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Prefacio, Evaristo de Moraes P ilh o .......................: ___ 11
Historicismo e Culturalismo
1. Alusão a Ortega como tematização inicial .. 15
2. Referência ao historicismo e ao culturalismo .. 16
3. História, cultura e relativismo . ................. 18
4. Alusão ao processo de secularização do saber .. 21
5. Observaçõescomplementares .......................... 23
Anotação sobre o valor do conhecimento histórico 25
Outra anotação (sobre os itinerários do tema no
pensamentocontemporâneo) . . ...................... 26
Notas ..................................... . ...... ’..................... 28
Filosofìa e Ciências na Universidade: fundamentalida-
de, integração, interdisciplinaridade .............. ,, 32
Notas ..................................................................... 37
Tempos brasileiros: a Filosofia ...... 38
Kant e o criticismo (no bicentenário da “Crítica da Ra
zão Pura”)
1. Introdução: situação e circunstância ............. 48
2. O ponto de vista epistemológico.................. 51
3. A estrutura da Crítica da Razão P u r a ......... 55
4. Influências e permanências: o legado de Kant
e o criticismo ................................................. 60
Notas ....................................................................... 67
A obra de Dilthey e o “Mundo Histórico”
1. Olhada inicial: Dilthey e os temas da história 71
2. Visões da história no Ocidente contemporâ
neo: de Vico e H e g el...................................... 73
3. Do espirito objetivo ao mundo histórico . . . . 75
4. Temas e traços fundamentais da obra de Dil
they ....... *........................................................ 77
5 . Dilthey e o historicismo ................................. 79
6. A influência de Dilthey ......................... 83
7. O legado: problemas ..................... 84
8. O “Mundo Histórico” .................................... 86
Notas ........................... 90
Max Weber: tentativa de apresentação sintética . . . . . 95*
Filosofia e critica política em Ramalho O rtigão__ 104
Os Estudos Políticos” de Aron ...................................... 114
O neoliberalismo e o neomarxismo................ 121
Glosa a Julián Marías ..................................................... 132
BIOBIBUOGRAFIÁ
Nascido no Recife (1933) e bacharel pela histórica Fa
culdade de Direito, hoje integrada à UFPE, Nelson Saldanha
começou a publicar poemas e artigos, na década de 50, no
Suplemento Literário do Diário de Pernambuco, então diri
gido por Mauro Mota. Deste modo participa de uma geração
que começou a destacar-se na década 50, e que inclui nomes
como Audálio Alves, Fernando Coelho, Leónidas Câmara e
Vandyck Araújo. Licenciou-se em Filosofia pela Universida
de Católica de Pernambuco e fez o doutoramento em Direito,
em 1958, com uma tese sobre Formas de Governo na mesma
Faculdade em que fizera o bacharelado. Posteriormente tor
nou-se docente-livre da mesma Faculdade de Direito, com
tese sobre o Poder Constituinte (1960). Lecionou em alguns
colégios do Recife passando depois ao ensino superior,
ocupando na Universidade Católica a cadeira de Sociologia
Geral. Na mesma Universidade lecionou Teoria do Estado,
matéria que passaria depois a ensinar na Universidade Fe
deral (onde leciona igualmente Ética e Filosofia Política).
Considerado como figura tipicamente interdisciplinar,
Nelson Saldanha explica sua aparente dispersividade com
o argumento de que a alguns deve caber o papel de acom
panhar globalmente o panorama dos problemas e das idéias,
fazendo da Filosofia uma base maior para seus estudos, que
abrangem a teoria da política e a do Direito, bem como temas
históricos e críticos fundamentais.
Após uma volumosa História das Idéias Politicos no Bra
sil, editada no Recife, em 1968, pela UFPE (cujos dirigentes
editoriais- deram ao livro tiragem mínima e distribui
ção nula), e um livro intitulado Temas de História e Política
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— também publicado pela UFPE —, Saldanha editou em 1970
sua Sociologia do Direito (São Paulo, Revista dos Tribunais).
Entrementes escreveu diversos artigos para revistas de cultu
ra, íez conferências, proferiu curses em diversos Estados.
Em 1974, ainda pela UFPE, publicou Velha e Nova Ciência
do Direito. Em 1977, em São Paulo, Legalismo e Ciência do
Direito, obra considerada por muitos como sua contribuição
principal à Teoria jurídica.
A ininterrupta elaboração de artigos e ensaios (paralela
à qual corre aliás a produção poética do autor, não muito
extensa mas constante e característica) tem, com o tempo,
dado ensejo a um crescente amadurecimento de sua reflexão
histórico-filosófica, bem como a um aprofundamento de suas
pesquisas, desenvolvidas através de periódicos contatos com
os chamados “grandes centros”. Por conta disto o autor tem.,
inclusive, publicado estudos em diversas revistas estrangei
ras (por exemplo a “Rivista Intemazionale di Filosofia del
Diritto”, de Roma),
O presente volume enfeixa alguns ensaios de sua fase
mais recente, dominados de vun modo geral pela ligação com
alguns problemas da filosofia da história, enfocada sem os
grilhões dos dogmatismos que andam por aí, e sem os insis
tentes jargões que vêm sendo a tentação de muitos.
Após a reedição de sua Sociologia do Direito (São Paulo
1980), Saldanha publicou em 1983 a Formação da Teoria
Constitucional (Rio, Ed. Forense), resultado de alguns anos
de elaboração crítica. Em 1984, em São Paulo, a Editora Con
vívio reeditou seu livro A Escola do Recife, precariamente im
presso no Recife em 1976 Atualmente leciona na Universi
dade Federal de Pernambuco, além de pertencer à Academia
Pernambucana de Letras, ao Conselho Municipal de Cultura
e ao Conselho Estadual de Educação. Recentemente lançou
pela Editora Fabris (Porto Alegre) o livro O Jardim e a Pra
ça — ensaio sobre o lado público e o privado na vida histórica,
e tem em preparo alguns novos estudos sobre os problemas
históricos do poder e sobre alguns temas fundamentais da
Filosofia do Direito.
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PREFÁCIO
Evaristo de Moraes Filho
Fez bem Nelson Saldanha ao reunir em volume quase
uma dezena de escritos seus que vão de 1980 a 1984. São to
dos recentes, a propósito de circunstâncias várias e sobre
temas que abrangem um largo espectro de Filosofia e de
Ciências Humanas (História, Sociologia, Ciência Política),
surpreendentemente — e, sem dúvida, proposital — com ex
clusão de qualquer ensaio jurídico. Autor de numerosas obras
de Teoria Geral do Direito e de Direito Constitucional, por
certo, não lhe faltariam contribuições para serem incluídas
nesta coletânea que vamos prefaciando, mas romperiam com
a sua unidade temática Basta correr os olhos nos títulos dos
ensaios aqui reunidos, para se concluir facilmente que o Autor
sè manteve fiel a dois temas fundamentais: o conhecimento
humano, individual ou. social, suas possibilidades, seu valor
e, sobretudo, o seu desenvolvimento através da história; e
as relações de poder na sociedade humana, os tipos de do
minação e de acomodação dos homens ao longo da história,
em suas estruturas e formas de organização.
O ensaio mais extenso estuda Kant e o criticismo. Tra-
ta-se de uma conferência proferida em outubro de 1981 a
propósito do bicentenário da publicação da Critica da razão
pura. Sem que lhe falte profundidade, o seu estilo é mais des
critivo, didático, de informação aos assistentes sobre a gran
de obra de Kant, do seu momento histórico, da sua “revo
lução copernicana”, do que permaneceu vivo e do que mor
reu na sua contribuição. O estudo não se limita à gnosiolo
gía propriamente dita, constante dessa obra fundamental,
11
vai além e abrange a Crítica da razão prática e as demais
contribuições kantianas sobre a moral, a estética e o direito.
Também não são esquecidas as manifestações kantianas no
pensamento nacional, quase contemporâneas do grande pen
sador de Königsberg, a começar com Martim Francisco e
Feijó, na primeira metade do século XIX. Na nota 32, a esse
respeito, poderia ser acrescentada à bibliografia do kantis
mo no Brasil a obra pioneira, embora puramente expositiva,
de Januário Lucas Gaffré, de 1909, A teoria do conhecimento
de Kant, publicada no Rio de Janeiro.
Refere-se o Autor, com inteira procedência, ao estilo seco,
rigoroso e por vezes prosaico de Kant. Contudo, acrescenta,
ficaram célebres algumas imagens e frases suas, não referidas
expressamente. Vale repetida a sua metáfora, bem significa
tiva para a sua teoria do conhecimento — a Razão especula
tiva não pode ultrapassar os limites da Experiência, em crí
tica direta ao idealismo espiritualista de Platão: “A pomba
ligeira, ao agitar o ar com o seu livre vôo, sentindo-lhe a re
sistência, poderia imaginar que voaria mais facilmente no
vácuo” Aqui se encontra toda a relação sujeito-objeto no co
nhecimento; de nada valeria o a priori subjetivo sem o dado
experiencial e concreto. Dessa resistência do mundo exterior
é que parte o realismo critico de Dilthey, Frischeisen-Köhler
e, de certa maneira, de Max Scheler.
Em alguns ensaios do livro revela-se uma certa linha te
mática coerente, com tratação dos mesmos assuntos sob di
ferentes ângulos. Queremos nos referir a Historicismo e cultu
ralismo, A Obra de Dilthey e o “Mundo Histórico>>, além das
poucas páginas sobre O valor do conhecimento histórico e
Glosa a Julián Marías. A côté, como dizem os colunistas so
ciais, Ortega y Gasset, discípulo de Dilthey e mestre de Ma
rías e Saldanha. Orteguiano, culturalista, historicista, colo-
ca-se o Autor brasileiro numa posição relativista e perspec-
tivista quase extremada, posição essa que defende con muito
talento e sólida argumentação. De forma alguma chega ao
ceticismo, é claro, mas à maneira da critica da razão histó
rica de Dilthey, está convencido de que o conhecimento hu
mano é um produto histórico, situado, válido a partir do con
junto de fatores que o condicionaram. Daí a fusão numa só
concepção inextricável do historicismo e do culturalismo. A
12
cultura só se compreende e se manifesta na história: “Ao re
conhecer o compromisso do pensar humano (como de outras
coisas) com os contextos culturais, o culturalismo não deixa
de ver que a universalização, sempre vinculada ao fenômeno
da exemplaridade, é também ela um processo histórico, e co
mo tal culturalmente definido, e em certas épocas definido
como tendência fundamental”. Como se vê, ao lado de Dil
they, Simmel e Ortega, também ao Autor não é estranha a
influência de Spengler, referido em mais de uma oportu
nidade.
O ensaio sobre Max Weber, também uma de suas admi
rações, é de cunho expositivo para os não-iniciados, mas mui
to claro e objetivo, Não lhe faltam algumas notas críticas,
como não faltam igualmente no ensaio sobre Aíon, Cheva
lier e Utz. De resto, em nenhum momento perde Saldanha
o seu senso crítico, quase polêmico, de alguém que defende
suas idéias com o ardor das convicções firmes, mas sem agres
sividade.
Estudioso, com o gosto pelos livros, pelas fontes autên
ticas do pensamento universal, já vem de longe a consagra
ção nacional de Nelson Saldanha, tão admirado aqui no sul
do país como em sua terra natal, no seu querido Recife. Nes
tes poucos ensaios, agora reunidos, percebem-se facilmente
as qualidades que o fizeram admirado entre os que tiveram
a ventura de lê-lo em obras anteriores: a sua capacidade abs-
trativa, o seu trato com os problemas fdosóficos, a sua infor
mação bibliográfica e, sobretudo, o seu rigoroso senso crítico,
descompromissado. Há nele a alegria de pensar e de criar,
alegria essa que se transmite ao leitor.
Rio de Janeiro, 15 de março de 1986.
13
Historicismo e Culturalismo *
Sumário : 1 — Alusão a Ortega como tematização ini
cial. 2 — Referência ao historicismo e ao culturalismo.
3 — História, cultura e relativismos 4 — Alusão ao pro
cesso de secularização do saber. 5 — Observações com
plementares.
15
A frase famosa, segundo a qual o homem não tem natu
reza, tem historia, terá sido em Ortega uma daquelas conces
sões ao expressionismo (ele próprio disse uma vez que quem
diz algo sempre exagera). Cabe entendê-la no sentido de que
a história é a via, ou o modo mais idôneo para se conhecer
ou identificar a “natureza” humana. E quanto à circunstân
cia, posta na mais citadk de suas frases, é obviamente histó
rica, sobretudo se se toma como ponto de referência a afir
mação sobre a historicidade do humano.
Em Ortega, pessoalmente oriundo do ambiente neokan
tiano e dos textos de Dilthey (mais os de Simmel), a verten
te historicista aparece como solução espontânea (se bem não
seguida integralmente em alguns de seus ensaios, como por
exemplo o de 1923 sobre os valores). Paralelo ao de Croce,
e comparável a ele, seu historieismo teve muito que ver com
aquele misto de conservadorismo e modernismo, de liberalis
mo e eütismo, de democratismo e classicismo, que certos pen
sadores da primeira metade do século adotaram.
16
nêm poderia consistir, na pretensão de fazer previsões his
tóricas através de leis; e Popper, que com tal noção visava
inclusive o marxismo, não viu que, se o marxismo não é bem
um historicismo, não é tanto pela presunção de “prever” es
truturas, mas pelo fato de fazer a história depender de um
“fator básico” — quando o comportamento dos fatores, se
gundo os historieismos mais conseqüentes, depende justa
mente da história
* * #
17
Enquanto o historicismo tem podido ser implícito, e im
plicitamente prender-se a rastros seculares, por conta da an-
cianidade do termo “história”, o culturalismo tem necessita
do de ser explicito, e o teimo a que se prende — o termo cul
tura — não tem, apesar de ser de origem latina, senão uma
breve história como termo de uso especulativo.
