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Bio-bibliografia ...............................................

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Prefacio, Evaristo de Moraes P ilh o .......................: ___ 11
Historicismo e Culturalismo
1. Alusão a Ortega como tematização inicial .. 15
2. Referência ao historicismo e ao culturalismo .. 16
3. História, cultura e relativismo . ................. 18
4. Alusão ao processo de secularização do saber .. 21
5. Observaçõescomplementares .......................... 23
Anotação sobre o valor do conhecimento histórico 25
Outra anotação (sobre os itinerários do tema no
pensamentocontemporâneo) . . ...................... 26
Notas ..................................... . ...... ’..................... 28
Filosofìa e Ciências na Universidade: fundamentalida-
de, integração, interdisciplinaridade .............. ,, 32
Notas ..................................................................... 37
Tempos brasileiros: a Filosofia ...... 38
Kant e o criticismo (no bicentenário da “Crítica da Ra­
zão Pura”)
1. Introdução: situação e circunstância ............. 48
2. O ponto de vista epistemológico.................. 51
3. A estrutura da Crítica da Razão P u r a ......... 55
4. Influências e permanências: o legado de Kant
e o criticismo ................................................. 60
Notas ....................................................................... 67
A obra de Dilthey e o “Mundo Histórico”
1. Olhada inicial: Dilthey e os temas da história 71
2. Visões da história no Ocidente contemporâ­
neo: de Vico e H e g el...................................... 73
3. Do espirito objetivo ao mundo histórico . . . . 75
4. Temas e traços fundamentais da obra de Dil­
they ....... *........................................................ 77
5 . Dilthey e o historicismo ................................. 79
6. A influência de Dilthey ......................... 83
7. O legado: problemas ..................... 84
8. O “Mundo Histórico” .................................... 86
Notas ........................... 90
Max Weber: tentativa de apresentação sintética . . . . . 95*
Filosofia e critica política em Ramalho O rtigão__ 104
Os Estudos Políticos” de Aron ...................................... 114
O neoliberalismo e o neomarxismo................ 121
Glosa a Julián Marías ..................................................... 132
BIOBIBUOGRAFIÁ
Nascido no Recife (1933) e bacharel pela histórica Fa­
culdade de Direito, hoje integrada à UFPE, Nelson Saldanha
começou a publicar poemas e artigos, na década de 50, no
Suplemento Literário do Diário de Pernambuco, então diri­
gido por Mauro Mota. Deste modo participa de uma geração
que começou a destacar-se na década 50, e que inclui nomes
como Audálio Alves, Fernando Coelho, Leónidas Câmara e
Vandyck Araújo. Licenciou-se em Filosofia pela Universida­
de Católica de Pernambuco e fez o doutoramento em Direito,
em 1958, com uma tese sobre Formas de Governo na mesma
Faculdade em que fizera o bacharelado. Posteriormente tor­
nou-se docente-livre da mesma Faculdade de Direito, com
tese sobre o Poder Constituinte (1960). Lecionou em alguns
colégios do Recife passando depois ao ensino superior,
ocupando na Universidade Católica a cadeira de Sociologia
Geral. Na mesma Universidade lecionou Teoria do Estado,
matéria que passaria depois a ensinar na Universidade Fe­
deral (onde leciona igualmente Ética e Filosofia Política).
Considerado como figura tipicamente interdisciplinar,
Nelson Saldanha explica sua aparente dispersividade com
o argumento de que a alguns deve caber o papel de acom­
panhar globalmente o panorama dos problemas e das idéias,
fazendo da Filosofia uma base maior para seus estudos, que
abrangem a teoria da política e a do Direito, bem como temas
históricos e críticos fundamentais.
Após uma volumosa História das Idéias Politicos no Bra­
sil, editada no Recife, em 1968, pela UFPE (cujos dirigentes
editoriais- deram ao livro tiragem mínima e distribui­
ção nula), e um livro intitulado Temas de História e Política

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— também publicado pela UFPE —, Saldanha editou em 1970
sua Sociologia do Direito (São Paulo, Revista dos Tribunais).
Entrementes escreveu diversos artigos para revistas de cultu­
ra, íez conferências, proferiu curses em diversos Estados.
Em 1974, ainda pela UFPE, publicou Velha e Nova Ciência
do Direito. Em 1977, em São Paulo, Legalismo e Ciência do
Direito, obra considerada por muitos como sua contribuição
principal à Teoria jurídica.
A ininterrupta elaboração de artigos e ensaios (paralela
à qual corre aliás a produção poética do autor, não muito
extensa mas constante e característica) tem, com o tempo,
dado ensejo a um crescente amadurecimento de sua reflexão
histórico-filosófica, bem como a um aprofundamento de suas
pesquisas, desenvolvidas através de periódicos contatos com
os chamados “grandes centros”. Por conta disto o autor tem.,
inclusive, publicado estudos em diversas revistas estrangei­
ras (por exemplo a “Rivista Intemazionale di Filosofia del
Diritto”, de Roma),
O presente volume enfeixa alguns ensaios de sua fase
mais recente, dominados de vun modo geral pela ligação com
alguns problemas da filosofia da história, enfocada sem os
grilhões dos dogmatismos que andam por aí, e sem os insis­
tentes jargões que vêm sendo a tentação de muitos.
Após a reedição de sua Sociologia do Direito (São Paulo
1980), Saldanha publicou em 1983 a Formação da Teoria
Constitucional (Rio, Ed. Forense), resultado de alguns anos
de elaboração crítica. Em 1984, em São Paulo, a Editora Con­
vívio reeditou seu livro A Escola do Recife, precariamente im­
presso no Recife em 1976 Atualmente leciona na Universi­
dade Federal de Pernambuco, além de pertencer à Academia
Pernambucana de Letras, ao Conselho Municipal de Cultura
e ao Conselho Estadual de Educação. Recentemente lançou
pela Editora Fabris (Porto Alegre) o livro O Jardim e a Pra­
ça — ensaio sobre o lado público e o privado na vida histórica,
e tem em preparo alguns novos estudos sobre os problemas
históricos do poder e sobre alguns temas fundamentais da
Filosofia do Direito.

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PREFÁCIO
Evaristo de Moraes Filho
Fez bem Nelson Saldanha ao reunir em volume quase
uma dezena de escritos seus que vão de 1980 a 1984. São to­
dos recentes, a propósito de circunstâncias várias e sobre
temas que abrangem um largo espectro de Filosofia e de
Ciências Humanas (História, Sociologia, Ciência Política),
surpreendentemente — e, sem dúvida, proposital — com ex­
clusão de qualquer ensaio jurídico. Autor de numerosas obras
de Teoria Geral do Direito e de Direito Constitucional, por
certo, não lhe faltariam contribuições para serem incluídas
nesta coletânea que vamos prefaciando, mas romperiam com
a sua unidade temática Basta correr os olhos nos títulos dos
ensaios aqui reunidos, para se concluir facilmente que o Autor
sè manteve fiel a dois temas fundamentais: o conhecimento
humano, individual ou. social, suas possibilidades, seu valor
e, sobretudo, o seu desenvolvimento através da história; e
as relações de poder na sociedade humana, os tipos de do­
minação e de acomodação dos homens ao longo da história,
em suas estruturas e formas de organização.
O ensaio mais extenso estuda Kant e o criticismo. Tra-
ta-se de uma conferência proferida em outubro de 1981 a
propósito do bicentenário da publicação da Critica da razão
pura. Sem que lhe falte profundidade, o seu estilo é mais des­
critivo, didático, de informação aos assistentes sobre a gran­
de obra de Kant, do seu momento histórico, da sua “revo­
lução copernicana”, do que permaneceu vivo e do que mor­
reu na sua contribuição. O estudo não se limita à gnosiolo­
gía propriamente dita, constante dessa obra fundamental,
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vai além e abrange a Crítica da razão prática e as demais
contribuições kantianas sobre a moral, a estética e o direito.
Também não são esquecidas as manifestações kantianas no
pensamento nacional, quase contemporâneas do grande pen­
sador de Königsberg, a começar com Martim Francisco e
Feijó, na primeira metade do século XIX. Na nota 32, a esse
respeito, poderia ser acrescentada à bibliografia do kantis­
mo no Brasil a obra pioneira, embora puramente expositiva,
de Januário Lucas Gaffré, de 1909, A teoria do conhecimento
de Kant, publicada no Rio de Janeiro.
Refere-se o Autor, com inteira procedência, ao estilo seco,
rigoroso e por vezes prosaico de Kant. Contudo, acrescenta,
ficaram célebres algumas imagens e frases suas, não referidas
expressamente. Vale repetida a sua metáfora, bem significa­
tiva para a sua teoria do conhecimento — a Razão especula­
tiva não pode ultrapassar os limites da Experiência, em crí­
tica direta ao idealismo espiritualista de Platão: “A pomba
ligeira, ao agitar o ar com o seu livre vôo, sentindo-lhe a re­
sistência, poderia imaginar que voaria mais facilmente no
vácuo” Aqui se encontra toda a relação sujeito-objeto no co­
nhecimento; de nada valeria o a priori subjetivo sem o dado
experiencial e concreto. Dessa resistência do mundo exterior
é que parte o realismo critico de Dilthey, Frischeisen-Köhler
e, de certa maneira, de Max Scheler.
Em alguns ensaios do livro revela-se uma certa linha te­
mática coerente, com tratação dos mesmos assuntos sob di­
ferentes ângulos. Queremos nos referir a Historicismo e cultu­
ralismo, A Obra de Dilthey e o “Mundo Histórico>>, além das
poucas páginas sobre O valor do conhecimento histórico e
Glosa a Julián Marías. A côté, como dizem os colunistas so­
ciais, Ortega y Gasset, discípulo de Dilthey e mestre de Ma­
rías e Saldanha. Orteguiano, culturalista, historicista, colo-
ca-se o Autor brasileiro numa posição relativista e perspec-
tivista quase extremada, posição essa que defende con muito
talento e sólida argumentação. De forma alguma chega ao
ceticismo, é claro, mas à maneira da critica da razão histó­
rica de Dilthey, está convencido de que o conhecimento hu­
mano é um produto histórico, situado, válido a partir do con­
junto de fatores que o condicionaram. Daí a fusão numa só
concepção inextricável do historicismo e do culturalismo. A
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cultura só se compreende e se manifesta na história: “Ao re­
conhecer o compromisso do pensar humano (como de outras
coisas) com os contextos culturais, o culturalismo não deixa
de ver que a universalização, sempre vinculada ao fenômeno
da exemplaridade, é também ela um processo histórico, e co­
mo tal culturalmente definido, e em certas épocas definido
como tendência fundamental”. Como se vê, ao lado de Dil­
they, Simmel e Ortega, também ao Autor não é estranha a
influência de Spengler, referido em mais de uma oportu­
nidade.
O ensaio sobre Max Weber, também uma de suas admi­
rações, é de cunho expositivo para os não-iniciados, mas mui­
to claro e objetivo, Não lhe faltam algumas notas críticas,
como não faltam igualmente no ensaio sobre Aíon, Cheva­
lier e Utz. De resto, em nenhum momento perde Saldanha
o seu senso crítico, quase polêmico, de alguém que defende
suas idéias com o ardor das convicções firmes, mas sem agres­
sividade.
Estudioso, com o gosto pelos livros, pelas fontes autên­
ticas do pensamento universal, já vem de longe a consagra­
ção nacional de Nelson Saldanha, tão admirado aqui no sul
do país como em sua terra natal, no seu querido Recife. Nes­
tes poucos ensaios, agora reunidos, percebem-se facilmente
as qualidades que o fizeram admirado entre os que tiveram
a ventura de lê-lo em obras anteriores: a sua capacidade abs-
trativa, o seu trato com os problemas fdosóficos, a sua infor­
mação bibliográfica e, sobretudo, o seu rigoroso senso crítico,
descompromissado. Há nele a alegria de pensar e de criar,
alegria essa que se transmite ao leitor.
Rio de Janeiro, 15 de março de 1986.

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Historicismo e Culturalismo *
Sumário : 1 — Alusão a Ortega como tematização ini­
cial. 2 — Referência ao historicismo e ao culturalismo.
3 — História, cultura e relativismos 4 — Alusão ao pro­
cesso de secularização do saber. 5 — Observações com­
plementares.

1.. Alusão a Ortega como tematização inicial. Tomare­


mos como ponto de partida algumas frases de Ortega sobre
o sentido histórico e sobre o caráter cumulativo da situação
histórica do homem.
Para Ortega, a história — ou melhor, a historicidade —
consiste entre outras coisas no fato de o homem dito moder­
no não ser mais “feudal" nem “absolutista", e entretanto
continuar a ser estas coisas: “sigue siendo todas esas cosas,
pero lo es en la forma de haberlo sido", Em outros termos,
o homem ocidental (ele diz europeu) de hoje é distinto do
que era antes, mas seu ser atual inclui o anterior. Ou ainda,
“somos otros que el hombre de 1700, y somos más”, 1
Se para Ortega o raciovitalismo eliminava o impasse pos­
to entre racionalismo e vitalismo — não discutiremos o al­
cance de seu pensamento a respeito —, e se o perspectivismo
era o relativismo gnosiológ'co assumido em termos por as­
sim dizer mais concretos, o historicismo resultava ser urna
conseqüência óbvia da consciência que se tem do mudar his­
tórico. Seria desnecessário invocar aqui seus textos a respeito.
* Artigo esci ito em homenagem ao Centenàrio do nascimento de Ortega
y Gasset; ocorrido em 1983. Publicado originariamente em Convivium,
Sä o Paulo, ano XXm, voi 32, 1984..

15
A frase famosa, segundo a qual o homem não tem natu­
reza, tem historia, terá sido em Ortega uma daquelas conces­
sões ao expressionismo (ele próprio disse uma vez que quem
diz algo sempre exagera). Cabe entendê-la no sentido de que
a história é a via, ou o modo mais idôneo para se conhecer
ou identificar a “natureza” humana. E quanto à circunstân­
cia, posta na mais citadk de suas frases, é obviamente histó­
rica, sobretudo se se toma como ponto de referência a afir­
mação sobre a historicidade do humano.
Em Ortega, pessoalmente oriundo do ambiente neokan­
tiano e dos textos de Dilthey (mais os de Simmel), a verten­
te historicista aparece como solução espontânea (se bem não
seguida integralmente em alguns de seus ensaios, como por
exemplo o de 1923 sobre os valores). Paralelo ao de Croce,
e comparável a ele, seu historieismo teve muito que ver com
aquele misto de conservadorismo e modernismo, de liberalis­
mo e eütismo, de democratismo e classicismo, que certos pen­
sadores da primeira metade do século adotaram.

2. Referência ao historieismo e ao culturalismo. Se


propriamente negar ou renegar as posições de Ortega — ou
as dos pensadores a que genericamente aludimos —, cabe re­
gistrar a necessidade de rever o conceito de historieismo. E
cabe, ao fazê-lo, ter em conta o conceito de culturalismo. Fre­
quentemente se usa um conceito sem o outro, apesar de to­
dos reconhecerem as conexões entre história e cultura. 03
filósofos que trabalharam sobre o relativismo cultural (Spen­
gler por exemplo) fizeram sem dúvida historieismo, porque
a noção de cultura não pode ser desenvolvida sem alusão aos
contextos históricos; mas os autores que tratam expressa­
mente de historieismo nem sempre aludem devidamente à
dimensão cultural do fato histórico.
Isto ocorre não só com escritores que tratam do histo-
ricismo em sentido favorável, mas também com certos auto­
res que o combatem. Ocorre lembrar, a este respeito, o sem­
pre equivocado Popper, que, nas duas pretensiosas obras em
que fala do historieismo, toma-o num sentido completamen­
te diferente do de qualquer historicista que se preze.2 O his-
toricismo, ao contrário do que supôs Popper, não consiste,

16
nêm poderia consistir, na pretensão de fazer previsões his­
tóricas através de leis; e Popper, que com tal noção visava
inclusive o marxismo, não viu que, se o marxismo não é bem
um historicismo, não é tanto pela presunção de “prever” es­
truturas, mas pelo fato de fazer a história depender de um
“fator básico” — quando o comportamento dos fatores, se­
gundo os historieismos mais conseqüentes, depende justa­
mente da história
* * #

Como posição doutrinária, o historicismo tende a iden­


tificar a filosofia com a história dos seus problemas. Isto
não significa, ao contrário do que insinuam certqs críticos
apressados ou tendenciosos, que o filosofar se reduza a uma
narrativa sobre os “sistemas”, mas sim que o conteúdo do
pensar filosófico se considera dado numa seqüência de tema-
tizações que se desenvolvem como uma série de desdobra­
mentos. Àlém disso o historicismo em geral tende a tratar
as experiências humanas como algo que, não podendo ocor­
rer senão em situações históricas, adquirem significado na
medida em que se encaixam numa interpretação que leva
em conta tais situações. Destarte temos a religião como his­
tória, a política como história, do mesmo modo a economia
e assim por diante.
O historicismo, amadurecido através de um processo re­
lativamente recente na cultura ocidental, tem uma dívida
fundamental perante outro processo maior, que é aquele que
se denomina de “secularização da cultura”. 3 Ele se liga à
gradativa criação de uma visão da história como distancia­
mento do mito (e nisto tem que ver com Vico); ao mesmo
tempo, à visão da história como superação de negações, supe­
ração que é enriquecimento de consciência, e nisto tem mui­
to que ver com Hegel, Mas, por outro lado, há nos histori-
cismos do século vinte um sentido de critica, que correspon­
de inclusive a uma superação dos dogmatismos ontologizan-
tes. Uma crítica que contudo não se cinge, como a de Kant,
a um analitismo epistemocêntrico.1
* * *

17
Enquanto o historicismo tem podido ser implícito, e im­
plicitamente prender-se a rastros seculares, por conta da an-
cianidade do termo “história”, o culturalismo tem necessita­
do de ser explicito, e o teimo a que se prende — o termo cul­
tura — não tem, apesar de ser de origem latina, senão uma
breve história como termo de uso especulativo.
Tal como o historicismo, ou antes, mais do que ele, o
culturalismo tem recebido, da parte de certos adeptos da
chamada “crítica materialista”, a tacha de idealismo, ge­
ralmente aplicada sem conhecimento das palavras. Este é
apenas um dos mal-entendidos em que se enreda o conceito.
Outro é o de confundir-se com o culturalismo a atitude —
de cunho nacionalista ou regionalista — consistente no ape­
go a valores “culturais” específicos, nos quais se amarra ideo­
logicamente todo o pensar, acusando os problemas filosófi­
cos fundamentais de serem “abstratos” e “universais”, ou
seja, não-nacionais, não nacionalmente definidos. A isto se
responderia, se necessário, apontando os vínculos de certos
conceitos básicos, oriundos de contextos nacionais, com pro­
cessos de exemplarização, que são os que promovem a uni­
versalização das noções.
Ao reconhecer o compromisso do pensar humano (como
o de outras coisas) com os contextos culturais, o culturalis­
mo não deixa de ver que a universalização, sempre vincula­
da ao fenômeno da exemplaridade, é também ela um pro­
cesso histórico, e como tal culturalmente definido, e em cer­
tas épocas definido como tendência fundamental. No mun­
do ocidental, por exemplo, foi durante a ascensão do raciona­
lismo (e da secularização da cultura) que se promoveu em
mais larga escala o processo de “universalização” de certos
conceitos basilares.3

3. História, cultura e relativismo. É elementar que o


ralelo entre historicismo e culturalismo implica, correlata-
mente, um outro entre histórìa e cultura Dissemos acima
que o termo “história” ostenta longa e larga tradição, en­
quanto que a voga da palavra “cultura” — sobretudo em
seu sentido teòrico-social objetivo — é relativamente recente.
Não seria difícil situar a cultura como algo “estrutural”
(contexto, situação, conjunto de traços, ambiência), sendo

18
a história um “processo” (seqüência, evolução, modificação
de coisas). A questão se complica quando se pensa na exis­
tência do “processo cultural”, e também quando se recorda
que a história tem uma estrutura. As saídas seriam, no caso,
um tanto verbais, e este é um assunto em que as aporéticas
formais não cabem. Vale mais tentar entender que a atri­
buição, à “cultura”, de um caráter estrutural, corresponde à
sua conceituação abrangente; por sua vez, a visão da histó­
ria como processo oferece margem à associação com o pro­
cesso cultural, ou seja, ao entendimento da história como
realidade cultural, ela mesma. Mais importante ainda é perce­
ber que certas tematizações, na evolução das idéias, são tar­
dias, e que somente no século XtX — o mesmo em que os an­
tropólogos veicularam a noção objetiva de “cultura” — é que
a visão da história se vinculou a um histerismo, ou histori-
cismo, onde as imagens deixaram de ser vistas como arque-
típicas e transcendentes para serem entendidas em termos
imanentes e evolucionáis.5
* **

Vale, entretanto, anotar algo a respeito dos limites do


relativismo.
Uma vez aceita a idéia histórica e plural das culturas,
na qual se realiza em outro sentido a noção abrangente da
“cultura”, e na qual se tem uma cultura como um todo do­
tado de traços próprios (e de “destino” histórico, segundo
certos autores), repõe-se em outra dimensão a pergunta so­
bre se existem “culturas superiores”. Se todas as culturas
“são culturas”, uma paridade conceituai as nivelaria (no
mesmo sentido da paridade que, segundo certa opinião, ni­
velaria a cultura dita popular e a das elites).
A nosso ver, porém (e nisto vai por certo um pouco de
evolucionismo), existem culturas superiores, se bem que en­
tre estas, que se sobrepõem às “menores”, não se possa esta­
belecer uma hierarquia: não se pode dizer que a cultura chi­
nesa antiga foi inferior ou superior à do Egito, ou coisa pa­
recida. O relativismo, no caso, é válido, com a ressalva da ne­
cessidade de um mínimo de nível histórico-cultural.0

19
No sentido filosófico, o compromisso do historicismo com
o relativismo corresponde à sua qualidade crítica, adversa
aos dogmatismos; corresponde, portanto, à concepção dos
condicionamentos reais como dado necessário à compreensão
dos problemas.
Durante o século XIX, geralmente se tomou o saber his­
tórico (Geschieh teswissenschaft) como ciência “do indivi­
dual”, e daí a impressão de que o real, no sentido histórico
e historiográfico, seria sempre o particular. Daí, em seqüên-
cio, a idéia de que o “universal” e o “necessário” dos juízos
a priori segundo Kant teriam como antidoto a contingência
absoluta atribuida ao fato histórico. Na verdade, porém, a
configuração do fato histórico envolve um fundo de coorde­
nadas gerais (aqui entrariam as noções braudelianas de “du­
ração longa” e “média”), as quais completam (ou integram)
e situam a visão do “particular”,
* * *

Sob certo aspecto a compreensão historicista das posi­


ções e das escolas pode parecer-se com a de um ecletismo,
um ecletismo “dinâmico”. A estas alturas é tempo de se re­
ver o preconceito contra o termo “ecletismo”- Mesmo por­
que este, recuperadas as suas implicações etimológicas, re­
monta à noção fundamental de ler ou de escolher (lego, ecle-
go), noção que se acha bastante próxima do que hoje se cha­
maria visão seletiva: uma visão consciente e fundamental­
mente seletiva, aplicada à hermenêutica das formas — obvia­
mente históricas — do próprio pensar.
É sempre pouco provável que alguém, sobretudo se pos­
sui um mínimo de formação, se intitule, hoje, adepto exclu­
sivo de determinada filosofia (à parte talvez, como os com-
tistas de há cem anos, certos marxistas atuais, que formam
como aqueles um grupo religioso). A adesão a uma filosofia se
acha habitualmente temperada ou suplementada com ele­
mentos vindos de outra. Destarte a percepção das limitações
e dos condicionamentos leva a reunir a vivência dos proble­
mas filosóficos com a compreensão das épocas, e esta por sua
vez leva a entender a própria filosofia como processo histó­
rico. O historicismo é justamente a consciente formulação

20
da idéia da filosofia como problemática historicamente com­
prometida.
Recordamos aqui as alusões de Ortega às escolásticas.
Ele mencionou a tomista como sendo apenas uma delas, sen­
do outra, no firn do oitocentos, a neokantista.7
Sob certo prisma será válido dizer que todo “sistema”,
na fase dos chamados epígonos, tende a ser tuna escolástica,
com certezas assentes e intenção pedagógica, através de for­
mas que persistem mesmo após a alteração da circunstância,
Neste caso o papel do historiador consistirá em distinguir,
em cada grande “ideário”, a parte nuclear — possivelmente
aproveitável para ser integrada numa visão seletiva como
a que se mencionou acima — e os componentes que corres­
pondem ao processo de “escolasticização” historicamente re­
conhecível. Com este entendimento se tem inclusive a com­
preensão da filosofia “como um todo”, algo historicamente
genérico, e ao mesmo tempo a das vivências filosóficas na­
cionalmente situadas.8

4. Alusão ao processo de secularização do saber. O pr


cesso de secularização — processo eminentemente cultural
— apresenta uma singular importância. Ele pode ser enten­
dido no âmbito de cada grande cultura (e principalmente
nos casos da grega e da “ocidental”) , ou, na medida em que
é válido pensar-se nisto, no âmbito da evolução geral da hu­
manidade, vista através de uma linha global de experiência.
A fórmula “do mito ao logos”, utilizada por certos eruditos
europeus a partir da obra de Nestle, aplica-se ao caso da Gré­
cia (cuja imagem foi agudamente vista por Vico), onde o ra­
cionalismo emerge contra um fundo de figuras mitológicas,
e também ao caso da Europa moderna, onde o iluminismo re­
presentou, ao menos em tese, o triunfo da razão. O processo,
que geralmente envolve na origem uma passagem do rural
ao urbano e do pensar teológico ao filosófico (e isto foi en­
xergado por Comte, que contudo não pôde ver o pluricultu-
ralismo da história, com seu correlato de relativismos), en­
volve também uma tendência no rumo da burocratização,
que vem do racionalismo e se liga ao cientificismo e à tec­
nocracia (esta tendência vem sendo vista, hoje, através da
sociologia de base weberiana)-
21
A secularização, como “abandono” dos padrões teológi­
cos de pensar em favor do imanentismo e do pensar leigo-
racionalista, afeta a ordem, no plano das formas societárias,
e a hermenéutica, no dos modos de pensar- Altera-se a ética,
altera-se a política, altera-se a economia, O apogeu das for­
mas secularizadas leva entretanto à saturação e às crises,
que são crises do legalismo e do racionalismo.
O advento do historicismo, no Ocidente moderno, é o
equivalente do velado ceticismo que se deu no mundo antigo
depois do período dos “grandes sistemas”, e em ambos os ca­
sos o processo de secularização se encontra na base.
Além de implicar uma transição do mítico (teológico)
ao racional (científico), o processo de secularização envolveu
a passagem da aristocracia à burguesia, e, correlatamente, a
do rural ao urbano, já mencionada. Isto situa a transição do
feudalismo ao capitalismo, ou por outra, de uma sociedade
de ordens a uma sociedade de classes.0 O advento do dinheiro
também tem uma parte na coisa e Simmel percebeu com
nitidez seus efeitos.
* * *

© tema da “gênese” do historicismo (sobre o qual Mei-


necke escreveu um livro importante mas algo equivocado,
como aliás assinalou com veemência Croce) não pode ser de­
vidamente formulado sem a compreensão destas coordena­
das histórico-eulturais, São elas que passam, e isto é bem
perceptível no caso do Ocidente, a exigir um tipo de pensar
distinto dos ontologismos “dogmáticos” (como o dos “gran­
des sistemas” dos séculos XVI e XVII). 10
O fundamento a que se achou referida a reflexão gnosio-
lógica de Kant foi, como sobradamente se sabe, a ciência físi­
co-matemática; ao correr do século XIX, as ciências ditas
culturais — também ditas históricas — passaram a ser o re­
ferencial da gnosiología. Ou antes, a reflexão passou a ser
epistemológica e se montou sobre a imagem de uma dupli­
cidade de ciências. Com isto o que se teve, em verdade, foi
um redimensionamento do criticismo, reformulado no (ou
como) historicismo. E, por não ser um ismo dogmático, o
historicismo pôde dar-se em diferentes versões, nenhuma to-

22
talmente “oponível” à outra, mas distintas pelo conteúdo:
a de Dilthey, a de Meinecke, a de Croce, a de Spengler, a de
Ortega, a de Mannheim.11
E contudo surgiria, no caso de Hegel, um novo ontolo­
gismo sistematizante, que entretanto era (ou comportava)
um historìcismo. Hegel ahsorveu a culminação “clássica” dos
“grandes sistemas” modernos, mas percebeu o cunho histó­
rico dos problemas filosóficos, que já em seu tempo reque­
riam tun modo novo de tematização; dai sua formulação da
dMética, que ele chama “o método”, e que acolhe o substan-
cialismo ontologizante, mas também — por seu sentido “di­
námico” — se conjuga ao entendimento histórico das coisas.
Enquanto a lógica aristotélica, culminação do tema do “con­
ceito” na cultura antiga, teve como expressão maior o silo­
gismo, no qual o teimo médio era a peça central, na' lógica he­
geliana — de certo modo culminação da idéia de “sistema”
no pensamento ocidental — a expressão maior foi a dialética,
que era uma espécie de contraprova do sistema, e onde a
peça central era a negação (a negação fazendo com que a
tese “necessite” da antítese, que necessitará da síntese, und
so weiter) . 12
5- Observações complementares. Aceita a idéia de his­
tória como algo mais do que a mera seqüência “cronológica”
de fatos, e a de cultura como abrangência de traços que, co­
mo conjunto, apresenta uma evolução, toma-se evidente a
correlação entre as duas idéias. A história, que não se reduz
a “momentos” mecanicamente pontualizados em termos de
causalidade, é um processo culturalmente caracterizado, A
cultura, na medida em que se “situa” em marcos de tempo
e se relaciona com processos correntes, tem uma história,
dá-se como história.
A partir disto se terá obviamente a conexão entre his-
toricismo e culturalismo. Conforme ficou dito, os cultura-
lismos sempre têm sido visões da história, ou implicado uma
concepção histórica, mas os historicismos nem sempre repre­
sentam uma concepção da cultura, Ou por outra, nem sem­
pre configuram uma visão das dimensões culturais. Uma
concepção- como a de Spengler foi, ostensivamente, tun cul­
turalismo e um historìcismo; o historicismo de Croce (que

23
n^n apreciava Spengler) não incluía — ao menos expliciter
— os dados culturais.
Tanto o historicismo como o culturalismo, a nosso ver,
são opostos ao “materialismo”, tanto ao chamado vulgar co­
mo ao que se intitula de histórico. Do mesmo modo são opos­
tos ao “naturalismo”. A concepção da história como projeção
de um espírito, no sentido hegeliano e no do nous grego, re­
pele os reducionismos deste tipo. Por outro lado, a relativi-
zação existente em ambas as formulações — a historieista e
a culturalista —, se alcança a própria noção de verdade, nem
por isso se confunde com a dos pragmatismos (inclusive
aquele que pede a “efetivação” como prova do verdadeiro).
Ao ser um relativismo, o historicismo permanece como
teorìa, e toda filosofia tem que ser essencialmente teoria. È
evidentemente uma falácia a idéia — tão veiculada pelos
marxólogos de hoje — segundo a qual a filosofia deve servir
para transformar o mundo: o sentido da frase de Marx, nas
Teses, deve ter sido o de que a Filosofia, até então tão im­
portante, devia ser considerada frágil porque pouco fizera
pela transformação do mundo; mais valia tentar esta trans­
formação do que cultivar a teoria. Mas uma coisa é a proje­
ção de uma filosofia em uma política ou uma pedagogia, e
outra o entendimento da filosofia como ação, que seria algo
contraditório como conceito.13
A viabilidade do culturalismo como posição filosófica
nos parece-restrita e incompleta se ela não se apóia sobre
o historicismo — ou mesmo se não se identifica com ele. O
relativismo que provém da visão dos conceitos culturais só
se transforma em esquema filosófico se aclarado por rima
visão que inclua a compreensão do próprio pensar: e o pen­
sar como experiência culturalmente localizada se apresen­
ta como fato histórico. Daí que caiba à perspectiva histórica
(mesmo "dentro” de uma concepção culturalista) o pronun­
ciamento crítico sobre a experiência do pensar, inclusive so­
bre sua projeção nos “sistemas”. Cabe à perspectiva histórica
integrar a experiência geral do “humano” em termos de con­
tinuidade e descontinuidade, com suas limitações e suas coor­
denadas. A incorporação da dimensão cultural enriquece, sem
dúvida, a perspectiva histórica; sem ela o historicismo não
estará completo. Por outro lado, é a dimensão histórica, sem-

24
pre presente nos culturalismos, que lhes fornece o alcance
filosófico específico. Saber bastante sobre Kant é urna coisa,
e outra, certamente, pensar os problemas que ele colocou;
mas, se penso estes problemas em conexão com dados sobre
as condições históricas que os motivaram, penso mais sobre
eles, penso-os com outro dimensionamento e os enquadro
numa compreensão mais abrangente.
A visualização histórica do fenômeno cultura lhe con­
fere generalidade bastante, e bastante caráter fundamental,
para corrigir as distorções ligadas à velha teoria do “fator
determinante”. Por seu turno, a compreensão da história em
ligação com coordenadas culturais favorece o entendimento
de sua complexidade, e da pluralidade de ângulos sob os quais
deve ser encarada.

ANOTAÇÃO SOBRE O VALOR DO


CONHECIMENTO HISTÓRICO

O domínio absoluto do “racional”, no sentido da esque-


matização abstrata, tende de alguma maneira a hostilizar
a história (como ocorreu com Rousseau) ou mesmo a igno­
rá-la (como ocorreu em Platão, condicionado de resto pelo
relativo a-historismo do espírito “antigo”). No caso do ra­
cionalismo dito burguês, a rejeição da história correspon­
deu a um certo aspecto do liberalismo, que em parte se in­
clinava (iluministicamente) ao formal e ao universal; mas
o liberalismo não se transformou — nem tinha que se trans­
formar — em um planejamento integral do viver dos homens.
Nos totalitarismos do século XX, porém, o planejamento ten­
de a ser integral, e o componente racionalista (oriundo de
filosofias clássicas ou de utopias românticas) leva a extre­
mos o esforço de “construir” enormes estruturas econômicas
e burocráticas. Este racionalismo “construtor”, que de algum
modo tem sido presente em todas as grandes revoluções mo­
dernas, se exacerba ao incorporar em seus refolhos o cienti­
ficismo e o tecnocratismo, tão conhecidos no século corren­
te. Um estranho platonismo late ja dentro dos totalitarismos,
que tencionam ordenar as vidas humanas segundo padrões
que se definem através de cânones teóricos inflexíveis
25
Neste ponto não podemos deixar de mencionar duas das
principais advertências, contidas na literatura do século vin­
te, contra o planejamento to talitàri: o “Admirável mundo
novo” de Huxley e “1984” de Orwell. No primeiro, a assom­
brosa imagem de runa sociedade onde todos os condicionan­
tes estão controlados, e onde nem as variações genéticas po­
dem afetar a ordem montada; no segundo, um mundo social
onde a verdade se reduziu a um esmagador monopólio par­
tidário e onde estão destruídos todos os componentes diver­
gentes. Em ambos há uma inquietante ausência de histo-
ricidade, ou seja, de variabilidade (ou mesmo de “mudança
social”); é impressionante como, em “1984”, o passado se
acha cancelado, e mesmo o passado mais recente é manipulá­
vel através de um total reprocessamento de registros. A ver­
dade, inacessível à crítica, é também inacessível aos homens
comuns a troco de uma sinistra fixidade cultural.
Cabe refletir sobre a importância do conhecimento histó­
rico como conhecimento comparativo: sem o conhecimento
da história não se têm referências axiológicas para situar o
julgamento das realidades. Toda doutrina (ou regime) que
nega o passado tende a negar a historicidade do humano;
entretanto o conhecimento do humano necessita dos dados
históricos, já que o “homem” é o que vem sendo, múltipla
e constantemente Sem o conhecimento do passado não se
tem o verdadeiro intelectual (afirmei que o intelectual é sem­
pre o guardião da história, em meu ensaio sobre os clássicos
e a exemplaridade histórica) ; e também não se tem base para
a crítica das realidades “presentes”. Negar o passado seria,
dentro de um totalitarismo extremo, apagar os sinais do co­
nhecimento do homem por si mesmo, e instalar uma gra­
tuidade muito perigosa para os usos do poder absoluto.

