

4. Descrição fenomenológica da abstração da troca

O conceito formulado por Marx de abstração mercadoria refere-se rigorosamente


ao trabalho que é incorporado às mercadorias e determina a grandeza de seu
valor. O trabalho criador de valor é definido como "trabalho humano abstrato" em
contraposição ao trabalho útil e concreto, criador de valor de uso.

Ora, nem o trabalho é abstrato por natureza, nem sua abstração em "trabalho
humano abstrato" é obra dele próprio. O trabalho não se abstrai a si mesmo. O
lugar da abstração está fora do trabalho, na forma de relacionamento
socialmente determinada da relação de troca. Obviamente, de acordo com a
concepção de Marx, também a relação de troca não se abstrai a si mesma. Ela

18
abstrai, ou melhor, abstratifica o trabalho. O resultado dessa relação é o valor da
mercadoria. O valor da mercadoria tem a relação de troca abstraidora como
forma e o trabalho abstratificado por substância. Nessa relação abstrata de
determinação da “forma valor”, o trabalho, enquanto “substância do valor”, torna-
se o fundamento puramente quantitativo da "grandeza do valor". No primeiro
volume de “O Capital”, a análise da mercadoria ocupa-se apenas com a
essência, tanto da grandeza do valor como da forma valor; as relações
quantitativas de troca das mercadorias, como elas de fato “aparecem” na história,
serão explicadas muito depois, no terceiro volume. (Para uma compreensão
adequada da dialética e da sistemática internas da obra principal de Marx,
mencionemos aqui os estudos excelentes de Rosdolsky e de Reichelt.) Como
Marx também forneceu uma apresentação rigorosa da relação essencial entre
as formas sociais de troca, de um lado, e o trabalho, de outro, seria preciso
propor discussões críticas e analíticas sobre isso, mas elas iriam complicar e
atrasar tanto o presente trabalho que preferimos deixá-las para um anexo. O que
nos interessa aqui não é o conjunto de relações, mas apenas um aspecto parcial,
o do poder de abstração devido à troca de mercadorias, não ao trabalho. "O
processo de troca confere às mercadorias, que ele transforma em dinheiro, não
seu valor, mas sua forma específica de valor." (Marx, O Capital, MEW, 23,
p.105). Falamos, portanto, a seguir em abstração da troca, não em abstração
mercadoria. Como descrever agora a abstração da troca isoladamente, como
puro fenômeno?

A troca de mercadorias é abstrata porque, além de ser distinta do uso, está


temporalmente separada dele. Troca e uso excluem-se mutuamente no tempo.
Enquanto objetos de troca situados no mercado, as mercadorias não podem ser
usadas nem pelos vendedores nem pelos clientes. Elas ficam disponíveis para
o uso somente depois de completada a transação, e, portanto, após sua
passagem para a esfera privada do comprador. No mercado, nas lojas, nas
vitrines etc., as mercadorias, paralisadas, estão à disposição para um único tipo
de manuseio: sua troca. Sob cada mercadoria com preço definido, por exemplo,
encontra-se a ficção de que ela está a salvo de qualquer mudança, e não apenas
daquelas provocadas pelos homens. Supõe-se até que a natureza suspenda sua
respiração sobre o corpo da mercadoria enquanto o preço permanecer o mesmo.
Isso acontece porque a troca altera exclusivamente o status social da
19
mercadoria, seu status enquanto propriedade de seu possuidor, e para que essa
mudança social possa se dar de acordo com seu ordenamento e regras próprias
é preciso que as mercadorias estejam simultaneamente a salvo de qualquer
mudança física, ou pelo menos que possam passar por materialmente imutáveis.
A troca é, portanto, abstrata durante o tempo em que ocorre. E "abstrata" neste
caso significa a subtração de todos os indícios do possível uso das mercadorias.
“Uso”, entendido como produtivo tanto como voltado para o consumo, é aqui
sinônimo de todo o campo de metabolismo material entre homem e natureza, no
sentido de Marx. "Em contraposição direta à rude objetividade sensível dos
corpos das mercadorias, nenhum átomo de matéria natural entra em sua
objetividade de valor". (O capital, MEW, p.62). Onde o nexus rerum social se
reduz à troca de mercadorias, é preciso que as atividades vitais físicas e
espirituais sejam esvaziadas, para que nesse vácuo ela crie sua própria rede de
socialização. A troca de mercadorias é pura socialização enquanto tal, por meio
de uma ação que possui esse único conteúdo, isolado de todos os demais.
Contudo, isso vale somente para os atos da troca, os atos recíprocos de entrega
da propriedade, mas não vale para a consciência daqueles que trocam.

Pois, se o uso das mercadorias é eliminado das ações dos interessados durante
a troca, ele não é absolutamente banido de seus pensamentos. Ao contrário. O
uso e a utilidade das mercadorias que são trocadas no mercado ocupam
vivamente o pensamento dos clientes. Esse interesse não é de modo algum
apenas presumido. Os clientes têm o direito de assegurar-se do valor de uso das
mercadorias. Podem observar, eventualmente tocar, experimentar, provar, ver
uma demonstração de seu uso, e o uso demonstrado precisa ser o mesmo para
o qual a mercadoria deve ser adquirida. No entanto, a demonstração das
mercadorias no mercado serve apenas para instrução teórica e formação da
opinião do cliente, restrita ao simples valor de conhecimento e milimetricamente
distinta da praxis do próprio uso, embora empiricamente ambos sejam totalmente
indistinguíveis. A praxis do uso é banida da esfera pública do mercado e pertence
exclusivamente ao domínio privado do proprietário da mercadoria. No mercado,
o uso das coisas permanece “pura apresentação” para os interessados. Com o
desenvolvimento do mercado, a imaginação separa-se da ação humana e
individualiza-se cada vez mais como sua consciência privada. A origem desse

20
fenômeno não está na esfera privada do “uso”, mas na esfera pública do
mercado.

Abstrata não é, portanto, a consciência dos agentes da troca, mas apenas sua
ação. Por serem necessárias tanto a abstração do ato como a não-abstração da
consciência que o acompanha, os agentes não percebem a abstração da troca.
Ela foge de suas consciências. Ao mesmo tempo, a falta de consciência dos
homens em relação à abstração de suas trocas não é nem fundamento nem
condição dessa abstração.

Esta pura fenomenologia da abstração da troca já sugere que o sentido da


palavra “abstrato” compartilha das mesmas características formais de seu uso
na teoria do conhecimento. Denominamos “abstrato” aquilo que não é empírico,
e o uso excluído da troca corresponde, nesse âmbito, ao conceito de empiria
dentro de seus limites práticos. O que está além desses limites, ou seja, as
propriedades da mercadoria que sejam irrelevantes para seu uso, subtrai-se à
empiria do uso, que, por sua vez, também não está de nenhum modo ligada à
troca. Esta é abstrata no sentido do não-empírico, independentemente de quão
amplos ou estreitos foram os limites do uso das mercadorias nas várias épocas
de sua produção. De resto, o que está em questão aqui não é a igualdade, mas
a profunda semelhança da abstração nos campos da troca e da teoria do
conhecimento. Nada mais entra em consideração neste momento da reflexão.

Aqui deve ser apontada uma outra contradição da abstração mercadoria e sua
respectiva abstração de troca. A ação da troca exige prescindir por completo do
uso (e das propriedades empíricas dos objetos trocados). Ela exerce assim a
negação radical da realidade física do uso. Apesar disso, ela mesma é uma ação
física: tira a mercadoria trocada da propriedade do vendedor e a desloca para a
propriedade do comprador, movimentando o dinheiro do pagamento na direção
oposta. A isso denomino fisicalidade da ação de troca. Evidentemente, a ação
da troca deve ser distinguida do transporte, o qual - por difícil e complicado que
seja - tem só que providenciar que a carga chegue intacta ao cliente.

Torna-se necessário dizer uma palavra sobre essa nova concepção da essência
da abstração. Eu considero a pura abstração em sua forma geneticamente
originária como uma propriedade do ser social. Ela é parte imprescindível da

21
síntese da sociedade funcional, que caracteriza a história ocidental. De um ponto
de vista burguês, todos os conceitos puros, desprovidos de realidade
perceptível, apresentam-se como criações do pensamento. De fato, não se pode
encontrar na composição corporal das pessoas nenhum fundamento que possa
corresponder a tais conceitos. Hegel, no ponto mais elevado do pensamento
burguês, serve-se da filosofia do espírito para fundamentar a posição do
idealismo absoluto. De um ponto de vista materialista, ao contrário, o
pensamento puro se apresenta como a socialização do pensamento, provocada
pela abstração social real da troca. Eu sustento, portanto, a tese da origem social
do entendimento puro. Esta tese pode ser sustentada por meio da dedução dos
conceitos puros do entendimento a partir do ser social, mais exatamente a partir
da fisicalidade abstrata da troca. Esta dedução oferece a contrapartida à difícil
"dedução transcendental dos conceitos puros do entendimento" de Kant, que foi
chamada por Hegel de "puro idealismo".7

O caráter real da abstração da troca tampouco pode ser colocado em dúvida. A


abstração da troca é efeito direto de uma causalidade por manipulação e não se
apresenta de forma nenhuma imediatamente no conceito. Ela surge como
resultado do fato de não acontecerem operações de uso durante o tempo e no
lugar onde ocorre a troca. Geralmente há leis, ou pelo menos regras de mercado,
para garantir essa exigência fundamental na troca de mercadorias. Mas a
abstração não é um efeito nem da lei enquanto tal, nem das proibições que
punem quem infringe aquela exigência fundamental. A abstração é um processo
espaço-temporal; ela acontece pelas costas dos participantes. Aquilo que a torna
tão dificilmente perceptível é o caráter negativo de sua constelação, que se funda
exatamente na pura ausência de um acontecer. O tempo e o espaço são aqui
“preenchidos” pelo não-acontecer do uso no âmbito da troca, pelo vazio do uso
e a esterilidade, que se estendem pelo lugar e pelo tempo requeridos pela
transação. Por isso, cada ação de troca realizada não é abstrata de modo
apenas acidental, ela é essencialmente abstrata, pois de outro modo, sem as
circunstâncias que efetivam a abstração, ela nem teria podido ocorrer.

7 "No princípio desta dedução esta filosofia é puro idealismo" (G.W.F. Hegel, Differenz des
Fichte'schen und Schelling'schen Systems der Philosophie, Jena, 1801, p.1).
22
5. Economia e conhecimento

Diferentemente do que ocorre na troca, entende-se aqui o "uso" das mercadorias


tanto no sentido produtivo como no sentido do consumo e, numa produção
mercantil completamente desenvolvida, como sinônimo daquele conjunto que
Marx compreende como o processo de metabolismo material do homem com a
natureza. Na pressuposição de que deixa de lado o uso, mais precisamente as
ações de uso, a troca postula o mercado como um vácuo no processo humano
de metabolismo com a natureza, delimitado temporal e localmente. Nesse vácuo,
a troca de mercadorias processa a socialização como tal pura para si, in
abstracto. Nossa questão sobre a possibilidade da socialização pelas formas de
troca de mercadorias pode então ser formulada como a possibilidade da
socialização desligada do processo humano de metabolismo material com a
natureza. O que torna a troca capaz de exercer sua função socializadora ou,
como digo, sua função sócio-sintética, é o fato de ser abstrata. Então, nossa
questão inicial poderia ser: Como é possível uma pura socialização? - segundo
os mesmos critérios de "pureza" que subjazem ao conceito de "ciência pura da
natureza" em Kant. Com isso, o ponto de partida de nossa pesquisa implica a
tese de que há uma questão de conteúdo: Como é possível uma pura
socialização? Ela contém a chave para a solução espaço-temporal da questão
kantiana sobre as condições de possibilidade de uma ciência pura da natureza.
Esta questão, concebida de modo idealista por Kant, traduz-se em termos
marxistas: Como é possível um conhecimento seguro da natureza a partir de
fontes que não sejam aquelas do trabalho manual? Trazida a esta forma, a
colocação do problema põe em mira o ponto em que a separação entre trabalho
intelectual e manual irrompe como condição socialmente necessária do modo de
produção capitalista. Estes corolários da formulação da questão devem tornar
precisos os nexos sistemáticos, graças aos quais a análise ampliada das formas
da abstração mercadoria, aqui empreendida, serve aos objetivos da crítica
materialista-histórica da teoria do conhecimento - em complemento à crítica da
economia política feita por Marx. Expliquemos isso mais em detalhe.

Na troca de mercadorias, a ação e a consciência, o agir e o pensar dos atores


da troca separam-se e percorrem caminhos diferentes. A ação de troca faz
abstração do uso, mas a consciência do ator não. O caráter abstrato confere a

23
todas as ações de troca, independentemente do conteúdo, do momento e do
local em que ocorrem, uma estrita unidade formal, graças à qual surge uma rede
de referências recíprocas, de modo que cada transação exerce inumeráveis
retroações sobre o fechamento de outras transações por parte de possuidores
de mercadorias desconhecidos. Forma-se, desse modo, o entrelaçamento dos
homens, "por trás de suas costas", em uma rede de simples existências que se
regula em função da unidade, rede na qual também a produção e o consumo
ocorrem segundo as leis da mercadoria. Não são os homens, porém, que
originam esta rede, não são eles que a confeccionam: mas suas ações o fazem,
à medida em que eles escolhem uma mercadoria entre todas como portadora da
abstração, como um "cristal", e se referem a ela como ao idêntico denominador
comum de seus "valores". "Somente em sua troca os produtos do trabalho
recebem uma objetividade de valor socialmente idêntica, separada de sua
objetividade de uso sensível e específica" (MEW, 23, 87). "A ação social de todas
as outras mercadorias separa, assim, uma determinada mercadoria, na qual
exprimem os seus valores recíprocos. Ser equivalente geral torna-se, pelo
processo social, função social específica da mercadoria separada. Assim ela se
torna - dinheiro." (Ibid., p.101) "O processo de troca confere às mercadorias, que
ele transforma em dinheiro, não seu valor, mas sua forma específica de valor."
(Ibid., p.105) "A necessidade, para a circulação, de dar expressão externa à
oposição, que repousa na mercadoria, entre valor de uso e valor, impele a uma
forma independente de valor da mercadoria, e não se detém nem descansa até
que seja definitivamente satisfeita pela duplicação da mercadoria em mercadoria
e dinheiro" (Ibid., 102) "O processo de troca produz necessariamente o cristal-
dinheiro, pelo qual diferentes tipos de produtos do trabalho são de fato postos
como iguais e portanto, de fato, transformados em mercadorias." (Ibid., p.101)
"O essencial da sociedade burguesa está exatamente em que a priori não há
nenhuma regulação consciente, social da produção. O que é razoável e
necessário impõe-se somente como média que atua cegamente." (Carta a
Kugelmann de 11 de julho de 1868). Isso caracteriza com bastante clareza o
processo de constituição da economia sobre bases capitalistas como
causalidade não-consciente das ações humanas, das ações na troca de
mercadorias.

24
Mas a afirmação da falta de consciência do processo não nega naturalmente a
consciência individual dos possuidores de mercadoria. Eles são e permanecem
os atores na ação. "As mercadorias não podem ir por si mesmas ao mercado,
nem podem se trocar a si mesmas. Devemos, portanto, procurar seus guardiões,
os possuidores de mercadorias." (MEW, 23,99). Na troca, os possuidores de
mercadorias estão com sua consciência integralmente absorvida na coisa,
atentos para que nada lhes escape. Mas de onde eles tiram os conceitos que
estão à sua disposição? Não os tomam do tesouro de sua própria consciência;
mesmo que tivessem tal coisa, de nada lhes serviria, na anarquia de uma
sociedade mercantil, até mesmo para a satisfação das necessidades mais
imediatas. Eles não sabem absolutamente nada por si mesmos, precisam deixar
que as mercadorias digam como eles têm de proceder aqui. Precisam atentar
aos preços das mercadorias, compará-los, acompanhar suas flutuações. É com
esta fala das mercadorias em sua consciência que os possuidores se tornam
seres racionais, e suas ações, eficazes e capazes de obter aquilo que querem.
Sem tal fala, os homens estariam perdidos em sua própria sociedade mercantil
como num bosque encantado. Esta transferência da consciência humana para
as mercadorias e a equipagem do cérebro humano com conceitos mercantis,
estas "relações humanas entre as coisas e relações de coisas entre os homens"
são aquilo que Marx chama reificação (Verdinglichung). Não são os produtos
que obedecem aqui aos seus produtores, ao contrário, os produtores seguem as
ordens do produto, assim que este se apresente sob a forma mercadoria. A
forma mercadoria é a abstração real, que tem seu lugar e origem exatamente na
própria troca, de onde ela se estende por toda a amplitude e profundidade da
produção mercantil desenvolvida, sobre o trabalho e também sobre o
pensamento. O pensamento não é atingido imediatamente pela abstração da
troca, mas apenas quando se defronta com seus resultados de forma acabada,
portanto apenas post festum a formação das coisas. Então, evidentemente, as
diversas faces da abstração se dão ao pensamento, sem nenhum sinal de sua
origem. "O movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado e não
deixa atrás de si nenhum rastro." (MEW, 23, 107). No lugar apropriado,
ocupamo-nos mais de perto do modo como isso se dá. Aqui tratou-se apenas de
assinalar da forma mais geral a rede de conexões funcionais bem como a
separação essencial entre o mundo da ação e o mundo do pensamento humanos

25
em sociedades de produção mercantil desenvolvida. Isso havia sido omitido na
primeira edição deste livro.

Acrescente-se ainda mais um ou dois pontos de significação essencial para a


compreensão do conjunto. O efeito fundamental da rede de abstrações da troca
para a economia na sociedade burguesa é permitir a equiparação entre o
trabalho empregado para produzir a mercadoria e o trabalho "morto" nela
objetivado. Como fundamento da determinação da grandeza do valor ou como
"substância do valor", o trabalho é propriamente abstrato, é "trabalho humano
abstrato" ou trabalho de caráter formal imediatamente social. Esta equiparação
do trabalho possibilita que as membra disjecta da sociedade burguesa sejam
reunidas em uma economia. Este é o significado vital da abstração real efetivada
na troca para a produção e reprodução da sociedade burguesa, verdadeiramente
"o ponto crucial em torno do qual gira o entendimento da economia política"
(MEW, 23, 56). "Ao equiparar como valores, na troca, seus diferentes tipos de
produto, [os homens] equiparam seus diferentes trabalhos como trabalho
humano. Eles não sabem disso, mas o fazem" (Ibid., p.88). O efeito desse
igualamento ou equiparação dos trabalhos é a determinação das grandezas nas
relações de troca. "É preciso uma produção de mercadorias completamente
desenvolvida antes que surja da própria experiência a percepção científica de
que os trabalhos privados empreendidos independentemente, embora como
membros naturais da divisão social do trabalho, totalmente interdependentes uns
dos outros, são continuamente reduzidos à sua medida socialmente proporcional
porque, nas relações de troca casuais e continuamente oscilantes de seus
produtos, o tempo de trabalho socialmente necessário para sua produção impõe-
se com a violência de uma lei natural, mais ou menos como a lei da gravidade
quando a casa cai sobre a cabeça de alguém. A determinação da grandeza do
valor pelo tempo de trabalho é assim um mistério escondido sob os movimentos
aparentes dos valores relativos das mercadorias" (Ibid., p.89). Enquanto o
trabalho de produção das mercadorias realiza-se na forma de trabalhos privados
independentes uns dos outros, a funcionalidade da sociedade não-consciente
depende da equiparação do trabalho objetivado segundo as normas da
economia de mercado. Somente quando esta forma básica de trabalho, que
produz mercadorias, for substituída por uma de outro tipo, entrará também em
ação um outro tipo de economia, independentemente de os homens terem ou
26
não consciência disso. Na terceira parte deste escrito voltaremos a esta
observação.

É muito importante notar que do mesmo modo que a determinação da medida


de valor das mercadorias é apresentada por Marx como resultado de uma
causalidade puramente funcional que atua cegamente, também a constituição
da forma valor deve ser demonstrada como simplesmente funcional e, portanto,
um processo real, não consciente, no tempo e no espaço. Somente com isso
cumprem-se as exigências de uma dedução materialista. E eu pretendo que a
minha dedução satisfaça a esta condição. A determinação formal abstrata do ato
de troca surge por meio da impossibilidade causal de firmar um contrato de troca
se for preciso considerar que o objeto da troca passa por processos de alteração
física durante a negociação e a transferência de posse. A troca de mercadorias
poderá funcionar como uma instituição social regrada e uma transação
relacionar-se às outras somente se o status social da mercadoria, isto é, a
questão de sua propriedade, puder ser separado clara e distintamente de seu
status físico e de seu uso. Não faz parte dos objetivos dessa separação e de sua
institucionalização jurídica conferir às ações de troca o seu caráter abstrato, mas
isso é seu efeito inevitável, e verdadeiramente apenas quando as transações se
efetivam e sua consumação torna-se um fato. A consumação da troca põe a
abstração em funcionamento, sem que os atores tenham qualquer consciência
desse efeito. Independentemente dos traços dessa abstração que se possa
encontrar ali, é preciso ter como certo que a abstração real da troca social está
no fundamento do pensamento dos homens, como sua fonte primária.

A análise formal a seguir trata de estabelecer os critérios que permitem distinguir,


entre as abstrações que se encontram na consciência, quais têm origem na
abstração real da troca e quais não. A separação entre o fazer e o pensar dos
agentes no processo de troca torna impossível uma verificação imediata da
conexão. Os homens não sabem de onde provêm as formas de seu pensamento
e menos ainda como puderam chegar à posse dessas formas. O pensamento foi
amputado de sua base. Mas, mesmo com a identificação formal da abstração
intelectual e da abstração real, ainda não está assegurado um esclarecimento
distinto da origem da primeira na segunda. Exatamente por causa da dualidade
aqui reinante entre fazer e pensar, a identificação formal demonstraria

27
imediatamente apenas um paralelismo entre os dois campos, que tanto poderia
indicar uma simples relação de analogia como um nexo de fundamentação
(Begründungszusammenhang). Para demonstrar o nexo de fundamentação,
deve ser possível mostrar de que modo a abstração real converte-se em
pensamento, qual o papel que ela desempenha ali e que tarefa socialmente
necessária lhe cabe.

6. Análise da abstração da troca

a. Formulação do problema

O significado e a necessidade histórica da abstração da troca em sua realidade


espaço-temporal é ser a portadora da socialização nas sociedades produtoras
de mercadorias. Sem a mediação da troca, no contexto da divisão do trabalho
para a produção de mercadorias, não pode se dar nenhum dos usos, seja
produtivo ou de consumo, em torno dos quais se passa a vida dos indivíduos.
Cada crise econômica nos ensina que a produção e o consumo são tolhidos em
extensão e duração quando o sistema social de trocas é interrompido ou quebra
totalmente. Não vamos entrar nos pormenores da rede econômica, pois aqui não
temos nada a ver com economia. Basta assegurarmo-nos de que a síntese da
sociedade produtora de mercadorias deve ser buscada na troca de mercadorias,
mais precisamente na abstração da troca. Consequentemente, empreendemos
a análise formal da abstração da troca como resposta à pergunta: Como é
possível uma síntese social nas formas da troca de mercadorias?

Já nesta forma inicial e simples, esta é uma formulação que lembra mais Kant
do que Marx. Mas é uma bela questão marxista. Como já foi indicado, a
comparação implícita não é entre Kant e Marx, mas entre Kant e Adam Smith ou,
melhor dizendo, entre teoria do conhecimento e economia política, das quais
eles podem ser chamados de sistematizadores. A "Riqueza das Nações" de
Adam Smith em 1776 e a "Crítica da Razão Pura" de Kant em 1781 (primeira
edição) são duas obras que, antes de todas, buscam o mesmo objetivo, com
total independência sistemática em campos conceitualmente desligados: a
demonstração da natureza normatizada da sociedade burguesa.

28
Com o pressuposto de que a natureza do trabalho humano é gerar seus produtos
na forma de valor, Adam Smith provou que só havia um bom caminho a ser
tomado pela sociedade: dar a cada proprietário uma ilimitada liberdade de dispor
de seus bens privados. Este é, para a sociedade, o caminho normativo fundado
na própria essência social, seja para sua salvação, como queria Adam Smith, ou
para sua desgraça, como começou a desconfiar Ricardo. Sabemos que a análise
da mercadoria de Marx serve para demolir exatamente esse pressuposto que
sustenta toda a economia política e, a partir daí, abrir os olhos para a verdadeira
dialética da sociedade burguesa. Esse é o assunto da Crítica da economia
política de Marx.

A obra de Kant não pressupõe, mas conclui, que faz parte da natureza do espírito
humano fazer seu trabalho de forma independente e separada do trabalho
corporal. Kant, é certo, raramente menciona expressamente o trabalho manual
e as "camadas trabalhadoras", embora seu indispensável papel social nunca
seja posto em dúvida. Mas esse papel absolutamente não alcança a
possibilidade de um conhecimento exato da natureza. A teoria da "pura
matemática" e da "ciência pura da natureza" triunfa, então, por não precisar
nunca mencionar o trabalho corporal. Ela é conhecimento sobre base puramente
intelectual e esclarecer a sua própria possibilidade é a tarefa da teoria. As visões
empiristas de Hume eram um escândalo para Kant, pois faziam estremecer a
qualidade de juízo apodítico dos conceitos puros do entendimento, qualidade
que justifica a separação entre princípios a priori e a posteriori do conhecimento,
com o consequente isolamento de uma parte de nosso ser, não-dedutível da
natureza corporal e sensível, que fundamenta, ao mesmo tempo, a possibilidade
do conhecimento teórico da natureza e a autonomia da pessoa espiritual. Para
assegurar a ordem social, de acordo com essa autonomia, não são necessários
nem privilégios exteriores, por um lado, nem restrições artificiais à "maioridade",
por outro lado. Quanto mais se concede aos homens um desimpedido "uso
público de sua razão", tanto melhor se vêem servidas as necessidades sociais,
isto é, a moral, o direito e o progresso espiritual.8 É o único caminho, fundado na
natureza das nossas próprias capacidades espirituais, e assim normatizado, no
qual a sociedade pode receber a ordenação que lhe é adequada. Ocultou-se a

8 Cf. "Beantwortung der Frage: Was ist Aufklärung?" ("Resposta à questão: O que é
esclarecimento?") de 1784.
29
Kant, bem como aos outros filósofos do iluminismo burguês, o fato de esta
ordem, em relação às camadas trabalhadoras, trazer em si a divisão de classes.
Não por menos do que essa ilusão, Marx denominou o pensamento kantiano de
"a filosofia da Revolução Francesa". Mas, na Alemanha subdesenvolvida, a
sociedade burguesa foi tomando forma sob o conceito de divisão entre "camadas
formadas" e "camadas trabalhadoras", diferentemente dos conceitos de capital
e trabalho no Ocidente, onde o pensamento burguês era dominado pela
economia política. - Onde está aqui, então, a questão da "crítica da teoria do
conhecimento" que visamos formular?

Os pressupostos da teoria do conhecimento kantiana são corretas na medida em


que as ciências exatas são de fato tarefa do trabalho intelectual, que se realiza
em completa separação e independência do trabalho manual efetuado nos locais
de produção. Isso foi mencionado acima. A separação entre trabalho mental e
trabalho manual, particularmente em relação à ciência natural e tecnologia, é tão
imprescindível para a dominação da classe burguesa quanto a propriedade
privada dos meios de produção. O desenvolvimento de alguns países hoje
socialistas revela a verdade de que é possível descartar a propriedade capitalista
e mesmo assim manter o antagonismo de classes. Há uma conexão profunda
entre o antagonismo de classes capital/trabalho, por um lado, e a separação
trabalho mental/trabalho manual, por outro lado. Mas esta conexão é uma pura
conexão causal e histórica. Conceitualmente, eles são inteiramente
heterogêneos, isto é, não há entre eles nenhuma ligação, seja no todo ou nas
particularidades, que permita deduzir um do outro. Por isso, a crítica da teoria do
conhecimento deve também ser feita em total independência sistemática da
crítica da economia política.

A questão inicial poderia naturalmente receber uma formulação mais fácil: como
é possível a socialização mediada pela troca de mercadorias? O uso da palavra
"síntese" oferece, no entanto, uma tripla vantagem. Primeiro, pode-se falar
comodamente das funções sócio-sintéticas da troca mercantil. Segundo, a
expressão "sociedade sintética" põe a produção de mercadorias em oposição à
ordem natural das comunidades protocomunistas ou sobretudo primitivas, do
mesmo modo como se fala da borracha como goma sintética, em contraposição
ao caucho como produto natural. Na objetividade-valor das mercadorias, da qual

30
depende o efeito socializante da troca, não entra, de fato, "nenhum átomo de
matéria natural". A socialização é aqui um feito puramente humano, desligado
do metabolismo material entre homem e natureza, e há boas razões para
suspeitar que aqui também se escondam as condições históricas
transcendentais de toda a produção sintética atual. Eu uso, assim, a expressão
"sociedade sintética" em sentido e com abrangência conceitual diversos da
expressão "síntese social". A primeira serve apenas ao caso das sociedades
mercantis, enquanto a última é empregada como condição geral fundamental,
sem restrições históricas, do modo de existência humano. Neste último sentido,
a expressão recebe seu terceiro significado: um aguilhão polêmico de minha
formulação contra a hipostasiação kantiana de uma síntese a priori a partir da
espontaneidade do espírito - portanto, pagando ao idealismo transcendental na
mesma moeda.

Nenhum desses três sentidos da síntese é indispensável para os fins desta


pesquisa. A dedução do entendimento puro a partir da abstração da troca
também pode ser apresentada sem todos os empréstimos anti-idealistas. A
referência polêmica oferece, no entanto, a vantagem de manter o tom adequado
ao caráter essencialmente crítico do método marxista. E esta não é uma
vantagem nada desprezível frente à atual dogmatização do marxismo,
sustentada em autoridade. Só por meio da revitalização de sua essência crítica
o marxismo poderá ser salvo do torpor em que, sob sinal trocado, ele sofre o
abuso de servir para legitimar inconfessadas relações de dominação.

No fundo de nossa oposição crítico-polêmica a Kant encontra-se, como medida


de comparação, uma concordância essencial. Concordamos com Kant em que
os princípios básicos do conhecimento das ciências quantificadoras da natureza
não são dedutíveis das capacidades físicas e fisiológicas, aliás manuais, dos
indivíduos. As ciências exatas da natureza pertencem aos recursos de uma
produção que definitivamente abandonou a observância dos limites individuais
da produção isolada pré-capitalista. A composição kantiana dualista do
conhecimento em princípios a posteriori e a priori corresponde, respectivamente,
ao conteúdo dos sentidos individuais, que alcançam apenas tanto quanto a
"receptividade" de um par de olhos, um par de ouvidos etc., e ao conteúdo
imediato dos universais, que forma os conceitos ligados à matemática. Na praxis

31
do método experimental, a contribuição dos sentidos individuais é reduzida à
"leitura" de dados em instrumentos de medida construídos cientificamente. A
evidência sensível possui certeza apenas para a pessoa que lê, para todas as
outras pessoas não possui nada mais do que credibilidade. Onde não for
totalmente eliminável, a evidência sensível é reduzida a um mínimo, e esse
mínimo é o que sobra do trabalhador manual no experimento, pois sua pessoa
mesma constitui o "fator subjetivo", que a objetividade científica é encarregada
de suprimir. A necessidade lógica reside apenas na hipótese formulada
matematicamente e em suas consequências internas. Essa dualidade das fontes
do conhecimento vale para nós como um fato indiscutível. O que está em
questão é a origem (Ursprung) histórica, espaço-temporal, das capacidades
lógicas das hipóteses, melhor dizendo, a procedência (Herkunft) dos elementos
formais, sobre os quais se fundam essas capacidades. Mas Kant, e qualquer
outro pensador burguês, não pôde nem ao menos formular esta questão de
origem, quanto mais conduzi-la com êxito. A questão é posta nas primeiras linhas
da Introdução à segunda edição da Crítica, mas esgota-se na sequência. Kant
reduz as formas conceituais em questão a um último princípio básico, o da
"unidade sintética originária da apercepção", mas sobre esse princípio mesmo
ele não sabe explicar mais nada, a não ser que existe graças à sua própria
"espontaneidade transcendental". A explicação extravia-se pelo fetichismo
daquilo que deveria ser explicado. A partir daí, toda insistência é para assegurar
que simplesmente não pode ser dada uma explicação genética, quer dizer,
espaço-temporal, das "capacidades puras do entendimento". A questão é selada
por um dos mais sagrados tabus da tradição do pensamento filosófico. O
escárnio de Nietzsche - Kant pergunta "como são possíveis os juízos sintéticos
a priori" e responde "por uma capacidade" - é perfeitamente fundamentado. Só
que o próprio Nietzsche não sabe nada de melhor. O tabu afirma que a
separação existente entre trabalho mental e trabalho manual não tem nenhum
fundamento espaço-temporal, mas que sua natureza é atemporal e, portanto,
assim também a ordem burguesa irá manter sua normatividade
(Normgerechtigkeit) até o final dos tempos.

Contra a questão kantiana, formulemos agora a nossa questão: Como é possível


a socialização por meio da troca de mercadorias? Esta questão está fora de todo
o campo conceitual da teoria do conhecimento e assim não está ainda implicada
32
de nenhum modo em qualquer pressuposto teórico-cognitivo corrente. Se não
estivéssemos interessados no paralelismo com a expressão kantiana,
poderíamos muito bem escolher a seguinte formulação: de onde provém o
caráter abstrato do dinheiro? Ambas as formulações se mantêm no campo
espaço-temporal do pensamento materialista-histórico e igualmente se referem
a abstrações formais, que no território econômico são análogas àquelas dos
princípios "puros" do conhecimento. Parece claro que não será possível
descobrir qualquer ligação autêntica entre os dois territórios se caminharmos
sobre o solo do primeiro.

b. Solipsismo prático

Não é de modo nenhum evidente como a troca de mercadorias deve tornar


possível a síntese social entre indivíduos que detêm as mercadorias em
propriedade privada e, portanto, separada. Pois a troca de mercadorias é
exatamente aquela relação entre proprietários inteiramente regulada pelo
princípio de sua propriedade privada, e por nenhum outro. "As coisas são em si
e por si alheias (äuerlich) aos homens e, por isso, alienáveis (veräuerlich).
Para esta alienação (Veräuerung) recíproca, os homens precisam apenas se
defrontar, tacitamente, como possuidores privados daquelas coisas a serem
alienadas e, por isso mesmo, como pessoas independentes umas das outras.
Uma tal relação de singularidade recíproca não existe, porém, para os membros
de uma comunidade natural..."9 Ela existe sobre o alicerce da produção de

9 O Capital, MEW (Dietz, v.23-25), I vol., p.102. - Poderia parecer, com isso, que o conceito
normativo da propriedade (em contraposição à posse) fosse um a priori ideal da abstração da
troca, em contradição com nossa concepção materialista sobre ele. Efetivamente, porém, a
relação de sucessão é a contrária. O conceito de propriedade é ele mesmo resultado da
abstração da troca. A compulsão a abster-se de ações de uso com objetos destinados à troca e
na troca é um simples dado da experiência: se ele for ignorado, a relação de troca cessa. Mas
do fato de que a experiência contém uma negação deriva-se uma proibição de uso, que se
estende a todas as pessoas envolvidas e ganha caráter normativo geral para todos os casos
idênticos, mesmo se a troca permanecer um caso isolado individual. É primeiro pela subsunção
sob a troca que dos fatos de posse provêm normas de propriedade. Esta sequência da troca
prende-se à sua natureza como relação inter-humana. Onde ela começou, ou seja, lá "onde as
comunidades acabam, no ponto de seu contato com comunidades estranhas" (MEW, 23, p.102),
tornou-se necessário que tais comunidades se relacionassem entre si não com na natureza, ou
seja, não se matassem ou roubassem, como fariam com animais, e sim que falassem umas com
as outras - por palavras ou sinais -, portanto reconhecendo-se reciprocamente como homens.
Também isso é uma questão de fato, mas dela resultam normas, pois ela rompe a relação natural
e coloca em seu lugar uma relação social entre grupos, que já tinham se tornado, por seu turno,
formações sociais. (O curso do último processo encontra-se exposto na convincente
reconstrução de George Thompson, no cap.1 de seu livro Die ersten Philosophen - Os primeiros
filósofos - 1961). Marx expressa exatamente o mesmo, quando diz: "Esta relação de direito, cuja
33
mercadorias. Sobre este terreno, todo uso de mercadoria, seja para produção ou
consumo, processa-se exclusivamente no campo privado de seus possuidores.
A socialização, ao contrário, considerada formalmente por si, apenas ocorre na
troca das mercadorias feita pelos proprietários, portanto em uma ação que se
processa em estrita separação temporal do uso, sem misturar-se com ele. Desse
modo, o formalismo da abstração da troca de mercadorias, e da síntese social a
que serve, deve ser encontrado no espaço precisamente delimitado das relações
de troca.

Por ser ancorada na propriedade privada, como forma de relação segundo as


regras da propriedade privada, a troca de mercadorias está submetida, em cada
caso individual, ao princípio da contraposição privada10 entre duas esferas de
propriedade. Meu - logo não teu; teu - logo não meu: este é o princípio que
domina a lógica da relação. Qualquer particularidade é abarcada por esse
princípio na medida em que se torne relevante para a transação. Ele atua
também sobre a relação de cada uma das partes com os objetos destinados à
troca. O que conta é que o seu interesse nesses objetos seja o seu interesse e
não o de outro, que sejam suas as idéias sobre eles, que as necessidades,
sensações e pensamentos em jogo sejam polarizados por aquilo que eles são,
enquanto os conteúdos se tornam, para cada participante da troca, realidades
solipsista ou monadologicamente incomensuráveis com as dos outros. O
solipsismo, segundo o qual cada um é para si o único (solus ipse) existente entre
todos e, além disso, todos os dados, enquanto possuírem objetividade, são
dados privados11, - o solipsismo é a exata descrição da situação em que os
interessados se encontram uns perante os outros na troca de mercadorias. Mais
precisamente, sua mútua relação objetiva de troca é solipsismo prático,
independentemente do que pensem sobre si mesmos e suas relações12. Ou,

forma é o contrato, desenvolvido legalmente ou não, é uma relação de vontade, em que se


espelha a relação econômica [a relação factual de posse - S.-R.]. O conteúdo desta relação de
direito ou de vontade é dado pela própria relação econômica." (MEW, 23, p.99)
10 A expressão é tirada da figura lógica da oposição privativa-contraditória
11 "... to the effect that all my data, in so far as they are private to me. ...", Bertrand Russell,
Human Knowledge, 1966, p.191, no capítulo "Solipsismo". O que em Russell é "dado", em Kant
é "apercepção".
12 Este solipsismo prático não precisa coincidir com o interesse pessoal. Alguém que aja por
procuração ou em proveito de outrem deve proceder exatamente de acordo com os mesmos
princípios. Se não o fizer, então a relação na qual ele opera não seria mais uma troca de
mercadorias, mas viraria um outro tipo de relação. Os princípios de que tratamos aqui pertencem
à forma de relacionamento da troca mercantil, não à psicologia das pessoas que nela operam.
Muito mais, ao contrário, a forma de relacionamento da troca imprime nos mecanismos
34
usando o modo de conceituar dos economistas políticos, os possuidores de
mercadorias defrontam-se na troca exatamente como se cada um fosse um
Robinson em sua ilha particular, de tal modo que as transferências de
propriedade que eles negociam deixassem inalteradas as dimensões de suas
esferas de propriedade. Disso cuida a reciprocidade, que manda compensar
cada transferência de propriedade com uma outra. Para compensar a perda de
uma propriedade, a reciprocidade não usa um princípio oposto, mas, ao
contrário, universaliza a perda. Já que os negociantes se reconhecem
mutuamente como proprietários privados, cada perda de propriedade numa
direção é compensada por outra equivalente, em direção oposta. A perda privada
de propriedade que reina entre os proprietários é exatamente o fundamento para
a reciprocidade, conservada na transação sob a forma de "troca". Concordar com
uma troca significa reconhecer que as transferências de propriedade ali
negociadas deixam intocadas as dimensões das duas esferas de propriedade
que se defrontam. Desse modo, a troca de mercadorias articula-se como uma
forma social de circulação entre esferas separadas e imiscíveis de propriedade.

Esta é a descrição mais breve possível da relação recíproca dos possuidores de


mercadorias durante a troca, e meticulosa, na medida em que permite quaisquer
aprofundamentos que se queira empreender na casuística quase ilimitada desse
campo, mas dos quais poupamos aqui o leitor. Em outras palavras, esta
descrição mostra como as coisas se passam na relação estabelecida na troca
entre os possuidores de mercadorias. A necessidade de uma análise
pormenorizada para trazer à luz essas coisas que se passam a nosso redor
diariamente explica-se segundo a mesma lógica pela qual o cheiro do ar que
respiramos se tornou, para nós, imperceptível. A circulação de mercadorias já
entrou profundamente na rotina de seus circuitos institucionais - e nos casos em
que ela se enreda em conflitos pesados de interesse há tão pouco lugar para
filosofar que ali se torna impossível uma consciência das estruturas que lhe

psicológicos dos homens, cuja vida ela domina, mecanismos tais que lhes parecem depois sua
natureza humana inata. Correspondentemente a isso, muito frequentemente os dominados agem
em lugar ou em proveito dos dominantes. Eles pensam agir no próprio interesse, embora
obedeçam puramente às leis da relação de troca. Não há lugar aqui para nos ocuparmos
especificamente com a superestrutura do capitalismo tardio. Mas seria certamente fecundo para
uma psicologia social materialista ampliar no futuro as teorias de W. Reich, Fromm, Marcuse,
etc. com a conexão fundamental entre abstração da troca e abstração do pensamento, para
fortalecer sua base materialista.
35
servem de base. Só no afastamento do mercado a estrutura da circulação de
mercadorias pode chegar à reflexão abstrata, mas a sistematização que ela
então experimenta torna impossível conhecer sua origem histórica.

c. A forma de trocabilidade das mercadorias

A elaboração precisa das condições da perda recíproca de propriedade e do


solipsismo prático, sob os quais se mantém a relação de troca, é necessária para
formular em solo apropriado a questão da possibilidade de socialização pela
troca de mercadorias. O primeiro passo na análise da abstração da mercadoria
ou da abstração da troca traz as principais dificuldades, porque a abstração
penetra mais fundo do que se possa suspeitar ou do que se esteja disposto a
aceitar à primeira vista. É necessário formular a questão de como as mercadorias
são trocáveis entre os dois mundos solipsistas que negociam sobre elas, em que
qualidade ou forma, e, portanto, como é possível a própria troca. Qual é o lugar
de encontro dos Robinsons, que vivem em suas ilhas de propriedade privadas e
privativas, qual é o ponto de comunicação de suas ações?

Evidentemente, é o ponto que faz com que uma pretensão de ambas as partes
à propriedade de uma e mesma coisa leve à contradição privada. O princípio:
meu - logo não teu; teu - logo não meu, pressupõe uma unidade com respeito à
qual o "meu" e o "teu" tornam-se, então, reciprocamente privativos. Trata-se de
definir corretamente essa unidade, pois ela é, evidentemente, a forma de
trocabilidade das mercadorias e a primeira condição fundamental para uma
síntese social por meio da perda privada de propriedade entre os possuidores
de mercadorias.

A unidade das mercadorias aqui em questão não é, por certo, sua indivisibilidade
material. Para a essência da coisa, é indiferente que se troque uma tonelada ou
cinquenta quilos de ferro. O material poderia ser reduzido a seus átomos
indivisíveis e o problema persistiria do mesmo modo, caso eles fossem levados
à troca. Não se trata também da singularidade ou insubstituibilidade das
mercadorias, pois em geral elas são artigos de massa e considera-se que um
exemplar possa valer pelo outro. Mas qualquer que seja o exemplar individual,
ele precisa ser a cada vez exatamente aquele que está para ser trocado e que
por isso possui a unidade que impede que pertença, ao mesmo tempo, a um e

36
outro possuidor, mas apenas a um ou outro possuidor separadamente. Se
olharmos agora bem de perto esta unidade que aqui então se revela, veremos
que não há absolutamente nenhuma unidade das coisas-mercadoria em sua
natureza corporal, sua matéria ou qualidades. A unidade que impede uma
mercadoria de pertencer simultaneamente a dois possuidores separadamente,
fazendo com que ela precise ser "trocada" entre eles por outra mercadoria, é na
verdade a unidade de sua simples existência, o fato mesmo de que cada
mercadoria tem uma simples existência indivisível e única. É por causa da
unicidade de sua simples existência que uma coisa não pode pertencer ao
mesmo tempo a distintos possuidores privados, pois a apropriação privada tem
o sentido de tornar a coisa parte da simples existência do interessado. 13
Chegamos com isso ao resultado de que a forma de trocabilidade das
mercadorias é a unicidade de sua simples existência.

