Você está na página 1de 33

I

r
!

CRÍTICA FEMINISTA

Lúcia Osana Zolin

OS ESTUDOS DE GÊNERO E A LITERATURA

Desde a década de 1960, com o desenvolvimento do pensamento feminista, a mulher vem se


tornando objeto de estudo em diversas áreas de conhecimento, como a Sociologia, a Psicanálise, a
História e a Antropologia. Também no âmbito da Literatura e da Crítica Literária, a mulher vem
figurando entre os temas ahordados em encontros, simpósios e congressos, bem como se constituindo
em motivo de inúmeros cursos, teses e trabalhos de pesquisa.
No entanto, tal presença não deve ser analisada como um fato que passa a despertar curiosidade
por estar ligado a esse momento de afirmação. Na verdade, é uma presença que ultrapassa o pontual
e o eufórico para se conjugar a todo um processo histórico-literário. Mais importantes do que
as polêmicas geradas a partir do movimento feminista são os efeitos provocados por ele em seus
diferentes momentos. Um desses efeitos, e é o que nos interessa neste capítulo, está ligado a um
dos diversos instrumentos de que dispomos hoje para ler e interpretar o texto literário: a crítica
feminista.
Desde a sua origem em 1970, com a publicação, nos Estados Unidos, da tese de doutorado
de Kate Millet, intitulada Sexual politics, essa vertente da crítica literária tem assumido o papel de
questionadora da prática acadêmica patriarcal. A constatação de que a experiência da mulher como
leitora e escritora é diferente da masculina implicou significativas mudanças no campo intelectual,
marcadas pela quebra de paradigmas e pela descoberta de novos horizontt<s de expectativas.
Nas últimas décadas, muitas facções críticas defendem a necessidade de se considerar o objeto de
estu90 em relação ao contexto em que está inserido; de alguma forma, tudo parece estar interligado.
No que se refere à posição social da mulher e sua presença no universo literário, essa visão deve muito
ao feminismo, que pôs a nu as circunstâncias sócio-históricas entendidas como determinantes na
produção literária. Do mesmo modo que fez perceber que o estereótipo feminino negativo, largamente
difundido na literatura e no cinema, constitui-se num considerável obstáculo na luta pelos direitos da
mulher.
Estudos acerca de textos literários canOl1lCOS mostram inquestionáveis correspondências
entre sexo e poder: as relações de poder entre casais espelham as relações de poder entre homem
e mulher na sociedade em geral; a esfera privada acaba sendo uma extensão da esfera pública.
Ambas são construídas sobre os alicerces da política, baseados nas relações de poder.
:~o 1 J N

·1
.
Se", cebçõ" "''', ,,, ,ex", ". dNnvohm "gundo um, micn"ç'o politi" , de p"b. tamhém
a crítica literária feminista é profundamente política na medida em que trabalha no sentido de interferir
na ordem social. Trata-se de um modo de ler a literatura confessadamente empenhado, voltado para a
desconstrução do caráter discriminatório das ideologias de gênero, construídas, ao longo do tempo, pela
cultura. Ler, portanto, um texto literário tomando como Il1strumentos os conceitos operatórios fornecidos
pela crítica feminista (veja quadro a seguir) implica investigar o modo pelo qual tal texto está marcado
pela diferença de gênero, num processo de desnudamento que visa despertar o senso crítico e promover
mudanças de mentalidades, ou, por outro lado, divulgar posturas críticas por parte dos(as) escritores(as) em
relação às convenções sociais que, historicamente, têm aprisionado a mulher e tolhido seus movimentos.
Considerando as circunstâncias sócio-históricas como fatores determinantes na produção da
literatura, uma série de críticos(as) feministas, principalmente na França e nos Estados Unidos, tem
promovido, desde a década de 1970, debates acerca do espaço relegado à mulher na sociedade, bem
como das consequências, ou dos reflexos daí advindos, para o âmbito literário.
O objetivo desses debates, se os contemplarmos de modo amplo, é a transformação da condição de
subjugada da mulher. Trata-se de tentar romper com os discursos sacralizados pela tradição, nos quais a
mulher ocupa, à sua revelia, um lugar secundário em relação ao lugar ocupado pelo homem, marcado pela
marginalidade, pela suhmissão e pela resignação. Tais discursos não só interferem no cotidiano femillino,
mas também acabam por fundamentar os cânones críticos e teóricos tradicionais e masculinos que regem
o saber sobre a literatura. Assihl, a crítica feminista trabalha no sentido de desconstruir a oposição homem!
mulher c as demais oposições associadas a esta, numa espécie de versão do pós-estruturalismo.

Termo empregado em dois sentidos distintos; a determinação de cada um depende do


contexto em que está inserido: na maIOr parte das vezes, o termoJeminino aparece em
oposição a masculino e faz referência às convenções sociais, ou seja, a um conjunto de
Feminino
características (atribuídas à mulher) definidas culturalmente, portanto em constante
processo de mudança. Pode referir-se, todavia, simples e despojadamente ao sexo
feminino, ao dado puramente biológico, sem nenhuma outra conotação.

Trata-se de um termo que não é utilizado no sentido panfletário que costuma ter
entre nós, mas tal como é utilizado em língua inglesa: como categoria política, e
Feminista não pejorativa, relativa ao feminismo entendido como movimento que preconiza a
ampliação dos direitos civis e políticos da mulher, não apenas em termos legais, mas
também em termos da prática social.

Categoria tomada pela crítica feminista de empréstimo à gramática. Originariamente, gênero


consiste no emprego de desinências diferenciadas que visam designar indivíduos de sexos
diferentes ou coisas sexuadas. A crítica feminista, todavia, fez com que o tenno assumisse
outras tintas: toma-o como uma relação entre os atributos culturais referentes a cada um
Gênero
dos sexos e à dimensão biológica dos seres humanos. Trata-se, portanto, de uma categoria
que implica diferença sexual e cultural. O sujeito é constituído no gênero em razão do
sexo a que pertence e, principalmente, em razão de códigos linguísticos e representações
culturais que o matizam, estabelecidos de acordo com as hierarquias sociais.

Termo utilizado no sentido empregado por Jacques Derrida, seu criador, para designar
Logocentrismo o pensamento canônico, num contexto marcado pelo empenho em desmontar e
desqualificar a mistificação implícita no discurso filosófico ocidental.

Termo tomado por algumas escritoras e críticas francesas para desafiar a lógica predominante
Falocentrismo
no pensamento ocidental, bem como a predominância da ordem masculina.
~ _ _ _ _ _ _---L-_ _ _ _ _ _ _ _ _ __

")1\1 fTTJ:'RÁQJA
--_.~ c: P 1 1 1 <: A f 1 M f " 1 ' 1 .'1

Termo uti lizado para designar uma espécie de organização famihar ongm;Ína dos povos-j
antIgos, na qual toda lI1stltUlção sOCIal concentrava-se na fi~Tura de um chefe, o patrI:lrca,
Patriarcalismo cuja autoridade en preponderante e incontestáveL Esse conceito tem permeado a maiori:l I
das dIscussões, travad:1s no contexto do pensamento fem1l11sta, que envolvem a questão
da opressão da mulher ao longo de sua história,
I---

Termo que provém da obra de Jacques Derrida, utilizado pelos teóricos da literatura I

em uma espécie de crítica das oposições hierárquicas que estruturam o pensamentu


ocidental, tais como: modelo x imitação; dominador x dominado; forte x fraco; presença
Desconstrução x ausência; corpo x mente; homem x mulher. Trata-se de se apoiar na convicção de que
oposições como essas não são absolutamente naturais, nem inevitáveis, mas construções
ideológicas que podem ser desconstruídas, isto é, submetidas a estrutura e funcionamento
diferentes,

A dialética da identidade/alteridade foi originalmente elaborada pela filosofia (de Descartes


a Sartre) , sendo que a "identidade foi concebida como um núcleo e a alteridade como
uma 'exterioridade', um 'estranho', uma 'negativa' do si-mesmo, orbitando ao seu redor"
(WADDINGTON, 1996, p. 337). Trazendo-a para o mundo das relações de poder na sociedade
patriarcal, o núcleo coube ao homem, "senhor da razão, da lei, da religião e proprietário das
riquezas" (WADDINGTON, 1996, p. 337); a periferia, à mulher, expropriada desses atributos
A partir desse contexto da exterioridade, da estranheza e da negatividade, foi atribuída uma
Alteridade
alteridade à mulher, mas alteridade entendida como sinônimo de condição objetaI e de
identidade em falta, e não uma alteridade autêntica, intersubjetiva. Esta permaneceu por ser
conquistada, O desnudamento da alteridade da literatura de autoria feminina constitui-se na
base da abordagem feminista na literatura. Isso implica dizer que a análise das obras escritas
por mulheres é realizada visando promover o desnudamento da alteridade do discurso
feminino, de acordo com o princípio da diferença, ou seja, como um discurso "outro" em
relação ao "mesmo".

Categorias utilizadas para caracterizar as tintas do comportamento feminino em face dos


parâmetros estabelecidos pela sociedade patriarcal: a mulher-sujeito é marcada pela insubordinação
Mulher-sujeito
aos referidos paradigmas, por seu poder de decisão, dominação e imposição; enquanto a mulher­
c
Mulher-objeto
o~eto define-se pela submissão, pela resignação e pela falta de voz, As oposições binárias subversão/ I
aceitação, inconfonnismdresignação, atividade/passividade, transcendência/imanência, entre
outras, referem-se, respectivamente, a essas designaç('xs e as cornplementam.

Quadro 1. Conceitos operatórios da crítica feminista.

Fió:mais claro entender o que vem a ser crítica literária feminista, e como ela funciona, quando
se tem conhecimento de algumas noções prévias acerca do feminismo entendido como o movimento
social e político que lhe deu origem. Em razão disso, passemos, de início, a umá espécie de mapeamento,
ainda que rápido, do contexto em que se desenvolveu essa facção da crítica literária, como origens,
precprsores, reivindicações etc. para, posteriormente, de posse dessas informações, determo-nos
propriamente em sua essência.

A QUESTÃO DA MULHER NO SÉCULO XIX

Alguns teóricos(as), apoiados(as) na premissa de que se podem localizar na história inúmeras fomus
de feminismo, entendidas como frentes de respostas para a "questão da mulher", defendem a tese de que
~ () L I N

I sua abrangência estende-se dos matriarcados neolíticos ao feminismo radical contemporâneo. Seja como
t for, mesmo que se entenda que o feminismo esteja restrito aos últimos dois ou três séculos, trata-se de
um movimento político bastante amplo que, alicerçado na crença de que, consciente e coletivamente, as
mulheres podem mudar a posição de inferioridade que ocupam no meio social, abarca desde refonnas
culturais, legais e econômicas, referentes ao direito da mulher ao voto, à educação, à licença-maternidade, à
prática de esportes, à igualdade de remuneração para função igual etc., até uma teoria feminista acadêmica,
voltada para reformas relacionadas ao modo de ler o texto literário.
Algumas declarações públicas que descrevem "mulheres" como uma categoria social distinta, com
status social inferior, remontam ao século XVIII. É o caso do documento Some reflecfÍorzs upon marriage
lAlgumas reflexões sobre o casamento], de Mary Astell, datado de 1730, que ironiza a sabedoria
masculina e despoetiza as relações existentes na sociedade familiar. Ela questiona o fato de o poder
absoluto não ser aceito no estado político, por ser um método impróprio para governar seres racionais
e livres, mas existir na família. Do mesmo modo que questiona o fato de todos os homens nascerem
livres e todas as mulheres nascerem escravas. Até a construção social do sujeito feminino é discutida
por Astell, quando ela afirma que Deus distribuiu a inteligência a ambos os sexos com imparcialidade,
mas que o conhecimento foi arrebatado pelos homens a fim de que eles se mantivessem no poder.
Na França, Marie Olympe Gouges, uma das ativistas da Revolução de 1789, apresenta à Assembléia
Nacional, em 1791, a sua cor;:úosa Déclaration des droits de la jemme et de la citoyennc (Declaração dos dir,eítos
da mulher e da cidadã), em que defende a ideia de que as mulheres devem ter todos os direitos que o
homem tem ou quer para si, inclusive o de propriedade e de liberdade de expressão; em contrapartida,
devem assumir também toda sorte de responsabilidades que cabem aos cidadãos do sexo masculino,
como o pagamento de impostos, a punição por crimes cometidos e o cumprimento de todos os deveres
públicos cabíveis a um cidadão comum. Além disso, Gouges cobra das mulheres vigor nas reivindicações
de mais liberdade democrática para seu sexo. Em 1792, a inglesa Mary Wollstonecraft escreve um dos
grandes clássicos da literatura feminista, A Vindícation of the Rights ojlMJman (A, reivindicações dos direitos
da mulher), retomando as reivindicações da extensão dos ideais da Revolução Francesa às mulheres.
Baseada no argumento do dano econômico e psicológico sofrido pelas mulheres em decorrência de
sua dependência forçada do homem e da exclusão da esfera pública, ela defende uma educação mais
efetiva para elas, capaz de aproveitar-lhes o potencial humano e torná-las aptas para se libertarem da
pecha da submissão e da opressão, tornando-se, de fato, cidadãs, como lhes é de direito.
No entanto, o feminismo organizado só entrou no cenário da política pública nos Estados Unidos
e na Inglaterra por volta da segunda metade do século XIX, por meio das petições que reivindicavam
o sufrágio feminino e das campanhas pela igualdade legislativa.
Em 1840, as americanas Elizabeth Cady Stanton, Susan B. Anthony e Lucy Stone passaram a
liderar um sólido movimento pelos direitos das mulheres. As duas primeiras criaram aNationallMJman
Suffrage Association (A~sociação nacional para o voto das mulheres), que, além de reivindicar o voto feminino,
lutava pela igualdade legislativa, enquanto Stone criava aAmerican Woman's SuffrageAssociatiol1 (Associação
americana para o voto das mulheres), que somava às reivindicações sufragistas outras ligadas à reforma das
leis do divórcio. Essas duas organizações foram fundidas em 1890 para formar a National American
lMJman's SuffrageAssociation (NAWSA) (Associação nacional americana para o voto das mulher;s), que, contando
com o apoio de outras ativistas, conseguiu o direito de voto às mulheres americanas em 1920.
Na Inglaterra, a condição social da mulher na Era Vitoriana (1832-1901) foi tenazmente marcada por
diversos tipos de discriminações,justificadas com o argumento da suposta inferioridade intelectual das
mulheres, cujo cérebro pesaria 2 libras e 11 onças, contra as 3 libras e meia do cérebro masculino. Resulta
disso que a mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão,
submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas,
bem como a tradição religiosa. Eram esses os valores apregoados pela rainha Vitória em suas cartas e
por suas súditas em guias vitorianos como The Jemale instructor (A professora), de autor anônimo, ou The
women of EnJ?land (As mulheres da Inglaterra), de Sarah Stickney Ellis, publicado em 1839. O primeiro
relembra insistentemente à esposa sua condição de dependente e submissa, recomendando-lhe o uso
constante da aliança de casamento, de modo que, quando se sentisse "perturbada", ela pudesse colocar

