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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM


GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO:


PRODUÇÃO EM GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA
Elcemir Paço Cunha1

Resumo

O projeto marxiano nunca teria se constituído sem determinadas categorias cujas origens se
deram em territórios com características muito distintas. Porém, a apropriação de determinadas
categorias por Marx não foi feita de maneira automática. O que demarca esta apropriação é uma
rearticulação das categorias importantes e, nesse processo, caem as arbitrariedades para que possa
expressar as relações objetivamente existentes. Não se trata de apuração do valor heurístico dos
conceitos, mas de uma rearticulação categorial das abstrações relevantes à reprodução do
concreto no pensamento e, portanto, à evidenciação da lógica das coisas, e nelas, as contradições
fundamentais e as relações sociais sob as formas de superfície. Assim, neste ensaio são
apresentadas as indicações fundamentais deixadas por Marx acerca das abstrações razoáveis,
especialmente no que diz respeito às categorias produção em geral e trabalho abstrato como
exemplificações do processo de rearticulação de categorias oriundas da economia política
clássica (Adam Smith). Em seguida, é considerada a maneira pela qual Lukács de História e
consciência de classe buscou rearticular a burocracia (tipo ideal weberiano) à sua transição ao
marxismo, e como ele mesmo reconheceu, anos mais tarde (em A destruição da razão), as
problemáticas intrínsecas da analogia entre Estado e empresa capitalista contida nesse conceito.
A partir daí é possível avaliar em que medida há uma razoabilidade na burocracia para que se
possa pensar uma rearticulação adequada, considerando as ideias de Poulantzas, Tragtenberg e
Souza Filho. Tal avaliação tem por fim a indicação da importância das categorias exógenas ao
alargamento das potencialidades do projeto marxiano, sem, contudo, deixar de apreender os
limites e problemas imanentes a essa apropriação. Conclui-se no ensaio que tal abstração somente
é razoável após uma rearticulação adequada, na medida em que são expressão das e expressam as
relações efetivamente existentes, não se limitando, pois, à superfície dessas relações sociais.

Palavras-chave: abstrações razoáveis, produção em geral, trabalho abstrato, burocracia.

1. INTRODUÇÃO

Poucas são as categorias que podem ser consideradas totalmente endógenas ao marxismo,
porque o marxismo e, em particular, o pensamento do próprio Marx não são dados à criação de
conceitos puros, estimulados subjetivamente tão somente e não existentes na realidade mesma.
Ao mesmo tempo, porém, as categorias não são absolutamente negociáveis e transitivas
entre diferentes registros e o pensamento em questão. Se a ortodoxia cega trata o pensamento
marxiano como um sistema fechado, trazendo sempre o risco de tornar tal pensamento um terreno
árido e estéril, ao menos tem o mérito de não sucumbir à força dos conceitos gerados

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externamente em registros não apenas retorno das forças objetivas à vontade dos
distintos, mas, muitas vezes, opostos. Do homens sucumbe ao diletantismo e ao
outro lado do espectro, a aceitação muito equívoco generalizado.
aberta à incorporação de categorias exógenas Trata-se de partir, então, de
propicia a fertilização do terreno, o elementos do padrão de cientificidade que o
alargamento das possiblidades do próprio próprio Marx foi capaz de expressar,
marxismo. Existe, porém, uma diferença sobretudo o seu entendimento a respeito das
radical entre, de um lado, a rearticulação categorias enquanto abstrações razoáveis
das categorias necessárias ao contínuo determinadas social e historicamente, isto é,
desenvolvimento, para que tenham a objetivamente. Isso fornecerá aqui não
concretude necessária ao projeto marxiano, apenas o entendimento (de modo algum
isto é, uma adequabilidade ao seu padrão de totalmente completo) dos pontos mais
cientificidade, e, de outro lado, a centrais ao caráter razoável das abstrações
transitividade sem limites que torna frouxo o no empreendimento marxiano,
próprio sistema receptor e, portanto, presta especialmente no que tange à produção em
um desserviço muito maior do que geral e ao trabalho abstrato, como também
comumente se supõe. tornará muito explícita a rearticulação
Considerar, pois, alguns elementos categorial como um princípio imanente ao
importantes à rearticulação das categorias próprio pensamento de Marx que, como tal,
exógenas ao pensamento de Marx torna-se de forma alguma configura um sistema
muito mais do que um exercício de precisão hermético. Isto, todavia, não significa uma
acadêmica. Para além da precisão, está abertura total ou completa porosidade.
implicado o tratamento adequado das coisas Significa que a própria rearticulação precisa
da efetividade, o entendimento dos colocar as categorias sob a crítica do ponto
elementos constitutivos da existência de vista do próprio padrão de cientificidade
humano-societária, o que inclui o complexo em relação ao qual Marx deixou algumas
articulado de determinações que expressam pistas.
os caracteres fundamentais da reprodução Para alargar a problematização dessa
dessa vida numa forma particular de rearticulação, lançou-se mão das conexões
ordenamento social. Sem o tratamento que Lukács empreendeu entre Weber e Marx
adequado, o projeto emancipatório de em História e consciência de classe e o

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questionamento posterior dessa conexão conforme sua produtividade material


mesma em A destruição da razão. [productivité matérielle], produzem também
Particularmente nos interessa a conexão do os princípios, as ideias, as categorias,
tipo ideal de burocracia à matriz marxiana correspondentes às suas relações sociais.
que o filósofo húngaro buscou realizar em Assim”, continuou ele, “essas ideias, essas
1924 e que, trinta anos depois, considerou categorias são também tão pouco eternas
inadequada. Lançou-se mão, igualmente, das quanto as relações que elas exprimem. Elas
considerações de Poulantzas, Tragtenberg e, são produtos históricos e transitórios” (p.
recentemente, Souza Filho em torno do 127-128). Estes apontamentos remontam a
esforço de rearticular a burocracia ao 1847 e só seriam diretamente retomados dez
pensamento de Marx. Demarca-se, com estes anos depois, quando Marx aprofunda e torna
últimos autores, a necessidade da ainda mais complexa essa determinação
rearticulação da burocracia governamental social das categorias esboçada em poucas
despida do tipo ideal weberiano e linhas.
circunscrita como relação social de A chamada Introdução de 1857, já
produção, como forma da relação bastante visitada, possui o caráter de texto
contraditória fundamental. No conjunto, no qual Marx melhor expressou a posição
veem à baila os limites desses esforços de onto-epistêmica de seu empreendimento,
rearticulação e também os elementos não embora não de maneira sistemática e
exaustivos necessários a tal rearticulação, à definitiva. Bem entendido: de um padrão de
razoabilidade das abstrações. cientificidade que apenas faz sentido se não
desconectado dos lineamentos de caráter
2. REARTICULAÇÃO CATEGORIAL ontológicos. É neste texto que podemos
COMO PRINCÍPIO MARXIANO encontrar um tratamento sintético do caráter
universal e particular das categorias, isto é, o
“As categorias econômicas não são caráter abstrato e simples, mas também o
mais que expressões teóricas, abstrações das concreto e determinado, caráter muitas vezes
relações sociais de produção” (1950, p. 127), retomado na redação d’O Capital.
disse Marx na Miséria da filosofia. E na É importante, porém, reter a atenção
sequência, completou: “Os mesmos homens nos pontos mais centrais e adequados à
que estabelecem as relações sociais

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explicitação dos elementos que ajudam a em comum. A produção em geral é uma


abstração, mas uma abstração razoável
demarcar a razoabilidade das categorias. [verständige Abstraktion], na medida em
que evidencia a efetividade do que é
O primeiro deles surge quando Marx comum, fixa e poupa a repetição. Esse
caráter geral, contudo, ou este elemento
busca, de certa forma, fornecer um sentido comum, que se destaca por meio da
razoável às abstrações da própria economia comparação, é ele próprio uma
multiplicidade articulada [ein vielfach
política clássica. A chamada produção em Gegliedertes], em diversas determinações
divergentes [in verschiedne Bertimmungen
geral, com a qual todos os textos Auseinanderfahrendes]. Alguns desses
elementos comuns pertencem a todas as
começavam (e.g. Mill, 1996), buscava épocas, outros apenas são comuns a
poucas. Certas determinações serão
indicar os fatores gerais de toda e qualquer comuns à época mais moderna e à mais
produção; daí: terra, capital e trabalho. antiga. Sem elas não se poderia conceber
nenhuma produção. (2011, p. 41; 1983, p.
Desse ponto de vista, relativamente ainda 20-21).

