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“A

- Louis Althusser
“Étienne Balibar
Roger Establet
VOLUMEI! * | ZAHAR

Z
o

biblioteca de ciências sociais


EDITORES.

E
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Índice

Louis Althusser: O Objeto de O Capital


1. Advertência ..cccccceecerecertererarercrcercseccasoo 7
IH. Marx e suas Descobertas .....c.. IA a eitaad 14
HI. Os -Méritos da Economia Clássica ..iccsiccsaereis 19
IV. Os Defeitos da Economia Clássica.
Esboço do Conceito de Tempo Histórico ......cc. 29
V. O Marxismo não é um Historicismo cics 61
VI.. Proposições Epistemológicas de
O Capital (Marx, Ehgels) .iccccceseresereresesasasas 91
VII. O Objeto da Economia Política ,.cscrerersenianeasars 105
Estrutura do objeto da Economia Política 107
VIH. A Sis deiMARO tis sa bei dita cdliaria vid ea 113
A. OCONSUMO “ps sidade risco verenia titia 113
B, A distribuição ....... E Dice in diitda 1
C. A produção ,.... PRC CCURESTC ESSE TE ITA 119
IX. A Imensa Revolução Teórica de MAR amaiieass ai 133
Apêndice: Sobre a “Média Ideal”
e as formas de transição .icccccsseciaris 147

Etienne Balibar; Sobre os Conceitos Fundamentais


do Materialismo Histórico ,..iiciiccas 153
|. Da Periodização nos Modos de Produção ,......... 163

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Louis Althusser:

O Objeto
de O Capital

I. Advertência

Na divisto do trabalho, um tanto deliberada e um tanto espon-


tânca que presidiu à organização deste estudo coletivo de O Capital,
in-
coube-me falar da relação de Marx com a sua obra. Tomei como

cumbência, sob esse título, a seguinte questão: que ídéia faz Marx
no-la apresenta da natureza de seu empreendimento? Em que con-
se distingue
ceitos pensa elo a sua originalidade, e portanto no que ele
dos econonilstas clássicos? Em que sistema de conceitos exprime
Clássica,
us condições quo suscitaram as descobertas da Economia
Para esse
por um ludo, 6, por outro, as suas próprias descobertas? ver quan-
fim, assumi como tarefa interrogar o próprio Marx, para
sua obra com as
do e como ele refletira teoricamente u relação de desse modo
condições teórico-históricas de sua produção, Pretendia
fundamental, que
propor-lho diretamente a questão epistemológica r o mais
constitul o próprio objeto da filosofia marxista - € avaliaita a que
exatamente possível o grau de consciência filosófica explíc avalia-
Marx chegou durante a elaboração de O Capital, Fazer essa nado
ilumi
ção significava do fato comparar à parte que Marx havia
com a parto que ficara na sombra, no campo filosófico novo que ele
abrira pelo próprio ato de sua baso clentífica, Avaliando o que Marx

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LER “O CAPITAL”

fizera, pretendia eu representar, tanto quanto possível, aquilo


ele mesmo nos convidou a fazer, para determinar O campo, avaliaro
sua extensão e torná-lo acessível à descoberta filosófica -. em rá
determinar o mais exatamente possível o espaço teórico ab erto pra,
flexão filosófica marxista. ce Ea
Esse era o meu projeto: à primeira vista, podia Parecer simpl
e plenamente executável, De fato, Marx nos deixou no texto Pi
Notas de O Capital, em todo O itinerário percorrido, q mucem 5
número de juízos sobre sua própria obra, além de comparações
cas com os seus predecessores (os fisiocratas, os economistas clássi.
cos: Smith, Ricardo e outros), e finalmente observações metodológi.
cas muito rigorosas, que aproximam seus processos de análise do
método das ciências matemáticas, físicas, biológicas, etc, e do méto-
do dialético definido por Hegel. Como temos a nosso dispor, tam-
bém, a Introdução à Contribuição à Crítica da Economia Política de
1857 - que desenvolve de maneira extremamente profunda as pri-
meiras observações teóricas e metodológicas do livro II de Miséria
da Filosofia (1847), parecia lícito crer que esse conjunto de obras
abrangia realmente o nosso objeto de reflexão, e que bastaria, em
suma, submeter essa matéria, já elaborada, a uma ordenação siste-
mática, para que o projeto epistemológico de que falei há pouco as-
- sumisse corpo e realidade. Parecia de fato natural pensar que, falan-
do de sua obra e de seus descobrimentos, Marx refletisse em termos
filosoficamente adequados sobre a originalidade, portanto sobre a
distinção específica do seu objeto - e que essa reflexão filosófica
adequada se exercesse por sua vez sobre uma definição do objeto
científico de O Capital, fixando em termos manifestos a sua distin-
ção específica,
Ora, os protocolos de leitura de O Capital de que dispomos na
história da interpretação do marxismo, como a experiência que nós
mesmos podemos ter da leitura de O Capital, pôem-nos diante de di-
ficuldades reais, inerentes ao próprio texto de Marx. Eu as gruparel
sob duas rubricas, que constituirão objeto de minha exposição:
1) Contrariamente a certas aparências, e em todo o caso contra
a nossa expectativa, as reflexões metodológicas de Marx em O Capt-
tal não nos dão o conceito desenvolvido, nem mesmo o conceito
explícito do objeto da filosofia marxista. Elas nos dão sempre algo
com que o reconhecer, identificar e discernir, e afinal com que pen-
sá-lo, mas não raro ao cabo de longa procura e desde que destrin-
chado o enigma de certas expressões. Nossa questão exige, pois,
mais que uma simples leitura literal, ainda que atenta; exige, a
Sim, uma verdadeira leitura crítica, que aplique ao texto de Marx O
próprios princípios dessa filosofia marxista que todavia procuram
1 s os. ê É É os

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 9

em O Capital. Essa leitura crítica parece constituir um círculo, dado


que parecemos esperar a filosofia marxista de sua própria aplicação.
Esclareçamos, pois: esperamos do trabalho teórico dos princípios fi-
losóficos que Marx nos deu explicitamente, ou que podem ser ex-
traídos de suas “obras do corte” e da maturidade - esperamos do
trabalho teórico desses princípios aplicados a O Capital, seu desen-
volvimento, seu enriquecimento, ao mesmo tempo que O requinta-
mento do seu rigor. Esse círculo aparente não poderia surpreender-
nos: toda “produção” de conhecimento o implica em seu processo.

2) Essa pesquisa filosófica choca-se no entanto com outra difi-


distinção do
culdade real, que se refere agora não mais à presença e
€ distinção
objeto da filosofia marxista em O Capital, mas à presença
do objeto científico do próprio O Capital. Para nos atermos à uma.
quase
única e simples questão sintomática, em torno da qual giram
é, rigorosamente
todas as interpretações e críticas de O Capital; qual
Esse ob-
falando, a natureza do objeto cuja teoria O Capital nos dá?
essa questão:
jeto será a Economia ou a História? E, para especificar
nte, esse
se o objeto de O Capital é a Economia, em que, rigorosame
da Economia Clássi-
objeto se distingue, em seu conceito, do objeto
é essa e qual é
ca? Se o objeto de O Capital é a História, que História
uma simples
o lugar da Economia na História?, etc. No caso ainda,
pode nos deixar
leitura literal, ainda que atenta, do texto de Marx,
da questão, eximir-nos
insatisfeitos, ou até nos fazer passar ao lado de
a compreensão
de propor essa questão, conquanto essencial para
ução teórica pro-
Marx - e nos privar da consciência exata da revol
e de suas conse-
vocada pela descoberta de Marx, do seu alcance
O Capital, e sob
quências. Não há dúvida de que Marx nos dá em
os quais identificar e
forma extremamente explícita, meios com
o o enuncia em ter-
enunciar o conceito de seu objeto - e até mesm o con-
sem dúvida,
mos perfeitamente claros. Mas se ele formulou,
a mesma nitidez o con-
ceito de seu objeto, nem sempre definiu com
ença específica que O
ceito de sua distinção, isto é, o conceito da difer
há dúvida de que
separa do objeto da Economia Clássica. Não ção: toda a
dessa distin
Marx teve consciência aguda da existência
Mas as formas nas
sua crítica da Economia Clássica o prova,
específica, são, às ve-
quais ele nos dá essa distinção, essa diferença
nos põem na
zes, como o veremos, desconcertantes. Elas certamente longa
de uma
via do conceito dessa distinção, mas não raro ao cabo
de certas ex-
procura e, no caso ainda, uma vez decifrado o enigma
diferen-
pressões, Ora, como fixar com certa nitidez a especificadade
epistemológica
cial do objeto de O Capital sem uma leitura crítica e
de seus
que assinale o lugar em que Marx se separa teoricamente
nder
predecessores € determine o sentido dessa ruptura? Como prete

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10 LER “O CAPITAL"

esse resultado sem recorrer precisamente a uma teoria da história da


produção dos conhecimentos, aplicada às relações de Marx com a sua
pré-história e, portanto, sem recorrer aos princípios da filoso-
fia marxista? A essa primeira questão junta-se outra, como o vere-
mos: a dificuldade que Marx parece ter sentido em pensar num con-
ceito rigoroso a diferença que distingue seu objeto do objeto da Eco-
nomia Clássica, acaso não terá a ver com a natureza da descoberta
de Marx, sobretudo em vista de sua prodigiosa originalidade? Não
terá a ver com o fato de que essa descoberta se achava teoricamente
muito adiantada em relação aos conceitos filosóficos disponíveis na
época? E, nesse caso, a descoberta científica de Marx não exigirá en-
tão imperiosamente a colocação de problemas filosóficos novos exi-
gidos pela natureza perturbadora de seu novo objeto? Por esta última
razão, a filosofia ver-se-ia convocada a uma leitura completa e apro-
fundada de O Capital, para responder às questões surpreendentes
que seu texto lhe propõe: questões inéditas, e decisivas para o futuro
da própria filosofia.
Esse é, pois, o duplo objeto deste estudo, que só é possível por
'uma constante e dupla recorrência; a identificação e o conhecimento
do objeto da filosofia marxista, em ação em O Capital, pressupõe:
identificação e conhecimento da diferença específica do objeto do
próprio O Capital - o que implica por sua parte o recurso à filosofia
marxista e exige seu desenvolvimento. Não é possível ler verdadeira-
mente O Capital sem o auxílio da filosofia marxista, que temos de
ler, por sua vez, e ao mesmo tempo, no próprio O Capital. Se essa
dupla leitura, e a constante recorrência da leitura cientifica à leitura
filosófica, e da leitura filosófica à leitura científica são necessários e
fecundos, poderemos sem dúvida reconhecer nela o caráter dessa re-
volução filosófica que traz em si a descoberta científica de Marx:
revolução que inaugura um modo de pensamento filosófico autenti-
camente novo,

Podemos também nos convencer de que essa dupla leitura seja


indispensável pelas dificuldades e pelos contra-sensos provocados
no passado por leituras simples e imediatas de O Capital: dificulda-
des e contra-sensos que dizem respeito a um mal-entendido mais ou
menos grave sobre a diferença específica do objeto de O Capital, So-
mos obrigados a ter em consideração este fato de vulto: até época re-
lativamente recente, O Capital quase não foi lido, entre os “especia-
listas”, a não ser por economistas e historiadores, que não raro pen-
saram, os primeiros, que O Capital era um tratado de Economia no
sentido imediato de sua própria prática, e os segundos que O Capital
era, em certas partes, obra de história, no sentido imediato de sua
própria prática, Esse livro, que milhares e milhares de militantes

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 1

operários estudaram - foi lido por economistas e historiadores, mas


muito raramente por filósofos, ! isto é, por especialistas capazes de
propor a O Capital a questão prévia da natureza diferencial de seu
objeto. Com raras exceções, por isso mesmo notáveis, economistas e
historiadores não estavam em condições de lhe formularem essa
questão, pelo menos sob forma rigorosa e, pois, a ponto de identifi-
car conceptualmente o que distingue especificamente o objeto de
“Marx de outros objetos, aparentemente semelhantes ou aparenta-
dos, quer lhe sejam anteriores ou contemporâneos. Empreendimen-'
to desse tipo só era em geral acessível a filósofos, ou a especialistas
possuidores de formação filosófica suficiente - dado que ela corres-
ponde ao próprio objeto da filosofia.
Ora, quais são os filósofos que, podendo propor a O Capital a
questão de seu objeto, da diferença específica que distingue o objeto
dé Marx do objeto da Economia Política, clássica ou moderna - te-.
rão lido O Capital propondo-lhe essa questão? Sabendo-se que essa
obra foi alvo, durante 80 anos, de um interdito ideológico-político
radical pelos economistas e pelos historiadores burgueses, imagina-
se o destino que lhe podia reservar a filosofia universitária! Os úni-
cos filósofos dispostos a tomar O Capital por objeto digno dos cui-
dados da filosofia só puderam ser por muito tempo militantes mar- -
xistas: só a partir dos últimos dois ou três decênios alguns filósofos:
não-marxistas puderam transpor a fronteira dos interditos. Porém,
marxistas ou não, esses filósofos só puderam propor a O Capital
questões produzidas por sua filosofia, que não estava em condições,
em geral, de conceber um verdadeiro tratamento epistemológico de
seu objeto, quando a isso não se recusava obstinadamente. Entre os
marxistas, além de Lênin, cujo caso é tão notável, podemos citar
Labriola e Plekhanov, os “austromarxistas”, Gramsci, e mais recen-
temente Rosenthal e Iljenkov na URSS; na Itália a Escola de Della
Volpe (Della Volpe, Colletti, Pietranera, Rossi e outros) e numero-
sos pesquisadores nos países socialistas. Os “austromarxistas” são
apenas neokantianos: nada nos deram que tenha sobrevivido a seu
projeto ideológico. A obra importante de Plekhanov e sobretudo a

vezes, militantes
1 Por diversas razões muito profundas, foram de fato, no mais das
ler e compreender
e dirigentes políticos que, sem serem filósofos de ofício, souberam
disso: sua com-
O Capital como filósofos. Lênin é o mais extraordinário exemplo
uma pro-
preensão filosófica de O Capital dá às suas análises econômicas e políticas
que temos de Lênin,
fundidade, um rigor e uma acuidade incomparáveis. Na imagem
o grande dirigente político oculta não raro o homem que se dedicou ao estudo pacien-
que deve-
te, minucioso e aprofundado das grandes obras de Marx. Não é por acaso"
que preced eram a Re-
mos aos primeiros anos de atividade pública de Lênin (os anos
sas da teo-
volução de 1905) tantos textos agudos dedicados às questões mais espinho
ria de O Capital. Dez anos de estudo € meditação de O Capital deram-lhe essa forma-

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12 LER “O CAPITAL"

de Labriola mereceriam um estudo especial = ussim como, de resto, e


fi-
em nível totalmente diverso, as grandes teses de Gramsci sobre a
significa
losofia marxista. Falaremos delas mais adiante, Isso não
O Ca-
menosprezar a obra de Rosenthal (Problemas da Dlalética em
que ele apenas
pital), mas julgá-la em parte marginal à questão, visto
designa seu objeto
parafraseia a linguagem imediata pela qual Marx
própria-linguagem de
e suas operações teóricas, sem suspeitar que a
o. Quanto aos estu-
Marx possa ser quase sempre tomada na questã
nera e outros, trata-se
dos de Iljenkov, Della Volpe, Colletti, Pietra
e lhe propõem diretamen-
de obras de filósofos que leram O Capital
rigorsas e profundas, cons-
te a questão essencial - obras eruditas,
relaciona a filosofia marxista
cientes da relação fundamental que
Mas veremos que essas obras nos
com a compreensão de O Capital.
pção da filosofia marxista
apresentam frequentemente uma co nce mar-
nas reflexões dos teóricos ma
que merece discussão. Seja como for,
tem por âne os exp rim e-s e em toda a parte a mesma exigén-
xistas con consegiiências teóricas de O
co mp re en sã o apr ofu nda da das
cia: a -
l car ece de uma def ini ção mais rigorosa € mais rica da filoso
Capita gia
mar xis ta. Em out ras pal avr as, e para empregar à terminolo
fia e do
ssi ca: o fut uro teó ric o do mat erialismo histórico depende hoj
clá depen-
ro fu nd am en to do mat eri ali smo dialético, que por sua vez
ap Capital. A história nos apre-
estudo crítico rigoroso de O
de de um
ime nsa . Gos tar íam os, na medida dos nossos meios,
senta essa tarefa ass umi r nossa parcela nessa tarefa.
est os que sej am, de
por mais mod
€ ilustrar. Ter-se-á compreen-à
Retorno à tese que tentarei-expor stemológica, que interesse so
ess a tes e não é som ent e epi
dido que separa Marx dos
filósofos, propondo-se a questão da diferença que ã0S eco-
ist as clá ssi cos : é ta mb ém uma tese que pode interessar
eco nom
nomistas e até aos histor iadores - €, naturalmente, por conse
ita nte s pol íti cos - em sum a, à todos os leitores de 0
guinte, aos mil l, essa tese rele
Capital, Ao colocar a questão do objeto de O Capita históri-
se dir eta men te ao fu nd am en to das análises econômicas€
re- portanto poder solucionar Cer-
cas contid as em seu texto: ela deveria
sido tradicionalmente opostas à
tas dificuldades de leitura, que têm ias, por seus adversários. A
tór
Marx, como tantas objeções peremp
questão do objeto de O Capital não é, pois,ficape nas filosófica. Se O
tiver fundamento, à
do da relação da leitura cientí a
que foi afirma
política do diri-
iu a pro digiosa compreensão
ável, que pr od uz essas razões que
pastoteódoricamoviment
cão o operário russo € internacional, É; também por
incompar
mas também à
Lênin (não apenas as obras escritas,
alsra his coonômnisas e políticas de pode-se estudar nelas a filosofia
aa rica) possuem tal valor teórico e filosófico: marxista que se tornou polia
“prático”,a filosofia
. ução ao Ra DO nado políticas, i
Lênin: uma ma incompar k
ável formaçã'do teóricae / fitosd»
a
fica transform ada isões
em política

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 13

elucidação da diferença específica do objeto de O Capital pode for-


necer os meios de uma compreensão melhor de O Capital em seu
conteúdo econômico e até histórico,
Termino aqui esta advertência e concluo:.se substituí o projeto
inicial dessa dissertação, que devia referir-se à relação de Marx com
sua obra, por um segundo projeto referente ao objeto próprio de O
Capital, tal se deu por uma razão necessária. Com efeito, para com-
preender em toda a sua profundidade as observações em que Marx
exprime a relação com a sua obra, seria preciso ir, além do sentido
literal, até o ponto essencial, presente em todas essas observações,
em todos os conceitos que implicam essa relação — até o ponto es-
sencial da diferença específica do objeto de O Capital, ponto ao mes-
mo tempo visível e oculto, presente e ausente, ponto ausente por
motivos que têm a ver com à própria natureza de sua presença, têm
a ver com a originalidade perturbadora da descoberta revolucioná-
ria de Marx. Que em certos casos essas razões possam ser, à primei-
ra vista, como que invisíveis, deve-se sem dúvida, em última análise,
a que são, como toda criação original radical, razões que ofuscam.

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14 LER “O CAPITAL”

II. Marx e suas Descobertas

fim cedo a pala-


Procedo por uma leitura imediata, e para esse
vra a Marx.
ele:
Em carta a Engels, de 24 de agosto de 1867, escreve
O que há de melhor no meu livro é:
fatos) a ênfase desde) O
1) (e é nisso que repousa toda à compreensão do s segun do ele se exprima
lho,
primeiro capítulo, no duplo aspecto do traba
a análise da mais-valia, indepen-
em valor de uso ou em valor de troca; 2)
como lucro, imposto, renda
dentemente de suas formas particulares, tais que isso aparecerá. É uma
e
fundiária, etc,É sobretudo no segundo volum
cular es na economia clássica, que
“miscelânea” a análise das formas parti
as confunde constantemente com a forma geral.

fim de sua vi-


Nas Notas sobre Wagner, que datam de 1883, no
da, Marx escreve, falando de Wagner (O Capital, II, 248):
O vir obscurus [Wagner] não percebeu:
atenho às duas formas sob
que, já na análise da mercadoria, não me nto dizendo: que
as quais cla se apresenta, mas que continuo jmediateme
o, do
nessa dualidade da mercadoria reflete-se o duplo caráter do trabalh
concretos de
qual ela é produto, a saber; o trabalho útil, isto é, os modos
trabalho que criam valores de uso, e 0 trabalho abstrato, trabalho como
pelo qual ela
dispêndio da força de trabalho, seja qual for o modo “útil”
é despendida (é sobre o que repousa mais tarde a exposição sobre 0 pro
cesso de produção);

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 15

e depois que no desenvolvimento da forma valor da mercadoria, e em


última análise, de sua forma-dinheiro, portanto do dinheiro, o valor de
uma mercadoria se exprime no valor de uso, isto é, na forma riatural da
outra mercadoria; '
finalmente, que a mais-valia por sua vez se deduz de um valor de uso
especifico da força de trabalho, pertencente exclusivamente a esta etc.
e que, por conseguinte, para mim o valor de uso desempenha um pa-
pel muito mais importante do que na antiga economia, mas ele é sempre
tomado em consideração (N.B.!) só quando essa consideração decorre da
análise de dada formação econômica, e não de uma lucubração sobre os
termos ou noções “valor de uso” e “valor”,

Cito os textos como protocolos em que são expressamente


apontados por Marx os conceitos fundamentais que regem toda a
sua análise. Nesses textos, Marx indica portanto as diferenças que o
separam de seus predecessores. Ele nos oferece também a diferença
específica de seu objeto - mas, notemo-lo bem, menos sob a forma
do conceito de seu objeto do que sob a forma de conceitos que sir-
vam à análise desse objeto.
Essas passagens longe estão de ser as únicas em que Marx
ánuncia as suas descobertas. Prosseguindo, a leitura de O Capital
aponta-nos descobertas de grande alcance: por exemplo, a gênese da
moeda, que toda a Economia clássica foi incapaz de pensar; a com-
posição orgânica do capital (c + v ) ausente em Smith e Ricardo; a
da taxa
lei geral da acumulação capitalista; a lei tendencial da baixa
desco-
de lucro; a teoria da renda fundiária etc. Não enumero essas
eis fatos
bertas, as quais, sempre cada vez mais tornam compreensív
deixaram
econômicos e práticas que os economistas clássicos ou
serem incom-
passar em silêncio ou evitaram artificiosamente por
pormenor de
patíveis com as suas premissas. Essas descobertas de
dos novos
fato não passam de conseqiiência, próxima ou distante, obra como
sua
conceitos fundamentais que Marx identificou em
descobertas mestras. Examinemo-las.
renda e juro à mais-
A redução das diferentes formas de lucro,
As descober-
valia é em si uma descoberta secundária à mais-valia.
tas básicas referem-se pois a:
desse a outro par:
1) o par valor/valpr de uso; a recorrência
ortância particularissi-
trabalho abstrato/trabalho concreto; à imp
clássica, dá ao valor de
ma que Marx, contrariamente à economia aos pontos
referência
uso € ao seu correlato, o trabalho concreto; à desempenham
estratégicos onde valor de uso € trabalho concreto tal variável
e e capi
papel decisivo; as distinções de capital constant
ão (Setor I, pro-
por um lado, e por outro dos dois setores da produç
s de con-
dução dos meios de produção; Setor II, produção dos meio
sumo),

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16 LER “O CAPITAL!

2) a mais-valia

Em resumo: os conceitos que trazem as descobertas fundamen-


tais de Marx são: valor e valor de uso; trabalho abstrato e trabalho
concreto; mais-valia,
Isso é que Marx nos diz, E não temos aparentemente razão al-
guma para duvidar do que ele diz. Realmente, ao ler O Capital, po-
demos demonstrar que suas análises econômicas repousam de fato,
em última instância, nesses conceitos fundamentais. Podemo-lo,
mas sob condição de uma leitura atenta. Contudo, essa demonstra-
ção não é fácil: exige grande esforço de rigor. Sobretudo, para que
seja feita e se veja claro na própria clareza que ela produz, ela impli-
ca, e desde o princípio, algo que está presente nas descobertas decla-
radas de Marx - mas presente nelas na forma de uma estranha au-
sência,
A título de indicação, para fazer pressentir em negativo essa au-
sência, contentemo-nos com uma simples observação: os conceitos
aos quais Marx relaciona expressamente sua descoberta, e que sus-
tentam todas as suas análises econômicas, os conceitos de valor e
mais-valia, são justamente os conceitos sobre os quais mais se encar-
niçou toda a crítica feita a Marx pelos economistas modernos. Vale
ter em conta os termos em que esses conceitos foram atacados pelos
economistas não-marxistas. Censurou-se a Marx o fato de que esses
conceitos, na medida em que aludindo à realidade econômica, no
fundo permaneciam conceitos não-econômicos, mas “filosóficos” e
“metafísicos", Até mesmo um economista tão esclarecido como €.
Schmidt, que teve o mérito, logo depois de publicado o livro II de O
Capital, de deduzir dele a lei da baixa tendencial da taxa de lucro,
que só viria a ser exposta no contexto do livro III - até mesmo C.
Schmidt censura à lei do valor de Marx ser ela uma “ficção teórica
necessária sem dúvida, mas ainda assim pura ficção. Não cito essas
críticas por prazer, mas porque recaem sobre a própria base das
análises econômicas de Marx, sobre os conceitos de valor e mais-
valia, recusados como conceitos “não-operatórios", designando
realidades não-econômicas porque não-mensuráveis, não-
quantificáveis, Certo é que essa censura denuncia à sua maneira a
concepção que os economistas em questão fazem de seu próprio ob-
Jeto e dos conceitos que ele autoriza: se a crítica indica o ponto onde
a oposição deles a Marx atinge a mais alta sensibilidade, nem por
isso eles nos dão o próprio objeto de Marx em sua censura, dado
que 0 tratam como objeto ''metafísico”, Indico no entanto esse pon-
to como a própria questão do mal-entendido, em que os economistas
cometem um contra-senso quanto às análises de Marx. Ora, esse
mal-entendido de leitura só é possível por um equívoco sobre o obje-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 17

to próprio de Marx, que consiste nos economistas em ler o seu pró-


prio objeto projetado em Marx, em vez de ler em Marx um outro
objeto que não o deles, mas totalmente diferente. Esse ponto do
mal-entendido que os economistas declaram ser o da fragilidade e
da falha teórica de Marx é,.pelo contrário, o ponto de sua maior for-
ça! É precisamente o que o distingue radicalmente de seus críticos e
também, ao que parece, de alguns de seus partidários mais próxi-
mos,
Como prova da extensão do mal-entendido, cito a carta de En-
gels a C. Schmidt, datada de 12 de março de 1895, onde pudemos
colher, há pouco, um eco da objeção de Schmidt. Engels lhe respon-
de assim: * '
Sua carta me dá uma noção, creio, sobre a maneira pela qual V.S'se
lança por um atalho a propósito da taxa de lucro. Verifico nela a mesma
eclético de
forma de perder-se em pormenores, o que atribuo ao método
que per-
filosofar que se introduziu desde 1848 nas universidades alemãs,
esté-
de toda a perspectiva geral e que não raro acaba em argumentaçõesque, de
parece-me
reis e sem objetivo sobre questões de pormenor. Ora,
dedicou; e Kant, devido
todos os clássicos, foi a Kant que V. S* mais se
oposição ao leibnizia-
ao estado da filosofia alemã em seu tempo, € à sua es
a fazer concessõ
nismo pedante de Wolf, foi mais ou menos obrigado
a essa argumentação à maneira de Wolf. Assim en-
aparentes e formais
na digressão sobre a
tendo a tendência de V. St que se manifesta também
à ponto de não atentar, ao
lei do valor, mergulhando nos pormenores,
conjunto, rebaixando a lei do
que me parece, para as interconexões de faz de Deus um
assim como Kant
valor a uma ficção, ficção necessária,
postulado da razão prática. atingem todos os con-
As objeções que V. S! faz contra à lei do valor da realidade. A iden-
os consideramos do ponto de vista
ceitos quando
empregar a terminologia hegelia-
tidade do pensamento com o Ser, para .
na, coincide totalmentecom O Seu exemplo do circulo s do poligono
e, são paralelos como duas
Ambos, o conceito de uma coisa e sua realidad
sem jamais encontrar-se,
assíntotas, aproximando-se constantemente
que impede que o concei-
Essa diferença que as separa é a mesma diferença
realidade não seja
to do ser seja realidade direta e imediatamente, e que aquando
mesmo um concei-
imediatamente o seu próprio conceito. Porém, possa coincidir
por isso não
to possua a natureza essencial dos conceitos, e ser primeiro abs-
prima facle diretamente com à realidade, da qual deve que V. S* con-
, algo mais que uma ficção, a menos
traído, é, não obstante
a realida-
sidere como ficção todos os resultados do pensamento umporque
longo rodeio e
de não corresponde a esses resultados a não ser por
assintótica.
mesmo assim só se aproxima deles de maneira

Essa resposta estarrecedora (sob a banalidade de duas evidên-


cias) constitui de algum modo o comentário de boa vontade do mal-

* Acrescento o período inicial da carta e O imediatamente anterior à alusão a Wolf,


(N. do T.)

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18 LER “O CAPITAL”

entendido, que dará força aos adversários de Marx para comentar


de má vontade. Engels sai-se bem da objeção “operatória” de C,
Schmidt mediante uma teoria do conhecimento sob medida - que
ele vai procurar e fundamentar nas aproximações da abstração, ina-
dequação do conceito, enquanto conceito, a seu objeto! Trata-se de
uma resposta marginal à questão: em Marx de fato o conceito da lei
do valor é cabalmente adequado a seu objeto, dado que é o conceito
dos limites e suas variações, e portanto o conceito adequado de seu
campo de inadequação - e de modo nenhum conceito inadequado
em virtude de um pecado original que atingisse todos os conceitos
postos no mundo pela abstração humana. Portanto, Engels mencio-
na como debilidade nativa do conceito, com base numa teoria empi-
rista do conhecimento, o que constitui justamente a força teórica do
conceito adequado de Marx! Essa menção só é possível na cumplici-
dade dessa teoria ideológica do conhecimento, ideológica não ape-
nas em seu conteúdo (o empirismo), mas também em seu emprego,
dado que feita para responder, entre outros, a esse mal-entendido
teórico preciso. Não apenas a teoria de O Capital corre o risco de ser
prejudicada (a tese de Engels, no Prefácio do livro III: a lei do valor
é economicamente válida “do início do escambo até o século XV de
do
nossa era” - é um exemplo perturbador que afirmo). E ainda
mais: a teoria filosófica marxista fica tisnada, e com que tisnadura!
A mesma da ideologia empirista do conhecimento, que serve de nor-
ma teórica silenciosa tanto à objeção de Schmidt como à resposta de
Engels. Se me detive nesta última resposta é para deixar bem claro
que o mal-entendido presente pode denunciar não apenas aversão
Política ou ideológica, mas também os efeitos de uma cegueira teóri-
ca, na qual corremos o risco de cair se não nos dermos ao trabalho
de propor a Marx a questão do seu obj
eto.

mid
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 19

HI. Os Méritos da Economia Clássica

Tomemos, pois, as coisas exatamente como são declaradas, e


indaguemos depois que idéia Marx faz de si mesmo, não só direta-
mente, quando examina em sua obra aquilo que o distingue dos eco-
nomistas clássicos, como também indiretamente, quando se compa-
ra, isto é, baliza neles, a presença ou'o pressentimento de sua desco-
vis-
berta na não-descoberta deles, e pensa, pois, o seu próprio
lumbre na cegueira de sua pré-história mais próxima.
Não posso entrar aqui em todos os pormenores, que no entanto
merecem um estudo rigoroso e completo. Tenho em vista apenas al.
guns elementos que serão como Índices pertinentes do problema que
nos ocupa. '
Marx avalia a sua dívida para com os predecessores e aprecia O
saldo positivo de seu pensamento (em relação à sua própria desco-
berta) sob duas formas distintas que aparecem muito nitidamente
em Teorias sobre a Mais-Valla ( Histoire des Doctrines Economiques):
Por um lado, presta homenagem e atribui mérito a este ou aque-
le predecessor por ter isolado e analisado certo conceito importante,
mesmo quando a expressão que enuncia esse conceito permaneça
ainda presa na armadilha de uma confusão ou de uma ambigilidade
de linguagem, Ele baliza desse modo o conceito de valor em Petty; o
conceito de mais-valia em Steuart, nos fisiocratas, etc. Obtém então

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20 LER “O CAPITAL”

o saldo das aquisições conceptuais isoladas, extraindo-as no mais


das vezes da confusão de uma terminologia ainda inadequada,
Por outro lado, dá ênfase a outro mérito, que não mais consíde-
ra esta ou aquela aquisição de pormenor (certo conceito), mas o
modo de tratamento “científico” da economia política, Sob esse as-
pecto, duas características lhe parecem discriminantes. A primeira,
num espírito muito clássico, que se pode dizer galileano, refere-se à
atitude científica em si: o método da colocação entre parênteses dos
aspectos sensíveis, isto é, no domínio da Economia política, de to-
dos os fenômenos visíveis e dos conceitos empírico-práticos produ-
zidos pelo mundo econômico (renda, juro, lucro, etc.); em suma, to-
das essas categorias econômicas da “'vida quotidiana”, sobre a qual
Marx declara, no fim de O Capital, que é o equivalente de uma “reli-
gião”. Essa colocação entre parênteses tem por efeito o desvelamen-
to da essência oculta dos fenômenos, de sua interioridade essencial.
Para Marx, a ciência da economia depende, como qualquer outra.
ciência, dessa redução do fenômeno à essência ou, como ele mesmo
o declara - numa comparação explícita com a astronomia -, redu-
ção do '“'movimento aparente ao movimento real”. Todos os econo-
mistas que fizeram uma descoberta científica, mesmo de pormenor,
passaram por essa redução. No entanto, essa redução parcial não
basta para constituir a ciência. É então que ocorre a segunda carac-
terística. É ciência uma teoria sistemática, que abranja a totalidade
de seu objeto, e apreenda o “vínculo interior” que põe em conexão
as essências (reduzidas) de todos os fenômenos econômicos. Esse é o
grande mérito dos fisiocratas, e destacadamente acima de todos
'Quesnay, de ter, mesmo sob forma parcial (dado que ele se limitava
à produção agrícola) relacionado fenômenos tão diversos como sa-
lário, lucro, renda, lucro comercial, etc. a uma essência originária u-
nica, a mais-valia produzida no setor da agricultura. E mérito de
Adam Smith o ter esboçado essa sistemática libertando-a do pressu-
posto agrícola dos fisiocratas - mas o seu demérito está em só o ter
feito pela metade, A fragilidade imperdoável de Smith é de fato o ter
pretendido pensar sob uma origem única objetos de natureza dife-
rente: ao mesmo tempo verdadeiras “essências” (reduzidas), mas
também fenômenos brutos não-reduzidos à essência: a sua teoria en-
tão é apenas a reunião sem necessidade de duas doutrinas: a exotéri-
ca (em que são unidos fenômenos brutos não reduzidos) e à esotéri-
ca, a única científica (em que estão unidas as essências). Essa singela
observação de Marx é prenhe de sentido: ela implica não ser só a
forma de sistematicidade o que constitui a ciência, mas a forma de
sistematicidade só das “essências” (conceitos teóricos), e não a giste-
maticidade dos fenômenos brutos (elementos do real) relacionados
entre si, ou então a sistematicidade mista das “essências” e dos fenô-

e =

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 21

menos brutos. Seja como for, é mérito de Ricardo'o ter pensado e


superado essa contradição entre as duas “doutrinas” de Smith, e o
ter concebido verdadeiramente a Economia Política sob a forma da
cientificidade, isto é, como o sistema unificado dos conceitos que
'enuncia a essência interna de seu objeto:
Chega enfim Ricardo... O fundamento, o ponto de partida da fisio-
logia do sistema burguês, da compreensão de seu organismo íntimo e de
seu processo vital, é a determinação do valor pelo tempo de trabalho. Ri-
cardo parte daí, e obriga a ciência a abandonar a velha rotina, a tomar
consciência de até que ponto as demais categorias que ela desenvolveu ou
representou - as relações de produção e circulação - correspondem a esse
fundamento, a esse ponto de partida, ou até que ponto a contradizem;
até que ponto a ciência, que nada mais faz do que reproduzir os fenôme-
nos do processo e esses próprios fenômenos, corresponde ao fundamento
sobre o qual repousa a conexão íntima, a verdadeira fisiologia da socie-
dade burguesa, ou o que constitui seu ponto de partida; numa palavra, o
que vem a ser essa contradição entre o movimento aparente e o movi-
mento real do sistema. Essa é para a ciência a grande significação históri-
ca de Ricardo.
(Histoire des Doctrines Economiques, LI, 8-9.)

Redução do fenômeno à essência (do dado a seu conceito), uni-


dade interna da essência (sistematicidade dos conceitos unificados
sob seu conceito), eis, pois, as duas determinações positivas que
constituem, ao ver de Marx, as condições do caráter científico de um
resultado isolado, ou de uma teoria geral. Notaremos no entanto
aqui que essas determinações exprimem, a propósito da Economia
Política, as condições gerais da racionalidade cientifica existente (do
Teórico existente): Marx apenas as vai buscar no estado das ciências
existentes para introduzi-las na Economia Política como normas
formais da racionalidade científica em geral. Quando julga os fisio-
cratas, Smith ou Ricardo, ele os submete a essas normas formais
que decidem se eles-as respeitaram ou omitiram, sem prejulgar
quanto ao conteúdo de seu objeto,
No entanto, não nos limitamos a puros julgamentos de forma,
O conteúdo de que essas formas fazem abstração, acaso não foi an-
tes designado por Marx nos próprios economistas? Os conceitos que
Marx coloca na base de sua própria teoria, o valor e a mais-valia,
acaso não figuram já em pessoa nos títulos teóricos dos economistas
clássicos, assim como a redução fenômeno-essência e a sistematici-
dade teórica? Eis-nos, porém, diante de uma situação bem estranha,
Tudo se apresenta como se, quanto ao essencial - e é precisamente
assim que os críticos modernos de Marx julgaram o seu empreendi-
mento - Marx fosse apenas o herdeiro da Economia clássica, e her-
deiro muito bem aquinhoado, pois recebe dos antepassados os con-
ceitos-chave (o conteúdo de seu objeto) e o método de redução,

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22 LER “O CAPITAL”

bem como o modelo da sistematicidade interna (a forma científica


de seu objeto). Qual pode ser então a originalidade de Marx, o seu
mérito histórico? Simplesmente o ter continuado e concluído um
trabalho já quase acabado: preenchido as lacunas, solucionado os
problemas em suspenso, aumentado, em suma, o patrimônio dos
clássicos, mas na base de seus próprios princípios, e portanto de sua
problemática, aceitando não apenas o método e a teoria deles, mas
também, com método e teoria, a própria definição de seu objeto. A
resposta à questão: “qual é o objeto de Marx, qual o objeto de O
Capital?” estaria já inscrita, com alguns matizes e pouco mais, po-
rém em seu próprio princípio, em Smith e sobretudo em Ricardo. O
grande tecido teórico da Economia Política já estava pronto, com
apenas alguns fios corridos e-algumas falhas aqui e ali. Marx teria
consertado os fios, melhorado a trama, dado acabamento em alguns
pontos, em suma, teria concluído o trabalho para o tornar irre-
preensível. Sendo assim, a possibilidade de um mal-entendido de lei-
tura sobre O Capital desaparece: o objeto de Marx era o mesmo de
Ricardo. A história da Economia Política, de Ricardo a Marx, tor-
na-se então uma bela continuidade sem ruptura, que não mais cons-
titui problema. Se mal-entendido houver, estará em outra parte, em
Ricardo e Marx - não mais entre Ricardo e Marx, porém entre toda
a Economia clássica do valor do trabalho de que Marx é apenas O
brilhante “concluidor”, e a economia política moderna marginalista,
€ neomarginalista que repousa, por sua vez, numa problemática in-
teiramente distinta.
Na realidade, quando lemos certos comentários de Gramsci (a
filosofia marxista é Ricardo generalizado), as análises de Rosenthal,
ou mesmo as observações embora críticas de Della Volpe e seus
do eiPulos, ficamos impressionados ao verificar que não aimos a
ea mu ade de objeto. Com exceção da censura que pista Ses
Ad Rr ter, ao desprezar a complexidade das “me da rh
mio Ent em relação suas abstrações com ir Da
ção”, na f a não ser a censura de abstração especulativa ( Ip ár
aue
d na linguagem de Della Volpe, Colletti e Pietranera) a
f MES o Deh isto é, em suma, com exceção de alguns o
NÃO fe be ç NI inversão” no emprego normal sea à de Ri-
cardo
trada pa feto
RIPI diferença
de Marx,essencial entre o objeto de Ro foi regis-
Essa indiferenciação de a a dife-
rença é só d r pretação marxista vulgar sob a forma Err icos apli
vt e método, O método que os economistas clássi MAPA
m à seu objetó seria ape
era, pelo contrári
ico, ao passo queda O dialética,
APENAS metafis co, RO P
de Mi
que se Sónia ro, dialético. Tudo vai depender então da el, e apli-
Cad Ba € como um método em si, importado de Hege! do Gê-
m objeto em si, já presente em Ricardo. Pelo milagre o

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 23

nio Marx teria apenas celebrado essa união feliz que, como toda fe-
licidade, não tem história, Para nossa infelicidade, sabemos porém
que permanece uma “pequenina” dificuldade: a história da “recon-
versão” dessa dialética, que se impõe “recolocar sobre os pés" para
que ela ande afinal na terra firme do: materialismo.
No caso ainda, não evoco as facilidades de uma interpretação
esquemática, que sem dúvida tem títulos: políticos e históricos, pelo
prazer de tomar distâncias. Essa hipótese da continuidade de objeto
entre a economia clássica e Marx não pertence só aos adversários de
Marx, nem mesmo a alguns de seus partidários: ela surge silenciosa-
mente, em muitas ocasiões, do próprio discurso explícito de Marx,
ou antes, nasce de certo silêncio de Marx que duplica, despercebido,
o seu próprio discurso explícito. Em certos momentos, em certos lu-
gares sintomáticos, esse silêncio surge em pessoa no discurso e o
obriga a produzir malgrado seu, em curtos lampejos claros, invisí-
veis na luz da demonstração, verdadeiros lapsos teóricos: certa pala-
vra que fica no ar, embora pareça inserida na necessidade do pensa-
mento, certo juízo que fecha irremediavelmente, com uma falsa evi-
dência, o próprio espaço que ele parece abrir diante da razão. Uma
simples leitura literal não vê nos argumentos a não ser a continuida-
de do texto. É preciso uma leitura “sintoma para tornar essas lacu-
nas perceptíveis, e para identificar, sob as palavras enunciadas, o
discurso do silêncio que, emergindo no discurso verbal, provoca
nele esses brancos, que são as folhas do rigor, ou os limites extremos
de seu esforço; sua ausência, uma vez atingidos esses limites, no es-
Paço que, não obstante, ele abre.
Darei dois exemplos disso: a concepção de Marx das abstrações
que sustentam o processo da prática teórica, e o tipo de censura que
ele dirige aos economistas clássicos,

O capítulo II da Introdução de 1857 pode ser corretamente to-


mado como o Discurso sobre o Método da nova filosofia fundada
por Marx, É de fato o único texto sistemático de Marx que contém,
sob o título de análise das categorias e do método da economia poli-
tica, algo com que fundar uma teoria da prática científica, e portan-
to uma teoria das condições do processo do conhecimento, que
constitui o objeto da filosofia marxista.
- À problemática teórica que sustenta esse texto permite distin-
Buir corretamente a filosofia marxista de toda ideologia especulativa
ou empirista, O ponto decisivo da tese de Marx diz respeito ao
princípio de distinção do real e do pensamento. Uma coisa é o real e
Seus diferentes aspectos: o concreto-real, o processo do real, a totali-
dade real, etc.; outra coisa é o pensamento do real e seus qliferentes as-

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24 LER “O CAPITAL"

pectos: o processo de pensamento, a totalidade do pensamento, o


concreto do pensamento, etc.

Este princípio de distinção implica duas teses essenciais: I) a


tese materialista do primado do real sobre o pensamento, dado que
o pensamento do real pressupõe a existência do real independente de
seu pensamento (o real “depois como antes subsiste em sua indepen-
dência fora do espírito”, p. 165); e 2) a tese materialista da especifici-
dade do pensamento e do processo de pensamento em relação ao
real e ao processo real. Essa segunda tese constitui muito particular-
mente objeto da reflexão de Marx no capítulo III da Introdução. O
pensamento do real, a concepção do real, e todas as operações de
pensamento pelas quais o real é pensado e concebido, pertencem à
ordem do pensar, ao elemento do pensamento, que não se pode con-
fundir com a ordem do real, com o elemento do real. “O todo, tal
como aparece no espírito como totalidade pensada, é um produto do
cérebro pensante...” (p. 166); do mesmo modo o concreto-de-
pensamento pertence ao pensar e não ao real. O processo do conhe-
cimento, o trabalho de elaboração (Verarbeitung) pelo qual o pensa-
mento transforma as intuições e as representações do início em co-
nhecimentos ou concreto-de-pensamento, dão-se inteiramente no
pensamento.
Não há dúvida alguma de que existe entre o pensamento-do-real
e esse real uma relação, mas se trata de uma relação de conhecimen-
to, ' uma relação de inadequação ou de adequação de conhecimento,
e não uma relação real (entendamos por isso uma relação inscrita
nesse real de que o pensamento é o conhecimento adequado ou ina-
dequado). Essa relação de conhecimento entre o conhecimento do
real e o real não é uma relação do real conhecido nessa relação. Essa
distinção entre relação do conhecimento e relação do real é funda-
mental: se não a respeitarmos, caímos infalivelmente ou no idealis-
mo especulativo ou no idealismo empirista. No idealismo especula-
tivo se, como Hegel, confundirmos o pensamento com o real, redu-
zindo o real ao pensamento, *'concebendo o real como o resultado do
pensamento” (p. 165); no idealismo empirista, se confundirmosO
pensamento com o real, reduzindo o pensamento do real ao próprio
real, Nos dois casos essa dupla redução consiste em projetar e em
realizar um elemento no outro: em pensar a diferença entre O real e
seu pensamento como diferença ou interior ao próprio pensamento
Re Tomo especulativo), ou interior ao próprio real (idealismo em-
pirista),

" Tomo I, cap. I, parágrafos 16 e IS.

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O OBJETO DE “O CAPITAL: 25

Essas teses colocam naturalmente problemas, * mas estão impli-


cadas sem equivoco no texto de Murx. Ora, isso é o que nos interes-
sa. Examinando os métodos da Economia Política, Marx distingue
dois deles: o primeiro, que parte “de uma totalidade viva” (“*popula-
ção, nação, Estado, vários Estados"), e o segundo “que parte de no-
ções simples, tais como o trabalho, a divisão do trabalho, o dinheiro. o
valor, etc.”. Dois métodos, portanto: um, que parte do real mesmo, o
outro que parte de abstrações. Qual é o bom desses dois métodos”
“Parece ser bom método o começar pelo real e pelo concreto... entre-
tanto, olhando mais de perto, percebemos que isso é um erro”. O se-
gundo método, que parte de abstrações simples, para produzir, num
“concreto-de-pensamento” o conhecimento do real, “é manifesta-
mente o método científico correto”, e é o adotado pela Economia
Política clássica, de Smith e Ricardo. Formalmente, nada há a cen-
surar quanto à nitidez desse enunciado.
Entretanto, esse próprio enunciado, em sua evidência, contém e
dissimula um silêncio sintomático de Marx. Esse silêncio é inaudível
em todo o desenvolvimento do discurso, que se empenha em mos-
trar que o processo de conhecimento é processo de trabalho e de ela-
boração teórica, e que o concreto-de-pensamento, ou conhecimento
do real, é o produto dessa prática teórica. Só se percebe esse silêncio
num ponto preciso, exatamente onde passa despercebido: quando
Marx fala das abstrações iniciais sobre as quais se efetua esse trabalho
de transformação. Que vêm a ser essas abstrações iniciais? Com que
direito Marx aceita nessas abstrações iniciais, e sem as criticar, as ca-
tegorias de que partem Smith e Ricardo, dando assim a entender que
ele pensa na continuidade de seu objeto e, pois, que entre eles e ele não
se dá nenhuma ruptura de objeto? Essas duas questões vêm a ser uma
só e mesma questão, precisamente aquela a que Marx não responde,
simplesmente porque não a formula. Eis o lugar do seu silêncio, e esse
lugar, vazio, corre o perigo de ser ocupado pelo discurso “natural”
da ideologia, sob a capa do empirismo: “Os economistas do século
XVIII começam sempre por uma totalidade viva: população, nação,
Estado, vários Estados; mas acabam sempre por extrair, mediante
análise, algumas relações gerais abstratas determinantes, tais como di-
visão do trabalho, dinheiro, valor, etc. Uma vez
que esses fatores te-
nham sido mais ou menos determinados e abstraídos, começam os sis-
temas econômicos que partem das noções simples, tais como traba-
lho...” (165), Silêncio sobre a natureza dessa “análise”, dessa “abs-

Cf, tomo 1, cap. I, parágrafos 16, 17 e I8.