220 - T E o R I A LITERÁRIA
-----~ C R í I I l ,\ F I· M I N I , r II

os olhos sobre ela e lembrar-se de quem a dera para si. O segundo reitera que a condição de subjugada
da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina.
Se no âmbito da lei, as mulheres eram destituídas de poder, no âmbito das práticas sociais e
familiares a realidade era outra. A maioria delas, além de não ter interesse em se submeter a esse
tendencioso modelo de organização social, não tinham condições para tal. Pesquisas mostram que
em meados do século XIX grande parte das mulheres inglesas trabalhava fora como domésticas.
costureiras, operárias em fábricas ou em fazendas. De modo que o tédio que supostamente marcaria a
existência da mulher idealizada pela ideologia vitoriana não consistia, absolutamente, no seu principal
problema; era prerrogativa de uma minoria. Nesse sentido, a oposição erigida contra tal ideologia era
impelida por, pelo menos, duas razões: uma referente a valores ideológicos, outra à necessidade de
sobrevivência.
Esse estado de coisas acabou por desencadear uma série de ações que caminharam no sentido
de instituir o feminismo como um movimento político organizado na Inglaterra. A partir de 1850,
começaram a ser encaminhadas às autoridades petições advogando o status legal da mulher, como o
direito ao voto, obtido em 1918; demandas solicitando permissão para as mulheres casadas gerirem
seus bens, as quais culminaram na votação da Lei de propriedade da mulher casada (Married UJomen's
property acts, 1870-1908); campanhas contra a Lei das doenças contagiosas (Contagious diseases acts, 1864),
que exigia exames médicos de mulheres suspeitas de serem prostitutas; além de obras feministas que
deram continuidade ao primeiro argumento pelos direitos da mulher, escrito no final do século XVIII
por Wollstonecraft. É o caso, por exemplo, de The subjection ofUJomen (1869), de John Stuart Mill, e de
The Enfranchisement ofWomen, de Harriet Taylor, que, partindo de argumentos utilitaristas e liberais por
uma sociedade que considerasse ,os interesses de todos e, ao mesmo tempo, os protegesse, põem em
cheque crenças estabelecidas há muito tempo acerca do papel da mulher na sociedade, como aquelas
relacionadas a desigualdades na esfera política, na vida econômica, na educação etc. O direito ao voto
é tomado como uma das principais bandeiras, já que consiste no mecanismo por meio do qual outras
reformas poderiam vir a ser conseguidas (ABRAMS, 1979).
O feminismo no Brasil oitocentista, por sua vez, desenvolveu-se ao lado dos movimentos em prol
da abolição dos escravos e da proclamação da república. A republicana e abolicionista Nísia Floresta
Brasileira Augusta (pseudônimo de Dionísia Gonçalves Pinto) foi, também, a primeira teórica do
feminismo no Brasil. Seu primeiro livro, Direitos das mulheres e injustiças dos homens (1832), inspirado no
Vindications ofthe rights ofwoman, de Wollstonecraft, põe em discussão, a partir de conceitos e doutrinas
do Iluminismo europeu, os ideais da mulher de igualdade e independência, configurados pelo direito à
educação e à vida profissional, bem como O de serem consideradas como de fato são: seres inteligentes
e capazes, portanto dignos de respeito. Trata-se, no entanto, de uma manifestação isolada, já que não
se encontram registros de outros textos do gênero publicados na época, excetuando-se alguns artigos
esparsos em periódicos, o que denuncia que Nísia Floresta consistiu em uma exceção em meio às
mulheres brasileiras sem voz de seu tempo.
Como consequência dessa primeira onda do feminismo, muitas mulheres tornaram-se escritoras,
profissão, até então, eminentemente masculina; mesmo que para isso tenham tido que se valer de
pseudônimos masculinos para escapar às prováveis retaliações a seus romances, motivadas por esse
"detalhe" referente à autoria. É o caso, por exemplo, de George Eliot, pseudônimo da inglesa Mary
AnnrEvans, autora de The míll on the jloss e de Middlemarch; de George Sand, pseudônimo da francesa
Amandine Aurore Lucile Dupin, autora de Ullentine. Outras escritoras conseguiram impor seus nomes,
não sem muito esforço, no sério mundo dos homens letrados. Caso da inglesa Charlote Bronte,
autora de Shirley e Jane Eyre. No Brasil, diversas foram as vozes femininas que romperam o silêncio e
publicaram textos de alto valor literário, denunciadores da opressão da mulher, embora a crítica não os
tenha reconhecido na época. O primeiro romance brasileiro de autoria feminina de que se tem notícia,
Úrsula (1859), de Maria Firmina dos Reis, foi seguido de muitos outros, dados, agora, a conhecer pela
crítica feminista (MUZART, 1999).
\i A casta de textos literários representada pela pequena amostragem acima deu início a uma tradição
da literatura de autoria feminina na Europa e na América, que, de certa forma, reverteu os valores que
r
~o L I N

I ahmça"m a tnd.ç'o li""tia m"'olina no qoe tange, "Tmentaç'o da mollia e ao, nl",,, a eb
referentes. Como se pode venficar com mais detalhes em um dos Itens do Capítulo 18, intitulado
"Literatura de autoria feminina", deste volume, personagens femininas tradicionalmente construídas
como submissas, dependentes, econômica e psicologicamente do homem, reduplicando o estereótipo 'I
patriarcal, passam, paulatinamente, a ser engendradas corno sendo conscientes de sua condição de
inferioridade e corno capazes de empreender mudanças em relação a esse estado de objetificação. Ou,
de outro lado, passam a ser inseridas em contex"tos que, de alguma forma, trnem à baila discussões
acerca dessa problemática.

o FEMINISMO DE VIRGÍNIA WOOLF

A escritora e ensaísta inglesa Virgínia Woolf (1882-1941), além de autora de romances que
rompem com o formalismo tradicional da ficção da Era Vitoriana, sobretudo no que se refere ao uso
de técnicas narrativas inovadoras como o monólogo interior e o fluxo da consciência, escreveu uma
série de ensaios sobre a escrita da mulher, sendo, por isso, considerada urna importante precurs'ora
da crítica feminista. Em vista disso, passemos a perscrutar algumas de suas principais ideias, as quais
impulsionaram um novo olhar em relação ao terna "mulher e literatura", até então marcado por toda
sorte de preconceitos e discriminações.
Em A roam cf one's OUln, um de seus principais ensaios, publicado em 1929, traduzido para o
português como Um teto todo seu, organizado a partir de anotações que fez para conferências proferidas
em estabelecimentos de ensino para mulheres na Inglaterra, ela aborda o modo como as circunstâncias
atuam sobre o trabalho da mulher escritora e questões relativas à sua sujeição intelectual.
A ideia central desse importante ensaio gira em torno da tese de que para escrever ficção ou
poesia de qualidade a mulher necessita de "um teto todo seu" em que possa trabalhar em paz e de
urna renda anual capaz de lhe garantir independência. A genialidade de Shakespeare e sua vultosa
produção literária são tomadas corno exemplo. Ela argumenta que se Shakespeare tivesse tido urna
irmã igualmente dotada, com talento para ficção e desejosa de obter experiências a partir do contato
com vidas de homens e mulheres e do estudo de seus estilos, teria certamente enlouquecido e se
suicidado ou terminado sozinha e ridicularizada em algum refúgio. É que naturalmente ela não teria
sido mandada à escola, corno ele, nem tido oportunidade de viajar para conhecer o mundo, nem
aprender Gramática e Lógica, muito menos o latim para ler Horácio e Virgílio. Em vez disso, ter-Ihe­
iam proibido de ler e escrever e feito dela a noiva de algum negociante importante, que a tornaria uma
respeitável "rainha do lar". Em face dessa realidade, a mulher que nascesse com o veio poético no
século XVI, no entender de Woolf, seria uma mulher infeliz e em conflito consigo mesma. O mesmo
aconteceria com as mulheres dos séculos seguintes, com igual inclinação para a arte. Mesmo no século
XlX, tais mulheres, além de terem que enfrentar a hostilidade, a arrogância e toda.fiorte de sermões
e recriminações sociais (que no caso de homens escritores da casta de um Flaubert, por exemplo,
se traduzia apenas como indiferença), tinham que enfrentar as dificuldades materiais e a questão da
dependênci~ Para a maioria delas, ter um quarto próprio estava fora de questão; o mais comum era
dividir conjugados de sala e quarto com toda a família. O dinheiro para os "alfinetes" dependia da boa
vontade do pai e mal dava para mantê-las vestidas. A não ser que se tratasse de filha de pais muito ricos
ou muito nobres - raras exceções.
Outro aspecto fundamental da abordagem de Virgínia Woolf acerca do tema "mulher e ficção" está
ligado à questão do ressentimento que marca a literatura escrita por mulheres e que, de certa forma,
interfere em sua qualidade. Os poemas escritos por mulheres abastadas do século XVII, como os de
Anne Finch Winchilsea (1661-1720) ou os da duqueza Margaret Newcastle (1623-1673), bem como
os romances (escritos nas salas de estar comuns) de centenas de mulheres que, a partir do século XVIII,
começaram, gradativamente, a ganhar dinheiro com eles, são visivelmente marcados pela amargura,

222 - T E o R I A LITERÁRIA
- -----.~ C H I; 1 C\ 1 1 \\ 1 N 1ST A

pelo ódio e por ressentimentos em relação aos homens, seres odiados e temidos por deterem o poder
de barrar-lhes, entre tantas outras coisas, a liberdade de escrever.
Para a ensaísta, essa revolta das mulheres escritoras dos séculos XVII e XVIII, espécie de "ervas

I
daninhas" a enredar-lhes o talento, consistiu no principal empecilho à emergência de uma literatura
de autoria feminina a que se pudesse atribuir valor. Apesar disso, tais escritoras consistiram em peças
fund;iI11entais na tradição literária feminina que se consolidou nos séculos XIX e XX:
I

Sem aquelas precur<;oras, Jane Austcn e as Brolltcs c George Eliot não teriam tido maIOr

I
I,
t
possibilidade de escrever do que tena Shakespeare sem Marlowe, ou Marlowe sem Chaucer,
ou Chaucer sem aqueles poetas esqueCIdos que prepararam o terreno e domaram a selvageria
natural da língua. As obra<;·primas nãu são frutos isolados e solitários: são o resultado de muitos
anos de pensar em conjunto, de um pensar através do corpo das pessoas, de modo que a

I
,
exveriência da massa está por trás da voz isulada (WOOLF, 1985, p. 87).

Woolf salienta, ainda, que mesmo os considerados "bons romances" (e raros) das escritoras
oitocentistas referidas no trecho acima, Villete, Emma, O morro dos /lentos uivat1tes, Míddlemarch,Jane Eyre
etc., fóram escritos nas salas de estar comuns, por mulheres pobres que mal podiam comprar o papel
onde escrever, privadas de experiência, intercâmbio e viagens. Daí persistir nesses livros, por mais
esplêndidos que sejam, um tom de rancor que os contrai; toda a sua estrutura está erigid; por "uma
mente ligeiramente tirada do prumo e forçada a alterar sua visão clara em deferência à autoridade
externa" (WOOLF, 1985, p. 97).
As reflexões da ensaísta em relação à escrita feminina avançam até o momento presente da
produção do ensaio (1929), momento em que ela constata que "talvez a mulher esteja começando
a usar a literatura como uma arte, não como um método de expressão pessoal" (WOOLF, 1985, p.
105). Por entender que os livros continuam uns aos outros, ela tece, agora, suas considerações a
partir deA aventura da vida, provavelmente o primeiro livro dajovem e desconhecida escritora Mary
Carmichael, publicado naquele mesmo ano, como se fosse o último da série que vem examinando.
O exame detalhado do volume aponta um estilo mais conciso do que os de suas predecessoras,
parecendo evitar o tom sentimental, comumente atribuído aos escritos delas; a sequência esperada
da frase é quebrada, causando certo estranhamento em relação a temas como amor, morte etc.;
a mulher é representada com outros interesses, diferentes daqueles por tanto tempo enfocados,
referentes ao mundo doméstico e às relações amorosas; não é, sobretudo, representada a partir
do olhar do outro sexo e em relação ao outro sexo, como tradicionalmente acontece na ficção,
mas é vista em relação à própria mulher; o homem não é mais a "facção oposta"; do ódio e
do medo em relação a ele ficaram apenas uma alegria pela liberdade (mais acentuada do que o
desejável) e certo tom cáustico e satírico ao referir-lhe. Em resumo: a escritora desconhecida
escreve como mulher, sem a consciência disso. Mas, apesar de tantos avanços, falta-lhe conseguir
construir "com o efêmero e o pessoal o duradouro edifício que permanece de pé" (WOOLF, 1985,
p. 123). Do ponto de vista da ensaísta, isso implica dizer que, para escrever um grande romance, é
necessário à escritora, ao se defrontar com uma "situação", mais que roçar ~superfícies, "mergulhar
o olhar até as profundezas". Em vista disso, é preciso que a mulheres saltem, ainda, uma série de
obstáculos, ignorando o olhar de reprovação que emana dos bispos e deões, dos doutores e lentes,
dos patriarcas e pedagogos: "Deem-Ihe mais uns cem anos [ ... ]".
Para concl uir suas ponderações acerca do tema "mulher e ficção", ao final dessas reflexões acerca
da trajetória da literatura de autoria feminina, Woolf discute os prejuízos acarretados, sobretudo
para a ficção, com o fato de pensar-se em cada um dos sexos separadamente; a seu ver, isso interfere
na unidade da mente. A partir do princípio da "androginia", frequentemente discutido pelo grupo
crítico-literário de Bloomsbury (Londres), que reunia a quinta-essência dos escritores britânicos
entre 1907 e 1930, ela pondera que é natural os sexos cooperarem entre si. Com Coleridge (1772­
1834), ela afirma que as grandes mentes não pensam especialmente ou separadamente no sexo; são
andróginas, como era andrógina a mente de Shakespeare (1564-1616) ou de Proust (1871-1922).
Casos bem diferentes daqueles observados em escritores oitocentistas da casta de um Tolstoi
(~()LIN

" (1828-1910), poc exemplo, que, '" emevecem 'pen" com o lado ",",cuhno do cécebm, pocecem
, criar obstáculos na comunicação: a emoção que lhes permeia a ficç;lo é incompreensível à mulher.
Trata-se de livros que carecem do poder da sugestão e que por isso não atingem a mente em
sua totalidade. Daí defender a necessidade de se ser masculinamente feminina e femininamente
masculino para que a arte se realize e comunique experiências com integridade.

o FEMINISMO EXISTENCIALISTA DE SIMONE DE BEAUVOIR

Antes de nos determos, finalmente, no trabalho de estudiosas que aliam, a partir de 1970, feminismo
e literatura, dando origem à crítica literária feminista, perscrutemos as ideias disseminadas por Simone
de Beauvoir, em Le deuxieme sexe (1949), acerca da situação da mulher na sociedade, publicado em
português como O segundo sexo, em 1980. Isso porque o modo de Beauvoir encarar a relação entre os
sexos, qual seja, a mulher sempre como escrava (o Outro) e o homem sempre como senhor, vem sendo
problematizado ao longo da trajetória dos estudos de gênero: em alguns aspectos, contribuiu com os
estudos empreendidos pela nova geração de feministas; em outros, foi rejeitado, conforme vere~lOs.
Beauvoir (1980) discute a situação da mulher por meio de uma perspectiva existencialista, numa
espécie de resposta ao marxismo, que, segundo ela, não explicou o sexismo a contento; não o tendo
feito, tornou-se incapaz de elaborar um programa adequado para a libertação das mulheres. De sua ótica,
não basta apontar as relações de propriedade como responsáveis pela opressão feminina; é necessário,
também, explicar por que as relações de propriedade foram instituídas contra a comunidade e entre
os homens.
O feminismo existencialista da pensadora pode, de um lado, oferecer um estudo da opressão
das mulheres e, de outro, sugerir formas de emancipá-Ias dessa opressão. No que tange ao primeiro
aspecto, ela analisa a problemática feminina de modo a salientar que não existe absolutamente uma
essência feminina, responsável pela marginalidade da mulher; existe apenas o que cla chama de situação
da mulher: o fato de a mulher dar à luz é tomado como a matriz das diferenças entre os sexos. Estando
impossibilitada de ir à caça e de dedicar-se a trabalhos pesados em razão das limitações físicas e dos
cuidados com o bebê, ela foi privada de afirmar-se em relação à natureza, como fizeram os homens.
Como a superioridade, explica Beauvoir (1980), é dada não ao sexo que dá à luz, mas ao sexo que mata,
a mulher é tomada como o Outro, contra quem os sujeitos masculinos se afirmam.
O privilégio maior do homem, portanto, reside no fato de a sua "vocação de ser humano"
(transcendência) não se chocar com seu "destino de macho"; em contrapartida, a mulher vive dividida
entre essa mesma vocação e o seu "destino de mulher" (imanência). Tal destino, no entender de
Beauvoir (1980), não está ligado apenas à questão da maternidade; a sexualidade feminina também
concorre para a perda de sua subjetividade. O ato sexual, por si, a obriga a cumprir o papel de objeto
passivo, o. qual acaba por contaminar todos os seus tratos não sexuais com o mundo. Já no que se refere
ao homem, seu ser sexual é congruente com sua transcendência.
Desse modo, a situação da mulher no mundo (a de oprimida) lhe nega a expressão normal de
humanidade e frustra seu projeto humano de autoafirmação e autocriação. Enquanto os homens são
encarregados de "remodelar a face da Terra", apropriando-se dela, impondo-lhe sua marca, à mulher é
vedada a possibilidade de ação. Além de estar aí, sua opressão está também, e principalmente, na crença
de que o destino da mulher é ser passiva, uma vez que a passividade integra, irremediavelmente, sua
natureza. Em vista disso, e não podendo rebelar-se contra a natureza, o mundo não lhe pertence e
sua energia é canalizada para o narcisismo, o romantismo ou a religião. O acesso a elevados valores
humanos, como o heroísmo, a invenção e a criação lhe é vedado.
Partindo do pressuposto de que o sujeito humano deve ser livre, Beauvoir (1980) questiona as
razões que levam a mulher a se submeter à opressão. Para explicá-las, ela invoca a noção sartreana de

224 ~ T E o R I A LITERÁRIA
"má fé", um dos pontos mais intrigantes do livro de Jean-Paul Sartre sobre filosofia existencialista
O ser e o /1ada, publicado em 1943: os seres huma!los são livres, mas podem enganar-se, fingindo
não sê-lo. No caso da mulher, os meios são mais favoráveis para que esse processo se realize: SlLl
fraqueza é estimulada. No entanto, a má fé dos outros em anular-lhe a liberdade - que é inerente
à sua condição de ser humano - não é suficiente para a plena realização dessa empreitada; a mulher
mesma aceita a opressão que lhe é imputada, tornando-se cúmplice da própria escravização.
Isso posto, a filósofa parte paL1. a proposição de uma maneira de reverter esse estado de cOisas:

I cabe à mulher inverter os papéis. Ao recusar os desmandos q LIe lhe são impostos pelo homem, ela se
torna o sujeito e o opressor torna-se a "coisa". I lá que se aprender a ser f'Homme, sobretudo através
da conquista de uma profissão. A armadilha do casamento e, consequentemente, dos filhos deve ser
evitada; ao invés da família, ela deve assumir seu lugar no mundo em meio aos homens.
Nesse sentido, a noção de igualdade e semelhança de todos os seres humanos consiste na pedra
fundamental do feminismo existencialista de Beauyoir (1980). Trata-se do principal aspecto que afasta
seu feminismo daquele defendido pela nova geração do feminismo francês. Segundo Moi (1985), as
teóricas pós-Beauvoir teriam abandonado o anseio liberal dela de obter igualdade com os homens para
enfãtizar a diferença, isto é, exaltar o direito de a mulher proteger os yalores especificamente femininos
e rejeitar a referida "igualdade", entendida como disfarce para forçar as mulheres a se torn~rem como
homens.
No entanto, a despeito dessa divergência, a amplidão dos temas tratados em O segundo sexo preparou o
caminho para muitas das alebraçôes dos adeptos do feminismo radical, uma das correntes que integram o
movimento, ao lado da liberal e da socialista (veja Quadro 2). Nye (1995) arrola as principais delas:
• o patriarcado é a constante universal em todos os sistemas políticos e econômicos;
• o sexismo data dos inícios da história;
• a sociedade é um repertório de manobras nas quais os sujeitos masculinos firmam o poder
sobre objetos femininos;
• violações, pornografia, prostituição, casamento e heterossexual idade são imposições do poder
masculino sobre as mulheres:
• a aquiescência das lnulheres é uma indisposição de má fe de enfrentar sua própria falta de
poder.