dominante em nossos tempos, os mesmos


Toda sociedade possui e possuirá
fatores de produção correspondentes à
necessariamente uma forma de produção. É
sociedade capitalista aparecem como fatores
possível destacar dessas formas as
presentes nas sociedades passadas, mesmo
características que são comuns e que
onde não havia capital nem trabalho que o
formam, assim, os elementos presentes em
valorizasse. De maneira ainda mais grave,
todas as formas de produção e que, ao
este ponto de vista leva também ao
mesmo tempo, não revelam qualquer
entendimento de que não há qualquer
particularidade. Esta universalidade
produção capaz de ser operada sem capital e
destacada por comparação é não apenas um
sem esse trabalho que emprega, vez que são
complexo articulado mas também
os fatores constitutivos da produção em
constituída de determinações diferenciáveis
geral. Aqui se manifesta o ponto para uma
que variarão de acordo com as formas de
das principais críticas de Marx à economia
produção particulares. Assim, algumas
política, ou seja, o caráter eternizante com o
determinações serão comuns e outras
qual se colocam as categorias, expressando
exclusivas de determinadas sociedades, e é
determinações particulares (como capital e
esta possibilidade que demarca as diferenças
trabalho) na qualidade de determinações
específicas das formações sociais, sobretudo
universais. Assim, Marx pôde afirmar que:
a diferença específica da sociedade
capitalista. Apenas desse ângulo a produção
/.../ todas as épocas da produção têm certas
características em comum, determinações em geral, antes demarcada num

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entendimento mistificador e eternizante, também um processo de trabalho, cujos


pode agora ser apresentada como uma elementos simples são, igualmente, os
abstração razoável porque “efetivamente elementos universais, isto é, a energia
destaca e fixa o elemento comum”, “isolado humana, os instrumentos de trabalho, a
por comparação” e, ao mesmo tempo, natureza etc., sem os quais não haveria
permite capturar as determinações que são qualquer vida humana e, portanto, qualquer
especificamente pertencentes a determinadas sociedade ou produção. Tais elementos são
sociedades e não a todas. De tal maneira, a comuns a todas as formas sociais e, assim,
produção em geral apresentada como os não expressam relações determinadas,
fatores terra, capital e trabalho são mais uma próprias de uma sociedade particular.
determinação da sociedade capitalista do que Apenas sob a forma da produção capitalista
necessariamente uma abstração que destaca o processo de trabalho assume também o
os elementos universais de toda e qualquer caráter de processo de valorização porque as
produção. relações sociais sob as quais tal processo se
Para efeito ilustrativo, basta constatar realiza carregam determinações próprias e
que, anos mais tarde, Marx escreverá n’O particulares, embora mantenha ao fundo os
Capital, em relação ao processo de trabalho mesmos elementos comuns a todas as
sob seu caráter universal e, portanto, sem as formas de produção. Desse contraste se
determinidades próprias desse processo nas apresenta o capital e o trabalho assalariado
diferentes sociedades concretas: como elementos que demarcam a diferença
específica da produção capitalista.
O processo de trabalho, como o Esta ilustração abre caminho para o
apresentamos em seus elementos simples e
abstratos, é atividade orientada a um fim segundo aspecto importante, que surge
para produzir valores de uso, apropriação quando Marx, na mesma Introdução de
do natural para satisfazer a necessidades
humanas, condição universal do 1857, aprofunda a crítica ao método da
metabolismo entre o homem e a Natureza,
economia política e, nessa crítica, rearticula
condição natural eterna da vida humana e,
portanto, independente de qualquer forma o trabalho abstrato a partir dessa mesma
dessa vida, sendo antes igualmente comum
economia. No momento da discussão, está
a todas as suas formas sociais. (1985, p.
153; 1962, p. 198). em pauta a relação de anterioridade entre as
categorias mais simples e as mais concretas
Em outros termos, assim como toda
(ou universais e particulares). O dinheiro,
sociedade possui uma produção, possui

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por exemplo, existiu antes do capital e, por trabalho nessa universalidade – como
trabalho em geral – é muito antiga.
isso, “Nesse caso, o curso do pensamento Contudo, concebido economicamente
abstrato, que se eleva do mais simples ao nessa simplicidade, o ‘trabalho’ é uma
categoria tão moderna quanto as relações
combinado, corresponderia ao processo que geram esta simples abstração (p. 57; p.
38).
histórico efetivo” (p. 56; p. 38), levando-se
em conta que o dinheiro é a forma mais
Aqui aparece uma tematização
primitiva do capital. Mas em outros casos,
elaborada muitos anos antes nas páginas dos
“Por outro lado”, disse Marx, “/.../ muito
Manuscritos econômico-filosóficos acerca do
embora possa ter existido historicamente
trabalho abstrato, isto é, trabalho indistinto
antes da categoria mais concreta, a categoria
que valoriza capital. À primeira vista, o
mais simples, em seu pleno desenvolvimento
trabalho em geral é uma categoria que está
intensivo e extensivo, pode pertencer
conectada à própria história humana, vez que
precisamente a uma forma de sociedade
remonta às muitas sociedades passadas. O
combinada, enquanto a categoria mais
trabalho surge, assim, como uma
concreta estava plenamente desenvolvida em
universalidade. Marx argumenta, porém, que
uma forma de sociedade menos
a determinação do trabalho como esta
desenvolvida” (p. 57; p. 37). Em outros
universalidade é posterior às suas formas
termos, a relação de anterioridade entre as
concretas existentes historicamente, de
categorias varia, a depender das suas
maneira que tal categoria nesta simplicidade
considerações efetivamente históricas. Na
é pertencente às relações econômicas da
sequência dessa argumentação, Marx insere
produção capitalista. Em outros termos, é
o trabalho como categoria para exemplificar
uma abstração engendrada no interior das
este segundo caso no qual a forma mais
relações efetivas. Disso, esclareceu Marx,
concreta antecede a mais universal. E é
segue que:
preciso ter em conta como tais categorias são
determinadas nas próprias relações sociais
Foi um imenso progresso de Adam Smith
que elas expressam e não se conformam, descartar toda determinabilidade da
atividade criadora de riqueza – trabalho
pois, como elaborações puramente
simplesmente, nem trabalho manufatureiro,
subjetivas. Disse Marx que: nem comercial, nem agrícola, mas tanto
um como os outros. Com a universalidade
abstrata da atividade criadora de riqueza,
O trabalho parece uma categoria muito tem-se agora igualmente a universalidade
simples. Também a representação do do objeto determinado como riqueza, o

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produto em geral, ou ainda o trabalho em antiga e válida para todas as formas de