Tal como o historicismo, ou antes, mais do que ele, o
culturalismo tem recebido, da parte de certos adeptos da
chamada “crítica materialista”, a tacha de idealismo, ge
ralmente aplicada sem conhecimento das palavras. Este é
apenas um dos mal-entendidos em que se enreda o conceito.
Outro é o de confundir-se com o culturalismo a atitude —
de cunho nacionalista ou regionalista — consistente no ape
go a valores “culturais” específicos, nos quais se amarra ideo
logicamente todo o pensar, acusando os problemas filosófi
cos fundamentais de serem “abstratos” e “universais”, ou
seja, não-nacionais, não nacionalmente definidos. A isto se
responderia, se necessário, apontando os vínculos de certos
conceitos básicos, oriundos de contextos nacionais, com pro
cessos de exemplarização, que são os que promovem a uni
versalização das noções.
Ao reconhecer o compromisso do pensar humano (como
o de outras coisas) com os contextos culturais, o culturalis
mo não deixa de ver que a universalização, sempre vincula
da ao fenômeno da exemplaridade, é também ela um pro
cesso histórico, e como tal culturalmente definido, e em cer
tas épocas definido como tendência fundamental. No mun
do ocidental, por exemplo, foi durante a ascensão do raciona
lismo (e da secularização da cultura) que se promoveu em
mais larga escala o processo de “universalização” de certos
conceitos basilares.3
18
a história um “processo” (seqüência, evolução, modificação
de coisas). A questão se complica quando se pensa na exis
tência do “processo cultural”, e também quando se recorda
que a história tem uma estrutura. As saídas seriam, no caso,
um tanto verbais, e este é um assunto em que as aporéticas
formais não cabem. Vale mais tentar entender que a atri
buição, à “cultura”, de um caráter estrutural, corresponde à
sua conceituação abrangente; por sua vez, a visão da histó
ria como processo oferece margem à associação com o pro
cesso cultural, ou seja, ao entendimento da história como
realidade cultural, ela mesma. Mais importante ainda é perce
ber que certas tematizações, na evolução das idéias, são tar
dias, e que somente no século XtX — o mesmo em que os an
tropólogos veicularam a noção objetiva de “cultura” — é que
a visão da história se vinculou a um histerismo, ou histori-
cismo, onde as imagens deixaram de ser vistas como arque-
típicas e transcendentes para serem entendidas em termos
imanentes e evolucionáis.5
* **
19
No sentido filosófico, o compromisso do historicismo com
o relativismo corresponde à sua qualidade crítica, adversa
aos dogmatismos; corresponde, portanto, à concepção dos
condicionamentos reais como dado necessário à compreensão
dos problemas.
Durante o século XIX, geralmente se tomou o saber his
tórico (Geschieh teswissenschaft) como ciência “do indivi
dual”, e daí a impressão de que o real, no sentido histórico
e historiográfico, seria sempre o particular. Daí, em seqüên-
cio, a idéia de que o “universal” e o “necessário” dos juízos
a priori segundo Kant teriam como antidoto a contingência
absoluta atribuida ao fato histórico. Na verdade, porém, a
configuração do fato histórico envolve um fundo de coorde
nadas gerais (aqui entrariam as noções braudelianas de “du
ração longa” e “média”), as quais completam (ou integram)
e situam a visão do “particular”,
* * *
20
da idéia da filosofia como problemática historicamente com
prometida.
Recordamos aqui as alusões de Ortega às escolásticas.
Ele mencionou a tomista como sendo apenas uma delas, sen
do outra, no firn do oitocentos, a neokantista.7
Sob certo prisma será válido dizer que todo “sistema”,
na fase dos chamados epígonos, tende a ser tuna escolástica,
com certezas assentes e intenção pedagógica, através de for
mas que persistem mesmo após a alteração da circunstância,
Neste caso o papel do historiador consistirá em distinguir,
em cada grande “ideário”, a parte nuclear — possivelmente
aproveitável para ser integrada numa visão seletiva como
a que se mencionou acima — e os componentes que corres
pondem ao processo de “escolasticização” historicamente re
conhecível. Com este entendimento se tem inclusive a com
preensão da filosofia “como um todo”, algo historicamente
genérico, e ao mesmo tempo a das vivências filosóficas na
cionalmente situadas.8
22
talmente “oponível” à outra, mas distintas pelo conteúdo:
a de Dilthey, a de Meinecke, a de Croce, a de Spengler, a de
Ortega, a de Mannheim.11
E contudo surgiria, no caso de Hegel, um novo ontolo
gismo sistematizante, que entretanto era (ou comportava)
um historìcismo. Hegel ahsorveu a culminação “clássica” dos
“grandes sistemas” modernos, mas percebeu o cunho histó
rico dos problemas filosóficos, que já em seu tempo reque
riam tun modo novo de tematização; dai sua formulação da
dMética, que ele chama “o método”, e que acolhe o substan-
cialismo ontologizante, mas também — por seu sentido “di
námico” — se conjuga ao entendimento histórico das coisas.
Enquanto a lógica aristotélica, culminação do tema do “con
ceito” na cultura antiga, teve como expressão maior o silo
gismo, no qual o teimo médio era a peça central, na' lógica he
geliana — de certo modo culminação da idéia de “sistema”
no pensamento ocidental — a expressão maior foi a dialética,
que era uma espécie de contraprova do sistema, e onde a
peça central era a negação (a negação fazendo com que a
tese “necessite” da antítese, que necessitará da síntese, und
so weiter) . 12
5- Observações complementares. Aceita a idéia de his
tória como algo mais do que a mera seqüência “cronológica”
de fatos, e a de cultura como abrangência de traços que, co
mo conjunto, apresenta uma evolução, toma-se evidente a
correlação entre as duas idéias. A história, que não se reduz
a “momentos” mecanicamente pontualizados em termos de
causalidade, é um processo culturalmente caracterizado, A
cultura, na medida em que se “situa” em marcos de tempo
e se relaciona com processos correntes, tem uma história,
dá-se como história.
A partir disto se terá obviamente a conexão entre his-
toricismo e culturalismo. Conforme ficou dito, os cultura-
lismos sempre têm sido visões da história, ou implicado uma
concepção histórica, mas os historicismos nem sempre repre
sentam uma concepção da cultura, Ou por outra, nem sem
pre configuram uma visão das dimensões culturais. Uma
concepção- como a de Spengler foi, ostensivamente, tun cul
turalismo e um historìcismo; o historicismo de Croce (que
23
n^n apreciava Spengler) não incluía — ao menos expliciter
— os dados culturais.
Tanto o historicismo como o culturalismo, a nosso ver,
são opostos ao “materialismo”, tanto ao chamado vulgar co
mo ao que se intitula de histórico. Do mesmo modo são opos
tos ao “naturalismo”. A concepção da história como projeção
de um espírito, no sentido hegeliano e no do nous grego, re
pele os reducionismos deste tipo. Por outro lado, a relativi-
zação existente em ambas as formulações — a historieista e
a culturalista —, se alcança a própria noção de verdade, nem
por isso se confunde com a dos pragmatismos (inclusive
aquele que pede a “efetivação” como prova do verdadeiro).
Ao ser um relativismo, o historicismo permanece como
teorìa, e toda filosofia tem que ser essencialmente teoria. È
evidentemente uma falácia a idéia — tão veiculada pelos
marxólogos de hoje — segundo a qual a filosofia deve servir
para transformar o mundo: o sentido da frase de Marx, nas
Teses, deve ter sido o de que a Filosofia, até então tão im
portante, devia ser considerada frágil porque pouco fizera
pela transformação do mundo; mais valia tentar esta trans
formação do que cultivar a teoria. Mas uma coisa é a proje
ção de uma filosofia em uma política ou uma pedagogia, e
outra o entendimento da filosofia como ação, que seria algo
contraditório como conceito.13
A viabilidade do culturalismo como posição filosófica
nos parece-restrita e incompleta se ela não se apóia sobre
o historicismo — ou mesmo se não se identifica com ele. O
relativismo que provém da visão dos conceitos culturais só
se transforma em esquema filosófico se aclarado por rima
visão que inclua a compreensão do próprio pensar: e o pen
sar como experiência culturalmente localizada se apresen
ta como fato histórico. Daí que caiba à perspectiva histórica
(mesmo "dentro” de uma concepção culturalista) o pronun
ciamento crítico sobre a experiência do pensar, inclusive so
bre sua projeção nos “sistemas”. Cabe à perspectiva histórica
integrar a experiência geral do “humano” em termos de con
tinuidade e descontinuidade, com suas limitações e suas coor
denadas. A incorporação da dimensão cultural enriquece, sem
dúvida, a perspectiva histórica; sem ela o historicismo não
estará completo. Por outro lado, é a dimensão histórica, sem-
24
pre presente nos culturalismos, que lhes fornece o alcance
filosófico específico. Saber bastante sobre Kant é urna coisa,
e outra, certamente, pensar os problemas que ele colocou;
mas, se penso estes problemas em conexão com dados sobre
as condições históricas que os motivaram, penso mais sobre
eles, penso-os com outro dimensionamento e os enquadro
numa compreensão mais abrangente.
A visualização histórica do fenômeno cultura lhe con
fere generalidade bastante, e bastante caráter fundamental,
para corrigir as distorções ligadas à velha teoria do “fator
determinante”. Por seu turno, a compreensão da história em
ligação com coordenadas culturais favorece o entendimento
de sua complexidade, e da pluralidade de ângulos sob os quais
deve ser encarada.
27
trinas da historia como as de Comte e de Marx —, bastaria
pensar no enorme aumento das populações por todo o mun
do e num de seus principa’s correlatos, o incremento da téc
nica. Seria evidentemente um erro considerar a questão da
técnica sob prisma meramente económico, pois se trata de
um problema eminentemente cultural (seria interessante o
confronto entre as reflexões de Jaspers e de Heidegger com
as tentativas de Axelos no sentido de basear em Marx, tam
bém, o tema da técnica).
Somente com o neokantismo o conceito de cultura pôde
combinar-se com o de históra, mesmo com as insuficiências
de Rickert no tocante a este e com as omissões de Dilthey
no concernente àquele. E somente com a aceitação de uma
convergência de correntes —■descartados os dogmatismos e
os radicalismos —, se poderá integrar uma série de contri
butos teóricos passados com tematizações novas: inclusive,
integra¡r a noção de Aufheben (e também a de dialética) com
a de “compreensão”, e conjugar a axiologia histórica com os
questionamentos recentemente trazidos pela hermenêutica.
NOTAS
1 JOSÉ ORTEGA Y GASSET, História como Sistema, Rev. de Occidente
(3® edição), Madrid 1958. págs. 48 e seguintes,
28
Tudo isso faz pensar na necessidade de uro reexame da “lei dos três
estados”, feito a sério,
29
ou não numa filosofia fixa e única, num filosofar cuja circunstância
foi outra e legou apenas núcleos doutrinários possivelmente válidos.
Sobre a possibilidade de “conciliar” e “escolher” entre filosofias, cf.
ANTONIO PAIM, Problemática do Culturalismo (Rio de Janeiro 1977).
Infelizmente o esquema do presente artigo não comporta um debru-
çamento sobre o pensamento de Miguel Reale e Djacir Menezes, que,
no Biasil atuai, vêm encarnando em termos diversos a posição cultu-
ralista.
o A referência a runa transição deste tipo, que ocorreu diversas vezes
na história, não significa corroborar a idéia de que, como transição
seguinte, se tenha, como diateticamente “previsível”, o advento de
uma época proletária. A relação de classe, existente entre proletariado
e burguesia, não é algo historicamente igual à xelação entre burgue
sia e nobleza: nem no Ocidente nem nas cultuxas passadas. Foi obra
da burguesia a “ universalização” do conceito de classe, e dela se apro
priou a doutrina socialista; mas o proletariado não possui, como a bur
guesia, uma caracterização global inteligível em termos lùstórico-cultu
rais, em termos de Weltanschauung> Em tais termos a dicotomia bási
ca è a que se dá entre aristocratas e plebeus, e estes se cindem depois,
quando se instala o critério econômico, em patrões e operários. Por isso
mesmo a interpretação da situação do operariado, que tende a substan
tivá-lo e dar-lhe um papel histórico definido (e definitivo), esbarra
em problemas como o da crise, que é crise para todos, e como o da
tecnocracia, que encaixa no tema (dito “burguês”) da decadência, Mas
aqui, por1 cautela, ponho um aviso: não é necessário compartilhar cer
tos slogans e modismos para combater a exploração capitalista nem o
imperialismo norte-americano (bem como o soviético) e coisas afins.
Evidentemente é lamentável que o chamado Ocidente se encontre sob
o comando (e na dependência) dos Estados Unidos; mas eu encaro
isso também sob o prisma cultura^ não apenas sob o econômico; é por
ter entrado em decadência que a humanidade ocidental entrou para
tal situação. Comparavelmente, os povos da antiga Hélade, e do Me
diterrâneo, cair am sob o dominio de Roma quando entraram em deca
dência: o que não significa, porém, que Roma não representasse algo
bastante superior, em termos históricos, ao que representa o domínio
norte-americano, E ponho outro aviso: nenhuma destas considerações
comporta em negar que o marxismo tenha deixado contribuições alta
mente positivas e altamente válidas, o que é outro problema.
io De certo modo é válido dizer que a chamada “Sociologia do Conheci
mento” não teve tempo de se aplicar a todos os grandes temas que a
comportavam, inclusive ao da relação entre conceitos como verdade ou
bem supremo e os contextos sócio-cuituráis; os muitos estudos que to
cam no assunto são fragmentários (ao menos ao que eu saiba), Na
realidade ela, como “sociologia”, ficou cindida entre as tentações da
“filosofia social” e os empirismos de pequeno fôlego. Além disso houve,
antes que ela amadurecesse como campo temático, a entromzação do
economicismo, que introduziu nova ordem de problemas. Permifcirao-
nos remeter, a propósito, ao nosso ensaio «Do maniqueísmo à tipologia”,
ora em Humanismo e História, ed. Fundarpe — José Olimpio, Rio de
Janeiro, 1983..