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LER “O CAPITAL”
26

tração” e dessa “determinação * - silêncio,ou antes relaci


onam
dessas “abstrações com O real de que são abstraídas, com “a ento
ção e a representação” do real, que parece m então, em su intuí.
a Pureza, a
matéria bruta dessas abstrações sem que o es tatuto dessa ma
téria
(bruta ou prima?) seja enunciado. No bojo desse silêncio po
de- SE co-
lher naturalmente a ideologia de uma rel ação de corres
real entre o real e sua intuição e represent ação, e a pr pon dência
esença de uma
“abstração” que opera sobre o real para extrair dele
gerais abstratas”, isto é, uma ideologi a-empi es sas ** relações
rista da abstração.
Pode-se formular a questão de outra ma neira,
e verifica-se sempre a
mesma ausência: em que essas “relações gera
is abstratas” podem se
consideradas “determinantes "2 Toda ab r
stração como essa será o
conceito científico de seu obj eto? Não haverá abstrações ide
e abstrações científicas, boas e más ológicas
abstrações? Silêncio. * Podemos
formular a mesma questão também de outro mod
o: essas famosas

+ de um processo de abstração
prévia, sob re o qual ele silencia:
as categorias abstratas poderã o então * “refletir” categorias reais, o
abstrato real que habita Os fen
ômenos empíricos do mundo econó-
mico como a abstração
da sua individualidade. Ainda é possivel ou-
tra formulação da ques tão:
economistas) lá estão a final, as categorias abstratas do início (as dos
e produziram conhecimentos “concre-
tos”, mas não se vê em
que sejam transformadas; parece mesmo que
não tinham de se trans
formar, porque existiam já, desde o início,
numa forma adequad
a a seu objeto, tal como o “'concreto-de-
Pensamento” — que o trabalho científi
co irá produzir - possa apare-
cer como sua concretizaçã o pura e simples, pura e simples autocom-
Plicação, pura e simples autocomposição tida implicitamen
Sua autoconcretização, É desse modo que um silê te por
der-se num discurso explícito ou implícit ncio pode esten-
que Marx nos dá contin
o. Tod a a descrição teórica
ua formal, dado que não questiona à pature
za dessas abstrações iniciais, nem o
problema da adequação a
objeto, em suma, o objeto a que elas
mente, ele não questiona a transformse referem; dado que, correit
ação dessas categorias abstr a

O preço desse silêncio: leia-se o capítulo emas


da Dialética em O Capital, e sobretudo VII do livro de Rosenthal, a dblebl
ma
as páginas dedicadas a evitar O rte a
Herença entre a “boa” ea á” ração no à so rt e
na filosofia marxista de um“mtermoabst (pp, 304-305; 325-327). rp pelo qual
tã o eq uí voco mo “generalizar
pensada (isto é, de fato, não-pensada) a natureza dacoab st ra çã o científicaE. O preço des:
S€ silêncio desp er ce bi do
é a tentação empirista.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 27

tas no decorrer da prática teórica, c portanto a natureza do objeto


implicado nessas transformações. Não se trata de censurar Marx
por isso; ele não era obrigado a tudo dizer, num texto, de resto, iné-
dito, e, seja em que situação for, não se pode exigir de ninguém que
diga tudo de uma só vez. Pode-se, entretanto, censurar a seus leito-
res muito apressados o não terem percebido esse silêncio * e o terem
caído no empirismo. É situando com precisão o lugar do silêncio de
Marx que podemos colocar a questão que esse silêncio contém e en-
cobre: precisamente a questão da natureza diferencial das abstrações
sobre as quais trabalha o pensamento científico para produzir, ao
cabo do seu processo de trabalho, abstrações novas, diferentes das
primeiras, e radicalmente novas, no caso de um corte epistemológi-
co como o que separa Marx dos economistas clássicos.
Se, anteriormente, tentei pôr em evidência a necessidade de
pensar essa diferença, dando nomes diferentes às diferentes abstra-
- Ções que ocorrem no processo da prática teórica, e distinguindo cui-
dadosamente as Generalidades | (abstrações iniciais) das Generali-
dades III (produtos do processo de conhecimento), sem dúvida
acrescentei algo ao discurso de Marx: no entanto, sob outro aspecto,
nada mais fiz do que restabelecer, e portanto manter o seu próprio
discurso, sem. consentir na tentação do seu silêncio. Percebi esse
si-
lêncio como a falha possível de um discurso sob a pressão e a ação

Que não haja equivoco sobre o sentido desse silêncio. Ele faz parte de um discurso
4

determinado, que não tinha por objeto expor os princípios da filosofia marxista, da
teoria da história da produção de conhecimentos, mas determinar as regras de méto-
do, indispensáveis para o tratamento da Economia Política, Marx situava-se, pois, no
seio de um saber já constituído, sem se propor o problema da sua produção. Essa a ra-
zão pela qual ele pode, nos limites desse texto, tratar as “boas abstrações” de Smith e
Ricardo como correspondendo a certo real, e silenciar sobre as condições extraordi-
nariamente complexas que provocaram o nascimento da Economia Política clássica:
pod € deixar em suspenso a questão de saber por que processo pôde ser produzido o
campo da problemática clássica em que o objeto da Economia Política clássica se pô-
de constituir como objeto que dava, em seu conhecimento, certo domínio sobre o
real, embora ainda dominado pela ideologia, É uma exigência para nós que esse texto
metodológico nos leve ao próprio limiar dessa exigência de constituir essa teoria da
Produção dos conhecimentos que coincide com a filosofia marxista; mas é também
uma exigência que devemos a Marx desde que estejumos atentos ao mesmo tempo ao
incabamento teórico desse texto (seu silêncio nesse ponto preciso)
e ao alcance filosó-
fico de sua nova teoria da história (em particular ao que ela nos obriga a pensar: à ar-
ticulação da prática ideológica e da prática científica com as demais práticas, ea his-
tória orgânica e diferencial dessas práticas). Em suma, podemos tratar esse silêncio
nesse texto de dois modos: ou tomando-o como um silêncio evidente por si, porque
tem por conteúdo a teoria da abstração impirista dominante; ou tratando-o como um
limite e problema, Como limite: o ponto extremo a que Marx conduz seu pensamen-
to; mas então, esse limite, longe de nos lançar de novo no campo da filosofia empiris-

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28 LER “O CAPITAL”

recalcantes de um outro discurso que, graças a esse recalque, assume


o lugar do primeiro, e fala em seu silêncio: o discurso empirista,
Nada mais fiz do que obrigar esse silêncio a falar no primeiro discur-
so, dissipando o segundo. Simples pormenor, dir-se-á, Certamente,
mas é desse gênero de pormenores que dependem, quando o rigor
falha neles, os discursos tagarelas e de grandes consequências, que
arrastam Marx inteiro para a própria ideologia que ele combate e
recusa. Veremos a seguir exemplos pelos quais o não-pensamento de
um minúsculo silêncio torna-se título de discursos não-pensados,
isto é, de discursos ideológicos.

ta, abre-nos um campo novo. Como problema: qual é precisamente a natureza desse
campo novo? Temos a nosso dispor agora suficientes estudos de história do saber,
para suspeitar que temos de procurar em vias diferentes dos itinerários do empiris-
mo. Mas nessa procura decisiva, o próprio Marx nos dá princípios fundamentais (a
estruturação e a articulação das diferentes práticas). É através disso que se percebe a
diferença existente entre o tratamento ideológico de um silêncio e de um vazio teóri-
co, € seu tratamento científico; o primeiro tratamento coloca-nos diante de uma clau-
sura ideológica; o segundo diante de uma abertura científica. Com isso podemos ver
imediatamente um exemplo rigoroso da ameaça ideológica que pesa sobre todo tra-
balho científico: a ideologia não apenas espreita a ciência a cada ponto onde falha o
seu rigor como também no ponto extremo em que uma pesquisa atual atinge seus li-
mítes, Nisso, precisamente, é que pode intervir, no próprio nível da vida da ciência, à
atividade filosófica: como a vigilância teórica que protege a abertura da ciência con-
tra a clausura da ideologia, sob a condição, é claro, de não se contentar com o falar
de abertura e fechamento em geral, mas das estruturas típicas, historicamente determi-
nadas, dessa abertura e desse fechamento. Em Materialismo e Empirocriticismo, Lênin
não cessa de lembrar essa existência absolutamente funda
mental, que constitui a fun-
ção específica da filosofia marxista,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 29

IV. Os Defeitos da Economia Clássica.


Esboço do Conceito de Tempo Histórico

Passo ao meu segundo exemplo, pelo qual podemos avaliar o


problema, mas de outro modo: examinando o gênero de censura que
Marx dirigie aos economistas clássicos. Ele lhes faz muitos reparos
de pormenor, e uma censura de fundo.

Dos reparos de pormenor, mencionarei um apenas, que tange a


uma questão de terminologia. Ele questiona esse fato, aparentemen-
te insignificante, de que Smith e Ricardo analisam sempre a mais-
valia” sob a forma do lucro, da renda e do juro, e de que ela jamais é
chamada por seu nome, mas sempre disfarçada sob outros; que a
mais-valia não é concebida em sua “generalidade”, distinta de suas
“formas de existência": lucro, renda e juro. O aspecto dessa censura
é interessante: Marx dá a impressão de considerar a confusão da
mais-valia com suas formas de existência como simples insuficiência
de linguagem, fácil de retificar. E, de fato, quando lê Smith e Ricar-
do, restabelece a expressão ausente sob as palavras que a disfarçam;
ele as traduz, corrigindo a omissão deles, dizendo justamente o que
silenciam, lendo-lhes as análises da renda e do lucro como análises
da mais-valia geral, que no entanto jamais é designada comoa es-
sência interna da renda e do lucro. Ora, sabemos que o conceito de
mais-valia é, conforme o próprio Marx o confessa, um dos dois con-

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" LER “O “O CAPITAL”
+

ceitos-chave da sua teoria, um dos conceitos indicativos da diferen-


ça específica que o separa de Smith e Ricardo, sob O aspecto da
problemática e do objeto. De fato, Marx trata a ausência de um con-
ceito como se estivesse em causa a ausência de uma palavra, € concei-
to que não é um qualquer, mas que, como veremos, é impossível tra.
tar como conceito em todo o rigor do termo sem suscitar a questão
da problemática que pode sustentá-lo, isto é, a diferença de proble-
mática, o corte que separa Marx da Economia clássica. No caso aín-
da, quando articula essa censura, Marx não pensa literalmente o que
ele faz - visto que reduz à omissão de uma palavra a ausência de um
conceito orgânico que “precipita” (no sentido químico do termo) a
revolução da problemática. Essa omissão de Marx, caso não seja re-
dimida, o reduz ao nível de seus predecessores, e eis-nos de novo na
continuidade do objeto. Voltaremos ao assunto.

A censura de fundo que Marx, desde Miséria da Filosofia até O


Capital, dirige a toda a Economia clássica é ter ela uma concepção
a-histórica, eternitária, fixista e abstrata, das categorias econômicas
do capitalismo. Marx declara em termos nítidos que é preciso histo-
ricizar essas categorias, para pôr em evidência e compreender sua
natureza, sua relatividade, e sua transitividade. Os economistas clás-
sicos fizeram, diz ele, das condições da produção capitalista as con-
dições eternas de toda produção, sem perceber que essas categorias
eram historicamente determinadas, portanto históricas e transitó-
rias.

Os economistas exprimem as relações da produção burguesa, a divi-


são do trabalho, o crédito e a moeda, como categorias fixas, eternas, imu-
táveis... Os economistas nos explicam como se produz nessas relações da-
das, mas 0 que não explicam é como essas relações se produzem, isto é, 0
movimento histórico que as faz surgir... essas categorias são tão pouco
eternas quanto as relações que elas exprimem. São produtos históricos €
transitórios,
(Misêre de la Philosophie, Ed. Sociales, pp. 115-116; 119.)

réail deito veremos, essa crítica não é a última palavra da critica


tica é or Ela continua superficial e ambígua, ao passo que Ea
acato infinitamente mais profunda. Mas não é sem dúvida po
suá td Marx tantas vezes fica a meio caminho da crítica real € ;
Eni Felaca declarada, quando determina assim toda a sua diferenç
epédo ç : ãos economistas clássicos na não-historicidade aa: E
Rc fez es. Esse julgamento pesou grandemente na interpre ia
política Z não apenas de O Capital e da teoria marxista da cond! qui
dos por + também da filosofia marxista. No caso, estamos a
Pontos estratégicos do pensamento de Marx, e diria mesmo q

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 31

no ponto estratégico nº | do pensamento de Marx, em que o inaca-


bamento teórico do juízo de Marx sobre si mesmo produziu os mais
sérios mal-entendidos, e ainda uma vez não apenas entre os seus ad-
versários, interessados em conhecê-lo mal para o condenar, mas
também e antes de tudo entre os seus partidários.
Podemos grupar todos esses mal-entendidos em torno de um
equivoco central sobre a relação teórica do marxismo com a histó-
ria, sobre o pretenso historicismo radical do marxismo. Examine-
mos o fundamento das diferentes formas assumidas por esse mal-
entendido decisivo.
A nosso ver ele atinge diretamente a relação de Marx com He-
gel, e a concepção da dialética e da história. Se toda a diferença que
separa Marx dos economistas clássicos se resume no caráter históri-
co das categorias econômicas, basta a Marx historicizar essas cate-
gorias, recusar admiti-las como fixas, absolutas, eternas, e as consi-
derar, pelo contrário, como categorias relativas, provisórias e transi-
tórias, portanto sujeitas em última instância ao momento de sua
existência histórica. Nesse caso, a relação de Marx com Smith e Ri-
cardo pode ser representada como idêntica à relação de Hegel para
com a filosofia clássica. Marx seria então Ricardo posto em movi-
mento, como se disse que Hegel era Spinoza posto em movimento;
posto em movimento, isto é, historicizado. Nesse caso, ainda uma
vez todo o mérito de Marx teria sido o de hegelianizar, o de dialeti-
zar Ricardo, isto é, pensar segundo o método dialético hegeliano um
conteúdo já constituído, que só estivesse separado da verdade pelo
delgado tabique da relatividade histórica. Nesse caso, uma vez mais,
recaímos nos esquemas consagrados por uma tradição inteira, es-
quemas que repousam numa concepção da dialética como método
em si, indiferente ao próprio conteúdo de que ela é a lei, sem relação
com a especificidade do objeto de que ela deve fornecer ao mesmo
tempo os princípios de conhecimento e as leis objetivas. Não insisto
nessa questão, que já foi elucidada, pelo menos em princípio.
o Mas gostaria de pôr em evidência uma outra confusão que nem
foi denunciada nem elucidada, e que domina ainda, e sem dúvida
por muito tempo dominará, a interpretação do marxismo. Refiro-
me expressumente à confusão que se refere ao conceito de história.
Quando se afirma que a Economia clássica não tinha uma con-
cepção histórica, mas eternitária, das categorias econômicas, quan-
do se declara que é preciso, para tornar essas categorias adequadas a
seu objeto, pensá-las como históricas - introduz-se o conceito de his-
tória, ou antes, certo conceito de história existente na representação
vulgar, mas sem tomar a cautela de propor as questões u seu respei-
to, Faz-se intervir em realidade como solução um conceito que colo-.

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?2= PER SO CAPHALO

ca por sua vez um problema teórico, porque tal como é tomado e re-
cebido, é um conceito não-criticado, e que, como todos os conceitos
“evidentes”, corre o risco de não ter por qualquer conteúdo teórico
senão a função que lhe atribui a ideologia existente ou dominante. É
fazer intervir como solução teórica um conceito cujos títulos não se
examinaram, e que, em vez de ser uma solução, constitui na verdade
um problema. É considerar que se pode tomar a Hegel ou à prátic-.
empirista dos historiadores esse conceito de história e introduzi-lo
em Marx sem qualquer dificuldade de princípio, isto é, sem se pro-
por a questão critica prévia de saber qual é o conteúdo efetivo de um
conceito que se “junte” assim, ingenuamente, como se fosse eviden-
te, ao passo que se impunha, pelo contrário, e antes de tudo, indagar
qual deve ser o conteúdo do conceito de história que a problemática
de Marx exige e impõe.
Sem me antecipar ao que se segue, gostaria de esclarecer algu-
mas questões de principio. Tomarei como contra-exemplo pertinen-
te (logo veremos por que essa pertinência), a concepção hegeliana de
história, o conceito hegelianq do tempo histórico, em que se reflete
para Hegel a essência do histórico como tal.

Hegel, como se sabe, definia o tempo: “der daseiende Begriff”.


isto é, o conceito na sua existência imediata, empírica. Como o tem-
po nos remete por sua vez ao conceito como sua essência, isto €,
como Hegel proclama conscientemente que o tempo histórico não é
senão a reflexão, na continuidade do tempo, da essência interior da
totalidade histórica encarnando um momento do desenvolvimento
do conceito (no caso a Idéia), podemos, com autorização de Hegel,
considerar que o tempo histórico apenas reflete a essência da totali-
dade social da qual é a existência. Equivale a dizer que as caracteris-
ticas essenciais do tempo histórico nos remeterão, como indices, à
estrutura própria dessa totalidade social. co.
Podem isolar-se duas características essencias do tempo histórt-
co hegeliano: a continuidade homogênea e a contemporaneidade do
tempo.

Iº A continuidade homogênea do tempo. A continuidade homo-


gênea do tempo é a reflexão na existência da continuidade do desen-
volvimento dialético da Idéia. O tempo pode assim ser tratado como
um continuo no qual se manifesta a continuidade dialética do pro-
cesso de desenvolvimento da Idéia. Todo o problema da ciência da
história resume-se então, nesse nível, no recorte desse continuo se-
gundo uma periodização correspondente à sucessão de uma totalida-
de dialética à outra. Os momentos da Idéia existem em outros tantos
períodos históricos, os quais incumbe recortar exatamente no conti-

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O OBHIO DE “O CAPITAL! 33

nuo do tempo, Hegel nada mais fez quanto a isso do que pensar em
sua problemática teórica própria o problema fundamental da práti-
ca dos historiadores, aquele que Voltaire exprimia ao distinguir, por
exemplo, o século de Luís XV do século de Luís XIV; € ainda o
problema principal da historiografia moderna,

2º A contemporaneidade do tempo ou categoria do presente histó-


rico. Esta segunda categoria é a condição de possibilidade da prímei- '
ra e ela é que nos revelará o pensamento mais profundo de Hegel, Se:
o tempo histórico é a existência da totalidade social, impõe-se escla-
recer qual é a estrutura dessa existência, Que a relação da totalidade
social com a sua existência histórica seja a relação com uma existên-
cia imediata implica que essa relação seja por sua vez imediata. Em
outras palavras, a estrutura da existência histórica é tal que todos os
elementos do todo coexistem sempre no mesmo tempo, no mesmo
presente, e são, pois, contemporâneos uns dos outros no mesmo pre-
sente. Isso significa que a estrutura da existência histórica da totali-
dade social hegeliana permite o que proponho chamar de “'corte de
essência”, isto é, essa operação intelectual pela qual se opera em
qualquer momento do tempo histórico um corte vertical, um corte
do presente de tal modo que todos os elementos do todo revelados
por esse corte estejam entre si numa relação imediata, que exprime
imediatamente a sua essência interna. Quando falarmos de “corte de
essência”, estaremos aludindo, pois, à estrutura específica da totali-
dade social que permite esse corte, em que todos os elementos do
todo são dados numa co-presença, que é por sua vez a presença ime-
diata de sua essência, que se tornou assim imediatamente legível ne-
les. Compreende-se, com efeito, seja a estrutura específica da totali-
dade social o que permite esse corte de essência: porque esse corte só
é possível pela natureza peculiar da unidade dessa totalidade, uma
unidade “espiritual”, se quisermos definir com isso o tipo de unida-
de de uma totalidade expressiva, isto é, totalidade cujas partes todas
sejam cada qual “partes totais”, expressivas umas das outras, e ex-
pressivas cada uma da totalidade social que as contêm, porque con-
tendo cada uma em si, sob a forma imediata de sua expressão, a pró-
pria essência da totalidade, Faço aqui alusão à estrutura do todo he-
geliano de que já falei: o todo hegeliano possui um tipo de unidade
tal que cada elemento do todo, quer se trate desta ou daquela deter-
minação material ou econômica, desta ou daquela instituição políti-
ca, desta ou daquela forma religiosa, artística ou filosófica,é sempre
a presença do conceito em si mesmo num momento histórico deter-
minado, É nesse sentido que a co-presença dos elementos uns nos
outros, e a presença de cada elemento no todo são fundadas numa
presença prévia de direito: a presença total do conceito em todas as

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34 LER “O CAPITAL”

determinações de sua existência, Com isso é que se torna possível


continuidade do tempo: como o fenômeno da continuídade de pre.
sença do conceito em suas determinações positivas, Quando falamos
de momento do desenvolvimento da Idéia em Hegel, devemos estar
prevenidos de que esse termo remete à unidade de doís sentidos: 40
momento como momento de um desenvolvimento (o que exige a
continuidade do tempo e-suscita o problema teórico da periodiza-
ção); ao momento como momento do tempo, como presente, gue é
sempre o fenômeno da presença do conceito em sí mesmo em todas.
as suas determinações concretas.

Essa presença absoluta e homogênea de todas as determinaç


ões
do todo na essência atual do conceito é que permite o “cort
e de es-
sência” de que acabamos de falar. Ela é que explica em seu
a
princípio
célebre fórmula hegeliana, que vale para todas
as determinações
do todo, até e inclusive para a consciência de si desse
todo no saber
desse todo que é a filosofia historicamente presente - a
famosa fór-
mula segundo a qual ninguém pode saltar por cima de seu tempo
. O
presente constitui de fato o horizonte absoluto de todo
saber, dado
que todo saber jamais é senão a existência no saber do princ
ípio in-
terior do todo. A filosofia, por mais longe que vá, jamais
ultrapassa
Os limites desse horizonte absoluto: mesmo que faça o seu vôo de
noite, ela pertence ainda ao dia, ao hoje, e não passa do presente re-
fletindo sobre si, refletindo sobre a presença do conceito para si- o
amanhã lhe é por essência interdito.

| Essa a razão pela qual a categoria ontológica do presente inter-


dita qualquer previsão do tempo histórico, toda previs
ão consciente
do desenvolvimento futuro do conceito, todo
o saber quanto ao fu-
turo. Isso esclarece a dificuldade teórica de Hegel para expl
“existência desses “grandes icar a
homens”, que desempenham então na
sua reflexão o papel de testemunhos paradoxais
de uma impossível
previsão histórica consciente, Os grandes homens não percebem
nem conhecem o futuro: eles o adivinham no pres
sentimento. Os
grandes homens nada mais são do que adivinho
s, que pressentem
Sem Ser capazes de conhecer, a iminência da
essência do amanhã, “a
amêndoa dentro da casca”, o futuro em
gestação invisível no pre-
“onte, à essência por chegar, em vias
cia atual, O fato de que não haja de nascer na alienação da essên-
conhecimento do futuro impede
que haja uma ciência da política, um saber referente aos efeit
ros dos fenômenos presentes, Eis porque, os futu-
no sentido estrito, não há
política hegeltana possível, e, de fato. | ' Ético
hegeliano. + &, de fato, jamais se conheceu um poli

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 35

Se insisto a essa altura sobre a natureza do tempo histórico he-


geliano e suas condições teóricas é porque essa concepção da histó-
ria, e de sua relação com o tempo, está ainda viva entre nós, como o
podemos ver na distinção, múito difundida hoje, entre sincronia e
diacronia. Na base dessa distinção está a concepção de um tempo
histórico continuo-homogêneo, contemporâneo a si. O sincrônico é
a própria contemporaneidade, a co-presença da essência em suas de-
terminações, o presente podendo ser lido como estrutura num “cor-
te de essência” porque o presente é a própria existência da estrutura
um
essencial. O sincrônico supõe, pois, essa concepção ideológica de
tempo continuo-homogêneo. O diacrônico é então apenas o trans-
formar-se desse presente na sequência de uma continuidade tempo- .
no sen-
ral, em que os “acontecimentos” a que se reduz a “história”
tido estrito (cf. Lévi-Strauss) não passam de contingências sucessi-
co,
vas no contínuo do tempo. Tanto o diacrônico como o sincrôni
as próprias
que é o conceito primeiro, pressupõem ambos, portanto,
do tempo:
características que revelamos na concepção hegeliana
uma concepção ideológica do tempo histórico.
o do tempo
Ideológica, porque está nítido que essa concepçã
epção que Hegel tem
histórico nada mais é do que a reflexão da conc
e todos os elementos,
do tipo de unidade que constitui o vínculo entr
óficos, etc., do todo
econômicos, políticos, religiosos, estéticos, filos um “todo espiri-
seja
social. É pelo fato de que O todo hegeliano
qual todas as partes
tual”, no sentido leibniziano de um todo do s, que é possivel
é pars totali
“conspiram” entre si, de que cada parte
to do tempo histórico (conti-
e necessária a unidade desse duplo aspec
de).
nuidade-homogênea/contemporaneida
emplo hegeliano é perti-
E é essa a razão pela qual o contra-ex
ção que acabamos de fixar en-
nente. O que, para nós, camufla a rela
reza do tempo histórico he-
tre a estrutura do todo hegeliano e a natu empirismo
é tomada ao
geliano é que a idéia hegeliana do tempo
as da “prática” quoti-
mais vulgar, ao empirismo das falsas evidênci na maior parte dos
ingênua
diana * que verificamos em sua forma
os historiadores conhe-
próprios historiadores, pelo menos em todos
na época qualquer questão
cidos de Hegel, que não propunham
o. Hoje, certos histo-
sobre a estrutura específica do tempo históric vel
riadores começam a indagar, e não raro sob forma muito notá
não indagam em
(cf. L. Febvre, Labrousse, Braudel e outros); mas

lativo” (Feuerbach).
Já se disse que a filosofia hegeliana era um “empirismo especu

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36 LER “O CAPITAL”

função da estrutura do todo que estudam, não indagam sob uma for-
ma verdadeiramente conceptual: constatam simplesmente que há di-
ferentes tempos na história, variedades de tempo, tempos curtos,
durações médias e longas durações, e se contentam com o notar suas
interferências como produtos do seu encontro: não relacionam,
“pois, essas variedades, como variações na estrutura do todo que, no
entanto, rege diretamente a produção dessas variações; são antes
tentados a relacionar essas variedades - como variantes mensuráveis
pela duração - ao tempo comum, ao tempo ideológico contínuo
de
que falamos. O contra-exemplo de Hegel é, pois, pertinente, porque
representativo das ilusões ideológicas toscas da prática corrente e da
prática dos historiadores, não apenas daqueles que não propõem
questões, mas inclusive daqueles que propõem questões, dado que
essas questões estão em geral relacionadas não com a questão funda-
mental do conceito de história, mas com a concepção ideológica do
tempo.

No entanto, o que podemos reter de Hegel é precisamente o que


nos mascara esse empirismo, que Hegel apenas sublinhou em sua
concepção sistemática da história. Podemos reter esse resultado,
produzido por nossa curta análise crítica: é preciso interrogar com ri-
gor a estrutura do todo social para nele descobrir o segredo da con-
cepção da história na qual o “devir”” desse todo social é pensado;
uma vez conhecida a estrutura do todo social, compreende-se a rela-
ção aparentemente 'sem problema” que com ela mantém a concep-
ção do tempo histórico na qual essa concepção se reflete. O que aca-
bamos de fazer quanto a Hegel vale também quanto a Marx: o es-
forço que nos permitiu pôr em evidência os pressupostos teóricos la-
tentes de uma concepção da história que parecia “evidente”, mas
que está de fato organicamente ligada a uma concepção
precisa do
todo social, podemos aplicá-lo a Marx, propondo-nos por objeto O
elaborar o conceito marxista de tempo histórico a partir da concepção
marxista da totalidade social.

Sabemos que o todo marxista se distingue sem confusão possi-


vel do todo hegeliano: trata-se de um todo cuja unidade,
longe de ser
a unidade expressiva ou “espiritual” do todo de Leibniz
e Hegel, é
constituído por certo tipo de complexidade, a unidade de um todo es-
truturado, comportando o que podemos chamar de níveis ou instân-
cias distintas e “relativamente autônomas”, que coexistem nessa
unidade estrutural complexa, articulando-se uns com os outros se-

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O OBJETO DE "O CAPITAL" 37

gundo os modos de determinações específicas, determinadas em úl-


tima instância pelo nível ou instância da economia.*

Temos, evidentemente, de esclarecer a natureza estrutural desse


todo, mas podemos nos contentar com essa definição provisória,
para prever que o tipo de coexistência hegeliana da presença (que
permite um “corte de essência") não pode convir à existência desse
novo tipo de totalidade.
já nitidamente a cer-
Essa coexistência peculiar, Marx a designa
das
ta altura de Miséria da Filosofia, ao falar simplesmente, no caso,
relações de produção:
As relações de produção de qualquer sociedade constituem um todo.
outras tantas fa-
O Sr. Proudhon considera as relações econômicas como
outra, como a
ses sociais, engendrando uma à outra, resultando uma da
razão impessoal da
antítese da tese, e realizando na sua sucessão lógica a
ao encetar o
humanidade, O único inconveniente desse método é que,
a possa explicar sem
exame de uma só dessas fases, o Sr. Proudhon não
s, todavia, que
auxílio de todas as demais relações da sociedade, relaçõe
o. Quando, em
ele ainda não fez engendrar pelo seu movimento dialétic
da razão pura, passa ao parto das de-
seguida, o Sr. Proudhon. por meio
s recém- nascid as, esquecendo-
mais fases, age como se tratasse de criança
Quando se constró i com as
se de que são da mesma idade que a primeira... os
um sistema ideológico,
categorias dã economia política o edifício de
diferentes membros da so-
membros do sistema social são deslocados. Os che-
à parte, que
ciedade são transformados em outras tantas sociedadeslógica do movimen-
gam umas depois das outras. Como poderia a fórmula
corpo da sociedade. no qual
to, da sucessão, do tempo, explicar sozinha o sustentam
todas as relações econ ômicas coexistem simultaneamente e se
. L. A.)
umas às outras? (Os grifos são meus
pp. 119-120.)
(Misêre de la philosophie, Ed. Sociales.

dos membros
Tudo está aí; essa coexistência, essa articulação
entre si, não po-
do “ sistema social”, o apoio mútuo das relações
sucessão, do tem-
dem ser pensados na “lógica do movimento, da
, como demons-
po”, Se tivermos presente no espírito que a “lógica”
abstração do “movi-
trou Marx em Miséria da Filosofia, é tão-só a
em pessoa, como a
mento'* e do “tempo”, que são aqui invocados
preciso
origem da mistificação proudhoniana, concebe-se que seja utura
lugar a estr
inverter a ordem da reflexão, e pensar em primeiro s-
específica da totalidade para compreender tanto a forma da coexi

Pensée, nº 106), “Sur la dialectique


« CI. “"Contradiction et surdétermination” (La
matérialiste” (La Pensée, nº 119), Reunidos em Pour Marx, Maspero,orespp.). 85 ss. e 161
ss. (Edição brasileira 4 Favor de Marx, publicado por Zahar Edit

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38 LER “O CAPITAL”

tência de seus membros como as relações constitutivas e a estrutura


da própria história.
Na Introdução de 1857, no que se refere à sociedade capitalista,
Marx esclarece de novo que a estrutura do todo deve ser concebida
antes de qualquer afirmação referente à sucessão temporal:
-
Não se trata da relação que se estabelece entre as relações econômi
socieda de. Menos ainda da or-
cas na sucessão das diferentes formas de
de sua hierarquia-
dem de sucessão delas “'na idéia” (Proudhon), trata-se 171).
uesa (p.
articulada (Gliederung) na sociedade burg

rtante: a €s-
Com isso fica esclarecida uma nova questão impo
um todo orgânico
trutura do todo é articulada como à estrutura.de
bros e relações no todo está
hierarquizado. A coexistência dos mem
nte, que introduz certa or-
sujeita à ordem de uma estrutura domina
ng) dos membros e das rela-
dem específica na articulação (Gliederu
ções:
e as
é uma produção determinada,
Em todas as formas d e sociedade, ões
ibuem a todas as demais produç
relações engendradas por ela, que atr e a sua importância (In-
e às relaçõesengendradas por es tas a sua posição
trodução, p. 170.)

erv amo s aqu i uma que stã o fun damental: essa dominância
Obs minação de
de certa estrutura de que Marx nos oferece ilustração (do
a produção industrial sobre a
uma forma de produção, por exemplo,
e reduzir-se ao primado de
produção mercantil simples, etc.) não podelementos com à estrutura
um centro, tanto quanto a relação dos a da essência interior a seus
não pode reduzir-se à unidade expressiv eficá-
s, Ess a hie rar qui a rep res enta apenas à hierarquia da o so-
fenôme no
entre os diferente
cia existente cada s “níveis” ou instâncias do tod
a hie-
cial, Como um dos níveis é por sua vez estruturado, ess
quia, o grau € índice de eficácia
rarquia representa portanto a hierar presentes No todo: €
existentes entre os diferentes níveis estruturados
sobre estrutu-
a hierarquia da eficácia de uma estrutura dominante
ras subordinadas e seus elementos, Em outro trabalho mostrei que,
de uma estrutura sobre as
RA er, sOncadiaa, essa “dominância”remetia ao princípio da deter-
minação “er nes ge bm conjuntura
rein q La hs ncia das estruturas não-econômicas pela
cia" era a condição ao 168 determinação em última instân-
dos
8 Necenticdaço e da inteligibilidade
deslocamentos das nTn Horatauia da eficácia, ou do deslo-
camento da “dominância” na
últi e os níveis estruturados do todo; que
só essa “determinação em última instância” permitia escapar ao re-

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O OBJETO DI “O CAPITAL 39

lativismo arbitrário dos deslocamentos observáveis, dando a esses


deslocamentos a inevitabilidade de uma função.

Se esse for de fato o tipo de unidade peculiar da totalidade mar-


xista, resultam daí importantes consequências teóricas.

Em primeiro lugar, é impossível pensar a existência dessa totali-


A
dade na categoria hegeliana da contemporaneidade do presente.
coexistência dos diferentes níveis estruturados: O econômico, o polí-
da su-
tico, o ideológico, etc., portanto da infra-estrutura econômica,
teóricas
perestrutura jurídica e política, das ideologias e formações
(filosofia, ciências) não pode ser pensada na coexistência do presente
a presença
hegeliano, desse presente ideológico em que coincidem
E, por
temporal e a presença da essência com os seus fenômenos.
que é O
conseguinte, o modelo de um tempo contínuo e homogêneo,
já não pode
lugar da existência imediata dessa presença continuada,
ser tomado como o tempo da história.
rá mais tangi-
Comecemos por esta última questão, que torna
num primeiro en-
veis as consequências desses princípios. Podemos,
sta, que já não
foque, concluir da estrutura específica do todo marxi do desenvol-
esso
é possível pensar no mesmo tempo histórico o proc histórica
existência
vimento dos diferentes níveis do todo. O tipo de
nível devemos,
desses diferentes “níveis” não é o mesmo. A cada
mente autônomo,
pelo contrário, atribuir um tempo próprio, relativa
própria dependência,
portanto relativamente independente, em sua
e podemos dizer: há,
«dos “tempos” dos demais níveis. Devemos
história peculiares,
para cada modo de produção, um tempo e uma
vimento das forças pro-
escandidos de modo específico, do desenvol
de produção, escan-
dutivas; tempo e história peculiares às relações
superestrutura poli-
didos de maneira específica; história peculiar da
o e história pecu-
tica: tempo e história peculiares à filosofia...; temp
peculiares às elabo-
liares às produções estéticas...; tempo € história
iares é escan-
rações científicas, etc. Cada uma dessas histórias pecul
a sob a condi-
dida segundo ritmos peculiares e só pode ser conhecid
sua tempora-
ção de ter determinado o conceito da especificidade de , re-
lidade histórica,e de suas escansões (desenvolvimento contínuo
e cada uma dessas
volução, cortes, etc.). Que cada um desses tempos
que consti-
histórias sejam relativamente autônomos não significa ificidade
a espec
tuam outros tantos domínios independentes do todo:
histórias, em outras
de cada um desses tempos, de cada uma dessas
palavras, sua autonomia e independência relativas, fundam-se em
certo tipo de articulação no todo, e, portanto, em certo tipo de de-
pendência em relação ao todo. A história da filosofia, por exemplo,

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40 LER “O CAPITAL”

não é uma história independente por direito divino: o direito dessa


história a existir como história específica é determinado pelas rela-
ções de articulação, e, pois, de eficácia, relativas, existentes no inte-
rior do todo. A especificidade desses tempos e dessas histórias é por-
tanto diferencial, dado que fundada nas relações diferenciais existen-
tes no todo entre os diferentes níveis: o modo e o grau de indepen-
dência de cada tempo e de cada história são, pois, determinados com
inevitabilidade pelo modo e grau de dependência de cada nível no
conjunto das articulações do todo. Conceber a independência “rela-
tiva” de uma história e de um nível jamais pode, pois, reduzir-se
mesmo à
à afirmação positiva de uma independência no vazio, nem
simples negação de uma dependência em si: conceber essa “indepen-
tipo de
dência relativa” significa definir sua “relatividade”, isto é, o
inevitável
dependência que produz e determina como seu resultado
determinar, no
esse modo de independência “relativa”; significa de
no todo, esse tipo
nível das articulações das estruturas parciais
dependência produtora da independência relativa cujos efeitos ob-
servamos na história dos diferentes “níveis”.

dade e à inevitabili-
Esse princípio é que fund amenta a possibili pectivamente à
dem res
dade de histórias diferentes q ue correspon
nos autoriza à falar de
cada um desses “níveis”. Esse princípio é que que das ideologias, de uma
história
uma história das religiões, de uma
ória da arte, de uma história das
história da filosofia, de uma hist
mas, pelo contrário, nos Impon-
ciências, sem jamais nos dispensar,
ncia relativa de cada uma des-
do-a obrigação de pensar a independê
hist ória s na dep end ênc ia esp ecí fica que articula os diferentes
sas se
al. Esta a razão pela qual,
níveis uns com os outros no todo soci
s histórias diferentes, que são ape
temos o direito de constituir essa
poderíamos contentar com O
nas histórias diferenciais, não nos toriadores de nos-
constatar - como o fazem não raro os melhores his
rela-
sa época - a existência do tempo e de ritmos diferentes, sem os
cionar com o conceito de sua diferença, isto é, com à dependência
-
típica que os fundamenta na articulação dos níveis do todo. Portan
o fazem alguns historiadores mod,ern€ os,
to, não basta dizer, comoerente que
que há periodizações dif s segundo os diferentes termos
os, outros longos, impõe-se
cada tempo possui seus ritmos, uns lent nças de ritmos e de escan-
pensar esses diferentes ritmos, essas difere
de deslocamento €
do, em seus fundamentos, no tipo de articulação, s
ess es dif ere nte s tempos entre si. Digamo tar
db a Dad ni s além, que não nos devemos con ten
com o refletir Rj A mai áveis,h
exi : veis € mensur
stência de tempos visí
io, absolutamente necessário, propor a questão
qu : ,
mas
da E do , por
ência de tempos invisíveis, ritmos e escansões invist-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 41

veis a discernir sob as aparências de cada tempo visível. A simples


leitura de O Capital mostra-nos que Marx foi profundamente sensí-
vel a essa exigência, Mostra, por exemplo, que o tempo da produção
econômica, se é um tempo específico (diferente segundo os diferen-
tes modos de produção), é, como tempo específico, um tempo com-
plexo não-linear - mas um tempo de tempo, tempo complexo que se
pode ler na continuidade do tempo da vida ou dos relógios, mas que
O
é preciso construir a partir das estruturas próprias da produção.
deve ser
tempo da produção econômica capitalista que Marx analisa
ser cons-
construído em seu conceito. O conceito desse tempo deve
assinalam as
truído a partir da realidade dos ritmos diferentes que a
e da distribuição:
diferentes operações da produção, da circulação
s, por exemplo, a di-
partir dos conceitos dessas diferentes operaçõe
de trabalho, a diferen-
ferença entre o tempo da produção e o tempo tal fixo, do ca-
ça dos diferentes ciclos da produção (rotação do capi
ção monetária, rotação do
pital circulante, do capital variável, rota
etc.). O tempo da produção
capital comercial e do capital financeiro,
sta nada tem a ver absolu-
econômica no modo de produção capitali
ideológico da prática quotidiana:
tamente com a evidência do tempo
certos lugares determinados, no
está, sem dúvida, enraizado em
alternância entre O trabalho e o
tempo biológico (certos limites de
humana€ animal; certos ritmos
repouso para a força de trabalho em nada, em sua es-
não se identifica
para a produção agricola), mas
e não é de modo algum um tempo
sência, com esse tempo biológico, pro-
no transcurso deste ou daquele
que possa [er-se imediatemente ilegível por essência, tão
Trat a-se de um temp o invis ível,
cesso dado. da
l e tão opac o quan to à próp ria realidade do processo total
invisíve sível, como “entrecruza-
não é aces
produção capitalista. Esse tempo
tempos, dos diferentes ritmos, TO-
mento” complexo dos diferentes não ser em seu conceito, que
falar, a
tações, etc. de que acabamos de el
todo conc eito jama is é “dad o” imediatamente, jamais legív
como conceito, deve ser pro-
como todo
na realidade visível: esse conceito,
duzido, construído. político e do tempo ideológi-
mo pode dize r-se do temp o
O mes
e do tempo científico, sem falar
co, do tempo teórico (filosófico)
um exemplo. O tempo da histó-
também do tempo da arte. Vejamos vé-
iatamente legível: sem dúvida,
ria da filosofia também não é imed
filosófos, e podemos tomar
se, na cronologia histórica, sucederem-se
No caso ainda, impõe-se rejei-
essa sequência pela própria história. e cuidar de cons-
do visível,
tar os conceitos ideológicos da sucessão
filosofia. E para construir esse
fruir o conceito do tempo da história da rença específica
a dife
conceito, é absolutamente imperioso definir
es (ideológicas e
do filosófico entre as formações culturais existent do Teórico
ao nível
científicas); definir o filosófico como pertencente

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42 LER “O CAPITAL”

ções diferenciais do Teórico como tal


como tal: e determina r as rela
com, de um lado, as di ferentes
práticas existentes, € de outro, a ideo-
nir essas relações diferenciais é defi-
logia e, enfim o científico. Defi
nir o tipo de articulação pe culiar ao Teórico (filosófico) com essas ou-
rea lid ade s; por tan to, defi nir a articulação peculiar da história
tras
ias das práticas diferentes, com a his-
da filosofia com as histór
das ciências. Mas isso não basta:
das ideologias e com à história filosofia,
filosofia, é preciso definir, na
para construir O conceito de formações filosóficas propria-
espe cífi ca que cons titu i as
a realidade refer ir para pensar à própria pos-
, e à qual nos dev emo s
mente ditas fas
de de acon teci ment os filo sófi cos. Trata-se de uma das tare
sibilida de his-
de tod o tra bal ho teó ric o de produção d o conceito
essenc iai s
ini ção rig oro sa do fa to histórico como tal.
tória: dar uma def tópico, menciono aqui ape
nas
adi ant ar- me à ess e
Sem pretender tór ico , em sua generalidade, entre
ini r co mo fat o his
que se pode def histórica , Os fa-
se produzem na existência
todos os fenômenos que as relações estruturais
existentes.
am co m um a mu ta çã o
tos que afet a
da fil oso fia ser á pre cis o tam bém, para po der falar del
Na história filosófi-
uma his tór ia, adm iti r que nela se produzem fatos
como de
de alcance histórico, isto é, muito pre-
“cos, acontecimentos filosóficos relações
nte fat os fil osó fic os que produzem mutação real nas
cis ame o, à problemática teórica exis-
fic as exi ste nte s, no cas
estruturais filosó visíveis e que, pelo
tente. Claro está que nem sempre esses fatos são
ce est are m no mai s das vezes ocultos, sendo objeto
“contrário, aco nte
uma verdad eira negação histórica mais
“de um verdadeiro recalque,
dur áve l. Por exe mpl o, a mu ta ção da problemática dogmá-
ou menos cimento filosófico
tica clássica pelo empirismo de Locke é um aconte
alc anc e his tór ico , que do mi na ainda hoje a filosofia crítica idea-
de XVIII bem como Kant Fichte e
lista, como dominou todo o século , sobret udo em seu longo alcance
inclusive Hegel. Esse fato histórico
tic ula r sua imp ortânc ia em pri meiro plano para à com-
(e em par Hegel) é
preensão do pensam ento do idealismo alemão, de Kant à
é avaliado em sua verdadeira pro-
não raro conjecturado; raramente solutamente decisivo na
fundidade. Ele desempenhou um papel ab te
xista, e somos ainda em grande paruz
interpretação da filosofia marmpl fia de Spinoza introd
prisioneiros dele. Outro exe o: a filoso
osofia, e sem
dóvi jo pr sem precedente na história da fil, a ponto de
dorán as Anos rovolução Alosófica de todos os tempos
único antepassado diretoaddea M arxo. pap iáentvêantnh a rev
o, a essAlg do,çãoqa
sálolu radi-
um No
foi objeto de ocorreu
gal
com a filosofia sninozis mento histórico prodigioso, e
a spi noz ist a qua se ofi mesmo h que está acontecendo ain-
da em certos paí ses com , a filoso ia marxista: serviu de pecha infa-
nÁiiasaça ão
indi parndaa acu l s
de "atelsmo”, A insistência com« jug os ; séc
sécuulo

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 43

XVII e XVIII oficiais combateram animosamente a memória de


Spinoza, a distância que todo autor devia infalivelmente tomar em
relação a Spinoza para ter o direito de escrever (cf. Montesquieu),
atestam não apenas a repulsa, mas também o extraordinário atrati-
vo do seu pensamento. A história do spinozismo recalcado da filo-
sofia transcorre então como uma história subterrânea que atua em
outros lugares, na ideologia política e religiosa (o deísmo) e nas ciên-
cias, mas não no palco iluminado da filosofia visível. E quando o
spinozismo aparece em cena, na “querela do ateísmo” do idealismo
menos
alemão, e depojs nas interpretações acadêmicas, é mais ou
sugerir
sob o signo do mal-entendido. Já disse O bastante, creio, para
, a cons-
em que caminho deve seguir, em seus diferentes domínios
construção desse
trução do conceito de história; para mostrar que a
tem a ver com
conceito produz sem dúvida uma realidade que nada
pela crônica.
a sequência visível dos acontecimentos registrados
que o tempo do
Do mesmo modo que sabemos, desde Freud,
da biografia, que se im-
inconsciente não se confunde com o tempo
do tempo do inconsciente
põe, pelo contrário, construir o conceito
s da biografia, do mesmo
para chegar à compreensão de certos traço tempos históri-
diversos
modo é preciso elaborar Os conceitos dos
lógica da continuidade
cos, que jamais são dados na evidência ideo
ntemente por uma boa pe-
do tempo (que bastaria recortar convenie
da história), mas que de-
riodização para transformá-lo em tempo encial e da articulação
vem ser elaborados a partir da natureza difer
do todo. Haverá necessidade
diferencial de seu objeto na estrutura
encermos disso? Leiam-se os notá-
de outros exemplos para nos conv
e a “história da loucura” e
veis estudos de Michel Foucault sobr
uma idéia da distância que
sobre o “nascimento da clínica” e se terá
nica oficial, em que uma dis-
pode separar as belas sequências da crô refletir, sua boa
s fazem do que
ciplina ou uma sociedade nada mai
sua mã consciência - da tem-
consciência, quer dizer, a máscara de
rada que constitui a essência do
poralidade absolutamente inespe formações
olvimento dessas
processo de constituição e de desenv que permita lê-la no conti-
a história nada tem
culturais: a verdadeir
que baste escandir e recortar; ela
nuo ideológico de um tempo linear extremamente
trário, uma temporalidade própria,
possui, pelo con
ante a simplicidade de-
complexa, e, é claro, totalmente paradoxal
er a história de for-
sarmante do preconceito ideológico. Compreenddo advento do “olho
mações culturais tais com o a da “lou
cura” a
balho, não de abstração,
clínico” em medicina, supõe um imenso tra identifi-
rio objeto,
mas trabalho na abstração, para construir o próp
à conceito de sua história.
cando-o, € construir, por conseguinte,
Nesse caso, estamos em posição rigorosamente oposta à história

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44 LER “O CAPITAL"

empírica visível, em que o tempo de todas as histórias é o tempo


simples da continuidade, e o “conteúdo” o vazio de acontecimentos
que nele se produzem, e que se tenta depois determinar segundo mé-
todos de recortagem para “periodizar” essa continuidade. Em vez
o mis-
“dessas categorias do contínuo e do descontínuo que resumem
mente
tério vulgar de toda história, lidamos com categorias infinita
em que ocor-
mais complexas, especificas segundo o tipo de história,
hegelianos -
rem novas lógicas, em que, evidentemente, os esquemas
da “lógica do movi-
que não passam de sublimação das categorias
e aproximativo, e
mento e do tempo” - têm apenas valor altament (indicativo)
aproximativo
ainda, sob condição de fazer delas um uso
Se devêssemos tomar es-
correspondente à sua aproximação - porque
uadas, o emprego delas
sas categorias hegelianas por categorias adeq baldado ou
e praticamente
se tornaria então teoricamente absurdo,
catastrófico.
histórico complexo dos
Essa realidade específica do tempo
ser submetida à experiência
níveis do todo, paradoxalmente, pode
específico e complexo, da pro-
tentando-se a aplicação, a esse tempo
da estrutura da contempo-
va do “corte de essência”, prova decisiva
mesmo que efetuado no re-
raneidade. Corte histórico desse gênero,
para fenômenos de mutação
corte de uma periodização consagrada
seja na ordem política — jamais
superior - seja na ordem econômica,
à estrutura da chamada
extrai qualquer “presente” que possua
correspondente ao tipo de unidade
“contemporaneidade”, presença
coexistência que se verifica no
expressiva ou espiritual do todo. A
essência onipresente, que
“corte de essência” não revela qualquer
“níveis”. O corte que “vale
seja o próprio presente de cada um dos econômico - que portanto
ou
para determinado nível, seja político
a um “corte de essência” para O político, por exemplo -
corresponda para outros níveis: economi-
não corresponde a nada de semelhante
- que vivem em outros
co, ideológico, estético, filosófico, científico ritmos
outros e outras pontua-
“tempos, e passam por outros cortes,
dizer, à ausência de outro,
ções. A presença de um nível é, por assimde ausências é apenas efeito
e essa coexistência de uma *'presença” e O que se capta
da estrutura do todo em sua descentração articulada. à
assim como ausências numa presença localizada é precisamente
exatamente, O tipo de
não-localização da estrutura do todo ou, mais
eficácia própria da estrutura do todo sobre os seus “níveis” (por Sus
desses níveis. O que esse
vez estruturados) e sobre os “elementos” ausências que ele
impossível corte de essência revela é, nas próprias
mostra em negativo, a forma de existência histórica peculiar à uma
social decorrente de determinado modo de produção, O
formação
po pequi VAGO a que Marx chama processo de desenvolvi-
» de produção determinado, Esse processo é ainda

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 45

aquele que Marx, ao falar em O Capital do modo de produção capi-


talista, chama de tipo de entrelaçamento dos diferentes tempos (e ele
se contenta então com o falar só do nível econômico), isto é, o tipo.
de “defasagem” (décalage) e de torção das diferentes temporalida-
des produzidas pelos diferentes níveis da estrutura, cuja combinação
complexa constitui o tempo peculiar do desenvolvimento do processo.

