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Ronaldo
Humanística
1. Introdução à vida intelectual, João Batista Libanio
2. Norma linguística, Marcos Bagno
3. A inclusão do outro — Estudos de teoria política, Jürgen Habermas
4. Sociologia da comunicação, Philippe Breton, Serge Proulx
5. Sociolinguística interacional, Branca Telles Ribeiro, Pedro M. Garcez [orgs.]
6. Linguística da norma, Marcos Bagno [org.]
7. Abismos e ápices, Giulia P. Di Nicola, Attilio Danese
8. Verdade e justificação — Ensaios filosóficos, Jürgen Habermas
9. Jovens em tempos de pós-modernidade
— Considerações socioculturais e pastorais, J. B. Libanio
10. Estudos em filosofia da linguagem, Guido Imaguire, Matthias Schirin
11. A dimensão espiritual — Religião, filosofia e valor humano, John Cottingham
12. Exercícios de mitologia, Philippe Borgeaud
13. Paz, justiça e tolerância no mundo contemporâneo, Luiz Paulo Rouanet
14. O ser e o espírito, Claude Bruaire
15. Scotus e a liberdade — Textos escolhidos sobre
a vontade, a felicidade e a lei natural, Cesar Ribas Cezar
16. Escritos e conferências 1 — Em torno da psicanálise, Paul Ricoeur
17. O visível e o revelado, Jean-Luc Marion
18. Breve história dos direitos humanos, Alessandra Facchi
19. Escritos e conferências 2 — Hermenêutica, Paul Ricoeur
20. Breve história da alma, Luca Vanzago
21. Praticar a justiça — Fundamentos, orientações, questões, Alain Durand
22. A paz e a razão — Kant e as relações internacionais:
direito, política, história, Massimo Mori
23. Bacon, Galileu e Descartes — O renascimento da filosofia grega, Miguel Spinelli
24. Direito e política em Hannah Arendt, Ana Paula Repolês Torres
25. Imagem e consciência da história — Pensamento figurativo
em Walter Benjamin, Francisco Pinheiro Machado
26. Filosofia e política em Éric Weil — Um estudo sobre a ideia de
cidadania na filosofia política de Éric Weil, Sérgio de Siqueira Camargo
27. Si mesmo como história — Ensaios sobre
a identidade narrativa, Abrahão Costa Andrade
28. Da catástrofe às virtudes — A crítica de Alasdair MacIntyre
ao liberalismo emotivista, Francisco Sassetti da Mota
29. Escritos e conferências 3 — Antropologia filosófica, Paul Ricoeur
30. Violência, educação e globalização — Compreender o nosso
tempo com Eric Weil, Marcelo Perine, Evanildo Costeski (org.)
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO
E GLOBALIZAÇÃO
compreender o nosso tempo
com Eric Weil
Marcelo Perine
Evanildo Costeski [org.]
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ricoeur, Paul
Escritos e conferências, 3 : antropologia filosófica / Paul Ricoeur ; tradu-
ção Lara Christina de Malimpensa ; textos reunidos, estabelecidos, anota-
dos e apresentados Johann Michel e Jerôme Porée. -- São Paulo : Edições
Loyola, 2016.
Título original: Écrits et conférences, 3 : anthropologie philosophique
ISBN 978-85-15-04358-3
1. Antropologia filosófica I. Michel, Johann. II. Porée, Jérôme. III. Título.
16-01082 CDD-128

Índices para catálogo sistemático:


1. Antropologia filosófica 128

Preparação e edição de texto: Marcelo Perine


e Evanildo Costeski
Capa: Manu Santos
Diagramação: Ronaldo Hideo Inoue
Revisão: ???

Edições Loyola Jesuítas


Rua 1822, 341 – Ipiranga
04216-000 São Paulo, SP
T 55 11 3385 8500
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reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer
meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou
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escrita da Editora.

ISBN 978-85-15-04386-6
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2016
Sumário

Introdução.................................................................................................. 9
Marcelo Perine
Evanildo Costeski

1. A teoria weiliana da mundialização........................................................... 13


Patrice Canivez
I. A sociedade: mundialização e competição anárquica....................... 14
II. O Estado e os Estados (as relações internacionais)........................... 16
III. O conflito Estado/sociedade............................................................... 20
IV. Weil e o cosmopolitismo kantiano..................................................... 24
V. A teoria da ação como substituto da metafísica da história.............. 25

2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil......................... 33


Jean Quillien

3. O sentido da justiça. Eric Weil e a mundialização.................................... 53


Corneliu Bilba
Introdução.................................................................................................. 53
Eric Weil e a tendência da história mundial.............................................. 55
A mundialização: entre realismo e idealismo........................................... 60
A utopia realista de Weil............................................................................. 63
4. Sociedade mundial/estado mundial.
Eric Weil e a questão da universalidade dos direitos................................. 71
Giusi Strummiello
I . ........................................................................................................... 71
II . ........................................................................................................... 75
III . ........................................................................................................... 81
IV . ........................................................................................................... 85

5. Religião e relações internacionais em Eric Weil........................................ 89


Evanildo Costeski

6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra......................................... 103


Luís Manuel A. V. Bernardo

7. O Estado como instituição moral e educativa:


traços do aristotelismo de Weil.................................................................... 141
Sergio de Siqueira Camargo
I . ........................................................................................................... 141
II . ........................................................................................................... 142
III . ........................................................................................................... 144
IV . ........................................................................................................... 150

8. Os enredos do poder e a theoria................................................................... 153


Francisco Valdério
O paradoxo do político.............................................................................. 154
Filosofia política e o problema do indivíduo............................................. 159
Conclusão................................................................................................... 167

9. Democracia e linguagem............................................................................ 171


Judikael Castelo Branco
Introdução.................................................................................................. 171
A sociedade moderna e a promessa de satisfação..................................... 172
Democracia e linguagem............................................................................ 176
As dimensões políticas da linguagem e o sentido da ação....................... 182
Considerações finais................................................................................... 188

10. O sentido da oposição entre razão


e violência segundo Eric Weil.................................................................... 191
Mahamadé Savadogo

11. Mal radical e violência................................................................................ 203


Daniel Benevides Soares
12. Educação, razão e violência em Eric Weil.................................................. 215
Aparecido de Assis
Introdução.................................................................................................. 215
I. A razão contra a violência................................................................... 218
II. O papel educativo do filósofo contra a violência.............................. 222
Considerações finais................................................................................... 227

13. As atitudes niilistas em questão: a recusa do Absoluto............................. 229


Marly Carvalho Soares
Introdução.................................................................................................. 229
I. A Condição como o campo e a linguagem
preparatórios à violência: a sociedade do trabalho........................... 231
II. Negação radical do Absoluto: a violência.......................................... 236
III. O outro do Absoluto: a Obra.............................................................. 240
IV. O outro da categoria da Obra: a categoria Finito.............................. 245
Considerações finais................................................................................... 248

14. Lógica da filosofia: sagrado, violência e sentido....................................... 249


Daniel da F. Lins Júnior
Introdução.................................................................................................. 249
I. Sagrado: realidade e conceito............................................................. 250
II. Sagrado na Lógica da filosofia............................................................. 252
III. Sagrado, violência e sentido................................................................ 260
Considerações finais................................................................................... 262

15. O que é sentido? Nas pegadas de Eric Weil............................................... 263


Andrea Vestrucci
I . ........................................................................................................... 263
II . ........................................................................................................... 270
III . ........................................................................................................... 277
IV . ........................................................................................................... 285

16. Platônicos sem mito e sem deus................................................................ 287


Marcelo Perine
Uma questão anunciada............................................................................. 287
I. O Platão de Eric Weil.......................................................................... 289
II. Filosofia e política em Platão.............................................................. 293
III. A retomada na Ação............................................................................ 299
Conclusão................................................................................................... 300
Introdução

Marcelo Perine
Evanildo Costeski

E m setembro de 2014 realizou-se em Fortaleza-Ceará o II Colóquio


Internacional Eric Weil (1904-1977)1, com a participação de estudio-
sos weilianos da França, Itália, Romênia, Burkina Faso, Chile, Portugal e
Brasil. O tema escolhido foi “Violência, Educação e Globalização”.
Em 2014, o terrorismo internacional já era uma realidade, com a ex-
pansão do Estado Islâmico e de outros movimentos fundamentalistas.
Entretanto, a Europa não tinha sofrido os traumas dos atentados de 2015
em Paris, da crise dos refugiados da guerra Síria e de outros conflitos in-
ternacionais. Ao que parece, a filosofia está ultimamente a chegar sempre
tarde, diante da evolução da violência e dos diversos conflitos mundiais,
sejam religiosos, econômicos, sociais ou ecológicos. Diante dessa conjun-
tura realmente desanimadora, a filosofia de Weil é clara: é preciso olhar
de frente os diferentes tipos de violência e buscar respostas razoáveis,
sem se desesperar da razão. Essa seria a função do filósofo e da filosofia
no momento atual.

1. O I Colóquio Internacional Eric Weil no Brasil foi realizado em maio de 2011,


também em Fortaleza. As principais contribuições desse Colóquio foram publicadas no
número 11 da revista Argumentos (2014), do Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal do Ceará.

9
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

A respeito disso, Eric Weil fala com conhecimento de causa: fugiu da


Alemanha para a França no início dos anos 1930, antes da perseguição
“em massa” aos judeus. Infelizmente, a maior parte de sua família não
teve igual sorte e acabou perecendo em campos de extermínio nazistas.
O próprio Weil, tendo se engajado na resistência, foi feito prisioneiro em
um campo de prisioneiros de guerra na França, durante cinco anos. In-
formações biográficas relatadas através de cartas, disponíveis na página
oficial do Instituto Eric Weil, apontam que Weil, apesar da situação ex-
tremamente adversa, lia neste período Kant, a Suma Teológica de Tomás
de Aquino e, sobretudo, trabalhava em uma obra de “pura metafisica”,
provavelmente a Lógica da Filosofia, iniciada em 1939 e concluída logo
após o fim da guerra. Isso mostra que ele não se desesperou da razão e
continuou a acreditar na viabilidade da filosofia diante do absurdo da
violência. Mais ainda: pode-se dizer que a própria violência passou a ser
o motor de sua atividade filosófica.
A reflexão filosófica de Weil no imediato pós-guerra se expressa
em duas formas: de um lado, nos vários artigos e recensões publicados
mormente na revista Critique e, de outro, na construção de seu sistema,
com a publicação da Lógica da Filosofia em 1950 e, posteriormente, da
Filosofia Política em 1956 e da Filosofia moral em 1961.
A Lógica da Filosofia articula dezesseis atitudes-categorias concretas
(Verdade, Não-Senso, o Verdadeiro e o Falso, Certeza, Discussão, Objeto,
Eu, Deus, Condição, Consciência, Inteligência, Personalidade, Absoluto,
Obra, Finito, Ação) e duas categorias formais, o Sentido e a Sabedoria,
com a pretensão de compreender todos os discursos filosóficos produzi-
dos na história. A atitude é o modo como o ser humano vive e se encon-
tra naturalmente no mundo. Evidentemente, como expressões livres e
naturais do ser humano, as atitudes são infinitas e, como tais, irredutíveis
ao discurso filosófico. Todavia, é sempre possível que a atitude humana
se compreenda no discurso filosófico. De fato, “toda atitude pode ser
transformada em discurso” e, mais especificamente, produzir uma cate-
goria de acordo com sua própria natureza2. Mas isso não significa que a
categoria contém todo o conteúdo da atitude. É verdade que, enquanto

2. Cf. E. Weil, Lógica da Filosofia, trad. L. C de Malimpensa, São Paulo, É Realiza-


ções, p. 118.

10
Introdução

determinam o conteúdo das atitudes, as categorias têm primazia para o


discurso filosófico, todavia, a Lógica da Filosofia compreende apenas a
estrutura lógica e formal das categorias, não o conteúdo existencial das
atitudes. Este permanece sempre indeterminado e violento para o sistema
filosófico. A atitude pode, perfeitamente, opor-se ao discurso filosófico e
realizar-se, como tal, na linguagem poética ou, ainda, no puro silêncio,
entendido como recusa consciente do lógos filosófico.
Para combater a violência, não basta compreendê-la. Uma violência
compreendida não deixa de ser violência3. Daí a necessidade de uma com-
preensão da compreensão, ou melhor, de uma lógica da filosofia; porém,
mesmo nesse caso, nem tudo é compreendido. A violência permanece
como o outro da razão, como uma possibilidade sempre presente para
o discurso filosófico. Diante da irredutibilidade da violência, o discurso
filosófico deve permanecer aberto. Ora, é justamente essa abertura essen-
cial que faz com que o sistema weiliano continue atual, sujeito a múltiplas
leituras e aplicações.
Os textos apresentados no presente volume indicam justamente isso.
Eles buscam compreender os diversos tipos de violência manifestos e/ou
subjacentes em nossa sociedade atual sem, contudo, ter a ilusão de que a
violência como tal possa ser eliminada. Para isso, a filosofia é, ao mesmo
tempo, necessária e insuficiente.
Os capítulos se articulam em dois grandes grupos: em torno do desa-
fio político da globalização ou mundialização e em torno ao problema da
educação e do sentido. Parte-se da ideia de uma teoria da mundialização em
Eric Weil, envolvendo temas correlatos como sociedade mundial, Estado
mundial e Teoria das Relações Internacionais, até chegar, entre outros, aos
conceitos de religião, justiça, terrorismo, democracia, linguagem, violência,
educação, moral e sentido. Em todas essas discussões, sobressai a atuali-
dade do pensamento weiliano para a compreensão do nosso tempo.
Agradecemos a significativa ajuda recebida da CAPES para a realiza-
ção do Colóquio Eric Weil em 2014, bem como o apoio dos Programas
de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Ceará e da
Universidade Estadual do Ceará. Destacamos ainda, com gratidão, a im-
portante contribuição do Instituto Eric Weil da Universidade Lille 3 e do

3. Ibid., p. 86.

11
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Centro de História e Cultura da Universidade Nova de Lisboa. Por úl-


timo, um agradecimento especial aos alunos de Pós-Graduação da Uni-
versidade Federal do Ceará que participaram ativamente da organização
do Colóquio e do presente volume e, finalmente, mas não por último, a
Edições Loyola por ter acolhido esta publicação na prestigiosa Coleção
Humanística. Boa leitura a todos!

12
1. A teoria weiliana da mundialização

Patrice Canivez1

O termo “mundialização”, enquanto me consta, não é empregado por


Weil. Isso é normal, pois os termos “mundialização” e “globalização”
só recentemente se impuseram nos debates contemporâneos. Mas a ideia
da constituição de uma sociedade mundial está claramente presente no
texto da Filosofia política. Por isso pode-se falar de uma teoria weiliana
da mundialização. No § 21 da Filosofia política, Weil diz: “Em princípio,
a moderna comunidade de trabalho constitui uma sociedade mundial”2.
Em princípio significa duas coisas. De um lado, que a sociedade moderna
ainda não é mundial e, consequentemente, que ela ainda não é plenamente
moderna. De outro, isso quer dizer que essa sociedade — entendida como
o sistema de produção e de trocas — está em curso de mundialização. O
que Weil apresenta inicialmente em 1956, em sua análise da política, é que
se o processo de modernização deve continuar, ele se dará sob a forma
de uma sociedade mundializada. A mundialização aprece assim, desde
o início do livro, como o pano de fundo de toda a análise.
Nas páginas que se seguem não vou abordar todos os aspectos dessa
teoria. Vou me concentrar sobre a relação entre Estado e sociedade. Mais

1. Université de Lille 3/Institut Eric Weil, França.


2. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, São Paulo, Loyola, 2ª ed. revista, 2011, 82.

13
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

exatamente, vou tentar mostrar em que a teoria weiliana da mundialização


é uma resposta prática a uma série de problemas que concernem: à socie-
dade moderna (I), ao Estado (II), ao conflito entre Estado e sociedade que,
segundo Weil, é o conflito fundamental de nosso tempo (III). Concluirei
evocando alguns elementos de comparação entre a teoria de Weil e a teoria
kantiana do cosmopolitismo (IV), mostrando, finalmente, como a teoria
weiliana da ação se distingue das metafísicas da história (V).

I. A sociedade: mundialização
e competição anárquica

Para Weil, o desenvolvimento da sociedade moderna resulta dos con-


flitos e das rivalidades entre comunidades históricas. Se os Estados enco-
rajaram o desenvolvimento das técnicas e dos métodos modernos de or-
ganização do trabalho social, foi por motivos tradicionais: tratava-se de
dominar seus concorrentes, de realizar objetivos de poder, de prestígio, de
assegurar a predominância de uma região, de uma cultura etc. A moderni-
zação das sociedades foi desencadeada no quadro das rivalidades interna-
cionais motivadas por fins tradicionais. Em consequência, ao contrário, os
métodos de trabalho moderno, e com eles a ciência positiva, a tecnologia e
o cálculo racional acabaram por pôr em questão as tradições históricas, a
moral tradicional das sociedades nas quais eles se desenvolveram. O con-
flito entre modernidade e tradição é, portanto, interno a todas as socieda-
des modernas e esse conflito é uma consequência da competição entre as
comunidades históricas e os Estados dos quais elas se dotaram.
A mesma lógica ocorreu no quadro da mundialização. As sociedades
particulares se integraram gradativamente numa rede mundial de produção
e de trocas, mas a mundialização tem sempre por dinâmica a competição
entre as sociedades e os Estados. A mundialização não é um simples pro-
cesso de intensificação de trocas, de aumento da mobilidade das pessoas,
dos bens e dos capitais. Não é apenas a extensão e o adensamento da rede
de interdependências. Ela é o resultado da competição entre sociedades par-
ticulares, entre Estados que defendem os interesses econômicos, culturais,
militares dessas sociedades. Daí a sociedade em curso de mundialização é

14
1. A teoria weiliana da mundialização

ao mesmo tempo racional e irracional. Em princípio, a evolução das técni-


cas e dos métodos de trabalho já alcançou um nível tal que a humanidade
é capaz de resolver os problemas fundamentais que se põem a ela: proble-
mas de alimentação, de acesso à saúde, à educação etc. Ou as soluções são
conhecidas ou a pesquisa científica deverá permitir encontrá-las. Mas
a estrutura conflitiva e competitiva das relações internacionais impede
extrair todo o benefício do desenvolvimento das técnicas e dos métodos
modernos de organização do trabalho.
A partir desse fato, Weil sustenta uma dupla tese. De um lado, que a
sociedade moderna só pode ser plenamente moderna, verdadeiramente
racional, sob a forma de uma organização mundial do trabalho social. Mas,
de outro lado, a sociedade mundial só pode resolver os problemas postos
à humanidade se se passar da lógica da competição à lógica da coopera-
ção. Nessas observações há um eco da crítica marxista das contradições
do capitalismo. O capitalismo, como o conhecemos, não é uma sociedade
racional. É uma sociedade da competição anárquica. A mundialização en-
gendrada por essa competição é violenta e engendra a violência. De fato, a
sociedade mundial que Weil tem em vista é uma sociedade pós-capitalista.
Não é uma sociedade comunista, nem tampouco uma sociedade capitalis-
ta fundada sobre o princípio da competição entre sociedades nacionais. A
Filosofia política foi concluída em 1955, na época em que as relações entre
Rússia e Estados Unidos dominavam as relações internacionais. Mas, se-
gundo a Filosofia política, os modelos de sociedade propostos pelos Esta-
dos Unidos e pela Rússia não respondem ao que se pode esperar de uma
sociedade verdadeiramente racional.
Uma organização mundial do trabalho social poderia evitar as cri-
ses de superprodução que são a praga do capitalismo, sob a condição de
proceder a uma igualização relativa dos níveis de vida entre as diferentes
sociedades3. Pois as crises de superprodução são crises de subconsumo.
Ora, não há limite a priori ao consumo humano — sobretudo, pode-se
acrescentar, se não se pensa apenas no consumo de bens, mas também
no uso de “serviços”: saúde, educação etc. Consequentemente, uma so-
ciedade mundial seria uma sociedade pós-capitalista, no sentido em que

3. Cf. E. Weil, Filosofia política, § 21, 82 s.

15
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ela poderia resolver o problema das crises cíclicas. Seria uma sociedade
mais racional que a sociedade capitalista.
Para regrar o problema das crises cíclicas, a organização mundial do
trabalho social deveria proceder à igualização relativa dos níveis de vida
entre as diferentes sociedades, isto é, entre os diferentes setores dessa so-
ciedade mundial. Essa igualização dos níveis de vida em escala mundial
seria una das tarefas fundamentais da administração dessa sociedade, não
por razões morais, mas por razões funcionais, para alcançar seu máximo
de eficácia. A sociedade mundial que Weil visa é, portanto, também pós-
capitalista em outro sentido: os problemas são regrados por uma admi-
nistração, não pelo livre jogo da concorrência. E essa administração de-
verá tomar as medidas necessárias para reduzir as desigualdades globais,
particularmente as desigualdades entre países “desenvolvidos” e os outros.
Dito de outro modo, a administração mundial do trabalho social deverá
tomar medidas de justiça global. Ela deverá assegurar os direitos huma-
nos fundamentais, deverá assegurar também a participação de todos nos
benefícios do trabalho social. Por benefício do trabalho social não se deve
entender apenas o acesso aos bens e serviços de base, é preciso entender
também o gozo do tempo livre. Pois o tempo livre, o tempo subtraído à
pressão do trabalho, é o principal bem social: “uma abundância de pro-
dutos permitiria distribuir com maior igualdade e equidade o principal
bem produzido pela luta com a natureza, a saber, o tempo livre”4.

II. O Estado e os Estados


(as relações internacionais)

No domínio das relações internacionais o principal problema é posto


pela soberania5. Esta significa que os Estados se reservam a possibilidade
de usar a violência para preservar ou satisfazer o que eles consideram
seus interesses essenciais. As relações entre Estados soberanos são relações
violentas ou potencialmente violentas. E o estado de coisas que a teoria
“realista” das relações internacionais considera definitivo. A guerra é a ul-

4. Ibid., 83.
5. Cf. E. Weil, Filosofia política, § 40.

16
1. A teoria weiliana da mundialização

tima ratio regum. Dito isso, esta descrição deve ser nuançada. Com efeito,
a guerra “nunca é impossível, mas é sempre menos provável”6. Esse é o
caso, pelo menos, da guerra generalizada, do tipo dos conflitos mundiais.
Pois na medida em que os Estados são Estados modernos eles calculam a
relação entre o custo de uma guerra e os benefícios que se pode esperar
dela. A forma clássica desse cálculo é a possibilidade da derrota. Uma guer-
ra perdida é sancionada pelas perdas humanas, econômicas, territoriais
etc. Mas é preciso também que a vitória não seja obtida a um custo exor-
bitante, que pesaria por muito tempo como um fardo sobre as costas do
vencedor. Numa palavra, Weil tirou as lições da Primeira Guerra Mundial.
Mas há ainda duas modalidades desse cálculo particularmente dignas de
interesse. Vitória não significa apenas conquistar um território e submeter,
vale dizer, destruir, o Estado do adversário. Pois após a conquista vem a
administração dos territórios conquistados. O custo da administração não
deve ultrapassar as vantagens extraídas da conquista. Enfim, os Estados
estão em relações de interdependência crescente. Forma-se uma espécie
de “sociedade de Estados”, o que é um dos aspectos da mundialização da
sociedade. Essa sociedade dos Estados é um bem comum, é ela que torna
possível as trocas não somente de bens e serviços, mas também de capitais
e de tecnologias. Ora, todo uso da violência desorganiza essa sociedade
e provoca, da parte dos outros membros da sociedade, uma resistência,
uma ruptura das relações, medidas de represália. Todo Estado tentado a
usar a violência deve contar com essa reação do resto dessa “sociedade in-
ternacional”. Pouco a pouco cria-se assim, para os Estados, uma situação
análoga à do indivíduo no interior da sociedade: o indivíduo “preferiria
usar de violência para alcançar seus objetivos naturais”, mas ele renuncia
a isso porque “o que ele pode esperar de uma sociedade que trabalhe pa-
cificamente é superior à expectativa que poderia ter de conservar o que
adquiriu violentamente numa sociedade desordenada”7.
Essas análises estão em sintonia com a época de redação da Filosofia
política. O prefácio é datado de 21 de junho de 1955. Menos de um mês
depois o encontro de Genebra entre Khrouchtchev e Eisenhower8. Pela

6. Ibid., 280.
7. Ibid., 275 s.
8. Conferência em julho de 1955 entre os dirigentes dos Estados Unidos, da Rús-
sia, da França e da Inglaterra. Durante essa conferência sobre a segurança na Europa, a

17
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

primeira vez depois do início da guerra fria os representantes da Rússia


e dos Estados Unidos discutem entre si. São as premissas do que se cha-
mará a “coexistência pacífica”. Esta conhecerá altos e baixos, como se verá
em 1962 com a crise de Cuba. Todavia, 1955 é o ano em que se desenha a
possibilidade de sair de uma lógica de confronto armado entre as duas su-
perpotências. Dito isso, as duas modalidades do cálculo mencionado por
Weil estão no centro de nossa atualidade. O problema do custo humano
e financeiro da administração dos territórios conquistados se apresentou
aos americanos no Iraque. Antes disso, ele se pôs às potências coloniais,
por exemplo, aos franceses na Argélia. Quanto à exclusão ou à ameaça
de exclusão das redes de cooperação técnica e financeira, encontra-se um
exemplo na resposta ocidental à política de Putin na Ucrânia.
Evidentemente, seria preciso desenvolver todas essas análises, particu-
larmente em função da distinção feita por Weil entre potências grandes,
pequenas e médias. Pois a possibilidade ou a probabilidade do recurso à
violência estão ligadas à potência e à modalidade dos Estados. “Como regra
geral, um Estado é tanto menos inclinado à violência quanto, ao mesmo
tempo, mais moderno e menos potente ele for”9. As grandes potências estão
habituadas ao cálculo racional. Mas sua potência pode levá-los a contar
com o sucesso em caso de conflito. Os Estados que ainda não entraram
plenamente na modernidade podem, segundo seus interesses objetivos
(calculáveis) desencadear um conflito por motivos tradicionais de prestígio,
“sonhos de grandeza e independência futuras”10. O apego dos Estados ao
bom funcionamento das instituições internacionais está, portanto, ligado

melhoria das relações Leste-Oeste, o desarmamento e o futuro da Alemanha, um diálogo


se estabeleceu entre a Rússia e os Estados Unidos, representados, respectivamente, por N.
Krouchtchev e D. Eisenhower. Malgrado a persistência de desacordos, um espírito novo
se instaurou, testemunhado pela carta enviada por Eisenhower a Krouchtchev em 27 de
julho de 1955. Nessa carta, Eisenhower escreve surpreendentemente: “I personally feel
that some of the world tensions, of which we so often spoke at Geneva, have been eased
by the fact of our meeting face to face and, during that eventful week, giving to the world
a record of long and meaningful discussions and debate (…). If we can continue along
this line, with earnest efforts to be fair to each other and to achieve understanding of each
other’s problems, then, eventually, a durable peace based on right and justice will be the
monument to the work which we have begun”.
9. E. Weil, Filosofia política, 279.
10. Ibid., 278 nota.

18
1. A teoria weiliana da mundialização

a dois fatores principais: o hábito do cálculo racional que é a consequência


da modernização; a tomada de consciência dos limites da potência, tanto
no uso da força quanto na gestão das consequências de uma vitória.
A partir daí vê-se que o problema das relações internacionais, de um
lado, é o problema das crises do capitalismo, de outro, recebem em Weil
uma única solução. Essa solução é a criação de uma administração co-
mum, uma administração mundial do trabalho social. Não por razões
morais, mas de cálculo racional, a cooperação internacional se revela cada
vez mais como uma necessidade ao conjunto dos Estados. Esta é a razão
pela qual eles não querem permanecer fora dessa sociedade de Estados
que é um dos aspectos da sociedade mundial. O que refreia os Estados
poderosos e calculistas a utilizar a violência não é somente o risco de der-
rota e o custo da vitória, mas progressivamente a tomada de consciência
de que a sociedade internacional é um bem comum a ser preservado: “o
cálculo dos indivíduos históricos leva-os à concepção de um interesse
social comum, de uma organização mundial”11. Daí a ideia, que poderia
se tornar cada vez mais presente ao espírito dos governantes, de que esse
bem comum deve ser administrado em comum: numa palavra, que se
impõe uma organização mundial do trabalho social.
Mas isso só será possível se essa administração mundial do trabalho
social for ideologicamente neutra. Ora, efetivamente é isso que Weil tem
em vista. A solução por ele preconizada neutraliza o conflito ideológico
entre capitalismo e comunismo. Viu-se que a sociedade teorizada por Weil
é, num sentido, pós-capitalista, pois ela deve resolver o problema crônico
do capitalismo, o das crises cíclicas. Mas é preciso também notar que a
administração mundial do trabalho social, como a concebe Weil, não faz
nenhuma referência à questão da propriedade dos meios de produção.
Aqui, os silêncios do texto são tão importantes quanto suas afirmações
explícitas. Tudo se passa como se a questão da propriedade dos meios
de produção fosse secundária. Para bem compreendê-la, seria preciso
retomar os textos de Weil sobre a evolução histórica e sociológica dos
Estados e sociedades modernas, e particularmente “Massas e indivíduos
históricos”12. Entre o proletário e o capitalista (sobretudo o capitalista em

11. Ibid., 281.


12. Masses et individus historiques, Essais et conférences, II, Paris, Vrin, 2000, 255-325.

19
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

sentido tradicional, patrimonial do termo) se desenvolve progressivamente


a figura do organizador. De um lado, isso quer dizer que o especialista das
organizações está destinado a se tornar socialmente mais importantes do
que a propriedade privada dos meios de produção. Mas, de outro lado, a
extensão do conceito de organização ao conjunto da sociedade mundial
significa que se deve passar, nas relações entre sociedades, de uma lógica
da competição anárquica à da coordenação concertada. Ora, essa lógica
supõe a superação ou a solução do conflito ideológico. Em consequência,
a Filosofia política não faz da apropriação coletiva dos meios de produção
uma condição da administração mundial da sociedade. Mas é claro que
essa administração tampouco é liberal, no sentido de que ela não aban-
dona ao livre jogo dos interesses, à competição econômica, a tarefa de
regular e estruturar essa sociedade. A administração mundial deve per-
mitir uma elevação geral do nível de vida no quadro de uma sociedade
mundializada. Consequentemente, ela deve proceder a uma igualização
dos níveis de vida entre as diferentes sociedades e proceder a políticas de
redistribuição, a uma melhor repartição das riquezas13.

III. O conflito Estado/sociedade

O conflito entre o Estado e a sociedade aparece como um conflito de


valores. O valor central da sociedade moderna é o trabalho fundado no
cálculo e na eficácia crescente e, de maneira geral, no progresso sob todas
as suas formas. O Estado, por sua vez, é a organização graças à qual uma
comunidade história toma consciência dos valores que constituem sua
identidade e se esforça por realizá-los. No plano das relações internacionais
essa dualidade dá lugar ao conflito entre o pacifismo inerente à sociedade
moderna, de um lado, e o recurso sempre possível do Estado à guerra de
outro. De um lado, a paz que é a condição de possibilidade do trabalho
social; de outro, a guerra sempre possível como consequência da soberania
dos Estados. Acabamos de ver como o recurso à guerra era mais ou menos
provável segundo os tipos de Estado. Mas a oposição entre guerra e paz
permanece no plano das ideias entre a opção filosófica pela paz e a opção

13. E. Weil, Filosofia política, 292.

20
1. A teoria weiliana da mundialização

que, como se vê em Hegel14, faz da guerra um momento necessário para a


tomada de consciência e a adesão coletiva à existência do Estado — ao Es-
tado entendido como instituição de uma vida ética, de uma Sittlichkeit. Na
Filosofia política esse conflito dá lugar a uma espécie de resolução dialética
que é exemplar do método de Weil. Pois essa dialética não é especulativa
de tipo hegeliano. E uma dialética cujo termo é a formulação de um pro-
blema para a ação. Trata-se de uma dialética negativa: tanto o pacifismo da
sociedade moderna quanto o belicismo do Estado histórico são figuras do
não senso. De um lado, a violência da guerra é não senso. Mas, de outro,
a não violência que é apenas não violência não é portadora de sentido.
Uma sociedade pacificada, mas exclusivamente votada ao trabalho, ao
consumo, à busca do desempenho pelo desempenho, seria uma sociedade
insensata. A Aufhebung dessa oposição não é uma Aufhebung especulati-
va, é a formulação de uma tarefa a realizar. Trata-se de superar essas duas
figuras do não senso que são o pacifismo abstrato e o “soberanismo” abs-
trato, o idealismo abstrato e o realismo abstrato, e essa superação toma a
forma de uma ação e ser empreendida: trata-se de fazer advir um mundo
no qual a paz não seja simplesmente a ausência de guerra, mas condição
de possibilidade de uma vida sensata. Tem-se, portanto, uma dialética do
sentido que assume a forma de uma reflexão prática, uma retomada do
método dialético no quadro de um pensamento da ação.
A Filosofia política descreve a estrutura desse mundo que se trata de
engendrar. Trata-se de uma estrutura lógica que ordena em três níveis o
universal, o particular e o singular: uma sociedade universal deve tornar
possível o pluralismo das particularidades morais, das formas de vida
ética, dito de outro modo: o pluralismo das culturas e dos Estados que as
encarnam. E esse pluralismo das forças de vida deve, por sua vez, tornar
possível o acesso do indivíduo, de todo indivíduo, na sua singularidade,
à autonomia moral. A tarefa é a realização do “Estado verdadeiro”15. Pois
os Estados nos quais vivemos ainda não são, e poderiam nunca vir a ser,
verdadeiros Estados: são os Estados caracterizados pela contradição en-

14. Cf. G. W. F. Hegel, Linhas fundamentais da Filosofia do Direito, trad. P. Meneses


et al., São Leopoldo-Recife-São Paulo, Editora Unisinos-Universidade Católica de Per-
nambuco-Loyola, 2010, §§ 323 et 324, assim como a observação ao § 324.
15. E. Weil, Filosofia política, 315.

21
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

tre seu conceito e sua realidade empírica. Segundo seu conceito, o Estado
é a institucionalização de uma comunidade ética. Na sua realidade em-
pírica, o Estado é a institucionalização do poder, da dominação. Em um
mundo em que não houvesse mais nem lutas de classes, nem rivalidades
internacionais, o Estado poderia progressivamente deixar de ser institui-
ção do poder e da dominação, para se tornar na realidade o que ele é se-
gundo seu conceito, a saber: a institucionalização de uma forma de vida
sensata. Esse Estado repousaria exclusivamente na adesão dos cidadãos
e seria uma verdadeira democracia. Desse ponto de vista, a realização de
um verdadeiro Estado coincide com a realização de uma verdadeira de-
mocracia — por oposição às democracias mais ou menos truncadas que
são os Estados constitucionais nos quais vivemos.
O que é chocante é que a realização do Estado verdadeiro passa por
uma espécie de decomposição do Estado contemporâneo em suas diferen-
tes “dimensões” e a reconfiguração sob uma forma totalmente diferente
dessas diferentes dimensões. Com efeito, os Estados-nação existentes têm
uma tríplice função: (1) eles administram uma sociedade, gerenciam uma
economia nacional; (2) encarnam certa forma de Sittlichkeit; (3) exercem a
dominação sobre um território e uma população. Na concepção normativa
que Weil propõe da mundialização, esses três aspectos são dissociados. De
início, acabamos de ver, o Estado como exercício da dominação desaparece.
Mas sobretudo o Estado-nação como unidade de uma sociedade, de uma
comunidade histórica e de uma organização política desaparece também e
dá lugar a duas formas de Estado: o Estado mundial, que é a administração
da sociedade mundial, e a pluralidade dos Estados como formas de vida,
cujo tipo não é mais o Estado-nação, mas a polis ou a comuna16.
Por consequência, a tese de Weil é que a centralização da adminis-
tração do trabalho social deve tornar possível a descentralização ético-
política. Pode-se, ademais, compreendê-la de duas maneiras. Ou isso
quer dizer que os Estados-nação atuais vão perdurar transformando-se,
ou isso quer dizer que a descentralização ético-política, em favor da cen-
tralização administrativa, será buscada para se alcançar um pluralismo
maximal. Nesse caso, isso equivaleria a dizer que os Estados-nação atuais
poderiam se descentralizar até dar lugar a comunidades não só de tipo,

16. Ibid., 306 s.

22
1. A teoria weiliana da mundialização

mas também de tamanho da polis ou da comuna. O que se desenha aqui


é uma configuração pós-nacional.
A estrutura hierárquica visada por Weil corresponde igualmente às
diferentes modalidades de uma educação: uma educação à racionalida-
de pela participação na sociedade, à divisão mundial do trabalho social;
educação à razoabilidade pela participação no Estado verdadeiro. A fi-
nalidade é tornar possível a autoeducação do indivíduo, sendo o fim de
toda educação fazer do indivíduo um educador de si mesmo para poder
educar os outros17. Mas existe uma dimensão dessa educação que é igual-
mente digna de interesse. É a de fazer que as particularidades morais, as
diferentes “culturas”, devam elas mesmas evoluir. São tradições religiosas
e morais particulares, mas tradições que devem se integrar na sociedade
mundial em curso de realização.

A base material será sempre a organização mundial da sociedade, e em toda


parte este fundamento será reconhecido como tal. O fato e o seu reconhe-
cimento terão repercussões amplas e profundas: nenhuma moral, religião,
arte, ciência ou vida moral se desenvolverá no isolamento, e uma discussão
universal influirá sobre todos os que não tiverem escolhido — nesta mesma
discussão — manter-se à parte18.

As formas do Estado a vir visadas por Weil — na hipótese de uma rea-


lização pacífica e concertada da administração mundial da sociedade —
diferirão, portanto, num ponto essencial das poleis da antiguidade: elas
não repousarão mais sobre um ideal de autarquia. As tradições históricas
e os Estados que as encarnam, repousando sobre uma mesma sociedade
de base, sobre uma mesma organização do trabalho social, deverão res-
peitar as regras da cooperação pacífica. Elas deverão respeitar os direitos
fundamentais que são os direitos de todo membro da sociedade moderna.
Mas além dessa conformidade às normas comuns, essas tradições mo-
rais e religiosas deverão elas mesmas dar uma interpretação que as torne
compreensível e aceitáveis para todas as outras tradições. Elas deverão dar
delas mesmas uma interpretação que as torne universalmente significantes,
que valorize seu estatuto e sua dignidade de formas de vida autentica-

17. Cf. E. Weil, Filosofia política, §§ 15-19.


18. Ibid., 306 s.

23
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

mente humanas. Consequentemente, essas tradições deverão ultrapassar


e superar o que elas ainda comportam de violência e de arbitrariedade. É
sob esta condição que elas poderão ser reconhecidas. É sob essa condição
que sua exigência de reconhecimento poderá ser reconhecia como uma
exigência legítima e que, por consequência, deve ser satisfeita.

IV. Weil e o cosmopolitismo kantiano

O esquema weiliano é uma retomada do cosmopolitismo kantiano.


Mas há aqui algo notável. Em Kant, a organização cosmopolita poderia
tomar a forma de um Estado mundial, de uma monarquia universal, que
seria um despotismo absoluto. Ao Estado mundial Kant opõe uma alian-
ça permanente dos povos, uma Völkerbund. Noutros termos, a sociedade
das nações de Kant é uma alternativa ao Estado mundial. Mas o esque-
ma weiliano reúne os dois. Tem-se ao mesmo tempo o Estado mundial
e a Völkerbund: o Estado mundial como a administração do trabalho, a
aliança dos povos como comunidade dos Estados particulares. Mas por
que chamar Estado a administração mundial do trabalho social? Parece-
me que há pelo menos duas razões. A primeira é que a administração
do trabalho social é o Estado hegeliano, tal como aparece no plano da
Bürgerliche Gesellschaft. A comparação permite, ademais, compreender
que aquele tipo de administração está em questão. Não é a administra-
ção no sentido simplesmente gestionário. É a organização do trabalho
social em sentido amplo, aí compreendidos os “serviços públicos” e os
tribunais que devem garantir que os direitos fundamentais dos membros
da sociedade serão direitos reais e não formais. A segunda razão é que a
administração da sociedade mundial procede da ação consciente. Ora,
a ação coletiva consciente é uma característica fundamental do Estado.
Falando de Estado mundial a propósito dessa organização mundial do
trabalho social, Weil indica claramente que não há autorregulação es-
pontânea da sociedade globalizada.
Enfim, é importante notar que a estrutura visada por Weil não é uma
federação. É até mesmo o contrário. O princípio da federação é que os
Estados federados são subordinados à organização federal. Os Estados
federados são integrados na federação, são componentes dessa federação.

24
1. A teoria weiliana da mundialização

Ora, o Estado mundial visado por Weil não é um todo englobante do


qual os Estados particulares seriam os componentes. Ele não é o nível
superior de uma estrutura hierarquizada, é o nível inferior dessa estru-
tura. Não é uma super-estrutura, mas uma infra-estrutura administrativa
que serve de base, de solo comum, ao livre desenvolvimento dos Estados
particulares. Vimos que os Estados particulares deverão se conformar
às normas racionais dessa organização mundial do trabalho social. Mas
essa organização — um Estado mundial que, paradoxalmente, é apenas
sociedade19 — deve ser ela mesma subordinada ao controle político da
pluralidade dos Estados livres. Não estamos, portanto, diante de uma
federação mundial, de modo que não existe modelo para a forma que
tomará esse controle político do Estado mundial pelos Estados particula-
res. Weil se recusa aqui a desenvolver uma utopia, ele explica que a forma
desse controle será inventada no curso mesmo da ação.

V. A teoria da ação como substituto


da metafísica da história

A teoria weiliana da mundialização não é nem uma utopia, nem uma


antecipação do futuro apoiada numa metafísica da história. Ela pretende
ser e se compreende como uma teoria da ação. Na Filosofia política, Weil
reiteradamente toma uma posição muito clara contra as “metafísicas da
história”. Ele o faz, inclusive, para justificar sua retomada da ideia kan-
tiana de uma passagem das formas violentas a uma forma não violenta da
ação. Em outros termos, nada indica que a guerra entre Estados (segundo
o esquema hegeliano) ou a luta das classes (segundo o esquema marxista)
definem a dinâmica incontornável de todo progresso histórico: “nenhuma
metafísica permite afirmar que a violência das lutas sociais e interestatais,
que esteve na origem do direito e do pensamento do direito, deva conti-
nuar a formar o direito e a fornecer a força organizadora”20.
Em vez de ser o prolongamento ou a consequência de uma metafísica
da história, a teoria da ação se substitui a essa metafísica. Eis porque, na

19. Cf. E. Weil, Filosofia política, 301.


20. Ibid., 297.

25
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ausência de todo determinismo histórico, a teoria weiliana da ação toma


a forma de uma teoria dos problemas a resolver, das tarefas a realizar. Ora,
pode ser que os problemas não sejam resolvidos. Pode ocorrer que a hu-
manidade fracasse na realização das tarefas que lhe são impostas pela si-
tuação histórica em que ela se encontra: “o problema posto pela história
passada tornou-se solucionável”21. Mas isso não quer dizer que ele será
necessariamente resolvido. E isso tampouco quer dizer que ele será resol-
vido pela ação concertada dos Estados.
Concretamente, isso quer dizer que há vários cenários possíveis. Em
primeiro lugar, a mundialização — o desenvolvimento de uma socie-
dade mundial — pode não continuar. Podo ocorrer um termo, até mes-
mo uma volata para trás da humanidade — sobretudo nas circunstân-
cias em que escreve Weil, em que a ameaça de uma guerra nuclear está
presente a todos.

É perfeitamente imaginável que não se encontre uma solução não violen-


ta, noutros termos, que a violência destrua as riquezas e os conhecimentos
acumulados e a história volte, como já o fez mais de uma vez em áreas limi-
tadas, ao seu início22.

Supondo que o desenvolvimento de uma sociedade mundial conti-


nue, esse desenvolvimento pode se fazer tanto pela violência como pela
concertação.

É igualmente possível que a solução racional (…) não seja encontrada por
meio do cálculo racional, os fatores históricos prevaleçam no imediato e uma
organização mundial surja de um conflito das grandes potências, decidido
em favor de uma delas sem que a sociedade mundial seja por isso demasia-
damente empobrecida. Pode ser, enfim, que uma das potências avance tanto
com relação a todas as outras, que elas não seriam mais capazes de empreen-
der a luta contra aquela23.

Desses diferentes cenários possíveis visados por Weil em 1955, sabe-


mos hoje que foi o último a se realizar.

21. Ibid.
22. Ibid., 292.
23. Ibid.

26
1. A teoria weiliana da mundialização

Mas, ademais de uma teoria dos cenários possíveis, uma teoria da ação
é também uma teoria dos riscos. A teoria dos cenários possíveis mostra
que a mundialização pode se fazer de várias maneiras diferentes, sobre-
tudo se ela é buscada de modo competitivo. Se houvesse uma guerra
nuclear entre as duas superpotências, a mundialização se fazia sob a for-
ma de um Estado mundial dominado pelo vencedor (supondo que o
resultado não seja a destruição recíproca). Weil evoca outros tipos de
riscos, sempre ligados às diferentes modalidades possíveis da mundiali-
zação. Há, primeiro, o risco já apontado pela teoria kantiana do cosmo-
politismo, de um Estado mundial que seria autocrático, vale dizer, tirâ-
nico24. Weil usa os dois termos, mas eles não são equivalentes. A autocra-
cia é um poder político sem controle parlamentar e jurídico. As decisões
do governo autocrático são imediatamente executórias. Tem-se, portan-
to, a hipótese de um Estado mundial que não se limitaria à organização
do trabalho social, mas que seria a transposição, em escala mundial, das
formas contemporâneas de Estados autocráticos. Quanto à tirania, Weil
não explica em que sentido a usa. Pode-se imaginar que ele a entende
em sentido aristotélico de um poder exercido em vista de um interesse
exclusivo dos governantes, sem consideração dos interesses da sociedade
em seu conjunto. O importante é que, num caso como no outro, o risco
é real sem ser considerável. Para que uma tirania ou uma autocracia
mundial consiga se impor, seria preciso que os cidadãos como os gover-
nantes tenham tolerado essa evolução a despeito de seus próprios inte-
resses. É preciso, portanto, supor que uns como os outros tenham per-
dido a faculdade do cálculo racional. Uma vez instalado, esse poder au-
tocrático suscitaria uma revolta — ativa ou passiva — e acabaria por
desmoronar de um modo ou de outro. Ademais, é preciso se interrogar
sobre as condições de aparecimento ou de manutenção da autocracia.
Esta está ligada às tensões internacionais, que ela toma como pretexto e
sustenta para se manter. A independência e a unidade da nação tornam-
se então um motivo de restrição das liberdades. Uma lealdade incondi-
cional é exigida dos cidadãos. Quanto mais as tensões e os conflitos são
vivos, mais forte é a exigência de lealdade nacional. Mas esse mecanismo
torna difícil de conceber que uma autocracia mundial possa se manter

24. Cf. ibid., 294.

27
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

indefinidamente na ausência de tensões internacionais, que por hipóte-


se estaria excluída no caso de um Estado mundial.
Ao contrário, o perigo da uniformidade moral, da homogeneização
cultural, é mais grava. Há duas versões possíveis desse perigo. A primeira, é
a difusão de um pensamento uniforme correspondente à visão do mundo
racionalista da sociedade moderna enquanto tal. Essa uniformidade pode
ser vantajosa ao funcionamento da sociedade. Trata-se, de um lado, de to-
dos os princípios funcionais dessa sociedade: a aptidão ao cálculo racional,
desejo de progresso material, busca de lazeres etc. Mas esse pensamento
inclui também os direitos do homem e uma moral social de tipo utilitaris-
ta. Essa moral, esses direitos e esses princípios funcionais estão ligados ao
funcionamento da sociedade moderna. Nesse sentido eles são necessários e
justificados. No mundo moderno os valores religiosos, estéticos, filosóficos
só podem se desenvolver se estiver assegurada a base material da existência.
O cálculo racional e o utilitarismo característicos da sociedade moderna
são justificados em seu próprio nível. Mas, embora sendo necessários, eles
não são suficientes. A moral social fundada nas liberdades individuais e
nos direitos do homem é uma moral formal. Nela mesma, essa moral não
dá conteúdo à existência. O direito de propriedade, a proteção contra o
arbítrio do poder, o direito ao mínimo de recursos, à proteção contra o
desemprego, contra as enfermidades, a velhice definem as condições nas
quais os indivíduos podem fazer escolhas de vida concretas, na maioria
dos casos retomando, repensando, combinando a herança de tradições
morais, filosóficas ou religiosas. Mas nem os direitos do homem, nem o
princípio da proteção social definem um modo de vida concreto. Conse-
quentemente, uma uniformização fundada no desaparecimento das tra-
dições e sobre a degenerescência do Estado na sociedade poria o problema
do não senso evocado acima. Essa sociedade mundial — uma sociedade
sem Estado, no sentido de que o Estado é a institucionalização de uma
forma de vida ética — acabaria por recair na violência. Pois a experiência
mostra que os indivíduos preferem a violência, infligida aos outros ou a
si mesmos, ao peso de uma existência desprovida de sentido.
A segunda versão do risco de homogeneidade vem do fato de que a
sociedade mundial se constitui pelo conflito e pela competição. Conflito
e competição entre as sociedades particulares, isto é, entre as nações con-
sideradas como potências econômicas e militares. A partir daí a mundia-

28
1. A teoria weiliana da mundialização

lização poderia conduzir à hegemonia de um pequeno grupo de nações


poderosas sobre o resto do mundo. Isso significaria que as culturas pró-
prias a essas nações dominantes se imporiam em escala mundial.

Com efeito, supondo que a sociedade se realize como sociedade do gênero


humano, não se realizará sob a guia de um pequeno número de nações, se-
não de uma só, e a moral histórica das nações fracas (com relação à potência
técnica e econômica das grandes) não está condenada a desaparecer?25

Vê-se que as duas versões do perigo de uniformização correspondem


à oposição da sociedade e do Estado. De um lado, a uniformização viria
da própria sociedade, iria de par com a marginalização dos Estados, senão
a uma reabsorção do Estado numa sociedade mundial. Daí decorreria a
aniquilação das identidades nacionais, o desaparecimento do pluralismo
das formas de vida. De outro lado, a mundialização daria lugar à domina-
ção de um “clube de grandes potências” que imporia a hegemonia de suas
próprias culturas — ou de uma superpotência que imporia a dominação
de sua própria cultura. Para se opor com sucesso a essas duas formas de
uniformização é preciso enfrentá-las simultaneamente. É preciso que a
mundialização não seja mais o efeito da competição e das rivalidades entre
os interesses nacionais. É preciso que um processo político se encarregue
dela, isto é, que ela não seja engendrada de maneira caótica por processos
conflitivos, mas coordenada de maneira deliberada. Em outros termos, o
problema não é recusar a mundialização, mas tomar controle político dela,
fazer de modo que ela torne possível a liberdade em vez de destruí-la.

O Estado mundial, sendo apenas sociedade, não é fim em si mesmo. O


problema é, pois, realizá-lo sem que a maneira da sua realização torne mais
difícil, senão impossível, a realização daquilo que, não sendo meio, só pode
ser fim no plano da política26.

Ora, o fim final é

a ideia da dignidade do homem, de todo homem, ideia do direito que todo ho-
mem tem de participar, enquanto ser razoável e que se submete à necessidade

25. Ibid., 298.


26. Ibid., 301.

29
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

social, em todas as decisões, no desenvolvimento da moral da comunidade,


e até mesmo na criação de uma comunidade e de uma moral novas27.

Em vista desse fim, a ação consiste em tomar o controle político da


mundialização, fazer que ela torne possível a liberdade em vez de des-
truí-la. Do mesmo modo que, em Kant, a história chegou ao ponto em
que o que foi feito pela violência pode ser buscado sem violência, a ideia
de Weil é que o que começou pela competição desregrada pode e deve
ser buscado por uma ação consciente e concertada dos Estados.
A teoria da ação de Eric Weil não se inscreve no quadro de uma me-
tafísica da história, ela toma o lugar dessa metafísica. Consequentemente,
ela não se apoia na lógica de um desenvolvimento previsível. Mais exata-
mente, ela não se apoia na lógica de um desenvolvimento unilinear. Ela se
torna uma teoria dos problemas práticos, das tarefas a realizar, dos cená-
rios possíveis, de sua maior ou menor probabilidade, dos riscos a correr.
Esquematicamente, pode-se dizer que o risco de uma autocracia mundial
não é nulo, mas não é muito elevado. Mas o risco da hegemonia de um
clube de potências é elevado. O risco de homogeneização ou de domi-
nação cultural é real. Esses riscos devem ser corretamente avaliados. Mas
se é preciso avaliá-los, não é para deduzir disso que é preciso renunciar à
ação, mas é para que eles sejam enfrentados. A tese fundamental de Weil é
que esses riscos devem ser corridos para evitar uma catástrofe certa, a que
decorreria de um desenvolvimento descontrolado dos conflitos potenciais
entre as potências, mas também da “competição desregrada” entre seus
sistemas econômicos. “Mas, se são reais, os riscos deverão ser corridos: o
que de um lado é simples risco, de outro é certeza, e a ação que negasse
a sociedade mundial conduziria necessariamente à tirania da qual essa
negação temerosa queria fugir a qualquer preço”28. “Mas não se poderia
exigir razoavelmente uma liberdade sem riscos: o fim último da política
é que os riscos e as possibilidades da liberdade tornem-se reais”29.
Na Filosofia política, Weil se projeta e projeta seu leitor num mundo
que já é o mundo pós-guerra fria. Já é também o mundo pós-colonial.
Desse ponto de vista, a Filosofia política tira as lições da época. Como se

27. Ibid.
28. Ibid., 295.
29. Ibid., 304.

30
1. A teoria weiliana da mundialização

disse, o prefácio é datado de junho de 1955. Ora, 1955 não é somente o


ano da conferência de Genebra entre os quatro “grandes”. Em abril de
1955 também ocorreu a conferência de Bandung, que reuniu 29 países da
Ásia e da África. A conferência de Bandung foi o prelúdio da formação de
movimento dos não alinhados. É a exigência de aceleração do processo
de descolonização. É a exigência de uma cooperação econômica mun-
dial para lutar contra o subdesenvolvimento. É também a insistência na
regulamentação pacífica dos conflitos, por vias diplomáticas, projetando
o papel primordial das Nações Unidas. Remetida ao contexto histórico
de sua redação a IV parte da Filosofia política é significativa por diversos
títulos. Ela analisa os problemas de sua época. Mas ao fazer isso, o livro
traça as perspectivas que antecipam a nossa situação. O mundo que se
desenha no final da Filosofia política, o mundo pós-guerra fria, o mundo
pós-colonial já é o nosso. É um mundo em que os problemas do mul-
ticulturalismo e da justiça global se tornaram centrais. E também um
mundo que busca sair das duas grandes ilusões dos séculos XIX e XX: a
que acreditava que a apropriação coletiva dos meios de produção bas-
taria para resolver os problemas da dependência e do não senso; a que
quis nos fazer crer que os problemas se resolverão sozinhos, desde que
se deixe o campo livre à competição anárquica.

Tradução do francês de Marcelo Perine

31
2. Sociedade mundial e
estado mundial segundo Eric Weil

Jean Quillien1

O ato de reunir as três noções que compõem o tema do nosso coló-


quio, “Violência, educação e globalização”, não deixa de desconcer-
tar, à primeira vista, por causa da conjunção “e”, tão importante neste
título, porque nos impõe a obrigação de examiná-las, não separadas e
isoladamente, mas na sua eventual relação. De fato, se os dois primeiros
termos, “violência” e “educação” estão, incontestavelmente — e qualquer
leitor de Weil o sabe —, no centro de seu pensamento, a “globalização”
está completamente ausente de todo o seu trabalho, ao menos com esta
denominação e até mesmo sob seu equivalente francês, “mundialização”,
ela não está presente, em sua acepção atual, na Filosofia política. Essa au-
sência pode surpreender e poder-se-á objetar que §§ 40 e 41 da obra, tão
importantes para o nosso tema, e em nossa opinião tão difíceis de inter-
pretar, tratam da sociedade mundial e do Estado mundial, da sociedade
moderna que é mundial em seu princípio e do Estado mundial que lhe
é contemporâneo e permanece ainda inacabado, porque sempre na con-
tradição entre o seu conceito e a sua realidade histórica.
Esta observação preliminar nos leva imediatamente ao centro da difi-
culdade que se esconde na relação posta entre os três termos e nos permite

1. Université de Lille 3/Institut Eric Weil, França.

33
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

indicar desde já a direção da nossa interpretação. Parece-nos imperativo,


de fato, precaver-nos de deslizar sorrateiramente, como se fosse óbvio,
de “sociedade mundial” e “Estado mundial”, segundo Weil, ao que hoje é
chamado de “globalização” ou “mundialização”– termos usaremos aqui
como sinônimos2. Por esse motivo, o essencial desta comunicação será
consagrado ao evento ocorrido depois da morte de Weil em 1977, que
ele não pôde conhecer, o que nos permitirá no final delinear a relação
entre estes dois modos de ser do mundial, um modo pensado (a Filosofia
política), o outro realizado (o mundial atual).
A Globalização, fenômeno recente, já é objeto de grande número de
obras e estudos, mas a mais simples consulta a uma bibliografia sobre o
assunto nos desafia, a nós filósofos reunidos aqui. Estes trabalhos foram
produzidos primeiro por economistas, depois por sociólogos, antropólo-
gos, historiadores e geógrafos, também juristas, mas por poucos filósofos.
Se se admite com Hegel, e Weil está de acordo com ele e o retoma, que
a filosofia é o seu tempo apreendido pelo pensamento, como entender
esta distância dos filósofos diante de um evento que perturbou a ordem
mundial, e nos obriga agora a repropor com novos custos a grande ques-
tão da filosofia depois de Kant: para onde vamos? Para onde vai a hu-
manidade? O grande historiador britânico Eric Hobsbawm já em 1994,
levantou a constatação:

Os cidadãos do final do século XX traçaram seu caminho para o terceiro


milênio através da névoa da globalização que os envolvia; a única coisa de

2. Se se quiser uma análise mais aguda do fenômeno em si, pode-se, certamente, ser
levado a distinguir e considerar com a OCDE que a globalização envolve três etapas: a inter-
nacionalização, entendida como o desenvolvimento dos fluxos de exportação; a transnacio-
nalização, com o significativo desenvolvimento dos fluxos de investimento e, finalmente, a
globalização, entendida como a instalação de redes globais de produção e de informação. A
globalização seria, então, um momento de mundialização. Cf. sobre isso Sylvie Brunel, geó-
grafo e economista, “Qu’est-ce que la mondialisation?”, In Sciences humaines, Dossier “Dix
questions sur la mondialisation”, n. 180, mars 2007, 29. Outro geógrafo, Laurent Carroué,
propõe reservar o termo mundialização para designar a difusão do capitalismo a todos os
espaços geográficos e chamar globalização todos os fenômenos que agem no conjunto do
espaço terrestre compreendido como globo. Cf. La mondialisation. Genèse, acteurs et enjeux,
Paris, Editions Bréal, 2005. Esta distinção, por importante que seja num outro contexto, pode
ser deixada de lado aqui, numa análise que se concentra sobretudo em colocar em perspec-
tiva a sociedade mundial e o Estado mundial, de um lado, e a globalização, de outro.

34
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

que de que tinham certeza era que uma época da história chegava ao fim.
Eles não sabiam disso3.

Com efeito, a extenuação das grandes narrativas dos séculos XIX e


XX, a crise dos princípios racionalistas e humanistas, o estremecimento
da crença num mundo futuro mais justo, o fim da ilusão, para os pais, de
que seus filhos viveriam num mundo melhor que o deles, fazem, suscitan-
do a angústia, que não tenhamos mais referências, amedrontados diante
de uma globalização que vai a uma velocidade vertiginosa, progredindo
segundo uma lógica implacável que ninguém mais, nem mesmo aqueles
que dela tiram proveito, pode realmente controlar; globalização que vai

3. E. Hobsbawm, The age of Extremis: The Short Century XX, 1914-1991, London,
Michael Joseph, 1994, 558-559. L’âge des extremes, trad. P. E. Dauzat, Bruxelas, Complexe,
1999; André editor Versalhes, 2008, 718. Esta última edição fornece uma tradução ligeira-
mente diferente: “Os cidadãos do fim do século XX, caminham rumo ao terceiro milénio,
em meio ao nevoeiro global que os envolve, a sua única certeza é a de que uma era da his-
tória está completa. Eles não sabem muito mais”. Hobsbawm chama de “Breve século XX”,
o período que vai da Primeira Guerra Mundial, entendida como o colapso da civilização
ocidental do século XIX, da qual um dos traços fundamentais era o lugar central da Eu-
ropa à queda do comunismo soviético e os Estados Unidos substituindo a Europa como
o poder dominante. O século se caracteriza de forma essencial pela oposição, chamada
“Guerra Fria”, de dois blocos, um capitalista e outro comunista. Cada um considera o outro
como inaceitável e aguardava o seu fim tido como inevitável. Mas seja qual for a escolha de
cada indivíduo, o conflito estrutura a sua compreensão do mundo. Desaparecido um dos
blocos, resta apenas um, por um tempo, pelo menos até agora, indeterminável, são todos
marcos candentes. Aquele que acreditava num mundo futuro radiante sabe agora que foi
apenas um sonho bonito e que ele deve, necessariamente, voltar a cair talvez o que ele tão
criticado. Ao contrário, aquele que optou pelo capitalismo não tem certeza de onde está,
pois se este realmente triunfa, o faz pelo desaparecimento do outro bloco. E, mais uma vez,
este triunfo está longe de ser glorioso. Com efeito, a sucessão ininterrupta de crises desde
o final da Idade de Ouro (o boom do pós-guerra) mostra que Marx estava certo quando
afirmava que o capitalismo é, intrinsecamente, uma força de revolução permanente. Este
movimento, irreversível, não pode ir contra a sua própria natureza, contrafazer seu próprio
ser, certamente nos leva a algum lugar. Mas para onde? Esta é a pergunta que agora nos é
imposta. E ela é lancinante, como não pode deixar de ser todo começo que, por definição,
não conhece fim. Hobsbawm escreveu em 1994: “Este século termina mal” (38). Gostarí-
amos de dizer a mesma coisa com o novo: ele começa mal. E nós ainda não o vemos com
muita clareza, exceto que China chegou ao segundo no ranking mundial e se aproxima
dos Estados Unidos. E ela o faz isso perturbando os pilares do século passado. Nós esta-
mos habituados a opor os regimes capitalistas que reconhecem as leis do mercado como
essenciais aos regimes comunistas com uma economia dirigista e planificada. No entanto,
a China se define como comunista e reconhece o papel do mercado.

35
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

certamente a algum lugar — como duvidar? — mas que ninguém sabe


ainda, nem sequer pressente, onde está esse lugar, e nem mesmo em que
direção é preciso procurá-lo. Nosso colóquio, em setembro de 2014, em
Fortaleza, não é simplesmente um entre outros, é muito mais, e é preciso
louvar os organizadores, porque ele nos oferece o tempo e o local para um
questionamento autenticamente filosófico, que se tornou urgente, sobre
esse evento mundial, a globalização.
A primeira questão posta por estas três noções é: como devemos lê-las
para que, na sua conexão, elas tenham sentido? Para tentar respondê-la,
nos inspiraremos na análise da leitura proposta por Louis Althusser num
livro intitulado precisamente Ler o Capital4. Ler, saber ler é, no dito, apre-
ender o não dito com a plena consciência de que não há leitura inocente,
que qualquer leitura é, no fundo, sintomática, o que significa dizer, em
nosso contexto, que sob três palavras “inocentemente” oferecidas ao nosso
exame — em que, efetivamente, pô-las em relação chocaria a alguém —,
é preciso ler realmente quatro. Três oferecidas, as que se mostram, porque
“apresentáveis”, talvez para evitar mostrar aquela que justamente não se
quer mostrar, sobretudo porque é esta a que conta. De que, então, é cul-
pável a justaposição quase provocatória, intencional ou não, não sabemos,
mas tão pertinente, destes três termos? Qual é a palavra ausente, não es-
crita, não dita e, contudo, por sua própria ausência, tão fortemente pre-
sente, palavra que, revelada, dá a chave, que faz com que a aproximação
inicialmente insólita não o seja mais no final, palavra que lança uma luz
incandescente sobre a ordem mundial efetiva? Esta palavra, a designamos
enfim, é “capitalismo”. Toda a nossa interpretação repousa sobre esta grade
de leitura. Limitemo-nos, nesta introdução, a fazer notar, sugerindo já, sem
rodeios, que existe um problema real, que talvez seja o problema, o fato de
que esta palavra esteja totalmente ausente da Filosofia política.
Seremos breves sobre a violência e a educação, especialmente porque
estes dois conceitos foram amplamente estudados. Limitar-nos-emos a re-
missões. Tratando-se da violência, a Figures de la violence et de la modernité
de Gilbert Kirscher, particularmente à penetrante análise do Capítulo IV,
“Figures de la violence et de la philosophie”. E no que diz respeito à edu-

4. Cf. L. Althusser, Lire le Capital, tome 1, “Préface: Du Capital à la philosophie


de Marx”, Paris, Maspero, 1965, 9-89.

36
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

cação, à análise igualmente penetrante de Patrice Canivez em Eduquer


le citoyen, à qual associamos o seu recente livro, Qu’est-ce que l’action
politique?5, que pode ser lido como uma verdadeira introdução ao nosso
colóquio. Queremos nos limitar aqui a duas simples observações. Sobre a
violência: o fim da história é, de fato, a não-violência, mas a não-violência
não significa a mera negação da violência. Ambos, o nosso dado natural
e a nossa aspiração a dominá-lo, são como as duas faces, inseparáveis, da
mesma moeda. Assim, escreve Weil, de um lado, “o mal é o fundamento
do bem”6, de outro, “a violência foi e ainda é a causa motora da história”
(Fp 283). Nossa atualidade mais candente é, em vários lugares do mundo,
o testemunho angustiado do desencadeamento descontrolado da violên-
cia, na África, em Boko Haram com a violência em estado puro, na Líbia
e em Mali, como no Oriente Médio, notadamente a Síria martirizada e
seus mais de 200.000 mortos. A França não é poupada, e chamou, recen-
temente, esta violência “Charlie”. Certamente, é incontestável que todos
os Estados modernos nasceram da violência, como constatamos ainda
em nossos dias com a recente anexação da Criméia pela Rússia e a tenta-
tiva de desestabilização da Ucrânia. Também é certo que só pela violên-
cia será alcançada — se se quiser acreditar nisso, por que não sonhar já
que não faz mal — a não-violência, mas Weil não exclui que a violência
possa prevalecer definitivamente (Fp 292). Sobre a educação, que é sem-
pre a educação do homem violento à razão (Fp 65), nos contentamos
em lembrar que ela não se reduz ao sistema escolar e universitário. Com
efeito, por um lado, o indivíduo é educado no contexto da organização
do trabalho e, por outro, o governo permanece o grande educador dos
cidadãos e talvez um dia a educação de todos os cidadãos se torne seu
único objetivo (Fp 299). Lembramos que Weil, já em 1957, escreveu um
artigo intitulado Education as a problem for our time7.
Chegamos à mundialização. Propomos a seguinte definição que pode,
a nosso ver, ser aceita por todos, porque é estritamente formal. Ela é o con-

5. G. Kirscher, Figures de la violence et de la modernité. Essais sur la philosophie


d’Eric Weil. Presses Universitaires de Lille, 1992; P. Canivez, Eduquer le citoyen. Paris,
Hatier, 1990; ID. Qu’est-ce que l’action politique? Paris, Vrin, 2013.
6. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, São Paulo, Loyola, 2ª ed. revista, 2011,
37. Citado no texto com a sigla Fp.
7. E. Weil. Philosophie et réalité I, Capítulo XVI, “L’éducation en tant que problème
de notre temps”, trad. L. Nguyn-Dinh, Paris, Beauchesne, 1982, 297-309.

37
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

junto de processos de integração dos mercados e da liberalização das trocas


(bens, tecnologia, trabalho, conhecimento, cultura etc.). É caracterizada
pela interdependência das trocas econômicas entre os Estados, pelo domí-
nio da esfera financeira sobre todos os aspectos da vida econômica e pela
grande mobilidade de capitais financeiros. A isto se acrescenta a expan-
são circulação e dos meios de comunicação eletrônica, particularmente as
NTIC (Novas Tecnologias de Informação e de Comunicação). Sustentou-
se que a globalização sempre existiu, que sempre houve relações econô-
micas entre os Estados. De fato, no século II a.C., Políbio pôde escrever:
“Antes, o desenrolar dos acontecimentos no mundo não estavam ligados
entre si. Depois, todos eles se tornaram dependentes uns dos outros”. Mas
a “mundialização” em questão não se estendia além do seu mundo, ou seja,
do Império Romano. Não se pode confundir internacionalização e mun-
dialização. Tomamos aqui a palavra em sentido estrito, o da considerável
reviravolta na ordem mundial ocorrida no final do século XX, entendida
como uma nova fase do desenvolvimento capitalista.
Pode ser útil recordar aqui algumas datas. A Lógica da filosofia apa-
rece em 1950, a Filosofia política em 1956 e Weil morre em 1º de feverei-
ro de 1977. Todos os seus textos são, portanto, contemporâneos tanto
da Guerra Fria, quer dizer, de um mundo bipolarizado pelo confronto
EUA-URSS, tendo de um lado o bloco capitalista e do outro o socialista,
como da revolução silenciosa que se conhece com o título que lhe deu
o economista Jean Fourastié, “Trinta gloriosos” (1945-1973), que foram
para a grande maioria dos países desenvolvidos da OCDE (Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) um período de forte
crescimento econômico.
Nossa situação atual parte, desde o início, de em uma reviravolta que
Weil não conheceu, a saber, o evento triplo, verdadeiro tsunami ocorrido
no final do século XX, evento para nós original, inaudito, nunca antes
acontecido. Em primeiro lugar, a queda do Muro de Berlim e o colapso
do comunismo soviético, com o consequente fim do mundo bipolar e
sua substituição, pelo menos até agora, e por um tempo ainda difícil de
avaliar, por um mundo unipolar suscitando, por reação, sob o impulso
dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China, África do Sul), a reivindicação
ativa, contra a hegemonia americana e o papel dirigente do dólar, de um
mundo multipolar (note-se que de 1980 a 2013 a China saltou de 11ª à

38
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

2ª economia mundial e o Brasil, da 16ª a 8ª). Em segundo lugar, a revolu-


ção da informação e da comunicação pela Internet, provocando que, pela
primeira vez na história, o capital é gerado diuturnamente nos mercados
financeiros. A globalização deve ser compreendida por sua lógica própria
como uma fase radicalmente nova do capitalismo. Por fim, a terceira re-
volução industrial. A primeira foi a descoberta da máquina a vapor, que
permitiu o desenvolvimento de ferrovias no século XVIII na Inglaterra.
A segunda foi, com Edison, a da eletricidade no século XIX nos Estados
Unidos. A terceira, atual, é a da eletrônica, que desemboca na informática
e a robótica e conduz, termo provisório do processo, a uma extraordiná-
ria compressão do espaço e do tempo.
É este triplo evento que reestrutura toda a economia mundial, ou me-
lhor, a reconfigura, porque ele se manteve basicamente a mesma, ou seja,
o capitalismo. Seja ele pensado, como Marx, como um modo de produ-
ção específico, que contém em si uma contradição fundamental, que lhe
é própria, entre a burguesia e o proletariado, implicando intrinsecamente
a luta de classes, de onde se segue que a apropriação dos meios de produ-
ção exige por si mesmo a apropriação do aparelho de Estado destinado a
defender, não os interesses de todos, mas da classe capitalista8. Ou, seja ele
pensado como Max Weber, como uma organização econômica que permite
uma busca racional do lucro, o capitalismo se definindo pela existência de
empresários, cujo objetivo é aumentar os lucros ao máximo, graças pre-
cisamente à organização racional do trabalho e da produção9. Notemos

8. K. Marx e F. Engels compreenderam perfeitamente há mais de um século e meio


que a mundialização era a espinha dorsal do capitalismo. Eles explicam, depois de salvar
o papel eminentemente revolucionário da burguesia na história, que ele não pode mais
existir sem transformar incessantemente os instrumentos de produção e, por consequência,
todas as relações sociais. Chamaram, antes de Max Weber, o desencantamento do mundo
(“o médico, o jurista, o poeta, o cientista, [a burguesia] têm salários a ganhar”, “tudo o que
havia de sólido se esvanece no ar, tudo o que é sagrado é profanado”). E anunciam que o
processo lançado, que repousa sobre uma “exploração aberta, indiscreta, direta e brutal”,
é irresistível e irreversível: “impulsionado pelas necessidades sempre novas do mercado,
a burguesia invade o globo inteiro… Pela exploração do mercado mundial, [ela] deu um
caráter cosmopolita à produção e ao consumo de todos os países”. Manifeste du Parti
Communiste (1848), Karl Marx, Friedrich Engels Werke, 4, Berlin, Dietz, 1959, 465-466.
[Paris, Editions Sociales, 1954, 31-32].
9. Cf. M. Weber, L’éthique protestante et l’esprit du capitalisme, trad. J. Chavy, Paris,
Plon, 1964.

39
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

aqui o importante papel de Marx e Weber na formação do pensamento


político de Weil, um na Lógica da filosofia, outro na Filosofia política. Ou
ainda, que se pense o capitalismo como Braudel, que, na esteira da Wer-
ner Sombart10, propõe uma teoria da economia-mundo e compreende a
história como uma sucessão de economias-mundos, que são, segundo ele,
matrizes do capitalismo mundial, que se pode definir como conjunto de
práticas que visam eludir os mercados regulamentados11.
Propomos chamar este triplo evento um avanço (breakthrough), no
sentido que Weil o entende num artigo de 197512. O que a terceira revo-
lução industrial traz de radicalmente novo é a constituição de redes que
irrigam toda a economia, estado de fato multiplicado pela globalização.
Esta situação, que nós aqui chamamos de “avanço”, é caracterizada con-
comitantemente pelo colapso das certezas mais enraizadas e o tímido es-
boço de um mundo novo cujos contornos ainda não vemos muito bem.
O que é certo, é que a globalização é um processo irreversível, mesmo se
vivido, com razão, seja pelos povos, seja pelos indivíduos, como violento.
Portanto, o único verdadeiro problema é agora: qual mundialização? Será
ela selvagem, se se deixa que se desenvolva de acordo com sua natureza
intrínseca, ou ela pode ser controlada? Este é o desafio do mundo por vir.
Em todo caso, já temos diante dos olhos a resposta atualmente dominan-
te. A terceira revolução industrial nos fez entrar na era do capitalismo
triunfante, do ultraliberalismo econômico, que exige que se deixe jogar
livremente as leis do mercado e que se limite ao máximo a intervenção
do Estado, o fim de processo podendo ser então, se não houver qualquer
obstáculo, o fim do Estado nação.
Reencontramos assim, a relação longamente analisada por Weil en-
tre sociedade e Estado, ao mesmo tempo que começa e se perfilar o que
poderia ser o seu ponto de vista sobre o assunto. É significativo que o
kantiano Weil (“kantiano pós-hegeliano”, segundo a fórmula já consa-
grada) se situe numa filiação que é, sem dúvida, a de Hegel, para quem

10. Cf. W. Sombart, Der moderne Kapitalismus. Leipzig, Duncker & Humblot, 1902.
L’apogée du capitalisme, trad. S. Jankélévitch, Paris, Payot, 1932.
11. Cf. F. Braudel, Civilisation matérielle et capitalisme. Paris, Colin, 1967. ID. La
dynamique du capitalisme. Paris, Payot, 1983.
12. E. Weil, Philosophie et réalité I. Capítulo XI, “Qu’est-ce qu’une percée en histoi-
re?, op. cit., 193-223.

40
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

só o Estado pensa, porque só no Estado a sociedade se organiza de ma-


neira racional, enquanto o mui hegeliano Marx está mais perto de Kant
e da sua ideia de uma “grande Sociedade das Nações” (Foedus Amphyc-
tionum) (Völkerbund), quer dizer, de uma força unida e da decisão legal
da vontade unificada”, da qual “todos os Estados, mesmo o menor, po-
deriam esperar sua segurança e seus direitos, não por sua própria força
ou por sua própria apreciação do direito”13. Marx, com efeito, opta pela
vitória da sociedade sobre o Estado e pelo advento de uma sociedade de
produtores que não conhecesse mais a violência e na qual o que resta
do Estado se destina somente à administração das coisas e não mais ao
governo dos homens14. Weil, numa clara alusão à tese de Marx sobre o
definhamento do Estado sustenta, ao contrário, que “não é querendo abo-
lir o Estado — desejo insensato —, mas levando-o à sua perfeição que
o homem se realizará como ser razoável na comunidade de uma moral
que, pensando-se, pretende ser razoável desde agora” (Fp 311 s.).
Ora, esta distinção entre sociedade civil e Estado a vemos concreta-
mente em dois lugares importantes do planeta, e é simbólico que nosso
colóquio reúna em um só ambiente, de uma forma tão amigável, pes-
soas que vivem na proximidade de um e de outro, do Antigo e do Novo
Mundo, ambos locais bem conhecidos, sendo Davos, templo capitalismo
ofensivo, e Porto Alegre, lugar consagrado da sua contestação.
O Fórum Econômico Mundial, em Davos, perto de Genebra, na Suíça,
criado em 1971 por Klaus Schwab, anualmente reúne dirigentes de empre-
sas e políticos proeminentes, sendo o padrão corporativo o de uma multi-
nacional com um volume de negócios de mais de cinco bilhões de dólares.
O Fórum foi gradualmente se transformado e é agora o clube planetário
dos que têm poder de decisão, que adquiriu um poder impressionante em
detrimento da regulação dos Estados, agindo assim, objetivamente falando,
no sentido do declínio do Estado-nação mencionado acima. É a sociedade

13. E. Kant, “Idée d’une histoire universelle au point de vue cosmopolitique”, pro-
position VII (1784), in La philosophie de l’histoire, Paris, Aubier, 1947, 70. Nós mantemos
aqui a tradução de A. Renaut in Kant aujourd’hui, Paris, Aubier, 1997, 465. Sobre a ques-
tão dos dois cosmopolitismos e sobre a diferença das interpretações entre G. Vlachos e
T. Ruyssen, cf. ibid., 467 ss.
14. Cf. E. Weil, “Politique; 1; La philosophie politique, § 5. La philosophie politique
moderne”, Encyclopaedia Universalis, XII, Paris, 1968, 229-230.

41
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

mundial contra o Estado, para dizer com poucas palavras, do anti-Hegel e,


no seu seguimento, do anti-Weil, mas, muito curiosamente, do pró Marx.
De fato, Davos está muito próximo do plano de Marx a que nos referimos,
no entanto, com a reserva, e ela é importante, de que se trata efetivamente
da sociedade mundial dos produtores, mas apenas dos mais ricos.
Como reação ao Fórum dos grandes senhores capitalistas, foi criado
em 2001, o Fórum Social Mundial, em Porto Alegre, no Brasil, que se reu-
niu em 2001, 2002, 2003 e 200515. Pretende ser uma alternativa social a
Davos, ilustrando assim, efetivamente, esse domínio eventual que men-
cionamos no início. Sua palavra de ordem básica é: “um outro mundo é
possível”, ou “o mundo não é uma mercadoria”. O Fórum visa abordar as
questões da sociedade civil no contexto da globalização, com o propósito,
para usar as palavras de Weil, de unir o justo e o e o eficaz na transforma-
ção do mundo. Não devemos confundir o antimundialismo e o alter-
mundialização. O primeiro recusa a globalização da economia, que é como
negar a lei da queda dos corpos e se jogar pela janela para mostrar que ela
não é válida. Ora, como já dissemos, a mundialização é um processo ir-
reversível. O segundo a aceita, mas recusa a lógica inflexível do capitalismo
internacional dominante. É por isso que o Fórum formulou uma carta
que repousa sobre três grandes princípios: a oposição à ordem neoliberal
da globalização atual; a abertura a todos os projetos alternativos; a ausên-
cia de partidos políticos e a participação de uma série de associações, como
as ONG’s que privilegiam a democracia participativa e se associam em
redes mundiais. É neste contexto que se deve compreender a constituição
já mencionada dos BRICS, isto é, das chamadas potências emergentes,
que se consideram mal representados numa ordem mundial baseada nos
acordos assinados em 22 de julho de 1944, em Bretton Woods, nos Estados
Unidos, que resultou no BM (Banco Mundial), no BIRD (Banco Interna-
cional para Reconstrução e Desenvolvimento) e no FMI (Fundo Mone-
tário Internacional). É por isso que os dirigentes dos BRICS, reunidos em
Fortaleza, em 15 e 16 de julho de 201416, decidiram criar um banco que

15. O Fórum se reúne todos os anos. Aconteceu em Dakar, em 2011 e em Tunis em


2013 e 2015. O de 2016 poderá acontecer em Montréal.
16. A presidente do Brasil, Dilma Rousseff, recebeu em Fortaleza os demais líderes,
Xi Jinping (China), Vladmir Poutin (Rússia), Maredra Modi (Índia) e Jacob Zuma (África

42
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

lhes permita libertar-se das exigências do FMI. Eles começaram a dese-


nhar o mapa de um mundo multipolar, tendo como principal objetivo de
construir um mundo político e econômico internacional que seja, e o Fó-
rum encontra assim uma formulação de Weil, “mais justo e mais razoá-
vel”. Enquanto, na direção oposta, a lógica do capitalismo é, para dizer bre-
vemente, a de Davos, como Hegel a entendeu, como Marx a tematizou e
como Weil a retomou depois deles, o aumento da desigualdade tanto den-
tro dos Estados como entre os países do Norte e os países do Sul.
Raciocinamos no que foi dito acima, por simplicidade e por falta de
tempo, como se a mundialização perseguisse um curso linear e ascenden-
te. Não ignoramos que se pôde sustentar a tese de uma visão cíclica, teses
muito esclarecedora, que poderia ser ilustrada a partir da atual crise global
e, especialmente, da crise da Europa. Pensamos mais particularmente na
teoria proposta pelo economista russo Nikolai Kondratiev (1892-1938),
em 1926, segundo a qual é necessário considerar os ciclos na longa du-
ração, ou seja, cerca de 50-60 anos, cada ciclo compreendendo três fases:
uma fase de expansão, quer dizer, de crescimento, de 20 anos, uma fase
de recessão, como uma espécie de crise da conjuntura econômica, de 10
anos, e, finalmente, uma fase de depressão de 20 anos, caracterizada por
uma ascensão ininterrupta do desemprego e o declínio na atividade das
empresas. Parcialmente de acordo com outros intérpretes neste ponto,
Kondratiev distingue, na época moderna, cinco ciclos: 1780-1830, com
a máquina a vapor; 1830-1880, com a estrada de ferro e o protagonismo
do aço; 1880-1930, com a eletricidade e a química; 1930-1970, com o

do Sul). No discurso de encerramento, ela qualificou como histórica a decisão de criar o


Banco dos BRICS e um fundo de reservas que represente, segundo ela, “uma contribui-
ção importante para a reconfiguração do governo econômico mundial”. Este banco, des-
tinado a financiar as grandes obras de infraestrutura, será domiciliado em Shangai, para
começar, um presidente indiano (a presidência é rotativa) e é dotado de um capital de
50 milhões de dólares, com uma força potencial de 100 milhões. E, em suma, uma forma
de FMI B, claramente considerado como um contrapeso ao Banco Mundial e ao FMI e
recebido como uma alternativa ao capitalismo selvagem e às instituições internacionais
atuais. Pode-se acrescentar que estas decisões de Fortaleza foram apresentadas em seguida
em Brasília pelos dirigentes dos BRICS aos chefes de Estados da América do Sul, os quais
lhe deram uma entusiasta acolhida. Admitido isto, somos de fato conscientes que, além
das grandes potências e dos países emergentes, há um grande número de países que são,
pode-se dizer, colocados “fora do jogo”.

