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ALYSSON LEANDRO MASCARO

Doutor e Livre-Docente em Filos~fia e Teoria Geral do Direito pela USP

UTOPIA E DIREITO
ERNST BLOCH E A ONTOLOGIA JuRfDICA DA UTOPIA

Editora Quarrier Latindo Brasil


São Paulo, verão de 2008
quartierlatin@q uartierlari n. art. br
www.editoraquarrierlatin.com. br
EDITORAQUARTIERLATIN DO BRASIL
... S-. Almio, 316 - Bela V ista - São Paulo

C.OOrdenação editorial: Vinicius Vieira

Capa: Miro lssamu Sawada

Diagramação: Paula Passarelli

Revisão gramatical: Silvana Moreli Vicente

MASCARO, Alysson Leandro

U topia e Direito: Ernst Bloch e a Ontologia


Jurídica da Utopia - São Paulo : Q uartier Lacin,
2008.

ISBN: 85-7674-298-5

1. Teoria geral do Direito. 2. Uropia e Direito


I. T ítulo

Índices para catálogo sistemático:


l. Brasil: Utopia e Direito
2. Brasil: D ireito

Contato: editora@quartierlatin.art.br
www.editoraquartierlatin.com. br
SUMÁRIO

Nota ...................................................................................................... 9

Introdução ........... ........ ................. .......................... .............................. 11


Utopia concreta, justiça e dignidade ........................................... 12
Sobre a obra ................................................................................ 16

Capítulo 1 - Modernidade, tempo e revolução .................................... 1 7


A geometria do tempo e da história ............................................ 18
Das esperanças da modernidade .................................................. 24
A transformação é moral ............................................................. 2 7
Da secularização à revolução ................. ...................................... 3 O

Capítulo 2 - Marx, transformação e utopia .......................................... 35


Uma divisa fundamental: a transformação .................................. 3 6
Qye marxismo para qual utopia? ................................................ 3 8
A teoria da revolução de M arx ................................................... .42
A dialética do progresso .............................................................. 44
A utopia em Marx .............................................. ........................ 4 8
Engels e o projeto utópico do marxismo ..................................... 51

Capítulo 3 - Psicanálise e utopia ..................................................... 55


Freud: desejo e repressão ............................................................. 5 6
P ara além do freudismo .............................................................. 61
Wilhelm Reich ............................................................·............... 6 2
Erich Fromm .............................................................................. 6 7

Capítulo 4 - A utopia em M arcuse ...................................................... 7 1


Teoria crítica: Adorno e Horkheimer ......................................... 72
Da Escola de Frankfurt a Marcuse ............................................. 7 8
P sicanálise e libertação ................................................................ 7 9
A Utopia em M arcuse ................................................................ 83
------------------------------------11111::,,

Capítulo 5 - Bloch e Lukács: o marxismo heterodoxo ......................... 9 3


A intelectualidade que se torna marxista .................................... 94
Messianismo, escatologia e romantismo ...................................... 9 6
Uma divergência nas concordâncias: o expressionismo ............... 9 9
O caminho ao marxismo nas primeiras obras: sobre a totalidade 103

Capítulo 6 - O Ser-Ainda-Não ................................. .......................... 111


A utopia concreta ........................................................................ 113
As características da utopia concreta: o sonho diurno ................. 115
A ontologia do ser-ainda-não: a natureza ................................... 119
A ontologia do ser-ainda-não: a possibilidade ............................ 125
A ontologia do ser-ainda-não: S ainda não é P ...... .. ................... 128

Capítulo 7 - Utopia jurídica: história e dignidade humana ................. 131


Direito Natural e Dignidade Humana ....................................... 133
A utopia que é jurídica ............................................................... 134
A utopia jurídica construída na história: antigos e medievais ..... 13 7
A utopia jurídica construída na história: os modernos ............... 143
A utopia jurídica construída na história: os contemporâneos ..... 148

Capítulo 8 - A ontologia jurídica da utopia ........................................ 15 5


A utopia das três cores revolucionárias ........................................ 155
O direito em Marx ..................................................................... 159
Crítica da teoria geral do direito: direito subjetivo e objetivo ..... 164
Crítica da teoria geral do direito: direito e moral. ....................... 168
Crítica da teoria geral do direito: direito penal ........................... 170
Crítica da teoria geral do direito: direito e Estado ...................... 171

Capítulo 9 - Energias políticas da utopia ............................................. 177


A não-contemporaneidade ................................. ......................... 178
A escatologia da libertação ................................. .... ..................... 186
Conclusão ............ ........... .............................................................. ......... 193
Bloch entre os marxistas ............................................... .............. 19 3
Bloch entre os juristas ........................................................... ...... 19 5
Bloch entre os de hoje ................................................................. 196

Bibliografia ........................................................................................... 199


._,.______
.:..:.:..e_~-------

INTRODUÇÃO

Ao tempo em que trevas se anunciavam na Europa, as armas dos


liberais e dos socialistas foram ambas soterradas em favor de mistifica-
dos argumentos de raça e da força de exércitos imperialistas. Tempos
de obscuridade e de guerra, como, de outro modo, parecem ser os
atuais novamente. Naquela altura, boa parte da política, da filosofia e
das religiões se lançou ou ao silêncio ou ao pacto de legitimação dos
poderes existentes. Ao pensamento crítico, restou a retaguarda.

No direito, o resultado de tal política de trevas foi a destruição de


qualquer respeito institucional aos direitos humanos, à dignidade existen-
cial, em troca dos argumentos da força do Estado ou de distinções como a
de amigo-inimigo. Em oposição a esse quadro, as velhas forças humanistas
- a maior parte delas vinculada às mesmas religiões que, em sua outra
fàceta, silenciavam quanto ao Reich - proclamaram, sem maior crítica, a
volta do direito natural, eterno, metaRsico e quase que revelado.

Nesse cenário de pesadas desesperanças e de frágeis oposições


apoiadas em direitos divinos, levanta-se em contraste uma filosofia dos
sonhos diurnos, da clareza, da esperança racional e con creta num novo
amanhã de Ernst Bloch_ O direito natural se transforma, na sua insó-
lita reflexão jusfilosófica, ao mesmo tempo humanista e marxista, em
uma espécie de bandeira crítica de uma aspiração à dignidade huma-
na. Filósofo da totalidade, apoiado numa leitura hegeliana de M arx e
ancorado nas longas experiências comuns de reflexão intelecrual com
Lukács, ~loch apQ,stará que a dignidade humana só se concretizará
quando for total e plenél: o h omerr.i totalm~nte livre das amarras .n:ie~­
~antis, da exploração do trabalho, o homem socialista, pois, será o ho-
.~e~ digno. Os marcos de sua utopia jurídica, assim, ampliar~·s·~~ão-e
chegarão a limites muito mais vastos que as tradicionais expectativas
dos juristas so bre um mundo, de leis, mais justo.
ALYSSON UANORO MASCARO

A estrutura filosófica da utopia concreta de Bloch revela-se um


sistema bastante insólito, porque se abre como uma espiral, crescente,
que amarra diversas perspectivas, experiências, lutas históricas e dese-
jos pequenos e muito grandes em torno de uma ontologia do ser-ain-
da-não. Buscando fundar uma pioneira versão marxista de humanismo
calcada na natureza e na práxis como aberturas ao futuro, Bloch aponta
a filosofia e a existência como a possibilidade.

O resultado do pensamento blochiano é uma petição de luz em


trevas. De maneira insólita a um marxista, encontra energias liberadoras
e revolucionárias até mesmo na religião, caso esta seja tomada a partir
de um prisma bastante progressista. Paradoxalmente, nos tempos atu-
ais, em que o sentido reacionário da religião volta a ser, hipocritamen-
te, um fundamento aparente de legitimação de guerras e de reputa-
das alianças dos governantes com Deus, o pensamento de Bloch é um
alento crítico, postulando uma nova moral racional, dotada de grande
sensibilidade para concretizar na terra uma comunidade fraternal.

Para o direito, que chegando ao auge da mecânica capitalista


sacralizou a condição dos juristas como técnicos sem objetivos últimos,
o reclame de Bloch a uma radicalidade da sociedade justa e da digni-
dade humana, que se alce para além do Estado e da dominação
institucional, é um contraste que pode forçar a existência jurídica a
dar-se um sentido político-histórico transformador. Para Bloch, é che-
gado o tempo de concretizar o justo.

UTOPIA CONCRETA, JUSTIÇA E DIGNIDADE

Os sonhos da utopia são uma velha tradição. Para não remontar


ao passado grego, nas idéias de Platão, ou então nos sonhos medievais
de Joaquim de Fiori do Terceiro Reino onde Cristo fosse Senhor, por
exemplo, basta dizer que o início da modernidade viu florescer o so-
- - - - - -- - -· --

UTOPIA E DIREITO

nho de sociedades e cidades imaginadas exemplarmente, sendo delas


mais famosa a Utopia de Thomas Morus, cujo termo, não-lugar, desde
então veio a identificar uma série de projeções de uma existência di-
versa da presente.

A história dessas idealizações é bastame conhecida e, no geral,


tomada como literatura ficcional do amanhã melhor. Uma segunda
grande etapa de florescimento de utopias se deu com o movimento
socialista do século XIX, buscando criar fábricas, cidades e hábitos
sociais diversos, carregados de uma inspiração de solidariedade e
fraternidade. Saint-Simon, Fourier, Owen e outros dedicaram-se à
transformação de grupos sociais, sendo denominados posteriormente,
por Marx e Engels, como socialistas utópicos. Neste momento, a uto-
pia passava a adquirir a carga pejorativa de ilusão, de quimera. O não-
lugar náo seria apenas o lugar ao qual não se havia chegado: tratava-se
de um lugar para todo sempre inexistente.

(O descrédito em relação à utopia, nos séculos XIX e XX, torna-se


então bastante acentuado. As perversões totalitárias, os grandes plane-
jamentos econômicos, políticos e sociais, as máquinas de guerra que
buscavam novas humanidades, tudo isso foi responsável por conside-
rar a utopia até mesmo a pior das projeções humanas, como o atesta,
por exemplo, um Aldous Huxley. A filosofia, de modo geral, abando-
nava a utopia a uma espécie de metafísica das quimeras.__\

É neste quadro que se levantou, em sentido contrário , o pensa-


mento de Ernst Bloch. Judeu alemão, nascido pobre, exilado ao tem-
po de Hitler, perseguido na Alemanha Oriental pelos stalinistas, viveu
92 anos de atividade intelectual e política com olhos voltados ao futu-
ro. Quando faleceu, no final da década de 1970, havia conseguido
restituir para até então combalida idéia de utopia uma dign idade filo-
sófica ímpar: de braços dados com o humanismo, o messianismo, a
escatologia, de um lado, Bloch abraçava-se ao marxismo, de outro, na
AixssON LEANDRO MASCARO

tarefa de empreender o lançamento de uma nova utopia, aquela que


denominou de utopia concreta.

O desenvolvimento de sua nova postulação utópica vai distante


dos idealismos filosóficos que acompanhavam até então o tema. ~ uro-
p ia co n cre ta é uma p ráxis vo ltada ao amanhã. D escobre as
pÕtencialidades tr~nsformadoras e revolucionárias e insiste no fato de
que o novo amanhã só será diverso do presente por conta da carência
e da fome do hqje. Como o presente é incompleto, urge um novo
amanhã. Para isso, Bloch há de se valer de uma série de ferramentas
filosóficas distintas das tradicionais: os sonhos diurnos, em contraposição
aos sonhos noturnos de Freud; a consciência anrecipadora, que nada
lembra as velhas metafísicas dedutivas d a sociedade ideal; a não-
contemporaneidade, que dá conta de uma pluralidade temporal que
permite a diversidade das ações e motivações revolucionárias.

Como marxista desde sua juventude, Bloch estava convencido de


que a utopia dos filósofos e dos velhos socialistas estava fadada a ser
apenas um discurso de legitimação do hoje pelo amanhã. Por isso le-
vantou n ão um sonho idealista, e sim a utopia concreta. Como, de
outro lado, a ciência e a filosofia estavam reféns da realidade tal qual
ela se apresentava no hoje, a utopia concreta é um passo além do já
dado. Para Bloch, o hoj e é sempre o potencial do amanhã.

Seu pensamento é, assim, na história da filosofia, aquele que mais


longe chegou no sentido de afirmar que a filosofia é a possibilidade.
Como os tempos presentes reiteram a impossibilidade, p ode-se dizer
que até hoje, em todo o mundo e inclusive no Brasil, o pensamento de
Bloch é um novo e está ainda para ser desvendado. 1

No Brasil, as notícia s filosófi cas sobre Ernst Bloch vêm da década de 1960 - ao mesmo tempo
da introdução dos pensamentos de Lukács e da Escola de Frankfurt - por meio dos pio ne iros
estudos sistemáticos do francês Pierre Furter. Nas décadas seguintes, destacam-se os estudos
de Luiz 8 ic ca, do Rio de Ja ne iro, tratando da onto logia e da política de Bloch, e , no sul, de
-
.. .. -- .:.::······· ., ... ·· --·------- ----

UTOPIA E DlR.E!TO

A absorção de Bloch pelo pensamento jurídico tem se revelado


bastante esparsa. Enquanto na filosofia geral Bloch é respeitado tanto
por um viés radical quanto por um viés reformista da esquerda - o
humanismo o reclama, e os radicais até se fazem passar por seus discípu-
los -, a filosofia do direito someme sabe de Bloch por meio de alguns
poucos e rápidos esquemas a respeito da esperança e da utopia concreta.

Tal leitura por alto é responsável pelo grande d esconhecimento


acerca do pensamento jurídico blochiano. Os motes principais da sua
filosofia do direito, direito natural e dignidade humana, quando lidos
rapidamente, permitem até identificá-los com algum passadismo
jusfilosófico. Trata-se justamente do contrário. J?loc_h _r_echaça o .1I1éto-
do jusnaturalista, e sua construção jurídica é, na verdade, uma dialética
_da dignidade. Daí que poucos renham se atentad~, até o p~~~enre,
para sua incursão profunda nos limites do discurso jurídico tradicio-
nal e para sua postulação radical de uma sociedade sem domínio.

Bloch está na imbricação explosiva da filosofia do direito e da filo-


sofia política. Sua filosofia interfere no centro nevrálgico da administra-
ção do já dado e existente. A concepção política blochiana, por ser
transformadora e revolucionária, en&ema a reação do conservadorismo,
que passará a enxergar, também na sua filosofia do direito, uma mera
escatologia, cujo anúncio não se fará nunca cumprir.

Suzana Albornoz, dedicando-se à ética e à pedagogia blochianas. C. E. Jord:io Machado, na


Unesp, voltou-se à estética em Bloch. Michael lõwy, sempre presente no debate filosófico
brasileiro, dedica reílexÕ€s a Bloch, dentre outras áreas, também no campo da filosofia da
religião. Deve-se ressaltar, ainda, que talvez o mais importante estudioso de Bloch em todo o
mundo na atualidade, o franco-alemão Arno Münster, esteve presente e m algumas ocasiões
no Brasil, lecionando em unive rsidades brasileiras e publicando, em português, duas re levan-
tes obras sobre o pensamento blochiano. De todo o conjunto dos livros de Ernst Bloch,
somente no começo da década de 1970 se deu a publicação da primeira tradução, em língua
portuguesa, de sua obra Thomas Münzer, Teólogo da Revolução, pela Editora Tempo Brasilei-
ro, e, após um interregno de muitos anos, e m 2005 começ ou a publicação da importante obra
O Princípio Esperança, em 3 volumes, pela Editora Contraponto. Direito Natural e Dignidade
Humana, a principal obra de filosofia do direito de Ernst Bloch, será trad uzida e publicada
pela editora Quartier Latin do Brasil.
AlYSSON LEANDRO MASCARO

SOBRE A OBRA

O ambiente intelectual de Ernst Bloch é claramente o do marxis-


mo, mas sua filosofia - que é bastante aberta e com uma envergadura
de análise ímpar - dialoga constantemente com uma tradição filosófi-
ca, que vai desde o aristotelismo ao iluminismo, e com toda uma vasta
corrente do pensamento contemporâneo, que vai da Escola de Frank-
furt até a psicanálise. A presente obra, por conta disso, pode ser dividi-
da em duas grandes unidades. Uma primeira parte, compreendendo
os capítulos um a quatro, pode ser tomada como uma espécie de cami-
nho ao pensamento blochiano, tratando da reflexão sobre o tema da
utopia por autores que serão referenciais a Bloch. Posteriormente, dos
capítulos cinco a nove, trata-se de analisar, na filosofia do próprio Bloch,
seus pressupostos gerais de pensamento e sua filosofia jurídica, des-
vendando então sua específica ontologia jurídica da utopia.

Uma filosofia jurídica que trate da utopia se revela uma reflexão


incômoda, mas necessária, para o direito atual. Embora os tempos pre-
sentes se anunciem categoricamente como impossibilidade, há multi-
dões de injustiçados, explorados, angustiados, indignados e mesmo li-
vres esperançosos cujas energias acumuladas reclamam a possibilidade.
A dialética do amanhã novo saído das lutas de hoje ainda é um projeto
de muitos. Por estes, pensamentos como os de Bloch fazem sentido.
CAPÍTULO 1

MODERNIDADE, TEMPO E REVOLUÇÃO

Quando, na Segunda Epístola de Pedro, anuncia o apóstolo "Mas


há uma coisa, caríssimos, de que não vos deveis esquecer: um dia dian-
te do Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia'',2 já tinha
curso um trajeto de luta com o tempo e a história que seria causa dos
mais candentes desesperos e de grandes, ilusórios e concretos sonhos e
utopias. A lura pelo tempo entrava em causa para a humanidade. Que
um dia possa concretizar o que demoraria mil anos, ou que haja um
milênio de novos dias.

De fato, a história e o tempo revelam-se como uma espécie de


luta aparentemente escondida dos impulsos humanos, pois determi-
nam vontades, esperanças e sentidos que escapam, muitas vezes, dos
acontecimentos imediatos e das contradições objetivas e plausíveis. Por
exemplo, a escatologia judaico-cristã, ao anunciar a salvação, faz por
dar um sentido à história que um observador externo é incapaz de
dimensionar: o hoje é pelo amanhã.

Mas, na multiplicidade de sentidos do tempo, não se pode dizer


simplesmente que haja um tempo de salvação e um tempo dito "natu-
ral", contraposto a este. Há uma pluralidade de perspectivas que re-
clama a história para sentidos muito distintos. O Iluminismo, que
rechaça veementemente a escatologia cristã, põe em seu lugar a salva-
ção do homem por si mesmo. O marxismo, herdeiro e crítico contun-

2 li Pedro (3, 8).


ALYSSON LEANDRO MASCARO

dente da modernidade, ainda assim anuncia novos tempos, os da hu-


manidade efetivamente socialista. A modernidade, de tal sorte, se apre-
sentará, entre tantas facetas, também como uma luta pelo tempo, pela
sua interpretação e suas esperanças.

A GEOMETRIA DO TEMPO E DA HISTÓRIA


O discurso da moral iluminista pressupõe um sentido claro do
tempo, das trevas para a luz. Ironicamente, também o arcabouço cris-
táo pressupõe um sentido do tempo, que também sai da treva para a
luz, ainda que a luz cristã possa ser a treva iluminista.

Pode-se perceber um sentido relativamente próximo do tempo


na tradição judaico-cristã e na tradição iluminista. A salvação judaica,
a redenção pelo Messias, é a linha que estabelece o eixo de compreen-
são da história. Para os cristãos, simbolicamente, o "antes de Cristo" e o
"depois de Cristo", que dividem a contagem do tempo ocidental, são o
exemplo de uma forma de visão filosófico-teológica da temporalidade
muito específica: o tempo como uma reta. Trata-se de uma linha que
tem passado e terá futuro. E, mais que isso, o futuro orienta o presente
e explica o passado.

A linearidade do tempo cristão e do tempo iluminista opõe-se à


circularidade do tempo antigo, o tempo do retorno ou o tempo pa-
gão, no contraste dos cristãos. A noção grega do tempo circular, esfé-
rico, do "começo e fim como um ponto comum na periferia do círcu-
lo", conforme o verso de
Heráclito, é a espinha dorsal a ser quebrada
3
pelo pensamento cristão. Se o tempo amigo era baseado na constatação .
, .,. ~L,.; ".:;),..·;: .. ,.. . , .. . . . . . .., .,
3 "Neste aspecto, o c ristianismo incontestavelmente prova ser a re ligião do ' home m caído': e
isso até o ponto em qu e o homem moderno se vê irremediave lmente identific ado com a
história e o progresso, e para o qual a história e o progresso represe ntam uma queda, ambos
implicando o abandono fi nal do paraíso dos arquétipos e da repetição". EuAoE, Mircea. M ito
do Eterno Retomo. São Paulo, Me rcuryo, 1992, p. 137.
UTOPIA E DIREITO

da geração e da corrupção da natureza, portanto numa perspectiva


éalcada à physis mesma das coisas, o tempo cristão é um tempo basea-
do .numa construção interna, subjetiva, da fé no futuro como salva-
.ç~q. O tempo cristão, assim, é o tempo trabalhado, internalizado, em
face do tempo antigo, objetivado, que se baseia no nascimento e no
perecimento constantes. Santo Agostinho, na Cidade de Deus e em
um capítulo todo das suas Confissões, outra coisa não faz do que cha-
mar o cristão ao tempo novo.
O seu [de Agostinho] argumento final con tra o conceito clássi-
co de tempo é, por conseguinte, de ordem moral: a d outrina
pagã encontra-se perdida, pois a esperança e a fé estão basica-
mente relacionadas com o futuro e não pode existir um futuro
real se tempos passados e futuros forem fases iguais num retor-
no cíclico sem princípio nem fim. Com base numa revolução
duradoura de ciclos definidos, só poderíamos esperar uma rota-
ção cega de infelicidade e felicidade, isto é, de ilusória beatitude
e verdadeira miséria, m as nenhuma bem-aventurança eterna -
apenas uma repetição infinita do mesmo, sem nada de novo,
redentor e derradeiro. A fé cristã promete efetivamente a salva-
ção e a bem-aventurança àqueles que amam Deus, enquanto a
do utrina pagã de ciclos fúteis paralisa a esperança e o próprio
amor. Se tudo viesse a acontecer sempre d e novo com intervalos
fixos, de nada serviria a esperança cristã numa nova vida. 4

A redenção e a salvação, fenômenos que foram intrínsecos à tra-


dição cristã medieval, por exemplo, revelam assim uma estrutura
escatológica de progresso do tempo. A vinda do Cristo representa o
final de uma etapa da história e a anunciação de novos tempos. Da
mesma forma, o futuro também já anunciado dá razão de ser e estru-
tura o presente cristão. Para a escatologia cristã, o futuro anunciado é
o tempo do eterno, do regozijo perene em Deus. Assim Agostinho:

4 Lowm t, Karl. O sentido da história. Lisboa, Edições 70, 1991, p. 164.


Al.YSSON LEANDRO MASCARO

Precedeis, porém, todo o passado, alteando-Vos sobre ele com a


Vossa eternidade sempre presente. Dominais todo o futuro por-
que está ainda para vir. Quando ele chegar, já será pretérito. Vós,
pelo contrário, permaneceis sempre o mesmo e os Vossos anos
não morrem. Os Vossos anos não vão nem vêm. Po rém os nossos
vão e vêm, para que todos venham. Todos os Vossos anos estão
conjuntamente parados, porque estão fixos, nem os anos que che-
gam expulsam os que vão, porque estes não passam. Quanto aos
nossos anos, só poderão existir todos, quando já todos não existi-
rem. Os Vossos anos são como um só dia, e o Vosso dia não se
repete de modo que possa chamar-se quotidiano, mas é um per-
pétuo hoje, porque este Vosso hoje náo se afasta do amanhã, nem
sucede ao ontem. O vosso hoje é a eternidade. 5

O Iluminismo, de uma certa maneira, não se insurge contra essa


linearidade do tempo orientada pelo amanhã, ainda que não voltada
ao porvir eterno como nos cristãos. Mas também o movimento das
luzes aposta no presente melhor que o passado e no futuro melhor que
o presente. A linearidade do tempo faz pressupor ainda, no pensa-
mento iluminista, a superação do problema da religião, como forma
de cumprir o progresso natural da humanidade. Mas não é a negação
do sentido do tempo que está em causa no Iluminismo: ele mantém a
estrutura judaico-cristã, apenas elimina seu conteúdo e seus métodos.

A estrutura lip~M cio tempo, assim, apresenta ao menos duas gran-


_des varia!ltes de uma mesmavisão. Para a variante cristã, a esperança se
dará pela promessa, pelo anúncio, pela revelação. O futuro desnudo
pelo anúncio revela o sentido do presente. Já a variante iluminista olha o
passado como constatação do progresso do hoje e induz a esperança no
futuro como decorrência. A esperança iluminista, assim, é indutiva, ao
·passo que a judaico-cristã é dedutiva, decorrente das promessas. Desta-

