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CàLEÇÃO ARTE E SOCIEDADE

LEANDRO KoNDER

Karl Marx e Friedrich Engels


Cultura, arte e literatura: textos escolhidos

Gyorgy Lukács
Marxismo e teoria da literatura

Adolfo Sánchez Vázquez


As ideias estéticas de Marx
OS MARXISTAS E A ARTE:
BREVE ESTUDO HISTÓRICO-CRÍTICO DE
Iná Camargo Costa
Nem uma lágrima ALGUMAS TENDÊNCIAS DA ESTÉTICA MARXISTA

Ludovico Silva
O estilo literário de Marx

Celso Frederico
A arte no mundo dos homens

2a edição
Editora Expressão Popular
São Paulo- 2013
Copyright © 2013 by Editora Expressão Popular

Revisão: Maria Elaine Andreoti e Miguel Makoto Cavalcanti Yoshida


Capa, Projeto gráfico e Diagramação: Krits Estúdio
Impressão: Bartira
A Giseh e a meus pais.

A dificuldade não está em compreender que a arte e a épica


gregas se achem ligadas a certas formas do desenvolvimento
social, e sim no fato de que elas possam, ainda hoje, propor-
cionar-nos um deleite estético, sendo consideradas, em certos
Dados Internacionais de Gatalogaçãocna-Publicação (GIP)
casos, como norma e modelo insuperáveis.
Konder, Leandro, 1936- (Karl Marx, Introdução à Contribuição
K62m Os marxistas e a arte: breve estudo histórico-crítico de à crítica da Economia Política)
algumas tendências da estética marxista. I Leonardo
Konder.-2.ed.-São Paulo : Expressão Popular, 2013.
212p. -(Coleção Arte e Sociedade)
O desenvolvimento humano dos cinco sentidos é obra de toda
Indexado em GeoDados- http://www.geodados.uem.br a história anterior. O sentido subserviente às necessidades
ISBN 978-85-7743-217-2
grosseiras possui apenas uma significação limitada. Para um
1. Arte e marxismo. 2. Estética marxista. I. Título. 11. Série. homem faminto, a forma humana, do alimento não existe; só
existe o seu caráter abstrato de alimento. Ele poderia existir
CDU 7.013 mesmo na mais tosca das formas; e, nesse caso, não se pode-
CDD 701
ria dizer em que a atividade do homem, ao se alimentar, seria
Catalogação na Publicação: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250 diferente da do animal. O homem premido pelas necessidades
grosseiras e esmagado pelas preocupações imediatas é incapaz
de apreciar mesmo o mais belo dos espetáculos.
(Karl Marx, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844)

2• edição: abril de 2013

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SUMÁRIO

Cordialidade e convicção: notas sobre Leandro Konder ......... 9

Introdução .......................................... 17
I. Raízes hegelianas ................................... 29

2. Marx e Engels ..................................... 37

3· Kautsky .......................................... 45
4· Plekhanov ........................................ 49
5· Mehring .......................................... 55
6. Trotsky ........................................... 61
7· Lenin ............................................ 67
8. Bukharin ....................... · .................. 71
9· Eisenstein ......................................... 75
Io. Maiakovski ...................................... 81
II. Gorki ........................................... 85

I2. Zdanov ......................................... 89

I3. Max Raphael ..................................... 95


I4. Caudwell ........................................ 99
I5. Gramsci ........................................ 103
I6. Benjamin .......................... 113
I7. Piscator ........................... 117
I8. Brecht . . ........................... 121
I9. Lukács ......................................... 129
20. Lefebvre ........................................ 143

2I. Goldman~ ............. :...: ...................... 147

22. Garaudy ........................................ 155

23. Hauser ......................................... 163


24. Salinari e Chiarini ................................ 169
25. Della Volpe ................... 175
26. Cases e Aristarco ................................. 181
27. Fischer. . ................ 187
28. Kosik .......................................... 193
Conclusões ......................................... 199
Índice onomástico ................................... 208
CORDIALIDADE E CONVICÇÃO:
NOTAS SOBRE LEANDRO KONDER

Celso Frederico

Desde o início dos anos 1960, Leandro Konder vem desempe-


nhando um importante papel na vida intelectual e política de nosso país.
Ensaísta refinado, militante político, tradutor, jornalista e professor: em
cada uma dessas áreas, trouxe sua erudição e generosidade para divul-
gar o que há de melhor no pensamento social por meio de uma prosa
fluente que traduz temas difíceis em linguagem acessível.
Semelhante perfil, hoje, é algo raro. O intelectual voltado às
grandes questões e ao empenho de traduzi-las ao público saiu de cena
há tempos. A burocratização do trabalho chegou à atividade intelectual
e criou o novo tipo que passou a predominar em nossas universidades
-os "especialistas sem alma", na clássica e profética definição de Max
Weber. A ênfase nas minudências, a fragmentação, o apego ao dado
imediato desligado da história, o produtivismo sem critério e a lingua-
gem empolada -tais são os traços característicos desses "especialistas"
alheios áos grandes temas que antes mobilizavam os trabalhadores inte-
lectuais.
A trajetória de Konder, ao contrário, é de uma inabalável coerên-
cia. Durante várias décadas, pôs sua inteligência a serviço da divulgação
de textos e autores fundamentais, incitando os leitores a refletir sobre a
"batalha das ideias" travada em nosso país. Essa longa caminhada teve
seu início no final dos anos 19Sq, q~ando se colocou para os intelectuais
marxistas a necessidade de renovar o pensamento político e cultural da
esquerda brasileira, que, até então, refletindo as diretrizes internacio-
nais, era calcado nos antigos manuais de "marxismo-leninismo" divul-
gados pela Academia de Ciências da União Soviética. Banalizando o
pensamento de dois grandes autores - Marx e Lenin -, esses manuais
tiveram o mérito de fornecer à militância uma visão articulada e uma
linguagem comum. Mas isso gerou um estreitamento de horizontes e
um dogmatismo com efeitos nefastos na prática política e no trabalho
intelectual.
Naquele ambiente marcado pelo sectarismo, Leandro Konder e
Carlos Nelson Coutinho tiveram um papel fundamental, ao abrirem as

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CORDIALIDADE E CONVICÇÃO: NOTAS SOBRE LEANDRO KONDER
CELSO FREDERICO

janelas para que pudesse entrar o que tem de melhor no marxismo. Ao


lado dos "manuais e manuéis" -como dizia Maurício Tragtemberg -, os Inexiste, em Lukács, uma teoria política original: o pensador hún-
textos de Lukács, Gramsci e tantos outros foram enfim apresentados ao garo foi um leninista que não se atreveu a ir além do líder rus~o, p~r
quem tinha uma admiração incondicional. Como pensar a partiCulan-
público brasileiro. Esse importante trabalho de divulgação e a,proposta
dade brasileira? Ela se encaixa no modelo "oriental" da velha Rússia?
de pensar a peculiaridade brasileira longe das generalizações dogmáticas
("o Estado é tudo e a sociedade civil é primitiva e 'gelatinosa'"). Ou
estiveram sempre presentes na trajetória daqueles dois intelectuais, que,
fato raro, conseguiram manter uma longa amizade, num ambiente inte- no modelo "ocidental", como a Itália de Gramsci? ("há uma relação
lectual marcado tradicionalmente pela concorrência e pela inveja. equilibrada entre Estado e sociedade civil"). Afinal, o Brasil pertence ao
"Oriente" ou ao "Ocidente"?
Em seu início, aquela proposta de renovação do marxismo apoiou-
se nas ideias de Gyorgy Lukács como base para a formulação de uma O melhor fruto desse encontro com o pensador sardo é o livro A
política cultural. A inspiração lukacsiana serviu para Konder defender democracia e os comunistas no Brasil (Rio de Janeiro: Graal, 1980).
o humanismo na arte no período anterior ao golpe de 1964, momen- Trata-se, sem dúvida, de um dos melhores textos de nosso autor; uma
to em que os comunistas tinham como referências estéticas o realismo pesquisa minuciosa que enfoca a relação entre a linha política do PCB
socialista e o teatro político praticado pelos Centros Populares de Cul- e a sua política cultural. Konder nos mostra, com exemplos chocantes,
tura (CPCs) da UNE. Essa defesa, entretanto, não ficou confinada aos como a "truculência stalinista" foi responsável pelo afastamento dos
domínios da arte: o que se procurava, com a reflexão estética, era, de intelectuais e artistas do partido: sectarismo na política, estreiteza e iso-
lamento no campo cultural. Quando, ao contrário, o partido agia demo-
fato, a renovação do próprio marxismo. Contra a escolástica marxista-
leninista, a teoria de Lukács surgia como um sopro renovador. craticamente, os melhores artistas e intelectuais do país aderiam com
entusiasmo às suas iniciativas.
Em 1961, o jovem Leandro Konder iniciou uma troca de corres-
Paralelamente à luta pela redemocratização, o debate sobre a
pondência com Lukács. O velho mestre, surpreso com o interesse por
suas ideias num país tão distante, respondeu com extrema gentileza às modernidade e seus reflexos na estética chegou ao Brasil, deixando os
perguntas que lhe eram feitas. A correspondência, descoberta 30 anos discípulos de Lukács desarmados. Tudo o que se escreveu após 1848
deve ser incluído, sem mais, na "decadência ideológica da burguesia"?
depois no Archivium Lukács de Budapeste, encontra-se transcrita no
livro organizado por Maria Orlanda Pinassi e Sérgio Lessa, Lukács e a K~nder viveu intensamente o pensamento de Lukács, que tanto
atualidade do marxismo (São Paulo: Boitempo, 2002). fascínio exerceu em sua juventude, e o acompanhou, como veremos mais
em frente, até os seus limites.
Durante o regime militar, o fechamento dos canais de participação
política fez da cultura um campo de resistência. Novamente, Lukács foi
um~ referência central para K~nder. A teoria es~ética lukacsiana surgiu,
entao, para a defesa do humamsmo e para a crÍtiCa da estreita visão clas- A iniciativa da Editora Expressão Popular de republicar as obras
sista, que se apegava à oposição arte burguesa versus arte operária. A de Leandro Konder, além de ser qma justa homenagem a esse grande
perspectiva de Lukács, ao valorizar a literatura democrático-burguesa batalhador, é um presente às novas gerações de militantes às volt~s com
. . ' os temas e problemas tratados pelo autor; temas e probl~mas, diga-se,
expnm1a, no campo cultural, a política de "frente popular"; por isso ela
se encaixava como uma luva na orientação geral do PCB: somar todas as que permanecem atuais. E as homenagens_, embora tardias, _começ~m
forças oposicionistas e democráticas (e não somente os grupos de esquer- a aparecer no meio universitário, que, enfim, reconhec~u a _Impor~an­
da) para, assim, isolar e derrotar a ditadura militar. cia desse pensador outsider. Exemplo eloquente é a pubhcaçao do hvro
. Finalmente, a crise do regime militar e a redemocratização permi- organizado por Maria Orlanda Pinassi, Leandr~ ~on~er. A rev~nche da
tiram que os intelectuais saíssem do campo restrito da política cultural dialética (São Paulo: Boitempo, 2002), em que vanos mt~lectuai~ r~alça­
e se lançassem na reorganização partidária e nas lutas especificamente ram a contribuição do homenageado ao pensamento sooal brasll~Iro.
políticas. Nesse momento, Konder e seus companheiros foram obrigados Das obras recentemente reeditadas, Os marxistas e a arte f01 a que
a repensar o legado lukacsiano. mais marcou a minha formação intelectual. Até hoje, nos cursos de pós-
graduação, recorro a esse livro que me acompanha há décadas e que faço
IO
II
CORDIALIDADE E CONVICÇÃO: NOTAS SOBRE LEANDRO KONDER CELSO FREDERICO

ci~cular entre os alunos em cópias xerografadas. Percebo, com surpresa, Apesar de todos esses fatores adversos, a força das ideias de Marx
o Impacto que continua a exercer nas novas gerações. continuava interpelando os "espíritos livres". Os marxistas, no século XX,
O lançamento de Os marxistas e a arte, em 1967, foi um aconte- trouxeram inestimável contribuição ao estudo da arte. Fato curioso: o que
cimento cultural. Naquele momento, a esquerda brasileira se batia con- inicialmente era uma crítica da Economia Política acabou gerando seus
tra a ditadura e procurava acertar as contas com os erros do passado. melhores frutos no campo cultural. Por uma ironia da história, a cultura,
O grande crítico literário Otto Maria Carpeaux, na apresentação, não vista desde sempre como uma esfera aparentemente afastada de sua base
poupou elogios ao autor:
material, imbricou-se cada vez mais com a economia no mundo moder-
Sua alta competência (... ) é provada pelos seus estudos da obra de Lukács e no. Daí a importância do legado de Marx, que convidava o pesquisador a
pela tradução do livro de Ernest Fisher, A necessidade da arte. Leandro Kon- decifrar as relações da arte com a sociedade. Konder apresentou ao leitor
der, jovem ainda, já é o igual desses grandes espíritos livres. Demonstrou-o brasileiro o empenho dos diversos autores marxistas que retomaram aquela
pelo seu admirável livro Marxismo e alienação. Quando o li, pensei: Leandro relação -justamente no momento em que entre nós predominava o estrutu-
Konder é uma grande promessa. Hoje sei que a promessa está realizada. ralismo e sua tentativa de transformar a literatura num ramo da linguística,
isto é, numa esfera à parte, autorrecorrente, sem nexos com a sociedade.
Os marxistas e a arte apresentou ao público brasileiro um conjun- Cada autor apresentado no livro mereceu um esclarecedor capí-
to de. autores até ~ntão desconhecidos - autores que tinham o que dizer, tulo, em que suas contribuições eram realçadas e seus erros, criticados,
em diferentes registros, sobre as relações do marxismo com a arte. Dos tendo como referência última o pensamento de Lukács. Tempos depois,
clássicos aos modernos, cada um deles foi objeto de um estudo equilibra- um novo horizonte se abriu para o nosso autor com a publicação da obra
do. Mesmo na discordância, Konder soube realçar a contribuição dada póstuma de Lukács, Ontologia do ser social. No mesmo período, inten-
aos estudos estéticos pelos autores apresentados. A cordialidade - traço sificou-se a discussão sobre a arte na modernidade. Esses dois aconteci-
sempre lembrado de sua personalidade - convive harmoniosamente com mentos se entrelaçaram nas preocupações intelectuais de Konder.
uma firme convicção. No livro citado, tratava-se de defender a arte como Qual era, afinal, a mensagem deixada por Lukács em sua Onto-
herança cultural da humanidade, do humanismo e do método realista na logia? Diante da investida do neopositivismo, o mestre húngaro rei-
literatura. Konder, então, colocava-se na cena cultural brasileira como vindidva o primado do objeto sobre o pensamento e seus esquemas
discípulo de Gyorgy Lukács, autor que lhe fornecia subsídios teóricos formais. Seguindo a orientação aberta por Hegel, a ontologia cobra do
para desenvolver o projeto de uma política cultural renovadora. pesquisador uma entrega total ao objeto e a tarefa de acompanhar o seu
O livro se inicia com a constatação de que nem Marx e nem Engels autodesenvolvimento. Ao contrário da tradição positivista, que preten-
~screveram uma teoria estética, mas deixaram comentários esparsos dia capturar o objeto através de categorias prévias formuladas arbitra-
Importantes sobre o tema. Ao contrário do que pensam alguns esses riamente, Lukács insistia no caráter plástico do pensamento em relação
c~mentár~os não são "enfeites" para adornar os textos e nem digres- ao real repetindo assim a lição de Marx: "as categorias são formas de
so~s ~ruditas, mas parte integrante do pensamento de Marx e Engels. ' ' ' . \

ser, determinações da existência".


Ha, SIII_I, um pen~a~ento est~tico cuja compreensão, entretanto, exige o A perspectiva ontológica, aberta por Lukács, não deveria também
conhecimen~o previo da teona geral marxiana e, em especial, das com- conduzir as reflexões sobre a arte? Por que se apegar ao realismo do
plexas relaçoes com o legado hegeliano. século XIX como modelo se os artistas procuram, em seu ofício, acom-
. Por az~r, ~lguns/ i~portantes textos em que Marx e Engels expli- panhar as metamorfoses da realidade social? O crítico deve permanecer
Citava_m suas Ideias esteticas foram publicados tardiamente. Os primeiros numa estática posição condenatória ou deve se esforçar para entender as
marxistas, sem conhecê-los, não atinaram nem para a importância da arte modificações operadas em seu objeto de análise?
e nem para as implicações filosóficas do pensamento de Marx. Depois Nesse sentido, Os marxistas e a arte é um livro datado: datado
quan~o. da publicação, já vigorava o stalinismo, sua concepção canhestr~ para o próprio Konder, que refinou e diversificou suas referências inte-
de estetiCa e, o que era ainda pior, a interdição do debate democrático. lectuais e, também, no que diz respeito aos marxistas contemporâneos
que continuaram escrevendo e, não raro, modificando substancialmen-

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CELSO FREDERICO
CORDIALIDADE E CONVICÇÃO: NOTAS SOBRE LEANDRO KONDER

te suas ideias. Sempre achei que Konder deveria ter atualizado o seu de coerência cobrava do marxista-leninista que articulasse um elenco de
livro, que eu continuava e continuo utilizando com os alunos. Mas princípios bem definido com sua implacável aplicação aos fenômenos.
ele, apesar de ter aparentemente abandonado sua obra, continuava, de Por outro lado, a vocação dialética se abria para a riqueza inesgotável da
fato, acompanhando o empenho do marxismo para entender o fenô- realidade, para a irredutibilidade do real ao saber, para o encanto inefá-
meno artístico. vel das obras de arte que surpreendiam e cativavam o pensador".
Mais tarde, em sua autobiografia, fez a seguinte autocrítica: Lukács, portanto, permanecia tensionado entre os rigores da orto-
doxia e a abertura para a riqueza da realidade. Vale dizer: entre o dog-
as questões eram bem mais complexas do que eu supunha, e alguns autores matismo stalinista e a "vocação dialética" que acenava para a concepção
mereciam uma atenção e um cuidado que eu nem sempre conseguira ter. O do marxismo como uma ontologia. Um "espírito livre", como Leandro
capítulo sobre Walter Benjamin, por exemplo, é flagrantemente insatisfató-
Konder, soube entender o que precisa ser desenvolvido na obra de seu
rio: baseia-se tão somente na leitura do ensaio benjaminiano sobre a repro-
dutibilidade técnica da obra de arte. Deixa de lado conceitos fundamen- mestre e, assim, nos passou uma lição de independência intelectual, sem
tais da estética do magnífico ensaísta alemão (Memórias de um intelectual nunca abrir mão de suas convicções.
comunista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008, p. 75). Minha geração e as que vieralT\ a seguir têm uma dívida impagável
Convém lembrar que, na época em que o livro foi escrito, Benja- com esse notável batalhador que "entre luzes e sombras" soube manter,
min era pouco conhecido entre nós, e o único texto traduzido, aquele cordialmente, a sua inabalável coerência,.
sobre a reprodutibilidade técnica, era então apresentado como uma apo-
logia da cultura de massa e, por tabela, uma crítica ao marxismo. Esse
era o clima cultural do período. Aos poucos, a obra de Benjamin foi
sendo publicada e os horizontes se ampliaram. Konder, então, voltou em
grande estilo, apresentando ao leitor brasileiro uma visão completa da
obra daquele grande pensador heterodoxo, como atesta o livro Walter
Benjamin, o marxismo da melancolia (Rio de Janeiro: Campus, 1998).
Brecht, que defendia na arte o realismo numa perspectiva em tudo
diferente de Lukács, mereceu uma nova interpretação em A poesia de
Brecht e a história (Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1996).
O nosso incansável publicista revisitou também outros autores,
como Hebert Marcuse, Mikhail Bakhtin e Lucien Goldmann, no impor-
tante livro A questão da ideologia (São Paulo: Companhia das Letras,
2002).
Finalmente, o próprio Lukács teve todo o seu percurso intelectual
reestudado em Lukács (Porto Alegre: L&PM, 1980).
Aliás, é bom insistir, o pensamento de Lukács e seus limites conti-
nuaram acompanhando a trajetória intelectual de Konder. Num texto de
1996, "Estética e política cultural", publicado no livro Lukács, um Calí-
leu no século XX (São Paulo: Boitempo, 1996), voltou a defender enfati-
camente a função humanizadora da arte (e não o seu caráter "nacional-
popular"). Há nesse ensaio uma observação que merece ser realçada. Em
certo momento, há uma referência às "tensões internas" nos escritos lite-
rários de Lukács dos anos 1930, momento em que ele estava empenhado
num "doutrinarismo monolítico". Diz Konder: "por um lado, a busca

I5
INTRODUÇÃO

Como toda concepção do mundo, o marxismo possui a sua própria


teoria estética, que integra, de modo geral, a sua teoria do conhecimen-
to. No entanto, no interior do marxismo e ao longo do seu desenvolvi-
mento, posições teóricas diversas se têm formado e reivindicado o direito
de representar a estética marxista. Isso não quer dizer que a concepção
marxista do mundo comporta, indiferente, várias teorias estéticas; quer
dizer apenas que, por diferentes razõeS, a partir de uma mesma base,
posições estéticas controvertidas puderam historicamente formar-se e
deram feição contraditória à elaboração conceitual da doutrina estética
do marxismo.
Entre as razões que explicam o fenômeno, podemos enumerar as
seguintes: 1) o fato de que o marxismo não constitui uma concepção
"acabada" do mundo e não se deixa encerrar em um sistema fechado,
"ortodoxo", de ideias definitivas; 2) o fato de que Marx e Engels não
desenvolveram explicitamente, eles mesmos, em qualquer livro ou ensaio,
de maneira sistemática, a teoria estética do marxismo; 3) o fato de que
alguns dos textos básicos dedicados por Marx e Engels a uma apreciação
circunstancial de questões estéticas só foram tardiamente divulgados e
não foram devidamente valorizados em suas indicações mais profundas.
Outras razões serão indicadas no corpo da presente exposição.
No que se refere à divulgação tardia de certos textos muito impor-
tantes para o esclarecimento das ideias de Marx e de Engels sobre os
problemas estéticos, convém lembrar que algumas das cartas nas quais
Engels discorre mais longamente e: com maior profundidade a respeito
de questões de arte e literatura são da sua velhice e não tiveram ampla
difusão imediata. A carta de Engels à jovem romancista srta. Harkness,
por exemplo, é de abril de 1888. Nela, Engels fala a respeito do gênio de
Balzac, regozijando-se com o fato de que na obra balzaquiana o realis-
mo do ficcionista tenha prevalecido sobre a mentalidade conservadora
do homem. Essa carta é da maior significação para a reconstituição do
autêntico pensamento estético de Engels, pois nela o grande companhei-
ro de Marx distingue expressamente entre as ideias realizadas na obra e
as ideias proclamadas pelo autor. O plano da criação estética, por con-
seguinte, lhe aparece como capaz de revelar valores que não derivam de
maneira apriorística dos valores conscientemente adotados pelos escrito-

I7
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

res na atividade pública não criadora destes (política, vida literária etc.). Engels, adaptando-as superficialmente aos novos tempos. Como obser-
Pois tal carta- que, como dissemos, é de 1888 - só teve real difusão a va Gramsci, o materialismo histórico de Marx e Engels foi apresentado
partir da segunda década do século XX. como sendo uma nova versão do materialismo tradicional, apenas um
Devemos recordar, também, que a coleção das cartas trocadas tanto completado e corrigido pela dialética, como se a dialética não
entre Marx e Engels só veio a ser publicada, igualmente, no século XX, implicasse toda uma nova teoria do conhecimento. 2 A nocividade dessa
em trabalho supervisionado por Franz Mehring. A Introdução à Contri- timidez dos mais fiéis entre os discípulos de Marx consiste em que ela,
buição à crítica da Economia Política - de todas as páginas que Marx lisonjeando a inércia dos hábitos culturais, contribuiu para que alguns
dedicou à abordagem dos problemas estéticos, aquela que talvez seja a dos avanços mais notáveis da filosofia marxista não fossem corretamen-
de exegese mais delicada- permaneceu inédita até 1903, ocasião em que te apreciados.
Kautsky a publicou. E os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, "Usualmente- escreveu Gramsci -,quando uma nova concepção
texto que contém significativas ideias do jovem Marx sobre a arte como do mundo sucede a uma precedente, a linguagem precedente continua
educadora dos sentidos humanos, só foram divulgados em 1931. O pró- a ser usada, mas passa a ser usada metaforicamente". 3 Foi exatamente
prio Lenin, portanto, não chegou a lê-los. o que se deu com o marxismo. A despeito de toda a sua extraordinária
Acresce considerar que as opiniões emitidas por Marx e Engels inventiva, Marx e Engels tiveram de recorrer a conceitos algo contami-
nas cartas e nos textos em que, de passagem, abordavam questões de nados por séculos de emprego metafísico e se serviram deles, em alguns
arte e de literatura foram por muito tempo consideradas destituídas de casos, metaforicamente. Pois bem: as "metáforas" de Marx foram toma-
maiores implicações filosóficas. Franz Mehring, por exemplo, interpre- das excessivamente ao pé da letra, e não houve, desde logo, um efetivo
tava a controvérsia que opôs epistolarmente Marx e Engels, de um lado, reconhecimento de tudo o que o seu método dialético acarretava de novo
e Lassalle, de outro, na discussão da tragédia Sickingen de Lassalle, em matéria filosófica. A metáfora de Marx segundo a qual a economia
como resultante da mera diversidade de "gosto pessoal" deles. (Lukács é a espinha dorsal da sociedade, por exemplo, chegou a ser utilizada de
já se encarregou de demonstrar que naquela controvérsia se manifesta- maneira a fazer com que alguns marxistas pudessem explicar - contra
vam divergências profundas de visão do mundo dos debatedores.)l Marx- as relações entre a vida política e cultural, de um lado, e a ativi-
A elaboração conceitual, filosófica, da estética marxista era um dade econômica, de outro, nos termos em que um biologista explicaria
trabalho cujas dificuldades ficavam ainda mais agravadas em decorrên- as relações entre a estrutura óssea do organismo e o tecido conjuntivo.
cia de não se ter, em geral, avaliado corretamente o caráter novo da Uma vez que a elaboração filosófica geral da concepção marxista
concepção marxista do mundo. A novidade da contribuição marxista deixava muito a desejar, não é surpreendente que a elaboração conceitual
foi, durante muito tempo, subestimada; e mesmo os melhores seguido- particular da estética marxista fosse bastante problemática. Mas ainda
res de Marx foram vítimas dessa subestimação. Ainda hoje, não é raro há mais: o desenvolvimento teórico da concepção filosófica geral do
encontrar marxistas que pagam tributo a semelhante equívoco. Como marxismo veio a manifestar, de, modo geral, certa tendência para subes-
o marxismo tinha raízes em algumas concepções do passado (e é óbvio timar a estética e o estudo dos problemas da teoria marxista da arte. Por
que toda filosofia as tem), o estudo dos discípulos de Marx e Engels se mal compreendida em alguns de seus aspectos essenciais, a concepção
desenvolveu muito mais no sentido de pôr a nu as afinidades da nova marxista do mundo pareceu, aos olhos de seus defensores, prescindir de
concepção com as que a precederam do que no sentido de definir aquilo uma teoria estética mais elaborada. Certos teóricos marxistas parecem
que a opunha a elas. O marxismo era o herdeiro do conteúdo social pro- ter chegado a crer, realmente, na irrelevância da estética, na sua básica
gressista do velho materialismo? Pois logo se procura estabelecer uma estreiteza de significação. Antonio Labriola escreveu a Benedetto Croce
revitalização das concepções dos ancestrais materialistas de Marx e de uma carta compungida quando soube que este estava escrevendo um
2
A. Gramsci, Il materialismo storico e la filosofia di Benedetto Croce, ed. Einaudi, p. 151.
1 G. Lukács, Il marxismo e la critica letteraria, trad. Cesare Cases, ed. Einaudi, 1953, p. 56 [cf. A. Gramsci, Concepção dialética da história, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
e ss. [cf. G. Lukács, Marx e Engels como historiadores da literatura. Trad. Teresa Mar- 1978, p. 194].
3
tins. Porto: Nova Crítica, s.d., p. 7 e ss.] Op. cit., p. 146. [cf. ed. cit., p. 175].

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OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

livro sobre estética. A estética foi tratada como um subúrbio atrasado humana a que damos o nome de arte. Em certo sentido, semelhante con-
que 0 núcleo urbano tende a fazer desaparecer, absorvendo-o e transmu- cepção postula um retorno da arte à sua origem histórica, a seu estágio
dando-lhe a fisionomia, em seu crescimento industrial. mais primitivo de desenvolvimento, quando a designação arte abrangia,
Ainda hoje, a tendência para menoscabar a importância do fato vaga e genericamente, os diversos ofícios e atividades dos artesãos, desde
estético e encarar a arte em termos estreitos se manifesta em autores a poesia, a pintura e a música até a tecelagem, o bordado e a edificação
marxistas, ou influenciados pelo marxismo. Procuramos mostrar, num de construções. Como notou Bernard Bosanquet, isso ainda ocorria no
trabalho com o qual visamos contribuir para um estudo do conceito tempo de Platão. 6 Trata-se, pois, de uma volta à época platônica ou pré-
marxista de alienação, 4 que uma compreensão deficiente da teoria da platônica.
alienação tem prejudicado as formulações de diversos autores que se Em geral, contudo, a subestimação da função gnoseológica da
reclamam do marxismo em suas considerações estéticas. Afirmamos, arte assume outra forma nos autores marxistas ou influenciados pelo
no referido trabalho, que o escritor grego (radicado na França) Kostas marxismo. Em geral, tais autores reconhecem na arte - ou, se quiserem,
Axelos, por exemplo, tende a reduzir o conhecimento artístico a uma na arte de tipo tradicional - um modo válido de conhecer a realidade.
espécie de.subproduto__4<;>}§nêJ_JJ1e_n() histórico de_(llienação. Como, com Mas esse reconhecimento permanece abstrato. Por comodidade política,
a divisão socrara:;; trabalho, a atividade criador-a do homem o levou ou por preguiça mental, quando não por ilusão de boa-fé (provocada
a produzir bens e valores nos quais ele não se reconhecia - e como, pela infiltração do determinismo fatalista e da simplificação positivista
por outro lado, a própria atividade humana de criação artística vem, ao no marxismo), os autores marxistas pareceram ter esquecido, em nume-
longo da história da humanidade, pagando tributo a essa alienação do rosos casos, a básica irredutibilidade do real ao saber, postulada pela
homem-, Kostas Axelos concluiu que a arte era uma atividade essencial- teoria marxista do conhecimento; e passaram a encarar, na prática,
mente comprometida com a alienação e destinada a desaparecer como os avanços da historiografia, da Economia, da Sociologia e da Ciência
tal quando a alienação fosse historicamente superada. Com a superação Política do marxismo como se tais avanços lhes trouxessem, de forma
da alienação, segundo Axelos, "a vida absorverá a arte", e a arte "per- definitiva, nada mais nada menos do que a própria essência do real. E,
derá a sua essência em proveito da técnica". 5 uma v~z que a essência do real já lhes estava completamente desvendada
Outra versão da tese fundamental esposada por Axelos é a de pelos historiadores, economistas, sociólogos e dirigentes políticos repre-
que a chamada revolução industrial provoca uma tal modificação na sentativos do marxismo, era natural que os filósofos marxistas -embora
natureza da arte que esta, como fenômeno social, tende a mudar com- reconhecendo uma função gnoseológica à arte - fossem levados a enca-
pletamente de função, substituindo-se ajun~~~J?:C:~~?~~~~<::o~ "limitada" rá-la como· se, de fato, ela nada (ou bem pouco) tivesse a lhes dizer.
que tinha enquanto se destinava a um público de elite por l!E:3'.J~~~ã? A subestimação da função gnoseológica da arte, por conseguinte,
utilitária, P!.<l_gJilªticª,C]l:tt::Passa a ter na ampla produção industrial des- abrange desde a negação implícita ou explícita da sua importância como
.t1nad3:- às massas. De acordo com semelhante concepção, as chamadas modo específico de conhecer o real até o reconhecimento meramente
''artes priticas" tendem, hoje, a tomar o lugar da Arte (com maiúscula), abstrato de tal importância.
isto é, tendem a ocupar o vazio deixado pela arte de tipo tradicional, que No entanto, ainda que deixássemos de lado semelhante subesti-
corresponde cada vez menos a uma necessidade social. mação em seus variados aspectos e considerássemos, em princípio, o
Em ambos os casos- quer dizer, tanto na teoria da absorção da reconhecimento do valor gnoseológico da arte solidamente estabelecido
arte pela vida como na teoria da vitória das chamadas "artes práticas" para a estética marxista, teríamos de enfrentar importantes e complexos
sobre a arte de tipo tradicional - deparamo-nos com uma subestimação problemas, cujo correto encaminhamento é uma condição imprescindí-
fundamental da função gnoseológica dessa forma particular da práxis vel para nos alçarmos a posições que nos abram os mais amplos hori-
zontes teóricos.
4 L. Konder, Marxismo e alienação, ed. Civilização Brasileira, p. 131 [cf. a quinta parte,
intitulada "Alienação e arte". Há edição recente desta obra, cf. Marxismo e alienação,
6
São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 155-180 (N.E.)]. B. Bosanquet, Historia de la estética, trad. José Rovira Armengol, Editorial Nova, Buenos
5 K. Axelos, Marx penseur de la technique, Éditions de Minuit, Paris, p. 176. Aires, p. 51.

2I
20
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

A posição hoje dominante na estética marxista admite francamen- como legítimo conhecimento artístico se evidencia na sua influência
te que a arte constitua um "reflexo" ou uma imagem aproximativamente profunda e duradoura.
fiel da realidade, um desvendamento da realidade em seus níveis mais A profundidade da influência cultural de uma obra de arte é ela
essenciais; torna-se pacífico, assim, que a estética marxista é mesmo própria, um dado de avaliação altamente problemática, de vez que ' a
uma parte integrante da teoria marxista do conhecimento. Por outro intensidade momentânea da sua repercussão pode nos iludir e nos fazer
lado, praticamente todos os marxistas concordam em uma coisa: em aceitar como profundo aquilo que, embora barulhento, é apenas episó-
que a história da arte é uma face da história geral da humanidade e tem dico. E, além disso, não podemos esperar que uma obra de arte mostre
a sua autonomia relativa limitada pelo sentido geral desta última. Dessa possuir uma influência comprovadamente duradoura, pois não podemos
maneira, para os marxistas, a história da arte deverá ser estudada a transferir para o futuro uma avaliação que nos compete tentar fazer no
partir das categorias e dos métodos do materialismo histórico, isto é, da presente. A dificuldade para a crítica de arte (e para a teorização estética
concepção marxista da história (o que não significa, evidentemente, em que ela exige) não reside tanto na avaliação das obras de arte já consa-
hipótese alguma, procurar enquadrar de modo apriorístico ou esquemá- gradas pela longa vida como na avaliação da produção artística recente
tico os fatos artísticos em modelos teóricos). ou contemporânea, avaliação cujo empreendimento lhe cabe fazer como
Mas, mesmo no interior da unidade constituída por tal concor- tarefa inescamoteável.
dância, não é possível impedir que as divergências entre os críticos mar- Também não tem sentido dizer que a correta avaliação das obras
xistas surjam e se aprofundem, em alguns casos. A arte é- dizem eles, de arte do passado ou do presente, a justa formulação da problemática
quase uníssono - uma imagem aproximativamente fiel da realidade e da arte, em geral, bem como a teorização estética adequada a propósito
deve procurar refletir o real em sua essência. Como, porém, deve fazê- da criação artística, quando postas diante das exigências fundamentais
lo? O que é que caracteriza a fidelidade aproximativa? E o que é que que se acham colocadas para as forças revolucionárias na época atual,
distingue a essência do fenômeno? O que é que distingue, na imagem não passem de tarefas insignificantes, desprezíveis, acerca das quais se
do real que a arte deve nos proporcionar, a realidade mais profunda da travem apenas discussões bizantinas. Do próprio ponto de vista estrita-
realidade mais superficial? mente político, tal afirmação seria tremendamente equivocada. É bom
De mais a mais, como deveremos distinguir, na história da arte, o não esquecer que as forças políticas mais profundamente empenhadas
conhecimento artístico válido da informação historiográfica ou científi- na transformação revolucionária do nosso mundo possuem uma polí-
ca? Como distinguir o valor gnoseológico-artístico do valor meramente tica cultural. E como poderiam elas desenvolver essa política cultural
documental? O que é que deve ser considerado específico no conheci- de maneira a mobilizar mais eficientemente os artistas em proveito da
mento proporcionado pela arte? O que é que legitima o autêntico conhe- revolução se não levarem em conta os problemas daquilo que é específi-
cimento artístico? co no trabalho dos artistas, isto é, a arte? Como poderiam se entender
Pode-se sempre tentar responder a esta última pergunta dizen- com os artistas, no caso de lhes fazerem sentir que aquilo que constitui
do que o conhecimento artístico é legitimado pela influência prática a razão de ser da atividade deles nada significa para elas, e que elas só se
que alcança na vida cultural dos povos e da qual a história da arte dá interessam pela utilidade política imediata da obra de arte, ainda que tal
testemunho. A história da arte indica, com efeito, obras de arte cuja utilidade derive de circunstâncias inteiramente extra-artísticas?
influência se revelou profunda e duradoura. E a influência profunda Afirmar que a crítica especificamente estética pode prestar servi-
e duradoura de uma obra de arte não pode deixar de ser reconhecida ços à própria análise política não é heresia alguma, do ponto de vista
como evidência prática de seu valor estético, não pode deixar de ser marxista. Dois grandes teóricos marxistas, pelo menos, podem ser invo-
reconhecida como prova de que o conhecimento artístico por ela pro- cados para a sustentação dessa tese: Gramsci e Lukács. Gramsci observa
porcionado é de inegável validade cultural. Mas, atenção para a tauto- que, quando o artista, em vez de obedecer com sinceridade a um coman-
logia! Não podemos nos limitar a explicar que a influência profunda do interior, se dispõe a exprimir artificiosamente um determinado con-
e duradoura de uma obra de arte é que evidencia o seu valor como teúdo que nele é matéria surda e rebelde, forcejando por fazê-lo com
legítimo conhecimento artístico, e que o valor de uma obra de arte entusiasmo fictício e querido exteriormente, é natural que fracasse, pois

22 23
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

não estará agindo como artista criador, e sim como criado que quer camente estéticos, disporíamos de motivos inexcedivelmente poderosos
agradar ao patrão. E - acrescenta Gramsci - o fracasso artístico pode para dedicarmos atenção à estética e à arte. E o principal desses motivos
servir ao crítico político para mostrar-lhe que o artista é, no caso, um é, sem dúvida, o motivo do humanismo.
comediante da política, alguém que está procurando se fazer passar por A~c!@iti~o. o valor cognoscitivo da arte, seremos forçados a con-
aquilo que não é, quer dizer: um oportunista.? cluir gue ela proporciona um conhecimento particular que não pode ser
Lukács, por sua vez, serviu-se ele próprio em algumas ocasiões de suprido por conhecimentos proporciona,dospor outros modos diversos
suas observações estéticas para tirar conclusões que implicavam conse- de apreensão do real. Se renunciamos ao conhecimento que a.arte - e
quências ideológicas e políticas. Assim, quando John dos Passos estava somente a arte- pode nos proporcionar, m11tilamgs a nossacºIIlpre~.
em moda e assumia, pessoalmente, posições de esquerda, seu estilo e ensão da realidade. E, como a realidade de cuja essência a arte nos dá
suas concepções estéticas mereciam o aplauso de certos setores da inte- a imagem é basicamente a realidade humana, isto é, a nossa realidade
lectualidade revolucionária; mas Lukács, em polêmica epistolar com mais imediata, a renúncia ao desenvolvimento do conhecimento artístico
sua amiga Ana Seghers, já apontava a orientação ideológica subjacen- e, por conseguinte, a .r~eJ:l:tJ:ncia ao desenvolvimento do estudo das ques-
te à obra de John dos Passos, pondo-lhe a nu o conteúdo mistificador ~§_es estéticas acarrét~m a perda de uma dimensão essencial na nossa
que, com os anos, viria a se tornar óbvio para todo mundo. 8 Da mesma auto consciência.
forma, quando, nos anos que precederam a tempestade hitlerista, e em Embora pagando tributo à alienação geral das sociedades divi-
oposição à literatura francamente reacionária, veio a se desenvolver na didas em classes, o trabalho de criação artística tem conseguido pre-
Alemanha uma literatura revolucionária, manifestando uma resoluta servar, ao longo da história da humanidade, dentro de certos limites,
e corajosa tomada de posição política e moral, Lukács não perdeu de as características de criatividade que são inerentes à genuína práxis do
vista as implicações negativas do baixo nível estético daquela literatura; homem. Na criação artística bem-sucedida, o marxista Henri Lefebvre
e compreendeu que à aridez estética correspondia, no caso, uma defi- enxergou aquele "trabalho liberto de toda coerção exterior, verdadeira
ciência de peso na verdade do conteúdo. Convencidos da inevitabilidade prefiguração do reino da liberdade". 10 Talvez por ser menos diretamente
de uma revolução iminente, que estaria para se operar no interior da útil à produção social de riquezas materiais, a atividade humana de cria-
sociedade capitalista (conforme a perspectiva luxemburguista), os escri- ção artística pôde resguardar uma espontaneidade que outras espécies
tores revolucionários não reproduziam em suas obras a situação real de atividade humana tiveram de sacrificar, sob a pressão deformadora
das lutas de classes na Alemanha e na Europa, não reconheciam a com- das instituições ligadas à propriedade privada. 11 Mal compreendido, o
plexidade do quadro de tais lutas, deformavam-no de acordo com seus caráter livre da criação artística serviu para que alguns autores erigissem
anseios políticos imediatos. 9 O exame da qualidade estética da literatura sobre ele uma autêntica religião da arte, absolutizando e fetichizando
revolucionária de então serviu a Lukács, por conseguinte, para que ele a liberdade criadora do artista. E essa fetichização da liberdade cria-
avaliasse melhor os efeitos nefastos do fatalismo luxemburguista e do dora do artista, assumindo foros de religião da arte, passou a servir a
voluntarismo superficial, cujo desenvolvimento a concepção de Rosa uma perspectiva ideológica reacionária - a do esteticismo -, segundo a
Luxemburgo ensejara na mentalidade dos militantes comunistas. qual os valores fetichizados da beleza ficavam postos acima dos valores
Contudo, ainda que fizéssemos abstração da utilidade política humanos.
imediata que pode ter a observação dos fenômenos e problemas especifi- No combate a esse engodo ideológico, entretanto, os marxistas
muitas vezes se deixaram envolver por seus adversários e acabaram
7
A. Gramsci, Letteratura e vita nazionale, ed .. Einaudi, p. 12 [A. Gramsci, Cadernos do sacrificando a riqueza da verdade estética à firmeza da posição política.
cárcere, v. 6. Literatura. Folclore. Gramática. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2002,
p.260]. Em vez de o combate à mistificação do esteticismo ser realizado pelos
8
G. Lukács, I! marxismo e la critica letteraria, p. 388-427 [G. Lukács/Anna Seghers, O marxistas também em nome da arte, ele foi realizado em nome exclu-
escritor e o crítico. Trad. Antônio Landeira e Carlos Araújo. Lisboa: Dom Quixote (cal.
Cadernos de literatura, 3), 1968, p. 9 e ss.]. ·
9 10 H. Lefevbre, Critique de la vie quotidienne, ed. L'Arche, v. 1, p. 187.
Id., Breve histoire de la littérature allemande, trad. Lucien Goldmann e Michel Butor, ed.
11 Ainda uma vez, reportamo-nos ao nosso trabalho Marxismo e alienação.
Nagel, p. 237-238.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

sivamente da política e, especialmente, em nome das exigências mais os nossos dias, sem dúvida encontraremos alimento para a nossa refle-
imediatas da ação política revolucionária. xão, conceitos que nos servirão de ponte para outros conceitos, teses que
O resultado a que chegaram os marxistas foi o de um empobreci- podemos repelir, mas que, ainda assim, nos servirão para forjarmos as
mento, o de uma autolimitação do marxismo, que ficou privado de uma nossas na negação delas.
teoria estética convenientemente desenvolvida. Trata-se de uma situação A crítica que os marxistas se fizeram uns dos outros, por outro
fác~l de constatar, porque ela se reflete em afirmações autocríticas que lado, apontando suas respectivas deficiências, também nos poderá ser
estao nas obras de numerosos escritores contemporâneos de orientação extremamente' útil, proporcionando-nos uma visão de alguns dos erros
marxista. A título de exemplo, podemos lembrar dois deles: o italiano a serem evitados. Os próprios erros nos poderão ajudar se chegarmos a
Galvano Della Volpe e o polonês Jan Kott. Escreve Della Volpe: superá-los criticamente e, no caso dos erros mais necessários (no sentido
hegeliano), se pudermos integrá-los à nossa perspectiva como momentos
Quem quiser medir o avanço da consciência estética marxista atual na Itá-
lia e fora dela, deverá imparcialmente concluir que essa consciência,se acha ultrapassados, porém conservados em nível superior.
ainda em laboriosa investigação e se acha ainda longe de uma sistematização O ideal, para nós, seria um estudo histórico-crítico que se organi-
verdadeira e própriaP zasse e se desenvolvesse como uma autêntica história da estética marxis-
ta, uma história que proporcionasse uma visão de como a estética mar-
E escreve J an Kott: xista se desenvolveu, por um lado, em resposta às solicitações práticas
decorrentes do quadro histórico circunstancial em que a trabalhavam
~ J_Tiarxismo é uma concepção científica do mundo; é a generalização filo-
soflca ma1s avançada das leis do desenvolvimento social. Daí nós concluí- seus teóricos, em polêmica contra os representantes ideológicos de posi-
mos que a estética marxista, porque baseada no materialismo histórico e no ções não marxistas e até antimarxistas; e, por outro lado, como ela se
materialismo dialético, é a mais amadurecida de todas as estéticas existen- desenvolveu a partir das exigências internas do seu próprio movimento,
tes. Que ela o é- e não que ela pode vir a sê-lo. Nós tínhamos tendência para a partir das suas próprias contradições. Um estudo desse tipo nos per-
esquecer que a estética é uma ciência, e que em nenhuma ciência a justeza mitiria compreender as posições teóricas equivocadas mas significativas
das premissas filosóficas preestabeleceo desenvolvimento automático.u
como etapas pelas quais a elaboração teórica da estética marxista teve
Estamos realmente longe de podermos nos orgulhar da situação a de passar.
que chegamos na elaboração teórica da estética do marxismo. Uma das Semelhante história da estética marxista, entretanto, dado o atra-
consequências da nossa visão autocrítica, entretanto, uma das conse- so mesmo em que se encontra a sua elaboração teórica madura, perma-
quências da consciência que temos da precariedade dos nossos esquemas nece, por enquanto, um trabalho inexequível.
e do caráter provisório das nossas atuais formulações no que concerne Na atual fase dos estudos da estética marxista, os trabalhos his-
aos problemas estéticos- e dada a perspectiva radicalmente historicista tórico-críticos devem se saber antecipadamente fragmentários, devem
do marxismo - há de ser o reconhecimento da necessidade de proceder- aceitar previamente as limitações que não conseguirão superar. No caso
mos a um exame crítico (por sumário e parcial que seja) da experiência do estudo ora publicado, contudo, há ainda outras razões para que ele
histórica da teorização estética que se fez em nome do marxismo. se conforme com a modéstia de suas pretensões possíveis e para que ele
Lidando com o material de ideias que os marxistas vêm elabo- se apresente como um estudo histórico-crítico de apenas algumas ten-
rando e refundindo, cunhando e difundindo, desde Marx e Engels até dências da estética marxista: além das deficiências pessoais do autor, ele
se ressente das deficiências decorrentes da multiplicidade de obstáculos
12
G. Della Volpe, Il verosimile fi/mico ed altri scritti di estetica, Roma, ed. Filmcritica. praticamente insuperáveis que se acham colocados no caminho de um
Depois de ter escrito isso, em 1954, Della Volpe parece ter mudado de opinião: em 1960, pesquisador de um país subdesenvolvido. A pobreza de fontes bibliográ-
em sua Crztzca de! gusto, ele empreende a "exposição sistemática de uma Estética mate-
ficas acessíveis, a escassez de material informativo disponível, a ausên-
rialista histórica" e crê ter superado a situação de 1954. Mas equivoca-se, conforme vere-
mos. cia no Brasil de um clima capaz de comportar uma discussão objetiva
13
Artigo "Mythologie et verité", publicado em Les Temps Modernes fevereiro-março de e ampla das posições marxistas, nada disso funciona, evidentemente,
1957. '
como estímulo.

26
OS MARXISTAS E A ARTE

Apesar das limitações que reconhecemos e proclamamos em nosso 1.


estudo, animamo-nos a publicá-lo, na convicção de que: 1) ele pode con-
tribuir para o avanço dos estudos estéticos de orientação marxista no
Brasil; 2) ele divulga idei as que são bem pouco conhecidas entre nós; 3) RAÍZES HEGELIANAS
ele mostra que a estética marxista tem comportado pontos de vista con-
traditórios, colidentes, e ajuda a tornar claro que os problemas com que
ela tem se defrontado são complicados e se prestam mal a esquematis-
mos sectários e a simplificações imediatistas; 4) as posições cujas carac-
terísticas ele divulga não são estranhas às discussões que, de alguns anos
A influência da filosofia de Hegel sobre o marxismo é admitida
para cá, vêm sendo travadas por intelectuais e estudantes brasileiros, de
neste livro como ponto pacífico. Entendemos que, mesmo os marxistas
modo que se liga à realidade cultural deste país; 5) ele pode contribuir
que - como Louis Althusser, na França, e Galvano Della Volpe, na Itá-
para elevar o nível teórico das discussões relativas à estética marxista
lia- combatem a influência de Hegel sobre o desenvolvimento histórico
e à abordagem marxista das questões da arte e da literatura, ajudando
do marxismo, mesmo os marxistas anti-hegelianos, ao combaterem-na,
a dissipar numerosos equívocos e a combater numerosos e pertinazes
preconceitos. reconhecem essa influência. A filosofia de Hegel é um marco decisivo na
abertura do pensamento para a história, no esforço para promover uma
Só o publicamos, porém, fazendo encerrar esta introdução com o fluidificação dos conceitos a que recorremos para pensar o mundo. A
apelo endereçado aos pósteros por Beltolt Brecht:
tradição especulativa metafísica na história da filosofia engendrara uma
Vós, que vireis na crista da onda espécie de congelamento dos conceitos utilizados pelo intelecto humano,
Em que nos afogamos, criando a representação ilusória de um mundo estático. Hegel, rompen-
Quando falardes em nossas fraquezas, do com semelhante tradição, discerniu no movimento a realidade-base e
Pensai também no tempo sombrio
concebeu o real como um processo.
A que haveis escapado.
Com Hegel, aprendemos que não há nada fora do movimento infi-
nito através do qual as coisas existem. Aprendemos, também, que a con-
tradição não é a mera consequência de uma imperfeição acidental, como
supunham os metafísicos, extrapolando os princípios da lógica formal:
é o fundamento essencial de todo o movimento. A realidade nos aparece
como essencialmente dinâmica e contraditória, por conseguinte.
A realidade que serve a Hegel de ponto de partida para a elabo-
ração do seu sistema filosófico ~ especialmente do seu método dialético
não é a realidade da natureza, e' sim a realidade da história e da socieda-
de humanas. Para ele, o homem é o agente de uma fase final do retorno
de Deus a si mesmo. Num primeiro momento, a rigorosa regularidade
da natureza em que Deus (a Ideia Absoluta) se alienara é quebrada pelo
aparecimento da vida. Num segundo momento, ocorre o desenvolvi-
mento de uma forma superior de vida, que é o aparecimento da animali-
dade. O terceiro e último período do retorno é o que se caracteriza pela
autocriação do homem, concebido o homem como o ser que porta em
si o porvir do Espírito.
O homem, segundo Hegel, é aquilo que ele se faz por sua ativida-
de. Ele se produz exatamente por essa atividade que lhe é característica
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

e não existe senão se produzindo continuamente a si mesmo. O homem, como a chicória na qualidade de sucedâneo do café. 1 O conhecimento
portanto, jamais é imediato, jamais existe como um dado, como um precisa exigir de si mesmo um trabalho infinito de investigação de seus
ser definitivamente acabado e passível de ser encerrado de uma vez por pressupostos e de seus limites, precisa estabelecer e restabelecer a cada
todas em uma fórmula. passo as conexões e mediações do conhecido, sem se deixar encerrar
No processo de assenhoreamento do mundo pelo homem, aliás, o jamais em fórmulas estáticas, esclerosadas. A dinamicidade inerente ao
homem é levado a compreender que as coisas não existem isoladamente conhecimento exige a exclusão do autocomprazimento dogmático: "na
não são independentes umas das outras; é levado a compreender que as' facilidade com que o espírito se satisfaz, pode-se medir a extensão da
relações entre as coisas não são exteriores à essência delas. sua perda". 2
Um determinado ser individual nunca é indiferente ao seu pas- As mediações que o conhecimento procura estabelecer são as
sado, à história da sua formação. E a formação histórica de cada ser mediações que decorrem do caráter histórico de todas as coisas. "Com-
o entrosa com outros seres individuais e com complexos de seres indi- preender um objeto- explica Hegel- não é outra coisa senão pô-lo em
viduais. A situação de uma coisa integra sempre a essência dela: as forma de condicionado e mediato". 3 E, a seguir, ele exemplifica: "Que
~ois~s não existem soltas no espaço e no tempo. Compreender algo eu esteja em Berlim, essa minha presença imediata nesse lugar é media-
tmphca compreender o seu movimento, o seu quadro circunstancial tizada pela viagem que fiz para vir para cá etc." ~
particular; implica apreender-lhe as leis a partir das leis do todo em Em outros trabalhos hegelianos, a mesma observação volta a ser
que se insere. formulada: "Desde que alguma coisa seja ~erdadeira, nela se encontrará a
O método dialético hegeliano é o ponto de partida para uma cor- mediação". 4 "Não há nada no céu, na natureza: no ~spí_:ito, ou on~e ~~~~ I
reta compreensão do que se passa com os indivíduos no todo da vida que seja, que não contenha ao mesmo tempo a tmedtaçao e a medtaçao . 1
social. Para compreender a ação dos indivíduos, precisamos ter uma O papel atribuído por Hegel à mediação é tal que levou Jean Hyppolite a I
visão do conjunto das relações sociais, do quadro em face do qual a escrever: "a filosofia de Hegel é uma filosofia da mediação". 6 ~J
ação se define. A verdade é atingida em graus diversos, e em seus graus A importância desse enfático respeito ao caráter mediatizado de
mais profundos ela só é alcançada a partir do todo: o processo em que a toda e qualquer realidade é grande para o marxismo. Se nem sempre ela
verdade se realiza é um processo de totalização. foi reconhecida na prática pelos marxistas, isso ocorreu, entre outras
A percepção empírica dos objetos singulares não nos dá, desde razões, precisamente por força das limitações sofridas pelo marxismo
logo, a efetiva verdade deles. Para chegarmos de fato a conhecê-los em seu desenvolvimento e por força de uma subestimação das lições
~<lr~-~E~~~Ell1()~_é!_<:_~~~~~q__é!~__c;QQ_t:~2-~§~~:Xl~~~gte~-~;tr~-Çl~;-~t;_clrªg~­ hegelianas, conforme teremos ocasião de observar no corpo do presente
~1tuªr.ll1()S. nq qua~_rg _<iél_h.i§!~~~~~E~l-~ª Jl~l!l.'!!lJ~ªde (em função. da livro.
_qual os avaliamos), precisamos supe_rar a per~~pǪ()_empírica, a c~~~~i~-~ Mas a importância da filosofia de Hegel para o marxismo não é
.<:~a ifi1ediata ou pré-reflexiva. Prec;isamos, pois, rea_lizar ~s.()pe;ações de. apenas a importância de aspectos da ontologia, do método, da gnoseolo-
a,bstraçãq quecaracterizªm o pensamento._ Semelhante abstração ~ão gia e do sistema hegeliano em geral; é também a importância particular
nos afastará inevitavelmente do concreto. Se soubermos pensar, a abs- da estética de Hegel. A estética marxista tem algo a aprender com a filo-
tração do conceito nos levará à apreensão das conexões e mediações do sofia de Hegel em geral; e tem algo a aprender com a estética de Hegel
processo que desejamos compreender e fará com que cheguemos a uma
1 G. W. E Hegel, Phénomenologie de l'Esprit, trad. Hyppolite, ed. Aubier, p. 58 [há edição
compreensão muito mais concreta do que a da percepção empírica. Com
brasileira; cf. Fenomenologia do Espírito, Petrópolis: Vozes, 1992, p. 59].
Hegel, aliás, o próprio termo concreto assume a significação particular 2
Ibid., p. 11 [ed. bras., p. 25].
de síntese de múltiplas determinações, distinguindo-se do abstrato, que 3 Id., Enciclopédia das Ciências Filosóficas, trad. Lívio Xavier, Athena Editora, v. I, p.
é precisamente o imediato. 80.
:t!~_gel_insiste na necessidade de o conhecimento superar a pobreza
4 Id., Leçons sur l'histoire de la philosophie, trad. Gibelin, ed. Gallimard, p. 100.
5 Id., Ciencia de la lógica, trad. Rodolfo y Augusta Mondolfo, ed. Libreria Hachette, v. 1,
da imediaticidade, a pobreza da intuição e da revelação. A revelação-
p. 88.
imediata, apresentada como sucedâneo da pesquisa filosófica, funciona 6 J. Hyppolite, Logique et existence, ed. PUF, p. 44.