Para evitar qualquer mal-entendido sobre o que acabo de dizer,


creio necessário acrescentar as observações a seguir.
A teoria do tempo histórico que acabo de esboçar permite fun-
damentar a possibilidade de uma história dos diferentes níveis, con-
siderados em sua autonomia “relativa”. Mas não se deveria deduzir
disso que a história é constituída pela justaposição das diferentes
“histórias “relativamente” autônomas, das diferentes temporalidades
históricas, de curta duração umas e de longa duração outras, no
transcurso de um mesmo tempo histórico. Em outras palavras, uma
vez recusado o modelo ideológico de um tempo contínuo, suscetível
de cortes de essências do presente, é preciso evitar a substituição.
dessa representação por outra de aspecto diferente mas que restaure
por baixo a mesma ideologia do tempo. Não pode, pois, ser o caso,
de relacionar a um mesmo tempo ideológico de base a diversidade
das diferentes temporalidades, e avaliar, na mesma linha de um tem-
po contínuo de referência, a sua defasagem, e que'nos contentaria-
mos então em pensar como atraso ou avanço no tempo, portanto
nesse tempo ideológico de referência. Se em nossa nova concepção
ele é
tentarmos efetuar o “'corte de essência”, iremos constatar que
diante
impossível. Mas isso não quer dizer que nos achemos então
em que
de um corte desigual, corte em degraus ou dentes múltiplos,
de um
figurem, no espaço temporal, o adiantamento ou o atraso
Ferroviária em
tempo em relação a outro, como nas tabelas da Rede
um
que o adiantamento ou atraso dos trens são representados por
avanço ou atraso espaciais. Se fizéssemos isso, cairiamos, como
na arma-
acontece com fregliência entre os melhores historiadores,
pas-
dilha da ideologia da história, em que o avanço e o atraso não
sam de variantes da continuidade de referência, e não efeitos da es-
trutura do todo, Com todas as formas dessa ideologia é que se im-
põe romper para relacionar corretamente ao seu conceito os fenô-
menos constatados pelos próprios historiadores, ao conceito de his-
tória do modo de produção considerado - e não à um tempo ideoló-
gico homogêneo e contínuo.
Essa conclusão é da maior importância para a determinação
que desempe-
correta do estatuto de uma série completa de noções,
nham grande papel estratégico na linguagem do pensamento econô-

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46 LER “O CAPITAL”

mico e político de nosso século, por exemplo, as noções de desigual-


dade do desenvolvimento, de sobrevivência, de atraso (atraso da cons-
ciência) no próprio marxismo, ou a noção de “subdesenvolvimento”
na prática econômica e política atual, É-nos necessário, pois, no que
tange a essas noções, que têm na prática consegiências de grande al-
cance, esclarecer devidamente o sentido que convém dar ao conceito
de temporalidade diferencial.

| Para atender a essa exigência, temos uma vez mais que purificar
nosso conceito de teoria da história, de modo radical, de toda conta-
minação pelas evidências da história empírica, pois sabemos que
essa “história empírica” nada mais é que o aspecto desnudo da ideo-
logia empirista da história. Devemos, contra essa tentação empirista
dos.
cujo peso é imenso - e que no entanto não é sentido pelo comum
pe-
homens, e inclusive por certos historiadores, como não é sentido
los homens deste planeta o peso da enorme camada atmosférica que
“os esmaga -, ver e compreender claramente, sem qualquer equi-
pode ser empírico, Isto
voco, quê o conceito de história não mais
é, histórico no sentido vulgar, que, como já dizia Spinoza, 0 conceito
à
de cão não pode ladrar. Devemos conceber do modo mais rigoroso
en-
necessidade absoluta de libertar a teoria da história de qualquer
volvimento com a temporalidade “empírica”, com à concepção
ideológica do tempo que a sustenta e encobre, com essa noção ideo-
suD-
lógica de que a teoria da história possa, enquanto teoria, estar
metida às determinações “'concretas” do “tempo histórico”, sob O
pretexto de que esse “tempo histórico” constituiria seu objeto.
Não devemos alimentar ilusão sobre a força incrível desse pre-
constitui O estofo do
conceito, que a todos nós domina ainda, e quea confundir o objeto do
historicismo contemporâneo, e que nos levaria
en-
conhecimento com o objeto real, afetando o objeto de conhecim
de que ele € conheci-
“to das “qualidades” próprias do objeto real
mento, O conhecimento da história não é histórico, tanto quanto
esse
não é açucarado o conhecimento do açúcar. Mas antesseráqueneces
sem dúvida
princípio singelo “penetre” nas consciências,
Sária uma “história” inteira, Contentemo-nos por ora com O escla-
recimento de alguns pontos. Cairíamo s, com efeito, na ideologia do
sse-
tempo contínuo-homogênco-contemporâneo a si, caso relacioná
mos a esse único e mesmo tempo as diferentes temporalidades há
onio PprANonadas, como outras tantas descontinuidades = no
sobrevivências ana pensássemos então como atrasos € ade
nesse tempo deu esigualdades de desenvolvimento parçor, ins-
tituindo, de nen ima, a despeito de nossas recusas, sta ram pr
mediríamos essas o tempo de referência, na continuida e do 1
esigualdades. Muito pelo contrário, temos de

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 47

€ unica-
considerar essas diferenças de estruturas temporais como,
dos diferentes
mente como, índices objetivos do modo de articulação
conjunto do todo.
elementos ou diferentes estruturas na estrutura de
r na história esse
Isso equivale a dizer que, se não podemos efetua
“corte de essência”, há de ser na unidade específica da estrutura
ito desses pretensos
complexa do todo que devemos pensar O conce
de desenvolvimento
atrasos, avanços, sobrevivências, desigualdades nte da
nte histórico real: o prese
que co-existem na estrutura do prese tem,
nciais não
difere
conjuntura. Falar de tipos de historicidade em que pu-
pois, sentido algum em referência a um tempo de base
os.
dessem ser medidos esses atrasos e avanç
r que O sentido último da
Por outro lado, isso equivale a dize
do avanço, etc. deve ser procurado
linguagem metafórica do atraso,
rut ura do todo , no luga r pró pri o deste ou daquele elemento,
na est plexidade do todo.
al na com
peculiar a determinado nível estrutur rencial é, pois, ter absoluta
dife
Falar de temporalidade histórica em sua articulação própria, a
de situ ar o luga r, e pens ar,
obrigação
de cert o ele men to ou de cert o nível na configuração atual do
função
articulação desse elemento em fun-
todo; é determinar a relação de a em função das demais es-
utur
ção dos demais elementos, dessa estr o que veio a ser chamado de
sua
; é ser obr iga do a defi nir
truturas
ou sub det erm ina ção , em função da estrutura de
sobredetermi naç ão outra
ção do todo ; é ter a obrigação de definir o que em
determ ina ce de
de índice de determinação, índi
linguagem poderíamos chamar men to ou à estrutura em que o,
stã
estã o dot ado s o ele
eficácia de. que do todo. Por índice de eficácia
na est rut ura de con jun to
atualmente os domi-
s ent end er o cará ter de determinação mais OU men
podemo os “parado-
tanto, sempre mais OU men
nante ou subordinado, por dados no mecanismo atual
do to-
ele men to ou estr utur a
xal”, de um ia da conjuntura, indispensáve
l à
nad a mai s é do que a teor
do. E isso
teoria da história
a int enç ão ap ro fu nd ar essa análise, que está quase
Não é mi nh r duas conclusões
toda por ser elabor ada. Vou limitar-me à extrai cro-
princípios: uma , ref ere nte aos conceitos de sincronia e dia
desses to de história,
ao concei
nia e, a outra, referente é claro que o par
dissemos tem um sentido objetivo,
1º Se o que
-di acr oni a é O lug ar de um desconhecimento, pois a tomá-
sincronia já que
por con hec ime nto fic a-s e no vazio epistemológico, isto é, -
Jo
no pleno ideológico, precisamente
a ideologia tem medo do vazio - tempo seria
de uma história cujo
no cerne da concepção ideológicaâneo
contínuo-homogêneo-contempor a si, Se essa concepção ideo-
aparece o par. En-
lógica da história e de seu objeto cai, também des

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48 LER “O CAPITAL”

ção
tretanto, uma coisa dele permanece: o que é visado pela opera
, precisa-
epistemológica de que esse par é a reflexão inconsciente
despojada de
mente essa operação epistemológica em si, uma vez
nada tem a
sua referência ideológica. O que é visado pela sincronia
mas, pelo
ver com a presença temporal do objeto como objeto real, ou-
e a presença de
contrário, tem a ver com outro tipo de presença,
to, não o tempo
tro objeto: não a presença temporal do objeto concre
mas a presença
histórico da presença histórica do objeto histórico,
a análise teórica,
(ou o “tempo”) do objeto de conhecimento da própri
rônico é tão-só a
a presença do conhecimento. Por conseguinte, o sinc
os diferentes ele-
concepção das relações específicas existentes entre
do todo; é o conheci-
mentos € as diferentes estruturas da estrutura mam
que a transfor
mento das relações de dependência e articulação no sen-
num todo orgâ nico, num sistema. O sincrônico é a eternidade
de sua complexidade.
tido spinozista, ou conhecimento adequado rica con-
sucessão histó
precisamente isso o que Marx distingue da
creto-real, ao perguntar:

a apenas do movimento, da
Com efeito, como é que a fórmula lógic
corpo da sociedade, no qual todas
sucessão, do tempo, poderia explicar o
ltaneamente .e se sustentam mu-
as relações econômicas coexistem simu
tuamente? (Misêre de la Philosophie, p. 120.)

a ver com à simples pre-


Ora, se a sincronia é isso, ela nada tem
conhecimento da articula-
sença temporal concreta, mas refere-se ao nça
não é essa co-prese
ção complexa que faz do todo um todo. Ela
ade do objeto de conheci-
concreta - é o conhecimento da complexid
mento, o que dá o conhecimento do objeto real,
tirar con-
Se assim é no que diz respeito à sincronia, devemos é a con-
que
clusões semelhantes no que se refere à diacronia, dado
da essência à
cepção ideológica da sincronia (da contemporaneidade mostrar
si) que funda a concepção ideológica da diacronia. Basta
a fazem desempenhar o papel da história,
como, nos pensadores que desnud
a diacronia confessa o seu amento, A diacronia é reduzida ao
co: o his-
factual, e aos efeitos do factual sobre a estrutura do sincrôni
tórico é então o imprevisto, o acaso, o peculiar do fato, que surge Ou
o por motivos contingentes no contínuo vazio do tempo. O projeto
neste contexto,
rolos Aimar ia estrutural” estabelece então,
sas que L Soltas cuja reflexão laboriosa encontramos nas passa-
sdiánio Que rata lhe dedica na Antropologia estrutural, De fato,
provocadr dOMOtULITAaçõesSese tempo vazio 6 [atos pontuais poderiam
andina reestruturações do sincrônico? Uma vez
Dlocada em seu lugar sincronimaia, , o sentido “concreto” da diacro-
ainda anada
nia cai, e no caso a mais resta dela a não ser O seu uso epis-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 49

temológico possível, sob condição de que se faça passar por uma


conversão teórica e a considerar em seu verdadeiro sentído, como
uma categoria, não do concreto, mas do conhecer. A diacronia pas-
sa então a ser nada mais que o falso nome do processo, ou o que
Marx chama de desenvolvimento das formas." Mas, no caso aínda,
estamos no conhecimento, no processo do conhecimento, e não no
desenvolvimento do concreto-real. *

2º Passo ao conceito de tempo histórico. Para o definir com ri-


gor, temos de admitir a condição seguinte: dado que esse conceito só
pode fundar-se na estrutura complexa com dominante e articulações
diferenciais da totalidade social, que uma formação social decorren-
te de certo modo de produção constitui, seu conteúdo só pode ser
percebido em função da estrutura dessa totalidade - seja considera-
“níveis”.
da em seu conjunto, seja considerada em seus diferentes
o de tempo
Em particular, não é possível dar conteúdo ao conceit fcrma es-
como a
histórico, a não ser definindo o tempo histórico,
da totalidade social considerada, existência
pecífica da existência interfe-
em que diferentes níveis estruturais de temporalidade
não-
rem em função das relações peculiares de correspondência,
e torção que mantêm mu-
correspondência, articulação, defasagem
unto do todo, os diferentes
tuamente, em função da estrutura de conj
m como não há produção
“níveis” do todo. Devemos dizer que, assi
mas estruturas específicas da his-
em geral, não há história em geral,
a em estruturas específicas
toricidade, fundadas em última instânci ori-
estruturas específicas da hist
dos diferentes modos de produção, formações sociais determi-
cidade que, sendo apenas à existência de
ão específicos), articuladas
nadas (pertencentes a modos de produç
ão da essência dessas totalida-
como todos, só têm sentido em funç
ade própria.
des, isto é, da essência de sua complexid

=
1 Cf.t, |, cap. 1, parágrafo 13, críti ca do empi rism o la-
mal-entendido, que essa
* Acrescento, para evitar qualquer ardo de “dia crôn ico” ,
corrente do conceito bast
tente que frequenta hoje o emprego ricas . Por exem plo, a
das transformações histó
não atinge evidentemente a realidade essa real idad e (o
a outro. Se quisermos designar
passagem de um modo de produção remos
as) como sendo a “diacronia”, não esta
fato da transformação real das estrutur estát ico) ou,
histórico (que jamais é puramente
com isso designando senão o próprio el. Mas
o que se transforma de modo visív
por uma distinção interior ao histórico, (“o
transformações, não mais se está no real
quando se quer pensar O conceito dessas aca-
que atua à dialética epistemológica que
diacrônico”), mas no conhecimento, em conc eito , € O “des envo lvi-
real em si: o
bamos de expor, a propósito do “diacrônico” se mais adiante o texto de Balibar.
to a isso, veja-
mento das suas formas”, Quan

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50 LER “O CAPITAL”

Essa definição do tempo histórico por seu conceito teórico inte-


ressa diretamente aos historiadores e à sua prática, Porque ela atrai
a atenção deles para a ideologia empirista que domina poderosa-
mente, com poucas exceções, todas as variedades de história (seja a
história no sentido amplo, ou a história especializada: econômica,
social, política, da arte, da literatura, da filosofia, das ciências, etc.).
Falando de modo brutal, a história vive na ilusão de que pode dis-
pensar a teoria, no sentido estrito a teoria do seu objeto, e, portan-
to, dispensar uma definição do seu objeto teórico. O que lhe serve de
teoria, o que, a seu ver, assume o lugar dela, é a metodologia, isto é,
as normas que lhe regem as práticas efetivas, práticas centradas na
nela assu-
crítica dos documentos e na restauração dos fatos. O que
A his-
me o lugar de objeto teórico é, a seu ver, O objeto “concreto”. toma
que lhe falta, e
tória toma, pois, a sua metodologia pela teoria
ideológico pelo ob-
o “concreto” das evidências concretas do tempo
ideologia empiris-
jeto teórico. Essa dupla confusão é típica de uma e corajoso de
consciente
ta. O que falta à história é o enfrentamento
o problema da natureza€
um problema essencial a qualquer ciência: a teoria interior à
por isso
da constituição de sua teoria. Entendo
teóricos que fundamenta
própria ciência, o sistema dos conceitos
experimental, e que ao
qualquer método e toda prática, inclusive Ora, salvo Exceções, os
mesmo tempo define o seu objeto teórico. e urgente para Sina
vital
historiadores não enfrentam o problema
É como acontece inevitavel-
ria: o problema da teoria da história.
científica é ocupado por
mente, o lugar deixado vazio pela teoria exibir-se, até no
podem
uma teoria ideológica, cujos efeitos nefastos dos historiadores.
pormenor, no próprio plano da metodologia de
a possui, poiis, O mesmo ipoje
ênci |, po
O objeto da hiissttóórriia como cijênci e
ic a, e se es tabe le ce no me smo nível teórico que
ór
existência teomia rença quesatá
to da econ política segundo Marx, A única dife
— de que O Capit a E
pode apurar entre a teoria da economia política decorre de Que”
um exemplo - e a teoria da história como ciência,
apenas uma parte relativa
teoria da economia política considera
mente autônoma da total idade social, ao passo que a teorta da histo-
como tal por objeto.
ria toma em princípio a totalidade complexa di-
do ponto de vista teórico, qual quer
Aforaça essa diferença, nãoda há,
economia política e a ciência da história.
feren entre a ciência
, entre O curáter “abstra-
o A oposição, frequentemente invocada
eto” da história como
to” de O Capital e o pretenso caráter “concr dizer algu-
ciência, é puro e simples mal-entendido, sobre o qual vale preconcel-
iado no reino dos
ma coisa, pois ele ocupa lugar privileg nomia politica se
tos em que viv emo que a teoria da eco
s.olvOe fato de est
elab ora e se des env na inv igação de certa matéria-prima for-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 51

necida em última instância por práticas da história concreta, real -


que possa e deva realizar-se em análises econômicas consideradas
concretas” e referentes a esta ou aquela conjuntura, a esta ou aque-
la formação social, a este ou aquele período - encontra o equivalen-
te exato no fato de que a teoria da história se elabora e se desenvolve
também numa investigação de certa matéria-prima produzida pela
história concreta real e que encontre também sua realização na “a-
nálise concreta” das “situações concretas”. Todo o mal-entendido
advém de que a história não mais existe a não ser sob essa segunda
forma, como “aplicação” de uma teoria... que a rigor não existe e
que, por isso, as “aplicações” da teoria da história se fazem de certo
modo no dorso dessa teoria ausente, e se tomam naturalmente por
ela... a menos que não se apóiem (porque lhes é necessário um mini-
mo de teoria para existir) em esboços de teoria mais ou menos ideo-
lógicos. Devemos encarar a sério o fato de que a teoria da história, no
sentido rigoroso, não existe, ou que só existe para Os historiadores,
que os conceitos de história existentes são, pois, no mais das vezes
conceitos “empíricos” mais ou menos à procura do fundamento teó-
ideologia
rico - “empíricos”, isto é, fortemente mestiçados com uma
es
que se dissimula sob as suas “evidências”. É o caso dos melhor
por sua
historiadores que se distinguem precisamente dos demais
em que:
preocupação teórica, mas que procuram à teoria num nível
histórica, que
ela não se pode encontrar, no nível da metodologia
não pode definir-se fora da teoria que a fundamenta.
no sentido
No dia em que existir história também como teoria,
ciência teórica e
que acabamos de definir, sua dupla existência como
mas, a exemplo da
como ciência empírica não mais suscitará proble
política como ciên-
dupla existência da teoria marxista da economia teórico do
O desequilíbrio
cia teórica e ciência empírica, Neste dia,
política /ciência preten-
par cambado: ciência abstrata da economia
recido, e com ele todos
samente “'concreta” da história, terá desapa
dos mortos e da comu-
os sonhos e ritos religiosos da ressurreição historiadores
Michelet os
nhão dos santos, que cem anos depois de
, não nas catacumbas, mas
passam ainda o seu tempo a comemorar
nas praças públicas do nosso século.
presente con-
Acrescentarei uma palavra ainda a esse assunto. A n-
como prete
fusão entre história como teoria da história e história
do seu
sa “ciência do concreto”, a história tomada no empirismo
à teo-
objeto e o confronto dessa história empírica “concreta” com
número
ria “abstrata” da economia política, são a raiz de um sem-
de confusões conceptuais e falsos problemas. Pode mesmo dizer-se
que esse mal-entendido produz por si mesmo conceitos ideológicos
cuja função consiste em preencher a distância, isto é, o vazio existen-

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52 LER “O CAPITAL”

te entre a parte teórica da história existente e a história empírica


(que é não raro a história existente). Não pretendo passar em revista
esses conceitos; para tanto seria necessário um estudo completo.
Destacarei apenas três como exemplo: os pares clássicos essência /fe-.
nômenos, necessidade /contingência e o “problema” da ação do in-
dividuo na história.

O par essência /fenômenos encarrega-se, na hipótese economi-


cista ou mecanicista, de explicar o não-cconômico como fenômeno
do econômico, que é sua essência, Sub-repticiamente, nessa opera-
ção, o teórico (e o “abstrato”) estão do lado do econômico (visto
que temos a teoria dele em O Capital), e o empírico, o “concreto”,
do lado do não-econômico, isto é, do lado do político, da ideologia,
etc. O par essência /fenômeno desempenha bem esse papel, se consi-
derarmos o fenômeno como o concreto, o empírico, e a essência
como o não-empírico, como o abstrato, como a verdade do fenôme-
(eco-
no. Com isso se estabelece essa relação absurda entre o teórico
nômico) e o empírico (não-econômico) num passo de dança que
- O
compara o conhecimento de um objeto com a existência de outro
que nos leva a um paralogismo.

O par necessidade/contingência, ou necessidade /acaso é da


mesma espécie, e destina-se à mesma função: preencher a distância
entre o teórico de um objeto (por exemplo, a economia) € o não-
teórico, o empírico de outro (o não-econômico no qual o econômico
“abre o seu caminho”: as “circunstâncias”, a “individualidade”,
etc.). Quando se diz, por exemplo, que a necessidade “abre o seu cà-
minho” através dos dados contingentes, através de circunstâncias
diversas, etc. coloca-se uma espantosa mecânica em que são con-
frontadas duas realidades sem relação direta. À “necessidade de-
em
ão
signa, no caso, um conhecimento (p. ex., a lei de determinaç
última instância pela economia), e as “circunstâncias”, o que não é
conhecido. Mas em vez de comparar um conhecimento com outro,
coloca-se o não-conhecimento entre parênteses, e põe-se em Seu lu-
gar a existência empírica do objeto não-conhecido (a que se dá o
nome de “circunstâncias”, os dados contingentes, etc.) - o que per-
mite cruzar os termos, e realizar o paralogismo de um curto-circuito
em que se compara então o conhecimento de um objeto determinado
(a necessidade do econômico) com a existência empírica de outro
objeto (as “circunstâncias” políticas ou outras, através das quais se
diz que essa “necessidade” “abre o seu caminho”).
A mais célebre forma desse paralogismo nos é dada pelo
problema” do “papel do indivíduo na história”... trágico debate
em que se trata de confrontar o teórico ou conhecimento de um ob-

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 53

jeto determinado (por exemplo, a economia) - que representa a es-


sência da qual os demais objetos (o político, o ideológico, etc.) são
pensados como os fenômenos - com essa realidade empírica excessi-
vamente importante (politicamente!) que é a ação individual. No
caso ainda, temos diante de nós um curto-circuito de termos cruza-
«dos, cuja comparação é ilegítima: pois no caso confrontamos o co-
nhecimento de um objeto determinado com a existência empírica de
outro! Eu não gostaria de insistir nas dificuldades que esses concei-
tos apresentam para seus autores, que não podiam desembaraçar-se
de outro modo, a menos que empreendessem o questionamento
crítico dos conceitos filosóficos hegelianos (e de modo mais geral,
clássicos) que estão nesse paralogismo como veneno na água. Obser-
vo, todavia, que esse falso problema do “papel do indivíduo na his-
tória” é, no entanto, indicador de um verdadeiro problema, que de-
corre de pleno direito da teoria da história: o problema do conceito
das formas de existência históricas da individualidade. O Capital nos
dá os princípios necessários para a colocação desse problema, ao de-
finir para o modo de produção capitalista as diferentes formas da in-
dividualidade exigidas e produzidas por esse modo de produção, se-
gundo as funções de que os indivíduos são “portadores” ( Tráger) na
divisão do trabalho, nos diferentes “níveis” da estrutura. É claro, no
caso ainda, o modo de existência histórico da individualidade num
modo de produção dado não é visível a olho nu na “história”, seu
conceito deve, pois, ser construído, e como todo conceito ele reserva
surpresas, a mais crua das quais é que ele não se assemelha às falsas
evidências do “dado” - que não passa de máscara da ideologia cor-
rente. É a partir do conceito das variações do modo de existência
histórico da individualidade que pode ser enfocado o que subsiste
orindasramento do promaia, do “papel do indivíduo na história”,
que, propr
io
saia forma elzbro, 4 amPera also porque
á é
ae
é

teoria de um objeto com a existência empírica de outro. Na medida


a fi
que se confronta nele a
em que não se tenha proposto o problema teórico real (o das formas
de existência históricas da individualidade) continuaremos a : istir
ao debate na confusão - como Plekhanov, que vasculha o leito de
Luís XV para verificar que os segredos da queda do Antigo Regime
não estão lá enfurnados, ' Via de regra, , os os con E
ceitos não se escondem
4 a o

em camas.
o
*

+ Vs .
Althusser adverte, no início deste livro, sobre O caráter de in
Esta referência
do a Plekhanov exemplifica |
plifica isso. acaban
idamento da obra,
sobrea História (Editorial Presença, Lisboa 1970 pio poderá verificar em Reflexões
Mme Pompadour dentro de um contexto boi 1355.) que Plekhanov alude a
ter minado de condições
e a
. -

sociais único

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54 LER “O CAPITAL"

Uma vez elucidada, pelo menos em princípio, a especificidade


do conceito marxista de tempo histórico - uma vez criticadas como
ideológicas todas as noções comuns que sobrecarregam a palavra
história, podemos compreender melhor os diferentes efeitos que esse
mal-entendido sobre a história originou na interpretação de Marx.
A compreensão do princípio das confusões revela-nos ipso facto a
pertinência de certas distinções essenciais que, figurando em termos
adequados em O Capital, apesar disso foram não raro mal com-
preendidas.

Compreendemos em primeiro lugar que o simples projeto de


“historicizar”” a economia política clássica nos lança no impasse teó-
rico de um paralogismo em que as categorias econômicas clássicas,
em vez de serem pensadas no conceito teórico de história, são sim-
plesmente projetadas no conceito ideológico de história. Esse projeto
nos dá o esquema clássico, novamente ligado ao desconhecimen-
to da especificidade de Marx: no final, Marx teria concluído a união
da economia política clássica com o método dialético hegeliano
(concentrado teórico da concepção hegeliana da história). Eis-nos,
porém, de novo diante da colagem de um método exotérico preexis-
tente sobre um objeto predeterminado, isto é, diante desta união
teoricamente duvidosa de um método definido independentemente
de seu objeto, e cujo acordo de adequação com o seu objeto só pode
ser celebrado sob o fundo comum ideológico de um mal-entendido.
que marca tanto o historicismo hegeliano como o eternitarismo dos
economistás. E com isso os dois termos do par eternidade /história
vão proceder de uma problemática comum, vindo o “historicismo”
hegeliano a ser apenas a contraconotação historicizada do “eternita-
rismo” econômico,

Mas compreendemos também, em segundo lugar, o sentido dos


debates, que não estão ainda encerrados, sobre a relação da teoria
econômica com a história, no próprio O Capital. Se os debates se
prolongaram até nós, isto se deve em grande parte ao efeito de uma
confusão sobre o estatuto da própria teoria econômica e da história,
Quando Engels, no Anti-Dilhring (Ed. Soc., p. 179), escreve que à
Economia Política é essencialmente uma ciência histórica”, porque
“trata de matéria histórica, isto é, constantemente cambiante”, esta-
mos no ponto exato do equívoco; onde a palavra histórica tanto pode
pender para o conceito marxista como para o conceito ideológico de

ga que é possívela influência de indivíduos. Critica, isto sim, Sainte-Beuve, por bus-
explicações históricas em fatos de alcova, (N. do T.)

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 55

história, conforme designe o objeto de conhecimento de uma teoria


da história ou, pelo contrário, o objeto real de que essa teoria dá o
conhecimento. Podemos de pleno direito afirmar que a teoria da
economia política marxista remete como uma de suas regiões à teo-
ria marxista da história; mas podemos também crer que a teoria da
economia política é atingida até em seus conceitos teóricos pela qua-
lidade própria da história real (sua “matéria” que é “cambiante””. Ê
no sentido dessa segunda interpretação que Engels nos joga, em cer-
tos textos surpreendentes, que introduzem a história (no sentido em-
pirista-ideológico) até nas categorias teóricas de Marx. Cito por
exemplo a obstinação dele em reiterar que Marx não podia produ-
zir em sua teoria verdadeiras definições científicas devido a razões
atinentes às propriedades de seu objeto real, à natureza móvel e cam-
biante de uma realidade histórica refratária por excelência a qualquer
tratamento por definição, cuja forma fixa e eterna só poderia falsear a
perpétua mobilidade do vir-a-ser histórico.

No Prefácio ao livro III de O Capital (VI, 17), Engels, citando


as críticas de Fireman, escreve:
Todas elas se baseiam nesse mal-entendido: Marx gostaria de definir
de
onde na realidade desenvolve; de modo geral estaríamos no direito
procurar nos escritos dele definições já prontas, válidas de uma vez por
todas. Evidentemente, a partir do momento em que as coisas e suas rela-
s, Os
ções recíprocas são concebidas como não-fixas, mas como variávei
sujeitos à variação e
seus reflexos mentais € os seus conceitos também estão
ão
à mudança; nessas condições, eles não estarão encerrados numa definiç
de sua
rígida, mas desenvolvidos segundo o processo histórico ou lógico
no inf-
formação. Por conseguinte, vê-se claramente por que Marx parte,
é à condição
cio do Livro 1, da simples produção mercantil, que para ele
histórica prévia, para chegar depois... ao capital.

tema é retomado nas notas de trabalho do Anti-


O mesmo
Diihring (Ed, Soc,, p. 395):
e insufi-
As definições não têm valor para a ciência, porque são sempr mas
a coisa,
cientes. A única definição real é o desenvolvimento da própri
Para saber e mostr ar o que
esse desenvolvimento não é mais uma definição.
s da vida e a repres en-
é a vida, somos obrigados a estudar todas as forma
uso corren te, uma
tá-las em seu encadeamento. Por outro lado, para o
mais Upi-
breve exposição dos caracteres mais gerais e ao mesmo tempo
isso
cos no que se chama uma definição pode ser útil, e até necessária, e
não pode prejudicar, caso não se peça à essa exposição mais do que ela
pode enunciar, (Os grifos são meus. L, À.)

Os dois trechos não deixam, infelizmente, lugar a qualquer


equívoco, pois vão ao ponto de designar muito precisamente o lugar

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56 LER “O CAPITAL”

do “mal-entendido” e a lhe formular os termos. Todas as persona-


gens do mal-entendido entram em cena no caso, cada qual desempe-
nhando o papel prescrito pelo efeito que se espera desse teatro, Bas-
ta-nos mudá-los de lugar para que exibam o papel que se lhes atri-
bui, o abandonem e se ponham a declamar um texto completamente
diferente. Todo o mal-entendido desse raciocínio decorre de fato do
paralogismo que confunde o desenvolvimento teórico dos conceitos
com a gênese da história real. No entanto, Marx havia distinguido
cuidadosamente essas duas ordens, ao mostrar, na Introdução de
1857, que não se podia estabelecer qualquer correlação biunívoca
entre os termos que figuram, por um lado na ordem de sucessão dos
conceitos no discurso da demonstração científica, e por outro na or-
dem genética da história real. No caso, Engels postula essa impossí-
vel correlação, identificando sem hesitar o desenvolvimento “lógi-
co” com o desenvolvimento “'histórico”. E com grande honestidade
ele nos indica a condição de possibilidade teórica exigida por essa
identificação: a afirmação da identidade da ordem dos dois desen-
volvimentos deve-se a que os conceitos necessários a toda teoria da
história são afetados, na sua substância de conceitos, pelas proprie-
dades do objeto real. “A partir do momento em que as coisas... são
concebidas como... variáveis, os seus reflexos mentais, os conceitos,
estão também submetidos à variação e à mudança”. Para identificar o
desenvolvimento dos conceitos com o desenvolvimento da história
real, é preciso, pois, ter identificado o objeto do conhecimento com
o objeto real, ter submetido os conceitos às determinações reais da
história real. Engels afeta assim os conceitos da teoria da história
com um coeficiente de mobilidade, diretamente tomado à sucessão
empírica (à ideologia da história) concreta, transpondo assim o
“concreto-real” no “concreto-de-pensamento”, e o histórico como
mudança real no próprio conceito. Sob premissas tais, o raciocínio é
cabalmente obrigado a concluir pelo caráter não-científico de qual-
quer definição: “as definições não têm valor para a ciência”, dado
que “a única definição real é o desenvolvimento da própria coisa, mas
esse desenvolvimento não é mais uma definição”. No caso ainda, a col-
sa real entra no lugar do conceito, e o desenvolvimento da coisa real
“(isto é, a história real da gênese concreta) entra no lugar do “desen-
volvimento das formas” que, tanto na Introdução como em O Capital,
“é explicitamente declarado como transcorrendo exclusivamente no
conhecimento, referindo-se exclusivamente à ordem necessária de
aparecimento e desaparecimento dos conceitos no discurso da de-
monstração científica, Será preciso mostrar como, na interpretação
de Engels, deparamos com um tema que já encontramos na resposta
aC, Schmidt: o tema da fragilidade originária do conceito? Se as de-
finições não têm valor para a ciência é porque são “sempre insufi-

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O OBJETO DE “O CAPITAL 57

cientes”, quer dizer, o conceito é por naturezh fulho e truz essa falha
inscrita na sua própria natureza de conceito: € q consciência desse
pecado original que lhe faz ubdicar de qualquer pretensão de defintr
o real, que se “define” a si mesmo na produção histórica das formas
de sua gênese, Partindo disso, se propusermos u questão do estatuto
da definição, isto é, do conceito, seremos obrigados a conferir-lhe
um papel bem diverso da sua pretensão teórica: um papel “prático”,
bem próprio para “o uso corrente”, um papel de designação geral,
sem qualquer função teórica, Paradoxalmente, vale notar que En-
gels, que começou por cruzar os termos implicados na sua questão,
chega, como conclusão, a uma definição cujo sentido lhe é também
cruzado, isto é, deslocado em relação ao objeto que ele visa, dado
que nessa definição puramente prática (corrente) do papel de con-
ceito científico, ele nos dá de fato com que nutrir uma teoria de uma
das funções do conceito ideológico: a função de alusão e de indica-
dor práticos.
Eis a que ponto leva o desconhecimento da distinção funda-
i-
mental que Marx nitidamente assinalara entre o objeto do conhec
das formas” do
mento e o objeto real, entre o “desenvolvimento
rias reais
conceito no conhecimento e o desenvolvimento das catego e à
conhecimento
na história concreta: a uma ideologia empirista do
O Capital. Não sur-
identificação do lógico e do histórico no próprio depen-
questão
preende que tantos intérpretes girem em círculos na probl emas refe-
s dessa identificação, se é verdade que todos os
dente
Capital pressupõem,
rentes à relação do lógico com o histórico em O
relação como correspon-
uma relação que não existe. Imagine-se essa
constantes nes-
dência biunívoca direta dos termos das duas ordens
história real), imagi-
ses dois desenvolvimentos (o do conceito, o de dos termos
inversa
ne-se essa mesma relação como correspondência
o fundo da tese de Della
das duas ordens de desenvolvimento (este é hipóte-
saímos da
Volpe e de Pietranera que Ranciêre analisa), e não erro po-
se de uma relaçã o onde não existe relação alguma. Desse
ramente prática: as
dem-se tirar duas conclusões, A primeira é intei
ema são graves, na
dificuldades encontradas na solução desse probl
resolver um
verdade insuperáveis; se já nem sempre é possível
se há
roblema existente, pode-se estar certo de que de modo algum
de resolver um problema que não existe." A segunda conclusão é

" Devemos a Kant poder suspeitar que problemas que não existem possam ensejar
prodigiosos esforços teóricos e a produção mais ou menos rigorosa de soluções tão
fantasmagóricas quanto seu objeto, pois a filosofia de Kunt pode em grande parte ser
concebida como a teoria da possibilidade da existência de “ciências” sem objeto (me-
tafísica, cosmologia, psicologia racional). Se não se tiver ânimo de ler Kant, pode-se

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58 LER “O CAPITAL"

teórica: é que se impõe uma solução imaginária a um problema


imaginário, e não qualquer solução imaginária, mas a solução ima-
ginária exigida pela colocação (imuginária) desse problema imaginá-
rio. Toda colocação imaginária (ideológica) de um problema (que
pode também ser imaginário) traz em si uma problemática determi-
nada, que define tanto a possibilidade como a forma de colocação
desse problema. Essa problemática reencontra-se, como sua imagem
refletida, na própria solução dada ao problema, em virtude do jogo
especular peculiar ao'imaginário ideológico (cf. tomo 1, cap. 1), se
não se encontra diretamente em pessoa na questão mencionada, ela
aparece em outro lugar, de face descoberta, quando se trata explici-
tamente dela, na “teoria do conhecimento” latente que sustenta a
identificação do histórico com o lógico: uma ideologia empirista do
conhecimento. Não é, pois, por acaso que vemos Engels literalmente
sob
jogado por sua questão na tentação desse empirismo, nem que,
iden-
outra forma, Della Volpe e seus discípulos sustentem a tese da
ar-
tificação inversa das ordens histórica e lógica em O Capital, pelo
uma forma
gumento de uma teoria da “abstração histórica”, que é
superior de empirismo historicista. a
Volto a O Capital. O erro que acabamos de assinalar sobre
efeito
tem por
“existência imaginária de uma relação não-existente
€ fundada
tornar invisível outra relação - legítima porque existente
Se a pri-
de direito - entre teoria da economia e teoria da história. imagina”
meira relação (teoria da economia e história concreta) era
da história) é
ria, a segunda relação (teoria da economia e teoria
uma verdadeira relação teórica. Por que ficou a tal ponto se ndo if
visível pelo menos opaca? É que a primeira relação tinha a seu favor
histo-
a precipitação da “evidência”, isto é, tentações empiristas dos
riadores que, lendo em O Capital páginas de história “concreta” (a
luta pela diminuição da duração da jornada de trabalho, a passagem
da manufatura à grande indústria, acumulação primitiva, etc.) Vi-
ram-se de algum modo “à vontade”, e colocavam então o problema
da teoria econômica em função da existência dessa história “'concre-
ta”, sem sentir a necessidade de propor a questão dos seus títulos.
Interpretavam à maneira empirista as análises de Marx, que, longe
de serem análises históricas no sentido rigoroso, isto é, sustentadas

add eh pp os produtores de “ciências” sem objeto: por exemplo, 05 teó-


OM aaa ou certos “psicólogos”, ete. Acrescento, de
7 ais los pricossociólogos
jJuntura teórica e rr essas “ciências sem objeto” podem, devido à con-
tenso “objeto”. as for bica, conter ou produzir, na elaboração da teoria do seu pre
- 48 formas teóricas da racionalidade existente; por exemplo, na Idade
Média, 4 a Le ologiai detinha
i s “ul é e
tente. b 1a sem dúvida nenhuma q claborava as formas do teórico exts-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 59

pelo desenvolvimento do conceito de história, são antes produtos


semi-acabados para uma história (cf. o texto de Balibar, p. 153)
que verdadeiro tratamento histórico desses materiais, Faziam da
presença desses materiais elaborados pela metade o argumento de
uma concepção ideológica da história, e propunham então a ques-
tão dessa ideologia da história “concreta” à teoria “abstrata” da
economia política: donde ao mesmo tempo o seu fascínio diante de
O Capital e o seu embaraço diante desse discurso que lhes aparecia,
em numerosas partes, como “especulativo”. Os economistas tinham
quase o mesmo reflexo, jogados entre a história econômica (concre-
ta) e a teoria econômica (abstrata). Uns e outros pensavam encon-
trar em O Capital o que procuravam, mas encontravam nele tam-
bém outra coisa a mais, que não procuravam, e que tentavam então
reduzir, propondo o problema imaginário das relações biunívocas,
ou outras, entre a ordem abstrata dos conceitos e a ordem concreta
da história. Não viam que aquilo que encontravam não respondia à'
sua questão, mas à questão inteiramente diversa que, é claro, des-
mentia a ilusão ideológica do conceito de história que traziam neles,
e projetavam em sua leitura de O Capital. O que eles não viam é que
a teoria “abstrata” da economia política é a teoria de uma região
que pertence organicamente como região (nível ou instância) ao
próprio objeto da teoria da história. O que eles não viam é que a his-
tória aparece em O Capital como objeto de teoria, e não como obje-
“to real, como objeto “abstrato” (conceptual), e não como objeto
concreto-real: e que os capítulos em que o primeiro grau de um tra-.
tamento histórico é aplicado por Marx ou para as lutas pela redução
da jornada de trabalho ou para a acumulação primitiva capitalista,
remetem, como a seu princípio, à teoria da história, à elaboração do
conceito de história, e de suas “formas desenvolvidas”, da qual a
teoria econômica do modo de produção capitalista constitui uma
“região” determinada. |
Uma palavra a mais sobre um dos efeitos atuais desse mal-
entendido. Verificamos nele uma das origens da interpretação de O
Capital como modelo teórico”, fórmula cuja intervenção pode ser a
priori sempre recuperada no sentido clínico rigoroso da palavra,
como sintoma do mal-entendido empirista sobre o objeto de um co-
nhecimento dado. De fato, essa concepção da teoria como “mode-
lo” só é possível sob a primeira condição, propriamente ideológica,
de incluir, na própria teoria, a distância que a separa do concreto
empírico; e sob a segunda condição, também ideológica, de pensar
essa distância como distância por sua vez empírica e, depois, como
pertencente ao próprio concreto, que se pode então ter o privilégio
(isto é, a banalidade) de definir como o que é “'sempre-mais-rico-e-
mais-vivo-que-a-teoria”, Ninguém duvida de que haja nessa procla-

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60 LER “O CAPITAL"

mação de títulos exaltantes da superabundância da “'vida” e do


“concreto”, da superioridade da imaginação do mundo, e do vigor
da ação sobre a pobreza e a velhice da teoria, uma séria lição de mo-
déstia intelectual - a bom entendedor (presunçoso e dogmático)
meia palavra basta, Mas também estamos prevenidos de que o con-
creto e a vida possam ser pretexto para as facilidades de uma tagare-
lice - que pode servir para mascarar intenções apologéticas (um
deus, seja qual for a chancela, está sempre em vias de fazer o seu ni-
nho nas plumas da superabundância, isto é, da “transcendência” do
“concreto” e da “vida””) - ou pura e simples preguiça intelectual. O
que nos importa é precisamente o uso que se faz desse gênero de lu-
gares-comuns repetidos fastigiosamente sobre o tema dos excessos
da transcendência do concreto. Ora, na concepção do conhecimento
permitir
como “modelo”, vemos o real ou o concreto intervir para
teoria, ao mes-
pensar a relação, isto é, a distância do “'concreto” à
real exte-
mo tempo na própria teoria, e no próprio real, e não num
O conheci-
rior a esse objeto real do qual a teoria dá precisamente
da parte
mento, mas nesse objeto real mesmo, como um a relação
ante
com o todo, de uma parte “parcial” com um todo superabund
tem por efeito ine-
(cf. tomo 1, cap. I, parágrafo 10). Essa operação
entre
vitável fazer pensar a teoria como um instrumento empírico,
conhecimento
outros, em suma, reduzir diretamente toda teoria do
o.
como modelo ao que ela é: uma forma de pragmatismo teóric
do seu erro,
Sustentamos, pois, com isso, até no último efeito
en-
um princípio de compreensão e de crítica preciso: é o relacionam
to de correspondência biunívoca, no real do objeto, de um conju nto
com o conju nto empír iço real
teórico (teoria da economia política)
(a história concreta) cujo primeiro conjunto é o conhecimento, que €
a raiz dos contra-sensos sobre a questão das “relações” da “Lógica
com a “história” em O Capital. O mais grave desses contra-sensos €
o seu efeito de cegar: que tenha por vezes impedido de perceber que
O Capital continha cabalmente uma teoria da história, indispensável
para a compreensão da teoria da economia,

AI A mm

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 61

V. O Marxismo não é um Historicismo

Eis-nos, porém, diante de um último mal-entendido que


é da
mesma estirpe, mas talvez ainda mais sério, porque recai não
apenas
sobre a leitura de O Capital, não apenas sobre a filosofia marxista,
mas sobre a relação que existe entre O Capital e a filosofia marxista,
e pois entre o materialismo histórico e o materialismo dialético, isto
é, sobre o sentido da obra de Marx considerada-como um todo
e, fi-
nalmente, sobre a relação existente entre a história real e a teoria
marxista. Esse mal-entendido decorre do equívoco que vê no marxis-
mo um historicismo, e o mais radical de todos, um “Aistoricismo ab-
soluto”. Essa afirmação põe em cena, sob as roupagens da relação
existente entre a ciência da história e a filosofia marxista, a rela-
ção que a teoria marxista mantém com a história real.