5 A GOSTINHO, Sto. Confissões. Petrópolis, Vozes, 2001, p. 277.


UTOPIA E DIREITO

ca-se disso, imediatamente, o caráter voluntarista da esperança moder-


na, ao contrário do caráter contemplativo da esperança judaico-cristã.
O voluntarismo da modernidade, que se revela crucial para as filosofias
política e jurídica do Iluminismo, também é o elemento estruturante do
arcabouço psicológico do tempo moderno. O amanhã virá pela vonta-
~~~ p_orque por esse impulso o ontem se fez hoje.

A cada dia a razão penetra na França, tanto nas lojas dos co-
merciantes como nas mansões dos senhores. Cumpre, pois,
cultivar os frutos dessa razão, tanto mais por ser impossível
impedi-los de nascer.6

Não se põe ainda claramente, no quadro do tempo iluminista, a


decadência dentro da civilização, como esta também não se punha no
pensamento teológico a partir do momento da vida expulsa do paraí-
so. Todos os passos do tempo cristão, depois do pecado original, são
tempos felizes porque só fazem por se aproximar do tempo da reden-
ção. Não há possibilidade de regressão no tempo. O afastamento do
tempo e a sua decadência não são lógicos para a perspectiva cristã.

De algum modo, o Iluminismo adota por vontade - e talvez


não por decorrência lógica - a linearidade impassível do tempo. O
sentido do futu_ro decorre do fato de ter sido o .p~~~ado ·t~mbém
line-ar. Ora, sendo os mecanismos do universo mecânicos, .a física
moderna impede o futuro de ser diverso do passado, devendo ser,
então, sua repetição esplêndida. A imagem do relojoeiro perfeito,
criador do perfeito relógio, o universo, faz ver, no movimento do
passado, a anunciação do infinito futuro. Se o mundo foi barbárie
que se civilizou, a tendência é a civilização total. O movimento do
tempo moderno é, para os iluministas, a inexorável saída de toda a
treva para a chegada a toda a luz.

6 VoLTAJWE. Tratado sobre a Tolerância. São Paulo, Martins Fontes, 2000, p. 11 5.


As esperanças medieval e moderna, sendo o resultado de um sentido
já dado, são a esperança no máximo reformista, mas não necessariamente
revolucionária. Não é necessária a revolução da história para a chegada do
amanhã. Ele virá pela promessa divina - e então a esperança judaico-cristã
não será nem sequer reformista, será só conservadora - ou virá pela ação
cadenciada da humanidade, repetindo uma marcha inexorável do passa-
do ao futuro - e então a ação iluminista, moderna, será reformista, para
ser hoje melhor do que ontem, mas sem a necessidade de romper a mar-
cha. No direito, esta marcha linear - mas controlada - do reformismo
buscará o controle do próprio tempo jurídico, processualizando-o:
Vivia-se, assim, numa sociedade relativamente estável, com
valores estáveis capazes de controlar, no seu grau de abstração,
a pequena complexidade social. Ora, as crises que culmina-
ram na Revolução Francesa acabaram por inverter esta posi-
ção. Numa sociedade tornada complexa, formas difusas de
controle são substituídas por instrumentos de atuação mais
rápida e efetiva. [... ] Com isto, também, há uma inversão na
relação mudança/permanência. O Direito positivo institu-
cionaliza a mudança, que passa a ser superior à permanência,
e as penadas do legislador começam a produzir códigos e re-
gulamentos que, posteriormente, serão revogados e de novo
restabelecidos, num processo sem fim. 7

Os primeiros abalos na linearidade do tempo virão somente após a


filosofia do Iluminismo. Até então, as disputas entre conservadores cris-
tãos e progressistas iluministas eram de forma e conteúdo, mas nunca de
fundo. Somente a inauguração do conceito filosófico da História, a par-
tir de Hegel, trará impasse estrutural ao jogo filosófico alicerçado por
séculos judaico-cristão-iluministas. O tempo hegeliano - e marxista -
impõe outras tarefas ao sentido do progresso e da história.

7 FERRAZ J1i., lercio Sampaio. Funçfio Social da Dogmática jurídica. São Paulo, Max limonad,
1998, p. 193.
- UTOPIA E DIREITO

Lateralmente, é preciso ressaltar, o próprio auge da modernidade


produziu, além daquela de Hegel e Marx, outra aguda tensão na
linearidade do tempo, que, de modo distinto, seria um reclame filosó-
fico muito próximo do tempo grego, da circularidade pagã. ~ietzsche,
Sp~ngler e Heidegger hão de acentuar - contra qualquer utopia do
amanhã melhor lastreada no progresso - _o pr~sente como sendo a
esperança que irá se esgotar em si mesma, sem portas abertas ao hipo-
tético futuro. Passado e presente se fundiriam, então, n um futuro que
_é_~empre o recorno. 8 ' '

Confrontados com tal destino, uma só concepção da vida é dig-


na de nós, aquela que já foi designada por "Escolha de Aquiles":
mais vale uma vida breve, plena de ação e brilho, que uma vida
longa mas vazia. O perigo é tão grande, para cada indivíduo,
para cada classe, para cada povo, que tentar ocultá-lo é deplorá-
vel. O tempo não pode deter-se; não há retrocessos prudentes,
nem renúncias cautelosas. Só os sonhadores poderão acreditar
em tais saídas. O otimismo é cobardia. N ascidos nesta época,
temos de percorrer até o final, mesmo que violentamente, o
caminho que nos está traçado. Não existe alternativa. O nosso
dever é permanecermos, sem esperança, sem salvação, no posto
já perdido, tal como o soldado romano cujo esqueleto foi en-
contrado diante de uma porta em Pompéia, morto por se terem
esquecido, ao estalar a erupção vulcânica, de lhe ordenarem a
retirad a. Isso é nobreza, isso é ter raça. Esse honroso final é a
única coisa de que o homem nunca poderá ser privado. 9

8 "A partir do século XVII em diante, o linearismo e a concepção progressista da história afírmam-
se cada vez mais, colocando a fé numa linha de progresso infinito, uma fé que já havia sido
proclamada por Leibniz, predominante no século do 'iluminismo', e popularizada no século
XIX pelo triunfo das idéias dos evolucionistas. Temos de esperar até o nosso próprio sécu lo para
ver o começo de determinadas reações contra esse linearismo histórico, e um certo reavivamento
do interesse na teoria dos ciclos; é assim que, na economi a política, estamos sendo testemunhas
da reabilitação da idéia de ciclo, flutuação, oscilação pe riódica; que, na filosofi a, o mito do
eterno retorno é reavivado por Nietzsche; o u que, na filosofia da história, um Spengle r ou um
Toynbee manifestam preocupação com o problema da periodicidade". fuALJE, op. cit., p. 126.
9 SPENCLER, Oswald. O homem e a técnica. Lisboa, Guimarães Editores, 1993, p. 119.
ALYSSON Lf.ANORO MASCARO

As pesadas palavras de Spengler são contundentes acerca desse


reverso do tempo da modernidade. Há uma sombra do ontem como
amanhã em Spengler que animará, potencialmente, até mesmo Carl
Schmitt - ambos muito próximos do nazismo -, a quem posterior-
mente Bloch, campeão da esperança e dos sonhos, dedicará a estes
palavras de embate político-filosófico duras e virulentas.

ÜAS ESPERANÇAS DA MODERNIDADE

O Iluminismo é a esperança na luz do futuro com os olhos volta-


dos à negação das trevas do passado. Seu efeito libertário é espetacu-
lar: o novo amanhã será, ao mesmo tempo, o escombro do ontem.
Libertar - destruir - e construir são as duas faces da moeda. Um gênio
da filosofia prática e popular, como Voltaire, talvez mais tenha se dedi-
cado a dissecar as idiossincrasias da religião do que pregar a tolerância.
O não, em muitos momentos, ocupa mais espaço que o sim na filosofia
moderna. A luz resulta da ojeriza da sombra.

De qualquer modo, não e sim apontam para além, e, neste senti-


do, a filosofia moderna, assim como o Iluminismo de modo geral, são
progressistas. Misturam-se, nesta esperança no amanhã, ao mesmo tem-
po, a novidade do nunca pensado - a afirmação da t?lerância, dos
direitos _:_ e a revolta contra o já dado.:.. o absolutismo, as trevas do
~~b~r. Neste ponto, o Iluminismo do século XVIII. ~lha adi-ãni:e~ ·ral
qual a filosofia que despontou no século XIX com Marx. Tal qual o
reformismo iluminista, o revolucionarismo também aponta ao novo,
ainda que, para a revolução, o novo pareça ser o inexistente até então
e, para o reformismo, pare~a ser a mudança doj~. existei:_ite. O qu·~-"a~
unifica é o futuro reinterpretando a história.
A modernidade, portanto, não está separada da moderniza-
ção, o que já era o caso na filosofia do Iluminismo, mas ela se
--
UTOPIA E DIREITO

reveste de muito mais importância num século em que o pro-


gresso não é mais unicamente o das idéias, mas torna-se o das
formas de produção e de trabalho, onde a industrialização, a
urbanização e a extensão da administração pública transtor-
nam a vida da maioria. O historicismo afirma que o funciona-
m ento interno de uma sociedade se explica pelo movimento
que a conduz à modernidade. Todo problema social, em últi-
ma análise, é uma luta entre o passado e o futuro. O sentido
da história é ao mesmo tempo sua direção e sua significação,
p orque a história tende para o triunfo da modernidade. 10

De certo modo, se tratássemos de uma geografia política da filo-


sofia, o oposto absoluto do Iluminismo quanto ao progresso não é a
filosofia baseada na história, revolucionária, que perpassa o pensamento
de Hegel e principalmente o de Marx, porque ambos apontam para o
futuro também. Os opostos absolutos do Iluminismo quanto a essa
geografia política serão, sim, o reacionarismo e o conservadorismo,
que até esse tempo se exprimiam religiosamente e, posteriormente,
passaram a ser um corpo de pensamento filosófico estruturado, arro-
gando a si um lugar na história.

Em um certo momento da passagem da Idade Moderna para a


Contemporânea, o Iluminismo e sua perspectiva liberal passaram a
congregar o espaço do conservadorismo, deixando ao religiosismo o
estigma de reaciünário, ao lado daqueles que postulavam uma revolu-
ção como volta ao passado. Mas, ainda neste momento em que o
Iluminismo passa a ocupar o espaço do institucionalismo liberal con-
servador, ele manterá sua outra faceta, libertadora, como arma na mão
a favor da transformação. Daí poder-se dizer que há uma constante
face libertadora do Iluminismo até a atualidade, em que pese sua apa-
rente maior face conservadora.

1O T ouRAINE, Alaín. Crítica da Modernidade. Petrópol is, Vo zes, 2002, p. 71 .


ALYSSON LEANDRO MASCARO

A característica do Iluminismo na história é a de um frescor ainda


não esgotado. As suas promessas não-cumpridas não parecem ser arejei-
?.
ção total dos seus próprios ideais. marxismo, na·crítica às classes que
empunharam esses ideais e na crítica aos seus métodos, parece ainda
respeitar um corpo mínimo comum de aspirações e objetivos - a liber-
dade e a igualdade exprimem, ao mesmo tempo, os sonhos anti-absolu-
tistas iluministas e os desejos igualitários marxistas. Ao não negar todo o
passado, o Iluminismo incorpora os eventuais tesouros do ontem em
busca do melhor do futuro. O marxismo, por sua vez, anuncia o cum-
primento de todos os ideais que o Iluminismo é incapaz de oferecer.

A trajetória das esperanças iluministas é radiante, mas, de certo


modo, fracassada. O estigma desse frescor juvenil derrotado se arrasta
il1~to-àSesperanças das Luzes: as brisas do novo foram perpassadas pelos
furacões revolucionários. Por isso, desde a dialética de H egel, a ruptura
passou a ser a marca da espe~;~ça~ ü:ndo em vi;ta que as brisas reformis-
tas do lluminismo não lograram refrescar e balançar a humanidade como
pretendiam. Daí constatar-se que, em termos de intensidade e talvez de
paixão, o marxismo tenha encampado a tarefa de modelar os tempos
novos, tal qual Sartre já advertia nas suas conhecidas palavras ao dizer
que o marxismo é a fronteira última da filosofi a. 11 A força utópica do
marxismo confirmou-se como a mais ampla; seus sonhos socialistas, mai-
ores e mais hercúleos que os liberais iluministas.

Çomum ao marxismo e ao iluminismo, no entanto, é a esperança


-fundad~
~- .
-~a_ __rai.ão. No caso do Iluminismo, é o progresso da razão o
- - ---·-· ... . - -·

próprio motor do progresso da história, como se fossem engrenagens


inecanicamente ligadas. · ..

11 "Uma pretensa 'supe ração' do marxismo limitar-se-á, na pior das hipóteses, a um retorno ao pré-
marxismo e, na melhor, à redescoberta de um pensamento já contido na filo sofia que se acreditou
superar". SARTRE, Jean-Paul. Criíica da razão dialética. Rio de Janeiro, DP&A, 2002, p. 21.
UTOPIA E DtRElTO

Assim, a racionalização , componente indispensável d a


modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâneo
e nece ssári o de m odernização. A idéia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da própria razão e, portanto,
principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as
políticas sociais de modernização não devem ter outro objeti-
vo que o de desembaraçar o caminho da razão suprimindo as
regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al-
fandegárias, criando a segurança e a previsibilidade de que o
empresário necessita e formando administradores e operado-
res competentes e conscienciosos.12

Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é


.suficiente em si mesma para a consecução da libertação. N o marxís-
~?' trata-se da razão crítica, que reconhece ~~~s próprios limites mas
que, ainda assim, só conhece uma dialética que seja um esclarecimen-
to racional para chegar à práxis da transformação. Isso porque, para o
marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma-
Ção é esperançosa.

A TRANSFORMAÇÃO É MORAL

O processo de dessacralização do mundo moderno representa a


utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen-
te moral e religioso embalando movimentos políticos, econômicos e so-
ciais. Enquanto a transformação contemporânea apregoa um ideário
praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo,

12 TouRAtNE, op ci!., p . 19.


--
UTOPIA E DIREITO

Assim, a racionalização, componente indispensável da


modernidade, se torna além disso um mecanismo espontâneo
e necessário de modernização. A idéia ocidental de
modernidade confunde-se com uma concepção puramente
endógena da modernização. Esta não é a obra de um déspota
esclarecido, de uma revolução popular ou da vontade de um
grupo dirigente; ela é a obra da própria razão e, portanto,
principalmente da ciência, da tecnologia e da educação, e as
políticas sociais de modernização não devem ter outro objeti-
vo que o de desembaraçar o caminho da razão suprimindo as
regulamentações, as defesas corporativistas ou as barreiras al-
fandegárias, criando a segurança e a previsibilidade de que o
empresário necessita e formando administradores e operado-
res competentes e conscienciosos. 12

Ao iluminismo, a razão trata de esclarecer e, neste processo, ela é


_suficiente em si mesma para a consecução ~a libertação. No marxis-
~?' trata-se da razão crítica, que reconhecê seus próprios limites mas
que, ainda assim, só conhece uma dialética que seja um esclarecimen-
to racional para chegar à práxis da transformação. Isso porque, para o
marxismo, nem toda razão é transformadora, e nem toda transforma-
Ção é esperançosa.

A TRANSFORMAÇÃO É MORAL

O processo de dessacralização do mundo moderno representa a


utopia do céu na terra. Esta utopia, da emancipação do homem em
relação aos seus preconceitos e superstições, tem um caráter nitidamen-
te moral e religioso embalando movimentos políticos, econômicos e so-
ciais. Enquanto a transformação contemporânea apregoa um ideário
praticamente laico e técnico, afastado em grande parte do humanismo,

12 TouRAIN E, op. cit., p . 19.


AlYSSON LEANDRO MASCARO

a modernidade guardará uma tensão entre o religioso e o moral, entre a


eternidade da velha religião e a universalidade da nova moral.

A nova moral moderna é a esperança de um novo homem. O


caminho da transformação moderna é pelo indivíduo, daí seu caráter
essencialmente moral. A pedagogia do homem novo, a orcopedia do
andar ereto, a libertação da moral opressora, tudo isso representa uma
alavanca ao novo a partir do indivíduo. É preciso localizar a transfor-
mação, então, no conhecimento, em sua forma e conteúdo. É preciso
situá-la no espaço entre a iconoclastia e a contemplação. A veneração
da verdade é a arma da libertação e, no fundo, é a própria libertação.

A construção da nova moral agrupa a mais vasta rede da


intelectualidade iluminista, desde homens que estão no limite entre a
teologia antiga e a ruptura total, como Espinosa, até espíritos já bas-
tante libertos do passado ·religioso, como Diderot. O Iluminismo in-
glês, que passa por Locke, teve na filosofia moral um de seus mais
importantes momentos. Kant, na Alemanha, devia grande parte de
sua visão moral aos ingleses.

Na França, a nova moral iluminista revelou-se grandemente


contestadora, de tal modo que nem o século XIX logrou conseguir
repetir a radicalidade que anteriormente foi apregoada. Os radicais
que tratam da teologia no século XIX, a partir de Feuerbach, têm pela
religião uma postura filosófica mais compreensiva que refutadora. O
Iluminismo, no entanto, não se preocupa em enterrar o passado em
sua sepultura, mas sim em matá-lo.

A nova moral iluminista é de esperança, no entanto ela se sobre-


põe a uma velha moral que também argüia a esperança. A razão cristã
medieval também era uma moral que apontava para a felicidade, ain-
da que submetida à divisão em dois reinos, dos quais o último e afasta-
_qo d~. ':'.i4é!._~errena era o limiar do regozijo. Para subverter a escatologia
-
.. ..•.. .... _.. ,_.,_..,,....... .. ..-.-.-...---------- --- ____________
,. ~ ,_ · -----------------~-

UTOPIA E D IREITO

da felicidade futura, o Iluminismo anuncja._.a_fdicidade presente. No


fu~do, há na passagem da filosofia m edieval pa~a -~ il~~ini~t~ - uma
atualização temporal: o tempo da esperança vai-se aproximando. O
caráter messiânico do passado judaico-cristão continuará subjacente,
de certo modo, no arcabouço das esperanças modernas.
Existe, pois, para o homem mo rtal, al ém da realização
messiânica de seus ideais básicos, num tempo extremamente
afastado, uma outra forma de realização, à qual o "Pregador"
faz igualmente alusão com as palavras (Ecl 3,13): 'Também,
que todo homem coma e beba e reconheça o bem em todo o
seu trabalho, é um dom de Deus". [... ] C hegamos, dessa for-
ma, a uma realização bem diferente que con siste na integração
da vida cotidian a nos ensinamentos do passado, numa "Lei"
válida em todos os tempos. [... ] N o entanto deve ser lembra-
do sempre que o tempo sagrado não é, propriamente, um
tempo fenoménico, mas um tempo revivido, contendo um
conjunto de modelos do que aconteceu no passado, capazes
de orientar e dar sentido à nossa vida presente. 13

O Iluminismo não rompe, em relação à velha teologia, com o que


diz respeito à questão de fundo da transformação individual como
premissa da transformação geral social. O Uuminismo substitui uma
moral velha por outra nova, mas, ainda -~ssim, está traballiando no
campo da moral: é preciso o. homem novo para que então seja dado
um mundo novo. Neste sentido, o Iluminismo é herdeiro das estrutu-
ras gerais do humanismo teológico anterior. Sua ruptura se dá no tem-
po, ao trazer a esperança para mais próximo, e se dá no campo lógico,
ao afastar a incompatibilidade racional_dos_dogrnas e arcabouços teo-
lógicos da moral antiga. Essa linha reta de aproximação d o futuro com
o presente-se verifica, pois, desde os cristãos m edievais, passando pelo

13 RlHFELD, Walter. Tempo e Religião. São Paulo, Perspectiva, 1988, p. 123.


- . YI ---

ALYSSON LEANDRO M ASCARO

Iluminismo, até o marxismo. Tal escatologia será a marca de toda a


trajetória do progresso que constrói a modernidade e o ocidente. 14

A ruptura iluminista, assim, é um pedaço de uma total ruptura


com o passado, mas não toda a rupturl.' Em termos d e esperança,
a
rompe com o passado no local e no tempo: feli cidade será na terra e
.poderá ser para o hoje. Mas, em termos de estrutura e de ação, o
Iiuminismo está preso ao passado: a felicidade é individual e reformis-
ta. A moral revolucionária, que se pode vislumbrar no século XIX no
marxismo, será neste sentido uma total ruptura: no tempo e no espaço
(na c~rra hoje), assim como na ação (a práxis social). ":f

DA SECULARIZAÇÃO À REVOLUÇÃO

Pode-se perceber, na evolução política da Idade M oderna, um


processo crescente de secularização que redunda, no campo do direi-
to, na construção de um novo modelo de saber jurídico, afastado da
metafísica teológica e dos princípios da prudência antiga, que anima-
vam o direito romano e mesmo o pensamento jusfilosófico grego.

A separação iluminista entre metafísica moral e direito é a mais


acabada vitória da razão livre contra o dogma, mas não é, entretanto,
todo o processo. O Iluminismo fere de morte um monst ro que estava
enjaulado, mas não foi o Iluminismo o responsável pela caça e pelo
confinamento. O movimento dos direitos subjetivos, que estão na base

14 Voegelin, opondo-se em b loco ao que reputa gnose da modernidade, identifica os vastos


traços comuns dessa escatologia: "É essencial a nítida compreensão de que essas experiências
constituem o núcleo ativo da escatologia imanentista, pois de outro modo se tolda a lógica
interna do desenvolvimento político ocidenta l a partir do imanentismo med ieval até chegar
ao marxismo, passando pe lo humanismo, iluminismo, progressivismo, liberalismo e positivismo.
Os sím bo los inte lectuais e laborados pelos vários tipos de imane ntistas freqüentemente sao
conflitantes, ass.im como os vários tipos de gnósticos se opõem uns aos o utros. É fá cil
imaginar a indignação de um libe ral humanista se lhe dissermos que seu particula r de
imanentismo é um passo na estrada que leva ao marxismo" . VmGELI N, Eric . A nova ciên cia da
poll1ica. Brasília, UnB, 1982, p. 95.
.. . ....... ............... ~ ••'7•• ~1-.., ~,. ll!I
_ _ _ _,..,_ _ _ _ _

UTOPIA E DIREITO

da dinâmica capitalista e na base da Reforma Religiosa, é um compo-


nente da segregação do teológico e do laico tão force quanto o
Iluminismo. As luzes iluministas matam o teológico, porque lhe ne-
gam espaço, mas a pura dinâmica capitalista e a Reforma, no entanto,
foram o passo inicial que culminou na morte da teologia.

A idéia da individualidade que se assume


portadora de direitos,
.que é a necessária mônada da ação burguesa - o portador de direitos
e deveres, livre para contratar -, é também a idéia da individualidade
que crê independente do espaço político externo. A recusa da
heteronomia é a descoberta da autonomia jurídica. O movimento,
o
aqui, é inverso do que tradicionalmente se calcula. Não são a Refor-
ma e o capitalismo que criam o espaço estatal, a soberania, a ação laica .
.P._~J()_ contrário, a Reforma e o capitalismo criam o espaço individual,
__reafirmam o teológico, demarcando-lhe então um espaço legítimo: a
fronteira entre o político e o teológico n ão nega e~te úl_timo, antes o
consolida e o torna inatingível pelo primeiro'. '. '> '.'f:'., (.)\~~,~\.;\· ':\ ;. ''•') (;A~; - ,,, ,.,
..... . · . :- , . , . ,. :. .;··t'"~~t""t , . ,:-<~ 1 ~.e"· .\ · ' p.'·_:·n'·: ...~-~ ('r·,~~·.1jor~.i-~_i; :'::·~ ,,-. ,_. . .~ \-'~ ~~>'si·

A secularização, assim, a l~gitimação do espàÇ'~ ~pi~Í~~~l


é g, '~~s~ · ',.,
__te ~entido, faz surgir a legitimação do espaço político por oposição. Os ·
Iluminismos francês e inglês, quando se insurgem contra a religião e a · _
teologia, têm uma raiz diversa dos primeiros movimentos que levaram ·
ao direico subjetivo. Enquanto a Reforma levou à independência dos
EUA e à legitimação do espaço do privado em face do políci~~-,-·a Re-
volução Francesa e o Iluminismo radical levaram à morte da teologia
em face da Razão. Neste sentido é que se pode dizer que a Reforma
~t.em uma razãc:i ainda conservadora, porque é a última tentativa de
salvaguardar a teologia, enquanto o Iluminismo radical tem uma ra-
zão reformista quase revolucionária, porque quer destruir a legitimi-
dade do teológico para fazer surgir em seu lugar a secularização total.

Todo este encadeamento parece demonstrar que a idéia dos


direitos fundamentais do indivíduo não é uma idéia de ori-
AfYSSON LEANDRO MASCARO

gem política mas uma idéia de origem religiosa: "o que se


acreditava ser uma obra da Revolução é, na realidade, um pro-
duto da Reformà'. Seu primeiro apóstolo não foi Lafayette,
mas Roger Williams, cujo nome é ainda proferido pelos ame-
ricanos com a maior veneração; este apóstolo, levado pelo en-
tusiasmo religioso, emigrou na solidão para ali fundar "um
império baseado na liberdade religiosa". 15

No balanço entre a saída do mundo medieval e a chegada ao


mundo contemporâneo, a modernidade se apresenta, à primeira vis-
ta, como um só movimento de consolidação do indivíduo e da sobera-
nia. Mas este movimento é dúplice: trata-se de fazer surgir o Estado
por contraste com a religião, ou então de fazer surgir a política por
negação total da teologia. A tolerância de Calvino e Lutero era pela
primeira dessas vias. A tolerância do Iluminismo de Voltaire era da
última cepa.
A partir do fim do século XVIII, a secularização transpôs os
confins juscanônicos e juspublicistas para transformar-se em
categoria geral indissoluvelmente coligada com o novo con-
ceito unitário de tempo histórico. D este enlace (em meio ao
qual a secularização se encontra cercada por outras coordena-
das simbólicas da condiÇão moderna: emancipação e progres-
so, liberação e revolução) produzem-se radicais redefinições e
deslocamentos de significado do par espiritual/mundano. 16

Baseada n a inspiração das ciências naturais, a filosofia do direito


há de se encaminhar na construção de um modelo estável, repetível -
abrindo-se, assim, o caminho da técnica jurídica - a fim de que o
direito não seja obra do acaso das crenças pessoais ou das revelações

15 S0toN, Ari Marcelo. "A Polêmica acerca da origem dos Direitos Fu ndamentais: do Contrato
Social à O eclaraçao a me ri cana". ln Revista di! Pós-Graduação da Faculdade de Direito da USP,
vol. 4. Porto Alegre, Síntese, 2002, p. 1 35.
16 M >.RRAMAO, Giacomo. Céu e Te rra. Genealogia da Secularização. São Pa ulo, Ed. Unesp,
1997, p . 23 .


ÜTOP!A E ÜIR.EITO

sagradas, mas sim da razão. O jusnaturalismo moderno arroga para si


a razão como secularização de toda a metafísica jurídica até então exis-
tente. Assim exprime Tercio Sampaio Ferraz Jr.:
O rompimento com a prudência antiga é claro. Enquanto esta
se voltava para a formação do caráter, tendo, na teoria jurídica,
um sentido mais pedagógico, a sistemática moderna terá um
sentido mais técnico, preocupando-se com a feitura de obras e
o domínio virtuoso (Maquiavel) de tarefas objetivadas (por exem-
plo, como fundar e garantir, juridicamente, a paz entre os po- ·r. • •.. :·

vos). A teoria jurídica jusnaturalista, assim, constrói uma rela- , . . , ... -,


ção entre a teoria e a práxis, segundo o modelo da m ecânica · :' , .
..
•<'·
·..:.,}Y'~ .
-:r'·~ ,. . ~·
•', A.':'~;;
clássica. A reconstrução racional do direito é um;t espécie de ·~:..._;~;.:;:í.r ::; ~\
física geral da socialização. Assim, a teoria fornece, pelo conhe- •,: . . . ~·:'· . ', .
cimento das essencialidades da natureza humana (no "estado
de natureza"), as implicações instit ucionais a partir das quais é
possível uma expectativa controlável das reações humanas e a
instauração d e uma convivência ordenada. 17

Pode-se dizer que tal processo de secularização jurídica revela a


atualização de uma utopia jurídica: ao tomar nas mãos do indivíduo
em sociedade o poder de dizer suas próprias leis e de se julgar, a huma-
nidade traz para o hoj e a esc'atologia do amanhã justo. O caminho
para a revolução estava aberto pelo próprio Iluminismo: é preciso rom-
per com as amarras amigas para instaurar o novo: "E o direit_o , que
libera e institui, contribuirá para a realização deste prog~ama, conju-
gando a emancipação dos homens com o es t~belecimento 4a !ei". 18
! ~.~ i.

17 FERRAZ )R., Te rcio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito. Técnica, Decisão, Dominação.
São Paulo, Atlas, 2003, p. 7 1 .
18 ÜST, François. O lempo do direito. Bauru, Edusc, 2005, p. 193: " É bem em direção a um paraíso
terrestre que colocamos o pé na estrada, e a promessa da felicídade - uma idéia nova e la também
- está no fim do caminho. Um caminho aclarado pelas luzes da razão e aberto pe la energia
formidável de idé ias-forças como libe rdade, iguald ade e, ta lvez mesmo, frate rnidade. Sem
dúvida, ainda estamos longe do cômputo fin al, mas a humanid ade é perfectíve l - logo, a
pedagogia estará inscrita no ce nt ro do pro jeto prometêico. Desde o início, uma certeza: a sorte
das gerações futuras será mais invejável do que a das gerações presentes".
ALYSSON LEANDRO MASCARO

O marxismo, ao constatar as limitações e os vícios da burguesia


no processo revolucionário iluminista, nada mais faz do que diminuir
ainda mais essa hipotética distância entre o céu e a terra das esperan-
ças jurídicas. O justo estava na ordem do dia porque já era possível
transformar o hoje em amanhã. Prossegue o imperativo da história,
para frente e para o alto.
CAPfTULO 2

MARX, TRANSFORMAÇÃO E UTOPIA

Na história do pensamento político e filosófico contemporâneo, a


obra de Marx representa uma referência ao mesmo tempo crucial mas
potencialmente plurívoca quando trata da utopia. Marx pode ser to-
mado como o mais alto expoente da utopia da transformação humana
no mundo contemporâneo e também como o maior n egador da uto-
pia, podendo ser ambas essas visões frutos de elogios à sua obra. Não
só os pensadores do marxismo divergem a respeito dos seus encami-
nhamentos da questão utópica, mas também divergem da leitura a
respeito do tema no próprio Marx.

É conhecida a tentativa de distanciamento de Marx em relação


ao socialismo utópico, o que o tornaria, por oposição, fundador do
socialismo dito ciendfico. No entanto, não é pela rotulação que se re-
solve a questão da utopia em Marx. Pelo contrário, a obra de Marx é
permeada de referências utópicas, e o devir da transformação históri-
ca e social habilita que se o entenda ainda como um socialista utópico,
mas aviado numa ciência da transformação.

A evolução histórica do p ensamento de Marx permite essa


duplicidade de leituras em relação à utopia, ora a negando, ora sendo
seu artífice. A filosofia de Marx transparece ser um projeto contradi-
tório e de possibilidades múltiplas. Nela, pode-se ver, ao mesmo tem-
po, a esperança nas lei s econômicas que conduziriam o mundo
inexoravelmente ao socialismo ao lado de páginas convocando o pro-
letariado à luta revolucionária, sem a qual não se daria a superação do
ALYSSON LEANDRO MASCARO

capitalismo. Esta duplicidade de Marx é constante, perpassando sua


obra de uma tensão muito fina. Por toda sua obra passa uma dificul-
dade profunda, que é a de se divisar um cerne único para o entendi-
mento da grande questão da transformação do capitalismo.

Surgindo do imo de todas as ambigüidades de Marx, no entanto,


está um horizonte profundo e singular, que talvez seja o unificador
maior de seu pensamento e tábua comum de todos os marxismos, por
mais variados que sejam: o marxismo é uma filosofia da transformação,
do anúncio do amanhã da libertação. Seja por causas econômicas ne-
cessárias - Engels, dentre tantos mais-, seja por razão da luta - Rosa
Luxemburgo e outros tantos ainda-, o marxismo é uma filosofia que
se vale do passado e do presente para vislumbrar o futuro. Embora as
c~rrentes de interpretação de Marx queiram inscrevê-lo ou afastá-lo
da questão da utopia, é inegável e comum a todas as vertentes do mar-
xismo o fato de que este aponta para o futuro, para a transformação
do presente em um amanhã de superação do capital. 19 E, assim sen-
do, se ainda se quiser em algum momento imputar a Marx alguma
espécie de messianismo, ela é necessariamente de pés no chão e calca-
da na práxis ou, dizendo de outra forma, uma espécie de utopia sem
ser jamais idealista nem, ironicamente, utópica. Nisto convergem to-
das as interpretações sobre Marx.

UMA DIVISA FUNDAMENTAL: A TRANSFORMAÇÃO

Gramsci tratava, nos Cadernos do Cdrcere, o marxismo como filo-


sofia da práxis. O fundamento de sua interpretação de Marx residia,
justamente, na tentativa de escapar das cisões hermenêuticas dos

19 "O ímpeto utópico que anima a teoria de Marx constitui, para o melhor e para o pior, uma
dimensão necessária de seu desenvolvimento". MALER, Henri. Congédier L'Utopie? l.'ulopie
sefon Karl Marx. Paris, L' Harmattan, 1994, p. 1 2.
ÜTOPIA E DIREITO

continuadores do marxismo, que já desde o final do século opunham


reformistas e revolucionários, revolucionários internacionalistas e sovi-
éticos, democratas e centralistas, dentre outros mais. O conceito de
práxis valorizado por Gramsci é justamente a ruptura de Marx com
.. _ joêi~ a filosofia alemã, idealista, que se bastava etn interpretar o mun-
.. do. Tal novidade se exprime de modo explícito nas Teses Sobre Feuerbach,
em especial nas Teses I, II e VIII. Nesta última, diz Marx: ((r~()da vida
S()~ial é esse11cialmente prdtíca. Todos os mistérios que orientam ateo-
ria para o misticismo encontram sua solução racional na prática hu-
mana e na compreensão desta práticá'.20

No entanto, o ápice da diferenciação entre o velho idealismo como


imobilismo da interpretação e a práxis como atividade de interpreta-
ção revolucionária será o encaminhamento da filosofia para a trans-
formação. Por isso o conhecido fecho das Teses sobre Feuerbach é ex-
plícito: "Os filósofos apenas interpretaram o mundo de forma dife-
rente; o que importa é mudá-!o". 21 De certo modo, Marx sela um
destino inarredável à atividade filosófi ca e a seu pensamento geral: a
filosofia deve servir à transformação.

A partir da divisa fundamental é que se dá início ao projeto mar-


xista de compreensão do capitalismo e das formas de sua superação. É
desta maneira que se poderá aceitar, posteriormente, que um pensa-
mento extremamente calcado na leitura de O Capíta!, corno o de
Pachukanis, seja tão marxista quanto a crítica da música de Theodor
Adorno ou o onírico O Príncípio Esperança de Ernst Bloch. Todos se
ocupam da sociedade dominada, capitalista, e das possibilidades de
sua transformação, e nisto reside o cerne do pensamento de Marx.

20 MA~x. "Teses Sobre Feuerbach". ln LA BICA, Georges. As 'Teses sobre Feuerbach ' de Karl Marx.
Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1990, p. 34.
21 lbid., p. 35.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

QUE MARXISMO PARA QUAL UTOPIA?

A história da interpretação da transformação por parte dos mar-


xistas revela compreensões distintas do processo revolucionário, dos
passos, táticas e alternativas do marxismo. Os intérpretes de Marx po-
dem ser divididos em vários rótulos, dicotomias, correntes. É possível,
por exemplo, opor a uma visão mecanicista de Marx uma visão mais
acurada, filosófica, essencialmente dialética. No que tange ao proble-
ma da interpretação da utopia em Marx, bem como a outras questões
mais, podem ser vistas duas grandes correntes filosóficas cujas respos-
tas encaminham posições específicas dentro do quadro do marxismo.
A primeira delas é a que enxerga em Marx um pensador que acumula
o pensamento aberto da juventude com o pensamento aprofundado
d~ maturidade, com uma continuidade de propósitos desde o começo
at_é o final de sua obra. A segunda delas é a que compreende o pensa-
mento de Marx a partir de uma cisão entre suas reflexões do início de
suas obras - o dito jovem Marx - e sua obra de maturidade, na qual,
então, estaria o cerne do próprio marxismo. Para esta última visão, o
jovem Marx ainda não é marxista.

Tais metodologias de compreensão do pensamento de Marx


resultam em dois modos distintos de interpretar a utopia marxista.
No caso dos que consideram o pensamento marxista um processo
continuado desde o início até o final de sua obra, há uma abertura
para um grande humanismo que resultará numa aceitação da uto-
pia como horizonte do futuro socialista apregoado por Marx já nas
suas obras de juventude.
iAobra de Marx não está fundada sobre uma "dualidade" de
que o autor, por falta de rigor ou por confusão inconsciente,
não teria percebido; pelo contrário, ela tende para um monismo
rigoroso no qual fatos e valores não estão "misturados'' , mas
organicamente ligados ao interior de um único movimento
UTOPIA E DIREITO

de pensamento, de uma "ciência crítica", em que a explicação


e a crítica do real estão dialeticamente integradas. ~j

Na segunda vertente, que cinde o jovem Marx do pensador da


maturidade, o terna da utopia será mais estrito. Abandonando qualquer
possibilidade de compreensão alargada do tema da transformação da
história, esta visão enxergará na utopia um produto derivado e tangencial
de um dado estrutural, que é a própria transformação das relações pro-
dutivas. Dado que a revolução que encaminha ao socialismo é resultante
da lura de classes, a utopia somente poderá ser entendida como um
espectro ideológico estruturalmente vinculado à própria luta.
N o período de A ideologia alemã Marx estabelece o princípio
de determinação imediata entre a base econômica e a superes-
trutura, resultando disso que esta última aparece como uma
"emanação direta" das relações econômicas. Ele estabelece tam-
bém o princípio do primado das forças produtivas sobre as
relações d e produção, segundo o qual são as forças produtivas
que "comandam" o desenvolvimento histó rico.

Pois bem , essas teses não encontram sustentação quando Marx


realiza a análise científica do modo de produção capitalista.
Embora a antiga concepção subsista e con tinue a atravessar a
trama científica que Marx tece, é justo considerar que uma
retificação em sua concepção do materialismo histórico está se
operando - particularmente em O Capital.23

Não se pode dizer, contudo, que haja uma m era oposição entre
aqueles que, por serem humanistas, divisam uma utopia alargada ao
marxismo e aqueles que, por serem estrururalisras, rejeitam a aborda-
gem do tema da utopia. Isto porque Ernst Bloch, que é quem, dentre
os marxistas, mais se dedica ao aprofundamento do tema, não pode

22 Lôwv, Michael. A teoria da re voluçao no jovem Marx. Petrópolis, Vozes, 2002, p. 38.
23 NAVES, Márc io Bilharinho . Marx. Ciência e Revolução. S ~ o Paulo, Moderna/Uni c amp,
2000, p. 79 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

ser encaixado facilmente em nenhuma dessas divisões estanques do


marxismo e, ao mesmo tempo em que alarga a compreensão da trans-
formação social, buscando sujeitos revolucionários e inspirações até
mesmo na religião e nas heranças dos ideais jurídicos, também é bas-
tante estrito e cônscio de que a concretude da utopia somente se dá
com o socialismo que rompa os vínculos estruturais da sociedade capi-
talista. Há um possível humanismo dentro de uma visão estrutural,
bem como o humanismo marxista não é someme um vago comboio
de idéias múltiplas e incongruentes.

A divisão de interpretações entre um marxismo "aberto",


humanista, e um estrito, vinculado às estruturas econômico-produti-
vas, embora de caráter didático, revela os horizontes da utopia jurídi-
ca do marxismo. No humanismo que junta, na mesma trilha, o jovem
Marx e o pensador maduro, 24 é possível que se compreenda o proces-
so de transformação social como uma evoiução que possa se valer até
mesmo das instituições político-jurídicas burguesas para sua própria
destruição. A social-democracia estaria nesta vertente. Surpreenden-
temente, o stalinismo perfilha esta mesma perspectiva, na medida em
que há de considerar o uso do Estado e da ditadura do proletariado -
um tema bastante marginal no próprio Marx - como elementos de
consecução da luta socialista.

Na segunda vertente, estrutural, a revolução em Marx é vista


como ruptura, isto é, como superação das condições econômicas,
políticas e sociais capitalistas. Representa dizer, a partir desta pers-

24 "Gramsci definiu, numa fórmula muito feliz , o marxismo como um historicismo absoluto e um
humanismo absoluto. A leitura de O Capital - com a condição, bem entendido, de se ler o que
está escrito nele, e não um suposto 'discurso silencioso', 'reconstituído', 'apesar da letra de
Marx' - confirma inteiramente essa definição. [...] Parece-nos que os principais momentos do
humanismo em O Capital são: a) o desvendamento das relações entre os homens atrás das
categorias reificadas da economia capitalista; b) a crítica da 'desumanidade' do capitalismo;
c) o socialismo como possibilidade objetiva de uma sociedade onde a produção é racional-
mente controlada pelos homens". LOwv, Michael. Método dialético e teoria política. Rio de
janeiro, Paz e Terra, 1978, pp. 62 e 63.
ÜTOPIA E DIREITO

pectiva, que o socialismo não arrasta consigo as instituições que são


própri.~s ~o capitalismo e.que, portanto, não se dá um processo con-
tinuado e indefinido de transfo.rmação do sistema capitalismo a par-
tir de si mesmo. Pelo contrário, tal visão estrutural acentua a luta de
classes como elemento emancipador e revolucionário, que suprima
o Estado e suas instituições. 25

O marxismo jurídico desde cedo se dividiu entre aqueles que


perfilhavam a alternativa institucional - os que concebiam um socia-
lismo de Estado, baseado no direito - e aqueles que lançavam mão de
uma visão socialista como a negação do capitalismo e de todas suas
instituições, inclusive as jurídicas. Na União Soviética, este debate ocu-
pou o centro das reflexões jurídicas nas décadas de 1920 e 1930, opon-
do Stutchka e, principalmente, Vichinscki, de um lado, a Pachukanis,
de outro, tendo os dois primeiros o apoio do stalinismo, porque apre-
goavam uma fun ção jurídica revolucionária, ao mesmo tempo em que
defendiam a existência de um Estado socialista e, portanto, davam
margem à ditadura de Stalin.

Logo se percebe, desta divisão, que o tema da utopia no marxis-


mo não comporta uma dicotomia clara. Pachukanis, que liderava uma
interpretação jurídica do marxismo muito próxima daquela exposta
por Marx em O Capital, apresentava um horizonte utópico (e
"humanistà') bem mais largo que os stalinistas que defendiam o uso
do Estado e do direito . Bloch, o campeão do humanismo marxista,
que em Direito Natural e Dignidade Humana faz suas as visões jurídi-

25 '\"Isso significa que a ideo logia prolet~ria não é o diretamente oposto, a inversão, o reverso da
.

; ideologia burguesa, mas é uma ideologia tota lmente diferente, que leva e m si outros valores,
·: que é crítica e revolucionária. Porque é, já agora, apesar de todas as vicissitudes de sua história,
portadora desses valores, já agora realizados nas o rganizações e nas prâticas de luta o perária,
pelo que a ideologia proletária antecipa o que serão os aparelhos ideológicos do Estado da
transição socialista, adianta, pela mesma razão, a supressão do Estado e a supressão dos
aparelhos ideológicos de Estado no comunismo". A LTHUSS{K, Louis. Aparelhos ideológicos de
· Es.L!Jdo. Rio de Janeiro, Graal, 1985, p. 128.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

cas de Pachukanis, é um defensor da utopia extrema do fim do Estado


e de qualquer forma de dominação institucional sem ser, no entanto,
um_estrito anaiista do Marx da maturidade contra o jovem Marx.

A TEORIA DA REVOLUÇÃO DE MARX


Há uma teoria da revolução em Marx que se gesta desde suas
primeiras obras e que se constitui no primeiro ponto - para dentro e
depois da divisa fundamental da transformação - em que começam as
divisões e multiplicidades do marxismo.

Nas obras finais da sua juventude, marcadamente na Ideologia Ale-


mã, Marx já aponta para uma teoria revolucionária de acento político-
econômico, fugindo de qualquer armadilha humanista de tipo
institucionalista-liberal. Marx, desde o início, afasta-se da compreensão da
revolução como mera alteração política e jurídica. No entanto, A Ideologia
Alemã e as primeiras obras são fundadas numa expectativa de que as con-
tradições do capital levariam a oposição de classes a uma extrema tensão e
daí necessariamente à ruptura da dominação econômica.

Nas obras de sua maturidade e, em especial, em O Capita!, Marx


estabelece um outro nív~l de abordagem a respeito da relação entre
forças produtivas e relações de produção (procedendo a uma retifica-
ção, segundo as palavras de Naves). Ao invés de propor um procedi-
mento mecânico no qual a mudança dos meios de produção gera ne-
cessariamente a mudança do sistema econômico, Marx propõe uma
dialética entre forças produtivas e relações de produção. As relações
de produção capitalistas geram forças produtivas específicas, e a tran-
sição ao socialismo é ao mesmo tempo a ruptura com as forças produ-
tivas capitalistas e sua relação de produção. 26

26 Sobre as divergências em relaçáo à teoria da revolução no itinerário do pensamento de Marx,


ÜTOPIA E DIREITO

O papel das superestruturas, dentre as quais o direito, nesta pro-


posta da análise marxista, é bastante importante. O direit_o_não se presta
apenas como element_p que se r~i~eraria tanto nó capitalismo quanto
em qualquer sociedade pós-revolucionária, de sorte que até mesmo se
pudesse esboçar ~lgum socialismo jurídico dentro do capitalismo. Pelo
contrário, o papel exercido pelo direito no capitalismo é vital, na me-
dida em que, por meio das categorias jurídicas, do sujeito de direito e
do contrato, por exemplo, dá-se a própria estruturação do sistema.
Assim, as forças produtivas e a superestrutura, como o direito, hão de
~-e revelar necessárias e dialéticas em face das relações de produção,
implicando-se mutuamente. A proposta de Pachukanis, d e considerar
o fim do capitalismo o fim do direito, explica-se por essa vertente de
interpretação do ma~xismo, mais fiel a O Capital.

O resultado dessa visão dialética entre forças produtivas e rela-


ções de produção é o extremo refinamento teórico da posição de Marx
na maturidade, em O Capital, tendo em vista que tal implicação mú-
tua abre campo à ação revolucionária, e não ao mero mecanicismo da
evolução histórica. Numa visão mecanicista do pensamento de Marx,
p~~er-se-ia interpretar que o mero agravamento das contradições le-
vasse ao fim do capitalismo, por: fo rça de uma instabilidade inerente às
relações de exploração do capital. A perspectiva econômica de Marx,
no entanto, se baseia em outros pressupostos e, nessa dialética, conduz
sua interpretação da revolução para os quadrantes da luta de classes.
Nesse ponto, revela-se um importante humanismo, de nível profun-
do, na perspectiva política, econômica e filosófica de M arx: não se

Ca rlos Nelson Coulinho enxerga duas possíveis visões paradigmáticas, urna mais apropriada
ao jovem Marx, outra ao Marx maduro, respectivamente: a revolução como ruptura imediata
ou como um processo contínuo, ligando-se ao problema da tomada do poder do Estado e de
seu perecimento. "A depender do modo 'restrito' ou 'amplo' de conceber o Estado, resulta -
na história da teoria política marxista - a e laboração de do is diferentes paradigmas de revolu-
ção socialista, que definiria esquematicamente como 'explosivo' e 'processua l"'. CovnNHO,
Carlos Ne lson. Marxismo (' política. A dualidade de poderes e ou1ros ·ensaios. São Paulo,
Cortez, 1996, p. 13.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

trata de considerar a revolução como escatologia mecânica e necessá-


ria a partir de dados pré-estabelecidos, mas sim como luta e práxis
transformadora. A revolução, pois, se faz e não se espera.

A DIALI!TICA DO PROGRESSO

É possível identificar, permeando a obra de Marx, inúmeras re-


flexões a respeito do sentido da história. Revelam as possíveis diferen-
ças e ambigüidades de interpretação em relação ao progresso. Tradici-
onalmente, é contra Engels que se volta a crítica do século XX, acu-
sando-o de, na parte final do século XIX, ter convertido o marxismo
numa espécie de positivismo ou num tipo de determinismo similar ao
dos estudiosos da natureza. Engels seria a base do mecanicismo que
depois foi denominado por materialismo vulgar.

Há também, no entanto, uma dialética conflituosa do conceito


de progresso não só em Engels ou nos intérpretes do marxismo, mas
também dentro da própria reflexão de Marx. Porém, tal dialética não
se resolve facilmente pela oposição do jovem Marx ao pensador da
maturidade, porque, atravessando sua obra, está sempre presente o
problema da determinação do sentido histórico e da forma de apreci-
ação da posição do capitalismo em face de outros modos de produção.

Em grande parte de sua obra, Marx se pronuncia por uma posi-


~S:~.SU!b~n:<t eII1 relação .ao sentido da história e do progresso, o_ que
encaminha sua análise para a refutação da necessariedade da evoluç_ão
, e do progresso. No Manifesto Comunista, exprime claramente a possi-
bilidade de o conflito de classes e a evolução das forças produtivas
cl~generarem. A alternativa da superação dos conflitos, portanto da
revolução, não é o único pa;so da história, nem está garantida por leis
econômicas necessárias, havendo a possibilidade do perecimento:
UTOPIA E DIREITO

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mes-


tre de corporação e companheiro, numa palavra, opressores e
oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra
ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que ter-
minou sempre, ou por uma transformação revolucionária da
sociedade inteira, ou pela destruição das suas classes em luta. 27

Expressa assim Marx a revolução como possibilidade, _e r.ião como


necessidade histórica. Ao mesmo tempo, não se trata apenas de dizer
que aquilo que revoluciona é, necessariamente, um progresso no sen-
(_fdo de conquista à qual não se oponha crítica. Na análise da formação
econômica capitalista, Marx há de verificar, ao mesmo tempo, o pro-
gresso e a decadência, a evolução e o retrocesso. O fluir da história e
da revolução, pois, não é necessariamente o galgar do melhor. O capi-
talismo, desse modo, como revolução das estruturas produtivas feu-
dais, é ao mesmo tempo a destruição da velha dominação e a ocorrên-
cia de uma nova, expressando, historicamente, o melhor e o pior que a
história já possa ter conhecido, ao mesmo tempo.
A burguesia desempenhou na história um p apel eminente-
mente revolucionário. Onde quer que tenha conquistado o
Poder, a burguesia calcou aos pés as relações feudais, patriar-
cais e idílicas. Todos os co~plexos e variados laços que prendi-
am o homem feudal a seus "superiores naturais" ela os despe-
daçou sem piedade, para só deixar subsistir, de homem para
homem, o laço do frio interesse, as duras exigências do "paga-
mento à vista". [... )A burguesia só pode existir com a condi-
ção de revolucionar i~ces~antemente os instrumentos de pro-
dt:iç~o; por conseguinte, as relações de produção e, com isso,
~odas as relações sociais. [... ] Dissolvem-se todas as relações
sociais antigas e cristalizadas, com seu cortejo de concepções e
de idéias secularmente veneradas; as relações que as substitu-

27 MARX, Karl e ENGELS, Friedrich. Obras Escolhidas. Vol. 1. São Paulo, Alfa-Ômega, s/d, p . 22.
AfYSSON LEANDRO MASCARO

em tornam-se antiquadas antes de se ossificar. Tudo que era


sólido e estável se esfuma, tudo o que era sagrado é profanado,
e os homens são obrigados finalmente a encarar com serenida-
de suas condições de existência e suas relações recíprocas. 28

A possibilidade de entender o modo de produção capitalista como


sendo, ao mesmo tempo, o ápice do melhor e do pior na história, dá
margem a uma compreensão do progresso em Marx como evento aber-
to, não vinculado aos determinismos evolucionistas que foram típicos
no século XIX. Antecipando, de certa forma, a crítica ecológica ao
capitalismo, Marx aponta em O Capital:
Além disso, todo progresso realizado na agricultura capitalis-
ta não é somente um progresso na arte de exaurir o trabalha-
dor, mas também na arte de exaurir a terra, e cada passo que se
dá na intensificação de sua fertilidade dentro de um período
de tempo determinado é, por sua vez, um passo dado no es-
gotamento das fontes perenes que alimentam tal fertilidade.
Este processo de aniquilação é tão mais rápido quanto mais se
apóia um país, como ocorre por exemplo com os Estados Uni-
dos da América, sobre a grande indústria, como base de seu
desenvolvimento. Portanto, a produção capitalista só sabe de-
senvolver a técnica e a combinação do processo social de pro-
dução esgotando ao mesmo tempo as duas fontes originais de
toda riqueza: a terra e o homem. 29

Ao mesmo tempo em que se revela a abertura para o progresso e


a evolução histórica como possibilidade, em várias passagens, desde as
obras da juventude até as da maturidade, Marx deixa entrever uma
espécie de valoração positiva do progresso, podendo-se perceber, ain-
da, um papel generoso ao capitalismo nesta evolução. Sempre há de se
ressaltar, neste sentido, a admiração de Marx por Darwin, o que daria

28 lbid , pp. 23 e 24.


29 MAKX, Carlos. E/ C<ipital. Vol. 1. México, Fondo de Cultura Económica, 1982, p. 423.
UTOPIA E DIREITO

margem a uma inspiração do progresso histórico, em Marx, bastante


similar a uma evolução da natureza. Isto não representa dizer, no en-
tanto, que Marx seja um positivista no sentido próprio do termo, nem
tampouco um ensaísta apologético do futuro. A aposta no futuro. soci-
alista parece se revelar, muito mais acertadamente, num cântico de
_lOuvor à luta pelo fucuro, o que representa, ainda ao final, dizer que a
~istória é aberta e o progresso é possibilidade. A luta socialista é que
seria a responsável por sua concretização.
Marx desautoriza, assim, a idéia de que as forças produtivas da
sociedade comunista constituam-se no interior do capitalismo,
que elas possam ser as mesmas forças produtivas do capitalis-
mo, que, por força das contradições inerentes a esse modo de
produção, vão se tornando cada vez mais socializadas, cabendo
à sociedade comunista tão-somente receber essas forças produ-
tivas completamente adequadas a ela, e as quais, libertadas das
relações de propriedade (capitalistas) que as entravavam, po-
dem agora expandir-se livremente. Ao contr4!"io dessa~oncep­
ção mecanicista e evolucionista do processo histórico, as análi-
. ses de Marx permitem apreender que as forças produtiv~~ de-
pendem sempre da luta de classes, que elas nunca se desenvol-
vem independentemente das relações de produção. 30 . ·

Um passo bastante favorável à inexorabilidade do progresso, situ-


ando-o num âmbito similar ao da natureza, ocorrerá, um pouco mais
tarde, com o pensamento de Engels. A admiração de Marx por Darwin
é o pano de fundo p ara posições que sustentarão um certo
evolucionismo da história - e, portanro, o determinismo da revolução
socialista - que não foram típicas apenas de Engels, mas também de
personagens dos primeiros tempos do marxismo como Kaursky e
Lafargue, genro de Marx.

30 NAves, Márcio Bilha rinho. Marx. Ciência e Revolução, op. cit. , p. 60.
ALYSSON LEANDRO M ASCARO

Essa aproximação entre a concepção da história elaborada por


Marx e as idéias de Darwin (abusivamente deslocadas da bio-
logia para as ciências sociais) tinha como conseqüên cia um
excessivo fortalecimento da continuidade na história (o novo
não irrompia subversivamente, era apenas um desdobramen-
to"natural" do que já existia, quer dizer, era uma decorrência
do crescimento do "embrião"). 31

É de se ressaltar, no entanto, que, se a posição dos marxistas sobre


o pensamento de M arx, logo nos tempos posteriores de seus escritos,
era a de uma inexorabilidade da revolução, posteriormente tal confi-
ança ou se refina ou se transforma, mesmo, em uma espécie de crítica
ao progresso. Rosa Luxemburgo, ao se pronunciar a respeito das alter-
nativas da revolução ou da barbárie,32 é o exemplo cristalino de que o
marxismo não-mecanicista não prosseguiu acompanhando a interpre-
tação da inexorabilidade histórica da revolução, que, d e resto, não se
revelou a única nem a melhor leitura do próprio Marx.

A UTOPIA EM MARX
A utopia em Marx é, mais que um tema, um resultado implícito
- e raras vezes por ele próprio explicitado - de seu pensamento e do
apontamento de sua práxis política.33 Por isso, não é um sistema fe-

31 Ko NmR, Lea ndro. O futuro da filosofia da práxis. Rio d e Jane iro, Paz e Terra, 1992, p. 65.
32 "Mesmo em obras de fo rte c aráte r economicista co mo Reforma social ou revolução?, A ac umu·
lação do capital e a Anticrítica, e m que insiste na teoria do colapso, Luxemburg repete que o
socialismo não resulta automaticamente das contradições objetivas do capitalismo, que é
necessá rio o 'conhecimento subjetivo, po r parle da classe operária, da ine lutabilidade da
supressão da economia capita lista por meio de uma revolução (Umwa/zung) social'. O u seja,
e la compreendeu, desde o início de sua carreira política, que a economia por si só não levará
ao socialismo*. LOUREIRO, Isabel Maria. Rosa Luxemburg. Os dilemas da ação revolucionária.
São Paulo, Ed. Unesp, 1995, p. 33.
33 "Retomando a expressão de Marx no Dezoilo Brumário, é claro que os homens estão limitados
pela s condições herdadas do passado, no entanto, eles fa zem a histó ri a, não fazem apenas
repetir o que se sabe, cada geração fa z algo diverso . [. .. J Trata-se da a ção em que os homens
são capazes de criar o novo, os projetos iluminadores da c riação de uma nova sociedade . São