43
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

automóvel e a petroquímica (que ele antecipou, pois morreu em 1938,


relegado ao gulag e em seguida fuzilado por sustentar a tese de que o ca-
pitalismo sempre retoma sua expansão depois de cada crise, o que não
agradou a Stalin); 1970 até o presente, com o desenvolvimento das técni-
cas da informação e da comunicação. Esta teoria é atraente, porque nos
permite pensar que a crise dos últimos anos poderia ser o sinal de que
passamos do fim do quinto ciclo e que talvez já nos introduzimos num
novo, o sexto, do qual começamos a identificar algumas marcas distinti-
vas: o papel decisivo sempre crescente da mundialização; o deslocando
do centro de gravidade mundial para a Ásia, que já representa 60% da
população mundial (o Banco Asiático de Desenvolvimento prevê que até
2050 a China ultrapassará os Estados Unidos e a Europa na produção eco-
nômica mundial); a evolução para uma mundialização verde. Esta teoria
foi organizada pelo economista austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950),
que lhe deu uma versão mais complexa, uma vez que, para ele, três ciclos
se sobrepõem: ciclos curtos chamados Kitchin (40 meses), ciclos médios,
chamados Juglar (entre 6 e 11 anos), todos no interior de um ciclo de
Kondratiev. Schumpeter, ao contrário de Kondratiev, anuncia o caráter
inevitável do colapso do capitalismo. Essas interpretações são certamente
de grande interesse e merecem uma acentuada atenção, pois elas nos dão,
em nosso presente imediato, luzes para compreender a crise que atraves-
samos. Mas, no contexto de nosso tema, podemos abstrair delas.
Os filósofos no passado distante sugeriram a ideia de uma sociedade
cosmopolita, e geralmente se evoca Sócrates, ou, mais seguramente, Di-
ógenes de Sinope, como o primeiro que se declarou cidadão do mundo
(kosmopolites)17. Mas foi o século XVIII que colocou de novo em primeiro
plano a noção de cosmopolitismo, reconhecidamente com o texto de Kant:
Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784), e
sua ideia de uma “unificação política total [da] espécie humana”18. As ul-
teriores reflexões sobre um governo mundial se situam nesta linha. Deve-

17. Diogène Laërce, Vie, doctrines et sentences des philosophes illustres. Livre 6, “Les
philosophes cyniques”, 14; “Quando se perguntava sobre sua terra natal, ele dizia: “eu sou
cidadão do mundo”. [Trad. R. Genaille]. Paris, Garnier-Flammarion, II, 30.
18. E. Kant, Idée… proposition IX, op. cit., 76. A. Renaut fez, da maneira mais se-
gura, o estado da questão, in op. cit. (nota 9), 456-491.

44
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

se pensar, com Ulrich Beck que o cosmopolitismo, com a mundialização


efetiva tal como acabamos de apresentar, deixou de ser, como em Kant,
uma simples ideia de futuro, isto é, que “deixou os castelos na Espanha
da filosofia para se instalar… na realidade”, e que ainda mais, “se tornou
a assinatura de uma nova época… na qual as fronteiras e as distinções
próprias dos Estados-nações desaparecem”?19 Ou a filosofia tem ainda,
agora que isso aconteceu, algo para nos trazer? É o que queremos exa-
minar, para concluir, à luz dos §§ 40 e 41 da Filosofia política, que tratam
não mais do Estado em particular e da questão da sua unidade e da sua
independência, mas das relações entre esses Estados particulares.
Ao final da apresentação de Jean-François Robinet sobre “L’Etat mon-
dial dans la Philosophie politique d’Eric Weil”, Joël Wilfert, abrindo a dis-
cussão, observa que “quando Weil fala sobre o Estado mundial, não diz
que seja um Estado, mas uma sociedade”, e acrescenta que ele é muito
parecido com a ideia de sociedade das nações em Kant, ao que J. F. Ro-
binet subscreve precisando que a ordem mundial deve ser uma federação
de povos, um Völkerbund não um Weltstaat, um Estado mundial20. Am-
bos estão certos. Ademais, Weil afirma que “o Estado mundial, sendo ape-
nas sociedade, não é fim em si mesmo” (Fp 301) e que essa “sociedade
mundial … não poderia ser verdadeiro Estado” (Fp 300). Seu ponto de
vista, parece-nos condensado em duas proposições fundamentais seguin-
tes: a sociedade moderna é “mundial por seu princípio e em princípio”
(Fp 274) e “não existe um Estado de Estados como existem Estados de
cidadãos” (Fp 276), o que significa que não pode haver Estado mundial.
No entanto, Weil emprega constantemente a expressão; ela aparece três
vezes somente nas páginas 304-305 da Filosofia política, de tal modo que,
formalmente falando, não deixa de surpreender: com efeito, duas vezes
a expressão é colocada entre aspas, uma vez não. As aspas se explicam na
medida em que são réplicas dos itálicos da página 293: Estado mundial
ali é claramente evidenciado como designando uma expressão usada na
linguagem corrente. Então, por que a falta de aspas na última vez que é
empregada, na página 305? Weil é tão ciente da dificuldade suscitada que

19. U. Beck, Qu’est-ce que le cosmopolitisme?, trad. A. Duthoo, Paris, Aubier, 2006, 11.
20. Cf. Discours, violence et langage: un socratisme d’Eric Weil, Le Cahier du Collège
international de Philosophie, n. 9-10. Paris, Osiris, 1990, 194-195.

45
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

tem o cuidado de especificar (Fp 293) que o termo é ao mesmo tempo


“apropriado”, e designa então a organização do trabalho social e o papel
da administração, como “extremamente perigoso”, se ele designa um Es-
tado que não conhece mais política externa pela simples razão de que
não haveria mais exterior. E esse “Estado mundial, se devemos usar esta
expressão” (Fp 294) — não se pode dizer melhor senão por falta de me-
lhor — isto é, um Estado à imagem dos Estados particulares, seria ine-
vitavelmente tirânico. No entanto, Weil já tinha escrito bem antes na
Filosofia política: “não há contradição formal na ideia de que um Estado
e, em última análise, um Estado único possa garantir a sobrevivência de
várias ou todas as comunidades históricas” (Fp 170, grifo nosso). Mas,
se o aceitarmos, como situar este Estado mundial no que aparece para
Weil como o problema do mundo moderno, ou seja, “a reconciliação das
morais históricas com uma organização mundial da luta contra a natu-
reza exterior”? (Fp 292). Detecta-se uma tensão que se mostra mais cla-
ramente na página 307 s.: “A glória do Estado histórico moderno é ter
chegado ao ponto em que o problema da comunidade livre e moral tor-
nou-se visível” — visível, isto é, não ainda concluído, o que equivale a
dizer que é “uma tarefa a concluir”. Temos, portanto, cronologicamente:
(1) o Estado; (2) a comunidade livre. Ora, a mesma página afirma: “O
Estado é a forma mais elevada, porque a forma consciente, da vida em
comum dos homens — o Estado a vir”. Então, sempre cronologicamente,
(1) a sociedade; (2) o Estado.
Existe claramente um problema aqui e nós propomos a seguinte
leitura21. Sobre a importante questão da relação entre a sociedade e o
Estado, o conjunto de posições possíveis se reduz a duas essenciais, que
se pode chamar, com Weil, de platônica ou aristotélica22. Ou se coloca o
Estado em cima e a sociedade a ele subordinada. Ou esta, entendida como
comunidade, é o mundo por vir desejado e o Estado, portanto, deve, fi-
nalmente, desaparecer. Brevemente, ou Hegel ou Marx. Poderíamos es-
crever também, para evocar dois pensadores contemporâneos, ou Hegel

21. Para esta problemática do fim da Filosofia política veja-se a análise de P. Canivez,
especialmente em Le politique et sa logique dans l’œuvre d’Eric Weil, Capítulos V (L’Etat)
e VI (La réalisation de la polis). Paris, Kimé, 1993, 173-267; ID. Eric Weil. Paris, Ellipses,
1998, 24-32; ID. Weil, “L’Etat et la démocratie”, Paris, Les Belles Lettres, 1999, 175-209.
22. Cf. E. Weil, Encyclopaedia Universalis, XIII, Paris, 1968, 230, 3º col.

46
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

ou Humboldt23. Cada tese tem sua coerência. É preciso escolher. Os par-


tidários de uma mostram que os da outra posição erram radicalmente, e
vice-versa. Não pode haver tensão neste caso, para nenhum dos dois lados,
tão seguros estão de si próprios. A tensão evocada acima nos §§ 40 e 41,
surge porque, parece-nos, Weil, de algum modo, mantém as duas teses,
portanto, as duas coerências; daí a sensação que o leitor às vezes pode
ter da predominância tanto de uma como da outra. Ele se coloca, e não
se pode ter dúvidas sobre isso, na linha de Hegel, para quem o Estado é
racional em si e para si, para o qual o mais alto dever do indivíduo é ser
membro do Estado, pois, para além da racionalidade do entendimento da
sociedade, ele é a razão encarnada. Isto não impede que Hegel seja tam-
bém o que viu que é o modo de produção capitalista em si mesmo que
cria o proletariado. Mas Weil é também sensível à crítica que fez a Hegel

23. W. von Humboldt pode ser considerado o ancestral do liberalismo no sentido


moderno do termo; totalmente oposto a Hegel. Para este, vimos, o dever do indivíduo é
o de ser membro do Estado. Humboldt, ao contrário, resume o dever nesta frase de seu
ensaio sobre o Estado, escrito e parcialmente publicado, em 1782, publicado na íntegra,
postumamente, em 1851: “O verdadeiro propósito do homem, aquele que prescreve não
a inclinação variável, mas a razão eterna e imutável, é a cultura (Bildung) na maior e me-
lhor proporção das suas forças como um todo”, Ideen zu einem Versuch die Grenzen der
Wirksamkeit des Staats zu bestimmen, Gesammelte Schriften, hrsg A. Leitzmann, Berlin,
B. Behr, 1903, 107. Werke, hrsg A. Flitner & K. Giel, Darmstadt, Wissenschaftliche Buch-
gesellschaft, 1969, I, 64. Essai sur les limites de l’action de l’Etat, trad. H. Chrétien, Paris,
Germer-Baillière, 1867, 13. Esta tradução foi recentemente reeditada com a revisão de K.
Horn, Paris, Les Belles Lettres, 2004, 27. Nós não mantivemos esta última tradução. No-
tamos que esta frase, foi colocada por John Stuart Mill como epígrafe de seu livro, forte-
mente influenciado pelo ensaio sobre o Estado, de Humboldt, On liberty, publicado em
1859. Em suma, para Hegel o Estado é tudo e o indivíduo só existe enquanto relacionado
a ele. Para Humboldt, o indivíduo é tudo e o Estado tem como único papel garantir as
fronteiras e assegurar a segurança interior. Ele coloca esta concepção em prática como
fundador da Universidade de Berlim, na qual opõe os dois pontos de vista através dos
projetos elaborados que ele busca, como perito, um totalitário, de Fichte, outro liberal, de
Schleiermacher. Ele escolhe o segundo, o que não o impediu de escolher Fichte, a quem
conheceu em Jena, em 1794, como primeiro reitor, em 1810. O paradoxo da história é
que Humboldt desempenha um papel significativo no aparelho de Estado na Prússia da
época. Tornou-se ministro, e foi demitido em 31 de dezembro de 1819, pelo rei Frederico
Guilherme III no período da questão da Constituição (o Rei se recusou a promulgar uma
constituição mesmo que tivesse prometido ao povo, em 1815). Lembre-se que em 1791,
Humboldt havia escrito um ensaio sobre o fato revolucionário Ideen über Staasverfassung
durch die neue französische Constituition veranlasst. Em última instância, a inspiração de
seu Ensaio sobre o Estado está muito próxima do espírito do Fórum de Davos.

47
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

aquele que é, deve-se repetir, o seu maior discípulo24. Se, com efeito, Marx
permanece fiel à análise hegeliana, se desvia dela num único ponto, mas
verdadeiramente decisivo, compreendendo que o Estado, neutro segun-
do Hegel, está efetivamente a serviço da classe capitalista e, consequen-
temente, se transforma em instrumento de exploração do proletariado,
isto é, da massa dos trabalhadores forçados a vender sua força de trabalho
nas condições do mercado e, ao fazê-lo, se transformar em mercadoria25.
Ora, Marx — lembramos que a Ação, na Lógica da filosofia, é a última
categoria concreta — defende o advento, depois de uma revolução que
pode ser pacífica, de uma sociedade mundial de produtores, que não é
mais que a versão marxiana do reino dos fins segundo Kant, enquanto
para Weil, “o ‘Estado mundial’ não será justamente o reino dos fins” (Fp
304, grifo de Weil). Sobre este ponto importante, somos obrigados a re-
conhecer que a história deu razão a Hegel. De fato, os sistemas políticos
que se estabeleceram no espírito do marxismo em nada figuraram um
enfraquecimento do Estado, antes o contrário.
Se olharmos o caminho percorrido, primeiro com a mundialização tal
como se mostra efetivamente, em seguida, com o Estado mundial tal como,
com a Filosofia política, se dá ao pensamento, podemos ter a sensação de
estarmos parados num impasse. Com efeito, designamos a mundializa-
ção efetiva como uma nova etapa do capitalismo — leitura, parece-nos,
geralmente admitida. Ora, ocorre que a palavra capitalismo está ausente
da Filosofia política, o que não deixa de surpreender à época do antago-
nismo entre países capitalistas e socialistas e dado que Weil a isso se refe-
re em vários artigos. O primeiro a atentar para essa ausência e a ter ten-
tado encontrar a significação segundo uma argumentação rigorosa, que
subscrevemos de bom grado, foi André Tosel em uma comunicação ao
colóquio de Pisa dedicado ao pensamento de Weil em novembro de 197926.

24. Cf. E. Weil, Hegel e o Estado, especialmente o Apêndice “Marx e a filosofia do


direito”, trad. C. Nougué, rev. téc. M. Perine, São Paulo, É Realizações, 2011, 123-135.
25. Cf. Werke, 4, op. cit., 468. Manifeste du Parti Communiste, op. cit., 35: “Os traba-
lhadores modernos, os proletariados, forçados a se venderem como peças, são mercadoria
como qualquer artigo do comércio, e, consequentemente, expostos, na mesma medida, a
todas as vicissitudes da concorrência e a todas as flutuações do mercado”.
26. Para o que segue, reporta-se à comunicação irretocável de A. Tosel, Action rai-
sonnable et science sociale dans la philosophie d’Eric Weil, Annali della Scuola Normale di

48
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

Ele explica a diferença de plano entre a categoria Ação na Lógica da filo-


sofia e o movimento que segue a Filosofia política. No primeiro caso, tra­
ta-se do surgimento da Ação, no segundo, de seu curso. O primeiro traz
a marca da influência de Marx, o segundo, a de Weber. Ora, esse mundo,
como este último mostrou, desencantou todos os sagrados tradicionais
para manter somente um, o trabalho social racionalmente organizado.
Esse mundo é, portanto, como indica Tosel retomando as palavras do
título do § 22 da Filosofia política, “votado a se mundializar em razão da
invariância do seu método de trabalho, calculadora, materialista,
mecanicista”27. A mundialização, portanto, foi claramente anunciada por
Weil, no prolongamento de Marx e Weber. Ocorre que Tosel emprega
neste contexto as mesmas palavras, ambas decisivas, com as quais come-
çamos a nossa intervenção, a saber, mundialização e capitalismo. Não
há, portanto, nenhum impasse. Como ele observa: “O nosso mundo —
que Weil nunca chama de capitalista […]”28. Ou ainda, “Eric Weil evita
cuidadosamente certas palavras, como capitalismo, modo de produção
capitalista, relações de produção. Não há nada nele sobre a dinâmica das
crises”29. Trata-se, portanto, do nosso mundo, já ingressado na mundia-
lização e que só podemos chamar de capitalista. O colapso dos países
socialistas e a desaceleração da economia de mercado da maioria dos
países já tinham optado anteriormente por uma economia dirigida sim-
plifica a situação no que diz respeito ao nosso problema. A ausência da
palavra na Filosofia política se explica porque, no plano em que se situ-
ava a análise, a distinção entre Estados capitalistas e Estados socialistas,
não só não era operacional, mas trazia o risco de introduzir confusões.
Com efeito, um país capitalista pode tranquilamente ser uma ditadura
e uma democracia popular, pouco democrática. Um Estado democráti-
co e um Estado ditatorial têm um ponto comum, é o de ser um Estado.

Pisa, serie III, vol. XI, 4, Pisa, 1981, 1157-1186. Mais recentemente, em 7 de julho de 2003, A.
Tosel proferiu uma conferência intitulada “Les philosophies de la mondialisation”, na qual
distingue na França quatro direções de pensamento, que apresenta, sobre a mundialização e
desenvolve, o que aqui nós confirmamos, que Marx é o maior pensador da globalização no
século XIX. Association “L’Université de tous les savoirs”, DVD, CERIMES, Vanves.
27. A. Tosel, op. cit., p, 1176.
28. Ibid.
29. A. Tosel, op. cit., 1184.

49
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

É este ponto comum que deve ser analisado em primeiro lugar. Interro-
gar-se-á, em seguida, sobre a forma de Estado mais razoável e, conse-
quentemente, mais apropriada para conduzir a uma mundialização
bem-sucedida, obedecendo, para falar como Kant, a um direito cosmo-
polita, que exige a instauração de uma legalidade internacional, com o
estabelecimento de tribunais internacionais (Fp 276 s.). Patrice Canivez
formulou com clareza o problema: “O decisivo é a maneira com que se
efetuará a mundialização, seja pela violência, seja por uma ação concer-
tada entre os Estados”.30 Acrescentamos que os fóruns mundiais que
mencionamos, se são efetivamente informais, não deixam de ser lugares
de diálogo no sentido entendido por Weil31.
Assim, reencontramos Davos e Porto Alegre. Qual seria a posição
Weil hoje? Temos uma indubitável aquisição: um Estado mundial seria
necessariamente despótico (esta é também a posição de Kant). É uma
hipótese a excluir absolutamente. Mas ambos os fóruns mundiais ci-
tados se colocam sob o patrocínio da razão, o que deve ser saudado. O
objetivo anunciado do primeiro é o de melhorar o estado do mundo.
Assim, Bill Gates, em 2008, procurou definir o que ele chama de Crea-
tive Capitalism, isto é, uma forma de capitalismo que tanto gera lucros
quanto busca superar a injustiça no mundo e usa as forças do mercado
para vir em socorro dos mais desprovidos. Mas, ainda assim, sempre se
reprovou a este Fórum o fato de justificar na prática a mundialização li-
beral, à qual se opõe o espírito de Porto Alegre. O participante típico do
Fórum de Davos é o empresário, o de Porto Alegre é o cidadão. Este úl-
timo, aliás, se define a como a reunião de organizações cívicas do mundo
para a altermundialização, isto é, para uma mundialização controlada e
solidária. A tarefa é designada: o estabelecimento e, uma vez estabeleci-
das, a defesa de organizações internacionais suscetíveis de assegurar um
“planejamento mundial, um governo mundial, a liberação das naciona-
lidades (como organizações culturais autônomas)”, únicas organizações
capazes de garantir a paz e, portanto, se não de suprimir, de pelo menos
canalizar a violência. Entende-se que esta garantia só pode ser feita por

30. P. Canivez, Le politique dans l’œuvre d’Eric Weil, op. cit., 236.
31. Cf. E. Weil, Philosophie et réalité, I, Capítulo XV, “La vertu du dialogue”, op. cit.,
279-295.

50
2. Sociedade mundial e estado mundial segundo Eric Weil

um acordo entre os Estados, que se trata, portanto, não de suprimir, mas


“de aperfeiçoar e completar”32.
Mede-se assim em que estes dois fóruns, compreendidos aqui como
os dois grandes projetos que atualmente se traduzem com força inques-
tionável na efetividade, se situam um em relação ao outro remetidos ao
nosso tema, a relação entre a sociedade e o Estado no contexto do capi-
talismo mundializado, que constitui o nosso presente. O Fórum de Da-
vos, como já dissemos, trabalha, se é ou não seu objetivo pouco importa,
na direção do enfraquecimento do Estado, portanto, dos Estados parti-
culares. Parafraseando uma fórmula célebre de Marx e Engels, diremos
que o capital não tem pátria. E isto é precisamente a mundialização. O
Fórum Social Mundial compreendeu, e este não é o menor dos parado-
xos, ele que tem a ambição de exprimir as aspirações da sociedade civil,
que só poderia respondera a elas por um acordo entre Estados, o que a
reunião dos BRICS em Fortaleza começou a tornar realidade efetiva em
julho de 2014. Assim, vemos uma inversão no mínimo surpreendente:
a sociedade civil (Porto Alegre, para resumir num nome) compreende
que ela só pode alcançar o que visa por um acordo entre Estados, en-
quanto, inversamente, o Fórum Econômico Mundial age, e sua ação é
de grande peso, no sentido, se não do desaparecimento, pelo menos do
enfraquecimento do Estado-nação, que é exatamente o oposto da análise
da Filosofia política. Claro, estamos conscientes de uma ausência. Nossa
análise se desenvolveu no contexto da distinção entre grandes potências
e potências emergentes. Não ignoramos, é claro, que fora destes países
há um grande número de Estados, mas decidimos tratar aqui apenas da
história que se faz, da história mundial.
A evocação destes dois fóruns mundiais pareceu-nos instrutiva, por-
que eles encantam perfeitamente as duas principais formas de conceber a
relação entre sociedade e Estado. Mas não basta distingui-los, colocá-los
em oposição, podemos fazer mais um passo e tentar ligá-los e articulá-los
um em relação ao outro. Propomos considerá-los como a tradução efetiva
dos dois modos da razão, para usar a distinção kantiana entre Verstand e
Vernunft. Diremos então que o Fórum Econômico Mundial (Davos) é da

32. E. Weil, Essais et conférences II, Capítulo V, Le sens du mot Liberté. Paris, Vrin,
1991, 111.

51
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ordem da Verstand, racionalidade calculista, essencialmente econômica,


do entendimento técnico-científico, de busca se não exclusiva ao menos
essencial do lucro, enquanto o Fórum Social Mundial (Porto Alegre) olha
na direção da Vernunft, da razão, da ética, para dizer com toda simpli-
cidade, do humano autêntico, do Estado verdadeiro, do “Estado futuro”
(Fp 309). Pensamos, e esta é a nossa conclusão, que o pensamento de Weil
se situa próximo desta última.

Tradução do francês de Judikael Castelo Branco


Revisão técnica de Marcelo Perine

52
3. O sentido da justiça.
Eric Weil e a mundialização

Corneliu Bilba1

Introdução

A Filosofia política de Eric Weil constitui uma das mais originais re-
construções filosóficas da política moderna. Weil, que considera a
política como ciência filosófica da ação razoável e universal, pensa que
esta deve visar “a totalidade do gênero humano”2. Segundo esta defini-
ção, a política não se reduz somente à realização dos interesses legítimos
de uma comunidade/sociedade; esses interesses podem estar em opo-
sição com os interesses de outras comunidades/sociedades, interesses
cujas morais históricas são fonte de legitimidade. Consequentemente,
a política deve considerar a realização dos interesses legítimos da hu-
manidade inteira. Ela deve perseguir o objetivo da paz perpétua — o
fim da violência. Deste modo, Patrice Canivez observou:
a ação deve eliminar a violência social e política dentro do Estado, a da guer-
ra e dos conflitos internacionais no exterior; ela visa assim à unificação do
gênero humano, vale dizer, a supressão dos conflitos que dividem a huma-
nidade em grupos antagônicos3.

1. Universidade Al. I. Cuza de Iasi, Romênia.


2. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola, 2011, 18.
3. P. Canivez, Weil, Paris, Les Belles Lettres, 1999, 130.

53
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Não é surpreendente que Weil, filósofo do universal concreto (como


Hegel), pense a ação política como esforço de realizar a moral universal
mesmo preservando o que, na moral concreta, não contradiz o universal.
Isto não constitui um paradoxo, dado que a preservação da comunidade
— que é, para os indivíduos, fonte de sentido e de comunhão — exige
que se viva em paz com as outras comunidades e que se reconheça uni-
versalmente a pessoa humana, segundo os mandamentos da lei moral
universal. Dizer, como Weil, que a política é essencialmente histórica4, é
dizer que ela é o desenvolvimento das comunidades históricas rumo ao
reconhecimento universal — a paz perpétua — sem que estas comuni-
dades sejam dissolvidas.
Uma das consequências teóricas desta visão seria que, “no plano do
universal concreto da história”5, a prática política supõe a coexistência da
razão do Estado e do indivíduo universal, portanto, do realismo e do libe-
ralismo. Esta coexistência é expressa no princípio da unidade da política
interna e da política externa. O contrário deste princípio, se se admite, dirá
que a sociedade poderia realizar a paz interior segundo o método liberal,
porque a produção de bens, as mudanças comerciais e a comunicação do
sentimento de amizade cívica são as atividades nas quais os indivíduos
encontram sua melhor satisfação, embora, no plano internacional, seja
a força e a razão do Estado que prevaleçam. Assim, pode haver uma ar-
gumentação na qual, partindo da própria ideia liberal, da crença de que
as leis do comércio são universais e a liberdade de mercado constitui o
princípio fundamental sobre o qual repousam estas leis, chega-se à con-
clusão de que se pode fazer uso da força a fim de se assegurar que esse
mercado permaneça livre! A lógica hegemônica não vê toda a verdade,
mas somente uma parte, a que lhe convém. Em nossos dias, a astúcia da
razão quis que o Estado mais poderoso do mundo, logo o mais realista,
fosse o Estado da sociedade mais liberal. Para os que compreenderam
(como Weil, como Hegel) que a liberdade dos homens foi sempre a fonte
do poder dos Estados — do mundo grego até a hegemonia americana —
isso constitui um paradoxo apenas na aparência. A unidade da política
interna e da política externa de que fala Weil, não é o ato da vontade dos

4. E. Weil, Filosofia política, 20.


5. Ibid., 24.

54
3. O sentido da justiça

homens políticos, mas, essencialmente, a expressão típica da racionalidade


moderna. A análise de Weil da sociedade moderna me parece, em alguns
pontos, decisiva para os debates atuais sobre a mundialização, sobre os
dois aspectos desta problemática: de um lado, a questão da guerra e da
paz (que diz respeito ao direito internacional, mas que concerne direta-
mente à segurança humana, a dinâmica das sociedades e os direitos hu-
manos); de outro lado, a questão da justiça e da injustiça nos níveis das
sociedades particulares e no nível global.

Eric Weil e a tendência da história mundial

Na última parte de sua Filosofia política, Weil elabora o conceito de uma


sociedade mundial que seria a realização, no plano político, de uma orga-
nização que corresponderia não apenas ao estado da organização racional
do trabalho (da luta com a natureza, como fala Weil), mas igualmente ao
reconhecimento de todo ser humano como humano: o fim da violência.
Weil foi conduzido à reflexão sobre a sociedade mundial não apenas
pelo fato de que se situa, no plano filosófico, entre Hegel e Kant6, um pen-
sador da moral universal e da paz perpétua, portanto, liberal, o outro,
pensador do universal concreto e do Estado, logo realista, mas também
o fato de que teve de confrontar os conceitos filosóficos com realidades
mais recentes: as guerras mundiais, o nazismo, a técnica, a criação de or-
ganizações internacionais, a construção europeia. Estes acontecimentos
deram ao filósofo do político a ocasião de reconsiderar a antiga questão
do fim da história e de pensar a política internacional ao mesmo tempo
com o idealismo moral de Kant e o realismo político de Hegel. Este em-
preendimento paradoxal, que “não é o menor dos paradoxos weilianos”7,
corresponde, contudo, ao estado da arte em matéria de política interna-
cional depois da Segunda Guerra Mundial8.

6. Para um parecer competente, ver G. Kirscer, Figures de la violence et de la moder-


nité. Essais sur la philosophie d’Eric Weil, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1992. “Este
laço entre Kant e Hegel é certamente um dos laços essenciais que constituem o sistema
weiliano da filosofia”. (Kischer, op. cit., 255).
7. G. Kirscher, op. cit., 255.
8. Logo após a Segunda Guerra Mundial, os teóricos da política internacional tiveram
de pensar um paradigma das relações internacionais que pudesse responder à questão de-

55
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Quando Weil elaborava sua filosofia política, havia sinais que anun-
ciavam a realização de uma tendência na vida internacional. A nova or-
dem mundial se mostrava na fundação de organizações internacionais
(a ONU, a OTAN, o OECE, o UEO, o Conselho da Europa, a CECA) que
foram designadas para assegurar a paz e a segurança em plena guerra fria.
A fórmula a paz e a segurança, seguidamente empregada na linguagem da
diplomacia internacional, é sustentada pela conjunção de duas lógicas, a
da sociedade e a do Estado. A paz é o desejo da sociedade, dos indivíduos;
a segurança é o objetivo dos Estados9. Quando se fala de paz e de seguran-
ça, depois da Segunda Guerra Mundial, trata-se da sociedade, do Estado
e de suas relações recíprocas. Não é “a sociedade contra o Estado”: é, ao
mesmo tempo, a sociedade e o Estado; no mundo ocidental, cada um dos
dois tem sua própria palavra de ordem.
O início da institucionalização da vida internacional10 dá a Eric Weil,
filósofo pós-kantiano e pós-hegeliano ao mesmo tempo, a esperança de
que se chegue, talvez, “a um estado de coisas em que […] não haja mais
lugar para um governo”11. À época, foi mais em escala europeia que mun-
dial que se mostraram, com maior clareza, o confronto e a conjunção das
duas lógicas, a da sociedade e a do Estado. De um lado, a Europa, depois
da guerra vê como se instaura sobre o continente a hegemonia americana.
A criação da OTAN no plano militar e a ajuda para o desenvolvimento no
plano econômico e social criaram claramente uma dependência dos paí-
ses europeus em relação aos Estados Unidos, e esta constituía um desafio

licada de como pensar a hegemonia mundial de uma democracia liberal; a resposta foi que
a guerra feita pela democracia é uma espécie de cruzada. Cf. V. M. Walzer. Just and Unjust
Wars: A Moral Argument with Historical Illustrations, New York, Basic Books, 1977, 110.
9. A palavra “segurança” é tomada aqui no sentido estrito das teorias clássicas das
relações internacionais, que compreendem mais o seu caráter militar que econômico, polí-
tico, social ou ambiental tratados por B. Buzan, People, States, Fear: The National Security
Problem in International Relations, Brighton, Wheatsheaf Books, 1983, 75-83. A aborda-
gem de Buzan constitui um “discurso alternativo” sobre a segurança representando uma
“transformação do indivíduo em objeto de referência, ao mesmo tempo, do desenvolvi-
mento e da segurança”. B. Stefanachi, “Human Security: A Normative Perspective”, Meta:
Research in Hermeneutics, Phenomenology and Practical Philosophy, III: 2 (2011) 405.
10. Cf. R. O. Keohane, “Institutional Theory and the Realist Challenge after the Cold
War”, in Baldwin, D. A. (ed.), Neorealism and Neoliberalism: The Contemporary Debate,
New York, Columbia University Press, 1993, 269-300.
11. E. Weil, Filosofia política, 238.

56
3. O sentido da justiça

para a soberania (sobretudo na França). De outro lado, a reconstrução da


Europa permitiu à economia americana esgotar os estoques e desbloquear
a produção através da criação de novos mercados. O desenvolvimento da
Europa permite à América se desenvolver: é o New Deal em escala mun-
dial. Este desenvolvimento, que se origina mais de uma necessidade social
e de um mecanismo que de uma vontade política, constitui o verdadeiro
motor da globalização; a política de Estado de um país liberal apenas es-
trutura as ações e as tendências que decorrem desse mecanismo.
A tendência em questão já se mostrava no começo da construção
europeia. A criação de uma comunidade europeia (pelo tratado de Paris,
de 1951) e a preparação de outras comunidades12 procede também dessa
lógica. Havia na época o debate entre os defensores do supranaciona-
lismo, que eram partidários e executores da construção das instituições
supranacionais conforme o método funcionalista (como Jean Monnet,
Robert Schumann e os outros pais fundadores da Europa dos seis) e os
defensores do confederialismo e do método intergovernamental (como
Charles de Gaulle e os gaullistas). De um lado, tratava-se de responder
às necessidades de ordem social e econômica e de construir uma política
“sem coração e alma”13, segundo a visão tecnocrática; de outro, tratava-
se de encontrar soluções aos problemas de ordem militar e estratégica,
em respeito à soberania nacional, segundo a prudência realista. É difícil
perceber hoje (a menos que se faça uma pesquisa arqueológica) a influên-
cia deste contexto sobre a filosofia política de Weil. Mas pode-se fazer o
caminho inverso, mostrando como os eventos desta época foram esclare-
cidos e justificados por essa filosofia. Assim, pode-se dar como exemplo a
política europeia do General de Gaulle que, depois de ter recusado a “sa-
lada mista de carvão e aço”, decidiu participar no mercado comum. É um

12. Os dois tratados de Roma instituem a CEE e a Euratom não serão assinados antes
de 1957, portanto, depois da aparição da Filosofia política de Weil. Mas o espírito do supra-
nacional reinava já na Europa no início dos anos 50: depois do Tratado de Paris instituir
a CECA, houve a tentativa de fundar uma Comunidade Europeia de Defesa, por um se-
gundo tratado de Paris (1952). Este projeto teve de ser abandonado em razão da não ra-
tificação do tratado pela França.
13. Com esta expressão, Charles de Gaulle designa a política de segurança comum
que foi proposta pelos monedistas logo após a guerra da Coreia, sob o nome de Comu-
nidade Europeia de Defesa. O projeto ratificado por outros países da Europa teve de ser
abandonado devido à oposição gaullista na Assembleia Nacional.

57
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

bom exemplo de compromisso político que encontra perfeitamente sua


expressão na ideia de Weil de que os Estados vão participar da sociedade
mundial para conservar suas comunidades.
Enfim, a mesma tendência se mostrava também no processo de des-
colonização e da formação de novos Estados no Terceiro Mundo. Esses
Estados deveriam cumprir a tarefa de educar seus cidadãos, organizar as
sociedades particulares e — segundo a expressão de Weil — “julgar suas
morais viventes” em vista de sua harmonização com a sociedade moderna.
A competição entre a URSS e os EUA representava um fator de aceleração
e de modernização, do reconhecimento dos Direitos Humanos e da ra-
cionalização da sociedade. É talvez ocioso dizer que o regime comunista
representou um fator de progresso. Contudo, isto não é falso, se se com-
preende, com Weil, que toda forma de organização da violência acaba por
impor de maneira inconsciente a racionalidade. No plano mundial, a cor-
rida para a modernização das sociedades do Terceiro Mundo não foi feita
sem a presença do discurso revolucionário que constitui, onde a Revolução
pôde acontecer, o melhor exemplo de racionalização da violência. Embora
tenha avido competição entre as diferentes interpretações da Revolução,
estas interpretações tinham em comum o mito e o método da Revolução
Francesa14. Trata-se da crença de que a sociedade pode ser transformada
pela ação, esta transformação com um sentido único: o progresso da hu-
manidade; a realização desta missão exige a violência criadora. O fato que
tenha havido um Estado cuja política internacional era exportar a ideolo-
gia revolucionária e organizar a violência no Terceiro Mundo só poderia
amplificar a tendência mundializante da história mundial.
Quando falamos de tendência na história mundial, não compreende-
mos uma especulação sobre o futuro partindo da descrição de certos fatos
presentes. A especulação apenas constrói um universo de possibilidades
a partir do caráter irredutível dos fatos que têm lugar sob nossos olhos. A
tendência é o resultado de uma análise capaz de mostrar que os fatos são
insatisfatórios, que lhes falta algo, que eles não são separados dos valores.
No limite, a tendência poderia não se realizar. É precisamente nessa ótica

14. Para uma análise da importância da Revolução Francesa, de seu mito e de seu mé-
todo para o processo de modernização do terceiro Mundo, cf. J. A. Goldstone, Révolutions
dans l’histoire et histoire de la révolution, Revue française de sociologie, 30 (1989) 405-429.

58
3. O sentido da justiça

que Weil exprime seu temor de que a humanidade poderia retornar à vio-
lência mais selvagem. Ou ainda, quando ele fala da construção das orga-
nizações mundiais, diz que esta construção é imperfeita, porque foi obra
de Estados imperfeitos. Segundo Weil, não é a mão invisível que realiza
o fim da história: os fatos são imperfeitos, mas perfectíveis, e a tendência
não se realizará sem a ação consciente e preocupada em não a deixar fra-
cassar. É por esta razão que Weil pensa que o nascimento dos

tribunais internacionais e organizações […] no plano supranacional [não


são mais que] simples meios postos à disposição de governos soberanos
(…) basta examinar as constituições desses organismos e tribunais para
constatar que neles tudo está previsto em vista de manter e proteger o que
[todo governo] considera sua vantagem (…) só os impotentes renunciam
verdadeiramente ao argumento da força. Todavia — acrescenta Weil — o
valor dessas instituições é notável15.

Mas em que consiste este valor? A resposta de Weil é inequívoca: no


fato que eles constituem um quadro para a discussão, portanto podem
“educar à discussão pela discussão”. Esta fórmula de Weil decorre, ao
mesmo tempo, do realismo e do idealismo, porque ela permite pensar a
ação política como realização de certos valores no plano do real, a partir
do real. Para nós, leitores da filosofia política de Weil, mas também pes-
soas apaixonadas, como ele, pela compreensão de nosso mundo — co-
loca-se hoje a questão: como ler sua filosofia das relações internacionais
60 anos depois da declaração de Schuman — ato político que pôs fim à
rivalidade europeia que, desde a Revolução Francesa, não cessou de pôr
em perigo a paz do mundo? Durante este período, viu-se a guerra fria, o
ano de 1968, a guerra do Vietnã, a exploração do espaço, a queda do co-
munismo, a hegemonia americana, a construção europeia, a emergência
da China e o terrorismo internacional. A história mundial foi, contudo,
marcada pela aceleração de um fenômeno mais profundo, mais vasto e
mais complexo em relação ao qual os grandes acontecimentos são apenas
efeitos superficiais. Trata-se do fenômeno da globalização. Ler a filosofia
política de Weil hoje é confrontá-la então com a evolução da mundializa-
ção. Parece-me que Weil pensa o mundo do pós-guerra da maneira que

15. E. Weil, Filosofia política, 276 s.

59
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Hegel pensava a história mundial depois da batalha de Jena; há, contudo,


uma diferença essencial ligada ao fato de que entrementes o mal radical
— o totalitarismo — golpeou a consciência dos homens.
Mas compreender uma filosofia à luz dos fatos não é mais compreen-
dê-la como filosofia — toda filosofia terminaria por ser vencida nesse pla-
no, mesmo que fosse verdadeira. A compreensão deveria antes ir noutro
sentido: compreender o mundo à luz da filosofia, a fim de encontrar na
e pela reflexão um princípio para a ação. É assim que devemos nos voltar
para o fenômeno da globalização.

A mundialização: entre realismo e idealismo

Embora a globalização constitua um objeto de discussão recente, o fe-


nômeno começou há muito tempo como mundialização ou a formação de
um sistema mundial que se identifica com o capitalismo. Os historiadores
da longa duração do sistema mundial (como Immanuel Wallerstein) ou do
sistema internacional (como George Modelski) evidenciaram a conexão
entre um fenômeno econômico (o desenvolvimento do mercado mundial)
e um fenômeno político (a competição entre os Estados pelo controle do
mercado). O que se entende hoje pela dominação ocidental é um fenô-
meno histórico de longa duração que inclui, de um lado, a criação de um
sistema mundial de produção e de troca e, de outro, a hegemonia mundial
sucessiva de alguns Estados ocidentais como consequência de verdadeiras
guerras mundiais com seus competidores, sempre ocidentais. As guerras
mundializaram o mundo; ao final de cada guerra, o vencedor tinha esta-
belecido as regras do mercado e da competição pela fundação de certas
instituições. Por exemplo, o direito dos mares representou a contribuição
dos holandeses à regulamentação da vida internacional e do comércio
mundial, enquanto o equilíbrio dos poderes foi invenção dos britânicos.
Da análise histórica do sistema internacional pode-se extrair alguns pon-
tos: (a) a mundialização não é nova16; (b) ela sempre teve como motor a
organização do trabalho em escala mundial (a “divisão mundial do tra-

16. Como diz Weil: “a unificação começou há muito tempo”. Filosofia política, 298.

60
3. O sentido da justiça

balho”); (c) o sistema de troca permaneceu único desde 1500; (d) sempre
houve o detentor da hegemonia mundial; (e) sempre houve contestações
dessa hegemonia; (f) a luta teve constantemente como efeitos o desen-
volvimento, o progresso e a injustiça, de um lado, e a institucionalização
crescente da vida internacional, de outro.
Mas a característica mais notável da última fase da globalização foi o
fato de que ocorreu um discurso e que esse discurso teve alcance univer-
sal. A presença desse discurso — pode-se chama-lo ideologia se se quiser
— está ligado ao fato de que a exploração do liberalismo no mundo não
podia se fazer sem a mundialização das instituições liberais, portanto, sem
alguma preocupação pela legitimidade. Por essa razão, pode-se dizer, como
Tocqueville, que a democracia é irresistível17. Consequentemente, a insti-
tucionalização da vida internacional depois da Segunda Guerra Mundial
pode ser vista como o resultado do esforço de democratizar as relações
internacionais por uma preocupação cada vez maior pela legitimidade.
Essa legitimidade é dada, de um lado, pelo paradigma legalista, pela in-
venção de uma espécie de direito positivo internacional e, por outro lado,
por uma discussão sobre os direitos naturais dos homens. Essa discussão
ainda não está completa, mas nem por isso deixa de ser discussão.
É sobre este último ponto que o discurso da globalização notadamente
insistiu, praticando a intrusão da visão desenvolvimentista no discurso
dos direitos humanos. Certos autores pensam que a ideologia desenvol-
vimentista foi igualmente praticada pelos adversários do liberalismo, na
sua versão da modernização e na sua interpretação dos direitos do ho-
mem18. Depois de 20 anos da queda do muro de Berlim, haveria razões
para crer, parece, que o comunismo apenas acelerou o processo da trans-

17. Esta ideia é um lugar comum na De la démocratie en Amérique, mas parece que é
no “Avertissement de la dixième édition” que Tocqueville lhe dá a expressão mais notável:
“Este livro — diz ele — foi escrito há quinze anos, com a preocupação constante de um só
pensamento: o evento próximo, irresistível, universal da Democracia no mundo”. Cf. A. de
Tocqueville, De la démocratie en Amérique, Tomo I, Paris, Institut Coppet, 2012, 11.
18. Segundo Immanuel Wallerstein, a política mundial liberal dos Estados Unidos
teve como resposta da parte dos bolcheviques uma estratégia militar similar: na sua polí-
tica internacional de contato direto com países subdesenvolvidos, eles utilizaram “o con-
ceito de desenvolvimento prometido pelos Estados Unidos”, o que os transformou em
“asa esquerda do liberalismo global”. Cf. I. Wallerstein, “Restructuration capitaliste et
le système-monde”, Agone, 16 (1996) 219.

61
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

formação dos agricultores das regiões pobres em consumidores, logo, em


alvos potenciais do mercado liberal19. Está aí outra razão para dizer, como
Immanuel Wallerstein, que o sistema mundial moderno é único e uni-
tário ou, consoante a expressão de Weil, “importa pouco que o trabalho
social de uma comunidade moderna esteja organizado de modo ‘liberal’
ou ‘dirigista’”20. Weil não hesitava em indicar — já em 1956! — que “se
a organização do trabalho é una somente em princípio, é de fato que a
técnica desse trabalho a mesma em toda parte”21. O colapso da economia
dirigista ou a sua reorganização segundo os princípios do mercado capi-
talista, a hegemonia de um “Império” desterritorializado assim como e
da existência de “regimes” que são os defensores de um discurso global
mostram que a globalização — que é essencialmente um fenômeno eco-
nômico — não pode ser pensada na ausência de uma política.
Essa impressão é mais viva nas regiões do mundo onde se acolheu o
discurso da globalização como uma promessa. Esta promessa, ao que pa-
rece, não pôde ser cumprida22, o que teve como efeitos descontentamen-
tos, reivindicações e as lutas assim como justificações e reformulações. À
luz dessas lutas pelo reconhecimento se tornou evidente que se impõe a
reorganização do mercado e a criação de instituições mundiais pela jus-
tiça. O mercado livre (supomos que seja livre) poderia muito bem ser a
melhor forma de produção de riquezas, mas enquanto estas riquezas não
satisfazem ao maior número possível, a manutenção dessa ordem supõe
certo grau de violência organizada. Isto quer dizer que o mercado livre
produz riquezas especialmente porque ele não é, de fato, livre. Enquanto
a “violência desempenha um papel de primeiro plano na vida política dos
Estados existentes”23, o mundo global e as relações internacionais serão
impregnadas dessa violência. Isto nos leva diretamente à problemática
do realismo e do idealismo nas relações internacionais, porque a ficção
liberal do mercado livre e os ideais democráticos serviram perfeitamente
de instrumento para a política realista.

19. Cf. J. E. Stiglitz, Making Globalization Work, New York, W. W. Norton and
Company, 2006.
20. E. Weil, Filosofia política, 94.
21. CF. Stiglitz, Making Globalization Work, 25-60.
22. Ibid.
23. E. Weil, Filosofia política, 248.

62
3. O sentido da justiça

A superação da impossibilidade à qual conduz a disputa entre realis-


mo e idealismo precisa de certo número de suposições, de crenças ou de
valores que não podem surgir do unilateralismo que alimenta essas duas
visões do mundo. Seria preciso encontrar um ponto de vista que permi-
tisse recuperar tudo o que há de positivo nas duas abordagens, mesmo
mostrando as limitações que as tornam insatisfatórias no plano da ação.
Para isso, seria preciso mostrar quais são suas condições de possibilidade e
apreender, por um ato de compreensão, o tipo de atitude que se encontra
no centro de seus procedimentos. É por esse esquema operatório que a
reflexão de Eric Weil sobre a ação política pode entrar no campo das pre-
ocupações sobre a globalização. Com efeito, Weil propôs uma abordagem
das relações internacionais atenta, ao mesmo tempo, à racionalidade da
sociedade moderna da qual decorre do liberalismo e à inserção desta ra-
cionalidade no jogo de forças históricas do qual procede o realismo.

A utopia realista de Weil

Segundo Weil, a oposição fundamental entre o racional e o histórico


contém vários pares conceituais que dão uma descrição do caráter con-
flitivo da ação política moderna:

o conflito entre justiça e eficácia se apresenta sob inumeráveis formas: ordem


contra liberdade, realismo contra idealismo, razão de Estado contra moral,
rendimento social contra igualdade de condições, interesse contra fraternidade
etc. […] os dois membros daquelas dicotomias, em vez de serem alternati-
vos, só se realizam juntos, […] a justiça não é nada sem a eficácia e a eficácia
nada sem a justiça24.

No que concerne a este ponto, a originalidade da abordagem de Weil


consiste na maneira em que explica como a racionalidade da sociedade
moderna que é “calculista, materialista e mecanicista” se transmite ao Es-
tado nascido das relações históricas de forças, da violência. A fim de com-
preender a explicação que dá Weil a esse percurso, é preciso compreender
primeiro os diferentes conceitos da razão e da racionalidade com os quais

24. Ibid., 223.

63
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ele trabalha. Como os grandes filósofos da tradição alemã, Weil distingue


entre razão calculadora e razão prática, entre racional e razoável. Se o
primeiro tipo de razão responde às preocupações da eficácia (chamada
hoje de racionalidade instrumental), o segundo responde às exigências
da justiça conforme dois eixos: um formal, outro histórico. A racionali-
dade que decorre do cálculo é a de que fala Hobbes no início do Leviatã
— é uma faculdade natural do animal humano que todo homem possui
mesmo no estado de natureza onde não há nem lei, nem moral; nem
bem, nem mal; nem justiça, nem injustiça. É por isso que esse tipo de
racionalidade será chamado, por Kant e Hegel, racionalidade do enten-
dimento — o puro cálculo não procede da moral. Ao contrário, a moral
decorre da razão prática e compreende os dois aspectos do razoável: o
aspecto formal representado pelo imperativo categórico kantiano, do
qual decorrem os princípios da igualdade, da liberdade e da indepen-
dência das pessoas humanas, e o aspecto concreto e histórico represen-
tado pelos diferentes sistemas de morais — as morais vivas das comuni-
dades históricas. Se a racionalidade do cálculo é responsável pela forma-
ção de um mecanismo social em vista da luta contra a natureza, são os
fatores históricos que dão a cada sociedade/comunidade sua forma de
organização — a saber, o Estado e sua moral viva. Mas como fora do
Estado, dos Estados, não há nem lei, nem moral, os Estados históricos
estão em estado de natureza, portanto, em luta permanente uns contra
os outros — é o paradigma de Hobbes, o império da escolha racional. A
questão que se põe nesse momento seria, definitivamente, a de Kant da
Paz perpétua: como dar conta da possibilidade do razoável nos negócios
internacionais? A questão enquanto tal é um tanto abrupta, embora le-
gítima (como para Kant). Em Weil, dois tipos de consideração devem ser
feitas aqui. De um lado, não se trata de passar de um sentido da Razão
ao outro, mas de fazer que a razão instrumental coexista com a razão
prática25. Como Weil diz, seria um erro “perigoso” querer fazer uma “es-
colha entre sociedade e Estado, entre o cálculo e a moral”26. De outro

25. Isto vale também para Kant, onde é necessário que o direito internacional co-
exista com o direito cosmopolita — porque o direito cosmopolita só é formulado de
maneira negativa.
26. E. Weil, Filosofia política, 296.

64
3. O sentido da justiça

lado, o que torna possível sua coexistência é o fato de que sua relação se
diversifica em função dos diferentes níveis nos quais ocorre a ação. Em
outras palavras, o conceito de razão em Weil não se reduz à distinção
entre o racional (a eficácia) e o razoável (o justo), que constituem ape-
nas os dois polos entre os quais toma lugar toda uma diversidade de
formas da razão — e aqui não se considera a categoria da Ação! Pode-
se tomar como fio condutor essa observação de Patrice Canivez: “na
Filosofia política, Weil percorre sucessivamente os planos da moral, da
sociedade e dos Estados modernos. Sobre cada um desses planos, as
questões da justiça, da educação, da lei se põem de maneira específica,
em função de certa forma de discurso e de um regime de argumentação
que lhe é próprio”27. O objetivo de Weil consiste aqui em mostrar como
se passa de um regime de racionalidade a outro: se na Lógica da filosofia
há um movimento entre as diferentes atitudes e categorias da filosofia,
na Filosofia política há um movimento entre os diferentes níveis da única
categoria da ação, tendo como fio condutor a relação entre o justo e o
eficaz28. Assim, no que concerne à Modernidade, pode-se seguir este
movimento pela análise do processo de racionalização e de organização
da vida dos Estados. Este processo segue de perto o movimento que teve
lugar no plano da sociedade. No interior de cada Estado houve — e
ainda há — uma luta permanente pelo reconhecimento entre os grupos.
Essas lutas, por vezes, levaram a guerras entre Estados (pensemos nas
guerras de religião e no processo de racionalização da vida internacional
no fim da guerra dos 30 Anos). Estas guerras evidenciaram que as mo-
rais vivas transgridem a soberania dos Estados e, consequentemente,
que a lealdade ao soberano não é dada pela simples promessa de sub-
missão concedida ao vencedor, de que fala Hobbes no Leviatã. Este “mé-
todo” de formação dos Estados valia para a Idade Média, quando os
Estados operavam segundo o princípio da honra da aristocracia. Mas a
Idade Moderna conhece, simultaneamente, a multiplicação das confis-
sões religiosas, o declínio da aristocracia e a ascensão de uma nova ca-
mada social: a burguesia. Daí a necessidade, no fim das guerras de reli-

27. P. Canivez, Weil, op. cit., 144.


28. Esta segunda consideração não se aplica em Kant, para o qual, hipoteticamente,
não há transformação histórica dos regimes da discursividade e da racionalidade.

65
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

gião, de pôr como o fundamento da vida internacional o princípio do


Estado-nação e iniciar um vasto processo de formação da lealdade dos
indivíduos — é a transformação dos indivíduos em cidadãos. É em re-
ferência a esse evento de longa duração que Weil pensa quando diz que
o Estado se tornou educador.
Esse fato corresponde à racionalidade calculadora da sociedade que,
de uma parte, deseja levar sua vida em paz e, de outra, quer tornar rentável
sua atividade produtora de bens: é a era do capitalismo. A consequência
disso é que o Estado cada vez mais moderno se torna, ele mesmo, cal-
culador, verdadeiro “monstro frio”, organizador da comunidade, agente
do capitalismo, monopólio da violência, competidor no plano interna-
cional. A técnica do trabalho moderno é a mesma em todos os lugares,
mas ela não está unificada. Sua palavra de ordem é a eficácia; mas para
ser eficaz ela é não apenas racional — é também fonte de racionalidade.
Ela transmite sua racionalidade ao Estado histórico, o qual a transmite
ao indivíduo pela educação. É assim que o indivíduo se torna combatente
— primeiramente no plano da luta com a natureza, em seguida no pla-
no da luta entre as sociedades organizadas por seus Estados. É em razão
da sua competição que os Estados — indivíduos históricos calculadores
— terão interesse em acrescer suas forças pela organização do trabalho
racional de suas lutas; assim, eles se tornam fonte de racionalidade e or-
ganizadores do trabalho social. No plano da sociedade — o plano dos
indivíduos calculadores presos no mecanismo social, há também com-
petição, e essa competição toma formas complexas, tornando-se cada
vez mais organizada. A análise que Weil oferece do mecanismo social
é uma verdadeira explicação sociológica da mundialização, vista como
consequência da modernidade.
Weil mostra que a dinâmica própria da sociedade moderna cria no-
vos tipos de diferenças dentro da sociedade, pela divisão do trabalho e a
complexificação da sociedade. Como viram outros autores antes de Weil,
notadamente Weber, mas também Marx e Durkheim, o desenvolvimento
do capitalismo supõe e produz uma divisão do trabalho social; os diferen-
tes grupos sociais ligados à divisão do trabalho formam estratos e entre
esses estratos há conflito social: lutas contra as injustiças, pelo reconhe-
cimento. Essas lutas, que podem transgredir as fronteiras do Estado em

66
3. O sentido da justiça

razão da divisão mundial do trabalho e da globalização dos interesses,


tornam-se também elas um fator de racionalização da sociedade e do
Estado. Enquanto mobilizam não apenas os recursos da racionalidade
calculadora, mas também os das morais vivas que são fonte de sentido, as
lutas sociais terão como resultado o reconhecimento no plano nacional e
a transformação do Estado. Esse reconhecimento é não apenas racional,
ele é ao mesmo tempo razoável (fonte de sentido e de reciprocidade).
Como diria Weil, seu universal não advém somente do entendimento,
mas também da moral (da razão prática).
No plano político, ela encontra expressão no Estado constitucional
que se torna educador não apenas para a racionalidade, mas também à
ação razoável. No plano internacional, este tipo de Estado não será so-
mente ator racional, mas igualmente ator razoável. A ação que esse tipo de
Estado vai levar nos seus negócios exteriores será susceptível de transfor-
mar a esfera internacional na qual ele age, e esta esfera poderá se tornar,
em princípio, o terreno onde as ações razoáveis são possíveis. A partir daí
várias questões devem ser colocadas: como a ação razoável vai constante-
mente ter lugar enquanto os Estados constitucionais são obrigados — por
razões de segurança — a permanecer monstros frios? Como estes Estados
vão determinar os outros atores racionais a fazer um jogo cooperativo?
Como os fortes serão convencidos a renunciar à força?
É possível que as respostas dadas (ou apenas tornadas possíveis) pela
filosofia política de Weil não sejam satisfatórias no plano da ação. Mas
ela nos permite construir questões e respostas possíveis, pelas quais uma
compreensão pode ter lugar, e essa compreensão poderá guiar a discus-
são. Uma das questões essenciais em matéria de política internacional à
qual responde Weil é a que concerne a disputa entre realismo e idealismo,
sempre em relação à atitude do Estado constitucional. Para os realistas e
neorrealistas, a política pode ser liberal internamente (uma democracia
liberal, no caso), mas uma vez que o Estado liberal deva agir na cena in-
ternacional, ele se vê obrigado — pela necessidade — de conduzir uma
política externa realista. Segundo este argumento, pode-se desvelar, em
regra geral, o caráter de um regime político, tomando como critério suas
ações internacionais. Para os filósofos realistas, a ação política é apenas
a manifestação da natureza humana tal como Maquiavel e Hobbes a de-

67
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

finiram: ela é de fato submetida à pressão das circunstâncias, portanto,


o homem age racionalmente de maneira cega. Todavia, frequentemen-
te, para ser eficaz, é preciso uma justificação. Em tempos de guerra, o
vencedor deve dominar um discurso para manter a paz, e o discurso
eficaz é o discurso verdadeiro, vale dizer, justo. No mundo moderno, é
impossível ser eficaz sem ser justo29 ou, o que é o mesmo, sem convencer
as pessoas de sua justiça. Mas para convencer os outros de sua justiça,
eventualmente lhes impor sua própria visão da justiça, são necessárias
duas coisas: (a) certa eficácia no plano do discurso (e essa eficácia não
é a da violência); (b) certo interesse daquele que é o destinatário deste
discurso. Sobre o primeiro ponto, é necessário precisar o que daí resulta,
a saber, que a justiça não é definida de uma vez por todas: ela está su-
jeita a revisões (pax romana, pax britannica, pax americana são apenas
expressões que mostram em que medida é histórica da elaboração do
conceito de justiça no plano internacional). Quanto ao segundo ponto,
deve-se notar que a receptividade das pessoas para o discurso é — já —
receptividade para a eficácia que é capaz de se mostrar como discurso e
justiça. Na linguagem de Weil, pode-se dizer que, no plano da história, é
verdadeiramente vencedor aquele que sabe educar os povos. Mas, sem-
pre no mesmo plano, não há educador que não tenha sabido se educar
a si mesmo ou se fazer educar por outro30.
Assim é necessário compreender a ação razoável do Estado constitu-
cional, mesmo o realista, nos assuntos internacionais. A astúcia da razão
de que falamos no início, consiste em que, se esse Estado não tivesse sido
realizado, a ação razoável não teria sido possível no plano internacional.
É por esta razão que Weil estava contente e descontente com a imple-
mentação de instituições internacionais. Ele tinha apreendido que os
Estados constitucionais fortes não estavam prontos a renunciar à força
por amor a sua Constituição; ao mesmo tempo, ele viu, bem antes de
Rawls, que a justiça é uma virtude das instituições, não dos atores que

29. Mas pode ser que esta exigência se aplique também a épocas passadas se se tem
em conta a ideia de Weil sobre a historicidade do que se chama “direito natural”.
30. Os mongóis foram, à época de Gengis Khan, grandes guerreiros, mas não foram
vencedores porque, não sendo educados, eles não tinham um discurso. Os nazistas pode-
riam destruir o mundo, não conquistá-lo, porque eles bloquearam o discurso na eficácia
da violência pura: a educação à violência pura é, em si, um projeto demoníaco.

68
3. O sentido da justiça

participam do jogo social. Para a política mundial, a consequência é que


não é necessário, em vista da paz perpétua, que todos os Estados sejam
constitucionais, como Kant queria. A participação na discussão pode
conduzir, em princípio, à transformação dos Estados autocráticos em Es-
tados constitucionais. Mas, segundo Weil, o Estado constitucional poderá
ser realizado em todo lugar em que as condições históricas particulares
não se oponham à sua realização. Onde as condições do Estado consti-
tucional não podem ser realizadas, é o Estado autocrático que, educado
pela necessidade da racionalidade moderna, se encarregará da educação
dos seus cidadãos em vista da harmonização de sua moral viva com as
exigências da sociedade mundial.
Mas para isso será preciso que a tendência que se mostrava a Weil
pouco depois da Segunda Guerra Mundial seja verdadeira. É possível
pensar um modelo alternativo para a tendência que é o do ciclo. Este
modelo foi desenvolvido nas teorias das relações internacionais pela es-
cola neorrealista31. O que dá mais autoridade a este modelo — modelo
da guerra hegemônica — é a possibilidade de validar a hipótese do ciclo
no plano da economia e da sociedade32. A crise do capitalismo constitui
agora, depois de 50 anos de mundialização e da institucionalização da
vida internacional, a razão de um novo debate entre realistas e idealistas.
Mas o verdadeiro problema, o que concentrou toda a atenção de Weil,
é o da luta pelo reconhecimento. Com efeito, é aqui que o modelo do
ciclo se torna mais interessante, pois coloca em questão a racionalida-
de da sociedade moderna. Trata-se do fracasso do modelo ocidental de
transformação da sociedade, modelo nascido da Revolução Francesa, e
do retorno a um modelo de Revolução que existiu no mundo antes da
Revolução Francesa. Os movimentos sociais nos países islâmicos, ins-
pirados pela Revolução Islâmica, mas mantidos por uma subcultura da

31. Cf. R. Gilpin, War and Change in World Politics, Cambridge, Cambridge University
Press, 1981; G. Modelsk, The Long Cycle of Global Politics and the Nation-State, Compa-
rative Studies in Society and History 20 (1978) 214–235; W. R. Thompson, On Global War:
Historical-Structural Approaches to World Politics, Columbia, University of South Carolina
Press, 1988.
32. Cf. J. S. Goldstein, Kondratieff Waves as War Cycles, International Studies Quar-
terly 29 (1985) 411–444, ver também: Long Waves in War, Production, Prices and Wages,
Journal of Conflict Resolution 31 (1987) 573–600.

69
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

violência pura e destruidora, constituem os acontecimentos que põem


seriamente em questão a possibilidade do Estado mundial ao qual pare-
cia conduzir, naturalmente, a globalização.

Tradução do francês de Judikael Castelo Branco


Revisão técnica de Marcelo Perine

70
4. Sociedade mundial/estado mundial.
Eric Weil e a questão da
universalidade dos direitos

Giusi Strummiello1

A s narrativas sobre a globalização, às quais já nos habituamos, parecem


moldadas por dois registros: um apocalíptico, negativo-catastrófico,
e outro otimista, positivo-construtivo.
“Globalização” e “global” — as palavras decisivas da nossa época — de
fato, evocam, por um lado, mitos poderosos, capazes de recontar a fasci-
nação das grandes oportunidades e do progresso ilimitado; e, de outro, a
desmistificação dessas mesmas construções. A satisfeita retórica globalista
e as correspondentes invectivas antiglobalistas já saturaram a atmosfera
ao nosso redor: fórmulas mágicas utilizadas frequentemente por exímios
cantores dos benefícios da expansão mundial do liberalismo ou igualmente
aguerridos profetas da desventura. O termo “globalização” aponta, assim,
para duas perspectivas completamente diversas sobre o mundo contem-
porâneo, mas que, no entanto, convivem lado a lado: ao mesmo tempo a
globalização une e divide, homologa e desloca, universaliza (porque junta
numa mesma pertença) e diferencia, inclui e exclui.

1. Università degli Studi di Bari Aldo Moro, Itália.

71
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O atual mundo globalizado parece, assim, desdobrar-se segundo


uma lógica de algum modo paradoxal: por um lado, exatamente por se
libertar dos confins e das divisões territoriais, parece permitir mais facil-
mente o apelo ou o recurso a práticas de universalização (por exemplo,
dos direitos) que aparecem como eminentemente inclusivas; por outro,
a despeito disso, ou talvez por causa disso, se apresenta, de fato, como a
dimensão em que a própria universalidade (dos discursos, dos direitos e
das práticas) parece esvaziar-se de qualquer significado ou, pelo menos,
de qualquer eficácia: num mundo globalizado, num mundo sem terra
ou fronteiras, a esfera dos direitos e as crescentes expectativas globais de
igualdade (na forma de apelo à universalidade) parecem perder o seu
enraizamento e, por isso, a sua consistência.
A esse respeito, é muito fácil constatar, por exemplo, como a univer-
salização do humano — o reconhecimento e a reivindicação da pertença
comum à humanidade — ou, se se prefere, a globalização entendida tam-
bém como universalização dos direitos do homem — não esteja verdadei-
ramente em condições, nos cenários hodiernos, de colocar o homem a salvo
de abusos e violências. A universalidade meramente extensiva, horizontal,
como a que parece se produzir por efeito dos processos de globalização, é
uma universalidade que, no fim, não protege nem inclui (ou inclui apenas
de forma violenta, para homologar e suprimir as diferenças).
Como a filosofia deve se colocar diante desses problemas — se é que
esta tem ainda algum papel, alguma função? Talvez a contribuição que a
prática filosófica pode oferecer seja, sobretudo, a tentativa de fluidificar
os confins entre as duas chaves de leitura acima evidenciadas, de repor em
movimento a alternativa estática entre as duas concepções contrapostas:
a filosofia poderia ainda sugerir a tentativa de subtrair-se a toda lógica
unívoca e unidirecional, e por isso redutiva, para pensar a globalização
como um fenômeno ou um processo de compenetração em que os me-
canismos opostos não se contraponham frontal e dialeticamente, antes,
se compenetrem de um modo indestrinçável e essencial. A “globalização”
seria, neste sentido, a fratura que fende e atravessa transversalmente os
processos do real hoje em ato.
Considerar a globalização nesta perspectiva significa, definitivamente,
pôr em discussão toda imagem simples e adocicada dela como um pro-

72
4. Sociedade mundial/estado mundial

cesso sempre mais inclusivo, e tornar visível seu caráter aporético, nunca
propriamente pacífico ou pacificado. Significa, talvez, como acréscimo
ou consequência disso, fazer vacilar a nossa fácil e superficial crença na
universalidade e nos processos de universalização e pôr seriamente em
discussão, para repensá-la, a própria noção de universal.
Desse modo, o peso da questão é colocado, essencialmente, sobre a
determinação dos nexos entre globalização e universalização. Perguntamo-
nos, de fato: até que ponto é verdade que os processos de globalização, ao
coincidir com a criação de um espaço sem fronteiras, sem algo externo, sem
qualquer resíduo, apontam na direção do fim de toda exclusão e da realiza-
ção da ideia moderna de uma cidadania universal? De fato, em um mundo
privado de delimitações, parece impossível pensar e organizar práticas de
exclusão: se não há um fora, o que se exclui e, sobretudo, onde se exclui?
Ou, antes, não é verdade justamente o contrário, isto é, que a dilatação do
espaço corre o risco de tornar sempre mais frágil e evanescente o espaço
público e, portanto, menos seguras as pretensões das dinâmicas inclusivas
sobre as excludentes? Com efeito, o fenômeno da globalização altera os
confins políticos e as identidades, as pertenças: ela põe em crise a forma
do Estado moderno, do Estado-nação e a visão territorial da soberania
estatal. O processo de globalização engatilha movimentos de expropria-
ção e deslocação que geram, por contragolpe, o que Derrida define como
“o retorno regressivo e inquietante dos fantasmas do solo e do sangue,
racismos, xenofobias, guerras e limpezas étnicas”2. A globalização parece
decretar o fim da conexão, individuada por Schmitt, entre ordenamento
(Ordnung) e localização (Ortung): ela assinala a desconstrução daquilo
que Derrida, de maneira eficaz, chamou o “topolítico”, ou seja, o reenvio
à circunscrição do político ao lugar. O Estado-nação é posto radicalmente
em questão, e uma crise sem precedentes assalta os conceitos de confim e
de fronteira: o fechamento, a coesão e a identidade de um povo, de uma
comunidade, se encontram constantemente abertos por um movimento
que torna os seus confins sempre mais voláteis. Parece não ser possível
deter este despregar-se da sistematização jurídico-política do caráter es-
tatal: a sua crise nos põe diante de uma passagem epocal ineludível rumo

2. Cf. J. Derrida, Echographies de la télévision, Paris, Galilée, 1996.

73
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

a outras formas de ordenamento político-jurídico, rumo a um repensa-


mento também do horizonte jurídico-político internacional3.
Mas, é possível, à luz destas interrogações e tensões, chegar a prospec-
tar uma solução? É possível que este tempo da globalização seja recebido
não como aquele do desaparecimento puro e simples dos Estados, mas
do seu necessário repensamento ou da preparação de novas formas de
ordenamento jurídico e político? Em outras palavras, é possível resistir
à globalização, a seus desdobramentos negativos sem adotar estratégias
simplesmente reativas e regressivas, mas buscando, progressivamente,
compreender as oportunidades que ela pode esconder em seu interior;
procurando conciliar as instâncias e os movimentos contraditórios que
nela se dão, decidindo, por um lado, não frear a técnica, a ciência e o pro-
gresso socioeconômico em escala planetária e, por outro, defender outra
experiência da individualidade e da singularidade humanas?
Portanto, a tarefa que se prospecta para a filosofia é a de empreender
um difícil caminho de reflexão que não opte de maneira abrupta por al-
guma das alternativas acima delineadas, mas que saiba se situar na tensão,
que tente viver da diferença e na diferença, no deslocamento, no intervalo
criado entre globalização e universalização, entre as exigências da socie-
dade globalizada e as justas reivindicações de cada uma das comunidades
humanas e de cada indivíduo4.
Ora, parece-me que seja exatamente esta a tentativa que move as
reflexões de Eric Weil sobre a globalização, ou melhor, como ele prefe-
re, sobre mundialização e universalização. De fato, o discurso weiliano
articula de maneira completamente original, no que toca à reflexão filo-
sófica contemporânea sobre globalização ou mundialização, os aspectos
da universalização, de um lado, e da mundialização, de outro. Contra-
riamente a certas posições teóricas asperamente críticas, até os limites
do extremismo, contra a sociedade técnica, calculista e racional (veja-se

3. Sobre estas questões, ver particularmente C. Schmitt, Der Nomos der Erde im
Völkerrecht des Jus Publicum Europaeum, Duncker & Humblot, Berlin, 2011, e, J. Derrida.
Politiques de l’amitié, Paris, Galilée, 1994.
4. Sobre a relação entre globalização, ordenamentos estatais e universalismo dos
direitos, veja-se, entre outros, J. Habermas, Die Einbeziehung des Anderen. Studien zur
politischen Theorie, Frankfurt, Suhrkamp Verlag, 1996; O. Höffe, Demokratie im Zeitalter
der Globalisierung, Beck, München, 1999; S. Benhabib, The Rights of Other. Aliens, Resi-
dents and Citizens, Cambridge-New York, Cambridge University Press, 2004.

74
4. Sociedade mundial/estado mundial

sobretudo Heidegger), Weil, como sempre de modo lúcido e sóbrio, vin-


cula, numa conciliação que não anula a diferença e o diferente alcance e
valor, mundialização/globalização econômica, social e técnica com a exi-
gência de universalização do indivíduo humano.
No nexo particular que Weil entrevê e institui entre mundialização e uni-
versalização e no modo de conceber o universal está, para mim, não apenas
a originalidade da sua leitura, mas, sobretudo, a força da sua visão política
extremamente realista e pragmática, distante de tons extremos, excessivos
e, por isto, forçados e artificiosos dos dois registros lembrados no início.
Na minha intervenção, quero atentar justamente o alcance inovador
da visão weiliana da mundialização — visão que, como anunciado, busca
harmonizar a racionalidade calculista e niveladora da sociedade mun-
dializada com a razão, a moral viva e concreta dos indivíduos (no léxico
weiliano: o universal formal e o universal concreto particular), mostrando
como o eixo ao redor do qual gira o mecanismo da conciliação da dialética
indivíduo/sociedade mundial seja representado pelo modo de entender o
processo de universalização: não uma estratégia de assimilação/redução
chegando à anulação das diferenças numa totalidade, mas um projeto que
reconheça ao universal (inclusive o dos direitos do homem) uma precisa
valência política, ou seja, que o universal não coincide mais simplesmente
com uma esfera elementar e pré-política, mas se torna o objetivo de uma
luta política na qual se reivindica o direito à universalidade enquanto tal.
Desse modo, a universalidade não seria mais a falência de todo processo
de subjetivação política, o ponto de onde partir; antes, representaria a
aposta de todo processo de subjetivação5.

II

Na seção C do Capítulo III da Filosofia política (1956), dedicado ao


Estado, Weil enfrenta os problemas do Estado moderno, todos relaciona-

5. Para uma crítica da forma como Weil entende o processo de universalização


do humano através do Estado mundial, apelo às densas páginas de E. Costeski. Atitude,
violência e Estado mundial. Sobre a filosofia de Eric Weil, São Leopoldo-Fortaleza, Editora
Unisinos-Edições UFC, 2009, particularmente o capítulo 7. Ver também P. Canivez, Weil,
Paris, Les Belles Lettres, 1999, 201-209.

75
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

dos ao problema fundamental da conciliação — mediante a razão enten-


dida como possibilidade de uma vida sensata para todos e compreendida
como tal por todos — da moral viva com a racionalidade.
Discutindo a tarefa principal do governo, representada pela educa-
ção dos cidadãos, Weil busca esclarecer o sentido dessa afirmação, para
mostrar como a intervenção do governo nem reduz a liberdade do indi-
víduo, não profana o que de sagrado resta do homem como irredutível
a toda autoridade externa, que pretendesse julgá-lo segundo princípios
próprios: é, ao contrário, da própria individualidade que se origina o
princípio de todo juízo. Neste caso, porém, para Weil, o problema pros-
pectado assume uma relevância particular, na medida em que o Estado e
a sociedade só adquirem sentido no reconhecimento de uma moral viva:
assim a política de um governo seria julgada segundo os princípios da
moral da comunidade. O sagrado desta última seria mais vivo, mais im-
portante do que aquilo que se lhe oporia (“A natureza do Estado — nota
Weil — está em função da moral da comunidade”). Mas, baseado neste
critério, Weil se pergunta, é possível distinguir as morais entre si, isto é,
entre morais morais e morais imorais?
É nesse pondo da argumentação que aparece a referência à questão
(moderna) dos direitos do homem (e do cidadão). Com efeito, um governo
ou uma comunidade podem agir de modo imoral. É preciso estabelecer
agora é o que essa afirmação pressupõe e estabelece como ideal de moral
e de ação. O problema que assim se levanta representa, para Eric Weil, a
questão moderna, aquela que nasce da recordação ou da experiência do
arbítrio e da violência e que visa ao que, na tradição moderna, são defini-
dos como direitos do homem. Trata-se, reconhece Weil, de uma questão
cuja discussão está ainda em curso e não parece poder se esgotar.
O motivo do seu caráter inesgotável é entrevisto na ambiguidade do
próprio termo “direito do homem”. O que significa falar de direitos do
homem, quando o homem como ser natural não possui direitos? Mes-
mo admitido que se possa falar aqui apenas de um direito natural, é-se
obrigado a fazê-lo pressupondo como seu critério de medida os limites
da violência individual, reduzindo-o no seu dever ser ao que é ou foi, o
que é absurdo. Mesmo admitindo que um direito nasça de um estado de
coisas que não coincide com o estado de direito, deste modo acaba-se por

76
4. Sociedade mundial/estado mundial

restringir o alcance do conceito de direito, esquecendo que também um


direito injusto é sempre um direito e considerando possível uma comu-
nidade sem direito, ou seja, a existência de um homem em presença de
um ser totalmente privado de contatos com outros semelhantes.
Todavia, a fórmula direitos do homem, mesmo na sua ambiguidade,
não é totalmente privada de sentido, porém esse sentido não está fun-
dado no pensamento abstrato, como até agora foi dado pensado, e sim
na história. A título de explicação, Weil evoca aqui a distinção, presente
em algumas comunidades, entre homens livres e escravos, entre sujeitos
titulares de direito e outros que deles são completamente privados. Essa
distinção, se considerada do pondo de vista do conceito de universalida-
de, mostra-se injusta. Mas a injustiça aqui não significa contrariedade ao
direito: e é justamente essa coexistência, esse fato de ocorrer e se manter
juntas injustiça e direito que deve ser considerado a e aprofundado. De
fato, não basta, destaca Weil, diante de patentes injustiças, proclamar os
direitos da justiça: esse gesto não resolveria o problema, antes o com-
plicaria ulteriormente, tornando vãs as intenções dos seus defensores.
Com efeito, o princípio de universalidade enquanto tal não tem nenhu-
ma incidência sobre o real e nenhuma possibilidade de aplicação ime-
diata. Combater a escravidão é possível apenas numa situação histórica
determinada e essa luta pode assumir, de acordo com as situações, duas
fisionomias: uma que obriga moralmente os homens livres a reconhe-
cer como iguais quem, juridicamente, não o é; e outra que reconhece
como já superada e nociva a instituição da escravidão, ou por causa das
transformações das formas de trabalho ou pela ameaça dos escravos de
subverter com a violência o direito vigente e substituí-lo por um novo
que reconheça o que aquele nega. No primeiro caso, o direito do homem,
reivindicado na luta, não é absolutamente um direito, mas simplesmente
uma exigência moral; no segundo, o que o escravo reivindica não é um
direito do homem em geral como sujeito abstrato, neutro e impessoal,
mas o direito de um membro específico da sociedade, isto é, o direito
do cidadão. Neste sentido, os direitos do homem são os direitos da razão
na história, que contrastam o que na história se dá como irracional e se
apresenta sempre diferente de acordo com as épocas, as sociedades ou
as comunidades, pelo que cada período histórico apresenta e se refere a

77
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

um próprio direito natural, cuja autoevidência se impõe como cogente


à consciência de todos os indivíduos.
Por outro lado, especifica Weil, com uma acribia que lembra as igual-
mente agudas e profundas reflexões de Hannah Arendt, o escravo não está
nunca privado verdadeiramente de todos os seus direitos enquanto perten-
ce a uma comunidade (seja a sociedade, seja a família), na qual desenvolve
uma função particular: a perda de um direito (neste caso, o da liberdade)
não implica necessária e imediatamente a perda de todos os direitos pró-
prios. O que ao indivíduo, privado da liberdade, é efetivamente negado é
a possibilidade de lutar por um direito, de ser reconhecido como sujeito
capaz de reivindicar um direito, de agir em nome de um direito. Por isso,
protestar contra um direito superado não significa, para Weil, querer ins-
taurar um direito intemporal, baseado na argumentação de uma universal
e, portanto, abstrata e vazia igualdade de todos os homens.

A isso podem-se acrescentar outras observações: em lugar algum o escravo


é privado de todos os direitos, embora na maioria dos casos ele não tenha
a possibilidade de agir em direito; ele pertence à família e é protegido pelo
costume mesmo nos casos em que o direito formal não o protege, (…) tem a
possibilidade de alcançar a liberdade (o que amiúde coloca-o acima da mu-
lher livre); e em toda parte é do interesse do senhor conservar em bom estado
a parte do seu patrimônio que constitui o escravo. Estes são, se se quiser, os
direitos naturais do homem na escravidão, pois estão fundados no interesse
social. Protestar contra um direito existente em nome dos direitos do homem
é protestar contra um direito superado, não é instaurar um direito intemporal
sob o pretexto de que todos os homens são iguais — pretexto que ninguém
levaria a sério enquanto se trata como privado de direitos (ou da maior parte
dos direitos do cidadão) os criminosos, os loucos, os imbecis6.

Como para Arendt, parece que também para Weil os direitos hu-
manos sejam os que dizem respeito ao cidadão, isto é, a um indivíduo
pertencente a uma comunidade, a uma organização, a um Estado: de
fato, a perda de um direito não comporta simplesmente a absoluta falta
de direitos. Está-se privado dos direitos humanos sobretudo quando se
é privado de um lugar no mundo, quando não se é reconhecido como

6. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola,
2011, 234 nota 9.

78
4. Sociedade mundial/estado mundial

pertencente a nenhuma comunidade, quando não se é reconhecido como


sujeito de direitos, capaz de reivindicar os direitos.
Eis o que se lê nas Origens do Totalitarismo: “o homem pode perder
todos os chamados Direitos do Homem sem perder a sua qualidade es-
sencial de homem, sua dignidade humana. Só a perda da própria comu-
nidade é que o expulsa da humanidade”7. E antes:

A ofensa fundamental com que a escravidão atingia os direitos humanos


não consistia na eliminação de sua liberdade (o que pode ocorrer em ou-
tras circunstâncias), mas no fato de ter tirado de uma categoria de pessoas
até mesmo a possibilidade de lutarem pela liberdade — luta que ainda era
possível sob a tirania, e mesmo sob as condições desesperadas do terror mo-
derno (mas não nas condições de vida dos campos de concentração). (…) à
luz dos eventos recentes, é possível dizer que mesmo os escravos ainda per-
tenciam a algum tipo de comunidade humana; seu trabalho era necessário,
usado e explorado, e isso os mantinha dentro do âmbito da humanidade.
Ser um escravo significava, afinal, algo mais que a abstrata nudez de ser
unicamente humano e nada mais8.

Para Weil, como para Arendt, um discurso sensato sobre os direitos


humanos pode se dar apenas dentro da moldura do Estado moderno,
cuja estrutura está fundada sobre a organização técnica do trabalho e da
sociedade: “o indivíduo tem direitos no Estado moderno — escreve Weil
ecoando novamente as palavras de Hannah Arendt —, porque a sua cola-
boração é necessária para o bom andamento dos negócios da sociedade”9.
A determinação desses direitos não será fornecida pelo critério da partilha
do elementar e pré-político caráter da humanidade, do pertencimento dos
homens à humanidade em geral e em sentido abstrato, mas da tradição
particular e da espessura social alcançada pelo Estado.
Weil reconhece que este modo de considerar os direitos do homem e
do cidadão poderia diminuir a dignidade que geralmente se lhes atribui:
o “utilitarismo” que aí se subentende poderia minar a sua ideia no que ela
apresenta de maior e de mais nobre. Mas estes aspectos são apenas de or-
dem eminentemente filosófica e não concernem à prática política e, por-

7. H. Arendt, Origens do totalitarismo, trad. R. Raposo, São Paulo, Companhia


das Letras, 1989, 331.
8. Ibid., 330-331.
9. E. Weil, Filosofia política, 235.

79
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

tanto, não devem tocar as questões de governo. Um governo não poderia


se inspirar em princípios que de fato se limitariam apenas a influenciar
em sentido moral as suas ações, e não lhe dariam os meios necessários
para captar os problemas concretos e prospectar uma solução.
Embora os indivíduos não se reduzam somente ao homo œconomicus,
todavia no Estado moderno os indivíduos se compreendem como inte-
ressados, de modo consciente e calculista. A circularidade antevista e su-
posta por Weil entre moral viva e racionalidade formal funda todo o dis-
curso, porque:

Se a moral viva não deve tornar-se uma abstração hipostasiada à maneira da


sociedade abstrata, tampouco se transformar num ídolo morto, é necessário
precisamente que o cálculo encontre nela o seu lugar. Não é certamente o
cálculo que dará um sentido à existência dos indivíduos e das comunida-
des, mas sem ele nenhum indivíduo, nenhuma comunidade conservarão
a menor possibilidade de se ocupar com o sentido. Os direitos políticos
são direitos reais porque os indivíduos podem defendê-los eficazmente no
plano social (do trabalho e da organização), desde que uma porcentagem
suficientemente elevada dentre eles sinta que são lesados. Eles são direitos
sociais aos quais corresponde o dever da colaboração no trabalho da socie-
dade: quem não trabalha não tem direito nem qualquer meio de fazer valer
o que considera seu direito ‘natural’10.

