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O tempo de Marx era o tempo da consolidação de um modo de produção que

superava outro mais antigo. Algo novo e grande estava nascendo e as modificações que esta
mudança trazia alastravam-se como fogo em uma floresta seca. Nada escapava ileso ao toque
do capitalismo. Relações sociais seculares entre indivíduos e entre cidades transformaram-se
em aparências de si mesmas ou pereceram. Movimentavam-se riquezas, tradições e
populações em escalas inéditas na história humana1. A profecia de Aristóteles2 quanto à fome
da crematística parecia se cumprir e Marx percebeu a dimensão dessa voracidade em um caso
de roubo de lenhas que, apesar de sua simplicidade, indicava em sua estrutura o princípio de
um movimento de catástrofe. Este pequeno fenômeno social é ponto de partida3 para as suas
pesquisas de Filosofia Política e a construção de um novo paradigma para a exposição do
movimento do capital.
Certamente ele não foi o primeiro a pensar sobre aquele novo sistema econômico e em
seus escritos constantemente rende homenagens, referências e críticas a diferentes pensadores
da filosofia e da economia política. Os economistas ingleses, principalmente David Ricardo e
Adam Smith, são de fundamental importância para Marx pensar o capital. Marx estuda

1
. In the mid-18th century, England’s population entered a period of sustained population growth, increasing
rapidly from less than six million in 1750, to almost 17 million by 1851 and more than 41 million by the time of
the 1951 (JEFFERIES, 2005, pág. 04) “Yet the costs of this indifference to the victims of capital were high. For
millions, living and working conditions were poor, and the hope of escaping from a lifetime of poverty slight. As
late as the year 1900, the United States had the highest job-related fatality rate of any industrialized nation in the
world. Most industrial workers still worked a 10-hour day (12 hours in the steel industry), yet earned from 20 to
40 percent less than the minimum deemed necessary for a decent life. The situation was only worse for children,
whose numbers in the work force doubled between 1870 and 1900” ("United States History – The Struggles of
Labor". Library of Congress Country Studies)
2
“A crematística emancipa-se da ordem hierárquica das artes e das ciências e, por isso, ela é declarada contrária
à natureza, ou seja, ela está fora de toda a comunidade política, e isso precisamente na medida em que o seu
desejo ilimitado de dinheiro é uma autêntica subversão da vida política. Daí o principal problema causado pela
crematística para o qual Aristóteles chama a atenção: o da ruptura da união entre o dinheiro e a unidade social
em torno da necessidade. Com a crematística, de fato, o dinheiro não é mais o substituto da necessidade, o
dispositivo convencional não está mais relacionado com a natureza, pelo que a avaliação e a circulação
monetárias se transformam nas únicas atividades do comerciante, o dinheiro em princípio e fim de troca já que o
funcionamento da medida monetária constitui como que o ser da troca. A troca crematística perde sua mensura
própria e torna-se precisamente uma produção sem virtude. Não é mais o exercício de uma reciprocidade, mas
somente uma permutação de objetos onde a igualdade e a necessidade tomam um novo sentido. As noções de
necessidade e de igualdade que se modificam com a crematística permitem uma compreensão desta ruptura.
Fazendo uso do dinheiro segundo o desejo e fora de toda a justiça, a crematística não só contraria a natureza. ela
leva à morte a própria cidade.” (TABOSA, pág. 735)
3
“Os debates do Landtag [parlamento - alemão] renano sobre os delitos florestais e o parcelamento da
propriedade fundiária, a polêmica oficial que o sr. Von Schaper, então governador da província renana, travou
com a Gazeta Renana sobre as condições de existência dos camponeses do Mosela, as discussões, por último,
sobre o livre-câmbio e o protecionismo, proporcionaram-me os primeiros motivos para que eu começasse a me
ocupar das questões econômicas.” (2008, pág. 46)
amplamente a bibliografia da Economia Política Clássica e reconhece nela avanços
fundamentais para o entendimento analítico da sociedade moderna. Os principais pensadores
dessa escola perceberam a origem do valor da mercadoria no trabalho e assim deram um
passo adiante em relação ao paradigma anterior. De fato, foram críticos das interpretações
colocadas até aquele momento, já que essas não davam conta da sociedade emergente que eles
observavam crescer rapidamente ao seu redor. Seus conceitos têm importância na filosofia
marxiana e são momentos obrigatórios na superação que Marx propõe.
Carregando a tradição revolucionária do pensamento liberal inglês do século XVII, os
economistas clássicos buscaram em um pressuposto “estado de natureza” condições
primitivas de relações sociais que tornaram possível identificar a característica que é medida
comum às mercadorias. Smith e Ricardo regressam então a um ponto mais abstrato do que a
concretude que o fenômeno social imediato oferece, ponto onde os indivíduos aparecem em
suas relações imediatizadas e atemporais.
A abordagem crítica e dialética de Marx, influenciada pelos economistas clássicos e
pela filosofia de Hegel, permitiu-lhe desmontar e reconstruir as categorias econômicas
existentes (muitas cunhadas pelas escolas econômicas anteriores), revelando as contradições e
os conflitos essenciais ao desenvolvimento do capitalismo.
Marx considerou que todo o acúmulo analítico observado nos pensadores ingleses e
nas conclusões das ciências empíricas quanto às ciências econômicas precisava de uma
articulação que lidasse com as contradições que se apresentavam. Ele encontra essa
articulação em volta à filosofia de Hegel, pensador do qual Marx era discípulo4. Seu método e
suas implicações viriam de uma releitura da dialética presente na lógica hegeliana e do lugar
que sua filosofia ocupa na história das ideias.
A dialética marxiana trataria de expor o objeto (o capital) em seu próprio
desenvolvimento. Para isso, Marx usou preceitos para a pesquisa que Hegel considerava
essenciais para o estudo filosófico. Neste pensador, a dialética é um momento de sua lógica
especulativa, mais especificamente ela é a estrutura do movimento que impulsiona os
conceitos pelas contradições que os compõem. Marx concorda com seu antigo mestre na
perspectiva de entender a contradição não como um impedimento lógico ou um beco sem
saída que só poderia significar um erro e que, portanto, não poderia se manter no pensamento