geral, mas como trabalho passado, sociedade, tal abstração só aparece
objetivado. O fato de que o próprio Adam verdadeira na prática como categoria da
Smith ainda recaia ocasionalmente no sociedade mais moderna (p. 57-58; p. 38-
sistema fisiocrata mostra como foi difícil e 39).
extraordinária essa transição. Poderia
parecer que, com isso, apenas fora
descoberta a expressão abstrata para a A determinação social das categorias
relação mais simples e mais antiga em que se mostra nesta passagem de forma cabal. O
os seres humanos – seja qual for a forma
de sociedade – aparecem como produtores. trabalho enquanto uma abstração de
Por um lado, isso é correto. Por outro, não.
contornos universais somente foi possível
A indiferença diante de um determinado
tipo de trabalho pressupõe uma totalidade numa sociedade de “desenvolvimento
muito desenvolvida de tipos efetivos de
concreto mais rico” na qual os trabalhos
trabalho, nenhum dos quais predomina
sobre os demais. Portanto, as abstrações concretos perdem relativamente as suas
mais gerais surgem unicamente com o
desenvolvimento concreto mais rico, ali especificidades e qualidades singulares, e
onde um aspecto aparece como comum a não apenas como produto puramente mental
muitos, comum a todos. Nesse caso, deixa
de poder ser pensado exclusivamente em destacado “de uma totalidade concreta de
uma forma particular. Por outro lado, essa trabalhos”. Foram as relações sociais
abstração do trabalho em geral não é
apenas o resultado mental de uma efetivamente desenvolvidas a condição para
totalidade concreta de trabalhos. A
que se desprendesse a atividade criadora de
indiferença em relação ao trabalho
determinado corresponde a uma forma de riqueza (trabalho produtivo) das suas formas
sociedade em que os indivíduos passam
com facilidade de um trabalho a outro, e
particulares. Daí, disse Marx:
em que o tipo determinado do trabalho é
para eles contingente e, por conseguinte,
Esse exemplo do trabalho mostra com
indiferente. Nesse caso, o trabalho deveio,
clareza como as próprias categorias mais
não somente enquanto categoria, mas na
abstratas, apenas de sua validade para
efetividade, meio para a criação da riqueza
todas as épocas – justamente por causa de
em geral e, como determinação, deixou de
sua abstração –, na determinabilidade dessa
estar ligado aos indivíduos em uma
própria abstração, são igualmente produto
particularidade. Tal estado de coisas
de relações históricas e têm sua plena
encontra-se no mais alto grau de
validade só para essas relações e no
desenvolvimento na mais moderna forma
interior delas (p. 58; p. 39).
de existência da sociedade burguesa – os
Estados Unidos. Logo, só nos Estados
Unidos a abstração da categoria ‘trabalho’, Mesmo as abstrações mais universais
‘trabalho em geral’, trabalho puro e
simples, o ponto de partida da Economia são produtos da efetividade, das relações
moderna, devém verdadeira na prática. Por
históricas. Por isso, “/.../ se é verdade que as
conseguinte, a abstração mais simples, que
a Economia moderna coloca no primeiro categorias da economia burguesa têm uma
plano e que exprime uma relação muito

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validade para todas as outras formas de


sociedade, isso deve ser tomado cum grano Como em geral em toda ciência histórica e
social, no curso das categorias econômicas
salis. Elas podem conter tais categorias de é preciso ter presente que o sujeito, aqui a
modo desenvolvido, atrofiado, caricato etc., moderna sociedade burguesa, é dado tanto
na realidade como na cabeça, e que, por
mas sempre com diferença essencial (p. 59; conseguinte, as categorias expressam
formas de ser, determinações da existência,
p. 40)”. O trabalho abstrato, pois, enquanto
com frequência somente aspectos
abstração de contornos universais apenas singulares, dessa sociedade determinada,
desse sujeito, e que, por isso, a sociedade,
possui validade para a sociedade que produz
também do ponto de vista científico, de
riqueza por meio do trabalho nesta modo algum só começa ali onde o discurso
é sobre ela enquanto tal. /.../. Em todas as
simplicidade, independentemente de sua formas de sociedade, é uma determinada
forma particular. A atividade humana produção e suas correspondentes relações
que estabelecem a posição e a influência
sempre existente precisou de um concreto das demais produções e suas respectivas
mais rico para ser apresentada em sua forma relações. É uma iluminação universal em
que todas as demais cores estão imersas e
universal, mas, ao mesmo tempo (e não se que as modifica em sua particularidade. É
um éter particular que determina o peso
deve perder isto de vista), esta forma
específico de toda existência que nele se
universal pela qual agora se apresenta é manifesta (p. 59; p. 40).

resultado de relações históricas específicas


As categorias são reproduções do
no interior das quais a atividade humana é
efetivamente existente no pensamento. A
atividade criadora de riqueza (privada), isto
sociedade capitalista em pauta é dada tanto
é, uma forma determinada da atividade
na realidade quanto na cabeça e, assim, as
humana produtiva presente em todas as
categorias não são enxertadas
épocas (a mesma que está contida naquele
subjetivamente, categorias subjetivas com as
processo de trabalho simples indicado antes)
quais se ordena o efetivamente existente,
e que se realiza na sociedade capitalista
mas “expressam formas de ser,
como trabalho produtivo no interior do
determinações da existência”. Tais
processo de valorização: trabalho que
categorias são originadas na própria
valoriza capital. Portanto, mesmo quando
materialidade das relações contidas nas
universais, as categorias expressam relações
formas de produção de determinadas
efetivas, as mesmas relações nas quais são
sociedades, em que tais sociedades são uma
engendradas. Daí é possível compreender
produção particular e suas correspondentes
que:
relações. O trabalho abstrato não é, portanto,

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pelas mãos de Marx, apenas um conceito e vínculo necessário entre as categorias e as


não possui o caráter ahistórico imputado por sociedades determinadas e que expressam as
Smith. Trata-se de uma categoria relações sociais de fundo ocultadas sob o
rearticulada a partir do próprio Adam Smith manto objetivo da própria forma de
para ser determinada como um produto das produção.
relações efetivas condizentes à produção Nos dois casos, tanto em relação à
material em uma sociedade na qual há uma produção em geral quanto ao trabalho
indistinção objetiva em relação aos trabalhos abstrato, pudemos apreciar (mas não
particulares como atividade criadora de exaustivamente) o processo de rearticulação
riqueza – e apenas assim, por esta de duas categorias exógenas ao pensamento
objetividade, tal categoria pôde ser propriamente marxiano e que, ao mesmo
engendrada. É uma abstração de contornos tempo, constituem peças fundamentais da
universais (posta ao mundo depois das projetada “anatomia da sociedade civil”
formas concretas) que Marx rearticula para (1974). Em outros termos, as categorias
expressar o caráter determinado da atividade exógenas são substantivas ao pensamento
humana como trabalho que valoriza capital, em questão, uma vez rearticuladas e
isto é, a forma específica que a atividade confirmadas as suas razoabilidades. A
humana assume no interior de relações produção em geral como abstração razoável
históricas determinadas e especificamente destaca e fixa os elementos comuns às
capitalistas. Assim como a produção em diferentes formas de produção. Ela própria já
geral, o trabalho abstrato é uma abstração se configura um complexo articulado de
razoável (mas com propriedades distintas da determinações, as quais, por sua vez, podem
primeira) na medida em que ajuda a ser pertencentes a todas as formas de
demarcar o caráter determinado da sociedade produção ou apenas a algumas. Deste
e das relações nelas contidas, as quais ângulo, toda sociedade possui uma forma de
engendraram esta própria categoria. Esta produção, mas nem toda forma de produção
categoria, porém, apenas se apresenta como possui exatamente as mesmas
“forma de ser, determinação da existência” determinabilidades e, assim, o capital, por
uma vez rearticulada ao pensamento exemplo, é uma categoria específica da
propriamente marxiano que compreende a sociedade capitalista que expressa relações
determinação social das categorias, o também determinadas e de modo algum é

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elemento constitutivo da produção em geral, 3. LUKÁCS E O TIPO IDEAL DE


como supôs Mill. Por sua vez, o trabalho BUROCRACIA
abstrato é uma abstração à qual Adam Smith
chegou, mas não como um produto O esforço de rearticulação categorial
puramente subjetivo. A determinação social não se limitou a Marx. Em História e
do trabalho abstrato significa a constituição consciência de classe de 1924, Lukács
de uma sociedade na qual a produção da estabeleceu determinadas considerações que
riqueza se realiza por meio do trabalho conectavam elementos do empreendimento
indistinto. Esta forma geral de expressar o de Marx com o de Max Weber. Foi o
trabalho, portanto, é um produto das próprias suficiente para que se atribuísse a Lukács a
condições da produção capitalista, das responsabilidade por ter forjado a primeira
relações sociais desenroladas nessas tentativa de um marxismo weberiano
condições. Nesse sentido, a razoabilidade (Merleau-Ponty, 1955) e que acumulou rios
dessa categoria está em expressar o trabalho de páginas desde então, sobretudo acerca das
que valoriza capital (e não tão somente o suas possibilidades e limites (e.g. Kocka,
trabalho que produz mercadorias materiais2) 1986; Löwy, 1992; Mészáros, 1989; 1993;
e, assim, também as relações determinadas 1995; 2010; 2011; Frederico, 2010; Paço-
desta forma de sociedade particular, a Cunha, 2010). Festejado e também
diferença específica dessa sociedade, de sua duramente criticado, o esforço de Lukács
produção e das relações a ela teve um papel importante na abertura do
correspondentes. Embora expresse nessa marxismo para questões que iam para além
simplicidade o trabalho, Marx rearticula o do revisionismo dominante à época. A
trabalho abstrato como uma forma particular conexão entre elementos de Marx e de
da atividade humana, uma forma que apenas Weber tem por fundamento, como o próprio
se torna absolutamente efetiva nas condições Lukács afirmou, uma tentativa de “renovar a
mais avançadas da produção do capital. tradição hegeliana do marxismo” (1977a, p.
23). E, nesse processo, aceitou elementos
weberianos importantes como a
possibilidade objetiva, a racionalização, o
cálculo racional e também tipo ideal de
burocracia, além de outras questões. É em