Outra Anotação (sobre os itinerários do tema


no pensamento contemporâneo)
Hegel, que na Fenomenologia do Espírito se referiu por
várias vezes à cultura e ao umundo da cultura” (embora no
sentido ético-pedagógico do termo Bildung), não os relacio­
nou ao conceito de História: sua perspectiva, no caso des­
ta, era antes a das etapas percorridas pelo espírito até chegar
26
ao mundo germânico. Também a antropologia inglesa do sé­
culo passado, que com Tylor conceituou a cultura em ter­
mos didaticamente duradouros mas demasiado empíricos, não
poderia ter chegado à idéia de uma conexão entre cultura e
História.
Marx, que não acompanhou Hegel no referente à “filoso­
fia do espírito”, não adotou a noção de espírito objetivo nem
incluiu em sua linguagem o conceito de cultura. O evolucio­
nismo por sua vez tendeu mais à noção de “civilização”, vin­
da da ilustração; e no mesmo caso se encontrou Comte, ocupa­
do com a dinâmica social e com os estágios do desenvolvi­
mento do espírito humano, ao modo de Turgot e Condorcet.
Desde fins do século dezenove, entretanto, marxistas e
marxólogos, desde Rosa Luxemburgo até os mais recentes —
e sobretudo os mais recentes — vêm aos poucos transforman­
do o pensamento de Marx, através de interpretações e rein-
terpretações que no mínimo se declaram baseadas no pró­
prio pensar dõ autor do “Capital”. Vêm transformando-o (em
especial ao sobrepor o “Marx Jovem” ao dos escritos da ma­
turidade) em algo diferente do que fora durante a vida de
Marx, Assim como os tomistas, que por certo tempo busca­
vam encontrar no aquinatense tudo o que parecesse positi­
vo, atual ou “eterno”, os marxólogos vêm fazendo do legado
de Marx um ideário amplo e flexível, onde qualquer ângulo
pode ser enfatizado como principal, e onde o economicismo
freqüentemente cede passo — quando convém — a uma va­
ga teoria do “social” e onde aparecem opções conceituais que
o próprio Marx talvez não aceitasse. Destarte o conceito de
História, ambígüo desde as diferenças entre as alusões a ele
contidas no Manifesto e as de outros textos, tem-se desdobra­
do sob diferentes formas (vejam-se por exemplo as páginas
de Lefebvre, em “O Fim da História”, sobre o encerramento
da história e o da filosofia), formas sempre reformuláveis.
É certo que a reformulação de doutrinas é parte de sua so­
brevivência e de sua vida histórica, mas também o é a ne­
cessidade de se dispor, sempre, de uma imagem correta, de­
purada e recuperada, sem o que cada doutrina ficará per­
dida entre as alterações que lhe impuserem.
Para colocar o problema das alterações da viabilidade
das doutrinas do século XIX em nosso tempo — no caso dou-

27
trinas da historia como as de Comte e de Marx —, bastaria
pensar no enorme aumento das populações por todo o mun­
do e num de seus principa’s correlatos, o incremento da téc­
nica. Seria evidentemente um erro considerar a questão da
técnica sob prisma meramente económico, pois se trata de
um problema eminentemente cultural (seria interessante o
confronto entre as reflexões de Jaspers e de Heidegger com
as tentativas de Axelos no sentido de basear em Marx, tam­
bém, o tema da técnica).
Somente com o neokantismo o conceito de cultura pôde
combinar-se com o de históra, mesmo com as insuficiências
de Rickert no tocante a este e com as omissões de Dilthey
no concernente àquele. E somente com a aceitação de uma
convergência de correntes —■descartados os dogmatismos e
os radicalismos —, se poderá integrar uma série de contri­
butos teóricos passados com tematizações novas: inclusive,
integra¡r a noção de Aufheben (e também a de dialética) com
a de “compreensão”, e conjugar a axiologia histórica com os
questionamentos recentemente trazidos pela hermenêutica.

NOTAS
1 JOSÉ ORTEGA Y GASSET, História como Sistema, Rev. de Occidente
(3® edição), Madrid 1958. págs. 48 e seguintes,

2 Por ser o histoiicismo um conceito flexível, e por serem os historieis -


tas pouco rígidos na definição de suas “posições”, continuam cabendo
a respeito diversas idéias, algumas disparatadas, como as de Karl Pop­
per, outras apenas discutíveis, Acho discutível, por exemplo, & opinião
do ilustre professor EDUARDO SOVERAL, quando considera, como
“formas imperfeitas” de historicismo. o tradicionalismo e o progressis­
mo (c f Humanidades, voi I, n ° 3, Brasília, abrii-junho 1983 pág. 93) :
o tradicionalismo talvez, mas o progressismo não. Acolho, contudo, a
observação do professor GAMA CAEIRO, segundo a qual é possível fa­
lar-se em humanismos historicamente no cirnais, apesar da pretensão
de universalidade contida no humanismo clássico (“O Pensamento Filo­
sófico do Século XVI ao Século X V m em Portugal e no Brasil”, em
Actas do I Congresso luso-brasileiro de Filosofia, Braga, 1982, pp 54-55),

8 A bibliografia a respeito é muito vasta e bastante conhecida. Vale des­


tacar a observação, questionável, talvez, mas certamente relevante, de
MIRCEA ELIADE, segundo a qual “o historicismo se constitui como
produto da decomposição do cristianismo” (O Sagrado e o Profano,
trad R, Fernandes, ed. livros do Brasil, Lisboa s d t cap. n , p 94)„

28
Tudo isso faz pensar na necessidade de uro reexame da “lei dos três
estados”, feito a sério,

* O próprio ORTEGA, em seu célebre ensaio sobre Kant, escreveu que


a filosofia moderna, ligada às cautelas do burgués industrial e advo­
gado (e ai entram as ênfases expressionistas de seu estilo), vem evi­
tando, e máximamente com o neokantismo, a aproximação ao ser,
preferindo rondar os temas do conhecer. Acrescente-se, para uso do
tema geral do presente estudo, que Ortega não simpatizava muito com
a tematização da cultura (apesar de historicista), e que chegou a de­
nunciar, naquele ensaio, a “beatería de la cultura”.

ö Para MAX MULLER, entre os aspectos da crise da metafísica estaria


o “fracasso das metafísicas da essência diante da consciência histó­
rica” (cf Crise de la Méthayhysique, trad, francesa, Desclée de Brou­
wer, Paris 19õ3) O problema porém é bastante complexo, pois do hege­
lianismo, ainda um filosofar ontologizante, o conceito de “espírito obje­
tivo” foi aproveitado para a fundamentação do próprid pensamento
iiistorizante, tanto na geração de Ranke quanto ao tempo do neokan­
tismo. Sobre certas questões relativas ao “progresso” da historiogra­
fia, bem como sobre a pretensão de encontrar esquemas gerais para a
compreensão da história, há observações verdadeiramente luminosas
de PAUL VEYNE, Como se escreve a história (ed, da Univ. de Brasília
juntamente com Foucault Revoluciona a História, Brasília, 1982)

o Uma das características da vida intelectual dos últimos decênios é o


preconceito gratuito contra toda idéia de hierarquia (e de ordem), que
se repudia em nome de uma falsa noção de democracia e em conexão
com um igualitarismo terrivelmente a-crítico que tende a confundir
e a diluir todas as coisas. Este igualitarismo, que combate sem maio­
res indagações a idéia de elite, recusa a distinção clássica entre arte
popular e arte erudita, nivela os gêneros e rejeita os critérios da qua­
lidade Tende-se, ao que parece, a um regresso ao indiferenciado,

7 ORTEGA Y GASSET, “Médio siglo de Filosofía”, em Rev, Brasileira de


Filosofia, São Paulo, voi. XXXIII, fascículo 130. Noutra parte, havia
Ortega escrito que uma escolástica é sempre um saber' que se reduz a
mera terminologia, Contudo, deve-se distinguir entre as reservas do
mestre de Madrid às escolásticas e sua contribuição à critica — nem
sempre negativa — do modo aristotélico de pensar, tema este estuda­
do com extrema penetração por ALAIN GUY (Ortega y Gasset, oriti-
que d*Arìstote, PUF, Ed. Privat, Paris, 1963),

8 É preciso distinguir esta compreensão da idéia de que o plano nacio­


nal das “circunstâncias” exige que se recusem, como estranhas ao nos-
so viver, filosofias anteriores a um dado “hoje” e disciplinas univer­
sitárias “demasiado européias”- Esta idéia, perfilada no Brasil até
mesmo por pensadores lúcidos e avisados, como Gilberto KUJAWSKI
(cf Perspecíwas Filosóficas, São Paulo, 1982), nos parece equivocada-
A problemática filosófica, como tal, deve ser assumida com termino­
logía e tudo por quem queira “filosofar”; o problema estará em “ficar”

29
ou não numa filosofia fixa e única, num filosofar cuja circunstância
foi outra e legou apenas núcleos doutrinários possivelmente válidos.
Sobre a possibilidade de “conciliar” e “escolher” entre filosofias, cf.
ANTONIO PAIM, Problemática do Culturalismo (Rio de Janeiro 1977).
Infelizmente o esquema do presente artigo não comporta um debru-
çamento sobre o pensamento de Miguel Reale e Djacir Menezes, que,
no Biasil atuai, vêm encarnando em termos diversos a posição cultu-
ralista.
o A referência a runa transição deste tipo, que ocorreu diversas vezes
na história, não significa corroborar a idéia de que, como transição
seguinte, se tenha, como diateticamente “previsível”, o advento de
uma época proletária. A relação de classe, existente entre proletariado
e burguesia, não é algo historicamente igual à xelação entre burgue­
sia e nobleza: nem no Ocidente nem nas cultuxas passadas. Foi obra
da burguesia a “ universalização” do conceito de classe, e dela se apro­
priou a doutrina socialista; mas o proletariado não possui, como a bur­
guesia, uma caracterização global inteligível em termos lùstórico-cultu­
rais, em termos de Weltanschauung> Em tais termos a dicotomia bási­
ca è a que se dá entre aristocratas e plebeus, e estes se cindem depois,
quando se instala o critério econômico, em patrões e operários. Por isso
mesmo a interpretação da situação do operariado, que tende a substan­
tivá-lo e dar-lhe um papel histórico definido (e definitivo), esbarra
em problemas como o da crise, que é crise para todos, e como o da
tecnocracia, que encaixa no tema (dito “burguês”) da decadência, Mas
aqui, por1 cautela, ponho um aviso: não é necessário compartilhar cer­
tos slogans e modismos para combater a exploração capitalista nem o
imperialismo norte-americano (bem como o soviético) e coisas afins.
Evidentemente é lamentável que o chamado Ocidente se encontre sob
o comando (e na dependência) dos Estados Unidos; mas eu encaro
isso também sob o prisma cultura^ não apenas sob o econômico; é por
ter entrado em decadência que a humanidade ocidental entrou para
tal situação. Comparavelmente, os povos da antiga Hélade, e do Me­
diterrâneo, cair am sob o dominio de Roma quando entraram em deca­
dência: o que não significa, porém, que Roma não representasse algo
bastante superior, em termos históricos, ao que representa o domínio
norte-americano, E ponho outro aviso: nenhuma destas considerações
comporta em negar que o marxismo tenha deixado contribuições alta­
mente positivas e altamente válidas, o que é outro problema.
io De certo modo é válido dizer que a chamada “Sociologia do Conheci­
mento” não teve tempo de se aplicar a todos os grandes temas que a
comportavam, inclusive ao da relação entre conceitos como verdade ou
bem supremo e os contextos sócio-cuituráis; os muitos estudos que to­
cam no assunto são fragmentários (ao menos ao que eu saiba), Na
realidade ela, como “sociologia”, ficou cindida entre as tentações da
“filosofia social” e os empirismos de pequeno fôlego. Além disso houve,
antes que ela amadurecesse como campo temático, a entromzação do
economicismo, que introduziu nova ordem de problemas. Permifcirao-
nos remeter, a propósito, ao nosso ensaio «Do maniqueísmo à tipologia”,
ora em Humanismo e História, ed. Fundarpe — José Olimpio, Rio de
Janeiro, 1983..

30
n Faço questão de registrar, aqui, a espantosa e surpreendente incompreen­
são do grande erudito português VASCO MAGAIJIÃES-VILHENA,
quando, em seu livro Antonio Sérgio, o idealismo critico e a crise dai
ideologia burguesa (ed Cosmos, Lisboa 1975, pp. 120-121) se refere a
Croce e a Ortega,

12 Segundo uma certa idéia, em parte advinda do hegelianismo, cada épo­


ca teria a sua filosofia; e alguns ideólogos apressados têm deduzido
disto que “a” filosofia de nosso tempo é o marxismo, afirmando ain­
da que isto é um modo de ver historicista* Evidentemente, porém, não
se poderia demarcar a época da qual o marxismo é, ou foi “a filoso­
fia": Porque não o século XIX? Porque o XX? Na verdade, ter cada
época uma filosofia peculiar é algo válido, mas no sentido da exis­
tência de modos dominantes de pensar, padrões, categorias etc.; e nes­
te caso o hegelianismo e o marxismo foram próprios do oitocentos tan­
to como o sistema de Stuart Mill ou o comtismo. No século vinte o
existencialismo poderá ter sido a filosofia típica, correspondendo a ele
um modo de teorizar ao qual se adaptam os sistemas anteriores quan­
do querem ser eficazes para os leitores do novecentos — e isso vem
ocorrendo com o sistema hegeliano e com o marxista. A nosso ver, a
tentativa do professor' Roland Corbisier, no sentido de conciliar o
marxismo com o orteguismo (cf. sua recente Introdução à Filosofia),
resulta inviável: para Corbisier, a filosofia se entende como sendo
“sua própria história" (como queria Hegel) e ao mesmo tempo não,
pois no presente é condicionada por uma circunstancia específica Esta
última afirmativa, de raiz orteguiana, na verdade não desmente a an­
terior (pois o ser a filosofia algo histórico não impede que "tenha”
circunstâncias que também o são) e de qualquer modo é incompatí­
vel com o determinismo e o escatologismo próprios do ideário marxista.
Outro tema, que aqui só de leve anotamos, é a aversão do marxismo
para com o “histórico" como tal, inclusive a história antiga (e as
coisas “clássicas”), preso que se acha, como filosofia aderida a um
pragmatismo, à visão do presente como referencial maior.

31
Filosofia e Ciências na Universidade,
Fundamentalidade, Integração ,
Interdisciplinaridade ()
Sumário: A filosofia e os “saberes” no pensamento
antigo. As formulações medievais. As trajetórias moder­
nas e contemporâneas O convivio interdisciplinar na
Universidade As variáveis doutrinárias. A experiência
brasileira.

Tão velho quanto a própria filosofia é o problema de


sua convivência com outras formas do pensamento: religião,
ciência, literatura. Qualquer que seja o marco de “origem”
que se assinale para a atividade filosófica (no sentido his­
tórico do termo origem), seus delineamentos iniciais es­
tão rodeados pela presença da poesia, dos livros sagrados,
da indagação científica. Tão velho e portanto tão atual —
acrescente-se — quanto a própria filosofia, é o problema em
tela: ele não se esgotou, embora talvez se tenha esgotado o
repertório de possibilidades de combinação, no relacionamen­
to do filosofar com o crer, o saber e o dizer.
No pensamento grego (seja dado aqui descartar, sem
“desprezar”, os legados orientais), a filosofia, como é sabido,*

* Comunicação enviada ao I Congresso Luso-Brasiieiro de Filosofia, rea­


lizado em Biaga, Portugal, em janeiro de 1981

32
surgiu de problemas físicos, isto é, científicos: indagações so­
bre as coisas e o conjunto das coisas, hipóteses sobre o cos­
mos e sobre os seres vivos, sobre fenômenos, relações, unidsu-
des. No espírito grego, dominado até certo ponto pela esti­
mação do equilíbrio, o tema dos números fascinou a muitos
espíritos; e o “rigor” da matemática alimentou inclusive al­
gumas tendências gnosiológicas fundamentais de Platão: ten­
dências que em Aristóteles se alteraram, pois a Metafísica do
Estagirita tentaria justamente evitar a confusão entre mate­
mática e filosofia.1
De qualquer sorte, a filosofia seria sempre um “coroa-
mento” do saber, embora fosse também sua “base”: as me­
táforas espaciais funcionando como algo necessário e ao
mesmo tempo insuficiente. As “escolas” pôs-aristotélicas, coe­
táneas de um saber positivo mais acurado (os estóieos, por
exemplo dispondo de uma física mais experimentalizada),
nem por isso reduziram o filosofar a um “panorama” ou runa
propedêutica em relação aos saberes específicos: vigorou real­
mente, entre as elites clássicas, a idéia globalizante do sa­
ber, incompatível com os especialismos, embora certos pensa­
dores e pesquisadores se destacassem neste ou naquele cam­
po — física, geometria, matemática.
*i* & "i1

Não escondo minha idéia de que Comte em grande parte


teve razão (como antes dele Turgot e Condorcet), quando gi-
zou as linhas essenciais de sua sempre discutida Loi des trots
états. De qualquer sorte é perceptível que durante a chama­
da Idade Média (a expressão é imprópria mas vai por con­
ta da linguagem historiográfica corrente), o modo teológico
de pensar imperou sobre todas as formas de saber — inclusi­
ve o saber jurídico e o filosófico —, reduzindo-se e estreitan­
do-se consideravelmente, o que é também consabido, o saber
experimental a algo quase excepcional. A não ser entre os
persas e os árabes, cuja cultura havia assimilado com maior
antecedência os dados da astrologia antiga e da mineralo­
gia, da biologia, da química e da física. Além da metafísica.
Não se deve, porém, evidentemente, comprimir a ima­
gem do pensamento medieval, e de suas formulações, a es-
33
quemas simplificadores. Nem por conseguinte reduzir o pro­
blema da relação entre a filosofia e as outras formas de co­
nhecimento, do medievo, ao aspecto “ancilar”, assumido pela
filosofia em relação à teologia, ou ainda ao caráter restrito
apresentado pela pesquisa empírica nos séculos medievais.
O problema requer revisões — e elas têm sido feitas e refei­
tas —, convindo provavelmente insistir em dois aspectos: o
da continuidade da reflexão mantida através da refração de
vários séculos, e o do humanismo, constante apesar de tudo
como tradição, oriunda dos clássicos e correspondente à per­
manência do legado deixado por eles.3
* * *

Igualmente conhecido é o fato de que o chamado "adven­


to da modernidade” correspondeu a uma convergência de ten­
dências e de revoluções parciais, em religião, em ciência, em
economia, em costumes, em estruturas. O saber renovado, e
redimensionado por todo o Ocidente (o Ocidente era então
um orbe geograficamente pequeno), era um misto de curio­
sidades e de ousadias, informações e legados, e era novo nas
sistemáticas, no tom, na linguagem. Era em princípio se­
cular, não mais teologico- E era, marquemos isso, interdisci­
plinar: voltava-se à idéia antiga do saber global, ou sentia-
se a solidariedade que mantinham entre si os ramos do co­
nhecimento (data desta época a imagem do conhecimento
como árvore que se ramifica)- O racionalismo de Descartes,
tornado exemplar nos tempos modernos, não era apenas re­
flexão filosòfica, ou por outra, não provinha dela apenas: pro­
vinha de seus trabalhos de ciência, para um dos quais, à
guisa de introdução, foi escrito o Discurso do Método.
Em Kant, como se sabe, expressou-se em definitivo a
concepção da filosofia como “crítica de pressupostos” : este
entendimento seria retomado por alguns neokantistas na
transição para o século XX. Bem como, de certa forma, pela
fenomenologia. Mas nos positivistas se teve a filosofia como
“visão de conjunto”, pressupondo a existência de um corpus
formado pelas ciências (o kantismo o pressupunha também,
mas noutro sentido) : se bem que a lei dos três estados, se
tomada ao pé da letra, levaria a considerar a filosofia uma

34
variável sempre negativa, como margeadora do mito no pri­
meiro estágio, como serva da teologia no segundo, como epi­
fenómeno do saber positivo no terceiro. Em Hegel, a filosofia
seria equivalente à totalização do saber, inclusive em seu
“momento” absoluto, e sobretudo na dimensão histórica do
saber (em Marx a negação economista da filosofia, indigita-
da por conta da “miséria” e por conta do afã de substituir a
contemplação-interpretação pela ação-revolução).
No século XX, a “pergunta pelo ser” colocada por Hei­
degger, assim como as análises da existência em Jaspers e
em Sartre ignoraram por assim dizer certos convívios do filo­
sofar com o saber científico (sem embargo da formação
científica de Jaspers) : acentuaram-se os convívios com a re­
ligião e com a literatura. Mas a renovação do historicismo,
inclusive na linha posta por Croce e em certas sugestões de
outros, voltou a propiciar um novo questionamento quanto
às relações entre a filosofia e as ciências: no caso, ênfase
sobre as ciências chamadas humanas ou culturais.
* * *

Na Universidade, em sentido o mais genérico, tem sido


obviamente um problema de alta relevância o do convívio
da filosofia com os saberes, ou seja, com as “outras” ciências
(senão com as “ciências”, tout comi). Em certos casos, o
problema se põe a partir da existência de Faculdades que
são “de Filosofia e Ciências” — humanas estas, em geral, —
ou então “de Filosofia e Letras”. Em princípio, a Universi­
dade se alimenta da existência do saber, ou seja, das ciências;
mas há um outro lado na dinâmica da coisa, porquanto é
também certo que a Universidade alimenta ou propicia as
ciências, ou seja, promove a existência do saber. Daí que por
uma parte temos a necessidade do especialismo, desabala-
damente desenvolvido em nosso tempo, por conta de tecno­
logias as mais diversas; por outra parte temos a necessidade
óbvia de evitar que os especialismos se tomem áreas fecha­
das inconsúteis e estanques, o que significa a necessidade do
interdisciplinarismo. A promoção de especialismos dentro da
Universidade, assim no plano "do ensino como no da pesqui­
sa, se identifica como uma performance necessária, da qual
tendem a orgulhar-se certos setores; mas o outro lado do
35
problema, aquele que nos mostra a Universidade dependen-
do da existência de saberes que estão na vida histórica (e
que ela vem apenas “organizar1’), é correlato do valor do
conjunto: a relação entre os saberes e a vida histórica só
pode ser apreendida como um todo, ou antes, só tem senti­
do se se toma os saberes em sua totalidade.
Independentemente da organização burocrática, ou do
“modelo”, a que corresponda a Universidade (Faculdades ou
Centros, existência ou não de departamentos), é certo por­
tanto que a relação entre as diversas faixas do saber postula
a existência de um sentido interdisciplinar no próprio tra­
balho Universitário. Conseqüentemente, a convivência da filo­
sofia, com as referidas faixas necessita também encaixar-se
nessa interdisciplinaridade. Sendo a filosofia, por outro lado,
um saber fundamental — indagação de fundamentos, refle­
xão sobre pressupostos —, tal interdisciplinaxidade tem de
ser tida em conta num sentido muito especial, pois cabe ao
saber filosófico, em princípio, presidir aos delineamentos de
seu próprio coexistir com os outros saberes. A “integração”
do saber filosófico no corpus de conhecimentos existentes na
Universidade (existentes como Universidade) deve, portanto,
ser seriamente repensada.
* * *

É claro que tudo isso dependerá do conceito de filosofia


de que se disponha — o que já foi aflorado linhas acima —,
e do conceito de ciência, bem como do de Universidade. A es­
tas alturas o problema cai entre variáveis doutrinárias, que
são quase sempre (ou, ao menos, freqüentemente) variáveis
ideológicas. Todos os questionamentos sobre o tema de Uni­
versidade tendem, hoje, o entrar na dimensão ideológica.
Não se pode forçar uma imagem de “correlações” total­
mente simétricas, da qual resultaria ser a Universidade de
cada geração correspondente à filosofia de cada geração (ou
vice-versa), em termos de orientação geral e estruturas bá­
sicas. Mas há um certo paralelismo, de modo que o tema fica
aqui registrado como sugestão para ser retomada em outra
hora.
# * *

36
E finalmente algumas observações em tomo da expe­
riência brasileña. A demora havida na criação de Universi­
dades, no Brasil, não acarretou propriamente perda de subs­
tância no processo formativo da cultura, no país: acarretou
porém uma certa dispersão nas experiências pedagógicas. O
surgimento das Universidades, em pleno século vinte, en­
controu uma tradição cultural onde a produção filosófica
(pouco volumosa, mas expressiva) havia coexistido com as
ciências e a literatura dentro de pautas por assim dizer es­
pontâneas, não delineadas, por esquemas didáticos e buro­
cráticos — a não ser no recinto ou nos programas de algu­
mas instituições, como o Colégio Pedro 31.
A política de estruturação interna das Universidades, que
no Brasil sempre esteve demasiado submetida à política par­
tidária (e administrativa) eventualmente dominante, qua­
se sempre acolheu conveniências assentes, de modo que o
problema da filosofia e de seu papel na Universidade nunca
foi seriamente enfrentado.. Enfrentados têm sido em verda­
de outros problemas, como o dos nomes das unidades (gran­
de preocupação dos reformadores da Universidade), inclusi­
ve o nome das Faculdades, — com grande animosidade, por
parte da recente e nefasta reforma, para com as Faculdades,
sobretudo as de Direito-
Provavelmente, porém, caberá aos próprios cultivadores
do saber filosófico postular o redimensionamento do proble­
ma — que, além de ser um problema da Universidade, é um
problema da cultura, e, portanto, da vida humana.

NOTAS
1 LEON BRUNSCHVICG, Les âges de V'intelligence, ed. PUF, Paris 1953,
(4 a ed.), Gap. HX, págs. 57-58.

2 PAUL RENUCCI, L‘aventure de Vhumanisme enropéen au moyen-ãge


(IV — X IV siècle) , Paris, 1953 Soci¿té d’édition les Belles Lettres. Cf.
também HENRY O. TAYLOR, The classical Heritage cm the middle
ages, 3.a edição, Nova York. MacMil'an 1929, e ainda o clàssico ERNST
R CURTIUS European literature and th e latin middle ages, Trad. W.
R Trask, ed Pantheon Books, Nova York, 1953, passim.

37
Tempos Brasileiros: a Filosofia (*)

Escrevendo sobre o período colonial da literatura brasi­


leira, em artigo publicado no número 67 (setembro-dezembro
de 1981) de Tempo Brasileiro, situava Eduardo Portella a
“tradição autoritária” que, desde aquele período e “por toda
a vida”, acompanharia o viver nacional, comprometendo o
equilíbrio das relações entre a sociedade e o Estado. Ao final
do mesmo artigo, porém, acentuava Portella que “de nada
adiantaram” aquelas repressões autoritaristas, e que afinal
“o novo mundo foi essencialmente construído sob o signo
libertário do humanismo pré e pós-renascentista”.
Nas duas passagens, que destacamos de dentro do artigo,
há duas constatações que se complementam: uma que regis­
tra um dado negativo e outra que o compensa com üma ani­
madora adversativa. Temos realmente uma linha contínua
de autoritarismo, que vem de nossas origens (e aqui podería­
mos encaixar algumas velhas questões da interpretação de
nossa formação “política”) ; e temos também — parece, ao
menos — uma outra linha constante, que é de rebeldia e li­
bertarismo, e que estaria, segundo o texto citado, ligada a
componentes humanistas.
Caberia comparar o quadro, e seria um confronto honroso,
com a duplicidade de linhas, a liberal-tolerante e a absolutis­
ta-estatizante, que correram paralelas no Ocidente europeu
durante pelo menos os séculos XVI, XVII e XVIII. Caberia
também indagar, e isto serve de motto para o presente artigo,
se naquele dualismo de linhas não estariam as bases de cer­
tos motivos que constantemente atuam sobre o pensar na-
* Publicado na Revista Tempo Brasileiro n.° 71, 1982

38
cional. Presença do poder, adesão a ele, valorização da or­
dem e da autoridade; mas também atitude crítica^ cobrança
de legitimações, estimação da liberdade.
Com isto colocamos o problema, aqui apenas entrevisto,
da possível “permanência de temas”, no curso do pensamen­
to brasileiro. Seria demasiado fácil, embora não propriamen­
te inválido, relacionar uma série de dicotomías, ou de “an­
títeses”, presentes no processo histórico do pensar brasileiro,
em cada um dos planos ou das faixas em que ele corre: no
pensamento político a antítese entre autoritarismo e libera­
lismo, no pensamento pedagógico o jesuitismo e o laicismo,
no pensamento religioso a ortodoxia e as heterodoxias, no
pensamento jurídico a linha jusnaturalista e as linhas anti-
jusnaturalistas. E não seria difícil, por outro lado, senão
que até mesmo um tanto óbvio, apontar para a atuação
de dualismos semelhantes na história do pensar social (no
alcance mais amplo deste termo) do Ocidente: conservadoris­
mo e reformismo na Grécia, inclusive no pseudo-Xenofonte e
em Platão, feudalismo e antifeudalismo na literatura me­
dieval, absolutismo e liberalismo no Ocidente pré-ilustrado e
ilustrado, revolucionarismo e passadismo no espírito Român­
tico. E seria interessante relacionar o tema ao chamado “mé­
todo das gerações”: há gerações onde aparece um traço de­
finidor e hegemônico nos supostos axiológicos e nas expres­
sões exteriores, enquanto outras se dilaceram entre tendên­
cias opostas, sem maior definição,
Para o que aqui nos interessa, a noção ou a imagem
de uma “permanência de temas’ merece um pouco de aten­
ção. A busca de “constantes” e de “temas centrais” dentro
do pensar nacional pressupõe um certo grau de preocupa­
ção com este mesmo pensar nacional, correndo-se aliás —
o que é consabido — o risco de substancializar demais o atri­
buto nacional do pensar: neste ponto a questão se liga ao
debate já algo sediço sobre caráter nacional e coisas afins.
Certos historiadores de idéias têm, de qualquer modo, tenta­
do fixar determinados temas que seriam centrais, que cons­
tituiriam “núcleos” ou “traços” principais no filosofar bra­
sileiro (é o caso por exemplo, sem descartar outros, do Pro­
fessor Antônio Paim).
Também não seria difícil, uma vez que nosso objetivo
neste artigo é o de esboçar um balanço do pensamento filo-
39
sófico brasileiro nos últimos trinta, e sobretudo nos últimos
vinte anos — de agònico e denso ou tenso tempo brasileiro
—, não seria difícil detectar (alguns diriam “pinçar”) den­
tro do emaranhado de textos e de afirmações que preenchem
o período marcos corroboradores dos pontos-de-referência
mencionados no início: tanto corroboradores da persistên­
cia do binômio autoritarismo-liberalismo, como da sobrevi­
vência de outras dicotomías significativas, como ortodoxia-
heterodoxia, conservadorismo-“progressismo”, espiritualismo-
mateiialismo, essencialismos-existencialismos, Mas indepen­
dente do problema de saber o que é permanência, surge a
questão do desigual “volume” com que se apresenta cada
termo destes dualismos, que ocupam — para empregar ou­
tra expressão recentemente posta em uso — diferentes por­
ções do espaço teórico disponível.
Conduziremos então este levantamento, que é conscien­
temente precário, com armação esquemática bastante flexí­
vel. Não dispensaremos porém a referência a certas “traje­
tórias de temas”, que vêm dos anos 20 e 30 e se reformulam
após 45 e que persistem (nem sempre fáceis de reconhecer)
na linguagem (prefiro não dizer “no discurso”) mais recen­
te. Como, por exemplo, o processo que leva das “bases da
nacionalidade” e das “forças vivas” do país à politização e à
desalienação. Processo que tropeçou no movimento armado
de 1964, uma espécie de catarse au rebours para a vida cul­
tural brasileira, e que ao tropeçar foi atropelado por ele; e
ele trazia também (apesar de tudo) seus jargões específicos,
que até pouco tempo cobriram e bloquearam o andamento
dos termos que até então vinham perfazendo a elaboração-
reelaboração da “epistême” nacional.
* # *

Será o caso, para tornar menos difuso o quadro — a filo­


sofia no Brasil nos últimos trinta anos, nos vinte mais re­
centes sobretudo —, de apelar entre outras coisas para uma
referência às gerações, A geração que atingiu nos anos ses­
senta seu apogeu (os romanos diziam o floruit), formou-se
num período vincado por intensos questionamentos: a trans­
formação do legado de Farias Brito em militância ortodoxa
por Jackson de Figueiredo, a sobrevivência do neotomismo

40
em Leonel Franca e no Alceu Amoroso Lima da primeira
fase, a maturação do nacionalismo tipo Alberto Torres em
ligação com o integralismo, o aparecimento das primeiras
obras filosóficas de Pontes de Miranda.
Dos anos iniciais do século herdaria esta geração lima
pergunta um tanto equívoca: a pergunta sobre se existe uma
“filosofia brasileira”. Esta pergunta, afim à questão da exis­
tência de um “caráter nacional” (motivador dos caminhos
históricos do país e ao mesmo tempo resultado deles), seria
redimensionada ao reformular-se, na transição para a déca­
da 60, o próprio nacionalismo das décadas 20 e 30. Ela pro­
vocaria a sediça resposta que se refere a uma “filosofia eu­
ropéia elaborada no Brasil”, resposta que é tão válida e tão
inválida quanto a equivalente aplicada ao México ou à Ar
gentina. Certamente o Brasil não teve uma meditação sobre
seu ser histórico no nível da que teve o México (onde ela se
apresenta com Antonio Caso e Leopoldo Zea e chega a Octa­
vio Paz), mas isto não significa que tenha faltado em nosso
pais um quehacer filosófico relevante, bem como, vale salien­
tar, traços de uma meditação daquele tipo encaixados em
obras de teoria política, de análise histórica ou de crítica
literária. É possível que tenhamos tido menos empenho na
formação de uma linhagem (e de uma linguagem) filosófica
em termos nacionais, mas tivemos uma sociologia bastante
rica, que vem pelo menos de Sílvio Romero e de Oliveira
Vianna em diante. De qualquer sorte, o advento das Univer­
sidades no Brasil entrou, não como fator decisivo mas como
componente possibilitador de uma maior “maturidade” em
nossa produção filosófica, corrigindo até certo ponto velhos
males, como o autodidatismo, embora instaurando uma cres­
cente burocratização da vida cultural, condenada em nossas
Universidades a uma precariedade de meios freqüentemente
lamentável.
$ * *

Não é fácil, a não ser para os que se impõem certos anto-


lhos simplificadores, reduzir a um esquema suficientemente
nítido a diversidade de "linhas” e de “correntes”, ou de “po­
sições”, ou de movimentos ou escolas que desembocam nos
anos sessenta e setenta, no Brasil, em termos de filosofia ou