Podemos abordar a questão ainda sob um outro aspecto. Já foi mostrado que a
troca como forma de relacionamento necessita do solipsismo prático daqueles
que a fazem. Mas enquanto, deste modo, cada um opõe sua simples existência,
com todo o mundo de seus dados (ou apercepções) privados, a todos os outros
e seus respectivos mundos existenciais (Daseinwelt), a cada vez que eles se
encontram para trocar é como se o mundo, em sua efetividade (Wirklichkeit)
entre eles, fosse apenas um. A que se reduz, porém, essa unidade do mundo
em sua efetividade entre os que trocam? Tudo o que é perceptível no mundo e
nas coisas é dividido monadologicamente entre eles na forma de dados privados.
Portanto, o mundo entre eles só tem unidade se prescindir de suas qualidades.
E os possuidores não trocam as apercepções das coisas, mas as coisas
mesmas, enquanto as apercepções continuam a ser individuais. Assim, as
mercadorias são movimentadas entre os proprietários meramente segundo a
pura simples existência, sem levar em conta nada daquilo que forma as
apercepções privadas. O mundo entre eles é um apenas em sua efetividade para
os proprietários participantes, enquanto o modo de participação exerce a
negação subjetiva da unidade do mundo e a obrigação da troca é cumprida
apenas por coação externa dos fatos objetivos. A própria troca cuida da cegueira
sobre sua forma sócio-sintética de relação. O solipsismo prático permite a troca,

13 De fato, no grego, por exemplo, a palavra "ousia" tem o sentido de simples existência e de
propriedade.
37
mas impede que os participantes percebam a socialização que daí decorre. O
que, porém, constitui a unidade do mundo, em oposição ao solipsismo daqueles
que efetuam a troca? Mais uma vez, não é a indivisibilidade material do mundo,
de suas partes ou das coisas que estão nele, tampouco a unicidade e
insubstituibilidade essencial dos exemplares individuais14. Ao contrário, é
somente a unicidade da simples existência de cada parte que faz da unidade de
todas as partes um mundo, por mais que se queira estender os limites do
"mundo". O resultado é, portanto, o mesmo que antes: a forma de trocabilidade
das mercadorias é a unicidade da simples existência de cada uma, tomando-se
precisamente essa unicidade da simples existência in abstracto, ou seja,
"subtraindo" tudo o que pertence à apercepção das coisas-mercadoria e que
entra no solipsismo prático dos atores da troca.

Resta saber o que essa natureza da trocabilidade das mercadorias leva para a
socialização pela troca: ela lhe confere a sua unidade. Quando a circulação de
mercadorias atinge o grau de desenvolvimento no qual se torna o nexus rerum
decisivo, tem de ocorrer a "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro";
esta duplicação (que ocorreu pela primeira vez na história por volta de 700 aC
nas margens jônicas do mundo grego) leva possivelmente também, em sentido
contrário, a que a troca de mercadorias bem cedo se torne um meio determinante
de socialização. O dinheiro é então a coisa portadora da forma de trocabilidade
das mercadorias, agindo como forma geral de equivalente e de trocabilidade. A
essência do mesmo, como unicidade da simples existência da mercadoria, faz
com que o dinheiro, de acordo com sua essência funcional, seja uno, em outras
palavras, faz com que só possa haver um dinheiro.15 Naturalmente, existem
diversas moedas; mas enquanto cada uma delas exerça efetivamente esta
função de dinheiro em seu âmbito de circulação, vale o postulado de que possa
ser calculada reciprocamente, entre todas elas, uma cotação precisa de câmbio,

14 A determinação da unidade do mundo pela interdependência de todas as partes é um conceito


teórico; não pode portanto desempenhar nenhum papel onde tenhamos a ver com o "mundo"
apenas como campo da existência e lugar de negócios, teatro das ações da troca.
15 "Portanto se duas mercadorias distintas, por exemplo ouro e prata, servirem simultaneamente
como medidas do valor, então todas as mercadorias possuem duas expressões de preços,
preços em ouro e preços em prata, que correm tranquilamente uns ao lado dos outros, enquanto
a relação de valor da prata ao ouro permanecer invariada, p.ex. 1:15. Cada mudança dessa
relação de valor atinge porém a relação dos preços em ouro e dos preços em prata das
mercadorias, e indica assim na prática, que a duplicação da medida do valor contradiz a sua
própria função."(MARX., K. O capital. L. I, cap.3. MEW, 23, p.111).
38
e que, portanto, comunicam-se funcionalmente com um e apenas um sistema
monetário universal. A isso corresponde a unidade funcional de todas as
sociedades de troca comunicantes. O contato desimpedido faz a relação de
troca, formada em diversos lugares do mundo em isolamento geográfico, confluir
necessariamente, mais cedo ou mais tarde, para um nexo de interdependência
das mercadorias, nexo que age de forma cega, mas é indissolúvel. Do ponto de
vista formal e genético, ou genético-formal, esta essencial unidade
intercomunicativa de todas as moedas em um sistema monetário e a unidade da
síntese social pela troca de mercadorias, que a efetua, é a mesma unidade
existencial (Daseinseinheit) do mundo. A unidade abstratificada do mundo
circula entre os homens como dinheiro e torna possível a rede não-consciente
de conexões que forma uma sociedade.

Para reforçar a análise feita até aqui, recapitulemos: a forma de trocabilidade


inclui a mercadoria expurgada de suas características materiais, ou seja, sem
tudo aquilo que entra na apercepção e no solipsismo prático dos indivíduos que
fazem a troca. A forma de abstração da trocabilidade é, assim, produto da ação
inter-humana desse solipsismo, isto é, do caráter privado da propriedade das
mercadorias. A abstração surge do intercâmbio entre os homens, não no domínio
individual, nem no domínio da apercepção de um proprietário por si. Do modo
como surge, a abstração escapa totalmente ao empirismo, que se escora no
ponto de vista da apercepção individual. Pois não são os indivíduos que efetuam
sua síntese social - suas ações o fazem. A ação efetua uma socialização que,
no momento em que ocorre, passa desconhecida pelos atores. E a troca de
mercadorias é, no entanto, um modo de relação no qual os atores mantém os
olhos bem abertos, no qual a natureza fica paralisada, no qual, portanto, nada
entra que não seja humano, um modo de relação, enfim, que se reduz a um mero
formalismo, um formalismo de "puro" caráter abstrato, embora com realidade
espaço-temporal. Esse formalismo assume sua forma específica de coisa no
dinheiro. O dinheiro é uma coisa abstrata e exerce seu poder social-sintético sem
que os homens se dêem conta do que ele é. Apesar disso, o sentido do dinheiro
não é acessível a nenhum animal, mas somente aos homens. Temos agora de
descrever novamente este formalismo.16

16 "Em contradição direta à rude objetividade sensível dos corpos das mercadorias, nenhum
átomo de matéria natural entre em sua objetividade de valor."(Ibid., p.62) Mais adiante: "O
39
d. Quantidade abstrata

De fato, dois processos de abstração interagem na constituição desse


formalismo. O primeiro é a abstração que fundamenta o isolamento e a
separação temporal do uso de toda mercadoria transacionada. O segundo atua
no interior da transação como depuração da mercadoria em forma de
trocabilidade e é efeito do mútuo solipsismo privativo dos indivíduos que fazem
as trocas. Esta segunda abstração prende-se à execução do ato da troca. A
depuração em forma de trocabilidade é com isso imediatamente conectada ao
igualamento na troca. O igualamento na troca, como equiparação de
determinadas quantidades de mercadorias pela efetivação da troca, é um
postulado inerente à troca, na sua qualidade de relação social e inter-humana.
Não é subjetivamente, para os proprietários envolvidos, que as quantidades de
mercadorias trocadas passam por ter valores equivalentes, mas sim
objetivamente. A equivalência está implícita no reconhecimento mútuo de que se
trata de uma "troca", isto é, uma transferência de posse que não altera o nível
de propriedades de cada um. Eu falo de nível de propriedades em vez de direito
de propriedade para deixar claro que a forma jurídica da relação não ajuda em
nada sua explicação. A formulação jurídica pressupõe o igualamento na troca,
não o contrário.

O igualamento na troca, repitamos, é um postulado relacional da troca como


forma de intercâmbio social. O postulado tem origem social e possui validade
social puramente objetiva. As mercadorias não são iguais, a troca é que as põe
como iguais. Esta posição constitui uma outra abstração, que faz das
quantidades de mercadoria a serem trocadas apenas quantidades abstratas
enquanto tais. As mercadorias são levadas ao mercado em determinadas
quantidades de medida: peso, número de peças, unidades, volume, etc. O
igualamento na troca apaga essas determinações quantitativas que não são
equiparáveis e pertencem ao valor de uso. Ele substitui essas quantidades

movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado e não deixa atrás de si nenhum
rastro... Daí a magia do dinheiro. A atitude meramente atomística dos homens em seu processo
social de produção, e portanto a feição material de suas relações de produção, independente de
seus controles e de seu agir individual consciente, aparece primeiro no fato de que os produtos
de seu trabalho em geral assumem a forma de mercadorias. O enigma do fetiche do dinheiro
tornou-se portanto somente o enigma do fetiche da mercadoria, que se torna visível e deslumbra
os olhos."(Ibid., p.107-108).
40
conhecidas por uma anônima, que nada mais é do que simples quantidade,
despida de qualquer tipo de qualidade. Essa quantidade em si ou in abstracto
nasce do igualamento na troca e é, como ele, de natureza relacional, prendendo-
se também à execução do ato de troca. Se o processo de troca não chega a
efetivar-se, é por que entre as duas quantidades determinadas de mercadorias
houve um demais ou maior (>) ou um de menos ou menor (<), em vez da
necessária igualdade (=). É esta quantidade absoluta, totalmente "desligada" da
qualidade, que está, como determinação formal, na base do puro pensamento
matemático. De acordo com isso, seria de se esperar que o surgimento do
pensamento matemático puro, em sua lógica particular, acontecesse
historicamente no estágio determinado de desenvolvimento em que a troca de
mercadorias se torna a forma básica de socialização, em um momento que fosse
conhecido pela introdução e difusão de dinheiro monetarizado. Pitágoras, que
deu ao modo matemático de pensar sua primeira cunhagem, foi provavelmente,
de acordo com a hipótese hoje dominante entre os pesquisadores da
Antiguidade, um dos responsáveis pela introdução do sistema monetário em
Crotona. Contudo, a questão de como os elementos formais da abstração da
troca e da respectiva abstração-mercadoria entram na consciência não pertence
ainda a este ponto, pois temos de nos ocupar antes apenas com a análise da
abstração real.

e. O conceito de valor

A troca iguala as mercadorias, embora elas sejam diferentes. As mercadorias


precisam ser diferentes, pois ninguém trocaria o mesmo pelo mesmo. "Não se
troca um casaco por um casaco, um valor de uso pelo mesmo valor de uso"17.
Para exprimir o postulado do igualamento na troca, e sobretudo para pensá-lo,
é necessário um conceito mediador, graças ao qual a igualdade e a diferença
das mercadorias possam vigorar lado a lado. Este conceito é o "valor", pelo qual
o igualamento na troca, como equivalência, não funciona como igualdade, mas
como igualdade de valor. O "valor" não é, portanto, o fundamento do
igualamento; ao contrário, o postulado do igualamento na troca, inerente à
relação de troca e necessário para a síntese social, precede o conceito de

17 Ibid., p.56.
41
valor.18 Isso dá ao conceito de valor a aparência de uma essência puramente
quantitativa contida nas mercadorias. Mas essa suposta essência não é nada
mais nada menos do que uma relação socialmente necessária, nascida do agir
humano, na qual a relação social dos homens se "reifica", ou seja, torna-se uma
relação entre suas mercadorias. As mercadorias ficam carregadas de uma
natureza social, que por si mesma nada tem a ver com elas enquanto coisas.
Daí o "caráter fetichista" que recai sobre as mercadorias.

Embora a comparação desta análise formal com a análise das mercadorias feita
por Marx deva ser apresentada minuciosamente em um anexo, é, contudo,
inevitável aqui uma observação delimitadora: nós não podemos reconhecer
nenhuma relação inerente entre forma-valor da mercadoria e trabalho. Não
estamos, com isso, em discrepância com Marx. A forma-valor encobre e renega
a relação quantitativa entre mercadoria e trabalho através da "aparência
objetivada" do valor da mercadoria. "Não está escrito na testa do valor o que ele
é." A abstração da troca é a trama que tece a aparência, pois ela surge apenas
porque produção e consumo não têm lugar na troca. O trabalho que produz a
mercadoria e o ato de usá-la são as principais mudanças físicas das quais a
troca precisa ser isolada para que possa ocorrer. A própria troca de mercadorias
não é nada senão uma relação mútua de apropriação. O fato decisivo na
produção de mercadorias é que, em seu contexto, a socialização baseia-se num
sistema de apropriação formalizado e generalizado como relação de troca, e não
no caráter social do processo de trabalho, nem na maior ou menor coletividade
do modo de produção, como mais ou menos ocorria no comunismo primitivo. Em
sua base está a cisão da produção originariamente coletiva em um sistema de
produção individual e especializada, sob a divisão do trabalho. "Somente
produtos de trabalhos privados autônomos e independentes uns dos outros
defrontam-se como mercadorias."19 Naturalmente, como resultado final, o
mecanismo de apropriação privada na forma de troca precisa conectar os
trabalhos privados independentes em uma rede mais ou menos regulada pelas
necessidades sociais, para que a sociedade produtora de mercadorias possa
sobreviver. "E a forma dessa distribuição proporcional do trabalho, em uma

18 "Somente em sua troca os produtos do trabalho recebem uma objetividade de valor


socialmente idêntica, separada de sua objetividade de uso sensível e específica."(Ibid., p.87)
19 Ibid., p.57, e também p.87.

42
sociedade na qual a rede de conexão do trabalho social se faz pela troca privada
dos produtos individuais do trabalho, é exatamente o valor de troca desses
produtos."20 Todos os conceitos dominantes numa sociedade produtora de
mercadorias para dirigir a ação dos indivíduos surgem do mecanismo de troca e
da aparência objetivada, os quais tornam possível a sociedade não-consciente.
Assim como esse mecanismo se sustenta somente sobre os atos de apropriação
na troca privada de produtos do trabalho sob a forma de valor, também aqueles
conceitos são cunhados pelas relações de apropriação, que lhes emprestam
significação social. A relação de tais conceitos com a substância real da
sociedade, isto é, o trabalho - que faz existir tudo aquilo que será trocado -, é em
geral apenas uma relação indireta. Somente a crítica genético-formal desses
conceitos encobridores pode mostrar claramente sua relação com o trabalho.
Devido à reciprocidade na troca, a apropriação toma a forma de um processo
auto-regulado, que se mede a si mesmo, o que a torna capaz de ser a portadora
da síntese social - diversamente da apropriação tributária unilateral das "relações
diretas de domínio e servidão", próprias das antigas civilizações orientais e do
Feudalismo.21 Por outro lado, a troca não produz seus objetos, mas pressupõe
a produção e o trabalho. Em geral, não se pode trocar mais do que foi produzido.
A soma de todos os preços (preços de apropriação) precisa ser essencialmente
igual à soma de todos os valores (valores-trabalho); e mesmo nessa equação
global, a relação entre apropriação e produção pertence à necessidade causal,
que atua cegamente, da economia. Mas a forma-valor da mercadoria, isto é, a
abstração-mercadoria, não está em nenhuma conexão inerente com o trabalho
necessário para produção das mercadorias. Esta relação é caracterizada não
pela conexão, mas pela separação. Dito de outro modo, a abstração-mercadoria
é abstração da troca, não abstração do trabalho. A abstração do trabalho, que
de fato ocorre na produção capitalista de mercadorias, tem seu lugar no processo
de produção, não no processo de troca, como veremos adiante (na parte 3 deste
livro).

A economia de robinsonadas da doutrina subjetiva do valor não enxerga o


postulado da equivalência. Nesta disciplina teórica, fica conceitualmente
suprimido o aspecto social da troca, sua qualidade de ser, enquanto forma social

20 Marx, em carta a Kugelmann de 11 de junho de 1868 (grifo de Marx).


21 Cf. O capital, III, p.798.
43
de intercâmbio, portadora da síntese social. O erro dessa supressão, do ponto
de vista sistemático, mostra-se no fato de que a doutrina subjetiva do valor não
pode dar conta da quantificação dos valores a que se refere, ou seja, da
determinação do preço das mercadorias, dos "bens"; a quantificação entra nessa
teoria apenas por meio das artimanhas lógicas. Mas a consequência
metodológica é o surgimento da assim chamada "economia pura", o que por sua
vez dá ocasião para o surgimento de uma doutrina da sociedade separada da
economia. Esta separação do que é interligado, quase tão velha quanto o
capitalismo monopolista, faz com que as duas disciplinas, a "pura economia" e a
sociologia empírica, percam o contato com o processo histórico, processo
exatamente comandado pela interligação entre economia e socialização. Isso
não impede análises perspicazes de fenômenos individuais. Mas, sobre o solo
dessa separação, é impossível obter as categorias necessárias para
compreender a conexão dos fenômenos individuais no e com o processo
histórico. Para a compreensão do que realmente ocorre com a sociedade desde
o início do capitalismo monopolista, não há nada a esperar nem da "economia
pura" nem da sociologia empírica; e não somente pela falta de interesse da maior
parte dos economistas e sociólogos nessa compreensão, mas pela própria
incapacidade metodológica de suas disciplinas.

O papel do postulado da equivalência para a síntese social pela troca de


mercadorias é tão evidente que quase não precisa ser explicitamente ressaltado.
O igualamento na troca fornece a lógica dos acontecimentos casuais e
puramente contingentes no contexto da troca. As mercadorias são jogadas no
mercado, arrancadas de seus contextos de origem, arrancadas por exemplo, por
meio de pirataria, da organização tradicional das comunidades primitivas. No
mercado, elas encontram outras mercadorias, cuja presença é igualmente
casual. Tal casualidade não precisa predominar, mas pode fazê-lo. A existência
e a amplitude desse predomínio dependem, em última instância, do grau de
desenvolvimento das forças produtivas materiais. Pressupondo que os
possuidores podem dispor livremente de suas mercadorias e que reconhecem
mutuamente essa liberdade, a forma homóloga da equação de troca fornece,
com sua completa abstração, os termos de uma "linguagem das mercadorias",
como diz Marx. Com a devida ampliação do mercado, essa "linguagem das
mercadorias" possibilita uma rede existencial de conexão entre os homens como
44
meros proprietários de mercadorias, ainda que todas as outras formas de
ordenação humana sejam dilaceradas - e, de fato, com a ampliação do mercado,
elas têm de ser dilaceradas. A rede que produz no mercado as formas de
abstração da troca, isto é, a lógica da "forma-valor", possui a funcionalidade22
necessária para impor as conexões formais interdependentes do mercado
também sobre as bases materiais da existência da mercadoria, ou seja, sobre a
produção e o consumo. Em última instância, este ordenamento e seu caráter de
necessidade econômica não têm por raiz nada mais solto do que a unidade
existencial (Daseinseinheit) das coisas que, em consequência da trocabilidade
das mercadorias, obriga os homens a se compor na unidade de um mesmo
mundo, mesmo que não concordem entre si. Sua simples existência se regula
apenas, absolutamente, pelas leis de uma sociedade.

f. Substância e acidente

Já mostramos que as formas de abstração da troca estão ligadas ao ato de


efetivação da troca e possuem, aí, caráter regulador. Como se determina então
essa efetivação da troca, ou seja, o ato de transferência de posse das
mercadorias entre seus proprietários privados? Ou, em outra formulação: como
os objetos de troca se determinam a si mesmos no ato de transferência de
posse? Eles não podem ser expostos a nenhuma mudança física e têm, portanto,
a determinação de absoluta constância material - mas isso apenas por um
postulado, ou seja, por uma ficção, porém uma ficção socialmente necessária.
No ato de transferência de posse, eles não são objetos para uso, e isto não como
simples negação, mas como negação posta afirmativamente. Isto significa que,
como objetos de troca, ou mais precisamente, como objetos dos atos de troca,
eles não deixam de ter apenas qualquer qualidade de uso, mas são
positivamente desprovidos de qualquer qualidade. Por outro lado, eles só são
trocados para serem usados após a efetivação da troca. Portanto, suas
qualidades de objetos de uso pendem essencialmente ligadas a eles, enquanto
são trocados como materialmente constantes, embora desprovidos de
qualidades. Mas o atributo não-qualitativo que permanece é que lhes dá
realidade no mercado, enquanto seus atributos de uso, de realidade

22 Este efeito à distância da línguagem das mercadorias permitiria muito bem falar de uma
socialização funcional.
45
verdadeiramente verificável, são aqui apenas fatos do pensamento. Não é difícil
reconhecer nessa dupla natureza da mercadoria a relação entre substância e
acidente. Mesmo se num determinado estágio de desenvolvimento as duas
determinações se encontram, por assim dizer, corporalmente, por meio da
"duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro", a mercadoria continua
com sua dupla natureza; apenas, agora, a substancialidade não-qualitativa
constante da mercadoria espelha-se, fora dela, na materialidade não-descritiva
do dinheiro. Como não existe matéria não-descritiva na natureza, o ouro, a prata,
o cobre ou um simples papel têm de assumir suas funções.

g. Atomicidade

Para que a substância não-descritiva seja capaz de recobrir cada mercadoria


trocável sem brechas em seu espaço total através do tempo, é preciso que a
matéria-dinheiro, em evidente contradição com isso, possa ser dividida de
acordo com as diversas grandezas de valor e, portanto, fracionada à vontade.
Atomicidade da matéria-dinheiro, por um lado, e indivisibilidade da mesma em
cada mercadoria, como unidade trocada de fato, por outro lado, fornecem uma
das contradições com as quais a função social do dinheiro, por meio de sua
determinação formal, leva o pensamento a criar aquilo que Hegel designou como
"metafísico".

h. Movimento abstrato

O ato de realização da troca de mercadorias pode ser descrito como o


movimento pelo qual se executa a transmissão de posse pactuada. Este ato
limita-se, em essência, à alteração puramente social das mercadorias em suas
relações de posse, numa estrita separação espaço-temporal das mudanças
físicas dessas mercadorias. Esta separação não passa de um postulado, mas a
descrição do movimento implicada tem exatamente esse postulado como norma.
Portanto, esta é uma descrição do puro movimento, no espaço e no tempo
(tomados como vazios contínuos), de substâncias abstratas, as quais não são
passíveis, com isso, de sofrer qualquer mudança material ou diferenciação, a
não ser quantitativa. Como a realização da transferência de posse é o objetivo
ao qual serve a separação espaço-temporal entre atos de troca e atos de uso,
este esquema abstrato do puro movimento condensa toda a abstração da troca.

46
As outras fases e partes da abstração, analisada antes, estão em sua base. Com
a eliminação de qualquer ato de uso, mesmo o espaço e o tempo se tornam,
também, abstratos. Similarmente às mercadorias em sua determinação como
"substância", eles perdem qualquer resíduo de uma determinada localização
separada de outra, qualquer separabilidade de um ponto no tempo em relação
aos outros. Eles se tornam não-históricos, portanto determinações
historicamente atemporais de tempo totalmente abstrato e de espaço totalmente
abstrato. O próprio processo do movimento é atingido pela mesma
abstratificação. Ele se torna o mínimo de tudo o que ainda apresenta algum
processo material, de todo acontecimento determinável no tempo e no espaço.
Qualquer outro processo e acontecimento tem de deixar-se reduzir em última
instância, de um ou outro modo, a este esquema puro do movimento, como
formas "compostas" de movimento, e todos os processos medem-se
correspondentemente como processos puramente materiais no tempo e no
espaço.23

As mercadorias se encontram, durante todo o decurso de suas transferências de


posse, em sua forma de trocabilidade e em sua imutável determinação
quantitativa. Elas devem manter inalterada sua medida de valor determinada,
seu valor de troca. Esta condição concede ao tempo e ao espaço, nos quais as
mercadorias se movem, sua continuidade e uniformidade características. O
movimento pode sofrer modificações e interrupções, mas o tempo e o espaço
têm de manter-se ininterruptos e uniformes, pois sem isso se perderia o controle
sobre a medida constante do valor das mercadorias.

23 "O movimento é o modo existência da matéria. Nunca e em nenhum lugar houve matéria sem
movimento, nem pode haver. Movimento no universo, movimento mecânico de pequenas
massas sobre os corpos celestes individuais, oscilações moleculares como calor ou como
correntes elétrica ou magnética, cisão ou composição química, vida orgânica - cada átomo de
matéria do mundo encontra-se em cada momento dado numa ou noutra forma de movimentação
ou em várias simultâneas."(Friedrich Engels, Anti-Dühring, Berlin, Dietz Verlag, p.70)
"A teoria de que o mundo físico consiste só de matéria em movimento foi a base das teorias
aceitas do som, calor, luz, e eletricidade."(Bertrand Russell, A history of Western philosophy,
London, 1946, p.630)
É algo notável que ainda Galileu considere o movimento abstrato como um conceito puramente
matemático. Toda a tradicional separação entre conceitos puros e empíricos perde sua base e
deixa lugar para uma outra, quando a conclusão do conhecimento teorético da natureza e seu
método se tornam sujeitos à autonomia original da "razão pura". Em seu lugar entra a distinção
entre as abstrações implicadas (dito em poucas palavras) no valor de troca e as formas de
conceitualização e representação pertencentes ao valor de uso.
47
Por outro lado, a identidade existencial das mercadorias é, na abstração de sua
forma de trocabilidade, uma determinação relacional, originariamente inter-
humana, na qual para cada ponto dado no espaço em um dado momento, a
simples existência e a medida do valor das mercadorias são fixadas, mantidas e
verificadas em relação a seu equivalente, na exclusão recíproca de propriedade
de seus possuidores. Com relação a este caráter socialmente relacional de sua
forma de trocabilidade e determinação do valor, o movimento das mercadorias
no processo de troca tanto se decompõe em momentos discretos, como, por
outro lado, tem de cumprir a condição de continuidade. Esta contraditoriedade
surge da origem social das abstrações das coisas, correspondente, em sentido
contrário, à reificação das relações sociais. Ela encontrou sua expressão, entre
os antigos, nos paradoxos de Zenão e, modernamente, nas análises do
movimento pelo cálculo.24

i. Causalidade estrita

A abstração da troca não é a fonte do conceito de causalidade, que remonta a


fases muito mais antigas. Mas bem parece ser ela a raiz daquela equação entre
causa e efeito que caracteriza a "causalidade estrita". A causalidade estrita é,

24 A idéia de aduzir os problemas de transporte do capital comercial nos séculos 16 e 17 como


explicação da filosofia e ciência natural mecânicas, foi defendido pelo prof. Bernhard Hessen
("The social and economic roots of Newton's Principia", Amsterdam, 1931, editado como
palestra), por Stephen F. Mason ("Some historical roots of the scientific revolution", Science &
Society, vol.XIV, n.3, Summer 1950, e A history of the sciences, main currents..., London, 1953)
e outros. Por mais interessante e iluminador que seja o tratamento dado ao rico material
pesquisado nesses estudos, eles perdem sua finalidade teórica, principalmente porque
permanece fora de consideração o ponto principal de conexão, ou seja, que se trata do transporte
e da produção de mercadorias e que por isso a análise da forma da mercadoria constitui o
pressuposto para que se possam cumprir as tarefas de explicação formuladas. De fato, as
abstrações do pensamento mecânico já são interpretadas no interior dos problemas do
transporte, para depois deduzi-las, sem dar-se conta de que o transporte como tal não contribui
em nada para as formas conceituais que servem à explicação, ou então elas poderiam ter surgido
da mesma forma no antigo Egito ou na Mesopotâmia, tal como ao tempo de Demócrito ou de
Newton. Um tal desconhecimento da natureza do problema acontece também com Henryk
Großmann em sua crítica por outro lado materialmente fascinante ao trabalho de Frank
Borkenhaus Transição do quadro do mundo feudal ao burguês, Estudos para a história da
filosofia do período da manufatura, 1934 (H. Großmann, "As bases sociais da filosofia
mecanicista e a manufatura", Zeitschrift für Sozialforschung, IV, 2 [1935], p.161-229). Aqui os
conceitos do pensamento mecânico serão deduzidos do tratamento prático dos mestres
artesanais experimentais na invenção e produção de novos instrumentos mecânicos. De fato
porém tais aparatos são compreendidos e interpretados por H. Großmann já segundo a lógica
do pensamento mecânico, portanto o objeto de explicação está fundamentalmente suposto em
vez de ser deduzido. A argumentação chega portanto sem querer à mesma estranha concepção
de que as máquinas geram as ciências naturais, em vez de ser ao contrário. Isso é dito sem
prejuízo do reconhecimento do ensaio de Großmann como um dos mais interessantes e ricos de
esclarecimentos que tenham sido escritos sobre estes temas.
48
em nossa concepção, a forma na qual as mudanças naturais surgem nos objetos
que, sob o postulado da imutabilidade, estão no mercado para ser trocados. Com
respeito a alterações provocadas por homens, este postulado pode ser imposto
por uma autoridade policial mercantil. Quanto às mudanças naturais, ele não
passa de uma ficção, que não impede tais mudanças, mas as submete a uma
forma conceitual determinada. Esta forma é o equacionamento exato, formulável
matematicamente, entre causa e efeito. Ela é tal que, se o processo causal puder
ser isolado como um acontecimento singular especificamente delimitado, então
ele se submete, tanto antes como depois de seu decurso, ao postulado da
negação da mudança. A negação da mudança seria, portanto, o postulado lógico
do qual a rigorosa equação entre causa e efeito retira sua necessidade em
pensamento. Aqui se torna visível a raiz de uma nova conceituação de natureza
e mudança natural, muito afastada do pensamento mágico e mitológico. É o
conceito de fenômenos (Vorgängen), que não apenas ocorrem na pura natureza
sem qualquer interferência humana, como atentam contra todas as precauções
e contra o postulado social da imutabilidade das mercadorias no mercado. Neles,
a natureza afirma-se como esfera perfeitamente separada da esfera humana,
como poder que foge a toda comunidade com os homens, o poder da natureza
como mero mundo dos objetos. O conceito de causalidade estrita se refere a ela
como uma causa e efeito que se encontram no objeto. Este conceito de natureza
é inequivocamente distinto da experiência de natureza dos homens no trabalho,
no qual, como diz Marx, o homem atua como força natural sobre a natureza.
Como agente das relações de mercado, o homem está tão pouco ligado à
natureza quanto a própria objetividade de valor das mercadorias. Não constitui
nenhuma objeção às deduções aqui apresentadas o fato de que no conceito de
causalidade e sua forma estrita, bem como em todas as outras "categorias do
puro entendimento", não se encontre o mínimo vestígio desta origem social e
que ali tal origem seja considerada mesmo como impossível. Ainda será
mostrado que essa cegueira das categorias do entendimento fundamenta-se na
reflexão da abstração da troca. Em todas as suas faces, a própria abstração da
troca possui conteúdo com forma absolutamente atemporal, inconciliável com a
idéia de uma origem. Partindo de determinações históricas e geográficas, elas
se tornam tais que admitem apenas a determinabilidade matemática.

49
A causalidade, mais exatamente sua determinação formal como causalidade
estrita, tem um caráter de exceção entre as categorias aqui em consideração.
Ela não é parte da abstração da troca, mas uma consequência, corolário dela. A
troca não admite nenhuma transformação material dos objetos de troca, seja ou
não analisada de acordo com sua causalidade adequada. A causalidade estrita
não exerce nenhuma função de síntese social. Ela só entrou em consideração
para evitar que fosse criticada sua omissão entre as categorias do "entendimento
puro". De fato, o pensamento causal nunca é imediatamente empregado nas
ciências matematizadas da natureza, mas antes através de desvios e mediado
pela verificação experimental de hipóteses do movimento. O puro esquema de
movimento é a forma de abstração propriamente portadora, gerada através da
troca de mercadorias.

j. A transformação da abstração real em abstração do pensamento

Eu reuno toda a parte formal da troca de mercadorias sob a expressão segunda


natureza, entendida como uma realidade puramente social, abstrata e funcional,
em oposição à natureza primeira ou primária, onde nos encontramos sobre o
mesmo solo dos animais. Na expressão formal da segunda natureza sob a forma
de dinheiro, o especificamente humano em nós ganha sua primeira manifestação
objetivada, separada e real-objetiva na história. Ela se impõe pela necessidade
de uma socialização desligada de qualquer forma de atividade referente ao
metabolismo material entre homem e natureza. Tais formas de atividade
pertencem à primeira natureza. É indiferente que sejam consideradas como atos
de produção, consumo ou reprodução: sobre as bases da produção de
mercadoria, elas são todas remetidas para o âmbito privado do possuidor de
mercadorias. E as diversas esferas privadas relacionam-se apenas na forma da
troca de mercadorias, por motivos que se enraízam integralmente nas próprias
esferas privadas. Somente a ação constitui, como notamos, o aspecto social da
troca, enquanto a consciência dos atores é privada e permanece cega para o
caráter sócio-sintético de suas ações. A consciência preenche-se daquilo que é
abstraído na ação, e apenas graças ao fato de que toda empiria é sem exceção
abstraída de qualquer ato de troca, constitui-se em nexo da sociedade não-
consciente, como um nexo da segunda natureza. O trabalho penetra nesse nexo
somente transposto em seu caráter formal, como trabalho humano abstrato,

50
apenas "humano", porque a segunda natureza é de origem humana, distinta da
natureza e em contradição com esta. E, como fundamento da autoalienação
(Selbstemtfremdung) humana - por encontrar-se integralmente sob as formas da
apropriação dos produtos do trabalho privado -, a segunda natureza está
separada do trabalho, que, no entanto, a criou.

Sob a expressão "segunda natureza" reuno tanto sua realidade espaço temporal
sócio-sintética como a forma ideal de uma capacidade de conhecimento por meio
de conceitos abstratos. Assim, a determinação formal da segunda natureza é, e
só pode ser, uma única: exatamente sua duplicidade e a conexão entre as duas
partes na unidade dessa determinação formal. Mas para nos aproximarmos da
transposição ou transformação da abstração real em abstração do pensamento
e suas dificuldades, gostaríamos antes de nos assegurar de sua identidade
essencialmente formal; ou, melhor dizendo, será dada ao leitor a oportunidade
de se convencer dessa identidade formal com o exemplo de um dos elementos
formais da abstração real que está contido no dinheiro. Apelamos ao leitor que
não possua nenhuma formação filosófica que se coloque na situação histórica
dos primórdios da cunhagem de moedas gregas, na Jônia, onde também o
pensamento filosófico pela primeira vez tomou forma. Naturalmente, esse
nascimento da filosofia não ocorreu sem um enorme esforço mental, que
precisou ter em sua base uma motivação muito forte, talvez mesmo coercitiva.
Que tipo de motivação foi esse, não podemos hoje saber, mas em todo caso
podemos supor. Acredito ser evidente que o dinheiro, precisamente em forma de
moeda, desempenhou, nessa transformação, um papel mediador imprescindível,
pois somente no dinheiro em forma de moeda a abstração real pôde
efetivamente aparecer. É certo, por outro lado, que o mero uso prático do
dinheiro, com o objetivo imediato de servir como meio de troca e pagamento nas
trocas mercantis simples, não exigia uma reflexão conceitual sobre sua natureza
abstrata. Não devemos nos preocupar, por agora, em saber que outra motivação
levou à formação de conceitos. Tenha sido qual for, nós consideramos tal
motivação como dada, e averiguamos primeiro a natureza do ato de consciência
em que pôde se consumar a transposição da abstração real para a forma
conceitual. Somente quando a natureza do próprio fenômeno estiver mais ou
menos esclarecida, poderemos falar dos motivos a serem pesquisados. Só então
poderemos também avaliar a relevância da averiguação desses motivos para a
51
tese aqui em debate, qual seja, a tese de que a formação dos conceitos da
filosofia grega, e em geral a formação dos conceitos de todo pensamento
racional, tem sua raiz formal e histórica na abstração real da síntese social
mediada pela troca de mercadorias, ou seja, na segunda natureza.

Peço ao leitor, primeiro, que esqueça por um momento todo eventual


conhecimento prévio que tiver da filosofia grega ou mesmo posterior; segundo,
que aceite como dada uma motivação suficiente para o esforço de pensamento
que ali foi necessário; e, terceiro, que se contente com o exemplo, que escolhi
preocupado apenas com a simplicidade na demonstração que se segue. Trata-
se de responder à questão: como pode ser descrito o material de que é feito o
dinheiro em forma de moeda, ou melhor, o material de que ele a rigor teria de
ser feito.

Se o dinheiro, no curso de sua história, foi feito às vezes de ouro, outras de prata
ou cobre ou então de alguma liga metálica, e hoje consiste apenas de uma
promessa, em papel, de uma quantidade garantida de ouro, ele pode ser visto
somente como coisa arbitrária oportunamente estipulada. Só esta multiplicidade
de materiais já indica que nenhum deles pode ser considerado como
essencialmente adequado ao dinheiro. A verdade é que nenhum item do
"catálogo das mercadorias ordinárias [...], que a seu tempo desempenharam o
papel de equivalente das mercadorias" (Marx, O Capital, L.I, cap.1) faz justiça
àquela determinação que torna a matéria-dinheiro específica entre todas as
outras: ela não pode ser sujeita a nenhuma alteração física no tempo. Esse
tempo inclui toda a duração na qual a moeda em questão circula como dinheiro
e mesmo o período em que, subtraída à circulação, pode servir ao
entesouramento. A inadequação do material monetário é, de fato, reconhecida
pelos respectivos órgãos emissores de dinheiro na promessa de substituir
gratuitamente qualquer peça monetária, desgastada pelo uso normal, por outra
de igual valor. O material de que o dinheiro teria de ser feito não pode existir,
portanto, em toda a natureza. Ele não pertence à natureza primeira, primária ou
original; ele carece, portanto, também de qualquer possível caráter sensível.
Assim, ele deveria ser qualificado como mero conceito, como puro conceito não-
empírico. Mas daí concluir que o material monetário existe só no pensamento é
tão absurdo como procurar um modelo deste material na natureza. Dinheiro

52
mental não pode existir. Nem mesmo um Till Eulenspiegel conseguiria comprar
alguma coisa com uma moeda que não tivesse nenhuma realidade material. Sua
realidade tem de ser igual à das mercadorias que deve comprar, precisa possuir
uma identidade espaço temporal, objetiva, de modo que uma moeda que eu
possua não possa estar ao mesmo tempo nas mãos de outra pessoa. Mas a
realidade material do meu dinheiro tampouco pode ser uma realidade apenas
para mim, seu possuidor, não pode ser uma realidade a Berkeley ou a Hume, ou
de qualquer outro idealista subjetivo. Se faço uso do meu dinheiro para comprar
uma mercadoria de alguém, então esse dinheiro tem de ter, para ele, a mesma
realidade que tem para mim. Também não se trata de uma realidade meramente
para nós dois, mas ipso facto, uma realidade em geral para todos os que tomam
parte na circulação social desse dinheiro, uma realidade, portanto, com o mais
alto grau pensável de objetividade. E, no entanto, é impossível descobrir, em
todo o mundo sensível, uma única representação empírica para esse material,
de realidade indubitável, com o qual uma moeda teria, a rigor, de ser feita. Os
materiais com os quais se satisfaz, na praxis, a cunhagem de moedas e que em
geral são completamente adequados às finalidades pragmáticas da economia
social, constituem, em vista da efetiva natureza formal da função de dinheiro,
meros rebotalhos da realidade do valor de uso, dos quais, exatamente, essa
natureza formal faz abstração. Mas esta natureza formal ou "objetivação formal
do valor" das mercadorias nunca encontra sua própria apresentação, como
sublinhou Marx, no mundo das mercadorias, pois ali ela pode apenas espelhar-
se no valor de uso das outras mercadorias, com as quais deve equivaler na troca.
Isso é totalmente suficiente para as exigências da troca de mercadorias como
campo de ação prática dos homens, pois evidentemente não pode existir
nenhum objeto de ação prática que não seja feito de matéria natural real. Mas
isso não elimina ainda a distinção em relação àquela objetivação do valor, da
qual o dinheiro assume a função de portador e na qual não entra "nenhum átomo
de matéria natural". Evidentemente, uma representação genuína dessa matéria
não-material, ou mesmo não empírica, da qual o dinheiro em forma de moeda
virtualmente teria de ser feito, só pode existir fora ou além do campo total da
matéria natural e da empiria sensível ou, em outras palavras, somente na forma
de um conceito não-empírico ou "puro". E isso não vale apenas para a reposição
idêntica da matéria da moeda, mas também para a apresentação adequada de

53
todos os componentes existentes na abstração real, que formam a parte
essencial daquilo que Marx denominou "objetivação do valor". Deve estar claro
que não há apenas uma, mas duas matérias do dinheiro a serem distinguidas.
Em primeiro plano está uma função econômica, a única que fará sentido para
todos. Em segundo plano, está o dinheiro como portador potencial da função de
síntese da sociedade mercantil, graças à qual ele pode ser chamado de nexus
rerum da sociedade. As duas naturezas do dinheiro se diferenciam por suas
materialidades opostas. A função econômica exige o uso de materiais preciosos,
como ouro e prata, pelos quais se definem uniformemente os preços das
mercadorias. A função sócio-sintética do dinheiro, ao contrário, é caracterizada
pela imaterialidade abstrata de seu substrato, já que a substancialidade do ato
de troca tem de ser, durante o tempo em que decorre a transação, totalmente
separado de qualquer praxis de uso material das mercadorias, para que a troca
seja possível. Com a emissão do dinheiro em forma de moeda - e eu penso agora
na época da administração monetária clássica -, esta flagrante contrariedade
entre as materialidades das duas naturezas do dinheiro leva a uma contradição
diretamente palpável. A autoridade emitente define o metal e o peso necessário
para cada valor de moeda e a vincula a uma declaração garantindo a substituição
gratuita, por outra de igual valor, de qualquer moeda danificada durante a
circulação. O que isso significa? Significa que o dinheiro deveria ser feito de um
material não desgastável, com uma durabilidade quantitativa intemporal. Tal
material, porém, não existe em toda a natureza. Comparado com as matérias
naturais, ele se mostra como pura imaterialidade abstrata. Esta imaterialidade
não é absolutamente ideal, mas possui a espaço-temporalidade das ações
humanas que efetuam bilhões de vezes a circulação de mercadorias e dinheiro
na sociedade. Mas qual é agora o passo que leva da abstração real imaterial
para a abstração do pensamento?

É importante notar a irreflexão com que se encara a contradição entre as duas


naturezas opostas do dinheiro na emissão de moedas ou notas e com que se
considera a praxis daí resultante uma solução adequada.25 Não se deve supor o

25 Bem menos irrefletidos foram os autores do grande roubo postal na Inglaterra nos anos
sessenta, no qual foram apanhadas notas usadas de esterlinas, destinadas à destruição em
Londres, no valor nominal de 20 milhões, para colocá-las de novo em circulação. Um roubo
pesado de vinte milhões, que não tornou a autoridade monetária estatal mais pobre em um penny
54
mesmo desinteresse por parte dos gregos na fase constituidora e inicial do
dinheiro. Ao contrário, podemos especular com bastante segurança que os
gregos dos séculos VII e VI, na Jônia, em alguns estados marítimos gregos e no
sul da Itália, onde o dinheiro surgiu, observaram essa rara instituição humana,
tão obscura e estranha, em suas nuances mais sutis. Não duvido nem mesmo
que tenham percebido também a substancialidade imaterial da natureza sintética
do dinheiro. Ainda mais que parece provável que Pitágoras, em Taranto, e
Parmênides, em Eléia, foram eles mesmos responsáveis pela emissão de
moedas. Por menos ideal que seja esta imaterialidade, sua observação, no
entanto, só é possível mentalmente e sua definição precisa só se dá pelo
pensamento conceitual. Naturalmente, isso não vale apenas para a infinitude
temporal geral dessa imaterialidade. Estende-se também para os elementos de
conteúdo hauridos da fisicalidade do ato de troca.

Esta atividade abstrata do pensamento evidentemente desconhece seu


parentesco com o fenômeno comercial do dinheiro. O primeiro a encontrar um
conceito adequado para esses elementos da abstração real foi Parmênides, com
seu conceito ontológico de ser, obviamente sem saber a que correspondia seu
conceito e por que havia se tornado necessário para ele. Para ele, o real é só e
exclusivamente o Uno, e não a aparência sensível das coisas. Ou, expresso em
sua língua: ò ó. Do Uno não há nada a dizer, a não ser que ele é totalmente
completo em si, preenche o tempo e o espaço, é imutável, indivisível e imóvel, e
que não pode ser efêmero e tampouco originado. Esse conceito é uma evidente
unilateralização e uma absolutização ontológica da natureza do dinheiro nele
identificável. Com isso, são excluídas outras propriedades igualmente essenciais
da mesma materialidade, que depois outros pensadores tiveram de levar em
conta. Falaremos mais sobre isso.