4
“(...) Ao tempo em que elaborava o primeiro volume de “O Capital”, era costume dos epígonos impertinentes,
arrogantes e medíocres, que pontificavam, nos meios cultos alemães, comprazem-se em tratar Hegel, tal e qual o
bravo Moses Mendelssohn, contemporâneo de Lessing, tratara Spinoza, isto é, como um “cão morto”.
Confessei-me, então, abertamente discípulo daquele grande pensador, e, no capítulo sobre teoria do valor, joguei,
várias vezes, com seus modos de expressão peculiares.” (1971, MARX, pág. 16)
ou em qualquer lugar. A contradição - para ambos - dá movimento à realidade e abarca a
complexidade de diversos de seus processos, como veremos mais à frente. A contradição é
efetiva, pode ser observada no que resulta em sua atualidade do desenvolvimento das
sociedades humanas. Partindo da realidade que o cerca, Marx observa o capitalismo como
consequência de contradições e que, por força delas, está em constante movimento,
apresentação esta que contrasta com a percepção clássica de uma sociedade estagnada em sua
estrutura, sem começo nem fim5. A partir então da realidade efetiva, material - Marx regressa
às categorias mais simples e abstratas do capital nesse novo sistema, aos conceitos mais
desprovidos de determinações, e, seguindo-os em seu movimento progressivo e cada vez mais
determinado, expõe seu desenvolvimento. Essa exposição é tirada do próprio objeto, sem
interferências externas ou conceitos pré estabelecidos que não venham de um amparo do
próprio movimento do objeto. Essa arquitetônica de isolamento dos conceitos mais simples é
apreendida por Marx em seus estudos da Ciência da Lógica de Hegel, que defende um ponto
de partida simples e abstrato, com nenhum conteúdo além dele mesmo, início que se chega ao
abstrairmos de toda a realidade sensível, conforme Hegel nos coloca em sua Fenomenologia
do Espírito. O ponto de partida é, portanto, o fato histórico do capital no capitalismo, mas não
como uma reconstrução histórica dos acontecimentos que levaram a esse momento. Na
realidade, considerado esse início, Marx propõe que procuremos abstrair do material e efetivo
rumo aos seus conceitos mais simples e abstratos, isto é, aqueles que carregam o mínimo de
determinação e seria sua forma mais elementar. Como ele coloca:
A riqueza das sociedades onde rege a produção capitalista configura-se em
imensa acumulação de mercadorias, e a mercadoria, isoladamente
considerada, é a forma elementar dessa riqueza. Por isso, nossa investigação
começa com a análise da mercadoria. (1971, pág. 41)