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relação ao tipo ideal de burocracia que Uma conjunção pura de Marx e de Weber,
gostaríamos de fornecer maior atenção neste nestes termos, considerando certa
ensaio. complementariedade radicalmente transitiva,
Existem basicamente duas teses a com toda certeza presta mais desserviço do
respeito da incorporação de elementos que qualquer outra coisa. Mas este, talvez,
weberianos por Lukács naquele texto de não tenha sido tão simplesmente o caso de
1924. Estas teses ganham ainda mais Lukács. A segunda tese abre a possibilidade
importância devido à ausência de uma da rearticulação categorial, algo que, como
consideração autocrítica acerca dessa vimos, é intrínseco ao próprio pensamento
questão em particular, especialmente se marxiano, mas imputa relativamente uma
comparada à atenção que o próprio Lukács intencionalidade absolutamente consciente
deu à sua “sobrecarga hegeliana” nesse sentido que talvez estivesse ausente
[Hegelsche-Überspannung] (1977a, p. 22) durante a redação de História e consciência
no famoso prefácio de 1967. A primeira das de classe. O que havia de efetivamente
teses assegura a existência de uma deliberado, como dito, era o esforço de
“interpretação weberiana de Marx” resgatar a tradição hegeliana do marxismo.
(Mészáros, 1995, p. 336) ou ainda uma Podemos chegar a pistas avaliando a
“weberianização de Marx” (Frederico, 2010, aceitação provisória do tipo ideal de
p. 174) empreendida por Lukács naquela burocracia e a sua crítica feita anos depois
obra de transição. A segunda tese dá conta em A destruição da razão.
da existência de uma tentativa de Duas passagens são suficientemente
rearticulação dos elementos weberianos a diretas sobre a questão aqui em pauta. No
uma matriz marxiana por fundamento conhecido capítulo sobre a reificação,
(Teixeira, 2010). Ambas as teses têm suas Lukács tece considerações sobre o
razões e limitações. A primeira subestima imediatismo da reificação nas análises
(relativamente) a necessidade da ideologicamente motivadas, inclusive entre
rearticulação das categorias enquanto aqueles autores que não possuem a declarada
abstrações razoáveis que alarguem as intenção de “negar ou obliterar o fenômeno”
potencialidades do projeto marxiano, (2003, p. 213; 1977b, p. 269). Exemplifica
avaliando determinadas questões do ponto este ponto com uma indicação de A filosofia
de vista do texto de Marx (o que é correto). do dinheiro de Simmel, como uma obra que

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apenas fornece uma descrição do (citando condições da mesma espécie. Do mesmo


modo como a relativa autonomia do
Marx d’O Capital) “mundo enfeitiçado, artesão ou industrial domiciliar, do
invertido e às avessas” (p. 213; p. 270). camponês proprietário, do comandatário,
do cavaleiro e do vassalo baseava-se no
Argumenta que a simples descrição é o fato de que eram proprietários dos
instrumentos, das reservas, dos meios
limite dessas análises que rondam apenas as
financeiros, das armas, com o auxílio dos
formas exteriores de manifestação da quais realizavam sua função econômica,
política e militar, e da qual viviam
reificação. Logo na sequência dessa
enquanto a cumpriam, a dependência
conhecida argumentação, Lukács traz à baila hierárquica do operário, do balconista, do
empregado técnico, do assistente de um
a questão da burocracia em conexão com instituto universitário e do funcionário do
elementos marxianos por meio da citação Estado e de um soldado tem o mesmo
fundamento, a saber: os instrumentos, as
literal dos escritos políticos de Weber. Disse reservas e os meios financeiros,
ele que: indispensáveis tanto à empresa quanto à
vida econômica, estão nas mãos do
empresário, num caso, e do chefe político,
Essa separação entre os fenômenos da no outro.” (p. 214; p. 270).
reificação e o fundamento econômico de
sua existência, a base que permite No início da passagem, Lukács
compreendê-los, ainda é facilitada pelo
fato de que esse processo de transformação afirmou a correspondência entre o
deve necessariamente englobar o conjunto
“desenvolvimento capitalista” e os “sistemas
das formas de manifestação da vida social,
para que sejam preenchidas as condições de leis” e também o Estado etc., que são
de uma produção capitalista com pleno
rendimento. Assim, o desenvolvimento
importantes às necessidades desse próprio
capitalista criou um sistema de leis que desenvolvimento. Na sequência, ele se
atendesse suas necessidades e se adaptasse
à sua estrutura, um Estado correspondente, prende à “semelhança estrutural” entre o
entre outras coisas. A semelhança Estado e a empresa capitalista, numa
estrutural [strukturelle Ähnlichkeit] é, de
fato, tão grande que nenhum historiador aceitação desse princípio do tipo ideal
realmente perspicaz do capitalismo
weberiano. Essa burocracia está na
moderno poderia deixar de constatá-la.
Max Weber descreve o princípio passagem, porém, em ligação com uma das
fundamental desse desenvolvimento da
seguinte maneira: “Ambos são, antes,
ideias mais fundamentais do marxismo, isto
bastante similares em sua essência é, o relacionamento entre a produção da
fundamental. O Estado moderno, de um
ponto de vista sociológico, é uma 'empresa' riqueza e a esfera político-legal
tal como uma fábrica; é justamente o que materializada no Estado capitalista. Desse
tem de específico no âmbito histórico. E as
relações de dominação na empresa também ponto de vista, o tipo ideal weberiano
estão, nos dois casos, submetidas a
exposto parece assumir mais o papel de uma

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

constatação acerca da semelhança estrutural máquina, do empresário em relação ao tipo


(e também de superfície) do que uma dado de evolução mecânica, e do técnico em
incorporação dos seus princípios relação ao nível da ciência e da rentabilidade
metodológicos. A semelhança é, de fato, tão de suas aplicações técnicas, é uma variação
evidente que, disse ele, “nenhum historiador puramente quantitativa, e não uma diferença
realmente perspicaz do capitalismo moderno qualitativa na estrutura da consciência” (p.
poderia deixar de constatá-la”. O que Lukács 219, p. 273). Na sequência dessa afirmação,
não foi capaz de constatar neste momento do disse ele, estabelecendo novamente uma
desenvolvimento de seu pensamento é o conexão entre os elementos de Marx e de
elevado grau de superficialidade contida na Weber:
descrição weberiana (que se assemelha ao
O problema da burocracia moderna só se
modo de Simmel) e que iguala o Estado e a torna plenamente compreensível nesse
empresa capitalista por meio de elementos contexto. A burocracia implica uma
adaptação do modo de vida e do trabalho e
superficiais, ignorando o caráter específico paralelamente também da consciência aos
pressupostos socioeconômicos gerais da
da cisão entre o trabalho e a propriedade economia capitalista, tal como constatamos
no caso do operário na empresa particular.
privada na esfera da produção material vis-à- A racionalização formal do direito, do
Estado, da administração etc. implica,
vis a cisão que ocorre no Estado e a própria objetiva e realmente, uma decomposição
implicação desse último a partir da primeira semelhante de todas as funções sociais em
seus elementos, uma pesquisa semelhante
cisão. Ao menos Lukács busca circunscrever das leis racionais e formais que regem
esses sistemas parciais, separados com
a “semelhança estrutural” como exatidão uns dos outros, e subjetivamente
implica, por conseguinte, repercussões
consequência do “desenvolvimento semelhantes para a consciência, devidas à
separação entre o trabalho e as capacidades
capitalista”, algo que mantém em primeiro e necessidades individuais daquele que o
plano a contradição fundamental, a produção realiza; implica, portanto, uma divisão
semelhante, racional e humana, do trabalho
do mais-valor, que é apagada na simples em relação à técnica e ao mecanismo tal
como encontramos na empresa (p. 219; p.
identidade posta sociologicamente por Max 273-274).