Afirmo que o marxismo, do ponto de vista teórico, nem é um


historicismo nem um humanismo (cf. Pour Marx, pp. 225 ss.); que,
em muitas circunstâncias, humanismo e historicismo repousam am-
bos na mesma problemática ideológica; e que, teoricamente falando,
o marxismo é, por um mesmo movimento e em virtude da ruptura
epistemológica única que o funda, um anti-humanismo e um anti-
historicismo, A rigor, devia eu dizer a-humanismo e a-historicismo.
Emprego, pois, conscientemente, para lhe dar todo o peso de uma

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ER “O CAPITAL”
62 M
contrário é
declaração de ruptura, que longe está de evidente e, pelo
manismo, anti-
dificil de captar, essa dupla fórmula negativa (anti-hu
historicismo) em vez de uma simples forma privativa, porque esta
não é bastante forte para repelir o assalto humanista e historicista
o mar-
que, em certos meios há quarenta anos, não cessa de ameaçar
xismo.

Sabemos perfeitamente em que circunstâncias essa interpreta-


ção humanista e historicista de Marx nasceu, e que circunstâncias
recentes lhe deram renovado vigor. Ela nasceu de uma reação vital
contra o mecanismo e o economicismo da II Internacional, no
periodo que precedeu, e sobretudo nos anos que se seguiram à revo-
lução de 1917. Possui, por essa razão, reais méritos históricos, como
possui certos títulos históricos, embora sob forma bastante diferen-
te, O renascimento recente dessa interpretação, depois da denúncia,
pelo XX Congresso, dos crimes e erros dogmáticos do “culto da perso-
nalidade”. Se esse recente vigor não é mais do que repetição, e o mais
das vezes o desvio generoso ou hábil mas “direitista” de uma reação.
histórica que tinha então a força de um protesto de espirito re-
volucionário, embora “esquerdista” - não poderia nos servir de nor-
ma para julgar do sentido histórico do seu primeiro estado. Os te-
mas de um historicismo e humanismo revolucionários surgiram em
torno da esquerda alemã, de Rosa Luxemburg e Mehring primeira-
mente, e depois, após a revolução de 17, em torno de numerosos teó-
ricos, alguns dos quais se perderam como Korsch, mas outros de-
sempenharam papel importante, como Lukács, e até muito impor-
tante, como Gramsci, Sabemos em que termos Lênin julgou esse
movimento de reação “esquerdizante” contra a vulgaridade mecant-
eia da 11 Internacional; condenando-lh e as fábulas teóricas, a tátl-
ca política (cf, O Esquerdismo ou a Doença Infantil do € omunismo),
Rs SaDENSO reconhecer o que ele continha então de autenticamen é
Iucionário, por exemplo, em Rosa Luxemburg e Gramsci. Seri
ra am pi esclarecer todo esse passado. Esse estudo histórico à
presente, a indispensável para bem distinguir, inclusive pda em
dabasebatalha em ,os resultados de uma crítica feita então o tumulto
indiscutlvo) ao Bens rena as iantgamas,Op
O da
Internacion al eae reação contra o mecanicismo e fata aii e!
vontade dos home o RT “ forma de um apelo à a ue a his
tória lhes ormilia do para que fizessem afinal a rovolua dm pou-
co
a Revoluçã à fazer,de Nesse
melhor o paradoxo um título se compreenderá
dia célebre tales exaltava
em que Gramsci OU
do ani à Comira o Capital, afirmando francamente que à dei
E pe alista de 1917 teve de fazer-se “contra O Capitd cs
Pela ação voluntária e consciente dos homens, das mas

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O OBJETO DE “O CAPITAL"
63

dos bolcheviques e não pela virtude de um livro em que a II Interna-


cional lia, como numa Bíblia, o advento fatal do socialismo,” "º

Até que seja feito o estudo científico das condições que produ-
ziram a primeira forma “esquerdista” desse humanismo e desse his-
toricismo, estamos aptos a identificar o que, em Marx, podia autori-
zar então essa interpretação e o que não deixa, evidentemente, de
Justificar sua forma recente aos olhos dos leitores atuais de Marx.
“Não nos espantaremos ao descobrir que as mesmas ambigiidades
de formulação que nutriram uma leitura mecanicista e evolucionista,
autorizaram igualmente uma leitura historicista: Lênin nos deu mui-
tos exemplos do fundamento teórico comum do oportunismo e do
esquerdismo, para que esse encontro paradoxal não nos embarace.
Menciono ambigiiidades de formulações. No caso ainda, esco-
ramo-nos numa realidade cujos efeitos já avaliamos: Marx, que ca-
balmente produziu em sua obra a distinção que o separa de seus pre-
decessores, não pensou - e este é o destino comum de todos os cria-
dores - com toda a nitidez desejável o conceito dessa distinção; Marx
não pensou teoricamente, sob forma adequada e desenvolvida, o
conceito e as implicações teóricas do seu esforço teoricamente revo-
lucionário. Ora, ele o pensou, na melhor das hipóteses, nos concei-
tos em parte tomados a outros, e sobretudo nos conceitos hegelianos
- O que introduz um efeito de deslocamento entre o campo semânti-
co original em que são colhidos esses conceitos, e o campo dos obje-
tos conceptuais aos quais são aplicados; ora, ele pensou essa diferen-
ça por si mesma, mas parcialmente, ou no esboço de uma indicação,
na procura obstinada de equivalentes, '' mas sem chegar de todo a
enunciar na adequação de um conceito o sentido original rigoroso
do que produzia. Esse deslocamento, que só pode ser revelado e re-
duzido mediante uma leitura crítica, faz objetivamente parte do pró-
prio texto do discurso de Marx. *

“Gramsci; “Não, as forças mecânicas nunca levam a melhor na história: são os ho-
mens, são a consciência e o espírito que modelam o aspecto exterior é acabam sempre
por triunfar... contra a lei natural, contra o curso fatal das coisas impôs-se a vontade
tenaz do homem”, (Texto publicado em Rinacitá, 1957, pp. 149-158. Citado por Ma-
rio Tronti no Siudi Gramsciant, Editori Riuniti, 1959, p. 306.)
Sob esse aspecto, seria necessário dedicar um estudo completo às suas metáforas
típicas, à sua proliferação em torno de um centro que elas têm por missão cercar, não
podendo chamá-lo pelo seu nome próprio, o de seu conceito,
* Esse deslocamento e sua necessidade não são peculiares de Marx, mas de todo es-
forço de fundação cientifica e de toda produção científica em geral: seu estudo exige
uma teoria da história da produção dos conhecimentos é uma história do teórico,
cuja necessidade sentimos ainda aqui.

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64 LER “O CAPITAL”

Nisso consiste, fora de qualquer tendenciosidade, a razão pela


qual tantos herdeiros e partidários de Marx puderam desenvolver
inexatidões sobre o seu pensamento, embora pretendendo permane-
cer fiéis à letra dos textos que tinham nas mãos.
Gostaria de entrar aqui em algum pormenor para mostrar sob
que aspecto alguns textos de Marx permitem dar-lhe uma interpre.
tação historicista. Não falarei dos textos
da juventude ou do “corte”
(Pour Marx, p. 26) porque a demonstração no caso é fácil. Não é
preciso torcer textos como as Teses sobre Feuerbach € 4 Ideologia
Alemã, e que contém ainda profundas ressonâncias humanistas e
historicistas, para lhes fazer pronunciar as palavras que deles se es-
peram: esses textos falam por si. Falarei apenas de O Capital e da In.
trodução de 57.
Os textos de Marx que autorizam uma leitura
historicista de
Marx podem ser grupados sob duas rubricas. Os
Primeiros referem.
se à definição das condições nas quais nos é dado o obje
to de toda
ciência histórica.
Na Introdução de 57, escreve Marx:
«. em toda ciência histórica ou social em geral não se deve jamais es-
quecer, a propósito da marcha das categorias econômi
cas, Que o tema, no
caso a sociedade burguesa moderna, é dado, tanto na realidade como
no cê
rebro, e que as categorias exprimem, pois, formas de
existência, condi.
ções de existência determinadas, não raro si mples aspectos
determinados
desse tema, dessa sociedade determinada, etc. (170).

Podemos comparar esse texto com uma passagem de O Capital


(1,87):

A reflexão sobre as formas da vida social, e, por conseguinte, sua


análise cientifica, segue um caminho completamente oposto ao movi-
mento real. Ela começa depois, com dados já inteiramente estabelecidos,
com os resultados do desenvolvimento...

Esses textos indicam não apenas que o objeto de qualquer ciên-


cia s ocial e histórica é objeto que se tornou resultado, mas
que
também
a ativi
! dade de conhe cimento que se aplica a esse objeto é também
determinada pelo presente desse dado, pelo momento atual do dado.
É o que certos intérpretes marxistas italianos, retomando uma ex-
pressão de C roce, chamam de categoria da “contemporaneidade
do
presente histórico” , Categoria essa que define historicamente, e de-
fine como históricas, as condições de qualquer conhecimento sobre
um objeto histórico, Esse termo “contemporaneidade” pode con
ter um equívoco, conforme sabemos.
O próprio
g e
Marx parece reconhecer essa condição absoluta N q
Introdução, poucas linhas antes do texto citado:

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O OBMIETO DE “O CAPITAL 65

O que se chama desenvolvimento histórico repousa em suma no fato


de que a última forma considera as formas passadas como fases condu-
centes do seu próprio grau de desenvolvimento, e como essa forma rara-
mente é capazçe isso apenas em condições hem determinadas, de fazer sua
própria crítica... ela as concebe sempre sob um aspecto unilateral, A reli-
gião cristã não Foi capaz de ajudar a compreender objetivamente as mito-
logias anteriores, sendo upós ter concluído até certo grau, por assim dizer
drnamei, à suu própria crítica, Do mesmo modo, a economia política
burguesa só veio | compreender us sociedades feudais, antigas, orientais,
no dia em que começou à autocrítica da sociedade burguesa...
(Introdução, 170.)

Em resumo: toda ciência de um objeto histórico ( em particular


da economia política) recai sobre um objeto histórico dado, presen-
te, objeto que se tornou resultado da história passada. Toda opera-
ção de conhecimento, partindo do presente e referente a um objeto-
transformado, nada mais é, portanto, que a projeção do presente no
passado desse objeto. Marx descreve, pois, aqui a retrospecção que
Hegel criticara na história “refletidora” (Introdução à Filosofia da
História). Essa retrospecção inevitável só é científica se o presente
chega à ciência de si, à crítica de si, à sua autocrítica, isto é, se o pre-
sente for um “corte essencial” que torne a essência visível.
Mas aqui é que intervém o segundo grupo de textos, ponto de-
cisivo onde se poderia falar de um historicismo de Marx. O ponto
refere-se precisamente ao que Marx chama no texto acima de “as
condições bem determinadas da autocrítica” de um presente. Com-
-preendamos: para que deixe de ser subjetiva a retrospecção da cons-
ciência de si de um presente, impõe-se que esse presente seja capaz
de autocriticar-se a fim de atingir a ciência de si. Ora, que vemos se
considerarmos a história da economia política? Vemos pensadores
que nada mais fizeram do que pensar, encerrados nos limites do seu
presente, e não podendo saltar por cima do seu tempo. Por exemplo,
Aristóteles, Todo o seu gênio não lhe permitiu escrever além da
igualdade x objetos 4 = y objetos B, como igualdade, e declarar que
a substância comum dessa igualdade era impensável porque absur-'
da. Assim fazendo, chegou aos limites de seu tempo. Quem o impe-
dia de ir além?
O que impediu Aristóteles de LER (herauslesen) na forma valor das
mercadorias que todos os trabalhos são expressos aqui como trabalho
humano indistinto, e, por conseguinte, iguais, foi que a sociedade grega
repousuva no trabalho dos escravos, € tinha por base natural a desigual-
dade dos homens e de suas forças de trabalho,
(O Capital, 1, 73,)

O presente que permitia a Aristóteles ter essa genial intuição de


leitura o impedia ao mesmo tempo de responder ao problema que

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66 LER “O CAPITAL”

ele formulara. " O mesmo vale para todos os demais grandes criado-
res da economia politica clássica. Os mercantilistas nada mais fize-
ram do que refletir o seu próprio presente, fazendo a teoria monetá-
ria da política monetária do seu tempo. Os fisiocratas apenas refleti-
ram o seu próprio presente, esboçando uma teoria genial da mais-
valia, mas da mais-valia natural, a do trabalho agrícola, em que se
podia ver o trigo crescer e o excedente não-consumido de um traba-
lhador agrícola produtor de trigo passar aos celeiros do fazendeiro:
assim fazendo, eles nada mais enunciavam do que a própria essência
do seu presente, o desenvolvimento do capitalismo agrário nas planí-
cies férteis da Bacia Parisiense, que Marx enumera: * a Normandia,
a Picardia, a lle-de-France (Anti-Diiring, Ed Soc., cap. X, p. 283).
Também os fisiocratas não puderam passar além da sua época; só
chegaram a conhecimentos na medida em que a época lhes oferecia
numa forma visível e os produzira para a sua consciência: descre-
viam, em suma, o que viam. Terão Smith e Ricardo ido além, e terão
descrito o que não viam? Passaram além de sua época? Não. Se che-
garam a uma ciência que foi coisa diferente da simples consciência
do seu presente é que a consciência deles continha a verdadeira au-
tocrítica daquele presente. Como foi possível então aquela autocriti-
ca? Na lógica dessa interpretação, hegeliana em seu princípio, so-
mos tentados a dizer: atingiram na consciência de sua época presen-
te a própria ciência, porque essa consciência era, como consciência,
o
a sua própria autocrítica, e portanto ciência de si.
Em outras palavras: a característica de seu presente vivo € ViVI-
do, que o distingue de todos os demais presentes (do passado)é que,
de
pela primeira vez, esse presente produzia em si sua própria crítica
a clén-
sí, que ele possuía, pois, esse privilégio histórico de produzir
cia de si na própria forma da consciência de si. Mas ele traz um NO
me: é o presente do saber absoluto, em que consciência e ciência S€
identificam, e onde a verdade pode ser lida em livro aberto nos fenô-
menos, se não diretamente, pelo menos com pouco esforço, dado
que nos fenômenos estão realmente presentes, na existência empiri-
ca real, as abstrações em que repousa toda a ciência histórico-social
considerada, |
haver falado
O segredo da expressão do valor - diz Marx logo após
ia de todos os trabalhos devi-
de Aristóteles -, a igualdade e a equivalêncho
do a serem, e na medida em que são trabal humano, só podem ser deci-

E]
Não é falso, sem dúvida; mas quando relacionamos essa limitação diretamente
'
à
“história” no caso ainda, de invocar à
simplesmente o t
conceitoo (deo-
ideo
ó stória”, corremos o risco,
ógico de história,
Engels, juntamente com “outras províncias francesas”, No CO
*

iraro meração é de
que faz do Quadro de Quesnay. (N. do T.)

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 67

frados quando a noção de igualdade humana houver já adquirido a tena-


cidade de um preconceito popular... Mas isso só acontece numa sociedade
em que a forma mercadoria se tiver transformado na forma geral dos produ-
tos do trabalho, em que, por conseguinte, a relação dos homens entre sí,
enquanto produtores e trocadores de mercadorias, for a relação social
dominante...
(O Capital, 1, 75.)

Ou ainda:

de-
... é preciso que o mundo da mercadoria se tenha completamente e
esta verdad
senvolvido antes que, da própria experiência se extraia
temente uns
científica: que os trabalhos privados, executados independen
do sistema social
dos outros, embora se entrelacem como ramificações
reduzidos à sua
espontâneo da divisão do trabalho, são constantemente
medida social proporcional...
(O Capital, 1, 87.)
enquanto
A descoberta científica... de que os produtos do trabalho,
s do trabal ho human o gasto na sua
valores, são a expressão pura e simple ...
mento da human idade
produção assinala uma época no desenvolvi
(O Capital, 1, 86.)

Essa época histórica da fundação da ciênc


ia da Economia Poli-
relações com a própria expe-
tica parece realmente pos ta aqui em
o da essência no fenô-
riência ( Erfahrung), Isto é, a leitura a céu abert
na quadra
meno, ou, se preferirmos, a leitura em corte da essência
história
do presente, com a essência de uma época determinada da
humana, em que a generalização da produção mercantil, portanto,
à condi-
da categoria mercadoria, apareça ao mesmo tempo como
a direta
ção de possibilidade absoluta e o dado imediato dessa leitur
O Capi-
da experiência, Efetivamente, tanto na Introdução como em
do trabalho
tal afirma-se que essa realidade do trabalho em geral,
pela produ-
abstrato, é produzida como uma realidade fenomênica
esse ponto,
ção capitalista, A história teria de algum modo atingido
ações
produzido essa presença específica excepcional onde as abstr
em que a ciên-
científicas existem em estado de realidades empíricas,
ên-
cia, os conceitos científicos existem na forma do visível da experi
cia como outras tantas verdades a céu aberto.
Eis os termos da Introdução:

. Essa abstração do trabalho em geral não é apenas o resultado no


pensamento (Gelstige) de uma totalidade concreta de trabalho, A indife-
rença quanto a tal trabalho determinado corresponde a uma forma de so-
ciedade na qual os indivíduos determinados passam com facilidade de
um trabalho a outro, € na qual o gênero de trabalho preciso é para eles

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68 LER “O CAPITAL”

fortuito, e pois indiferente. No caso, o trabalho transformou-se não ape-,


nas na categoria, mas na realidade (in der Wirklichkelt) por sua vez um -
meio de criar a riqueza em geral, e deixou, enquanto determinação, de
identificar-se com os indivíduos, sob algum aspecto particular. Esse estado
de coisas atingiu o mais alto grau de desenvolvimento na forma de exis-,
tência mais moderna das sociedades burguesas, nos Estados Unidos. Lá
apenas é que a abstração da categoria “trabalho”, “trabalho em geral”,
trabalho "sem adjetivação”, ponto de partida da economia moderna, trans-
forma-se em verdade prática (wird praktisch wahr). Desse modo, a mais.
simples abstração, que a economia moderna coloca em primeiro lugar e que
exprime uma relação muito antiga e válida para todas as formas de socieda-
de, só aparece no entanto sob essa forma abstrata como verdade prática
(praktish wahr) enquanto categoria da sociedade mais moderna.
(Introdução, pp. 168-169.) (Grifos meus. L. A.)

Se o presente da produção capitalista produziu na sua realidade


visível (Wirklichkeit, Erscheinung, Erfahrung), na sua consciência de
si, a própria verdade científica, se, pois, sua consciência de si, seu
próprio fenômeno é em ato sua própria autocrítica - compreende-se
perfeitamente que a retrospecção do presente sobre o passado não
seja mais ideologia, porém verdadeiro conhecimento, e apreende-se
o primado epistemológico legítimo do presente sobre o passado:

A sociedade burguesa é a organização histórica da produção mais


desenvolvida e mais variada possível. Com isso, as categorias que expri-
mem as relações dessa sociedade e que permitem compreender-lhe a es-
trutura permitem ao mesmo tempo explicar a estrutura e as relações de
produção de todas as formas de sociedades extintas com cujos restos e ele-
mentos ela se edificou, das quais certos vestígios, parcialmente ou não ainda
superados, continuam a sobreviver nela, e das quais certos indícios simples,
ao se desenvolverem, assumiram toda a sua significação, etc. A anatomia do
homem é a chave da anatomia do macaco. Nas espécies animais inferiores
não se podem compreender os indícios anunciadores da forma superior à
menos que a forma superior seja por sua vez ja conhecida. Assim a eco-
nomia burguesa nos dá a chave da economia antiga, eic.
Untrodução, p. 169,)

Basta dar um passo a mais na lógica do saber absoluto, pensar


'o desenvolvimento da história que culmina e se realiza no presente
de uma ciência idêntica à consciência, e refletir esse resultado numa
retrospecção fundada, para conceber toda a história econômica (ou
outra) como o desenvolvimento, no sentido hegeliano, de uma for-
mma simples primitiva, originária (por exemplo, o valor, imediata-
mente presente na mercadoria) e para ler O Capital como uma dedu-
ção lógico-histórica de todas as categorias econômicas a partir de
uma categoria originária, a categoria de valor ou a de trabalho. Sob
essa condição, o método de exposição de O Capital confunde-se com
a gênese especulativa do conceito. Mais ainda, essa gênese especula-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 69

tiva do conceito é idêntica à gênese do próprio concreto real, isto é,


ao processo da história empírica. Desse modo nos encontraríamos
diante de uma obra de essência hegeliana. Eis por que a questão do
ponto de partida assume tal valor crítico, tudo podendo ocorrer
numa leitura mal compreendida do primeiro capítulo do primeiro
Livro. É também por essa razão que toda leitura crítica, como o
mostraram as exposições precedentes, deve elucidar o estatuto dos
conceitos e do modo de análise do primeiro capítulo do Livro I,
para não cair nesse mal-entendido.
Essa forma de historicismo pode ser considerada como forma-
limite, na medida mesma em que ela culmina e se anula na negaçã
o
do saber-absoluto. Nessa condição, podemos tomá-la como
matriz
comum das demais formas, menos peremptórias e não raro menos
visíveis, algumas vezes mais “radicais”, do historicismo, porque
ela
nos introduz à sua compreensão.
A prova disso são algumas formas contemporâneas
de histori-
cismo que impregnam a obra de certos intérpretes do marxismo, às
vezes consciente e outras vezes inconscientemente, sobretudo na Itá-
lia e na França. É na tradição marxista italiana que a inter
pretação
do marxismo como “historicismo absoluto” apresenta os traços
mais acentuados e as formas mais rigorosas. Devo insistir nisso um
pouco mais. |
É em Gramsci que se origina essa tradição que ele herdou em
grande parte de Labriola e Croce. Devo, pois, falar de Gramsci.
Faço-o com grande escrúpulo, temendo não só desfigurar com ob-
servações forçosamente esquemáticas O espírito de uma obra genial,
prodigiosamente variada e sutil - como também levar o leitor, mal-
grado meu, a estender as reservas teóricas que quero formular ape-
nas a propósito da interpretação gramsciana do materialismo dialéti-
co às descobertas fecundas de Gramsci no domínio do materialismo
histórico. Peço, pois, que se tenha bem em mente essa distinção, sem
a qual essa tentativa de reflexão crítica ultrapassaria seus limites.
Devo primeiramente advertir sobre um cuidado elementar: re-
cuso-me a tomar imediatamente, em qualquer ocasião e sob o pri.
meiro pretexto ou texto à mão, o que Gramsci diz com as suas pró-
prias palavras; só tomarei suas palavras quando desempenhem a
função confirmada de conceitos “orgânicos”, pertencentes verdadei-
ramente à sua problemática filosófica mais profunda, e não quando
desempenhem apenas O papel de uma linguagem, encarregada de as-
sumir ou papel polêmico ou função designativa “prática”
(designa-
ção ou de um problema ou objeto existentes, ou ainda de uma dire.
io à tomar para bem colocar e resolver um problema). Por exem-
e seria a rigor condenar Gramsci declará-lo “humanista” e “his.

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70 LER “O CAPITAL”

toricista absoluto”, com base na primeira leitura de um texto polê-


mico como esta obsservação célebre sobre Croce (1l Materialismo
Storico e la Filosofia di B. Croce. Einaudi, p. 159):
É certo que o hegelianismo é a mais importante das razões (relativa-
mente) de filosofar do nosso autor, também e especialmente porque o he-
gelianismo tentou ultrapassar as concepções tradicionais do idealismo e.
do materialismo numa nova síntese que teve sem dúvida importância ex-
cepcional e que representa um momento histórico-mundial da reflexão fi-
Croce)
losófica. Assim é que acontece que, quando se diz no Ensaio [ de
em sentido
que o termo “imanência” na filosofia da práxis é empregado
imanência ad-
metafórico, nada se diz absolutamente, de fato, o termo
tas”, € nada tem da
quiriu significação especial, que não é a dos “panteís
e deve ser fixada. Esque-
significação metafísica tradicional, mas é nova
histórico) que era preci-
ceu-se na expressão muito comum (materialismo
- e não o primeiro, que é de
so acentuar o segundo termo - “histórico” a
“o historicismo” absoluto,
origem metafísica. 4 filosofia da práxis e um humanis-
mundanização e a “terrestridade” absolutas do pensamento,
que devemos cavar o filão da
mo absoluto da história. É nessa direção
nova concepção do mundo.

ções como estas. “huma-


Não há dúvida alguma de que afirma udo sentido crítico €
têm sobret
nista”, “historicista”, “absolutas”
s, por função: 1) rejeitar qualquer
polêmico; têm, antes de tudo o mai car, como con-
marxista; 2) indi
interpretação metafísica da filosofia ção
ceitos “práticos”, o lugar e a direção do lugar em que à concep
todos os laços com as me-
do marxismo deve fixar-se para romper ncia” e do “neste mundo” que
y é 2

tafísicas anteriores: o lugar da “imanê


Marx contrapunha já como o “ Diesseits”” (o nosso mundo) à trans
a, ao além (Jens eits) das filos ofias clássicas. Essa distinção
cend ênci n
Teses sobre Feuerbach (Tese id
aparece em termos nítidos numa das reza
natu “indicativo-prática
2). Entretanto, podemos já, pela numa única € mesm
conc eito s, acas alad os por Gram sci
ses dois
função (humanismo, historicismo), tirar uma primeira conclusão:
icamente importante: Sé esse
por sua vez restritiva, é certo, mas teor à direção na qua
conceitos são polêmico-indicativos, indicam bem nio em que deve
tipo de domí
uma reflexão deve encaminhar-se, o
ser colocado o problema da interpretação do marxismo, mas não
dão o conce ito interpretação. Para poder julgar à tN-
ivo dessa mos
positsci,
terpretação de Gram deve primeiramente esclarecer os con
ceitos positivos que a exprimem. Que entende Gramsci por "isto ri
4 .

cismo absoluto”?

No sentido definido em Pour


Marx, pp. 254 ss.

ad
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O OBJETO DE “O CAPITAL" N

Se ultrapassarmos a intenção crítica de suas formulações, veri-


ficaremos de início um primeiro sentido positivo. Ao apresentar o
marxismo como historicismo, Gramsci dá ênfase a uma determina-
ção essencial à teoria marxista: o seu papel prático na história real.
Uma das preocupações constantes de Gramsci é quanto ao papel
prático-histórico daquilo a que ele chama - retomando a concepção
crociana da religião - as grandes “concepções do mundo” ou “ideo-
logias”: trata-se de formações teóricas capazes de penetrar na vida
prática dos homens, e portanto de inspirar e animar toda uma épõca
histórica, fornecendo aos homens, não apenas aos “intelectuais”
mas também e sobretudo aos “simples”, uma visão geral do curso
do mundo e ao mesmo tempo uma norma de conduta prática. " Sob
esse aspecto, o historicismo do marxismo nada mais é que a cons-
ciência dessa tarefa e dessa necessidade: o. marxismo não pode ter a
pretensão de ser a teoria da história, a menos que pense, na sua pró-
pria teoria, as condições dessa penetração na história, em todas as
camadas da sociedade, e até na conduta quotidiana dos homens.
Nessa perspectiva é que se pode compreender certo número de fór-
mulas de Gramsci ao dizer por exemplo que a filosofia deve ser con-
creta, real, deve ser história, que a filosofia real nada mais é que a
política, que a filosofia, a política e a história são em definitivo uma
só e mesma coisa. Dessa perspectiva é que se pode compreender a
sua teoria dos intelectuais e da ideologia, a distinção que ele faz en-
tre intelectuais individuais que podem produzir ideologias mais ou
menos subjetivas e arbitrárias, e os intelectuais “orgânicos”, ou O

15 “Se nos ativermos à definição que B. Croce oferece da religião, caso de uma con-
vida, e se essa norma de vida não
cepção do mundo que se transforme em norma de
ada na vida prática, os homens em
for tomada no sentido livresco, mas norma realiz
camente e em que em suas ações
maioria são filósofos, na medida em que agem prati
práticas... está implicitamente contida A concepção do mundo, uma filosofia.
1 Materialismo Storico, p. 21.
pção do mun-
ora porém, coloca-se o problema fundamental de toda conce
o” e “fé”, caso que
do, de toda filosofia que se tornou movimento cultural, “religiãcontida nesta última
produziu uma atividade prática e uma vontad e, e que se acha
íamos dizer, se ao termo
como premissa teórica implícita (uma “ideologia + poder
o de uma conce pção do mundo, que
ideologia se der justamente o sentido mais elevad
econômica, em todas as
se manifesta implicitamente na arte, no direito, na atividade
manifestações da vida individual e coleti va),
de ideoló-
“Em outros termos, o problema que se coloca é o de conservar a unida
essa ideolo gia...”
gica no bloco social, que é cimentado e unificado precisamente por | a
(Ibidem, p. 7.)
Ter-se-á observado que a concepção de uma ideologia que se manifesta “implici-
tamente” na arte, no direito, na atividade econômica, “todas as manifestações da
vida individual e coletiva” está muito próxima da concepção hegeliana,

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72 LER “O CAPITAL"

ntem a “hegemonia”
“intelectual coletivo” !* (o Partido), que gara
cepção do mundo”
de uma classe dominante impondo a sua “con
todos os homens: €
(ou ideologia orgânica) na vida quotidiana de
iavélico cuja herança
entender sua interpretação de O Príncipe maqu
o em condições novas,
é retomada pelo partido comunista modern
exprime essa necessidade,
etc. Em todos esses casos, Gramsci apenas
teoricamente inerente ao
não apenas prática, mas conscientemente,
então apenas um dos as-
marxismo. O historicismo do marxismo é
concebida, é apenas a sua
pectos e efeitos de sua própria teoria bem
a da história real deve
própria teoria coerente consigo: uma teori
o outrora O fizeram outras
também entrar na história real, com
ade quanto às grandes reli-
“concepções do mundo”. O que é verd próprio marxismo,
giões deve ser com mais forte razão quanto ao
da diferença que existe entre
não apenas a despeito mas por causa , dado
em razão da sua originalidade filosófica
ele e essas ideologias,
incluir o sentido prático de sua
que a sua originalidade consiste em
própria teoria. "

este último sentido de “histo-


Entretanto, como se terá notado, xista, é ain-
erior à teoria mar
ricismo”, que nos remete a um tema int
gra nde par te, uma ind ica ção crít ica, destinada a condenar to-
. da, em
pretendem fazer o marxismo
dos os marxistas “livrescos”, os que lidade
cair no tipo das “filosofias individuais" sem contato com à rea
como Croce, retomam a tra-
- ou ainda todos os ideólogos, que, tal
dição desastrada dos intelectuais do Renasc imento, pretendendo fa-
“por cima”, sem entrar na ativi»
zer a educação do gênero humano
rmado por Grams-
dade política e na história real, O historicismo afiesse
contra aristocratismo
ci tem o sentido de um vigoroso protesto

e
te
“Todos os homens são filósofos” (p, 3),
Dado que agiré sempre agir politicamente, não se poderá dizer que à filosofia real Ce
cada um está inteiramente contida em sua política?... não see pode,
a críticapois,de destaca” ds
uma concep-
Josofia da política, e pode-se mesmo mostrar que a escolha
ção do mundo são também um fato político” (p. 6).
deveria aglf
Se é verdade que toda filosofia é a expressão de uma sociec tade, ela qual
sobre a sociedade, determinar certos efeitos, positivos e negativos; à medida na
vi-
ela ape é a medida de seu alcance histórico, dado que ela não é “elucubraç do” indi
dual, mas “fato histórico” (pp. 23-24),
dia 4 Manaiidada 4 MMA com a filosofia é imanente no materialismo... A propo-
erp atirei mr as o alemão é herdeiro da filosofia clássica alemã contém pre-
car popa a do de história com filosofia"... (p. 217). Cf, as pp. 232-234.
ada aos 1 GeMASHA de “historicismo”, tomado nesse sentido, traz um nome
presiso no marniama: o problema da união da teoria com a prática, mais especlal-
p ema da união da teoria marxista com o movimento operário.

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 73

da teoria e de seus “pensadores”. !* O velho protesto contra o fari-


saísmo livresco da 11 Internacional (“A Revolução contra O Capi-
tal”) aí repercute ainda: trata-se de um apelo direto à “prática”, à
atividade política, à “transformação do mundo”, sem o que 0 mar-
xismo seria apenas presa de ratos de biblioteca ou de burocratas
políticos passivos. '
Trará esse protesto necessariamente em si uma interpretação
teórica nova da teoria marxista? Não necessariamente: porque pode-
rá simplesmente sob a forma prática de um chamado absoluto, um
instaura-
tema essencial da teoria de Marx: o tema da nova relação,
a “prática”.
da por Marx, em sua própria teoria, entre a “teoria” e
por um
Encontramos esse tema meditado por Marx em dois lugares:
das ideologias, e
lado, no materialismo histórico (na teoria do papel
das ideologias '
do papel de uma teoria científica na transformação
a propósito da
existentes) e, por outro, no materialismo dialético, que se tem o
relação, no
teoria marxista da teoria e da prática, e sua
do conhecimento”. Nesses
costume de chamar “a teoria materialista
por Marx é o que está em
dois casos, o que é afirmado com vigor A ênfase dada
marxista.
causa no nosso problema: é o materialismo no sentido muito ri-
por Gramsci a0 “historicismo” do marxismo, realidade ao caráter
pois, em
goroso que acabamos de definir, alude,
de Marx (ao mesmo tem-
decididamente materialista da concepção
mo dialético). Ora, essa
po no materialismo histórico e no materialis
desconcertante, e que com-
realidade obriga-nos a uma observação, entre si: 1) Embora
porta três aspectos tão perturbadores
seja o materialismo, Gramsci de-
o que esteja diretamente em causa
histórico” “a ênfase deve ser
clara que na expressão “materialismo
e não ao primeiro , que €, segun-
dada ao segundo termo: “histórico”, se re-
2) Embora a ênfase materialista
do ele, “de origem metafísica";
histórico, mas também ao materia-
fira não apenas ao materialismo
dialético, Gramsci só fala do materialismo histórico - € mais
lismo a
“materialismo” leva inevitavelmente
ainda, sugere que à expressão 3)
talvez mais que ressonâncias;
ressonâncias “metafísicas”, ou “materialismo histórico —
claro, então, que Gramsci dá à expressão
científica da história - um duplo
que designa peculiarmente a teoria tempo, tanto materialismo his-
sentido: significa para ele, ao mesmo no
Gramsci tende, pois, a confundir
tórico como filosofia marxista. à
categoria Unica, ao mesmo tempo
materialismo histórico, como
dialético, que no entanto são dis-
teoria da história e O materialismo esta última
s e tirar
ciplinas distintas. Para fazer essas observaçõe

» Gramsci, Materialismo Storico, pp. 8-9.

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74 LER “O CAPITAL"

conclusão, não me bascio evidentemente apenas na frase que anali-


so, mas em numerosos outros desenvolvimentos de Gramsci, que as
confirmam sem qualquer dúvida, e que lhe dão, pois, um sentido
conceptual. !* Creio que nesse ponto é que podemos descobrir um
novo sentido do “historicismo” gramsciano, que não se pode mais
reduzir, desta feita, ao emprego legítimo de um conceito indicativo,
polêmico ou crítico - mas que se deve considerar como interpretação
e
teórica referente ao próprio conteúdo do pensamento de Marx,
«que pode cair então sob nossas reservas ou críticas,
Há, finalmente, em Gramsci, além do sentido polêmico e práti-
“historicista” de
co desse conceito, uma verdadeira concepção
relação da teoria de
Marx: concepção “historicista” da teoria da ci
acaso que Grams
Marx com a história real. Não se trata de purocroci ana da religião,
esteja constantemente perseguido pela teoria
religiões efetivas à nova
"pois que aceita seus termos e a estende das sob esse aspecto,
não faz,
“concepção do mundo” que é o marxismo;
e o marxismo, classifica reli-
diferença alguma entre essas religiões
“concepções do mundo
giões e marxismo sob o mesmo conceito de religião, ideologia, fi-
mente
ou “ideologias”; identifica também facil o que distingue o marxis-
que
losofia e teoria marxista, sem ressalvar
do” é menos essa E
mo dessas “'concepções ideológicas do mun
rença formal (importante) de pôr fim a todo “além” (suasupraterrestre,
luta bn ri-
“terrest
do que a forma distintiva dessa imanência abso entre as antigas ro
tura
-

dade”): a forma da cientificidade. Essa “rup


9
. .

eu
ligiões ou ideologias inclusive “orgânicas” e o marxismo, que

jmanen-
" rf Por exemplo: “A filosofia da práxis decorre certamento da concordo aroma es-
tista da reali nlti
calidade, mas na medida em que esta última foi | p purificadao humanismo... não
peculativo, e reduzida à pura história ou historicidade, ou ao pur concepção
apenas a filosofia da práxis está ligada ao imanentismo, mas também sun, -à como
subjetiva da realidade, na medida mesma em que explicando
ela a inverte, como que
fato acal, dh
como “subjetividade histórica de um grupo social,
"fato histórico,
se apresenta como fenômeno de “especulação” filosófica e é simplesmente UN o con-
dade prática, a forma de um conteúdo concreto social e o modo de conduzir ico, P
moral...” (Materialismo Stortem +
oo da sociedade para se constituir uma unidade acontecimentos, tura
* Ouainda: “Be é necessário, no eterno transcurso dos
PS
eee quais a realidade não poderia ser compreendida, será preciso
Ra Maio indispensável, determinar e lembrar que à realidade em je dE
balho a rpm caglidade, se é que podem ser distinguidos logicamente, eve
e abro pea pa como unidade inseparável” (ibidem, p. 216). texto,
no segundo
' ' spread
Í hmpesdem ep ogsasai ho tão pyaantas
sta-especulativá is Ao
icismo: à gem, tidade
do conceito com q objeto real (histórico), ir a

ag
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 75

da história huma-
ciência, e que deve tornar-se ideologia “orgânica”
ogia (uma ideo-
na, produzindo nas massas uma nova forma de ideol
s se viu) - essa
logia que repousa agora numa ciência - o que jamai
sci, e, absorvido
ruptura não é verdadeiramente refletida por Gram
cas da penetração da
que está pela exigência e pelas condições práti plano a
relega a segundo
“filosofia da práxis” na história real, ele
conseqiiências teóricas €
significação teórica dessa ruptura € suas
vezes a reunir sob um mesmo
práticas. Ele tende também frequentes
erialismo histórico) e a filo-
termo a teoria científica da história (mat
, e a pensar essa unidade
sofia marxista (materialismo dialético)
ou como “ideologia” afinal
como uma “concepção do mundo”
e inclusive a pensar à relação
comparável às antigas religiões. Tend
com o modelo da relação de
da ciência marxista com a história real
oricamente dominante e atuante)
“uma ideologia “orgânica” (hist
a pensar essa relação da teoria
com a história real; e em definitivo de
marxi sta com a histó ria real com o modelo da relação
científica
diret a que expli ca muito bem a relação de uma ideologia
o
expressã
é que reside, ao que me parece, O
orgânica com o seu tempo. Nisso de Gramsci. Nisso é que ele
stáve l do hista ricis mo
princípio conte ca problemática teórica in-
à linguagem
encontra espontaneamente
ismo”.
dispensáveis a todo “historic
dar-se um sentido teoricamente
A partir dessas premissas, pode aradas
já citei no início - porque, amp
historicista às fórmulas que elas assumem também
por todo o con texto que acabei de assinalar, o mais
em Gra msc i - e se vou agora tentar desenvolver,
esse sentido não
sam ent e pos sív el em tão bre ve espaço, suas implicações, é
rigoro dade histórica
to par a cen sur ar Gra msc i (que tem muita sensibili mas
tan essário, suas distâncias),
não tom ar, qua ndo nec
e teórica para cujo conhecimento pode tor-
para tornar vISisível uma
lógica latente g-
re en sí ve is alg uns de seu s efeitos teóricos que ficariam ent
nar comp ele inspira
no con tex to do pró pri o Gramsci ou daqueles que
mático s
ém neste caso, proponho-me a expor,
ou podem a ele aderir. Tamb sto ric ista” de certos textos de O
pós ito da lei tur a “hi
como o fiz a pro ini r menos esta ou aquela inter-
sit uaç ão- lim ite , e def
Capital, uma Colletti, Sartre e outros) do
que O
(Gr ams ci, Del la Vol pe,
pretação e que,
da pro ble mát ica teó ric a que paira sobre suas reflexões
camp o
seus conceitos, problemas ou solu-
vez por outra, surge em alguns de |
ções, to-
a esse fim , e com ess as res salvas, que não são de estilo,
Par
ago ra a fór mul a: O mar xis mo deve ser concebido como-um
marei
sto ric ism o abs olu to” com o tese sintomática, que permitirá pôr em
“hi
latente. Como entender, em nossa
evidência toda uma problemática mo é
Gramsci? Se o marxis
presente perspectiva, essa afirmação de

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76 LER “O CAPITAL”

um historicismo absoluto, isto se deve a que ele historiciza aquilo


que no historicismo hegelianoé propriamente negação teórica e prá-
tica da história: o seu fim, o presente inultrapassável do saber abso-
portan-
luto, No historicismo absoluto não há mais saber absoluto,
to de fim da história.
se torne
Não há mais presente privilegiado em que a totalidade
que consciência e ciên-
visível e legível num “corte de essência”, em o
uto - o que torna
cia coincidam. Que não haja mais saber absol
absoluto está por sua
historicismo absoluto - significa que O saber
privilegiado, todos os
vez historicizado. Se não há mais presente
Segue-se que o tempo
presentes tornam-se também privilegiados.
presentes, uma estrutura tal
histórico possui, em cada um de seus
e de essência” da contempora-
que permite a cada presente O “cort
Toda via, como a total idade marxista não tem a mesma €s-
neidade.
que a total idade hegel iana, como em especial ela comporta
trutura
ou instâ ncias difer entes não diretamente expressivos uns dos
níveis
- é preci so, para torná -la susce tível ao “corte de essência”, li-
outros de
si esses níveis disti ntos de um modo tal que o presente
gar entre
os presentes dos demais; que eles se-
cada um coincida com todos relacionamento assim refeito
ex-
“contemporâneos”. Seu
jam, pois, m,
efeit os de disto rção e de defasagem que contradize
cluirá esses contempo-
marxi sta autên tica, essa leitura ideológica da
na concepçã o
r O marxismo como historicismo (ab-
raneidade. O projeto de pensa a de
dese ncad eia, pois, auto mati camente os efeitos em cadei
soluto) à totalidade
uma lógica necessária, que tende a rebaixar e aplastar o
sobre uma varia nte da totalidade hegeliana, é que,pormesm
marxista mais ou menos retóricas,
acaba esf u-
in çõ es
separam OS níveis.
com a cau tel a de di st
as di fe re nç as re ai s qu e
mar, reduzir ou omitir pre cis ão O po nt o si nt om át
a i ico em que.
Podemos mostrar com à Nu - isto é, se dissimula sob â
is se mos tra
essa redução dos níve da palavra):
capa de uma “evidência” que a trai (nos dois sentidos
esta tuto do con hec ime nto cien tífico e filosófico. Vimos que
no
dade prática da concepção do
Gramsci insistia a tal ponto na uni
ervar o que distingue à teo-
mundo com a história que deixava decaobsanterior: O seu caráter de co-
ria marxista de toda ideologia orgâni
ista, que ele não distingue Ni-
nhecimento científico. A filosofia marx
e o mesmo destino; Gramsci à
tidamente da teoria da história, sofr
ória presente: à filoso-
põe em relação de expressão direta com a hist
com o que ria Hege l (co nce pção retomada por Croce),
a é auião, . Sendo toda filosofia,
coda RA agonia º em definitivo história
DOS SUS VM em sou undo real, hist ória real, a história real pode
À ez ser considerada a cia.
filosofi e ciên
dical, DAR Te da Peruano fa aorta marxista, essa dupla afirmação ra-
$ cas que permitem formulá-la? Por um

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DE “O CAPITAL" ja
O OBJETO

sem-número de deslizamentos conceptuais, que têm por efeito justa-


mente reduzir a distância entre os níveis que Marx havia distinguido.
Cada um desses deslizamentos é tanto menos perceptível quanto
não se fixe a atenção às distinções teóricas expressas no rigor dos
conceitos de Marx.
Assim é que Gramsci declara constantemente que uma teoria
cientifica, ou esta ou aquela categoria decorrente de uma ciência, é
uma “superestrutura” ** ou uma “categoria histórica” que ele assimi-
la a uma “relação humana”.?' É, de fato, atribuir ao conceito de

“superestrutura” uma extensão que Marx lhe recusa, dado que
e 2)
classifica sob esse conceito: 1) a superestrutura jurídico-política
a superestrutura ideológica (as “formas de consciência social” cor-
respondentes): Marx jamais inclui nelas, salvo nas “obras da juven-
cientí-
tude” (e em particular nos Manuscritos de 44), o conhecimento
de ''superes-
fico. A ciência não pode ser classificada sob a categoria
nela não se en-
trutura”, assim como a língua, que Stalin mostrou
julgá-la como uma
quadrar. Fazer da ciência uma superestrutura é
bem à estrutura que
dessas ideologias “orgânicas”, que aderem tãa
na teoria mar-
acabam tendo a mesma “história” dela! Ora, mesmo
à estrutura que lhes
xista, lemos que as ideologias podem sobreviver a
por exemplo, a religião,
deu nascimento (é o caso da maioria delas:
da superestrutura
moral, a filosofia ideológica), e certos elementos
Quanto à ciência,
jurídico-política também (o direito romano!). seu campo
pode também nascer de uma ideologia, destacar-se de
esse afastamento,
para constituir-se como ciência, mas justamente
nova forma de existência e de tem-
essa “ruptura”, inauguram uma
a escapar (pelo menos em
poralidade históricas, que levam a ciência real de sua
à continuidade
certas condições históricas que asseguram de uma
própria história - não foi sempre este O caso) à sorte comum
da unidade da estrutura
história peculiar: a do “bloco histórico” camente a tempo-
ideologi
com a superestrutura. O idealismo reflete vimento, seu tipo
ralidade própria da ciência, seu ritmo de desenvol
parecem fazê-la escapar às vi-
de continuidade e de mensuração, que
econômica, sob a forma de a-
cissitudes da história política e
ia assim um fenômeno
historicidade € intemporalidade: ele hipostas para Ser pensado,
real, que precisa de todas as demais categorias relativamente au-
mas que deve ser pensado, distinguindo a história

|
en de nt ntes
es . de Gram sci sobre a ciênci a. Materialismo Storico,
r inas su
rpre
“Cf. Cf. asas papág € iência é também uma superestrutura, uma ideologia”
re al id ad e u
54-57. "Em
li mbém
4 p. Il62,
S6) cf. ta
.
ico, p. 160.
: Materialismo Stor

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78 LER “O CAPITAL”

tônoma e própria do conhecimento científico das demais modalida-


- des da existência histórica (a das superestruturas ideológicas, jurídi-
co-políticas e a da estrutura econômica),
Reduzir e identificar a história própria da ciência à da ideologia
orgânica e à história econômico-política significa, afinal, reduzir a
his-
ciência à história como à sua “essência”. A queda da ciência na
que joga a
tória é aqui apenas índice de uma queda teórica: aquela
a
teoria da história na história real: reduz o objeto (teórico) da ciênci
cimento
da história à história real; confunde, pois, o objeto de conhe
a queda na ideologia
com o objeto real. E isso nada mais é do que
empirista, posta em cena sob os pappéis aqui representados pela fi-
seu prodigioso gênio his-
losofia e pela história reais. Seja qual for o
a essa tentação empirista
tórico e político, Gramsci não escapou
ia e sobretudo (porque ele se
quando quis pensar o estatuto da ciênc
pouco da ciênc ia) da filoso fia. Ele é constantemente tentado a
ocupa
a relaç ão entre a histó ria real e a filosofia como relação de
pensa r
expre ssiva , sejam quais forem as mediações encarregadas
unida de
para ele O filósofo é, em última
de garantir essa relação. * Vimos que
a filosofia é O produto direto (sob
instância, um “político”; para ele,
todas as “mediaçõ es neces sária s”) da atividade e da ex-
a ressalva de a essa filosofia
econômico-política:
periência das massas, da práxis práxis
do “bom senso” já intei ramente feita fora deles, e que fala na
filós ofos de ofício simp lesm ente servem de porta-voz €
histórica, os poder modificar-lhe a subs-
- sem
lhe dão as formas do seu discurso coincide, como uma oposição
tância. Espo ntan eame nte, Gram sci
indispensável à expressão do seu pens amento, com as próprias E q
num texto célebre de 1839, à
mulas de Feuerbach, contrastando,
fia produzida aee
losofia produzida pela história real com à filoso
ção ão
filósofos - as fórmulas contrastando a práxis com àespecula
rsão” feuerbachi especu a a
ana da histo
nos próprios termos da “inve ele entende conse rtar O ricism
em filosofia “concreta” que especulativo de Crotm
crociano: “inve rter” o histo ricis mo
dele o historicismo gor
recolocá-lo sobre os pés, para fazer é ver aeê
xista - e encontrar a história real, a filoso fia *'concreta Se natu-
conserva à própria
de que a “inversão” de uma problemática
probl emáti ca, não será de admirar que a relação de ex
reza dessa das por
pressão direta (com todas as “mediações” necessárias) pensa
ago ou Croce entre a história real e a filosofia, S€ ache na pt
que
precisamente na relação de expressão diretaà filoso
dar fia.
u estabelecer entre a política (história real) é

24
Sobre O conceito
ei E
de mediação, cf. tomo 1, cap. |, parágrafo 18.

aid
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 79

Mas não basta reduzir ao mínimo a distância que separa na es-


trutura social o lugar específico das formações teóricas, filosóficas e
científicas da prática política, portanto o lugar da prática teórica do
lugar da prática política - é preciso ainda adquirir uma concepção
da prática teórica que ilustre e consagre à identidade proclamada en-
tre a filosofia e a política. Essa exigência latente explica novos desli-
ão
zamentos conceptuais, tendo de novo por efeito reduzir a distinç
entre os níveis.