A apresentação (Darstellung) do capital que Marx propõe se constitui num método


específico – o método dialético – que, não sendo um conjunto de ferramentas subjetivas que
possibilita ao sujeito o entendimento do objeto em questão, é uma exposição crítica imanente
ao próprio objeto; método que, contudo, vai além da perspectiva empírica das categorias da
economia. Quando posto em prática, esse método nos obriga a olhar para além da aparência
hipostasiada da sociedade que nos cerca e perceber as contradições como fundamentais (e não

5
“(...) Além disso, Ricardo considera a forma burguesa de trabalho como a forma natural e eterna do trabalho
social. Segundo esse autor, o pescador e o caçador primitivos trocavam continuamente pescados e caça como
possuidores de mercadorias, proporcionalmente ao tempo de trabalho realizado nesses valores de troca. A essa
altura, comete um anacronismo, o qual consiste no seguinte: para avaliar seus instrumentos de trabalho, o
pescador e o caçador primitivos consultam as tábuas de anuidades em curso em 1817 na Bolsa de Londres.”
(2008, MARX, pág. 90)
circunstanciais) no desenvolvimento da economia capitalista. Esse olhar é essencialmente
crítico, já que o próprio método pede por uma reorganização das categorias da Economia
Política Clássica, numa exposição que evidencie as contradições lógicas dessas categorias e
suas expressões efetivas na luta de classes.
As contradições entre valor de uso e valor, trabalho concreto e trabalho abstrato etc.
são expostas pelo método dialético, já que são constitutivas do movimento contraditório que
sustenta o capital. Recuperar o aspecto crítico que se sobressai na realização dessas
contradições na apresentação marxiana em O Capital é uma problemática importante e atual,
por considerarmos fundamental a relação da crítica com a raiz das contradições que mantém a
organização social em termos praticamente pré-históricos. Assim, contribuir nessa
recuperação, o método expositivo dialético e suas implicações como raiz da crítica social; a
crítica como constituinte do método marxiano e a crise como sistemática na tentativa
constante de totalização do valor e presente em todas as suas formas, em Marx, significa
recuperar o peso filosófico do seu conceito de exposição e de dialética.

Uma sociedade que, em aparência, é essencialmente harmônica e igualitária, cujas


mazelas aparecem ao entendimento como acidentes de percurso externos ao seu núcleo justo e
equilibrado, é exposta na obra O Capital como um sistema produtivo alicerçado na constante
contradição e desigualdade efetiva. Como nos ensina Fulda sobre o método em O Capital,
“Ele não é o método de uma teoria de unidade sistemática, mas sim a forma de exposição de
uma teoria da catástrofe. (FULDA, 2017, p. 115). O método que Marx nos oferece em sua
principal obra é o movimento ideado (i.e., transposto criticamente para o pensamento) das
categorias efetivas da sociedade moderna capitalista.
Para entendermos a dialética marxista, precisamos dar um passo atrás e conhecer pelo
menos parte da lógica especulativa de Hegel. Trata-se de entender filosoficamente porque
Marx propõe este método para articular seu conhecimento acumulado da sociedade capitalista
e, para isso, vamos nos colocar ao lado de Hegel em seu entendimento do que é a lógica e a
metafísica.
Toda a lógica hegeliana visa a construção de uma filosofia sistemática e totalizante.
Hegel entende a lógica não como um conjunto de axiomas e regras para o bom pensar, como
uma forma que garanta a correção de um conteúdo externo qualquer que existe isoladamente.
Ele critica Kant e o entendimento deste de que o conhecimento não pode alcançar a realidade
nela mesma, isolada que ela é pela inevitável mediação entre ser humano e a coisa em si:
Primeiramente pressupõe-se que a matéria do conhecimento está dada em si
e para si como um mundo acabado fora do pensamento, que o pensamento
para si é vazio, se aproxima exteriormente como uma forma àquela matéria,
se preenche com ela e apenas assim conquista um conteúdo, tornando-se
desse modo um conhecimento real.” (HEGEL, 2011, pág. 22)