Weber.
Além da questão da consciência
Poucas páginas depois, num
reificada nas diferentes esferas que não nos
momento em que discute a profusão da
interessa diretamente aqui, vemos na
consciência reificada dada a moderna técnica
passagem a conexão entre o problema da
de produção, Lukács argumenta que “a
“racionalização formal” ou gradativa
diferença do trabalhador em relação a cada
burocratização nos “sistemas parciais”

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

(como Weber se referia às diferentes esferas) que isso fique claro para que sejam evitados
e a consequente semelhança entre a divisão mal entendidos, como aquele produzido pelo
do trabalho que ocorre na empresa e na próprio Weber (2001, p. 147) ao afirmar
esfera do Estado. Marx fez uma indicação a Marx como o maior dos construtores de
respeito dessa semelhança no 18 Brumário tipos ideais. Lukács, de fato, também não faz
de Louis Bonaparte e vale aqui como diretamente esta redução, pois parece que
recurso à demonstração daquela conexão. mantém em relevo a crescente
Nessa direção, disse Marx: “racionalização formal” como consequência
do “desenvolvimento do capitalismo”,
Este poder executivo, com a sua imensa embora tenha aceitado, antes, a “semelhança
organização burocrática e militar, com a
sua extensa e engenhosa maquinaria de estrutural” sem maiores questionamentos.
Estado, um exército de meio milhão de
funcionários, juntamente com um exército Em outros termos, parece manter a matriz
de outro meio milhão de soldados, este
terrível corpo de parasitas, que se cinge marxiana como o fundamento para uma
como uma rede ao corpo da sociedade conexão com elementos advindos de
francesa e lhe tapa todos os poros, surgiu
no tempo da monarquia absoluta, com a maneira exógena, no caso, advindos da
decadência da feudalidade, que ajudou a
acelerar. Os privilégios senhoriais dos sociologia weberiana.
grandes proprietários fundiários e das
cidades transformaram-se em outros tantos Esboça-se, assim, um tipo de esforço
atributos do poder de Estado, os dignitários
feudais em oficiais [funcionários] para uma rearticulação categorial ao invés
retribuídos e o variado mostruário dos de uma “interpretação weberiana” ou uma
plenos poderes medievais divergentes no
plano regulado de um poder de Estado, “weberianização” de Marx. Mas não por isso
cujo trabalho está dividido e centralizado
de modo fabril [deren Arbeit fabrikmäßig se configura uma rearticulação plenamente
geteilt und zentralisiert ist – ou ainda,
sistematicamente dividido e centralizado] consciente, nem totalmente bem sucedida. A
(1960, p. 196-197).
rearticulação categorial exige um tipo de
inspeção e de reposicionamento das
A burocracia governamental assume
categorias para que elas possam ganhar
uma divisão e centralização do trabalho de
razoabilidade enquanto abstrações que
modo fabril ou sistematicamente, disse
expressam relações efetivas; algo que
Marx. Mas de forma alguma aqui, ou em
pudemos acompanhar relativamente na
qualquer outro lugar dos escritos de Marx,
Introdução de 1857 em relação à produção
tanto o Estado quanto a empresa capitalista
em geral e ao trabalho abstrato. Este
caem sob o conceito (ou tipo ideal) de
direcionamento, porém, não pôde ser
burocracia, indistintamente. É importante

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

encontrado em Lukács, pelo menos não núcleo da problemática identidade forçada


sistematicamente no que diz respeito ao entre Estado e empresa a partir dos
conceito de burocracia; não convertido, pois, elementos superficiais. Como se apega a
em categoria, em abstração razoável. Por esses elementos de superfície, assume tal
isso, parece um esforço não deliberado de sociologia, incluindo a “liberdade de
conectar elementos externos à base valores”, contornos do irracionalismo.
marxiana, movido mais pela própria abertura Nessa direção, disse Lukács, “O
que o pensamento marxiano proporciona e irracionalismo é a forma que assume /.../ a
pela necessidade sempre latente de avançar tendência a esquivar a solução dialética de
nas questões importantes em pauta. Em problemas dialéticos. A aparente
outras palavras, não encontramos em cientificidade, a rigorosa ‘liberdade de
História e consciência de classe, ao menos valores’ da sociologia é, portanto, na
não tangente ao tipo ideal de burocracia, o realidade, a fase mais desenvolvida do
mesmo procedimento em relação às irracionalismo ao qual agora se tem
categorias da economia política clássica que chegado” (1958, p. 193; 1972, p. 497). Estas
vimos em Marx daquela introdução. Não há indicações baseiam-se nas constatações que
necessariamente uma plena rearticulação, ele fez acerca do que denomina “luta contra
mas um tipo de conexão que tem por eixo os o materialismo”. Na sociologia daquele
fundamentos marxianos. período, no qual Weber se apresenta como
Tudo indica que o próprio Lukács peça fundamental, a luta, diz Lukács, é
tenha reconsiderado essa conexão anos mais “contra a prioridade do ser social, contra o
tarde no livro dedicado ao pensamento papel determinante do desenvolvimento das
alemão que antecedeu o Drittes Reich. forças produtivas” (p. 183; p. 487). Este
Todavia, também não de forma sistemática, ponto angular da análise de Lukács indica a
vez que as considerações feitas própria natureza da metodologia dos
particularmente ao tipo ideal de burocracia sociólogos alemães – e entre eles, Weber –,
fazem parte da discussão sobre a sociologia qual seja, “chegar a compreender,
da vida e não se configuram um estudo aparentemente, a essência do capitalismo
dedicado ao problema. Ainda assim, as sem entrar nos seus verdadeiros problemas
considerações de Lukács são econômicos (sobretudo, no problema do
suficientemente precisas em relação ao mais-valor, da exploração)” (p. 186; p. 490).

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

Lukács aponta que os aspectos inversão dos verdadeiros elementos da


decisivos da sociedade produtora de valor economia capitalista, fazendo com que os
são deformados, como resultado da esquiva fenômenos vulgarizados da superfície
frente às questões verdadeiramente materiais desempenhem o papel prioritário sobre os
e de fundamento dessa produção. Ele problemas relacionados com o
reconhece, porém, que “O fato da separação desenvolvimento das forças produtivas” (p.
dos trabalhadores e dos seus meios de 186; p. 490), adicionalmente estabelecendo
produção, o aparecimento do trabalho livre, “deformações abstratas” que proporcionam
é certamente mencionado e ele cumpre às “formas ideológicas, principalmente o
mesmo na sociologia weberiana um papel direito e a religião, uma função equivalente
não negligenciável”, e já que sabemos se ao da economia, atribuindo-lhes mesmo uma
tratar de um dos elementos centrais do tipo ação causal superior”. Para Lukács esta
ideal de burocracia, o qual amalgama o maneira de colocar as coisas substitui
Estado e a empresa capitalista. “Mas”, gradativamente a especificação das relações
completou ele, “a característica decisiva do determinativas, o que demarca o traço do
capitalismo”, para Weber, “reside na irracionalismo. Por isso, disse ele, “É assim
racionalidade e calculabilidade” (Idem; que Weber sublinha a analogia grosseira
Idem) e não no papel específico e histórico, entre o Estado moderno e uma empresa
não no caráter angular da separação entre capitalista”, analogia marcante que é simples
propriedade e trabalho, vez que a produção descrição, dada a sua “posição agnóstico-
do mais-valor está retirada de cena como relativista, rechaça o problema da causação
também a relação de exploração do trabalho primária” (Idem; Idem). Esta sociologia se
que esta produção implica. Isto fornece o degenera em uma “mística irracionalista” (p.
caráter de aparente compreensão 189; p. 493), na feitura de “analogias
precisamente porque não é capaz de revelar abstratas” (p. 191; p. 495). Há, por fim,
as contradições fundamentais, segundo Lukács, um tipo de bloqueio, de
permanecendo na descrição das identidades hipóstase do “devir social” posta pela
superficiais dadas pelo próprio conceito de distorção dos traços fundamentais da
burocracia. produção capitalista e pela rejeição da “luta
Ainda nessa direção, Lukács comenta de classe” como um fato da história (p. 192;
ainda que a sociologia alemã produz “a p. 496); algo parecido com o caráter