É importante sublinhar aqui que nem Parmênides nem qualquer outro dos
fundadores da filosofia grega clássica atribui a si mesmo a origem das
abstrações que eles exprimem conceitualmente, no sentido de que ela teria sido
construída subindo da percepção múltipla dada até graus mais elevados de
generalidade. Nenhum deles legitima seus conceitos fundamentais por uma

sequer. Quanta irreflexão, porém, havia em matéria de dinheiro na Grécia antiga e na Jônia,
quando ali ou na vizinha Lídia por volta de 630 a.C. ocorreu a primeira cunhagem de moedas?
55
representação de um tal processo constitutivo. As abstrações que servem de
base aos conceitos são totalmente de outro molde e encontram-se prontas sem
qualquer dedução. Elas ocorreram em outro lugar e por caminhos diversos aos
do pensamento. Assim, Parmênides, por exemplo, descreve, no Proêmio
alegórico que oferece aos leitores, como foi conduzido no carro das filhas de
Helios através dos umbrais do dia e da noite, até a morada de Dike, a deusa do
direito, e recebeu o conceito do único Real, com uma advertência explícita:
"Somente com a razão tu tens de ponderar este ensinamento muitas vezes
provado, que irei te dizer" 26. Não sendo obra de seu pensamento, o conceito de
ò ó é, não obstante, ponto de partida de um pensamento fundamentado em
conclusões da razão. O fundamento é a aptidão do pensamento conceitual para
a dialética da verdade e inverdade de acordo com critérios lógicos internos de
necessidade ou contraditoriedade do pensamento. Parmênides argumenta: "O
pensamento e aquilo sobre o que é o pensamento são o mesmo. Pois tu não
encontras o Pensar sem o Ser, no qual ele se expressa; pois nada é e nada será
fora do pensamento." "Este é o pensamento principal", acrescenta Hegel. De
fato, Hegel encontra em Parmênides a fundamentação de seu próprio
ontologismo conceitual.

7. Notas conclusivas à análise

Da análise acima resultou que a estrutura social da troca de mercadorias


repousa sobre uma abstração não empírica do ato de troca e apresenta uma
inequívoca semelhança com a abstração dos conceitos metodológicos básicos
das ciências exatas da natureza. Isso significa que a abstração da troca não é
pensamento, mas tem a forma que o pensamento apresenta nas categorias
puras do entendimento. Com isso está claro que essas categorias, que segundo
minha concepção resultam da abstração da troca, ou mais precisamente, da
fisicalidade da ação de troca, divergem daquelas que Kant deduz das formas do
juízo. Minha concepção de razão pura está de fato mais próxima daquela
presente nas ciências da natureza de observação mecanicista clássica do que
está a de Kant. Disso encontro um testemunho notável em Ernst Cassirer. Cito:

26 Sigo aqui a tradução de Hegel nas Vorlesungen über die Geschichte der Philosophie, vo.I,
Leipzig, Reclam jun., 1971, p.387ss. ("Nur mit der Vernunft mut du diese vielgeprüfte Lehre
erwägen, die ich dir sagen werde").
56
“O conceito exato de natureza enraíza-se no pensamento mecanicista e é
alcançável apenas com base nessa idéia. Mesmo que a explicação da natureza
busque, em seus desenvolvimentos posteriores, libertar-se desse esquema
inicial e adotar outro mais geral, ainda assim o movimento e suas leis
permanecerão o verdadeiro problema fundamental, no qual o conhecimento
alcança clareza sobre si mesmo e sobre sua tarefa. A efetividade (Wirklichkeit)
é completamente conhecida ao resolver-se num sistema de movimentos... Em
sentido científico geral, movimento não é outra coisa senão uma relação
determinada, envolvendo espaço e tempo. Como membros dessa relação
fundamental, no entanto, espaço e tempo não são mais pressupostos em suas
propriedades psicológicas e ‘fenomênicas’ imediatas, mas apenas em suas
determinações matemáticas rigorosas... Isto exige como situação fundamental o
espaço homogêneo e contínuo da pura geometria... Assim também o próprio
movimento é introduzido desde o início nesse círculo de um condicionamento
puramente conceitual. Só aparentemente ele forma um fato direto da percepção,
o fato fundamental mesmo que toda observação externa primeiramente nos
oferece... Mas este momento sozinho não basta de maneira nenhuma para
fundamentar o conceito rigoroso de movimento, necessário para a mecânica...
Esta transformação matemática, que o físico pressupõe como efetuada, é na
verdade o próprio problema original." (Ernst Cassirer, Substanzbegriff und
Funktionsbegriff, Berlin, 1910, p.155-158; mais adiante terei oportunidade para
outras citações dessa obra.)

A determinação conceitual de espaço, tempo e movimento é a distinção


essencial entre a concepção kantiana do entendimento puro e a minha. O ponto
principal dessa distinção está evidentemente na redução que faço da abstração
do pensamento às condições estruturais que fundamentam a socialização, ou
seja, ao ser social em lugar das fantasmagorias idealistas do sujeito
transcendental ou do espírito. Nós recorremos, portanto, à problemática
fundamental da socialização. As valorações de uso jamais serviriam para
fundamentar um nexo social entre os proprietários privados. Para que isso fosse
possível, os indivíduos deveriam, por assim dizer, poder trocar seus próprios
corpos uns com os outros, a fim de driblar as incomensurabilidades de suas
sensibilidades corpóreas e de suas valorações pessoais. O princípio é que eu
sei exatamente o sabor de uma maçã sobre minha língua, mas não posso saber
57
que gosto ela tem na boca de um outro. Se fosse depender disso, a sociedade
teria caído na anarquia e no caos já no momento em que todas as ações
coletivas de cunho arcaico se transformaram, na Idade do Ferro, em ações de
indivíduos que se tornavam autônomos. A humanidade não teria sobrevivido a
esse limiar histórico. Uma síntese social entre os indivíduos separados só se
tornou possível porque em suas relações recíprocas, portanto na troca de
mercadorias, enraizou-se uma ação que ultrapassa toda a esfera de
incomensurabilidade e caracteriza-se tão-somente por sua abstração radical -
exatamente a ação de troca em sua separação do uso dos respectivos objetos
durante o tempo da transação. Esta ação singular só pode obter seu efeito social,
no entanto, à medida em que irradiar-se sobre todas as relações humanas que
sustentam a síntese.

Tal irradiação é o entendimento puro. Sua forma conceitual é resultado direto da


fisicalidade abstrata da ação de troca, por meio do dinheiro. Em outras palavras,
o nascimento do entendimento puro não ocorre nem no homem, nem por meio
dele, e não se dá passo a passo, como na formação dos conceitos empíricos de
nossa linguagem corrente, mas surge numa abstração completamente formada
e idêntica para todos os indivíduos com os mesmos interesses sociais. O
entendimento puro é, com isso, uma potência produzida sem ligação com a
fisiologia humana e separada da subjetividade dos homens. O modo como ele
ocorre será mostrado na continuação deste livro.

Este modo de conceber ajuda na explicação do milagre, até agora nunca


decifrado, do intelecto puro. O entendimento é uma capacidade humana
completamente reificada, na qual a fisicalidade do ato da troca penetra sob a
forma da transformação da abstração real em abstração de pensamento e invade
o pensamento. O fenômeno paradoxal da síntese social conforme os princípios
da propriedade privada submete de certa forma os homens, como instrumento
de sua realização e da sobrevivência da espécie. Portanto, de acordo com a
concepção aqui adotada, longe de ser o apogeu da autonomia espiritual humana,
como acredita o idealismo, as capacidades do entendimento do homem
civilizado se baseiam num grau de profundidade e opacidade da reificação que
nem Marx reconheceu completamente.

58
Mas como se relacionam, agora, estas capacidades do entendimento dadas de
forma latente na ação de troca e a realidade econômica da troca de mercadorias,
ou seja, comercialmente, o valor de troca e o dinheiro? Os dois aspectos da troca
comunicam-se ou são estranhos uma ao outro? O valor de troca é parte da troca
de mercadorias, assim como o entendimento puro é parte da abstração da troca.
Ele é o que seu nome diz - troca=valor. Ele é a propriedade caracterizadora das
mercadorias, que se tornam objetos de uma ação de troca distinta das ações de
uso. Daí a invisibilidade do valor de troca, sua generalidade social e a dimensão
exclusivamente quantitativa que recebe. Sua identidade é a mesma tanto em um
ato de troca como em qualquer outro. Sua objetivação é o dinheiro. Por sua
abstração de toda diferença qualitativa de uso das mercadorias, o valor de troca
iguala sem distinção os dois lados da relação de troca, no que diz respeito a seus
objetos, suas ações e a seus dois atores. Com isso, o valor de troca postula a
equivalência dos objetos trocados. A troca é o lugar para o ditado "justo para um,
barato para o outro". A equivalência das mercadorias é posta como sinônimo de
sua trocabilidade.27 Para determinar a proporção da equivalência entre duas
mercadorias a serem trocadas, o valor de troca precisa diferenciar os diversos
tipos de mercadoria. Para isso é necessária a instituição do dinheiro. No dinheiro,
uma determinada mercadoria, os metais preciosos, coloca-se no mercado como
corporificação material geral e medida do valor de troca recíproco de todas as
mercadorias. Pela "duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro", as
mercadorias, graças ao denominador comum de suas relações de troca com a
mercadoria dinheiro, medem-se pelo seu preço. O preço das mercadorias não é
mais apenas o valor de troca em geral, mas o valor mercantil da própria
mercadoria, que se mede conforme seus custos de produção ou, mais
precisamente, de acordo com o tempo de trabalho socialmente necessário para
sua produção. Graças à linguagem que as mercadorias assim adquirem, os
indivíduos que buscam seu sustento no mercado podem e têm de se comportar
adequadamente de acordo com as exigências da sociedade sintética, fazendo o

27 O mesmo encontra-se em Marx, e até como se fosse uma trivialidade (cf. MEW, 23, p.64; O
Capital, L.I, cap.1). E por que não, já que seus predecessores e contemporâneos defendiam o
mesmo? Mas poucos anos depois do aparecimento de O Capital, Livro I, surgiu a teoria subjetiva
do valor, a qual negava a equivalência da troca, pois interpretava a troca aqui segundo a lógica
da percepção (Vilfredo Pareto). Isto pode ser negado ou aceito, mas em qualquer caso não se
pode mais tratar a sinonimia mencionada como evidente. Daí meus esforços para sua
fundamentação.
59
balanço de seu orçamento e regulando seu negócio por entradas e saídas, sem
qualquer conhecimento do que está abaixo da superfície

Para abreviar esta exposição, torna-se evidente que os dois aspectos da


abstração de troca são totalmente estranhos um ao outro. Eles não têm nenhum
conceito em comum - a definição econômica do ferro é seu preço, a definição
física é seu peso atômico. Eles são mutuamente intraduzíveis e nenhum dos
aspectos pode ser deduzido da existência do outro.

Já foi sublinhado que a abstração da troca iguala os dois atores entre si. Que
seja rei ou mendigo, como atores da troca eles não podem ser outra coisa, nada
mais e nada menos, que os sujeitos de direito de suas transações. O caráter
abstrato de sua igualdade é a raiz do conceito jurídico de direito, mesmo que a
formulação do estado de direito civil tenha demorado mais entre os gregos do
que entre os romanos. Entre os gregos, ele se cristalizou primeiro em questões
de cidadania.

Um importantíssimo efeito da troca de mercadorias surge com base no pesado


patriarcalismo das sociedades em formação. Os sexos vinculam-se à polarizada
separação entre ações de troca e ações de uso na estrutura de troca. Os homens
ocupam a função de sujeito jurídico da troca e, com isso, tornam-se o influxo
determinante sobre a esfera pública e a constituição do Estado. Para a mulher,
ao contrário, fica a esfera doméstica e o cuidado com o consumo e o uso no
âmbito familiar, a geração dos filhos e sua criação na tenra idade. Por outro lado,
fica com ela também a supervisão dos escravos domésticos para os ofícios
caseiros de fiar e tecer, a produção e cuidado com a vestimenta, o cultivo das
plantas e a criação de animais domésticos no espaço do Oikos, onde ela
desempenha trabalho agrícola e tem a responsabilidade masculina de um
camponês.

Acabo de trazer à luz a total separação interna e estranheza dos dois aspectos
da abstração de troca, do aspecto de fisicalidade do ato de troca e da perspectiva
da natureza, como dos aspectos de valor das mercadorias e rede de conexões
funcionais. Dessa incomunicabilidade brota a dicotomia entre natureza e
sociedade, bem como a dicotomia metodológica entre ciências da natureza e do
espírito. A liquidação dessa dicotomia é tanto mais necessária à medida que

60
Kant e Marx, que a deveriam ter conduzido, apenas endureceram e
aprofundaram a separação. Kant, por não ter levado sua análise das ciências
matemáticas da natureza até a análise da ciência real, sobretudo a economia.
Marx, por não ter estendido, em sentido contrário, a crítica da economia política
até as ciências naturais. Desse modo, o abismo entre ciências da natureza e
ciências do espírito se tornou, entre esses dois poderosos pensadores, ainda
mais profundo. Através de minha derivação das categorias puras do pensamento
a partir de processos e fatos espaço-temporais, esta dicotomia desaparece.
Sobre esta base deveria ser possível uma reconstrução pormenorizada da
história. Eu tratarei, especialmente, apenas da gênese da ciência natural na
Antiguidade e na Modernidade.

61
II Parte
Síntese social e produção

1. Sociedade de produção e sociedade de apropriação

(No fundamental, restringimo-nos nesta parte, como aliás em geral neste texto,
ao ponto de vista do entendimento da história, sem entrar no tratamento
detalhado do mesmo.)

Os traços que diferenciam as relações de produção numa sociedade de classes


daquelas de uma sociedade sem classes já foram muitas vezes indicados. A
oposição se prende às diferentes formas de articulação da síntese social. Se
uma sociedade haure a forma de sua síntese das conexões de trabalho no
processo de produção, ou seja, deriva sua ordem determinante do processo de
trabalho das ações humanas sobre a natureza, então ela é, ou tem pelo menos
a possibilidade de ser, sem classes. De acordo com sua determinação estrutural,
esta sociedade pode ser chamada sociedade de produção. A alternativa a ela é
uma forma de sociedade baseada na apropriação. Como acima, apropriação
aqui é entendida apenas no sentido inter-humano ou intra-social,
especificamente como apropriação de produtos do trabalho por não-
trabalhadores. Com isso, deve-se distinguir entre forma de apropriação unilateral
e forma de apropriação recíproca. A apropriação unilateral de excedentes leva à
sociedade de classes nas várias formas de "relações diretas de dominação e
servidão", para usar essa expressão de Marx. Tal apropriação acontece na forma
de taxas tributárias obrigatórias ou espontâneas, ou na forma de roubo e furto,
ou pode estar baseada em sujeição ou em "direitos tradicionais", etc. As
questões que nos interessam, no entanto, estão ligadas principalmente às
formas da sociedade de apropriação baseada em apropriação recíproca ou
troca, portanto às distintas formas da produção de mercadorias. A característica
comum de todas as sociedades de apropriação é uma síntese social através de
ações que por sua índole são distintas e temporalmente separadas do trabalho
que produz os objetos de apropriação. É desnecessário sublinhar que nenhuma
formação social, seja baseada na produção ou na apropriação, poderá ser
compreendida sem considerar o respectivo grau de desenvolvimento das forças
produtivas.

62
Na parte anterior, foi mostrado, com uma fundamentação minuciosa, que uma
síntese social por meio das formas de apropriação recíproca da troca de
mercadoria leva ao surgimento do trabalho intelectual em nítida separação do
trabalho manual. A unidade da síntese de tais formas sociais constitui a fundação
genético-formal direta de suas formas características de conhecimento e
pensamento. Não hesitamos em generalizar esse resultado e concluir daí que
em todas as formações sociais, sejam sociedades de apropriação ou de
produção, as formas de consciência socialmente necessárias são determinadas,
de modo dedutível, pelas funções sócio-sintéticas, base dessas formações. Por
meio de tal generalização, a investigação levada a cabo torna-se importantíssima
para os interesses socialistas e comunistas, hoje impelidos para sua realização.
Nesta parte, usaremos os novos conceitos e conclusões, que resultaram de um
tema específico, como categorias e pontos de vista para o entendimento geral
da história. O olhar sobre épocas passadas tornará o terreno mais firme e mais
amplo para a reflexão sobre o futuro, na parte seguinte.

2. Mão e cabeça no trabalho

Propriamente falando, não pode haver absolutamente nenhum trabalho humano


sem que cabeça e mãos operem conjuntamente. O trabalho não é um ato
instintivo de um animal, mas uma ação totalmente intencional. A intenção tem de
guiar o esforço físico, do tipo que seja, com um mínimo de coerência, ao fim
pretendido. "O trabalho, como o concebemos, pertence exclusivamente ao
homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão, e uma
abelha, com a construção de seus favos, chega a envergonhar alguns
construtores humanos. Mas o que distingue de antemão o pior construtor da
melhor abelha é que ele construiu o favo em sua cabeça antes de fazê-lo de
cera. No fim do processo de trabalho surge um resultado que já estava desde o
início na imaginação do trabalhador, que já existia, portanto, idealmente."28 Para
nós, no entanto, a questão essencial é saber na cabeça de quem estava
idealmente o resultado pretendido do processo de trabalho. "Enquanto o
processo de trabalho é individual, o mesmo trabalhador desempenha todas as
funções que serão depois separadas. Na apropriação individual dos objetos
naturais para suas finalidades vitais, ele se controla a si mesmo. Depois ele

28 MARX, Karl. O Capital, L. I, cap.5 (MEW, 23, p.193).


63
passa a ser controlado."29 O processo individual de trabalho encontra-se, é
verdade, em um sentido bem determinado - propriamente como "trabalho de
indivíduos isolados" - no início da produção mercantil desenvolvida, mas não se
encontra no início da história humana. É preciso, no entanto, distinguir se o fim
pretendido de um processo de trabalho está idealmente na cabeça daquele que
trabalha, ou na cabeça de vários que executam o trabalho conjuntamente, ou
senão em uma cabeça estranha, que atribui aos trabalhadores meros fragmentos
do processo, absolutamente sem nenhum significado para os executores, pois a
finalidade do trabalho lhes foi imposta por outros. Nesse caso, mudam as
relações entre cabeça e mãos no trabalho. Mas as distinções essenciais estão
em se o fim pretendido é intenção do indivíduo que se esforça corporalmente, ou
intenção de vários que se esforçam conjuntamente, ou uma mera intenção
parcial, executada pelos indivíduos, mas que não revela nenhuma finalidade
para eles, porque esta lhes foi imposta por outros.

No que diz respeito à separação entre mãos e cabeça, é importante distinguir


entre unidade pessoal e unidade social. A unidade pessoal de mão e cabeça
caracteriza essencialmente só o trabalho que serve à produção individual
isolada. Isso não significa que, inversamente, toda produção individual isolada
também pressupunha tal unidade pessoal; pense-se, por exemplo, na olaria ou
na produção têxtil por meio de escravos, que fabricam o produto com seu
trabalho individual, mas não comandam nem os objetivos nem os meios
empregados. A separação pessoal entre mãos e cabeça ocorre em todo trabalho
que tem seus fins determinados por outros. A unidade social de mão e cabeça,
ao contrário, é característica da sociedade comunista, seja ela de tipo primitivo
ou altamente desenvolvida tecnologicamente. Em oposição a ela está a
separação social entre trabalho intelectual e manual, que se estende por toda a
história da exploração e assume as mais distintas formas.

Considerado muito a grosso modo, o desenvolvimento social na história parte do


comunismo primitivo, onde a produção baseia-se em uma comunidade
indissolúvel de trabalho, chega passo a passo à formação de produção individual
isolada em todos os campos essenciais e, consequentemente, à formação da
produção de mercadorias. Chega-se aqui, concomitantemente, ao uso do

29 Id., ibid., cap. (MEW, 23, p.531).


64
dinheiro em sua forma reflexiva como capital e à forma social de pensamento
como puro intelecto isolado. Em outras palavras, em rigorosa antítese ao
isolamento da produção manual, chegamos à universalização da síntese social,
em sua causalidade colateral da linguagem econômica das mercadorias e da
fundação da linguagem ideológica conceitual. Este estágio intermediário do
desenvolvimento histórico alcançado na Antiguidade Clássica gera a sociedade
de apropriação em sua manifestação absoluta ("clássica"), que exclui os
escravos produtores da participação na socialização e que exatamente por este
motivo não pode ter estabilidade. Mas com sua dissolução tem início um
processo de desenvolvimento no qual a socialização começa a capturar a
produção e mesmo o trabalho manual e, com isso, avança até o grau atual de
desenvolvimento. Um grau em que se criaram, no interior da sociedade
capitalista de apropriação, os pressupostos de uma moderna sociedade de
produção, e a humanidade, de acordo com a previsão de Marx e Engels, está
colocada perante a alternativa inevitável entre os dois. Vale a pena seguir esse
desenvolvimento geral através de suas fases principais, embora com forçosa
brevidade.

3. Começo da produção de excedente e da exploração

Sob este título entendemos, traduzida em nossa linguagem conceitual, a


passagem da sociedade primitiva (comunista) de produção às primeiras formas
de sociedade de apropriação. O começo da apropriação, no sentido intra-social
aqui entendido, pressupõe aumento de produtividade ou desenvolvimento das
forças produtivas do trabalho social comunitário suficiente para que se possam
esperar excedentes regulares sobre o mínimo de subsistência, em quantidades
significativas. Os primórdios da apropriação desenvolvem-se no interior da
coletividade e trazem consigo alterações lentas, mas nem por isso menos
marcantes, nas relações de produção que repousam na propriedade comum e
no consumo comunitário. Marx vê a necessidade de formas mediadoras para tais
mudanças, ou seja, o início de trocas com outras comunidades, que depois
retroagem desagregando a ordem interna. Este efeito torna-se duradouro
quando os elementos que se favorecem da praxis emergente de apropriação
tornam-se forças ativas, direcionando o desenvolvimento de acordo com seus
interesses, ou seja, organizam-se como um poder social específico. Sob seu
influxo, surgem crescentes usurpações da propriedade comum, sobretudo do
65
solo, e progressivas relações de dependência para os produtores. Pouco a
pouco formam-se dentro da sociedade divisões de classe baseadas na herança
e no patriarcado, em conexão com impulsos de conquistas externas e ampliação
de ações de roubo e de comércio.

Este delineamento extremamente abstrato serve exclusivamente para sublinhar


três momentos fundamentais: 1. o modo de produção, melhor dizendo, o
processo de trabalho na produção primária, ou seja, cultivo do solo e criação do
gado, permanece durante um longo tempo organizado de forma coletiva; 2. a
formação de riqueza interna na sociedade, por parte da classe que se apropria,
ocorre em grande medida essencialmente nas formas da apropriação unilateral
do produto excedente; 3. a troca de produtos mantém principalmente o caráter
de mero comércio externo entre comunidades distintas. Em outras palavras, a
relação de troca não se desenvolve ainda, nem o fará por longo tempo, na forma
de nexo social interno.

A produção individual isolada desenvolveu-se desde cedo na preparação de


ferramentas e armas de pedra. Mais tarde, no Neolítico, passou para as
invenções artesanais, ou seja, para a produção secundária, sobretudo em
trabalhos femininos, como olaria, fiação e tecelagem etc. No fim do Neolítico,
atingiu a fundição de metais, que era novamente um trabalho masculino. As
indústrias secundárias tornam-se o principal campo do comércio de mercadorias,
assim como a troca de mercadorias se torna a base do impulso para ampliação
dos ofícios secundários. O desenvolvimento e o efeito recíproco da produção de
excedente e da formação de riqueza de classe levam a uma poderosa
prosperidade, suficiente para empreender, naquele período, a gigantesca obra
de cultivo dos grandes vales aluviais desde o Nilo até o Hoangho.

4. Troca de dádivas e troca de mercadorias

A abstração da troca pertence à troca de mercadorias, não à sua forma


historicamente precedente, a troca de presentes ou dádivas. A troca de dádivas
caracteriza-se pela obrigação de reciprocidade, enquanto a troca de mercadorias
procede pelo postulado da equivalência dos objetos trocados. As diferenças e
oposições necessitam esclarecimentos.

66
A primeira pesquisa profunda sobre troca de dádivas foi desenvolvida por Marcel
Mauss no começo do século. Suas investigações de vinte anos resultaram, em
1924, na publicação em Paris de seu famoso Essai sur le don ou A dádiva: forma
e função da troca em sociedades arcaicas.30 Seu método é, como ele mesmo
diz, o da "comparação precisa", suficiente para proporcionar a descrição rigorosa
dos fenômenos em sua variedade estarrecedora; uma explicação histórica do
fenômeno da troca de dádivas enquanto tal não fazia parte de seus objetivos.
Contudo, sua análise descritiva foi uma realização de grande mérito, que lançou
em movimento fecundo a ambiciosa antropologia francesa. No entanto, sentimos
falta, na pesquisa de Mauss, de uma definição material daquilo que ele entendia
por sociedade arcaica. Portanto eu acrescento uma tal definição, como ela me
parece mais evidente: arcaicas devem ser consideradas as sociedades que não
possuem outros instrumentos e ferramentas para o trabalho do solo senão
aqueles da Idade da Pedra. Com tal aparelhamento não é possível nenhuma
produção isolada, nenhuma autossubsistência individual, e, portanto, tornam-se
necessários um modo de produção coletivo e uma propriedade comum de algum
tipo.

Marcel Mauss define seu projeto de pesquisa do seguinte modo:

"... assim, de todos esses princípios, nós investigamos fundamentalmente


somente um. Qual é a base do direito e do interesse, que obriga, nas sociedades
atrasadas ou arcaicas, a retribuição da dádiva recebida? Que força está por trás
da coisa doada, pela qual o recebedor a retribui?"31

Esta segunda questão já assume a perspectiva do próprio homem arcaico. Mas


a retribuição não se prende à coisa, ao momento ou ao lugar da troca: a
retribuição prende-se à pessoa.32

Uma pessoa que deixar sem qualquer retribuição uma dádiva que ela tenha
recebido, tratando-a, portanto, como se fosse sua propriedade pessoal e
definitiva, se colocaria em uma oposição insuportável contra sua comunidade e
provocaria seu banimento. Sem dúvida nenhuma, portanto, dentro de uma

30Frankfurt, Surkamp, 1969.


31Ibid, p.13.
32Falo em pessoa só na medida em que também em sociedades arcaicas os indivíduos têm
nomes próprios, com os quais sabem que são chamados pessoalmente.
67
comunidade arcaica e coletiva, a retribuição na troca de dádivas é bastante séria.
Mas será ainda assim em outras sociedades mais tardias?

A Idade do Bronze, que segue à Idade da Pedra, não traz ainda nenhuma
reviravolta essencial. O bronze é relativamente raro e precioso e está à
disposição apenas dos dominadores, para uso em armas e objetos de luxo. Os
produtores primários, ao contrário, ficam basicamente com seus instrumentos da
Idade da Pedra. Além disso, a construção de sistemas de irrigação nos grandes
vales fluviais do Nilo ao Hoangho proporciona aos dominadores na Idade do
Bronze um notável aumento na safra agrícola.

O rompimento decisivo das tradições das sociedades arcaicas ocorre pela


obtenção e elaboração do ferro, no limiar do último milênio antes de nossa era.
R.J. Forbes explica a especificidade desta inovação técnica:

"O estudo da metalurgia primitiva do ferro revela que a produção de ferro fundido
e aço (aqui entendido no sentido de ferro fundido superficialmente carbonizado)
comportou a introdução de um complexo inteiramente diferente de técnicas e de
processos. O forjador da Idade do Bronze teve de reaprender seu ofício. As
novas técnicas envolviam a total purificação dos materiais ferrosos, novos
instrumentos e métodos para tratar a primeira separação produzida pela fusão
do minério, e o domínio dos processos de carburação, de apagar e de temperar,
os quais capacitavam o novo forjador a produzir aço a partir do ferro fundido.
Pois somente o novo aço era superior ao bronze e ligas similares - o ferro fundido
sozinho não teria produzido esta revolução técnica."33

Além disso, o minério de ferro era facilmente encontrável na Ásia Menor e na


Grécia, e os instrumentos metálicos de ferro e aço eram incomparavelmente
mais baratos e mais fortes do que aqueles feitos de cobre e suas ligas. O uso de
instrumentos de ferro provoca uma revolução econômica na agricultura.
Podendo agora ser explorada individualmente, torna-se economicamente muito
mais vantajosa do que no complicado e dispendioso modo asiático de produção.
Com a passagem ao uso do ferro, surge a economia da "pequena produção

33R.J.Forbes, "Metals and early science", Essays on the social history of science, ed. S.Lilley,
Copenhagen, Ejnar Munksgaard, Centaurus, 1953, v.3, p.25-26.
68
camponesa e do exercício independente dos ofícios" que, de acordo com uma
célebre nota de rodapé de Marx, formam "a base econômica das comunidades
clássicas em sua melhor época, após a dissolução da propriedade comunal de
origem asiática e antes de a escravidão, implacavelmente, tomar conta da
produção" (MEW, v.23, p.354, rodapé).

Com este cenário, torna-se impossível confiar na disposição de retribuir uma


dádiva. A troca de dádivas tem de passar por uma conversão profunda,
exatamente a conversão em troca de mercadorias. Isso significa que a
retribuição espontânea que cedo ou tarde seguia-se à dádiva, em prazos
irregulares, conecta-se agora rigorosamente a ela, em um pagamento no mesmo
local e ocasião, de modo que os dois atos da troca tornam-se condições
simultâneas e recíprocas, encadeadas na unidade da transação. Os parceiros
dessa relação encontram-se agora, no pleno sentido da ação de troca (e sua
negociação), como compradores e vendedores, cuja separação face aos atos de
uso dá origem à formação da abstração da troca.

5. A sociedade clássica de apropriação

Os primeiros produtos estruturalmente típicos da nova metalurgia do ferro, que


se difundiu por volta do ano 1000 aC ou pouco antes, foram a civilização dos
fenícios e, depois dela, a dos gregos e romanos. Livres da necessidade de
manter uma pesada irrigação aluvial como pré-condição para obter o excedente
necessário em sua produção primária, as novas potências puderam satisfazer-
se com espaços bem menores, colonizando territórios acidentados, ilhas e faixas
costeiras e tirando proveito de sua mobilidade. Em suas primeiras lendas
heróicas (como Hércules, Argonautas etc.), eles mostram-se fortes o suficiente
para empreender expedições contra os territórios das grandes culturas antigas
do Oriente e suas fabulosas riquezas, com destruições, saques, raptos etc.,
apropriando-se, desse modo, junto com as riquezas pilhadas, das avançadas
técnicas e artes do mundo antigo, ao qual pouco a pouco se igualam, sobretudo
nos ramos secundários da produção, e que ultrapassam, na fabricação de armas
e construção de navios.

Correspondendo ao isolamento da produção, esses aventureiros montam suas


excursões de roubos e pilhagens por própria conta e risco, sem o apoio do poder

69
estatal, não mais a serviço de senhores teocráticos. Eles agem como heróis,
indivíduos independentes, com os quais seus povos e suas pátrias se
identificam, estimulando esta prática de apropriação autônoma da riqueza alheia.
Com isso, embora sua representação mitológica do mundo ainda seja
semelhante às das culturas da Idade do Bronze, os deuses deixam de ser a
ligação dos apropriadores com uma potência superior para se transformarem em
senhores do destino dos heróis. É a forma rudimentar e originária do comércio
privado de mercadorias, antes de alcançar as paridades ou disparidades da
forma dinheiro. Esses prenúncios de formas posteriores foram reconhecidos com
perspicácia por Horkheimer e Adorno em sua Dialética do esclarecimento.

É difícil afirmar se a troca de mercadorias e a circulação de dinheiro no mundo


da Antiguidade Clássica chegaram a configurar a produção mercantil e em que
grau isso teria ocorrido. Engels diz que sim e fala em produção mercantil
desenvolvida, seguindo Lewis Morgan, datada do início da civilização. Pelo
menos é claro que a dissolução do coletivismo na produção primária por meio
da pequena produção camponesa isolada e o simultâneo crescimento do
exercício independente dos ofícios, para citar duas categorias interligadas em
Marx, provocaram um desenvolvimento das forças produtivas que fez a
expansão e o aprofundamento do comércio de mercadorias tornarem-se
necessidades econômicas elementares. Um inegável termômetro desse fato é a
introdução e a rápida difusão de moeda nos séculos VII e VI aC. Mas isto não é
suficiente para documentar uma formação social em que a troca de mercadorias
já tenha se tornado o único nexus rerum interno determinante. "É preciso pouco
conhecimento histórico para saber que a história da propriedade do solo forma
a história secreta da república romana", diz Marx (MEW, 23, p.96). Já que o
camponês possuía seus meios de trabalho, a subtração da propriedade da terra
tornou-se o principal meio para sua exploração (cf. tb. MEW, 25, p.798s.). Mas
por quais processos de mediação realizou-se a monopolização da propriedade
da terra contra os camponeses? "A luta de classes do mundo antigo, por
exemplo, move-se principalmente na forma de uma luta entre devedores e
credores, e acaba em Roma com o declínio do devedor plebeu, que é substituído
pelos escravos", diz Marx (MEW, 23, p.149-150). Também na Grécia a pequena
produção camponesa e o exercício independente dos ofícios formam "a base
econômica das comunidades clássicas em sua melhor época, após a dissolução
70
da propriedade comunal de origem asiática e antes de a escravidão,
implacavelmente, tomar conta da produção" (MEW, v.23, p.354, rodapé). As
mudanças são efeito dos negócios com mercadorias e dinheiro. "No mundo
antigo, o efeito do comércio e do desenvolvimento do capital mercantil é sempre
a economia escravocrata; [...] No mundo moderno, ao contrário, leva ao modo
de produção capitalista." (MEW, 25, p.344).

A distinção decisiva entre Antiguidade e Modernidade é que somente na


Modernidade a formação da riqueza provém da produção de mais-valia, e não
somente da apropriação, ou seja, do mero deslocamento de valores já
existentes. Na Antiguidade clássica, a formação de riqueza não era intra-
econômica, mas essencialmente extra-econômica, isto é, baseava-se no roubo
e na exploração de outras comunidades e membros de outras tribos, por
imposição de tributos ou escravização. Por parte das cidades-estado gregas
espoliadoras, foi necessário elaborar uma constituição gentílica para que elas
pudessem se manter unidas e agir cooperativamente. Mas esta condição estava
em contradição com o desenvolvimento mercantil. Pois também lá era verdade
que "somente produtos de trabalhos privados autônomos e independentes
podem se defrontar como mercadorias" (MEW, 23, p.57). Em seu reflexo sobre
a economia interna, a relação tributária externa transforma-se dentro da Polis em
oposição de classes entre devedores e credores, até o limite da venda de
devedores como escravos. Essa transformação foi descrita classicamente por
Engels com o exemplo de Atenas, e vale a pena repetir aqui os trechos mais
decisivos.

Já "por volta do final da fase superior da barbárie, [...] pela compra e venda de
propriedade do solo, pelo avanço da divisão do trabalho entre agricultura e
artesanato, fabricação de navios e comércio, [...] o funcionamento regrado dos
órgãos da constituição gentílica [caiu] em tal desordem que já no tempo dos
heróis foi preciso remediá-la." Seguiu-se "a divisão de todo o povo, sem olhar
para tribo, fratria ou gens, em três classes: nobres, camponeses e artesãos. [...]
O domínio da nobreza cresceu mais e mais, até que pelo ano 600 a.C. tornou-
se insuportável. E o principal meio de opressão era exatamente o dinheiro, a
usura. A capital da nobreza era Atenas e seus arredores, onde o comércio
marítimo, acrescido da ocasional pirataria, a enriquecia e concentrava o dinheiro

71
em suas mãos. A partir daí, a economia monetária em desenvolvimento
penetrava como um ácido corrosivo no modo de vida tradicional das
comunidades agrícolas, baseadas na economia natural. A constituição gentílica
é absolutamente incompatível com a economia monetária; a ruína dos pequenos
camponeses áticos coincidiu com o afrouxamento dos protetores laços gentílicos
que os envolviam. Os títulos de dívida e a penhora de bens (pois os atenienses
também já tinham inventado a hipoteca) não respeitavam gens nem fratrias. E a
antiga constituição gentílica não conhecia dinheiro, crédito ou dívidas fiduciárias.
Daí, o poder monetário da nobreza, em expansão sempre crescente, criou um
novo direito consuetudinário de garantia do credor contra o devedor,
consagrando a exploração dos pequenos camponeses pelos detentores do
dinheiro. Os campos estavam cheios de marcos de hipotecas. [...] Os que não
estavam marcados, na maior parte, não estavam porque já tinham sido tomados
pelos nobres usurários, no vencimento das hipotecas ou juros não pagos. [...] E
ainda mais. Se o valor do lote de terra não alcançasse o total da dívida, [...] então
os devedores tinham de vender seus filhos para o exterior como escravos. [...] O
surgimento da propriedade privada levou à troca entre indivíduos e à
transformação dos produtos em mercadorias. Aqui está o gérmen de toda a
revolução posterior. [...] Os atenienses tiveram de experimentar a rapidez com
que o produto domina o produtor após o surgimento do comércio entre indivíduos
e da transformação do produto em mercadoria. Com a produção de mercadorias,
veio o cultivo individual do solo, por conta própria, e logo a seguir a propriedade
individual da terra. Depois, veio o dinheiro, a mercadoria universal, pela qual
todas as outras poderiam ser trocadas; mas, ao inventar o dinheiro, os homens
não perceberam que estavam criando uma nova força social, a única força
universal, perante a qual toda a sociedade teve de se curvar. Esta força nova,
que surgiu de repente, sem o conhecimento nem a vontade de seus próprios
criadores, impô-se aos atenienses, com toda a brutalidade de sua juventude."

Não se pode duvidar do efeito transformador da economia mercantil e da


circulação do dinheiro sobre a sociedade grega no período em questão. A
descrição de Engels e suas conclusões são confirmadas em todos os aspectos
essenciais por George Thomson (The first philosophers, Londres, 1955, p.196).
Ambos indicam a circunstância decisiva de que a sociedade perdeu o domínio
sobre sua produção e que por isso o comércio de mercadorias e o dinheiro
72
tornaram-se "a única força universal, perante a qual toda a sociedade teve de se
curvar ". Lenta, mas inevitavelmente, a economia mercantil ganhou a prevalência
sobre os vínculos tribais, que foram definitivamente dissolvidos no decorrer do
século IV.

Mesmo sem constituir a produção de mais valia no sentido capitalista, a


produção antiga de mercadorias era a base de uma "sociedade sintética", no
sentido que adoto, ou seja, de uma formação social na qual a síntese social é
mediada pelo processo de troca dos produtos como mercadorias e não repousa
mais sobre um modo de produção comunitário. Isso basta para que a abstração
real se torne elemento dominante nas formas de pensamento, autorizando-nos
a considerá-la como origem determinante da filosofia e da matemática gregas e
da profunda separação entre trabalho intelectual e manual que com elas nasceu.

Eu traço uma linha divisória essencial entre troca primitiva e troca de


mercadorias propriamente dita. Troca primitiva, dar e receber dádivas,
"potlatsch" cerimonial, alguns usos de dotes matrimoniais, etc., desenvolvem-se
num processo de diferenciação das comunidades gentílicas e no relacionamento
entre elas. Existe a reciprocidade de dar e receber, mas não a equivalência dos
objetos oferecidos em si e para si. Os objetos têm o caráter de excedentes, mas
não provêm de relações de exploração, ao menos originariamente, se bem que
em seu desenvolvimento posterior constituam etapas de transição para a
exploração. Eles não apontam imediatamente rumo à produção de mercadorias,
mas levam ao estabelecimento de relações diretas de dominação e servidão,
como descritas na parte anterior.

Mas onde, na passagem da Idade do Bronze à Idade do Ferro, a troca de


mercadorias expandiu-se e penetrou cada vez mais profundamente na estrutura
interna da comunidade antiga, ela é troca entre equivalentes de produtos do
trabalho explorado e exercida com a finalidade unilateral de formação de riqueza.
Com essa troca de equivalentes, já nas distantes épocas pré-capitalistas, uns
ficaram ricos e outros, pobres. Sua base e seu conteúdo é a exploração. Isso
significa que ela tem o mesmo conteúdo da apropriação unilateral da ordem
senhorial da Idade do Bronze. Mas o conteúdo muda de forma. Ao assumir a
reciprocidade da forma da troca, a apropriação completa-se como relação social
auto-suficiente, uma forma de relação que obedece às normas puras e reflexivas
73
da propriedade. Com essa capacidade auto-reguladora e formadora de mercado,
a troca de mercadorias torna-se forma portadora da socialização, na qual uma
rede de meras relações de propriedade subsume a produção e o consumo da
sociedade, seja produção com escravos, seja posteriormente produção por meio
do trabalho assalariado. Trabalho e socialização estão aqui de antemão em
pólos separados.

Sob o influxo da troca de mercadorias com tal conteúdo funcional, a antiga


cidade-estado desenvolveu-se numa pura sociedade de proprietários ou
"sociedade de apropriação" em sua forma clássica, ou seja, sem a participação
dos produtores, já que estes desempenhavam seu trabalho como escravos nos
subterrâneos da sociedade de apropriadores. Pode-se distinguir a troca
mercantil desenvolvida, aqui dominante, como reflexiva, em comparação com a
troca simples. Somente na forma reflexiva ela tem o caráter de relação privada,
por conta própria, entre propriedades individuais de mercadorias, e somente
nesta determinação vem a ser forma de relação inerente à sociedade. Torna-se
assim evidente que toda a análise da abstração da mercadoria e da abstração
da troca, conduzida na primeira parte, vale apenas para a forma reflexiva do
comércio de mercadorias, pois aquela análise dirigia-se para a troca de
mercadorias como modo de socialização, modo de síntese social. É uma síntese
da apropriação e uma falsa síntese, em que a sociedade perde o domínio sobre
seus processos vitais e na qual a potência produtiva do homem, isto é sua
potência de autoprodução, cinde-se no trabalho manual parcial dos explorados
e na atividade intelectual, igualmente parcial, a serviço não-consciente da
exploração. "Valor", conceituado como riqueza ligada ao dinheiro, é obviamente
produto do trabalho, mas que não é gerado por razões de subsistência. Antes, é
um produto do trabalho forçado, pela sociedade e pela dominação, pode-se
dizer: um produto do trabalho de classe. O valor das mercadorias significando
riqueza e o significado de classe do trabalho explorado que lhe dá origem nunca
mais desapareceram da História, embora não tenham faltado irrupções de crises
e situações de emergência em que tais significados foram temporariamente
esquecidos, necessitando de um "Renascimento" para serem revitalizados.

A irrupção mais profunda de uma tal crise foi exatamente a da Antiguidade


clássica. A síntese da apropriação falhou na hora de se completar. Como o

74
produtor está fora do nexo social, este torna-se incapaz de se reproduzir
economicamente e fica na eterna dependência de uma contingente, mas sempre
necessária, absorção de produtores. No plano da consciência, esse fato se
mostra na ausência de problemas de constituição na filosofia grega, em
contraste com a moderna. Acertadamente, George Thomsom observa que o
desenvolvimento da filosofia grega começa com o materialismo e tende em graus
crescentes ao idealismo, enquanto a filosofia moderna percorre a direção
oposta. O autodescobrimento do homem e sua alienação da natureza, que se
baseiam no nexo sintético da sociedade, começam já no século VI e, na Jônia,
ainda um século antes. Dessa experiência nasce a filosofia. Mas o caminho do
pensamento discursivo até sua completa autonomia conceitual leva 300 anos,
de Tales a Aristóteles, e se completa quando a base existencial da Polis já está
em questão, quando a Polis começa mesmo a se dissolver.

A forma feudal, que sucede a sociedade de apropriação já completamente


dissolvida (inclusive o Império Romano), é caracterizada sobretudo pela inclusão
dos produtores e trabalhadores na sociedade, ou seja, a inclusão do trabalho na
sociedade de apropriação - sem levar em conta a transformação da dependência
monetária em dependência em relação ao solo e sua posse. Saltando por cima
de toda a fase intermediária, que veremos no item seguinte, o efeito final desse
desenvolvimento é, hoje, a sociedade de apropriação posta para fora da história
e sua substituta, a moderna sociedade de produção, viabilizada e em curso.

6. Fundamentos da formação da filosofia antiga da natureza

Para entender a ciência natural antiga e sua formação na Jônia por volta de 600
a.C., devemos ter diante dos olhos a separação entre sociedade e natureza
provocada pela troca de mercadorias, expressa na distinção entre natureza
puramente social e primeira natureza. A síntese social por meio da troca de
mercadorias exclui todo contato prático com a natureza, pois, como síntese entre
possuidores de mercadorias, funda-se apenas nas decisões tomadas por esses
possuidores em suas negociações e fechamentos de contratos de troca de
mercadorias. É flagrante o contraste com a praxis da sociedade arcaica que
dominou o passado com suas diversas formas (a última delas foi a civilização
micênica), na qual o nexo social entre indivíduos ainda interdependentes estava
unido ao contato com a natureza. Para a sociedade sintética - contrapomos as
75
expressões "natural" e "sintética" quase como borracha natural e sintética -, a
única via para a experiência e conhecimento dos vínculos naturais é o esforço
do pensamento, no qual são eliminadas todas as invenções mitológicas das
épocas anteriores em favor de um autêntico assegurar-se dos fatos, de uma
condução metodológica do entendimento e da reflexão, com base na abstração
conceitual nascida da abstração da troca.