30
n Faço questão de registrar, aqui, a espantosa e surpreendente incompreen
são do grande erudito português VASCO MAGAIJIÃES-VILHENA,
quando, em seu livro Antonio Sérgio, o idealismo critico e a crise dai
ideologia burguesa (ed Cosmos, Lisboa 1975, pp. 120-121) se refere a
Croce e a Ortega,
31
Filosofia e Ciências na Universidade,
Fundamentalidade, Integração ,
Interdisciplinaridade ()
Sumário: A filosofia e os “saberes” no pensamento
antigo. As formulações medievais. As trajetórias moder
nas e contemporâneas O convivio interdisciplinar na
Universidade As variáveis doutrinárias. A experiência
brasileira.
32
surgiu de problemas físicos, isto é, científicos: indagações so
bre as coisas e o conjunto das coisas, hipóteses sobre o cos
mos e sobre os seres vivos, sobre fenômenos, relações, unidsu-
des. No espírito grego, dominado até certo ponto pela esti
mação do equilíbrio, o tema dos números fascinou a muitos
espíritos; e o “rigor” da matemática alimentou inclusive al
gumas tendências gnosiológicas fundamentais de Platão: ten
dências que em Aristóteles se alteraram, pois a Metafísica do
Estagirita tentaria justamente evitar a confusão entre mate
mática e filosofia.1
De qualquer sorte, a filosofia seria sempre um “coroa-
mento” do saber, embora fosse também sua “base”: as me
táforas espaciais funcionando como algo necessário e ao
mesmo tempo insuficiente. As “escolas” pôs-aristotélicas, coe
táneas de um saber positivo mais acurado (os estóieos, por
exemplo dispondo de uma física mais experimentalizada),
nem por isso reduziram o filosofar a um “panorama” ou runa
propedêutica em relação aos saberes específicos: vigorou real
mente, entre as elites clássicas, a idéia globalizante do sa
ber, incompatível com os especialismos, embora certos pensa
dores e pesquisadores se destacassem neste ou naquele cam
po — física, geometria, matemática.
*i* & "i1
34
variável sempre negativa, como margeadora do mito no pri
meiro estágio, como serva da teologia no segundo, como epi
fenómeno do saber positivo no terceiro. Em Hegel, a filosofia
seria equivalente à totalização do saber, inclusive em seu
“momento” absoluto, e sobretudo na dimensão histórica do
saber (em Marx a negação economista da filosofia, indigita-
da por conta da “miséria” e por conta do afã de substituir a
contemplação-interpretação pela ação-revolução).
No século XX, a “pergunta pelo ser” colocada por Hei
degger, assim como as análises da existência em Jaspers e
em Sartre ignoraram por assim dizer certos convívios do filo
sofar com o saber científico (sem embargo da formação
científica de Jaspers) : acentuaram-se os convívios com a re
ligião e com a literatura. Mas a renovação do historicismo,
inclusive na linha posta por Croce e em certas sugestões de
outros, voltou a propiciar um novo questionamento quanto
às relações entre a filosofia e as ciências: no caso, ênfase
sobre as ciências chamadas humanas ou culturais.
* * *
36
E finalmente algumas observações em tomo da expe
riência brasileña. A demora havida na criação de Universi
dades, no Brasil, não acarretou propriamente perda de subs
tância no processo formativo da cultura, no país: acarretou
porém uma certa dispersão nas experiências pedagógicas. O
surgimento das Universidades, em pleno século vinte, en
controu uma tradição cultural onde a produção filosófica
(pouco volumosa, mas expressiva) havia coexistido com as
ciências e a literatura dentro de pautas por assim dizer es
pontâneas, não delineadas, por esquemas didáticos e buro
cráticos — a não ser no recinto ou nos programas de algu
mas instituições, como o Colégio Pedro 31.
A política de estruturação interna das Universidades, que
no Brasil sempre esteve demasiado submetida à política par
tidária (e administrativa) eventualmente dominante, qua
se sempre acolheu conveniências assentes, de modo que o
problema da filosofia e de seu papel na Universidade nunca
foi seriamente enfrentado.. Enfrentados têm sido em verda
de outros problemas, como o dos nomes das unidades (gran
de preocupação dos reformadores da Universidade), inclusi
ve o nome das Faculdades, — com grande animosidade, por
parte da recente e nefasta reforma, para com as Faculdades,
sobretudo as de Direito-
Provavelmente, porém, caberá aos próprios cultivadores
do saber filosófico postular o redimensionamento do proble
ma — que, além de ser um problema da Universidade, é um
problema da cultura, e, portanto, da vida humana.
NOTAS
1 LEON BRUNSCHVICG, Les âges de V'intelligence, ed. PUF, Paris 1953,
(4 a ed.), Gap. HX, págs. 57-58.
37
Tempos Brasileiros: a Filosofia (*)
38
cional. Presença do poder, adesão a ele, valorização da or
dem e da autoridade; mas também atitude crítica^ cobrança
de legitimações, estimação da liberdade.
Com isto colocamos o problema, aqui apenas entrevisto,
da possível “permanência de temas”, no curso do pensamen
to brasileiro. Seria demasiado fácil, embora não propriamen
te inválido, relacionar uma série de dicotomías, ou de “an
títeses”, presentes no processo histórico do pensar brasileiro,
em cada um dos planos ou das faixas em que ele corre: no
pensamento político a antítese entre autoritarismo e libera
lismo, no pensamento pedagógico o jesuitismo e o laicismo,
no pensamento religioso a ortodoxia e as heterodoxias, no
pensamento jurídico a linha jusnaturalista e as linhas anti-
jusnaturalistas. E não seria difícil, por outro lado, senão
que até mesmo um tanto óbvio, apontar para a atuação
de dualismos semelhantes na história do pensar social (no
alcance mais amplo deste termo) do Ocidente: conservadoris
mo e reformismo na Grécia, inclusive no pseudo-Xenofonte e
em Platão, feudalismo e antifeudalismo na literatura me
dieval, absolutismo e liberalismo no Ocidente pré-ilustrado e
ilustrado, revolucionarismo e passadismo no espírito Român
tico. E seria interessante relacionar o tema ao chamado “mé
todo das gerações”: há gerações onde aparece um traço de
finidor e hegemônico nos supostos axiológicos e nas expres
sões exteriores, enquanto outras se dilaceram entre tendên
cias opostas, sem maior definição,
Para o que aqui nos interessa, a noção ou a imagem
de uma “permanência de temas’ merece um pouco de aten
ção. A busca de “constantes” e de “temas centrais” dentro
do pensar nacional pressupõe um certo grau de preocupa
ção com este mesmo pensar nacional, correndo-se aliás —
o que é consabido — o risco de substancializar demais o atri
buto nacional do pensar: neste ponto a questão se liga ao
debate já algo sediço sobre caráter nacional e coisas afins.
Certos historiadores de idéias têm, de qualquer modo, tenta
do fixar determinados temas que seriam centrais, que cons
tituiriam “núcleos” ou “traços” principais no filosofar bra
sileiro (é o caso por exemplo, sem descartar outros, do Pro
fessor Antônio Paim).
Também não seria difícil, uma vez que nosso objetivo
neste artigo é o de esboçar um balanço do pensamento filo-
39
sófico brasileiro nos últimos trinta, e sobretudo nos últimos
vinte anos — de agònico e denso ou tenso tempo brasileiro
—, não seria difícil detectar (alguns diriam “pinçar”) den
tro do emaranhado de textos e de afirmações que preenchem
o período marcos corroboradores dos pontos-de-referência
mencionados no início: tanto corroboradores da persistên
cia do binômio autoritarismo-liberalismo, como da sobrevi
vência de outras dicotomías significativas, como ortodoxia-
heterodoxia, conservadorismo-“progressismo”, espiritualismo-
mateiialismo, essencialismos-existencialismos, Mas indepen
dente do problema de saber o que é permanência, surge a
questão do desigual “volume” com que se apresenta cada
termo destes dualismos, que ocupam — para empregar ou
tra expressão recentemente posta em uso — diferentes por
ções do espaço teórico disponível.
Conduziremos então este levantamento, que é conscien
temente precário, com armação esquemática bastante flexí
vel. Não dispensaremos porém a referência a certas “traje
tórias de temas”, que vêm dos anos 20 e 30 e se reformulam
após 45 e que persistem (nem sempre fáceis de reconhecer)
na linguagem (prefiro não dizer “no discurso”) mais recen
te. Como, por exemplo, o processo que leva das “bases da
nacionalidade” e das “forças vivas” do país à politização e à
desalienação. Processo que tropeçou no movimento armado
de 1964, uma espécie de catarse au rebours para a vida cul
tural brasileira, e que ao tropeçar foi atropelado por ele; e
ele trazia também (apesar de tudo) seus jargões específicos,
que até pouco tempo cobriram e bloquearam o andamento
dos termos que até então vinham perfazendo a elaboração-
reelaboração da “epistême” nacional.
* # *
40
em Leonel Franca e no Alceu Amoroso Lima da primeira
fase, a maturação do nacionalismo tipo Alberto Torres em
ligação com o integralismo, o aparecimento das primeiras
obras filosóficas de Pontes de Miranda.
Dos anos iniciais do século herdaria esta geração lima
pergunta um tanto equívoca: a pergunta sobre se existe uma
“filosofia brasileira”. Esta pergunta, afim à questão da exis
tência de um “caráter nacional” (motivador dos caminhos
históricos do país e ao mesmo tempo resultado deles), seria
redimensionada ao reformular-se, na transição para a déca
da 60, o próprio nacionalismo das décadas 20 e 30. Ela pro
vocaria a sediça resposta que se refere a uma “filosofia eu
ropéia elaborada no Brasil”, resposta que é tão válida e tão
inválida quanto a equivalente aplicada ao México ou à Ar
gentina. Certamente o Brasil não teve uma meditação sobre
seu ser histórico no nível da que teve o México (onde ela se
apresenta com Antonio Caso e Leopoldo Zea e chega a Octa
vio Paz), mas isto não significa que tenha faltado em nosso
pais um quehacer filosófico relevante, bem como, vale salien
tar, traços de uma meditação daquele tipo encaixados em
obras de teoria política, de análise histórica ou de crítica
literária. É possível que tenhamos tido menos empenho na
formação de uma linhagem (e de uma linguagem) filosófica
em termos nacionais, mas tivemos uma sociologia bastante
rica, que vem pelo menos de Sílvio Romero e de Oliveira
Vianna em diante. De qualquer sorte, o advento das Univer
sidades no Brasil entrou, não como fator decisivo mas como
componente possibilitador de uma maior “maturidade” em
nossa produção filosófica, corrigindo até certo ponto velhos
males, como o autodidatismo, embora instaurando uma cres
cente burocratização da vida cultural, condenada em nossas
Universidades a uma precariedade de meios freqüentemente
lamentável.
$ * *
41
no plano do pensar em sentido genérico. Os anos sessenta pa
recem ter propiciado, em termos globais, o grau mais inten
so de mutações estruturais para determinados setores da cha
mada cultura ocidental: nos valores sociais, nos costumes, na
música popular, no cinema, na política, nas relações entre
sexos e entre gerações. Nestas mutações se incluíram os cha
mados países periféricos, afetados e contaminados por elas
na medida em que participam dos padrões ditos ocidentais:
e neles ecoaram as rebeliões dos estudantes, tal como a mú
sica dos Beatles, as modas beatnik, as tendências hippies.
Ecoaram também, chegadas af nal à América Latina, as obras
da Escola de Frankfurt e as dos “nouveaux philosophes”, co
mo haviam chegado o estruturalismo francês (o estrutura-
lismo russo foi anterior) e outras coisas.
Talvez a emergência de crises internacionais mais mar
cantes tenha ajudado os intelectuais brasileiros na passa
gem dos anos 50 aos anos 60 a esquecer a ênfase com que se
falava, décadas antes, do tema das “raízes” e de outros te
mas da retórica filosófico-social. Outras ênfases surgiram,
entretanto, com o ãesenvolvimentismo que eclodiu ao fim
dos anos 50, mas elas foram atingidas pelo movimento mi
litar de 1964: umas foram silenciadas, outras consagradas.
De qualquer sorte estas novas ênfases se aliaram ao prestí
gio de uma nova “onda” que invadiu o país, formada pelas
teorias de Mac Luhan e pela problemática das comunica
ções. Ê preciso lembrar também, no limiar dos anos 60, a
atuação do ISEB, do qual alguns remanescentes continua
ram a produzir e a publicar livros, mesmo após a alteração
dos contextos, como é o caso, entre outros, de Hélio Jagua-
ribe. Ao mencionar o ISEB, é necessário aludir a um tipo
de pensamento que se tomou relevante no Brasil: dele par
ticiparam alguns autores depois radicalizados (inclusive Viei
ra Pinto), e dele ficaram participando certos segmentos da
filosofia social corrente no Brasil de hoje.
Com a radicalização, instaurada no plano institucional
e no ideológico, começou a faltar espaço para posições mo
deradas. A dimensão política das doutrinas passou a pesar
como algo decisivo, e a filosofia em sentido teorético cedeu
o passo às expressões filosófico-polít'cas: de um lado a ade
são ao poder estabelecido, incluindo os conservadurismos e
alguns tomismos, mais outros ismos eventuais ou menores,
42
de outro o repúdio à situação, abarcando marxistas, setores
católicos, liberais racionalistas. Não quer dizer, contudo, que
todo o pensamento tenha assumido sentido político imedia
to ou expresso; nem que se perdessem de todo as caracteri
zações específicamente filosóficas do que se continuou pu
blicando.
Os anos sessenta trouxeram, também, o aumento da pre
sença dos problemas econômicos, junto aos quais adveio uma
terminologia que aos poucos se impôs ao país, como correlato
do predomínio de uma espécie de “nova classe”, e penetran
do inclusive nos setores administrativo e pedagógico da or
dem vigente. Em consonância, começou a crescer o tema da
tecnologia, transformado na questão da tecnocracia, à me
dida em que as estruturas se enrijeceram. Começou também
a invasão do “gereneialismo”, importado dos Estados Unidos
e vinculado à chamada filosofia-do-êxito, e igualmente in
troduzido nos setores administrativo e pedagógico.