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

eternizante que Marx apontou nas categorias carregue consigo o traço da dominação
da economia política clássica (cf. Weber, racional-legal e que sob certos aspectos
1999, p. 222, sobre a impossibilidade de os ajuda a iluminar determinada face dos
dominados superarem a estrutura burocrática problemas, termina por inviabilizar a
de sua própria dominação). superação da própria burocratização que
Estas curtas indicações são anuncia, desprezando a necessária superação
suficientes para estabelecer um contraste dada pela luta de classes.
bem marcante entre as maneiras pelas quais O fato mais decisivo é que a conexão
considerou-se a questão da burocracia. Ora, estabelecida em História e consciência de
se em História e consciência de classe classe entre o tipo ideal de burocracia e a
vimos uma celebração da constatação de base marxiana é, anos mais tarde,
Weber acerca da “semelhança estrutural” considerada inadequada. O conceito,
entre Estado e empresa capitalista, tudo portanto, não parece ter sido considerado por
indica que em A destruição da razão esta Lukács como algo puramente transitivo em
constatação descritiva não é suficiente para relação aos fundamentos marxianos. A
uma apreensão decisiva dos problemas em rearticulação não fora bem sucedida e foi
pauta. Aliás, a “semelhança estrutural” é significativamente abandonada em função
convertida em “analogia grosseira, abstrata”, das nada desprezíveis obstruções
nos termos do próprio Lukács. Por que apresentadas. Mas a necessidade do esforço
analogia grosseira e abstrata? Porque se de rearticulação permaneceu no século XX.
limita à descrição da forma superficial, Alguns autores podem ser evocados para
porque move-se em busca das identidades e exemplificar esta questão ainda em torno da
não das diferenças e das conexões, porque, burocracia.
em suma, inverte as verdadeiras relações
determinativas (no sentido de anterioridade 4. A NECESSIDADE DA
ontológica) como uma oposição à prioridade REARTICULAÇÃO DA BUROCRACIA
do ser social, suplantando a produção do
mais-valor e a exploração do trabalho com A mesma questão celebrada por
os elementos vulgarizados de superfície Lukács como sendo uma constatação
(como o direito e a religião). A própria importante realizada por Weber acerca da
burocracia enquanto um tipo ideal, embora “semelhança estrutural” entre o Estado e a

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

empresa capitalista foi, anos depois, tratar dos aspectos funcionais da burocracia
considerada “analogia grosseira” entre essas governamental, mantendo a luta de classes
esferas. Aquela constatação que o próprio ao fundo e, de certa forma, retirando a
Lukács realizou em relação à descrição empresa capitalista do conceito de
como o limite das análises que estacionam burocracia.
na forma fenomênica, agora se aplica ao tipo Assim como Poulantzas, Tragtenberg
ideal de burocracia no qual se efetiva uma não é ingênuo em relação às posições de
espécie de esquiva dos problemas materiais, Weber, especialmente sobre os aspectos
da exploração do trabalho, do mais-valor. políticos. Não obstante, a necessidade de
Parece, porém, que o esforço de apropriação da burocracia faz-se muito
rearticulação da burocracia ainda mantém-se presente no livro Burocracia e ideologia,
necessário. Não é lugar para resgatar a longa resultado da tese de seu autor. Certo ou
trajetória do problema. Basta indicar a errado, Tragtenberg (1974) argumentou que
distinção entre burocracia e burocratismo “Weber longe de ser um ideólogo da
feita por Poulantzas (1971) para situar a burocracia é seu grande crítico” (p. 208);
primeira como uma “categoria social algo que contrasta com a “liberdade de
específica”, isto é, “a burocracia em suas valores” exigida pela própria sociologia
relações com a luta política de classes” (p. weberiana e, por isso, difícil de ser
180), e a segunda como aquilo que sustentado. Tragtenberg fez, inclusive, uma
“representa uma organização hierárquica conexão às avessas da estabelecida por
por delegação de poder do aparelho de Lukács entre a “semelhança estrutural” e o
Estado que tem efeitos particulares sobre “desenvolvimento capitalista”, isto é, ao
seu funcionamento” (p. 181). E, disse ele, é afirmar que “Com a irrupção da empresa
em relação ao burocratismo que “as análises capitalista, a ênfase do processo de
desse último [Weber] são úteis” (Idem). burocratização flue (sic) do Estado à
Passa, então, à listagem das características empresa, no período liberal do
que se estendem da impessoalidade à desenvolvimento econômico capitalista” (p.
disparidade da formação dos seus agentes, 186) e não o contrário. Essa posição de
amalgamando Marx, Engels, Lenin e o Tragtenberg se assemelha mais à do próprio
próprio Weber. Essa distinção indica a Weber em inverter a relação determinativa
apropriação de elementos de Weber para fundamental, a luta contra a prioridade do

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

ser social, do que a um esforço de rearticular eternizante etc. Indiretamente, porém,


a burocracia a uma matriz marxiana. Aliás, a Tragtenberg aponta não conscientemente o
ausência desse esforço é alimentada por uma problema da analogia grosseira. Aquele
visão muitíssimo simpática a Weber e que ponto que Lukács enfatizou acerca da
impede que sejam tematizados “semelhança estrutural” entre Estado e
verdadeiramente os “problemas centrais”. empresa, sobretudo no que diz respeito à
Disse Tragtenberg que: separação entre o “funcionário e os meios de
seu serviço” como um princípio fundamental
O importante é a possibilidade de despertar do tipo ideal weberiano de burocracia, é
do sono dogmático, pensar e refletir
criticamente com Weber e não polemizar considerado por Tragtenberg de tal maneira
contra Weber, sem subterfúgios,
escamoteação dos problemas centrais, que parece operar a mesma distinção que
penetrando na reflexão efetiva para
superar, isto é, absorver a contribuição de
Poulantzas ao distinguir a empresa
Weber e excedê-la. Superar em Weber as capitalista da burocracia (e também o
limitações do tempo e contexto social em
que se situa a sua obra; discuti-la sem exército), isto é, retirar a empresa capitalista
compromissos ideológicos que impliquem
o sacrifício do intelecto com o respeito que do conceito de burocracia; algo que, por
uma obra do porte que ele nos legou,
implica (p. 156-157). princípio, é antiweberiano:

A questão em pauta está mais para A obra de Weber insere-se no quadro


ideológico da reprodução do trabalho
uma revisão do que para uma rearticulação simples e da industrialização extensiva, na
do conceito para que se converta em medida em que concebe a empresa
fundada na separação entre trabalhador e
categoria, em abstração razoável. Aliás, um meios de produção; a burocracia fundada
na separação entre administrador e meios
esforço de rearticulação exige reconhecer a de administração; a instituição militar
fundada na separação entre o oficial e os
inversão da relação de causalidade meios de guerra. Para Weber a
racionalização opera-se por intermédio do
fundamental, reconhecer a superficialidade capital contábil (p. 208).
do tipo ideal de burocracia, incluindo a
ausência do mais-valor, da exploração do Parece que nessa passagem há o
trabalho e da luta de classes que o conceito esforço de distinguir, ainda que de maneira
implica. E este reconhecimento não produz precária, a burocracia governamental da
necessariamente uma reflexão com Weber, empresa capitalista, em oposição não
mas precisamente contra as posições decisivamente consciente ao tipo ideal
mistificadoras dessa sociologia, seu caráter weberiano porque, na verdade, Weber nunca
poderia fazer esta distinção por força do