31
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

em particular. Quando Engels, no final da sua vida, aconselhou Conrad na arte, encarados como entidades independentes, se transformem em
Schmidt a estudar a obra de Hegel, sugeriu-lhe que começasse pela Lógi- abstrações enganadoras. Para Hegel, a forma está determinada pelo con-
ca. Mas acrescentou: "Para ent~eter-se, aconselho-lhe a Estética. Quan- teúdo a que convém, e os problemas da forma, em última instância,
do você tiver penetrado um pouco nela, ficará assombrado". implicam sempre problemas de conteúdo. Historicizando as categorias
Devidamente apreciados, certos aspectos da estética hegeliana de forma e conteúdo, a estética de Hegel as apresenta como momentos
teriam poupado a alguns teóricos marxistas certas deficiências que vie- diferentes e necessários da criação artística, mas as faz participar de um
ram a se manifestar no trabalho deles. processo unitário no qual há uma prioridade essencial do conteúdo.
De início, não podemos deixar de lembrar a resoluta rejeição É o conteúdo histórico de cada época que fornece o critério ade-
do irracionalismo. Última expressão filosófica de primeira grandeza quado para julgar, em última instância, a justeza de colocação dos pro-
da perspectiva da burguesia em ascensão, Hegel acredita firmemente blemas mais gerais da forma artística, isto é, a justeza de colocação dos
na razão e na história, na cognoscibilidade do real e na eficácia do problemas relativos aos gêneros artísticos. As formas dos gêneros artísti-
pensamento conceitual. A ideia de que o fenômeno artístico está fada- cos não são arbitrárias: e não é por acaso que foi esse princípio da estética
do a permanecer para sempre indevassável à compreensão científica é hegeliana que o marxista Gyorgy Lukács tomou como ponto de partida
vigorosamente repelida por ele. A superior realidade daquilo que é em de algumas de suas mais fecundas investigações teóricas. Lukács, aliás,
si e para si, isto é, a realidade a que o homem tem acesso em seu pro- dá uma ênfase toda especial à formulação hegeliana, caracterizando-a
cesso de espiritualização - a realidade do espírito -, é uma só: o fato como uma nítida superação de uma das limitações básicas da estética
de que a sua manifestação na arte seja sensível não quer dizer que ela de Kant: "a estética hegeliana supera o idealismo'subjetivo kantiano, ou
estabeleça uma impenetrabilidade ao conceito. O espírito se revê nas seja, o falso dualismo existente nele, segundo o qual o conteúdo - que
criações da arte, e as suas representações sensíveis não são senão a sua se pretende situado fora da estética e totalmente estranho às categorias
exteriorização. estéticas- vem contraposto à forma, concebida esta sempre de modo abs-
7
Além disso, Hegel também ajuda a desfazer a confusão criada em trato e subjetivo, ainda quando apareça esteticamente caracterizada".
torno do conceito de aparência. A arte é, sem dúvida, o reino das formas Outro aspecto importante, ainda, da teorização estética hegeliana
e, por conseguinte, o reino da aparência e da "ilusão". Mas a aparência, consistefna crítica feita por Hegel a uma concepção demasiado estreita
afinal, constitui um momento necessário da essência, pois, para não per- da mimesis aristotélica. Aristóteles desenvolveu a teoria da arte como
manecer na pura abstração, a essência precisa aparecer. imitação (mimesis) da natureza. Em sua forma vulgarizada, semelhante
Os objetos naturais que percebemos ao acaso, de maneira ime- teoria tem servido de escora a um naturalismo que empobrece a arte.
diata, na nossa experiência cotidiana, passam comumente por consti- Os resultados de uma imitação servilmente fiel de um objeto natural,
tuírem a "realidade" do mundo exterior. No entanto, o que usualmente observou Hegel, são e sempre serão inferiores aos que a natureza nos
percebemos de tais objetos é apenas o lado individual deles: por não oferece. O se.rvilismo imitativo condena a arte a se colocar numa posi-
lhes discernirmos as conexões necessárias e por não os enxergarmos ção de inferioridade em relação à natureza, como a de um verme qu~ se
em função do todo que integram, só temos deles a imagem mais pre- esforçasse por igualar a um elefante. No entanto, como forma partiCU-
cária e mais superficial. E, comparada com a aparência enganosa desse lar de manifestação do espírito e de realização humana, a arte deve se
mundo exterior de objetos percebidos de maneira imediata, comparada situar acima da natureza, pois o espiritual é superior ao natural. O que
com a percepção cotidiana submetida à arbitrariedade das situações e se sabe supera em dignidade o que se ignora, ensina Hegel. Saber mais
dos acontecimentos, a aparência da arte, revelando-nos a substância do é ser mais. E, nesse ponto, a gnoseologia hegeliana se desdobra em uma
espírito, abre-nos a compreensão para uma realidade mais profunda, axiologia ontológica de grande interesse para o marxismo.
mais essencial e mais verdadeira.
A estética hegeliana tem, igualmente, a importância de estabelecer 7 Cf. G. Lukács, Contributi alla storia dell'Estetica, trad. Emilio Picco, ed. Feltrinelli, 1957,
de maneira sistemática a interação existente entre o conteúdo e a forma, p. 123 [G. Lukács, Arte e sociedade. Escritos estéticos. 1932-1967. Trad. Carlos Nelson
dando um passo decisivo no sentido de evitar que a forma e o conteúdo Coutinho e José Paulo Netto. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009, p. 54.]

32 33
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Por outro lado, Hegel rejeita liminarmente as interpretações que sua plenitude, pois dá ênfase ao fato de que a arte pertence ao mundo
apresentam a arte como um brinquedo inconsequente, um jogo despro- do espírito, de modo que nela o sensível se coloca em função do espírito,
vido de maior significação, uma atividade de entretenimento, um passa- e não o espírito em função do sensível. O sensível é sempre individual
tempo ornamental. Arte é coisa séria, é autoexteriorização e autocons-
cientização do homem. A consciência de si pode ser alcançada de duas
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- assevera Hegel-~---~·---o que eu .2iJ!tQ~·~1Ueu;
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mas, para dizê-fo.te-;;:ho·d~-
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maneiras: através da reflexão, no âmbito da interioridade, ou através da ~~~~-~ ----"-
exteriorização, reconhecendo-se o espírito na representação de si mesmo A teoria que funda a estética no "belo natural" encerra uma mis-
que se oferece. A arte corresponde a esse segundo modo de aquisição da tificação. As coisas naturais não existem para si mesmas e por isso não
consciência de si pela humanidade. E é preciso não confundir a natureza são livres (e, portanto, não podem ser artisticamente belas). A nature-
específica da arte com o caráter de outras atividades do espírito, ainda za figura no sistema hegeliano apenas como a negatividade com que se
que, na prática, ela se ache frequentemente muito ligada a essas outras defronta o espírito finito no processo que o fará alcançar a forma de
atividades. Espírito Absoluto ou infinito. A natureza não pode "fornecer à razão
A arte pode, por exemplo, contribuir para fadoucissement de la uma expressão adequada de si própria". 8 A natureza exclui a liberdade;
barbarie, pode contribuir para suavizar a grosseria primitiva dos homens, a liberdade é prerrogativa do espírito. A arte, sendo uma criação do espí-
caracterizada pela indisciplina dos instintos e pelo império dos desejos rito, não se confunde com o trabalho mecânico e exterior que nada cria
imediatos. Objetivando seus sentimentos na arte, os homens conseguem, e que pode se realizar na conformidade a regras: a arte repele a regulari-
por vezes, assumir diante deles uma atitude mais serena, superando de dade mecânica e é a expressão da atividade de um ser que precisamente
certo modo a cega imediaticidade deles. A arte possui, assim, evidentes jamais se resigna a ser o que a natureza fez dele.
implicações morais. Com semelhante formulação, Hegel coloca no centro da sua
Hegel não só admite tais implicações como reconhece- ao contrá-. investigação estética a realidade concreta e ativa do homem como ser
rio de Jean-Jacques Rousseau- que a arte tem efetivamente contribuído autocriador, como sujeito das suas experiências, em lugar de partir das
para o aperfeiçoamento moral do homem. Ele acha que, oferecendQ_Q_ categorias metafísicas ligadas à concepção exteriormente objetiva de
a
homem em espetácl:l:Lq__<!_~i_l'~.qp!io, <1 _aEt~ tempera r~deia-d~~-t~ndên- uma natUreza fetichizada, como fizeram os materialistas mecanicistas.
5:ias_~ paixões humanas, c_ultiva ~o homem a disposição para-a-~~~1:-;;;;;-: A importância de tal ideia de Hegel foi salientada pelo próprio
a e
plação e para reffexão, eleva-lhe o pensamento os sentimentos, lig~~~­ Marx na primeira das suas Teses sobre Feuerbech, quando escreveu que
a um__a)to ideal que ela mesm~_~g~re. No entanto, a arte não é uma o caráter contemplativo do antigo materialismo não lhe possibilitara a
serva da moral. O efeito moral que se lhe reconhece não deve ser apre- apreensão da realidade como atividade humana sensorial, como prática,
sentado como a finalidade que a explica e lhe dá origem. A explicitação isto é, de modo subjetivo. Daí que o idealismo- especialmente na pessoa
do conteúdo moral de uma obra de arte sacrifica-lhe comumente a rique- de Hegel - tenha desenvolvido o la.do ativo do conhecimento, embora
za e representa a imposição à arte de uma finalidade que lhe é estranha não levando em conta a atividade real humana, a atividade sensorial.
em sua essência. A arte - Hegel insiste nisso - possui um fim particular
que lhe é imanente, uma finalidade específica.
Finalidade específica e caráter livre estão indissoluvelmente cone-
xos na caracterização da arte por Hegel. E o caráter livre da criação
artística deriva da sua origem espiritual, deriva do fato de a arte ser
uma manifestação particular do espírito. Hegel aceita, em princípio, a
dualidade kantiana do mundo dos desejos e dos instintos e do mundo
do conhecimento racional e da liberdade. Admite, também, que a arte
tenha a missão de conciliar a razão e a sensibilidade, as inclinações natu- 8 J. Hyppolite, Genese et structure de la phénoménologie de l'Esprit de Hegel, ed. Aubier-
rais e o dever moral. Mas não concorda com a formulação kantiana em Montaigne, v. 1, p. 36.

34 35
2.

MARX E ENGELS

A dialética idealista de Hegel desenvolveu a compreensão do aspec-


to ativo do conhecimento humano. Para o marxismo, essa compreensão
do conhecimento como uma atividade do sujeito é muito importante.
Os marxistas dão ênfase à ideia de que o conhecimento não é um dado,
é um ato. O ato de conhecer transforma o conhecido e o sujeito que
conhece.
Mas Hegel só desenvolveu abstratamente a compreensão da ativi-
dade do sujeito no processo gnoseológico. Ele não concebia o conheci-
mento como o processo real de apropriação do mundo real por parte da
consciência de sujeitos reais. O sujeito do conhecimento - na concepção
idealista de Hegel - não é o homem concreto, com seu cérebro, com seu
corpo, com suas vicissitudes, suas contingências, sua atividade prático-
I
.I
material; é uma consciência abstrata, fetichizada .
I
Hegel não enxergava na consciência humana senão o reflexo de
uma faiitástica Ideia Absoluta: o Espírito Universal. Para ele, o homem
só contava enquanto ser pensante. A história concreta da humanidade
era transformada em mera ocasião para que a Ideia Absoluta se des-
dobrasse no tempo e se realizasse conforme um plano predetermina-
do. Marx rejeitou os esquemas idealis.tas qe Hegel, pois entendeu que o
.homem não se afirma _n()_ mundo de acordocornl!fl! planopreestabele-
ç:_~do porgl:l_ªlg_]l_~l:_raf_ªo_t:r_~!!~Sf!ld~t~~-El~tarnbém se afastou de Hegel
em outro ponto:_ªº-~t1!~n._d~~Jg!Jcªll:J:l~!lte_,_q:u~_QhQ!lJ~!!!..nãQs~_a_fitmª-no
mundo unicamente COIJ1Q s_er:_pensa_tl,tS!,_ !Il_a~_::ttray~_s_~~-_ll::r?<ót_ ptáxis_EãQ
só teórica como prático-sensoriaL .
Hegel subordinou o seu esquema histórico a um esquema lógico
apriorístico que implicava o aviltamento dos sentidos e da materialidade
em geral. No enfoque hegeliano, a arte aparece como a expressão de
um estágio já superado da consciência humana em seu caminho para
a racionalidade absoluta. Depois do momento artístico - acima dele -,
Hegel colocou o momento religioso e o momento filosófico. A arte não
passaria, assim, de uma preparação sensível para o conhecimento filosó-
fico, quer dizer, para o conhecimento racional plenamente desenvolvido.

37
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Na história da humanidade, a arte teve o seu momento da cultura grega dade humana subjetiva. Um dos aspectos essenciais da história da huma-
pagã da Antiguidade Clássica; a religião teve o seu momento no auge da nidade é o da humanização dos sentidos na formação do ser humano.
Idade Média; e a filosofia se impôs, através do idealismo alemão, como
O desenvolvimento humano dos cinco sentidos é obra de toda a história
a fase superior do processo do conhecimento humano.
anterior. O sentido subserviente às necessidades grosseiras possui apenas
O materialismo marxista, promovendo uma reabilitação dos sen- uma significação limitada. Para um homem faminto, a forma humana do
tidos, promove também uma revalorização do conhecimento artístico. alimento não existe; só existe o seu caráter abstrato de alimento. Ele poderia
Hegel não concebeu os sentidos em termos historicistas: para ele, os sen- existir mesmo na mais tosca das formas; e, nesse caso, não se poderia dizer
tidos eram meios intrínseca e insuperavelmente pobres para a aquisição em que a atividade do homem, ao se alimentar, seria diferente da do animal.
de conhecimentos. Comparados com a razão, os sentidos careciam de O homem premido pelas necessidades grosseiras e esmagado pelas preocu-
desenvolvimento humanizador no sistema hegeliano. Marx repeliu esse pações imediatas é incapaz de apreciar mesmo o mais belo dos espetáculos.
enfoque intelectualista. Para ele, como escreve Adolfo Sánchez Vázquez, Na passagem anterior- que colocamos como uma das duas epí-
"os sentidos são tão humanos como o pensamento e, como ele, nascem e grafes do nosso trabalho -, a percepção sensorial é apresentada como
se enriquecem na relação humana específica que se dá na humanização uma faculdade que se desenvolve historicamente e cujo desenvolvimento
da natureza por meio do trabalho". 1 é, em geral, um aspecto substancial da autoconstrução do homem. Nela
Os Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 marcam, com estão expressamente formuladas e combinadas as duas diretrizes funda-
grande nitidez, a rejeição do idealismo hegeliano por Marx. Neles, mentais do materialismo histórico: o materialismo e o historicismo.
encontra-se uma franca historicização dos sentidos humanos. E, pre- A práxis humana não é concebível sem a atividade dos sentidos.
cisamente na medida em que os sentidos se tornaram historicamente Mas os pontos de vista de Marx não acolhem, a partir dessa constata-
mais humanos, a perspectiva marxista os dignifica: "É evidente que o ção, qualquer tendência ao endeusamento do sensível ou à fetichização
olho humano aprecia as coisas de maneira diferente do olho animal, do dos sentimentos e da percepção sensorial.
olho não humano, assim como o ouvido humano as ouve diversamente Não exist~ a~g_Eª~~- ativicia,_de do intelect() (~l!lel!c_:ª4<1 no sistema
do ouvido animal. É só quando o objeto se torna um objeto humano ou hegeliano), ta1Ilbém nã() existea "pura" percepção sensorial ou a "pura"
''
i uma objetivação da humanidade que o homem não se perde nele". A ~ÇãJ- ~ensí~~l (nos termos postulados pelos modernos filósofos irra-
~!:YüJ:<:tde sensorial criador::t do home!l1 como_artista não_forma apenas _ cÍonaii.stasl.
Q_bjetos para o sujeito humano: forma, igualmente, um sujeito espeçial . evolução da percepção sensorial e do modo de intuir dos homens
rara os objetos. O objeto, escreveu Marx, "só faz sentido para um sen- não se fez independentemente do desenvolvimento da razão pensante,
tido adequado". não se fez à margem do desenvolvimento das faculdades intelectuais
Marx exemplifica com a música: "o sentido musical do homem especulativas e do raciocínio abstrato. Há, na práxis humana, a par do
só é despertado pela música. A mais bela música nada significa para o progresso técnico, uma constan~e núse au point da atividade psíquica do
ouvido não musical, não é um objeto para ele, porque o meu objeto só homem, um efetivo desenvolvimento da vida interior dos seres humanos;
pode ser a corroboração de uma faculdade minha". Q~~2i~!o só existe um movimento anímico de que participam tanto a racionalização con-
para o sujeito na medida_emque esteci~§er:rv:olve afaculdade~n~e§§J_J=ia.
--~-----------~---------------------------- ""
ceitual como os sentimentos, a afetividade e a percepção sensorial.
a apreensªo do objeto. O desenvolvimento da capacidade do homem de O desenvQlYi1llento da faculdade_ de P!nsar por meio_ de conc~itg§__
criar objetos através do trabalho, o desenvolvimento da capacidade do não a~~ret~-~-~trofi~d~f~~uTdad~ J~ ~~tir: ~-h~mem~~-bt~'11t;lzti~q _tant()
homem de plasmar o mundo objetivo à sua feição, se faz acompanhar de -1l~~a~-i-;cinio comonasensinilídãde~-Pensa~do as coisas de maneira mais
exigências no sentido de que se desenvolva, também, uma rica sensibili- correta, eÍ~ as compree~d~ irl~fhü~;pode senti-las com maior profundida-
de. E, desenvolvendo a sua capacidade de senti-las concreta e claramente,
enriquecerá a sua reflexão a respeito delas. O avanço da consciência teóri-
1
Cf. o ensaio de A. S. Vázquez "ldeas esteticas en los Manuscritos económico-filosóficos ca já alcançado em nossa época provocou, nos aspectos que mais interes-
de Marx", publicado na revista Realidad, novembro-dezembro de 1963. sam à nossa práxis, um enriquecimento da percepção sensível dos homens.

39
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

"Na prática- observa o Marx dos Manuscritos de 1844-, os sentidos se gens fossem transmitidas "de maneira mais viva, ativa, por assim dizer
tornaram teóricos". Desenvolvido o intelecto humano, o conhecimento natural, através da própria ação; e, ao contrário, os discursos cheios de
artístico (que é, por natureza, sensível) pressupõe sentimentos vinculados argumentos (em que reconheci o teu talento de advogado) se tornassem
a uma cada vez maior riqueza de ideias na consciência. cada vez mais dispensáveis". 2
A perspectiva marxista leva, pois, à valorização da riqueza de Engels, de resto, teve oportunidade de desenvolver seus pontos
ideias na arte como um aspecto positivo do conhecimento artístico (e da de vista a respeito da questão em inúmeras cartas. Ele sabia que, ainda
sensibilidade artística). De um ponto de vista marxista, não é admissível quando são justas em si mesmas, as ideias podem não estar funcional-
a contraposição mecânica de inteligência e sensibilidade no ser huma- mente integradas ao todo da obra de arte e, com isso, podem pesar
no; primeiro, porque as duas faculdades só têm significação concreta na sobre esta última como pingentes incômodos. Numa carta que escreveu
unidade da consciência como forças propulsoras do dinamismo psíqui- à romancista Minna Kautsky em 26 de novembro de 1885, criticou o
co (não sendo a consciência uma realidade quantificável, não podemos livro Os velhos e os jovens (que ela lhe enviara), dizendo:
conceber suas faculdades como vasos comunicantes); depois, porque elas
A senhora sente, provavelmente, necessidade de tomar partido nesse livro,
cobrem áreas amplamente coincidentes na atividade psíquica. O homem
de proclamar diante do mundo inteiro as suas opiniões (... ). Não sou, de
mais inteligente tende a ser, globalmente, o mais sensível; e o mais bem maneira alguma, adversário da poesia de tese como tal. O pai da tragédia,
dotado de sensibilidade tem maiores possibilidades para o desenvolvi- Ésquilo, e o pai da comédia, Aristófanes, foram ambos poetas de tese. E
mento da sua inteligência. Caso um marxista admitisse, por hipótese, a também o foram Dante e Cervantes. O que há de melhor em Intriga e amor
separação rígida entre a inteligência e a sensibilidade, entretanto, abrin- de Schiller é que se trata do primeiro drama político alemão de tese. Os
do mão das reservas acima referidas, ele só poderia ser levado a con- russos e os noruegueses modernos, que escrevem excelentes romances, são
cluir que, entre dois artistas sensíveis, o mais inteligente levaria fatal- todos poetas de tese. Mas creio que a tese deve brotar da própria situação
e da própria ação, sem que seja explicitamente formulada. O poeta não é
mente grande vantagem. Como disse Marx a um comunista sentimental
obrigado a dar já pronta ao leitor a solução histórica futura dos conflitos
(Weitling): "A ignorância nunca foi útil a ninguém." Na arte, como na sociais que descreve. 3
filosofia, a pobreza de ideias constitui um pecado sem perdão.
Ocorre, contudo, que as ideias na arte devem assumir uma forma Eln outra carta, enviada a JOVem escritora inglesa senhorita
particular, devem se apresentar sensivelmente ante a consciência, devem Harkness, a propósito do romance Moça da cidade (de autoria da sua
estar integradas a estruturas apropriadas à transmissão do conhecimen- correspondente), Engels critica a obra por seu deficiente realismo e indi-
to artístico, estruturas que não se confundem com as da transmissão ca à autora o caminho do velho Balzac, "infinitamente maior do que
do conhecimento científico. Do fato de que o conhecimento artístico e todos os Zolas passados, presentes e futuros". Na referida carta (de
o conhecimento científico têm o mesmo objeto (ou, antes, têm como 1888), ele faz questão de explicar que a deficiência de realismo apontada
objeto a mesma realidade objetiva geral), não se infere que ambos no livro nada tem a ver com a ausência de proclamações revolucionárias
apreendam o real da mesma maneira. As ideias mal assimiladas à nas páginas da jovem autora:
estrutura da obra de arte dão sempre a impressão de estarem "sobran-
Estou longe de vos censurar por não terdes escrito um romance claramente
do", produzem o efeito de interpolações inconvenientes.
socialista, um romance de tese, como dizemos nós, os alemães, no qual vies-
Quando Lassalle publicou seu drama Sickingen, Marx lhe escre- sem a ser glorificadas as ideias políticas e sociais do escritor. Não é nisso que
veu uma carta na qual, apesar da amabilidade, lhe reprovava ter escrito penso. Quanto mais as opiniões políticas do autor ficam escondidas, tanto
a peça mais na linha de Schiller do que na de Shakespeare, compon- melhor para a obra de arte. O realismo de que falo se manifesta inteiramente
do um drama no qual os personagens careciam de um realismo mais fora das opiniões pessoais do autor. 4
profundo e, por vezes, se tornavam raisonneurs. Engels, a propósito do
2 [Carta de 18 de maio de 1859, de F. Engels a F. Lassale. Cf. K. Marx e F. Engels, Cultura,
mesmo drama, e na mesma ocasião (sem ter combinado previamente
arte e literatura: textos escolhidos, São Paulo: Expressão Popular, 2012, p. 78].
com Marx), também escreveu a Lassalle e disse que a obra se benefi- 3 [Carta de 26 de novembro de 1885, de F. Engels a Minna Kautsky. Cf. ibid., p. 66].
ciaria caso as motivações históricas do comportamento dos persona- 4 [Carta de abril de 1888, de F. Engels a Margaret Harkness. Cf. ibid., p. 68].