Somente desta forma concreta e histórica os direitos do homem e do


cidadão representarão um problema para o governo. E é à luz de tudo
isto que se compreende porque o governo é, necessariamente, educador,
em condição de julgar a moral histórica da comunidade.
O homem compreende os seus direitos e os seus deveres exclusiva-
mente no plano empírico, da realidade concreta, feita de violência, paixões,
conflitos entre grupos e estratos, desejos, trabalho, organização: a reivindi-
cação de um direito é a consequência do desejo de ser reconhecido como
membro útil e o Estado, nos limites do possível, deve poder respeitar esse
desejo dos seus componentes. Pois, o fim supremo da ação governativa é
a sobrevivência da comunidade que conduz uma vida sensata: educando os
cidadãos, inspirando-se na prudência (phrónesis), poderá fazer com que
aceitem o que não podem refutar se quiserem viver e viver dignamente.

10. Ibid., 236.

80
4. Sociedade mundial/estado mundial

Substancialmente, a ação do governo deve tender à

reconciliação entre o universal da razão (que exige a possibilidade de uma


vida sensata para todo indivíduo, sob a única condição de que ele reconheça
a legitimidade universal dessa exigência), o universal (racional e técnico) do
entendimento e o universal concreto e histórico da moral da comunidade11.

III

O Estado moderno representa assim o único lugar em que está asse-


gurada a conciliação entre sociedade e indivíduo. Todavia, ele permanece
uma realidade particular que deve reconhecer, como seu interesse fun-
damental, a exigência de trabalhar para a realização de uma organização
social mundial, isto é, para a realização de um Estado mundial.
A sobrevivência e a vida do sentido da existência das morais históricas
serão garantidas por uma sociedade mundial realizada, racional e orga-
nizada, que se coloque a seu serviço, desde que o seu conteúdo não entre
em oposição e contradição com a existência da sociedade mundial.
Weil reconhece que, diante da ideia de um Estado mundial há, toda-
via, muitas reservas, sobretudo por parte dos que tendem a ver nele uma
forma de governo mais autoritário, antes, mais tirânico: a unicidade da
forma estatal absorveria e englobaria em si todo o resto. O fato de que o
Estado mundial deveria ter como objetivos garantir uma igual elevação das
condições de vida das diversas sociedades e, portanto, em teoria eliminar
a competição, e o objetivo de educar à racionalidade, objeta-se, não leva-
ria à imposição autoritária de um pensamento uniforme, homogêneo ou
único? O Estado mundial é o Estado em que não existe mais um externo,
um além, nenhum resíduo: nele não se ofereceria mais a possibilidade, a
quem sentisse exposta ao perigo a própria liberdade, de fugir para outros
lugares. O Estado mundial, assim percebido, não poderia ser reconduzido
à razão por outros Estados mais livres ou derrubado com a violência de
um mundo externo que se sentisse ameaçado na própria existência moral
e material. Weil não esconde que esse risco seja real, mas está igualmente

11. Ibid., 237.

81
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

convencido de que talvez valha a pena corrê-lo, se não por outras razões,
pelo fato de que com a criação de um Estado mundial seriam eliminadas
justamente as causas da involução em sentido autocrático das formas de
governo, ou seja, a ameaça e a possibilidade de agressões externas.
As preocupações que orbitam ao redor da proposta de um Estado
mundial não devem impedir de considerar seriamente um futuro para
a humanidade, de se propor como meta a alcançar o desaparecimento
da competição entre as sociedades particulares e a luta entre os Estados
históricos. Nisto não haveria nada de autoritário, porque, aliás, cada um
se sentirá imediatamente chamado a aderir à administração dos interesses
comuns da sociedade mundial: cada um se sentirá garantido e respeitado
nos seus direitos de membro desta sociedade, direitos que são os do ho-
mem e do cidadão e que encontram o seu fundamento na organização
mundial da sociedade do trabalho:

[…] direito de igualdade de oportunidades sociais (a desigualdade de opor-


tunidades naturais pode ser reduzida, mas não eliminada), direito à igual-
dade de participação na tomada de decisões (direito de livre participação
na discussão), direito à satisfação dos desejos que, no momento histórico
dado, são universalmente considerados naturais12.

Percebe-se como essa visão do homem e do Estado mundial, chamado


a tutelá-los e garanti-los, se assenta, mais uma vez, sobre argumentações de
tipo materialista. E não pode ser diferente, dado que é a própria sociedade
que é materialista, e esta afirmação não é um juízo de valor, mas a descrição
de uma realidade de fato. À diferença das reflexões políticas contemporâ-
neas, Weil não quer optar entre sociedade e Estado, entre cálculo e moral,
opção que brota de uma visão metafísica da história, que anela à pureza de
uma abstração realizada (histórica ou racional), sem considerar o trabalho
da humanidade e dos desejos concretos dos homens na sociedade.
A quem vê no Estado mundial a dissolução das morais concretas, Weil
rebate que apenas a completa realização da sociedade mundial leva ao
pleno desenvolvimento as morais concretas: só deste modo aos cidadãos
será oferecida a oportunidade de instaurar relações entre si não mais
determinados à uniformidade. À lealdade nacional, sobrepõe-se a leal-

12. Ibid., 295 s.

82
4. Sociedade mundial/estado mundial

dade moral para com uma tradição viva: um grupo humano será coeso
não por força das necessidades e do medo da violência, mas pela adesão
a um sentido. Só assim as livres associações de indivíduos que operam
pela criação de uma única sociedade, segundo as respectivas tradições
morais, segundo as próprias virtudes, substituirão o anonimato das mas-
sas da sociedade global.

Só então até mesmo essas concentrações de massas humanas privadas de


contatos humanos, características do mundo presente, poderão transfor-
mar-se em associações livres, para construírem juntas uma única socieda-
de, embora organizando-se internamente, antes, criando-se segundo suas
concepções da virtude, com plena independência moral. Só então a palavra
amizade poderá retomar o sentido moral e político que perdeu no mundo
moderno, diante de uma significação privada e sentimental13.

A sociedade mundial não reassume todos os Estados particulares e


não representa nem mesmo o seu fim último. Ela é simplesmente o meio
necessário, mas não suficiente, para a realização do Estado positivo ou
da “possibilidade de criar e desenvolver comunidades livres sob suas res-
pectivas leis, concretamente razoáveis por permitirem aos seus cidadãos
levar uma vida que seja sensata para eles na virtude”14.
A ação política tem como objetivo final, para Weil, o que constitui no
homem o que há de propriamente humano, isto é, a ideia da sua digni-
dade: essa se desdobra como ideia do direito de todo homem de tomar
parte nas decisões, como ser razoável e submetido às necessidades sociais,
que participa no desenvolvimento da moral da comunidade e na criação
de novas morais. Em outras palavras, como livre decisão do indivíduo de
decidir autonomamente em vista do universal.
A filosofia até aqui mostrou para os Estados o fim, os meios e evi-
denciou os perigos; mas cabe à ação política verificar se os Estados serão
capazes de realizar na sociedade mundial o que já são em si, se serão ca-
pazes de universalizar-se,

se saberão tornar-se comunidades morais livres, reconhecendo as necessi-


dades do trabalho e da organização em vista da realização da razão, se pode-

13. Ibid., 299.


14. Ibid., 300.

83
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

rão, desse modo, dar a todos os homens a possibilidade (…) de serem satis-
feitos na dignidade da sua liberdade razoável e concreta, na vida virtuosa15.

Aqui, como se vê, é pensada a interconexão entre mundial e universal,


entre processo de mundialização e processo de universalização, ou melhor,
a dinâmica da universalização no global, no mundial. Mas procuremos ver
em que sentido. Com efeito, o problema que a este ponto se apresenta é,
para Weil, como deve ser entendida a possibilidade da presença do universal
no conjunto plural das particularidades que o tornam concreto.
O universal da sociedade mundial se apresenta à moral concreta
no seu formalismo, é universalidade formal: a moral concreta que não
aceita sujeitar-se às regras e às leis da sociedade mundial (cálculo e efi-
cácia) está, como sabemos, destinada a perecer. Logo, este formalismo
não determina a moral concreta, mas esta não pode existir enquanto tal
fora daquele: só no seu interior o indivíduo pode vir ao pensamento do
universal concreto, ao pensamento do sentido da própria existência que
o põe a salvo da violência.
Universal e universalidade no discurso weiliano não indicam um pro-
cesso de homogeneização dos seus elementos, uma inclusão violenta que
faz perder-se num indistinto abstrato, neutro e elementar, os caracteres
das individualidades particulares, o sentir próprio de cada indivíduo, as
suas exigências e as suas motivações, as suas reivindicações e os seus di-
reitos. O Estado mundial centralizado é assim porque esse processo de
centralização se dá também como processo de descentralização. Antes,
é só nesta centralização que se dá descentralização. E é até mesmo em
nome desta descentralização que algo como o Estado mundial se justifi-
ca. O universal formal se justifica, assim, pelo universal concreto. A base
material do universal concreto será constituída pela organização mundial
da sociedade. O desenvolvimento de morais, religiões, arte, ciência, de
todos os produtos de uma sociedade humana não advém num comple-
to vazio pneumático, num absoluto isolamento. Não se dá nunca, nesse
sentido, para Weil, um início absoluto.
O Estado, com as suas leis, tem nas mãos a tarefa fundamental de edu-
car ao universal concreto da moral vivida e dos costumes, à comunidade

15. Ibid., 303.

84
4. Sociedade mundial/estado mundial

livre e moral. Tarefa difícil, observa Weil, porque vivemos ainda divididos
em dois planos, entre sentido vivo e racionalidade, moral inconsciente dos
seus fundamentos e lealdade imposta, cálculo e dimensão histórica: o plano
da sociedade que oferece ao indivíduo os bens necessários para levar uma
vida humana e o da moral, que oferece a possibilidade de uma vida sensata,
digna de ser vivida. No tempo presente, nenhum estado parece oferecer a
reconciliação dessas duas exigências da vida humana (do indivíduo na-
tural e passional, do homem violento) e da vida sensata (em vista da vida
humana sensata, de uma vida não apenas vivida, mas pensada).
E, todavia, o homem sem o Estado permanece um animal ou uma má-
quina. O fim do Estado é justamente o indivíduo livre e satisfeito na razão.
O homem se realiza mediante uma evolução que só pode acontecer dentro
do Estado: nele o homem está protegido da violência da natureza exterior,
da necessidade natural, da paixão; no Estado o homem pensa a sua moral e
se sabe livre, portanto, é do Estado que ele pode partir para se afirmar como
ser livre e razoável, finalmente capaz de uma vida sensata e digna.
Em outros termos, somente no Estado o indivíduo se humaniza. Logo,
só no Estado razoável o homem pode ser homem no sentido autêntico, isto
é, homem que alcançou a plenitude da sua humanidade. Mas, de novo, esta
condição da universalização do homem deve ser pensada como condição
necessária e não suficiente. Como poderia ser de outra forma, pergunta-se
Weil, a liberdade como exigência do homem? Desse pondo de vista, a uni-
versalidade não implica o sacrifício, a absorção e a anulação da individuali-
dade: “O indivíduo só é razoável no interior do universal. Porém, universal
e vivendo no interior do universal, ele é e permanece indivíduo”16.

IV

Alcançado este ponto, penso ser possível de algum modo compreender


a contribuição fundamental de Weil à discussão sobre as questões acerca da
política dos direitos humanos universais e da cidadania na era global.
A solução teórica prospectada por Weil, que antecipa e em certo senti-
do supera com agudez ímpar a que foi proposta em tempos mais recentes

16. Ibid., 316.

85
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

por pensadores como Balibar, Rancière, Derrida e Žižek17. De fato, Weil


não propõe como antídoto à possível violência da globalização, à sua de-
sumanização, à neutralização do que há de sagrado no sentir de cada vida
individual, uma universalidade asséptica, neutra, abstrata e descontextu-
alizada: a universalidade deste gênero, que não se põe como o espaço e o
lugar de uma batalha fundamentalmente política e, portanto, como uma
reivindicação que não nasce de uma pertença determinada, permanece
não apenas estéril, mas excludente/exclusiva. Uma universalidade presu-
midamente natural e não qualificada, não radicada num contexto histó-
rico, é uma universalidade que só aparentemente acomuna todos, mas na
realidade esvazia de significado e eficácia a possibilidade de reivindicar os
próprios direitos por parte de muitos.
O universal, em Weil, não é buscado fora da globalização, do cenário
geopolítico ou em oposição a ele: só na circularidade entre sociedade
mundial e indivíduo, entre racionalidade formal e moral viva, um autên-
tico processo de universalização pode ser posto em ato. Antes, só no cum-
primento da mundialização da sociedade é possível a realização do ideal
kantiano do cosmopolitismo, o ideal de uma cidadania universal.
A existência do universal — como Weil voltará a assinalar alguns anos
depois, na intervenção com o título de Particular e universal em política,
de 196318 — não se dá na forma de um fato exterior, mas na de um “fato da
vontade que o quer [o universal]”19. O universal, para Weil, não existe
como tal em parte alguma: ele é um termo que só tem sentido para os
lógicos e para os metafísicos. Ele se apresenta na realidade sempre de-
composto, refeito. E no horizonte da política, o único universal que é
reconhecido e admitido é o dos interesses particulares em conflito. Mas
a política da competição e da luta dos interesses representa apenas um
aspecto do homem, não o único. No momento em que se tende a abso-
lutizar esse aspecto, a política se torna pura e abstrata e acaba por agir

17. Sobre a possibilidade teórica de uma universalidade inclusiva que considere as


irredutíveis singularidades nestes autores, permito-me remeter a G. Strummiello, (Pre)
politiche dell’umano. La riduzione all’elementare tra diritti e violenza, Spaziofilosofico, 3
(2011) 247-256, e, ID, Diritti e violenza tra universalizzazione e globalizzazione, Annuario
filosófico, XXVIII (2012) 241-257.
18. E. Weil, Philosophie et réalité I, Paris, Beauchesne, 1982, 225-240.
19. Ibid., 234.

86
4. Sociedade mundial/estado mundial

abstratamente e sem nenhuma eficácia prática sobre a realidade. Os ho-


mens não são só essa luta e essa competição: “ao contrário, eles conhecem
um sagrado e estão prontos a sacrificar seus interesses (em sentido res-
trito), isto é, sua vida, a esse sagrado”20.
E esse sagrado não é o do indivíduo como tal, mas o de um indivíduo
que concebe esse sagrado para todos e o propõe a todos: “Todo sagrado é,
pelo menos pretende ser universal. Entretanto, ele só é sagrado para aque-
les que nele creem e a ele aderem. Dito de outro modo, os sagrados são
particulares e sua universalidade relativa”21.
Nessa perspectiva, o universal absoluto escapa sempre de nós, enquan-
to só a particularidade existe concretamente e o indivíduo não é senão o
encontro de universalidades particulares. A universalidade é assim uma
universalidade concreta na medida em que é histórica, na medida em
que advém, se universaliza e, portanto, é mais ou menos universalmente
sentida, vivida e pensada.
Isso comporta, para Weil, uma consequência decisiva, mas, ao mes-
mo tempo, incômoda, a de que o universal não estaria no início de um
processo, mas no final

O universal não está no início, ele se encontra, por particular que seja, no
fim de uma história. (…) antes que houvesse uma França, ninguém queria
ser francês: passou-se a querer ser francês a partir do momento em que essa
universalidade já existia nos fatos (…)22.

Logo, o universal é um produto particular da história: fórmula pa-


radoxal, reconhece Weil, mas inevitável.
Sendo assim, a ideia de uma universalidade absoluta surge só numa
época determinada, que para Weil é a nossa: de fato, a possibilidade dessa
ideia se concretizou só no momento em que o jogo dos interesses materiais
em conflito determinou o mundo em que vivemos: “o mundo da produ-
ção e da organização mundial racionais”23, mundo que, como organização,
pretende englobar cada homem.

20. Ibid., 232.


21. Ibid.
22. Ibid., 233.
23. Ibid., 235.

87
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Mas a realização desse universal é apenas uma vitória precária: certa-


mente, do ponto de vista das necessidades materiais o homem se tornou
livre, mas esta liberdade é vivida como insensata, porque inserida no vazio
da existência. Todavia, afirma Weil, não se pode pretender retornar aos bons
e velhos tempos antigos: o universal técnico, econômico e calculista é e deve
permanecer o nosso problema e não pode ser de forma alguma eludido.
O verdadeiro problema da universalidade reside só na sociedade mo-
derna mundializada e não contra ela. E se a política deve ter um sentido,
ela o encontrará na criação das condições externas (a realização da mun-
dialização da sociedade) necessárias à existência da liberdade universal dos
indivíduos na sua particularidade sensata para eles. Tarefa da política não
é fornecer um sentido, mas pôr as condições para um sentido.
Nisso, conclui Weil, está a sua grandeza e o ponto de encontro entre
história política e história da filosofia: “a realidade compreendida não é
mais o que era, e do pensamento incipt vita nuova”24.

Tradução do italiano de Judikael Castelo Branco


Revisão técnica de Marcelo Perine

24. Ibid., 239.

88
5. Religião e relações
internacionais em Eric Weil

Evanildo Costeski1

D entre todas as disciplinas sociais, políticas e humanas, a Teoria das


Relações Internacionais é certamente a mais “ateia”, a mais distante
das experiências religiosas: é como se a exclusão da religião estivesse es-
crita em seu código genético2. Jonathan Fox, professor da Universidade
de Bar-Ilan, Israel, constata que “a ignorância da religião é uma tendência
geral das ciências sociais ocidentais e sobretudo dos cursos universitários
de Relações Internacionais”3. Isso se deve sobretudo ao fato de as Relações
Internacionais modernas terem sua origem no tratado de Westfália, que
pôs fim às guerras religiosas, em 1648.
Afim de melhor compreendermos o tema proposto, seria interessante
identificar melhor o contexto em que se deu o referido tratado. Este, na
verdade, não pode mais ser considerado um simples tratado: tornou-se
um verdadeiro postulado do liberalismo político e da tolerância religiosa.
Segundo tal postulado, as religiões, quando levadas para o campo das Re-
lações Internacionais, geram intolerâncias, guerras, devastações e insur-

1. Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil.


2. Cf. P. Hatzopoulos; F. Petito, Ritorno dall’esilio. La religione nelle relazioni in-
ternazionali, Milano, Vita e Pensiero, 2006, 3.
3. J. FOX, Religion et relations internationales: perceptions et réalités, Politique étran-
gère, 4 (2006), 1060.

89
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

reições políticas, até provocar o colapso da ordem internacional. Deve-se,


por isso, separar o Estado das Religiões. Para o Estado moderno pós-
westfaliano, a privatização da religião e a secularização da política tor-
naram-se instrumentos indispensáveis para reduzir os conflitos religio-
sos e pôr fim à função destrutiva e sanguinária da religião nas Relações
Internacionais4. O Estado passou a ser visto como elemento racional, a
serviço do esclarecimento, em oposição aos sentimentos violentos e ir-
racionais das religiões. Estas pertenceriam a uma época das trevas feliz-
mente superada pela modernidade. Mas, se é assim, como entender os
atuais conflitos religiosos? Seriam igualmente irracionais e pertencentes
a um mundo pré-moderno, que precisaria ser “civilizado” pela razão do
Estado moderno? Mas o que é moderno?
Temos aqui uma clássica petição de princípio (petitio principii). As
religiões pré-modernas são violentas porque não são modernas. Como
observa Scott Thomas, professor de Teoria das Relações Internacionais
da Universidade de Bath, Inglaterra, há de fato uma confusão aqui: não
se pode buscar compreender as religiões pré-westfalianas com o conceito
moderno de Religião: “A religião da Europa no início da modernidade de-
veria ser entendida como comunidade de crentes e não como um corpus
de doutrinas e crenças, como a entende a modernidade liberal”5. O que se
defendia com as guerras das religiões não eram as doutrinas e as crenças,
mas uma ideia sagrada de comunidade compreendida através da religião.
Não se distinguia o sagrado do profano, o público do privado. Ora, com a
limitação da religião ao âmbito privado, perdeu-se igualmente a ideia de
comunidade, de sentido social, típico da cristandade medieval.
A Filosofia política de Eric Weil mostra muito bem essa perda de sentido
das comunidades tradicionais, diante de uma sociedade mecanicista, cal-
culista e economicista6. O sagrado da comunidade é sacrificado, em nome
do trabalho e do progresso econômico. Ora, sem o sentido tradicional da
comunidade, o homem fica sozinho, incompreendido e, por fim, comple-

4. Cf. S. M. Thomas, Prendere sul serio il pluralismo religioso e culturale. La ri-


nascita globale della religione e la trasformazione della società internazionale, in P. Hat-
zopoulos; F. Petito, Ritorno dall’esilio, op. cit., 35.
5. Cf. S. M. Thomas, op. cit., 37.
6. Cf. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola,
2011, 77-172.

90
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

tamente desesperado, na medida em que a promessa de bem-estar social


anunciado pela sociedade moderna acaba se tornando uma mera ilusão.
A questão das Relações Internacionais é tratada por Weil na última parte
de sua Filosofia política7. Para uma melhor compreensão deste texto, publi-
cado em 1956, acreditamos ser importante apresentar inicialmente uma
breve contextualização histórica da Teoria das Relações Internacionais.
O primeiro departamento de Relações Internacionais foi criado na Es-
cócia em 1917. A preocupação principal era estudar a guerra para evitar a
sua repetição, após o término da I guerra mundial. O principal teórico deste
primeiro período é Edward H. Carr que, com seu livro Vinte Anos de Crise
1919-1939, concentrou o primeiro grande debate na Teoria das Relações
Internacionais, entre os teóricos idealistas e os realistas8. Os idealistas pen-
savam a partir do dever ser kantiano. Buscava-se, através da ideia de uma
Liga de Nações, patrocinada pelo presidente americano Woodrow Wilson,
estabelecer a Paz na Europa e no mundo. Ora, a preocupação em apenas
criar princípios normativos ético-morais gerais para os Estados fez com que
os teóricos idealistas não percebessem a proximidade da segunda guerra
mundial9. Esta fez com que a maioria dos teóricos abandonassem o dever
ser normativo e passassem a estudar como o mundo realmente funciona-
va, assumindo uma perspectiva claramente realista. Em breve: enquanto os
idealistas queriam estudar o mundo para torná-lo mais pacífico, os realistas
pretendem agora estudar os meios à disposição dos Estados para simples-
mente garantir sua sobrevivência10. O grande livro de Hans Morgenthau,
publicado em 1948, A Política entre as nações, dá início à supremacia do
realismo nas Relações Internacionais durante os anos de guerra fria11.
Por ser a teoria dominante nos anos em que Weil desenvolve o seu pen-
samento, vale a pena destacar algumas premissas centrais do realismo: as
principais são a centralidade do Estado e a função do Poder para proteger

7. Ibid., 299-351.
8. E. H. Carr, Vinte anos de crise 1919-1939. Uma introdução ao estudo das Relações
Internacionais, trad. L. A. F. Machado e Prefácio de E. Sato, Brasília, Editora UNB, 2001.
9. Cf. J. P. Nogueira; N. Messari, Teoria das Relações Internacionais: correntes e
debates, Rio de Janeiro, Elsevier, 2005, 3-4.
10. Ibid., 4.
11. H. Morgenthau, A Política entre as Nações, trad. O. Biato e Prefácio de R. W.
Sardenberg, Brasília, Editora UNB, 2003.

91
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

os interesses do Estado e garantir sua sobrevivência, em uma sociedade


internacional essencialmente anárquica, entendida não como caos, mas
como ausência de um poder central. Os autores realistas se referem sem-
pre a Tucídides, Maquiavel e Hobbes como exemplos clássicos. De Tucí-
dides, por exemplo, destacam a guerra como tema central; de Maquiavel,
realista por excelência, é ressaltado o Estado como ator central da política;
enquanto de Hobbes, os realistas enfatizam, principalmente, o conceito de
estado de natureza, aplicado agora à sociedade internacional12.
Em síntese, o realismo torna-se de fato a corrente hegemônica na Te-
oria das Relações Internacionais do pós-guerra, ao menos nos países de
língua inglesa. Porém, isso não significa que o idealismo foi definitivamente
abandonado. Na verdade, as duas teorias se complementam. Isso é eviden-
te no caso de Weil. De um lado, temos a influência realista de Maquiavel,
presente, por exemplo, na ideia de autonomia da política e na visão do Es-
tado como ator central, sem falar da ideia weberiana de Estado, detentor
jurídico do monopólio da violência; de outro lado, encontra-se igualmente
no pensamento weiliano o idealismo e o universalismo da moral kantiana,
essencial para a compreensão da política13. Desse modo, o que vigora em
Weil é sobretudo a dialética entre Idealismo e Realismo.
No que diz respeito ao tema da religião, tanto o idealismo como o re-
alismo pouco têm a dizer. Para ambas correntes, a religião não acrescenta
nada à compreensão das Relações Internacionais. Sendo assim, temos que
procurar uma outra teoria, se quisermos continuar a refletir sobre o pa-
pel das religiões nas Relações Internacionais a partir da filosofia weiliana.
Poderíamos falar aqui da Escola Inglesa, que tem na obra de Hedley Bull,
A sociedade anárquica. A ordem na política mundial, publicada em 1977, a
sua referência principal14. Desde o seu início, no final dos anos 50, a escola
inglesa soube reconhecer nos diversos movimentos culturais — incluído
aí a religião — uma força considerável na formação da sociedade interna-
cional15. Todavia, apesar de contemporânea a Eric Weil, não encontramos

12. Cf. J. P. Nogueira; N. Messari, op. cit., 23-31.


13. Cf. E. Weil, Filosofia política, 33-76.
14. H. Bull, A Sociedade Anárquica. Um estudo da ordem na política mundial,
trad. S. Bath e Prefácio de W. Gonçalves, São Paulo, Imprensa oficial do Estado de São
Paulo, 2002.
15. Cf. S. M. Thomas, op. cit., 44-45.

92
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

traços dos autores desta Escola nos textos políticos de Weil. Mais próxima
de Weil encontra-se a teoria francesa das Relações Internacionais, que
tem em Pierre Renouvin e em Jean-Baptiste Duroselle os principais re-
presentantes, além, é claro, de Raymond Aron, amigo parisiense de Weil.
Falaremos depois sobre Raymond Aron. No momento, gostaríamos de
destacar o importante conceito de forces profondes, desenvolvido pelo
historiador francês das Relações Internacionais Pierre Renouvin. Será
esse conceito que nos permitirá falar da função positiva da Religião nas
Religiões Internacionais, a partir da filosofia weiliana.
Pierre Renouvin elaborará de forma sistemática o conceito de forces
profondes no livro Introdução à história das Relações Internacionais, pu-
blicado com seu discípulo Jean-Baptiste Duroselle em 196416. Contudo,
é importante frisar que esse conceito já está presente em seu livro sobre a
História da Primeira Guerra Mundial publicado em 1934, quando diz:

de um lado, são as tradições históricas, as condições geográficas e as orien-


tações sentimentais e, de outro lado, as preocupações econômicas, que dão
às relações entre as grandes potências sua fisionomia nesses primeiros anos
do século XX17.

Vale dizer que este importante livro de Renouvin era certamente conhe-
cido por Weil, pois há um exemplar do mesmo no acervo de sua biblioteca
pessoal18. Ademais, é interessante observar que Jean-Baptiste Duroselle,
discípulo direto de Renouvin, ensinou na Universidade de Lille nos anos
de 1957-5819, onde já se encontrava Weil.
Mas o que seriam as forces profondes? Além das relações propriamente
ditas dos Estados, centralizadas principalmente nos homens de governo e
na diplomacia, existem forças que determinam os povos e, enfim, as pró-

16. P. Renouvin; J.-B. Duroselle, Introduciton à l’histoire des relations internatio-


nales, Paris, Armand Colin, 1991.
17. P. Renouvin, La crise européenne et la première guerre mondiale, Paris, PUF, 1948,
131. Sobre a história do conceito de “forces profondes”, ver R. Frank, L’historiographie
das relations internationales: des “écoles” nationales, in R. Frank, Pour l’histoire des rela-
tions internationales, Paris, PUF, 2012, 5-20.
18. Eric Weil doou sua biblioteca pessoal para a Universidade de Lille 3. O seu acervo
pode ser consultado através do site: <http://eric-weil.biblio.univ-lille3.fr/>.
19. Cf. R. Frank, op. cit., 14.

93
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

prias tomadas de decisões dos homens de Estado. Essas podem ser tanto
“forças materiais” — fatores geográficos, condições demográficas, forças
econômicas — como “forças espirituais” — sentimento nacional, senti-
mento pacifista e o próprio sentimento religioso —. Eric Weil, no início da
quarta parte de sua Filosofia política, cita claramente as forças profundas
“materiais”, ao dizer que os Estados nacionais consideram “como elemen-
tos perturbadores as condições exteriores, as forças relativas dos Estados,
a situação geográfica, os dados econômicos, demográficos etc.”20.
O que temos que esclarecer, de acordo com o nosso tema, é se as re-
ligiões podem de fato ser consideradas como forças profundas determi-
nantes nas Relações Internacionais. É verdade que Renouvin evitou clas-
sificar a religião como um tipo de force profonde específica. Ele até ad-
mite que o sentimento religioso tem sua importância para se compreen-
der, por exemplo, os movimentos nacionalistas e pacifistas, todavia, ele
confessa ser praticamente impossível classificar o discurso religioso, pelo
fato de o mesmo se referir a um mundo transcendente, inacessível ao pon-
to de vista do historiador:

Como compreender a mentalidade religiosa de um grupo humano sem par-


ticipar, por uma experiência pessoal, de suas convicções? O descrente fre-
quentemente tem a tendência de tratar com desprezo as manifestações que
lhe parecem vãs ou mesmo hipócritas. E como, ao participar de tais crenças,
abordar o estudo com espírito crítico, sem ser conduzido inconscientemente
por pontos de vistas convencionais? Essa é uma área em que a interpretação
requer mais comedimento e cautela que em outros lugares21.

Jean-Baptiste Duroselle era em princípio mais sensível à influência


política da religião. Ele dedicou a sua tese de doutoramento em história
política ao estudo do catolicismo social francês no século XIX22. Porém,
infelizmente, ele praticamente abandonou o tema da religião em seus es-
critos posteriores23. A religião tampouco merecerá a atenção dos discípulos

20. Cf. E. Weil, Filosofia política, 299.


21. Cf. P. Renouvin; J.-B. Duroselle, op. cit., 234. Ver também R. Frank, Religion(s):
Enjeux internationaux et diplomatie religieuse, in R. Frank, op. cit., 407.
22. J.-B. Duroselle, Les débuts du catholicisme social en France 1822-1871, Paris,
PUF, 1951.
23. É o caso, por exemplo, de seu principal texto teórico, cf. J.-B. Duroselle, Todo
império perecerá. Teoria das Relações Internacionais, Brasília, Editora UNB, 2000.

94
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

imediatos de Renouvin e Duroselle. Serão as forças profundas econômicas


que dominarão o debate nos anos de 1960 e 1970, influenciadas evidente-
mente pelo discurso marxista dominante na época. Posteriormente, será
dada igualmente uma atenção especial às pressões da opinião pública24.
As ações religiosas nas Relações Internacionais terão algum destaque
apenas nos trabalhos de Robert Frank, professor da cátedra de História
das Relações Internacionais da Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne
de 1994 a 2012, ocupada anteriormente por René Giraut, Jean-Baptiste
Duroselle e Pierre Renouvin. No livro Pour l’histoire des relations interna-
cionales, Robert Frank dedica todo um capítulo ao estudo das influências
das religiões cristãs, judaica e muçulmana, entendidas justamente como
forces profondes nas Relações Internacionais atuais25.
Passemos, agora, ao conceito de religião em Weil, aplicado às Rela-
ções Internacionais. Antes de tudo, podemos perguntar: em que sentido
podemos falar de uma Teoria das Relações Internacionais em Eric Weil?
Raymond Aron, em seu artigo “Que é uma teoria das Relações Interna-
cionais”, publicado incialmente em inglês em 1967 e depois em francês no
livro Études Politiques, de 1972, distingue dois sentidos da palavra Teoria:
uma teoria entendida como conhecimento contemplativo, percepção de
ideias ou da ordem essencial do mundo e uma teoria voltada ao mundo
empírico, científica por natureza. A primeira, filosófica, apresenta um
conhecimento eminentemente teórico, sem pretensão de constituir uma
doutrina científica do mundo: “Quanto menos prático for um conheci-
mento, quanto menos sugira ou permita a manipulação do seu objeto,
mais será considerado teórico”26.
O segundo conceito de teoria conduz necessariamente ao conheci-
mento científico, cujo modelo primordial é a física e a matemática. Esse
e o sentido aplicado à Teoria das Relações Internacionais moderna. To-
davia, não é esse sentido que se deve aplicar a uma teoria filosófica das
Relações Internacionais, como é o caso do pensamento weiliano. Como

24. Cf. R. Frank, op. cit., 17-21.


25. R. Frank, Religion (s): Enjeux internationaux et diplomatie religieuse, in R.
Frank, op. cit., 407-435.
26. Cf. R. Aron, Estudos políticos, trad. S. Bath; Prefácio de J. G. Merchior e Apre-
sentação de R. Kuntz, Brasília, Editora UNB, 1985, 376.

95
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

nota Frédéric Ramel, em seu livro Philosophie des Relations Internatio-


nales, publicado em 2002:

A filosofia das relações internacionais não visa elaborar uma lei ou indivi-
dualizar regularidades suscetíveis a dar lugar a generalizações científicas. Ela
consiste, sobre a base de uma antropologia e de uma definição da natureza
humana (…), em conduzir uma reflexão geral sem referência a um apare-
lho metodológico ou a um recurso de hipóteses destinadas a ser verificadas.
Trata-se de representar o mundo internacional em um caráter normativo
ou puramente contemplativo27.

No caso específico de Weil, podemos falar apenas de uma filosofia ou


theoria das relações internacionais puramente contemplativa, sem apelar
positivamente para uma normatização internacional. Trata-se de um sa-
ber especulativo puro que poderá, certamente, oferecer algumas hipóte-
ses para ações políticas, as quais, vale dizer, deverão permanecer sempre
como hipóteses, sem uma vinculação normativa necessária. Esse é o caso,
por exemplo, da teoria do Estado mundial.
Como se sabe, para Weil, apenas um Estado mundial, ou seja, uma
organização capaz de preservar tanto a universalidade da sociedade mun-
dial como as particularidades dos Estados nacionais, pode resolver poli-
ticamente o problema da violência. Porém, mesmo nesse caso, a questão
do Sentido ou da theoria permanece ainda aberto. Diz Weil:

Este sentido está além da sociedade, da política, da própria educação. Está


além de toda ação, pois toda ação visa a um fim que ela não contém, e li-
mita-se a preparar as condições de uma satisfação que não será da natureza
do que a prepara. (…) a satisfação mesma só se encontrará no que não é
mais ação: ela consiste na theoria, na visão daquele sentido cuja realidade
é pressuposta pela busca e pela ação, por toda questão e por todo discurso,
mesmo pelo discurso que o nega28.

Do ponto de vista filosófico, o Sentido encontra-se, portanto, no fim


da história, entendida como história política mundial, como Weltgeschichte.
É o que Weil diz, usando termos hegelianos, em um texto publicado pos-

27. Cf. F. Ramel, Philosophie des Relations Internationales, Paris, Presses de Sciences
Po, 2002, 11 nota 4.
28. Cf. E. Weil, Filosofia política, 348-349.

96
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

tumamente em 197929. É verdade que o Espírito Absoluto se torna aces-


sível ao indivíduo por meio do Estado, porém, isso não significa que ele
se reduz à história política. Ele é visto por Hegel como “imagem e reali-
dade orgânica desenvolvida da razão efetivamente real”, mas é esta rea-
lidade somente “para a consciência de si”, e não é, pois, vivenciado no
“sentimento e na representação desta sua verdade como essencialidade
ideal”, que é só reservada à religião e à filosofia30.
O Estado é realmente a consciência do indivíduo como ser livre. En-
tretanto, como Weltgeschichte, o Estado, incluindo aí a hipótese do Estado
mundial, realiza apenas o Espírito Objetivo, não o Espírito Absoluto. Ou
melhor, ele realiza o Espírito Absoluto enquanto Espírito Objetivo, sujeito,
como tal, às contingências e arbitrariedades violentas da história. Temos
aqui, então, uma outra história, pensada como fim da história política,
uma história do Espírito Absoluto, da Ideia eterna, sempre presente na
história política, mas compreendida como meta-história, como fim da
história na história, como história do Espírito Absoluto, vivido através
da arte, da religião e, por fim, da filosofia, como saber especulativo puro,
como theoria31. A theoria não pode ser formulada sem a arte e a religião.
É a famosa tríade hegeliana que deve ser levada a sério aqui32. O filósofo
é, acima de tudo, um indivíduo que se encontra em meio a outros indi-
víduos, em uma comunidade, constituída por diversas forças profundas,
entre as quais encontram-se mormente a arte e a religião.
Na última parte da Filosofia política, Weil cita quatro vezes o termo
“religião”33, sempre junto com a moral, a arte, a poesia, a ciência etc.,
ou seja, nunca de forma isolada. Isso significa que a religião não pode
ser considerada de forma exclusiva, mas como uma parte essencial da
comunidade, e que deve, portanto, ser apreciada como tal, isto é, como
uma particularidade dentro de um Todo.

29. E. Weil, La “Philosophie du Droit” et la philosophie de l’histoire hégélienne,


Philosophie et réalité I, Paris, Beauchesne, 1982, 147-166.
30. Ibid., 160.
31. Ibid., 166. Sobre isso ver, também, E. Weil, Philosophie politique, théorie po-
litique, Essais et conférences II, Paris, Vrin, 1991, 418-420.
32. Cf. E. Weil, Violence et Langage, in J. Quillien, Cahiers Eric Weil, Lille, Presses
Universitaires de Lille, 31.
33. Cf. E. Weil, Filosofia política, espec. 335, 336, 350.

97
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O discurso uno do filósofo, justamente porque é um Todo orgânico,


não pode prescindir das particularidades. A religião, como particulari-
dade, tem uma função essencial, tanto para o discurso filosófico quanto
para a política nacional e internacional. Mas qual seria essa função? Para
tentar esclarecer melhor esse ponto, utilizaremos o texto “Religião e Po-
lítica”, publicado por Weil em inglês em 1955, na revista Confluence: An
International Forum, dirigida à época por Henry Kissinger34.
Weil aceita em princípio as teses hegemônicas do mundo pós-westfa-
liano. O Estado tem autonomia diante das religiões, as quais devem se
ocupar apenas do âmbito privado. Na verdade, acrescenta Weil, as ideias
“de neutralidade política (ou neutralidade da política) e da autonomia da
religião e da moral não são invenções próprias de nossa época. Elas estão
presentes na De Civitate Dei de Santo Agostinho, como estão presentes
na distinção feita pelo Novo Testamento entre as coisas que pertencem
a Deus e aquelas que pertencem a Cesar”35.
A questão é saber o que exatamente pertence a Deus e o que é de Cé-
sar. As ideias, os valores, tudo isso que dá sentido à vida humana, encon-
tra-se fora do domínio da política. As Igrejas e as organizações religiosas
têm indubitavelmente uma função importante na política, não porque
participam diretamente do poder político, mas porque, como forças pro-
fundas, influenciam o pensamento do cidadão e suas escolhas políticas.
O que as religiões precisam buscar, antes de tudo, não é o poder, mas a
liberdade, para que os indivíduos ajam de acordo com suas convicções,
respeitando a autonomia da política e do Estado.
Com o processo de laicização e de secularização no ocidente, o conflito
não é mais entre o Estado e as Igrejas, mas entre o Estado e o que se chama
de consciência individual, voltada, essencialmente, para os valores últimos
da vida. Desse modo, o campo de batalha não é mais pelo poder temporal,
mas pela consciência dos homens. Um ponto, ao menos, apresenta-se como
claro. Tanto os Estados democráticos liberais como as Igrejas concordam

34. Cf. E. Weil, Religion and Politics, in Confluence: An International Forum, IV,
n. 2 (1955) 202-214; tradução francesa de L. Nguyen-Dinh, in Le temps de la réflexion II,
Paris, Gallimard, 1981, 184-195; depois publicado in Cahiers Eric Weil IV, Lille, Presses
Universitaires de Lille, 1993, 103-114.
35. Ibid., 108-109.

98
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

que os homens não podem viver sem uma crença subjetiva, sem qualquer
valor que não seja apenas um meio, mas um fim em si. É necessário, por-
tanto, estabelecer um acordo.
Esse “acordo” pressupõe uma base comum, pensada já por Santo
Agostinho: o conceito de paz. Santo Agostinho, que conheceu a pax roma-
na, levou esse conceito para o mundo cristão. Todas as nossas discussões
políticas e religiosas giram em torno desse ponto. É a paz que dá sentido
aos projetos políticos e aos movimentos religiosos36.
A partir desse ponto, Weil apresenta, no final do artigo, uma importante
distinção — essencial para a relação Religião e Política e, em particular,
para a Teoria das Relações Internacionais —, entre a religião tradicional,
teológica e dogmática, e a que ele denomina de religião formal, seculari-
zada. Na verdade, a religião é formal apenas para a sociedade moderna.
Em si mesma, ela é sempre dogmática e teológica. Entretanto, é um fato
que as religiões almejam ser reconhecidas pela sociedade. Por isso, que-
rem que seus conteúdos tradicionais sejam razoavelmente válidos. Ao ní-
vel formal, elas estabelecem a paz, a verdade e a liberdade como critérios
razoáveis últimos da comunidade.
A questão é saber até que ponto a religião está realmente propensa
à paz. Devemos relembrar aqui uma das principais conquistas da paz de
Westphália: a prática da tolerância ou, mais precisamente, o direito à to-
lerância. Não se pode ter tolerância com quem não exerce a tolerância. A
tolerância só é possível quando ela é recíproca. A tolerância significa que
a discussão é o único método pela qual os grupos ou religiões poderão
eventualmente mudar suas convicções. Se um indivíduo ou um grupo re-
ligioso não está pronto para se submeter à discussão segundo as leis bem
conhecidas e determinadas pela sociedade e pelo Estado que o representa,
ele pode até ser tolerado, mas não tem nenhum direito à tolerância.
Nota-se, então, que o conceito formal de religião não é assim tão formal
como parece. Apesar de visar a paz universal e de tê-la como instrumento
principal para a transmissão de sua mensagem, toda religião possui um
conteúdo particular. Este pode, em alguns momentos, descambar para a
intolerância e a prática da violência. O mesmo pode ser dito em relação

36. Ibid., 109-110.

99
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ao Estado. Por exercer o monopólio da violência, o Estado moderno tam-


bém é propenso ao exagero.
Tanto o Estado como as religiões mantêm um vínculo estreito com a
violência. Isso faz com que a Religião e a Política estejam sempre ligadas,
apesar do abismo que há entre ambas. Religião e Estado não estão sepa-
rados como os polos de uma pilha. A religião é inerente a nós ocidentais
e nós construímos o Estado com o mesmo material formador das religi-
ões, a saber, a violência. A diferença é que os homens de Estado usam do
poder para criar um mundo organizado em vista de uma maior eficácia,
enquanto os homens religiosos colocam a paz universal como objetivo a
ser alcançado. Entretanto, no final das contas, são os homens religiosos
que constroem a máquina do Estado, mesmo que os atuais detentores
do poder ignorem ou protestem contra as influências religiosas na polí-
tica e nas Relações Internacionais. Os Estados não podem deixar de ser
religiosos, já que são também compostos por homens religiosos que bus-
cam agir positivamente segundo valores últimos. Cabe a religião, como
um tipo de força profunda ou dinâmica dentro da sociedade, orientar
os meios. Ora, se ela pode orientar os meios, isso significa que ela não é
um simples meio. De fato, ela é um fim, justamente por propor valores
universais. Esta verdade evidente é frequentemente esquecida até pelos
homens religiosos, pois traz um problema: as armas de batalha, os meios
utilizados, como tais, não pertencem ao mundo religioso, mas ao mundo
da política. Se o homem religioso quiser agir na política, terá que utilizar
as armas de seu adversário. Terá que agir e combater a violência com a
própria violência. O religioso pode ser um santo, mas se escolher agir
para criar um mundo onde poderá viver santamente, ele precisará agir
contra a violência com força e decisão, sem medo da violência, no nível
da própria violência. A paz é universal, mas os meios são particulares.
Devemos admitir, enfim, que todos os meios são permitidos e justifica-
dos? Não se pode chegar a essa conclusão. Só podemos ser responsáveis
pelos meios que escolhemos em vista de nossos fins, não por aqueles que
nos são impostos. Não podemos esquecer que o objetivo final é o fim do
conflito entre os meios e os fins, o que implicaria o fim da diferença entre
Religião e Política, e entre Igreja e Estado, não através de uma nova cris-
tandade, mas por meio de um mundo moralizado e sem violência, sem

100
5. Religião e relações internacionais em Eric Weil

Estado e sem Igrejas. Enquanto isso não acontecer, temos de ter atenção
para não usar de meios violentos em vista de fins que não escolhemos.
Os homens religiosos têm direito de usar da violência para defender
sua religião, mas não podem em nenhum caso utilizar da violência para
alcançar fins religiosos, ou seja, buscar impor conteúdos particulares a
todos os homens e mulheres, religiosos ou não37.
Weil pensa a partir da religião cristã. Mas os princípios são os mesmos
para as demais religiões. A Teoria das Relações Internacionais pode e deve
acolher a reflexão religiosa em seu meio, como um tipo de força subjacente
ou força dinâmica, agindo sobre as consciências individuais dos atores in-
ternacionais. Ademais, o Estado moderno não pode simplesmente destruir
os sagrados religiosos das comunidades, como almejou fazer o tratado de
Westphália. A diferença, em relação ao mundo pré-westphaliano, é que
não existe nas comunidades modernas espaço para uma religião única,
para uma nova cristandade ou califado mundial. O que deve ser defen-
dido aqui, do ponto de vista formal, é o pluralismo religioso e moral, em
vista da paz e da justiça. Esse é um dos principais desafios para a Teoria
das Relações Internacionais e para a filosofia política no século XXI.

37. Ibid., 111-114.

101
6. O Estado à prova dos
novos discursos da Obra

Luís Manuel A. V. Bernardo1

[…] pode-se dizer que todo o trabalho de uma


lógica aplicada da filosofia consiste na compreensão
dessas retomadas de antigas categorias que formam
a linguagem e os discursos (não coerentes, embora
se pretendam coerentes) dos homens2.

Q uando em 2009, me convidaram para participar no Congresso In-


ternacional “Terror and the Challenges to Nation-State”, que teve
lugar na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova
de Lisboa, fui levado a ponderar as potencialidades da filosofia de Eric
Weil para conceptualizar um fenômeno historicamente tão complexo e
melindroso como o terrorismo. Para mim, tratava-se de conseguir iden-
tificar alguns dos traços essenciais do terror, de perceber o modo como
eles se articulam para provocar um efeito tão violento e disruptivo nas
sociedades onde ele ocorre e, de questionar, por via das conclusões a que
viesse a chegar, algumas leituras que se me afiguravam abusivas, nomea-
damente, no modo como reconduziam a história a uma luta inexorável
entre duas facções, cujas características se encontram fatal e necessaria-
mente definidas, fruto da eleição de um determinado credo religioso.
Claro está que o fato de o filósofo ter passado pelos horrores do na-
zismo, sobre os quais, inevitavelmente, foi chamado a refletir, constituía

1. Universidade Nova de Lisboa, Portugal.


2. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. L. C de Malimpensa, São Paulo, É Realizações,
2012, 123 (itálicos do autor). Doravante Lf.

103
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

uma espécie de garantia de que deveria encontrar no seu pensamento


pontos de ancoragem para a minha própria reflexão, mas essa antecipa-
ção não deixava de vir acompanhada pelo receio de um eventual impasse
de fundo. É que, ao contrário de outros, em idênticas circunstâncias, que
orientaram toda a sua produção para servir de testemunho do holocaus-
to, Weil, aparentemente, dedicara-lhe, de modo indireto, uma categoria
da Lógica da filosofia, discutira uma ou outra questão filosófica, como a
do caso Heidegger, ou a da existência do mal radical, preferindo, antes,
discutir em que condições seria ainda viável perpetuar o mundo histó-
rico que a tradição filosófica concebera. Estaria, assim, uma perspectiva,
apostada em mostrar que o futuro da humanidade, depois de Auschwitz,
podia e devia continuar a seguir os padrões de racionalidade requeridos
pela filosofia, apta a contribuir para a minha tentativa de encontrar um
certo tracejamento lógico, por mais incipiente que fosse, dessas novas
formas concretas de uma violência tão extrema, nos atos e nas narra-
tivas, que nos remetem, volens nolens, para o terror totalitário? A esta
minha dúvida de caráter geral juntavam-se alguns outros motivos, que
importa, também, explicitar: na verdade, o autor não deixou nenhum
escrito dedicado explicitamente ao tema do terrorismo; a dimensão de
universalidade que pretendeu conferir ao seu discurso filosófico pode-
ria resistir ao esforço de uma hermenêutica que quereria lidar com um
universal concreto, enquanto o exercício dialético que a atravessa seria,
eventualmente, impeditivo do propósito de tipificação que nos assistia;
a sua adoção sistemática de um ponto de vista racional supunha que a
reflexão fosse orientada de modo diverso daquele, de cariz sentimental,
que dominava entre os principais estudiosos, predispostos sobretudo a
valorizar termos como a empatia, o respeito ou a confiança.
Todavia, rapidamente, cheguei à conclusão de que essa filosofia, com
toda a probabilidade, por uma tal combinação de realismo e de otimismo,
de formalismo e de concretismo, bem como por se constituir numa bus-
ca do sentido do sentido, permitia uma leitura do fenômeno em causa, a
qual, tal como esperava, apontava para a existência de uma certa lógica
operativa, plasmada na Lógica da filosofia, e, mais especificada na sua te-
oria do Estado Moderno, exposta na Filosofia política. Assim, tornava-se
possível identificar uma dialética entre o que considerei ser uma espécie

104
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

de razão comum a certos tipos de violência e o que há de violento, para


os indivíduos, na realização de um mundo razoável.
Estas considerações integraram, posteriormente, um artigo, publicado
no Reino Unido3, e, provavelmente, teriam encerrado o meu contributo
para a questão, se não tivesse ocorrido uma evolução histórica que, infeliz-
mente, parece ir ao encontro do fulcro da minha argumentação, apostada
em destacar um tipo que o terrorismo partilharia com outras formas de
violência insana, como aquela banalizada pelos totalitarismos: a passa-
gem de um terrorismo oportunista, orientado para uma violência cujo
efeito aterrorizador depende mais da intensidade e da ocasionalidade do
que da continuidade e da totalidade, para um terrorismo assumidamente
totalitário, organizado institucionalmente na forma que pretendia com-
bater, isto é, no que, em homotesia, a si mesmo designou como “Estado
Islâmico”. É, assim, a percepção de que o aparecimento deste “Estado”,
com uma dinâmica assumidamente destrutiva, totalitária, expansionista e
imperialista, recriando gestos de anátema civilizacional, cuja intolerância
é intolerável, na acepção de Ricoeur, representa um perigo de um outro
calibre para o que resta do “projeto inacabado da modernidade”, na ex-
celsa expressão de Habermas, que está na origem deste ensaio, no qual
volto a suscitar a questão da existência de uma certa lógica do terror, na
esperança de que essa forma de problematizar possa lançar alguma luz
sobre o curso concreto da história.
Note-se que, neste caso, o recurso ao terror parece formar o cerne da
estratégia de intervenção e de combate deste “Estado”, incluindo o caráter
imediato e impositivo da sua criação, contrapondo-se à complexidade do
devir histórico dos Estados-Nação, pelo que se esboroa o argumento de
que o terrorismo é um epíteto atribuído pelos “outros”. Por sua vez, este
desenvolvimento torna ainda mais premente a ideia de que os terroris-
mos não são só uma consequência do mau funcionamento interno dos
Estados democráticos, ou da intransigência dos Estados tradicionalistas
ou totalitários, perante uma inevitável transição para a modernidade, mas

3. Cf. L. M. A. V. Bernardo, “Reasons of Violence, Violence of Reason: an Inter-


pretation based on Eric Weil’s Core Paradox”, in D. P. Aurélio; J. T. Proença (orgs.),
Terrorism: Politics, Religion, Literature, Newcastle upon Tyne, Cambridge Scholars Pu-
blishing, 2011, 35-67.

105
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

que, em determinadas condições, assumem a pretensão de constituir uma


alternativa que, à semelhança da revolução, se situa inequivocamente no
plano político, pelo que “não chega afirmar o que lhes parece justo, é pre-
ciso que consigam levar a sua causa até à vitória”4. Deste modo, parado-
xalmente, tendem para um processo de institucionalização, que os leva a
jogar, ao mesmo tempo, no tabuleiro da violência e no da razão, de acordo
com uma certa lógica que, por mais idiossincrática que se possa revelar, se
torna ponderável em função daqueles critérios de racionalidade que terão
pretendido contestar. De meras contingências, tornam-se, então, poten-
cialmente, referíveis ao que Weil designou como uma atitude pura5, isto
é, uma certa congruência do e no agir que está em correlação com uma
categoria lógica pura, um desses “centros de discurso a partir dos quais
uma atitude se expressa de modo coerente”6. Se assim for, o terrorismo,
como todo o fenômeno humano, não só “apresenta um lado compreen-
sível para o discurso que busca compreendê-lo”7, como passa a poder ser
compreendido a partir de uma certa categoria/atitude logicamente iden-
tificável, enquanto pertencente à própria lógica da filosofia.
Torna-se, por conseguinte, pertinente, ao que creio, procurar uma com-
preensão do sentido deste processo, que vise identificar essa lógica, associada
à ideia de uma violência, querida como tal. Para esse exercício zetético, em
torno de algumas hipóteses teóricas, cuja validade se esgota no modo como
conseguirem produzir algum esclarecimento, proponho-me, então, regressar
ao diálogo com a Lógica da filosofia de Eric Weil, de modo a explorar, ainda
que incipientemente, as potencialidades elucidativas dessa zona intermé-
dia, designada pelo autor como uma “lógica aplicada da filosofia”.
Na verdade, creio que é nessa obra matricial que se encontra a chave
filosófica para o aprofundamento que procuro, tendo em consideração
que, aí, a sua defesa da racionalidade, levada a cabo, positivamente, por
via de uma inquirição do sentido, que perpassa os sentidos propostos pe-
los discursos filosóficos categoriais, e da sabedoria, que a consideração das
várias sabedorias, sugeridas como atitudes modelares por cada um desses

4. E. Weil, Essais et conférences II, Paris, Vrin, 1991, 372.


5. Lf 105.
6. Lf 212 nota 1.
7. Lf 107.

106
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

discursos tipo, permite acolher, se encontra dobrada por uma não menos
significativa ponderação do lugar que, em geral e em cada categoria/atitude,
cabe à violência, incluindo aquela que resulta do próprio exercício da razão.
Reflexão sobre a coerência requerida pela vontade de construir um mundo
razoável, a filosofia de Weil não o é menos sobre essa alternativa desrazoá-
vel, da qual, por vezes, a razão depende, como condição necessária do seu
devir, outras vezes, gera, no seu afã de reduzir o curso próprio da história
à utopia das suas expectativas discursivas, mas, sempre, tem de considerar,
para poder ser mais do que um angelismo inconsequente. É que, como
estabelece o autor, “a razão é uma possibilidade do homem: possibilidade,
isso designa o que o homem pode, e o homem pode certamente ser razo-
ável, ao menos querer ser razoável. Mas isso é apenas uma possibilidade,
não uma necessidade, e é a possibilidade de um ser que possui ao menos
outra possibilidade. Sabemos que essa outra possibilidade é a violência”8. A
tomada de consciência desta dualidade, radicada na liberdade fundamental
do humano, implica uma responsabilidade por parte do filósofo. Como
resume Giusi Strumiello: “Consequentemente, o filósofo não se limita a
interpretar o mundo, para parafrasear Marx, mas age e opera para mudá-
lo, para neutralizar, pelo menos parcialmente, a violência. E a filosofia é
também e sobretudo a reflexão (logo: um metadiscurso) sobre o sentido
e sobre a possibilidade dessa intervenção e dessa prática”9.
A Lógica da filosofia oferece-se, consequentemente, como uma lógica
da luta contra a violência, no que esta tem de não razoável, na dupla acep-
ção de irracional e de insensata, e, por isso, leva a cabo, mais ou menos
explicitamente, em paralelo, uma “Lógica da Violência”, dessa violência
que se relaciona dialeticamente com a razoabilidade, porque ambas são
possibilidades do homem que pode, a qualquer momento, escolher uma
ou outra. Como o autor esclarece:

O outro da verdade não é o erro, mas a violência, a recusa da verdade, do


sentido, da coerência, a escolha do ato negador, da linguagem incoerente, do

8. Lf 87. Para uma análise circunstanciada deste tema, vide M. Perine, Filosofia e
violência. Sentido e intenção da filosofia de Éric Weil, 2ª ed. totalmente revista, São Paulo,
Loyola, 2013.
9. G. Strummiello, Filosofia e Metafilosofia in Eric Weil, in A. Vestrucci (ed.), Eric
Weil: Violenza e Libertà. Scritti di morale e politica, Milano, Mimesis, 2006, 109.

107
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

discurso técnico que serve sem se perguntar para quê, o silêncio, a expressão
do sentimento pessoal e que se pretende pessoal10.

Assim, uma boa parte da aptidão da proposta filosófica de Weil para


produzir um esclarecimento particular de processos nos quais impera
a violência, mesmo aqueles paroxísticos, como aspira a sê-lo, e assim
nos se nos afigura, hoje o terrorismo, é o resultado deste entendimento.
Por um lado, ao conceber a violência como uma possibilidade efetiva
do humano, que não apenas um acontecimento episódico ou residual,
fruto da ignorância, da deficiente configuração do caráter, ou de um so-
bressalto inexplicável e anormal do curso da história, Weil obriga-nos a
dar-lhe todo o peso de uma alternativa que, em geral, não é a exceção,
mas a regra, de que o verdadeiro caso excepcional é o mundo pensado
pela filosofia, com a sua versão de uma racionalidade vocacionada para
limitar progressivamente o império da violência.
Esta assimetria explica-se pelo fato de os homens viverem no interior
de atitudes particulares, mais ou menos complexas, mas que, em si mesmas,
limitam o acesso à visão universal. Deste modo, se a razão é desejável, a vio-
lência, para além de constituir o fundo real, a partir do qual e contra o qual
se define esse desejo, pode, também ela, determinar um tipo de satisfação:
é esta possibilidade chocante que a filosofia de Weil nos obriga a enfrentar,
a qual, a ser correta, implica que o terrorismo deva ser pensado, antes de
mais, como uma expressão de uma tal possibilidade fundamental de optar,
deliberadamente, e com conhecimento de causa, por um regime de pura
violência, regendo-se, consequentemente, por uma certa lógica que advém,
antes de mais, dessa escolha da violência da violência, pela violência.
Desta feita, ainda que, por vivermos numa história que decorre do
plano que a grande narrativa filosófica sobre o valor da razão foi gizando,
em torno de ideais universalizadores, sejamos levados a concebê-la como
a história de uma violência contida, sublimada ou ultrapassada, até se tor-
nar marginal, confundindo-a com um devir único e inexorável, impõe-se
reconhecer que, na realidade, essa mesma história é tanto a história da ra-
zão, quanto a da violência, de tal modo que, diacrônica e sincronicamente,
configurações de maior racionalidade alternam com outras de extrema

10. Lf 99.

108
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

violência, sem que se possa garantir a continuidade ou a exclusão de uma


ou de outra. Para além do mais, o que, desde logo, deverá surgir como ele-
mento constitutivo de qualquer compreensão de terrorismo corresponde,
precisamente, a esta irrupção abrupta de uma violência sem sentido, através
de um conjunto de gestos extremos, que, para aqueles que os defendem,
pretendem fazer todo o sentido pelo que neles carece de qualquer razoabi-
lidade, no seio de uma ordem que procura a sua principal justificação no
que há de sensato em ter a violência controlada, nomeadamente por via da
sua entrega ao monopólio estatal. Não será este paradoxo de uma violên-
cia totalmente desrazoável que se quer validada como razão suprema por
escapar à lógica da racionalidade que supõe, assim, o ato sempre justifica-
do pelo seu próprio evento, o que converte o medo em terror? Não estará
o terror vivido situado naquela mesma zona que Weil designou como o
pathos do filósofo, o “medo do medo”11, que não cabe interpretar como o
receio de impreparação para enfrentar o medo ou de covardia face à vio-
lência exterior, mas, eventualmente, se esta minha leitura for adequada,
como o temor de não chegar a conseguir fazer valer o sentido da escolha
da razão, deixando um espaço suficiente amplo para o terror?
Todavia, esta tese, sustentada de um ponto de vista que se quer uni-
versal, sobre duas possibilidades em geral do humano, corre o risco de
se revelar quase uma tautologia se não houver maneira de lhe atribuir
um conteúdo lógico, à semelhança daqueles que Weil vai expondo na sua
sequência de categorias/atitudes lógicas para as várias mundividências
admitidas pela discursividade filosófica. O interesse no diálogo com a
filosofia de Weil sobre este tema não está apenas em estabelecer que o
homem é chamado a escolher entre a violência e a razão, o que a rigor,
se bem que de outras maneiras, foi sempre dito pelas várias filosofias,
mas, igualmente, em testar se um tipo de mundividência, decorrente da
escolha da violência, é sustentável, nos mesmos termos que estruturam
formalmente os discursos filosóficos, ou seja, como horizonte de sentido
e como proposta de sabedoria. Dito de modo mais direto: uma enun-
ciação, que quer influir sobre a realidade e o pensamento dos seres hu-
manos, de modo não discursivo, logo, sem se ater a preocupações com
a contradição, a coerência ou a razoabilidade dos enunciados de base,

11. Lf 34.

109
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

assim, apostada, por completo, em fazer valer a força bruta dos atos ou
das palavras, independentemente de uma orientação que transcenda a
mera e constante afirmação da vontade de domínio, pode chegar a for-
mar uma certa ordem que valha, em determinadas circunstâncias, como
modo de vida, individual e/ou coletivo? Pode o que, segundo um critério
de racionalidade, carece de sentido, fazer de alguma forma sentido, desde
que enunciado e pensado como violência escolhida?
Ora, se Weil não trata diretamente do terrorismo, em contrapartida,
prevê, na sua Lógica da filosofia, uma categoria/atitude que dá conta da
coerência dessa possibilidade de escolher a violência, não na ignorância
da razão filosófica, nem em consequência de um anacronismo histórico,
ou por via da recusa da modernidade, mas em si mesma, no que há de
puramente violento na violência escolhida, tanto no que respeita ao dis-
curso, quanto no que cabe ao agir, “uma violência total, não menos total
que o discurso, e que nada conhece fora dela mesma”12. Esta categoria/
atitude de “uma violência presente”13 é designada pelo autor como a Obra
e surge, significativamente, em espelho com aquela que leva a filosofia até
ao extremo da sua coerência discursiva e institucional, o Absoluto. Se o
Absoluto induz uma espécie de autocracia do pensamento, que tende a
asfixiar os indivíduos na sua individualidade, ao subsumir toda a parti-
cularidade numa figura da dialética da razão, a Obra corresponde a um
totalitarismo do obrar que supõe a criatividade suprema da violência,
enquanto violência, fazendo do indivíduo, na absoluta afirmação da sua
individualidade, expressa na unicidade de cada gesto e de cada enuncia-
do, o obreiro14, líder ou mártir, a cuja criação imediata tudo o mais se
deve vergar. Como escreve Weil, nela, por conseguinte, “a violência está
presente — oculta, confessa, estampada, preconizada, dissimulada —,
mas sempre consciente de si mesma”15.
A pertença desta categoria à Lógica da filosofia, apesar de que a atitude
que lhe corresponde “não é apenas afilosófica, mas antifilosófica, ciente-

12. Lf 500.
13. Lf 515.
14. Uso propositadamente o termo “obreiro” para designar o mentor da Obra, di-
ferentemente de Weil que se refere ao “criador”, para evitar qualquer confusão com a ati-
vidade criativa dos poetas da Consciência, da Personalidade ou do Finito.
15. Lf 499.

110
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

mente antifilosófica”16, deve-se, antes de mais, a esse efeito contrastante,


que a converte na primeira categoria/atitude que proclama os direitos
da finitude, como aponta Evanildo Costeski17, e que, por isso, obriga o
filosofar a pensar nas condições concretas da sua efetuação, num mundo
onde a violência pode chegar ao extremo de recusar a razão filosófico,
e logo, de impedir a atividade do filósofo. Esta rejeição da filosofia, que
leva Gilbert Kirscher a considerar que “a obra só desempenha um pa-
pel filosófico na condição de ser continuada pela linguagem do finito”18,
queda agravada porque o obreiro não recusa esta ou aquela perspectiva
filosófica, mas repudia o pressuposto de todo o filosofar: “o que ele não
admite é o postulado primeiro do discurso, que afirma que deve haver
compreensão”19. Mas uma outra razão, diretamente relacionada com a
própria categoria, pode ser aduzida.
Na verdade, essa inclusão significa que o “obreiro absoluto” não se li-
mita a criar a obra, mas, na medida em que precisa dos outros homens para
a concretização da sua vontade, fala dela e, nesse falar, pelo qual procede a
uma instrumentalização da linguagem, simula uma coerência aparentada
à da filosofia. Como resume o autor,

as ‘contradições’ da categoria se reduzem, assim, a uma só, e que não incumbe


à atitude, a saber, entre o fato fundamental de seu caráter imediato e a tentação
de mediação constituída pela empreitada de falar dela. […] Mas essa linguagem
é fundamentalmente diferente de qualquer linguagem anterior20.

A diferença consiste numa espécie de retorno direto, isto é, como se


não houvesse a realidade mediadora do discurso, à pura espontaneidade
da linguagem, na qual a palavra tem valor de gesto e, como o gesto é tido
como absoluto, a expressão não carece de referência, nem de coerência
para se legitimar:

A linguagem do homem da obra não significa nada, portanto, no sentido das


categorias anteriores (o que não significa que sua linguagem não possa ser

16. Lf 509.
17. Cf. E. Costeski, Atitude, Violência e Estado Mundial, Sobre a filosofia de Eric
Weil, São Leopoldo-Fortaleza, Editora Unisinos-Edições UFC, 2009, 28.
18. G. Kirscher, La philosophie d’Eric Weil, Paris, PUF, 1989, 324 nota 5.
19. Lf 511.
20. Lf 501-502.

111
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ouvida sob estas últimas, longe disso: ela é falsa ou absurda, ou criminosa,
ou ímpia, ou revolucionária etc.)21.

Esse retorno artificial constitui uma das principais formas de dissi-


mular o desígnio destrutivo e de suscitar o nível de adesão necessário,
que, como se antevê, dado o caráter total da violência, deve ser absoluto.
Em si mesma, uma tal construção linguística é profundamente violenta,
mais violenta do que os atos destrutivos, na medida em que, ao contrário
daqueles, tem a capacidade de mascarar o seu propósito instrumental, ao
mesmo tempo que lhes fornece um enquadramento justificativo.
Por sua vez, por paradoxal que pareça, à primeira vista, precisamente
por causa da gratuidade da violência perpetrada, esta categoria/atitude pre-
cisa, mais do que qualquer outra, de multiplicar os enunciados apologéticos
e de produzir outros tantos sobre a invalidade das outras mundividências.
Para o efeito, não podendo ter um discurso próprio, o que a converteria
numa filosofia, mas sujeita aos mesmos critérios universais da discursivi-
dade que se impuseram historicamente, vai buscar às outras categorias os
segmentos discursivos de que carece para falar de si: Como Weil salienta,
“pode-se notar, portanto, que o caráter desnorteador da categoria tem sua
origem no fato de que a categoria não cria conceitos, mas serve-se daqueles
que outras categorias produziram”22. Por esta via, produz uma dupla mis-
tificação: graças à retomada de fragmentos de discursos que aspiraram a
dizer a verdade, gera a ilusão de que, por dominar todos os discursos, está
na posse, não só do que neles há de verdadeiro e de falso, mas, sobretudo,
da verdade absoluta que constitui o critério dessa avaliação; pela maneira
peculiar como se apropria desses discursos, induz a convicção de que a
sua realização, enquanto Obra, é essa verdade absoluta que os discursos,
retomados como verdadeiros, sempre enunciaram.
Em contraposição, a possibilidade desta manipulação depende de o
obreiro nem lhes encontrar outra verdade que a de serem úteis à obra,
nem lhes conferir propriamente o estatuto positivo de discursos, mas
de reduzi-los a elementos componíveis da única forma de organização
verbal que reconhece: o mito. Weil clarifica de imediato que este tipo de

21. Lf 506.
22. Lf 514.

112
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

mito, moderno, diríamos nós, não deve ser confundido com o da cate-
goria/atitude da Certeza:

porque se sabe mito e se opõe ao pensamento técnico como o fim ao meio


[…]. O conteúdo deste mito não é destinado nem está apto a regular a vida
e os atos dos homens que seguem e devem seguir as receitas da comunidade
do trabalho. Ele não se baseia numa tradição real (a tradição viva da comu-
nidade é contada entre os fatores de ordem técnica), mas cria para si uma
tradição, ela própria mítica23.

Trata-se, portanto, de uma versão, toda ela construída, que “reinventa o


mundo no próprio movimento de o moldar, um pouco como a obra do escul-
tor toma forma no próprio movimento pelo qual dá forma à matéria”24.
Dadas as manifestas analogias, julgo legítimo avançar a hipótese de
que uma compreensão filosófica do terrorismo poderá beneficiar de uma
análise, nos termos propostos por Weil, deste exercício de mitificação da
realidade, pelo qual o obreiro visa torná-la disponível para a obra, introdu-
zindo uma narrativa própria que se incrusta em determinados segmentos
vigentes da linguagem e do discurso, tidos como fundamentais para os ou-
tros homens, porque relacionados com as suas crenças e as suas convicções
mais profundas, e, que, por essa via, vai assumindo, progressivamente, o
caráter de verdade. Note-se, contudo, que a verdade do mito não consti-
tui a preocupação do obreiro, mas a dos outros homens, que ainda vivem
num mundo misto de linguagem e de discurso.
Nesta medida, a eficácia do mito resulta de um paradoxo que é crucial
para se entender o modus operandi do obreiro e o sucesso da obra: ele será
tanto mais poderoso, quanto mais for percepcionado como verdadeiro e
será tanto mais identificado com a verdade, quanto maior for o nível de
ficção. Esta aparente contradição explica-se pelo fato de que um tal mito,
malgrado a aparente profusão de conteúdos, de significados e de interpre-
tações, não diz outra coisa senão a exigência indiscutível da obra: “O que o
criador diz é sempre, portanto, a mesma coisa: “Eu sou o criador da obra;
é preciso realizar o projeto que eu trago diante de vós, adiante de vós; é
preciso sentir que deveis subordinar-vos a ele com tudo que tendes e tudo

23. Lf 506.
24. P. Canivez, Weil, Paris, Les Belles Lettres, 1999, 64.

113
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

que sois”25. Trata-se, então, a de saber como se estrutura esse mito que
quer impor-se como a versão dominante, e que, para o efeito, deverá valer
para os sequazes como aquela que corresponde efetivamente à realidade. A
exposição de Weil aponta para quatro processos, cuja combinação, numa
narrativa unificada, produz esse resultado, ao mesmo tempo, mitificador
e mistificador: metaforização, vitimização, promessa e injunção.
Por via da metaforização, o mito substitui os significados convencio-
nais, por outros cuja fecundidade é proporcional à sua distância relativa-
mente a fatores como a realidade, a pertinência ou a plausibilidade, para
que tudo seja tido, direta ou indiretamente, como símbolo da obra, do
obreiro e do obrar. Este processo de transferência de significações é pos-
to a funcionar por um processo generativo, a partir do reconhecimento
da centralidade da Obra e da consequente necessidade da sua efetuação,
da qual decorre o tipo de metaforização, e não em consequência de uma
qualquer hermenêutica, por mais genérica ou orientada. Weil sintetiza,
assim, esta particularidade do mito moderno:

A contradição não o [ao obreiro] incomoda, ela não tem sentido para ele,
pois tudo o que se pode dizer do criador e da sua obra não passa de metáfo-
ra, e a escolha depende exclusivamente do efeito sobre os homens. Quanto
a estes, eles tomarão a metáfora como metáfora e recebê-la-ão sem julgá-la
conforme o raciocínio, e mais justificadamente ainda sem recusá-la por seu
caráter metafórico: aqueles que raciocinam não são em caso algum, utilizá-
veis pela obra e devem ser tratados como inimigos26.

Consequentemente, a metaforização não é operada por um rein-


vestimento de significações renovadas, mas por metonímia, em virtude
da qual se dá uma progressiva introdução da versão metaforizada, que
impõe a redução dos sentidos possíveis a uma determinada orientação.
Porque esse mito não pretende ser nem interpretativo, nem verdadeiro,
apesar das declarações com que se procura estabelecer, mas ser obreiro,
não constituí mais uma leitura possível, ao lado de outras, mas uma ou-
tra enunciação que não é permeável a critérios lógicos ou hermenêuti-
cos, convencionalmente associados a discursos que aspiram a dar conta

25. Lf 506.
26. Lf 505-506.

114
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

da verdade ou a proporcionar a melhor interpretação de um texto tido


por fundamental, como os textos sagrados. O mito, sob a aparência de
querer revigorar uma zona de significação ontologicamente originária,
inscreve-se, assim, totalmente, no empobrecimento da função mítica
que ocorre a partir do Iluminismo. Nesta medida, ele vale, então, como
mitologia, na expressão de Roland Barthes, fazendo prevalecer o signifi-
cante sobre a significação, e levando a cabo uma despolitização do real.
Mas, não se deve confundir esse trabalho de redução do “político no seu
sentido profundo, como o conjunto das relações humanas na sua estru-
tura real, social, no seu poder de fabricação do mundo”27, e a sujeição do
mito a uma motivação não política. Pelo contrário, se no mito o obreiro
“abole a complexidade dos atos humanos, lhes confere a simplicidade
das essências, suprime toda a dialética”28, é para garantir uma narrativa
que obnubile o que, numa contextura política diversificada, apareceria
inevitavelmente como um processo de autodestruição.
Este aspecto é normalmente mal compreendido por quem tenta
perceber os motivos da adesão a uma leitura cuja pobreza interpretati-
va, a má-fé histórica e a incoerência construtiva deveriam ser bastantes
para lhe obstar. É que, se estivermos corretos, essa aquiescência não diz
respeito aos termos em que o mito se processa, que são estes, se forem
úteis para a causa, e seriam, facilmente, outros, se o contexto ou o pro-
duto visado diferissem, mas à evidência da Obra que torna, igualmente,
óbvia a indispensabilidade da reconfiguração simbólica da realidade. É,
desde logo, por esta razão que o mito é invulnerável aos argumentos de
tipo discursivo, que pretendem repor a verdade histórica ou contrapor
a interpretação adequada dos documentos a que o mito faz referência:
se o mito dissesse respeito a um saber de ciência e não a uma efabulação
metafórica não seria um processo de mitificação, mas de racionalização.
Como sintetizou Barthes, “a função do mito é de evacuar: ele é, literal-
mente, um escoamento incessante, uma hemorragia, ou, se se preferir,
uma evaporação, em suma uma ausência sensível”29. A narrativa mistifi-
cadora da Obra cumpre essa função, por via de recondução das media-

27. R. Barthes, Oeuvres complètes, vol. I, Paris, Seuil, 2002, 854.


28. Ibid.
29. Ibid.

115
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ções discursivas a uma zona sentimental que, como Weil esclarece, tem
“o caráter do que é imediato”30, porquanto visa apelar à emotividade em
estado puro, sem a interferência da reflexão sobre os sentidos do que
está a ser sentido. Em consequência, tal como o obreiro procura estabe-
lecer, e o próprio mito proclama, “o discurso é refutado pelo fato; nada
é compreendido ou compreensível diante do fato criador, a história não
está terminada: não há história, não há compreensão nem discurso que
contem diante do sentimento da obra”31.
Por sua vez, o mito liga-se à emotividade numa outra dimensão, a do
sentimento de insatisfação que, sendo mais ou menos generalizado nas so-
ciedades modernas, pode tornar-se paroxístico em determinados contextos.
Ora, esse sentimento, antes de ser enquadrado discursivamente, é difuso,
pelo que tende a não ultrapassar a esfera individual. O que o mito também
oferece é uma orientação dessas várias formas de descontentamento para
uma espécie de comoção, que não é psicológica, mas política, por via de
uma espécie de discurso que diz aos indivíduos o que é que eles realmente
sentem, quer o saibam ou não, de modo a que esse sentimento injungido
apareça relacionado com o imperativo da obra e com a versão metafórica
da história que foi partilhada; porque é que o sentem, as causas apontadas
sendo consequentemente externas e situadas no campo do agir; e que esta-
tuto corresponde a esse modo comum de sentir. Como escreve Weil:

A obra produz, então, sua linguagem própria, uma linguagem na qual ela
se apresenta e se impõe aos homens que, por sua vez, não têm obra. Do
ponto de vista deles, o essencial da obra está presente nessa linguagem; eles
aprendem que sua vida não teve sentido até aqui; que seus valores não eram
autênticos, que eles não eram livres, que eram suficientemente ingênuos
para se deixarem capturar por um interesse concreto que, erroneamente,
se pretendia único, que eles se entregavam à fadiga e ao tédio de uma vida
cujo sentido estava estabelecido acima deles…32.

Ora, o que o mito, desta maneira, induz é um sentimento de vitimi-


zação, termo que Weil não usa, mas que parece ajustar-se exatamente a

30. Lf 500.
31. Ibid.
32. Lf 503-504.

116
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

esse trabalho de aposição do estatuto de vítima que requere logicamente


o do salvador e a ação salvífica conjunta, entendida como libertação física
do bode expiatório. Também a este nível, não cabe supor que uma cha-
mada à razão poderá restabelecer a compreensão adequada da situação
e dos melhores meios para resolver as dificuldades a contento de todos,
por três motivos principais. Desde logo, a eficácia desta vitimização liga-
se ao sentimento de insatisfação efetivamente vivido pelos indivíduos,
os quais, importa relembrá-lo, não tinham uma linguagem apropriada
para enunciá-la, assim figurando como a explicação que corresponde ao
seu interesse, no duplo sentido, de ser aquela que exprime o que cons-
titui o interesse dos indivíduos que dele foram despojados e aquela que
é do seu interesse defender, se pretenderem vir a aceder aos que lhes é
devido. Por sua vez, esta enunciação vitimária ancora-se na versão meta-
forizada, à qual vai buscar o enquadramento narrativo que lhe serve de
legitimação, o de uma estória na qual nem sempre tiveram o estatuto de
vítimas, a genealogia naturalizada facilitando a identificação com esses
momentos de uma história sem efetiva cronologia. Enfim, e sobretudo,
o seu poder advém-lhe de se tratar, como na metaforização, de um dis-
positivo construído pelos obreiros, tendo em conta a efetividade da obra,
na medida em que “a criação da obra exige um mundo organizado com
vistas à obra; é preciso aquilo que os homens consideram como uma ideia
positiva, como um projeto, como um fim preciso”33. Essa positividade
é, então, apresentada como a etapa garantida da dominação, na qual as
vítimas passarão a senhores, o que já pode ser parcialmente comprovado
pelo terror que as suas ações libertadoras inspiram. Deste modo, o mito
começa por dar uma voz à revolta, encaminha essas expressões para uma
narrativa comum que pressupõe a conversão da revolta em revolução,
e, assim, assegura o meio de autorizar o exercício do terror: “seu mito, é
verdade, não consola, nem diverte, nem educa os homens, mas promete
aos fiéis uma dignidade nova, inaudita até aqui, e anuncia-a para já: eles
serão os senhores do progresso, de imediato, agora”34.
Assim, como se depreende, o mito carrega, também, uma enunciação
sobre a inevitabilidade do sucesso do empreendimento, que é conforme

33. Lf 504.
34. Lf 507.

117
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

à promessa de um mundo melhor. Esta narrativa promissória, construída


em correlação com as outras duas dimensões, é percepcionada pelos
adeptos como a esperança de um mundo melhor para eles, ou seja, um
mundo no qual se dará a recuperação do domínio que lhes foi indevi-
damente subtraído: “o que é agora é a época preparatória, a geração sa-
crificada, o tempo da infelicidade, cognoscíveis como tais graças ao pro-
jeto; somente a obra realizada proporcionará o definitivo, a vida plena,
a felicidade”35. Patrice Canivez resume este traço:

O homem da obra promete a essa massa um reconhecimento de que ela carece,


reconhecimento que também atrai as camadas mais favorecidas, intelectuais,
notáveis etc. que se sentem ameaçadas por uma perda de status em consequên-
cia da crise ou a evolução da sociedade. Ele promete-lhes o reconhecimento
de uma nova dignidade, donde a importância do tema da superioridade da
raça, ou da nação, declinado pelas diversas formas de nacionalismo36.

Mas, uma vez mais, trata-se de uma indução, estrategicamente pro-


duzida pelo obreiro, que, como nos outros segmentos da fábula, encon-
tra a solução para mover os outros homens, que, de outra maneira, não
teriam qualquer interesse legítimo em seguir a violência da obra: “O ho-
mem da obra sabe perfeitamente que essa exigência [a de um fim pre-
ciso] é absurda: a obra não tem sentido no mundo; ela apenas confere um
sentido ao mundo, e esse sentido não deve ser antecipado, visto que ele
existe na realização”37.
Porquanto a obra se esgota na violência do obrar, e, por sua vez, a nar-
rativa metaforizada naturaliza a história, ou seja, redu-la a uma espécie de
eterno presente, a estrutura antecipatória, que está na base da promessa,
não tem lugar, pelo que o obreiro tem de construir esse ponto de vista,
narrativamente. Para gerar a ideia de um conteúdo para o futuro, que a
categoria/atitude da obra não prevê, o obreiro introduz uma distinção,
subtil para os outros, fundamental para a lógica da obra: “se ela não pode
ser antecipada, pode ser projetada (no sentido etimológico do termo: lan-
çada adiante, à frente do presente)…”38. Como Weil salienta, esse exercício

35. Lf 504.
36. P. Canivez, Weil, op. cit., 66.
37. Lf 504.
38. Ibid.

118
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

projetivo distingue-se da antecipação de um estádio futuro, representado


nos seus traços peculiares, pelo formalismo do caráter processual: o projeto
replica, para um porvir, tomado genericamente, sem consistência específi-
ca que permita diferenciá-lo de outros momentos, a mesma afirmação da
necessidade da obra. Trata-se, assim, de fazer valer mais uma figura para-
doxal, a de uma promessa sem compromisso, já que nada lhe corresponde
que possa determinar um critério do sucesso efetivo do que foi projetado.
Weil aponta duas consequências maiores deste vazio material.
Por um lado, o preenchimento da promessa com uma representa-
ção determinada passa para o lado dos seguidores, que, inevitavelmente,
“’compreenderão’ o projeto da obra à maneira deles no mundo deles”39.
Deste modo, não só não dão conta do dispositivo, como acabam por con-
tribuir por alimentá-lo com uma auto-ilusão, relativa a desfechos prome-
tidos, que só o foram no sentido em que a abertura estrutural do tipo de
promessa admitiu o seu preenchimento por via desse fim esperado. Na
medida em que a promessa fica na dependência da esperança, os outros
indivíduos tornam-se co-responsáveis pelo porvir, ou seja, eles é que ficam
comprometidos, quer com o perfazimento, quer com os atos que o deverão
garantir. Este esquema ilusório, como facilmente se entenderá, torna-se,
igualmente, impermeável a argumentos de razão, tanto mais quanto são os
aderentes que acabam por preencher as casas deixadas propositadamente
livres. Para o sucesso do procedimento, como resume Weil, “basta não os
impedir de cometer esse erro para que seja possível dizer tudo”40.
Por outro lado, o obreiro, ao dirigir-se aos outros homens, “pode até
lhes falar com sinceridade”41. Esta possibilidade tende a originar outro dos
equívocos maiores por parte de quem analisa os discursos da obra, posto
que suscita a ideia de que o obreiro segue uma representação determina-
da da existência, incluindo a antecipação de um desfecho mirífico que ele
procura impor aos outros. Ora, como resulta do exposto, essa sinceridade
advém da má-fé inicial, e, por isso, consiste na convicção formal de tudo po-
der dizer, por não se estar autenticamente comprometido com nada, salvo
com a dominação pela obra. Este jogo, cuja viabilidade advém da regressão

39. Lf 505.
40. Ibid.
41. Lf 504.

119
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

operada ao plano da linguagem, que liberta o mito dos constrangimentos


éticos do discurso, como aquele que estabelece uma relação necessária entre
sinceridade e convicção verdadeira, põe o obreiro ao abrigo dos critérios
de realismo, coerência e consistência42. Ele não tem de acreditar sincera-
mente na viabilidade da promessa x, pois essa promessa não é sua, mas tão
só uma promessa em geral, cuja possibilidade está validada no momento
em que alguém a torna sua, para melhor servir a obra.
Esta lógica, ora mistificadora, ora cínica, ora utilitária, consoante o que
aproveita à obra, deve-se ao fato de que o mito é deliberadamente escolhido
como a melhor forma de concretizar a intencionalidade injuntiva. O verda-
deiro fito das sequências que o constituem é o de garantir que um conjunto
de atos é levado a cabo, apenas por ter sido ordenado. Por isso, como Weil
clarifica: “A linguagem que é a sua [da obra] e que ela reconhece como sua
é a linguagem do imperativo”43. Assim, explícita ou implicitamente, todas as
sequências textuais estão dobradas por uma pragmática instrucional, de tal
modo que todos os enunciados locutórios remetem para um mesmo tipo
de ilocução e antecipam o mesmo tipo de perlocução, a saber que é preci-
so seguir a voz de comando para obrar, independentemente de quaisquer
outros imperativos, como sejam os morais, de que tais instruções se distin-
guem com facilidade, por deles só conservarem o aspecto mandatório do
dever. A existência de uma profusão de ordens, que contrasta com a ideia
kantiana de “uma regra que pode servir para fundar juízos sobre atos pos-
síveis, nenhum dos quais é imposto concreta e imediatamente”44, constituí
para Weil a primeira evidência dessa diferença. Deste modo, desvela-se o
motivo pelo qual o mito moderno, com alcance político, nos aparece sempre
dotado de uma “linguagem sumamente pobre, de forma alguma “teórica”
e, contudo, relacionada à teoria na sua totalidade”45, por via de uma me-
taforização incipiente e de uma estruturação binária elementar: todos os
enunciados, todos os textos, todas as interpretações que o compõem estão
condicionados por uma textualidade puramente injuntiva.