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

próprio conceito. Precária porque, assim esta rearticulação. Trata-se de Gestão púbica
como vimos em Lukács, desconsidera o e democracia: a burocracia em questão.
efetivo sentido da separação entre o trabalho Nesse livro, o tópico 1.3 do primeiro
e a propriedade na esfera da produção capítulo é bastante útil para demonstrar não
material, ou seja, contenta-se com esta apenas a existência da necessidade de
semelhança descritiva e superficial do rearticulação como também uma tentativa
problema ao fundo e que não é revelado: o ainda em processo e que vai à direção aqui
problema do mais-valor, da exploração do exposta de cindir a empresa capitalista da
trabalho na produção material é o verdadeiro burocracia governamental.
condicionamento sobre a esfera político- Souza Filho (2011), neste livro, não
legal do Estado, incluindo sua burocracia aceita plenamente, como os dois autores
governamental, ao contrário do que pensa anteriores, as posições e proposições de
Tragtenberg. Para principiar, pois, um Weber. Há consideráveis indicações sobre as
esforço de rearticulação mais decisivo limitações da sociologia weberiana. O
haveria de enfrentar muito mais abertamente tratamento dessas limitações não inclui, no
este obstáculo que o próprio conceito entanto, uma consideração sistemática a
weberiano impõe. Não obstante, a respeito da “semelhança estrutural” ou da
necessidade de rearticulação se mostra aqui “analogia grosseira”. Assim como
presente em função precisamente dessa Poulantzas e Tragtenberg, Souza Filho
distinção entre a empresa capitalista e a separa não deliberadamente a burocracia
burocracia (governamental); um atentado ao governamental e a empresa capitalista, isto
tipo ideal weberiano. é, tal separação não é um resultado de uma
Tanto em Poulantzas quanto em rearticulação categorial sistemática. Isso
Tragtenberg é possível capturar esta pode ficar mais evidente no momento em
necessidade de rearticulação categorial, mas que o autor explora o “fenômeno
em nenhum deles captura-se o esforço burocrático”, especificamente a partir da
efetivo e sistemático nessa direção. “função da burocracia no Estado”. Após
Num livro recente de Souza Filho citar (p. 39), em tom de concordância,
(2011), este esforço pode ser capturado de aquela passagem de Tragtenberg de antes, na
forma um pouco mais evidente, pois parece qual vimos a posição de “refletir
existir uma intenção mais clara de realizar criticamente com Weber”, disse Souza Filho

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

que “ao analisarmos criticamente as racionalidade de sua estruturação são


determinações da burocracia, buscaremos determinações centrais que merecem
captar as categorias que efetivamente destaques ao se analisar a burocracia. E
correspondam ao fenômeno e que estão Weber é um autor indispensável para
presente (sic) nas obras de Hegel e Weber. E refletirmos tais questões” (p. 42). Em outros
relação a Marx e à tradição marxista, o termos, parece mais aquela reflexão crítica
tratamento não será diferente”. A com Weber ao invés de uma rearticulação
preocupação central está “em extrair os efetiva que proporcionasse, de uma forma
traços essenciais e universais do fenômeno. mais decisiva, razoabilidade à categoria
/.../ o tratamento que daremos ao fenômeno burocracia.
encontra-se num nível mais alto de Aliás, tratar da burocracia num nível
abstração” (p. 39). mais alto de abstração exigiria a aceitação da
“Analisar criticamente as identidade entre o Estado e a empresa
determinações da burocracia”, “captar as capitalista, mas essa abstração não seria
categorias que efetivamente correspondam razoável pelos motivos já aludidos. Não por
ao fenômeno”, “extrair os traços essenciais e menos, a burocracia no livro em pauta não
universais do fenômeno”, e tratar do corresponde ao tipo ideal weberiano, mas à
“fenômeno” num “nível mais alto de burocracia governamental, e essa cisão entre
abstração” são elaborações cujo tom é as esferas demarca a necessidade da
bastante aproximado do de Tragtenberg (e rearticulação e, em certa medida, um esforço
indiretamente do de Weber mesmo, no que nessa direção, dado o vínculo dessa
diz respeito ao entendimento de que se trata burocracia governamental às contradições,
de um fenômeno). Mas o que é importante de as mesmas contradições ausentadas no tipo
ser notado é que a preocupação compreende ideal weberiano. Isso pode ser constatado
a captura das categorias, tanto de Weber mais de uma vez, especialmente no
quanto de Marx, que correspondam ao argumento de que “A burocracia, sendo um
fenômeno. Não é o mesmo, pois, que uma dos componentes da materialidade do Estado
tentativa deliberada de rearticulação do – que, como vimos, é a instituição no
conceito a uma matriz marxiana, sobretudo a capitalismo capaz de atender interesses de
partir da constatação de “O caráter de camadas não dominantes –, expressa,
dominação presente na burocracia e a também, as contradições presentes no

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

Estado” (p. 39). Daí que “a existência da sociologia produtora de conceitos, a


burocracia está vinculada ao Estado e, necessidade de rearticulação aqui produz ao
por conseguinte, à dominação de classe” menos a cisão em relação ao tipo ideal e
(p. 41, grifos no original). De tal maneira, o produz também o vínculo com a luta de
tipo ideal weberiano aparece aqui classes. Este último ponto, inclusive,
desfigurado relativamente, uma vez que a contrasta positivamente com a tendência do
burocracia governamental (e não Estado e bloqueio do “devir social” ou com caráter
empresa amalgamados) está conectada ao eternizante por meio do qual Weber
problema da luta de classe, porém sem a apresenta a burocracia. “A crítica do
explicitação do relacionamento do Estado e conceito weberiano de burocracia”, porém,
de sua burocracia enquanto relações sociais não se tratou de uma crítica sistemática às
de produção à exploração do trabalho que se problemáticas envolvidas, sobretudo, como
realiza fora dessa esfera político-legal. Disso constatou Lukács em relação à mesma
resulta um apuramento da conceituação da sociologia, a ausência do problema do mais-
burocracia governamental, segundo Souza valor, da exploração do trabalho. Embora
Filho, em conexão com elementos marxistas. tenha sido realizada a cisão no tipo ideal,
Disse ele: retirando a empresa capitalista do amálgama
com o Estado, este ponto da elaboração
Então, a partir da análise crítica do weberiana não foi considerado
conceito weberiano de burocracia,
devemos aprofundar a definição sistematicamente, não foi objeto pertencente
explicitada anteriormente, sintetizando que
a burocracia é a forma legítima de obter àquela “crítica do conceito”; mesmo porque
obediência de um grupo de pessoas e
exercer o poder de classe para atingir
não parecia ser o objetivo último do material
objetivos voltados para a expansão em puata. Mas, ainda assim, neste material
capitalista, através do emprego
econômico de recursos materiais e aparece um esforço de rearticulação muito
conceituais e do esforço humano
coletivo, assim como da adequação mais evidente do que nos autores anteriores,
desses recursos aos fins visados, que se
expressam, também, pela necessidade de ao menos bem mais evidente do que em
atender determinadas demandas da classe
dominada. Consideramos que dessa forma
Tragtenberg.
o conceito de burocracia fica completo em Ainda é necessária, pois, uma
suas determinações essenciais (p. 60).
rearticulação categorial da burocracia nos
Apesar de haver um tom ainda difícil mesmos moldes da produção em geral e do
de ser eliminado, dado o vínculo com a trabalho abstrato, isto é, um escrutínio que