41
no plano do pensar em sentido genérico. Os anos sessenta pa­
recem ter propiciado, em termos globais, o grau mais inten­
so de mutações estruturais para determinados setores da cha­
mada cultura ocidental: nos valores sociais, nos costumes, na
música popular, no cinema, na política, nas relações entre
sexos e entre gerações. Nestas mutações se incluíram os cha­
mados países periféricos, afetados e contaminados por elas
na medida em que participam dos padrões ditos ocidentais:
e neles ecoaram as rebeliões dos estudantes, tal como a mú­
sica dos Beatles, as modas beatnik, as tendências hippies.
Ecoaram também, chegadas af nal à América Latina, as obras
da Escola de Frankfurt e as dos “nouveaux philosophes”, co­
mo haviam chegado o estruturalismo francês (o estrutura-
lismo russo foi anterior) e outras coisas.
Talvez a emergência de crises internacionais mais mar­
cantes tenha ajudado os intelectuais brasileiros na passa­
gem dos anos 50 aos anos 60 a esquecer a ênfase com que se
falava, décadas antes, do tema das “raízes” e de outros te­
mas da retórica filosófico-social. Outras ênfases surgiram,
entretanto, com o ãesenvolvimentismo que eclodiu ao fim
dos anos 50, mas elas foram atingidas pelo movimento mi­
litar de 1964: umas foram silenciadas, outras consagradas.
De qualquer sorte estas novas ênfases se aliaram ao prestí­
gio de uma nova “onda” que invadiu o país, formada pelas
teorias de Mac Luhan e pela problemática das comunica­
ções. Ê preciso lembrar também, no limiar dos anos 60, a
atuação do ISEB, do qual alguns remanescentes continua­
ram a produzir e a publicar livros, mesmo após a alteração
dos contextos, como é o caso, entre outros, de Hélio Jagua-
ribe. Ao mencionar o ISEB, é necessário aludir a um tipo
de pensamento que se tomou relevante no Brasil: dele par­
ticiparam alguns autores depois radicalizados (inclusive Viei­
ra Pinto), e dele ficaram participando certos segmentos da
filosofia social corrente no Brasil de hoje.
Com a radicalização, instaurada no plano institucional
e no ideológico, começou a faltar espaço para posições mo­
deradas. A dimensão política das doutrinas passou a pesar
como algo decisivo, e a filosofia em sentido teorético cedeu
o passo às expressões filosófico-polít'cas: de um lado a ade­
são ao poder estabelecido, incluindo os conservadurismos e
alguns tomismos, mais outros ismos eventuais ou menores,
42
de outro o repúdio à situação, abarcando marxistas, setores
católicos, liberais racionalistas. Não quer dizer, contudo, que
todo o pensamento tenha assumido sentido político imedia­
to ou expresso; nem que se perdessem de todo as caracteri­
zações específicamente filosóficas do que se continuou pu­
blicando.
Os anos sessenta trouxeram, também, o aumento da pre­
sença dos problemas econômicos, junto aos quais adveio uma
terminologia que aos poucos se impôs ao país, como correlato
do predomínio de uma espécie de “nova classe”, e penetran­
do inclusive nos setores administrativo e pedagógico da or­
dem vigente. Em consonância, começou a crescer o tema da
tecnologia, transformado na questão da tecnocracia, à me­
dida em que as estruturas se enrijeceram. Começou também
a invasão do “gereneialismo”, importado dos Estados Unidos
e vinculado à chamada filosofia-do-êxito, e igualmente in­
troduzido nos setores administrativo e pedagógico.
Estas alterações concretas do viver nacional, que inclu­
sive punham à prova a noção orteguiana de que a nação
é em si mesma um projeto, poderiam ter condicionado uma
reflexão mais ampla sobre o tema se não se achassem aco­
pladas a uma estrutura política essencialmente repressiva e
autocrática. A isto se aliava, como fator negativo, a radica­
lização acima referida, que deslocou o fulcro das controvérsias
doutrinárias. O antigo debate entre católicos e materialis­
tas, que se completava e se ampliava em termos filosóficos
como polêmica entre espiritualismo e naturalismo, cedeu vez
à opção ou ao confronto — começava a voga desta palavra
— entre esquerdas e direitas, nem sempre bem definidas, e
freqüentemente confundidas com algo como oposicionismo
e situacionismo. Nos desdobramentos do confronto, alargou-
se a área teórica do marxismo, ora à base da “releitura” fei­
ta nos centros europeus dos textos clássicos de Mai’x e En­
gels, ora com a própria utilização da linguagem antiga. Ca­
beria inclusive um estudo sobre a distinção entre os mar­
xistas da geração mais velha — incluindo Caio Prado Júnior
e Nelson Wemeck Sodré —e os da nova geração, familiari­
zados com os integrantes do Grupo de Frankfurt (muito
Emst Bloch, muito Adorno, e mais recentemente Habermas)
e conciliados com a psicanálise. Familiarizados, também, com
Foucault.
43
Ao lado da penetração da psicanálise, freqüentemente
barateada pelo excesso de divulgação, pode-se mencionar, nas
últimas duas décadas, a retomada do legado existencialista.
A obra de Heidegger, bastante visível em forma de paráfra­
se em certos escritos de Vicente Ferreira da Silva (em cuja
obra também foi muito característica a influência de Höl­
derlin) , veio a receber um tratamento novo, dentro das duas
décadas mais recentes, em mãos de Emildo Stein, Gerd Bor­
nheim e Emanuel Carneiro Leão, entre outros. Dentro desta
linha começa a aflorar a presença da obra de Gadamer, dan­
do ao legado heideggeriano uma espécie de vertente herme­
nêutica. Enquanto isso, a influência específicamente feno­
menològica, difusa e parcial durante muito tempo, tem hoje
expressão pessoal em Creusa Capalbo.
Um impenitente fisicalismo naturalista, paralelo ao que
permeou e alimentou em seus fundamentos a obra de Pontes
de Miranda, e que apareceu em certos escritos de Djacir Me­
nezes, foi superado ou temperado na obra do próprio Mene­
zes por influências hegelianas (merecem alusão seus im­
portantes textos sobre Hegel) e mondolfianas. Na obra de
Pontes de Miranda, o naturalismo cientificista não impediu
o surgimento de um livro tão sugestivo e tão agudo como
aquele estranho “Garra, Mão e Dedo” (ao qual o autor, po­
rém, resolveu depois renegar).
* **

O professor Antônio Paim vem insistindo, em trabalhos


recentes, em apontar uma linha culturalista na filosofia bra­
sileira, que, segundo ele, viria de Tobias Barreto. Parece-nos
porém exagero falar de um culturalismo brasileiro como li­
nha ou como corrente, além do fato de que em Tobias Bar­
reto (o tema é amplo e já tratamos dele em outros traba­
lhos) o texto que fala de “cultura” não chega a formular
um culturalismo propriamente dito, nem desmente o natu­
ralismo básico que lastreia seu pensamento. O que se pode
é indicar pensadores com inclinação temática ou sistemá­
tica pela noção de cultura, e estariam no caso o Djacir Me­
nezes dos trabalhos mais recentes, bem como o pensamento
jurídico de Miguel Reale, montado sobre a idéia de um Di-

44
reito simultaneamente fato, valor e norma, e sobre a cor­
relação entre experiência jurídica e contexto cultural. Ou
ainda o próprio Paim, e também Adolpho Crippa.
A propósito de culturalismo cabe aludir por afinidade
aos orteguianos brasileiros, que se situam como autores jus­
tamente a partir de 1950 ou 1960 (Gilberto Kujavski, Ubira-
tan de Macedo, Luís Washington Vita numa certa fase). Ca­
be aludir a certos tópicos ou a certos ângulos da vasta obra
de Gilberto Freyre. E cabe aludir ao historicismo, um tanto
indefinido entre certas posições marxistas que buscam fle­
xibilizar-se, buscam libertar se dos slogans e do endeusamen-
to dos textos sagrados, e certos pendores relativistas que —
geralmente ligados ao penchant Lberal e a um humanismo
vago mas reconhecível — servem de apoio ao próprio cultu­
ralismo.
Os leitores de Ortega no Brasil foram, de certo modo,
continuadores dos de Nietzsche. Tal como, mas agora indi­
cando um degrau menor, dos de Ingenieros e de Le Bon.
Crítico do mundo bux*guês, Nietzehe seria repudiado pelo
marxismo vulgatizado como “reflexo” da burguesia; e o mes­
mo se pode dizer, até certo ponto, de Ortega. No Brasil, não
faltou aos leitores de Ortega, nem aos admiradores de Nietz-
che, a pecha apressada de “reacionarismo”. Nem faltaram
autores que, atraídos pelo marxismo, abandonaram o exis-
tencialismo e o raciovitalismo — como Roland Corbisier —
em troca de uma enfática conversão à “Filosofia da Praxis”,
valorizada nada menos de que como única imune ao condi­
cionamento “infraestrutural”, e portanto única irredutível
à condição de ideologia. Fascinados por Sartre — mais tal­
vez o combatente do que o teorizador —, muitos falam gra­
tuitamente na razão dialética, e o deslumbramento diante
da dialética corrobora neles a adesão quase religiosa ao mar­
xismo.
Há também uma diferença entre o tratamento dado ao
tema da dialética pela geração mais antiga (seja exemplo a
obra de Caio Prado) e a mais nova, onde se tem a figura de
Lima Vaz — não tão jovem em termos cronológicos — e a
de Bornheim, com seu importante livro de 1977 sobre o tema.
* * *

45
Aqueles bascnlements, de que falava Michel Foucault em
Les Mots et les Choses, indicando mudanças de rumo no in*
teresse temático quando de certas transições de época a épo­
ca, na história intelectual do Ocidente moderno, ocorrem
também obviamente no pensamento dos países como o Bra­
sil. São alterações na ordern de problemas: problemas que
durante certo tempo ocupam e preocupam quase todo o mun­
do, deixam de ser acentuados — sem que tenham sido “re­
solvidos”, nem que algum motivo visível tenha interferido.
Os últimos vinte anos mostram, no pensamento filosófi­
co brasileiro, uma série de giros temáticos deste tipo. A eles
se ligam modificações gerais nos hábitos intelectuais, ao lado
da penetração (óbvia) de novos modelos internacionais re­
ferentes a modos de pensar e de expressar pensamentos. Te­
mos de reconhecer que é um tempo, o nosso, em que, diante
da ordem de coisas vigente em escala mundial, o filosofar
se tem tornado particularmente difícil. E talvez, por isso
mesmo, mais necessário.
Todo o legado do século dezenove vem sendo reestudado
— há inclusive um interesse por ele em certos cursos de pós-
graduação —, e com isso se tem feito a “releitura” de Tobias
Barreto, de Tavares Bastos, dos positivistas. Todo o acervo
do século vinte tem sido revisto, inclusive no tocante ao pen­
samento científico (em 1979 Simon Schwartzman coordenou
um amplo levantamento sobre a formação da comunidade
científica no Brasil). Tem-se repensado o nosso bacharelis-
mo, e com ele a trajetória do ideário jurídico brasileiro. O
naturalismo vindo do oitocentos, mais o espiritualismo de
origem iluminista ou romântica, têm sido revistos. As idéias
socialistas têm sido reexaminadas (recentemente Vamireh
Chacon reeditou seu livro a respeito) ; em compensação, têm-
se tido diversos reexames do liberalismo, desde a ampulosa
“Democracia Coroada”, de Oliveira Torres, aos estudos de
Ubiratan Macedo. Mais recentemente, a problemática do libe­
ralismo foi proficientemente reposta por Roque Spencer Ma­
ciel de Barros, e vem sendo representada por autores de fei­
tios diversos, como José Guilherme Merquior e Vicente Bar­
reto.
A rigor, o conhecimento e o reconhecimento dos itinerá­
rios percorridos não implica em uma atitude meramente
cumulativa, mas em algo que possibilita questionamentos
.46
mais fundamentados. Os impasses e as radicalizações dos últi­
mos vinte anos têm de ser reavaliados, e é importante consi­
derar o fato de que, paralelamente a eles, nosso país tem vivi­
do problemas “reais” que necessitam sempre de reintepreta-
ção. A filosofia, como se sabe desde Hegel, é ela mesma sua
história, sem reduzir-se ao mero fato histórico de seus percur­
sos. Cabe situar e valorizar a relação entre o tempo histórico e
a atividade cultural em termos de consciência filosófica, e es­
ta, por seu turno, costuma alimentar-se de reexames, feitos,
não com paixão extremada, mas ao menos com sensibilidade
axiológica.
São realmente de reexames e de revisão de caminhos
os tempos -— inclusive os brasileiros — que correm. Neste pe­
daço de tempo, que o Tempo Brasileiro tem acompanhado e
integrado, cabe buscar o fio (ou os fios) de uma linha de lu­
cidez crítica, que perpassa precariamente entre os extremis­
mos cegos e os conformismos mudos: esta linha correspon­
de, para retomar as alusões feitas ao início deste artigo, ao
libertarismo humanista, que deve ser questionante sem ser
radicalizado^ e ser relativista sem adotar o ceticismo.

47
Kant e o Criticismo (No Bicentenário
da Critica da Razão Pura) (*)
Sumário: 1 — Introdução: situação e circunstância.
2 — O ponto de vista epistemológico 3 — Estrutura da
critica da Razão Pura 4 — Influências e permanências: o
legado de Kant e o criticismo.

1. Introdução: situação e circunstância. Somente u


convite tão honroso como este, desdobrado em esmagadora
responsabilidade, para proferir conferência sobre o mestre
de Koenigsberg nesta Fundação, me faria no momento reto­
mar livros que li há tantos anos, reler e repassar, consultar
outros, pensar um esquema expositivo que não fosse demasia­
do afoito nem demasiado banal.
Sei que se questionaria talvez, desde logo, a pertinência
de se comemorar o bicentenário da grande Crítica num país
subdesenvolvido: novidade não se consegue trazer, tanto mais
que centenas e centenas de estudos, por toda a Europa senão
por todo o “Ocidente”, incluindo livros, teses e artigos, têm
nestes dois séculos virado e revirado a obra de Kant, pro­
pondo reinterpretações e refazendo explanações. Mas, enfim,
há sempre que repensar e reestudar: fazer parte do Ocidente,
como ao menos de certo modo fazemos, é aceitar também
tarefas culturais entre as quais se incluem reexames e co­
memorações como esta — seja qual for o nível em que sejam
realizadas.
* Conferência proferida na Fundação Joaquim Nabuco, Recife, a 21 de ou­
tubro, 1981.

48
* * *

Tentarei colocar os traçados iniciais. Desde logo: dian­


te de certas opções que vêm ocupando o ideário filosófico con­
temporâneo, opções como a que se dá entre pensamento ana­
lítico e pensamento sintético (seja mencionada en passant
a idéia, em parte procedente, de que a mentalidade burguesa
corresponde basicamente ao pensar analítico); ou como a
que se dá entre apriorismo e empirismo; ou entre idealismo
e realismo, parece que hoje se pode ver a posição de Kant
como irredutível a cada uma delas, e ao mesmo tempo im-
plicadora de todas elas, sem contudo ser “abrangente” no
sentido mais fácil do teimo, nem “eclético” no senti­
do mecânico. Do mesmo modo, diante da idéia redueio-
nista e radical, que considera toda expressão do saber ou do
pensar como expressão ou “reflexo” de dominações sociais
(e/ou de regimes econômicos) pode-se dizer hoje, após tan­
tas gerações de estudiosos, que tal idéia, por sua vez, só in­
teressa a um certo tipo de crítica e só é pensável — mas ain­
da assim em parte — a propósito de relações que nem sempre
se verificam. A propósito de Kant podem-se indicar relações
entre o padrão bur guês de pensar e o estilo expositivo do filó­
sofo; não, exatamente, sobre conteúdos específicos ou sobre
doutrinas como tais.
De qualquer sorte, creio que o pensamento de Kant se
caracterizou e se perpetuou antes de mais nada como uma
teoría do conhecimento. Por mais importante que tenha sido
sua preocupação com a moral — e aludirei adiante ao sen­
tido de um “primado da razão prática” que muitos têm en­
xergado na filosofia kantiana — ou mesmo sua contribui­
ção à filosofia do direito e da história, o edifício kantiano
restará sempre como uma epistemologia (ou antes, uma gno­
siología e uma epistemologia).
Spengler, por sinal, havia observado que para Kant o
tema da razão pura, e não o problema da prática, serviu co­
mo centro do filosofar. Descartemos a dicotomia entre puri-
dade e pratieidade, que a meu ver não estava em Kant, e te­
remos como certa a observação. O mesmo Spengler, aliás, en­
tendia a consideração kantiana do espaço e do tempo enquan­
to formas a-príori da intuição, como projeções da alma fáus-
tica, propensa às abstrações e sedenta de infinito.

49
* * *
Permito-me apontar agora para o trajeto que vai de Des­
cartes a Kant. Há uma permanência da presença do cogito
e de suas relações com o sum, colocadas por Descartes de for­
ma tão clara e tão forte; só que Kant reclamaria mais um
pouco de diligência analítica para o problema. Como se sabe,
a leitura de David Hume fez com que Kant, segundo a ex­
pressão famosa, despertasse do “sono dogmático”. Vem-me
aqui a tentação de caracterizar o dogmatismo como uma
dormência e a crítica como vigília, para relacionar com a
idéia da Carta VII de Platão, que identifica o filosofar com
irma vigília. Mas sei que a coisa não é exatamente a mesma.
Voltando a Hume, seu meio-ceticismo deve ter assustado a
Kant no próprio “despertar”, embora o impressionasse —
e isto é anotado por Deleuze1 — a idéia de Hume segundo a
qual o conhecimento propriamente dito constitui uma “su­
peração” dos dados da experiência.
Em Kant, todavia, por mais que ele se tenha diferencia­
do historicamente por suas conceituações e suas posições bá­
sicas, permaneceu, sobretudo na concepção da razão ou do
racional, como algo universal, uma marca cartesiana: presen­
ça daquele modo radicalizante e abstrato de pensar, que fez
da étenãue e da -pensée os dois dados (ou os dois lados) fun­
damentais e essenciais da realidade.
Por tudo isso, não acolho o sociologismo radical que pro­
cura as raízes do pensamento de Kant na “sociedade bur­
guesa”. Ou antes, aceito tal idéia no sentido de Ortega, que
vinculou o trabalho especulativo de Kant ao tipo burguês
de vida, - não no de Goldmann, que partiu de categorias eco­
nômicas e de um esquema referido às classes para encaixar
ali o perfil inteligível do pensamento Kantiano.3 A obra de
Kant se relaciona com todo um padrão cultural racionalista
e ilustrado, mas não é apenas “reflexo” dos condicionamen­
tos ditos materiais.
Padrão cultural racionalista: a Crítica da Razão Pura
representou, e dizer isto não é nenhuma novidade, uma es­
pécie de apogeu do racionalismo; ao mesmo tempo repre­
sentou seu ponto de crise. Por mão de Kant, o racionalismo
utilizou seus próprios recursos para verificar seus limites e
definir suas limitações. O trabalho de Kant, em sua obra
50
maior, consistiu, não em um sistema racionalista, mas em
luna filosofia de base racionalista. Evitando a montagem dos
sistemas do tipo de Leibniz ou Spinoza, providos de um pres­
suposto metódico de então em diante considerado a-crítico,
o mestre de Koenigsberg obrigou a razão a um auto-exame,
e refez a própria estrutura do pensar filosófico definindo em
seus alicerces uma preocupação especial: a preocupação com
a própria problemática do conhecer.
2. O ponto de vista epistemológico. Utilizando o term
em acepção lata, estou cobrindo, com a expressão “episte­
mologico”, todas as questões do conhecer: desde as radicais
perguntas da gnosiología até o tema do alcance de cada uma
das ciências filosóficas, incluindo a metafísica.
Às vezes me ocorre pensar que a “aridez” e a “profun­
didade” dos problemas postos e dissecados por Kant cansa­
ram os pensadores que se lhe seguiram, e dai a descontinui-
dade da presença de tais problemas no pensamento posterior
à morte de Kant. Ocorre-me também pensar que há uma
enorrne atualidade em Kant, que não é apenas a das ques­
tões que levantou, o que já seria muito, mas igualmente a
dos conceitos com que enfrentou tais questões, buscando-os
e elaborando-os em face delas,
Embora haja também um certo arcaísmo em suas obras,
já pelo método expositivo (sabe-se que Kant o comparou ao
dos escolásticos), já pela saturação temática que as percorre,
sobretudo nas críticas, onde a fidelidade aos assuntos se tor­
na quase obsessiva. A Crítica da Razão Pura, neste sentido,
padece de um terrível prosaísmo, raramente atravessado de
alguma frase mais retórica ou mais poética — sem embargo
do fato de que Kant era sempre feliz quando soltava estas
frases,.
:|* * *

Volto porém ao problema da época de Kant: época do ilu-


minismo e dos resíduos do rococó, com música de câmera,
despotismo ilustrado, arquitetura neoclàssica.4 Aquilo que
se chamaria a epistème do Ocidente do século XVIII, usan­
do um termo de Michel Foucault em um de seus grandes li­
vros (Les Mots et les Choses) evoluía como um quadro glo-
51
bal: a moral jansenista exaurira parte de seu arsenal de ar­
gumentos, a ética dos escoceses cedera lugar ao utilitarismo,
o idealismo de Berkeley continuava desafiando os oponen­
tes mais argutos, o empirismo de origem baconiana contras­
tava com a hirta linearidade da escolástica leibnizeana pro­
duzida por Wolf.
Deste modo a doutrina de Kant pode ser situada den­
tro de uma seqüência de posições inteletualistas, oriundas
remota e basicamente daquele intelectualismo grego e re­
finadas por sucessivas sutilizações. Depois dele, e sempre por
influencia dele, se renovariam sempre, no pensamento oci­
dental — apesar da relativa descontinuidade a que me re­
feri acima —, atitudes tendentes a pensar sobre o pensa­
mento, a teorizar a teoria, a examinar supostos, estruturas
e limitações, no que concerne ao conhecer. Este epistemolo-
gismo, que recentemente se deu em grande estilo com Ba­
chelard e que ocorre também com Foucault — ao menos o
Foucault de Les Mots et les C/ioses e da Archéologie du Savoir
—, tem sido o correlato dos “objetivismos” correntes em nos­
so século.
Patón, em seu monumental estudo sobre a metafísica
de Kant, se refere à “novidade” e à “obscuridade” trazidas
pela obra de Kant, notadamente pela Crítica da Razão Pu­
ra. 0 Esta obscuridade, que tem sido mencionada de todos
os modos, corresponde exatamente à carga de especula-
tividade conduzida por seus textos, e à sua exposição cerrada
e sem concessões — aludi, algo antes, ao “prosaismo” de suas
explanações, e Kant mesmo chegou a dizer que escreveu a
Crítica da Razão Pura renunciando ao sabor estilístico do
“gênio”, que em seu tempo alguns já cultivavam (Hamann,
por exemplo).
# **

Cabe indagar, porém, o por quê da Crítica, isto é, o moti­


vo filosófico pelo qual Kant adotou os princípios críticos que
nortearam sua obra a partir de certa fase (seria descabido
expor aqui o conteúdo de seus livros anteriores a 1781, vin­
culados ao seu trabalho de mestre-escola e a temas científico-
naturais, o que acontece inclusive na Antropologia) .*

52
O por quê da Crítica corresponde ao descobrimento, pelo
pensador de Koenigsberg, de um certo núcleo de problemas,
e também de um certo núcleo de principios com os quais ca­
bia enfrentar os problemas. De diferentes maneiras se ex­
põem seus problemas principáis. Ora aparecem formulados
como urna tríade interrogatòria: “Que posso saber? Que de­
vo fazer? Que me cabe esperar?”. Oía, por outra forma, eles
correspondem a uma indagação sobre o homem: “Que é o ho­
mem, de onde vem, para onde vai”. Noutro sentido, os pro­
blemas fundamentais são: Deus, a alma, o mundo.
Estes porém são, por assim dizer, os problemas que Kant
recebeu: problemas encravados no pensar de todas as épocas
e implícitos em todas as filosofias. Os problemas montados por
Kant e elaborados especificamente por ele foram os. que mol­
daram e embasaram seu enfoque crítico, sob a formà de prin­
cípios críticos com os quais ele atacou os problemas recebi­
dos. Foram, em suma, os problemas da razão, mas tomados
no que tinham de revelador de uma precariedade: problemas
atinentes à necessidade de reorganizar o trabalho da razão,
tendo de empregar para isto a própria razão.7
É sobradamente conhecido o fato de que, ao pensar em
conhecimento (científico), Kant tomou como factum o es­
tado das ciências físicas e matemáticas em seu tempo. A
grande e sólida herança do newtonismo representava a pro­
va da eficácia da razão como instrumento essencial do co­
nhecer: analisar os limites e as condições do conhecer con­
sistiria em examinar os limites e as condições da razão, Todo
o otimismo epistemológico da Aufklaerung desembocou nes­
ta redução do humano ao racional: e assim para a dimensão
teórica como para a prática, pois também o educar-se e o agir
corresponderiam a esferas onde “deve” imperar o molde ra­
cional. 8
Destarte partiu Kant de um tema implícito, o conheci­
mento da natureza. E neste conhecimento as relações se si­
tuam em dados de espaço e de tempo. Espaço e tempo foram
os indicadores da noção kantiana de aparição, ou por outra,
daquilo que aparece: fenômeno, em seu sentido genérico (não
ainda o termo da dicotomia fenòmeno-noumeno), £ de notar­
se que Kant sempre evitou desgarrar-se do factum funda­
mental ao construir suas categorias críticas; seu modo de
53
pensar, reconhecendo na .razão uma realidade autônoma, ao
menos estruturalmente autônoma, mas ao mesmo tempo
apalpando a cada passo os condicionamentos empíricos que
balizam sua atividade, ficou como uma espécie de modelo
para os idealismos que se lhe seguiram, fossem quais fossem
os desvios que, em relação a ele, tomassem estes idealismos.0
Por isso mesmo Kant se referiria, na Introdução da Cri­
tica da Razão Pura, à “necessidade” de uma ciência filosófi­
ca que determinasse “a possibilidade, os princípios e a ex­
tensão de todos os conhecimentos a priori”. Esta ciência vi­
ria a ser precisamente a Critica da Razão Pura; tal ciência
traçaria por sua vez o plano “arquitetônico” da filosofia trans­
cendental. 10
A problemática dos conhecimentos a priori (ou seja, das
condições que os tornam possíveis e dos limitas que os cer­
cam) equivaleu portanto, no pensamento de Kant, à pro­
blemática fundamental da própria razão. Daí sua preocupa­
ção com a razão pura; não a mera (blosse) razão, mas a
íazão em si (reine) : faculdade autônoma com feitio formal
próprio, e sobretudo dotada — assinalamos — da capacida­
de, senão mesmo do destino, de se auto-examinar. Este o por
quê da critica.
Por outro lado, porém — assinalemos, ainda —, o modo
pelo qual Kant entendeu a estrutura do que chamamos “co­
nhecimento”, colocando seu ponto decisivo no sujeito, com
o que contrariou os objetivismos clássicos e com o que ope­
rou o que ele próprio chamou Revolução Copernicana, cor­
roboraria por sua vez o por quê da crítica: se o conhecimen­
to é uma relação cuja forma se define em função de formas
intrínsecas que se acham no sujeito cognoscente e que se
impõem sobre os objetos, então a análise da problemática do
conhecimento terá realmente de partir da análise do sujeito;
ou seja, das formas a priori que nele estão, e de cuja aplica­
bilidade ao real depende em princípio a própria constituição
gnosio-epistemológica dos objetos.11 Aliás, e adiante aludirei
de novo a este ponto, o caráter “necessário” e “universal” da
imponibilidade das formas a priori aos objetos correspondia,
em Kant, ao fato de ser a razão uma faculdade legisladora:
aí estava a idéia de lei, tão cara às ciências naturais sobre­
tudo a partir do newtonismo, e tão ligada à idéia de neces-

54
sidade (lembremos a frase inicial do Esprit de Montesquieu),
aplicada pelo mestre de Koenigsberg tanto à razão teórica
com à razão prática.
O aprofundamento deste ponto nos levaria a colocar a
questão do objetivismo e do subjetivismo em Kant: objeti­
vismo ao recusar eeticismos e relativismos, subjetivismo ao
enfatizar á parte do sujeito (da consciência, dir-se-ia muito
depois, na época de Brentano e de Husserl) no processo do co­
nhecimento, Aqui me apraz citar, em exato paralelo ao que
estou afirmando, estas enfáticas expressões de Simmel: “Kant
realizou a enorme proeza de levar a seu ponto culminante o
subjetivismo dos tempos modernos, a autonomia do eu e sua
irredutibilidade ao material, sem por isso sacrificar em nada
a solidez e a importância do mundo objetivo”. 13 .
Seria também interessante, mas muito extenso para os
limites deste trabalho, confrontar a diferença platônica en­
tre epistèms e doxa — o conhecimento filosoficamente fun­
dado e o conhecimento extra-filosoficamente veiculado — e
a diferença kantiana entre “entendimento” e “intuição” :
nesta a presença palpitante da realidade, embora triada atra­
vés de formas prévias, naquele o molde mais formal de ca­
tegorias e de conceitos. Ou, ainda, confrontar estes dois ele­
mentos do pensar segundo Kant (entendimento e intuição
ou ainda conceito e intuição) com o que Aristóteles chama­
va intelecto ativo e intelecto passivo.

3. A estrutura da Critica da Razão Pura. Como se s


be, a obra máxima de Kant foi pensada durante longo tem­
po e redigida com relativa brevidade. O próprio filósofo alu­
de, nos prefácios das duas primeiras edições da obra, ao
modo como a produziu, referindo-se inclusive, em passagem
célebre, ao método expositivo que elegeu.
Ernst Cassirer, em notável livro sobre a vida e a dou­
trina de K ant,13 assinala a marcante mudança de estilo ge­
rada no pensador de Koenigsberg entre 1776 e 1780, entre o
imaginoso autor das Beobachtungen ueber das Gefuehl des
Schoenen und Erhabenen (Observações sobre o sentimento
do belo e do sublime) e o redator da Crítica da Razão Pura:
seco, rigoroso e — como anotei anima — desconcertantemen­
te prosaico.
55
A propósi das características do estilo da Crìtica, paira
entre os próprios alemães assinalável divergência: Heine por
exemplo atirou os piores adjetivos contra o estilo de Kant;
Nietzsche, em boutade famosa, disse que o entendia melhor
em francês do que em alemão; Goethe (citado a respeito por
Cassirer) afirmou porém que uma página de Kant lhe dava
a sensação de um aposento cheio de luz.
Mas: ocupado com sua preocupação crítica fundamen­
tal, Kant redigiu a Crítica mais interessado no todo talvez
do que nas partes, isto no sentido da conexão essencial en­
tre estas e sem embargo da diligente exatidão buscada (não
rebuscada) ao expor cada detalhe e ao sublinhar cada dis­
tinção. Por outro lado — e aqui cito Cassirer novamente —
há que relacionar a redação da crítica com a experiência do­
cente de Kant: consta, efetivamente, que suas aulas sobre
lógica e metafísica eram, além de minudentes e analíticas,
algo como um esforço de repensar e fazer repensar cada um
dos grandes problemas.H
O esforço especulativo de Kant na Critica da.Razão Pura
parece a um tempo bastante complexo e radicalmente sim­
ples. Preocupou-se com a metafísica, com sua necessidade e
sua precariedade; e também com a estrutura das funções da
razão como tal; e também com estas coisas denominadas “fe­
nômenos”, 13 entre cujas implicações se encontram e giram
os diversos elementos a que se dirige a crítica mesma: o co­
nhecer, a experiência, as conceituações. Sua radical simpli­
cidade se encontra, porém, na linha básica e pertinaz da in­
dagação pelos limites da razão.. Estes se entendem como limi­
tes da metafísica, entendida como pretensão e como possibili­
dade; entendem-se também como tema da reflexão mais ne­
cessária ao próprio filosofar. Seria cabível, conforme aludi
acima, situar a idéia kantiana da existência de formas racio­
nais a priori, dotadas do poder de dar ordem aos dados sen-
soriais, na linha intelectualista que perpassa o ocidente e
provém, pelo menos, de Anaxágoras.1U Com Kant, porém, o
intelectualismo clássico, que perdera suas implicações obje-
tivistas e “realistas” desde pelo menos a introjeção de Des­
cartes, entra em outro modo, submetendo-se a uma discipli
nação radical, que é a disciplinação crítica.
* #$

56
Após uma introdução, cujo conteúdo corresponde ao que
no método expositivo das Sumas medievais se chamava status
questionis, a Crítica da Razão Pura abre com uma Teoria
Transcendental dos Elementos. Nesta, uma primeira parte
toca à “Estética Transcendental” — incumbida de colocar a
visão inovadora do espaço e do tempo — e uma segunda par­
te concerne à “Lógica Transcendental”, onde se espraia, co­
mo uma impressionante seqüência de sutilezas, a analítica
transcendental, que se divide em analítica dos conceitos (tra­
ta-se dos conceitos puros do entendimento) e analítica dos
princípios, tocantes sempre ao chamado entendimento puro,
À analítica transcendental se segue a dialética transcen­
dental, que visa aos “conceitos da razão pura” e aos “racio­
cínios dialéticos da razão”.
É de decisiva relevância, na construção da obra, esta
segunda divisão da lógica transcendental, atinente à dialé­
tica.. Dentro do “livro segundo”, que nela se integra, e que
estuda os dialektischen Schlüssen der reinen Vernunft, ou
seja, os “raciocínios dialéticos da razão”, 17 apresentam-se os
paralogismos da razão pura, a antinomia da razão pura e o
ideal da razão pura: estes enunciados eqüivalem a algumas
das mais sérias questões envolvidas pela acuradíssima refle­
xão de Kant. Finalmente vem a Metodologia Transcendeu-•
tal, onde se encontram capítulos menos extensos porém im­
portantíssimos sobre a “disciplina da razão pura”, o “cânone
da razão pura”, a “arquitetônica da razão pura” e até mes­
mo a “história da razão pura”, A tudo isto se acrescentou,
na segunda edição, um Apêndice contendo acréscimos e es­
clarecimentos sobre alguns pontos da obra.
Como modelo estrutural, o plano expositivo da Critica
correspondia ao que vinha como tendência dentro do filoso-
far-por-escrito, no Ocidente: desde os embastidos períodos
das Meditações de Descartes e as idas-e-vindas argumenta­
tivas de Locke e de Hume. Mas só em parte, Aquele plano,
por outro lado, ficaria como modelo para muitos livros pos­
teriores, no sentido da ordenação interior das partes, seqüen-
ciadas por uma cerrada conexão, mesmo quando os seguido­
res não tivessem a altura nem a profundidade de seu poder
de pensar.
Por outro lado, é possível detectar, no meio daquele ren-
dilhado de distinções, daquele dédalo de sutilezas (Nietzs-
57
che, entre irritado e irônico, se referiria ao “grande chinês
de Koenigsberg”), é possível detectar uma certa propensão
de Kant aos dualismos, ora como instrumento conceituai e
recurso distintivo, ou como fixação de pontos de referência.
Sempre a dicotomia: juízos sintéticos e analíticos, juízos a
priori e a posteriori, entendimento e imaginação, tal como
na crítica da razão prática o imperativo categórico e o con­
dicional, ou ainda em sentido geral o fenômeno e o noumeno.
Caberia relacionar esta propensão a um padrão burguês do
pensar, na linha do próprio pensar secularizado que veio de
Occam e de Duns Scot e que deu os grandes monumentos
da reflexão analítica moderna. Caberia também indagar se
aqueles dualismos específicos não remeteriam por via siste­
mática a um dualismo genérico, revelador — segundo me
parece — de um íntimo penchant metafísico. Mencionarei
adiante este problema, sempre eivado de aderências equívo­
cas, o da relação entre Kant e a metafísica. Por ora aludirei
apenas às sutis distinções e às engenhosas exemplificações
encontradas por Kant — ainda preso ao método expositivo
dos séculos XVII e XVIII mas já voltado para as perigosas te-
matizações que foram as do idealismo romântico — na via­
gem sempre larga e sempre miúda entre conceitos e reflexões
através dos quais se caracteriza a síntese e se situa a análise,
se determina o a priori e se reconhecem suás categorias.
Caberia ainda, e aqui estou apenas lembrando o tema,
um reexame da trajetória da idéia kantiana segundo a qual
existem juízo sintéticos a priori, idéia que supera a noção
tradicional do próprio a priori, para as idéias de Edmond
Goblot sobre a “construtividade” dos raciocínios dedutivas,
como modo de reentender a relação entre a subsunção clás­
sica e as verdades latentes no conhecimento racional.18
Mencionemos agora a relação da Crítica com as outras
criticas. Enquanto a Critica ãa Razão Pura colocou os pro­
blemas da existência de uma razão estruturalmente autôno­
ma, a Crítica ãa Razão Prática lidou com a necessidade de
encontrar bases formalmente autônomas para a formulação
de regras morais de cunho “universal”. Não confundir as coi­
sas, pois as duas “razões” não formam um “par” : a razão
segundo Kant pode ser pura ou não pura, empírica, e pode
ser teórica (teorética) ou prática O que não impediu que
o próprio filósofo, na Critica da Razão Pura, na “Metodolo-
58
già Transcendental”, em seu capítulo n , secção segunda, se
referisse ao "ideal do soberano bem como princípio determi-
nador da meta final da razão pura”..10
A ligação entre as duas críticas, entrevista a partir da
própria semelhança do plano expositivo (não faltando à Crí­
tica da Razão Prática uma analítica e uma dialética), se com­
prova, em nível mais fundo, na procura de moldes univer­
sais, Comprova-se, assim, ao verificar-se a continuidade da
reflexão. Kant publicou em 1783 os Prolegómenos (Prolego­
mena zu einer jeden kuenftigen Metaphysik, die als Wissens­
chaft wird auf treten koennen), em 1785 a Fundamentação
da Metafísica dos Costumes, em 1788 a Critica da Razão Prá­
tica e em 1790 a Crítica da Faculdade de Julgar, ou Crítica
do Juízo. Isto sem falar em outros trabalhos de menor ou
maior relevo,20 A continuidade da reflexão e a similitude
do plano expositivo se confirmam, como disse, na busca de
afirmações universais — e em correlação perceptível com
aquilo que se tem chamado o universalismo burguês —, cor­
respondendo o juízo e a razão prática, como a razão em si
mesma, a categorias a que se emprestava, naquele tipo de
filosofia, uma principiai imutabilidade no tempo e uma ne­
cessária unidade no espaço. Pois que o próprio tempo, e o
próprio espaço, se reduziam a categorias analiticamente de­
finidas.
** *

Assinalo, então, junto ao relevo dos dualismos em geral


no pensamento de Kant, o especial relevo daquele dualis­
mo entre o ser e o aparecer, convertido sistematicamente
em distinção entre nômeno e fenômeno. Esta distinção, por
sua vez, seria raiz de uma outra distinção, transformada atra­
vés das influências exercidas por Kant em dualismo genéri­
co: o dualismo entre ser e dever ser, Este dualismo, que a
meu ver teve em Kant um alcance limitado, servindo sobre­
tudo de suporte ou de confirmação para suas idéias sobre a
existência de dois campas diferentes (dois mundos, ou duas
dimensões), o da realidade contingente, ou da necessidade,
e o da liberdade essencial, este dualismo desembocaria, por
um lado, na caracterização dos objetos, respectivamente, das
ciências naturais e das culturais; por outro lado desembo-
59
caria, através de um cultivo metodológico radical, por parte
de autores mais recentes, na idéia de uma drástica e irredu­
tível separação entre o “ser” e o “dever ser”, com repercussões
inclusive ná filosofia do Direito.
Ao aludir à idéia kantiana de uma distinção entre o
mundo da necessidade e o mundo da liberdade, abro um pa­
rêntese para anotar a enorme relevância de sua filosofia mo­
ral. A idéia de uma razão legisladora foi levada à teoria éti­
ca, por Kant, com enorme nitidez, A lei moral, como subli­
nhe« Windelband, constituiu no sistema kantiano um prin­
cípio a priori.21 Ortega chegou a escrever que o kantismo se
caracteriza, mais do que por sua teoria do conhecimento, pe­
lo fato de haver dado à ética um lugar primacial no sistema.
Tais ênfases, porém, correm por conta de interpretações pes­
soais. A verdade é que, sem os conceitos basilares formula­
dos por Kant em sua teoria do conhecimento, não teria ele
montado as formulações de sua ética: sem a análise do a
priori, não teria entendido o dever moral como um princípio
aprioristico, nem forjado a distinção entre os dois tipos de
imperativo.

