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reificação e reconhecimento
Sílvio Camargo1
Luiz Gustavo da Cunha de Souza2
Resumo
Neste artigo buscamos debater aspectos centrais do conceito de reificação de Georg Lukács
em sua obra “História e Consciência de Classe”. Nosso objetivo, no entanto, é mostrar a
interpretação proposta por Axel Honneth como uma atualização do conceito de reificação,
através de uma tentativa de superar a tradição epistemológica de sujeito-objeto em prol de uma
teoria da intersubjetividade. Honneth parte de sua teoria do reconhecimento para propor uma
formulação contemporânea do conceito de reificação. Postulando problemas teórico-sociais e
ontológicos, esse entendimento sobre a reificação traz implicações para sua própria trajetória
intelectual, bem como para pensarmos a teoria crítica no contexto da sociedade contemporâ-
nea.
Palavras-chave: Reificação; Reconhecimento; Teoria Crítica; Ontologia; Teoria Social
Abstract
In this article we intend to discuss central aspects of the concept reification conceived by Georg
Lukács in his book “History and Class Consciousness”. Our aim, however, is to show the
interpretation that Axel Honneth proposes as an actualization of that concept through an at-
tempt to overcome the subject-object epistemological tradition in favor of an intersubjectivity
theory. We intent to show how Honneth's reading of reification tries to give it a contemporary
formulation taking his own theory of recognition as basis. Postulating social theory and ontologi-
cal problems, this understanding about the reification has implications to his own intellectual
trajectory, as well as to the thinking of critical theory in the context of contemporary society.
Keywords: Reification; Recognition; Critical Theory; Ontology; Social Theory
I
Após quase noventa anos desde sua publicação, História e
Consciência de Classe, de Georg Lukács ([1923] 1986), já foi aclamado
como um dos marcos inaugurais do marxismo ocidental, influente
sobre inúmeras gerações de intelectuais, criticado posteriormente pelo
próprio autor, e hoje novamente lembrado por expoentes da teoria
social contemporânea. Embora o livro em seu conjunto seja um marco
do pensamento contemporâneo, merece nossa atenção em especial o
conceito de reificação, cuja formulação original em História e Consci-
ência de Classe foi decisiva para as primeiras elaborações da Teoria
Crítica da sociedade, vindo a ocupar um lugar central na obra de
Theodor W. Adorno e Max Horkheimer (1985). O conceito de reifica-
ção recentemente voltou ao centro de importantes reflexões, como em
Jameson (2009) ou através da tentativa de Axel Honneth ([2005] 2008)
de reatualizar este conceito. É sobre esta postulação de Honneth que
versa nosso ensaio.
Para a primeira geração da Escola de Frankfurt as ideias de
Lukács foram determinantes em sua crítica da sociedade burguesa
moderna entre as décadas de 1930 e 1940, que correspondiam a uma
etapa do capitalismo que estes autores designaram como capitalismo
tardio (CAMARGO, 2006a). A chamada crítica da razão instrumental,
a noção de indústria cultural e a própria compreensão adorniana da
obra de arte, referendavam os conceitos lukácsianos de totalidade e
reificação como centrais para a compreensão da sociedade contempo-
rânea. A linguistic turn habermasiana também possibilitou que aquilo
que antes se chamava reificação fosse agora compreendida como colo-
nização do mundo da vida ou como patologias da modernidade
(HABERMAS, 1987a, 1987b).