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

estabeleça a burocracia como abstração que se apega à identidade de superfície entre


razoável – sem, portanto, a “analogia Estado e empresa – e ainda estabelece a
grosseira” com a empresa capitalista –, na conexão entre eles de modo invertido. Por
medida em que exprima uma relação social força desse seu caráter, a própria conexão
de produção determinada cortada pelas entre a produção da riqueza e a vida política
contradições fundamentais da produção converte-se num contentamento com a
capitalista. descrição dos aspectos funcionais exteriores
e que encobrem o antagonismo fundamental.
5. CONCLUSÃO Enquanto também descrição empírica da
burocracia governamental – isto é, em
Os problemas aqui aludidos não se oposição à pura identidade entre Estado e
esgotam neste texto. A matéria ainda é empresa – o próprio conceito de burocracia
objeto de reflexão e território de pesquisa. perde de vista esta conexão e também a
Uma constatação conclusiva, porém, pode natureza dessa conexão. E, do ponto de vista
ser delineada: é preciso rearticular a do valor descritivo, os efetivos avanços em
burocracia governamental a partir do padrão relação à caracterização empírica dada por
de cientificidade marxiano, levando-se Hegel, por exemplo, à burocracia prussiana,
também em conta as elaborações que o podem ser questionados. Em outros termos,
próprio Marx cunhou nos textos anteriores mesmo o valor descritivo do conceito pode
ao desenvolvimento desse padrão, como a ser limitado, por um lado, em função da
produção em geral e o trabalho abstrato dão natureza do tipo ideal como tipo puro, isto é,
prova. É necessário, pois, especificar a nunca existente como tal mas apenas
determinação marxiana da burocracia, sem mediante a possibilidade objetiva de
perder de vista os problemas aqui indicados. aproximações – e considerar o tipo puro
Apesar de muitos esforços realizados, e que weberiano para uma descrição direta, como
precisam ser considerados, não se se fosse ele mesmo uma categoria da
empreendeu ainda um trabalho sistemático efetividade, traz muitos outros problemas e
nesta direção. incoerências –, e, por outro, as modificações
Disso resulta que aquele conceito ocorridas durante todo o século XX em que
(tipo puro) pode ser rearticulado para perder ao menos os traços mais gerais do conceito
seu caráter de síntese meramente descritiva, são em variados graus distintos da maneira

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GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

como se apresentam as burocracias Tendo isso em mente, uma


governamentais na atualidade, uma vez que rearticulação do conceito tem pelo menos
as técnicas de gestão oriundas da produção quatro obstáculos. Primeiro, desvencilhar a
material fluem cada vez visivelmente para a burocracia governamental da identidade com
esfera governamental. Assim, a rearticulação a empresa, identidade posta pelo próprio
categorial precisa ultrapassar a mera conceito. Isto, de uma forma bastante
apreensão do conceito que encontra na proveitosa, pode ser capturado na crítica de
epidérmica descrição empírica dos traços Lukács à “analogia grosseira” e na
funcionais e superficiais da burocracia necessidade de rearticulação que vimos em
governamental o seu limite imanente. Isto é, Poulantzas, Tragtenberg e Souza Filho,
não basta dar uma descrição dessa embora não tenha sido resultado de um
burocracia. É preciso conectá-la à relação esforço sistemático de rearticulação.
contraditória fundamental e, assim, nem Segundo, situar essa burocracia em relação à
mesmo a descrição será a mesma que se produção da riqueza e, portanto, às
pode encontrar no tipo puro de burocracia. contradições da sociedade, particularmente a
Nesse sentido, é certo que a fixação da contradição da relação-capital, isto é, como
burocracia, como fez Hegel, como elemento produto e, ao mesmo tempo, condição da
particular de mediação entre o Estado reprodução da sociabilidade do capital, mas
(universalidade) e a sociedade civil sempre em contraditoriedade; trata-se, pois,
(singularidade) é, como o próprio Marx de uma categoria pertencente à produção
apontou, errar em não reconhecer que tanto capitalista e não universalmente existente.
o Estado quanto sua burocracia Terceiro, garantir que esta conexão não se
governamental são produtos da sociedade submeta à simples descrição empírica dos
em contradição consigo mesma (cf. Marx, seus elementos funcionais de superfície. Em
2005, p. 107; 1976, p. 295-6). Como dito, suma, a razoabilidade da burocracia
qualquer rearticulação da burocracia, governamental enquanto uma categoria
enquanto burocracia governamental, precisa rearticulada ao projeto marxiano é dado por
relacioná-la ao antagonismo fundamental, sua propriedade de expressar as relações
enfrentar e atravessar as mistificações de reais, efetivamente existentes por detrás de
superfície que eliminam aparentemente tal sua aparência racional na qualidade de forma
relacionamento. mistificada da relação-capital ao fundo. Em

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

outros termos, expressar a irracionalidade the following section, the essay considers the
Lukács (History and class consciousness)
sob o manto da racionalidade do capital e de
effort to rearticulates the Weberian ideal
suas formas mistificadas, como a burocracia type of bureaucracy and how he
acknowledge years later (The Reason
governamental enquanto uma relação social
destruction) the involved problems which
de produção determinada. Por fim, o quadro are linked with the analogy between the
State and capitalist enterprise. Thus, one can
nunca estará completo sem a determinação
evaluates to what extent there is
marxiana da burocracia que seja, ao mesmo reasonability in bureaucracy as a category
by which we can consider an adequate
tempo, uma crítica radical ao tipo ideal
rearticulation, taking into account the ideas
weberiano. of Poulantzas, Tragtenberg and Souza Filho.
This evaluation aims at the indication of the
A rearticulação categorial do
relevance of exogenous categories to the
conceito weberiano de burocracia, portanto, development of the potentialities of Marxian
project, without setting aside the immanent
ainda aguarda um trabalho dedicado,
limits and problems of that appropriation.
considerando a importância de circunscrever We conclude that such abstraction is
reasonable after an adequate rearticulation
a burocracia governamental à contradição da
insofar as it is an expression of and insofar
sociedade consigo mesma. as it expresses the effective relations beyond
of the surface of these social relations.

Abstract Key-words: Reasonable abstractions,


general production, abstract labour,
The Marxian project never would be made
without specific categories whose origins bureaucracy.
can be found in intellectual grounds very
diverse from it. Notwithstanding, the
appropriation made by Marx was not done in REFERÊNCIAS
automatic way. What determines that is a
rearticulating effort of relevant categories,
undressing them from arbitrariness to an FREDERICO, Celso. (2010). O marxismo
adequate expression of objective relations. It
weberiano. In: Teixeira, Francisco;
is not a purification of the heuristic value of
concepts, but a category rearticulation of Frederico, Celso. Marx, Weber e o marxismo
relevant reasonable abstractions for the
weberiano. São Paulo: Cortez.
reproduction of the effectiveness in thought,
and also to stress the logic of the things and KOCKA, J. (1986). Max Weber, der
its contradictions and the social relations
Historiker. Band 73, Kritische Studien zur
under the superficial forms. Thus, this essay
shows the fundamental appointments made Geschichtswissenschaft. Göttingen:
by Marx about the reasonable abstractions,
Vandenhoeck & Ruprecht.
especially about the general production and
abstract labour as categories originated from
classic political economy (Adam Smith). In

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

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econômico-filosóficos e outros textos forms of consciousness: the social
escolhidos. Coleção Os Pensadores. São determination of method. v. 1, New York:
Paulo: Abril Cultural. Monthly Review Press.
__________. (2011). Social structure and
forms of consciousness: the dialectic of

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REARTICULAÇÃO CATEGORIAL AO PENSAMENTO MARXIANO: PRODUÇÃO EM
GERAL, TRABALHO ABSTRATO E BUROCRACIA

structure and history. v. 2, New York:


1
Professor da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Monthly Review Press. E-mail eletrônico: paco.cunha@ufjf.edu.br
2
O trabalho produtivo é outra categoria importante
MILL, S. (1996). Princípios de economia que Marx rearticula a partir de Smith, sempre em
política. vol 1, Coleção Os Economistas, São conexão com o trabalho abstrato. É possível conferir
a determinação do trabalho produtivo como trabalho
Paulo: Nova Cultural. que valoriza capital no texto de Marx Teorias da
mais-valia (1985) e no capítulo 7 de Paço-Cunha
PAÇO-CUNHA, E. (2010). Gênese, (2010).

razoabilidade e mistificação da relação


social de produção em Marx: a organização
burocrática como abstração arbitrária. Tese
de Doutorado. Centro de Pós-Graduação e
Pesquisas em Administração. Belo
Horizonte.
POULANTZAS, N. (1971). Pouvoir
politique et classes sociales. Vol 2. Paris:
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