Estas alterações concretas do viver nacional, que inclu
sive punham à prova a noção orteguiana de que a nação
é em si mesma um projeto, poderiam ter condicionado uma
reflexão mais ampla sobre o tema se não se achassem aco
pladas a uma estrutura política essencialmente repressiva e
autocrática. A isto se aliava, como fator negativo, a radica
lização acima referida, que deslocou o fulcro das controvérsias
doutrinárias. O antigo debate entre católicos e materialis
tas, que se completava e se ampliava em termos filosóficos
como polêmica entre espiritualismo e naturalismo, cedeu vez
à opção ou ao confronto — começava a voga desta palavra
— entre esquerdas e direitas, nem sempre bem definidas, e
freqüentemente confundidas com algo como oposicionismo
e situacionismo. Nos desdobramentos do confronto, alargou-
se a área teórica do marxismo, ora à base da “releitura” fei
ta nos centros europeus dos textos clássicos de Mai’x e En
gels, ora com a própria utilização da linguagem antiga. Ca
beria inclusive um estudo sobre a distinção entre os mar
xistas da geração mais velha — incluindo Caio Prado Júnior
e Nelson Wemeck Sodré —e os da nova geração, familiari
zados com os integrantes do Grupo de Frankfurt (muito
Emst Bloch, muito Adorno, e mais recentemente Habermas)
e conciliados com a psicanálise. Familiarizados, também, com
Foucault.
43
Ao lado da penetração da psicanálise, freqüentemente
barateada pelo excesso de divulgação, pode-se mencionar, nas
últimas duas décadas, a retomada do legado existencialista.
A obra de Heidegger, bastante visível em forma de paráfra
se em certos escritos de Vicente Ferreira da Silva (em cuja
obra também foi muito característica a influência de Höl
derlin) , veio a receber um tratamento novo, dentro das duas
décadas mais recentes, em mãos de Emildo Stein, Gerd Bor
nheim e Emanuel Carneiro Leão, entre outros. Dentro desta
linha começa a aflorar a presença da obra de Gadamer, dan
do ao legado heideggeriano uma espécie de vertente herme
nêutica. Enquanto isso, a influência específicamente feno
menològica, difusa e parcial durante muito tempo, tem hoje
expressão pessoal em Creusa Capalbo.
Um impenitente fisicalismo naturalista, paralelo ao que
permeou e alimentou em seus fundamentos a obra de Pontes
de Miranda, e que apareceu em certos escritos de Djacir Me
nezes, foi superado ou temperado na obra do próprio Mene
zes por influências hegelianas (merecem alusão seus im
portantes textos sobre Hegel) e mondolfianas. Na obra de
Pontes de Miranda, o naturalismo cientificista não impediu
o surgimento de um livro tão sugestivo e tão agudo como
aquele estranho “Garra, Mão e Dedo” (ao qual o autor, po
rém, resolveu depois renegar).
* **
44
reito simultaneamente fato, valor e norma, e sobre a cor
relação entre experiência jurídica e contexto cultural. Ou
ainda o próprio Paim, e também Adolpho Crippa.
A propósito de culturalismo cabe aludir por afinidade
aos orteguianos brasileiros, que se situam como autores jus
tamente a partir de 1950 ou 1960 (Gilberto Kujavski, Ubira-
tan de Macedo, Luís Washington Vita numa certa fase). Ca
be aludir a certos tópicos ou a certos ângulos da vasta obra
de Gilberto Freyre. E cabe aludir ao historicismo, um tanto
indefinido entre certas posições marxistas que buscam fle
xibilizar-se, buscam libertar se dos slogans e do endeusamen-
to dos textos sagrados, e certos pendores relativistas que —
geralmente ligados ao penchant Lberal e a um humanismo
vago mas reconhecível — servem de apoio ao próprio cultu
ralismo.
Os leitores de Ortega no Brasil foram, de certo modo,
continuadores dos de Nietzsche. Tal como, mas agora indi
cando um degrau menor, dos de Ingenieros e de Le Bon.
Crítico do mundo bux*guês, Nietzehe seria repudiado pelo
marxismo vulgatizado como “reflexo” da burguesia; e o mes
mo se pode dizer, até certo ponto, de Ortega. No Brasil, não
faltou aos leitores de Ortega, nem aos admiradores de Nietz-
che, a pecha apressada de “reacionarismo”. Nem faltaram
autores que, atraídos pelo marxismo, abandonaram o exis-
tencialismo e o raciovitalismo — como Roland Corbisier —
em troca de uma enfática conversão à “Filosofia da Praxis”,
valorizada nada menos de que como única imune ao condi
cionamento “infraestrutural”, e portanto única irredutível
à condição de ideologia. Fascinados por Sartre — mais tal
vez o combatente do que o teorizador —, muitos falam gra
tuitamente na razão dialética, e o deslumbramento diante
da dialética corrobora neles a adesão quase religiosa ao mar
xismo.
Há também uma diferença entre o tratamento dado ao
tema da dialética pela geração mais antiga (seja exemplo a
obra de Caio Prado) e a mais nova, onde se tem a figura de
Lima Vaz — não tão jovem em termos cronológicos — e a
de Bornheim, com seu importante livro de 1977 sobre o tema.
* * *
45
Aqueles bascnlements, de que falava Michel Foucault em
Les Mots et les Choses, indicando mudanças de rumo no in*
teresse temático quando de certas transições de época a épo
ca, na história intelectual do Ocidente moderno, ocorrem
também obviamente no pensamento dos países como o Bra
sil. São alterações na ordern de problemas: problemas que
durante certo tempo ocupam e preocupam quase todo o mun
do, deixam de ser acentuados — sem que tenham sido “re
solvidos”, nem que algum motivo visível tenha interferido.
Os últimos vinte anos mostram, no pensamento filosófi
co brasileiro, uma série de giros temáticos deste tipo. A eles
se ligam modificações gerais nos hábitos intelectuais, ao lado
da penetração (óbvia) de novos modelos internacionais re
ferentes a modos de pensar e de expressar pensamentos. Te
mos de reconhecer que é um tempo, o nosso, em que, diante
da ordem de coisas vigente em escala mundial, o filosofar
se tem tornado particularmente difícil. E talvez, por isso
mesmo, mais necessário.
Todo o legado do século dezenove vem sendo reestudado
— há inclusive um interesse por ele em certos cursos de pós-
graduação —, e com isso se tem feito a “releitura” de Tobias
Barreto, de Tavares Bastos, dos positivistas. Todo o acervo
do século vinte tem sido revisto, inclusive no tocante ao pen
samento científico (em 1979 Simon Schwartzman coordenou
um amplo levantamento sobre a formação da comunidade
científica no Brasil). Tem-se repensado o nosso bacharelis-
mo, e com ele a trajetória do ideário jurídico brasileiro. O
naturalismo vindo do oitocentos, mais o espiritualismo de
origem iluminista ou romântica, têm sido revistos. As idéias
socialistas têm sido reexaminadas (recentemente Vamireh
Chacon reeditou seu livro a respeito) ; em compensação, têm-
se tido diversos reexames do liberalismo, desde a ampulosa
“Democracia Coroada”, de Oliveira Torres, aos estudos de
Ubiratan Macedo. Mais recentemente, a problemática do libe
ralismo foi proficientemente reposta por Roque Spencer Ma
ciel de Barros, e vem sendo representada por autores de fei
tios diversos, como José Guilherme Merquior e Vicente Bar
reto.
A rigor, o conhecimento e o reconhecimento dos itinerá
rios percorridos não implica em uma atitude meramente
cumulativa, mas em algo que possibilita questionamentos
.46
mais fundamentados. Os impasses e as radicalizações dos últi
mos vinte anos têm de ser reavaliados, e é importante consi
derar o fato de que, paralelamente a eles, nosso país tem vivi
do problemas “reais” que necessitam sempre de reintepreta-
ção. A filosofia, como se sabe desde Hegel, é ela mesma sua
história, sem reduzir-se ao mero fato histórico de seus percur
sos. Cabe situar e valorizar a relação entre o tempo histórico e
a atividade cultural em termos de consciência filosófica, e es
ta, por seu turno, costuma alimentar-se de reexames, feitos,
não com paixão extremada, mas ao menos com sensibilidade
axiológica.
São realmente de reexames e de revisão de caminhos
os tempos -— inclusive os brasileiros — que correm. Neste pe
daço de tempo, que o Tempo Brasileiro tem acompanhado e
integrado, cabe buscar o fio (ou os fios) de uma linha de lu
cidez crítica, que perpassa precariamente entre os extremis
mos cegos e os conformismos mudos: esta linha correspon
de, para retomar as alusões feitas ao início deste artigo, ao
libertarismo humanista, que deve ser questionante sem ser
radicalizado^ e ser relativista sem adotar o ceticismo.
47
Kant e o Criticismo (No Bicentenário
da Critica da Razão Pura) (*)
Sumário: 1 — Introdução: situação e circunstância.
2 — O ponto de vista epistemológico 3 — Estrutura da
critica da Razão Pura 4 — Influências e permanências: o
legado de Kant e o criticismo.
48
* * *
49
* * *
Permito-me apontar agora para o trajeto que vai de Des
cartes a Kant. Há uma permanência da presença do cogito
e de suas relações com o sum, colocadas por Descartes de for
ma tão clara e tão forte; só que Kant reclamaria mais um
pouco de diligência analítica para o problema. Como se sabe,
a leitura de David Hume fez com que Kant, segundo a ex
pressão famosa, despertasse do “sono dogmático”. Vem-me
aqui a tentação de caracterizar o dogmatismo como uma
dormência e a crítica como vigília, para relacionar com a
idéia da Carta VII de Platão, que identifica o filosofar com
irma vigília. Mas sei que a coisa não é exatamente a mesma.
Voltando a Hume, seu meio-ceticismo deve ter assustado a
Kant no próprio “despertar”, embora o impressionasse —
e isto é anotado por Deleuze1 — a idéia de Hume segundo a
qual o conhecimento propriamente dito constitui uma “su
peração” dos dados da experiência.
Em Kant, todavia, por mais que ele se tenha diferencia
do historicamente por suas conceituações e suas posições bá
sicas, permaneceu, sobretudo na concepção da razão ou do
racional, como algo universal, uma marca cartesiana: presen
ça daquele modo radicalizante e abstrato de pensar, que fez
da étenãue e da -pensée os dois dados (ou os dois lados) fun
damentais e essenciais da realidade.
Por tudo isso, não acolho o sociologismo radical que pro
cura as raízes do pensamento de Kant na “sociedade bur
guesa”. Ou antes, aceito tal idéia no sentido de Ortega, que
vinculou o trabalho especulativo de Kant ao tipo burguês
de vida, - não no de Goldmann, que partiu de categorias eco
nômicas e de um esquema referido às classes para encaixar
ali o perfil inteligível do pensamento Kantiano.3 A obra de
Kant se relaciona com todo um padrão cultural racionalista
e ilustrado, mas não é apenas “reflexo” dos condicionamen
tos ditos materiais.
Padrão cultural racionalista: a Crítica da Razão Pura
representou, e dizer isto não é nenhuma novidade, uma es
pécie de apogeu do racionalismo; ao mesmo tempo repre
sentou seu ponto de crise. Por mão de Kant, o racionalismo
utilizou seus próprios recursos para verificar seus limites e
definir suas limitações. O trabalho de Kant, em sua obra
50
maior, consistiu, não em um sistema racionalista, mas em
luna filosofia de base racionalista. Evitando a montagem dos
sistemas do tipo de Leibniz ou Spinoza, providos de um pres
suposto metódico de então em diante considerado a-crítico,
o mestre de Koenigsberg obrigou a razão a um auto-exame,
e refez a própria estrutura do pensar filosófico definindo em
seus alicerces uma preocupação especial: a preocupação com
a própria problemática do conhecer.
2. O ponto de vista epistemológico. Utilizando o term
em acepção lata, estou cobrindo, com a expressão “episte
mologico”, todas as questões do conhecer: desde as radicais
perguntas da gnosiología até o tema do alcance de cada uma
das ciências filosóficas, incluindo a metafísica.
Às vezes me ocorre pensar que a “aridez” e a “profun
didade” dos problemas postos e dissecados por Kant cansa
ram os pensadores que se lhe seguiram, e dai a descontinui-
dade da presença de tais problemas no pensamento posterior
à morte de Kant. Ocorre-me também pensar que há uma
enorrne atualidade em Kant, que não é apenas a das ques
tões que levantou, o que já seria muito, mas igualmente a
dos conceitos com que enfrentou tais questões, buscando-os
e elaborando-os em face delas,
Embora haja também um certo arcaísmo em suas obras,
já pelo método expositivo (sabe-se que Kant o comparou ao
dos escolásticos), já pela saturação temática que as percorre,
sobretudo nas críticas, onde a fidelidade aos assuntos se tor
na quase obsessiva. A Crítica da Razão Pura, neste sentido,
padece de um terrível prosaísmo, raramente atravessado de
alguma frase mais retórica ou mais poética — sem embargo
do fato de que Kant era sempre feliz quando soltava estas
frases,.
:|* * *
52
O por quê da Crítica corresponde ao descobrimento, pelo
pensador de Koenigsberg, de um certo núcleo de problemas,
e também de um certo núcleo de principios com os quais ca
bia enfrentar os problemas. De diferentes maneiras se ex
põem seus problemas principáis. Ora aparecem formulados
como urna tríade interrogatòria: “Que posso saber? Que de
vo fazer? Que me cabe esperar?”. Oía, por outra forma, eles
correspondem a uma indagação sobre o homem: “Que é o ho
mem, de onde vem, para onde vai”. Noutro sentido, os pro
blemas fundamentais são: Deus, a alma, o mundo.