No entanto, seria falso e enganoso aceitar a idéia de que a troca de mercadorias,


já em sua primeira aparição, tomou conta repentinamente de toda a Polis grega.
No começo, a troca de mercadorias só pode ter sido ocasional e episódica. Na
Política, Aristóteles fornece indícios de que o uso do dinheiro tenha se tornado
necessário por volta do século VI para o fornecimento de cereais do Ponto ou de
Naukratis em troca de azeite ou vinho da Ática. Além disso, a forma reflexiva de
capital, fator impulsionante do uso do dinheiro, ocorreu na Antiguidade Clássica,
até fins do século IV aC, apenas na esfera da circulação, sem estender-se sobre
a produção. Ou seja, era apenas capital comercial e para empréstimos, não
capital produtivo, como acontece na Modernidade européia. Isso explica a
diversidade dos objetos de conhecimento dos antigos em relação às ciências
naturais modernas. Os antigos buscavam o conhecimento da natureza como um
todo, os modernos dirigem-se à pesquisa de fenômenos individualizados. O
modo de pensar comercial não imperava sobre os camponeses e artesãos,
fossem produtores ou hoplitas. Ele começou a existir sobretudo entre os
Eupátridas, os nobres, que tiravam sua riqueza do trabalho dos camponeses
escravizados por dívidas e depois, a partir do século V aC, de escravos artesãos
(anthrápoda). Com isso, os produtores mantinham sua posição, pelo menos na
era clássica. As Polis gregas foram erguidas ao redor de seus fóruns e templos.
Pode ser que as formas tradicionais de relacionamento tenham necessitado de
uma reativação e recrudescimento da mitologia arcaica para sobreviver,
compensando as condições adversas, sobretudo a crescente autonomia
individual. A defesa da fé nos deuses e do culto divinizante das estrelas na
Epinomis, posfácio de Platão à sua obra tardia As Leis, soa como a última
conjura contra o perigo iminente de decadência da Polis, que já estava em curso
no final do século IV. Nesse texto, Platão não fala muito como filósofo. Mas deve-
se perguntar, então, como exatamente foram lançados na Grécia os
fundamentos da filosofia?
76
a. A solução do "milagre grego" pela via do dinheiro

Não devemos nos deter aqui sobre a filosofia grega como um todo, mas apenas
sobre alguns conceitos-chave que lhe serviram de base. Nesse ponto, temos em
vista a explicação genética da origem do conceito eleata de ser. Entre todos os
conceitos dos primeiros filósofos, este conceito de Parmênides é o mais conciso,
senão o mais rigoroso e persistente, que determinou amplamente os caminhos
e descaminhos do desenvolvimento da filosofia grega. Já vimos que
historicamente os puros conceitos filosóficos ganharam forma pela via do
dinheiro, e consideramos esta concepção como alternativa histórico-materialista
à tradição da história espiritual idealista, que pretende explicar a origem dos
conceitos pela via do pensamento. O caminho idealista leva apenas ao beco sem
saída do "milagre grego" e, além disso, uma história espiritual não dá conta da
contradição de que deve buscar a origem histórica de conceitos universais
historicamente atemporais.

Nosso ponto de partida histórico é a passagem para a troca de mercadorias no


século VI e, em consequência, para a sociedade mercantil. É, portanto, o
postulado de uma matéria não-desgastável para a cunhagem de dinheiro que
está se efetivando nessa passagem. O fato de que a troca de mercadorias seja
inicialmente marginal na Polis, sem penetrá-la, e que isso inviabilizaria uma
referência institucional da emissão de dinheiro ao postulado em questão, nada
disso constitui argumento contra nosso ponto de partida. O postulado é interno
à moeda, independente dessa referência explícita, e é bem perceptível a
observadores atentos.

Por um momento, deixemos de lado a filosofia, grega ou qualquer outra, com


todos os seus conceitos, e desafiemos o leitor a esforçar-se para encontrar uma
determinação, descrição ou conceito que corresponda à matéria da qual o
dinheiro deva ser feito. Pois o dinheiro deve ter evidentemente uma matéria. O
próprio Till Eulenspiegel não conseguiria comprar nada com uma moeda que não
possuísse nenhuma realidade material. A matéria tem de ser muito real, existir
no tempo e no espaço, corporificando integralmente o valor do dinheiro. Mas
como ela é concebível? Nenhum material do "catálogo das mercadorias
ordinárias [...], que a seu tempo desempenharam o papel de equivalente das
mercadorias" (MEW, 23, p.72) cumpre a determinação que caracteriza
77
especificamente a matéria monetária frente a todas as outras, qual seja, de se
manter inalterável no tempo. O dinheiro deve ser feito de uma matéria efetiva,
que não coincide com nenhuma matéria efetiva que existe ou possa existir e que
nenhuma experiência sensível jamais captou. Ela é, portanto, mero conceito,
absolutamente não empírico, mas conceito puro, uma abstração não empírica,
para a qual só pode haver a forma em pensamento do conceito. Isto não
significa, como dissemos, que este conceito inclua somente mero pensamento.
Trata-se de uma realidade espaço-temporal, que equivale a qualquer matéria,
mas não é absolutamente material. Ninguém que possua esse conceito pode
também dizer que o formou a partir de uma dada experiência sensível, subindo
gradualmente do particular para o geral. Ninguém o formou: ele está aí, pronto,
sem dedução ou contexto. A abstração da qual ele brota ocorreu em outro lugar
e por caminhos diversos aos do pensamento. Tudo o que o pensamento
acrescenta é o esforço de nomear satisfatoriamente a abstração dada pronta e
de encontrar uma palavra apropriada para completar por sua parte a
identificação. O primeiro a encontrar um conceito apropriado para este elemento
da abstração real foi Parmênides, com seu conceito ontológico de ser,
obviamente sem saber a que correspondia seu conceito e o que o obrigou a isso.
Ele diz que o real de todas as coisas não é a aparição sensível, mas unicamente
e sobretudo o Uno, isto é:

Do qual não há nada a dizer, a não ser que ele é totalmente completo em si,
preenche o tempo e o espaço, é imutável, indivisível e imóvel, e que não pode
ser efêmero e tampouco originado. Esse conceito é uma evidente
unilateralização e uma absolutização da natureza do dinheiro nele identificável.
Com isso, são excluídas outras propriedades igualmente essenciais da
abstração real, como movimento e atomicidade, que depois outros pensadores
tiveram de levar em conta.

Percebe-se, por esse exemplo, primeiro que foi necessária a institucionalização


formal do dinheiro como moeda cunhada antes que a abstração formal e seus
respectivos momentos distintos pudessem se impor à consciência. Segundo,
que essa "imposição" tem sua exata expressão, de modo algum misteriosa,
como identificação dos respectivos momentos da abstração real. Pois, como esta
última não passa de pura abstração formal, não pode conduzir a nada mais do

78
que a pura formação de conceitos. Tanto o poder de formação de conceitos
como seu papel de "sujeito" do conhecimento - "logos", "nous", "intellectus" -
tiveram exatamente aqui sua origem histórica. Terceiro, que essa identificação
apaga a origem dos conceitos e tudo o que se refere a essa origem. A
apresentação correta, identificadora, da abstração real produz a falsa
consciência. Pois a identificação no conceito transforma o caráter histórico da
abstração real em uma forma de pensamento historicamente atemporal e a-
espacial, já que seu caráter de abstração não-empírica a retira da esfera de
possibilidade de localização espacial ou temporal. Quarto, a função sócio-
sintética da abstração real se transforma na abstração lógico-sintética do
pensamento conceitual. Quinto, esta transformação separa de forma
intransponível o pensamento que assim surge de todo trabalho e ação corporal.
Sexto, ela empresta ao pensamento o conceito de verdade no sentido do
conceito filosófico de verdade do pensamento, como possivelmente pela
primeira vez e de forma mais clara com Parmênides e seu  . A idéia de
verdade surge no campo da consciência necessariamente falsa. E é
precisamente nesse caráter da alienação necessariamente condicionada que o
modo de pensar lógico-conceitual surgido da produção mercantil desenvolvida
preenche, no pensamento, a função imprescindível da forma de socialização
universal.

A perenidade da filosofia grega, a norma indispensável de inclui-la ainda hoje


nos debates filosóficos, explica-se pelo fato de ela, em seus conteúdos
essenciais, ter conceitualizado a abstração real, que sustenta sinteticamente
nossa sociedade. Estes são os conceitos da filosofia, ou se preferirmos, os
conceitos filosóficos, que duram tanto tempo quanto esta sociedade.

Mas mesmo tendo a filosofia como céu espiritual, nossa sociedade permanece
cega para si mesma. Martin Heidegger deu expressão a este fato em seu modo
particular de ler , verdade, e seria bom que ele tivesse penetrado sob o
anunciado ocultamento da verdade, desacobertando-a, como ele diz, para
pesquisar suas causas. Mas ele não o fez, nem sequer tentou. Somente
entendeu de escravizar-se a um estilo peculiar de filosofar, à luz crepuscular da
.

79
b. O materialismo histórico é a anamnese da gênese

A pesquisa sobre o surgimento e os primórdios da filosofia grega nos século VI


e V aC enfrenta um grave paradoxo: tem de indagar sobre a gênese histórica de
conceitos universais historicamente atemporais, sobre os quais se fundamenta
a filosofia pré-socrática. Do ponto de vista da tradicional história espiritual
idealista, não há solução para este paradoxo, e ela sempre capitula frente ao
veredito tantas vezes citado do "milagre grego", que hoje não goza mais de
nenhuma consideração. Esse veredito não torna a filosofia grega mais gloriosa,
mas apenas demonstra o erro de tal concepção

Não me parecem menos duvidosos os resultados do novo método analítico da


linguagem, praticado engenhosamente por Malinowski e sobretudo por Bruno
Snell e outros, como B. L. Whorf e E. Sapir. Pois não consigo ver como, por esse
caminho, é possível o salto das formas linguísticas de uma consciência baseada
na empiria para o nível da pura abstração. Concordo totalmente com Bruno Snell,
quando diz: "Só na Grécia a consciência teórica surgiu autonomamente, só aqui
ocorre uma formação autóctone de conceitos científicos." (Die Entstehung des
Geistes, Göttingen, 1975, p.205). Mas depois vem a frase: "Esta relação da
língua com a formação de conceitos científicos, a rigor, só pode ser observada
nos gregos, pois só aqui os conceitos surgem organicamente da língua." (Ibid.)
Os filósofos transformam palavras e expressões da linguagem comum numa
terminologia arbitrária, na qual o significado corriqueiro dos vocábulos é
essencialmente transformado e alienado. Eu não posso concordar, por exemplo,
como B. Snell parece acreditar, que tenha sido percorrido o caminho inverso, o
da língua ao pensamento, em vez de ir do pensamento à língua, isto é, à sua
alienação terminológica. Nessa mesma segunda frase citada, Snell além disso
exagera sua opinião, concluindo com uma expressão errada. Ele diz: "... pois só
aqui os conceitos surgem organicamente da língua." No entanto, ele deveria
apenas dizer "formas conceituais" em vez dos próprios conceitos. A língua pode
unicamente oferecer possíveis meios de expressão para os pensamentos que
tomam forma conceitual, isto é, que devem se tornar conceitos. Mais do que isso
não pode ser razoavelmente defendido pelos adeptos do método analítico da
linguagem. Considero um erro procurar no desenvolvimento da língua grega o
fundamento para o surgimento dos universais na Grécia. É notório que os

80
primeiros filósofos deram denominações muito imperfeitas para seus conceitos,
sem que com isso os próprios conceitos se perdessem. Os conceitos exigiam
formulações mais adequadas, que foram sendo obtidas com o tempo. Mas por
que esses universais atemporais se tornaram fundamento da filosofia? O que
lhes empresta o sentido filosófico?

A passagem da abstração real social para a abstração do pensamento é


acompanhada por um grave problema: os conceitos resultantes são e
permanecem impenetráveis para os pensadores, pois eles estão com acesso
vedado à origem desses conceitos. Os poetas gregos percebiam isso melhor do
que os filósofos - basta pensar em Sófocles e no caráter trágico de seu Édipo
Rei. Com seu modo particular de leitura, Martin Heidegger contribuiu para a
correta compreensão de "verdade" como o irresolvido, ou como ele mesmo diz:
o desacobertado. Como Aristóteles, Heidegger considera que a raiz da
expressão é o divino, o que é justificável no caso de Parmênides, que pretende
ter recebido sua verdade da deusa Dike. Com isso, Parmênides testemunha que
nem ele, nem qualquer outro filósofo, formou seus conceitos universais por meio
de uma atividade própria de abstração. A abstração ocorreu em outro lugar e foi
dada praticamente pronta aos pensadores. Trata-se de uma classe de conceitos
diferentes dos conceitos de gênero introduzidos por Aristóteles em sua lógica
para exemplificar didaticamente a abstração. Por isso mesmo a indecifrabilidade
da origem e o absoluto caráter abstrato daqueles conceitos têm uma importância
tão grande. O desconhecimento da origem torna problemático o entendimento
de conceitos que não se apóiam em nada do mundo sensível, e que, portanto,
têm sua verdade exclusivamente dentro de si, nunca externamente. A
impenetrabilidade de sua origem torna a interpretação tarefa de exegese
especulativa, em outras palavras, tarefa da filosofia.

"O que faz da filosofia ser filosofia", diz Adorno,34 "não é lidar com categorias
abstratas, mas tomá-las como problemas e assim lidar com elas - daí também a
contrariedade em forma de movimento. A abstração da troca não é problemática
em si, enquanto considerada meramente em suas condições e em sua estrutura.
As categorias são problemáticas por sua contradição com a consciência

34Theodor W. Adorno e A. Sohn-Rethel, "Notizen zu einem Gespräch (von Adorno Verfat)",


Warenform und Denkform mit zwei Anhängen, Surkamp, Frankfurt a.M., 1978, p.135ss.
81
tradicional e comum. Elas não são conceitos genéricos, mas ao contrário,
possuem um caráter abstrato específico, são puramente ideais; não contradizem
apenas a consciência especificamente mitológica, mas também, e diretamente,
a consciência empírica normal."

"As categorias chegam individualizadas à consciência; cada uma tem sua esfera
absoluta e exclui todas as outras, mas possui, com todas, a mesma raiz comum
e não pode, assim, liquidar nenhuma, tendo de estabelecer mediações. Essas
mediações constituem um conteúdo essencial da filosofia."

"Parmênides impressiona-se com a natureza do objeto de troca, substância;


Heráclito, pelo equilíbrio no movimento contínuo que ocorre na troca, a unidade
do caos e da ordem; Pitágoras, pelas relações de medida."

"A troca contém as categorias contraditórias, porém as unifica; somente ao


atingir a consciência, as categorias tornam-se abstratas e explicitamente
contraditórias entre si".

"O valor é a unidade do múltiplo, das coisas sensivelmente distintas, dos valores
de uso. A categoria de valor é uma evasiva para as contradições ali existentes.
A insistência pela verdade significa união das categorias contraditórias entre si;
este postulado da verdade obriga a uma mediação entre as categorias, e esta
sim é a verdade. A categoria da verdade é a diferença do ser da troca e do
conceito de suas categorias."

"Ao desenvolver-se por consequências sistemáticas internas, a filosofia ouve o


chamado das condições sociais, principalmente a classe, que tem de reivindicar
o direito de usar a filosofia em sua luta de classes."

"Da possibilidade de apresentar a abstração da troca como verdade dependem:


1. a justificação da nova classe contra a antiga; 2. a possibilidade de
autoconfiança do intelecto perante a pura empiria do artesanato, condição da
possibilidade da ciência. Ambas as relações estão presentes na Antiguidade:
domínio teórico-orgânico da produção e autofundamentação ideológica da
dominação da classe comercial."35

35 A suposição do domínio de uma classe comercial, que teria surgido depois das guerras persas,
suposição que nós (Adorno e eu) chegamos a adotar, é fundamentalmente errada. Ela foi
82
"Mas o conflito das categorias entre si não se realiza em sua pureza, e sim no
objeto [na ciência, S.-R.]. A constituição das categorias, a reflexão da abstração
da troca como filosofia, exige a abstração (o esquecimento) de sua gênese
social, de qualquer gênese. O materialismo histórico é anamnese da gênese."

Fecho a citação com essa definição aguda e pertinente de Adorno, embora não
faltassem, nessas anotações de diálogo, muitas outras dignas de nota. Além de
tudo, elas indicam também em que medida Adorno tinha adotado então (1956)
minha teoria materialista do conhecimento e da ciência. - Não me cabe entrar no
conteúdo da filosofia grega, pois não tive nenhuma formação humanista e não
sei grego.

7. Do renascimento da Antiguidade à moderna ciência da natureza

Na Idade Média tardia e começo da Renascença, a partir do século XIII,


floresceram na Itália as primeiras culturas urbanas. Elas resultaram da
dissolução da dominação hereditária existente nas cidades, suplantada
revolucionariamente pelo domínio das corporações do popolo. Na Idade Média,
cada sede feudal era uma fortificação - coesa internamente, inimiga do exterior.

Florença era uma densa rede de mais de 250 fortificações desse tipo, recobertas
de torres, pois cada senhor feudal queria ter, no conflito com os outros, a
vantagem da maior altura - o óleo fervente só pode ser jogado de cima para
baixo. Em San Geminiano pode-se ver essas torres até hoje.

Em 1250, porém, o popolo de Florença sublevou-se, com suas corporações


conjuradas na "primeira associação consciente ilegal e revolucionária", conforme
Max Weber. Foi vitorioso contra a nobreza, impôs o nivelamento das fortificações
até uma altura permitida de 25 braços, proibiu ao nobre o porte público de armas

difundida por seguidores do marxismo, mas sem notar que ela contrariava rigorosamente o
melhor entendimento de Marx. Para tal sirvam só duas citações extraidas dos Grundrisse: aquela
já lembrada: "Nos antigos o valor de troca não era o nexus rerum" (Grundrisse, p.134) e outra
ainda mais enfática: "A igualdade e a liberdade neste desenvolvimento [da troca mercantil, S.-
R.] são exatamente o oposto da liberdade e igualdade dos antigos, que não tinham como base
o valor de troca desenvolvido, e mais ainda, foram à ruína com seu desenvolvimento" (ibid.,
p.156). - Na questão chave de como os grandes possuidores de escravos, por exemplo de
Atenas, enriqueceram-se com a posse de escravos, sem servir-se deles como negociantes
comerciais, eu me decido pela conjectura de Max Weber, segunda a qual eles alugavam seus
escravos (obtidos em guerra ou no mercado dos escravos em Delos) a metecos, que os usavam
no funcionamento de oficinas para produção de armas, cosméticos, cerâmica, móveis, sapatos,
etc., empregando até trinta ou mais em um mesmo estabelecimento. Os proprietários gregos de
escravos ficavam rendeiros e podiam gozar de seu ócio aristocrático como .
83
e proclamou o regime corporativo do "Primo Popolo", república do popolo. O
regime era encabeçado pelas corporações comerciais, e Max Weber sublinha
que em geral a vitória do popolo nas cidades italianas foi possível porque o
capital comercial comandava o popolo, isto é, as corporações de artesãos.

Junto com a revolta, houve a vitória dos guelfos pró-papa, acarretando o


banimento dos gibelinos pró-imperador. Após 10 anos, portanto em 1260,
seguiu-se uma reviravolta com o retorno dos gibelinos, que por sua vez baniram
os guelfos. Mas os primeiros dez anos de domínio foram suficientes para o Primo
Popolo impor o florim de ouro como moeda internacional e construir o palácio do
Bargello para seu capitano. Deve-se acrescentar que em 1250, ano da
revolução, morreu em Palermo o imperador Frederico II, o último dos grandes
senhores feudais.

Em 1282, os guelfos voltaram ao poder, desta vez para ficar; e em 1293


outorgaram sua constituição por meio dos "Ordinamenti della Giustizia". A
instância superior era o Conselho dos Priores das Corporações, sete arti maiori
das corporações comerciais e sete arti minori das corporações de artesãos. Na
prática, o poder estava nas mãos das artes maiores, pois só seus membros
podiam ocupar os cargos governamentais - Podestà, Capitano della Milizia,
Confalonieri.

A libertação do feudalismo causou uma explosão de entusiasmo e ambição. É


possível perceber em que medida isso acontecia com o programa de
construções do Popolo:
1283 Santa Maria Novella
1294 Battistero
1296 Catedral (Santa Maria del Fiore)
1295 Santa Croce
1298 Palazzo Vecchio
1301 San Marco
1330 Campanile della Badia
1334 Campanile de Giotto

e entre 1284 e 1328 a construção de uma nova muralha da cidade (Terzo


Cerchio), bastante ampliada e fortificada, com 15 portões e 73 torres.

Muitos projetos desse programa gigantesco não passaram da pedra fundamental


ou dos alicerces, pois Florença foi atingida pelo grave revés que a crise do

84
feudalismo levou a vastas porções da Europa e também à Itália no "Trecento" (o
século XIV). Para Florença, a crise começou em 1334, com o cancelamento da
dívida do rei inglês Eduardo III, o que levou as casas bancárias dos Bardi e dos
Peruzzi à beira da bancarrota e custou à cidade a riqueza com que ela pensava
levar adiante seu programa de construção.

Em 1348 estourou a peste, a terrível morte negra, que abateu um terço da


população da cidade. Em 1378 ocorreu o levante dos Ciompi, os trabalhadores
caseiros explorados e miseráveis da indústria têxtil - lã e tinturarias -, que
forneciam mercadoria para o capital comercial. Só em 1382 pôde ser
restabelecida a estrutura social interna na qual o Popolo tinha alcançado seu
sucesso inicial, ou seja, o domínio do capital comercial. No começo do século
seguinte, o século XV, Cósimo de Medici soube conquistar e manter, dentro
desse domínio oligárquico, a supremacia comercial e política - mesmo
enfrentando a possibilidade de ter sua posição contestada, já que não dispunha
de qualquer título ou cargo público. Mais de cem anos depois, em 1531, os
Medici finalmente obtiveram o título de Duques de Florença.

O comércio internacional que enriqueceu os atacadistas florentinos era realizado


sobretudo com tecido de lã, parte produzido pela Arte della Lana de fabricação
caseira, mas parte adquirido de Flandres, através dos mercados de Champagne,
e depois colorido e refinado pela Arte di Calimala, antes de ser embarcado para
os árabes orientais de Bagdá e para o império romano-oriental de Bizâncio. Foi,
portanto, de extrema importância para os florentinos ter vencido Pisa em 1406 e
tomado o porto longamente cobiçado, para poderem assumir o transporte próprio
de suas mercadorias.

A partir de 1386, a atividade florentina de construção começou a animar-se de


novo, mas chega a seu pleno impulso somente no início do Quattrocento, e com
uma inspiração e um tal domínio da arte, que parecia querer se conectar aos
tempos heróicos de 1290. Apareceram artistas de categoria incomum:
Filippo Brunelleschi (1377-1446), arquiteto e engenheiro;
Lorenzo Ghiberti (1378-1455), escultor, fundidor em metal;
Donatello (1386-1466), escultor, Gattamelata em Pádua;
Michelozzo (1396-1472), escultor e arquiteto;
Masaccio (1401-1428), pintor;
85
Paolo Uccello (1397-1475), pintor;
Luca della Robbia (1399-1382), escultor;
Leon Battista Alberti (1404-1493), arquiteto;
Piero della Francesca (1414-1493), pintor.
E na sequência Botticelli (1455-1510), Leonardo (cerca de 1452-1519) e
Michelangelo (1475-1564).

Nesses nomes resume-se a primazia artística original pela qual Florença se


tornou a cidade representativa da cultura renascentista da Europa. Meu
interesse particular é para o status estrutural desses homens como produtores
manuais, artesãos e artistas.

De acordo com a ordem corporativa, os artistas eram artesãos manuais e


pertenciam às arti minori, assim como os tecelões e tintureiros nos ofícios. Para
alcançar a formação elementar, eram admitidos como aprendizes em uma
oficina. Para a corporação, um escultor da categoria de Donatello era um simples
"taglia pietra", um pedreiro como qualquer outro trabalhador de construção.
Certamente ele passou por um treinamento em ourivesaria, como Brunelleschi,
Ghiberti, Uccello e outros. Mas era exatamente do esforço desses trabalhadores
manuais corporativos que dependia a construção da sua própria e gloriosa
cidade. Fazer uma igreja, rua, ponte, muro ou outra parte qualquer do enorme
programa de construção era assunto de toda a comunidade urbana - não mais a
grande cidade exclusiva de uma família nobre ou de um bispo, como nos tempos
feudais. Em consequência, as construções eram agora mais faustosas e
arquitetonicamente mais artísticas, e isso concernia diretamente aos artesãos
que haviam se tornado arquitetos. Assim, Brunelleschi viajou a Roma, em 1402,
provavelmente em companhia de Donatello, para colher esboços dos restos das
construções romanas. Com isso, ele assimilou os fenômenos da perspectiva e
da ótica, mas para compreendê-los e poder pesquisá-los faltava-lhe a
matemática, que ele percebeu ser de grande utilidade para sua prática.

De volta a Florença, entrou em contato com Paolo Toscanelli, o mais renomado


matemático e astrônomo florentino, amigo de Cusano e Regiomontano.
Toscanelli mostrou-se aberto, mas cultivava a matemática de forma escolástica
tradicional, afastada de qualquer relação com os problemas práticos de
construção, que fizeram Brunelleschi procurá-lo, de forma que as questões do
86
arquiteto o deixaram bastante embaraçado. A união da atividade e cultura dos
trabalhadores manuais em ascensão com a intelectualidade florescente na Idade
Média, que aconteceu pela primeira vez entre Brunelleschi e Toscanelli, é
representativa da base do Renascimento em geral, mas se tornou exemplar em
Florença. Toscanelli descobriu no discípulo uma vocação marcante para o
pensamento matemático e foi seu amigo e mestre por mais de quarenta anos,
até a morte de Brunelleschi, em 1446. Toscanelli escreveu uma apreciação sobre
o amigo morto, na qual expressava sua profunda admiração pelo discípulo de
quem julgava ter recebido mais do que tinha podido dar. Brunelleschi
compreendia seus objetivos num sentido científico, mas não como na ciência
antiga ou na escolástica medieval: ele a denominou Scienza nuova, como Galileu
duzentos anos depois.

O feito mais famoso de Brunelleschi é a construção da cúpula da catedral Santa


Maria del Fiore - e com razão. Não só porque essa cúpula é a maior e mais
pesada até então construída, maior que o Pantheon romano e a Hagia Sophia
de Bizâncio, maior até do que as posteriores cúpula de São Pedro, em Roma, e
de São Paulo, em Londres, mas porque ele decidiu, por iniciativa própria,
construí-la sem o uso de andaimes internos. Brunelleschi começou a cúpula em
1421, e no mesmo ano também o Ospedale degli Inoccenti, o orfanato dos
florentinos, onde ele fundou o estilo renascentista pelo equilíbrio das linhas
verticais com as horizontais. Depois de 1436, com a cúpula concluída (ainda
obviamente sem a Lanterna), Brunelleschi esteve ocupado com a construção de
fortificações em Pisa, em Castel Pisano bem como no vale do Elsa, e com a
regulação do fluxo do Arno e do Pó - o Arno tinha transbordado em 1333 de
maneira catastrófica, tal como aconteceria em 1966.

Mas como ficam os artistas de Florença depois da obra e exemplo de


Brunelleschi? Como ultrapassaram os limites estreitos dos regulamentos
corporativos? O movimento seguinte foi uma mudança de direção: a formação
intelectual atinge os artistas, precisamente pela iniciativa dos sábios. A
apropriação da matemática por parte dos mestres, que não deixam de ser
produtores manuais, implica a unidade do trabalho intelectual e do trabalho
manual, uma inigualável proeza do Renascimento. Ela desenvolveu-se,
genericamente falando, como fruto da emancipação do jugo do feudalismo,

87
contra o qual o Renascimento lutou com seu ímpeto revolucionário, começa
como uma ponte sobre o abismo medieval entre os sábios que falavam latim e o
analfabetismo do povo trabalhador. A unidade do trabalho manual e do trabalho
intelectual percorre toda a Idade Média e se esgota na passagem do
Renascimento à Modernidade. Nessa passagem, a unidade transforma-se em
novo abismo entre ciência e trabalho industrial assalariado. No desenvolvimento
renascentista da unidade de mão e cabeça, pode-se acompanhar em Florença,
de um mestre a outro, sucessivos degraus do progresso do pensamento
matemático, que se estendem pelo Quattrocento e Cinquecento.

Em 1434, portanto ainda durante a vida de Brunelleschi, chegou a Florença outra


personalidade extraordinária, Leon Battista Alberti, que percorreu o caminho no
sentido inverso, trazendo a formação aos artistas. Alberti vinha de uma família
nobre de origem florentina, que tinha sido exilada e enriquecido na França. Mas
em 1428 Florença cancelou o banimento, abrindo assim o caminho para Leon
Battista. Ele tinha completado em Pádua o ginásio medieval, com o Trívio e o
Quadrívio, e concluiu seus estudos universitários em Bologna. Típico intelectual,
ele era tudo menos um prático do artesanato. Mas havia nele uma forte vocação
artística. Alberti fez da arte o foco de seus interesses espirituais. Com 12 ou 14
livros, escritos em Florença, ele se tornou o primeiro teórico célebre da arte e da
técnica artesanal em toda a Itália. Aliás Leon Battista era também grande
espadachim, brilhante cavaleiro e lutador atlético. Não espanta que Jacob
Burckhardt o venerasse como figura ideal dos homens da Renascença.

Para começar, Alberti foi ao atelier dos artistas, a Brunelleschi, Donatello,


Michelozzo, Ghiberti, Luca della Robbia, tornou-os seus amigos e começou a
transmitir-lhes, em lições pacientes, os elementos da perspectiva e os conceitos
iniciais da matemática, as leis da ciência das cores, da fundição de metais e da
anatomia humana. Não era pouca coisa, pois isso devia ser feito em língua
vulgar, na qual tais coisas nunca tinham sido expressas: ela não possuía,
portanto, as palavras necessárias, nem uma gramática clara. Como se pode
ensinar a um produtor manual o que é um ponto matemático, que não é nem
mancha nem nódoa, e sim um conceito puramente abstrato, absolutamente
invisível? Uns cem anos mais tarde, Albrecht Dürer experimentou as mesmas
dificuldades em Nuremberg.

88
Alberti, por sua vez, com essa atividade entre os artistas, ganhou a experiência
e os conhecimentos para seus escritos, redigidos em latim e em uma língua
toscana escrita, que ele mesmo teve de criar.

Dos escritos de Alberti - então ainda manuscritos - alguns se perderam. Os que


restam são:
De pictura (Della pittura) - sobre a pintura;
De statua - sobre a figura humana e suas articulações ósseas, dedicado
a Donatello;
Dell'architettura - dedicado a Brunelleschi;
Ludi mathematici: jogos com a matemática, uma obra pequena, mas muito
lida;
De re edificatoria - incompleto; concebida como enciclopédia, para
substituir o incompreensível Vitrúvio;
La cura della famiglia - o cuidado da família;
Regulae della lingua toscana - gramática e léxico.

Este último foi a primeira elaboração filológica da língua vulgar, muito importante
para seu desenvolvimento como língua escrita e cultural. Mesmo assim, Alberti
perdeu a batalha em favor da língua vulgar e por seu reconhecimento, em
Florença, ao lado do latim.

A permanência do latim era a expressão da permanência da maneira de pensar


escolástica e do pedantismo, portanto um empecilho para a tendência
emancipatória da qual se nutria o Renascimento. Não há dúvida de que, nessa
época, a tendência de longo prazo era da valorização da língua vulgar, e o
próprio Alberti nutria uma entusiasmada esperança nesse sentido, animado
pelas experiências de sua comunidade cultural com os artistas.

Contra isso, estava o Humanismo do Quattrocento, que acompanhava a


revitalização - literalmente Renaissance - dos antigos e de seus escritos. Uma
onda de animação para o grego e para o latim, mais ou menos autêntica, mas
sempre afetada, cresceu nos círculos cultivados, sobretudo poetas, acoplada ao
desprezo pela língua vulgar e sua apreciação.

89
Mas Alberti estava tão convencido das chances da língua vulgar que, em 1441,
ousou fazer um experimento para igualá-la à língua nobre latina. Cosimo I
partilhava dessa avaliação e planejou tornar o toscano uma língua culta. Por
intermédio de Piero de Medici, filho de Cosimo, ele anunciou um concurso de
leitura pública de poesias em língua vulgar sobre o tema "de amicitia", a realizar-
se no dia 22 de outubro de 1441, na catedral. O vencedor ganharia uma coroa
de prata, o que fez o concurso ser chamado de "certamen coronario".

A coisa tornou-se logo assunto de interesse do povo e do governo. A catedral


ficou lotada com os humanistas e os literatos que apresentariam suas poesias,
muita gente do povo, a Signoria - o governo -, o arcebispo e a alta
intelectualidade, além de dez juízes, dentre os quais os destacados humanistas
Poggio, Flavio Biondo e Aurista. Mas a tendência do público contra a língua
vulgar e para o privilégio do latim revelou-se tão preponderante que o concurso
nem chegou ao fim. A coroa foi parar no tesouro da catedral, e a tentativa
resultou em um novo fortalecimento do monopólio do latim nos documentos
oficiais e culturais em Florença, até meados do século XVI.

Para compreender o que é fundamental em uma época, devemos considerá-la


em suas relações de produção. Já mencionei meu interesse específico pelo
status do "produtor" em sua época, ou, digamos, o status de quem, naquele
momento, é considerado como tal. No Renascimento, essa era a posição do
trabalhador. Liberto da servidão do feudalismo, o trabalhador tornara-se
proprietário de sua casa e de seu lugar de trabalho, e, portanto, proprietário de
suas condições imediatas de trabalho. E, unido a outros trabalhadores da mesma
categoria nas corporações, garantia seu status de produtor.

Ele passava por um período de treinamento profissional, no qual aprendia a ler,


escrever e calcular, saindo do analfabetismo ao qual esteve preso antes de sua
emancipação, em contraposição ao monopólio dos trabalhadores espirituais da
Idade Média, que falavam latim. Olschki refere-se ao produtor no Renascimento
como "mestre experimentador", porque ele se desenvolveu sobre a unidade
entre trabalho intelectual e trabalho manual e, com isso, adquiriu iniciativa
artística para seu trabalho manual, sem sofrer impedimentos por parte das
corporações.

90
Pelo menos em Florença, era exatamente isso que acontecia. E mais uma vez
revelou-se a grande utilidade da matemática para a formação intelectual e para
a arte desses mestres. Um claro exemplo é Piero della Francesca, que merece
ser citado antes de todos os artistas posteriores a Brunelleschi e Alberti. Luca
Pacioli o denomina "il monarca della pittura dei nostri tempi". Ele é o pintor que
mais se aproxima de Leonardo da Vinci, em profundidade e nível intelectual. Em
meados do Quattrocento, ele escreveu um tratado sobre perspectiva. Meu pai
ainda aprendeu perspectiva, na academia de arte de Düsseldorf, com o livro do
grande Piero.

Em seu tratado, Piero procedeu por um método de dedução matemática, com o


qual, como salienta Olschki, prenuncia as projeções geométricas e o "more
geometrico" cartesiano. Poucos anos antes de sua morte, 1492, quase cego,
ainda redigiu o pequeno escrito de corporibus regularibus, sobre os poliedros
regulares, extraído do Timeu. Pode-se assim dizer que Piero foi o primeiro artista
renascentista a dominar a matemática em si mesma, embora ainda a entendesse
como especulação platônica.

Francesco di Giorgio Martini (1438-1502), outro importante seguidor de Alberti,


superou tudo isso. Em seu Trattato di Architettura civile e militare, usa seu grande
conhecimento matemático em problemas de fortificação contra armas de
artilharia, que tinham sido desenvolvidas e difundidas a partir de meados do
século anterior. Além disso, havia a perigosa ameaça da frota turca, equipada
com canhões. Daí a importância que o tratado assumiu.

Martini entra em investigações detalhadas sobre as relações qualitativas entre


comprimento, largura e espessura dos tubos de todo tipo de canhões, entre o
peso das bombas e a quantidade da pólvora, entre a força explosiva e a linha de
projeção sob vários ângulos, entre a distância e o impacto das bombas, entre a
força de resistência dos muros das fortalezas e a força do impacto da bomba, e
finalmente como a construção das fortificações deveria ser regulada de acordo
com isso, qual a altura e a espessura dos muros, se retos ou poligonais etc. Mas
ele sublinha que não se pode concluir nada de definitivo sobre esses assuntos
até que seja possível calcular a balística dos projéteis, e isso ocorreu, como se
sabe, mais de cem anos depois, com a definição galileana da parábola percorrida
pelos projéteis.
91
Toda a Itália estava se sentindo ameaçada pelos turcos desde a queda de
Bizâncio em 1453 e de Otranto, na entrada da Adria, em 1480. E não somente a
Itália. Em certos aspectos, Giorgio Martini lembra Dürer e seus ensinamentos
sobre fortificações para Nuremberg, de 1527. Ainda assim, em 1528 os turcos
avançaram até Viena.

Na Itália, a corte de Urbino centralizava esses temores, mas também a


preocupação com a resistência. Federigo da Montefeltro, marechal da Liga
Italiana, formou uma inigualável biblioteca especial de matemática: ela se tornou
na segunda metade do Quattrocento um forte ponto de atração para os mais
eminentes mestres, inclusive os de Florença, que fugiam do humanismo que lá
passara a imperar após a fundação da Academia Platônica por Lorenzo de
Medici (1460).

Martini, antes de todos, foi chamado à corte de Urbino por Federigo, onde depois
se encontraram Leon Battista Alberti e sua escola e, mais tarde, Piero della
Francesca, Luca Pacioli, Mantegna, Bramante, Michelozzo, Leonardo e outros.

Leonardo sobressaiu dentre os mestres que tinham alcançado alto nível de


conhecimento matemático. Mas seu caso é original e complexo. Ele não era um
mestre, e sim um e meio ou dois mestres em uma pessoa. Por um lado, era um
pintor, de uma elevadíssima sensibilidade; por outro lado, um engenheiro civil e
militar experimental, que produzia, numa inspiração puramente intelectual,
centenas de páginas manuscritas com investigações sobre as leis naturais, o
que pressupunha uma total abstração do mundo da percepção sensível. Como
pintor, usava as mesmas ferramentas manuais de todos os artistas do
Renascimento, com os quais disputava encomendas; nas elaborações
intelectuais, estava em busca de um aparato conceitual a ser empregado nos
experimentos com alavancas, relações de equilíbrio entre pesos, superfícies
inclinadas e leis de queda livre. Mas ele sempre permaneceu na experimentação,
nunca procurou ultrapassar os limites até a formulação conceitual das próprias
leis. Em lugar de precisões textuais, ele se apoiava generosamente em
desenhos, que deveriam ser desenhos técnicos, mas não são. Ele percebia que
só a matemática poderia ajudá-lo a atingir seus objetivos. Mas ele não possuía
o dom natural para o pensamento matemático, ao contrário de Brunelleschi,
Piero e, sobretudo, Dürer. Por isso, seu avanço nas ciências naturais atolou no
92
estágio rapsódico do "quase elaborado". Em seus últimos anos de vida, junto ao
rei francês Francisco I, ele expressou um profundo arrependimento por ter
desperdiçado assim o tempo que poderia ter dedicado à arte.

Podemos dizer em geral que a concepção de natureza dominante em uma época


depende decisivamente da estrutura dos produtores, ou melhor, da determinada
figura que é considerada por seus contemporâneos como figura do produtor. Isso
encontra confirmação no século 16, passagem da Idade Média à Modernidade.

A experiência fundamental do produtor manual é entrar no ócio assim que, ao


completar sua obra, o trabalho termina. O problema desses produtores não é o
conceito inercial estático da natureza das coisas, mas sim a aplicação da força
ou impetus, exigido para iniciar e manter o trabalho, que eles transferem, como
qualidade inerente, para os fenômenos naturais de movimento.

Isso parece uma expressão grosseira e ingênua das sutis discussões que
Michael Wolff dedicou à teoria do impetus e sua história, em quase 400 páginas
de pesquisa. Mas o próprio Wolff sublinha que a teoria do impetus está acoplada,
como ele diz, a uma "causalidade de transferência" e que essa teoria não pode
absolutamente fundamentar-se no âmbito dos objetos da experiência, quer por
meio da percepção sensível, quer por meio de argumentação conceitual.

Em outras palavras: a teoria do impetus é um antropomorfismo artesanal do


movimento. A teoria do impetus pertence à religião dos pedreiros e artesãos, que
na Idade Média européia ocuparam o lugar dos escravos antigos. Uma tal
"teoria" é aceitável apenas numa época em que os problemas de mecânica não
são resolvidos, por assim dizer, pela cabeça, mas pelas mãos, isto é, por meio
da praxis manual em lugar do pensamento teórico. Um momento em que o
argumento técnico se baseia em casos exemplares, não em regularidades
comprovadas. Leonardo foi o primeiro a romper com isso, mas ele próprio
recorreu ao conceito de impetus para explicar o conceito mecânico de força. O
conceito de impetus pode servir como signo dos limites que aprisionavam os
hábitos renascentistas de pensamento. Ele envolve ainda os matemáticos
italianos mais avançados, como Tartaglia e Benedetti, Cardano e Ferrari, até a
irrupção do pensamento moderno, na segunda metade do século XVI, com
Copérnico, Kepler e sobretudo Galileu. Mas o que causou essa revolução? Que

93
acontecimento a explica? Cito Ernst Cassirer: "De todos os problemas colocados
pela história da ciência, a origem das ciências exatas, de um ponto de vista
puramente filosófico, ocupa o primeiro lugar." (Philosophie und exakte
Wissenschaft, Frankfurt a.M., 1969, p.39).

Por mais complicado que seja o problema, há uma via clara para sua solução:
ocorreu uma mudança nas relações de produção. O capitalismo mercantil
transformou-se em capitalismo de produção. Mas como isso explica a ciência
natural matemática? Creio que ela tem de ser explicada assim. Nem é tão
complicado: é preciso apenas considerar atentamente o novo produtor que surge
em cena, gerado pelas novas relações de produção. É uma força altamente
contraditória: um produtor que literalmente e fisicamente não produz mais nada.
Por meio apenas de seu dinheiro, empregado como capital, ele exerce o controle
sobre o processo produtivo, comprando conjuntamente todos os fatores
necessários para seu projeto: fatores materiais, pessoais e intelectuais, como as
necessárias patentes, etc. A montagem e combinação pertinente desses fatores
mais a força de trabalho resulta em um processo ativo de produção, que funciona
sem que o próprio produtor encoste as mãos. Pois se fosse obrigado a isso, não
agiria mais como produtor capitalista, ficaria privado dessa capacidade. Dito de
outro modo, a qualidade de produtor capitalista postula a formação de um
mecanismo funcionalmente autônomo a partir do conjunto material envolvido na
produção sob sua responsabilidade. Sem isso, seria impossível o produtor
controlar seu empreendimento produtivo apenas por meio do poder do dinheiro.
Explicitamente: seria impossível todo o capitalismo de produção

Mesmo estando implicado no automatismo do mecanismo de produção, esse


postulado foi em geral ignorado, até mesmo por Marx. Mas acredito poder
reconhecer nesse postulado a origem das ciências naturais exatas
quantificadoras.

A investigação sobre os traços característicos das ciências exatas burguesas


inclui a resposta à questão: como uma sociedade organizada de acordo com a
crescente apropriação chegou a ser a que mais produz em todos os tempos? De
que modo ela supera a contradição entre a lógica da apropriação característica
de todas as relações sociais de troca e a lógica da produção dos objetos de
apropriação na forma mercadoria? A resposta a isso está na combinação de dois
94
passos. Primeiro, é preciso uma hipótese teórica formulada matematicamente.
Depois, a prova experimental dessa hipótese. A hipótese é a tradução de um
fenômeno a ser investigado para os termos da pura lógica da apropriação, sob
a forma de um sistema mecanicista. Ernst Cassirer referiu-se à afinidade entre
natureza exata e mecanicismo, mas não a explicou. Esta explicação reside no
fato de que o mecanicismo tem origem na fisicalidade da ação de troca, da qual
se deduzem todas as categorias do entendimento abstrato. Ao formular o
fenômeno em termos da pura lógica da apropriação, a hipótese o torna homólogo
à constituição geral da sociedade, mas conserva a distância entre essa lógica
social e a realidade factual do fenômeno. Daí a necessidade da passagem pelo
experimento. O experimento é ligado ao princípio do isolamento experimental,
isto é, à eliminação de todos os fatores de interferência que não pertençam
estritamente à natureza do fenômeno, que o afetam apenas acidental e
temporariamente. Deste modo, é apenas em sua natureza essencial que o
fenômeno enfrenta a prova experimental, e o resultado possui assim a
imutabilidade, repetibilidade e confiabilidade que um empresário pode exigir de
um investimento onde deva aplicar seu capital. O resultado experimental é um
fato consolidado, pode ser usado pelos engenheiros, com sua preparação
tecnológica, para obter as máquinas e aparelhos a serem postos nas mãos dos
trabalhadores, que precisam deles para produzir.

Este é o círculo no qual está a resposta para a questão inicialmente colocada,


que não poderia ser resolvida com base em uma teoria idealista do
conhecimento, como aquela a que também Cassirer aderiu. E é por isso que ele
pode ter razão, ao buscar uma solução filosófica específica para a explicação
das ciências exatas.

8. A matemática como limite entre cabeça e mão

A aplicação da matemática aos fenômenos naturais é a grande novidade


introduzida por Galileu. Nossa análise formal da matemática afirma duas coisas:
primeiro, que ela caracteriza o pensamento em sua forma de socialização,
segundo que ela distingue o trabalho mental em sua separação do trabalho
manual. As conexões entre essas duas propriedades essenciais é um objeto de
particular interesse.