42. Para a consideração do que implica o par linguagem/discurso, cf. L. M. A. V.


Bernardo, Linguagem e Discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003.
43. Lf 512.
44. Ibid.
45. Lf 513.

120
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

As consequências desta dobra imperativa, que subjaz a todas as opções


textuais, e vem enleada nas respectivas sequências narrativas, também ten-
de a escapar, não só a quem segue a obra, como a quem procura comba-
tê-la, eventualmente, pela dificuldade em aceitar que, no meio de tanta
verborreia, possa não haver muito mais do que esse intento impositivo.
Todavia, há que ter na devida consideração o reparo de Weil, segundo o
qual “é nosso modo de ver que faz do violento um homem da consciência
refletida em si mesma e que pergunta o que ele quer no fundo. Quanto a
ele, no fundo ele não quer, ele nada quer”46, para se evitar de produzir uma
espécie de “sobreinterpretação” que, em vez, de nos dar acesso ao foco da
questão, acabe por construir uma cadeia de álibis. Ora, de entre essas con-
sequências, importa destacar a invulnerabilidade aos argumentos de tipo
“realista”, em torno do que é politicamente ou economicamente, “neces-
sário” e do que é “impossível”, como aqueles de que, num primeiro mo-
mento, de contrapropaganda, os governos fazem uso47. Essa intocabilida-
de, que Weil apontara no caso da revolta e da revolução, e que, quanto a
nós, se verifica, com ainda maior vigor na Obra, não decorre só do fato de
que, na medida em que esses argumentos, por muito fortes, “não são por
isso peremptórios”48, e logo, podem com alguma facilidade ser contraria-
dos, pela adução de outros quesitos, apoiados por outras “evidências”, mas
advém efetivamente do confronto entre duas lógicas, como lembra o filó-
sofo: “apesar dessas pretensões à objetividade do espírito científico, às quais
se dá tanta importância num mundo em que a racionalidade prima, trata-se
na realidade duma luta entre opções fundamentais”49. Ora, nessa contenda,
o mito é uma peça absolutamente fundamental, na medida em que altera,
de modo intencional, a ordem das razões: de acordo com a sua lógica, não
se age, ponderando os prós e os contras, mas faz-se coincidir a necessidade
e a impossibilidade com a exigência do obrar, de tal forma que a violência
é sempre tida por necessária e, enquanto tal, só impossível por motivos
circunstanciais, relacionados com questões técnicas, e não por razões mo-
rais, como, por exemplo, o respeito pelos direitos humanos. O caráter in-

46. Lf 89.
47. E. Weil, L’Etat et la violence, Essais et conférences II, op. cit., 381.
48. Ibid.
49. Ibid., 377.

121
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

juntivo do mito gera, assim, uma coincidência entre o poder da palavra, a


linguagem do poder e o poder de quem detém os instrumentos de domi-
nação. Enquanto o mito vigorar, por conseguinte, “o projeto não é julgado,
ele julga, e a razão pertence àquele que dela se apossa”50.
Na medida em que “essa recusa consciente do discurso absolutamente
coerente e do Tribunal da Razão fornece a categoria dessa atitude”51, é,
sobretudo, pela desconstrução dessa sua pragmática linguística peculiar
na base da produção de mitologias, estrategicamente construídas para
operarem como injunções de modos de agir, cuja violência contradiz os
princípios elementares da paz social, apologias de figuras para as quais
se inventa uma biografia hagiográfica e autorizações de formas de inter-
pretar as referências do saber convocado para cuja heterodoxia se esta-
belece uma legitimidade à medida dos imperativos destruidores, que se
pode aspirar a ter um certo acesso à compreensão da intencionalidade
que subjaz à adoção de uma tal atitude.
Por sua vez, será de supor que o fundo do terror, quer aquele que é
visado pelo terrorismo, quer aquele que é sentido pelas populações em
geral, tem a sua raiz, precisamente, neste mesmo jogo, que alimenta a Obra
e que, por sua vez, a Obra alimenta, entre a recusa do sentido e a indução
mitológica de que essa negação possa constituir o sentido absoluto. Aliás,
não me parece ocasional que seja fácil encontrar nas elocuções e nas práti-
cas dos terrorismos atuais todas as vertentes que identificamos no mito da
Obra. O terror assenta na antecipação de uma espécie de mistificação total
e, por isso, totalitária, pela qual ocorresse não só uma instrumentalização
dos discursos, mas igualmente uma afirmação deliberada do sentido do
não sentido. O mito reduzido a uma série de significantes sem significa-
dos que lhes correspondam devidamente, postos a valer como sentidos
indiscutíveis, prontos a legitimar qualquer ato, desde que o obreiro assim
decida, ou seja, o curto-circuito do processo de validação racional, não será,
então, o mecanismo discursivo do terror? Se assim for, a causa do terror
não estará tanto na violência dos atos ou dos discursos, tomados no seu
aspecto descontinuado, quanto na violência da indução constante de que
eles podem e devem fazer sentido, que podem e devem ser o sentido ético

50. Lf 513.
51. Ibid.

122
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

e político do agir, que podem e devem ser a base de uma coexistência por
regressão ao estado de natureza, à violência primacial, prévia ao contrato
social e, logo, à forma constitucional do Estado moderno. A promessa,
portanto, não de um futuro, mas de um eterno presente, fixado num pas-
sado abstrato com valor de um illo tempore, tal como o “era uma vez” do
conto, só que posto a valer como mundividência real, sem qualquer laivo
de ficção. Em suma, o terror advém da percepção de se tratar duma vio-
lência organizada, tal como aquela que está na base da coerência relativa
que permite ver na Obra uma categoria/atitude.
É, assim, de absoluta relevância, para a nossa hipótese, entender que
se trata de uma categoria/atitude específica, isto é, irredutível a qualquer
outra, pelo que esta apropriação de elementos de outras categorias não
significa que ela seja uma espécie de dobra violenta incita em cada uma
das outras, ou numa consequência de uma versão extrema de algumas
delas, como, por exemplo, da Condição, associada à sociedade mercantil
do trabalho moderno. É que, se não há dúvida de que o obreiro, na medi-
da em que quer intervir no mundo, se apropria das virtualidades práticas
e discursivas da sociedade laboral, seja em termos de recursos, seja no
que respeita à exploração dos sentimentos de insatisfação e de injustiça
que esta inevitavelmente origina, essa contemporaneidade, como lembra
Weil, “é um parentesco histórico que aproxima duas atitudes, não duas
categorias”52. Na verdade, o que o obreiro

quer fazer, ele o faz conforme as condições do mundo (daí o parentesco


entre esta atitude e a da condição); mas ele não está sob a condição, assim
como não está dentro desse mundo: está diante de ambos, só, e de forma
alguma pronto para entrar numa discussão ou admitir raciocínios que não
têm serventia. Nada o vincula aos outros, pois nada o vincula53.

O que vale para a Condição, vale para outras categorias/atitudes de que


a Obra se serve. Estamos, portanto, perante uma categoria/atitude particu-
lar, associada a um tipo de violência específico que se distingue de outras
formas de violência, por não ter nenhum propósito transcendente, e que,
desse modo, se opõe a todas as outras, não por ter uma mundividência

52. Lf 493.
53. Lf 498.

123
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

alternativa a contrapor-lhes, susceptível de ser discutida ou compreen-


dida54, mas pelo simples fato de querer “criar para criar”55, ou seja, “fazer
alguma coisa que não existia antes, não se criar e recair assim na reflexão, no
desdobramento, no raciocínio, sob a Razão”56, porquanto é essa existência
que determina a possibilidade de identificarmos a propriedade do terror, de
outro modo, disseminado por entre as múltiplas figuras da violência.
A Obra configura uma espécie de tipo ideal do totalitarismo, quer no
plano da linguagem, quer no do agir, que, como é próprio da função das
categorias lógicas, constitui ao mesmo tempo uma caracterização da dis-
cursividade que lhe corresponde, um delineamento das atitudes de que
esta fala, e a determinação do processo generativo, lógico-pragmático, que
lhe confere a potencialidade de suscitar e corroborar discursos e atitudes
concretos. Deste modo, a categoria/atitude, apesar da concentração dis-
cursiva de que se reveste na exposição da Lógica da filosofia, tem uma capa-
cidade de compreender uma diversidade de manifestações históricas e de
servir de referência para legitimar os vários regimes que se querem fazer
valer da violência total. Desta feita, por exemplo, é perfeitamente viável “aí
reconhecer o projeto do ‘Estado total’ (C. Schmitt) forjado e ‘ficcionado’
(P. Lacoue-Labarthe) pela ‘arte-poiética’ do único ‘Egocrata’ (C. Lefort)”57,
como o é afirmar, num sentido restrito do termo, que “o totalitarismo é a
manifestação da atitude da obra no plano político”58, e, mais propriamen-
te, aquela versão “incarnada pelo Führer”59 nazi. Por isso, pode igualmente
abarcar os procedimentos que estruturam as manifestações do terror.
Não obstante, se procurarmos aproximar-nos um pouco mais da rea-
lidade histórica coeva, há que considerar uma diferença fundamental, in-
troduzida por Weil, entre a categoria/atitude, na sua expressão lógica, e os
modos como ela se vai efetivando existencial e historicamente, por via de
um processo que o filósofo designou de “retomada”60, por si, assim defi-

54. Lf 514.
55. Lf 497.
56. Lf 498.
57. F. Guibal, Le sens de la réalité, Paris, Le Félin, 2011, 165 nota 1.
58. P. Canivez, Weil, op. cit., 66.
59. F. Guibal, Le sens de la réalité, op. cit., 164.
60. A relevância deste conceito pode ser devidamente avaliada em L. M. A. V. Ber-
nardo; P. Canivez; E. Costeski (orgs.), A Retomada na Filosofia de Eric Weil, Cultura

124
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

nida: “a retomada, para empregar um conceito kantiano, é o esquema que


torna a categoria aplicável à realidade e que permite assim realizar con-
cretamente a unidade da filosofia e da história”61. Nessa medida, é um tal
conceito “que permite a aplicação da lógica à realidade histórica”62. Assim,
o que encontramos na história é um processo complexo de retomadas de
umas categorias por outras, de certas atitudes em função de outras, com
graus de maior ou menor fidelidade à categoria/atitude que é tida como
nuclear, a qual, para cada contexto, nunca é verdadeiramente aquela que
está, em si, a determinar o sentido dessas retomadas, mas aquela por meio
da qual os indivíduos escolhem ou são determinados a retomá-la.
A consequência principal que resulta de uma tal distinção consiste na
necessidade de se perceber que qualquer tentativa de entender um evento
concreto tem de proceder à combinação de dois movimentos, um dirigido
para a identificação do núcleo categorial que constitui o cerne da discursi-
vidade e da prática em análise, outro orientado para o reconhecimento do
género de retomada por via do qual esse fenômeno se liga preferencialmen-
te a esse centro. É que, sem essa dupla percepção, esvai-se a possibilidade
de uma lógica aplicada, a qual tem de fixar o tipo de que a retomada se
apropria, no caso vertente, a Obra, para levar a cabo a avaliação das varia-
ções, que lhe conferem uma certa maneira de ser obra, no que respeita à
nossa questão, os terrorismos históricos da atualidade, precisamente, to-
mados como desvios, mais ou menos, significativos do modelo. Esse hiato
deve-se fundamentalmente a três aspectos pelos quais a realidade concreta
não se identifica com o tipo categorial: (1) é uma mescla de incoerência e
de coerência, (2) que, ainda quando centrada predominantemente numa
versão categorial, integra, em proporções diversas, o conjunto das catego-
rias/atitudes que a análise lógica distingue, (3) pelo que a efetuação do que
está implicado nessas idealizações de sentidos e de sabedorias projetados
como desejáveis, é sempre, como indicámos, o da retomada.
No que diz respeito à Obra, Weil salienta a profusão de retomadas,
bem como de processos derivados, como as “pseudorretomadas”63, a qual

— Revista de História e Teoria das Ideias, vol. 31 — 2013/II Série, Vila Nova de Famalicão,
Húmus/CHC.
61. Lf 123.
62. Ibid.
63. Lf 515-516.

125
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

corresponde à inevitável utilização, já referida, dos outros discursos ca-


tegoriais, seja para persuadir os potenciais seguidores da relevância da
obra, seja para que cada sequaz encontre, por sua vez, uma enunciação
justificativa da sua participação numa escalada do terror, seja para dar
um certo sentido à sua escolha, face a outras categorias/atitudes que se
afiguram mais sensatas. Desta feita, como o filósofo estabelece, “a reto-
mada, vista sobre a obra a partir de outra categoria, pode se efetuar, por-
tanto, de duas maneiras, conforme seja efetuada pelo homem que vive
nessa atitude (agindo), mas que só a pensa numa categoria anterior, ou
por alguém que, vivendo e pensando em outra categoria-atitude, busca
compreender a obra”64. Por conseguinte, as retomadas da obra oscilam
sempre entre a “justificação” e a “apreciação”65, isto é, entre o esforço de
legitimação e a busca de autorização, no sentido que lhes deu Kierkega-
ard. Deste modo, tendencialmente, recriam as várias dimensões do mito
a partir de categorias que, por darem, elas próprias, todo o peso aos as-
pectos pessoais e sentimentais, possam ancorar a correspondência entre o
valor e a necessidade da obra, facilitar a identificação do obreiro com um
ser de atributos de cariz sobrenatural, bem como, favorecer a construção
de uma narrativa estritamente apologética. Percebe-se, então, que, sem
prejuízo do recurso a todas as outras, o qual é condição para que se trate,
precisamente, de retomadas, haja duas que sejam preferencialmente esco-
lhidas, como base para esse trabalho narrativo: as categorias de Deus e a
da Personalidade, a primeira facultando o acesso aos modos de enunciar
a transcendência, de tal forma que “a obra aí se transforma em missão, o
criador em eleito”66, a segunda permitindo “a passagem do plano da obra
ao plano da linguagem, que é o do crítico”67, o que proporciona um tipo
de discurso em torno da “autenticidade do criador”68, do direito a ter va-
lores próprios com os quais julga a realidade e os outros homens.
Ora, é neste efeito de apropriação de textualidades disponíveis e de
recriação de um esquema argumentativo, que combina a narratividade

64. Lf 516.
65. Ibid.
66. Lf 515.
67. Lf 518.
68. Lf 517.

126
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

estrutural do mito e determinados segmentos oriundos desses discursos


categoriais, que se pode gerar mais um equívoco interpretativo, fomen-
tado, aliás, por aqueles que levam a cabo as retomadas da obra, relativa-
mente à autenticidade dos conteúdos veiculados e das convicções que
os animam, por exemplo, confundindo a retomada de certos aspectos
da categoria de Deus com a pertença desses mitos a um discurso logica-
mente centrado nessa categoria/atitude
Em contraposição, no que respeita às retomadas da categoria/atitu-
de Deus, é o próprio autor que nos lembra que esta não é “aí mais do
que mediação”69, e, na sequência deixa claro o modo como funciona o
processo de retomada: “Mas isso não implica, em absoluto, que a cate-
goria de Deus sirva por si só à retomada. Ao contrário, sua mediação é
tão exigida quanto seu emprego direto é raro, uma vez que a fé é aban-
donada em favor de outras categorias”70. É que o fato de se invocar o
nome de Deus e de se conferir ao mito um conteúdo de tonalidade re-
ligiosa, mais ou menos acentuada, não altera o fato de que o discurso
da violência sem sentido se enquadre na lógica da obra e não na da fé.
Esta, tal como Weil a concebe, em linha com os teólogos que procuram
desmascarar a mistificação hermenêutica envolvida na ideia de uma
guerra contra tudo e todos, exigida pela palavra divina expressa nos tex-
tos sagrados, diz respeito à constituição moderna da subjetividade e da
historicidade, por via da dialética entre a liberdade do homem e a sua
dependência ontológica de Deus. Assim, ainda que a retórica dos textos
religiosos constitua um manancial paradigmático do uso injuntivo do
discurso, por via da efabulação mítica, e, nessa medida, se possa prestar
a uma retomada quase direta pelos construtores dos mitos modernos, o
que neles corresponde logicamente à categoria de Deus, não é propria-
mente esse vínculo impositivo e destrutivo da alteridade, mas o modo
como enunciam o problema de uma liberdade essencial: “Amar a Deus
é se recolocar em liberdade, desejar apenas a vontade livre; rogar a Deus é
não se confiar às determinações; obedecer a Ele é aboli-las; confiar-se a
ele é estar seguro de sua liberdade”71.

69. Lf 516.
70. Lf 517.
71. Lf 265.

127
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

A minha hipótese de base poderia ter, assim, encontrado uma formu-


lação ainda mais concreta: uma certa compreensão do terrorismo resultará
não só da consideração da escolha da violência como uma possibilidade
do humano, ou da lógica própria da categoria/atitude da Obra, com a qual
terá uma relação privilegiada, mas, também, da ponderação do que está
implicado no processo de retomada dessa categoria/atitude, a partir de ou-
tras categorias/atitudes, à cabeça das quais estão a de Deus e a da Persona-
lidade, a primeira com uma função, predominantemente, justificativa da
inelutabilidade da violência do obrar, a segunda orientada para favorecer
o culto de determinas figuras que seriam destinadas à liderança da guerra
santa. Para além do mais, uma referência explícita a Maomé, numa obra
publicada em 1950, parece autorizar o fecho da nossa leitura com a suges-
tão de uma correlação entre a lógica da obra e a realidade de uma confissão
religiosa, aquela de que, prioritariamente, se reclamam, hoje os partidários
do terrorismo, assim como esse suposto Estado emergente. Mas, é de tais
nexos que a proposta de Weil nos ajuda a desconfiar, incentivando-nos ao
exercício de uma hermenêutica sempre mais detalhada.
O que o filósofo escreve é o seguinte: “No entanto, se existem exem-
plos em que a atitude da obra se justifica por uma ordem divina (como
no caso de Maomé), são infinitamente mais numerosos os casos em que
a justificação é buscada por meio de outras categorias”72. Ora, é claro que
o autor usa a referência a Maomé como um exemplo de uma retomada
exclusiva da categoria de Deus para justificar uma atitude que se enqua-
dra na Obra, mas que não supõe qualquer relação de causa/efeito entre o
Islamismo e a Obra, ou vice-versa, o que seria, aliás, absurdo, na medida
em que aquele estava a ser instituído pela ação de Maomé, nem sugere a
ideia de que os textos corânicos transportem uma mensagem sobre uma
versão terrorista da Obra, tal como somos levados a equacioná-la hoje.
Outra interpretação, menos circunspecta, só poderá resultar de uma
revisitação extemporânea do texto weiliano, a partir de uma percepção
subjetiva dos acontecimentos históricos mais recentes.
Em suma, o que se pode extrair desta conexão é que a categoria de
Deus se presta a ser retomada pelos mentores da obra e que a textualidade

72. Lf 517.

128
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

sacramental, por algumas das camadas do palimpsesto, admite uma sua


adaptação às características do mito gerado em nome da obra, que a tor-
na na via seguida pela maior parte das justificações da Obra. A referência
a Maomé aparece, neste contexto, como a dum caso exemplificativo de
retomada direta da categoria de Deus, de modo que a sua menção explí-
cita deve-se a essa peculiaridade que, como a sequência do texto indica,
constitui a exceção e não a regra. Esta, em contrapartida, consiste em
ir combinar as diferentes possibilidades discursivas para produzir um
mito que, como mostramos, se apresenta como uma versão total da rea-
lidade, o que, como é óbvio, supõe a utilização de sequências narrativas
associadas a todas as categorias/atitudes, incluindo, por exemplo, as da
Verdade e da Consciência, claro está, subvertidos os respectivos enun-
ciados essenciais para poderem servir os desígnios da Obra. Ora, é esta
hibridação que encontramos nos mitos atuais, a qual determina, tanto
a sua eloquência, em determinados ambientes, quanto o “escândalo da
razão”73, que, como é apanágio da Obra, suscitam face à aplicação dos
critérios da racionalidade hodierna. Outrossim, a própria necessidade de
levar a cabo um pretenso cotejo dos textos sagrados revela que a retomada
da categoria de Deus não é direta, mas mediada, em função de objetivos
que relevam a presença dominante de outras categorias. Este processo
diferido de retomada sugere uma perda de autenticidade e aponta para
uma forma de “pseudorretomada”, a qual, por estar dedicada “a imitar
aquelas [as autênticas] o melhor possível”74, explica a equivocação. Das
várias condicionantes desta ilusão, no que respeita à própria elaboração
do mito, nomeadamente daquelas ligadas à vontade de poder dos indi-
víduos, duas merecem ser aqui consideradas, por decorrerem do plano
de reflexão intermédio que é o da lógica aplicada.
A primeira diz respeito a uma possibilidade introduzida contempo-
raneamente pela própria ideia de uma lógica da lógica, de que a Lógica
da filosofia de Weil constituí um modelo acabado, e que, por conseguinte,
permite dobrar os discursos com uma consciência do modo como estes
operam. Assim, se há que reconhecer que este diferencial, entre catego-
ria pura e retomadas, atribui uma característica ideológica aos discursos

73. Lf 488.
74. Lf 517.

129
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

concretos, já que todos são a expressão de uma certa maneira orientada


de conjugar as possibilidades categoriais, também se torna evidente que
este atributo pode ser propositadamente intensificado, por quem se aper-
ceba desse modo de funcionamento, de forma a produzir um mecanismo
discursivo, cuja eficácia seja tanto maior quanto mais conseguido for o
nível de mistificação. Desta feita, creio haver lugar para distinguir entre
a existência do que proponho que se chame ideólogos voluntariosos, os
quais, nos mais diversos contextos históricos, se aproveitaram do jogo
das categorias/atitudes para levarem os homens pelos caminhos radicais
da violência, com vista à imposição intolerante de um sentido e de uma
sabedoria únicos, e a existência do que, em contraponto, designo como
ideólogos inteligentes, aqueles que, a partir da categoria da Inteligência,
a qual reduz a história a um conflito de interesses75, e constitui uma via
privilegiada de “institucionalização da violência diabólica”,76, nas pala-
vras de Costeski, têm acesso à compreensão do próprio funcionamento
lógico, o que lhes permite não só escolher a constelação categorial, mais
conforme às atitudes que pretendem fomentar, mas variá-la, sem consi-
deração pela autenticidade dos propósitos, pela coerência dos discursos
combinados ou pela validade dos procedimentos instigados. Estes são
aqueles que constroem os mitos modernos da contemporaneidade, com
um poder persuasivo tanto maior, quanto conseguem dobrar a retórica
com um entendimento da lógica.
Weil refere a presença deste prisma, constituído pela Inteligência,
quando se trata de retomadas devotadas à apreciação do valor da obra,
em termos de discurso, apontando o quanto o verdadeiro criador “sente
apenas desprezo por esses homens que não são nem mesmo adversários, se-
não por acidente, mas enfraquecem a fé dos adeptos”77. No entanto, não
se terá dado conta de que a categoria da Inteligência, tal como estamos a
sugerir, pode ter uma dupla utilização por um certo tipo de obreiro, que
tenha assim percebido “a diferença entre atitude e categoria”78, ficando apto
a manipular as duas. Por conseguinte, plenamente consciente dos inte-

75. Lf 371 ss.


76. E. Costeski, Atitude, Violência e Estado Mundial, op. cit., 196.
77. Lf 518.
78. Lf 396.

130
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

resses do mundo, aqueles que movem os homens, e disposto a entrar na


controvérsia sobre as visões do mundo, de modo a desmontar a “evidência”
daquela que a maioria dos cidadãos dos Estados atuais assume, a perceber
que o sagrado dessa mundividência está, ele próprio, em grande parte con-
figurado pelo valor máximo da Inteligência, a tolerância79, e a investir no
regresso de uma mitologia, o obreiro potencia a violência inerente à obra.
Desta feita, as retomadas contemporâneas, depois da categoria/atitude do
Absoluto, quando produzidas com uma intenção manifestamente política,
por indivíduos ou grupos que detém o poder ou aspiram a possuí-lo, não
são nunca ingênuas ou autênticas, de tal forma que a violência que instau-
ram não é uma consequência da força das suas convicções, como no caso
dos ideólogos voluntariosos, mas da sua efetiva ausência.
O segundo condicionamento advém da categoria que forma o centro
discursivo hodierno e, desse modo, remete as outras categorias/atitudes
para o estatuto de retomadas, a saber, de acordo com Weil, a categoria/
atitude da Ação. Ora, a Ação sofre de uma espécie de ambiguidade cons-
titutiva que determina ao mesmo tempo a sua força e a sua fragilidade,
como se pode constatar na seguinte descrição: “O homem da ação (…)
quer pensar o mundo com relação ao homem, esclarecido pelo pensa-
mento coerente do contentamento num mundo coerente tal como esse
pensamento fora elaborado pelo Absoluto, guiado pelo protesto do senti-
mento tal como esse protesto se havia expressado na aspiração da obra e
na resignação da finitude”80. Perseguindo este desígnio, conclui o autor, “é
de se esperar, portanto, que a nova atitude procure unir o discurso coerente
com a condição em uma obra satisfatória para o ser finito…”81.
Ter-se-á percebido: a força da Ação está no modo como quer resolver
os impasses das atitudes prévias, conciliando teoria e prática, pensamen-
to estratégico e vida boa, política e ética, Estado, sociedade e indivíduo;
a sua fragilidade resulta, por um lado, de estar em processo de concreti-
zação, eventualmente, infindável, e, por outro, de integrar as outras cate-
gorias/atitudes que pretende superar, incluindo a da obra, cujos excessos
históricos, não obstante, quer impedir definitivamente. A ação, deste

79. Lf 391.
80. Lf 565.
81. Lf 560.

131
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ponto de vista, visa a criação de um mundo, no qual e para o qual deixe


de haver lugar para os totalitarismos, como aqueles que assolaram o sé-
culo XX. Nesse intento, a ação provoca uma espécie de ruptura ontoló-
gica por defender que “não se trata de encontrar um fim na realidade,
mas de encontrar um fim para a realidade”82. Para tal, concebe uma dupla
aufhebung, tanto dos discursos, quanto das atitudes, que enfraquece os
respectivos conteúdos substantivos, cuja complexidade se torna assaz di-
fícil de acompanhar, o que tem como consequência que “as retomadas
são, portanto, particularmente numerosas e complicadas; além disso, são
de difícil análise, porque preferências morais, políticas, religiosas, estéti-
cas se expressam nelas, mas não lhes permitem estabelecerem-se como
teorias”83. Esta dependência extrema das retomadas, não só para se legi-
timar, mas, sobretudo, para se realizar, torna-a, do mesmo passo, vulne-
rável ao regresso de discursos oriundos das categorias/atitudes que ela tem
como propósito superar, mas das quais conserva determinadas caracte-
rísticas e com as quais partilha um mesmo mundo da vida, o que abre o
caminho a todo um conjunto de equívocos.
Ora, neste processo, torna-se muito mais plausível que ocorram as
retomadas da obra do que se poderia supor, dado o trauma civilizacio-
nal que os totalitarismos provocaram. Elas advêm de vários traços que
se prestam formalmente ao jogo das analogias, a começar pela proximi-
dade conceptual do obrar e do agir. Outros, contudo, devem ser apon-
tados, para uma sua eventual ponderação: o aspecto revolucionário de
que ambas se revestem, se bem que, no caso da Ação se trate de “revo-
lução empreendida por e para os homens razoáveis contra a dominação
dos homens destituídos de razão”84; a pretensão comum de darem ex-
pressão à revolta do indivíduo, ainda que o homem de ação procure tão
só “dizer-lhes o que eles querem, o que quiseram desde sempre e nunca
obtiveram”85; a pressuposição de que o material humano com o qual há
que operar é a massa, na obra, a massa acéfala, meramente instrumen-
talizável, na ação, a massa que, por ter sido des-humanizada, privada do

82. Lf 561.
83. Lf 578.
84. Lf 567.
85. Lf 570.

132
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

sagrado tradicional e impossibilitada de se satisfazer com um determi-


nado bem parcial, pode visar o contentamento no exercício universal da
liberdade86. Além do mais, na medida em que a Ação se apresenta como
o desfecho da obra, nem sempre é viável definir com clareza as diferen-
ças, porém muito significativas, na concepção destas noções, ao mesmo
tempo que, também, demora a entender que certas retomadas da obra
possam constituir-se como a negação total do esquema da Ação. Por sua
vez, como se depreende os discursos da obra não têm uma grande difi-
culdade para se mascararem em discursos da ação.
A minha hipótese hermenêutica resulta, deste modo, ainda mais cir-
cunscrita. As novas formas de terror não constituem, propriamente, uma
encarnação direta da categoria/atitude da Obra, mas como um processo
específico de retomá-la num contexto dominado pela Ação. Esta carac-
terística de retomada torna-se clara na necessidade de criar uma organi-
zação de tipo estatal, a partir do nada, porquanto, precisamente, o Estado
Moderno constitui a instituição mais adequada à prossecução do senti-
do almejado pela Ação. Desta feita, o que, nesta profusão de retomadas,
corresponde ao terrorismo será, se o nosso argumento estiver correto, a
intenção de reconduzir a Ação à Obra, fazendo valer, em primeiro lugar,
o que há de intrinsecamente violento no agir, e, em segundo lugar, um
processo típico de retomada de outras categorias pela própria Obra, a
saber, a pseudorretomada da categoria de Deus.
Retomada de retomada, portanto, levada a cabo por um conjunto de
ideólogos inteligentes, na acepção que atribuímos a este termo, ou seja,
cientes dessa falha matricial da lógica, a de poder ser revertida contra a sua
razão de ser, que têm como objetivo deliberado perverter as expectativas
legítimas das populações, relativamente à construção de um mundo em que
teoria e prática estejam ao serviço do bem comum, na dupla dimensão de
justiça e eficácia, mediante a imposição de uma retomada do totalitarismo,
eis a hipótese que se perfila sobre o modus operandi do terrorismo. Note-se
que esta nossa conjectura pressupõe uma posição de permanente má-fé
por parte dos ideólogos da via do terror, que, por um lado, estão perfeita-
mente cientes do que há de contraditório em retomar a ação a partir da
obra, tal como sabem distinguir essas pseudorretomadas, nomeadamente

86. Lf 568.

133
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

da atitude religiosa, daquelas que ocorrem de modo genuíno, o que lhes


permite usá-las de acordo com uma agenda perfeitamente pensada, como
se de um conjunto estrategicamente articulado de ações se tratasse.
Mas, dada a facilidade da retomada da ação pela obra, por um lado,
e o caráter violento, tendencialmente totalitário, da obra, por outro, a
que necessidade estratégica efetiva corresponde a validação buscada no
recurso às pseudorretomadas da categoria/atitude de Deus? A questão
não se dirige propriamente aos benefícios que um certo tipo de concep-
ção religiosa, orientada para valores de intolerância, pode oferecer aos
mentores da obra, mas pretende inquirir sobre as condições de possibi-
lidade das retomadas da obra, e diríamos de todas as outras categorias,
incluindo as retomadas verdadeiras da categoria de Deus, num contex-
to histórico dominado pelo discurso categorial da ação. Ora, como Weil
torna patente, a Ação reveste-se de uma tolerância efetiva face às várias
mundividências, uma vez que delas precisa para alimentar substantiva-
mente um sagrado que foi formalizado para valer universalmente, mas
com um limite decisivo, o de que todas essas posições se assumam como
preferências, pessoais ou locais, sem almejarem ao estatuto de teoria. A
cláusula da convivência das perspectivas mais diversas e contraditórias
é a de que nenhuma queira realmente voltar a constituir-se como única,
apesar das inevitáveis declarações em sentido contrário, e as instituições
que historicamente dão corpo a essa possibilidade de mútuo entendi-
mento estão configuradas para gerirem os eventuais conflitos de interes-
ses, de modo a promoverem o reconhecimento do interesse comum em
que uma tal fronteira não seja ultrapassada. Esta dialética, que supõe um
enfraquecimento do conteúdo dos valores convencionais, levado a cabo,
aliás, pela própria filosofia, por mais complicada que se revele, acaba por
possuir uma eficácia extrema, na medida em que permite concretizar,
no duplo sentido, de realizar e de tornar perceptíveis, os termos dessa
realização, um modo coletivo de vida assente no progresso material e na
paz social. Nesta contextura, cabe ao Estado, em última instância, incar-
nar este desígnio, por via de uma conciliação da reificação exigida pela
sociedade do trabalho e do reconhecimento das idiossincrasias dos indi-
víduos, ligadas à tradição comunitárias, promovendo, ao mesmo tempo,
uma educação para essa “razão de estado”, na qual se subsumem o parti-

134
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

cular, o racional e o razoável. Na óptica da Ação, que Weil partilha, como


sintetizou Sérgio Camargo, idealmente “política é o cidadão agindo e se
atualizando constantemente pela liberdade para ser ‘coparticipante do
governo’”87, para o que será chamado a contribuir para reduzir os níveis
de violência que são impeditivos de tal participação.
Claro está que a violência das particularidades não desaparece, nem
os indivíduos transitam de imediato para um cosmopolitismo destinado
a garantir uma paz perpétua, mas o que nessa dinâmica cooperativa, na
qual se trocam direitos e benefícios por trabalho e colaboração, perde o
seu sentido é o princípio mesmo da solução por via da violência, segun-
do o qual a coexistência assumiria sempre a forma de uma luta de cada
um contra todos e de todos contra cada um, aquele que, precisamente, a
obra procura fazer valer. Em suma, a ação admite as retomadas pessoais
da obra, por exemplo, na adesão a grupos nacionalistas, mas não pode
aceitar a retomada social e política da obra. Havendo lugar para afirmar
cada ponto de vista, para sujeitá-lo à discussão no espaço público, para,
por essa via, obter uma espécie de reconhecimento que se pode estender
até às instâncias mais consideradas, de âmbito interestatal, deixa de ha-
ver um verdadeiro motivo para qualquer forma extrema de proselitismo,
tal como se torna desnecessário a violência dedicada à sua proclamação.
Num mundo em que cada homem tem o direito de ser, plenamente,
cristão, muçulmano, ou seguir outro credo, incluindo o de não perfilhar
nenhum, na condição de que ao outro caiba uma mesma prerrogativa,
depois de uma longa história de totalitarismos que desembocaram sempre
em “guerras santas”, cada uma mais destruidora do que a outra, torna-
se cada vez menos compreensível a defesa da solução violenta para em
nome do retorno a um regime de exclusivismo.
Ora, o ideólogo inteligente, apostado no regresso do totalitarismo, o
qual, como Weil insiste e nós esperamos ter demonstrado, não “é tão pri-
mitivo quanto o discurso desejaria (e deve) retratá-lo”88, percebe o que está
implicado neste esvaziamento progressivo do sentido da violência coletiva,
nomeadamente, o paradoxo que ele envolve de que a única teoria aceitável

87. S. de S. Camargo, Filosofia e Política em Eric Weil. Um estudo sobre a ideia de


cidadania na filosofia política de Eric Weil, São Paulo, Loyola, 2014, 252.
88. Lf 511.

135
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

para assegurar a pluralidade de perspectivas é não haver teoria única, bem


como do processo histórico de sucessiva desconstrução do valor absoluto
de todas as formas simbólicas, da religião à ciência, que viabiliza, negati-
vamente, essa heterogeneidade, procurando substitui-lo pela autoridade
do uso autônomo da razão. Por isso, rapidamente, entende, o que há de
improcedente nos atos terroristas avulsos, e que, por conseguinte, não
pode fazer frente aos Estados instituídos, senão pela criação dum Estado.
Do mesmo modo, reconhece que nenhuma teoria, por mais ideológica,
pode enfrentar essa ideologia teórica da ação, vocacionada para integrar
todas as alternativas que venham a afirmar-se localmente como válidas,
e pronta para neutralizar as restantes, pelo que desvia completamente o
âmbito do enfrentamento para a mitificação.
Mas, num mundo em que a racionalidade científica impera, o mito,
precisamente por não ser uma teoria, mas querer mimar a sua função, fica,
duma certa maneira, vulnerável ao questionamento em termos teóricos.
Sem um reforço de peso, um mito total e totalitário, como aquele que des-
crevemos, já não se adequa a um mundo centrado na categoria/atitude da
Ação. Mistificação deliberada, o mito corre o risco de ser percepcionado
como puro logro. É, assim, essa intensificação da sua verdade que é busca-
da pela autorização que a pseudorretomada da categoria de Deus confere.
E a escolha desta retomada, em particular, explica-se, portanto, por duas
razões principais. Por um lado, de todas as formas simbólicas tradicio-
nais, a religião será aquela que formalmente mais se adequará a induzir a
confusão entre o sagrado transcendente, ao qual se refere a fé e o sagrado
comunitário que subjaz aos processos históricos, mormente numa época
em que outros valores, como os do patriotismo, sofreram uma manifesta
erosão. Por outro lado, o ideólogo inteligente terá identificado que a pro-
clamação da morte de Deus, se libertou uma parte da humanidade dos ex-
tremos que uma convicção não esclarecida pode provocar, remeteu outras
partes, em todas as confissões, para os processos basilares da superstição,
do medo e da menorização. Neste sentido, será de supor que ele se tenha
apercebido de que, apesar de todos os esforços da Ação, ou, talvez, por
causa da insuficiência e do caráter paradoxal de tais iniciativas, a ideia de
um mito totalitário destinado a impor um regime de violência total, em
nome de um deus guerreiro, ainda podia ter o seu cabimento.

136
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

Esta possibilidade merece ser devidamente equacionada. Ela evidencia


que a mitologia da Obra não é só retomada pelos regimes centrados em
políticas de terror. Estes assumem-na na sua feição paroxística e, por isso,
susceptível de ser considerada pelos Estados constitucionais como exte-
riores à sua forma. Todavia, importa ter em conta que eles estão constan-
temente ativos no seu interior, enquanto objetos de preferências particu-
lares, catalisadores dos conflitos que opõem os indivíduos à sociedade e ao
Estado, promotores de um tipo de reconhecimento genealógico que a racio-
nalidade universalista lhes nega, e que os próprios Estados constitucionais
retomam amiúde vários dos seus processos enunciativos para recriarem um
“sagrado coletivo” que já não tem existência própria. Neste sentido, sem
prejuízo do eventual incremento de razoabilidade nos Estados democráticos
modernos, torna-se legítima a suspeita de que a afirmação de Horkheimer,
em meados do século passado, mantenha toda a sua atualidade: “Ainda é
a irracionalidade a moldar o destino do homem”89.
Ora, esta transversalidade do mito moderno, consentida ou patrocina-
da, mina a lógica visada pela categoria/atitude da Ação. Para limitar esse
efeito nefasto, não basta apelar para uma razão escandalizada, mesmo que
esse apelo seja ampliado pelo recurso à guerra, nem confiar na mitologia
alternativa de que a história chegou ao seu fim e de que, por conseguinte,
os Estados constitucionais constituiriam a materialização dessa efetividade.
Na verdade, o recurso à guerra, mesmo quando justificado, não resolve,
antes agrava, a conflitualidade interna, pois introduz “um contínuo au-
mento da quantidade de violência no seio da morale concrète”90, ao passo
que o fato de as várias categorias/atitudes poderem ser recorrentemente
retomadas significa que não há um sentido único, predeterminado para
a realidade, mas vários sentidos possíveis, que, tal como a lógica reflete,
não só coexistem no nosso mundo, como são susceptíveis, a qualquer
momento, de ser revitalizados. Como lembra Weil:

o indivíduo sempre pode optar pela violência e recusar o discurso, qualquer


discurso […] e, por conseguinte, é perfeitamente possível que esse discurso

89. M. Horkheimer, O eclipse da razão, Lisboa, Antígona, 2015, 172.


90. A. Vestrucci, Il Movimento della Morale: Eric Weil e Ágnes Heller, Milano, Il
Filarete, 2012, 223.

137
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

seja destruído ou se torne insensato para uma humanidade que vive na vio-
lência, que luta com a violência91.

A incompreensão de que a escolha de uma categoria/atitude predo-


minante é, em última análise, um ato de vontade, exercido coletivamen-
te pelos homens sobre as circunstâncias, e de que, por conseguinte, não
existe uma garantia de que ao reino da violência se venha a seguir o da
razão, mas tão só uma expectativa legítima de que assim deva acontecer,
para aqueles que pretendem conciliar filosofia e história, torna cada vez
mais opaco o imperativo de razoabilidade que está implicado no projeto
complexo da Ação, enquanto limita a percepção de que nenhuma ordem
metafísica impede o regresso a um qualquer totalitarismo, mesmo que
este se apresente à partida com as insígnias do terror.
Mas se não impede, também não condena, pelo que se mantém intacta
a liberdade de preservar na tentativa de organizar uma existência segun-
do um padrão de razoabilidade. A tipicidade lógica detectada implica isso
mesmo: se ela acarreta um aspeto repetitivo, inerente à possibilidade de
enquadrar o diverso concreto num certo padrão universal, buscado num
conjunto limitado de categorias/atitudes, a viabilidade dessa redução supõe,
igualmente, a abertura correspondente à efetividade de uma escolha, mais
ou menos livre, mais ou menos consciente, daquelas categorias/atitudes
a partir das quais se deverá organizar a existência individual e coletiva. A
retomada da Obra, num contexto em que a Ação se afigura predominante,
comprova esse desacerto entre a coerência ideal e a liberdade real.
Ora, a progressiva vulnerabilidade que os Estados constitucionais
parecem oferecer às investidas dos novos mitos da Obra, mostra que,
para dar corpo a essa decisão, mais do que nunca, há que investir nessa
outra “violência contra a violência”92, que é a educação coletiva, na dupla
acepção de “educação para a racionalidade sem a qual o mundo moder-
no não duraria, educação para a razão, para a busca e para a descoberta
dum sentido”93. Esta deverá integrar uma discussão efetiva sobre a dialé-
tica inerente à figura do Estado Moderno, que combine a caracterização

91. Lf 126.
92. M. Perine, Eric Weil e a compreensão do nosso tempo. Ética, Política, Filosofia,
São Paulo, Loyola, 2004, 47.
93. E. Weil, L’Etat et la violence, Essais et conférences II, op. cit., 380.

138
6. O Estado à prova dos novos discursos da Obra

transcendental do tipo, patenteando as condições necessárias à sua exis-


tência, como se encontra na própria Filosofia política de Weil, e a análise
alternativa, preconizada por Michel Foucault, do “poder […] como algo
que circula”94, que torne visíveis as relações de “subjugação efetivas que
fabricam os sujeitos”95. Sem um tal exercício crítico, vejo com dificuldade
que os cidadãos estejam positivamente capacitados quer para reconhe-
cerem a racionalidade que assiste ao ideal democrático contemporâneo,
em contraste com outras formas históricas, detectarem os respectivos li-
mites e ponderarem modelos válidos de subsunção, alternativos à figura
condenada do Estado-Nação, quer para irem buscar nessa compreensão
agente, a razão para identificarem a possibilidade de uma vida com sen-
tido com a pertença a essa matriz de coexistência, e, assim, evitarem as
efabulações demagógicas da Obra.

94. M. Foucault, Il faut défendre la société. Cours au Collège de France (1975-1976),


Paris, Gallimard/Seuil, 1997, 26.
95. Ibid., 39.

139
7. O Estado como instituição
moral e educativa:
traços do aristotelismo de Weil1

Sergio de Siqueira Camargo2

E m 1946, Eric Weil publicou o artigo “A antropologia de Aristóteles”3. Esse


texto de aproximadamente 30 páginas é importante para compreender
a afirmação que ele faz no parágrafo 41 da Filosofia política, texto de 1956:
“Com risco de chocar, é preciso dizer que a teoria antiga (aristotélica, em
particular) do Estado como instituição moral e educativa é verdadeira”4. Em
outras palavras, no artigo de 1946, Weil diz que a “política”5 de Aristóteles

1. Retomo aqui alguns aspectos do conteúdo da herança aristotélica no pensamento


de Weil e de seu ultrapassamento presentes no quarto capítulo “Estado e cidadania”, do
meu livro Filosofia e política em Eric Weil. Um estudo sobre a ideia de cidadania na filo-
sofia política de Éric Weil, São Paulo, Loyola, 2014, 212-225.
2. Faculdade de Filosofia do Seminário Maior de Patos de Minas, Brasil.
3. E. Weil, Essais et conférences II, Paris, Vrin, 1971, 9-43. Neste artigo, Weil reco-
nhece que a síntese antropológica construída por Aristóteles traduz a originalidade e a
força de seu pensamento. Ver a opinião de H. C. Lima Vaz, Antropologia Filosófica I, São
Paulo, Loyola, 1991, 38-43.
4. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola, 2011,
328. Ver, a propósito, o excelente artigo de R. Caillois, Éric Weil et la politique d’Aristote,
Cahiers Universitaires de Lille: Éric Weil et la pensée antique, Lille (1988) 91-97.
5. Aristóteles, Política, I 2, 1252 b 27-1253 a 29 (trad. A. C. Amaral e C. C Gomes,
Lisboa, Vega, 1998). Conforme analisa Raul M. Rosado Fernandes, no prefácio desta tradu-

141
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

é uma teoria da polis e o sujeito da política é o Estado, e não o indivíduo6.


Assim, o Estado se faz o sujeito constante da política e do governo, ele
consiste na ordem dos habitantes que o compõem. A leitura de Weil quer
mostrar que no pensamento de Aristóteles há uma unidade entre moral e
política. Com efeito, moral e política se apresentam como o campo no qual
o homem age em vista de felicidade. Para tanto, o Estado, nessas condições,
deve ser considerado como uma instituição moral e educativa.

II

O artigo de 1946 diz que existe um rico material para o estudo acerca
da antropologia aristotélica, pois “a Retórica, a Ética, a Política, a Psicolo-
gia falam do homem”7, por descrever o homem em suas várias dimensões:
o homem como ser agente, pensante, passional, possuidor de alma, moral
e político. A “Retórica”, constata Weil, oferece em seus doze livros, um
tratado sobre as paixões do homem, ressaltando seus aspectos positivos.
Paixão é o que faz o homem trocar de atitude e se comportar de modo
diferente em relação a uma decisão, seguido de prazer ou de desprazer.
Para Aristóteles, segundo Weil, “é necessário estudar as paixões dos ho-
mens para exercer sua influência sobre eles”8.
O orador, para convencer os homens, deve levar em consideração o
princípio que reconhece “o homem, como todo ser vivente, procura o pra-

ção, Aristóteles se baseia para construir sua política nos seguintes elementos que compõe
o Estado: “a sociedade organizada … é constituída pela célula familiar… com os interesses
do Estado…”, vale dizer, a população, o território e a autoridade política.
6. É oportuno dizer que foi na Grécia de Homero e de Aristóteles que surgiu um
modo diferente de se fazer política. Aí os gregos, que são os inventores da política, fizeram
que o rei paulatinamente partilhasse e disputasse o seu poder com os cidadãos. Assim,
pode-se dizer que a partir do século VI a.C., na Atenas de Sólon e Clístenes, é que surgiu
os fundamentos da civilização ocidental no concernente à política. Por isso, o historia-
dor e professor honorário do Collège de France Jean-Pierre Vernant afirma que foram os
gregos que inventaram o “mundo de onde viemos”. Sobre esse tema, ver J.-P. Vernant, As
origens do pensamento grego, trad. I. B. B. da Fonseca, São Paulo, DIFEL, 1972. Ver também
do mesmo autor, com P. Vidal-Naquet, Mito e tragédia na Grécia antiga, São Paulo, Duas
Cidades, 1977. Ver ainda J. M. Buée, Education, cosmos et histoire chez Eric Weil, Éric
Weil et la pensée antique, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1988, 81-89.
7. E. Weil, Essais et conférences I, Paris, Vrin, 1991, 11 s.
8. Ibid., 12.

142
7. O Estado como instituição moral e educativa

zer (…). Os objetos desejados são vistos sob o ângulo do bem ou do bem
aparente, do prazer ou do prazer aparente”9. O importante, para o orador,
é conhecer o agir do homem que se revela pelo hábito, raciocínio, paixão e
desejo. Conhecendo o agir do homem, é possível fazê-lo agir e guiá-lo no
sentido pretendido. Esse esforço de compreensão do agir humano ajuda a
perceber que, na prática, todos os homens são “amantes de si mesmo” e,
por consequência, querem todos ser ricos e ocupar lugares de destaque.
Os homens, no fundo, querem o bem e seu próprio bem.
Para Aristóteles, o bem que o homem procura constantemente traduz-
se em contentamento, em felicidade. É praticando o bem que o homem
encontra a felicidade, a satisfação do seu ser. Porém, “o contentamento hu-
mano é assegurado àquele que vive e age segundo a virtude. Ele sentirá o
verdadeiro prazer que não o desiludirá, precisamente porque é humano”10.
Assim, o verdadeiro prazer faz que o homem aja corretamente, buscando
o bem. A discussão sobre o bem praticado pelo homem concentra-se na
problemática dos prazeres e dos desprazeres. “O homem de bem, o homem
que realiza a meta humana pela atividade humana e que também chega
ao contentamento, é aquele que sabe encontrar seu prazer e seu desprazer
onde sempre ocorre”11. Porém, há paixões e desejos que não são razoáveis
e devem ser contidos, pois é necessário evitar toda forma de excesso. Os
hábitos, para Aristóteles, são divididos em três grupos: atitudes virtuosas
— qualidades de caráter adquiridas pelo hábito —, virtudes da inteligên-
cia — que exige certa educação cultural — e o hábito do domínio sobre
si mesmo. Enfim, o homem deve dominar os prazeres e desejos que não o
conduzem a uma vida virtuosa. “O homem que deixa as paixões ou seus de-
sejos escravizar seu espírito é mais perigoso, mais terrível do que qualquer
animal. Só se é homem pela ação virtuosa, pela verdade agente”12.
Weil, ao comentar o pensamento moral de Aristóteles, diz que o ho-
mem não busca somente o prazer, mas também o contentamento. Viver,
segundo o contentamento, significa renunciar a uma vida vivida somente
a partir das paixões. Deve-se querer viver sempre a partir do bem. O ho-

9. Ibid., 13.
10. Ibid., 16.
11. Ibid., 17.
12. Ibid., 17.

143
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

mem é superior aos animais, visto que também não é um ser natural. “Ele
não é condicionado como qualquer outro produto da natureza (…) Há
uma diferença biológica que separa o homem do animal ‘cão’”13. Não se
pode reduzir o homem a um ser de simples necessidade material. Ele tem
necessidades, porém ela toma formas diferentes em cada homem. Assim,
o homem deve ser compreendido como indivíduo, como ser agente, sen-
do princípio de sua própria ação. Ele age em busca de realização dos bens
humanos. Porque possui faculdades, o homem é razoável, portanto, di-
ferente dos animais. A razão e o apetite fazem o homem agir. “O bem da
razão pura é a verdade. O bem da razão prática é a verdade conforme o
apetite justo. O ser da ação boa ou malvada se encontra na decisão, que
é o intelecto desejando ou o apetite razoável. O homem é esse princípio
mesmo”14. Ele é a união de intelecto e de desejo, mas a razão deve domi-
nar as paixões e os desejos. A virtude, como atitude humana, não é um
dom da natureza; ela se adquire pelos hábitos. O homem é livre para to-
mar decisões. No mundo, ele age e se realiza, sendo capaz de ser feliz.
Para tanto, é preciso que ele se eduque, a fim de que possa sempre mais
adquirir hábitos virtuosos. Assim, para Aristóteles, a problemática da re-
lação entre virtude e felicidade é resolvida na esfera da educação. O ho-
mem deve educar-se em vista do agir bem, isto é, “de ser justo, pois a
justiça é o resumo de todas as outras virtudes”15.

III

Weil diz que para Aristóteles, “o homem é um animal que vive em


sociedade”16, pois é incapaz de viver isolado e, para ser ele mesmo, ne-
cessita de estabelecer relações com os seus semelhantes em todos os mo-
mentos de sua existência. Daí ser a afirmação de Aristóteles: “o homem
é, por natureza, um ser vivo político. Aquele que, por natureza e não por
acaso, não tiver cidade, será um ser decaído ou sobre-humano, tal como o

13. Ibid., 18 s.
14. Ibid., 20.
15. Ibid., 22.
16. Ibid., 22.

144
7. O Estado como instituição moral e educativa

homem condenado por Homero como ‘sem família, nem lei, nem lar’”17.
Assim, o homem é um animal feito para a sociedade civil. Mesmo que
os homens não tivessem necessidade uns dos outros, não deixariam de
desejar viver juntos. Na polis grega, a família apresenta-se como a pri-
meira comunidade e a vila como uma segunda comunidade mais ampla.
Essas duas realidades têm a finalidade de garantir a satisfação das ne-
cessidades vitais dos homens18. A propósito, Aristóteles escreveu que “a
cidade é composta por várias famílias. A administração da casa divide-
se em tantas partes quantos os membros que formam a própria família
que, desde que completa, é constituída por escravos e homens livres”19.
Contudo, não são capazes de garantir as condições de vida perfeita, de
uma vida que inclua a dimensão moral. Somente o Estado garante, pelas
leis e pelas magistraturas, o bem moral do indivíduo. Nele, o indivíduo
é obrigado a sair do seu egoísmo, por efeito das leis e das instituições
políticas, e a viver conforme o que é subjetivamente bom. Não é apenas
para viver juntos, mas sim para viver bem juntos que se fez o Estado. O
Estado se faz como a realidade que dá o verdadeiro sentido à família e à
vila. “O Estado é uma comunidade humana”20 feita de cidadãos.
Segundo Aristóteles, cidadão não é aquele que habita numa cidade,
nem tampouco aquele que goza do direito de empreender uma ação ju-
diciária; também não é cidadão o descendente de cidadãos. Para ser ci-
dadão, impõe-se a participação nos tribunais ou nas magistraturas; não
basta habitar o território porque os estrangeiros também têm essa possi-
bilidade. Assim, de acordo com Aristóteles o que constitui propriamente o
cidadão, sua qualidade verdadeiramente característica, é o direito de voto
nas assembleias e a “capacidade de participar na administração da justiça e
no governo”21. Cidadão é quem exerce uma função pública; é o indivíduo
que toma parte na administração da justiça e faz parte da assembleia que
legisla e governa a cidade, ou seja, que governa, ou que tem função no tri-
bunal, ou que participa das assembleias do povo. Para Aristóteles, existem

17. Aristóteles, Política, I 2, 1253 a 3-5.


18. Ver, a propósito, G. Reale, História da filosofia antiga, v. II, São Paulo, Loyola,
1994, 432-434.
19. Aristóteles, Política, I 3, 1253 b 2-4.
20. E. Weil, Essais et conférences I, op. cit., 24.
21. Aristóteles, Política, III 1, 1275 a 23.

145
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

dois tipos de poderes: “Dentre os cargos de magistrados, uns são limitados


em relação ao tempo, de tal modo que não podem, em caso algum, ser
desempenhados duas vezes pelo mesmo titular (…); ao passo que outros
já não tem limite de tempo, tal como acontece, por exemplo, com o cargo
de juiz ou de membro da assembleia”22. Assim, cidadania, no entender de
Aristóteles, é, pois, a participação ativa nos assuntos da “cidade”. É o fato
de não ser meramente governado, mas também governante. Nesse sentido,
pode-se dizer, ainda, que a liberdade, para os gregos, não consiste somen-
te em gozar de certos direitos, mas consiste, sim, fundamentalmente, no
fato de ser “coparticipante no governo”23. Ou ainda: “a liberdade consiste
em participar das funções essenciais do Estado”24.
Em termos aristotélicos, na democracia ateniense, é cidadão quem
exerce uma função de duração indefinida, isto é, quem é membro da as-
sembleia com direito a palavra e, consequentemente, com direito a par-
ticipar dos assuntos do governo. Sob esse aspecto, Finley escreveu:

A democracia ateniense era direta e não representativa. A Assembleia que deci-


dia em última instância a respeito da guerra e da paz, dos tratados, das finanças,
da legislação, dos trabalhos públicos, em resumo, de toda gama das atividades
governamentais, era uma reunião de massa, ao ar livre, constituída de milhares
de cidadãos com mais de vinte anos, que a ela resolviam assistir naquela data
(…) A palavra isegoría, o direito de todos falarem na Assembleia, era algumas
vezes empregada pelos escrivães gregos como sinônimo de ‘democracia’. E a
decisão era tomada pelo voto da maioria simples dos presentes25.

No governo, as funções são preenchidas por um sistema de reveza-


mento que propicia aos cidadãos serem sucessivamente governantes e
governados.

As tarefas de governo, sob o aspecto administrativo, eram divididas em grande


quantidade por cargos anuais e em um Conselho de quinhentos membros,
todos escolhidos por sorteio, e para um período de exercício limitado a um

22. Aristóteles, Política, III 1, 1275 a 23-27.


23. Ver a excelente análise sobre a liberdade na Grécia antiga por H. Arendt, Essai
sur la révolution, Paris, Gallimard, 1967, 322.
24. E. Weil, Essais et conférences I, op. cit., 26.
25. M. I. Finley, Démocratie antique et démocratie moderne, trad. M. Alexandre,
Paris, Payot, 1976, 66.

146
7. O Estado como instituição moral e educativa

ou dois anos (…). Uma proporção considerável de cidadãos do sexo mascu-


lino, em Atenas, tinha experiência direta de governo, que superava em muito
o que conhecemos e até quase tudo o que podemos imaginar26.

Nas aristocracias e oligarquias gregas, o povo é privado dos poderes


executivo e legislativo, que são, em última instância, exercidos por in-
divíduos especializados; com efeito, aí não há revezamento27. Cidadãos,
nesse contexto, são aqueles que têm a possibilidade de conformar-se com
essa função pública. Esse modo de compreender e de definir do Estagirita
sobre o que vem a ser cidadão reflete a singularidade da polis grega, onde
o cidadão só se sentia como tal se participasse diretamente, no governo,
da coisa pública, ou seja, se elaborasse e aplicasse as leis, administrando
a justiça. “Chamamos cidadão àquele que tem o direito de participar nos
cargos deliberativos e judiciais da cidade”28.
A cidade, para os gregos, é a comunidade do “bem-viver”. A estrutura
do Estado será sempre jurídica, visto que a lei educativa nos moldes do
Estado, pensará bem melhor que o indivíduo que optou por viver isolado.
Contudo, o homem está acima da “cidade-estado”, mas o Estado é supe-
rior aos homens ordinários; está acima dos desejos biológicos. O Estado é
uma instituição moral. Ele deve ser moral. É oportuno dizer, nessas condi-
ções, que se para Aristóteles a moral é política, para Weil, moral e política
desenvolvem-se reciprocamente; isso pelo fato de que se o Estado é o ver-
dadeiro sujeito político, o indivíduo moderno é o valor absoluto, constata
Weil29. Com efeito, para Aristóteles a instituição é moral, enquanto que
para Weil a meta racional da sociedade mundial do trabalho e da economia
apresenta-se como uma mediação necessária para que o Estado razoável
seja compreendido pelo cidadão enquanto Estado histórico.

26. Ibid., 67.


27. G. Reale, História da filosofia antiga, v. II, op. cit., 439: “O leitor moderno deve
ter presente, para orientar-se bem, que o Estagirita entende por ‘democracia’ um gover-
no que, descuidando o bem de todos, visa favorecer os interesses dos mais pobres de
modo indevido, dando, portanto, ao termo a acepção negativa que nós traduzimos por
‘demagogia’: com efeito, Aristóteles esclarece que o erro da democracia é o de considerar
que, dada a igualdade de todos na liberdade, todos podem e devem ser iguais também
em tudo o mais”.
28. Aristóteles, Política, III 1, 1275 b 17-18.
29. Sobre isso, ver o artigo de R. Caillois, Éric Weil et la politique d’Aristote, art.
cit., 91-97.

147
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O colono, membro de uma cidade conquistada, e os artesãos não são


considerados cidadãos no sentido que Aristóteles dá ao termo. Essa defini-
ção aristotélica demonstra que os cidadãos são muito limitados em nú-
mero. Assim, cidadão se caracteriza pelo atributo do poder, é pela parti-
cipação no poder público que o indivíduo se torna cidadão, porém nada
impede de contar entre os cidadãos as criaturas de Clístenes. “Foi o que
sucedeu em Atenas, quando Clístenes, depois da expulsão dos tiranos,
integrou nas várias tribos muitos estrangeiros e escravos domiciliários”30.
Daí ser que a grande maioria de indivíduos da “cidade” torna-se meios
que servem para satisfazer às necessidades dos cidadãos. É sabido que os
últimos dois livros da Política31, dedicados à ilustração do Estado Ideal,
mostram que a concepção do Estado de Aristóteles é essencialmente mo-
ral, visto que o Estagirita valoriza, no seu discurso, os problemas morais e
educativos em detrimento dos aspectos técnicos relativos às instituições
e às magistraturas. O Estado ideal, segundo Aristóteles, quer ser o espaço
no qual se dá a educação do cidadão32.
Com efeito, em sua Ética, Aristóteles mostra que os bens são de três
gêneros diferentes: externos, corpóreos e espirituais da alma; os dois pri-
meiros são considerados simples meios para a realização dos terceiros, ou
seja, para o Estagirita esse modo de ser tanto vale para o indivíduo, como
para o Estado33. Contudo, o Estado deve conviver com os dois primeiros
tipos de bens de maneira moderada e limitada, pois somente nos bens
espirituais reside a verdadeira felicidade.

Os bens exteriores, tal como um determinado instrumento, são limitados. Ora,


os utensílios quando usados em excesso não beneficiam nem servem o seu
utente. Já com os bens da alma sucede o contrário: quanto mais abundantes
mais úteis são (…). Assim, se a alma é mais valiosa que os bens possuí­dos ou o
corpo, tanto em termos absolutos como para nós, necessariamente estarão na
mesma relação as suas melhores disposições. Ademais, é em vista da alma que
esses bens são preferíveis — e os sensatos devem preferi-los — e não a alma
em vista desses bens (…). A partir deste argumento segue-se que a cidade

30. Aristóteles, Política, III 2, 1275 b 35-37.


31. Cf. Livros V e VI.
32. Cf. G. Reale, História da filosofia antiga, v. II, op. cit., 442.
33. Sobre a ética aristotélica ver o excelente estudo de H. C. Lima Vaz, Escritos de
Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica 1, São Paulo, Loyola, 1999, 109-126.

148
7. O Estado como instituição moral e educativa

melhor é simultaneamente feliz e próspera. Ora, é impossível que as coisas


corram bem aos que não agem bem; e não há obra boa, seja do indivíduo
seja da cidade, à revelia da virtude e da prudência34.

O Estado feliz, segundo Aristóteles, é aquele que tem uma “cidade” à


medida do homem. Assim, a cidade ideal deve ter agricultores, artesãos,
guerreiros, comerciantes, homens que estabeleçam leis e sacerdotes. Na
cidade ideal, os cidadãos serão primeiro guerreiros, depois conselheiros e,
finalmente, sacerdotes, visto que os camponeses, artesãos e comerciantes
proveem as suas necessidades materiais para que possam ter uma vida
feliz. Nessas condições, é oportuno dizer que o “bem-viver” e a felicidade
serão concedidos somente aos cidadãos da cidade ideal, visto que todos
os outros homens que nela vivem, serão reduzidos a simples objetos,
condenados a uma vida subumana35.
Pelo fato de o homem ser um animal da cidade, a felicidade desta há
de depender sempre da virtude vivida por cada cidadão; por isso, a cidade
torna-se feliz na medida em que cada um dos cidadãos torne-se virtuoso36.
Para que o homem se torne virtuoso e bom, ele deve educar-se para que,
assim, possa ser capaz de obedecer e de comandar. A virtude adquire-se
pela educação, por sua vez, “o Estado deve ser o mestre da educação”37. A
virtude encontra sua forma de existência na lei, porque
a lei é livre de toda paixão (…) ela deve ser justa, deve reconhecer a igual-
dade dos cidadãos e defender cada um contra toda forma de lesão, deve
preservar uma igualdade, que longe de ser mecânica, reconhece a cada um
sua justa parte38.

A educação, para os gregos, deverá ter, como tarefa primordial, a


formação de homens virtuosos, bons. Assim, deverá realizar o ideal pro-
posto pela ética: o corpo tem que viver em função da alma e as partes
inferiores da alma em função das superiores e, em particular, de forma
tal que se possa, em última instância, realizar o ideal da pura contempla-
ção, ou seja, do filosofar.

34. Aristóteles, Política, V 1, 1323 b 6-11; 15-20; 29-32.


35. Ver. G. Reale, História da filosofia antiga, v. II, op. cit., p 445.
36. Ibid., 412-419.
37. E. Weil, Essais et conférences I, op. cit., 22.
38. Ibid., 23.

149
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Sendo assim, se o Estado visa ao bem, ele se faz educador. “Ele prece-
de em dignidade todo indivíduo e toda família. O bárbaro, que vive sem
Estado, não é um homem verdadeiro. Somente o ser cidadão realiza o ser
humano (…) o homem vive e se realiza no Estado”39. O Estado não serve
aos interesses particulares, mas tem como tarefa formar os cidadãos. “Ne-
nhuma educação faz um indivíduo nascido mal se tornar um homem no
sentido pleno, ela pode fazê-lo um bom cidadão”40. Assim, a lei educa o
indivíduo para a virtude, ou seja, virtude é boa disposição para agir corre-
tamente. Platão sabia dessa realidade, porém sua concepção de Estado utó-
pico pretendia crer em homens bons. Ora, a bondade do cidadão, segundo
Aristóteles, não é outra coisa senão a capacidade de dar uma opinião bem
fundada; igualmente, pode-se dizer que, para Weil, como para Aristóteles,
a política não é uma troca de mercadorias, mas refere-se à formação do
caráter do cidadão, isto é, a aprendizagem da virtude faz a boa conduta e,
consequentemente, educa o indivíduo para a prática da cidadania.
É o Estado que há de fornecer a educação aos indivíduos, começan-
do pela do corpo, que se desenvolve antes da razão, procedendo, depois,
à educação dos impulsos, dos instintos e dos apetites, e, concluindo com a
educação da alma racional. Trata-se, pois, de dizer que a educação tradi-
cional atlético-musical grega é assumida no Estado aristotélico, e a sua
descrição conclui a Política. Para Aristóteles, uma educação técnico-pro-
fissional, é um contrassenso, visto que educaria não tanto em benefício
da felicidade do homem, mas em benefício das coisas que servem ao ho-
mem. Por sua vez, essa educação, além de não gerar cidadania, construi-
ria homens pela metade. A verdadeira educação é aquela que tem em mira
fazer com que o homem seja de fato um cidadão, isto é, com que o ho-
mem aprenda, a partir da prática da virtude, o bem-viver.

IV

É importante dizer que a educação querida e praticada pelos gregos não


consiste, de modo algum, numa informação ou instrução que leve o indiví-

39. Ibid., 26.


40. Ibid., 25.

150
7. O Estado como instituição moral e educativa

duo a ser simplesmente governado, ou melhor, a ser cidadão passivo. Pelo


contrário, a educação, no contexto da polis grega, dá-se a partir da ideia de
que a igualdade dos cidadãos implica a igualdade dos indivíduos em relação
ao saber e à formação. Educar o cidadão significa, acima de tudo, afirmar
a ideia de uma educação que mostre ao cidadão que ele é um governante
potencial, ou melhor, “coparticipante no governo”41. Assim, a verdadeira
liberdade consiste em participar das funções essenciais do Estado. O ci-
dadão ativo é o homem capaz de julgar e decidir. Nesse sentido,

a educação mostra assim toda sua importância em afirmar que Ética e Po-
lítica são uma e mesma coisa. A lei garante a educação, e a educação faz da
criança, que ainda é animal, um homem. É necessário, pois, homens for-
mados para formar as crianças, mas esta formação transcende o indivíduo:
é obra da Cidade42.

Daí ser que para Aristóteles, a verdadeira educação dada pelo Estado é
aquela que faz o cidadão, que aspira a ser “governante em potência”, apren-
der, a partir da prática da virtude, o bem-viver. Por conseguinte, cidadão é
o indivíduo virtuoso que exerce uma função pública — ou que tenha uma
função no tribunal — ou que participa das assembleias do povo.
Antes de concluir, é oportuno dizer que Weil no parágrafo 41 da Filo-
sofia política reconhece alguns aspectos da fraqueza da teoria aristotélica
do Estado. Ele diz que

ela não é o todo da verdade para nós… o mundo no qual ela se desenvol-
veu não conhecia a luta progressiva com a natureza exterior, a ideia de uma
sociedade mundial do trabalho aí não podia ser concebida, a libertação do
homem (…) da necessidade dependia do trabalho de outros homens con-
siderados (…) como forças naturais (…) a exclusão da vida interestatal do
seu campo de visão43.

Porém, ela permanece, em parte, verdadeira, porque o que ela ensina


está ainda presente na análise da realidade hodierna e na ideia que visa a

41. Cf. H. Arendt, Essai sur la révolution, op. cit., 322. Para Hannah Arendt, a cida-
dania grega consiste não somente em gozar de certos direitos, mas sim no fato de ser o
cidadão um “coparticipante no governo”.
42. E. Weil, Essais et conférences I, op. cit., 26.
43. E. Weil, Filosofia política, 328 s.

151
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ação do homem na realidade. Ela é verdadeira porque descreve o Estado


não como aparelho de coerção, mas órgão no qual a comunidade é capaz
de pensar “a condição de não viver no temor da sua destruição”44. Ainda: a
teoria antiga aristotélica justifica a ideia de um Estado positivo enquanto
moral consciente de uma comunidade livre, capaz de permitir “aos seus
cidadãos levar uma vida que seja sensata para eles na virtude”45.

44. Ibid., 329.


45. Ibid.

152
8. Os enredos do poder e a theoria

Francisco Valdério1

E m maio de 1957 surge, na revista Esprit, o famoso artigo O paradoxo


político, refletindo sobre os dois grandes eventos do século — As cha-
mas de Budapest e o Relatório de Khrushtchev ao XX Congresso do PCUS.
Eventos que explicitam a dupla natureza do poder, a saber, que o político
é atravessado por uma tensão entre a racionalidade e o mal. Dois anos
antes Ricoeur tinha publicado uma coletânea de textos de “ocasião” aos
quais nomeou História e verdade, organizados em dois movimentos ar-
ticulados de idas e vindas em relação à estrutura interna desta obra: um
primeiro dedicado à elucidação dos conceitos diretores, isto é, de cunho
epistemológico e metodológico e, em seguida, textos de intervenção na
crise civilizatória em curso ou de orientação de pedagogia política2. A se-
gunda edição desta obra em 1964 trazia o artigo mencionado e o inseria,
após meditada deliberação, em seu segundo movimento.
Essa última observação, que poderia parecer mera curiosidade edito-
rial, é, na verdade, uma constatação de que uma apreciação desse artigo
já não pode, a nosso ver, prescindir do lugar escolhido pelo próprio autor

1. Universidade Estadual do Maranhão (UEMA), Brasil.


2. P. Ricoeur, História e Verdade, trad. F. A. Ribeiro, Rio de Janeiro, Forence, 1968,
7. Doravante HV.

153
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

para situá-lo. Noutros termos, o artigo O paradoxo político insere-se no


contexto da investigação sobre os enigmas do poder político que desafiam
a reflexão filosófica e a ação desta reflexão no que interessa ao mundo da
cultura (HV, 20)3. Como podemos notar, para Ricoeur, pensar e intervir
constituem duas facetas de uma mesma abordagem filosófica.
O artigo O paradoxo político é, assim, um texto cujo movimento é
também retrospectivo em relação à pesquisa das significações conceituais,
pois a interpretação dos eventos dos quais quer dar conta pressupõe uma
theoria ou, nas palavras do autor, um certo orgulho de ser “intelectual”
(HV, 8). Contudo, não nos propomos agora desenvolver uma reflexão
capaz de articular o artigo em questão com o todo dessa fascinante obra
— o foco desse estudo nos impõe uma abordagem mais restritiva. Im-
porta tão somente explicitar a circunscrição desse texto no conjunto e no
coração dessa obra como um ensaio que, ao pertencer a um todo maior
que o envolve, contém em si o germe glorificador “da palavra que reflete
com eficácia e que age mediante reflexão” (HV, 9).
Será esse o núcleo de compreensão decisivo para o curso desta in-
vestigação. Antes, porém, é preciso retomar a diretriz da tese advogada
no texto, bem como alguns aspectos da interpretação de Ricoeur acerca
dos eventos a que ela se refere.

O paradoxo do político

A análise ricoeuriana se inicia, após breve preâmbulo sobre a Revolu-


ção da Hungria e a sua violenta interdição pelas tropas do Exército Ver-
melho, advertindo aqueles — sobretudo, os marxistas — que não creem
na autonomia relativa do político diante da história econômico-social,
são incapazes de perceber que o problema do poder em regime socialista
não difere fundamentalmente de qualquer outro regime e que, ademais,
é agravado por possibilidades superiores de tirania. O que exigiria, nesse

3. Bastaria lembrar que a filosofia ricoeuriana está sempre às voltas com o que
toma como pressuposto fundamental, o não filosófico, nesse caso a violência e o mal
como o que precede toda filosofia cf. D. Pellauer, Compreender Ricoeur, trad. M. Pen-
chel, Petrópolis, Vozes, 2009, 18.

154
8. Os enredos do poder e a theoria

caso, controles democráticos mais eficazes e rigorosos a fim de conter essa


sanha da racionalidade de impor-se a qualquer custo (HV, 252).
Todo o texto gira em torno da tese da autonomia do político e esta
é, por sua vez, definida pela dupla natureza do poder, portanto, do para-
doxo segundo o qual as possibilidades de perversão são concomitantes e
proporcionais ao aumento da racionalidade (HV, 252). Por ser dotado
de uma racionalidade específica, o político é também portador de ma-
les específicos irredutíveis a qualquer base econômica. Senão o Estado
Soviético, alvo prioritário das reflexões de Ricoeur naquele momento,
teria sido a consagração da libertação do homem da alienação política,
uma vez que se propunha colocar termo à exploração econômica. Mas
não foi nada disso que se viu.
O artigo de maio de 1957, como texto que se volta plenamente para
a história, tenta captar seu tempo no conceito ao mesmo tempo em que
submete a escrutínio os acontecimentos — ou se se prefere, busca reler
o poder à luz da theoria. Assim, a tese da dupla natureza do poder é tam-
bém sua mais dura crítica ao monstrengo que se tornara então o Estado
Soviético. Um Estado planificador que, por ser tal, era mais racional e,
igualmente, passional. Suas mazelas (os expurgos stalinistas nos gulags,
as perseguições, prisões e assassinatos da polícia secreta etc.), denuncia-
das pelo Relatório de Khrushchev, são também a prova irrefutável dessa
dupla natureza da política, pois foi querendo eliminar a exploração eco-
nômica que o político mostrou sua faceta mais cruel à claridade do dia,
instituindo todos os expedientes típicos do abuso de poder. Essa será a
tônica de todo o ensaio: “É mister sustentar esse paradoxo, de que o maior
mal adere à maior racionalidade, que existe alienação política, porque o
político é relativamente autônomo” (HV, 253).
Tal autonomia se compreende quando a política é tomada como uma
preocupação com o todo da vida humana. Desde os pensadores antigos,
a política embora portadora de fortes elementos irracionais, pertence ao
campo do racional, caso contrário, seria ela, a própria razão, a sucumbir.
A filosofia, assim, ao integrar a política ao seu corpus, lhe confere movi-
mento e a coloca a serviço de seu projeto. Eis porque a política para os
antigos, segundo Ricoeur, detém seu telos na “coisa pública” ou no “bem
comum” (HV, 253). É exatamente nisso que reside a autonomia do po-
lítico: a procura da realização da meta humana de humanizar o homem

155
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

elevando-o à condição de cidadão. Esquece-se, frequentemente, que essa


é também a razão pela qual ética e política são correlatas. A razão é o todo
do qual a política parte e para a qual está voltada. E é esse universal da
razão que define a natureza específica do político, que define, portanto,
sua autonomia e irredutibilidade diante da esfera econômica.
Para Ricoeur, toda e qualquer crítica à especificidade do político deve
pressupor essa distinção cuja equação básica em filosofia política encon-
tra-se formulada no Contrato Social, ou seja, no pacto de todos e de cada
um com os outros que constitui o povo propriamente e, nesse sentido, o
Estado (HV, 256). Protestos, por mais fundamentados que sejam, contra
essa ideia, alegando, seja sua abstração e idealidade seja sua hipocrisia e
enganação, não suprimem a força intrínseca deste ato virtual que é ato
fundador da nação, antes o pressupõe. É “esse ato, dirá Ricoeur, que cons-
titui a política como tal” (HV, 256). Por outro lado, é justamente através
da idealidade deste ato fundador — ato inaugural no qual se reconhece
a existência de uma universalidade responsável pela marcha da política
— que facilmente a mentira é inserida na política:

o político está inclinado à mentira, porque o vínculo político tem a reali-


dade da idealidade: — essa idealidade é a da igualdade de cada um diante
de todos… mas, antes de ser hipocrisia atrás da qual se esconde a explora-
ção do homem pelo homem, a igualdade perante a lei, a igualdade ideal de
cada um diante de todos, é a verdade do político. É ela que faz a realidade
do Estado. (HV, 256-257)

O Estado, assim, se revela como a maior expressão da idealidade que


também é sua realidade. Noutros termos, a enganação na política só é
possível porque essa idealidade de uma universalidade lhe serve como
álibi. Uma classe dominante só pode valer-se desse trunfo para aparelhar
determinado Estado (ou todo e qualquer Estado empírico) porque esse
Estado possui em sua estrutura jurídica essa universalidade como reali-
dade anterior a toda exploração. “Para tornar-se Estado uma classe deve
fazer penetrar seus interesses na esfera da universalidade do direito” (HV,
257), diz Ricoeur numa formulação cujo sentido é, curiosamente, mui-
to próximo ao que Gramsci entende por hegemonia4. É assim que uma

4. Gramsci considera dois grandes planos superestruturais que perpassam todo o


tecido social: a sociedade civil e a sociedade política (o Estado). Esses correspondem, no

156
8. Os enredos do poder e a theoria

idealidade do direito acaba legitimando a realidade da força. A realidade


da política, destarte, se configura profundamente labiríntica, uma vez
que é pela legitimidade desta abstração que os oportunistas de plantão
mobilizam o discurso enganador que ludibria em nome da liberdade. O
escândalo é que a palavra, única garantia da fundação política e de sua
realização, sempre pode ser falsificada. A grande dificuldade da política,
segundo Ricoeur, é que ela se inscreve nesta dubiedade do acordo fun-
dante: “fazer surgir a coincidência de uma vontade individual e passional
com a vontade objetiva e política, em suma, fazer passar a humanidade
do homem pela legalidade e sujeição civis”. (HV, 258)
Ora, é no plano das paixões, do empírico, do particular etc. que se
revela o jogo bruto da política. Mas, por outro lado, é também nesse
mesmo plano que qualquer transformação pode ser produzida e receber
seu sentido. É na relação com o econômico, mas não a ele subordinado,
que essa situação é atingida e desnudada. A crítica fulminante de Marx
alcança a alienação política nesta dimensão ao revelar a falsa consciência
do homo oeconomicus. De outra maneira, a mentira que se engendra no
político pela abertura da legitimidade da idealidade (também legitimi-
dade da força) é desmascarada quando vista a partir do mundo do plano
econômico sem se deixar reduzir a esta dimensão.
A alienação política é a contraface da autonomia política e não sub-
produto das relações econômicas. Lembremos que o labirinto do políti-
co se caracteriza, por um lado, pela idealidade que ao fundamentar uma
comunidade real — porque legítima comunidade do direito — funda a
própria liberdade dos cidadãos universalmente, pois iguala todos nesse
princípio formal; e, por outro lado, o mesmo princípio torna-se ficção
apta a vestir a hipocrisia de uma classe dominante. O mal em política
ocorre nesta passagem à existência civil pela lei consentida por todos
(HV, 256). O fosso abissal na passagem do político à política, da reflexão
à ação, da theoria à práxis, é que possibilita as distorções no discurso, uma
vez que o específico do político se encarna na especificidade dos meios
da política. São os meios que determinam a política, não existe política

âmbito da cultura, à função de hegemonia exercida pelo grupo dominante em toda socie-
dade e outra, do âmbito do direito, a expressão do comando jurídico do governo. Cf. A.
Gramsci. Cadernos do cárcere. v. 2, edição e trad. C. N. Coutinho, 2ª ed., Rio de Janeiro,
Civilização Brasileira, 2001, 12.