Nessa interpretação, a prática teórica tende a perder toda espe-


ria
cificidade, para ser reduzida à prática histórica em geral, catego
as como
sob a qual são pensadas formas de produção das mais divers
assimila-
a prática econômica, política, ideológica e científica. Essa
ci reco-
ção, todavia, apresenta problemas sutis: o próprio Grams
na teoria das
nhecia que o historicismo absoluto arriscava tropeçar
as Teses
ideologias. No entanto, ele mesmo forneceu, comparando
“indústria e ex-
sobre Feuerbach com uma frase de Engels (a história
ndo o modelo
perimentação”), o argumento de uma solução, propo
essas práti-
de uma prática capaz de unificar sob seu conceito todas
to exigia que
cas diferentes. A problemática do historicismo absolu ema
que a esse probl
esse problema fosse resolvido: não é por acaso
to empirista. Esse
empirista ela tenda a propor uma solução de espíri
imental tomada não
modelo pode ser por exemplo o da prática exper
a certa ideologia da ciên-
tanto à realidade da ciência, moderna, mas e susten-
de Gramsci,
cia moderna. Colletti retomou essa indicação uma “estrutura
realidade,
tou que a história possui, como a própria
ia, estruturada como
experimental”, e que ela é, pois, em sua essênc vez, decla-
por sua
uma experimentação. Sendo a história real assim, cientifica
rada “indústriae experimentação” - e sendo toda prática
a histórica e a prática
definida como prática experimental, a prátic leva a
teórica passam então a ter uma só emesma estrutura. Colletti
história inclui em seu
comparação ao extremo, assegurando que a
se, indispensável à
ser, assim como a ciência, o momento da hipóte
ação, segundo os es-
colocação em cena da estrutura da experiment
do, na ação politi-
quemas de Claude Bernard. A história, não cessan
o futuro, indispensá-
ca viva, de adiantar-se (pelas projeções sobre
em ato,
veis a qualquer ação) seria assim hipótese e comprovação identi-
, Com essa
exatamente como a prática da ciência experimental
ser assimilada di-
dade de estrutura essencial, a prática teórica pode
ica - e a redução do
reta, imediata e adequadamente à prática histór
pode
lugar da prática teórica ao lugar da prática política ou social,
então ser fundamentada na redução das práticas a uma estrutura
única,

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80 DER “O CAPITAL

Apresentei o exemplo de Gramsci e o de Colletti, mas isso não


significa que sejum os únicos exemplos possíveis de variações teóri-
cas de um mesmo invariante teórico: q problemática do historicis-
mo. Uma problemática não impõe de modo algum variações abso-
lutamente idênticas aos pensamentos que atravessam o seu campo:
podemos atravessar um campo por vias muito diferentes, dado que
o podemos abordar sob ângulos diversos. Mas o fato de depararmos
com ele implica que nos submetamos à sua lei, que produz efeitos
tão diferentes quanto sejam diferentes os pensamentos que a enfren-
tem: no entanto, todos esses efeitos têm em comum certos traços
idênticos, no que são efeitos de uma mesma estrutura: a da proble-
mática encontrada. Para dar um exemplo paradoxal disso, todos sa-
bem que o pensamento de Sartre não provém de modo algum da in-
terpretação do marxismo por Gramsci; tem origens muito diferen-
tes. No entanto, quando Sartre se aproximou do marxismo, deu-lhe
imediatamente, por motivos que lhe são peculiares, uma interpreta-
ção historicista (embora ele recuse esse batismo), ao declarar que as
grandes filosofias (cita a de Marx depois das de Locke e de Kant-
Hegel) são “insuperáveis na medida em que não foi superado o mo-
mento histórico de que elas são a expressão” (Critique de la Raison
Dialectique, Gallimard, p. 17). Verificamos aí, numa forma peculiar
a Sartre, as estruturas da contemporaneidade, da expressão e do in-
superável (o “ninguém pode saltar além do seu tempo” de Hegel),
que, para ele, representam especificações do seu principal conceito:
a totalização - mas que, todavia, sob as aparências da especificação
desse conceito que lhe é próprio, realizam os efeitos conceptuais ne-
cessários do encontro dele com a estrutura da problemática histori-
cista. Esses efeitos não são os únicos: não admira ver Sartre des-
cobrir por seus próprios meios uma teoria dos “ideólogos” (ibidem,
17-18) (que amoedam e comentam uma grande filosofia, e a introdu-
zem na vida prática dos homens) bem próxima sob certos aspectos
da teoria gramsciana dos intelectuais orgânicos ”; menos surpreen-
dente é encontrar em ação em Sartre a mesma redução necessária das
diferentes práticas (diferentes níveis distinguidos por Marx), à uma
prática única; para ele, em razão de suas próprias origens filosóficas,
não é o conceito de prática, mas o de práxis, sem mais, que está en-
carregado de assumir, ao preço de inumeráveis “mediações (Sartre
é o filósofo das mediações por excelência: elas têm justamente por
função assegurar a unidade na negação das diferenças), a unidade de

“Verificamos em Gramsci (Materialismo Storico, p. 197) em termos claros a distin-


ção sartriana entre filosofia e ideologia,

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O OBJETO DE “O CAPITAL! 8]

pn ea tão diversas como q prática clentífica c 4 econômica ou


política,

Não posso desenvolver essus observações muito esquemáticas,


Contudo, elas podem dar uma noção das implicações necessaria-
mente contidas em toda interpretação historicista do marxismo, e
dos conceitos particulares que essa interpretação deve produzir para
responder uos problemas que cla a si mesma propõe - pelo menos
quando pretende ser, como no caso de Gramsci, Colletti e Sartre,
teoricamente exigente e rigorosa, Essa interpretação não pode pen-
sar a si mesma a não ser sob a condição de toda uma série de redu-
ções que são o efeito, na ordem da produção dos conceitos, do cará-
ter empirista de seu projeto, f: por exemplo sob u condição de redu-
e de-
zir toda prática à prática experimental, ou à “práxis” em geral,
práti-
pois assimilar essa prática-mãe à prática política, que todas as
cas podem ser pensadas como originárias da prática histórica
o mar-
“real”, e que a filosofia, e até a ciência, c portanto também real.
xismo, podem ser pensados como a “expressão” da história
ou a filosofia,
Chega-se com isso a rebater o conhecimento científico
a unidade da prática
mas de qualquer modo a teoria marxista sobre
na história
econômico-política, no cerne da prática “histórica”,
interpretação
“peal", Chega-se assim ao resultado exigido por toda
condição teórica: a
historicista do marxismo como sua própria da totalidade
transformação da totalidade marxista numa variante
hegeliana,

A interpretação h istoricista do marxismo


pode chegar a este úl-
timo efeito: a negaçã o pr ática da distinção entre a ciência da história
(materialismo dialéti-
(materialismo histórico) € a filosofia marxista
perde praticamente a
co), Nesta última redução, a filosofia marxista
o materialismo dialé-
razão de ser, em proveito da teoria da história:
Vê-se isso claramente
tico desaparece no materialismo histórico. *
em: não apenas a ex-
em Gramsci, e na maior parte dos que o segu mar-
uma filosofia
pressão materialismo dialético, mas o conceito de as mais vivas res»
nida por um objeto próprio, lhes inspira
xista defi
filosofia teorica-
salvas, Consideram eles que a simples idéia de uma
método), e portanto dis-
mente autônoma (por seu objeto, teoria e res-
na metafísica, na
tinta da ciência da história, lança O marxismo

es
esmi s razõeses estrutu rais, O efeito inverso: em Sartre
“ Pode observar-se, pelas mesma
sta transforma-se em filosofia.
pode também dizer-se qu ea ciência da história marxi

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82 LER “O CAPÍTALS

tauração de uma Filosofia da Natureza, da qual Engels seria o arte-


são. ** Dado que toda filosofia é história, a “filosofia da práxis” só
pode ser, como filosotia da identidade filosofia-história,
“ou ciência-história. Não mais tendo objeto próprio, a filosofia mar-
xista perde então o estatuto de disciplina autônoma, e se reduz, se-
gundo a expressão de Gramsci, retomada a Croce, a uma simples
“metodologia histórica”, isto é, à simples consciência de si da histori-
cidade da história, à reflexão sobre a presença da história real em to-
das as suas manifestações:

Separada da teoria da história e da política, a filosofia só pode ser


nto
metafísica - ao passo que a grande conquista da história do pensame
Aistorici-
moderno, representada pela filosofia da práxis, é justamente a
zação concreta da filosofia, e sua identificação com à história.
(Materialismo Storico, p. 133.)

ao estatuto de
Essa historicização da filosofia a reduz então
uma metodologia histórica: '
deira num período de-
Pensar uma afirmação filosófica como verda vel
ria, isto é, como expressão necessária e indissociá
terminado da histó
s determinada, mas ul-
de uma ação histórica determinada, de uma práxi do posterior, sem cair
perio
trapassada e “esvaziada” do seu sentido num
, o que significa conceber
no ceticismo e no relativismo moral e ideológico mental difícil... O autor
a filosofia como historicidade, é uma operação filosofia da práxis como
de
[ Bukharin ] não consegue elaborar o conceito f-
como filosofia, como a unica
“metodologia histórica”, nem esta última
consegue propor nem resolver, do ponto de
losofla concreta, isto é, não
propôs e tentou resolver do
vista da' dialética real, o problema que Croce se
ponto de vista especulativo.

Com estas últimas palavras, eis-nos deCrocvolt a às origens: do his-


toricismo hegeliano, “'radicalizado” por e, e que bastaria “in-
a especulativa à filosofia “concreta ,
verter” para passar da filosofiétic empreendimento ted»
da dialética especulativa à dial a real, etc. O
oricismo não sai dos li-
rico de interpretação do marxismo como hist
mites absolutos nos quais se efetua desde Feuerbach essa “inversão
o”: esses limites
da especulação na práxis, da abstração no “concretada
são definidos pela problemática empirista, sublim na especula-
nos livrar.”
ção hegeliana e da qual nenhuma “inversão” pode

, CI. Gramsci, em suu crítica do manual de Bukharin; Colletti (passim). o


Falei há pouco das origens próprius da filosofia de Sartre. Sartre pensa em Des-
curtes, Kant, Husserl e Hegel: mus 0 seu pensamento mais profundo vem sem dúvida
de Politrer e (por mais paradoxal que essa aproximação possa parecer) seçundaria-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 83

Vê-se, pois, manifestar-se claramente, nas diferentes reduções


teóricas indispensáveis à interpretação historicista de Marx, e em
seus efeitos, à estrutura fundamental de todo historicismo: a con-
temporaneidade que permite uma leitura em corte de essência. Vê-se
também, dado que é sua condição teórica, essa estrutura impor-se,
queira-se ou não, à estrutura da totalidade marxista, transformá-la,
e reduzir a distância real que separa seus diferentes níveis. A história
da pre-
marxista “cai” no conceito ideológico de história, categoria
sença e da continuidade temporais; na prática econômico-política
da filosofia e das
da história real, pelo nivelamento das ciências,
o e das forças de
ideologias sobre a unidade das relações de produçã
Por mais paradoxal
produção, isto é, de fato sobre a infra-estrutura.
censurarão por tirar €
que seja esta conclusão, que sem dúvida me
de vista da problemá-
enunciar, somos obrigados a tirá-la: do ponto
político, esse materialismo
tica teórica, e não das intenções e acento de base da
princípios teóricos
humanista e historicista reencontra OS Se
interpretação economic ista e mecanicista da Il Internacional.
pode sustentar políticas de inspira-
essa mesma problemática teórica
voluntarista, uma passiva € ou-
ção diferente, uma fatalista e outra do “jogo” teóri-
dá pelos recursos
tra consciente e dinâmica - isso se
ideológica contém, como toda
co que essa problemática teórica
por uma contradança compen-
ideologia. A propósito, é ao conferir, s ativos da superestrutura
tos mai
satória, à infra-estrutura OS atribu
toricismo pode contrapor-se poli-
política e ideológica que um tal his Essa operação de transferên-
ernacional.
ticamente às teses da II Int
sob diferentes formas: afetando,
cia de atributos pode conceber-se ria
dos atributos da filosofia e da teo
por exemplo, à prática política a “práxis” econômica de todas as
o
(o espontaneísmo); carregand arco-
ati vas , até me sm o explosivas da política (an
virtudes ção politi-
ali smo ), Ou atr ibu ind o à consciência e à determina
sindic vol unt arismo). Em resumo, se

mo ec on ôm ic o (o
cas o determinis a superestrutura com à inf
ra-
dis tin tos de ide nti fic ar
dois modos a economia - um que vê na
cons-
ura , OU à con sci ênc ia com
estrut he a eco-
nci a e na. pol íti ca só a eco nomia, quando o outro preenc
ciê

sua Crítica dos


é o Feu erbach dos tempos modernos:
mente de Bergson. Ora, Politzer em nome de uma Psi-
a crítica da Psicologia especulativa
Fundamentos da Psicologia é “fil osofemas”:
zer foram tratados por Satre como
cologia concreta. Os temas de Polit inverte
eiro; quando o historicismo de Sartre
ele não abandonou à inspiração do prim etiv idade
xismo dogmático numa teoria da subj
a “totalidade”, as abstrações do mar obje tos,
os lugares, € à propósito de outros
concreta, ele “repete” também em outr
m Marx e a Politizer, apenas conserva, sob
uma “inversão” que, de Feuerbach ao jove tica.
problemá
a aparência de sua crítica, uma mesma

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84 LER “O CAPITAL"

nomia de política e de consciência, não há em operação nunca mais


-do que uma única estrutura de identificação: a da problemática que
identifica teoricamente os níveis em confronto, reduzindo um ao ou-
tro. Essa estrutura comum da problemática teórica é que se torna
visível quando analisamos não as intenções teóricas ou políticas do
mecanicismo-economicismo por um lado, e por outro o humanis-
mo-historicismo, e sim a lógica interna de seu mecanismo concep-
tual.

Uma palavra a mais sobre a relação entre humanismo e histori-


cismo. É bastante claro que se possa conceber um humanismo não-
historicista assim como um historicismo não-humanista. Evidente-
mente, só falo aqui de um humanimoe de um historicismo teóricos,
considerados na sua função de fundação teórica da ciência e da filo-
sofia marxista. Basta viver na moral ou na religião, ou nessa ideolo-
gia político-moral que se chama socialdemocracia, para mobilizar
uma interpretação humanista mas não-historicista de Marx: é só ler
Marx à “luz” de uma teoria da natureza humana, seja ela religiosa,
ética ou antropológica (cf. as RRPP, Calvez e Bigo, € Rubel, e de-
pois os sociais-democratas Landshut e Mayer, primeiros editores
das Obras da Juventude de Marx). Reduzir O Capital a uma inspira-
ção ética é brinquedo de criança, caso nos apoiemos na antropolo-
gia radical dos Manuscritos de 44. Mas pode-se também conceber ao
inverso a possibilidade de uma leitura historicista não-humanista de
Marx: se o entendo bem, nesse sentido é que tendem os melhores es-
forços de Colletti, Para autorizar essa leitura historicista não-
humanista, basta, como o faz precisamente Colletti, recusar à redu-
que
ção da unidade. “forças de produção relações de produção” -
constitui a essência da história - ao simples fenômeno de uma natu-.
reza humana, mesmo historicizada. Mas deixemos de lado essas
duas possibilidades,
É a união do humanismo com o historicismo que representa,
impõe-se que o digamos, a mais séria tentação, porque proporciona
as maiores vantagens teóricas, pelo menos em aparência. Na redu-
ção de todo conhecimento às relações sociais históricas, pode-se in-
troduzir por baixo uma segunda redução, que trata as relações de,
produção como simples relações humanas. '' Essa segunda redução
repousa numa “evidência”; acaso a história não é sempre um fenô-
meno “humano”? E Marx, citando Vico, acaso não declara que OS

13

Essa sub-repção
sub- ; é comum em todas as interpretações humanistas do marxismo,

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 85

homens podem conhecê-la, pois que a “fizeram” inteiramente? Essa


“evidência” repousa, entretanto, num singular pressuposto: que os
“atores” da história são os autores do seu texto, os sujeitos da sua
produção. Mas esse pressuposto tem também toda a força de uma
“evidência”, dado que, contrariamente ao que nos sugere o teatro,
os homens concretos são, na história, os atores dos papéis de sua au-
toria. Basta escamotear o diretor para que o ator-autor se as-
semelhe como um irmão ao velho sonho de Aristóteles: o médico-
são
que-se-trata-a-si-mesmo; e para que as relações de produção, que
a
no entanto adequadamente os direitores da história, se reduzam
simples relações humanas. Acaso 4 Ideologia Alemã não está cheia
de fórmulas sobre esses “homens reais”, esses “indivíduos concre-
su-
tos” que “'com os pés bem fincados na terra” são os verdadeiros
que
jeitos da história? Acaso as Teses sobre Feuerbach não declaram
a própria objetividade é resultado, inteiramente humano, da ativida-
tar a essa na-
de “prático-sensível” desses indivíduos? Basta acrescen
para esca-
tureza humana os atributos da historicidade “concreta”
ou morais,
par à abstração e ao fixismo das antropologias teológicas
.
e para ir encontrar Marx no próprio cerne do seu reduto: o materia-
concebida como
lismo histórico. Essa natureza humana será, pois,
cambiante,
produzida pela história, cambiante com ela, o homem
de sua his-
ções
como o queria a Filosofia Iluminista, com as revolu enten-
(o ver, o
tória, e afetado até em suas faculdades mais íntimas
, e também
der. a memória, a razão, etc. - Helvetius já o afirmava assunto
o
Rousseau, contra Diderot * Feuerbach estende-se sobre
de antropólogos
em sua filosofia - e atualmente um sem-número de sua his-
culturalistas detém-se na questão) pelos produtos sociais de
em transformação
tória objetiva. A história converte-se então
ro sujeito da histó-
uma natureza humana, que permanece O verdadei
introduzido a história na na-
ria que a transforma. Ter-se-á com isso dos efeitos
tureza humana, para tornar 08 homens contemporâneos é que está a ques-
históricos de que são os sujeitos, porém - e nisso as relações sociais,
tão - se terão reduzido as relações de produção,
historicizadas, isto é,a
políticas € ideológicas a “relações humanas
Esse é o terreno predileto de
relações inter-humanas, intersubjetivas. : recolocar
grande vantagem
um humanismo historicista, Esta a sua a ele, nascida no
Marx na corrente de uma ideologia bem anterior de uma ruptura
originalidade
século XVIII, tirar-lhe o mérito da
teórica revolucionária não raro, inclusive , torná-lo aceitável às for-
Quem, hoje em
mas modernas da antropologia “cultural” e outras.

Marx. (N. do T.)


* Um dos autores prediletos de

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86 LER “O CAPITAL”

dia, não invoca esse humanismo historicista, acreditando verdadei-


ramente abonar-se em Marx, quando uma ideologia desse tipo de
fato nos afasta de Marx?
Todavia, nem sempre foi assim, pelo menos do ponto de vista
político. Declarei por que e como a interpretação historicista-hu-
manista do marxismo nasceu nos pressentimentos e no sulco da
Revolução de 17. Tinha ela então o sentido de um protesto violento
contra o mecanicismo e o oportunismo da II Internacional, Ela con-
clamava diretamente a consciência e a vontade dos homens para re-
cusar a guerra, derrubar o capitalismo e fazer a revolução. Recusava
intransigentemente tudo o que pudesse, na própria teoria, adiar ou
empanar esse apelo urgente à responsabilidade histórica dos homens
reais lançados na revolução. Exigia, num mesmo movimento, a teo-
ria da sua vontade. Essa a razão pela qual ela proclamava um retorno
a Hegel (0 jovem Lukács, Korsch), e elaborava uma teoria que pu-
nha a doutrina de Marx em relação de expressão direta com a classe
trabalhadora. É dessa época que data a famosa oposição entre
“ciência burguesa” e “ciência proletária”, na qual triunfava uma in-
terpretação idealista e voluntarista do marxismo como expressão €
produto exclusivo da prática proletária. Esse humanismo “esquer-
dista” designava o proletiariado como o lugar e o missionário da es-
sência humana. Se ele estava destinado ao papel histórico de libertar
o homem de sua “alienação”, tal o era pela negação da essência hu-
mana de que ele era a vítima absoluta. A aliança da filosofia com o
proletariado, anunciada pelos textos do jovem Marx, deixava de ser
uma aliança entre duas partes exteriores uma à outra. O proletaria-
do, essência humana em revolta contra a sua negação radical, con-
vertia-se na afirmação revolucionária da essência humana: O prole-
tariado era assim filosofia em ato, e sua prática política a própria fi-
losofia. O papel de Marx reduzia-se então a conferir a essa filosofia
atuada e vivida em seu lugar de nascimento, a simples forma da
consciência de si, Daí por que se proclamava o marxismo “ciência
ou “filosofia” “proletárias”, expressão direta, produção direta da
essência humana por seu peculiar autor histórico: o proletariado. A
tese kautskista e leninista da produção da teoria marxista por uma
prática teórica específica, fora do proletariado, e da “importação” da
teoria marxista para o movimento operário, via-se recusada sem
consideração - e todos os temas do espontaneísmo se precipitavam
no marxismo por essa brecha aberta: o universalismo humanista do
proletariado, Do ponto de vista teórico, esse “humanismo” e esse
“historicismo” revolucionários iam abeberar-se conjuntamente em
Hegel e nos textos da juventude, então acessíveis, de Marx. Passo à
seus efeitos políticos: certas teses de Rosa Luxemburg sobre o IMpe-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 87

rialismo, e o desaparecimento das leis da “economia política” no re-


gime socialista; o proletkult; as concepções da “oposição operária”,
etc; e de um modo geral o “voluntarismo” que marcou profunda-
mente, até nas formas paradoxais do dogmatismo stalinista, o perío-
do da ditadura do proletariado na URSS. Ainda hoje esse “huma-
nismo” e esse “historicismo” despertam ecos verdadeiramente revo-
lucionários, nos combates políticos empreendidos pelos povos do
Terceiro Mundo para conquistar e defender sua independência polí-
tica, e enveredar pelo caminho socialista. Mas essas vantagens ídeo-
lógicas e políticas em si são obtidas, como o discerniu admiravel-
mente Lênin, em detrimento da lógica que põem em jogo, e que pro-
duzem, inevitavelmente, quando se oferece a oportunidade, tenta-
ções idealistas e voluntaristas na concepção e na prática econômica
e política - quando não provocam graças a uma conjuntura favorá-
vel - por uma inversão paradoxal, mas também necessária - concep-
ções matizadas de reformismo e de oportunismo, ou simplesmente
revisionistas.

É de fato peculiar a toda concepção ideológica, sobretudo se ela


submeter a si uma concepção científica desviando-a de seu sentido, o
ser governada por “interesses” estranhos à necessidade exclusiva do
conhecimento. Nesse sentido, isto é, sob a condição de lhe dar o cb-
jeto de que ela fala sem o saber, o historicismo não deixa de ter valor
teórico: pois descreve bastante bem um aspecto essencial de toda
ideologia que adquire sentido a partir dos interesses atuais a serviço
dos quais ela está submetida. Se a ideologia não exprime a essência
objetiva total do seu tempo (a essência do presente histórico), pode,
pelo menos, exprimir muito bem, pelo efeito de leves deslocamentos
internos de ênfase, as transformações atuais da situação histórica:
diferentemente de uma ciência, uma ideologia é ao mesmo tempo
teoricamente fechada e politicamente maleável e adaptável. Ela se
curva às necessidades da época, mas sem movimento aparente, con-
tentando-se com o refletir por alguma modificação imperceptivel de
suas próprias relações internas, as transformações históricas que ela
tem por missão assimilar e dominar. O exemplo ambiguo do ag-
giornamento do Vaticano II bastaria para nos dar uma prova elo-
quente disso; efeito e sinal de uma evolução incontestável, mas ao
mesmo tempo hábil recuperação do controle da história, graças a
uma conjuntura inteligentemente aproveitada. A ideologia muda,
pois, mas imperceptivelmente, conservando a forma de ideologia;
ela se move, mas com um movimento imóvel, que a mantém no mes-
mo lugar, em seu lugar e função de ideologia. Ela é movimento imó-
vel, que reflete e exprime, como dizia Hegel, a propósito da própria
filosofia, o que se passa na história, sem jamais passar além de seu

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88 LER “O CAPITAL"

o na
tempo, dado que ela nada mais é que esse mesmo tempo tomad
os homens a
captura de um reflexo especular, precisamente para que
ucionário
aceitem. É por essa razão essencial que o humanismo revol
o ideológico
dos ecos da Revolução de 17 pode servir hoje de reflex
com preocupações políticas ou teóricas variadas, umas ainda apa-
suas origens.
rentadas, € outras mais ou menos estranhas às
plo, de cau-
Esse humanismo historicista pode servir, por exem
ou pequeno-burguesa,
ção teórica a intelectuais de origem burguesa dramáticos, a
nticamente
que propõem, e às vezes em termos aute
membros ativos de uma his-
questão de saber se são de pleno direito
temem, fora deles. Eis talvez
tória que se faz, como eles O sabem ou contida na
inteiramente
a questão mais profunda de Sartre. Ela está
sofia insuperável da nossa
sua dupla tese de que o marxismo é “a filo
fi losófica vale uma hora de
época” e que nenhuma obra literária ou
gente reduzido pela exploração
dor diante do sofrimento de um indi
nessa dupla declaração de
imperialista à fome e à agonia. Tomado
por um lado, e por outro à cau-
fidelidade a uma idéia do marxismo, verdadei-
convence de que pode
sa de todos os explorados, Sartre se
das “Palavras” que ele pro-
ramente desempenhar um papel, além
a história da nossa época, por
duz é toma por derrisórias, na inuman
atribui a toda racionalidade
uma teoria da “razão dialética” que
rica ), com o a toda dial étic a (revolucionária) a peculiar origem
(teó
. O humanismo historicista àS-
transcendental do “ projeto” humano da liberdade
forma de uma exaltação
sume desse modo em Sartre a
livremente em seu combate, ele
humana em que, comprometendo-se os oprimidos, que, desde a longa
s
comunga com a liberdade de todo
avos, lutam para sempre por um
noite esquecida das revoltas de escr
pouco de luz humana, de
O mesmo humanismo, com peq uena
mudança de ênfase, po
por,
a conjuntura € as necessidades:
servir a outras causas, segundo
o prot esto cont ra os erro s € OS crimes do periodo do “culto
exemplo,
punidos, a esperança de
à personalidade”, a impaciência deta,os etc.ver Quando esses sentimentos
uma verdadeira democracia socialis
tico s que rem obte r um fun dam ento teórico, procuram-no Sem-
polí
mos conceitos: neste ou naquele
pre nos mesmos textos e nos mes
17 (e daí essas edições do
teórico surgido do grande período de pós-
ão por certas fórmulas equi-
jovem Lukács e de Korsch, e essa paix
anistas de Marx; suas obras
vocas de Gramsci), ou nos textos hum
no “hu man ism o real ”, na “alienação”, no “conere
da juventud e;
to”, na história, filosofia ou psicologia “concretas”,
1 2x
1

"Cf, La Nouvelle Critique, nºs 164 ss.

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À
O OBJETO DE “O CAPITAL” 89

Só a leitura crítica das “obras da juventude” de Marx e um es-


tudo aprofundado de O Capital podem nos esclarecer sobre O senti-
do e os riscos de um humanismo e de um historicismo teóricos estra-
nhos à problemática de Marx. |

que nos le-


O leitor há de lembrar-se talvez do ponto de partida
sobre a história.
vou a empreender essa análise do mal-entendido
va podia decorrer
Observei que o modo como Marx a si mesmo julga
€ faltas dos seus prede-
dos juízos com Os quais ele pesa os méritos
amos submeter O tex-
cessores. Ao mesmo tempo mencionei que deví
mas a uma leitura “sinto-
to de Marx não a uma leitura imediata,
continuidade do discurso, as
mal”, para discernir nele, na aparente o
lacunas, os espaços em branc o € as falhas do rigor, os lugares onde
seu silêncio, surgindo no .
discurso de Marxé apenas o não-dito do sintomas teóricos
desses
seu próprio discurso. Pus em destaque um de um conceito em
no julgamento que Marx fizera sobre a ausência
ito de mais-valia, que “genero-
seus predecessores, ausência do conce se estivesse em
tratava como
samente” (como o diz Engels) Marx
Acabamos de ver o que ocorre
causa a ausência de uma palavra.
ia, quando surge no discurso
com outra palavra, a palavra histór que pa-
cessores. Essa palavra,
crítico que Marx dirige aos seus prede
teoricamente vazia, na imediatez
rece plena, é de fato uma palavra a que surge nessa
-de-ideologia,
de sua evidência - ou antes, é plena do
lacuna do rigor. Quem leia O Capital sem indagar criticamente
"seu objeto, não vê malícia alguma nessa palavra que lhe “fala”:
pri-
do qual essa palavra pode ser a
prossegue de boa fé o discurso
história, € depois o discurso histori-
meira, O discurso ideológico da não têm, como o vimos é
cas
cista. As conseglências teóricas e prátiPelo contrário, numa leitura
compreendemos, aquela inocência,
deixar de ouvir sob essa pala-
enistemológica e crítica, não podemos
profe rida O silên cio que ela encobre, nem deixar de ver o espaço
“vra
co do.ri gor inter rompi do, pelo tempo apenas de um relâm-
em bran mos dei-
pago, no espaço negro da página, correlatamente, não pode
esse discu rso apar ente ment e continuado, mas de
xar de perceber sob
€ subj ugad o pela irrup ção ameaçadora de um dis-
fato interrompido do verdadeiro discurso, nem
dei-
curso que recal ca, à VOZ silen ciosa
de resta urar O Lexlo, para lhe restabelecer a continuidade pro-
xar

lapso é do sonho
caso com o do sintoma, do
Pode-se, por analogia, comparar €5S€
“plenitude do desejo”.
»w
- que para Freud é a

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90 LER “O CAPITAL”

funda. Nisso é que-a identificação dos pontos precisos da falha do


rigor de Marx coincide com o reconhecimento desse rigor: esse rigor
é que nos índica as suas falhas; e no instante pontual de seu silêncio
provisório, nada mais fazemos do que lhe dar a palavra que é a sua,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 91

VI. Proposições Epistemológicas de O Capital


(Marx, Engels)

Após essa longa digressão, tracemos as coordenadas da nossa


análise. Estamos à procura do objeto próprio de Marx.
Num primeiro momento interrogamos os textos de Marx onde
ele nos indica a sua própria descoberta, e isolamos os conceitos de
valor e mais-valia como portadores dessa descoberta. Todavia, tive-
mos de observar que esses conceitos eram precisamente o lugar do
mal-entendido, não apenas dos economistas, mas também de um
sem-número de marxistas sobre o objeto próprio da teoria marxista
da economia política.
Em seguida, num segundo momento, interrogamos Marx através
do julgamento que ele mesmo fez de seus predecessores, Os fundado-
res da Economia Política clássica, na esperança de apreendê-lo por
sua vez no juízo que ele pronuncia sobre a sua pré-história científica.
Também nesse caso deparamos com definições desconcertantes ou
insuficientes. Vimos que Marx não chegava a pensar verdadeira-
mente o conceito da diferença que o distingue da Economia clássica
e que, com o pensá-la em termos de continuidade de conteúdo, ele
nos lançava ou numa simples distinção de forma - a dialética - ou
no fundamento dessa dialética hegeliana - certa concepção ideológi-
ca da história, Avaliamos as conseglências teóricas e práticas dessas
ambigúidades; vimos que o equívoco dos textos atingia não apenas a

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92 LER “O CAPITAL”

definição do objeto específico de O Capital, mas também, e ao mes-


mo tempo, a definição da prática teórica de Marx, a relação da sua
teoria com as teorias anteriores - em suma, a teoria da ciência e a
teoria da história da ciência. Nesse caso, não mais tratávamos ape-
nas da teoria da economia política e da história, ou materialismo
histórico, mas da teoria da ciência, e da história da ciência, ou mate-
rialismo dialético. E víamos, ainda que em negativo, que existe uma
relação essencial entre o que Marx produz na teoria da história e o
que ele produz na filosofia. Vimo-lo pelo menos por este indício:
basta um simples vazio nos conceitos do materialismo histórico para
que ali se instale imediatamente o pleno de uma ideologia filosófica,
a ideologia empirista. Só podemos reconhecer esse vazio esvazian-
do-o das evidências da filosofia ideológica que o ocupa. Só podemos
determinar com rigor certos conceitos científicos ainda insuficientes
de Marx sob a condição absoluta de reconhecer a natureza ideológi-
ca dos conceitos filosóficos que lhe usurparam o lugar: em suma,
sob a condição absoluta de começar por determinar ao mesmo tem-
po os conceitos da filosofia marxista aptos a conhecer e reconhecer
como ideológicos os conceitos filosóficos que nos escamoteiam as
falhas dos conceitos científicos. Eis-nos cabalmente votados a esse
destino teórico: o de não poder fer o discurso científico de Marx sem
escrever ao mesmo tempo, por seu próprio ditado, o texto de um
ou-
tro discurso, inseparável do primeiro, mas distinto dele: o discur
so
da filosfia de Marx.

Passemos agora ao terceiro momento


dessa interrogação. O Ca-
pital, os prefácios de Engels, certas cart
as, e as Notas sobre Wagner
contêm de fato algo que nos possa levar
por uma via fecunda. O que
ate agora tivemos de reconhecer em
negativo em Marx, vamos daqui
por diante revelar em positivo
,

- Tenhamos em mente, primeiro, simples observações sobre a ter-


minologia. Sabemos que Marx censura q Smith e Ricardo o terem
const
tencia:antem confundido a mais-valia com as formas de sua exis-
enterenda,
lucro, juro, Falta, pois, uma palavra nas análises dos
grandes economistas, Quando Marx Os lê, restabelece no texto deles
a palavra que falta: a mais-valia. Esse ato apare
cante de restabelecer uma palavra ausente traz nteme nte insignifi-
em si, no entanto,
consequências teóricas de vulto: essa palavra, com efeito
, não é só
uma palavra, mas um conceito, € conceito teórico, que é, no caso, O
representante de um novo sistema conceptual
, correlato do upareci-
mento de um novo objeto. Toda palavra é um conceito, mas nem
todo conceito é teórico, e nem todo conceito teórico
é representante

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O OBJETO DE “O CAPITAL 93

de um novo objeto. Se u palavra mais-valia é importante a esse pon-


to, isso se deve à que atinge diretamente à estrutura do objeto cujo
destino está em jogo, então, nessa simples denominação. Pouco im-
porta que toda essa consequência não esteja absolutamente presente
ao espírito e sob a pena de Marx quando ele censura a Smith e Ri-
cardo o terem saltado por cima de uma palavra. Marx não pode ser
obrigado, mais que qualquer outro, à dizer tudo ao mesmo tempo: o
que importa é que ele diga, em outra parte, o que não diz ao dizé-lo
aqui. Ora, não se pode duvidar de que Marx tenha sentido como exi-
gência teórica de primeirissima ordem a necessidade de elaborar
uma terminologia científica adequada, isto é, um sistema coerente de
termos definidos, no qual não apenas as palavras empregadas sejam
conceitos, mas no qual as novas palavras sejam outros tantos con-
“ceitos definidores de um novo objeto. Contra Wagner, que confunde
valor de uso e valor, escreve Marx (III, 249-250):

A única coisa clara que se encontra nessa algaravia alemã consiste


nisto: se nos ativermos ao sentido verbal, a palavra valor ( Wert, Wiirde)
foi primeiramente aplicada às coisas úteis, que existiam há muito tempo,
mesmo que sendo “'produtos do trabalho”, antes de se converterem em
mercadorias. Mas isso tem tanto a ver com a definição científica do “va-
lor-mercadoria”, quanto o fato de que a palavra sal entre os antigos fosse
primeiro aplicada ao sal comestível, e que, por conseguinte, o açúcar, etc.
figurem desde Plínio como variedades de sal, etc. (250).

e um pouco antes:
Isso faz pensar nos antigos químicos antes do advento da ciência da
química: pelo fato de que a manteiga comestível, que na vida quotidiana
se chama manteiga simplesmente (segundo o costume nórdico), tem uma
consistência frouxa, eles chamaram os extratos butirosos,os cloretos,
de
manteiga de zinco, manteiga de antimônio, etc. (249).

Essa passagem é sobremodo nítida, porque distingue o “sentida


verbal" de uma palavra e o seu sentido científico, conceptual, no
fundo de uma revolução teórica do objeto de uma ciência (a quimi-
ca). Se Marx tem em vista um novo objeto, deve necessariamente ad-
quirir uma terminologia conceptual nova correspondente. “
Engels percebeu isso muito bem num trecho de seu prefácio à
edição inglesa de O Capital (1886) (1, 35-36):

Persiste, contudo, uma dificuldade, e dela não podemos poupar o


leitor; o emprego de certas expressões em sentido diferente do usual na

v CIO) Capital, |, prefácio, p. 17. Marx fala da “nova terminologia criada” por ele,

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94 LER “O CAPITAL*

vida quotidiana e do consagrado na economia política em voga. Mas Isso

mM a QUÃO nova de uma clência enseja uma revolução nos


ter.
mos especializados (Pachausdrilehen) dessa ciência, [as se evidencia me.
hor na quimica: toda n sua terminologia, em cada período
de mais ou
menos vinte anos muda radicalmente (Terminologte), e & dificil
trar um composto orgânico que não tenha tido uma série encon.
de
rentes, À economia política, de modo geral, tem se contentado nomes dife.
em respei-
tar, tais como se encontram, us expressões da vida comercial
e em trabalhar com elas, sem se dar conta de que com Isso se é industrial,
encerrava no
círculo estreito das tdélas que elas exprimem,
Assim é que os representantes du econo mia clássica,
emb
consctência plena de serem o lucro e q renda apenas subdiv ora tivessem
da parte não-paga, saída do produto que o trabalhad isões, parcelas
or tem de fornecer
ao patrão (o primeiro que dela se apropria
, ainda que não seja seu último
e exclusivo dono) - upesar disso, nunca
chegaram a ultrapassar as idéias
usuais (úbliche Begriffe) de lucro e renda,
não-paga do produto (chumada por Marx nunca examinaram essa parte
de produto líquido "), em seu
conjunto, como um todo, e, por isso, nunc
a
clara, nem da sua origem nem da sua natu atingiram uma compreensão
reza, nem das leis que regem a
distribuição posterior do seu valor, Do
mesmo modo, o conceito de in-
dústria, desde que não inclua agricultura
e artesanato, está compreendi-
do no termo manufatura, e, com isso,
se upaga a diferença entre dois
períodos da história econômica, importan
tes e essencialmente diversos: o
período du manufatura propriamente dita,
baseada no trabalho manual,
co da indústria moderna, baseada na maqu
inaria, Uma teoria que consi-
dere a moderna produção capitalista mero
estágio transitório da história
econômica da humanidade tem, naturalm
ente, de utilizar expressões dife-
“rentes daquelas empregadas por auto
res que encaram esse modo de prod
cão como eterno e definitivo. u-

Destaquemos dessa passagem as seguintes afirmações funda-


mentais:
1) toda revolução (aspecto novo de uma ciência) em seu
acarreta uma revolução objeto
inevitável em sua
terminologia;
2) toda terminologia está relaciona
da com um círculo determi-
nado de idéias, o que podemos traduzir dizendo: toda ter
gia é função do sistema teórico que lhe ser minolo-
encerr a em si um ve de base, toda terminologia
sistema teórico determinado e limitado:

vi EXPreSsão “produto líquido" não consta da tradução em português da Editora


Civilização Brasileira de O Capital, no
=88€ trecho é notabilíssimo, famoso prefácio de Engels. (N. do
e quas e exem plar; dá-nos da excepcional do,
é epistemológica de Engels nm amos
uma idéia inteiramente dive
em outras circunstâncias, rsa daquela que uai de
Teremos outros ensejos de En-
gels, que longe está de ser assinalar o gênio ds
trapor a Marx, 0 com ent ari sta de segunda ordem que alguns con-
quisera

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 95

3) a economia política clássica estava encerrada num círculo de-


terminado pela identidade de seu sistema de idéias com a sua termi-
nologia;
4) ao revolucionar a teoria econômica clássica, Marx deve ne-
.cessariamente revolucionar-lhe a terminologia;
5) o ponto sensível dessa Revolução recai precisamente na mais-
valia. Por não terem pensado numa expressão que fosse o conceito
de seu objeto, os economistas clássicos ficaram na noite, prisionei- .
ros das palavras que não passavam de conceitos ideológicos ou
empíricos da prática econômica;
6) Engels relaciona, em última instância, a diferença de termi-
nologia existente entre a economia política clássica e Marx com uma
diferença na concepção do objeto: os clássicos tomando-o por eter-
no,e Marx por transitório. Sabemos o que pensar desse tema.

Não obstante esta última fragilidade, essa passagem é notabilís-


sima, dado que põe em evidência uma relação íntima entre o objeto
de uma disciplina científica determinada e o sistema de sua termino-
logia com o sistema de suas idéias. Portanto, ressalta uma relação
íntima entre o objeto, a terminologia e o sistema conceptual que lhe
corresponde - relação que, uma vez modificado o objeto (uma vez
captados os seus “aspectos novos”), deve necessariamente acarretar
uma modificação correlata no sistema das idéias e na terminologia
conceptual.
exis-
Digamos, em linguagem equivalente, que Engels afirma a
tência de uma relação funcional necessária entre a natureza do obje-
to, a natureza da problemática teórica e a natureza da terminologia
conceptual.

Essa relação ressalta ainda mais nitidamente de outra passagem


Capital,
surpreendente de Engels, a saber, O prefácio ao livro II de O
que Marx faz da
que pode ser posta em relação direta com a análise
do salá-
cegueira dos economistas clássicos no tocante ao problema
rio (II, 206 ss.).
a ques-
No trecho mencionado, Engels estabelece claramente
tão;
capitalista
Eis que transcorreram séculos desde que a humanidade
a se preocu-
produziu a mais-valia, e no entanto só recentemente ela veio dela de-
noção que se teve
par com a origem dessa mais-valia, A primeira valia
que a mais-
correu da prática imediata do comércio: dizia-se então
dos mer-
resulta da majoração do valor do produto. Essa era já a opinião
um perde
cantilistas: mas James Stewart deu-se conta de que, nesse caso,
a persistência des-
o que o outro forçosamente ganha. O que não impediu
se modo de ver por muito tempo ainda, sobre tudo entre os socialistas; A.
(IV, 15).
Smith livra dele a ciência clássica...

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96 LER “O CAPITAL”

Engels mostra então que Smith e Ricardo conheciam a origem


da mais-valia capitalista. Se eles “não estabeleceram a distinção entre
a mais-valia como tal, enquanto categoria especial, eas formas espe-
ciais que ela assume no lucro e na renda fundiária (citado, Iv, 16),
contudo “produziram” o princípio fundamental da teoria marxista
de O Capital: a mais-valia. |
Donde a questão, pertinente do ponto de vista epistemológico:
Mas, nesse caso, que foi que Marx disse de original sobre
a mais-valia?
Como se explica que a teoria marxista da mais-valia tenha ribom
ba-
do como o trovão num céu sereno, e isso em todos os
países civilizados,
ao passo que as teorias de todos os seus predecesso
res socialistas, inclusi-
ve Rodbertus, perduravam?

O reconhecimento de Engels do efeito prodigioso


do surgimen-
to de uma teoria nova: o “ribombar de trovão num
céu sereno” inte-
ressa-nos como sinal marcante da originalidade
de Marx. Não mais
se trataaqui dessas diferenças equívocas (eternitaris
mo fixista, his-
tória em movimento) nas quais Marx procurav
a exprimir sua rela-
ção com os economistas. Engels não hesita:
estabelece imediatamen-
te o verdadeiro problema da ruptura epistemo
lógica de Marx com a
economia clássica; a situa no ponto mais pertinen
o mais paradoxal: a propósito da mais-valia. te, que é também
Precisamente a mais-
valia não é original, pois que já cabalmente
“produzida” pela econo-
mia clássica! Engels coloca então a questão
Marx a propósito de uma realidade que,
da originalidade de
para ele, não é original! E
nessa extraordinária compreensão da
questão que o gênio de Engels
resplandece: ele enfrenta a questão no
seu derradeiro reduto, sem
sombra de um recuo; enfrenta-a no
próprio local onde a questão se
apresentava sob a forma esmagadora de sua resp
onde a resposta impedia, pelas qualidades esma osta; ou antes, lá
dência, suscitar a mínima questão! gadoras de sua evi-
Ele
questão da originalidade e da não-original tem a ousadia de propor a
idade de uma realidade
que figura em dois discursos diferentes, isto é,
de teórica dessa “realidade” inscrita em
a questão da modalida-
dois discursos teóricos. Bas-
ta ler Sua resposta para compreender
que ele não propôs a questão
por malícia, ou ao acaso, mas no domínio
de uma teoria da ciência
que se funda sobre uma teoria
ta-se de uma comparação com ada hishistória das ciências. De fato, tra-
formular tória da química que lhe permite
a questão e definir sua
resposta,

Que foi que Marx disse de original sobre


A história da química pode no-lo mostrar a mediante
mais-valia”...
um exemp a
Como todos sabem, em fins do século passado reinava ainda
a teori

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 97

do Nogístico, que explicava a natureza de toda combustão, afirmando


que, do corpo em combustão, destacava-se outro corpo, corpo hipotéti-
co, um combustível absoluto, a que se dava o nome de flogístico. Essa
teoria bastava para explicar a maioria dos fenômenos químicos então co-
nhecidos, não sem todavia, em certos casos, violentar os fatos.
-.,

Ora, eis que em 1774 Priestley produziu uma espécie de ar, que “'a-
chou tão puro ou tão isento de flogístico que, comparativamente, o ar co-
mum cera já viciado”. Chamou-o de ar desflogistizado. Pouco tempo de-
pois, Scheele produziu na Suécia a mesma espécie de ar, e demonstrou a
sua presença na atmosfera. Ademais, verificou que esse gás desaparecia
quando nele se queimava um corpo, ou queimando-se um corpo no ar
“comum; chamou-o de “ar de fogo”...
”.