95
Em que sentido pensamos aqui "matemática"? Há diversas formas e
instrumentais de matemática. A matemática nos é familiar como uma disciplina
não-contraditória e rigorosamente dedutiva, que fornece resultados unívocos a
partir de determinados axiomas e postulados. Ela se ocupa da diferenciação de
grandezas definidas por números. Criada pelos gregos, esta modalidade de
matemática remonta aos séculos VII e VI aC. Tales e Pitágoras são os primeiros
nomes associados a ela. Tales nasceu em Mileto, cerca de duas gerações após
a primeira cunhagem de moedas, ocorrida por volta de 630 na Lídia e na Jônia
(que mantinha Mileto sob sua influência).

Pitágoras nasceu em Samos, mas por volta de 640 imigrou para Crotona, no sul
da Itália, onde provavelmente foi responsável pela criação de uma moeda. Ele
igualou a essência das coisas a números. Mileto e Samos haviam se tornado, no
Egeu da época, os dois maiores centros rivais de atividade comercial. Como a
cunhagem de moeda revela uma economia mercantil desenvolvida e avançada,
podemos considerar o cunho lógico-dedutivo da matemática,
independentemente das mudanças de seus primórdios até hoje, como
contemporâneo à produção de mercadorias. Com as atuais transformações de
seu instrumental por meio da eletrônica, é claro que esta não é a última forma
que assumirá a matemática. Mas também não foi a primeira.

A criação grega foi precedida, no Egito, por uma forma muito diferente de
"matemática". Todas as construções, ali, contavam com a indispensável ajuda
de uma arte de medir, que Heródoto batizou de "geometria" por causa de seu
emprego na medição do terreno. A corda era o instrumento principal dessa
atividade. Ela se tornou uma habilidade profissional de pessoas que os gregos,
traduzindo a nomenclatura egípcia, chamavam "harpedonaptes", literalmente
"esticadores de corda". Como nota Burnet, esse nome expressa maior
semelhança com nossa jardinagem do que com nossa matemática.

O livro de ensino ou de exercícios de Ahmes, encontrado no papiro Rhind, bem


como outras representações egípcias em relevo, tornam claro que esses
esticadores de corda, em geral trabalhando aos pares, eram subordinados aos
mais altos oficiais faraônicos na construção de templos e pirâmides, na feitura
de diques para irrigação, na instalação e controle de armazéns, nas
redemarcações de terrenos que haviam sido alagados pelo Nilo para fixar as
96
obrigações de fornecimento do ano seguinte e outras funções semelhantes. Se
o uso e manejo da corda eram exercidos com tal virtuosismo e com o acúmulo
de conhecimentos de uma longa experiência, pode-se pensar que não devem
existir muitos problemas geométricos que não possam ser superados com esse
recurso. Eles eram capazes por exemplo de resolver problemas de tripartição de
ângulos, ampliação e redução de sólidos, incluindo a duplicação do cubo, e até
mesmo o cálculo do número , que em Ahmes é dado como 3,1604. É óbvio que
esta técnica só podia lidar com aproximações, mesmo que às vezes fossem
consideravelmente precisas, mas os praticantes dessa "geometria" talvez
considerassem a "precisão matemática", se tal conceito existisse, um mero
pedantismo. A aplicação da arte da corda era uma prática de medida, nada mais,
embora destinada a grandes feitos, até maiores que os dos gregos, embora não
tão rentáveis. Aparentemente, ela entrou também na antiga Índia, onde o
primeiro livro de geometria tinha exatamente o nome de Arte da Corda. Ligada à
técnica indiana de contagem, foi essa a base sobre a qual se desenvolveu, por
dois milênios ou mais, o conhecimento e o domínio da geometria e da aritmética
que, ao lado dos gregos, causaram espanto na Europa, quando os árabes dos
séculos VIII e IX a trouxeram com a tradição islâmica. De acordo com as
pesquisas de Joseph Needham, a esta tradição se acrescentam ainda os
conhecimentos igualmente antigos e maduros vindos da China e sobretudo do
Extremo Oriente.

Obviamente, não pretendo colocar no mesmo plano a matemática criada pelos


gregos e tradições da Idade do Bronze ou até mais antigas. Ao empregar linhas
e círculos em lugar da corda egípcia, os gregos provocaram uma mudança tão
radical na arte da medida que fizeram surgir algo completamente novo, mais
exatamente a matemática no sentido em que a conhecemos. A arte da corda era
uma habilidade manual só exercível no lugar mesmo em que se fazia a medida.
Desligada disso, perdia o sentido. Sem possuir também uma organização
cuidadosa e minuciosa, ela não deixava nenhuma representação autônoma de
seu conteúdo geométrico. A corda era movimentada a cada procedimento de
medir, a cada "medida", levada de um lugar a outro de acordo com a execução
da tarefa, de maneira que não surgia imediatamente nada assim como uma
"representação geométrica". A geometria da tarefa extinguia-se em seu
resultado prático, que por sua vez servia somente para aquele caso. Certamente,
97
as repetições da técnica deviam ser mostradas e ensinadas aos harpedonaptes
durante sua formação, e algo disso está representado em Ahmes como se
fossem leis geométricas. Mas é um mero reflexo de nossas próprias
representações acreditar, como M. Cantor, Heath, D. E. Smith e outros
historiadores da matemática, que, anterior ao livro de exercícios de Ahmes,
haveria ainda um verdadeiro tratado a ser descoberto.

Foram os gregos que inventaram os instrumentos da representação geométrica.


Não eram cordas estendidas, mas linhas retas ou circulares, que permaneciam
sobre o plano, exprimindo relações permanentes com outras linhas semelhantes,
nas quais podia-se reconhecer leis geométricas internamente necessárias. As
linhas e suas relações não estão ligadas a nenhum lugar onde possam servir
para medições e seu tamanho absoluto permanece aleatório. A geometria da
medida torna-se absolutamente distinta da própria medida. A operação manual
submete-se a um esforço puramente intelectual, dirigido à elaboração de leis
formais quantitativas e espaciais. Seu conteúdo conceitual é independente não
apenas de uma, mas de qualquer finalidade prática. Mas para torná-lo separável
dos objetivos práticos, foi necessário surgir uma abstração formal pura e sua
elaboração no pensamento reflexivo, o que aconteceu exatamente pela
generalização da troca e da forma mercadoria nos relacionamentos internos da
sociedade e sua relação geral a um único padrão monetário.

Naturalmente, a mudança revolucionária da arte egípcia de medida dos


harpedonaptes à geometria grega não se deu de improviso, mas através de
centenas de anos e mediada por desenvolvimentos radicais das forças
produtivas e correspondentes transformações das relações de produção. Para
tornar isso claro, não será preciso retroceder além do início da geometria grega
com Tales. A invenção à qual ele está tradicionalmente associado como
matemático serviu entre outras coisas para medir a distância dos navios à costa.
A arte da corda seria aqui obviamente inútil. Este exemplo pode mostrar a
diferença entre o mundo das formas de produção baseadas na exploração
agrícola, incluindo a economia de terra firme do Egito e Mesopotâmia na Idade
do Bronze, e o mundo das cidades-estado gregas, com formas de produção
baseadas na navegação, pilhagem e comércio de mercadorias, bem como na
"pequena produção camponesa e no exercício independente dos ofícios " (Marx,

98
O Capital. MEW 23, p.354) possibilitados pelas técnicas do ferro. A nova forma
de enriquecimento dos gregos, econômico-monetária, não brotou do solo nem
das oficinas dos produtores manuais, pelo menos não antes que estes pudessem
ser substituídos por escravos e tornados fonte de mercadorias comercializáveis.
Ela surgiu somente da corrente de circulação e era, como diz Engels, efeito do
capital comercial e do capital usurário.

É essencial para a "matemática pura" dos gregos ter-se desenvolvido pela


separação intransponível entre trabalho intelectual e trabalho manual. O
significado intelectual da matemática tornou-se tema platônico e Euclides, com
seus Elementos de Geometria, ergueu-lhe um monumento perene, no limiar do
Helenismo. Esta obra surgiu apenas para demonstrar que a geometria se
relaciona somente consigo mesma, à medida que, como rede de nexos
dedutivos de pensamento, sustenta-se a si própria. A esterilidade e o sintetismo
do pensamento puro são aqui levados tão longe, que não se toma conhecimento
nem das fontes e meios, nem dos objetivos e utilidade do metabolismo material
entre homem e natureza. Nesta casa de cristal do pensamento grego, a exemplo
da objetivação da mercadoria, não entrou "nenhum átomo de matéria natural". É
um puro formalismo da segunda natureza e revela, indiretamente através de sua
constituição, que o dinheiro em forma de capital, o funcionalismo da segunda
natureza, permaneceu afinal estéril, já que libertou o trabalho da escravidão, mas
não elevou significativamente, se é que elevou, o uso produtivo da força de
trabalho liberada. Percebe-se tal fato, conclusivamente, observando-se que a
tradição posterior a Euclides, com Arquimedes, Eratóstenes, Appolonius, o
legendário Heron, entre outros, em cuja matemática já se tornam evidentes
elementos da abstração do movimento, deu suporte a aplicações tecnológicas
unicamente nos campos militar e lúdico. A mecânica não sai do campo da
estática, permanecendo presa ao repouso como estado inercial único. A
escravização do trabalho não é a única responsável por isso, já que o mesmo
acontece em toda a Idade Média. A razão disso está muito mais ligada a um
estado de desenvolvimento da segunda natureza em forma de capital, que pode
tirar proveito do estado de coisas dado, mas é incapaz de ali intervir de forma
radical.

99
A atividade de pesquisa tem de manter-se em total independência e separação
dos interesses industriais para poder servi-los. Como o postulado de qualquer
empreendimento produtivo está submetido à estrita observância de sua
diferenciação na divisão do trabalho, de acordo com o modo de produção
capitalista dominante, a pesquisa tem de acontecer nas categorias fundamentais
da abstração social primária. O postulado específico empregado em função de
um processo natural concreto toma a forma de uma hipótese matemática de
pesquisa, que exprime a causalidade de uma equação e seu valor numérico, e
sua realidade objetiva tem de ser submetida ao teste experimental. Se
admitirmos que a forma de reflexão intelectual da abstração primária equivale
aos conceitos do puro entendimento, temos então conjuntamente as
propriedades de ambos, com validade universal e realidade objetiva, que, de
acordo com Kant, dão o caráter rigorosamente científico de uma atividade de
pesquisa.

Basta olhar Galileu para confirmar isto. Ao adotar o ponto de vista do movimento,
o modo de pensar de Galileu apresentou algo fundamentalmente novo e distinto
de seus predecessores, que adotavam o ponto de vista do trabalho manual. Isto
o separou do ponto de vista tradicional dos trabalhadores manuais, permitindo
que concebesse o estado dos seres como em movimento, lado a lado com o
repouso, ambos igualmente inerciais. Galileu fundou e confirmou esta
concepção com suas pesquisas sobre a queda de corpos pesados, "de motu
gravium", realizadas em Pisa no ano de 1590, no início de sua carreira. Ali, ele
descobriu que sem o atrito do ar, no vácuo, todos os corpos têm a mesma
velocidade de queda. Só há uma gravitação, só uma lei de queda. As leis
dinâmicas da natureza são as leis do movimento, que vão se somando como
resultado dos avanços da pesquisa científica, para responder, em cada
empreendimento específico, ao postulado do automatismo.

Em 1623, em seu Saggiatore (A balança do ouro), Galileu definiu o procedimento


matemático e experimental como fundamento do método da ciência nova. E isso
mostrou-se verdadeiro, apesar de os experimentos, no tempo de Galileu, serem
na maior parte experimentos mentais, já que faltava a aparelhagem necessária.
Somente em 1707, Newton ofereceu o modelo de um experimento de
mensuração, em sua Ótica. Galileu introduz a parte matemática de seu método

100
no Saggiatore com as conhecidas frases: "A filosofia está escrita no grande livro,
que sempre está aberto diante de nossos olhos, o universo. Mas nós podemos
lê-lo somente quando apreendemos a língua e nos familiarizamos com os sinais
nos quais ele está escrito. É escrito na língua da matemática, cujas letras são
triângulos, círculos e outras figuras geométricas; sem esses meios não é
possível ao homem apreender nem mesmo uma só palavra."

Matematizada, a ciência do novo tempo compartilha a quantificação com o


conceito de valor da economia mercantil, a cujos interesses ela serve direta e
indiretamente. Como sua afinidade genética com o capital e seu modo de
produção está oculta aos portadores das ciências, estes se comprazem na
independência imaginária da motivação de suas pesquisas em sua época
clássica, baseados na universalidade de suas formas conceituais e na distância
existencial e ideal em relação ao capital.

Isso me faz pensar numa observação secular de Ernst Cassirer. Em sua


pesquisa sobre a teoria do conhecimento, Substanzbegriff und Funktionsbegriff
(Conceitos de substância e de função), publicada em 1910 e sempre frutífera,
ele faz a seguinte afirmação (p.155): "O conceito exato de natureza enraíza-se
no pensamento mecanicista e é alcançável apenas com base nessa idéia.
Mesmo que a explicação da natureza busque, em seus desenvolvimentos
posteriores, libertar-se desse esquema inicial e adotar outro mais geral, ainda
assim o movimento e suas leis permanecerão o verdadeiro problema
fundamental, no qual o conhecimento alcança clareza sobre si mesmo e sobre
sua tarefa. A efetividade (Wirklichkeit) é completamente conhecida ao resolver-
se num sistema de movimentos."

Cassirer não nos diz qual é a fonte do próprio pensamento mecanicista, mas não
descreve sua peça central, o movimento, com seu conceito empírico usual, e sim
como "puro movimento" no espaço puro e no tempo puro. E estas são feições
inegáveis da fisicalidade da troca.

Em outras palavras, tanto o conceito exato de natureza como a idéia de


mecanicismo enraízam-se na mesma origem: a abstração primária da troca. Sua
coincidência não propõe nenhum enigma e eu posso mesmo apresentá-la como
confirmação adicional à minha tese da conexão subconsciente

101
(unterschwelligen) entre ciência exata da natureza e economia do capital
produtivo. Esta afinidade genética é de fato subconsciente ou, se preferir,
transcendental, pois na superfície elas são tão difusas e intraduzíveis entre si
como a definição econômica do ferro pelo preço e a definição física pelo peso
atômico, para usar um exemplo banal.

Evidentemente, não se pode ignorar que, a partir de meados de nosso século, a


ciência natural experimentou uma transformação radical, após um longo período
inicial. A partir de Einstein, a teoria inercial do movimento foi suplantada pela
teoria dos campos eletromagnéticos. A origem da mudança está no esgotamento
do postulado do automatismo, que fez a era do ferro e das máquinas passar para
a era do átomo, provocando a correspondente passagem das forças produtivas
mecânicas e assalariadas para as eletrônicas e automatizadas.

9. Anotações conclusivas

A revolução do capitalismo comercial do Renascimento à época do capitalismo


de produção aconteceu nos séculos XVI e XVII, completando-se pela passagem
da propriedade dos meios de produção dos trabalhadores, camponeses
autônomos e artesãos, para o capital. "O processo de criação das relações
capitalistas [na produção, S-R] não pode ser, portanto, nada mais que o processo
de separação entre os trabalhadores e a propriedade de suas condições de
trabalho, um processo que, por um lado, transforma os meios de vida e de
produção em capital e, por outro, o produtor imediato em trabalhador
assalariado", segundo Marx (MEW, 23, p.742). Ou, expresso em minhas
categorias: um processo pelo qual a produção social passa da rede de conexões
da lógica da produção para a rede de conexões da lógica da apropriação. Mas
como essa rede é internamente possível, como pode funcionar em sua flagrante
contraditoriedade? O processo descrito por Marx gera uma sociedade
constituída exclusivamente, no todo e nos pormenores, por atividades regidas
pela lógica da apropriação e, ao mesmo tempo, a época que mais quer produzir
e que mais produz em toda a história. Como isso é possível conjuntamente? Esta
é uma questão sociológica que nos conduzirá agora, questão cuja resposta tem
de conter a explicação da ciência natural exata, que Ernst Cassirer tanto aprecia
"de um ponto de vista puramente filosófico".

102
De fato, o próprio Cassirer dá um importante primeiro passo nesta explicação ao
associar estreitamente a natureza exata e o pensamento mecanicista, como
citamos acima. Evidentemente, Cassirer não tinha com a sociologia, nem de
perto, a mesma familiaridade que tinha com as ciências naturais. Assim, pôde
ocultar-se a ele o fato de que o mecanicismo apresenta nos fenômenos o mesmo
caráter da lógica da apropriação presente numa ação. Acima, deduzi o modo de
pensar mecanicista a partir da fisicalidade da troca graças à reciprocidade da
apropriação privativa, à qual esta ação se reduz.

O conhecimento da ciência natural começa metodicamente a operar a partir da


elaboração de uma versão mecanicista do fenômeno a ser explicado, isto é, uma
versão baseada na lógica da apropriação, em termos do valor numérico de uma
função causal. Este valor numérico precisa da confirmação experimental sob as
condições do assim chamado isolamento experimental, que consiste na
eliminação de todos os "fatores de perturbação".36 O isolamento experimental
permite compreender a resolutividade da hipótese matemática como
regularidade da "natureza" atemporal do objeto científico e a ciência como
investigação das "leis naturais". Os recursos técnicos e a maquinaria que, como
meios de produção, estão à disposição da empresa capitalista interessada são
igualmente compreendidos como regidos por leis naturais. Esses recursos
destinam-se às mãos dos trabalhadores e efetuam a reprodução da lógica de
produção da empresa capitalista de acordo com o postulado da automação deste
modo de produção.37 Por outro lado, esses mesmos meios de produção são ao
mesmo tempo objetos de investimento seguro para o capital, pois às suas
funções técnicas de uso, garantidas cientificamente por leis naturais, podem ser
atribuídas uma segura confiabilidade e uma ilimitada capacidade de repetição.
Com isso julgo respondida, em seus aspectos essenciais, a pergunta que
constitui o fio condutor destas considerações.

Esta explicação da ciência exata confirma a tese, sustentada neste estudo, de


que as categorias básicas da ciência natural matemática, originadas do puro

36Adoto aqui a terminologia de Bodo von Greiff em seu esclarecedor estudo.


37 Cf. o tratamento penetrante de Thomas Kuby, "Der Wandel des Automationsbegriffs" ("A
mudança do conceito de automação"), in: Thomas Kuby (ed.), Vom Handwerksinstrument zum
Machinensystem (Do instrumento artesanal ao sistema de máquinas), Berlim, Technische
Universität, 1980, p.87-103.
103
entendimento, não podem ser explicadas pela via intelectual, sobre o fetichismo
idealista do entendimento puro, mas a partir do ser social, onde elas tornam
possível nossa sociedade funcional segundo os princípios da propriedade
privada.

Cassirer deu valor à explicação das ciências exatas "em sentido filosófico". De
fato, a significação filosófica de nossa explicação está sobretudo no enérgico
empuxo que empresta ao materialismo histórico, no sentido de sua definição
adorniana como "anamnese da gênese".

Em sua carta38 de 17 de novembro de 1936, de Oxford, Adorno escreve: "Eu


creio não exagerar, se lhe disser que sua carta significou o maior abalo que
experimentei em filosofia depois de meu primeiro contato com o trabalho de
Benjamin - e isso foi no ano de 1923! Esse abalo registra a profundidade de uma
concordância que vai muito além do que o senhor podia suspeitar e eu mesmo
suspeitava. E somente a consciência dessa concordância, da qual o senhor pode
ter observado traços no conceito da falsa síntese no trabalho sobre o jazz, mas
que no essencial está na transposição crítico-imanente (=identificação dialética)
do idealismo em materialismo dialético, no conhecimento de que não é a verdade
que está contida na história, mas a história na verdade, e na tentativa de uma
proto-história da lógica, somente esta concordância imensa e ratificadora me
impede de designar seu trabalho de genial e sustém a angústia de desejar que
esse trabalho fosse também meu!" Com nossa explicação social do
entendimento puro desfaz-se a impossibilidade antinômica de unidade da ciência
natural e da ciência do espírito e da história. Com isso, deveria estar aberto o
caminho para uma compreensão universal da história da humanidade ocidental.

38 Esta carta é uma resposta ao "Exposé zur Theorie der funktionalen Vergesellschaftung"
("Exposição sobre a teoria da socialização funcional"), que eu tinha enviado a Adorno no dia
anterior. Essa Exposição está publicada em anexo neste volume.
104
ANEXO
Exposição sobre a teoria da socialização funcional
Uma carta a Theodor W. Adorno (1936)

O texto que segue é a parte principal de uma carta minha a Th. W. Adorno, de
novembro 1936, na qual, após longos anos de contato, eu lhe expunha minha
base de compreensão teórica. A resposta de Adorno à carta era expressão de
um acordo espontâneo e estímulo para o debate oral do assunto. Com isso, suas
observações não chegaram infelizmente a ser expressas por escrito.

A concepção que planejo desenvolver baseia-se fundamentalmente em duas


percepções que fixei ao longo de trabalhos anteriores. A primeira talvez possa
ser resumida da seguinte forma: o surgimento histórico de qualquer teoria
independente e dotada do signo da autonomia lógica, portanto de todo
conhecimento no sentido idealista, pode ser explicado, em última instância,
apenas a partir de uma profunda e característica ruptura na praxis do ser social.
Considerado genericamente, isso corresponde ao ponto de vista absolutamente
fundamental do marxismo, de que todos os problemas teóricos humanos
remetem, na efetividade (Wirklichkeit), a problemas da praxis humana e que,
assim, a tarefa da crítica marxista da ideologia constitui-se em reduzir os
problemas teóricos aos problemas que estão em sua base, isto é, às
contradições na praxis. Esta redução possui, ela mesma, o objetivo prático de
servir à praxis e à transformação prática do ser material dos homens. Mas
transformação em que "sentido"? E, sobretudo, por que o ser material dos
homens tem um "sentido", uma relação qualquer com a "verdade"? Parece-me
que aqui se inscreve o problema decisivo para abordar o marxismo, como
também a questão que diferencia fundamentalmente o marxismo de todos os
outros métodos. Pois ele não quer formular por si próprio esse sentido, essa
relação entre o ser e a questão da verdade, nem, portanto, apresentar ele
mesmo uma filosofia ou uma ontologia. Seu método é inteiramente outro.
“Desenvolvemos novos princípios para o mundo a partir dos princípios do
mundo.” O marxismo deixa a questão da verdade transparecer na história da
humanidade; ele a conhece apenas por ter surgido na história (e com isso
também ter chegado até ele); ele se coloca na tradição da verdade e é seu único
herdeiro legítimo, porque a toma e a leva a seu acabamento crítico. Ele a deixa
transparecer, portanto, não para destruí-la e lançá-la ad acta como mera
105
ideologia, mas ao contrário para constituir-se em advogado dos propósitos
simbolizados por ela e que se tornaram, na própria história, dependentes dos
homens. Ele toma esses propósitos (que os próprios homens, e não ele,
tomaram como coisa sua) mais a sério do que os próprios homens ao tornar-se
seu advogado crítico, perseguindo a questão da verdade aí levantada. Só na
relação com essa crítica o marxismo, por sua vez, possui e conhece a questão
da verdade, sem engolir, por isso, uma ideologia já ligada a ela. Tudo depende
da determinação dessa relação (assim como é nela mesma que está o
fundamento, pois o marxismo antes de tudo não pode ser uma nova ontologia e
prima philosophia, mas, como o senhor diz, apenas a "ultima philosophia"). O
difícil ponto central na questão dessa relação é, mais uma vez, o problema da
validade das ideologias (que validade lhes cabe). Mais precisamente, o problema
é a relação do caráter de validade da teoria (idealistamente "conhecimento") com
a praxis do ser humano.

É possível abordar esse problema de várias maneiras. Uma delas, certamente,


é esta: o marxismo é o método da crítica da verdade das ideologias, ao ser pura
e simplesmente o método de sua determinação genética. Como se dá essa rara
coincidência revolucionária? Se uma ideologia é revelada marxistamente em
suas determinações, então ela própria se torna (em seus próprios conceitos, de
acordo com seu próprio sentido, na cabeça tanto de seu autor como de seu
portador) uma força alavancadora da transformação prática revolucionária do
ser. Se o mesmo for feito sociologicamente, ao contrário, não ocorre nada de
semelhante. E enquanto no primeiro caso a chama da questão da verdade
acende o fogo da revolução do ser, no segundo caso resta apenas um deplorável
monte de cinzas, que deixa ao sociólogo a questão, para ele irrespondível, de
onde veio a chama que pôde incinerar algo. Bem aqui está o essencial para o
marxismo: ele efetivamente não faz nada mais do que a determinação genética,
ou seja, não acrescenta nada às coisas, sendo assim mera ciência, e
exatamente isso é a fornalha da crítica revolucionária das coisas. No que isso se
baseia? Antecipar aqui o conceito de dialética só levaria o problema para a
questão da essência da "dialética". A base é que a consciência em sua relação
com a questão da verdade, os conceitos a respeito de seu caráter de validade
são remetidos, pela determinação marxista, ao ser histórico. Exatamente através
disso constitui-se seu caráter dialético, pois precisamente aqui se encontra todo

106
o problema da dialética (juntamente com a razão pela qual ela não pode ser
antecipada). Assim, eu também vejo na explicação genética da validade do
conhecimento o fundamento da distinção do materialismo marxista em relação
ao materialismo burguês e ao empirismo. É de fato o mesmo fundamento pelo
qual a redução sociológico-burguesa transforma o "ser" em facticidade crua,
enquanto a redução marxista estabelece seu caráter de praxis material, no qual
a exigência de verdade da ideologia é criticada e inflama-se como energia
revolucionária.

Como atribuo um valor decisivo a esse caráter da crítica marxista da ideologia -


que ela seja essencialmente crítica da verdade da ideologia -, gostaria de
demorar-me ainda um momento nesse ponto, para estabelecer essas conexões
tão claramente quanto possível. Meu objetivo é dar conta do desafio que se
impõe ao marxismo de fazer resultar, da análise de um determinado ser histórico
e social, um conjunto completo de deduções das ideologias ali existentes, até
em suas estruturas lógicas e, portanto, em seu conceito de verdade. As
ideologias são, por um lado, falsa consciência, mas, por outro lado, são
necessariamente condicionadas, tanto como essa falsa consciência em si, como
também geneticamente. Nesse necessário condicionamento ancora-se o
problema da verdade da consciência e o problema da crítica marxista da verdade
das ideologias. Sim, eu gostaria de ir ainda mais longe e dizer que todo o
problema da logicidade da consciência como conhecimento humano ancora-se
neste necessário condicionamento das ideologias. O problema não está muito
em que a consciência esteja sempre invertida de um determinado modo, mas
que essa consciência invertida, se a inversão é necessária, contém a questão
da verdade.

A derivação marxista de uma ideologia a partir do ser social já é suficientemente


satisfatória ao levar a uma discussão imanente com a ideologia em questão.
Mesmo aqui, o método marxista distingue-se do método burguês-sociológico.
Em seu tratamento genético, ele não argumenta com a ideologia em questão,
por assim dizer, como paciente. Ao contrário, a crítica marxista fala dentro da
cabeça ideológica, não a seu lado ou sobre ela. Aqui o portador de uma ideologia
é destituído de poder, depois que a crítica de sua ideologia (segundo seus
próprios critérios conceituais) legitimou essa destituição. Daí deduz-se o direito
histórico do marxismo de passar da "arma da crítica " à "crítica das armas". Que
107
o portador da ideologia criticada seja incapaz de aceitar a própria crítica ou
mesmo realizá-la, pois para isso precisaria saltar a própria sombra, não constitui
nenhuma objeção ao princípio. Pois o princípio é importante por razões
totalmente diversas. O postulado da crítica marxista da ideologia como crítica da
verdade não tem o sentido de fazer da discussão ideológica o principal objetivo
do marxismo. O objetivo permanece sempre a transformação prática do ser
humano. Mas eu insisto no argumento de que a possibilidade metodológica da
explicação da ideologia pela crítica da verdade é o critério para que a análise do
próprio ser social possa ser marxistamente efetuada com êxito, mesmo onde,
como na economia, não se trate em primeiro lugar da crítica da ideologia. Assim,
penso que a análise das relações de produção capitalistas, por exemplo, não
está suficientemente instruída enquanto não se puder ao mesmo tempo alcançar
a partir de suas ferramentas conceituais, como análise da forma mercadoria e
da relação de valor, a completa crítica da verdade do idealismo burguês. Sem
observar esse critério, a análise econômica do capitalismo não servirá, em lugar
nenhum, às tarefas de transformação social do ser. Seu entendimento da história
deixará restos opacos no ser social. As duas coisas condicionam-se
reciprocamente. A economia não poderá estar certa enquanto sua construção
não dispuser da liquidação crítica do ponto de vista idealista, e esta liquidação
não estará completa enquanto a análise econômica não estiver sobre as bases
corretas.

Esta oposição é importante, porque designa a relação na qual o materialismo


histórico-dialético realiza sua tarefa de conhecimento. A relação encontra-se
expressa na frase de Marx de que não é a consciência que determina o ser, mas
o ser social dos homens que determina sua consciência. Deve-se tomar essa
frase em sentido literal, pois ela define o "ser social" e a "consciência" através
da relação que afirma entre ambos. O ser social sem a consciência não é nada
ou, melhor dizendo, nada mais do que a aparência fetichista da pura facticidade;
e a consciência sem o ser social também não é nada ou, melhor dizendo, a
aparência fetichista do "sujeito transcendental". Ao contrário disso, a
"consciência" é algo determinado pelo ser social, e o "ser social" é aquilo que a
consciência dos homens determina. Somente nessa relação ambos possuem
sua efetividade histórica e dialética.

108
Isso determina também a relação do marxismo com o problema da verdade. Por
si, o marxismo não se dirige à história ou ao "ser" com a questão da "verdade".
Muito menos propõe uma teoria da verdade ou atribui aos homens uma "visão
de mundo". O marxismo conhece a questão da verdade, a rigor, somente a partir
da história, toma conhecimento dela pelo flanco das ideologias que surgiram em
seu nome. Eu já expus isso, mas queria agora colocá-lo em referência à essência
do método relacional marxista, que opera entre ser e consciência, aqui e lá. Ao
reduzir as questões humanas voltadas para o "absoluto" de suas relações
ideológicas para relações materialistas no ser social desses homens, ele
transforma as questões insolúveis da teoria em questões solúveis da praxis. Isso
correspondente precisamente ao princípio de Marx de superar (aufzuheben) a
filosofia ao realizá-la, pois só através de sua realização ela pode ser superada.
E essa realização como superação, superação como realização das teorias da
verdade que surgem nas ideologias, é exatamente a única relação do marxismo
com o problema da verdade. Mas também, no sentido contrário, apenas o
problema da verdade é o ponto de apoio que permite realizar a transformação
dos problemas teóricos dos homens em problemas práticos, e a eliminação ou o
fracasso do problema da verdade faria de todo o marxismo um raso materialismo
vulgar.

Pode-se agora discordar sobre o quanto o trabalho de Marx, especialmente a


análise da mercadoria no início de O Capital, preenche suficientemente as
condições aqui formuladas. Ocupei-me por dez anos, desde os primeiros tempos
de estudante, com as enormes dificuldades que nessa análise encontram o
caminho do efetivo esclarecimento. Não posso aqui entrar em detalhes. Mas
para provar que a identificação feita por Marx da forma mercadoria foi conduzida
com suficiente exatidão, deve-se mostrar que ela rompe o idealismo em seu
centro. Neste caso, a forma mercadoria teria de tornar transparentes até os
elementos básicos da teoria do conhecimento idealista, de modo que os
conceitos de subjetividade, identidade, simples existência, caráter de coisa,
objetividade e da lógica das formas do juízo seriam remetidos clara e
completamente a momentos da forma mercadoria dos produtos do trabalho e à
sua gênese e dialética. Como julgava que a análise de Marx não tinha cumprido
completamente tal exigência, procurei levar adiante essa análise. Pois tenho
uma incondicional convicção de que a constituição científica apropriada do

109
marxismo depende da possibilidade de levar a análise da forma mercadoria até
o ponto no qual se descobre, além da forma específica do fetichismo capitalista,
o mecanismo total da fetichização, isto é, a gênese das ideologias sob o aspecto
de seu caráter de validade, através de toda a assim chamada história da cultura,
portanto até a Antiguidade e talvez mesmo antes.

Aqui chego finalmente à segunda de minhas "duas intuições", que no início


prometi expor. A assim chamada história da cultura da humanidade coincide de
facto e nos fundamentos com a história das relações humanas de exploração.
Assim, se o discurso sobre o desenvolvimento da cultura deve ter um sentido -
e ele o tem também no marxismo -, então esse sentido tem de ser descoberto a
partir da análise das relações de exploração e sua dialética, desde o início até
sua forma completa capitalista. Mas essa descoberta deve ocorrer de tal modo
que nela todos os chamados caracteres "culturais" - como a forma de mundo que
o ser adquire para os homens, o caráter subjetivo dos próprios homens, seu
enredamento entre "aquém" e "além", a simples existência e seu modo de
identidade ["simples existência" carrega aqui um acento negativo], as relações
de juízo e a razão, a personalidade dos indivíduos, a questão da verdade, a idéia
de "conhecimento" e de mundo objetivo, o bom, o belo etc. etc., em resumo, tudo
sobre o que o idealismo tanto fala - sejam claramente identificados e
comprovados como resultados genéticos da exploração. Pois a exploração é
uma situação imediatamente prática, e a definitiva remissão de todas as formas
de consciência completamente teóricas e aparentemente autônomas da
alienação (Entfremdung) à exploração transformaria toda a cultura da
humanidade, em todas as suas formas e formalizações, numa problemática
única da praxis humana e sua mistificação. Todas as formas mencionadas de
alienação - os esquemas de essência bem como os da facticidade - são, dito
provisoriamente, fetichização da praxis do trabalho com fundamento na praxis
da exploração, e o conteúdo real de toda problemática da cultura humana é uma
problemática puramente prática de seu ser material. Se isso puder ser
demonstrado completa e conclusivamente, então, evidentemente, teremos
imediatamente acoplada a crítica da verdade das ideologias da alienação,
conduzida acima. Se a separação sujeito-objeto, a questão sobre a verdade e o
"conhecimento" surgem como resultado da exploração, precisamente como um
aprisionamento necessariamente condicionado da consciência na alienação do

110
ser, como uma praxis enraizada nas formas da não-praxis, então a pura redução
genética dessas formas de alienação à sua causalidade prática tem de ser, por
si, a crítica das teorias fetichistas sobre sua verdade prática. É preciso, pois,
romper a constituição da alienação para fazer saltar a verdade das ideologias da
alienação, que, com sua constituição, a encobrem. Mas a praxis descoberta não
é em si "verdade" (como quer o marxismo), mas o é apenas na relação da crítica
de seu encobrimento. Pois a relação com a verdade brota somente do fato de a
consciência alienada estar ligada à questão sobre a verdade; isto significa que a
própria questão da verdade é um produto da alienação. A última redução traz a
tarefa, a que me proponho, de tornar solúvel a insolúvel problemática da
"dedução transcendental" - tentativa de construir o ser a partir do pensar -, pela
relação inversa: pela construção da lógica partindo do ser social material, em
vista da posterior construção dialética da história das relações de exploração.

Tenho agora de introduzir um conceito de central importância para a continuação


e desenvolvimento desta concepção: o conceito de socialização funcional, que
está em oposição histórica e estrutural à socialização de uma "comunidade
natural" de Marx. Para introduzir esse conceito, gostaria de começar desde o
início. A socialização funcional surge através de uma quebra com a socialização
natural, e esta quebra é a exploração, ou seja, a situação em que uma parte da
sociedade começa a viver dos produtos dos outros, ao mesmo tempo em que se
apropria dos excedentes gerados pela produtividade sempre crescente. Esta
apropriação acontece primeiro como apropriação unilateral (em uma rica escala
de formas, que vai desde a obrigação tradicional de dar presentes até o roubo
brutal); somente após uma longa história essa relação unilateral de apropriação
chega à exploração na forma de apropriação recíproca qua troca de
mercadorias. Mas qualquer que seja a forma em que se dê a apropriação, em
que a exploração ocorra, ela é sempre propriamente uma praxis, mas uma praxis
tal que nega "a vida material dos homens no metabolismo com a natureza" e,
assim, sobretudo a praxis do "trabalho produtivo" (no sentido de processo de
trabalho segundo Marx): uma negação prática da praxis, portanto, e isso em
relação ao trabalho (que se transforma juntamente com as transformações
históricas da exploração e que portanto não foi sempre aquilo que se tornou no
capitalismo atual). Ora, em nenhum momento da história humana a vida é algo
diferente da vida dos homens no metabolismo prático-material com a natureza

111
(que, por sua vez, devido ao desenvolvimento das forças de produção, também
é um conceito histórico), que se dá na produção e no consumo. Esta realidade,
concebida por Marx como "processo de trabalho", tem de ser sempre tomada
como fundamento da história humana, de acordo com a concepção de Marx, do
homem como espécie animal que conseguiu iniciar a produção de seus próprios
meios de vida. Em nenhum momento de sua história, portanto, a vida dos
homens é algo diferente desse metabolismo, de caráter essencialmente prático
e material. Nesse sentido, os próprios homens são natureza e também
permanecem em relação com a natureza, uma relação que significa sua própria
vida. Nesse sentido, em última instância, toda a história humana é mera
natureza. Dessa imensa sequência histórica, no entanto, o ponto de vista de meu
interesse aborda apenas a porção caracterizada pela situação de exploração.
Os caracteres próprios desse recorte da história, como especialmente a
separação entre teoria e praxis e com isso o fenômeno do conhecimento (como
fenômeno de um conhecimento separado e aparentemente autônomo), são
determinados pelo fato de a praxis material da vida humana ser realizada, aqui,
por meio de formas que contradizem essa praxis. A parte exploradora da
sociedade (independentemente de ter ou não a mesma origem étnica dos
explorados) vive da produção do trabalho humano, mas não seu próprio trabalho,
de tal modo que a vida da camada dominante de modo nenhum está fundada na
natureza, mas, em vez disso, na relação com outros homens e com a relação
prático-produtiva desses outros com a natureza. A relação de produção homem-
natureza torna-se, com a exploração, objeto de uma relação homem-homem, a
cujas leis se submete e, assim, frente ao estado "natural", "desnatura-se"
(nenhum átomo de matéria natural entra, segundo Marx, na objetividade de
valor), realizando-se então segundo as leis das formas de mediação, o que
significa sua afirmativa negação. Essa negação é, como já assinalado, ela
própria de caráter prático, é a praxis de apropriação nessa relação homem-
homem. Afirmo agora que a praxis de apropriação nessa relação é a origem
histórica efetiva dos modos de identidade, de simples existência e da forma-coisa
ou caráter de coisa - de tal modo que não apenas a "reificação" (Verdinglichung),
mas já a própria "coisa" (Ding) é uma modalidade de exploração.

Tomemos uma relação de exploração de forma mais primitiva. Um povo domina


outro, para viver de seu excedente de produtos. O efeito é o surgimento de uma

112
produção sem consumo, na parte explorada, e um consumo sem produção, na
parte exploradora, rompendo o nexo necessário entre produção e consumo que
havia até então. A parte exploradora não pode, entretanto, viver da exploração,
se não houver produção para seu consumo. O nexo rompido precisa então ser
recomposto de outra forma, exatamente na forma de um nexo entre as duas
partes humanas da relação de dominação. A exploração transforma o nexo vital
necessário entre produção e consumo num nexo inter-humano, portanto num
nexo social. Ela instala o nexo entre produção e consumo pela via de uma
articulação entre as simples existências dos homens. Essa articulação
existencial dos homens, efetuada pela exploração, é o que chamo de
socialização funcional e distingo de todas as formas de comunidade natural. A
socialização funcional é a negação da natural e a corrompe até a total
dissolução, tornando-se então dominante e assumindo a forma de produção de
mercadorias, que transforma a apropriação até ali unilateral em apropriação
recíproca. A partir de então, o trabalho é despojado de seu caráter sócio-natural
original, e em seu lugar entra a rede de trocas dos produtos do trabalho como
mercadorias. No percurso dessa socialização funcional feita pelos homens, no
percurso de seu surgimento, do lento e persistente aprofundamento até sua
dominação total, é que se deve procurar as características fundamentais da
forma mercadoria - identidade, simples existência e caráter de coisa.

O modo de identidade do existente é portanto, ab origine, unidade na relação de


exploração, para a qual é indispensável e constitutivo; pois o ato de apropriação
do explorador "abstrai" o produto do produtor, "reifica" ("verdinglicht") assim o
resultado humano, neutraliza-o como coisa, toma-o das mãos do produtor
fixando-o como uma simples existência completa, que agora, nas mãos do
explorador, é um produto meramente dado - meramente tomado - que prescinde
de sua produção, e embora feito de características qualitativas e quantitativas,
não é absolutamente um produto da natureza, mas do trabalho humano (ainda
que trabalho alheio). O que dá, portanto, identidade às mercadorias ou objetos
de apropriação é o papel que eles desempenham como elo das conexões sociais
entre o explorador e o explorado. Embora um objeto tenha para cada um deles
significados completamente diferentes, na ação em que passa de um a outro ele
é a mesma coisa para ambos, possui para ambos uma existência (Existenz)
válida e independente deles, uma simples existência (Dasein) objetiva; ele não

113
se desfaz na troca, mas se mantém íntegro e é uma coisa. Então, muito tempo
depois de terem começado a desempenhar seu papel indispensável e silencioso
na socialização funcional, estes caracteres formais foram capturados pela
reflexão e elevados a conceitos. E com isso eles deformaram tudo, pois então
esses mesmos caracteres tornaram-se as formas de pensamento do sujeito na
relação com os objetos que lhe são dados. É difícil desfazer essa deformação e,
sem encontrar as mediações, impossível. Mas já é alguma coisa saber o que
procurar, exatamente as mediações entre a situação de exploração e as relações
teóricas cognitivas. Esta é uma percepção com a qual os teóricos do
conhecimento, mas também os marxistas vulgares, não poderiam nem mesmo
sonhar.

Restringindo-me agora à sociedade de exploração na forma desenvolvida de


sociedade produtora de mercadorias: a "forma mercadoria" corresponde então à
função socializadora da exploração. Sua estrutura determina-se sempre
segunda as funções da unidade dessa socialização, da qual é a constituinte
formal. A socialização funcional completa-se somente devido à exploração,
como uma rede de conexões de apropriação, que se refere sempre à produção,
mas não está conectada a ela. É uma rede que se forma meramente entre as
simples existências dos homens e suas coisas, não entre a produção dessas
simples existências. Na forma de apropriação unilateral isso é ainda bastante
evidente (Marx sublinha frequentemente esta distinção), mas nas formas da
exploração generalizada e da socialização funcional, a relação entre apropriação
e produção torna-se de total e impenetrável encobrimento da efetividade do ser
material.

[Neste ponto, eu teria podido facilmente continuar de modo a apontar minhas concordâncias e
afastamentos em relação a Adorno. Algo assim: "Verdade e encobrimento são aqui congruentes.
Para tornar a verdade visível, é necessário aqui um método, que descrevo como identificação
dialética (mais adiante nesta mesma carta). O procedimento desse método está expresso numa
frase de Marx (na Introdução à crítica da filosofia do direito de Hegel, de 1843): "É preciso fazer
essas relações petrificadas dançarem de acordo com sua própria música". O Capital inteiro é
construído de acordo com esse princípio. Os encobrimentos não suportam sua identificação
dialética e com isso se traem. Eles traem-se também num outro tipo de experiência: nenhuma
síntese ("síntese" no sentido de Kant e Hegel; na qual o capital confirma a plenitude de seu
domínio do ser) pode ser construída a partir de seu próprio material (material de encobrimento
fetichistamente encantado, aliás conceitos da reflexão filosófica). Aqui, sua fantasmagoria
(Unwesen) é revelada pelo fracasso de toda e qualquer tentativa de simular uma essência. O
114
capital não pode nunca se furtar às tentativas de evocar o destino, mas nunca consegue levá-
las a bom termo. Entendo bem a intenção de seu trabalho sobre Husserl ao considerar que este
é o ponto que você tem em mira? [aqui Adorno teria certamente respondido "sim"]. Portanto com
uma crítica que por caminhos imanentes quer tornar-se transcendente? [“Sim” - quase com
certeza]. A esta falha da síntese filosófica correspondem, na efetividade (Wirklichkeit) econômica
do capitalismo, as crises. [Com isso ele concordaria completamente; ver abaixo]. Elas acontecem
na imanência e a partir dela, até a ruína; então acaba-se a imanência [uma concepção que trazia
muito das experiências dos anos trinta]. Contudo, estou inclinado a considerar apenas o lado
econômico como real, e o lado filosófico, que o senhor persegue, ao contrário, como meramente
simbólico. Pelo caminho filosófico não se pode de fato transcender as paredes da imanência,
seriam palavras sobre o papel, e estes são exatamente ainda instrumentos da imanência.
Somente a mudança real do ser é transcendente, portanto a ação, e isso não pode ser alcançado
pelo seu caminho. [Com isso ele não teria concordado; os leitores de seus trabalhos podem
imaginar sua resposta].”