157
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

que não se depare e não tenha que escolher entre os meios tecnicamente
mais adequados no cumprimento de seu propósito. É dessa forma que
se pode definir a política como exercício do poder, seja na aquisição ou
conservação, seja na administração das coisas ou no governo das pessoas.
Esse costuma ser o temerário de certas análises do político que, situadas
fora do seu tablado e das coxias (ou mesmo quando lá inseridas), igno-
ram o funcionamento das molas do poder.
Ocorre que para evitar esse discurso moralista, a política deve ser con-
frontada primeiramente com o econômico-social — a fim de tornar evi-
dente sua autonomia diante dessa esfera —, e somente depois com a ética5.
Do político à política é que se compreende que o “idealismo do direito não
se mantém na história senão pelo realismo arbitrário do príncipe”, que “a
esfera política se divisa entre o ideal da soberania e a realidade do poder,
entre a soberania e o soberano, entre a constituição e o governo” (HV, 264).
Ricoeur lembra que é essencialmente para essa contradição que a crítica
de Marx ao Estado chama atenção: a denúncia de uma ilusão que pretende
fazer do Estado o verdadeiro mundo do homem, substituindo o mundo
real pelo irreal sem resolver as contradições reais nascidas pela aplicação
do direito fictício nas relações entre os homens (HV, 263).
O grande problema é que “sonhamos com um Estado em que estivesse
resolvida a contradição radical que existe entre a universalidade visada pelo
Estado e a particularidade e o arbitrário que a afeta na realidade; o mal é
que esse sonho está fora de alcance” (HV, 264). A alienação política é, as-
sim, algo constitutivo da existência humana, existência que comporta em
si mesma a cisão da vida abstrata do cidadão e a vida concreta do mundo
do trabalho (HV, 265). No entanto, para Ricoeur, o marxismo não deixou
espaço para uma problemática autônoma do poder na medida em que re-
duz toda e qualquer alienação à alienação econômica e social (HV, 265).
A questão é que o mal político só se torna grave porque supõe, ao invés de
negar, uma totalidade diretora das ações humanas na qual se realizaria o
Estado, caso contrário, o mal político não teria a menor importância.
Ricoeur concluirá seu artigo O paradoxo do político no sentido da im-
possibilidade de o Estado deperecer, como quer a proposição “desastrosa”

5. Cf. P. Ricoeur, Do texto à acção: ensaios de hermenêutica II, trad. A. Cartaxo e


M. J. Sarabando, Porto, Rés-Editora, 1989, 387 ss. Doravante TA.

158
8. Os enredos do poder e a theoria

do marxismo. Assumida essa posição, ela lançaria para um futuro indeter-


minado o fim do mal do Estado, do mal político, quando na verdade esse
problema prático exige ser confrontado hic et nunc (HV, 267). Ricoeur
elenca um conjunto de dispositivos de caráter universal irrenunciáveis
para todo e qualquer Estado, sobretudo para o Estado de regime socia-
lista. Dado que esse Estado é diagnosticado como mais passional porque
mais racional, por estender o cálculo e a previsão a setores da existência
humana que outrora se encontravam entregues ao acaso e ao improviso,
é ele que precisa de efetivos controles democráticos a fim de estabelecer
limites ao seu poder. O Estado não podendo desaparecer também não
pode existir demasiadamente6.
Pois bem, é nesse ponto que o diálogo entre Paul Ricoeur e Eric Weil
pode ser melhor considerado. Ora, as diretrizes acima evocadas para
impor limites ao Estado, por conta da natureza paradoxal do poder es-
tão, curiosamente, em franca harmonia com o pensador franco-alemão.
Porém, é preciso, antes, verificar algumas considerações de Ricoeur à
Filosofia política.

Filosofia política e o problema do indivíduo

No intervalo de 5 meses, o número de outubro de 1957 da revista Esprit


traz uma instigante crônica de Ricoeur à Filosofia política de Eric Weil.
Texto capaz de perceber que nem tudo de importância criadora no uni-
verso filosófico se passava no devant de la scène daquele momento da
filosofia francesa.7 O que nos parece central nesse segundo artigo é que,

6. Não se trata aqui da defesa do Estado mínimo como é a proposição do chamado ne-
oliberalismo. Na tese do ultra liberalismo, o Estado é visto como um mal necessário por sua
natureza intervencionista e, nesse sentido, como algo que no fundo obsta o desenvolvimento
da sociedade. Para o estabelecimento de uma sociedade totalmente livre, segundo a pers-
pectiva do liberalismo econômico, seria melhor que o Estado desaparecesse. Rigorosamente
falando, socialistas e anarquistas — malgrado as amplas diferenças que mantém entre si e
com os liberais —, acabam, no limite, convergindo para tese do desaparecimento do Esta-
do. Para uma melhor caracterização destas semelhanças remetemos ao livro de P. Canivez.
Educar o cidadão?, trad. E. dos S. Abreu e C. Santoro, Campinas, Papirus, 1991, 15 ss.
7. Cf. M. Perine, Apresentação, in E. Weil, Filosofia política, 2ª ed. revista, São
Paulo, Loyola, 2011, 5. Doravante Fp. A mesma observação em J.-M. Buée, Éric Weil,
penseur de l’unité plurielle, Critique, 636 (2000) 390.

159
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

à primeira vista, Ricoeur orienta-se por uma leitura do texto weiliano,


preferencialmente, singularizada, destacando o indivíduo em prejuízo de
uma abordagem quanto à forma especulativa de Eric Weil. As questões
lançadas logo no início de sua crônica tentam apreender em que dimen-
são está encerrado o indivíduo no discurso da Filosofia política. Indaga
seu interlocutor sempre no sentido da insistência em apresentar teses
nas quais o indivíduo aparenta ser sacrificado em razão de uma supos-
ta universalidade que, aliada, primeiro, a uma comunidade histórica e,
em seguida, ao Estado8, levaria o indivíduo a uma identificação, rápida
e sólida, com a paixão e a violência (L1, 43).
Essas questões conduzem Joel Roman a dizer que há um protesto de
Ricoeur a Weil, por considerar que o hermeneuta herda de Weil o proble-
ma antropológico, a saber, a irredutibilidade do homem como, ao mes-
mo tempo, razão e violência. A percepção desse intérprete é que Weil por
vezes insinuaria, aos olhos de Ricoeur, querer separar esses dois polos,
cujo resultado seria a dicotomia na abordagem política: de um lado, um
formalismo político (idealismo político) que garantiria ao Estado seu pa-
pel normativo porque racional contra a violência do indivíduo; de outro
lado, o esquecimento de que o próprio Estado tem origem na violência
assim como todo indivíduo partilha da razão. Protesto agudo que faria
Ricoeur convocar outros textos de Weil para opor ao próprio Weil9.
Pois bem, essa posição é difícil de ser sustentada por duas razões:
primeiramente, essa atitude faria Ricoeur parecer alinhado a uma cor-
rente filosófica que rejeitaria um maior acento sobre a racionalidade do
político para, em contraposição, inscrever neste a pegada mais forte da
singularidade do mal do poder. Entretanto, o próprio Ricoeur sugere re-
sistir à tentação de se contrapor a abordagens conduzidas pela forma e
pela força (HV, 253). Para ele, como dissemos acima, é necessário manter
a tensão sobre estas duas investidas.
Em segundo lugar, observando a própria advertência logo no início
da Filosofia política quanto a qualquer concessão à parcialidade da análise,

8. P. Ricoeur, Leituras 1. Em torno ao político, trad. M. Perine, São Paulo, Loyola,


1995, 42. Doravante L1.
9. Cf. J. Roman, Ricoeur entre Hanna Arendt et Éric Weil, Esprit, 140-141, jui./
aût. (1988) 42.

160
8. Os enredos do poder e a theoria

Weil chama atenção para o que toda abordagem filosófica (se se pretende
tal) dever observar: “só a totalidade estruturada pode ser verdadeira” (Fp
11), pois o particular não é senão uma abstração que, ao ver um aspecto
do todo, efetua um recorte mecânico tentando isolar um essencial, o que
toma por fundo dos fenômenos e, assim, podendo ser levado ao equívoco de
se refutar a moral pela política e vice versa, submetendo ao mesmo destino
lei e liberdade, sociedade e Estado, as ideias e as realidades (Fp 13).
Para Eric Weil, o indivíduo não está ausente da reflexão política, mas
também não é ele que constitui o fundamento da política. O indivíduo
que importa é aquele que acede ao universal. O universal não desconsi-
dera o indivíduo, antes, passa por ele (Fp § 6 e 7). Ricoeur é bem cons-
ciente disso quando afirma:

(…) no termo do movimento que vai da moral formal ao Estado mundial,


a política reencontra seu sentido moral; mas a reflexão passa agora pela
história dos homens: o que era problema para o indivíduo voltado sobre si
mesmo revela-se como problema posto realmente pela ação política, cujas
condições reais de solução são criadas pela ação política — a última pala-
vra pertence, contudo, à prudência dos governantes, que são indivíduos. Só a
filosofia política permite dizer que, finalmente, “o indivíduo razoável está
acima do Estado” (Fp 342), porque inicialmente “o sentido do Estado está
na existência livre e razoável” (Fp 316). Mas essa verdade final do indivíduo
passa pela mediação do Estado… Quem aceita esse longo desvio, esse apren-
dizado dos intermediários indispensáveis, descobre o princípio de uma ação
sensata e, acima do mercado, a possibilidade de um além da ação, a possi-
bilidade da “teoria”, da “visão do sentido”, em poucas palavras, da filosofia
como discurso. (L1, 56-57)10

A partir dessa robusta declaração, podemos dizer que não é propria-


mente a análise que se desdobra pela anterioridade da forma que é cen-
surada por Ricoeur. Aliás, na confrontação com a história humana ela é
requerida, dado que o que nela se aprecia é o outro irredutível do discurso: a
violência. Sendo assim, constatamos que é uma investigação conduzida pelas
formas que atinge com maior precisão a realidade da violência. Lembre-
mos que toda discussão indicada pelo O paradoxo político procura, a partir

10. As páginas da Filosofia política indicadas no interior desta citação remetem à


tradução de M. Perine.

161
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

das formas do poder, explicitar as práticas assumidas pelo mal político. A


tese segundo a qual a crescente racionalidade que termina por produzir
distorções políticas perigosíssimas é resultante da tensão entre theoria e
poder, entre razão e violência. Ora, não seria essa uma investigação que se
propõe cada vez mais singularizada porque toma como ponto de partida
e de referência o plano da universalidade? O mal político não é aqui des-
nudado em sua particularidade porque debitado da totalidade envolvente
da comunidade a que se chega pela análise reflexiva?
A resposta é positiva, sobretudo, se se leva em consideração a enfática
recusa de Ricoeur em opor theoria (que procede a análise do “tipo” ou
formalista) e práxis (HV, 8 ss.). O paradoxo político situa-se no entre-
cruzamento das análises que se dirigem preferencialmente aos conceitos
e que se desenvolvem em choque com os fatos históricos: “Não hesitaria
em dizer que o paradoxo político consiste precisamente nesta confron-
tação entre a forma e a força na definição do Estado” (TA, 394)11.
Ora, é, precisamente, nessa direção que Eric Weil problematiza a ação
em sua Filosofia política. É muito significativo que Weil compreenda o
termo política no sentido aristotélico como consta nas primeiras linhas
da Filosofia política.12 Sabemos que para Aristóteles a política pertence
ao campo das ciências práticas e não à atividade puramente teorética que,
por sua vez, se sobrepõe ao prático e o integra. A essa indicação a Filo-
sofia política dá o seu próprio tom. Dito de outro modo, embora sob o
domínio do contemplativo, sua análise do fenômeno político não está
absolutamente determinada a ele. A definição da política na sequência é,
sob esse aspecto, rigorosa, pois ao mesmo tempo em que realça a dimen-
são da ação razoável universal não deixa de destacar sua origem empírica:
“A política, ciência filosófica da ação razoável, refere-se à ação universal.

11. Uma outra formulação de Ricoeur remete a mesma duplicidade originária do


poder: “Fui sempre muito impressionado pelo caráter de dupla face do poder político,
por isso o chamei de paradoxo político. (…). Por um lado, a sua racionalidade. (…), mas
o Estado tem outra face, a racionalidade tem um avesso: o resíduo da violência fundado-
ra (…), que se deve, em parte, a uma herança, mas a uma herança singular, cuja natureza
é, para mim, cada vez mais enigmática”. Cf. P. Ricoeur, A crítica e a convicção, trad. A.
Hall, Lisboa, Edições 70, 1997, 138.
12. “O termo política, neste livro, será tomado na sua acepção antiga, aristotélica,
de politiké pregmatéia, consideração da vida em comum dos homens segundo as estrutu-
ras essenciais dessa vida” (Fp 15).

162
8. Os enredos do poder e a theoria

Por sua origem empírica, esta ação não visa ao indivíduo ou ao grupo
enquanto tal, mas à totalidade do gênero humano, mesmo sendo a ação
de um indivíduo ou de um grupo” (Fp 15-16).
Toda argumentação posterior de Weil, mesmo conduzida, preferen-
cialmente, pela forma, não deixa de advertir para possibilidades de o
Estado se desencaminhar, sobretudo, pelas céleres vantagens oferecidas
pela violência na execução de determinada política. Sobre esse ponto
convém destacar a percepção do grave problema de quem possa ser o
juiz, entre os indivíduos e grupos, para representar e encarnar o interesse
universal (Fp 175). O que se torna evidente nessa questão, assim como
é perceptível em Ricoeur, são os dois supostos: a forma da totalidade do
bem do corpo político e a força da violência empírica da individuali-
dade sempre aberta ao estabelecimento de uma classe dominante. Não
há assim nenhum descuido da Filosofia política no tocante aos perigos
que rondam o Estado.
Mas Ricoeur insiste que Weil tenda sempre eludir o paradoxo político,
permanecendo num formalismo político e moral (L1, 50). No tocante a
esta objeção Weil responde diretamente ao seu interlocutor:

O Estado é forma, mas a forma real e agente, e no qual a violência e seus


conflitos tomam consciência de si mesmos, uma forma aristotélica, não uma
forma abstrata. Talvez a nossa diferença (o termo é bastante forte) venha
também em parte do fato de você aproximar mais Estado e Governo do que
eu tenderia a fazê-lo: eu falaria mais facilmente de um governo violento que
de um Estado violento13.

A réplica de Weil não deixa de ser surpreendente. Os vínculos do Es-


tado com o governo sugerem que Weil visualiza um duplo formalismo
que, no caso da Filosofia política, situaria o Estado num nível mais eleva-
do, enquanto o governo num degrau abaixo, portanto, mais próximo e
suscetível dos enredos do poder. A resposta, talvez surpreendente ao pró-
prio Ricoeur, uma vez que doravante seguirá, em ao menos outras duas
oportunidades, essa orientação, que enfatiza sua proximidade e diferença
em relação a Eric Weil; seja no tratamento de sua própria filosofia seja em
relação à filosofia weiliana. A primeira ocorre dez anos depois desta sua

13. Eric Weil, 15 de outubro de 1957, carta a Paul Ricoeur.

163
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

crônica, quando ambos dividem o tema Violência e linguagem numa mesa


de debates em 1967. Nessa ocasião dirá o hermeneuta:

A oposição formal de linguagem e violência deve ser previamente aceita por


qualquer um que fale. Mas, tão logo dizemos isso, impõe-se o sentimento de
que essa oposição formal não esgota o problema, mas apenas o cerne com um
grande traço que encerra o vazio. E por quê? Porque a oposição que compre-
endemos, e da qual partimos, não é exatamente a de linguagem e violência,
mas — segundo os termos de Eric Weil na Lógica da filosofia, da qual se pode
reconhecer o eco na minha introdução — é a oposição do discurso e da vio-
lência, mais exatamente do discurso coerente e da violência. (L1, p. 60-61)

Para Ricoeur, linguagem situar-se-ia num nível superior de formalis-


mo ao discurso. Isso explicaria, por exemplo, sua opção pela palavra no
confronto aberto com as correntes estruturalistas. A ênfase na palavra,
e não propriamente na língua como a maioria dos linguistas, liga-se à
compreensão de que é nesse reino do meio da violência e do discurso
que toda batalha deve ser decidida.
A outra ocasião é ocorre nas homenagens prestadas a Eric Weil na
conferência de encerramento do Colóquio de Chantilly em que susten-
ta, em contraste com os golpes desferidos por Labarrière à Lógica da fi-
losofia, haver um nível suplementar de formalismo na Lógica da filosofia.
Duplo formalismo que manteria o projeto weiliano plenamente intacto.
Ricoeur argumenta que as razões que explicam e explicitam a existência
da categoria formal da Sabedoria após a categoria formal do Sentido são
as mesmas que permitem a integridade do projeto de coerência retomado
pela Ação. Para Ricoeur, somente esse duplo formalismo ou formalismo
duplicado é capaz de salvar a realização do projeto weiliano no constante
processo da ameaça da ruptura, isto é, naquilo que qualificou na ocasião
de “sentido do sentido”14.
Após essa rápida digressão, voltemos à crônica de Ricoeur dedicada
a Filosofia política e notemos como é curioso seu empenho em manter-se
próximo de Weil ao selecionar uma passagem identificada com seu para-
doxo político (L1, 50, nota):

14. P. Ricoeur, De l’Absolu à la Sagesse par l’Action, Actualité d’Eric Weil. Actes du
Colloque International. Chantilly, 21-22 mai 1982, Paris, Beauchesne, 1984, 421.

164
8. Os enredos do poder e a theoria

O problema é elevar-se à razão subsistindo, subsistir para elevar-se à razão,


e este problema deve ser resolvido no plano do empírico, da violência, das
paixões dos grupos e dos extratos, da competição e da luta entre os Estados,
no plano também do trabalho e do poder que ele oferece, da organização e,
portanto, da riqueza. (Fp 261-262)

Essa passagem de Weil é muito clara quanto ao que concerne ao Estado


moderno superar, isto é, ela capta o problema crucial da contemporanei-
dade cuja justa formulação foi encontrada pelo romantismo e da qual o
paradoxo político não é outra coisa senão uma forte alusão. Noutros ter-
mos, Ricoeur reconhece, assim como Weil, na dolorosa convicção do nosso
tempo que nos faltam certos valores humanos essenciais, valores há tempos
alienados pela nova ordem social guiada pelo racionalismo econômico oci-
dental, o capitalismo.15 Contudo, não se corteja por este reconhecimento
nenhuma passividade: seja a da recusa da denúncia romântica; seja a da
resignação diante do avanço do progresso técnico. Como se pode observar,
O paradoxo político se dirige à mesma necessidade apontada pela Filosofia
política, a saber, a busca da conciliação do justo com o eficaz.
Eis porque não se pode dizer que a Filosofia política esteja encerrada
num formalismo. Aliás, formalismo é tudo que o texto weiliano procura
superar. Uma filosofia política orientada pela tese segundo a qual o progres-
so para não violência é o que define para a política o sentido da história (Fp
311) não pode ser acusada de negligenciar o problema do poder e do mal
político. Especialmente por situar a política ao nível em que ela realmente
conta: no plano do econômico, do mecanismo social. É só aqui, nesse pla-
no dos conflitos — onde os atores políticos desenvolvem suas reflexões e
tomam suas decisões — que política obtém seu significado (Fp 301).
Ricoeur sabe que a reflexão weiliana não compreende a razão como
já pronta. Não ignora o ponto de partida dessa filosofia na equivalência
entre razão na história e ação razoável (L1, 39). Da mesma forma que
identifica a articulação entre o sistema da filosofia e seu capítulo a Ação,
capaz de desenvolver seus próprios conceitos e estruturas essenciais. Com
se verifica desde o início de sua leitura, Ricoeur se dá conta da necessi-

15. Cf. M. Löwy e R. Sayre, Romantismo e política, trad. E. de A. Oliveira, Rio de


Janeiro, Paz e Terra, 1993, 22.

165
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

dade de a Filosofia política romper a barreira do formalismo no concreto


histórico. Assim, compreende que a moral abstrata é somente um ponto
de partida, necessário, mas que precisa ser envolvida e superada numa
teoria da comunidade e do Estado (L1, 40). Percebe que a moral formal,
se quiser se realizar, terá que abandonar o ponto de vista negativo do in-
divíduo (que somente julga, condena, limita etc.) permitindo-se integrar
à racionalidade do Estado integrando comunidade e sociedade.
Eis o audacioso projeto de uma Filosofia política. Mas nesse particular
compete muito pouco à filosofia. No máximo, ela é capaz de orientar a ação
pela tomada de consciência, informando ao homem de ação sobre aquilo
que se tornou indispensável para o sucesso de sua tarefa. Mas engana-se
quem acredita existir por conta disso alguma garantia de êxito da emprei-
tada. Esse projeto não possui nenhuma ilusão acerca de um triunfalismo
da razão, tampouco se perfila entre os que ultimam o total desamparo da
comunidade diante do vigoroso e vertiginoso progresso técnico.
Ricoeur e Weil convergem suas respectivas análises para a ideia de
controles democráticos buscando o estabelecimento de um Estado saudá-
vel, que não se deixe manusear pela racionalidade dominadora disposta
sempre a impor, a tudo e a todos, seu progresso sem freios. Esses contro-
les são necessários para impor limites institucionais ao próprio Estado,
tais como: a independência do judiciário que garanta inclusive o direito
do cidadão contra o próprio Estado; a opinião pública livre fundada no
conhecimento (ciência) independente do Estado e do mercado; sindi-
catos livres que em sua tensão contra o Estado protejam o interesse dos
trabalhadores ao mesmo em que inserem as aspirações destes no debate
público; e a discussão dos partidos (o parlamento) capaz de elaborar os
interesses na perspectiva da totalidade.
Vemos em ambos filósofos que a satisfação de todos e de cada um no
interior do Estado somente é possível pela mediação das instituições e
que estas precisam ser saudáveis. Todas as proposições se conduzem no
sentido de salvaguardar o cidadão diante do Estado; de proteger o indi-
víduo em relação às pretensões absolutistas e totalitárias; de preservar o
singular em presença do universal. Dito de outra maneira, não há prejuízo
do indivíduo desde que este não seja fim em si mesmo. É o universal que
não é a superação do individual (singularidade), mas, antes, tem nele o

166
8. Os enredos do poder e a theoria

meio de sua própria realização, ou de maneira invertida, o indivíduo só


é indivíduo enquanto atestação de outros indivíduos, portanto, da indi-
vidualidade que é a universalidade dos indivíduos16.

Conclusão

Mas após todos esses cruzamentos resta indagar sobre as razões dos
admiráveis questionamentos ao texto weiliano. Cabe saber o porquê das
críticas de Ricoeur a Weil em sua crônica. A hipótese que apresentamos não
é a de uma “correção” desta filosofia política cruzando-a com o pensamento
político de outro pensador, Hannah Arendt, por exemplo, tal como Ricoeur
procedeu em relação a Habermas e Gadamer — como é a proposição de
Roman17. Parece-nos que Ricoeur, ao imiscuir-se sobre as questões da in-
dividualidade e do formalismo, busca situar sua própria filosofia. É sua
postura filosófica, não necessariamente sua posição em relação à filosofia
weiliana, que ele confronta. Não se trata de querer reprovar ou “corrigir” a
posição adversária, mas aprofundar sua própria perspectiva de leitura.
As questões lançadas à Filosofia política neste texto são para, no seu
melhor estilo, fazer coincidir a “via curta” do conhecimento de si mesmo
com a “via longa” da interrogação pela história da consciência (HV, 37).

16. Na Filosofia moral lemos “individualidade — termo surpreendente, e, por isso


mesmo, significativo, pois ele contém, ao mesmo tempo, a universalidade do conceito e a
não universalidade do que ele designa de maneira universalizante”. Cf. E. Weil, Filosofia
moral, trad. M. Perine, São Paulo, É Realizações, 2011, 42.
17. Essa é a posição de J. Roman no artigo acima citado. Entretanto, o debate entre
a hermenêutica das tradições e critica das ideologias, que caracterizou o cisma entre Ga-
damer e Habermas por ocasião da publicação do memorável livro do primeiro Verdade
e método, fora um acontecimento público de grande repercussão no contexto da filosofia
do século passado ao qual Paul Ricoeur se viu obrigado a um posicionamento — uma
moldura desse debate consta em F. Valdério, A hermenêutica de Paul Ricoeur e a reto-
mada de Eric Weil, Cultura — Revista de História e Teoria das Ideias (Lisboa) 31 (2014)
227-246. O mesmo já não se verifica em relação a Weil e Hannah Arendt. Sem dúvidas,
suas filosofias guardam diferenças essenciais como observa Roman, ou mesmo Ricoeur
em sua retomada de ambos no artigo Ethique et politique, mas tais diferenças estão longe
de constituírem uma polêmica. Para uma apreciação do estado da questão que envolve o
debate Gadamer-Habermas ver TA, 329-371 e também J. Grondin, Hermenêutica, trad.
M. Marcionilo, São Paulo, Parábola Editorial, 2012. 81-91, e, E. Stein, Dialética e herme-
nêutica: uma controvérsia sobre o método em filosofia, Síntese 29 (1983) 21-48.

167
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

No caso, o desejo de justificação no indivíduo, enquanto fonte da liber-


dade razoável, com a ordenação propriamente dita da liberdade para a
qual o Estado está vocacionado (L1, 58). Roman compreende bem isso
quando diz que a filosofia hermenêutica de Ricoeur é a explicitação de
seu próprio trabalho de pensamento. No entanto, não deduz daqui que
o procedimento utilizado por Ricoeur exige, quase sempre, uma leitura
cerrada dos autores a quem se dedica, uma “leitura aporética”, a fim de
tirar deles as consequências lógicas de suas próprias escolhas metodoló-
gicas ao mesmo tempo em que aviva as linhas de sua própria filosofia.
Essa parece ser a tônica da leitura da Filosofia política.
Sabemos que esse procedimento de Ricoeur, por vezes demasiado
crítico, implica sempre em querer reabrir questões aparentemente já
consolidadas e/ou despercebidas em obras de determinados filósofos18
tanto quanto de seus intérpretes. No caso particular de Weil, os senões
apontados por Ricoeur, não significam protesto, mas, antes, a clareza de
que o diálogo deva ser cada vez mais fecundo com essa filosofia. Orien-
tação hermenêutica que exige um diálogo sempre mais singular e exclu-
sivo com cada autor e sua filosofia.19 Nesse caso, as críticas são sempre no
sentido de fazer aflorar a violência, para si próprio, uma vez que conduz
uma investigação mais singularizada, quando esta parece querer se dis-
simular na disposição universal do Estado.
Se a violência é colocada no início em franca relação com o indivíduo
é porque, deduzirá Ricoeur, será exigido, pela razão, do Estado individual
(esse indivíduo histórico) se reconciliar com seus pares numa comuni-
dade mundial. Ora, o indivíduo jamais poderia ser concebido como o
princípio privilegiado da política já que as relações imediatas (soberanas)
entre indivíduos empíricos são, por sua natureza, relações violentas (Fp
301). Mas alguma promessa fundadora permite resgatar esse indivíduo,
pelo menos é o que nos indica sua carta resposta à Ricoeur:

Completamente em acordo com sua questão de que o indivíduo não seja


caracterizado apenas pela violência, eu acrescentaria somente que se trata

18. Cf. Pellauer, op. cit., 18.


19. “Esse término da história dos historiadores no ato filosófico pode ter prossegui-
mento em duas direções: na direção de uma ‘lógica da filosofia’ mediante a pesquisa de
um sentido coerente através da história; na direção de um ‘diálogo’, de cada vez singular e
cada vez exclusivo, com os filósofos e as filosofias individualizadas”. (HV, 36)

168
8. Os enredos do poder e a theoria

aqui, não do indivíduo em sua totalidade, em toda a sua plenitude, se me


perdoa a expressão, mas do indivíduo tal como ele se mostra sob o ângulo da
política: a este nível, o indivíduo é só indivíduo (e não “papel”), na medida
em que ele não coincide com o seu “papel” e se mostra assim arbitrário —
um arbitrário que a política pode e deve reconhecer, com a única condição
de não contradizer sua ocupação (os governos que se interessam pela vida
pessoal dos seus cidadãos me preocupam muito — eles deveriam se limitar
a criar as condições necessárias para essa vida). A moral do indivíduo não
se esgota na do cidadão: talvez não é ela mesma uma moral da decisão e da
ação, ou não o é exclusivamente.20

Mais uma vez é manifesto o degrau que nuança a orientação das fi-
losofias de Weil e Ricoeur. Portanto, longe de ser uma correção de rota, a
postura ricoeuriana sobre o texto de Weil é a leitura ou releitura refigu-
radora, aquela que busca a compreensão de si mesmo pela compreensão
do outro. Essa é razão pela qual sua confrontação com a Filosofia política,
conduzida por uma análise prospectiva do mal e do poder, termina por
reforçar em Ricoeur a convicção de que esse livro ganha robustez (L1, 57).
A prova de força desse texto lhe advém da constatação e confissão de sua
aproximação com a filosofia weiliana, uma vez que o pensamento é também
conduzido, pela ação, à theoria (L1, 58 e Fp 349). A confissão de Ricoeur é
emblemática, pois o situa no mesmo projeto filosófico que busca, através
da ação, a satisfação verdadeira no além da própria ação.

20. Eric Weil, 15 de outubro de 1957, carta a Paul Ricoeur.

169
9. Democracia e linguagem

Judikael Castelo Branco1

Introdução

O texto apresenta a conexão necessária entre a democracia e o domí-


nio das dimensões políticas da linguagem a partir da obra de Eric
Weil. O pano de fundo é o reconhecimento dos dois paradoxos essências
presentes na política contemporânea. O primeiro se encontra na rela-
ção entre indivíduo e sociedade. É o problema da compreensão de uma
sociedade que, por um lado, parece fazer dos direitos individuais o seu
valor absoluto e, por outro, movimenta-se segundo um mecanismo no
qual a individualidade não tem valor algum. O segundo, na relação entre
a sociedade mundial e as comunidades particulares em dois diferentes
níveis. Naquele propriamente moral, sublinha-se a globalização cultural
ou civilizacional que se impõe desconsiderando as morais tradicionais.
No nível político, há a proposta da democracia como modelo assentado
na suposição de que todo homem está pronto a se deixar convencer pela
razão. Em outras palavras, o desafio de tomar juntos um modelo civi-
lizacional totalitário e um ideal político de democracia. Para alcançar o
objetivo anunciado, parte-se da descrição do homem na sociedade mo-

1. Universidade Federal do Ceará (UFC)/Faculdade Católica de Fortaleza (FCF), Brasil.

171
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

derna, porquanto “toda filosofia política desenvolve (…), ou pelo me-


nos implica, uma antropologia filosófica”2, para depois passar à questão
das condições da realização da democracia “num mundo de tensões” e,
finalmente, chegar à análise dos registros ou formas de aparecimento da
linguagem na política: o discurso, a discussão e o diálogo.

A sociedade moderna e
a promessa de satisfação

No que concerne à compreensão da condição do homem, o ponto de


partida pode ser a sua relação com a sociedade moderna — da organiza-
ção racional do trabalho — considerando quer a necessidade da inserção
do indivíduo no mecanismo social, quer as formas de violência inerentes
a esta mesma sociedade enquanto “segunda natureza”3.
De fato, nesta nova natureza, “tão hostil quanto a primeira”, apresen-
tam-se dois diferentes níveis de tensão. No primeiro — à luz do ideal abs-
trato da eficácia — se evidencia a competição entre os indivíduos como
“a regra de conduta dentro da sociedade moderna. Como regra geral,
cada indivíduo tentará situar-se bem: sua participação nos bens depen-
derá do seu lugar na organização social, já que os lugares são remunera-
dos segundo o valor que se atribui à função nele desempenhada para o
trabalho social”4. A dificuldade aqui é a conciliação de dois elementos
essenciais do mecanismo social: de um lado, seu caráter igualitário, que
desconsidera qualquer particularidade na valoração do indivíduo; de
outro, a desigualdade como condição técnica de possibilidade da com-
petição5. Na lógica da eficácia social e na divisão dos resultados do tra-

2. E. Weil, Politique: philosophie politique, in Encyclopaedia Universalis XIII, Paris,


1972, 449.
3. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola, 2011, 98.
4. Ibid., 101.
5. De fato, na sociedade moderna “o acesso à classe superior aparece apenas como
difícil, não impossível (…) [pois] cada indivíduo deve poder esperar no futuro se benefi-
ciar das vantagens materiais que estão, no momento, à disposição de um grupo limitado.
O que hoje é a prerrogativa de tal grupo deve ser o bem de todo o mundo amanhã, como
o conforto dos ricos, dos poderosos e dos nobres de ontem se tornou o apanágio de todos
hoje”. Cf. E. Weil, Essais et conférences II, Paris, Vrin, 1991, 267.

172
9. Democracia e linguagem

balho organizado, este segundo elemento aparece como o lugar do con-


fronto que pode existir tanto entre os indivíduos quanto entre os grupos
que se sentem sempre ou lesados ou ameaçados.
Se, em certa medida, a competição faz parte da esperança na ocupação
dos melhores postos pelos candidatos mais aptos, ela pode carregar, como
efeito negativo, a desconfiança generalizada, pois o apelo ao sentimento de
injustiça e à violência tende à afirmação da má-fé do adversário e à desca-
racterização da sua linguagem. Trata-se da redução de todo outro discurso
à mera estratégia, o que impossibilita tanto a discussão como o diálogo e,
consequentemente, representa o abandono, quer da racionalidade, quer
da razoabilidade6. Com efeito, todo grupo social se refere aos valores da
eficácia, ao progresso e à divisão mais equável dos esforços e dos seus re-
sultados, assim como denuncia o adversário que, na sua visão, não quer
nem pode querer o que é verdadeiramente racional.
Porém, é no segundo nível de tensão que “o indivíduo é remetido a
si mesmo” e se descobre “isolado e abandonado”7, de fato, ao negar sua
individualidade, a sociedade faz com que ele surja como questão para si
mesmo. Na prática,

a modernidade de nossa sociedade, definida objetivamente como luta pro-


gressiva com a natureza exterior, exprime-se, no plano da subjetividade,
como a divisão do indivíduo entre o que ele é para si mesmo e o que ele
faz e possui, entre o que considera como seu valor e o que deve apresentar
como valor aos outros, para a sociedade8.

Ao afirmar que “a sociedade reconhece apenas o resultado mensu-


rável” e que nela o indivíduo “deve sempre medir seu valor específico
[social] por este critério”, Eric Weil indica o tipo de violência próprio
desta segunda natureza, capaz de reduzir o indivíduo à “força produtiva
pressionada pelas circunstâncias”9.

6. Cf. E. Weil, Filosofia política, 117.


7. Ibid.
8. Ibid., 129.
9. Ibid., 117. “O homem tem um lugar na sociedade, ele é um lugar e apenas isso,
e essa sociedade é, assim, o terreno fechado da luta entre os homens pelas satisfações,
primeiro, pelo contentamento, depois: a sociedade se interpôs entre os homens e a natu-
reza, mas para cada homem ela é uma segunda natureza, um exterior contra o qual ele

173
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Destarte, há tensão entre a sociedade e o indivíduo enquanto a primeira


se orienta pelo valor do seu sagrado — a eficácia10 — e o segundo se quer
irredutível, isto é, deseja poder se autonomizar conforme suas próprias
certezas, crenças, experiências e expectativas. Na condição moderna, esta
tensão se exaspera, seja pela criação de um corpo social autolegitimado e
autorreferencial, seja pela possibilidade da violência do indivíduo de elevar
a valor absoluto e universal a realização dos próprios desejos.
Tem-se uma relação sem possibilidade real de síntese, pois, para que
o indivíduo se disponha à lógica social são necessárias tanto a promessa
da satisfação de suas necessidades como a sua contínua insatisfação. Neste
contexto, os “homens comuns” aparecem como os que “preferem correr
de satisfação em satisfação, nunca saciados, nunca contentes”11, enquanto
a satisfação ensejada pela sociedade é acidental e se limita a necessidades
específicas, substituídas por outras logo depois de atendidas: “Toda satis-
fação e toda eliminação de um descontentamento dado apenas produzem
outros dados, igualmente insatisfatórios, apenas de outa maneira, visto que,
eternamente, o dado, mesmo modificado, mesmo negado, só é modificado
e negado por meio do resultado de um outro dado e com ele. ‘Não quero
mais disso’, e esse isso é então descartado; ele não é mais, e o que ainda não
era foi realizado; mas o que não era ainda se torna o que não deve mais
ser, e um outro não ainda, um outro desejável e desejado toma seu lugar:
jamais o homem estará contente”12. Concretamente, o que se oferece é
apenas a satisfação de necessidades sempre mais sofisticadas, cuja origem
vem de um dos fins da própria sociedade: o progresso técnico.

deve lutar para ser homem, e que o impede de vir a sê-lo, uma pseudonatureza tão hostil
e ameaçadora quanto a própria natureza (…) Nenhum homem é aí ele próprio para si
próprio, nem para qualquer outro; ele é o que faz, o que produz, o que ele transforma. O
resto é luta entre os homens”. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. L. C. de Malimpensa,
São Paulo, É Realizações, 2012, 566.
10. “Uma moderna sociedade econômica transforma, consciente e continuamente,
a sua tecnologia, bem como o seu modo de organização social com a finalidade de uma
utilização sempre mais eficiente dos recursos da natureza”. Cf. R. C. Reyes, Of things
moral and political: an adaptation of Eric Weil’s political philosophy. Philippine Studies
23 (1975) 108). Cf. também F. Guibal, Violence, discussion, dialogue. La responsabilité
politique du philosophe selon E. Weil, Archives de Philosophie 74 (2011) 306.
11. E. Weil, Lógica da filosofia, op. cit., 25-26.
12. Ibid., 21.

174
9. Democracia e linguagem

Surge então a possibilidade da violência como resultado da estrutura


social baseada na progressiva dependência instrumental entre os indi-
víduos. Trata-se da resposta negativa do indivíduo que, à primeira vista,
poderia ser interpretada como reação à falta de satisfação material; mas
que, na realidade, não se liga necessariamente à indigência de um deter-
minado grupo, podendo, inclusive, assentar-se no seu bem-estar.

A prova é dada pelo número de desequilibrados (dos que se qualificam a si


mesmo deste modo) nas sociedades mais avançadas: suicidas, neuróticos,
adeptos de falsas religiões (que são apenas fugas diante da compreensão e não
modos de compreender a realidade, filosoficamente insuficientes, mas válidos
em si), alcoólatras, drogados, criminosos “sem motivo”, indivíduos à caça de
emoções e distrações. O sentimento de insatisfação explica os movimentos de
protesto contra a realidade da sociedade, as declarações e os sermões vazios dos
revoltados que não se insurgem contra determinado aspecto da organização
social, mas contra a própria organização no que ela tem de racionalidade cal-
culista, opondo à má realidade da des-humanização e da coisificação o sonho
formal de uma existência no puro arbítrio (…) A insuficiência e o absurdo de
tais reações são evidentes, mas a sua sinceridade e a importância do que elas
exprimem de maneira inadequada não podem ser postos em dúvida13.

A desvinculação desta forma de violência de um estrato específico se


dá por pelo menos dois motivos. Primeiro, porque na sociedade moderna
todos estão sujeitos ao bem-estar social como princípio valorativo da vida
individual. Segundo, porque o progresso do bem-estar concerne a todas as
estruturas sociais e por isso a reação negativa não diz respeito apenas a um
grupo determinado, antes, está potencialmente presente em todas as camadas
sociais. É uma forma de reação que confirma a análise da sociedade como
estrutura constituída consoante um princípio lógico de negação da liber-
dade, não sem o perigo da racionalização completa da vida humana14.
O estreitamento dos horizontes da razão ao mero entendimento cons-
pira com a violência. A análise weiliana nos leva ao reconhecimento de que
os presentes moldes da racionalidade, sobretudo na organização do traba­
lho na sociedade moderna, podem conduzir à violência nua e gratuita.

13. E. Weil, Filosofia política, 124-125.


14. Ibid., 123-124.

175
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O resultado, um resultado já visível, é o tédio do progresso infinito e insensato,


o tédio de uma linguagem que age, mas que nada significa para o indivíduo
e, no limite, para os indivíduos, um tédio do qual só se escapa pela violência
desinteressada, interessada apenas na possibilidade de se afirmar como in-
divíduo contra outros indivíduos15.

A relação entre indivíduo e sociedade parece chegar, assim, à sua


mais clara descrição: “a vida do homem tem seu sentido no trabalho e
na organização, seu fim, no progresso rumo ao domínio da natureza; sua
situação é determinada, sua linguagem encontrou sua função: ele pode
viver e morrer por alguma coisa”16. Entra-se, em outros termos, “numa
luta que acabará por não conhecer outros fins, outras regras além do su-
cesso, outros motivos além do desejo imediato de dominação e de posse,
ou outros instrumentos além da violência”17.
Portanto, o ponto de partida escolhido para esta reflexão nos levou,
como primeira conclusão, a um paradoxo: na forma moderna da sociedade
— “calculista, materialista e mecanicista”18 —, o bem-estar do indivíduo se
lhe apresenta como fonte fundamental de valoração de tudo, e, ao mesmo
tempo, ele se vê plenamente inserido no mecanismo social e desprovido
de todo valor — o que representa sua individualidade, sua vontade, sua
liberdade e mesmo sua vida, diante da organização do trabalho?

Democracia e linguagem

O segundo momento da nossa reflexão parte justamente do paradoxo


apenas enunciado e pergunta se a filosofia de Weil apresenta alguma saí-
da possível.
O itinerário pode agora ser retomado a partir da questão propria-
mente filosófica acerca da origem da descrição da sociedade. Por que afi-
nal nos dispomos a pensá-la? Por que a descrevemos? Há inclusive quem

15. E. Weil, Violence et langage, Cahiers Eric Weil I. Huit études sur Eric Weil, Lille,
Presses Universitaires de Lille, 1987, 29. Cf. P. F. Taboni, Libertà e cittadinanza. Saggi su
Eric Weil, Città del Sole, Napoli, 1997, 185-190.
16. E. Weil, Lógica da filosofia, 558.
17. E. Weil, Violence et langage, op. cit., 25.
18. E. Weil, Filosofia política, 86 s.

176
9. Democracia e linguagem

não faça esse exercício. Por que nós o fazemos? É o caso de ser verdadeiro
e não original:

o homem fala [livremente] da situação. Ele o faz porque não está satisfeito,
porque não se sente de acordo com ela. Se esse não é o seu caso, ele se cala
ou expressa sua satisfação, mas ele não precisa compreender, isto é, prender
juntas as contradições na unidade de seu sentido, num discurso que o con-
cilia com aquilo que é seu outro, e que só se torna mundo no discurso19.

Falamos porque reconhecemos contradições.


O “outro” do discurso em Weil, nunca é exagerado insistir, é a violência,
e o primeiro desafio é, portanto, compreendê-la, mas não só isso, afinal ela
não deixaria de ser violência depois de compreendida. O “segredo da filo-
sofia” não se esgota meramente no desejo de compreensão, ela “quer que
a violência desapareça do mundo”20, por isso o “homem desperto”21, com
nada além da coragem da razão, pensa a situação para, nela, “saber o que
importa e a isso se ater sem confusão”22, superando, de um lado, a “violên-
cia do desespero”23 e, de outro, aquela da “razão delirante”24.
Articular um discurso é enunciar um sentido. Não é o caso de retor-
nar ao lugar comum da “crise de sentido”, mas de retomar a questão da
orientação (diante do problema da violência), isto é, do pano de fundo
que permite compreender a ação.
Da afirmação do homem como “liberdade indeterminada e sempre
se determinando”25 e do seu interesse pela felicidade26 torna-se evidente a
mudez da racionalidade social sobre as questões do sentido; mudez tra-

19. E. Weil, Lógica da filosofia, 599.


20. Ibid., 36.
21. Ibid., 570.
22. Ibid., 614.
23. Ibid., 65.
24. Ibid., 31.
25. E. Weil, Filosofia moral, trad. M. Perine, São Paulo, É Realizações, 2011, 58.
26. “A articulação de Weil do significado da universalidade moral é essencialmente
destinada à questão moral tradicional da felicidade. Para ele, o fato fundamental é que o
homem busca um tipo de felicidade que responda as demandas da sua natureza racional.
Este desejo visa à felicidade na sua possibilidade de transcender as contingências da sua
existência empírica”. Cf. E. McMillan, The significance of moral universality. The moral
philosophy of Eric Weil, Philosophy Today, 21 (1977) 36.

177
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

duzida na insuficiência do princípio abstrato da eficácia — aplicável ex-


clusivamente ao resultado mensurável do trabalho social — de valorar
a vida ou oferecer critérios às ações individuais27.
A superação das necessidades materiais encontra um significado ver-
dadeiramente humano apenas se servir de base à criação de “um mundo
no qual o homem possa não apenas viver, mas viver dando um sentido
à sua liberdade”28; considerando sempre que a vitória sobre a natureza
exterior, mesmo insuficiente, é condição necessária e irrenunciável à
consecução da liberdade:

A racionalidade, o trabalho organizado, a vitória sobre a primeira natureza,


tanto exterior quanto humana, é o que nossa história cumpriu de maior. A
questão é outra: ela demanda se o que foi alcançado e devia ser alcançado é
tudo o que nós queremos alcançar. Mesmo se a resposta for negativa, é ne-
cessária, para ser declarada insuficiente, e não menos indispensável. A no-
breza desta história é ter permitido aos homens, a certos grupos humanos,
colocar a questão do sentido — questão que não se dá onde a necessidade
e a violência pura pesam sobre o ser humano, mas que, por outro lado, não
se formula na linguagem que a tornou possível para todos29.

Desta feita, o limite da racionalidade da lógica social quanto ao pro-


blema do sentido se mostra no campo moral, pois o indivíduo, além de
uma função na divisão racional do trabalho, se compreende como mem-
bro de uma comunidade particular caracterizada propriamente por uma
moral concreta a partir da qual ele pensa a sua ação.
O homem age na perspectiva moral e tradicional da sua comunidade
e esta é mais do que a soma dos indivíduos num dado território, é a rea­
lização de um sentido concreto comum, que se ergue sobre um campo
compartilhado de experiências e expectativas, e, por fim, se realiza ple-
namente enquanto fundamenta juízos comuns. É o sentido realizado por
meio de decisões, de escolhas e, sobretudo, pela orientação permanente
ao sagrado da comunidade presente implícita e explicitamente na sua tra-
dição. A moral de uma comunidade não é um resíduo psicológico dentro

27. Cf. J. Roy. La Philosophie Politique d’Eric Weil, in G. Leroux et al., Philosophies
de la cité. Montréal, Paris, Tournai, Bellarmin, 1974, 265.
28. E. Weil, Violence et langage, op. cit., 29.
29. Ibid., 30.

178
9. Democracia e linguagem

do processo de modernização, é uma fonte para a educação do indivíduo à


liberdade segundo a razão e — uma vez revelada a oposição entre a moral
particular e a racionalidade social — a base da reflexão sobre a ação.
O indivíduo se põe, assim, como problema para si mesmo e toda solu-
ção que queira simplesmente optar ou pela técnica ou pela moral, está, de
antemão, equivocada. A ação razoável não existe como uma “razão subs-
tância”, mas como razão que se realiza no mundo, pois “o resultado razoável
da história é a razão objetiva e, portanto, desvelável nas instituições que,
na sua estrutura, visam à possibilidade de decisões razoáveis”30.
Portanto, a questão é ainda a mesma, pensada agora noutro momen-
to do movimento da reflexão. É a relação da comunidade com a sociedade
que revela um segundo paradoxo, tão fundamental à compreensão quanto
o primeiro. A organização do trabalho é universal, quer dizer, ela descon-
sidera qualquer particularidade territorial, cultural ou histórica. E isso
não acontece sem consequências territoriais, culturais e históricas, antes
o contrário, a sociedade moderna altera profundamente a consciência e a
identidade das tradições particulares. Este fenômeno é parte daquilo que
chamamos normalmente globalização e que, não por acaso, traz na ima-
gem do globo a tradução de uma “nova ordem mundial” sem um centro
aparente, sem incurialidade, e na qual toda particularidade encontra sen-
tido situada, indiferentemente, na rede superficial e generalizante das suas
relações. As mudanças que desta nova ordem decorrem na organização
das comunidades mostra que no campo cultural (se se preferir civiliza-
cional), a racionalidade moderna se impõe.
Porém, no campo político, esta sociedade que se assenta na igualdade
dos indivíduos, cria as condições formais para o exercício e o desenvolvi-
mento da democracia. Subjaz aqui a ideia de progresso ideal das institui-
ções que levariam à participação do maior número possível de pessoas
na tomada de decisões razoáveis, parte da base sobre a qual se ergue o
modelo moderno de democracia enquanto postula a igualdade de todos
os homens “movidos, ao mesmo tempo, por desejo e razão”31.

30. E. Weil, Filosofia política, 169.


31. E. Weil, Democracy in a world of tensions. Reponse to the Unesco Questionnaire on
ideological conflicts concerning democracy, in R. McKeon (ed.). Democracy in a world of ten-
sions: a Symposium prepared by Unesco, Chicago, University of Chicago Press, 1951, 435.

179
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O paradoxo surge do encontro entre a imagem de um tipo de glo-


balização que não deixa de ser “uniformização” com o ideal político da
democracia, que implica essencialmente a pluralidade de perspectivas,
de discursos e de interesses envolvidos num exercício de discussão.
A globalização, ausente enquanto termo, mas presente em todas as li-
nhas da nossa descrição do mecanismo social, dispensa novo tratamento,
passa-se então imediatamente a uma caracterização mais ampla — não
exaustiva — da democracia moderna. Dois traços essenciais distinguem
a atual ideia de democracia da sua imagem clássica. Em primeiro lugar,
o fato de que sem prescindir do problema fundamental de harmonizar
a busca da satisfação de interesses particulares com a realização do bem
comum objetivamente determinado32, a democracia implica, seja o re-
conhecimento da insuficiência de uma igualdade meramente legal, seja
a exigência da garantia de condições sociais concretas33. Em segundo, o
papel específico reservado aos especialistas na formulação dos problemas
de interesse coletivo e na sugestão de suas soluções. De fato, num contexto
marcado pela ciência, toda problemática deve ser traduzível no vocabulá-
rio científico, e o que não puder ser formulado nesta forma de linguagem
não é uma questão de fato. Reserva-se aos especialistas os assuntos de in-
teresse geral redesenhando-se as necessidades e as exigências do exercício
da discussão — não sem o risco de reduzir a ação política à condição de
ancilla administrationis ou mesmo de ancilla industriae.
Se todo problema deve ser traduzido em linguagem científica, é certo
igualmente que a ciência caminha mais lentamente que a história e que
nenhum domínio do conhecimento empírico se considera no estado final
da sua evolução. Impõe-se, por isso, que também no campo político os
problemas sejam formulados e resolvidos na renúncia a verdades abso-
lutas assim como na aceitação de resoluções advindas da discussão. Se na

32. “Não pode haver democracia numa nação que não esteja unida por valores
comuns e que não reconheça alguns fins como desejáveis”. Cf. E. Weil, Limites de la dé-
mocratie, Evidences, 13 (1950) 36.
33. “A democracia, o desenvolvimento econômico e social só podem ser postu-
lados sem contradições procedimentais onde as condições existenciais, indispensáveis
à realização de tal desejo, são potencialmente existentes”. Cf. J.-B. Kabisa, Singularité
des traditions et universalisme de la démocratie. Étude critique inspirée d’Eric Weil, Paris,
L’Harmattan, 2007, 30.

180
9. Democracia e linguagem

democracia há sempre o compromisso de descartar o recurso à violência,


soma-se agora o acordo para se encontrar fórmulas que, não definitivas e
incapazes de satisfazer inteiramente a todos, sejam ao menos aceitáveis.
Para a democracia, isso significa que

não existe verdade definida uma vez por todas, que os valores estão em cons-
tante evolução, que as teorias e as técnicas políticas e administrativas devem
evoluir com a sociedade e as ‘ideias’ (ordinariamente da ordem dos senti-
mentos), que, numa palavra, ninguém pode pretender possuir a verdade,
dogmas dos quais as decisões resultariam por simples dedução34.

“Toda democracia supõe que todo homem, a menos que seja louco,
esteja pronto a se deixar convencer pela razão”35, ou seja, “que todos os
cidadãos sejam razoáveis”36. Esta disposição não é apenas um postulado
antropológico, mas também o fundamento filosófico e o horizonte em
vista do qual a experiência histórica da democracia se organiza. É desta
concepção antropológica, filosófica e — de certo modo — histórica, que
surge a necessária identificação da democracia com a defesa dos direi-
tos do indivíduo; o que, por consequência, a coloca como antípoda de
sistemas totalitários.
Finalmente, democracia significa, nas palavras de Eric Weil,

O direito de todo cidadão tomar parte na discussão aberta, sem recurso à


violência, voltada à elaboração de decisões pensadas para favorecer o bem
comum, considerando, ao mesmo tempo e na medida do possível, o desejo
dos cidadãos e as condições sociais e políticas (exteriores) prevalecentes;
então o problema central desta pesquisa, no plano político, é claramente
o problema da tolerância, ou, mais exatamente, aquele de circunscrever os
direitos de oposição e de crítica37.

Este problema pode ser traduzido como a pergunta acerca das con-
dições para que os indivíduos e as comunidades participem de processos
democráticos, sobretudo num horizonte político marcado pela universa-
lização dos problemas. Na reflexão política se mostra, então, o segundo

34. E. Weil, Limites de la démocratie, op. cit., 37.


35. E. Weil, Democracy in a world of tensions, op. cit., 430.
36. E. Weil, Limites de la démocratie, op. cit., 37.
37. E. Weil, Democracy in a world of tensions, op. cit., 439-440.

181
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

paradoxo essencial à nossa análise: a modernidade, de um lado, se carac-


teriza por um ideal político de democracia e, de outro, por uma ordem
cultural ou civilizacional que tende a se uniformizar. Há pelo menos
duas vias para se pensar a questão: uma analisa a configuração do Esta-
do moderno38 — que deve organizar o exercício da discussão para que o
conflito entre os interesses não seja violento e garantir aos membros da
comunidade as condições de participação nos debates —; a outra, bus-
ca compreender a dimensão política da linguagem nos seus diferentes
fenômenos. Esta segunda é aquela que se seguirá aqui.

As dimensões políticas da
linguagem e o sentido da ação

O homem, ser “dotado de razão e de linguagem”39, se realiza também


nas suas formas próprias de expressar a realidade. É o caso da ampliação
do mundo pela superação da mera experiência imediata pela articulação
de símbolos, conceitos e significados que permitem a criação de uma
mediação verdadeiramente humana entre o indivíduo e a natureza, isto
é, a cultura. No campo que nos interessa, trata-se da compreensão das
formas histórico-políticas da linguagem na organização e gestão sensata
da vida em comum dos homens no mundo, o que, em Weil, se apresenta
sob três diferentes registros: o discurso, a discussão e o diálogo.
O discurso enquanto linguagem descritiva, característica da sociedade
moderna, é indispensável por lidar com as questões que são peculiares ao
seu mecanismo. Como linguagem social, ele se completa assumindo uma
forma crítica capaz de compreender a insatisfação dos indivíduos, e um
caráter prático que visa à transformação do homem e do mundo40. É jus-

38. Sobre o Estado em Weil, ver P. Canivez, Le politique et sa logique dans l’oeuvre
d’Eric Weil, Paris, Kimé, 1993; E. Doumit, État et société modernes dans la “Philosophie
politique”, Archives de Philosophie, 33 (1970) 511-526; E. Costeski, Atitude, violência e
Estado mundial democrático. Sobre a filosofia de Eric Weil, São Leopoldo-Fortaleza, Edi-
tora Unisinos-Edições UFC, 2009.
39. E. Weil, Lógica da filosofia, 11.
40. Cf. A. Tosel, Action raisonnable et science sociale dans la philosophie d’Eric
Weil, Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, Serie III, XI/4 (1981) 1164.

182
9. Democracia e linguagem

tamente enquanto descritivo e crítico que o discurso se faz transformador


e educativo, ou seja, necessário também a quem escolhe compreender o
mundo e dentro dele conferir um sentido à própria vida pessoal e às exi-
gências da vida coletiva. Em outras palavras, assinala os que agem a fim
de que as comunidades vençam a violência e estabeleçam a coerência na
cotidianidade41, incita ao engajamento político dos indivíduos para re-
novar o sentido da sua presença no mundo.

Leva à percepção da importância de realizar a existência humana não apenas


pela satisfação e pelo contentamento pessoais (segundo o próprio sentimen-
to ou particularidade), mas também pela satisfação e pelo contentamento
dos outros homens na comunidade histórica, ou ainda, da Comunidade
histórica dos homens no mundo (o universal), com uma atitude de res-
ponsabilidade nas decisões a tomar em vista dos problemas que se põem
no cotidiano e de um sentido de discernimento diante dos fatos e dos acon-
tecimentos do mundo42.

Por fim, assume como escopo a erradicação da violência pela orga-


nização do mundo tomado “com seus valores, suas regras, sua forma es-
pecífica de vida e trabalho em comum (…) com sua moral específica”43;
como meio, ele se faz também instrutivo e ajuda os homens a se universa-
lizarem “em torno das regras, das regulações efetivas, históricas presentes,
da vida em comum” para concretizarem “o sentido da sua vida”44.
O segundo registro, a discussão, é um modo de organização da vida
coletiva e se apresenta como lugar da expressão do autêntico fazer-se
político da linguagem, real modalidade de ação política. Concerne ao
homem como membro de uma sociedade regida por regras gerais e é a

41. “O discurso age através das pessoas que, com conhecimento de causa, fizeram
a escolha da justiça e da verdade contra a íntima barbárie existencial e os males derivati-
vos que eles sofrem na cotidianidade, pessoas que desejam a transfiguração total de seu
universo social”. Cf. S. G. Bobongaud, La dimension politique du langage. Essai sur Eric
Weil, Roma, PUG, 2011, 129.
42. Ibid., 137.
43. E. Weil, Philosophie et réalité II, Paris, Beauchesne, 1982, 105.
44. Ibid., 105. Em última instância, quer “realizar uma sociedade que tenha por cen-
tro o homem e não seu produto (…) fazer que o homem não seja mais tratado como uma
coisa mas possa se regozijar na sua individualidade concreta”. Cf. J. Quillien, Discours et
langage ou la “Logique de la philosophie”, Archives de Philosophie, 33 (1970) 428.

183
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

vitrine ideal do sistema democrático, motor e mesura da democracia no


Estado constitucional, conferindo-lhe uma assinatura específica como
modelo propriamente moderno de gestão da vida coletiva. Nos vários
níveis em que ocorre, a discussão deve se concretizar como a busca efe-
tiva de conciliar razão e contentamento. Com o conhecimento das exi-
gências da administração, das razões técnicas e das condições sociais,
ela é o esforço em vista da descoberta do que implica cada escolha e do
preço moral a pagar pela realização dos desejos e dos ideais das comu-
nidades particulares45.
No plano político concreto, caracteriza o sistema constitucional46.
Neste ela se dá “regrada pela lei (no que concerne aos direitos e às obri-
gações dos participantes), aberta e contínua”47, como um procedimento
livre, transparente e “universal quanto aos [seus] participantes e quanto
aos [seus] objetos”48. Com efeito, no sistema constitucional, é a discussão
que articula as principais estruturas da ação política. Em outras palavras,
ela envolve as instâncias públicas na busca da conquista do contentamen-
to. Ordinariamente, ela se concretiza na instância parlamentar49, seu lugar
institucional e seu meio estrutural por excelência. Mas, se de um lado,
ela se realiza plenamente no Parlamento, de outro, está pressuposta e se
prolonga pela ação da administração e do governo50.
A dinâmica da discussão se evidencia no confronto e na tentativa de
conciliação entre as convicções particulares e os interesses do Estado em três

45. Cf. E. Weil, Filosofia política, 153.


46. Cf. P. Canivez, Le politique et sa logique dans l’oeuvre d’Eric Weil, op. cit., 190-230;
L. Bescond, Eric Weil et le choix de l’Etat constitutionnel, in G. Kirscher; J. Quillien
(orgs.), Sept études sur Eric Weil, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1982, 57-74.
47. E. Weil, Filosofia política, 285.
48. Ibid., 289-290.
49. Cf. ibid., 227. “O parlamento e tudo o que o cerca (imprensa, opinião pública,
debates…) constituem uma caixa de ressonância na qual se pode reter as aspirações con-
trastantes das categorias sociais. [Em seu seio] as necessidades [reais do povo] podem ser
formuladas, para serem cristalizadas e saírem do sentimento vago e da inquietude sem
objeto; o cidadão tem ali o que explicita para ele mesmo as suas reivindicações, ao mes-
mo tempo em que o poder ou a administração têm as fontes de informação sem as quais
estariam cegos”. Cf. P. Valadier, Société moderne et Etat, dans la philosophie politique
d’Eric Weil, Projet, 72 (1973) 184.
50. Sobre a relação entre Parlamento, administração e governo, cf. R. C. Reyes, Of things
moral and political: an adaptation of Eric Weil’s political philosophy, op. cit., 114.

184
9. Democracia e linguagem

diferentes níveis. Em um primeiro momento, ela pode ser geral, baseada


nos fundamentos e nos princípios da vida da comunidade, tirando

do inconsciente o que constitui o essencial das convicções da nação e das as-


pirações da opinião pública. Permite, do mesmo modo, (…) a educação dos
cidadãos ao universal da razão, sua ascensão do interesse (do) geral, o inte-
resse que pertence a todos e leva ao contentamento sensato de todos (da
totalidade da comunidade social)51.

O segundo nível implica os partidos políticos na construção histórica


da consciência coletiva e na qualificação da vida compartilhada52. O último
concerne às “associações de interesse”, como, por exemplo, as organizações
sociais, profissionais, econômicas e culturais que perseguem fins particu-
lares e exercem pressão sobre o Estado, sendo a “voz da particularidade”53
na universalidade e, assim, permitindo o governo considerar os problemas
pontuais de determinados grupos e estratos.
O terceiro registro, o diálogo, “é político, no sentido mais forte”54,
porque é o alicerce para a criação da unidade capaz de tornar insensata a
violência, assegurando “a existência de uma comunidade, de um mínimo
de comunhão num mínimo de valores”55. Para Weil, ele surge na obser-
vância a certas leis constitutivas e reguladoras. Estas regras sancionam
o fato de que só pode haver diálogo entre os homens que abandonam a
violência, compartilham princípios, tem claros os critérios de verdade e
as regras lógicas da linguagem, que renunciam à tentação de considerar
o arbítrio ou qualquer elemento histórico como absoluto e, por fim, des-
cartam toda forma de relação assimétrica, reconhecendo cada indivíduo
como um fim em si mesmo e nunca como meio56.
Dito isto, a reflexão pode percorrer dois diferentes caminhos: um que
se pergunta “se ainda hoje o diálogo é possível”57, outro que procura com-
preender a sua natureza. No que diz respeito à possibilidade, Weil amplia

51. S. G. Bobongaud, La dimension politique du langage, op. cit., 153-154.


52. Cf. E. Weil, Filosofia política, 282.
53. Ibid., 281.
54. E. Weil, Philosophie et réalité I, 295.
55. Ibid., 283.
56. Ibid., 282-283.
57. Ibid., 283.

185
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

o foco da questão mostrando que se tradicionalmente o diálogo foi visto


entre indivíduos protegidos da violência dentro da cidade, hoje é o caso
de pensá-lo também entre instituições, Estados ou grupos de Estados, o
que não deixa de apresentar um “prognóstico desesperador”58.
Quanto à natureza, parte-se da análise dos diferentes modos do diálogo.
O primeiro é o “plano do sentimento (ou mesmo da sensibilidade)”59, da
relação imediata entre indivíduos, do encontro no qual, quem fala, não
quer simplesmente contestar o adversário, mas convencê-lo a assumir
uma mesma opinião. O segundo modo se volta para o plano do universal
centrando-se nas “regras reconhecidas por todos os participantes”. Aqui,
ele “se torna discurso e monólogo, e o outro intervém apenas para fazer
o autor do discurso observar este ou aquele ponto, ou a infração das re-
gras: o interlocutor se transforma em crítico e o outro não faz mais que
conduzir de novo o autor àquilo que ele mesmo queria”60. Nesta segun-
da perspectiva, o diálogo corre o risco de se fechar numa universalidade
meramente técnica. De fato, limitar-se a premissas e regras significa não
apenas o empobrecimento do esforço do diálogo, mas a sua cessação,
pois uma vez alcançado o sucesso deste tipo de universalidade — e o
interlocutor devidamente convencido — não se tem mais sobre o que
dialogar. Surgiria, inevitavelmente, o dilema: ou o retorno ao sentimen-
to, ou a retirada no silêncio.
Porém, a universalidade própria ao diálogo autêntico, é filosófica, do
“confronto das convicções presentes no mundo histórico (…), a tentativa,
sempre renovada, de compreender as oposições agentes que dilaceram o
mundo, e [que] ao dilacerá-lo, o impulsionam”.61 Por isso, seu sujeito não
é o técnico do discurso nem o político da discussão, mas o “homem de
cultura”62 — “os criadores, os poetas, os artistas, os pensadores, os homens
de ciência”.63 Sem se fazer político de profissão, a ação política do homem de
cultura é inegável, porque, se de um lado, “o pensador não deve promoter a

58. Ibid., 284.


59. E. Weil, Dialettica, Dialogo: due inediti, in L. Sichirollo, La dialettica degli
antichi e dei moderni. Studi su Eric Weil, Bologna, Il Mulino, 1997, 193.
60. Ibid., 194.
61. E. Weil, Philosophie et réalité I, 290.
62. Ibid., 287.
63. Ibid., 288.

186
9. Democracia e linguagem

eficácia no imediato”64, de outro, “a primeira tarefa de quem quer transfor-


mar o mundo consiste em compreendê-lo no que ele tem de sensato”65.
Portanto, não há mais dilema, pois, pensando a ação, o diálogo é in-
terminável. Os homens de cultura “não têm certeza do que verdadeira-
mente está em jogo nas paixões”66, por isso dialogam; sabem apenas que
“é preciso viver, e viver em comunidade”67. Logo, além da observância
das regras, torna-se essencial a existência de instituições preocupadas
com a criação de um mundo no qual os princípios diferentes possam
se confrontar em vista daquele princípio fundamental da afirmação de
que “a violência é um mal”68. Porém, instituições sozinhas não garantem
o sucesso do diálogo, nem é o caso, de fato, da sua institucionalização.
Trata-se de reconhecer que

a vida do homem se desenvolve no diálogo dos homens vivos, [enquanto] o


seu trabalho se realiza no monólogo universal do trabalho e da organização.
Mas é graças ao diálogo segundo regras e sob a proteção das instituições que
uma verdadeira vida humana pode ser e se tornar sempre mais completa69.

Finalmente, para que haja diálogo autêntico, parece-nos permitido


dizer que, como indivíduo, o homem deve estar disposto a assumir as
implicações éticas do postulado fundamental de que todo ser humano
é apto à razão; assim como deve também poder contar, enquanto mem-
bro de uma comunidade, com a segurança de instituições que garantam
espaço a todas as dimensões políticas da linguagem e promovam, pela
educação, a formação de

um homem novo, capaz e desejoso de desenvolver seu papel na sociedade


moderna, pronto e apto a julgar todos os problemas concernentes à vida da
comunidade à qual pertence, satisfeito com a sua posição porque consciente
da dignidade inerente e da necessidade social do seu trabalho, convencido
do caráter razoável da ordem existente, mas determinado a melhorar tanto
esta ordem quanto a posição que nela ele ocupa70.

64. Ibid., 295.


65. E. Weil, Filosofia política, 76.
66. E. Weil, Philosophie et réalité I, 287.
67. E. Weil, Dialettica, Dialogo, op. cit., 196.
68. Ibid., 197.
69. Ibid., 198.
70. E. Weil, Philosophie et réalité I, 299.

187
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Considerações finais

O conectivo entre “democracia” e “linguagem” no título não deseja


apenas justapor dois conceitos de filosofia política, mas revelar uma es-
sencial identidade entre eles. Afinal, democracia é fundamentalmente po-
der falar. As questões que surgem podem nos levar a muitas direções: por
quê, a quem, onde, quando, como, sobre o que, quais as consequências, e
tantas outras. Nesta relação, duas ideias subjacentes devem vir à luz: por
um lado, o interesse de quem fala, de outro, a consideração que é dada a
quem escuta e a disposição a lhe conceder a palavra. Aqui nossos proble-
mas começam a se tornar mais concretos: nas experiências democráticas
contemporâneas e conhecidas, que interesses movem os falantes e que
consideração recebem os ouvintes? Democracia não é só poder falar, é,
antes de tudo, poder fazê-lo num contexto em que ninguém é reduzido
ao papel de meio e no qual um bem comum é considerado tanto ou até
mais importante que a satisfação de um indivíduo ou de um grupo que
exclua a possibilidade da satisfação de outrem.
Se este é o contexto postulado para experiências democráticas em
escalas particulares, muito mais será exigido para se pensar a democracia
num mundo globalizado. Diante dos problemas da violência e das crises
econômicas e ecológicas que extrapolam completamente os limites dos
Estados históricos, as perguntas acerca das possibilidades da democracia
retornam num nível novo e mais extenso. As questões podem ser pensa-
das aqui — quando queremos nos manter ligados à reflexão de Weil —
em dois diferentes sentidos: primeiramente, elas se voltam ao papel dos
fóruns internacionais de discussão e à sua função pedagógica enquanto
mantêm a perspectiva num plano verdadeiramente mundial; depois,
obrigam-nos a pensar se o princípio abstrato da eficácia é suficiente para
guiar as discussões internacionais em vista da solução dos problemas
concretos e da consecução de um objetivo compartilhado.
O contexto atual apresenta ainda a questão dos novos fóruns de discus-
são, como, por exemplo, as redes sociais. Os problemas aqui talvez se mul-
tipliquem tanto quanto o número dos frequentadores destes espaços mais
recentes de debate. Democracia não é só poder falar, é também falar com
competência, com a capacidade de compreender a importância e os limites

188
9. Democracia e linguagem

do discurso, de assumir as exigências e as consequências da discussão e, fi-


nalmente, estar disposto a todas as condições do diálogo. Duas conclusões
são inevitáveis. De um lado, quem for incapaz de responder por alguma das
exigências mencionadas — e há quem não responda por nenhuma — perde
a possibilidade de falar razoavelmente de política, podendo, inclusive, cair
“na tagarelice irresponsável”71. De outro, uma compreensão mais adequada
da democracia, não exclusivamente como “sistema do governo instituído e
controlado pelo povo”, mas, sobretudo, como “sistema de governo conce-
bido em vista da educação do povo para a democracia”72.
Recordando, para terminar, o que Eric Weil diz sobre o escritor na “arte
da condição”73, colhe-se a ironia de José Saramago ao abrir o seu Ensaio so-
bre a lucidez: “mau tempo para votar”.74 Expressão irônica, porque para que
se possa “votar” — viver a democracia e em regimes realmente democráti-
cos —, necessita-se tanto das condições pessoais alcançadas pela educação
quanto das garantias de instituições que salvaguardem o desenvolvimento
do discurso, da discussão e do diálogo. Em outras palavras, é justamente
pela sua brutalidade que o “mau tempo” é um “tempo para votar”.

71. E. Weil, Filosofia política, 25.


72. E. Weil, Limites de la démocratie, Evidences, 13 (1950) 38.
73. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 318-322.
74. J. Saramago, Ensaio sobre a lucidez, São Paulo, Companhia das Letras, 2004, 5.

189
10. O sentido da oposição entre
razão e violência segundo Eric Weil

Mahamadé Savadogo1

A oposição entre a razão e a violência é um tema bastante conhecido


na obra de Eric Weil. A precisa significação desta oposição consti-
tui, portanto, um objeto de reflexão que compromete a interpretação do
pensamento de Eric Weil em seu conjunto: que sentidos convém, então,
lhe dar? Por um lado, ela parece referir-se a duas possiblidades igualmen-
te válidas, sem uma verdadeira relação, por outro, ela permite entrever
um embate em cujo termo uma possibilidade poderia se impor sobre a
outra. Existe uma solução para essa ambiguidade? Que saída o próprio
Eric Weil entrevê para essa dificuldade? Essa é a preocupação central com
que vamos nos defrontar em seguida.

***
Não parece difícil encontrar uma resposta à preocupação pela qual
se introduz a presente comunicação. Para o leitor de Eric Weil, razão e
violência remetem à primeira vista a duas possibilidades distintas e in-
conciliáveis expostas na primeira parte da introdução da Lógica da filo-
sofia, a obra emblemática do pensamento do nosso autor.

1. Universidade de Ouagadougou, Burkina Fasu.

191
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

A relação entre essas duas possibilidades não consiste em uma con-


tradição suscetível de ser superada no terceiro momento seguindo um
movimento dialético. Ela constitui, antes, uma oposição entre duas ati-
tudes exteriores uma à outra entre as quais não se descobre nenhuma
regra comum à qual elas poderiam ser remetidas e discernidas.
Em outras palavras, não se trata de um confronto entre orientações
que permanecem dependentes uma da outra, mas de um “desacordo”
(différend), expressão que, segundo Lyotard, designa “um caso de con-
flito entre duas partes (pelo menos) que não poderia ser resolvido de
forma equitativa pela ausência de uma regra de julgamento aplicável às
duas argumentações”2.
A noção de desacordo, como é descrita por Lyotard, parece bastante
apropriada para apreender a oposição entre razão e violência segundo
Eric Weil. Pois a razão e a violência não falam a mesma linguagem, elas
não desenvolvem os mesmos argumentos e nem mesmo se preocupam
em tentar se convencer mutuamente. Evidentemente, as duas recorrem a
uma linguagem para se exprimir, mas elas não dão a mesma importância
ao discurso. Enquanto, do ponto de vista da violência, a linguagem deve
ser tratada como simples instrumento a serviço da negatividade, uma
ferramenta para traduzir a insatisfação que anima o homem, a razão, por
sua vez, nela encontra o caminho para a sabedoria ou para o contenta-
mento pela mediação do discurso.
Esses dois modos inconciliáveis de se remeter à linguagem são ex-
postos claramente na primeira parte da introdução da Lógica da filosofia,
que se divide em duas subpartes intituladas respectivamente “O homem
como razão” e “O homem como violência”. Embora o título da primeira
subparte da introdução sugira que a razão é uma aptidão presente em
todo homem, seu desenvolvimento não tarda em demonstrar que a razão
designa um ideal que só o filósofo persegue.
Ser razoável é uma virtude que não se encontra em todo homem,
que não é imediatamente conferida a todos, mas que se conquista em uma
luta consigo mesmo além da relação aos outros. Mais que uma aptidão,
a razão implica uma atitude que mobiliza o indivíduo e exige dele pôr
fim à busca de satisfações efêmeras, que alimentam a insatisfação e criam

2. J. F. Lyotard, Le différend, Paris, Minuit, 1983, 9.

192
10. O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil

o sofrimento, para chegar a um apaziguamento, para se reconciliar con-


sigo mesmo:

é razoável quem não quer aquilo que não se obtém, isto é, que renunciou a
buscar o contentamento na perseguição, indefinida e interminável, de sa-
tisfações sucessivas, que admitiu que toda satisfação e toda eliminação de
um descontentamento dado apenas produzem outros dados, igualmente
insatisfatórios, apenas de outra maneira…3.

Em outras palavras, a razão designa um estado de espírito que se


traduz por uma distância em relação às frustações, às penas provocadas
pelo apego a fins precários para se fixar no que se mostra como essen-
cial para dar um sentido à existência. A filosofia é um procedimento que
visa à conquista e à manutenção desse estado de espírito. Ela se propõe
organizar o triunfo da razão contra a inclinação ordinária de perseguir
as satisfações efêmeras criando uma hierarquia entre os fins humanos,
suscitando uma distinção entre fins a serem considerados secundários e
outros a serem tidos como fundamentais, significativos.
O apelo à razão, por meio da filosofia assim visada, passa pela media-
ção do discurso, não o do erudito que permanece sujeito à insatisfação sus-
citada pela busca de fins efêmeros, mas o que se volta sobre essa insatisfa-
ção para enunciá-la e permitir mantê-la à distância. O homem razoável é
o que alcançou a reconciliação consigo mesmo pela mediação do discurso
que constitui a filosofia. A filosofia assim compreendida, como quadro no
qual triunfa a razão, está em clara oposição à violência que consiste em se
manter preso à insatisfação, em persistir na busca de fins precários sem se
preocupar em visar a um limite que indique um sentido à existência.
A violência é suscetível de assumir várias formas, mas todas elas con-
fluem na rejeição da busca pelo apaziguamento, se erguem contra a pers-
pectiva de uma reconciliação do homem consigo mesmo. Do ponto de
vista da violência, o triunfo da razão pela filosofia é sinônimo de morte,
de renúncia a vida: “só os mortos e as pedras, e os animais, talvez, são
contentes, caso ser contente signifique ser desprovido de desejo, não ter
decepção, simplesmente ser” (Lf 30).

3. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. L. C. de Malimpensa, São Paulo, É Realizações,


2012, 21. Doravante Lf.

193
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

A consideração da violência ajuda a mostrar à filosofia que ela não cons-


titui um procedimento usual, natural, para o homem. A via usual consiste
essencialmente na busca de satisfações efêmeras denunciada pela filosofia.
O homem comum passa sua vida a conquistar fins finitos até que a morte o
surpreenda. Do seu ponto de vista, não existe um fim supremo que domine
todos os objetivos humanos e que deva ser procurado acima de tudo.
A ideia de um fim supremo, de uma sabedoria ou de um contentamen-
to, que traz a filosofia, contraria a forma como a vida humana comumente
se compreende. Para a vida humana comum, o homem permanece um ser
finito que nada poderia realizar de absoluto, de definitivo. Ele é essencial-
mente destinado à morte que deprecia todo projeto, desqualifica todo em-
preendimento. A morte é a suprema violência que revela a vacuidade das
ambições humanas.
A perspectiva da morte sugere a vitória da violência sobre a razão que
a filosofia almeja alcançar. Razão e violência se excluem mutuamente: se a
razão é possível então a violência é vã, mas se a violência é inevitável, a
razão torna-se supérflua. Entre esses dois limites, nenhuma conciliação
parece possível; elas estão condenadas a se negar mutuamente.
Trata-se de um desacordo (différend) e não de uma oposição dialética:
entre a razão e a violência é preciso escolher. Os argumentos em favor de
cada uma dessas possibilidades são tão categóricos como aqueles em favor
da outra. A “escolha absoluta” (Lf 86 ss.) entre a razão e a violência, de que
fala Eric Weil, não é mais do que uma antecipação do que Lyotard cha-
mará, muito tempo depois dele, “o desacordo” (le différend). Ele põe em
jogo duas partes cujas pretensões são igualmente válidas. Trata-se de uma
escolha injustificável entre termos inconciliáveis.

***

Com essas observações preliminares, uma clara resposta para a preo-


cupação inaugural da presente comunicação parece ter sido conquistada.
A oposição entre a razão e a violência segundo Eric Weil teria o sentido
de um desacordo (différend). Eric Weil teria vislumbrado, sem nomeá-lo,
o tipo de conflito que Lyotard analisa por trás da noção de desacordo.
Antes de aceitar definitivamente essa conclusão, que transforma Lyotard

194
10. O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil

em um weiliano que se ignora, convêm, no entanto, perguntar a partir


de que ponto de vista a oposição entre a razão e a violência é exposta na
obra de Weil: pode-se partir da violência para apreender a razão?
É claro que o leitor de Eric Weil não hesitará em dar uma resposta fir-
me para essa questão: a possibilidade da violência se revela para aquele que
toma o partido da razão por meio da filosofia. A violência é um problema
para a filosofia, a filosofia não o é para a violência, que debocha do filósofo
ou afasta-o quando o considera incômodo e o percebe como um obstáculo
no caminho sem plano que é sua realidade para ela mesma (Lf 89 s.)
Em outras palavras, o confronto entre a razão e a violência preocupa
sobretudo aquele que não quer se render à violência. Esta, contrariamen-
te ao que sugere o movimento da introdução da Lógica da filosofia, que
termina com uma parte intitulada “Filosofia e violência”, não designa
uma possibilidade que se descobre somente ao fim do desenvolvimento
da filosofia para opor-se a ela do seu exterior. Antes de ser reconhecida
como uma atitude a parte, susceptível de desafiar a razão, a violência é
revelada como a condição da busca da razão e o motor do seu processo
de desenvolvimento. Dito de outro modo, a violência não tem uma sig-
nificação exclusivamente negativa. Ela se mostra sob diferentes formas
e a forma radicalmente oposta à razão está longe de ser a mais familiar,
muito embora sua importância para a filosofia seja incontestável.
A violência é um traço característico da condição humana. Eric Weil
mostra que a própria linguagem, tida como uma manifestação da razão no
homem, se constitui para exprimir a insatisfação, a recusa ou a negação.
Originalmente, a linguagem não se destina a revelar o que é, mas a tradu-
zir o que o homem não quer. O discurso da filosofia se forma a partir da
linguagem, em oposição à insatisfação que ele traduz; ele se compreende
como um voltar-se sobre a violência para conquistar o contentamento: “o
discurso se forma, o homem forma seu discurso na violência contra a vio-
lência, no finito contra o finito, no tempo contra o tempo” (Lf 105).
Sem a violência inicial da insatisfação contra a qual a filosofia é con-
vocada a se voltar, seu aparecimento seria incompreensível, injustificável.
Não somente a oposição à violência está na origem da filosofia, mas sobre-
tudo ela acompanha seu desenvolvimento ao longo da história. A história
da filosofia é um processo de confronto entre as doutrinas filosóficas.

195
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Cada nova doutrina contradiz aquelas que a precedem e pretende conter


a verdadeira filosofia. Essas contradições entre as doutrinas filosóficas
contribuem para o desenvolvimento da filosofia no decurso da história.
Elas acabam por engendrar a convicção de que a filosofia se edifica pela
mediação das contradições entre as doutrinas filosóficas.
A contradição ou a violência entre os discursos filosóficos não é um
mal a ser rejeitado, mas um meio pelo qual o verdadeiro sistema da fi-
losofia se desenvolve. A verdadeira filosofia não é a que vê nas que a pre-
cedem erros a eliminar, mas a que os considera como momentos de seu
próprio desenvolvimento. Ao chegar a se apresentar sob a forma de uma
integração racional de todos os sistemas que apareceram na história, nota-
damente na obra de Hegel, a filosofia reconhece a violência, sob os traços
da contradição, como uma condição de sua própria elaboração.
A filosofia não é separável de sua história no curso da qual os diferen-
tes sistemas se confrontam. Essa concepção da filosofia, que incorpora a
história ou a contradição como caminho que leva à sua realização, permite
compreender igualmente o papel da violência na história da humanidade
em geral. A violência é o meio pelo qual as sociedades humanas se cons-
troem, se mantêm e se transformam. Ela leva a humanidade a destruir
civilizações para edificar outras, ela opõe grupos de uma mesma socie-
dade entre si para preparar sua transformação e contrapõe sociedades
entre si para engendrar uma evolução do gênero humano.
Ao encontrar na violência o motor do desenvolvimento da história da
filosofia e da história da humanidade, o pensamento de Eric Weil entrevê,
no rastro de Hegel, uma reconciliação entre a razão e a violência. Do seu
ponto de vista, a razão não é identificável a uma realidade fixa que se ergue
eternamente diante de outra realidade que seria a violência. A razão é uma
realidade viva, dinâmica, que é conduzida a se desenvolver, a tomar cons-
ciência de si mesma pela mediação das contradições entre os homens.
Em outras palavras, a razão se realiza por meio da história, ela se des-
cobre ao longo de um movimento causado pela negação de diferentes
posições. A violência está inscrita no processo pelo qual a razão se revela
a si mesma. Ela é o aguilhão que instiga a razão a avançar de momento
em momento até se descobrir em ação nos mínimos aspectos da realida-
de humana. A razão não é apenas uma faculdade teórica, mas também

196
10. O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil

um princípio prático; ela se encontra tanto na moral e no direito como


na política; ela se acha presente igualmente na arte, na religião como na
filosofia. As contradições entre essas diferentes esferas da vida humana,
os conflitos entre os deveres que elas implicam e as lutas entre os homens
que elas induzem revelam, em definitivo, que a razão e a violência não
são inconciliáveis. Elas estão sempre reconciliadas na história e a filoso-
fia se encarrega de pensar o que a história já realizou: ela é a tomada de
consciência da unidade da razão e da violência da história.
Ao renovar a afirmação de uma reconciliação da razão e da violência,
o pensamento de Eric Weil se mostra inevitavelmente como dialético. A
oposição entre razão e violência é necessária para a própria razão. Não
se trata de duas partes indiferentes uma à outra, mas de uma relação de
transformação mútua que desemboca na integração da violência na razão.
A razão permanece a realidade suprema na qual a violência se integra e
ganha uma justificação. Assim justificada, a violência deixa de aparecer
como uma alteridade irredutível diante da razão para ser aceita, reconhe-
cida, como mediação necessária de sua realização. O sentido da relação
entre razão e violência é o de uma integração da segunda pela primeira.
A oposição entre as duas noções é relativa, não absoluta, a violência não
é absolutamente exterior a razão.
Fica claro que essa maneira de compreender a relação entre razão e
violência em Eric Weil se mostra mais fiel ao caráter sistemático do seu
pensamento. A Lógica da filosofia é uma obra sistemática que se desen-
volve mostrando os limites das diferentes posições que ela examina. Não
se trata de um pensamento que apresenta regimes de discurso diferentes
em confronto, sem pretender reconciliá-los, à maneira da obra maior de
Lyotard, Le différend. Enquanto no pensamento do desacordo (différend)
segundo Lyotard, o conflito permaneça a última palavra entre os regimes
de discurso ou as posições filosóficas, Eric Weil conduz o desenvolvimento
das posições filosóficas até um termo que é a sabedoria.
Do ponto de vista do desacordo (différend), o sistema aparece como
uma ambição impossível e mesmo insensata em seu princípio, precisamen-
te porque ele busca a reconciliação para a além da própria conflitualidade.
O conflito é a marca definitiva da relação entre os regimes de discurso
e as atitudes humanas. Por sua vez, a Lógica da filosofia é uma obra que

197
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

pretende ser completa, em sentido forte, porque sistemática. Ela apresenta


um movimento que tem um começo e um fim, um texto cujo último ca-
pítulo reconduz ao seu início. Querer se deter em um capítulo da lógica
da filosofia sem seguir o movimento da obra até seu término é uma ati-
tude desrazoável. A razão exige seguir o desenvolvimento das categorias-
atitudes da primeira até a última. Um tal itinerário implica a superação
da violência na realização da razão. Em definitivo, o caráter sistemático
da obra de Eric Weil exige a superação da violência na razão.