1) Tendência do feminismo que, inspirada em Beauvoir, toma a divisão sexual, e não a


de classe, como central na análise do social. A luta pela libertação da mulher dirige-se ao
combate de seu papel como reprodutora (gestação, criação e educação dos filhos).
Feminismo 2) Tendência do feminismo que, aliada à desconstrução de Derrida, visa destruir a supremacia
radical masculina, por meio da desconstrução das oposições binárias que mantêm a dominação das
(dois sentidos) mulheres pelos homens. Isso porque entende-se que as referidas oposições nada mais são
do que linguagem, e a linguagem exorbita a realidade. Ao desconstruir a oposição binária
, homem x mulher, essa facção do feminismo coloca no seu lugar o andrógino, o ser humano
acima das diferenças de sexo.

Tendência do feminismo que atribui a causa da opressão feminina à ausência de igualdade de


Feminismo
direitos entre os sexos; em vista disso, defende uma sociedade em que homens e mulheres
liberal
tenham oportunidades iguais garantidas pela legislação.

Tendência do feminismo que parte da premissa de que todos os antagonismos sociais passam
Feminismo pela questão da hierarquia de classes, onde se localizam todas as relações de poder. Nesse
socialista sentido, essa facção defende a tese de que a liberação feminina está atrelada a uma sociedade
socialista, em que os princípios igualitários se estendam à sociedade como um todo.
Quadro 2. As principais facções do movimento feminista.
~o L I N

·1 O FEMINISMO POLÍTICO DE RNrE Mn.LET

A crítica feminista propriamente dita tem seu marco inicial com a puhlicação de Sexual poli/i[s,
de Kate Millet, em 1970. Como já antecipa o título, a obra suplanta o aspecto puramente literário
e, com uma aguçada consciência política, traz à tona discussões acerca da posição secundária
ocupada pelas heroínas dos romances de ,Hltoria masculina, como também pelas escritoras e
críticas literárias. Millet (1977 apud SELDEN, 1988; BENNETT ROYLE, 1999) discute as
causas da opressão feminina a partir do conceito de patriarcado - a lei do pai Nos limites desse
sistema, o ser feminino é subordinado ao masculino ou tratado como um masculino inferior;
o poder é exercido na vida civil e doméstica de modo a submeter a mulher, que, a despeito dos
avanços democráticos, tem continuado a ser dominada, desde muito cedo, por um sistema rígido
de papéis sexuais.
Ao lado de outras feministas, Millet (1977 apud SELDEN, 1988; BENNETT; ROYLE, 1999) ataca
os estudiosos sociais que tomam esses papéis femininos culturalmente ensinados como próprios da
natureza feminina. Esse modo de pensar é perpetuado não só por homens, mas também pelas próprias
mulheres. Concordando com Sartre (1957) e Beauvoir (1980), Millet acredita que toda manifestação
de poder exige o consentimento por parte do oprimido. No caso da mulher, tal consentimen!o é
obtido através de instituições de socialização, como a família, ou através de leis que punem o aborto
ou a violência à esposa, afirmando, às avessas, o poder masculino.
Ao serem perpetuados, os papéis femininos tornam-se repressivos; a necessidade de representá­
los, que se impõe no âmbito da relação entre homem e mulher, caracterizada pela dominância de
homens e subordinação de mulheres, é o que Millet chama de "política sexual".
Essa política de força, segundo a teórica, afeta a literatura na medida em que os valores literários
têm sido moldados pelo homem. Ela pondera que, nas narrativas de autoria masculina, as convenções
dão forma às aventuras e moldam as conquistas românticas segundo um direcionamento masculino.
Além disso, são construídas como se seus leitores fossem sempre homens, ou de modo a controlar a
leitora para que ela leia, inconscientemente, como um homem.
A fim de opor resistência a essa doutrinação da leitora, Millet (1977 apud SELDEN, 1988;
BENNETT; ROYLE, 1999) expõe exemplos dessas constatações retirados da ficção canônica
masculina, enfatizando a exploração e a repressão feminina que permeiam as descrições dos papéis
sexuais nas novelas de escritores como D. I L Lawrence, Henry Miller, Norman Mailer e Jean Genet,
tidos em alta conta por muitos críticos pela ousadia e liberdade no relato de relações eróticas.
Essas discussões empreendidas por Kate Millet ilustram o que hoje se classifica como sendo uma
vertente mais tradicional da crítica feminista. Concentrando-se na mulher como leitora, tal vertente
busca responder a questões como: Que tipo de papéis as personagens femininas representam? Com
que tipo de temas elas são associadas? Quais as pressuposições implícitas contidas num dado texto em
relação ao (à) seu (sua) leitor(a)?
Ao trabalhar no sentido de responder a essas questões, asCos) crítica(os) feministas mostram como
é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de
estereótipo~ culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher
como megera, o da mulher indefesa e incapaz e, entre outros, o da mulher como anjo capaz de se
sacrificar pelos que a cercam. Sendo que à representação da mulher como incapaz e impotente subjaz
uma conotação positiva; a independência feminina vislumbrada na megera e na adúltera remete à
rejeição e à antipatia.
Na literatura brasileira, muitas são as obras que retratam a mulher segundo esses estereótipos.
Em Luríola, de José de Alencar, Lúcia transita da menina inocente à prostituta imoral, para
posteriormente regenerar-se, encarnando a mulher-anjo, capaz de sacrificar-se pelo bem dos que a
cercam. Em Dom Casmurro, de Machado de Assis, Capitu é, na visão do marido Bento, uma sedutora
imoral e dissimulada, capaz de traí-lo com seu melhor amigo. Também na literatura portuguesa

226 - T E () R I A LITERÁRIA
'~, ~,-,~ (- H I I I " I I I \1 I N I ,

são abundantes as figuras estereotipadas. Em .-1l/1or de perdifâo, Teresa encarna a mocinha II1defesa
afastada de seu grande amor, em razão das rivalidades reinantes entre as duas famílias. Em O prilllo
Basl1io, Eça de Queiroz põe em cena a megera chantagista, na pele de Juliana, e a adúltera imoral na
pele de Luísa.
O exame cuidadoso das relações de gênero na representação de personagens femininas,
tarefa dessa primeira vertente da crítica feminista, aponta claramente para as construçôes sociais
padrão, edificadas, não necessariamente por seus autores, lllas pela cultura a que eles pertencem,
para servir ao propósito da dominação social e cultural masculina. Assim, o femlIlismo mostra a
natureza construída das relações de gênero, além de mostrar, também, que muito frequentemente
as referências sexuais aparentemente neutras são, na verdade, engendradas em consonância com
a ideologia dominante: o engendramento masculino possui conotações positivas; o fem1l1ino,
negativas.

ESTEREÓTIPOS CONO­
EXEMPLO NA LITERATURA
FEMININOS TAÇÃO

Lúcia (Ludola, de José de Alencar); Capitu (Dom Cas/1/urro,


Mulher sedutora e/ou
de Machado de Assis); Ema (Madame Bovary, de Gustave Negativa
perigosa e/ou imoral
Flaubert); Luísa (O primo Basílio, de Eça de Queiroz)
' ­

Mulher como megera Juliana (O primo Basílio, de Eça de Queiroz) Negativa


Mulher~anjo e/ou
indefesa e/ou incapaz e/ou Teresa (Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco). Positiva
impotente
I
Quadro 3. O modo tradicional de representação da mulher na literatura.

As TENDÊNCIAS DA CRÍTICA FEMINISTA CONTEMPORÂNEA

Numa fase posterior a essa, preocupada essencialmente em desmascarar a misoginia da prática


literária, a crítica feminista expandiu-se segundo outros direcionamentos: ao invés de se ocupar dos
textos masculinos, passou a investigar a literatura feita por mulheres, enfatizando quatro enfoques
principais: o biológico, o linguístico, o psicanalítico e o político-cultural.
'Tais enfoques emergem da ênfase dada a certos aspectos, em detrimento de outros. Mas todos
são constituídos a partir da ideia básica do pensamento feminista: desnudar os fundamentos culturais
das ç.onstruções de gênero (opondo-se às perspectivas essencialistas e ontológicas dos estudos que
abordam a questão da mulher) e promover a derrocada das bases da dominação de um gênero sobre
outro.
A crítica que se vale de argumentos que tratam a biologia como fundamental tem sido utilizada, de
um lado, por homens, que, baseados na máxima "a mulher não é nada além de um útero", desejam
manter as mulheres em seus "lugares". Trata-se de tomar o corpo da mulher como o seu destino e,
portanto, de aceitar os papéis a ela atribuídos como sendo da ordem da natureza. De outro lado, algumas
feministas radicais celebram os atributos biológicos da mulher como atributos de superioridade, ao
invés de inferioridade. A anatomia física é entendida como sendo textualidade, e o corpo, como fonte
de imaginação.
~() L I N

'. , O enfoque linguislico, ou "xlual, encerra diseu",ões acnea de problema> f,losófieos,


, linguísticos e práticos do uso da linguagem pela mulher. Tais discussões buscam responder
se homens e mulheres usam a língua de forma diferente; se tais diferenças, no caso de uma
resposta afirmativa, seriam teorizadas em termos de biologia, de socialização ou de cultura;
se as mulheres podem criar novas linguagens, próprias, e se a fala, a leitura e a escrita são
marcadas por diferenças de gênero. Esse enfoque privilegia ainda questões relacionadas
à ideologia dominante: partindo do argumento de Foucault de que a verdade depende de
quem controla o discurso, e alimentados pela crença de que o domínio dos homens sobre o
discurso tem aprisionado as mulheres nas armadilhas da verdade masculina, alguns estudos
têm se ocupado em contestar o controle da linguagem pelos homens, ao invés de meramente
recuarem-se no gueto do discurso feminino. Estudiosas francesas defendem a reinvenção da
linguagem, ou seja, a adoção de uma linguagem feminina revolucionária, capaz de romper
com a ditadura do discurso patriarcal, de estrutura falocêntrica, falando não apenas contra
ele, mas fora dele.
As teorias psicanalíticas consistem em um terceiro enfoque, e incorporam os modelos biológico e
linguístico, situando a diferença na psique do autor - moldada pelo corpo, pelo desenvolvimento da
linguagem e pela socialização do papel sexual - e na relação do gênero com o processo criativo.
Inicialmente, a crítica psicanalítica tomou os postulados de Freud do complexo de castração
e da fase edipiana para defiilÍr a relação da mulher com a escrita; mais recentemente, tem-se
orientado pela metáfora da desvantagem linguística e literária feminina proposta por Lacan.
Segundo o psicanalista, o fato de a aquisição da linguagem e o ingresso na sua ordem simbólica
ocorrerem na fase edipiana, em que a criança aceita sua identidade sexual, implica a aceitação
do falo como uma significação privilegiada. Sendo a linguagem da ordem do masculino, porque
são os valores do mundo masculino que ela veicula, a criança adere a ela pela Lei do Pai: ao
dizer "eu sou", distinguindo essa frase de outras como "você é" ou "ele é", a criança estaria
assumindo sua posição na Ordem Simbólica e abandonando o direito à identidade imaginária
com a mãe e com todas as outras posições possíveis. Assim, o acesso da menina à linguagem é
problemático, já que ela só se torna capaz de exprimir-se por meio de frases condizentes com o
polo masculino da cultura.
Tendo em vista essas considerações, a crítica feminista, psicanaliticamente orientada, estuda
as especificidades da escrita feminina em relação à problemática da identidade da mulher. Aí,
um certo sentimento de inferioridade marca a sua luta pela afirmação como artista, ao mesmo
tempo em que diferencia seus esforços de criação daqueles empreendidos pelos escritores.
O enfoque político-cultural da crítica feminista engloba linhas diversas: tendências marxistas
que estabelece~ a relação entre gênero e classe social como categoria de análise, enfatizando .
I
formas de cultura popular, relatando mudanças sociais, condições econômicas e transformações
relacionadas ao equilíbrio de força entre os sexos; tendências que tomam a noçã9 de experiência
!1
l
ligada às práticas culturais dos sujeitos femininos na sua relação com a produção literária;
tendências que analisam a arte literária da mulher tendo em vista o contexto histórico-cultural no
qual se insere.
Esses quatro enfoques referidos podem sobrepor-se, de modo que cada um incorpore o anterior.
Eles estão contidos em duas grandes vertentes da crítica feminista: a anglo-americana e a francesa.
Ambas estão articuladas em torno de um eixo fundamental, o da investigação e contestação da estrutura
patriarcal que sustenta o nosso sistema social.
No entanto, há que se considerar que mesmo no interior de cada uma dessas vertentes existem ..
diferenças e antagonismos de pensamento, configurados em termos de oposições binárias, como:
mulher/gênero, igualdade/diferença, privilégi%pressão, centralidade/ marginalidade e essencialismo/
antiessencialismo.

228 - T E o R I A L I T E R Á R I A
'---~~ C F I I I ,,\ I I " I N I , I A

1) De um lado, a tradição patnarcal dcfcnde a idcia de quc o corpo d:l mulhcr é seu
dcstino, ou seja, os papéis sociais a cla atribuídos são tomados como sendo da ordem
Enfoque biológico do natural;
2) Dc outro, as fl'Il1ll11stas cclcbram os atributos hiológlCos da mulher como atributos
de superioridade: o corpo como textualidade e fonte de imag1l1ação.

1) Tenta respondcr sc as difcrenças de gênero llnphcam o uso da linguagem de forma


Enfoque diferente por cada um dos sexos;
linguístico ou
2) Contesta o controle masculino da Imguagcm;
textual
3) Propõe a adoção de uma linguagem fcrmnina revolucionária.

1) Incorpora os modelos anteriorcs;


Enfoque
2) Debruça-se sobre as especificidades da escrita feminina (écriwrctt'IlIilzine) à luz da
psicanalítico
• teoria da fase pré-cdipiana dc Lacan .
-
1) Tendência marxis t:l como categoria dc :lnálise (relação entre gênero c classe

Enfoque político­
social);
.
2) Estabelece analogias entre a noção de experiência e a produção literária da mulher;
cultural
3) Analisa a literatura de autoria feminina tendo ClT! vista o contexto histórico-cultural
no qual essa produção sc insere.

Quadro 4. Principais enfoques da crítica feminista contemporânea.

A CRÍTICA FEMINISTA ANGLO-AMERICANA

A crítica norte-americana Showalter (1985) sistematiza os estudos sobre mulher e literatura


identificando dois tipos de crítica: a "critica feminista", que se dedica a mulheres como leitoras,
ocupando-se da análise dos estereótipos fcmininos, do sexismo subjacente à crítica literária tradicional
e da pouca representatividade da mulher na história literária; e o que cla chama de "ginocrítica", que
se dedica a mulheres como escritoras, constituindo-se num discurso crítico especializado na mulher,
alicerçado em modelos teóricos desenvolvidos a partir de sua experiência, conhecida por meio do
estudo de obras de sua autoria,
Ao centrar-se genuinamente na mulher, configurando-se como corrente crítica independente
e intclectualmente coerente, a ginocrítica coloca-se numa postura de op06ição às tendências que
continuaram a alimentar-se da tradição crítica androcêntrica, do "discurso dos mestres", numa espécie
de revisionismo, que, no fim, torna-se uma homenagem, A questão essencial, portanto, nessa segunda
vertente crítica, não é mais tentar reconciliar pluralismos revisionistas, mas discutir a diferença por
meio do estudo da mulher como escritora, privilegiando a história, os estilos, os temas, os gêneros
e as estruturas dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da
carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres
(SHOWALTER,1994).
A ginocrítica é tomada por Showalter (1994) como um instrumento capaz de possibilitar o
conhecimento de "algo sólido, duradouro e real sobre a relação da mulher com a cultura literária".
Dos quatro principais modelos da diferença dos escritos femininos de que atualmente as teorias
feministas fazem uso, quais sejam, o biológico, o linguístico, o psicanalítico e o cultural, Showalter
defende o último como sendo o mais capaz de proporcionar uma maneira satisfatória de discorrer
'1'10
'@O II N

,I so b re o tema. U ma teona
. d a cu I tura ad . re IaCiona
' as I'd elas
mlte ' d as ao "corpo, a. l'1l1guagcm e . '
a pSique
I da mulher, mas as interpreta em relação aos contextos sociais nos quais elas ocorrem" (1994, p. 44).
Em vista disso, são consideradas as diferenças existentes entre as próprias mulheres escritoras, como
classe, raça, nacionalidade e história, as quais são tomadas como sendo determinantes literárias tão
importantes quanto a própria noção de gênero.