A lógica e o conteúdo da realidade acabam por ficar definitivamente separados em si


mesmos; a lógica vazia de conteúdo, uma casca oca que só se determina quando preenchida
por algo externo a ela. Nessa relação o pensamento não se ultrapassa: limita-se a adaptação a
um objeto que não lhe diz respeito e que não possibilita que saia de si. Modifica-se para o
ajuste necessário ao que se considera verdadeiro, mas o objeto permanece “um além do
pensamento” (HEGEL, 2011, pág. 23).
Parte de seus escritos são uma crítica direta à postura de Kant na relação entre
sujeito e objeto. Ao limitar a possibilidade do conhecimento acessar o em si do objeto, Kant
define que só a espécie fenomênica da realidade pode ser acessada, enquanto a categoria de
“coisa em si” não entra no campo do conhecimento possível, ou não é acessível a ele.
Separa-se o conhecimento e o sujeito do resto da realidade, atribuindo ou um valor de
concretude e realidade superior ao objeto ou o contrário quanto ao conhecimento. Hegel
caminha no esforço de mostrar como sujeito e objeto constroem-se concomitantemente, frutos
da mesma realidade lógica.
O caminho de Hegel é expor o pensamento como princípio do mundo e sua essência
determinada como pensamento. Toda a realidade que nos cerca parte da construção conceitual
que Hegel expõe em Ciência da Lógica. A lógica tem uma realidade em si, ainda que
puramente abstrata e conceitual; seu desenvolvimento parte de si mesma e progressivamente,
enchendo-se de determinação, acaba por construir toda a realidade. O sujeito que até então
considerava a realidade como um exterior à lógica, para Hegel é um momento desse
desenvolvimento do que ele chama de Espírito Absoluto e que começa com o ser puro. A
lógica não é um pensamento ou uma forma sobre algo, mas “sim as formas necessárias e as
próprias determinações do pensamento são o conteúdo e a verdade suprema.” (HEGEL, 2011,
pág. 29). A lógica não seria então um discurso sobre o objeto, mas a própria trama que tece o
objeto e o pensamento.
O Espírito Absoluto se articula numa dinâmica lógico dialética e, subsequentemente,
numa dinâmica real de natureza e espírito. Esse sujeito se articula em uma estrutura feita por
ele e pra ele. A lógica que Hegel propõe é tal articulação. É uma lógica, portanto, como auto
explicação do absoluto. Os conceitos se articulam em relação uns aos outros, a partir de ponto
de partida fixo (o ser-em-si, início absolutamente indeterminado). A relação desse
indeterminado com ele mesmo são suas primeiras determinações e também conceitos. A
lógica, assim, se articula por si mesma, muito antes de qualquer empírico. O Espírito
Absoluto é a ideia absoluta (lógica) que se articula progressivamente até um desenvolvimento
histórico e empírico efetivo.
O que enfim dará substância à lógica é a uma proposta metodológica para a sua
exposição. Um método que a permite ser “ciência pura” (HEGEL, 2011, pág. 33). Hegel diz
que, atualmente, o que foi imposto à lógica como tarefa é praticamente uma catalogação
distanciada de fenômenos, tornando-se um jogo de consciência que pouca ou nenhuma
relação tem com o mundo objetivo. Um método novo deve ser retirado da própria lógica, de
seu embasamento, força e unidade.
Hegel frisa que a tradição colocou seu foco no possível entendimento do objeto e sua
relação com o objeto e para isso tenta se desvencilhar (percebendo ou não) do sujeito como