4. Influências e permanências: o legado de Kant e o


criticismo. Pois todo este acervo de questões e de conceitua-
ções, organizadas em sistema e desdobradas em meticulosa
imbricação pelo pensador de Koenigsberg, fundaram como
se sabe um novo modo de filosofar. Compuseram este modo,
certamente, certos questionamentos tendentes a dar ao tema
do conhecimento um lugar fundamental no trabalho filosó­
fico; formularam-se tais questionamentos através de esque­
mas minudentes e exaustivos; consolidaram-se, os mesmos
questionamentos, como específica atitude intelectual: a ati­
tude crítica.
Cumpre assinalar, de passagem, que Kant, ao final do
prefácio da segunda edição da Crítica, escrito em abril de
1787, escreveu que para obras como a sua o perigo maior não
seria o de ser contraditado, mas o de não ser compreendido.22
Velada e inarredável vaidade, talvez, num autor consciente de
seu trabalho; mas também, por certo, consciência do possí­
vel contraste entre o que havia de historicamente oportuno
e pertinente, na obra, e o grau de dificuldades formais e ma­
teriais que esta oferecia aos leitores. A crítica, na Crítica
60
da Razão Pura como na da Razão Prática e na do Juízo, era
antes de tudo uma atitude; era a colocação de exigências
analíticas, o mais rigorosas quanto possível, no trato de ca­
da tema. Era portanto uma tomada de consciência, por cuja
medida parecia necessàrio medir — de aí em diante — o
mérito do próprio pensar. E como a at.tuae crítica era uma
atitude da razão, ainda que voltada como exigência radical
para a própria razão, cabe entender o trabalho de Kant, en­
quanto situado na evolução do pensar ocidental, como um
momento dentro da trajetória das autoimagens da razão hu­
mana: nos solistas quase uma revolução copernicana, nos
estoicos o logos universal, em Descartes o correlato da cogi­
tano; em Hegel, uma geração após Kant, a razão universa­
lizada nas formas globais da dialética e, ao mesmo tempo,
no plano histórico, enredada nas próprias “astúcias”. 23
O criticismo kantiano, entendido como cautela analíti­
ca e exigência gnosiológica, se opôs como se sabe ao empi­
rismo e ao dogmatismo, bem como ao ceticismo. Basicamen­
te ao dogmatismo, por conta da diferença, desde Kant posta,
entre o filosofar “ingênuo”, pré-crítico ou a-crítico, e o filo­
sofar crítico em que o sujeito se envolve nas indagações fun­
damentais e volta sobre si próprio o arco do questionamento.
Por isso cabe entender, e ficou dito acima, o kantismo como
um radical epistemologismo (aqui dispenso novamente as di­
ferenças entre gnosiología e epistemologia). Por isso cabe
acentuar, como decisivo na contribuição de Kant — enorme
contribuição — o descobrimento da submissão do objeto ao
sujeito ná relação de conhecimento, completado com o da
submissão do sujeito às suas próprias estruturas formais, ou
por outra, de sua identificação com elas. E mais: o descobri­
mento de um caráter legiferante ,11o operar do sujeito, como
marca de seu domínio do real, e também no de seu domínio
de si próprio, ao tratar-se das dimensões práticas,
* * *

Sabe-se, porém (e este é um “porém” muito importan­


te), que ao tempo de Kant o factum epistemologico funda­
mental se achava nos triunfos da física.34 Ou antes, no mo­
delo geral da física, da astronomia e da matemática, toma­
das como ciências exemplares, ou ainda, como produtos ple-
61
namente caracterizadas do trabalho cognitivo da razão. Sa­
be-se, também, que durante todo o século dezenove (e Kant
faleceu em 1804), as ciências históricas — ou antes, a histo­
riografia e suas chamadas “ciências auxiliares” — prospe­
raram copiosamente: a arqueologia, a .paleografia, a etno­
grafia, a geografia, a própria economia; e com elas a antro­
pologia, a sociologia, e mais a lingüística e a estatística, tu­
do com repercussões diretas ou indiretas sobre o pensamen­
to em geral, sobre a literatura, sobre a filosofia. Temas e
áreas que o próprio Kant havia cultivado em sua fase dita
pré-crítica, e que havia abandonado a partir de seu “des­
pertar” crítico, se impuseram ao mundo intelectual: século
dito pouco metafísico, o oitocentos revelou entretanto aos ho­
mens, através de ingentes tarefas de exumação e compara­
ção, novos e vastos problemas do próprio homem, sobretudo
cs de seu passado. Com isto, e isto também se sabe, foram-se
formulando filosofias preocupadas com a descrição da evo­
lução humana: narrativas, tipologias, interpretações. Com
isto se constituiu, finalmente, um novo factum científico
para o filosofar: a irrecusável .presença do saber científico-
social, científico-histórico ou científico-cultural.
Ao surgir o neokantismo, concentrado depois em Baden
e em Marburgo a partir dos apelos de Otto Liebmann e por
obra de umas duas gerações de pensadores, justamente na
transição para o século vinte, o problema epistemológico —
herdado de Kant como empenho essencial — teve de ser pos­
to em bases diferentes. Daí a consagração, na maioria dos
professores ligados ao movimento, de classificações dualis­
tas das ciências, distintas entre si por três ou quatro nomen­
claturas divergentes, mas idênticas no reconhecimento de
run novo tipo de saber. A este tipo, chamado de ciências do
espírito ou de ciências da cultura, ou ainda de ciências idio-
gráficas (não se integrando no caso a designação afrancesa­
da de “ciências morais”) , se achava mais próxima a filosofia
mesma, comprometida — nas mãos de um Rickert, de um
Dilthey ou de um Cassirer — com a perspectiva de “com­
preensão do humano” oferecida ou requerida por tais ciên­
cias.
Segundo observação de Ortega, a preocupação com os te­
mas ligados ao conceito de cultura, tão marcante entre os
que, no neokantismo, se fizeram herdeiros do idealismo ro-
62
mântico, constituiu uma espécie de veste ou cobertura, com
cujo trato os neokantistas acompanharam a “ontofobia” que
existia no mestre: uma tendência a ficar-se nos patamares
epistemológicos e a evitar pronunciamentos sobre o ser em
si. Há aqui algo de exagero, algo daquela retórica expressio»
nista que Ortega encarnou, mas há talvez um traço de ver­
dade: o tema do homem refratado na dimensão histórica e
cultural se presta mais a certos deslindes epistemológicos do
que enfrentado em sua noção ôntica.
Por isso — sem recusar legitimidade ao tratamento do
humano através dessa dimensão, antes pelo contrário —,
por isso entendo que o lustoncismo de run Dilthey e o cultu­
ralismo de um Cassirer (entre outros) são continuações do
criticismo de Kant em termos de virada para o século XX
Nos momentos imediatamente posteriores à atuação de Kant,
ou seja, durante o tempo de F.chte, de Schelling e de Hegel,
o legado crítico se transformou curiosamente num ponto de
referência, a um tempo reverenciado e negado. Negado pela
radical figura do Ich fichteano, pelo desabalado idealismo
schellingeano, pelo racionalismo super-sistematizado de He­
gel; e também por Schopenhauer, com sua surpreendente
transformação da coisa em si numa visão quase búdica e ao
mesmo tempo evolucionista da vontade. Negado ainda por
diversas interpretações da noção da coisa em si, como a de
Jacobi, a de Reinhold, a de Salomon Maimón: interpretação
paralela à deformação de Helmholtz, que vinculou o tema da
existência de formas mentais a priori a condicionamentos
fisiológicos e neurológicos.20 Negado por negações substan-
cializantes — sendo a filosofia de Kant por excelência re-
lacionista —, que punham de lado, como a pôs Hegel, toda
a trabalhosa e complicada problemática gnosiológica. Mas
reverenciado, como algo sagrado, como um cristal que se vela
mas se deixa intacto para cuidar de outras coisas.
Repunha-se, porém, a cada passo, uma indagação que
ainda hoje se repete, a respeito das relações entre Kant e a
metafísica. Os epígonos imediatos foram metafísicos; os neo-
jkantianos mais recentes não descartaram a metafísica; e
contudo tornou-se freqüente vincular a figura do mestre de
Koenigsberg com a imagem de uma ‘destruição” pura e sim­
ples da metafísica, chegando mesmo certos manuais a as-

63
sociar simplorìamente a filosofia de Kant com a de Augus­
to Comte em função desta equívoca imagem.
As confusões a respeito do problema têm-se originado
do fato de Kant ter aludido às insuficiências da metafisica
“tradicional”. Como observa muito bem Cassirer, o ponto de
partida de Kant é a contradição entre as pretensões da me­
tafísica, que assume o posto de instância suprema no tocan­
te aos problemas do ser e da verdade, e sua incapacidade de
estabelecer normas de certeza dentro destes próprios pro­
blemas. a,i
Como se sabe, existe, logo no início do prefácio da pri­
meira edição da Critica da Razão Pura, uma referência de-
sairosa à metafísica. Kant a chama de “pretensa rainha” que
teve origem plebéia: obgleich die Geburt jener vorgegebenen
Koenigin aus dem Poebel der gemeinen Ehrfarung.37 Entre­
tanto a recusa de Kant se dirigiu, como se compreende, à me­
tafísica dogmática que o precedeu; dad dizer ele, no prefá­
cio da segunda edição da Crítica, que “a crítica é a prepa­
ração indispensável ao embasamento de uma metafísica só­
lida e fundada como ciência”. 28 Isto sem falar em várias
outras passagens, e no fato — quase diria ostensivo — de
ter o filósofo escrito, logo em seguida à Crítica principal, os
“Prolegómenos a toda a Metafísica futura”, 20 e ainda a “Fun­
damentação da metafísica dos costumes” e os “Principes me­
tafísicos da ciência da natureza”. '10 Contudo, é válido ano­
tar que a atitude de Kant em face do conceito da “coisa em
si”, ao ensejar interpretações discrepantes, ensejou também
aquela que o considerou avesso e adverso à metafísica. Creio
que a filosofia crítica de Kant foi uma crítica para a meta­
física. Uma crítica dos supostos de uma determinada meta­
física, com vistas a uma outra metafísica correta, comporta­
da e possível. E creio que sua recusa foi estendida, e com
mais alcance, à ontologia: aludo à ontologia clássica, e me
lembro do dito de Ortega (que citei acima a propósito da ten­
dência dos neokantistas a pensarem mais na cultura do que
no ser) segundo o qual não teria havido ontologia senão en­
tre os gregos,31 opinião talvez um pouco chocante mas que
de vez em quando me parece digna de reconsideração.
** +

64
Volto entretanto ao terna de influência de Kant. Como
todas as glandes doutrinas, a do mestre das críticas teve
seu alcance pedagógico: a estrutura de seus livros críticos
influiu sobre várias obras posteriores, como influiu sobre elas
o próprio modo de expor, representado por Kant Desde o
começo do século XIX, não cessaram de aparecer obras e es­
critos — nos mais diversos níveis ou nas mais diversas áreas
— intitulados “críticas” disto e daquilo, no seguimento da
sugestão contida nos titulas encontrados por Kant. Lem­
brarei de passagem, entre outras, a crítica da experiência
pura; a crítica da crítica crítica em Marx, a crítica da razão
histórica em Dilthey, a crítica da razão dialética de Sartre,
para mencionar somente alguns dos textos mais assinalados.
O que me lembra, mas agora em níveis menores e quase co­
mo uma epidemia ou um modismo, o uso recente dè se falar
a propósito de tudo no “discurso”, a partir do emprego da
expressão por Foucault (o discurso pedagógico, o discurso
liberal, o discurso conservador e assim por diante).
Gostaria de aludir , mas apenas como alusão, posto que
o tema não caberia mais aqui, às influências de Kant no
pensamento francês dos inícios do século XX: em particular,
à conversão da idéia de tempo, por Bergson, na de tuna
durée, que é outro modo de lhe atribuir sentido subjetivo, e
à presença de uma kantianidade bergsonizada e difusa, nas
páginas amplas e inesquecíveis da obra maior de Proust.
Quero aludir também, e com especial destaque, às in­
fluências de Kant no Brasil. Elas começaram provavelmen­
te com Diogo Antônio Feijó, que deixou escritos sistemáti­
cos embora não muito originais sobre metafísica, metodolo­
gia e lógica.33 Parece ter havido, também, marcas de Kant
sobre Martin Francisco Ribeiro de Andrade. Houve influên­
cias difusas durante todo o século XIX, sobretudo em To­
bias Barreto. O interesse de Tobias Barreto por Kant, po­
rém, nunca chegou a arrancá-lo de suas posições basica­
mente naturalistas, nem a leitura de Ludwig Noiré repre­
sentou mais do que um aval ao haeckelianismo,33 por mais
que pensem o contrário alguns dos mais sérios e ilustrados
historiadores do pensamento brasileiro: o ensaio de Tobias
Barreto intitulado “Recordação de K ant” visualizza Kant
através de Helmholtz e de Zoellner, valorizando no filósofo
de Köenigsberg certas concessões ao empirismo, embora —

65
e muito lucidamente — aceitando a idéia kantiana de uma
metafísica assentada nos limites dados pela crítica da ra­
zão.. 34
Referirei, ainda, o influxo do mestre das críticas sobre
Farias Brito, apesar do 'penchant panteista ou “panpsiquis-
ta” do grande pensador cearense. Referirei a tentativa de
Laurindo Leão, no Recife de inicios de nosso século, de de­
senvolver um “fenomenismo” cujos fundamentos tinham algo
a ver com o conceito kantiano de fenômeno. Referirei tam­
bém a proximidade que guarda com o subjetivismo episte­
mológico kantiano a impressionante construção desenvolvi­
da em nossos dias por Evaldo Coutinho, nas obras que inte­
gram o conjunto chamado “A Ordem Fisionômica”, obras
tecidas com um subjetivismo tão coerente e tão envolvente
Bem como, se bem em outro sentido, a subjetivação cultural
da noção de tempo, levada a efeito a propósito de hispani-
dade é de trópico por Gilberto Fieyre. Para não falar do
interesse por Kant manifestado por vários outros autores
nacionais, como Miguel Reale, María do Carmo Tavares de
Miranda, Ernildo Stein, Benedito Nunes, Gilberto Kujavski.
sfc * *

Concluirei mencionando, de novo, o tema dos modos de


filosofar, algo relacioxrado com padrões (epocais) e com es­
tilos, mas algo distinto. Algo que, no século vinte, se .paten­
teou por exemplo com o modo heideggeriano. Kant tinha
consciência de haver, em seu tempo, estabelecido um modo
novo. Certamente teve consciência, inclusive, da aridez apre­
sentada pelos esquemas analíticos que adotou, e que fre­
qüentemente nos parecem, a nós de hoje, demasiado “secos”,
diante de outros estilos de füosofar, mais condizentes com
a seiva do humano-existencial e até com as cores e os sons
e os sabores do mundo. Mas ele sabia que nem sempre a clarté
constitui a bonne foi du philosophe. A boa fé do filósofo está
mais, às vezes, na coragem de enfrentar os temas difíceis, de
rasgar a superfície dos problemas necessitados disto. A co­
ragem temática de Kant consistiu em deslindar com imen­
sa e implacável pertinácia os problemas epistemológicos de
seu tempo. E também os éticos. Tratando daqueles e tratan-

66
do destes, ele atendeu simultaneamente à questão da lei
moral e à do céu estrelado.

NOTAS:
1 Giles Deleuze, La Philosophie critique de K a n t, ed. PUF, Paris 1971,
p, 19.

2 José Ortega y Gasset, Kant, Reflexiones de Centenàrio, em Tríptico,


ed. Espasa-Calpe, B. Aires 1944.

a Luden Goldmann, La Communauté humaine et VUnivers chez K a n t,


ed PUF, Paris 1948

* Ci os estudos de Wilhelm Dilthey contidos no volume D.e Leibniz a


Goethe (trad Gaos/Roces/Rouia/Imaz, ed. Fondo de Cult Económica,
México 1945).

e H. J. Patón, KanVs Metaphysics of Experience, ed Alien and Unwin,


1970 (5.a edição), volume I, pp. 46 e segs.

« Cf. Carlos Coimbia, Antropologia em K ant, ed TJiiiv. Federal do Pará,


Belém 1974.

T Dai a fiase inicial do Piefácio da primeiia edição da Critica da Ra«


zão Pura: “A razão humana tem este singular destino, em urna paite
de seus conhecimentos, de ser esmagada por questões que eia propria
não poderia evitar".

8 Cf. F lits Valj ave c, His toña de la Ilustración en Occidente, trad. Jesus
A. Callado, ed. Rialp, Madrid 1964, cap. UT, passim.

o Como obseivou atiladamente Manuel Gai eia Morente, o chamado ‘‘idea­


lismo” de Platão — assim como o sistema doutrinário de urn Par­
menides — é inteiiamente diverso do idealismo moderno e contempo­
ráneo, que apresenta um inconfundível traço subjefcivista (Lecciones
Preliminares de Filosofia, ed Losada, Buenos Aires, 1952, 5.a edição,
lição VI).

i« Cf. Critique de la Raison Pure, trad. J. Barni, revista por P. Archam-


bault (ed. Flammarion. Paris 194.4), Introduction, pp, 40 e 55.. Ambos
os tópicos citados, que são o n i e o VII, constituem adições que Kant
intioduzlu na Introdução da obra p or'ocasião da 2.a edição (e t CñtU
que de la Raison Pure, tiad de A Tremesaigues e B. Pacaud, Paris,
ed. Félix Alcan, 1905, pp 43 e seguintes). Na edição de Max Müller
(Immanuel Kant’s Critique of Pure Reason, translated by F. Max Mül­
ler, ed Mac Millan, Londies-New York 1907), acha-se traduzido como
Introdução o texto introdutório da I a edição alemã; mas nos «Suple­
mentos", que se acham no fim d& obra, encontra-se o texto completo.

67
tom ad o pelas adições de Kant à 2,* edição, No exemplai da Crítica
existente na Biblioteca da Faculdade de Direito da UFPe, e que aliás
pertenceu a Tobias Bai reto, acha-se apenas o texto da primeira edição
(K ritik der reinen Vernunft von Immanuel Kant, text der Ausgabe
1781, mit Veisügung sammtlicher Abweichnungen der Ausgabe 1787.
Editada por K. Kein bach, 2.ft edição, Leipzig, Philipp Reclam Jr.., sem
data),

u CI, PATON, K an t's M etaphysic of experience, cit, pág., 75; Giles De­
leuze, La P h il critique de K ant, c it, p. 22..

i- GEORG Simmel, Goethe. Seguido del estudio K ant y Goethe. Trad,.


J. Roviia Aimengol, ed.. Nova, Buenos Aires, 1949. pág. 265.

i» ERNST CASSIRER, K a n t Vida y Doctrina, trad. Venceslao Roces,


ed. FCE, México, 1948, p. 169.
u CASSIRER, op, c it, pág, 173.
is GILES DELEUZE, op cit., pág. IL

i« Cabe talvez encontrar também, nos fragmentos de Anaxágoras, onde


se considera a mente (nous) como governadora de todas as coisas
vivas e também como criadora das distinções entre elas, a raiz da
tendência ocidental às distinções conceituais. Cf, textos e traduções
em G. S. Kirk e J. E Raven, Los Filósofos presocrâticos, trad. esp. de
J, Gai cia Fernández, ed. Gredos, Madrid 1969, pp. 518 e segs.

17 Critique de la Raison Pure, trad. Barni-Aichambault, citada, p. 329.


A mesma expressão encontramos na tradução de Tiemesaygues e Pa-
caud. Max Müller, talvez mais ao pé da letra em face do texto de
Kant, veite para “of the dialectical conclusions of Pure Reason" (op.
c it) .
is EDMOND GOBLOT, El Sistema de las ciencias, trad, de H. G. Canel,
ed. El Ateneo, Buenos Aires 1946, cap. IV.

io Critique de la Raison Pure, trad. Barni-Archambault, citada, pág. 273.


Sobre as conexões entre a Crítica da Razão Pura e a Crítica da Razão
Plática, ver Critique de la Raison Pratique, trad, de François Picavet,
ed. PUF, Paris, 1949, passim, e em especial, nas anotações do tradutor,
as páginas 177 e 178. P aia cotejo, K ritik der praktischen Vernunft,
text der Ausgabe 1788, editor K. Kehrbach, Leipzig, Phillipp Reclam
Jr., sem data ( c t obs.. à nota 10).

20 Prolegomeni ad ogni metafisica futura que vorrà presentarsi come


scienza, trad,, e comentário de Piero Martinetti, ed. F, Bocca, Turim,
1913. Prolegómenos a toda metafisica futurat trad, e notas por Anto­
nio Pinto de Carvalho, Cia.. Editora Nacional, S. Paulo 1959. Funda-
mentación de la metafisica de las costumbres, trad, M. Garcia Morente,
ed. Espasa-Calpe, Buenos Aires 1946. Critica del Juicio, trad Manuel
G. Morente, 2 tomos, Madrid, Librería general de Victorino Suarez,

68
1914* Para uma noticia cronológica das obras de Kant, ERNST CAS*
SIRER, K a n t Vida y doctrina, cifc, in fine.

21 WILHELM WINDELBAND, El Idealismo alemán (sexta parte da Hist,


de la Filosofia). trad. F Lar royo, Antigua Libreria Robledo, Argén-
tina/Guatemala/México, 1942, cap. I, § 39. Cf W. Windelband, A his­
tory of Philosophy, trad James Tufts, 2 tt edição, Mac Minan, Londres-
Nova York 1893 (reimpressão 1950), paite VI, cap- I, 5 39

22 Critique de la Raison Pure, trad. Barni-Archambault, citada, pág. 34,

23 Astúcias no plano histórico; mas Hegel chegou a falar do “hieroglifo


da razão” a propósito do Estado. Veja-se SHLOMO AVINERI, HegeVs
theory of the m odem statet ed. Cambridge, 1972 (reimpressão 1980),
capítulo 9.
24 Of. Jules Vuillemin, Physique e t métaphysique kantiennes, ed. PUF,
Paris 1955 Cf. também CASSIRER, op. cit, passim.

25 Cf. F. A. LANGE, Histoire du Matérialisme et critique de son impor­


tance à noire époque, trad. B Pommerol, tomo n , Paris, ed. G. Rein-
wald, 1879, passim. Ver também o artigo sobre Helmholtz na Encyclope­
dia of Philosophy dirigida por Paul Edwards, ed. Mac, Millan, Londres-
Nova York, 1972, voi 3-4. Ver ainda o vasto e profundo livro de Hous­
ton S. Chamberlain, IMMANUEL KANT — Die Persönlichkeit, als Ein­
führung in das Werk, ed. Bruckmann, Munique 1905, passim.

2ß CASSIRER, op cit-, p. 175 Cf. também PATON, op. e it, págs. 107 e
segs.
27 K ritik der reinen Vernunft, edição Kehrbach, citada, prefácio, pág 4
Na tradução Barni-Archambault (pág. 10) se lê “quoique cette pré-
tendue reine eút une naissance vulgaire....” Max Müller entretanto
traduziu assim: ". .. yet, as that genealogy (a de uma ascendência
real) turned out to be in reality a false invention, the old queen (a
metafisica) continued to maintain her claims" (prefácio, p. X V iil).

28 Edição Bami-Archambault, citada, pág* 31. Confiram-se referências


das páginas 15, 20 e 49, todas com sentido positivo em face da me­
tafísica.

so Com muita clareza escreveu em 1791 J. SCHULZE, ao expor com in­


tenção didática as idéias de Kant: "Esta determinación de los lími­
tes de la razón pura es pues, también, la verdadera determinación de
los limites de la metafísica" (Ensayo de una clara exposición del con­
tenido de la critica de la razón pura, trad. E Avgherino e Elisa S . de
Roitman, ed. Universidad de Córdoba, A rg, 1942, p 29) „

«o Sobre o problema da presença da metafísica na doutrina de Kant, ver


o livro de CHARLES RENcSuVXBR, Critique de la doctrine de K a n t,
ed. Félix Alcan, Paris 1906, passim; e também, específicamente, JULES
VUILLEMIN, Physique e t Métaphysique kantiennes, ed. PUF, Paris

69
1965. MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA, destacando o
sentido clássico do «matemático” (inclusive na acepção platônica) co­
mo apreensão da “mathesis”, ou seja, como conhecimento fundamental
por paite do pensar, acentua a relação, em Kant, entre a demonstra­
ção dos princípios da razão e o caráter do “matemático” na meta­
física moderna (O Ser da Matéria Estudo em K an t e Tomás de Aquino,
ed. UFPe, Recife, 1976, pp. 30 e segjs ).

oi ORTEGA Y GASSET, La idea de principio em Leibniz y la evolución de


la teoria deductiva, ed.. Emecé, Buenos Aires 1958, p. 241 Para o tema
do ser em Kant, o livro mais centrai talvez seja ainda o de MARTIN
HEIDEGGER, K a n t y el problema de la metafisica, ed PCE, México,
1954.

DIOGO A FEIJó Cadernos d e Filosofia, Introdução e notas de Miguel


Reale Cf. MIGUEL REALE, A doutrina de K a n t no Brasil, São Paulo,
1949; idem, A Filosofia em São Paulo, e d CEC, São Paulo, 1962, re­
edição EDUSP/Giijalbo, São Paulo, 1976 Ainda, VAM3REH CHA­
CON, “Presença de Kant no Brasi!”, em Humboldt, Munique, n ° 29
(1974). E também GLÁUCIO VEIGA, “Kant e o Brasil”, em Revis­
ta Brasileira de Filosofia, volume I, fascículo I, 1951, pp 86 ss

33 NELSON SALDANHA, A Escola do Recife, ed. Convivium, São Paulo,


passini,. Idem, “A Escola do Recife na Evolução do Pensamento Bra­
sileiro”, em As idéias filosóficas no Brasili, obra coletiva, ed Convivium,
S Paulo, 1978.

34 Questões Vigentes, tomo DC das Obras Completas, Sergipe 1926.

70
A Obra de Dilthey e o “Mundo
Histórico” (■)

SUMÁRIO: 1 — Olhada inicial: Dilthey e os temas


da historia. 2 — Visões da história no Ocidente
contemporâneo: de Vico a Hegel 3 — Do Espirito
objetivo ao Mundo Histórico. 4 — Temas e tragos
fundamentais da obra de Düthey. 5 — Dilthey e
o historicismo. 6 — A influência de Dilthey. 7 —
O legada: problema. 8 — O “Mundo Histórico”.

1. Olhada inicial: Dilthey e os temas da história.


obra dé Wilhelm Dilthey (1833-1911), apesar de fragmentá­
ria e assimétrica, constituiu (a¡o menos dentro dos quadros
da literatura filosófica alemã) a mais caracterizada e mais
sugestiva contribuição a uma visão filosófica da história, no
período que percorre a segunda metade do século XIX e se
debruça sobre o XX.
As reservas que se podem colocar a uma tal afirmativa,
que aqui assumo mas que se encontra sob formas mais ou
menos variadas em diversos autores (inclusive Ortega), po­
derão ser aceitas em parte, se com isto se atender à impor­
tância de outros pensadores da mesma fase. Fica entretanto
inegável (salvo para os totalmente insensíveis ao tipo de pen­
sar historia-filosófico que Dilthey desenvolveu) o misto de
profundidade e de diversidade, de coerência e de vitalidade
que sua obra apresenta.*
* Publicado anterionnente em Encontro, Recife, Ano V, n.° 2, 1984.