Crítica A mulher como leitora:


feminista 1) Análise dos estereótipos femininos na literatura canônica;
2) Análise do sexismo subjacente à crítica literária tradicional;
3) Análise da pouca representatividade da mulher na história literária. I

Ginocrítica A mulher como escritora:


1) Estudo da história, do estilo, dos temas, dos gêneros e da estrutura dos textos literários
de autoria feminina;
2) Estudo da psicodinâmica da criatividade feminina;
3) Estudo da trajetória da carreira literária da mulher, tanto individual quanto coletiva;
,
4) Estudo da evolução e das leis da tradição literária de mulheres.

Quadro 5. Os estágios da crítica literária feminista segundo Elaine Showalter (1994).

Além de privilegiar o estudo da literatura de autoria feminina, a crítica feminista anglo-americana,


nesse segundo momento, ou a ginocrítica (SHOWALTER, 1985), passaram a se dedicar, também,
a uma revisão dos conceitos básicos dos estudos literários, formulados pela tradição masculina. O
contato da vertente norte-americana com a inglesa e a francesa contribuiu para o crescimento do
interesse em relação às teorias:

A crítica inglesa, ao estabelecer a relação entre gênero e classe SOCIal como categoria de análise,
cnfatiza formas de cultura popular e dá origem à versão feminista da teoria literária marxist:l.
A escola francesa com seu interesse pelo feminino, pelo modo como é defillJdo, rcprcsent:ldo
ou reprimido nos sistemas simbólicos da linguagem, da psicanálise e da arte, relaciona a
escritura com os ritmos do corpo feminino (FUNK, 1994, p. 19).

Em face desse panorama, a crítica feminista contemporânea nos Estados Unidos ocupa-se de
uma gama bastante variada de questões. As mais debatidas referem-se a: 1) noções de gênero, classe
e raça, discutidas em confronto com a noção de essencialidade da mulher; 2) noção de experiência,
que enfoca as práticas culturais da mulher relacionadas com sua produção literária, a fim de recuperar
uma "identidaclé feminina" e rejeitar a repetição dos pressupostos da crítica literária tradicional; 3)
noções de representação literária, de autoria e de leitor/leitora; 4) noção do cânone literário e crítico,
discutindo a legitimidade do que é, ou não, considerado literário e denunciando a ideologia patriarcal
que o permeia e determina sua constituição; 5) discute, por fim, a problematização do projeto crítico
feminista, n9 que tange às possibilidades de intervenções nas relações sociais (QUEIROZ, 1995).
Em relação ao tópico que contempla os estudos acerca do modo de representação da mulher
na literatura de autoria feminina, há que se salientar aí a preocupação em reconhecer-se uma
tradição que lhe seja específica. Estudos mostram que também a escrita de autoria feminina
pode ser engendrada, no sentido de refletir a experiência da mulher. Veja-se, por exemplo, a
obra das críticas feministas Sandra Gilbert e Susan Gubar, The madwoman in the attic: the woman
writer and the nineteenth-century literary imagination, publicado em 1979. Nesse livro sobre a criação
literária, mais especificamente sobre o ato da escrita como prática masculina por excelência, elas
caracterizam a mulher escritora como uma figura dividida entre as imagens de "anjo" e "monstro",
construídas pelo imaginário masculino. Em vista disso, a criação literária só seria possível se essas

230 - T E o R I A LITERÁRIA
---~ C H I I I ( ..\ I I \1 I " I , I ..\

imagens fossem destruídas, ou seja, se essa identidade fabricada e polarizada fosse desestabilizada.
Dada a força da cultura sobre as identidades, os trabalhos literários das escritoras do século XIX
apresentam um forte interesse por certas limitações impostas às mulheres. Tal interesse expressa­
se numa "série de imagens obsessivas de confinamento que revela a maneira com que essas artistas
sentiam-se presas e 'doentes' tanto pelas alternativas sufocantes quanto pela cultura que as criara
e impusera" (GILBERT; GUBAR, 1979, p. 64).
Um exemplo desse comportamento dos textos escritos por mulheres que sucumbiram às
armações das representações estereotipadas pode ser reconhecido em Orsula (1859), de Maria
Firmina dos Reis. Trata-se de um dos primeiros romances escritos por mulher brasileira, em
que a heroína enlouquece em consequência das atrocidades que sofre: é raptada após assistir ao
assassinato do noivo à porta da igreja. Também em D. Narâsa de Vila r, romance contemporâneo
de Úrsula, escrito pela catarinense Ana LuÍsa de Azevedo Castro, a trajetória da protagonista segue
um 5crípt parecido: na noite em que ia se casar, por conveniência, com um rico coronel português,
é raptada pelo homem que ama; após uma fuga permeada de adversidades, são encontrados e
assassinados. Outra faceta dessa casta de romances pode ser reconhecida em A falência, de Júlia
Lopes de Almeida, cuja protagonista Camila encarna o estereótipo da mulher prendada, boa mãe
e boa esposa que se degenera ao tornar-se amante do médico da família, mas depois se redime
em busca da felicidade conjugal, equacionada em termos de honestidade, trabalho, obediência,
sujeição e servidão ao marido.
Por outro lado, a crítica feminista tem mostrado que a produção literária de mulheres após a
década de 1960 tem seguido outros direcionamentos. As escritoras, partindo de suas experiências
pessoais, e não mais dos papéis sexuais atribuídos a elas pela ideologia patriarcal, debruçam-se
progressivamente sobre a sexualidade, identidade e angústia femininas, bem como sobre outros
temas especificamente femininos, como nascimento, maternidade, estupro etc.
Veja-se, à guisa de exemplo, textos de Clarice Lispector, como Perto do coraçelo selvagem, em que
Joana, a heroína problemática do texto, não consegue adaptar-se à estereotipia dos papéis femininos
predeterminados pela família pequeno-burguesa. Ela se incompatibilíza com a imagem da boa filha
e da boa dona de casa, optando pela errância por entre a memória, o presente e as projeções do
desejo, a fim de transpor as limitações impostas pela ideologia vigente. Em Uma aprendizagem 01/ ( )
livro dos prazeres, ao narrar o romance entre Lóri, uma professora primária, e Ulisses, um professor
universitário, Lispector também põe em discussão questões ligadas ao modo de a mulher estar no
mundo. O namoro dos protagonistas estabelece-se como uma relação de ensino-aprendizagem
voltada para o relacionamento amoroso, em que Lóri é a aprendiz. Terminado o aprendizado, ela
se entrega ao professor, revelando-lhe, durante o ato amoroso, que sabe mais que ele. Por fim
recebe uma proposta de casamento, mas a história termina em aberto, com a protagonista dividida
entre dois extremos: a independência feminina, caracterizada pela liberdade sexual, entre outras, e
a alienação de si que o vínculo matrimonial oficializado pela ideologia patriarcal implica.

A Cl!JTICA FEMINISTA FRANCESA

Hélene Cixous e Julia Kristeva são algumas das principais representantes da teoria feminista
francesa. Diferentemente dos estudiosos da vertente anglo-americana, todavia, elas não se detêm
explicitamente sobre o campo literário, mas no da Linguística, da Semiótica e da Psicanálise. Trabalham
no sentido de identificar uma possível linguagem feminina_
A fim de reunirem argumentos capazes de desmistificar e deslegitimar a discriminação do
sexo feminino, as referidas estudiosas puseram em xeque, a partir de uma abordagem psicanalítica,
o conceito tradicional dos gêneros masculino e feminino enquanto categorias absolutas, cUJdS
~o L I N

I
I
dIferenças são sIstematIzadas a partIr de rígIdos aparatos conceituaIs. A tese que defendem é a de
que as diferenças sexuais são construídas psicologicamente, dentro de um dado contexto social.
Nesta ordem de ideias, ao contrário das feministas americanas dos anos 1960, que se insurgiram contra
o t:110centrÍsmo freudiano, as francesas tomam a Psicanálise como sendo capaz de fornecer uma teoria sobre
as origens e a fornlação dos gêneros. Isso porque elas a entendem como sendo um método emancipador,
capaz de examinar a construção do sl~eito humano em todos os seus aspectos. Seu pressuposto mais básico
é o de que tal sl~eito consiste em uma entidade complexa, que abrange desejos, impulsos, ímpetos infantis
reprimidos, além de fatores materiais, sociais, políticos e ideológicos de que estamos apenas parcialmente
conscientes. Na esteira de discussões desta amplitude, são trazidos à tona questionamentos mais específicos
sobre a mulher e suas re !ações com a sociedade e a linguagem (ClARKE, 1998).
Essa facção do feminismo, cups bases são constituídas a partir do pensamento pós-estruturalista de
Derrida e Lacan, trabalha basicamente com os conceitos de différa11ce e de imaginário. O primeiro consiste
no conceito-chave da crítica da desconstrução da lógica binária proposto por Derrida, a base da crítica
feminista radical; o segundo, relaciona-se à teoria da fase pré-edipiana de Lacan, que busca a definição
de uma érritllreféminine. Trata-se de investigar as ligaçôes entre sexualidade e textualidade, bem como de
examinar o campo de articulações do desejo na linguagem (HOLLANDA, 1992).
Para a escritora e crítica literária Hélene Cixous, a oposição homem/mulher (ou macho e fêm>ea)
consiste em um elemento fundamental na cultura ocidental e está presente, subjacentemente, a
todos os tipos de oposições que aparentemente não têm relação com ela. Nessa ordem de ideias,
o termo "inferior" é sempre associado com o elemento feminino; o termo que ocupa a posição
privilegiada, com o masculino: trata-se da "solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo".
No polêmico ensaio Rire de la Méduse (1975), publicado no Brasil como O sorriso da medusa, Cixous
(1988), através do estilo da "não-racionalidade", que afirma ser próprio da mulher, defende a tese de
que o corpo desta e sua escrita, se não policiados pela heterossexual idade patriarcal, constituem-se em
armas desconstrutoras dos valores falocêntricos, capazes de promover sua libertação. Expliquemos:
partindo da recusa da falta que a Psicanálise atribui à mulher e considerando que seu corpo representa
impulsos instintivos e desejos que surgem do inconsciente, ela o toma como o instrumento da
"escritura feminina". O corpo fala e, ao falar, "inscreve o que a mulher diz em si e por si, nas marcas
biológicas de uma natureza que irrompe em arritmias sintáticas, vazios, ilogicidade, sopro, respiração
advinda da relação com o corpo da mãe, que nunca cessa" (QUEIROZ, 1995, p. 150).
Seguindo na trilha da desconstrução de Derrida, Cixous abole as dicotomias escrita/sujeito e
escrita/fala, liberando tais conceitos das hierarquias binárias. Assim, a distância entre escrita e sujeito
que escreve é abolida, de modo que o discurso produzido pela mulher passa a ser entendido como
uma espécie de metonímia dela. Nessa mesma ordem de ide ias, a mesma escrita deixa de ser tomada
como um ato governado por fatores externos e limitadores, para aproximar-se da fala, entendida como
um veículo de eXpressão da interioridade.
De sua ótica, há na mulher um imaginário inesgotável propulsor de um texto subversivo. Esse
texto, ou essa escrita feminina, no entanto, não pode ser sistematizado ou definido rigidamente; não
implica absolutamente, segundo a teórica, uma prática fechada, o que não significa que ela não exista.
Não só existe como ultrapassa o discurso que regula o sistema falocêntrico e patriarcal masculino,
tomando lugar em áreas que não estão subordinadas a ele.
Cixous (1988) não reconhece a "escritura feminina", subversora do falocentrismo e do
patriarcalismo, apenas como sendo oriunda do ser biológico feminino. Embora ela considere a
mulher privilegiada ao seu acesso, homens também podem eventualmente produzi-la. Na verdade,
ela chama de ftminina a escrita subversiva que ela tem em mente, porque aquela marcada pela opressão
é claramente masculina.
Já a crítica literária e psicanalista Julia Kristeva (1974), seguindo na trilha da Psicanálise lacaniana,
integrante do que alguns chamam de crítica pós-feminista, combinando Linguística, Literatura e

7~7 T " n R I A lITERÁRIA


---~ l: l( , [ ; '.\ F J \1 ! " I , , .\

Psicanálise, também problematiza, na década de 1970, as questões referentes à sexualidade, identidade,


escrita e linguagem femininas, mas nega uma (,la ou uma escrita específica da mulher.
Por considerar que é através da linguagem que o indivíduo expressa a instahilidade que lhe é
f, inerente como ser humano, Kristeva (1974) a toma como o ponto central de seus estudos,
detendo-se, sobretudo, na problemática que a envolve e no modo pelo qual se define_ Ela
considera a Linguística moderna autoritária e repressiva, uma vez que suas investigações têm
f como alicerce estruturas monolíticas e monogêneas_ Do seu ponto de vista, a linguagern deve
i ser analisada como um processo heterogêneo, complexo, em que o sujeito falante (dividido,
descentralizado e instável) é tomado como objeto central na investigação_
Visando melhor definir essas características que integram o ser humano, Kristeva criou
o termo "sujeito em processo", não apenas no sentido de "sujeito em curso", mas também
como processo de lei, já que o indivíduo está constantemente em julgamento, ou seja, seu
comportamento está sempre sendo posto à prova.
Tendo em vista os três registros essenciais que Lacan distingue, no campo da Psicanáhse
(o SimbóLico que aproxima a estrutura do inconsciente à da linguagem e mostra como o sujeito
humano se insere numa ordem preestabelecida; o Imaginário, caracterizado pela preponderância
da relação com a imagem do semelhante, e o ReaL), Kristeva explica as raízes do teNTIO acima
referido por meio de dois conceitos: o Semiótico e o Simbólico. Por entender que o Simbólico
está comprometido com o polo masculino da cultura, ela redefine os conceitos de Imaginário
e de Simbólico, deslocando a força que Lacan imprime à ordem deste último para a ordem
do Imaginário. Trata-se de localizar na fase pré-edípica, anterior à entrada do Simbólico, um
momento em que a criança e a mãe falam num discurso próprio, que pode ser considerado a
matriz da linguagem sequestrada da mulher. A esse lugar do Imaginário, Kristeva chama de
Semiótico, como modo de significação alternativo ao Simbólico.
O Semíótíco, portanto, retorna às fases pré-linguísticas da infância, em que a criança balbucia
os ruídos que ouve, tentando imitar o mundo que a rodeia, sem, no entanto, possuir os sinais
linguísticos necessários para que haja, na linguagem, o sentido lógico e convencional. Trata­
se de um momento anterior à crise edipal já referida, em que não se possui identidade estável
nenhuma, e sim padrões e quadros flutuantes.
Ao integrar, através da aquisição da linguagem, o universo social definido pelo pala
masculino da cultura, a criança passa a ser definida por ele, ficando privada de ser um sujeito
pleno, realizado e unificado. É nessa fase da trajetória humana que o desejo e o inconsciente são
criados; e o são em razão dessa falta. O inconsciente, nesse sentido, consiste em uma espécie de
repositório de tudo o que deve ser reprimido por chocar-se com a posição assumida pelo sujeito
na sociedade.
Kristeva emprega a imagem do khóra, um vocábulo grego, retirado do Tímeu de Platão, que
significa receptáculo, espaço fechado, útero, para descrever o conteúdo essencial do inconsciente_
Trata-se de uma "instância do pré-Édipo e do pré-verbal que se definé como o Locu5 onde o
mundo é percebido pela criança como rítmico, intonacional, melódico" (QUEIROZ, 1995, p.
152), o qual jamais pode ser eliminado ou reprimido plenamente.
Em vista disso, o sujeito, para Kristeva, é constituído em linguagem na interação entre o
Semiótico e o Simbólico, como um "sujeito em processo". Daí ela defender a impossibilidade de
definir-se a mulher: ela nega-lhe uma essencialidade biológica, do mesmo modo que nega uma
especificidade da fala ou da escrita feminina. Do seu ponto de vista, a mulher, ao liberar-se da
rigidez da ordem simbólica, é capaz, sim, de produzir textos peculiares. Mas as peculiaridades que
os caracterizam não podem ser atribuídas nem à especificidade feminina, nem à marginalidade
social, mas a ligações com o locu5 original da khóra.
O feminino, para Kristeva, como para Cixous, não implica a mulher real, pois, no que diz
respeito à escrita, sujeitos biologicamente masculinos podem ocupar uma posição de sujeito
~o L I N

I feminino na ordem simbólica, conforme ela observa nas obras de artistas de vanguarda como
, Joyce e Mallarmé, entre outros. Ela vê no feminino a negação do fálico e, mais especificamente.
na escritura feminina, uma força capaz de quebrar a ordem simbólica restritiva.