os so nhos de sonha r acordado que propici11m isto, são as utopias". LOPES, José Re inaldo de
Lima. Direilo e lransformação social. Belo Horizonte, Nova Alvorada, 1997, p. 62.
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UTOPIA E DIREITO

chado, e sim uma abertura decorrente da tomada de posição em face


da sociedade e da história.

Pode-se perceber, no itinerário do pensamento de Marx, fases


bastante daras quanto à proposta da utopia. Em suas obras iniciais, o
socialismo utópico é-lhe uma referência fundamental, ainda que seja,
no mais das vezes, como nas suas obras da década de 1840 - o Mani-
festo Comunista, por exemplo -, para negá-lo em face de uma suposta
científicidade revolucionária. O pensamento de Marx, nesta fase, opon-
do um socialismo científico ao até então existente socialismo utópico, é
o que anima Engels até o final de sua vida a manter e a aprofundar a
cisão entre essas duas correntes do socialismo.

No entanto, na fase madura do pensamento marxista, há um salto


qualitativo que, se representa de um lado abandonar a temática explíci-
ta da utopia, parece, pelo contrário, melhor delineá-la na medida em
que ela passa a ser a resultante necessária e óbvia do processo de crítica
do capital e de revolução social. Deixando de lado o binômio socialismo
utópico versus socialismo científico, Marx mergulha estruturalmente nas
entranhas do capital para analisar as formas de sua superação numa
economia que seja resultante da mudança das relações de produção e
do desenvolvimento das forças produtivas. É neste ponto que a utopia
em Marx, estando encoberta, mais se ressalta: as contradições do capita-
lismo restam, em seu pensamento, insolúveis. Assim sendo, há um im-
pulso dialético de superação que arrasta a ação político-revolucionária a
um patamar de expectativa e de delineamento de um futuro de solução
dos impasses e da insolubilidade do capitalismo. 34

D emonstra-se, assim, que Marx rechaça o socialismo utópico não


pela fronteira final a ser estabelecida, mas sim pelo déficit de análise

34 Chavance nomeia o pensamento de Marx como "dialética teleológic a". C HAVANCE, Bernard.
•La dialectique utopique du capitalisme et du communisme c hez Ma rx". ln Marx en perspective.
Paris, École des hautes études en sciences socia les, 1985, p. 130.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

do presente e dos meios e alternativas para a saída do capital em dire-


ção à sociedade socialista. Comungando de um mesmo fim, não co-
munga, no entanto, dos meios, nem tampouco da ingênua esperança
no amanhã. Por isso, no pensamento de Marx, o socialismo utópico é
muito mais um esboço incomplero, que deve ser rechaçado apenas
pelas suas carências e suas fragilidades, do que propriamente um pro-
jeto singular que devesse ser tomado na conta de um opositor do soci-
alismo científico. Marx entende que falta ao socialismo utópico não
bons ideais e horizontes, mas sim a crítica para que se chegue a estes.

Numa análise bastante peculiar a respeito da questão da utopia


em Marx, Miguel Abensour aponta para o fato de que o tema da
utopia não deve ser analisado, no pensamenro marxista, a partir da
oposição entre socialismo utópico e socialismo científico, pois que, na
verdade, Marx perfilha-se junto dos utópicos contra a ciência burgue-
sa, que é do presente e contra a transformação futura, apenas diver-
gindo dos utopistas na medida em que estes, faltando-lhes o entendi-
mento das contradições profundas do capitalismo, apontam respostas
parciais ou fantasiosas para a consecução do socialismo. Assim sendo,
melhor que a oposição entre socialismo utópico e ciendfico, é, para
Abensour, a diferença entre utopia parcial e utopia total, representan-
do o marxismo esta última vertente:
Marx coloca um ponto final à utopia da burguesia enquanto
classe revolucionária; em resumo, ao projeto do Estado mo-
derno. Ao mesmo tempo enuncia a distinção cardinal revolu-
ção parcial/revoluçáo total. A utopia está do lado da utopia
parcial, a emancipação humana, do lado da revoluçáo radical.
"Não é a revolução radical, a emancipação geral humana que é
um sonho utópico para a Alemanha, mas an tes a revolução
parcial, a revolução somente política, que deixa em pé os ali-
cerces da casa". Por aí passa um eixo fundamental da crítica
das utopias. Essa distinção se aplicará a diferentes objetos, se
UTOPIA E DIREITO

enriquecerá de múltiplos conteúdos. Ela constitui uma das


invariantes da teoria radical. Está aí o lugar do corte original e
não no par utopia/ciência. 35

A oposição utopia parcial versus utopia total ao invés de socialis-


mo utópico versus socialismo científico dá conta de entender que o
marxismo não é tão distante de toda a herança utópica que os séculos
XVIII e XIX produziram. A busca por considerar o marxismo um
determinismo mecanicista que se oponha a qualquer utopia é uma
tentativa de aproximá-lo da esterilidade de propósitos futuros da bur-
guesia, aponta Abensour.

Restam débeis, assim, as tentativas de furtar do pensamento de


Marx uma expressão utópica. Henri Maler ressalta o fato de que a
trajetória dos textos de Marx, desde a juventude até O Capital, aponta
para uma problematização crescente - e não simplesmente para uma
oposição binária - entre as questões da utopia, da crítica, da ciência e
da ideologia. 36 A tarefa de desbastar a posição específica do marxismo
quanto à utopia do socialismo e do comunismo será, pois, muito maior
do que a de situá-lo no rótulo dado por Marx e Engels no Manifesto
Comunista e mantido por este no seu livreto clássico Do socialismo
utópico ao socialismo científico.

ENGELS E O PROJETO UTÓPICO DO MARXISMO

De Engels partirá, então, a consolidação das divisas políticas que


vieram a orientar a escrita da história da utopia por parte do marxis-
mo. Na sua obra Do socialismo utópico ao socialismo científico, uma das
mais populares e divulgadas de toda a literatura marxista, pontificou
Engels as diferenças entre sua visão do marxismo para aquela dos en-

35 ABENSOUR, Miguel. O Novo Espirita Utópico. Campinas, Editora da Unicamp, 1990, p. 20.
3 fi MAlEK, Henri. Congédier L'Ulopie? L'utopie selon Karl Marx, op. cit., pp. 15 e seg.
ALYSSON l.EANoRO M ASCARO

tão chamados socialistas utópicos. Tal qual apontará mais tarde Ernst
Bloch, Engels enxerga um primeiro movimento popular de utopia -
diverso e mesmo anterior àquela utopia constituída meramente pelos
sonhos dos pensadores burgueses como Morus - em personagens do
povo como Thomas Münzer, desembocando todo esse processo nas
lutas socialistas do século XIX.
E se, em termos gerais, a burguesia podia arrogar-se o direito
de representar, em suas lutas com a nobreza, além dos seus
interesses, os das diferentes classes trabalhadoras da época, ao
lado de todo grande movimento burguês que se desatava,
eclodiam m ovimentos independentes daquela classe que era o
p recedente mais ou menos desenvolvido do proletariado mo-
derno. Tal fo i na época da Reforma e das guerras camponesas
na Alemanha a tendência dos anabatistas e de Thomas Münrer;
na grande Revolução Inglesa, os "levellers", e n a Revolução
Francesa, Babeuf. Essas sublevações revolucionárias de uma
classe incipiente são acompanhadas, por sua vez, pelas corres-
pondentes manifestações teóricas: nos séculos XVI e XVII
aparecem as descrições utópicas de um regime ideal d a socie-
dade; no século XVIII , teorias já abertamente comunistas,
como as de Morelly e Mably. A reivindicação da igualdade
não se limitava aos direitos políticos, mas se estendia às con-
dições sociais d e vida de cada indivíduo; já não se tratava de
abolir os privilégios de classe, mas de destruir as próprias dife-
renças de classe. Um comunismo ascético, ao modo espartano,
que renunciava a todos os gozos da vida: tal foi a primeira
forma de manifestação da nova teoria. Mais tarde vieram os
três grandes utopistas: Saint-Simon, em que a tendência con-
tinua ainda a se afirmar, até certo ponto, junto à ten dência
proletária; Fourier e Owen, este último , num país onde a pro-
dução capitalista estava mais desenvolvida e sob a impressão
engendrada por ela, expondo em forma sistem ática uma série
----·-- - - -

UTOPIA E DIREITO

de medidas orientadas no sentido de abolir as diferenças d e


classe, em relação direta com o m aterialismo francês.37

Ao fazer a reminiscência da utopia voltar a Münzer, a Rousseau e


a Saint-Simon, por exemplo, Engels reitera uma história que não se
restringe apenas à linha dos que propugnam o não-lugar, a utopia
apenas ideal, como no caso de Thomas Morus ou Campanella. />is
utopias socialistas apresentam ºl1tras facetas, ainda _que seu juízo sobre
elas seja o d~ lhes considerar as insuficiências para a verdadeira trans-
formação histó~ico-social. Neste sentido, a avaliação de Engels será
próxima, posteriormente, da de Bloch, valorizando a prática da uto-
. pi~ ~-ainda que messiânica, no caso de Münzer - mais do que a ~era
. - ~~grização dos filósofos da utopia.: '-.. h~ ' .. , ,, , . .. 1 .~, · ' · \, •. ; , ,.e>) .

A crítica engelsiana, no entanto, é implacável com rodas essas uto-


pias qu·e, mesmo sendo redamàdamente socialistas, -~~:r-llo- as de Sainr-
Simon, Fom~~r .e 0-w.eri, .c~r:_eciam de._re;i_lidad~ .e. êkerítica p_rofunda
_~o 4<?fi.iinio capitalista.
Traço comum aos três é que não atuavam como representan-
tes dos interesses do proletariado, que entretanto surgira como
um produto hist6rico. Da mesma maneira que o s Mo. ' ~ .- - o

enciclopedistas, n ão se' propõem em~ncipar primeiramente


uma classe determinada, mas, de chofre, toda a humanidade .
• _.,.__ ·-·~·~ •• J • ·' . ' ' •

E assim como eles~ pretendem instaurar o império da razão e


da justiça eterna. 38

Por isso, para se furtar de uma espécie de utopia carente de reali-


dade e de constatação da exploração de classe - carente, pois, de
dialética e crente num tipo de universalidade salvadora de lembrança
iluminista - , ~ngels assufl2_e.Rª'-q_9 _m.arxismo...não uma .dissonânç;ia _4()s

37 EN GELS, Friedrich. "Do soc ial ismo utópico ao socialismo c ie ntífico". ln MA~ X, Ka rl e ENGELS,
Friedric h. Obras Escolhidas. Vol. 2. São Pau lo, Alfa-Ómega, s/d, p. 304.
38 ibid., p. 305.
ALYSSON LEANDRO M ASCARO

propósitos, mas sim uma radical separação da constatação das causas


da exploração e dos meios de sua transformação.
D esde que existe historicamente o modo capitalist a de pro-
dução, houve indivíduos e seitas inteiras diante dos quais se
p rojetou mais ou menos vagamente, como ideal futuro, a apro-
priação de todos os meios de produção pela sociedade. Mas,
para que isso fosse realizável, para que se convertesse numa
necessidade histórica, fazia-se preciso que se dessem antes as
condições efetivas para a sua realização. A fim de que esse pro-
gresso, como todos os progressos sociais, seja viável, não basta
ser compreendido pela razão que a existência de classes é in-
compatível com os ditames da justiça, da igualdade etc; não
basta a simp les vontade de abolir essas classes - mas são ne-
cessárias determinadas condições econômicas novas. 39

'<Pode-se dizer, assim, que Er~gels reclama, para si e para Marx, não
uma negação da utopia, ~as o seu afastamento, ~~quanto ciência en~ -
cerrada em si mesrhâ, de especulaçã~ ·· d~ futur.~.. IT1elhor. Para cu~~
p(i.r,.os propósitos ~:la·-~topia, ~~ria preciso destruir o método utópico.

39 lbid., p. 332.
CAPÍTULO 3

PSICANÁLISE E UTOPIA

Freud representa a grande desconfiança na razão, mas ao mesmo


tempo é uma esperança, das derradeiras, na própria razão. Esta
dicotomia freudiana é, diretamente, a responsável pela sutil peculíari-
dade do freudismo: negando ao homem pleno domínio racional so-
bre si mesmo - negando racionalidade plena à civilização - aposta, no
entanto, na razão e na civilização como emancipadoras daquilo que o
homem ainda não logrou. O estatuto da utopia no freudismo, assim ,
revela-se numa peculiar dialética que muito lembra a do marxismo: a
crítica da razão é ainda a aposta na razão; a crítica da utopia é ainda a
aposta na utopia.

O freudismo, sendo um movimento de volta às paragens do in-


consciente, representa um afastamento substancial da tradição do
pensamento moderno, iluminista, que enxerga nos limites da razão
os quadrantes da humanidade. O freudismo é a tentativa veemente
de explicar a humanidade mais fora q ue dentro da racionalidade,
sejam as ações humanas, sejam suas dores, seus juízos e seus valores.
M as Freud não deixa de ser, ao mesmo tempo, um discípulo tardio
d o Iluminismo, numa época em que a desconfiança nas Luzes já ia
chegand o aos extremos: apontar o inconsciente é caminhar, com os
passos da razão, pelo grande mundo do irracional, na ten tativa de
racionalizá-lo. O sapere aude dos iluministas ainda pode ser o lem a
do freudismo.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

FREUD: DESEJO E REPRESSÃO

Poderão os estudiosos filiar Freud ao Iluminismo não só por con-


ta da sua tentativa de racionalização do inconsciente, mas, ainda mais
profundamente, em razão da sua própria posmlação da estrutura des-
te mesmo inconsciente: Id e superego, como as instân cias contrapos-
tas do prazer e da repressão, são conceitos correlatos, no esquema
freudiano, a certas dicotomias do pensamento iluminista - que de al-
gum modo até o presente dão sustentação às perspectivas do liberalis-
mo-, como as divisões entre ordem e natureza ou então entre liberda-
de total do indivíduo versus liberdade social, contratual.

A partir deste esquema potencialmente iluminista, p oder-se-ia


identificar um fundamento teórico ao freudismo na sua insistência no
indivíduo como medida do gênero humano, olvidando, como tam-
bém o faz o Iluminismo, partes do problema social subjacente à hu-
manidade. No entanto, não se trata o pensamento freudiano d e um
acento ao indivíduo como centro exclusivo da personalidade, porque
a estrutura que se desvenda ao próprio indivíduo é eminentemente
social. Prazer ligado à natureza e repressão ligada à sociedade dão a
dimensão de um recorte do pensamento freudiano que é só provisori-
amente individual, porque se trata, em verdade, de uma dialética en-
tre o indivíduo e os outros. Depois do momento da análise individual,
o freudismo passa à análise da própria sociedade: a dicotomia entre
repressão e desejo, superego e Id, é uma dicotomia mais profunda e
problemática que aquela entre indivíduo e sociedade, que de resto é
resolúvel por analogias não muito implausíveis.40

40 "Esse é o empreendimento que Fre ud retoma na virada da década de 1920 para a de 1930 por
me io de três escritos que colocam a questão do destino do homem por intermédio do das
comunidades humanas: O futuro de uma ilusão (1927), O mal-estar nil cultura (1929), e Por
que a guerra? (1 933). [...] O futuro de uma ilusão, que ina ugura a trilogia fre udia na, coloca o
princípio fundador que é o vetor das e laborações 'sociológicas' da psicanálise: o desenvol-
vimento da civilização está submetido ao mesmo processo que rege o da gênese do eu . Como
··· ·· ·-.......,,....__·~-----------------

UTOPIA E DIREITO

No campo de estruturas profundas da psique, que se revelam


cindidas entre prazer e repressão, é que reside o cerne de um grande
debate, cujas implicaçóes políticas e filosóficas são vastas. Freud postu-
la o prazer - a grande região da personalidade denominada Id - com o
o arquétipo mais p rofundo da psique, cujas raízes talvez se encontrem
no nível natural ou biológico do homem. Em contraposição à parte da
personalidade que busca o prazer, revelam-se, na evolução individual,
o surgimento e a formação de urna instância de repressão que limita a
vontade do prazer e sua busca, o superego. Tal instância repressora,
externa ao indivíduo , introjeta-se nele de tal modo que a personalida-
de passa a ser um centro próprio de obstacularização, negando a bus-
ca pelo prazer não mais pela heteronomia de origem, mas por uma
espécie de autonomia casuadora.4 1

Este esquema d as contradições da personalidade, cujos funda-


m entos talvez estejam muito m ais na conta da natureza e da sociedade
- prazer e realidade -, resolve-se em Freud pela frágil instância do
consciente, na tentativa d e lograr compatibilizar certa dose de prazer
com certa dose de repressão, num jogo que é tormentoso ao ego. O
consciente, pois, é uma esfera de acordos, de concessões e de capitula-
ções, de tal sorte que a racionalidade - que tem aí seu campo imediato

o eu, a civilização tem de fato dois objetivos: controlar as excitações externas (isso que r dizer
domina r as forças da natureia) e regu lar as tensões intern as (entre seus membros) inere ntes à
sua própria organização. Este princ íp io pre lim inar e stando reconhecido , Freud faz uma
constatação surpreende nte : os homens não podem nem s uportar a c ivil ização nem viver sem
ela, eles devem e sta r juntos/sep a radamente ." REv- FLAuo, Henry. "Os fundamentos
metapsicológicos de O m al-estar na cultura• . ln Em torno de O mal-estar na culwra, de Freud.
S~o Paulo, Escuta, 2002, p. 8.
41 "Fre ud adota uma tripartição da mente: o ego que é o nosso núcleo consciente; o id, ou seja,
o 'd epósito' inconscie nte dos impu lsos reprimidos; e o superego, representante do s p rincípi-
os éticos (essa tripartição lembra de longe a platônica, evitando, no entanto, qualquer juízo
de valor). Através de todas as suas obras, Freud semp re destaca, be m ao contrá rio de
McOou gall , a extre ma p lasticidade dos instintos básicos (libido, impul so d a morte , cuja
projeção é a 'agressão'; no que se refere à doutrina dos impulsos, a psicaná lise d e Freud
passou por vári as modific ações) e toda teoria psica nalítica é, e m essênc ia, urna expos iç ão da
varieda de d as manifestações dos impulsos, em conseqüência de condições variáveis de .
amb iente, aos quais os instintos tendem a adaptar-se de forma diversa•. RosENmD, Anato!. O
pensamento psicológico. São Pa ulo, Perspectiva, 2003, p. 11 8 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

- não seja necessariamente a felicidade, o prazer e a satisfação, mas sim


o acordo de sua quantidade possível, sempre menor que aquilo que o
desejo mais instintivo e inconsciente desejaria.

Daí, para a postulação teórica de Freud, a evolução do ego se dá


sempre a partir da tensão entre o primário princípio de prazer e um
posterior princípio de realidade. Em torno desse embate se dá, para
Freud, a consolidação da personalidade:
Sabemos que o princípio do prazer é próprio de um método
primdrío de funcionamento por parte do aparelho mental, mas
que, do ponto de vista da autopreservação do organismo entre
.as dificuldades do mundo externo, ele é, desde o início, inefi-
caz e até mesmo altamente perigoso. Sob a influência dos ins-
tintos de autopreservação do ego, o princípio do prazer é subs-
tituído pelo princípio de realidade. Este último princípio não
abandona a intenção de fundamentalm ente obter prazer; não
obstante, exige e efetua o adiamento da satisfação, o abando-
no de uma série de possibilidades de obtê-la, e a tolerância
temporária do desprazer como uma etapa no longo e indireto
caminho para o prazer. Contudo, o p rincípio de prazer persis-
te p or longo tempo como o método de funcionamento em-
pregado pelos instintos sexuais, que são difíceis de "educar",
e, p artindo desses instintos, ou do próprio ego, com freqüên-
cia consegue vencer o princípio de realidade, em detrimento
do organismo como um todo. 42

Prazer e repressão, Id e superego, revelam-se assim num jogo


dialético do qual emerge a civilização. Freud encaminha sua visão da
civilização e da sociedade para uma perspectiva relativamente diversa
daquela do Iluminismo tradicional: a civilização, em Freud, não é a esfe-
ra da racionalidade feliz e universal, e sim o tenso momento em que

42 FRwo, Sigmund. Além do Princípio de Prazer. Rio de Janeiro, Imago, 2003, p. 12.
UTOPIA E DIREITO

desejos são reprimidos em troca de outros. A civilização, tal qual um


acordo para todos ao mesmo tempo desvantajoso e vantajoso em partes,
é a expressão tênue da conveniência, não da plena satisfação. Daí apon-
ta Freud a insistente recorrência dos indivíduos a enxergarem na civili-
zação, nos outros, na sociedade, a causa de suas infelicidades.

Se a civilização impõe sacrifícios tão grandes, não apenas à


sexualidade do homem, mas também à sua agressividade, po-
demos compreender melhor porque lhe é difícil ser feliz nessa
civilização. Na realidade, o homem primitivo se achava em
situação melhor, sem conhecer restrições de instinto. Em
contrapartida, suas perspectivas de desfrutar dessa felicidade,
por qualquer período de tempo, eram muito tênues. O ho-
mem civilizado trocou uma parcela de suas possibilidades de
felicidade por uma parcela de segurança. 43

A civilização, para o Iluminismo, era o grande projeto da felicida-


de. Limitando as vontades sem fim de todos, a civilização garantiria al-
guma felicidade para todos. Tratava de dizer o Iluminismo que a felici-
dade social, contratual, seria toda a felicidade possível e necessária, e por
isso o contrato social era um momento positivo da civilização. Freud
trabalha pela via contrária. O indivíduo não reconhece a castração de
sua ânsia de prazer ilimitado co~o construtora de sua felicidade possí-
vel. A repressão é dolorosa, e a civilização seria, calvez concordando com
a proposição do Iluminismo, a melhor racionalidade possível, mas não a
felicidade. A civilização é um acordo triste, embora racional. 44

43 fKEuu, Sigmund. O Mal-Estar na Civilização. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 72.


44 "Quando já ciente da impossibilidade de sustentar a crença em uma humanidade feliz e sem
sofrimento, o mal-estar não é mais designado corno algo contingente à civilizaçao, mas da
alçada do próprio ato de civilizar. [... ] Freud observou que os problemas cruciais da culpa
inconsciente insensata, da renúncia à realização da libido, da resistência à cura do sujeito e do
gozo que concerne à coletividade, de fato se mantêm sob o signo da pulsão de morte. Mais do
que nunca, perto do final de sua vida e obra Freud exercerá a tarefa de crítico implacável da
cultura de seu tempo". FuKs, Betty. Freud & a cultura. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2003, p. 15.
Ar.YSSON LEANDRO MASCARO

Daí que se aponta necessariamente, no freudismo, o problema da


utopia da razão. Até que medida contribui a racionalidade para a feli-
cidade, para a satisfação dos desejos? Ou seria a razão justamente o
limite do desejo, a concretização do possível e, portanto, daquilo que é
menos do que o desejado?

A resposta do freudismo à questão ainda é uma resposta que se


pode dizer iluminista. Quando Freud relembra a questão da religião
como instância do superego responsável por casrrações a benefício da
civilização, trata de uma repressão civilizadora e de uma sobre-repres-
são, responsável por sofrimentos que se poderiam julgar desnecessári-
os às necessidades da civilização. 45 Tal perspectiva freudiana revela a
sua solução liberal-iluminista: haverá alguma renúncia necessária, e
haverá renúncias exploratórias, maléficas, ao final das contas, à civili-
zação. Tal qual o contrato social, não se põe em causa que deva haver
renúncias da liberdade, e sim saber quais. A utopia do freudismo é,
assim, um contrato social com o máximo de liberdades possíveis e o
mínimo de repressões necessárias. A utopia do freudismo é, na verda-
de, a quantia certa de liberalismo.

Quando, com toda justiça, consideramos falho o presente es-


tado de nossa civilização, por atender de forma táo inadequa-
da às nossas exigências de um plano de vida que nos torne
felizes, e por permitir a existência de tanto sofrimento, que
provavelmente poderia ser evitado; quando, com crítica
impiedosa, tentamos pôr à mostra as raízes de sua imperfei-
ção, estamos indubitavelmente exercendo um direito justo, e
não nos mostrando inimigos da civilização. Podemos esperar
efetuar gradativamente em nossa civilização alterações tais que

45 "A questão decisiva consiste em saber se, e até que ponto, é possível diminuir o ônus dos
sacrifícios instintuais impostos aos homens, reconciliá-los com aqueles que necessariamente
devem permanecer e fornece r-lhes uma compensação". FREUD, Sigmund. O Futuro d e uma
Ilusão. Rio de Janeiro, Imago, 1997, p. 13.
ÜTOPIA E DIREITO

satisfaçam melhor nossas necessidades e escapem às nossas crí-


ticas. Mas talvez possamos também nos familiarizar com a
idéia de existirem dificuldades, ligadas à natureza da civiliza-
ção, que não se submeterão a qualquer tentativa de reforma. 46

O freudismo, assim, antes de um salto qualitativo do problema re-


pressão versus desejo, é um acerto quantitativo da repressão. A razão aí é
a balança que medirá as contradições e que as julgará. Este pano de
fundo, que em Freud se revela um Iluminismo que se deu conta de que
a luz libertadora conviverá inexoravelmente com as trevas - a razão é a
irmã menor do inconsciente, mas irá libertá-lo-, encaminhar-se-á rapi-
damente para sua crítica, que desejará enxergar, pelo ângulo duro do
conflito entre Id e superego, o germe de dialética e síntese que o
freudismo deixou esvair pelas mãos da sua resposta conciliadora.

PARA ALÉM DO FREUDISMO

Das contestações e debates da filosofia em torno de Freud, é a Es-


cola de Frankfurt que se destaca e assume, desde cedo, o freudismo
como seu problema e, mais profundamente, como um de seus instru-
mentais de reflexão. Desde seu. início, a psicanálise pareceu-lhe um
mundo apto a desvendar problemas que o marxismo - tomado que era
no geral pela sua acepção vulgar - não conseguia desvendar. O que
levava o operariado europeu avançado a recusar a vanguarda socialista e
a se aliar ao nazismo? De outro lado, o que poderia levar o campesinato
atrasado da Rússia a se tornar a mola propulsora do socialismo mundial?
A indagação da Escola de Frankfurt revelava a inquietação com o
mecanicismo, que talvez tenha sido o repouso confortável da explicação
teórica da luta socialista no começo do século XX.

46 FREUD, O Mal-Estar na Civilização, op. cit , pp. 72 e 73.


Al.YSSON LEANDRO MASCARO

O brilho das análises da Escola de Frankfurt sobre a correlação


marxismo e psicanálise, bem como sobre as questões da racionalidade e
da utopia, atingirá seu ponto alto com Adorno, Horkheimer e Marcuse.
Antes, no entanto, já havia todo um pano de fundo, de pensadores não
necessariamente da Escola, mas também não muito distantes dela, que
anteciparam algumas das recorrentes análises realizadas em meados do
século XX. Reich e Fromm, de modo geral, podem ser tomados na con-
ta de precursores da junção frankfurtiana de marxismo e psicanálise,
levando-se em conta que seus pressupostos e conclusões não são, neces-
sariamente, iguais aos de Horkheimer, Adorno e Marcuse.

Mas Reich e Fromm, ao mesmo tempo, são precursores de tal


movimento, sem que tenham recebido reconhecimento - ou quiçá
sem que tenham sido mesmo lidos - por parte dos marxistas que
demonstraram preocupação por temas como a ideologia, a política e
as questões superesrrururais (desde Gramsci a Althusser, passando por
grande parte do pensamento do século XX). Grande parte do debate
de Reich e Fromm sobre marxismo e psicanálise frutificou pelo ângu-
lo dos psicanalistas, não necessariamente dos marxistas.

Além disso, ao contrário do que ocorreria com o n úcleo.duro da


Escola de Frankfurt, mais voltàdo à constatação do fracasso da utopia,
Reich e Fromm entoam acordes que são evidentemente esperançosos.
Representam por isso, na opinião de alguns, a parte frágil da junção
entre psicanálise e marxismo, porque marxismo e freudismo seriam,
ambos, descrentes de qualquer ilusão ou de alguma fácil utopia. Reich
e Fromm apostam no contrário.

WrLHELM RErcH

Reich é dos primeiros, na psicanálise, a preocupar-se com o ex-


tremado individualismo do freudismo e com sua falta de aptidão a
ÜTOPIA E DIREITO

uma explicação político-social mais acurada. Neste sentido, trilha ca-


minhos altamente originais, que, ainda que venham a ser expurgados
mais tarde pela Escola de Frankfurt, por exemplo, lograrão, no entan-
to, a co nsolidação de uma temática e de uma linha geral de aborda-
gem. Tanto quanto Fromm, logo em seguida, buscará Reich a com-
preensão das int erações, na formação da personalidade, d as
condicionantes sociais, históricas, políticas, econômicas e culturais. Além
de tudo, tomará o problema da sexualidade também a partir de um
pomo de vista social e cultural.47

O pensamento de Reich caminha a partir de Freud, mas não ne-


cessariamente no sentido freudiano. Enquanto na técnica psicanalítica
freudiana dá-se mais destaque aos conteúdos do que é revelado nosso-
nhos, nas manifestações, nas livres-associações, em Reich dá-se uma ên-
fase especial ao modo pelo qual tais conteúdos são expressos. A forma de
expressão revela o caráter. São manifestações reiteradas, que se repetem
em grande número de casos clínicos - estudados por Reich em um
grande conjunto de obras - e que possibilitaram a ele a sua classificação.

A teoria do caráter é o ponto alto da teoria de Reich. A partir do


modo pelo qual os conteúdos psíquicos são revelados, desnuda-se uma
história da formação da personalidade, da libido do indivíduo e de
sua repressão, de tal sorte que aí começam a se misturar as razões pro-
priamente da história individual com aquelas estruturais, sociais, do
seu tempo e suas condições.

47 "Reieh vai focalizando questões básicas da vida e da existência, d as socie dade s e de sua
espera nça no Homem. Em oposição ao seu antigo mestre Sigmund Freud, fran c amente pessi-
mista em relação ao Homem (formul ação da pulsão de morte, por exemplo). Reich faz uma
declaração de fé n~ humanidade. Assim, afirma Reich: 'só tu podes libertar-te'. Combate os
regimes tota litá rios e adiante revela o signifi cado de Deus: · ... é a energia cósmica primordial
do Universo' . Desse modo, vai formando um pa inel com os en foques religioso, filosófi co,
psicológico e sociológico". (MIARA, Marcus Viníci us. Reich - o descaminho necessário. Intro-
dução à clinica e à política reichianas. Rio de Janeiro, Sette Letras, 1998, p. 77.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Postula Reich a existência de dois grandes modelos do caráter,


que denomina caráter neurótico e caráter genital. O primeiro revela-
se como uma postura sistematicamente repressiva, que se haure dos
dísticos da autoridade, da normatizaçáo, portanto associada ao históri-
co da má-formação da figura paterna, o que o remete imediatamente
às formas do conflito edipiano. O superego é a esfera em corno da
qual se constrói o caráter neurótico. Por essa razão, o prazer e a vida
genital estão reprimidas e afastadas do caráter neurótico. O caráter
genital é aquele que se afirma positivamente, não como castração ao
sexo, mas sim como sua madura expressão. O caráter genital abre-se
ao Id de maneira natural. Enquanto no caráter neurótico o conflito
entre Id e superego é exponenciado, no caráter genital, postula Reich,
essa tensão é reduzida, quiçá anulada.
Em termos de suas diferenças qualitativas, os caracteres neu-
róticos e genitais devem ser entendidos como tipos básicos.
O s caracteres reais representam uma mistura, e se a econom ia
da libido é o u não permitida depende apenas de em que me-
dida o caráter se aproxima de um ou de outro tipo básico. Em
termos da quantidade da satisfação direta da libido possível,
os caracteres genitais e neuróticos são considerados como ti-
pos médios: o u a satisfação da libido chega a um ponto em
que é capaz de dispor da libido contida ou isso não acontece.
N o último caso, desenvolvem-se sintom as ou traços d e caráter
neurótico que prejudicam a capacidade social e sexual. 48

A teoria do caráter neurótico fundamenta, assim, a essência do


caráter autoritário. O paradoxo vivido à época de Reich - o período
entre as duas Grandes Guerras e a ascensão do nazismo - demandava
uma resposta que o marxismo vulgar não fornecia. O proletariado e a
pequena burguesia voltavam-se ao nazismo e não à libertação socialis-

48 RE1cH, Wilhe lm. Análise do Caráter. São Pau lo, Martins Fontes, 2001 , p. 172.
ta por causa da personalidade autoritária de tais classes. Daí ser neces-
sário desvendar, além das razões político-econômicas imediatas, uma
formação autoritária do caráter.

Revela-se o caráter autoritário como uma debilidade ligada à pró-


pria formação sexual repressiva. A carência econômica das classes operá-
rias e a dubiedade da pequena burguesia- que é dominada pelo grande
capital e ao mesmo tempo receia a decadência à condição proletária -
encontra solo fértil para a sua conservação num quadro familiar,
institucional, religioso e cultural no qual a figura da autoridade paterna
represente a renúncia aos desejos, tudo isso em nome do Pai. A extensão
posterior do Pai ao Estado - à Nação, à Pátria - revela a facilidade com
a qual a ideologia nazista propagou nas classes baixas alemãs.

Família, Igreja, Estado, Patrão, Autoridade, todos são instâncias


de aparelhamento ideológico que conformam o caráter autoritário das
massas. Embora oprimidas, não enxergam e nem querem outro hori-
zonte que não seja o da opressão. Por isso preferem e enxergam com
melhores olhos o nazismo à libertação.

Em resumo, o objetivo da moralidade é a criação do indiví-


duo submisso que se adapta à ordem autoritária, apesar do
sofrimento e da humilhação. Assim, a família é o Estado auto-
ritário em miniatura, ao qual a criança deve aprender a se
adaptar, como uma preparação para o ajustamento geral que
será exigido dela mais tarde. A estrutura autoritária do ho-
mem é basicamente produzida - é necessário ter isto presente
- através da fixação das inibições e dos medos sexuais na subs-
tância viva dos impulsos sexuais. [... ]

Tanto a moralidade sexual, que inibe o desejo de liberdade,


como aquelas forças que apóiam interesses autoritários tiram a
sua energia da sexualidade reprimida. Agora, compreendemos
melhor um ponto fundamental do processo do 'efeito da ide-
AlYSSON LEANDRO M ASCARO

ologia sobre a base econômica': a in ibição sexual altera de tal


modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que
ele passa a agir, sentir e pensar contra os seus próprios interes-
ses materiais. 49

Daí se explica, em Reich, o fracasso da luta socialista nos traba-


lhadores, em razão do caráter autoritário das massas. Para Reich, era
imprescindível que, à luta político-econômica, somasse-se a luta pela
libertação sexual, pela formação do caráter genital, liberto das repres-
sões sexuais. Não haveria busca de libertação proletária sem tal trans-
formação do caráter.

O postulado resultante da perspectiva de Reich é aquilo que de-


nomina Sexpol - política sexual - que vem a ser a junção das duas
esferas, política e sexual, numa luta de libertação. A libertação política
deverá ser associada da libertação sexual, da construção de caracteres
genitais e não autoritários, mais próximos do Id que do superego. Apon-
ta Reich, assim, um paradigma de superação do impasse freudiano , a
libertação genital, pelo prazer. No final das contas, esboça-se, em Reich,
a primeira utopia que soma os horizontes marxistas aos freudianos. Tal
utopia ainda representará em alguma medida os horizontes iluministas,
porque intenta dar à humanidade a possibilidade de sua felicidade
por si própria, removendo a heteronomia - o superego - que lhe
condiciona a uma personalidade autoritária. Utopia positiva, que acre-
dita que a luta pela transformação social não é a renúncia do hoje em
nome do amanhã, e sim o agir do prazer que constrói, hoje e no futu-
ro, a civilização d o prazer.50

49 REICH, Wilhelm. Psicologia de M assas do Fascismo. São Paulo, Martins Fontes, 2001 , pp. 28 e 30.
50 "O socialismo clássico enfatiza a luta e o sacrifício, o traba lho e o he roísmo, e ad ia para um
futuro nebuloso a realização da fe licidade individual, quando raiar, g raças ao desenvolvi-
mento das forças produtivas, o reino da liberdade. A Sexpol, ao advogar o desenvolvimento
da genital idade como pré-condição da ação política, e mesmo como seu conteúdo efetivo,
inverte a seqüência temporal, e conte sta o determinismo d a etapa. A felicidade não é uma
recompe nsa futura , mas o próprio conteúdo da política da vida". RouANET, Sérgio Pa ulo.
Teoria Cnlica e Psicanálise. Rio de Jane iro, Tempo Brasileiro, 1998, p. 4 8.
ÜTOPIA E DIREITO

ERICH FROMM

Ao lado de Reich, Fromm constitui a primeira grande linha de


frente da preocupação da psicanálise em proceder ao diálogo com o
marxismo. Em grande parte aproxima-se de Fromm na tentativa de
estabelecer as bases de uma psicanálise não apenas individualista - na
crítica recorrente que fazem a Freud-, mas sim que busque a compre-
ensão dos liames sociais do caráter e da personalidade.

Fromm se dedica a compreender o problema do caráter a partir


das estruturas sociais das variadas épocas, buscando vislumbrar, nas soci-
edades capitalistas, os tipos comuns de personalidade e caráter que aí se
-
formam. Q_!esultado de sua investigação, tal qual rmrna cerrn.medida
- -----·..·- - -... .. . ' .

apontava já Reich, é a constatação de um caráter sadomasoquis_ta, que se


espraia por várias classes sociais.51 F_romm identifica a sociedade capita-
lista
..,--
como um obstáculo à plenitude do indivíduo:
ro pri~cípio
._ ..

subjacente à sociedade capitalista e o princípio do


~;~r sfo. in:compatíveis. [... ] As pessoas capazes de amar, no
presente sistema, são necessarialllente exceções; o amor é, por
necessidade, um fenômeno marginal na sociedade ocidental
de nossos dias. Não tanto porque muitas ocupações não per-
mitiriam urna atitude am ante, m as porque o espírito de uma
_ s()cieda.de centrada na produção, ávida por mercadorias, é tal

51 "Há diferenças na fo rm a de sadismo de acordo com a diferença, na realidade, e ntre te r poder


ou ser poderoso. O homem médio é relativamente impotente: o escravo mais que o servo, mais
que o cidadão, o trabalhador do século XIX mais do que o trabalhador do século XX, o
membro de um estado polícia-ditatorial mais do que o de uma democracia . [...) De outro lado
da escala, é o indivíduo que, na realidade, tem tal grau de poder que é tentado a tornar-se
Deus, transcendendo o sta/us humano . Um líder político dotado d e poder absoluto como
Stalin ou Hitler é quase fadado a cair na tentação de poder absoluto. [...) O sadismo existe não
somente na classe média mais alta e entre ditadores, mas também entre muitos outros gru pos
sociais. (. .. 1As mesmas condições d e impotência efetiva podem ser produ zidas pe la atmosfe ra
da fam11ia, onde a criança, ao c rescer, é e xposta ao tratamento sádico dos pa is, especialmente
nas formas menos óbvias, em que sua vontade e espontaneidade são sufocadas, quer direta-
mente pela falta de a lguma resposta, quer por ameaças". fRO MM, Eric h. A Descoberta do
Inconsciente Social. São Paulo, Manole, 1992, pp. 137 e seg.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

que somente os não-conformistas podem se defender com su-


~essÓ·~-~~~-ra e!;.
Ós que se preo~upam seriamente com ·o amor
como úniCa re~posta racional .ao problema da existência hu-
màna devem, pois, chega;·à conclusão de que são. ne~essárias
mudanças radicais em nossa estrutura social, para o amor se
tornar um f~~Ôrneno soei~!, e não um fenôme~o altamente
individualista e marginal. 52 "

Ao mesmo tempo, Fromm aponta para a superação do caráter


autoritário , que no capitalismo revelou-se sadomasoquista: trata-se de
compreender o caráter revolucionário. Neste sentido, começa-se a cons-
truir a utopia que resulta das constatações marxistas e freudianas d a
irracionalidade humana ou, pelo menos, da inverdade do pleno do-
mínio da razão em todas as esferas da ação e do caráter humanos.

A reoria do caráter revolucionário de Fromm vai-se construindo


a partir das pesquisas por ele empreendidas, na década de 1930, em
torno da Escola de Frankfurt, a convite de Horkheimer, para a com-
preensão do fenômeno nazista e sua ampla aceitação popular então.
-~ Fromm destaca, de seus estudos, a princípio, o que não é o caráter
revõlliciord.rio .. Não é apenas i participação em revoluções, daí dife-
renciando; tal qual Freud, entre caráter e comportamento. O caráter
·revolucionário também não se resume, na visão de Fromm, à postura
_rebelde. A rebeldia, segundo F~omm, é o ressentimento contra a auto-
ridade pela personalidade não ser amada por ela. O ato de rebeldia
não é transformador; antes, é uma assunção ao p~der para obtenção
.do reconh.ecimeQtC2 __que até então não era conseguido. Distingue
Fr.om~,- ;inda, o cará~e·r re~olucionário do fanático. Este é o que esco-
lheu uma causa e a endeusou, comando-se submisso a ela. Fromm o
c~~par~
.....
a . um_"adorador
- - -~ -·· ...
. .
de ídolo" . .'.;\

52 FROMM, Erich. A Arte de A mar. São Paulo, M artins Fontes, 2000, pp. 163 e 164.
UTOPIA E DIREITO

Definindo revolução, no sentido psicológico, como "um movimento


político liderado por pessoas de caráter revolucionário, e que atrai pes-
soas de caráter revolucionário", 53 Fromm passa a se dedicar à definição
positiva do caráter revolucionário. Trata-se, em primeiro lugar, de ser
independente, ser livre, o que se revela quando o indivíduo ;ente pensá;
sÍ,
e deéi<fe'p-o r numa relaÇão produtiva com _mundo exterior.
··- . - . .... . ,.. ·.
o
Além disso, o caráter revolucionário identifica-se com a humani-
dade. Isto -q~_:E__~~_:_r q~e não s~ ?etém nas particularidad_es de sua
situação eco~ômico-;;~I1T:hi~t6~ic~~--~-~j~- ci~é p~de .transcender ao
°ãciJe;;tal em busca de umà vísada maior. Revel~~~e a-i~da mais no âmor
à vida q1:1e no apego à vida. Além disso, alimenta um espírito crítico,
que não se deixa conduzir pela opinião da maioria.

Mais ainda, segundo Fromm, para o caráter revolucionário "o


poder;;-;~i~ s-e t~~~~ sarrtificado, jamais toma o papel da verdade, da
moral e do bem".54 Quer com isso dizer que o caráter revolucionário
não se deixa impressionar morafmente pelo pod·~~:Aíém disso, é capaz
de dizer "não" e, por isso, é capaz de desobediência.
Entendo como caráter revolucionário não um conceito ético,
mas um conceito dinâmico. Não se é "revolucionário" nesse
sentido
.._,_ ... -. .
caracterológico porqu;;;'~~o~u~~f;~·f;~~~~
. . - -.. .
revoluci-
~ -~- -

onárias ou se participe de uma revolução. O revolucionário,


nesse sentido, é.o homem que se emancipou dos laços de san-
gue e solo, da m ãe e do pai, das lealdades para com o Estado,
classe, raça, partido, religião. O caráter _r_evo}ucion ário é
h umanista no sentido de que se sente parte de toda a huma-
nidade, e nada que seja humano lhe é estranho. Ama e respei-
ta a vida, É um cético e um homem «ie fé. . ..

. . . '. -. '

53 FROMM, Erich_ p Dogma de Crisloe.Qutros Ensaios sobre Religião, Psicologia e Cultura. Rio de
Janeiro, Guariabara, 1986, p. 119 __' · ·
54 lbid., p. 124. -
ALYSSON LEANDRO MASCARO

[ ... ] Esse sumário pode sugerir que descrevi a saúde mental e


o bem-estar, e não o conceito do caráter revolucionário. Na
realidade, a descrição dada reproduz a pessoa sadia, viva, men-
talmente sã. Minha afirmação é a de que a pessoa sadia num
mundo insano, o ser humano plenamente desenvolvido num
mundo aleijado, a pessoa plenamente desperta num mundo
semi-adormecido - é precisamente o caráter revolucionário. 55

De tal sorte, Fromm delineia os primeiros grandes contornos da


utopia do amanhã a partir da junção do marxismo e do freudismo:
"quando todos estiverem acordados, não haverá mais profetas ou
caracteres revolucionários - haverá apenas seres humanos plenamen-
te desenvolvidos". 56

55 lbid. , pp. 127 e 128.


56 lbid., p. 128.
CAPÍTULO 4

A UTOPIA EM MARCUSE

Se os freudo-marxistas Reich e Fromm apontam definitivamen-


te para um momento de superação da repressão e do autoritarismo,
almejando já um futuro urópico de felicidade e de prazer, o mesmo
não se pode dizer do movimento que se segue, posteriormente a Reich
e Fromm, na Escola de Frankfurt. Horkheimer e Adorno hão de se
distinguir do freudo-marxismo pela desconfiança na aliança da ra-
zão e da emancipação. A Escola C rítica é o desapo ntamento com a
razão e a utopia.

De início, a Escola de Frankfurt vale-se de grande p arte das


considerações de Reich e Fromm no que tange à união de freudismo
e marxismo. D e fato, o próprio Fromm é quem lidera, para a Escola
de Frankfurt, a parte psicológica das pesquisas sobre a personalida-
de autoritária na década de 1930. Ocorre, no encan to, que as posi-
ções de Adorno e Horkheimer começam por estabelecer d iferenças
substanciais de abordagem dos mesmos problemas que Fromm e
Reich constatavam em outras claves. Estes já procediam, na década
de 1930, a um movimento filosófico de síntese, de identidade. O
homem reconciliado consigo próprio, a humanidade enfim liberta
da opressão e apta ao prazer genital e pleno, estas eram divisas já
apontadas por Fromm e Reich. Adorno e Horkheimer desconfiarão
da síntese e da identidade.
t
t
ALYSSON LEANDRO M ASCARO

TEORIA cRfTICA: AnoRNo E HoRKHEIMER

Os postulados da recusa da síntese e da identidade em Adorno e


H orkheimer são a quebra da filosofia racionalista moderna, positivista,
associada em seu início a Descartes. Desde a emancipação da filosofia de
seus condicionantes medievais, ela resvala por caminhos positivistas, que
enxergam no princípio da identidade - e portanto da não-contradição
- o seu fundamento. Buscará a Escola de Frankfurt, no entanto, a con-
tradição inerente ao próprio capitalismo, à sociedade contemporânea.

Assim, começa-se a se estabelecer uma fundamental diferença dos


frankfurtianos em relação a Reich e Fromm. Para estes, a aposta na
reconciliação da humanidade consigo mesma era uma aposta na ra-
zão. Talvez fosse um último suspiro de Iluminismo, melhor qualificado
que seus congêneres do século XVIII, porque reconhecedor das pulsões,
do inconsciente, d os limites da razão, mas ainda assim iluminista, por-
que aponta o momento superior da reconciliação pela própria razão .
Adorno e Horkheim er encaminham-se em sentido contrário. Não é ,.....-,~ ·

só a falta da razão que é dominação: a própria_razão é dominação.


A~~i~-~e pronuncia Horkheimer:
A própria teoria filosófi éa não pode determin ~r se deve predo-
.m i n~~ no füúuo a tendência barbarizante o u a v isáo
humanística. Contudo, ao fazer justiça àquelas im agens e idéias
que em determinadas épocas dominaram a realidade exercen-
"do o papel de absolutos - por exemplo a idéia de indivíduo
tal como predominou na época burguesa...,. e que foram aban-
d~n.a d~s· ~~- curs~ da História, a filosofia pode funcionar como
um corretivo da História, por assim dizer. Assim, os estágios
·ideológicos do passado não seriam identificados simplesmen-
te à estupidez e à fraude - tal como o veredicto estabelecido
contra o p ensam ento medieval pelo Iluminismo francês. As
explicações sociológica e psicológica das crenças antigas seri-
UTOPIA E DIREITO

am distintas da condenação e supressão filosófica das mesmas.


Despojadas do poder que tinham em sua situação na época,
serviriam para lançar alguma luz sobre o rumo atual da hu-
manidade. Assumindo esta função, <!: filosofia seria a memória
e a consciê~ia da ~p·é~i~ ~!:l~;n~, ~ J;s~e ~~d~ ajudaria a
~_\fitar ql}-~ch~·da h~manidad~;e -~s~e~elh~ss~ à circula-
ção sem sentido da hora de recreio de um manicômio .57

Para Reich e Fromm, talvez pudesse se dizer que as mazelas do


homem fossem creditadas a um falso uso da razão. Daí, a denúncia da
ideologia é a arma a partir da qual se procede à liberação. Adorno e
Horkheimer verificam horizontes mais sombrios: não é a falta de razão
que co~du~ áo totalitarismo, ao fascism~. A~tes, i~ própri_a _razão, o
própri~ ITI.undo construído a partir da razão técnica: que leva à domi-
-~~Ç~? t_otalitária. Reich e Fromin, para a Escola de Frankfurt, teriam a
ilusão de que a dominação fosse a falta de razão. Adorno e Horkheimer
acreditam que a própria razão é totalitária.

O rac;~()f!~li_~~o moderno e sua exacerbação nazista, irracionalista,


são 'ã"p~~~ados: por Horkheimer, como uma utopi_<l_ endógena de do-
minaç_ão, que não permite a contradição, a dialética, a superação:
Racionalismo e irracionalismo adquiriram, ambos, a função
de reconciliar-se com o existente: o racionalismo deu ao perí-
odo liberal a convicção de que o futuro está antecipado na
razão do indivíduo. A história universal era, por assim dizer, o
desabrochar do ser racio~al que cada um possuía em seu âma-
go; o indivíduo podia sentir-se imperecível na sua substância.
[...] No capitalismo tardio, que define a maioria dos indiví-
duos como simples elementos da massa, o irracionalismo for-
nece, então, a teoria de que a essência desses indivíduos conti-
nua a existir na unidade histórica abrangente à qual eles per-

57 H DKKHEIMER, Max. Eclipse da Razão. São Paulo, Centauro, 2002, p. 165.


ALYSSON LEANDRO M ASCARO

tencem a cada vez e - se fossem apenas obedientes - não teri-


am com que se preocupar: seu Eu melhor seria acolhido na
comunidade após a morte. Desta forma, tanto o racionalismo
quanto o irracionalismo estão a serviço da transfiguração. 58

Neste sentido, começa a se esboçar, na Escola de Frankfurt, uma


. visão paradoxal da utopia: não se trata de indagar quais suas condições,
o,. mecanicismo do progresso, quando se darão seus eventos ou então
quais as táticas revolucionárias, mas, antes, constatar e compreender como
a humanidade pôde ter chegado à condição de dominação sem mais
~~p-eranças, sem mais p~ssibilidade de transformaÇão. Para Adorno e
H~rkh~i~er, ~- razã.o té~~ic~-~ontamina de tal m~d~-á história e a socie-
dade contemporânea que é virtualmente impossível a quebra de tal pa-
drão de dominação. Por tal razão, invertem a premissa de Marx das Teses
sobre Feuerbach. Se nelas Marx dizia que a filosofia já havia interpretado
o mundo, e portanto era imperioso que se o transformasse, aqui Adorno
e Horkheimer partem do contrário. Dado que a busca de transforma-
Ção ~os~rou-se infr~tífera, é preciso compreender o mundo. A filosofia
tem, pois, seu papel, como teoria crítica. A_utopici. é o entendimento do
domí~rõ<lã-razãc>"; e talvez não sua tr~~sformação.
Hoje, o progresso em relação à utopia é bloqueado an tes de
tudo pela completa desproporção entre o peso do mecanismo
esmagador do poder social e o das massas atomizadas. [... ] Se
a filosofia conseguir auxiliar as pessoas a reconhecer esses fato-
res, prestará um grande serviço à humanidade. 59

Tal utopia negativa domina o horizonte intel~ctual da primeira


formação da Escola de Frankfurt. Marcuse é quem destoará em partes
de Adorno e Horkheimer a respeito do papel da utopia, mas ainda
assim começará sua filosofia do solo cru da constatação de que, no

58 HORKHE1MER, Max. Teoria Critica /. São Paulo, Edusp/Perspectiva, 1990, p . 133.


59 H ORKHE IMER, Eclipse da Razão, op. cit., p. 1 86.
UTOPIA E DIREITO

mundo contemporâneo, a razão é a dominação. Há uma certa afini-


dade entre toda a abordagem da Escola de Frankfurt e as críticas, de
certo modo conservadoras ou reacionárias, de Heidegger. O próprio
Marcuse, aluno de Heidegger, encarrega-se de apontá-la e ao mesmo
tempo de separá-la. Em comum a Adorno, Horkhei.mer, . Marcuse e
l1_eidegger está a recusa da técnica com~ elemento de e"aiancipação. A
_técnica e a ~azão revelam-se opressivas na sociedáde capitalista. O sen-
tido da utopia, porém, é inverso. Para Heidegger, a crítica da técnica e
~o racionalismo é devida à sua condição de destruição dos vínculos
originários, da sociedade comunal do passado. Para a Escola de Frank-
.. fun, a técnica e a razão são o obstáculo da transformação. Em relação
--~ isso, o sentido da crítica da Escola de Frankfurt é ainda o sentido do
marxismo: a u·ropia, ainda que não realizada, aponta para o futuro, o
~i:ovo, e não para-o passado.

Adorno e Horkheimer insistem em enxergar no pensamento de


Freud um momento explosivo, próximo ao de Marx, 60 que o freudo-
marxismo de Reich e Fromm descartou. A dialética entre o indivíduo
e a civilização não é superável, ao menos não no sentido proposto por
Reich e Fromm. Trata-se de uma dialética que recusa a síntese fácil, e
portanto se detém na contradição, nas dificuldades da conciliação da
humanidade com seus impulsos, desejos e repressões. A Escola de Frank-
furt enxerga em Freud essa recusa à síntese, tendo em vista que a aná-
lise freudiana não é apenas d a contradição do capitalismo, mas da
própria humanidade. Assim, aquilo q ue Reich e Fromm denuncia-
vam como limiar último da opressão - o capitalismo - deve ser, na

60 "Numa época em que a psicanálise era ainda bastante estigmatizada, Horkheimer foi um dos
primeiros a reconhecer sua importância, tendo se submetido, entre 1928 e 1929, a sessões
com Karl Landauer, um antigo a luno de Freud. [... I Já o interesse de Adorno pela obra de Freud
era mais teórico do que prático. [... ) Em todos os seus trabalhos importantes da década de
1930 aparecem referências à psicanálise, ou, antes, tentativas de se apropri ar dela com
objetivos de e mpreende r uma crítica da cultura contemporânea" . D u ARTE, Rodrigo. A dorno/
Horkheímer & A Dí,1/élica do Esclarecímemo. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2002, p. 20 .
ALYSSON LEANDRO MASCARO

verdade, entendido como uma dialética irresoluta da própria condi-


ção humana. A dialética negativa de Adorno e Horkheimer aponta
para a dificuldade da síntese e da utopia.

A não-identidade, em Freud, assume sua forma mais inflexí-


vel: a tese da reconciliação impossível entre os interesses do
indivíduo e da civilização. Toda a construção metapsicológica
de Freud gira em torno do conflito, jamais superável à luz da
realidade pulsional do homem e das exigências da cultura,
entre desejo e realização. [... ] Dialética que, como a de Ador-
no e em contraste com a de Hegel, recusa a facilidade de uma
síntese utópica. É essa dialética sem síntese que impede, no
plano terapêutico, a cura integral - pois Freud sabe,
secretamente, que a normalidade que a psicanálise promete a
seus pacientes será sempre fictícia enquanto o critério de saú-
de psíquica for uma realidade em si mesma enferma - e con-
dena, no plano sociológico, o indivíduo socializado à renún-
cia e à repressão. Em estado de natureza, o indivíduo não
pode sobreviver; e no estado social, não pode ser feliz. O pathos
desse dilema, que a teoria política burguesa tentou camuflar
com a doutrina do contrato social (Hobbes, Locke, Rousseau)
e que os freudo-marxistas banalizaram com sua pseudo-
historicização (o antagoni~mo indivíduo-sociedade, que Freud
supõe eterno, só é inevitável no sistema capitalista) aparece
aqui sem nenhum disfarce. .Q_e~ocesso _c_ivilizatório coincide
com o sacrifício pulsional. 61

De tal forma, a recusa da síntese leva a Escola de Frankfurt a


expandir a análise da dominação, no capitalismo, a estruturas até en-
tão desconhecidas do marxismo vulgar, mas sem cair na tentação de
Reich e Fromm de dar à superestrutura o condão de iniciar o
procedimento da reconciliação. A superestrutura é também responsá-

61 RouANH, Sérgio Paulo. Teoria Cdlica e Psicanálise. Op. cit., pp. 11 O e 111.
UTOPIA E DIREITO

vel pela divisão e pela opressão, mesmo se apresentando sob a forma


da razão, da técnica e do progresso. A Escola de Frankfurt há de rom-
per com o paradigma do progresso infinito e linear, denunciando a
regressão e a barbárie.
A questão é que o esclarecimento tem que tomar consciência
de si mesmo, se os homens não devem ser completamente
traídos. Não é da conservação do passado, mas de resgatar a
esperança passada que se trata. Hoje, porém, o passado se pro-
longa como destruição do passado. Se a cultura respeitável
constituiu até o século dezenove um privilégio, cujo preço era
o aumento do sofrimento dos incultos, no século vinte o espa-
ço higiênico da fábrica teve por preço a fusão de todos os ele-
mentos da cultura num cadinho gigantesco. [... ] Nas condi-
ções atuais, os próprios bens da fortuna convertem-se em ele-
mentos do infortúnio. Enquanto no período passado a massa
desses bens, na falta de um sujeito social, resultava na chama-
da superprodução, em meio às crises da economia interna,
hoje ela produz, com a entronização dos grupos que detêm o
poder no lugar desse sujeito social, a ameaça internacional do
fascismo: o progresso converte-se em regressão.62

Assim, para Adorno e Horkheimer, buscando aliar a denúncia


marxista à relativa inflexibilidade do freudismo sem sínteses, o pro-
gresso é a regressão. A utopia só cabe, na verdade, como denúncia da
esperança do ontem que não se cumpriu. 63

62 ADORNO e HOKKHEIMER. Dialética do Escl,1recimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985, p. 15.
63 "Diante das transformações por que passou o capitalismo no século XX, Adorno não vê outra
possibilidade para a filosofia senão a de examinar o existente sob a luz da promessa de
rede nção que, por um !ado, foi perdida quando da passagem à 'sociedade administrada', e
que, por outro, ilumina tragicamente a própria história da fil osofia". NoaRE, Marcos. A D ialética
Negaliva de Theodor W: Adorno. São Paulo, Fapesp/lluminuras, 1998, p. 40.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

DA ESCOLA DE FRANKFURT A MARCUSE