!.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

A dificuldade não está em compreender que a arte e a épica gregas se achem


O realismo preconizado por Engels - ele o explica na mesma ligadas a certas formas do desenvolvimento social, e sim no fato de que elas
carta - consiste na "fiel reprodução de caracteres típicos em situações possam, ainda hoje, proporcionar-nos um deleite estético, sendo conside-
típicas". Balzac lhe serve de exemplo porque ele representou na rica radas, em certos casos, corno norma e modelo insuperáveis" (Introdução à
Contribuição à crítica da Economia Política). 5
trama das várias obras que integram A comédia humana caracteres
típicos em situações típicas. Pessoalmente, Balzac era conservador,
legitimista: suas simpatias iam todas para a velha classe dos aristo-
cratas. Ao escrever, entretanto, empolgava-se, ficava entregue à sua
imaginação criadora e ao exercício realista (rigoroso) dela: esquecia-se
de seus preconceitos e representava os aristocratas em suas deficiências
básicas, como homens que de fato mereciam a sorte que a história
estava reservando para eles. Com isso, Engels enxergava em Balzac um
"triunfo do realismo".
A teoria engelsiana do "triunfo do realismo" pode ser considerada
uma das formulações mais brilhantes da estética do materialismo dialé-
tico feitas por um dos fundadores do socialismo científico. Ela conduz
a investigação do crítico marxista não ao inventário das ideias pessoais
do artista, e sim à obra, com seu complexo específico de problemas, suas
ideias e sua estrutura própria.
Mas ainda há um aspecto do pensamento de Marx e Engels a que
precisamos nos referir antes de encerrarmos o presente capítulo e que é
fundamental para a estética marxista. O caráter da concepção marxista
do mundo, tal como foi definido por Gramsci, é o de um "historicismo
absoluto": para o marxismo, ~ªQ~Q~_~na_c!_<!__gl;l~Po~s~,;:t!!l_().~-~,sj!_tta_f_g_g11:1_Q~
da_ his!óriª_ ou_io_t:_Cf:_ d~l<:!"- A perspectiva. marxista, .portanto, exige que
se veja em toda e qualquer realização humana a sua conexão essencial·
com o seu tempo, com as condições históricas da sua concretização. As
'obras de arte, como quaisquer outras obras do homem, não podem: ser
desligadas da época em que surgiram. Mas isso não quer dizer que a
obra de arte esgote os seus efeitos no momento em que aparece; não quer
dizer que a obra de arte possa ser reduzida às condições da sua gênese
histórica e social.
O historicismo marxista não exclui o reconhecimento da dura-
bilidade da criação estética. Um dos problemas cruciais para a teoria.
~~~t_ic~ ~2_Il1arxismo é precisament;~pÜ~ar concretamente essa dura.:.
f?.ilici_O:cl€!_ da grande arte sem sair do terreno do rigoroso imanentismo
~is!_o!_ici~tq:t.).sto_f:, s~_m recorrer a categorias metafísicas, a-his_t§d<::ªs,:_
Foi o próprio Marx queill. formulou o probl~ma, el11 t~d~--;_ sua cla-
reza, no texto que pusemos (junto com outro) no pórtico deste livro,
referindo-se à vitalidade da antiga arte grega de Homero, de Ésquilo, de s [Cf. K. Marx, Contribuição à crítica da Economia Política, São Paulo: Expressão Popu-
Sófocles e de Eurípedes: lar, 2010, p. 271].

43
3.

KAUTSKY

Karl Kautsky (1854-1938) foi pessoalmente incumbido por Engels


de prosseguir na organização do material deixado por Marx, com vistas
à publicação do último volume de O capital. Embora não tenha sido
designado executor testamentário de Engels, e sim Bernstein, é certo que
Kautsky era, de modo geral, visto com bons olhos pelo autor do Anti-
Dühring. No final do século XIX, ele se tornara um dos mais eminentes
teóricos e historiadores do movimento socialista.
Quando seu amigo e compatriota Eduard Bernstein (1850-1932),
na passagem do século, procurou emascular o marxismo, esvaziando-o
de seu caráter revolucionário crítico-prático, Kautsky defendeu a inte-
gridade da concepção marxista do mundo em memorável polêmica. 1 Por
ocasião da revolução bolchevista de 1917, contudo, Kautsky se achava
em posições bastante diversas: tornara-se ele próprio um revisionista
e polemizava com Lenin acusando a experiência soviética de se afogar
no terror e de provocar a divisão no movimento operário mundial, com
especiais prejuízos para a revolução alemã. 2
Como historiador, Kautsky abordou, incidentalmente, problemas
conexos com a arte. Fazia-o, entretanto, com os olhos voltados para o
valor histórico-documental das obras de arte, e não com a preocupação
de discutir o valor especificamente estético delas. Basta ver, por exem-
plo, o que escreve a respeito de ~alzac:
As obras poéticas são com frequência muito mais importantes para o estudo
de suas épocas do que as mais fiéis narrações historiográficas. As últimas
nos dão somente os elementos pessoais extraordinários e importantes, que
são os menos permanentes em seus efeitos históricos; as primeiras, por outro
lado, nos oferecem um quadro da vida cotidiana das massas que é constante
e permanente em seus efeitos, com duradoura influência sobre a sociedade.
O historiador não relata essas coisas porque as supõe conhecidas e eviden-
tes. É por essa razão que os romances de Balzac são uma das fontes mais

1 K. Kautsky, La doctrina socialista, trad. castelhana Pablo Iglesias e Juan Meliá, edição
Francisco Beltrán, Madri, 1930.
2 Id., Terrorismo y comunismo, trad. de J. Perez Bances, ed. Biblioteca Nueva, Madri.

45
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

importantes para o estudo da vida social da França nas primeiras décadas


do século XIX. 3 o progresso tecnológico e com o quadro da luta de classes. A Alemanha
do final do século XVIII e do princípio do século XIX não estava eco-
Também como filósofo, foi só incidentalmente que Kautsky abor- nômica e socialmente tão adiantada como a Inglaterra e não tinha uma
dou as questões da estética, não lhes dedicando jamais análises extensas economia política cientificamente tão avançada como a dos ingleses; no
ou profundas. Tanto na sua obra historiográfica como na filosófica- ou, entanto, produziu uma filosofia muito superior à da Inglaterra.
melhor dizendo, tanto nos aspectos historiográficos como nos aspectos Marx, numa obra que o próprio Kautsky organizou para publi-
filosóficos de sua obra crítica -, ele se ressentiu de um precário conhe- cação (Theorien ubet Mehwerth, editada em francês com o título de
cimento da filosofia de Hegel, revelou deficiências dialéticas de perspec- Histoire des doctrines économiques, ed. Costes),S já lembrara as ironias
tiva e incidiu num procedimento que, em matéria de Ciências Sociais, é de Lessing a propósito dos que se recusam a reconhecer a evidência do
considerado um vício metodológico: o do biologismo. fato acima referido. Se na tecnologia e nas ciências exatas superamos os
O biologismo de Kautsky salta aos olhos, desde logo, em certos antigos gregos, por que não os teríamos superado também na arte épica?
argumentos a que recorre para fundamentar suas análises historiográfi- E a conclusão que se impõe é a de que a Henriade de Voltaire deverá ter
cas. Vejamos, por exemplo, como ele explica a adoção do monoteísmo superado a Ilíada de Homero ...
pelos judeus e pelos persas. Segundo seu ponto de vista, a forma do Do fato de que Kautsky não tenha reconhecido francamente a
monoteísmo representava um avanço sobre as demais formas de reli- possibilidade de diferentes campos do trapalho ideológico lograrem rea-
gião. No entanto, ele foi adotado pelos judeus e pelos persas antes de ser lizações que se "antecipem" ao que seria de se esperar de determinadas
adotado pelos egípcios e pelos gregos, que eram povos mais adiantados. condições socioeconômicas, do fato de que não tenha querido reconhe-
Para que pudesse vir a ser adotado pelos judeus e pelos persas, porém, cer a autonomia (relativa) das atividades ideológicas de diversos tipos,
o monoteísmo teve de ser elaborado como noção - segundo Kautsky - do fato de que se tenha considerado obrigado a recorrer a argumentos
pelos filósofos das nações culturalmente mais adiantadas. E é aqui que "biológicos", infere-se que o ilustre teórico socialista alemão, o "demo-
entra sua comparação "biológica": lidor de Bernstein", tinha uma visão estreita do conceito marxista de
ideologia e uma visão estreita do materialismo histórico.
O fato de que as etapas mais atrasadas aceitem e desenvolvam o progresso
Ota, para um historiador que se define como marxista, uma visão
mais facilmente do que as etapas que se acham mais adiantadas pode pare-
cer paradoxal, mas é um fato do qual temos evidência até na evolução dos estreita do materialismo histórico está longe de ser um pecado irrelevan-
organismos físicos. As formas altamente desenvolvidas são com frequência te. Montado no cavalo do biologismo, Kautsky é levado, por vezes, a se
menos adaptáveis e perecem mais facilmente, ao passo que as formas inferio- afastar bastante do caminho do respeito à verdade dos fatos. Diversos
res, cujos órgãos estão menos especializados, podem ser capazes de se adap- historiadores têm apontado seus lapsos historiográficos. A título exem-
tar mais rapidamente a novas condições e se encontram, por conseguinte, plificativo, apontaremos um, observado por nós no estudo de Kautsky
em situação melhor para seguir o curso da evolução. 4
sobre as origens e os fundamentos do cristianismo. Quando procura
A explicação de Kautsky reflete sua deficiência na ideia de que a explicar por que os proletários, em geral, têm mais filhos do que os
noção de monoteísmo teve de ser elaborada pelos filósofos das nações burgueses, ele escreve: "o proletário não tem propriedades a dividir, que
culturalmente mais adiantadas a fim de que a religião monoteísta pudes- possam tentá-lo a limitar o número de seus filhos". 6 A explicação é, a
se vir a ser adotada pelos povos mais atrasados. A produção filosófica nosso ver, insatisfatória. Os proletários são prolíficos em virtude de uma
não está obrigada a acompanhar mecanicamente o atraso econômico e série de razões: econômicas, sociais, culturais, educacionais etc. Mas, no
social. E a cultura de um país não é um bloco homogêneo cujas partes quadro geral de tais razões, o motivo indicado por Kautsky está longe de
devam se desenvolver harmonicamente, em rigorosa concordância com ter a significação que lhe é atribuída.

3 5
Id., El cristianismo, sus origenes y fundamentos, trad. Diego Rosado de la Espada, ed. [Há edição brasileira desta obra; cf. K. Marx, Teorias da mais-valia, Rio de Janeiro: Difel,
Fuente Cultural, México, 1939, p. 46-47. 1980].
4 6
Ibid., p. 204. Ibid., p. 255.

47
OS MARXISTAS E A ARTE

O vício do biologismo kautskiano transparece ainda mais clara- 4.


mente e provoca estragos mais evidentes no aspecto mais propriamente
filosófico da sua obra. A teoria do conhecimento que Kautsky procurou
desenvolver se baseava na noção de "corpo-movimento", com a qual se
PLEKHANOV
estabelecia uma inseparabilidade entre as ciências sociais e as ciências
naturais. A ciência das formas dos movimentos dos corpos constituiria
a base comum tanto das ciências naturais como das sociais. E o evolu-
cionismo biológico de Darwin forneceria os princípios metodológicos
para o estudo das formas dos movimentos dos corpos naturais, ao passo Plekhanov (1875-1918), ao contrário de Kautsky, dedicou grande
que o materialismo histórico de Marx e Engels forneceria os elementos atenção aos problemas da arte e da literatura, estendendo sua preocu-
necessários ao estudo das formas dos movimentos dos corpos sociais. pação com as questões estéticas até mesmo ao campo da pintura e da
Como a noção de "corpo-movimento" era basicamente a mesma música. Seus esforços por sistematizar os princípios da estética marxis-
para a natureza e a sociedade - e como a realidade da natureza aparecia ta fizeram com que ele fosse considerado, em certa fase, o verdadeiro
no esquema kautskiano como uma realidade anterior à da sociedade -, criador da teoria estética do marxismo. Por outro lado, seus numerosos
I o marxismo acabava por ser assimilado ao "darwinismo". trabalhos a propósito de temas artístico& e literários deram-lhe autori-
dade ante o grande público como expressão categorizada da perspectiva
ideológica por ele adotada.
Plekhanov não aceitava o biologismo da concepção de Kautsky
e insistiu muito em que o social não era um prolongamento natural do
biológico. Para ele, a passagem do plano biológico ao plano social impli-
cava uma alteração qualitativa no quadro geral e na natureza particular
dos problemas tratados: "Se o gosto do belo é diverso entre as diferentes
nações ctue pertencem a uma mesma raça, é claro que não é na biologia
que se deve procurar as causas dessa diferença!" 1
De resto, os trabalhos de Plekhanov não tiveram apenas o mérito
de contribuir para a superação do biologismo kautskiano; muitos outros
méritos lhes devem ser reconhecidos. Ele sempre defendeu com notável
firmeza o princípio da dependência da arte em relação à vida social,
esforçando-s~ por desenvolver essa, ideia fundamental do materialismo
histórico. Plekhanov também percebeu- e o expôs com admirável clare-
za- que a "arte pela arte" era uma expressão peculiar (e através da sua
ansiada inocuidade) de um desajuste básico entre os artistas e o meio
social em que vivem. Ele mostrou que a "arte utilitária" - em oposição
à "arte pela arte" -podia servir tanto ao espírito conservador como ao
espírito revolucionário (lembrando, a propósito, que Luiz XIV e Napo-
leão Bonaparte eram, ambos, contra a "arte pela arte").
Foi Plekhanov, ainda, quem chamou a atenção do grande público
para o fato de que, comparados com os artistas do Renascimento, os

1
G. Plekhanov, A arte e a vida social, trad. Ary de Andrade, ed. Lux, 1955, p. 87.

49
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

contemporâneos, salvo raras exceções, pensam pouco e dominam mal Embora desenvolvendo a teoria sociológica do meio elaborada por
os problemas teóricos de suas respectivas artes. Taine e procurando "corrigi-la", Plekhanov se prendeu em demasia a ela.
Plekhanov exerceu profunda influência ideológica no processo da Como observou Mikhail Lifschitz:
revolução bolchevista e no enraizamento das concepções marxistas na a doutrina materialista da dependência da criação artística diante da vida
União Soviética. Ele foi o continuador da tradição progressista de Bie- real é muito mais ampla do que a teoria sociológica do meio, ainda que esta
linski, Tchernichevski, Dobroliubov e Pisariev; e foi, em certo sentido, o tenha sido desenvolvida por Plekhanov ao percorrer ele o caminho da análi-
4
mestre de Lenin. se das relações de produção e das forças produtivas da sociedade.
Plekhanov e Mehring (de quem falaremos adiante) foram os dois
primeiros grandes críticos de arte de orientação marxista. E, assim como O procedimento que consiste em reduzir o problema colocado por
Mehring era motivo de embevecimento para Rosa Luxemburgo, a obra uma obra de arte a seus aspectos históricos imediatos e a seus aspectos
de Plekhanov inspirou em Lenin - a despeito das sérias divergências que conteudísticos leva não só à subestimação das questões especificamente
ambos tiveram a partir de 1903- o maior respeito e a maior considera- formais como, ainda, leva com frequência a uma atitude conservado-
ção intelectual. Em 1921, por exemplo, na discussão sobre o papel dos ra em relação aos avanços e conquistas da forma. Plekhanov assumiu
sindicatos na sociedade soviética (discussão na qual os pontos de vista semelhante atitude no que concerne, por exemplo, ao Impressionismo na
leninistas prevaleceram sobre os trotskistas), Lenin escreveu: pintura. Os pintores impressionistas foram por ele criticados por mani-
festarem "a mais completa indiferença pelo conteúdo ideológico de suas
Penso que não é demais observar aos jovens membros do Partido que obras". 5 Segundo ele, na falta de ideias claras, os impressionistas recor-
não é possível tornar-se um verdadeiro comunista, dotado de consciên-
riam a alusões confusas, abrindo as portas da pintura para o simbolismo
cia de classe, sem estudar - friso estudar - tudo que Plekhanov escreveu
sobre filosofia, pois é o que há de melhor na literatura internacional do e substituindo o homem pela luz como tema de seus quadros.
marxismo". 2 A análise plekhanoviana do Impressionismo é tímida, superficial.
As contradições e limitações do Impressionismo não podem ser investi-
Em contraste com os elogios calorosos que Lenin faz a Plekhanov, gadas com base numa "indiferença pelo conteúdo ideológico" procla-
a atitude do marxista italiano Antonio Gramsci diante do autor de A mada pelos artistas, porque semelhante "indiferença" não exclui a pos-
arte e a vida social é de uma grande secura, contendo graves reservas. sibilidade de que exista um conteúdo ideológico nas obras a despeito de
Para Gramsci, o escritor russo, "não obstante suas afirmações em con- seus criadores. Além disso, a caracterização do que seja ou deva ser o
trário, recai no materialismo vulgar". E Gramsci enxerga em Plekha- "conteúdo ideológico" na pintura é menos simples do que supõe Plekha-
nov prejuízos decorrentes do "método positivista", bem como "escassas nov e não se reduz aos aspectos temáticos dos quadros.
faculdades especulativas e historio gráficas". 3 É relativamente fácil negar o Impressionismo, comparando suas
A estética plekhanoviana manifesta claramente as debilidades realizações e seus princípios com as realizações e princípios da pintura
referidas por Gramsci. Ao defender o princípio materialista da depen- solidamente estabelecida do Renascimento; o mais difícil é compreender
dência da arte em relação à vida social, Plekhanov lhe dá uma formu- as contradições internas do movimento impressionista e a necessidade
lação estreita, de dependência servil da criação estética ante a ditadura do momento impressionista na história da pintura nos centros ociden-
implacável e mesquinha das circunstâncias socioeconômicas. A arte, tais e discutir os problemas do Impressionismo relacionando-os com os
para o materialismo dialético, não é um mero produto do meio; é tam- problemas da evolução pictórica que se seguiu a ele, bem como relacio:
bém uma manifestação da presença ativa do homem na transformação nando-os com os problemas do drama da pintura atual no ocidente. E
criadora do meio. E o meio, para o materialismo histórico, não é jamais fácil apontar a ligação da pintura com a crise civilizacional que estamos
um meio homogêneo, como o figurava Taine. vivendo, mas é difícil e necessário verificar quais podem ser os caminhos

2 Artigo publicado na revista Literatura Soviética, dezembro de 1956.


Em A concepção materialista da história, de Plekhanov, prefácio, ed. Vitória. 4
3 5 G. Plekhanov, A arte e a vida social, p. 67.
A. Gramsci, Il materialismo storico ... , p. 80. [cf. ed. cit, p. 112].

5I
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

para que a pintura sobreviva e se renove, através da discussão ampla da Pouco importa que, após a exposição de semelhante tese, Plekhanov
função particular que ela pode ter na sociedade contemporânea. tenha procurado ressalvar: "a sociologia não deve fechar a porta à esté-
Poucos estetas exigentes, que tenham os olhos abertos para a tica". Pouco importa que, em seguida ao primeiro momento- o momen-
realidade global do nosso mundo presente, se considerarão plenamente to "sociológico" -, ele tenha procurado acentuar a necessidade, para o
satisfeitos com os resultados concretos alcançados no atual estágio da crítico, de uma apreciação das "qualidades estéticas da obra de arte".
evolução da dita pintura de avant-garde; raríssimos entre eles, contudo, Essa preocupação manifestada na ressalva revela apenas que a sensibili-
acharão boas as realizações pictóricas do realismo socialista na União dade de Plekhanov o alertava, de algum modo, quanto às consequências
Soviética ou as dos que procuram revitalizar as velhas formas da pintura empobrecedoras que o sociologismo acarretava para a crítica de arte e
do passado num contexto em que elas já não conseguem se revestir de para a teoria estética do marxismo. Mas isso fala em favor do homem,
autenticidade ou de verdadeira representatividade. e não em favor dos métodos que ele utilizou. Serve, possivelmente, para
Se quer contribuir para uma discussão que possa ser efetivamente ajudar a defender a pessoa de Plekhanov contra o rigor da acusação
fecunda a respeito da pintura moderna, entretanto, o crítico marxista gramsciana de ser ele um escritor dotado de "escassas faculdades espe-
não pode se ater à estreiteza dos métodos do sociologismo plekhanovia- culativas e historiográficas", porém não serve para defendê-lo contra a
no. Mesmo porque, independentemente da honestidade pessoal subjetiva acusação de ter empobrecido suas análises recorrendo a "métodos posi-
do observador, a utilização de métodos estreitos leva-o, com frequência, tivistas". A metodologia plekhanoviana .conduzia o crítico necessaria-
a desrespeitar a verdade dos fatos, que é comumente complexa e cheia mente a consequências que ele, no plano subjetivo, gostaria de evitar.
de nuances. O próprio Plekhanov, em geral bastante cuidadoso com as A comprovação disso pode ser verificada no que ocorreu com a
informações de que se utilizava em suas teorizações e críticas, era por crítica plekhanoviana: a despeito da sensibilidade de Plekhanov e das
vezes levado não só a caricaturizar os problemas, simplificando-os em ressalvas que fez, prevenindo contra os "excessos" a que poderia levar
demasia, como chegava até a pressupor dados falsos. Umberto Barbaro a aplicação do seu método, ele próprio não conseguiu evitar, na prática,
lembra que ele considerou o minueto como "a expressão harmônica da que tais "excessos" aparecessem em seu trabalho. Escrevendo sobre o
psicologia de uma classe improdutiva e corrupta"; e observa que, no poema de Pushkin, Eugênio Oniéguin, o crítico russo observou que o
caso, cometeu um duplo equívoco: 1) ignorou que a origem do minueto personal?;em central da narração em versos é um nobre que sofre de spleen
era bem anterior àquela que ele lhe atribuía; 2) ignorou que o minueto e que é impelido pelo tédio a correr o mundo, cortejando as mulheres
foi, em sua origem, como tantas outras danças de salão, uma dança e se batendo em duelos. "No seu tempo- escreve Plekhanov a respeito
camponesa. 6 dessa obra -, ele teve muita repercussão; e ainda hoje as pessoas perten-
Lapsos como este não são completamente casuais na vasta obra de centes às classes superiores o leem com prazer". Aos operários, contudo,
Plekhanov: de certo modo, eles são ensejados, facilitados, pelos princí- às pessoas que vivem do trabalho assalariado, afeitas a uma vida ativa e
pios teóricos de que se serve o crítico, pela sua tendência a reduzir a arte dura, o poema de Pushkin bem pouco teria a dizer. "Um operário sim-
à sua gênese social. plesmente não compreenderá o conteúdo desse romance". 8
E a ideia que melhor manifesta semelhante tendência, a ideia que A prática desmentiu Plekhanov. A experiência histórica pôs a nu a
mais claramente revela o emprego de uma metodologia de tipo positi- debilidade da conclusão a que o levara seu método: o Eugênio Oniéguin
vista (confirmando a acusação formulada por Gramsci), talvez seja a de é hoje amplamente lido e bastante apreciado pelos operários da União
que o crítico materialista tem, como tarefa básica, o dever de procurar Soviética.
"determinar o que se poderia chamar o equivalente sociológico do fenô-
meno literário dado".?

6
U. Barbaro, Il filme il risarcimento marxista dell'arte, ed. Riuniti, p. 285.
7
G. Plekhanov, A arte e a vida social, p. 195. 8 Ibid., p. 204.

53
S.

MEHRING

O VICIO metodológico do sociologismo não se manifestava em


Plekhanov como fenômeno isolado: era uma tendência que se vinha
difundindo entre os marxistas e que se tornara dominante no período da
Segunda Internacional. O vulto individual que assumiu, então, a posição
mais resolutamente definida como de combate ao sociologismo e como
de valorização do momento subjetivo na teoria estética e na crítica de
arte foi Franz Mehring (e, nesse sentido, é possível encontrar certa ana-
logia entre a posição de Mehring na crítica de arte e a posição de Lenin
na teoria e prática política, ambos procurando acentuar o elemento ativo
na subjetividade revolucionária).
A evolução de Mehring (1846-1919) apresenta aspectos basica-
mente diversos da de Plekhanov. Quando Plekhanov aderiu à concep-
ção marxista do mundo, ele já era um militante revolucionário socia-
lista e um ativista do movimento operário. Mehring, ao contrário, era
jornalistã em atividade na imprensa burguesa e só veio a se tornar
membro ativo do movimento operário em decorrência de um longo,
acidentado e sinuoso processo teórico de marxistização do seu pen-
samento. Esquematicamente, poderíamos dizer que, em Plekhanov, a
teoria (nas mais elaboradas de suas formas e em sua organização con-
ceitual propriamente marxista) "completou" e "corrigiu" a experiência
prática, a vivência política; em Mehring, a teoria foi, mais acentua-
damente do que em Plekhanov, um elemento que o "impulsionou" na
direção de uma nova prática, que "precedeu" e "exigiu" a tomada de
posição revolucionária.
Como intelectual burguês de tipo tradicional, Mehring teve mui-
tas oportunidades de se familiarizar com a cultura burguesa, com a
riqueza específica tanto da arte burguesa como da arte e da literatura do
passado em geral. Da sua experiência de intelectual burguês "alienado"
(que chegara, inclusive, a combater na imprensa o movimento operário),
Mehring guardara bem viva a convicção de que a arte dos artistas bur-
gueses não estava totalmente comprometida com as ilusões ideológicas
de sua classe.

55
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Quando chegou a aderir às posições marxistas e passou a militar a literatura clássica alemã-, o marxista Mehring se preocupou com a
ativamente na imprensa da social-democracia de então (dando cobertura resposta correta a ser dada a tais perguntas. E nem sempre se saiu bem
a Kautsky na polêmica deste com Bernstein), Mehring não era absoluta- nas formulações que elaborou.
mente um jovenzinho sem experiência de vida: tinha quatro anos mais Escorado em Kant, definiu o conhecimento artístico como algo
do que Bernstein e oito mais do que Kautsky. Sua familiaridade com a que correspondia a uma faculdade específica e inata da espécie humana.
literatura clássica e com as produções do humanismo burguês na arte já "A primeira condição para uma estética científica- escreveu- é estabele-
era conhecida e o tornava um vulto respeitado. cer que a arte corresponde a uma faculdade específica e inata da espécie
Ao aderir à perspectiva marxista, Mehring superava a limitação humana. E Kant, com efeito, demonstrou isso". 2 Semelhante concepção
ideológica fundamental da burguesia, mas não se dispunha a abandonar levou Mehring a fazer algumas concessões ao artepurismo, de vez que
o que havia conhecido de nobre e de grande no patrimônio artístico ele tendeu a supor que, na medida em que satisfizesse plenamente à tal
e literário da cultura burguesa: ele sabia que a autêntica obra de arte faculdade "inata" da espécie humana, a arte deixaria de ter implicações
é mais do que um mero documento sobre o seu tempo ou sobre a sua ideológico-políticas que a vinculassem em sua essência às circunstâncias
circunstância social. Sabia que a verdadeira arte é um conhecimento sócio-históricas. Assim, foi levado a subestimar as implicações ideológi-
\'!~(), de tipo especial, da realidade -sempre histórica - do homem; illas- cas das obras de arte e a valorizá-las acriticamente.
sabja- que~ss_e conhecimei1tQ vivo é transmissível aos homens de outras A influência de Kant sobre Mehring se faz sentir ainda no fato de
cir_c~]1St~J:!<::}<l_s_e_Je_outr()S tell1pos, que ele possui um fôlego que lhe per- que este aceitasse, implicitamente, a polaridade kantiana rígida e mecâ-
mite, sem deixar de ser histórico, perdurar ao longo da história. nica entre o interesse moral e o desinteresse estético. Embora se dispuses-
A compreensão por parte de Mehring de que a arte não possuía se a historicizar Kant, Mehring não pôde fazê-lo, pois o caminho para
apenas interesse historiográfico ou imediatamente político contribuiu para conseguir isso passava por Hegel, e Mehring - embora estivesse menos
que ele repelisse a formulação sociologista que estabelecia entre a arte e distante de Hegel do que Kautsky ou Bernstein- jamais estudou com
a vida social uma relação mecânica e simplista. Mas, como marxista, ele profundidade e jamais valorizou nos termos próprios a obra hegeliana
não podia admitir que a arte evoluísse unicamente com apoio em suas (o que seguramente terá contribuído para que ele não tivesse chegado a
conexões internas, que a criação artística tivesse relações apenas esporá- definir cte maneira correta a natureza dialética das relações entre a arte,
dicas ou secundárias com a vida material dos homens, com a vida social. de um lado, e a vida socioeconômica ou política, de outro).
Era-lhe necessário buscar a ligação essencial entre a arte e a sociedade, Sob a influência do idealismo filosófico de Lassalle, Mehring
de modo que a rejeição do sociologismo lhe acarretava a obrigação de sonhava com uma aliança entre os trabalhadores e a ciência, com a assi-
precisar qual era a vinculação existente de fato entre o produto artístico e milação da cultura tradicional pela classe operária, feitas apenas algu-
o produto econômico e social - quer dizer, lhe acarretava a obrigação de mas correções superficiais, como se a cultura como tal tivesse permane-
procurar responder a seu modo à questão da natureza da arte. cido sempre imune às deformações ideológicas, como se a assimilação da
Se a arte não é um subproduto da ideologia política, se a arte cultura tradicional a uma nova perspectiva de classe e à nova perspectiva
não é um epifenômeno da atividade econômica ou um mero documento da humanidade reunificada (que está sendo criada) não implicasse uma
sobre determinado aspecto da vida social, como se pode caracterizá-la? série de problemas, não exigisse um rigoroso trabalho de reavaliação e
Como se pode estabelecer a natureza e o alcance da influência que ela revisão de valores. A força de Mehring como teórico e crítico de arte
tem sobre a sociedade? Como se pode enxergar aquilo que ela reflete da diante do sociologismo - seu amor pela cultura tradicional e pela rique-
vida social? Como definir o caráter ideológico da arte? za da arte burguesa- transformava-se numa fraqueza sua na medida em
Desde seu primeiro livro, A lenda de Lessing 1 - no qual promovia que lhe faltavam os elementos dialéticos necessários à avaliação crítica
um exame histórico-crítico das relações entre o despotismo prussiano e (artística e ideológica) das obras de arte amadas.

1 2
Há uma edição italiana: F. Mehring, La leggenda di Lessing, trad. Enzio Cetrangelo, ed. Cf. o artigo "Algumas observações sobre o gosto estético", publicado pela revista cubana
Rinascita, Roma, 1952. Dialectica, julho de 1943.

57
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Não enxergando, às vezes, as contradições que se manifestavam, só a pressão ideológica direta pode influir sobre as realizações artísticas
por exemplo, na obra de Goethe (e talvez se recusando a enxergá-las em e nelas deixar traço identificável. Ora, com isso o crítico se prende a uma
toda a sua dimensão, na suposição de que, se as reconhecesse, seria leva- compreensão limitada do fenômeno ideológico e do papel da ideologia
do a diminuir a genialidade de tal obra), Mehring imaginava que, sob na cultura das sociedades divididas em classes.
o socialismo, ocorreria apenas o seguinte com os livros de Goethe: eles Como a concepção em nome da qual ele rejeita o sociologismo é
teriam uma difusão muito mais ampla e seriam muito mais amplamen- insuficientemente dialética, Mehring acaba por não superá-lo devida-
te apreciados, pois não mais seriam lidos exclusivamente pela minoria mente e, quando enfoca a questão das relações entre a arte e a sociedade,
de privilegiados que os conseguem ler hoje - nas condições de explo- oscila entre uma subestimação de tais relações (sendo levado a não reco-
ração do trabalho pelo capitalismo -, e sim por todo o povo. Ora, isso nhecer a ligação estrutural entre uma e outra) e a proclamação de rela-
é verdade, mas a verdade não se reduz a esse aspecto. Q_~y~Ç_() Q'!~a ções diretas e mecânicas, tais como as reconhecidas pelo sociologismo.
o socialismo implica maior difusão propiciada aos grandes autores do Uma concepção mehringuiana em que vemos renascer a tendência
pas~ad()_,_!I!ª§tªJJ:lbém implica que essas obras passarão aser ªpreciac{as sociologista é aquela em que o crítico afirma: "Quando as armas falam,
-~Jl11g<l4ªs_à ll1Z. ciefnQ:V::lSCC()n<fições e novos ângu:lost Mesmo o melhor as Musas se calam". De acordo com tal ideia, as épocas revolucionárias
do passado não pode ser assimilado acriticamente pelo movimento que tendem à esterilidade artística, e esta assume foros de inevitabilidade, de
leva ao futuro. lei sociológica. "Em todas as épocas revolucionárias e em todas as clas-
Na mesma base ingênua com apoio na qual queria promover a ses que lutam por sua própria emancipação - escreve ele -, o senso esté-
admiração difusa por Goethe na sociedade mais democrática do futu- tico será sempre fortemente perturbado por obra da lógica e da moral".
ro, Mehring comete equívocos mais graves, em sua avaliação como his- Lukács, no alentado ensaio que dedicou ao minucioso exame da
toriador, do papel de algumas personalidades: esforça-se por "reabili- obra de Mehring (em Contributi alta storia dell'estetica), observa que
tar" acriticamente Lassalle 3 e Freiligrath. 4 Tornam-se todos excelentes, essa negação básica da possibilidade de um avanço cultural e literário
tutti buone gente, escritores politicamente muito positivos, com alguns nos períodos de maior aspereza da luta de classes pode ser considerada
senões superficiais. a expressão de "um trotskismo no campo literário". E, com efeito, é a
Por outro lado, quando analisa escritores nos quais os elementos tese mehtinguiana que voltamos a encontrar em Trotsky, no capítulo
de ideologias reacionárias se manifestam mais ostensivamente do que em que se segue.
Goethe, Lassalle ou Freíligrath, Mehring não pode deixar de reconhecer
a existência de uma ligação direta entre a arte e a política, mas é levado
a recorrer, como fez no caso do estudo sobre Hebbel, a "uma justaposi-
ção inorgânica dos lados 'bons' e dos lados 'maus', da grandeza poética
e do reacionarismo de Hebbel" (Lukács). 5 E isso porque, como observa
Lukács, Mehring "só está em condições de entender o interesse de classe
-e, portanto, a ideologia de classe- enquanto expressão direta".
A fim de resguardar a especificidade do estético em face do social-
político, Mehring - que, como marxista, não pode deixar de reconhecer
uma ligação essencial entre os dois planos da práxis humana - estabe-
lece um limite artificial à influência da pressão ideológica sobre a arte:
3
Cf. F. Mehring, Karl Marx, trad. W. Roces, ed. Claridad, p. 160-161 [F. Mehring, Karl
Marx. Lisboa: Presença, I-II, 1974]; e Storia del/a Germania moderna, ed. Feltrinelli, p.
207-224.
4
Cf. id., Storia del/a Germania moderna, p. 172.
5
G. Lukács, Contributi alia storia dell'Estetica, trad. Emilio Picco, ed. Feltrinelli, p. 351 e ss.

59
6.

TROTSKY

Trotsky (1877-1940) é, em geral, bem mais conhecido do que


Mehring, uma vez que este, mesmo desenvolvendo respeitável atividade
no movimento socialista, ficou sendo sempre um intelectual, um "teó-
rico", ao passo que o outro passou ao terreno da ação mais diretamen-
te política. Embora tenha aderido tardiamente ao partido bolchevista,
Trotsky se tornou rapidamente o segundo líder mais famoso daquele
partido, logo depois de Lenin. Desenvolveu eficiente trabalho como
organizador do Exército Vermelho vitorioso na Revolução Russa de
outubro de 1917 e foi um dos mais eminentes dirigentes do novo Estado
soviético. Depois da morte de Lenin, entrou internamente em luta contra
Stalin e, tendo sido derrotado por este, viu-se compelido a partir para o
exílio, vindo a ser assassinado no México.
As posições políticas de Trotsky são mais conhecidas do que a
sua visão dos problemas estéticos. Ele defendia a tese de que a direção
revolucionária deveria centrar os seus esforços não sobre a edificação do
socialismo em um único país, como a União Soviética, e sim sobre a pro-
moção da revolução mundial. Semelhante perspectiva - a da "revolução
permanente" -implicava uma política aventureirista. No combate a ela,
Stalin revelou-se, efetivamente, o continuador da política de Lenin. Mas
Stalin explorou os erros políticos de Trotsky para negar-lhe quaisquer
qualidades e para montar um sistema que permitiu a plena expansão de
outros erros a que ele, Stalin, ligou o seu nome.
Em matéria de política cultural, por exemplo, os erros de Stalin
são bem mais sérios do que os de Trotsky. Posteriormente, em outro
capítulo (o capítulo sobre Zdanov), os leitores encontrarão algumas con-
siderações a respeito da política cultural stalinista. A política cultural
preconizada por Trotsky (em um livro escrito quando este ainda não
caíra em desgraça, em 1922) era, ao contrário da stalinista, uma políti-
ca revolucionária de tipo liberal em relação aos intelectuais e à criação
artística. No entanto, a política cultural revolucionária de tipo liberal
- defendida por Trotsky e, em muitos aspectos, endossada por Lenin -
exige, para se suster, uma base teórica, fundamentos estéticos que defi-

6r
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

do que isso. A arte deve encontrar o seu próprio caminho e por seus próprios
nam claramente a natureza do trabalho intelectual e da criação artística, meios. 3
0 papel dos diversos ramos da produção cultural, uma teoria que calce e
dê substância à orientação prática, administrativa, dos que a defendem. Com isso, como observa o professor Luiz Costa Lima, Trotsky
A posição de Trotsky no que concerne às questões teóricas especi- reserva para o marxismo o trabalho de um mero esclarecimento externo
ficamente estéticas apresenta elementos de analogia com a de Mehring. das questões artísticas. Qual é o significado de semelhante formulação?
Ele sabia que a produção artística não deve ser julgada através de cri- Se ela quer dizer que o marxismo não pode solucionar a priori os proble-
térios estreitamente políticos, que a arte não comporta uma avaliação mas concretos da criação artística, ela é rigorosamente verdadeira, mas
imediatista: "Uma obra de arte deve ser julgada, em primeiro lugar, pela -argumenta Costa Lima- se estende a toda a estética: "toda a estética
sua própria lei, isto é, pela lei da arte". 1 Essa área específica da arte- tal é limitada e deve se saber como tal". 4 Se ela quer dizer, entretanto, que o
como em Mehring - apresenta certa imunidade às pressões deforma- marxismo deve se restringir à elaboração de uma sociologia da arte, em
claras da ideologia, e só os valores ideológicos mais diretos conseguem vez de procurar abordar, de uma perspectiva dialética e materialista, os
penetrar nela. A cultura tradicional é válida e preciosa porque traz con- problemas específicos da estética, então ela não só é falsa como repre-
sigo justamente um conhecimento artístico que, no fundamental, foi pre- senta uma concessão ao sociologismo.
servado da contaminação dos interesses de classe. "O trabalho artístico A abordagem do problema da arte por Trotsky, em seu conjunto,
do homem - escreve Trotsky - é contínuo. Cada nova classe se coloca indica que ele foi efetivamente levado a essa concessão ao sociologismo,
sobre os ombros da precedente". 2 que, por uma questão de princípios, repelira no ponto de partida de
Aqui, reencontramos a perspectiva mehringuiana: para reconhe- suas considerações. Repelido, mas não superado, o sociologismo voltou
cer a efetiva continuidade do trabalho de criação artística e não entregar aos esquemas trotskistas (como voltara aos esquemas mehringuianos) e
a riqueza da cultura tradicional à pilhagem vandálica dos iconoclastas, o neles entrou pela porta dos fundos.
crítico faz vista grossa no que se refere às contradições daquela cultura, Trotsky era um espírito cultivado, sem preconceitos, um leitor
recusa-se a reconhecer a descontinuidade que, ao lado e no interior da interessado de Freud e de Einstein, prevenido contra a tentação do ime-
continuidade, se manifesta em seu desenvolvimento dialético. A presen- diatismo e pouco propenso à demagogia populista. No entanto, em vir-
ça da ideologia só é admitida na copa e na cozinha da arte; os cômodos tude do "sistema de ideias que adotara, foi levado a subestimar certas
"nobres" são preservados da "sujeira" ideológica. E o não reconheci- possibilidades (e, por conseguinte, certas tarefas) da política cultural
mento da interferência sutil das pressões e conflitos ideológicos na arte revolucionária no período de transição para o socialismo (o período da
e na cultura impede que o observador enxergue a raiz dos momentos de chamada "ditadura do proletariado").
descontinuidade que marcam a evolução cultural dos povos. Tratando das questões estéticas (aquelas ante as quais cessava, a
De resto, do reconhecimento da relativa autonomia da arte e da seu ver, a competência do marxismo), Trotsky foi levado a concluir que
sua área operacional específica, Trotsky tira a conclusão (forçada) de "a enorme maioria da classe trabalhadora de hoje não está interessada
que, diante dela, o próprio marxismo deve fazer cessar a sua compe- nessas questões. A maior parte. da vanguarda da classe operária está
tência: muito ocupada para tratar delas; ela tem tarefas mais urgentes". 5 Para
ele, a grandeza da cultura proletária não reside tanto nas suas reali-
O método marxista nos fornece uma oportunidade de avaliar o desenvolvi-
zações artísticas quanto no fato de que ela prepare o advento de uma
mento da nova arte, traçar todas as suas origens, ajudar as tendências mais
progressistas por uma iluminação crítica do caminho, porém não faz mais cultura verdadeiramente nova, que será a da humanidade reunificada,
sob o comunismo. "Nossa época- escreveu ele- ainda não é uma época
1
L. Trotsky, Literature and revolution, ed. University of Michigan Press, trad. Rose
Strunsky, p. 178 (há também uma edição francesa, mais completa, lançada pela ed. 3 Ibid., p. 218 [ibid., p. 187].
Julliard) [há ed. brasileira, cf. L. Trostky, Literatura e revolução, Rio de Janeiro: Zahar, 4 Cf. 0 artigo de L. C. Lima, "Trotsky: arte e marxismo", publicado na revista Estudos
1969, p. 156]. Universitários, julho-setembro de 1963.
2
Ibid., p. 179 [ibid., p. 156]. 5 L. Trosky, Literature and revolution, p. 144 [ibid., p. 125].
l il

OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

de uma nova cultura, mas apenas a de ingresso nela". 6 Para Trotsky, o tes à promoção cultural e à criação artística capazes de dignificar desde
rouxinol da poesia - tal como o mocho de Minerva, que simbolizava a já o processo revolucionário humanizador e libertário.
Filosofia na metáfora de Hegel- só levanta voo (só canta) ao pôr do sol. O derrotismo subjacente à visão mehringuiana-trotskista pode,
No princípio de uma nova era, a poesia fica sempre aquém das necessi- inclusive, esvaziar o próprio sentido liberal da política revolucionária
dades do momento histórico. derivada das posições estéticas que tanto Mehring como Trotsky sus-
Semelhante tese pode impressionar pelo brilhantismo e pela pos- tentaram: pode levar o governo revolucionário que compreende a exe-
sibilidade que oferece de explicar o baixo nível da produção artística cução de tal política a se encastelar num liberalismo oco, tão cômodo
na União Soviética nas décadas que se seguiram à da sua organização. como irresponsável, fazendo com que ele se omita diante dos valores
Além disso, a concepção de Mehring e de Trotsky tem a vantagem humanos e políticos empenhados na luta cultural, fazendo com que
nada desprezível - como já dissemos - de comportar uma política cul- deixe de buscar a concretização de medidas positivas, capazes de esti-
tural revolucionária de tipo liberal, isto é, uma política que, favorecen- mular o florescimento da cultura, capazes de criar condições em que a
do a liberdade de criação artística, predispõe os artistas mais sinceros produção cultural não só possa como tenda a se orientar num sentido
e mais independentes a uma atitude mais favorável diante da revolução progressista.
proletária. Além disso, o sentido liberal da política cultural que poderia deri-
Esses dois aspectos positivos da perspectiva teórica de Trotsky, var da estética trotskista precisaria, para se concretizar e se desenvol-
entretanto, são prejudicados pelas limitações gerais da concepção ver, superar a pressão antiliberal decorrente de outras ideias de Trotsky,
trotskista. Não basta que a estética comporte uma política cultural particularmente sensíveis na sua atividade como político e como orga-
revolucionária de tipo liberal; é preciso que ela a suporte. E não é lícito nizador. Convém lembrar, aqui, a título de exemplo, as posições susten-
à genuína perspectiva revolucionária recorrer ao futuro como um álibi tadas por Trotsky contra Lenin no debate, ocorrido por volta de 1920,
para amenizar as responsabilidades concretas do presente. Em sua forma sobre o papel dos sindicatos na sociedade soviética e sobre as relações
elaborada e madura, a nova cultura pertence ao futuro: mas ela jamais que eles deveriam manter com o governo revolucionário. Deixemos que
se tornará presente se não nos dispusermos desde já a trabalhá-la, desen- Isaac Deutscher (que é insuspeito, dada a sua imensa admiração por
volvendo o seu atual embrião. As derrotas que sofremos no trabalho Trotsky)'nos resuma a controvérsia. Opondo-se à autonomia dos sindi-
de política cultural e de promoção das artes hoje adiarão e prejudica- catos, Trotsky insistira em identificar de modo imediato a classe operá-
rão o grande êxito que figuramos para amanhã. Os revolucionários de ria e seu Estado.
orientação marxista não podem recorrer a explicações que estabeleçam
Os operários, dizia ele [Trotsky], não têm interesses próprios a defender
antidialeticamente qualquer inevitabilidade para o circunstancial baixo contra um Estado que é o deles. Lenin respondeu que o Estado proletário
rendimento do trabalho revolucionário no campo cultural. As verdadei- invocado por Trotsky era ainda uma abstração: não era ainda o verdadei-
ras causas do nível deficiente da produção artística na União Soviética ro Estado dos operários, pois· ele ainda precisava frequentemente servir de
não decorreram de uma discutibilíssima "lei" histórica tão geral quanto balança entre os operários e os camponeses. E pior: ele era vítima da defor-
abstrata- a lei implícita no raciocínio de Trotsky, segundo a qual, como mação burocrática. Os operários precisavam, certamente, defender o Estado
ocorria em Mehring, as épocas de tensão revolucionária são intrinseca- deles, mas deviam também se defender eles próprios contra ele. 7
mente hostis à arte -, mas sim das particularíssimas circunstâncias his-
tóricas em que se gerou o stalinismo. A posição de Mehring e de Trotsky,
pressupondo o inevitável prejuízo para a arte no calor da luta revolucio-
nária, acarreta certo derrotismo para a política cultural dos marxistas
! I
··I'I'.
•. nos períodos de transformação radical das estruturas socioeconômicas.
ll Acarreta a subestimação das responsabilidades e das tarefas concernen-
7 I. Deutscher, Le prophête desarmé, ed. Julliard, p. 76 [O profeta desarmado. Trad. Wal-
6
Ibid., p. 191 [ibid., p. 166]. tensir Dutra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 56].
7.

LENIN

Lenin (1870-1924) não queria que a direção revolucionária dei-


xasse as artes totalmente entregues a si mesmas, pois não acreditava
que fosse inevitável a queda do nível estético da produção artística nos
períodos de aguçamento da luta de classes. Para ele, a direção da revolu-
ção bolchevista devia procurar influir sobre a criação artística, criando
condições para que as artes tivessem elevado o seu nível estético e, simul-
taneamente, colaborassem com os desígnios revolucionários. Mas Lenin
não queria implantar um sistema de dirigismo burocrático, no qual a
direção política da revolução "ditasse" aos artistas o que eles deveriam
fazer, ficando a criação estética enfeudada à mais direta propaganda
política, pois sabia que a arte subjugada às exigências imediatas da pro-
paganda só poderia ter uma influência agitacional, porém não teria, de
fato, uma influência educacional.
Tal como Marx ou Engels, Lenin jamais tratou dos problemas
da estétfca de maneira sistemática. Jamais se pretendeu, também, um
conhecedor de tais problemas- quando declarou que não se incluía entre
os admiradores do poeta Maiakovski, ressalvou: "reconheço minha
incompetência nesse campo". Lunatcharski, o primeiro comissário do
povo para os assuntos da cultura, com quem Lenin teve numerosas
divergências, reconheceu: "Vladimir Ilitch jamais erigiu suas simpatias e
antipatias estéticas em princípios". 1
Pessoalmente, Lenin estimava muito as tradições da cultura russa.
Tinha tal estima pelas tradições da cultura russa progressista do passado
que, em certa ocasião, antes de seu estudo mais aprofundado das obras
de Hegel, chegou a dizer que Herzen - materialista russo do século XIX
-"foi mais longe do que Hegel", o que constitui um evidente exagero.
Essa apaixonada estima pessoal de Lenin pela tradição cultural
progressista na literatura russa, contudo, deve ter sido um fator positi-
vo na sua influência sobre a política cultural revolucionária do período

1 Lénine- sur la littérature et l'art, textos coligidos e apresentados por Jean Fréville, Édi-
tions Sociales.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

leninista, contribuindo para que o rico acervo da literatura e da arte do Outra manifestação do que afirmamos: a aguda compreensão da
passado não sofresse maiores agravos por parte do proletkult ou por obra de Tolstoi e a escassa compreensão da obra de Dostoievski. Pos-
parte dos pseudopoetas "proletários". suindo a obra de Tolstoi um caráter político bem definido, Lenin soube
atravessar o cipoal de suas contradições sem se perder e lhe definiu bri-
A cultura proletária - escreveu ele - não surge completamente feita de não
lhantemente os suportes ideológicos, mostrando nesse autor o intérprete
se sabe onde. Ela não é uma invenção de homens que se classificam como
especialistas no assunto. Tudo isso é pura tolice. A cultura proletária deve das massas camponesas exploradas da Rússia. Já diante de Dostoievski,
ser o desenvolvimento lógico da soma dos conhecimentos elaborados pela autor de uma obra de caráter político-social mais problemático, revela-
humanidade sob o jugo das sociedades capitalista, feudal e burocrática. 2 se bastante desconfiado.
Para se orientar, Lenin não podia perder de vista os valores estri-
Sendo um dirigente revolucionário voltado para a realização de tamente políticos. Mas o que importa frisar é que ele repelia os métodos
pesadíssimas tarefas políticas e carregando sobre os ombros a tremen- estreitos para conseguir seus fins político-partidários, pois os sabia con-
da responsabilidade da chefia do primeiro Estado proletário, Lenin se traproducentes. Aos que queriam ver criada uma literatura especial de
esforçava por obter da produção artística o máximo rendimento pro- politização para a massa trabalhadora, com a subestimação em bloco da
pagandístico possível. Sua rejeição da arte panfletária se devia menos a literatura burguesa, Lenin respondia, já antes da tomada do poder pelos
exigências estéticas do que à sua própria lucidez política: ele compreen- bolchevistas: "é preciso que os operários não se confinem ao quadro
dia que a utilidade do panfletarismo é (até politicamente) limitada e se artificialmente limitado da 'literatura para operários', e sim que apren-
escoa logo. dam a compreender melhor a literatura para todos". 4
A visão leniniana dos problemas estéticos era, basicamente, a de A rigor, Lenin não trouxe uma contribuição original e profunda
um político. Ele tinha excepcional sensibilidade e argúcia para julgar para o desenvolvimento teórico da estética marxista. Sua maior impor-
os aspectos estritamente políticos das obras de arte, mas tinha também tância reside no fato de ter ele procurado pôr em prática uma política
certa tendência natural para enxergar tais aspectos em detrimento dos cultural revolucionária inspirada nos princípios da autêntica estética
demais. marxista, sem os percalços que lhe traziam suas contrafações e seus
Quando os critérios políticos não lhe permitiam avaliar as conse- "desvios". A floração artística dos anos 1920 na União Soviética, se
quências de um fato estético significativo, ele hesitava, se retraía. Gorki não prova cabalmente o acerto e a eficácia da política culturalleninista,
relata um episódio bem revelador das reações de Lenin diante de uma prova pelo menos que ela não atrapalhou a criação estética ou a promo-
significação estética intraduzível em termos políticos- como a da músi- ção do amplo debate teórico.
ca- quando narra que, certa noite, em Moscou, depois de ouvir as sona- Os anos 1920 foram, realmente, anos de incerteza, de miséria e
tas de Beethoven ao piano, Lenin teria observado: sofrimento, mas foram também anos de grande efervescência cultural
na União Soviética. O ambiente literário de então se caracterizava pelo
Não conheço nada mais belo do que a Apassionata: poderia ouvi-la todos
os dias. Música surpreendente, sobre-humana. Digo-me sempre com um
choque estrepitoso de várias tendências, que incluíam desde o formalis-
orgulho talvez ingênuo e pueril: 'Que maravilhas os homens podem criar!' mo dos Irmãos Serapião (grupo cujo nome era tirado de um personagem
Mas não posso ouvir música constantemente, ela age sobre os meus nervos, de Hoffmann) e do tradicionalismo acadêmico, até o refinamento dos
tenho vontade de dizer tolices e de acariciar as criaturas que, vivendo num imagistas (Essenin), o sectarismo do proletkult (grupo que teve como
inferno assim, podem criar tanta beleza. Hoje, contudo, não se pode acari- inspirador o machista Bogdanov, com quem Lenin polemizara em Mate-
ciar ninguém: devoram-nos a mão. É preciso golpear as cabeças, golpeá-las rialismo e empiriocriticismo), passando pela agressividade dos futuris-
impiedosamente, embora idealmente nós nos oponhamos a toda violência.
tas (entre os quais surgiu Maiakovski) e a posição moderada, aberta e
Trata-se de uma ocupação infernalmente difícil! 3
confusa de Gorki.
2
Ibid., p. 172.
3
M. Gorki, Lénine et le paysan russe, trad. Michel Dumesnil de Gramont, ed. Sagittaire,
p. 15-17. 4 J. Fréville, Lénine - sur la littérature et l'art, p. 81.

68
OS MARXISTAS E A ARTE

Uma ampla discussão de todos os grandes problemas da literatura


8.
e da sociedade marcou a época. No curso dos debates, posições absur-
das, obviamente equivocadas, chegaram a ser sustentadas. Os escrito- BUKHARIN
res jovens, empolgados, assumiam atitudes românticas. Ehremburg,
que participou dos acontecimentos daquela fase, confessa-o: "Fazíamos
mofa do romantismo, mas na realidade éramos românticos". 5 Um poeta
chamado Kirilov chegou a preconizar, em nome da criação da nova arte
proletária, a destruição das madonas de Rafael.
O governo revolucionário leninista não se omitiu diante da livre Uma das figuras mais características dos anos 1920 na União
discussão que se travava, não se encastelou em um liberalismo cômodo Soviética é Nicolau Bukharin (1888-1938). No chamado "testamento"
e preguiçoso: procurou intervir nos debates, procurou influir no sentido de Lenin, Bukharin é considerado "o melhor teórico do Partido". Mas
de neutralizar as posições cujas implicações políticas tivessem um cará- Lenin acrescenta: "É muito duvidoso, entretanto, que os pontos de vista
ter retrógrado, reacionário e desumano. Mas soube evitar a sufocação de Bukharin possam ser considerados plenamente marxistas, pois há
do debate, a intervenção burocrática, policialesca. Não extinguiu, em algo de escolástico nele e, segundo penso, ele jamais assimilou e enten-
geral, a fermentação, não procurou implantar a uniformidade de pensa- deu completamente a dialética".
mento na produção artística. Tal como ocorreu com Trotsky, a fama e a influência de Bukharin
como teórico se difundiram com grande rapidez, em virtude de ser ele
também um ativo dirigente político. Bukharin ocupou, desde 1917,
importantes cargos na direção do Partido e do Estado, mantendo-se em
posições proeminentes até 1929, quando se iniciou a sua queda. Em 1937
ele foi preso e, depois de um rumoroso processo em que era acusado de
alta traição, foi executado, em 1938.
Búkharin era homem de grande erudição, escreveu sobre os mais
variados assuntos e foi, inclusive, diretor do Pravda. Seu estudo a pro-
pósito do imperialismo precedeu de um ano o de Lenin a respeito do
mesmo tema. Seu ABC do comunismo alcançou notoriedade como tra-
balho de divulgação das ideias comunistas.
Juntamente com Lunatcharski, Bukharin foi o teórico que com-
bateu de maneira mais frontal a tese trotskista de que a criação de uma
cultura socialista só poderia ser feita após a edificação da sociedade
socialista. Em 1925, ele pronunciou uma conferência na qual acusou
Trotsky de fazer da ditadura do proletariado um vazio cultural, o hiato
entre um passado criador e um futuro que também o será. 1 Ao contrário
de Trotsky e de Lenin, Bukharin simpatizava com o proletkult e chegou
mesmo a estimulá-lo, antes de reconsiderar suas posições, ante a pressão
,il das ideias de Lenin. A obra filosófica mais significativa de Bukharin
li é A teoria do materialismo histórico (Manual popular de sociologia

1
Cf. I. Deutscher: Le prophete désarmé, trad. Ernest Bolo, ed. Julliard, p. 273. [O profeta
5
I. Ehremburg, Memórias, trad. de Dalton Boechat, ed. Civilização Brasileira v. 3, p. 55. desarmado, cit., p. 215-216.]
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

marxista), publicada em 1921. O aparecimento dessa obra deu ensejo a À arte cabe, justamente, socializar os sentimentos, sistematizar os senti-
numerosas discussões; nela se acham expostas as ideias de Bukharin a mentos em imagens ou representações sensíveis. Uma obra musical, por
respeito dos problemas estéticos. exemplo, exprime um determinado estado de espírito. Ouvindo-a - afir-
A arte, para Bukharin, faz parte do conjunto da cultura espiritual ma Bukharin -, os circunstantes se compenetram do mesmo estado de
dos povos, e a cultura espiritual se elabora à base de uma psicologia espírito, que se torna, assim, cabalmente coletivo.
dominante que molda, em certa medida, num estágio dado, toda a vida Em seguida, Bukharin procura provar que, "de uma maneira ou
social refletida na consciência. de outra, direta ou indiretamente, ou por uma série de laços interme-
Bukharin sabe que a "psicologia" particular de cada classe é deter- diários, a arte, em seus múltiplos aspectos, é determinada pelo regime
minada, em última análise, pelas condições de vida dos indivíduos que a econômico e pelo nível da técnica social". 5 À primeira vista, a tese parece
integram e pelo lugar que a classe ocupa na estrutura da sociedade. Ape- legítima, do ponto de vista do materialismo histórico. O caráter social-
sar da diversidade de situação das classes, porém, há circunstâncias em mente determinado da arte é pacífico para o marxismo. E a formulação
que podemos discernir claramente traços de uma psicologia dominante bukhariniana ressalva que a dependência da arte em relação ao regime
da sociedade em geral. "Pode-se relembrar o que era visto na época do econômico se realiza "direta ou indiretamente" ou "através de uma série
feudalismo: tanto no senhor feudal como no camponês, havia traços de laços intermediários". Mas, a um exame mais detido, cai por terra a
psicológicos comuns: apego às velhas coisas, à rotina, às tradições, sub- tese de Bukharin e vê-se que ele não a podia provar mesmo. Primeiro,
missão à autoridade, 'temor de Deus', estagnação do pensamento etc." 2 porque concebe de maneira estreita o condicionamento social da arte
O quadro constituído pela psicologia dominante que se estende a (que é histórico-global) quando a apresenta como determinadil "pelo
toda sociedade jamais consegue se impor como um quadro homogêneo. regime econômico e pelo nível da técnica social" (?). Depois, não obs-
!
I
De acordo com a situação particular de cada uma delas e de acordo com tante o condicionamento social tenha sido definido em termos estrei-
os seus interesses privados, as classes (e até algumas subdivisões no inte- tos, Bukharin frisa que ele se estende aos "múltiplos aspectos" da arte e
rior das classes) tendem a cristalizar em ideologias diversas o modo de abrange, por conseguinte, até as sutilezas estilísticas ligadas à continui-
sentir e de julgar as coisas que lhes for individualmente próprio. dade da evolução específica das formas artísticas. E de onde Bukharin
Para Bukharin, as ideologias são "círculos de gêneros diversos que foi tirar a possibilidade de a arte ser diretamente determinada pelo regi-
encerram como um tonel o corpo social e o mantêm em equilíbrio". 3 E a me econômico ou por aquilo que chama de nível da técnica social?
superestrutura é uma realidade ainda mais ampla do que a ideologia, de A formulação bukhariniana implica um empobrecimento da com-
modo que a ideologia é apenas o sistema das ideias, sentimentos, ima- preensão do fenômeno artístico. Com base nela, Bukharin insiste em
gens e normas, ao passo que a superestrutura abrange também as orga- ter sempre diante dos olhos, em cada caso concreto, a configuração do
nizações e os instrumentos de trabalho. "Toda superestrutura- escreve condicionamento econômico e tecnológico geral do mais sutil efeito esté-
Bukharin - serve de fator intermediário no processo de reconstituição tico e do mais refinado movimento intelectual. Caracteriza-se aqui, no
em comum da vida social." 4 entender de Gramsci, aquela "convicção barroca de que, quanto mais
É à luz de tais considerações que Bukharin procura analisar a se recorre a objetos 'materiais', tanto mais se é ortodoxo" na defesa das
I