composição da verdade. É preciso aliar a forma (o pensamento subjetivo) ao princípio (a
lógica e seu conteúdo). Se a lógica é o princípio de tudo, tanto da realidade objetiva quanto da
realidade subjetiva, é preciso unir o que a tradição separou e manteve isolado. O que é,
portanto, anterior ao pensamento (o sensível, o humano) deve ser “primeiro no curso do
pensamento” (HEGEL, 2011, pág. 50). O devir e efetividade - carregados de determinações,
consequências de seu movimento precisa ser percorrido em direção ao seu princípio mais
indeterminado e abstrato. A efetividade do ser deve ser início na investigação do próprio ser,
já que seu devir também é feito do conteúdo que constitui o princípio lógico de tudo. A partir
do efetivo, do empírico, percorre-se um caminho que permita regredir ao seu conceito mais
básico e indeterminado, início de tudo.
O desenvolvimento proposto por Hegel na Ciência da Lógica é o caminho do conceito
primeiro em suas determinações cada vez mais complexas. É importante termos em mente
que tal desenvolvimento é o início de toda a realidade, seja abstrata ou concreta, subjetiva ou
objetiva. Tais conceitos precipitarão na própria realidade sensível, retornando o caminho
trilhado no primeiro momento. Hegel parte portanto do que está dado (revitalizando o mundo
efetivo e concreto, ao contrário da filosofia tradicional que o isola primeiro para em seguida
buscar a verdade), procura a mais absoluta abstração da realidade na qual o pensamento está
inserido para a partir dela reconstruir conceitualmente o mundo. Toda a realidade parte da
ideia, do conceito. A história da sociedade humana é o desenvolvimento do Espírito Absoluto,
desenvolvimento colocado e cumprido por ele mesmo. Hegel parte do efetivo, mas este não
passa da realização da ideia em sua concretude, rumo a uma unidade harmônica.
Sendo assim, as contradições que observamos entre conceitos ou na realidade que nos
cerca são momentos transitórios que impulsionam a ideia ou a realidade para determinações
cada vez mais harmônicas. O fim último da sociedade é a realização do Espírito Absoluto.
Neste momento, que não é um momento histórico, a sociedade alcançaria um nível de
liberdade superior e harmonia com a superação de todas as contradições.
Nesse desenrolar da lógica - onde a essência é harmônica e as contradições são
acidentes que a movem - está a mistificação da lógica hegeliana, para Marx. Ainda que Hegel
perceba o movimento na história, esta é para ele expressão do desenvolvimento de um
conceito e não produção efetiva do ser humano em sua relação com a realidade. É a exposição
de uma história, mas não da história do ser humano. Consequentemente, todo o restante da
produção humana é expressão do desenrolar da ideia e do conceito entendidos como Espírito
Absoluto e não expressões da produção humana. O sujeito é, além de expressão desse
absoluto, espectador no desenrolar que está inserido.
É importante ressaltar que, ao mesmo tempo em que há uma mistificação da realidade
na obra Fenomenologia do Espírito, Marx nos mostra que também há o apontamento por
Hegel de que as estruturas transitórias da consciência humana na sociedade (como religião,
cultura e estado) devem ser superadas rumo a uma consciência totalizante e plena. Tais
estruturas, portanto, são mistificações do que de fato é a realidade e a humanidade, ainda que
se apresentem elas mesmas como totalizantes da essência humana. Como coloca Marx;