O pensamento de Marcuse é tributário e ao mesmo tempo dissi-


dente do corpo principal de pensamento da Escola de Frankfurt. Ador-
no e Horkheimer são seus principais inspiradores, mas, ao mesmo tem-
po, Marcuse rejeitará em grande parte a utopia negativa dos funda-
dores da Escola de Frankfurt. Nos movimentos de revolta estudanril
da década de 1960, a diferença é bem dara. Enquanto Adorno che-
gou a ser hostilizado pelos estudantes, por sua relativa apatia quanto às
insurgências, Marcuse foi rido como o principal inspirador teórico
dos movimentos daquela década. A postura marcuseana foi, decidida-
mente, pela atuação política, levada cada vez mais ao radicalismo.

Tal postura política ativa em face dos movimentos estudantis e soci-


ais de seu tempo encaminha Marcuse a uma abordagem distinta do
problema da utopia. Enquanto para Adorno e Horkheimer somente a
~l?so~a poderia iluminar~ p~rda da utopia, porq~~ a sociedade ~apita­
lista já internalizara ·a dominação a ponto de não haver volta, para
Marcuse trata-se do contrário. O papel da filosofia é o de desbastar a
d~minaÇão e as suas contradições, porque nessas contradições do capita-
lismo contemporâneo estariam as possibilidades da uro_~ia.

Mas, ao m esmo tempo, Marcuse não aceita a utopia fácil do


freudo-marxismo de Reich e Fromm. Não se trata apenas de proceder
a uma exponenciação do prazer liberto das amarras do superego e da
sociedade autoritária, sem que se encontre a dialética existente entre
tais. Marcuse aposta, tal qual Adorno e Horkheimer, que a sociedade
capit;_Ii~rã-já inrer~~Hi:()'ü de·m~neira profunda a dominação.- ó que
.?C:~r~e, então, para M arcuse, é a necessidade de transformar o capita-
lisino, a fim de que se liberte a humanidade, e _n ão o contrário, com~ o_
freudo-marxismo previ<l. ·
PSICANÁLISE E LIBERTAÇÃO

Em Eros e Civilização, sua principal obra, Marcuse dedica-se à jun-


ção da psicanálise ao marxismo, embora seu escopo fundamental seja,
mesmo, debruçar-se sobre Freud e seus horiwntes. Fromm é uma das
bases de contraste com o pensamento marcuseano. É preciso rejeitar a
facilidade da transformação no mundo contemporâneo, e, nessa petição
de princípio pela dificuldade, Marcuse é muito próximo de Adorno.

Reich e Fromm apostam que as condições para a libertação se


dão tanto no plano sexual, da personalidade, quanto no plano social,
das estruturas políticas e econômicas. Encaminham, assim, uma análi-
se da utopia da libertação que comece por emancipar os indivíduos
dos constrangimentos da sociedade autoritária, por meio da liberta-
ção sexual. Segundo Reich e Fromm, o prazer é o caminho da trans-
formação e da utopia.

Marcuse aponta a falta de dialética de tal visão, superficial na sua


perspectiva: a aposta na libertação como possibilidade do prazer pes-
soal é a falta de mobilização e de ação na transformação das estruturas
que condicionam o autoritarismo e a opressão. Assim, Reich e Fromm
poderiam ser vistos como pensadores ainda iluministas, numa cena
medida liberais, na medida em que erigem no indivíduo um papel
preponderante na transformação. Marcuse h á de acreditar que tal
postura é insuficiente, não dando coma de toda a contradição da soci-
edade capitalista. Tratando de Fromm e Reich como revisionistas que
enfraqueceram o potencial revolucionário da teoria freudiana, assim
aponta Marcuse:
Acima e contra esse "programa mínimo'', Fromm e os outros
revisionistas proclamam uma fi nalidade superior da terapia: o
"desenvolvimento ótimo das potencialidades de uma pessoa e
a realização d e sua individualidade". Ora, é precisamente essa

t
ALYSSON LEANDRO MASCARO

finalidade que é essencialmente inatingível - não por causa


das limitações nas técnicas psicanalíticas, mas porque a pró-
pria civilização estabelecida a nega, em sua estrutura. Ou se
define "personalidade" e "individualidade" em termos de suas
possibilidades dentro da forma estabelecida de civilização, em
cujo caso a sua realização é sinônimo, para a grande maioria,
de um ajustamento bem sucedido; ou se define nos termos de
seu conteúdo transcendente, incluindo suas potencialidades
socialmente negadas, para além (e subentendidas) d e sua exis-
tência concreta; neste caso, sua realização implicaria trans-
gressão, além da forma estabelecida de civilização, para mo-
dos radicalmente novos de "personalidade" e "individualida-
de" incompatíveis com os prevalecentes. Hoje, isso significa-
ria "curar" o paciente para converter-se num rebelde ou (o
que quer dizer a mesma coisa) num mártir. O conceito
revisionista vacila entre as duas definições. Fromm revive to-
dos os valores consagrados da ética idealista, como se nin-
guém tivesse jamais demonstrado suas características confor-
mistas e repressivas. 64

Marcuse buscará, numa outra interpretação de Freud, sua dife-


rença em relação ao chama,d o revisionismo de Fromm e Reich. D e
certa maneira, Marcuse iguala-se aos freudo-marxistas na crítica em
relação ao pessimismo de Freud quanto à possibilidade de felicidade
na civilização. 65 A crítica de Reich a Freud encaminhava-se no sentido
de que a civilização não requereria, para seu estabelecimento, da re-

64 MA~CUSE, Herbert. Eros e Civilização. Rio de Janeiro, Guanabara Koogan, s/d, p. 220.
65 "Em Eros e Civilização, sua tese é a de que Freud equivocou-se quando viu na culpa e na
infelicidade o inevitável tributo pago pelos indivíduos pa ra se protegerem da destruição
mútua. [... ] Marcuse não aceita essa dialética. Em seu entender, e la mostra dois grandes
defeitos. Em primeiro lugar, Freud teria tomado 'a civilização' como sinl\nimo de interiorização
das necessidades alienadas do capitalismo industrial. Em segundo, Freud, malgrado ele
próprio, confundiu eros com sexualidade. Se, de fato, uma sociedade afogada em sexualida-
de não pode ser feliz, há como pensar numa sociedade feliz e pacificada, sob o regime do
erotismo". COSTA, Jurandir Freire. "Utopia sexual, utopia amorosa". ln Ulopia e mal-estar na
cultura: perspectivas psicanalilicas. São Paulo, Hucitec, 1997, p. 117.
--·--·"---------------------
U TOPIA E DIREITO

núncia aos prazeres genitais, n o máximo aos prazeres pré-genitais ou


então das pulsões agressivas. Assim, seria possível distinguir quais seri-
am as repressões da civilização necessárias e quais as excedentes.

Marcuse também se encami nha próximo a essa perspectiva, mas


noutra abordagem. Constrói a noção de "mais-repressão", aquela res-
ponsável pel a opressão na civi lização . M as aposta Marcuse no
florescimento dos próprios prazeres pré-genitais como condição de
uma sub limação positiva. O Ego, como responsável pela sublima-
ção, teria condições de proceder a uma orientação dos prazeres -
não só genitais, mas fundamentalmente pré-genitais - que não seja
para a manutenção da ordem opressiva e castradora da felicidade,
mas que seja, sim, conscientemente liberadora de prazer. Afastando
a sexualidade meramente reprodutora - genital, segundo Reich - ,
Marcuse aponta uma sexualidade que invista em todo o corpo e, daí,
a novas modalidades utópicas de prazer, não centradas nos mecanis-
mos tradicionais da sociedade capitalista, que são orientados para a
reproduçáo e o controle.
A força plena da moralidade civilizada foi mobilizada contra o
uso do corpo como mero objeto, meio, instrumento de prazer;
tal coisificação era tabu e manteve-se como infeliz privilégio de
prostitutas, degenerados e pervertidos. Precisamente em sua
gratificação e, em especial, em sua gratificação sexual, o homem
tinha de comportar-se como um ser superior, vinculado a valo-
res superiores; a sexualidade tinha de ser dignificada pelo amor.
Com o aparecimento de um princípio de realidade não-repres-
sivo, com a abolição da mais-repressão requerida pelo princípio
de desempenho, esse processo seria invertido. Nas relações soci-
ais, a coisificaçáo reduzir-se-ia à medida que a divisão do traba-
lho se reorientasse para a gratificação de necessidades individu-
ais, desenvolvendo-se livremente; ao passo que, na esfera das·
relações libidinais, o tabu sobre a coisificação do corpo seria
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

atenuado. Tendo deixado de ser usado como instrumento de


trabalho em tempo integral, o corpo seria ressexualizado. [... ]
Essa mudança no valor e extensão das relações libidinais levaria
a uma desintegração das instituições em que foram organizadas
as relações privadas interpessoais, particularmente a família
monogâmica e patriarcal.
[ ...] Falamos da auto-sublimação da sexualidade. O termo impli-
ca que a sexualidade pode, sob condições específicas, criar rela-
ções humanas altamente civilizadas sem estar sujeira à organi-
zação repressiva que a civilização estabelecida impôs ao instin-
to. Tal auto-sublimação pressupõe o progresso histórico para
além das instituições do princípio de desempenho, as quais,
por sua vez, permitiriam a regressão instintiva. Para o desenvol-
vimento do instinto, isso significa regressão da sexualidade a
serviço da reprodução para a sexualidade na função de "obter
prazer através das zonas do corpo". Com essa restauração da
estrutura primária da sexualidade, a primazia da função genital
foi quebrada - assim como a dessexualização do corpo que acom-
panhou essa primazia. O organismo, em sua totalidade, torna-
se o substratum da sexualidade, enquanto, ao mesmo tempo, o
objetivo do instinto deixa de ser absorvido por uma função es-
pecializada, ou seja, a de "pôr os 6rgãos genitais do indivíduo
em contato com os de alguém do sexo oposto".6<í

Aponta Marcuse para um freudismo que supere sua original in-


capacidade de conciliação entre Eros é Civilização. Para a!é~A~~~ich
~ Fromm, que acreditavam no potencial genital libertário, Marcuse
a
i~-;~-r~~ed mÚdança da civilização como libertadora dos prazeres
corporais, que chegariam aos níveis pré-genitais.

66 MARCUSE, op. cil., pp . 177 e 179.


UTOPIA E DIR.EITO

A UTOPIA EM MARCUSE

Ao contrário do p~nsamento freudo..,mar:xismo, Marcuse inicia


sua visão da utopia de. um ponto de partida negativo, tal qual Adorno
···~_}forkheimer: . a sociedade capitalista não possibilita a satisfação das
°-~<::_essidades nero. a libertação dos prazeres. Só na an.}Hise 4.<?s mecanis-
mos pelos quais o capitalismo introjetou a dominação é que se revela o
passo possível da utopia para Marcuse.

_H~yia implícita, na teoria do . freudo-marxismo, a possibilidade


_d a denúncia ideológica da opressão, na medida em que a razão - como
o contrário da ideologia - seria arma da libertação. A dominação se-
~ual, a exploração extra-necessá~ia imposta pela sociedade capitalista,
o bloqueio do prazer, cudo isso seria denunciável pela razão, de tal
sorte que o projeto utópico da emancipação seria racional. Marcuse
desconfia de tal postura. ~as.socied;i,des capitalistas contemporâneas,
desenvolvidas, há de enxergar uma incorporação da própria
r_<!cionalidade ao sistema opressivo: a razão, que antes era potencial
a.rma de .contestação e crítica, passa a ser, agora, um dos instrumentos
_4~_própria lógica da dominação. A racionalidade administrativa, dos
negócios, a utilização da psicologia como forma de domínio - o pensa-
_memo positivo como arn:a de negócios e lucros - são instrumentais
qu,.e se valem da razão não para a emancipação, e sim para o domínio.
A sociedade que resulta de tal irÚrojeção d~ domínio na própria
--~-â~~onalidade das massas, das classes exploradoras e_exploradas,
Marcuse a denomina sociedade unidimensional. Sua característica
~-· ---- .-
fundamental é a de não lograr constituir um duplo crítico que esteja
do lado oposto do domínio. A racionalidade não funciona como con-
traste da opressão; antes, é arma da própria opressão.

Resulta de cal unidimensionalização social e individual que o pro-


Le~ 4~~~-~9.-ri~ v~i se ~sgotando nas sociedades capitalistas concempo-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

râneas. O espaço do diverso, do cnttco, do contrastante - do mais


além - se esvai, e, em seu lugar, toma corpo a racionalidade adminis-
t_r.44gr~ .dos gan_h os e p ;ejuízos imediatos. A inc~rporaÇão das classes
proletárias a ganhos de consumo, nas socied ades capitalistas contem-
porân~as;
. ....
·. . .· .·
~·~g·o·t~ ~ ~apacidade
.-.. ' .. .
utópica em troca
. ·· . . .. ~'" ~ . .
da manutenção
.
do ..... .

mesmo .. Neste sentido, a unidimensionalização do _h omem é a impossi-


bi~i?~~~ ~e_ so11har e projetar, de man~ira crít~9,_;1 emancipação.

A esuutura das sociedades capitalistas contemporâneas, ao incorpo-


rar a racionalidade como cálculo da produtividade, do desempenho no
trabalho, cransforma o potencial revolucionário e libertador das classes
trabalhadoras em utopia tomada no sentido banal de impossibilidade.
A relegação de possibilidades reais para a "terra de ninguém"
da utopia constitui, só por si, um elemento essencial da ideo-
logia do princípio de desempenho. Se a construção de um
desenvolvimento instintivo não-repressivo se orientar, não pelo
passado sub-histórico, mas pelo presente histórico e a civiliza-
ção madura, a própria noção de utopia perde o seu significa-
do. A negação do princípio de desempenho emerge não con-
tra, mas com o progresso da racionalidade consciente; pressu-
põe a mais alta maturação da civilização. As próprias realiza-
ções do princípio de dese~penho intensificaram a discrepân-
cia entre os processos do inconsciente arcaico e da consciência
do homem, por uma parte, e as suas potencialidades concre-
tas, por outra. 67

Marcuse encaminha, a partir daí, uma crícica da cultura bastante


específica. Rev~la-se, quanto à cultura, um paradoxo no que diz res-
peito à utopia:. e~q~~nro ·alienaçã°~ da ·esfera produtiva, ~u enquantô
máscarà que embaralha ~visada da realidade, a cultu~a representa ~~
--~l~~ento de alterid~de, e, porta_nto, o desgarramento_da re;lidade

67 tbid., p. 139.
UTOPIA E DIREITO

opressiva repre.~~qgrá._ po.r. l!i _próprio, u~_ p9~~!1..ci~l-. ~~si_eacór~.


,HQ..~!Ú.?D_to1_ _!!~_!!!.çdida em que a cultura se conv~rta e~ rc:prese~ca-
_ção efe~iya do P.~?PE.i.~~?~í~~~~~§~ôtir:~~i~e,~ ~~-- ~~TAic~:~~ê.~~~~~-a
. çµlt_~~-a,, ~.--~--P~?.Er~ª- ~~~!~~~?e da..-~~-~~i~~!l2p.ali~~ção.
Tal se dá, segundo Marcuse, na própria filosofia, quando mcor-
pora a racionalidade do domínio social em si própria, e não abre hori-
zontes de crítica. O positivismo é a face acabada de tal esgotamento
utópico na filosofia, na medida em que se presta meramente aos ins-
trumentais analíticos que não logram encaminhar a crítica ao existen-
te. A unidimensionalização, na filosofia, se revela no positivismo e na
filosofia analítica.68

O positivismo é o exato contrário, pois, de uma teoria crítica que


possa colocar sob suspeição a própria razão e, por isso, possa apontar
necessariamente um sentido de utopia. Num texto intitulado "Filoso-
fia e Teoria Crítica", Marcuse aponta os laços necessários da Teoria
Crítica com a utopia:

Nesse estádio dado de desenvolvimento, mostra-se novamen-


te o caráter construtivo da teoria crítica. D esde o início, ela foi
mais do que um mero registro ou sistem atização de fatos, seu
impulso vem exatamente de sua força, com a qual fala contra
os fatos, confrontando a má facticidade com suas melhores
possibilidades. Como a filosofia, ela opõe-se à justiça da reali-

68 "Assim como a sociedade unidimensional é a caricatura da dialética - fus3o repressiva de


contrários - e realiza sua própria desalienação - c rítica repressiva da alienação da cultura, ou
crítica da crítica - o positivismo, reflexo teórico dessa soci edade, assume, também, a forma de
uma fil osofia pol êmica, voltada contra o pensamento me tafísico e contra as formu lações
1ingü ísticas inexatas. Válidas são apenas as proposições da lógica e da matemãtica - verdadei-
ras mas tautológicas, pois assumem a forma de julgamentos ana líticos, em que o predicado jã
está contido no su je ito - e as proposições validáveis pela verificação empírica, que dizem
algo sobre a rea lidade (julgamentos sintéticos, em que o pre dicado não está contido no
suje ito) mas que não são certas, e sim meramente prováveis. São esses os limites absolutos do
horizo nte cognitivo positivista. Ora , as proposições críticas, que tran scendem o e xistente,
situa m-se, por de finição, fora desses dois critérios. [...) São, e m sua essência, irracionais, de
acordo com as regras do jogo estabelecidas, autoritariame nte, pe la epistemologia positivista".
R OUANET, op. cil., p. 205.
AlYSSON LEANDRO MASCAR.O

dade, opõe-se ao positivismo satisfeito. Entretanto , diferente-


mente da filosofia, sempre extrai seus objetivos a partir das
tendências existentes do processo social. Portanto, ela não tem
medo da utopia, pela qual a nova ordem é denunciada. Na
medida em que a verdade não for realizável dentro d a ordem
social existente, mesmo assim ela tem para esta o caráter de
uma mera utopia. Tal transcendência não fala contra, mas sim
pela verdade. O elemento utópico foi, na filosofia, durante
muito tempo, o único elemento progressivo: como as cons-
truções dos melhores Estados, do prazer superior, da felicida-
de (Glückseligkeit) perfeita e da paz perpétua. A teimosia, que
vem de se apegar à verdade contra todas as aparências, tem
dado lugar, na filosofia, hoje, à extravagância e ao oportunis-
mo sem pudor. Na teoria crítica, a teimosia foi mantida como
a autêntica qualidade do pensamento filosófico. 69

O processo de unidimensionalização, para Marcuse, revelar-se-á


complementar ao domínio da técnica na sociedade capitalista. A téc-
nica passa a se revelar como forma da unidimensionalização, na medi-
da em que é forma única da reprodução capitalista. A técnica repre-
senta a banalização do sentido, numa crítica de Marcuse muito próxi-
-~a, em ·~erta medida, à de f1eidegger, que lhe valeu, ··~o que versa a
"respeito 'da técn ica, uma pecha - indevida - de reacionário, na medi-
~ª ~-m--q~e apos~ari~- ~-l!_!_l?:~~_?ci~dad,~ pré-recn_?_lig~~· No .~~tanto, o
encaminhamento da questão da técnica em Marcuse é justamente o
o.posto de qualquer regressão originária no sentído h eideggeriano. ~a
verdade, a crítica marcuseana à técnica revela-se muito mais próxima
de Marx que de Heidegger, na medida em que é a exacerbação d~
técnic~ que possibilita vislumbrar a utopia. Antes de se insurgir contra
. a técnica, M'ârcuse a pressupõe. 70

69 MARCUSE, Herbert. Cultura e Sociedade. Vol. 1. São Paulo, Paz e Terra, 1997, p. 145.

70 "Marcuse procurou demonstrar que o que diferenciava nossa época histórica de qualque r
out ra já vivid a pe la humanidade era o fato de que nela vive ríamos num outro e stado
ÜTOPIA E DIREITO

O projeto utópico de Marcus~ passa, necessariamente, pela eman-


cipaç~~ -a~-t~-. ~billi"o···----·-·-
; rar~~J:Marx,

há de situar no .nível
·····--- . ... ... .
pro<l~t:ivo,
.
na '""

exploração da força de trabalho, o cerne da injustiça capitalista. Ao


·contrário das críticas vulgares, mas, paradoxalmenté, ainda nos passos
do próprio Marx, Marcuse aponta o alto componente utópico da exa-
cerbação da técnica capitalista para a questão do trabalho: chegando a
um nível no qual a satisfação das necessidades esteja praticamente ga-
rantida por conta da tecnologia, haveria então a emancipação da ne-
cessidade do trabalho - ao menos do trabalho explorado - e o traba-
lho converter-se-ia, então, em tempo livre, transformando a opressão
em gozo. N as palavras de Marcuse, tratar-se-ia, no vislumbre da uto-
pia, de transformar o trabalho em jogo. A utopia de Marcuse, no cerne
duro das relações produtivas, concerne em transformar a exploração
em atividade lúdica. 71

Marcuse se dá conta, no entanto, que a sociedade capitalista absor-


ve e manipula o progresso técnico de tal modo que a exploração não se
faça só por conta da necessidade do trabalho para a produção, mas,
essencialmente, para a manutenção do domínio social. A sociedade ca-
pitalista se mobiliza contra o inimigo externo - a possibilidade de ruptu-
ra revolucionária - e se mantém mobilizada contra a eman cipação in-
terna das classes proletárias dominadas. Assim, aponta o paradoxo da
potencial liberação do trabalho que não se realiza no capitalismo:

tecnológico, num outro estágio d e civilização. O desenvo lvime nto ace le rado das novas
tecnologi as - já perfeitame nte delineadas em meados da década de 60, fazia antever que as
mesmas poderiam abrir caminho para novas possibilidades de liberação para o ho mem".
So.~~ES, Jorge Coe lho. Marcuse: uma trajetória. l ondrina, Ed. UEL, 1999, p. 170.
71 ''Logo, a revolução no século XX não será apenas econômica, S()cial e p()lítica, ma s também
cultural. É necessário reformul ar a teoria marxista, não só porque mudaram a estrutura e a
consc iência da classe traba lhadora, mas ta mbé m po rque o capitalismo conseguiu estabilizar-
se. Numa pa lavra, é preciso pensar a revolução no âmbito da sociedade de consumo. Daí o
fascínio exercido pelas idéias de Marcuse sobre as revoltas estudantis dos anos 60, quando se
percebeu q ue o capitalismo podia ser posto em xeque nào em virtude de carênc ias mater iais,
mas espirituaisN. L OUl(E l~O, Isabel Maria. "Herbert Ma rcuse -A relaçlio entre teoria e prática". ln
Capltulos do Marxismo O cidental. São Paulo, Ed. Unesp/Fapesp, 1998, p. 117.
ALYSSON LEAN DRO MASCARO

A expressão mais óbvia da oposição entre possibilidade e rea-


lidade reside na automação. Com a progressiva automação, o
sistem a tende de fato à supressão quase total do trabalho soci-
almente necessário, do trabalho alienado, ou seja, ele tende,
não só de maneira utópica, mas de maneira bastante realista,
a ser uma sociedade em que o tempo de trabalho é um tempo
marginal e o tempo livre é tempo integral, a ser uma socieda-
de em que o desemprego seria normal e progressivo. Esta pos-
sibilidade é irrealizável nos quadros do sistema, ela é incom-
patível com as instituições econômicas, políticas e culturais
por ele criadas, seria de fato a catástrofe do sistema capitalista,
donde a mobilização total não só contra o inimigo externo,
como também contra essa possibilidade. 72

Não
.. ..,...
.
apostando
.
~penas no
'·'
progresso ou no devir mecânico
. .........
das
.
•,•·· .·-- ,"

f<?~~jbilidades, 111as ress_altando o caráter político da luta pela .eman-


~~E~ç~o, a utopia :~. lv!~!cuse, ao ~~nt~~~i~_4o fr.e1:1do-~~rx:is1110, irá
pro~l_ernátl~;r~· questão d~ f~ficidade, lem~r<u~E5~. 4e seu caráter po-
Útico-estrÍ.lrural, .e não -~pe~as do .seu componen~e:. P_i~q~i~o~i~~clivi­
au~[ -~~-i:rabaiho e na opressão estr~~~ral d~ capitalismo, residem
giandes alicerces da sociedade neurótica. Marcuse vislumbrará a uto-
.pía só na ação"de emancipação, no projeto de libertação tocaie es-
trüfüral Insiste na dialética, enquanto contradição e negação, como
fundamento da libertação e como horizonte atual para que se pense
a utopia futura. Somente após a grande travessia da libertação da
contradição é que a humanidade estaria então de freme consigo pró-
pria, emancipada. O projeto do Iluminismo, da reconciliação da hu-
manidade consigo própria, não é o método da libertação, é sim sua
meta. O método é dialético, fincando Marcuse o pé de sua filosofia

72 MAKCVSE, Herbert. "Perspectivas do socialismo na sociedade industrial avançada#. ln A Gran-


de Recusa Hoje. Petrópolis, Vozes, 1999, p. 48.
UTOPIA E DIREITO

em H egel e Marx: é preciso a radicalidade do negativo para que se


chegue ao positivo. 73

Valendo-se de uma hermenêutica simbólica para seu projeto de


utopia, Marcuse considera a sociedade emancipada como o Reino
de Orfeu e Narciso, em oposição ao Reino de Prometeu, sendo este
tomado por Marcuse, em Eros e Civilização, como "herói-arquétipo
do princípio de desempenho". Orfeu pacifica e reconcilia o homem
com a natureza. Vale-se, portanto, de uma reerotização que não seja
apenas vinculada ao princípio do desempenho, da procriação, da
genitalidade: todo o corpo, a natureza, as árvores e os animais tor-
nam-se potenciais eróticos. Com Narciso, revelam-se a pacificação
do homem consigo próprio, com a beleza, e a insurgência contra a
dominação e a renúncia aos prazeres.
As imagens órfico-narcisistas são as da G rande Recusa: recusa
em aceitar a separação do objeto (ou sujeito) libidínal. Are-
cusa visa à libertação - a reunião do que ficou separado. Orfeu
é o arquétipo do poeta como liberator e creator. estabelece uma
ordem superior no mundo, uma ordem sem repressão. [... )
Tal como N arciso, (Eros) protesta contra a ordem repressiva
da sexualidade procriadora. O Eros órfico e narcisista é, fun-
damentalmente, a negação dessa ordem - a Grande Recusa.
No mundo simbolizado pelo herói-cultural Prometeu trata-
se da negação de toda a ordem; mas nessa negação Orfeu e
Narciso revelam uma nova realidade, com uma ordem pró-

73 "Dissemos que para Marx, como para Hegel, a verdade está na totalidade negativa. [... ) O
caráter histórico da d ia lética marxista abarca a negatividade vigente e a sua negação . Um dado
estado de coisas é negativo e só pode ser tornado positivo pe la libe rtação das possibilidades
a e le inerentes. Isto, a negaçao da negaç ão, se realiza pelo estabelecimento de uma nova
ordem de coisas. A negatividade e sua negação são duas fases dife rentes do mesmo processo
histórico, associadas pela ação histórica do homem. O "novo" estado é a verdade do velho,
mas esta verdade não cresce firme e automaticamente a partir do estado mais antigo; ela só
pode ser libe rtada por uma ação autônoma dos homens, ação que anulará a totalidade do
estado negativo existente''. MARCUSE, Herbert. Razão e Revolução . Rio de Janeiro, Paz e Terra,
1978, pp. 286 e 287.
ALYSSO N LEAND RO M ASCARO

pria, governada por diferentes princípios. O Eros órfico trans-


forma o ser; domina a crueldade e a morte através d a liberta-
ção. A sua linguagem é a canção e a sua existência é a contem-
plação. Essas imagens referem-se à dimensão estética como sen-
do aquela em que o p rincípio de realidade das mesmas deve
ser procurado e validado. 74

rA utopia em Marcuse, pois, começa negaúva como em Adorno e


Horkheimer, negando o hoje, trabalhando politicamente por sua re-
futação - sendo tal postura a chamada Grande Recusa marcuseana
- para que então se revele o amanhã da reconciliação, a utopia que se
encerrará posm v<::_i

A Grande Recusa é ao mesmo tempo o extremo da negatividade,


da esperança e da utopia, e o ponto sensível da filosofia marcuseana.75
A Grande Recusa é o descompromisso com o sistema da d ominação,
sua denúncia, portamo uma ação política que comporta uma variante
filosófica fundam ental, tomando a filosofia como denúncia da opres-
são do seu tempo. O resultado da Grande Recusa é a utopia do
surgimento da sociedade sem repressão. No entanto, ~ Recusa e a ação
libertaiJ.ora _revelam , em Marcuse, o mesmo impasse d e toda a Teoria
Crítica: a sociedade capitalista contemporânea internalizou nas classes
exploradas a :.acionalida4e opressora, não restando a alternativa dos
freudo-marxistas
. . ·-· - .·
de uma libertação
.... . -· .
pela razão. A utopia, então, em

74 MARcusE, Eros e Civilização, op . cil., pp. 154 e 155.


75 A Grande Recusa de Ma reuse chega a pe rmitir a acusação de fa lta de sentido d a transformaçao
ou de descompromisso com uma perspectiva democrátic a: "Pe rmanecendo preso a um idea l
utópico, o pensamento negativo se transforma em revolucionarismo nostálgico, repassado da
amargura da impotê ncia. [... ] A supressão dos mov imentos regressivos é para Marcuse um
re quisito do refo rço d as tendênci as progressistas. Na p rática, isso s ignifica a adoção de
processos exlrademocráticos de ação po lítica. [... ) Entronizando a violência revolucionária,
Marcuse nao consegue identificar o seu agente soc ia l [... ] Desde que o pro letariado se
adaptou à so ciedade rep ressiva, as forças de emancipação não se co nfunde m mais com
nenhuma c lasse socia l. ' Hoje, e las estão irremediave lmente dispersas através da sociedade', e
as mi norias em luta ent ram freqüentemente em conflito com as suas próprias lideranças. O
agente da revolução não tem rosto definido". MERQu10K, josé Guilherme. Arte e Sociedade em
Marcuse, Adorno e Benjamin. Rio de laneiro, Tempo Brasileiro, 1969, pp. 290 e segs.
UTOPIA E DIREITO

Ma.r_çu~t::, b~ .4~-s~~~el~rtl?~radoxa!!riç_P.-Jei l1Il1_a <iposta, última na fil o-


sofia: a democracia representativa burguesa não representa <!:_vontade
dar:rla:ioria; -po.~q~~--~-~·ãi~ria d~tninada pe~~a já como;i._!.Ilinoria que
a sul;ig~~-Ãpon~ar ~s--~~~-it-os históri~os d~ transformação é o grande
dilema m~rcuseano, porque, desgarrado da possibilidade da alavanca
da denúncia (o que faziam Reich e Fromm contra a Escola de Frank-
furt) , mas, ao m esmo tempo, distante da postura apolítica de
Horkheimer e Adorno , só resta a Marcuse apostar que a filosofia, tal
q.u.al a Escola de Fr~kf~rr, ilum~!1e a negatividade da opressão, mas,
além dela, que os que ainda não tenham sido totalmente contamina-
dos pela racionalidãde da dominação - alguns proletários, os intelec-
tuais; os jovens, hippies, ecologistas etc. - se levantem. A Grande Re-
·-cusa de M arcuse é difusa. .· ·

Num texto de 1969, na euforia dos acontecimentos das rebeliões


estudantis, nas quais Marcuse assume o papel de teórico central, ele
aponta tal margem lata e difusa da possibilidade de transformação:
Na medida em que o processo pseudodemocrático, com a aj u-
da de parte do monopólio da mídia tradicional, produz e re-
produz a mesma sociedade e, assim, uma ampla maioria indi-
ferente, na mesma medida a formação e a preparação políticas
precisam ultrapassar as formas liberais tradicionais. A ativida-
de e o esclarecimento políticos precisam ir além de ensinar e
escutar, discutir e escrever.

A esquerda precisa encontrar meios adequados para quebrar o


universo conformista da linguagem e do comportamento polí-
ticos. A esquerda tem que procurar despertar a consciência
(Bewusstsein) e a consciência moral (Gewissein) dos outros. Que-
brar o modelo corrupto de linguagem e comportamento im-
posto a toda atividade política é uma tarefa quase sobre-huma-
na. Exige encontrar uma linguagem e novas formas de organi-
zação que não tenham mais nada em comum com o uso políti-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

co conhecido. Perante o establishmente a razão estabelecida esse


tipo de comportamento aparece e precisa aparecer como louco,
infantil, irracional. Contudo, poderia muito bem ser o prelú-
dio de uma tentativa, pelo menos temporariamente bem-suce-
dida, de explodir o universo repressivo das relações estabelecidas.

[... J É por faltar um partido revolucionário que, na minha


opinião, esses supostos radicais infantis, embora fracos e des-
norteados, são os verdadeiros herdeiros históricos da grande
tradição socialista. Todos sabemos que suas fileiras estão
infiltradas por agentes provocadores, por loucos e irresponsá-
veis. Contudo, nas suas fileiras também se encontram seres
humanos suficientemente livres dos pecados desumanos da
sociedade explorado ra, suficientemente livres portanto para
cooperar numa sociedade na qual não deve mais existir explo-
ração. É com eles que vou cooperar enquanto puder. 76

A Grande Recusa se revela como a tentativa desesperada de fun-


dar a utopia na negação, para cumprir o projeto de uma esperança
saída não da filosofia dos esperançados, mas dos desesperados.

76 MARCuse, Herbert. " Não basta destruir. Sobre a estratégia da esquerda". ln A Grande Recusa
Hoje, op. cir., pp. 84 e 86.
CAPfTULO 5

BLOCH E LuKAcs: o MARXISMO HETERODOXO

Ao tempo em que a Alemanha se preparava para sua revolução


socialista, em final da década de 1910, logo depois da vitoriosa Revo-
lução dos russos, Bloch e Lukács já eram jovens filósofos insólitos. Em
1919, quando Rosa Luxemburgo marcaria pessoalmente a história da
luta socialista mundial com a derrota de sua revolução, ambos os filó-
sofos eram já marxistas. Também eram recém-hauridos de um conví-
vio intenso com o círculo intelectual de Max Weber. Lukács fora, no
início da década de 191 O, o escritor de sólidos estudos estéticos de
fundo idealista, A alma e as formas e Teoria do Romance, o mesmo que
insolitamente arremataria a década na preparação de um dos maiores
clássicos de toda a história do marxismo, História e Consciência de Classe.

Ao contrário deste grande movimento de virada lukacsiano, Bloch


já acentuava os traços de uma visão filosófica estabilizada. Marxista
mais velho que Lukács, também jovem e ainda na década de 191 O,
escreveria O Espírito da Utopia, um dos marcos de uma visão insólita
do marxismo e uma das obras marcantes da filosofia do século XX. Ao
mesmo tempo, já prenunciava em sua obra de juventude a temática
que o perseguiu por toda a vida: a utopia, que se revelava numa
escatologia marxista aberta à religião e às tradições filosóficas mais
amplas, apontando para a esperança de um mundo justo.

A distância que se deu entre os Lukács e Bloch maduros é tam-


bém, de certa maneira, o volteio de um Lukács impregnado da faina
política concreta do mundo soviético, responsável por auto-revisões
ALYSSON LEANDRO MASCARO

de seu pensamento, enquanto para Bloch os problemas políticos não


foram capazes de fazê-lo alterar a rota de um pensamento cujos temas
eram especificamente mais buscados que os de Lukács. Terminaram
ambos sua trajetória intelectual, na década de 1970, sem a aceitação
plena do marxismo ocidental, que era menos engajado que ambos, e
sem a aceitação do marxismo oficial soviético, que os enxergava como
heréticos. Além disso, foram proscritos pela maioria da filosofia bur-
guesa não-marxista. Embora coerente com suas paixões, Bloch fora
tragado pela ausência de paixões dos novos tempos, o mesmo se dando
com Lukács. Foram heterodoxos tanto para a ortodoxia soviética quanto
para os cânones do marxismo ocidental.

A INTELECTUALIDADE QUE SE TORNA MARXISTA

Bloch e Lukács introduziram-se no círculo de Weber, e ambos eram


tidos por esse grupo como místicos religiosos preocupados com questões
apocalípticas, no dizer irônico a seu respeito daqueles que conviviam
com Weber.77 Trata-se de uma clivagem peculiar: o weberianismo, ao
acentuar o desencanto com o mundo promovido pelo capitalismo, leva-
va Lukács e Bloch a um cur!oso movimento escatológico, que já anteci-
pava muito de suas futuras posições. A rejeição ao capitalismo de ambos
é uma certa forma d e n egação da modernidade impessoal e
desumanizada. O romancismo é a possível localização do posicionamento
dos jovens pensadores na década de 191 O. Desse diapasão, sairia a
ambivalência dos dois filósofos: o flerte com o romantismo é dado pelas
mesmas causas que os levaram, depois, ao marxismo.

77 •Lukács e Bloch integravam o círculo de inte lectua is que freqüentavam os seminá rios privados
de Max Weber e m He idelbe rg, antes da 1• Guerra Mundial e procu ravam inc utir nos demais
pa rticipa ntes seu s ideais neo-rom â nticos. Jaspers, que també m faz ia parte daque le gru po,
recorda-se de ambos como 'gnóst icos que compartilhavam suas fantas ias teosófi cas em círcu-
los sociais'". SOLON, Ari Marce lo. Teori<1 da soberania como p roblema da norma j urídica e da
decisão. Po rto Alegre, Sérgio Fabris, 1997, p. 177.
UTOPIA E DIREITO

Havia, no ambiente alemão de início do século XX, uma explosi-


va reação ao liberalismo e ao domínio impessoal capitalista, que pode-
ria ser representado, no plano filosófico, pela insurgência contra o
neokantismo e suas variantes. Uma primeira grande corrente filosófi-
ca, cujo arco vai desde Spengler até Heidegger, passando antes disso
por Nietzsche, encaminhava a crítica da moder nidade para os
quadrantes do conservadorismo e do reacionarismo. Uma segunda
corrente, progressista, valeu-se novamente de Hegel para trilhar os
caminhos que redundariam ao final em Marx.

O romantismo é um movimento amplo que comporta tanto as


variáveis reacionárias quanto as de esquerda. O more de Bloch, aliás,
em seus escritos de juventude, era justamente o de valer-se do passado
como fonte das utopias do futuro. N a década de 191 O, quando Lukács
se abeirou d o ambiente weberiano de Bloch, as sementes dos mais
opostos caminhos de negação à modernidade ainda estavam sendo
germinadas, muito próximas umas das outras, no mesmo solo.

O trajeto inicial de Bloch revela-se uma espécie de anunciação de


toda sua obra posterior. Sua metodologia, desde o início , é um
amálgama de metafísica com marxismo, do qual nunca quis se desven-
cilhar no futuro . Suas imagens, suas recorrências, seus temas e aborda-
gens são insólitos. Pesquisando na história religiosa os discursos de
Thomas Münzer, por exemplo, Bloch dará mostras da amplitude do
seu panorama filosófi co, que tinha no marxismo uma espécie de avalista
final, mas não necessariamente de condutor imediato.

Lukács, neste sentido, só se deixou levar por alg um amálgama


filosófico não-marxista no seu início de reflexão. H istória e Consciên-
cia de C/,asse, seu principal livro, é o último não totalmente marxista,
na opinião do próprio autor, que fez uma série de revisões e negações
de sua obra. Lukács era autor de temas peculiarmente clássicos do
marxismo: suas abordagens da consciência de classe, da ideologia, es-
ALYSSON LEANDRO MASCARO

cavam na tangente entre o núcleo essencial do marxismo e a sua here-


sia. Bloch muito pouco preocupou-se por centrar sua obra nas ques-
tões fundamentais do trabalho e da economia política: estava fora da
tangente, atingindo o núcleo dos temas marxistas como quem, de uma
margem do rio, atravessa à outra não a nado, mas por um cipó nas
árvores. No sentido filosófico, no entanto, Bloch fazia o mesmo trajeto
de todos os outros m arxistas, visando a crítica da sociedade capitalista;
apenas o fazia ao seu modo.

MESSIANISMO, ESCATOLOGIA E ROMANTISMO

Bloch e Lukács eram reputados, no círculo de Max Weber, como


jovens apocalípticos e messiânicos. De fato, a formação de ambos esta-
va ancorada numa espécie de escatoÍ~gÍa religi<}sa_e moral gue aponta-
.Y~- p~r~ o a~anhã como redenção.· O marxismo seria, p;~a ambos, a
ferramenta de concretização desse novo tempo aguardado. Núm mes-
-mÕp-~~~~sso de entrelaçamento de messianismo e marxismo, aliás, está
também Walter Benjamin, que compartilhou de uma certa escatologia
judaica e cultivou uma profunda ligação com Gershom Scholem. Este
aponta para o fato de que todos beberam diretamente das fontes da
mística judaica e, posteriormente, tendo um mesmo horizonte comum,
conviveram e compartilharam do marxismo escatológico como resul-
tado de suas inquietações anteriores. Tratando de Benjamin:
Entre as categorias judaicas que ele havia introduzido como
tais e defendido até o fim, está a idéia messiânica; nada é mais
falso que a noção de que ela tenha provindo, em Benjamin, da
obra de Ernst Bloch, embora os dois se encontrassem no ter-
reno judaico - principalmente, a idéia da recordaçáo.78

78 ScH OLEM, Ge rshom. O C olem, Benjamin, Buber e outros j ustos : Jud<iica /. São Paulo, Pe rspec-
tiva, 1994, p. 2 1O.
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UTOPIA E DnUlJTO

Em Bloch, a nitidez desse messianismo é explícita, muito maior que


em Lukács e Benjamin. Ainda mais que nunca rejeitou, ao contrário de
Lukács, durante roda sua vida, suas perspectivas escatológicas. A grande
influência inicial de Bloch é, certamente, a mística judaica. Junto dela, o
movimento gnóstico, além de uma espécie própria de consideração a
respeito do protestantismo e do catolicismo, formarão a base do explosi-
vo pensamento blochiano. A gnose, com suas perguntas a respeito das
origens e do futuro e de quem são os homens, oferece uma espécie de
linguagem básica dos textos de Bloch . Toda introd ução de seus livros,
aliás, apresenta algumas páginas de abertura que convidam a essa refle-
xão profunda e tocada por sentimentos que parecem estar ligados por
uma oculta cumplicidade entre o escritor e o leitor.

A cabala, por sua vez, é outra das recorrências freqüentes de Bloch.


No Espírito da Utopia, em sua parte final, Bloch acena para uma jun-
ção muito significativa. Bloch denomina o último capítulo de sua obra
"Karl M arx, a morre e o apocalipse". Nesta triangulação, expõe o fun-
damento de uma compreensão dialética da história, vinculada à liber-
tação e apontando para uma espécie de M essias que será a revolução.

Lukács, por sua vez, tem duas fases distintas em seu pensamento
messiânico. O marxismo lhe rep~·esentará n ão uma superação que ain-
da carreia consigo a escatologia, como ocorreu com Bloch, e sim um
afastamento da temática d a utopia mística. M as nas primeiras obras,
como na Teo ria do Romance, a inspiração de Lukács - no que era ple-
namente acom panhado por Bloch - é claramente a mística russa. Os
russos, segundo o entendimento de Lukács, po r meio de D ostoievski,
Tolstoi e outros, haviam logrado um afastamento da vil mercantilização
alem ã e ocident al. 79 N estes, a alma se esvaziava em troca d a

79 Gabriel Cohn, tratando de Weber: "Além de suas repetidas refe rências a To lsto i, há indíc ios de que
Dostoievski exerceu considerável fascínio sobre e le, tanto assim que forneceu temas para boa
parcela de seus contatos com o jovem Lukács, que na época estava às vollas com preocupações
semelhantes". COHN, Ga briel. Crítica e Resignaçao. São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 158.
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homogeneização do capital. Os russos ainda apontavam um caminho


de comunhão que, no pensamento lukacsiano, era a trilha da supera-
ção da crise capitalista do ocidente. Apontando em Dostoievski um
possível caminho para, através do romance, superar o tempo presente
em busca de um pleno futuro, Lukács anuncia a sua mística da utopia,
denunciando o pecado do presente:
Ele [Dostoievski] pertence ao novo mundo. Se ele já é o Homero
ou o Dante desse mundo ou se apenas fornece as canções que
artistas posteriores, juntamente com outros precursores, ur-
dirão numa grande unidade, se ele é apenas um começo ou já
um cumprimento - isso apenas a análise formal de sua obra
pode mostrar. E só então poderá ser tarefa de uma exegese
histórico-filosófica proferir se estamos, de fato, prestes a dei-
xar o estado da absoluta pecaminosidade ou se meras esperan-
ças proclamam a chegada do novo ~ indícios de um porvir
ainda tão fraco que pode ser esmagado, com o mínimo de
esforço, pelo poder estéril do meramente existente. 80

O messianismo lukacsiano, que no início era o impulso do ama-


nhã contra seu tempo, vai dar lugar a uma disputa pelo presente. O
marxismo apregoado por Lukács abandona Dostoievski para, em seu
lugar, fincar bandeiras de uma estética realista. Bloch prosseguirá, no
entanto, num marxismo místico, e sua estética há de se converter em
expressionismo. 81 Começa aí a separação.

80 LuK ÁCS,Georg. A cearia do romance. São Paulo, Duas Cidades/34, 2000, p. 160.
81 "Ne sse momento, entretanto, os caminhos dos dois amigos apocalípticos dosto ievskianos de
Heidelberg começam a se separa r: enqua nto Bloch continua ainda a se referir às fontes
religiosas místicas, messiânicas e heréticas - em seu Thom;is Munz er se diz seguidor da
'imensa t radição' da qual participam os cátaros, os valdenses e os albigenses, Eckha rt, os
hussitas, Münzer, os anabatistas, Sébastie n Frank etc.-, Lukács, exilado em Viena, torna-se um
dos principais di rigentes do Partido Comunista Húngaro, e a problemática religiosa desapa-
rece pouco a pouco de sua obra. E quando, dez anos mais tarde, publica em Moscou uma
v iolent a diatribe contra o 'reacionári o' Dostoievs ki (que Bloc h não perdoará jamais), o
rompimento ideológico entre os doi s homens se consuma". LOWY, Michael. Romantismo e
messianismo. São Pau lo, Perspectiva/Edusp, 1990, p. 66.
UTOPIA E DIREITO

UMA DIVERGf.NCIA NAS CONCORDÂNCIAS: O EXPRESSIONISMO

Nas palavras de Bloch, entre ele e Lukács, no início de seus traje-


tos filosóficos, havia uma espécie de "vaso comunicante": seus pensa-
mentos coincidiam em todos os aspectos e, por conta disso, cultiva-
vam, com especial atenção, as sutis e potenciais diferenças entre suas
filosofias. Assim se pronuncia Bloch em entrevista concedida na déca-
da de 1970 a Michael L6wy:
Portanto, em Budapeste, conheci Lukács mais profunda-
mente que na casa de Simmel em Berlim, e rapidamente
descobrimos que tínhamos a mesma opinião sobre todas as
coisas; uma identidade tão grande sobre pontos de vista
que fundamos uma "reserva nacional" (Naturschuptzpark)
de nossas diferenças; para que não disséssemos sempre as
mesmas coisas. 82

Lukács se debruçara, logo de início, nas questões estéticas, no que


resultaram suas obras A alma e as formas e Teoria do Romance. Bloch
também era um apaixonado da estética, mas, conhecedor de música,
dedicava-se a uma análise cultural de uma envergadura mais ampla,
detendo-se com mais atenção, então, no problema musical. Mais que
isso, ele se valia da estética de forma mais marcante que Lukács: Bloch
não só era um estudioso da estética, mas sim era ele próprio um artista
expressionista no seu estilo de escrita filosófica.

Thomas Münzer, Teólogo da Revolução é o exemplo da utilização


do expressionismo como forma de alcançar objetivos filosóficos mais
profundos. Sua imediata implicação é a utilização, por parte de Bloch,
do ensaio como forma de comunicação. Composto de pedaços sufici-
entes e autônomos, Bloch visa a formação de um painel, que alcance

82 LówY, Michael. A Evolução Po/(tica de Lvkács. São Paulo, Cortez, 1'198, p. 296.
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não apenas o nível do intelecto, mas também o nível da sensibilidade e


da vontade do leitor. 83

As imagens tipicamente expressionistas, de forte coloração e


visualização, sempre foram os recursos utilizados pelo texto blochiano.
Tal qual as parábolas evangélicas, essas imagens têm um sentido de
arrebatamento, que impossibilitam qualquer indiferença em relação
às questões tratadas. A aparente fragmentação do ensaio é, na verda-
de, a possibilidade estilística de arrebatar, procedendo ao modo de
socos intelectuais, e não do modo de fluência que, ao fazer de todos os
tópicos uma seqüência analítica formalmente ligada, não abra espaço
para o respiro que leva à transformação do pensamento.

De alguma forma, é de se dizer, Bloch associa o expressionismo ao


marxismo, no sentido de que este é uma filosofi a que busca a transfor-
mação, conforme a Tese Xl contra Feuerbach e que, portanto, não
pode se bastar apenas na fri a confrontação de idéias. O expressionismo,
para Bloch, era urna possibilidade de fazer da filosofia uma educação
revolucionária e, portanto, um evangelho do futuro.

Já O Espírito da Utopia é amplamente tomado por tais referênci-


as expressionistas, cuja estrutura estilística foi depois ainda mais
exponenciada em Thomas Münzer.1:J..I?a das l!la,is .r~co.r.r encesimagens

83 Theodor Adorno, nas Notas de Literatura, é um dos primeiros a apontar uma indissoc iável
característica utópica no ensaio, que pode ser observada no pensamento de Bloch: "O ensaio
não apenas negligencia a certeza indubitáve l, como também renuncia ao ideal d essa certeza.
Torna-se verd adeiro pe la marc ha de seu pensamento, que o leva para a lém de si mesmo, e não
pela obsessão em buscar seus fu ndamentos como se fossem lesou ros e nte rrados. O que
ilumi na seus con ceitos é um terminus ad quem, que perma nece oculto ao p róprio ensa io, e
não um evidente terminus a quo. Assim, o próprio método do ensaio expressa sua intenção
utópica. Todos os seus conceitos devem ser expostos de modo a c a rregar os outros, cada
conceilo deve ser articu lado por suas configurações com os demais. No ensaio, elementos
d iscretame nte separados entre si são reunidos em um todo legível; ele não constrói nenhum
an da ime ou estrutura . Mas, e nquanto configu ração, os e lementos se cristalizam po r seu
movimento. Essa configuração é um campo de forças, assim como cada formação do espírito,
sob o olhar do e nsaio, deve se transformar em um campo de forças". A DORNO, Theodor. Notas
sobre literatura /. São Paulo, Duas Cidades/Ed. 34, 2003, p. 30.
UTOPIA E DIREITO

de Bloch ~ a. do futuro como um tempo novo. ~.!:!tl.ç_i_ação do


fl!!urn COJ119. a superação ressalta, também, o presente como ambiente
dos p_e queno-burgueses, pregtiiÇósos, que conduzem. ao túmulo do
~s_pírito . ..Q.e ~utro lado, Bloch identific~ na imagem da juventude a
3.,1.~r~.<l.Aª ma~c;ha pelo futuro melhor.
84

Lukács poderia estar tentado a se comunicar com o mundo


expressionista de Bloch, porque também é um pensador cujos textos,
em linguagem fácil e direta, primam a princípio pela simbologia que é
peculiar também a Bloch. No entanto, cultivavam uma diferença esté-
tica que poderia ser o germe da divergência de suas futuras carreiras
6losóficas. Lukács distanciou-se do expressionismo para bater nas por-
tas de algum classicismo e, principalmente, do realismo.

No entanto, embora se aproprie cada vez mais do pensamen-


to de Marx, a filosofia de Bloch guardará sempre uma dimen-
são romântica (revolucionária). É esta a razão de sua profunda
identidade com Lukács até 1918 e de sua progressiva separa-
ção depois dessa data. D a entrevista que nos deu, depreende-
se claramente que Bloch considerava as novas posições de
Lukács, depois da guerra, como uma espécie de traição das
suas idéias comuns, na juventude. A célebre polêmica entre
os dois amigos-rivais, sobre o expressionismo nos anos 30,
não é mais que o resultado desta divergência fundamental entre
um marxismo de cores neo-românticas e um marxismo rigo-
rosamente "neoclássico". Ainda mais significativa é a diferença
de suas análises e atitudes políticas em face do fascismo na
Alemanha: Lukács denuncia com veemência o pensamento
romântico da passagem do século como raiz ideol6gica do fas-
cismo e procura a salvação numa aliança político-cultural com
a burguesia esclarecida e democrática (encarnada, a seus olhos,

84 Cf. M ü NSTER, Arno. Utopia, messianismo e apocalipse nas primeiras obras de Ernst Bloch. Silo
Paulo, Ed. Unesp, 1997, pp. 165 e seg.
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por Thomas Mann). Bloch, ao contrário, vai analisar em


Erbschaft dieser Zeit (A herança de nossa época, 1933) o mundo
cultural contraditório e despedaçado da pequena burguesia
alemã, tentando separar a esperança e a revolta autênticas de
seu contexto reacionário. 85

De outro lado, Lukács começou a se distanciar de Bloch ao acu-


sar o expressionismo de uma ambigüidade que pode se prestar à rea-
ção. Embora Lukács reconhecesse em Bloch uma abordagem diversa
do expressionismo, eminentemente crítica, viu no seu amigo de juven-
tude a utilização de urna corrente estética que, na sua opinião, servia
mais ao reacionarismo nazista que propriamente à ruptura da trans-
formação. Bloch, no entanto, não abandona sua perspectiva
expressionista e a reitera, para além das suas obras de juventude, em
outras posteriores como Herança desse tempo, da década de 1930.

Segundo Bloch, o expressionismo era um humanismo; ori-


entava para o humano, buscando quase exclusivamente o
humano e a forma adequada para expressar o seu incógni-
to, aquilo que no homem é misterioso, escondido, desco-
nhecido. Não se trata de tomá-lo como exemplo, fazendo
dele um precursor do humanismo revolucionário, materia-
lista, que para Bloch era o verdadeiro humanismo. Contu-
do, deve ser considerado como alternativa ao "realismo so-
cialista", para expressar um mundo em declínio reduzido a
um monte de fragmentos. 86

Durante as décadas de 1920 e 1930, no ajuste de Lukács com o


marxismo oficial soviético, as possibilidades da filosofia estética foram
por ele reduzidas ao classicismo, cuja escolha se justificava pela maior
aderência com a realidade, o que redundaria, numa vertente próxi-

85 LOwY, A evolução política de Luk;ícs, op. cit., p. 70.


86 ALWRNOZ, Suzana. O enigma da esperança. Petrópolis, Vozes, 1998, p. 44.
UTOPIA E DIREITO

ma, no realismo soviético. Thomas Mann, na literatura, passa a ser o


modelo daquilo que se possa considerar objetivação da realidade. 87

No conturbado ambiente húngaro de 1919, após a derrota polí-


tica dos socialistas, Lukács, que havia sido ministro da Educação, ter-
minará preso e no aguardo de severas penas. Thomas Mann, um dos
principais nomes da burguesia alemã e do ambiente cultural clássico,
é um dos intelectuais que se lançam em seu apoio, declarando que,
embora divergisse em idéias com Lukács, respeitava sua integridade
pessoal. Lukács, desde o início de suas reflexões estéticas, sempre man-
tivera uma relação de aproximação e de consideração com o estilo
clássico de Mann.

Alguns anos mais tarde, na Montanha Mdgica, o personagem


Naphta levantaria uma curiosa indagação dos críticos, alguns dos quais
o identificavam com Lukács ou com Bloch. Mann nunca revelou, por
certo, a origem do personagem, que poderia ser, ainda, um compósito
de várias inspirações. 88

Ü CAMINHO AO MARXISMO NAS PRIMEIRAS OBRAS: SOBRE A


TOTALIDADE

Lukács tem fases marcadas em suas obras, o que leva seus intérpre-
tes a separarem um jovem pensador do escritor da maturidade. Bloch,

87 "A novidade consiste em que, a partir da década de 1930 [... ] Lukács não é mais um
intelectual que, da crítica da cultura movida por um anticapitalismo radical ('anticapitalismo
romântico'), extraia conseqüências ético-políticas exteriores à práxis política; ao contrário, na
década de 1930, é a política que dá novas formas e conteúdos à problematização da cultura
moderna, em um contexto em que, ao mesmo tempo, se afasta da atividade política direta".
MACHAUO, Carlos Eduardo Jordão. Um capítulo da hislória da modernidade escélica: debate
sobre o expressionismo. São Paulo, Ed. Unesp, 1998, p. 22.
88 "Leo Naphta é Carl Schmitt. Ou, pelo menos, antes dele, todas essas idéias já haviam sido
proclamadas por Schmitt. (. ..] Apesar desta conclusão, como apontamos elementos de conso-
nância entre Bloch, Lukács e Schmitt nao é de se estranhar que todos se identificassem com
esta personagem". SolON, Teoria da soberania como problema da norma jurfdica e da decisão,
op. cic., p. 184.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

pelo contrário, é um autor persistente, que antecipa na obra de juventu-


de os mesmos temas e abordagens da maturidade, talvez variando ape-
nas no grau de profundidade e de estruturação de suas idéias.

O Espírito da Utopia, a principal obra juvenil de Bloch, é em


grandes aspectos familiar e complementar aos temas e perspectivas da
História e Consciência de Classe, de Lukács. Enquanto a primeira fase
da juventude de Lukács foi marcada por obras não-marxistas (como A
alma e as formas), em Bloch se dá um processo menos pendular. O
Espírito da Utopia tem duas versões no espaço de alguns poucos anos
(1918-1923), mas a diferença entre tais versões não é de passagem de
um não-marxismo para um marxismo, e sim de uma escatologia acen-
tuada para uma mais contida, mas marxista em ambas as versões.

Bloch, logo na primeira versão do Espírito da Utopia, deixava explíci-


ta a opção por um marxismo escatológico, cujas últimas razões buscará
nos movimentos heréticos do catolicismo medieval, na visão judaica e na
mística. O pêndulo lukacsiano foi maior. Lukács, vindo de um idealismo
mais presente que o de Bloch, converte-se ao marxismo com mais ênfase e
plenitude. Lukács era mais cristão-novo de marxismo que o próprio Bloch,
reforçado ainda pela origem familiar de ambos, este último em classes
proletárias, o primeiro no seio de uma família banqueira.

Dois conceitos revelam-se fundamentais na filosofo1 de juventu-


de d~ L~Úc~; ~eificação e totalidade. Pelo primeiro, compr~ende~s-~ a
.~l~~;~Çio humana no capitalismo, q~e ~oisifi~a o homem e co~.;,erte o
mundo- em mercadoria. A crítica da reificação é a ponte de ligação de
LUkáês-c~~- ó h~m~~ismo, ao mesmo tempo em que abre -~ po-ssiblI!~
dade de uma genealogia comu~ da filosofia romântica anticapitalist-â
~·ais ampla. Heidegger, deve-se lembrar, encaminharia uma crítica da
técnica de alguma forma paralela ao c·~nceitÓ. de reificação lukaêSiano:-
A Esc~la de Frankfurt também haveria de abrir uma frente de refle-
-xõ~s s~milar, em parte influenciada por Lukács.
UTOPIA E DIREITO

Pelo conceito de totalidade, no entanto, a filosofia de Lukács al-


cança um ponto de maturação que a distingue, no quadro de todo o
marxismo, pela renovação e florescimento de um pensamento filosó-
fico vigoroso. j\.. dialética hegeliano-marxista, ao abrir olhos ao enten-
dimento dos conflitos da realidade, estendendo ~.compreensão da re-
alidade também à razão, deu marge:m a uma possibilidade de reflexão
fil_o?.c)fica total. Tal interpretação lukacsiana de Hegel é responsável
p~~~ :gi,riiaJidade de História e Consciência de Classe: ao romper com o
-~-~adicional kantismo que separava sujeito e obj_e_to_, consciência e reali-
ga,9~, Lukács agrupa, no conceito de totalidade, a possibilidade de
sgmpreensão geral do movimento da contradição c:a,pitalista. 89

Bloch é pioneiro em ressaltar, no Espírito da Utopia, a similitude



entre seu pensamento e o de Lukács. O grande fundamento de con-
-- --- -· - - ·····- -
vergência está, em Lukács, n~ possibilidade de tomada de consciência
-,,"_____ --~ -·.