~'-----~---------------------------------------------------------------------------,

1) Argumento pós-estruturalista: différanee (Derrida); imaginário (Lacan);


2) O pensamento funciona por meio de oposições duais e hierarquizadas, de modo que a oposição
Hélene homem/mulher (superior/inferior) está presente em todos os tipos de oposições (solidariedade
Cixous do logocentrismo ao falocentrismo);
(1988) 3) Essa oposição repressora pode ser deruída a partir da escrita da mulher;
4) Écriture feminine = texto subversivo;
5) Homens também podem produzir essa écriturefeminine.

1) Argumento pós-estruturalista: imaginário (Lacan);


2) Cria o conceito de "sujeito em processo" a partir da definição de duas modalidades: o Simbólico
e o Semiótico;
3) Toma a linguagem como ponto central de seus estudos;
4) A escritura da mulher é examinada a partir de uma perspectiva antiessencialista e anti­
Julia humanista;
Kristeva 5) O que foi reprimido e consignado ao Semiótico encontra possibilidades de manifestação em
(1974) todos os tipos de linguagem que, por qualquer razão, não estão totalmente sob o controle do
falante ou do escritor, cujas estruturas de linguagem acham-se restritas aos códigos linguísticos
do poder patriarcal;
6) As escritoras são capazes de construir textos que oferecem resistência às regras da linguagem
convencional, assim como a linguagem não totalmente regulada das crianças e da doença
mental.

Quadro 6. Representantes do feminismo francês.

A atitude de desconstrução em relação à oposição homem/mulher que a crítica feminista francesa


pressupõe pode ser mais facilmente reconhecida em textos de escritoras(es) contemporâneas(os) do que
ao longo da história da literatura. Tomem-se, por exemplo, os romances da primeira fase da produção
literária de Nélida Piflon, como Madeira feita cruz (1963) ou A casa da paíxão (1972).
No primeiro, a trajetória de Ana, a personagem central, traz à tona a discussão acerca dos conflitos
da mulher gerados pelo choque de ideologias: uma que lhe é própria, outra que lhe é imposta pelo modo
de pensar dominante. O conflito se instaura na medida em que ela adquire uma profunda consciência
de sua realidade corpórea e de seus desejos e, ao mesmo tempo, da realidade do cristianismo, em que
a sexualidade é marca do pecado original.
A solução se dá com a protagonista reinventando um cristianismo mais humano, uma
espécie de, "evangelho" próprio: após uma "viagem de aprendizado", concretizada por meio
de uma caminhada pela floresta, na qual se dá a descoberta solitária de seu próprio corpo e a
felicidade daí advinda, a personagem toma o machado e destrói a imagem de madeira de Cristo
na parede, num gesto de destruição dos modelos canônicos e de reinvenção dos conceitos do
Bem e do Mal.
Em A casa da paixão, a atitude da escritora de "subverter a sintaxe oficial", no que se refere à
tradição dos papéis conferidos à mulher, atinge um de seus pontos mais altos. O romance é, de certa
maneira, uma grande discussão acerca da tradição cristã e da tradição cultural no Ocidente, sobretudo
no que diz respeito à normatização da sexualidade apenas nos limites do casamento, com fins
de reprodução, e a consequente eliminação da legitimidade do desejo físico. Segundo a autora,

214 - T E o R I A LITERÁRIA
---~ C k I í I , __-\ I I \1 I " ; , I \

"é um texto em que talvez o discurso feminino alcance uma proemmência muito gr:mde_É a
história da relação amorosa de uma mulher. Como ela inaugura o corpo. E como o corpo, um;)
vez inaugurado amorosamente, erotizado, altera o pensamento" (PINON, 1988 apud PROENÇ/\
FILHO, 1998, p. 4).
Marta, a protagonista, tem como meta tomar a palavra, falar e nomear, tornar-se uma mulher­
SUjeito através do domínio do próprio corpo, entendido não como o templo de Deus, como quer o
cristianismo, mas como a casa da paixão, desvestido de qualquer ideologia de natureza espIritual
O estado inicial da narrativa é de uma aparente harmonia: de um lado, o pai como chefe incOl1testân-]
e natural, exercendo sua função de proteger a filha contra a cobiça dos homens; de outro, Antônia,
serva e governanta, aquela que ocupa o papel subalterno e hipotético de mãe, a ajudar, à sua moda, a
filha a tornar-se mulher.
Ao atingir a idade adulta, através da revelação de sua sexualidade, Marta, todayi:1, reage contrJ :1<;
imposiçôes paternas. Tal reação se dá através da exibição de seu desejo carnal, num gesto que a torna
autora de seu projeto de vida e, consequentemente, subversora do código que rege o comportamento
feminino.
Diante desse estado de coisas, o pai traz para casa Jerônimo, o homem que deverá ser o l~arceiro da
filha, numa relação oficializada - "Se é de macho que ela precisa, eu lhe darei" (p. 44).
Assim Jerônimo e Marta desempenhariam os papéis que a cultura ocidental convencionou como
sendo masculinos e femininos: enquanto ele, subordinado à ideologia patriarcal e ao cristianismo,
é marcado pela razão, pela disciplina, pela organização e hierarquia; ela é marcada pelo desejo, pelo
inconsciente e pela intuição. Correspondem, respectivamente, aos pares dicotômicos: atividade e
passividade, intelecto e sentimento, espírito e corpo, cultura e natureza etc.
A narrativa, todavia, se resolve com o surgimento de uma descoberta a partir do confronto entre
esses dois polos: trata-se de uma espécie de reinvenção da relação homem-mulher, a qual vai acabar
por permitir que tais personagens relacionem-se entre si sem que uma tolha a essência da outra_
Ambos deverão despojar-se de suas antigas formas de entender a realidade para inaugurar uma outra,
numa tentativa de conciliar os dois ideais, ou seja, equilibrar as forças antagônicas do masculino e do
feminino. Marta insere Jerônimo no universo feminino por ela vivenciado, ao mesmo tempo em que
resgata o seu lado masculino com a ajuda de Jerônimo.
O que Nélida Pinon propõe, portanto, em A casa da paixão, é, em certo sentido, destruir os
contornos nítidos das diferenças sexuais, com vistas à afirmação do direito da mulher de usufruir sua
sexualidade. Sem tais adaptações, certamente não seria possível a Marta alcançar a plenitude,já que ela
não se adapta ao modelo feminino consagrado pela ideologia. O par amoroso, aqui, aproxima-se de
uma situação ideal no que se refere à relação homem-mulher, por meio da masculinização de uma e
da feminilização do outro: ele abre mão dos preceitos patriarcais, que relegam a mulher à passividade
e lhe impõem a submissão, para aproximar-se do verdadeiro modo de ser de Marta, vivenciando-o ao
lado dela; ela complementa a nova situação (que lhe é favorável) através da eXperimentação do papel
masculino, como o entende Jerônimo.

PROBLEMAS E NOVAS PERSPECTIVAS DA CRÍTICA FEMINISTA: MULTIPLICIDADE E HETEROGENEIDADE

O conceito de gênero, considerado por Showalter (1985) "uma das mudanças mais marcantes
dentro das ciências humanas e das letras na década de 80", passou a ser amplamente usado pela
crítica literária feminista com o objetivo de evitar algumas armadilhas ou ambiguidades contidas
nos conceitos de identidade feminina e lugar da diferença. A procura da definição desses conceitos é, a
T'lr'~~rAC O"'~''''''-T {t ,'........ r"'\ .•• • , .
~o L I N I
; 0;-'

" eigoe" p<eowp'ção cem,,[ ó, du," peinnp,is ve<lmt" d, c"t.", fenuni,,,, confoeme d"cutüum
, nos Itens antenores.
A tendência anglo-americana empenha-se na definição de uma identidade feminina e do lugar da
d!ferC/lça por entender que tais definições são fundamentais na luta contra as instituições patriarcais
dominantes. Nessa ordem de ideias, trabalha 110 sentido de: 1) denunciar a ideologia patriarcal que
permeia a crítica tradicional e determina a constituição do cânone na série literária: 2) empreender uma
arqueolo~a literária para resgatar obras de mulheres que foram excluídas da história da literatura; 3)
estudar a produção literária da mulhEr contemporânea, particularizando-a como um lugar privilegiado
para a experiência social feminina.
A noção de identidade, entretanto, está comprometida com a estrutura da lógica patriarcal: ao
reforçar a noção de mulher como o outro, o pensamento feminista anglo-americano corre o risco de
apenas legitimar e garantir a supremacia masculina, ou seja, a supremacia do mesmo.
Em relação à tendência francesa, também são registrados problemas estruturais, na medida
em que seus defensores preocupam-se com a especificidade de uma linguagem essencialmente
feminina, investigando as relações entre sexualidade e textual idade e proclamando uma escrita do
corpo, sem, 110 entanto, explicitar as relações concretas que as determinam, as práticas sociais que
as constituem.
Além disso, essa polêmica teoria da escrita do corpo, proposta, principalmente, por Hélêne
Cixous, acaba por entrar em choque com os caminhos teóricos da d!fférance, os quais buscam a
desconstrução das oposições binárias que regulam o logocentrismo. A esse propósito, Castello
Branco (1994) assinala que considerar que o feminino se constrói em oposição ao masculino
implica o risco de mergulhar-se num raciocínio simétrico e antinômico. E, sendo assim, ao invés
de suspenderem-se as dicotomias e os maniqueísmos que envolvem as relações de sexo, está-se
reiterando essas relações.

É só no entrecruzar desse duplo movimento - daquele que parte com aquele que fica, daquele
que rompe com aquele que repete, daquele que é o outro com aquele que é o mesmo - que
se pode VIslumbrar essa especificidade feminina do discurso. Aí o seu traço, aí ü seu rastro, aí
a sua diferênâa (CASTELLO BRANCO, 1994, p. 49).

Na verdade, ao proclamar a existência de uma linguagem feminina, o feminismo francês


tenciona valorizar e potencializar a obscuridade e a falta que caracterizariam essa linguagem,
em oposição à racionalidade e à implacabilidade da linguagem hegemônica masculina. Segundo
Hollanda, "é inegável que os discursos marginalizados das mulheres, [ ... ] no momento em
que desenvolvem suas 'sensibilidades experimentais' e definem espaços alternativos ou
possíveis de expressão, tendem a produzir um contradiscurso" (1992, p. 59). Todavia, as noções
de linguagem feminina e de identidade feminina, entendidas como construções sociais, exigem
o exame dos contextos sociais e históricos nos quais se estruturam. Há que se considerar,
numa perspectiva historicizante, a multiplicidade de posições cabíveis. Daí as tendências mais
contempQrâneas da crítica feminista estabelecerem o conceito de gênero como uma categoria
analítica fundamental.
Nesse ~entido, a análise textual realizada do ponto de vista do feminismo crítico desnuda, em
meio ao desnudamento dos mecanismos artísticos de construção do texto, o processo por meio do
qual são construídas nele as relações de gênero, bem como a maneira através da qual tais relações são
articuladas pela ideologia dominante, além de enfocar a interação dessas relações com outras relações
sociais, como as de raça e classe. Desse modo, as relações de gênero não teriam essência fixa, variando
dentro e através do tempo (HOLLANDA, 1992).
Em meados da década de 1980, contudo, também a noção de gênero passou a ser questionada, por
ainda explicitar uma tendência de universalização da oposição homem/mulher. Esse questionamento,
no entanto, não minimiza a importância do conceito para o estudo do texto literário do ponto de vista
feminista; antes, aponta para a necessidade de ampliá-lo, visando à otimização de sua aplicabilidade. A

236 - T E o R I A LITERÁRIA
,,--~ C!l I I I '" ,\ I" L \1 I " I S I A

tendência, em vista disso, é tomar a noção de gênero como uma configuração variáve I de posicional idades
discursivas sexuais.
É o que defende Teresa Lauretis. no ensaio ''A tecnologia do gênero" (1994). Abandonando o
sistema sexual de gênero como esfera autônoma, ela passa a considerá-lo como a representação de
uma relação, a relação de pertencer a uma classe, a um grupo, a uma categoria, a uma posição da vida
social em geraL
Em vista disso, elabora o conceito de sujeito do feminismo, com o qual quer expressar uma concepção
do sujeito (feminino), não no sentido de Mulher com letra maiúscula (representação de uma essência
que seria inerente a todas as mulheres, como Natureza, Mãe, Objeto de Desejo etc.), nem como
mulheres (os seres reais, históricos e os sujeitos sociais, engendrados nas relações sociais), mas no
sentido de uma construção teórica caracterizada por constituir-se em um movimento para dentro e
para fora do gênero como representação ideológica:

Um movimento de vaivém entre a representação do gênero (dentro dé' seu referencial


androcêntrico) e o que esta representação exclui, ou mais exatamente, torna irrepresentávcl
É um movimento entre o espaço discursivo (representado) das posições proporcionadas
pelos discursos hegemônicos e o space-ojf, o outro lugar destes discursos: esses outros
espaços tanto sociais quanto discursivos, que existem, já que as práticas femililistas os (re)
construíram, nas margens (ou "nas entrelinhas", ou "ao revés") dos discursos hegemômcos
e nos interstícios das mstítuições, nas contra-práticas e novas formas de comunidade
(LAURETIS, 1994, p. 238).

A conveniência mais expressiva desse conceito para a crítica literária feminista está, portanto, no
fato de ele atuar num espaço marcado pela ambiguidade e pela exterioridade, em relação ao quadro das
estruturas de representações das relações de gênero, as quais excluem espaços sociais ou discursivos
produzidos nas margens.
Outro viés da crítica feminista desenvolve-se a partir de estruturas não-eurocêntricas. Trata­
se dos estudos sobre a mulher nas sociedades periféricas, uma reivindicação da crítica pós-colonial
desde meados da década passada. Spivak (1995), pensadora indiana radicada nos Estados Unidos,
caracteriza as teorias feministas do chamado Primeiro Mundo como uma espécie de globalização que
faz desaparecer a heterogeneidade do Terceiro Mundo. Ao reproduzir clichês imperialistas, próprios
do discurso colonialista e ao obliterar a compreensão das diferenças inerentes às mulheres dos países
antes colonizados, a crítica feminista, segundo Spivak (1995), torna-se uma espécie de cúmplice de
certas ideologias racistas e colonialistas.
A pensadora, assim, reivindica, para o universo dos estudos empreendidos pela crítica feminista,
a reintrodução da dimensão histórica, quase esquecida pelos estudos da linguagem empreendidos
por Kristeva (1974) e Cixous (1988), que tendem a tomar a literatura como um fato fechado em si
mesmo. Do lugar de que fala Spivak (1995), tais estudos estariam mostrando formas de discursos
capazes de romper com a tradição, mas que não promovem a construção de novos sentidos para
o feminismo, nem escapam à determinação histórica do sexismo. Spivak, I}esse sentido, repudia a
definição da mulher a partir de uma suposta essência, para defender a sua pluralidade histórica; trata-se
de defender a adoção de uma postura fenomenológica de abordagem existencial e deslizante na visão
perq:ptiva do mundo (LOBO, 1999).
Essa reivindicação da crítica pós-colonial, e mais incisivamente de Spivak, consiste em um dos
caminhos possíveis, e mais atraentes, no dizer de Hollanda (1992), para a crítica feminista nas próximas
gerações:

Um dos caminhos possíveis - e mais atraentes também - que se abre para a ampliação do debate
teórico sobre as questões feministas, neste momento, seria, talvez, o investimento mais vigoroso na
multiplicidade e na heterogeneidade das demandas femininas, bem como nas próprias diferenças
manifestas entre mulheres de contextos e circullstâncias diversas. Nesta perspectiva cOllsidero
como importantíssimo o recente impulso dos estudos sobre a mulher nas sociedades periféricas.
São estes estudos os grandes responsáveis pelo movimento de inclusão dos temas do racismo, do
L I N

antI-scmÍtlsmo, do lI11pCfl;Jlísmo, do colonI~lísmo t' da t'nfasc nas chferenças de classe no debate


femil1lsta mais recente (I-IOLlANDA 1992, P 60-(1),

o conceito dc di{erenfil, de fato, tem assumido importância cada vez maior nas articulações
contemporâneas accrca do gênero, Trata-se de uma pcrspectiva que investe no desnudamento
das especificidades do sujeito, climinando o silêncio e a exclusão da alteridade c promovendo o
reconhecimento das similaridades na diferença; consequentemente, promove, também, a desconstrução
da lógica binária, É por meio desse pensamento pós-estruturalista que o sistema sexo-gênero tem sido
ultimamente equacionado,
Em Problemas de gê/1ero (2003), Judith Butlcr reformula a crítica às categorias de identidade
produzidas e naturalizadas pelos discursos hegemônicos, fazendo definitivamente cair por terra a
lógica do essencialismo que rondava a noção de mulher em favor do desnudamento do sujeito do
feminismo como uma categoria multifacetada e instável.
Na verdade, Butler desconstrói o conceito de gênero, sobre o qual está alicerçada toda a teoria
feminista, questionando a diferenciação que até então se imprimia, scm maiores percalços, entre as
categorias de sexo e gênero, A premissa de que o sexo é natural e o gênero é socialmente construído é
posta na berlinda: para a pensadora também a idcia de sexo é uma construção, uma vez que a mesma
não existe em um mundo pré-discursivo, "natural", Assim, se tudo é construção, já que desde o
nascimento a menina e o menino são definidos a partir da ideia previamente construída acer~a das
peculiaridades físicas apresentadas por cada um, não há diferença entre sexo e gênero, Em ambos os
conceitos, a cultura é o destino,
A partir dessa discussão, a teórica passa a questionar o conceito de mulheres como sujeito do
feminismo, O desmonte da construção de gênero redunda no desmonte de uma equação na qual o
gênero seria concebido como essência universal e, como tal, só poderia funcionar dentro do humanismo',
Não havendo unidade na categoria mulheres, ou seja, não sendo possível isolar-lhe uma presumível
essência, fica estabelecida a inexistência do sujeito que o feminismo quer representar. Trata-se de uma
categoria des-essencializada, ou seja, sem identidade fixa, sempre em processo, cuja evolução é afetada
pelo entrecruzamento com outros eixos, além do gênero, como raça, classe, sexualidade, etnia etc
Não existindo como categoria coerente e estável, o sujeito do feminismo acaba por consistir em um
problema político que há que se gerenciar sob pena de reduzir uma realidade múltipla e disforme a
uma representação estável, universal, porém, deturpada, que rejeita "a multiplicidade das intersecções
culturais, sociais e políticas em que é construído o espectro concreto das 'mulheres'" (BUTLER,
2003, p. 34-5),
Procuramos, neste capítulo, dar um panorama da crítica literária feminista, desde suas origens,
na década de 1970, até o momento contemporâneo. Conforme dissemos, quando se alude ao debate
teórico feminista de forma ampla, pensa-se imediatamente em duas grandes vertentes: a francesa e
a anglo-americana. Ambas as tendências, após um momento inicial em que trabalhavam no sentido
de desmascarar a misoginia das práticas literárias masculinas, passam a um momento mais maduro,
voltado para a investigação da literatura de autoria feminina, através de diversos enfoques, como o
biológico, o linguístico, o psicanalítico e o político-cultural.
O modo com que a crítica feminista lê a literatura, calcado nos pressupostos teóricos do
feminismo, constitui-se a partir de contradições socioculturais que fazem emergir a relação entre
sexo e gên~Io. Em decorrência dessa origem, é natural o fato de essa tendência crítica não encerrar
um modelo explicativo, homogêneo e monolítico. Daí o complexo de visões e práticas a que
nos referimos acima, articuladas ao redor de um objetivo básico: analisar e contestar a estrutura
patriarcal de nossa sociedade, por meio da análise da constituição dos gêneros e da opressão de um
gênero sobre o outro.
Nesse cenário, tem sido comum a revisão de conceitos, entendidos como instrumentos de
análise de textos literários de autoria feminina: inicialmente, falava-se no estudo da categoria

De acordo com Heidegger, o humanismo pressupõe como óbvia a essência mais universal do homem,

238 - T E O R I A LITERÁRIA
I
-~.--~ C R I T I C ,\ í- E .'1 I N 1ST A

I "mulher "; a seguir passou-se a estudar a categoria de gênero; ultimamente, tem-se problematizado
as catcgorias cuja tendência é universalizar, ainda subjacentemente, a oposIção homem/mulhcr.
Antes dc essa diversidade de discussões teóricas implicar um jogo dc mocinhos e bandidos no universo
da crítica feminista, implica diálogos salutares, que só tendcm a aprimorar os estudos acerca do tema
"mulher e literatura".

A CRÍTICA FEMINISTA NO BRASIL

Se nos Estados Unidos e na Europa, o início dos estudos ligados à mulher e sua represcntação
na literatura datam dos anos 1970, no Brasil, até recentementc, o tema não era considerado objcto
legítimo de pesquisa. Segundo Boletins do GTMulher e Literatura da Anpoll, a consolidação de trabalhos
dessa natureza nas instituiçôcs acadêmicas brasileiras data de mcados dos anos 1980, quando grupos de
pesquisadores(as) passaram a se reunir para desenvolver estudos, apresentar resultados de pesquisas e
discutir textos teóricos relativos ao tcma.
Essa consolidação deveu-se à criação de associações de estudo, grupos de trabalho e de
seminários sobre o tema: em 1984, foi criada a Associação Nacional dc Pós-Graduação e
Pesquisa em Letras e Iinguística (Anpoll), cm que se integra o GT Mulher e Literatura, composto
por professorcs pesquisadores( as) do tema; em 1985, foi criado o Seminário Nacional Mulher &
Literatura, que se caracteriza pela divulgação de trabalhos e pesquisas nos meios acadêmicos,
por seu caráter intcrdisciplinar, pelo deslocamento por diferentes instituições brasileiras de
ensino supcrior e pelo cmpcnho em possibilitar a atualização dos pesquisadorcs do tema por
meio de intercâmbio com cspecialistas nacionais e estrangeiros; a Associação Brasileira de
Literatura Comparada (Abralic), criada em 1986, também tem contribuído para a consolidação
dos estudos de gênero no Brasil, na medida em que boa parte dos trabalhos aprescntados nos
encontros refere-se a essa temática, constituindo-se, portanto, num espaço privilegiado para
divulgação de pesquisas.
Na avaliação da coordenação do GT Mulhere Literatura daAnpoll, essas diversas oportunidades
de encontro dos pesquisadores do tema têm permitido o intercâmbio de experiências entrc
pesquisadores de diversas instituições e nacionalidades, a divulgação de resultados de pesquisas
e trabalhos críticos, além do estabelecimento de linhas de pesquisa nos cursos de pós-graduação
e departamentos de língua e literatura, constituindo-se em referência obrigatória para a área.
O resultado positivo dessas iniciativas pode ser constatado pelo substancial aumento de seminários
específicos sobre a mulher, de cursos de extensão e pós-graduação, de teses e monografias e de
publicações sobre o tcma. Trata-se de trabalhos voltados para a reconstrução e crítica de modelos
tradicionais que torna compreensiva e instigadora a perspectiva feminina nos "estudos literários e que,
em última análise, têm revertido progressivamente o quadro de carência que caracterizava os estudos
ligad~s ao tema Mulher e Literatura no Brasil.

As linhas de pesquisa em que se enquadram esses trabalhos derivam das duas grandes tendências
mencionadas no item anterior: a anglo-americana e a francesa. As investigações empreendidas pelos
pesquisadores ligados à Anpoll privilegiavam, inicialmente, grandes linhas intituladas "Mulher e
Literatura: perspectivas teórico-críticas"; "Representações do feminino no texto literário"; "Literatura
e feminismo" (enfoque sócio-histórico); "Literatura e o feminino" (enfoque psicanalítico); "Literatura
e mulher" (enfoque estético-formal).
Posteriormente, fez-se necessária, mais de uma vez, a reformulação dessas linhas, tendo
em vista as especificidades e diversidades das investigações e o fato de elas terem se constituído
em ponto de referência para os cstudos sobre Mulher e Gênero nos cursos de Letras oferecidos
~o I J N

, em nossas ul11\'Crsldades. AssllTI, em 1993, as refendas Imhas de pesqUisa assumIram a segumte