Eu não continuei assim minha carta, no entanto, porque não tinha clareza dos meus próprios
pensamentos, coisa que demorou ainda muito tempo. Tenho de esclarecer que minha própria
autocompreensão foi um processo inacreditavelmente lento. As coisas aceitáveis nesta carta não
são aquilo que eu já sabia, mas o que eu ainda procurava. A descoberta do sujeito transcendental
na forma mercadoria, ou melhor, a certeza de que o sujeito do conhecimento se oculta na forma
mercadoria, veio-me como uma "inspiração" em meus tempos de estudante e nunca me deixou,
mas levou meu pensamento, se me permitem a autocaracterização, a um estado permanente de
fervilhante confusão. Foi nesse estado que me encontrei com Adorno e Benjamin, dois espíritos
brilhantes, em inferioridade muda e precária insegurança, mas com a certeza de que o
esclarecimento dessa confusão me levaria a um lugar que mesmo para eles ainda estava mais
adiante. Esta carta, portanto, como todo meu trabalho daquela época, deve ser avaliada
meramente como um estágio de auto-desvendamento; o critério para o julgamento desses
trabalhos não está neles mesmos, mas no esclarecimento a que finalmente me levaram, como
exposto no meu livro de 1970 (Trabalho intelectual e manual. Para a teoria da síntese social,
Frankfurt). Todo o meu caminho foi pavimentado por tais elaborações, as chamadas "Exposés",
que em sua maioria ainda apodrecem em minhas gavetas. As dos anos 30 indicam bem
claramente minha ligação com a "Escola de Frankfurt", pela qual então Adorno respondia (meu
contato com Horkheimer foi sempre através dele). Naquele ponto, ainda não estava claro para
mim que minha ocupação com a crítica da ideologia não se dirigia a ela mesma, mas, por meio
dela, à crítica do ser, portanto a um melhor entendimento dos ocultos desenvolvimentos
econômicos do presente, pois ela ainda não havia se tornado "metacrítica do conhecimento",
nem instruído nenhuma teoria do trabalho intelectual e manual. Só obtive essa clareza nos anos
40 e 50.]

A construção filosófica da "síntese" não trata de uma síntese da matéria, que o


capital realmente tem de dominar. A falha em alcançar a síntese real revela-se
nas crises, e a teoria das crises é propriamente a crítica de toda postulação

115
idealista da "síntese" [Adorno exigia que eu “elaborasse” isso - como está
anotado à margem neste ponto]. A teoria das crises é claramente também a peça
mais difícil em toda a teoria marxista; a solução do problema das crises implica
tornar transparente toda a história que levou à crise, portanto toda a história da
exploração, desde a saída do "comunismo primitivo".

Seria necessário portanto juntar aqui uma apresentação histórica completa da


socialização funcional, de suas primeiras formações até hoje. Apenas grosso
modo. Primeiro metodicamente: seria possível examinar o processo de
desenvolvimento das relações de exploração como um processo de reflexão
dialética da socialização funcional [um exame adequado incluiria algo como uma
fenomenologia materialista das formas de essência]. Teríamos uma descrição
da gênese dialética das formas de essência humana (como personalidade,
subjetividade etc.) a partir do ser material. Essas formas de essência surgem
historicamente como resultado da exploração, e a mediação dessa gênese está
na socialização funcional (todas as formas humanas de essência têm uma
relação constitutiva com o ser material dos homens, mas são superadas em sua
negação afirmativa). A dialética histórica da socialização funcional é, assim,
determinante para a concepção da gênese das formas de essência. Eu
considero como pontos culminantes da socialização funcional o antigo Egito, a
Antiguidade e a produção de mercadoria moderna na Europa. Geneticamente, a
primeira forma de essência é o "Estado", a forma de socialização das "relações
primárias de exploração". No Estado, a função socializante da exploração limita-
se a conferir às relações de dominação as características de unidade (soberania,
território etc.) que constituem a essência do Estado, fazendo das relações
factuais de dominação da exploração, fetichizadas, uma essência "Estado". A
socialização funcional não difere ainda aqui do fato bruto da dominação voltada
para a exploração e não há ainda expressões de valor diferentes da forma
natural dos objetos de apropriação (produto, produtor [escravo], terras,
ferramentas, gado etc.). Sua contradição com a forma natural esgota-se na
magia ou mitologização. O passo decisivo para a formação da forma social de
valor da riqueza se dá na Antiguidade. A relação antiga de exploração apresenta-
se como a forma de reflexão dialética dos antigos egípcios e orientais, em geral,
quando o que era antes o Estado como um todo torna-se, grosso modo, relação
privada do cidadão individual (kalokaghatos, civis romanus) com seus escravos

116
domésticos e com sua produção de riqueza, e a antiga sociedade (uma pura
sociedade de exploração), a sociedade desses cidadãos uns com os outros. A
formação primária de riqueza (como exploração) é aqui reflexionada, a riqueza
produzida é trocada entre os exploradores e as cidades e alcança assim pela
primeira vez sua forma social adequada, a forma-valor do dinheiro. O produtor
explorado, ao contrário, permanece na forma natural de escravo; o que se torna
funcional não é a produção, mas apenas sua transformação em valor. A reflexão
da riqueza se dá apenas do lado dos exploradores. A funcionalização da própria
produção e a reflexão da exploração do lado dos produtores explorados são, no
entanto, as características fundamentais do desenvolvimento ocidental. Por isso,
as relações de exploração atingem, no Ocidente, seu desenvolvimento completo
e universal. Isto deveria naturalmente ser mais aprofundado, dando especial
valor à exposição da Idade Média - por causa da gênese da propriedade privada
(com produto próprio!), como da personalidade do produtor e da relação
econômica de valor. Também é importante para mim a maneira de conceber o
conjunto de inter-relações do desenvolvimento ocidental (especialmente o
conjunto de inter-relações dialéticas entre a Idade Média e o capitalismo,
mediadas pela "produção mercantil simples"). Deixo de mencionar vários outros
momentos que mereceriam igual importância.

Quero, ao contrário, abordar ainda, brevemente, a teoria do conhecimento em


sentido estrito. Com a compreensão de que a exploração condiciona a
"socialização funcional" de acordo com os princípios da identidade existencial
(Daseinidentität) dos objetos de apropriação, toda a problemática formal do
conhecimento e da relação dos conceitos com os objetos sai da esfera do
pensamento e volta para a esfera da socialização humana. A constituição formal
dos objetos do conhecimento define-se de fato na socialização funcional através
das relações de exploração, porque estas determinam a estrutura dos objetos
aos quais se refere o pensamento dos homens, tão logo sejam sujeitos. Embora
a forma do conhecimento seja sempre determinada pelo objeto, a forma do
objeto, por sua vez, é determinada pelo processo de socialização funcional.
Nesse processo ocorre a síntese constitutiva do conhecimento (uso aqui o
conceito de síntese no sentido transcendental, que é um sentido formal, porque
é uma síntese apenas racional, só-teórica [eu não tinha, até então, atacado sua
significação como atividade espiritual separada e distinta do trabalho manual,

117
pelo menos não ainda num sentido temático]), mas não a síntese material, pois
esta se dá como síntese da sociedade e da rede de conexões existenciais
humanas. Pode-se ficar inteiramente preso ao modo como o idealismo clássico
tratou o problema da constituição formal; num certo sentido, é preciso mesmo
ater-se a ele, para ter um ponto de partida e a indicação do caminho ao
conhecimento materialista do ser, não empreendido espontaneamente pelo
marxismo, mas apenas pela via da crítica de uma consciência dada, que
obviamente tem de ser uma falsa consciência e conter o conceito de verdade (o
senhor se lembra de que no início eu disse que o marxismo nunca pressupõe a
questão da verdade). Partindo assim da concepção dada pelo idealismo ao
problema da síntese, o marxismo dá uma solução para o problema não resolvido;
pois assim, no próprio sentido dessa formulação do problema, a tarefa idealista
de reconstrução da síntese conceitual transforma-se na tarefa materialista de
reconstrução da história do ser social (transformando a justificativa da sociedade
burguesa em seu juízo condenatório). De fato, é no ser social que ocorre (ou
"tem êxito", por assim dizer) a síntese, que o idealismo postula na subjetividade
e nunca pode resolver. Esta verificação do problema da síntese já traz consigo
o legítimo ganho da dialética, a saber, a verificação dos problemas lógicos como
problemas do ser. Numa formulação aguda: ao resolver o problema colocado por
ele mesmo, o idealismo transcendental se transforma em materialismo dialético.

Expressada assim a forma geral do condicionamento social do ser do


pensamento na história das relações de exploração, trata-se agora de
apresentar a gênese histórica desse conhecimento racional-conceitual a partir
das causas do surgimento da subjetividade. Concedo que este é o grão mais
duro a ser quebrado, mas não tenho dúvidas de que minha teoria do ser social
(ou melhor: da socialização funcional) permita fazer isso. O principal fundamento
dessa gênese poderia ser que, pela dialética da socialização funcional, os
próprios exploradores humanos encontram-se no modo de simples existência da
identidade das mercadorias, percebem-se a si mesmos como sujeitos
identicamente existentes, por força de uma totalmente determinada constituição
de seu ser social. Essa constituição depende rigorosamente da elaboração da
forma social do valor da riqueza surgida da exploração (o valor foi cunhado pela
primeira vez em forma de dinheiro por volta de 700aC na Jônia), isso mesmo, eu
vejo o surgimento da forma subjetiva do homem como um correlato inseparável

118
do valor na forma de dinheiro cunhado. O significado da gênese da subjetividade,
com isso, é essencialmente o seguinte:

A identidade da simples existência (lembre-se que " simples existência" [Dasein]


tem para mim sempre um acento negativo) é originalmente o modus do produto
no ato de apropriação da exploração e é, dito afirmativamente, negação da
praxis. Mas não apenas os produtos como coisas, como também os próprios
homens, e mesmo os exploradores, ou seja, os autores históricos efetivos das
relações de exploração e da socialização funcional, encontram-se aqui nesse
modo de identidade existencial, identificam-se como "sujeitos". Nisto, que aqui
cabe, portanto, aos homens, a parte dos homens na história da constituição da
sociedade de exploração, está a verdade (a verdade maldita) do surgimento da
forma da subjetividade humana. Esta ligação da subjetividade com a praxis, mas
na relação em que constitutivamente tornou-se encobrimento da praxis,
determina a constelação da questão (como questão sobre a 'verdade") [esta
concepção foi estimulada por diálogos com Benjamin nos anos vinte em Capri,
precisamente através de sua interpretação dos mitos contidos nas figuras de
Sais. E esta dialética é precisamente a relação fundamental da teoria (no sentido
de racional, isto é, um conhecimento reflexivo que se questiona sobre os seus
fundamentos de validade) isolada da praxis (trabalho) e que se desenvolve
apenas em sua aparente autonomia lógica. Devido às condições de sua gênese,
esse conhecimento teórico coloca sempre, para si mesmo, a questão (inevitável)
da verdade.

Para o homem como sujeito, a efetividade (Wirklichkeit) tem sempre a forma do


"mundo", no qual o existente (como puro dado) existe sempre segundo os
princípios da unidade, isto é, como objeto (Objekt). Esses princípios definem-se
de acordo com a estrutura da socialização funcional e com a posição do sujeito
dentro dela. Pois a relação teórica sujeito-objeto surge apenas a partir da origem
das relações de exploração e da socialização funcional. Por isso também, para
mim, a enigmática questão da teoria do conhecimento sobre como sujeito e
objeto podem chegar um ao outro é substituída pela questão contrária de como
se separaram (por isso não vejo também nenhum lugar para a teoria da
representação [Abbild]), e apenas essa questão pode ser resolvida. - Para a
subjetividade, só o mundo da simples existência dos objetos forma a imanência
do ser, enquanto a efetividade prática do ser, visada por sua questão da verdade,
119
é colocada como transcendência insolúvel, para além do ser cognoscível. O
mundo efetivo fica, portanto, na relação teórica do conhecimento, na cabeça, e
os homens só podem encontrar a praxis efetiva como algo além do mundo. Um
tal encontro realizou-se com o Cristianismo no final da Antiguidade, quando pela
primeira vez, dentro desse mundo invertido, o problema da praxis colocou-se
para os homens (como possibilidade de união entre o trabalho e o ser homem
[=ser explorador]). O problema da praxis é o problema da superação desse
próprio mundo invertido, mas, contudo, esse problema também é formulado de
forma invertida, deixando o mundo invertido, postulando o fim da exploração,
mas lançando-a para fora do mundo. - Eu resumo, em geral, a temática dialética
da "história da cultura" a partir da exploração com o ditado de que cada passo
da realização das relações de exploração é igualmente um passo na realização
de sua superação. Na história das relações de exploração, os homens escondem
e superam sua própria efetividade em mera essência, que amadurece na
negatividade para tornar-se a essência humana que supõe a superação prática
da própria exploração e pode realizá-la.

Ainda uma observação final sobre o método e uma defesa contra a suspeita de
que, no fundo, fez-se aqui uma prima philosophia. Exposto brevemente, meu
ponto de vista metodológico é que não se pode dizer absolutamente nada do ser
histórico como tal, mas que, no entanto, tudo o que pode acontecer é delimitável
pela crítica de seus encobrimentos. A crítica da forma mercadoria, ou, em minha
nomenclatura, da “socialização funcional”, é assim meu único e exclusivo
caminho metodológico. O princípio decisivo de meu método é, portanto, a
identificação dialética, como eu o denomino, ou seja, confrontar a essência
consigo mesma em sua contraditoriedade. Mas sobre isso haveria mais a dizer
do que eu possa ainda forçar nesta “carta”.

120
Para a liquidação crítica do apriorismo
Uma pesquisa materialista (março-abril 1937)*

1. Intenção da pesquisa

Acreditamos que a formulação sistemática definitiva do idealismo filosófico tem


sua significação no apriorismo e em seu aperfeiçoamento na filosofia
transcendental. A refutação crítica do apriorismo teria então de atingir o ponto de
vista idealista em seu centro de fundamentação. Essa refutação exige
demonstrar que o pensamento é condicionado socialmente e constituído
historicamente, exatamente no mesmo sentido em que o idealismo afirma sua
aprioridade em relação ao ser e sua transcendentalidade. É preciso tentar
contrapor à interpretação idealista do pensamento sua explicação materialista;
pois a fetichização da ratio seria dissolvida se fosse demonstrado que a origem
da ratio está no ser social. Trata-se, com isso, de explicar o pensamento racional
em sua procedência do ser social, no sentido em que o pensamento
efetivamente proporciona conhecimento. O conteúdo da fetichização idealista da
ratio é a absolutização do conceito de verdade. A tarefa de uma explicação
materialista do pensamento racional consiste, por isso, em sentido estrito, na
demonstração do surgimento histórico do conceito de verdade a partir do ser
social. Essa tarefa pode ser formulada também de outro modo, como explicação
da gênese do conhecimento dotado de validade objetiva. Se fosse mostrado que
as condições de validade do conhecimento são genéticas e não transcendentais,
então estaria também mostrado que a verdade é condicionada historicamente
ou ligada ao tempo, em vez de atemporalmente absoluta.

Uma tal contra-investigação do edifício sistemático da filosofia transcendental


não deveria ser considerada como empreendimento preponderantemente
acadêmico. Pois ela se tornou necessária porque a tendência sistematizadora,
forçosamente necessária, do pensamento idealista é a expressão da rede de
conexões delituosas, fechada em si mesma, da sociedade burguesa. A
compulsiva sistematização idealista corresponde de fato a uma totalidade,
porém não a uma totalidade procedente de uma síntese transcendental dos

*Walter Benjamin examinou este manuscrito como consultor do Instituto para a Pesquisa Social.
Seus grifos, pontos de exclamação e interrogação e suas observações são aqui reproduzidos às
margens das páginas.
121
sujeitos autônomos ou da liberdade, mas de seu contrário, da exploração.
Também corresponde a ela o caráter formalista, ao qual uma investigação como
a nossa tem de aderir e pelo qual poderia causar uma impressão idealista. O
formalismo do pensamento idealista é condicionado pela alienação, provocada
pela exploração nas relações humanas. No sentido em que serve à formalização
da exploração, a reificação é mera determinação formal. A redução genética do
formalismo do pensamento idealista à exploração serve ao seu enfraquecimento.
Uma tal redução materialista do formalismo tem, no entanto, de ser empreendida
em seu próprio meio, persegui-lo em sua formação interna ou enredá-lo segundo
suas próprias regras. Somente na aplicação do método a objetos concretos
pode-se mostrar se esse esforço de superação será ou não frutífero para o
próprio pensamento.

A investigação a seguir, projetada em suas linhas fundamentais, baseia-se na


convicção de que a pesquisa histórica materialista necessita de uma prévia
análise crítica da reificação. Por meio do ser social em que vive, do grau e do
tipo de reificação, o próprio pensamento de cada um está ligado a formas que
são indispensáveis para um comportamento pragmaticamente correto de acordo
com as relações dominantes de produção. Cada um vive inserido e de acordo
com as regras da malha dominante de ofuscamento. Nenhuma das formas de
pensamento assim dadas pode ser postulada ingênua e acriticamente na
pesquisa histórica, elas não devem se tornar formas ideológicas de ocultamento
do ser social, a cuja coesão servem. O comportamento crítico frente às próprias
categorias é, no entanto, tão mais difícil quanto maior for o grau de
universalidade dessas categorias, quanto mais formais e "puras" elas forem, pois
então mais ampla e necessariamente elas estarão na base da lógica de nosso
pensamento e, considerando geneticamente, maior será também sua idade Idade dos
conceitos ou
histórica. Não podemos mais abandonar tais conceitos, como o de unidade por dos modos de
conhecimento
com os quais
exemplo, de modo imediato. Contudo, determinadas formas de ser social e de esses
conceitos se
relações sociais de produção, que condicionaram geneticamente as primeiras, relacionam?
[WB]
muito antigas mas ainda hoje efetivamente ativas, também seriam fetichizadas
em seu uso acrítico. A essência do método materialista exige que não se Torna
desejável
[WB]
empregue nenhuma categoria da qual não se saiba por quais relações de
produção ela é condicionada. O método materialista tem em comum com o
método "crítico" do idealismo a formulação prévia, para cada categoria, da

122
questão sobre o que nela é pressuposto e implícito como condição de sua própria
"possibilidade". Mas no idealismo, a ratio é colocada em questão apenas sobre
seu próprio solo, o solo de sua hipostasiação. Em Kant, por isso, a questão
originária, inicial e autêntica, atrofia-se no cumprimento da tarefa interna da mera
"dissecação de nossa faculdade de conhecimento"; e é sob o mesmo feitiço da
imanência que Hegel desenvolve dedutivamente a dialética como absoluto
sistema da verdade, já que considera as relações lógicas de pressuposição
internas à estrutura do pensamento ao mesmo tempo como contexto genético
da constituição do pensamento, fingindo para si e para nós que a questão
originária abandonada faz parte da imanência.

No materialismo, a análise crítica da reificação toma o lugar da teoria do


conhecimento. Ela tem de ser conduzida de modo sistemático, não apenas para
garantir um controle preciso do condicionamento genético de nossas categorias
de pensamento até seus últimos pressupostos lógicos, mas também devido à
significação metodológica positiva desta análise da reificação para a pesquisa
histórica materialista. Na forma de conexões genéticas entre forma mercadoria
e formas de pensamento, que encontra no curso de seu procedimento
conclusivo, a análise da reificação especificamente formula questões críticas
como hipóteses, com as quais é possível aproximar-se do material empírico
disponível para a pesquisa materialista da história. A análise crítica preliminar da
reificação retira, por um lado, a aparência de validade atemporal das categorias
lógicas de nosso pensamento, e, por outro lado, retira da empiria histórica o
caráter de facticidade. Devido a esses dois lados, inseparáveis, vemos na
análise da reificação uma preparação indispensável para a pesquisa histórica
materialista. O projeto de pesquisa aqui esboçado pretende exclusivamente
servir a esse trabalho prévio. Nele não se faz ainda nenhuma análise histórica
materialista, nem tampouco pretende substituí-la - com o que o projeto recairia
nas trilhas do idealismo e na construção da filosofia da história - mas a análise
histórica empírica deve exatamente sucedê-lo. Isso não exclui do projeto a
eficácia de um certo contato indutivo com o material histórico.

Talvez caiba ainda uma palavra sobre a suspeita de irracionalismo, a que se


expõe uma pesquisa que visa uma redução da ratio. Não se trata absolutamente
de uma negação, mas ao contrário, da própria realização da ratio. Isso mostra-
se a partir da atitude frente ao problema da reificação. Temos em comum com
123
Georg Lukács a aplicação do conceito de fetichismo de Marx à lógica e à teoria
do conhecimento. Mas, por outro lado, separamo-nos dele, pois do
condicionamento do pensamento racional pela reificação e pela exploração não
concluímos que esse pensamento é simplesmente falsa consciência. Em nossa
opinião, nem a lógica, nem a reificação irão desaparecer com a eliminação da
exploração, portanto em uma sociedade sem classes, se elas também se
modificarem de um modo que não podemos antecipar. A reificação e a ratio,
tanto como a exploração, devem ser entendidas em sua natureza dialética. A
reificação nasce da exploração, mas traz consigo, ao mesmo tempo, o
autodescobrimento dos homens, o que é um pressuposto da superação da
própria exploração.

O materialismo não admite que, para evitar a negação da ratio, seja necessário
considerar sua natureza como transcendental. O idealismo transcendental crê
na aprioridade da razão do mesmo modo que a teologia medieval acreditava,
antes da descoberta do método indutivo da pesquisa natural, ser preciso
renunciar à idéia de leis naturais, caso fosse negada sua origem na vontade de
Deus. O pensamento materialista começa onde o idealismo cessa de aplicar a Há aqui dois
conceitos
distintos de
ratio na investigação de seus próprios condicionamentos. O pensamento ratio [WB]
materialista é racional e cientificamente crítico porque, e até onde, seja possível
essa aplicação, isto é, uma explicação racional do surgimento da ratio a partir do
próprio ser social. Essa possibilidade não é postulada dogmaticamente, a fim de
constituir um sistema dedutivo; ela é uma questão da prática para a pesquisa em
desenvolvimento. De acordo com essa concepção, o materialismo não é uma
visão de mundo, mas um postulado metodológico. Em seu curso - e novamente
não a priori - o comportamento racional se torna material em vez de idealista.
Entre seus traços distintivos está, certamente, a renúncia ao ideal conclusivo de
verdade e, consequentemente, o abandono das antinomias do pensamento
idealista, ligadas à absolutização do conceito de verdade.

O objeto da investigação é saber se a doutrina do apriorismo é verdadeira ou Uma


distinção
falsa. Isso não tem nada a ver com a explicação do apriorismo como uma perigosa
[WB]
determinada ideologia burguesa. Entretanto, deve-se começar com uma
tentativa de interpretação crítico-ideológica da doutrina kantiana do
conhecimento, para encaminhar-se indutivamente à tese central, que se tentará
então fundamentar analiticamente.
124
2. Analogia ou relação de fundamentação?

A interpretação aprioristica do conhecimento surge historicamente no momento


em que o mecanismo de concorrência do modo de produção capitalista toma a
forma de um sistema coeso em si e aparentemente espontâneo, não mais com
um funcionamento apenas intermitente e dependente da ajuda do Estado, e com
suas regras específicas já começando a atuar plenamente, através da
determinação dos preços de mercado por meio das bolsas e da subsunção do
trabalho à maquinaria nos locais de produção. A essa conquista da autonomia
econômica segue-se também a emancipação política, externa, da burguesia, a
cuja fundamentação ideológica serve a filosofia kantiana.

A sociedade capitalista distingue-se de outras formas sociais igualmente


baseadas na troca de mercadorias porque nela, além de levar os produtos das
mãos dos produtores para as dos consumidores, a troca de mercadorias constitui
a condição para a própria produção de qualquer objeto de uso. Pois se antes os
homens estavam separados dos produtos que precisavam apenas como
consumidores, aqui eles estão separados também como produtores em relação
aos meios de que necessitam para produzir um produto. Assim, no capitalismo,
a possibilidade da própria produção depende de que seus fatores básicos, como
força humana de trabalho, meios materiais de produção, matérias-primas e solo,
sejam reunidos por meio do mercado, como mercadorias, e de que a produção
se realize de acordo com as leis mercantis. Forma mercadoria e lei da troca das
mercadorias, isto é, forma e lei da reificação, tornam-se, no capitalismo, o a priori
da produção, e, assim, lei fundamental constitutiva da estabilidade da sociedade,
que mergulha num caos de multiplicidade disforme quando (nas crises) a rede
de conexões de troca de mercadorias não funciona mais. Mas a simples
existência das mercadorias depende da produção, e, portanto, as condições de
possibilidade da produção são exatamente as leis segundo as quais a simples
existência das mercadorias é possível na sociedade. A simples existência das
mercadorias tornou-se uma existência segundo leis, e a simples existência das

125
mercadorias aparece como a existência (Bestand) da própria sociedade, que em
si mesma já não tem substância alguma.

A organização social da produção e do consumo no capitalismo não se faz por


direção planejada nem por cooperação direta, tampouco por regras tradicionais,
mas apenas em função das ações independentes entre si de pessoas privadas
autônomas. Ela é assim, portanto, uma organização funcional. Somente as leis
?
funcionais da troca de mercadorias definem aqui a realidade objetiva do valor de
uso e a validade social do valor das mercadorias. Uma mercadoria não vendável
é como uma impressão sensível subjetiva e, em sentido social, não é mais coisa
nenhuma. Se essa mercadoria encalhada encontrar novamente compradores,
então a aparência sensível ganha mais uma vez valor de uso objetivamente real
e o trabalho, há muito depreciado, atualiza sua validade social de valor. Uma
coisa não é aquilo que se produz, mas aquilo que se troca. Sua constituição de
coisa é funcional.

Portanto, é efetivamente uma "revolução copernicana" que se realiza na


existência (Bestand) da sociedade desde a produção mercantil simples até a
formação completa do modo de produção capitalista. Na produção simples, a
distribuição de bens é função da produção possível, que ocorre por ela mesma,
independente da troca de mercadorias, e por isso função também da simples
existência dada de mercadorias. No capitalismo, ao contrário, a produção e a
simples existência das mercadorias são funções das relações previamente
dadas de propriedade dos meios de produção.

Mas como são, em si, as leis da troca de mercadorias, que formam aqui o a priori
da produção, as regras de simples existência das mercadorias e a ordem
constitutiva da sociedade? Elas são simplesmente as leis da reificação como
tais, que Marx demonstrou estarem completamente centradas na função
unificadora da forma equivalente das mercadorias. As mercadorias,
incomensuráveis em suas qualidades de valor de uso, experimentam, no ato da
troca, sua comensuração como valores, sendo equiparadas segundo a forma
para diferirem unicamente em quantidade. Portanto, do ponto de vista da
constituição formal, na base da troca de mercadorias socialmente desenvolvida
está uma síntese no preciso sentido kantiano, e esta síntese funda-se na
suprema unidade que as mercadorias possuem em - e mesmo graças à - sua
referência geral relativa de valor à forma equivalente que lhes é comum e
126
socialmente universal, ao dinheiro. Com isso, as leis fundamentais da troca de
mercadorias, que no capitalismo formam o a priori da possibilidade de produção,
derivam de uma síntese originária, fundada mesmo na troca e puramente formal,
de todas as mercadorias em função da unidade idêntica de sua referência
universal ao dinheiro.

Esta síntese é constitutiva para a produção e fornece as leis de simples


existência das mercadorias, desde que o dinheiro funcione como capital, isto é,
compre no mercado os fatores de produção (ou, sendo o caso, seus próprios
portadores materiais) e acople cada um, segundo sua natureza, ao conjunto que
processa autonomamente a produção. A esta função constitutiva, no entanto,
segue-se imediatamente a função reguladora do dinheiro como meio de
circulação das mercadorias assim produzidas, ou seja, a função que realiza os
valores já contidos nelas em virtude das leis das mercadorias e também os
corrige para manter a proporcionalidade geral da ação do capital. Aqui, quase se
dá apenas o uso derivado e judicatório (retificador) das determinações formais
da síntese, que pressupõe o uso constitutivo na produção mas, por sua vez, é
um pressuposto pelo qual os efeitos do modo capitalista de produção poderiam
concordar com as condições necessárias, quase racionais, para a contínua
reprodução da sociedade. "Poderiam", se esse sistema formal meramente
funcional fosse também em si mesmo a realidade da ordem nele determinada, o
que exatamente ele não é, a saber, a efetividade histórica e não a mera lei da
reificação da produção capitalista de mercadorias. Mas aqui começam agora as
contradições. A produção capitalista de mercadorias enquanto tal é
completamente possível sob as leis da reificação, pois o trabalho está contido na
mercadoria força de trabalho feito mera causalidade da produção de
mercadorias, como lei da necessidade do mundo das mercadorias em sua
imanência, e nada mais. Enquanto, nessa causalidade, a produção capitalista
cria apenas valor mercantil, ela produz ao mesmo tempo o próprio capital,
tornando-o a própria causalidade. Consequentemente, o capital é originalmente
trabalho de uma praxis destinada a servir apenas à reprodução de seu contrário,
a reificação e sua causalidade. Partindo dessa contradição entre o trabalho como
praxis originária e "inteligível" e o trabalho como causalidade da imanência
inteiramente reificada e presa, de acordo com a própria problemática da
reificação, à sua instância suprema e aparentemente absoluta, o capital, há

127
apenas um passo para pôr o próprio capital como sua efetividade prática e
pensar o mundo efetivo como autodesenvolvimento do capital fetichizado em
"espírito do mundo".

Para os objetivos da demonstração que se segue, essa descrição extremamente


sucinta do sistema de reificação capitalista é, em todos os sentidos, exata. Nela,
ainda, basta substituir a unidade idêntica do dinheiro por "unidade da consciência
de si", função sintética do dinheiro para a sociedade de troca por "unidade
sintética originária da apercepção", a significação constitutiva desta função por
"entendimento puro", o próprio capital por "razão", o mundo das mercadorias por
"experiência" e a troca de mercadorias segundo as leis do modo de produção
capitalista por " simples existência das coisas segundo leis", isto é "natureza",
para poder reconstruir, a partir da análise da reificação capitalista, toda a teoria
do conhecimento de Kant juntamente com suas necessárias contradições
internas; desde que se levasse em conta o postulado correspondente ao
harmonismo de Adam Smith, de que a "síntese a priori" pudesse se desmanchar
sem crise. De fato, querendo dar-se ao trabalho, é possível estender a analogia
até os detalhes e desvendar de modo materialista toda a metafísica de Kant bem
como seus desenvolvimentos posteriores, do assim chamado idealismo
transcendental até o idealismo absoluto de Hegel. Aqui, no entanto, interessa-
nos saber se trata-se de uma analogia ou de uma autêntica relação de
fundamentação! A unidade da autoconsciência e o sujeito do conhecimento não
serão talvez efetivamente, desde a origem, apenas um inevitável reflexo
intelectual da unidade do dinheiro, o pensamento discursivo não será apenas
uma forma de consciência condicionada através da função do dinheiro numa
?
sociedade mediada por mercadorias, e o conhecimento racional do objeto,
apenas a reprodução ideal do exato modo como, numa tal sociedade, a produção
é realizada de acordo com as leis da troca de mercadorias? À primeira vista, esta
hipótese parece uma suposição ousada, que leva a consequências dificilmente
previsíveis. Mesmo assim, iremos sustentá-la, porque acreditamos que ela seja
demonstrável. A hipótese leva à afirmação de que as formas de consciência, que
nós chamamos em sentido racional de formas de "conhecimento", nasceram da
reificação contida na troca de mercadorias. Para fundamentar nossa hipótese,
temos portanto de nos deter sobre a reificação e sua análise.

128
Uma investigação que queira opor-se à absolutização idealista do conhecimento
não tem, porém, mais nada a ver com o conhecimento no sentido a-histórico de
"conhecimento em geral". A questão sobre as condições sociais de surgimento
do modo racional de conhecimento, aliás pensamento discursivo, pode referir-se
a essa forma do espírito somente a partir do patamar de desenvolvimento
histórico no qual ela se apresentou pela primeira vez na Antiguidade grega.

3. As condições sociais de surgimento do conhecimento racional

Para as teses formuladas a seguir, pressupomos o conhecimento detalhado das


análises feitas por Marx no capítulo inicial de O Capital e no escrito anterior Para
a crítica da economia política.
Na troca simples de mercadoria por mercadoria, a forma relativa de valor e a
forma equivalente ligam-se a uma mercadoria apenas a cada vez em que ela é
colocada como expressão de valor, e por isso não são empiricamente
dintinguíveis. Numa mercadoria singular, o caráter social da equivalência das
mercadorias não se distingue de seu valor de uso. Essa distinção só irá ocorrer
com a duplicação da mercadoria em mercadoria e dinheiro, ou seja, pela
separação absoluta de uma mercadoria como forma equivalente, com validade
socialmente universal, frente à qual as mercadorias restantes mantêm uma
referência relativa de valor. "Uma mercadoria, o linho [ou o ouro - ASR], está na
forma de permutabilidade imediata com todas as outras mercadorias ou em
forma imediatamente social porque, e contanto que, todas as outras mercadorias
não o estejam"39. No dinheiro manifesta-se o caráter social da troca de
mercadorias.

O cereal pode servir de alimento para homens e animais, o ouro pode significar
dinheiro somente para o homem. No dinheiro, o caráter humano distingue-se do
caráter natural dos seres vivos, assinalando a oposição entre a rede de relações
humanas e o processo de metabolismo material com a natureza na produção e
no consumo. O dinheiro vale apenas entre um homem e outro, não entre homem
e natureza, e esta relação entre homem e homem assumiu o caráter de uma
irredutível oposição à relação entre homem e natureza. Ao ganhar e ao gastar
dinheiro, o homem não age mais como ser natural.40Afirmamos mesmo que a

39 O Capital, I, MEW 23, p.82.


40 "Em contraposição direta à rude objetividade sensível dos corpos das mercadorias, nenhum
átomo de matéria natural entra em sua objetividade de valor". (O capital, MEW, 23, p.62)
129
formação e o estabelecimento do pensamento conceitual ou discursivo têm a ver
com este descolamento entre a relação social de equivalência das mercadorias
e as condições práticas materiais da vida humana.

Veremos adiante que a constituição do valor das mercadorias em forma de


dinheiro, portanto do dinheiro cunhado, pressupõe a exploração, e mesmo numa
forma avançada. A partir de uma análise formal aprofundada da troca de
mercadorias, ficamos convencidos de que a constituição da forma dinheiro -
cerca de 680 aC na Jônia - pressupõe uma forma de produção de mercadorias
na qual os possuidores de mercadoria que efetuam a troca não mantêm mais
nenhuma relação pessoal ou prática com a produção de suas mercadorias, não
põem mais as mãos em nenhum processo produtivo de trabalho. Defendemos a
hipótese de que a cunhagem da forma dinheiro tem de estar ligada ao uso do
trabalho escravo na produção. Com dinheiro, teriam sido primeiramente
comprado escravos para produzir produtos para o mercado, isto é, mercadorias.
O escravo é um objeto de uso com a única qualidade de existir para o trabalho.
Onde a produção de mercadorias funciona com trabalho escravo, a relação do
possuidor de dinheiro e mercadorias com a produção é mediada por meras
relações de troca.

Esse tipo de mediação da produção necessita de uma reflexão teórica descolada


da praxis da produção a qual se refere. O processo de produção tem de ser pré-
construído intelectualmente como uma totalidade completa em si para ser
organizável para o objetivo de sua praxis, qual seja, a produção de valor
socialmente válido. A racionalidade da produção situa-se fora dela, na esfera
puramente social, onde os produtos têm valor e o ouro significa dinheiro; a
produção não tem, em sua praxis, qualquer racionalidade, nem para o escravo
trabalhador, para quem ela não tem finalidade alguma, nem para o senhor que
determina os fins, para quem ela não é trabalho. Para organizar a produção
como geração de mercadorias que valem dinheiro, sua totalidade tem de ser
antes construída teoricamente. Essa construção, a ser erguida exclusivamente
em pensamento, descolada da praxis do trabalho, exige a reflexão sobre o
pensamento como tal e sobre a fundamentação interna de seus resultados. Ela
está submetida a controles lógicos de verdade, em vez de controles práticos, e
dispõe antes de mais nada do conceito de uma verdade atemporal e
autofundamentada. A teoria tem de ser racional, porque a produção, em sua
130
praxis, deixou de sê-lo. O pensamento logicamente reflexivo, voltado para a Seria
possível
construção racional da produção, isto é, o conhecimento racional da natureza, imaginar o
surgimento
da ciência
seria assim um indispensável meio social para a organização da produção de natural, em
si e para si,
mercadorias com trabalho escravo. sem o
trabalho
escravo
As correlações do modo racional de conhecimento com o comércio de [WB]

mercadorias e dinheiro nos interessa inicialmente apenas de um ponto de vista


formal, sem considerar seu conteúdo histórico, a exploração. Acreditamos poder
evidenciar que a determinação lógico-formal do pensamento racional é
diretamente condicionada pela determinação formal da troca de mercadorias e
dinheiro.41

Com um desenvolvimento passo a passo dessa determinação formal de acordo


com suas mediações não é aqui possível, resumimos brevemente as
características mais relevantes para nosso tema, já em sua forma pronta de
dinheiro cunhado, para em seguida abordar mais de perto apenas o ponto
central.

4. Para a análise da forma mercadoria


O dinheiro é uma mercadoria cunhada apenas para servir de equivalente para
as outras mercadorias, como mero meio de troca. Qualquer uso de seu material,
para produção ou consumo, está expressamente excluído de seu caráter como
dinheiro, pois com tal uso ele deixaria imediatamente de ser dinheiro. Aquilo que,
no dinheiro, faz o ouro ser dinheiro, manifesta-se como oposição a seu material,
o ouro, e também como oposição ao material de qualquer mercadoria ou todo
material de uma mercadoria. Com isso, a equivalência das mercadorias tem, no
dinheiro, meramente um caráter funcional.

A expressão da equivalência das mercadorias pelo dinheiro define a ação de


troca como oposição às ações de produção e consumo. A troca de mercadorias
exclui, durante sua realização, qualquer alteração material das mercadorias que
possa interferir nas relações de valor. As relações de equivalência só são
possíveis para mercadorias com uma identidade materialmente imutável. Essa
identidade é a forma de negação da produção e do consumo. Ela significa que,

41 Empregamos a expressão “determinação formal” no sentido de Marx, Para a crítica da


economia política, MEW 13, passim.
131
no mercado, as mercadorias apenas trocam de mãos, e enquanto isso a
produção e o consumo ficam paralisados.

Por outro lado, a ação de troca exige essa paralisação da praxis do consumo e
da produção das mercadorias, já que ela faz a mediação entre produção e
consumo. Mas a negação não é real, pois a troca pressupõe produção e
consumo e cuida para quem ambos ocorram. A identidade é determinação formal
das mercadorias, desde que essas cheguem da produção ao consumo por meio
da troca, e que produção e consumo estejam, na mercadoria, ligados.
A troca positivamente implica que a mesma coisa, tal como foi produzida, passe
a outras mãos para ser consumida. A identidade é a forma de ligação, constituída
por uma coisa, entre produção e consumo, e também, em sentido oposto, o
portador idêntico dessa ligação, a mercadoria, é precisamente coisa. O caráter
de coisa é a determinação formal da mercadoria e a forma fundamental da
"reificação".

Como as mercadorias na troca apenas passam da produção ao consumo, elas


são consideradas, na troca ou para a função equivalente do dinheiro, sempre
Que nova
como dadas. Esse estar dado é a realidade das mercadorias de acordo com a determinação
é
medida de realidade da troca que ocorre com elas, é a pura simples existência efetivamente
atingida com
"simples
das mercadorias entre os homens, diferentemente da produção, onde são feitas existência"
frente a
somente para ter simples existência na troca, e diferentemente do consumo, no "identidade"?
[WB]
qual a simples existência foi concedida pela troca. A simples existência é a
determinação formal das mercadorias e o modo de efetivação daquilo que é
reificado. Cada vez mais homens tomam parte da simples existência, enquanto
cada vez menos refletem sobre ela.

A mercadoria é uma coisa identicamente existente. Essa determinação formal


está definitivamente fixada no dinheiro. O dinheiro se relaciona com as
mercadorias tomadas sob a forma de sua existência (Existenz) idêntica de coisa.
Identidade, caráter de coisa e simples existência (Dasein) são, geneticamente,
atributos formais sociais das mercadorias e forma de ligação dos homens. - A
identidade é a forma de ligação de uma e mesma mercadoria, cuja produção e
consumo cabem a diferentes homens. Do mesmo modo, o caráter de coisa é a
junção de produção e consumo na mercadoria, porque a conexão de ambos
está, entre os homens, socialmente cindida. Um produto é uma coisa cuja
produção cabe apenas a uns e o consumo apenas a outros, por razões sociais.
132
Sua identidade é a superfície de contato de uma cisão social entre produção e
consumo. A simples existência cabe a uma coisa na qual produção e consumo A separação
não pode ser
estão paralisados, em razão de sua separação social. A medida de realidade de determinada
sem recurso
ao conceito
uma simples existência está na realidade dessa separação. Ela é, portanto, de
exploração.
simples existência de coisas entre homens, coisas com uma realidade limitada, [WB]

socialmente válida e socialmente condicionada. Sob a base de uma separação


social determinada entre produção e consumo, identidade, caráter de coisa e
simples existência constituem a forma de ligação dos termos separados. Ainda
será mostrado de que tipo é essa separação, à qual a reificação remete.

As coisas-mercadorias identicamente existentes estão sob a ordem espaço-


temporal da ação de troca, em vez das ações de produção e consumo, já que
estas últimas, exatamente, estão em função das relações de equivalência das
mercadorias como um não acontecer. É uma ordem espaço-temporal da
facticidade, em oposição à "atividade sensível dos homens, praxis". 42 Do ponto
de vista temporal, a equivalência das mercadorias pressupõe a produção como
um passado agora encerrado nas mercadorias, e o consumo como um futuro
que ainda não começou, entre os quais as mercadorias têm, na troca, sua
presença idêntica de coisa. Produção e consumo estão ligados na troca como
passado e futuro, e, portanto, como aquilo que não é mais real e aquilo que ainda
não é real, tendo a presença idêntica da mercadoria como seu ponto de
referência. A medida da realidade da produção e do consumo é aqui a presença
das mercadorias na troca, ao mesmo tempo em que essa presença é a ausência
da produção e do consumo. O dinheiro se refere à praxis material da produção
e do consumo somente com a medida da facticidade, ocorrido ou não ocorrido,
ocorrendo ou não ocorrendo, surgindo ou não surgindo.

Por outro lado, a produção da mercadoria, de onde ela vem, e o consumo, para
onde ela vai, estão ligados a seu caráter de coisa idêntica, são, portanto, o
presente e a realidade da mercadoria na troca. Mas, para o ato de troca, a
produção e o consumo são reais e presentes em estado de paralisia, isto é, em
suspensão temporal, do mesmo modo que a identidade material imutável da
coisa-mercadoria está no mero espaço. Como acontecimento temporal, a ação
de troca suspende temporalmente produção e consumo, remete-os no tempo

42 Marx, primeira Tese sobre Feuerbach.


133
para o passado não mais real e para o futuro ainda não real, em nome do único
presente real, o presente da própria troca. No acontecer temporal da troca,
produção e consumo possuem realidade na forma reificada da realidade material
da coisa-mercadoria no espaço. O dinheiro relaciona-se às mercadorias como
coisas que fazem a mediação entre produção e consumo na realidade material
e temporal, de acordo com as funções de sua imutável identidade no tempo. O
dinheiro fixa a ligação espacial entre a realidade da troca no tempo e a realidade
Como se
da matéria no espaço. A matéria é a forma reificada da praxis da produção coloca este
conceito da
passada, pela qual esta faz a mediação da praxis socialmente separada do futuro matéria frente
a seu
consumo. - A representação de que todo o espaço esteja preenchido por matéria conceito
mágico?
só pôde surgir, como primeiramente em Tales, onde a produção estava [WB]

Ou seja, o
submetida às leis da mercadoria. A proposição "tudo é água" soa muito conceito
“tudo” seria
semelhante a "tudo é matéria para mercadorias" ou "de tudo pode-se fazer socialmente
um sinônimo
mercadoria" - desde que especificamente o trabalho seja um atributo de de dinheiro -
uma
escravos comprados e nesta forma tudo que eles produzam seja produzido como afirmação
temerária.
[WB]
mercadoria.

Tenho de me contentar aqui com estas breves indicações sobre o modo de


investigação que proponho para a análise formal da reificação. Que seja
expressamente acrescentado que a reificação, em momento nenhum, poderá
ser total e claramente determinada se for considerada fora de seu nexo com a
exploração.

O ponto central para nosso tema é a afirmação de que a identidade é um atributo


formal das mercadorias historicamente condicionado e uma forma de ligação
social entre os homens. Se for demonstrável, essa afirmação modificará
profundamente o apriorismo do conhecimento. Ela exige, portanto, comentários
mais precisos.