71
Além do a-sistemático e do fragmentário, que caracteri­
zam exteriormente o trabalho de Dilthey, menciona-se tam­
bém, com freqüência, o fato de que a maioria de seus livros
foi publicada após sua morte: em vida ele publicou apenas
a biografia de Schleiermacher (1876), a Introdução às Ciên­
cias do Espírito (1883), e o conjunto de ensaios chamado
“Vivência e Poesia” (Erlebnis und Dichtung, 1907). Dai que
Lorenzo Giusso, ao início de seu excelente estudo crítico sobre
Dilthey, tenha dito que ele teve uma “fama póstuma”. 1
A situação histórica de Dilthey, com seu gosto pelos es­
tudos histórico-Uterários (no mais amplo sentido da expres­
são “literário”) , opera o salvamento do largo e profundo es­
forço filológico das décadas românticas, e entretanto atualiza
o sentido da meditação sobre a história, sem entretanto lar­
gar-se a teorizações fantasiosas.
Observou Nìcol que o sentido epistemológico da filosofia
foi herdado de Kant por Dilthey, que por sua vez aproveitou
de Hegel o sentido da noção (muito alemã) de “espírito”, que
contudo, na reflexão diltheyana, se desubstanciailiza, se de-
sübstantiva.2 Com essa dupla herança, bastante para caracte­
rizar um lastro filosófico, Dilthey modelou seu pensar geral.2
Freqüentemente se fala no “a-sistemático” como carac­
terística do pensamento diltheyano, e por vezes se usa esta
expressão como nota negativa. Na verdade o modo pelo qual
Dilthey encarou o problema do sistema foi outro, diverso do
gistematismo ortodoxo que vinha do cartesianismo e que teve
um de seus cumes, por exemplo, em Hegel: Dilthey se preo­
cupou muito mais em compreender as estruturas históricas
(enquanto estruturas do humano), do que em montar esque­
mas formais. A não ser, evidentemente, aqueles esquemas
necessários ao próprio trabalho de entender a história.
Ainda que não adotasse expressamente a idéia de Bene­
detto Croce, segundo a qual filosofia e história seriam no
fundo a mesma coisa (não havendo verdadeira filosofia sem
o contato das realidades históricas nem verdadeira história
sem a luz da interpretação filosófica), é óbvio que Dilthey
esteve bastante próximo "a esta idéia. Sua reflexão filosófica
(e mesmo seu constante psicologismo) sempre se desenvolveu
diante dos temas históricos, e sua visão dos temas históricos
nunca foi meramente historiográfica, antes sempre visão cri­
ticamente filosófica: preocupada com tipos e com significados.
72
2. Visões da história no Ocidente Contemporâneo:
Vico a Heget È perfettamente compreensível situar a figura
de Dilthey, internamente embebida de preocupações históri­
cas, no ápice de uma série de visões e revisões da história
que se inicia ao tempo de Vico e que caracteriza, acentua­
damente, uma preocupação filosófica típica da modernidade
ocidental. Já foi dito (inclusive por Spengler) que o Ocidente
é (ou foi?) uma cultura assinalada pelo aguçado senso da
hlistoricidade: este traço, entre outros, o distinguiría de ou­
tras culturas.
Tem sido dito, por outro lado, que o senso da hisitorici-
dade não aparece inteiramente, no mundo ocidental, senão
depois do chamado Renascimento: no medievo, o provMen-
cialismo e a “metafísica do lugar natural” retiveram o pro­
cesso de surgimento de uma efetiva consciência histórica, e
portanto um autêntico pensar histórico. Mas o Renascimen­
to, envolvido com seus avanços e seus recuos, imitando a an­
tigüidade e descobrindo coisas novas, não pôde estavehmente
amadurecer uma imagem da realidade histórica como tal:
esta imagem, ainda adiada ou insuficiente durante o barroco
e mesmo durante o racionalismo clássico, esperaria por Giam­
battista Vico para ser plenamente intuída e convincentemen­
te explanada, embora aínda (é claro) sem fundamentos de­
finitivos e com manifestos defeitos.
Coübe a Vico, em perceptível contraste com a concepção
cartesiana, fundar uma epistemologia da história que em
verdade constituiu uma epistemologia historicista. Com Vico
colocaram-se de algum modo os alicerces do tipo historizante
de pensar, que desde então (e sobretudo a partir dos român­
ticos) seria o oposto do tipo racional de pensar. A idéia de
Vico, segundo o qual a história seria para o homem o objeto
de conhecimento mais próprio, ficaria contudo por muito
tempo sem receber o devido desenvolvimento. 4
O pensamento histórico do Ocidente contemporâneo co­
meçou a foimar-se dentro dos temas do iluamnismo; mas,
em Verdade, foi através do robustecimento da temática his­
tórica que o iluminismo cedeu passo ao romantismo. Isto se
deu, no pensamento do século XVIII, por meio de antecipa­
ções, que ocorreram ao lado das linhas anais ostensivas do
racionalismo, mais próprias do iluminismo como tal.
A obra de Vico, de certo modo alheia ao iluminismo,
constituiu uma espécie de passagem direta do barroco ao ro-

73
raantàsmo e não se encaixou numa continuidade; não teve
propriamente seguidores. Aguardaria Croce para uma reto­
mada de temas e de diretrizes.
Enquanto isso, no cerne do iluminismo francês, Voltaire
constatava o histórico através da continuidade dos problemas
éticos, sobretudo no Essai sur les Moeurs.,15 Montesquieu, em
ciima de largas leituras e de pacientes confrontos, nem sem­
pre internamente originais, desdobrava o histórico ao lado de
estudos políticos, antropológicos, jurídicos: o histórico como
constância e condición armento, ocasião das leis, palco de
grandezas e decadèncias,0
Dentro do iluminismo alemão, complicado pelos resquí­
cios do racionalismo setecentista e pelos conservadorismos
locais dispersos, situaram-se três autores que Meinecke con­
sidera nucleares — cada um num sentido — para a gestação
do historicismo contemporâneo. São eles Justus Moeser, Her­
der e Goethe. Goethe, fora da Alemanha, não é senão rara­
mente lembrado como hi storicista; Moeser não é conhecido
do grande público; mas Herder realmente figura sempre como
um dos iniciadores de um. pensamento historizante.7
Ao ceder passo à tendência romântica, o iluminismo —
conforme alusão linhas acima — o fez sobretudo por meio
do aprofundamento dos temas históricos, que o racionalismo
radical de Rousseau ignorou (seu caminho para o romantis­
mo foi outro) e que só aos poucos se impuseram. O famoso
ensaio de Kant sobre a Aufklaerung revelaria a ambigüi­
dade do iluminismo a respeito da história, expressada em
seu próprio apogeu.s Kant, envolvido no remdalhado de ques­
tões analíticas que se propôs, não pôde ter uma idéia ple­
na da problemática da história.0 Foi, entretanto, coetàneo
de Herder.
Na geração de Hegel, porém, s.e iniciava um processo
decisivo: o da criação das ciência® históricas contempoi*â-
neas, com base inclusive na arqueología e na filologia. Hegel
percebeu com profunda intuição o sentido da visão moderna
da h ’störia, burguesa e secularizada; deu-lhe dimensão meta­
física e conjugou-a ao majestoso esquema da dialética, onde a
tríade tese-antítese-síntese servia de correlato à imagem de
um fluir, e onde cabiam também (como couberam nas Vorle­
sungen ueber die Philosophie der Geschichte) as imagens
das civilizações, entendidas como “momentos” de um auto-
realizar-se temporal do Espírito.10
74
No Zeitgeist de Hegel o impulso dos saberes históricos,
recém-estimulados, condicionou também a criação de “Escolas
Históricas”, a começar com a do Direito (encabeçada por
Savigny e integrada por Puchta, Eichom e outros), seguida
pela da politica, pela da economia, pela da literatura. Idéias
ainda vagas, mas necessárias então como urna espécie de
pento de referência, como a de Volksgeist, pairavam em to­
das elas: o tratamento histórico dos temas servia aos conser­
vadores como argumento em favor das tradições, mas sem a
também como acervo de exemplos aos liberais — frequente­
mente ¡carregando nas tintas — e aos próprios socialistas.
O trabalho histórico, em cada grande nação européia na pri­
meira metade do século dezenove, foi mareado pelo naciona­
lismo, mas havia um denominador comum que provinha dos
conceitos básicos utilizados, da mesma imagem evolutiva das
instituições, do mesmo enfoque metodológico que juntava à
paixão e à intuição a disciplina das conquistas filológicas:
foi o caiso de Taine e de Fústel na França, e o dos român­
ticos na Alemanha (Niebuhr, Burkhardt, Ranke, D-roysen,
Mommsen e tantos outros), 11
3. Do Espirito Objetivo ao Mundo Histórico. O vas
e complexo sistema de Hegel foi dominado por duas tendên­
cias não inteiramente conciliáveis : a tendência racionalis­
ta, identificada com o lado formal do -próprio sistema (mas
também com os conteúdos metafísicos da lògica e da dialé­
tica), e a tendência historicista — talvez ainda apenas his-
torizante, ou historialista —, correspondente ao senso do
real e das estruturas do viver concreto enquanto fluxo tem­
poral. A vigorosa visão do real, configurada pela dialética e
completada pelas noções de “Idéia” e de “Espírito”, tra­
duziu-se na obra de Hegel sob formas distintas: na Estética,
por exemplo, bem como na Historia da Filosofia, o palpável
sentido do histórico; na Filosofia do Direito, o predominio
dos ângulos abstratos e conceituais.
Com o conceito de “Espírito objetivo”, Hegel alcançou
um leque bastante largo de referências. Como todo o real é
objetivo, toda presença do Espírito (Geist) na realidade cor­
responde àquele conceito, incluindo as grandes formas da re­
ligião e da cultura, dadas na história, bem como os processos
psíquicos e toda a sorte de mam'festação daquilo que o ente
humano possui de específico.12

75
Durante a época romântica, e ainda ao tempo de Hegel, a
filosofia idealista trabalhou sobre esquemas semelhantes:
não assumindo nem manipulando propriamente o material
arqueológico e filológico que ia sendo paralelamente levan­
tado, mas dando sentido metafisico a qualquer sistema de
signos. Neste sentido, se entende o surgimento da teoria ro­
mântica da hermenêutica, representada inclusive por Boeckh
e Schleiermacher.18
De permeio, a preocupação com a ordem alimentava a
teoria social dos restauracionistas e tradicionalistas,14 en­
quanto Augusto Comte encetava sua enorme tarefa da recons­
trução do saber social e da ordem social. O evolucionismo
montava uma especial interpretação da seqüência de situa­
ções vividas historicamente pelos grupos, Marx e Engels
partiam de Hegel e de David Ricardo para negar a ambos.
O naturalismo pareceu por um tempo dominar em definiti­
vo o panorama da chamada filosofia. O surgimento do neo­
kantismo, gerado na Alemanha após o célebre apelo de Otto
Libmann, veio restaurar os direitos temáticos e doutrinários
do idealismo (ou ao menos de uma filosofia de tipo meta­
físico),15 tarefa que, em outra faixa e com outro sentido,
o bergsonismo também assumiria à mesma época.
Mas o neokantismo, diversificado por conta de diferen­
ças universitárias e de preferências temáticas, não refez in-
teiramente a metafísica: recolocou o dilema que Kant viveu
diante dela, retomando-o com armas novas. Inclusive com o
enfoque histórico, de que Kant não se valera O enfoque his­
tórico, que viria a ser característico de Dilthey, permitiu-lhe
ser e não ser antipositivista, recusar mas não inteiramente
a metafísica, ser neokantiano mas não exatamente.
O pensamento histórico de R'ckert, envolvido com suas
inquirições sobre o valor, não produziu infelizmente um cor­
po doutrinário bastante influente. Windelband, que produ­
ziu um trabalho inegavelmente valioso como historiador da
filosofia, não apresentou, na parte mais pessoal de seus es­
critos, runa reflexão mais cativante, nem mais original. Em
Cassirer, que veio em outra geração, um toque muito pes­
soal nos temas e nos rumos quase que o põe fora do grupo
específicamente neokantiano. Paul Natorp, com uma forte
coerência temática, correspondente a uma estável ligação
com o corpus kantiano, não se constituiu, como Riekert, em
76
influência maior O mesmo se diga de Cohen. Quanto a Sim
mel, bastante independente, dispersou-se em uma série de
versáteis e brilhantes contribuições, infelizmente desprovidas
de ligação interna mais explícita.
Deste modo a obra de Dilthey, com sua idéia do “Mun­
do Histórico”, teria talvez menos que ver com a de seus coe­
táneos do que com a de historicistas posteriores, como Man­
nheim e Meinecke; cabe certamente compará-lo a Croce, seu
pendant italiano, também preocupado com a história da his­
toriografia, bem como a Troeltsch, que vem na geração se­
guinte à sua, assim como a Spengler (tão diferente entretan­
to) , a Ortega, a Huizinga, mesmo a Sombart e talvez ao pró­
prio Weber. Aliás, aos dois Weber, Max e Alfred.10

4. Temas e traços fundamentais da obra de Dilthe


Um conceito vitalista de filosofia (Lebensphilosophie) e urna
atitude basicamente histor cista formaram os dois pontos
mais característicos do pensamento de Dilthey.
Partindo de seu primeiro livro importante, sobre a vida
de Schleiermacher, os críticos têm encontrado, nos escritos
de Dilthey, a aplicação constante do método “evolutivo”.
Com efeito, Dilthey sempre procurou estudar cada pensador
em sua própria evolução filosófica. E este resulta ser, tam­
bém, o modo adequado de entender o próprio Dilthey: re­
gistrando a evolução de seus temas.17
Apesar de situado numa tradição especulativa que in­
cluía o objecktives Geist de Hegel, Dilthey não acolheu, em
sua formação básica, o filosofar do tipo hegeliano, nem mes­
mo os conteúdos do idealismo posterior a Hegel: muito mais
o cativaram os grandes historiadores e filósofos alemães dos
meados do século XIX. Eugênio Imaz assinala que a desco­
berta da idéia específica do mundo histórico teria sido prin­
cipalmente devida à leitura de Tueídides, Maquiavel e Ran­
ke. 18
De qualquer modo, coube principalmente a Dilthey, den­
tro do emaranhado de linhas que foi a cultura histórico-filo-
sófica da segunda metade do século XIX, expressar como
algo definitivo a transição do estágio kantiano, em que o
filósofo tomava como factum a ciência natural (mormente
os dados da física e da matemática), para um estágio em que
as ciências “do espírito” — mormente o saber histórico —
77
atuariam como factum, ou seja, como referência fundamen­
tal, ponto de partida, motivação epistemológica. Recente-
mente, aliás (anote-se de passagem), a nova hermenêutica
filosófica de Hans-Georg Gadamer reeditaria a preocupação
com os dados históricos, como alimento e fulcro do filosofar,
# * *

Para os adeptos de filosofias estritamente “sistemáti­


cas”, teria talvez pouca importância o pensamento filosófico
de Wilhelm Dilthey. Mesmo entre referências a filósofos “não-
sistemáticos" (como Kirkegaard ou Pascal), freqüentemen­
te falta o nome de Dilthey. Não discutiremos aqui o por quê
da adesão do conceito de filosofia à nota de “sistematlcida-
de” (confirmada num Platão, num Aristóteles, num Tomás,
como num Descartes, num Kant, man Hegel) ; apenas cabe
apontar a alteração das relações da filosofia com o “saber
em geral” e a validade histórica, aliás historicamente mo­
tivada, des modos não sistemáticos de filosofar. De resto, to­
da dúvida sobre a importância do pensamento de Dilthey,
como filósofo — paralelo, repitamos, ao de Croce — desapare­
ce para quem 1er com interesse e seriedade a Introdução às
Ciências do Espírito, O Mundo Histórico ou A Essência da
Filosofia.
A tendência ao “fragmento” e ao “ensaísmo”, que os
românticos puseram em voga (e que de certo modo se ante­
cipa em Diderot), chega à geração de Dilthey como legado
bastante típico e ele a adota como modo de conciliar as gran­
des indagações com a precariedade de certas pesquisas- A
interpenetração entre filosofia e literatura, que vem do üu-
minismo e se reforça com o romantismo, seria levada ao
extremo no século vinte por conta do existencialismo: só não
a admitem os sistemisi as mais intransigentes, como os “ana­
líticos” e certos fencmenologistas (se bem que em muitos
autores a influência da fenomenologia servisse justamente
para o ensaio monográfico). Em vez de strenge Wissemchaft,
a filosofia por todo o século vinte seguiu sendo o que sem­
pre teve de ser: uma ciência sem rigor, pois que o rigor em
sentido restrito fica para um certo tipo de ciências, não para as
reflexões que aprofundam temas e rasgam perspectivas. Este
problema, aliás, nos levaria a rever a questão das relações en-
78
tre filosofia e concepção do mundo (Wettanschauung), ques­
tão específicamente vivida por Dilthey, mas não nos detere-
mos nela: basta anotar que a aproximação entre ambas tem
sua validade corroborada pela própria evolução dos grandes
sistemas, que são sempre as duas coisas.
Assim Dilthey, enfrentando o problema da “essência da
filosofia”, colocou-o em termos histórico-culturais, aludin­
do ao fato de haver pessoas que filosofam e de darem o no­
me de filosofia a uma atividade encravada no conjunto vi­
tal que abarca a experiência anímica, as relações sociais, as
vivências religiosas, enfim as estruturas gerais da existên­
cia. 5*10
Hão tendo sido um construtor “formal” de sistema, pois
que a sistematicidade de seu pensamento emerge do con­
junto de seus estudos como algo latente e incompleto (Imaz
chegou a aludir à “nebulosa diltheyana”), Dilthey desdo­
brou sempre sua interpretação do filosofar em termos de
história de idéias e de teoria da história. Data, sem dúvida,
de sua época a cunhagem da expressão alemã Geistesgeschi-
chte, que menciona uma história interpretadora das mani­
festações da cultura. E D.lthey por diversas vezes falou em
cultura, inclusive ao início de seu breve e magistral com­
pêndio de História da Filosofia.
Com isto se relacionou o lúcido interesse que manifes­
tou pela hermenêutica, entendida como problemática geral
da interpretação e estudada a partir de sua história. Um te­
ma onde o esforço filológico do Ocidente contemporâneo é
revisto sob o ponto de mira das necessidades interpretati­
vas. 21 Um teina, a meu ver, a que faltam ainda hoje al­
guns desenvolvimentos, mesmo após Gadamer e outros.
5. Dilthey e o historicismo. Conforme foi mencionado,
a insistência de Dilthey no sentido da necessidade de estu­
dar cada grande pensador com um método genético, aplica­
se por coerência a ele próprio: ele próprio protagonista de
um característico processo de construção em que os ternas
se interligam pela vinculação ao propósito de compreender
a vida histórica e de situar historicamente as estruturas da
vida. Não foi por desiastio nem por mera scholarship uni­
versitária que Dilthey se aplicou em profundidade ao estu­
do da poesia clássica alemã, nem da música barroca, nem

79
do pensamento do século XIX. O que ele queria era situar as
expressões históricas do espirito: situar e compreender, em
consonância com a tríade que fixou em seu livro sobre o
Mundo Histórico: “Vivência, Expressão, Compreensão”. Vol­
taremos a isto mais adiante.
Dilthey historicista: o termo diz muito e diz pouco. Não
apenas historicista nem estritamente, porquanto vitalista,
buscador de significações, analista do poético, não propria­
mente historicista no sentido que tende a vulgarizar o ter­
mo. Sim fundador de uma das principais versões do histori-
cismo, versão enriquecida com o enfoque vitalista e com lar­
gas pesquisas sobre evolução de idéias
Erich Auerbach, em um dos seus magistrais estudos de
história literária, menciona o historicismo como algo nas­
cido no Ocidente contemporâneo, a partir do “descobrimen­
to copernicano das ciências do espírito”.
Realmente, o que se chama historicismo surge como uma
solução substancial diante dos caminhos e dos impasses do
pensamento ocidental. Em vez dos sistemas clássicos, cons­
truidos à maneira de Leibnitz e Spinoza, e das filosofías de­
finidoras, elaboradas como uma cadeia de definições (isto
vale tanto para a Summa Teológica como para a Etílica inore
geometrico) ou, ainda, das filosofias que — como a de Kant
— criticam definições, mas sempre preocupadas com o de­
finir, o pensamento mais recente se encaminhou no sentido
de situar criticamente os sistemas e os problemas. Situá-los
em contextos de tempo e espaço: e, posto que nestes tem­
pos se veiculava o conceito de cultura, situá-los em contex­
tos culturais, que são afinal contextos históricos. Percebeu-
se que, mais do que o jogo formal dos conceitos, que pode
tender ao lúdico, interessa compreender a relação vital dos
conceitos (e dos problemas) com a circunstância: época,
quadro cultural (e social também), conexões de toda a sorte,
Na passagem do século XVIII ao século XIX, e do ilu-
minismo ao romantismo, enfatizaram-se (isto foi mencio­
nado acima) os temas históricos. Um progressivo acúmulo
de dados e de questões obrigou os intelectua's do oitocentos
a levar em conta as ciências históricas, em -paralelo à funda­
ção explícita ou implícita das ciências sociais pelas mãos de
Saint Simon, Comte, Stein, Spencer, Marx. De algum modo
cada um destes pensadores pode ser considerado “histori-
80
cista”, na medida em que todos construíram suas doutrinas
com base em materiais históricos e em esquemas históricos;
registro, apenas, uma ressalva que já tenho feito no senti
do da pouca compatibilidade entre o historicismo propria­
mente dito e as teorias monocausalistas,23
Certamente que o historicismo é um criticismo e se não
o fosse seria um retrocesso. É também um relativismo; e pa­
ra que a frase não desagrade muito, vale acrescentar que
isto não significa que seja um ceticismo ou um agnosticismo.
A mesma oposição que o criticismo kantiano trouxe para
com os dogmatismos clássicos, o historicismo traz para ou­
tros dogmatismos, inclusive para os “sistemas” que têm sur­
gido do século XIX para cá, cada um deles tendente a se
transformar em outras tantas escolásticas.
Seria o caso talvez de dizer-se que há diversos histori-
cismos. São versões várias de uma idéia básica, a de que a
vida humana se expressa — com seus valores, inclusive —
através de contextos históricos, E de que, por conseqüên­
cia, problemas e conceitos são historicamente condiciona­
dos, 21
Com o historicismo, que é tun modo de superar as filo­
sofias dogmáticas situando-as, e de encontrar na vida histó­
rica os significados fundamentais dos problemas, superam-
se certos pseudo-problemas, como por exemplo aquele conti­
do na opção entre dizer que o homem faz a história (afir­
mação illuminista reproduzida pelos românticos) e dizer que
a história faz o homem (afirmação assumida pelos historia­
dores da segunda metade do século XIX) : o homem, que
faz a história, vem sendo feito por ela, e o importante é o
seu modo de se reconhecer nela e através dela,
É evidentemente exagerada a famosa frase de Ortega
— ele mesmo sem dúvida um diltheyano — , segundo a qual
ei hombre no tiene naturaleza, sino que tiene historia. O que
se deve pensar é isto; por intermédio da historia se conhe­
ce melhor a natureza do homem.23 Na história se situam
os problemas. Pouco vale inclusive disputar se o homem é
um animal racional ou “simbólico”, se é loquens, ludem ou
viator: o homem se distingue por um poder de criar coisas,
que são (ou possuem) significações, e nisto se acha o falar,
o jogar, o simbolizar e tudo o mais. É este um dos pontos,
aliás, em que o historicismo pós-diltheyano se relaciona com
81
o legado de Hegel: tanto pela noção de “objetivação” do Es­
pirito, através das expressões e dos significados, como pela
idéia de um “superar conservando”, que corresponde à Auf he
bung e que indica que o existir histórico é sempre cumula­
tivo (e que todos os tipos de experiência são, enquanto his­
tóricas, cumulativas), dada a formação de uma consciên­
cia que nunca é apenas do presente.20
Desta aparente fluidez do enfoque histórico, que contu­
do relativiza os objetos sem os diluir, deriva a contrincante
querela que sempre lhe moveram: desde Lukács e outros au­
tores marxistas,27 até Troeltsch — ele mesmo, de certo mo­
do, historicista —, ou até Karl Popper e Leo Strauss, cada
um por conta de urn bias pròprio. O historicismo visado por
Popper, em seus livros cheios de mal-entendidos, não corres­
ponde ao conceito de Dilthey nem ao de Croce, nem ao de
Ortega, nem ao de nenhum historicista: corresponde a um
modelo doutrinário fabricado com o intrato, aliás louvável, de
refutar o totalitarismo.28 Houve também quem dissesse (opi­
nião partida inclusive de certos arraiais tomistas, sempre
agarrados ao linear e ao compendioso) que o historicismo eqüi­
valia a um “facilitáiio” : tudo se aceita porque tudo se situa.
O que na verdade inverte o problema. Exige muito mais de
reflexão crítica uma posição que indaga constantemente a
relação entre cada problema (cada doutrina) e as condições
históricas — elas mesmas tomadas como conceito e como
problema — do que uma doutrina erigida em saber perene,
com perguntas fixas e respostas previstas. Tipo de filosofia
em que se vão convertendo várias teorias, esvaziadas pela
excessiva divulgação.
A contribuição de Dilthey — voltemos a ele — à funda­
mentação das ciências-do-espírito (chamemo-las igualmente
“humanas”, “culturais”, “sociais”) constituiu, e isto sobre­
tudo na sua monumental Introdução, -n um esforço real­
mente extraordinário de fazer historicismo sem ficar apenas
na historiografia de idéias, assumindo com enorme lucidez
as tendências basilares de seu tempo, no sentido de estruturar
saberes. Sabemos efetivamente que, em Dilthey, um dos tó­
picos mais característicos foi a idéia de que a história pos­
sui uma estrutura. Estruturas históricas como dados reais,
e estruturas epistemológicas como construção filosófica: este
o panorama mais sintético possível da temática de Dilthey,

82
que de resto aparece por inteiro na obra sobre o mundo his­
tórico.
6. A influência de Dilthey. Ortega chegou a mencion
Dilthey como o maior pensador europeu da segunda meta-
de do século XIX E Eugênio Pueciareiii, no extenso “Es­
tudio Preliminar’’ que escreveu para a edição argentina de
Das Wesen der Philosophie, citou a opinião de G, Masur, que
considera as idéias diltheyanas como “patrimônio de todos
os homens que hoje se ocupam do problema das ciências do
espirito”. 30
A influência de Dilthey, cuja obra abarcou todos os
grandes temas da filosofia historicamente encarados, e to­
dos os grandes problemas filosóficos da historia, se fez sen­
tir na esfera da filosofia e da psicologia, na teoria literária,
no pensamento histórico, nas rev.sões históricas da evolu­
ção cultural do Ocidente, e, basicamente, no exame das
bases das ciências chamadas do espirito. Eugênio Imaz, no
capitulo XI de seu notável livro sobre o filósofo, situa a im­
portância de seu pensamento para o nosso tempo, acentuan­
do inclusive o pioneirismo com que, na Espanha, Francisco
Giner de los Rios se ocupou da obra do autor da “Essência
da Filosofia”. 31
Não foi propriamente fácil nem imediata a repercussão
do pensamento de Dilthey nos outros países, isto é, fora da
Alemanha: traduzido ao italiano e ao francês, estudado na
Inglaterra, divulgado na Espanha, mas disputando lugar
com uma série de figuras também muito brilhantes, que
ocuparam a cena entre fins do oitocentos e inicio do nove­
centos: sobretudo, na Alemanha, os neokantianos, e mes­
mo — inclusive algo após a morte — os teorizadores da cul­
tura tipo Frobenius e Spengler.
Haveria que mencionar entretanto o nome de Eduard
Spranger, indiscutivelmente discípulo de Dilthey, que levou
adiante a idéia da conexão, entre a vida humana e as estrutu­
ras culturais, tomadas inclusive como estruturas domina­
das por valores, principalmente em seu admirável livro so­
bre as formas de vida.32 Haveria que mencionar Ortega y
Gasset, tão espanhol em certo sentido, tão germânico em
certas fontes: muito Simmel, muito Dilthey. De Dilthey
e também de Simmel recebeu Ortega a noção de filosofia da
83
vida, com a própria noção de vitalismo, que temperou no
famoso ensaio Ni racionalismo ni vitalismo, mas sempre se­
guindo vitalista; como recebeu de Dilthey a noção geral de
historicidade (que aguçou em seu conceito de "sentido his­
tórico”), com as noções correlatas de estrutura histórica,
mundo histórico, conhecimento histórico.
Do esforço e da terminologia de Dilthey provieram por­
tanto diversos componentes do modo de equacionar os pro­
blemas da filosofia da história em nosso século, mesmo le­
vando-se em consideração as diversas variáveis doutrinárias
existentes. A idéia de compreensão e a de vivência, a visão
de estruturas, a referência ao histórico como algo específi­
co (a difícil questão do ser da realidade histórica), tudo isto
nos veio do filosofar contido nas obras de Dilthey.
7 . O legado: problemas. O que os grandes pensadores
legam são problemas, e Dilthey não escapou a isto. A siste-
matização do historieismo, elaborada durante a seqüência
de suas obras (e Eugênio imaz sublinhou bastante a expres­
sividade desta seqüência, em sentido evolutivo), não foi e
não poderia ser — nem pretendeu ser — uma ordenação “de­
finitiva”, o que teria sido redução do histórico ao não-histó-
íico. Se se toma como não histórico o esquema conceituai
auto-suficiente, o historieismo não deve nem pode reduzir-
se a ele- Embora se saiba, por outro lado, que é impossível
manter a formulação do pensamento histórico dentro do
próprio nível do fluir histórico, ou seja, isento de expressões
(substantivas e adjetivas) que a ponham, enquanto formu­
lação, e ao menos em alguns pontos essenciais (“essenciais”
já está no caso, como expressão), no plano das idéias ditas
gerais.
Este problema, que corresponde a um dos pontos nevrál­
gicos do historieismo, e que alcança como decorrência a ques­
tão de aplicar ao ismo historicista o próprio relativismo his­
tórico que situa e "diminui” os objetos (questão que inclusi­
ve preocupou Troeltsch), este problema acha-se insito e la­
tente no legado de Dilthey.
Ê possível, por outro lado, que uma crítica mais exigen­
te encontre no pensamento diltheyano alguns traços de psi­
cologismo e mesmo fortes vestígios de positivismo. Um psi­
cologismo difuso, presente inclusive em sua noção de Erleb­

te
ids (vivência) ; um positivismo residual, encontrável em sua
“Introdução às Ciências do Espírito” e correlato de sua sem­
pre ambígua recusa da metafísica, e de suas intenções empi-
ricistas,
Eugênio Pucciarelli, tratando das relações entre Dilthey
e o positivismo, observou que o positivismo diltheyano teria
consistido na preocupação com o empírico, mas a amplitu­
de de seu conceito de experiência, mais largo que o dos po­
sitivistas propriamente ditos, o afastava do autêntico posi­
tivismo. Para Pucciarelli a definição genérica da filosofia
diltheyana ficaria próxima daquele tipo que o próprio Dil­
they denominou “idealismo da liberdade” (nem seria em vão
que seu pensamento se formou dentro das tradições do idea­
lismo alemão, com seus refolhos e suas nuances), embora
ele não se decidisse por um esplritualismo explícito.33
Realmente, sua visão da história, se bem caracterizada
por um constante e visível respeito pelos dados empíricos,
não se retém ao nível do empírico. Ela o transcende, inclu­
sive por ser congenitamente uma interpretação: por ser uma
elaboração interpretativa, que aparece relacionada com a
tríade de conceitos situada em “O Mundo Histórico”: vivên-
cia-expressão-compreensão.
Esta elaboração interpretaba, que é (à maneira de
Kant) uma imposição do sujeito cognoscente sobre o objeto
a conhecer, supera o marco externo do fato histórico “puro”
e busca nele as conexões e os significados. Neste ponto cabe
apontar e frisar a extrema importância do termo estrutura
(de resto muito caro ao pensamento dos neokantistas) no
ideário de Dilthey. No “Mundo Histórico” este termo apare­
ce de modo muito significativo.M Com o termo estrutura,
que como se sabe designa algo mais do que “forma”, por­
quanto se refere à conexão entre as partes e o todo, Dilthey
indicou entre outras coisas a possibil1'dade de se aludir aos
significados espirituais (de Geist, espírito) contidos na rea­
lidade humana — sempre entendida como realidade cultu­
ral e histórica.
Neste sentido se reestima a enorme importância que teve,
na evolução da vida intelectual do Ocidente (dirse-ia, com
Michel Foucault, evolução da epistème ocidental), a funda­
mentação das ciências humanas — ciências do espírito —,
fundamentação que começa no tempo de Montesquieu e Con-
85
dorcet e vai até o início do século vinte, e na qual a parti­
cipação de Dilthey foi inegUgenciàvel.
Ainda dentro da questão das relações entre Dilthey e o
positivismo (diria quase a tentação positivista)., é de lem-
brar-se que sua “recusa da metafisica” se prendeu também,
até certo ponto, a uma visão da inanidade dos sistemas: a
filosofia é necessària, mas não adianta a construção de “sis­
temas” no sentido clássico. Semelhante visão já havia ocor­
rido a outros, inclusive a Victor Cousin (a meu ver um in­
justiçado), que tentou situar as diversas soluções sistemáti­
cas em termos de revezamento histórico. Dilthey também
situa os tipos de sistemas e também tenta fazer da compreen­
são das situações históricas um antídoto ao menos parcial
para o ceticismo (se creio no relativismo, creio em algo);
só que, provido de nutrientes novos, colocado num contexto
mais complexo do que o de Cousin, ele encaixou a teoria
das “concepções do mundo” numa tipologia de modelos his­
tóricos de “certeza”, fundada sobre uma expressa empatia
histórica e uma profunda compreensão das épocas,35
O relativismo de Dilthey, temperado neste ponto pela
própria empatia histórica, como antecipadamente pelo pró­
prio empiricismo, não foi de modo nenhum uma “nota me­
nor” Como disse Imaz, o aumento de consciência (históri­
ca) teria de ser uma limitação, uma circunspeção. E mais,
em suas palavras:
Dilthey está na linha do (século) XVIII, co­
mo estava Hegel. É um relativista com segundas
intenções, como Hegel um absolutista com segun­
das intenções. Hegel supera a filosofia do enten­
dimento, do século XVIII, com uma filosofia da
razão, dialética idealista da história; Dilthey sti­
perà a ambos, com uma filosofia da vida, dialéti­
ca empirica da história.1C
8. O “Mundo Histórico”. Vale observar que em Dilthey
o historicismo não se reduziu a uma afirmação epistemolo­
gica. Ele não se limitou a estabelecer o caráter histórico das
realidades humanas e do próprio pensamento, com suas for­
mas e suas tendências. Em Dilthey, temos além disso um
esforço para descrever o “mundo” formado pela realidade
86
histórica, um mundo específico que entretanto sempre foi
o ambiente global do existir humano. Específico em relação
ao outro mundo que é o da natureza, objeto da epistemolo­
gia clássica, mas abrangente e condicionante, como estru­
tura, em relação a cada vivência e a cada problema humano
concreto.
Na obra sobre o Mundo Histórico (que resulta de um
arranjo de escritos agrupados por Bernard Groethuysen)
Dilthey ainda projeta seu inarredável psicologismo, inclusi­
ve ao equacionar os conceitos prévios que nortearão seu es­
tudo. Também está presente na obra aquele fragni entarismo
que aparece em quase todos os seus trabalhos (alguns crí­
ticos dizem que, afora a Introdução às Ciências do Espirito
e a Vida de Schleiermacher, tudo o que Dilthey escreveu fo­
ram ensaios e fragmentos); um fragmentarismo um tanto
desconcertante. Dentro do psicologismo, encontramos contudo
dois pontos altamente valiosos: a constância do conceito de
“vivência”, sempre recorrente em toda a obra diltheyana,
e o uso do conceito de estrutura, já mencionado..
Dilthey fala em estruturas psíquicas e em estruturas
científicas; por outro lado, o próprio mundo histórico tem
uma estrutura. Note-se que o livro se refere à construção do
mundo histórico (o título em alemão é Der Aufbau der his­
torischen Welt), isto é, ao trabalho de elaboração que parte
do espírito humano — falamos disso mais acima —, que se
projeta dele e se impõe sobre a realidade, e lhe dá uma or­
denação. Algo como a pretensão, corrente entre os grandes
racionalistas do século XVII, de pressupor e explicitar uma
correlação entre a organização da realidade e a do entendi­
mento "humano (ordo et connectio rerum. idem est ac ordo
et connectio idearum, postulava Spinoza).
Só que aquela realidade, a dos racionalistas do século
XVII, era a da natureza.37 Em Dilthey a preocupação é com
a correlação entre as estruturas do saber e a realidade his­
tórica, avalizada pela presença, em ambas, do espírito
(Geist), que tanto infunde sentido às imagens e aos fatos
da história quando movimenta e alimenta as construções (e
pretensões) do saber dos homens. É neste sentido que se tor­
na válido falar em uma “Crítica da Razão Histórica”, que,
como conteúdo e resultado das análises de Dilthey, pode ser
considerada continuação, retificação ou eomplementação das
87
críticas kantianas (aliás este seria o título da parte segun­
da da Einleitung, que Dilthey jamais escreveu) - Mesmo por­
que, sendo a história enquanto estrutura um produto do es­
pírito humano enquanto ordenador (estruturador) de ima­
gens, a crítica da razão histórica se entende também como
reflexão, como crítica de si, como auto-consciência.
Eduardo Nicol, em seu admirável livro sobre o histori-
cismo e o existencialismo, anota que Dilthey, com sua idéia
de uma “crítica da razão histórica”, tornou “possível uma
ciência deste mundo de realidades humanas espirituais, que
se chama história”. 38
Em confronto com os capítulos da Introdução, comple­
tos e encadeados, os diversos textos que integram o Mundo
Histérico são desarrumados e iterativos. Há tópicos incom­
pletos, versões diferentes, apêndices, repetições: nada da ar­
quitetura das sumas, nem do arranjo implacável dos corolá­
rios de Spinoza, nem do paciente rendilhado de Kant. Um
quê de aparente displicência, mesclada a uma um tanto ro­
mântica assimetria de partes, como se por uma dramática
impossibilidade a construção global do livro tivesse ficado
por fazer.30
E entretanto, um sopro de coerência, uma palpável uni­
dade no conteúdo, uma exemplar continuidade dentro do des­
contínuo.
De central importância, no livro, a porção intitulada
“Plano para continuar a estruturação do mundo histórico”,
cuja primeira parte se refere à tríade "Vivência, expressão e
compreensão”. Esta parte começa com um texto sobre a “crí­
tica da razão histórica”, 10 e em todas as subpartes que a
integram se acha o termo estrutura. Vivência, expressão e
compreensão aparecem como três momentos, que podem
ser comparados de alguma maneira aos três modos hegelia-
nos do espírito (o subjetivo, o objetivo e o absoluto), por­
quanto o que se tem, na compreensão, é a “captação” da vi­
vência através da expressão. Nem esta é eliminada, nem a
vivência é perdida se se dá a compreensão: esta ê abrange-
dora, recuperadora e interpretativa
Em Dilthey, a diferença entre explicar — propósito epis­
temológico das ciências naturais — e compreender — o obje­
tivo das ciências do espírito —, que não deixa de implicar8

88
uma distinção quase metafísica entre natureza e história
(distinção que Spengler acentuaria violentamente em sua
Untergang), chega a fundar uma teoria dos significados.
Uma problemática tipicamente alemã, ligada ao conceito de
“conexão de sentido” (Sinnzusammenhang) e ao de Vers­
tehen, tal como este se apresentou na metodologia de Max
Weber, ele mesmo tão avesso à metafísica e tão cioso dos
objetivismos científicos.
No começo de nosso século, a teoria da cultura, desenvol­
vida simultaneamente pela filosofia de origem neokantiana
e pela pesquisa antropológica, se transformou numa espécie
de metafísica do ser cultural, com o conceito de paideuma
veiculado por Frobenius e com as persuasivas estampas de
Spengler sobre a autonomia substancial de cada grande cul­
tura. Windelband, com sua célebre noção de ciências nomo-
téticas e ciências ideográficas, expressada num discurso de
1894, não chegou a tanto; 11 Dilthey também não. Em Dil­
they o contraponto empiricista, aliado ao penchant psicolo­
gista, impediu a chegada até uma metafísica do ser histó­
rico. Permanecem em sua obra dois componentes comple­
mentares, nem sempre plenamente combinados mas perfei-
tamente nítidos e discemíveis: de um lado a visão do histó­
rico como realidade, como estrutura, como objeto distinto
dos objetos naturais, como realização cultural do homem;
de outro, a consciência de que o caráter estrutural da histó­
ria é afinal obra do espírito do próprio homem, que na his­
tória vive, e que, tomando conhecimento da história, expli­
cita e organiza sua auto-consciência.42
E este é um aspecto de inquestionável importância- O
entendimento da história como cultura, adotado do fim do
século XIX para o XX, é um ponto de vista que enriquece
qualquer linha de pesquisa. E não será mero jeu de mots
completá-lo com uma alusão ao entendimento da cultura
como história. Isto quer dizer que a cultura não consiste
propriamente, ou unicamente num acervo de coisas que em
dado momento — e quais os limites deste momento? — per
fazem um todo compreensível. Consiste também, e mais pro­
priamente, em um processo de pervivência: origem, ocor­
rência e pervivência. Pervivem os núcleos daquele acervo,
alterados ou absorvidos: pervivem na vivência ou na memó­
ria, enfim na consciência da relação entre o que veio ocor-89
89
rendo e o que passa a ocorrer. Pervivem como conjunto e
processo, estrutura e duração, situação e imagem.