, configuração: "Tcona e crítica feminista: vertentes'"; "A questão do Cãnone" e "Gellder ­
estudos de gênero". Em 1999, assumiram outra configuração: "Resgate", "Teoria e críticas",
"Interdisciplinaridade" e "Representação". Em 2006, tomaram a configuração atual (veja quadro
abaixo)

~~~,-~~~~~--~- --'~~-- .. ------------_. -- - - ' - ­

Pesquisa t' constitUIção de um corpus significativo da produção desconhecida


dt literatura de autoria ftminina. tornadas invisíveis pela mediação crítica, quase
exclusivamente masculina, a partir de uma postura de revisão do cânone e de
Resgate e inclusão
desconstrução dos saberes hegemôl11cos, buscando outros.

Palavras-chave: resgate, inclusão, autoras, história literária.

Desenvolver investigações teóricas que subsidiem o discurso crítico com vistas a I


análises feministas de obras no âmbito da história literária e da crítica cultural, a partir
Teorias e críticas de conceitos de identidades e de diferenças no contexto nacional e transnacionaf.

Palavras-chave: feminismos, teoria(s), identidade(s), diferenças.

Representações de Investigação das representações/construções de gênero na literatura e/ou em


gênero na literatura outras linguagens a partir de uma perspectiva crítIca fc'minista.
e em outras
linguagens Palavras-chave: representação, construção, gênero.

Quadro 7. Linhas de pesquisa ligadas à crítica feminista desenvolvidas no Brasil.

o crescimento de estudos ligados a essas linhas de pesquisa, desenvolvidos por pesquisadoras(es)


de todo o país, atestado pelas constantes publicações de antologias, dicionários, ensaios, coletâneas
de estudos críticos, anais de congressos etc., permite falar, neste início de século. na crítica literária
feminista no Brasil como algo consolidado.
No entanto, a despeito disso, os escritos de mulheres, assim como aqueles relacionados às minorias
étnicas e sexuais e dos segmentos sociais menos favorecidos, são relativamente pouco difundidos nas
salas de aula. É como se essas vozes Outras não fossem dignas de figurar nos currículos escolares,
inclusive naqueles dos cursos de Letras.
Se, no âmbito de nossas pesquisas, nós educadores temos trabalhado no sentid,o de desenvolver
enfoques multiculturais no estudo da literatura, no âmbito do ensino tendemos a nos manter no
"topo da pirâmide", rendendo tributo aos discursos dos "mestres", perpetuando o cânone literário,
constituído pelo homem ocidental, heterossexual, branco e de classe média-alta; e, nesse sentido,
contribuindo com a exclusão ou o silenciamento das vozes Outras. Apesar de sermos tão críticos
quando nos investimos do papel do pesquisador, não nos damos conta da influência do professor
na criação e perpetuação de cânones, nos tipos de experiências que devem ou não ser preservadas
e quais os segmentos da humanidade que merecem valor histórico.
Embora seja difícil desafiar os valores instituídos e arraigados no inconsciente coletivo, os nossos
alunos dos cursos de Letras, sobretudo, têm o direito de conhecer não apenas os textos literários
canônicos, mas também outros tipos de textos, provenientes de outros segmentos culturais, para que
eles possam aprender a ler de modo crítico, questionando ideologias e contribuindo para mudanças
de mentalidades.
It
240 ~ T E o R I A LITERÁRIA
@ LITERATURA DE AUTORIA
FEMININA

Lúcia Osana Zolin

A crítica feminista, surgida por volta de 1970 no contexto do feminismo, fez emergir uma tradição
literária feminina até então ignorada pela história da literatura. Tomando como elemento norteador a
bandeira do feminismo e, portanto, a ótica da alteridade e da diferença, muitos historiadores literários
começaram a resgatar e a reinterpretar a produção literária de autoria feminina, numa atitude de
historicização que se constituiu como resistência à ideologia que historicamente vinha regulando
o saber sobre a literatura. Trata-se de promover a desestabilização de paradigmas estabelecidos e
saberes instituídos, como o de "essencialismo, homogeinização e universalismo que sustenta a
institucionalização da literatura e que subjaz às noções vigentes de tradição e cânone literário, ao
discurso crítico da historiografia literária, às estratégias interpretativas e critérios de valoração
herdados e legitimados na cultura patriarcal" (SCHMIDT, 1999, p. 36). O resultado do processo de
questionamento dessas práticas que determinam a invisibilidade histórica da mulher, entendida como
sujeito não só da produção literária, mas também da produção crítica e teórica, aponta, como bem
assinala Schmidt, para a territorialização desse sujeito num espaço tradicionalmente entendido como
sendo da alçada masculina.
Historicamente, o cânone literário, tido como um perene e exemplar conjunto de obras-primas
representativas de determinada cultura local, sempre foi constituído pelo homem ocidental, branco,
de classe. média/alta; portanto, regulado por uma ideologia que exclui os escritos das mulheres, das
etnias não-brancas, das chamadas minorias sexuais, dos segmentos sociais menos favorecidos etc. Para
a mulher inserir-se nesse universo, foram precisos uma ruptura e o anúnciQ de uma alteridade em
relação a essa visão de mundo centrada no logocentrismo e no falocentrismo.

Ser o outro, o excluso, o estranho é próprio da mulher que quer penetrar no "sério" mundo
acadêmico ou literário. Não se pode ignorar que, por motivos mitológicos, antropológicos,
sociológicos e históricos, a mulher foi excluída do mundo da escrita - só podendo introduzir
seu nome na história europeia por assim dizer através de arestas e frestas que conseguiu abrir
através de seu aprendizado de ler e escrever em conventos (LOBO, 1999, p. 5).

Essa exclusão da mulher do mundo da escrita, de que fala Lobo (1999a), fica mais bem esclarecida
mediante o fragmento que destacamos a seguir, retirado do artigo "Feminismo activo", publicado em
1911, do escritor e jornalista João do Rio. Trata-se de uma amostragem da postura crítica, extremamente
discriminadora, em relação à literatura de autoria feminina, própria da ideologia reguladora da tradição
canônica, essencialmente marcada pelo repúdio das diferenças:
Eu sempre tive peLis sl'llhClLlS que tãzclll lIteratura - um atel1lOradu respeito.
!\s rc!açôcs com \lIlLl pUl·tIS'\ <\0 \Trebelem)s des,\strrs illlpossí\'ClS de rClllrdiar. lllas que cl
~alantcj() s(leul obri~a a 'lCorc'<;oar. Qu,mdo '\.Ii'/II1/1(' dc /mlc.'· deixa o verso e emb.1Llfu5ta pOl
outras depeIl(lcllcias da compilc;](b ,\rte de escrever. .15 rl'!açCles passam à caLlIIlldadc. [ ... J p",
.,.­
que CS(fI'l'cm C,,'S<1.\' _\-cllhoflF? l\nJl,.\!.II(~'" (1 sOllbe; llil1,f?IIf~H1 t) _\'l1hcrâ. C'O"1 (ct1cza porq1le ,úl() ri1lJw111 11111i.\"
"ql/cfazer, (0//10 a Dl/quc::'1 d,. VIIJO ..\[,IS c/O., cserc/'('/I/, ('S{fC/'t'II/, C.'m'I'CIII ooAo DO RIO I') 11.
apudXAVIER.199(J,p 19).

São posicionamentos críticos como esse, moedJ corrente na nOSSJ tradição literária. que têm
impulsionado a crítica literária feminista contemporânea a trabalhar. no sentido de desmascarar os
pt:incípios que têm fundamentado o cânone literário. seus pressupostos ideológicos. seus códigos
estéticos e retóricos, tão marcados por preconceitos de cor, de raça, de classe social e de sexo, para.
então. desestabilizá-lo, reconstruí-lo.
O que se observa, na verdade, é uma reação impulsionada pela descoberta de que o valor
estético da literatura canônica não reside apenas 110 próprio texto. mas em fatores como os acima
arrolados, construídos em consonância com os valores da ideologia patriarcal. A intenção é promover
a visibilidade da rnulher como produtora de um discurso que se quer novo, um discurso dissonante
em relação àquele arraigado milenarmente ]1;l consciência e no inconsciente coletivos, inserindo-a na
historiografia literária.
No Brasil, como no exterior, a literatura de autoria feminina, de até bem pouco tempo atrás, não
existia efetivamente, isto é, não aparecia no cânone tradicional. Conforme observa Viana (1995, p.
168-9), as "I listórias Literárias" de José Veríssimo c Sílvio Romero "nos deixam a impressão de que
o mundo da literatura era povoado somente por homens". Até mesmo A história da literatura hrasileira,
de Lúcia Miguel Pereira, publicada em 1950, crítica que se fez reconhecer no "estreito círculo dos
literatos masculinos", refere-se apenas a J tilia Lopes de Almeida, certamente por não considerar que as
demais escritoras da época tenham participação na formação da identidade nacional ou, simplesmente,
por considerar suas obras inferiores em relação àquelas modelares dos "homens letrados". Do mesmo
modo, as "f listórias" mais recentes referendam a exclusão da mulher como sujeito participativo da
I
história,
O novo lugar que a mulher passa a ocupar na sociedade em decorrência do feminismo fez-se
refletir (e não poderia ser diferente) nesse status quo. De um lado, a crítica literária, antes de domínio
quase exclusivamente masculino, passou a ser praticada por mulheres; de outro, estas passaram a
escrever mais como literatas, livres dos temores da rejeição e do escândalo.
Nesse sentido, tem fundamental importância o trabalho de resgate da produção literária de autoria
feminina, relegada ao esquecimento pela tradição canônica sob o pretexto de consistir numa produção
de baixo valor estético em face da chamada alta literatura de autoria masculina. No Brasil, o resultado
desse trabalho aponta para a descoberta de inúmeras obras de escritoras do século XIX, que, apesar de
sua qualidade estética, jamais foram citadas pela crítica.
Na esteira desse trabalho de resgate da produção literária de autoria feminina vem o trabalho de
revisionismo crítico. Considerando que o cânone consiste numa instituição capaz de determinar e
indicar a literatura representativa de determinada cultura, pode-se dizer que sua constituição é uma
decorrênci~ do discurso crítico dessa cultura. No contexto da cultura literária patriarcal, o sentido do
canônico nele se inscreve. Isso implica dizer que as obras aí valorizadas são aquelas que encerram os
pressupostos consensuais do patriarcalismo (SCHMIDT, 1999).
Ao se dedicar a esse trabalho de resgate e reavali::J.ção de obras de autoria feminina, o tC::minismo
crítico, erigido sobre o pensamento pós-estruturalista que busca desconstruir a neutralidade que
supostamente marcaria a construção do saber, revisita as categorias instituídas da crítica literária a fim
de ampliar as perspectivas de análise; submetê-Ias a um outro olhar, um olhar capaz de detectar e de
desnudar particularidades a que a convenção masculina nunca esteve atenta.
A editora Mulheres publicou, em 1999, a antologia Escritoras hrasileiras do século XIX, organizada
pela professora Zahidé Lupinacci Muzart. O trabalho é resultado de um projeto desenvolvido por
pesquisadoras da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) e da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), com o apoio do CNPq. As mais
tTTcnÁDIA
<x~ L I I F H .-\ I l: H·\ il I ..\ l' I (l R I \ I I \\ I N I N .\

de <)00 páginas dessa antologia revelam uma produção literária e jornalística de 52 autoras, marcada por
um vigor estético e por uma atualidade surpreendentes, que, apesar disso, foi esquecida por todo um
século. Em 2003, publicou o segundo volume da antologia - a continuação da pesquisa sobre
as escritoras brasileiras que gerou o primeiro volume -, contendo dados de mais 51 escritoras
nascidas entre 1860 e 1886 e que publicaram mais no século XX do que no XIX.
Atualmente, muitos outros estudos estão sendo realizados no Brasil no sentido de mapear
os atributos desta produção, não apenas no eixo Rio-São Paulo, onde a produção literária de
autoria feminina tem sido mais explorada, mas em diversas regiões do país.
Há que se compreender a crítica feminista mediante a relação dnone x história-literária­
falocêntrica, numa perspectiva revisionista alicerçada nos pressupostos da Estética da Recepção:

1. A história é qualificada a partir de um olhar que retrocede no tempo de forma seletiva.


2. Ela não é estática, não ratifica ou coleciona ojá dado, numa tradição canônica. nus altera-se
constantemente numa revisão fenomenológica.
3. Ela constitui-se de narrativas que a todo momento compõem novos conjuntos literários e
de interpretação narrativa e historiográfica (que analisa a própria história). Assim. o cânone se
enriquece e se desvia a cada época, a partir de releituras crítieas e sedimentações temporais que
ocorrem em função de acontecimentos políticos, mudanças sociológicas, mas principalmente
de mudanças de mentalidades (LOBO, 1999b, p. 45). ' •

o mesmo impulso que a revolução cultural dos anos 1960, empenhada em destronar a autoridade
do falo-etno-euro-centrismo, exerceu sobre os estudos críticos feministas pode ser observado em
relação à literatura de autoria feminina. As isoladas aparições de mulheres escritoras nos anos 1930 e
1940 na lista de escritores consagrados dão lugar, nos anos 1970 e 1980, a uma explosão de publicações:
Raquel de Queiroz e Cecília Meireles, ao serem reconhecidas nacionalmente, abrem as portas das
editoras a outras escritoras, mas é Clarice Lispector quem "abre uma tradição para a literatura da
mulher no Brasil, gerando um sistema de influências que se fàrá reconhecido na geração seguinte"
(VIANA, 1995, p. 172).
Inserida nesse contexto de mudanças, a literatura brasileira agrega a si "outras" vozes. Na trilha de
Clarice Lispector, surgem as hoje imortais da Academia Brasileira de Letras Lígia Fagundes Telles c
Nélida Pifion, seguidas de muitas outras escritoras reconhecidas, como Lya Luft, Adélia Prado, Hilda
Hilst, Patrícia Bins, Sônia Coutinho, Zulmira Tavares, Márcia Denser, Marina Colasanti, Helena
Parente Cunha, Judith Grossman e Patrícia Melo, para citarmos apenas algumas.
Trata-se de escritoras que, tendo em vista a mudança de mentalidade descortinada pelo feminismo
em relação à condição social da mulher, lançam-se no mundo da ficção, até então genuinamente
masculino, engendrando narrativas povoadas de personagens femininas conscientes do estado de
dependência e submissão a que a ideologia patriarcal relegou a mulher.
Tendo detectado o fato de que a mulher sempre fora produtora de uma literatura própria,
embora esta tenha permanecido por tanto tempo no limbo, críticos(as) feministas, ao
desempenharem a função de fazê-la emergir, reinterpretando-a e revisartdo os mecanismos dos
pressupostos teóricos que a marginalizaram, têm-lhe perscrutado a trajetória com o objetivo de
descrevê-la, dando a conhecer suas marcas, suas peculiaridades em cada época específica. É o
que"taz, por exemplo, a ensaísta norte-americana Elaine Showalter (1985). Em A lilerature oflhei,.
own: British women novelísts from Bronte to Lessing, ela entende que quando se debruça sobre os
trabalhos das escritoras, tomados coletivamente, pode-se perceber a recorrência, de geração para
geração, a determinados padrões, temas, problemas e imagens. É o que ela chama de "female
literary tradition" e que busca descrever, tomando como corpus a tradição literária feminina no
romance inglês. Showalter (1985) argumenta que os grupos minoritários acabam por encontrar
formas próprias de expressão em relação à sociedade dominante em que estão inseridos. No
caso das mulheres escritoras, elas teriam construído uma espécie de subcultura dentro dos
limites da sociedade regulada pela ideologia patriarcal. Noutras palavras, elas construíram
sua tradição literária (que não é absolutamente inata ao sexo biológico) a partir das relações,
'~(l L I "!
';t
"
ainda em desenvolvimento, travadas com a sociedade maior em que se inserem, O objetivo
de Showalter (1985), nesse sentido, é investigar as maneiras pelas quais a autoconsciência da
mulher traduziu-se na literatura por ch produZIda num tempo e espa<,'o determinados e como
ela se desenvolveu.
No entender da ensaísta, todas as subculturas literárias, como a negra, a judia, a canadense, a anglo­
indiana, a americana etc., percorrem três grandes fases: a de imitação c de intcmalização dos padrões
dominantes; a flse de protesto contra tais padrões e valores; e a fase de alltodesroberta, marcada pela busca
da identidade própria. Adaptando essas t:lses às especificidades da literatura de autoria teminina, tem­
se a tàse feminina, afelllinista e afêl/lea (ou mulher), respectivamente. Nessa ordem de Ideias, Showalter
(1985) chama a literatura inglesa produzida no período entre 1840 e 1880 de ftminina, por caracterizar­
se pela repetição dos padrões culturais dominantes, ou seja, pela imitação do modelo patriarcal, caso
do romance ja/le E)'re, de Charlotte Bronte, publicado em 1847; a fase félllinista da literatura inglesa
vai de 1880 a 1920 e é marcada pelo protesto e pela ruptura em relação a esse modelo; os romances
de Virgínia Woolf, lv[rs, Dal/olVa)' (1925) e To the lighthollse (1927), podem ser citados como exemplo; a
fase fêmea, marcada pela autodescoberta e pela busca da identidade, inicia-se ainda na década de 1920
e estende-se até os dias atuais, sendo ljue apresenta um novo estágio de autoconsciência na década de
1960, caso de The bloody c/lamber (197()), de Angela CarteL O termoférnalc (fêlllea) contrapõe-se a male
e se afasta do aspecto relacional (masculino e feminino) contido no conceito gênero para centrar-'se
no dado biológico. Assim,fcmale significa silllplesmente do sexo feminino. Essas categorias não são,
absolutamente, rígIdas, mas misturam-se, de tal modo que é possível encontrar todas elas presentcs
na obra dc uma mesma escritora.

La pri/1(fSsc de Clfue (1678), de Madame de Lafayette;


Imitação e intcrnalização ja/lf l;.'yre (1847) e Shirley (1849), de Charlotte
Fase feminina
dos valores e padrôes Bronte; The Mil/ on the Floss (1860) e Middlemarc!1
((em i 11 ill e)
vigentes. (1871), de George Eliot: I/alenti/lc (1832) e Lêlia
(1833), de George Sand.

Protesto COIItLl os valores Mrs. Dal/olllay (1925) e To the 1~!Zhthouse (1927), de


e os padrões vIgelltes: Virgínia Woolf; Pilgrimagc (1915, em folhetim; 1967,
Fase feminista
como romance), de Dorothy Richardson; The hotel
(femil1ist) defesa dos direitos c dos (1927), de Elizabeth Bowen; A conuidada (1943), de
valores das minorias. Simone de Beauvoír.

The bloody chamber (1979) e Wtse children (1991), de


Angela Carter; Strange meeting (1971), de Susan Hill;
Fase remea (ou The color purple (1982), de Alice Walker; The s!Veetest
Autodescoberta;
mulher) dream (2001), de Doris Lessing; The p;ckup (2001),
busca de identidade própria.
(ffmale) de Nadine Gordimer; Les armoires uides (1984), Ce
qu'il, disent ou rien (1977), Lafemmegeleé (1981), de
Annie Ernaux.

Quadro 1. Fases da tradição literária de autoria feminina, segundo Showalter (1985).

Na literatura francesa, os romances de Madame de Lafayette (1634-1693), sobretudo La príncesse


de Clcue (1678), e os de George Sand (1804-1876), válentine (1832) e Lélía (1833), poderiam ser citados
como representantes da fase ftmínina; o romance A convidada (1943), de Simone de Beauvoir, como
exemplar da fasefeminista e os romances de Annie Ernaux (1940 -), Les arlnoires llides (1974), Ce qu'ils
i
i
discnt 011 rien (1977), La ftmme geleé (1981), como típicos da fase fêmea.

330 - T Lo o !{ I A LITERÁRIA
.~ ~\~_ _ .~) 1 1 I 1 g :\ I l' !~ \ J) I -\ l I () I~ 1 -\ ! i \ 1 I N I N .-\

Na litcraturJ bLlSlkira. esse percurso da tLljl'tória da Jutoria feminina, descrito por Showalter
(1 <)8:;). sofi-e algullLls l1lodificaçóes 110 que tange à cronologia. A pesquisadora carioca Elódia Xavier.
no eI1S,l1() "Narrati\'a de autoria (CllllIlllla na literatura brasileira: as marcas da trajetória" (l()(m),
seleCIolla algumas autoras e obras tu111ada~ C01110 1l1arCOS repITsL'Ilt;1ti\'os de cada Ullla das etapas
rdl'ridas. Aji'lIIillillo teria se illicIado com a publicação de l':r_i/l/il (1859), de Maria Firmina dos Hels,
UllI dos primeiros romances brasIleiros de Jutoria teminina, e se estendido até 1944, quando ClancL'
LIs!JCctor II1augura sua prod IlÇ,10 Iitcrána com a publicação de Perto do (Oração scluagC/lI. De modo
gCL1L a obra c1ariceana estrutura-se cm torno das relações de gêncro que tLl7em à tona as diferenças
sociais cristalizadas entre os sexos, as quais cerceiam quaisquer possibilidades de a mulhcr atingir
sua plenitude existenci:d. Trata-se, portanto, de a escritora inaugurar uma nova fase na trajetória da
literatura brasileira de autoria feminina no Brasil ~Icl11il1isto, na terminologia de Showalter ~ marcada
pelo protesto e pela ruptura em relação aos modelos e valores dominantes_ Fase essa que, uma vez
inaugurada, contou com muitas outras representantes, conforme veremos mais adiante, e estendeu-se
até os anos 1990, quando começam a surgir romances escritos por mulheres que se caracterizam por
não mais fazer das relações de gênero o dado determinante dos dramas narrados, inaugurando a fase
H:fI/CI1, em que se pode vislumbrar a representação de uma nova imagem tCminina, livre do peso da
tradição patriarcaL
Telldo em vista o recorte prop()sto por Xavier (1998, 20(2), passemos a perscrutar algumas
obras representativas da trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, buscando salientar
como se processa, no âmbito da históna narrada, cada uma das fases referidas. Podemos tomar como
representantes genuínos da fase ji'fllillillo, de internalização dos valores vigentes, cujas obras são
marcadas pela reduplicação da tradição, tanto no que se refere às questões éticas e ideológicas, como
no que tange às estéticas, os romances ÚrslIfa (1859), de Maria Firmina dos Reis; li intrusa (1908), de
Júlia Lopes de Almeida e.4 SI/ccssora (1934), de Carolina Nabuco. O primeiro reduplica os valores
patriarcais, através de seu estilo gótico-sentimental, enquadrado nos padrões românticos. A autora põe
em cena a frágil donzela sendo disputada entre o mocinho e o vilão. A protagonista Úrsula, símbolo
de pureza c de bondade, é objeto de desejo de dois homens: o virtuoso Tancredo, a quem ama, e o
poderoso e o cruel Fernando, Com a morte da mãe, Tancredo protege a desvalida órfã da vilania de
Fernando, levando-a para a proteção de um convento, onde permanece até o casamento, Na saída da
igreja, Fernando assassina o marido e rapta a noiva, que, consequentemente, enlouquece e morre.
Nesse típico romance da fase feminina, tudo é construído de acordo com a mais estrita ideologia
patriarcaL em que a mulher não tem \'OZ, nem vez; a maior arma de que dispõe para atingir seus
objetivos é o pranto,
Em A i/ltrusa, Júlia Lopes de Almeida cria um universo ficcional em que o final feliz é dado
pela revelação da beleza e do encanto de uma autêntica "rainha do lar". Argemiro, um advogado de
sucesso, promete à esposa no ~eito de morte que jamais se casaria novamente. Contrata, então, uma
governanta para gerenciar a casa, com quem não quer ter nenhum contato; estando ele presente,
ela deve desaparecer de suas vistas. Apesar de sua invisibilidade, um dado fundamental na narrativa,
ela vai conquistando Argemiro pelos serviços prestados: a casa está sempre impecável; a comida,
deliciosa; a filha, antes rebelde, passa a aprender as prendas domésticas e a c-omportar-se como uma
senhorinha. Ele não conhece o sUjeito de tudo isso, mas está completamente seduzido, até que tem
que fazer uma viagem e, então, sua sogra, desconfiada de que alguma coisa pudesse estar acontecendo,
dem.rte a governanta. No seu retorno, quando tem que acertar as contas com ela, vê o seu rosto e
se rende a seus encantos. Esse desfecho ratifica plenamente a ideologia patriarcal: Argemiro não se
rende, propriamente, aos atributos da mulher, tomada como indivíduo, mas aos atributos dos serviços
prestados por ela, somados à sua beleza.
A sucessora, de Carolina Nabuco, inscreve-se no mesmo momento da trajetória da literatura
de autoria feminina dos romances referidos acima, Apesar de o conflito da protagonista ser
psicológico, implicando um texto mais elaborado desse ponto de vista, a autora não se esquiva de
reproduzir aí os valores dominantes na sociedade patriarcaL Tendo sido criada no campo, Marina
é trazida, após o casamento, para um espaço urbano, passando a viver num ambiente prenhe da
presença da primeira esposa de seu marido, cujo símbolo máximo está no retrato pintado a óleo na
T) 1
'fl) LIN
parede da sala. Seu papel na casa resumia-se em dar continuidade à vida dela. Até que, ao final da
narrativa, o conflito é resolvido quando Marina se descobre gLlvida. É, portanto, por meio de um
atributo biológico, o da reprodução, que ela consegue exorcizar o f;lI1tasma da prImeira esposa.
que era estéril.
A obra de Clarice Lispector significa. na trajetória da literatura de autoria feminina no
BrasiL um momento de ruptura com a reduphcação dos valores patriarcais que caracteriza a
fasefclIlinina que ilustramos acima. Pode-se dizer que ela inaugura outra forma de narrar dentro
de um espaço tradicionalmente fechado à mulher. Trata-se do rnarco inicial da fase feminista.
Chamá-Ia de feminista não significa, contudo, que as obras que nela se inserem empreendam
uma defesa panfletária dos direitos da mulher. Significa, apenas, que tais obras trazem em seu
bojo críticas contundentes aos \'alores patriarcais, tornando visível a repressão feminina nas
práticas sociais, numa espécie de consequência do processo de conscientização desencadeado
pelo feminismo. É o que acontece na coletânea de contos Laços defamílía (1960). E, no entanto,
seu valor estético, assim como o da obra c1ariceana como um todo, é indiscutível. São narrativas
que questionam, por meio de discurso irônico, o modelo patriarcal em que a mulher fica reduzida
ao que o espaço privado pode lhe proporcionar. Um exemplo é o conto "Amor", em que Ana, a
personagem central, depois de umaJuventude intensa, enquadra-se no "destino de mulher", ou
seja, no cotidiano doméstico, até que a Imagem de um cego mascando chicletes em um pohto
de bonde desencadeia nela um irremedi:lvel processo de autoconhecimento. Trata-se de uma
espécie de "vertigem" de bondade que a faz rdletir acerca da legitimidade da organização de
sua vida cotidiana. O automatismo do movimento de mascar praticado pelo cego faz com que
se dê conta do automatismo em que está mergulhada na sua rotina de dona de casa exemplar.
Ela vê descortinar diante de si outras realidades que a rota doméstica a impede de conhecer.
No entanto, entre o mergulho nas paixões que se abrem com essa revelação e sua "felicidade"
cotidiana, ela opta, não sem dilemas interiores, pela segurança desta última, metonimizada
pela figura do filho, a quem aperta com violência, como quem se agarra ao confortável mundo
pequeno-burguês, apesar de não ser mais a mesma.
Seguindo na trilha dessa nova maneira de narrar inaugurada por Clarice Lispector, muitas
outras escritoras brasileiras passam a trazer à tona em seus textos literários a problemática da mulher
inserida em uma sociedade regulada pela ideologia patriarcal. É o caso, por exemplo, de Lya Luft,
cujas personagens femininas dos romances da década de 1980 aparecem enredadas nos "laços de
família", acabando sempre vencidas pelo sistema. Como bem avalia Xavier (2002). apesar de estar
em decadência, a ordem patriarcal impede qualquer forma de transcendência por parte da mulher;
a família é retratada como instituição falida, geradora de conflitos, mas é, tragicamente, um beco
sem saída. Daí o caráter caricato que ela apresenta. É de imagens e situações que acentuam, pela
deformação, as práticas sociais que se compõem romances como AI" parceiras (1980), A asa esquerda do
alijo (1981), Reunião defamília (1982), QuartoJeclwdo (1984) e Exílio (1987). Na mesma linha, estão
as narrativas de Patrícia Bins, autora de Antes que o amor acabe (1984), cujos romances primam por
retratar os dramas existenciais de mulheres flagradas em situação-limite, para querp o mundo perde
o sentido, desencadeando um processo de despojamento das máscaras sociais, num processo de
individuação.
Também Márcia Denser, em Diana caçadora (1986), constrói uma coletânea de contos cuja
disposição retrata a crescente degradação da protagonista, uma jornalista inteligente e independente
que, numa tentativa de subversão das regras opressoras do sistema, adota uma postura de caçadora,
mas acaba sempre derrotada. Isso porque, ao buscar se encontrar através de relações eróticas efêmeras
e ocasionais, frequentemente esbarra nas armadilhas que permeiam a trajetória das mulheres liberadas
dos anos 1980, inseridas numa sociedade estruturada sob os alicerces tradicionais. Em "O vampiro
da Alameda Casabranca", por exemplo, na falta de companhia melhor, passa a noite com um poeta
pedante e desinteressante a pretexto de assistir a um bom filme, ao qual se seguem sessões de leitura,
uma festa regada a iguarias e bebidas importadas, cocaína e pessoas exóticas, para se fechar com um
previsível e doloroso ritual de sexo. Ao acordar foge, nauseada; após tomar café nUIlla padaria, dorme

332 TEORIA LITERÁRIA


'V
-"W,; 01 l [ [ I R\I l! H.\ [J l ,\ [ [(l H 1.\ I I \1 [ N I N .\

num banco de prdlll1, onde é assaltada. Por fim. sem a bolsa, sem as chaves, com frio e precisando de
um banho, dá ao taxista, "suspirando", o endereço do "vampiro".
A narrativa de Sônia Coutinho também faz parte da chamJda fasefel/1illista da narrativa brasilciLl
de autoria teminina. A temática constante de sua obra, presente em .'ltire C/li Sofia (1989), é a da
mulher madura, vinda do interior, sozinha na cidade grande, tentando realizar-se como indivíduo.
Suas personagens são construíciJs como vítimas da cisão entre os nlores patriarcais, ou o "destino de
mulher", e as grandes transt(JrIllaçôes dos anos 1980 que abrem caminho para a mulher realizar SUJ
"vocação de ser humano".
A condição feminina, ou a discriminação social da mulher, constitui-se, também, numa espécie
de tema recorrente na obra de Nélida Piflon. De uma forma ou de outra, ele é retomado em cada uma
das narrativas que compõem sua produção literária, sempre de maneira crítica e contestadora, capaz de
incomodar o pensamento ideológico, calcado nos ideais do patriarcalismo. No entanto, como acontece
na ficção das demais escritoras referidas, evita cair na de tesa panfletária ou partidária do sexo feminino,
contaminando sua obra artística com as tintas da ideologia. Em vez disso, ela aborda o tema pondo em
cena figuras femininas inseridas em situações que fazem eclodir essas discussões, seja por meio dos
questionamentos das próprias personagens acerca do espaço que lhes é reservado na sociedade, seja
por meio de um discurso irônico que, ao retratar a mulher enredada nas relações de gênerp, desperta
o leitor para o absurdo de certas leis sociais que regulam o comportamento teminino. Esse é o caso de
"1 love my husband", um de seus contos mais conhecidos, em que ela põe em discussão o binômio
linguagem do senso-comum/linguagem da mulher. A narrativa inicia-se com a narradora-protagonista
enumerando as ações praticadas diariamente no âmbito do lar, que concorrem para o sucesso da vida
exterior do marido, com a intenção aparente de convencer a si própria e ao leitor de seu amor por
ele e de seu ajustamento ao ideal burguês de casamento. No entanto, a certa altura da narrativa, ela
se rebela diante da afirmação do marido de que ela pertenceria só a ele, nem mesmo a si própria. Tal
rebelião se dá por meio de um delírio no qual, através de sucessivas metáforas, proclama sua liberdade
e afirma seu poder de reação e de dominação. Mas, ao final, retoma o seu posto de "rainha do lar",
numa atitude que remete à impotência da mulher numa sociedade erigida sobre os valores da cultura
pa triarcal.
EmA república dos 50l1h05 (1984), Nélida Piflon, ao narrar a saga do imigrante Madruga no Brasil,
num certo sentido, narra também a história da emancipação feminina. Tal história, embora não sep
explicitamente declarada, aparece diluída ao longo do romance, em que estão retratadas as trajetórias
das várias gerações de mulheres que se fizeram presentes na vida do protagonista: a avó, a mãe, a
esposa, as filhas, as noras e a neta. As trajetórias dessas figuras femininas acabam por constituir um
grande painel em que se podem vislumbrar as personagens principais, Eulália, Esperança e Breta,
representando os diversos estágios por que passou a mulher até atingir o grau de emancipação que a
vemos desfrutar em meados dos anos 1980, o momento presente da narrativa. São personagens que,
guardadas as diferenças impostas pelo momento histórico em que estão inseridas, são semelhantes
entre si, principalmente no que se refere aos atributos da insubordinação e da não-estagnação, num
aut.êntico diálogo com a ideologia dominante que marginaliza a mulher. A arrilise da evolução de suas
trajetórias, segundo uma orderll cronológica, leva-nos a reconhecer, no conjunto, a mesma lógica que
marcou a trajetória das conquistas sociais da mulher no século passado, viabilizadas pelo movimento
femíÍüsta. Dito de outra forma, o modo como Eulália, Esperança e Breta foram construídas nos
convida a fazer associações com o percurso histórico da mulher, galgado nos limites do século xx,
rumo à sua emancipação; pelo menos a emancipação que pode ser atribuída a ela nos anos 1980. Se, no
caso de Eulália, o marido e o pai haviam-lhe explicado a vida segundo a cartilha da ideologia patriarcal,
daí a retração e a modéstia de seu comportamento, marcado, em face das incongruências das relações
de gênero, mais pela resistência que pela ação, sua filha, Esperança, não se contentou com as meias
verdades. Em nome do sonho de viver a plenitude da vida, abdicou do conforto da casa paterna e lutou
vorazmente por isso. Os frutos dessa luta ela não os pôde colher, mas os deLxou de herança a sua filha
Breta, uma escritora que não se deixa enredar pelas relações de gênero, conseguindo fazer-se respeitar
em sua individualidade.
Em razão da representaç::ío de uma figura feminina como Bret:!, cujos conflitos em que aparece
enredada não encontram suas origens na dominaç::ío masculina apregoada pelo sistema patrIarcal,
autoriza-nos a pensar.4 república dos sonhos como sendo um romance que j;í integra a tãse fêl/lca
da trajetória da literatura de autoria fl'minina no Brasil. Se, através de personagcns C0l110 Eulália
e Esperança, Piüon põe em discuss::ío os padrões e os valores patnarcais, ao pôr em cena uma
personagem como Breta ela os toma por superados, inaugurando uma no\';) fórma de representar a
mulher.
Adélia Prado, embora seja mais conhccida como poetisa, é autora de chvcrsos romances
que sempre trazem como protagonistas mulheres, cujas trajetórias são permeadas por crises
existenciais desencadeadas pela não-adequação aos valores apregoados pela ideologia dominante.
Também em O homelll da //Ião seca (1994), a personagem central, Antônia, encontra-se emergida
em questionamentos acerca de imposições que oprimem sua existência; as imposições da lei de
Deus, mais especificamente, consistem no ponto fundamental de suas crises. No entanto, após
passar por um longo período de carência e de opressão que a paralisava, ela triunfa, inscrevendo li

o romance na tãse fêlllea da literatura escrita por mulheres. Sendo a narrativa toda dividida em
partes, as quais se abrem sempre com epígrafes, em sua maioria, bíblicas, é sintomático, no último
segmento, o fato de a epígrafe que o anuncia ser de Guimarães Posa, sugerindo o batismo de
uma nova mulher: "Toma, filha de Cristo, senhora dona: compra um agasalho para esta que 'vai
nascer, defendida e sã, e que deve se chamar apenas Felícia Laudes Antônia" (PRADO, 1994, p.
157), anunciando o sucesso da protagonista (antes chamada Antônia Travas Felícia Laudes) em
relação à busca de sua identidade, ao encontro consigo mesma, livre de amarras, de imposições e
de conflitos interiores.
Os romances de Lya Luft publicados na década de 1990 também colocam em cena personagens
femininas cujo desfecho de seus conflitos apontam para uma saída em que as relações de gênero não são
mais centrais. Em A sentinela (1994), a autora retrata uma personagem feminina que consegue desfazer
os nós de sua existência e encontrar uma saída que lhe confere a tão sonhada plenitude existencial.
Depois de uma infância e adolescência permeada de angústias e sofrimentos, a narradora encontra seu
norte, inaugurando, no presente da narrativa, uma tecelagem. Paralelarnente ao ato de tecer os fios
para montar as tapeçarias, ela vai tecendo sua identidade de modo a libertar-sc das amarras de gênero,
aceitando as próprias escolhas e as escolhas d~ filho. Em O ponto [ecí?o (1999), Luft faz uma explícita
condenação do patriarcado. O romance é narrado por um menino que se recusa a crescer para não
integrar o desagradável mundo dos ad\lltos. Em certo momento, sua m::íe, tendo sido sempre submissa,
adaptada à ideologia dominante, resolvc abandonar a casa, pondo um fim naquela rota de opressão que
vinha cumprindo. O menino, agora na companhia do pai, banaliza os valores androcêntricos, numa
atitude de desconstrução da família patriarcal e, consequentemente, de construção de uma identidade
desvinculada dos arquétipos do patriarcalismo.
Relativizando ainda mais a ideia de que a literatura de autoria feminina se debruça exclusivamente
sobre temáticas memorialistas, autobiográficas, com ênfase no universo doméstico e no eu, com ênfase
nas relações de gênero e na opressão da mulher, a escritora brasileira contemporânea Patrícia Melo, que
tem suas obras publicadas em vários países da Europa e Estados Unidos, surpreende a crítica ao dar a
público livros narrados em primeira pessoa, por narradores masculinos, não raramente, identificados
como assassinos, narrando questões relacionadas ao universo do crime em que se encontram imersos.
É o caso de seus três primeiros romances, Aequa Tolfana (1994), O Matador (1995) e Elogio da Mentira
(1998).
Em Ullsa Negra (2003), todavia, quinto romance da escritora, o leitor não se depara com um
narrador homicida, mas chama atenção o fato de ser narrado, também, em primeira pessoa por um
narrador enlouquecido de ciúmes que, ao narrar as mazelas de seus relacionamentos amorosos, traça
seu próprio perfil, como se estivesse se deixando analisar pelo/a leitor/a psicanalista.
Trat::l-se de um maestro brasileiro de grande sucesso que abandona a mulher e a filha adolescente
para se casar com Marie, uma das violinistas de sua orquestra, moça trinta anos mais jovem do que ele

334 - TEU" I A LITERÁRIA