***

Com essa última observação, a reflexão em curso chega a outra res-


posta para a questão do sentido na relação entre razão e violência em Eric
Weil: a violência é chamada a se superar na razão. Essa resposta, que se
opõe a primeira, no entanto, exige perguntar em que o pensamento de
Eric Weil permanece diferente do de Hegel. Devemos seguir os intérpretes
que consideram que Weil se contenta com redescobrir Hegel? O confronto
com essa questão anuncia a conclusão da presente reflexão.
Se não queremos nos condenar a decalcar o pensamento de Eric Weil
sobre o de Hegel, que ensina a reconciliação da razão e da violência pela
mediação da história, é indispensável admitir que duas concepções de
violência devem ser distinguidas na obra do autor da Lógica da filosofia:
uma violência relativa, razoável, sensata e uma violência pura, radical,
gratuita. Por um lado, existe uma violência apresentada como concili-
ável com a razão, mas, por outro lado4 encontra-se uma violência radi-
calmente oposta a razão, da qual a categoria-atitude da Obra na Lógica
da filosofia constitui a encarnação.
É claro que a exposição dessa possibilidade de uma violência pura
ou radical, oposta à razão, marca a originalidade de Weil em relação a
Hegel para quem a violência é chamada a ser superada na razão. Todos

4. “Não é que a filosofia recuse a violência absolutamente, longe disso. Facilmente


se poderia sustentar que uma filosofia que se compreende como compreensão e como
via de contentamento recomenda o emprego da violência, porque ela é levada a constatar
que deve se erguer contra a violência. Mas essa violência não passa, então, de um meio
necessário (tecnicamente necessário num mundo que ainda está sob a lei da violência)
para criar um estado de não-violência… (Lf 90).

198
10. O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil

os comentadores concordam em reconhecer que ela traduz a influência


da história do século vinte sobre Eric Weil, sua inserção em uma época
marcada por experiências novas que abalaram a confiança na razão que
caracterizou os dois séculos precedentes. A violência pura foi experimen-
tada na história antes de ser exposta na filosofia. Na linguagem da Lógica
da filosofia, dir-se-ia que ela foi vivida como atitude, ademais mediante o
sofrimento de suas vítimas, antes de ser enunciada como categoria.
Essa especificidade característica da possibilidade que constitui a
violência pura complica a tarefa da filosofia a seu respeito, ela torna sua
relação com a razão particularmente difícil de se apreender. Como bem
salientou Gilbert Kirscher, que dedicou um livro às figuras da violência
em Eric Weil, o discurso da violência tende a sublimá-la: “O paradoxo
da violência é que sua expressão na língua comum, seu acesso à palavra,
sua compreensão no discurso, começam a sublimá-la, a dissolvê-la, a
educá-la. A violência pura é indizível”5.
Literalmente, a violência pura não se justifica, ela não produz um dis-
curso para entrar em discussão com posições opostas para as abalar: ela
se afirma e isso é tudo. É verdade que na sua afirmação ela fala, ela suscita
uma linguagem, mas sua linguagem não é destinada a se superar em um
discurso coerente. A violência pura não adere à exigência de coerência,
ela zomba da coerência. Para ela a linguagem é essencialmente um instru-
mento a serviço de sua força. Ela não fala para visar a um sentido passível
de reconciliar seus interlocutores, mas para subjugá-los, manipulá-los.
Quando a lógica do discurso, de sua linguagem, ameaça voltar-se contra
ela, a violência se refugia no silêncio: “Somente a destruição do discurso
— seja pelo silêncio, seja pela linguagem não coerente — corresponde à
violência pura, que só é pura com conhecimento de causa” (Lf 94).
Dessa oposição consciente ao discurso, que organiza o entendimento
entre os homens e assim salva a comunidade humana, resulta, da parte
da atitude da violência pura, uma hostilidade aberta em relação às exi-
gências da vida coletiva que prescrevem as regras consideradas válidas
por todos os homens. A violência pura rejeita o princípio da universali-
dade, ela desdenha a afirmação de igualdade entre as comunidades hu-

5. G. Kirscher, Figures de la violence et de la modernité, Lille, Presses Universi-


taires de Lille, 1992, 148.

199
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

manas e entre os indivíduos. Para ela, a sobrevivência de uma classe de


homens autoriza a destruição do resto da humanidade. A destruição, o
aniquilamento, são os modelos privilegiados de intervenção da violên-
cia pura na vida coletiva.
Por conseguinte, diante da violência pura a razão está condenada à
resistência. Ela deve se proteger e salvar sua própria possibilidade. Essa re-
sistência compromete ao mesmo tempo o destino da filosofia e o da co-
munidade humana. A atitude da violência pura impõe à filosofia interro-
gar-se sobre seu próprio sentido, a um só tempo seu sentido para a exis-
tência humana e sua implicação para a edificação da vida coletiva. Em
outras palavras, o confronto com a violência pura leva a filosofia a se
compreender como um compromisso pelo sentido. Contra a não senso
da violência pura a razão se erige em guardiã do sentido, ao se compro-
meter pelo sentido, ela defende sua própria sobrevivência.
Essa é a significação verdadeira da oposição entre a razão e a violência
sobre a qual insiste a obra de Weil. À primeira vista, poder-se-ia pensar
que essa oposição deixa a razão e a violência em uma relação de mútua
indiferença. Razão e violência ocupariam duas esferas separadas que são
convocadas a jamais se reunir. Essa impressão encontra sua justificação
em certas expressões do texto weiliano tais como “a boa consciência do
filósofo” ou mesmo “a escolha primeira entre discurso e violência”. Mas
a violência pura ameaça a razão de destruição. Ela não a considera com
indiferença, mas a trata como adversária e mesmo como inimiga. A ra-
zão frente a violência está condenada a defender-se.
A elaboração do sistema da filosofia participa desse projeto de apoiar
a razão contra a violência. O sistema da filosofia conduz o indivíduo fi-
lósofo a se convencer da supremacia da razão em relação à violência. No
desenvolvimento do sistema da filosofia a razão é impelida a descobrir a
violência para melhor se opor a ela. A supremacia da razão consiste em
que ela se mostra capaz de olhar a violência de frente, de lhe dar a palavra
para escutá-la e em seguida afastar-se dela com conhecimento de causa. A
supremacia reconhecida da razão sobre a violência não poderia, entretan-
to, levar o filósofo a subestimar a ameaça da violência. Porque a violência
não se encontra em seres distintos dos homens aos quais basta preparar-
se para se opor. A violência permanece uma possibilidade humana, uma

200
10. O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil

tentação que está presente no homem, em todo homem. O próprio filó-


sofo está exposto ao risco de não se manter fiel à razão. Ele é capaz de não
levar o desenvolvimento do sistema da filosofia até o fim e de não seguir
as implicações éticas e políticas da exigência da razão.

***

Para encerrar, é importante ressaltar que após a Lógica da filosofia, Eric


Weil escreveu uma Filosofia política e uma Filosofia moral. Essas duas obras
tratam essencialmente de explicitar as implicações da fidelidade à razão
para as relações entre os indivíduos e entre os grupos cuja união forma
uma comunidade humana. O compromisso pela razão contra a violência
na filosofia se prolonga na formulação de uma visão da organização da
vida coletiva e das relações entre os indivíduos. Para além das implicações
políticas, diante das quais o indivíduo filósofo não tem o direito de recuar,
tal como ilustra a vida do indivíduo Weil que se engajou no exército fran-
cês para combater o inimigo nazista, o compromisso contra a violência
determina um combate do filósofo consigo mesmo para permanecer fiel a
razão. Esse combate cujo resultado não é conhecido de antemão é a fonte
do “medo do homem filósofo”, que é claramente reconhecido por Weil no
fim da primeira parte da introdução à Lógica da filosofia. O compromisso
designa uma promessa a ser mantida primeiro consigo mesmo antes de
se opor à ameaça que espreita do exterior. A oposição entre razão e vio-
lência não escapa a essa regra que rege todo compromisso.

Tradução do francês de Daniel Benevides Soares e


Goldembergh Souza Brito
Revisão técnica de Marcelo Perine

201
11. Mal radical e violência

Daniel Benevides Soares1

O evento do mal é tratado como violência no pensamento de Weil. Para


ele, o problema da violência é a força motriz da filosofia2. “Ela tanto
o é que frequentemente os filósofos esquecem que é com a violência que
eles lidam. É verdade que a filosofia não o esquece ou, para não falar por
metáforas, que todo discurso filosófico mostra que quem o formulou foi
impelido pelo problema da violência”3. Nesse contexto, o mal em Weil não
é decorrente de uma culpa originária, um evento primeiro que inaugurou
a moral4; é sob a perspectiva moral que Weil pensa o problema do mal.
Mesmo os chamados males naturais não deixam de ser pensados por Weil
em um contexto da moralidade, pois o campo daquilo que é considera-
do mal ou violento na natureza só aparece na perspectiva de um registro
humano, de modo que é apenas aos olhos do homem que algo aparece

1. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará (UFC), Brasil.


2. Cf. P. Canivez, Weil. Paris, Les Belles Lettres, 1999, 38.
3. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. Lara C. de Malimpensa, rev. téc. M. Perine, São
Paulo, É Realizações, 2012, 90. Doravante Lf.
4. “Nenhum assassinato primitivo explica a moral; sem moral, não haveria qualquer
diferença entre a morte do pai assassinado por seus filhos e a morte do pai estraçalhado
por um urso: simplesmente não haveria assassinato”. Cf. E. Weil, Filosofia moral, trad. M.
Perine, São Paulo, É Realizações, 2011, 22. Doravante Fm.

203
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

como organizado ou absurdo5. Pensar o ser humano fora do espaço mo-


ral seria pensá-lo como um ser dominado por seus atos e necessidades,
totalmente determinado, seus atos sendo tão previsíveis e destituídos de
sentido quanto às forças naturais. É apenas do ponto de vista da razão
que aparece o questionamento sobre a violência. Nossa proposta é tra-
balhar o mal radical weiliano como uma forma específica da violência,
proposta para a qual uma chave de leitura encontra-se na definição do
homem como animal razoável. Trata-se, nesse caso, do mal dito radical
porque identificado como inextirpável do ser humano.
A violência, a recusa da razão e do sentido, se dá de formas plurais,
de modo que tal recusa apresenta níveis diferenciados6. Fora do registro
humano, dissemos, não é possível falar de uma preocupação com o sen-
tido; a violência só é pensada como tal pelo seu outro e é por ser razoável
que o homem pode pôr o problema do evento e da escolha da violência.
“Quanto ao que seria violento num mundo não informado pela razão, ele
não teria nenhuma consciência da sua escolha: ele seria um animal” (Fm
58). Dito isso, Weil distingue uma dupla acepção de violência: interior
e exterior. A violência interior é própria da constituição subjetiva e das
volições da personalidade do homem, violência que o aflige de dentro.
Já a violência exterior é aquela do reino puramente objetivo da natureza,
ameaça que o fustiga de fora: “O mundo da moral é o mundo dos ho-
mens, seres finitos, necessitados, passionais, razoáveis porque expostos
à violência exterior da natureza e da necessidade, à violência interior do
caráter, do temperamento, do arbítrio individual”. (Fm 184)
A violência interior caracteriza o movimento das paixões que agem
dentro do homem, as inclinações que seguem apenas a parcela não ra-
zoável do seu ser. Distinta da violência exterior verifica-se no homem,
portanto, a presença de uma violência que o homem sofre de si mesmo,

5. Os animais podem ser violentos como os leões ou organizados como as formigas,


mas só são violentos ou organizados aos olhos do homem: eles não se opõem nem se or-
ganizam em vista de criar alguma coisa. Só o homem conhece e designa a violência, o
absurdo, o sem sentido. Para a fera, atirar-se sobre a sua presa não é insensato nem vio-
lento, assim como não é insensato nem violento não poder viver fora do formigueiro. A
esse respeito ver: M. Perine, Eric Weil e a compreensão do nosso tempo. Ética, Política, Fi-
losofia, São Paulo, Loyola, 2004, 150.
6. Cf. M. C. Soares, O filósofo e o político segundo Éric Weil, 2ª ed., São Paulo, Loyola,
2015, 26.

204
11. Mal radical e violência

da parte do seu ser empírico. Essa paixão é diferente daquela violência


que ele pode sofrer dos demais homens7, muito embora enquanto sofre
com sua paixão, o indivíduo seja plenamente capaz de movido por ela,
levar violência para o seu próximo. “O homem, o próprio filósofo, escolhe
conforme a razão e submete-se ao que é, mas sabe que os movimentos
das paixões a que está submetido vencem malgrado seu e o levam a fazer
o que desaprova no momento em que o realiza” (Lf 49). Essa passagem
possui um especial valor para nosso objetivo. Nela trata-se de saber o que
caracteriza essa derrocada do homem — mesmo o mais razoável deles e
ainda que apenas por instantes — para essas paixões que o levam a fazer
o que desaprova no momento em que o realiza, como se não estivesse no
domínio de si, como se esse domínio fosse momentaneamente assumido
por um conteúdo sub-reptício, como se esse homem estivesse por ins-
tantes cego para as ordens da razão.
Weil adverte quanto a um dado que permanece sempre: o indivíduo
pode se emancipar da violência exterior até um certo ponto, mas não é
possível emancipar-se da sua própria condição.

A paixão não terá ganhado terreno dentro dele, insidiosamente? Não terá
ele sido minado do interior antes de se encontrar face a face com a violência
exterior? Assim como os outros temem o que lhe acontece do exterior, não
deve ele temer o que o ameaça do interior? Estará ele alguma vez razoavel-
mente seguro de sua razão? (Lf 35)

A violência interior, sob a influência da qual o indivíduo não está


nunca certo de agir, é o que o impulsiona à realização de um ato não ra-
zoável oposto ao esforço dirigido a realização de uma conduta não vio-
lenta, ou seja, razoavelmente coerente. A violência segue sempre como
a insegurança da razão.
A pluralidade de formas da violência não se esgota, contudo, entre
violência interior e exterior8. É possível ainda falar de uma violência na-
tural, aquela do ser vivo e da sua agressividade de presa e predador; de
uma violência passional, aquela dos desejos e atos livres bem como de uma

7. Cf. M. Perine, Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, op. cit., 47.
8. Cf. P. Canivez, Weil, Paris, Les Belles Lettres, 1999, 38 e ver também R. Caillois, 1984,
La violence pure est-elle démoniaque?, Actualité d’Eric Weil, Paris, Beauchesne, 1984, 214.

205
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

violência pela violência, ou violência pura, que compreende a transgres-


são consciente da lei moral.
Baseado no que vimos, entender o mal radical como um tipo espe-
cífico de violência passaria primeiramente por enquadrá-lo como uma
forma de violência interior, específica do ser humano, cuja raiz se encon-
tra na violência natural que o homem herda da sua contraparte animal.
Entretanto, se não nos esquecermos do concurso de outras modalidades
de violência, como a violência passional e a violência social ou política,
surge a pergunta sobre o que, especificamente, separa o mal radical de
outras formas, como a violência pura. É importante saber o que repre-
senta esse ‘acesso de paixão’ e o que o diferencia do ‘tédio’ para o qual
apenas a violência oferece uma distração.
O homem não é inteiramente razão e isso implica em uma parcela
sua que é violência. Essa parcela que persiste sempre é a violência natural
herdada pelo violento animal humano. Contudo, assim como ele não é
completamente razão, ele também não é totalmente natureza. O homem
é ser determinado, mas enquanto ser livre, seu devir não é puramente
natural9. Integrando a ordem de uma violência natural, encontram-se
os instintos e necessidades, as paixões do ser finito (Fm 19). Por sua vez,
o sentido das ações desse homem natural só aparece em nível moral, ou
seja, para o homem que não é pura natureza.

Ora, aquele que constrói a ciência do homem natural é ao mesmo tempo


homem natural e homem, não natural, que o pensa: o ser violento que é o
homem se compreende a si mesmo e, pelo fato de se compreender — é pre-
ciso acrescentar: a partir do momento em que o faz —, ele deixa de ser pura
violência, puro ser-aí empírico e apenas constatável. (Fm 20)

A definição do homem natural, portanto, aparece para o homem


que se distingue do primeiro não no sentido zoológico, mas no sentido
moral. O homem natural não possui atitudes moralmente reprováveis
ou louváveis, ele é compreensível apenas no domínio já instalado do ser
moral que deixou o âmbito da pura existência empírica e que por isso
pode compreendê-la. No âmbito da existência natural pura não é possível
refletir e elaborar um discurso sobre o mal, simplesmente porque não

9. Cf. M. C. Soares, O filósofo e o político segundo Eric Weil, op. cit., 20-21.

206
11. Mal radical e violência

haveria má ação moral. É de uma perspectiva moral que cumpre analisar


o problema do mal porque é situado nessa perspectiva que o elemen-
to natural persistente no homem é negado para que se torne possível a
constituição de um sentido. No nível da pura naturalidade o mal radical
sequer apareceria como um problema. “A natureza do homem, animal de
um lado, capaz de razão de outro, permanece o que ela é, e não haveria
nem moral nem problema moral se fosse diferente”. (Fm 60)
A parcela animal do ser humano, embora seja um dado importante
para compreendermos o evento do mal radical, não é, contudo, um dado
suficiente, posto que a reflexão moral se dá em um nível diferenciado da
pura necessidade natural, onde só existe determinação e não faz sentido
falar de liberdade.

A existência do ser moral tem seu fundamento natural nessa natureza dos
naturalistas, mas não é a partir dela que o problema da moral será compre-
endido, como não é dela que ele nasce, embora ele nasça em seu seio, nem a
ela que ele poderá ser reduzido: o homem moral (o homem que pretende ser
moral) sabe que é animal, mas animal cuja animalidade, que tenta sempre
negá-lo na sua moralidade, é negada por ele mesmo em favor da positividade
de um sentido humano de sua existência animal. (Fm 41)

O ser natural é dotado apenas de desejos, já o ser razoável é dotado


de uma vontade, na qual se unem liberdade e razão. A vontade equivale
ao que constitui no homem conteúdos da ordem da razão. No contexto
da filosofia moral de Weil, a vontade faz a oposição ao desejo; e é do em-
bate entre ambas que resulta o evento do mal radical. O desejo, situado
no âmbito do animal, não pode ser livre, a liberdade é um fato apenas
para aquele que se sabe livre, para o ser razoável. Só o ser razoável pos-
sui vontade. Ao ser puramente empírico é dado apenas manifestar seu
desejo. É bem verdade que ele é capaz de modificar o meio, de exercer a
negatividade, entretanto ele permanece incapaz de negar essa negativida-
de. É do escopo da razão operar essa dupla atividade negadora, o desejo
permanecendo confinado ao nível da determinação:

O desejo não é livre e não pode sê-lo, a vontade não pode não sê-lo: é ela que se
opõe a toda condição, é por ela, como razão-vontade, que existem condições,
dados, fatos, é ela que os descobre, os tira da simples possibilidade que lhes é

207
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

própria enquanto considerados, abstratamente, mergulhados na totalidade


indeterminada do que é acessível ao homem, e os descobre ao pôr livremente
sua questão, ao exigir livremente a coerência das respostas. (Fm 62)

Se o mal radical pode ser entendido como uma forma passional de


violência, ele representa também a emergência da contraparte a — ra­
zoável do homem, mantendo relação com a violência natural. Nesse caso,
fica uma pergunta sobre como se daria a permanência de uma violência
natural, que é uma abstração tornada compreensível apenas pelo mun-
do moral e razoável do homem, em um ser que é parcialmente razão. A
parcela razoável do ser que também é finito, natureza, condicionado, faz
com que essa violência não seja imediatamente natural, pois ela coexiste
com um outro, no homem. Essa violência a partir do momento que sofre
uma mediação da linguagem, se cristaliza em um discurso e, por isso,
não se trata mais de uma violência imediatamente natural; ela é violência
que fala do ponto de vista da razão10. É a presença da parcela razoável do
ser humano, que faz com que a violência do mal radical não seja pura
violência natural e permite com que apareça como um sedimento crista-
lizado no discurso aquilo que, do contrário, é pura abstração: o aspecto
puramente natural do homem. Devido a sua ação mediadora, podemos
então tratar do dado natural do homem. É possível, portanto, falar de
uma progressão da ideia de violência, partindo de um dado comum ao
mundo animal como um todo até o domínio propriamente humano11.
Devido a essa progressão, o concurso da violência da parcela animal do
homem forma a violência típica do ser humano
É por conta desse sedimento da parcela natural que a liberdade não
pode constituir-se de um para-si, impossibilitando um conhecimento
de si. Essa liberdade não aparece no instante em que a violência do mal
radical acontece, ou seja, quando ela se dá enquanto evento. Essa liber-
dade só aparecerá posteriormente, no tratamento do mal como conceito,
sendo importante, portanto, distinguir entre o evento do mal radical em
si e o tratamento desse evento. No âmbito empírico, da existência não
reflexiva, a liberdade não é pensada enquanto tal.

10. Cf. E. Costeski, Atitude, violência e Estado mundial democrático. Sobre a filosofia
de Eric Weil. São Leopoldo-Fortaleza, Editora Unisinos-Edições UFC, 2009, 192.
11. Cf. P. Gilbert, 2009, Violence et compassion. Essai sur l’authenticité d’être, Paris,
Cerf, 2009, 63.

208
11. Mal radical e violência

É possível que a razão seja suprimida pela violência, de modo que


afirmar que o homem é animal razoável não é falar de um fato remata-
do, mas de uma aspiração, porque o homem não é inteiramente razão, a
sua animalidade persiste12. Mesmo o homem bem-educado e instruído,
suficientemente eximido da luta com a natureza exterior, não se encon-
tra irrevogavelmente fora do alcance do mal, pois não lhe é dado mutilar
uma parcela do seu ser. A compreensão da particularidade não salva o
homem dos seus acidentes. Embora não seja privado da razão, pode-se
facilmente verificar por muitos exemplos na história que o homem não
é inteiramente razão no campo da sua ação particular. Não obstante, en-
quanto um dos específicos do homem — e nunca é demais recordar que
o outro é a violência — a razão é possuída em uma infinidade de graus.
Importante também é frisar que em certas circunstâncias, em determi-
nados momentos, a razão pode não o caracterizar13.
A insegurança da razão consiste nessa possibilidade sempre presente
de se cair no absurdo da violência14. É nesse instante de insegurança em
que o sentimento de si reivindica seu acesso sobre o homem, obscure-
cendo a razão, cegando a liberdade, que se dá o mal radical, mal porque
violência, radical porque radicado na parcela finita do ser que também é
razoável. “Os impulsos agentes, ocultos à reflexão moral, são do domínio
do que não é universal, têm sua origem no mal radical: o princípio mo-
ral é aplicado ao outro desse princípio, a uma matéria que ele não pode
compreender, muito menos produzir”15.
O mal radical é a violência no nível da vida moral, no qual o proble-
ma da moral ainda não aparece16, e que se distingue do nível da reflexão
sobre a moral. Na simples vida moral, a liberdade não aparece, por isso o
indivíduo não tem consciência de transgredir livremente a lei moral, essa
transgressão só irá se tornar nítida para aquele que, consciente da razão,
opta pela violência: isso só será possível, quando se trata da violência que é
rejeição da razão. Apontamos que mesmo a conquista de certa autonomia

12. Cf. M. Perine, Eric Weil e a compreensão do nosso tempo, op. cit., 148-149.
13. Cf. M. C. Soares, O filósofo e o político segundo Eric Weil, op. cit., 19.
14. Cf. E, Costeski, Atitude, violência e Estado mundial democrático, op. cit., 126.
15. Cf. E. Weil: Filosofia política, trad. M Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola,
2011, 27.
16. Fm 232.

209
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

frente a batalha com a violência exterior não põe o indivíduo totalmente


ao abrigo do evento do mal, dos acidentes da sua particularidade empíri-
ca; mesmo cercado de divertimento, ele não está eximido de praticar uma
ação má. Semelhante ação marca uma diferença em relação ao tédio para
o qual a violência aparece como distração. Se para Pascal as ocupações
com as quais o homem se desvia da reflexão sobre sua condição e que são
divertimento, ocupações essas que o livrando do tédio o fazem esquecer os
seus elementos constitutivos inconvenientes17, para Weil o tédio é aquilo
de que se busca escapar recorrendo livremente à violência.
A consciência da liberdade aparece como essencial para a distinção
do mal radical de outras formas de violência. No domínio do particular
a liberdade não é pensada, ela é sentida. A liberdade apresentada atra-
vés de um discurso razoável é, para o particular, abstrata. Apenas para
um discurso coerente a liberdade será compreensão, somente ali ela é
liberdade compreendida cuja realização dilui o particular no universal.
No campo da particularidade, por sua vez, o que interessa a liberdade é
vivenciá-la e não que ela se saiba liberdade. Se aqui abre-se espaço para a
violência, esta não é convidada pelo sujeito, ela abre espaço por meio da
paixão obstinada, cujo acesso cega momentaneamente a liberdade. Em
alguns outros momentos nos quais o que interessa ao indivíduo é apenas
a realização do sentimento particular, a razão pode não o caracterizar18,
em tais momentos, entretanto, a recusa da razão é livre.
Assim sendo, como o mal radical é uma luta que o homem trava no
campo da moral e no contexto da liberdade entre as parcelas finita e razoável
que compõem o ser moral, o resultado não é conhecido de imediato, ele é
violência que o homem enfrenta sem ter certeza que irá ser sempre bem-
sucedido19. O homem é entendido como situado entre uma violência exte-
rior, da natureza, e interior, sitiado pela violência da condição e do dado e a
violência das paixões, ambas as quais ele pode, em determinadas situações
superar, mas de cuja ameaça não pode, em definitivo, desvencilhar-se:

Nem sábio, portanto, nem santo, mas alguém que busca, trabalha, luta, livre
no âmbito do necessário, inserido num mundo que ele não criou, com uma

17. Cf. B. Pascal, Pensamentos, São Paulo, Abril Cultural, 1973, 79.
18. Cf. M. C. Soares, O filósofo e o político segundo Eric Weil, op. cit., 19.
19. Lf 73.

210
11. Mal radical e violência

constituição de todas as suas faculdades não escolhida por ele, negando a


violência da natureza que o circunda e da natureza que compõe o seu ser em
toda a extensão em que ele pode observá-la e sobre ela falar positivamente,
eis o que é o homem. (Lf 74)

A violência presente no ser do homem é a violência da paixão irredu-


tível que pode conquistar ascendência sobre o homem e que se distingue
da afirmação do sentimento de si que transgride voluntariamente a lei
moral. Embora a segunda seja uma violência pela violência, a primeira,
por sua vez, não deixa de ser ela própria um estado de violência.

Ora, um assassinato não é menos assassinato porque o assassino matou num


acesso de paixão, porque as condições de sua existência eram deploráveis,
ou porque uma vida muito fácil o mergulhou num tédio tão grande que só
a violência ‘desinteressada’ podia lhe oferecer uma distração. (Fm 268)

É nesse ponto que podemos traçar aquilo que constitui o específico do


mal radical: sua violência não é aquela da recusa da razão com conheci-
mento de causa, dada após o pleno conhecimento da razão. O homem da
violência pura conheceu a razão, foi apresentado ao universal, ao sensato
e ao sentido, mas decidiu recusá-los, tomando a predileção pela violên-
cia, depois de saber o que é a razão. O mal radical representa o acesso da
paixão obscurecendo a razão. A recusa da violência motivada pelo tédio
tem sua raiz no sentimento de si, cujo interesse único é a afirmação dessa
particularidade. Entretanto, se no mal radical a liberdade não é reconhe-
cida enquanto para-si, a violência que responde ao tédio ocorre devido
a constatação da insuficiência dessa liberdade pelo sentimento que, não
obstante, a reconhece. É possível que a razão seja conhecida pelo homem
e que a liberdade se compreenda enquanto tal. Esse homem pode mesmo
saber dos perigos da obstinação não razoável, mas mesmo assim, ainda
querer a violência. “Ele pensou, ele possui a ciência, ele sabe o que é a
negatividade, conhece a particularidade e sua obstinação não razoável,
e ele se pretende obstinado e não razoável”. (Lf 488)
O indivíduo pode recusar um contentamento razoável, por sentir-se
enganado pela razão, pois para ele, a felicidade via contentamento razoá-
vel não cumpre sua promessa. Ele se toma como imerso em um logro e
diante de tal perspectiva ele se precipita no irracional da violência, pois

211
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

não tem nada melhor para fazer, de modo que só lhe resta a afirmação
de sua particularidade no mundo.

Ele sabe, agora, o que quer falar, e que todo raciocínio desemboca na Razão,
ele sabe que já não tem nada a perguntar se quiser ser absurdo, sabe estar
satisfeito quando se trata de saber e de ciência, sabe que o Pensamento é a
própria honestidade, e sente que foi enganado e é infeliz. (Lf 491-492)

A razão só é admitida para esse homem porque não tem importância


alguma. Para o homem imerso no tédio, a recusa da razão não constitui
uma declaração de falsidade ou de inadmissibilidade quanto a ela. Ele é
capaz de se valer do discurso, de se servir da ciência, mas, não obstante,
ele constata que ainda se sente vazio e que, dessa perspectiva, a razão se
lhe afigura inútil.20 O homem que sente tédio no contentamento razoável é
essencialmente violento e essencialmente só. Muito embora essa violência
possa ser efetivada por meio de pequenos grupos, o que está em jogo aqui
é a manifestação arbitrária da particularidade desse homem.

A satisfação de direito não o ressarce do tédio de fato […]. O discurso não


tem sentido para o particular que não pode viver com ele. A ciência absoluta é
perfeita, mas ela é ciência e versa sobre os homens, não ciência para o homem,
e este não a aceita nem rejeita, visto que ela não diz respeito a ele, ele que dela
desvia os olhos para se ocupar de si mesmo. (Lf 497, grifo do autor)

Para o homem do tédio, a obstinação do sentimento de si é reconhe-


cida e a liberdade tem consciência do seu papel, embora ela simplesmente
não seja considerada um dado importante: ela apenas serve a afirmação
do sentimento particular, não apaziguado na razão. No evento do mal
radical a liberdade não aparece para si mesma, ela está cega. O sentimen-
to particular, empírico, não tem qualquer mediação, ele é manifestação
da parcela finita do homem. No decorrer do evento do mal radical não
existe questão sobre o que fazer com a razão, pois o pôr de uma questão
já se caracteriza como uma atividade que exige algo da razão; para a vio-

20. “O discurso é absolutamente coerente, e o discurso coerente é a razão e o Ser;


mas ele é destituído de interesse, ele não diz respeito ao homem, do qual pode muito bem
falar, mas ao qual não oferece nada que ele já não tenha; ele o confirma em sua posse, o
que talvez seja muito bom, mas é também perfeitamente inútil, visto que o homem se
separou do discurso”. (Lf 497)

212
11. Mal radical e violência

lência do tédio a única questão que importa é o que fazer com toda essa
razão. O problema do sentido só aparece para aquele que se desobrigou
do problema da necessidade, do reino da total violência exterior; livre da
necessidade o homem se encontra diante de outra obrigação: o que fazer
com sua liberdade e universalidade, já que a razão por si só não redunda
na felicidade, de modo que pode acontecer a violência do tédio satisfeitas
as necessidades naturais, imediatas, e o homem, nesse sentido, satisfeito,
percebe-se ainda incompleto, vazio. “A liberdade, que, filosoficamente fa-
lando, é o primeiro fundamento da moral e da humanidade do homem,
mostra-se então sob as espécies do vazio e do insensato, como questão que
pergunta o que o homem pode e deve fazer da sua vida”. (Fm 274)
A violência do mal radical, por sua vez, é representativa daquela possi-
bilidade primeira que ainda não viu o florescimento do seu outro, a razão,
e que permanece radicada de maneira indelével na constituição do homem.
Esse mal preocupa porque permanece sempre inextirpavelmente radicado
no homem “Não somente os outros, mas também ele mesmo leva em si o
poder do mal, mesmo que este não passe, agora, ao ato” (Fm 38). Dizer que
o homem é livre significa dizer que ele é finito e razoável. Essa liberdade
que, em um movimento originário, pré-razoável, permite ao homem optar
pela razão, também deixa sempre como possibilidade aberta o retorno ao
outro da razão: a violência. No evento do mal radical não se dá conta da
liberdade, porque ela só se percebe na razão, de modo que ela se situa em
um sentido não-cronológico, anteriormente à razão. Como o homem é
razoável, entretanto também finito, ela segue sempre passível de ser atua-
lizada, porque ela é a violência realizada pela parcela não-racional do ho-
mem, o animal que vive em si, obstinado, irredutível. A opção pela razão
não anula esse constituinte humano radical. A paixão, as inclinações são
imediaticidade pertencente a parcela finita do homem, e como a liberdade
só se sabe liberdade com a razão, aquilo que ocorre à sua revelia pertence
à inseparável herança animal que o homem carrega, de modo que o ato
livre permanece oculto enquanto tal, no momento em que o sentimento
emerge e ganha a batalha com sua contraparte que é razão.
Nos aproximamos da conclusão com algumas considerações que vi-
sam ilustrar porque não há descanso para o ser moral. A violência, além
de ser a possibilidade humana que é realizada primeiro, segue sempre

213
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

enquanto uma possibilidade. O homem vive irrevogavelmente no mundo


empírico e a liberdade não pode ser plenamente conhecida, pois ainda
que seja parcialmente razão, o homem não o é inteiramente, em todos os
momentos. O mal quando ocorre enquanto evento torna manifesta uma
violência que conserva ainda e re-atualiza aquele momento do qual o ho-
mem saiu por uma decisão livre, mas para o qual pode sempre retornar.
É a violência da parcela finita do ser que é finito e razoável, do animal,
a paixão, o sentimento particular não-universalizado, que permanece
irredutivelmente obstinado. Tal obstinação é possível devido à própria
constituição do sujeito moral que, se é razoável, e também sempre fini-
to, ou seja, violência. Como a violência permanece outro irredutível da
razão, a particularidade segue irredutível e sempre obstinada.
É nesse registro que se torna possível vislumbrar a permanência do
sentimento de si como algo que segue obstinadamente irredutível à ra-
zão. A violência segue acompanhando o homem, que não é razão, apenas
razoável, de modo que ele pode, a todo instante, recorrer à violência, cair
na violência. Com o evento do mal radical tomamos consciência que a
opção pela razão não é absoluta, é uma atualização constante, e o mal
radical é a marca de um instante, o entreato dos momentos nos quais o
homem escolhe a razão ou deliberadamente a rejeita.

214
12. Educação, razão e violência
em Eric Weil

Aparecido de Assis1

Introdução

A s sociedades modernas do mundo contemporâneo sofreram e vêm


sofrendo inúmeras transformações: uma dessas transformações diz
respeito ao que se convencionou chamar de globalização. Assim, temos a
globalização da economia; a globalização da informatização e, em larga
escala, a globalização da violência. Vivemos num momento sublime da
história da humanidade, cheio de mudanças, em alguns aspectos para
melhor e noutros aspectos para o pior. Talvez o grave problema que ainda
assola a humanidade como um todo seja o problema da violência.
Em termos de globalização, voltada para a violência, esta tende a ser
banalizada, correndo sérios riscos de se tornar um costume rotineiro, sem
muita importância. É devido a esse risco de uma banalização da violência
que Eric Weil propõe uma Filosofia da não-violência e contrária à vio-
lência. No entanto, o próprio filósofo entendeu que a violência sempre se
apresenta ao homem como a outra possibilidade que é contrária à razão.
Essa parece ser uma característica cada vez mais comum nas sociedades
modernas contemporâneas. Em meio a tudo isso, há uma supervaloriza-

1. Universidade Estadual do Mato Grosso (UNEMAT), Brasil.

215
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ção do econômico, situado acima dos valores humanitários. Burgio, em


suas considerações sobre a sociedade moderna assinala o seguinte:

Nascida como ‘comunidade do trabalho […] em vista de uma luta progres-


siva com a natureza exterior’, a sociedade moderna celebra o triunfo da ra-
zão econômica e tende a reconhecer somente os valores da máxima eficácia
produtiva e do cálculo racional2.

Para Burgio, a sociedade moderna nasceu sob o signo de uma socie-


dade voltada para o trabalho que tende a reconhecer apenas os valores
econômicos. Reconhece-se assim, que a dimensão ética dos valores hu-
manitários tem sofrido um desgaste quanto à sua eficácia para o ser hu-
mano tanto no plano individual quanto no plano coletivo social. Com
isso, não se pretende aqui analisar de maneira profunda e exaustiva os
problemas que envolvem os valores econômicos em detrimento dos va-
lores humanos. Tem-se apenas a pretensão de expor, num contexto mais
amplo, sobre um dos problemas que envolvem a nossa sociedade atual,
que é o problema da violência negativa que destrói o verdadeiro sentido
de humanidade do ser humano.
Inicialmente, levantamos o seguinte questionamento: o que Eric Weil
tem a ver com os problemas do nosso tempo? Nas leituras das obras de Weil
fica evidente, em primeiro lugar, que ele como filósofo já havia constatado
as mudanças no mundo após as duas guerras mundiais. Em segundo lugar,
Weil procurou desenvolver uma filosofia diferente da filosofia tradicio-
nal de sua época, que estava muito presa a especulações filosóficas mera-
mente metafísicas. A filosofia weiliana inaugura uma maneira diferente
de reflexão filosófica, que procura unir o pensamento e a ação, quando
da formulação das categorias-atitudes de sua obra Lógica da filosofia. Em
terceiro lugar, como bem mostra a categoria da ação, que o fim da Filoso-
fia consiste em passar do pensamento à ação. Com isso fica evidente que
Weil no conjunto de suas três grandes obras: Lógica da filosofia, Filosofia
moral e Filosofia política primou pela unidade entre Filosofia, Educação,
Moral e Política. Esse é o grande mérito atribuído à Weil e que tem muito
a contribuir com o nosso mundo atual.

2. A. Burgio, Do discurso à violência: com Hegel, depois de Hegel, Síntese Nova


Fase, 46 (1989) 41.

216
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

Não é exagero afirmar que o eixo central de todo o sistema filosófico


de Eric Weil se concentra em um problema que talvez não seja o único,
mas central, o problema da violência. Weil entende que a filosofia é aque-
la que procura na razão o verdadeiro sentido para o homem, contrária à
violência. Pode-se dizer que em Weil a violência possui duas características
distintas: a da violência negativa, que consiste na violência pura, absoluta-
mente contrária à razão e a da violência positiva, diferente da violência no
seu sentido puro, que é a violência em favor da humanidade e dignidade
do ser humano. Burgio considera que existe a violência legítima e a vio-
lência ilegítima, assim diz ele:

A violência é ilegítima quando as pretensões que a motivam não são gerais (ou
generalizáveis). Ao contrário, é justificável qualquer forma de violência que se
fundamente em razões universais: a que reage à violação de razões universais;
é justificável a violência que se opõe ao que nega a humanidade do homem,
a violência de quem reage a uma violência que o nega como homem3.

Tomamos como pressuposto de violência negativa a que Burgio chama


de violência ilegítima. E do mesmo modo, chamamos de violência positiva
ao que Burgio chama de justificação da violência que se opõe à negação
da humanidade do homem.
Como e por que o tema educação participa dessa reflexão entre razão
e violência? Em primeiro lugar consideremos uma afirmação de Eric Weil,
de que “a educação é a domesticação do animal no homem”4. O que isso
significa? Significa que o homem em sua natureza animal segue seus capri-
chos, suas paixões, centrado na sua individualidade não razoável, do não-
sentido, com tendências à violência negativa. Por isso, o homem necessita
de uma educação, “cujo fim último é fazer do educando um educador, de
si mesmo tanto quanto de todos os que têm necessidade de educação”5.
Ou seja, no fundo, o homem precisa se educar para aprender a ter domí-
nio sobre os instintos de sua natureza animal, para dar lugar ao governo
da humanidade em sua própria pessoa.

3. A. Burgio, op. cit., 38.


4. E. Weil, Filosofia moral, trad. M. Perine. São Paulo, É Realizações, 2011, 62.
5. Ibid., 62.

217
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Aqui se pretende refletir sobre o tema “Educação, razão e violência”,


tendo como enfoque o problema da “violência pura” ou, segundo de-
nominamos, violência negativa, definida por Callois em seu artigo “La
violence pure est-elle le démoniaque?”. Será mostrado em forma de aná-
lise que Weil considera a “violência pura” totalmente contrária à razão e
à filosofia. Pretende-se com isso justificar a importância de Weil como
um filósofo preocupado com o nosso tempo, que procurou despertar no
homem a importância de ele optar por uma vida sensata e razoável, se
distanciando da violência e dos males que daí advém.

I. A razão contra a violência

Antes de iniciarmos a nossa reflexão, vale destacar aqui alguns ques-


tionamentos fundamentais: De que tipo de violência Weil fala? Em que
sentido na acepção weiliana a violência faz parte da vida do homem
na mesma medida que a razão? Como a educação sustentada por Weil
pode contribuir para o fortalecimento da não-violência no meio social
em que vivemos?
De início, a violência pode ser entendida como tudo o que contri-
bui para desumanizar o homem. Weil sentiu na pele o que isso significa
para o homem e para a sociedade. Ele sobreviveu aos horrores das duas
guerras mundiais e também do regime totalitário nazista6 na Alemanha.
Numa situação como a do nazismo, a perseguição aos judeus e os cam-
pos de concentração ascenderam uma violência desprovida de qualquer
sentido de humanidade7. E Weil não só sentiu isso na pele por ser judeu,

6. O nazismo é caracterizado como um regime político fundado por Adolf Hitler,


este que governou a Alemanha de 1933-1945. O nazismo foi denominado por muitos es-
pecialistas como um regime totalitário. Este tipo de regime político é constituído quando
o Estado possui o total controle de uma única pessoa, facção ou classe, em que não se re-
conhece limite à sua autoridade. Sobre o nazismo e o totalitarismo. Cf. H. Arendt, Ori-
gens do totalitarismo, trad. R. Raposo, São Paulo, Companhia das Letras, 1989, 339-531. E.
Hobsbawm, A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991), São Paulo, Companhia das
Letras, 1995, 113-143. A. Spindel, O que são ditaduras?, São Paulo, Brasiliense, 1980.
7. Callois faz uma importante comparação dos regimes totalitários ao que ele cha-
ma de “violência pura”. Segundo esse autor, “a reflexão da filosofia sobre sua origem e sua
destinação como não-violência e sobre a violência pura como contra-filosofia não teria

218
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

mas também pôde ver o quanto a violência praticada pelos nazistas foi
injusta e desumana.
De um lado, havia a figura de Hitler, típica de um homem que fez sua
opção pela violência no pior sentido da palavra. De outro lado, encon-
trava-se Weil, de sangue judeu, o filósofo que, ao ler Mein Kampf (de Adolf
Hitler), optou por não apoiar o nazismo e lutar contra a violência pura. Em
poucas palavras, foi isso que motivou Weil a perceber o quanto é possível
seguir uma vida sensata e razoável contra a violência praticada pelos na-
zistas que desconsiderava completamente a humanidade do homem.
Constata-se, assim, que a filosofia de Eric Weil teve como subsídio
o momento histórico em que ele viveu. A atitude violenta contra o ser
humano (como foi o caso dos nazistas contra os judeus nos campos de
concentração), tornou-se uma categoria importante para a análise e a
compreensão da própria realidade histórica do homem. Portanto, é ne-
cessário entender que em Weil há uma dimensão dialética quando se
trata de “filosofia e violência”. Assim, os dois termos são compreendidos
numa relação dialética, em que um se opõe ao outro, mas que também
não deixa de ter um ponto de encontro.
Para entendermos essa relação entre esses dois termos, recorremos aos
tipos de violência que Callois apresenta em seu artigo “La violence pure
est-elle le démoniaque?”. Para Callois, é preciso distinguir três estados de
violência: primeiro, a violência natural, que consiste na agressividade es-
pontânea, um procurando destruir o outro num ataque de raiva. Segun-
do, a violência passional, que ocorre quando os indivíduos movidos pelos
seus desejos, crenças (morais e religiosas) e o uso de suas liberdades indi-
viduais, desobedecem às regras de sua comunidade. Terceiro, a violência
pela violência, que consiste na transgressão consciente da lei moral, do
universal e da razão. Callois acrescenta, nesse terceiro estado de violência,
a barbárie voluntária que é a destruição da alma humana8.
Os três estados de violência estão muito presentes na filosofia de Eric
Weil. No entanto, o terceiro, também chamado de “violência pura”, é o mais
contemplado pela Logique de la philosophie. Segundo Callois, a violência é

sido possível sem a experiência do terror totalitário…”. R. Callois, La violence pure est-
elle le démoniaque?, Actualité d’Éric Weil, Paris, Beauchesne, 1982, 213.
8. Ibid., 214.

219
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

pura “porque absurda, escolha do não-sentido e do contra sentido”9. A


“violência pura” tem a sua compreensão na categoria da Obra10. Nessa ca-
tegoria, a atitude do homem é de violência pura, na qual reina a barbárie
e a inversão de valores. O exemplo de tal atitude extremamente violenta
foram os regimes totalitários, que seguiram os mesmos caminhos do na-
zismo e do fascismo. Mas convém lembrar que a “violência pura” também
ocorre nas sociedades mais democráticas.
A História tem mostrado isso em diversos lugares, povos e nações. Bas-
ta ver os casos de guerras entre nações para se constatar o predomínio da
“violência pura”. O que mais chamou a atenção de Weil no uso da “violên-
cia pura” é a total desumanização do ser humano. Para Callois, “a violência
pura não é um tipo ideal sociológico, mas a ideia platônica da violência
humana, ou seja, a violência mais desumana do homem, ou antes, a ideia
reguladora da história cultural da violência co-extensiva da razão”11.
É importante destacar que a violência em si mesma é negativa em sua
recusa pela razão. No entanto, ela pode assumir um lado positivo em dois
momentos: No primeiro, a violência é positiva quando se observa nos
acontecimentos da história da humanidade, as mudanças e transforma-
ções sociais que ocorreram posteriores a uma guerra ou a uma revolução
qualquer. No segundo momento, a violência é positiva quando é usada
como meio de combate a tudo aquilo que desumaniza o homem ou fere
os direitos de qualquer cidadão ser o que é, ou seja, ser humano. Esses dois
pontos de vistas da violência têm a ver com o entendimento entre história
e política. Weil diz que “a violência foi e ainda é a causa motora da história,
e, ao mesmo tempo, a consciência política procura progredir com a elimi-
nação da violência, eliminação que é sua causa final […]”12.
Esses dois entendimentos se unem na compreensão da violência po-
sitiva entre a história e a política, em que, no fim, o que se procura é a eli-
minação da violência em todas as suas manifestações. Não é permitida a
revolta violenta, porque ela, na maioria dos casos, pode atingir o mesmo

9. Ibid.
10. A categoria da Obra é desenvolvida no capítulo XIV da Lógica da filosofia, trad.
L. C. de Malimpensa, São Paulo, É Realizações, 2012, 487-519. Doravante Lf.
11. Cf. R. Callois, op. cit., 214.
12. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed. revista, São Paulo, Loyola, 2011,
232-233. Doravante Fp.

220
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

nível do não-sentido da “violência pura”. A violência positiva, como meio


de combate à violência negativa, é aquela constituída por meio do discurso
contra à desvalorização ou negação da humanidade do homem.
A filosofia procura sustentar um discurso coerente, que pode ter o
caráter de um discurso violento e universal contra a violência negativa
e particular. Com isso, a filosofia suprime o individual, conservando-o
apenas sob a forma discursiva, não como individual, mas como individu-
alidade. Os homens que se centram mais no seu lado individual e não no
universal, entram em conflito consigo mesmos, divididos entre seus de-
sejos opostos, suas opiniões contraditórias, suas crenças inconciliáveis.
Para Weil o indivíduo sempre permanece na violência e na desrazão
como uma das raízes de seu ser, talvez mesmo na raiz de seu ser indivi-
dual, e sempre o indivíduo permanece exposto à violência e à desrazão13.
O indivíduo tendo optado pela razão e pelo discurso coerente da filosofia
fez sua escolha pelo universal, pela não-violência.
Weil não vê o indivíduo humano como objeto, mas como sujeito do
discurso, que se fixa em sua atitude de ser finito vivendo num mundo
finito, ser condicionado num mundo condicionado. Esse mesmo indiví-
duo não tem a posse do discurso para si, de forma absolutista, mas pelo
discurso ele procura compreender a si mesmo e o sentido do próprio
sentido do discurso.
A princípio, o problema da violência em Weil pode conter em si um
paradoxo. De um lado, tem-se a compreensão de que o discurso coerente
se coloca contra a violência e o seu fim é o estabelecimento da não-violên-
cia no homem e na sociedade. De outro lado, o próprio discurso coerente
usa a violência como meio de combate à violência. Como isso é possível?
O conceito de violência apresentado na Lógica da filosofia leva em conta
toda recusa que se faz à razão. Na ausência da razão, ou na sua recusa, há
o domínio da violência. Mas qual violência? Aquela que destrói toda a ca-
pacidade do homem de se manifestar no mundo como ser humano.
Com isso, fica claro que a violência negativa sustentada por Eric Weil
é aquela que desumaniza o homem, e esta precisa ser combatida pela
violência positiva do discurso coerente. Portanto, compreendemos que

13. E. Weil, Philosophie et réalité II, Paris, Beauchesne, 2003, 63.

221
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

em Weil o discurso coerente torna-se um discurso violento contra toda


forma de desumanização do próprio homem. Nesse sentido, “o homem
formula o seu discurso na violência contra a violência, no finito contra
o finito, no tempo contra o tempo” (Lf 105).

II. O papel educativo do


filósofo contra a violência

O filósofo, na acepção weiliana, é aquele que quer compreender os


problemas do homem e do mundo. “Ele quer compreender a fonte e a
origem das dificuldades do nosso mundo na sua unidade estruturada, a
fim de ajudá-lo a tomar consciência do problema que nele simplesmen-
te está presente” (Fp 130). O filósofo não está alheio ao mundo, ao con-
trário, ele quer compreender os problemas deste mundo e apresentar os
possíveis caminhos para superá-los. Pela história da filosofia, o filósofo
descobriu que chegou à filosofia guiado pela tradição de seus mestres14.
Com isso, o filósofo se deu conta de que o seu papel não consiste em ape-
nas pensar, mas principalmente educar os homens. Diz Weil:

Daí resulta que o filósofo, que começou vendo a necessidade de fazer-se


educador e, em vista disso, compreender o mundo no qual quer exercer
a sua atividade de educador, encontra-se agora obrigado a pensar a ação
razoável, pela qual e na qual esse mundo poderá alcançar a perfeição. Não
lhe compete dirigir o mundo, assumir o seu comando e governá-lo; porém,
pensando a ação concreta e universal e o universal na forma da ação con-
creta, ele poderá ajudar os responsáveis pela ação a tomarem consciência
do que fazem e do sentido que tem ou pode ter o que chama pressão das
circunstâncias. (Fp 162)

Como educador, o filósofo se compreende e é compreendido como


um homem de ação. Porém a sua ação não é a mesma do homem co-
mum. O homem comum age independente das explicações do filósofo.
Nisso consiste a diferença da ação não razoável, que não exige nenhuma
análise razoável sobre a atitude da ação. E é a ação razoável que exige a

14. Cf. E. Weil, Filosofia política, 162.

222
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

reflexão, ou a análise crítica tanto sobre a atitude do homem quanto sua


maneira de pensar sobre tal atitude. A ação do filósofo é razoável, porque
ele é o porta-voz do bom senso.
A razão, instrumento do filósofo, é o remédio universal e eficaz na
mudança de direção, na luta contra o descontentamento em favor do
contentamento. Para Weil, a razão se desenvolve no homem libertando-o
de si mesmo, de sua natureza animal, onde não há lugar para o conten-
tamento razoável. Assim, dominando o descontentamento, dominando
seu ser natural, o homem será livre e contente15.
O objetivo do filósofo não é travar um combate contra o homem
comum. Pelo contrário, ele pretende convencer o homem comum a
aceitar a razão como opção contra a violência. Mas primeiro, o homem
comum necessita ver a violência como um problema, visto que ele pode
se acomodar em sua atitude violenta e recusar totalmente a razão. No
seu cotidiano, o homem comum percebe, em seu mundo empírico, que
ele vive no mundo do trabalho, e que suas preocupações se dirigem ex-
clusivamente aos afazeres do seu negócio, do seu lazer etc. Ele procura
não dar importância ao que o filósofo diz.
Entretanto, o filósofo sabe que tem razão e porque tem razão e o que
é ter razão. Isso o homem comum não sabe. Mas o filósofo não tem a
posse da verdade de maneira absoluta. Ele apenas “nega o discurso pelo
discurso, a negatividade pela negatividade, o que equivale a dizer que
deve haver um tema de seu discurso, uma matéria que possa devorar sua
negatividade de filósofo” (Lf 26).
No fundo, com base nessa reflexão, percebe-se que o homem comum
quer sustentar o seu comodismo para permanecer no egoísmo, na desra-
zão e na violência. Para esse homem, a busca pela razão e pelo sentido do
mundo torna-se algo distante e sem muita importância. No entanto, o pró-
prio homem comum entra em conflito consigo mesmo quando se mostra
descontente com ele mesmo e com o mundo. Pela via do discurso, o filósofo
chama a atenção do homem comum, mostra a ele o quanto a filosofia é
importante para a sua vida. Importante, porque a filosofia propõe ao ho-
mem comum uma transformação de sua forma de pensar sobre si mesmo
e sobre as coisas do mundo e sobre sua atitude diante da sociedade.

15. Cf. Lf 22 s.

223
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Para Weil, o filósofo é o homem da reflexão sobre a própria vida do


homem comum. Isto é, o filósofo é o homem da reflexão sobre o homem
em sua condição, em sua vida de trabalho, de dificuldades e de lazer. Esse
homem da vida comum se depara com uma realidade de seu próprio
descontentamento e sente que ele precisa do filósofo que lhe conduza
pelo caminho do ser razoável e do contentamento.
Diz Weil que “o filósofo queria ser filósofo, porque ele queria que o
termo razão tivesse um sentido, porque havia optado e não havia esco-
lhido a vida do dia-a-dia” (Lf 28). Isso significa que os filósofos histori-
camente definiram muito bem o que é a razão16, mas a colocaram dis-
tante da vida do homem. Weil afirma que a vida diária “se põe a afastar
o filósofo e a sua razão, e tranquilamente e sem remorso algum ela tira
proveito do trabalho do filósofo”. (Lf 28)
A filosofia deve ir além da pura e simples comodidade de satisfazer
aos interesses e necessidades do homem como bem fazem as ciências par-
ticulares. Isso deve explicar por que muitos demonstram pouco interesse
pela filosofia. Se, na sua formação pedagógica, o homem se interessa mais
pela aquisição do conhecimento, o que Weil chama de “instrução”17 dei-
xando de se preocupar com a sua formação moral e humana, a filosofia
não o satisfaz e não lhe interessa.
O que o filósofo propõe ao homem comum lhe aborrece. Este não aceita
o contentamento proposto pelo filósofo. O homem comum prefere

Não ser contente, mas viver e sentir-se viver, na satisfação e no fracasso,


na alegria e na tristeza, eis a sua felicidade, a única que ele conhece, a única

16. Essa crítica de Weil se volta a todo tipo de filosofia que se ocupava em apenas
definir o “Ser”, em definir a essência do “Ser” e dos “Entes” das coisas e do mundo, da
forma como faziam a metafísica e a ontologia. Mas a sua crítica não apresenta uma aver-
são total a essas ciências, mesmo porque elas apresentam importantes valores na busca
pela verdade que também é o grande marco da filosofia weiliana. A sua crítica se coloca
a todo momento em que a filosofia, no uso de sua abstração, procura se distanciar da
vida prática do homem, ou seja, do seu cotidiano. Nota-se que a Lógica da filosofia, a
Filosofia política e a Filosofia moral procuram estabelecer uma relação dialética entre o
pensamento e a ação e entre a reflexão e a vida prática do homem. O pensamento wei-
liano, portanto, constitui-se num esforço constante de unir filosofia com a política e
com a vida moral do homem.
17. E. Weil, L’éducation en tant que problème de notre temps, Philosophie et réalité.
Derniers essais et conférences, Paris, Beauchesne, 1982, 297-309.

224
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

que ele quer; testar sua força, seja quando vence todas as resistências, seja
quando suporta corajosamente a adversidade, eis a única dignidade do
homem. (Lf 30)

Para Eric Weil, “o homem escolhe livremente a razão, livremente — por-


tanto, sem razão. A escolha da razão não é uma escolha não razoável (pois
o razoável e o não razoável se opõem no interior dos limites da razão), mas
uma escolha a-razoável ou, num sentido distinto do temporal, pré-razoável”
(Lf 32). Isso significa que a escolha da razão é para o homem uma escolha
livre. O filósofo optou livremente pela razão, e ele passou a compreender
que a razão “é reflexão, mas não reflexão da forma como pensa o homem
da vida comum. Ela é a reflexão da realidade do homem real”18.
Essa diferença da reflexão do filósofo e do homem comum tem a ver
com a diferença entre o discurso coerente, que é o do filósofo e o discur-
so violento do homem comum que recusa a razão. Assim, o homem co-
mum até reflete, mas sua reflexão não possui os argumentos científicos,
sistemáticos e rigorosos. Na realidade, a reflexão filosófica tem a ver com
o discurso coerente. Já o homem comum é aquele que não quer refletir,
ele recusa radicalmente tudo o que exige dele qualquer reflexão. E isso o
torna mais frágil, com maior facilidade de ser violento.
De certo modo, não cabe ao filósofo se esconder da realidade e nem
mesmo fechar os olhos para tal realidade. É na sua constatação da exis-
tência do desejo ilegítimo do homem que o filósofo passa a compreender
que a filosofia é necessária no combate à violência. É no reconhecimento
do desejo ilegítimo do homem pela violência contra a razão que o filó-
sofo usa do discurso razoável para contrapor à violência.
De acordo com Weil, o filósofo teme o avanço da violência nas relações
humanas. Esse é o grande risco para o mundo moderno, com o aumento do
individualismo e da desvalorização do sentido humanitário. Esse temor
do filósofo faz dele alguém que está preocupado com as consequências
destrutivas da violência e que, com isso, procura um meio seguro de pos-
síveis soluções. E esse meio seguro é a razão. Assim, o filósofo teme pelo
aumento da violência na sociedade moderna, e tudo o que ele faz, diz e
pensa está destinado a eliminar ou acalmar esse temor19.

18. E. Weil, Philosophie et réalité, 13.


19. Cf. Lf 34 ss.

225
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O filósofo quer que, no mundo dos homens, a paixão e a violência


não tenham prioridade. Ele deseja que o caráter dos homens seja forma-
do e transformado para que o indivíduo não seja possuído pela paixão,
do individual, mas pela razão, da universalidade razoável. Para Weil, a
transformação do homem e da sociedade deve acontecer pela via da
educação e da moral.
As suas obras Filosofia moral e Filosofia política estabelecem esse encon-
tro entre a moral e a política, entre a consciência moral e a ação concreta do
homem. Nesse sentido, é a educação que possibilita fazer essa ponte entre
a moral e a política, entre o indivíduo e sua comunidade. Pela educação, o
homem passa a se compreender como indivíduo humano, que tem valor
como ser humano e que não vive sozinho, mas em comunidade.
O filósofo se dá conta de que ele tem uma missão a cumprir neste
mundo, e que essa missão visa acima de tudo a sua luta pela supressão
da violência. Para que isso seja possível, ele precisa se tornar educador,
para conscientizar os homens sobre o potencial que eles possuem em si
mesmos, capaz de vencer todas as barreiras que os impedem de se verem
como seres pertencentes à humanidade.
O filósofo quer que cada homem tenha a capacidade de ser educador
de si mesmo e consiga ter forças para dominar suas paixões. Portanto,
pensa Weil, quando, enfim, todos os homens quiserem apenas ser con-
tentes, quando ninguém mais procurar a sua satisfação pessoal, satisfação
de sua individualidade particular, quando todos se conscientizarem e ti-
verem segurança de que sofrem de suas paixões, somente assim o filósofo
poderá viver sem temor20 da violência pura e gratuita.
O filósofo, como ser natural, não é diferente dos outros homens. A
única diferença é que ele “enquanto educador quer compreender a socie-
dade, quer captá-la tal como ela se autocompreende” (Fp 77). Assim, como
qualquer homem, ele tem suas necessidades, seus desejos, sua vida e seus
sentimentos. Há, porém, um dado importante a considerar: o filósofo é
aquele que optou pela razão. Somente pela razão é que o homem terá con-
dições de vencer o mal radical e a violência que o mundo contém.
Se o filósofo é aquele que optou pela razão, ele tem como missão cons-
cientizar os homens para que façam o mesmo. No entanto, o homem da

20. Ibid.

226
12. Educação, razão e violência em Eric Weil

vida comum não se interessa pelo discurso coerente do filósofo. É, nesse


sentido, que a filosofia deve procurar os mecanismos de aproximação do
homem comum. E tal mecanismo é a própria educação.
Weil deixa claro que não é de qualquer educação que trata a Filoso-
fia política. Observa-se que as teses 15 a 19, que falam sobre a educação,
encontram-se na primeira parte cujo título é “A Moral”. Por quais motivos
essas teses se encontram na seção sobre a moral? Simplesmente, porque Weil
procurou, como Kant, conceber uma educação do ponto de vista moral.
Para Weil, a educação tem como fim a moralização do homem vivendo em
sociedade. Nessa compreensão, a educação é vista como um meio de mo-
ralização e de humanização do homem que vive numa comunidade.
A educação deve estar centrada no homem. Ela deve ter como base
de formação o ser humano inserido numa comunidade. A educação pre-
cisa trabalhar o indivíduo na perspectiva de socialização, de convivência
com os demais. Ela não só leva em conta os desejos históricos da comu-
nidade, mas mantêm vivos esses desejos21 e deve ter a importante tarefa
de conduzir o indivíduo à razão e ao universal razoável.

Considerações finais

Realmente, pode-se afirmar que Eric Weil foi um filósofo que se preo-
cupou com os problemas do nosso tempo. Isso faz com que o seu pensa-
mento sobreviva nos nossos dias atuais. As suas reflexões trazem à tona
o grande problema da violência, que foi marcante no nazismo, mas que
sobrevive em diversos contextos do mundo contemporâneo. Weil deixou
claro que a filosofia é partidária da razão contra a violência pura, nega-
tiva e desumana.
Para Weil a violência pura é negativa no sentido de negar a huma-
nidade do homem no próprio homem. Weil previa a existência de uma
violência positiva, mas que fosse concebida pela via do discurso razoável
contra a violência negativa e contra o vislumbre do não-sentido. No fundo,
apesar de a razão apelar pela violência positiva contra a violência negativa,
o objetivo do filósofo é que no mundo reine a não-violência.

21. Cf. Fp 106.

227
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Para o empreendimento de um projeto que possibilite um mundo


mais humano e menos violento, Weil propõe que o filósofo seja acima de
tudo educador. O filósofo educador não terá o papel de instruir e muito
menos de apontar qual a receita certa para a eliminação dos problemas
de seu educando e do mundo como um todo. O filósofo educador é o
homem do discurso coerente, e o seu papel consiste em convencer os
homens a optarem pelo seu discurso seguindo o plano da razoabilida-
de. Nesse sentido, o filósofo procura mostrar que cada homem primei-
ramente seja educador de si mesmo.
Essa propositura de Weil do homem como educador de si mesmo
está muito presente em sua obra Filosofia política. A luta do homem deve
ser uma luta contra si mesmo, contra sua natureza, contra suas paixões,
contra seus desejos ilegítimos, e tudo isso só é possível pela via da edu-
cação. Percebe-se, portanto, que Weil procura ligar a filosofia com a po-
lítica e com a moral. A compreensão humana passa por esse tripé basilar
entre a filosofia, a política e a moral. E a síntese desses três elementos
fundamentais é a educação.
O conjunto de suas três principais obras como Lógica da filosofia, Filoso-
fia política e Filosofia moral, acena para esse ponto de chegada que também é
o ponto de partida, a saber, a educação. Com isso encerramos nossa reflexão,
chegando a uma conclusão bem salutar de que Weil teve um enorme apreço
pela educação, apesar de não ter deixado nenhum tratado específico sobre
educação. O seu pensamento filosófico deixa muito claro nas três obras cita-
das o seu projeto educativo. Continua ainda hoje como um grande desafio a
todos nós lutar por uma educação que tenha como bandeira a humanidade
do homem, contra todo e qualquer tipo de violência. E porque não reafir-
marmos junto com Weil por uma educação em favor da humanidade e da
dignidade do ser humano? Essa deve ser a nossa bandeira por uma educa-
ção razoável contra a violência negativa desumanizadora.

228
13. As atitudes niilistas em questão:
a recusa do Absoluto

Marly Carvalho Soares1

Introdução

O cenário atual tanto em nível mundial como local nos apresenta uma
realidade marcada por um desenvolvimento cientifico, tecnológico,
cibernético tão acentuado que já se pode falar de um novo paradigma
tecnológico, que mudou o mundo das coisas, como também o significado
das coisas e das pessoas. A relação do homem com a tecnologia encontra-
se no momento num desequilíbrio que padece tanto o homem como a
natureza. Chega-se assim ao máximo de uma satisfação produzida pela
técnica e pela ciência. Mas por outro lado, esse avanço técnico não foi
suficiente para mudar certas atitudes humanas no campo do fazer e do
agir. Vive-se num mundo mergulhado em infinitas crises e dilemas éti-
cos que vão diminuindo o desejo e a sabedoria do homem em busca do
verdadeiro contentamento, lançando-o em um estado de descrença, in-
diferença e de um vazio existencial.
Esse avanço tecnológico e o descontentamento do homem no mundo
problemático de hoje nos move a buscar novas reflexões e orientações no
pensamento, na ação e na linguagem. Pois na história e na filosofia o agir

1. Universidade Estadual do Ceará (UECE), Brasil.

229
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

humano sempre foi alvo de questionamentos em todas as suas modalida-


des, seja no seu ser, como no seu fazer, no seu falar e no seu pensar.
A presente reflexão objetiva explicitar o significado, a estrutura, o
procedimento metodológico e o posicionamento técnico e ético das
categorias-atitudes da ordem do agir, enquanto categorias da revolta,
acentuando a violência programada das categorias-atitudes da Obra e do
Finito, ambas em recusa a categoria do Absoluto, que parece se constituir
a partir do pensamento de Hegel na sua intenção de reconciliar a vida
com a razão, assim como a vida que rejeita o pensamento reflexivo.
Tal objetivo fundamenta-se no pensamento de Weil que já antecede
na sua reflexão esse mal-estar hodierno filosoficamente elaborado nos
capítulos XIV e XV da Lógica da filosofia, nos discursos da Obra e do
Finito2. Essas categorias constituem o horizonte da desconstrução dos
valores da tradição e, consequentemente, a sua destruição.
Seu interesse não é apenas interpretativo, mas sistemático. Elabora um
novo quadro teórico, cujo sentido é mostrar a recusa ao Absoluto. Aqui
já emerge a reflexão do pensamento existencialista com seu quadro teó-
rico e prático mediado pelo conceito do niilismo. A pergunta que se põe
é: em que sentido essas categorias podem estruturar um todo que tenha
como projeto construir uma vida antidiscursiva? Como se dá essa relação
entre o pensamento (filosofia) e o sentimento (violência)? Como a razão
pode superar sua contestação radical? Aqui emerge a reflexão weiliana
com o intuito de apresentar o novo que libera a filosofia (razão) para
outros discursos e outros fazeres. Estes discursos e fazeres constituem o
novo paradigma do agir, que se desenha nas categorias denominadas da
Obra, do Finito e da Ação em oposição ao discurso absolutamente coe-
rente, ilustrado pelo pensamento hegeliano.
A presente reflexão se fundamenta em duas ideias principais. A pri-
meira é a rejeição da categoria-atitude do Absoluto pela Obra, cuja refle-
xão se dá a partir do pensamento de Nietzsche e, a segunda é a rejeição
da Obra pela categoria do Finito, que tem como ilustração a filosofia de
Heidegger alicerçada na categoria da Condição, compreendendo assim
três partes: (I) compreensão da categoria da Condição como terreno

2. Cf. Weil, E., Lógica da filosofia, trad. Lara C. de Malimpensa, rev. téc. M. Perine,
São Paulo, É Realizações, 2012. Doravante Lf.

230
13. As atitudes niilistas em questão

propício à categoria da Obra; (II) significado e estrutura da categoria da


Obra como rejeição ao Absoluto; (III) finalmente a categoria do Finito
como limite da categoria da Obra e retorno para si. Todas representando
o universo da violência.

I. A Condição como o campo e a


linguagem preparatórios à violência:
a sociedade do trabalho

A fé deixa o homem na liberdade sem um conteúdo determinado por sua


liberdade. Ela aparece então ao homem na vida como uma fuga diante da
realidade dessa vida — que é a condição. (Lf 286)

A categoria da Condição (Lf 286-231327) aparece ao lado das categorias


Consciência, Inteligência e Personalidade, que têm como objetivo dominar
a natureza tanto na exterioridade como na interioridade do ser humano no
seu conhecer e no seu pensar. Em síntese seria o domínio da natureza pela
subjetividade que constitui a centralidade da filosofia moderna3.
O conteúdo da liberdade do homem na categoria Deus (Lf 249-286)
está todo do lado do divino: o que lhe importa é acolher o plano de Deus,
embora desconhecido ao nível do entendimento. Por outro lado, esta ati-
tude pode ser facilmente superada pela insatisfação que o homem sente
diante de uma liberdade sem conteúdo concreto.
O homem que perde a fé encontra-se numa vida determinada não mais
por um ser transcendente, mas por uma série de elementos de ordem na-
tural e social, que Weil indica como a atitude-categoria da Condição, cor-
respondendo a uma mentalidade iluminista e positivista do mundo. “Ser a
imagem de Deus já não significa nada quando se trata da vida” (Lf 288). A
relação de um eu finito à transcendência é substituída por uma estrutura
de interdependência de termos finitos e relativos, vale dizer uma relação
utilitária, de condição a condição. Existem somente condições e cada con-
dição é de novo condicionada. Tudo passa a ter uma visão e uma função
diferente, por exemplo, a visão do cosmo e a teoria da verdade.

3. Remeto ao meu livro, onde já analisei a categoria da Condição: M. C. Soares,


O filósofo e o político segundo Éric Weil, 2ª ed., São Paulo, Loyola, 2015.

231
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Como resultado desta nova estrutura funcional, todas as coisas fixas


e imutáveis passam a ser vistas dentro deste modelo. Estes elementos ad-
quirem significados totalmente diferentes em relação à tradição, uma vez
que a tradição, as ciências e os códigos são postos sob julgamentos.
Qual será então a atitude deste novo homem em relação à vida, ao
trabalho, ao outro, à linguagem? Em relação à vida esta é o que ela é —
dispensando qualquer juízo moral: “nem boa, nem má, nem verdadeira,
nem falsa, nem mesmo real ou irreal” (Lf 290). O homem apenas instala-
se naquilo que é. Ele não cria nada, o seu esforço é transformar o que
existe em conformidade com seu âmbito próprio. Tudo passa a ser em
função do homem. O mundo é então a sua casa.
Daí se deduz que a única realidade desta vida é o trabalho, não como
realização do homem, mas como o fazer técnico, anulando assim toda re-
flexão que não vise o progresso do trabalho: “Toda reflexão é supérflua se
não serve ao progresso do trabalho, toda filosofia que busca apenas a com-
preensão é absurda (Lf 90 s.). Por detrás de toda essa realidade, comanda
um único objetivo: a luta contra a natureza. O homem se transforma no
inimigo da natureza, no sentido de usar todas as suas energias para dominá-
la: tanto a natureza própria de seu ser, como a natureza exterior.
Esta é a única condição do homem, felicidade e salvação são de uma
ordem transcendente e isto não lhes compete mais, passando a serem in-
compreensíveis e sem sentido. Todo sentido passa a ser definido somen-
te por esta vida utilitária, o que significa dizer que o que está fora desta
condição não se põe nem mesma a questão se tem sentido, uma vez que
o sentido não tem mais sentido4.
A linguagem, mediadora de descobertas de coisas e significações,
passa a ser unívoca, reduzindo-se à linguagem da ciência. Não interessa
falar de si ou conhecer alguém, a não ser dentro das séries de condições.
Existe o número da peça do mecanismo integral, todos são vistos como
objetos à espera de sua função: ser para si significa ser para a ciência e ser
para ciência significa ser apenas um instrumento, podendo a toda hora
ser substituído por outro de maior eficiência e utilidade.

4. A respeito da compreensão do Sentido no seu significado e modalidades veja a


análise de Clodovis Boff, que inclusive apresenta propostas atuais ao Sentido. C. Boff, O
Livro do Sentido, Crise e busca de sentido hoje, São Paulo, Paulus, 2014.

232
13. As atitudes niilistas em questão

O homem sempre lutou contra a natureza desde os tempos primiti-


vos, mas só agora ele luta consciente da sua função e do seu novo mundo.
Além do mais, não se pode negar que o homem é identificado pelo traba-
lho, “o ser que muda as condições e que afirma sua identidade na e pela
transformação” (Lf 292), o que o torna totalmente diferente do animal,
cujo mundo é pronto e determinado.
A natureza é o campo ilimitado do homem — o que permite que este
se ligue apenas a um fragmento da natureza — que passa a ser o todo para
ele, no qual exerce o seu bem, que é transformação. O bem agora não é algo
sagrado, mas algo transformável. Esse bem para ser conhecido, exige um
método diferente, que é a experiência. É preciso que a ciência seja experi-
mentada e a teoria passa a ser um conhecimento de ações e reações naturais
em face da ação humana: não se trata mais de compreender, nem de criar
uma imagem, trata-se da possibilidade do agir, pelo conhecimento das leis
que os fenômenos seguem e não a lei divina como fazem os crentes.
A filosofia nesse quadro torna-se uma metodologia e a única teoria pura
é a matemática, cujo procedimento é o da medida: “Somente a medida é
comunicável e permite a constituição de uma experiência que não é válida
apenas para X ou Y, mas para o homem e — o que agora dá no mesmo —
para a natureza” (Lf 298). A matemática mede tudo e tudo é reduzido à me-
dida porque tudo pode ser um fator natural. A natureza torna-se o campo
do possível. Parte de uma medida para chegar a outra medida. O impossível
é caracterizado pelo fato de a intervenção não produzir a medida desejada.
O milagre é impossível, porque esta força não poderia ser transformada
em função, eliminando assim a possibilidade do real: “o que se vê, se ouve,
se sente, tudo isso não é real; a realidade é a lei” (Lf 300).
O homem torna-se também um fator natural, isto é, um objeto de ex-
periência, fomentando assim o aparecimento da psicologia que tem como
objetivo analisar o homem para poder utilizá-lo. Para isso ele precisa ter
um comportamento e uma vida normal com todos os reflexos sadios. O
homem é apenas objeto; o verdadeiro sujeito é a ciência. Assim acontece
também com as outras ciências como a História e a Moral.
Esse quadro um pouco pessimista do homem na categoria da Con-
dição tem as suas vantagens: a reflexão não se faz mais a partir de um ser
exterior como na categoria Deus. Essa aparente perda faz com que o ho-

233
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

mem progrida mais para algo de fora, mas para retornar sobre si e sobre
toda a realidade.
A partir desta nova identidade as posturas e as palavras das atitudes
anteriores assumem conotações diferentes, perdendo seus valores originais.
A Certeza passa a ser evidência. O evidente, o experimentável é o campo
da ciência. Tudo passa pelo nível do visível e do relativo, perdendo assim
seu caráter de absoluto. Os termos mudam de sentido, uma vez que só são
conservados por sua função. “As palavras têm um sentido, assim como o
objeto tem uma realidade, ambos relativos à condição” (Lf 293). Por con-
seguinte, a linguagem torna-se a transmissão do pensamento técnico.
Portanto o homem na atitude da Condição é dividido. Como indi-
víduo, ele permanece no anonimato, mudo — porém o homem-espécie
pensa todas as coisas: “o pensamento técnico pensa as condições, não pode
nem quer pensar a condição, porque o próprio pensamento é condiciona-
do” (Lf 295). Pois o homem trabalhando, conhecendo, filosofando, nunca
é diferente por essência dos objetos de sua atividade. Ele não é para si, mas
qualquer coisa, um fator natural na rede dos fatores naturais. A finitude
neste sentido não reenvia mais ao infinito, mas adquire a capacidade e os
meios de prosseguir seu trabalho, de se perpetuar a si mesmo.

A sociedade ideal será então a sociedade do mercado industrial, onde todo


o valor repousa sobre o trabalho e se expressa, exatamente mesurado, em
dinheiro. […] o indivíduo vale o que possui, e a pobreza é prova da inca-
pacidade de um sujeito que serve no máximo para a ser empregado como
instrumento de produção. (Lf 310)

Doravante a educação e a política convergem para o mesmo fim: ins-


tituir o regime de mercado, de maneira que todos os indivíduos e nações
devam participar à técnica e contribuir para o progresso. A política da
Condição é aquela liberal: propriedade privada como fator de progresso,
mercado industrial, riqueza, expressão de capacidade de trabalho.
A arte na Condição assume duas funções: como divertimento e como
representação, ou melhor, levar a sociedade tal como é ao palco. Apesar de o
homem viver voltado para o trabalho e para o progresso, ainda não se sente
exclusivamente absorvido por uma máquina porque, para si mesmo, ele
ainda não é um fator calculável. Existem ainda outras dimensões no seu ser
que escapam a essa situação, pois ainda não estão instalados totalmente na

234
13. As atitudes niilistas em questão

atitude moderna. Eles querem trabalhar e levar a vida a sério, mas também
querem se divertir. É neste contexto que aparece a função da arte como di-
vertimento: o homem quer um tempo agradável, onde a música e a poesia
têm o seu lugar, sem serem transformados em teses e propagandas.
A arte passa a ser uma necessidade social real. Provinda de épocas pas-
sadas, permanece no mundo moderno com outras conotações. As artes
diferem e têm efeitos e valores específicos, como o caso da música e da
literatura. O que atinge especialmente a música? A música torna-se muitas
vezes excitante ou calmante para o sistema nervoso; como também exerce
uma disciplina pela cadência do seu ritmo. Já a literatura atinge mais a
inteligência e a imaginação passando a ser uma arte instrutiva.
A segunda função da arte, talvez a mais importante, é a de representar a
sociedade tal qual é, mostrando ao público seu mecanismo social, levando
a sério os problemas nobres e injustos do momento presente. Acredito que
neste momento da arte descobre-se o mal que pervarde uma sociedade im-
perfeita, com seus vícios e virtudes, alegrias e sofrimentos. Neste segundo
sentido — que é o do realismo — o escritor é verdadeiramente o mestre
da sociedade. É notável como os filmes e as novelas têm influência sobre
o comportamento da maioria das pessoas e aqui, mais uma vez, está à res-
ponsabilidade de quem assume o papel de representar uma sociedade.
Esta representação interessa a todos, exceto àqueles que vivem da ciên-
cia ou do trabalho social. Mas infelizmente os meios de comunicação se
deixam influenciar e ser determinados pela elite do consumismo da ex-
ploração em nome do progresso. Por outro lado, o escritor ainda assume
um papel relevante porque satisfaz as áreas que ainda não são prejudi-
cadas pelos efeitos do progresso e da ciência e, ao mesmo tempo, pode
contribuir para a educação.
Nesse universo da categoria da Condição onde o homem desapareceu
na sua individualidade para dar lugar a uma sociedade e a uma nova ciên-
cia, o elemento histórico, por exemplo, a tradição, não importa e não conta.
Tudo é pensado pela sociedade e trabalhado pela matemática, exigindo o
sacrifício total do ser humano. Deus é trocado por uma divindade que não
se satisfaz de sentimentos e intenções e em troca não oferece nada, nem dons
e nem forças. Ao passo que o homem desaparece, sendo encarado como um
elemento natural semelhante a qualquer molécula da água. “O homem é o
que ele faz, e só é na medida em que faz alguma coisa”. (Lf 323)

235
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Como consequência dessa situação o homem pode recuar, fugindo


de um mundo hostil à sua vida interior, à contemplação, à tradição, ao
discernimento, fazendo um retorno nostálgico para as atitudes em que
o homem tinha ainda valor. E aqui aparece o perigo da volta. Em vez de o
homem progredir totalmente, ele regride para antigos preconceitos. Tudo
por culpa de uma sociedade que foi injusta e cega nos seus objetivos. Ele
pode ainda assumir a postura de um sonhador ou de um revoltado, que-
rendo modificar tal sociedade e intervir para realizar as condições que lhe
parecem ideais na sua atitude.
A filosofia também nesta situação se torna uma reflexão sobre os pro-
cedimentos, um método. Mas ainda resta uma saída para a filosofia. A
filosofia tem outra função, cujo futuro é incerto, que é de compreender e
explicar certos epifenômenos aos quais o homem ainda se encontra preso:
questões pessoais, crenças religiosas, convicções metafísicas, sentimentos
nacionais, que precisam ser entendidos, tudo que ainda não foi eliminado
pelo progresso científico. A consciência filosófica procura compreender
um sentido, um valor e insiste em afirmar que o homem tem sentimentos
e que precisam ser satisfeitos na medida do possível.