função social da arte. A ciência - diz ele - sistematiza as ideias dos posições marxistas. 6
',I
homens, as coordena, as esclarece, as desembaraça das contradições que A subestimação mecanicista da autonomia (relativa) da criação
as prejudicam e tece teorias. Mas o homem não é um ser puramente artística ainda tem, em Bukharin, um outro efeito: na sua ânsia por
pensante: o psiquismo humano não se move exclusivamente à base de salvaguardar a "pureza" da sua particular concepção materialista da
ideias. O homem sente, sofre, experimenta prazer, alegria, desejos etc. história e no seu esforço conceitualmente mal servido por estabelecer
o condicionamento sócio-histórico da arte em seus múltiplos aspectos
2
N. Bukharin, A teoria do materialismo histórico (Manual popular de sociologia marxis-
ta), ed. Caramuru, São Paulo, 1933, v. 3, p. 83.
3 5 Op. cit., v. 3, p. 58.
Ibid., v. 4, p. 26.
4 6 A. Gramsci, Il materialismo storico ... , p. 156. [cf. ed. cit., p. 199].
Ibid., p. 118.

73
OS MARXISTAS E A ARTE

9.
(inclusive nas sutilezas formais), ele é levado a se servir de uma ideia
bastante confusa do que seja a forma artística. Falando da arte, escreve:
"Em cada época, ela tem o seu 'estilo' especial, isto é, um caráter parti- EISENSTEIN
cular que se exprime por formas particulares (... ). Mas se, em todos os
domínios da vida social, constatamos um conjunto de formas determi-
nadas, não podemos falar do 'estilo' de todos os domínios da vida?" 7
Para Bukharin, por conseguinte, o "estilo" da arte de cada época
não se distingue, em sua essência, do "estilo" da ciência e do "estilo"
de vida dos homens; as formas particulares de um e de outro dos cam- Não é só Bukharin que pode ser apontado, em alguns dos aspec-
pos da atividade ideológica têm, substancialmente, uma mesma função. tos e~senciais da sua atitude diante da arte, como elemento represen-
Bukharin não podia chegar a compreender, assim, verdadeiramente os tativo dos anos 1920 na União Soviética. Outros vultos também são
problemas específicos da forma na arte, pois tinha da forma artística típicos daquela fase, tanto no arrojo, na inventiva pessoal, como nas
uma visão estreita, errônea, ora a confundindo com o "estilo", ora a debilidades, na confusão ideológica, na mistura desordenada de secta-
confundindo com a "técnica". E, em contrapartida, confundia o conteú- rismo e de liberalismo.
do com o "tema" ou "assunto" da obra de arte. Basta ver: "O conteúdo, Ao lado de Bukharin, poderíamos .colocar, por exemplo, nomes
o 'assunto' da obra de arte, que é quase inseparável da forma, é manifes- como Eisenstein, Maiakovski e Gorki. Maiakovski, em especial, é tão
tamente determinado pelo meio social, o que se verifica facilmente pela típico da década de 1920 que até morreu com ela. Gorki, que passou
história da arte. Está claro que a arte trata de representar aquilo que, boa parte dos anos 1920 fora da União Soviética, é menos representa-
num momento dado, apaixona as pessoas". 8 tivo daqueles anos do que de todo um período mais extenso da histó-
Não foi por acaso que, lendo os arrazoados de Bukharin, Gramsci ria do seu povo: um período que começa no final do século XIX e se
ficou consternado e enxergou neles "uma justaposição mecânica de ele- estende até os umbrais do zdanovismo. Nos dois próximos capítulos,
mentos disparatados, que permanecem inexoravelmente desconexos e falaremos a respeito de Maiakovski e de Gorki. Neste, diremos algo
desligados, não obstante o verniz unitário dado pela feitura literária". 9 sobre Eisenstein.
O que o tom da exposição das ideias de Bukharin tem de dogmáti- Serguei Mikhailovitch Eisenstein (1898-1948) era bem moço
co, o seu pensamento tem de simplista. A tese da socialização dos senti- quando abandonou seus estudos de Engenharia, depois de ter assistido
mentos como função social da arte, por exemplo, é extremamente vaga. a uma encenação da peça Mascarade por Meyerhold, e resolveu se
Como se opera semelhante socialização? Qual é o seu alcance? Qual a dedicar à arte. Pertencia a uma família regida por princípios burgue-
sua eficácia prática ou cultural? Um revolucionário comunista encar- ses: durante a guerra civil, seu pai se alistou no exército branco, e ele
cerado e seu carcereiro fascista se compenetrarão acaso de um mesmo no exército vermelho. Após a desmobilização, veio trabalhar no tea-
estado de espírito ao ouvirem Mozart? O problema é com certeza bem tro de proletkult, em contato com Meyerhold. A princípio, trabalhava
menos simples do que Bukharin pretendeu fazer crer. como cenografista; posteriormente, fez experiências como assistente de
direção e acabou como diretor.
Quando o proletkult se dispôs a realizar filmes dedicados à histó-
ria do movimento operário russo, Eisenstein- que já se entusiasmara com
o cinema, segundo consta, ao ver Intolerance de Griffith - empreendeu
a criação de seu primeiro longa-metragem, lançado em abril de 1925
com o título de A greve. No mesmo ano (que, por sinal, é o ano de Em
7
busca do ouro, de Chaplin), ele filmou O encouraçado Potemkin, que
N. Bukharin, A teoria do materialismo histórico ... , v. 3, p. 114.
8 lhe valeu projeção internacional. Já então ele trocara definitivamente o
Ibid., p. 56.
9
A. Gramsci, Il materialismo storico ... , p. 131. [cf. ed. cit., p. 171].

74 75
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

teatro pelo cinema, afirmando: "É absurdo procurar aperfeiçoar o arado Já naquela época, além de grande artista, Eisenstein se revelara
quando se dispõe do trator". 1 um arguto e sensível teórico da nova arte cinematográfica. Em sua par-
A metáfora do arado e do trator não manifesta apenas a con- ticipação nas discussões sobre o papel da montagem no cinema, ele foi
vicção eisensteiniana da moderna superioridade do cinema sobre o tea- um dos primeiros a avaliar esse papel em termos realistas, recusando-se
tro; manifesta igualmente a visão que o proletkult e Eisenstein tinham a acompanhar tanto os que diziam que a montagem era tudo na lingua-
da arte como instrumento de transformação da sociedade: uma visão gem cinematográfica quanto os que lhe minimizavam o valor.
rigorosamente utilitarista. Assumindo as exigências ligadas às condições Eisenstein deu, além disso, uma valiosa contribuição ao esclareci-
especiais da União Soviética, Eisenstein e o proletkult eram levados a mento teórico da natureza da montagem, observando que, no movimen-
subestimar a função gnoseológica da arte em seus aspectos menos ime- to do filme, a junção ou justaposição de dois pedaços (ou imagens) não
diatos e a enfatizar sua função como agente transformador capaz de pro- resulta numa soma, e sim num todo qualitativamente novo. Em face de
duzir modificações práticas imediatas nas relações humanas, sobretudo Vsievolod Pudovkin, que acentuava o caráter complementar das imagens
na ação política dos homens. na montagem, Eisenstein chamava a atenção para a função do contraste
O governo revolucionário de Lenin procurava orientar a sua polí- na relação que a montagem estabelecia entre elas.
tica cultural no sentido de obter o máximo rendimento da arte como ins- No entanto, o pensamento teórico de Eisenstein tropeçava nos
trumento de politização, mas - conforme vimos - rejeitava, em geral, o limites de determinadas contradições que precisavam ser superadas. A
recurso aos métodos burocráticos. Lenin criara condições excepcional- princípio, quando começara a fazer cinema, ele se achava sob a influência
mente favoráveis para o trabalho dos cineastas soviéticos. Uma ocasião, das ideias de Bogdanov, o teórico do proletkult. Depois, a essa influência
dirigindo-se a Lunatcharski, ele dissera: "O cinema, para nós, é de todas ainda se acrescentou a das concepções "esquerdistas" de Dziga Vertov
as artes a mais importante". Como os cineastas estavam espontânea e (segundo Guido Aristarco, A greve lembra um filme de Vertov intitulado
sinceramente convencidos da necessidade de fazer uma arte acentuada- A verdade).
mente política, da necessidade de criar filmes que servissem diretamente Dziga Vertov achava que a trama (o enredo, a história) era um ele-
aos ideais da Revolução de Outubro, não havia o menor sentido em mento típico da literatura. E achava que a recitação de atores (a criação
qualquer atitude por parte dos governantes visando pressioná-los, visan- de perscfnagens "trabalhados") era um elemento típico do teatro. Ao se
do dirigir-lhes coercitivamente o trabalho. Os cineastas desfrutavam, colocarem entre a câmera cinematográfica e a vida- afirmava Vertov -,
assim, de extraordinária liberdade de criação; e ainda por cima tinham esses dois elementos estragam o mundo, prejudicam o cinema.
o maior apoio econômico. Eisenstein, convencido do caráter absolutamente novo do cinema, 2
Para filmar Outubro, em 1927, quando as condições do perío- aproximou-se das posições de Vertov e se preocupou com a ganga de
do leninista ainda não tinham sido substituídas pelas condições que conceitos e valores que estariam sendo impropriamente carreados de
vieram a caracterizar o período stalinista, Eisenstein teve postos à outras artes para a arte cinematográfica.
sua disposição, pelo governo, meios cujo vulto chega a ser surpre- Como criador estético, entretanto, ele começou a sentir em seu
endente: para as cenas de massa, contou com uma figuração de 11 trabalho as dificuldades acarretadas pela linha seguida em sua reflexão
mil operários e soldados, armados pelo Exército. Como havia pouca teórica. A greve prescindia de trama e de personagens individuais. No
eletricidade em Leningrado, a cidade ficou sem luz durante várias encouraçado Potemkin (considerado um êxito superior ao d'A greve),
noites, a fim de que poderosos refletores permitissem a filmagem das existia trama e aparecia até um esboço de desenvolvimento de persona-
cenas do assalto noturno ao Palácio de Inverno. E Eisenstein dispu- gens individuais. Como superar o dilema? Revendo concepções teóricas
nha de todos esses meios para utilizá-los livremente no seu trabalho que lhe pareciam certas? Ou se afastando do movimento que, na passa-
de criação artística. gem d'A greve ao Encouraçado, lhe permitira criar a sua obra-prima?

1 2
Citado por Guido Aristarco em sua Storia delle teoriche del film, ed. Einaudi, Torino, "Essa arte nada terá de comum com a do passado", escreveu Eisenstein (Reflexões de
1960. um cineasta, trad. José Fonseca Costa, ed. Arcádia, p. 369).

77
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Em Outubro (1927) e Linha geral (1929), Eisenstein mostrou que artística. O filme em que a sua concepção deveria se definir na prática
ainda continuava preso à concepção do cinema como arte capaz de pres- era Uma tragédia americana (baseado no romance de Theodore Dreiser)
cindir de trama e personagens individuais desenvolvidos, à concepção e não chegou a ser feito.
do cinema como "montagem de atrações"; porém, a "montagem de atra- Há elementos, todavia, que sugerem uma identificação de Eisens-
ções" já não é entendida nos termos em que a tinham definido escritos tein com a utilização avant-gardiste do monólogo interior. Antes de
teóricos eisensteinianos de um período precedente. Ele procura aprofun- mais nada, sua convicção - proclamada em carta a Leon Moussinac4
dar e desenvolver sua doutrina, procura criar os princípios de um cine- - de que James Joyce fazia na literatura algo muito próximo daquilo
ma capaz de traduzir o pensamento abstrato diretamente em imagens que ele pretendia fazer no cinema. Joyce- sobretudo o Joyce de Ulisses,
dinâmicas. Seu ideal passa a ser o de um cinema intelectual, que poderia que deslumbrava Eisenstein - é precisamente o tipo do autor que faz do
dar forma a um sistema filosófico e a seus conceitos fundamentais de monólogo interior um princípio autossuficiente capaz de servir de base
maneira imediata, sem recorrer a perífrases, a enredos, a transposições à estruturação da obra de arte.
ou a quaisquer meios indiretos. A própria formulação dada por Eisenstein à sua maneira de enca-
Na época em que se preocupava com a criação do cinema inte- rar o monólogo interior o aproxima da avant-garde: "as leis da cons-
lectual e pensava em filmar O capital de Marx, Eisenstein teve a sua trução do monólogo interior - escreveu ele - são precisamente as que
atenção chamada para o exame dos problemas decorrentes do adven- constituem o fundamento do variado conjunto de leis que governam a
to do cinema sonoro. Viajou então para o estrangeiro, foi à França e construção da forma e composição das obras de arte". 5
aos Estados Unidos, disposto a estudar as técnicas de utilização do som Nossa intenção, aqui, não é a de caracterizar Eisenstein como
naqueles países. um avant-gardiste para pretender negar a elevada qualidade artística
A ideia do cinema intelectual continua a fasciná-lo. Seu interesse de seus filmes ou para pretender invalidar a dimensão realista de sua
incide cada vez mais sobre as questões relativas à psicologia humana e obra de criação artística. Queremos apenas assinalar a presença, em sua
especialmente sobre a psicologia na arte. A realização do ideal do cine- perspectiva teórica, de elementos característicos da confusão ideológica
ma intelectual lhe parece depender do esclarecimento de tais questões: é imperante na União Soviética nos anos 1920. Tais elementos não eram
preciso mobilizar os meios hábeis para provocar as emoções que levem favoráveis à criação artística e sua superação era desejável. Infelizmente,
às ideias que o cineasta pretende transmitir. Eisenstein concentra a sua porém, como sabemos, a confusão teórica dos anos 1920 não foi supe-
atenção na análise do movimento das contradições no interior das pes- rada por uma correta clarificação das questões ideológicas com que se
soas. "Só o cinema falado - escreve ele -pode mostrar plenamente o defrontavam tanto os dirigentes políticos como os artistas e os teóricos
desenvolvimento interno da consciência". E acrescenta: "O material típi- da estética: foi substituída pela unificação doutrinária simplista e dog-
co do filme falado é o monólogo interior". 3 mática do período de Stalin.
O monólogo interior é uma técnica para a representação do movi- Eisenstein enfrentou dificuldades durante o período stalinista. O
mento psicológico dos personagens e para a representação de seus pro- filme O campo de Béjin, a cuja realização ele se dedicou de 1935 a 1936
blemas íntimos. Como técnica, o monólogo interior tem prestado bons (e que permaneceu inacabado), sofreu severas críticas. A Enciclopédia
serviços às composições realistas, ajudando a plasmar tipos humanos soviética acoimou o notável diretor de "formalista". Isso não impediu
concretos, verdadeiros. Quando, entretanto, deixa de ser uma técnica e que o governo de Stalin lhe proporcionasse as melhores condições pos-
se apresenta como núcleo da estrutura da obra de arte, ele provoca um síveis para a realização de seus dois últimos filmes: Alexander Névski
deslocamento do conhecimento artístico na direção do subjetivismo. (1938) e Ivan, o Terrível (1942-1945). Essas duas fitas, aliás, marcam o
Não nos é possível saber com segurança se Eisenstein viria a uti- abandono, por parte de Eisenstein, de suas ideias relativas ao não desen-
lizar o monólogo interior como técnica ou se ele viria a se servir defi-
nitivamente dele como princípio estrutural em sua atividade de criação
4 L. Moussinac Eisenstein, ed. Pierre Seghers, 1964, p. 121.
3
Citado por Guido Aristarco em sua Storia delle teoriche del film. s S. Eisenstein, Teoria y tecnica cinematograficas, Eisenstein, ed. Rialp, Madri, p. 149.

79
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OS MARXISTAS E A ARTE

10.
volvimento de personagens individuais e fixam "duas grandes figuras da
história russa".
Embora tivesse sido tolerado pela burocracia zdanovista, Eisens- MAIAKOVSKI
tein não podia mesmo se entrosar com ela. Suas exigências culturais de
amplitude de horizontes, sua propensão ao experimentalismo em arte,
sua inquietação, nada disso podia inspirar confiança a uma política cul-
tural revolucionária que passara a se basear em métodos burocráticos,
estreitos e imediatistas.
A valorização positiva dos aspectos da personalidade de Eisens- Maiakovski (1893-1930), o poeta grandalhão, nervoso, dotado de
tein em que se manifestavam suas exigências mais sérias e dignas de uma voz tonitroante capaz de se impor a qualquer auditório, não con-
respeito como artista e como pensador, o franco reconhecimento das ciliou com o freudismo, como Eisenstein. Não conciliou nem com os
qualidades que o incompatibilizavam com o dogmatismo stalinista, o clássicos da literatura russa, seus ancestrais.
justo apreço por sua obra, não nos devem impedir de enxergar os limites Sua convicção era a de que os novos tempos exigiam formas real-
da sua filosofia. mente novas para se expressarem. A revolução bolchevista lhe confir-
Marie Seton, na biografia de Eisenstein que escreveu, conta que ele mou essa convicção: como tratar de temas tão insólitos como os da nova
lia Bergson, Platão, Agatha Christie, Flaubert, Balzac, poesias de cordel, fase em que entrava a história de sua pátria recorrendo aos artifícios
Joyce, Zola e o New Yorker, num esforço titânico que visava ao enciclo- que os mestres do passado haviam esgotado? Maiakovski se refere com
pedismo. 6 Buscava uma síntese das grandes correntes de pensamento e desprezo aos "remendões do desbotado fraque de Pushkin". Quando
não renunciava ao aproveitamento dos elementos representativos da cul- o acusam de pretender "destruir os clássicos", porém, quando querem
tura popular em seus diversos níveis e em suas variadas manifestações. identificar a sua posição com a do extremista Kirilov, ele se defende:
Para ser eficaz, contudo, a síntese de posições teóricas diversas exige a "Se sou contra os clássicos, não é para suprimi-los, mas para que sejam
efetiva superação delas e proíbe a atenuação forçada da contradição que estudados, aproveitados no que têm de útil à classe operária. Mas não é
as relaciona, excluindo a possibilidade de qualquer procedimento super- preciso ãceitá-los sem discussão, como muitas vezes tem ocorrido entre
ficialmente "conciliador". Do contrário, a síntese nunca passará de uma nós". 1 E, nesse ponto, a perspectiva de Maiakovski corrige aquela ten-
lamentável justaposição eclética. dência que havíamos apontado em Mehring, na disposição um tanto
Eisenstein, a despeito do seu brilhantismo, pagou pesado tribu- acrítica com que este se dispunha, de quando em quando, a integrar os
to ao ecletismo. Exemplo disso está na ingênua "conciliação" proposta clássicos na cultura socialista, sem qualquer reexame mais detido.
por ele entre Marx e Freud: "Freud descobriu as leis do comportamento No entanto, quando Maiakovski resolve fundamentar teorica-
do indivíduo e Marx, as da evolução da sociedade".? A fórmula eisens- mente a posição correta que assumira, não tardam a se manifestar as
teiniana dá a entender- contra a realidade- que não há incompatibilida- deficiências da organização do seu pensamento filosófico: "O camarada
de alguma entre Freud e Marx. No entanto, para que se realize a assimi- disse que eu destruía todos os clássicos, sem exceção. Jamais me dedi-
lação crítica pelo marxismo daquilo que a psicanálise tenha trazido de quei a trabalho tão idiota. Disse somente que não há clássicos válidos
válido ao conhecimento humano, é preciso não subestimarmos o alcance para todos os tempos". Que quer o poeta significar com essa afirmação?
das divergências existentes entre Marx e Freud, mesmo no que concerne Que a leitura dos clássicos deve ser feita criticamente e exige um esforço,
à maneira de conceber o indivíduo. uma disposição ativa por parte do leitor?
Mas isso não se dá apenas com os clássicos: toda leitura de um
texto artístico exige a participação ativa do leitor e transcende da mera
6
M. Seton, Eisenstein, a biography, ed. The Bodley Head, Londres, 1952.
7
J. Freeman, An american testament, ed. Farrar and Reinhardt, Nova York, 1936. Citado 1 Vladimir Maiakovski, estudo biográfico e coletânea de poemas traduzidos por E. Carrera
por Guido Aristarco. Guerra, ed. Leitura.

So Sr
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

operação mecamca de ler. Estará, então, Maiakovski negando que os ra: "Quero tocar e influenciar os espectadores no plano emotivo, e
grandes escritores do passado continuem vivos através de suas obras? unicamente no plano emotivo". 2
Estará negando que as tragédias de Sófocles e os poemas de Homero Para um esteta de perspectiva progressista, capaz de confiar na
possam proporcionar deleite estético ao leitor contemporâneo (e, por- história e na razão humanas, o caminho da exacerbação da emotividade
tanto, que mantenham validez como obras de arte)? Nesse caso, estaria não é dos mais apropriados e apresenta óbvias limitações: a ligação que
negando a evidência e estaria se recusando a reconhecer o problema pode existir entre uma arte caracterizada pela passionalidade e o seu
específico da estética, tal como Marx o colocou na Introdução à Con- conteúdo revolucionário, o seu sentido histórico-racional-humanista,
tribuição à crítica da Economia Política. será, no melhor dos casos, uma ligação meramente circunstancial e de
As relações de Maiakovski com os clássicos e com o poder de dura- deficiente solidez. Ora, a superação da passionalidade, no caso das ideias
ção da arte, aliás, eram problemáticas. Nos debates, quando o interpe- críticas de Maiakovski, exigia uma consciência teórica filosoficamente
lavam e lhe afirmavam que ele não seria lido no futuro, o poeta recorria melhor estruturada do que aquela que o poeta chegou a possuir.
antes a réplicas brilhantes do que a argumentos profundos, assumia um É claro que o reconhecimento de tais limitações se refere às posi-
comportamento antes polêmico do que científico. A um que lhe asse- ções teóricas do poeta, e não diretamente à sua poesia, cuja avaliação
gurava, por exemplo, "meus filhos não o lerão!", Maiakovski retrucou: exigiria um estudo particular e o pleno domínio da língua russa. Além
"Como sabe que seus filhos sairão parecidos com o senhor, e não com a· disso, é preciso dizer que as limitações acima referidas não acarreta-
mãe?" a resposta agressiva e eficaz de Maiakovski traduz uma convicção ram maiores prejuízos para o papel histórico inegavelmente progressista
lastreada mais em sentimentos vívidos do que em raciocínios teorica- que Maiakovski - não apenas como poeta, mas como crítico e teórico
mente fundamentados. - desempenhou por ocasião de sua participação nos debates travados na
Tanto a vida como a obra de Maiakovski, de resto, se acham União Soviética, durante os anos 1920.
marcadas por certo páthos de exaltação sentimental. O próprio poeta, No que concerne à exigência - formulada, então, por muitos -
definindo a sua passionalidade, declarou em um poema: "A anatomia de uma arte que fosse imediatamente acessível às massas populares, a
comigo ficou louca I sou todo coração". posição de Maiakovski foi claramente antidemagógica. Ele insistiu em
Semelhante característica maiakovskiana é comum à sua perso- que a perspectiva da política cultural revolucionária não deveria ser a de
nalidade e à sua criação literária. E, se ela não o impediu de criar uma "rebaixar" a arte ao nível da cultura das massas (um nível degradado
obra poética altamente significativa, limitou, contudo, o alcance das pela exploração classista), e sim a de "elevar" as massas, pela educação,
posições teóricas defendidas pelo poeta. O sentimento, como observou a um nível cultural que lhes permitisse apreciar de maneira justa a pro-
Hegel, é a forma comum que se aplica aos mais diversos conteúdos. O dução artística.
conteúdo mais rico e mais profundo de uma obra de arte - especial- A posição antidemagógica e antipopulista de Maiakovski, em
mente na literatura -jamais pode ser alcançado através do sentimento certos aspectos, lembra curiosamente a do pensador marxista peruano
em estado bruto: ele pressupõe sempre uma superação da imediatici- José Carlos Mariátegui, que escreveu, no final da década de 1920: "A
dade sentimental. E a exaltação sentimental não propicia, comumente, demagogia é o pior inimigo da Revolução, tanto na política como na
tal superação. literatura. E o populismo é essencialmente demagógico". 3
A mera expressão emocional tanto se presta para exaltar a Segundo o ponto de vista maiakovskiano, as massas populares
"coragem" e o "entusiasmo" de uma ação revolucionária, liberta- continuam com a palavra final no julgamento histórico da produção
dora, humanizadora, como para exaltar a "energia" de um ato de artística; mas é preciso fazer com que elas adquiram a capacidade de
repressão, de um gesto liberticida e desumano. A ambiguidade do dá-la, isto é, fazer com que as massas reconquistem (ou conquistem) uma
sentimento puro sabe bem ao paladar dos místicos, dos confusos e
dos irracionalistas. Não é por acaso que um Ingmar Bergman decla- 2 Declaração feita à TV sueca em janeiro de 1960, a propósito do lançamento do filme A
fonte da virgem. Citada em Cahiers du Cinéma, fevereiro de 1961.
3 Revista Amauta, n. 28, janeiro de 1930.
OS MARXISTAS E A ARTE

capacidade inevitavelmente prejudicada pela divisão da sociedade em


11.
classes sociais e pelo sistema alienador inerente a essa divisão.
Maiakovski sabia que o artista revolucionário deve corresponder GORKI
a uma exigência social, decorrente do seu compromisso com as forças
propulsoras do progresso. Mas sabia, também, que a exigência social
não coincide, necessariamente, com as exigências práticas que são for-
muladas em nome dela. Em uma das ocasiões em que se manifestou
a propósito dos problemas da sua arte, o poeta afirmou francamente:
"a encomenda praticada não corresponde à encomenda social". E Elza Nos umbrais do stalinismo em estética (sem dúvida muito a con-
Triolet, comentando essa afirmação, escreveu: "Maiakovski quer dizer, tragosto), acha-se a figura de Alexis Maximovitch Piechkov, mais conhe-
com isso, que a 'encomenda social', a obra encomendada ao autor pela cido como Máximo Gorki (1868-1936).
necessidade da sociedade, qual um par de sapatos correspondendo à Gorki foi amigo pessoal de Lenin. Teve algumas divergências com
necessidade de um homem, nem sempre é aquela que lhe encomendam, o dirigente máximo dos bolchevistas, mas, depois da morte de Lenin,
de fato, os editores e os jornais". 4 disse que as divergências não tinham resultado de uma diversidade de
É sintomático que Elza Triolet, na época em que escreveu esse perspectivas, e sim de uma diversidade de horizontes: "Lenin enxergava
texto (1939), tenha apontado como encomenda prática que poderia não mais longe do que eu".
corresponder à encomenda social a dos editores e a dos diretores de Sob o governo de Lenin, Gorki defendeu, em muitas ocasiões,
jornais, sem se referir à possibilidade da encomenda prática governa- junto a seu amigo, os interesses dos escritores e dos artistas em geral.
mental ou partidária não coincidir, também, com a encomenda social. Como pensador, Gorki carecia de uma sólida organização teóri-
Isso mostra que ela não tinha, na época, uma visão correta do que se ca. Impressionado com as características psicológicas dos camponeses
passava sob o sistema burocrático stalinista. Sob o stalinismo, a verdade russos e com o atraso em que eles se achavam, o escritor chegou a pre-
enunciada por Maiakovski foi praticamente mutilada de uma de suas conizar a transformação do socialismo em uma religião, a fim de que
mais preciosas dimensões: a encomenda prática do Partido e do Estado as massas fossem mais eficazmente mobilizadas no impulso para sua
foi apresentada como expressão automática e necessariamente justa da autoemancipação. Ante as críticas de Lenin, reconheceu: "sou um mau
encomenda social revolucionária. E a arte ficou subordinada, de modo marxista".
geral, às exigências políticas mais imediatas formuladas pelo Partido e No entanto, Gorki foi um artista generoso e sincero, um huma-
pelo Estado. nista de boa cepa, que enxergou na estética "a ética do porvir". No meio
da agitação que caracterizou a década de 1920 na União Soviética, ele
representou muitas vezes o bo~J!l senso que controlava o passionalismo
dos esquerdistas. Claude Frioux aponta Lunatcharski, Voronski e Gorki
como três grandes influências construtivas e moderadoras nos debates
dos anos 1920 e como intelectuais notáveis pela "mansuetude teórica e
prática". 1
A despeito do vigor de suas convicções revolucionárias, Gorki -
em cuja personalidade de autodidata sentimental havia traços marcantes
de individualismo- jamais chegou a se enquadrar na disciplina exigida
para a ação político-partidária. Nunca tendo chegado a ser um militante
disciplinado do Partido Comunista, com maior razão, jamais chegou a

4 1
E. Triolet, Maiakovski, poete russe, ed. Pierre Seghers, p. 101. Cahiers du Monde Russe et Soviétique, publicação da Sorbonne, n. 1, 1959.

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OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

se entrosar com a atividade partidária da época stalinista, jamais chegou A estreiteza da concepção de Gorki ainda se torna mais clara
a compactuar, em qualquer caso, com o burocratismo e a coerção que se quando ele se põe a comparar o realismo socialista com o realismo crí-
manifestaram no stalinismo. tico (burguês):
Em numerosos aspectos essenciais de sua personalidade, aliás,
É preciso compreender que o realismo crítico nasceu como forma de criação
Gorki se apresenta como um antípoda do stalinismo. individual de 'homens inúteis', os quais, incapazes de lutar pela vida e não
O que é que nos leva, então, a situá-lo nos umbrais do stalinismo encontrando nela um lugar para eles, reconhecendo com maior ou menor
em estética? Alguma prevenção pessoal? Má vontade gratuita? Absolu- nitidez a inutilidade da sua existência pessoal, concluíram pelo absurdo de
tamente. O ponto em que Gorki se tornou, malgré lui, um precursor da todos os fenômenos sociais e de todo o processo histórico. Sem querer negar
estética stalinista (zdanovista) é a sua maneira particular de conceber o o vasto e enorme trabalho desempenhado pelo realismo crítico, cujas aqui-
realismo socialista. sições formais e nas letras nós apreciamos altamente, devemos compreender
que tal realismo só nos é indispensável para aclarar as sobrevivências do
O crítico marxista italiano Cesare Cases já observou, com muita
passado, para lutar contra elas e eliminá-las. 4
razão, que a elaboração por Gorki da teoria do realismo socialista repre-
senta, de certo modo, um apreciável progresso na sistematização da esté- Gorki abandona, aqui, a preciosa herança humanista do realis-
tica marxista. 2 A expressão realismo socialista tem o mérito fundamen- mo crítico e reduz o legado dos grandes escritores burgueses a meras
tal de definir através do substantivo realismo o caminho natural da arte "aquisições formais e nas letras". A utilidade essencial das obras-primas
socialista. Ligando a perspectiva socialista à substância do realismo, que o realismo crítico foi capaz de produzir já não está naquilo que elas
Gorki parecia estabelecer um elo entre o melhor da tradição e o mais incorporaram definitivamente ao movimento ascensional da consciência
essencial da inovação. humana, e sim no testemunho que elas dão de sobrevivências do pas-
Ocorre, porém, que o próprio Gorki caracterizou de modo bas- sado que precisam ser eliminadas. O que significa que, quando essas
!:'
tante estreito a sua concepção do realismo socialista. A fórmula do sobrevivências negativas do passado que se expressam nas realizações do
realismo socialista obteve a sanção oficial da estética stalinista por realismo crítico forem eliminadas, as obras-primas do realismo burguês
ocasião do 1o Congresso dos Escritores Soviéticos, realizado em agosto não serão mais necessárias à humanidade ...
de 1934. No discurso que pronunciou, Gorki conceituou o realismo O 'empobrecimento na compreensão gorkiana do realismo crítico
socialista de maneira a atribuir maior importância ao termo socia- acarretou um empobrecimento na compreensão gorkiana do realismo em
lista do que ao termo realismo. O adjetivo cresceu em detrimento do geral. O realismo - tal como Gorki o concebia - se reduziu à representa-
substantivo, hipostasiou-se. E, com a atrofia do substantivo e a hipos- ção servil da realidade, se reduziu aos acanhados limites do naturalismo.
tasia do adjetivo, a fórmula do realismo socialista assumiu um caráter Para superar a aridez do realismo (assim concebido à maneira
voluntarista. naturalista), para dar ênfase à orientação socialista que pretendia ver
Em seu discurso de agosto de 1934, Gorki sustentou que "a fun- adotada na arte, Gorki foi obrigado a completar o realismo socialista da
ção da burguesia na elaboração da cultura foi muito exagerada". É difí- sua tese com um sucedâneo daquela poesia que não cabia nos quadros
cil conciliar essa afirmação com a visão empolgada que Engels nos dá estreitos do naturalismo: o romantismo revolucionário.
do Renascimento e dos intelectuais da burguesia em ascensão na época O que é o romantismo revolucionário? Marx e Engels escreve-
renascentista: "Foi a maior transformação progressista que a humanida- ram, n'A ideologia alemã: "Para nós, o comunismo não é um estado que
de já conhecera até então. Uma época que precisou de gigantes e engen- se deva implantar, um ideal ao qual se deva sujeitar a realidade. Chama-
drou gigantes: gigantes do pensamento, da paixão e do caráter; gigantes mos comunismo o movimento real que anula e supera o atual estado de
da universalidade e da erudição". 3 coisas". 5 Pois bem, o romantismo revolucionário enfatiza precisamen-
4 Revista Recherches Soviétiques, 1957, n. 7.
2 5
C. Cases, Saggi e note di letteratura tedesca, ed. Einaudi, 1963. K. Marx, F. Engels, La ideologia a/emana, trad. Wenceslau Roces, ed. Pueblos Unidos,
3
F. Engels, Dialectique de la nature, trad. Emile Bottigelli, Éditions Sociales, 1952, p. 30 Montevidéu, 1959, p. 36 [há varias edições brasileiras desta obra, entre elas, cf. Ideologia
[cf. K. Marx e F. Engels, Cultura, arte e literatura, ed. cit., p. 194]. Alemã, São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 52].

86
OS MARXISTAS E A ARTE

te a importância do comunismo como ideal, como estado que se deve 12.


implantar, só encarando o movimento real que anula e supera o atual
estado de coisas na medida em que esse movimento faz parte do quadro
ZDANOV
da sociedade futura idealizada.
Um autêntico realismo socialista deveria ser capaz de representar,
na plenitude dos seus aspectos essenciais, a realidade viva e contraditó-
ria do movimento que transforma a sociedade e constrói o comunismo.
O realismo socialista da concepção gorkiana, entretanto, justapôs natu-
ralismo e romantismo: representação empobrecida dos aspectos essen- Na década de 1930, a União Soviética não lutava mais contra
ciais da realidade comprometida com o atraso do presente e representa- exércitos estrangeiros invasores e nem contra russos antibolchevistas
ção empobrecida (pseudopoética) dos aspectos em que a realidade atual militarmente organizados em seu território. O governo revolucionário se
antecipa a realidade futura. consolidara no poder e, superada a ilusão de uma revolução proletária
O futuro se torna uma espécie de álibi para os artistas não se esperada para toda a Europa como fenômeno iminente, tornou-se neces-
comprometerem com a complexidade real do presente. Da perspectiva sário organizar o país administrativamente, pô-lo em funcionamento.
do comunismo vindouro, os artistas são levados a não proporcionar um Foi preciso mecanizar a agricultura, e as medidas tomadas para isso não
conhecimento rico da realidade efetiva, um conhecimento justo do pro- podiam deixar de acirrar as resistências internas ao novo regime.
cesso histórico concreto: eles são levados a simplificar de maneira meca- Por outro lado, embora afastada a perspectiva de novas interven-
nicista ou sentimental as contradições existentes aqui e agora. Represen- ções de tropa estrangeira, a União Soviética continuava a ser uma ilha de
tados unilateralmente como portadores dos sentimentos e ideais em que socialismo no meio de um mar hostil de capitalismo. Era necessário edi-
a sociedade futura se antecipa, os "personagens positivos" se tornam ficar uma sociedade socialista em condições pioneiras, sob a pressão dos
esquemáticos e enfrentam, esquematicamente, vilões comprometidos inimigos do novo regime, enfrentando a sabotagem, vencendo a inércia;
com a desumanidade atual (destinada a desaparecer juntamente com o peso de um passado de burocratismo e opressão. Marx e Engels não
o capitalismo). A corrupção dos "bandidos" serve, assim, para realçar, haviam éleixado manuais a que os construtores do socialismo pudessem
pelo contraste, a pureza dos "mocinhos". recorrer em busca de receitas sob medida para quaisquer dificuldades. A
Todas essas características da concepção gorkiana do realismo responsabilidade que pesava sobre os ombros dos dirigentes que haviam
socialista nos ajudam a compreender não só as debilidades da arte sovié- sucedido a Lenin era imensa, assustadora.
tica do período stalinista como, também, nos ajudam a compreender por Stalin revelou bom senso e habilidade política em sua luta contra
que a fórmula do realismo socialista definida por Gorki acabou sendo Trotsky e o aventureirismo das posições trotskistas (contra a teoria da
adotada pelo stalinismo em estética e serviu para escorar os esforços "revolução permanente"). Mas S;talin se prevaleceu da força política que
de uma direção burocrática no sentido de enfeudar a arte às exigências conseguira concentrar em suas mãos para golpear a democracia interna
imediatas da propaganda política do Partido. no Partido Comunista e para montar um sistema administrativo alta-
mente centralizado. Em nome das dificuldades objetivas que o bolche-
vismo tinha de enfrentar, todas as energias humanas da União Soviética
foram convocadas e logo coercitivamente mobilizadas para o trabalho
político imediatamente útil. Os artistas e os escritores foram chamados
a cumprir suas tarefas.
Lenin escrevera, em 1905, um artigo intitulado "A organização do
Partido e a literatura de partido". Nesse artigo, ele tratava de questões
conexas com as condições de trabalho do Partido e a sua organização,
marcada pela difícil luta pela conquista da legalidade. Em termos um

88
i
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

tanto ríspidos, ele procurava dar certa ordem à atividade da imprensa empobrecido em suas raízes dialéticas, emasculado em sua capacida-
do Partido e estabelecia normas disciplinares para os jornalistas e escri- de de reconhecer efetivamente as conexões e mediações da realidade. A
tores que trabalhavam para ela. Krupskaya, viúva de Lenin, sua mais ideologia dominante sob o stalinismo se incumbiu de elaborar semelhan-
íntima colaboradora, frisou que as formulações adotadas por ele nesse te "marxismo". Para transformar o marxismo num instrumento de jus-
texto se referiam exclusivamente à produção literária encomendada pela tificação imediata de todas as suas medidas, Stalin - que não tinha uma
imprensa partidária para fazer frente às circunstâncias do momento, e autoridade tão naturalmente sólida como a de Lenin- passou a apresen-
não à literatura em geral. Pois bem: a despeito da advertência de Krup- tar os princípios teóricos mais abstratos da teoria marxista usualmente
.!
skaya, a política cultural stalinista adotou aquelas formulações como em ligação direta com os fatos crus (sacrificando assim, com as media-
princípios definidores do espírito de partido, válidos para a produção ções, toda a riqueza dialética da concepção marxista).
literária em geral. As consequências de semelhante orientação foram A ascensão do nazismo na Alemanha e a agressão hitleriana à
desastrosas para a cultura soviética e para a estética marxista: tudo que União Soviética ainda pioraram as coisas. A mutilação da dialética no
não manifestasse o espírito de partido assim estreitamente concebido marxismo da época stalinista implicava uma franca má vontade para
era suspeito de "formalismo", de "gratuidade", "subjetivismo pequeno- com Hegel e para com os "desvios hegelianos". O conflito com a Ale-
burguês" ou "deficiência ideológica". manha nazista criou condições emocionais que propiciavam uma apre-
Se Plekhanov reduzia a arte à sua gênese social, o stalinismo fazia ciação sumamente injusta a respeito de Hegel: que ele seria uma espécie
mais: reduzia-a a um aspecto da sua gênese social, ao conteúdo político de precursor do nazismo. Explorando aspectos bastante secundários da
da consciência de classe da qual o artista era o portador. Na década de filosofia hegel1ana, explorando elementos conservadores do seu pen-
1920, a tendência ao imediatismo político e ao partidarismo estreito já samento e da sua justificação do totalitarismo prussiano, tal visão foi
se manifestava. O crítico Voronski, irritado com essa tendência viciosa, amplamente difundida na União Soviética durante os anos do conflito
advertia: "A carteirinha do Partido é uma grande coisa, mas é preciso com a Alemanha nazista. Ela chegou a ter a sanção de um dos principais
não agitá-la fora de propósito". 1 Nos anos 1920, contudo, o sectarismo ideólogos do stalinismo: André Zdanov.
era apenas uma tendência entre diversas outras. Na década seguinte, ele Zdanov é a expressão mais típica da crise da estética marxista
começa a se impor como orientação dominante, monopolística. no temp'o do stalinismo. Para desgraça da cultura soviética, ele não foi
A década de 1930 foi a época em que a teoria do realismo socialis- apenas um mau teorizador e um péssimo crítico: foi também um zeloso
ta, nos termos estreitos em que Gorki a definiu, foi adotada e sancionada executor das medidas políticas e administrativas com que o Estado e o
pelo Estado soviético, através dos órgãos encarregados da sua política Partido puseram em prática as concepções por ele formuladas. Um crí-
cultural. Durante esses anos, a crítica oficialmente prestigiada reduzia a tico italiano classificou Zdanov como "mais stalinista do que Stalin". 3
arte à sua eficácia política mais imediata, destruía-lhe toda e qualquer Quando, finda a guerra contra o nazismo, as revistas Zviezda e Lenin-
universalidade e fazia dela um subproduto da consciência de classe. grado ousaram publicar matéria discordante da orientação zdanovista
Veja-se, por exemplo, o que escrevia L. A. Tckeskiss: "Os sentimentos e em questões de arte, Zdanov providenciou a imediata derrubada de suas
as aspirações de uma classe oprimida não são os de uma classe dominan- respectivas direções.
te (... ). O artista somente transmite sentimentos e aspirações dos que lhe A grosseria de Zdanov era espantosa. Quando a poetisa Ana
estão mais próximos, com os quais está ligado e convive, ou, em outros Akhmatova (recentemente falecida, após ter merecido uma ostensiva
I. termos: dos de seu grupo ou sua classe". 2 reabilitação cultural) publicou versos nos quais chorava o seu sentimen-
I
Para poder estabelecer uma ligação direta entre a classe social a to de solidão, falava de amor e de anseios místicos, Zdanov verberou-lhe
que pertence o artista e o conteúdo ideológico da obra de arte, a crítica em um informe o "infame" procedimento: "O sentimento da solidão
soviética da época stalinista precisava utilizar um marxismo mutilado, e do desespero, estranho à literatura soviética, encontra-se por toda a

1 3
Cahiers du Monde Russe et Soviétique, n. 1. D. Fauci, em sua colaboração a Momenti e problemi di storia dell'estetica, ed. Marzorati,
2
L. A. Tckeskiss, O materialismo histórico, ed. Calvino Filho, 1934, p. 165. Milano, p. 1.771.

90 91
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

obra de Akhmatova (... )o diapasão de sua poesia é extremamente pobre exprobrando a Lukács uma deficiente valorização da literatura soviética
- poesia de uma mulherzinha histérica que se debate entre a alcova e o ~d;épocastaTinista, derramava-se em elogios aos aspectos mais grotesca-
oratório". 4 mente negativos daquela literatura, apontando-os como qualidades que
Em nome da exigência de uma rentabilidade política imediata, a literatura socialista húngara deveria procurar atingir e conquistar para
o zdanovismo exigia que as manifestações de desespero e de solidão si: "O herói positivo da nova literatura socialista húngara deve ser um
fossem banidas da arte, que a representação artística da realidade fosse trabalhador que realiza o plano quinquenal em toda a plenitude da sua
unilateralmente otimista. A representação de aspectos trágicos da vida vida sentimental e da sua atividade pública"?
soviética era admitida, mas desde que se tratasse da tragédia de um As posições de Revai podem parecer ridículas hoje; mas é preciso
revolucionário morto gloriosamente em combate por uma causa justa que não nos esqueçamos de que elas prevaleciam, naquele tempo, sobre as
e desde que não houvesse margem para dúvidas quanto à vitória final de Lukács, pois exprimiam uma concepção dominante sob o stalinismo.
dessa causa justa. Assim, as contradições da realidade eram aprioristi- De resto, Revai não era um vulto isolado nos quadros da crítica
camente simplificadas e só podiam alimentar uma obra de criação anê- marxista, e os métodos por ele empregados não eram praticados exclu-
mica, limitada. sivamente nos países socialistas. Nos países capitalistas - por exem-
A estreiteza de critérios e a violência verbal de Zdanov fizeram plo, na França -, os marxistas também aplicavam os princípios e os
escola. A centralização da revolução mundial em torno da experiência métodos zdanovistas e para isso contavam com a cobertura oficial do
soviética, gerada pela necessidade de o proletariado mundial protegê-la, Partido. Lembremos o comentário feito pelo marxista francês Maurice
ensejou a exportação em larga escala do zdanovismo. A estética zda- Mouillaud sobre a excelente e corajosa peça O Diabo e o Bom Deus, de
novista conquistou adeptos fora da União Soviética, nas democracias, Sartre: "François Mauriac tinha suas razões para escrever sobre Sartre,
populares e nos partidos comunistas dos países capitalistas. em um editorial do Figaro, dizendo que ele era 'providencial'. 'Providen-
Uma das mentalidades mais características do zdanovismo foi a cial', sem dúvida. E não somente para fideísmo, mas para o fascismo e
do húngaro Joseph Revai, intransigente adversário de Lukács. Revai pre- a guerra". 8
conizava uma espécie de neocolonialismo mental na atitude das demo- Os malefícios causados pelo zdanovismo -como cristalização teó-
cracias populares ante a União Soviética. Sendo a União Soviética eco- rica da estética stalinista- são imensos. Um simpatizante do marxismo,
nomicamente mais adiantada que a Hungria, ela não poderia deixar de o romancista Elio Vittorini, lembrou, durante os debates dos Encontros
ser, também, culturalmente mais adiantada. E esse raciocínio mecani- Internacionais de Genebra, em 1948 (quando se iniciava o último e tal-
cista era exposto com a maior franqueza: "Não existe sociedade que vez pior período do stalinismo), um aspecto geralmente pouco observa-
seja economicamente superior à que a precedeu e culturalmente lhe seja do de tais malefícios. Quando um artista ou um grupo de artistas sofrem
inferior". 5 Lukács era acusado de subestimar a cultura soviética. Revai cerceamento em seu trabalho de criação, o prejuízo é concreto mas limi-
afirmava que a nova cultura da democracia popular húngara devia tomar tado; quando, porém, em nome do direito de cercear arbitrariamente a
a cultura soviética como modelo e devia procurar fundir-se com ela: "A criação artística e de lhe impor diretrizes rígidas, os governantes promo-
nova cultura húngara- escrevia- não se contenta em considerar a cul- vem uma teorização capaz de justificar suas medidas práticas, achamo-
tura soviética como um modelo: embora conservando e desenvolvendo nos diante de um "mal que ultrapassará em duração as circunstâncias
suas características nacionais, tende a fundir-se com ela". 6 das quais nasceu e de uma mistificação que deixará traços duradouros
Em sua polêmica com Lukács, Revai acusa-o de "sofrer da molés- no nosso juízo de homens'?
tia do aristocratismo", de vez que a influência dele "não vai além de Na década de 1920, o proletkult, a LEF e a Nova LEF subordi-
um meio literário e intelectual restrito. Tem um auditório limitado". E, navam a arte à propaganda política (e na Alemanha, conforme veremos

4
Revista Problemas, agosto-setembro de 1949, artigo "As tarefas da literatura na socieda-
7 La Nouvelle Critique, agosto de 1950.
de soviética".
5 8 La Nouvelle Critique, setembro de 1951.
Revista La Nouvelle Critique, agosto de 1950.
6 9 Débat sur l'art contemporain, ed. La Baconniere, p. 142.
La Nouvelle Critique, maio de 1951.

92 93
OS MARXISTAS E A ARTE

13.
no capítulo sobre Piscator, o mesmo ocorria com o Teatro Proletário),
mas essa visão sectária dos problemas da estética e da política cultural
revolucionária era somente a visão de alguns grupos. Uma vez institucio- MAXRAPHAEL
nalizada e oficializada pelo Estado soviético, ainda que não assumisse
uma expressão teórica tão contundente, ela não poderia deixar de se
tornar muito mais nociva. Sua nocividade não poderia deixar de sofrer
uma transformação qualitativa.
E foi precisamente após a morte de Lenin- depois que os métodos
leninistas de direção foram sendo substituídos pelos métodos stalinistas Max Raphael já era um renomado crítico de arte quando aderiu,
- que o sectarismo foi se institucionalizando e começaram a se criar as por volta de 1930, às posições marxistas. Escreveu e publicou, logo após
condições cuja expressão teórica mais consequente em matéria de estéti- a adesão ao marxismo, dois livros, um sobre estética e outro sobre teoria
ca foi o zdanovismo. do conhecimento. No livro que dedicou à apreciação dos problemas esté-
É claro que, em sua formação, o zdanovismo não arrastou consigo ticos, começou por procurar definir as bases de uma estética marxista e
sem resistência todos os artistas, todos os críticos e todos os teóricos, de uma sociologia marxista da. arte a partir da Introdução à Contribui-
quer na União Soviética, quer fora dela. Na União Soviética, é bom lem- ção à crítica da economia política de Marx.
brar, o stalinismo não impediu que aparecesse um romance de excepcio- O fato de que Max Raphael tenha tomado aquele texto de Marx
nal valor, como O Don Tranquilo, de Cholokhov. E não impediu que como ponto de partida é um fato que conta em seu favor, revela perspi-
Mikhail Lifschitz e Gyorgy Lukács realizassem importantes pesquisas cácia e coragem intelectual. É preciso lembrar que, nessa mesma época,
sobre numerosos problemas essenciais da estética marxista. Mikhail Lifschitz e Gyorgy Lukács empreendiam, na União Soviética, o
Fora da União Soviética, também, a influência nefasta do stalinis- estudo sistemático dos textos em que Marx e Engels tinham tratado de
mo não impediu que alguns críticos marxistas realizassem significativas questões conexas com a arte e a literatura e procuravam reconstituir o
investigações teóricas acerca da arte e da literatura. Na própria década pensamento estético desses autores, dando-lhe uma forma organizada;
de 1930, entre esses críticos que levaram a cabo esforços pessoais dignos é preciso'lembrar que, para fazê-lo, Lifschitz e Lukács tomavam como
de nota nas suas respectivas abordagens das questões da estética marxis- base justamente o texto que Raphael colocara no centro da sua própria
ta, podemos citar, desde logo, o alemão Max Raphael e o inglês Christo- elaboração teórica.
pher Caudwell. A eles estão dedicados os dois próximos capítulos. Raphaellutava para inserir as investigações da história "imanen-
te" da arte, bem como as investigações particulares da crítica ou as for-
mulações abstratas da teorização estética, nos quadros - que pretendia
mais amplos - de uma sociologia, marxista da arte.
Ele pressentia os perigos de um sociologismo de tipo reducionista
e advertia:
Se nos limitássemos a situar um artista qualquer dentro de uma ideologia
ou de uma classe, cairíamos em um mecanicismo estéril. Do ponto de vista
sociológico, o interesse e a explicação real só fazem começar com a compro-
vação do tipo de artista correspondente à classificação acima referida. 1

Em princípio, Raphael tinha consciência de que era preciso dis-


cernir as mediações existentes em cada caso entre a estrutura eco-

1 M. Raphael, Marx y Picasso, trad. R. Sajón, ed. Archipiélago, Buenos Aires, p. 43.

94 95
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

nômica da sociedade e a arte. E, ainda com apoio na Introdução à burocracia stalinista. Registre-se, contudo, a insuficiência da explicação
Contribuição à crítica da Economia Política, viu no mito uma dessas que ele propõe para substituir a outra. 4
mediações: a mediação histórica, o produto espiritual característico A experiência histórica está longe de confirmar a tese segundo a
dos primeiros estágios da criação artística. A produção artística grega qual a arte grega só adquire vitalidade cultural no mundo cristão e só se
se vinculava intimamente ao mito: era ele - produto coletivo - sofren- torna fonte de deleite estético nas épocas de crise. Fixando a sua atenção
'i do uma elaboração individual. O mundo da arte grega é, como o era na influência especial exercida pelas obras de Homero, Esquilo, Sófocles
i
'! o mundo da mitologia grega, o mundo do concreto, do sensorial, do e Eurípedes nos momentos de crise, o sociólogo Max Raphael perdeu de
imediatamente perceptível; um mundo que incita à sua imediata tra- vista a influência menos intensa, porém nada desprezível, que tais obras
dução em termos plásticos. A mitologia cristã, ao contrário da grega, é vêm exercendo com constância na chamada cultura ocidental desde o
refratária a uma tradução artística imediata em termos plásticos, sen- Renascimento. Isso teria decorrido de uma deformação profissional de
soriais; é uma mitologia mais abstrata, mais "espiritualizada", situada sociólogo? Ou teria decorrido de uma deformação sociologista do esteta
"acima" do mundo sensorial, refletindo um maior desligamento da e crítico de arte?
natureza, numa época em que a divisão do trabalho já produzia efei- Parece que a última hipótese é que deve ser tida por verdadeira.
tos mais profundos e generalizados. "A arte grega existe por causa A despeito de suas ressalvas, Max Raphael não conseguiu impedir - tal
da sua mitologia - escreve Raphael -, e a arte cristã existe apesar da como não o tinha conseguido Plekhanov - que suas análises o condu-
sua". 2 zissem, muitas vezes, a conclusões prejudicadas por um sociologismo
Marx sugerira, para explicar a duradoura vitalidade da arte grega, implícito em seus métodos. Ele não compreendeu que o problema, para
i
,' !I a comparação dos gregos às "crianças normais" da humanidade: os marxistas, não consiste em elaborar uma sociologia da arte que,
como tal, possa incorporar e subordinar a ela a teoria estética e a crítica
Um homem não pode retornar à infância sem se tornar pueril. Mas não
de arte em sentido estrito. O sociólogo que pretende impor vassalagem
se diverte ele com a ingenuidade das crianças e não deve se esforçar para
reproduzir a sinceridade delas em um nível mais elevado? E o caráter espe-
ao estético manifesta - para usarmos a pitoresca expressão do professor
cífico de cada época não revive, em sua verdade natural, na natureza infan- Antonio Candido- "intuitos imperialistas". 5
til? Por que a infância histórica da humanidade, no mais belo instante do A• ânsia de Raphael no sentido de criar uma sociologia da arte
seu florescimento, não exerceria a atração eterna de um tempo que não capaz de estabelecer semelhante "imperialismo" levou-o a análises ver-
mais voltará? 3 dadeiramente ridículas da obra de Picasso. Os quadros da fase azul e
Para Raphael, a explicação de Marx é insatisfatória. Em seu lugar, da fase rosa do pintor foram acusados de mostrar a pobreza como algo
propõe outra: o retorno à arte grega só se dá quando o mundo cristão heroico, como uma virtude franciscana, anunciando a proximidade de
(quer em sua estrutura socioeconômica, quer em sua mitologia) entra em Deus. O formalismo de Picasso, nas fases posteriores, tal como o for-
crise, isto é, quando seus princípios espirituais ficam abalados. "O artis- malismo de Seurat, foi interpretado em termos ainda mais ineptos: "por
'
ta, nesse momento, necessitava de uma ajuda plástica que lhe permitisse derivação remota, porém inegável, corresponde ao formalismo do siste-
I salvaguardar o caráter sensorial e formal inerente à arte. E a essa ajuda, ma de monopólios". 6
'
por sua própria essência, a arte grega podia se prestar melhor do que
qualquer outra."
Louve-se a coragem demonstrada por Raphael ao discordar publi-
camente de um escrito de Marx, numa época em que este (sobretudo
em algumas de suas páginas) começava a ser tomado como Bíblia pela

2 4 M. Raphael, Marx y Picasso, p. 101.


Ibid., p. 62.
3 5 A. Candido, Literatura e sociedade, Cia. Editora Nacional, p. 21.
Em Karl Marx - Oeuvres (I), trad. Maximilien Rubel, ed. Gallimard Bibliotheque de la
6 M. Raphael, Marx y Picasso, p. 133.
Pléiade [cf. K. Marx e F. Engels, Cultura, arte e literatura, ed. cit, p. 128].

97

'11'11,
:11
14.

CAUDWELL

Christopher Caudwell era o pseudônimo do ensaísta inglês Chris-


topher St. John Sprigg, que morreu em 1937, aos 30 anos, lutando contra
o fascismo na Espanha. Com esse pseudônimo, ele publicou dois livros
ousados e interessantes, que revelam um crítico mais brilhante e intelec-
tualmente mais fecundo que Max Raphael. Caudwell tinha uma aguda
compreensão de que entre o condicionamento socioeconômico e a elabo-
ração da obra de arte pelo artista se situam as mediações da experiência
vivida por este, os problemas da técnica e da psicologia. Ele sabia que
há mais coisas entre o céu da arte e a terra da economia do que pode
supor o vão sociologismo. Procurou estudar a função social da arte na
sua ligação com o papel psicológico por ela desempenhado na estrutura
interna de cada indivíduo. Para ele, a arte corresponde à necessidade de
uma adaptação emocional crescente (embora nunca perfeita e definitiva)
do indivíduo à realidade natural e à realidade social, adaptação que não
implica acomodação, e sim o estabelecimento de novas atitudes mais
adequadas à atividade do homem na plasmação do real.
Na cultura burguesa moribunda, cultiva-se certa confusão entre a
consciência e o pensamento, de um lado, e o inconsciente e o sentimen-
to, de outro. Mas a verdade é que a consciência está presente tanto na
reflexão intelectual como nos sentimentos; mesmo porque não há senti-
mentos "puros", sensações "puras" ou "puras" ideias. O próprio sonho
é consciente em certa medida, segundo Caudwell.
"A arte é uma das condições para a realização do homem por si
mesmo", escreve o ensaísta. 1 Ela concerne à atividade global do homem
como ser autocriador. Conforme observou Marx na passagem dos seus
Manuscritos de 1844 que transcrevemos como epígrafe no pórtico do
presente estudo, a arte educa os sentidos do homem, tornando-os cada
vez mais especificamente humanos. Os rudimentos da arte, por conse-
guinte, se encontram na vida prática, no cotidiano, em tudo aquilo que
o homem faz de maneira própria e que o distingue da pura animalidade.

1 C. Caudwell, Illusion and reality, ed. International Publishers, Nova York, p. 298.

99
""'r

OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Tal como o neurótico volta à solução infantil quando se defronta com pro-
"Todo pensamento, todo sentimento refletem, em certa medida, as cate- blemas adultos que não pode resolver, assim a civilização, em tempos de
gorias da ciência e da arte. A ciência e a arte são engendradas na nossa esgotamento, como aquele de que estamos tratando, pode mover-se na dire-
existência cotidiana. Os sistemas científicos e as obras de arte são ape- ção de uma idade de ouro da autocracia ou do feudalismo, na direção de
nas as formas de organização mais elevadas, a essência dessa existência algo que um dia já foi fecundo. Mas o passado jamais pode retornar( ... ). Tal
como a neurose, o retrocesso social não é solução. 5
concreta de cada dia". 2 Há rudimentos de arte, por exemplo, no próprio
devaneio: só que, para passar a ser arte, o sonho precisa ser comunicado Caudwell é, talvez, o primeiro crítico marxista a reconhecer, de
e passar a desempenhar uma função social adequada. maneira consequente e em termos técnicos elaborados, a importância
Pode-se dizer que a arte é contemporânea do trabalho humano, da atividade subterrânea do psiquismo humano; é o primeiro a procu-
isto é, daquela atividade criadora e autocriadora que faculta o desen- rar inserir o estudo dos fatores neuróticos na perspectiva marxista do
volvimento do ser consciente e diferencia o homem dos animais. Com exame dos problemas da criação artística. Sua reflexão acercá da psico-
o trabalho humano a arte surgiu, e com ele se desenvolveu. Por ocasião logia na arte vai muito adiante das preocupações que se manifestaram
do aparecimento das classes sociais e da fragmentação da comunidade em Meyerhold e Eisenstein. A posição de Caudwell é pioneira no que se
humana primitiva, a arte se separou do trabalho, com resultados desas- refere a seu esforço por integrar ao marxismo - especialmente à estética
trosos para ambos. 3 marxista - as investigações e os temas da psicanálise. Ele estuda a obra
Dada a inexistência de uma autêntica comunidade dos homens, de Freud com espírito científico, não se deixando escandalizar à manei-
dado o conflito dos interesses particulares que opõe as classes em torno ra moralista pequeno-burguesa: procura aproveitar-lhe b rico material
da propriedade privada das fontes de produção, dada a perspectiva par- informativo e alguns conceitos, repelindo, nas interpretações freudianas,
cial inevitável que resulta de tal situação, difundem-se por toda a socie- aquilo que está prejudicado pela metodologia positivista, pelo arraigado
dade inúmeras ilusões ideológicas. Uma dessas ilusões ideológicas é a individualismo, pelo pessimismo em face das relações sociais. Para o
que vicia o pensamento da burguesia nos tempos modernos, trazendo- crítico inglês, não há dúvida de que, a despeito de seus equívocos bási-