Na versão original de Lukács, o conceito de reificação era de-
pendente tanto de uma apreensão da racionalidade de Weber, como do
fetichismo da mercadoria de Marx. Sendo o fetichismo uma decorrên-
cia do trabalho abstrato como núcleo compreensivo da estrutura soci-
al, o esgotamento do paradigma da produção de um lado, e o advento
de epistemologias ancoradas na linguagem, por outro, parece ter tor-
nado sem eficácia uma crítica que, em última instância, possuía seu
foco na subjetividade humana. Esta subjetividade era entendida nos
termos de uma herança do idealismo alemão, e, portanto, igualmente
limitada em seu escopo compreensivo, conforme a visão habermasiana,
ao não conceber a concomitância de diferentes formas de racionalida-
de, ou a primazia da intersubjetividade como o lastro originário da
sociabilidade humana. A questão fundamental e bastante conhecida se
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II
Em História e Consciência de Classe, o conceito lukácsiano de
práxis expressou um novo modo de compreensão do marxismo no
início de século XX. Assim como Karl Korsch e Ernst Bloch no
mesmo período, Lukács tentou repensar a postulação do sujeito
histórico efetivo, capaz de realizar a crítica e a transformação do
capitalismo. Nesta obra inovadora e de grande envergadura filosófica
mostraram-se centrais os conceitos de totalidade e de reificação. Em
sua visão, estes conceitos referendam a visão de que o método é a
questão central da obra de Marx. O método dialético marxiano passa a
ser interpretado não como algo cuja estrutura lógica se concentre em
uma crítica exclusivamente econômica do capitalismo, mas, mediante
o recurso à categoria da totalidade, sendo ela a categoria dialética
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processo histórico, mas igualmente como algo que aponta para uma
subjetividade que também compõe tal processo. Deste modo, a domi-
nação capitalista que se expressa objetivamente na esfera material da
necessidade, na forma da exploração, se manifesta igualmente em uma
perda de liberdade, autonomia e autodeterminação dos indivíduos no
capitalismo3. Este fenômeno da reificação se apresenta como algo
generalizado e estrutural de toda a sociedade burguesa, cuja base mate-
rial é a forma mercadoria.
Tendo tomado por base a crítica da coisificação recorrente na
análise de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, o conceito de reifi-
cação é ampliado com a incorporação, em sua definição, da noção
weberiana de racionalidade. É nesse sentido que a crítica do capitalis-
mo de Lukács se torna também crítica da cultura (ARATO, 1986). Esta
crítica surge como crítica da racionalidade capitalista, que passa a ser
entendida como um sistema de pensamento e de organização da socie-
dade moderna que é imprescindível e fundamental para o processo de
dominação burguesa e de acumulação do capital. A crítica de Lukács,
no entanto, não tem por alvo destacar o conceito de racionalidade
como epicentro da dominação capitalista, algo que será nítido tanto
para Theodor Adorno como para Jürgen Habermas, mas apontar o
conceito de reificação como processo social inseparável da racionali-
dade moderna.
A concepção marxiana sobre o fetichismo da mercadoria é
transmutada em reificação, e passa a se referir não apenas ao domínio
econômico, mas ao conjunto das relações sociais no capitalismo. O
modelo de racionalidade assentado no cálculo, probabilidade e contro-
labilidade, tal como o havia apontado Weber em sua análise da socie-
dade moderna, se apresenta para Lukács como um conceito sociológi-
co em que as interpretações de Marx e de Weber sobre o capitalismo
não se configuram como totalmente excludentes, embora metodologi-
camente sejam radicalmente contrapostas: "[...] Quer isto dizer, contu-
do, que o princípio da mecanização e da possibilidade racional de
tudo calcular deve abarcar o conjunto das formas de manifestação da
vida" (LUKÁCS, 1986, p.106).
Para a dominação ideológica burguesa, assim como para a a-
cumulação do capital, tornou-se imprescindível o desenvolvimento e a
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4 Acerca da crítica, que, aliás, parte do próprio Lukács, de que em História e Consciência de
Classe não há uma efetiva distinção entre alienação e objetivação, nos reportamos ao comen-
tário de Löwy (2008, p.82): “além disso, não é exato que o conceito de reificação em História e
Consciência de Classe confunde ou identifica a alienação e a objetivação. Desde o início do
capítulo sobre a reificação, Lukács indica claramente que sua análise trata das formas de
objetividade na sociedade burguesa. Não se trata de qualquer Gegenstandlichkeit, mas de ‘a
objetividade, estranha aos homens, das leis sociais naturais’. Na realidade, Lukács distingue
explicitamente, em 1923, entre a objetivação reificada e a que não o é [...]”.