~~~~I;;.~:~epioletári~~~ que equivale, em Bloch, ~superação da domina-


ç~o, por meio da completude do homem, q~e n~ mom~~t~-pr~sente
,aipcla não é a totalidade de si mesmo.

Desde o início, no entanto, Bloch explicita, no Espírito da Utopia e


depois na Herança desse tempo, sua discordância com pontos de História
e Consciência de Classe. lUY.t<;§.~ -~~E~ta11].ente contra as. possibilidades
interpretativas ~o conceito de totalidade, apontando o se~ caráter de
~?~?geneizaçãq da realidade. Isto se daria, segundo Bloch, por conta
de um agarramento aos processos sociais objetivos - tomados em senti-
do . .sociológico
.........,. -
- ~_,.,,_
- correndo o risco de se excluir aq_uilo~ qµe fos~~ particu-
. . .-

lar à .....formação
·~------~· _, ..... ,....
.... ..
mais íntima
.
do homem, como a religião. O pano de

89 "Em Lukács, a essência do método dialético, a possibilidade de encontrar a totalidade em


cada momento particular, guardando de cada momento o seu caráter de momento, encontra
expressão real, concreta, na atividade cotidiana do proletário, aquela porta estreita por onde,
em momentos privilegiados, pode se mostrar a realidade das relações capitalistas, já que o
caráter único da situação social do proletariado está em que 'o sair da imediatidade é dotado
de uma intenção para a totalidade da sociedade"'. Noa•E, Marcos. Lvkács e os limiles da
reificação. São Paulo, Ed. 34, 2001, p. 66.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

fundo para tal crítica de Bloch é um entendimento da história que apre-


senta, além de suas grandes linhas dialéticas sociais, uma formação
polirrítmica (polyrhythmisches) 90 , que não se enquadra nas grandes to-
talidades objetivas. Assim sendo, Bloch levanta dúvidas, ainda que par-
ciais, a respeito do eixo central do hegelianismo marxista de Lukács.

Tal_suspeição conduz, da parte de Bloch, a uma proposição di-


versa da de' totalidade. Logo nas suas obras de juventude proporá,
.então,~· utilização do conceito de his.çória polirrítmica, t;~~~-d~ a to-
talida4e histórico-social por esfera. No entendimento de Bloch? _a _esfe-
ra- exprimi~ia os múltiplos níveis da relaÇão sujeito-objeto, ou seja, não
d~í-i~ conta ape~as do momento objetivo da consciência de classe ou
da consciência reificada, mas haveria de se valer também de dimen-
sões mais complexas e específicas dentro desse todo social.

Duas configurações contrapostas do conceito de "herança


cultural" saem, assim, à luz. Em Lukács, a herança é conce-
bida como uma linha contínua e homogênea de progresso.
Em Bloch, ao contrário, a herança se concebe como uma
síntese de múltiplas linhas, que avançam de forma
descontínua e heterogênea, e cujo espaço é com freqüência o
da fragmentação. A~!~p~ctiva de Bloch não consiste tanto
_em voltar-se para-; "não-simultaneid~de" do passado, mas
sim em propugnar que, no terreno da criação cultural, só a
apr~priaçáo (que-exige sempre destruiçã~ e reelaboração) dos
espaços assim~lt:ii.neos produtivos permite um avanço para o
'{~~yr~: Essa será a clave mais profunda, porque se nos liga-
mos ao que aparece na superfície do presente, a critérios como
a primazia da necessidade política imediata, impedimos do-
tar a ação revolucionária de um autêntico suporte cultural e
antropológico. Para Bloch, não há nenhuma matéria de re-

90 BLOCH, Ernst. Erbschati dieser Zeil. Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p. 124.


UTOPIA E DIREITO

núnci a nos produtos culturais do home m; tudo é


dialeticamente utilizável num sentido positivo. 91

A abertura para conceber a totalidade como polirritmia é muito


próxima de outro rema blochiano ~ também tratado com grandes
detalhes na Herança desse tempo-, que é o da não-contemporaneidade.
Para Bloc~, ?- his.~óri_a não. é._um.evento de ll1:Il tempo puramente line-
;~,--~o q~a(os acontecimentos e as condicionantes sejam dados por
~;~~Õ-~§ _9bjeti~a4as uniformemente. Ó tempo hist órico soma deman-
~d,~~.4o presente com outras do passado, dominações novas com velhas,
aspiraçé)e.s. a.~ mais distintas,
,-- ~-- •'. . e por isso_<t h~stória é polirrítmica. Daí
dizer que não há uma totalidade que, por meio de uma vanguarda
. ~resente, ou então por meio da constatação das últimas formas de
dominação, ilumine o rodo social. O conceito de esferas representa,
~- ~!.º_:=_h, justamente o faro de que há parcialid°~d~~ n<?t~do~-· e tais
~E._ecifici dades são responsáveis por uma totalidade contraditória nas
su~.S.~.P!~p~i~s contradições. Tal história não é totalizável pelas suas últi-
mas fronteiras; ela arrasta consigo espaços variados (vielraumiges) de
tempos e demandas distintos, que não podem ser olvidados ou ultra-
passados sem mais pelo presente. Assim, na Herança desse tempo, a
história se apresenta:

Polirrítmica e pluriespacial, com locais ainda n ão muito con-


trolados e ainda de forma alguma ultrapassáveis. 92

· ~. É pelo conceito de história polirrítmica que Bloch abre margem


para a antecipãÇão, q~~- é~- f~~J;~~nt;-·d~· sl.lãUt:opii revõTücionária.
Sendo-?-~-~~p~ his-tórico móldplÕ, .op-~~~ad~ ai_~~~i~~ n9~r~~~~i! e,
~;s;im sendo,-é p-Õssível também, p~lo~ sonhos atuais, antecipar para _
I10~ii.futl1ro. Sua utopia concreta gi~ar~ ~m torno. d~~sa p~s~ibiÚdad~
de antecipação. Lukács, no máximo, valia-se de um conceito menor

91 J1MÉNEZ, José. La estelica como utopia antropologica. Bloch y Marcuse. Madrid, Tecnos, 1983, p. 75.
92 8LocH. Erbschatt dieser Zeit, op. cit., p. 69.
.Al.YSSON LEANDRO MASCARO

quando tratava de apontar ao futuro: a categoria da "possibilidade


objetivà', ligada às condições sociais objetivamente dadas, que seria
para Lukács o máximo de utopia suportável ao marxismo. Bloch, para
abrir margem à utopia, há de descartar a totalidade da relação sujeito-
objeto em Lukács.

De sua parte, Lukács demonstrava profunda reticência para com


O Espírito da Utopia. 93 Talvez desconsiderando a possibilidade efetiva
de diferenciação entre a utopia idealista e a utopia concreta, que é o
cerne da proposição filosófica de Bloch, Lukács há de reforçar o cará-
ter objetivo das possibilidades da totalidade contra as "esferas" de di-
versos níveis de Bloch:

Quando, portanto, Ernst Bloch acredita encontrar nesse vín-


culo dos religiosos com os revolucionários no sentido social e
econômico um caminho para o aprofundamento do materia-
lismo histórico e "meramente econômico", ignora que seu
aprofundamento passa justamente ao largo da profundidade
efetiva do materialismo histórico. Ao conceber o elemen.to
. econômico igualmente como coisa objetiya, à qual devem se
contrapor o anímico, a interioridade etc., esquece que justa-
mente a verdadeira revolução social só pode ser a remodelação
da vida concreta e real do homem e que aquilo que se costuma
chamar de economia não é outra coisa senão o sistema das
· formas de objetivação
----···· . . ··-- .. .. . .-
dessa vida real. 94-
e. ·: ..-·>.. -. ·~ ~· ·::.·-.
':-,'•
<;:\i.•\.,~
..... ·'·.,··:· ·''•·'
.,;;-·. · ,··.'
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---------------- ~;_.. ! , 1~ '~-V~,~~" . .,,·. ' ..... ·· · ., .,.·\·~ 1· . . .
.. 1 :( ··~\ "",;:\ "\ •.

93 Bicca, tratando da recusa de Lukács à utopia de Bloc h: "O tema utopia dá ense jo para o
surgimento das primeiras discussões decisivas entre Bloch e Lukács. [... l Sua recusa da utopia
apóia-se essencialmente em quatro censuras, que resumem a sua c rítica: 1) a utopia provoca
uma separação entre consciência e ser, isto é, uma mud ança na consciência sem tra nsforma-
ção do ser histórico-social; 2) do ponto de vista epistemológico, e la é um empirismo camufla-
do; 3) em suas formas modernas, ela era, no fundo, ideologia do futuro capitalismo liberal; 4)
há nela, realmente, uma cisão entre conteúdo ideológico-utópico e ação concreta. Daí se
conclu i: a utopia é apenas a ' reprodução fantástica da insolubilidade do próprio problema"'.
BicCA, luiz. Marxismo e Liberdade. São Paulo, loyola, 1987, p. 130.
94 LuKÃcs, Georg. História e Consciência de Classe. São Paulo, Martins Fontes, 2003, pp. 382 e 383.
UTOPIA E DIREITO

Tais oposições serão responsáveis por encaminhamentos diferen-


tes de problemas políticos concretos e específicos. O fenômeµo do
st~~~?-~5.rnº atinge Lukács. e Bloch de modos_.~!~~~~~9~·O pe~sament~
'd,~ L~ká~s, ~<{~o~~iderar. a totali9-a,de como um dado objetivo, poderá
cl_;ir r:riargem a compreender a ditadura do proletariado como o movi-
.menta que unifica o todo social, ainda que ili~ ~e~~ssariamente de
IE999 dem.ocrático. 95 A vanguarda de classe seria a expressão do todo.
Bloch, de outra sorte, ao c~;npreender uma história polirrítmica, é
;berro a_~ma luta de classes que não se arrogue a lidera~ça do todo.
~a~~-~-l?c_~, politicamente, é preciso deixar margem a uma democra-
~~ __q_ue carreie sonhos e necessidades variados.

É por isso que a possibilidade de compreensão da história como


esfera, polirrítmica, da parte de Bloch, leva-o a um partidarismo sem
partido. Por tal conceito, refere-se à independência da totalidade a que
se arroga a vanguarda partidária, ainda que mantendo os vínculos es-
treitos com as lutas políticas objetivas. Lukács, por sua vez, há de se enca-
minhar politicamente em sentidos contrários. Sua adesão ao leninismo e
sua ambivalência em face do stalinismo custaram-lhe caro no seu
posicionamento político, mas revelam muito das "possibilidades objeti-
vas" que desde a História e Consciência de Classe vinham se esboçando.

No entanto, dessa diferença de filosofia política concreta, pode-se


vislumbrar o cerne da discordância profunda entre tantas convergências
de ambos os jovens pensadores: embora ambos não fossem nem filósofos
do marxismo oficial nem do típico marxismo ocidental, sendo assim dois
párias em sua época, Lukács é o filósofo do marxismo das condições pre-
sentes, Bloch é o filósofo do marxismo das possibilidades futuras.

95 "O proletariado como um todo, assim como as partes, está livre das contradições que perpas-
sam cada proletário singular; Lukács dá um salto do proletário isolado ao proletariado, que
ele não hesita em imediatamente valorizar como substância. A dialética do geral e do particu-
lar, cuja falta foi um motivo essencial da impossibilidade de solução das antinomias do
pensamento burguês, é resolvida em favor da generalidade"_ NEGT, Oskar e KLUGE, Alexander.
O que há de polllico na polilica? Sao Paulo, Ed_ Unesp, 1999, P- 124.
CAPÍTULO 6

O SER-ArNDA-NAo

A situação filosófica de Bloch no quadro do marxismo revela uma


grande distância do dogmatismo oficial do seu tempo, mas, no fundo,
não deixa de trilhar caminhos que também foram paralelos a grande
parte do pensamento marxista tradicional. Junto com Lukács, dedicou-
se a desvendar as trilhas que ligavam Marx a Hegel e, nesse procedimen-
to, perseguiu trajetos filosóficos que eram similares a vários outros pen-
sadores, desde Lênin, que considerava Hegel a condição necessária para
o entendimento de Marx, até chegar a Althusser e outros, que quiseram
estudar a ambos para separá-los definitivamente.

Bloch destaca-se, no entanto, nesse grande painel da filosofia mar-


xista, por uma persistente e recorrente temática que movimentava suas
reflexões. O problema da utopia revela-se, desde o início, o grande rema
de Bloch. Todo o arco dos ramos da filosofia- filosofia da estética, polí-
tica, do direito, da religião - está orientado, para Bloch, de acordo com
o problema da utopia, e tem por ambiente de diálogo o marxismo.

Dentre tantas obras - todas muito peculiares e insólitas 96 - de


uma longa carreira- Bloch faleceu em 1977, aos 92 anos-, a primei-

96 "Parece-me que a grande força de Bloch não reside somente na sua sen sibilidade e na sua
generosidade, mas na capacidade de falar com profundidade das coisas as mais simples. (. .. )
Bloch nos fala por meio de um tom distante e familiar. Ele evoca a pai sagem espiritual,
filosófic a, estética de sua geraçao e nos impulsiona a interrogar sobre a nossa. Sua obra não
comporta nenhuma resposta, e sim indagações. Ele parece atravessar as épocas, as gerações,
como uma estranha música que ressoa em cada um de maneira diferente, com a mesma
emoção". PALMIER, Jean-Michel. "Em relisant ' l'esprit de l' utopie' ou Priere pour un bom usage
d'Ernst Bloch". ln Réificalion el Utopie: Ernsl Bloch & Gyórgy Lukács un siêcle apres. Actes clu
Colloque Goethe !nslitul. Paris, Actes Sud, 1986, p. 263.
Al.YSSON WNORO M ASCARO

tradicionalismo utópico são a Utopia de Morus, a Cidade do Sol de


Campanella, os franceses socialistas Fourier, Saint-Simon e outros ou,
então, se o arco se estendesse mais, chegar-se-ia, no início, até a Repú-
blica de Platão. Todas essas utopias têm em comum o caráter imagina-
do , exemplar, que servisse como idealização, a contrastar com a reali-
dade. A Utopia de M orus é uma fantasia que se passa em condições
irreais numa ilha imaginária da América do Sul. Tomam a utopia no
sentido no n ão-lugar, do inexistente. São a utopia idealista, abstrata. 98

A proposta de Bloch quanto à utopia é bastante diversa. §~_a_pre-


missa é uma reflexão partida da realidade e de suas contradições, bus-
~~ncfó - -perceber- as-Tãtências e as-possibilidades efetivas. Assim sendo,
há de separar aquela utopia abstrata, idealizada, da utopia conc~eta,
que está ligada à situação real da história e de suas contradições e_que,
por não apostar na projeção ou na idealização, vigcula~se;:á à ativida-
de humana, à práxis orientada para o futuro. ' - -- - - - -
-- ... ' '• ~. 1. •• . ••

N este sentido, o projeto de Bloch está muito próximo do pensa-


mento de Marx, ao ligar-se às condições da realidade objetiva e ao
acentuar o problema da atividade humana e da práxis, ainda que com
vistas ao futuro. Entretanto, Bloch consegue dar um salto filosófico
em relação ao próprio Marx: considerará o problema fil osófico da uto-
pia não apenas no sentido negativo, da fantasia que projeta o inexistente,
como fora entendida por Marx e Engels, mas sim há de chegar a uma

98 "A impressiona nte polêmica de Ma rx e Engels fe z com que, tanto de ntro qua nto fora do
marxismo, o termo '_utópico' pJssasse a ser aplicado correntemente a um socialismo que apela
à razão, à justiça e à vontade do home m de orde nar uma socie dade desarticul ada, ao invés de
limitar-se a apresentar à c onsciência ativa o que as condiçôes de p rod ução já haviam prepa-
rado di aleticamente. Co nsidera -se como utó pico todo socialismo voluntarista , o que, de
modo a lgum, significa que esteja isento de utopia o soc ialismo que a e le se o põe, e que
poderia ser classificado de necessitarista, por declarar que sua única e xigênc ia é que se faça
o necessário para que sobrevenha a evolução . O s elementos utópicos que este conté m são,
evide nte me nte, de outro gê nero e afetam a outra ordem de id éias". BuBE ~, Martin. O socialismo
utópico. São Paulo, Perspectiva, 1986, p. 20.
UTOPIA E DIR.EITO

compreensão em positivo da utopia. 99 O sonh~, a imaginação, o dese-


i~' são alavancas da atividade humana social e, portanto, inscrevem-se
':1º !?~ande projeto geral de transformação proposto pela filosofia mar-
xista. __Neste sentido, revolver a esperança no futuro melhor é valer-se
~e armas revolucionárias poderosas.

As CARACTERÍSTICAS DA UTOPIA CONCRETA: O SONHO DIURNO

O caminho de Bloch para a construção de uma filosofia marxista


da_J.!topia .começa da constatação da incompletude humana: o ho-
mem deseja porque ainda não tem, tem esperanças porque ainda não
é. A causad_~ ta,is desejos, dirâ Bioch no Princípio Esperança, reside na
ne~~;s~~ade (Bedürfois), na ca~ê~cia (Mang~,b. Bloch vale-se recorren-
temente, na maior parte de suas obras, dessa imagem da carência,
exemplificada pela fome. Ela é a fome do alimento físico, constituinte
da necessidade humana da busca, mas também é tornada, em muitas
<_:>~.ª-~i§e$, como fome no sentido simbólico e amplo do ter.mo, como as
carências ainda não satisfeitas da humanidade.

_O conceito blochiano de fome leva ao impulso ( Trieb) . 1 ~~ - 9-l!~~­


se dizer, com isso, que a carência' se direcionará ao huscar. Ã necessida-
~~cond·~~I rn.~-â~~Ç~,· q~e 1ffipõe··a:·su;c~-dé'uma·il~~~i-~~~Ção, t~n-
do err: vista a superação da fome. Por conta desse impulso que parte da
fome, Bloch escalona os níveis da busca humana, a começar por um
desejo vago, até chegar ao nível profundo da vontade.

99 "Porque dão seu dinamismo à filosofia política, as utopias, como observou Ernst Bloch,
propõem aos homens os meios para proverem seu destino à luz de uma visão global do
desenvolvimento histórico. Por isso, segundo observou Bloch, o Princípio da Esperança
anima o mundo. [ ... ! !.".ar.a. que a utopia seja força progressista, é preciso transformar as
aspirações em militância, a esperança em decísão·patítica". HERKENHOFF, João Baptista. Direito
e Utopia. Porto Alegre, Livraria do Advogado, 2001, p. 14.
l 00 Bwrn, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, !. Frankfurt, Suhrkamp, 1985, p. 50 e seg.
Ai.YSSON LEANDRO MASCARO

Tais desejos, que levantam o homem de sua condição de fome e o


impulsionam para mais além, são cotejados, por Bloch, com a teoria
psicanalítica de Freud, buscando traçar possíveis paralelos. A teoria
freudiana constrói uma conhecida e divulgada visão a respeito dos
4~;~J~_s, sit~a,nd~~o·~-no nível das ,fr~strações e das necessidades passa~
das, que se localizam no inconsciente. O impulso, para Freud, se dá
)elo passad9: as feridas do ontem inquietam o pres~nte.

Bl()~h, n este ponto, dá margem a uma teoria dos desejos ampla-


mente diversa da freudiana: no Princípio Esperança, postula os desejos
fu._~.;~~~~-15f;,CBí~éh ·que Freud se ~~ga;{a na medida em que liga os
des~j~~ si-~ples~ente à história passada do indivíduo, centra~do-o nas
inquietações sexuais. O homem possui desejos futuros, motivações novas
qlle devem saciar s_uas necessidades e carências, e tais impulsos não se
devem a causas passadas, mas são amplamente orientadas pelo que
vir~. Neste sentido, Bloch avança sobre o freudismo identificando nes-
te uma teori~ reducionista: as nece~sidades humanas são amplas, e Freud .
não se dá conta de que um dos fundar,nentos do impulso é a fome, a
carência, que são dados sociais, das necessidades oriundas da sociabili-
dade humana e não de sua individualidade apenas.

Prosseguindo em seu paralelo com Freud, Bloch chega a um dos


fundamentos do freudismo, a teoria dos sonhos. Tal qual lida com a
questão do desejo, também no sonho Bloch aponta o caráter reativo
da teoria freudiana, ligada ao passado e negadora do futuro. De fato,
toda a psicanálise freudiana se funda na tentativa de h ermenêutica
dos sonhos como identificação dos traumas, recalques e vivências do
passado do paciente. Bloch chamará estes sonhos de "sonhos notur-
nos'', os sonhos que liberam o passado.

Por isso, em oposição aos sonhos noturnos, Blo_d~ encaminha a


reflexão acerca dos "sonhos diurnos" (Tagtrii.ume), os sonh<;>s acorda-
dos. Propõe essa categoria de sonhos identificando-a com tudo aquilo
UTOPIA E DIREITO

que se faz não mediante a utilização do inconsciente reprimido, mas


s(~ do consciente, que se vale de instrumentos imediatamente racio-
o
nais para sua consecução. sonho diurno é uma deliberada tentativa
de transcendência; o sonho noturno nasce da repressão oculta dos
desejos, de sua castração que precisa inconscientemente ser rompida.

Enquanto no sonho noturno sua irrupção se dá como forma de


engano da autocensura, o sonho diurno se vale de toda a potencialidade
da v~mtade, da fantasia criadora, da deliberada intenção de se furtar ao
presente .remetendo-se para o futuro. Assim sendo, o sonho notui:úo
revelar-se-á P.reso a circunstâncias i~Ó;~i;, girando -~m torno de situa-
s?es.consolidadas, amargurado e reativo port~nto, mas o s~~h() diurno
~á cie se revelar novidadeiro, liberto, propositivo e esperançoso. 101

A utopia há de se valer de tais sonhos diurnos como forma de


antecipação de consciência e realidade. Q sopho diuqig t:em por ca-
racterística ainda não se concretizar efetivamente, mas libera energias
vo_litivas e ex:erc_ícios de consciência e de racionalidade que se encami-
-~ham para o sc;:ntido da concretização posterior. .
~- -··

Há muitas diferenças entre os dois tipos de sonhos no que


tange aos seus objetivos; o modo, bem como o conteúdo da
realização do desejo, são inegavelmente distintos. Isso signifi-
ca sempre o seguinte: enquanto o sonho noturno vive na re-
gressão, é aleatoriamente tragado de suas próprias imagens, o
sonho diurno projeta suas imagens ao futuro ("Künftiges"),
de forma não aleatória, mas, ao contrário, controlável por meio

1 01 Luiz Bicca aponta diferenças entre o sonho diurno e o sonho noturno na perspectiva de
Bloch: "Tais traços diferenciadores são: a) o fato de que as fantasias diurnas se processam sob
absoluto controle do sujeito, podendo, a qualquer momento, ser iniciadas ou interrompidas,
sempre que o Eu assim quiser. São, por conseguinte, manifestações de consciência ou,
quando muito, pré-conscientes; bl semelhante atividade do Eu pressupõe de forma necessária
a ausência do fator interno de censura [___ J Ademais, os sonhos diurnos são marcados ainda:
c) pela intenção de ser de outro modo, de uma vida ou mundo melhor; d) pela possibilidade,
na consciência, de se ir até o fim, de se alcançar os objetivos almejados"_ B1cCA, Luiz.
Racionalidade moderna e subjetividade. São Paulo, Loyola, 1997, p. 234.
---·-~- ---- -·-~ - -··-··--· - ·--·

1\LYSSON LEANDRO MASCARO

da força da imaginação, intermediada pelo objetivamente pos-


sível. O conteúdo do sonho noturno é escondido e oculto, o conteú-
do da fantasia diurna é aberto, criativo, antecipador, e sua latência
aponta para frente. 1º2

Revela-se, assim, em Bloch, ao contrário de Freud, a construção


de u·~a categoria fundamental da interioridade humana, a antecipa-
ção~ 103 Bloch há de cuidar do que revela sinais do futuro, antecipan-
do-o e fornecendo elementos para o seu desejo e sua concretização,
contrastando-se com Freud, que em sua teoria lança olhos ao passado:
"o inconsciente, na psicanálise, de cal modo, é por si mesmo tomado
nunca como um ainda-não-consciente, um elemento de progressão;
ele consiste, muito mais, em regressão." 104

.Os desejos pré-conscientes de futuro e a consciência antecipadora


são funções que se destinam a projetar, de um estado de não-ter ou
não-ser, um futuro de ter e ser. A cessação da necessidade (lponta o
desej~ para o futuro. Tal acontece pel~ conc~rs~ da esperanç.a . Ela há
de se revelar, ao mesmo tempo, como um afeto - ou sentimento - que
impulsiona para frente, mas também co mo uma racionalidade
antecipadora. No primeiro nível, do afeto, ela é o sentimento positivo
que acua no mecanismo psíqtiico. No segundo nível, é a docta spes, que
circunda a realidade de maneira amadurecida, conhecendo suas
potencialidades e sabendo manejar as possibilidades.

1 02 BLOrn, Ernst. Das Prin zip Hoffnung, /, op. cil., p. 111.


103 "A utopia, portanto, é uma dialética antecipadora, isto é, uma supe raç~o do ser pe lo devir. Isto
a distingue de qua isquer formas analógi cas com a s quais e la é geralmente confundida.
Seguindo-se Ernst Bloch pode-se perceber c laramente que ela não é apenas uma projeção de
nossos próprios interesses, pois ela visa o interesse coletivo. Ela se distingue da ideologia
porque ela conslrói um mundo e vive da esperança de um futuro, e não de ilusões. Ela não
pode ser incorporada ou explicada pelos arquétipos, pois é fundamentalmente progressiva e
se volta para o fu turo. Ainda que possa ser c onfundida à primeira vista com os ideais, e la
distingue-se deles por suas dimensões concretas e por seu dinamismo dia lético. Enfim, ela
não tem nada a ver nem com as alegorias nem com os símbolos, pois estes induzem a uma
repetição dos exe mplos do passado, enquanto a utopia inova•. f URTER, Pierre. "Utopia e
marxismo segundo Ernst Bloch". ln Tempo Brasileiro n" 7. Rio de /aneiro, 1965, p. 21.
104 BLorn, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, 1, op. cit., p. 61 .
UTOPIA E DIREITO

Tal docta spes é base de uma esperança fundada, que se situa na


plen itude do dimensionamento das potencialidades. 105 O seu contrá-
rio, o desejo acrítico, revela-se uma esperança infundada. Bloch volta
a fechar, neste sentido, sua dicotomia entre a utopia abstrata e a uto-
pia concreta, traçando a esta última os mecanismos psíquicos reais de
sua consecução. 106

Não se quer dizer, no entanto, que Bloch avalie de maneira total-


mente negativa as esperanças infundadas, aquelas sem a maturidade
da sua concretização. O nível d o desejo, ao menos, há de abrir portas
para o vir-a-ser, razão pela qual as motivações geram energias liberadoras
que podem se revelar aproveitadas para os grand es desejos utópicos
concretos. Neste sentido, Bloch remete ao terna, que lhe é caro , da
não-contemporaneidade. Os excedentes culturais não-cumpridos, ar-
rastados para outras épocas posteriores, continuam a gerar esperanças
que, mesmo não satisfeitas, gerarão outros desejos e um estado de luta
pela transformação, não deixando esmorecer o sentido futuro dos im-
pulsos humano.

A O NTOLOGIA D O SER-AINDA-:NÃO: A NATUREZA

O s sonhos d iurnos e a consciência antecipadora ligam-se necessa-


riamente, em Bloch, à questão da ontologia do ser-ainda-não (nicht-
noch-sein). Tal qual Lukács, Bloch esteve num contexto filosófi co que
admitiu se valer de toda a filosofia que não fosse marxista mas que,
ainda assim, fosse iman entista, calcad a na realidade, afastando a

105 "A Doc1,1 Spes é a esperança esclarecid a e cognoscente". M1 s~AH 1 , Robert. Qu'est-ce que
l'érhique? Paris, Armand Colin, 1997, p. 101.
106 "A esperanç a não é uma qualidade íntima dependente d a personalidade, não é um estado
anímico da psicologia ind ividual, é uma dimensão humaname nte onto lógica do Ser, mas não
exclusivamente do ser do ho mem, e sim também do ser da realidade". L 1WALLE, Adrián Gurza.
ulncitación para recuperar e l futuro. Una lcctura de la Razón Espera nzada d e Ernst 6lnch". ln
Cadernos de Filosofia Alemã, vol. 3. São Paulo, FFLCH-USP, 1997, p. 32.
ALYSSON LEANDRO MASCAR.O

metafísica e o idealismo. Nesse bojo de uma ampla filosofia crítica, a


construção de uma ontologia filosófica e a tomada do problema social
a partir do ser e não do dever-ser configuravam-se como horizontes
muito naturais do marxismo filosófico.

Assim sendo, ao voltar-se à ontologia, o marxismo tangenciava o


pensamento de Heidegger. 107 O existencialismo deste paira, na filoso-
fia marxista do século XX, como uma das fronteiras mais hostis, mas,
ao mesmo tempo, como uma das mais próximas de uma mesma radio-
grafia do mundo presente. Deve-se lembrar que o projeto final de
Lukács foi o de propugnar uma ontologia do ser social. Marcuse, ori-
entando de Heidegger, sempre viu no existencialismo heideggeriano
um possível próximo do marxismo. 108 Bloch, por sua vez, levará o pro-
jeto marxista de uma utopia concreta aos quadrantes de uma ontologia
existencial, aquela por ele chamada de ser-ainda-não.

O ambiente cultural do existencialismo era também, c~mo ~ do


marxismo, de recusa.à te~nicidade do homem burguês. A divisão e~t~e
sujeito e ob)eto, a cisão da razão e da realidade, a postulação n~~ká·n-t:idna
do deve~-s~r,- todÕ..esse grande corpo, que foi .da metafísica medieval e,
com _adaptação, servia ainda à filosofia burguesa, é rejeitado pelo

107 "0 parentesco é rigoroso entre Heidegger e lukács na análise daquilo que He idegge r
denomina por 'ontologia tradicional', daquilo que lukács chama fi losofia tradicional ou o
pensamento e a ciência positivistas, que consiste precisamente na separação dos juízos de
fato e dos juízos de valor, na afirmação que o conhecimento conhece os objetos indepen-
denteme nte do sujeito, daí precisamente afirmando que há um sujeito e um objeto. Sobre
esse ponto de vista, Lukács e Heidegger estão rigorosamente de acordo: o mundo não está
aí, dado imediatamente em face de uma consciência cognoscente que o conhece tal qual
ele o é e que o julga logo e m seguida". G oLOMANN, Lucien. Lukác.s et Heidegger. Paris,
De nõel, 197 3, p. 95 .
10 8 "Mais do que dec larar em crise a cultura moderna, mais que realizar a c rítica da civilização
contemporânea, Heidegger fez o processo de toda a históri a do ocidente desde os seus
começos gregos. {... ] Não propõe uma reforma nem revisão, mas uma nova partida. [... ] A
filosofia heidegge riana teve, contudo, influxo profundo em mais de uma teoria revolucioná-
ria, entre as quais, por mais atual, pode-se citar a de Herbert Marcuse". PE~ E1RA, Aloysio Ferraz.
Estado e direito na p erspectiva da libertação. Uma crítica segundo Martin He idegger. São Paulo,
RT, 1980, pp. 215 e 217.
UTOPIA E DIREITO

_existen~ialismo, buscando o retorno ao problema do ser, e, neste ponto,


~~_1.1?:~!1:g~~~- um _ espaço filosófico comum com o marxismo:

O homem ontológico apóia-se no homem econômico, mas per-


manecem unidos e inseparáveis, embora distintos ou
distinguíveis porque são somente modos do mesmo homem
existente. Entre ambos, porém, medeia o fenômeno da
transcendência, que estende um espaço de caráter psicológi-
co, imaginário, ideal, mas de limites móveis, ocupado por
deuses, poemas e idéias da razão. Mas precisamente essa me-
diação vivencial - ora sensível, ora racional - a que chama-
mos transcendência, é que promove o homínida, o homem-
utensílio e homem-objeto de conhecimento à sua condição de
homem existente. 109

De algum modo - Marcuse já apontava essa ligação-, o Dasein


de Heidegger é também uma insistência na sociabilidade, numa liga-
ção mais estreita com a natureza, rompendo com o individualismo e
com uma filosofia meramente racionalista. Bloch também se situava
no campo de uma utopia não meramente idealista, abominando a sua
centralização no indivíduo ou na metafísica: sua intenção é investigar,
na própria existência, as possibilidades utópicas, e para isso se debru-
çará numa grande dialética existencial da esperança.

Tal qual Marcuse, Bloch parcilhar~Luma grande rejeição da ori-


entaçã~ do sentido existencial heideggeriano: a filosofia como
radicalidade da compreensão da origem existencial é posta de lado e,
em seu lugar, constrói-se uma filosofia da existência revolucionária fu-
tura. Tal rejeição do sentido não é, no entanto, uma total rejeição de
qualquer busca ontológica, porque Bloch afirmará o ser utópico.

1 09 MAMAN, Jeannette Antonios. Fenomenologia Existen cial do Direito. São Paulo, Quartier Latin,
2003, p. 134.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Dado que o problema do ser não é o problema do indivíduo, mas


de toda a totalidade das circunstâncias, da situação existencial e da
própria sociabilidade, Bloch propugna um início ontológico bastante
profundo: se o ser se revela para o futuro, isso quer dizer que toda a
natureza está aberta para o vir-a-ser; portanto, ela é incompleta.

A natureza incompleta é um dos fundamentos da profunda li-


gação entre o homem e a situação existencial. A humanidade faz
parte dessa incompletude existencial, daí que está lançada para o seu
próprio aperfeiçoamento, para se completar, buscando extinguir a
fome e, portanto, tornar-se plena. A imanência aí se revela: a esfera
da atividade ou da cultura humanas não é um projeto alheio à natu-
reza, pois o todo da natureza está lançado na mesma circunstância
de incompletude.

Nessa visão se percebe totalmente a peculiar ligação de temas de


Bloch com Engels. Dentre os pensadores do marxismo, Engels foi adi-
ante na polêmica tentativa de compreender uma dialética da nature-
za, transplantando a contradição social para o plano natural. Todo o
marxismo ocidental, em geral, rejeita a posição engelsiana, porque foi
ela o fundamento do Diamat, a teoria do materialismo dialético oficial
e dogmático da União Soviética.

Bloch não se furta a essa polêmica e, mesmo sendo um persegui-


do do mundo soviético, estando muito mais próximo nesse ponto do
marxismo ocidental, não tem preconceitos em se filiar a Engels num
projeto de dialética da natureza. Para Bloch, está intimamente ligado
à utopia concreta o fato de que a natureza é incompleta e, portanto, o
homem deve lançar-se à busca do melhor. Na década de 1930, Bloch
dedica todo um volume de sua escrita filosófica à questão da matéria e
da natureza, O problema do materialismo, sua história e substância.
Assim Luiz Bicca se pronuncia quanto à natureza em Bloch:
UTOPIA E DIREITO

A filosofia da utopia concreta não se restringe ao discurso da


dialética da história, mas estende-se ainda em direção a uma
filosofia dialética da natureza. Bloch toma, decerto, empres-
tado de Engels esta idéia; sua vinculação, todavia, com a li-
nhagem marxista diretamente apoiada nas obras deste último
autor não vai além desse primeiro nível de generalidade. Fora
um pequeno número de hipóteses em comum, o que se en-
tende por dialética da matéria em uma e noutra perspectiva é
algo radicalmente distinto. [... ] Como, aliás, os próprios
ideólogos stalinistas não se cansaram de denunciar. É impor-
tante deixar claro que, para Bloch, o marxismo da tradição
russa, de Plekhanov à ideologia Diamat, é o maior responsável
pela esterilização do pensamento dialérico. 110

A transformação da humanidade será também a transformação


das relações humanas com a natureza - no que Bloch também se
torna um dos antecipadores da questão ecológica para o marxismo.
Tal transformação compreenderá, então, uma mudança não apenas
~-~manejo da natureza, no que poderia se revelar um projeto de
tecnidsino socialista, mas sim há de se constituir numa transforma-
ção qualitativa da natureza.

A filosofia metafísica e a contemporânea filosofia racionalista bur-


guesa não enxergam na natureza um patamar qualitativo n:is relações
com o homem - a natureza é tratada, antes, como quantidade, como
instrumentalidade. Bloch há de se valer da tradição filosófica herética
quanto à natureza, e nisso chegará a Aristóteles e aos aristotélicos me-
dievais de esquerda, na sua expressão. Aponta o pensamento blochiano
que Aristóteles não considera a matéria mera forma para a atuação do
homem. O maior filósofo dos gregos considera a matéria como a pos-
sibilidade da transformação, do vir-a-ser: "A matéria ("Stoff") aristotélica

11 O B1ccA, Racionalidade moderna e sub1etividade, op cit., p. 242.


- - ------ -- -

ALYSSON LEANDRO MASCARO

não é somente paciente, mas, pelo contrário, o que propicia a ascensão


das formas nos fenômenos". 111

Bloch vislumbra, a partir de Aristóteles, uma esteira de pensado-


res qíiê-·não.rel1~gam a matéria a mero deposiÍ:~~{ü-da atividade huma-
na e que enxergam inscríta .também na natureza a p_ossibilidade do-
n.ovo, daquilo que ainda não há. Essa compreensão da matéria como
natura naturans, como natureza que se desdobra e cria o novo, há de
ser vista nos judeus e árabes medievais -Averróis, Avicena - e, às por-
tas do mundo moderno, em Espinosa.

Há de se considerar ainda, nessa compreensão de uma natureza


que se abre como possibilidade, uma idéia incidental de panteísmo - a
natureza aponta seus fins, seus objetivos, sua teleologia. Este todo, no
qual a humanidade interage, não está à espera de uma transcendência,
mas sim busca a completude imanente, cujas possibilidades estão da-
das existencialmente.

No quadro blochiano de um certo "panteísmo" filosófico que vê


na matéria a sede da possibilidade, estão também, ao lado do
aristotelismo de esquerda e de Espinosa, correntes insólitas da filosofia
contemporânea, como a de Schelling, que, no início do século XIX,
encaminhou uma filosofia da totalidade bastante diversa da de H egel.
Tal esfumaçado e exótico panteísmo filosófico da natureza é que dá
ensejo para Habermas nomear Bloch como sendo o "Schelling mar-
xista", 112 identificando também no jovem Marx uma inspiração simi-
lar à de Bloch no que tange a uma interpretação muito peculiar sobre
tal pensamento de Schelling acerca da natureza.

111 BLOOi, Ernst. Das Ma lerialismusproblem, seine Ceschichte und Subswnz. Frankfurt, Suhrkamp,
1985, p. 143.
11 2 "B loch não recua diante da utilização da faculdade do julgamento, segundo Kant, ampliada
por meio da Filosofia da Natureza, de Schel ling. Ao mesmo tempo que o homem socializado
se a lienou, também a natureza 'se perdeu', e exige, na perspectiva do projeto malogrado do
seu 'sujeito' ocu lto, ser interpretada como natura naturans e ser levada a seu termo por
UTOPIA E DIREITO

A ONTOLOGIA DO SER-AINDA-NÃO: A POSSIBILIDADE

A orientação ontológica em Bloch está voltada para o futuro e,


neste sentido, ao invés de categorias como necessidade ou realidade, o
fundamento do pensamento blochiano está baseado no conceito de
possibilidade (Moglichkeít). O ainda-não-s~.r-~ _~p9ssibílidade de ser.
A possibilidade da plenitude~tá n~-h~~i·z;nte de tocl~- o per{~-~mento
de Bloch.