lhe a convicção de que a liberdade consiste em um "retorno à natureza", cos, a psicologia das trevas de Freud levava certa vantagem, em alguns
em "deixar falar a natureza", como se a liberdade fosse um produto pontos, quando comparada à psicologia academizante ligada diretamen-
natural, e não um produto social. te às corfentes filosóficas idealistas bem comportadas ou ao otimismo
"A liberdade - escreve Caudwell - não é o produto dos instintos, superficial extraído da filosofia das luzes. Caudwell sabe que a atividade
e sim das próprias relações sociais. Ela nasce nas relações de homem psíquica do homem não se reduz àquilo que dela transparece na clari-
a homem". 4 A força natural dos instintos é cega, do ponto de vista do ficação conceitual, e que uma representação artística eficiente de tipos
homem, do ponto de vista desse ser social que é o homem. Uma das fun- humanos deve evitar o "intelectualismo", isto é, deve evitar apresentar
ções básicas da arte é precisamente a de adaptar os instintos, estabele- os indivíduos como "intelectos ambulantes".
cendo um equilíbrio dinâmico entre eles e a realidade global do homem, Por outro lado, em seu entusiasmo pela descoberta da importân-
seu raciocínio e seu meio social. cia da atividade subterrânea do psiquismo humano, o crítico inglês se
Os instintos não ajustados entram em conflito com os demais deixa levar a posições irracionalistas. Ele opõe esquematicamente os
componentes da personalidade e contribuem para a formação de neu- componentes naturais do psiquismo (instintos) aos componentes sociais
rases. Há certa analogia entre os comportamentos neuróticos assumi- (ideologia, racionalização, cultura), atribuindo àqueles o monopólio da
dos pelos indivíduos diante de seus conflitos internos destruidores e os espontaneidade, a real abertura para o novo, e caracterizando estes como
comportamentos alienados assumidos pelas classes diante dos conflitos inevitavelmente propensos à rigidez, refratários à renovação, apegados
exteriores, sociais: à inércia e às tradições. Com isso, o papel dos elementos instintivos,
2
subterrâneos, naturais, passa a ser superestimado, pois é através deles
Ibid., p. 194
3
Ibid., p. 28. que o novo se insere na atividade geral da consciência, e não através da
4
Id., Studies in a dying culture, ed. John Lane the Bodley Head, Londres, Introdução, p.
XXIII. 5 Ibid., p. 30.

IOO IOI
OS MARXISTAS E A ARTE

15.
racionalização teórica ou da elaboração conceitual. Do ponto de vista
das exigências do progresso, o que importa nos seres humanos é menos
a reflexão teórica e crítica do que a percepção intuitiva. GRAMSCI
Os seres humanos - escreve, Caudwell - são montanhas de ser inconsciente
caminhando sobre os velhos sulcos do instinto e da vida simples, com uma
espécie de fosforescência ocasional no cume. E essa fosforescência conscien-
te extrai o seu valor e a sua força das emoções, dos instintos; só a forma dela
é que deriva dos modelos do pensamento racional. 6
A morte de Caudwell, lutando na Espanha, de arma na mão, con-
A perspectiva irracionalista a que chega Caudwell se manifesta, tra o fascismo e em defesa dos ideais libertários do marxismo, dá con-
igualmente, na estreiteza do seu conceito de razão: ele tende a identificar tornos heroicos à sua figura. Ainda mais heroica do que a de Caudwell,
razão e lógica, isto é, tende a reduzir a razão aos limites da sua forma entretanto, é a biografia do italiano Antonio Gramsci.
lógica. Com base nisso, o crítico chega à conclusão de que "a poesia é Gramsci nasceu na Sardenha, em 1891, filho de pais muito pobres.
irracional" (pois carece de forma lógico-discursiva) e tem com a realida- Desde menino, trabalhou para viver. Anos mais tarde, quando se acha-
de geral em que vive o poeta - e da qual o poeta faz parte- apenas "uma va encarcerado, percebendo que sua cunhada estava preocupada, com
congruência emocional subjetiva"? medo de que ele se suicidasse, Gramsci lhe enviou uma carta, falando da
Semelhante concepção da poesia - como observa Lukács 8 - res- dura infância que teve:
tringe a representação poética da realidade à reprodução da mera sub-
não pense que eu tenha razões para me suicidar ou para me abandonar
jetividade isolada do poeta, sacrificando a compreensão dos elementos como um cão morto ao fluxo da corrente. Governo-me há muito tempo e já
que exprimem na poesia a realidade mais ampla da sociedade, quer me governava quando menino. Comecei a trabalhar quando tinha 11 anos,
dizer, sacrificando a dimensão social da poesia. ganhando 9 liras por mês (o que, de resto, significava um quilo de pão por
Numa comparação um tanto grosseira, podemos dizer que dia). Eram dez horas diárias de trabalho, incluída a manhã de domingo; e
Caudwell está para Max Raphael assim como Mehring estava para paSSava todo esse tempo carregando volumes que pesavam mais do que eu,
Plekhanov na geração anterior: ele se opõe resolutamente ao sociologis- de modo que, quando chegava a noite, chorava escondido, porque o corpo
estava todo doendo. Nem minha mãe conhece toda a minha vida e as agru-
mo, porém acolhe, em sua metodologia, elementos de idealismo.
ras pelas quais passei (3110/1932).

Em 1911, Gramsci se mudou para Turim, centro industrial onde


veio a desenvolver intensa atividade política e onde passou a estudar
profundamente a filosofia marxista. A sua adesão ao marxismo não
foi imediata: ainda em 1917, ao'saudar a revolução leninista, Gramsci
via em Marx um continuador da filosofia clássica alemã, ressalvando,
entretanto, que em Marx o idealismo "se contaminou de incrustações
positivistas e naturalistas". 1 Mais tarde, veio a ser um dos fundadores do
Partido Comunista italiano.
Eleito deputado pelo PCI, liderou a bancada do seu partido na
I
li época da franca ascensão do fascismo. Quando Mussolini já era presi-
6
,I Id., Studies in a dying culture, p. 5. dente do Conselho de Ministros, Gramsci teve oportunidade de enfren-
7
Id., Illusion and reality, p. 127.
8 tá-lo, em memorável duelo verbal. O Duce veio à Câmara para defender
Em G. Lukács, Prolegomeni a un'estetica marxista, trad. Fausto Codino eM. Montinari,
ed. Riuniti, p. 241-242 [G. Lukács, Introdução a uma estética marxista. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1968, p. 276-277]. 1
Cf. G. Fiori, Vita di Antonio Gramsci, ed. Laterza, 1966, p. 131.

I02 I03
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

um projeto apresentado pelo governo que obrigava todas as associações a mundo de seu tempo, lendo o que os seus carcereiros lhe permitiam
fornecerem ao Estado uma lista sempre atualizada dos nomes e endereços ler, orientando sempre que possível os companheiros de partido com os
de seus empregados, sob pena de prisão para seus responsáveis. Gramsci quais conseguia entrar em contato.
combateu em vigoroso discurso o projeto totalitário (16/5/1924). Em meio a inenarráveis sofrimentos e sem se entregar à angús-
Enfrentando os apartes de Mussolini, que definia o fascismo como tia ou à depressão, Gramsci trabalhava na cadeia:· redigiu centenas de
uma "revolução", Gramsci respondeu-lhe que a pretensa revolução fas- notas que, depois da guerra, o editor Einaudi publicou na Itália com o
cista nada mais era do que a "simples substituição de um pessoal admi- título geral de Cadernos do cárcere, em vários volumes. Nessas notas,
nistrativo por outro". E afirmou: "Só é revolução aquela que se baseia Gramsci polemiza e combate as deformações do marxismo. Luta em
em uma nova classe. O fascismo não se baseia em nenhuma classe que já duas frentes: por um lado, combate as tendências autointituladas orto-
não estivesse no poder". Mussolini protestou: "Grande parte dos capi- doxas, que fundam o marxismo sobre o materialismo vulgar, sobre o
talistas está contra nós!". Mas Gramsci lhe retrucou que o fascismo só fatalismo mecanicista, transformando-o em uma simples sociologia de
combatia os demais partidos e organizações da burguesia porque dese- tipo positivista (como é o caso de Bukharin); por outro, ergue-se contra
java representar monopolisticamente a sua classe. Quando Mussolini, as tentativas de destruir o marxismo enquanto concepção unitária do
insistindo em caracterizar o fascismo como uma "revolução", comparou mundo, fragmentando-o em partes isoladas e descaracterizadas, assi-
a violência terrorista dos fascistas à violência dos operários comunistas, miláveis por uma outra concepção, idealista ou especulativa (como é o
Gramsci lhe afirmou, com firmeza: "A vossa violência é sistemática e é caso de Croce). 3
sistematicamente arbitrária, porque vós representais uma minoria desti- Em sua dupla polêmica contra o dogmatismo e contra o revisio-
nada a desaparecer". 2 nismo, Gramsci não perde de vista as exigências da urbanidade. E a
No momento em que Gramsci as pronunciou, tais palavras pode- urbanidade nele não é um requinte de tolerância aristocrática: mesmo
riam facilmente passar por românticas, insensatas: em 1924, o fascis- nas mais duras condições de trabalho intelectual, o pensador italiano
mo italiano estava a caminho do seu apogeu. Pouco depois do deba- sabia que um certo respeito básico ao direito de o interlocutor expor os
te, implantava-se a ditadura na Itália, e a força política de Mussolini seus pontos de vista é uma condição para que o participante de um deba-
alcançava proporções fantásticas. O próprio Winston Churchill, mais te não venha a perder o respeito de si mesmo. Sabia, também, que o calor
tarde adversário de Mussolini, via o Duce naquela época como um líder da polêmica pode, com muita facilidade, sufocar a abertura espiritual
necessário à defesa da chamada "civilização cristã-ocidental" e dizia exigida pela ciência, a base que toda concepção antidogmática precisa
que, se fosse italiano, seria fascista. No entanto, os anos se passaram, constantemente renovar.
veio a guerra de 1939-1945, o fascismo foi derrotado, Mussolini teve A história mostra que o conhecimento científico e filosófico pro-
o seu cadáver crivado de balas e pendurado de cabeça para baixo e é gride por meio das polêmicas. E, numa polêmica, segundo Gramsci, o
hoje um nome coberto de opróbrio e de ridículo. Ao passo que Gramsci, ponto de vista mais avançado é s~mpre aquele que incorpora à sua pró-
falecido em 1937, após quase 11 anos de encarceramento, é um vulto pria elaboração, ainda que como momento subordinado, as exigências
que renasce, um nome que todos respeitam e uma das mais poderosas porventura válidas contidas no ponto de vista do adversário. "A virulên-
influências que se exercem atualmente sobre a vida política e cultural da cia, o caráter personalista de certos debates - observa - mostram que a
Itália, chegando mesmo a repercutir fora dela. vida nacional em cujo quadro eles se processam ainda se encontra em
No processo judicial que o Estado fascista moveu contra Gramsci, um nível bastante baixo."4
I I o promotor pediu aos juízes que o líder marxista fosse condenado ale-
li gando: "É preciso impedir esse cérebro de funcionar". A condenação
I

veio, mas não conseguiu impedir o cérebro de funcionar: de dentro do 3 Consultar a propósito, a "Nota sobre Antonio Gramsci", redigida por Carlos Nelson
Coutinho 'e pelo autor do presente trabalho para a edição de Concepção dialética da his-
cárcere, Gramsci continuou a observar o que se passava no país e no
tória de Gramsci, lançada pela ed. Civilização Brasileira.
4 A. G~amsci, Passato e presente, ed. Einaudi, p. 17 [cf. Cadernos do cárcere, v. 3, ed. cit.,
2
Revista Rinascita, 9 de junho de 1962. p. 253].

104 105
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Uma preciosa lição de Gramsci, que os marxistas não devem fato de que o materialismo histórico, para não sacrificar o seu caráter
esquecer, está formulada por ele nos seguintes termos: "Na colocação dialético, pressupõe o reconhecimento da dinamicidade e da influên-
dos problemas histórico-críticos, é preciso não conceber a discussão cia ativa da superestrutura. Com 'o fito de preservar esse aspecto do
científica como um processo judicial em que há um acusado e um pro- marxismo, incorpora criticamente à sua concepção do materialismo
motor, que, por obrigação de ofício, deve demonstrar que o acusado é histórico o conceito soreliano de bloco histórico. O "bloco histórico"
culpado e precisa ser retirado de circulação". 5 gramsciano seria a realização a cada momento da totalidade consti-
Essas informações relativas aos métodos gramscianos parecem tuída pela interação entre a infra e a superestrutura; seria a "unidade
nada ter a ver com a substância do marxismo tal como Gramsci o con- entre a natureza e o espírito (estrutura e superestrutura), unidade dos
cebia e aplicava. No entanto, os métodos em que o pensador se basea- contrários e dos diversos"?
va para defender a filosofia marxista em suas discussões estavam inti- Infelizmente, as condições em que Gramsci trabalhava não lhe
mamente ligados à própria natureza de sua concepção do marxismo. permitiram desenvolver a sua interpretação do conceito, e nós não
Uma concepção estreita do materialismo histórico, estabelecendo que podemos saber de que modo ele o teria desenvolvido, liberando-o das
os grandes conflitos humanos são conflitos materiais e se decidem no conotações irracionalistas que ele assumiu no contexto do pensamento
plano da infraestrutura e no plano da ação prático-política, pode levar de Sorel. Mas o que nos interessa frisar aqui é o esforço de Gramsci no
à subestimação do caráter ativo das superestruturas. Gramsci, contu- sentido de, sem abandonar a base essencial do materialismo, elaborar
do, sempre combateu energicamente essa maneira estreita de conceber o um sistema capaz de proporcionar uma compreensão cada vez mais
materialismo histórico. concreta da eficácia do momento ideológico da práxis humana. Do
Em seu esforço no sentido de salvaguardar o caráter concretamen- reconhecimento do valor geral das superestruturas decorre, na concep-
te ativo das superestruturas, Gramsd chegou mesmo a elogiar seu con- ção gramsciana, o reconhecimento do valor específico dessa superes-
tendor ideológico, o filósofo idealista Benedetto Croce, porque ele "atraiu trutura particular que é a arte.
energicamente a atenção para a importância dos fatos de cultura e de pensa- A arte faz parte da cultura; por sua natureza, seus problemas
mento no desenvolvimento da história". 6 Semelhante modo de ver explica a gerais se inserem no quadro dos problemas da cultura e no quadro
preocupação de Gramsci para não deixar subaproveitada a verdade passível das condições superestruturais. Por isso, Gramsci entende que não se
de ser extraída de uma polêmica: ele compreendia que a verdade impli- deve falar em luta por uma nova arte, e sim em luta por uma nova
ca a clarificação ideológica e a dinamização (bem como a orientação cultura. Para se renovar em profundidade, a arte precisa contar com
mais eficaz) das forças materiais que fazem a história. Dizer a verdade as condições de uma renovação mais ampla, que envolva o conjUnto
- ensinava ele - é sempre revolucionário. É preciso, por conseguinte, que da vida cultural.
não sejam subestimadas as responsabilidades inerentes à participação R~E~- GramsciL~nJr~!.ag_tQ,:l.ªge não se dilui no conjunto das supe-.
nos debates ideológicos e nas discussões científicas: êxitos "práticos" de restrut~ras, poi;-~la possui a SUfl especificidade~ A arte preen~he, por
momento não podem servir de desculpa para um deficiente aprofunda- exemplo, a função de plasmar as' consciências humanas, exercendo, por
mento na análise filosófico-científica dos problemas que se vão colocan- conseguinte, uma influência educacional. Mas Gramsci ressalva, citªnçlQ
do para a perspectiva revolucionária. Croce: "A arte educa enquanto arte, e não ~~a.ntQ_ªf!~-~g~cativa". 8
Quando Marx diz que não se pode julgar uma época pelo que Em suas anotações-a -resp~it~ d~·-~~tores como Sinclair. L~\Vis e
ela pensa de si mesma, ele não quer dizer - ressalva Gramsci - que os Pirandello, o filósofo italiano distingue nitidamente entre a importân-
fatos da vida espiritual sejam mera aparência ilusória; não quer dizer cia cultural e a importância artística, atribuindo a ambos os autores
que a superestrutura seja composta de irrealidades. Gramsci insiste no uma relevância mais cultural do que artística. Em Babbitt - romance
7 Id., Note sul Machiavelli ... , ed. Einaudi, p. 11 [cf. id, Cadernos do cárcere, v. 3. Maquia-
5
Id., Il materialismo storico ... , ed. Einaudi, p. 21 [cf. A. Gramsci, Concepção dialética da vel. Notas sobre o Estado e a política, ed. cit. p. 26].
8 Id., Literatura y vida nacional, trad. ]. Aricó, ed. Lautaro, p. 26 [cf. ibid. v. 6, cit.,
história Ed. cit., p. 44].
6
Ibid., p. 201 [cf. ibid, p. 230]. p. 194].

ro6 I07
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

de Lewis -, Gramsci acha que a "crítica dos costumes prevalece sobre Vimos que, em várias passagens de seus escritos, Gramsci indi-
a arte". 9 Quanto a Pirandello, embora lhe reconheça o mérito de ter ca aspectos da especificidade da arte, chamando a nossa atenção para
ajudado a quebrar hábitos de raciocínio inculcados nos italianos pelo aquilo que ela não é. Lamentavelmente, faltaram-lhe condições de traba-
positivismo, vê nele mais um sofista do que um dialético. 10 lho para que ele desenvolvesse, de maneira positiva, a sua interpretação
A importância especificamente artística também não se confun- sistemática daquilo que a arte é, quer dizer, das suas características posi-
de com o valor ideológico. "Posso admirar esteticamente Guerra e paz tivas particulares como momento específico da práxis humana.
de Tolstoi e não partilhar da substância ideológica do livro", escreve De qualquer modo, há nas anotações de Gramsci referentes à
GramsciY E, numa carta à sua cunhada, opina sobre I Fioretti de S. natureza da práxis artística e à sua função social três indicações a que
Francisco de Assis, dizendo que os poemas são "belíssimos, frescos, ime- gostaríamos de fazer menção, antes de encerrarmos o presente capítulo.
diatos", que eles "exprimem uma fé sincera e um amor infinito", embora A primeira delas se refere à concepção gramsciana de forma e conteúdo
não tenha sentido lê-los como "um guia para a vida".U na arte; já a afloramos quando falamos de Bukharin. Tal como Brecht
Se as qualidades especificamente estéticas não se confundem com ~ácsl__QralJ:lS<:i te1J11 _!~_I1to da f()rma q:u:an~o_do conteúdo, uma visão
o valor histórico-cultural ou com o valor pedagógico e com a signifi- _a_ll1El?:· A forma, para ele, ao contrário do que acontecia com Bukharin,
cação ideológica, ainda menos se confundem com a eficácia política não se confunde com a técnica. E o conteúdo não se confunde com o tema
imediata ou com a propaganda. A atividade política em sentido estrito ou com o assunto, tomado abstratamente. Contra a concepção natura-
pode justificar que, em determinadas circunstâncias e para que deter- lista de Paolo Milano, ele ressalva: "Por 'conteúdo' não basta entender
minados obstáculos sejam mais rapidamente superados, as contradições a escolha de um determinado ambiente. O essencial para o conteúdo é a
do real sejam apresentadas simplificadamente e empobrecidas em uma atitude do escritor diante desse ambiente"Y Do ponto de vista adotado
representação unilateral. A arte, entretanto, para poder representar com por Gramsci, nem a forma é deslocada para um plano puramente subje-
eficácia a realidade humana, precisa captar em profundidade os aspec- tivo e nem o conteúdo se reduz à pura objetividade. Conteúdo e forma
tos contraditórios essenciais. A representação das paixões humanas na são unos, porém, distintos. Comumente, a luta por uma nova cultura -
arte- observa Gramsci- não deve ser feita como um "discurso de pro- em que se empenham as forças revolucionárias, ao longo da história da
paganda"; o artista precisa levar em conta "todas as suas exigências humanidade - se manifesta, no plano artístico, antes como luta por um
contraditórias" .13 novo conteúdo do que como luta por uma nova forma. Por isso, ele nota
Outra distinção ainda pode ser lembrada: arte não é linguagem. que os "conteudistas" costumam ser mais democráticos e mais progres-
Para Gramsci, não tem sentido pretender transformar a estética em um sistas do que os "formalistas".
feudo da linguística. Combatendo a identificação croceana de arte e lin- A_seg:u:I1da indicação de Gram§ci que não queremos deixar de regis-
guagem, ele assinala que a linguística estuda as línguas enquanto "mate- _yar aqui concerne ao caráter livre da criação artística. Na arte, assinala,
rial" da arte, e não enquanto arte. 14 Essa observação merece voltar a ser a sinceridade e a espontaneidade se opõem ao mecanicismo. 16 Quando
lembrada quando, em um dos capítulos posteriores deste livro, tratar- o artista abre mão da sua liberdade mais profunda e age como criado
mos das concepções estéticas de Galvano Della Volpe. que quer agradar ao patrão, aceitando realizar uma obra cujo conteúdo
lhe é "matéria surda e rebelde" -já o dissemos na introdução deste livro
-, ele não só fracassa artisticamente como se revela um oportunista.
'I, 9 Id., Note sul Machiavelli, p. 352 [cf. ibid. v. 4. Temas de cultura. Ação Católica. Ameri-
Na medida em que o sociologismo plekhanoviano reduzia a arte à sua
canismo e fordismo, p. 301].
10 Id., Literatura y vida nacional, p. 64 [cf. ibid. v. 6, cit., p. 184]. gênese social, ele justamente não deixava lugar para o reconhecimento
11
Id., Lettere dal carcere, ed. Einaudi, carta a Iulca, de 5 de setembro de 1932 [cf. id, Car- concreto do caráter livre do movimento da criação artística. É a livre
tas do cárcere, v. 2, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005, p. 237]. elaboração por um sujeito criador que dá à matéria abstrata o caráter de
12
Ibid., carta a Tatiana, de 10 de março de 1930 [cf. id., v. 1 (1926-1930), Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2005, p. 404].
13 15
Id., Literatura y vida nacional, p. 133 [cf. id. Cadernos do cárcere, v. 6, cit., p. 262]. Ibid., p. 110 [cf. ibid, p. 212].
14 16
Ibid., p. 233. [cf. ibid., p. 197]. Ibid., p. 45 [cf. ibid, p. 260].

I08 I09
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

conteúdo artístico concreto. Gramsci formula a questão com extraordi- gm nosso tempo, infelizmente, a busca da universalidade na arte
,,[ nária clareza quando escreve: "Dois escritores podem representar (expri- não se realiza, desde logo, em termos nacional-!Jopu]ar§s, pois o agra-
~amento. dosantagÜ;;{;:n;~; de cÍasse tende a impelir a cultura das elites.
'i
mir) 0 mesmo momento histórico social, mas um deles pode ser artista, e
0 outro um mero pastichador. Pretender exaurir a questão limitando-se na direção de l1rna_§QfÍstLcªçªQ QQentiél. e_ relega a culturadas massas a
a descrever aquilo que os dois representam ou exprimem socialmente ... um nível medieval, rnumificando~a. Diante dessa sit:uação ·catastrÓfica,
significa não chegar sequer a aflorar o problema artístico"Y . .Gramsci a~seia po; uma lite;atura que reconquiste o mais brevemen-
A terceira e última indiçação ggm~cia.!l.a cl.~..q!!~_!Eéltar~_mos_~~Ul te possível o público popular, exercendo sobre ele os poderosos efeitos
se refe~ funçã~;~Z~(dª arte c~lespecialme 11t~,-~() ~eu_papel n~ârg}?i.~ que só uma literatura universal (nacional-popular) poderia mesmo exer-
toda·~~ção. Trata-s~de um complexo de problemas bastante delicado. cer. Pa~a consegui-lo, "a literatura deve ser, ao mesmo tempo, elemen-
Procur~re~os abordá-lo sem trair as ideias de Gramsci a respeito dele. to atual de civilização e obra de arte". 22 A solução populista de "ir ao
As obras-primas são, notoriamente, excepcionais. A atividade crí- povo", enfatizando o papel da arte como elemento atual de civilização,
tica normal, por conseguinte, não pode estar orientada para a exclusiva mas fazendo concessões substanciais ao atraso da consciência das mas-
valorização das realizações da grande arte, porque assim se converte- sas populares e subestimando as responsabilidades relativas à arte e às
ria em uma "contínua destruição". 18 Qual o critério que deve norteá-la, possibilidades culturais que lhe são próprias, não é uma solução que
então? Gramsci responde que ela deve assumir um caráter "cultural". possa resolver o problema. E a solução esteticista, que seria a solução
Para que a atividade da crítica no plano cultural não se torne unilateral, simetricamente inversa, recusando-se a abandonar o terreno em que lida
entretanto, ela precisará fatalmente tratar dos temas próprios da estéti- exclusivamente com os problemas da arte como tais, ignorando as cir-
ca. É preciso, portanto, fundir "a luta por uma nova cultura, isto é, por cunstâncias extra-artísticas, não só acabaria por fetichizar os valores
um novo humanismo, a crítica dos costumes, sentimentos e concepções estéticos como prejudicaria o desenvolvimento de uma autêntica litera-
do mundo com a crítica estética"Y Como se poderá realizar essa fusão? tura nacional-popular, deixando a massa do povo entregue ao consumo
Gramsci não o diz. exclusivo de uma degenerescência político-comercial, um sucedâneo tre-
Há, contudo, uma ideia gramsciana em que se esboça o nexo que mendamente empobrecido da literatura nacional-popular: a literatura
poderia constituir um passo no sentido da referida fusão: .<:lJJJilização do (ou sublíteratura) de folhetim.
ÇQtl.C:~ito de naçignal-pop!flar como valor comum tanto à política cul- Gramsci recusa-se, em princípio, tanto a ignorar como a cortejar
tural quanto à crítica estética. Gramsci observa que a grande literatura o público massivo da literatura de folhetim. Em certos momentos, pare-
sempre se manifesta nacionalmente. E observa, também, que não existe ce atribuir-lhe de maneira demasiado exclusiva a missão de operar em
na grande arte uma atitude basicamente aristocrática; que os grandes profundidade, historicamente, a transformação da literatura em geral.
artistas são isentos do aristocratismo que consistiria em uma atitude (Cf. "Somente entre os leitores da literatura de folhetim pode ser selecio-
i'
de "condescendente benevolência, e não de identidade humana" diante nado o público necessário e suficiente para criar a base cultural da nova
'I dos homens do povo. 20 Quando falta ao artista, em sua criação, a seiva literatura"). 23
'
nacional e essa ausência básica de aristocratismo (que o impossibilitaria Os problemas relativos à democratização da cultura e ao papel
I de se aproximar do povo), ele não consegue se elevar à grande arte. Daí das massas na criação de uma nova arte não se colocaram, no final da
que Gramsci termine por equiparar a universalidade artística ao caráter década de 1920 e na década de 1930, apenas para Gramsci. Como vere-
nacional-popular. 21 mos nos capítulos que se seguem imediatamente a este, esses problemas
foram objeto da reflexão de Walter Benjamin, Erwin Piscator e Bertolt
Brecht. Diante deles, determinadas indagações não podem deixar de nos
17 Ibid., p. 12 [cf. ibid, p. 64-65].
18
ocorrer: quais serão as relações entre a arte popular de uma futura socie-
Ibid., p. 37 [cf. ibid, p. 106].
19
Ibid., p. 23-24 [cf. ibid, p. 66].
20
Ibid., p. 92 [cf. ibid, p. 209]. 22
Ibid., p. 101 [cf. ibid, p. 39].
21
Ibid., p. 83. 23
Ibid., p. 31 [cf. ibid, p. 264].

IIO III
OS MARXISTAS E A ARTE

dade socializada (em que tenha sido destruído o monopólio cultural) e


16.
a arte do presente? Serão puramente de negação? Ou haverá, ao lado da
descontinuidade, também uma continuidade no desenvolvimento artís- BENJAMIN
tico? E, caso reconheçamos a continuidade, não deveremos reconhecer
à intelectualidade de tipo tradicional (existente nas sociedades divididas
em classes) possibilidades de ela também vir a desempenhar algum papel
significativo na criação da arte do futuro, na passagem das presentes
condições culturais às condições culturais em que se haverá de criar a
"nova literatura"? A despeito da feição escolástica que o stalinismo passou a lhe dar
Os méritos, na arte, não se contrapõem à necessidade histórica que desde o princípio da década de 1930, o marxismo não ficou inteira-
leva as obras e os autores a exercerem uma influência mais profunda. A mente privado do seu poder de influenciar alguns intelectuais de origem
busca da qualidade artística (isto é, da riqueza gnoseológico-estética), se e formação burguesa, fecundando-lhes a reflexão mesmo quando não
levada a cabo com rigor e seriedade, é um caminho para o artista elevar conseguia sua integral adesão.
a sua produção a um nível de força cultural e de necessidade histórica. Um desses intelectuais de origem e formaÇão burguesa que, entran-
É uma possibilidade que se abre aos artistas do presente para eles ajuda- do em contato com o marxismo, embora não aderindo completamente
rem a plasmar a arte de amanhã. à visão marxista do mundo, soube utilizar e problematizar inteligente-
A aparelhagem conceitual de Gramsci nem sempre lhe terá permi- mente temas do pensamento marxista, e não abandonou os conceitos
tido levar em conta esse aspecto da questão. Há uma de suas anotações, marxistas mesmo no período da ascensão do stalinismo, foi o crítico
por exemplo, em que o vemos acolher certa contraposição mecânica alemão Walter Benjamin.
entre o mérito e a necessidade histórica. Gramsci não só cita e endossa a Benjamin era um judeu livre-pensador, leitor de Kafka, Rilke e Proust,
afirmação de Baldensperger, de que os grupos sociais "criam as glórias apreciador de Paul Klee e de Bertolt Brecht. Teve um fim trágico: ao tentar
segundo as necessidades, e não segundo os méritos", como ainda acres- atravessar a fronteira da França com a Espanha, fugindo das tropas nazis-
centa: "Ela pode se estender também ao campo literário". 24 tas invasdras, foi detido e, ante a ameaça de ser entregue aos carrascos hitle-
Não se trata, evidentemente, de um ponto essencial do pensamen- rianos, suicidou-se, em 26 de setembro de 1940. Tinha, então, 48 anos.
to estético gramsciano. Mas achamos conveniente referi-lo aqui para Benjamin era um arguto observador dos problemas da arte e um
que se veja como, na época, o problema da função social da arte apre- estudioso do pensamento marxista. No final de 1926, chegou a fazer
sentava aspectos obscuros e deficientes mesmo na compreensão dos mais uma visita à União Soviética. Mas nunca entrou para o Partido Comu-
lúcidos estetas marxistas. nista. Sua atitude diante do marxismo (ele leu, com entusiasmo, História
e consciência de classe de Lukács) era de interesse, de simpatia mesmo;
porém ele jamais se identificou de todo- como dissemos- com a con-
cepção marxista do mundo. O que não o impediu de formular ideias
importantes para o estudo da evolução da estética marxista.
Segundo Benjamin, a arte trouxe da sua origem certa herança da fun-
li ção ritualística que teve como magia, nas épocas mais primitivas da história
! da humanidade. A essa herança, liga-se uma aura que envolve as obras de arte,
dando-lhes um caráter de "aparição única de uma realidade longínqua".1
}
I'
1 W. Benjamin, Oeuvres choisies, trad. Maurice de Gandillac, ed. Julliard, v. 1, p. 201 [há
edição brasileira desta obra; cf. W. Benjamin, Obras escolhidas: magia e técnica, arte e
24
Id., Passato e presente, p. 215 [cf. ibid, p. 121]. política, vol. 1, São Paulo: Brasiliense, 2008, p. 170].

II2 II3
LEANDRO KONDER
OS MARXISTAS E A ARTE

Na medida em que ainda não se desvinculou inteiramente da ser- Os reacionários- especialmente os fascistas- procuram evitar que
ventia religiosa, ritualística, a obra de arte se refere de fato a uma reali- essa situação seja devidamente compreendida, procuram escamotear a
dade longínqua, a um ser distante, inaproximável (precisa ser inaproxi- significação política global da arte e até procuram estetizar a política.
Aos valores humanos, os estetas fascistas sobrepõem valores derivados
mável para ser objeto de um culto). O critério fundamental para julgar
de uma concepção doentia e arbitrária do belo. D'Annunzio chamava a
uma obra de arte "aureolada" só podia ser o da autenticidade: não tem
guerra de "fecunda matriz de beleza e de virtude". Marinetti saudava
sentido cultuar falsos deuses. A Gioconda de Leonardo da Vinci é ela só
a guerra porque ela enchia os campos com as "orquídeas flamejantes"
e não se confunde com qualquer das suas cópias, por mais perfeitas que
das metralhadoras e porque ela fazia poemas sinfônicos com o som dos
sejam as cópias. No nosso tempo, contudo- observa Benjamin- vem-se
canhões e o cheiro dos cadáveres em decomposição. A beleza (fetichi-
operando uma revolução, uma transformação radical nas condições de
~j!ga) se transforma em álibj_ou 1n_es111o e1ll ªEII1'1(::QrlJt<l_ o humanismo.
vida, acarretando profundas consequências para a arte. A obra de arte
Essa estetização da política (com o embelezamento fascista da guerr~)
entrou no tempo da sua reprodutibilidade técnica.
A aura tende a desaparecer rapidamente e só sobrevive em estado exige uma réplica: "A resposta d~ c~l1lunismo~{~idep 0 litizara arte". 3
Ic>mando consciência das implicações políticas que a criação artís~
de agonia. Contemporânea do socialismo moderno, surgiu a arte cine-
tica poss~i (e poss-ui independentemented_Qs desígnios subjetivos dos
matográfica; e, no cinema, a técnica de reprodução de uma obra não é
artistas), os criadores estéticos poder;lo ori_entar suascriações no sentido
uma condição exterior, mecanicamente acrescentada à produção com
de não compactuar jamais com qualquerde::sumagidaci~pQlític<l· . .
o fito de dar maior difusão à obra: é uma técnica fundada na própria
Falando a respeito dessas suas ideias, o próprio Walter Benjamin
técnica de produção.
lhes apontou a vantagem fundamental: "elas não podem servir a nenhum
A obra de arte cinematográfica, por outro lado, alcança um públi-
projeto fascista". 4 Aparentemente, esse antifascismo visceral das teorias
co muito mais vasto do que qualquer outro tipo de obra de arte em
de Benjamin seria uma qualidade meramente circunstancial, que só teria
épocas precedentes. A participação quantitativa de um público consumi-
tido plena vigência na época em que se lutava para derrotar Hitler e
dor imensamente maior, além disso, resulta num modo de participação
Mussolini. Mas o fascismo de Hitler e Mussolini não foi senão uma das
qualitativamente novo, por parte do consumidor, no desenvolvimento
expressõrts de um reacionarismo extremo, de um fascismo genérico, que
da arte. Através do divertimento, as massas populares adquirem hábi-
pode assumir outras formas e que existe sempre, potencialmente, nos
tos, mudam seu modo de pensar ou de proceder. O poder da arte sobre
sistemas que sancionam a divisão da sociedade em classes e a fragmen-
as massas cresce, mas o poder de as massas controlarem a produção
artística não cresce, automaticamente, numa proporção paralela, dado tação da autêntica comunidade humana.
As considerações estéticas de Benjamin estavam certas e continu-
o baixo nível de consciência a que elas foram relegadas pela exploração
am a ser corretas. São, contudo, insuficientes. Quando o crítico alemão
nas sociedades divididas em classes.
nos diz que a arte precisa se P,olitizar para poder acompanhar com
A ignorância das massas populares quanto às suas exigências e quan-
eficácia a transformação da sociedade, ele está dizendo uma verda-
to às suas possibilidades é cultivada pelas classes dominantes, com vistas à
de geral que, porém, exige sua concretização. Não basta que os artis-
manutenção dos privilégios destas últimas. E a arte é envolvida nas mano-
tas compreendam que devem orientar seu trabalho criador de acordo
bras das classes dominantes. Interesses comerciais e industriais influem, de
com razões que não façam abstração das perspectivas políticas que os
maneira inequivocamente política, sobre a produção artística.
envolvem: o problema estético surge quando eles se perguntam como
Nas novas condições, o critério da autenticidade perde a sua
razão de ser. "Desde que o critério da autenticidade não é mais aplicável a arte deve se politizar.
E as experiências de Erwin Piscator, com seu Teatro Proletário,
à produção artística, toda a função da arte se acha subvertida. Em lugar
mostram que um grupo de artistas inteligentes, cônscio das suas respon-
de se basear no ritual, ela agora se baseia em outra forma de práxis: a
política". 2
'-'••'-'-----""'".='·=""---·-
3 Ibid., p. 235 [ed. cit., p. 196].
2
4 Ibid., p. 195 [ed. cit., p. 166].
Ibid., p. 205 [ed. cit., p. 171-172].
I'
I'
!!
II5
II4
OS MARXISTAS E A ARTE
I

sabilidades políticas, pode pretender seguir a orientação política revolu- 17.


cionária e não conseguir segui-la a contento, por não possuir uma visão
particularizada correta das relações entre a arte e a política.
PISCATOR

Antes de Walter Benjamin indicar o caminho da politização da arte


como reação contra a estetização da política (praticada pelo fascismo),
a rapaziada do proletkult na União Soviética, Meyerhold e o grupo do
Teatro Proletário de Erwin Piscator, na Alemanha, já se tinham conven-
cido da necessidade de politizar a arte e já tinham, na prática, procurado
politizá-la. É possível, mesmo, que as experiências de Piscator tenham
contribuído para chamar a atenção de Benjamin para o problema.
Mas as experiências do proletkult e do Teatro Proletário mos-
tram, precisamente, que a tese geral (de que é preciso politizar a arte)
não serve de leme ao artista que se põe a navegar nos mares da arte
política. De bons princípios genéricos estão calçados muitos erros parti-
culares, nessa matéria.
A proposição de Benjamin deixa margem para inúmeras indaga-
ções. Há que se transformar toda a arte em arte política? Mas a arte não
deve reHetir também os diversos aspectos da realidade não estritamente
política? E, se a palavra política está empregada em sua acepção mais
ampla, não seria mais justo - em vez de dizer que a arte deve ser política
- sustentar que ela é sempre política?
As relaç9~s e1Jtre a arte e a polítiça carecem de ser precisadas._
g ne_c~~;_ã~i~-~ãQ perd~t:!I!.Q~~cle yist<!_ g c~r_áter _p~líticQ_geiªLda _Rrodu-
çã() artística: Q__a[t:istª .Pl:Qcll!?-Jwi_nter_ior_da.soc:iedade, com_lltliçª- as!la_
;:iação a outras pes§.Qas_ e_influLativamente .no mQvimeJ1tg da história,
~judando a transformar, por _seutrabalho, a situação social, o quadro _
·elas relações entre os indivíduos_seus contemporâneos.
·-- A criação artística pode ter vários graus de influência política.
Algu~as obrãsd~-a;t~- sã; mais políticas do que as outras, isto é, pos-
suen-1-um grau mais elevado de influência política. Há obras que são até
"explosivas" d~go políticas~ Mas isso não quer dizer que todas as obras
de arte, em nosso tempo, precisem apresentar um determinado coefi-
-~iente x de teor estritamente político para se legitirn_arem.
O sentido da formulação de Benjamin é o de um brado de alerta.
Ele adverte os artistas quanto aos perigos que a ilusão do apoliticis-

II6 II7
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

mo pode acarretar_Jl!J!ªtill~_r:tt~ Q<lta __eJes. E os conclama a explorarem efetivamente ocorridos na realidade, que mostrasse a significação polí-
melhor as possibilidades que as condições sociais e tecnológicas abri- tica dos referidos episódios e, no interior deles, mostrasse os indivíduos
ram, no presente, para o desenvolvimento de uma arte caracterizada agindo à base de seus interesses de classe (as forças materiais que fazem
pelo elevado grau de influência política. a história). Por isso, ele concluiu que, "em certo sentido, Fahnen foi o
O sentido mais profundamente válido da advertência de Benjamin primeiro drama marxista, e sua produção foi a primeira tentativa de pôr
está na demonstração de que, ao criarem novas possibilidades para a a nu as forças materiais motivadoras da ação". 1
arte política, as condições da vida moderna também criaram exigên- O esquematismo de Piscator é evidente. Trilhando semelhantes
cias no sentido de que tais possibilidades sejam prontamente exploradas caminhos, ele jamais conseguiria criar senão personagens abstratos no
(criando, por conseguinte, responsabilidades políticas às quais o artista, palco. Seus personagens nunca poderiam alcançar o nível da tipicidade
como tal, não pode se furtar). a que se refere Lukács, jamais chegariam a unir organicamente uma
Benjamin, entretanto, não chega a abordar os problemas específi- dimensão universal e uma feição humana singular.
cos da arte política como arte, isto é, se detém nos umbrais da problemá- Os efeitos interessantes dos espetáculos de Piscator não chegaram
tica estética vinculada às suas proposições políticas. E foi precisamente a constituir experiências estéticas profundas e duradouras para aqueles
I com essa problemática estética que Erwin Piscator se viu a braços na que os viram. Mesmo no que se refere ao rendimento político, o trabalho
li,,
década de 1920, bem antes da teorização de Benjamin. Piscator pro- piscatoriano se esgotou numa influência muito mais agitacional do que
curou fazer uma arte politicamente empenhada ao máximo. E as suas educacional. No que concerne à ação educativa da sua influência políti-
experiências são elucidativas, sobretudo pelo seu radicalismo. Elas nos ca, a concepção que Piscator pôs em prática em sua arte se revelou defi-
mostram que, para o artista, ter clareza quanto à direção não significa, ciente. Ele não levou em conta a lição de Croce, assimilada por Gramsci:
automaticamente, ter segurança quanto aos caminhos. Identificado com "a arte ed~!_Ǫ_~gl};}Hto arte) E:Jl_ão enql}anto. arte educativa.'.'
os anseios do movimento operário e com os ideais do socialismo, Pis- - Ót~atro de Piscator se submeteu direta e exclusivamente à propa-
catar foi levado a colocar a arte diretamente a serviço da propaganda ganda política. Na subordinação da arte à política, ele chegou ao extre-
política. mo de suprimir as categorias específicas da arte como tal, só lidando
O teatro de Piscator relegava o autor a uma posição de reduzida com catégorias meramente técnicas e políticas. "Banimos radicalmente
importância: tal função era, muitas vezes, a de um mero compilador de a palavra 'arte' do nosso programa: nossas 'peças' eram manifestos com
dados. O teatro assumia a forma de uma reportagem. O documentaris- os quais queríamos intervir na ação e fazer política". 2
mo, hipertrofiado, já não deixava lugar para a plena invenção, para a
expansão da imaginação criadora do artista. Os fatos brutos sufocavam
a ficção. As informações consideradas politicamente úteis eram trans-
mitidas aos espectadores em espetáculos que recorriam a uma grande
variedade de técnicas, com o fito de evitar a monotonia, a aridez. Letrei-
ros e quadros estatísticos eram alternados com canções, projeções de
slides e filmes. Eventualmente, coros se punham a recitar ou a cantar
no meio do auditório, a fim de que o espectador se sentisse envolvido
na ação.
Em 1924, Piscator encenou Fahnen ("Bandeiras") de Alfons
Paquet, uma dramatização do julgamento de alguns anarquistas reali-
zado em Chicago, em 1886. Assimilando de maneira rígida e sumária
os princípios do marxismo, Piscator não avaliava bem a complexidade
1 Citado por Martin Esslin em Brecht- the man and his work, ed. Anchor Books, Nova
da concepção marxista: foi levado a inferir dela que o teatro compatí- York, 1961, p. 24.
vel com a estética do marxismo seria aquele que tratasse de episódios 2 E. Piscator, Le Théatre Politique, ed. L'Arche, p. 38.

IIS
18.

BRECHT

O encontro e a colaboração com Piscator desempenharam impor-


tante papel na politização de Bertolt Brecht (1898-1955) e na evolução do
pensamento filosófico do teatrólogo alemão. O marxismo a que Brecht
se converteu era um marxismo carregado de formulações sectárias. Ele,
por sua vez, depois de um período em que sua ideologia apresentava tra-
ços vagamente aproximados dos da rebeldia boêmia e anarquista, ado-
tou em termos bastante esquemáticos a concepção marxista do mundo
e, aos poucos, a foi depurando e refinando.
Como artista e criador estético, Brecht compreendeu bem cedo
que o problema da arte política não era tão simples como supunha o
radicalismo de Piscator. No curso de sua atividade de criação artísti-
ca, ele mudou muito: sua obra e suas concepções teóricas apresentam
diversas fases. Há, por exemplo, o Brecht da primeira fase, o Brecht de
Beel vinculado ao clima espiritual que engendrou o expressionismo na
Alemanha. Há o Brecht das peças didáticas, o Brecht que adotara um
marxismo esquemático e escrevia peças com vistas à educação política
dos atores e com vistas ao esclarecimento de questões político-ideoló-
gicas. Há o teórico do teatro épico, que, por sua vez, apresenta diver-
sos momentos na sua evolução específica. Há o Brecht das "parábolas",
das "fábulas modernas", como diz Paolo Chiarini. E, finalmente, há o
Brecht da m<tturidade, o Brecht da versão definitiva da Vida de Calí-
leu, o Brecht da Mãe Coragem, 'aquele que, segundo Lukács, retoma as
linhas mestras do humanismo clássico shakespeariano. 1
De modo geral, Brecht partilha com Maiakovski, desde o início
de sua atividade artística, da convicção de que é importante procurar
renovar as formas da expressão estética. Os novos temas, as novas situa-
ções e os novos problemas que caracterizam a vida nas sociedades con-
temporâneas implicam, por si mesmos, uma tendência tanto para novos
conteúdos quanto para novas formas. Não é possível- diz Brecht- falar
de dinheiro em iambos. O petróleo é rebelde ao esquema shakespeariano

1
G. Lukács, Ensaios sobre literatura, ed. Civilização Brasileira.

I2I
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

tradicional de cinco atos. Os novos temas pedem uma forma adequada, O mundo mostrado pelo teatro épico brechtiano é um mundo
e não o recurso às formas antigas, transformadas em clichês. Porém, as que os homens criaram e podem sempre transformar; nele, os próprios
novas formas só podem ser efetivamente criadas a partir da colocação homens aparecem como seres in fieri, definidos pela interação dialéti-
de novos fins artísticos. A arte moderna precisa enxergar claramente as ca entre o condicionamento social (elemento objetivo) e a escolha que
finalidades que o mundo atual lhe impõe. E o objetivo da nova arte, para fazem de si mesmos, a cada instante, dentro do quadro circunstancial
B_E~~~~t,A~ve ,S!;!_~~f!~ei-~~<!si:~: '--~--~---~ dado (elemento subjetivo). O espectador não é chamado a reconhecer
~.~ -- Os preconceitos ideológicos difundidos pelas classes explorado- no palco as profundezas de ~ma eterna natureza humana; é chamado a
ras contribuem para que o desenvolvimento da arte teatral estacione em observar diversas condições humanas históricas.
uma forma na qual a ação que se realiza no palco envolve o especta- Brecht, por conseguinte, quer um teatro que: 1) faça com que
dor, levando-o a se identificar sentimentalmente com os personagens. os problemas do homem sejam compreendidos a partir da única pers-
No teatro burguês típico, as emoções se superpõem ao raciocínio e tur- pectiva justa, que é a perspectiva historicista; 2) ajudando os homens
vam as águas da inteligência. Brecht não quer absolutamente suprimir a compreender suas contradições, contribua para eles as superarem, de
as emoções, mas quer suprimir a turvação da inteligência que se faz em maneira ativa. "No teatro épico- escreveu o próprio Brecht, em 1936-,
nome delas. as considerações morais só aparecem em segundo plano. Seu propósito é
Para conseguir a sua finalidade, Brecht se preocupa com a questão menos a moral do que o estudo". 3
da forma (estrutura, gênero), que é capaz de proporcionar a clareza de O "estudo", portanto, deve servir de base para o teatro alcançar
linguagem adequada à transmissão de um claro conteúdo intelectual: e o objetivo que Brecht lhe atribuíra: o objetivo pedagógico. E é interes-
acaba por concluir que o nosso tempo tende a acolher melhor, através sante observar que, na fase em que ele desenvolvia, assim, a sua teoria
de suas forças vivas e dinâmicas, o teatro épico, quer dizer, o teatro que do teatro épico e atribuía ao seu teatro a finalidade da pedagogia, o crí-
narra a ação sem o recurso excessivo aos elementos ilusionistas. tico Walter Benjamin começava a elaborar a sua tese a respeito da obra
Brecht sempre considerou que uma das principais obrigações do de arte no tempo da sua reprodutibilidade técnica, tese que o levaria a
dramaturgo em relação ao público popular era a de jamais subestimar a sustentar, conforme vimos, a necessidade de se reconhecer na arte a sua
inteligência deste e procurar estimular a reflexão crítica. Há que mostrar função política. A função política de Benjamin e a finalidade pedagógi-
ao espectador as contradições de seu mundo e colaborar para que ele as ca de Brecht marcam as preocupações convergentes desses dois espíritos,
equacione de modo justo (sem confusão artificial e sem esquematismo), dessas duas personalidades tão diversas; e refletem a mesma preocupa-
a fim de que este se disponha a superá-las em termos corretos. ção diante da ascensão do nazismo, uma posição basicamente comum a
Mesmo no período das peças didáticas, fase em que concebia e ambos, um anseio de empenho e lucidez diante da arte do nosso tempo
aplicava o marxismo um tanto rigidamente, Brecht jamais aderiu à filo- e das suas relações com a política.
sofia de Marx como um fanático, impulsionado por uma cega crença Há um ponto, porém, que levou Brecht adiante de Benjamin.
de tipo religioso. Paolo Chiarini, em seu estudo sobre o teatrólogo ale- Este permaneceu no plano teórico geral, quando enunciou a sua tese.
mão, acentua isso: "Brecht jamais acreditou fideisticamente no marxis- Como teórico, não se preocupou com as dificuldades e os perigos ine-
mo, num ímpeto de entusiasmo: como artesão esperto e desconfiado que rentes ao programa de elaboração de uma arte política, de finalidade
era, percebeu ter encontrado nele um instrumento capaz de penetrar, reconhecidamente pedagógica. Brecht, contudo, não era propriamen-
mais do que qualquer outro, na trama do mundo moderno, nas relações te um teórico: era um artista, um homem de teatro voltado, antes de
humanas, na substância da civilização". 2 O marxismo foi, para ele, o tudo, para a sua experiência pessoal de criação estética. Suas incur-
instrumental teórico adequado para a justa compreensão da sociedade sões no campo da reflexão teórica eram determinadas pelas preocu-
contemporânea e a base filosófica a partir da qual se elaborava a visão
do mundo subjacente às suas melhores peças.
3 B. Brecht, Écrits sur le théatre, ed. L'Arche, p. 117 [cf. B. Brecht, "Teatro de diversão ou
teatro pedagógico", in: Teatro Dialético, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p.
2
P. Chiarini, Bertolt Brecht, ed. Laterza, Bari, 1954, p. 32. 102].

I22 123
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

pações colocadas pelos problemas com que se defrontava na prática, A experiência histórica nos mostra, diz Brecht, que os modos de
a cada passo. divertir variam de acordo com o tempo e o lugar. Além disso, através
Brecht compreendeu que a finalidade pedagógica do teatro podia dela - acrescenta o nosso improvisado mas inteligente teórico - pode-
torná-lo enfadonho e destruir toda a sua eficácia. Em seu contato com as mos verificar que o êxito das representações nem sempre esteve ligado
experiências de Piscator, ele percebeu que o propósito de "estudo" podia ao grau de parecença entre a imagem e seu modelo. Muito ao contrário,
limitar demasiadamente o interesse suscitado pelo teatro. A utilização as representações por vezes comportaram grande inverossimilhança nas
das mais variadas técnicas de divertimento, que pôde observar nos Esta- imagens (ao menos aparentemente). Em sua essência, contudo, as ima-
dos Unidos da América durante o seu exílio, fascinou-o pelas amplas gens da fantasia, por inverossímeis que pareçam, só são bem-sucedidas
possibilidades de alcançar o público que abrira para a chamada "arte de quando falam aos homens deles mesmos. Quando, divertindo-os, ins-
massas" e, depois de ter refletido sobre tudo isso, escreveu, em 1948, o truem-nos, classificam-lhes as consciências.
seu Pequeno organon para o teatro, o mais amadurecido e alentado dos Uma representação pode não parecer com o modelo e, no entan-
textos em que expôs as suas concepções teóricas. to, pode revelar mais profundamente a essência do modelo do que a
No Pequeno organon, Brecht enfatizou a função do teatro como sua reprodução "fiel". Brecht não desconhece o fenômeno. Mas ele sabe
divertimento: "A função do teatro, como a de todas as artes, sempre foi também que, em nosso tempo, mais do que nunca, é preciso que o artista
a de divertir os homens. Semelhante ,tarefa sempre lhe conferiu a sua procure ser claro, que não prejudique a significação do que está dizendo
dignidade particular". 4 por concessões a um espírito confusionista. Nossa época é uma época
Ao divertimento correspondem "prazeres simples" e "prazeres difícil, cheia de ardis: o senso comum pode nos arrastar a equívocos, e
complexos". As grandes obras teatrais costumam proporcionar, basica- o impulso espontâneo de bondade pode ser aproveitado pelas forças que
mente, estes últimos; porém não excluem necessariamente os primeiros. exploram a crueldade como um sistema. Numa passagem de O círculo
O teatro - como a arte em geral - desempenha, em todas as épocas, de giz caucasiano, o teatrólogo nos alerta explicitamente quanto à "ten-
uma tarefa "epicurista", na medida em que reabilita o mundo senso- tação da bondade". Outra peça- A alma boa de Setsuã- gira em torno
rial para o homem, ajudando a evitar que os seres humanos se deixem da impossibilidade de se ser completamente bom para se conseguir ser
iludir pelo excesso de ascetismo ou pelas abstrações hipostasiadas do justo no mundo atual. "O teatro épico - escreve Walter Benjamin - é o
intelectualismo. teatro do herói surrado. O herói não surrado não atinge a reflexão". 5
A função de divertimento na arte é muito importante: Brecht Nosso tempo apresenta características que o distanciam bastante
prestou um grande serviço à estética marxista quando chamou a aten- das épocas precedentes: ele trouxe um desenvolvimento extraordinário
ção de todos para a tarefa "epicurista" que a arte desempenha. Mas e extraordinariamente rápido para o processo de dominação das forças
não nos parece que o teatrólogo alemão tenha tido uma expressão feliz naturais pelo homem; em virtude da alienação do trabalho humano,
quando disse que era a tarefa de divertir que sempre tinha conferido ao todavia, em virtude da divisão d<:t sociedade em classes sociais, a domi-
teatro "a sua dignidade particular", porque não basta divertir; se uma nação da realidade social não se desenvolveu de maneira correspondente
peça é apenas "divertida", ainda que ela divirta muito, não tardará à dominação da natureza. O desenvolvimento tecnológico logrou memo-
a ser esquecida. O próprio Brecht, no desenvolvimento do raciocínio ráveis conquistas, mas elas não estão postas, desde logo, a serviço de
exposto no Pequeno organon, corrige, na prática, implicitamente, a todos os homens. A humanidade domou a energia atômica, lançou-se à
unilateralidade da sua formulação. Pouco após a exposição da tese conquista do espaço cósmico, porém não conseguiu acabar com o flage-
acima posta sob reserva, o autor da Vida de Galileu situa o diverti- lo social da fome, não conseguiu superar a situação de pobreza e subde-
mento em termos mais aceitáveis e o apresenta como historicamente senvolvimento em que vive a maior parte das nações.
condicionado. O agravamento do desequilíbrio entre o desenvolvimento tecnoló-
gico, por um lado, e o deficiente aproveitamento do progresso tecnoló-
4
Ibid., p. 174 [cf. B. Brecht, '"Pequeno organon' para o teatro" in: Teatro Dialético, Rio de
5 Citado por Paolo Chiarini em Bertolt Brecht, ed. Laterza, 1959, p. 18.
Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, p. 184].

124 125
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

gico pela humanidade como um todo, por outro, acabou por estilhaçar apreensão do sentido necessário da transformação social: o materialismo
o gênero humano, rompendo a sua unidade em pedacinhos e abalando histórico pode fornecê-la. A técnica que buscava colocar o público "em
as próprias instituições correspondentes ao modo capitalista de produ- transe", deve-se opor uma linguagem que force certo distanciamento do
ção. Engendrou-se, assim, uma crise civilizacional. Tal crise, por sua vez, espectador em relação àquilo que está sendo representado para ele.
veio a se manifestar tanto na vida material como na produção espiritual O público não deve ser arrastado pela ação representada como
(inclusive na produção artística). E Brecht procurou fixar-lhe os efeitos no pela correnteza de um rio. Os acontecimentos da trama devem se enca-
campo particular do teatro, esforçando-se por contribuir para a recon- dear, mas os elos desse encadeamento devem permanecer bem visíveis.
quista tanto da clareza conceitual quanto da clareza de linguagem. Para colocar diante do público, distanciadamente, bem visíveis, os elos
Brecht observou que a velha técnica de comunicação com o públi- de encadeamento, Brecht se inclina para as formas da comédia. A comé-
co nos recintos de representação teatral ainda tem qualquer coisa de dia- diz ele, no fim da vida, a Ernst Schumacher- admite soluções. A
ritual mágico (ponto de contato com Walter Benjamin): os espectadores, tragédia (caso ainda se suponha, de modo geral, que ela é possível) não
em trajes domingueiros, rígidos, contraídos, se imergem na penumbra as admite. 6 O distanciamento deve contribuir para dar aos elementos da
das casas de espetáculo e são desligados de sua existência cotidiana. realidade que se quer mostrar - e transformar - as proporções exigidas
O recurso a essa velha técnica já não consegue divertir o espectador e pela perspectiva a partir da qual ela é enfocada. "A arte não deixa de ser
já não consegue instruí-lo em coisa alguma. Além disso, o público que realista por modificar as proporções; só deixa de sê-lo quando as modi-
vai ao teatro se restringe a setores cada vez mais reduzidos das cama- fica de modo tal que o público fracassaria, na vida real, caso se baseasse
das privilegiadas da população. Mesmo os indivíduos que têm condições nas imagens representadas para entender a realidade e agir nela" .7
econômicas e financeiras para ir ao teatro (e que são cada vez menos A concepção brechtiana de uma linguagem com distanciamento e
numerosos) sofrem as consequências alienadoras decorrentes do fato de uma técnica artística capaz de proteger a clareza do conteúdo inteligí-
de viverem em uma realidade social indomada e em uma comunidade vel contra a ambiguidade dos sentimentos em estado "bruto" é uma con-
dilacerada, tornam-se mais ou menos neuróticos e começam a trocar cepção que leva Brecht a distanciar-se bastante de Maiakovski, poeta
as casas de espetáculo teatral, em número crescente, por outros recin- russo que tinha, como o teatrólogo alemão, como os leitores devem estar
tos que lhes proporcionem divertimentos mais excitantes. O teatro que lembrados~ a preocupação comum da renovação formal. Brecht colo-
pretenda concorrer com os divertimentos mais excitantes que a burgue- ca o problema da forma em termos mais precisos e mais profundos do
sia vai buscar fora das casas de espetáculo é um teatro que renuncia à que Maiakovski, pois vê a forma em seu nível de significação histórico-
sua mais alta missão cultural, abandona a riqueza do conhecimento que social. A forma, para o teatrólogo alemão, é basicamente a estrutura, o
pode transmitir e se dedica à exploração do meramente sugestivo, do gênero, e não o conjunto de artifícios estilísticos ou decorativos mobili-
arbitrariamente "chocante" ou do "exótico" e do pitoresco. E não con- zados por uma subjetividade isolada, por um "temperamento". Para ele,
seguirá jamais escapar à sufocante tutela da burguesia. não bastava "renovar" a forma do teatro tradicional e dar uma feição
A crise trouxe consigo, entretanto, a possibilidade da sua supera- pessoal nova à estrutura arcaica: era preciso criar uma nova estrutura,
ção. Permanecendo no campo específico do teatro, Brecht esforçou-se um novo gênero, que - à falta de melhor designação - ele chamou de
por definir os elementos que manifestam essa possibilidade e por indicar teatro épico. Em Brecht, a forma, analisada em seus elementos "intelec-
os meios capazes de concretizá-la. Ao público passivo e atomizado de tuais" ou "racionais", aparece em sua ligação dialética essencial com a
burgueses ricos que se imobilizam nas poltronas das casas de espetáculo, problemática do conteúdo.
sem uma comunicação mais ampla de uns com os outros, deve-se substi- Brecht não se deixa absolutamente empolgar por nenhum progra-
tuir- diz Brecht- uma plateia popular, menos pré-formada, mais espon- ma abstrato de renovação formal e nem encara com simpatia os movi-
tânea, mais "autêntica". A incapacidade de compreender a evolução da mentos de renovação formal inconsequente. A bandeira da renovação
realidade social do capitalismo (incapacidade inerente ao ponto de vista
burguês), deve-se substituir uma consciência de novo tipo, conceitual- 6 Citado por Paolo Chiarini em Bertolt Brecht, ed. Laterza, 1959, p. 62.
mente aparelhada para o entendimento das contradições sociais e para a 7 B. Brecht, op. cit., p. 205 [ed. cit. p. 218].

I26 127
OS MARXISTAS E A ARTE

19.
formal pura e simples tem servido para disfarçar, muitas vezes, o vazio
e a impotência conformada de uma arte em colapso. Escreveu o teatró-
logo: LUKÁCS
seu irremediável e acelerado declínio, a dramaturgia e o teatro burgueses
esforçaram-se por dar novamente, através de uma mudança brutal na forma,
algum atrativo a um conteúdo social reacionário inalterado. Esses esforços
puramente formais, esses jogos desprovidos de qualquer significação, leva-
ram os nossos melhores críticos a reclamar o estudo dos clássicos. 8
Entre os "melhores críticos" que foram levados, segundo Brecht,
a "reclamar o estudo dos clássicos", não é possível deixar de enxergar o
pensador húngaro Gyorgy Lukács, nascido em 1885.
Antes de sua adesão à perspectiva marxista, Lukács já demons-
trara ser um crítico de arte de notável acuidade intelectual e um teórico