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III
Ao apresentar uma leitura não oficial do conceito de reificação,
Honneth busca relacioná-lo à sua própria teoria do reconhecimento,
através do entendimento de que ele pode referir-se ao abandono daque-
la forma de práxis engajada, ou de engajamento empático, que Lukács
descreve em algumas passagens de seu ensaio como constituinte da
práxis genuína (HONNETH, 2008, p.27). Com esta aproximação entre
a ideia lukácsiana de uma práxis genuína baseada no engajamento
empático e o substrato intersubjetivo da teoria do reconhecimento,
Honneth se esforça em “justificar a hipótese de que a posição de reco-
nhecimento possui uma prioridade genética e categorial sobre todas as
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rial. Quanto ao primeiro dos pontos, ele considera que há uma longa
história teórica em disciplinas como a psicologia do desenvolvimento
e nas teorias da socialização quanto à necessidade da presença de uma
segunda pessoa para a formação e desenvolvimento das habilidades
cognitivas entre crianças. Nos últimos anos, contudo, pesquisas nestas
áreas apontam para o fato de que este processo de descentralização da
personalidade egocêntrica através da tomada da perspectiva de um
outro externo é precedida por uma identificação emocional.
Citando pesquisas nesta área, Honneth sustenta que a identifi-
cação entre a criança e o adulto no qual ela encontraria seu parceiro
inicial deve ser emocional porque, caso contrário, não haveria uma
relação interessada da criança para com o adulto – e, consequentemen-
te, com o meio no qual esta criança se insere. Da mesma maneira,
colocar-se no lugar de outra pessoa exigiria do indivíduo envolvido
uma forma de reconhecimento que não pode ser entendida em termos
puramente cognitivos, “pois sempre e necessariamente contém um
elemento de abertura, devoção e amor involuntários” (HONNETH,
2008, p.45). Esta identificação emocional, ainda que seja distinta do
engajamento empático do indivíduo, parece indicar a Honneth que é
possível sustentar a tese da prioridade ontogenética do reconhecimen-
to. Isto porque os trabalhos de Lukács, Heidegger e Dewey comparti-
lham, em sua visão, a ideia de que no engajamento empático com o
mundo ao redor, abre-se ao indivíduo um mundo de significados, que
pode ser primeiro notado pela criança em fase de socialização justa-
mente em sua relação com o “outro concreto”. Por isso, ao falar sobre
a prioridade ontogenética do reconhecimento, Honneth sugere que a
identificação emocional com outrem é a origem do engajamento em-
pático com o mundo.
O problema para Honneth passa a ser justificar a segunda parte
de sua tese, que diz que o reconhecimento também é uma categoria
que possui prioridade sobre outras categorias compreensivas. Sua preo-
cupação é dirigida à tentativa de demonstrar como as relações de reco-
nhecimento antecedem a própria cognição, ou, para sermos mais cla-
ros, como a instância cognitiva com relação ao mundo já é ela mesma
uma instância de reconhecimento. Para isso, Honneth recorre à obra
de Stanley Cavell, autor que sustenta que é impossível, nos termos das
teorias cognitivas tradicionais, obter acesso aos estados mentais de
outros sujeitos, na medida em que tais estados não são objetos de
conhecimento. O que Cavell aponta é que, ao invés de objetos passí-
veis de descrição, sujeitos que se encontram e se comunicam uns com
os outros são, antes, seres engajados em um processo de descrição de
seus estados mentais em busca de atenção de seus parceiros, ao mesmo
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tempo em que são afetados por eles. Neste sentido, tanto o expositor
quanto o ouvinte prescindem de recursos a categorias compreensivas
teóricas, pois interagem linguisticamente e empaticamente, de modo
que ambos se envolvem empaticamente antes de poderem tomar co-
nhecimento dos estados mentais de seus parceiros, estabelecendo uma
instância de reconhecimento prévia a outras relações cognitivas
(HONNETH, 2008, p. 49).
Para Honneth, na teoria de Cavell esta interação linguística, as-
sim como nas teorias de Lukács, Heidegger e Dewey, aponta não ape-
nas para um tipo de entendimento não conceitual, mas também para
um tipo de engajamento empático entre os envolvidos. Esta comunica-
ção entre eles implica em um ato anterior de identificação que está
ausente nas teorias que supõem que entender o outro requer somente o
entendimento de suas razões para agir.