Estes porém são, por assim dizer, os problemas que Kant
recebeu: problemas encravados no pensar de todas as épocas
e implícitos em todas as filosofias. Os problemas montados por
Kant e elaborados especificamente por ele foram os. que mol
daram e embasaram seu enfoque crítico, sob a formà de prin
cípios críticos com os quais ele atacou os problemas recebi
dos. Foram, em suma, os problemas da razão, mas tomados
no que tinham de revelador de uma precariedade: problemas
atinentes à necessidade de reorganizar o trabalho da razão,
tendo de empregar para isto a própria razão.7
É sobradamente conhecido o fato de que, ao pensar em
conhecimento (científico), Kant tomou como factum o es
tado das ciências físicas e matemáticas em seu tempo. A
grande e sólida herança do newtonismo representava a pro
va da eficácia da razão como instrumento essencial do co
nhecer: analisar os limites e as condições do conhecer con
sistiria em examinar os limites e as condições da razão, Todo
o otimismo epistemológico da Aufklaerung desembocou nes
ta redução do humano ao racional: e assim para a dimensão
teórica como para a prática, pois também o educar-se e o agir
corresponderiam a esferas onde “deve” imperar o molde ra
cional. 8
Destarte partiu Kant de um tema implícito, o conheci
mento da natureza. E neste conhecimento as relações se si
tuam em dados de espaço e de tempo. Espaço e tempo foram
os indicadores da noção kantiana de aparição, ou por outra,
daquilo que aparece: fenômeno, em seu sentido genérico (não
ainda o termo da dicotomia fenòmeno-noumeno), £ de notar
se que Kant sempre evitou desgarrar-se do factum funda
mental ao construir suas categorias críticas; seu modo de
53
pensar, reconhecendo na .razão uma realidade autônoma, ao
menos estruturalmente autônoma, mas ao mesmo tempo
apalpando a cada passo os condicionamentos empíricos que
balizam sua atividade, ficou como uma espécie de modelo
para os idealismos que se lhe seguiram, fossem quais fossem
os desvios que, em relação a ele, tomassem estes idealismos.0
Por isso mesmo Kant se referiria, na Introdução da Cri
tica da Razão Pura, à “necessidade” de uma ciência filosófi
ca que determinasse “a possibilidade, os princípios e a ex
tensão de todos os conhecimentos a priori”. Esta ciência vi
ria a ser precisamente a Critica da Razão Pura; tal ciência
traçaria por sua vez o plano “arquitetônico” da filosofia trans
cendental. 10
A problemática dos conhecimentos a priori (ou seja, das
condições que os tornam possíveis e dos limitas que os cer
cam) equivaleu portanto, no pensamento de Kant, à pro
blemática fundamental da própria razão. Daí sua preocupa
ção com a razão pura; não a mera (blosse) razão, mas a
íazão em si (reine) : faculdade autônoma com feitio formal
próprio, e sobretudo dotada — assinalamos — da capacida
de, senão mesmo do destino, de se auto-examinar. Este o por
quê da critica.
Por outro lado, porém — assinalemos, ainda —, o modo
pelo qual Kant entendeu a estrutura do que chamamos “co
nhecimento”, colocando seu ponto decisivo no sujeito, com
o que contrariou os objetivismos clássicos e com o que ope
rou o que ele próprio chamou Revolução Copernicana, cor
roboraria por sua vez o por quê da crítica: se o conhecimen
to é uma relação cuja forma se define em função de formas
intrínsecas que se acham no sujeito cognoscente e que se
impõem sobre os objetos, então a análise da problemática do
conhecimento terá realmente de partir da análise do sujeito;
ou seja, das formas a priori que nele estão, e de cuja aplica
bilidade ao real depende em princípio a própria constituição
gnosio-epistemológica dos objetos.11 Aliás, e adiante aludirei
de novo a este ponto, o caráter “necessário” e “universal” da
imponibilidade das formas a priori aos objetos correspondia,
em Kant, ao fato de ser a razão uma faculdade legisladora:
aí estava a idéia de lei, tão cara às ciências naturais sobre
tudo a partir do newtonismo, e tão ligada à idéia de neces-
54
sidade (lembremos a frase inicial do Esprit de Montesquieu),
aplicada pelo mestre de Koenigsberg tanto à razão teórica
com à razão prática.
O aprofundamento deste ponto nos levaria a colocar a
questão do objetivismo e do subjetivismo em Kant: objeti
vismo ao recusar eeticismos e relativismos, subjetivismo ao
enfatizar á parte do sujeito (da consciência, dir-se-ia muito
depois, na época de Brentano e de Husserl) no processo do co
nhecimento, Aqui me apraz citar, em exato paralelo ao que
estou afirmando, estas enfáticas expressões de Simmel: “Kant
realizou a enorme proeza de levar a seu ponto culminante o
subjetivismo dos tempos modernos, a autonomia do eu e sua
irredutibilidade ao material, sem por isso sacrificar em nada
a solidez e a importância do mundo objetivo”. 13 .
Seria também interessante, mas muito extenso para os
limites deste trabalho, confrontar a diferença platônica en
tre epistèms e doxa — o conhecimento filosoficamente fun
dado e o conhecimento extra-filosoficamente veiculado — e
a diferença kantiana entre “entendimento” e “intuição” :
nesta a presença palpitante da realidade, embora triada atra
vés de formas prévias, naquele o molde mais formal de ca
tegorias e de conceitos. Ou, ainda, confrontar estes dois ele
mentos do pensar segundo Kant (entendimento e intuição
ou ainda conceito e intuição) com o que Aristóteles chama
va intelecto ativo e intelecto passivo.
56
Após uma introdução, cujo conteúdo corresponde ao que
no método expositivo das Sumas medievais se chamava status
questionis, a Crítica da Razão Pura abre com uma Teoria
Transcendental dos Elementos. Nesta, uma primeira parte
toca à “Estética Transcendental” — incumbida de colocar a
visão inovadora do espaço e do tempo — e uma segunda par
te concerne à “Lógica Transcendental”, onde se espraia, co
mo uma impressionante seqüência de sutilezas, a analítica
transcendental, que se divide em analítica dos conceitos (tra
ta-se dos conceitos puros do entendimento) e analítica dos
princípios, tocantes sempre ao chamado entendimento puro,
À analítica transcendental se segue a dialética transcen
dental, que visa aos “conceitos da razão pura” e aos “racio
cínios dialéticos da razão”.
É de decisiva relevância, na construção da obra, esta
segunda divisão da lógica transcendental, atinente à dialé
tica.. Dentro do “livro segundo”, que nela se integra, e que
estuda os dialektischen Schlüssen der reinen Vernunft, ou
seja, os “raciocínios dialéticos da razão”, 17 apresentam-se os
paralogismos da razão pura, a antinomia da razão pura e o
ideal da razão pura: estes enunciados eqüivalem a algumas
das mais sérias questões envolvidas pela acuradíssima refle
xão de Kant. Finalmente vem a Metodologia Transcendeu-•
tal, onde se encontram capítulos menos extensos porém im
portantíssimos sobre a “disciplina da razão pura”, o “cânone
da razão pura”, a “arquitetônica da razão pura” e até mes
mo a “história da razão pura”, A tudo isto se acrescentou,
na segunda edição, um Apêndice contendo acréscimos e es
clarecimentos sobre alguns pontos da obra.
Como modelo estrutural, o plano expositivo da Critica
correspondia ao que vinha como tendência dentro do filoso-
far-por-escrito, no Ocidente: desde os embastidos períodos
das Meditações de Descartes e as idas-e-vindas argumenta
tivas de Locke e de Hume. Mas só em parte, Aquele plano,
por outro lado, ficaria como modelo para muitos livros pos
teriores, no sentido da ordenação interior das partes, seqüen-
ciadas por uma cerrada conexão, mesmo quando os seguido
res não tivessem a altura nem a profundidade de seu poder
de pensar.
Por outro lado, é possível detectar, no meio daquele ren-
dilhado de distinções, daquele dédalo de sutilezas (Nietzs-
57
che, entre irritado e irônico, se referiria ao “grande chinês
de Koenigsberg”), é possível detectar uma certa propensão
de Kant aos dualismos, ora como instrumento conceituai e
recurso distintivo, ou como fixação de pontos de referência.
Sempre a dicotomia: juízos sintéticos e analíticos, juízos a
priori e a posteriori, entendimento e imaginação, tal como
na crítica da razão prática o imperativo categórico e o con
dicional, ou ainda em sentido geral o fenômeno e o noumeno.
Caberia relacionar esta propensão a um padrão burguês do
pensar, na linha do próprio pensar secularizado que veio de
Occam e de Duns Scot e que deu os grandes monumentos
da reflexão analítica moderna. Caberia também indagar se
aqueles dualismos específicos não remeteriam por via siste
mática a um dualismo genérico, revelador — segundo me
parece — de um íntimo penchant metafísico. Mencionarei
adiante este problema, sempre eivado de aderências equívo
cas, o da relação entre Kant e a metafísica. Por ora aludirei
apenas às sutis distinções e às engenhosas exemplificações
encontradas por Kant — ainda preso ao método expositivo
dos séculos XVII e XVIII mas já voltado para as perigosas te-
matizações que foram as do idealismo romântico — na via
gem sempre larga e sempre miúda entre conceitos e reflexões
através dos quais se caracteriza a síntese e se situa a análise,
se determina o a priori e se reconhecem suás categorias.
Caberia ainda, e aqui estou apenas lembrando o tema,
um reexame da trajetória da idéia kantiana segundo a qual
existem juízo sintéticos a priori, idéia que supera a noção
tradicional do próprio a priori, para as idéias de Edmond
Goblot sobre a “construtividade” dos raciocínios dedutivas,
como modo de reentender a relação entre a subsunção clás
sica e as verdades latentes no conhecimento racional.18
Mencionemos agora a relação da Crítica com as outras
criticas. Enquanto a Critica ãa Razão Pura colocou os pro
blemas da existência de uma razão estruturalmente autôno
ma, a Crítica ãa Razão Prática lidou com a necessidade de
encontrar bases formalmente autônomas para a formulação
de regras morais de cunho “universal”. Não confundir as coi
sas, pois as duas “razões” não formam um “par” : a razão
segundo Kant pode ser pura ou não pura, empírica, e pode
ser teórica (teorética) ou prática O que não impediu que
o próprio filósofo, na Critica da Razão Pura, na “Metodolo-
58
già Transcendental”, em seu capítulo n , secção segunda, se
referisse ao "ideal do soberano bem como princípio determi-
nador da meta final da razão pura”..10
A ligação entre as duas críticas, entrevista a partir da
própria semelhança do plano expositivo (não faltando à Crí
tica da Razão Prática uma analítica e uma dialética), se com
prova, em nível mais fundo, na procura de moldes univer
sais, Comprova-se, assim, ao verificar-se a continuidade da
reflexão. Kant publicou em 1783 os Prolegómenos (Prolego
mena zu einer jeden kuenftigen Metaphysik, die als Wissens
chaft wird auf treten koennen), em 1785 a Fundamentação
da Metafísica dos Costumes, em 1788 a Critica da Razão Prá
tica e em 1790 a Crítica da Faculdade de Julgar, ou Crítica
do Juízo. Isto sem falar em outros trabalhos de menor ou
maior relevo,20 A continuidade da reflexão e a similitude
do plano expositivo se confirmam, como disse, na busca de
afirmações universais — e em correlação perceptível com
aquilo que se tem chamado o universalismo burguês —, cor
respondendo o juízo e a razão prática, como a razão em si
mesma, a categorias a que se emprestava, naquele tipo de
filosofia, uma principiai imutabilidade no tempo e uma ne
cessária unidade no espaço. Pois que o próprio tempo, e o
próprio espaço, se reduziam a categorias analiticamente de
finidas.
** *
63
sociar simplorìamente a filosofia de Kant com a de Augus
to Comte em função desta equívoca imagem.
As confusões a respeito do problema têm-se originado
do fato de Kant ter aludido às insuficiências da metafisica
“tradicional”. Como observa muito bem Cassirer, o ponto de
partida de Kant é a contradição entre as pretensões da me
tafísica, que assume o posto de instância suprema no tocan
te aos problemas do ser e da verdade, e sua incapacidade de
estabelecer normas de certeza dentro destes próprios pro
blemas. a,i
Como se sabe, existe, logo no início do prefácio da pri
meira edição da Critica da Razão Pura, uma referência de-
sairosa à metafísica. Kant a chama de “pretensa rainha” que
teve origem plebéia: obgleich die Geburt jener vorgegebenen
Koenigin aus dem Poebel der gemeinen Ehrfarung.37 Entre
tanto a recusa de Kant se dirigiu, como se compreende, à me
tafísica dogmática que o precedeu; dad dizer ele, no prefá
cio da segunda edição da Crítica, que “a crítica é a prepa
ração indispensável ao embasamento de uma metafísica só
lida e fundada como ciência”. 28 Isto sem falar em várias
outras passagens, e no fato — quase diria ostensivo — de
ter o filósofo escrito, logo em seguida à Crítica principal, os
“Prolegómenos a toda a Metafísica futura”, 20 e ainda a “Fun
damentação da metafísica dos costumes” e os “Principes me
tafísicos da ciência da natureza”. '10 Contudo, é válido ano
tar que a atitude de Kant em face do conceito da “coisa em
si”, ao ensejar interpretações discrepantes, ensejou também
aquela que o considerou avesso e adverso à metafísica. Creio
que a filosofia crítica de Kant foi uma crítica para a meta
física. Uma crítica dos supostos de uma determinada meta
física, com vistas a uma outra metafísica correta, comporta
da e possível. E creio que sua recusa foi estendida, e com
mais alcance, à ontologia: aludo à ontologia clássica, e me
lembro do dito de Ortega (que citei acima a propósito da ten
dência dos neokantistas a pensarem mais na cultura do que
no ser) segundo o qual não teria havido ontologia senão en
tre os gregos,31 opinião talvez um pouco chocante mas que
de vez em quando me parece digna de reconsideração.