Em todo seu percurso filosófico, mas principalmente nas suas obras


de maior envergadura filosófica - a começar do Princípio Esperança - ,
Bloch retoma a filosofia aristotélica e sua tábua de categorias, valendo-
se, principalmente, do conceito de dynamis. Aristóteles diferencia entre
a mera potencialidade - uma abertura passiva para o vir-a-ser - e a
possibilidade de maneira estrita, tomada numa perspectiva ativa. 11 3

A partir de tal inspiração aristotélica, Bloc~ -~-('. p~_9 põe ~ C01!;~trnir


uma tábua de categorias da possibilidade, empreendendo a distinção
entre qu~tr~ níveis: o possível puram~nte formal; o p~~~í~el subjetivo;
o possí'lel objetivo; o pos~ível dialéti~o.. Tais diferenças sã.o el~r:i~~das

intermédio da intervenção huma na. A atitude ' mecânica', qu e desemboca no controle


técnico sobre as forças naturais, é incapaz de pe rceber que a natureza p recisa voltar à pátria.
É somente quando a atitude 'teleológica' apreende as coisas sob a forma de a bstrações de
s i mesmas, que as seqüências dos fins subjetivos das ações humanas deixam de flutu ar no
vazio, vincul ando-se, ao contrário, a uma fin alidade obj etivamente inscrita na natureza.
Bloch retoma a polêmica de Goethe contra Newton e, recorrendo à he rança mais profunda
do s imbol is mo pitagóri co dos números, da doutrina cabalística dos s ignos, d a fisionômica
hermética, da alquimia e da astrologia, opõe às ciências da natu reza uma teoria expressiva
da natureza, enquanto configuração simpática. Mas o fato de que Bloch a lude, novamente
a partir de Schelling, ao conhecimento da beleza natural, tal como e la nos é transmitida
pela expe riência, a uma espécie de conhecimento da natureza, radicado n as próprias obras
de arte, dissimu la com d ificuldade o embaraço decorrente da circunstân c ia de q ue não
dispomos, justame nte, de uma introdução metódica à 'doutrina da natureza como expres-
são'; todas as tentativas anteriores se apóiam numa extrapolação inutilizável, na analogia
e ntre microcosmo e macrocosmo, entre homem e universo. HABrnMAS, Jürgen. "Ernst Bloch -
um Schell ing marxi sta". ln Habermas (org. Bá rbara Freitag e Sérgio Paulo Roua net). São
Pau lo, Ática, 200 1, p. 161.
11 3 Cf. PoRCHAT P EREIRA, Oswa ldo. Ciência e Dialética em Aristóteles. São Paulo, Ed. Unesp, 2001,
pp. 182 e seg.
ALYSSON WNORO MASCARO

por Bloch no Princípio Esperança e estão na base do conceito do


ontológico do ser-ainda-não. 11 4

O possível puramente formal (Das formal Mogliche) é aql1ele que


se encontra num nível de possibilidade apenas no pensamento, tendo
em vista que e~ r~afi'dàde deverá ocorrer. um I?ão-:-possível. Quando se
-o
diz q~e pla~~-t~ -Marte pode encontrar a Terra amanhã, esta é uma
possibilidade formal, ao contrário da afirmação de que "o quadrado
era redondo" 115 , impossível formalmente. O possível que é puramen-
te formal é a categoria mais rasa e frágil da possibilidade. 11 6 Na reali-
dade, ela acaba sendo uma não-possibilidade. Bloch associará tal pos-
sibilidade, no plano político, a um otimismo irreal que ignora as con-
dições concretas da ação social.

O possível subjetivo é também tomado na acepção de possível


objetivo-factual ou objetivo ao nível dos faros (Das sachlich-objektiv
Mogliche). Pierre Furter, na Dialética da Esperança, o traduz como
provável. 11 7 Tal possível subjetivo é aquele que se baseia em fatos que
se apresentam ao sujeito, embora este não tenha grande rigor no co-
nhecimento das. estruturas que ensejam esse mesmo fato. Olhar as
nuvens é indício, a quem olha, de que é possível que ch ova. No entan-
to, esse alguém que olha ao ~éu desconhece as principais estruturas da
meteorologia, e o objeto nuvem não informa a totalidade da possibi-

114 " Die Schichte n der Kategorie Mõglichkeit". BLOCH, Ernst. Das Prinzip Hoffnung, /, op. cil., pp.
258 e seg.
115 ALB()f{NOZ, Suz<ma. É1ic,1 e Utopia. Ensaio sobre Ernst Bloch. Porto Alegre, Movimento, 1985,
p. 31. Do trecho deste livro se valem alguns exemplos.
116 "Porém, é preciso frisar, o fato de um pensamento apresentar-se com sentido, com significa-
ção, não quer di zer que necessariamente seja verdadeiro ou que deva sê-lo, isto é, que
corresponda ou deva corresponder a alguma coisa na rea lidade. Ele deve ' poder' corresponder,
mas não que efe tivamente corresponda ou deva corresponder à realidade. O pensamento
pode ter sentido, e por isso não carecer de objeto, mas pode não ter uma correspondência no
mundo real. Entretanto, porque não tenha essa correspondênc ia efetivamente comprovada,
não quer dizer que perca seu sentido ou a sua significação". ALVES, Alaõr Caffé. Lógica.
Pensamento Formal e Argumentação. São Paulo, Edipro, 2000, p. 193.
11 7 f u RTER, Pie rre. A dialética da esperança . Uma interp retação do pens<1menco ucópico de Ernst
Bloch . Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1974, pp. 112 e seg.
UTOPIA E DIREITO

üdade. Transportando tal categoria para o plano polícico, tem-se um


esforço pessoal e social que não corresponde à real situação dos fatos.

O terceiro nível do possível em Bloch é o do possível objetivo. Tal


nível é também chamado por possível objetivo-coisa! ou possível confor-
me à estrutura do objeto real (Das sachhaft-objetkgemaj? Môgliche). _Ao
contrário do possível subjetivo, que não se funda na própria virtualidade
do objeto, neste caso se abre claramente a mirada ontológica da possibi-
Ü~ade. A incompletude, nesse caso, estará não no pólo objetivo, e sim
no pólo subjeri:ro, daquele que engendra o conhecimento da possibili-
- <l:ade. Num paralelo político blochiano, a realidade se abre como possí-
vel, sem encontrar eco na dimensão subjetiva.

O quarto nível do possível é o possível dialético, ou, tomado em


outra terminologia, o possível obj etivamente real ou possível real-ob-
jetivo (Das objektiv-real Mogliche) ..~este nível de possibilidades, abre-
se a clareira para uma plena compreensão do objeto por parte do su-
jeira, revelando-se, assim, uma antecipação do futuro que está engen-
ili.-áda no conhecimento da própria realida<fe ~~a maturação de con-
~iÇõ-ês ê d e práxis do agente. Este nível de possível,- -cii;!ético, dá coma
das contradições da própria ação que deverá engendrar o futuro e
concretizar as possibilidades. Neste sentido,_ e:xige um~ _ rryjrada
àmadu~ecida tanto no nível das--possi5il1dades o~jetivas, das circuns-
clncias, quanto no nível das possibilidades subjetivas, dos agentes cria-
dores, transformadores ou revolucionários.

~ Blo~h__Ç.9.D~iderará a utç>p.ia concreta como aquela que chega ao


~fveldo possível dialético, dando conta de uma compreensão dos
movimencos
..---- --
da contradição da realidade .
e da ação revolucionária,
. . .
es-
car_'!.,_n_do_da utqp_Í<1:_fácil e abstrata do idealismo e negando também o
7ossív.el apenas como possív~l f~~maL- -·-· ---. .. -

Assim sendo, nesta original tábua de categorias do possível, Bloch


roma a dianteira de uma perspectiva filosófica do marxismo que, ao
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

mesmo tempo, avança para além do materialismo dialético dogmático


e economicista, de um lado, e do voluntarismo revolucionário, de ou-
tro lado, negando a ambos como suficientes para um projeto de uto-
pia concreta. O possível dialético de Bloch vai se tornar a mais avança-
da postulação filosófica da possibilidade revolucionária no marxismo.

Q marxisf!lo economicista, aos moldes soviéticos, seria a esperan-


ça em que as circunstâncias objetivas, sem a práxis transformadora,
levariam o capitalismo ao socialismo. É este, apontado por Bloch_, o
p~s_§íyel _<?bjetivo. O voluntarismo marxista ou utópico-idealista, que se
exprime num desejo revolucionário apenas pela força da vontade, des-
conhecendo as circunstâncias e as estruturas do r~al, é aquele identifi-
cado por Bloch -~orno o possível subjetivo.

Bloch escapa canto do economicismo quanto do voluntarismo ao


propor, como instância superior do possível, o possível dialético. Só
nele poder-se-á verificar a utopia concreta. Foge, assim, tanto da força
inexorável das leis econômicas, de uma certa força do d estino aos mol-
des marxistas, quanto de um idealismo voluntarista ingênuo e desape-
gado do movimento contraditório do real e do concreto.

A ONTOLOGIA DO SER-AINDA-NÃO: S AINDA NÃO ~ p


Toda a tentativa de Bloch de fundar uma ontologia marxista do
ser é voltada ao futuro, mostrando o presente como incompletude.
Daí se revela o ser-ainda-não: não está ainda construída a completude
humana. O socialismo é a visão da completude econômica, política e
social do homem. Bloch apoma a busca como elemento necessário da
existênci a humana.

É célebre a definição dada por Bloch de sua ontologia do ainda-


não-ser. Fundamentalmente no Princípio Esperança, insiste que há uma
UTOPIA E DIREITO

fórmula oncológica que aponta para o fato de que o homem ainda não é
todo. Suzana Albornoz assim revela tal formulação, num poético relato:

Adolph Lowe publica uma carta ao amigo Ernst Bloch,


carta esta que é várias vezes referida em ensaios posteriores
sobre a obra de Ernst Bloch. Naquela carta, Lowe lembra uma
situação em que os amigos filósofos trocavam idéias (ao
entardecer... ), quando o dono da casa faz um desafio a Bloch:
"Sempre foi sinal dos grandes filósofos poderem resumir o
núcleo de seu ensinamento em uma única frase. Qual é, pois,
a sua frase fundamental?"

Bloch cachimbou por alguns momentos e então revidou;

- "Desta armadilha não saio ileso. Se respondo, compor-


to-me como grande filósofo. Se silencio, parecerá como se eu
tivesse talvez muitas coisas a dizer, mas não muito. Prefiro
fazer o papel de pretensioso do que de bobo, e dizer: S ainda
não é P." 118

Esta referência à fórmula S ainda não é P é a tentativa blochiana de


encerrar uma conceituação profunda a respeito do ser-ainda-não. Nome-
ando a S e P de sujeito e predicado, dir-se-ia que sujeito ainda não é
predicado ou, como Bloch afirma em todo início de seus livros, o homem
ain~~ não o é plenamente, não se tem a si mesmo. O dado da inco~pl~~de
aqui se revela de maneira cabal: o hoje ainda não é o todo.

Tal fórmula blochiana é aberta e não comporta um juízo deduti-


vo, de tipo idealista ou metafísico, que venha a estabelecer o que é P
para então descobrir-se o que de S lhe é de menos. Pelo contrário,
Bloch nunca incorre no risco de estabelecer uma filosofia a partir de P,
que olhe para a realidade humana como algo degenerado, incomple-
to no sentido de ter um caminho lógico e já estabelecido a ser seguido

118 ALBORNOZ, Élica e Utopia, op cil., p. 70.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

para a completude. Assim procedem a metafísica, a religião dogmática


e os cientificismos mecanicistas. Bloch parte de S, da situação existen-
cial, e aponta para P, que é uma meta aberta, construída a partir das
possibilidades concretas do hoje.
S AINDA NÃO É P deve poder resumir de forma concisa o
pensamento de Bloch, porém, para isso - como já se disse mais
vezes na literatura referente ao assunto- esta fórmula primeiro
pressupõe uma representação normativa de P. Se eu afirmo que
o que aparece - o fenômeno - ainda não é a essência ou a subs-
tância, devo saber e poder dizer o que é o essencial ou substan-
cial ante o qual meço o fenômeno, o que aparece. Mas Bloch se
nega a fazê-lo. O que é essencial, o que é verdade, só se pode
determinar negativamente: Não é em absoluto necessário saber
o que poderá ser o Humanum em todo o seu conteúdo positivo
para reconhecer Nero como desumano. 119

Com isso, há de se evitar a concepção utópica de um mundo


criado artificialmente no pensamento e que venha a estabelecer, ape-
nas no nível cognitivo, os caminhos que ligariam uma atual situação S
a uma idealizada etapa P. Bloch se furta à utopia abstrata, tratando da
utopia concreta apenas no solo das possibilidades dialéticas.

119 lbid., p. 78.


--·.,.,

CAPÍTULO 7

UTOPIA JURÍDICA: HISTÓRIA E DIGNIDADE HUMANA

Ernst Bloch é um pensador que se aproxima do direito na princi-


pal fase de sua maturidade intelectual e, por isso, seguiu um caminho
diverso da maior parte dos grandes filósofos. Os juristas percorrem o
itinerário contrário do de Bloch quando se tornam filósofos: saem do
particular jurídico para os temas filosóficos universais. Os próprios
filósofos não-juristas em geral tratam do direito incidentalmente den-
tro do problema político. Raro é quem, como Bloch, escreve ao tempo
de sua principal obra de maturidade intelectual outra grande obra de
filosofia do direito.

Mas Bloch persegue a filosofia do direito desde sua juventude,


pois já se vislumbra, no Espírito da Utopia e em Thomas Münzer,
Teólogo da Revolução, uma abordagem do problema do direito e da
justiça, ainda que incidental. Direito Natural e Dignidade Humana
será o resultado de uma inquietação jurídica recorrente no pensa-
mento blochiano, mas, ao mesmo tempo, é também uma obra pro-
fundamente política, com grandes mostras de sensibilidade para com
sua época e a interferência em seus problemas. A Segunda Guerra
Mundial e o nazismo avivam em Bloch a sua particular tendência ao
pacifismo, o que lhe confere uma posição muito peculiar no quadro
da filosofia política e do pensamento ocidental. Os horrores nazistas,
sentidos também por Bloch, a começar pelo seu exílio e pelo sofri-
mento do povo judeu, são o pano de fundo para uma nova petição
por dignidade humana, justamente no momento mais indigno de
sua história contemporânea.
Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

Ao em ergir da 2ª Guerra Mundial, após três lustros de m assa-


cres e atrocidades de toda sorte, iniciados com o fortalecimen-
to do totalitarismo estatal nos anos 30, a humanidade com-
preendeu, mais do que em qualquer outra época da História,
o valor supremo d a dignidade humana. O sofrimento como
matriz da compreensão do m undo e dos homens, segundo a
lição luminosa da sabedoria grega, veio aprofundar a afirma-
ção histórica dos direitos humanos. 120

Entretanto, ao contrário da reação dos juristas que prosseguiram


cinicamente positivistas mesmo após o nazismo ou de outros que opuse-
ram ao positivismo do direito nazista uma apressada retomada do direi-
to natural, sem crítica ou melhores qualificações dos termos do debate,
Bloch pretende refazer wda a trajetória do direito natural, para, ao fi-
nal, rechaçar com veemência tanto a filosofia juspositivista quanto a
jusnaturalista, esta tomada no seu sentido metafísico individualista, quan-
do não no seu sentido religioso conservador. De toda a florada ética
surgida no direito do pós-nazismo, Bloch pretende o caminho mais difí-
cil, que é o de colocar em xeque os pressupostos de tais direitos éticos e
também dos meramente técnicos, 12 1 para ao final resultar numa

120 (OMl'ARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. São Paulo, Saraiva,
1999, p. 4 4.
1 21 josé Eduardo Faria exprime a dificuldade do pensamento juríd ico em supe rar a dicotomia
e ntre o jusnatura lismo tradicio na l e o positivismo : "Ta l cetic ismo, todavia , não deve ser
entendido como uma desistência da luta pelo reconhecimento e pela e fetivação dos dire itos
humanos, por se considerá-la inviável a priori. Ao co ntrá rio do o timismo idea li sta e das
antinomias muitas veies presentes nas trad icionais declarações de d ireitos, o pessim ismo da
razão permite superar visões a meu ve r algo simplórias, limitad as e banalizadas dos d ireitos
huma nos, abrindo desta ma ne ira c aminho para novas formas de luta em sua defesa. Deixan-
do -se de lado as co ncepções jusnaturalistas tradicionais (que, ao ope rar por categorias trans-
históricas e essencia listas, visam converter d ife rentes formas de poder, e hierarq uia na 'ordem
natura l das coisas') e as conhecidas co nc epçõe s juri sdicistas (que sofrem d e contradiçõe s
crônicas a sere m examinadas ma is à frente), os direitos humanos enca rados numa perspectiva
ma is política ou substantiva do q ue jusnaturali sta clássic a ou lóg ico-form a l possibilitam
ações se mpre incertas quanto à obte nção de resu ltados concretos no ·curto prazo, te ndo em
v ista sua form a lização leg isl a tiv a, m as pote ncial me nte de sa fia do ras e efetiv a me nte
transformadoras a mé dio e longo prazo". F AAIA, josé Eduardo. "Democrac ia e Gove rnabilid ade:
os dire itos humanos à luz da globalização econômica". ln Direito e globalização econômica:
imp licaç ões e perspectivas. Sào Paulo, Malhe iros, 1998, p. 150.
UTOPIA E DIREITO

postulação de filosofia do direito bastante original. De fato, Direito Na-


tural e Dignidade Humana exprimirá a marca de uma profunda origi-
nalidade jusfilosófica, o que implica, mais uma Vf2, numa coerência com
a própria postura política de difícil enquadramento de Bloch.

D IREITO NAT URAL E D IGNIDADE H UMANA

O pensamento jusfilosófico de Bloch está consolidado em Direi-


to Natural e Dignidade Humana (Naturrecht und menschliche Würde),
escrito em um dos períodos mais profícuos do pensamento blochiano,
o exílio norte-americano, mesma época na qual também escreveu sua
mais importante obra, o Princípio Esperança.

Direito Natural e Dignidade Humana é obra de filosofia do direi-


to escrita por um não-jurista, o que resulta numa visão peculiar do
fenômeno jurídico e de suas tradicionais abordagens. Bloch interpre-
ta a filosofia do direito por um ângulo próprio, o que implica em en-
tendimentos filosóficos específicos, em cruzamentos de idéias muito
invulgares, em comparações e paralelismos bastante originais.

Dividida em dois grandes blocos, a obra de Bloch é peculiar em


ambas partes. Para tratar do tema do direito e das utopias jurídicas,
Bloch há de fazer um grande inventário jusfilosófico das esperanças
jurídicas e, neste sentido, recontará a história da filosofia do direito.
No entanto, não refaz o percurso canônico e os paralelismos tradicio-
nais das obras comuns sobre o tema. Bloch dá grande importância a
autores que, pela tradição jurídica, têm menor peso na história do
pensamento jurídico, ao mesmo tempo em que julga determinadas
idéias por um modo bastante insólito. Em relação a alguns pensado-
res, tem uma dose de crítica virulenta, como no caso de Carl Schmitt,
o que se explica pelo faro de Bloch estar se valendo de Direito Natural
e Dignidade Humana também como urna obra política, como um
AfYSSON l.EANOR.O MAsCARO

modo de recontar a história ao tempo das lembranças imediatas do


nazismo. Bloch não só reescreve a história da filosofia do direito como
marca posição em torno da implicação dos pensamentos jurídicos.

Na segunda parte de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch


procede à construção de uma nova ontologia jurídica, voltada à espe-
rança. A pane final de seu livro, a mais ambiciosa e original, é a possi-
bilidade de compreensão ontológica libertadora do direito. A emprei-
tada blochiana, neste ponto, se revela ainda mais peculiar e mais incô-
moda que a mera reinterpretação da história da filosofia do direito.
Neste último ponto, Bloch estará adentrando ao imo de uma postulação
nova do direito e da sociedade.

A UTOPIA QUE É JURfDICA


Na tradição do pensamento marxista, ao direito é reservado um
papel de dominação muito claro. Nas engrenagens do Estado, ao direito
cumpre a função de chancela da propriedade privada, de segurança da
vida e do patrimônio da burguesia, e há muito a crítica marxista identi-
fica nos ideais jurídicos máscaras de uma estrutura social reificada.

Pachukanis, que dentre os juristas marxistas talvez tenha ido mais


longe na identificação do direito ao capital, percebe até mesmo na
fundamentação ideológica do direito um fundo estrutural de ligação
à forma mercantil. A Escola de Frankfurt, em outra vertente, também
enxergou no papel do direito uma das formas do exercício da domina-
ção contemporânea do capitalismo. Ernst Bloch, no entanto, na tarefa
de reinterpretar a história do pensamento jurídico, salvará alguns sen-
tidos utópicos do direito, que só se cumpririam numa nova dialética
das relações sociais.

Bem percebe Bloch que até os mais mecanicistas p ensadores do


marxismo carregam um sentido utópico em suas apostas revolucio-
UTOPIA E DIREITO

nárias . O capitalismo é valorado negacivamente, como um reino do


ter, da alienação, da exploração, e, em oposição, o sentido da trans-
formação é a plenificação humana, a felicidade e a boa vida, sem
cisões estruturais de classe. Desvendando o que revelam tais vagos
ideais, Bloch irá encontrar, ao lado de utopias revolucionárias típicas
d o campo político, outras eminentemente jurídicas, que se co mple-
tam umas às outras.

A sua principal obra jusfilosófica se estrutura a partir de uma


diferenciação de utopias. As utopias jurídicas não são as mesmas uto-
pias da sociedade e da política. Pelo contrário, há especificidades que
tornam o direiro um campo estrito no conjunto das utopias revolucio-
nárias . A base da distinção blochiana entre utopias sociais e jurídicas
está em situar as primeiras como sendo buscas pela felicidade huma-
na, enquanto o que distingue as utopias jurídicas é, especificamente, o
seu caráter de busca da dignidade humana.
As utopias sociais estão dirigidas principalmente à sorte ( Glück),
o u, pelo menos, à eliminação da necessidade e das circunstân-
cias qu e m a ntêm ou p roduze m aquela. A s teorias
jusnaturalistas, pelo contrário, como se viu claramente, estão
dirigidas predominantemente à dignidade, aos direitos do
homem, a garantias jurídicas de segurança ou liberd ade hu-
manas, como categorias de orgulho humano. E de acordo com
isso, a utopia social está dirigida, sobretudo, à eliminação da
miséria (Elends) humana, enquanto que o direito natural está
dirigido , acima de tudo , à e liminação da humilhação
(Erniedrigung) humana. A utopia social quer afastar tudo o
que se opõe à eudemonia (feli cidade) de todos, enquanto que o
direito natural quer acabar com tudo o que se opõe à autono-
mia e a sua eunomia (boa lei). É que a ressonân cia nas utopias
sociais e nas teorias do direito natural é muito diferente. Se se
quiser resumir de maneira plástica o essencial desta diferença,
AlYSSON LEANDRO MASCARO

poder-se-ia dizer que uma o modelo é o dos feácios; no outro,


por sua vez, Brutus. 122

Daí se entende o insólito de um marxista, no auge d e sua campa-


nha pela transformação social, valer-se dos temas do direito natural e
da dignidade humana como bandeiras políticas. Bloch entende que o
campo da felicidade do homem, no qual se sit~-a--sU:~- emancipação
econômica, o fim da exploração do trabalho, o fim das classes e da
mais-valia, não esgota necessariamente o campo da dignidade do ho-
mem, cujo estatuto, embora resultante de um mesmo movimento his-
tórico-social d e emancipação, é distinto e específico.

Bloch escreve sua obra jurídica no pós-guerra, e a própria história


do título de seu livro dá mostras do quanto busca refinar a especificidade
do problema jurídico dentro do marxismo. No trajeto de regresso do
exílio, dos EUA para a Alemanha Oriental, o primeiro título proposto à
obra seria Direito natural e filosofia do direito. Posteriormente, Bloch o
altera para Direito natural e socialismo. Finalmente, dá à publicação sua
obra com o título Direito natural e dignidade humana. Neste processo
de mudança do nome está também o sucessivo refinamento do aspecto
especificamente jurídico da ontologia da utopia. No quadro geral do ser
utópico, o ser-ainda-não jurídico é o ser digno. O ser feliz é o ser-ainda-
não geral da sociedade e da história. A ontologia blochiana, mais uma
vez, revela-se um conjunto dialético e plural, rico na diversidade de fato-
res, manifestações e objetivos.

O percurso dos vários títulos da obra é também valioso para se


perceber que a âncora da utopia jurídica blochiana sempre foi o pro-
blema do direito natural. Neste sentido, poder-se-ia argumentar al-
gum anacronismo da parte de Bloch, ao resgatar para o século XX
uma temática que foi importante apenas até o século XVIII . Entretan-

1 22 BLOCH, Ernst. Naturrecht und menschliche Würde. Frankfurt, Suhrkamp Vcrlag, 1985, p . 234.
-· .,,.,

UTOPIA E DIREITO

ao, o direito natural, para Bloch, é um problema antes que uma assertiva
ie é um mote genérico de temas vastos construídos historicamente an-
u:s que uma metafísica dedutiva.

Assim sendo, os dois temas da ontologia jurídica da utopia em Bloch


mn wn uso comum e vulgarizado que é profundamente distinto do uso
especificamente histórico, revolucionário e marxista por ele postulado.
Oaí que a leitura superficial ou a mera evocação do título de sua obra de
blosofia do direito não dão conta minimamente de entender o jogo
dàlécico profundo de seu pensamento utópico-jurídico.

A lITOPIA JURÍDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓRIA: ANTIGOS E


llftDIEVAlS

Abominando o caráter conservador da filosofia do direito, que


~~od~ geral ~~cila pe~dul_ârmente entre o nor~ativismo tecnicista
e o moralismo metafísico, Bloch há de buscar na história as razões das
luras e ~as construções utópicas do direito. Seu pano de fundo é sem-
Pre ~práxis, o agir social, as classes despos~~ídas que erigem referenciais
u~Ópicos, a história indigna que aspira à utopia da dignidade. Por isso,
em certos momentos de seu recontar histórico, Bloch dá m argem de
destaque mais ampla aos movimentos sociais e religiosos, que carreiam
os sonhos populares muito mais que o puro delinear dos filósofos e
seus pensamentos jurídicos, cujos debates são geralmente herméticos
20 p ovo. O religioso Thomaz Münzer merece mais empatia, na

oncologia jurídica de Bloch, que vários dos eminentes tratadistas mo-


·d ernos que inauguram a teoria do jusracionalismo.

Bloch abre Direito Natural e Dignidade Humana com uma peti-


ção pelo sentimento jurídico. Seus livros, em geral, têm intróitos que
são verdadeiras exclamações poéticas que preparam o discurso filosófi-
co subseqüente. Na sua obra jusfilosófica, Bloch também se vale de tal
i'--
AlYSSON LEANDRO MASCARO

expediente. Conclama a uma reflexão do sentimento jurídico, aquele


que se manifesta no homem que está abaixo, em oposição aos podero-
sos e ao Estado. Iúo porque, para Bloch, é o homem de baixo que
sofre e sente o poder do direito, tendo em vista que a senten ça, quan-
do pronunciada, em geral é suportad~ pelos de baixo.

A narrativa da história da utopia jurídica é, em Bloch, bastante


calcada nesta distinção entre os de baixo e os de cima. Construindo
~m· método de reflexão sobre as esperanças jurídicas que distingue
-~quelas erigidas ª. partir
do povo e aquelas determinadas a partir do
poder, Bloch separa os pensadores que m:ifto mais estiveram ligados à
imposição que propriamente à libertação. Assim sendo , ao invés de
invesrigar, na história do pensamento grego, o estofo clássico do pen-
sam ento sobre o justo, Bloch busca, nos movimentos teórico-políticos
gregos, expressões melhores das utopias jurídicas.

Separando, de um lado, a busca do direito natural corno um fun-


damento da igualdade e da liberdade entre os homens e, de outro
lado, a legitimação do poder econômico e político, nos capítulos inici-
ais de Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inscreve, em um
mesmo eixo de legitimação do poder e da dominação, os pensamentos
jurídicos de Platão, Aristóteles e S. Tomás de Aquino.

E não sem fundamento vemos que a justiça só se encontra no


centro do pensamento daqueles filósofos que, ainda que os
maiores da Antiguidade, não tenham tratado do d ireito natu-
ral, e sim só do direito patriarcal-senhorial. Platáo e Aristóteles
fizeram da justiça o que o estoicismo nunca faria da natureza:
o gênio bom do poder. Platão contrapõe expressamente seu
Estado justo da virtude ao Estado da natureza cínico, e a Politeia
de Aristóteles não conhece outros Estados que os existentes
segundo a lei positiva. 123

12 3 lbid. , p. 53.
UTOPIA E DIREITO

Ao contrário dos pensadores canônicos do poder, Bloch dará mais


ênfase na investigação daqueles que logo cedo se insurgiram contra o
poder e a ordem estabelecida. Remontando ao passado histórico, Bloch
-utiliza-se do mito de Adão para mostrar o quanto se busca mais o peca-
do e suas implicações que propriamente a idade de ouro na qual havia
liberdade e não autoridade. É nesta idade de ouro que Bloch situa o
direito natural grego que carreia consigo sonhos de utopia jurídica.
A idade de ouro, contudo, na que se encastelou o direito natu-
ral grego, é louvada expressamente pelo estoicismo como uma
época sem autoridade estatal. Naquela idade náo dominavam
nem Themis nem Diké nem N émesis; todavia em Homero e
em Hesíodo éThemis uma simples deusa do costume, também
da deliberação, do direito consuetudinário que se afirma a si
mesmo. A representação da justiça como balança e espada, tal
como nos aparece no quadro de Raffael, é, desde logo, uma
idéia astrológica posterior, que não existe na Antigüidade. 124
/""''':..J '":~··,~_! ~ ~.) t.._ > ..,...f".,~ ~~~
..

No decorrer dessa história pelas utopias do direito natural, Bloch


percebe que, antes de existir um movimento social e de classes, houve,
pioneiramente, um movimento individual contra _,9_ _p9çler. . Os pri-
meiros adversários das normas estabelecidas são os indivíduos. "Só in-
divíctuõSS~;Írih~s se l~~Ç~~-de--i-nício,·- ~~~tr-~ ~~ u~~s; mais vindos da
classe dos senhores, em defesa dos seus privilégios ou de seus direitos
especiais, que da classe dos submetidos. Assim que se fale mais facil-
mente de um Caim que todo o grupo de Corá; os servos enfurecidos
só mais tarde se agruparam para a revolta'' 125 •

Tal movimento, que se verificou nos gregos como sendo a reação


da Ilustração ateniense contra os costumes e o estabelecido no seu tem-
po, é estampado, segundo Bloch, dentre outros, nos hedonistas. O indi-

1 24 Jbid. , p. 53.
1 25 lbid. . p. 20.
Al.YSSON LEANDRO M ASCAR.O

vidualismo ali se expõe como adversárío das normas jurídicas. Os cíni-


cos, por sua vcr,, também se insurgem contra a ordem, ainda que seja
pelo objetivo oposto, da renúncia ao prazer, da busca da vida simples.

Em Epicuro se esboça com mais clarcr.a, para Bloch, a dignidade


humana, na medida em que tal pensador reconhece o Estado como um
contrato, originado de uma razão muito singela que é a vontade de não
dominar-se reciprocamente. Assim sendo, mesmo que para uma finali-
dade altamente individualista, o que resulta dessa concepção inicial do
direito natural não é uma "natureza eterna", e sim um produto históri-
co, que tem de ser reafirmado socialmente de maneira constante.

Em oposição ao epicurismo, o estoicismo carreava outra concep-


ção de direito natural, que se vê tanto no escravo Epicteto quanto no
imperador Marco Aurélio e em Cícero. Baseada no orgulho da exis-
tência humana, a aposta estóica estava centrada na dignidade. Dela
adviria, posteriormente, a felicidade. Para Bloch, tal direito natural
digno do·s estóicos se apresentava como igualdade inata de todos os
h~~ens e rnmo unid~d~ -d~~~-~i"os o~ home~s, ~uma c~munidade in-
·---·- ,,...
fêfü~êlõ"ftal, ' num~ irmandad~.
' - ~· - · ~--- ' -~-..·· .

~ .............1.·· j~~
.... ,·:~.... • ,~,~...... ~·•.::..~• • • ••. ~··
. .. •• , , . , • •••• • ' •• ··:;.. - • ' •••

/\ A avaliação blochiana a re~peito dos primeiros movimentos histó-


ri cos do direito natural na Grécia é bastante crítica. Embora tenha
sido o ambiente de surgimento da petição por dignidad e humana,
este ainda é um processo comandado por indivíduos, em geral das
.eli_ç~ greg~s, apartados dos JI10V!~t2~çip.is. A absorção de tais
postulações gregas por dignidade humana entre os rom anos terá, se-
gundo Bloch, uma inesperada reação. N uma estrutura político-social
altamente refratária a qualquer humanismo, calcada numa escrita de-
fesa da propriedade privada, o direito natural estóico grego represen-
tará, ao tempo de Cícero, um aspecto progressista, ainda que haurido
de razões elitistas: "O pomo pelo qual o estoicismo penetra no Direito
Romano não foi indubitavelmente nem o interesse filantrópico nem
UTOPIA E 01REff0

tampouco o interesse especulacivo. As causas disso devem ser busca-


das, fundamentalmente, no esnobismo das classes altas romanas e tam-
bém, de modo principal, na necessidade de <locar o direito precoriano
de uma formulação lógica e reduzi-lo a um siscema de conjunto que
garanta sua unidade". 126 Para Bloch, o efei co da introdu ção do
esc~icismo em Roma, ao tempo de Cícero, era o de unificar um impé-
rio que, ao ter se estendido por povos os mais variados, necessitava de
~-!11 eixo universal de dominação. O direito natural estóico, assim, ser-
':'i.rid? para a dignidade humana universal, serve também para o do-
I!l:Ínio imperial universal.

Ao final da Idade Antiga, a consolidação do cristianismo como


religião oficial fez também da Igreja refém da m esma lógica de utiliza-
ção da universalizaçáo da dignidade a benefício do domínio, e, pois,
da indignidade. Bloch aponta em Lactancio, nos anos 300 d.C., a
tarefa de conversão do direito n atural em domínio terreno e divino.
Com a equação !ex naturae = lex divinae, Lactancio abre as portas
para o estoicism o penetrar na Igreja, a fim de prosseguir n a dominação .
São Tomás de Aquino procede do mesmo modo, aponta Bloch, na
equação estoicismo = Decálogo. O resultado de tal procedimento é o
abandono das utopias jurídicas qa idade de ouro, aquelas desprovidas
de autoridade - a época de ouro do paraíso, aquilo que Bloch chama
por "direito natural absoluto" , totalmente livre e pleno -, erigindo-se,
em seu lugar, um "direito natural relativo", do tempo d o pecado origi-
nal e dos dez mandamentos. Por este caminho, diz Bloch, andarão
Tom ás de Aquino, Lutero e Calvino.

Ao contrário de uma história canônica dos filósofos, que enxerga-


ria os monumentos fundamentais do pensamento cristão justamente
em tal trinca Tomás de Aquino, Lutero e Calvino, Bloch abre cami-

1 26 lbid. , p. 32.
Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

nho para situar as melhores utopias cristãs em Thomas Münzer. Des-


de seu livro de juventude, quando apontava, tal qual o fizera antes
Engels, que Münzer era um dos precursores da revolução socialista,
na sua obra jurídica também Bloch identifica em Münzer um dos
avatares de uma utopia libertadora e igualitária.

Tomás de Aquino, pela perspectiva blochiana, ainda insiste no


caminho que foi também dos estóicos, não incorporando uma idéia
plena de direito natural, igualitária e justa socialmente, e sim uma
idéia retalhada, porque dependente da autoridade, dominadora e in-
justa em suas últimas implicações. Aplica Bloch, para Tomás de Aquino,
a sua distinção entre o direito natural absoluto e o relativo, com ima-
gens bíblicas baseante claras:
No D ecálogo se revela de modo novo o direito natural, mas se
revela, sem dúvida, a uma humanidade caída, e, p ortanto,
trata-se de um direito natural modificado. É um direito n atu-
ral que pressupõe um Adão, não justo, e sim pecador, e, por
conseguinte, um direito natural do estado do pecad o, o que é
o mesmo que dizer, relativizado. Na idade de ouro, que aqui
se denomina estado originário o u estado paradisíaco, reinava
a liberd ade e a falta de vio lência (ainda que não uma igualda-
de indiscriminada), e existia, sobretudo, a communis possessio.
N o direito natural d ebilitad o o u relativo , que é o q ue o peca-
do original deixou d aquele direito natural absoluto, perde-
ram-se todos estes direitos originários. Quer dizer, o p ecado
de Adão devia servir para justificar o pecado original da Igrej a,
seu afastam ento do comunism o cristão primitivo e sua o rien-
tação às ordens do mundo. O d ireito n atural relativo retroce-
deu, inclusive em grande medida, em comparação com o di-
reito natural estóico, sancionando a escravidão e, so bretudo, a
autoridad e e sua espad a. Porque a caída de Adão teve com o
conseqüência que o direito n atural adotara a nova forma de
-
UTOPIA E D IREITO

pena e dos m eios espirituais contra o pecado: tudo isso se


justificava pelo pecado original. 127

A perspectiva de Bloch sobre utopias jurídicas em Lutero e em


Calvino não difere no essencial do posicionamento que vê em Tomás
de Aquino . Com as diferenças de visão teológica que lhe são peculia-
res (e enxergando até mesmo mais democracia em Calvino que em
Lutero, apesar de uma fundamentação altamente capitalista naquele),
~loch encontra um nexo de ligação entre o pensamento oficial cristão,
seja católico ou protestante - que raramente, como Münzer, se rom-
eeu -, "e as origens do próprio pensamento clássico grego: tratam-se
todos de justiças a partir do alto (Gerechtigkeit von oben) 128 , e não ,
para uma plena utopia justa, da justiça a partir de baixo, do povo.

A UTOPIA JURfDICA CONSTRUfDA NA HISTÓRIA: OS MODERNOS

Na tentativa d e buscar, na história do pensamento jurídico, um


direito natural que se aproxime da utopia da dignidade humana, Bloch
separa os jusfilósofos modernos - tal qual o fizera com os antigos e
medievais - entre os adoradores da ordem estatal e os potenciais
libertários. Neste sentido, sua apreciação por Hobbes, logo no início
da modernidade, é das piores.

Reconhecendo que o jusnaturalismo moderno é um passo fun-


damental à dominação de classe burguesa e que o discurso dos direitos
humanos em muito se prestou à consolidação da burguesia na Euro-
pa, Bloch identifica alguns pensadores que conseguem , mesmo saídos
da classe burguesa, transcender os interesses da dominação .econômi-
ca. D entre estes, Thomasius e Rousseau são campeões.

127 lbid, p. 38.


1 28 lbid., pp. 50 e seg.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Bloch se vale de uma peculiar nomenclatura em relação ao tipo


de direito natural construído na modernidade. Dirá se tratar de um
direito natural clássico, mas não porque remonte necessariamente aos
clássicos gregos e romanos, e sim porque representa o jusnaturalismo
moderno o modelo acabado do interesse burguês e sua utilização mais
prática e recorrente. Tal direito natural moderno, clássico nas palavras
de Bloch, ainda é uma manifestação tortuosa de um ânimo que impe-
ra desde os estóicos, mas bastante distinto em sua finalidade.
...... ... \. ·.. ' , :-. . . ;.:•-'. \ '.. . : ~ ,,._·.·: . ~

f"Que ,;natureza humana" tenha outro sentido no direito natu-


ral clássico que no estoicismo é evidente; trata-se, ali, no fun-
do, da natureza do empresário incipiente, não da do sábio. É
uma natureza burguesa-revolucionária em luta contra a arbi-
trariedade feudal, contra a opressão e a desordem. O direito
natural clássico é a ideologia da economia individual e da cir-
culação mercantil capitalista, o qual, assim sendo, necessita
de calculabilidade, e, portanto, igualdade formal e generali-
dade das leis, em lugar do matizado direito dos privilégios
. pr6prioda Idade Média. 129

Hobbes, nesta análise de Bloch, representa a face mais pesada do


caráter capitalista do direito natural moderno, tendo em vista que o
pensamento hobbesiano apo~ta num "tortuoso" jusnaturalismo, não-
democrático por essência. Falta a Hobbes, segundo Bloch, a pur~~a
das origens, do estado de natureza, e daí a carência de uma utopia que
seja plena na dignidade do homem. Tendo associado Bloch a utopia
jurídica à dignidade, o direito natural hobbesiano não se assemelha a
tal projeto utópico.

Bloch, no entanto, não está neste ponto apenas desenvolvendo


uma história do pensamento jurídico em busca da utopia, mas está
também se valendo de suas páginas para o explícito combate político.

129 lbid, p. 69.


ÜTOPIA E DIREITO

Polemizando, a ausência de um fundamento primeiro d a dignidade


em Hobbes não é suficiente, segundo Bloch, para afastá-lo totalmente
de toda idéia de direito natural e torná-lo caudatário de qualquer teo-
ria do decisionismo, como pretendeu Carl Schmin, seu estudioso do
século XX. Bloch não economiza palavras para tanto, tratando Schmitt
por "prostituta do absolutismo completamente letal, do absolutismo
nacional-socialista'' . 130 A razão da virulência é ainda uma aposta políti-
ca, que estava candente ao tempo nazista: Bloch consegue ver uma
réstia de dialética no jusnaturalismo moderno, que há de se aproveitar
a ben efício da dignidade pelo m enos no momento em que rompeu
com a fundamentação teológica e abraçou a razão. Carl Schrrútt e o
nazism o, para Bloch, nem à razão lograram adentrar.

É tal rompirp.emo com a teologia, com a divinização do direito


natur-~l, com seu uso até então a benefício da dominação, que Bloch
Yê.. ~°-~ mel~ores olhos em Grócio. Thomasius, p~or sua vez, que é cha-
mado por Bloch como "intelectual alemão sem misérià ' 13 1 (e que m e-
receu um apêndice de Direito Natural e Dign.idade H umana para seu
estudo e louvor), também é um dos que, na modernidade, represen-
tou um passo decisivo pela utopia da dignidade humana, na medida
em que empunha a bandeira d~
.
um jusnaturalismo
. . de tolerância.

Em uma boa projeção utópica da dignidade humana também


está, segundo Bloch, Ro usseau, que n a história do seu direico natural
clássico ocupa um lugar central. Ainda que reconhecendo a incon-
gruência rousseauniana e o fato de que definitivamente era ambíguo
quanto à propriedade, a ponto de ser errôneo tomá-lo por comunista,
como já o eram ao seu tempo Morelly ou Mably, Bloch não deixa de
admirar o peso que Rousseau investe, mais que à figura do capitalista,
à do cidadão. Tomando partido da conhecida polêmica de J ellinek a

1 30 Jbid., p. 62 .
131 lbid., pp. 315 e seg.
Ar.YSSON LEANDRO MASCARO
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j
1
i
i.
respeiro da proximidade da Revolução Francesa e da Declaração de
Direiros com o Bill ofRights americano ou com o Contrato Social de
Rousseau, 132 Bloch dirá que a quescão é mais profunda, uma vez que
as afinidades da Revolução Francesa se deram por ambas as partes e
que Rousseau, m ais profundamence, estava, em outro diapasão, bem
distinto, o de resgatar a perspectiva do cidadão da Antiguidade.

No histórico da formação da utopia da dignidade jurídica mo-


derna, Bloch vislumbra um papel contraditório a Kan t. É menos
libertário que Rousseau, na medida em que "Kant sustenta o caráter
retributivo da pena (olho por olho, dente por dente) , nega o direiro
de resistência, e o nega até mesmo no caso de uma autoridade satâni-
cà'.133 Tudo isso não afasta o lado progressista de Kan t, pois este ex-
pressa sua admiração incondicional pela Revolução Francesa. Kant
afasta o estoicismo da "natureza como critério'', investindo sua cons-
trução teórica na razão, mas ainda assim logrando também tocar na
questão da dignidade. E tal caminho tortuoso de uma construção
racionalista do direito natural, apartada de qualquer referência à na-
tureza, Bloch o enxerga também em Fichte, o que neste caso conduz a
uma aventura de afastamento da moralidade e da realidade em troca,
muitas vezes, do próprio diróto positivo. Tal paradoxo, para Bloch,
também está atravessado na Luta pelo Direito de Jhering e no J'accuse
de Zola, como um fanatismo pelo direito positivo que substituiu o
fanatismo do direito natural.

Toda a evolução do pensamento jusnaturalista moderno, que Bloch


compreende sob uma abordagem bastante crítica, se tran sformará

132 "Neste sentido, o fi lósofo Ernst Bloch chama a atenção, no brilhante e~t udo Direito N,1tural e
Dignidade Humana , a posslveis conexôes e iníluências reciprocas entre o direito de liberdade
de consc iência religiosa e o direito natural ta l qual desenvolvido por Roussea u". SOLoN, "A
Polêmica acerca da orige m dos Direitos fundamentais: do Co ntrato Soci al à Declaração
americana", op. cil., p. 1 3.5.
133 BLOCH, Ernst. N,1turrech1 und m enschlich e Würde, op. cil., p. 82.
UTOPIA E DIREITO

quando, na passagem de Rousseau para os contemporâneos, se depara


com um projeto muito peculiar, que aponta claramente às utopias
jurídicas da dignidade humana: trata-se do romantismo e, em especí-
fico, da questão do direito matriarca!, levantada por Bachofen.

De um certo modo, na análise da Escola Histórica, que é uma


reação ao Iluminismo e ao liberalismo burguês racionalista, Bloch per-
cebe os ecos de uma inspiração profunda, que é a do romantismo. Tal
qual Lukács, Bloch também pode ser filiado a uma ampla corrente
romântica, que é artística e filosófica, e que encontra, na história do
pensamento jurídico, peculiarmente, um paralelo claro com o movi-
mento de Savigny. E, dentro do movimento jurídico romântico, Bloch
considera Bachofen um de seus mais importantes expoentes: "sua prin-
cipal obra, O Direito Matriarca/ (1861), é o produto legítimo do ro-
mantismo alemão". 134 Bloch vê em Bachofen uma continuidade do
lado romântico rousseauniano, trazendo à tona a narureza noturna e
feminina do direito natural. Segundo Bloch, tal caráter feminino,
matriarca!, fica ressaltado em Bachofen na dicotomia por ele aponta-
da, em Antígona, entre a dignidade utópica haurida femininamente
da terra e o domínio patriarcal estatal.
A rebelião do direito da terra em que se apóia Antígona contra
a lei patriarcal de Creonte é aqui, precisamente, o exemplo
mais característico. É o exemplo oferecido por uma das mais
grandiosas obras literárias, por um conflito no qual Sófocles
faz chocar tragicamente o antiqüíssimo direito matriarca! com
o novo direito estatal e do soberano. 135

Há um caráter claro neste apoio de Bloch em Bachofen, um dos


autores que não fazem parte do cânone mais restrito da história da filo-
sofia do direito: trata-se de vasculhar, como direito natural a benefício

134 lbid.,p.116.
135 lbid. , p. 132.
f~
!'

l! Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

da utopia jurídica, não o estabelecido e velho conhecido direico de do-


minação, mas a imagem contundente do feminino, da m ãe, como aco-
lhedora da dignidade humana. 136 Neste sentido, vão se afastando os
direitos naturais antigo e burguês moderno, que, vindos do alto, eram
ordens de dominação e de mera contabilidade individual. O acolhi-
mento maternal, que está em Rousseau e em Bachofen, é a melhor ima-
gem histórica, produzida pelo pensamento dos juristas modernos, a ser
guardada e utilizada por Bloch para apontar a wna utopia jurídica.

A UTOPIA JURfDICA CONSTRUÍDA NA HISTÓRIA:


OS CONTEMPORÂNEOS

Hegel ocupa no pensamento jurídico de Bloch uma posição de


muico relevo, que no conjunto da obra só será menor que o de Marx,
a quem dedica os problemas da parte final de Direito Natural e Digni-
dade Humana. Tanto quanro a Lukács, para Bloch também Hegel é o
caminho de passagem a Marx. Não só na sua grande obra jurídica
Bloch tratou da filosofia hegeliana, m as dedicou a Hegel um monu-
menro literário que fez publicar, pela primeira vez em língua espanho-
la e só depois em alemão, Sujeito-Objeto.

Em Direito Natural e Dignidade H umana, Bloch começa por in-


sistir na ambigüidade hegeliana. É assim que o mesmo Hegel que res-
peita e adm ira o Iluminismo também se encaminha, na maturidade,
para o elogio do Estado prussiano. Bloch liga de uma certa maneira o
pensamento jurídico hegeliano ao tema do direito matriarca!, apon-
tando que a interpretação de Antígona por Hegel busca uma síntese

136 "Com imaginação e fantasia, o direito natural é reinterpretado à luz da obra bachofeniwa, das
seitas cristãs gnósticas e do romantismo de Schilling e não se surpreenda o leitor se a mistura
de todos esses ingredientes resultar numa nova teologia políticJ -revo lucíonária". Sot0N,
Teoria da soberania como prob lem~ da norma jurídica e da clecisão, op. cit., p. 172.
UTOPIA E DIREITO

entre o matriarcado e o patriarcado, a família e o Estado. "A posterior


Estética exige, ao tratar de Antígona, a unidade do direito do amor
("Liebesrechts") corn o direito do Estado em uma totalidade da qual
ambos são partes". 137

Bloch retoma, na frase central de H egel, "o que é racional é real,


o que é real é racional" 138 , aquilo que já se aponta desde os primeiros
críticos hegelianos, que é o fato de conter uma primeira pane revolu-
cio nária e uma segunda parte reacionária. Assim se demonstra o fra-
casso do período de entrada do positivismo contemporâneo em levan-
tar a utopia jurídica da dignidade humana. Isto, no entanto, não afas-
ta da contradição do pensamento hegeliano o seu valor maior. Em
suas poéticas palavras, em Sujeito-Objeto, no capítulo concernente à
filosofia do direito, Bloch a Hegel se refere:
É, precisamente, em Hegel, o solo em que pode florescer uma
rosa muito mais bela, muito mais misteriosa, muito mais lu-
minosa que aquela que floresce na cruz do Estado; seja com
ou sem ramos de carvalho e espadas. 139

Este algo que pode resultar de Hegel muito melhor que a cruz do
Estado é o marxismo, cujo método é haurido das fonte s hegelianas .
Bloch faz em Hegel a inflexão para a superação do próprio estatalismo
hegeliano por meio do método hegeliano-marxista. A rosa contra a
-~~y_z e a espada é a utopia jurídica contra o Estado e a domina~ao . No
pensamento de Bloch , é Hegel a chave com a qual Marx supera, en-
fim, ao próprio Hegel.