Priestley e Scheele haviam ambos produzido o oxigênio, mas sem sa-


ber o que tinham diante de si, “Foram incapazes de se desligar das catego-
rias” flogísticas “tais como as encontraram estabelecidas”. O elemento
que iria subverter a concepção flogística inteiramente (die ganze phlogistis-
che Anschauung umstossen) e revolucionar a química, continuava, nas
mãos deles, atacado de esterilidade.
Mas Priestley imediatamente comunicara a sua descoberta a Lavoi-
sier em Paris, e este, partindo dessa realidade nova ( Tatsache) passou em
revista toda a química flogística. Descobriu primeiramente que o novo
tipo de ar era um elemento químico novo, e que, na combustão, não é o
misterioro flogístico que escapa, mas esse novo elemento que se combina
com o corpo; € foi ele assim o primeiro a colocar de pé toda a química, a
qual, sob a sua forma flogística, andava de cabeça para baixo (stellte so die
ganze Chemie, die in ihrer phlogistischen Form auf dem Kopf gestanden,
erst auf die Fiisse). E se não é exato, contrariamente ao que ele pretendeu
depois, que tenha produzido o oxigênio ao mesmo tempo que Priestley e
Scheele e independentemente deles, sem dúvida foi ele quem na verdade
descobriu (der eigentliche Entdecker) o oxigênio primeiro que os outros
dois, que apenas o produziram (dargestellt) sem terem a mínima noção
do que haviam produzido.

Marx está para os seus predecessores, quanto à teoria da mais-valia,


como Lavoisier está para Priestley e Scheele. Muito tempo antes de
Marx, já estava estabelecida a existência (die Existenz) dessa parte do va-
lor do produto que agora chamamos (nehnen) de mais-valia; havia-se
também enunciado mais ou menos claramente a sua procedência: isto é, .
o produto do trabalho de que o capitalista se apropria sem pagar o equi-
valente. Mas não se foi mais além ( Weiter aber kam man nicht). Uns - os
economistas burgueses clássicos - estudaram no máximo a relação se-
gundo a qual o produto do trabalho é distribuído entre o trabalhador e o
possuidor dos meios de produção. Os outros - os socialistas - acharam
essa distribuição injusta e procuravam por meios utópicos acabar com
essa injustiça, Uns e outros continuavam presos (befangen) nas categorias
econômicas tais quais as haviam estabelecido (wie sie ste vorgefunden hat-
ten).

Veio então Marx, Ao avesso de todos os seus predecessores (in direk-


tem Gegensatz zu allen seinen Vorgánger), onde eles viram uma solução
(Lósung), ele só viu um problema ( Problem). Percebeu que não havia no.
caso nem ar desflogistizado nem ar de fogo, mas oxigênio; que não se tra-
tava no caso nem da simples verificação de uma realidade ( Tatsache) eço-
nômica, nem do conflito dessa realidade com a justiça eterna e a reta mo-

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98 LER “O CAPITAL”

ral, mas de uma realidade ( Tatsache) destinada a subverter (umwálzen) a


economia toda, e que, para a compreensão do conjunto
produção capitalista, oferecia a chave - a quem soubesse (gesamten) da
dela se servir.
Partindo dessa realidade, ele submete a exame (untersuchte)
O conjunto
das categorias que ele encontrou estabelecidas, Precisamente como La-
voisier, partindo do oxigênio, submetera a exame
as categorias da quimi-
ca flogística. Para saber o que é a mais-valia, era-lhe necessári
o saber o
que é o valor, Antes de tudo o mais, era, pois, necessário
submeter à críti-
ca a teoria do valor do próprio Ricardo. Portanto, Marx
estudou o tra-
balho em relação à sua propriedade de constituir o
valor, e determinou
pela primeira vez que
trabalho constitui o valor, por que e como o consti-
tui; determinou, ademais, que o valor nada
mais é em suma senão traba-
lho coagulado daquela espécie - questão que Rodbertus jamais
compreender, Marx estudqu em seguida a relação entre
chegou a
a mercadoria e o
dinheiro, e mostrou como
e por que a mercadoria, em virtude de sua qua-
lidade inerente de ser valor, e a troca de mercador
ias produzem necessa-
riamente a oposição entre a mercadoria e o dinheiro; a teoria
que ele fundou é a primeira que foi completa do dinheiro
(ershópfende) e que hoje é
aceita em toda a parte tacitamente. Estudou
a transformação do dinheiro
em capital, e provou que ela tem por base
a compra e a venda da força
de trabalho. Ao substituir (en die Stelle...
setzen ) o trabalho pela força de
trabalho, isto é, a propriedade de criar
o valor, ele solucionava de uma só
vez (lôste er mit einem Schlag) uma das
dificuldades nas quais a Escola de
Ricardo naufragou: a impossibilidade
de harmonizar a troca recíproca
de capital e trabalho com a lei ricardiana da determin
trabalho. Foi ao verificar a diferenciação ação do valor pelo
entre capital constante e capital
variável que ele chegou a representar
(darzustellen) e assim a explicar
(erklãren), em sua marcha real e justa
nos mínimos pormenores, o pro-
cesso de formação do valor, o
que foi impo ssível a todos os seus prede-
cessores; ele, pois, verificou, no interior
do próprio capital, uma distin-
ção de que Rodbertus e os economistas
burgueses foram incapazes de de-
duzir o que quer que fosse, mas
que forneceu a chave para a solução dos
“problemas econômicos mai s complicados,
“modo mais impressionante, como o provam de novo, do
O livro II, e mais ainda, como se verá
HI. Marx foi muito mais , o livro
além do exame da própria mais-val
duas formas dela: a mais-val ia; descobriu
ia absoluta e a relativa,
"pel diferente, mas decisiv e demonstrou o pa-
o nos dois casos, que elas têm desempenhado na
evolução histórica da pro
dução capitalista. Partindo da
esenvolveu a primei ra teoria racional que mais-valia, ele
Primneireiro a dar os traç possuímos do salário, e foi
o s fundamentais de uma histór
capitalista e um
ia da acumulaçãoo
quadro de sua tendência histórica.
E Rodbertus? Após haver lido tud
o
ma coisa, de modo mais sucinto e claro, issosobr
... acha que disserjáa a mer
e a origem da mais-valia;
acha afinal que tudo isso se aplica sem dúv
ida à “forma atual do cap+
tal”, isto é, ao capital tal como existe historicamente, mas não ao
ceito de capital” con
,/C0mo o velho Pri» isto é, à idéia utópica que Rodbertus faz do capital.
estley, que, até a morte, jur
QUIS saber do oxi gênio, Com a difere ou pelo Nogutina, º au E
Primeiro a prod uzir nça de que Priestley foi rea e adês
oxigênio, ao passo que Rodber
alia, ou antes com a sua “renda”, simplesme tus, com à Dá
nte redescobriu um lugaair-
comum, e que Marx, contrariamente à atitude de Lav
, Vá oisier tsache)
oà de pretender que fora o primeiro a descobrir a realid ade (1a
Existênci a da mais-valia (IV,
20-22).

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 99

Resumamos as teses desse trecho notável.


1) Priestley e Schecle, em pleno período de dominação da teoria
do flogístico, “produzem” (stellen dar) um gás estranho, que foi cha-
mado pelo primeiro de ar desflogistizado - e pelo segundo: ar de fo-
go. Na verdade era o gás que mais tarde viria chamar-se oxigênio.
Todavia, observa Engels, “eles apenas o produziram, sem ter a míni-
ma noção do que haviam produziilo”, isto é, sem possuir o seu concei-
to. Esta a razão pela qual “'o elemento que iria subverter totalmente a
“concepção flogística e revolucionar a química continuava estéril nas
mãos deles”. Por que essa esterilidade e essa cegueira? Porque eles
“foram incapazes de se desligar das categorias 'flogísticas” tais como
as encontraram estabelecidas”. Porque em vez de ver no oxigênio um
problema, viram nele “uma solução”.

2) Lavoisier agiu inteiramente ao contrário: “partindo dessa


realidade nova, submeteu a exame toda a química flogística”, ““colo-
“cou desse modo sobre os pés a química que sob a forma flogística anda-
va de cabeça para baixo”. Onde os outros viam uma solução ele viu
'um problema. Por essa razão pode dizer-se que, se os dois primeiro
“produziram” o oxigênio, só Lavoisier o descobriu, dando-lhe o con-
ceito.
O mesmo se deu com Marx, com relação a Smith e Ricardo: ele
verdadeiramente descobriu a mais-valia que os seus predecessores
haviam apenas produzido.

Essa simples comparação, e os termos que a exprimem, abrem-


nos profundas perspectivas sobre a obra de Marx, e sobre o discerni-
mento epistemológico de Engels. Para compreender Marx, devemos
tratá-lo como um cientista entre outros, e aplicar à sua obra científi-
ca os mesmos conceitos epistemológicos e históricos que aplicamos
a outros; no caso, Lavoisier, Marx aparece assim como um funda-
dor de ciência, comparável a Galileu e Lavoisier. E mais, para com-
preender a relação que a obra de Marx mantém com a de seus prede-
cessores, para compreender a natureza do corte ou da mutação que o
distingue deles, devemos interrogar a obra de outros fundadores,
que tiveram por sua vez de romper também com seus predecessores.
A compreensão de Marx, do mecanismo de sua descoberta, da natu-
reza do corte epistemológico que inaugura a sua fundação científica,
remete-nos, pois, aos conceitos de uma teoria geral da história das
ciências, capaz de pensar a essência desses acontecimentos teóricos. .
Uma coisa é que a teoria geral só exista por enquanto em projeto, ou
que tenha já parcialmente se concretizado; outra é que essa teoria
seja absolutamente indispensável para o estudo de Marx. O caminho
que Engels nos aponta pelo que ele faz é de molde a que o tomemos

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100 LER “O CAPITAL"

o nocusto:
todo é nadaato menos
próprio que o caminho
de fundação da filosofia
fundada por
da ciência da história.

O texto de Engels vai mais longe. Ele nos dá em termos claros o


primeiro esboço teórico do conceito de corte: essa mutação pela
qual uma ciência nova se estabelece sobre nova problemática, à dis-
tância da antiga problemática ideológica. Ora, eis a questão mais
surpreendente: Engels pensa essa teoria da mutação da problemáti-
ca, e, pois, do corte, nos termos da “inversão”, que coloca sobre os
pés” uma disciplina “que andava de cabeça para baixo - Estamos
diante de um velho conhecimento! diante dos próprios termos pelos
quais Marx, no posfácio da 2º edição alemã de O
Capital, definiuo
tratamento imposto à dialética hegeliana, para fazê-la passar
do
do idealista ao estado materialista. Estamos diante dos próprios esta-
mos
ter-
pelos quais Marx definiu, numa fórmula que exerce ainda
peso ennorme sobre o marxismo, sua relação para com um
Hegel. Mas
que diferença! Em vez da fórmula enigmática de Marx,
temos uma
luminosa fórmula de Engels - e na fórmula de Engels achamos
final-'
mente de modo claro, e pela primeira vez - talvez
pela única vez em
todos os textos clássicos -, a explicação da fórmula
locar sobre os
de Marx. “Reco-
pés a química que andava dé cabeça para baixo"
ca, sem qualquer ambiguidade possível no texto signifi-
de Engels: transfor-
mar a base teórica, transformar a problemática teórica
substituir a antiga problemática por nova da quimica,
problemática. Eis o senti-
do da famosa “inversão”: nessa imagem
que é apenas imagem, e que
não tem, pois, nem o sentido nem o rigor
de
curava simplesmente indicar por sua conta um conceito, Marx pro-
a existência dessa muta-
ção da problemática, que inaugura toda
fundação cientifica.
3) Engels descreve de fato uma das con
acontecimento da história teórica: dições formais de um
a rigor, uma revolução teórica. Vi-
mos que é preciso construir os conceitos de fato ou de aco ntecimento
teóricos, de revolução teórica que intervém na história do conh
mento, para poder constituir a his
eci-
mo modo que é prec tória do conhecimento - do mes-
iso cons truir e articular os conceitos
aconteciment ento o | histórico S, de revolução, etc. para se de fato e de
Pensar a história Política ou a história ter con dição de
econômica. Com Marx esta-
não 71ºnasPontona hisdetórumia cort
n o ape da eciênhis
ciatórico de ória
imp, ort ância fundamental,
ria da filosofia, mais Precisamente, danahist história do
mas também na hist ó-
Teó
rico: esse corte
que 208 permite assim soluciona
r um
vol de do saber) coincide com esse acoproblema de periodização da
“ção da problemática instaurada pornteMar
cimento teórico que e à A.
s, na À ciência da hist
ri
é é na filosofia, Importa pouco que esse acontecime nto tenha pas
E

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 101

sado despercebido, no todo ou em parte, e que seja preciso tempo


para que essa revolução teórica faça sentir todos ós seus efeitos, e
que tenha sofrido inacreditável recalcamento na história visível das
déias: o fato aconteceu; o corte se deu, e a história daí surgida cava
seu curso por vias subterrâneas nos interstícios da história oficial;
“bem cavado, velha toupeira!” Dia haverá em que a história oficial
das idéias estará em atraso quanto a ela, e quando se der conta dis-
so, será demasiado tarde, a menos que assuma o reconhecimento
teórico desse fato, e que tire as conseqiiências dele.
Engels mostra-nos precisamente o outro lado dessa revolução:
a obstinação daqueles que a vivem em negá-la: “O velho Priestley ju-
rou até a morte pelo flogístico, e nada quis saber do oxigênio”: é que
ele se atinha, como Smith e Ricardo, ao sistema das idéias existentes,
recusando-se a questionar a problemática teórica com a qual a recen-
te descoberta vinha romper. ” Se adianto esse termo problemática
teórica, é dando um nome (que é um conceito) ao que Engels nos
diz: Engels resume de fato o questionamento crítico da antiga teoria,
e a constituição da nova, no ato de estabelecer como problema o que
antes era tido como solução. É exatamente o que se dá com a con-
cepção de Marx, no famoso capítulo sobre o salário (II, 206 ss.). Ao
examinar o que permitiu à economia política clássica definir o salá-
rio pelo valor dos meios de subsistência necessários, e portanto, en-
contrar e produzir um resultado justo, escreve Marx: “À sua revelia,
ela mudava assim de terreno, substituindo o valor do trabalho, até
então objeto aparente de suas pesquisas, pelo valor da força de tra-
balho... O resultado a que chegava a análise era, pois, não o de resol-
ver o problema tal como se apresentou no início, mas o de lhe mudar os
termos”. No caso ainda, vemos qual é o conteúdo da “inversão”:
“essa mudança de terreno”, que coincide com a “mudança de ter-
mos”, portanto da base teórica, a partir da qual são enunciadas as
questões e propostos os problemas. No caso ainda, vemos que é a
mesma coisa “inverter”, “'colocar sobre os pés o que andava de ca-
beça para baixo”, “mudar de terreno” e “mudar os termos do
problema”: trata-se de uma única e mesma transformação, que atin-
ge a estrutura própria da teoria fundamental, a partir da qual todo
problema é colocado nos termos e no campo da nova teoria, Mudar
de base teórica é, pois, mudar de problemática teórica, se é certo que

2 O mesmo acontece tanto na história do saber como na história social: nela encon-
tramos gente que “nada aprendeu nem nada esqueceu”, sobretudo se ussistiram uo
espetáculo instalados nos camarotes de primeira fila,

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LER “O CAPITAL”
102

a teoria de uma ciência em dado momento de sua história é tão-só a


matriz teórica do tipo de questões que a ciência propõe a seu objeto -
se é certo que com uma nova teoria fundamental aparece no mundo
do saber uma nova maneira orgânica de propor questões ao objeto,
propor problemas e, por conseguinte, produzir respostas novas, Ao
falar da questão que Smith e Ricardo formularama respeito do salá-
rio, escreve Engels: “colocada sob essa forma, a questão (die Frage) é
insolúvel (unlôslich). Marx a colocou em termos certos (richtig) e por
isso lhe deu a resposta” (ib., p. 23). Essa colocação certa do problema
não é obra do acaso: pelo contrário, é efeito de uma teoria nova, que
é o sistema de colocação dos problemas numa forma justa - o efeito
de uma nova problemática. Toda teoria é, pois, em sua essência,
uma problemática, isto é, a matriz teórico-sistemática da colocação
de todo problema referente ao objeto da teoria.

4) Mas o texto de Engels contém algo mais. Contém a idéia de


que a realidade, o fato novo (Tatsache), no caso a existência da
mais-valia, não se reduz à “simples constatação de um fato econômi-
co”: pelo contrário, é um fato destinado a subverter toda a econo-
mia, e a fazer compreender “o conjunto da produção capitalista”.A
descoberta de Marx não é, pois, uma problemática subjetiva (sim-
ples maneira de interrogar uma realidade dada, mudança de “ponto
de vista” puramente subjetivas): correlatamente à transformação da
matriz teórica da colocação de qualquer problema referente ao obje-
to, ela diz respeito à realidade do objeto: sua definição objetiva. Ques-
tionar a definição do objeto é propor a questão da definição diferen-
cial da originalidade do objeto visado pela nova problemática teóri-.
ca. Na história das revoluções de uma ciência, toda subversão da
problemática teórica corresponde a uma transformação da defini-
ção do objeto, e portanto de uma diferença localizável no próprio
objeto da teoria, ne
- Ao tirar esta última-Conclusão, terei ido mais longe que Engels?
Sim e não, Não, porque Engels conta não apenas com um sistema de
idéias flogísticas que, antes de Lavoisier, determinava a colocação
de todo o problema e, pois, o sentido de todas as soluções corres-
pondentes; conta também
com um sistema de idéias em
quando evoca a necessidade última, a que Marx Ricard
foi obrigad o, o, o
“submeter à crítica a própria teoria do valor de Ricardo”
(ib., 21).
Sim, talvez, se é certo que Engels, tão arguto na análise desse fato
teórico que é uma revolução cientifica, não tem a mesma as
ra pensar sobre os efeitos dessa revolução no objeto da teoria. Pu e a
notar, quanto a este ponto que lhe é tão sensível,
Os quam
vua Concepção: todos eles podem reduzir-se à confusão empiris iióliê
tre 0 objeto de conhecimento e o objeto real. Engels teme claramé!

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 103

te, ao aventurar-se fora dessas seguranças (imaginárias) da tese em-


pirista, perder as garantias que lhe fornece a identidade real procla-
mada entre o objeto de conhecimento e o objeto real, Ele dificilmen-
te pode conceber o que no entanto diz de fato, e que a história das
ciências lhe mostra a cada passo: que o processo de produção de um
conhecimento passa necessariamente pela transformação incessante
do seu objeto (conceptual); que essa transformação, que coincide
com a história do conhecimento, tem por efeito precisamente produ-
zir um novo conhecimento (um novo objeto de conhecimento) que
diz respeito sempre ao objeto real, do qual o conhecimento se apro-
funda precisamente pelo remanejamento do objeto de conhecimen-
to. Como o diz profundamente Marx, o objeto real, do qual se trata
de adquirir ou de aprofundar o conhecimento, permanece o que é,
antes e depois do processo de conhecimento que lhe diz respeito (cf.
Introdução de 57); se ele é, pois, o ponto de referência absoluto do
processo de conhecimento que lhe diz respeito - o aprofundamento
do conhecimento desse objeto real efetua-se por um trabalho de
transformação teórica que atinge necessariamente o objeto de conhe-
“cimento, dado que só se refere a ele. Lênin compreendeu perfeita-
mente essa condição essencial da prática científica - e esse é um dos
grandes temas de Materialismo e Empirocriticismo: o tema do apro-
fundamento incessante do conhecimento do objeto real pelo remanejo
incessante do objeto de conhecimento. Essa transformação do objeto
de conhecimento pode apresentar formas diversas: pode ser contí-
nua, insensível - ou, pelo contrário, descontínua e espetacular.
Quando uma ciência bem estabelecida se desenvolve sem movimen-
tos bruscos, a transformação do objeto (de conhecimento) adquire
uma forma contínua e progressiva: a transformação do objeto torna
visíveis, no objeto, “novos aspectos” que antes não eram absoluta-
mente visíveis; acontece então ao objeto o que ocorre com cartas
geográficas de regiões ainda mal conhecidas, mas que estão sendo
exploradas: os espaços em branco interiores enchem-se de pormeno-
res e esclarecimentos novos, mas sem modificar o contorno geral, já
reconhecido e conhecido, da região. É assim, por exemplo, que po-
demos prosseguir depois de Marx a investigação sistemática do ob-
jeto definido por Marx: ganharemos com isso novos pormenores, ão
“ver” o que antes não podíamos ver - mas no interior de um objeto
cuja estrutura será confirmada por nossos resultados, mais do que
subvertida por eles. Coisa diferente se dá nos períodos críticos de de-
senvolvimento de uma ciência, quando ocorrem verdadeiras muta-
ções da problemática teórica: então o objeto da teoria sofre uma mu-
tação correspondente, que, desta feita, não recai apenas sobre “as-
, pectos” do objeto, sobre minúcias de sua estrutura, mas sobre a pró-
pria estrutura. O que agora se torna visível é uma nova estrutura do

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104 LER “O CAPITAL”

objeto, não raro a tal ponto diferente da antiga que se pode legitima-
mente falar de um objeto novo; = a história da matemática desde ini-
cios do século XIX até hoje, ou a história da física moderna são ricas
de mutações desse gênero. O mesmo acontece, com mais razão ainda,
quando uma ciência nova nasce - quando cla se destaca do campo da
ideologia com a qual rompe para nascer: esse “desprender-se"' teórico
provoca sempre, inevitavelmente, uma transformação revolucionária
da problemática teórica, c uma modificação igualmente radical do oh-
jeto da teoria, Neste caso, pode falar-se propriamente de revolução,
de salto qualitativo, de modificação referente à estrutura mesma do
objeto. “ O novo objeto pode:conservar ainda algum vínculo com o
antigo objeto ideológico, e podemos encontrar nele elementos que
pertenciam também ao objeto antigo: mas o sentido desses elemen-:
tos muda com a nova estrutura que precisamente lhes confere senti-
do. Essas semelhanças aparentes, referentes a elementos isolados,
podem enganar um olhar superficial que ignore a função da estrutu-
ra na constituição do sentido dos elementosde um objeto, precisa-
mente como certas semelhanças técnicas referentes a elementos iso-
lados podem iludir os intérpretes que classificam sob a mesma cate-
goria (“sociedades industriais”) estruturas diferentes como o capita-
lismo e o socialismo contemporâneos. Na verdade, essa revolução
teórica, visível na ruptura que separa uma ciência nova da ideologia
de que nasce, repercute profundamente no objeto da teoria que, por
sua vez, no mesmo momento, é o lugar de uma revolução - e torna-
se adequadamente um objeto novo. Essa mutação no objeto
pode
constituir, exatamente como a mutação na problemática correspon-
dente, objeto de um estudo epistemológico: rigoroso. E como é por
um mesmo e único movimento que se constituem tanto a nova
problemática como o objeto novo, o estudo dessa dupla mutação
nada mais é que um mesmo estudo que decorre da disciplina que re-
flete sobre a história das formas do saber e sobre o mecanismo de
sua produção: a filosofia,
cria Do, eis-nos no limiar de nossa questão: qualé É aja
Eres "a econômica fundada por Marx em O Capitai; Q de
jeto de O Capital? Que diferença específica distingue o objeto
Marx do objeto de seus predecessores?
» .
i Exemplo disso; o “objeto” de Freud é radicalmente novo em relação ao RN rr "
à ideologia psicológica
consciente, que nada tem oua ver
filosófica de seus predecessores. O objeto de Freud 60 m,
com os objetos, por mais numerosos que 5€ qua
de todas as variedades da psicologia moderna. Pode mesmo conceber-se Que à
Principal de toda disciplina nova consiste em pensar a diferença específica
do
ri
er uir
e que ela descobre, em distingui-lo rigorosamente do objeto antigo e em AA
o nCeitos
ta 1 | que iênciia necessários para pensá-lo. É nesse trabalho teórico fun
uma próprios
ciênc
nova adquire
à o direi
frei to efeti| vo à autonomia.

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 105

VII. O Objeto da Economia Política

Para responder à questão quenos propomos, tomamos literal-


mente o subtítulo de O Capital “Critica da Economia Politica”. Se
nossa perspectiva estiver correta, “criticar” a Economia Política não
pode significar a censura ou retificação desta ou daquela inexatidão
ou questão de pormenor de uma disciplina existente - nem mesmo o
preenchimento de lacunas, de espaços em branco, dando prossegui-
mento a um trabalho de exploração já amplamente feito. “Criticar a
Economia Política” significa contrapor-lhe uma nova problemática
e um objeto novo: portanto, questionar o objeto mesmo da Economia
Política. Mas como a Economia Política se define, como Econo-
mia Política, por seu objeto, a crítica que vai atingi-la a partir de um
novo objeto que se lhe contraponha, pode atingir a Economia Politi-
ca em sua própria existência. Este é precisamente o caso: a critica da
Economia Política por Marx não pode questionar o seu objeto sem
questionar também a própria Economia Política, em suas preten-
sões teóricas de autonomia, no “recorte” que ela instaura na reali-
dade social para dele constituir a teoria, A crítica da Economia Poli-
tica por Marx é, pois, bem radical: ela questiona não apenas o obje-
to da Economia Política, mas a própria Economia Política como ob-
jeto. Para dar a essa tese a vantagem da sua radicalidade, digamos
que a Economia Política, tal qual se define em sua pretensão, para

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106 LER “O CAPITAL"

Marx não tem qualquer direito à existência: e se não pode existir


Economia Política assim concebida, isto se deve a razões de direito, e
não de fato.

Sendo assim, compreende-se O mal-entendido que separa Marx


não apenas de seus predecessores ou de seus críticos ou partidários,
mas inclusive dos “economistas” que o sucederam. Esse mal-
entendido é simples, embora ao mesmo tempo paradoxal. Simples,
dado que os economistas vivem da pretensão à existência da Econo-
mia Politica, enquanto essa pretensão lhe subtrai todo o direito à
existência. Paradoxal, pois a consequência que Marx extraiu da não:
existência de direito da Economia Política é esse Livro imenso que
se chama O Capital e que parece falar, do princípio ao fim, tão-
somente de economia política.

Impõe-se, pois, entrar no pormenor de esclarecimentos indis-.


pensáveis, e revelá-los pouco a pouco na relação rigorosa que os
une. Adiantando-nos a eles e mostrando o que é necessário para a
sua compreensão, damos um primeiro balizamento. A pretensão de
existência da Economia Política é função da natureza e, pois, da de-
finição de seu objeto. A Economia Política toma por objeto o domi-
nio dos “fatos econômicos” que têm para ela a evidência de fatos:
dados absolutos que ela toma tais quais se dão, sem lhes pedir expli-
cações. A revogação da pretensão da Economia Política por Marx
coincide com a revogação da evidência desse “dado” que ela toma
arbitrariamente por objeto ao pretender que esse objeto lhe é dado.
Toda a contestação de Marx recai sobre esse objeto, sob a sua mo-
dalidade pretendida de objeto “dado”: a pretensão da Economia
Política não é mais que o reflexo especular da pretensão de seu obje-
to a lhe ser dado. Ao propor a questão do “dado” do objeto, Marx
propõe a própria questão do objeto, sua natureza e seus limites, €
portanto do seu domínio de existência, dado que a modalidade de
err com a qual uma teoria pensa o seu objeto altera não
natureza desse objeto, mas também a situaçãoe a extensão apenso
do seu
eeplnio de existência. Tomemos, a título de exemplo,
uma tese ei
e E de Spinoza: podemos, em primeiro enfoque,
afirmar que tas
não po € haver Economia Política como não existe ciência =
dado quo (como tal: a ciência das "conclusões não à
Comedia ca ignorância em ato de suas “premissas “E das
co lu € O imaginário em ato (o “primeiro gênero”). À clênciê nas
admiti
a ne
Indo existente efeito, produto da ciência das premissas na,
é upenas essa ciência das premissas, a pretensa bar rio€
Dao (o “primeiro gênero”) é conhecida como a
Binário em ato: cônhecida, ela desaparece então no desap


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O OBJETO DE “O CAPITAL” 107

mento da sua pretensão e de seu objeto, O mesmo acontece grosso


modo com Marx. Se a Economia Política não pode existir por si
mesma, é que o seu objeto não existe por si mesmo, não é o objeto
de seu conceito ou porque o seu conceito o é de um objeto inadequa-
do. A Economia Política só pode existir sob a condição de que exista
primeiro a ciência de suas premissas, ou, em outras palavras, a teo-
ria do seu conceito - mas, uma vez que exista essa teoria, então a
pretensão da Economia Política desaparece no que ela é: pretensão
imaginária. Dessas indicações muito esquemáticas podemos tirar
duas conclusões provisórias. Se a “crítica da Economia Política”
possui realmente o sentido que afirmamos, deve ser ao mesmo tem-
po construção do conceito verdadeiro do objeto, que a Economia
Política clássica visa no imaginário de sua pretensão - construção
que produzirá o conceito do objeto novo que Marx contrapõe à
Economia Política. Se toda a compreensão de O Capital estiver de-
pendente da construção do conceito desse novo objeto, quem puder
ler O Capital sem procurar nele o conceito, e sem tudo relacionar a
esse conceito, correrá o risco de enganar-se muito com esses mal-.
entendidos ou enigmas: vivendo só nos “efeitos” de causas invisi-
veis, no imaginário de uma economia tão perto deles quanto o sol a
duzentos passos do “primeiro gênero de conhecimento” - tão perto,
precisamente por estar distante deles uma infinidade de léguas.

Essa baliza basta como introdução à nossa análise. Eis como


iremos empreendê-la: para chegar a uma definição diferencial do
análise
objeto de Marx, faremos o trajeto por um atalho prévio: o da
traços
do objeto da Economia Política, que nos mostrará, em seus
O seu
estruturais, o tipo de objeto que Marx recusa, para constituir
na prática
(A). A crítica das categorias desse objeto nos mostrará,
do objeto de
teórica de Marx, os conceitos positivos constitutivos
e da definição tirar
Marx (B). Poderemos então definir esse objeto
algumas conclusões importantes,

A. Estrutura do Objeto da Economia Política


das teorias
Não poderíamos tratar aqui do exame em pormenor ica,
da economia polít
clássicas, muito menos das teorias modernas acionaemm
se rel
para delas extrair uma definição do objeto a que sobre este objeto
sua prática teórica, mesmo que elas não reflitam conceitos mais ge-
em si mesm o, “ Proponho-me apenas destacar os

proveito o notável artigo de Godelier,


» Sobre as teorias modernas, ler-se-á com
omique”, L'homme, outubro de 1965.
“Objet e méthodes de L'anthropologie écon

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108 LER “O CAPITAL"

rais que constituem a estrutura teórica do objeto da Economia Polf-


tica: no essencial, essa análise diz respeito ao objeto da Economia
Política clássica (Smith, Ricardo), mas não se limita às formas clás-
sicas da Economia Política, dado que as mesmas categorias teóricas
fundamentais sustentam hoje ainda os trabalhos de numerosos eco-
nomistas, É nesse espírito que acredito poder tomar por guia teórico
elementar as definições propostas pelo Dicionário Filosófico de A.
Lalande, Suas variações, aproximações, até mesmo sua “superficia-
lidade” têm vantagens: podem ser tomadas por outros
tantos indí-
cios, não apenas de um fundo teórico comum, mas também
possibilidades de ressonâncias e inflexões de sentido, de suas
Lalandedefine assim a Economia Política: “ciência que tem
objeto o conhecimento dos fenômenos e (se a natureza por
desses fenôme-
nos o comporta) a determinação das leis que se referem
à distribuição
das riquezas, bem como sua produção e consumo,
enquanto fenômenos
relacionados com a distribuição. Chama-se riqueza,
no sentido técnico
da expressão, o que é suscetível de utilização”
(1, 187). As definições
sucessivas propostas por Lalande, citando
Gide, Simiand, Karmin e
outros, ressaltam o conceito de distribuição,
da economia política aos três campos - A definição da extensão
da produção, distribuição e
consumo - é tomada dos clássicos, sobretudo
Say. Ao falar da produ-
ção e do consumo, Lalande observa que “só
são econômicas por um
aspecto. Tomadas em conjunto, implicam
grande número de noções es-
tranhas 4 economia política, noções
tomadas à tecnologia, à etnografia
é à ciência dos costumes, no que tange à produção.
clássica trata da produção e do consumo; A economia política
mas, na medida em que rela-
cionados com a distribuição, como causa
Tomemos essa definição esquemática ou efeito”.
da Economia Política, e como o fundo mais geral
teórico, quanto à estrut ve ja mos o que ela implica,
ura de seu objeto, do ponto de vista

eco) imPlica, em Primeiro lugar, a existência de fatos e fenômenos


econômicos”, distribuídos no interior de um campo determinado,
du Possui essa propriedade de ser um campo homogêneo. O campo
"os fenômenos que o constituem, preenchendo-o, são dados, isto é,
dcessíveis ao olhar e observação diretos: sua captação não depen-
é, pois, da elaboração teórica prévia do seu conceito. Esse campo
fer pao determinado, cujas diferentes datquto
neidadefatos ou
ções,
do cu) n menos econômicos são, em virtude da ormoge
mente mens HOpO de sua existência, comparáveis, muito pa na
é, pois pt teia, e Portanto quantificáveis, Todo fato econ
nomia A e
ur vel por essência, Brajá o grande princípio a aj
qual Fecai reca; aa crítica
é Justamente,
de Marx, Oo grande
primeiro ponto importante sobr
erro de Smith e Ricardo é, ao

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O OBJETO DE "O CAPITAL" 109

ver de Marx, o de terem sacrificado a análise da forma-valor para a


consideração exclusiva da quantidade de valor; “o valor como quanti-
dade absorve a atenção deles" (1, 83, nota |), Os economistas moder-
nos estão do lado dos clássicos, a despeito de suas diferenças de con- .
cepção, quando censuram Marx por produzir, em sua teoria, concei-
tos não-operatórios, isto é, excluindo a medida de seu objeto: por
exemplo, a mais-valia, Mas essa censura volta-se contra os seus au-
tores, pois Marx admite e emprega a medida: para as “formas de-
senvolvidas” da mais-valia (o lucro, a renda, o juro). Se a mais-valia
não é mensurável, isso se deve justamente a que ela é o conceito das
suas formas, por sua vez mensuráveis. Evidentemente essa simples
definição altera tudo: o espaço hômogêneo e plano dos fenômenos
da economia política passa a ser então simples dado, uma vez que
exige o posicionamento de seu conceito, isto é, a definição das condi-
ções e dos limites que permitem tomar esses fenômenos por homo-
gêncos, e portanto mensuráveis, Observemos tão-só essa diferença -
mas sem esquecer que a economia política moderna permanece fiel à
tradição “quantitativa” empirista dos clássicos, posto que ela só co-
nhece fatos ''mensuráveis”, para utilizar uma expressão de A. Mars-
chal, | |

os
b) Essa concepção empirista-positivista dos fatos econômic
aqui da “bana-
não é, porém, tão “banal” como pode parecer. Falo
espaço homogê-
lidade” do espaço plano de seus fenômenos, Se esse
to, à
neo não remete à profundeza de seu conceito, remete, no entan
teórico
certo mundo exterior a seu próprio plano e que assegura O papel
de o sustentar na existência, e de o fundar. O espaço homo gêneo dos
minad a com o:
fenômenos econômicos implica uma relação deter -
mundo dos homens que produzem, distribuem, recebem e conso
Poli:
mem, É a segunda implicação teórica do objeto du Economia e
0 é em Smith
tica, Essa implicação nem sempre étão visível quanto
pela Eco-
Ricardo; pode ficar latente e não ser diretamente tematizada À Econo-
nomia: ela nem mesmo é essencial à estrutura do objeto.
à “u-
mia Política relaciona os fatos econômicos às nec ssidades (ou
ten-
tilidade"") dos sujeitos humanos como à sua origem, Tem, pois,
dência a reduzir os valores de troca aos valores de uso e estes últi-
i-
mos (as “riquezas”, para usarmos a expressão da Economia cláss
ca) às necessidades dos homens. É: ainda a afirmação de |, Simiand
(citado por Lalande); “Em que um fenômeno é econômico? Em vez de
ico
defintr esse fenômeno pela consideração das riquezas (termo cláss
na tradição francesa, mas que não é o melhor), parece-me prefe rível
acompanhar os economistas recentes, que tomam como noção central
nd
a satisfação das necessidades materiais” (Lulande, |, 188), Simia

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LO LER “O CAPITAL”

equivoca-se ao apresentar sua exigência como novidade: sua defini-


ção simplesmente repete a definição clássica, pondo em cena, por
trás dos homens e suas necessidades, a sua função teórica de sujeitos
dos fenômenos econômicos. o
Equivale a dizer que a Economia clássica só pode pensar os fa-
tos econômicos como pertencentes ao espaço homogêneo de sua po-
sitividade e mensurabilidade, sob a condição de uma antropologia
“ingênua” que funde, nos sujeitos econômicos e suas necessidades,
todos os atos pelos quais são produzidos, distribuídos, recebidos e
consumidos os objetos econômicos. Hegel deu o conceito filosófico
da unidade dessa antropologia “ingênua” com os fenômenos econó-
micos na expressão célebre da “esfera das necessidades" ou da “so-
ciedade civil”, * distinta da sociedade política. No conceito da esfe-
ra das necessidades, os fatos econômicos são pensados em sua essén-
cia econômica como fundados em sujeitos humanos submetidos
à
“necessidade” (besoin): no homo oeconomicus, que é, também,
um
dado (visível, observável). O campo positivista homogêneo
dos fatos
econômicos mensuráveis repousa, pois, num mundo
de sujeitos,
cuja atividade de sujeitos produtores na divisão do trabalho
tem por
objetivo e efeito a produção de objetos de consumo destinados a
sa-
tisfazer esses mesmos sujeitos de necessidades. Os sujeitos,
como su-
Jeitos de necessidades, sustentam, pois, as atividades dos
sujeitos
como produtores de valores de uso, trocadores de mercadorias
e
consumidores de valores de uso. O campo dos fenômenos econômi-
cos € assim fundado, em sua origem como em seu fim, no
conjunto
dos Sujeitos humanos, que suas necessidades determinam como su-
Jeitos econômicos. 4 estrutura teórica própria da Economia
Política
tem a ver, pois, com relacionamento imediato e direto de um'espaço
homogêneo de fenômenos dados, e uma antropologia
Jundamenta no homem sujeito ideológica que
das necessidades (o dado do homo 0e-
Sonomicus) o caráter econômico dos fenômenos
do seu espaço.
Examinemos isso mais de perto, Falávamos
de um espaço ho-
aa fo fais ou fenômenos econômicos, dados, Eis que e
dispensáveis né rimos um mundo de sujeitos humanos A , ed
Canto faro para mantê-los na existência,
“iso: ou é cabalmente um dado, dadoO por
primeiro dado é po
essa antropologia,

O conceito de Henci
"sociedade civil”,
Maria presente nos textos de maturação de Mark arx, &
con o
ca, é; “nteme nte e retoma
ambíguo Por Gramsci, para designar a esfera da existência econdmjmi-
d eve serdo retira
E
tomado não para contrapor: do do v ocabulário teórico marxi ista - à menos queAblico, e seja
3
isto é, um efei ico, masmas oo “privado
se o econômico ao político, ” ao pu
mico. “priva
feito combinado do direito e da ideologia jurídico-política sobre O € conô-

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 11

por sua vez dada. Ela, e só ela, permite de fato declarar económicos
os fenômenos grupados no espaço da Economia Política: são econô-
micos na medida em que efeitos (mais ou menos imediatos ou “me-
diatizados”) das necessidades dos sujeitos humanos, em suma, do
que faz do homem, ao lado de sua natureza racional (animal racio-
nal), loquaz (animal loquax), que ri (ridens), político (politicum), mo-
ral e religioso, um sujeito de necessidades (homo oeconomicus). É a
necessidade (do sujeito humano) que define o econômico da Econo-
mia. O dado do campo homogêneo dos fenômenos econômicos nos é
dado, pois, como econômico por essa antropologia silenciosa. Mas
então, olhando-se mais de perto, essa antropologia “que dá” é que
vem a ser, a rigor, o dado absoluto! A menos que nos remetamos à
Deus para fundamentá-la, isto é, ao Dado que se dá a si mesmo,
causa sui, o Deus-Dado. Deixemos essa questão, em que vemos bas-
tante bem que não existe nunca um dado no primeiro plano da cena
a não ser por uma ideologia doadora que se coloca por trás, à qual
não temos de pedir contas, e que nos dá o que bem entende. Se não
formos vê-la nos bastidores, não vemos o ato de seu “dom”: ela de-
saparece no dado, como todo trabalho em sua obra. Somos seus es-
pectadores, isto é, seus mendigos.

Não é tudo: a mesma antropologia que mantém assim o espaço


dos fenômenos econômicos permitindo falar deles como econômi-
cos ressurge neles sob outras formas ulteriores, algumas das quais
-se
são conhecidas: se a economia política clássica pôde apresentar
como uma ordem providencial feliz, como harmonia econômica,
direta
(dos fisiocratas a Say, passando por Smith), é pela projeção
no €s-.
dos atributos morais ou religiosos de sua antropologia latente
o
paço dos fenômenos econômicos. É o mesmo tipo de intervençã
protesto moral
que está em ação no otimismo liberal burguês, ou no
não cessa
“dos comentaristas socialistas de Ricardo, com quem Marx
pologia
de esgrimir; o conteúdo da antropologia muda, mas a antro
Ê
permanece, assim como a sua função e o lugar de sua intervenção.
ainda essa antropologia latente que ressurge em certos mitos dos
economistas políticos modernos, por exemplo sob conceitos tão
ambíguos como “racionalidade” econômica, “otimum”, “pleno em-
prego”, ou economia das necessidades, economia humana, etc. A
mesma antropologia que serve de fundamento originário aos fenô-
menos econômicos está presente desde que se trate de definir seu
sentido, isto é, seu fim. O espaço homogêneo dado dos fenômenos
econômicos é assim duplamente dado pela antropologia que o en-
cerra no torniquete das origens e dos fins.
E se essa antropologia parece ausente da realidade imediata dos
fenômenos em si, está no entremeio das origens e dos fins, € também

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112 LER “O CAPITAL"

em virtude de sua universalidade, que não é mails do que repetição,


Sendo todos os sujeitos identicamente sujeitos de necessidades, po-
dem-se tratar os seus efeitos pondo entre parênteses o conjunto des-
ses sujeitos: sua universalidade reflete-se então na universalidade
das leis dos efeitos de suas necessidades = o que inclina naturalmente
a Economia Política no sentido da pretensão de tratar no absoluto
os fenômenos econômicos, para todas as formas de sociedade, pas-
sadas presentes e futuras, Esse gosto de falsa eternidade que Marx
encontrava nos clássicos pode advir politicamente do seu desejo de
perenizar o modo de produção burguês, e é muito evidente quanto a
alguns: Smith, Say e outros, Mas pode advir de outra razão, mais
velha que a burguesia, vivendo no tempo de outra história, de uma
razão não política, mas teórica: efeitos teóricos induzidos por essa
antropologia silenciosa que legitima a estrutura do objeto da Econo-
mia Política, É sem dúvida o caso de Ricardo, que sabia muito bem
que a burguesia tinha os dins contados, que lia já esse destino no me-
canismo de sua economia, e que no entanto mantinha em voz alta o
discurso da eternidade,
Será necessário, na análise da estrutura do objeto da Economia
Política, ir mais longe que essa unidade funcional entre o campo ho-
mogênco de fenômenos econômicos dados - e de uma antropologia
Intente, e pôr em evidência os pressupostos, os conceitos teóricos (fi-
losóficos) que em suas relações específicas mantêm essa unidade?
Ver-nos-famos então diante de conceitos filosóficos tão fundamen-
mm como: dado, sujeito, origem, fim, ordem - e diante de relações
comou de causalidade linear e teleológica, em suma, outros tantos
o babel e merecorlam uma análise pormenorizada para mostrar
mia Pol tica M, obrigados a desempenhar na encenação da Econo-
muls, nós os ve us 1880 nos levaria demasiado longe, E, além do
do-se deles, ei EMOS nO avesso, quando virmos Marx ou desfazen-
ces ou lhes atribuindo funções Intelramente divérsas.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 113

VIII. A Crítica de Marx

Marx recusa ao mesmo tempo a concepção positiva de um cam-


po homogêneo de fenômenos econômicos dados - e a antropologia
ideológica do homo oeconomicus (e qualquer outra) que a sustenta.
Recusa, pois, com essa unidade, a própria estrutura do objeto da
Economia Política.
Vejamos em primeiro lugar o que acontece com a antropologia
clássica na obra de Marx, Para isso, percorreremos ligeiramente às
grandes regiões do “espaço” econômico: consumo, distribuição e
produção - para ver que lugar teórico os conceitos antropológicos
podem ocupar nele,

A, O Consumo
Podemos começar pelo consumo, que parece diretamente impli-
cado pela antropologia, dado que põe em causa o conceito de “ne-
cessidades”" humanas. Ora, Marx mostra, na Introdução de 57, que
TE

não se podem definir univocamente as necessidades econômicas Te»


lacionando-as à “natureza humana” dos sujeitos econômicos. O
consumo é, de fato, duplo. Compreende o consumo individual dos ho-
mens de uma sociedade dada, mas também o consumo prociuiino O
to de
qual seria necessário, para consagrar o uso universal do concei

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114 LER “O CAPITAL"

necessidade, definir como o consumo que satisfaz as necessidades da


produção. Este último consumo compreende: os “objetos” da pro-
dução (matérias brutas ou matérias-primas, esta última resultado da
transformação de matérias brutas), e os instrumentos da produção
(ferramentas, máquinas, etc.) necessários para a produção. Uma par-
cela do consumo refere-se pois, direta e exclusivamente, à própria
produção. Toda uma parte da produção é dedicada portanto não a
satisfazer as necessidades dos indivíduos, mas a permitir a reprodu-
ção, simples ou ampliada, das condições da produção. Dessa cons-
tatação, Marx extrai duas distinções absolutamente essenciais, que
estão ausentes na Economia Política clássica: a distinção entre o ca-
pital constante e o capital variável, e a distinção entre os dois Setores
da produção: o Setor |, destinado a reproduzir as condições da produ-
ção numa base simples ou ampliada, e o Setor Il, destinado à pro-
dução dos objetos do consumo individual. A proporção existente
entre esses dois Setores é governada pela estrutura da produção, que
intervém diretamente para determinar a natureza e o volume de uma
parte inteira dos valores de uso, que jamais entram no consumo das
necessidades, mas apenas na própria produção. Essa descoberta de-
sempenha um papel essencial na teoria da realização do valor, no :
processo de acumulação capitalista, e em todas as leis que dela de-
correm. Sobre essa questão é que se dá uma interminável polêmica
HI,
de Marx contra Smith, retomada diversas vezes nos livros Il e
cujos ecos encontramos nas críticas dirigidas por Lênin aos populis-
tas e a seu mestre, o economista “'romântico” Sismondi. *

Entretanto, essa distinção não resolve todas as questões. Se é


determini”
certo que as “necessidades” da produção escapam a toda
é menos verdade que uma parte dos produ-
ção antropológica, não indivíduos, que satisfazem com ela us suas
tos é consumida pelos
necessidades”. Mas, no caso ainda, vemos a antropologia abalada

tongue tia
- mas não cabe faz ê-l o aqui - 0 estudo dessas
ni fasclaanto M du a
oe ele ox o Ne, nesas questão capital, se distingue do S
coemond
nça essencial - ver como ele explica 0 “« du
“cegueira”. o Açao? Eq q sua difereento” incríveis de Smith, que são a Pula ta sente à
absurdo" A ge 0» 0 “esquecim
necessidade de ma toda a economia moderna, e ver entim por qu Iv € Ro
gado ao extremo Eça quatro ou cinço vezes essa crísõe tica, como se nt y lo ponto dode
ópi ca esc obr irí amo s, ent re out ras con clu s pertinentes « a fejona
vista epistemol mente re ue
COM a consi à ao, que
Bic ds o “equívoco enorme” de Smith está diretu code peQnÔMI-
Cos consider;deração exclusiva do capitalista individual,
udos fora do| odo, como os sujeitos a plobal. “00!EMim O daOU
é portanto de co sujeitos
ú
sujeitos últimos do p
ys do processo global.
determinante
tras palavras, verÍ;
(Referências
Cobtca|, 197.218
21 0-228; Doutrinas, essenciais: ç; 75-210, V, 12
o) caplivlo, IV. |

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 115

em suas pretensões teóricas pela análise de Marx. Não apenas essas


“necessidades” são definidas especificamente por Marx como “his-
tóricas” e não como dados absolutos (Misêre de la Philosophie, E.S.,
pp. 52-53, O Capital, |, pp. 174,228; VIII, p. 235, etc.) como também
e sobretudo são reconhecidas em sua função econômica de necessi-
dades, sob a condição de serem “solventes” (VI, 196, 207). As únicas
necessidades que desempenham um papel econômico são as que po-
dem ser economicamente satisfeitas: essas necessidades não são de-
terminadas pela natureza humana em geral, mas pela solvabilidade,
isto é, pelo nível das rendas de que dispõem os indivíduos - e pela
natureza dos produtos disponíveis, que são, num momento dado, o
resultado das capacidades técnicas da produção. A determinação
das necessidades dos indivíduos pelas formas da produção vai ainda
co-
mais além, dado que a produção não produz somente meios de
numo (valores de uso) determinados, mas também o seu modo de
157).
consumo, e até o desejo desses produtos (Introdução de 57, p.
Em outras palavras, o consumo individual por sua vez, que põe em
relação aparentemente imediata valores de uso e necessidades (e pa-
rece, pois, implicar de direito uma antropologia, embora historiciza-
da), nos remete de uma parte às capacidades técnicas da produção
(ao nível das forças de produção) e de outra às relações sociais de pro-
dução que fixam a distribuição das rendas (formas da distribuição
da mais-valia e do salário). Por esta última questão, somos le-
vados à distribuição dos homens em classes sociais, que se tornam
então os “'verdadeiros” “sujeitos” (desde que possamos empregar
esse termo) do processo de produção. A relação direta das “necessi-
dades” assim definidas com um fundamento antropológico torna-se
inverter a ordem das
então puramente mítica: ou antes, impõe-se
coisas, e dizer que a idéia de uma antropologia, se possível, passa
(nome antro-
pela tomada em consideração da definição econômica
estão submeti-
pológico) dessas “necessidades”. Essas necessidades
das a uma dupla determinação estrutural, e não mais antropológica:
a que distribui os produtos entre o Setor 1 e o Setor II, e a que atri-
bui às necessidades o seu conteúdo e sentido (a estrutura da relação
das forças produtivas e das relações de produção). Essa concepç ão
fundant e do econo-
ai pois, à antropologia clássica o seu papel
ico,

B, A Distribuição
Tendo em vista que a distribuição apareceu como um fator es-
sencial de determinação das necessidades - ao lado da produção, ve-
Jamos o que acontece com essa nova categoria, À distribuição apre-
senta-se também sob um duplo aspecto. Ela é não só distribuição

O SS

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116 LER “O CAPITAL”

das rendas (o que remete às relações de produção), mas distribuição


dos valores de uso produzidos pelo processo de produção. Ora, sa-
bemos que, nesses valores de uso, figuram os produtos do Setor I,
ou meios de produção - e os produtos do Setor II, ou meios de con-
sumo. Os produtos do Setor Il são trocados contra as rendas dos in-
dividuos, portanto em função de suas rendas e portanto de sua dis-
tribuição, e, por conseguinte, da primeira distribuição. Quanto aos
produtos do Setor |, os meios de produção, destinados a reproduzir
as condições da produção, não são trocados contra rendas, mas di-
retamente entre os proprietários dos meios de produção (é o resulta-
do dos esquemas de realização do livro 11): entre os membros da
classe capitalista que detêm o monopólio dos meios de produção.
Por trás da distribuição dos valores de uso, perfila-se assim outra
distribuição: a distribuição dos homens em classes sociais exercendo
uma função no processo de produção.
Em sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distri--
buição dos produtos, e assim como mais distanciada da produção e por
assim dizer independente desta. Mas, antes de ser distribuição dos produ-
tos, ela é: 1?) distribuição dos instrumentos de produção e 2º), o que é ou-
tra determinação da mesma relação, distribuição dos membros da socie-
dade entre os diferentes gêneros de produção (subordinação dos-indiví-
duos a relações de produção determinadas). A distribuição dos produtos
não é manifestamente senão o resultado dessa distribuição, que está in-
cluída no próprio processo e determina a estrutura da produção.
(Marx, Introdução de 57, E. S., 161).