Honneth trabalhou, até este ponto de sua argumentação, dois
conjuntos distintos de problemas: primeiro procurou explorar as pos-
síveis leituras do ensaio de Lukács e decidiu-se pelo desdobramento
daquela que aproxima a teoria da reificação de outras teorias do enga-
jamento empático, como as de Heidegger e Dewey; depois procurou
demonstrar como é possível pensar no conceito de reconhecimento
como uma instância primária da relação dos indivíduos com o mun-
do. Seu passo seguinte será associar aquelas teorias do engajamento
empático com as teorias que apontam para a prioridade do reconhe-
cimento. E isto pode ocorrer somente porque em suas explorações
sobre o conceito lukácsiano de reificação ele afastou as possibilidades
de que este termo pudesse significar um erro categorial ou uma trans-
gressão moral, já que a reificação não diz respeito nem a uma forma de
compreensão das relações sociais, e nem a regras de conduta. A reifica-
ção para Honneth se refere a uma forma de comportamento, um hábi-
to mental, que faz com que os sujeitos humanos percam a capacidade
de engajar-se de modo afetivo com seus companheiros de interação
(HONNETH, 2008, p.53).
Ao contrário de Lukács, Honneth não busca contrastar instân-
cias de práxis genuína com instâncias nas quais estas práticas são per-
didas devido a um processo de racionalização que acaba por objetificar
o ato original de engajamento, pois isto implicaria em afirmar que
toda a sociabilidade humana foi banida pelo processo de racionaliza-
ção moderno. Honneth tampouco pretende seguir os passos de Ha-
bermas na Teoria da ação comunicativa (HABERMAS, 1987a, 1987b)
onde é apresentada uma concepção bidimensional de sociedade, a
partir da qual haveria uma colonização da lógica empática pela lógica
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IV
Em sua introdução à versão inglesa da publicação do ensaio
de Honneth, Martin Jay apresenta de forma bastante direta a per-
gunta que parece ser cabível a uma teoria da reificação como esque-
cimento do reconhecimento se esta deve ser tomada como uma
contribuição à teoria social e não apenas à epistemologia: “Como
este insight pode ser traduzido em termos concretos?” (JAY, 2008,
p.9). A questão torna-se ainda mais aguda se for notado que o pró-
prio Honneth evita afirmar que a lembrança, a consciência do
sofrimento, não é um motivo suficiente para a luta social, de modo
que o caminho da reificação para a luta por reconhecimento sequer
chega a ser esboçado. Este problema soma-se a alguns outros já
identificados: com a ênfase na ontologia social, a teoria do reco-
nhecimento deixa de lado seu fundamento nas experiências de
desrespeito às expectativas normativas construídas pelos indivíduos
durante seu processo de socialização, de modo que o reconheci-
mento deixa de ser compreendido como o horizonte normativo no
qual se movem as expectativas dos sujeitos e passa a ser o elemento
central de uma práxis genuína. A principal implicação desta mu-
dança para uma teoria da ação social voltada para a análise dos
conflitos sociais é a de que a conexão entre experiência e a forma-
ção de demandas políticas perde a posição central que ocupava
antes. Com isso, perde-se de vista justamente a dimensão sociológi-
ca da teoria do reconhecimento, em favor de uma antropologia do
reconhecimento que não se ocupa com a análise dos momentos
práticos da interação social.
Isto não significa que a tentativa de Honneth de reatualizar
o conceito de reificação deva ser vista como um fracasso. Entre os
méritos que se pode destacar, esta mesma tentativa de fundamentar
uma ontologia social na ideia de reconhecimento deve ser resguar-
dada, pois ela se identifica com os horizontes normativos que
Lukács tinha em vista e que, como Honneth frisa ao fim de sua
apresentação, não deveriam ser abandonados. Uma teoria do reco-
nhecimento que prescinda dos fundamentos apresentados por
Honneth para justificar a prioridade ontogenética e categorial deste
conceito estaria, então, em posição de dedicar-se apenas à dimensão
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Referências
ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclareci-
mento. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.
ARATO, Andrew; BREINES, Paul. El Jovem Lukács y los orígenes del
marxismo occidental. México: FCE, 1986.
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Sílvio Camargo
silviocc@terra.com.br
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