de portentosa cultura estética. Num livro de inspiração neokantiana (A
alma e as formas) e num outro livro de inspiração neo-hegeliana (A teo-
ria do romance), expusera ideias que vieram a ter grande influência na
evolução da crítica europeia.
Em A teoria do romance, Lukács estudava o romance como
forma típica dos tempos modernos. Procuraremos resumir aqui algumas
das ideias centrais desse livro de sua fase pré-marxista, pois se trata de
um trabalho que veio a exercer, mais tarde, apreciável influência sobre
um dos mais significativos estetas marxistas contemporâneos: Lucien
Goldmann.
Na antiga epopeia grega, segundo o Lukács d'A teoria do roman-
ce, o herói não era um indivíduo essencialmente problemático, e suas
relações com o mundo em que vivia não eram essencialmente confli-
tivas. "Quando o indivíduo não é problemático, seus fins lhe estão
dados, numa evidência imediata, e o mundo do qual esses mesmos fins
construíram o arcabouço pode lhe opor dificuldades e pode lhe colocar
obstáculos no caminho da sua realização, mas jamais o ameaça com um
perigo interior grave". 1
O romance moderno, contudo, exprime condições bem diver-
sas das do mundo em que se produziu a epopeia. No mundo moderno,
segundo o Lukács de 1915, "ser homem é ser solitário". O indivíduo se
tornou um ser essencialmente problemático: suas relações com o mundo
excluem a possibilidade de este lhe proporcionar fins claros e autenti-
camente humanos para a sua ação. A incoerência estrutural do mundo

1 G. Lukács, La théorie du roman, trad. Clairevoye, ed. Gonthier, p. 73 [cf. G. Lukács, A


8
Ibid., p. 277. teoria do romance, São Paulo: 34, 2000, p. 79].

I28 I29
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

moderno se introduz no universo das formas art1st1cas e engendra a de coisas (coisa em latim é res: daí o termo reificação). O fruto do traba-
forma do romance. O mundo grego - lê-se n'A teoria do romance - era lho criador da humanidade havia se desligado de tal modo dos homens-
um todo fechado e perfeito: o nosso não o é. Sabemos hoje, desde Kant, produtores que aparecia diante deles como objeto estranho, como corpo
Fichte e Hegel, que o espírito h:umano é criador e autocriador. Sabemos dotado de vida própria, de movimento autônomo e inumano. A criação
que "nosso pensamento segue o caminho infinito da aproximação sem- chegara a se defrontar com os seus criadores como um monstro indepen-
pre inacabada". 2 dente deles. O mundo que os homens haviam construído lhes escapava
Na epopeia, havia uma identidade de ser e destino: a ação do e lhes era hostil.
herói realizava naturalmente o seu destino, uma vez que ele era, a prio- Lukács compreende que a reificação - conceito que engloba o
ri, portador de valores autênticos. O poeta épico e seus leitores (ou conjunto dos fenômenos anteriormente enunciados - resulta da divisão
ouvintes) discerniam claramente os valores de que o herói era portador do trabalho, da dilaceração da autêntica comunidade humana e do apa-
e que determinavam os fins da sua ação. No romance moderno, o herói recimento das classes sociais. Sabe que o capitalismo levou a divisão da
busca valores autênticos justamente porque não os traz em si desde o espécie humana às últimas consequências e acentuou a fragmentação
início. A própria acepção da palavra herói se transforma. O herói da do trabalho até o ponto de tornar o trabalhador, na produção indus-
epopeia nunca está verdadeiramente sozinho, ou, pelo menos, seu iso- trial, um mero apêndice da máquina. Sabe, também, que a solidão trá-
lamento nunca é trágico, porque mesmo na solidão está com os deuses. gica do homem moderno nasce das condições a que chegou o processo
O romance, porém, segundo A teoria do romance, é a epopeia de um da reificação nesses últimos 150 anos. "A filosofia grega certamente
mundo sem deuses. conheceu os fenômenos da reificação, mas não os viveu como formas
Em nossos dias, Lucien Goldmann, interpretando A teoria do universais do conjunto do ser". 4 Essa explicação das diferenças funda-
romance e procurando integrar suas concepções ao marxismo, escreveu mentais existentes entre o mundo burguês atual e o mundo grego antigo
que o romance é, para Lukács, a história da busca degradada de valores é, sem dúvida, mais precisa e mais profunda, do ponto de vista histórico
autênticos em um mundo degradado. Entre o herói problemático do e sociológico, do que a análise das mesmas diferenças desenvolvida n'A
romance e o mundo burguês há algo em comum: a degradação. E há teoria do romance.
também uma contradição irredutível: o herói não se adapta à degra- História e consciência de classe, entretanto, não formula explici-
dação do mundo e busca valores autênticos que o mundo burguês não tamente uma teoria estética e não concede ao tratamento dos problemas
comporta. Ao contrário do herói da tragédia, o herói do romance par- da arte a importância central que A teoria do romance concedia. De
ticipa da degradação e tem um terreno em comum com o mundo, no certo modo, é possível considerarmos que a estética implícita na con-
qual se move. No romance, há ao mesmo tempo ruptura e comunidade cepção geral de História e consciência de classe tende a ser, pelo menos
entre o herói e o mundo. Na epopeia só há comunidade, na tragédia só em seus pontos de partida, uma estética sectária. No que concerne às
há ruptura. 3 suas ideias políticas, é preciso não esquecermos que Lukács se achava,
O primeiro livro de Lukács após a sua adesão a uma perspectiva na época, sob a influência das formulações de Rosa Luxemburgo, que
marxista foi História e consciência de classe, de 1922. Aprofundan- supunha estar iminente uma revolução de caráter proletário em toda
do o seu exame do mundo moderno e adotando o ponto de vista da a Europa. Mas, além disso, Lukács adotava, em tal período, uma teo-
classe operária em suas análises, Lukács chegou à conclusão de que a ria do conhecimento de pronunciado sabor hegeliano, segundo a qual o
organização capitalista da produção havia levado às suas mais extremas processo de desenvolvimento da consciência humana se encaminhava
consequências o fenômeno da reificação. Na atividade dos homens, as para alcançar, historicamente, uma identidade do sujeito e do objeto do
relações entre eles haviam assumido, sob o capitalismo, a feição genérica conhecimento. Semelhante concepção gnoseológica leva a crer que, em

2
Ibid., p. 24 [ed. cit., p. 30]. 4 G. Lukács, Histoire et conscience de classe, trad. Kostas Axelos e J. Bois, Éditions de
3
L. Goldmann, Pour une sociologíe du roman, ed. Gallimard, p. 17 [cf. L. Goldmann, Minuit, p. 142 [cf. G. Lukács, História e consciência de classe, São Paulo: Martins Fontes,
Sociologia do romance, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 9]. 2003, p. 241].

130 131
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

um tempo vindouro, o saber entrará na posse completa da essência do Franz Mehring e George Plekhanov, o nível da literatura marxista sofreu
real. Isso ocorrerá depois que, prosseguindo na dominação da natureza, uma sensível queda no tempo da Segunda Internacional.
i i a humanidade se reunificar e superar o ponto de vista irredutivelmente Enfrentando resolutamente o problema colocado por Marx (da
particularista das classes sociais e de suas respectivas ideologias. O pro- sobrevivência da arte grega), Lifschitz procurou dar-lhe uma solução
letariado moderno é o parteiro desse estado maravilhoso de plenitude do historicista: afirmou que o esplendor da arte da antiga Grécia (que lhe
conhecimento: "é somente com a entrada em cena do proletariado que deu a sua durabilidade) não foi ensejado pelo baixo desenvolvimento
o conhecimento da realidade social encontra o seu acabamento; com o das forças produtivas ou pelo atraso econômico, e sim ocasionado pelo
ponto de vista de classe do proletariado, chega-se a um ponto de vista a baixo grau de aprofundamento das contradições sociais?
partir do qual a totalidade da sociedade se torna visível". 5 Ao se defrontar, contudo, com o alto nível artístico - lisamen-
Lukács sabe, certamente, que o ponto de vista do proletariado te reconhecido - de certos ramos da produção artística na sociedade
ainda não é o ponto de vista da sociedade reunificada; mas entende que, capitalista (sociedade na qual o antagonismo das classes chegou a uma
com a perspectiva da classe operária, a teoria se encontra em condições profundidade inédita), Lifschitz se limita a assinalar que o conteúdo da
de se apoderar, de maneira imediata e adequada, do processo da revo- grande arte em nosso tempo é hostil ao mundo em que ela se engendrou.
lução social. 6 Sua explicação para o fenômeno da arte grega se revela, assim, insatis-
A teoria do conhecimento adotada em História e consciência de fatória. Se uma sociedade cujas contradições de classe chegaram a ser
classe inclinava seu autor para uma superestimação (voluntarista) da tão profundas como a nossa pode produzir uma arte de alto nível (ainda
consciência de classe do proletariado. Os problemas relativos à pers- que se trate de uma arte de oposição), não há como sustentar que o
pectiva da classe operária enquanto perspectiva particular, de classe, elevado padrão estético que garantiu a durabilidade da arte grega tenha
sofriam uma simplificação. E o papel atribuído à arte revolucionária decorrido da inexistência de contradições sociais profundas, amadureci-
- isto é, à arte ideologicamente afinada com a perspectiva da revolução das na época de Homero, ou mesmo na de Ésquilo ou Sófocles.
proletária- deveria ser, no essencial, apenas o de agir sobre o estado efe- Lukács não se prendeu às formulações de Lifschitz. Utilizou suas
tivo da consciência psicológica dos trabalhadores a fim de levar cada um investigações, mas não ficou nelas. Em sucessivas polêmicas com críticos
deles, individualmente considerado, a ascender à consciência de classe e autores soviéticos, com Brecht, com Ana Seghers, com os defensores de
do proletariado, a partir da qual todos os problemas da sociedade logo Joyce e John dos Passos, ele foi desenvolvendo suas próprias concepções
se lhe haveriam de esclarecer. acerca da arte, do realismo e dos fundamentos da estética marxista.
Após a publicação de História e consciência de classe e após a Diante de Brecht, que acentuava a descontinuidade do desenvol-
derrota na Hungria do governo Bela Kun (do qual participara), Lukács vimento artístico e cultural na era contemporânea (chamando a atenção
sofreu fortes críticas e acabou por fazer autocrítica, renegando a obra. para as exigências do novo), Lukács enfatizou a continuidade, a vincula-
Instalou-se, tempos depois, na União Soviética, onde realizou aprofun- ção dos esforços de renovação do presente às experiências e realizações
dados estudos das obras de Marx, de Engels e de Lenin. Juntamente do passado. Chamou a atenção para a unidade essencial de conteúdo e
com o crítico e historiador soviético Mikhail Lifschitz, ele coligiu todos forma, tal como a mesma podia ser estudada na obra dos clássicos.
os textos em que Marx e Engels afloraram os problemas da arte e da Em 1937, às vésperas da tempestade com que o nazismo varreu a
literatura, reconstituindo, através de uma cuidadosa análise crítica de Europa, Brecht e Lukács se achavam refugiados na União Soviética e lá
tais textos, o pensamento estético dos fundadores do materialismo his- polemizaram a respeito do conceito de realismo que cada um deles defen-
tórico. dia. Lukács criticou o expressionismo e acusou as tendências expres-
Lifschitz - que sempre mereceu de Lukács a maior estima e o sionistas de sacrificarem o realismo na arte e na literatura; apresentou
maior respeito- observou que, a despeito dos esforços de Paul Lafargue, como expressão maior do realismo as obras dos grandes romancistas do
século XIX. Para Lukács, um afastamento das linhas mestras da estru-
5
Ibid., p. 40 [ed. cit., p. 96].
6
Ibid., p. 19 [ed. cit., p. 66]. 7 Revista Recherches Internationales à la Lumiere du Marxisme, 1963, "Esthétique".

I32 I33
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

tura romanesca das obras-primas de Balzac e Tolstoi representaria, na conteúdo da atitude realista comporta indiferentemente qualquer forma
literatura contemporânea, uma inevitável corrupção do realismo e uma para manifestar-se, estaremos lidando com concepções metafísicas de
queda no nível artístico. conteúdo e forma. Conteúdo e forma serão representações abstratas de
Brecht não se conformou com o apego de Lukács à estrutura das entidades independentes, cuja ligação orgânica jamais será efetivamente
obras dos realistas clássicos do século XIX: "O realismo - escreveu o compreendida.
teatrólogo alemão - não é uma pura questão de forma. Copiando os Brecht se defrontou com tal problema (o problema das relações
métodos daqueles realistas, deixaremos de ser realistas nós mesmos". 8 E entre o conteúdo e a forma) no curso da sua atividade de criação artís-
expôs a sua própria concepção do realismo: tica, como homem de teatro, e lhe formulou soluções mais ou menos
empíricas, com vistas, diretamente, ao prosseguimento do seu trabalho.
Realista significa: pôr a nu a estrutura das causas que regem a vida social; Esse empirismo de Brecht o situou em uma posição de vantagem sobre
desmascarar o ponto de vista imperante como o ponto de vista da classe
Walter Benjamin, como vimos, quando ambos abordaram as questões
dominante; adotar, para escrever, o ponto de vista da classe que preparou
as soluções mais amplas para os problemas mais prementes que afligem a relativas à dificuldade em precisar e definir a arte política por que ansia-
sociedade humana; salientar o aspecto dinâmico do desenvolvimento social; vam. O mesmo empirismo, entretanto, acarretou uma limitação para a
visar um tipo de concreto que encoraje à abstração generalizante. 9 perspectiva de Brecht quando se tratou de um problema de filosofia da
arte, quando foi preciso aprofundar a compreensão genérica (abstrata)
Depois que Brecht formulou contra Lukács a acusação de um das relações entre as categorias estéticas de forma e conteúdo.
excessivo apego à estrutura do romance realista do século XIX, seme- Nesse ponto, como filósofo, Lukács levou vantagem sobre Brecht
lhante acusação voltou a se repetir em numerosas ocasiões. Lukács não e, amparado não só em seu conhecimento prático da história da arte
estaria, realmente, identificando de maneira errônea o realismo com como no seu conhecimento teórico específico das questões estéticas, ela-
uma determinada espécie de realismo (a dos grandes autores clássicos borou conceitualmente, sistematicamente, uma interpretação sua, apro-
do século XIX)? Lukács não estaria, de fato, comprometendo a atitude fundada, das relações entre a forma e o conteúdo na arte. De saída,
geral do realismo com uma manifestação particular dessa atitude? Lukács recusou a discussão das questões da forma nos níveis em que é
A concepção de Brecht pretende rejeitar mais radicalmente do que menos significativa: evitou a análise pouco compensadora das sutilezas
a de Lukács o compromisso da atitude realista com qualquer estilo parti- formais como manifestações psicológicas individuais ou como flutua-
cular. De certo modo, porém, não será a caracterização do realismo por ções estilísticas singulares, irracionais. Brecht tivera o mérito de colocar
Brecht mais "fechada" e mais rígida do que a caracterização lukacsiana? a discussão dos problemas da forma em termos que facilitavam, para
A partir do ponto de vista brechtiano, será possível considerar realista Lukács, a discussão: a ideia de um teatro épico punha em questão, desde
um romance como O leopardo de Lampedusa? O autor desse roman- logo, os gêneros artísticos, a validade de estruturas formais da maior
ce, bastante identificado com a perspectiva de seu personagem principal significação sócio-histórica. Lukács, enfrentando o problema do revolu-
(o príncipe de Salina), encarando com melancolia crepuscular a trans- cionamento dos gêneros, colocado por Brecht, concluiu pela necessidade
formação da sociedade, temperando de lucidez o seu conservadorismo, da preservação da integridade dos gêneros e esforçou-se por "aplicar a
estará, por acaso, adotando o ponto de vista da classe que preparou as teoria do reflexo, da dialética marxista, ao problema da diferenciação
soluções mais amplas para os problemas mais prementes que afligem a dos gêneros". 10
sociedade humana? Ao defender a integridade dos gêneros, Lukács se filia à tradição
Além disso, cabe perguntar: será a atitude realista indiferente à de Hegel e de Lessing. Hegel já dedicara à caracterização dos gêneros
tensão das tendências estilísticas contraditórias? Será o conteúdo indife- páginas de excepcional lucidez, que ajudavam a compreender a impor-
rente às opções formais para a sua manifestação? Se admitirmos que o tância de certas opções formais para a plena realização e para a efi-

8
B. Brecht, On theatre, trad. de John Willet, ed. Methuen, Londres, p. 112. lO G. Lukács, Le roman historique, trad. Robert Sailley, ed. Payot, p. 13 [cf. G. Lukács, O
9
Ibid., p. 109. romance histórico, São Paulo: Boitempo, 2011, p. 29].

135
OS MARXISTAS E A ARTE
LEANDRO KONDER

caz m~nifestação de um dado conteúdo. E, antes de Hegel, Lessing já sempre lembrados: 1) não existem relaç_§_t:~g~S:ª'º'-sª""~-~ft::i1Qc.P.l1.~ªmente
advertua: ~ocas,j~_.9Y:<:_c:_atis~--~ eft::itosãQJDQm~nto_s 9.l1.e..~~-.tr;;tnsfg:çmªl11 histo-
Um poeta pode ter feito muito e, no entanto, não ter feito o bastante. Não é ~~_!!!~__ll.!l! 110. outr(); 2) é impossívt::l pre~_s_tapelecer. o. desenvolyimen-
suf~ciente que sua obra tenha efeito sobre nós: deve ter, outrossim, aqueles to do todo com base_unicaillente no conhecimento das leis que regem o
efeitos que, de conformidade com o gênero, lhe competem de direito; deve wmportameTI:i:ü das partes. · · ·-
ter estes em particular, e todos os outros não podem compensar de modo
---}Ç:iite·é um modo particular de totalização dos conhecimentos
algum a sua falta; especialmente quando o gênero é de tal importância, difi-
culdade e valor que todo trabalho e todo empenho seriam baldados se nada obtidos na vida. Lukács opina no sentido de que a ciência funda a nossa
mais produzissem, salvo efeitos tais que poderiam ser igualment: obtidos consciência histórica, ao passo que a arte funda a nossa autoconsciência
por um gênero mais fácil e que não demandasse tantos esforçosY históricaY A arte antropomorfiza o real em sua representação: a ciên-
cia o desantropomorfiza. A arte faz com que revivamos as experiências
Para Lukács, a relação entre os problemas básicos da forma (toma- de todas as épocas e nos reconheçamos imediatamente nelas. Através
da a forma em sua acepção ampla de estrutura e analisada no âmbito da arte, participamos de novas relações humanas, vemo-nos envolvidos
do ~ênero) e os problemas básicos do conteúdo é uma relação dialética em novas situações humanas que nos solicitam reações de tipo especial.
e nao deve ser encarada em termos reducionistas. A transformação da
Escreve Lukács:
forma não é um epifenômeno da transformação do conteúdo: a forma
possui as suas próprias exigências e a sua peculiar eficácia. Na medi- Nas grandes obras de arte, os homens revivem o presente e o passado da
da em que uma determinada forma artística se estrutura de maneira a humanidade, a perspectiva de seu desenvolvimento futuro, mas não os
permitir que ~e experimente, de modo imediato e concreto, as relações revivem como fatos exteriores, cujo conhecimento pode ser mais ou menos
importante, e sim como algo de essencial para a própria vida, como momen-
humanas reats enfocadas em uma obra de arte, tanto mais segura é a
to importante para a própria existência individual (deles, homens).
sobrevivência dessa obraP
A eficácia da forma não está em que ela deva obedecer a quaisquer Por isso, a arte jamais é inteiramente neutra diante dos conflitos
norma_s ~stéticas_ imutáveis, apriorísticas, e sim no fato de que ela possa humanos que representa: ou ela é universal, no sentido de ser a favor do
c_onfenr as relaçoes humanas mais essenciais e mais típicas, na sua con- homem (da comunidade humana), ou ela se deixa enfeudar a uma pers-
figuração, o máximo de expressão e de individualização. "A vitalidade pectiva particularista, negativista, renunciando a servir à humanidade
~a_ duraç~o. de uma obra e dos tipos nela representados dependem, em como um todo. Segundo Lukács, toda boa arte defende a integridade
ultima analise, da perfeição da forma artística"P humana - a humanitas - contra as tendências que a atacam, a dilace-
A autonomia do movimento da forma, entretanto tem os seus
ram, a envilecem ou a adulteramY
limite~ estabelecidos pelas exigências fundamentais da tra;sformação do Para poder defender eficientemente a integridade humana, con-
conteudo. Num acerto de contas conclusivo, podemos dizer que a forma tudo, o artista precisa ter chegado, de algum modo, a conhecê-la em
tem o seu desenvolvimento subordinado às modificações essenciais do profundidade, isto é, na análise de Lukács, precisa ter chegado a ser
conteúdo, embora semelhante subordinação nada tenha de mecânico ou verdadeiramente realista. O que significa: precisa ter conseguido refletir
servil. De maneira alguma poderíamos dizer que a forma é um efeito
profundamente o real.
passivo do cont?údo, tal como de maneira alguma poderíamos dizer que Em História e consciência de classe, Lukács rejeitava a teoria do
a,a:te em ger~l ~um ~rod~to automático de determinadas condições his- reflexo como definição do conhecimento e, por conseguinte, não a utili-
toncas matena1s. Dms axiOmas fundamentais da dialética precisam ser zava como princípio para o estudo do conhecimento artístico. Em suas
obras subsequentes, porém, o autor húngaro reformulou o seu ponto de
~~ Lessing, De teatro e literatura, :rad.]. Guinsburg, ed. Herder, São Paulo, p. 81.
G. Lukacs, Contrzbutz alla stona dell'estetica, p. 476 [cf. G. Lukács, Introdução à estética 14 Id., Contributi alla storia dell'estetica, p. 476 [cf. G. Lukács, Introdução à estética
marxista, ed. cit., p. 299].
marxista, Ed. cit., p. 299].
13 Id., Prolego~eni a un'estetica marxista, p. 251 [cf. G. Lukács, Introdução a uma estética 15 Id., Ensaios sobre literatura, ed. Civilização Brasileira, p. 40 [cf. "Introdução aos escritos
marxzsta, Rw de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968, p. 288].
estéticos de Marx e Engels"].

136 1 37
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Captar esteticamente a essência, a ideia, não constitui, para o marxismo, um


vista e passou a admitir que a consciência - e, com ela, também a cons- ato simples e definitivo, e sim um processo; um processo que é movimento,
ciência artística - reflete a realidade. aproximação gradual da realidade essencial (mesmo porque a realidade mais
A teoria gnoseológica do •reflexo é antiga, remonta a Aristóteles profunda e essencial é sempre apenas uma porção daquela totalidade do real
e até a Platão (embora neste último assuma um caráter radicalmente que integra até mesmo o fenômeno superficial). 20
idealista). Trata-se, pois, de uma teoria que tem mais de dois mil anos Sendo a realidade irredutível ao conhecimento, evidentemente,
de idade. O marxismo, todavia, procura conceituar o reflexo de maneira sendo o movimento do real inesgotável, não é razoável pedir a uma obra
nova. Lukács foi buscar em Lenin elementos que o ajudassem a definir de arte que ela nos dê a essência da realidade como um todo definitiva-
o reflexo do real na consciência como um reflexo ativo, ziguezaguean- mente apreendido. No plano específico dos problemas humanos par-
te, cheio de mediações: "Quando a inteligência humana aborda a coisa ticulares que aborda, entretanto, a obra de arte, para atingir um nível
individual e dela extrai uma imagem, um conceito, isso não é um ato de essencialidade, deve ser totalizante. A criação artística bem-sucedida
simples, imediato, morto, não é um reflexo num espelho, e sim um ato é aquela que consegue organizar as contradições por ela representadas
complexo, de dupla face, ziguezagueante, um ato que implica a possibi- em função de uma visão de conjunto (não necessariamente clarificada e
lidade de um voo imaginativo para fora da vida". 16 Num livro anterior, explicitada conceitualmente, mas sempre efetiva) de tais contradições.
Lenin já ad-y~r!ii<l~_g_l:l~ o reflexo do real na consciência não é _l}m ato Toda criação artística implica, assim, uma síntese e pressupõe uma
a
s}JEJ'!~~-~AireiQ,. que representação ~~~~i~eTcl~- ~~;Üdad;;-e-~te~i;r c~; opção do artista ante a multiplicidade do real: "A arte consiste sempre
-~e~po11de a_ tal realidade, n1as não coincide co~ ~la,: "~ repre;e~t;ção - diz Lukács - em reter o significativo e o essencial e em eliminar o aces-
sensível não é a realidade existente fora de nós, e sim apenas a imagem sório e o inessencial". 21 Com isso, o realismo se distingue, basicamente,
dessa realidade"Y Lukács aderiu à teoria leninista do conhecimento e do naturalismo. O ideal de um artista naturalista seria, digamos, o de
passou a defendê-la calorosamente. 1 s fazer um filme sobre a vida de um homem fixando todos os momentos
Procurando aplicar a gnoseologia leninista à estética, Lukács obser- da sua existência e se estendendo ao longo de toda a vida do indivíduo
vou que a arte deve refletir não a superfície do real, mas a sua essência. Ela focalizado. Na impossibilidade material de proceder dessa maneira, o
deve contribuir, através dos meios que lhe são próprios, para que o homem artista naturalista, obrigado a fazer uma seleção, não buscará alcançar
se apodere cada vez mais da essência da realidade em sua consciência. E uma verdadeira síntese das suas observações e experiências: procurará
essa função da arte é a grande função do realismo: "Uma das diferenças cortar ao sabor de circunstâncias mais ou menos acidentais, "fatias"
mais relevantes que separam a estética marxista da estética burguesa é '
da realidade. Ou, no melhor dos casos, procurará obter uma média dos
o modo de definir essa categoria. Mesmo para o estudioso burguês de seres individuais ou das situações que registrou.
estética mais favoravelmente disposto em relação ao realismo, o realismo A substituição da síntese pela média, tal como a preconiza, por
será apenas um estilo entre outros mais. Para o marxismo ao contrário o exemplo, o naturalista Émile Zola, corresponde a uma diminuição do
realismo é o problema fundamental da literatura". 19 ' ' aspecto ativo e verdadeiramente criador do trabalho artístico: repre-
O realismo não é apenas o problema teórico central que está colo- senta uma tentativa no sentido de colocar o artista numa postura pre-
cado para a estética marxista: é também o problema existencial que se tensamente semelhante à do cientista, atribuindo-lhe uma objetivida-
coloca a cada passo para os artistas, o grande conjunto de dificuldades de igual à deste último, para que o conhecimento alcançado através da
que os artistas têm pela frente quando trabalham. arte venha a se revestir do mesmo caráter objetivo do conhecimento
16 científico. Lukács mostra que, sob a capa dessa exigência rigorosa de
V. I. Lenin, Cahiers philosophiques, Éditions Sociales, p. 289 [cf. V. I. Lenin, Obras esco-
lhidas em seis tomos. Lisboa-Moscou: Avante!-Progresso, t. 6, 1989, p. 311]. objetividade (que, no caso, é uma pseudo-objetividade), no bojo dessa
17
Id., Materialismo y empiriocriticismo, ed. Pueblos Unidos, Montevidéu, p. 116 [V. I.
Lenin, Materialismo e empiriocriticismo. Lisboa-Moscou: Avante!-Progresso, 1982, 20 Jd., Ensaios sobre literatura, p. 33 [cf. "Introdução aos escritos estéticos de Marx e
p. 86].
18 Engels"].
Cf., por exemplo, G. Lukács, Existentialisme ou marxisme?, ed. Nagel [cf. Existencialis- 21 Jd., La signification présente du réalisme critique, trad. Maurice de Gandillac, ed. Galli-
mo ou marxismo? Trad. José Carlos Bruni, São Paulo: Ciências Humanas, 1979]. mard, p. 101 [cf. G. Lukács, Realismo crítico hoje. Trad. Carlos Nelson Coutinho. Brasí-
19
G. Lukács, Il marxismo e la critica letteraria, p. 14. lia: Coordenada, 1969, p. 87].

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OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

exigência cientificista, o que está preconizado é um comportamento de ser". 25 O personagem de romance que é capaz de ficar vivendo na
pura observação, o que se recomenda é uma postura descritiva, de con- lembrança do leitor após a leitura é aquele que conseguiu adquirir
templatividade e de renúncia à natural participação do artista na luta em feição individual concreta e rica e, ao mesmo tempo, revelou-se no
defesa do humano. 22 quadro de uma problemática universal.
O conhecimento artístico, para se legitimar, não está obrigado a O típico não deve ser confundido com o alegórico: o alegórico é o
se fazer assimilar à forma do conhecimento científico. Lukács acentua falso típico, o típico desnaturado pelo vício do intelectualismo. Comba-
que, "em todo ato de representação estética (diferentemente da cientí- tendo a confusão de um com o outro, Lukács recorre a Goethe. Segundo
fica), o homem está presente como elemento determinante, porque na este, na alegoria, o elemento particular fica prejudicado por valer de
arte o mundo extra-humano só aparece como elemento de mediação nas mera exemplificação de um princípio geral, de uma ideia abstrata, de
I!
relações, ações, sentimentos etc. dos homens". 23 uma universalidade não concretizada artisticamente. 26
O conhecimento científico se dá em um plano de universalida- A recusa do alegórico é a recusa do intelectualismo, a recusa em
de. Já a categoria central da estética, segundo o marxista Lukács, é a admitir um processo de criação artística que subordine o concreto indi-
da particularidade. A particularidade é a "representação simbólica do vidual ao geral abstrato. Mas é, também, a recusa da "literatura de pro-
singular e do universal". Ela não exclui, evidentemente, a universali- paganda", que busca a mera ilustração de teses religiosas ou políticas; é
dade: só que a universalidade, no conhecimento artístico, não pode a recusa do "romantismo revolucionário" gorkiano.
apar_ecer sob a forma de leis abstratas (como aparece na ciência); ela A criação de personagens verdadeiramente típicos e o predomínio
precrsa se apresentar em ligação orgânica com a concreticidade indivi- do método narrativo sobre o método descritivo são duas características,
dual dos seres singulares representados pelo artista. Lukács aprendeu por assim dizer, formais da grande literatura realista de ficção. É preci-
com Hegel que não existe conhecimento exclusivo do que é singular, so que os personagens sejam seres vivos, isto é, que se definam pelo seu
pois o singular é único, e o conhecimento é sempre comparativo. Mas movimento, pela sua autotransformação ou transformação, no curso de
também aprendeu com Hegel que, em arte, não existe conhecimento uma história. Se, em vez de fazê-los viverem pela ação, o escritor procu-
capaz de pairar acima dos seres singulares, capaz de se abstrair da rar fixar-lhes, estaticamente, a psicologia ou o meio ambiente exterior,
singularidade do sensível. a descriÇão passará a preponderar sobre a narração e haverá prejuízo
À categoria da particularidade na estética geral lukacsiana, cor- estético para a ficção literária. Lukács entende que o abandono da tipi-
responde, nos estudos de Lukács sobre a literatura e especialmente sobre cidade e a substituição do predomínio da narração pelo predomínio da
o romance, o conceito de tipo. O tipo "é a síntese particular que, tanto descrição, quer pelo "romantismo revolucionário", quer pela literatura
no campo dos caracteres como no campo das situações, une organica- moderna de avant-garde, acarretam inevitável prejuízo para o realismo,
mente o genérico e o individual". 24 quer dizer, para a arte, em nosso tempo.
Em defesa de sua formulação, Lukács cita Engels, que, em Para Lukács, a grande arte, a arte que realmente nos interessa -
carta a Mi_nna Kautsky (mãe de Karl Kautsky), já observara, falan- aquela que, por sua profundidade e por seu elevado nível estético, adquire
do a respeito dos bons personagens de romance: "Cada um deles é a capacidade de sobreviver à sua época- é sempre realista. Em oposição
um tipo, mas, ao mesmo tempo, também é um indivíduo determi- a ela, podem se desenvolver obras "artisticamente interessantes", capa-
nado - um 'este', como diria o velho Hegel -, e é assim que deve zes de repercutir muito intensamente em sua época, mas necessariamen-
te "menores", comprometidas com uma política cultural oportunista ou
reacionária. A arte de avant-garde é de pouco fôlego e está identificada
22 com a decadência da burguesia: em certos aspectos, seu ponto de partida
Id. Ensaios sobre literatura, estudo "Narrar ou descrever?", trad. Giseh Vianna Konder
[cf. em outra tradução: "Narrar ou descrever", in G. Lukács, Marxismo e teoria da lite-
ratura, São Paulo: Expressão Popular, 2010, p. 149-185]. 25 [Cf. Carta de F. Engels a Minna Kautsky, de 26 de novernnro de 1885, in: K. Marx e F.
23
Id., Prolegomeni a un'estetica marxista, p. 248 [ed. cit., p. 284]. Engels, Cultura, arte e literatura: textos escolhidos, ed. cit., p. 65-67].
24
Id., Saggi sul realismo, ed. Einaudi, p. 17.
26 G. Lukács, Goethe et son époque, trad. Lucien Goldrnann, ed. Nagel.

qo
OS MARXISTAS E A ARTE

teórico é a estética de Kant; em outros aspectos, entretanto, ela se ins- 20.


pira nas concepções estéticas retrógradas e irracionalistas de Schelling,
Schopenhauer, Nietzsche, Kierkegaard, Dilthey ou HeideggerY
Em geral, a arte de avant-garde forceja por romper, de maneira
LEFEBVRE
precipitada, com as formas clássicas já consagradas pela tradição realis-
ta e com os padrões humanistas da burguesia em ascensão. As produ-
ções da avant-garde se acumpliciam com úm processo de dissolução da
forma artística e de confusão dos gêneros. Elas renunciam à totalização
concreta, representam o real como se ele fosse essencialmente fragmen- Em dois aspectos fundamentais, pelo menos, a estética do crítico mar-
tário, obscurecendo-lhe a correta compreensão. Podem, certamente, xista francês Henri Lefebvre difere da estética do crítico marxista húngaro
alcançar êxitos momentâneos, mas acabam logo na fossa comum do Gyorgy Lukács, que acabamos de analisar. Primeiro, à orientação dita "con-
cemitério cultural.
servadora" de Lukács, Lefebvre opõe uma orientação autointitulada "moder-
Ao longo desses últimos 35 anos, Lukács tem defendido encarni- nista". Segundo, o que é mais importante - à tendência "neodássica" de
çadamente tais pontos de vista. E, recentemente, ao completar 80 anos Lukács (como diz Lefebvre), o francês opõe uma posição "neorromântica".
de idade, o filósofo húngaro ainda insistiu: "Em arte, quando se tem Deixemos que Lefebvre explique com suas próprias palavras a
algo a dizer, é preciso encontrar a forma conveniente para fazê-lo. Nesse contraposição:
ponto, sou conservador". 28
Hoje, constatamos duas tendências na estética inspirada pelo marxismo.
Uma, na direção de um neoclassicismo, fundada sobretudo no estudo de
romances e de obras pictóricas. A outra, na direção de um neorromantismo,
fundada no estudo da música, da poesia e do teatro. O filósofo marxista
Gyorgy Lukács, que merece o respeito universal, liga o seu nome à primeira
tendência. O autor do presente livro 1 espera ligar o seu nome à segunda.

O romantismo tem sido, de fato, uma constante no comportamen-


to de Lefebvre. Romântico era o grupo de jovens existencialistas rebeldes
que ele integrava na década de 1920, juntamente com Georges Politzer,
Norbert Gutermann e Pierre Morhange. Romântica foi a sua adesão ao
Partido Comunista francês. Romântica foi a sua militância, oscilando
entre o servilismo e a independência exasperada diante da direção parti-
dária, ora combatendo a simplificação dogmática da verdade, ora sendo
conivente com os métodos stalinistas. Romântico, também, foi o seu
rompimento com o PCF. Romântico, ainda, é o seu hábito de falar de si
em seus livros, é o seu estilo "temperamental", cheio de pontos de excla-
mação, propenso aos arroubos personalistas e às confissões subjetivas.
Romântica não podia deixar de ser, naturalmente, a estéti-
ca lefebvriana. As ideias estéticas de Lefebvre se acham espalhadas, de
27
Id., El asalto a la razón, trad. Wenceslao Roces, ed. Fondo de Cultura Econômica, Méxi-
maneira difusa, por toda a sua obra. Elas aparecem, aqui e acolá, em seus
co. primeiros ensaios filosóficos, mas apenas afloram, sem se desenvolverem;
28
Revista La Nouvelle Critique, junho-julho de 1965, entrevista concedida a Antonin
Liehm. 1
Trata-se de Problemes actuels du marxisme, ed. PUF, 1960, p. 3.

I43
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

por vezes são apenas aludidas. Também na Critique de la vie quotidienne como uma atividade que pode expressar o que o conhecimento ainda
- e com maior insistência -, ele expõe seus pontos de vista acerca da arte. não alcançou e pode superar o conhecimento. 6 E essa tomada de posi-
O livro em que trata de maneira mais sistemática, como marxista, dos ção romântica, com todas as suas consequências irracionalistas, acarreta
problemas da arte, entretanto, é a sua Contribuição à Estética. grandes danos à aparelhagem conceitual de que Lefebvre se serve em sua
A Contribuição à Estética se situa num ponto pouco brilhante análise das questões estéticas.
do desenvolvimento da reflexão lefebvriana: ele já não apresentava o O conceito marxista de alienação, por exemplo - conceito que
talento vigoroso (conquanto irregular) que estava presente em La cons- Lefebvre, em seus primeiros livros, ajudara a reabilitar -, lhe parece
cience mystifiée (de 1936), em Introduction aux Cahiers de Lénine sur aqui ser um conceito "abstrato", e ele opina no sentido de que aquilo
la dialectique 2 (de 1938) ou em Le matérialisme dialectique (de 1939). que se poderia chamar de alienação já foi superado, em nossos dias,
Em nome da combatividade polêmica, ele andava a descuidar da obje- pela classe operária.? Os mitos são caracterizados como intermediários
tividade de suas análises e se entregava a uma linguagem destempera- "entre a práxis grega- as forças produtivas, a base econômica, as rela-
da, estimulada pelo zdanovismo. Já em um trabalho de 1946, Lefebvre ções sociais, a vida transcorrida em uma estrutura social determinada -
caracterizava o Sartre de L'être et le néant [Ser e o nada] como um lite- e a arte". 8 Que concepção de práxis é esta? A arte se contrapõe à práxis?
rato que fazia "la métaphysique de la merde". 3 Mas a arte não é ela própria uma forma de práxis?
A Contribuição à Estética pertence ao período sectário que pre- As impropriedades pululam nas formulações lefebvrianas. O livro
cedeu a crise ideológica provocada pela desestalinização e a defecção tem aspectos positivos: a exigência de que as obras que expressam a
ocorrida alguns anos depois. O romantismo que se acha na raiz da pers- moderna ascensão do proletariado sejam criticadas em nome de crité-
pectiva lefebvriana se manifesta, nesse livro, na teoria do conhecimento rios estéticos, a recusa em adotar uma apreciação simplista da complexa
subjacente às suas análises. O conhecimento é concebido em termos de obra de Picasso, o duplo combate ao formalismo e ao naturalismo etc.
um surpreendente intelectualismo. O campo da competência dos meios Mas o irracionalismo de que está penetrando o pensamento do autor
próprios para a aquisição do conhecimento pelo homem é violentamente dilui esses aspectos positivos. E o que resulta é uma obra que bem mere-
estreitado, reduzido às proporções que o raciocínio lógico pode abarcar. ce o juízo autocrítico formulado mais tarde pelo próprio Henri Lefebvre:
A arte não cabe mais na função gnoseológica. "bastante medíocre essa Contribuição à Estética". 9
Lefebvre repele, em seu livro, a "subordinação da arte ao As limitações da Contribuição à Estética são de tal ordem que,
conhecimento"4 e estabelece uma antítese de sensibilidade e conheci- em dado momento, levam Lefebvre a uma espúria frente única com o
mento, afiançando que o conhecimento não pode pretender suprir a zdanovista Joseph Revai contra Lukács e contra Marx. Essa frente única
sensibilidade. 5 Sensibilidade e conhecimento aparecem, em semelhante se realiza na abordagem de a questão da possibilidade do desenvolvi-
formulação, mecanicamente contrapostos, e o conhecimento fica excluí- mento cultural e artístico não corresponder ao desenvolvimento econô-
do da sensibilidade. A falta de historicidade dessa posição transparece mico. Marx reconhece francamente tal possibilidade numa passagem da
bem claramente quando lembramos que Marx, nos seus Manuscritos de sua História das doutrinas econômicas (Teorias sobre a mais-valia) e
1844, já advertira que, ao longo da história da humanidade, os sentidos na Introdução à Contribuição à crítica da Economia Política. Lukács
humanos vinham se tornando cada vez mais teóricos. também a reconhece. Lefebvre, porém, citando Revai, afirma que uma
Da perspectiva de Lefebvre, a sensibilidade não pode ser inteli- sociedade economicamente menos desenvolvida que outra só pode levar
gente, o conhecimento não pode ser sensível. A arte lhe aparece, assim, uma vantagem artística limitada, setorial, isto é, só pode ser superior em
algumas formas artísticas. "Uma sociedade economicamente superior -
2
[Cf. H. Lefebvre e N. Gutermann, "Introdução", in: V. I. Lenin, Cadernos sobre a dialé-
tica de Hegel, Rio de Janeiro: EDUFRJ, 2011, p. 7-92].
3
H. Lefebvre, L'existentialisme, ed. Sagittaire, 1946, p. 51. 6
Ibid., p. 96
4 7
Id., Contribución a la Estética, trad. Marcos Winograd, ed. Procyon, Buenos Aires, 1956, Ibid., p. 44.
p. 94. 8
Ibid., p. 60.
5
Ibid., p. 102. 9 H. Lefebvre, La somme et le reste, Ed. La Nef, 1959, p. 536.

I44 I45
OS MARXISTAS E A ARTE

escreve ele - será superior nas obras de arte que tenha inventado, que a
21.
expressem" .10
Que quer dizer isso? A tragédia de Sófocles foi, notoriamente, GOLDMANN
uma forma típica da sociedade ateniense do século V a.C. E a tragédia
clássica de Corneille e Racine ft>i uma forma inventada pela sociedade
francesa do século XVII, uma forma que expressava aquela sociedade.
Que devemos concluir? Que Corneille e Racine são necessariamente
superiores a Sófocles? Ou que a sociedade ateniense do século V a.C.
era economicamente mais desenvolvida que a sociedade francesa do Numa linha divergente da de Henri Lefebvre, filiando-se não a
século XVII? uma orientação romântica, mas a uma orientação clássica, encontra-
Outro exemplo, fornecido pelo próprio Lefebvre: a forma nova mos, ainda na França, o pensador Lucien Goldmann, nascido em Buca-
que o realismo socialista conferiu ao romance e que ele dá por já atin- reste, Romênia, em 1913, porém naturalizado francês.
gida. É uma forma inventada pela sociedade socialista, uma forma que Atualmente Goldmann leciona na Sorbonne, em Paris, na École
a expressa. A sociedade socialista é economicamente superior à socie- Pratique des Hautes Études. Ele é, por assim dizer, o principal respon-
dade capitalista outrora existente na Rússia. Devemos, então, concluir sável pela difusão e pela atual valorização positiva das obras do jovem
que Ehremburg é superior a Tolstoi? Ou que Cholokhov é superior a Lukács, isto é, do Lukács cuja atividade se estende até 1922. Depois de
Dostoievski? Um exame sereno das obras desses autores, sem dúvida, ter rompido com suas concepções filosóficas idealistas (neokantianas e
não nos permitirá semelhante conclusão. neo-hegelianas), depois de ter renegado a sua primeira obra de inspira-
A posição de Lefebvre na Contribuição à Estética é indefensá- ção marxista (História e consciência de classe), Lukács procurou dei-
vel. Admitindo que uma sociedade atrasada pode superar uma socieda- xar esquecidos os livros que escrevera até então. Goldmann, entretanto,
de adiantada na criação de certas formas ou certos gêneros artísticos, redescobriu os livros "malditos" e tratou de aproveitar criticamente a
admitindo que não haja uma correspondência mecânica entre o desen- riqueza deles.
volvimento de alguns setores particulares da arte e o desenvolvimento O marxismo goldmanniano parte de História e consciência de
econômico, não há por que deixar de admitir que o mesmo possa se dar classe, corrigindo-lhe a perspectiva, abandonando a tese da identidade
com a arte em geral, como um todo. É o que conclui Marx: "Se isso é total do sujeito e do objeto no conhecimento e repelindo o "luxembur-
verdadeiro no que concerne à relação entre os diversos gêneros artísticos guismo" político da obra. De História e consciência de classe, Goldmann
no interior do próprio campo da arte, não se há de estranhar que seja extrai o conceito de comunidade humana, desenvolve-o e centra sobre
igualmente verdadeiro no que concerne à relação entre a esfera da arte ele todo um esboço de história do pensamento dialético, mostrando que,
em seu conjunto e a evolução geral da sociedade".H após a fragmentação da espécie humana, ocorrida com o aparecimento
das classes sociais, o problema crucial da humanidade passou a ser o de
forjar uma nova comunidade, uma unidade superior dos indivíduos, na
qual a riqueza individual das personalidades, longe de ser suprimida, se
desenvolva em harmonia com a coletividade dos homens. É o anseio pela
realização desse ideal que podemos localizar, segundo Goldmann, sob
diferentes formas, no cristianismo, nos ideólogos da Revolução Francesa
e no marxismo (socialismo moderno).l

10 1
Ibid., Contribución a la Estética, p. 59. L. Goldmann, La communauté humaine et l'univers chez Kant, ed. PUF. Goldmann acen-
11
K. Marx, Introduction génerale à la Critique de l'economie politique, Oeuvres (I), ed. tua, nesse livro, a ligação entre o conceito de totalidade e o conceito de comunidade
Gallimard, 1963, p. 265 [cf. ed. cit., p. 270]. humana.

q6 147
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

De História e consciência de classe, também, Goldmann retira e ponde uma "visã<::>_QQ.mundo" particulaE,.c:apªz d~.se ~rigirem estru-
desenvolve a teoria da reificação, dedicando à sua análise um brilhante iurã-~Tiiílllctiilvã -, têm sido as classes sociais. "Cada vez que se trata
ensaio. 2 ae·achar a infraestrl1tura de uma filosofia, de uma corrente literária ou
Os livros da fase pré-marxista de Lukács fornecem a Goldmann, artística, chegamos não a uma geração, nação ou igreja, nem a uma pro-
igualmente, ideias que ele utiliza, corrigindo-as e reformulando-as. A fissão ou a um agrupamento social qualquer, e sim a uma classe social e
alma e as formas 3 fornece elementos de que ele se serve em sua aná- às suas relações com a sociedade". 7
lise das obras de Pascal e de Racine. 4 Da obra lukacsiana A teoria do No quadro geral de uma sociedade dividida em classes, não há
romance, 5 por sua vez, Goldmann filtra a sua ideia de que entre a socie- consciências individuais situadas acima das classes. A personalidade do
dade burguesa e a forma do romance existe uma homologia de estru- indivíduo é um todo dinâmico que se forma e transforma ao longo de
turas, ideia cheia de implicações polêmicas e que procuraremos expor toda a sua vida: sua particular visão do conjunto das coisas, dos outros
mais adiante. homens e de si mesmo se insere no quadro mais amplo de outras tota-
A despeito do muito que lhe deve, a obra de Goldmann está longe lidades, cuja formação remonta a épocas anteriores ao seu nascimento
de ser uma mera repetição da obra do jovem Lukács; esta última seria, como indivíduo. Essas totalidades mais amplas são a da sua classe, a do
quando muito, o ponto de partida da reflexão que conduziu àquela. O seu povo e as das forças vivas que fazem a história do seu tempo. Todos
princípio da relação existente entre as estruturas sociais e as estruturas os movimentos do indivíduo se concretizam no interior do quadro dos
das obras de arte criadas em cada sociedade é trabalhado pelo crítico movimentos econômicos, sociais, políticos e culturais da sua época.
romeno-francês até ser transformado em um método de crítica que pres- Cada totalidade possui a sua própria estruturação interna. No caso
supõe toda uma teoria da literatura e, em sentido ainda mais amplo, que nos interessa - que é o da criação artística -, a psicologia do autor
toda uma metodologia geral das ciências humanas e sociais: o estrutu- serve de mediação entre a totalidade da obra e a totalidade da classe a
ralismo genético. que ele pertence. E a totalidade da classe a que pertence o artista, por sua
Se os princípios do estruturalismo genético se encontram já em vez, só pode ser devidamente compreendida quando situada no tempo e
Lukács, não há dúvida de que foi Goldmann quem os organizou de no espaço, quer dizer, quando relacionada, em sua essência, com o povo
maneira mais explícita em um método de bem definidos pressupostos que integrá e com a fase histórica que esse povo atravessa. As totalidades
teóricos. formam assim, para usarmos uma expressão hegeliana, círculos dentro
Segundo Goldmann, na trilha de Lukács, toda grande forma de círculos. E é preciso tomar cuidado para que os problemas de um cír-
artística (genérica) nasce da necessidade de exprimir um conteúdo essen- culo maior não absorvam e diluam os problemas específicos dos círculos
cial. A estrutura interna das grandes obras filosóficas e literárias se liga menores. Como, também, é preciso tomar cuidado para que os problemas
ao fato de elas exprimirem, tanto na "forma" como no "conteúdo", no dos círculos menores não venham a ser por nós arbitrariamente situados
âmbito de uma coerência notavelmente desenvolvida, atitudes globais fora dos círculos maiores que aqueles integram.
do homem (visões do mundo) diante dos problemas de seu grupo, numa O estruturalismo genético visa apreender a totalidade da obra de
situação e num momento dados. 6 arte em sua conexão com a totalidade mais ampla em que tal obra se
Os grupos. ~umanosfuJlc!9-:t:IJ:~l1t<l!s,_ci<::ll'()1ltQ_Q~_\'i§tahist9rico e insere, rejeitando a redução sociologista da totalidade menor à condição
do ponto d~ vista sociológico - aqueles grupos gerais aos quais corres- de subproduto epifenomênico dos movimentos da totalidade maior. Um
crítico brasileiro que segue a orientação de Lukács nos explica:
2
Id., Recherches dialectiques, ed. Gallimard, ensaio "La réification", p. 64-106 [cf. L.
vendo na criação artística apenas um momento- ainda que privilegiado - da
Goldmann, Dialética e cultura. Trad. Luiz Fernando Cardoso et al. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1979, p. 105-152].
práxis humana global, o marxismo estruturalista permite reconduzir a obra
3
G. Lukács, L'anima ele forme, trad. Sergio Bologna, ed. Sugar. de arte à realidade e, por isso, não apenas compreendê-la (descobrir o seu
4
L. Goldmann, Le dieu caché, ed. Gallimard.
5
G. Lukács, La théorie du roman, trad. J. Clairevoye, ed. Gonthier [cf. ed. bras. cit.]. 7
Ibid., Las ciencias humanas y la filosofía, trad. castelhana de Josefina Martinez Alinari,
6
L. Goldmann, Recherches dialectiques, p. 108 [Dialética e cultura, ed. cit., p.16-17]. ed. Galatea-Nueva Visión, p. 85.

q8 149
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

significado interno enquanto estrutura), como também explicá-la (inseri-la O gênio dos filósofos e dos artistas se manifesta nessa elaboração
na estrutura mais ampla da qual ela é, ao mesmo tempo, um produto e um
e nessa expressão, no fato de que eles consigam conferir às suas obras
fator estruturante). 8
uma coerência interna capaz de desenvolver, no máximo de suas possi-
Para Goldmann, as ciências humanas não possuem, no atual está- bilidades, a visão do mundo da classe a que pertencem.
gio do desenvolvimento delas, meios seguros e eficazes para a recons- Dependendo da realidade social em que esteja inserido, dependen-
tituição da psicologia individual dos artistas, e assim nós não temos do da sua época histórica e da classe social a que pertença, dependendo
condições para a apreensão científica dessa psicologia em sua verdade da consciência possível que esteja aberta para a sua classe, o artista será
mais profunda. Não dispomos, pois, de um conhecimento suficiente no levado a representar o mundo de maneira globalmente diversa. Tome-
que concerne à totalidade mediadora existente entre a obra e a classe a mos um exemplo: o antigo poeta épico e o moderno romancista. A diver-
que pertence o artista. "No estado atuàl das ciências humanas- escreve sidade de condições em que eles vivem e trabalham não se reflete apenas
Goldmann -, é muito mais a interpretação da obra que determina a ima- no tema, no cenário ou no conteúdo das suas composições: reflete-se na
gem que a gente faz do autor do que o contrário". 9 Querer desconhecer estrutura geral delas, na forma geral que elas assumem.
essa situação e procurar estabelecer interpretações de tipo psicologista Sabemos que o autor e declamador das antigas epopeias se inte-
para as obras de arte é incorrer em equívoco. Ou, pelo menos, em ato grava, por seu trabalho, na sociedade em que vivia, era o intérprete de
de temeridade. uma comunidade não submetida aos efeitos devastadores da divisão
Segundo Goldmann, entretanto, podemos reconhecer francamen- capitalista do trabalho, refletia critérios, valores e sentimentos mais ou
te o atraso em que se encontra a psicologia como ciência e isso não nos menos definidos e seguros para todos (tanto para ele como para o seu
impedirá de trilharmos caminhos muito mais fecundos para a avaliação público). O romancista moderno, entretanto, se sente um tanto confu-
das obras de arte: baseado na metodologia dialética (cujos fundamentos so, não sabe bem o que (ou quem) representa, é o intérprete de uma
foram estabelecidos por Marx e Lukács), o estruturalismo genético nos comunidade radicalmente dilacerada, cuja existência como comunidade
permite situarmo-nos, desde logo, num nível de cientificidade bem mais não se faz sentir: vê-se, assim, a cada passo, premido por pressões anta-
rigorosa do que, por exemplo, as análises de tipo impressionista, a crí- gônicas inconciliáveis. A arte do rom~_t:l~is~t~~é U_!!la aft~-g~_opg~içqo à,
tica de tipo positivista, empirista ou psicologista, quando procuramos sociedade do seute!Ilpo,. Os criadores do romance moderno - os autores
formular juízos sobre realidades artísticas. -queretom~r~m a velha tradição narrativa do gênero épico e criaram o
O conceito de consciência possível, que o método dialético utiliza, é gênero especificamente romanesco - foram artistas que experimenta-
um dos elementos responsáveis pela vantagem que o estruturalismo gené- ram exigências humanistas e que se viram forçados, em virtude dessas
tico leva sobre as demais correntes da crítica filosófica da literatura. próprias exigências humanistas, a entrar em choque com o mundo em
A cada classe social, em cada situação histórica determinada, que viviam. Apesar de profundamente sentidas, as aspirações humanis-
corresponde, na expressão de Lukács e Goldmann, um máximo de tas dos romancistas clássicos permaneceram algo vagas, já que o condi-
consciência possível. O que significa que, a cada classe social, em cada cionamento da época, através de um quadro agudamente contraditório
situação histórica determinada, corresponde a possibilidade concreta de que envolve todos os indivíduos e através do espesso cipoal das ilusões
ser alcançado um máximo de organicidade e coerência interna (estrutu- ideológicas, não facilita a aquisição pelo artista de uma clara consciência
ral) na elaboração da sua visão do mundo, bem como na sua expressão histórica (e revolucionária) de sua própria situação.
conceitual ou sensível. De acordo com Lukács, o romance é precisamente o gênero no
qual a ética do autor se torna um problema estético da obra. Por não ter
8 C. N. Coutinho, "Uma análise estrutural dos romances de Graciliano Ramos", publicado uma visão clara dos valores autênticos de que é portador, o romancista é
na Revista Civilização Brasileira, n. 5-6 [cf. C. N. Coutinho, "Graciliano Ramos", in: levado por suas exigências humanistas a assumir uma atitude de ironia e
Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas, São Paulo: Expressão Popu-
lar, 2011, p. 141-194].
autoironia, passando a ironia a ser, desde logo, um elemento essencial à
9
L. Goldmann, Recherches dialectiques, ed. Gallimard, p. 115. [Dialética e cultura, ed. estrutura do romance, um meio de o autor se distanciar do que está nar-
cit., p. 102]. rando e dar-lhe uma objetividade que não seja inumana. A ironia é, de

!50
LEANDRO KONDER
OS MARXISTAS E A ARTE

luta entre o rei e os senhores feudais, o monarca se serviu da noblesse de


certa forma, um modo de participação nos conflitos narra?os; um meio,
robe e a fortaleceu, de modo que esses burgueses burocratas chegaram a
também, de não se deixar envolver inteiramente por eles. E um modo de
dispor de algum poder efetivo, embora, como grupo social, se achassem
participação diferente do dos antigos autores épicos; mas, precisamente,
em uma situação eminentemente trágica, pois não dispunham de futu-
os tempos são outros. A realidade mudou muito.
ro histórico). Entre o nouveau roman e a sociedade reificada da Fran-
Sob o capitalismo, num regime de produção para o mercado, os
ça contemporânea, contudo, não existe, segundo Goldmann, qualquer
valores de uso cederam lugar aos valores de troca, as mercadorias só
estrutura consciente a servir de mediação. E isso porque a reificação, na
interessam pela possibilidade de lucro que oferecem, as coisas só contam
sociedade contemporânea, alcançou um estágio tão desenvolvido que
pelo preço que podem ter no mercado. As pessoas também só contam
afeta, de um ou de outro modo, todas as formas de consciência capazes
como compradores em potencial ou como proprietários de mercadorias:
de se organizar em "visões do mundo".
0 mundo do ter invade o mundo do ser e o subverte. Os seres huma-
Semelhante situação, inédita, se reflete, de modo novo, na arte do
nos são assimilados ao~--il-wvimentos domercado: sofrem deformações
nosso tempo, especialmente no romance. E é ela que justifica o acrésci-
decorrentes de uma reificação generalizada.
mo goldmanniano da teoria da homologia das estruturas à teoria mais
O romancista cria o romance como uma narração em que se acha
geral (lukacsiano-goldmanniana) do estruturalismo genético. Isso, pelo
implícito um protesto do humanismo contra a degradação do mundo: o
menos, é o que sustenta Goldmann. Lukács, porém, não o acompanha.
herói do romance nega em sua ação o mundo degradado, mas - tal como
E onde se pode ver mais claramente como Goldmann se afasta de
o romancista- é impotente para suprimir a degradação, de cujas raízes
Lukács é nos estudos do crítico romeno-francês sobre o nouveau roman.
não tem uma visão crítica passível de clara conceitualização. O romance
A teoria da homologia das estruturas leva Goldmann a ver no nouveau
aparece, assim, como a forma literária típica do humanismo burguês,
roman (o romance sem sujeito) a expressão literária esteticamente váli-
isto é, do humanismo que não chegou a superar os limites da consciência
da da sociedade capitalista altamente reificada (que alcançou, no enten-
de classe da burguesia.
der de Goldmann, seu estágio pós-imperialista). Ao que parece/ 0 pouco
Esta parece ser a abordagem mais rigorosamente lukacsiana -
importa para ele que o nouveau roman abandone a linha de predo-
estruturalista genética - das relações entre o romance e a sociedade bur-
minância do método narrativo sobre o método descritivo, que sempre
guesa. Goldmann, entretanto, propõe uma modificação dela: sustenta
caracterizou a grande literatura épica realista: a reificação legitima esse
que o romance exprime valores que se acham implícitos no comporta-
abandono e a entrega à descritividade.
mento de todos Os membros da sociedade capitalista, valores que não
A posição de Goldmann em face do nouveau roman francês, aliás,
são defendidos por qualquer grupo social em especial.
se liga à posição assumida por ele, em geral, diante da avant-gard~.
Entre o romance e a economia da sociedade burguesa, afirma
Para o crítico, há duas avant-gardes possíveis: uma, aq~ela que é a ma1s
Goldmann, há uma rigorosa homologia de estruturas. A ligação da prá-
importante, porque até hoje é a única que conseguiu frutificar na litera-
xis individual cotidiana dos indivíduos no mercado capitalista, em sua
tura, é a avant-garde da ausência.
estrutura, com a estrutura do romance é uma ligação direta, que pres-
cinde da mediação de qualquer forma de consciência de classe. É um dos fatos mais marcantes da cultura ocidental contemporânea que a
A relação existente entre a arte do nosso tempo - por exemplo, o maior parte dos grandes escritores de avant-garde exprima, sobretudo, não
nouveau roman - e a sociedade altamente reificada que ela exprime é valores realizados ou realizáveis, mas a ausência, a impossibilidade de per-
ceber ou de formular valores aceitáveis, em nome dos quais eles pudessem.
uma relação qualitativamente diversa daquela que existia entre as tragé-
criticar a sociedade.U
dias de Racine ou os pensamentos de Pascal, de um lado, e a sociedade
francesa do século XVII, de outro. Entre as obras de Racine ou Pas- 10 Visando esclarecer esse ponto, o autor do presente trabalho escreveu a Goldmann uma
cal e a sociedade francesa do século XVII, havia a mediação de uma carta. Em sua amável resposta, Goldmann falou da "total incompreensão" revelada por
determinada estrutura particular da consciência: a "visão do mundo" Lukács diante das obras da moderna avant-garde, mas não se referiu à validade ou não das
análises lukacsianas do necessário predomínio da narração no gênero épico.
da noblesse de robe. (A noblesse de robe se compunha de burgueses 11 Revista Médiation, n. 4.
enobrecidos postos no serviço burocrático da monarquia absoluta. Na

I 53
OS MARXISTAS E A ARTE

A outra avant-garde possível, segundo Goldmann, seria uma avant- 22.


garde positiva, que exprimisse a presença de forças capazes de resistir
ativamente à reificação, à desumanização da vida social. "Infelizmente
GARAUDY
-observa o crítico- seria difícil opor aos escritos de Kafka, a Vétranger,
a La nausée, às obras de Beckett, Ionesco, Adamov, Nathalie Sarrau-
te e Robbe-Grillet, uma criação literária de igual importância centrada