II. Negação radical do Absoluto: a violência

Com a vida em sua forma sumamente ativa na categoria da Condição


inicia-se um novo projeto na construção da Lógica da filosofia. pelas catego-
rias da Obra e do Finito, construindo o segundo paradigma que tenta, com
conhecimento de causa, superar, ou melhor, selar o primeiro paradigma
elaborado pelo discurso absoluto que eleva tudo a racionalidade.
As atitudes da Obra e do Finito consistem, exatamente, em recusar a
racionalidade constituída e programar outra universalidade, a da violên-
cia, ilustrada pelas raízes históricas filosóficas de Nietzsche e Heidegger
nos conceitos técnicos; “vontade de poder” e “finitude”. Trata-se, portan-
to, de se considerar com base nessa herança duas questões: a primeira
seria construir uma hermenêutica da violência por meio das categorias
da Obra e do Finito, chamada de “categorias da revolta”, e a segunda se-
ria decifrar o que é a violência no pensamento de Weil, cuja figura seria
o fato histórico do nazismo.

236
13. As atitudes niilistas em questão

A violência surge após a categoria do Absoluto, com a recusa da razão.


A violência (o outro) só aparece a partir da recusa do Absoluto, que não é
mais o discurso, mas o agir, a atividade de um indivíduo, de um grupo, de
um Estado, de um mestre, de um partido, de uma técnica, de uma ciência,
de uma sociedade, de uma educação, de uma religião, de um discurso.
Chega-se assim a uma pluralidade de violências — à violência da re-
volta, do desespero, da indiferença, violência natural, violência gratuita,
violência totalitária — formas distintas da recusa consciente da razão,
elaborada com as categorias da Obra e do Finito no plano filosófico e
seus personagens históricos (Nietzsche e Heidegger). Saímos da razão
para confiar na força do sentimento e na intensidade da vida5.
A categoria da Obra representa a primeira modalidade do agir sob a
primazia da técnica. Na tradição, o agir ético-político sempre foi o agir por
excelência do ser humano. Hoje o agir por excelência é o agir tecnológico,
de modo que a tecnociência é vista como a mais alta forma de racionalidade
reinante em nossa época. Passou-se do agir discursivo ao simples fazer.
De início a Obra se apresenta no seu estado de recusa, em discussão
com a categoria do Absoluto, a mais forte herança hegeliana. Em seguida,
introduz-se o termo coerência, reconciliação da razão com a realidade já
no campo da ciência. Discute-se também a nova estrutura formatizada a
partir da Obra, que sofre a recusa da categoria do Finito. Por outro lado,
a Obra continua firme na sua atitude possibilitando assim uma abertura,
cuja finalidade é apresentar uma nova plataforma que tenha como possi-
bilidade superar o discurso absoluto e avançar para o terreno do fazer: “o
homem que ultrapassa a categoria da finitude não retorna simplesmente
ao discurso coerente”. (Lf 555)
O que ocupa o pensamento no contexto da contemporaneidade? Há
oferta de uma variedade de discursos uníssonos e contraditórios, acei-
tos e refutados. Há oferta também de várias satisfações, seja a satisfação
do discurso racional assumido por aqueles que querem percorrer o ca-
minho da reconciliação da racionalidade com o real, cujo percurso foi
feito por Hegel. De maneira oposta, há uma complexidade de ofertas no
espaço contemporâneo em detrimento dessa racionalidade. De modo

5. Cf. R Caillois, La violence pure est-elle le démoniaque?, Actualité d’Éric Weil,


Paris, Beauchesne, 1984, 214.

237
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

que essa tendência em apresentar discursos e ações diferentes constrói o


pensamento e o espaço da atualidade. Daí se confirma a herança e a pre-
sença do discurso hegeliano na encruzilhada de diversos pensamentos,
tais como o pensamento puro, o pensamento científico, o pensamento
existencialista e o pensamento linguístico6.
Weil, na herança de Hegel, se mantém nesse panorama e busca uma
solução que reconcilie tanto o pensamento como a ação. Daí se deduz que,
de um lado, há uma vida em busca da coerência com o real e, de outro,
há uma vida que rejeita esse procedimento reflexivo. A grande aventura
é analisar com argumentos dialéticos esta nova virada do viver humano
seguindo o mesmo procedimento metodológico do autor.
Em linhas gerais podemos configurar numa forma silogística as diver-
sas relações visíveis no todo da Lógica da filosofia, de modo que possamos
configurar o seu todo compreendendo dois paradigmas. O primeiro seria
o paradigma do pensar, e o segundo seria o paradigma do agir na sua es-
trutura do fazer, isto é, da Obra e do Finito. A relação que se nos apresenta
então é a relação conflitante entre o pensar e o fazer.
O homem é liberdade para o discurso e para o silêncio, para a razão e
para a violência. Portanto é um diálogo com diferentes discursos na tenta-
tiva de superá-los e apresentar o “novo”. Qual é o novo? O novo é a recusa
ao diálogo, ao discurso, elaborado pelas categorias da Obra e do Finito,
configurando a violência, que é exatamente a recusa da racionalidade, isto
é, da filosofia. O novo é a pretensão de querer compreender esse outro
diferente tal qual se manifesta. Alguns podem se prender a determinadas
categorias-atitudes que lhes parecem mais coerentes. Todavia, a passagem
mais difícil e interessante seria a passagem da categoria do Absoluto à da
Obra, da Ação e do Sentido, por ser realmente a originalidade do sistema
weiliano na tentativa de superar o sistema de Hegel7.
O campo solidificado pela Condição prepara o terreno para a emer-
gência da segunda modalidade na ordem do agir — a categoria da Obra

6. A influência de Hegel no pensamento contemporâneo é comentada por G. Sang,


Al crocevia della filosofia contemporanea, Roma, PUG, 2012.
7. Uma análise mais detalhada da categoria do Absoluto encontra-se no capítulo
II da minha obra acima citada O filósofo e o político segundo Eric Weil. Ver também M.
Perine, Filosofia e violência. Sentido e intenção da filosofia de Éric Weil, 2ª ed. totalmente
revista, São Paulo, Loyola, 2013.

238
13. As atitudes niilistas em questão

— e fortifica a recusa do Absoluto. Por que a categoria da Obra vem de-


pois da categoria do Absoluto? A posição de cada categoria resulta quase
sempre da compreensão da categoria antecedente, embora Weil considere
que se possa começar o discurso de qualquer ponto de referência, ou seja,
de qualquer categoria.
Esta posição da categoria da Obra abala certos alicerces já fundamenta-
dos em discursos filosóficos passados, como no caso o hegelianismo na sua
defesa do racional, ou seja, do discurso coerente. Além do mais, a categoria
do Absoluto engloba tudo: “o discurso compreende tudo, ele contém tudo,
porque ele é tudo” (Lf 452) — o que torna impossível que outra catego-
ria ou atitude possa segui-la ou discuti-la, fazendo ver o que ela não via e
nem compreendia. De tal maneira que nenhum discurso pode se opor a
ela sem trair sua particularidade e sua abstração. Toda relação passa a ser
então interior ao Absoluto. O processo é fechado: o pensamento é pensa-
mento. O que permanece depois da categoria do Absoluto?
Permanece “o escândalo da razão” (Lf 488), ou seja, a rejeição do pen-
samento. Mas em que sentido o homem pode deixar de pensar? No sentido
que ele pode não querer mais pensar. Entra aqui a vontade determinada
de não querer mais pensar, inclusive consciente de tudo que se refere ao
pensar, o que provoca realmente um absurdo, uma vez que o Absoluto só
admite a dimensão teórica do homem. O homem é pensamento, é discurso
coerente. Além do mais, ele é consciente que no pensamento ele desaparece
totalmente — o que reforça a sua recusa: “Ele não quer pensar, ele quer ser,
não como a personalidade, contra tudo e contra todos, não como a inteli-
gência, separada de tudo e de todos, mas ser tudo e todos” (Ibid.).
De tal sorte que quando ele se pensa, reconhece-se como um verdadeiro
“escândalo” mesmo sem entrar em conflito com o pensamento. Ele quer ser
um novo universal, abrindo assim um novo horizonte que permite a con-
tinuidade, ou melhor, o início de outro processo na Lógica da filosofia.
Partindo do princípio que o Absoluto é irrefutável, sua ultrapassagem
não pode se efetuar no plano do discurso. De que modo se efetivará tal ul-
trapassagem? Também parece evidente que as categorias não seguem um
desenvolvimento imanente. Como se pode dar a continuidade do processo?
A continuidade do discurso da Lógica da filosofia dá-se com a atitude da
Obra que, embora reconhecendo o valor do Absoluto, prefere outro pla-

239
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

no totalmente diferente do percurso já feito. Qual seria então este novo


plano? Ao nível do pensar é impossível, passamos então ao nível efetivo,
isto é, do operar, ou melhor, do fato.

III. O outro do Absoluto: a Obra

Eu sou o criador da obra; é preciso realizar o projeto que eu trago diante


de vós, adiante de vós; é preciso sentir que deveis subordinar-vos a ele com
tudo que tendes e tudo que sois. (Lf 504)

A originalidade da Obra é a introdução da violência no discurso filo-


sófico, justificando, mesmo sem querer ser consciente desta realidade, que
há outra possibilidade de ser e de agir. A violência é que a história começa
só com a categoria da Obra, o que é um absurdo para a categoria do Ab-
soluto. Neste sentido a violência identifica-se com a história.
Acrescenta-se ainda que a originalidade da atitude da Obra8 é também
a violência radical no sentido de um ativismo irracional: a recusa ou indi-
ferença a respeito da compreensão; fazer por fazer, sem verdade e sem uma
justificação racional, porém consciente e querendo esta mesma realidade.
O homem da Obra quer criar um mundo e um discurso sem coerência. Ele
é a pura destruição. O homem da Obra é só, único e se quer incompreen-
sível. Como é comprovada esta experiência? Qual o seu comportamento
em relação ao sentimento, ao mundo, aos outros e à linguagem?
O homem da Obra dirige-se ao puro sentimento e à pura violência.
Cria qualquer coisa sem nenhum respeito aos valores, à liberdade, aos dis-
cursos. Tudo isso é refutado em nome dos fatos. O sentimento não se refere
à vida íntima ou à relação com o outro. O sentimento é o fazer.
Em relação aos outros ele “é essencialmente violento, isto é, no falar
dos outros, imoral, sem gosto, sem fé nem lei, em suma: incompreensível”
(Lf 499). O pior é que esta atitude se quer assim mesmo, dispensando todo
laço de amizade e de comunidade. É inimaginável ver-se ao lado de outro.
Porém o que é mais grave é que essa violência é sempre presente, usando

8. Remeto ao meu comentário in M. C. Soares, op. cit., 124-131. Ver também E.


Costeski, Atitude, violência e Estado mundial democrático. Sobre a filosofia de Eric Weil,
São Leopoldo-Fortaleza, Editora Unisinos-Edições UFC, 2009, 111-113.

240
13. As atitudes niilistas em questão

as mais diversas máscaras, que a dissimulam. Ele jamais se vê e nem fala de


si, contemplando somente a sua obra. É um ser totalmente desconhecido
aos outros, o que exige certa prudência no seu relacionamento. Além do
mais, a violência não significa nada para ele, uma vez que ela não pode ser
comparada com nenhuma alternativa: ela simplesmente existe.
Em relação ao mundo, faz o que quer — sob as condições do próprio
mundo, sendo este agora o mundo dos fatores e dos meios: “o mundo é
transformado por ele, recebe um sentido que não possuía, uma forma
nova, um novo conteúdo” (Lf 498). Ela dá um sentido novo ao mundo
enquanto se realiza, não antecipa, porém, projeta-se a partir do presente.
O presente é a fase preparatória, o tempo da desgraça, uma vez que só a
obra realizada dará a felicidade. Por outro lado, e o que é mais grave, é
que este mundo é o mundo do trabalho e da organização social, isto é,
a sociedade e o Estado e, infelizmente, fundamentados numa linguagem
que ensina que a vida não tinha sentido, não era livre e nem autêntica em
todas as atitudes anteriores.
Qual é, portanto, a linguagem do homem da Obra? “O homem da
obra não tem linguagem (…). Ele se serve da linguagem” (Lf 502). Isto
é, usa a linguagem a serviço da Obra, apenas como um instrumento, um
meio para induzir a um efeito em vista da obra e não mais um lugar de
revelação da Obra. Este sabe que as palavras não dizem nada e não im-
porta procurar o sentido ou não da Obra; esta é uma questão supérflua
aos seus olhos. Porém, quando fala, o seu falar assume a forma impera-
tiva, ordena e sua ordem não tem necessidade de justificação: “Faça isso,
faça aquilo” (Lf 512). Torna-se o mestre, semelhante àquele da Discussão
no sentido do domínio do seu ofício.
Esta linguagem pode ser comparada à da Condição na medida em que
é instrumento e meio: não fala de nada, mas desempenha um papel na ati-
vidade e se justifica por isso. De tal maneira que esta linguagem é diferente
de todas as precedentes, uma vez que não aceita a coerência, introduzindo
uma nova linguagem, que recusa o pensar, ou seja, a coerência das palavras,
mas que, por outro lado, continua afirmando sempre a mesma coisa. Além
do mais esta linguagem é um mito, não no sentido da tradição (Certeza),
porque ela se sabe criadora de mitos, criando uma nova tradição.
Qual será então o destinatário do homem da Obra? Quem receberá
os seus novos mitos? Ele se destinará à massa, para guiá-la e submetê-la

241
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

à sua ordem. Os homens passarão a ser o material da Obra. Para ele não
se trata mais de educar, mas de utilizá-los para impor os seus mitos. Ele
será o chefe, o guia da massa. Desde então a Obra toma necessariamen-
te uma dimensão coletiva e histórica, porque esta massa não é a soma
de indivíduos, mas a sociedade e o Estado, prometendo-lhes algo novo
e inaudito quando a Obra for realizada. O criador deve dispor do poder
total para criar outro mundo. Ela devora o seu material, sacrificando toda
realidade e toda particularidade: “Seu mito, é verdade, não consola, nem
diverte, nem educa os homens, mas promete aos fiéis uma dignidade
nova (…): eles serão os senhores do progresso”. (Lf 507)
E os homens convictos desta promessa colocar-se-ão à sua disposi-
ção, não vendo nele o mestre, mas o chefe. Aqui certamente está implícita
uma forma de governo semelhante aos regimes totalitários. Conseguiu
que toda a organização política estivesse sob o seu poderio, na ilusão de
criar uma nova sociedade fundada no sentimento de uma tradição do
progresso, pelo desejo do melhor. É tão imoral este comportamento que
o criador não pode enganar-se e nem induzir ao erro. Se os homens são
enganados, isto não depende do criador, mas da sua falta de compreen-
são a respeito do criador e da obra. O criador só deseja uma coisa: que a
linguagem seja útil à Obra.
A atitude da Obra recusa o discurso, a compreensão, o universal, a co-
munidade, para estabelecer-se no fazer e na unicidade. Com esta situação
ela permanece uma atitude que não é “apenas afilosófica, mas antifilosófica,
cientemente antifilosófica” (Lf 509). O homem da Obra será evidentemen-
te o inimigo do homem do discurso, isto é, do filósofo, que considera um
elemento nocivo. De fato, o filósofo julga as coisas antes de agir e se não
usa o juízo renuncia à ação, contentando-se de compreender o que é. Ao
homem da Obra não importa o julgamento, mas o operar, o criar.
Qual será então a importância que esta atitude terá para a filosofia? A
relação entre o homem da filosofia e o homem da Obra não é muito clara,
porém apesar de o homem da Obra não querer pensar, nada impede que
seja pensado pelo filósofo. Portanto poder-se-ia dizer que o homem da
Obra recusa o filósofo, mas este o transforma em categoria do seu discurso.
Isto significa dizer também que o filósofo pensa a possibilidade de sua
recusa, ou seja, a categoria da Obra. Porém outra dificuldade apresenta-se:

242
13. As atitudes niilistas em questão

as categorias anteriores à Obra podem compreendê-la? Se a filosofia é


una e só se compreende na sua totalidade, por analogia pode-se também
dizer que as demais categorias também compreendem a Obra, na sua
condição de categoria.
A Obra é categoria para si e para toda a filosofia, isto é, para todas
as categorias. Cada uma compreende de acordo com a sua atitude. Por
exemplo, o Absoluto a entende como: “a expressão da obstinação do par-
ticular, que, em vez de se fundir no universal, se defende, mais pronto
para se tornar indivíduo na violência do que para abdicar” (Lf 510). Cada
categoria compreende a particularidade de outra categoria. Ainda segun-
do o discurso do Absoluto, a Obra compreendia o mundo da Condição e
sabia que este mundo é a razão, não a razão que se reconhece nos parti-
culares, mas como “mediação total entre a negatividade do indivíduo e o
universal” (Lf 510). Em outras palavras, reconhecia o mundo organizado
do trabalho e do Estado. Portanto não pode definir-se como original, sem
nenhum discurso que a ajude, este é o argumento do Absoluto em relação
à pretensão de originalidade da Obra.
Nesta polêmica entre o discurso coerente e a Obra, a Obra não se man-
tém na ingenuidade e sabe muito bem ver os argumentos do Absoluto, o
que a leva a rejeitá-los com conhecimento de causa. Além do mais, sabe
que é compreendida pelo Absoluto como particularidade e não como
criador, uma vez que o discurso é universal. Mas o que a Obra não admite
do Absoluto é a sua exigência a respeito da compreensão que deve estar
também presente na Obra. Ainda poder-se-ia acrescentar que a Obra não
admite ser particularidade devorada pelo universal. Daí a sua rejeição a
tudo o que é saber e compreensão, pois neste caso o seu ser, a sua razão
de ser estaria num outro ser diferente, e é exatamente esta situação que a
Obra rejeita conscientemente. As outras atitudes podem levar ao Abso-
luto, mas para a Obra não existe nenhum caminho de volta ao Absoluto:
“o criador tem atrás de si toda a história do pensamento, e ele sabe que
seu novo início é essencialmente um recomeço, a negação universal do
universal (em linguagem de ciência absoluta)” (Lf 512). Portanto a Obra
é uma categoria como as demais tendo toda uma realidade adequada, em-
bora com mais dificuldades que as precedentes.
Esta categoria é apenas obra do filósofo ou uma verdadeira atitude
que pode ser captada por sua categoria? É evidente que uma não exclui a

243
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

outra, enquanto parte do discurso sistemático é obra do filósofo, porém,


por outro lado, é uma atitude comprovada, o que leva a ser captada por
sua categoria. Pode-se dizer que a Obra é o oposto da Discussão. Enquanto
na Discussão predomina a forma do discurso e historicamente trata-se de
homens livres, na Obra há o predomínio do conteúdo, enquanto o fazer,
sendo assim a realidade dos homens não livres. Podemos dizer ainda que
este é protesto negador da Obra, ou seja, a negação das linguagens que
produzem a sua categoria. Mas “ela produz sua categoria porque proclama
sua recusa. (Lf 515)
Finalmente o homem declarou através da categoria da Obra que não
quer ser nem para o Absoluto e nem para si mesmo. Ele cria a sua obra e
está na criação. A sua linguagem é somente para recusar o Absoluto e se
manter na sua Obra rompendo o movimento circulatório e fechado do
discurso coerente, que não permitia nenhuma novidade ou progresso. Por-
tanto o outro é fora do movimento do Absoluto e este outro é a atitude da
Obra, que inicia a história. O que conta agora é o futuro. Mas infelizmente
o homem da Obra, mesmo reconhecendo todas as vantagens da atitude,
não acredita nela: “ela é possível, justa, necessária, ela possui todas as qua-
lidades que se quiser, mas ele não acredita nela”. (Lf 523)
Mas por que o homem não crê na Obra? Porque esta não lhe promete o
contentamento, apenas o satisfaz. O que significa dizer, por outro lado, que
o homem não quer a violência também: “o homem não ‘acredita’ nem no
discurso nem na violência” (Lf 523). Estamos diante do absurdo? Do não
sentido? Não existe outra possibilidade que dê sentido à história? “Com
o Absoluto, o transcendente desceu ao discurso que é o mundo; e com a
obra, ele se desfez; portanto, o transcendente era um meio de esquecer a
violência ou de se consolar dela, e visto que ele é reconhecido como meio,
já não pode servir”. (Lf 528)
Estas categorias da Condição e da Obra constituem a categoria política
da sociedade no seu mecanismo social, cujo resultado é a insatisfação do
indivíduo, dilacerado no seu ser. Podemos então confirmar que a Ação não
se conforma com a violência descartada do discurso. Ela quer descartar a
violência da própria vida, ou seja, da sociedade moderna. A nova atitude,
portanto, vai tentar tornar coerente a realidade, unindo “o discurso coerente
com a condição em uma obra satisfatória para o ser finito”. (Lf 560)

244
13. As atitudes niilistas em questão

IV. O outro da categoria da Obra:


a categoria Finito

As categorias da Condição e da Obra constituem as categorias do


agir operacional, na linguagem contemporânea, o que corresponde à
poiesis aristotélica na tradição, o fazer transformador do dado exterior.
A categoria da Condição prepara o terreno para o desenvolvimento da
Obra que se alimenta da recusa da reflexão e se mantém no impulso do
fazer e no apelo ao sentimento sempre em busca da sua individualidade
no mundo da vida.
O limite da categoria da Obra é que, apesar de todo esforço em rejei-
tar o Absoluto, ela ainda não contentaria o homem. O que implica uma
nova rejeição, ampliada pela categoria do Finito, que recusa também o
discurso absolutamente coerente e a Obra. (Lf 521-553) na tentativa de
implantar “a coerência na incoerência”.
A categoria do Finito constrói-se a partir da tradição existencialista,
notavelmente a partir de Heidegger, por considerar que o homem é o
único existente que pergunta pelo ser. Acrescenta-se ainda que na des-
crição do existente deve-se partir de seu estar no mundo, imerso e jo-
gado ao mundo em situações problemáticas. Significa considerar que o
homem é lançado ao mundo para transformá-lo e cuidar das coisas e do
outro. Dirige a sua atenção sobre um homem finito e com destaque para
o mundo da técnica. Daí se dizer que o Dasein é essencialmente projeto,
cujas formas fundamentais são a interpretação, a explicação e a expres-
são. Entre essas formas destaca-se a expressão, os gestos e atitudes e, de
modo especial, a linguagem que procede da discursividade que revela a
estrutura dialogal do Dasein.
A categoria do Finito surge neste contexto como dupla recusa do
agir racional (Absoluto) e do agir operacional (Obra) em busca de um
agir existencial, que o coloca na condição de ser finito, temporal, mortal
e livre, vivendo no mundo da satisfação, da coerência e da presença. Ele
quer estabelecer a incoerência de modo coerente. O que conta agora é a
negatividade. O insucesso do projeto da obra leva o homem a reconhecer-
se como ser finito, que não cria nada. O homem não pode compreender e
nem criar. É apenas um projeto que se lança constantemente na vida sem
nenhuma finalidade, não crê nem no discurso e nem na violência.

245
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

A atitude do Finito participa do mundo da Obra, mas se separa por-


que não acredita no seu sucesso9. Para o ser finito não existe nem obra
e nem discurso coerente, mas ele se mantém fiel no campo da lingua-
gem. E, além disso, essa postura demonstra a consciência da liberdade
objetiva do homem ao afirmar o papel essencial do discurso, embora o
rejeitando. A finitude demonstra que a satisfação no discurso é apenas
uma possibilidade de escolha.
Qual foi o caminho aberto por Heidegger, do qual Weil se apoderou?
Não foi mais o erro da vontade de conhecer a verdade de maneira objetiva
numa tendência exclusiva da racionalidade tecnocientífica, que rejeita o
pensamento do si e da poesia do lado do não-essencial, mas enfrenta a
questão do sentido do ser no campo da linguagem. Em vez de dominar
a objetividade, trata-se de compreender as obras do espírito humano. O
homem não é o Ser, mas um poder ser que pode ser captado pela poesia
em sua expressão enigmática. Daí a exigência de examinar o mundo, o
ser do existente e o ser no mundo. No pensamento de Heidegger, que
representa a atitude do Finito, confirma-se a construção de uma nova
história, que não é mais a da razão, mas a “história do ser”.
O Finito encarna por sua vez a dupla recusa, a do Absoluto e da Obra.
Qual é então a sua especificidade nessa violência absoluta e na violência
parcial? Há uma dialética entre o ser e o compreender. O finito simples-
mente “não acredita na obra” (Lf 523). Ele foge de qualquer sentido ou
argumento a favor ou contra a Obra. Simplesmente porque a Obra não
lhe promete a satisfação. Ela não acrescenta nada melhor além da satisfa-
ção oferecida pelo discurso e pela Obra. Caímos no terreno do niilismo?10
Podemos deduzir que a recusa do Absoluto e da Obra constituiu o cami-

9. Weil reconhece que a categoria do Finito tem como pretensão a tradução da


realidade representada também pelos discursos dos existencialistas Heidegger e Jaspers.
Reconhece o valor desses discursos sem, portanto, reduzi-los a uma categoria-atitude, no
caso a do Finito, o que seria empobrecê-los. (Lf 553 nota) Esta nota é citada por todos os
pesquisadores de Weil. Sem o discurso existencialista não seria possível ver a negatividade
e a violência como possibilidades últimas do homem. Além do mais Heidegger inicia um
novo começo a todos aqueles que a ética da práxis não atrai ou que duvidam da radicalidade
da filosofia nietzschiana. Cf. J.-F. Robinet, Weil et le nihilisme, in G. Kirscher; J. Quillien
(orgs.), Sept études sur Eric Weil, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1982 274.
10. A respeito das variantes abrangentes desse conceito, cf. J.-F. Robinet, op. cit.,
passim. Ver também C. Boff, op. cit., passim.

246
13. As atitudes niilistas em questão

nho do não sentido. Mas que significa não “acreditar” na obra? Significa
exatamente pensar, demonstrar?
Diante do insucesso da Obra, o homem volta para si mesmo, para
sua condição de finito, o que equivale a dizer, projeta-se para o mundo
da satisfação, da coerência, da presença. Ele é um ente, um ser entre os
seres, consciente da sua insuficiência.
Diante dessa insatisfação com a coerência discursiva e o sentimen-
to criador o homem finito descobre um elo que o mantém na abertura
e no mistério; esse algo é a linguagem criadora como ela se apresenta na
poesia. A linguagem é mais rica que o discurso. Em outras palavras, essa
relação entre a filosofia e a poesia é que mantém a unidade do discurso e
da vida e com isso Weil na Lógica da filosofia libera a filosofia para outros
saberes, conjugando a filosofia com a poesia. O homem do finito mer-
gulha no mar da linguagem superando o discurso formal e voltando-se
para sua insuficiência.
Com a recusa de Hegel (o Absoluto) e da Obra as coisas foram con-
duzidas ao desenvolvimento do sentido histórico e de sua legitimação
teórico-científica. Havia então uma recusa ao pensamento calculador, ao
cálculo e à medição ao pensamento que encobre e reprime as questões
acerca da própria compreensão da existência e de sua finitude como ser
para a morte. Com essa compreensão a questão posta é a possibilidade da
metafísica na era da ciência. Como é possível relacionar o ser e o sujeito?
O ser se tornou tempo, fato, dasein, é existir, estar presente, o ser (Sein),
era o ser como ser do aí. Como esse ser do aí pode ser pensado? Que es-
trutura de temporalidade, que estrutura de produtividade, do ser-aí em
sentido coerente. O certo é que o ser revela o sujeito e o sujeito revela o
ser, mas diante do Ser infinito o homem finito reconhece a sua radical
insuficiência para falar positivamente do Ser.
É fácil notar o confronto entre a categoria do Absoluto e a do Finito,
isto significa dizer também o conflito entre a coerência e a incoerência.
A coerência é própria do discurso tradicional, cuja meta é a categoria do
Absoluto com a sua linguagem formal, já o Finito manifesta uma lingua-
gem poética. Duas linguagens que se encontram e se rejeitam. Como bem
afirma Costeski: “Enquanto a retomada do Absoluto procura a ideia da
coerência, o Finito procura reduzir todas as atitudes-categorias à incoe-

247
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

rência, à possibilidade pura”11. Daí se conclui que o Finito quer liberar


o homem do formalismo do Absoluto.

Considerações finais

Nesta reflexão apresentamos a ideia da violência provinda do pensa-


mento existencialista com a noção de destruição e de insuficiência na his-
tória e no pensar. Essas noções foram configuradas nas categorias-atitudes
da Obra e do Finito.
Nós não somos deuses e nem podemos fazer tudo. No discurso exis-
tencialista, o homem é afirmado como liberdade absoluta, podendo sem-
pre dizer não a qualquer situação devido ao seu estado de insuficiência.
Ele pode falar do Ser, mas só pode falar formalmente, o que já implica a
coerência na incoerência. O ser humano é visto como existência concreta
no mundo, na sociedade e na história.
A retomada do Absoluto como fechamento de todo um discurso for-
mal coerente, específico do filósofo, provocou um desespero na atitude da
Obra por não acreditar só no poder da razão, mas em outra possibilidade
da recusa da própria razão e, consequentemente, da filosofia. O outro dis-
curso se constitui como o discurso violento do homem comum no seu agir
tecnológico, filosófico e existencial. Daí a exigência de liberar o discurso
filosófico para outros discursos e outros fazeres como analisamos aqui.

11. Cf. E. Costeski, op. cit., 116.

248
14. Lógica da filosofia:
sagrado, violência e sentido

Daniel da F. Lins Júnior1

“Que classe de filosofia se elege, depende,


segundo se vê, da classe de homem que se é; pois
um sistema filosófico não é como um enxoval que
se possa usar ou recusar, segundo nos agrade;
mas é algo animado do homem que o possui.”
Johann G. Fichte

Para Laila e Maria Eduarda,


Dimidium animae meae.

Introdução

A experiência do sagrado é uma realidade universalmente conhecida


e experimentada nas mais diversas manifestações religiosas e cultu-
rais2. Sendo por um lado, núcleo da própria experiência religiosa e objeto
de reflexão, da teologia é, por outro lado, o indizível, o silêncio adorante3.

1. Doutorando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará, professor da


Unijorge e professor do SALT-IAENE, Brasil.
2. F. Lenoir, Petit traité d’histoire des religions, Paris, Plon, 2008, 9-29. R. Caillois,
L’homme et le sacré, Paris, Gallimard, 2013, 23-40. M. Eliade, Le Sacré et le profane, Paris,
Gallimard, 2012, 32-37.
3. Maçaneiro em sua obra O labirinto do sagrado, classifica as vivências originárias
do sagrado em Numen e Nomen. Trata-se de como as expressões da vivência do sagra-
do são tomadas na história. O Numen diz respeito ao indizível, ao silêncio adorante, ao
“Deus absconditus”, enquanto o Nomen é a expressão, o dizível, o cântico adorante, trata

249
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Daí que manifesto nas mais diversas tradições e reflexões é, ao mesmo


tempo, um conceito que escapa o enquadramento de categorias.
Assim, objeto de reflexão nas mais diversas áreas, recebe do pensa-
mento filosófico um tratamento peculiar. Por um lado, o sagrado é ex-
perimentado em formas diversas ao longo da história e como tal esta-
belece modos, tradições religiosas, cosmovisão. Por outro lado, algo tão
intimamente ligado à experiência não se dá facilmente como objeto de
conceito. Observa-se que na origem das religiões não há como funda-
mento um código de ética, ou mesmo numa doutrina, um catecismo ou
um discurso teológico, mas uma experiência do sagrado. Toda a discussão
e codificação surge num segundo momento que decorre da experiência
fundamental, como tentativa de compreendê-la.
Nossa pretensão nessa reflexão parte da conceituação aceita sobre o
sagrado e, em seguida apresenta a transformação do conceito no pen-
samento de Eric Weil, notadamente na Lógica da filosofia. Para circuns-
crever a temática, estabeleceremos uma relação com os já consagrados
temas da Violência e do Sentido4.

I. Sagrado: realidade e conceito

A palavra “Sagrado” nasce nos campos da língua indo-europeia, sig-


nificando “separado”5. A etimologia, embora não suficiente, nos indica
duas ideias que são centrais do conceito: sagrado diz respeito a uma re-
alidade que, embora presente na experiência de modos variados, situa-
se não apenas num plano de difícil acesso à apreensão conceitual, como
também instaura uma compreensão de mundo como que “separado”. Ou
seja, o sagrado se “separa”, enquanto realidade transcendente, do mundo
imanente, ao mesmo tempo que, no plano conceitual também se “separa”
de qualquer tentativa de se definir.

do “Deus revelatus” Cf. M. Maçaneiro, O labirinto do sagrado. Ensaios sobre religião,


psique e cultura, São Paulo, Paulus, 2011, 22.
4. Cf. M. Perine, Filosofia e violência. Sentido e intenção da filosofia de Éric Weil,
2ª ed. totalmente revista, São Paulo, Loyola, 2013.
5. No grego, Sagrado é VIero,j, significando “augusto, admirável, poderoso, sagrado,
santo, de origem divina, consagrado aos deuses”. Cf. I. Pereira, SJ, Dicionário Grego-por-
tuguês e português-grego, Porto, Livraria Apostolado da Imprensa, 1969, 275.

250
14. Lógica da filosofia

Ora, do ponto de vista religioso, o sagrado é separado de qualquer


realidade dita profana. A concepção religiosa do mundo implica a dis-
tinção de uma realidade separada da outra, mas não apenas separadas,
como também opostas. Qualquer definição de religião, também, implica
essa distinção fundamental que a instaura e não um conjunto de códigos,
uma teologia ou mesmo um texto fundamenta. Todas essas realidades
são tomadas como excepcionais e dignas de fé por causa de uma expe-
riência numinosa6.
Essa experiência fundamental do homem e do sagrado é marcada por
uma tensão, “o homem tende a manter-se distante do sagrado, como acon-
tece diante do que se teme, e ao mesmo tempo é por ele atraído, como se
pode ser com relação à origem de que um dia nos emancipamos”7. Essa
tensão se manifesta na conceituação que se pretende dar ao sagrado. A
hierofania não é um evento simples que se dá à definição.
A experiência religiosa trata de vivências tão marcantes e ao mesmo
tempo como se sempre em progresso, daí que se fala constantemente em
termos como caminhada, progressão, peregrinação, ascensão, na direção
de uma chegada ideal8.
De fato, o tratamento de temáticas tão fundantes da experiência re-
ligiosa já são elaboradas há mais de um século e tem formado mais de
uma escola específica sobre o assunto. Para nosso interesse, trataremos da
abordagem que nos aparece como mais abrangente, a saber, a pesquisa
de Rudolf Otto9.
Rudolf Otto, nas palavras de Fredéric Lenoir, “é um dos primeiros
pensadores a apresentar a ideia de um sentimento do sagrado inerente

6. R. Caillois, op. cit., 23-25.


7. U. Galimberti, Rastros do Sagrado, São Paulo, Paulus, 2000, 11.
8. Palavras como Imensidão, Fascínio, Tremor, Geração são presentes do discurso
sobre o sagrado na tentativa de aproximação. Sobre a ideia de Finitude, por exemplo,
concordamos com Maçaneiro, quando diz que: “O homo religiosus não vê o céu como o
vê um astrônomo, mas como espaço de infinito, que encoberta, que amplia o horizonte
da realidade para um além sem fundo, fascinante e temível ao mesmo tempo. Daí a sen-
sação de finitude diante do infinito sideral e também de assombro diante dos trovões e
ventanias”. Cf. M. Maçaneiro, op. cit., 11. Também García Bazán já tinha argumentado
na mesma perspectiva. Cf. F. García Bazán, Aspectos Incomuns do Sagrado, São Paulo,
Paulus, 2002, 42-84.
9. R. Otto, O Sagrado. Os aspectos irracionais da noção do divino e sua relação
com o racional, São Leopoldo-Petrópolis, Sinodal-Vozes, 2007.

251
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

ao homem e ante suas tentativas de explicar o mundo, suas origens e seu


devir”10. Publicada em 1917, sua obra O Sagrado, forja a palavra numinoso
para designar o sagrado original e acabou se tornando conceito essencial
no vocabulário corrente das ciências da religião11.
Otto se utiliza de diversos conceitos na tentativa de se aproximar da
experiência do sagrados e, mais do que falar no objeto, ele procura as-
pectos da experiência do sujeito com relação à experiência numinosa.
Assim, ele parte do “sentimento de criatura” na busca de dizer algo sobre
o que é apreensível12 do sagrado.
Assim, a experiência do sagrado o mostra como numinoso13 e a cria-
tura se apresenta com o “sentimento de dependência”14. Dessa relação
surgem os aspectos de arrepiante (tremendum), avassalador (majestas),
totalmente outro (mysterium)15.

II. Sagrado na Lógica da filosofia

Eric Weil não escreveu numerosos artigos ou ensaios sobre a temática


religiosa, no entanto dedicou um capítulo central de sua obra maior à
categoria Deus16, participou do debate teológico em seu tempo e podemos

10. F. Lenoir, op. cit., 30 s.


11. Cf. J. B. Libânio, A Religião no início do milênio, São Paulo, Loyola, 2002, 87-109.
12. Note-se que os termos de Otto são mais como tentativas de aproximação, de esboçar,
do que de definir. Ele inicia sua abordagem sobre o sagrado, refletindo sobre a possibilidade
de apreendê-lo. Daí afirmar que “de alguma maneira ele precisa ser apreensível; não fosse
assim, nada se poderia dizer a seu respeito. Nem mesmo a mística, ao chamá-lo de árreton
(inefável), queria dizer que ele não seja apreensível, senão ela só poderia consistir em silêncio.
Mas justo a mística geralmente foi bastante loquaz”. Cf. R. Otto, op. cit., 34.
13. O numinoso é uma categoria pensada por Rudolf Otto para expressar o sagrado
como ao mesmo tempo que é íntimo, é também indizível (cf. op. cit., 37). Embora a história
do conceito vá acrescentar aspectos morais, o numinoso é o momento íntimo, intraduzível,
terrível, pleno que configura a experiência mística. “O elemento de que estamos falando
e que tentaremos evocar no leitor está vivo em todas as religiões, constituindo seu mais
íntimo cerne, sem o qual nem seriam religiões”. Cf. R. Otto, op. cit., 38.
14. A expressão é de Schleiermacher e retomada por R. Otto. Cf. F. Schleierma-
cher, Sobre a Religião, trad. D. Costa, São Paulo, Novo Século, 2000, 9.
15. R. Otto, op. cit., 40-78.
16. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. Lara Christina de Malimpensa, São Paulo, É
Realizações, 2012. 248-286. Doravante Lf.

252
14. Lógica da filosofia

verificar que a questão religiosa está presente na tessitura de seu pensa-


mento como um importante elemento de composição17.
Denominamos elemento de composição tendo em vista que o proble-
ma religioso não é tratado apenas em si, mas em relação ora a questões
de ética e política, ora como contributo para a interpretação do tempo
e da cultura. Mesmo na categoria Deus, a preocupação de Weil não é
discurso de uma dogmática ou de uma teologia sistemática, ou seja, seu
discurso não é uma teodiceia, uma justificativa da fé, uma apologética,
nem uma redução do fenômeno religioso, mas uma tentativa de com-
preensão da categoria enquanto discurso fundamental humano18. Dis-
curso em que o homem se compreende como homem, como crente. No
fundo, a compreensão que Weil busca na categoria Deus não tem como
fim um maior esclarecimento de um tema teológico-dogmático, mas
como o homem, enquanto homem de fé, enquanto crente, se compre-
ende. O discurso religioso está presente desde a primeira idade humana
e, ao realizar esse discurso, o homem não apenas tenta traduzir uma re-
alidade em palavras, mas ele também tenta se compreender em relação
a essa realidade. Essa compreensão de si que o homem formula ao falar
de Deus é o ponto que Weil deseja compreender.

1. Os círculos exteriores
A metáfora dos círculos19, já tornada referência nos estudos da obra
de Weil nos guiará até certo ponto na progressiva apreensão do conceito
do sagrado.
Segundo a metáfora, a obra de Weil pode ser compreendida como
círculos concêntricos, dos mais externos ao mais interno, em referência
às críticas e recensões como mais exterior até a Lógica da filosofia, como
círculo mais interior.

17. Nesse sentido, podemos citar textos como “La Sécularisation de l’action et de la
pensée politiques a l’époque moderne” ou “Christianisme et politique”, Cf. Essais et con-
férences II. Politique, Paris, Vrin, 1991, 22-44 e 45-79 respectivamente.
18. Sobre a categoria Deus, bem como a discussão das inúmeras interpretações que
ela suscitou: G. Kirscher, La Philosophie d’Éric Weil. Systematicité et ouverture, Paris,
PUF, 1989. 257-266. M. Perine, Éric Weil e a compreensão do nosso tempo. Ética, Política,
Filosofia, São Paulo, Loyola, 2004, 227-263.
19. G. Kirscher, op. cit., 5.

253
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

O conceito de Sagrado se apresenta quase sem alteração nos mais


diversos textos como conjunto de princípios que permitem distinguir o
essencial do inessencial.
Nos artigos, como “Le concept de droit naturel”, ele surge como prin-
cípio fundamental, aquela instância que permite dizer que uma vida sem
sagrado é insensata20. Não se trata, evidentemente, do sagrado da expe-
riência religiosa, o numinoso, transcendente. A transformação weiliana,
trata de um sagrado-imanente ou, se podemos pensar na expressão ima-
no-transcendente, uma vez que o sagrado diz respeito à “fibra do nosso
ser”, ou “tudo sem o qual a vida não valeria a pena ser vivida”, segundo
suas palavras em Tradition et traditionalisme21. O conceito de sagrado de
Weil não é religioso, é político e moral.
O conceito de sagrado aparece na Filosofia política22 e na Filosofia
moral23, círculos mais internos da metáfora.
O texto da Filosofia política está dividido em quatro capítulos, tratando
de três grandes temas da tradição política ocidental, a saber, a Moral (su-
jeito), a Sociedade e o Estado (Estado Mundial). O conceito do sagrado é
exposto no segundo capítulo, o que nos chama atenção não só pelo conte-
údo dado ao conceito, mas o lugar que ele ocupa na obra. Isso se repetira
na Introdução à Lógica da filosofia e não nos parece coincidência.
No capítulo destinado à Sociedade, já no subtítulo O Mecanismo So-
cial, Weil define o sagrado como elemento de decisão da comunidade.

A comunidade, assim como o indivíduo, é livre para preferir desaparecer em


vez de abandonar suas convicções, para as quais a morte pode muito bem

20. “L’égalité ne doit pas choquer le sentiment moral des citoyens ni provoquer ainsi
la plus grave des révoltes, celle dans laquelle les révoltés luttent pour le sacré, leur sacré,
à qui ils sont prêts à sacrifier leur vie parce que la mort à leurs yeux serait moins grave
qu’une vie sans sacré, sans dignité, qu’une vie insensée”. Cf. E. Weil, Le Concept de droit
naturel, Philosophie et Realité II, Paris, Beauchesne, 2003, 123.
21. “Il y a certes choses plus importantes à défendre dans une tradition, des choses plus
importantes en vertu de cette tradition. Tout ce qui tient à la fibre de notre être, tout ce qui est
sacré pour notre foi, tout ce sans quoi la vie ne vaudrait pas la peine d’être vécue, n’acquiert
cette importance décisive que par la tradition”. Cf. E. Weil, Essais et conférences II, 12.
22. E. Weil, Filosofia política, trad. M. Perine, 2ª ed., São Paulo, Loyola, 2011. Do-
ravante Fp.
23. E. Weil, Filosofia moral, trad. M. Perine, São Paulo, É Realizações, 2011. Do-
ravante Fm.

254
14. Lógica da filosofia

não ser o maior dos males. Ela decide-se em função do que nós chamamos
o seu sagrado, que é o conceito (que não existe necessariamente como con-
ceito formal na sua consciência, mas, por exemplo, sob a forma de tradição,
regra de conduta, mito) daquilo que lhe permite distinguir o essencial do
não-essencial, o bem do mal, e que não pode ser contestado porque qualquer
contestação, por ser tal, situa-se do lado do mal24.

Das muitas referências feitas por Weil ao sagrado seja na Política, na


Moral ou mesmo na Lógica, essa página e as seguintes expõem de modo
claro a delimitação do conceito do sagrado. Ele é definido pelo par essencial
e não essencial, como ponto de definição da comunidade para evitar a vio-
lência, gerar integração e permanecer na história. Há de se notar que o con-
ceito do sagrado é apresentado no contexto da definição da violência25.
Assim, com relação à temática, pensamos o par elemento de composição
e elemento de decisão. Ao tratar de questões religiosas, no sentido exposto
pela tradição teológica, Weil o faz contextualizando discussões de ética,
política, moral, história. Ao tratar do sagrado, ele o faz como elemento de
decisão, isto é, o sagrado de uma comunidade é aquele conjunto de refe-
rências, de valores, que não podem ser negados, uma vez que sua negação
resultaria no fim da própria comunidade e que servem para a delimitação
do que fazer para expulsar do convívio a violência, por exemplo. O sagrado
permite o afastamento da violência. Numa comunidade que propusesse
a violência como seu sagrado, não subsistiria, porque ela (a violência) se
tornaria critério de decisão das ações entre os seus membros.
A Filosofia moral, assim como a Política, se divide em quatro capítu-
los, O Conceito de Moral, O Conteúdo da Moral, A Vida Moral e Moral

24. Fp 83 s.
25. A PP apresenta uma séria discussão sobre o sagrado. Weil apresenta o sagrado
vivo como “influenciado e modificado por uma tomada de consciência que se dá através
e por ocasião da compreensão do passado” (Fp 84). O sagrado não é um conceito está-
tico e inacessível, mas vivo e que se transforma numa interação com a tradição e a reali-
dade. O sagrado também é apresentado em seu processo de transformação conforme se
apresenta na atualidade para Weil. O sagrado de nossa sociedade a distingue na história.
“O que torna a nossa tarefa ainda mais complexa é que a nossa sociedade, comparada às
comunidades do passado, apresenta-se como comunidade que considera sagrado o que
todas as outras consideravam contrário a ele. Pois a luta com a natureza jamais foi sagra-
da” (Fp 84 s.). Dizer que a luta contra a natureza, o trabalho, é sagrado para a sociedade
contemporânea, significa dizer que esse é o “valor a partir do qual (não: sobre o qual) ela
reflete e graças ao qual se orienta”. (Fp 86)

255
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

e Filosofia. Já na primeira o conceito do sagrado é tratado no âmbito da


moral concreta.
Segundo Weil, a moral concreta, para aquele que a vive, não apresenta
lacunas, todos os atos são regrados. Ora, “há sem dúvida, problemas no
interior de todo sistema; nele não haveria regra sem que se apresentasse a
possibilidade da transgressão: onde começa o domínio do que é regrado,
onde termina o domínio do sagrado?”26.
O sagrado é o elemento de julgamento no seio de uma moral para
que as lacunas não existam e para que os atos continuem com orienta-
ção. Ele é o “evidente e natural”27 para a moral.

2. A Lógica da filosofia: a Introdução


É conhecida a afirmação de que a Introdução à Lógica da filosofia é
um “livro autônomo” de dimensão inusual28, sendo 86 página na versão
original francesa e 128 na tradução em língua portuguesa e essa, entre
outras características, lançam a questão de por que tal situação, ou o lu-
gar desse texto?
A Introdução é um texto que não tem dependência direta com o do
Lógica, de modo que seja uma introdução, propriamente. Ou seja, ela intro-
duz o filosofar próprio da Lógica, sendo reflexão, exposição mais literária e
discursiva do que está na Lógica, enquanto doutrina estruturada de modo
concentrado29. Ela é caminho pedagógico para o sistema das categorias.
O texto da Introdução está intimamente ligado ao sistema. De uma
parte, pela relação circular de introduzir e ser introduzida pela Lógica.

26. Fm 22.
27. Ibid., 23.
28. A Introdução apresenta o problema da Lf sendo, praticamente, um livro à parte.
Cf. J.-F. Robinet, O tempo do pensamento, São Paulo, Paulus, 2004, 278. “A introdução da
Lógica da filosofia tem como título geral “Filosofia e Violência”. Para bem compreender
essa introdução é importante ter sempre presente que não se trata propriamente de uma
introdução à Lógica da filosofia, mas de um texto que serve de introdução a um outro
texto que se chama Lógica da filosofia. Essa introdução não é uma obra dependente do
livro que ela introduz, mas uma espécie de obra autônoma, uma espécie de posfácio co-
locado no início, não para introduzir a lógica da filosofia, mas para iniciar o filosofar”.
Cf. M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., 125.
29. H. Bouillard, Philosophie et Religion dans l’oeuvre d’Éric Weil, Archives de
Philosophie, 40 (1977) 545.

256
14. Lógica da filosofia

De outra forma, fazendo “a apresentação da filosofia geral”30, estando no


núcleo mais duro do pensamento de Weil.
A Introdução é dividida em três partes: Reflexão sobre a filosofia, Re-
flexão da filosofia e Lógica e violência. Na primeira parte, Weil trata do
homem como razão e do homem como violência. A segunda parte, que
trata da Reflexão da filosofia, está dividida em A lógica da comunidade,
O discurso do indivíduo e do ser, O saber do ser e a ciência daquilo que
é: teoria e práxis. Finalmente, na terceira parte, Filosofia e violência, os
temas são: A violência e o discurso, A verdade e a violência, A lógica da
filosofia e a violência da história.
O conceito do sagrado, mantem-se na discussão sobre a comunidade
e como tal, surge na segunda parte da Introdução, ao tratar da Reflexão da
Filosofia. Aí o sagrado é tomado como fonte dos princípios que permitem,
por exemplo, definir a discussão sobre virtude31. Ou ainda, é o sagrado
que permite distinguir os homens que não saíram da natureza e não são
homens propriamente ditos, são tomados como bárbaros32.
O sagrado está no núcleo do conjunto de esforços para eliminar a
violência do seio da comunidade. Esforços esses que, em relação íntima
com o que é mais sagrado como o diálogo, o discurso razoável, tornam
inadmissível a violência e marca a vida dos iguais.
Na Introdução há uma discussão sobre a marca do sagrado, ou como
ele se comporta, já que se altera com a tradição.

Eis por que tudo o que é essencial à vida da comunidade traz a marca do
sagrado — ou, traduzido em outra linguagem, pertence ao âmbito das coi-
sas que não podem ser modificadas por uma decisão da comunidade e que,
consequentemente, não podem ser submetidas a uma discussão. Mas esse

30. G. Kirscher, Figures de la Violence et de la Modernité. Essais sur la Philosophie


d’Éric Weil, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1992.
31. “Pode-se perguntar o que é a virtude, mas é preciso, então, estar de acordo quan-
to à existência da virtude; pode-se entrar em contradição quanto ao caráter sagrado deste
ou daquele fenômeno, mas apenas quando os adversários estiveram de acordo quanto ao
fato de que existe um sagrado”. (Lf 39 s.)
32. “Esses ainda não se ergueram acima da natureza; podem até possuir uma fisio-
nomia humana, mas não se compreende nem a eles, nem o que fazem, nem o que dizem:
têm jeito de bárbaros, pipilam como passarinhos, ignoram o sagrado, vivem sem pudor
e sem honra”. (Lf 41)

257
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

âmbito não é claramente delimitado: o sagrado pode ser dessacralizado em


parte, novos sacramentos podem ser introduzidos e instaurados. Para nós,
isso é a expressão de uma mudança nas formas e nas condições de vida: quan-
do a agricultura é sobrepujada pelo comércio marítimo, os deuses do mar se
sobrepõem aos do solo e do subsolo; quando a reflexão do viajante ardiloso
é indispensável à aquisição daquela riqueza que a partir de então constitui
o homem de bem, a deusa empreendedora da inteligência se torna o árbitro
que decide a luta entre as divindades antigas e as de uma época mais recente,
rindo-se das potências que lhe são superiores por sua idade e força cega. A
passagem, porém, é imperceptível para quem a vive e a efetua sem saber. Para
ele, em instante algum a continuidade é rompida, e se ele sabe que o passado
não é igual ao presente, ele só constata, no entanto, um enriquecimento ao
qual não corresponde nenhuma perda. A comunidade perdura, pois os deu-
ses perduram, e o número destes últimos aumentou, assim como aumentou
a força da comunidade que permaneceu una e idêntica. (Lf 44)

Esta longa citação contém muitos dos elementos do sagrado33. O


conceito diz respeito ao que é essencial para a comunidade distinguir
no discurso sobre a virtude, como também distinguir as ações e os pró-
prios homens. Há de se notar que a linguagem se utiliza de elementos
religiosos como “sacramento” ou “deuses”, mas diz respeito mais à vida
prática do que mística, ou religiosa. Os elementos de linguagem religiosa
entram para compor a discussão.
O sagrado, segundo Weil, não é um discurso sobre o numinoso ou
sobre a experiência religiosa, mas sobre valores transcendentes que pos-
sibilitam a duração e integração da comunidade. Ora, ocorre que esses
mesmos valores se alteram, não constituindo um bloco monolítico. O
sagrado se altera, como se dá sua alteração?
O sagrado não se altera por discurso ou por decreto. Aquele que tenta
destruir o sagrado de uma comunidade é um criminoso aos olhos dela.
O sagrado se altera, assim como a comunidade e ele se transforma para
continuar sendo sagrado, mas de modo imperceptível aos olhos de quem
vive sob ele. Há aquela instância que uma comunidade toma como valo-
res. Esses constituem o sagrado de uma comunidade, mas mudam com
a história, com a transformação da realidade da própria comunidade.

33. Há de se notar que o conceito do sagrado continuará perpassando a obra de


Weil e, também, se desenvolvendo.

258
14. Lógica da filosofia

Uma série de elementos entram em contato e possibilitam essa alteração,


ou seja, questões religiosas, morais, sociais, econômicas, histórias, enfim,
a transformação da realidade de uma comunidade ensejam a alteração
daquilo que ela considera valor moral.
Um último elemento na análise do sagrado nos chama atenção. Úl-
timo, mas não menos importante. Trata-se da posição do conceito nas
obras de Weil e, principalmente na Lógica da filosofia.
Tanto na Filosofia política, quanto na Filosofia moral, o sagrado surge
como elemento essencial no discurso da comunidade, da sociedade, ou da
constituição dessa. O sagrado é tratado quando Weil trata de elementos
constitutivos da vida comum.
Na Introdução da Lógica, o discurso sobre o sagrado não só diz res-
peito à constituição da comunidade, como se desenvolverá nas outras
obras, mas a própria posição do conceito no texto é esclarecedora. Ora, o
sagrado aparece no segundo momento do discurso e, se podemos pensar
a estrutura do texto como seguindo uma dialética34, essa posição corres-
ponde ao segundo momento, ao negativo. Não se compreende a dialética
senão em movimento35.
O lugar do sagrado, além do seu conteúdo próprio, confirma a im-
portância do conceito no sistema, no ordenamento do pensamento de
Eric Weil.

34. Não queremos dizer com isso que haja um encadeamento necessário das ideias
de Weil, mas apenas a dinâmica dialética que há na Introdução mostra a importância do
conceito pelo lugar que ocupa. Na discussão sobre a sucessão das categorias, Weil é explí-
cito sobre ela não ser necessária, a não ser quando se veja do fim ao início do processo.
No presente momento, ao tratar com a dialética da Introdução, pretendemos expor a es-
trutura que organizou o texto e não a determinação necessária dos elementos histórico-
filosóficos tratados.
35. Segundo Sichirollo, a logicidade da dialética segundo Hegel, tem três aspectos:
o abstrato ou intelectual, o dialético ou negativo e o especulativo ou positivo racional.
Essa referência à posição do sagrado e sua relação com a dialética é ilustrativa. Segundo
o autor: “Aquela coisa, fato ou acontecimento que pretendemos considerar em si, como
algo de absoluto e de separado e, portanto, como um finito, não pode subsistir como tal
e é incompreensível. Tudo está sujeito ao devir e se transforma, coisas, fatos e aconteci-
mentos, que são o que existe, que podemos estudar, discutir e de que podemos falar com
os outros, exatamente porque se tornaram aquilo que são e não algo de diferente, isto é,
suprimiram e superaram a sua própria abstração e a sua finitude, evoluindo”. Cf. L. Si-
chirollo, Dialética, Lisboa, Editorial Presença, 1980, 155 s.

259
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

III. Sagrado, violência e sentido

Violência e Filosofia são apontados não apenas como o binômio


mais caros do pensamento de Eric Weil. Essa relação constitui o sentido
do seu filosofar ou sua reinterpretação da filosofia36. Para Weil, não são
realidades possíveis de definir, mas são, antes, possibilidades ao homem.
Weil não pensa a filosofia apenas como teoria, mas também como ação
e a própria violência não se limita à questão física, mas também como a
recusa da coerência é violenta. A filosofia aponta para seu ápice na ação
razoável, já a violência é a possibilidade que conclui as opções de diálo-
go e uso da razão.
São possibilidades, mas pensando com Kant, para Eric Weil, a vio-
lência é um dos elementos que definem o homem, ao lado da liberdade37.
Se o homem só é livre em situação, o mesmo se dá com a violência. Para
Weil, segundo Perine, a violência é uma possibilidade humana irredutí-
vel38. Assim, a relação que se pode pensar entre a violência que desagrega
e cria instabilidade na comunidade e o sagrado é que esse é tomado pela
liberdade humana não só para manter e integrar a comunidade, mas para
que o sentido se efetive. Ora, a efetivação do sentido e da razoabilidade
tem um nome muito próprio no pensamento de Eric Weil: a ação.
A reflexão sobre a violência perpassa toda a obra de Eric Weil. Logo,
não é uma realidade que se possa fugir, para quem deseja se deter nesse
pensamento. A filosofia também perpassa sua obra e, das muitas cate-
gorias que a discutem, a do Sentido é a mais específica.
Ora, a filosofia é a ciência do sentido. Qual o alcance dessa afirma-
ção? Ela não é ciência porque trabalha com um determinado objeto, mas
porque é sistema, ou seja, porque ela se constitui enquanto coerência do
discurso. A filosofia é sistema do sentido. O que constitui o Sentido? A
linguagem. Não existe um meu, um teu, vosso, nem mesmo o nosso. Tudo
isso é posterior à linguagem. ‘Tudo o que há para o homem nasce na lin-

36. P. Canivez, Éric Weil ou la question du sens, Paris, Ellipses, 1998, 5.


37. “A violência é original, radical e irredutível, e a liberdade não se afirma senão
sobre o fundo da violência, ou, o que é o mesmo: a liberdade é sempre em situação”. Cf.
M. Perine, Filosofia e violência, op. cit., 131.
38. Ibid.

260
14. Lógica da filosofia

guagem” (Lf 593). A questão do Sentido, enquanto categoria, é a questão


do filósofo, a questão que norteia a filosofia. O homem que escolheu a
filosofia a todo momento se depara com o incompreensível e diante disso
esse homem lança a questão fundamental — que significa isso?
O Sentido assim se apresenta ao homem, em toda a realidade.

Ela (a categoria do Sentido) está em toda atitude e em toda categoria. Se


é presente em tudo, ela compreende também seu outro, reconhecendo em
tudo uma figura do Sentido. Não existe nada de humano que seja insensa-
to. Por meio dela se compreende o que o homem tem dito, falado, criado,
construído e vivido. Ela não transcenderá o mundo, mas será a transcen-
dência do mundo39.

Para Weil, a filosofia é ciência e isso porque ela é sistema, coerência.

Ela é ciência porque é essencialmente o sistema no qual entra todo o sentido


concreto (não existe louco para a filosofia) e que nunca é fechado, porque
o sistema da filosofia em sua forma lógica é apenas o sentido formal con-
creto. (Lf 594)

Que dizer do sentido concreto? É o sentido mesmo que tem a rea-


lidade para o homem numa dada situação. O sentido formal é a visada
desse sujeito que quer compreender a realidade. Aqui já temos, então, o
concreto da história e o formal do sentido. Sabemos que a articulação
da Lógica não segue uma cronologia. Não é nesse sentido que tratamos
a história da compreensão, mas na perspectiva que a compreensão é his-
tórica e ordenada logicamente.
Com a categoria do Sentido, presente em todas as categorias, a Lógica
é elaborada enquanto prática do discurso organizado em torno de um
conceito central, trata-se da retomada de um sentido concreto na forma
de uma coerência determinada.
O sentido é núcleo da filosofia que é a ciência do sentido. O filósofo,
no entanto, não possui o sentido, ele o busca e busca sua compreensão
em suas manifestações históricas, nas atitudes.

39. M. C. Soares, O filósofo e o político segundo Éric Weil, 2ª ed., São Paulo, Loyola,
2015, 141.

261
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Considerações finais

Depois desse percurso a pergunta é: que relação pode-se pensar entre o


sagrado e o sentido? Ora, o sagrado é aquela realidade que constitui o ho-
rizonte de sentido de uma comunidade que quer manter-se e integrar-se
enquanto histórica. Ele não nasce num decreto, mas transforma-se e per-
manece, enquanto permanecer a comunidade. Ao dizer que o sentido,
enquanto concreto, é a situação dada em que o sujeito se experimenta e
se compreende em determinado mundo, em determinada realidade, que-
remos dizer que esse mesmo sujeito ao tentar compreender-se o faz num
ambiente do sagrado da comunidade.
O sagrado não é apenas esse elemento integrador, moral, ele mesmo
se faz presente em toda discussão que parte de princípios para decisão.
Há, no entanto, mais questões a serem pensadas sobre o sagrado e
o sentido do que conclusões. Qual a relação entre o sagrado e o sentido
concreto? Como pensar um sagrado para o sentido? O sagrado, hoje,
seria diferente do que pensado por Weil, já que em tantos anos a socie-
dade mudou tanto?
Por fim, pensamos que o sagrado, tal como posto até o presente, é
um elemento de decisão no pensamento de Weil, diferente do discurso
religioso que tomamos como elemento de composição. Esse é utilizado
para pensar realidades sejam elas culturais, políticas, éticas ou históricos.
Já aquele é para decidir sobre elas.
Ao de-cidir algo, a comunidade corta, discerne, estabelece uma marca
entre aquilo que lhe é vida e aquilo que não ele. A comunidade questiona
o seu sentido no mundo, move-se no ambiente do sentido, da linguagem
em busca de uma compreensão de si, move-se nos campos do sagrado.

262
15. O que é sentido?
Nas pegadas de Eric Weil

Andrea Vestrucci1

P erguntar-se o que vem a ser o sentido é por si só um problema, pouco


importando se se parte de Weil ou de qualquer outro autor, no âmbi-
to filosófico ou em qualquer outro. Naturalmente, não é um problema a
possibilidade de pôr a pergunta e respondê-la, sendo esta uma faculdade
bem compartilhada pela humanidade, com resultados variados. Antes,
é um problema a legitimidade não só da resposta, mas também da per-
gunta, ou seja, o critério de toda possível abordagem do sentido, dado
que não existe método para afrontar o problema. E não existe método
pelo simples — e radical — fato de que o sentido constitui o princípio
sobre o qual todo método subsiste e tem valor, todo e qualquer método
enquanto desenvolve a função de critério do sentido daquilo a que se
aplica (um sentido chamado “verdade”).
Portanto, o problema consiste no fato de que o sentido está pressupos-
to em todo perguntar e em todo responder. Logo, também no perguntar
e no responder sobre próprio o sentido — e está pressuposto exatamente
porque o sentido é o pressuposto de todo perguntar e de todo responder

1. Universidade de Genebra, Suíça.

263
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

(do sentido de toda possível verdade e pergunta sobre a verdade). Em ou-


tros termos, todo perguntar sobre o sentido e todo responder o que é o
sentido é uma petitio principii: se não fosse assim, a pergunta não poderia
ser reconhecida como pergunta, como problema, nem assumida (ou nega-
da), e a resposta não poderia ser recebida como pertinente ou como falsa.
Com efeito, não é raro que se fale de negação ou de falsificação, dado que
mesmo negação e falsificação pressupõem o fato de que o elemento tenha
sentido como “estranho a um determinado âmbito do sentido”2. Dir-se-á,
então, que só o que não pertence a um âmbito de sentido A tem sentido:
o grito da fera humana, o grito incompreensível, a negação da palavra, o
silêncio; nenhum destes é uma pergunta ou uma resposta compreensível
e passível de ser assumido. Mas isto também não está correto: todas estas
não-perguntas e não-respostas têm sentido justamente como elementos
sem sentido, isto é, como “não-sentido”; também o insensato tem sentido,
e o seu sentido é aquele de ser “insensato”.
O uso de aspas para “insensato” é significativo, pois representa estetica-
mente como nada que esteja na linguagem é privado de sentido. É suficien-
te que uma coisa seja afirmada (ergriffen) pela linguagem como conceito
(Begriff), ou mesmo que tenha se tornado palavra, para que tenha sentido;
mas, dado que não existe uma diferença entre elementos da linguagem e
linguagem senão para o linguista, ou seja, depois da linguagem (uma vez
que a linguagem entrou no mundo) e na linguagem (a linguagem usando a
linguagem), a linguagem não tem sentido, mas, num modo mais profundo,
é sentido3. Eis então porque o problema do sentido cria problema: não é
possível nem mesmo pôr a pergunta sobre o sentido, pois não há nenhum
sobre, mas somente um constante no; a pergunta, toda pergunta, e do mes-
mo modo toda resposta, existe na linguagem, no sentido, e não se pode
saltar além desta Rhodes do sentido com a linguagem, assim como não é
possível saltar a própria sombra; nem obter resultados sobre um objeto de
investigação que é, ao mesmo tempo, a condição da própria investigação,
assim como não é possível pedalar e ver-se pedalar.

2. Por exemplo, não tem sentido resolver um problema científico com conceitos
religiosos, mas isso não significa que os conceitos religiosos não tenham sentido: não o
têm no âmbito ao qual o problema pertence (a ciência).
3. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. L. C. Malimpensa, São Paulo, É Realiza-
ções, 2012, 594-595.

264
15. O que é sentido?

Se também o que é insensato tem sentido na qualidade de “insensa-


to”, ou seja, na linguagem e como linguagem, então tudo tem sentido, ou,
mais profundamente, o sentido é o “tudo”, é cada formulação possível de
tudo. Esta afirmação é tão simples quanto vertiginosa: isto equivale à tau-
tologia que o sentido é isto que tem sentido, sabendo que este “isto que”
é a totalidade não apenas tornada linguagem, mas, mais corretamente, a
totalidade como linguagem. Reduzindo tudo à palavra, o homem é senhor
do mundo (Gn 2,19-20) e o possui, pois não existe mais nada que seja es-
tranho ou alheio a ponto de não ter sentido. Por isto, a pergunta sobre o
sentido cria problema: pertence à mesma função que pretende questionar,
ao “tudo” que pretende seccionar e analisar. Poderia, portanto, começar
seccionando a si mesma, mas então não seria mais ela mesma: em suma,
não tem sentido perguntar o que seja o sentido — ou melhor, o seu sen-
tido é aquele de uma pergunta destinada a permanecer irresoluta.
E, no entanto, a pergunta é colocada e será colocada — dado que uma
ilicitude nunca funda uma impossibilidade. No máximo, a pergunta pode
ser posta como denúncia da transcendência de toda coisa do seu ser “coi-
sa”, denúncia da distância da coisa da sua redução a conceito — mas esta
operação também pressupõe uma atividade do pensamento4 e, assim, da
linguagem5; mesmo neste caso o que deveria estar além de todo sentido é
apreendido, por exemplo, como “transcendência” ou como Ding an sich.
O mundo não mais weltet, a coisa não mais dingt6 (se já o fizeram ou pu-
deram fazer7), antes, um e outro falam e são falados: são falados pelo ho-
mem e falam ao homem com a sua linguagem. A linguagem do homem
substitui a linguagem própria do mundo (linguagem impossível de conhe-
cer, pois todo conhecimento do mundo advém sempre segundo conceitos
humanos), e o mundo se torna “mundo”, aos fatos do mundo sucedem as

4. Cf. I. Kant, Immanuel Kants gesammelte Schriften, Akademieausgabe vol. IV


(Kritik der reinen Vernunft 1781), Berlin, de Gruyter, 1968, A 190 ss.
5. A partir do momento em que se pensa com linguagem, na linguagem e como
linguagem. Cf. M. Heidegger, In cammino verso il linguaggio, trad. A. Caracciolo, Mila-
no, Mursia, 1959.
6. M. Heidegger, “Das Ding” in ID., Vorträge und Aufsätze, Tübingen, Neske,
1954, 27.
7. Dado que, novamente, “welten” e “dingen” são dois verbos, ou seja, componen-
tes da linguagem.

265
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

palavras, de tal forma que não subsistem mais fatos que não sejam “fatos”,
fatos-ditos, isto é, fato-sentidos. Com linguagem, na linguagem e enquan-
to linguagem, os fatos do mundo têm sentido, e o sentido está no mundo
e é o mundo. A palavra e a linguagem estão em toda parte e são “em toda
parte”, este “em toda parte” tendo sentido justamente em função da lingua-
gem8; tudo é iluminado de sentido, este “tudo” e este “é” estando apenas e
exclusivamente na linguagem, como linguagem; tudo é dito pela, com e na
linguagem — o que significa: tudo tem sentido enquanto tudo é sentido,
sentido de toda coisa enquanto dita, enquanto “dito”.
Na realidade, porém, este dito é uma pluralidade de “ditos”: o sentido
se explica numa pluralidade de discursos, todos sensatos, mas cada um
tendo o próprio sentido segundo o tipo específico de pertença (ou segundo
as próprias coordenadas lógicas de genus proximum e differentia specifica).
Isto implica o fato de que um discurso sensato segundo um tipo não o seja,
necessariamente, no âmbito de outro. Portanto, todo discurso, justamente
porque (e não “embora”) sensato a seu modo, tem sentido: o princípio sobre
o qual essa pluralidade de discursos recebe unidade formal, sobre o qual a
pluralidade de sentidos (científico, artístico, cotidiano, moral, psicológico
e outros) é compreendida como expressão da especificação de uma função
geral, é, segundo Weil, o “Sentido” formal, a função sobre a qual todos os
sentidos concretos estão construídos como sentido: enquanto forma da lin-
guagem, o “Sentido” formal é inexprimível, inefável, pode ser compreendido
apenas indiretamente, pelo seu reflexo, como o rosto da medusa — ou no
que vai além da linguagem. Mas sobre isso falaremos no fim.
Em todo caso, essa identidade de sentido entre os vários discursos
vale somente em termos formais. Em termos empíricos, não existe o dis-
curso, mas os discursos, todos sensatos, como se disse, em base à própria
forma metodológica. Naturalmente, um discurso pode acusar um outro
de insensatez, dando lugar a um Streit der Begriffe. Mas este conflito sub-
siste justamente em força da identidade formal dos beligerantes, do seu ser
conceitos. Não há nada além do conceito: não há sentido conceitual do
sentido dos conceitos, não há critério sobre o qual determinar de modo
último e definitivo a sensatez ou a insensatez de um conceito (novamente,
isto significaria saltar além da própria sombra, ver o mundo e ao mesmo

8. E. Weil, Lógica da filosofia, 594-596.

266
15. O que é sentido?

tempo vivermos9). Todo conceito é sensato; é o mesmo que dizer que não
há conceito que possa (darf) ser juiz de outros conceitos. Portanto, os prin-
cípios gerais — dentro dos quais os conceitos se conectam entre si — ou os
tipos formais dos discursos — as sínteses específicas de genus proximum e
differentia specifica, que Weil chama as “categorias” — são igualmente vá-
lidas enquanto funções (f) de uma determinação do sentido (f(x)). Logo,
o esforço de uma lógica destas categorias, destes métodos, como a Lógica
da filosofia de Weil, pode “apenas” ser uma classificação destas categorias
num sistema — certamente não um confronto entre elas.
Segundo Weil, a determinação da forma de uma tipologia formal do
discurso (ou de uma “categoria”) coincide com a história. De fato, se o
conceito de um tipo (“categoria”, “sentido”) de discurso é determinado, o
discurso, a sua lógica, o seu ser sentido imediato já está superado. Trata-
se, obviamente, de uma mediação de segundo grau, a partir do momen-
to em que o conceito já é uma mediação entre homem e mundo (como
instrumento do mito adâmico da posse do mundo): a conceptualização
do sentido implícito de um discurso significa que este é objeto de (meta)
discurso. É esta “objetivação” (novamente de segundo grau) conceitual do
sentido, do método de um discurso, que é história: o discurso procede de
um sentido imediato à explicitação deste sentido e, portanto, a um novo
sentido imediato (o primeiro sentido sendo explicitado e conceitualizado
pelo segundo, sendo este o princípio implícito de conceptualização daque-
le), e assim por diante. A partir do momento em que todo evento é um
evento-dito, esta explicitação do sentido implícito é a forma sobre a qual
os eventos estão numa sucessão sensata, é o princípio sobre o qual não
há nem eterna fixidez do próprio momento (“faustiano”, também sobre
isso falaremos depois), nem uma miscelânea desordenada de eventos,
mas uma ordem nos eventos, no seu sentido, chamada “história”.
Finalmente, é a conceptualização que funda este sentido-história na
modalidade de uma progressão de um sentido (não-conceitualizado) a
um sentido (conceitualizado)10, de uma imediatez do sentido dos eventos

9. Cf. W. Goethe, Maximen und Reflexionen, Frankfurt, Insel, 1979, n. 124. “Der
Handelnde ist immer gewissenlos, es hat niemand Gewissen als der Betrachtende”.
10. O mesmo processo idêntico está presente em Weil na passagem da atitude ao
discurso (sobre a atitude, ou seja, na passagem da “Certeza” relativa a certo conteúdo sacro

267
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

à sua explicação e, portanto, a uma nova imediatez sensata dos eventos


(eventos sempre entendidos como “eventos”, discursos sobre eventos). Por
consequência, a conceptualização é o princípio da linearidade da história;
esta é linear como movimento da conceptualização, como ato de “pintar
o cinza”11 — pouco importa se se pinta de cinza o “cinza” do discurso ou o
“verde” da vida, dado que o princípio é o mesmo: trata-se ou de uma ime-
diatez (do sentido assumido como tal, como “certo”) em todo caso mediada
(pela determinação desta certeza) ou de uma mediação (do sentido como
linguagem) de toda forma imediata (dado que o ato de pintar de cinza é
sempre parte do Lebens Goldner Baum), e, portanto, a se mediar.
Todavia, a relação entre sentido e história não está completa: se fosse
assim, a história seria meramente uma acumulação de sentidos, com o
resultado paradoxal que a distância de um sentido passado (sendo esse
ser-passado o que é chamado de “o passado”) seria tão grande em relação
ao presente que aquele, simplesmente, não poderia ser conhecido. Em
suma, se a história fosse apenas linear, não poderia ser ktēma es aei (Tuc.
Hist 1.22). Mas a compreensão do passado é uma realidade, o passado faz
sentido, e o fato de que a frase de Tucídides nos fale é a prova “metodoló-
gica” disso: a história é, de qualquer modo, determinada por uma forma
de repetição que coincide com a categorização. Esta última se baseia na
assunção de um dado número de princípios do sentido (ou seja, especi-
ficações do “Sentido” formal) como os “universais” da meta-reflexão, as
constantes gerais do sentido dos sentidos, ou do seu “ser-sentidos”. É to-
talmente irrelevante que estas categorias sejam transcendentais (Kant),
lógicas (Aristóteles), meta-lógicas (Weil) ou empírico-semióticas (Wierz-
bicka), a partir do momento em que a assunção metodológica é sempre a
mesma: as categorias são os princípios invariantes do sentido segundo os
quais o sentido existe e informa (e é expresso por) a linguagem conceitual
em geral (ou prescindindo do tipo específico de discurso); as categorias
são as constantes do sentido, sempre idênticas a si mesmas não só formal-

(pouco importa se interpretado em termos religiosos ou não) à determinação da condição


desta certeza. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 105-109. O princípio formal deste movimento
é chamado por Weil de “reprise” (cf. ibidem, 122); sobre este complexo tema cf. A. Ves-
trucci, Schéma et reprise, transcendantal et historique, Cultura 31 (2013) 267-286.
11. G. W. F. Hegel, Grundlinien der Philosophie des Rechts [1820], hrsg. v. K.-H.
Ilting, Stuttgart-Bad Cannstatt, Frommann-Holzboog, 1974.

268
15. O que é sentido?

mente (como “categorias”), mas também constitutivamente (como “esta”


ou “aquela” categoria). Diferentemente da natureza da conceptualização,
a categorização, ou a aplicação (não a determinação12) das categorias, é
válida de uma vez por todas, para cada conceptualização anterior, presen-
te ou futura conceptualização: a partir do momento em que as mesmas
categorias estão sempre ativas na história (fundando essas mesmas toda
possível compreensão da história), o sentido do mundo é formulado so-
bre o princípio de recorrência das mesmas condições formais. Portanto,
a história não é apenas linear, é também circular13.
A síntese entre categorização e conceptualização, circularidade e linea-
ridade, gens proximum e differentia specifica, constitui o sistema cartesiano
sobre o qual o sentido é atribuído a todo possível evento como evento-
dito, e a referência formal de cada evento dentro do sentido14. A história
é ktēma es aei a partir do momento em que seu mecanismo de determi-
nação está sempre presente à luz da estrutura do nosso entendimento do
sentido — segundo Weil, para as nossas “categorias”, o sentido é sempre
idêntico a si mesmo como especificação (categorial) do seu princípio for-
mal. Entrementes, a história jamais é a mesma: uma forma de vida é ainda
“verde” ou “presente” justamente porque, todavia, não foi pensada, e não
foi pensada exatamente porque é impossível pensá-la enquanto não estiver
na história — em poucas palavras, o seu conceito não está formulado: por
isso, o sentido é sempre diferente na forma da pluralidade dos sentidos.
Pluralidade material e identidade formal do sentido se pressupõem: a for-
mulação do conceito implica a constância das categorias (de outro modo
a linearidade da história seria insensata, e, logo, não haveria história), e
vice-versa, a aplicação da categoria implica a progressão e o movimento

12. Não “determinação” das categorias, a partir do momento em que a determina-


ção das categorias, uma vez reconhecida e sancionada a função de específicas categorias
e da categoria formal em geral, é um resultado linguisticamente impossível — enquanto
pressuporia a superação, dentro dos limites da linguagem, do sentido da própria linguagem
e do seu ser linguagem do sentido. Sobre a problematicidade da dedução das categorias
em Kant, cf. H.-J. de Vleeschauwer, La Déduction trascendantale dans l’oeuvre de Kant,
vol. II. H.-J. de Vleeschauwer, La deduction transcendantale de 1781 jusqu’à la deuxième
édition de la critique de la raison pure (1787), Antwerpen, De Sikkel, 1936.
13. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 84.
14. Esta sinergia entre conceitualidade e categoricidade é, parece-me, o lugar mais
puro em que Weil é “kantiano pós-hegeliano”.

269
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

do conceito (de outra forma, a história seria sempre a mesma, e, por con-
seguinte, não haveria história); a história é compreensível e tem sentido à
luz da constância categorial-formal, e é compreensível como história à luz
da novidade conceitual-material: o sentido formal é o princípio sobre o
qual os eventos da história são eventos conceituais, e os eventos concretos
enquanto “ditos” têm sentido como eventos históricos; concomitantemen-
te, a pluralidade dos sentidos concretos dos vários discursos é o princípio
sobre o qual um período histórico é definido na sua diferença e continui-
dade a respeito dos outros períodos históricos.
É assim confirmada a relação sentido-linguagem. O sentido é todo
discurso possível, é a mediação imediata da linguagem diante do mundo,
é a totalidade dos eventos conceitualizados e categorializados, e, conse-
quentemente, historicizados. A história é o sentido, o sentido é a história,
e todo evento tem sentido e é sentido enquanto inserido nas coordenadas
formais da linearidade do conceito e da circularidade categorial. Existe um
sentido que não coincida com a linguagem, que seja anterior, posterior ou
que esteja além da linguagem? A própria pergunta, seu sentido e o sentido
de toda resposta possível, jazem inexoravelmente na linguagem, existem
graças à linguagem e, sobretudo, têm sentido enquanto linguagem.

II

No entanto, estas perguntas são colocadas e compreendidas como sensa-


tas, ainda que toda resposta negue a si própria no momento mesmo em que
é formulada, como alguém que queira definir o silêncio usando palavras.
Estas perguntas podem surgir de um desconcerto e de um desconforto,
resumidos no “nuda” do “Nomina nuda tenemus”15: possuímos somente os
nomes, não temos acesso à rosa, a partir do momento em que não há mais
rosas ou fatos em si mesmos, mas esses-na-linguagem — há somente “nuda”
linguagem. Quando a linguagem fez seu ingresso no mundo, este foi engo-
lido por ela no interior do sistema de nomes, conceitos e formulações de
juízo: desde então a nostalgia de um acesso primitivo e imediato às coisas,

15. É esta a segunda parte do célebre dáctilo: “Stat rosa pristina nomine, nomina
nuda tenemus” que conclui o Nome da rosa de Umberto Eco.

270
15. O que é sentido?

o desconforto pela queda do jardim das coisas ao reino dos nomes, o des-
concerto pelo sentimento de perda da dingendes Ding e do weltende Welt
anterior, posterior e além da palavra. Esta aura de vã nostalgia (vã porque
não é sequer possível saber o que foi perdido ou se algo se perdeu, dado que
todo saber é devedor da linguagem), este “nuda”, faz dizer o poeta: “So lernt
ich traurig den verzicht:/Kein ding sei wo das wort gebricht”16.
Mas as perguntas sobre um “sentido” para além da linguagem têm um
valor formal e não apenas psicológico — e é este valor que nos interes-
sa. Sendo formal, ele informa não apenas toda posição psicológica, mas
cada expressão poética sobre os limites da natureza total e totalizante da
linguagem17. Formalmente, estes limites não são mais interpretados como
um dano a uma suposta liberdade do poeta, mas reconhecidos como au-
tolimitações da linguagem, relativas ao fato de que a linguagem, como já
foi acenado, não tem acesso a si mesma: dado que ela é o princípio que
funda o objeto e que todo objeto possível existe como objeto do conhecer18
(e, assim, do conhecer linguístico), a linguagem não pode ser objeto de si
mesma19. Isto implica que só uma “outra” linguagem a respeito daquela
conceitual e nominal pode ter acesso a ela, pode dizer o que a linguagem
é e, ao dizê-lo, exprimir suas condições e seus limites.
Esta “outra” linguagem assume numerosas formas, o que Weil resu-
me sob o conceito de poésie indicando, com esta locução, “não a arte das
rimas”20, mas o princípio criador da linguagem, a sua própria fonte. A
referência ao segundo Heidegger é evidente21: “poesia” é tudo o que con-
sente um acesso imediato ao mundo, aquilo em que o palpitar do coração

16. S. George, “Das Wort”, in Id, Das Neue Reich, Stuttgart, Klett-Cotta, 2001, 13-14.
17. Ou melhor, toda expressão linguística deste “totalitarismo” da linguagem (além
de ser uma contradição em termos) termina por ser poética, mesmo se não há nenhuma
vontade de ser poéticos, mesmo se se usa a linguagem argumentativa. E vice-versa, a uti-
lização desejada da linguagem para fins (além)linguísticos na poesia corre o risco de fazer
decair o poema no clichê ou na caricatura.
18. Cf. H. Rickert, Der Gegenstand der Erkenntnis. Einführung in die Transzenden-
talphilosophie, Tübingen, Mohr, 1928.
19. Tudo pode ser visto, pode ser objeto de teoria, pode ser objeto através da lin-
guagem. Portanto, a linguagem não pode ver a si mesma, não pode ser teoria de sim, pois
isto implicaria dizer a linguagem sem a linguagem.
20. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 594-595.
21. De fato, a poesia conclui a categoria do Finito, marcada pela figura de Heidegger.
Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 550-552.