NOTAS

1 LORENZO GIUSSO, Lo storìcis7no tedesco. Dilthey, Simmel, Spengler,


Fratelli Bocca, Milão, 1944, pág, ft. Na verdade foram os discípulos
Misch e Groethuysen que após a morte de Dilthey organizaram biblio­
gráfica e editorialmente sua obra. Sobre o assunto cf. também GUIDO
DE RUGGIERO, Filosofias âel Siglo X X (trad Adriana T Bo, Ed.
Abril, Buenos Aires, 1947), cap.. XIII, págs. 182 ss.

2 EDUARDO NICOL, Historicismo y Exietencialismo, 2 a edição, Edi­


torial Tecnos, Madrid 1960, capitulo VIH pág, 303
a A esta duplicidade, formada pelo epistemologismo e pela noção de
espirito, somam-se entretanto outras no embasamento geral de Dil­
they. Inclusive a duplicidade do reconhecimento da relatividade de
todo pensar humano, e da aceitação de valores permanentes, como men­
ciona EUGÊNIO FUCCIARELLI no ampio e profundo “Estudio pre­
liminar” à ed argentina de La Esencia de la Filosofia (ti ad Elsa T a-
bernig, Ed. Losada, Buenos Aires 1952, p 54).
4 Sobre Vico, cL entre outros KARL LOEWITH, El sentido de la His­
toria, trad. J. Fernández Bujam, ed. Aguilar, Madrid 1968, cap. VI.
Mais recentemente, o exaustivo levantamento de PEDRO TEIXEIRA
CAVALCANTE, O Pensamento filosôfico-histàrico de João Batista Vico
(tese, Maceió 1978).
s Sobre o Essai, KARL LOEWITH, op. cit., cap. V. CL também o cap­
i l i de EUGÈNE NOEL, Voltaire et Rousseau, Paris, ed. Germer Bail-
lière, 1863. E ainda ED. FUETER, Historia de la Historiografia mo­
derna, trad. Ana Maria Ripullone, ed Nova, B. Aires, 1953, tomo II,
capítulo 3X
6 e t ED- FUETER, loc. cit. cap. IH.
7 FRIEDRICH MEINECKE, El historicismo y su génesis- Versão esp. de
J. Mingano e T. Muñoz Molina, ed. Fondo de Cultura Econômica, Mé­
xico 1943.
s IMMANUEL KANT, “Beantwortung dei1 Frage; Was ist Aufklaerung?”
em Textos Seletos, ed. Vozes, trad. Floriano Fernandes, 1974 (o tra­
dutor verte Aufklaerung como "esclarecimento", fugindo aos termos
consagrados: üuminisrao, ilustração)..
o Cf. ERNST CASSIRER, K a n t: Vida y Doctrina (trad.. Wenceslao Ro­
ces, ed. FCE, México 1948), parte IV, passim.

io G. W. HEGEL, Filosofia de la Historia, trad esp. Ediciones Zeus, Bar­


celona 1970.. JEAN HYPPOLTTE, Introdução à Filosofia da História de90

90
Hegel, ed Civ, Brasileira, trad. H. Garcia, Rio de Janeiro 1971 Cf.
ainda KOSTAS PAPAIOANNOU, Hegel, trad. Ana Maria Patacho, Ed.
Presença. Lisboa 1964» e ainda os textos coligidos no volume Hegel,
ed, da Univ. de Brasília, 1981, passim.

li Cf, G. P. GOOCH, Historia e historiadores en el siglo X IX , trad, Er­


nestina Ghampourcin e Ramon Iglesia, ed FCE, México, 1943, es­
pecialmente caps. VI a XU.

i- Cf. WILHELM DILTHEY, Hegel y él idealismo, trad, de Eugénio Imaz,


ed. FCE, México, 2.a edição 1956, pp. 173 e seguintes (Parte II: O
Universo como autodesenvolvimento do espirito),

13 c t WILHELM DILTHEY, ‘‘Origine et developpement de l'herméneu-


tique” (1900), em Le monde de Tesprit (Die geistige W elt), tomo I,
trad. M. Remy, ed. Aubier (Montaigne), Paris, 1947. Sobre Schleier-
maclier, cf. Hegel y el idealismo, cit., pp. 256 ss Cf ainda AUGUST
BOECKH, On Interpretation and criticism, trad- e editado por John
P. Pritchard, ed. Univ. of Oklahoma Press, Norman, 1968,
14 ROBERT SPAEMANN, Der Ursprung der Soziologie aus der Geist der
Restauration, ed Koesei Verlag, Munique 1959. Para um complemen­
to, o artigo de PHILIP ABRAMS, «The sense of the past and the
origins of the sociology", em Past and Present, Oxford, número 55,
maio 1972.

ir» Uma confrontação clássica entre kantismo e materialismo ficou dada


por F . LANGE, também ele de Marburgo: Histoire du Matérialisme
(trad. B, Pommerol), tomo H, Paris, ed. C, Reinwald, 1879,

i« BENEDETTO CROCE, “Teoria della storia" em Filos ofia-Poesia-Storia,


ed. Ricardo Ricciardi, Milão-Nápoles, 1952; e também, La historia co-
m o hazaña de la libertad, ed FCE (trad. E, Diez — Cañedo), México,
1960. Mais para o ponto em A. WAIS MANN, El Historidsm o Con­
temporáneo, Ed. Nova, Buenos Aires, 1960, passim, e RICHARD DIE­
TRICH (org), Teoria e investigación históricas en la actualidad, trad.
Rafael de la Vega, ed. Gredos Madrid 1966,

ir cf EUGENIO IMAZ, El Pensamiento de D ilthey, Evolución y sistema.


El Colégio de México, México 1946, capítulo m . Para urna bibliogra­
fía cronológica de Dilthey, JOSE GAOS em Cuadernos Americanos. n.°
5, 1945; para um registro dos escritos sobre Dilthey, H. A. HODGES,
Wilhelm Dilthey. An Introduction, Londres 1944 (Apud EUGENIO
IMAZ, op., cit,, pp. 56 e 309), O proprio Imaz» por mais de uma vez,
se referiu ao problema da ordenação editorial dos trabalhos de Dil­
they. Cf. por exemplo seu Pròlogo à sua tradução de Psicologia y teo­
rìa del conocimiento (FCE, México, 1951) pág, IX Aliás este volume
inclui além dos escritos sobre psicologia, os estudos sobre poesia,
também editados em 1945 pela Losada, de Buenos Aires, em tradução
de Elsa Tabemig (Poética. La Imaginación del Poeta. Las tres épocas
de la estética moderna y su problema actual). 91

91
iß El Pensamiento de Dilthey, c it, pág, 58-

io La esencia de la filosofia, cit.. págs 123 e seguintes (Segunda Parte.


La esencia de la Filosofia comprendida desde su posición en el mundo
espiritual). O enfoque de Di they vincula o conceito de religião ao
de filosofía (pág. 138), enquanto Weltanschauung e busca o “essen­
cial" do pensar filosófico na sua inserção em um conjunto de vivên­
cias espirituais concretas (e não, como faria um fenomenologista, na
especificidade puramente abstrata dos respectivos conceitos formata)

so WILHELM DILTHEY, Historia de la Filosofiat trad, Eugênio Imaz,


ed, FCE, México, 1951,

si Of, supra, nota 13. O texto ali citado também se acha incluído no
Mundo Histórico, mas sem os complementos. Também em seu escrito
sobre “O sistema natural das ciências do espírito no século XVH”,
Dilthey mencionou de passagem o tema do nascimento da hermenêu­
tica, ao curso dos debates teológicos do século XVI: ele inclusive con­
fessa que o interesse da hermenêutica paia sua própria obra acentuou
a importância que atribula à história de sua formação, desde a teo­
logia até às ciências do espirito (Hombre y Mundo en los siglos X V I
e X VII, trad. E,. Imaz, ed. FCE, México 1947, págs. 125 ss,) . Aliás esta
obra foi traduzida na Itália por R. Sauna, também tradutor de Troel­
tsch, com um titulo talvez mais semelhante ao do original, W eltans­
chauung und Analyse des Menschen seit Renaissance \ind Reforma­
tion (L'Analisi delVtuomo e l'intuizione della natura del Rinascimento
al secolo XV II. Ed. Nuova Italia Veneza 1947) — Sobre a hermenêu­
tica diltheyana, v,. ainda E PUCOIARELLI em La Esencia de la Fi­
losofia, pp. 51 ss.; bem como, paia outros dados ADOLFO PLACHY,
La Teoria della interpretazione. Genesi e storia della ermeneutica mo­
derna, ed. Giuffrè, Milão. 1974,

23 len gu aje literario y pu dico en la baja latinidad y en la Edad Media


(trad. L. L Molina, ed. Seix B anal, Barcelona 1966), Introdução, págs,
14 e seguintes. Auerbach, inclusive, recusa energicamente a idéia de ser
o historicismo um mero ecletismo, valorizando-o porém como relati­
vismo. Tiata-se de um dos melhores textos disponíveis, apesar de
breve, sobre o assunto. Mais sobre historicismo, pelo próprio Auerbach,
em Mimesis. La représentation de la realità dans la literature occi­
dentale trad, C. Heim, ed. Gallimard, Paris 1968, passim e princ. pp,
459 ss.).

2s Como as teorias monocausaìs tendem a reduzir o sentido da história a


um efeito deste ou daquele “fator" — é o que acontece com o econo­
micismo marxista —, resulta que nelas a história se explica pelo fator,
Um historicismo autêntico explicará, ao contrário, em função da his­
tória a ação dos diversos fatores Sobre o problema do “fator predo­
minante” como um dos “falsos problemas” do século XIX, cf. GEOR­
GES GURVITCH, La Vocation actuelle de la Sociologie, ed. PUF, P a­
ris 1950, parte I, cap. I, pág. 37 ss92

92
24 Cabella mencionar, sobre a trajetória — Já não tanto sobre os caracte­
res — do movimento historicisfca, a versäo de Melnecke e a de Croce,
que inclusive polemiza contra aqueie (cf. La Historia como hazaña de la
libertad cit., Parte H págs. 53 ss.) E também indicar o ensaio de KARL
MANNHEIM, "Historicìsm", muito vinculado aos temas de Troeltsch e in­
cluido nos Essays on the sociology of Knowledge, ed„ Routledge ds
Kegan Paul, Londres, 1952.
25 No pensamento de ORTEGA, porém, cabe registrar como sutil con­
tribuição ao entendimento do enfoque histórico suas observações so­
bre o "sentido histórico", sobre o caráter cumulativo da experiência
histórica e sobre a relação entre passado e presente (cf. por exemplo
Historia como sistema, 3.tt etL, Revista de Ocidente, Madrid 1958, pas­
sim ).
sc e m ORTEGA (cí. nota anterior) esta teoria repontou também com
certa freqüência. Em certa passagem do Que è filosofia?, ele chegou a
escrever, mui hegelianamente, que "superar é herdar e acrescentar"
(trad. Luis Washington Vita, ed. Livro Ibero-americano, -Rio de Ja­
neiro 1961). A idéia do histórico como acumulação e “entesouramen-
to” através das épocas já estava nos üiuninistas e foi expressada em
frase famosa por Shiller (of. ALFREDO STERN, La filosofìa de la h is­
toria y problema de los valores, trad. O. Nudler, Eudeba, Buenos Aires
1963, cap. I, p. 17). Sobre esta linha de problemas c t também o notá­
vel livro de LEÑEME NEQUETE, Filosofia e história — uma introdu­
ção à história da filosofia, Ed. Livraria Sulina, Porto Alegre 1972«

27 Em seu habitual reducionismo, os autores marxistas costumam indi­


car Dilthey como representante da filosofia alemã “do período im­
perialista". Assim o fez GEORG LUKÁCS em um de seus principais
livros (El Asalto a la razón, trad.. W„ Roces, ed. Grijalbo. Barcelona
1976), numa explanação aliás confusa e insuficiente; também o fez
I S. KON, no volume I, referente à "Filosofia da história da época
do imperialismo" de seu livro Die Geschichtsphilosophie des 20. Jahr­
hunderts. Kritischer Abriss, ecL Akademie Verlag, Berlim (DDR) 1964.
Sobre Dilthey, págs. 82 ss. Apesar do parti pris, sua exposição tem me­
lhor estrutura e mais conteúdo do que a de Lukács.

23 KARL POPPER. A Sociedade democrática e seus inimigos, trad M..


Amado, ed. Itatiaia, Belo Horizonte, 1959. Uma crítica ao livro em
NEtBON SALDANHA, Temas de História e Politica, ed. UFPE, Recife
1969, pâgs. 85 e seguintes Recentemente a Universidade de Brasília
publicou, em seus cadernos, uma coletânea de artigos de FOPPER in­
titulada O Racionalismo Crítico na Política (1981)..

2i» WILHELM DILTHEY. Introducción a las ciencias del espíritu, trad.


Julián Marías, Rev. de Ocidente, Madrid 1956. Há também tradução
francesa por Luís Sauzin (ed. PUF, Paris, 1942). Nesta sua obra maior,
Dilthey utilizou um esquema que incluía revisões históricas compará­
veis às que H G. Gadamer viria a usar em Wahrheit und Methode
em 1960. Sobre as relações entre Dilthey e o pensamento do século
XX, E.. CARNEIRO LEÃO, em Tempo Brasileiro, abril-junho 1966.93

93
ao La Esencia de la Filosofia, cit., pág. 62
ai E. IMAZ, op. cit., pàg. 309.
32 EDUARDO SPRANGER, Formas de Vida„ Psicologia y ètica de la per-
sonaiidod, 4.a ed., Revista de Ocidente (tiad. Ramón de la Sem a), Ma­
drid 1954.
33 puCECIARELLI, loc, cit, págs, 60-61 O “Idealismo da liberdade” seria
também, cabe acrescentar, um outro ponto de semelhança com Croce..
Mais paia a posição de Dilthey diante do positivismo, no Prefácio de
Le Monde de VEsprit (ed. c it, pág. 11; cf. também pág. 37).
8*4 El Mundo Histórico, ti ad. Eugênio Imaz, ed, FCE, México 1944 (cf. por
exemplo págs. 5, 29 e 215).

ar» Théorie des Conceptions du Monde. Essai d'une philosophic de la Phi­


losophie, trad Louis Sauzin, Paris, ed. PUF 1946. CL tradução esp.
de Eugenio Imaz, ed FCE, México 1945,
30 EUGENIO IMAZ, op. Cit, págs. 270-271..
37 Sobie a noção de natureza no século XVIII, R„ G. COLLINGWOOD,
Idea de la Naturaleza, trad, E Imaz Fondo de Cultura Economico, Mé­
xico 1950 (cf. mtiodução, e também a paite II) ; e também ARTHUR
LOVEJOY, Essays in the history of Ideas, Oxford Univ. Press. 1962,
cap. V,
38 E NICOL, Historicismo y existencialismo, cit.., pág. 301. Ê muito lúci­
da e muito substanciosa a exposição de Nicol sobre Dilthey..
30 Referindo-se à obra, diz Imaz prefaciando sua própria tradução: “este
complicado Mundo Histórico representa la culminación positiva de
su critica de la razón histórica” (ed. FCE c it, pág DO.
40 Sobre o assunto PUCCIARELLI, loc.. cit., p. 53; E. IMAZ, El Pensa­
miento de Dilthey, cit. pág. 79

n infelizmente a extensão do presente trabalho não nos permite dis­


cutir- a idéia de WINDELBAND segundo a qual a historia seria ciên­
cia de “fatos especiais” (cf. “Historia y ciencia de la natureza”, in
Preludios filosóficos, trad. Wenceslao Roces, ed, Santiago Rueda, Bue­
nos Aires 1949). No Biasil MIGUEL REALE tem dado especial atenção
ao tema da cultura como realidade especifica e a distinção entre ex­
plicar e compreender, Cf. Experiência e Cultura, ed. Grijalbo — Edusp,
S Paulo 1977; O Homem e seus horizontes, ed. Convívio, S Paulo 1979
4ü Sobre a evolução da consciência histórica no Ocidente, W. DILTHEY
introducción a las Ciencias del Espíritu, cit., passim e principalmente
págs. 365 e segs Cp. também El Mundo Histórico, cit., passim; e algu­
ma coisa na Historia de la Pedagogia (ed. Losada, B Aires 1942), cuja
temática se completa com a dos Fundamientos de un sistema de Peda­
gogia (ed. Losada, B* Aires 1940)
Recife, fevereiro/março 1982

94
Max Weber: Tentativa de Apresentação
Sintética (*)
Ao pensar na obra e nas idé:as de Max Weber, é inevi­
tável a impressão de respeito: respeito e admiração, que se
tornam maiores quando levamos em conta o fato de o gran­
de sociólogo ter morrido em plena maturidade (1864-1920)
e de haver passado vários períodos da vida doente, sem con­
dições de trabalhar.
Max Weber trabalhou sempre intensamente, dedicando-se
aos seus temas com severidade obstinada. Seus estudos reve­
lam uma vasta erudição, mas esta sempre esteve, nele (como
nos pensadores de estirpe) a senrço de um sentido crítico
extremamente aguçado. Pouca retórica se encontra em seus
textos, apesar de seu trato com assuntos os mais fascinan­
tes das ciências sociais. Torturou-o sempre a preocupação
com a objetividade científica, e é compreensível que ele te­
nha dedicado muitas páginas, sempre citadas, a questões
metodológicas.
Para Weber, a objetividade do conhecimento deve ser
mantida incólume, tanto em face dos juízos de valor, que o
sociólogo deve evitar, como em face dos equívocos verbais que
provêm do modo de estudar a realidade. Ele pretendia uma
teoria social isenta de juízos de valor: seria papel do econo­
mista, do jurista, do historiador ou do sociólogo, descrever
de modo correto as coisas e mostrar as conexões entre elas,
e não opinar sobre sua conveniência, o que seria missão do
político (o mesmo problema seria retomado, na geração se-*95
* Publicado no Estado de São Paulo, em 11 de dezembro de 1983,

95
giùnte à sua, por alguns autores de relevo como Radbruch
e Kelsen). Por outro lado, Weber montou o conceito de “ti­
po-ideal” de que trataremos adiante.
Pessoalmente consideramos muito difícil, senão ilusó­
rio e mesmo impossível, que em ciências sociais se possa
evitar inteiramente a projeção de inclinações pessoais. O
próprio Weber, a nosso ver, desmente em certa medida suas
exigências quando abre o caminho à interpretação científi­
co-social como captação de significados, pois dentro desta é
comum se insinuarem juizos de valor, Mas em seu tempo,
foi certamente importante que ele colocasse o problema co­
mo o colocou.
É característico das obras de Weber o entrelaçamento
entre a perspectiva histórica e a construção sistemática. Es­
te aspecto se observa muito peculiarmente em seu tratado
maior, chamado Economia e Sociedade e publicado postu­
mamente. É justamente nesta junção do histórico com o sis­
temático que se percebe o sentido fundamental que pos­
suía para ele a sua noção de “tipos ideais”: cada grande con­
ceito corresponde à uma experiência histórica variada e múl­
tipla (por exemplo o conceito de “capitalismo”), mas cabe
ao cientista social reduzi-lo a uma imagem unificada e coe­
rente, podando-lhe os detalhes menos relevantes e fazendo-
o disponível para a análise conceituai. A sociologia de Max
Weber, apesar de receber o nome de “compreensiva”, não se
confundia nisto com a hermenêutica de seu contemporâneo
Dilthey. Para este a compreensão era um penetrar intuitivo
nas significações dos objetos espirituais; para Weber, ela
era sobretudo a apreensão — mas muito cautelosa — dos
sentidos conexos. Com isto, ou seja, com a idéia de “conexão
de sentido”, Weber (como outros de seu tempo) evitava a
tendência dos historiadores do século XIX a pensarem em
termos causais, e evitava igualmente o esquema, provindo
de Marx e de Engels, que colocava o fator econômico como
realidade básica em termos genéticos.
No famoso ensaio sobre a Ética protestante e o espirito
do Capitalismo, publicado em 1904, Weber procurou precisa­
mente utilizar esta idéia. Em vez de atribuir à economia capi­
talista o papel de causa, da qual teria surgido como “supra-
estrutura” a ética protestante, ele procurou mostrar a cone­
xão entre as duas coisas, situadas ambas num mesmo está-96
96
gio do processo histórico. Com isso se enlaçavam vários pro­
blemas como o do comportamento pessoal dos primeiros
grandes financistas do capitalismo, ou o das idéias sociais
de Lutero e de Calvino — este considerado por Weber (como
por Troeltsch) bem mais “moderno” do que aquele. Para
Weber, as estruturas do capitalismo influem evidentemen­
te sobre os homens e sobre várias coisas, mas elas por sua
vez dependem de convicções e de pautas de valores para se­
rem implantadas. Não era exatamente a idéia de Karl Marx
sobre o fato de que a chamada superestrutura “reage” sobre
a infraestrutura: era uma visão mais abrangente e menos
verticalista.
Já que foi mencionada a noção de capitalismo, convém
aludir novamente ao conceito metodológico em que ela se
ampara. “Capitalismo”, ou ainda “feudalismo”, “protestan­
tismo” e outros termos, correspondem a tipos ideais. O con­
ceito de tipo ideal serve de esteio para a construção de no­
ções como estas. Para Weber, o cientista social tem, diante
da realidade histórica e social, que é sempre múltipla e es­
tá sempre em transformação, de fixar os traços principais
de cada grande fenômeno: com estes traços ele configura
um conceito (Troeltsch usava o termo “conceitos gerais”),
com o qual poderá trabalhar com certa uniformidade. Ca­
pitalismo houve nos séculos XVI e XVII, e diferente dos sé­
culos XIX e XX; o fenômeno apresentou ou vem apresen­
tando, também, variações no espaço, mas o sociólogo (e mes­
mo o historiador) precisa dispor de um perfil estável para
sobre ele colocar as referências genéricas.
O método dos tipos teve, na obra de Weber, uma aplica­
ção muito importante no estudo do poder, ou antes, da do­
minação, pois ele distinguía o poder (Macht) da dominação
(Herrschaft). Para Weber, haveria três tipos basilares de
dominação: a carismática, baseada na adesão do grupo a um
líder que se impõe por possuir qualidades excepcionais; a
tradicional, que é exercida sobre pessoas que a aceitam em
face do fato de sempre ter sido “assim”; a racional, ou legal,
que se funda sobre critérios objetivos e se expressa através
de normas genéricas. É viável comparar este esquema com o
de Georges Burdeau, para o qual o poder teria passado por
três estágios sucessivos: o estágio difuso, o pessoal e o ins­
titucional.97
97
Estamos confrontando a tipologia de Weber com o es­
quema de Burdeau, precisamente para observar que naquela
existe também um componente evolutivo. Neste ponto se no­
ta o compromisso (referido linhas acima) entre a constru­
ção sociológica e o material histórico na obra de Weber.
Nota se que cada um dos grandes “tipos” de dominação,
que é correlato de um tipo de legitimação, corresponde a um
contexto histórico-cultural. O tradicional é próprio das épo­
cas feudais, e o racional se encontra especificamente no Oci­
dente contemporâneo, quando o poder tende a tornar-se im­
pessoal e a lei se revela como forma por excelência do Di­
reito positivo; o carismático emerge em épocas de crise ou
nos períodos de formação, em determinados povos.
& * £

Dissemos, ao início, que Weber atravessou longos pe­


ríodos de doença, inclusive com problemas neurológicos. Ao
mencionar o fato, os biógrafas geralmente registram o des­
velo de sua mulher, Marianne, que foi ilustre conferencista
e que entretanto cuidou, com enorme zelo, tanto da saúde
de Max como da publicação — após sua morte — do que
ele deixou inédito, principalmente do alentado Economia e
Sociedade.
Além disso, é costume destacar o fato de que Max Weber,
que tinha vivo interesse pela política, exerceu por certo tem­
po o jornalismo, apesar da atividade docente e das amplas
pesquisas que embasavam seus escritos.
Em duas conferências célebres, o grande pensador situou
o problema da vida intelectual e da política: “A ciência co­
mo vocação” e “A política como vocação”. Ambas pronuncia­
das em Munique em 1918.
Na conferência sobre política, Weber situou a atitude
do político como apaixonada e ligada a posicionamentos, di­
ferentemente da do servidor público, que executa ordens
sem consultar convicções. Aliás é nesta conferência que está
a famosa frase sobre o Estado, que “postula o monopólio do
uso legítimo da força física dentro de um território”.. Na
conferência sobre a ciência, Weber, entre outras coisas, traça
um confronto — muito revelador à época — entre a vida
universitária alemã e a norie-americana. É relevante desta­
car aqui outro tópico importante desse texto: é o ponto em

98
que, aludindo às relações entre o traballio intelectual e a
vida, ele observa que somente com a dedicação completa
àquele é que se têm as grandes personalidades da ciência.
Seria também, segundo ele, o mesmo caso com a arte..
É possível tomar-se este tópico para entender a austera
e absorvente dedicação de Weber à ciência, mesmo através
de condições desfavoráveis: ele sabia que o trabalho do cien­
tista social não se compagina com o diletantismo, embora
talvez exagerasse no seu severo rigorismo. Por outro lado,
o mesmo conceito, terrivelmente exigente, deve ter exacerba­
do o seu conflito íntimo, porquanto sentia dentro de si (inclu­
sive por conta de influências de família) um enorme pendor
pela política. Daí ter Weber passado toda a vida preocupa­
do com a distinção entre a atitude do cientista, que deve
ser objetiva e isenta de valorações, e a do político, que ne­
cessariamente envolve valores e mesmo “paixão”.
A época de Weber foi extremamente densa, tanto quan­
to aos processos históricos como quanto ao panorama cultu­
ral. Entre 1890 e 1920, na Europa surgiram a obra de Durk­
heim e a de Husserl, os principais hvros de Bergson, bem
como o neokantismo e a psicanálise. Foi a época do art nou­
veau e da ópera verista, de Puccini e Caruso, bem corno de
Proust e de Spengler Época de tipologias, marcadas pelo re­
lativismo intelectual. Cabe mencionar, aliás, entre os pensa­
dores sociais do tempo, o próprio irmão de Max, Alfred We­
ber, que deixou algumas obras importantes.
Politicamente, a Alemanha de origem bismarqueana des­
dobrava, através de crises, uma política imperialista. Em
1917, a Rússia se transformou revolucionariamente num Es­
tado totalitário e semi-federal, sob a égide doutrinária do
marxismo e dentro do esquema leninista. Os Estados Unidos
cresciam para o começo de sua sólida hegemonia hemisféri­
ca. A Guerra Mundial, que começou em 1914 e terminou em
1918, abalou e recolocou os destinos de vários povos. Come­
çava o reinado das chamadas superpotências, marginalizan­
do as velhas e cultas nações menores, e chamando aos pou­
cos ao palco da história as nações periféricas de outros con­
tinentes. O imperialismo em crise reformularia seu domínio
sobre os povos africanos, posteriormente; mas tanto estes
como os latino-americanos continuariam servindo apenas de
mercado consumidor, e de fornecedores de matérias-primas.
99
A aguda sensibilidade de Weber, provida de uma ampla
formação, não desdenhou os estudos históricos em função
de suá aflição com o presente. Ao contrário, desdobrou-se
em confrontos históricos, não generalizando demais — We­
ber jamais formulou propriamente uma "filosofia da histó­
ria" —, mas buscando constantes e conexões que o ajudas­
sem a situar os conceitos.
Enquanto Émile Durkheim (1858-1917), partindo da
idéia da divisão-do-trabalho e fiel ao seu método que pre­
tendia ver os fatos sociais “como coisas”, entendeu o seu
tempo como apogeu daquela divisão e acreditou no elemen­
to de progresso que o processo divisório envolvia, Max Weber
parece ter desconfiado das leis sociológicas muito lineares
e dos otimismos legados pelo iluminismo. Por outro lado, en­
quanto Georg Simmel (1858-1919), fundado sobre determi­
nados conceitos de forma e conteúdo, atribuiu às ciências
sociais particulares o estudo dos conteúdos e à sociologia
geral o das formas sociais, Weber partiu também de um con­
ceito básico, o de ação social, tomando-o como objeto mais
direto da interpretação sociológica. As definições de Weber,
habitualmente secas e concisas, sem maiores delongas, colo­
cam a idéia da ação social, logo num dos itens iniciais de
Economia e Sociedade, como sendo aquela que se orienta
pelas ações de outros, quer passadas, quer futuras, quer pre­
sentes. O próprio conceito de relação social (que seria reto­
mado na geração seguinte por Leopold von Wiese), é tra­
tado por Weber em sentido dinâmico, como "conduta plural
reciprocamente referida”.
É importante anotar que Weber, apesar deste constante
interesse pelo social como ação, isto é, pelo aspecto dinâmi­
co dos problemas, não resvalou para o mero "condutismo”,
para o behaviorismo que alguns cientistas sociais da primei­
ra fase do século adotaram, Do mesmo modo que, tentando
sempre evitar todo subjetivismo e toda metafísica no tra­
tamento sociológico dos problemas, não aderiu ao positivis­
mo, apesar das concessões ao evolucionismo (inclusive aque­
la contida na tipologia do poder, o que absolutamente não
desvaloriza o esquema).
* * *

100
Fazendo um balanço da contribuição de Weber ao pen­
samento social do século XX, podemos distinguir desde logo
dois aspectos: no primeiro, idéias gerais sobre ciência e mé­
todo, sobre história geral, sobre organização social, sobre
ação social; no segundo, estudos sobre religião, economia,
história antiga, sociologia urbana e jurídtea, burocracia. Con­
forme foi dito, Weber não partilhou o esquema unilateral de
Marx, unilateral e verticalista, segundo o qual a realidade
social se dividiria em duas “estruturas”, a inferior — com­
posta pelas relações de produção econômica — e a superior,
integrada por todos os demais elementos da existência hu­
mana, Para Weber, uma visão científico-social da realidade
demandava análises muito complexas, e não se poderia ge­
neralizar demais: o componente religioso seria mais impor­
tante em certos contextos do que em outros, como variaria,
também, a ação do componente econômico. Com a elabora­
ção dos “conceitos típicos”, Weber pretendeu conscientemen­
te oferecer à sociologia um instrumento de análise empírica e
um ponto de referência estável. Ainda hoje os sociólogos
utilizam estes conceitos, e até às vezes se abusa da expres­
são “tipo ideal”. Frequentemente pessoas mal informadas
acusam Weber de “idealismo” em face da expressão, que, em
verdade, inclui o termo ideal em acepção meramente metodo­
lógica e epistemológica.
Os extensos trabalhos de Weber sobre economia antiga
e medieval fizeram-no crer que a influência do comércio e
das atividades econômicas sobre valores culturais é inegá­
vel, mas não o levaram a acolher um esquema explicativo
causal e simplificante. A explicação, processo interpretati­
vo próprio das ciências naturais, se situava num plano dis­
tinto da compreensão. Aludimos acima ao problema (que foi
muito discutido pelos pensadores de seu tempo), e ele tem
ligação direta com a idéia das conexões-de-sentido.
Entretanto, a importância destas interpretações, liga­
das teoricamente ao tema das relações entre política e eco­
nomia, não tinha para ele cunho apenas doutrinário. Como
dissemos, Weber teve intensos interesses políticos, que o co­
locaram às vezes em posição difícil, entre o liberalismo ra
cionalista e o nacionalismo germânico. Em seu tempo al­
guns problemas concretos, como o dos Junkers (espécie de
101
aristocracia tradicional alemã) e o da transformação do re-
g'me jurídico das terras, chamaram sua atenção.
Ao desenvolver a temática das formas ue dominação,
Weber em realidade tocou numa série de temas extrema­
mente variada e importante. A distinção entre o tradiciona­
lismo e o racionalismo implica, em sua análise, uma série de
referências que ficaram praticamente definitivas: assim a
referência à legitimidade, ao advento do Estado moderno e
do Direito moderno, à burocracia, à democracia. Para Weber,
o Estado Moderno se baseou sobre o monopólio do ,uso da
força, em sentido distinto do dos reis feudais, e distinto
em" face do novo tipo de legitimação, relacionado com um
novo tipo de Direito.. Neste sentido, ele sublinhou a correla­
ção — hoje mencionada por diversos autores — entre a se-
cularização da autoridade e o crescimento de importância
do poder das leis em todos os ramos do Direito.
Seu texto sobre a burocracia, que se encontra na parte
III de Economia e Sociedade, é um exemplo do estilo de We­
ber, freqüentemente árido e sem encantos, marcado por uma
forte disciplina conceituai. Deste estudo, típico de sua “ma­
neira”, têm partido muitos dos mais expressivos trabalhos
recentes sobre o assunto, inclusive os que concernem ao bu­
rocratismo moderno e à sua relação com o capitalismo.
Todos os autores que se preocupam com o destino das
sociedades contemporâneas têm aproveitado idéias de Weber,
a não ser os marxistas radicais, que nelas só enxergam en­
trelinhas “burguesas”, ou os extremistas de direita, que o
acusam de compromissos liberais. A problemática da orga­
nização social, onde se observa a tendência das estruturas
a triturar o homem; a crise do humanismo clássico, desgas­
tado pelas ideologias e pelo excessivo prestigio do técnico
e do perito; a luta do racionalismo por sustentar-se num sé­
culo atravacado de violência; a situação das gerações novas,
com sua sensação de estranheza diante dos “sistemas” que
comandam o mundo, tudo isso são temas cuja condução, no
pensamento social de hoje, deve muito a Weber, sobretudo
se tratados com um mínimo de rigor conceituai e de cons­
ciência histórica.
É curioso, e isto já foi anotado por alguém, que o pen­
samento de Weber tenha influenciado autores das mais diver­
sas índoles. Assim Karl Jaspers, que veio da psiquiatria, com
102
formação religiosa fundamental, para a filosofia, tendo sido
um dos maiores nomes do exietencialismo alemão. Ou então
Joseph Schumpeter, economista e pensador social, ligado à
historiografia econômica e autor de estudos muito impor­
tantes sobre socialismo, imperialismo e análise econômica.
Ou ainda o americano Talcott Parsons, que inclusive con­
centrou sua reflexão sobre os conceitos de ação social e sis­
tema sociaL Do mesmo modo o economista Theodor Heuss,
que veio a ser o primeiro presidente da República Federal
Alemã, e, de certo modo, o grande jurista e teórico político
Cari Schmitt, que apoiou doutrinariamente o nazismo e
que, num estudó célebre denominado “legaVdade e legitimi­
dade”, utilizou conceitos weberìanos.
Com seu estilo asséptico porém quase sempre pessoal e
enfático, Weber cortou para si mesmo e para sua enorme
sensibilidade muitos caminhes, ou seja, todos aqueles que
ensejariam um glissement literário em sua forma de expres­
são. Seu enfoque, ao qual não faltou algo do “cientificismo”
dos naturalistas e positivistas do oitocentos, cortou-lhe por
outra parte o acesso à atitude filosófica: deixou-se discipli­
nadamente comportar-se no ângulo “objetivo” e científico
dos temas. Talvez até comportar-se demais. O que entre­
tanto não impediu que também a filosofia social, neste sé­
culo tão desnorteado, venha, ela também, bebendo em sua
obra estímulos e sugestões.