Nos dois casos, pela distribuição das rendas, e pela distribuição


dos meios de consumo e dos meios de produção, índice da distri-
buição dos membros da sociedade em classes distintas, somos, pois,
levados às relações de produção, e à produção em si, | =
O exame das categorias que pareciam à primeira vista exigir à
intervenção teórica de uma antropologia do homo oeconomicus, €
que, por essa razão, lhe podiam dar uma aparência de fundamento,
produz portanto este duplo resultado: 1) o desaparecimento da an-
tropologia, que cessa de desempenhar o seu papel fundador (deter-
minação do econômico como tal, determinação dos “sujeitos do
econômico). “O espaço plano" dos fenômenos econômicos não
mais é duplicado pelo espaço antropológico da existência dos sujos
tos humanos: 2) a recorrência necessária, implicada na análise ia
consumo e da distribuição ao lugar de determinação verdadeiro do
econômico: a produção. Correlatamente, este aprofundamento teóri-
co nos aparece como uma transformação do campo dos fenômenos
econômicos: a seu antigo “espaço plano” homogêneo vem suceder
uma nova figura, em que os “fenômenos” econômicos são pensados
soba dominação das “relações de produção”, que os determinam.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 117

Ter-se-á reconhecido, no segundo desses resultados, uma tese


fundamental de Marx: é a produção que rege o consumo e a distri-
buição, e não o inverso, É frequente ver reduzir-se toda a descoberta
de Marx a essa tese fundamental, c às suas consegliências.
Essa “redução” choca-se no entanto com uma pequena dificul-
dade; essa descoberta já fora feita pelos fisiocratas, e Ricardo, o eco-
nomista “da produção por excelência” (Marx), lhe deu uma forma
sistemática, Ricardo, com efeito, proclamou o primado da produ-
ção sobre a distribuição e o consumo, Impõe-se mesmo ir maís além
“e reconhecer, como o fez Marx na Introdução de 57, que, se Ricardo
afirmou que a distribuição constituía o objeto próprio da Economia
Política, é que ele aludia ao que, da distribuição, concerne à distri-
buição dos agentes da produção em classes sociais (Introdução de 57, -
E. S., pp. 160-161). Todavia, devemos aplicar aqui a Ricardo o que
Marx dele diz, a propósito da mais-valia, Ricardo dava todos os si-
nais externos do reconhecimento da realidade da mais-valia - mas
não cessava de falar dela sob os aspectos do lucro, da renda e do ju-
ro, isto é, sob outros conceitos que não o seu, Do mesmo modo, Ri-
cardo dá todos os sinais exteriores do reconhecimento da existência
das relações de produção - mas deixa no entanto de falar delas sob
os aspectos só da distribuição das rendas e dos produtos - portanto,
sem lhes elaborar o conceito. Quando se trata apenas de identificar a
existência de uma realidade sob o seu disfarce, pouco importa que o
termo ou os termos que a designam sejam conceitos inadequados. É
o que permite a Marx traduzir, numa leitura substitutiva imediata, a
linguagem de seu predecessor, e pronunciar a expressão mais-valia
onde Ricardo pronuncia a expressão lucro - ou a expressão relações
de produção onde Ricardo diz distribuição das rendas. Tudo vai bem
na medida em que se trata de designar uma existência: basta corrigir
uma expressão para denominar a coisa pelo seu nome, Mas quando
se trata das conseqliências teóricas que surgem desse disfarce, a
questão fica mais séria: dado que a expressão desempenha agora a
função de conceito, cuja inadequação ou ausência provocam efeitos
teóricos graves, reconheça-os ou não o autor (como no caso de Ri-
cardo, nas contradições em que ele tropeça). Ficamos sabendo então
que aquilo que tomamos pelo disfarce de uma realidade sob sua ex-
pressão inexata é o disfarce de um segundo disfarce: o disfarce sob
uma expressão da função teórica de um conceito, Sob essa condição,
us variações da terminologia podem ser o Índice real de uma varia-
ção na problemática e no objeto, No entanto, tudo ocorre como se
Marx houvesse dividido o seu próprio trabalho, De um lado, ele se
contenta com efetuar uma leitura substitutiva de seus predecessores:
é o que Engels considera sinal de “generosidade”, que o faz sempre
calcular com muita largueza suas dívidas, e tratar praticamente os

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LER “O CAPITAL”
118
embora
“produtores” como “descobridores”. Mas, por outro lado,
severo quanto às consegiiên-
em lugares diferentes, Marx mostra-se
s de sua cegueira sobre o
cias teóricas tiradas por seus predecessore
produziram. Quando Marx
sentido conceptual das realidades que ou Ricardo por não terem
e, Smith
critica, com extrema severidad de existência, censu-
ido distinguir a m ais-valia das suas formas | que pode-
sabido disting por não' o haverem dado o conceito à realidade
ra-os de fato a claramente que a simples “o-
ro du zi do ”. Ve mo s ag or
riam ter “p
um conceito,
missão” de uma expressão é em realidade a ausência de
dado que a ausência ou presença de um conceito decide quanto a
uma cadeia de consequências teóricas. Eis o que nos esclarece em
reciproca sobre os efeitos da ausência da expressão na teoria que
“contém” essa ausência: a ausência de uma “expressão” nela é a
presença de outro conceito. Em outras palavras, aquele que pensa só
ter de restabelecer uma “expressão” ausente no discurso de Ricardo,
arrisca a enganar-se sobre o conteúdo conceptual dessa ausência, e re-
duz a simples “palavras” os próprios conceitos de Ricardo. E nessa
contradança de falsas identificações (crer que só se está restabele-
cendo uma palavra quando se está elaborando um conceito; crer que
os conceitos de Ricardo não passam de expressões) que devemos
procurar a razão pela qual Marx pode ao mesmo tempo exaltar as
decobertas de seus predecessores, onde eles no mais das vezes ape-
nas “produziram” sem “descobrir” — e criticá-los tão rudemente pe-
las consegiências que eles no entanto simplesmente delas tiraram.
Tive de entrar nesse-pormenor para bem situar o sentido desse juízo
“de Marx:

Ricardo, a quem importava conceber a produção moderna na sua


estrutura social determinada, e que é o economista da produção por €x-
celência, afirma por esse motivo que não é a produção, mas a distribuição
o que constitui o verdadeiro tema da economia política moderna.
(Introdução de 57, E. S., p.161.)

“Por esse motivo” significa:


- instintivamente, ele via nas formas de distribuição a expressão mais
nítida das relações determinadas dos agentes de produção numa sociedade
dada (ibidem, p.160).

» Essas “relaçõe s determinadas dos agentes numa sociedade da-


da” são Justamente as relações de produção, cuja consideração por
Mark, n ão sob a forma de um pressentimento “instintivo”, isto é,
não à “revelia” - mas sob a forma do conceito e de suas consequên-
«cias, subverteo objeto da Economia clássica, e, com o seu objeto, à
própria ciência da Economia Política como tal,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” | 119

O peculiar de Marx não é, de fato, haver afirmado nem mesmo


mostrado o primado da produção (Ricardo a seu modo já o havia
feito), mas haver transformado o conceito de produção, ao lhe atri-
buir um objeto radicalmente diferente do objeto designado pelo an-
tigo conceito.

C. A Produção
Toda produção é, segundo Marx, caracterizada por dois ele-
transfor-
mentos indissociáveis: o processo de trabalho, que explica a
delas va-
mação que o homem inflige às matérias naturais para fazer
minação das
lores de uso, é as relações sociais de produção sob a deter
quais esse processo de trabalho é executado. Examinaremos um
rela-
após outro esses dois tópicos: o processo de trabalho (a) e as
ções de produção (b).
a) O processo de trabalho
de trabalho refere-se às condições mate-
A análise do processo
riais e técnicas da produção.
dade a pro»,
O processo de trabalho... a atividade que tem por finali
s naturais às necessida-
dução de valores de uso, a apropriação dos objeto
inter câmbi o material entre o ho-
des humanas é a condição necessária do
da vida humana, inde-
“mem e a natureza, uma condição natural eterna
antes co-
pendente por isso mesmo de todas as suas formas sociais, sendo
“mum a todas as formas sociais (1, 186).
s simples que
Esse processo reduz-se à combinação de elemento
do homem, ou tra-
são em número de três: “...1) a atividade pessoal
o trabalho atua; 3)
balho propriamente dito; 2) O objeto sobre o qual
de trabalho inter-
o meio pelo. qual ele atua” (I, 181). No processo que, utili-
vém, pois, um dispêndio da força de trabalho dos homens,
rumentos de traba-
zando segundo regras (técnicas) adequadas inst ria.
(seja maté
lho determinados, transforma o objeto de trabalho
a) em produto
bruta, seja matéria já trabalhada, ou matéria-prim
útil,
inare-
Essa análise ressalta dois caracteres essenciais que exam
do proces-
mos sucessivamente: a natureza material das condições
no pro-
so de trabalho; o papel dominante dos meios de produção
cesso de trabalho,
Primeiro aspecto. Todo dispêndio produtivo da força de traba-
lho supõe para seu exercício condições materiais que se reduzem to-
das à existência da natureza, seja bruta, seja modificada pela ativi-
dade humana, Quando Marx escreve que “o trabalho é antes de
tudo um processo que se passa entre O homem e a natureza, proces-.
so no qual o homem assegura, regula e controla, por sua própria ati-

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120 LER “O CAPITAL”

vidade, a troca de matérias com a natureza... desempenha para com


a natureza o papel de uma força da natureza”, ele afirma que a
transformação da natureza material em produtos, e portanto o pro-
cesso de trabalho como mecanismo material é dominado pelas leis
físicas da natureza e da tecnologia. A força de trabalho insere-se
também nesse mecanismo. Essa determinação do processo de traba-
lho por suas condições materiais impede em seu nível qualquer con-
cepção “humanista” do trabalho humano como pura criação. Sabe-
se que esse idealismo não permaneceu no estado de mito, mas reinou
na economia política e, com isso, nas utopias econômicas do socia-
lismo vulgar: por exemplo, em Proudhon (projeto de banco popu-
lar), em Gray (os “bônus de trabalho”), e finalmente no Programa de
Gotha, que proclamava em sua primeira linha:
O trabalho é a fonte de toda riqueza e de toda cultura.

a que Marx respondeu:

O trabalho não é a fonte de toda riqueza. A natureza é igualmente a


fonte dos valores de uso (que são, até mesmo, a riqueza real!), como o
trabalho, que em si não passa de expressão de uma força natural, a força
de trabalho do homem. Essa expressão já gasta acha-se em todas as carti-
lhas, e só é verdadeira sob condição de subentender que o trabalho é an-
terior, com todos os objetos e processos que o acompanham. Mas um,
programa socialista não poderia permitir a essa fraseologia burguesa
O
passar em silêncio as condições que, só elas, lhe podem dar um sentido...
Os burgueses têm excelentes razões para atribuir ao trabalho essa força
sobrenatural de criação...
(Critique de Gotha, E. S., pp. 17-18)

Esse mesmo utopismo é que levava Smit


que O acompanharam nessa questão, a omitir,h, nos
e todos os utopistas
conceitos econô-
PICOS, à
dições materepr esentação formal da necessidade da reprodução das con-
riais do proc esso de trabalho, como essencial à existência
desse processo - é portanto a fazer abstração da mate
rialidade atual
traba SAS produtivas (objeto de trabalho, instrumentos materiais de
ME prplicados em qualquer processo de produção (sob
de (A arconomia Política de Smit esse
h carece de uma teoria da repro-
idealiimo a Pensável a qualquer teoria
declaro da produção). Ê o mesmo
0 trabalho que,nos Manuscritos de 44,
or Gabido mo O “Lutero da Economia Política modpermern
ite a Marx
a” por ha-
ra E Uzir toda riqueza (todo valo
r de uso) apen as ao traba- |
mero por E e mor AmOntar a união teórica de
trmbelioa F Teduzido toda a economia políticaSmith e Hegel: o prt-
à subjetiv
º Segundo por haver concebido “o trabalho como idad e do
essência

cal
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 121

do homem”. Em O Capital, Marx rompe com esse idealismo do tra-


balho, pensando o conceito das condições materiais de qualquer
processo de trabalho, e produzindo o conceito das formas de existên-
cia econômicas dessas condições materiais: para o modo de produ-
ção capitalista, as distinções decisivas do capital constante e do capi-
tal variável por um lado, do Setor I e do Setor II da produção, por
outro.

Podemos avaliar, por esse simples exemplo, os efeitos teóricos e


práticos provocados no próprio campo da análise econômica, tão-só
pelo pensamento do conceito de seu objeto. Basta que Marx pense,
como pertencente ao conceito de produção, a realidade das condi-
ções materiais da produção, para fazer nascer, no próprio campo da
análise econômica, conceitos economicamente “operatórios” (capi-
tal constante, capital variável, Setor I, Setor II) que lhe subvertem a
ordem e a natureza. O conceito de seu objeto não é paraeconômico;
é o conceito da elaboração de conceitos econômicos necessários
para a compreensão da natureza do próprio objeto econômico: os
conceitos econômicos de capital constante e capital variável, de Se-
tor I e Setor II são apenas a determinação econômica, no campo
mesmo da análise econômica, do conceito das condições materiais do
processo de trabalho. O conceito do objeto existe então imediata-
mente sob a forma de conceitos econômicos diretamente “operató-
rios”. Mas, sem esse conceito do objeto, esses conceitos não teriam
sido produzidos, e teríamos ficado no idealismo econômico de
Smith, exposto a todas as tentações da ideologia.

Essa questão é fundamental, porque nos mostra que não basta,


para se considerar marxista, considerar que o econômico, e, na €co-
da existência
nomia, a produção, comandam todas as demais esferas
social, Pode-se proclamar essa tese e, no entanto, ao mesmo tempo,
desenvolver uma concepção idealista da economia e da produção,
ao declarar que o trabalho constitui ao mesmo tempo “a essência do
homem” e a essência da economia política, em suma, ão desenvolver
uma ideologia antropológica do trabalho, da “civilização do traba-
lho”, etc, O materialismo de Marx supõe pelo contrário uma concep-
ção materialista da produção econômica, isto é, entre outras condi-
ções, a exposição das condições materiais irredutíveis do processo
de trabalho. Esse é um dos pontos de aplicação diretos da fórmula
de Marx, contida na carta a Engels que citei, em que Marx esclarece
que “atribuiu importância inteiramente diversa” da de seus prede-.
cessores “à categoria de valor de uso", Nessa concepção é que trope-
cam todas as interpretações do marxismo como “filosofia do traba-:
lho”, sejam elas éticas, personalistas ou existencialistas: a teoria sar-

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122 LER “O CAPITAL”

triana do prático-inerte em particular, porque lhe falta o conceito da


modalidade das condições materiais do processo de trabalho. Smith
relacionava já as condições materiais atuais do processo de trabalho:
ao trabalho passado: ele dissolvia assim numa regressão ao infinito
a atualidade das condições materiais exigidas em dado momento:
pela existência do processo de trabalho, na inatualidade dos traba-
lhos anteriores, em sua lembrança (Hegel iria ratificar essa concep-
ção em sua teoria do Erinnerung). Sartre dissolve também na
lembrança filosófica de uma práxis anterior, por sua vez subordina-
da em relação a uma outra ou outras práxis anteriores e assim por
diante até a práxis do sujeito originário, as condições materiais
atuais cuja combinação estrutural comanda todo trabalho efetivo,
toda transformação atual de uma matéria-prima em produto útil.
Em Smith, como economista, essa dissipação ideal provoca impor-
tantes consequências teóricas no domínio da própria economia. Em
Sartre, ela se sublima imediatamente na sua '“'verdade” filosófica
explícita: a antropologia do sujeito, latente em Smith, assume em
Sartre a forma aberta de uma filosofia da liberdade.

Segundo aspecto. A mesma análise do processo de trabalho põe


em evidência o papel dominante dos “meios de trabalho”.

O uso e a fabricação dos meios de trabalho... caracterizam o proces-


so de trabalho especificamente humano, e é por essa razão que Franklin
define o homem como animal que fabrica ferramentas (toolmaking ani-
mal). Restos de antigos meios de trabalho têm, para o estudo das for-
mas econômicas das sociedades desaparecidas, a mesma importância que
a estrutura dos fósseis para o conhecimento da organização das espécies
extintas. O que distingue as épocas econômicas entre si não é o que se
produziu (macht), mas a maneira como (wie) se produziu, com que meios
de trabalho se produziu, Os meios de trabalho servem para medir 0 de-
senvolvimento da força de trabalho e, além disso, indicam as condições
sociais (Anzeiger) em que se realiza o trabalho.
(O Capital, 1, pp. 182-83)

Monge três elementos constitutivos do processo de trabalho


os ad
meios EARmo draé força
alho. deEstetr abalho), existe, pois,
último elemento é queumapermite,
dominância É
no pro.
mara ni O comum a todas as épocas econômicas, identifica ie
São 08 “meio específica que irá distinguir suas formas essencia"
cesso de trabalho trabalho que determinam a forma típica do pro”
à Natureza ext o considerado; ao determinar o “modo de ataque
mica, eles dee, nº Submetida à transformação na produção ecoa
“minam o modo de produção, categoria fundamenta

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 123

da análise marxista (tanto em economia como em história); determi-


nam ao mesmo tempo o grau de produtividade do trabalho produti-
vo. O conceito das diferenças pertinentes observáveis nas variedades
de processos de trabalho, o conceito que permite não somente a “pe-
riodização” da história, mas, antes de tudo, a elaboração do concei-
to de história: o conceito de modo de produção fundamenta-se assim,
sob o aspecto que consideramos aqui, nas diferenças qualitativas
dos meios de trabalho, isto é, em sua produtividade. Será necessário
do pa-
ainda ressaltar que existe uma-relação direta entre o conceito
pel dominante dos meios de trabalho e o conceito economicamente a
que
“operatório” de produtividade? Será preciso observar ainda
Marx, isolar e
Economia clássica jamais soube, pelo que a censura
i-
identificar esse conceito de produtividade - e que seu desconhecpro-
de
mento da história está ligado à ausência do conceito de modo
dução? *

o conceito-chave de modo de produção, Marx


Ao elaborar
da natu-
pode de fato exprimir o grau diferencial de ataque material
ente entre o
reza pela produção, o modo diferencial de unidade exist
unidade. Mas,
“homem e a natureza”, e os graus de variação dessa
em con-
ao mesmo tempo que nos revela o alcance teórico do tomar
ito de modo
sideração as condições materiais da produção, O conce
minante, cor-
de produção revela-nos também outra realidade deter
eza”: as rela-
relata do grau de variação da unidade “homem-natur
ções de produção:

do desenvolvimen-
Os meios de trabalho são não apenas as medidas
indicadores (Anzeiger)
to da força de trabalho humano, mas também os
das relações sociais nas quais se produz...

s-
Com isso descobrimos que a unidade homem-natureza, expre
tempo € imedia-
sa pelo grau de variação dessa unidade, é ao mesmo relações sociais
tamente a unidade da relação homem-natureza e das
modo de produção con-
em que a produção se efetua, O conceito de
de.
tém, pois, o conceito da unidade dessa dupla unida
b) As relações de produção
Encontramo-nos assim diante de uma nova condição do proces-,
de produ-
so de produção, Após as condições materiais do processo

é de
a
o texto
Sobre todas essas questões, apenas esboçadas neste capítulo, veja-se
Ex)

alibar - em particular o importante conceito de forças produtivas por € le analisado.


Bali

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124 LER “O CAPITAL”

que o ho-
cão, em que se exprime a natureza específica da relação
com a natureza, temos agora de estudar as condições
mem mantém
de produção. Es-
sociais do processo de produção: as relações sociais
ões exis-
sas novas condições referem-se ao tipo específico de relaç
tentes entre os agentes da produção em função das relações existentes
entre esses agentes de uma parte e de outra os meios materiais da
produção. Esse esclarecimento é fundamental: porque as relações
sociais de produção não são de modo algum redutíveis a simples rela-
ções entre os homens, a relações que ponham em causa apenas os ho-
mens, e portanto às variações de uma matriz universal, a intersubjetivi-
dade (reconhecimento, prestígio, luta, dominação e servidão, etc.).
As relações sociais de produção em Marx não põem em cena os ho-
mens sós, mas põem em cena, nas combinações específicas, os agen-
tes do processo de produção, e as condições materiais do processo de
produção. Insisto neste ponto, por uma razão que se une à análise que
Ranciêre fez de certas expressões de Marx, em que, numa terminolo-
gia ainda inspirada em sua filosofia antropológica de juventude, se
podia ser tentado a contrapor, literalmente, as relações dos homens
entre si às relações das coisas entre si. Ora, nas relações de produção
estão implicadas necessariamente relações entre os homens e as coi-
sas, tais que as relações dos homens entre si são definidas ali por re-
lações rigorosas existentes entre os homens e os elementos materiais
do processo de produção.
De que modo pensa Marx essas relações? Ele as pensa como
uma “distribuição” ou uma “combinação” (Verbindung). Ao falar
da distribuição, na Introdução (p. 161), escreve Marx:

Em sua concepção mais banal, a distribuição aparece como distri-


buição de produtos, e como que distanciada da produção, por
assim di-
zer independente desta. Mas, antes de ser distribuição de produtos, ela é:
1) distribuição dos instrumentos de produção e 2) - o que é outra deter-
minação da mesma relação - distribuição dos membros da sociedade en-
tre os diferentes gêneros de produção (subordinação dos individuos a re-
lações de produção determinadas). A distribuição dos produtos é mani-
festamente apenas o resultado dessa distribuição, que está incluída
no
próprio processo de produção, e determina a estrutura da produção (Glie-
derung). Considerar à produção sem levar em conta essa distribuição que
nela está incluídaé manifestamente abstração vazia
trário, a distribuição dos produtos está implicada uand | g
Sã Dies
que constitui Originariamente um momento da produção MR di ri di E
produção tem necessariamente seu ponto de arti pisa
dos instrumentos de produção... Partida numa distribuição

Essa distribuição consiste, pois, em certa atribuiçã


cão
de produção aos agentes da produção, em certa relação
Me SA
belecida entre os meios de produção, de um lado, e de outro os a il
asdá produção. Formalmente essa distribuição-atribuiç
ão bode der

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 125

concebida como uma combinação ( Verbindung) de um certo número


de elementos pertencentes aos meios de produção ou aos agentes da
produção, combinação essa que se efetua segundo modalidades de-
terminadas.
É o que diz o próprio Marx:
Sejam quais forem as formas sociais da produção, os trabalhadores
e os meios de produção permanecem sempre os fatores delas. Mas uns e
outros estão apenas em estado virtual na medida que se acham separa-
dos. Para uma produção qualquer, impõe-se sua combinação. É a manei-
ra especial (die besondere Art und Weise) de operar essa combinação que
distingue as diferentes épocas econômicas pelas quais passou a estrutura
social (Gesellschafisstruktur).
(O Capital, IV, 38.)

Em outra passagem, sem dúvida a mais importante (O Capital,


VIII, 170-173), ao falar do modo de produção feudal, escreve Marx:
a forma econômica específica na qual sobretrabalho não-pago é ex-
e
torquido aos produtores imediatos, determina a relação de dominação
de servidão tal como decorre imediatamente da própria produção, e rea-
ge por sua vez sobre ela de modo determinante. É sobre ela que se funda
sur-
inteiramente a estruturação (Gestaltung) da comunidade econômica,
a
gida das próprias relações de produção, e com isso ao mesmo tempo
sua estrutura (Gestalt)* política específica. É cada vez na relação imedia-
ta dos proprietários das condições de produção com os produtores ime-
com
diatos - relação da qual cada forma corresponde sempre, de acordo
a sua natureza, a certo grau de desenvolvimento determinado do modo
(Art und Weise) de trabalho, e portanto a certo grau de desenvolvimento
de sua força produtiva social - que encontramos O segredo mais íntimo
(imnerste Geheimnis), o fundamento (Grundlage) oculto da construção so-
cial (Konstruktion) inteira, e por conseguinte também da forma política
de
da soberania, e da relação de dependência, em suma, de cada forma
Estado específica.

Os desenvolvimentos desse texto fazem aparecer distinções da


maior importância sob os dois elementos até aqui confrontados (a-
gentes da produção e meios de produção), Quanto aos meios de pro-
dução, vemos aparecer a distinção já conhecida entre o objeto da
produção, por exemplo a terra (que desempenhou diretamente um
papel determinante em todos os modos de produção anteriores ao
capitalismo), e Os instrumentos de produção, Quanto aos agentes da
produção, vemos surgir, além da distinção essencial entre os agentes

* Verifica-se que o tradutor francês e Althusser preferem “estruturação” e “estrutu-


ra” para os vocábulos Gestaltung € Gestalt de Marx, que poderiam ser corretamente
traduzidos por “formução” e “forma”, respectivamente, (N. do T.)

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126 LER “O CAPITAL”

imediatos da produção (expressão de Marx), cuja força de trabalho é


posta em ação na produção, e outros homens que dusampenham
um papel no processo geral da produção como proprietários dos
meios de produção, mas sem nela figurar como trabalhadores ou
agentes imediatos, dado que a sua força de trabalho não é emprega-
da no processo produtivo. É ao combinar, ao relacionar esses dife-
rentes elementos: força de trabalho, trabalhadores imediatos, Se-
nhores não-trabalhadores imediatos, objeto de produção, instru-
mentos de produção, etc., que chegamos à determinar os diferentes
modos de produção que existiram e que podem existir na história hu-
mana. Essa operação de relacionamento de elementos preexistentes
determinados poderia dar a pensar numa combinatória, se a nature-
za especifica muito especial das relações postas em jogo nessas dife-
rentes combinações não lhes definisse e limitasse estreitamente o
campo. Para obter os diferentes modos de produção, impõe-se com-
binar esses diferentes elementos, porém tendo em vista os modos de
combinação (Verbindurgen) específicos, que só têm sentido na natu-
reza própria do resultado da combinatória (sendo, esse resultado, a
produção real) - e que são: a propriedade, a posse, a disposição, O
desfrute, a comunidade, etc. A aplicação de relações especificas às di-
ferentes distribuições dos elementos disponíveis produz um número
limitado de formações, que constituem as relações de produção dos
modos de produção determinados, Essas relações
determinam o re-
lacionamento que os diferentes grupos de agentes
de produção man-
têm com os objetos e os instrumentos da produção, e com

vo ooo
a oo ienes da produção em grupos funcio
isso distri-

f
lações dos agentes da produção entre O no processo produtivo. As re-
si resultam então das relações
típicas que mantém com os meios
de produção (objeto, instrumen-
tos), e de sua distribuição em grupo
S determinados
funcionalmente em suas relações com os meios de pro eCRE
locali
ea
trutura da produção. pela es-
Não posso estender-me aqui na aná
li
de “combi nação”, e de suas diferentes
este ponto, à exposição de Balibar. É formas; Temeto o leitor , para
teórica do conceito de “combinação” pode dará oo à natureza
anteriormente sob forma crítica, de que o marxism alirmação, feita
ricismo: visto que O conceito marxista de história
pio da variação das formas dessa “combinação” QEapo s UM histo-
OUSa no pinci-
tir apenas sobre a natureza particular dessas rela
Soo catia de insis-
que são notáveis sob duplo aspecto, ses de Produção,
Vimos, no texto que acabo de citar, Ma
nada forma de combinação dos elementos dispor ttar que determi-
cessariamente certa forma de dominação e de sujeição inicava ne-
ISpensável

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 127

para assegurar essa combinação, isto é, certa configuração (Gestal-


tung) política da sociedade. Vê-se precisamente em que lugar se acha
fundada a necessidade e a forma da “formação” política: no nível
das Verbindungen que constituem os modos de ligação entre os agen-
tes da produção e os meios da produção, no nível das relações de
propriedade, de posse, de disposição etc. "* Esses tipos de relação, se-
gundo a diversificação ou a não-diversificação dos agentes da pro-
dução em trabalhadores imediatos e donos, tornam necessária ou
supérflua (sociedades de classes ou sociedades sem classes), a exis-
tência de uma organização política destinada a impor e manter esses
tipos de relação determinados por intermedio da força material (a
do Estado) e da força moral (a das ideologias). Vê-se com isso que '
certas relações de produção supõem, como condição de sua própria
existência, a existência de uma superestrutura jurídico-política e
ideológica, e por que essa superestrutura é necessariamente específi-
ca (dado que função das relações de produção específicas). Vê-se
também que outras relações de produção não exigem superestrutura
política, mas apenas ideológica (as sociedades sem classes). Vê-se fi-
nalmente que a natureza das relações de produção consideradas não
apenas exige ou não exige esta ou aquela forma de superestrutura,
mas determina também o grau de eficácia delegado a este ou aquele
nível da totalidade social. Sejam quais forem as outras conseqiiên-
cias, pelo menos uma conclusão podemos tirar, referente às relações
-de produção: elas remetem às formas superrestruturais que exigem,
como a outras tantas condições de sua própria existência. Não se
' pode, pois, pensar as relações de produção em seu conceito, fazendo
abstração de suas condições de existência superestruturais especifi-
cas. Como único exemplo, podemos verificar que a análise da venda
e compra da força de trabalho, em que existem as relações de produ-
ção capitalista (a separação entre os proprietários dos meios de pro-
dução, por um lado, e, por outro, os trabalhadores assalariados) su-
põe diretamente, para a compreensão de seu objeto, a consideração
de relações jurídicas formais, que constituem como sujeitos de direi-
to o comprador (o capitalista) assim como o vendedor (o assalaria-
do) da força de trabalho - assim como toda uma superestrutura
política e ideológica que mantém e contém os agentes econômicos

“Esclarecimento importante: o termo “propriedade”, utilizado por Marx, pode


dar a impressão de que as relações de produção são idênticas às relações jurídicas.
Não é assim. O direito não são as relações de produção. Estas últimas pertencem à in-
fra-estrutura, ao passo que o direito pertence à superestrutura,

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128 LERá “O

CAPITAL
' 171º "”

na distribuição dos papéis, que faz de uma minoria de exploradores


os proprietários dos meios de produção, e da muioria da população
os produtores da mais-valia. Toda a estrutura da sociedade conside-
rada acha-se assim implicada e presente, de um modo específico, nas
relações de produção, isto é, na estrutura determinada da distribui-
ção dos meios da produção e das funções econômicas entre catego-
rias determinadas de agentes da produção. Equivale a dizer que, se a
estrutura das relações de produção determina o econômico como
tal, a definição do conceito das relações de produção de um modo
de produção determinado passa necessariamente pela definição do
conceito da totalidade dos níveis distintos da sociedade, e de seu
tipo de articulação (isto é, de eficácia) própria.
Não se trata, no caso, de modo algum, de exigência formal, mas
«da condição teórica absoluta que rege a própria definição do econó-
mico. Basta lembrar os inúmeros problemas suscitados por essa defi-
nição quando se trata de modos de produção diferentes do modo de
produção capitalista, para nos darmos conta da importância decisi-
va deste recurso: se, como costuma dizer Marx, o que está oculto na
sociedade capitalista é claramente visível na sociedade feudal ou na
comunidade primitiva, é nestas últimas sociedades que vemos clara-
mente que o económico não é claramente visível! — do mesmo modo
que, nessas mesmas sociedades, vemos também claramente que O
“grau de eficácia dos diferentes níveis da estrutura social não é clara-
mente visível! Os antropólogos e etnólogos que, procurando O ecnô-
mico, caem nas relações de parentesco ou nas instituições religiosas
e outras, os especialistas em história medieval que, procurando no
“econômico” a determinação dominante da história, a encontram...
na política ou na religião, estes “sabem” para que se ater a esta defi-
nição. ” Em todos esses casos, não se trata de apreensão imediata do
econômico, não se trata do “dado” econômico bruto, como também
não se trata da eficácia imediatamente “'dada” neste ou naquele
nível. Em todos esses casos, a identificação do econômico passa pela
construção de seu conceito, queçãosupõe, para ser construído, à defini-
ção da existência e da articula específicas dos diferentes niveis da
er ea 2 » boia, ais tomo estão necessariamente implicados pod
do asonhata OM 8 produção considerado. ElaborarO € E
* ““9NÔmico é defini-lo rigorosamente como nível, instância ou
i
Eão da estruturade um modo de produção: é, pois, defino sent
ão e os seus limites próprios nessa estrutura, *

* Cf. Godelier, “Objet et méthodes de I'anthropologie economique » L'Hommé


outubro de 1965,

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 129

quisermos tomar a velha imagem platônica, “recortar” a região do


econômico na estrutura do todo, segundo a sua “articulação” pró-
pria, sem se enganar com a articulação. O “recorte” do “dado”, ou
recorte empirista, engana-se sempre com a articulação, precisamen-
te porque sobre o “real” as articulações e o recorte arbitrários da
ideologia que a sustenta, Não há recorte e, pois, articulação justas, a
não ser sob condição de possuir ou de construir seu conceito deles.
Em outras palavras, não é possível, nas sociedades primitivas, consi-
derar este ou aquele:fato, esta ou aquela prática, aparentemente sem
relação com a “economia” (como as práticas a que dão lugar os ri-
tos do parentesco ou da religião, ou relações entre grupos na con-
corrência do “potlatch”), como rigorosamente econômicas, sem se ter
antes elaborado o conceito da diferenciação da estrutura do todo so-
cial nessas diferentes práticas ou níveis, sem ter descoberto o seu sen-
tido próprio na estrutura do todo, sem ter identificado, na diversida-
de desconcertante dessas práticas, a região da pfatica econômica,
sua configuração e suas modalidades. É provável que grande parte
das dificuldades da etnologia e da antropologia contemporâneas de-
corra de que elas enfoquem os “fatos”, os “dados” da etnografia
(descritiva) sem tomar a precaução teórica de elaborar o conceito de
seu objeto: essa omissão leva-os a projetar na realidade etnográfica
as categorias que definem praticamente para elas o econômico, isto
é, as categorias que, além do mais, são não raro por sua vez empiri-.
“cas, da economia das sociedades contemporâneas. Basta isso para
multiplicar as aporias. Se no caso ainda acompanharmos Marx, só te-,
remos feito esse desvio pelas sociedades primitivas e outras para ver
nelas em claro o que a nossa própria sociedade nos oculta: isto é,
para ver nela nitidamente que O econômico, assim como qualquer
outra realidade (política, ideológica etc.), jamais se vê nitidamente,
não coincide com o “'dado”, Isso é tanto mais evidente para O modo
de produ-
-de produção capitalista quanto sabemos que ele é o modo
ção em que o fetichismo atinge sobretudo a região do econômico.
mundo
Malgrado as “evidências” maciças do “dado” econômico no
aspecto
de produção capitalista, e precisamente por causa desse
“maciço” dessas “evidências” fetichizadas, só existe acesso à essên-
cia do econômico pela elaboração do seu conceito, isto é, pela colo-
re-
cação em evidência do lugar ocupado na estrutura do todo pela
gião do econômico, e portanto pela colocação em evidência da arti-
culação existente entre essa região e as demais regiões (superestrutu-
ra jurídico-política e ideológica), € pelo grau de presença (ou de efi-
cácia) das demais regiões na própria região econômica, No caso ain-.
da, essa exigência pode ser encontrada diretamente como exigência
teórica positiva: pode também ser omitida, e manifesta-se então por
efeitos próprios, sejam teóricos (contradições, limiares na explica-

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RS
HO EURO CAPITAL!

ção), sejam práticos (por exemplo, dificuldades na téenion co planifl.


cação, socialista ou mesmo capltaliat), Ela, multo enquemuticamen,
te a primeira conclusão que podemos tlrar da determinação por
Marx do econômico pelas relações de produção,
A segunda conclusão é também Importanto, Se na relações de
produção nos aparecem agora como uma estruura regional por
Nua
ver inscrita na estrutura da totalidade social, ela nos interessa tam.
bém por sua natureza de estr a; No caso, vemos dissipar-ge mi.
ragem de uma antropologia utur
teórica, o mesmo tempo que se dasipa
a miragem de um espaço homogêneo de fenômenos econômicos da.
dos, Não somente o econômico é uma região estruturada que ocupa
um lugar próprio na estrutura global do todo social, como em seu
próprio lugar, em sua autonomia (relativa) regional, ela funciona
como uma estrutura regional determinando como tal os seus ele.
mentos, Verificamos aqui os resultados dos demais estudos deste li-
vro: a saber, que a estrutura das relações de produção determina lu.
gares e funções que são ocupados e assumidos por agentes da produ-
ção, que nunca são mais do que ocupantes desses lugares, na medida
em que são “portadores” (Trdger) dessas funções, Os verdadeiros
“sujeitos” (no sentido de sujeitos constituintes do processo) não são,
pois, esses ocupantes nem esses funcionários; não são, pois, contra-
riamente a todas as aparências, as “evidências” do “dado” da antro-
Pologia ingênua, os “individuos concretos”, os “homens reais” -
mas a definição e a distribuição desses lugares e dessas funções. Os
verdadeiros “sujeitos” são, pois, esses definidores e esses distribuido-
res: as relações de produção (e as relações socinis políticas e ideológi-
cas). Mas, como se trata de “relações”, não podertamos pensá-las
sob a categoria de sujeito, E se, por ucuso, quiséssemos reduzir essas
relações de produção a relações entre os homens, isto é, a “rel
ações
humanas”, estartamos violando o pensamento de Marx, que most ra
com a maior profundidade, sob condição de aplicar a algumas de
suas raras fórmulas ambíguas uma leitura verdadeiramente crítica,
que as relações de produção (ussim como us relações sociais políticas
e ideclógicas) são irredutíveis n qualquer intersubjetividade antro-
pológica dado que só combinam agentes e objetos numa estrutura
específica de distribuição de relações, lugares e Punções, ocupados é
portados” por objetos e ngentes du produção,
Pode-se compreender então, uma vez mais, em que o conceito
do seu objeto distingue radicalmente Marx de seus predecessores €
Por que seus críticos falharam, Pensar o conceito da produção é
pensar o conceito da unidade de suas condições: o modo de produ-
são, Pensar o modo de produção é pensar não somente as condições

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 131

materiais, mas também as condições sociais da produção. Em cada


caso é produzir o conceito que rege a definição dos conceitos econo-
micamente “operatórios” (emprego de propósito esse termo, que é
de uso corrente entre os economistas) a partir do conceito de seu ob-
jeto. Sabemos qual é, no modo de produção capitalista, o conceito
que exprime, na realidade econômica em si, o fato das relações de
produção capitalista: é o conceito de mais-valia, A unidade das con-
dições materiais com as condições sociais da produção capitalista é
expressa na relação direta existente entre o capital variável e a pro-
dução da mais-valia. Decorre de que não seja uma coisa, que a mais-
de uma re-
valia não seja uma realidade mensurável, mas o conceito
de
lação, o conceito de uma estrutura social de produção, existente, no
”,
uma existência visível e mensurável apenas em seus “efeitos em
apenas
sentido que em pouco definiremos. O fato de que exista
captada neste ou
seus efeitos não significa que possa ser inteiramente
para isso que ela '
naquele de seus efeitos determinados: seria preciso
ela só está presen-
estivesse inteiramente presente nele, ao passo que está presente,
te, como estrutu ra, na sua ausência determinada. Ela só
efeitos, no que Marx cha-
na totalidade, no movimento total de seus
formas de existência”, por
ma de “totalidade desenvolvida de suas
natureza: o ser uma relação
uma razão que decorre de sua própria de produção e os
processo
de produção existente entre Os agentes do
que domina o proces-
meios de produção, isto é, a própria estrutura O objeto
so na totalidade de seudesenvolvimento é de sua existência.
carvão, o algodão, os instrumen-
da produção, a terra, O minério, o são “coisas” ou
máquina etc.
tos de produção, uma ferramenta, à não são estruturas. As
realidades visíveis, perceptíveis, mensuráveis: mais que o economista
— € por
relações de produção são estruturas
os preços, as trocas, O salá-
comum examine os “fatos” econômicos, não “ve-
esses fatos “mensuráveis”,
rio, O lucro, a renda etc,, todos
tanto quanto o “físico” pré-
rá”, em seu nível, estrutura nenhuma, na queda dos corpos
atração
newtoniano não podia “ver” a lei de ver O oxigênio no ar “des-
podia
ou O químico pré-lavoisieriano não como, antes de New-
modo
flogistizado”. Certamente, do mesmo
” antes de Marx a massa de
ton, “viam-se” cair Os Corpos, “via-se “for-
homens “explorados” por uma minoria. Mas o conceito das
O conceito da existência econô-
mas” econômicas dessa exploração, e da determinação de
s de produção, da dominação
mica das relaçõe
por essa estrutura, não tinham
toda a esfera da economia políticca
que Smith e Ricardo tenham
então existência teórica. Admitido mais-valia,
“produzido”, no “fato” da renda e do lucro, o “fato” da
haviam “produzido”,
continuaram no escuro, não sabendo o que nem tirar disso as
dado que não sabiam pensá-lo em seu conceito, poderem pensá-lo,
conseqliências teóricas. Estavam a mil léguas de

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LER “O CAPITAL”
132

de sua épo-
não tendo jamais concebido, assim como toda a cultura
“combi-
ca, que um “fato” pode ser à existência de uma relação de
nação”, de uma relação de complexidade, consubstancial ao modo
de produção como um todo, dominando o seu presente, suas crises,
eco-
seu futuro, determinando como lei de sua estrutura a realidade
nômica inteira, até no pormenor visível dos fenômenos empíricos -
ao mesmo tempo que permanecendo invisível em sua própria evidên-
cia ofuscante.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 133

IX. A Imensa Revolução Teórica de Marx

Podemos agora voltar ao passado, para tomar a medida da dis-


tância que separa Marx de seus predecessores - é distinguir o objeto
de Marx do deles.

Podemos, a partir de agora, deixar de lado o tema da antropo-


logia, que, na Economia Política, tinha por função fundamentar ao
(pela
mesmo tempo a natureza econômica dos fenômenos econômicos
ê-
teoria do homo oeconomicus), e a existência deles no espaço homog
neo de um dado. Retirado o “dado” da antropologia, fica esse espa-
esse ob-
ço, precisamente o espaço que nos interessa. Que acontece a
jeto, em seu ser, não mais podendo fundar-se numa antropologia?
Que efeitos o atingem em decorrência da falta dessa base?

A Economia Política pensava os fenômenos econômicos como


pertencentes a um espaço plano em que reinava uma causalidade
mecânica transitiva, de tal modo que determinado efeito pudesse
relacionar-se a uma causa-objeto, um outro fenômeno; de tal modo
que a necessidade de sua imanência pudesse ali ser captada comple-
tamente na sequência de um dado. A homogeneidade desse espaço,
seu caráter plano, sua propriedade de dado; seu tipo de causalidade
linear: outras tantas determinações teóricas que constituem em seu
sistema a estrutura de uma problemática teórica, isto é, de certa ma-
neira de conceber seu objeto, e ao mesmo tempo lhe propor questões

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JJ
134 LER “O CAPITAL”

determinadas (por essa problemática mesma) sobre o seu ser, ao


mesmo tempo antecipando a forma de suas respostas (o esquema da
medida): em suma, uma problemática empirista, À teoria de Marx
opõe-se radicalmente a essa concepção. Isso não quer dizer que ela
lhe seja uma “inversão; trata-se de uma teoria original, teorica.
mente sem relação com a anterior, portanto, uma ruptura com ela,
Uma vez que Marx define o econômico por seu conceito, ele nos
apresenta, se quisermos ilustrar provisoriamente o seu pensamento
mediante uma metáfora espacial, os fenômenos econômicos não na
infinitude de um espaço plano homogêneo, mas numa região deter-
minada por certa estrutura regional e inscrita por sua vez num lugar
determinado de uma estrutura global: portanto, como um espaço
complexo e profundo, inscrito por sua vez em outro espaço comple-
xo e profundo. Mas deixemos de lado essa metáfora espacial, dado
que suas virtudes se esgotam nessa primeira oposição: com efeito,
tudo tem a ver com essa profundeza, ou, para falar mais rigorosa-
mente, com a natureza dessa complexidade. Definir os fenômenos
econômicos pelo seu conceito é defini-los pelo conceito dessa com-
plexidade, isto é, pelo conceito da estrutura (globah do modo de
produção, na medida em que ela determina a estrutura (regional)
que constitui como objetos econômicos, e determina os fenômenos
dessa região definida, situada num lugar definido da estrutura do to-
do. No nível econômico propriamente dito, a estrutura que constitui
e determina os objetos econômicos é a estrutura seguinte: unidade
das forças produtivas/relações de produção. O conceito desta
últi-
ma estrutura não pode ser determinado fora do conceito da
ra globa estrutu-
l do modo de produção,

Mar sas simples colocação dos conceitos teóricos fundamentais de


» O simples Posicionamento deles na unidade de um discurso
teórico, So, acarreta
« :
de pronto certo numero AO
de consegiiências de vulto.
. . .

possuir a qualidade de um
Pri Ê

ads dd
dado 9 econôm
ta jatamen te visível, não pode
ico observá vel, etc.), dado que sua identifi-
ap cade O conceito da estrutura econômica, que
Glvéis é AA por sua vez exi-
estrutura do modo de produção (seus diferent
ta culações específicas) - visto que sua identificação su es
Ra
deve ser cova StUÇãO do seu conceito. O conceito d O Econômico
como o Pe Astruído para cada modo de produção, do
modo q neeito de cada um dos demais “níveis” pertence
9
nômic: de produção: o Político,
político o ideológi
o: co, etc. Toda da a ciênc:.
sa NES ag
ica depende,
do conceit , pois » COMO qualquer outraà ciência,
Al al da CONstru
Ncia na
eco.
to de
gUMA entre a teor seu objeto,
O. Sob e s : “*Tução
30b essa condição, não há contradiçã
eoria
da Economia e a teoria da História; pel do al.
* Pelo contra.