271
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

do mundo e da coisa pode ser ouvido sem filtros — e, observe-se, é jus-


tamente a poesia como arte das rimas uma das expressões mais elevadas
deste acesso. O caso é curioso, pois a poesia utiliza a linguagem: trata-se,
então, de uma sorte de linguagem supra-linguística, uma linguagem que
mostra o que a linguagem encobre em força da pindárica liberdade das
normas linguísticas — uma liberdade não buscada, mas fundamental
epifenômeno e consequência da espontaneidade da arte poética, da sua
autonomia imediata, que não pode se repetir e, portanto, a-normativa. É
nesta espontaneidade criativa que o mundo é enquanto tal e não “mundo”,
“dichterisch wohnet der Mensch”22, “vive”, não “pensa” ou “diz”. Conse-
quentemente, a poesia é irredutível a toda expressão linguística23: justa-
mente enquanto espontaneidade — vida que plasma a linguagem segundo
a própria espontaneidade — ela é “outro” a respeito da linguagem, e o seu
sentido não pode ser exaurido por um conceito.
A mesma irredutibilidade da linguagem conceitual pode ser revelada
também (e sobretudo) por outras formas de arte, as quais, ao contrário
da poesia, estão livres da ambiguidade da utilização supra-linguística da
linguagem. Uma destas formas é a música, ou melhor dizendo, a beleza
musical. A diferença é fundamental, pois, se de um lado é possível de-
terminar as leis da música, de outro, é absolutamente impossível deter-
minar as leis da sua beleza, toda tentativa de uma formulação normativa
incorre em banais falsificações empíricas. Isto é verdade, quer no caso de
uma metodologia historicista ou biografista que conecte a priori a bele-
za a certo estilo (polifonia, dodecafonia…) ou a certo autor (“qualquer
coisa que Mozart tenha composto é bela”), quer no caso da metodologia
formalista que, mais corretamente, intende se limitar às análises da mú-
sica na sua especificidade (além de toda ingerência psicológica e histo-
ricista), conectando a música com os princípios gerais de determinação

22. Cf. F. Hölderlin, “In lieblicher Bläue blühet”.


23. A versão em prosa de uma poesia não é a poesia, e isto é infelizmente verdade
para a tradução (apesar desta incompatibilidade e resistência linguística ser muito mais
rara em prosa do que em poesia). Dizer “Kennst du das Land wo die Zitrönen blühn” não
equivale em nada a “Conhece a terra onde florescem os limões”, nem a “Mignon pergunta
a Wilhelm se conhece a região do Lago de Garda”. De Goethe a Hölderlin: “Die Mauern
stehen/Sprachlos und kalt, im Winde/Klirren die Fahnen”: trata-se simples e tão-somente
da segunda “metade da vida”, o inverno da existência? Também se fosse assim (e certamente
não é assim), temos imagens de um lado e a explicação destas imagens de outro.

272
15. O que é sentido?

objetiva (como harmonia, ritmo, timbre, intensidade, frequência), ou a


leis universais de descrição.
Nenhum dos dois tipos de leis corresponde às condições sobre as quais
um objeto é, em primeira instância, reconhecido como belo e, numa segun-
da, como obra de arte: por um lado, cânones e estilos históricos são condi-
ções de explicação de um objeto como obra de arte e só depois, num segundo
momento, como belo24. Por outro lado, as leis científicas quantitativas são
as condições de conhecimento da música enquanto som, e não têm nada a
ver com as condições da beleza de um som enquanto música25. Nenhuma
destas traduções conceituais da legalidade da beleza está em condição (pois
não pode estar em condição) de explicar o porquê de uma música ser bela.
Portanto, as “leis” da beleza existem somente no objeto-música, na ime-
diatez da criação ou recepção da obra — de tal modo que tanto a criação
quanto a recepção de uma obra de arte são apenas a contínua e renovada
criação de leis26, e a música bela é um som especial exatamente enquanto
dotado de um sentido que não se consegue asseverar (ergreifen).
O mesmo vale para a pintura, ou seja, à abordagem da beleza das cores:
as leis da beleza pictórica são irredutíveis a leis objetivas, a menos que se

24. Cf. T. Mann, Joseph und seine Brüder, vol. I, Berlin, Aufbau, 1955, 391-399.
25. O formalismo opera uma redução do belo aos elementos objetivos e quantificáveis
de uma música, tornando o belo dependente destes (cf. E. Hanlisck, Vom Musikalisch-Schö-
nen. Aufsätze. Musikkritiken, Leipzig, Reclam. 1982, 137-138). Isto implicaria a possibilidade
de afirmar um belo objetivo e universalmente reconhecido, mas assim, o juízo estético se-
ria determinante e nãos mais reflexivo. A discordância entre juízos estéticos e a identidade
formal dos juízos na sua discordância (ou seja, a inteligibilidade da prevalência de um juízo
sobre os outros) são as melhores falsificações das precedentes implicações. Um formalista
poderia objetar o seu desinteresse pelo belo; deveria então explicar porque aquele determi-
nado som-música e não um outro seja o objeto da sua investigação. O método de seleção
analítica implica o fato de que o objeto de análise seja uma “música”, um tipo especial de som.
As conclusões do formalismo são então ou incoerentes ou irrelevantes do ponto de vista do
belo (e, assim, é absurdo falar de Musikalisch-Schön). Todavia, excluir o problema do belo
não significa resolvê-lo, ao contrário, significa tornar mais agudo o problema da diferença
da música dos outros sons. Sobre este complexo tema, cf. A. Vestrucci, Music, analogy and
the beauty of everydayness, e, Music, wandering, and the limit of any method, Knowledge
Cultures, Numero Speciale Aesthetic knowledge, a cura di P. Murphy. In mimeo.
26. Por exigência de brevidade tive de resumir numa frase toda a análise que Her-
mann Cohen propõe da específica legalidade do belo e dessa para a música. Cf. H. Cohen,
Werke, voll. VIII. Ästhetik des reinen Gefühles I e II, Hildesheim, Olms, 1982, 47-78; Ibid.,
Voll. IX, Ästhetik des reinen Gefühles I e II, Hildesheim, Olms, 1982, 135-138.

273
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

queira afirmar que a beleza de um conjunto de cores dependa da frequência


do campo eletromagnético das próprias cores. E, mesmo com grande risco,
este estranhamento à linguagem pode ser sustentado também para a be-
leza natural: “um pôr do sol, uma flor são o que são, nada mais, isto é, nada
menos”27 — “nada mais”, ou seja, não um conceito, mas um evento, este
puro e simples evento; “nada menos”, quer dizer, não um evento entre outros
eventos (todos igualmente conceitualizáveis), mas um evento belo.
Em todos os casos, a beleza — ou o sentido que torna particular o es-
tatuto deste objeto — prescinde de toda possível expressão linguística, a
partir do momento em que a legalidade da beleza pode ser linguisticamente
expressada apenas na sua tradução em algo diferente, seja a formulação ab-
surda (absurda enquanto a posteriori) de leis psicológicas ou históricas (de
história da arte), seja a formulação de leis objetivas e universais (formula-
ção não absurda mas em todo caso irrelevante no que se refere à legalidade
da beleza). Em todos os casos concernentes à beleza, o sentido das coisas
belas e a sua legalidade subsistem e se exprimem em força de uma suspen-
ção do conceito e da sua função de universalidade; todo dizer possível,
palavra ou conceito sobre a beleza, são irrelevantes, não podendo julgá-la
ou enunciá-la de outra forma além de “bela” — aliás, talvez fosse melhor
simplesmente silenciar, sendo ela já é completa em sua presença.
Algo semelhante acontece com a revelação divina. Como para a arte
da poesia, também neste caso se trata de um uso “supra-linguístico” da lin-
guagem, mas, diferentemente daquela — e similarmente ao que se passa nas
leis do belo musical — este uso não se baseia na mimesis da fonte a-sensata
do sentido linguístico, antes, está na superação de um limite linguístico.
No que se refere às leis da beleza, trata-se do limite da universalidade do
conceito; no caso da revelação, lida-se com a própria fundamentação
do sentido, fundamentação esta que a linguagem não pode determinar,
exatamente porque não pode “se ver” como objeto para si mesma. Esta
fundamentação da linguagem, colocada além do seu horizonte e do seu
limite, só pode implicar e se constituir (e se exprimir) na e como negação
de todo critério possível de sentido. O sentido da revelação28 não deve

27. E. Weil. Filosofia moral, trad. M. Perine, São Paulo, É Realizações, 2012, 291.
28. O genitivo é, seja objetivo, seja subjetivo, desde que o sentido que a revelação
revela seja (enquanto sentido total e absoluto) o sentido que a revelação detém: a revela-

274
15. O que é sentido?

ser expressado e determinado; a verdade não é mais algo a se buscar ou


a se fundamentar: sentido e verdade são revelados e presentes na sua
totalidade na e como palavra divina. Portanto, o sentido revelado é um
supra-sentido, além de todos os sentidos possíveis: consequentemente,
só pode se explicar na falsificação do estatuto de todo sentido diferen-
te precedentemente (humanamente) adquirido, na destruição de toda
certeza humana — em particular, porquanto concerne a identidade, a
liberdade, a verdade e a justiça.
Para a identidade, posso citar o “Tam twat asi”29, a formulação da
coincidência entre “tu” e a fundamentação de toda realidade: o “tu” não
é mais este ou aquele indivíduo (tão insignificante30), mas o principium
individuationis. A equação é entre o princípio que governa a totalidade
e aqueles que governam a singularidade: a tua essência, o Atman, é a es-
sência completa, o Brahman; tudo, mesmo este “tudo”, mesmo esta frase,
e eu que a escrevo e tu que a lês, a universalidade do “leitor” e da “frase”,
tudo está incluído e absorvido pelo Brahman, pelo ser-real da realidade,
da divindade que jaz antes e além31 deste “tudo”, e mesmo deste “jazer”.
No sono, na libertação de si, na dissolução no mar do nirvana32, esta
equação é verdadeira porque é vivida na sua verdade.
Para a liberdade, é fácil pensar na ananké trágica clássica, ao qual
também os olímpios estão sujeitos; é o fato que fundamenta a verdade e
a legitimidade cultual do oráculo, e que está pronto a se cumprir diante
de toda tentativa de mudar seu curso (Édipo); é a culpa supra-individual
que mancha desde a aurora dos tempos toda uma estirpe (novamente
por causas externas à vontade do homem) e que influencia nas escolhas
da última progenitura (Antígona). Mas é também a predestinação, o fato
que a salvação prescinda de toda obra e obedeça unicamente à vontade de

ção é revelação de si mesma (tem a si mesma como conteúdo, é a sua própria verdade), e
a revelação da palavra divina é a palavra divina.
29. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 597.
30. Com um sincretismo talvez um pouco otimista demais, recordo Ecl 1,1, o Va-
nitas vanitatum.
31. “Antes” porque “além”: só enquanto fora da realidade o Brahman pode ser a
fundação da realidade (cf. Chandogaya Upanishad VI, 1,4-2.3): “além” porque “antes”:
enquanto princípio do sentido da realidade, a estranheza do Brahman da realidade é o
geral ser-realidade, o seu ultrapassar o sentido é o ser-sentido-presente.
32. Chandogaya Upanishad VI, 8.1, 12.1, 13.1.

275
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Deus, e coincida in finis com a aceitação e a gratidão diante do mistério


do amor desumano de Deus, em cujo seio condenação e salvação coinci-
dem, meras interpretações e divisões humanas da única graça divina.
Sobre a verdade, é suficiente a referência ao uso do paradoxo como
método do discurso religioso, fundado sobre a negação de todo critério
de verdade e também elemento que expressa esta negação, de tal modo que
metodologia e objeto, forma e conteúdo do discurso, coincidem. E assim,
a sabedoria do homem é loucura de Deus e a loucura de Deus é mais sábia
que a sabedoria humana (cf. 1Cor 1,18-31); Deus está presente na ausência e,
portanto, na busca de Deus33; o temor de Deus é sinal da certeza na salvação
e que a certeza na salvação deveria levar ao temor de não ser salvos34.
Para a justiça, tema vastíssimo, basta a citação que Paulo faz de Mal
1,1-2: “Amei Jacó e odiei Esaú”, a famosa metáfora do oleiro e dos vasos
(Rom 9,11-24) e, com espírito “ecumênico”, os dois vasos dos quais Zeus
joga, ao acaso, fortunas e misérias aos homens (Od. W 477-483).
Os sentidos paradoxais de identidade, verdade, liberdade e justiça
estão entrelaçados naquelas urdiduras complexas que são as diferentes
religiões, todas acomunadas pela sua forma: o mistério. A revelação afir-
ma que a verdade não é humana, mas divina, e, portanto, loucura e es-
cândalo para quem não a assume como único critério de verdade; e este
conteúdo é a forma mesma da verdade, que nega toda verdade humana,
tornando-se, assim, inexprimível por qualquer afirmação humana ver-
dadeira35. Por isso, revelação é mistério e revela que a verdade é mistério.
O mistério é irredutível a palavras que neguem o valor das palavras, e
todo discurso humano é inútil e falso quando tenta exprimir o mistério

33. Cf. B. Pascal, Pensées, Paris, Brunschvicg, 1897, n. 553: “Console-toi. Tu ne me


chercherais pas si tu ne m’avis [déjà] trouvé”.
34. Cf. ibid., n. 776: “Ne timeas, modo timeas”.
35. Esta é a natureza íntima da revelação: o fato que não possa ser objeto de um dis-
curso (sobre a revelação) senão como a declaração da negação de todo sentido humano.
Por que, em verdade, Jó é o único a falar de Deus (Jó 42,7)? Porque não reduz a vontade
de Deus aos cânones humanos de justiça, nem falsifica o que lhe aconteceu escondendo-o
sob vestes de compreensibilidade humana. O que lhe ocorreu não é aceitável segundo a
justiça humana, e por esta razão, Jó vê nisto a presença de Deus e o sentido do que lhe
acontece no seio da revelação da vontade divina. Cf. I. Kant, Immanuel Kants gesammelte
Schriften, Akademieausgabe, VIII (Über das Misslingen aller philosophischen Versuche in
der Theodicee), Berlin, de Gruyter, 265-268.

276
15. O que é sentido?

da revelação — enquanto sentido a-sensato diante de todo sentido hu-


mano. A única atitude possível diante deste sentido é a escuta e a acei-
tação, ou seja, o silêncio, a anulação da própria linguagem e do próprio
espaço para dar espaço a Deus, a adoração da Sua presença, ela mesma
presença revelada e revelação.
Nas duas modalidades da beleza e da religião o sentido está presente
como presença: presença da beleza na obra de arte e como obra de arte,
presença da divindade na revelação e como revelação. O sentido não é
mais algo a sintetizar, exprimir, determinar: ele já é sintetizado, expresso
e determinado como totalidade e plenitude na sua simples presença, sem
necessidade de qualquer intervenção ou conceito, sendo, portanto, todo
acréscimo à sua presença mera falsificação. Por isso, é mistério (também
a beleza é mistério, pelo menos segundo o Príncipe Myskin).
Nessa presença, a história do conceito e da categoria cessa o próprio
movimento circular e linear. A presença do sentido é o fim da história:
a história como sentido conceitual espreita a beleza, a religião, e mesmo
o amor36 — tão atrelado ao belo e ao divino —, estanca diante deste
sentido estético e religioso expresso além de toda expressão, no silêncio
da beleza cultivado e gozada, da oração, da plenitude amorosa. Fala-se
para não mais precisar falar, para viver (e não “exprimir”) a presença do
sentido37: o esforço da posse conceitual e categorial do mundo é condu-
zido até que (e, portanto, termina no momento em que) o homem pos-
sa finalmente se reencontrar em casa no mundo, possa reconquistar na
beleza e na religião (e no sentimento), o paraíso perdido.

III

Disso resulta que a relação entre sentido conceitual e sentido como


presença é aparentemente negativa: cada um dos dois tipos de sentido faz
violência ao outro, e cada um é violência aos olhos do outro. O uso do ter-
mo “violência” não é por acaso: de fato, violência é a recusa do sentido38 e,

36. Cf. E. Weil, Philosophie et réalité I, Paris, Beauchesne, 1982, 174-175.


37. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 592-597 e 612-618.
38. Cf. ibid., 85-86.

277
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

portanto, o pôr-se como insensato: à primeira vista cada tipo de sentido


tanto representa o limite “violento” diante do qual o outro sentido deixa
de existir, como, consequentemente, recusa o outro ao não o reconhecer
no seu ser sentido.
Do ponto de vista do conceito a presença do sentido (ou melhor o
sentido como presença) é apofática, não representável nem redutível a
conceitos, antes, subsiste justamente na exclusão da linguagem como veí-
culo do sentido: se o sentido não pode ser expresso em conceitos, ele não
está mais presente como linguagem, mas como ausência da linguagem.
Consequentemente, a afirmação (linguística) de que a presença do sen-
tido é o “verdadeiro” sentido opera violência ao sentido linguisticamente
entendido. Aos olhos do conceito, o silêncio diante da presença da beleza
e da divindade, silêncio como união estática com o sentido, é a violência
da fera que não fala porque não tem nem objetos nem mundo, na medi-
da em que ela é uma com o mundo, é a exaltação da não-universalidade
e da idiossincrasia, afirmação do subjetivismo estético ou religioso, do
arbítrio — em contraste com a faculdade de universalidade e universa-
lização que só o conceito detém. É o silêncio de quem não está mais em
condições de viver no mundo, o mundo tendo sido reduzido a incessante
mistura de eventos sem sentido (vale dizer, sem história)39.
Paralelamente, do ponto de vista da presença, o conceito opera vio-
lência à presença justamente à luz da sua função de atribuição de sen-
tido por meio da linguagem e como linguagem: dado que a presença
permanece na inefabilidade, toda tradução linguística da presença não
só é falsificação, mas, sobretudo, implica e (ao mesmo tempo) produz a
cessação dessa presença. No caso em que o que vive a presença pretenda
falar dela, esse momento de beleza ou de oração (ou de amor) morre e
murcha, é outro momento (e, portanto, um momento de não-mais-sen-
tido), justamente porque o que era presença é agora objeto da linguagem:
a súplica “Verweile doch, du bist so schön” (Oh, para! És tão formoso!)40,
a confissão da beleza e da esperança de que ela permaneça para sempre
já comporta e implica o seu fim, já é a superação desse Augenblick, que
morre no momento em que se torna palavra, Augenblick. Por conseguinte,

39. Essa é a situação de Crátilo no homônimo diálogo platônico.


40. J. W. Goethe, Fausto, trad. J. Klabin Segall, São Paulo, Editora 34, 2011, v. 1700.

278
15. O que é sentido?

do ponto de vista da presença, a linguagem não é a coisa, mas representa a


coisa, a simplifica e falsifica atribuindo-lhe, arbitrariamente, uma palavra:
a posse do mundo se reduz à posse do mero “mundo”, de uma imagem
linguística e não da sua verdade; isto confirma e implica o abismo entre
significante e significado41 — ou melhor, entre significante e o que pre-
cede todo possível “ser significado”42.
Aparentemente, estamos diante de um aut-aut, cada um dos dois sen-
tidos exclui o outro e nega que o outro seja sentido (antes é não-sentido,
violência, limite de todo sentido possível). Como escolher entre as duas
posições? De modo ainda mais puro retorna o problema inicial relativo
à ausência de um método sobre o sentido. De fato, não existe um critério
superior às duas posições que possa resolver a oposição: este critério de-
veria tanto desdobrar-se numa solução linguística (porque fazendo isso
pressuporia o reconhecimento da linguagem como sentido) como tam-
bém excluir o abandono da linguagem (caso contrário se pressuporia o
reconhecimento da presença como sentido). Tanto a formulação de uma
solução como a exclusão de toda solução estão excluídas pela própria
solução: só o dilema permanece, e permanece irresolúvel.
É justamente esse caráter irresolúvel, ou melhor, a sua causa formal,
que constitui a solução do problema. Voltemos ao início. Dado que toda
pergunta e toda resposta possível sobre o sentido (em nosso caso, na lin-
guagem ou na ausência da linguagem) é uma petitio principii porque o
sentido é pressuposto em todo perguntar e em todo responder, então per-
manece sempre um resíduo: o sentido não pode ser encontrado na história
porque funda a história, não pode ser objeto de um discurso porque funda
todo discurso. A afirmação de que o sentido está presente na linguagem
e como linguagem limita-se ao conteúdo da linguagem, ao sentido para

41. Cf. J. Quillien, De la Sagesse comme fin de la Logique de la philosophie, Annali


della Scuola Normale Superiore di Pisa. Serie III, XI/4 (1981), 1227.
42. A acusação de violência feita por parte da presença contra o conceito (com a
consequente assunção da presença do sentido como “verdadeiro” sentido) é reconduzí-
vel à assim chamada Lebensphilosophie, que se produz numa desvalorização da reflexão
enquanto incapaz de veicular e exprimir o sentido da recepção imediata da verdade: o
pensamento conceitual é reduzido à mistificação, ou seja, à destruição (à qual não segue
nenhuma reconstrução) da verdade numa verdade reflexiva, enquanto reflexiva e reflexão,
é falsa. Cf. F. Quéré, Sur la Logique de la philosophie d’Éric Weil: du spéculatif au politi-
que, Tese di dottorato, Université Charles de Gaulle-Lille 3, 2013, 136.

279
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

a linguagem e segundo a linguagem, sem poder alcançar o sentido que a


linguagem tem. O sentido que a linguagem tem, o sentido do sentido-para-
a-linguagem, ou o sentido dos sentidos (dos discursos, dos conceitos, das
categorias) é a função formal da conceptualização, é o ser-conceito, o ser-
für-sich de cada coisa. Para nós que falamos sobre isso, ele aparece como
o princípio segundo o qual tudo é mediado pela linguagem e tem senti-
do na mediação e como mediação: é a função sobre a qual todo sentido
é construído como für sich e, vice-versa, toda für sich existe e existe como
sentido. É o meta-conceito, a condição lógica do sentido de todo sentido
conceitual (possibilidade do conceito como ser-sentido), o princípio se-
gundo o qual o sentido é formalmente definido de acordo com aquelas
coordenadas lógico-categoriais do genus proximum e da differentia specifica
— ou (jogando com a linguagem) é o genus proximum do todo (inclusive
do conceito de genus proximum), é o conjunto em que tudo é posto e es-
tabelecido como sensato (inclusive o próprio conjunto)43.
Decorre disso que esse meta-conceito não pode ser conceitualizado,
sendo ele o princípio de toda mediação conceitual; não pode ser objeto
de discurso, sendo também o princípio de todo discurso; não pode ser
dito pela linguagem, na medida em que é a linguagem. Qualquer ex-
pressão linguística sua é uma metáfora, uma representação do que é este
meta-conceito an sich — e até o termo “meta-conceito” é uma metáfora,
na medida em que ele mesmo é um conceito. Em síntese, não é possível
atribuir ao meta-conceito um conceito diferente de um dos seus próprios
elementos sem cair do nível “meta” ao nível “material”, concreto, falado,
dos sentidos. Também a proposta de Weil, de determiná-lo através da sua
“especificação” e “difusão” nas várias categorias da sua lógica, é a enésima
prova do seu “princípio de indeterminação” conceitual: o meta-conceito
só tem sentido na sua ausência conceitual44.

43. Falando metaforicamente — porque, como se verá, só é possível falar apenas


metaforicamente do meta-sentido —, se um sentido concreto é um triângulo, então, a
categoria é a geometria euclidiana, ou o lugar em que todas as figuras, todas as formas,
em suma, todo o espaço tem sentido; e o meta-sentido é a geometria como ciência, ou o
princípio sobre o qual não apenas a geometria euclidiana, mas também existem outras
geometrias além daquele de Euclides; em síntese, é a função de “postulado”, qualquer que
seja o conteúdo deste postulado.
44. É um diferente modo de interpretar o que Weil sintetiza na distância entre
sentido concreto e sentido formal. Cf. E. Weil. Lógica da filosofia, 597-599: do ponto de

280
15. O que é sentido?

E o que é esta ausência senão a presença do sentido como presença?


O meta-conceito, esta força do sentido, é tão inefável quanto o sentido
antes (ou depois, ou além) de toda mediação, o sentido no seu ser não-
mediação porque unicamente presença: ambos existem a nível linguís-
tico só na sua ausência, ambos são refratários a qualquer determinação
conceitual. Naturalmente, esta Familienähnlichkeit de a-conceitualidade
entre o inefável sentido-presença e o indizível meta-conceito não é abso-
lutamente suficiente para fundamentar e justificar uma identidade entre
os dois. Todavia, o ponto central não é fundamentar uma forçada identi-
dade, mas, precisamente, apenas aprofundar a afinidade: o que importa
é que essa analogia entre meta-sentido e sentido-presença funciona. De
fato, aprofundar a razão do seu funcionamento permite chegar à correta
interpretação daquela relação violenta entre os dois tipos de sentido, a
presença estética e religiosa e a pluralidade dos conceitos.
Com efeito, a passagem da violência à analogia implica um deslo-
camento do ponto de vista do nível “material” dos sentidos-conceitos e
dos sentidos-presenças ao nível “meta”, formal, por um lado representado
pela forma dos conceitos como princípio do seu “ser-conceitos” e, por
outro, pela forma das presenças como princípio do seu “ser-presença”.
De um lado, passa-se dos vários für sich à função do Für Sich (maiúscu-
lo) como Objetivação e Conceptualização, como sentido do sentido de
todo für sich (sentido do fato que todo für sich é sensato, ou seja, sentido
de todo sentido como für sich), de outro lado se passa dos vários an sich
à função da An Sich (maiúsculo) como Imediatez ou Supra-mediatez,
como sentido do sentido de todo an sich (sentido do fato que todo an sich
é sensato, ou sentido de todo sentido como an sich). É entre estas duas
funções que se estabelece a analogia de a-conceitualidade.
Ora, o funcionamento (se não fosse um pouco redundante, poder-se-ia
dizer “o sentido”) de uma analogia implica a identidade da forma entre ele-
mentos completamente diferentes45. No nosso caso, certamente, os elemen-

vista do mundo dos sentidos, não há um sentido (concreto) no sentido (formal) a partir
do momento em que o sentido formal é o vazio conceitual, nenhum sentido concreto
podendo ser o seu sentido.
45. I. Kant, Immanuel Kants gesammelte Schriften, Akademieausgabe, respectiva-
mente vol. IV (Prolegomena), Berlin, de Gruyter, 1968, § 58; Ibid., vol. IV (Kritik der reinen
Vernunft 1781), Berlin, de Gruyter, 1968, A 179-180 e B 222-223.

281
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

tos são diferentes: de um lado, temos a forma chamada An Sich, de outro,


aquela denominada Für Sich. Portanto, à luz da análoga a-conceitualidade
idêntica é a forma dessas duas formas, ou seja, a sua meta-forma: essa meta-
forma se refere ao seu ser formas do sentido e valida o seu ser formas do
sentido. Essa meta-forma pode ser interpretada como a legalidade sobre
a qual todo sentido possível subsiste ou na mediação da linguagem ou na
imediatez da presença; é a condição meta-formal sobre a qual as formas
An Sich e do Für Sich constituem os “meta-sentidos” universais de todo
sentido possível. Esta legalidade é idêntica tanto para An Sich como for-
ma da presença quanto para o Für Sich como forma da conceptualização,
porque sanciona a sua identidade de valor como formas do sentido, como
fundamentos “ur-lógicos” de todo sentido — todo sentido sendo fundado
e existindo segundo estas duas estruturas formais.
Decorre disso que esta legalidade é posta logicamente (ou melhor,
chegados a este ponto de abstração, “a-logicamente”) antes e depois da
diferenciação entre an sich e für sich. Por este motivo, esta legalidade, este
Sentido (maiúsculo) do sentido de todo sentido, este meta-meta-sentido
não existe (ou seja, o predicado de existência não pode ser-lhe aplicado)
na sua pureza e no vazio, a partir do momento em que qualquer sentido
existe apenas ou segundo a função-presença ou segundo a função-con-
ceptualização. O Sentido existe somente nos e como os meta-sentidos
da An Sich ou do Für Sich: esse ou é meta-presença (isto é, presença for-
mal de si mesmo em toda presença como função de todo específico ser-
presença), ou meta-conceito (ou seja, conceito formal de si mesmo por
todo conceito como função de todo específico ser-conceito).
A essa altura fica claro por que a irredutibilidade da oposição “vio-
lenta” entre presença e conceito contém, in nuce, a solução ao problema
do sentido: esta irredutibilidade é a representação de uma identidade
meta-formal — identidade que se refere não às específicas e diferentes
funções do sentido desenvolvidas da meta-presença e meta-conceito,
mas a seu equivalente ser funções equi-primordiais do sentido, a seu per-
tencimento à legalidade do Sentido como An Sich e Für Sich gerais e for-
mais. Limitar-se à oposição “violenta” entre presença e conceito equivale,
portanto, a simplificar a questão, a não chegar ao nível “meta” onde jaz
o princípio do sentido de cada presença e de cada conceito (ou seja, a

282
15. O que é sentido?

causa formal do porquê de ambos os tipos de sentido serem sentidos e


poderem afrontar-se num aut-aut irresolúvel). O caráter irresolúvel do
aut-aut depende, no nível “meta”, do fato de que irredutível é a equiva-
lência formal dos dois “meta-sentidos”, irredutível é o fato de serem as
únicas condições necessárias daquele Sentido que, como vazia a-logicidade,
só existe como ser-presença e ser-conceito. Em poucas palavras, sentido
como presença e sentido como conceito não podem chegar à síntese,
porque as suas condições formais são as especificações a-sintetizáveis
da função meta-formal do sentido em geral (do “ser-função” de sentido
para cada possível “ser-sentido”). E, vice-versa, a relação entre as duas
formas do An Sich e do Für Sich, na medida em que é relativa à forma do
seu ser-função e não ao modus operandi deste ser-função, e valendo sob
a égide da legalidade comum e não da específica atuação desta legalida-
de (sendo fundada sobre a analogia e não sobre uma identidade direta),
não anula a não-identidade entre os dois elementos, mas a confirma e a
fundamenta na sua justa medida (uma medida “meta”).
Portanto, a ausência de um critério ou de um método superior que
possa dirimir o aut-aut entre sentido como presença e sentido como
conceito é a consequência do fato de que as formas dos dois concorren-
tes — a forma-presença e a forma-conceito — representam o princípio
de todo método possível. Enquanto formas do dar-se do sentido, elas já
constituem os métodos de todo método, os critérios formais de todo cri-
tério de verdade. De um lado, este meta-método sanciona a inutilidade
de todo método, a superfluidade de todo critério, a partir do momento
em que a verdade já é em si completa presente completamente na sua
presença, ou seja, na sua autoposição e autoevidência e, portanto, não
deve ser buscada (toda busca coincide com o encobrimento da verdade),
mas unicamente recebida e aceita na sua expressão como revelação da
verdade46. De outro lado, este meta-método sanciona a necessidade de
todo método e critério, dado que a verdade deve ser buscada e fundada,

46. Esta verdade é o limite além do qual o olhar daquele que investiga a verdade — do
pesquisador — não pode estender-se enquanto fundamento deste olhar e do seu sentido.
Este é o caso não só da verdade do belo e da palavra de Deus, mas também de todo tipo de
verdade que se coloca como auto evidente fundando assim toda evidência, toda verdade,
ou a demonstração da verdade ou falsidade de determinados assuntos. Este é, então, o caso
dos postulados da geometria, como fundamentos de toda verificação de teoremas.

283
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

e, aliás, está na sua fundação, coincide com o desenvolvimento histórico


da sua própria metodologia (toda revelação da verdade como verdade
sendo metodologicamente suspeita). Por um lado, trata-se da forma (le-
galidade) da verdade como mistério auto-fundante, por outro, da forma
(legalidade) da verdade como fruto de constante meta-reflexão.
A esses dois meta-métodos se referem duas atitudes opostas a res-
peito da verdade e do método. De um lado se trata do incondicionado
Sim à presença: é o ajoelhar-se e inclinar a cabeça diante da revelação
bela ou divina (ou sentimental) da verdade; de outro lado se trata do
incondicionado Não a (potencialmente) tudo e ao consequente esforço
da constituição metodológica deste “tudo”: é o manter-se em pé e com o
olhar elevado para investigar a verdade. A atitude diante do método é o
Sim ou Não: tertium non datur. Esta é a dialética entre a “poesia” (fonte
da linguagem e revelação tout court) e a filosofia. Novamente, à luz de
uma idêntica primordialidade (dessa vez não lógica, mas metodológica),
os dois elementos estão em relação analógica: se antes a analogia concer-
nia ao ser sem sentido na qualidade de ur-sentidos, agora concerne ao
ser sem método como ur-métodos. A “poesia” não tem método, porque
rejeita todo método; a sua própria presença, sendo verdade além de toda
investigação possível, verdade de cujo revelar-se depende toda outra ver-
dade; a filosofia não tem método, porque busca com qualquer método,
fundamenta qualquer verdade ao investigar seu critério, e, portanto, o
estatuto epistemológico dessa investigação da verdade coincide com o seu
desenvolvimento histórico, com o seu ser história completando-se.
Weil parece propor uma relação entre as duas meta-metodologias,
a primeira como fonte e fim do sentido-história da segunda, a segunda,
condição graças à qual a se pode conhecer e ver a revelação e a presen-
ça47. Essa relação é justa, dado que o Não não tem sentido sem o Sim e
vice-versa: nos meus termos, de um lado, é exatamente a uma verdade
supostamente presente que se aplica a dúvida metódica como busca e
fundamentação dessa verdade; de outro, a função de qualquer verdade
(reconhecida ou assumida como) auto evidente (como postulado) é a de
servir como critério metodológico de verificação ou falsificação de qual-

47. Cf. E. Weil, Lógica da filosofia, 597-598.

284
15. O que é sentido?

quer outra verdade48. Porém, essa relação só vale para o filósofo, porque é
o filósofo que a formula no contexto de uma busca e de uma fundamen-
tação sistemática da verdade. Em si — e a verdade revelada é sempre em
si na qualidade de presença, é sempre sentido an sich — a revelação não
precisa de nada mais do que essa presença. Em suma, como em toda re-
lação analógica, o que é idêntico não são os elementos, mas a sua forma:
embora igualmente sem método, o não-método da “poesia” não é o não-
método da filosofia, e a relações entre estes é possível justamente à luz da
sua não-identidade. Rebus sic stantibus, pode também acontecer que as
coisas não sejam como se espera: justamente como presença e conceito,
porque equiprimordiais formas do sentido, se enfrentam às vezes como
Castor e Pólux; assim, pode ocorrer que algo não vá bem entre “poesia” e
filosofia, que uma pretenda reduzir a outra a si, a revelação tornando vã
todo esforço de fundamentar a verdade, a busca da verdade duvidando do
estatuto da presença. Em suma, ocorre às vezes que o sentido não entenda
a si mesmo, que uma forma de verdade não entenda a outra — como Jesus
e Pilatos, um diante do outro, um declarando-se ao outro como verdade
em sua totalidade e presença nua, o outro, em troca, perguntando o que
é a verdade, qual o seu fundamento, esta pergunta ecoando na história e
como história, e assim não encontrando resposta (Jo 18,37-38).

IV

O homem está entre Jesus e Pilatos, entre o esforço do silêncio e o


esforço da palavra, entre a an sich e o für sich — o homem que lê sobre
Jesus e Pilatos, que cala e fala, que vive e pensa.
Para este homem, o sentido é. O que equivale a dizer: o sentido não é.
Se o sentido é na sua expressão e como expressão, então o sentido não é
completo (é expressão). Se o sentido é na sua presença e como presença,
então o sentido não é completo (é presença). O homem diz e recebe, busca

48. Isto é verdade não só no suscitado caso da geometria porquanto concerne aos
seus postulados, mas também no caso da religião: a revelação divina é o fundamento au-
tofundaste de todo discurso não apenas sobre Deus, mas sobre tudo, sobre toda verdade
— toda verdade, sendo devedora do seu ser verdade à verdade revelada.

285
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

e vive o sentido. Isto significa que o homem não é o sentido, e o sentido não
é o homem. Por isso, tem sentido a pergunta “O que é o sentido?”.
Existiu, quem sabe, um Paraíso no qual esta pergunta não tinha sen-
tido, porque o sentido simplesmente era? Se existiu, agora está perdido,
e nos encontramos reduzidos a mendicantes do sentido (da sua presen-
ça) ou peregrinos do sentido (da sua expressão). Mas, se mendigamos é
porque esperamos receber, e se esperamos receber é porque já recebemos
algo, antes de perdê-lo. E se peregrinamos é porque buscamos uma casa,
e se buscamos uma casa é porque já havia uma casa antes de partir. É jus-
tamente porque o mendicante continua a estender a mão que se recebe (o
sentido), é justamente porque o peregrino continua a buscar uma casa que
a casa (o sentido) está sempre lá: o Heimat está já em todo Heimweh. Pouco
importa o que se recebe, pouco importa onde está a casa, pouco importa
que sentido que se busca, pouco importa qual é a resposta à pergunta. A
pergunta está formulada, a mão estendida, o pé avança, e isso já é suficiente:
o sentido já está lá, já se fecha a mão, já se está voltando para casa.

Tradução do italiano de Judikael Castelo Branco


Revisão técnica de Marcelo Perine

286
16. Platônicos sem mito e sem deus

Marcelo Perine1

Uma questão anunciada

N a conclusão de um texto intitulado Da discussão ao Objeto. Platão


retoma Sócrates?2, afirmei que a minha reflexão corria o risco de
ser temerária por enveredar pelo campo minado de uma questão que,
segundo Pierre Fruchon, ainda não fora suficientemente explorada no
pensamento de Weil, a saber, o lugar de Platão e do platonismo na Lógica
da filosofia3. Como afirmei naquele texto, pôr a mão no vespeiro da rela-
ção de Weil com o pensamento antigo4 tanto podia parecer uma audácia
comparável à hybris dos antigos, como podia decorrer da convicção de

1. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.


2. Cf. M. Perine, Da Discussão ao Objeto. Platão retoma Sócrates?, Cultura. Revisa
de História e Teoria das Ideias (Lisboa), 31 (2013) 89-108.
3. Cf. P. Fruchon, Vérité et système dans la Logique de la Philosophie en rapport avec
ses références à Parmenide et Platon, Cahiers Eric Weil II. Eric Weil et la pensée antique, Lille,
Presses Universitaires de Lille, 1989, 99-105.
4. Jean-Paul Dumont chama a atenção para o fato de que em matéria de antiguida-
de Weil tinha “uma erudição prodigiosa que lhe permitia, sem nunca recorrer a qualquer
index, Ast ou Bonitz, remeter-se diretamente aos originais”. Cf. J.-P. Dumont, Protrépti-
que et initiation à la philosophie antique (Entretien avec Eric Weil), Cahiers Eric Weil II.
Eric Weil et la pensée antique, op. cit., 37-50, aqui 38.

287
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

não se tratar de um vespeiro, mas da fonte de mel, a que se refere Sócrates


no Íon, da qual brota a inspiração para os poetas5. Agora, como naquela
ocasião, é tarde para voltar atrás. A questão anunciada está presente no
título desta reflexão e as promessas devem ser cumpridas.
A origem da presente reflexão é uma intrigante afirmação de Weil na
conclusão de um memorável texto sobre a antropologia de Aristóteles.
Após afirmar que só se compreende Aristóteles quando se compreende
a sua época, Weil sustenta que um eventual interesse na antropologia de
Aristóteles deve ser buscado “no que não se explica por sua época”. Com
efeito, a antropologia de Aristóteles compreende o ser humano como par-
te do cosmo, “porque toda compreensão passa pelo cosmo”. Entretanto,
segundo Weil, nós não temos e nem podemos ter uma ciência do homem
para opor à de Aristóteles porque, para nós, o homem só é objeto por
acidente: ele é subjetividade pura, negação de todo dado, compreensão
incompreensível, numa palavra, transcendência: “Ao se compreender no
que lhe é acidental, ele já se superou; no momento em que diz: é isso que
eu sou, ele já não o é mais. Somos platônicos sem mito e sem Deus, isto
é, hegelianos, dado que aferramos esse nervo da história. A verdade não
está no mundo ‘exterior’, está em nós; ela se revela no discurso e no diá-
logo, ela não é transmitida pelo ensinamento do sábio”6.
A presente investigação, que retoma deliberadamente o título de uma
comunicação de Jean-Marie Breuvart na jornada de estudos sobre “Eric
Weil e o pensamento antigo”, promovida pelo Centro Eric Weil de Lille,
em 6 de maio de 19887, não pretende discutir as afirmações de Breuvart,
não tem por objeto a antropologia de Aristóteles nem, muito menos, a
filosofia da história de Hegel. O que pretendo é apenas compreender a
compreensão que Weil tem da filosofia de Platão, tematizada na categoria
O objeto da Lógica da filosofia, como “a primeira que dá nascimento não
apenas a uma ciência que, embora não seja a nossa, nos é ‘compreensível’,
mas também, e sobretudo, a uma filosofia que é, ao menos numa pri-

5. Platão, Íon, 534 AB.


6. E. Weil, L’anthropologie d’Aristote, Revue de Métaphysique et de Morale, 51 (1946)
7-36, retomado em Essais et conférences I, Philosophie, Paris, Plon, 1970, 9-43, aqui 42.
7. Cf. J.-M. Breuvart, Eric Weil, un platonicien sans mythe et sans Dieu?, Cahiers Eric
Weil II. Eric Weil et la pensée antique, Lille, Presses Universitaires de Lille, 1989, 69-79.

288
16. Platônicos sem mito e sem deus

meira aproximação, a busca da compreensão total”8. A minha hipótese é


que a compreensão weiliana de Platão, tematizada na categoria O objeto,
confrontada com a retomada da categoria Ação e como uma nota sobre
a compreensão do homem na categoria Deus, explicaria por que somos
platônicos sem mito e sem Deus.

I. O Platão de Eric Weil

Uma das particularidades da Lógica da filosofia é a escassez de nomes


próprios e de notas de rodapé. Numa obra escrita para um Doctorat d’État
o fato é realmente notável. Salvo engano, apenas 87 nomes próprios são
citados em toda a obra, e não apenas de filósofos. No elenco comparecem
fundadores de religião ou reformadores, como Jesus, Buda e Calvino; reis
ou ditadores, como Cesar, Carlos V, Francisco I, Hitler e Mussolini; pro-
fetas, como Ezequiel, Isaías, Jeremias e Maomé; santos, como Paulo, Agos-
tinho, Francisco de Assis e João da Cruz; historiadores, como Tucídides
e Gibbon; poetas e literatos, como Hesíodo e Homero, Heine, Goethe,
Ruskin e Huxley, cientistas, como Newton, Poincaré e Von Haller, e uma
relativamente pequena lista de nomes ligados à filosofia, começando por
Anaxágoras, Parmênides e Heráclito, passando por Descartes, Montaigne,
De Maistre, Rousseau e Voltaire, chegando até Schleiermacher, Nietzsche,
Husserl, Jaspers e Heidegger.
Entre os filósofos, o chefe de fila é Sócrates (43 ocorrências no texto e
2 nas notas9), seguido por Hegel (22 no texto e 5 nas notas), Platão (17 no
texto e 20 nas notas) e Aristóteles (13 no texto e 7 nas notas). As ocorrên-
cias de Sócrates e Platão, somadas, correspondem a 40% do total de ocor-
rências de nomes próprios na Lógica da filosofia. Mas o dado numérico é
apenas um indício do lugar que ocupam na obra maior de Eric Weil.
Uma das passagens mais complexas da Lógica da filosofia é a da ca-
tegoria Discussão à categoria O objeto, como pretendi ter mostrado no

8. E. Weil, Lógica da filosofia, trad. Lara C. de Malimpensa, rev. téc. M. Perine, São
Paulo, É Realizações, 2012, 219. Doravante Lf.
9. Também chama a atenção, pelo gênero literário de uma obra de 442 páginas,
que a Lógica da filosofia tenha escassas 92 notas de rodapé.

289
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

artigo acima citado10. Ela corresponde à passagem da atuação e do en-


sinamento de Sócrates à atitude tematizada na filosofia de Platão e, sob
certos aspectos, também na de Aristóteles. O mundo da discussão é a
transposição para os discursos do conflito dos interesses particulares.
Esse conflito só se decide no âmbito da comunidade, que pode e deve
fixar a regra de procedimento com vistas ao Bem comum. Entretanto,
a discussão destruiu o sagrado da certeza da comunidade, provocando
“uma crise de confiança na linguagem que procede da contradição dos
interesses pessoais com a tradição”11.
Essa crise de confiança se traduz na revolta do bom senso contra a
discussão e o ideal do discurso não contraditório, dado que no mundo
da discussão “sempre se poderá demonstrar ao adversário que ele tem
chifres, visto ter ele admitido que se tem aquilo que não se perdeu e que
ele não perdeu chifres”12. E se o bem da comunidade é o acordo de todos,
o bom senso obriga a ver que esse acordo deve corresponder à realidade:
“se os cidadãos dizem que Alcibíades salvará Atenas e Alcibíades trai a
cidade, o que dizer? Todos estavam de acordo e todos se enganaram”13. A
revolta do bom senso descobre “que a linguagem pode enganar”14, e isso
produz um novo sentido da palavra razão. Como afirma Kirscher, “a ra-
zão é ao mesmo tempo acordo da linguagem consigo mesma, forma do
discurso coerente, e acordo da linguagem com seu outro, essa realidade
sobre a qual ela se dirige e que se torna seu conteúdo”15.
A crise de confiança na razão/linguagem desencadeada pela revolta
do bom senso é o fato com o qual Platão, “que viveu real e totalmente
na discussão”16, tem que se defrontar. Platão é “o homem que vem da
discussão”17 e sabe que ela não conduz necessariamente a uma concepção
correta e à realização do Bem, mesmo quando produz acordo. Portanto,

10. Cf. acima, nota 1. Sobre as “categorias antigas” — Discussão, O objeto e O eu —


da Lógica da filosofia, ver a excelente exposição de G. Kirscher, La philosophie d’Eric Weil.
Systématicité et ouverture, Paris, PUF, 1989, 239-255, espec. 243-251.
11. Cf. L. Sichirollo, La discussion ou la dialectique des anciens, Cahiers Eric Weil II.
Eric Weil et la pensée antique, Lille, Presses Univ. de Lille, 1989, 18.
12. Lf 201.
13. Ibid.
14. Ibid.
15. Cf. G. Kirscher, La philosophie d’Eric Weil, op. cit., 249.
16. Lf 204.
17. Lf 207.

290
16. Platônicos sem mito e sem deus

é preciso opor “aquilo que é”18 ao discurso da discussão. Saber que algo é
assim não é mais suficiente para não recair na luta das certezas concre-
tas: “é preciso saber por que é assim”19. Por isso, “uma verdade concreta
deve tomar o lugar da verdade formal do acordo, o discurso irrefutável
deve receber um conteúdo”20. Trata-se de constituir “a ciência, não mais
formal, e sim a um só tempo concreta e razoável, uma visão total da to-
talidade dos seres em sua unidade, uma teoria”21. E essa ciência pode ser
constituída porque “existe razão” e porque “a razão do mundo e a razão
no homem são uma única e mesma razão. Existe observação, existe aná-
lise, existe síntese, porque o discurso é o mundo que se tornou palavra e
porque o mundo é o discurso realizado”22.
Fundada na razão, essa ciência deverá se elevar a um fundamento dos
fundamentos e considerar tudo o que aparece como aparições desse fun-
damento, realidade real, verdadeiro “objeto da razão”23. Mas não basta dar-
se conta de que a razão é o fundamento da ciência: “É preciso recuperar
a razão não como faculdade do homem, não como base da ciência, mas
como presença real”24. Esta é a tarefa da filosofia, entendida como busca
da sabedoria, presença da razão no homem, “tentativa feita pelo homem
de superar a si mesmo para alcançar a realidade total, una, única, que é a
razão — tanto nele como no mundo”25. A realidade é contraditória, o dis-
curso é múltiplo, mas é possível conciliar o que está em luta, porque existe
o objeto da razão, isto é, existe aquilo que conclui a discussão ao se reve-
lar, existe aquilo que se mostra “por trás das coisas” e “que é visado através
delas”, não como distinto daquilo que visa: “a razão pensa, mas ela pensa
a si mesma”26. Na categoria O objeto, isto é, com Platão, pela primeira vez a
filosofia se compreende como “busca da compreensão total”27.

18. Lf 202.
19. Lf 203.
20. Lf 204.
21. Lf 205.
22. Lf 206.
23. Lf 209.
24. Lf 208.
25. Ibid.
26. Lf 209.
27. Lf 219. Segundo Kirscher, em Platão, pela primeira vez a filosofia “é pensada
como caminho”. Cf. G. Kirscher, op. cit., 250.

291
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Também no que se refere à relação do filósofo com o Estado, a cate-


goria O objeto tematiza perfeitamente a filosofia política de Platão. Com
efeito, Platão estava ciente de que a discussão e a luta não terminam, dado
que a particularidade não desaparece: “ambas são razoáveis na medida
em que são a matéria concreta da vida do Estado, assim como é razoável
o devir de um ser vivo que é contradição contida: o Estado é uma unida-
de organizada, não simples acordo formal. Tudo procede dessa unidade,
unidade que está por ser criada, mas que é, anterior a todas as tensões
que só têm sentido com relação a ela”28.
Essa é, sinteticamente, a filosofia de Platão tematizada na categoria O
objeto. Entretanto, as afirmações mais incisivas sobre Platão e sua filosofia
se encontram em uma nota de rodapé a um parágrafo no qual o lógico da
filosofia, de certo modo, expõe o resultado da categoria Deus29. Correndo
o risco de fracassar na tarefa de expor resumidamente um pensamento
absolutamente refratário às simplificações, tentarei fazer um decalque da
imagem de Platão desenhada na nota 4 da categoria Deus.
A nota afirma que a compreensão é uma atividade racional apenas
para o filósofo. Para o comum das pessoas, em contraste com o intelec-
tualismo e o racionalismo moderno, na compreensão se revela a “força
irredutível do sentimento”30, que deve ser levada em conta pela filosofia.
Esse fato permite entender que, para nós, Platão seja “muito mais com-
preensível que Aristóteles, ele nos fala mais diretamente”. A presença de
um “um platonismo acentuado em toda a civilização moderna” se expli-
ca porque “Platão é o filósofo do sentimento. O amor está no centro de
seu sistema”. Para Platão, “o sentimento e só ele é o alicerce da filosofia,
e não é por capricho que ele se recusa a comunicar a verdade por trata-
dos e exposições teóricas que só podem servir de introdução: o essencial,

28. Lf 214.
29. Eis o parágrafo: “A categoria é, assim, o ponto de virada do devir filosófico, a mais
moderna das categorias antigas, a mais antiga das modernas. Nela, trata-se da compreensão
do homem; para nós, o homem aí é tudo, mas justamente nessa atitude o homem não é nada
(porque, para ele próprio, ele é apenas reflexo). O que está em jogo é sua ação, mas sua ação,
para ele, não é sua. O que está em jogo é seu sentimento, mas, para ele, esse sentimento não
é criador. O que está em jogo é sua vontade, mas, para ele, essa vontade é depravada. Ele se
libertou do cosmos que o encerrava, mas não construiu um mundo. Sabe que tudo que é
deve ser julgado, mas não tomou o juízo em suas mãos” (Lf 268, ênfase minha).
30. Todas as referências entre aspas são extraídas na nota 4 (Lf 268 s.).

292
16. Platônicos sem mito e sem deus

o acesso à verdade que está no fundo, não pode ser ensinado; a faísca é
transmitida de homem a homem graças ao amor”.
Não é, portanto, surpreendente que Platão “reencontre as ideias do
Deus criador, do Deus objeto de amor e, sobretudo, sujeito amoroso no qual
o homem pode depositar uma confiança absoluta, do destino que expressa,
no entanto, a escolha livre do homem, da ciência da natureza que busca
reencontrar a lei divina, da eternidade que se opõe à duração infinita do
tempo, da fórmula do mundo que se explicita no que é, da essência que é o
fundamento da existência”. O lugar ocupado pelo mito na filosofia de Platão
é uma comprovação disso: a “poesia” de Platão nada explica, “porque essa
poesia expressa o que não pode ser explicado no plano da discussão ou do
objeto”. Nas profundezas da filosofia de Platão “se encontra sua atitude de
homem crente. A essência que é dada por uma visão transcendente, para
além de toda reflexão teórica, está presente em seu sentimento, e é essa
presença do Ser que fala ao sentimento do homem moderno por meio do
mito e por seu intermédio”. Isso explica também que, ao contrário do que
ocorreu com Aristóteles, não tenha havido uma “escola de Platão, exceto
por equívoco. Para criá-la, seria preciso uma religião positiva, e Platão não
quis criá-la (…); nele, o mito permanece separado do discurso, e embora
todo discurso humano desemboque no mito, a fé permanece indetermi-
nada e a vida, ao menos a do filósofo, deve dela prescindir”.

II. Filosofia e política em Platão

Tratar adequadamente o tema filosofia e política em Platão exigiria


um percurso por toda a sua obra, dada a centralidade do tema, presente
em praticamente todos os seus diálogos. Para o propósito de verificar a
hipótese que inspira a presente investigação, será suficiente concentrar-
me sobre o Político, um diálogo situado unanimemente pela crítica na
última fase da produção literária de Platão31. Contudo, a complexidade

31. No estado atual das pesquisas, é praticamente inquestionável a seguinte ordem


cronológica dos últimos escritos de Platão: República, Fedro, Parmênides, Teeteto, Sofista,
Político, Filebo, Timeu, Crítias, Leis. Cf. C. H. Kahn, The Place of the Statesman in Plato’s
Later Work, in C. Rowe, Reading the Statesman. Proceedings of the III Symposium Plato-
nicum, ed. Christopher J. Rowe, Sankt Augustin, Academia Verlag, 1995, 49-60.

293
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

do diálogo e a variedade de temas nele tratados exigem recortes muito


bem definidos32.
Nesta sede não é possível tratar exaustivamente o grande mito sobre
a história do cosmo, que ocupa uma parte considerável do diálogo33, pelo
qual o Estrangeiro pretende corrigir um erro cometido na diérese do pas-
tor, que buscava definir o político e a arte régia da política. Entretanto, é
imprescindível uma breve reflexão sobre o seu sentido ético-político para
compreender os desdobramentos da diérese da tecedura na definição do
político e da arte real da política.

1. Uma breve reflexão sobre o mito cosmológico


Um dos ensinamentos basilares do mito é o do paralelismo entre a
totalidade cósmica e o microcosmo humano na era de Zeus, expresso
na conclusão do relato:

Assim, tudo o de que a vida humana é feita nasceu desses primeiros passos;
quando os homens, como disse, viram-se privados da vigilância divina, de-
vendo conduzir-se sós e zelar por si mesmos, tal como o universo, pois tudo
o que fazemos é imitá-lo e segui-lo, alternando, na eternidade do tempo,
estas duas maneiras opostas de viver e nascer34.

Essa dupla autonomia, do cosmo e das coisas humanas, confere um


sentido ético-político ao mito, como conclui Gabriele Roxana Carone de
uma análise das dimensões éticas da cosmologia platônica:

Platão parece estar desejoso de sugerir aqui que a política não ocorra nem
num universo ideal onde o nous de deus teria tanto poder, nem em seu opos-
to sob a predominância da necessidade (ananke), mas em nosso mundo real
onde coexistem nous e necessidade35.

32. Para uma visão de conjunto do diálogo e da complexidade dos temas nele tra-
tados ver o excelente comentário de M. Migliori, Arte politica e metretica assiologica.
Commentario storico-filosofico al “Politico” di Platone, Pref. Hans Krämer, Milano, Vita
e Pensiero, 1996. Para o texto do Político, cito a tradução de J. Paleikat e J. Cruz Costa, Os
Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1972.
33. Pol. 268 D-276 E.
34. Pol. 274 D.
35. Cf. G. R. Carone, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas, trad. E. Bini,
São Paulo, Loyola, 2008, 210.

294
16. Platônicos sem mito e sem deus

O mito ensina que após a inversão do movimento cósmico, a mes-


ma divindade que formou o cosmo, para evitar que ele “desapareça no
caos infinito da dessemelhança, toma de novo o leme […] o ordena e
restaura de maneira a torná-lo imortal e imperecível”36. A inversão “para
o modo atual de geração”37 indica “que o mundo assim se tornara o seu
próprio senhor, sujeito a dirigir a sua evolução, também as suas partes
deveriam, por uma lei análoga, conceber, dar à luz e criar por si mesmas,
na medida em que pudessem”38. O mito ensina também que a divindade
continua agindo no cosmo por meio das “lições e ensinamentos indis-
pensáveis” dados para a sobrevivência humana: “o fogo por Prometeu; as
artes por Hefesto e sua companheira; as sementes e as plantas por outras
divindades”39. Esses ensinamentos, contudo, não negam que a era de Zeus
seja o tempo da autonomia do universo e da ação humana.
Em primeiro lugar porque para responder à pergunta sobre qual das
eras, a de Cronos ou a de Zeus, seria a mais feliz, o Estrangeiro sugere
que o exercício da filosofia era uma possibilidade oferecida aos homens
no reino de Cronos, mas que dependia de uma escolha a ser feita por
eles40. Assim, a autonomia e a felicidade dos homens se apresentam como
tarefa dependente de uma escolha, tanto no nível individual como no
nível político. Em segundo lugar porque o advento das artes, entre as
quais está a política41, como dom dos deuses não impede creditá-las à
inteligência e à autonomia humanas. Com efeito, a imagem da dádiva
divina, segundo Maurizio Migliori, se insere no âmbito de uma concep-
ção antropológica que remete a deus o dom da alma e, portanto, a capa-
cidade de pensar. O recurso à imagem do dom assinala que a divindade,
no momento em que abandona os homens, não só continua a observá-
los, como também intervém para permitir o desenvolvimento das ativi-
dades humanas. A imagem do dom das artes tem também o mérito de

36. Pol. 273 DE.


37. Pol. 273 E.
38. Pol. 274 A.
39. Pol. 274 CD.
40. Cf. Pol. 272 BD.
41. A arte política aparece como dom de deus para garantir a sobrevivência do gê-
nero humano no mito de Prometeu em Prot. 322 CD. Sobre a relação do mito do Político
com o mito de Prometeu do Protágoras, cf. M. Narcy, La critique de Socrate par l’étranger
dans le Politique, in: C. Rowe (ed.), Reading the Statesman, op. cit., 227-235.

295
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

afirmar que o homem é, desde o início, homo faber, ou seja, capaz de


produzir as condições da própria vida42.
Ademais, o advento das artes deve ser compreendido também no pla-
no cosmológico. O mito ensina que elas respondem à inabilidade humana
para enfrentar as limitações impostas pela necessidade. Se o que obriga os
homens a procurar os meios para a própria subsistência é a necessidade, a
compreensão das artes no plano cosmológico permite entender o seu sen-
tido no plano antropológico. De fato, o modo como nous prevalece sobre
ananke em escala cósmica na era de Zeus “funciona como um ponto de
referência para os seres humanos, se pretendem ser eles próprios agentes
teleológicos empenhando-se em criar um kosmos político”43.
Não é a ausência das necessidades, como na era de Cronos, mas é a
mistura de ananke e nous, típica da era de Zeus, que confere dignidade às
artes humanas, entre as quais a mais elevada é a que permite o surgimen-
to do Estado como âmbito por excelência da responsabilidade da ação
humana44. Se no universo absolutamente tutelado por deus a questão da
felicidade dependia do modo como os homens “usaram de todas essas
vantagens para praticar a filosofia”45, tanto mais no universo em que a
presença de deus no leme do mundo não significa que este não seja “o
seu próprio senhor, sujeito a dirigir a sua evolução”46. É justamente nesse
mundo “desviado para o modo atual da geração”47, que os homens, pri-
vados da vigilância divina, devem “conduzir-se sós e zelar por si mesmos,
tal como o universo, pois tudo o que fazemos é imitá-lo e segui-lo”48.

42. Cf. M. Migliori, Arte politica e metretica assiologica, op. cit., 95 s.


43. Cf. G. R. Carone, A cosmologia de Platão e suas dimensões éticas, op. cit., 212.
44. Segundo Gaiser, o desenvolvimento das artes é um momento decisivo do processo
histórico, de onde se segue a importância do nexo entre natureza e arte, em função do qual se
compreende o fato de que a história política do homem deve mimeticamente corresponder à
realidade histórica do cosmo no seu conjunto. O dom das artes pelos deuses indica que por
elas é confiado ao agir e ao pensar humanos a verdadeira ordem da natureza. Na evolução do
conhecimento técnico, o pensamento humano torna-se cada vez mais capaz de atingir o seu
verdadeiro objeto, a sua verdadeira origem, ou seja, o Princípio divino; porém, por uma falsa
“imitação” da verdade, pode também afastar-se da sua origem ou natureza. Cf. K. Gaiser,
La metafisica della storia in Platone. Con un saggio sulla teoria dei principi e una raccolta in
edizione bilingue dei testi platonici sulla storia. Milano, Vita e Pensiero, 21991, 128-130.
45. Pol. 272 B.
46. Pol. 272 A.
47. Pol. 272 E.
48. Pol. 274 D.

296
16. Platônicos sem mito e sem deus

2. Filosofia e política

Imediatamente antes de um excurso sobre a justa medida49, que divide


o diálogo exatamente ao meio, o Estrangeiro opera a diérese da tecedura50
para explicar em que consiste a arte do cuidado com as coisas da cidade.
Para a definição da ciência régia e para a compreensão da tarefa do
político um dos ensinamentos decisivos do paradigma da tecedura é o
entrelaçamento entre causas contrárias51, deduzido da redução das ati-
vidades humanas às funções de separar e de unificar. Até mesmo a fiação,
causa auxiliar da tecedura, procede segundo esses dois modos opostos
para obter fios de natureza contrária: o rígido para a urdidura e o flexí-
vel para a trama. Na tecedura, parte essencial da produção de vestimen-
tas, o procedimento consiste no justo entrelaçamento do fio da trama com
o da urdidura. Com o paradigma da tecedura o Estrangeiro reproduz num
modelo simples a complexidade das relações políticas, para provar que os
procedimentos de separar e unificar, embora contraditórios, podem pro-
duzir o mais excelente de todos os tecidos52.
No final do diálogo o paradigma é retomado para mostrar que ao po-
lítico compete o entrelaçamento adequado dos temperamentos dos cida-
dãos, a mistura dos impetuosos com os moderados segundo a justa me-
dida. O Estrangeiro reserva ao político o conhecimento do oportuno e do
inoportuno para os indivíduos e para as cidades53. O conhecimento do
kairos remete à figura do demiurgo divino, que conhece o momento opor-
tuno de deixar livre o cosmo ou de retomar o comando sobre ele54, e é uma
das expressões da ciência da justa medida55, que caracteriza a atividade da
divindade, mas também a do filósofo e do homem político.
A arte da medida é dupla: por um lado, mede a grandeza e a pequenez
das realidades, limitando-se às suas recíprocas relações quantitativas; por
outro, refere-se à “realidade necessária do devir”56, não se atendo às relações

49. Pol. 283 B-287 B.


50. Pol. 279 A-283 B.
51. Pol. 282 A-283 A.
52. Pol. 301 C.
53. Pol. 305 D, 306 A.
54. Pol. 270 A, 272 E, 273 E.
55. Pol. 284 E.
56. Pol. 283 D.

297
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

dos termos entre si, mas às suas relações com a exatidão. Esta segunda arte
de medir, não quantitativa, mas qualitativa, aplica-se exclusivamente às rea-
lidades sujeitas ao devir, como é o caso das ações e dos discursos humanos.
Assim, se a arte política consiste em produzir a justa medida na organiza-
ção da cidade, essa tarefa tem o caráter de uma ação intermediária entre a
ordem imutável do cosmo e a ordem mutável da práxis humana.
O verdadeiro político é o que sabe misturar na medida exata as vir-
tudes e as partes da virtude, opostas entre si por natureza, atribuindo a
uma o lugar da urdidura, por sua rigidez, e à outra o lugar da trama, por
sua flexibilidade57. A função própria da política é entrelaçar os opostos,
para que a mistura seja exata. Para Platão, a virtude dessa arte consiste
na mistura adequada de dois princípios opostos — a energia e a mode-
ração — que não podem ser suprimidos, mas devem ser entrelaçados
para que o conflito dos temperamentos não se torne a enfermidade mais
perigosa para as cidades58.
Surpreendentemente, a decadência das cidades não é atribuída à
deficiência de virtude, mas ao seu excesso: não é a falta de energia ou de
moderação que leva os temperamentos e as cidades à ruína, mas o seu
excesso. De fato, é o desenvolvimento isolado de cada uma dessas virtudes
e, portanto, o seu caráter desmedido, decorrente da ausência de mistura
entre elas, que leva os temperamentos a cair na ferocidade bestial ou na
humilhante fama de tolos59, provocando a degeneração da energia em
loucura furiosa e da moderação em excesso de fraqueza, e levando a ci-
dade a um “estado de completa enfermidade”60.
A verdadeira virtude consiste na mistura de duas tendências naturais
opostas, em perfeita simetria com o que ocorre no cosmo, que também
se constitui de uma mistura de princípios opostos em permanente po-
laridade61. Assim, a “política verdadeiramente conforme a natureza”62,
de que fala o Estrangeiro, consiste em imitar a inteligência que governa

57. Pol. 309 B.


58. Pol. 307 D.
59. Pol. 309 E.
60. Pol. 310 E.
61. Sobre isso ver: M. Perine, Platão não estava doente, São Paulo, Loyola 2014,
115-131, espec. 123-127.
62. Pol. 308 D.

298
16. Platônicos sem mito e sem deus

o cosmo, cuida da humanidade e harmoniza os princípios opostos que


poderiam levar tudo à ruína. O desempenho dessa função torna o polí-
tico, por um lado, semelhante ao pastor divino, por outro, ao tecelão, por
entrelaçar o temperamento dos homens ardorosos com o dos homens
moderados, conduzindo-os à vida comum, em concórdia e amizade. Sob
os dois aspectos a ação do político se assemelha à da divindade.
O político só poderá exercer a ação política por excelência, que consiste
em unificar, imitando o artífice divino, que produz unidade na multipli-
cidade. Só assim estará “terminado em perfeito tecido o estofo que a ação
política urdiu quando, tomando os caracteres humanos de energia e mo-
deração, a arte real congrega e une suas duas vidas pela concórdia e ami-
zade, realizando, assim, o mais magnífico e excelente de todos os tecidos.
Abrange, em cada cidade, todo o povo, escravos ou homens livres, estreita-
os todos na sua trama e governa e dirige, assegurando à cidade, sem falta
ou desfalecimento, toda a felicidade de que pode desfrutar”63.

III. A retomada na Ação

Ao tratar das retomadas na categoria Ação, “a última à qual o homem


chegou”64, Weil sustenta que “o simples nome de Platão é suficiente para
lembrar a existência de retomadas da categoria em que a ação é pensada
com vistas à ação, mas sob outra categoria”. Nesse sentido, ela é “a ca-
tegoria mais velha da filosofia, o fundamento de toda grande filosofia,
assim como de todo grande pensamento político”65. Segundo Weil, é na
categoria Ação que a unidade de filosofia e política é alcançada e a po-
lítica pensa a si mesma. Isso só podia ocorrer depois que a unidade do
discurso fosse estabelecida pelo Absoluto, porque “a reconciliação da re-
volta e do discurso não pode ser empreendida antes que ambas tenham
atingido sua forma extrema”66.
Para ilustrar que as retomadas anteriores da Ação “não foram ‘erros
de julgamento’ ou provas de preguiça do espírito”, Weil afirma que no

63. Pol. 311 BC.


64. Lf 578.
65. Lf 578 s.
66. Lf 579.

299
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Estado de uma sociedade do trabalho tradicional, “a filosofia política visa


tão somente ao acordo dos homens livres no discurso do objeto que põe
fim à discussão”. Em Platão e para Platão

trata-se de formar a realidade, de transformar o mundo, porque é pela trans-


formação do mundo que o homem é transformado. A ação no sentido da
categoria é assim apreendida. Mas não é a categoria da ação que a apreen-
de, é a do objeto […]. Por isso, a ação permanece reservada ao filósofo, que
deve deles se tornar o rei e o senhor, porque os homens não poderiam ser
livres e felizes, mas somente livres ou felizes67.

A referência à reconciliação da revolta e do discurso remete, eviden-


temente, à categoria O objeto, que marca a entrada de Platão na Lógica da
filosofia. Do mesmo modo, a afirmação de que a Ação é a categoria mais
velha da filosofia, fundamento de toda grande filosofia e de todo grande
pensamento político, corresponde à concepção da ação política na filo-
sofia de Platão, segundo a qual a discussão e a luta não terminam, mas
são tornadas razoáveis na medida em que são matéria concreta da vida
do Estado, entendido como unidade organizada, da qual tudo procede,
“unidade que está por ser criada, mas que é, anterior a todas as tensões
que só têm sentido com relação a ela”68.
Mas, como compreender, no sentido weiliano de “tomar juntas” essas
imagens de Platão desenhadas na Lógica da filosofia, com a que se esbo-
cei na análise da relação de filosofia e política no Político de Platão? Será
a tentativa de juntar essas imagens que me permitirá responder por que
somos platônicos sem mito e sem Deus.

Conclusão

Platão é mais compreensível para nós e nos fala mais diretamente do


que Aristóteles porque, segundo Weil, ele é o filósofo do sentimento,
porque o amor está no centro de seu sistema e porque, para ele, o acesso
à verdade não pode ser ensinado: a verdade deve ser transmitida de ho-

67. Lf 580.
68. Lf 214.

300
16. Platônicos sem mito e sem deus

mem a homem, como uma faísca, graças ao amor69. Na categoria O objeto,


Platão marca o surgimento de uma ciência, que não é mais a nossa, mas
que nos é compreensível, e o nascimento de uma filosofia que pretende
ser compreensão total e que antecipa a unidade de filosofia e política, só
alcançada na categoria em que a política pensa a si mesma: a Ação.
O modo como a presente investigação tomou juntas filosofia e po-
lítica no Político evidenciou que Platão compreende as coisas humanas
(ta anthrópina) em estrita homologia com a sua compreensão do cosmo.
Dito de maneira mais assertiva: a cosmologia de Platão é o fundamento
de sua antropologia. Do mesmo modo, a compreensão do paradigma
da tecedura, pela qual o Estrangeiro definiu a ciência régia e a ação do
político, pretendeu mostrar que a mistura de nous e ananke, princípio
que rege o cosmo, é o mesmo que preside a ciência política e a ação do
político, que não é outro senão o filósofo70.
A meu ver, a dialética é a ciência que foi inaugurada na categoria O
objeto para concluir a discussão socrática, impossibilitada de chegar ao
acordo pela contraditoriedade da realidade. Para Platão, justamente por
ser contraditória, a realidade devia ser submetida a um procedimento
de análise e de síntese, já esboçado na discussão, como busca da verdade
e da correção da argumentação com vistas ao consenso dos interlocu-
tores71. A dialética platônica se apresenta como verdadeira ciência pela
especificidade do seu procedimento, que caminha para uma visão sinó-
tica, mediante a separação e a unificação por gêneros: ela é a capacidade
de relacionar e de fazer do logos o único instrumento dessa capacidade72.
Distinta da dialógica socrática e da antilógica sofística, mesmo mantendo

69. O chamado “excurso filosófico” da Carta VII (342 A-344D) confirma plena-
mente essa leitura de Weil.
70. Não cabe aqui uma discussão sobre o diálogo faltante — o Filósofo — na tri-
logia anunciada no início do Sofista (217 A). Assumo que a pergunta pelo filósofo está
respondida no Político. Para uma excelente exposição do estado da arte, que assume que
o Filósofo deve ser buscado na República, ver: P. P. De Marchi, Chi è il filosofo? Platone e
la questione del dialogo mancante, Prefazione di G. Reale, Milano, Franco Angeli, 2008.
71. Na Lógica da filosofia o locus em que se explicita claramente essa compreensão
da dialética como a ciência inaugurada por Platão se encontra no item 2 da categoria O
objeto: A theoria, a tradição e a discussão. — A ciência do Ser (Lf 203-205).
72. Cf. G. Casertano, Definição, dialética e logos. Apontamentos para um estudo
sobre a dialética de Platão, in: M. Migliori; A. Fermani (orgs.), Platão e Aristóteles. Dia-
lética e lógica, trad. I. C. Benedetti, São Paulo, Loyola, 2012, 55-71 (57 s.).

301
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

a forma do diálogo, a dialética platônica não foi praticada como técnica


de refutação, mas como “posição filosófica que se declara explicitamente
pela prioridade originária das diferenças, que vê na realidade um jogo
constante de termos que se interligam exatamente pela distinção e con-
traposição, procurando, pois, inventar/propor um instrumento adequado
à natureza dessa realidade”73.
Constituída a partir da observação, da análise e da síntese, essa ciência
é “uma visão total da totalidade dos seres em sua unidade, uma teoria”74.
O princípio e fundamento dessa ciência é “o fato de que existe razão”75.
Mas essa ciência, “que quer falar razoavelmente daquilo que é”76, não
pode falar das coisas humanas do mesmo modo que fala daquilo que
é, vale dizer, do objeto. Em primeiro lugar, porque tudo o que se refere
às coisas humanas não pode ser objeto de um conhecimento exato e de
uma ciência propriamente dita. Em segundo lugar, porque a totalidade
dos acontecimentos cósmicos, palco das coisas humanas, não pode ser
apreendida pela observação, ponto de partida da ciência, porque o cos-
mo é uma realidade caracterizada pelo devir.
Isso explica por que Platão recorre ao procedimento de falar por ima-
gens quando quer falar razoavelmente da história do cosmo, como fez
em grandes linhas no mito do Político e, posteriormente, no Timeu77. O
recurso ao mito, largamente utilizado por Platão78, constitui outro cami-

73. Cf. M. Migliori, Onipresença e complexidade da dialética de Platão, in M. Mi-


gliori; A. Fermani (orgs.), Platão e Aristóteles, op. cit., 213-272 (215). Sobre a compreensão
do conceito de dialética em Platão, seus antecedentes no diálogo socrático e sua transfor-
mação em dialética objetiva do ser, cf. E. Weil, Pensée dialectique et politique, in Essais et
conférences. I. Philosophie, Paris, Plon, 1970, 232-267.
74. Lf 205.
75. Lf 206 e 208.
76. Lf 206.
77. A cosmologia esboçada no Político é desenvolvida no Timeu. Para uma exposição
sobre a filosofia natural de Platão, da qual emerge que o Timeu está muito mais próximo
da física de Aristóteles do que se pensava, ver: T. K. Johansen, Plato’s Natural Philosophy.
A study of Timaeus-Critias, Cambridge, Cambridge University Press, 2004. Ver também:
L. M. M. Valditara (org.), La sapienza di Timeo. Riflessioni in margine al “Timeo” di
Platone, Milano, Vita e Pensiero, 2007.
78. Cf. F. Ferrari (org.), I miti di Platone. Con una premessa di Mario Vegetti, Mila-
no, RCS Libri, 2006; D. S. Werner, Myth and Philosophy in Plato’s Phaedrus, Cambridge,
Cambridge University Press, 2012.

302
16. Platônicos sem mito e sem deus

nho do filósofo para comunicar verdades filosóficas79. Mas, o princípio


que rege a cosmologia, a antropologia e o que Konrad Gaiser chamou de
“metafísica da história em Platão”80, só pode ser apreendido e formulado
pela dialética, entendida como o único procedimento capaz de compre-
ender a totalidade da realidade, concebida como identidade do uno e do
múltiplo ou como mistura (symmeixis) gerada por uma causa inteligen-
te (nous), que mantém em relação de exata polaridade os princípios do
limite (peras) e do ilimitado (aperion)81. Esse procedimento, essa posição
filosófica se configura como a “ocupação” (epitedeuma) dos que são do-
tados de “natureza filosófica”82, aos quais compete, entre outras tarefas,
“pensar o Estado para salvá-lo”83.
Na filosofia de Platão, “a ação é pensada com vistas à ação, mas sob ou-
tra categoria”84. Com efeito, se se trata de terminar a discussão, “é preciso
apreender as coisas no que elas são e não no que elas não são: é preciso,
portanto, eliminar o devir para fundar a ciência do ser”85. Impossível de
ser eliminado, o devir deve ser compreendido. A metafísica da história de
Platão é a primeira “tentativa feita pelo homem de superar a si mesmo para
alcançar a realidade total, una, única, que é a razão — tanto nele como no
mundo”86. Ela é a gigantesca tentativa de se transcender para apreender
o nervo da história: “Existe, portanto, objeto, existe aquilo que termina a
discussão ao se mostrar, mas o que se mostra e aquilo a que ele se mostra é

79. Cf. P. P. De Marchi, Chi è il filosofo?, op. cit., 107.


80. Cf. K. Gaiser, La metafisica della storia in Platone, op. cit., passim.
81. Seria longo enumerar aqui todos os textos de Platão que expressam esta com-
preensão da realidade e da dialética. Remeto unicamente ao Filebo, um dos últimos diá-
logos escritos por Platão, no qual, segundo Enrico Berti, Platão diz sua palavra definitiva
sobre a dialética. Cf. E. Berti, Dialettica e principi nel Filebo di Platone, in Studi aristotelici,
Japadre, L’Acquila, 1975, 329-346. Sobre o Filebo, ver: M. Migliori, L’uomo fra piacere,
intelligenza e Bene. Commentario storico-filosofico al “Filebo” di Platone, Introd. T. A.
Szlezák, Milano, Vita e Pensiero, 1993.
82. Cf. M. Dixsaut, Le naturel philosophe. Essai sur les dialogues de Platon, Paris,
Vrin, 2001, 246-269.
83. Lf 216. Sobre a dialética como “ocupação” (epitedeuma) do filósofo e sua tare-
fa de salvação da cidade, ver T. A. Szlezák, A imagem do dialético nos diálogos tardios de
Platão, trad. W. Fuchs, rev. téc. M. Perine, São Paulo, Loyola, 2011, espec. 13-51.
84. Lf 578.
85. Lf 205.
86. Lf 208.

303
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

uno: por trás das coisas, existe o que é visado através delas, e o que é visado
é distinto daquilo que visa: a razão pensa, mas ela pensa a si mesma”87.
Na Lógica da filosofia a unidade de filosofia e política só é alcançada
na categoria Ação, na qual a política pensa a si mesma, e só depois que a
unidade do discurso foi estabelecida pelo Absoluto. Só então a política
pode se tornar a realização da filosofia88. Entretanto, o sentido da categoria
Ação é apreendido sob a categoria O objeto, porque aqui “a ação perma-
nece reservada ao filósofo”, que deve se tornar rei, “porque os homens não
poderiam ser livres e felizes, mas somente livres ou felizes”89. Mas somente
o filósofo vê que o homem e o Estado são razoáveis: “O homem comum
situa-se entre o animal, que está na natureza, e a razão, que está além da
natureza”90. Ao filósofo compete “pensar o Estado para salvá-lo”91, por-
que o Estado perfeito só existirá pela ação do filósofo que, na qualidade
de filósofo, é razão: “Em última instância, o Estado razoável existe para a
realização da razão pelo filósofo, para que o sábio possa viver”92.
Embora a retomada da Ação sob O objeto tenha ocorrido pela mediação
do mito, é inegável que esse outro caminho do filósofo para comunicar ver-
dades filosóficas foi trilhado em função da dialética, mediante a qual Platão
alcançou a compreensão total. A relação entre mito e dialética, para Platão,
é de união sem confusão: se é verdade que “o mito é a língua da alma” e os
mitos “são mitos da ‘alma’, isto é, mitos de um mundo interior e não mais de
um mundo exterior e dividido”, é igualmente verdade que, “na sua ascensão,
a dialética só excepcionalmente alcança seu próprio limite. A regra quer
que a dialética se inverta em mito”93, como vimos ocorrer no Político.
Tendo aferrado o nervo da história pela apreensão do princípio da
compreensão total, a filosofia de Platão se compreende “como ascensão
ao objeto”94. Entretanto, segundo Weil, “se o caminho para o objeto se
desenrola no terreno do devir e dos seres separados, seu término não é

87. Lf 209.
88. Cf. Lf 579.
89. Lf 580.
90. Lf 214.
91. Lf 216.
92. Lf 218.
93. Cf. K. Reinhardt, Le mythes de Platon, traduit de l’allemand et présenté par
Anne-Sophie Reineke, Paris, Gallimard, 2007, 161, 35 s. e 163, respectivamente.
94. Lf 209.

304
16. Platônicos sem mito e sem deus

um ser distinto e separado entre outros e de natureza idêntica à deles, é o


desaparecimento de toda negatividade e de toda possibilidade. O caminho
não está determinado de uma vez por todas, e ao caminhar o homem não
permanece o que ele fora no início: o caminho é o homem, o homem é
seu caminho e a chegada é o desaparecimento do homem e do caminho,
não por aniquilamento, mas na realidade absoluta”95.
Assim como no caso de Aristóteles, também um eventual interesse
na antropologia de Platão “deve se encontrar no que não se explica por
sua época”96. Platão nos é mais compreensível e nos fala mais diretamente
que Aristóteles porque ele é o filósofo do sentimento. Evidência de que o
sentimento se tornou decisivo para nós no âmbito das coisas humanas é o
lugar ocupado pelo emotivismo na consciência média do nosso tempo97.
Entretanto, se a ciência/dialética de Platão ainda nos é compreensível, a
sua antropologia, definitivamente, não é mais a nossa. As coisas humanas
não são mais compreendidas em paralelismo estrito com o cosmo: para
nós o homem é “subjetividade pura, compreensão incompreensível, ne-
gação de todo dado, transcendência”98.
Mas a apreensão desse nervo da história foi antecipado na filosofia
de Platão, em cujas profundezas, segundo Weil, “se encontra a atitude
do homem crente”99. Na tentativa de superar a si mesmo para alcançar
a realidade total, o homem “se transcende — transcendendo ao mesmo
tempo e pelo mesmo ato as coisas no interior do mundo”100. Com efeito,
se o caminho de ascensão ao objeto se desenrola no terreno do devir, seu
término “é o desaparecimento de toda negatividade e de toda possibili-
dade. […] o caminho é o homem, o homem é seu caminho e a chegada
é o desaparecimento do homem e do caminho, não por aniquilamento,
mas na realidade absoluta”101.

95. Lf 209 s.
96. Cf. E. Weil, L’anthropologie d’Aristote, op. cit., 41.
97. Cf. A. MacIntyre, Depois da virtude. Um estudo em teoria moral, trad. J. Simões,
rev. téc. H. B. A de Carvalho, Bauru, EDUSC, 2001. Ver também a excelente exposição da
posição de MacIntyre em: H. B. A. de Carvalho, Tradição e racionalidade na filosofia de
Alasdair MacIntyre, 2ª ed. revista, Teresina, EDUFPI, 2011, espec. 20-34.
98. Cf. E. Weil, L’anthropologie d’Aristote, op. cit., 42.
99. Lf 269 nota.
100. Lf 209.
101. Lf 210.

305
VIOLÊNCIA, EDUCAÇÃO E GLOBALIZAÇÃO

Se Weil está certo ao afirmar que, com Hegel e depois de Hegel, nós
aferramos o nervo da história, que consiste na compreensão do homem
como subjetividade pura, como transcendência102; se é verdade que, com
Hegel e depois de Hegel, alcançamos a unidade da filosofia e da política na
categoria Ação, na qual “a política pensa a si mesma”103; se, finalmente, é ver-
dadeira a afirmação weiliana de que, em certo sentido, somos todos hege-
lianos104, então o que somos senão platônicos sem mito e sem Deus?

102. A expressão “nervo da história” aparece também no ensaio “O caráter do Estado


moderno”, para indicar “a realização da liberdade numa organização que dá satisfação a
todos os homens”. Cf. E. Weil, Hegel e o Estado. Cinco conferências seguidas de Marx e a
filosofia do direito, trad. C. Nougué, São Paulo, É Realizações, 2011, 100.
103. Lf 579.
104. No final do ensaio “Hegel”, escrito para a obra Les philosophes célèbres, editada
por M. Merleau-Ponty em 1956, Weil afirma que se entendermos por hegeliano o fato de
estar sob a influência de Hegel, de um Hegel aceito ou recusado, todo mundo é hegeliano.
Cf. E. Weil, Hegel, Essais et conférences I, op. cit., 125-141, aqui 140.

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