** +
64
Volto entretanto ao terna de influência de Kant. Como
todas as glandes doutrinas, a do mestre das críticas teve
seu alcance pedagógico: a estrutura de seus livros críticos
influiu sobre várias obras posteriores, como influiu sobre elas
o próprio modo de expor, representado por Kant Desde o
começo do século XIX, não cessaram de aparecer obras e es
critos — nos mais diversos níveis ou nas mais diversas áreas
— intitulados “críticas” disto e daquilo, no seguimento da
sugestão contida nos titulas encontrados por Kant. Lem
brarei de passagem, entre outras, a crítica da experiência
pura; a crítica da crítica crítica em Marx, a crítica da razão
histórica em Dilthey, a crítica da razão dialética de Sartre,
para mencionar somente alguns dos textos mais assinalados.
O que me lembra, mas agora em níveis menores e quase co
mo uma epidemia ou um modismo, o uso recente dè se falar
a propósito de tudo no “discurso”, a partir do emprego da
expressão por Foucault (o discurso pedagógico, o discurso
liberal, o discurso conservador e assim por diante).
Gostaria de aludir , mas apenas como alusão, posto que
o tema não caberia mais aqui, às influências de Kant no
pensamento francês dos inícios do século XX: em particular,
à conversão da idéia de tempo, por Bergson, na de tuna
durée, que é outro modo de lhe atribuir sentido subjetivo, e
à presença de uma kantianidade bergsonizada e difusa, nas
páginas amplas e inesquecíveis da obra maior de Proust.
Quero aludir também, e com especial destaque, às in
fluências de Kant no Brasil. Elas começaram provavelmen
te com Diogo Antônio Feijó, que deixou escritos sistemáti
cos embora não muito originais sobre metafísica, metodolo
gia e lógica.33 Parece ter havido, também, marcas de Kant
sobre Martin Francisco Ribeiro de Andrade. Houve influên
cias difusas durante todo o século XIX, sobretudo em To
bias Barreto. O interesse de Tobias Barreto por Kant, po
rém, nunca chegou a arrancá-lo de suas posições basica
mente naturalistas, nem a leitura de Ludwig Noiré repre
sentou mais do que um aval ao haeckelianismo,33 por mais
que pensem o contrário alguns dos mais sérios e ilustrados
historiadores do pensamento brasileiro: o ensaio de Tobias
Barreto intitulado “Recordação de K ant” visualizza Kant
através de Helmholtz e de Zoellner, valorizando no filósofo
de Köenigsberg certas concessões ao empirismo, embora —
65
e muito lucidamente — aceitando a idéia kantiana de uma
metafísica assentada nos limites dados pela crítica da ra
zão.. 34
Referirei, ainda, o influxo do mestre das críticas sobre
Farias Brito, apesar do 'penchant panteista ou “panpsiquis-
ta” do grande pensador cearense. Referirei a tentativa de
Laurindo Leão, no Recife de inicios de nosso século, de de
senvolver um “fenomenismo” cujos fundamentos tinham algo
a ver com o conceito kantiano de fenômeno. Referirei tam
bém a proximidade que guarda com o subjetivismo episte
mológico kantiano a impressionante construção desenvolvi
da em nossos dias por Evaldo Coutinho, nas obras que inte
gram o conjunto chamado “A Ordem Fisionômica”, obras
tecidas com um subjetivismo tão coerente e tão envolvente
Bem como, se bem em outro sentido, a subjetivação cultural
da noção de tempo, levada a efeito a propósito de hispani-
dade é de trópico por Gilberto Fieyre. Para não falar do
interesse por Kant manifestado por vários outros autores
nacionais, como Miguel Reale, María do Carmo Tavares de
Miranda, Ernildo Stein, Benedito Nunes, Gilberto Kujavski.
sfc * *
66
do destes, ele atendeu simultaneamente à questão da lei
moral e à do céu estrelado.
NOTAS:
1 Giles Deleuze, La Philosophie critique de K a n t, ed. PUF, Paris 1971,
p, 19.
8 Cf. F lits Valj ave c, His toña de la Ilustración en Occidente, trad. Jesus
A. Callado, ed. Rialp, Madrid 1964, cap. UT, passim.
67
tom ad o pelas adições de Kant à 2,* edição, No exemplai da Crítica
existente na Biblioteca da Faculdade de Direito da UFPe, e que aliás
pertenceu a Tobias Bai reto, acha-se apenas o texto da primeira edição
(K ritik der reinen Vernunft von Immanuel Kant, text der Ausgabe
1781, mit Veisügung sammtlicher Abweichnungen der Ausgabe 1787.
Editada por K. Kein bach, 2.ft edição, Leipzig, Philipp Reclam Jr.., sem
data),
u CI, PATON, K an t's M etaphysic of experience, cit, pág., 75; Giles De
leuze, La P h il critique de K ant, c it, p. 22..
68
1914* Para uma noticia cronológica das obras de Kant, ERNST CAS*
SIRER, K a n t Vida y doctrina, cifc, in fine.
2ß CASSIRER, op cit-, p. 175 Cf. também PATON, op. e it, págs. 107 e
segs.
27 K ritik der reinen Vernunft, edição Kehrbach, citada, prefácio, pág 4
Na tradução Barni-Archambault (pág. 10) se lê “quoique cette pré-
tendue reine eút une naissance vulgaire....” Max Müller entretanto
traduziu assim: ". .. yet, as that genealogy (a de uma ascendência
real) turned out to be in reality a false invention, the old queen (a
metafisica) continued to maintain her claims" (prefácio, p. X V iil).
69
1965. MARIA DO CARMO TAVARES DE MIRANDA, destacando o
sentido clássico do «matemático” (inclusive na acepção platônica) co
mo apreensão da “mathesis”, ou seja, como conhecimento fundamental
por paite do pensar, acentua a relação, em Kant, entre a demonstra
ção dos princípios da razão e o caráter do “matemático” na meta
física moderna (O Ser da Matéria Estudo em K an t e Tomás de Aquino,
ed. UFPe, Recife, 1976, pp. 30 e segjs ).
70
A Obra de Dilthey e o “Mundo
Histórico” (■)
71
Além do a-sistemático e do fragmentário, que caracteri
zam exteriormente o trabalho de Dilthey, menciona-se tam
bém, com freqüência, o fato de que a maioria de seus livros
foi publicada após sua morte: em vida ele publicou apenas
a biografia de Schleiermacher (1876), a Introdução às Ciên
cias do Espírito (1883), e o conjunto de ensaios chamado
“Vivência e Poesia” (Erlebnis und Dichtung, 1907). Dai que
Lorenzo Giusso, ao início de seu excelente estudo crítico sobre
Dilthey, tenha dito que ele teve uma “fama póstuma”. 1
A situação histórica de Dilthey, com seu gosto pelos es
tudos histórico-Uterários (no mais amplo sentido da expres
são “literário”) , opera o salvamento do largo e profundo es
forço filológico das décadas românticas, e entretanto atualiza
o sentido da meditação sobre a história, sem entretanto lar
gar-se a teorizações fantasiosas.
Observou Nìcol que o sentido epistemológico da filosofia
foi herdado de Kant por Dilthey, que por sua vez aproveitou
de Hegel o sentido da noção (muito alemã) de “espírito”, que
contudo, na reflexão diltheyana, se desubstanciailiza, se de-
sübstantiva.2 Com essa dupla herança, bastante para caracte
rizar um lastro filosófico, Dilthey modelou seu pensar geral.2
Freqüentemente se fala no “a-sistemático” como carac
terística do pensamento diltheyano, e por vezes se usa esta
expressão como nota negativa. Na verdade o modo pelo qual
Dilthey encarou o problema do sistema foi outro, diverso do
gistematismo ortodoxo que vinha do cartesianismo e que teve
um de seus cumes, por exemplo, em Hegel: Dilthey se preo
cupou muito mais em compreender as estruturas históricas
(enquanto estruturas do humano), do que em montar esque
mas formais. A não ser, evidentemente, aqueles esquemas
necessários ao próprio trabalho de entender a história.
Ainda que não adotasse expressamente a idéia de Bene
detto Croce, segundo a qual filosofia e história seriam no
fundo a mesma coisa (não havendo verdadeira filosofia sem
o contato das realidades históricas nem verdadeira história
sem a luz da interpretação filosófica), é óbvio que Dilthey
esteve bastante próximo "a esta idéia. Sua reflexão filosófica
(e mesmo seu constante psicologismo) sempre se desenvolveu
diante dos temas históricos, e sua visão dos temas históricos
nunca foi meramente historiográfica, antes sempre visão cri
ticamente filosófica: preocupada com tipos e com significados.
72
2. Visões da história no Ocidente Contemporâneo:
Vico a Heget È perfettamente compreensível situar a figura
de Dilthey, internamente embebida de preocupações históri
cas, no ápice de uma série de visões e revisões da história
que se inicia ao tempo de Vico e que caracteriza, acentua
damente, uma preocupação filosófica típica da modernidade
ocidental. Já foi dito (inclusive por Spengler) que o Ocidente
é (ou foi?) uma cultura assinalada pelo aguçado senso da
hlistoricidade: este traço, entre outros, o distinguiría de ou
tras culturas.
Tem sido dito, por outro lado, que o senso da hisitorici-
dade não aparece inteiramente, no mundo ocidental, senão
depois do chamado Renascimento: no medievo, o provMen-
cialismo e a “metafísica do lugar natural” retiveram o pro
cesso de surgimento de uma efetiva consciência histórica, e
portanto um autêntico pensar histórico. Mas o Renascimen
to, envolvido com seus avanços e seus recuos, imitando a an
tigüidade e descobrindo coisas novas, não pôde estavehmente
amadurecer uma imagem da realidade histórica como tal:
esta imagem, ainda adiada ou insuficiente durante o barroco
e mesmo durante o racionalismo clássico, esperaria por Giam
battista Vico para ser plenamente intuída e convincentemen
te explanada, embora aínda (é claro) sem fundamentos de
finitivos e com manifestos defeitos.
Coübe a Vico, em perceptível contraste com a concepção
cartesiana, fundar uma epistemologia da história que em
verdade constituiu uma epistemologia historicista. Com Vico
colocaram-se de algum modo os alicerces do tipo historizante
de pensar, que desde então (e sobretudo a partir dos român
ticos) seria o oposto do tipo racional de pensar. A idéia de
Vico, segundo o qual a história seria para o homem o objeto
de conhecimento mais próprio, ficaria contudo por muito
tempo sem receber o devido desenvolvimento. 4
O pensamento histórico do Ocidente contemporâneo co
meçou a foimar-se dentro dos temas do iluamnismo; mas,
em Verdade, foi através do robustecimento da temática his
tórica que o iluminismo cedeu passo ao romantismo. Isto se
deu, no pensamento do século XVIII, por meio de antecipa
ções, que ocorreram ao lado das linhas anais ostensivas do
racionalismo, mais próprias do iluminismo como tal.
A obra de Vico, de certo modo alheia ao iluminismo,
constituiu uma espécie de passagem direta do barroco ao ro-
73
raantàsmo e não se encaixou numa continuidade; não teve
propriamente seguidores. Aguardaria Croce para uma reto
mada de temas e de diretrizes.
Enquanto isso, no cerne do iluminismo francês, Voltaire
constatava o histórico através da continuidade dos problemas
éticos, sobretudo no Essai sur les Moeurs.,15 Montesquieu, em
ciima de largas leituras e de pacientes confrontos, nem sem
pre internamente originais, desdobrava o histórico ao lado de
estudos políticos, antropológicos, jurídicos: o histórico como
constância e condición armento, ocasião das leis, palco de
grandezas e decadèncias,0
Dentro do iluminismo alemão, complicado pelos resquí
cios do racionalismo setecentista e pelos conservadorismos
locais dispersos, situaram-se três autores que Meinecke con
sidera nucleares — cada um num sentido — para a gestação
do historicismo contemporâneo. São eles Justus Moeser, Her
der e Goethe. Goethe, fora da Alemanha, não é senão rara
mente lembrado como hi storicista; Moeser não é conhecido
do grande público; mas Herder realmente figura sempre como
um dos iniciadores de um. pensamento historizante.7
Ao ceder passo à tendência romântica, o iluminismo —
conforme alusão linhas acima — o fez sobretudo por meio
do aprofundamento dos temas históricos, que o racionalismo
radical de Rousseau ignorou (seu caminho para o romantis
mo foi outro) e que só aos poucos se impuseram. O famoso
ensaio de Kant sobre a Aufklaerung revelaria a ambigüi
dade do iluminismo a respeito da história, expressada em
seu próprio apogeu.s Kant, envolvido no remdalhado de ques
tões analíticas que se propôs, não pôde ter uma idéia ple
na da problemática da história.0 Foi, entretanto, coetàneo
de Herder.
Na geração de Hegel, porém, s.e iniciava um processo
decisivo: o da criação das ciência® históricas contempoi*â-
neas, com base inclusive na arqueología e na filologia. Hegel
percebeu com profunda intuição o sentido da visão moderna
da h ’störia, burguesa e secularizada; deu-lhe dimensão meta
física e conjugou-a ao majestoso esquema da dialética, onde a
tríade tese-antítese-síntese servia de correlato à imagem de
um fluir, e onde cabiam também (como couberam nas Vorle
sungen ueber die Philosophie der Geschichte) as imagens
das civilizações, entendidas como “momentos” de um auto-
realizar-se temporal do Espírito.10
74
No Zeitgeist de Hegel o impulso dos saberes históricos,
recém-estimulados, condicionou também a criação de “Escolas
Históricas”, a começar com a do Direito (encabeçada por
Savigny e integrada por Puchta, Eichom e outros), seguida
pela da politica, pela da economia, pela da literatura. Idéias
ainda vagas, mas necessárias então como urna espécie de
pento de referência, como a de Volksgeist, pairavam em to
das elas: o tratamento histórico dos temas servia aos conser
vadores como argumento em favor das tradições, mas sem a
também como acervo de exemplos aos liberais — frequente
mente ¡carregando nas tintas — e aos próprios socialistas.