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 135

ada da teoria da his-


rio, a teoria da economia é uma região subordin , nem no empirista
oricista
tória; evidentemente, não no sentido hist
essa teoria da história. ” E
mas no sentido em que pudemos esboçar que não elabore o conceito do
do mes mo mod o que toda “his tóri a”
-
imediatamente no visível do “cam
seu objeto, mas pretenda “lê-lo”
queira ou não, maculada de em-
po” dos fenômenos históricos, fica, “economia política” que vá “às
quer
pirismo, exatamente como qual creto”, ao “dado”, sem construir o
próprias coisas”, isto é, ao “con madi-
ei to de seu ob je to , fic a, qu eira ou não, enrodilhada na ar
e sob ameaça constante do ressugir-
co nc
lha de uma ideologia empirista, (seja
os”, isto é, dos seus objetivos
mento de seus verdadeiros “objet ou mesmo de um “humanismo”
co,
ele o ideal do liberalismo clássi a).
ialist
do trabalho, e até mesmo soc
und a: Se O “c am po ” dos fen ômenos econômicos não mais
* Seg já não
a hom oge nei dad e de um plano infinito, os seus objetos
tem lugares homogêneos entre si,
€,
os os
são de pleno direito, em tod . A pos-
is de comparações é de medida
pois, uniformemente suscetíve instrumento matemático,
intervenção do
sibilidade da medida, e da
ali dad es pró pri as, etc. nem por isso está excluída do eco-
de suas mod requisitos da definição
nômico, mas está a partir de então sujeita aos limi-
dos lug are s € lim ite s do mensurável, como lugares €
conceptual da ciência.matemáti-
outros recursos
tes aos quais podem aplicar-se outros
r exe mpl o, ins tru men tos da econometria, ou processos
ca (po ar subor-
mal iza ção ). A for mal iza ção matemática só pode est
de for
o à for mal iza ção con cep tua l. No caso ainda, o li-
dinada com relaçã ma-
mite que separa a economia política do empirismo, inclusive forco)
a, pas sa pel a fro nte ira que sep ara O conceito do objeto (teóri
list ticos, de
protocolos, inclusive matemá
do objeto “concreto”, e dos
sua manipulação, por
seg iiê nci as prá tic as des se princípio são evidentes:
As con “técnicos” da planificação: em
exemplo, na solução dos problemas dadeiramente
nte por problemas ver
que se tomam deliberadame puramente da ausência do con-
“pr obl ema s” que sur gem
técnic os”
o econômico . À “tecnocracia”
Dado ObIPIO, isto é, do empiridesm confusões, e vê nisso em que se
rea se desse gênero
nutre- l-
tem po int egr al: nad a há de mai s demorado para reso
em
ulado.
ver
gue um problema existente ou mal form
in
não mais é
dos fenômenos eco nômicos
se O campo
uque
Terceira;
esp
,
aço pla no, mas um esp aço pro fun do e complexo; se OS fe-
que le

“um
CF. capítulo 3,

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136 LER “O CAPITAL"

nômenos econômicos são determinados por sua complexidade (istc


é, sua estrutura), não mais se lhes pode aplicar, como antigamente, c
conceito de causalidade linear, Impõe-se outro conceito para expli.
car a nova forma de causalidade exigida pela nova definição do ob.
jeto da Economia Política, por sua “complexidade”, isto é, por sua
determinação própria: a determinação por uma estrutura,
Essa terceira consequência merece atenção especial, porque nos
introduz num domínio teórico rigorosamente novo, Tese que soa em
nossos ouvidos como algo já conhecido é que um objeto não possa
ser definido por sua aparência imediatemente visível ou perceptível,
mas que tenha de passar pelo atalho do seu conceito para o apreen-
der (begreifen: apreender; Begriff: conceito), Essa é, pelo menos, a
lição de toda a história da ciência moderna, mais ou menos refletida
na filosofia clássica, mpsmo que essa reflexão se tenha operado no
elemento de um empirismo transcendente (como em Descartes), ou
transcendental (Kant e Husserl), ou idealista-“objetivo” (Hegel).
Certo é que se impõe grande esforço teórico para acabar com todas
as formas desse empirismo sublimado na “teoria do conhecimento”
que domina a filosofia ocidental, para romper com a sua problemá-
tica do sujeito (o cogito) e do objeto - e todas as suas variantes. Con-
tudo, pelo menos todas essas ideologias filosóficas “aludem” a uma
necessidade real, imposta, contra esse empirismo persistente, pela
prática teórica das ciências reais: saber que o conhecimento de um
objeto real passa, não pelo contato imediato com o “concreto” mas
pela produção de conceito desse objeto (no sentido de objeto de co-
nhecimento), como por sua condição de possibilidade teórica abso-
luta. Do ponto de vista formal, a tarefa que Marx nos impõe, quando
nos força a produzir o conceito do econômico para termos condi-
ções de constituir uma teoria da economia política, quando nos
obriga a definir por seu conceito o domínio, os limites e as condições
de validade de uma matematização desse objeto, não se trata de ma-
neira alguma de uma ruptura com a prática científica efetiva, mes-
- Mo rompendo de fato com toda a tradição idealista-empirista da fi-
losofia crítica ocidental, Pelo contrário, as exigências de Marx reto-
mam em novo domínio requisitos que são, de há muito, impostos à
prática das ciências que atingiram autonomia. Se essas exigências
não raro se chocam contra as práticas profundamente impregnadas
de ideologia empirista que reinavam e reinam ainda na ciência eco-
nômica, isso se deve, sem dúvida, à juventude dessa “ciência”, é
também a que a “ciência econômica” está sobremodo exposta às
pressões da ideologia: as ciências da sociedade não têm a serenidade
dus ciências mutemáticas, Hobbes já o dizia: à geometria ung os
ho-
mens; a ciência social os divide, A “ciência econômica” é o campo
de butalha e o alvo dos grandes combates políticos da história.

À
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 137

Coisa inteiramente diversa ocorre com a nossa terceira conclu-


são, e com a exigência que ela nos impõe de pensar os fenômenos
econômicos determinados por uma estrutura (regional), por sua vez
determinada pela estrutura (global) do modo de produção. Essa exi-
gência apresenta a Marx um problema que não é apenas científico,
“isto é, decorrente da prática teórica de uma ciência determinada (a
Economia Política ou a História), mas um problema teórico, ou filo-
sófico, dado que diz respeito muito precisamente à produção de um
conceito ou de um conjunto de conceitos que atingem necessaria-
mente as próprias formas da cientificidade ou da racionalidade (teó-
rica) existente, as formas que definem, num momento dado, o Teóri-
co em si, isto é, o objeto da filosofia. *' Esse problema refere-se ca-
balmente de fato à produção de um conceito teórico (filosófico), ab-
solutamente indispensável para constituir o discurso rigoroso da
teoria da história e da teoria da economia política: a produção de
um conceito filosófico indispensável, que não existe na forma do con-
ceito.
Talvez seja demasiado prematuro afirmar que o surgimento de
qualquer ciência nova estabelece inevitavelmente problemas teóri-
“cos (filosóficos) dessa ordem: Engels pensava assim — e temos um
sem-número de razões para acreditar que assim seja, se examinar-
mos o que se passou ao ensejo do nascimento das matemáticas na
Grécia, da constituição da física de Galileu, do cálculo infinitesimal,
“da fundação da química, da biologia, etc. Em não poucas dessas con-
junturas assistimos a este fenômeno notável: a “retomada” de um
descobrimento científico fundamental pela reflexão filosófica e a
produção, pela filosofia, de certa forma de racionalidade nova (Pla-
tão após os descobrimentos dos matemáticos dos séculos IV e V;
Descartes depois de Galileu, Leibniz com o cálculo infinitesimal,
etc.). Essa “retomada” filosófica, essa produção pela filosofia de no-
vos conceitos teóricos que solucionam os problemas teóricos, se não
estabelecidos explicitamente, pelo menos contidos “em estado práti-
co” nos grandes descobrimentos científicos em questão, assinalam
as grandes rupturas da história do Teórico, isto é, da história da filo-
sofia. Parece, entretanto, que certas disciplinas científicas puderam
fundar-se ou mesmo crer-se fundadas, por simples extensão de certa
forma de racionalidade existente (a psicofisiologia, a psicologia,
etc.), o que tenderia a insinuar que não é qualquer fundação científi-
ca que provoca ípso facto uma revolução no Teórico, mas, pelo me-
nos, podemos presumir, uma fundação científica tal que esteja na

“ Cf Ler “O Capital”, vol. 1, p. 51.

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138 LER “O CAPITAL”

Teg.
obrigação de remanejar na prática a problemática existente no
rico para poder pensar O seu objeto: a filosofia em condições de re.
fletir no Teórico, pelo esclarecimento de uma nova forma de racio-
nalidade (cientificação, apoditicidade, etc), essu subversão ocasiona.
da pelo surgimento de uma ciência como essa, assinalaria então por
sua existência uma escansão decisiva, uma revolução na história do
Teórico.
Parece que Marx nos oferece precisamente um exemplo dessa
importância, se tivermos em mente o que já. dissemos em outra
oportunidade sobre o retardo necessário à produção filosófica dessa
nova racionalidade, e até mesmo de certos recalcamentos históricos
que algumas revoluções teóricas podem sofrer. O problema episte-
mológico colocado pela modificação radical do objeto da Economia
Politica por Marx pode ser formulado desta maneira: mediante que
conceito pode pensar-se o novo tipo de determinação, que acaba de ser
identificado como a determinação dos fenômenos de uma região dada
pela estrutura dessa região? De modo mais geral, por meio de que
conceito, ou de que conjunto de conceitos, pode pensar-se a determina-
ção dos elementos de uma estrutura, e as relações estruturais existen-
tes entre esses elementos, e todos os efeitos dessas relações, pela eficá-
ou de que
cia dessa estrutura? E, a fortiori, por meio de que conceito,
uma estru-
conjunto de conceitos pode pensar-se a determinação se
tura subordinada por uma estrutura dominante? Em outras palavras,
como definir o conceito de uma causalidade estrutural?
Essa simples questão teórica resume em si mesma à prodigiosa
descoberta cientifica de Marx: a da teoria da história e da economia
ão
política, a de O Capital. Resume-a como uma prodigiosa quest
fico de
teórica contida “'em estado prático” no descobrimento cientí
Marx, a questão que Marx “praticou” em sua obra, à qual deu por
sem lhe produzir o conceito
resposta a sua própria obra científica,
numa obra filosófica do mesmo rigor.
Essa simples questão era a tal ponto nova € imprevista que en-
-
cerrava aquilo com que estourar todas as teorias clássicas da causa
lidade - ou algo que a tornasse desconhecida, a fizesse passar des-
percebida, e ser sepultada antes mesmo de nascer. ”
De modo esquemático, pode dizer -se que a filoso fia clássi ca (O
Teórico existente) dispunha em tudo e por tudo de dois sistemas de
conceitos para pensar a eficácia: o sistema mecanicista de origem
cartesiana, que reduzia a causalidade a uma eficácia transitiva €
analítica. [Essa causalidade não era adequada para pensar à eficácia
de um todo sobre os seus elementos, à não ser ao preço de distor-
ções fora do comum (como se vê na “psicologia” ou na “biologia”
de Descartes). Dispunha-se, entretanto, de um segundo sistema,
concebido precisamente para explicar a eficácia de um todo sobre 0º


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O OMPTO DECO CAPITAL! 139

o 6
seus elementos; o concelto lelbniziano de expressão, Vase model
que domina todo o pensamento de Hegel, Mas supõe em seu princl-
pio que o todo, de que se trata, seja redutível a um princípio de inte-
rioridade peculinr, Isto é, redutivel a uma essôncia Interior, da qual
os elementos do todo não passam então de formas de expressão fe-
nomênicas, estando o princípio Interno da essência presente em cada
ponto do todo, de modo que n enda Instante se possa escrever a
equação, imediatamente adequada; certo elemento (econômico, poll-
tico, jurídico, literário, religioso, etc, em Hegel) = essência Interna do
do
rodo. Vinha-se de fato um modelo que permitia pensar a eficácia ia-
essênc
todo sobre cada um de seus elementos, mas essa cntegoria
interna/fenômeno exterior, para ser em todos os lugares e em todos

da tota-
os instantes aplicável a cada um dos fenômenos decorrentes
te
lidade em questão, pressupunha certa natureza do todo, preelsamen
expres-
essa natureza de um todo “espiritual”, em que cada elemento é
ti-
vivo de toda a totalidade, como “pars totalts”, Em outras palavras,
todo
nha-se de fato em Leibniz e Hegel uma categoria da eficácia do de
sobre os seus elementos ou partes, mas sob condição absoluta
que o todo não fosse uma estrutura, |
como pos
Se o todo for estabelecido como estruturado, isto é,
unidade
suindo um tipo de unidade inteiramente diversa do tipo de não so-
do todo espiritual, o mesmo acontece; torna-se impossível
tura sob a ca
mente pensar a determinação dos elementos pela estru
e analítica e transitiva, é ainda mais, torna-se
tegoria de causalidad
global de
impossível pensá-la sob a categoria de causalidade expressiva Propo
enos, r-se
uma essência interior unívoca imanente a seus fenômpela estrutura do
pensar a determinação dos elementos de um todo no maior
todo era estubelecer um problema absolutamente novo ito filo-
de nenhum conce
embaraço teórico, porque não se dispunha teóric
sófico tlaborado para resolvê-lo, O único o que teve a ousadia
inaudita de estabelecer esse problema o de lhe esboçar uma primeira
solução foi Spinoza, Mas a história, como sabem os, sepultou-o nas
é que
trevas du noite, Só com Marx, que todavin o conhecia pouco,
desse rosto macerado,
começamos escussumente u adivinhar os traços
genéri-
Nada mais faço aqui do que ret mar, sob a forma mais
eu, um problema teórico fundamenta Le drumútico, do qual us expo
que se truta
sições precedentes nos deram uma Idéia pree isa, Afirmo as VIAS, dl
de um problema fundamental, pois é eluro « jue, por outr
lingllística o
teoria contemporânea, tanto em psle unúliso como em o em fisteu,
nas demais disciplinas como u biologln, o talvez mesm dela, 0 “Pros
es
velo a enfrentá-lo, sem perceber que Mura, muito ant
se de um problema teóri»
duzira", no sentido próprio, Afirmo tratar ndo O
co «dramático, dado que Marx, que ” produziu” esse problema,

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140 LER “O CAPITAL”

colocou como problema, porém aplicou-se a solucioná-lo na


prática,
sem dispor de seu conceito, com extraordinária habilidade, mas sem
de todo evitar racair nos esquemas anteriores, necessariamente
ina-
dequados para a formulação e solução desse problema. Esse proble.
ma é que Marx tenta discernir nestas expressões, à procura delas
mesmas, que lemos na Introdução:
Em qualquer forma de sociedade, é uma produção deter
relações engendradas por
minada, g as
ela, que atribuem a todas as demais produções
é às relações geradas por estas o seu lugar e a sua importância. É um
de luz (Beleuchtung) geral raio
em que estão mergulhadas todas as cores, e
lhe modificam os matizes que
particulares. É um éter especial que determina,
O peso específico de todas as formas de exist
ência que nele se abrigam
(170-71).

A passagem citada trata da determinação


de produção subordinada Por uma estr de certas estruturas
utura de produção domiran-
te, e portanto de uma estrutura por outra estrutur
certa estrutura subordinada pela a, e elementos de
estrutura dominante, e portanto
determinante. Anteriormente tent
ei explicar esse fenômeno pelo
conceito de sobredeterminação, tom
ado à psicanálise, e pode admi-
tir-se que essa transferência de
um conceito analítico à teoria
ã a, porém necessária, dado que, em amb mar-
os os ca-

rmas de raciocínio, a presença cons-


K árx, € que se pode resu
tora damarx“Darstellung”, o conceito epistemomirlógi
inteiramente no concei-
co-c have de toda a teo-
ista do valor, e que tem prec
isamente por objeto designar
esse modo de pres ença da estrutura nos se use
causalidé ade estrutural, feitos, ú e pois: a próp
rópria
Se identificamos O concei
to da “Darstellung", iss
que ele seja o único de o não significa
que se se rve Marx
estrutura: basta ler as primeiras tri para
para ensar cia da
p a eficá

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 141

fórico e ao mesmo tempo o mais próximo do conceito que Marx ti-


nha em vista quando queria designar simultaneamente a presença e
a ausência, isto é, a existência da estrutura em seus efeitos.
Essa questão é extremamente importante, para evitar uma re-
caída, ainda que mínima de certo modo por inadvertência, no desvio
da concepção clássica do objeto econômico, para evitar o dizer-se que
a concepção marxista do objeto econômico seria, em Marx, determi-
nada de fora por uma estrutura não-econômica. A estrutura não é
uma essência externa aos fenômenos econômicos cujos aspectos,
formas e relações ela viria modificar, e que seria eficaz sobre eles
como causa ausente, — ausente porque externa a eles. A ausência da
causa na “causalidade metonímica” “ da estrutura sobre seus efeitos
não é resultado da exterioridade da estrutura em relação aos fenôme-
nos econômicos; é, pelo contrário, a própria forma da interioridade da
estrutura, como estrutura, em seus efeitos. Isso implica então que os
efeitos não sejam externos à estrutura, não sejam um objeto ou um
elemento, um espaço preexistente, nos quais a estrutura víria impri-
mir a sua marca: muito pelo contrário, implica que a estrutura seja
imanente a seus efeitos, causa imanente de seus efeitos no sentido
spinoziano do termo, e que toda a existência da estrutura consista em
seus efeitos, em suma, que a estrutura, tão-somente combinação es-
pecífica de seus próprios elementos, nada seja fora de seus efeitos.
Esse esclarecimento é importantíssimo para explicar a forma às
vezes estranha que a descoberta e procura de expressão dessa reali-
dade assumem também em Marx. Para compreender essa forma es-
a
tranha, impõe-se notar que a exterioridade da estrutura em relação
seus efeitos pode ser concebida ou como pura exterioridade ou
como uma interioridade, sob condição apenas que essa exterioridade
Essa
ou interioridade sejam pensadas como distintas de seus efeitos.
distinção
distinção assume não raro em Marx a forma clássica da
e à sua
entre o dentro e o fora, entre a “essência íntima” das coisas
O “vínculo
“superfície” fenomênica, entre as relações “íntimas”, cot-
das próprias
íntimo” das coisas'e as relações e vínculos externos à distin-
sas. E sabe-se que essa oposição, que equivale em princípio
ção clássica da essência e do fenômeno, isto é, a umade distinção que
seu conceito,
situa no ser em si, na realidade em si, O lugar interior
concretas; que,
conpraposto então à “superfície” das aparências
no próprio objeto
pois, transpõe como diferença de nível ou de partes dado que se
real uma distinção que não pertence a esse objeto real,

de causalidade estrutural
* Expressão de J, A. Miller para caracterizar uma forma
descoberta em Freud.

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LER “O CAPITAL"
142

ara O conceito,subou conhecimentno desse


trata da distinção que objsepeto exi ste nte ; - e-s e que essa
real, desse real como
e lev ar, em Ma rx , à est a ob vi edade: se a essência não fosse a de
pod encial não fosse diferente nci do e
rença dos fenômenos, se O interior ess ta necessidade da clê a, E
co, não se ter
terior inessencial ou fenomêni todos
ula singular pode nutrir-se de
Sabe-se também que essa fórm resentam o desenvolvimento do
ap
os argumentos de Marx que nos trato ao concreto, passagem enten-
abs
conceito como a passagem do e essencial - abstrata em princípio -
dad
dida então como da interiori ext ern as, vis íve is € perceptíveis, passagem
às determinações concretas trânsito do livro I ao livro III. Toda argu-
que resumiria em suma O a ainda uma vez na confusão entre o con-
mentação equívoca repous anto perfeitamente isolado por Marx na
ret
creto-de-pensamento, ent esse mesmo concreto
real - ao pas-
real, com
Introdução do concreto rea l do livro III, isto é, o
conhecimen-
o co nc re to i-
so que em realidade é, como qualquer conhec
, do lucro e do juro,
to da renda fundiária €
re to em pí ri co , ma s O co ncei to, portanto, aindae-
mento, não o conc chamar € de fato cham
ei de “G
sempre uma abstração: o que pude pro-
um
ra be m as si na la r qu e se tratava ainda de
neralidade Il", pa
ec im en to de um a ex is tência empírica e não
nh
duto do pensamento, co ar a conclusão
pírica. Impõe-se então tir
essa própria existência emem do livro Tao livro III de O Capital nada
disso e dizer que a passag strato-de-pensamento
ao concreto-
em do ab
tem a ver com a passag strações do pensamento necessári
real,com a passagem das ab ro 1 ao livro III, não saímos Jà-
re to em pí ri co . Do liv
conhecer, ao conc tos do pen-
mais da abstração, isto é, do conhecimento, dos “produ
enas, no
”: ja ma is sa ím os do conceito. Passamos ap
conceito da estrutura €
sar e do co nc eb er
ear da ab stração do conhecimento, do co ti-
nceitos dos efeitos par
ger ais da es tr ut ur a, aos
pe her ro sequer,
amena iraitira - nã o transpomos jamais, um momento
in st ra np on ív el qu e separa O “desenvolvi:
mento” OU és era o do conceito, do desenvolvimento e da par,
e pr a Aipaçã razão sólida: essa fronteira
é
de direito intrans fi 7 e isso por uma e
nte ed ida po rq ue é fr on teira de nada, porque não pod ito
ser uma fro es pa ço homogêneo comum (es
pír
i não há
ou real) entre o i
ER con cei to de um a coi sa e o concreto emplrts
co dessa coisa que possa utorizar o emprego do conceito de fronteira.
insisto à seis Mlivra sobre esse ; quívoco é para deixar bem cla-
ai ooSe (nulo
a qual Marx se achava quando lhe foi neces-

Ê
Do
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 143

“sário pensar, num conceito verdadeiramente refletido, o problema


epistemológico que ele no entanto havia produzido: como explicar
teoricamente a eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos?
Essa dificuldade não deixou de ter conseqliências, Assinalei que a
reflexão teórica anterior a Marx havia fornecido apenas dois mode-
los de uma eficácia pensada: o modelo de uma causalidade transitiva
de origem galileana e cartesiana, e o modelo de uma causalidade ex-
pressiva de origem leibniziana, retomada por Hegel, Esses dois mo-
delos podiam entretanto revelar um fundo comum na oposição clás-
sica do par essência-fenômeno, jogando com o equívoco dos dois
conceitos. O equívoco desses dois conceitos é, de fato,
evidente: a es-
sência remete ao fenômeno, mas ao mesmo tempo,
em surdina, ao
inessencial. De fato o fenômeno remete à essência, de que
ele pode
ser a manifestação ou a expressão, mas remete ao mesmo
tempo, e
em surdina, àquilo que aparece ao sujeito empírico, à percepção
e,
pois, à afecção empírica de um sujeito empírico possível. É
simplíssi-
mo então acumular na própria realidade .essas determinações
equí-
vocas, € localizar no próprio real uma distinção que no entanto
é des-
“tituída de sentido a menos que em função de uma distinção
exterior
ao real, dado que põe em jogo uma distinção entre o real e o
seu co-
nhecimento. Marx, à procura de um conceito para pensar a singular
realidade da eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos,
não
raro recorreu, e na verdade de modo quase inevitável, ao par clássico
essência e fenômeno, encampando, por força e não por virtude, as.
suas ambigiiidades, e extrapolando para a realidade, sob a forma de
“interior e exterior” do real, do “movimento real e do movimento apa-
rente”, da “essência íntima” e das determinações concretas, fenomê-
nicas, percebidas e manipuladas por indivíduos, a diferença episte-
mológica entre o conhecimento de uma realidade e essa própria reali-
dade. Não tenhamos dúvida de que isso teve conseqiiências no con-
ceito que ele tinha de ciência, como o podemos perceber quando
Marx cuidou de dar o conceito daquilo que seus predecessores ha-
viam achado, ou falhado - ou o conceito da diferença que o distin-
guia deles,

Mas esse equívoco teve também consequências sobre a e


pretação do fenômeno que Marx batizou com o nome de dae is-
mo”, Ficou claro que o fetichismo não era um fenômeno su ativo,
pertinente às ilusões ou à percepção dos agentes do processo econô-
mico, de modo que não se pode reduzi-lo aos efeitos subjetivos pro-
duzidos nos sujeitos econômicos pelo lugar deles no processo, na es-
trutura. No entanto, quantas passagens de Marx nos apresentam o
fetichismo como uma “aparência”, uma ilusão pertinente unica-
mente à “'consciência”, mostrando-nos o movimento real, interno,

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144 LER:R “O CAPITAL”

do processo, “aparecendo” sob forma fetichizada à “consciência”


dos mesmos sujeitos, sob a forma do movimento aparente! E, no en.
tanto, quantas outras passagens de Marx nos asseguram que essa
aparência nada tem de subjetiva, mas é, pelo contrário, sempre ob-
jetiva, a “ilusão” das “consciências” e das percepções sendo por sua.
vez secundária, e deslocada pela estrutura dessa primeira “ilusão”
puramente objetiva! Nesse caso, sem dúvida, é que vemos mais cla-
ramente Marx debater-se com conceitos de referência inadequados a
seu objeto, ora aceitando-os, ora recusando-os, num movimento ne-
cessariamente contraditório.
Entretanto, e em virtude mesmo dessas hesitações contraditó-
rias, Marx toma não raro o partido daquilo que afirma efetivamen-
te: e produz então conceitos adequados ao seu objeto. Mas tudo se
passa como se, ao produzi-los num lampejo, não tivesse posto em
ordem e enfrentado teoricamente essa produção, não a tivesse refle-
tido para impô-la ao campo total de suas análises. Por exemplo, ao
tratar da taxa de lucro, escreve Marx:

Essa relação mv/c+v // taxa de lucro // concebida de maneira ade-


quada em sua dependência conceptual, interior (seinem begrifflichen. in-
nem Zusammenhang entsprechend gefasst) & à natureza da mais-valia, ex-
prime o grau de valorização de todo o capital adiantado (O Capital, VI,
64). -

Nesse trecho como em muitos outros, Marx “pratica” sem


qualquer equívoco essa verdade de que a interioridade nada mais é
que o “conceito”, que ela não é “o interior” real do fenômeno,
mas
seu conhecimento. Sendo assim, a realidade que Marx estuda já não
pode apresentar-se como uma realidade em dois níveis,
o interior e O
exterior, o interior sendo identificado com a essência
pura e o exte-
rior como um fenômeno, ora puramente subjetivo, estado
de uma
consciência”, ora impuro, porque estranho
à essência ou inessen-
cial. Se “ointerior” é o conceito, o exterior
ção do conceito, exatamente como os efeitos sóda pode ser a especifica-
estrutura do todo só
podem ser a própria existência da estrutura. Eis, por exempl
diz Marx sobre a renda fundiária: PRO O Que
É importante para a análise científica da ren bio à
forma econômica, específica e autônoma, que Ra ea Isto é, da
terra no modo capitalista de produção, examiná-la
em sua RE sdado da
despojada de qualquer complemento que a
falsifique e lhe oa E
natureza; mas é importantíssimo também conhecer os
a raiz dessas confusões, a fim de compreender bem elementoç US á
propriedade da terra, e inclusive chegar ao conhec os efeitos ra (ve São
imento teórie últicos da
número de fatos que, embora em contradição
com o conceito o de certo
da renda da terra, . aparecem no entanto como modos d, € SmÀ naturez
ai a
(O Capital, VH, 16). * Existência desta

4
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O OBJETO DE “O CAPITAL” 145

Vemos aqui em flagrante o duplo estatuto que Marx atribui à


sua análise. Ele analisa uma forma pura, que nada mais é que o con-
ceito da renda capitalista da terra, Essa pureza, ele a pensa ao mes-
mo tempo como a modalidade e a própria definição do conceito, e
ao mesmo tempo a pensa como o que ele distingue da impureza
empírica. Essa mesma impureza empírica, ele « pensa no entanto
imediatamente, num segundo movimento de retificação, como “os
modos de existência , isto €, como determinações teóricas do concei-
to de renda da terra em si. Nesta última concepção, saímos da dis-
tinção empirista.da essência pura € dos fenômenos impuros; aban-
donamos a idéia empirista de uma pureza que é então apenas o re-
sultado de uma depuração empírica (visto que depuração do empíri-
co) - pensamos realmente na pureza como pureza do conceito, pure-
za do conhecimento adequado a seu objeto, e nas determinações
desse conceito como o conhecimento efetivo dos modos de existên-
cia da renda da terra. Claro está que essa linguagem por si mesma
revoga a distinção de interior e exterior, para pôr em seu lugar a dis-
tinção do conceito e do real, ou do objeto (de conhecimento) e do
objeto real. Mas se levamos a sério essa indispensável substituição,
ela nos orienta no sentido de uma concepção da prática científica e
de seu objeto que nada mais tem em comum com o empirismo.
Marx nos dá os princípios dessa concepção inteiramente modi-
ficada da prática científica, e sem qualquer equivoco, na Introdução
de 57. Mas uma coisa é desenvolver essa concepção, e outra é pô-la
em prática a propósito do problema teórico inaudito da produção -
do conceito da eficácia de uma estrutura sobre os seus elementos.
Dars-
Esse conceito que vimos Marx praticar no emprego que faz da
de captar nas imagens da modificação do raio
tellung, e na tentativa
de luz ou do peso específico dos objetos pelo éter no, qual estão
nas passa-
imersos, aflora por vezes em pessoa, na análise de Marx,
extrema-
gens em que ele se exprime numa linguagem inédita, mas
entretanto Já
mente rigorosa: a linguagem das metáforas que são
o terem sido
conceitos quase perfeitos, aos quais só falta talvez
e, pois, tomados e desenvolvidos como, conceitos. O
apreendidos
O sistema capita-
mesmo se aplica toda vez que Marx nos apresenta
lista como um mecanismo, uma mecânica, uma maquinaria, máquina
ou montagem (Triebwerk, Mechanismus, Getriebe... cf. VIH, 25
como a complexidade
II, 887; VIII, 256; IV, 200; V,73; V, 154); ou
for, as distin-
de um “metabolismo social” (VIII, 191). Seja como
como a ligação
ções correntes de fora e dentro desaparecem, assim
visível: esta-
“íntima” dos fenômenos contrapostos à sua desordem
novo, definitiva-
mos diante de outra imagem, de um semiconceito
fenomêni-
mente libertos das antinomias empiristas da subjetividade
objetivo regula-
ca e da interioridade essencial, diante de um sistema

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LER “O CAPITAL"
146

mentado, nas suas determinações mais COMUNA, pelas leis de sua


montagem e de sua maquinaria, pelas ape cações do seu conceito,
podemos ter em mente o termo Darstellung, compa.
rá-lo à essaé que
Nese caso “maquinaria” e tomá-lo literalmente, como a própria
existência dessa maquinaria em seus efeitos: o modo de existência
cena,
dessa encenação, desse teutro que € dO mesmo tempo a própria
o texto, Os atores, esse teutro cujos espectadores só podem ser efeti-
seus atores for-
vamente espectadores porque são primeiramente os não
çados, tomados nas constrições de um texto e papéis dos quais
teatro
podem ser os autores, dado que se trata, em essência, de um]
] ]
sem autor.
rados
Devemos fazer um comentário a mais? Os esforços reite
existente, para
de Marx para romper os limites objetivos d o Teóricoc
que à sua des-
modelar O instrumento com o qual pensar a questão
ssos, e mes-
coberta científica colocava para a filosofia, os seus fraca ,
mo as suas recaídas, fazem parte do drama teórico que ele viveu
s
numa solidão absoluta, muito antes de nós, que apenas começamo
a suspeitar, pelos signos de nosso céu, de que a sua questao é à o
por muito tempo, € que ela governa todo o nosso futuro. Sozinho,
Marx procurou à sua volta aliados e sustentáculos: quem poderá
censurá-lo por ter-se apoiado em Hegel? Quanto a nós, devemos à
Marx O não estarmos sós: nossa solidão só se susteve por nossa 18º
norância do que ele dissera. É esta que devemos acusar, em nós eem
todos os que pensam tê-lo ultrapassado - e só falo dos melhores -
quando estão apenas no limiar da terra que ele nos descobriu €
abriu. Devemos a elé até mesmo enxergar-lhe as falhas, as lacunas,
as omissões: elas contribuem para a sua grandeza, pois que, &o con-
siderá-las, nada mais fazemos do que retormar nos inícios um dis-
curso interrompido pela morte. Sabemos como termina o terceiro li-
vro de O Capital, Um título: as classes sociais. Vinte linhas, e depois
o silêncio,

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 147

Apêndice: Sobre a “Média Ideal”


e as Formas de Transição

é sobre dois problemas teó-


O pequeno comentário que se segue a de
acionados diretamente com à descobert
ricos importantes, rel O
o: o da definição do objeto de
Marx e as suas formas de expressã mas
Capital como “a média ideal” do capitalismo real - e O das for
a outro.
de transição de um modo de produção
, que as relações econômicas
Suporemos sempre, neste exame geral
, ou o que é a mesma coisa, às rela-
reais correspondem bem a seu conceito
medida em que traduzem o seu prô-
ções reais só serão expostas aqui na
. (VI, 160).
prio tipo geral (allgemeinen Typus)..

define em várias oportunidades esse tipo geral como


Marx
modo de produção capitalis-
“média ideal” (idealer Durchschnitt) do
a idealidade estão combi-
ta, Essa denominação, em que a média e
po que se referem a certo |
nadas do lado do conceito, ao mesmo tem ica filosófi-
problemát
real existente, estabelece de novo a questão da
regnada de empi-
ca que sustenta essa terminologia: não estará imp
vista uma passa-
rismo? A isso seríamos levados a pensar tendo em
gem do Prefácio da primeira edição alemã de O Capital,

O físico observa os processos da natureza, quando se manifestam na


forma mais característica e estão mais livres de influências perturbado-
ras, ou, quando possível, faz experimentos que asseguram a ocorrência

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148 LER “O CAPITAL”

d o processo, em sua pureza. Nesta obra, o que tenho d de mior, é o



+“

a e as corre spondentes relações


modo de produç ão capitalista Inglaterra é o campo clássico dosis
1 +
[4

ução
e de circulação. Até agora, a tomei como principal ilustração Apre
qual
ção. Este O motivo pe lo a
18).
explicação teórica (1,

No entanto, submete
Marx escolheu, pois, O exemplo inglês. ele
esse mesmo exempl o a notável “purificação”, visto que, segundo
ara, a anál ise é feita sob con diç ão de supor que o seu ob-
mesmo decl o duas classes em confronto (situa-
jeto não com pre end e jam ais senã
lqu er exe mpl o no mun do) e que o mercado mundial por
ção sem qua ão capitalista, o que
inteiro está submetido ao mundo da produç
, o que Marx estuda não é
também está fora da realidade. Portanto um
O exe mpl o ingl ês, não obstante clássico e puro, mas
nte
propriame
inex iste nte, pre cis ame nte o que ele chama de “média ideal”
exempl o dificuldade
o de pro duç ão capi tali sta. Lênin ressaltou essa
sur la théorie de la réalisation de
do mod
man ife sta nas Nou vel les rem arq ues
o IV, pp. 87-88):
1899 (Oeuvres, ed. francesa, tom
ito ocupa
o no proble ma que há mu
Detenhamo-nos por um moment o da rea lização?
o valor científico ver dadeir
a atenção de Strouvé: qual é abs trata de
as as demais teses da teoria
Exatamente o mesmo de tod oluta é
Se Str ouv é per tur bad o com O fato de que “a realização abs
Marx. lidade”,
de modo nenhum a sua rea
o ideal da produção capitalista, mas is leis do capitalismo descobertas
dema
fá-lo-emos lembrar que todas as capita-
exat amen te do mesmo modo que o ideal do
por Marx se traduzem “Nosso objetivo”, escrevia
lismo e de modo nenhum a realidade dele.
rna do modo de produção capl
Marx, “é representar a organização intemédia ideal”. A teoria do capital
talista apenas, por assim dizer, em sua força de tra-
receba o valor integral de sua
pressupõe que o trabalhador o nenhum à realidad. A
balho. Tal é o ideal do capitalismo, mas de mod inteira se ac he dividi-
ola
besvia da renda pressupõe que a população agríc assala-
capitalistas e em trabalhadores
E e proprietários da terra, em à reali dade.
jados. Tal é o ideal do capit alismo, mas de modo nenhum
teoria da realização press upõe uma distribuição proporcional da produ-
nenhum a sua re alidade.
ção, Tal é o ideal do capitalismo, mas de modo
o,
Lêni de Marx,
E ar do que retomar a linguagem
Sora al” na expressão “média ideal”,
a idealidade do objeto dy mo “ide realidade histórica efetiva.
Não seria preciso limos mui arx com a
madilhas do empirismo uito longe neslesa oposição para cair nas ar-
os que Lênin desig-
na a teoria de Marx Dos Mo orsiudo se mbrarm
Hapcida naturalmente ao a reto-h hiisthoóriparece astim : Suit
as forma vá E
e o Lh noncR
d Ho capitalismo, AMasx,, co eb enR do e a fepod sao
tuga
aiero
ação AA
de (idéalité) como ma ide
ceptualidade de seu objeto, e a smádia! cs prio dr SOMA simples con-
eúdo do concei-

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O OBJETO DE “O CAPITAL" 149

to desse objeto - e não como resultado de uma abstração empírica.


jo se trata em Marx de um objeto Ideal (tdéal) contraposto a um
objeto real, e, por isso mesmo, distinto dele, como o dever ser do ser,
a norma do fato - O objeto da teoria de Marx é ideal (Idéel), isto
é,
definido em Jermos de conhecimento, na abstração do conceito. O
próprio Marx O diz, quando escreve que a “diferença específica do
sistema capitalista-se manifesta (sich darstellt )na estrutura de seu nú-
cleo integral (in ihrer panzen Kerngestalt (VI, 257). Essa “Kernges-
talt”* e suas determinações é que constituem o objeto da análise de
Marx, na medida em que essa diferença especificã define o modo
de produção capitalista como modo de produção capitalista. O que,
para economistas vulgares, como Strouvé, parece em contradição
com a realidade, constitui para Marx a própria realidade, a realidade
de seu objeto teórico. Basta, para bem compreender isso, ter em men-
te o que dissemos do objeto da teoria da história e, pois, da teoria da
economia política: ela estuda as formas de unidade fundamentais da
existência histórica, isto é, os modos de produção. É, de resto, o que
Marx nos diz, se tomarmos suas expressões literalmente, no prefácio
da primeira edição alemã quando fala da Inglaterra:

Nesta obra, o que tenho de pesquisar é o modo de produção capita-


lista e as correspondentes relações de produção e circulação (1, 18).

Quanto à Inglaterra, a ler de perto o texto de Marx, ela inter-


vém simplesmente como fonte de ilustração e de exemplos, e de modo
nenhum como objeto de estudo teórico:

Até agora, a Inglaterra é o campo clássico dessa produção. Este o


motivo pelo qual a tomei como principal ilustração de minha explicação
teórica (ibid.).

Essa declaração inequívoca recoloca na justa perspectiva a ex-


pressão inicial, em que se invoca o exemplo da física, em termos que
podiam dar a entender que Marx estava à procura de um objeto
“puro”, “livre de influências perturbadoras”. A Inglaterra, pois, é
também um objeto impuro e perturbado, mas essas “impurezas e
“perturbações” não causam mal teórico algum, dado que nãoé a In-
glaterra o objeto teórico de Marx, mas o modo de produção capitalista
na sua “Kerngestalt” e as determinações dessa “Kerngestalt”. Quan-
do Marx nos declara estudar uma “média ideal”, impõe-se com-
preender que essa idealidade é a conotução não do não-real, ou da
forma ideal, mas do conceito do real; e compreender que essa “mé-
dia” não é empirista, e pois a conotação do não-singular, mas, pelo
contrário, conotação do conceito da diferença especifica do modo
de produção considerado,

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150 LER “O CAPITAL"

Sigamos mais além. Pois, se voltarmos ao exempe lo inglê


aparentemente purificado simpli fie, q seo
compararmos ao objeto a de duas classes, só E o de
modo de prod ução capit alist
Marx, esse
mos fazer se estivermos diante de um resíduo real; precisamer e
para nos limitarmos a essa questão pertinente à existência real das
demais classes (proprietários de terra, artesãos, pequenos proprietá-
rios agricolas). Não podemos honestamente suprimir essesó resídu o
pura e simplesmente O fato de que Marx se pro-
real, invocando de pro-
põe como objeto O conceito da diferença específica do modo conhe-
reale o seu
dução capitalista, € invocando a diferença entre o
cimento!
No entanto,é nessa diferença aparentemente peremptória, e
da interpretação empirista da
que constitui o argumento princi pal
significação o que dissemos do
teoria de O Capital, que assume to da
x só pode estudar a dife-
estatuto da teoria da história. Porque Mar
talista sob a condição de
rença especifica do modo de produção capi
de produção, e não apenas
estudar ao mesmo tempo os demais modos
s de unidade específica de
os demais modos de produção, como tipo
mas também as relações de
Verbindung entre os fatores da produção,
processo de constituição
diferentes modos de produção entre si, no
capitalismo inglês é um ob-
dos modos de produção. A impureza do
propôs estudar em O Capi-
jeto real e determinado que Marx não se
: essa impureza é, sob a
tal, mas que é relevante na teoria marxista
visoriamente chamar de
sua forma imediata, o que podemos pro domi-
ão capitalista,
“cobrevivências”, no seio do modo de produç
nante na Grã-Bretanha, de formas de modos de pro dução subordi-
produção capitalista.
nados e não ainda eliminados pelo modo de
tencente à teoria
Essa alegada impureza constitui, pois, objeto per
dos modos de produção: muito em especial a teoria da transição de
um modo de produção a outro, o que se con funde com a teoria do pro-
do, dado que
cesso de constituição de um modo de produção determina
partir de formas existentes de
todo modo de produção se constitui a obje
um modo de produção anterior. Esse to pertence de pleno direi-
desse oie DÃO ES se soubermos conhecer esses títulos de direito
ter daço é
teoria dele pio pos rentos, onturar a Mars o não nos
do capital ÃA,cons tituem pelo menos a matéria, rulaçã
éri , jáaeenão o O esboçO o
seja
dotes LADI DO QUO CONGO
- i e ao processo de constituição do modo
de produção capitalista
Fesaual Pça0; o iod
feud - isto
dea pro
pitaolist é, a transição do modo de produção
tução capitalista, Devemos, pois, reco-
ivamente nos deu, € o que isso nos ite
encontrar do que ele não chegou a nos dar, Assiassim COMO pod Peep
+
dizer que possuímos apenas o esbo ço de uma emos
teor ia
mod os de produção anteriores ao modo de produção SEIA marx ist

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O OBJETO DE “O CAPITAL” 151

odemos dizer, e inclusive, dado que & existência desse problema


e
do a necessidade de colocá-lo na forma teórica própria não
ig de modo unânime - devemos dizer que Marx não
são am a teoria da transição de um modo de produção a outro, isto
é,
o constituição de um modo de produção. Sabemos que essa teoria é
dlapentá vel, simplesmente para podermos concluir o que se chari
a
a construção do socialismo, em que está em causa a transição do
modo de produção capitalista ao modo de produção socialista
, ou
ainda para solucionar os problemas apresentados pelo chamado
“subdesenvolvimento”” dos países do terceiro mundo, Não posso aqui
me estender sobre os problemas teóricos apresentad Os por esse obj
to novo, mas podemos admitir como certo que a fo rmulaç e-
ão e solu-
ção desse problemas de contundente atualidade e stã
o em primeiro
plano no estudo do marxismo. Não apenas o pro blem
a do culto da
personalidade, mas também todos os problemas atu
ais enunciados
sob a forma das “vias nacionais para o socialismo
”, das “vias pacífi-
cas” ou não, etc. dependem diretamente
dessas pesquisas teóricas.
Nesse caso também — € mesmo que cert
as formulações nos le-
vem à beira de um equív oco, Marx não
nos deixou sem indicações
ou recursos. Se podemos colocar com
o problema teórico a questão
da transição de um modo de pro
dução a outro, e portanto não ape-
nas explicar transições pa ssad
as, mas ainda prever o futuro, e “sal-
tar por cima do nosso te mpo” (o
que não podia fazer o historicismo
hegeliano), é, não em fu nção de uma pretensa “est
tal” da história, mas em funç rutura experimen-
ão da teoria marxista como teoria dos mo-
dos de produção, da
definição dos elementos constitutivos dos
diferentes modos de
pr odução, e pelo fato que os problemas teóricos
suscitados pelo proces so
de constituição de um modo de produção
(em out ras palavras, os pro
blemas da transformação de um modo
de produção em outro) são função direta da teoria dos modos de
produção considerados, “* Eis a razão pela qual podemos dizer que
Marx deu elementos para pensar esse problema, decisivo dos
pontos
de vista teórico e prático: é a partir do conhecimento
dos modos de
produção em pauta que podem ser formulados e resolvidos os
problemas da transição, Por esse motivo é que podemos prever o
fu-
turo, e constituir a teoria não apenas desse futuro, mas também e
sobretudo das vias e meios que nos garantirão a sua realidade,
A teoria marxista da história, entendida como acabamos de de-
finir, assegura-nos esse direito, desde que saibamos definir muito
exatamente as suas condições e limites. Mas, ao mesmo tempo, ela

“ Cf, o estudo de Balibar, p, 153,

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152 LER “O CAPITAL"

nos dá com o que avaliar o que nos resta a fazer - e que é imenso,
para definir com todo o rigor desejável essas vias e esses meios, Se é
certo que a humanidade só se propõe tarefas que está em condições
de realizar (sob condição de não dar a essa fórmula uma conotação
historicista), ainda assim é preciso que a humanidade adquira exata
consciência da relação existente entre essas tarefas e suas capacida-
des, e que ela aceite passar pelo conhecimento desses termos e sua
relação, e portanto pelo questionamento dessas tarefas e capacida-
des, para definir os meios próprios para produzir e dominar
seu fu-
turo. Na falta disso, e até na “transparência" de suas novas relações
econômicas, ela correria o risco, como já teve a experiênci
a nos si-
lêncios do terror - e como pode ter uma vez mais nos anseios
do hu-
manismo, correria o perigo de entrar, com a consciência
pura, num
futuro ainda carregado de perigos e de sombras,

Observações

O Capital é citado na tradução das Editions Sociales (8 volu-


mes), O número em algarismos romanos indica o número do tomo; em
alagarismos arábicos, a página. Por exemplo, O Capital, !V, 105 deve
ler-se: O Capital, Editions Sociales, tomo
IV, p. 105.
As Teorias sobre a Mais-Valia (Theorien iiber den Mehr-
wert)
foram traduzidas em francês por Molitor (Ed. Costes) sob o título:
Histoire des Doctrines Economiques, em 8
tomos. Empregamos a
mesm a fórmula de referência que para O Capital
Áconteceu-nos fregiiente (tomo, página).
mente retificar as traduções francesas de
referência, inclusive a tradu
acudir mais de perto ao textoçãoalemã
do livro | de O Capital por Roy, para
o, em certas passagens demasiado
densas ou carregadas de sentido teórico, Em nossa leitura de modo mui-
to geral recorremos ao texto alemão da edição
Dietz ( Berlim), em que
O Capital e as Teorias sobre a Mais-Valia comportam cada qual três
tomos.

L. Althusser

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