As características fundamentais da reificação - identidade, caráter de coisa e


simples existência da mercadoria - estão ligadas de forma necessária às
relações de equivalência das mercadorias na troca. A partir de nossa experiência
atual, altamente reificada, pode parecer que essas características formais
estejam igualmente ligadas originariamente às coisas por outros vínculos,
mesmo produção e consumo. Por isso, trata-se de compreender a especificidade
da ação de troca frente às outras ações. Obviamente, as coisas possuem um
certo existir mesmo que sejam abandonadas em meio a processos de produção
134
e consumo, para depois retornarem a eles, e não afirmamos de modo algum que
a identidade das mercadorias é a única forma de identidade ou de existência das
coisas semelhante à identidade. Mas ela é a forma de identidade determinante
para o modo racional de conhecimento43 e sua respectiva constituição lógica.

Coisas deixadas de lado, depositadas, afastadas, guardadas para uso próprio,


são deixadas a si mesmas, e se têm algum existir, o têm mesmo quando não
nos ocupamos com elas. Na troca, porém, as coisas são idênticas desde que
E quando leio
sejam o objeto da ocupação e estejam no centro das atenções, e mesmo essa um livro?
[WB]
atenção e ocupação as tomam nas relações de equivalência como identidade
imutável.44 Na troca, algo de material é feito com as mercadorias, mas esta ação
é de modo contraditório ligada à exigência de que nada aconteça materialmente
com elas. O ato de troca é uma ação física e material e, nessa qualidade, uma
negação positivamente exercida de qualquer ação modificadora, produtiva ou de
consumo, dos objetos de troca, desde que a equivalência deva valer. A
existência (Existenz) de coisa idêntica das mercadorias na equivalência é posta
ativamente pela ação de troca, não sendo de modo algum uma mera ausência
de alteração das coisas, puramente passiva, nas lacunas das ações humanas.
Ela mantém sua validade mesmo frente a todos os casos em que sua
pressuposição é materialmente falsa, como nas transações que se estendem por
um longo período nos quais os objetos sofrem inquestionáveis mudanças,
independentemente da ação humana. Em poucas palavras, sua validade não se
baseia nas coisas, nos homens ou na natureza geral das ações humanas: ela é
uma ficção necessariamente condicionada por causas sociais.

Mas, então, quais são essas causas? A partir da troca, pode-se inferir no máximo
que produção e consumo humanos devem ter sido de alguma maneira
separados, já que a troca é uma ação mediadora entre ambos. Mas sobre o tipo
e as bases dessa separação, a troca não permite deduzir nada além de uma
referência genérica à divisão do trabalho. Pois a própria troca, exatamente por

43 Sohn-Rethel - 1970: O que aqui se denomina de “forma racional de conhecimento” é parte


daquele trabalho intelectual que ocorre somente entre possuidores de dinheiro, separado do
trabalho manual de modo intransponível.
44 Sohn-Rethel - 1970: Faltou aqui a distinção determinante, a saber: se a conservação intacta
da identidade do objeto de uso corresponde a uma vontade individual ou a um postulado social
que possa ser imposto policialmente. A objeção de Benjamin deve ser respondida com a questão
sobre onde leio o livro, em casa ou numa livraria. A identidade de coisa mostra-se aí sem
dificuldade como função da propriedade.
135
meio da equivalência, é a forma de encobrimento de seu efetivo conteúdo
histórico. Mas detenhamo-nos um pouco nas sombras que esse conteúdo projeta
sobre a troca de mercadorias e as suas relações de equivalência.

É evidente, em primeiro lugar, que tem de ser feita uma distinção fundamental
entre a troca mercantil desenvolvida, isto é, a troca baseada na produção de
mercadorias e portanto uma troca de valores, e a troca primitiva, no sentido de
um intercâmbio de objetos de uso, sobretudo em comunidade naturais.45 A
marca definidora da troca mercantil desenvolvida é a equivalência dos objetos
trocados, que pressupõe uma determinada separação social entre produção e
consumo, cuja origem e conteúdo efetivo devem ser buscados na exploração
(veja abaixo). Somente a troca mercantil desenvolvida está ligada à reificação,
caracterizada por identidade, forma de coisa e simples existência. Não podemos,
entretanto, decidir de que modo a troca primitiva é definível e mesmo se o
Ao menos
conceito de troca pode ser aplicado ao intercâmbio nela suposto. Esse modo ou deveria ser
provado que
modos de "troca" estão fora de nossa abordagem.46 na troca
primitiva não
havia
Em segundo lugar, observe-se que as características formais específicas da equivalência
[WB] (Isto
mercadoria não podem ser suficientemente alcançadas se for considerado como está
inteiramente
seu fundamento o mero fato de que os homens têm de obter seus meios de vida provado
desde Marcel
Mauss e
através do trabalho e que, portanto, esses meios de vida são objetos de uso e Claude Lévy-
Strauss -
produtos, sendo somente por isso "valor de uso" e "valor". A pressuposição Sohn-Rethel,
1978)
fundamental da troca de objetos como "valor", e da consequente ambiguidade
da mercadoria, não é a exigência vital de trabalho natural aos homens nem a
mera distinção empírica entre atividades produtivas e de consumo, mas a

45 Cf. Marx, O Capital, L.I, MEW, 23, p.102.


46 Sohn-Rethel - 1970: A distinção entre dois modos de troca é um dos traços essenciais da
análise de então, e continua a ser mantida. Mas a base da distinção tornou-se explícita aos
poucos e naquele momento ainda estava obscura para mim. Ela depende de a troca de
mercadorias ser ou não o veículo interno de socialização; ela não consiste em uma distinção dos
caracteres formais da troca de mercadorias, que permaneceram inalterados nos diferente
estágios de desenvolvimento da sociedade. Obviamente, essas características formais, e
sobretudo a forma-equivalente, não aparecem, enquanto a troca for ainda essencialmente um
intercâmbio extraeconômico; nesses estágios ela não gera ainda o valor em forma de dinheiro.
O surgimento da forma dinheiro significa o ponto de inflexão para a função sintética intra-social
da troca. E somente a partir do momento em que as características formais da troca de
mercadorias aparecem na forma de dinheiro, elas podem então atingir a consciência. Portanto,
somente a partir desse ponto de inflexão torna-se possível que a abstração real da "forma
mercadoria" transforme-se na abstração intelectual em forma de conceito. - É verdade que eu
me encaminhava então na direção correta, mas não estava em condições de responder às
objeções levantadas por Benjamin e Adorno. Mas também essas censuras não me fizeram
desviar do caminho. (Um esclarecimento mais preciso do problema será tentado no Posfácio
deste texto).
136
oposição de caráter social inserida entre esses dois lados indispensáveis e
interrelacionados da simples existência, de tal modo que os objetos trocados são
apenas produtos para uma parte dos homens e, para outro parte, tornam-se
objetos de consumo. A pressuposição da sociedade de troca de mercadorias
não é um dado natural, mas uma forma de sociedade transformada
historicamente.

A partir deste fundamento histórico, a troca de mercadorias é somente a forma


dialética de reflexão. Seus pressupostos estão encobertos sob a aparência de
sua imediatez. "O movimento de mediação desaparece em seu próprio resultado
e não deixa atrás de si nenhum rastro.” A reificação pode ser constatada na troca
de mercadorias e suas formas, mas é impossível explicá-la com base nisso. Sua
origem e sua fonte estão na exploração, e é a partir dela que a troca de
mercadorias [a síntese intra-social pela troca de mercadorias - ASR 1970] deve
ser exatamente explicada.

5. Troca de mercadorias e exploração


A separação entre produção e consumo, pressuposta pela troca de Apenas por
meio de uma
comparação
mercadorias47, baseia-se no fato de que a sociedade é dividida entre uma parte com a troca
primitiva
que apenas consome, sem produzir, e uma outra parte que pro tanto apenas pode-se
demonstrar
produz, sem consumir. Em outras palavras, a exploração deve ter surgido antes que a troca
de
que a troca de meios de subsistência como valores, ou seja, troca de mercadorias
se
caracterize
mercadorias, pudesse se tornar uma forma de relação social. A troca de por essa
separação
mercadorias desenvolveu-se a partir da exploração, em vez de, ao contrário, a [WB]

exploração ter surgido da troca de mercadorias.

Anotação de 1937: Com esta tese, afastamo-nos em um ponto importante da concepção de


Marx e Engels. É bem verdade que eles não acreditavam que a exploração, em todas as suas
formas e circunstâncias, tivesse surgido a partir da troca de mercadorias. Mas se nos prendermos
à análise da mercadoria feita por Marx - e somente ela pode servir de norma teórica nessa
questão -, então só poderemos considerar como base de sua concepção ou apenas relações de
exploração, introduzidas pela troca de mercadorias ou mesmo dissolvidas por elas, ou apenas
“relações diretas de domínio e de servidão” (K. Marx, O Capital, I, p.93), cuja ligação ou falta de
ligação com a troca de mercadorias está completamente perdida. Nossa crítica à exposição feita
por Marx do desenvolvimento da forma mercadoria dirige-se exatamente contra o fato de que ela
não deixa nenhum espaço para o papel determinante da exploração no surgimento da troca de

47 Sohn-Rethel - 1970: A expressão “troca de mercadorias” deve ser entendida aqui e no


restante do texto a seguir no sentido especial de forma de relação intra-social, portanto portadora
da síntese social.
137
mercadorias. O desenvolvimento da expressão do valor é apresentado como se fosse concebível
como desdobramento e expansão contínuos das formas primitivas de troca, até a formação
completa do valor em forma de dinheiro.

Na rede de conexões teóricas entre troca de mercadorias e exploração em Marx e Engels,


referimo-nos sobretudo a três aspectos. Primeiro à teoria, central na obra principal de Marx, da
transformação do dinheiro em capital e da compra e venda da mercadoria força de trabalho. Aqui
é evidente a apresentação da troca de mercadorias como prévia ao sistema de exploração
capitalista. E isso com razão, pois a produção capitalista de mercadorias é de fato um sistema
de exploração que se desenvolveu sobre a base da troca de mercadorias e o único caso histórico
de uma exploração regida pelas meras regras da troca de mercadorias, isto é, pelas regras
econômicas. A pedra angular da economia política e de sua crítica constituiu-se exatamente em
saber de que modo a exploração, a disparidade dos ganhos de mais valia, pôde surgir sob as
leis gerais da equivalência de mercadorias, sob as leis da paridade da troca de mercadorias. Mas
em Marx o desenvolvimento da troca mercantil simples até a capitalista é apresentado como se
não precisasse pressupor historicamente nenhum outro modo de exploração. Nós, ao contrário,
somos de opinião que a troca de mercadorias só poderia servir de forma a um sistema de
exploração, pois ela mesma já é uma forma de reflexão e superação dialética da exploração, que
foi, portanto, penetrada por outras formas anteriores de exploração. A exploração capitalista é a
forma plena e final da exploração e da reificação - tal como o idealismo filosófico da burguesia é
a teoria final sobre a questão da verdade -, porque a lei da troca de mercadorias e da reificação
é a própria lei da exploração. A troca de mercadorias não deve ser tratada teoricamente como
um fenômeno histórico autônomo. Se isto acontecer, então no fim a determinação formal da
mercadoria é reduzida à reificação e mesmo esta, desde que se pretenda reduzir o pensamento
racional a ela, é reduzida por sua vez a um mero elemento formal, forma de relacionamento da
troca. A aparência fetichista da autonomia formal transfere-se da consciência à forma mercadoria
e dela à troca, mas aí fica em suspenso, deixando que tudo se reduza a seus limites novamente
sobre o fundamento místico de uma forma formans incriada.

Esta não é absolutamente a opinião de Marx, mas a aparência disseminada pela concepção
teórica de sua análise da mercadoria, que fundamentalmente emprega apenas o critério da
presença ou ausência de propriedade privada para distinguir entre as inter-relações cooperativas
dos indivíduos em uma comunidade natural e as inter-relações da sociedade burguesa
inteiramente mediadas pela troca de mercadorias. Pois o trabalho humano é sempre considerado
"trabalho social", hoje como desde sempre; e a única coisa que pode se modificar são os modos
de articulação do trabalho. A cooperação natural e a rede reificada da propriedade privada
aparecem como sendo de idêntica substância - como redes sociais de trabalho.

Isto está ligado também ao segundo aspecto, apenas indicado na análise da mercadoria feita
por Marx, da rede de conexões teóricas entre troca de mercadorias e exploração. Ele diz respeito
ao surgimento histórico da relação de troca. "De fato, o processo de troca de mercadorias não
aparece originariamente no seio da comunidade natural, mas nos seus confins, em suas
fronteiras, nos poucos pontos em que entra em contato com outras comunidades. Aqui começam

138
as ações de troca, que refluem então para o interior das comunidades, com efeitos
desagregadores" (K. Marx, Para a crítica da economia política, MEW, 13, p.35s.). No Capital, lê-
se ainda sobre isso (op. cit., p. 102): "O primeiro modo pelo qual um valor de uso tem a
possibilidade de ser valor de troca é sua simples existência como não-valor de uso, como um
quantum que excede as necessidades imediatas de valor de uso de seu possuidor". Também
aqui, a exploração, a "desagregação da comunidade", é apresentada como consequência do
"processo de troca de mercadorias". Isso acontece porque Marx não fez nenhuma distinção
fundamental entre as relações de troca que poderiam ter precedido a exploração (!) e as relações
de troca que surgiram da exploração, embora a diferenciabilidade possa ser claramente
percebida na oscilação das expressões empregadas no trecho citado - "processo de troca de
mercadorias" e "ações de troca". De fato, a análise de Marx só considera a relação de troca no
segundo sentido, ou seja, aquela que nós denominamos exclusivamente "troca de mercadorias",
pois ela tem as relações de equivalência das mercadorias como seu ponto de partida. Mas, ao
vincular a equivalência já às "relações primitivas de troca", Marx faz parecer que a reificação
surge, sem descontinuidade, das relações naturais.

Por fim, em seu estudo sobre Origem da família, da propriedade privada e do Estado, Engels
tentou investigar historicamente a gênese da forma mercadoria, que Marx havia tratado apenas
formalmente. Este livro, que não podemos discutir criticamente aqui por razões de espaço,
pretende entre outras coisas preencher o vazio deixado por Marx em sua análise da mercadoria
ao não mostrar a propriedade privada como característica - para Engels determinante - da troca
desenvolvida de mercadorias. Engels acompanha a formação da propriedade privada
especialmente na Antiguidade e adota como fundamento de sua análise a hipótese da prioridade
da troca de mercadorias e do desenvolvimento do dinheiro frente à exploração. Com isso, porém,
acreditamos que esta suposição, perfeitamente adequada ao capitalismo, ainda que com
algumas restrições, é aplicada também a relações de produção para as quais é completamente
incorreta. Compare-se a análise de Engels com a de Rosa Luxemburgo na Introdução à
economia de estado, que influenciou muito nossa própria análise.

Não abordaremos aqui as questões sobre quando e onde a exploração surgiu


pela primeira vez na história, em que forma e de que maneira e que papel
desempenhou nas "relações primitivas de troca". Elas nos levariam para um
! campo de dificuldades até agora insuperáveis, do qual não parece haver retorno.
Mas também não achamos que estas questões sejam indispensáveis para nossa
investigação. Já a dedução da troca de mercadorias a partir da exploração é, ou Concessão
muito
importante!
ao menos nos parece, impossível por um caminho puramente analítico. E a então [WB]
necessária indução a partir da história parece indicar que a troca de mercadorias
em sua forma completamente desenvolvida, e suas correspondentes formas de
pensamento racional, ocorreu apenas no Ocidente - e realmente pela primeira
vez na Grécia Antiga -, como mostra a cunhagem de moedas ocorrida

139
originariamente aqui. Não por acaso a formação amadurecida da troca de
mercadorias foi precedida historicamente pela exploração cunhada no antigo
Egito, na Mesopotâmia e seus prolongamentos. Para nossa investigação das
condições de surgimento da reflexão racional, no entanto, interessa apenas o
desenvolvimento que deu origem ao capitalismo, e, portanto, apenas o
desenvolvimento ocidental. Embora houvesse muitas vantagens no satisfatório
esclarecimento das origens da exploração em geral, inclusive nas economias
primitivas, afirmamos ser no entanto possível, sem grande prejuízo ao
conhecimento, penetrar analiticamente nos impérios exploradores do antigo
Egito e da Mesopotâmia, resguardando essa investigação com determinadas
delimitações conceituais.

Antes de mais nada, cabe delimitar o conceito de "comunidade natural". Marx


emprega esse conceito em variados contrastes com a produção de mercadorias
e com a sociedade reificada, mas de fato sem defini-lo explicitamente. Para nós,
sua definição é indispensável, porque colocamos a exploração no início, em
lugar da troca, e o conceito de exploração só é utilizável metodologicamente se
for concebido em nítido contraste com as características de tais sociedades livres
da exploração, tanto interna como externamente. A construção conceitual que
se segue de uma comunidade natural - no sentido de livre de exploração - não
significa a afirmação de sua existência histórica, mas é apenas um conceito
auxiliar para conceber a situação de exploração. Com isso, é evidente que
? "comunidade natural" não deve ser equiparada a "protocomunidade".

Uma comunidade natural, livre de exploração, deve ser pensada como um grupo
humano unido por parentesco que obtém seus meios de vida exclusivamente
pelo próprio trabalho. Essa perspectiva está inteiramente de acordo com a
definição de Marx na Ideologia Alemã (p. 11 [ed. Landshut/Mayer]), de que os
próprios homens começam "a distinguir-se dos animais assim que começam a
produzir seus meios de vida". Numa comunidade natural, só estão livres do
trabalho, fora os doentes, as pessoas incapacitadas pela idade, de tal modo que
o grupo forma uma totalidade à medida em que o consumo de cada indivíduo
está ligado à sua produção, não só no momento atual, mas por toda a sucessão
de gerações. Com isso, embora produção e consumo separem-se materialmente
para o indivíduo - ele consome também produtos dos outros, outros consomem
também seu produto -, não se separam, entretanto, humanamente, porque o
140
indivíduo só existe aqui em virtude da identidade do conjunto de todo o material
produtivo e de consumo, uma identidade que liga as gerações e somente
conforme à qual os homens tornam-se seres capazes de viver. Vê-se que o
conceito de "próprio trabalho" e a identidade individual dos homens em uma
comunidade natural, desde que esta deva ser livre de exploração, dissolvem-se
em identidade coletiva e genealógica, e isso de acordo com o fio condutor das
gerações e das condições materiais de vida de uma tal comunidade e de seus
indivíduos. - O traço fundamental dessa constituição natural, para nós decisivo,
é que a conexão entre produção e consumo, vital para os homens em qualquer
formação social, está aqui ligada à identidade dos indivíduos como
consumidores e trabalhadores, trabalhadores e consumidores. Desse modo, só
é possível falar do indivíduo como membro do grupo de parentesco a que está
ligado de fato ou supostamente pelo nascimento, nunca tomado isoladamente.
Existe ainda uma certa divisão do trabalho dos adultos e capazes na produção
dos meios de vida. Mas considerando a sucessão de gerações e a estrutura da
divisão do trabalho, os homens que consomem são exatamente os que
produzem, os que produzem, exatamente os que consomem. A comunidade é
um todo de acordo com essa identidade, que contém a lei de sua sobrevivência
e organização. Para efetivar essa identidade, desde que a exploração ainda não
tenha lugar na comunidade, as regras devem ter o único sentido de dividir o
trabalho entre os capazes e depois distribuir os produtos individuais obtidos
nessa divisão de trabalho entre todos os consumidores individuais. Os homens,
aqui, não têm sua identidade por si, mas apenas no grupo, porque é a
organização do grupo que faz a mediação entre cada um e sua identidade como
indivíduo produtor e consumidor; mas esta identidade é a conexão entre
produção e consumo dos meios de vida em sua pessoa física. Estando a
produção e o consumo ligados à identidade física dos produtores e
consumidores, como aqui, então sua conexão é imediatamente prática; estão
unidos como distintas atividades vitais sensíveis e corporais dos mesmos
homens. Por causa dessa ligação, produção e consumo dão aos homens o
padrão recíproco de relação uns com os outros, que se realiza para cada
indivíduo sob as regras da divisão do trabalho e da distribuição entre os membros
do grupo.

141
Com isso, a "separação social entre produção e consumo", que para nós está na
base da equivalência de mercadorias e da reificação, aparece sob luzes
adequadas. Ela repousa sobre a destruição da identidade natural de produtor e
consumidor, e a reificação explica-se então porque a conexão entre produção e
consumo, vitalmente necessária, desliga-se da identidade dos próprios homens
e tem de se conectar à identidade das próprias coisas, isto é, às mercadorias. E
a origem de tal destruição é a exploração.

Mas temos de distinguir entre exploração e exploração. Nossa construção de


uma comunidade livre de exploração levou a pensar a exploração no interior
dessa comunidade como produto de sua "desagregação", seja esta atribuída a
um grande desenvolvimento das forças produtivas, a relações exteriores de troca
ou a contatos violentos com outros grupos. Mesmo que tais relações de
exploração surjam no seio da comunidade natural, elas estão necessariamente
ligadas à reificação da conexão entre produção e consumo e daí também à
reificação da conexão entre homens produtores e homens consumidores. De
acordo com nossa concepção, este não é o tipo de reificação cujo
desenvolvimento leva à circulação de mercadorias e dinheiro, como nos aparece
na Antiguidade e desemboca no capitalismo. Também não diz respeito às formas
racionais de consciência características do Ocidente. A raiz do desenvolvimento
ocidental é uma relação de exploração de outro tipo.

A partir de vários indícios arqueológicos, pode-se concluir como deve ter sido o
início dos longos impérios exploradores no vale do Nilo e nas planícies da
Mesopotâmia. Povos do interior da Ásia, expulsos talvez por mutações
climáticas, irromperam naqueles territórios fluviais, submeteram os moradores e
passaram a viver da apropriação de seu produto excedente. A exploração que
existiu no início do desenvolvimento ocidental foi, assim, uma exploração inter-
étnica de tipo clássico, uma exploração entre grupos distintos enquanto tais.
Mesmo que tivessem desenvolvido internamente a exploração antes do embate
entre elas, o que deve ter acontecido principalmente entre os conquistadores,
mesmo assim essas comunidades tinham até então satisfeito suas próprias
exigências vitais e consumido seus próprios produtos, qualquer que tenha sido
a distribuição interna. A relação direta de domínio e servidão, que surgiu nesse
encontro, tem por conteúdo o abandono da produção dos próprios meios de vida
por parte dos dominadores, que assim consomem sem produzir, e pela perda na
142
mesma medida do consumo de seus produtos por parte dos dominados. Nem é
preciso dizer que a produção de excedentes por parte dos dominados só foi
possível por um notável aumento na produtividade de seu trabalho e que a
durabilidade desses impérios exploradores dependeu sobretudo dos canais de
água, construídos e controlados pelos dominadores.

A distinção essencial entre aquela exploração de origem interna e esta, de


origem externa, o ponto de diferenciabilidade, é que pela via interna a
coletividade da comunidade natural dissolveu-se dialeticamente num
desenvolvimento contínuo da produção individual, enquanto nesta a parte
subjugada foi desde o início, e por muito tempo, explorada como um coletivo
(sem levar em conta a inevitável modificação de suas estruturas). A dissolução
da comunidade, a dispersão da produção em seus elementos - solo, meios de
trabalho e força de trabalho - e a transformação desses elementos em
mercadorias constituem aqui um processo essencialmente diferente de uma
suposta linha de desenvolvimento endógeno. O que temos a fazer é a
descoberta das suposições metodológicas adequadas para possibilitar o
domínio conceitual do desenvolvimento ocidental como de fato ocorreu.

Com a exploração inter-étnica que consideramos acima, a conexão entre


produção e consumo torna-se uma conexão entre só-consumidores
exploradores e, pro tanto, só-produtores explorados. A conexão entre produção
e consumo torna-se assim a lei de uma associação completamente nova dos
homens entre si, que se contrapõe ao modo de organização humana na
comunidade natural, pois tem sua origem exatamente na divisão da identidade
humana de acordo com a separação de classes entre consumidores e
produtores. Afirmamos que a organização dos homens em classes por meio
desse modo de exploração é a forma inicial da socialização que, em crescente
diferenciação e aprofundamento, sempre renovando dialeticamente a
penetração de seus pressupostos, determinou e cunhou a civilização ocidental,
desde o Oriente antigo, passando pela Antiguidade, até sua total concretização
no capitalismo europeu. Essa civilização não se desenvolveu continuamente a
partir dos grupos humanos organizados naturalmente, mas numa quebra
evidente e violenta com tal constituição. Quem seguir a ascendência da forma
atual de individualidade burguesa até suas últimas raízes, não chegará ao

143
membro individual da comunidade natural, mas às camadas dominantes das
relações de exploração ocidentais originárias.

A praxis dessa exploração, no entanto, é a apropriação direta e unilateral do


excedente. A relação de troca desempenhou um papel mínimo, tanto para o
início e fundamentação dos impérios antigos como, presumivelmente [? - Sohn-
Rethel, 1970], para seu surgimento. Posteriormente, após o desenvolvimento de
sua organização e o surgimento de variadas produções de luxo para a camada
dominante, é certo que surgiu uma atividade de troca, sobre o solo seguro e
inabalável das relações primárias e diretas de exploração; mas uma atividade de
troca para atender às necessidades dos dominantes, embora com partes do
excedente apropriado aos explorados. Esta é uma troca que tem por base as
relações primárias de exploração, das quais surgiu, e cujos objetos são de uma
constelação totalmente diversa à dos objetos da troca primitiva efetuada pelos
próprios produtores entre si. O comércio faraônico é feito por exploradores com
produtos apropriados de seus produtores explorados, produtos excedentes, que
foram recolhidos, quantificados, guardados em depósitos e contabilizados para
serem "gastos" na aquisição e "pagamento" das necessidades de luxo dos
exploradores. É certo que esses objetos de troca são "valores" e que foram
comercializados como "mercadorias" sob o ponto de vista da compensação em
"equivalentes". O conceito de "troca de mercadorias", no sentido aqui
empregado, aplica-se a esse comércio - comércio estatal em relações externas
com outros territórios políticos. Mercadorias, nesse sentido, são sempre
produtos de produtores explorados. A "duplicidade das mercadorias como valor
de uso e valor" é "não-valor de uso para seu possuidor, valor de uso para seu
não-possuidor", e com isso também "o duplo caráter do trabalho apresentado
nas mercadorias", que Marx denominou "o ponto crucial em torno do qual gira o
entendimento da economia política", têm sua origem na exploração, e não na
troca em si e para si. O duplo caráter do trabalho como produtor de valor de uso
e como criador de valor coincide com o duplo significado do trabalho na relação
de exploração, de primeiro produzir meios de subsistência (alimento, habitação,
roupas) para si e para outros, e segundo, ao mesmo tempo, gerar riqueza para
os exploradores, riqueza em seu conceito puramente social, em que a riqueza
de um é o espelho da pobreza de outro.

144
O surgimento da troca de mercadorias como fruto das relações primárias de
exploração ("primária" especificamente com respeito à troca) não significa que a
troca tenha de ficar limitada ao estágio do comércio estatal externo. Também no
interior de alguns impérios egípcios desenvolveu-se uma relação de troca, não
somente por parte dos autoritários oficiais superiores do faraó, mas até mesmo
pelos próprios produtores explorados. Mas no início, exatamente como entre os
servos da Idade Média, é apenas um comércio com produtos próprios de entrega
obrigatória - destinados a certas compensações para desajustes que acabaram
surgindo, com o tempo, do sistema de divisão do trabalho em relação ao sistema
de distribuição -, e por isso, ainda que seja um comércio de produtos
caracterizados como valor, trata-se de um valor que reflete apenas as relações
prévias de exploração. Aqui também, portanto, o caráter de valor não surge
autonomamente da troca, mas ao contrário a troca de equivalentes só se torna
possível sobre a base e de acordo com as condições determinantes de relações
prévias de exploração. Na generalização do caráter de valor dos produtos, um
papel fundamental é desempenhado pelo fato de os explorados tornarem-se,
para seu próprio sustento, dependentes dos armazéns oficiais do faraó, tendo
de pegar ali as coisas de que necessitam, através da restituição dos produtos
entregues ou por meio de "crédito". Com isso, o trabalho deixa de ser claramente
dividido em tempo de trabalho para os exploradores e tempo de trabalho para si
mesmo; além disso, o produto retorna aos produtores como parcela do produto
de todos os trabalhadores, como corporificação individualizada do trabalho
comum. A "abstração valor" dos produtos, a transformação do trabalho útil
concreto em trabalho geral criador de valor, também se realiza em sua forma
primária sobre o solo das relações diretas de exploração e dentro de seus limites.
Com a progressiva generalização do valor, que afeta e é afetada pelo
desenvolvimento das forças produtivas, surgem entre a base e o topo do império
relações secundárias de exploração, com a respectiva especialização da
produção e suas técnicas e com relações mercantis regulares. Todas já têm o
caráter mercantil e, com a decomposição do coletivo, saem da organização da
produção dominada na forma de elementos individualizados, capazes de serem
autonomizados, separadamente reificados e unidos materialmente nas
combinações da produção tecnicamente mais elevada de riquezas. Mas isso
ainda ocorre conjuntamente sobre o solo da exploração primária, de acordo com

145
suas pré-condições indispensáveis e não leva à constituição formal autônoma
do caráter de valor da riqueza. A emancipação da troca em relação à exploração
direta e a constituição do valor em forma de dinheiro ocorre apenas na
Antiguidade.

A civilização antiga cresceu com os resultados atingidos pelos orientais,


assimilados por gregos, fenícios, etruscos etc. que penetraram em seus
territórios. O efeito dessa apropriação, antes de mais nada uma apropriação de
riquezas e de formas e técnicas de geração de riqueza, foi um novo tipo de
sistema de exploração e de produção de riqueza, que superou em si, como seu
pressuposto, o sistema da Antiguidade Oriental. A formação de riqueza na
Antiguidade repousa assim sobre as costas da Antiguidade Oriental ou, melhor
dizendo, ela é a forma de reflexão, no sentido dialético, da produção de riqueza
da Antiguidade Oriental. Os gregos não submeteram nem reorganizaram outras
organizações coletivas de produção para consumir o excedente na forma então
dada. Na formação de riqueza grega, sobretudo manufatureira, a exploração de
outras organizações de produção, "bárbaras", que se deu através de roubo, troca
ou tributos, significou apenas uma etapa preliminar - embora posteriormente
tenha se tornado condição vital para a existência da Polis - em que foram obtidos
os produtos, praticamente produtos naturais humanos, a partir dos quais os
próprios gregos da Polis, primeiro os artesãos e depois os escravos, geraram a
riqueza. Nesses produtos, o valor da riqueza é reificado na figura do valor de
uso, e a exploração, reificada na técnica de sua produção, na qual os escravos
são apenas um instrumento entre outros. Esses produtos elaborados segundo
as regras da formação de riqueza dentro do mundo grego são de antemão
mercadorias trocáveis, eles estão numa relação comparativa de valor com os
outros produtos fabricados da mesma forma. Somente por meio dessa forma já
reflexa de exploração, que constitui também sua base e seu conteúdo prático, a
troca de mercadorias na Antiguidade pôde levar à elaboração da forma pura de
equivalente, isto é, do dinheiro, que é, portanto, basicamente a forma equivalente
de produtos de trabalhadores explorados. Do mesmo modo, completa-se no
valor em forma de dinheiro a reificação e a ocultação do supremo pressuposto
do caráter de valor, isto é, a exploração. Na relação de equivalência das
mercadorias com o dinheiro, o valor aparece para os homens somente como
uma propriedade geral pertencente às mercadorias enquanto tais, para cuja

146
realização os homens atuam puramente como homens, em sua essência
completamente separada do "natural". Com encobrimento e obscurecimento da
situação efetiva, a paternidade meramente humana da exploração volta então
aos homens, na forma de essência humana puramente abstrata, "espiritual" ou
intelectual, na qual o homem se desintegra juntamente com a materialidade de
seu próprio corpo. (No próximo item, analisaremos mais precisamente a dialética
do conhecimento puramente teórico ligado ao dinheiro, a "ratio", e sua questão
sobre a verdade). - Com isso, fica evidente que também na produção de
mercadorias na Antiguidade, a troca de mercadorias tem a exploração por
fundamento e constitui-se como troca entre exploradores de produtos de
trabalhadores explorados.

Contudo, a forma da economia mercantil que mais obscureceu esse estado das
coisas e que gera, de fato, maiores dificuldades para seu completo
esclarecimento, é a economia mercantil da Idade Média, que foi considerada
geralmente sob o título de "produção mercantil simples". Não há dúvidas de que
ali os produtos eram trocados por seus próprios produtores e, apesar disso, na
forma monetária, portanto como valores. Assim, parece que nesses produtos o
caráter de valor tenha surgido primariamente da troca, já que não é nenhuma
propriedade natural dos produtos do trabalho. Mas, em toda sua aparente
simplicidade, essa produção medieval de mercadorias é de fato um resultado
tardio, amplamente mediado, do desenvolvimento ocidental da exploração, que
está em sua base como forma de reflexão dialética do modo antigo de
exploração, do mesmo modo que este já era a forma de reflexão do sistema de
exploração da Antiguidade Oriental. Esse encadeamento genético das relações
de produção dos antigos impérios orientais, da Antiguidade e da Idade Média
européia é a razão pela qual acreditamos ter de retroceder até as formas iniciais
da exploração no Ocidente para explicar o capitalismo (e para sua análise
econômica).

A reflexão da exploração que está na base da formação de riqueza da


Antiguidade diferencia-se da reflexão sobre a qual se ergue o desenvolvimento
europeu porque a primeira é a reflexão da exploração pelo lado do explorador,
enquanto a segunda é a reflexão pelo lado do explorado. O produtor de
mercadorias medieval é o antigo servo do senhor feudal [e chega à produção de

147
mercadorias apenas desfazendo-se de seus vínculos feudais].48 Sua liberdade
burguesa, ou melhor, sua propriedade burguesa privada dos produtos de seu
trabalho, que significa a liberdade de fixar os próprios preços, é o resultado da
emancipação dos produtores explorados em relação ao domínio da terra, o
resultado da dissolução desse sistema de exploração econômico-natural. [Nesse
resultado da dissolução a terra torna-se uma alternativa, e portanto favorável à
dissolução positiva do sistema. O produtor que trabalha se torna, pela primeira
vez na história, membro da sociedade "humana", isto é, da sociedade de
apropriação (em Roma, ao contrário, a libertação dos escravos foi um mero
resultado negativo de sua dissolução e não continha nenhuma alternativa; a
humanização do trabalho foi ali somente um aperitivo, a promessa de um mero
além, como no cristianismo).] Segundo sua origem, a propriedade privada
burguesa é propriedade de produtores, não de exploradores. Mas a
transformação do produtor em proprietário, especificamente na forma individual
e autônoma de propriedade privada, depende aqui da identificação entre
produção e geração de riqueza. O artesão medieval produz seus produtos como
valor, valor de venda, e desde que sejam valores, ele é seu proprietário. Na sua
produção, o trabalho gera valor, pois a relação feudal de exploração foi superada
nele e tornou-se deste modo a própria organização da produção. [O produtor
medieval e os habitantes dos burgos ganharam a liberdade de explorarem-se a
si mesmos]. Ele cultiva sua força de trabalho até a maestria, pois ela lhe serve
como geradora de valor, e assim faz da exploração a base de sua autonomia,
como os luteranos, segundo Marx, fizeram do clero romano seu "padre interior".
[De fato, no início, a cidade também só possui sua liberdade como um privilégio
dado pelo soberano e, como corporação de seus habitantes, tem de pagar ao
soberano os tributos feudais, que antes os servos pagavam in natura aos
senhores feudais.] A tendência de emancipação das cidades frente aos
soberanos começou já com a passagem para as formas de exploração pré-
capitalistas, formas de exploração nas quais os burgueses auto-exploradores
tornam-se exploradores de outros. [O caminho vai do explorado da economia
natural feudal, através do auto-explorador na produção mercantil “simples" da
economia urbana da primeira fase, até o explorador de força de trabalho alheia

48 A propósito desses [] e dos seguintes, cf. Nota 55. Trata-se de complementos ao manuscrito
acrescentados em 1970.
148
no capitalismo inicial.] Nessa transformação de explorados em exploradores
realiza-se a inversão da relação condicionante entre troca de mercadorias e
exploração, uma inversão decisiva para o capitalismo. Enquanto em todas as
formas anteriores de produção de mercadorias a troca de mercadorias se dava
sobre as bases e de acordo com as regras da exploração, essa inversão faz
surgir uma exploração sobre as bases e de acordo com as regras da troca de
mercadorias. A exploração que daqui surge, “economicamente” condicionada,
não está mais apenas oculta na determinação formal das mercadorias, mas
acontece também nas formas da troca de mercadorias [e é assim o fenômeno
único de uma exploração de acordo com as leis de paridade da não-exploração].
A explicação encontrada por Marx para esse fenômeno é a transformação da
própria relação entre explorador e produtor numa relação de troca, em compra e
venda da mercadoria força de trabalho, de acordo com as leis da propriedade
privada burguesa desenvolvida. [A rede social de troca se perfaz como uma
perfeita separação entre propriedade e trabalho]. A rede de troca abrange a
sociedade toda e a transforma num único sistema de apropriação. Com isso, o
trabalhador explorado, como comprador de sua própria força de trabalho, torna-
?
se propriamente homem, de acordo com as regras da apropriação e o trabalho
torna-se trabalho humano abstrato, trabalho humano em geral. 49 Com a plena
efetivação da forma mercadoria e seu caráter de coisa, humaniza-se ao mesmo
tempo o seu contrário, a praxis material, completando a subjetividade teórica da
parte exploradora e fazendo da classe explorada o sujeito prático. [Isso significa
que o desenvolvimento da classe capitalista e o desenvolvimento do proletariado
são conectados dialeticamente, não apenas pragmaticamente.]

6. A exploração como origem da reificação


A troca de mercadorias é forma de reflexão da exploração. Qualquer que seja o
conteúdo efetivo de cada uma de suas determinações formais 50 históricas, a

49 Sohn-Rethel - 1970: Essa oração críptica (marcada com razão por Benjamin com um ponto
de interrogação) deveria tornar-se mais inteligível através dos textos aqui introduzidos entre [].
O sentido está em reduzir a consciência do ser humano, em sentido antitético à natureza, à praxis
de apropriação dentro da sociedade - não ao trabalho. O trabalho só assume caráter “humano”
onde se encontra em relações desenvolvidas de apropriação, sendo portanto trabalho produtor
de mercadorias e trabalho explorado. Esse deslocamento importante de acento encontra-se
numa conexão indivisível com a redução da universalização à abstração da troca. - Em 1937,
tais coisas estavam ainda muito obscuras, para que eu pudesse chegar mais claramente às
consequências de meu enfoque.
50 Sohn-Rethel - 1970. Deveria ser “dimensão”. A determinação formal da troca de mercadorias
é, em sentido rigoroso, imutável. O que muda é o grau em que ela penetra na rede de conexões
149
troca depende das relações de exploração, que a fundamentam, ou que ela
superou incluindo, ou ainda que ela mesmo efetua. Partimos, portanto, da
exploração, e não da troca de mercadorias. A partir daqui, vamos nos limitar
ainda mais do que antes a uma exposição abreviada em forma de teses.

A origem histórica da reificação é a exploração. Tomado não como mercadoria,


mas como objeto de apropriação direta e unilateral, o produto do trabalho é
originariamente uma coisa. Historicamente, as primeiras coisas identicamente
existentes foram, em princípio, os produtos dos súditos egípcios guardados nos
depósitos do faraó. A identidade de coisa do objeto de apropriação é a mesma,
tanto para o objeto apropriado dos explorados que o produziram, como para o
objeto de uso dos exploradores que o consomem. Ele passa do produtor ao
consumidor, através da exploração, como coisa idêntica. A apropriação é tão
estranha à produção que é dominada apenas pela preocupação de evitar a
deterioração ou perda da coisa. A identidade de coisa do objeto de apropriação
Mas isso é a exata contrapartida51 da identidade dos indivíduos em uma comunidade
não é
exatamente natural, cujo conteúdo, mediado pela divisão do trabalho e pela partilha no grupo,
identidade?
[WB] é o fato de os produtores serem eles mesmos os consumidores. A reificação é
efeito da crescente cisão, por meio da exploração, da identidade humana entre
produtores e consumidores. Em sua dialética histórica, ela conduz finalmente à
constituição da classe trabalhadora como sujeito capaz de superar essa cisão e
estabelecer de forma planejada a unidade social de produtores e consumidores
no nível atual das forças produtivas.

A identificação e reificação dos produtos do trabalho processam-se pela praxis


apropriadora da exploração, como [sobre fundamentos opostos] a identidade
?
individual do membro da comunidade natural processa-se pela prática grupal de
distribuição. O que tem de ser organizado para instituir duradouramente uma
relação de exploração (em distinção com o roubo) é portanto a apropriação

existenciais dos homens; por exemplo, se ela contribui somente para a multiplicação do consumo
- e se como mero consumo de luxo ou também como consumo de massa -, ou se ela também
penetra a produção e em que medida. Nesse sentido, de suas dimensões depende a
configuração específica assumida pela determinação formal da troca, em si e por si imutável, por
exemplo se a forma valor assume a forma de dinheiro ou não, se o dinheiro já tem a função de
capital e de que maneira, etc. Aquilo que se entende com a expressão “determinação formal”, na
frase acima, é esta configuração da troca de mercadorias.
51 Sohn-Rethel - 1970: deveria dizer: oposto antitético. Bem pode ter sido só minha maneira
errada de me expressar neste trecho aquilo que levou Benjamin a sua glosa marginal (vide nota
seguinte); pois de fato a oração afirma o mesmo que já tinha sido dito na p.183, no segundo
parágrafo.
150
propiciada pelo domínio estável dos exploradores sobre os explorados. A ratio
da exploração e de toda articulação e ordem de vida que repousa sobre a
exploração é a ratio da apropriação.

As relações da identidade são as relações de apropriação da exploração. As


primeiras modificam-se com os métodos de apropriação das últimas. Se, num
estágio posterior, os trabalhadores explorados são trocados como escravos e
tornam-se mercadoria na propriedade de seu explorador, a identidade
experimenta uma reflexão e, no dinheiro, ganha uma corporificação empírica
própria como meio de apropriação. Teremos de provar, na próxima parte, que o
dinheiro é a identidade na qual o explorador reflete não apenas o objeto de sua
apropriação, mas reflete também a si mesmo, como sujeito pensante, dinheiro
com o qual ele compra escravos e aliena (entfremdet) seus corpos como objetos.
Não se pense que o corpo tornado coisa, do qual os homens exploradores se
distinguem como sujeitos pensantes, seja o escravo: sua materialidade de coisa
é como a materialidade do ouro, que na forma de dinheiro é equivalente para os
escravos, do mesmo modo que a função intelectual identificadora dos sujeitos é
como a função equivalente do ouro na forma de dinheiro. Como o próprio
trabalho tornou-se coisa no escravo, a produção tem de ser construída como
uma rede de conexões entre coisas, para que possa ser realizada dentro desse
sistema de apropriação da exploração.

As relações de apropriação da exploração constituem relações classistas de


socialização entre consumidores exploradores e produtores explorados. Desse
modo, as relações de apropriação da exploração são apenas relações de
identidade, já que são relações de coisas que ligam produção e consumo,
colocados em pólos humanos separados. Isso significa que as relações de
identidade são a priori relações de ligação social das classes na exploração
segundo a lei da rede vital de conexões entre produção e consumo.

Essa rede de conexões, prática na sociedade natural, torna-se por meio da


exploração uma causalidade estranha aos homens, que governa suas simples
existências como uma segunda natureza extra-humana, a causalidade da lei do
valor. O explorador não possui nenhuma medida do trabalho necessário para
produzir os produtos que consome, já que os obtém por meio de um mecanismo
social estabilizado de apropriação, e não pelo trabalho. Do mesmo modo, pela
razão inversa, os explorados já não têm qualquer medida do consumo que pode
151
ser obtido por seu trabalho. A produção não pode mais ocorrer de modo algum
de acordo com a medida do consumo, o consumo não pode ocorrer mais de
acordo com a medida da produção. No lugar das medidas, entram relações
monetárias, relações de apropriação portanto, somente pelas quais produção e
consumo são cegamente mediados. Com base e para os fins dessa causalidade,
os produtos do trabalho adquirem a enigmática validade do valor. Sobre as bases
da exploração, a produção e o consumo podem ser organizados, se tanto,
apenas de acordo com a ratio da apropriação; e esta é sua organização do ponto
de vista do valor e de acordo com as regras da identidade, forma de coisa e
simples existência.