137 BLOC.l i, Naturrecht une/ menschliche Würcle, op. cit., p. 142.


1 38 " A partir da equação 'real = racional' é que se pode compreender por que n ão há para Hegel
uma idéia de justiça separada da realidade em que ela se revela. A idéia, por ser a expressao
maior da racion alidade, é també m a máxima cxpress~o da rea lidade". SALCAOO, Joaquim
Carlos. A idéia de justiça em Hegel. S~o Paulo, Loyola, 1996, p. 498.
1 39 Bwo1, Ernst. Sujelo-Objeto (e/ pensamiento de Hegel) . México, Fondo de C ultura Econômica,
1982, p. 254.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

Para Bloch, no entanto, o caminho da filosofia do direito con-


temporânea segue, de Hegel, a cruz do Estado, e não a rosa. Assim,
volta suas armas contra o positivismo, que é a ideologia jurídica dos
séculos XIX e XX. Mais uma vez, sua obra jurídica n ão é só uma aná-
lise histórica e filosófica fria e intelectiva, e sirri um libelo transforma-
dor, que interfere em seu próprio tempo.

Na crítica que empreende contra o positivismo nos séculos XIX e


XX, Bloch mira alguns alvos certeiros. Começa sua trajetória por mo-
vimentos jurídicos já ultrapassados a seu tempo para se concentrar,
ao final, nos dois grandes monumentos do domínio juríd ico: os pensa-
mentos de H ans Kelsen e, principalmente, de Carl Schmitt.

A escalada pelo positivismo de antanho passa por Jhering, cujos


A. Finalidade no Direito e A Luta pelo Direito representam, para Bloch,
ur.!1 .movimento de alguma aproximação à dignidade humana, por
~o n ta da finalidade e da luta, mas que, ao final, se situam no mesmo
quadro geral de busca do lucro e do interesse do capital privado e do
Estado liberal.

Nesta mesma cont radição Bloch também situa a Escola do Di-


r~ito Livre, que, podendo alçar vôos em busca de uma utopia além
do positivismo, resiste numa liberdade que é o atendimento d e uma
burguesia que mudava a sua estrutura econômica, an tes apenas for-
mal e agora necessitada de uma sociologia que abrisse respiras ao
casual e ao específico.

Com mais dureza, Bloch se referirá ao movimento que, tentando


esmaecer o positivismo, relança o direito natural, sob matizes profun-
damente mais reacionários. Neste ponto, Bloch disti ~gue o seu ?irei to
natural, da utopia da dignidade humana, daqueles que, até mesmo no
pós-guerra, retornaram a um jusnaturalismo de caráter ético e religio-
so co mo form a de se contrapor ao rescaldo do totalitarismo.
UTOPIA E DIREITO

Aponta Bloch que um dos que postulam um fundamento ético


jusnaturalista e passadista no capitalismo tardio é Stammler. A carac-
.terística comum a todos os movimentos que postulam, a partir do di-
rei_t9,_uma libertação do positivismo é o fato de não se desgrudarem,
;~ ~aj?9~_Qprqp_~~._p9~Ítlvismo, do Est~d.o e da dominação. No final
d~~ contas, para Bl.och, trat_a-se de uma defesa ~o direito positivo em
meros cenários (Kulissen) de preocupação social.

~~.iil1 ta,rnbém a retomada do to mismo, que Bloch classifica como


l!_~a falsificação, ten4.<? ~m vista o seu caráter fugidio às questões estru-
turai~'·~fá. l'iijlisriça no capitalismo. Bloch considera o neo-tomismo uma
construção de~~raciva no ~onjunto do direito positivo capitalista con-
temporâneo. Suas investidas de direito natural são daquele tipo que Bfoch
denominou de relativo, isto é, preservando a autoridade divina, de um
·lado, e a do Estado, do outro. O resultado é apenas um vago
tangenciamento dos problemas sociais contemporâneos, em troca de
u~ ~~ráter p~sroral que teme o potencial da liberdade. O direito natu-
ral do neo-tomisino, no século XX, se apresentará então, para Bloch,
como "duplamente decorativo por razão da quimera de um direito na-
tural pré-capitalista, anterior a todas as contradições capitalistas". 140 Tra-
ta-se, para Bloch, de uma volta ao passado que tem por resultado passar
ao largo das questões centrais da exploração econômica. Se a encíclica
papal Q}tadragessimo Anno, segundo Bloch, conclama, em nome do di-
reito natural, que os salários dos trabalhadores não sejam muito rebaixa-
dos, também nada faz nem aponta para que sejam aumentados.

A investida de Bloch contra aquilo que denomina de "direito na-


tural tardio-burguês" se estende até mesmo à análise do pensamento
de Adolfo Reinach, cujo Fundamentos apriorísticos do Direito Civil,
de 1913, marcou um passo importante para o estabelecimento de

1 40 BLocH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit., p. 161.


ALYSSON LEANDRO MAsCARO

uma reflexão fenomenológica a respeito d o direito, nos passos de


Husserl. A fenomenologia, pretendendo uma essência para além das
contingências, do acaso, das peculiaridades incidentais do direito, acaba
por construir uma teoria jurídica vazia, desprovida de relações sociais,
e, daí, quaisquer que sejam seus conteúdos, advirão de um procedi-
mento de formas esvaziadas. Bloch aponta para a fenomenologia
implicada ao direito natural como se fosse um panóptico, um conjun-
to total de imagens falsificadas.

~-? ent~nto , toda a <;:xcursão de Bloch pela história do pensamen-


to jurídico terá seu ponto culminante na crítica a_Hans Kelsen é a Carl
Schmitt. Nestes dois, enxerga Bloch o cume contemporâneo das duas
formas de dominação do capitalismo, nas suas faces liberal ou nazista.

Para Kelsen, Bloch reserva uma crítica bastante peculiar, que co-
meça primeiro por apontar, classicam ente, para os limites d o
formalismo kelseniano, mas que, de forma surpreendente, posterior-
mente identifica em seu pensamento uma mistura de geometria não-
euclidiana, que Bloch qualifica como axiomática e dedutiva, com um
scocismo medieval, partindo do primado da vontade sobre o entendi-
mento.14 1 Estes dois métodos (a dedução formalista e a vontade), se-
parados e muito diferentes entre si historicam ente, hão de se encon-
trar no pensamento jurídico de Kelsen.
fcom a teoria de Kelsen do puro caráter prescritivo da norma
fundamental (e, como conseqüência, d a vari abilidade da

141 Ari Solo n, trata ndo da confrontação de Bloch a Kelse n, afirma; "Inicia o ataque a Ke lsen com
os chavões usuais que ju lgamos ter re futado ao longo de nossa análise; a ' lógica do dever'
não admite nenhuma determinação empírica; a oposição a bstrata entre ser e dever-ser suscita
um desinteresse pe lo ser e a d outrina pura despreza a sociologia e a an álise econômica. Há
um ú nico ponto de sua crítica que, com a lguma retificação se concilia pe rfeitamente em nossa
análise. Após mostrar como a doutrina kelseniana poderia ter seu ponto de surgimento no
scotismo medieval (a afi rmação do primado da vontade sobre o e ntendimento faze ndo derivar
todas as d ete rminações inte lectuais da vontade divina, que n~o se prende a nenhuma lógica
do entendimento), Bloch afi rma ter o irracionalismo campo livre". SoLON, Teoria da soberania
como problema da norma jurídica e da decisão, p. 168.
UTOPIA E DIREITO

normatização), abrem-se as portas para o irracionalismo; ul-


trapassando-se a si mesmo em nome da "pureza", o formalismo
estava maduro para isso desde o princípio. 142_,,·í

Aponta Bloch que Kelsen é um destino necessário a que chegaria


a teoria jurídica positivista e formalista, que, por conta do seu desinte-
resse científico pela origem de sua validade, torna-se um antípoda do
direito natural como utopia da dignidade humana.

No entanto, dirá Bloch, a mais aberrante evolução a que chega a


filosofia jurídica desprovida das utopias da dignidade humana vai se
dar no pensamento de Carl Schmitt. Pior que Kelsen, porque neste
ainda há uma máscara de estado de direito em Schmitt só se vislumbra
o estado de exceção como norma.

Confirma-se mais uma vez, quando da análise específica de Carl


Schmitt (e, em tom menor, da de Kelsen), que Bloch abandona um
possível neutralismo de curiosidade histórica para tomar partido em
face de feridas que, no tempo de escrita de sua obra jusfilosófica, esta-
vam abertas e poderiam, até mesmo, reaparecer. Na condição de ju-
deu marxista, perseguido duplamente, Bloch não poderia se furtar a
vaticinar criticamente contra o pensamento schmittiano.

Embora nas décadas de 1980 e 1990 tenha havido no seio do pen-


samento marxista uma revalorização de Carl Schmitt, por conta de sua
suposta fidelidade a uma perspectiva realista do poder, que trata da ex-
ceção e não da norma, Bloch rechaça qualquer hipotética interpretação
benéfica em torno daquilo que denomina "antijusnaturalismo". Bloch
percebe, desde logo, que Schmitt faz um movimento de afastamento do
formalismo, que até poderia lograr êxito, mas que procede a uma
hecatombe ainda maior: o formalismo jurídico pç>$iúvista (Kelsen). é ex-
p_r~ssão do capitalismo burguês legalista, concorre11:çial e mercantilista,

142 Bt.OCH, Ernst. Nalurrecht und menschliche Würde, op. cit., p. 171.
I!
1: Al.YSSON !JlANDRO MASCARO
r

li
mas o decisionismo de Schrnitt é a negação do direito dos burgueses
mér~antis e~ riomedo capitalismo monopolista. Para isso, até mesmo o
uso schmi~tiano de Hobbes é amplamente distorcido, 143 porque, se este
aponta para o contrato social como resolução da natureza, Schmitt apon-
ta para a exceção. "A falsificação desemboca em assassinato. Como dita-
dura do crime consumado". 144

Neste sentido também aponta Celso Lafer, tratando a respeito


das razões da con exão hobbesiana de Schmitt:
Schmitt inspirou-se em Hobbes e na preocupação hobbesiana
cfã. gu~rra de todos contra todos, mas as suas idéias serviram a
Hi tle~, que deu um sentido preciso ao que Schmitt denomi-
nou de hostilidade absoluta. 14 5

Bloch n ão se furta a co ns truir um método de distinção


jusfilosófi ca que é, no fundo, uma arma de luta pelo presente e pelo
futuro. Toda a trajetória da utopia da dignidade humana é social,
histórica, condicionada às circunstâncias do domínio político-eco-
nômico. É, enfim, de classe. M as, ainda assim, Bloch considera boa
parte de tal pensamento jurídico uma herança necessária à utopia
jurídica de uma sociedade justa e digna.

1 43 "A apreciação d a obra de Schmitt é ainda mais desfavorável, inclusive com insultos desneces-
sários. No capítulo de seu livro '0 de cisionismo de Carl Schmitt ou o anti-d ire ito natural',
Bloch acusa Schmitt de ter fals ificado Hobbes, um autor liberal preocupado com a segurança
pessoal e a manutenção da paz para fi ns fa scistas. Não seria Bloc h que falsifica Schmitt, pois
ao reivi ndicar para o decisionismo a construção liberal de Ho bbes, como poderia ela cu lmi-
nar no fascismo em que pese a máscara usada pe lo seu auto r d ura nte certo tempo para
protegê-lo? Bloc h, porém, estava convencido, ao contrário d e nós, que, há muito, j á se
ocu ltava sob aquela máscara um rosto fascista. [... ] Pelo menos, Bloch entende u, me lhor do
que Ke lsen, que Schmitt não era nenhum jusnatura lista". SOLON, Teoria da soberania como
problema da norma jurídica e da decisão, p. 1 69.
1 44 BLocH, N.iturrechl und mensch/iche Würde, op. cit., p. 175.
1 45 LMER, Ce lso. A reconstrução dos direitos humanos. Um diálogo com o pensamento de Hann ah
Arendt. São Paulo, Companhia das Letras, 1988, p. 287.
CAPÍTULO 8

A ONTOLOGIA JURÍDICA DA UTOPIA

O caminho da filosofia do direito de Bloch, após o grande excurso


histórico da parte inicial de Direito Natural e Dignidade Humana,
passa a ser o de se aproximar, na segunda e derradeira parte da obra,
da construção de uma específica ontologia utópica, aquela que versará
sobre o direito. O ser-ainda-não das utopias jurídicas revelar-se-á uma
das mais importantes peças da arquitetônica do pensamento blochiano,
pois que aponta para a sociedade digna e justa.

Em torno do marxismo e da reconstrução das categorias jurídi-


cas, sob a ótica da filosofia da práxis, será construído o eixo da teoria
especificamente jurídica de Bloch. Para tal procedimento, Bloch car-
rega consigo, logo de início, a bandeira e as cores da Revolução Fran-
cesa. Aponta Bloch seu conteúdo como o passo referencial da utopia
que ainda não se cumpriu e que, pois, não se venceu.

A UTOPIA DAS T~S CORES REVOLUCIONÁRIAS

Ao contrário do marxismo mais estrito, que não enxerga na revo-


lução burguesa da França um passo da revolução socialista, Bloch apon-
ta em sentido contrário: o grande legado da revolução francesa é seu
horizonte utópico socialista. Assim sendo, suas três cores, seus lemas -
igualdade, liberdade e fraternidade - perseveram no imaginário utó-
pico como as fronteiras a serem concretizadas quando do estabeleci-
mento de uma sociedade socialista, definitivamente não-burguesa.
ALYSSON WNDRO MASCARO

Bloch instaura uma dialética entre o impulso tricolor da Revolu-


ção Francesa e a sua possibilidade de concretização apenas com o soci-
alismo. Ao invés de separar cada um dos três lemas, problematizando-
os individualmente, Bloch ressalta a sua íntima interligação recíproca.
-t>. Q __q~e oc:one, apontará Blo~h, é que os três horizontes da utopia da
Revolução Francesa só se concretizam na transcendência da sociedade
burg~e~;. Assim, será a classe trabalhadora aquela que dará cumpri-
mento aos ideais que, em tempos passados, foram postulados pela bur-
guesia. A burguesia, por se plantar na exploração, na divisão de clas-
se~: na cisão, não tem condições de levar adiante tal processo de eman-
cipação proposto pelos lemas da Revolução. Por isso tais lemas são até
~ p~es~~te C()ntraditórios e não se cumpriram. "Não chegaram ainda
-~-s _ homei::is de que trata g apelo tricolor" . 146

De tal forma, Bloch deposita nas mãos da classe proletária a


-~~~pia da liberdade, da igualdade e da fraternidade. A bandeira da
Revolução Francesa persiste, empunhada agora por outra classe. A
~topia mais uma vez se levanta, trazendo do passado os seus sonhos
mais- profundos, mas sendo .concretizada pela concretude da ação
~ocial revolucionária. )·
·· ····· ··

No caminho para a liberdade, Bloch não diferencia tipos ou mo-


dalidades excludentes e insiste, sim, que a liberdade, ao mesmo tempo
em que é individual, nas escolhas e eleições, é liberação, libertação da
coação e da opressão. Por isso, somente o socialismo, emancipando o
homem do aguilhão da exploração econômica e do trabalho, logrará
...
empreender uma sociedade livre: flli>_çh apon~~_ g_l!~ ~ }ibe~dade não é
o afastamento do indivídl1o do mundo, a fim de que pense e delibere
sozinho, de modo próprio. É a liberdade no próprio mundo, ocasião
~~que os h~me~s se t~rnarão, todos, senhores . .A .

1 46 Blcx.:H, NalUrrecht und me nschliche Würde, op. cit., p. 1 76.


UTOPIA E DIR.EITO

A liberdade aponta para um caminho ético, o que faz com que o


homem não se assemelhe a um cão (Hund}, e, ainda por conseqüên-
cia, a liberdade religiosa daí advinda não será aquela proposta pelas
igrejas e por Lutero, a mera liberdade da consciência, interior, ou en-
tão aquela que só aponta aos céus. ~ . liberdade, refere-se Bloch, guar-
da o conceito hegelian.o de não ser determinada. É aberta, é a possibi-
_lidade, inconclusa.

~' ~ _ igµaldag~ 1 ---~~ )gual diapasão, não é um conceito estrito, ao


mesmo tempo em que só pode ser pensada no contexto de sua conju-
gação com a liberd~de... Uma
-. .
só há com a outra. Ainda que aliberdade
tenha sido mascarada, tornada parcial - a chama~a liberdade indivi-
dual, de negócio - , a igualdade, no entanto, só existe caso seja plena.
Por isso, só há igualdade superando-se o capitalismo. ·~

Não s6 a partir de um ângulo formal, mas também parcial-


mente, a partir do ângulo de seu conteúdo, a liberdade se
prestou a ser transformada e definida como liberdade do su-
jeito econômico individual, ou, pelo menos, pôde ser comida
nestes limites; no entanto, a igualdade e a fraternidade, se não
permanecem n o âmbito do formal e pretendem receber um
conteúdo, ou bem são socialistas ou n ada são em absoluto. 147

O mesmo vínculo de reciprocidade com os outros lemas aponta


Bloch no que tange à fraternidade. Esta se dirige à paz, e a paz só logra
ser obtida por meio da superação da exploração de classes. O sentido
da fraternidade é um afeto.profundo que diferencia um m ero abraço
de feras do abraço humano. Esta fra~ernidade co~~~ru{g;;i. Q9~.. 2PJ:Ími-
dos é uma ação libertadora e igualitária, que lembra a frase revolucio-
nária, tida· por Bloch como um cristianis-~o verdadeiram~-~ t~-p~átic~:
"ggÇ.rra
. .paz
aos .palácios, . .a~s casebres" ~ Assim, em bus~a da pa~, a
fraternidade é a concretização da liberdade e da igualdade.

147 lbid.. p. 187.


ALYSSON LEANDRO MASCAR.O

Bloch aponta ao fato de que os l<;:gias tricolores são, de início, lemas


burg~es~, f~itos, portanto1 p~ra a parcialidade, para o seu não-cu~er!:_
menro:"f{~_entanto, geram excedentes -~tópicos extr~ordinários. Por isso
devem ser aprópriàd(;~ como. herança para a lura socialista, tendo em
vista a limitação e o caráter contido e parcial da utopia burguesa.
Liberdade, igualdade, fraternidade, a intentada ortopedia do
andar ereto, do orgulho viril, da dignidade humana, apontam
muito mais adiante do horizonte burguês. 148

Tais esperanças que eram tipicamente burguesas apresentaram-


se, ao tempo de Marx, como uma utopia do homem e do cidadão, que
não poderia ser cumprida, pela limitação estrutural da burguesia, mas
que ao mesmo tempo era muito difícil de ser rechaçada. fu interpreta-
ções dos marxistas quanto ao próprio Marx são muito plurais no que
diz respeito à incorporação, pelo pensamento marxiano, da bandeira
dos direitos humanos e da cidadania. Certamente, aponta Bloch, Marx
vislumbra os claros limites das utopias burguesas, porque estas não
podem se cumprir pela própria burguesia ou numa sociedade bur-
guesa. Isto não quer dizer, no entanto, que não haja utopias quanto
aos direitos do homem e do cidadão em Marx:
A partir daqui, Marx faz cair sobre os direitos do homem uma luz
muito mais quente. Com rigor insuperável ele mostrou o seu
conteúdo de classe, mas também o seu conteúdo futuro, um
conteúdo que, naquele tempo, não encontrava solo propício. 119

:> Tal utopia dos direitos humanos, em Marx, é a libertação da ex-


ploração da propriedade, expressa por Bloch pelo seguinte trocadi-.
lho: não liberdade de propriedade, mas liberdade da propriedade (nich
Freiheit des Eigentums, sondern vom Eigentum), como a dizer que não é

1 48 lbíd., p. 199.
149 lbic/. , p. 203.
UTOPIA E DIREITO

a liberdade de chancelar a posse de alguns, mas a liberdade. de ulrra-


p~~;/o~ ~ondicio~amemos da propriedade. jf .

Diz então Bloch que a utopia jurídica de Marx carregará, como


parte da luta proletária, a herança tricolor da dignidade humana.

Ü DIREITO EM MARX
A posição de Bloch dentro do marxismo jurídico é surpreenden-
te. Bloch empunha a bandeira de um largo projeto de humanismo,
que vê no marxismo a heran ça dos mais profundos sonhos de justiça já
vislumbrados na história. Isto, no entanto, não faz de Bloch um vago
humanista jurídico marxista, do tipo reformista que ainda considere e
dê relevo ao d ireito e às instituições burguesas.

, D entro do entendimento dos marxistas quanto ao direito, ao


menos duas grandes .;,ertentes, historicamente, mostraram-se nítidas:
aquela que considera o direito um instrumento a princ:ípio neutro,
necessário também à sociedade socialista e.forma responsável pela trans-
formação do capitalismo', e outra, m~is radical, que considera o direito
estruturalmente vinculado ~o capitalismo, devendo sucul!'bir ju11to
com este quando da transformação sodalista. ~·

A primeira corrente, ainda institucionalista, que dá m argem tan-


to ao reformismo quanto à social-democracia e até ao Estado stalinista,
planificador e desenvolvimentista, é a corrente majoritária da história
do marxismo jurídico, rendo agrupado em suas correntes aqueles que
apostaram numa transformação gradual das condições políticas e eco-
nômicas, por meio de eleições e reformas parlamentares, por exemplo.
A Escola de Frankfurt e os juristas oficiais soviéticos, tirante as opiniões
opostas sobre o conteúdo do direito, estão ambos nesta mesma verten-
l·t,...
i

Al.YSSON LEANDRO MASCARO

te, de aposta jurídica. 150 A outra vertente, que se poderia argumentar


mais radical, é a que condena de modo virulento o direito, por tomá-
lo o modo de estruturação institucional do próprio capitalismo. Tal
vertente, minoritária dentro do marxismo, teve como seu principal
expoente Pachukanis, mas justamente ele, o jurista de maior repercus-
são dentro do marxismo, cuja Teoria Geral do Direito e Marxismo tal-
vez tenha sido a obra mais original e próxima de O Capital que o
pensamento jurídico de esquerda renha produzido.

É surpreendente à primeira v ist a que Bloch, o campeão do


humanismo m arxista, se inscreva na construção de uma ontologia ju-
rídica da utopia que, em linhas gerais, compartilhará da mesma visão
do direito de Pachukanis. Tal surpresa, no entanto, é aparente, na
medida em que ·13f~ch comunga com Pachukanis o que passa desper-
cebido à primeira vista neste, que é o caráter utópico d a sociedade sem
Estado e sem direito e, portanto, sem dominação institucional. O pro-
j_e_t? __de utopia jurídica de Bloch, assim, se confirma radical e pleno e,
nesta plenicude, revela-se similar ao mais radical projeto .de entendi-
meiiro d~ direito dentro do marxismo.

Não pode surpreender que nesse "diálogo" desempenhe um


papel essencial a fi gura de Pachukanis, pois ao fim e ao cabo
este foi o autor da obra (Teoria Geral do Direito e Marxismo) da
qual se levanta toda a investigação marxista sobre o Estado no
sentido mais próprio do termo. Também o próp rio caráter da
obra de Pachukanis, abertamente libertário e utópi co, facili-
tava-lhe que fosse utilizado em cerra medida como "guia", ainda

1 50 De outro modo , Lukács situa-se de maneira crítica - quiçá, neste ponto, contraditória - no painel
das duas verte ntes marxistas ace rca do direito e da política estatal: "Não há, portanto, justificativa
plausível para que Lukács, te ndo definido corno 'te mporal' o Di reito, afirme a 'unive rsalidade' da
política nos te rmos em que o fez . [... ) Conceber a po litica como prática ideológica universal - e
não enqu anto d ime nsão alienada da ex istê ncia humana - e o s ilê nc io acerca do Estado na
reprodução socia l pa recem indica r áreas e m que a tragédia soviética se fez mais di ret amente
presente nas investigações ontológicas de Lukács". LESSA, Sérgio. "Lukács: Direito e Política". ln
Lukács e a acu,1/idade do marxismo. São Paulo, Boitem po, 2002, pp. 120 e 121.
UTOPIA E. DIREITO

que os problemas que postulava sejam muito similares aos


que se decorrem da investigação de Bloch. 151

No Direito Natural e Dignidade Humana, Bloch inicia seu capítu-


lo de análise do direito a partir de Marx compartilhando com Pachukanis
a denúncia ao caráter de classe do direito: além de relembrar ironica-
mente um velho ditado de que juristas são iguais a maus cristãos, apon-
ta, nas pegadas da leitura do primeiro livro do Capital, a indissolúvel
ligação entre a forma econômica e a forma jurídica.
Marx, e mais ainda Engels, apontam a atividade coisificada
(verdinglichende) dos juristas de profissão, a relativa indepen-
dência que adquire a esfera jurídica, especialmente nos Estados
que experimentaram a recepção do direito romano: No aparato
calculador do Estado moderno, o direito não só tem que ex-
pressar o interesse da classe dominante, e sim tem que expressá-
lo em um sistema todo cone_xo e não-contraditório possível. 152 "

Tal ligação entre direito e capi~al l~.~;i Bl~0 ~- ªn':lnc.:~~r que, com
o fim da propriedade privada, a jurisprudência perderá sua função,
perecendo também." Isto porque Bloch denuncia o direito, com gran-
de força imagética, como sendo um "museu das antiguidades jurídi-
cas".· No entanto, Bloch traça uma distinção entre, de um lado, o di-
reito e, de outro, os seus princípios, pelo que denomina a estes de
"museu bem distinto dos postulados jurídicos". Nesta distÍnção entre
di~eito e postulados reside a dialética das heranças aproveitáveis e não-
aproveitáveis da história jurídica para a utopia socialista. /

Por postulados aproveitáveis, Bloch apontará o conteúdo, que ~s;


tava presente no direito natural burguês, da utopia da-dig~idade _hu-
mana, do andar ereto. Dirá Bloch que pertence ao marxismo a luta

15 1 5ERllA, Franc isco. Historia, política y dere cho em Ernst Bloch. Madrid, Trotta, 1 998, p. 219.
152 BLOCH, Naturrecht und me nschliche Würde, op . cil. , p. 209.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

pelos direitos do homem, entendidos não a partir da metafísica que


lhe deu formação, e sim por meio da lura pela dignidade humana.
Pelo contrário, a burguesia, que encampa o discurso dos direitos hu-
manos, é que está estruturalmente vinculada à sua negação.

Esce desmonte das instituições jurídicas e o acolhimento dos pos-


tulados jurídicos não quer dizer que se adota, pela parte de Bloch,
uma teoria jusnaturalista tradicional. De forma adversa, o sentido da
herança dos postulados jurídicos é o da dignidade, afastando, portan-
to, outros princípios jurídicos que, durante a história, com esce con-
trastaram e, mais que isso, procedendo a um método de reflexão sobre
o direito natural que não é jusnaturalista, vale dizer, não é idealista,
metafísico ou burguês, e sim marxista.
\: Não é sustentável que o homem seja, por nascimento , livre e
igual. Não há direitos inatos, e sim que todos são adquiridos
ou têm todavia que ser adquiridos em luta. O passo erguido
"iporii:a ape~~s par_a a_lgo que tem que ser ádqúirido; também a
a~estruz caminha erguidamente para colocar, enfim, a cabeça
no buraco. Não é sustentável, desde logo, que a propriedade
estej_a entre os direitos inalienáveis.153 ~

O direito natural de Bloch toma a inspiração utópica que se de-


correu na história da luta pela dignidade humana, mas rejeita vee-
mentemente o seu conteúdo capitalista - a defesa da propriedade
privada como se fosse "natural" ao homem - e rejeita o método
jusnaturalista. Apoiado em algumas distinções teóricas, 154 Bloch en-
xerga conceitos gnoseológicos e ontológicos que fundamentam o di-
reito natural e se separa de todos estes.

O direito natural se legitima, tomado pelo prisma do conheci-


mento de seus princípios, por meio ou de um conhecimento reputado

153 /bid. ,p.215 .


154 lbid., pp. 220 e seg.
p - de moa 1'27.âo universalmente consrruída ou da revelação.
~ Pjria cstas rrês merodologias.ÍÍ>elo prisma da onrologia, haveria
.. .:. pwíecis TeISÕCS. A primeira delas é a de que o direiro natural é o
• . A;oaáftl, cm face das instabilidades do direito criado. A segunda
«a de que o direito natural remonta a um estado de natureza, real ou
t;M• W.. de origem. A terceira se apresenta como o direito da natureza
. . .ozo dos homens ou o de Deus (a natureza como legisladora). A
itpll&t maca de uma lei que se encontra válida na própria natureza (a
w m como legislada). A quinta versão trata de um direito natural
otpr.. aio sendo de origem natural nem se voltando a ela, no entanro se
•impüa nela como um modelo objetivo e busca refleti-lo. Numa sexta
'wn:1íio, a nanrreza se apresentaria apenas como o adequado, como uma
mD3. de mensuração que é humana, sem ser dedutível e metafísica, e
:sim baseada na eqüidade. Bloch aproxima desta última versão o mo-
ddo jusnacuralista estóico..:J

Demonstrando algum apreço apenas por este último modelo,


- Bloch rechaçará o método jusnaturalista justamente porque, ao de-
monsttar a sua pluralidade de origens e implicações, quase sempre
pRSWilidas eternas e metafísicas, resta claro o desacordo em torno do
rooceico de "natureza": Bloch foge de tais discordâncias, e lança mão
do método marxista, ~}"~~,' · i;~~ean-&>:.:se na história e na pçáxis,
c:n_nsiderará o direito natural uma construção s~cial. \

Assim sendo, a grande discordância do marxismo para com o


jusnaturalismo - com a qual Bloch comunga, levando-a adiante -,
dever-se-á ao caráter não-histórico das correntes do direito natural.
~ Trata-se, em Bloch, de historicizar o jusnaturalismo, porque o marxis-
mo insiste que até mesmo os ideais utópicos são expressões de classe,
das condições históricas e econômicas, não devendo ser tomados como
_u topia abstrata, revelada, apriorística ou metafísica*

,,...,
Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

O q1:!~ resta, assim, ao marxismo, da doutrina do direito natural,


é jus~a~ente aquilo a que os jusnaturalistas pouco se af~rram nas suas
lutas por r~etafísicas e absolutos: a inspiração pela dignidad~ humana
e o andar ereto. Na ânsia pela ~fesa da propriedade privada, inscre-
veram-na num rol fundamental. Este rol fundamental, no entanto, h á
de ser aproveitado para a dignidade, e sua marca maior é ser uma
justiça a partir de baixo, não patriarcal nem metafísica. Constrói-se
n_a história, por meio dos exploraci9s. ~
É assim que a herança própria do direito natural, um dia re- 1
volucionário, se expresse de tal forma: eliminação de todas as .
relações nas quais o homem seja alienado com as coisas em
mercadorias, e não só em mercadoria, senão na nulidade de
seu próprio valor. N enhuma democracia sem socialismo, ne-
nhum socialismo sem democracia, esta é a fórmula de uma
influência recíproca que decide sobre o futuro . 155 .. · " ·- ... - -· ..~
-··-· ·"i

Com tais frases, o ideal blochiano do marxismo jurídico carrega


consigo explicitamente, pois, o sonho de Rosa Luxemburgo de socía-
lismo com democracia, ao mesmo tempo que absorve, de Marx e
Pachukanis, a certeza crítica estrutural de que o direito se equivale à
a
-fo;~;·~-er~antll, sendo que a utopia é ri:an~formação do capitalismo
e da dominação institucional e, tal qual Lukács, sabendo que é preciso
rõmp~r co~ a reificaçã~.

CRfTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO SUBJETIVO E


OBJETIVO

Bloch persevera, na sua obra jusfilosófica, na construção de uma


ontologia jurídica da utopia e, para isso, faz um inventário dos concei-

15 5 Jbid., p. 232.
UTOPIA E DIREITO

ros uadicionais da teoria geral do direito em busca da clarificação de


seus termos e de seus rompimentos e apontamentos utópicos.

A primeira categoria, central na teoria geral do direito, a que se


dedica Bloch, é a dicotomia entre direito objetivo e direito subjetivo.
Para esta análise, Bloch aponta a insuficiência do pensamento jurídico
tradicional, que e.nxerga o direito como reflexo do dever e vic~-~~~sa.
A id~if;~~Çã:c»do direito subjetivo, dirá Bloch, está imbricada com a
própria mecânica da economia capitalista, do indivíduo burguês. Já o
direito obj e tivo, por sua vez, respalda-se n o próprio domínio
institucional . do Estado, e ·tanto é tal a origem dos institutos que o
_cTvilista tem dificuldade com o campo dos direitos subjetivos públicos
_e o publicista com os direitos humanos.

Bloch não trabalha com ambos os conceitos igualando-os. Apon-


ta o fato de que o direito subjetivo revela-se, logo de início, como
instirucionalização da burguesia e que o Estado totalitário, o pleno
domínio do direito objetivo, é também o ocultamento do sujeito de
direito. Assim sendo, a _evolução do direito capitalista, até chegar à sua
fas.~. de. rrrnnopóÚos e grandes domínios. econômicos, é também a
J?-ªPalizaçã9 do sujeito de direito. 156
: · • • • • ·~,_.- ·~: • . . . -- • •• . , •• p •

A diferença utópica existente entre o direito subjetivo e o objeti-


YO, Se-gl!~do 'i3foch,· reside no fato de qu~ O pri,m eiro, ;~ndo a expres-

são do direito de propriedade privada, não exclui seu aproveitamento


~orno direito da dignidade humana (os direitos humanos, por exem-
plo). Já o direito objetivo revela-se o direito do domínio, cuja face se

l 56 "Os direitos humanos constituem, assim, um prius, em refe rência a qualquer derivação normativa
(Blochl na medida em que estabelecem os marcos do processo de libertaç ão. Entretanto, o
positivismo acaba por desvirtuá-los, vendo o dire ito subjetivo co mo fac uldade atribuída pela
norma a u m sujeito por e la mesma estabe lecido. Esta aberração, após reduz ir o Dire ito à
norma (como o bisco ito à lata), reduz o Direito Subjetivo e o Sujeito de Direito à mesma
norma (de tal sorte que, não só confun de a lata e o biscoito, mas ainda atribui à lata o poder
de criar a boca e o apetite de quem possa co mê-lo)". LYRA F1LHO, Roberto . Desordem e
Processo. Porto Alegre, Scrgio Fabris, 1986, p. 309.
1 ·~....-

ALYSSON LEANDRO MASCARO

apresenta no direito penal, por exemplo, mas este pode minimamente


rc:star s_endo o dir~~~~_do i.riteresse público e social. No final das contas,
a evolução teórica dos conceitos jurídicos revela a própria evolução da
propriedade privada e, por isso, numa sociedade que se liberte da do-
minação do capital, direito e dever se transformam radicalmente.
"';~Em uma sociedade sem classes, sem circulação mercantil, não
há nenhum proprietário de mercadorias, ainda que o produ-
tor de bens seja sujeito jurídico (personalidade jurídica), e
seu direito consiste em não estar nem sequer forçado à produ-
ção de bens. O último direito subjetivo seria, assim, a faculdade
de produzir segundo suas capacidades e consumir segundo suas
necessidades, uma faculdade garantida pela última norma do
direito objetivo: a solidariedade. 157 -?

Assim, Bloch revela o fundamento utópico de sua estrutura jurí-


dica socialista para direitos e deveres. Resgatando o espírito da frase de
Marx na Crítica do Programa de Gotha, trata-se de estar obrigado à
c1._pacidade e de ter direitos à necessidade. O vínculo jurídico objetivo
de tal apontamento utópico, dirá Bloch, é a solidariedade. Assim o é
porque Bloch rejeita a revolução por cima, estatal e dominadora, e
insiste em dizer que a utopia jurídica é feita por baixo. Daí o gosto
pela coordenação e não pela subordinação.

Por tal razão Bloch se volta ao problema jurídico da União Sovié-


tica e da Revolução Russa para lá analisar as utopias jurídicas e as aber-
rações da dominação stalinista~Apontando para o caráter de liberta-
ção da utopia jurídica, feita pelos dominados, pelos trabalhadores e
pelos explorados, Bloch rejeita o domínio estatal e institucional do
stalinismo e, juntando-se a Pachukanis, denuncia, por sua vez, os juris-
~as oficiais soviéticos, como Wyschinskij. 158 ;~

15 7 BLocH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cit., p. 252.


158 "Todo o esforço de crítica de Vychinski se encaminha, então, no sentido de negar as teses
UTOPIA E DlRE!TO

"' O eixo da argumentação de Bloch é afirmar que a utopia jurídica


aponta para a extinção do Estado e do direito, tal qual o previra Pachukanis,
e que toda ~enta~iv~ de manutenção do domínio estatal, ainda que em
nome da classe trabalhadora, é injustificada e não se referenda em nenhu-
.ma perspectiva humanista. Não é possível, pela caminhada da libertação e
_da emancipação, aceitar que o modelo de Wyschinskij possa se comparar
àquilo que Engels e Lênin apontavam como perecimento do Estado. Estes
diziam tratar-se não da eliminação do Estado, e sim de seu processo de
j.o.rnar-se supérfluo. ''A formulação de Wyschinskij não se encontra, desde
logo, nesta linha, pois que mais se aproxima, novamente, a wna espécie de

'*
Estado fetichizado e só muito a contrapelo suavizado"Y 9 /.;

Postulando, para o campo do direito, 9 ''r~ÍI.1-Q daJiberdade'',Bloch


insiste que a ênfase deve ser acentuada na liberdade, e não no reino,
como ocorreu com o stalinismo e como ocorre com todas as formas de
dominação estatal capitalistas.

De acordo com a chocante proposição de Lênin de que não há


nenhum Estado livre (porque onde há liberdade não há Esta-
do, e onde há Estado não há liberdade), poderia se dizer tam-
bém que um "Estado verdadeiro" é uma contradictio in adjectivo
no sentido axiológico-entelequial do verdadeiro. 160

~?~ i~so'.9~ráBloc~, o reino da liberc!ade s_imbolicamente será polis,


mas sem_pf!.H!..e.i.a., isw é, sqci_edade solidária e livre, sem direito e Estado.
---~---.-.- --, - - ···-·--+ - ---- ··-· -, ···•'"' -

sobre a impossibilidade teórica de se conceber um 'direito socialista', sendo esse, mesmo, o


principal defeito da obra 'sacrílega' de Pachukanis, A teoria geral do direito e o marxismo. Uma
de suas teses, diz Vychinski, é que, alcançando o direito o seu maior desenvolvimento na
sociedade burguesa, a forma jurídica começa a desaparecer no socialismo. Ora, diz Vychinski,
essa análise não é correta, pois na fase do imperialismo a sociedade burguesa tende a
desconsiderar o direito e a violar o princípio da sua própria legalidade, de tal sorte que ' a
História mostra, ao contrário, que é no socialismo que o direito alcança o mais elevado grau
de se desenvolvimento. Somente na sociedade socialista o direito adquire uma base sólida
para o seu desenvolvimento"'. NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito. Um estudo sobre
Pachukanis. São Paulo, Boitempo, 2000, p. 162.
1 59 BLOCH, Naturrecht und menschliche Würde, op. cil, p. 259.
160 /bid, p. 259.
ALYSSON LEANDRO M ASCARO

CRfTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO E MORAL

O tema da relação entre direito e moral, que é canônico para as


reflexões filosóficas dos juristas, por Bloch é enfrentado, logo de iní-
cio, como um louvor ao faro de que o mundo burguês tenha fechado
as pontes entre os dois campos. Dirá Bloch que o processo de "divisão
do trabalho" entre o direito e a moral torna aquele menos patético e
menos risível em face das contradições e insignificân cias das
moralidades. Assim sendo , perseguir a prostituição investido de legiti-
midade jurídica, e apenas dela, é menos pior do que somar a ela tam-
bém um mando sagrado. O domínio burguês, para Bloch, deve ser
tornado explícito, como sendo o interesse de classe; não se deve con-
fundi-lo com outros preceitos, de legitimação moral, que não deixam
claro o ataque aos fundamentos do domínio capitalista.

Por tal razão, aponta Bloch, todas as investidas que filósofos con-
temporâneos empreenderam, no sentido de estabelecerem pontes en-
. tre ~ir~it() e moral, esdo Jadadas ao fracasso, porque mantêm a estru-
cura cindida da sociedade de classes e, nela, acrescentam as aparências
da moralidade como se fosse um dado essencial. Hermano Cohen e
Max Scheler, empreendendo construções de tal cipo, não dão conta ..
·~e·· aenunciar, na realidade jurídica e social, a indignidade humana,
.~~-- fl1.~dida em que estabelecem fundamentos fenomenológicos ou
ap~i_o~íst~cos que acabam por identificar o poder e o domínio jurídico
à ~tic:a,. perdendo, assim, o potencial de crítica que a ética poderia
-~~p~~se_ntar ~1?.f~c<: d o próprio direito.

E tudo isso é na tentativa de respaldar, de novo, moralmente,


o direito positivo. No entanto, por que haveria canto interesse
neste laço de união, e justamente com o direito vigente? 'f.al
laço de união se buscou principalmente a fim de fazer apare-
cer como completamente ordenado o direito vigente p o r sua
relação com uma moral do dever igualmente vigente e utilizá-
v~!: ..~' desta i:i:ianeira,para evitar o direito natural crítico, com o
postufado _de_ uma dignidade humana real. 16 1

* O encaminhamento de Bloch para a questão da relação entre


moral e direito é' justamente o de apontar o caráter potencialmente
crítico e transformador da moral contra o direito. Tal moral é entendi-
da por Bloch, na sua interface jurídica, como sendo a própria utopia
da dignidade humana. Não há diferença, p ara o p ensamento
biochi~no, d~ moralid~de plena para o pleno sociali.smo. Assim sendo,
7que quer que seja tratado por moral, será ~empre crítico e transfor-
mador das relações.
impessoais de dominação capitalistas. 'ê'f ·
'·. . ··. . ·. .. . ·~

Só na consecução exitosa de uma sociedade já não antagô nica


p ode ser real a proposição de que socialismo, e, mais ainda,
comunismo, é o que, durante muito tempo, _se ~uscou ~m vão
em nome d a moral. 162 · · · ..\•., :,~ , , ~11~.\::»/. '··.; t · " · J.t,•.
, !J-:t' ':.l.1 ;.t ~."i , ,~,..... ~\.~,.\, ·::_ ...".(..~·;'.(. -~·"/.H !°"'_\~~\ 1

Não há de se esperar, pois, de Ernst Bloch, que a moral seja toma-


da num sentido não-histórico~~la é um p~oduco social, uma bandeira
~-e lura, e sua c~n cretização só é possível numa sociedade socialista.
Para Bloch, somente numa sociedade sem classes será verdadeiro o
imperativo categórico k;~·~;~~~:-~~-~:· J;srad~ --d~· ~~u vício de origem
d;: circulação m~rcaruil, estará aberto à universalidade entre iguais ) ;
Assim sendo, não há de se descartar, no processo político de trans-
formação social, o papel de relevo da moral. Neste tema, Bloch repro-
va Pachukanis por não ter compreendido a importância da questão
moral para a questão jurídica. O apont~fl1ento pa,ra a .l1~9piaj_urídica
--
será, de fato, a extinção do direito positivo, do Estado, da dominação
.-
-·--~ -· · · ·- .- ..
de classe, e, no que versa a tal respeito, "a moral autêntica diz a isso sim
;;h~~~~la se~ ~ém". 1 63 .

1 61 lbid. , p. 268.
162 lbid., p. 269.
163 lbid., p. 276.
1 ,,, ...

Al.YSSON LEANDRO MASCARO


1

CRfTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO PENAL

Um dos pontos cruciais da denúncia de Bloch do caráter de do-


minação do direito se refere ao direito penal. Neste, Bloch enxerga a
nítida evolução social do capitalismo, o reflexo de suas imperiosidades,
estabelecendo um nexo claro entre o mercado de trabalho e a exec~­
ção da pena, de tal sorte que o capitalismo, com mais ganhos para a
exploração do trabalho, lidera um processo histórico de substituição
da forca pela penitenciária.

A ferida do problema utópico do direito penal reside, segundo


Bloch, na fascinação do superego pela culpa e pela condenação. Reto-
mando Freud, Bloch aponta para um superego em forma de Estado,
encarnado na fi gura do juiz, instrumentado pela pena. D á-se uma
dicotomia entre os impulsos de prazer, de satisfação e de utopia, de
um lado , e a herança da culpa, que remonta, por sua vez, ao tabu da
.
~uÍp_'.l o~iginária. Lúcifer dá a imagem desta condenação.

Bloch não enxerga no crime uma nobreza que se contraponha à


vilania capitalista. Insiste em apontar no crime fundamentalmente o
fracasso do capitalismo, e, por isso, h~ de __~o ~ s iderar que o problema
penal é, ainda, um problema econômico-social, mais que propriamente
j~~Ídi~~. Em torno da questão penal forma-se um círculo vicioso que,
ao ser tratado apenas pela sua esfera jurídica, não deixa chegar às cau-
sas nem à plena solução./': r~vol.~ção, para Bloch o único instrumento
con cre~-~- ~~sta resolução do problema penal, é virulentamente ataca-
da pelo capitalismo. O domínio de classe dos meios de produção im-
2e4·~- -~~~:~?_tl!ção e a criminaliza.
'{ j\ssim, a única teoria penal radical, que combate o delito, não
só de modo consciente, mas, sobretudo, em suas causas, o
s"o~ialismo real sem o monopólio de uma casta, é declarada ela
-~.<:~I!J.-ª µ111 delito pelo _fascismo. [... ] Em sua teoria retributiva
UTOPIA E DIREITO

reacionária, Hegel via a justificação da pena de modo que s6


2~r ela, a negação da negação, se eliminava a existência do
. delito. D e nenhum modo, no entanto, dá-se mais concreta-
mente a eliminação da existência do delito que pela elimina-
ção d~s c; nd ições que o fazem nascer e que o farão semp ;e
·n31scer. Um m~rxismo em sentido próprio ~eria, por isso, tan-
_to um~- teoria penal radical, que, mais aind a, a mais radical, e,
.por sua vez, a mais cordial : porque o marxismo mata a matriz
social da injus tiça. 1 64~ .

A utopia jurídica penal blochiana, assim, não é a de promover uma


ciência do crime, de teor próximo ao de Lombroso, nem de propor
melhores condições de execução penal nem de propor o aumento do
poder estatal contra o crime: trata-se da definitiva superação do direito
penal, o que só se dará, pois, numa sociedade não-cindida, socialista.

CRfTICA DA TEORIA GERAL DO DIREITO: DIREITO E E STADO

A culminância da análise dos institutos tradicionais do direito,


para Bloch, localiza-se na relação entre direito e Esr~do.

O tipo de argumentação de Bloch em sua reflexão sobre o Estado


em muito beira e antecipa uma espécie de microfísica do poder, que
depois, de outro modo e em outro contexto, seria desenvolvida por
Michel Foucaulr. Isto porque ~l.9-~h insiste no faro de uma existência
concreta do domíni o do Estado e do poder, que se verifica nos níveis
mais singelos das relações sociais. Isto, no entanto, sempre levando em
vista a mirada dialética, que situa o movimento da face personalizável
do Estado com sua face político-econômica oculta.
As forças visíveis são muito menos temidas que as invisíveis.
Desde que desapareceram os fantasmas, o Estado conta entre

16 4 lbid., p. 299.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

as últimas. O Estado se nos m ostra mais claramente na polí-


cia, nos cárceres, nos soldados, mas todas estas coisas não são
o Estado mesmo, apenas meramente o representam. O que
fa~~-~ éd~r~lhe força; por tr~~ se encontr~ um comitê da clas-
se dominante que se apresenta, contudo, como representante
da generalidade. 165 - ~,

No entanto, a grande referência política de Bloch é Engels. É a


partir do pensamento engelsiano sobre o Estado, notadamente em A
origem da família, da propriedade privada e do Estado, que Bloch desen-
volve sua teoria m arxista sobre o Estado. Para isso, logo de início, Bloch
desbasta duas possíveis interpretações a respeito da origem do Estado e,
dentre estas, filiar-se-á nitidamente à interpretação de Marx e Engels.