O trabalho histórico, em cada grande nação européia na pri
meira metade do século dezenove, foi mareado pelo naciona
lismo, mas havia um denominador comum que provinha dos
conceitos básicos utilizados, da mesma imagem evolutiva das
instituições, do mesmo enfoque metodológico que juntava à
paixão e à intuição a disciplina das conquistas filológicas:
foi o caiso de Taine e de Fústel na França, e o dos român
ticos na Alemanha (Niebuhr, Burkhardt, Ranke, D-roysen,
Mommsen e tantos outros), 11
3. Do Espirito Objetivo ao Mundo Histórico. O vas
e complexo sistema de Hegel foi dominado por duas tendên
cias não inteiramente conciliáveis : a tendência racionalis
ta, identificada com o lado formal do -próprio sistema (mas
também com os conteúdos metafísicos da lògica e da dialé
tica), e a tendência historicista — talvez ainda apenas his-
torizante, ou historialista —, correspondente ao senso do
real e das estruturas do viver concreto enquanto fluxo tem
poral. A vigorosa visão do real, configurada pela dialética e
completada pelas noções de “Idéia” e de “Espírito”, tra
duziu-se na obra de Hegel sob formas distintas: na Estética,
por exemplo, bem como na Historia da Filosofia, o palpável
sentido do histórico; na Filosofia do Direito, o predominio
dos ângulos abstratos e conceituais.
Com o conceito de “Espírito objetivo”, Hegel alcançou
um leque bastante largo de referências. Como todo o real é
objetivo, toda presença do Espírito (Geist) na realidade cor
responde àquele conceito, incluindo as grandes formas da re
ligião e da cultura, dadas na história, bem como os processos
psíquicos e toda a sorte de mam'festação daquilo que o ente
humano possui de específico.12
75
Durante a época romântica, e ainda ao tempo de Hegel, a
filosofia idealista trabalhou sobre esquemas semelhantes:
não assumindo nem manipulando propriamente o material
arqueológico e filológico que ia sendo paralelamente levan
tado, mas dando sentido metafisico a qualquer sistema de
signos. Neste sentido, se entende o surgimento da teoria ro
mântica da hermenêutica, representada inclusive por Boeckh
e Schleiermacher.18
De permeio, a preocupação com a ordem alimentava a
teoria social dos restauracionistas e tradicionalistas,14 en
quanto Augusto Comte encetava sua enorme tarefa da recons
trução do saber social e da ordem social. O evolucionismo
montava uma especial interpretação da seqüência de situa
ções vividas historicamente pelos grupos, Marx e Engels
partiam de Hegel e de David Ricardo para negar a ambos.
O naturalismo pareceu por um tempo dominar em definiti
vo o panorama da chamada filosofia. O surgimento do neo
kantismo, gerado na Alemanha após o célebre apelo de Otto
Libmann, veio restaurar os direitos temáticos e doutrinários
do idealismo (ou ao menos de uma filosofia de tipo meta
físico),15 tarefa que, em outra faixa e com outro sentido,
o bergsonismo também assumiria à mesma época.
Mas o neokantismo, diversificado por conta de diferen
ças universitárias e de preferências temáticas, não refez in-
teiramente a metafísica: recolocou o dilema que Kant viveu
diante dela, retomando-o com armas novas. Inclusive com o
enfoque histórico, de que Kant não se valera O enfoque his
tórico, que viria a ser característico de Dilthey, permitiu-lhe
ser e não ser antipositivista, recusar mas não inteiramente
a metafísica, ser neokantiano mas não exatamente.
O pensamento histórico de R'ckert, envolvido com suas
inquirições sobre o valor, não produziu infelizmente um cor
po doutrinário bastante influente. Windelband, que produ
ziu um trabalho inegavelmente valioso como historiador da
filosofia, não apresentou, na parte mais pessoal de seus es
critos, runa reflexão mais cativante, nem mais original. Em
Cassirer, que veio em outra geração, um toque muito pes
soal nos temas e nos rumos quase que o põe fora do grupo
específicamente neokantiano. Paul Natorp, com uma forte
coerência temática, correspondente a uma estável ligação
com o corpus kantiano, não se constituiu, como Riekert, em
76
influência maior O mesmo se diga de Cohen. Quanto a Sim
mel, bastante independente, dispersou-se em uma série de
versáteis e brilhantes contribuições, infelizmente desprovidas
de ligação interna mais explícita.
Deste modo a obra de Dilthey, com sua idéia do “Mun
do Histórico”, teria talvez menos que ver com a de seus coe
táneos do que com a de historicistas posteriores, como Man
nheim e Meinecke; cabe certamente compará-lo a Croce, seu
pendant italiano, também preocupado com a história da his
toriografia, bem como a Troeltsch, que vem na geração se
guinte à sua, assim como a Spengler (tão diferente entretan
to) , a Ortega, a Huizinga, mesmo a Sombart e talvez ao pró
prio Weber. Aliás, aos dois Weber, Max e Alfred.10
79
do pensamento do século XIX. O que ele queria era situar as
expressões históricas do espirito: situar e compreender, em
consonância com a tríade que fixou em seu livro sobre o
Mundo Histórico: “Vivência, Expressão, Compreensão”. Vol
taremos a isto mais adiante.
Dilthey historicista: o termo diz muito e diz pouco. Não
apenas historicista nem estritamente, porquanto vitalista,
buscador de significações, analista do poético, não propria
mente historicista no sentido que tende a vulgarizar o ter
mo. Sim fundador de uma das principais versões do histori-
cismo, versão enriquecida com o enfoque vitalista e com lar
gas pesquisas sobre evolução de idéias
Erich Auerbach, em um dos seus magistrais estudos de
história literária, menciona o historicismo como algo nas
cido no Ocidente contemporâneo, a partir do “descobrimen
to copernicano das ciências do espírito”.
Realmente, o que se chama historicismo surge como uma
solução substancial diante dos caminhos e dos impasses do
pensamento ocidental. Em vez dos sistemas clássicos, cons
truidos à maneira de Leibnitz e Spinoza, e das filosofías de
finidoras, elaboradas como uma cadeia de definições (isto
vale tanto para a Summa Teológica como para a Etílica inore
geometrico) ou, ainda, das filosofias que — como a de Kant
— criticam definições, mas sempre preocupadas com o de
finir, o pensamento mais recente se encaminhou no sentido
de situar criticamente os sistemas e os problemas. Situá-los
em contextos de tempo e espaço: e, posto que nestes tem
pos se veiculava o conceito de cultura, situá-los em contex
tos culturais, que são afinal contextos históricos. Percebeu-
se que, mais do que o jogo formal dos conceitos, que pode
tender ao lúdico, interessa compreender a relação vital dos
conceitos (e dos problemas) com a circunstância: época,
quadro cultural (e social também), conexões de toda a sorte,
Na passagem do século XVIII ao século XIX, e do ilu-
minismo ao romantismo, enfatizaram-se (isto foi mencio
nado acima) os temas históricos. Um progressivo acúmulo
de dados e de questões obrigou os intelectua's do oitocentos
a levar em conta as ciências históricas, em -paralelo à funda
ção explícita ou implícita das ciências sociais pelas mãos de
Saint Simon, Comte, Stein, Spencer, Marx. De algum modo
cada um destes pensadores pode ser considerado “histori-
80
cista”, na medida em que todos construíram suas doutrinas
com base em materiais históricos e em esquemas históricos;
registro, apenas, uma ressalva que já tenho feito no senti
do da pouca compatibilidade entre o historicismo propria
mente dito e as teorias monocausalistas,23
Certamente que o historicismo é um criticismo e se não
o fosse seria um retrocesso. É também um relativismo; e pa
ra que a frase não desagrade muito, vale acrescentar que
isto não significa que seja um ceticismo ou um agnosticismo.
A mesma oposição que o criticismo kantiano trouxe para
com os dogmatismos clássicos, o historicismo traz para ou
tros dogmatismos, inclusive para os “sistemas” que têm sur
gido do século XIX para cá, cada um deles tendente a se
transformar em outras tantas escolásticas.
Seria o caso talvez de dizer-se que há diversos histori-
cismos. São versões várias de uma idéia básica, a de que a
vida humana se expressa — com seus valores, inclusive —
através de contextos históricos, E de que, por conseqüên
cia, problemas e conceitos são historicamente condiciona
dos, 21
Com o historicismo, que é tun modo de superar as filo
sofias dogmáticas situando-as, e de encontrar na vida histó
rica os significados fundamentais dos problemas, superam-
se certos pseudo-problemas, como por exemplo aquele conti
do na opção entre dizer que o homem faz a história (afir
mação illuminista reproduzida pelos românticos) e dizer que
a história faz o homem (afirmação assumida pelos historia
dores da segunda metade do século XIX) : o homem, que
faz a história, vem sendo feito por ela, e o importante é o
seu modo de se reconhecer nela e através dela,
É evidentemente exagerada a famosa frase de Ortega
— ele mesmo sem dúvida um diltheyano — , segundo a qual
ei hombre no tiene naturaleza, sino que tiene historia. O que
se deve pensar é isto; por intermédio da historia se conhe
ce melhor a natureza do homem.23 Na história se situam
os problemas. Pouco vale inclusive disputar se o homem é
um animal racional ou “simbólico”, se é loquens, ludem ou
viator: o homem se distingue por um poder de criar coisas,
que são (ou possuem) significações, e nisto se acha o falar,
o jogar, o simbolizar e tudo o mais. É este um dos pontos,
aliás, em que o historicismo pós-diltheyano se relaciona com
81
o legado de Hegel: tanto pela noção de “objetivação” do Es
pirito, através das expressões e dos significados, como pela
idéia de um “superar conservando”, que corresponde à Auf he
bung e que indica que o existir histórico é sempre cumula
tivo (e que todos os tipos de experiência são, enquanto his
tóricas, cumulativas), dada a formação de uma consciên
cia que nunca é apenas do presente.20
Desta aparente fluidez do enfoque histórico, que contu
do relativiza os objetos sem os diluir, deriva a contrincante
querela que sempre lhe moveram: desde Lukács e outros au
tores marxistas,27 até Troeltsch — ele mesmo, de certo mo
do, historicista —, ou até Karl Popper e Leo Strauss, cada
um por conta de urn bias pròprio. O historicismo visado por
Popper, em seus livros cheios de mal-entendidos, não corres
ponde ao conceito de Dilthey nem ao de Croce, nem ao de
Ortega, nem ao de nenhum historicista: corresponde a um
modelo doutrinário fabricado com o intrato, aliás louvável, de
refutar o totalitarismo.28 Houve também quem dissesse (opi
nião partida inclusive de certos arraiais tomistas, sempre
agarrados ao linear e ao compendioso) que o historicismo eqüi
valia a um “facilitáiio” : tudo se aceita porque tudo se situa.
O que na verdade inverte o problema. Exige muito mais de
reflexão crítica uma posição que indaga constantemente a
relação entre cada problema (cada doutrina) e as condições
históricas — elas mesmas tomadas como conceito e como
problema — do que uma doutrina erigida em saber perene,
com perguntas fixas e respostas previstas. Tipo de filosofia
em que se vão convertendo várias teorias, esvaziadas pela
excessiva divulgação.
A contribuição de Dilthey — voltemos a ele — à funda
mentação das ciências-do-espírito (chamemo-las igualmente
“humanas”, “culturais”, “sociais”) constituiu, e isto sobre
tudo na sua monumental Introdução, -n um esforço real
mente extraordinário de fazer historicismo sem ficar apenas
na historiografia de idéias, assumindo com enorme lucidez
as tendências basilares de seu tempo, no sentido de estruturar
saberes. Sabemos efetivamente que, em Dilthey, um dos tó
picos mais característicos foi a idéia de que a história pos
sui uma estrutura. Estruturas históricas como dados reais,
e estruturas epistemológicas como construção filosófica: este
o panorama mais sintético possível da temática de Dilthey,
82
que de resto aparece por inteiro na obra sobre o mundo his
tórico.
6. A influência de Dilthey. Ortega chegou a mencion
Dilthey como o maior pensador europeu da segunda meta-
de do século XIX E Eugênio Pueciareiii, no extenso “Es
tudio Preliminar’’ que escreveu para a edição argentina de
Das Wesen der Philosophie, citou a opinião de G, Masur, que
considera as idéias diltheyanas como “patrimônio de todos
os homens que hoje se ocupam do problema das ciências do
espirito”. 30
A influência de Dilthey, cuja obra abarcou todos os
grandes temas da filosofia historicamente encarados, e to
dos os grandes problemas filosóficos da historia, se fez sen
tir na esfera da filosofia e da psicologia, na teoria literária,
no pensamento histórico, nas rev.sões históricas da evolu
ção cultural do Ocidente, e, basicamente, no exame das
bases das ciências chamadas do espirito. Eugênio Imaz, no
capitulo XI de seu notável livro sobre o filósofo, situa a im
portância de seu pensamento para o nosso tempo, acentuan
do inclusive o pioneirismo com que, na Espanha, Francisco
Giner de los Rios se ocupou da obra do autor da “Essência
da Filosofia”. 31
Não foi propriamente fácil nem imediata a repercussão
do pensamento de Dilthey nos outros países, isto é, fora da
Alemanha: traduzido ao italiano e ao francês, estudado na
Inglaterra, divulgado na Espanha, mas disputando lugar
com uma série de figuras também muito brilhantes, que
ocuparam a cena entre fins do oitocentos e inicio do nove
centos: sobretudo, na Alemanha, os neokantianos, e mes
mo — inclusive algo após a morte — os teorizadores da cul
tura tipo Frobenius e Spengler.