103
Filosofia e Critica Politica em
Ramalho Ortigão (*)
A história das idéias apresenta certos períodos em que
a concentração de problemas e de expressões parece maior
do que em outros. De certa forma, o hábito de pensar numa
evolução crescente, como aumento de complexidade, tem
feito ver, no pensamento ocidental, tuna gradativa acumu­
lação de intensidade e de heterogeneidade, à qual, provavel­
mente, não seria estranho associar, por influência dos estu­
dos de sociologia do conhecimento, a tendência burguesa à
mobilidade e à flexibilidade sócio-cultural que o capitalismo
trouxe.
Não é tão fácil, porém, a coisa, e todo esquema sobre o
pensamento moderno se faz revisável a cada passo. Há pou­
co, Michel Foucault, em livro notabilissimo (Les mots et les
choses. 1966), recolocou completamente o tema, mostrando
como os quadros, sobre os quais repousa o saber moderno,
se reformulam estruturalmente no “subsolo” das formações
ideológicas.
A propósito das idéias de Bamalho Ortigão, o que cabe­
ria de logo seria evidentemente ubicá-las em seu século, pri­
meiro, e depois em sua geração Foi Ramalho homem, de seu
século, sim, pela forma, pelo enchimento e pelas motivações
intelectuais. Mas cumpre situá-lo de modo concreto em sua
geração: uma geração que tentou repor a intelectualidade
* Contribuição ao "Seminário de Verão de 1971”, promovido pelo Centro
de Estudos Portugueses do Instituto de Letras da UFPe em outubro de
1971, e dedicado ao Centenário de Farpas,

104
portuguesa ao nível da vida cultural européia, vivendo os
problemas da vida do espírito com um empenho extraordi­
nario. Uma geração magnífica: Eça, Antero, Oliveira Mar­
tins, Teófilo Braga, um grupo pouco coeso mas com mar­
cantes denominadores comuns.
Victor de Sá, em seu livro “Perspectivas do Século XIX”,
salienta que “as disputas e a assimilação do pensamento por­
tuguês no século XIX estão ainda muito menos por estu­
dar que as de qualquer outro período de nossa história”,
adiantando, porém, que muito falta ainda fazer na inter­
pretação de suas figuras.
Eça e Ramalho muito se preocuparam com a tomada
de consciência da posição de sua geração, não apenas na
seqüência da vida especificamente intelectual lusa, como
até no aspecto biológico e demográfico. Preocuparam-se com
a crise da eugenia e com ameaça de degenerescência física
do português, que viam estampada no panorama étnico de
sua geração. Ramalho mesmo anotou algo a respeito, no
Ehn Paris.
Aquela geração, que abria os olhos para as mazelas da
pátria e que conhecia a cultura do tempo, intitulou-se cole­
tiva e ironicamente “Os Vencidos da Vida”. Mas desde a
questão Coimbrã que a atitude dos “vencidos” era parado­
xalmente a de luta constante. A elite intelectual portugue­
sa, transitando do romantismo para o realismo, passava ao
mesmo tempo do austero patriotismo de Herculano, chateau-
briandesco e conservantista, para um novo estilo de esfor­
ço pela Pátria, munido de novo estilo literário: agora, en­
quanto alguns continuavam o labor erudito, outros afiavam
o florete da sátira. Enquanto Antero (que Eça chamava “a
mais poderosa organização filosófica e crítica da Península
neste século) mastigava profundamente a filosofia alemã e
estudava as crises ibéricas com argúeias pungentes, Rama-
lho e Eça preferiram o riso: preferiram-no ao menos duran­
te certa fase. Convencidos estavam de que o riso — como
em Cervantes e em Voltaire — era um modo de levar a civi­
lização para a justiça, e mais, como dizìa Eça: era a forma
de crítica mais acessível à multidão.
Eis, portanto, a “Ramalhal figura”, ao lado de Eça. a re­
digir as Farpas, O autor do Primo Baglio chegou a dizer, em

105
1878, na carta a Joaquim d’Araújo sobre Ramalho: “nós
queríamos lançar as Farpas contra um mundo”. E o propó­
sito das Farpas, na expressão de Eça: fazer o público ver ver­
dadeiro.
Identidade temporária de trabalho, paralelo constante
de intenções, semelhança visceral de atitude em relação ao
país e à cultura, vinculavam mutuamente Eça e Ramalho.
Se Eça ficou um tanto em seus personagens, tão vivos os
fez, Ramalho, como ensaísta e crítico, foi a bem dizer um
f¡edonista sem ficção: sem personagens inventados. Sem ter
talvez o magnífico estilo de Eça, nem seu espantoso alcance
de escritor e de crítico, Ramalho teve, como ele, o poder
permanente do equilíbrio e da visão clara, o senso da irre­
verência oportuna e da zombaria eficaz.,
Não foi Ramalho, concedamos, um “filósofo” no sentido
empertigado e formal da palavra. Poi antes um pensador
social, com preocupações filosóficas e políticas, por deriva­
ção necessária. Ele mesmo, em junho de 1882, dizia nas Far­
pas (cf. tomo VI, p. 109), que com essa publicação se passa
da crítica à ação, levando as idéias à rua. Tal pragmatismo
porém não era rasteiro, nem total: as idéias que se divul­
gavam e defendiam na publicação eram fruto de leituras sé­
rias e de análise detida.
Vejamos desde logo a crítica da religião. Ela foi cons­
tante nas Farpas, e revela bem os fundamentos filosóficos das
idéias gerais de Ramalho. A falsificação social da religião
parecia-lhe ser, em Portugal, um fenômeno terrivelmente
enraizado. No tomo V (A Religião e a Arte, Lisboa, ed. Co­
razzi, 1888), encontramos freqüentes referências a respeito:
ora denunciando concilios católicos, ora práticas comuns,
pela insuportável descaracterização da atitude religiosa e pe­
la concepção excessivamente implícita, excessivamente fá­
cil e leve de Deus. A “sem-cerimônia para com o Eterno”
irritava Ramalho como uma familiaridade vulgar e contra­
producente (vejam-se no volume citado as páginas 5 e se­
guintes).
No mesmo tomo V encontramos, no comentário sobre o
poema Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro, sérias
e intensas preocupações religiosas. Se era pueril, observava
Ramalho, acreditar num Deus de barbas brancas e manto
bordado, mais pueril ainda seria tentar substituí-lo por um
106
deísmo vago, expressado em literatura epigramática. A fé
tradicional tinha pelo menos, segundo ele, um serviço pres­
tado: o de haver sustentado por séculos o comportamento
social de várias gerações E acrescentava, taxativo:
A “Velhice do Padre Eterno” fará enfurecer
o clero minhoto, os cônegos de Braga e os curas
de Traz-os-Montes; mas não fará bater com uma
palpitação nova o coração da mocidade.

Na discussão sobre Deus, Ramalho tinha em vista, não


apenas a dimensão teorética dos conceitos, mas também —
um tanto utilitaristicamente, talvez — a condição concreta
do homem moderno em geral, e, em particular, a. do portu­
guês, trazido da fé tradicional e assente para os repentinos
debates de desde o meado do século.
Preocupava-o, profundárnoste, o espetáculo da perda da
fé no mundo contemporâneo. O problema está naquele mes­
mo estudo sobre o poema de Junqueiro, Após denunciar o
“amargo niilismo que transparece através de toda a obra de
arte contemporânea”, alude às “solidões tenebrosas que o
aniquilamento da fé deixou no fundo do entristecido cora­
ção humano” (tomo 5, pp. 290 e 297). Alegrava-se todavia
de não encontrar em Junqueiro tamanho esvaziamento.
Anote-se, de passagem, que o problema da religião preo­
cupa Ramalho, também, no seu livro sobre a Inglaterra (ve­
ja-se John Buli, nova ed. Lisboa, 1959, capítulo XH acerca
de hábitos religiosos).
Passando, entretanto, da crítica das concepções à críti­
ca dos fatos, temos ainda em Ramalho observações cheias de
alcance sociológico sobre os “tipos de padres” existentes em
Portugal. Tais tipos eram os seguintes: o padre das missões,
o padre de aldeia e o padre de sala (ct tomo 5, pp. 21 e ss.). Os
padres de missões se apresentavam com duas subespécies:
os aventureiros, metidos quase sempre pela Africa por mo­
tivos muito mundanos, e os místicos, morbidamente desejo­
sos de martírio. O padre de aldeia, rude e simplório, cum­
pria jovialmente seus misteres entre os homens do campo.
O padre de sala merecia das Farpas mais fundas criticas:
reduzia-se a um complemento doméstico, quase a um uten­
sílio, nas velhas famílias, parasitário e mexeriqueiro, agra-

107
vando o desvirtuamento da religião, aa disfunções da fé e
o desprestígio das coisas do espírito.
Noutra parte das Farpas, contudo (“Aos membros da As­
sociação Católica do Porto”, 1873, cf. tomo n , pág. 86), o cle­
ro português aparece dividido, diferentemente, em três clas­
ses: os indiferentes, os liberais e os reacionários. Os indife­
rentes são em geral os de aldeia, que plantam horta e não
se torturam demais pelas conversões. Os liberais se metem
em política, lêem jornais e freqüentam botequins. Os rea­
cionários concentram-se no confessionário, esmiúçam deta­
lhes e são ultramontanamente formalistas.
Estas tipologias visavam alcançar o problema mesmo da
vida histórica de Portugal e da sua esclerose cultural, prove­
niente de decadência física e psicológica do povo. Enquanto a
mentalidade clerical predominasse, tomando o lugar da re­
ligiosidade salutar e autêntica, Portugal continuaria “anê­
mico” e incapaz de retomar seus vastos vôos passados.
A mesma ótica realista, aliada à preocupação político-
social, aparece aliás na sua crítica da esmola, formulada a
propósito de uma campanha de auxílio aos pobres, encetada
pelo Diário de Notícias (cf. tomo 5, n.° XXVIIÍ). Distin­
guindo entre caridade e assistência, Ramalho sobrevaloriza
a segunda, porque preventiva e social. Para ele, o importan­
te, o decisivo, não era a atitude do auxílio, meramente senti­
mental, e sim a supressão do pauperismo, objetivada por or­
ganizações assistenciais — que em verdade envolveriam re­
forma nas instituições, na mentalidade geral e na ordem
social mesma.
Encontramos, portanto, em Ramalho, uma constante
preocupação com a temática religiosa: ora o respeito pelas
grandezas do misticismo ora o registro da decadência da fé,
ora a indignação contra o desvirtuamento da religião na
prática urbana.
Na epístola à Associação Católica do Porto (cf. tomo II,
pp 77 e seguintes), as sátiras atiradas contra a associação
envolvem a anotação da ausência de liberdade de cultos no
país, ausência retrógrada, estranha e descabida para o espí­
rito aberto das Farpas. E quando, criticando a pretensão dos
portuenses de serem a concentração do catolicismo em Por­
tugal, menciona a posição do catolicismo na história (pp.
81-82), é para elogiar o mundo de obras e de atos que a fé

108
católica produziu na Idade Média, incluindo Tomás de Aqui­
no, Dante, Tasso e Cervantes.
No fundo, o que ooía nisso a Ramalho, como em quase
tudo, era o contraste enti e a granueza das coisas, concepções
ou instituições, e o apequenamento com que elas se lhe apre­
sentavam na versão lusitana, que a seus olhos parecia sem­
pre -provinciana, mesquinha e caricata. Doía-lhe — como aos
de sua geração — ver o país como um lugar onde as coisas
grandes e sérias perdiam sua grandeza e sua seriedade. Em
Portugal, disse noutra parte (Tomo II, p. 248), a religião se re­
duzia à beatice ou à devoção das mulheres e à indiferença
dos homens — ambas as coesas mantidas em nível raso.
A compreensão do entre supremo, a idéia de
Deus como núcleo da vida moral ou como foco
dos destinos eternos, essa é inteiramente alheia ao
que nós chamamos geralmente em Portugal a de­
voção ou a indiferença.

E como a filosofia do século já não admitia a existência


de um Deus separado do mundo, substancial e longínquo num
céu imóvel, incompatível com as leis universais de evolução
e gravitação, é preciso refazer (cf. páginas 250 e seguintes)
a idéia de Deus, superando o antagonismo entre ela e a ciên­
cia. Mas o clero português não admitia isso; o povo comum
não entenderia isso; tratava-se então de atacar o clero e es­
clarecer o povo.
Com efeito, Ramalho aceitou o evolucionismo. Citando
Draper (tomo V, p 75), fustigava as crendices que haviam
atrapalhado a ciência durante séculos. E dizia rotundamen­
te (tomo II, p. 251) : “Uma só lei, a da eterna transforma­
ção, abrange o universo e a natureza inteira”. Parecia-lhe, a
crença em tal lei, algo assente no espírito geral de seu tem­
po. Daí interpretar o realismo artístico (cf. tomo V, páginas
288 e seguintes) como substituição das causas eternas e do
ideal religioso, na motivação da arte, pela observação das
causas, dos fatos naturais e das relações sociais. Darwin
e Spencer são enfaticamente citados no estudo sobre a so­
ciedade portuguesa (cf. tomo VI, cap. IV, pág. 99 por exem­
plo) : o gosto, o caráter, as qualidades mentais e morais apa­
reciam vinculadas a condições biológicas e sociológicas. De
109
qualquer modo, todavia (veja-se tomo VI, página 100), a
“evolução política e econômica” era considerada fundamento
das formas de arte e das expressões culturais em geral.
No mesmo estudo sobre o poema de Junqueiro (tomo
V), Ramalho levava em conta a crise do Ocidente, provinda
da ruptura do equilíbrio que havia na Idade Média, e manifes­
tada na perda da fé. Constatando a crise, mas sem querer
retomar à metafísica, nem à teologia, consolava-se citando
um discípulo de Comte, Audiffrent, e apoiando-se em Haeckel,
para concluir que (pág. 293) a ciência tem limites e que
0 “fundo real do conhecimento" não lhe é acessível. À arte
talvez.
Anote-se de passagem que, em estudo mais acurado, ca­
beria a respeito um paralelo, sobre este ponto, com as idéias
de Sampaio Bruno, representante de uma geração seguinte
e que correspondeu mais ou menos à geração de Sílvio Ro­
mero no Brasil.
Tentando salvar o que havia de robusto e de sólido nas
tradições nacionais, e ao mesmo tempo imbuído das idéias
cientiíicistas do seu tempo, Ramalho foi de certa maneira
um ilustrado, um iluminista, nas atitudes intelectuais. Um
1luminista ao fazer anti-clericalismo, e mesmo ao advertir
que não era tão fácil ser revolucionário. Ao fazer tal adver­
tência (tomo V, pág. 29) dizia que no clero os menos capa­
zes nada atrapalhavam: tinham a escorá-los os séculos de
firme escolástica (que reconhecia como um monumento mag­
nífico) , e limitavam-se à missa; mas um revolucionário bur­
ro ou ignorante é um desastre. Seu revolucionarismo se fun­
dava no evolucionismo e na missão esclarecedora da ciência.
Eça mesmo o dissera, na citada carta sobre o seu com­
panheiro: Ramalho, “havia tempos ( . . . ) entrava na ciên­
cia com a exaltação dum convertido”. E ademais, acrescen­
tava que ele “não espalhava erudição por vaidade, mas por
filantropia”. Daí que as Farpas, que a princípio faziam ape­
nas rir, passassem a fazer pensar.
Semelhante atitude iluminista se exprime inclusive no
permanente confronto com o estrangeiro, tão dele e também
de Eça. Na grande obra sobre a Holanda, o intuito central
era o de apontar exemplos e ensinar pela comparaçãp: ve­
jam-se por exemplo o cotejo entre Phebus Moniz e Marnix
de Sainte-Aldezonde no capítulo inicial, bem como os votos
110
finais no último capítulo. Lembrem-se, também, na mesma
obra, as páginas escritas sobre perseguições religiosas e so­
bre a liberdade. Sobre a liberdade, aliás, escreveria também
Ramalho páginas representativas nas Farpas Esquecidas (vo­
lume I, capítulos Vili e XVII), apontando o uso puramente
nominal da palavra, análogo ao uso puramente nominal, em
seu tempo, de outra palavra: a palavra povo.
O confronto com o estrangeiro, uso intelectual que na
Europa culta teve tanta voga no século XVIII, Ramalho o
praticou com significativa freqüência em relação à Ingla­
terra. No livro John Buli, entre outros exemplos que apon­
tava, indicava no capítulo IX o “atleticismo britânico”, con­
trastante com a “espinhela caída” dos lisboetas, aos quais
estaria faltando educação intelectual e física.
Na crítica à esmola, a que já aludimos, Ramalho pedia
uma educação sanitária para Portugal, aduzindo exemplos in­
gleses e alemães para mostrar a relação do aumento da ins­
trução e da limpeza com a diminuição do pauperismo. Mes­
mo os padres estrangeiros mereceram boas referências nas
Farpas (cf. tomo V p. 27), pois não se achavam, como os pa­
trícios, comprometidos em intrigas políticas nem submeti­
dos à humilhante condição de servidores domésticos.
Talvez se possa, também, relacionar ao lastro iluminista
da formação de Ramalho o seu elogio da “coragem burgue­
sa” (tomo IH, pág. 24), incluída em suas páginas sobre o
Duque de Saldanha. No mesmo sentido, a valorização da
idéia de lei, que a câmara nacional não sabia fazer (tomo
IV, p. 142), devendo por isso especializar-se em não fazer
nada. Uma câmara não sabendo fazer leis havia de parecer,
a um racionalista como Ramalho, uma traição essencial ac
próprio mister, difícil e fundamental, de deliberar pelo povo
e em nome do povo.
O ¡luminismo de Ramalho se prolongava, portanto, no
seu evolucionismo. Acreditava no progresso como sentido
das transformações. Pela perspectiva iluminista-evolucionis-
ta, considerou por vezes a Idade Média como fase negativa
da história da humanidade, povoada de bruxos e de “cérebros
combalidos” (cf. tomo VI, pág. 48), embora freqüentemente
aludisse à cultura medieval e à escolástica com respeito, con­
siderando-as, conforme foi visto acima, monumentos notá­
veis.
111
Lamentando que Portugal não tivesse conhecido um
“verdadeiro progresso político” (tomo VI, pág. 17), observa­
va que tal progresso teria advindo de “sucessivos desenvolvi­
mentos do progresso intelectual”, que contudo não houve. O
cansaço da vida portuguesa, explicado inclusive dietetica-
mente' se agravava pela ausência do povo nas coisas da nação
— e só o povo, considerava Ramalho, mantém coesas as ener­
gias históricas nacionais Por outro lado (tomo VI, p. 73), o
luxo exagerado e maníaco da corte lhe parecia ter concorri­
do para o declínio do país. Com essa opinião se relaciona
obviamente a estima da virtude burguesa, e a concepção bur­
guesa, patente nas Farpas, como concepção da cultura e da
evolução social. Mas o idealista impenitente não se limitava
a pedir boa saúde para o português: queria também, para
conservar a pátria, uma idéia portuguesa (tomo VI, pág. 85),
a fim de manter unida a nacionalidade
Na mesma ordem de idéias Ramalho, nas üUimas Farpas,
(pág. 291), elogiava o marquês de Pombal por haver substi­
tuído os jesuítas pelos oratorianos (responsáveis, aliás, jus­
tamente pelo iluminismo português, de certo modo), e de­
plorava que a Revolução de 1834 tivesse acabado com os pa­
dres do oratório e deixado anárquico o ensino português,
com repercussões negativas sobre todo o século e sobre a cul­
tura do país.
Registre-se, porém, que o espírito ilustrado e evolu­
cionista de Ramalho não o impediu de, ocasional e comple­
mentarmente, admitir a importância do problema econômico,
que — ao lado do biológico e do pedagógico — levou em
conta várias vezes, chegando mesmo a dizer, a propósito do
parlamentarismo (tomo IV, p. 109) :

A questão grave que hoje preocupa os povos


não é de como se há de distribuir o poder, é de
como se há de distribuir a riqueza. As classes que
mais se agitam, as que por toda a parte amedron­
tam os manutensores da ordem, as que hão de re­
volver e fixar os destinos das sociedades futuras,
não querem empolgar os símbolos dos governos,
querem simplesmente adquirir os instrumentos do
trabalho; querem a terra e querem o capital. O
problema moderno é o problema econômico.

112
Recheado, portanto, de mentalidade ilustrada e de con­
vicções evolucionistas, enxergando entretanto as dimensões
sócio-econômicas de problemas cujos ângulos biológicos e psi­
cológicos tanto acentuou, Ramalho se debatia entre dois pó­
los: de um lado a bem-querença à pátria, cheia de tradições
válidas e glórias legítimas, em grande parte respaldadas* na
fé assente e nas raízes do medievo; de outro lado, o espetá­
culo da decadência, que, como os de seu grupo ou sua gera­
ção, viu generalizada no país, e cujo antídoto lhe parecia
estar na reeducação moral e física, fundada no eleatis­
mo moderno, no bom senso e na seeularidade. Os problemas
da cultura portuguesa, que em nosso século inspiraram tan­
tas reflexões sérias a um Fidelino de Figueiredo, por exem
pio — que em seu Menorìdade da Inteligência clamava por
uma pedagogia menos estática e por uma historiografia me­
nos anedótica — os problemas da cultura portuguesa foram
a preocupação constante das Farpas, que os queriam enca­
rar dentro do quadro geral da cultura ocidental moderna
como um todo: para confronto, na análise, e para reprogra­
mação, na crítica.
Como Eça, Ramalho chorava a mágoa de conviver com
problemas amesquinhados, mas ria e fazia rir, por atitude
saudável e como tática de convencimento. Deste modo as
Farpas ficaram sendo, nas letras de nossa língua, um mo­
delo disto: de como colocar o muito sério nas entrelinhas do
muito engraçado.
Observação: A edição das Farpas de Ramalho Ortigão,
utilizada para o presente estudo, foi a de David Corazzi (Lis­
boa 1888). A das Últimas Farpas foi a de Francisco Alves-
Ailland e Bertrand (1917).

113
Os “Estudos Politicos 99 de Aron (*)
Raymond Aron Estudos Políticos, trad- de Sér­
gio Bath, Editora Universidade de Brasília, 1981,
478 páginas.

Em sua prestigiosa coleção “Pensamento Político”, a


Editora Universidade de Brasilia lança em português, com
erudita “Introdução” de José Guilherme Merquior, um dos
mais recentes livros de Raymond Aron. O próprio autor, na
“observação” sobre o livro (pág. 7), se refere à seriação dada
aos artigos que o compõem, aludindo inclusive à constante
flutuação das relações entre filosofia política, ciência polí­
tica e teoria política, faixas dentro das quais se movimen­
tam geralmente seus temas. De fato o livro, dividido em três
partes (primeira, “Idéias”; segunda, “A política dentro dos
Estados”; terceira, “A política entre os Estados”), acolhe es­
tudos que transitam entre a reflexão teórica mais genérica
e a observação empírica mais concreta.
Creio que tem razão o apresentador do volume, Rolf
Kuntz, ao dizer que o livro constitui como conjunto uma es­
pécie de introdução ao pensamento de Raymond Aron. In­
trodução muito útil, não apenas pelo caráter abrangente
dos temas que seu conteúdo faz desfilar, mas também pelo
fato de ser, a obra do grande pensador francês, impressio­
nantemente vasta, incluindo trabalhos sobre largo elenco
de assuntos e tendo atravessado fases e épocas muito diver­
sas: desde o crítico da sociologia alemã em sua famosa tese

* Publicado no Estado de São Paulo, em 10 de maio de 1981.

114
doutorai, e do filòsofo da história, ató o analista de concei­
tos políticos e da política internacional.
Daí que o livro deva interessar tanto aos que admiram
a obra de Aron quanto aos que discordam dela. Presente em
quase todas as grandes questões teórico-políticas do século,
das décadas 30 e 40 para cá, Aron tem desempenhado um
papel permanentemente crítico, sem embargo de certas va­
riações na “carga” crítica, mormente quando se trata de ava­
liar, refutar ou situar as atitudes ditas de esquerda. O cará­
ter “polêmico” de sua obra, talvez um tanto exagerada pelo
autor da Apresentação do livro, se acha mais na posição de
Aron, irredubível aos extremismos e também inconformado
com eles, do que na estratégia ou no estilo que utiliza em
seus textos (a não ser em certas obras, como em UOpium
des intellectuals, aparecida em 1957).
A importância e a amplitude da obra de Aron — cuja
relativa heterogeneidade me parece deva ser registrada —
nos obriga a pensar em comparações. Comparação, por exem­
plo, com a de Jean-Paul Sarjre, também presente no âmago do
pensamento do século vinte: Sartre poiventura mais filóso
fo, mais dentro dos grandes temas da metafísica e da onto­
logia (apesar de tudo!), embora também sempre aderido às
questões políticas e sociais mais imediatas; Aron mais pen­
sador político (se bem filòsofo da história), mais técnico e
mais acadêmico no tratamento de certas áreas ou de certas
faixas da problemática política. Às vezes, talvez, acadêmico
demais-
Estenderia a comparação a uma Hannah Arendt, auto­
ra de escritos de suma relevância dentro do pensamento polí­
tico atual, nos quais a perspectiva histórica e o elevado ní­
vel filosófico se enlaçam a posições basicamente liberais, ou
ao menos, para arriscar um termo que não me agrada, neo-
liberais. Ou a um Henri Lefebvre, marxista por formação
mas cheio de idéias próprias, carregadamente crítico em
certas obras e quase sempre admiravelmente lúcido.
* # *

Dividido em três partes, o livro apresenta na primeira


seis estudos que tratam de pensadores políticos (Maquiavel,
Marx, Alain, Max Weber, Michael Polanyi e Pareto) e de as-
115
pectos teóricos gerais (no importante ensaio — realmente al­
go polêmico — sobre “A verdade histórica das filosofias políti­
cas”) . Na segunda, aparecem estudos sobre “teorias, conceitos
e situações”, abordando instituições e questões conceituais.
Nesta parte, cabe destacar dois ensaios altamente sugestivos
sobre a liberdade, tema aliás frequentemente assediado na
obra de Aron (“A definição liberal da liberdade” e “Liberda­
de: liberal ou libertària?”)!; destacaria também o ensaio
“Macht, ‘power, puissance: prosa democrática ou poesia de­
moníaca?”. Na parte terceira, onde trata de problemas in­
ternacionais, Aron emprega com freqüência o termo conste­
lações para designar conjuntos globais de elementos que ca­
racterizam conjunturas políticas.
Nesta terceira parte, onde a problemática de vez em
quando passa rente ao jornalístico, à observação concreta e
empírica de fatos, o esforço de Aron vai no sentido de cons­
truir uma imagem panorâmica do mundo atual, que em sua
intenção pretende desprender-se de todo extremismo e apoiar-
se apenas na reflexão crítica. Esta reflexão, que numa frase
fácil poderia ser vinculada ao tradicional bon sens dos fran­
ceses (mais do que, no caso, ao criticismo alemão, obviamen­
te), esta reflexão freqüentemente cai num certo “ocidenta-
lismo”, em termos de parti pris, mas isto se compensa com
a dose de persuasividade que o conjunto de suas análises
assume.
No ensaio “Macht, power, puissance: prosa democrá­
tica ou poesia demoníaca”, aparecem diversas anotações dis­
cutíveis. Eu mesmo não aceito sua observação sobre a ex­
pressão “elite do poder” usada por Wright Mills (pág. 169),
nem (com perdão da ousadia) considero suficiente sua dis-
quisição sobre o termos Macht e power (pág. 171 e seguintes)
em confronto com o francês pouvoir. Gostaria também (com
mais permissão para outra usadia) que Aron tivesse
confrontado suas análises com as profundas reflexões históri­
cas de Gerhard Ritter num livro que se chamou inicialmen­
te Machtstaat und Utopie (Estado-de-poder e Utopia) e pos­
teriormente Die Daemonie der Macht (O Demônio do Poder)
— livro no qual maquiavelismo e utopismo se encontram si­
tuados como linhas paralelas e constantes no pensamento
e nos movimentos políticos do Ocidente a partir do Renas­
cimento. Mas o ensaio de Aron se desenvolve com uma luci-

116
dez muito aceitável, oferecendo ao leitor uma série de ques
tionamentos sobre as conjunturas internacionais de hoje —
tema que funciona como um irresistível tropismo para as
reflexões de Aron.
Vez por outra o leitor mais exigente pode parar diante
de alguns tópicos, meio desconfiado com determinadas alu­
sões devidamente distribuídas (contra os Estados Unidos,
contra Cuba, contra os soviéticos). ou meio insatisfeito com
certa falta de “profundidade” encontrada aqui e ali, nas
própiias passagens teóricas. Mas passará adiante, prossegui­
rá na leitura e encontrará compensações.
* **

Sob certo aspecto, é lícito situar Aron entre os grandes


pensadores neoliberais ou pós-liberais de nosso século Ou
antes, entre aqueles que, sem adotarem o liberalismo como
um ismo (muito menos ao modo dos “clássicos”), e mesmo
fazendo algumas restrições ao ismo liberal, aceitam a pere­
nidade de alguns valores liberais básicos, aceitando inclusive
a permanência dos ’problemas que o liberalismo colocou. Nes­
te sentido, rejeitam os extremismos (de esquerda e de direi­
ta) e com isso se mantêm num misto de utopia e relativis­
mo, preceituando caminhos mais viáveis do que os do radica­
lismo e mais condignos do que os do mero “realismo”. Oom-
parei-o linhas acima com Hannah Arendt; poderia compará-
lo com Leo Strauss (este numa posição algo diferente). Não
o compararia a Karl Popper — tão do agrado de certos pro­
fessores de Brasília aos quais muito prezo —, porque a posi­
ção antitotálitária de Popper (muito mais um metodólogo
das ciências exatas) é ao mesmo tempo e lamentavelmente
uma posição anti-histórica, portanto destroncada das pers­
pectivas mais vivas e mais ricas do pensamento contemporâ­
neo (o conceito de historicismo polemicamente utilizado por
Popper é equivocado e difere, inclusive, do dos grandes re­
presentantes do historicismo!).
Liberal, para-Iiberal ou semi-liberál, o pensamento de
Aron apresenta também, muito característicamente, um com­
ponente de relativismo. Este relativismo, que evidentemente
não é ceticismo (somente os dogmáticos tentam achatar e
“empurrar” a noção de relativismo para identificá-lo com a

117
opção cética), se aproxima um pouco daquele que Dilthey,
em sua “Teoria das Concepções do Mundo” encontrou nos
gregos da fase final e preconizou para o pensamento contem­
porâneo. Aproxima-se tamhém, de certo modo, de outros re­
lativismos (como o relativismo sociológico de Sorokin), mas
não se calca apenas em reflexões expressamente filosóficas:
resulta de um modo especial de encarar os panoramas glo­
bais. Por outro lado, seu relativismo não é um “neutralismo”
(Aron obviamente não aspira à ciência social neutra e isenta,
como certos autores) indiferente aos valores sociais; ele é
uma espécie de^ anteparo às tentações do engajamento par­
tidário total, qüe com freqüência levam ao unilateralismo e
ao maniqueísmo. Cabe observar que o próprio Max Weber,
com cuja obra Aron se entendeu (ou se desentendeu) em
termos críticos desde o início, nem sempre se manteve fiel
àquele cunho não-valorativo que, em sua metodologia, pre­
conizou asceticamente para as ciências ditas sociais.
A análise política, constante em todas as fases da vasta
obra de Aron (e presente mesmo indiretamente nos escritos
sociológicos ou filosóficos), é a tônica dominante no presen­
te volume. Análise feita em termos de filosofia política (ano­
te-se que pelo menos desde Platão filosofia e política se com­
binam e se conjugam), em termos de sociologia e história
— mais “alusão” histórica do que reexame, quase sempre
—, ou em termos de comparação de estruturas. O volume,
aliás, inclui um importante ensaio sobre as “Comparações
históricas”. A unir estes modos de estudar a política, encon­
tra-se em Aron (em sua obra em geral, e nestes Estudos em
especial) um certo vezo polêmico, sempre citado pelos que o
referem, e que talvez não seja tão grave como vício, mas que
tem funcionado ao que parece como estímulo interior ou co­
mo motivação para o desencadeamento (e o encadeamento)
das reflexões de Aron.
Vários analistas de sua obra têm visto em Aron um pes­
simista, a par de “realista” e de "relativista”. Vem à idéia a
opinião segundo a qual todo grande pensador político é pes­
simista: só os pessimistas desenvolvem sensibilidade bastan­
te para apreender os fundamentos dos problemas políticos
centrais de seu tempo. Aliás o próprio Aron toca no tema no
ensaio inicial da primeira parte (“A verdade histórica das
filosofias políticas”). A própria frase final do estudo sobre
118
as “Constelações diplomáticas” define uma perspectiva me­
lancólica: “a lógica não fala de modo inequívoco, e a histó­
ria não esgotou suas reservas de invenção e de catástrofe”.
Centrando sua visão dos problemas e dos valores sobre
a referência ao tema do poder e ao da liberdade (além do
tema das bases mesmas do pensamento político), Aron pro­
cura situar-se constantemente próximo dos acontecimentos
reais. Uma espécie de mistura entre filosofia “posta à pro­
va” e jornalismo em alto nível. O ensaio “Liberdade: libe­
ral ou libertária”, por exemplo, redigido em 1969, foi elabo­
rado em face dos célebres túmultos de 1968 e da aparição da
“nova esquerda”. Esta tendência de Aron o aproxima de cer­
to modo (falei nisto linhas acima) de Sartre, sempre ligado
aos fatos, sobretudo nos últimos decênios de vida; afasta-o
de outro estilo de pensadores (como talvez um Isaiah Ber­
lin, ou a já citada Hannah Arendt, ou um Bertrand de Jou-
venel, entré outros tantos), mais distanciados do chamado
“dia-a-dia” e empenhados na reflexão mais genérica. O que
não quer dizer que estes sejam necessariamente “alienados”:
no caso, o problema é mais de pendor pessoaL No citado en­
saio, de resto, encontram-se equacionamentos bastante equi­
librados, postos entre a adesão fácil às contestações daque­
le ano e o repúdio total, também fácil: Aron invoca Freud
a propósito de repressão social e com o propósito de testar
as próprias fontes de Marcuse, que era então o grande mentor
das esquerdas.
Para Aron, a grande prova das teorias políticas é a pró­
pria relação entre elas e a realidade. Chega inclusive a ado­
tar, no ensaio sobre a verdade histórica das teorias políticas
— escrito a partir de um, ao que parece, muito sugestivo
artigo de Eric Weil —, a idéia de que a imperfeição de cada
grande teoria politica revela seus méritos : ou antes, o mèrito
de cada teoria consiste em agir sobre a realidade histórica a
ponto de modificá-la, e ao modificar-se a realidade se afasta
da teoria — no que vai urna boa dose de hegelianismo, em­
bora Aron não o denote senão implicitamente. O tema é re­
tomado, noutro sentido, no ensaio inicial da segunda parte,
no qual aflora o problema da distinção entre teoria política
e filosofia política.
A preocupação de Aron com as realidades concretas e com
as coisas de hoje levou-o por outro lado a se fazer comenta-
119
rista de conílitos internacionais. Toda uma teoria das “rela­
ções internacionais” (e das “constelações” e conjunturas),
ilustrada com observações sobre clássicos da teoria da guer­
ra — de Maquiavel a Clausewitz —, serve de base aos seus
comentários. No fundo, comentários de um ocidentalista,
preocupado com a sobrevivência de certas constantes históri­
cas: não por acaso Aron publicaria em 1977 (cinco anos após
a edição francesa dos presentes Estudos), seu Platàoyer pour
VEurbpe Décadente, Sua recusa aos esquerdismos fáceis tem
sido também recusa dos orientalismos hippies, espécie de
metamorfose das “chinoiseries” do século XVIIL
Ocidentalista e relativista, realista e pessimista: «mas
não radicalizante nem cético, nem gerencialista tecnocrati-
zante (como o maquiavelista Bumham), nem tragicamente
cassandre: Aron se situa com muita franqueza e algumas
fraquezas como defensor dos valores liberais, e se revela,
malgré tout, um humanista a serviço de uma insatisfação, a
generalizada insatisfação de sua geração (creio que tam­
bém da seguinte, ao menos: ele nasceu em 1905) com o rumo
das coisas num século em que se negaram um a um os ideais
pacifistas e evolucionistas do oitocentos. Nem sempre a clartè
française ajuda inteiramente ao seu serviço: frequentemen­
te ele oscila entre o realismo excessivo, que levaria de volta
ao “Príncipe”, e as cautelas liberais, academicamente buri­
ladas. Vale a pena, porém, deter-se sobre suas páginas.