Aponta Bloch para uma divergência entre a concepção da teoria


pura da força e a concepção econômica quanto ao surgimento do Es-
tado. A primeira, esposada, dentre outros, por Kautsky e Düring, nega
que o Estado se origine da divisão do trabalho, das relações de classe,
e, portanto, situa seu surgimento em genéricas relações de força, como,
por exemplo, as agressões externas, o que levaria necessariamente a
um arranjo interno estatal. Esta teoria, diz Bloch, é a que, no final,
afasta o caráter capitalista do Estado, legitimando-o, bem como à de-
mocracia burguesa, de tal sorte que seu apontamento utópico seria,
ainda por fim, estatal. ~~o quer dizer, sendo o Estado UII1 ~nte alheio à
J.t.n_a cf~. ~l_a~ses, persistiria ainda que soçobrassem as classes.

Em ângulo contrário, o marxismo denuncia o caráter de classe do


Estado. É a progressiva divisão do t rabalho que alça as classes d etento-
ras do poder econômico à estruturação de um mando político-jurídi-
co, institucional, que reflete diretamente o domínio dos meios de pro- ·
dução e o controle das classes trabalhadoras.

1 65 Jbid.' p. 301.
UTOPIA E DIREITO

';~: A desigualdade da propriedade nos meios de produção, e não ou-


tra coisa, leva, por isso, de maneira econômico-imanente à
oestruição da solidariedade tribal, à constituição de um po-
der político de classe. Em sua conseqüência, o Estado é em
tão escassa medida um corpo estranho ao capitalismo, que se
pode dizer, inclusive, que culmina nele. E de igual maneira se
cumpre também aqui uma de suas mais importantes funções
ideológicas : n ão ser simplesmente instrumento, e sim
mascaramento ("Verhüllung") da dominação classista. O Es-
tado se nos apresenta como poder geral, situado aparente-
mente sobre a sociedade e cuidando de seu equilíbrio.166 ',{

Expõe Bloch, assim também, uma perspectiva que é bastante si-


milar à de Pachukanis, que aponta igualmente para o fato de que o
Estado e o direito, além de sua função estruturante da dominação
econômica, também se prestam a um papel suplementar de
mascaramento ideológico.

A evolução do pensamento político, na Idade Moderna, vai, se-


gundo Bloch, no ~~ruido de minorar o car~ter utópico," f~bertário e trans-
formador que se poderi~-h~Ürir ~o direito natural de busca de justiça e
dignidade humana, para, em seu lugar, se prestar a uma legitimação
cada vez maior do poder de classe sob a forma institucional. Neste pro-
cesso, Bloch identifica raízes em Bodin e M aquiavel para dizer que sua
expressão maior é o fascismo, culminando, novamente, em Carl Schmitt,
a faceta acabada d_~ domínio estatal sem utopia de dignidade.

Em tal trajetória da construção de um modelo jurídico de afir-


mação do poder estatal, Bloch chama atenção para um jurista que, na
entrada do século XVII, expressa com detalhamento a figura jurídica
do domínio estatal. Arnold Clapmar, tido por Bloch como um discí-
pulo sem grandeza de Maquiavel, é responsável por uma distinção

1 66 lbid., p. 304.
Ar.YSSON WNDRO MASCARO

entre "arcana dominationis, que é a teoria de como há de se tratar o


povo rebelde, e arcana imperii, quer dizer, a doutrina de como, em
tempos normais, se mantém o povo pacífico, protege-se a soberania,
procuram-se alianças, soldados e dinheiro" . 167 Este conhecimento da
dominação se presta a atemorizar o povo, a colocá-lo na submissão.
Contra este saber detalhado das arcanas do poder, Bloch levanta como
horizonte utópico a não-dominação.

A divisa dessa utopia não-estacai, Bloch a empresta de Engels,


quando aponta que o governo sobre as pessoas será convertido em
~~ministração das coisas. "O teor fundamental do direito natural ra-
dical contra o Estacio é sociedade sem classes, reino da liberdade" .168

Bloch conclui seu excurso sobre a ontologia jurídica da utopia


apontando para uma escatologia das instituições e do justo. Trazendo
à comparação a Igreja e o papel da religião, Bloch conduz sua reflexão
ao futuro da solidariedade socialista. Tal qual no Estado e no direito,
J?loc_h enxerga um papel transformador a ser realizado na ação religi-
osa e moral, responsável por extinguir a Igreja oficial, que está ao lado
_d~ poder, e estabelecer uma ecumene fraterna.

D esde logo é ridiculamente simplista e uma frase de periódi-


co designar a Igreja como uma filial de Wallstreet situada em
Roma, mas, sim, houve sempre uma formação de compro-
misso, e sua elasticidade tem limites bem definidos frente ao
socialismo. É por isso difícil lançar uma linha separatória en-
tre o cristianismo eclesiástico e o capitalismo, se bem que o
novo clero não é já como o antigo, e se bem que o socialismo
não tem já por que falar da religiosidade como lavagem cere-
bral. [... ] A nova ecurnene pertence a uma sociedade que já
n ão é essencialmente antagônica, a uma comunídade que pode

16 7 lbid. , p. 3 07.
168 /bid., p. 3 1O.
UTOPIA E Dnu-:ITO

crescer sem travas. [... ] No socíalismo se encontra o caminho


que conduz a esse objetivo, a herança finalmente realizável do
que se perseguia como emancipação interior e paz exterior. A
fé vermelha ("rote Glaube") foi sempre mais que uma questão
particular, foi um direito fundamental à comunidade, ao
humanismo. 169

A fé vermelha de Bloch, tal qual a lembrança que em dado mo-


mento ele próprio o fez da rosa de Hegel, é o humanismo que se le-
vanta estruturalmente da revolução e da libertação da sociedade
cindida. A utopia jurídica de Bloch se dirige à solidariedade, ao direi-
to à comunidade, à dignidade como postulado da ação e da coordena-
ção social. A ontologia desta utopia jurídica é o próprio fim do direito
e do Estado e, pois, do poder dominador de classe.

169 lbid., p. 313.


CAPÍTULO 9

ENERGIAS POLÍTICAS DA UTOPIA

O ser-ainda-não jurídico é o reino da liberdade, da justiça e da


dignidade humana. Bloch insiste em apontar as divisas de uma utopia
jurídica que não se conforma, de modo algum, nos limites do Estado
de direito e da cidadania já dados, de tal sorte que o positivismo, as
variações de seu conteúdo e o institucionalismo não darão coma de
revelar o âmago ontológico de seu projeto utópico para o direito.

No entanto, a crítica apressada a Bloch denunciaria o caráter


fantasioso ou d esprovido de concretude prática de seus sonhos jurídi-
cos. Mas o pensamento 4e .Bloch, desde o início, aponta para reflexões
políticas que constituem o cerne de.seu empreendimento de ação re-
volucionária. Pode-se d izer, fo lgadamente, que Bloch é um dos inte-
lectuais alemães que mais cedo, e com maior acuidade de visão políti-
ca, empreendeu uma crítica e uma batalha intelectual profunda em
relação aos pressupostos fil osóficos e ideológicos do nazismo. Seu juve-
nil brilhantismo de análise política é responsável por ter seu pensa-
mento sido resgatado, várias décadas depois d e seu embate com a as-
censão do nazismo, pelos estudantes europeus e de todo o mundo nas
revoltas do fi nal da década de 1960 e da década de 1970.

De suas reflexões políticas, mais se destaca em Bloch o conceito


de não-contemporaneidade, que é central para entender o surgimento
do nazismo na Alemanha e o fracasso da luta socialista. Ao lado disso,
Bloch é o pioneiro, sem que ele próprio tenha dado dimensão à ampli-
tude posterior de sua abertura temática, à união de moral, religião,
ética e marxismo . A não-contemporaneidade, que se expressa nas pe-
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

quenas coisas da vida cotidiana, na cultura popular, na arte, na ideolo-


gia e nas vontades represadas, e o impulso moral, que está difuso na
religião e no humanismo, são duas das energias mais extraordinárias
apontadas teoricamente e liberadas politicamente por Bloch a benefí-
cio da conscrução de uma utopia do justo.
Na utopia concreta marxista, a energia utópica exerce uma
função crítica. A determinação de objetivos ideais (e necessari-
amente abstratos) para o impulso se conjuga com o conheci-
mento das tendências objetivas; sem utopia, o marxismo per-
deria-eleºinesmó sua atenção às tendências. A função da uto-
pia vai mesmo mais longe: a conjunção do que há de "futuro
no passado" com o conhecimento do presente transfigura e
ultrapassa dialeticamente às próprias tendências. A utopia
concreta, o marxismo, se define por três momentos: análise,
crítica, projeco. 170

As energias ut6picas do pensamento blochiano revelar-se-ão, nas


palavras de Gerard Raulet, como função crítica capaz de haurir do
co ncreto da dominação presente o projeto futuro. A não-
contemporaneidade, como hist6ria aberta e sobreposta, e o impulso
moral crítico, como desejo humanista, serão para Bloch alguns dos
meios de liberação de tais energias que apontam ao utópico e ao justo.

A NÃO-CONTEMPORANEIDADE

O conceito de não-contemporaneidade, assincronia ou não-si-


multaneidade ("Ungleichzeitigkeiten'') pode ser encontrado de modo
esparso e não sistematizado dentro da tradição anterior do marxismo,
mas é Bloch quem lhe dará tratamento e será seu principal artífice

170 RAuln, Gerard. "En cerclement technocratique et dépassement pratique - l'utopie concrete
comme théorie c ritique". ln Utopie - Marxisme selon Ernst Bloch. Payot, Paris, 1976, p. 302.
UTOPIA E Dil\.EITO

teórico-filosófico. O conceito é apresentado muito cedo em seu pen-


samento. Em Thomas Münzer já está explícito, bem como no Espírito
da Utopia. No encanto, na segunda parte de uma obra de coletânea
escrita à época do início da ascensão de Hider, Herança desse tempo, 171
do início da década de 1930, é que o conceito de não -
contemporaneidade ganha relevo e importância prática para a ação
política do marxismo.

Bloch constrói tal análise política constatando o espanto que em


muitos ocorreu em relação à capacidade nazista de domínio e controle
das massas trabalhadoras. Ao contrário dos que não enxergaram, de
início, o potencial maléfico do nazismo, Bloch se lança politicamente à
denúncia filosófica de suas implicações, porque estas prosperariam. E,
mais ainda, aponta que o nazismo ganhava, do marxismo, o coração
da classe explorada.

Desvenci~ha~o de uma confiança cega na inexorabilidade da re-


volução proletária - desmentindo, assim, com um exemplo concreto,
um possível otimismo idealista que poderia ser imputado pejorativa-
mente à sua visão filosófica - Bloch passa a perceber que o proletaria-
do e as classes exploradas alemãs não se identificavam com o discurso
_?'larxista revolucionário, e, muito pelo contrário, se empolgavam com
os ; o-iihos apresentados pelo nazismo e pelo reacionarismo. Isto, para
Bloch, não se devia apenas a um problema de falta de meios d e propa-
ganda por parte dos revolucionários: o marxismo não falava à alma
trabalhadora, cujas expectativas haviam sido detectadas peculiarmen-
__C.~.E~.!?. riaZismó.
!r~tava-se, segundo Bloch, de sonhos do povo que não se expri-
miam, necessariamente, na forma de uma compreensão exata e cientí-
:_fi~a ci()s .problemas do hoje. Eram problemas de ontem trazidos para

17 1 BlocH, Erbschaft dieser Zeit, op. cil, pp. 45 a 204.


ALYSSON LEANDRO MASCARO

hoje, na expectativa de sua redenção amanhã. Aí reside o tema da


nio-contemporaneidade: o tempo da história é não-linear. Há muitas
d_~mandas-diversas, de tempos históricos distintos, que se cruzam numa
_mesma época, e saber desbastá-los e trabalhá-los a benefício da trans-
f<,?_r!!l,;ição socialista deveria ser a ação do marxismo.

Assim sendo, o tema da totalidade - caro ao hegelianismo marxis-


ta e, em especial, a Lukács - volta a ser superado em Bloch por um
refinamento da história, que é pluritemporal. Muitas demandas, ca-
rências e desejos de épocas e circunstâncias distintas se sobrepõem
no mesmo tempo histórico. Assim sendo, não basta apontar a falsa
consciência do capitalismo, que não logra chegar à totalidade, porque
a~é'~esmo a totalidade, se não for tomada de modo crítico, pode pas-
sar a ser uma miragem idealista invertida:

A totalidade deve ser então crítica, a fim de não se converter,


tendo em vista a sua justificada oposição ao capitalismo - que
dilacera todos os vínculos vitais ("Lebenszusammenhange") -
em uma falsa semelhança com a "totalidade" idealista, que é
i:ão somente uma totalidade sistemática. 172

O refinamento da compreensão da totalidade, assim, abrirá mar-


gem à não-contemporaneidade. Esta é a expressão de uma disfunção
temporal entre as expectativas utópicas e as realidades histórico-soci-
ais. Mas não é só uma disfunção ideológica, é também estrutural. As-
sim sendo, somam-se etapas de produção econômica distintas, evolu-
ções políticas variadas, consolidações institucionais diversas, domina-
ções de muitos tipos, e tudo isso resulta num cruzamento, ao mesmo
tempo, de expectativas divergentes. O caso emblemático, para Bloch,
era a Alemanha de seu tempo, ela um dos exemplos melhor acabados
da não-contemporaneidade do capitalismo.

1 72 BLOCH, Erbschafl dieser Zeit, op. cil, p. 125.


UTOPIA E DIREITO

AD tempo da República de Weimar, a Alemanha carregava consi-


go o arraso de um capitalismo periférico e tardio. 173 J...o contrário da
Faoça e da Inglaterra, a Alemanha..encarava uma rápida transforma-
~burguesa que, no entanto, alijava grande parte da população tradi-
c:ional de s~a-~ida c~~idiana e de se~ ~biente de afetos, sonhos e espe-
ãii"Ç3s pré:.capitalistas. De imediato, o camponês tornava-se proletário
dias"lábi:icas, dos serViço~, ~u então estava no desemprego ou nos serviços
~~ão lhe co~respondiam à mínima plenitude existencial. ·
- - ·". ·- ·-- --··· =--·- -.. .....,.,_____.,._.,,...;,;.·.~~ .. v· -. . -. . . -. • - . ...... .; , ·: ·:· ··· ~ . • --.• _....,. ':".. - - - ·-· · - -, ..... -· · -

Neste
"-
ambiente,
. - --· ... -· ....... . -· .
dirá .Bloch,
~ . .
o dinheiro se torna o denominador
- . ~

C.Oll:_lwn da exploração: A falJa dele é responsável pelo ai:i9uil~er1l<:


elas personalidades. O mundo capitalista procede a uma reific:açã9 com-
pleta das massas, e;, r.i~se;. q~adro, a cu.ltura tradiçional,_seu en_cantamen-
~§.e.!l.tem_p<,>A_~ yid~ ~e-~aem. O que surge em seu lugar é pior.

A "não-contemporaneidade" [... ] alcança pari passu uma ca-


racterização-construção mais precisa (sistemática): "A não-
contemporaneidade e o dever de torná-la dialética''. Na situa-
ção inicial, Bloch toma imediatamente o fato de que os indi-
víduos estão no mesmo presente na sua aparên cia exterior.
Qualquer individuo mal formado, aquém das exigências de
seu posto, no caso de um empregado, fica a "reboque", deslo-
cado de seu tempo, sobretudo se este é o de um presente
intolerável, de crise e transição, isto é, justamente quando es-
tes cursos temporais mostram a sua força. 174

173 "A experiência histórica da República de Weimar (1918- 1933) é marcada po r um sistema
políti co que perde sua legitimidade e capacidade de funcion amento à medi da em q ue é
confrontado com crises profundas no tocante à modernização ec onômica, soci al e cultural.
A situação sócio-econômica de estagnação do período de Weimar, marcada por estas inúme-
ras c rises, impossibi litou a existência d e uma conjuntura que pe rmitisse a realização dos
compromissos constitucio nais sociais com crescimento econômico. O questionamento da
legitimidade política da Constituição foi agravado, portanto, com a crise econô mica". füRcovic1,
Gilbe rto. Constituiç,io e Estado de Exceção Permanente. Atualidade de Weimar. Rio de Janeiro,
Azougue, 2004, p. 21.
174 MACHADO, Um capítulo da história da modernidade estética: debate sobre o expressionismo, o p.
cit., p. 57.
Al.YSSON LEANDRO MASCARO

--f.f-Bloch aponta a falência da política marxista justamente na falta


4~ -~()-~p_r~e:n.são desta não-contemporaneidade dos explorados ale-
mães. Eles eram explorados pelos argumentos do dinheiro, e o marxis-
mo lhes apresentava, nos comícios, explicações econômicas a respeito
do capital! O nazismo, em seus comícios, falava dos sonhos de uma
vida comunitária - nacional - liberta dos judeus mercenários, dos
marxistas contabilistas, dos avarentos burgueses. O nazismo falsifica-
o
va, mas ganhava corações. marxismo apostava na ciência e no escla-
-~~ci~ent()_~ _Il1.'.l:_S .~ão falava _às almas dos_proletários. -,.\/

Isto porque, embora a grande dialética dos tempos de Weimar


fosse a contradição capital versus trabalho - e nisto o marxismo era
verdadeiro e plenamente racional em sua análise-, a grande contradi-
ção utópica e ideológica era entre a dignidade de uma vida que em
algum momento poderia ter sido camponesa, comunitária e igualitá-
ria, e a indignidade da transformação desse momento onírico em uma
_ $_Oc~edade
.
de expressão
. ··-·
contábil,
-
técniq~
.~ .
reificada. O s s~nhos não es-
cavam dirigidos para uma racionalização econômica que se levantasse
contra outra do mesmo estilo; estavam na emoção romântica que bus-
cava reagir contra o mundo desencantado.

~_Tal_~ão-comemporaneidade foi percebida pelo nazismo, que dela


se aprovei~<?Y. para construir um discurso artifi.Cial de uma comunida-
d·~ genéti~a, da raça ariana, e dos víncul~s familiares nacionais, opon-
do a figura do judeu contra tal utopia de prazer. Tratava-se de uma
'iúopía pelo passado, que gostaria de superar o hoje para voltar a uma
pureza (que nunca havia existido) do ontem: "Hitler delineia para
cada um boas coisas velhas". 175

O marxismo,
""·-- ···--· - · . . .
exprimia Bloch, era a única solução que não falseava
as contradições do seu tempo, porque percebia o fato de que a dialética

17 5 BL<XH, Erbschati dieser Zeil, op. cil. , p. 104.


UTOPIA E DIREITO

não e~~ ~ntre exterior e interior, entre outros povos e os alemães, mas
e~~; sin:i, na. maior parte, intrínseca ao próprio povo alemão, pois se tra-
tava de uma luta de classes que desmobilizava o seu conflito pela retórica
da salvação nacional. O marxismo sim, ao contrário do nazismo, aponta-
va para uma concreta utopia, porque sabia que os problemas do ontem
e d.o hoje -~Ó· ~~ resolveriam com u_m novo amanhã, e não com a volta a
um. onte~'[J~i'ficad~. No entanto, o marxismo fracass~va ao aposta~ n·~
s_~J~fr?:;~~;í~d~~~á~i~ ·d~ ~anguarda de seu tempo, sendo que a grande
0

massa dos oprimidos não se encontrava no ~~mpo revolucionário de van-


guarda. O povo ainda relurava pelo misticismo da plenitude do espírito
·.êi.~~-~e uansforinara em miséria do ter e consumir.
Havia por isso, segundo Bloch, uma herança pequeno-burguesa,
camp~~esa, que não era necessariamente apenas aquela dos trabalha-
dores d~~ fábric~s e qµ e poderia, e deveria, ser herdada para a revolu-
ção. Não saber aproveitá-la foi o pecado marxista, e o nazismo, que na
prática era a exponenciação da sociedade tecnificada - porque é a
plenitude do capitalismo monopolista-, conseguia mascarar-se e até
mesmo travestir-se com algum humanismo que não tinha.

No caso da não-contemporaneidade, encontram-se nítidos os ecos


dos debates sobre o expressionismo, que opuseram Bloch e Lukács.
Lukács acusava o expressionismo de decadentismo pequeno-burguês.
Bloch rechaçava a estreiteza do pensamento lukacsiano, insistindo no
fato de que a crítica virulenta do expressionismo auxiliava a desmontar
as estruturas da dominação capitalista de seu tempo. N ão por um aca-
. . .
so, o nazismo era contra o expressionismo.

 posição de Bloch sobre a herança e o aproveitamento das expec-


tativas da pequena burguesia é mais generosa e mais h ábil politicamente
que a pureza do pensamento de Lukács. Por conta disso sua posição
política foi cornada com desconfiança no seio do stalinismo, em razão de
sua insistência numa visão pluralista dos tempos históricos.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

Tal posrura de Bloch é fundamental para dar conta, filosoficamen-


te, do ser-ainda-não em suas múltiplas manifestações, que somaram, à
miséria capitalista, as misérias anteriores ainda não resolvidas. Nos casos
dos países do capitalismo periférico - e Bloch tomava, ao tempo, a Ale-
manha nessa categoria-, a miséria se exprimia na economia marginal,
do campo, da pequena cidade, do pequeno comerciante que pouco
vendia, da demora da informação, da vida modorrenta, da falta da pu-
jança e do desenvolvimento econômico. Não dar conta de todas essas
falhas estruturais é não conhecer a realidade da dominação.

Por isso, Bloch não considera o processo revolucionário um me-


can~smo de vanguarda restrito e apenas vinculado fundamentalmente
aos trabalhadores da indústria. Para o proveito revolucionário, é pre-
ciso agrupar, nos setores explorados e alijados do capital, uma gama
variada de agentes políticos. -~" '' >-}/,-·, •

É a "dialética pluridimensional e pluriespacial". Capaz de dar


uma outra função aos elementos da contradição não-contem-
porânea e que, em contrapartida, se apropria dos elementos
utópicos e subversivos da "matéria desprezada". O proletaria-
do, para Bloch, pode ser a força hegemónica na "tríplice alian-
ça" entre o campesinato e a pequena burguesia, se for capaz de
dominar o material da não-contemporaneidade "autêntica" e
suas contradições heterogêneas. Mas, naquele momento, quem
fazia uso dessas contradições era o movimento hirleriano. 176

A radiografia do pensamento, das ideologias, da cultura e das


tito pias dos explorados, em Bloch, é muito similar à constatação clássi-
ca de Lukács em História e Consciência de Classe. Ao tratar da consci-
ência de classe do proletário, Lukács também percebe o descompasso
de uma falsa consciência que não logra empreender a percepção exata

176 MACHADO, Um capílulo da hislória da modernidade estética.· debate sobre o expressionismo, op.
cit., p. 62.
UTOPIA E DIREITO

do fenômeno de dominação. Essa lei cura, por sua vez, remonta a M arx,
uma vez que é possível uma leitura da dialética entre infra-estrutura e
superestrutura que não as enxergue como peças automaticamente
conexas, e sim como esferas da práxis e da vida social que se inter-
relacionam, com diferenças de etapas.

O debate sobre a não-contemporaneidade já havia sido esboçado


décadas antes, com Lênin, a respeito da Revolução Russa. As tarefas
de revolução socialista numa sociedade que ainda era mantida no
czarismo, no jugo campesino, em relações que se abeiravam do modo
de produção feudal, demandavam uma teoria que levasse em conta o
desenvolvimento desigual e combinado da Rússia em face do capita-
lismo central europeu. Bloch sublinha com muita ênfase a ligação que
há entre a não-contemporaneidade das dialéticas passadas no tempo
presente, ressaltando que se tratam, então, de duas dialéticas a serem
resolvidas, não se contentando com um programa de superação do
atraso que venha apenas a lançar o passado no presente. Sua busca é o
passado e o presente, ambos, no futuro.

A genialidade de Bloch é a de lançar mão, para a concretização


da ação política revolucionária, de heranças culturais, ideológicas, es-
pirituais e morais que não são a linha de frente da dialética contempo-
rânea, isto porque a história, para Bloch, é um somatório contraditó-
rio de demandas e necessidades não-resolvidas, cujas energias se acu-
11?:~~-ª!11 e não se canalizam em apenas uma frente de transformação.
Assim sendo, até mesmo para o direito, as demandas sociais são
acúmulos de desejos, inspirações e energias, tanto aquelas pré-capita-
listas, de uma sociedade sem instituições e arbitrárias, quanto as capi-
talistas, de uma sociedade arbitrária na contabilidade das próprias ins-
tituições. Tais energias represadas por inúmeros grupos das classes ex-
ploradas são o combustível para a utopia concreta, inclusive para uma
~c9_p_i~-c9~-~I~ta jurídica.
ALYSSON LEANDRO MASCARO

A ESCATOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Em outra surpreendente vertente, Bloch haure energias para a


concretização do ser-ainda-não: a religião. Aparentemente considera-
da ultrapassada e alijada da tática revolucionária desde o Iluminismo
no século XVIII e o socialismo no século XIX, a religião é considerada
por Bloch um dos mananciais ainda relevantes para a concretização
da utopia libertadora.

O tema da religião é caro a Bloch desde a juventude, tendo em


vista que o seu Thomas Münzer é todo ele dedicado a uma exaltação da
moral transformadora, em oposição ao ímpeto conservador da maio-
ria dos religiosos. Mas tal tema o acompanha até as últimas obras da
maturidade. O Ateísmo no Cristianismo, seu livro do final da década
de 1960, é uma das expressões do quanto ainda considerava candente
a energia religiosa e moral para a revolução.

Bloch estabelece uma distinção, que é muito cara ao Iluminismo


e pouco aproveitada no marxismo, entre moral e religião institucional.
Ele é um entusiasta da primeira e um eminente opositor da segunda.
Sua formação moral, religiosa e escatológica é peculiar: judeu alemão,
é influenciado tanto pela mística judaica quanto pelo protestantismo
de Münzer e pelo catolicismo e suas dimensões espirituais. 177

Por conta de sua visão a respeito da religião e da moral, Bloch


foi tomado por herético pelo marxismo soviético, que considerava
tais temas a partir de uma leitura rasa e estrita das palavras de Marx,

1 77 "Os descendentes gêmeos do iluminismo, o socialismo utópico e o materialismo histórico,


acreditavam que podiam discernir os contornos de uma sociedade de liberdade, solidari edade
e abundância. Contudo, teóricos como Bloch e Benjamin (bem como Lukács, à su a maneira)
depressa se convenceram de que só uma infusão de pensamento messiânico poderia resgatar a
idéia socialista da crise do marxismo que era evidente no caráter reformi sta dos partidos socia-
listas contemporâneos. Como Bloch observa, no marxismo, 'a economia foi negada, mas a alma
e a fé a que ela devia dar lugar, desapareceram'." WouN, Richard. "Reflexões sobre o messianismo
secula r judaico". ln LabirinCos. Lisboa, Instituto Piaget, 1'l98, p. 85.
ÜTOPIA E DIREITO

que solenizavam o ópio do povo. Ou então, de outro modo, que se


prendiam, no que dizia respeito à crítica da religião, às idéias de
Feuerbach, as quais o próprio Marx considerava definitivas em ter-
mos de filosofia da religião.

No seu ineditismo no campo da conjugação do marxismo com a


moral, desde a década de 1920 e 1930, Bloch foi o pioneiro em um
caminho que, tempos mais tarde, veio a florescer em movimentos tão
distintos quanto o diálogo entre cristãos e marxistas promovido a par-
tir da França por Roger Garaudy e também, surpreendentemente,
nos povos periféricos, em especial na América Latina, por meio da
Teologia da Libertação.

Bloch não só se contenta em estabelecer pontes entre as visões


marxistas e religiosas como, no final das contas, considera o marxismo
o herdeiro legítimo das utopias religiosas. Tudo isso, ao contrário da
crítica apressada, tomado num sentido altamente positivo: o marxis-
mo era herdeiro d_a.~Ju~as e das vontades de libertação e fraternidade
e, portanto, assumia o encargo de uma bandeira relevante à consecu-
êC?.A~.hi~tgria c!a humanidade livre e justa.

Ainda inaudita, a história subterrânea da revolução aguarda sua


obra, já iniciada no curso correto; mas os irmãos do vale, os cátaros,
os vaudois, os albigeois, o abade Joachim de Calabrese, os irmãos
da boa vontade, da vida comunitária, do total discernimento, do
livre espírito, Eckhart, os hussitas, Münzer e os batistas, Sebastian
Franck, os iluminados, Rousseau e a mística humanista de Kant,
Weitling, Baader, Tolstoi - todos eles se unem e o consciente
dessa fantástica tradição troveja de novo contra o medo, o estado,
a descrença e contra os altos poderes desumanos. Já agora brilha
a centelha que não mais há de demorar-se em parte alguma e será
conforme a mais definida exigência da Bíblia: não teremos aqui
poucos permanentes, procuramos o pouco futuro; uma mentali-
Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

dade messiânica prepara-se de novo para surgir finalmente fami-


liarizada com a noção de passageiro e fortuito, os milagres daque-
les, que irrompiam em meio a choros e desesperos, revelavam-se
meros paliativos. Por meio das ruínas e das esferas culrurais arra-
sadas deste mundo, brilha altaneiro o espírito da indesca-
racterizável utopia, somente agora segura de seu próprio pólo, na
casa da absoluta comunidade, nas mais íntimas Ofirs, Adântidas
e Orplids. Desse modo portanto unem-se finalmente marxismo
e sonho do incondicional no mesmo passo e na mesma cruzada;
como força para a trajetória e fim de todas as redondezas em que
o homem fora um ser pressionado, menosprezível, esquecido;
como reconstrução do planeta terra e vocação, criação, conquista
do Reino. 178

A dialética da religião, para Bloch, consiste justamente no seu


caráter de transcendência. É preciso, na sua opinião, transcender sem
transce~dência. -Quer se.exprimir Bloch no sentido de apont~r lm- a
'f>ortândâ..da religião para o ainda-não, pois que, vivend~ n~m mundo
'cJ~da não fraterno, deve-se, portanto, transcender à realidade imedi-
ata, tal como esta se ap~esenta. No e~tanto, é precis~ também não
transcender; 'isto é, sab~.i: que o..reino se concretiza na Terra, na .existên-
cÍ~-;~~i;-I: ~ nã~ no cé~· ~;;· depoisda mor.te. Nesta dialética, a religião
é resi;~~~á~el pel~~ dôls~o~ime~tos ·i:~~nscendentes e contraditórios,
e Bloch aproveita a um e rechaça a outro.179

178 BLorn , Ernst. Thoma s Mün<er, Teólogo da Revolução. Rio de Janeiro, Tempo Brasilei ro,
1973, p. 206.
1 79 "O p rimeiro autor marxista a mudar radicalmente o arc abouço teórico, sem, no entanto,
abandonar a perspectiva marxista revolucionária foi Ernst Bloch. Como Engels, Bloch distin-
guiu duas corre ntes socia lmente opostas: de um lado a religião teocrátic a das igre jas oficia is,
o ópio do povo, um aparato mistificador a serviço dos poderosos; do outro, o submundo, a
re ligião subversiva e herética dos Albigenses, dos Hussitas, de Joaquim de Fio ri, Tomás
Münzer, Franz Von Baader, Wilhelm Weitling e Leon Tolstoy. Porém, ao contrário de Engels,
Bloch recusou-se a ver a religião unicamente como uma ' roupagem' acobertando inte resses de
c lasse; na verdade, c riticou essa concepçi'lo explicitamente, atribuindo-a unicamente a Kautsky.
Em suas formas de protesto e rebe ldes, a religião é uma das formas mais significativas de
consciência utópica, uma das expressões mais ricas do princípio esperança". l ôwv, Michael. A
guerra dos deuses. Religião e polícica na América laeina. Petrópolis, Vozes, 2000, p. 29.
UTOPIA E DIR.EITO

Toda a moralidade levantada dialeticamente por Bloch encami-


nha-se para um tipo de cristianismo que é a luta pela justiça e pela
solidariedade. No seu Thomas Münzer, tal cristianismo de luta resta
claro num capítulo dedicado a discutir sobre o direito dos bons de
usarem a força. Resulta dessa análise um cristianismo que não . se apega
à passividade n~-~ . à ~()ri.formação, e sim a uma inspiração que, no
Amigo Testamento, se baseia no direito e na força e, no Novo Testa-
mento, se baseia no _exefl?.pJo do Çristo, que dis_s_e n~o te,r vindo trazer
a .. paz, e sim a' : espad~.
.. . ..
~ ·.
'
.;-.·-

Neste sentido, o cristianismo de Bloch é revolucionário. Opõe-se


frontalmente a Lutero, na medida em que este d efende o príncipe
soberano contra o povo, e também contra a interpretação d o Cristo
de Paulo de Tarso, tendo em vista a adulteração promovida no sentido
de confundir o domínio terreno com a autoridade divina. Não se tra-
ta, nas palavras de Bloch, de incondicional .não-resistência, pois isso
repres_entaria complacência com os sofrimentos dos irmãos, e Cristo
não era complacente.

N ão se trata de tolerar, porém de d oar-se, portanto bem exa-


ta, condicionada, determinada não-resistência diante da mor-
te em sacriflcio, e não incondicional não-resistência ao mal;
pois na incondicional não-resistência não se trata mais de puro
Evangelho de Cristo, e sim já misturado com o Evangelho
paulino sobre C risto, com o dogma da justificação, do resga-
te, da beneficência rep rese ntativa, e, enquanto tal, não
vinculante necessariamente à vida de Cristo. 180

Roger Garaudy, um dos líderes do marxismo francês, décadas de-


pois, também encaminha uma crítica marxista do cristianismo que sepa-
ra os postulados cristãos de sua interpretação paulina. Tanto para Bloch

1 80 BlocH, Thomas Miinzer, Teólogo da Revolução, op. cit., p. 112.


.Al.YSSON i.EhNOR.0 MASCARO

quanto para Garaudy, Paulo de Tarso, por meio da Epístola aos Roma-
nos, está vinculado ao poder, ao Estado, ao direito da dominação. E, de
modo contrário, o direito à libertação é uma oposição genuinamente
cristã em oposição à interpretação paulina favorável ao poder.

Nessa perspectiva de dominação monárquica e hierárquica


sobre as pessoas e o universo, a mensagem central de Jesus não
apenas é oculta, como também invertida: o Reino e a esperan-
ça dos pobres é substituído pelo seu oposto, o Reino de Davi,
que seria sua prefiguração. A esperança dos pobres, de acordo
com o firme apelo de Paulo (retomado pelo Catecismo) à obe-
diência a todas as autoridades, recua em benefício da aliança
com os poderosos. 181

A perspectiva de Bloch da religião contra o poder também é bas-


tante próxima do movimento da Teologia da Libertação. Ambos têm
por similitude um entendimento da história a partir dos de baixo, o que
se efetiva, no caso da Teologia da Libertação, por meio de uma teologia
construída a partir dos povos periféricos, do chamado terceiro mundo.
Para ambos, a utopia cristã se concretiza na vida social e nos tempos
históricos presentes, sem a transcendência conformadora que desmobiliza
o hoje em troca de um prometido amanhã de redenção.

A Teologia da Libertação, desde a década de 1960, com Gustavo


Gutierrez e com Leonardo Boff, dentre outros, recebe de Bloch uma
referência direta no sentido de construir um cristianismo libertador e
preocupado com os injustiçados. Assim, apontando diretamente ao
princípio esperança de Bloch, refere-se Boff:
O elemento determinante do homem sul-americano não é o
passado (nosso passado é um passado europeu, de coloniza-
ção) mas o futuro. Daí a função ativadora do elemento utópi-

1 81 GA~ AUUY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro, forge Zahar, 1995, p. 92.
UTOPIA E DIREITO

co. A utopia não deve ser entendida como sinônimo de ilusão


e fuga da realidade presente; como os estudos recentes da filo-
sofi a e da teologia o têm relevado a utopia nasce do princípio-
esperança, responsável pelos modelos d e aperfeiçoam ento de
nossa realidade que não deixam o processo social se estagnar
ou se absolutizar ideologicamente mas o mantêm em perma-
nente abertura para uma transformação cada vez mais cres-
cente. A fé promete e mostra realizada em Cristo uma utopia
de um mundo totalmente reconciliado, como potencialização
daquilo que aqui criarmos com sentido e amor. Nosso traba-
lho na construção de um mundo mais fraterno e hominizado
é teologicamente relevante: constrói e antecipa lentamente o
mundo definitivo prometido e mostrado como possível por
Jesus C risto. 182

A utopia cristã reivindicada pela Teologia da Libertação tem uma


matriz bastante próxima da utopia jurídica blochiana, da dignidade
humana e da justiça. O homem explorado e injustiçado é aquele ao
qual a utopia direciona a libertação. 183 A utopia cristã se reafirma,
assim, como sendo uma utopia do justo. Tratando da práxis de Jesus,
assim se pronuncia Boff:
A justiça ocupa lugar central em seu anúncio. Declara bem-
aventurados os pobres não por olhar a pobreza como virtude
mas po rque, sendo ela fruto de relações injustas entre os ho-
m ens, provoca a intervenção do Rei messiânico cuja primeira
função é fazer justiça ao pobre e defender o fraco em seu direi-
to . Rechaça também a riqueza que vê dialeticamente como
conseqüência da exploração dos pobres. Por isso, a qualifica

182 BoFF, Leo nardo. Jesus Crislo Libertador. Petrópolis, Vozes, 2001 , p. 232.
18 3 "Para L. Boff e E. Bloch, o sujeito da escato logia utópica e da esperança históric a é, em
primeiro lugar, o home m oprimido e humilhado, o pobre para quem a e sperança utópica é a
esperança da libe rtação dos sofrimentos e d as injustiças sofridas no tempo pre sente, atravé s
da ação libertadora dos homens". M üNSTER, Arno. Ernst Bloclr. Filosofia da Práxis e Utopia
Concreta. São Paulo, Ed. U nesp, 1993, p. 11 6.
ALYSSON 1.EANORO M ASCARO

simplesmente de desonesta (Lc 16,9). O ideal de Jesus n ão é


nem uma sociedade de opulência nem uma sociedade de po-
breza, mas de justiça e fraternidade. 184

O impulso moral no pensamento de Bloch aponta necessaria-


mente para a justiça social, a fraternidade como distribuição das ri-
quezas e das felicidades. É assim que, em Bloch, completa-se o círculo
utópico da moral. No explorado, injustiçado, está a finalidade da
escatologia cristã libertadora, e é este o sujeito motor da transforma-
ção social e da revolução, do fazer justiça.

Nesta perspectiva crítica, de Bloch e das teologias de libertação, a


energia política revolucionária da moral e da ética religiosa revela-se
no mundo, situacionada nas questões presentes que demandam uma
transformação em vista da justiça.
[... ] Abre-se a última grande encruzilhada da evolução histó-
rica: ou a humanidade cederá à pressão conjugada da força
militar e do poderio econômico-financeiro, fazendo prevale-
cer uma coesão puramente técnica entre os diferentes povos e
Estados, ou construiremos enfim a civilização da cidadania
mundial, com o respeito integral aos direitos humanos, se-
gundo o princípio da solidariedade ética. 185

Para Bloch, a partir dos explorados que têm fé na justiça, é tam-


bém possível e bastante necessário haurir a energia utópica da liberta-
ção que, por via m oral, impulsiona a concretização do ser-ainda-não.

1 84 BOFF, op. cit., p. 30.


1 85 COMPARATO, A afirmação histórica dos direitos humanos, op. cil. , p. 45 .
'i!JW!.·

CONCLUSÃO

Ao reescrever a história filosófica da possibilidade, Ernst Bloch


deu à utopia uma posição de liderança na política de transformação
dos tempos. Para além da vergonha e da proibição da imaginação do
futuro, correntes até então na filosofia por conta da desconfiança no
progresso ou das idealizações totalitaristas, Bloch aponta ao faro
ontológico de que o ser, sempre, ainda não é. A natureza está aberta ao
novo. A história, pela fome e pela incompletude, aponta para sua trans-
formação. A práxis urge a efetivação da possibilidade. Assim, ultrapas-
sa-se o velho utopismo do não-lugar ou dos sonhos vãos: trata-se, em
Bloch, da utopia concreta.

Ao tempo de Bloch, a afirmação da possibilidade transformadora


já era dada como perdida por setores tão amplos quanto os conservado-
res ou m esmo o marxismo ocidental da Escola de Frankfurt: na maior
parte dos tempos, o futuro transformado é tomado por impossível. Bloch,
numa consideração filosófica do tempo aberto, em espiral, acumulando
várias camadas, aponta para o fato de que a dominação não é inexorável.
Em qualquer tempo, e inclusive no hoje, a possibilidade é possível.

BLOCH ENTRE OS MARXISTAS

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Bloch, por humanista, poderia fincar posições conciliadoras e
conservadoras, de generosos descontos à realidade. Tomado na velha
dicotomia - até hoje vulgarmente utilizada - entre economicistas e
. humanistas, Bloch seria campeão destes últimos, contra aqueles. Pos-
tula-se aqui, no entanto, uma outra dicotomia do marxismo, que, mais
. apurada, possa servir a propósitos mais claros e a uma compreensão
filosófica mais acertada.
AfYSSON WNDRO MASCARO

Bloch foi um humanista carregando consigo as m ais altas


radi calid ades daqueles que, de ou tro lado, foram ch amados
economicistas no marxismo. Pachukanis, o jurista marxista da forma
mercantil, era o companheiro, no tema do direito, da mirada de hori-
zontes de Bloch . Isto porque o humanismo blochiano não afasta a
economia nem tampouco esta está alheia daquela. Daí porque é preci-
so, a partir de Bloch, estabelecer um novo eixo de compreensão do
marxismo. O seu refinamento está no fato d e que abarca os sonhos do
amanhã melhor com o propósito fome e humanista da dignidade
humana, ao mesmo tempo em que reafirma que só a revolução socia-
lista, liberando a práxis do capital, será capaz de tal projeto de plenitu-
de humana e social. Esta postura de Bloch é, na verdade, a proposta
de uma filosofia da totalidade, que, por caminhos estranhos mas ocul-
tamente paralelos, ele e Lukács trilharam dentro do marxismo. O oposto
de Bloch não são os economicistas; seu contrário são os pensadores da
parcialidade. E, como para Bloch a plenitude da justiça é o pereci-
mento fi nal do direito, a totalidade lhe representa, pois, a radicalidade.

É preciso, então, escrever outra história dos alinham entos da filo-


sofia marxista, que separe a totalidade radical de um lado e a parciali-
dade político-econômica de outro. Bloch será, dos primeiros, um dos
mais plenos radicais dessa visão que não concede aos tempos, às fra-
quezas humanas ou às injustiças uma sobrevida tática. Se Bloch não foi
um economista do marxismo, não se deve ao fato de ser um teólogo da
revolução, porque um não se opõe ao outro. O cuidado especial com
a filosofia, em Bloch, não quer deixar de representar, sempre, a mira-
da do todo . A categoria da totalidade fazia o compromisso com a ple-
nitude revolucionária. Da totalidade filosófica Bloch também hauriu
sua ligação estrutural à radicalidade política e jurídica. Toda a justiça,
toda a democracia, toda a dignidade. Rosa Luxemburgo, Lukács,
Pachukanis, Engels, Marx: as linhas do marxismo são reescritas imper-
ceptivelmente por Bloch.
Garaudy e Alchusser duelaram irredutivelmente entre o
humanismo e o estruturalismo. Bloch, antes deles, foi ao mesmo tem-
po os dois. Num manual de poucas linhas da história do marxismo,
Bloch e Lukács, por falta de rótulo, entrariam ao lado de Adorno e
Horkheimer, pela semelhança de mesma geração germânica de filóso-
fos do marxismo. Mas Bloch não foi dos que apregoaram a resignação.
A filosofia não lhe era outra coisa, ainda, que não uma portemosa
arma de transformação, e o futuro dever-lhe-ia ser radical. Por isso,
tão perto, tão longe, Bloch não foi a Escola de Frankfurt, que náo era
da revolução total. E tendo sido os frankfurtianos o cânone universitá-
rio e oficial do marxismo conservador e resignado, Bloch passou além
do quantum de marxismo aceitável pelos tempos presentes.

BLOCH ENTRE os JURISTAS


Numa época em que o rescaldo da Segunda Guerra Mundial
produziu juristas crentes no direito natural, recém-fugidos de um
formalismo que levou ao nazismo, Bloch disputou-lhes o espaço, para
negar a todos. O discurso do jusnaturalismo por ele foi tomado às
mãos, para utilizá-lo ainda como uma arma política, mas de transfor-
mação. O retrocesso dos juristas à metafísica, logo após terem chegado
ao olimpo do positivismo e do formalismo, mereceu de Bloch uma
oposta investida filosófica profunda.

A dignidade humana não é o reino formal e dedutível dos inte-


resses do indivíduo burguês: é a sociedade plena, fraterna, socialista,
que compartilha as necessidades e os prazeres. Trata-se da práxis da
dignidade e da justiça. Bloch chama ao seu lado a religião, mas não
aquela dos conservadores. Tem ao seu lado o espírito místico, herético ,
messiânico, escatológico e radicalmente singelo dos que, sendo cris-
tãos ou não, não levantaram paredes de templos de segregação. Pelo
ângulo jurídico, quem tomar Bloch por filósofo de um direito com-
Al.YSSON LEANDRO M ASCARO

placente e de vagos ímpetos cristãos de amor esqueceu-se da lembran-


ça blochiana do Cristo radical, que expulsou os vendilhões do templo.

O radicalismo jurídico de Bloch é explícito. Quando estende o


ser-ainda-não ao direito, anunciará a parte da sua ontologia da utopia
que é especificamente jurídica: o ser-ainda-não jurídico é a extinção
do direito, a sua superação numa sociedade socialista, então definiti-
vamente reconciliada, que tenha por teto não os institutos jurídicos,
mas sim os princípios jurídicos da dignidade e da solidariedade.

O tema de Bloch não é o da maior parte dos juristas. O tema de


Bloch é o fim da dominação dos juristas ou, pelo menos, o renascer
dos juristas, como políticos dos tempos da solidariedade. A dignidade
é a tocha que lhe acendeu a queima do velho para a chegada do novo.

BLOCH ENTRE OS DE HOJE

Falemos do direito do Brasil. Ernst Bloch postulou a existência de


heranças do ontem não realizadas no hoje, mas que ainda geram exce-
dentes utópicos e energias para a transformação. H á 20 anos o Brasil
sonhava com a libertação da ditadura, a construção da democracia.
H á pouco menos que isso, sonhava com os horizontes da Constituição
e com a possibilidade da dignidade do homem, da libertação da po-
breza e da justiça social. Há menos ainda, com a eleição de um traba-
lhador como presidente da República, esperou findar o neoliberalismo
e vingar a história dos explorados, apostando na esperança. Tudo isso
os tempos de hoje dizem soterrado por conta de uma nova agenda. A
política virou, mas os sonhos restaram. O tempo de hoj e carregou,
inconcluso, a não-contemporaneidade da utopia jurídica do ontem.
Desse ontem, hoje, pode-se fazer o amanhã.

Falemos do direito no mundo. Depois de décadas de armas e de


bombas atômicas revestidas por racionalidade e progresso da tecnologia,
ÜTOPIA E DIREITO

depoi s de um frágil equilíbrio de dominadores e do m inados


embandeirado por nações unidas, depois do discurso das migalhas do
desenvolvimentismo para mascarar a exploração, depois da paz como
argumento da guerra, tudo isso no campo da razão, chegaram de novo
os tempos da legitimação pela desrazão, e até mesmo pela religião.
Recrudescendo no conservadorismo, volca a se dizer que o bem per-
tence a uns contra os outros. Volta o discurso religioso reacionário
embasando a política dominadora. Volta quem se arrogue o poder
divino da força exclusiva e preventiva contra os não-dem ocratas, os
não-americanos, os diferentes, o outro. Ernst Bloch não falava de reli-
gião como fo rma de salvação ou de crença para dominar os infiéis.
Postulava, contra isso, uma teologia da libertação. Sua fala sobre a po-
lítica da religião é mais do que atual nos dias de Bush . Em Bloch a
dignidade não se constrói jamais pelo direito da indignidade.

M as não se busque em Bloch a sociologia jurídica dos passos da


libertação. Não se procure em suas páginas a tática política da revolu-
ção. E em tempos obscuros, como são também os de hoje, porque a
justiça e a dignidade estejam longe, não se acuse filosoficamente Bloch
de ingênuo ou sonhador. A filosofia do direito de Bloch não é uma
prova de que o amanhã é possível. Bem menos e muito mais que isso, é
só o chamado à possibilidade.

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