A “Fenomenologia” é, por isso, a crítica oculta (verborgene), em si mesma


ainda obscura e mistificadora; mas na medida em que ela retém (hält fest) o
estranhamento do homem – ainda que também este último apareça apenas na
figura do espírito – encontram-se nela ocultos todos os elementos da crítica,
muitas vezes preparados e elaborados de modo que suplantam largamente o
ponto de vista hegeliano. A ‘consciência infeliz’, a ‘consciência honesta’, a
luta entre ‘consciência nobre e consciência vil’ etc. etc., estas seções
isoladas encerram os elementos críticos – embora ainda numa forma
estranhada – de esferas totais, como a religião, o Estado, a vida civil (das
bügerliche Leben) etc.” (MARX, 2008, p. 122. Grifos do autor).

Marx faz uma análise crítica sobre a posição de Hegel em relação à religião, ao Estado
e outros aspectos, afirmando que não se pode mais considerar que Hegel se acomodou a eles,
pois essa acomodação seria uma mentira intrínseca ao seu próprio princípio. De acordo com
Marx, o empreendimento de Hegel na negação da negação não busca alcançar a verdadeira
essência, mas sim estabelecer a negação da essência estranhada como uma essência objetiva.
O que ele alcança, portanto, não é a essência da sociedade ou do ser humano, mas aspectos
tornados filosóficos de uma essência estranha ao próprio ser humano e a realidade, por ser
uma construção que passa ao largo dos fenômenos efetivos ou da subjetividade. O problema
não reside, portanto, em uma acomodação por parte de Hegel, mas sim em sua crença de que
a suprassunção pelo pensamento é uma superação dos objetos estranhados que transcende a
própria objetividade. Hegel concebe o objeto como consciência abstrata, e a consciência
abstrata em si mesma é apenas um momento da diferenciação da consciência de si, que
culmina em uma identidade com o saber absoluto, resultando, assim, em uma mera dialética
do pensamento puro.
Há um materialismo6 em contraposição a um raciocínio puramente lógico sobre o
objeto. Não se estuda o capital como algo etéreo e independente, mas como um fato objetivo.
Seu movimento e lógica não são determinados pelo pensamento humano. Não há como
entender um sistema econômico efetivo exclusivamente a partir do pensamento abstrato, a
menos que se considere o capital como uma ideia ou relação, ou o que for, constituinte da
realidade enquanto tal e alheio ao devir histórico. A parte que cabe ao pensamento é o
espelhar uma realidade concreta, transpor seu movimento para o cérebro, possibilitar o
entendimento do objeto a partir do próprio objeto. Reconhecer que o pensamento humano não
faz o mundo, mas é parte de um mundo maior que o cerca, constitui, determina e assim é
perfeitamente alcançável. A resposta não vem das conjecturas do pesquisador. A pesquisa nos
revela o “objeto tal como ele é” (GRESPAN, 2012, pág.17), nos mostra “através de suas
formas exteriores” (GRESPAN, 2012, pág.17) seu núcleo, a contradição, seu “nexo interno”.
Mostra-se a racionalidade própria do objeto e não a do pesquisador.
É “a vida do material” que se apresenta, mas como suas formas de manifestações -
os fenômenos do cotidiano econômico - são o inverso do seu “nexo interno”
contraditório, parece que foi o pesquisador que impôs ao seu objeto uma “dialética
de conceitos” externa, que aplicou a ele um método dialético como “uma construção
a priori. (GRESPAN, 2012, pág.17)

A contradição interna do objeto se manifesta como o seu oposto: harmonia,


unidade, continuidade. Assim, quando alcança-se tal núcleo que é a contradição, o que parece
é que essa conclusão foi colocada pelo pesquisador e não como algo que o sistema nos mostra
em suas entrelinhas.
No O Capital, apresenta-se o desdobramento dos componentes da unidade mais
básica do sistema capitalista: a mercadoria. Valor de uso e valor de troca desdobram-se em
outras etapas, cada vez mais complexas e concretas. De momento em momento as categorias

6
Em diálogo com Feuerbach, como veremos em outro trabalho.
carregam mais determinações, movidas pelas contradições colocadas neste mesmo
movimento.
As categorias e seu movimento não são uma pressuposição do que está colocado
no objeto em questão. Elas são a exposição do movimento do próprio capital. O que se quer
evitar, justamente, é a pré-construção de conceitos e interferência do paradigma do
pesquisador na análise e síntese do objeto. Assim, categorias são funções específicas dadas
pelo próprio momento efetivo do capital, uma mesma coisa podendo assumir uma função em
tal situação e outra, noutro contexto. A posição na cadeira produtiva coloca funções para as
coisas e tais funções assumem categorias no esquema lógico dialético.
O aspecto de exposição da dialética marxista é o que foi mais afetado pela
superficialização e dogmatismo do seu entendimento. Se exposição é a “explicitação racional
imanente do próprio objeto”, o dogmatismo é seu oposto, já que se prende a princípios e
aspectos engessados que se afastam do objeto. A superficialização também torna-se um
contrassenso, já que nega o que é uma pesquisa racional - necessariamente um
aprofundamento no objeto - e opõe-se ao que exige em “adequadamente compreendido”,
como colocado por Marx.

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