Por meio da identidade dos termos da mediação, objeto de apropriação e valor,


o nexo causal entre produção e consumo adquire a forma de igualamento. No
total (ou seja, no conjunto de toda a sociedade), o consumo apropriado tem de
ser igual à produção obtida, não porque consumo e produção por si e para si
estejam numa tal relação de igualdade e se meçam quantitativamente, mas
porque sua relação de medida concreta está destruída. O igualamento entre
produção e consumo também não se dá diretamente, e sim como relação de
troca pelo valor, onde ambos obtêm suas determinações quantitativas, embora
como qualidade abstrata e isolada. Para os exploradores que consomem, há um
igualamento porque todo valor apropriável tem de ser produzido pelo trabalho, é
valor do trabalho quantitativamente igual; para os explorados que produzem, há
um igualamento porque seus produtos têm valor apenas na medida em que lhes
propiciem o consumo. Os dois igualamentos são desligados entre si, embora a
vida social dependa, no em última instância, da congruência entre ambos. Mas
essa congruência é decidida pela ação, cega frente aos resultados. Na troca de
valores como mercadoria, no nosso sentido entendida como troca entre
exploradores, a relação entre o igualamento de valor da produção e o do
consumo assume a forma reflexiva da equivalência. Segundo este enfoque, a
equivalência pressupõe que cada agente de troca tenha obtido suas mercadorias
em uma relação de exploração. A equivalência é um postulado, o postulado da
congruência cruzada do igualamento de valor da produção e o do consumo de
ambas as mercadorias. Na relação de equivalência de duas mercadorias estão
envolvidas quatro instâncias humanas, os dois exploradores que trocam e o
produtor explorado de cada uma delas, e as relações das quatro instâncias estão

152
em ambas as mercadorias como relações recíprocas cruzadas da forma de valor
relativo e da forma equivalente. Isto é, a equivalência das mercadorias na troca
sustenta-se sobre o solo da exploração e a inclui em si como pressuposto. Ela
exprime a reflexão da exploração.

A praxis da apropriação (unilateral ou recíproca) não é a praxis da produção, ela


é o seu oposto. Na socialização de acordo com as leis da apropriação, a equação
postulada entre produção e consumo nunca chega a efetivar-se. A oposição é
insuperável sobre o solo da exploração porque é gerada exatamente pela
exploração, e renovada em cada momento e através de todos os métodos de
apropriação, isto é, todas as formações sociais da exploração. Esta dialética do
fracasso constitutivo da socialização da exploração é que impulsiona a própria
exploração de um sistema de apropriação a outro, pois esse sistema por si
mesmo gera os problemas para cuja solução ele se transforma, tendo então de
concretizar a exploração, em sempre renovadas reflexões sobre seus
pressupostos, até sua total identificação com a produção mesma, isto é, até o
capitalismo. Neste, porém, a dialética das leis do valor toma a forma
imediatamente contraditória da oposição entre apropriação e trabalho, que nas
ordenações anteriores da facticidade levou a exploração a seu ocaso, operando
lentamente como uma lei da fatalidade, contradição em que o trabalho, tomado
meramente como tal, como trabalho humano abstrato, produz a disparidade da
mais valia de acordo com as leis de paridade da apropriação da equivalência de
mercadorias, e vai gerando através do acontecer da troca de mercadorias seu
não acontecer, a crise, e seu não acontecer novamente em acontecer, o
mercado. A forma cíclica de existência do capitalismo é de fato existência entre
ser e nada, desenvolvida por Hegel como dialética; só que "esta" não é a forma
"do" ser.

Se chamarmos de comunidade "natural" a organização humana livre de


exploração nos grupos de parentesco onde há divisão do trabalho, então a
organização em classes baseada na exploração merece o nome de sociedade
"sintética". Na química, entende-se sob o nome de produto sintético, borracha
sintética por exemplo, um material produzido pelo homem com o mesmo tipo de
características - do ponto de vista da aplicação - de um produto "natural". A
socialização reificada é análoga à síntese química por ser uma obra no todo e
em tudo humana, diferentemente da comunidade natural "que ainda não rompeu
153
o cordão umbilical com a espécie natural". Ela é puro resultado da exploração,
uma atividade humana que não diz respeito às necessidades vitais físicas, como
trabalho e consumo, mas a relações humanas, ainda que pelo viés da produção
e do consumo. A separação da essência "humana" em relação às necessidades
físicas como mera "natureza" começa pela sujeição da produção e do consumo
às relações de exploração entre os homens; inversamente, o condicionamento
da vida pela produção e pelo consumo, como causalidade natural cega, começa
a imperar sobre o seu ser homem, em sentido oposto ao de suas ações. A
distinção entre tal socialização e a síntese química é que esta última se dá pela
vontade de seu autor, de forma planejada, enquanto a divisão dos homens em
classes ocorre não-conscientemente, sem a decisão dos exploradores. O
essencialmente humano que se forma é assim exatamente o que não pode ser
dominado pelos homens, o ser do homem alienado de si mesmo. O que os
exploradores desejam e fazem planejadamente (inicialmente, pelo menos nas
relações diretas de domínio e servidão) é a apropriação de produtos alheios; mas
o resultado, a reificação e a socialização de acordo com as leis de uma
causalidade econômica natural, é uma consequência totalmente imprevista de
suas ações. Contudo, a diferença não é tão grande como parece; como o
explorador, tampouco o químico é autor da obra que desenvolve, e ambos são
cegos para as consequências econômicas de sua síntese. A diferença efetiva é
antes o fato de a síntese operada pelo químico ser consciente, enquanto na
socialização ela é cega. Mas isto não é um acaso. Nem a síntese química ou de
uma outra ciência, nem ainda o conceito geral filosófico de síntese, teriam se
tornado historicamente possíveis, se a socialização material no próprio sentido
desse conceito não fosse já "sintética".52

O uso do conceito de síntese na constituição da socialização em classes é um


meio estratégico eficaz para combater o idealismo com suas próprias armas.
Pois trata-se de esclarecer um e mesmo fenômeno, seja do método experimental
das ciências naturais, seja da fundamentação idealista de uma síntese
transcendental, sustentada pela autonomia do sujeito, com a afirmação de que,
se é para falar de síntese, só existe uma que seja demonstrável e de origem

52 Sohn-Rethel, 1970: Numa conversa, Walter Benjamin tinha considerado uma “idéia excelente”
o uso do conceito de síntese para a sociedade mercantil, cuja descrição como “sociedade
sintética no sentido da borracha sintética, portanto, por esse caminho, também a ligação da
síntese kantiana com a da química”.
154
humana, possibilitadora de todo conhecimento conceitual e de toda a ciência - a
socialização dos homens em classes pela exploração. Ela é "sintética" segundo
os mesmos critérios postos pelo apriorismo na base de seu conceito de síntese,
nomeadamente uma ligação de acordo com as relações de identidade, e ela é o
tipo originário de uma tal ligação, pois a identidade surge historicamente como
caráter formal da simples existência e da coisa a partir das relações de
exploração. A síntese constitutiva, sob a qual recai todo o conhecimento, tanto
logicamente como geneticamente, é a reificação e a socialização material,
operada através da exploração. A liquidação crítica do apriorismo resume-se à
demonstração dessas afirmações, no sentido da liquidação das antinomias, nas
quais a própria razão enreda os homens pelo fetichismo da reificação.

É um equívoco materialista vulgar julgar que a explicação genética de um modo


de pensar a partir de seu ser social retire sua validade e remeta o conceito de
verdade para os outros fetiches da dominação de classe. A crítica materialista
não se dirige ao caráter de validade do pensamento e ao conceito racional de
verdade, mas somente contra a fetichização de ambos, sua dogmatização como
validade atemporal e verdade absoluta, e isso exatamente porque essa
dogmatização viola a razão e é falso pensamento. Pode-se reconhecer
claramente no discurso de Wilhelm Windelband na reitoria de Estrasburgo, por
exemplo, como a absolutização do conceito de validade leva à negação da razão
e de sua pretensão à validade, por meio da antinomia em que se enreda na
questão da gênese. Em suas últimas consequências, o idealismo apriorista
concorda com o materialismo vulgar, e vice-versa. O ponto de vista racional do
pensamento não é a absolutização da validade contra a gênese, nem a
absolutização da gênese contra a validade, mas é aquele que supera a
antinomia. A superação ocorre no ponto de vista metodológico a partir do qual o
Seria
grandioso pensamento racional é compreensível como pensamento necessariamente
se ele
tivesse
razão.
condicionado socialmente, de modo que seu condicionamento social se mostra
[WB]
como fundamento de sua validade. Com isso, demonstra-se o condicionamento
histórico da gênese como medida da validade e de toda validade e verdade do
pensamento.

É exatamente nessa elaboração das tarefas que o conceito de síntese parece-


nos ter interesse metodológico. Ele foi formulado por Kant para questionar a
realização do conhecimento como conhecimento válido, obviamente do ponto de
155
vista idealista, para apresentar a síntese da formação do conhecimento como
síntese espiritual a priori ou, o que dá no mesmo, demonstrar sua dedutibilidade
por meros conceitos (não como problema espaço-temporal). Nisso, Hegel não
fez nada diferente de Kant. Ele efetivamente entendeu a síntese como gênese
do conhecimento, chegando com isso ao pensamento dialético, mas deduziu
essa síntese como pura filosofia, fazendo assim da dialética um sistema da
verdade absoluta e da superação da antinomia entre validade e gênese uma
superação puramente formal. Ao combater a aprioridade da síntese, o
materialismo adota a tarefa de sua investigação realmente histórica. Para o
materialista, essa investigação encontra-se na análise e fundamentação da
reificação, em vez da auto-análise idealista do "conhecimento". A medida crítica
da análise da reificação, por outro lado, encontra-se na tarefa de demonstração
do surgimento histórico do conhecimento. Pois a reificação torna-se
compreensível precisamente como fundamento histórico do surgimento do
conhecimento válido, se for reconduzida por sua vez a suas raízes históricas,
humanas e práticas. A incompreensibilidade genética das formas do
conhecimento significa um insuficiente aprofundamento na reificação. À
aparência apriorística do conhecimento corresponde sempre uma aparência de
facticidade do ser reificado. O idealismo apriorista só pode ser liquidado junto
com o materialismo vulgar, e vice-versa.

Nós tentamos tornar evidente que a reificação tem raiz na exploração.


Identidade, forma de coisa e simples existência têm sua origem histórica,
humana e prática na exploração. Ao mesmo tempo, são as formas de negação
! dessa origem: a identidade é a negação da origem prática, a forma de coisa, da
origem humana, e a simples existência, da origem histórica. Nesse caráter de
negação de sua origem, elas são as formas de ligação da socialização dos
homens em classes na relação dos consumidores exploradores e dos produtores
explorados. Por outro lado, é por meio dessas formas de ligação ou de sua
mediação reificada que a socialização em classes tem o caráter sintético. A
explicação da gênese histórica do conhecimento racional está, portanto, na
questão de como se chega à reflexão lógica da síntese social ou ao surgimento
da subjetividade.

156
7. O dinheiro e a subjetividade

Nós entendemos o conceito de subjetividade no sentido de sujeito do


conhecimento. A idéia de sujeito do conhecimento pressupõe um tipo de auto-
reflexão na qual o indivíduo "se" distingue de seu corpo e de todo conteúdo
espacial como ser pensante e se concebe como idêntico através do tempo,
independentemente de mudanças físico-espaciais, tanto de seu corpo como das
outras coisas. Não faz diferença, no nível de generalidade em que nossa
investigação se mantém, se a essência do "eu" é representada como substância
imaterial ou mera portadora funcional do pensamento; antecipando nossa
explicação da subjetividade, observe-se que isso está ligado à separabilidade
econômica entre a função do dinheiro e o material do dinheiro.
Terminologicamente, chamemos esse "eu", separado do corpo como ser
pensante, de "sujeito teórico". Nossa explicação para seu surgimento histórico é
que o sujeito teórico surge da identificação do homem com o dinheiro. O sujeito
teórico é o possuidor de dinheiro.

Marx chamou o dinheiro de “mercadoria universal”. Recordemos de onde vem


essa universalização da mercadoria. A forma originária da identidade é o produto
apropriado em relações diretas de exploração (relações diretas de domínio e
servidão por apropriação unilateral). A história do surgimento do dinheiro é a
história do surgimento da autonomização polarizada, em relação ao produto
apropriado, da forma de identidade. A autonomização da forma de identidade até
o dinheiro se dá em graus cada vez maiores de reflexão das relações originárias
de exploração. Já a primeira forma de troca de mercadorias, entre os faraós e
os chefes vizinhos de impérios exploradores, nascidos aliás já sob o impulso
dessa mesma troca, inclui a reflexão das relações de exploração como tal, uma
equiparação da exploração cá e lá. Ela coincide com a primeira separação do
produtor explorado de sua organização de produção pertencente a um todo
indivisível, a separação do escravo, de componente humano dessa organização
para um elemento não-humano, especificamente apropriável. Já na etapa do
comércio estatal egípcio e da Antiguidade Oriental, os escravos se tornam
objetos trocáveis por coisas (mercadorias por seu turno acumuladas a partir de
trabalho explorado). Através da universalização da equivalência, a "abstração
valor" é apenas a expressão formal-material da abstração dos homens
explorados em relação às suas condições materiais de trabalho (os elementos
157
materiais da organização produtiva). Perguntemo-nos agora, sem acompanhar
as etapas genéticas, que grau e que determinação formal essa abstração
assumiu na forma-dinheiro do valor das mercadorias.53

O dinheiro, como corporificação da identidade de coisa e validade de valor do


objeto de apropriação, é segundo Marx a forma de valor "simples e comum, daí
geral"54, a forma de trocabilidade dos objetos de apropriação entre si. "Como
valor [as mercadorias] são idênticas, materialização do mesmo trabalho, ou a
mesma materialização do trabalho, ouro. Como materialização uniforme do
mesmo trabalho, elas apresentam apenas uma diferenciação, quantitativa..."55
Mas o trabalho, cuja objetivação geral de valor é o dinheiro, é trabalho explorado.
A abstração valor das mercadorias numa forma equivalente geral e idêntica para
todas as mercadorias conduz a tornar abstratos os trabalhadores explorados em
si, à sua homogeneização como corpos humanos abstratos.56 O dinheiro
relaciona-se ao trabalhador explorado na generalidade em que este produz
mercadorias trocáveis entre si, valores conversíveis em dinheiro, ou seja, na qual
o trabalhador explorado seja trocável por qualquer outro trabalhador explorado
na produção de cada mercadoria ou tipo de mercadoria. A trocabilidade geral
das mercadorias por dinheiro inclui em si a trocabilidade geral do trabalhador na

53 É preciso observar que pulamos aqui um aspecto inteiro do desenvolvimento. A primeira


forma de "socialização" em classes através das relações de exploração é o Estado. A reificação
no Estado das relações imediatas de dominação da apropriação unilateral é a primeira forma
reificada da exploração, a unidade do poder estatal a primeira relação de identidade social da
apropriação. Aqui tem início o profundo deslocamento da espaço-temporalidade da praxis
humana de produção e consumo para a ordem espaço-temporal do reificado, da facticidade; o
caráter de lei das ordens do Estado é o primeiro caráter "teórico" de validade, o Estado é a
primeira "aparência" da "essencialidade" surgida de modo fetichista. Mas com a exploração ainda
totalmente na forma da economia natural, aparência e essência estão indistinguivelmente
mescladas, o caráter de valor do produto apropriado não está separado do valor de uso na forma
de coisa. A única organização planejada, porque imediata, da apropriação, na qual a dialética da
lei do valor tem início, começando lentamente a efetivar-se a contradição entre apropriação e
produção, tem por isso, para os homens, um caráter mágico ou mitológico, não racional. A ratio
da apropriação só se torna ratio humana quando a contradição da apropriação já tiver destruído
a possibilidade de planejamento e controle social da produção da riqueza. (A expressão "riqueza"
aplica-se, neste texto, no sentido oposto ao de "pobreza", portanto para descrever a posse de
acordo com a classe em oposição à não posse de acordo com a classe).
54 K.Marx, O Capital, I, MEW 23, p.79.
55 K. Marx. Para a crítica da economia política, MEW 13, p.50.
56 Assim, no nível europeu de reflexão da exploração, que herda dos Antigos a forma dinheiro
do valor, a transformação do dinheiro em capital inclui em si a equiparação dos trabalhadores
explorados a força de trabalho humana abstrata, socialmente trabalhadores médios
assalariados. A separação do trabalho em produtor de valor de uso e em gerador de riqueza
surge, como vimos antes, juntamente com o caráter de valor do produto através da exploração
e é própria a todas as formas de exploração; mas as diversas formas de exploração
caracterizam-se por modos diversos de formas de reificação e formas mercadoria dos homens
explorados.
158
produção das mercadorias, sua forma geral de mercadoria como homem-coisa
trabalhadora homogênea. E é com base nessa homogeneidade que eles se
diferenciam.

Por outro lado, a forma de coisa, nascida da exploração, recebe, na figura do


dinheiro, a própria forma de existência de meio de apropriação. O ouro, ou
qualquer outro material que constitua o dinheiro, não tem como dinheiro
nenhuma outra finalidade a não ser comprar, propiciar mercadorias a seu
possuidor. No dinheiro, a atividade de apropriação dos exploradores ganha o
caráter de função. Definimos geneticamente a função como ação reificada de
apropriação dos exploradores. A definição de seu conteúdo depende do grau de
reflexão atingido pela apropriação (função monetária, função causal, função
matemática etc.), mas tem de ser determinada sempre, em última instância,
como variável da relação na qual a ação de apropriação do explorador, tanto na
produção pelos explorados, como no consumo dos exploradores, esteja na
relação originária de exploração. O conceito de função inclui em si a relação de
duas ações - reificado: dois fenômenos - em que o acontecer de uma já
propulsione o acontecer da outra. Essa propulsão é o postulado da exploração,
na qual a produção é mediada e se dá de acordo com as regras da apropriação.
O conceito de função postula originariamente o funcionamento da exploração.
Esse conceito contém a ficção de que a síntese da apropriação seja a síntese
de produção e consumo, mas elimina o quiproquó exprimindo essa última
síntese, que só pode ser prática e humana (numa comunidade natural ou numa
sociedade socialista), como síntese funcional, isto é, como relação entre coisas
e fenômenos materiais. A relação funcional é a forma reificada ou a formalização
da coerção física que o explorador exerce sobre o explorado para este trabalhe
para ele. Como função do dinheiro, a relação da apropriação com a produção
tomou a forma de um postulado, segundo o qual a troca mercadoria/dinheiro
entre os exploradores propulsiona a produção de mercadorias com valor de
dinheiro. A propulsão é bem sucedida, porque entre as mercadorias que os
exploradores trocam por dinheiro está a mercadoria-escravo que trabalha. A
completa relação econômica funcional ou a exploração completamente
funcionalizada só ocorre se o processo social de troca de mercadorias
propulsiona o emprego "voluntário" do trabalho dos explorados, isto é, no
capitalismo.

159
O dinheiro é a "mercadoria universal" porque é o meio socialmente válido de
apropriação de todas as mercadorias. O dinheiro se relaciona com a mercadoria
individual, que ele compra, do mesmo modo que a ação do apropriador se
relaciona com o objeto de apropriação nas relações diretas de exploração. Na
duplicação formal da riqueza explorada em forma mercadoria e forma dinheiro,
surge a polaridade da relação de exploração reificada como relação entre as
mercadorias, enquanto uma delas, o ouro, torna-se representante exclusivo do
valor, valor que todas as mercadorias produzidas pelos explorados contêm, mas
que só se realiza no ato de apropriação pelo qual ele chega às mãos do
explorador. O dinheiro é a forma reflexiva da apropriação e, por isso, requer para
seu uso que seu possuidor se identifique com ele. Esse possuidor, tanto o antigo
como o proprietário capitalista ocidental, é apenas o explorador; pois na
Antiguidade o dinheiro é o instrumento funcional da exploração, o meio de
apropriação de escravos. Afirmamos que essa identificação do possuidor de
dinheiro com a função dinheiro, unicamente sobre a base daquilo que o dinheiro
é, constitui o ato originário da subjetividade teórica. Dada a incompletude de
nossa análise do dinheiro e de sua gênese histórica, essa construção genética
da subjetividade só é possível aqui, obviamente, de um modo indicativo e em
linhas gerais.

O dinheiro é a forma de reflexão dialética e a coisa portadora da função de


apropriação em sua generalidade abstrata. O dinheiro não permite identificar
quem se serve dele como meio de apropriação, nem o que é apropriado com ele.
Como ele pode comprar qualquer mercadoria, pode passar por todas as mãos e
é isso que dá sua identidade. No dinheiro, todas as mercadorias são trocáveis,
e todos os seus possuidores são intercambiáveis. Além disso, no polo oposto ao
dos possuidores de dinheiro, os produtores explorados são, como vimos,
mercadorias que valem dinheiro, tanto intercambiáveis entre si como trocáveis
entre os possuidores de dinheiro. Ao identificar-se com a função de seu dinheiro,
o possuidor de dinheiro identifica-se, consequentemente, com todos os outros
possíveis possuidores de dinheiro. Essa identificação do possuidor de dinheiro
como sujeito simples e comum, e, portanto, sujeito geral da ação reificada e
funcionalizada de apropriação do dinheiro refere-se à identidade da função
dinheiro em todas as frações monetárias e à identidade do dinheiro em todas as
mãos, ela se refere ao ouro desde que a validade do ouro como dinheiro esteja

160
ligada em geral à unidade idêntica da função dinheiro. A identidade de todos os
sujeitos na subjetividade uniforme e geral refere-se à mera validade da função
dinheiro, que não se constitui por nenhuma propriedade do ouro, mas pela
propriedade da função do ouro (ou de uma cédula) como dinheiro, portanto algo
inteiramente imaterial. - Por outro lado, essa função dinheiro só atua na fração
monetária individual, cuja matéria define se ela paga ou não, se ela existe ou
não existe, se ela pode de fato comprar ou não mercadorias. A matéria da fração
monetária, o ouro ou o papel da cédula, serve apenas para materializar a sua
função e lhe dar a indispensável realidade para relacionar-se com outras
mercadorias reais. A matéria do dinheiro é meramente o critério da simples
? existência da função de compra e mede, com sua quantidade, a simples
existência de outra mercadoria material. Mas esta matéria, que se encontra aqui
como descrição e medida de realidade do dinheiro e das mercadorias, é apenas
reificação do trabalho, efetivo fundamento existencial das mercadorias, e
exatamente trabalho de trabalhadores explorados, seu esforço físico na
produção de mercadorias. A matéria da mercadoria e de seu equivalente, o ouro,
é "materiatur" do trabalho de trabalhadores corpóreos, corporeidade dos
escravos transferida e reificada nas mercadorias através do trabalho. Assim
como o possuidor de dinheiro identifica-se na função dinheiro identicamente
uniforme e geral como sujeito imaterial da validade, também se identifica na
matéria de seu dinheiro como corpo material igualmente puro, que provê a
simples existência da subjetividade de seus atos válidos. De acordo com a
validade de seus pensamentos, o possuidor de dinheiro é idêntico a todos os
outros possuidores de dinheiro. - Ele: portanto também os outros; ele, apenas de
acordo com sua simples existência corporal: portanto não os outros. Em relação
à posse ou não-posse do dinheiro como ouro, os exploradores excluem-se uns
?
aos outros como particulares ou "concorrentes", enquanto em relação à validade
de seu ouro como dinheiro, todos formam o mesmo grupo de exploradores. O
grupo de exploradores tem a formação de classe, embora na Antiguidade é pura
e simplesmente a classe dos homens, porque apenas o explorador é "homem",
sujeito legítimo que se reflete na posse de dinheiro, enquanto o explorado, ao
contrário, é a privação da humanidade, a coisa-homem puramente física, o
"objeto" do "sujeito". A realidade material do corpo do explorador é a realidade
material dos corpos humanos abstratos dos escravos, no entanto medida não

161
segundo o trabalho, mas pela realidade material do material do dinheiro, com o
qual ele pode comprar outras mercadorias materiais. É o corpo abstraído de todo
o trabalho, porque ele vive apenas do produto do trabalho com o qual o corpo
dos escravos se identifica. Como sujeito, o possuidor de dinheiro tem apenas a
teoria do trabalho, do qual os escravos têm apenas a praxis. Teoria e praxis do
trabalho estão separadas sobre os pólos de classe da relação de exploração.
Esses pólos não se reconhecem mais. Como se apresenta então, agora, a teoria
do trabalho, a teoria dos exploradores reificados em possuidores de dinheiro?

Ela é a teoria do "sujeito em geral", que no campo de seu conhecimento não


encontra nenhum outro sujeito, porque ele é a identidade da validade de todos
os possíveis sujeitos. Mas, pelo lado de sua porção perceptiva e da realidade
dos atos do pensamento, ela é, ao contrário, a teoria do indivíduo isolado, porque
seu corpo tornou-se o fundamento da alienação perante todos os outros
indivíduos. A teoria do sujeito é meramente a teoria do trabalho, apresentando-
se sua praxis como técnica construída teoricamente; mas o objeto intelectual
dessa teoria não é o trabalho, mas a matéria em que o trabalho se reificou nas
mercadorias, a simples existência das coisas determinada pela matéria. Para o
explorador, desde que seja "sujeito", o trabalho alienou-se em "natureza", o
oposto de "humanidade"; pois sua relação com a produção de mercadorias é
mediada exclusivamente pelo processo social de troca de mercadorias e sua
ordem funcional. Para organizar o trabalho como produção de mercadorias, ele
tem de reproduzir a rede completa de conexões funcionais dessa mediação, e
precisamente a partir do momento em que ela seja uma rede sintética e fechada
de conexões da reificação, de acordo com a função unificadora do dinheiro. Essa
reprodução mental da rede fechada em si das conexões de reificação da
exploração, reprodução dependente da identificação do explorador com a função
dinheiro, e portanto derivada do princípio da unidade do pensamento, refere-se
à produção ou é "conhecimento" válido desde que a reproduza como rede de
conexões materiais das simples existências das coisas de acordo com seus
próprios fundamentos, isto é, desde que seja racional. O conhecimento racional
da natureza seria, com isso, a reprodução da rede fechada em si de conexões
reificadas da produção segundo as leis sociais da apropriação, funcionalizadas
através do dinheiro.

162
Sohn-Rethel - 1970: Distancio-me hoje decididamente dessa construção, pois ela não evita o
risco do idealismo sociológico. O tradicional idealismo cognitivo-teórico da subjetividade é
transferido para a sociedade, de onde se deduz a subjetividade. O erro está em que a teoria não
se constrói sobre uma análise fundamental da mercadoria ou da abstração da troca. Além disso,
a construção padece do fato de entender o modo antigo de pensar de acordo com o modelo
europeu, e portanto é um mal-entendido. O explorador grego não tinha a necessidade de formar
uma teoria da produção, pois podia adquirir escravos com as capacidades e habilidades
desejadas ou mandá-lo a treinamento, portanto dispunha da técnica, por assim dizer, como uma
qualidade humana natural. A filosofia grega também não conhecia o conceito de sujeito com o
qual operamos aqui. A forma como eu lia então a ordem social e a exploração antiga estava
errada. A razão teórica na Antiguidade, isto é, principalmente na filosofia grega, não era um
instrumento científico para possibilitar a produção, mas uma ferramenta ideológica para as
classes utilizadoras de dinheiro obter e manter o domínio social, um domínio que no início
abarcava toda a Polis e podia ser democrático, mas que tendia mais e mais para a oligarquia
dos grandes possuidores de dinheiro e de escravos. A base produtiva da democracia antiga, "a
base econômica das comunidades clássicas em sua melhor época", eram, de acordo com a
célebre nota de rodapé do "Capital" (I, p.299 da ed. de 1903), "a pequena produção camponesa
e o exercício independente dos ofícios". Assim era a produção antiga de mercadorias em seu
início, antes que todas as consequências da economia monetária se efetivassem, portanto "antes
de a escravidão, implacavelmente, tomar conta da produção". Só na era helenística os grandes
possuidores de dinheiro passaram de meros detentores de escravos para proprietários dos meios
técnicos de produção numa escala social cada vez maior. Somente então surgem as condições
para o aparecimento de um pensamento científico no sentido europeu posterior. É uma questão
fascinante, mas irrespondível, saber como teria sido o desenvolvimento helenista sem a
expansão do império romano e sem as invasões, se ele pudesse ter chegado por si mesmo
totalmente ao capitalismo de produção; em outras palavras, a questão de saber se o capitalismo,
de acordo com sua essência, é resultado lógico da dialética histórica ou um produto pragmático
casual.

A determinação lógica desse conhecimento, sua "estrutura categorial", é a rede


social de conexões sintéticas da troca de mercadorias traduzida em "lógica",
desde que esse conhecimento, de acordo com sua função - ou seja, função de
apropriação - deva impulsionar a produção de mercadorias. A "tradução" da rede
social de mediação da produção em lógica é possível graças à identificação do
explorador com a função dinheiro, na própria gênese da subjetividade. As
categorias lógicas do conhecimento teórico da natureza podem ser deduzidas
através de uma análise econômica precisa da correspondente rede social de
conexões funcionais da produção de mercadorias.

163
O materialismo liquida a teoria do conhecimento idealista por meio da análise da
reificação e refuta a afirmação de uma síntese transcendental pela
demonstração da dedutibilidade das "categorias" a partir do ser social. A síntese
constitutiva é o processo histórico de reificação da exploração na forma de um
processo concreto de socialização dos homens, gerado pela exploração. A
sistematicidade do pensamento racional é a reflexão da sistematicidade da
reificação, desde que, com o surgimento da forma dinheiro do valor das
mercadorias, esta se tornou uma rede fechada em si de conexões mediadoras
da produção de mercadorias, isto é, tornou-se exploração por meio da mera
troca.

Na subjetividade, ocorre a identificação do explorador com a autoria humana da


! exploração. Mas isso acontece como resultado da reificação já completa dessa
!
! autoria. A auto-identificação do homem como sujeito, a descoberta do homem,
ocorre como humanização do reificado. O indivíduo abrangido pela reificação
efetua a identificação do homem consigo e sua autodeterminação como sujeito
humano. Este ser-sujeito é o próprio homem sob as características formais da
reificação, da identidade como unidade de si mesmo no pensamento, da forma
de coisa de seu corpo e da simples existência como pessoa individual autônoma
(apesar da divisão do trabalho na qual o indivíduo perdeu toda autonomia). É
assim o encobrimento opaco de sua própria origem e ser histórico. O selo dessa
relação encobridora constitutiva é o conceito subjetivo de verdade. O conceito
de verdade é próprio somente ao pensamento racional que se autofundamenta
e reflete sobre si mesmo e sobre as origens dos objetos, é o conceito do
fundamento auto-fundado e idêntico ao ser. A constituição da questão da
verdade como expressão da constituição encobridora do homem como sujeito
teórico tem sua formulação mitológica na alegoria de Sais da deusa encoberta
por um véu. O significado dessa alegoria pode ser encontrado pela interpretação
de que não é ao levantar o véu da verdade que o homem morre, mas antes, que
o mundo, de onde o homem chegou perante a deusa com a questão da verdade,
é um mundo mortal para os homens.

A luz da razão se propaga junto com o obscurecimento do próprio ser para os


homens. Ela surge como o meio social indispensável para organizar a produção
segundo as condições da total alienação. Quando a produção necessita da ratio
teórica para tornar-se possível, as relações sociais vitais entre os homens já se
164
tornaram incontroláveis, resultado cego da causalidade econômica da lei do
valor. A partir das condições de sua gênese, explica-se a natureza dialética da
ratio teórica. Por um lado, como resultado do obscurecimento e alienação do ser
humano, ela é o meio para orientar-se no escuro, fazer o que é estranho tornar-
se coisa humana. Por outro lado, seu conteúdo racional nasce do solo dado de
suas condições de surgimento, ou seja, do solo da exploração, especificamente
como meio de possibilitar a produção no interior da rede de conexões de
apropriação reificadas e funcionalizadas. Nessa função, o que ela possibilita é
sempre a exploração. Tão importante como a circunstância de a subjetividade
ser a humanização do que é estranho e a ratio, a capacidade de ver no escuro,
é o fato que o homem teórico, como sujeito, tem a forma de coisa e seu
conhecimento é a imagem disfarçada da exploração.

A função sintética dos homens em sociedade, o dinheiro, constitui também seu


exato oposto, a forma individual do homem como pessoa, a singularidade do eu
para sua simples existência (!) e a mera identidade de validade de todos os eus
para seu pensamento (!). A rede de conexões de validade desses eus, no
entanto, constitui para esses eus a estrutura objetiva das coisas como
"natureza". A rede social de todas as simples existências dos próprios homens,
de acordo com as relações funcionalizadas de identidade da apropriação,
transforma-se "na cabeça dos homens" na rede objetiva de leis das coisas como
natureza, e a sociedade, na qual todos os homens têm de existir para viver,
transforma-se na representação de um "mundo", ao qual todas as coisas têm de
pertencer para existir. Em seu pensamento, o eu racional coloca-se como o único
sujeito frente ao "mundo", para pensar o mundo em concordância com o princípio
de que o pedaço de pão que um come não vai saciar a outro. Este pensamento
é válido porque é necessário numa sociedade em que todos os homens têm de
se relacionar reciprocamente a partir do ponto de vista do eu privado para
conseguir seu pão.

Por outro lado, a transformação da síntese funcional em razão teórica e da rede


social de coisas em representação da natureza estão inevitavelmente ligadas à
absolutização da exploração em necessidade natural e norma de verdade do
ser. De acordo com sua gênese, a ratio teórica é a reflexão lógica da síntese
social. Esta é a síntese da exploração de acordo com as relações de identidade
da apropriação; além disso, ela é contraditória em si e leva em progressiva
165
concretização a uma crescente contraditoriedade entre apropriação e produção
e à anarquização da sociedade. Com isso, medida pela necessidade vital de
conexão entre produção e consumo, a síntese da exploração é uma falsa
síntese. A autêntica síntese dessa conexão só pode ser a síntese prática-
humana numa sociedade socialista; ou num nível primitivo, de acordo com nossa
construção, a "comunidade natural". Na relação de conhecimento da ratio
teórica, no entanto, a síntese funcional da exploração forma a regularidade da
"natureza" e tem de aparecer para o ponto de vista da subjetividade como
síntese de produção e consumo. Por causa da cegueira constitutiva da
subjetividade em relação à sua própria gênese, essa aparência é necessária e
torna inevitável a fetichização da ratio e de seu conceito de verdade. Então, já
nesta interpretação da falsa síntese como síntese autêntica, o conceito de
verdade ganha seu significado absoluto e metafísico e as categorias sintéticas
da exploração tomam o sentido de encobrir a exploração e simular uma
essencialidade que elas não são. Mas desse modo, a filosofia é penetrada pelo
reflexo ideológico das contradições entre produção e apropriação, efetivamente
determinadas pela socialização de coisas, porém na forma de antinomias sem
saída, que parecem ser absolutamente próprias "do homem", "do mundo", "do
conhecimento" ou "da razão" etc.

No desenvolvimento europeu, em relação à Antiguidade, surge a novidade de


que a razão passa dos exploradores para os explorados, primeiro à burguesia
que se emancipa da exploração feudal baseada no domínio da terra - com a
correspondente transformação da constituição lógica formal da ratio - e então,
no capitalismo, também para o proletariado. No capitalismo, o trabalhador
assalariado é um trabalhador explorado mas, contudo, é possuidor de dinheiro,
parceiro de troca com seus exploradores, vendedor de sua força de trabalho, e
portanto "sujeito". No proletariado, portanto, a ratio ganha historicamente um
ponto de vista por princípio orientado contra a exploração, o ponto de vista
materialista.

Tanto o materialismo como o idealismo são pontos de vista de classe da razão;


mas enquanto a temática do idealismo é a fetichização da exploração, a temática
da ratio materialista é a crítica da exploração. Devido ao tema do conhecimento
materialista, inclinamo-nos a defini-lo como crítica racional da exploração.
Parece-nos que o campo de seu método crítico deve restringir-se à história da
166
exploração, quer dizer, à história do surgimento do proletariado. As categorias
atuais do interesse proletário de classe têm valor de conhecimento apenas para
a história da exploração. O caráter crítico-racional do método materialista
repousa em aplicar a crítica racional sobre a própria ratio, sobre seu surgimento
e sobre o ponto de vista da subjetividade. A ratio é assim efetivada enquanto, de
meio de tornar coisa humana aquilo que é estranho, amplia-se e transforma-se
em meio de conhecer as causas dessa alienação e de tornar sua superação uma
coisa humana. A aplicação do método materialista torna necessária, através da
análise da reificação, a já mencionada crítica das categorias da razão burguesa,
presa na reificação, e de seu ponto de vista. Dessa análise, o método materialista
retira também as hipóteses críticas para sua investigação histórica empírica.

167
Anotações de um diálogo entre Th. W. Adorno e A. Sohn-Rethel
em 16 de abril de 196557

Abstração da troca não é adicionada intelectualmente à troca, mas é imanente à


troca, não-consciente

O caráter abstrato da troca e suas categorias não se tornam de modo algum


espontaneamente conscientes, mas só com a mediação do dinheiro, como
aquilo que sintetiza uma infinidade de trocas, apresentando uma totalidade das
mediações dos homens entre si e com a natureza.

O dinheiro é uma condição necessária para a abstração da troca tornar-se


consciente, pois é nele que a abstração da troca se manifesta.

Parmênides impressiona-se com a natureza do objeto de troca, substância;


Heráclito, pelo equilíbrio no movimento contínuo que ocorre na troca, unidade do
caos e da ordem; Pitágoras, pelas relações de medida etc.

Ao desenvolver-se por consequências sistemáticas internas, a filosofia ouve o


chamado das condições sociais, principalmente a classe, que tem de reivindicar
o direito de usar a filosofia em sua luta de classes.

Mas por que a abstração é contraditória, força a filosofia ao desenvolvimento e


a leva à idéia da verdade? Será que na consciência filosófica há categorias que,
em contrapartida, não têm origem na abstração da troca?

Conflito, como forma de produção da filosofia, unilateralidade de cada posição


filosófica - por quê?

A abstração da troca é contraditória em si mesma, unidade de opostos, por


exemplo substância-movimento; assim também, as posições de classe são
motivadoras da unilateralidade filosófica e da oposição como forma de

57 A propósito destas anotações do diálogo feitas por Adorno, que reencontrei recentemente em
meus papéis, deve-se levar em consideração que antes de minha visita a Frankfurt, em abril de
1965, eu tinha enviado a Adorno o manuscrito do trabalho escrito em setembro de 1964:Historic-
materialist Theory of Knowledge. An Outline (uma versão alemã desse texto apareceu no
Internationale Marxistische Diskussion, 19). Ele havia marcado o texto com notas marginais e
evidentemente lido cuidadosamente. Contudo, acho bom notar até que ponto ele adotou para si
o conteúdo fundamental, como pode-se concluir a partir dessas anotações aprofundadas. Bem
que eu poderia ter feito um bom uso, se tivesse me lembrado delas. A. Sohn-Rethel - 1977.
168
desenvolvimento da filosofia. O que faz da filosofia ser filosofia não é lidar com
categorias abstratas, mas tomá-las como problemas e assim lidar com elas - daí
também a contrariedade em forma de movimento. A abstração da troca não é
problemática em si, enquanto considerada meramente em suas condições e em
sua estrutura. As categorias são problemáticas por sua contradição com a
consciência tradicional e comum. Elas não são conceitos genéricos, mas ao
contrário, possuem um caráter abstrato específico, são puramente ideais; não
contradizem apenas a consciência especificamente mitológica, mas também, e
diretamente, a consciência empírica normal.

As categorias chegam individualizadas à consciência; cada uma tem sua esfera


absoluta e exclui todas as outras, mas possui, com todas, a mesma raiz comum
e não pode, assim, liquidar nenhuma, tendo de estabelecer mediações. Essas
mediações constituem um conteúdo essencial da filosofia.

A troca contém as categorias contraditórias, porém as unifica; somente ao atingir


a consciência, as categorias tornam-se abstratas e explicitamente contraditórias
entre si.

O valor é a unidade do múltiplo, das coisas sensivelmente distintas, dos valores


de uso. A categoria de valor é uma evasiva para as contradições ali existentes.
A insistência pela verdade significa união das categorias contraditórias entre si;
este postulado da verdade obriga a uma mediação entre as categorias, e esta
sim é a verdade. A categoria da verdade é a diferença do ser da troca e do
conceito de suas categorias.

Da possibilidade de apresentar a abstração da troca como verdade dependem:


1. a justificação da nova classe contra a antiga; 2. a possibilidade de
autoconfiança do intelecto perante a pura empiria do artesanato, condição da
possibilidade da ciência. Ambas as relações estão presentes na Antiguidade:
domínio teórico-orgânico da produção e autofundamentação ideológica da
dominação da classe comercial.

Mas o conflito das categorias entre si não se realiza em sua pureza, e sim no
objeto [na ciência, ASR]. A constituição das categorias, a reflexão da abstração
da troca como filosofia, exige a abstração (o esquecimento) de sua gênese
social, de qualquer gênese. O materialismo histórico é anamnese da gênese.

169
Enquanto contraditórias à empiria, mas afirmadoras de verdade, as categorias
têm de ser mediadas com a empiria. Apenas a contradição à empiria é que as
faz serem categorias, em sua especificidade, descobríveis. O categorial só pode
se tornar explícito com a empiria. As categorias são pragmático-funcionais, elas
surgem do conflito do homem com a natureza, mediadas de forma
especificamente social, e a função social das categorias é uma função nesse
conflito, elas devem servir à existência da sociedade, e seu objeto fundamental
é a natureza, elas são formas de relação da sociedade com a natureza; elas
concebem a natureza como tal, como unidade, e elas são a condição da
sociabilidade sintética, são categorias da sociabilidade sintética.

As categorias contradizem a consciência empírica primária da disputa não


mediada pela troca entre homens e natureza, mas só podem ser socialmente
funcionais como consciência da disputa entre homens e natureza, portanto
devem colocar-se elas mesmas contra a consciência tradicional. - Mas por que
esta substituição da magia pelo pensamento racional se tornou socialmente
necessária, como então exatamente a mediação da sociedade pela troca
permitiu descobrir a inefetividade da magia, como então a produção de valores
de troca, em oposição à produção primária de valores de uso, levou à efetividade
do próprio produzir? Por causa do valor? Ou porque o trabalho humano se tornou
mensurável, trocável, valorizável, valor? O que a verdade tem a ver com a
efetividade, com o valor?

A magia é originalmente mimesis prática imediata e como tal efetivamente


produtiva. Ela se torna inefetiva com a separação entre magia como rito e
produção, com sua autonomização, na qual a magia se torna meio de dominação
aristocrática. É então interesse da classe contrária combater a magia.

O nobre afirma realizar a Dike em suas sentenças legais e sobretudo em sua


existência. O demos contesta isso e exige a instalação de sua Dike contra o
nobre que abusa dela. O povo experimenta a função legal do nobre como efetiva
não no sentido da justiça, portanto como efetiva não no sentido do povo, e exige
a efetividade da função legal. Do mesmo modo que o povo apela à justiça, a
magia-crítica racionalista apela, em sentido próprio, à efetividade da magia. A
inefetividade da magia pode ser descoberta, por exemplo, enquanto apesar de
cumprir todos os ritos a justiça não é observada, funcionários ritualistas obtêm
sucesso com a injustiça, o povo, apesar de sua crença na magia, empobrece ou
170
é mesmo expropriado. Por outro lado, a reprodução da consciência mágico-
religiosa do povo torna possível que ele se lance contra o nobre, instale sua
própria justiça efetiva e tire proveito das funções rituais. Contudo, as funções
rituais mostram-se incapazes de dirigir sozinhas a sociedade, e são criticáveis
como inefetivas e não-verdadeiras.

Para afirmar-se contra o nobre, o povo teria a possibilidade de, em vez de criticar
a magia como um todo, encenar um contra-magia, e de fato não é raro o povo
apelar para o oráculo mágico em seu estabelecimento contra o nobre, para
legitimar magicamente seu desligamento das antigas formas sociais mágicas.

A troca faz a mediação da relação dos homens com a natureza, separa-os dela
na sociedade, é sociabilidade como mero meio da relação com a natureza, a
apropriação dos valores de uso para um consumo não-social.

Que caráter assumem a relação com a natureza, seu sujeito e seu objeto,
quando essa relação é mediada pela troca? Como o caráter abstrato da troca
determina a relação, da qual é um momento? Como o objeto aparece ao sujeito,
como ele aparece a si mesmo? Como se constitui pela troca o sujeito como tal,
e que papel a abstração da troca desempenha nisso?

O pensamento correto do sujeito independente é o pensamento nas categorias


da abstração da troca, nas categorias da troca; pensamento de indivíduos. Só
porque a filosofia pode ser acessível ao indivíduo os filósofos puderam ter um
público.

De que modo a consciência política democrática pensa com as categorias da


abstração da troca? Por exemplo, a quantificação de Sólon dos direitos políticos,
idéia de igualdade?

A igualdade é primeiramente a de todos os indivíduos frente ao dinheiro. O


dinheiro não faz nenhuma diferenciação qualitativa, pessoal, entre coisas e
pessoas. Assim, todos os indivíduos que participam do mercado têm o interesse
de ver a sociedade organizada de acordo com as necessidades da produção de
mercadorias, e não de acordo com os princípios da tradição. - A abstração da
troca inclui momentos que não são categorias. A reciprocidade da troca implica
a igualdade formal dos indivíduos. A idéia política de igualdade é a idéia da
reciprocidade política. A reciprocidade das pessoas corresponde à reciprocidade
dos objetos na troca. Reciprocidade dos objetos, substituibilidade dos mesmo
171
entre si, é a forma fundamental da lei natural, faltando apenas eliminar os valores
de uso concretos como tais.

Necessidade da análise sistemática e enciclopédica da abstração da troca.

Em que medida a consciência vulgar dos sujeitos da troca é necessariamente


condicionada pela abstração da troca, para que a troca seja possível como
relação normal?

172

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