120
O Neoliberalismo e o Neomarxismo*
ARTHUR UTZ, Entre o neolìberalismo e o neo­
marxismo. Urna filosofia de caminhos alternativos.
tradução de Edwino Aluysius Royer, edição EPU-
EDUSP, São Paulo 1981, pp. 155.

Mais um livro sobre teoria política e sobre filosofia da


economia. Pode-se dizer isto, que não é algo muito elogioso,
mas também se pode dizer: um bom livro sobre assuntos ba­
tidos, embora a expressão (um bom livro) possa represen­
tar um juízo vago e evasivo. É um livro honesto, e quase diria
que isto hoje não é algo demasiado freqüente: probo nos pro­
pósitos, nítido nas citações, linear nos esquemas..
Quanto aos assuntos, que afirmei batidos (diria até re­
batidos, senão saturados ou então pisoteados, atropelados
pela avalanche de estudos que há decênios rola sobre eles)
estão arrumados em forma muito clara: para cada tema al­
guns subtemas, e para cada subtema um item gráfico. Tal­
vez até organizado demais: sem explanações extensas, sem
textos prolongados, sem ensaísmos nem digressões. Diria mes­
mo que o livro tem uma espécie de assepsia conspíscua, mui­
to suíça ao que suponho: pouca retórica e bastante didática.
O autor (professor na Suíça) se propõe traçar um “ter­
ceiro caminho”, que corre entre extremos, examinando des­
de logo o perfil desses extremos, que identifica a partir de
dados metodicamente selecionados. Os caminhos de que se
trata são os da ordem sòcio-politica e sócio-econômica, com
* Publicado no Estado de São Paulo, em 28 de março de 1982.

121
suas implicações doutrinárias e suas correlações antropológi­
cas. Utz relaciona os prós e os contra da "economia de mer­
cado individualizada”, e também os da economia planificada,
que parece identificar com o socialismo; repassa problemas
históricos, sopesa argumentos, analisa supostos filosóficos
(muito interessante neste plano o capítulo IX), e finalmen­
te aponta o terceiro caminho. Conseguindo-se evitar os ma­
les do individualismo, inerentes ao esquema liberal, e afas­
tar os pontos negativos do coletivismo, próprios do socialis­
mo, teremos segundo ele uma posição social-personalista (ca­
pítulo X, n..° 4), a partir da qual os valores viáveis de cada
um dos sistemas será devidamente absorvido e aproveitado.
Não discutirei aqui se o esquema é eclético. Nada tenho
contra os ecletismos, e aliás vejo muito de radical e de in­
conseqüente nas condenações por ai feitas ao ecletismo:
qual o “sistema” filosófico ou político ou econômico que não
apresenta algum tipo ou alguma dose de ecletismo?
Seria mais válido apontar uma certa “facilidade” no es­
quema: se o liberalismo tem males e tem méritos, se o socia­
lismo também, então escolhamos de cada um o que parece
melhor, e salvemos este século. Além desta quase utópica sim­
plificação (que inclusive parece supor um trânsito excessi­
vamente fácil da teoria à prática), há que registrar, como
algo realmente discutível a identificação entre marxismo
e planificação econômica, que aparece por exemplo na In­
trodução (p. X I), apesar de o autor, mais adiante (p. 17) en­
tender o socialismo como uma versão da economia planifi­
cada.
De qualquer sorte o tom de certas afirmativas, por de­
mais simplificadas, soa dogmático. No caso (ainda na In­
trodução) o assertiva sobre o que “deve ser”, como “tercei­
ro caminho”, uma economia de mercado social. Sem entrar
no problema, que para aqui seria talvez uma digressão mui­
to teórica, de saber o que será realmente o social: fala-se de­
masiado no social, nos últimos decênios, e não se esclarece
bem o que ele é; assim para o Estado social, como para a jus­
tiça social, etc. Ainda na Introdução, deparamo-nos com ou­
tras coisas discutíveis. Uma delas a idéia de que ao neolibe­
ralismo faltam bases teóricas, quando o próprio autor trata,
no capítulo n , das bases filosóficas da economia de merca­
do — embora com demasiada brevidade,.
122
Expondo os fundamentos do credo liberal (capítulo II),
Utz se mostra de fato surpreendentemente sucinto: pouco
mais de três páginas. Nelas, algumas observações muito úteis,
dentro de uma exposição coerente e clara. Já a explanação
sobre a “economia planificada" e suas bases filosóficas (cap.
n i) é bem mais ampla e mais completa: aqui, inclusive, o
autor retoma implicitamente sua identificação entre socialis­
mo e economia planificada ao dizer que o caso do marxismo é
o de uma planificação centralizadora (o que também não pa­
rece muito convincente, pois em países fascistas a centrali­
zação econômica tem sido a regra, e tem ocorrido em con­
jugação com o planejamento administrativo mais rígido).
Apesar, porém, do terreno largamente minado dos pontos
discutíveis, resulta interessante o conteúdo do capítulo III,
onde entram considerações de ordem histórico-social e psico­
lógica.
Tal tipo de considerações prossegue dentro dos capítulos
IV e V, com uma inversão das proporções entre tema e ex­
tensão: o IV é longo, versando sobre as objeções ao indivi­
dualismo (“economia de mercado individualizada”), en­
quanto o V é breve e trata precisamente das objeções à eco­
nomia planificada. Por sinal, nos deparamos à entrada do
capítulo V com a afirmação de que o marxismo (a “filosofia
marxista”) é a base da economia centralizada. Insisto em
considerar esta idéia como inexata, porquanto o mercanti­
lismo e o cameralismo (Kammeralwissenschcift) do século
XVII foram formas políticas de centralismo econômico, e o
próprio Fichte, ao pensar num “Estado comercial fechado”
(que muitos consideram um dos germes do nacionalsocialis­
mo) , não estava — ao que me consta — nas fileiras do mar­
xismo.
Sempre preso à idéia de um dualismo, do qual se sairia
segundo sua “Terceira Via”, Utz esboça (pág. 4.a") um düema.
Para ele, aliás, o dilema pende psicologicamente para um
dos lados, pois o atrativo filosófico do individualismo lhe pa­
rece bem menor que o do socialismo: este tem, a seu ver,
mais “sentido de vida”. Sem embargo, anote-se, de ter afir­
mado (na Introdução) ser favorável a uma “sociedade de
produção” e a uma “economia de mercado” correlata a ela.
A solução do autor, isto é, a apresentação formal do
“terceiro caminho”, se encontra no capítulo X. Ele distin-

123
gue, com relativa clareza aliás, entre aquilo que se conside­
ra como “terceiro caminho” na ótica neoliberal (algo como
um meio termo entre o liberalismo manchesteriano e o co­
munismo total) e o “terceiro caminho” tal como visto pela
ótica socialista (algo como uma planificação da economia
de mercado). A ambas as fórmulas ele opõe o “terceiro ca­
minho no pensamento social-personalista”. O pressuposto
fundamental, no caso, seria uma nova epistemologia — que
infelizmente é apresentada apenas como esboço. Para Utz, a
idéia de totalidade, que para o 1 beralismo seria inaplicável
à sociedade, é fundamental (também resisto a aceitar tal
observação, porquanto na sociologia da “Escola Francesa”,
fundada por Durkheim, o essencial era o conceito objetivo
do social como totalidade, e entretanto, apesar de seu soli­
darismo, Durkheim não foi um coletivista).
A linha das soluções de Utz, que lembra a filosofia de
Mounier e talvez também a “C’vitas Humana” de Wilhelm
Roepifee, insiste por outro lado sobre a categoria do bem eo~
mum, procurando assumir com isto um certo universalismo
ético, que é defensável, mas que é difícil de fazer transitar
da teoria à prática. Sua solução aceita explícitamente a con­
corrência (p. 125), embora cercando-a de cuidados e reco­
mendações.
A discussão dita epistemológica, que o autor considera
decisiva, acha-se por sua vez difusa no capítulo IX, onde se
analisa a “concepção do homem” com as correlatas implica­
ções filosóficas existentes em cada sistema econômico. Pare­
ce evidente que cada sistema — em economia como em políti­
ca, ou em pedagogia — supõe uma noção do que seja o ente
humano, mas de certo modo falece ao autor, no caso, um
pouco de atenção para a perspectiva cultural: o que há de
comum, nas concepções antropológicas do liberalismo e do
socialismo, provém do fundo geral em que assentam, e este
é a própria cultura ocidental. Os ismos contemporâneos são
na verdade desdobramentos de questões tipicamente ociden­
tais.
* * *

O título do livro (que é realmente este no original ale­


mão: entre neoliberalismo e neomarxismo) pediria um poú-
124
co mais de demora no exame do neomarxismo; O neomar­
xismo não é apenas uma continuação ou uma repetição do
marxismo: ele é uma sucessão de questões, que se situam
nas diversas gerações aesae o último quarto üo século pas­
sado, e que repensam as coisas — embora quase sempre re­
tomando textos de Marx, freqüentemente usados como ver­
dades sagradas. Mas o confronto entre o neomarxismo e o
neoliberalismo, colocado de modo a fazer aparecer uma tri­
lha intermédia (ou “superadora”) em relação às linhas já
percorridas, deveria ser feito com mais ênfase sobre os con­
textos contemporâneos. É destes contextos que provém o
“neo” que se antepõe às doutrinas.
Eu diria que o próprio liberalismo, desde seu inicial e di­
fícil romper de caminhos (mais ou menos a partir da gera­
ção anterior a Locke), o próprio liberalismo condicionou, na
vida intelectual contemporânea, a tendência à multiplicida­
de dos ismos. A sociedade burguesa, dominada pelos valo­
res laicos e pela economia capitalista, propiciou em sua ins­
tabilidade os relativismos e os criticismos, e ensejou o adven­
to das posições que ao próprio liberalismo se opuseram, Ain­
da assim, cabe de vez em quando um pouco de perplexida­
de diante do incessante debate e da reiterada celeuma, le­
vantados em torno do marxismo ou do confronto entre ele e o
regime, ou antes, os regimes que se lhe opõem. Sempre cabe,
embora muitos a tenham por impertinente, a idéia de que se
certos fatos reais e decisivos não tivessem ocorrido na histó­
ria do século vinte, a doutrina marxista como doutrina não
estaria hoje sendo tão extensa e tão intensamente divulgada
e examinada.
De qualquer sorte, a alusão a um “terceiro caminho”
é, ao mesmo tempo, bastante tradicional, dado o uso do ter­
ceiro termo desde a escolástica, e bastante moderna, dada a
constância das contendas entre extremos, desencadeadas so­
bretudo a partir do ideário liber al, e dada a necessidade quan­
do nada metodológica de pensar num equilíbrio. O que não
impede, de resto, que a alusão conserve algo de artificial.
Parece mais ou menos assente que o credo liberal cor­
respondeu (e corresponde) à concepção bur guesa da vida so­
cial Não confundir esta correlação com uma dependência
“estrutural” em relação ao capitalismo. Aliás Ortega, em
passagem de um ensaio sobre Kant, distinguiu as duas coi-

125
sas: a visão economicista das formas sociais, que se obriga
a encarar o capitalismo como um dado básico e determina-
dor de tudo, e a referência ao burgués como tipo humano,
em tomo do qual se condicionam estruturas e valores, nos
vários setores da vida histórica, A concepção burguesa, liga­
da à secularização da cultura, tomava a sociedade em sen­
tido diverso da ordo aristocrática e das hierarquias daí de­
correntes: tomava-a como ocasião e fruto das vontades in­
dividuais racionais e livres, O mesmo trecho histórico que
fez triunfar o liberalismo fez também consolidar-se a demo­
cracia — em seus passos iniciais, ao menos —, e daí que a de­
mocracia em versão liberal tenha sido o modelo político do­
minante no século XIX e em parte no XX. A democracia
burguesa (entenda-se: algo que teria sido impassível duran­
te o domínio da nobreza e que seria inviável sob o império
dos partidos operários) consistiu em grande medida num
modo de evitar a intervenção do Estado, que tinha sido oni­
presente no absolutismo. Ós socialismos do século XIX tam­
bém não apreciavam a presença do Estado, mas no século
corrente a pugna contea o capitalismo e contra os resíduos
liberais criou a tendência a ligar estas duas coisas: socializa­
ção e estatizaeão. Mesmo porque nas sociedades contempo­
râneas o aumento de volume dos serviços públicos (mesmo
nos países capitalistas e nos Estados liberais) condicionou
como tendência praticamente universal o intervencionismo.
A persistência dos valores liberais (já que o liberalismo
como regime ou como ismo se encontra em extinção) e a ne­
cessidade de se manterem os serviços que acarretam a estati-
zação, e mais, por outro lado, o crescimento dos movimen­
tos socialistas — e dos valores que o socialismo implica —,
levam vários pensadores de nosso tempo a pedirem uma con­
ciliação. É óbvio que os valores liberais não são mais, em
nosso tempo, o que foram no século XVm ou no XIX, como
representação ou como realidade, e o mesmo se diga dos va­
lores “sociais”; mas também ê certo que há neles, enquanto
valores, um núcleo permanente, que corresponde ao seu signi­
ficado para problemas permanentes.
O liberalismo pensou o Estado (ou antes, o governo)
como um meio para garantir a realização do Direito (e por­
tanto, dos direitos) ; ou antes, e indiretamente, dos fins que
o Direito estabelece. O econômico, para o esquema mental
126
liberal, seria um suposto, mas não uma determinação. Ado­
tar metodologicamente o econômico a título de determina­
ção foi precisamente a estratégia antiliberal do marxismo
(o que não impediu que Marx encarasse o Estado como um
mal, tanto quanto os liberais, embora noutro sentido). Com­
batido por duas frentes, o socialismo e o conservadorismo —
dentro do qual cabe situar o positivismo de Comte —, o libe­
ralismo continuou válido como atitude axiológica, mesmo
quando não mais viável como programa político.
Tudo isso, porém, tem ensejado mal-entendidos, confun­
dindo-se freqüentemente estas duas coisas, que cabe manter
distintas: a desestima ao liberalismo em nome de um con­
servadorismo tradicionalista (ou de um desigualitarismo aris­
tocrático ligado a alguma concepção hierárquica da vida),
e o combate ao liberalismo em função de posições fascisti-
zantes, autocráticas, “modemizadoras” ou totalitaristas. Em
sua travessia para o século vinte, o liberalismo tem enfren­
tado ambos os tipos de contestação, a aristocrática e a mas-
sificadora, uma preocupada com a dissolvência de seu “in­
dividualismo”, outra inquieta com o “perigo” das liberdades.
No Brasil, diga-se de passagem, os ataques ao liberalismo
têm provindo mais das posições ditas autoritaristas e “mo-
dernizadoras” (veja-se 1937, veja-se 1964), do que do con­
servadorismo regionalizante e/ou tradicionalista; o proble­
ma tem, inclusive, correspondido à querela sobre centraliza­
ção e descentralização, que aqui não dá para expor nem pa­
ra examinar.
A sobrevivência do liberalismo — ou antes, dos valores
liberais, bem como de “concepções” liberais — no século vin­
te tem corrido por conta de algumas figuras ilustres: umas
exemplares e coerentes, como Hayek, Arendt ou Strauss, ou­
tras equivocadas e pretensiosas como Popper.
Aliás, o autor do livro ora em exame observa (cf. página
95) que a plenitude do ideal social liberal somente se cum­
priria em face de uma total consciência, por parte dos indi­
víduos, de seus deveres sociais, 23 verdade. E é por isso que
o ideário liberal incluiu um “pedagogismo” um tanto utópi­
co, segundo o qual os homens deveriam progredir indefini­
da e inelutavelmente no plano técnico e no plano moral;
por isso que Kant se preocupou tanto com a lei moral, e a
sociologia de Durkheim — na virada para o século vinte —
127
se converteu em um moralismo com fortes implicações pe­
dagógicas e com irma dimensão “solidarista”.
As referências do professor Utz aos conceitos básicos res­
valam freqüentemente para o discutível: assim quando afir­
ma que no “individualismo” liberal a sociedade e o Estado
apareciam ou aparecem como meros processos tecnológicos
(pp. 33 e seguintes, no capitulo IV)Não. O “egoísmo”, a que o
texto em tela se refere, foi no utilitarismo um componente
entre outros: a moral social dos utilitaristas — que ninguém
vai pretender viabilizar para agora sem mais aquela — in­
cluiu um sistema de valores que indicavam a convivência
como dado fundamental. O jEstado, sim, poderia ser tomado
como instrumento (não como “processo tecnológico”), ou
como meio: instrumento com o qual o esquema liberal visa­
va a concreta aplicação das normas jurídicas, necessárias —
elas e sua aplicação"— enquanto não progredissem os com­
portamentos a ponto de as dispensar, ou de as tomar ar­
caicas.
* 4* *

Como o autor se refere ao neoliberalismo e ao neomar­


xismo, vale a pena deter um pouco a atenção sobre o signi­
ficado dos termos. O “neo”, anteposto ao ismo, pode ser o
mesmo ismo ou um ismo a mais; certos críticos (inclusive
Croce, se não me engano) têm-se mostrado avessos ao “neo”
por conta de suas ambigüidades históricas: uma doutrina,
como o tomismo ou o kantismo, não se “reedita” propria­
mente por meio de um prefixo, que pretende conservá-la ou
retomá-la em contextos ou ocasiões (e este é o problema)
geralmente diferentes. Caberia destarte perguntar o que é
que há de marxismo no neomarxismo, e o que é que há de
liberalismo no neoliberalismo. Que uso terá entre os pró­
prios marxistas a expressão “neomarxismo”? Que curso te­
rá, entre os autores liberais ou liberalistas, a expressão “neo­
liberalismo”?
Note-se que o termo "neoliberalismo” tem sido veicula­
do -por liberais ou paraliberais, mas o termo “neomarxis-
mo” não é de uso entre marxistas. O neoliberalismo apa­
receu quando, diante de problemas que exigiam reformula­
ção das relações entre o Estado e a economia, Keynes pre-
128
conizou um capitalismo onde o Estado entrava como com­
ponente propulsor (e “euforizador”) das atividades. Cance-
lava-se, da imagem clássica do liberalismo, a idéia da incon­
veniência da presença do Estado. Isto valeu para o libera­
lismo econômico; para o político, permaneceram as preten­
sões clássicas, embora tendo de conviver com um crescente
intervencionismo, sobretudo na órbita dos serviços públicos.
Quanto ao neomarxismo, -parece que o neo anteposto
corresponde mais à sobrevivência da doutrina, e da contínua
aparição de livros a respeito, do que a um específico esque­
ma doutrinário que a “renove” peculiarmente. Agora mesmo
começou a publicar-se no Brasil a História do Marxismo di­
rigida por Hobsbawm (edição Paz e Terra, volume I, 1979).
A bibliografia cresce vastamente por toda a parte: sobre mar­
xismo propriamente, e também sobre questões laterais, sobre
socialismo, sobre confrontos doutrinários (em 1974, uma im­
portante análise confrontando Marx e Kelsen foi publicada
em Freiburg: o livro de Norbert Leser, Sozialismus zwischen
Relativismus und Dogmatismus).

* * ❖

Cabe fazer, ainda, uma alusão aos problemas relativos


à conexão entre filosofia e teoria econômica, que perpassam
todo o livro de Utz. Para este, o conceito “absoluto” no to­
cante à atividade econômica, vista sob prisma filosófico, é o
de bem comum. Porém, a pervivência deste conceito o trans­
figura, e então aparecem expressões como “interesses co­
muns”, “bem-estar social”, etc.
A chamada doutrina social da Igreja tem, como se sabe,
tentado fixar algo em torno disto, em termos de orientação
ético-social. Por sua vez, os escritórios intelectuais do alto
capitalismo têm produzido uma espécie de ética miúda e
prèt-à-porter ligada à filosofia do êxito e às estratégias das
“relações-públicas” (vez por outra aparece algo mais consis-
sistente neste gênero, como é o caso do livro de Milton e
Rose Friedman, Liberdade de Escolher. O Novo Liberalismo
Econômico, lançado há pouco pela Record). E do outro la­
do, a vulgarização da terminologia marxista, qüe se trans­
formou em chavões à medida em que a “atitude” marxista
129
se tornou um novo maniqueísmo, enche as livrarias com bro­
churas e mais brochuras sobre o conceito de classes, o signi­
ficado da dialética, a teoria das ideologias.
Penso às vezes na surpresa que teria Hegel se visse o
seu conceito de dialética transformado por Marx num axioma
materialista, que se divulgaria por sua vez até hoje como
interpretação simploriamente econômica do homem e da his­
tória.
$ * $

Quando o professor Utz afirma — frase que citamos


acima — que no individualismo liberal a sociedade e o Es­
tado serviam apenas como “processos tecnológicos”, o leitor
pode pensar que ele vai partir para um exame do problema
da incidência da tecnologia em geral sobre os moldes cultu­
rais da sociedade. Mas não. Suas alusões a componentes do
“sistema” liberal, como também ao “sistema” socializado,
são feitas em nível demasiado genérico, diria mesmo (num
certo sentido) demasiado abstrato: como se o autor não qui­
sesse levar em conta os processos históricos que, no Ociden­
te moderno e contemporâneo, fizeram da vida social um sis­
tema gradativamente secularizado e “racionalizado”, ter­
minando por transformá-la num emaranhado de organiza­
ções onde a figura do humano tende a fragmentar-se, a re-
fratar-se,
A figura do humano: e aqui uma outra anotação. Con­
sidero ocioso discutir-se, sobretudo hoje, a estas alturas do
século vinte, se tal ou qual filosofia foi, ou se é, um huma­
nismo: se há um humanismo marxista, se há um humanis­
mo cristão e assim por diante. O importante será ver, em
cada um destes credos, uma versão ou um tipo de humanis­
mo: um modo de projetar-se a imagem que o homem possui
de si e de seus problemas.
Diria, pois, que o livro de ütz —diante do qual cabem
muitas outras reflexões — vale mais pelos problemas que
levanta, e pelas informações bibliográficas que apresenta, do
que pelas idéias que traz ou pelas conclusões que aventa. Os
problemas, de certo modo, se reduzem em essência (embo
ra não de todo) aos que Platão enfrentou. E o debate sobre
130
eles parece ter semelhança com aquele fascinante mar do
poema de Valéry: sempre recomeçado. De um lado, para o
homem de hoje, a entrega das estruturas vitais à sanha do
capitalismo e à deformação dos comportamentos — em nome
do progresso e da liberdade; de outro, a absolutização do
método econômico, transmudado em dogma, e aliado" a um
ideal padronizador — em nome da igualdade e da justiça.

131
Glosa a Julián Marias*
Seria quase dispensável, por evidente, dizer da grande,
da surpreendente honra que para mim representa, nesta
tarde, atuar como comentador da conferência de um pensa­
dor do porte de Julián Marías, cuja obra me habituei de há
muito a admirar e a acompanhar. Agradeço, pois, vivamen­
te sensibilizado, o convite que me foi feito neste sentido pe­
los que organizam o Seminário — tão fecundo como mé­
todo de trabalho, tão relevante como instituição cultural.
Mas esta é precisamente a circunstância (e a palavra não
vai aqui isenta de intenções) em que me encontro: tenho
de dar conta de uma tarefa tentadora e séria, mas o tempo
que tive para pensar no assunto foi demasiado curto, para
não falar do fato de não ter podido dispor, propriamente, do
texto do conferencista.
Aproveito então para aludir ao conferencista. E creio
que ao comentador isto não será impertinente, apesar da
apresentação há pouco feita quando da abertura dos traba­
lhos.
Julián Marías: creio que ainda na década de 50, por
conta de meu constante interesse pela obra de Ortega (inte­
resse que comparti desde então com o professor Gláucio Vei­
ga, e com o Professor Machado Neto, infelizmente falecido
antes de chegar aos cinqüenta), vim a conhecer escritos de
Julián Marías. Sua figura, situada na geração seguinte à de
Ortega — e aqui me valho do famoso e sempre frutífero “mé­
todo das gerações”, embora apenas para uma indicação de
* Comentário à Conferência de Julián Marías no Seminário de Trapicolo-
logia, na Fundação Joaquim Nabuco, Recife, em 12 de agosto de 1981,

132
passagem —, sua figura pressupõe, como ambiência cultural,
a intelectualidade espanhola das diversas décadas do século
vinte: o legado de Unamuno e o de Ortega (ambos, aliás,
temas de Marías em alguns notáveis estudos), mais o “cír­
culo” de contemporâneos e coetáneos de Ortega, desde os
mais ligados a ele e à “Revista de Occidente”, como Fernan­
do Vela, Garcia Morente, José Gaos, aos de linha mais di­
ferenciada, como Ferrater Mora, Xavier Zubiri, Garcia Bac­
ca, Recaséns Siches. Um admirável grupo ligado à vivên­
cia ibérica do historicismo e da fenomenologia, às in­
fluências de Dilthey e de Husserl, de Spengler e de
Scheller — um tipo de ambiência de que frequentemen­
te sentimos falta os que, em países ditos periféricos e em re­
giões ditas subdesenvolvidas, fazemos o cultivo do exercício
filosófico e do saber respectivo. Encaixa-se assim,' a obra de
Julián Marías, na continuidade de um tratamento muito
espanhol das coisas, que não deixa, ni con mucho, de ser uni­
versal: um tratamento espanhol que é bastante racional pa­
ra ser universal e para ter o que ver com a lucidez de um
Vives ou de um Gracián, e que é bastante cervantino para
ser intrìnsecamente vitalista', raciovitalista, para adotar o vo­
cábulo cunhado pelo mestre de Marías, Ortega. Universalis­
mo e hispanismo, vitalismo e existencialismo, tudo isso está
nas obras de Julián Marías, servido por uma sempre disponí­
vel capacidade de análise, que é o outro lado, freqüentemen­
te menos visto, de sua (ia a dizer orteguiana) mestria da fra­
se, e das frases. Tudo isto se acha, alimentado por uma impres­
sionante porém não ostensiva erudição, nos meditados en­
saios que perfazem El Método Histórico de las generaciones,
ou nos largos e espessos tópicos sociológicos de La estructura
social, bem como nas exemplares cogitações histórico-fílosó-
ficas de San Anselmo y el Insensato e no livro sobre La Filo­
sofia dal Padre Gratry, sem falar na densidade e na suges-
tividade da Introducción a la Filosofia e da História de la
Filosofia. Gostaria de realçar, ainda que também de passa­
gem, o assíduo interesse temático de Marías pelo problema
do intelectual, quer como item de uma sociologia do conhe­
cimento, quer como indagação sobre um tipo de quéhaeer
humano. Desse interesse resultaram, entre outros textos, os
Ensayos de Teoría e o breve e provocativo livro El intelectual
y su mundo.
133
Não pretendi — já se vê — com essas linhas dar conta
do vasto elenco de escritos do conferencista de hoje, nem
dos diversos aspectos do seu pensamento — tenta-me com­
parar esta diversidade, que tem uma unidade, com a célebre
pluralidade de ângulos visuais existente no quadro de Ve-
lásquez que retrata Los Ninas —, mas só aludir ao tipo de
abrangência que sua vigorosa curiosidade pensante vem co­
brindo, e nesta abrangência situar seu tema de hoje.
Aludo então ao tema. Gostaria, como comentador, de me
ater a ele, já que não me seria possível ater-me estritamente
à conferência como colocação dele. Fascinante tema, cheio
de ressonâncias e implicações. O acesso a semelhante tema
consiste precisamente em divisar por trás de problemas mais
próximos como o da miscigenação e o do povoamento, ocor­
ridos nas Américas durante o" estágio colonial, a conexão
das origens do ser iberoamericano com a grande pulsação
que foi o Renascimento. Não passe sem registro a sutil «no­
ção que sempre nos provoca a noção de origens, bem como o
uso — na frase acima — da expressão “ser iberoamericano”,
que coloquei como consciente débito às meditações de Antô­
nio Caso e Zum Felde. Trata-se de reexaminar um vasto e
profundo segmento da história cultural do Ocidente, e aqui
cabe acentuar a fertilidade do campo da história cultural
(inclusive entendida à alemã como Kulturgeschichte e co­
mo Geistesgeschichte) para as incidências da noção de “ra­
zón vital”, tão ,do uso dos orteguianos, tão do gosto de Ju­
lián Marías.
O Renascimento foi precisamente um momento da his­
tória onde se intensificou enormemente a carga da razão vi­
tal: um momento que se tornaria exemplar pela criatividade
e pela vigorosa expansão de formas engendradas. Expansão
da cultura ocidental em busca de outras circunstâncias, num
processo que implicou num verdadeiro transbordar de sím­
bolos: todos conhecem o sugestivo estudo de Sérgio Buarque
de Holanda na obra Visão ão Paraíso, sobre os “motivoss edê­
nicos no descobrimento e colonização do Brasil”, onde apa­
recem os mitos trazidos pelos viajantes dos séculos XV e XVI
para o mundo tropical. Daquele turbulento penetrar de sím­
bolos em novas circunstâncias viria inclusive o barroquismo
iberoamericano. O processo é correlato, enquanto quadro
histórico e antropológico, ao da irrupção física do europeu
134
nos trópicos, tema que foi assumido em hora oportuna e em
dimensão correta por Gilberto Freyre, que aliás, na Introdu
ção a O Luso e o Trópico, relacionou a um pensar existencia-
lista o cunho específico das mentes hispánicas, inclusive
quando postas em ação dentro das refrações tropicais.
Do ameríndio — que nuns lugares estava no neolítico,
noutros geria calendários e impérios — às tomadas de cons­
ciência mais recentes, a trajetória cultural das América Ibé­
ricas ficou presa à relação com aquele contato “inaugural”
do europeu com a terra: vejam-se as análises de Octávio Paz
em El Labirinto de la Soledad, algo discutíveis mas muito pro­
vocadoras; vejam-se as reflexões de Zum Felde em El proble-
ma de la cultura americana; veja-se o ensaio de J. M. Bri-
ceño Guerrero sobre La identificación Americana, con la Eu­
ropa Segunda. Todas essas tematizações expressam o vínculo
do ser histórico iberoamericano com aquele contato origi­
nal e reiteram um problema sempre reposto, o de pertencer
ou não a experiência existencial desse ser ao âmbito cultu­
ral do chamado “Ocidente”.
Aquele contato do europeu com a terra americana apre­
sentou realmente dois lados. Por uma parte foi trauma, e
deixou como seqüela uma ambivalência incurável; por outra
parte foi fecundação, e deixou um lastro de morfoses histó­
ricas sempre úteis para a própria auto-imagem iberoameri­
cana. A cada passo as elites intelectuais, nas Américas, se
perguntam se são ou não parte do Ocidente; e a cada passo
a formulação da pergunta retrocede ao tema das origens, a
ver até que ponto a imposição de matrizes culturais euro­
péias significou vinculação definitiva ao âmbito cultural oci­
dental.
* * *

Agora faço uma referência ao conteúdo da palestra. As


reflexões de Marías sobre as estruturas hispano-americanas
como resultado histórico são sem dúvida análogas à famosa
Meditación del pueblo joven, de Ortega, em que se analisa
o afã vital iberoamericano (em especial o argentino) com
largos gastos de sutileza, penetração e coisas discutíveis (dis­
cutíveis mas, como no caso das de hoje, profundamente pro­
vocativas) . De modo geral acho certeiras e válidas as colo-
135
cações do conferencista: a alusão ao entendimento renas­
centista de empresa, a referência ao cenário tropical como
preferencial décor para a ação convivencial ibérica, o apro­
veitamento das virtualidades do verbo “estar”. A propósito
da idéia de empresa como denotadora de um traço renascen­
tista, ocorre-me citar o livro Espíritu y Estado en el Siglo
XVI, de Juan Beneyto, no qual se estudam os componentes
do pathos renascentista dentro dos prismas político, jurídico,
cultural e pedagógico.
Contudo, devo fazer também algumas referências críti­
cas. Parece ter faltado, por exemplo, na aliciadora exposição
do autor, algo sobre as diferenças entre o estilo — ou o ca­
ráter — da colonização espanhola e o da portuguesa, inde­
pendente de ter cada uma delas encontrado povos autócto­
nes bastante distintos. Além disso há, diante do acento dado
à diferença ou mesmo ao contraste entre Idade Média e Re­
nascimento, o problema da contimrdade cultural do Oci­
dente: a continuidade do homem fáustico, para adotar a
terminologia de Spengler.

136
Obra publicada em convênio com a Secretarla de Turis­
mo, Cultura e Esportes do Governo de Pernambuco através
da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Per-
nambuco/FUNDARPE, iniciando-se a editoração ha gestão
do governador Roberto Magalhães Melo e concluída na ges­
tão do governador Gustavo Krause Gonçalves Sobrinho.

Secretário de Turismo, Cultura e Esportes


Francisco Austerliano Bandeira de Melo
Presidente da FUNDARPE
Roberto José Marques Pereira
Diretor do Patrimônio Histórico
Roberto Jorge Dantas da Fonte
Diretor de Assuntos Culturais
Leonardo Dantas Silva

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