sobre a presença dos valores humanistas e do devenir histórico". 12
Da perspectiva de Lukács, essas posições são inaceitáveis. Com
sua teoria das duas avant-gardes, Goldmann tem o mérito de chamar a O realismo na literatura e na arte tem sido uma preocupação cons-
nossa atenção para a complexidade daquilo que Lukács chama de avant- tante de Roger Garaudy, crítico nascido em Marselha em 1913. Garaudy
garde. No interior do quadro constituído pelas obras ditas de avant- já foi um romancista medíocre (Antée 1 e Le huitieme jour de la créa-
garde há, realmente, perspectivas diferentes, valores estéticos diversos. tion2) e um filósofo sectário (Théorie matérialiste de la connaissance 3 e
Em seguida, contudo, é o próprio Goldmann quem mistura num mesmo La liberté4 ). Até recentemente, o sectarismo ainda sobrevivia nele. Em
saco avant-gardista nomes de significações tão díspares como Kafka, Humanisme marxiste -livro de 1957 -, polemizando contra o marxista
Sartre, Camus, Beckett, Ionesco e outros. Por esse caminho, ele não con- polonês Oskar Lange, Garaudy ainda se escorava na autoridade ideoló-
seguirá, seguramente, fazer com que o conceito de avant-garde deixe de gica do Comitê Central do Partido Comunista da China. 5
ser uma fórmula vaga e simplista, ensejadora de injustiças. Nesses últimos seis ou sete anos, entretanto, Garaudy vem se
Além disso, quando Goldmann reclama de uma avant-garde- que revelando um ensaísta de grandes méritos, um excelente polemista e
reconhece ainda não existir - a criação de uma literatura afirmadora de um dos intelectuais mais responsáveis pela elevação do nível ideológico,
valores humanos, ele deixa margem para que um lukacsiano "ortodoxo" bem como pela dinamização e ampliação da política cultural do Parti-
lhe diga que ele está cobrando de uma avant-garde impossível a tarefa do Comunista francês. Em Marxisme et existencialisme, 6 saiu-se bem
que cabe ao realismo. de uma polêmica cordial com Sartre e Jean Hypollite. Em Perspectives
de l'homme, 7 entrou em fecundo diálogo com as principais correntes
da filosofia francesa contemporânea. Em De l'anatheme au dialogue, 8
dirige-se ao Concílio Ecumênico e convoca os católicos para um deba-
te construtivo com o marxismo. O livro que mais nos interessa aqui,
porém, aquele ao qual nos reportaremos para examinar os aspectos
mais importantes da atual posição de Garaudy em matéria de estética, é
D'un realisme sans rivages. 9
Em D'un realisme sans rivages, Garaudy empreende uma reava-
liação do conceito de realismo que havia adotado no passado e que lhe
tinha impedido uma apreciação mais justa de obras como as de Picasso,
1
Ed. Hier et Aujourd'hui, 1945.
2
Ed. Hier et Aujourd'hui, 1946.
3
Ed. PUF, 1953.
4
Éditions Sociales, 1955.
5
Éditions Sociales, 1957, ensaio "Dialéctique et liberté''.
6
Ed. Plon, 1962.
7 Ed. PUF. Há edição em português, lançada pela ed. Civilização Brasileira.
8
12
Ed. Plon, 1965. Há edição em português, lançada pela ed. Paz e Terra.
Revista Médiation, n. 4. 9
Ed. Plon, 1963.

I 54 I 55
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Saint-John Perse e Kafka. Em vez de procurar desenvolver a sua nova contemplativo, em situação de receptividade passiva e de imobilidade, a
concepção do realismo através de uma sistematização teórica, o ensaís- pintura de Picasso não pode ser consumida senão por um ato daquele
ta francês procura definir sua posição por meio de análises concretas, que se dispõe a apreendê-la: é uma pintura que cobra um caráter evo-
examinando precisamente a criação artística de Kafka, Saint-John Perse lutivo para a percepção, que confirma no homem a convicção de que
e Picasso. Segundo Garaudy, as obras desses três artistas são "obras das ele é dono de si mesmo e de que a atividade humana não está sujeita a
quais estivemos durante muito tempo proibidos de gostar em nome de nenhum destino imutável.
critérios demasiado estreitos de realismo" (p. 244). A revolução plástica de Picasso adquire, assim, notável significa-
O ensaio dedicado a Saint-John Perse é pequeno e não tem maior ção humana. Segundo Garaudy, "o empreendimento cubista de Picasso
significação. O ensaio dedicado a Kafka é interessante e ajuda a destruir é um despertar de responsabilidade. Essa estética é uma moral" (p. 64).
alguns preconceitos criados em torno da obra do genial autor tcheco; À sua maneira, o cubismo está lembrando à humanidade que cabe a ela
no que concerne à profundidade, contudo, parece-nos inferior ao ensaio tornar-se efetivamente dona de si mesma, pois lhe está demonstrando ao
escrito por Ernst Fischer, de idêntica perspectiva, sobre o mesmo tema. vivo, no campo da plasmação de formas, que ela é dotada de tal poder
Para um ensaio que se pretende crítico, o trabalho de Garaudy se limita e o utiliza.
demais à explicação da obra de Kafka em função da vida de seu autor, Por outro lado, adverte Garaudy, é preciso não esquecer que, a
sem procurar legitimá-la como realidade estética objetiva. O que D'un despeito das implicações políticas da pintura, pintura é pintura, não é
realisme sans rivages oferece de mais significativo está no ensaio sobre política. Um quadro é um quadro, não é um manifesto. E um quadro que
Picasso. pretenda ser um manifesto estará sempre em uma situação de desvanta-
Picasso, para Garaudy, representa uma revolução plástica que des- gem quando comparado a um verdadeiro manifesto, caso lhe queiramos
trona uma tradição de seis séculos de pintura. Nesses seis séculos, o pin- medir a utilidade como manifesto. Na pintura, os valores políticos con-
tor se esforçava cada vez mais para chegar à imitação do modelo, par- teudísticos só existem de fato através dos valores pictóricos, formais. Na
tindo da pesquisa das linhas de força e do tracejamento estrutural com obra de Picasso, "a significação se consubstancia no plano da tela, e o
que o modelo se oferecia aos seus olhos experimentados. Com Picasso, pensamento não lhe é anterior e nem superior: o pensamento constitui
a imitação do modelo deixa de ser o fim visado e passa a ser somente o uma só realidade com o traço ou o toque" (p. 83).
ponto de partida do trabalho criador do pintor. Assim, não se há de pedir café à vaca. Não tem sentido se abstrair
A pintura de Picasso é um rompimento radical com a concepção da realidade concreta e viva de um quadro para buscar nele apenas o
segundo a qual a pintura deveria proporcionar uma ilusão capaz de evento que o inspirou. "Se eu quiser me informar sobre o acontecimento,
substituir a realidade, "fingindo-lhe" a presença. O "ilusionismo" pic- o historiador mais medíocre atenderá melhor ao meu desígnio do que o
tórico pressupunha a imobilidade do espectador; o cubismo (a pintura mais genial dos pintores" (p. 77). Çg@pl_"e~nos renu11ciar de vez ao hábi-
impropriamente chamada de cubista) pressupõe, ao contrário, a mobili- to simplista de formular para "aquilo que o artista quis dizer" uma "tra-
dade do sujeito. "A pintura de Picasso é tipicamente a pintura da idade ciução'' cónceiE11~1 capaz de tornar desnecessária a aproximação pessoal
do cinema" (p. 46), escreve Garaudy. Ela se dá na forma de uma síntese d2_12úblico, através de um esforço próprio, na direção do artista, através
de impressões visuais realizada no movimento. da ap~~ensão-cfa-obra de arte em sua riqueza concreta.
De resto, como síntese, ela não se pretende puramente sensorial e Que dizer dessas ideias que Garaudy desenvolve com tanto arrojo?
nem almeja competir com a fotografia: é uma síntese em que se fundem Elas refletem, sem dúvida, o anseio dos jovens que não mais se confor-
livremente elementos epidérmicos e elementos intelectuais. É, sobretudo, mam com os padrões estreitos e dogmáticos do zdanovismo e exigem
criação humana, superação da natureza bruta e dada. Resulta do exer- do marxismo uma atitude de diálogo aberto e franco com a arte moder-
cício, pelo homem, do seu poder de se criar a si mesmo, de modificar o na. O esforço de Garaudy é paralelo ao de outro teórico marxista que
mundo e de plasmar formas novas - poder que não pode ser simploria- encontraremos neste livro, em um capítulo posterior: Ernst Fischer. A
mente assimilado à habilidade imitativa. Enquanto a pintura dos séculos despeito da simpatia que nos inspira esse esforço no sentido de uma
imediatamente precedentes era feita para ser consumida por um público renovação da estética marxista e de um acolhimento mais decidido por

rs6
157
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

parte dela às experiências da arte moderna, a despeito de tal esforço lista só alcança a universalidade e a profundidade no conhecimento que
corresponder a uma profunda exigência íntima da nossa sensibilidade, transmite quando a essência dos problemas tratados não está falseada,
marcada pelo turbilhão contemporâneo, não podemos ignorar o que há isto é, quando eles estão implicitamente situados de maneira correta na
de problemático nas posições de Garaudy e de Fischer. totalidade dos problemas humanos de que fazem parte. Garaudy, porém,
Fixemo-nos por ora no primeiro crítico. Qual é o valor operatório entende que o artista não está obrigado a refletir a totalidade do real.
da sua concepção de um realismo aberto, de um "realismo sem mar- "Uma obra- escreve Garaudy- pode ser um testemunho muito
gens"? Garaudy proclama: "O realismo se define a partir das obras, e parcial e até muito subjetivo sobre a relação do homem com o mundo
não antes delas" (p. 243). Que quer isso dizer? Significa, talvez, que a em uma dada época, e esse testemunho pode ser autêntico e grande"
crítica não deve pretender apresentar receitas para a criação artística, (p. 245). Não é difícil encontrar, em nosso tempo, obras parciais e sub-
que ela não pode definir previamente os caminhos para a criação? Nesse jetivas, unilaterais e fragmentárias, que oferecem interesse, comovem e
caso, trata-se de uma afirmação pacífica e um tanto banal. Nenhuma elucidam algo a respeito do homem contemporâneo; mas a solidez de
teoria estética pode pretender suprir a falta de inspiração dos criadores, tais obras se refletirá na capacidade de elas perdurarem? _A guest~()-~S!;i
pode pretender assegurar resultados na criação. Mas o sentido da afir- em sabermos: quantas e quais as obras de arte que, em nossos dias, são
mação de Garaudy é outro. J~~-b~e;;;_ realizadas e tão ricas de conhecimento que sobreviverão às cir-
Toda grande obra de arte nos obriga a rever nossos padrões teóri- cunstânciasem que nasceram?.
cos, porque, sendo resultado de uma criação livre, ela comporta neces- . Na medida em que renuncia aos padrões que a história da arte
sariamente certo ineditismo. Mas a própria avaliação do que a obra poderia lhe fornecer para a caracterização do realismo, Garaudy poderá
de arte nos traz de novo exige de nós a utilização rigorosa (e, por isso distinguir a grande arte dos modismos passageiros, que causam pode-
mesmo, não dogmática) dos critérios críticos que forjamos com base em roso impacto mas logo se hão de desvanecer? Em que critérios objetivos
nossa experiência anterior. ele poderá se basear para estabelecer essa distinção? O "realismo sem
Na ânsia de combater os métodos dogmáticos da crítica zdanovista margens" de Garaudy não será, também, um realismo sem determina-
(infelizmente ainda largamente praticados em muitos lugares), Garaudy ções, isto é, um realismo indeterminado? E que utilidade pode ter um
é levado a preconizar o acolhimento ao novo em termos quase agnósti- conceito marcado pela indeterminação? O crítico marxista que procure
cos, parairracionalistas, limitados pelo empirismo, marcados por uma elaborar a sua estética à base de semelhante conceito não será levado a
atitude de indeterminação consentida. Assim como não podemos nos um procedimento impressionista, arbitrário e superficial?
encastelar em uma teoria estética definitivamente fechada, não podemos Embora não lhe faltem observações bastante verdadeiras e muito
ter a ilusão de que a nossa "abertura" espiritual exige de nós que, diante agudas, a análise da obra de Picasso por Garaudy parece confirmar a
do novo na criação artística, abandonemos completamente as exigências nossa tese de que o crítico francês não pôde escapar a um impressionis-
a que respondem os princípios e métodos de que já chegamos a dispor. mo básico. Notemos, por exemplo, que sua análise incide apenas sobre
Toda autêntica obra de arte é realista, dizem os marxistas. Mas um aspecto, uma fase, da pintura picassiana: a fase cubista. A variada
o que é que caracteriza a validade estética da representação do real na obra desse extraordinário pintor abarca tendências diversas, anteriores
arte? Quanto mais profundo seja o conhecimento da realidade que a e posteriores ao cubismo, que Garaudy deixou estranhamente de lado.
arte nos proporciona, tanto mais os problemas humanos de que trata a Além disso, Picasso é apresentado como o responsável exclusivo por ino-
arte estarão sendo enfocados de uma perspectiva totalizante. Por isso, a vações e mudanças que estão fundamentalmente ligadas aos nomes de
hipertrofia subjetivista, a representação excessivamente fragmentária do outros importantes pintores.
real (que torna o artista em seu trabalho mero reflexo passivo da frag- Por outro lado, a caracterização dos seis séculos de pintura que
mentariedade do mundo capitalista), a entrega a experiências linguísti- precederam o aparecimento de Picasso é discutível. Seria a pintura de
cas inconsequentes, os procedimentos avant-gardistas e naturalistas, são Michelangelo ou de El Greco, de Gauguin ou de van Gogh, uma pintura
inimigos do realismo na arte. Mesmo que concentre a sua atenção num "ilusionista", cujo objetivo central fosse dado pelo esforço para atingir a
campo bastante restrito de problemas humanos, o autêntico artista rea- perfeita imitação do modelo e para atingir um resultado capaz de "fin-

rs8 I 59
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

gir" a realidade? A relação entre a pintura cubista de Picasso e seu públi- podemos nos limitar ao recurso a formulações ideológicas genéricas e
co "ativo" (?) será tão rica e definida como a relação que existia entre a razões estritamente políticas: precisamos encontrar os valores específi-
pintura dos já citados El Greco, Michelangelo, Gauguin e Van Gogh e o cos que assinalam a sua superioridade estética sobre outras orientações
público "contemplativo" (?) da época daqueles pintores? (outras orientações que, tanto do ponto de vista geral do humanismo
Uma última observação, ainda: só o procedimento impressionista como do ponto de vista particular da arte, sejam menos fecundas).
nos parece explicar a timidez de Garaudy diante da questão do figura- Bianchi Bandinelli parece admitir isso, quando, no final de seu
tivismo e do abandono da figura pela pintura moderna. Desprezando a livro/o formula argumentos que pretendem estabelecer uma sup_eriori-
figura, os pintores comumente chamados de abstracionistas (no sentido dade estética da representação realista (orgânica) sobre a tendênCia abs-
amplo do termo) conquistaram a possibilidade de criar uma representa- tracionista: "Somente o artista realista é livre em sua individualidade; a
ção mais livre e mais essencial da realidade ou sacrificaram um elemento abstração conduz sempre a uma routine impessoal". Os abstracionistas
que lhes era necessário para que suas obras proporcionassem um conhe- são levados à imobilidade das formas geométricas e a um número muito
cimento orgânico do real? Embora não lhe endossemos a análise, não limitado de esquemas, enquanto a representação orgânica do realismo se
podemos deixar de ver, na abordagem do problema feita por Ranuccio agita sempre e se renova, sem jamais poder se fechar sobre si mesma, já
Bianchi Bandinelli, uma coragem e uma disposição sistemática que não que se acha essencialmente ligada a uma realidade mais ampla, _que é a
encontramos no estudo de Garaudy. realidade humana geral, e só existe em permanente transformaçao.
Na esteira de Arnold Hauser, Bianchi Bandinelli vê na história Mas receoso de que o reconhecimento da especificidade da estéti-
da pintura uma oposição constante entre a organicidade da tendência ca acarrete' uma visão idealista (esteticista) das questões da arte, o crítico
realista e a abstração. Para ele, do ponto de vista puramente estético, italiano acaba por se fixar na tese de que as razões estéticas como tais
as duas orientações se equivalem; se verificarmos, entretanto, a que for- são, a rigor, inúteis, porque de fato impotentes (considerando que, se elas
ças sociais correspondem (como superestruturas) as obras de arte que não podem tudo, então não podem nada).
consubstanciam uma ou outra das duas tendências, concluiremos que o Apesar dessa reserva que lhe fazemos, contudo, estamos conven-
abstracionismo representa (independentemente dos desígnios subjetivos cidos de que Bianchi Bandinelli pelo menos enfrentou um problema cru-
do pintor que o pratica) uma orientação irracionalista, de conteúdo con- cial de que Garaudy ev1tou. f a 1ar em seu 1'1vro. 11
servador ou reacionário, ao passo que a representação orgânica repre-
senta a presença de forças que confiam na razão e na história, isto é, de
forças sociais progressistas, interessadas no conhecimento concreto da
realidade histórica.
Não cremos que a distinção feita pelo crítico marxista italiano
entre o plano "puramente estético" (no qual as duas orientações se equi-
valeriam) e o plano em que se manifesta o condicionamento sócio-his-
tórico seja dialética. Para nós, a questão estética pode ter a sua solução
encaminhada a partir de valores estéticos: as contradições que marcam
a história da estética não podem ser corretamente avaliadas se conce-
bermos a estética como um campo metafisicamente autônomo da práxis
criadora do homem; em suas raízes, essas contradições nos remetem à 10 B. Bandinelli, Organicità e astrazione, ed. Feltrinelli, 1956. Há uma tradução castelhana
de Eisa de! Rio de Maragno, lançada em 1965 pela Editorial Universitária de Buenos
atividade humana global e, especialmente, às bases socioeconômicas de
Aires.
tal atividade; mas, desde que reconheçamos uma autonomia relativa (e, 11 Deixando de enfrentar certos problemas em toda a complexidade de que se revestem e
por conseguinte, uma especificidade) à criação artística, não podemos encastelando-se, às vezes, em formulações grandiloquentes e pouco precisas, Garaudy
manifesta debilidades teóricas que são aproveitadas por seus contraditares no marxismo
deixar de admitir que há uma batalha a ser travada no próprio plano
francês sobretudo por Louis Althusser e Pierre Macherey. A retórica de Garaudy, entre-
do conhecimento estético. Para legitimar uma orientação pictórica, não tanto, À!thusser e Macherey opõem, a meu ver, uma versão neopositivista do marxismo.

r6o r6r
23.

HAUSER

A relação existente entre a estética e a sociologia da arte é, sem


dúvida, uma relação ao mesmo tempo íntima, delicada e complexa. Se
as questões de estética e de história da arte são consideradas inteiramen-
te independentes das questões sociológicas, o observador fica de todo
incapacitado para dar conta, de uma perspectiva marxista, da conexão
essencial da arte com o seu tempo: a arte perde a sua historicidade con-
creta. Por outro lado, se as questões de estética são reduzidas a questões
de sociologia da arte, o observador se vê limitado pelo sociologismo e
não consegue dar conta, de uma perspectiva marxista, da durabilidade
do conhecimento artístico e da sua especificidade.
O sociologismo não existe como pecado de todo e qualquer tra-
balho de sociologia da arte; só existe nos trabalhos de sociologia da
arte que extrapolam os limites próprios da área que lhes cabia. Fre-
quentemente, o sociologismo se manifesta nas considerações estéticas
apressadas de sociólogos que, lidando com problemas estéticos, os domi-
nam mal e não têm pela arte como tal o mesmo interesse que têm pela
sociologia. Frequentemente o sociologismo revela no sociólogo ou no
historiador, além de uma aparelhagem conceitual deficiente, uma escas-
sa familiaridade com toda a riqueza de que é capaz o conhecimento
artístico. Este, evidentemente, não é o caso de Arnold Hauser. Poucas
pessoas ter-se-ão dedicado tão integralmente à arte como ele. Nascido
na Hungria, estudou Filosofia, Literatura e História da Arte em Buda-
peste, em Paris, em Berlim e, sobretudo, na Itália, onde viveu durante
vários anos. Mais tarde, lecionou História da Arte em Budapeste, Viena,
Londres e Estados Unidos. O resultado dessa vida inteira de convívio
com a arte e de estudo dos seus problemas foi uma obra monumental, de
leitura obrigatória: a História social da arte. 1

1
A. Hauser, The social history of art, ed. Routledge & Kegan Paul, 1951. Há edição espa-
nhola (História social de la literatura y e! arte, ed. Guadarrama) e portuguesa (História
social da arte e da cultura, ed. Jornal do Fôro) [há edição brasileira desta obra: História
social da arte e da literatura, São Paulo: Martins Fontes, 2000].
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Essa História social da arte proporciona uma informação tão história da arte, ele reconhece, genericamente, uma aplicação deficiente
importante e tão vasta que não nos é possível pensar em fazer referência do método dialético em seu livro anterior.
aqui sequer aos seus aspectos principais. Hauser lança luz sobre as rela- Definindo a função necessária da sociologia da arte e seus limi-
ções existentes entre a arte do período paleolítico e as condições de vida tes, escreve o crítico húngaro-inglês: "toda arte é socialmente condi-
dos homens primitivos de então; lança luz sobre os efeitos da revolução cionada, mas nem tudo na arte é passível de ser definido em termos
neolítica na história da arte; lança luz sobre alguns aspectos básicos sociológicos". 4 O approach sociológico, adverte ele, não nos dá e nem
da arte e da cultura grega. Sob sua penetrante análise, são esclarecidos pode nos dar o conhecimento concreto daquilo que é específico, indi-
alguns pontos delicados e básicos da passagem da arte românica à arte vidual, na obra de arte:
gótica, é explicada a ascensão social dos artistas sob o Renascimento e
Que conhecemos nós realmente a respeito dos problemas artísticos com que
são elucidadas algumas características sutis do Barroq:>, do Maneirismo,
Michelangelo teve de se defrontar, que sabemos nós da individualidade dos
do Rococó, do Romantismo, do Classicismo, do Impressionismo e da seus meios e métodos quando nos limitamos a observar que ele foi contem-
arte moderna em. geral. porâneo das fórmulas do Concílio de Trento, do novo realismo político, do
A preocupação constante de Hauser é a de não perder de vista o nascimento do capitalismo moderno e do absolutismo? 5
condicionamento social dos movimentos artísticos que analisa. Embora
não seja marxista, ele (tal como já vimos ocorrer em Walter Benjamin) Há na arte sutilezas mil, flutuações de cadência e de ênfase quase
se serve dos métodos marxistas, situa-se na perspectiva do materialismo imperceptíveis, que não podem ser negligenciadas. A riqueza singular de
histórico. Sua convicção é a de que uma mudança substancial em um cada obra de arte exige, para que a apreendamos, que formemos ideias
estilo artístico só pode ser explicada através do recurso a um condicio- basicamente justas a seu respeito e, também, que nos familiarizemos
namento exterior: em última análise, as grandes alterações formais da praticamente com a obra, que convivamos com ela. As informações teó-
história da arte são sempre condicionadas de fora do campo estritamen- ricas que a sociologia da arte nos pode proporcionar (como as informa-
te estético. Não há - diz Hauser - nenhum prazo interno para que um ções teóricas da própria estética) nos ajudam na orientação de que temos
estilo seja substituído por outro. possibilidade de imprimir à crítica da nossa experiência artística, mas
A pesquisa do condicionamento social dos movimentos artísticos, não podem suprir essa experiência.
entretanto, por imprescindível que é, não há de deixar de ser cautelosa. A perspectiva pela qual a arte é encarada pela crítica sociológica
A sociologia da arte é necessária, mas não deve ser absorvente, tirânica. e a perspectiva pela qual a arte é encarada pela crítica estética, de resto,
Percebendo que os métodos por meio dos quais lhe fora possível recons- não devem ser confundidas. Hauser lembra que, "de um ponto de vista
tituir a evolução da arte em suas conexões essenciais com a sociedade sociológico, um artista de segunda ou terceira ordem pode ocupar uma
eram métodos que exigiam esclarecimentos e desenvolvimentos teóricos, posição-chave em um determinado movimento artístico". 6
Hauser escreveu seis ensaios que reuniu no livro A filosofia da história O reconhecimento expresso dos limites que a sociologia da arte está
da arte, 2 publicado como uma espécie de introdução que não chegara a obrigada a respeitar tanto diante da teorização estética como da variedade
ser escrita para a obra anterior. concreta das sutilezas que o individual sensível apresenta na experiência
Na História social da arte, por vezes, Hauser fora levado a inter- artística, entretanto, é um reconhecimento ainda meramente negativo.
pretar um tanto mecanicamente alguns movimentos estilísticos. A cres- Para melhor definir os seus pontos de vista acerca da autonomia relativa
cente melancolia mórbida de que Botticelli se vai deixando possuir no da arte (autonomia que faz dela algo mais do que a pura ihistração de uma
último período da sua atividade criadora, por exemplo, era explicada - tendência social genérica), Hauser é levado a analisar, em seu segundo
meio forçadamente- como um reflexo da diminuição da clientela provo- livro, o caráter especial da arte como estrutura ideológica.
cada pela opressão fiscal dos Médicis sobre Florença. 3 Em A filosofia da
4 A. Hauser., The philosophy of art history, p. 8.
2 5
Id., The philosophy o f art history, ed. Routledge & Kegan Paul. Ibid., p. 15.
3 6
Ed. espanhola, p. 416. Ibid., p. 11.

r65
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Ele parte da observação de que cada uma das diversas estruturas originaram e sobrevivem ao significado original que tiveram".? Ora a
culturais - tais como a religião, a filosofia, a ciência, o direito e a arte - durabilidade do conhecimento artístico não pode ser explicada co~o
mantém certa "distância" em relação às suas respectivas origens sociais, decorrência da inércia na transformação do vocabulário humano. Na
de modo que elas não podem ser "reduzidas" a tais origens sem um des- arte que sobrevive ao desgaste do tempo e perdura como conhecimento
respeito à realidade do tempo que as destacou delas. Esse destacamento artístico vivo, há uma capacidade de renovação que transcende da mera
explica a autonomia relativa conquistada pelo movimento ideológico. inércia, há uma força fecundante e plasmadora de valores ativos que 0
Para Hauser, a esfera da criação cultural artística é mais autônoma e mero caráter de inércia não consegue tornar compreensível.
mais destacada que a do desenvolvimento das ciências exatas e bem O fato de que Hauser por vezes deslize para o sociologismo não
mais autônoma, especialmente, do que a dos conhecimentos aplicados é casual; ele deriva dos aspectos confusos do seu pensamento filosófico.
diretamente à satisfação das necessidades econômicas básicas ou à satis- A apreensão das leis dos fenômenos estéticos exige que o observador
fação das necessidades tecnológicas. se distancie da singularidade imediata e, só depois da generalização
Outra observação do crítico húngaro-inglês é a de que o condi- filosófica, volte ao contato mais direto com a individualidade dos seres.
cionamento exercido pelo desenvolvimento econômico e pela situação A nocividade do empirismo está em que ele freia esse voa necessário da
social assume diferentes modalidades nos diversos campos da cultura e, abstração e fetichiza o individual. Por adotar uma perspectiva marca-
até mesmo, nas distintas áreas de cada campo. Para demonstrar a inexis- da pelo empirismo, a nosso ver, é que Hauser não consegue superar o
tência de uniformidade nesse condicionamento e chamar a atenção para sociologismo. E, pela mesma razão, ele é levado a encarar com suspeita
as mediações que ele utiliza em cada caso particular, Hauser lembra o o marxismo, formulando-lhe reservas infundadas, como quando escre-
que se deu com a arte europeia do século XVIII, quando a burguesia ve: "O indivíduo como tal é, em última análise, irrelevante para Marx,
em ascensão exercia maior influência sobre a literatura e a pintura do como o era para Hegel". 8 Trata-se de uma posição falsa. Nos termos em
que sobre a música, de modo que o número crescente de burgueses esti- que Marx o formulou (e que não se confundem com a versão stalinista
mulava a elaboração de novos critérios literários e pictóricos, enquanto ou chinesa), o marxismo não se opõe à valorização fundamental do
na produção musical ainda predominavam (com fecundidade) os velhos indivíduo, que, segundo uma tradição iniciada com os gregos e impul-
padrões, afinados com o gosto da Corte e das autoridades eclesiásticas. sionada pelo cristianismo, culminou no humanismo clássico burguês;
A despeito da lucidez e argúcia reveladas por essas e outras obser- o que o marxismo combate nessa tradição é o caráter impróprio, abs-
vações de ambos os livros de Hauser, a perspectiva do crítico apresenta, trato, limitado, idealista, da referida valorização. A exigência de uma
a nosso ver, alguns aspectos problemáticos. Sua aparelhagem conceitual forma humana de comunidade é formulada pelo marxismo justamen-
nos parece carecer de uma base filosófica mais definida. Seu imenso con- te em termos que possibilitem efetivamente o pleno desenvolvimento
vívio com a grande arte o faz perceber nuances que um enfoque socio- humano dos indivíduos. O marxismo apresenta, assim, uma concepção
logista de tipo tradicional não poderia levar em conta. Mas, apesar da mais realista e mais consequente do indivíduo que a concepção do indi-
sensibilidade refinada e de todas as ressalvas que faz, Hauser se serve de vidualismo tradicional.
uma aparelhagem conceitual que não lhe permite uma completa supera- Preso a uma concepção empirista do indivíduo, Hauser não per-
ção do sociologismo. cebeu isso. E, embora ele mesmo tenha utilizado tão amplamente em seu
Uma queda de Hauser no sociologismo, por exemplo, já foi por trabalho os métodos da dialética de Marx, foi levado a estranhá-la em
nós assinalada na interpretação da melancolia de Botticelli exposta na sua formulação filosófica genérica. Juntamente com a dialética idealista
História social da arte. Outra é apontada pelo crítico tcheco Karel Kosik de Hegel, acabou por rejeitar a dialética materialista de Marx (que vinha
(a quem dedicamos outro capítulo deste livro), examinando uma for- aplicando).
mulação desenvolvida na Filosofia da história da arte: Hauser parte da
constatação de que os costumes mudam mais depressa do que o voca-
7
bulário dos homens para concluir que "é em consequência dessa inér- Ibid., p. 185.
8
Ibid., p. 199.
cia que as formas da arte também sobrevivem às condições em que se

I66
24.

SALINARI E CHIARINI

Na Itália, mais do que na França (e muito mais do que nos paí-


ses de língua inglesa), penetraram e ecoaram as ideias de Lukács. Na
França, ele é habitualmente visto com reservas. Garaudy equipara a sua
interpretação da evolução ideológica do jovem Hegel à interpretação
de Jean Wahl, considerando-as representativas de equívocos simetrica-
mente inversos. Lefebvre se opõe à sua orientação "clássica" em maté-
ria de estética. Sartre acha que Lukács subestima as questões relativas
ao materiallinguístico na literatura, tratando dos fenômenos literários
como se a literatura não se fizesse com palavras. Gisselbrecht ironiza
seus "conceitos hegelianos" (categoria da particularidade), e Prevost
compara a categoria lukacsiana do realismo crítico a um "purgatório"
onde ficam os autores que não merecem o "céu" do realismo socialis-
ta. O único autor importante na França que acolhe Lukács - Lucien
Goldmann - o faz em termos bastante peculiares, reinterpretando-o
com excessiva liberdade e servindo-se quase que exclusivamente das
ideias do jovem Lukács.
Entre os italianos, mesmo quando encontramos algumas das obje-
ções formuladas a Lukács pelos franceses, vemo-las, em geral, sustenta-
das por argumentos mais desenvolvidos. Além disso, quando aceitam
a orientação lukacsiana, os marxistas italianos não se fixam nas ideias
de uma determinada fase da evolução do pensamento de Lukács (como
Goldmann): servem-se dos princípios e métodos trabalhados pelo filóso-
fo húngaro ao longo de toda a sua obra como marxista.
De modo geral, os livros de Lukács são mais conhecidos na Itália
do que na França. Isso não quer dizer, contudo, que os marxistas italia-
nos, promovendo a difusão de Lukács e reconhecendo-lhe a importân-
cia, amenizem as restrições que lhe fazem (quando as fazem). Neste capí-
tulo e no capítulo seguinte, trataremos precisamente de alguns críticos
italianos de filiação marxista que divergem das formulações de Lukács
e as combatem: Carlo Salinari, Paolo Chiarini, Galvano Della Volpe e
Giuseppe Prestipino. Acenaremos, rapidamente, às características que
neles assume a polêmica anti-Lukács.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Mal foi publicada em italiano a coletânea de ensaios literários ra compõe, de certo modo, a fisionomia espiritual e artística da nossa
de Lukács, intitulada Saggi sul realismo, 1 Carla Salinari publicou em época, e não devemos ter a pretensão de nos situarmos acima da nossa
Rinascita um comentário em que considerava a obra "o mais vivo livro época. Quando o poeta e cineasta Pier Paolo Pasolini, em discussão com
de crítica literária já publicado na Itália neste pós-guerra", porém lhe o romancista Alberto Moravia, caracterizou a cultura do século XX
reprovava o "tom um pouco professora!" e lhe assinalava certo intelec- como neoexperimentalista, irracionalista e decadente, e caracterizou o
tualismo: "De modo bem diverso do da croceana, essa crítica também é realismo, o racionalismo, o marxismo, como a oposição ao século XX,
sempre um pouco fria". 2 Salinari considerou desde logo esquemática e inaceitável semelhante for-
Salinari louvou a amplitude da investigação do livro, a vastidão mulação.
do seu interesse, a justeza de muitas das suas formulações, mas enxergou As dimensões da realidade - observa Salinari - ampliaram-se
em Lukács uma limitação fundamental: "Sua leitura de um texto poéti- extraordinariamente no nosso tempo; mesmo os homens que têm con-
co é sempre filtrada através dos modelos do grande realismo burguês". 3 fiança no futuro vivem um momento intensamente crítico na tentativa
Na Alemanha, o modelo é Goethe; na Rússia, Tolstoi; na França, Bal- que fazem de compreender toda a realidade do presente. As modifica-
zac. E na Itália- pergunta Salinari- quem poderia ser? Manzoni? Evi- ções sofridas pelo mundo são muito grandes.
dentemente não. Para ele, a situação da Itália invalida as indicações de
A arte em geral e especialmente o romance não podem deixar de levar em
Lukács quanto ao caráter modelar do grande realismo, de vez que na conta essas mudanças, que atingem, evidentemente, o conteúdo e a forma.
literatura italiana de hoje as novas formas do realismo não têm prece- O conteúdo se torna menos sistemático e mais experimental, em conexão
dentes ilustres a servir-lhes de base em um passado de glória burguesa e exatamente com a rápida modificação da realidade natural e histórica, que
precisam ser buscadas na realidade nacional, nas condições particulares não comporta ainda uma sistematização orgânica e completa de todos os
a que chegou o país em sua evolução histórica. dados da nossa existência. A forma, por conseguinte, se torna mais rápida
e fragmentária e não pode deixar de levar em conta as descobertas técnicas
A busca de novas formas para o realismo leva Salinari a inclinar-
realizadas pelas avant-gardes europeias. 5
se não só sobre a realidade nacional italiana, e especialmente sobre a
realidade literária italiana, como leva-o a inclinar-se sobre as condições Enquanto manifestação de modéstia metodológica, nenhum mar-
I
! históricas concretas em que chegou a formar-se a atual produção literá- xista fará objeção a esse texto. Mas será que ele não manifesta algo mais
ria da Itália. De maneira especial, o crítico se interessa pela literatura do que semelhante modéstia? Não estará indiretamente sendo admitida
italiana da primeira década do século XX. Com paciência, rigor e senso aqui certa incognoscibilidade do real no fugaz mundo contemporâneo?
de medida, servindo-se às vezes de indicações de Gramsci e sempre dos A realidade humana da práxis terá mudado a sua estrutura, o conhe-
métodos gramscianos, Salinari estuda as obras e o pensamento dos auto- cimento humano terá perdido a sua objetividade básica, a ciência terá
res desse período que tão de perto precede a crise do fascismo e, através relativisticamente emasculado a sua verdade para que a consciência dos
dela, a literatura italiana dos nossos dias. É um período que tem como homens se veja obrigada a desistir de sistematizar aquilo que assimila?
nomes de proa Croce, D'Annunzio e Pirandello. Um período que "surge Salinari sente que sua posição pode resvalar para o ~nosticismQ
como reação espiritualista diante da última manifestação progressista e para o irracionalismo e trata de ressalvar que a admissão desse caráter
do pensamento burguês do século XIX, o positivismo, e diante da mais menos sistemático e mais experimental da arte moderna não significa
avançada tentativa de arte realista, o verismo". 4 renúncia ao conhecimento da realidade como um todo, não significa
As características gerais negativas do período não desencorajam e perda de confiança na razão humana e nem entrega definitiva de uma
nem desestimulam o pesquisador, pois Salinari entende que não devemos área do real à inumanidade.
repelir a priori a literatura da decadência burguesa, porque talliteratu- O que Salinari realmente quer dizer - e o que ele diz, com maior
clareza, em outra passagem do artigo de onde foi extraído o texto supra-
1
G. Lukács, Saggi sul realismo, ed. Einaudi, 1953. citado - é que o caminho do melhor realismo do nosso tempo passa
2
Revista Rinascita, novembro de 1953.
3
Revista Rinascita, novembro de 1953.
4 5
C. Salinari, Miti e coscienza deZ decadentismo italiano, ed. Feltrinelli, 1959, p. 9. Revista Il Contemporaneo, março de 1963.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

pela avant-garde: "o realismo do nosso século, em seus momentos mais híbrida. Para mim, basta que esse produto híbrido me agrade e me instrua
intensos, move-se no interior da arte moderna para superá-la, e não mais do que todas as produções feitas conforme as regras pelos vossos impe-
cáveis Racines, ou qualquer outro nome que tenham. 8
fora dela para negá-la: basta pensar na floração artística dos anos 1920
na URSS, no cinema neorrealista italiano do imediato pós-guerra, em Mas não é certamente Lessing a fonte básica das posições de
Brecht ou em Picasso". 6 Chiarini. Pois Chiarini parte mesmo é da convicção de que o mundo
A referência feita a Brecht como exemplo de realismo desenvolvi- moderno apresenta uma realidade de tal modo diversa daquela a que nos
do "no interior da arte moderna" nos permite passar de Carla Salinari haviam acostumado as artes e os conhecimentos positivos dos séculos
a Paolo Chiarini. Paolo Chiarini - filho do veterano crítico de cinema passados que não temos o direito de explicá-la de maneira comodista,
Luigi Chiarini- é um apaixonado estudioso da obra de Brecht, em quem encastelando-nos nos esquemas fornecidos pela tradição.
ele vê posições marxistas mais fecundas que as de Lukács. Um dos aspectos absolutamente novos da nossa época, por exem-
Para Paolo Chiarini, o "marxismo nobre" (que Lukács procura plo, é a influência alcançada pela divisão do trabalho na criação artís-
opor ao chamado "marxismo vulgar") acolhe, na teorização lukacsiana, tica. O ato criador está se tornando, cada vez mais, um processo de
uma concepção ainda excessivamente "naturalista" da realidade, uma criação coletiva. A arte está se tornando cada vez mais impessoal (e isso
concepção da realidade que não acentua suficientemente a dinamicida- é um fenômeno que foi assinalado tanto por Brecht como por T. S. Eliot).
de do real, que não leva em conta a rapidez e profundidade com que a Não há mais lugar para concepções românticas como a da "iluminação
realidade muda. Por isso, Lukács se prenderia a determinadas "cons- interior" ou a da "centelha de gênio". A coletivização da técnica acaba
tantes formais", a determinados "modelos" artísticos ou modos prees- por influir nas formas artísticas, destruindo os valores da originalidade
tabelecidos de compreender os gêneros artísticos. Uma tal concepção (tema já aflorado por Walter Benjamin). São sintomas desse processo: a
naturalista da realidade, por outro lado, leva Lukács a acusar Brecht de utilização da paródia por Joyce e por· Thomas Mann, as citações abun-
acentuar demais as exigências da atualidade e a subestimar um pouco dantes na obra de Picasso e de Stravinsky, os plágios feitos por Brecht.
os problemas que o vinculam ao passado. De fato, essa acusação contra Esta, contudo, ainda não é a tese mais explosiva de Paolo Chia-
Brecht resultaria apenas da estreita vinculação de Lukács a uma concep- rini: sua ideia de maior alcance polêmico é aquela que implica a franca
ção muito século XIX da linguagem artística; hoje, assinala Chiarini, a rejeição da categoria dialética da totalidade quando se trata da arte.
linguagem artística não é e nem pode ser homogênea como era no século Para Chiarini, Lukács tende a encarar a história da arte como um
passado.? colar no qual um fio liga as pérolas e cada pérola é um mundo autô-
Combatendo o "fixismo" que enxergava nas posições de Lukács nomo, uma totalidade. Como as ousadas experiências do princípio do
face à questão dos gêneros artísticos, Chiarini cita nada mais nada menos século XX e, sobretudo, do primeiro pós-guerra rompem o fio do colar
do que Lessing, o autor do Laocoon - o próprio mestre em que Lukács tradicional e produzem obras que não são totalidades (pérolas) artísti-
busca escorar-se - e cita uma passagem da Dramaturgia de Hamburgo, cas, Lukács é levado a rejeitar sumariamente tais experiências. Sob as
obra traduzida para o italiano por ele próprio (Chiarini). A passagem é exigências de renovação formal que impulsionam a arte moderna a tan-
a seguinte: tas "aventuras", há o reflexo de uma mudança nas próprias estruturas
da realidade, há o amadurecimento de novos conteúdos. Lukács nem
Que significa a mistura dos gêneros? Os tratados sobre regras literárias
podem diferenciá-los com a maior exatidão possível; se um gênio, porém, sempre leva isso em conta.
para atingir objetivos mais elevados, mistura gêneros diversos numa obra só, Uma das razões para essa estranha cegueira do reconhecidamen-
devemos nos esquecer dos tratados, e o melhor é indagarmos se esses objeti- te lúcido Lukács é o "forte sedimento Hegeliano" existente em seu
vos foram atingidos. Que me importa se uma obra de Eurípedes não é toda pensamento. E é esse sedimento que leva Lukács a insistir em aplicar
ela um conto narrado, ou, então, uma ação dramática? Podemos chamá-la
----- 8
Citado em P. Chiarini, Bertolt Brecht, ed. Laterza, Bari, 1959, p. 122. Trata-se de uma
6 Revista Il Contemporaneo, março de 1963. resposta de Lessing a Hedelin D'Aubignac, que acusara Eurípedes de ter tirado ao espec-
7
P. Chiarini, La vanguardia y la poética dei realismo, trad. Victorio Minardi, ed. La Rosa tador o prazer da surpresa, misturando, assim, o gênero dramático e o épico (em que o
Blindada, Buenos Aires, p. 55. elemento surpresa é desnecessário).

I72 I73
OS MARXISTAS E A ARTE

na arte uma categoria que só é válida para a ciência: a categoria da


25.
totalidade. 9
Com semelhante proposição, Chiarini vai bem adiante das posi- DELLAVOLPE
ções que Salinari chegara a assumir e, para combater a estética de Lukács,
é levado a negar toda uma herança hegeliana cujo acolhimento era já
tradicional por parte de uma forte corrente da gnoseologia marxista. A
briga com Lukács estendeu-se a Hegel. A radicalização, contudo, acarre-
ta imediatamente a pergunta relativa ao agnosticismo e ao irracionalis-
mo, que já se propusera a Salinari e o fizera recuar: sacrificada a catego- O sistema anti-Hegel (e anti-Lukács) de Galvano Della Volpe foi
ria da totalidade na arte, que critérios nos garantirão a inteligibilidade laboriosamente montado no curso de vários livros, entre os quais Il
do conhecimento artístico como reflexo da essência do real? verosimile filmico e altri scritti di estetica, 1 Poetica dei cinquecento 2 e
Para responder a essa pergunta, é precisa dispor de um sistema a Logica come scienza positiva. 3 A produção de Della Volpe é vasta; ele
capaz de se oferecer como alternativa justa para a substituição do siste- escreve e publica desde a década de 1920. Mas o volume que coroa os
ma hegeliano (ou lukacsiano). Não é Paolo Chiarini, entretanto, quem seus esforços e sistematiza as conclusões da sua elaboração teórica no
empreende a construção desse pensamento estético marxista sistemático que se refere à arte é a obra Critica dei gusto.
anti-hegeliano. É Galvano Della Volpe. Desde o seu aparecimento em 1960, a Critica dei gusto vem
tendo sucessivas edições, revistas e ampliadas pelo autor, e vem ali-
mentando apaixonadas controvérsias. As ideias de Della Volpe - na
sua maioria já antecipadas em trabalhos anteriores - tiveram a adesão
de numerosos críticos marxistas italianos. Entre outros, Mário Rossi
(especialista em Hegel), Lúcio Colletti e Ignazio Ambrógio. Também
o crítico francês Louis Althusser, participando dos debates entre ita-
lianos, endossou as posições de Della Volpe. Contra as teses dellavol-
pianas pronunciaram-se Cesare Luporini, Nicola Badaloni e o então
lukacsiano Cesare Cases.
Igni1Zio Ambrógio, por exemplo, comentando a Critica dei gusto,
classifica-a como ."tomada de consciência da crise histórica da estética
romântica, bem como da insuficiência do racionalismo (classicismo)
abstrato; ou seja, tomada de consciência das duas alternativas entre as
quais foi constrangido a mover-se o próprio pensamento marxista". 4
Já Luporini opina em sentido bem diverso: "Parece-me que entre Marx
e Della Volpe produziu-se (se me é lícito dizê-lo assim) um imenso
quiproquó". 5

1 Ed. Filmcritica, Roma, 1954.


2 Ed. Laterza, Bari, 1954.
3 Ed. D'Anna, Messina-Firenze, 1956. Poder-se-ia lembrar, também, Rousseau e Marx, ed.
Riuniti, 1957.
4 Revista Rinascita, 29 de setembro de 1962.
9
G. rfukács, La·vanguardia y la poética del realismo, p. 52. 5 Revista Rinascita, 20 de outubro de 1962.

174 175
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Vamos procurar expor aqui, resumidamente, com base num caráter específico-semântico, isto é, específico técnico-semântico, isto é,
exemplar da mais atualizada das edições da Critica del gusto, 6 algumas específico técnico". 8
das ideias estéticas centrais do sistema de Della Volpe. De saída, assina- Para sustentar a sua tese, Della Volpe postula, à maneira neopo-
lemos que esse sistema é inspirado pela preocupação de promover uma sitivista, tanto no plano lógico e gnoseológico como no plano histórico,
defesa radical da inteligibilidade básica do fenômeno estético. Para ele, uma identidade absoluta (e não dialética) entre o pensamento, o con-
não há conhecimento artístico só por "imagens" ou só por "intuições"; teúdo da consciência e o meio pelo qual o pensamento se forma e se
todo conhecimento artístico é, ao mesmo tempo, organicamente, conhe- comunica: a linguagem. A proposição é assim formulada: "O progresso
cimento por conceitos. da representação em objetividade e verdade- e, portanto, em poeticida-
Della Volpe recusa firmemente o recurso lukacsiano à categoria de - se resolve ou coincide com um progresso de modulação linguísti-
da particularidade para explicar a especificidade do conhecimento esté- ca de sentimentos-ideias". 9 Nela se manifesta a tendência neopositivista
tico, tal como recusa a tese de que na arte a consciência intui sensivel- para reduzir os problemas da representação da realidade na consciên-
mente o real. Também não lhe parece lícita a utilização do conceito de cia a problemas de linguagem. Della Volpe, de resto, em nossa opinião,
"fantasia"; e, apesar da admiração pessoal que tinha pelo falecido críti- representa na estética marxista uma orientação bastante aproximada da
co cinematográfico marxista Umberto Barbaro, apesar de considerá-lo orientação neopositivista.
um "santo leigo", Della Volpe não há de ter concordado com a teoria da Mas passemos aos critérios da diferenciação semântica que Della
fantasia concebida como matriz da arte, exposta por Barbaro em seu Volpe propõe para a arte e a ciência. Examinando um texto científico e
último ensaio, que aliás permaneceu inacabado? comparando-o com um texto poético (artístico) -adverte-nos o crítico
Segundo Della Volpe, não tem sentido forjar dicotomias ideoló- italiano -, veremos que o primeiro pertence a um encadeamento semân-
gicas de razão e sensibilidade, de universal e particular, de abstrato e tico, ao passo que o segundo é semanticamente autônomo e possui a sua
concreto, para - à base de tais dicotomias - procurar distinguir entre a própria organicidade interna. Os termos usados no texto científico se
arte e a ciência. caracterizam por uma especialidade unívoca (tecnicidade) e por estarem
Tal como na ciência, o pensamento se manifesta nas artes. Há um fazendo parte de um contexto desorgânico. Os termos usados no texto
discurso- procedimento racional-intelectual- tanto na ciência (e na his- poético (artístico), porém, não são unívocos: são polissêmicos. E fazem
tória) como na poesia e nas artes em geral. É preciso convocar os mar- parte de um contexto orgânico. A arte, por conseguinte, é uma "contex-
xistas para que seja definitivamente banido u;a~·~ q~~~q~er-ine7JwTd~ tualidade semântica orgânica". 10
~~;:;;.~~i~~ç~o-a~tÍstica. A própda metáfora, característica da linguagem· Semelhante caracterização da arte será passível de extensão às
poética, não é senão um instrumento mental, intelectual, indispensável à artes não verbais? À pintura, à escultura, à arquitetura e à música? E ao
linguagem em geral. O aspecto relaciona! da metáfora lhe mostra nitida- cinema? Della Volpe acha que sim, desde que todas as artes sejam con-
mente o caráter racional-intelectual. Jamais devemos entendê-la como cebidas como sistemas de sinais ou como linguagens, em que o pensa-
uma associação de imagens; ela é apenas uma associação por imagens. mento possa se manifestar concretamente como pensamento. Para que o
Se tudo é intelectual, entretanto, se o conceito domina todos os alcance dessa concepção seja avaliado e verificado, ele reclama a criação
momentos essenciais da arte como da ciência, como distinguimos entre de uma ciência geral dos sinais, ou "semiótica filosófica".
o conhecimento artístico e o conhecimento científico? Della Volpe res- Exemplifiquemos com o caso da pintura: supondo que exista uma
ponde que a distinção entre arte e ciência só existe no plano da lin- linguagem pictórica e que ela consista em sinais - que seriam as linhas
guagem. "O caráter específico, distintivo, da poesia ou literatura é um e as cores de superfície (bidimensionais) -, quais poderiam ser as ideias
pictóricas que os meios hábeis (as linhas e as cores) nos transmitiriam
6
Ed. Feltrinelli, 3• edição, 1966.
7 8 G. Della Volpe, Critica dei gusto, p. 69.
"O modo particular da arte, aquilo que a distingue das outras atividades intelectuais, é
9 Ibid., p. 70.
dado pela sua matriz: a fantasia" (U. Barbaro, Il filme il resarcimento marxista dell'arte,
10 Ibid., p. 135.
ed. Riuniti, Roma, 1960, p. 295).

I77
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

nas pinturas bem-sucedidas? Caberia à "semiótica filosófica" responder sivamente de Hegel, sacrifica a sua compreensão do que seja totalidade.
a essa pergunta. Em uma passagem de um de seus escritos, ele cita um trecho de um tra-
Enquanto não existe essa ciência geral dos sinais, Della Volpe não balho alheio e coloca no interior da citação, entre colchetes, a seguinte
se estende e nem se aprofunda na consideração do problema da pintura. - espantosa - equiparação: "totalidade = unidade". Luporini vê nessa
Embora o seu sistema pretenda se erigir em estética geral, ele sente que inserção, que comenta e desvirtua as citações, um método típico do crí-
o terreno onde os marxistas ainda podem pisar com certa firmeza é tico: o "método da translação e metamorfose dos significados"Y
mesmo o da literatura. Por isso, a estética de Della Volpe- tal como a do Mas voltemos à valorização das ideias na arte, nos termos subs-
seu tão combatido Lukács- permanece, basicamente, uma poética. tantivos em que a prescreve Della Volpe. Argumentando em favor desse
No campo da literatura, contudo, Della Volpe não deixa de extrair aspecto do seu sistema, o crítico italiano invoca o precedente ilustre pro-
as conclusões mais diretas que lhe impõem o seu método e as premissas porcionado por Engels em sua atitude diante do conservador Balzac. Mas
gerais da sua estética. E a primeira dessas conclusões é a de que, se a dis- o exemplo não nos parece muito feliz. Primeiro, porque Engels admirava
tinção entre a arte e a ciência é apenas semântica, se a intelectualidade em Balzac o realismo do ficcionista, quer dizer, precisamente a força que
em ambas é uma só, então, tanto na arte como na ciência o valor das lhe permitiu superar, na criação artística, as limitações e deformações da
ideias é substantivo e dispensa considerações adjetivas. sua consciência conservadora. Depois, porque Engels não apreciava na
Para a orientação dellavolpiana, o que interessa, na arte, são as obra de Balzac as ideias expostas como ideias. Convém não esquecermos
ideias em geral, independentemente do fato de serem "justas" e "progres- de que o cofundador do materialismo dialético recomendou na carta à
sistas" ou "falsas" e "reacionárias". Nas obras de arte podem ser encon- senhorita Harkness (conforme vimos no capítulo "Marx e Engels") que
tradas, lado a lado: 1) a riqueza das ideias; 2) as qualidades estilísticas da ela não exibisse suas ideias nos seus romances e até procurasse mantê-las
linguagem de que se serve o artista, os seus recursos técnico-semânticos. preferencialmente ocultas. Della Volpe conhece essa carta, mas interpre-
Como a intelectualidade é comum à arte e à ciência, o problema da ta o conselho como uma prova de que mesmo em Engels há resíduos do
forma artística só se coloca, para o crítico, no nível da técnica. "medo romântico às ideias na arte"P
Por só enfocar o problema da forma artística no nível da técnica, O principal perigo que a posição de Della Volpe acarreta, no estri-
Della Volpe é levado a ver na distinção lukacsiana entre forma e técnica to campo da estética, está em que, reduzindo o conhecimento artísti-
uma "repugnância pela técnica" que é caracteristicamente "idealista e co e o conhecimento científico a uma comum intelectualidade, ela cria
romântica". condições nas quais a riqueza gnoseológica da arte dificilmente poderá
A valorização unilateral da técnica e a valorização paralela das competir com a riqueza gnoseológica da ciência. As exigências racio-
ideias substantivas na obra de arte levam Della Volpe a pedir uma "rea- nalistas da estética dellavolpiana acabaram por assumir a feição de um
bilitação" crítica para Zola, que é um escritor de bom estilo, linguagem intelectualismo em última análise hostil à arte. O valor da obra de arte
vigorosa e em cujos livros existem ideias ricas, representando adequada- - abstraídas as suas qualidades estilísticas ou técnico-semânticas -tende
mente a realidade. O mesmo critério faz com que ele aprecie indiferente- a reduzir-se à importância meramente documental-informativa. Della
mente (do ponto de vista artístico) Brecht, Maiakovski e Eliot. Flaubert, Volpe não chega à conclusão de que a arte fica inevitavelmente prejudi-
por sua vez, não lhe parece menos "instrutivo" para um revolucionário
socialista do que Balzac ou Tolstoi. Em nada lhe importa a questão de
11 Revista Rinascita, 20 de outubro de 1962. Na 3" edição da Critica dei gusto há um caso
se saber do melhor ou pior aproveitamento por parte de Zola, Flaubert, digno de nota na aplicação desse "método" por Della Volpe. Na página 60, procurando
Balzac e Tolstoi das possibilidades próprias dos gêneros em que criaram apoio para a sua tese neopositivista de uma identidade absoluta (não dialética) de pensa-
suas obras; tal problema - central para a estética lukacsiana - não tem mento e linguagem, ele recorre a Marx, citando uma frase sua (e enxertando o seu contra-
bando entre colchetes): "a realidade imediata [concreta] do pensamento é a língua". Para
maior significação para a orientação representada por Della Volpe.
Della Volpe, anti-hegeliano feroz, pode ser que as palavras imediata e concreta queiram
Para a corrente dellavolpiana, as obras de arte só se apresentam dizer a mesma coisa. Para Marx, entretanto, que se considerava discípulo de Hegel, é certo
como totalidades no que concerne à linguagem em que se comunicam. que o concreto não pode ser senão a superação do imediato.
Aliás, como observou Cesare Luporini, Della Volpe, afastando-se exces- 12 G. Della Volpe, Critica dei gusto, p. 55.
OS MARXISTAS E A ARTE

26.
cada quando submetida à comparação com o conhecimento científico
desenvolvido; quem chega a essa conclusão é Giuseppe Prestipino.
Prestipino é o enfant terrible do dellavolpismo. Não se trata de um CASES E ARISTARCO
pensador de primeira grandeza e nem mesmo de um crítico da importân-
cia de Della Volpe. Seguidor não ortodoxo da orientação dellavolpiana,
entretanto, leva o sistema de seu mestre às últimas consequências.
Prestipino diz aquilo que Della Volpe evita dizer: afirma, com
todas as letras, a inferioridade da arte em relação à ciência. Ele cita
e endossa Labriola, que não via na arte e na religião senão diferenças As pos1çoes lukacsianas, na Itália, têm tido como seus princi-
quantitativas. Para Prestipino, arte e religião têm em comum uma mesma pais defensores o crítico literário Cesare Cases e o crítico de cinema
alienação estrutural. A arte lhe parece achar-se em uma crise histórica Guido Aristarco. Atualmente, Cases- nascido em Milão em 1920- vem
lenta, mas inevitável, apresentando, por conseguinte, uma caducidade revendo sua orientação ideológico-política (aproximando-se da orienta-
tendencial. 13 ção adotada pelos marxistas norte-americanos que dirigem a Monthly
Segundo esse autor, a arte moderna não possui e nem pode alme- Review) e, também, as suas posições em matéria filosófica e estética,
jar possuir o mesmo valor de descoberta gnoseológica da arte antiga. A afastando-se das formulações de Lukács e atenuando suas críticas ao
arte antiga foi a poderosa antecipadora de concepções que, mais tarde, a irracionalismo e à avant-garde. O principal livro de Cases, entretanto,
ciência viria a dar uma forma mais orgânica e completa. A arte moderna é anterior a essa mudança e o filia à linha de Lukács: é a coletânea de
é contemporânea de uma ciência já desenvolvida. Sua situação é de óbvia ensaios intitulada Saggi e note di letteratura tedesca. 1
desvantagem diante desta. A época áurea da arte já passou. Cases é firmemente contra Della Volpe. Em um trabalho que foi
Curiosamente, o desenvolvimento mais radical da orientação publicado com o título de Marxismo e neopositivismo, 2 ele acusa Della
anti-Hegel no marxismo italiano chegou aqui a um ponto em que se Volpe de mutilar o marxismo, apresentando da concepção marxista do
identifica com um dos aspectos mais idealistas do sistema de Hegel: a mundo uma versão exclusivamente metodológica. Mas não é apenas às
tese da necessária superaçãooda arte (conhecimento sensível) pela ciência posições de Della Volpe que Cases dá combate: no interior do marxismo,
(conhecimento racional). ele critica Goldmann, Hanns Mayer, Ernst Bloch, de um lado, e de outro
todos os neostalinistas em geral (na República Democrática Alemã,
ao lado de Alexander Abusch, Kurt Hager, Alfred Kurella e Kuba, ele
caracteriza como stalinista o próprio Walter Ulbricht, "nefasta figura,
garantia de repressão e de imobilismo"). 3
Vejamos, rapidamente, algumas das restrições formuladas por
Cesare Cases a Goldmann, a Hanns Mayer e a Ernst Bloch. Goldmann
escreveu, certa feita, que o equilíbrio estilístico da frase "je pense, dane
je suis" [Penso, logo existo] era uma expressão do otimismo e da tran-
quila harmonia existentes na filosofia de Descartes, ao passo que a frase
"Le silence éternel des espaces infinis m'effraie" [O silêncio eterno dos
espaços infinitos me apavora] era uma expressão da própria essência
da visão trágica do mundo, presente na obra de Pascal, dada a subida

1 Ed. Einaudi, 1963.


13
G. Prestipino, L'arte e la dialettica in Lukács e Della Volpe, ed. D'Anna, Messina-Firenze, 2 Ed. Einaudi, 1958.
p. 139. 3 C. Cases, Saggi e note di letteratura tedesca, p. 137.

r8o I8I
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

vertical da sua primeira parte e a queda brusca da sua parte final. Cases rem em linguagem e, pois, todas equivalentes ao olho divino do crítico
lembra que Descartes sofreu uma crise existencial e assinala que Gold- estilístico que as contempla." 6
mann está simplificando demais a realidade ao procurar "completar" a A crítica filosófica leva sobre a crítica estilística a vantagem de
sua sociologia da arte recorrendo a métodos da crítica estilística. Segun- encarar de frente a maneira particular de conceber o homem e a nature-
do Cases, é insensato enxergar a essência de uma visão de mundo no za da práxis artística que serve de base aos seus métodos. Cases diz:
aspecto estilístico de uma frase.
A fundação da crítica sobre a filosofia mais do que sobre a linguística não é
A Hanns Mayer e a Ernst Bloch, Cases faz outras restrições. Para questão de mera origem cultural do crítico, é constitutiva da sua essência. Só