~~~ LI; I 1 \ 1 I· H.\ I' 1 \ \' 1 \ I' 1.\ 1 1\1 1 ~ I ," .\

e que, tahTz por isso, desperta nele um ciúme qne atIllgc proporções patológicas. A "valsa negra" do
título remete Ilão apenas J r ÍlI\~<l da dor, de Vih Lobos, mas. t;)IllbéIll, parece se remeter à interminável
"dan<;a" da personagem entre os valores modernos que regulam a relação a dois na nossa civiliz;lç;l()
e aqueles tradicionais ditados pela ideologia patriarcal que \'inha há séculos ditando compassos. Ao
mesmo tempo em que ele reconhece e se sente fascinado pelos atributos de Marie, uma mulher
bonita, independente e competente na esfera proflssional. sente-se constantemente atormentado pela
possibilidade eminente da traição advinda dessa sua condição. Daí subjugá-la, investido que está do
poder de dominação que SUl sexo herdara do patriarcalismo.
Outra lógica, portanto. rege a construção do romance em si. se comparado JS estruturas das
narrativas de autoria feminina das décadas antenores, c, sobretudo, da flgura feminina que o integra.
Trata-se de uma mulher deflnitivamente arrojada, inserida em um ambiente favorável a que se somam
sua condição econômica e intelectual, sua profissão ligada à cultura c à arte, seu modo de bem se
relacionar com a família, seu interesse pelo judaísmo, cOIlsequentemente, pela diferença, e, acima
de tudo. sua lucidez em relação ao modo de estar da mulher na sociedade contemporânea. Nesse
contexto t;lo ta\'orável. os entraves ficam por conta da atração e da paixão pelo maestro desambientado
em relação a esses novos tempos marcados pela ascensão dos ideais feministas e pelo declínio do
patriarcado.

r-
I Fase [lrsl/la (1859), de Maria Firmina dos Reis:. 4}1lénâa (1902) e A intrusa (1908), de Júlia Lopes
Feminina deAlmei d a; A sucessora (1934), d e Carolina Na b uco; Dedicação de lima amiga (1850), de Nísia
ifClIlil1ille) Floresta; D. Narása de Vilar, de Ana Luísa de Azevedo Castro;

Romances e contos de Clancc Llspector tais como: Perto do coração seluagem (1943), Cidade sitiada
(1949). I.I1(0I defanl/1ia (1960). Uma aprendizagem 011 () Iil'ro dos prazeres (19ô9); As parceiras (1980),
Fase
A asa esquerda do anjo (1980), Reullião de(aI/111ia (1982), Qual10 fechado (1984), de Lya Luft; Diana
Feminista
[{jçadora (1986), de Márcia Del1ser; Atire ('/// Sofiü (1989), de Sônia Coutinho; A mulher 110 espelho
(11'111 in ist)
(1985), A~s doze {Ores do I'crlllelho (1988), de Helena Parente Cunha; Mulheres de Ttju{Opapo (1987),
de Marilene Felinto; A [(jsa da paixão (1972), de Nélida Pifion;

A repúbliC<l dos sonhos (1984). de Néhda Pifion; () homem da mão seca (1994), de Adélia Prado;
Fase Fêmea
A sentinela (1994) e () ponto [ego (1999), de Lya Lutt; romances de Patrícia Melo, tais como O
ou mulher
//latador (1995), Interno (2000), Válsa negra (2003);jóias defámília (1990), de ~ulmira Ribeiro
ifemale)
Tavares.

Quadro 2. A trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil: obras representativas.


.f

RUMOS

Diante desse pequeno panorama da trajetória da literatura de autoria feminina no Brasil, pode­
se dizer que, se as vozes femininas, assim com as vozes das minorias étnicas e sexuais, estiveram
por tanto tempo silenciadas no âmbito social e, consequentemente, na literatura, o final do século
XX assistiu a uma considerável reviravolta nesses domínios: o reconhecimento institucional da
existência da literatura escrita por mulheres como objeto legítimo de pesquisa. No entanto, resta ao
pesquisador e ao professor de literatura fazer com que essas vozes "outras" sejam ouvidas não apenas
entre eles próprios, nos limites das reuniões acadêmicas, dos grupos de trabalho e dos seminários que
se debruçam sobre a temática "Mulher e Literatura", mas também nas salas de aula, numa atitude de
renovação e não de perpetuação de ideologias hegemônicas, como a patriarcal.
T"""", R"",,,'l~-' I J ,'".,. r"'\,-.... , ..•. I._",-.~ • • • .

Você também pode gostar