o crítico italiano, a oposição "liberal" aos "duros", na República Demo- o crítico de formação filosófica pode, de fato, mover-se livremente em meio
crática Alemã, foi liderada por ideólogos confusos e impressionistas. aos problemas suscitados pelas conexões da obra de arte com a totalidade
Em Hanns Mayer, por exemplo, ele enxerga uma grande abundância da vida e da sociedade sem cair, de um lado, no formalismo e, de outro,
de adjetivos como "saboroso", "picante", e de verbos como "degustar", na abstração positivista dos elementos conteudísticos da sua funcionalidade
estética"?
"metáforas alimentícias que revelam a posição mais de crítico-gastrôno-
mo do que de crítico-filósofo". 4 A obra de arte nunca é a manifestação de uma subjetividade isola-
A exigência de Cases no sentido de que a crítica de arte se baseie da: ela é o resultado do encontro do sujeito com a infinita variedade da
em uma estética sistemática e seja uma crítica filosófica nos parece ser, vida e da história. Se se acredita no princípio de que a atividade artística
aliás, o aspecto essencial do seu trabalho. Os seus melhores ensaios são não é um modo particular de apropriação da realidade e sim a expressão
aqueles em que, em vez de criticar obras de arte, ele discute formulações da subjetividade, ela permanecerá sempre inefável", observa Cases. 8
teóricas e métodos críticos. Sua atividade como ensaísta, a nosso ver, O terceiro expoente da crítica estilística que merece o exame de
atinge o auge quando, em lugar de polemizar com outros críticos mar- Cases é Eric Auerbach. Em seu livro Mimesis, 9 ele empreende com grande
xistas, ele analisa os princípios subjacentes à chamada crítica estilística. audácia e argúcia a análise de alguns momentos significativos da repre-
Especialmente quando ele comenta os trabalhos de Leo Spitzer, de Emil sentação da realidade ao longo da história da literatura ocidental e se
Staiger e de Eric Auerbach. 5 situa, segundo Cases, "na metade do caminho entre a crítica estilística
Para Cesare Cases, há na raiz da crítica estilística um princípio e a historiografia literária". Tratando-se de um crítico excepcionalmen-
irracionalista. Leo Spitzer, por exemplo, crítico de quem Cases foi aluno te bem-dotado, a amplitude da tarefa que se propôs constitui, ao lado
e que expressa com clareza essa orientação estilística, recomenda a leitu- de um trabalho que levou a um livro de leitura deveras estimulante, a
ra repetida de um texto, a fim de que o observador venha a se beneficiar melhor demonstração das limitações do método a que se manteve preso,
de uma espécie de iluminação, através da qual se lhe venha a revelar que são as limitações da crítica estilística ("temperada" com uma "aber-
a verdade essencial do texto literário. Cases assinala o parentesco que tura" para a história e a sociologia).
existe entre esse método e o princípio que vê na intuição o critério básico Pesqujsando a representação da realidade basicamente no nível
do conhecimento. da linguagem, Auerbach não consegue estabelecer uma concepção sufi-
Emil Staiger, também, outro expoente da crítica estilística, mere- cientemente sólida do realismo. Preso à visão do mundo subjacente aos
ce de Cases a mais franca rejeição. Staiger encara os gêneros não como métodos da crítica estilística, o autor de Mimesis acaba escorregando
estruturas objetivas, históricas, mas como atitudes subjetivas que mani- para uma compreensão relativista (isto é, deficientemente dialética) da
festam a "essência" do homem. "O universo da crítica estilística- escre- realidade. Assim, a representação fragmentária da complexa fragmenta-
ve Cases- é feito de infinitas mônadas ou mentes, cada uma diferente da ção a que o capitalismo conduziu a realidade histórica em nosso tempo
outra, mas todas acessíveis, pela propriedade comum de elas se traduzi-
6 C. Cases, Saggi e note di letteratura tedesca, p. 295-296.
7
Ibid., p. 302.
4 8
Ibid., p. 118. Ibid., p. 305.
5 9
A obra dos dois primeiros é analisada em Saggi e note di letteratura tedesca. A obra do E. Auerbach, Mimesis, ed. Einaudi, 1956. Há uma tradução castelhana de I. Villanueva e
último, em um artigo publicado em Il Contemporaneo de 7 de julho de 1956. E. Imaz, lançada pela Pondo de Cultura Económica em 1950.
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

lhe parece ser uma representação realista, embora implique uma der- sito. Criticando um personagem de Antonioni, Aristarco o compara aos
rota da consciência artística diante da tarefa de dominar o real como personagens de Kafka, Musil e Henry Miller, dizendo que, para ele, "o
um todo para poder penetrar na sua essência. De complexa (que real- coito é conteúdo e estilo de vida". No entanto, a frase foi empregada por
mente é), "a realidade se torna incognoscível e, portanto, é necessário Lukács unicamente em relação a Henry Miller, e a existência de pro-
reproduzi-la, como o faz Virgínia Woolf, apenas no átimo punctual" blemas análogos em outros autores foi assinalada pelo crítico húngaro
(Il Contemporaneo, 7 de julho de 1956). com a ressalva de que neles a tendência que estava sendo analisada (a
Depois de ter feito, durante muitos anos, uma campanha sem tré- tendência desumanizadora do avant-gardismo em geral) se apresentava
guas contra o relativismo, o irracionalismo, o agnosticismo e o experi- de maneira bem mais complexa e menos diretaP
mentalismo na estética e na arte contemporânea, Cases está, atualmente, Num ensaio publicado como introdução à edição do roteiro do
conforme já dissemos, revendo suas posições em face desses fenômenos. filme Rocco e seus irmãos, Aristarco procura fazer com Visconti o que
O defensor da linha lukacsiana na Itália, assim, fica sendo o crítico de Lukács fez com Thomas Mann: caracterizá-lo como o expoente do rea-
cinema Guido Aristarco, nascido em Mântua em 1918. lismo crítico na época atual. Entretanto, ele se excede nesse paralelo:
O grande mérito de Aristarco, em nossa opinião, está na firmeza a obra de Visconti é desdobrada, e para cada filme o crítico italiano
com que defende a inserção da estética cinematográfica nos quadros da encontra uma determinada correspondência com um romance de Mann.
estética geral. É claro que, como observa Umberto Barbaro, a estética La terra trema, por sua visão épica, cíclica, aproxima-se de José e seus
do cinema contribui para "renovar e aprofundar o próprio conceito de irmãos. Senso é um epos da decadência, tal como Os Buddenbrook.
arte"; 10 mas Aristarco está certo quando chama a atenção dos cineastas Ossessione é A montanha mágica de Visconti: marca uma luta entre
e estudiosos do cinema para o fato de que a estética cinematográfica é democracia e reação. Cada filme de Visconti tem de ter algo em comum
um desenvolvimento particular da estética geral. O-----·-'----~~.~-~---'--
cinema como arte com algum romance de Thomas Mann ... 13
-

p_()_SSU_iªsu;:t ~rea espeçífica de Pl"oble1nas estéticos, mas não possui uma~ No que se refere à elaboração teórica requerida para o trabalho
~stéti<:;l :1utôgoma, no interior_ga_qual as questõ~s sejam filosoficam~nte. crítico, Aristarco tende a "descansar" demais sobre os esquemas de
diver§<}S das (ll1estões çQlocagas p;.ua as demais artes._ A pretensão de Lukács, tende a se servir um pouco apressadamente das armas disponí-
discutir os problemas teóricos do cinema fazendo abstração dos concei- veis no arsenallukacsiano. Essa deficiência não invalida, evidentemente,
tos, critérios e categorias formulados para as outras artes é tão inaceitá- a sua obra.
vel como a aplicação mecânica ao cinema dos métodos já estabelecidos Em geral a atividade crítica de Aristarco tem sido árdua e positiva,
para a análise da criação literária, teatral, pictórica ou musical. e ele tem combatido eficazmente numerosos equívocos no que concer-
"A teoria cinematográfica- escreve Aristarco -insere-se na estéti- ne à avaliação das tendências do cinema italiano e à compreensão dos
ca geral e destina-se a seguir-lhe o desenvolvimento; o problema consiste problemas do cinema mundial. Contra Carla Ragghianti, que conside-
em ver qual é a estética verdadeiramente válida".U Se a estética verda- ra o cinema como arte basicamente figurativa, encarando a história do
deiramente válicia é a lukacsiana, como acredita Ari~tar;;:--~~tã;-;-i;~-~-­ cinema como continuação da história do teatro como espetáculo (e não
de Ll!l<:ªcs 11ão se t_erdedicado à crítica cinematográfica não impede que como texto), foi Aristarco, talvez, quem mais firmemente defendeu o
~eus princípios, métodos e principais categorias possam ser de suma uti- ' caráter narrativo do cinema como arte e seu parentesco com a literatura.
lidade quando aplicados ao_ cinema. Contra Zavattini, que preconiza a substituição da criação ficcional, da
A aplicação das categorias lukacsianas ao cinema, entretanto, "narrativa inventada", pelo "espírito documentarista", e contra Luigi
para ser fecunda há de ser crítica. E Aristarco nem sempre é suficien- Chiarini, que vê no documentário o "puro cinema", liberado da "lite-
temente crítico no emprego delas. Não possuindo a cultura literária de ratura", foi Aristarco, sem dúvida, quem mais resolutamente defendeu
seu mestre, ele por vezes utiliza suas metáforas um tanto fora de propó- 12 Cf. id., Cinema italiano 1960, ed. Il Saggiatore, 1961, p. 44. Cf. G. Lukács, La significa-
tion présente du réalisme critique, ed. Gallimard, p. 144-145 [cf. Realismo crítico hoje,
10
U. Barbaro, Il filme il risarcimento marxista dell'arte, ed. Riuniti, p. 260. ed. cit., p. 117.].
11
13 G. Aristarco, Rocco e i suoi fratelli, ed. Cappelli, p. 46.
G. Aristarco, Storia delle teoriche del film, ed. Einaudi, 1960.

r85
OS MARXISTAS E A ARTE

os direitos da fantasia, as superiores possibilidades estéticas da história 27.


narrada sobre a descrição jornalística, sobre o ensaio sociológico (ou
psicológico) e sobre a crônica. FISCHER
Dentro das limitações que }he .advêm de um deficiente vigor espe-
culativo, Aristarco desenvolve um trabalho crítico pertinaz e coerente,
sustentando as posições que Cases está revendo e que Ernst Fischer,
como veremos no próximo capítulo, já reformulou.

Ernst Fischer, poeta e crítico austríaco nascido em 1899, foi minis-


tro da Educação do governo provisório da Áustria estabelecido em 1945,
logo após o final da guerra. Comunista desde 1934, Fischer foi, em certo
período, um lukacsiano. O crítico italiano Cesare Cases conta o seguinte
episódio: Lukács estava, uma vez, falando a respeito de seu próprio estilo,
comentando a dificuldade que suas frases longas, tortuosas e nuançadas,
acarretavam para a leitura. E dizia: "Sei que nenhuma de minhas frases,
isoladamente, sobreviverá. Acho, contudo, que alguns dos meus livros
sobreviverão". Fischer, presente à conversa, corrigiu Lukács: "Alguns,
não; todos". 1
Atualmente, Fischer se afastou das posições de seu antigo mestre
e diverge dele no enfoque de diversas questões. Diante da arte moderna,
por exemplo, sua atitude é muito menos rigorosa do que a de Lukács, e
suas conclusões são bem menos negativas. Ele tende a rejeitar o conceito
de decadência nos termos em que esse tem sido aplicado à caracterização
da arte moderna e, especialmente, à caracterização do avant-gardismo.
Para Fischer, nem todas as expressões culturais de uma época de
decadência, como a nossa, mesmo no interior de uma classe decadente,
devem ser consideradas comprometidas com a decadência. Nesse senti-
do, ele considera a decadência da burguesia no mundo contemporâneo
qualitativamente diversa da decadência do antigo mundo romano: esta
última foi culturalmente estéril, mas a outra (a da burguesia) não o é.
Durante o colóquio de Praga, realizado em 1963, Sartre adotou essa
distinção de Fischer. 2
Como crítico, Fischer tem exercido poderosa influência. Entre os
marxistas franceses, por exemplo, suas ideias encontram grande recep-
tividade. Os melhores esforços desse crítico·estão dedicados à defesa da
necessidade da arte: A necessidade da arte, aliás, é o título de seu princi-

1 C. Cases, Saggi e note di letteratura tedesca, ed. Einaudi.


2 Revista La Nouvelle Critique, junho-julho de 1964.

I86
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

pallivro, que já foi traduzido para diversas línguas e editado em diversos to, por outro lado, e em virtude da natureza especial que possui, não
países, inclusive no Brasil. 3 deixa de funcionar, também, como veículo de recreação, como fator de
Para explicar a natureza da arte, Fischer se reporta às suas origens equilíbrio, como terapêutica psicológica, como "jogo sério" (Goethe),
históricas e mostra que, nos alvo~;es da humanidade, ela era um instru- como superação simbólica do isolamento individual, e até como arma
mento mágico a serviço da coletividade humana em sua luta pela sobre- na luta política.
vivência. Naquele tempo, o trabalho humano era rudimentar, dominava As diversas funções que a arte exerce, em nossos dias, não se
muito eficientemente o mundo exterior e, por isso, o mundo subjetivo equivalem umas às outras. Essas funções correspondem a níveis de ação
não se distinguia bem do mundo exterior, objetivo. "A religião, a ciência cultural que comportam possibilidades diferentes para a práxis huma-
e a arte eram combinadas, fundidas, em uma forma primitiva de magia, na. Existe nelas uma hierarquia de significações. O valor que uma obra
na qual existiam em estado latente, em germe". 4 "A função decisiva possui apenas como veículo de recreação, por exemplo, não pode ser
da arte nos seus primórdios foi, inequivocamente, a de conferir poder: sobreposto ao seu valor especificamente estético-gnoseológico. É o sis-
poder sobre a natureza, poder sobre os inimigos, poder sobre o parceiro tema capitalista -com sua rejeição prática da comunidade humana e
de relações sexuais, poder sobre a realidade". 5 com sua aversão à arte - que procura lançar a confusão sobre isso. O
Quando se processou a divisão social do trabalho e apareceram as capitalismo alimenta nas massas um espírito que as leve a só buscar na
classes sociais, a comunidade humana - que perdera a unidade natural arte experiências culturalmente inócuas, que as leve a procurar obras
primitiva - deixou de se servir da arte na função que esta vinha tendo: a superficiais, de ação meramente digestiva, e nunca obras realmente
arte se vinculou aos antagonismos de classe (que não existiam no perío- capazes de levar os homens a uma compreensão mais profunda de seus
do anterior) e passou a ser um meio para a superação da solidão indivi- próprios problemas.
dual, um meio para cada indivíduo se ligar à coletividade dilacerada. Sob a pressão da ideologia capitalista, alguns críticos e alguns
A subjetividade se desenvolveu, mas o seu desenvolvimento se deu artistas perdem de vista o essencial na arte, deixam de se preocupar
em condições que não ensejaram um aprofundamento na comunicação com as possibilidades de maior alcance da criação estética e se põem a
intersubjetiva, porque o espírito comunitário não pode se impor onde superestimar funções secundárias do trabalho artístico. Sacrificada a
a vida prática se rege pela competição mais exacerbada entre os indiví- dignidade que lhe advém do fato de ser um modo de conhecer o real, a
duos. O indivíduo se sente inconformado com a ideia de que ele é apenas arte deixa de ser o "jogo sério" de que falava Goethe e fica sendo apenas
um indivíduo e se esgota em si mesmo. um jogo sem seriedade, equivalente a qualquer outro; deixa de ser uma
atividade de desalienação para se tornar uma atividade gratuita e fútil,
Sente que só pode atingir a plenitude se se apoderar das experiências alheias
que potencialmente lhe concernem, que poderiam ser dele. E o que um um acumpliciamento com a alienação.
homem sente como potencialmente seu inclui tudo aquilo de que a humani- Fischer, como marxista, não ignora a existência dessa pressão
dade, como um todo, é capaz. A arte é o meio indispensável para essa união ideológica do. capitalismo no sentido de combater a eficácia particular
do indivíduo com o todo. 6 da arte como meio de conhecimento; algumas das melhores páginas de
seu livro estão dedicadas ao desmascaramento da patranha. Surpreen-
No curso da história, à medida que se desenvolve a dominação da dentemente, contudo, o brilhante ensaísta austríaco faz uma concessão
natureza pelo homem, a arte vem tendo as suas funções multiplicadas e - difícil de se entender - à ideologia burguesa: abre mão da teoria mar-
diversificadas. Sem perder de JOilQª_~l1a seryentiam<igiç§:. _()J:!gina1'"~1~. xista do realismo.
~-o seupoder__d_epr_op0 rcionar ao ho.mem.ummelhor.conhecimen- Na acepção<lfi1Pla que lhe dá o marxismo, o ~~~eito de ~eal~!!l9-.
!()~.4~2LW~~mÕ::·e~:~r; J11u.nclo em que vive. Sendo um meio de conhecimen- abarc;-tõdâ'ã grande arte e não. se(l~~âenceyx~_ÇJ!!_fQI_rP'ill~s.so1ll_:
- --~- " 'd___ - . -- ,, _, -1 " " ~~~ " " '1 " " "t
3 pr()met1. as c0 m. qu~1squer esco as , COJ:f~ntel!_,_~~§.1:1 gs ___Q!L!TI~ Q-_
E. Fischer, A necessidade da arte, ed. Zahar, 1966.
4
Ibid., p. 19. ·<fos;, particulares. Empregado em sua máxima amplitude, o conceito
5
Ibid., p. 45. .de realismo serve à estética marxista para frisar na arte o seu caráter
6
Ibid., p. 13. de conhecimento da essência da realidade. Com base em tal conceito,

r88
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

a estética marxista define, desde logo, uma posição de combate às teo- do caráter realista (apreensão das condições concretas do presente). As
rias que veem na arte, acima de tudo, uma atividade lúdica gratuita, a realizações do chamado realismo socialista não foram deficientes em
manifestação de uma subjetividade fetichizada (desligada de seu condi- virtude da orientação realista, e sim em decorrência do deficiente apro-
cionamento histórico-social) ou a representação fragmentária de uma fundamento dessa orientação, dada a falta de penetração na essência
realidade epidermicamente captada. Em outros termos: definindo-se do real, dada a simplificação das contradições existentes na realidade
pelo realismo, a estética marxista rejeita o esteticismo, o psicologismo e soviética e, também, dada a subordinação anômala do substantivo às
o naturalismo; rejeita as atitudes idealistas, românticas e empiristas. exigências imediatistas formuladas em nome do adjetivo.
Fischer, entretanto, acha que o termo realismo, usado nessa acep- Essas reservas não nos devem impedir de enxergar em Fischer um
ção ampla, enseja muitas confusões. E preconiza o confinamento do crítico de amplos horizontes ideológicos e culturais, um teórico de inegá-
conceito de realismo às dimensões de um método particular, equivalente vel talento. Seu livro - como assinalou um crítico brasileiro - carece de
a outros métodos possíveis. uma sistematização mais elaborada e de uma metodologia mais definida
Reduzido o realismo aos limites de um método particular, de um no tratamento das questões estéticas.? Mas, a despeito do seu impressio-
estilo ou de uma escola, ele já não proporciona ao crítico marxista um nismo, assinala um êxito na renovação da crítica marxista.
critério de valor estético. Ser realista, em princípio, vale tanto como ser
romântico, ser expressionista, ser clássico etc. Fischer vê nisso uma van-
tagem: a crítica marxista seria levada a respeitar mais a liberdade de
criação do artista. Mas, a nosso ver, a legitimação teórica dessa "van-
tagem" é precária. Para respeitarem a liberdade de criação artística, os
críticos marxistas não estão obrigados a renunciar à crítica e às suas exi-
gências: cabe-lhes exercerem honestamente o seu mister, recusando-se a
dar cobertura a medidas burocrático-repressivas, recusando-se a apoiar
qualquer política cultural de orientação dogmática ou imediatista, mas
defendendo as ideias em que acreditam e utilizando a aparelhagem con-
ceitual mais adequada para a expressão dessas ideias.
Por ter adotado uma concepção estreita do realismo, Fischer é
levado a análises críticas por vezes bastante discutíveis, como a da evo-
lução de Thomas Mann (segundo a qual o Doktor Faustus seria menos
"realista" do que Os Buddenbrook) ou a da evolução de Stendhal (segun-
do a qual o Lucien Lewen seria mais "realista" do que O vermelho e
o negro). Também em sua interpretação dos acontecimentos ocorridos
com a literatura soviética durante o período stalinista, Fischer é levado a
conclusões que nos parecem sumamente insatisfatórias. Para ele, já que a
expressão realismo socialista se acha comprom.etida com a literatura de
propaganda de baixo nível que a burocracia staliniana oficializava - e se
acha comprometida igualmente com um espírito acadêmico -, o melhor
é substituí-la pela expressão "arte socialista".
A nosso ver - como já dissemos ao tratar das origens do realis-
mo socialista no capítulo dedicado a Gorki -, o equívoco não está no
substantivo, e sim no adjetivo: o voluntarismo stalinista promoveu a
hipertrofia do caráter socialista (alvo que se visava atingir) e a atrofia 7
Revista Civilização Brasileira, n. 7, resenha de Ferreira Gullar, p. 459.
28.

KOSIK

Não é só nos pàíses capitalistas que podem ser registradas inicia-


tivas dignas de atenção no sentido de uma revitalização e um desenvol-
vimento do pensamento marxista e da estética do marxismo: também
nos países socialistas, superados alguns dos entraves burocráticos stali-
nistas, a teoria marxista da arte se renova. Tomemos, como exemplo, o
filósofo tcheco Karel Kosik.
Kosik nasceu em Praga, em 1926. Participou clandestinamente da
resistência antinazista, durante a guerra, quando seu país - a Tchecos-
lováquia- foi ocupado pelas tropas hitlerianas. Exerceu, na década de
1950, como militante comunista, uma ativa influência na luta contra a
estreiteza dogmática e contra os métodos stalinistas. É um dos responsá-
veis pela reavaliação da obra de Kafka na Tchecoslováquia.
Em 1965, a editora Bompiani lançou, na Itália, a tradução de uma
importante obra desse pensador tcheco: a Diaiettica dei concreto (trad.
Gianlorenzo Pacini). Nela, Kosik analisa as mistificações do mundo da
"pseudoconcreticidade", que é o mundo da reificação, das aparências
enganadoras, dos preconceitos e da práxis fetichizada. A Diaiettica dei
concreto, de resto, não é fecunda apenas para a estética marxista: ela
possui uma fecundidade mais ampla e ajuda a aprofundar a própria teo-
ria marxista do conhecimento.
O mundo da "pseudoconcreticidade", segundo Kosik, é o mundo
da confusão da verdade com o erro, é o mundo da ambiguidade genera-
lizada. Na realidade que a autêntica práxis vai desvendando ao homem,
essência e fenômeno constituem o mundo concreto: há entre essência e
fenômeno uma unidade, mas não uma identidade. Para não se afastar
do concreto, o conhecimento humano precisa distinguir, a cada passo,
em cada nível, onde se situa a essência e onde se situa a sua manifestação
fenomênica, a fim de poder apreender-lhes a efetiva unidade.
Kosik enxerga nessa dificuldade inerente ao processo de desenvol-
vimento do conhecimento humano as próprias raízes gnoseológicas do
pensamento religioso. Diante das condições extremamente duras em que
o conhecimento se vê obrigado a avançar, separando continuamente o

193
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

fenômeno e a essência para reencontrar-lhes a unidade, o sujeito costu- é mais ampla do que o trabalho, de vez que ela compreende, além do
ma impacientar-se e recorrer às fórmulas místicas de um conhecimento momento propriamente laborativo, o momento existencial.
que prescinde de mediações e que forja a apreensão imediata da essência A práxis é não só atividade de dominação da natureza e formação
do real: "o misticismo é exatamente a impaciência do homem por conhe- dos sentidos humanos como - cumpre não perder isso de vista - elabo-
cer a verdade". 1 ração da subjetividade (p. 245). 4 Se a relação do homem com as coisas
Por outro lado, mesmo que não recorra ao procedimento místico, fosse uma mera relação entre objetos, não haveria liberdade, a práxis
o sujeito humano pode levar seu conhecimento a perder-se em descami- não possuiria um caráter ontocriador. A relação sujeito-objeto cria um
nhos vários. A reflexão e a observação comportam o reconhecimento novo modo de ser, um modo de ser que não se deixa esgotar pelo pre-
das mediações, mas também admitem que o sujeito humano se desvie da sente e que envolve, conjuntamente, o passado, o presente e o futuro. A
apreensão da essência do real. A própria atividade do sujeito humano no práxis sintetiza o passado, se realiza no presente e projeta o futuro.
sentido de se apropriar do real, por conseguinte, precisa ser analisada. E À tarefa de projetar o futuro corresponde certa "intencionalida-
Kosik apresenta o problema com notável clareza: de" característica da consciência humana. Não se trata de uma inten-
cionalidade genérica e abstrata, e sim de uma intencionalidade sempre
O problema fundamental da teoria materialista do conhecimento é consti-
tuído pela relação e pela possibilidade de transformação da totalidade con- particularizada por formas concretas da práxis. A atividade do homem,
creta em totalidade abstrata: como fazer para que o pensamento, repro- em geral, é múltipla, tem vários aspectos; e a cada um desses aspectos
duzindo espiritualmente a realidade, se mantenha à altura da totalidade está ligada uma "intencionalidade" característica. "O homem- escreve
concreta, em vez de degenerar em totalidade abstrata? (p. 62) 2 Kosik - vive em múltiplos mundos, mas cada mundo tem uma chave
diversa, e o homem não pode passar de um ao outro sem essa chave,
A importância atribuída por Kosik ao caráter totalizante do quer dizer, sem mudar a intencionalidade e o correspondente modo de
conhecimento filia-o, desde logo, à linha racionalista de Gyorgy Lukács. apropriação da realidade" (p. 29). 5
Ele não é um lukacsiano ortodoxo, como era até bem pouco Cesare Retomando uma reflexão que o jovem Marx desenvolvera nos
Cases, porém possui uma dívida em relação a Lukács e especialmente Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, Kosik assinala que a des-
em relação ao Lukács de História e consciência de classe. No entanto, coberta do sentido objetivo das coisas é, ao mesmo tempo, a criação de
a orientação mais resolutamente materialista de Kosik faz com que, em, um sentido subjetivo apropriado para capacitar o homem àquela desco-
sua compreensão do caráter da práxis humana, ele seja capaz de discer- berta.
nir uma variedade de aspectos que era descurada pelo Lukács hegeliani- Com a divisão social do trabalho e seus efeitos alienadores, o
zante de 1922. momento subjetivo da realidade social se desligou do momento objetivo,
"O grande conceito da moderna filosofia materialista - escreve criando-se, assim, duas ilusões: a do subjetivismo e a do objetivismo.
Kosik - é a práxis" (p. 237). 3 Com tal formulação, ele passa de uma No terreno da estética, podem ser encontradas, com facilidade, expres-
posição lukacsiana (conhecimento concebido como totalização) a uma sões tanto do subjetivismo como do objetivismo.
posição gramsciana (marxismo concebido como filosofia da práxis). A A tendência subjetivista leva a desvincular a criação artística do
práxis é a atividade pela qual o homem se caracteriza como homem e mundo objetivo em que vive o sujeito criador, leva a uma concepção
pela qual ele se apodera do mundo. Ela implica a relação sujeito-objeto. arbitrária da subjetividade, leva a uma concepção irracionalista da cria-
O trabalho é uma modalidade de práxis, porém, para Kosik, a práxis ção. A tendência objetivista, por sua vez, leva a estabelecer uma ligação
direta ou insuficientemente mediatizada entre a obra de arte e a situação
1
objetiva dada, a circunstância histórica em que se realizou a criação.
K. Kosik, Dialettica dei concreto, p. 27. Os trechos citados neste capítulo são todos "Mas a realidade social é infinitamente mais rica e mais concreta do que
extraídos desse livro, e as páginas se referem à mesma edição [há edição brasileira Dialé-
tica do concreto, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2011, p. 27]. '
2
[Ed. bras. cit., p. 57]. 4 [Ed. bras. cit., p. 224].
3
[Ed. bras. cit., p. 217]. 5 [Ed. bras. cit., p. 29].

I94 I95
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

a situação dada e do que a circunstância histórica, porque ela (realidade quer modalidade de práxis, a reprodução do passado se completa com
social) inclui em si a práxis humana objetiva, que cria tanto a situação a criação do novo, o objetivo se completa com o subjetivo, o absoluto se
como as circunstâncias" (p. 145), 6 cria no relativo. Hamlet, Fausto, Dom Quixote e Gregor Samsa- escreve
O sociologismo promove, sem dúvida, a confusão em torno da Kosik - representam formas de consciência saídas de uma determinada
natureza da arte, acolhendo uma metodologia viciada pelo objetivismo. situação histórico-social e que, uma vez formadas, se inseriram ativa-
Porém o sociologismo promove, também, a confusão em torno da natu- mente no fluxo histórico, justamente por estarem criando a história. E,
reza da economia e da situação social, deixando de encará-las como por estarem criando a história, sobrevivem às circunstâncias particula-
produtos da práxis humana criadora. Os críticos de orientação sociolo- res da sua gênese.
gista tomam a economia e a situação social como realidades fetichiza- Aqui, Kosik chega ao problema colocado por Marx: a dificulda-
das, encarando-as como se elas criassem a atividade do homem e não de não está em compreender a ligação da antiga arte grega com a socie-
o contrário. A realidade é mais ampla do que a situação, pois abrange' dade do seu tempo, está em explicar por que ela ainda hoje pode nos
a práxis humana que criou tal situação e a vai superar. "A economia - proporcionar uma rica experiência estética e, do ponto de vista formal,
adverte Kosik - não engendra a poesia, quer direta quer indiretamente, vale como norma e modelo insuperado. O filósofo tcheco enfrenta o
quer mediata ou imediatamente; é o homem que cria a economia e a problema e começa por observar que a "supratemporalidade" da obra
poesia como produtos da práxis humana" (p. 132)?. de arte não é outra coisa senão a sua "temporalidade" perdurando
A realidade que se desvenda ao homem na arte não é uma realida- como atividade. E acrescenta, com agudeza e rigor, que não pode ser
de que o homem já conhecesse e que a arte lhe esteja apenas apresentan- "supratemporal" (isto é, não pode se situar acima do tempo) algo que
do sob outra diversa forma. "A obra de arte exprime o mundo enquanto nasce no tempo.
o cria" (p. 144). 8 Para compreender isso, é preciso ter em mente que o A seguir, procurando explicar como a "temporalidade" de uma
conhecimento humano totaliza uma realidade que se renova a cada ins- obra de arte consegue perdurar como influência ativa, Kosik se reporta
tante. O novo é uma qualidade estrutural do real. (O Lukács de História a um caráter humano genérico, que existe como condição geral de todas
e consciência de classe já havia enxergado na realidade que a práxis nos as fases históricas e, ao mesmo tempo, como produto particular de cada
vai desvendando um "jorrar ininterrompido de novidade qualitativa"). época (p. 161). Ele ressalva que semelhante caráter humano genérico
Em sua essência, o real vai se desvendando à atividade prático- não existe de maneira autônoma, como substância imutável. Mas, ao
espiritual do homem como uma totalidade; mas o real é irredutível ao mesmo tempo, funda nele um valor "meta-histórico". Falando em valor
conhecimento, a consciência jamais o esgota definitivamente, e a tota- "meta-histórico", Kosik não estará abandonando o terreno do rigoroso
lidade-categoria em que a consciência humana busca reproduzir a rea- imanentismo historicista? Não estará acolhendo elementos metafísicos
lidade deve ser uma totalidade "aberta". Aso11sciê11c:ia ql!e descura '!, em sua concepção do marxismo? Não estará deixando de conceber o
,infinita riqueza do real e busca encerrá-lo de uma vez por todas em u~a marxismo como historicismo absoluto, como postulava Gramsci? E a
concepção acabada, "fechada", não contraditória, da totalidade ac~b~" concepção de um caráter humano genérico pelo pensador tcheco não
inevitavelmente lidando com
"' ' ' '.
uma totalidade abstrata
' - ----
-- - '- ~~zia
.
- - -
e deform~=
- -
--- --------\
--- - -- " '
estará assumindo uma feição inevitavelmente substancialista?
dora do real.
Um dos modos de evitarmos a degeneração da totalidade concreta
em totalidade abstrata é justamente não perdermos de vista essa inesgo-
tabilidade do real, não deixarmos de ter em mente o caráter ontocriador
da práxis humana. Na elaboração de toda obra de arte, como em qual-

6
[Ed. bras. cit., p. 132].
7
[Ed. bras. cit., p. 121].
8
[Ed. bras. cit., p. 132].

197
CONCLUSÕES

1
Com Karel Kosik encerramos, um tanto arbitrariamente, nossa
evocação sumária de alguns vultos significativos da história da estéti-
ca marxista. Muita gente importante ficou de fora (Meyerhold, Ernst
Bloch, T. W. Adorno, Paul Lafargue, Adam Schaff, Cesare Pavese, Geor-
ge Thomson, Sidney Finkelstein, Antonio Banfi etc.). Muitos problemas
de primeira grandeza não terão sequer sido aflorados. Mas- conforme
tivemos oportunidade de assinalar na "Introdução"- estamos convenci-
dos de que, nas nossas condições de trabalho, as omissões eram mesmo
inevitáveis. Por isso, conformamo-nos com os limites modestos admiti-
dos para o plano do presente estudo.
Kosik nos colocou diante da necessidade de aprofundarmos a
nossa compreensão da história e da historicidade. A concepção mar-
xista da história pressupõe uma interação recíproca entre o passado, o
presente e o futuro. Para a consciência humana, encarada da perspec-
tiva marxista, não existe presente sem projeção para o futuro: dado o
caráter essencialmente projetivo da consciência humana (vinculado ao
caráter essencialmente teleológico do trabalho humano), o futuro é um
fator estrutural do presente. No entanto, o futuro também não existe
como um porvir inteiramente desligado do presente. O futuro existe já
no presente como possibilidade, existe em germe: sua determinação não
é indiferente às condições atuais do presente.
Por outro lado, o marxismo entende que não há presente sem pas-
sado. O passado é um agente vivo na plasmação do presente e, por meio
do presente, condiciona o futuro. Reconhecida essa capacidade do pas-
sado de marcar sua presença na criação do futuro, é fácil compreender
por que o passado não morre todo, é fácil compreender por que ele con-
segue persistir como força ativa no presente.
A aquisição, a ampliação e a transmissão da autoconsciência
humana conseguidas nas grandes realizações artísticas não fazem senão
manifestar esse poder de persistência do passado. A durabilidade do
conhecimento artístico decorre da interação dialética de passado, pre-
sente e futuro.

I99
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

O poder da arte de sobreviver às circunstâncias que a veem nascer leve a doutrina lukacsiana a superar certa unilateralidade decorrente da
não manifesta valores supra-históricos ou valores meta-históricos, como sua aplicação quase exclusiva às questões da literatura, especialmente às
supõe Kosik. No máximo, poderíamos falar em valores tráns-históricos, questões da literatura épica e dramática.
valores vinculados à continuidade existente no movimento da história, a
respeito dessa capacidade de perdurar da arte.
O reconhecimento de uma continuidade no movimento da histó- 3
ria e de valores ligados a ela não implica abandono de uma perspectiva
rigorosamente imanentista, não implica abandono da perspectiva de um Os esquemas de Lukács comportam certos riscos. O maior desses
historicismo absoluto. A propósito, queremos citar aqui uma passagem riscos é, sem dúvida, aquele que mais insistentemente tem sido apontado
de um escrito do crítico marxista N. Sapegno, que observou que as obras pelos antilukacsianos: o de uma atitude excessivamente conservadora
de arte só perduram "quando passam a fazer parte da experiência que diante da arte moderna. 3
progride em uma contínua acumulação da realidade adquirida e sistema- A caracterização da avant-garde por Lukács é menos precisa do
tizada em uma tradição estável". 1 que a sua caracterização do realismo: por vezes, ele é levado a rejeitar
um tanto sumariamente, em nome da sua repulsa ao avant-gardismo,
obras que, embora problemáticas, sugerem possibilidades novas para
2 o moderno desenvolvimento do realismo. Um estudo rigoroso, porém
compreensivo das obras que Lukács inclui na avant-garde, deve levar a
Do biologismo de Kautsky, do sociologismo de Plekhanov e das distinções cujas consequências não podem ser subestimadas. Alguns crí-
posições idealistas de Mehring até os nossos dias, um longo caminho foi ticos burgueses, por exemplo, estabeleceram a aproximação de Kafka,
percorrido pela estética marxista. Muitos equívocos foram cometidos, Proust e Joyce. Lukács, em certo período, admitiu a identidade básica
mas algum progresso se fez, inegavelmente: o quadro dos problemas das tendências consubstanciadas nas obras desses três autores. Somente
com que se defronta hoje a estética marxista é mais diferenciado e mais agora é que ele começa a assinalar o diferente significado estético de tais
amplo do que na época dos pioneiros. escritores. 4
As indicações de Marx e Engels foram trabalhadas, desenvolvi- Outra manifestação de conservadorismo potencial nas posições
das e organizadas de maneira sistemática. Nenhuma forma definitiva de de Lukács pode ser encontrada, a nosso ver, na análise de Kafka feita
sistematização, entretanto, conseguiu, ainda, se impor como expressão pelo crítico há cerca de dez anos, quando ele considerava a obra de Kafka
indiscutida do pensamento estético do marxismo. fundamentalmente comprometida com a decadência e propunha para o
Das duas estéticas marxistas sistemáticas propostas em nosso escritor (burguês) de nosso tempo o seguinte dilema: ou Franz Kafka ou
tempo - a de Lukács e a de Della Volpe -, é a primeira que nos parece Thomas Mann (quer dizer: ou uma literatura decadente "artisticamente
levar vantagem. A elaboração de uma estética marxista tanto quanto interessante", mas limitada e de uma só dimensão, ou uma literatura
possível definitiva e completa, segundo cremos, deverá partir das con- realista crítica, legítima continuadora dos mestres do século passado). 5
quistas do sistema lukacsiano.
Em nossa opinião, a estética de Lukács exige certos desenvolvi-
no, o editor Juan Grijalbo está publicando em quatro volumes a primeira parte aparecida
mentos, certas clarificações. É possível que o extenso tratado que o filó-
em alemão.
sofo húngaro ora está publicando, 2 ao estender a sua visão sistemática 3 Respondendo a uma carta que lhe enviamos, Lukács admitiu não ter lido Gramsci. É um
dos problemas estéticos à pintura e, sobretudo, à arquitetura e à música, desconhecimento sintomático. A assimilação da flexibilidade e capacidade de aclimatação
de Gramsci ao rigor teórico de Lukács apresenta problemas numerosos e delicados: mas nos
1
N. Sapegno, "Prospective della storiografia letterária", em L'Approdo Letterario, janeiro parece constituir o caminho mais fecundo para o desenvolvimento da estética marxista.
de 1958. 4 Cf. a entrevista concedida a Antonin Liehm e publicada em La Nouvelle Critique, junho-
2
A primeira parte da Aesthetik já foi publicada em alemão, em dois alentados volumes, edi- julho de 1964.
ção Luchterhand, 1963. A ela, dever-se-ão seguir, ainda, outras duas partes. Em castelha- 5 Cf. G. Lukács, La signification présente du realisme critique, ed. Gallimard, 1960.

200 20I
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

Em um pequeno trabalho que escrevemos sobre Kafka e que foi No que se refere à especificidade do conhecimento artístico,
recentemente publicado, 6 tivemos oportunidade de expor a nossa discor- Lukács tem sido, ao que sabemos, o campeão da defesa da arte contra
dância da formulação lukacsiana. Opinamos no sentido de que a estru- a assimilação do conhecimento artístico ao conhecimento sociológico
tura do romance kafkiano seria um caso anômalo de incorporação bem- ou à informação jornalística. "O que eu me pergunto sempre, diante de
sucedida de elementos trágicos à estrutura épica. Embora reconheçamos um livro - dizia Lukács a Antonin Liehm - é o seguinte: o que está dito
serem em geral problemáticas as obras em que existe hibridez estrutural, aqui não poderia ser dito com, digamos, as mesmas dimensões através
achamos que as obras de Kafka constituiriam exceções na história da da reportagem? Foram propostos e resolvidos, aqui, problemas situados
literatura. E lembramos que o próprio Lukács reconheceu uma dessas num plano que é realmente o da arte, e não o da sociologia?" 9 Numa
exceções quando admitiu a qualidade do Hyperion de Hoelderlin, que é época em que as concepções neonaturalistas ganham, entre nós, tanta
uma obra de estrutura simultaneamente épica e lírica.? penetração, parece-nos que de fato não são ociosas as preocupações de
N assa interpretação do fenômeno Kafka pode ser insuficiente e Lukács.
pode estar equivocada. A ela fomos levados pela convicção de que a A arte não se reduz, nas suas possibilidades de maior alcance, a
interpretação proposta por Lukács em 1956 era inaceitável. E, ainda um valor meramente documental. Se eu quiser me informar a respeito
que admitamos a possibilidade de um engano em nossa crítica de Kafka, das condições políticas, sociais e econômicas de uma determinada socie-
sentimo-nos hoje mais fortalecidos do que nunca em nossa convicção dade, as obras de arte que ela produziu poderão me prestar boa ajuda,
da inaceitabilidade da análise lukacsiana. O próprio Lukács se encar- mas não há dúvida de que outros documentos (tais como escritos histo-
regou de fortalecer a nossa convicção quando, recentemente, deixou de riográficos, crônicas, dados estatísticos etc.) me poderão ser de maior
caracterizar Kafka como avant-gardiste e "decadente" para compará-lo utilidade. O que a arte faz por mim de essencial é que ela me permite
a Swift. Lukács afirma que a peculiaridade desses dois autores está em ver por dentro a experiência de uma condição histórica particular da
que eles parecem se colocar acima do hic et nunc em suas obras, porém, humanidade e assimilar à minha consciência individual algo dessa expe-
na realidade, essa impressão deriva apenas do fato de elas (obras) não riência.
fixarem só as condições imediatas do momento e da sociedade particu- No que se refere às exigências racionalistas da sua gnoseologia,
lar em que surgem, mas abarcarem os problemas de um período inteiro Lukács nos parece ser, entre os teóricos marxistas da arte, aquele que
da história da humanidade. 8 Kafka, por conseguinte, aparece aqui, tal sustenta as posições mais eficazes no combate à confusão idealista e aos
como Swift, na condição de autor realista. equívocos românticos.
Ainda que rejeitemos o conservadorismo potencial dos seus
esquemas, não podemos deixar de reconhecer a legitimidade de suas
4 exigências em face do novo. Lukács sabe muito bem - e já o dizia em
1922 - que a atividade humana implica um "jorrar ininterrompido de
Comparadas com as demais posições já formuladas em nome do novidade qualitativa". Por isso, ele procura utilizar criticamente a sua
marxismo, as de Lukács, em matéria de estética, apresentam inúmeras aparelhagem conceitual, com a preocupação de evitar que ela se esclero-
vantagens. Duas dessas vantagens podem ser encontradas na caracteri- se e impeça a necessária abertura para a compreensão do novo.
zação lukacsiana da especificidade do conhecimento artístico e nas exi- Entretanto, para a efetiva assimilação e reconhecimento do novo,
gências racionalistas da atitude de Lukács diante do novo e diante do é preciso que ele não seja fetichizado, é preciso que ele não seja encarado
abandono da totalização preconizado por algumas correntes da arte em termos irracionalistas, é preciso que ele não seja aceito cego e abs-
moderna. tratamente. Para que o novo enriqueça a nossa consciência, precisamos
determinar-lhe os aspectos essenciais e rejeitar a pseudonovidade com
6
L. Konder, Kafka, José Álvaro Editor, 1966. que ele vem constantemente misturado.
7
G. Lukács, Goethe et son époque, ed. Nagel.
8
Revista The New Hungarian Quarterly, n. 18, 1965, artigo "The question of romanti-
9 La Nouvelle Critique, junho-julho de 1964.
cism''.

202 203
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

As posições que renunciam às exigências de totalização no conhe- Em reação contra o sociologismo, alguns pensadores marxistas
cimento artístico sacrificam no crítico que as adota a capacidade de ava- têm sido levados, na defesa da autonomia relativa da arte e de seu
liar o novo, isto é, de compreendê-lo em termos próprios; e dão margem caráter específico como autoconhecimento humano, a perder de vista
a que o crítico coma gato por lebre, dão margem a que ele superestime as reais conexões existentes entre a criação artística e a sociedade ou
um modismo passageiro e deixe de enxergar o novo significativo onde a história.
ele de fato está surgindo. Numa linha vinculada genericamente ao sociologismo, exami-
A perspectiva de Lukács estabelece que o reflexo da realidade na namos as ideias de Plekhanov, Bukharin e Max Raphael, entre outros.
arte é sempre um reflexo totalizante, é sempre um reflexo que simulta- Registramos, também, a influência da orientação sociologista nos tra-
neamente aprofunda e amplia o conhecimento do mundo humano. Para balhos de um historiador da arte influenciado pelo marxismo: Arnold
que cada problema humano apresentado em uma obra de criação artís- Hauser. E poderíamos ter examinado, ainda, os trabalhos de um erudito
tica seja mostrado em sua dimensão própria, é preciso que o complexo marxista norte-americano, o ensaísta Sidney Finkelstein, cuja aborda-
de problemas enfocado pela obra seja entendido como uma totalidade gem das questões da arte e da literatura revela nítidos elementos socio-
orgânica, é preciso que as partes sejam avaliadas em função do todo. logistas.10
Quando e~se-Earâter-totalíiante do ccmliêC1illento~-rtistico-deTxade ser Na mesma linha - embora esteticamente menos significativos -
levado em conta e uma parte do real deixa de ser avaliada em função situamos os ideólogos comprometidos com a política cultural stalinista,
do todo, é impossível evitar que a avaliação dessa parte passe a ser arbi- como o falecido André Zdanov. Apesar de termos procurado omitir os
trária. nomes de outros representantes dessa tendência, tanto no passado como
Lukács adverte os artistas contra a pseudoprofundidade da espe- no presente - por não lhes reconhecermos méritos teóricos -, abrimos
cialização. A repres~!!_!:1S.ã:9 dª r~aJidacfe_ht1lJ!a1la na .arte s<) pode ser exceção para dois autores que foram rapidamente citados a título de
viva e prof~nda se unir a observaçã() d()s pqr~~~~~~sà:vÍsão do con- exemplo, no capítulo 12: Joseph Revai e Maurice Mouillaud.
jn:-D.t;, à -~~plitude de horizcmtes. As árvores - já prevenia Hegel - não Na linha dos críticos que, dando combate ao sociologismo, foram
nos devem impedir de enxergarmos a floresta. As correntes teóricas que levados a acolher em suas formulações elementos idealistas e foram
se opõem à trilha racionalista de Lukács e abandonam a totalização só levados a perder de vista, em alguns momentos, as reais conexões da
podem perceber o novo das árvores: nunca podem aferir-lhe a impor- arte com a sociedade e com a história, colocamos os nomes de Franz
tância para a floresta. Mehring, Trotsky, Eisenstein, Caudwell, Della Volpe e Kosik. E mostra-
mos, através do exame do caso de Mehring e de Trotsky, que o antisso-
ciologismo, quando praticado em termos inconsequentes, longe de supe-
5 rar o sociologismo, o fortalece.

Revendo o caminho percorrido, verificamos que o principal obs-


táculo com que se tem defrontado no plano teórico a estética marxista 10 A propósito, consulte-se o livro Existencialism and alienation in american literature, ed.
tem sido o do sociologismo. Ora o sociologismo tem resultado da apli- International Publishers. Em um trabalho anteriormente publicado pela mesma editora,
cação mecânica dos princípios e métodos do materialismo histórico ao em 1947, Finkelstein fazia a Mareei Proust a seguinte restrição: embora A la recherche du
temps perdu contivesse um quadro pormenorizado da sociedade francesa do princípio do
estudo dos fenômenos artísticos, por despreparo teórico, má formação
século, "acontecimentos como o caso Dreyfus tornam-se apenas impressões acidentais,
filosófica ou deficiente sensibilidade do observador; ora tem resultado de importância não maior do que um chá ou uma noite na ópera" (Art and society, p.
das pressões de uma política cultural imediatista e sectária, que procura 151). Com isso, Finkelstein não estava levando em conta a relação estrutural que o livro
reduzir os valores estético-gnoseológicos à sociologia da arte para, em de Proust, como uma totalidade, pode ter ou deve ter com a sociedade e a história: estava
buscando no livro a exatidão documental e informativa que ele precisaria ter se fosse não
seguida, transformá-los em valores políticos diretos e imediatos (como
uma criação artística, e sim um estudo historiográfico, um ensaio sociológico ou uma
fez o stalinismo e como faz hoje em dia a política cultural praticada na reportagem. Trata-se de um enfoque tipicamente sociologista. A obra de Proust apresenta
China de Mao Tse-tung). aspectos problemáticos, mas eles não estão onde Finkelstein os enxergou.

204 205
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

A nosso ver, os "desvios" da linha antissociologista têm tido, his- tância de semelhante experiência. Ao mesmo tempo, esforçamo-nos por
toricamente, gravidade menor do que o sociologismo. No quadro geral marcar, com franqueza e ênfase, as deformações e os limites que julga-
dos esforços a serem desenvolvidos para a sistematização de uma legíti- mos localizar na perspectiva de cada um desses estetas.
ma estética marxista, a luta contra esses "desvios" da linha antissocio- Julgamos que o respeito aos críticos, teóricos e artistas cujas posi-
logista pode ser considerada um aspecto complementar da luta essencial ções analisamos não só nos impedia de formularmos as nossas reservas e
contra o sociologismo. discordâncias como até exigia de nós que as reservas e discordâncias fos-
Para levarmos essa luta avante, contamos com a base que nos é sem formuladas com o maior rigor doutrinário. Não consideramos que
dada pelas formulações de Lukács e, ainda mais, contamos com a base uma política cultural voltada para o favorecimento do diálogo e a garan-
que nos é proporcionada pelo próprio Marx: 1) a franca denúncia da tia da liberdade de criação e debate implique, para os críticos de orienta-
inépcia do sociologismo, contida no texto que foi posto como primeira ção marxista, uma necessária flexibilização de princípios (coisa que nos
epígrafe deste livro; 2) a historicização das formas da percepção senso- parece ocorrer com Ernst Fischer e, sobretudo, com Roger Garaudy). Ao
rial e da sensibilidade de que são capazes os órgãos dos sentidos, cuja contrário: para que a discussão seja realmente fecunda, é preciso que os
atividade é apresentada por Marx como um aspecto da atividade geral pontos de vista teóricos sejam desenvolvidos com rigor e coerência dou-
de apropriação do mundo pelo homem e de humanização da vida. É o trinária, embora expostos de maneira cortês e não dogmática.
que se infere do texto colocado como segunda epígrafe. Em alguns casos, é possível que o leitor nos tenha visto numa
A segunda epígrafe, assim, aponta a direção historicista e situação meio marota: embora combatendo certas formulações teóricas
anti-intelectualista em que os marxistas deverão trabalhar para resolver para determinadas questões da estética marxista, nem sempre oferece-
o problema colocado pela primeira epígrafe. mos alternativas definidas para tais formulações; embora apontando
deficiências nas interpretações alheias, não apresentamos elementos
capazes de supri-las. Em alguns casos, temos consciência de termos pro-
6 posto problemas cuja solução não chegamos sequer a encaminhar.
Mas podemos defender o nosso trabalho com as palavras que
Diante das indicações de Marx e das formulações de Lukács, há Brecht põe na boca de um seu personagem nas Histórias de calendário:
duas atitudes que precisam ser evitadas. Primeiro, a atitude negativista, "Já observei que afastamos muita gente da nossa doutrina por termos
que leva o crítico a não dar importância alguma ao que já foi logrado para tudo uma resposta feita. Não seria conveniente estabelecermos, em
no campo da estética marxista. Esta é, por exemplo, a atitude do crítico benefício da nossa propaganda, uma lista de todas as questões que nos
marxista tcheco Eduard Goldstucker. Quando o professor Goldstucker parecem ainda não estar solucionadas?"
esteve no Brasil, em 1966, declarou pessoalmente ao crítico Carlos Nel-
son Coutinho e ao autor destas linhas que, em matéria de estética, os
marxistas precisavam partir do marco zero.
A atitude negativista, por outro lado, se contrapõe frequentemente Rio, setembro de 1966.
outra também inaceitável, que é a atitude simplista segundo a qual a
estética marxista já alcançou a sua elaboração teórica madura e ple-
namente satisfatória, cabendo à crítica marxista apenas o trabalho de
aplicar-lhe os princípios e métodos ao exame da arte contemporânea,
complementando-a exclusivamente em questões de pormenor.
No presente trabalho, procuramos evitar os equívocos ligados a
qualquer dessas duas atitudes. Dispusemo-nos a analisar minuciosamen-
te certas ideias que nos foram legadas pela experiência já concretizada de
alguns estetas marxistas, reconhecendo, assim, implicitamente, a impor-

206
ÍNDICE ONOMÁSTICO'

A BOECHAT, Dalton- 70
ABUSCH, Alexander -181 BOGDANOV, Alexander- 69, 77
ADAMOV, Arthur- 154 BOIS, Jacqueline- 131
ADORNO, Theodor Wiesegrund- 199 BOLO, Ernest- 71
AKHMATOVA, Ana- 91, 92 BOLOGNA, Sérgio -148
ALINARI, Josefina Martinez -149 BONAPARTE, Napoleão- 49
ALTHUSSER, Louis- 29, 161, 175 BOSANQUET, Bernard- 21
AMBROGIO, Ignazio -175 BOTTICELLI, Sandro -164, 166
ANDRADE, Ary de- 49 BOTTIGELLI, Emile- 86
ANTONIONI, Michelangelo -185 BRECHT, Bertolt-14, 28, 109,111,113,
ARICÓ, J. -107 119, 121-127, 129, 133-135, 172,
ARISTARCO, Guido- 76-78, 80, 181, 173, 178, 207
184-186 BUKHARIN, Nicolau -71-75, 105, 109,205
ARISTÓFANES- 41 BUONARROTI, Michelangelo- 159, 160,
ARISTÓTELES - 33, 13 8 165
ARMENGOL, José Rovira- 21 BUTOR, Michel- 24
ASSIS, S. Francisco de -108
AUERBACH, Eric -182, 183 c
AXELOS, Kostas- 20, 131 CAMUS, Albert -154
CANDIDO, Antonio- 97
B CASES, Cesare -18, 86, 175, 181-184,
BADALONI, Nicola -175 186, 187, 194
BALZAC, Honoré de -17, 41, 42, 45, 80, CAUDWELL, Christopher- 94, 99-103, 205
134, 170, 178, 179 CERVANTES, Miguel de- 41
BANCES, J. Peres- 45 CETRÂNGELO, Enzio- 56
BANFI, Antônio -199 CHAPLIN, Charles- 75
BARBARO, Umberto- 52, 176, 184 CHIARINI, Luigi -172, 185
BECKETT, Samuel- 154 CHIARINI, Paolo- 121, 122, 125, 127,
BEETHOVEN, Ludwig Van- 68 169, 172, 173
BENJAMIN, Walter -14, 111, 113-115, 117, CHOLOKHOV, Mikhail- 94, 146
118, 123, 125, 126, 135, 164, 173 CHRISTIE, Agatha- 80
BERGMAN, Ingmar- 82 CHURCHILL, Winston -104
BERGSON, Henri- 80 CLAIREVOYE, J. -129, 148
BERNSTEIN, Eduard- 45, 47, 56, 57 CODINO, Fausto -102
BIANCHI BANDINELLI, Rannucchio- COLLETTI, Lúcio -175
160, 161 CORNEILLE, Pierre -146
BIELINSKI- 50 COSTA, José Fonseca- 77
BLOCH, Ernst- 181, 182, 199 COSTA LIMA, Luiz- 63

'' Este índice relaciona apenas os nomes de pessoas. Não foram incluídos nomes de persona-
gens literários ou mitológicos nem títulos de livros.

209
OS MARXISTAS E A ARTE LEANDRO KONDER

COUTINHO, Carlos Nelson- 9, 33, 105, FRÉVILLE, Jean- 67, 69 K MANN, Thomas -173, 185, 190, 201
139, 150, 206 FRIOUX, Claude- 85 KAFKA, Franz -113, 154, 156, 185, 193, MARAGNO, Eisa de! Rio -161
CROCE, Benedetto -19, 105-107, 119, 170 201, 202 MARIÁTEGUI, Juan Carlos- 83
G KANT, Immanuel- 33, 57, 130, 142, 147 MARX, Karl- 9, 12, 13, 17-20, 26, 35,
D GANDILLAC, Maurice de -113, 139 KAUTSKY, Karl-18, 45-49, 56, 57, 140, 37-43, 45, 47, 48, 58, 67, 78, 80,
D'ANNUNZIO, Gabriel-115, 170 GARAUDY, Roger -155-161, 169, 207 200 82, 86, 87, 89, 95-97, 99, 103, 106,
DARWIN, Charles- 48 GAUGUIN, Paul-159, 160 KAUTSKY, Minna- 41, 140, 141 122, 132, 133, 137, 139, 141, 144-
D'AUBIGNAC, Hedelin- 173 GIBELIN, J.- 31 KIERKEGAARD, Soren-142 146, 150, 167, 175, 179, 195, 197,
DA VINCI, Leonardo -114 GISSELBRECHT, André -169 KIRILOV- 70, 81 200,206
DELLA VOLPE, Galvano- 26, 29, 108, GOETHE, Wolfgang-58, 141,170,189,202 KLEE, Paul- 113 MAURIAC, François- 93
169, 174-181, 200, 205 GOLDMANN, Lucien -14, 24, 129, 130, KONDER, Giseh Vianna- 5, 140 MAYER, Hanns -181, 182
DESCARTES, Renê -181, 182 141, 147, 148, 150, 152-154, 169, KOSIK, Karel- 166, 193-197, 199, 200, MÉDICIS (De Florença) -164
DEUTSCHER, Isaac- 65, 71 181, 182 205 MEHRING, Franz -18, 50, 55-59, 61, 62,
DILTHEY, Wilhelm -142 GOLDSTUCKER, Eduard- 206 KOTT, Jan- 26 64, 65, 81, 102, 133, 200, 205
DOBROLIUBOV, Nikolay- 50 GORKI, Máximo- 68, 69, 75, 85-88, 90, KRUPSKAYA, Nadezhda- 90 MELIÁ, Juan- 45
DOS PASSOS, John- 24, 133 190 KUBA-181 MEYERHOLD, Vsievolod- 75, 101, 117,
DOSTOIEVSKI, Fio dor Mikhailovitch - GRAMSCI, Antonio -10, 11, 19, 23, 24, 50, KUN, Bela -132 199
69, 146 73, 74, 103-112, 119, 170, 197, 201 KURELLA, Alfred- 181 MILANO, Pablo- 109
DREISER, Theodor- 79 GRAMSCI, Júlia (Iulca) -108 MILLER, Henry -185
DREYFUS- 205 GRIFFITH, David Wark- 75 L MINARDI, Victorio -172
DUMESNIL, Michel- 68 GUERRA, E. Carrera- 81 LABRIOLA, Antonio- 19, 180 MONDOLFO, Augusta- 31
GUINSBURG, J. -136 LAFARGUE, Paul- 132, 199 MONDOLFO, Rodolfo- 31
E GULLAR, Ferreira -191 LAMPEDUSA, Giuseppe Tomasi de- 134 MONTINARI, Mazzimo -102
EHREMBURG, Ilya -70, 146 GUTERMANN, Norbert-143, 144 LANCE, Oscar -155 MORÁVIA, Alberto -171
EINAUDI, Ludovico -105 LASSALLE, Ferdinand- 18, 40, 57, 58 MORHANGE, Pierre -143
EINSTEIN, Albert- 63 H LEFEBVRE, Henri- 25, 143-147, 169 MOUILLAUD, Maurice- 93, 205
EISENSTEIN, Serguei Mikhailovitch- HAGER, Kurt -181 LENIN, Vladimir Ilitch- 9, 18, 45, 50, 55, MOUSSINAC, Leon- 79
75-81, 101, 205 HARKNESS, Margaret -17, 41, 179 61, 65, 67-69, 71, 76, 85, 89-91, -MOZART, Wolfgang Amadeus- 74
EL GRECO (Doménikos Theotokópoulos) HAUSER, Arnold- 160, 163-167, 205 94, 132, 138, 144 MUSIL, Robert -185
-159, 160 HEBBEL, Friedrich- 58 LESSING, Gotthold Efraim- 47, 56, 135, MUSSOLINI, Benito -103, 104, 115
ELIOT, Thomas S. -173, 178 HEGEL, Georg Wilhelm Friedrich -13, 136, 172, 173
ENGELS, Friedrich -12, 17-19, 26, 32, 37, 29-35, 37, 38, 46, 57, 64, 67, 82, LEWIS, Sinclair- 107, 108 N
40-42, 45, 48, 67, 86, 87, 89, 95, 91, 130, 136, 140, 141, 144, 167, LIEHM, Antonin- 142, 201, 203 NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm -142
96, 132, 137, 139-141, 179, 200 169, 173-175, 179, 180, 194, 204 LIFSCHITZ, Mikhail- 51, 94, 65, 132,
ÉSQUILO- 41, 42, 97, 133 HEIDEGGER, Martin -142 133 p
ESSENIN, Serguei- 69 HERZEN, Alexander- 67 LUIZ XIV- 49 · PACINI, Gianlorenzo -193
ESSLIN, Martin -119 HITLER, Adolf- 115 LUKÁCS, Gyorgy -10-15, 18, 23, 24, 33, PAQUET, Alfons -118
EURÍPEDES- 42, 97, 172, 173 HOELDERLIN, Friedrich- 202 58, 59, 92-95, 102, 109, 113, 119, PASCAL, Blaise -148, 152, 181
HOFFMANN, Ernst T. Amadeus- 69 121, 129-143, 145, 147-151, 153, PASOLINI, Pier Paolo -171
F HOMERO- 42, 47, 82, 97, 133 154, 169, 170, 172-175, 178, 180, PAVESE, Cesare -199
FAUCI, Dario- 91 HYPPOLITE, Jean- 31, 35, 155 181, 184, 185, 187, 194, 196, 200- PICASSO, Pablo- 95, 97, 145, 155-157,
FICHTE, Johann Gottlieb -130 204,206 159, 160, 172, 173
FINKELSTEIN, Sidney -199, 205 LUNATCHARSKI, Anatol- 67, 71, 76, 85 PICCO, Emílio- 33, 58
FlORI, Giuseppe -103 IGLESIAS, Pablo- 45 LUPORINI, Cesare -175, 178, 179 PIECHKOV, Alexis Maximoviteh - ver
FISCHER, Ernst -156-158, 186-191, 207 IMAZ, E. -183 GORKI
FLAUBERT, Gustave- 80, 178 IONESCO, Eugene- 154 M PIRANDELLO, Luigi -107, 108, 170
FREEMAN,Joe- 80 MACHEREY, Pierre -161 PISARIEV- 50
FREILIGRATH- 58 MAIAKOVSKI, Vladimir- 67, 69, 75, PISCATO R, Erwin- 94, 111, 116-119, 121,
J
FREUD, Sigmund- 63, 80, 101 JOYCE, James- 79, 80, 133, 173, 201 81-84, 121, 127, 178 124

2IO 2II
OS MARXISTAS E A ARTE

PLATÃO- 21, 80, 138 SPITZER, Leo -182


PLEKHANOV, George- 49-53, 55, 90, 97, STAIGER, Emil-182
102, 133, 200, 205 STALIN, Joseph Vissarianovitch- 61, 79,
POLITZER, Georges -143 89,91
PRESTIPINO, Giuseppe -169, 180 STENDHAL (Henri Beyle) -190
PRÉVOST, Claude -169 STRAVINSKY, Igor -173
PROUST, Marcel-113, 201, 205 STRUNSKY, Rose - 62
PUDOVKIN, Vsievolod- 77 SWIFT, Jonatas- 202
PUSHKIN, Alexander- 53, 81
T
R TAINE, Hyppolite- 50, 51
RACINE, Jean -146, 148, 152, 173 TCHERNICHEVSKI, Nikolai- 50
RAGGHIANTI, Carla -185 TCKESKISS, L. A.- 90
RAPHAEL, Max- 94, 95, 97, 99, 102, 205 THOMSON, George -199
REVAI, Joseph- 92, 93, 145, 205 TOLSTOI, Lev- 69, 108, 134, 146, 170,
RILKE, Rainer Maria -113 178
ROBBE-GRILLET, Alain -154 TRIOLET, Elsa- 84
ROCES, Wenceslao- 58, 87, 142 TROTSKY, Lev- 59, 61-65, 71, 89, 205
ROSADO DE LA ESPADA, Diego- 46 TSÉ-TUNG, Mao- 204
ROSSI, Mário -175
ROUSSEAU, Jean-Jacques- 34, 175 u
RUBEL, Maximilien- 96 ULBRICHT, Walter -181

s v
SAILLEY, Robert- 135 VAN GOGH, Vincent -159, 160
SAINT JOHN PERSE (Alexis Leger) -156 VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez- 38
SAJON, R. - 95 VERTOV, Dziga- 77
SALINA, Príncipe de- 134 VILLANUEVA, I.- 83
SALINARI, Carla -169-172, 174 VISCONTI, Lucchino- 185
SANZIO, Rafael- 70 VITTORINI, Elio- 93
SAPEGNO, Natalino- 200 VOLTAIRE, François Marie Arouet- 47
SARRAUTE, Nathalie -154 VORONSKI, Aleksandr- 85, 90
SARTRE, Jean-Paul- 93, 144, 154, 155,
169, 187 w
SCHAFF, Adam -199 WAHL, Jean -169
SCHELLING, Friedrich Wilhelm Joseph- WEITLING, Wilhelm- 40
142 WILLET, John -134
SCHILLER, Johann Friedrieh von- 40, 41 WINOGRAD, Marcos -144
SCHMIDT, Conrad- 32 WOOLF, Virginia -184
SCHOPENHAUER, Arthur -142
SCHUMACHER, Ernst -127 X
SEGHERS, Ana- 24, 79, 84, 133 XAVIER, Lívio- 31
SETON, Marie- 80
SEURAT, Georges- 97 z
SHAKESPEARE, William- 40 ~ ZAVATTINI, Cesare -185
SÓFOCLES- 93, 144, 154, 155, 169, 187 ZDANOV, André- 61, 89, 91, 92, 205
SOREL, Georges -107 ZOLA, Émile- 80, 139, 178

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