Haveria que mencionar entretanto o nome de Eduard
Spranger, indiscutivelmente discípulo de Dilthey, que levou
adiante a idéia da conexão, entre a vida humana e as estrutu
ras culturais, tomadas inclusive como estruturas domina
das por valores, principalmente em seu admirável livro so
bre as formas de vida.32 Haveria que mencionar Ortega y
Gasset, tão espanhol em certo sentido, tão germânico em
certas fontes: muito Simmel, muito Dilthey. De Dilthey
e também de Simmel recebeu Ortega a noção de filosofia da
83
vida, com a própria noção de vitalismo, que temperou no
famoso ensaio Ni racionalismo ni vitalismo, mas sempre se
guindo vitalista; como recebeu de Dilthey a noção geral de
historicidade (que aguçou em seu conceito de "sentido his
tórico”), com as noções correlatas de estrutura histórica,
mundo histórico, conhecimento histórico.
Do esforço e da terminologia de Dilthey provieram por
tanto diversos componentes do modo de equacionar os pro
blemas da filosofia da história em nosso século, mesmo le
vando-se em consideração as diversas variáveis doutrinárias
existentes. A idéia de compreensão e a de vivência, a visão
de estruturas, a referência ao histórico como algo específi
co (a difícil questão do ser da realidade histórica), tudo isto
nos veio do filosofar contido nas obras de Dilthey.
7 . O legado: problemas. O que os grandes pensadores
legam são problemas, e Dilthey não escapou a isto. A siste-
matização do historieismo, elaborada durante a seqüência
de suas obras (e Eugênio imaz sublinhou bastante a expres
sividade desta seqüência, em sentido evolutivo), não foi e
não poderia ser — nem pretendeu ser — uma ordenação “de
finitiva”, o que teria sido redução do histórico ao não-histó-
íico. Se se toma como não histórico o esquema conceituai
auto-suficiente, o historieismo não deve nem pode reduzir-
se a ele- Embora se saiba, por outro lado, que é impossível
manter a formulação do pensamento histórico dentro do
próprio nível do fluir histórico, ou seja, isento de expressões
(substantivas e adjetivas) que a ponham, enquanto formu
lação, e ao menos em alguns pontos essenciais (“essenciais”
já está no caso, como expressão), no plano das idéias ditas
gerais.
Este problema, que corresponde a um dos pontos nevrál
gicos do historieismo, e que alcança como decorrência a ques
tão de aplicar ao ismo historicista o próprio relativismo his
tórico que situa e "diminui” os objetos (questão que inclusi
ve preocupou Troeltsch), este problema acha-se insito e la
tente no legado de Dilthey.
Ê possível, por outro lado, que uma crítica mais exigen
te encontre no pensamento diltheyano alguns traços de psi
cologismo e mesmo fortes vestígios de positivismo. Um psi
cologismo difuso, presente inclusive em sua noção de Erleb
te
ids (vivência) ; um positivismo residual, encontrável em sua
“Introdução às Ciências do Espírito” e correlato de sua sem
pre ambígua recusa da metafísica, e de suas intenções empi-
ricistas,
Eugênio Pucciarelli, tratando das relações entre Dilthey
e o positivismo, observou que o positivismo diltheyano teria
consistido na preocupação com o empírico, mas a amplitu
de de seu conceito de experiência, mais largo que o dos po
sitivistas propriamente ditos, o afastava do autêntico posi
tivismo. Para Pucciarelli a definição genérica da filosofia
diltheyana ficaria próxima daquele tipo que o próprio Dil
they denominou “idealismo da liberdade” (nem seria em vão
que seu pensamento se formou dentro das tradições do idea
lismo alemão, com seus refolhos e suas nuances), embora
ele não se decidisse por um esplritualismo explícito.33
Realmente, sua visão da história, se bem caracterizada
por um constante e visível respeito pelos dados empíricos,
não se retém ao nível do empírico. Ela o transcende, inclu
sive por ser congenitamente uma interpretação: por ser uma
elaboração interpretativa, que aparece relacionada com a
tríade de conceitos situada em “O Mundo Histórico”: vivên-
cia-expressão-compreensão.
Esta elaboração interpretaba, que é (à maneira de
Kant) uma imposição do sujeito cognoscente sobre o objeto
a conhecer, supera o marco externo do fato histórico “puro”
e busca nele as conexões e os significados. Neste ponto cabe
apontar e frisar a extrema importância do termo estrutura
(de resto muito caro ao pensamento dos neokantistas) no
ideário de Dilthey. No “Mundo Histórico” este termo apare
ce de modo muito significativo.M Com o termo estrutura,
que como se sabe designa algo mais do que “forma”, por
quanto se refere à conexão entre as partes e o todo, Dilthey
indicou entre outras coisas a possibil1'dade de se aludir aos
significados espirituais (de Geist, espírito) contidos na rea
lidade humana — sempre entendida como realidade cultu
ral e histórica.
Neste sentido se reestima a enorme importância que teve,
na evolução da vida intelectual do Ocidente (dirse-ia, com
Michel Foucault, evolução da epistème ocidental), a funda
mentação das ciências humanas — ciências do espírito —,
fundamentação que começa no tempo de Montesquieu e Con-
85
dorcet e vai até o início do século vinte, e na qual a parti
cipação de Dilthey foi inegUgenciàvel.
Ainda dentro da questão das relações entre Dilthey e o
positivismo (diria quase a tentação positivista)., é de lem-
brar-se que sua “recusa da metafisica” se prendeu também,
até certo ponto, a uma visão da inanidade dos sistemas: a
filosofia é necessària, mas não adianta a construção de “sis
temas” no sentido clássico. Semelhante visão já havia ocor
rido a outros, inclusive a Victor Cousin (a meu ver um in
justiçado), que tentou situar as diversas soluções sistemáti
cas em termos de revezamento histórico. Dilthey também
situa os tipos de sistemas e também tenta fazer da compreen
são das situações históricas um antídoto ao menos parcial
para o ceticismo (se creio no relativismo, creio em algo);
só que, provido de nutrientes novos, colocado num contexto
mais complexo do que o de Cousin, ele encaixou a teoria
das “concepções do mundo” numa tipologia de modelos his
tóricos de “certeza”, fundada sobre uma expressa empatia
histórica e uma profunda compreensão das épocas,35
O relativismo de Dilthey, temperado neste ponto pela
própria empatia histórica, como antecipadamente pelo pró
prio empiricismo, não foi de modo nenhum uma “nota me
nor” Como disse Imaz, o aumento de consciência (históri
ca) teria de ser uma limitação, uma circunspeção. E mais,
em suas palavras:
Dilthey está na linha do (século) XVIII, co
mo estava Hegel. É um relativista com segundas
intenções, como Hegel um absolutista com segun
das intenções. Hegel supera a filosofia do enten
dimento, do século XVIII, com uma filosofia da
razão, dialética idealista da história; Dilthey sti
perà a ambos, com uma filosofia da vida, dialéti
ca empirica da história.1C
8. O “Mundo Histórico”. Vale observar que em Dilthey
o historicismo não se reduziu a uma afirmação epistemolo
gica. Ele não se limitou a estabelecer o caráter histórico das
realidades humanas e do próprio pensamento, com suas for
mas e suas tendências. Em Dilthey, temos além disso um
esforço para descrever o “mundo” formado pela realidade
86
histórica, um mundo específico que entretanto sempre foi
o ambiente global do existir humano. Específico em relação
ao outro mundo que é o da natureza, objeto da epistemolo
gia clássica, mas abrangente e condicionante, como estru
tura, em relação a cada vivência e a cada problema humano
concreto.
Na obra sobre o Mundo Histórico (que resulta de um
arranjo de escritos agrupados por Bernard Groethuysen)
Dilthey ainda projeta seu inarredável psicologismo, inclusi
ve ao equacionar os conceitos prévios que nortearão seu es
tudo. Também está presente na obra aquele fragni entarismo
que aparece em quase todos os seus trabalhos (alguns crí
ticos dizem que, afora a Introdução às Ciências do Espirito
e a Vida de Schleiermacher, tudo o que Dilthey escreveu fo
ram ensaios e fragmentos); um fragmentarismo um tanto
desconcertante. Dentro do psicologismo, encontramos contudo
dois pontos altamente valiosos: a constância do conceito de
“vivência”, sempre recorrente em toda a obra diltheyana,
e o uso do conceito de estrutura, já mencionado..
Dilthey fala em estruturas psíquicas e em estruturas
científicas; por outro lado, o próprio mundo histórico tem
uma estrutura. Note-se que o livro se refere à construção do
mundo histórico (o título em alemão é Der Aufbau der his
torischen Welt), isto é, ao trabalho de elaboração que parte
do espírito humano — falamos disso mais acima —, que se
projeta dele e se impõe sobre a realidade, e lhe dá uma or
denação. Algo como a pretensão, corrente entre os grandes
racionalistas do século XVII, de pressupor e explicitar uma
correlação entre a organização da realidade e a do entendi
mento "humano (ordo et connectio rerum. idem est ac ordo
et connectio idearum, postulava Spinoza).
Só que aquela realidade, a dos racionalistas do século
XVII, era a da natureza.37 Em Dilthey a preocupação é com
a correlação entre as estruturas do saber e a realidade his
tórica, avalizada pela presença, em ambas, do espírito
(Geist), que tanto infunde sentido às imagens e aos fatos
da história quando movimenta e alimenta as construções (e
pretensões) do saber dos homens. É neste sentido que se tor
na válido falar em uma “Crítica da Razão Histórica”, que,
como conteúdo e resultado das análises de Dilthey, pode ser
considerada continuação, retificação ou eomplementação das
87
críticas kantianas (aliás este seria o título da parte segun
da da Einleitung, que Dilthey jamais escreveu) - Mesmo por
que, sendo a história enquanto estrutura um produto do es
pírito humano enquanto ordenador (estruturador) de ima
gens, a crítica da razão histórica se entende também como
reflexão, como crítica de si, como auto-consciência.
Eduardo Nicol, em seu admirável livro sobre o histori-
cismo e o existencialismo, anota que Dilthey, com sua idéia
de uma “crítica da razão histórica”, tornou “possível uma
ciência deste mundo de realidades humanas espirituais, que
se chama história”. 38
Em confronto com os capítulos da Introdução, comple
tos e encadeados, os diversos textos que integram o Mundo
Histérico são desarrumados e iterativos. Há tópicos incom
pletos, versões diferentes, apêndices, repetições: nada da ar
quitetura das sumas, nem do arranjo implacável dos corolá
rios de Spinoza, nem do paciente rendilhado de Kant. Um
quê de aparente displicência, mesclada a uma um tanto ro
mântica assimetria de partes, como se por uma dramática
impossibilidade a construção global do livro tivesse ficado
por fazer.30
E entretanto, um sopro de coerência, uma palpável uni
dade no conteúdo, uma exemplar continuidade dentro do des
contínuo.
De central importância, no livro, a porção intitulada
“Plano para continuar a estruturação do mundo histórico”,
cuja primeira parte se refere à tríade "Vivência, expressão e
compreensão”. Esta parte começa com um texto sobre a “crí
tica da razão histórica”, 10 e em todas as subpartes que a
integram se acha o termo estrutura. Vivência, expressão e
compreensão aparecem como três momentos, que podem
ser comparados de alguma maneira aos três modos hegelia-
nos do espírito (o subjetivo, o objetivo e o absoluto), por
quanto o que se tem, na compreensão, é a “captação” da vi
vência através da expressão. Nem esta é eliminada, nem a
vivência é perdida se se dá a compreensão: esta ê abrange-
dora, recuperadora e interpretativa
Em Dilthey, a diferença entre explicar — propósito epis
temológico das ciências naturais — e compreender — o obje
tivo das ciências do espírito —, que não deixa de implicar8
88
uma distinção quase metafísica entre natureza e história
(distinção que Spengler acentuaria violentamente em sua
Untergang), chega a fundar uma teoria dos significados.
Uma problemática tipicamente alemã, ligada ao conceito de
“conexão de sentido” (Sinnzusammenhang) e ao de Vers
tehen, tal como este se apresentou na metodologia de Max
Weber, ele mesmo tão avesso à metafísica e tão cioso dos
objetivismos científicos.
No começo de nosso século, a teoria da cultura, desenvol
vida simultaneamente pela filosofia de origem neokantiana
e pela pesquisa antropológica, se transformou numa espécie
de metafísica do ser cultural, com o conceito de paideuma
veiculado por Frobenius e com as persuasivas estampas de
Spengler sobre a autonomia substancial de cada grande cul
tura. Windelband, com sua célebre noção de ciências nomo-
téticas e ciências ideográficas, expressada num discurso de
1894, não chegou a tanto; 11 Dilthey também não. Em Dil
they o contraponto empiricista, aliado ao penchant psicolo
gista, impediu a chegada até uma metafísica do ser histó
rico. Permanecem em sua obra dois componentes comple
mentares, nem sempre plenamente combinados mas perfei-
tamente nítidos e discemíveis: de um lado a visão do histó
rico como realidade, como estrutura, como objeto distinto
dos objetos naturais, como realização cultural do homem;
de outro, a consciência de que o caráter estrutural da histó
ria é afinal obra do espírito do próprio homem, que na his
tória vive, e que, tomando conhecimento da história, expli
cita e organiza sua auto-consciência.42
E este é um aspecto de inquestionável importância- O
entendimento da história como cultura, adotado do fim do
século XIX para o XX, é um ponto de vista que enriquece
qualquer linha de pesquisa. E não será mero jeu de mots
completá-lo com uma alusão ao entendimento da cultura
como história. Isto quer dizer que a cultura não consiste
propriamente, ou unicamente num acervo de coisas que em
dado momento — e quais os limites deste momento? — per
fazem um todo compreensível. Consiste também, e mais pro
priamente, em um processo de pervivência: origem, ocor
rência e pervivência. Pervivem os núcleos daquele acervo,
alterados ou absorvidos: pervivem na vivência ou na memó
ria, enfim na consciência da relação entre o que veio ocor-89
89
rendo e o que passa a ocorrer. Pervivem como conjunto e
processo, estrutura e duração, situação e imagem.
NOTAS
90
Hegel, ed Civ, Brasileira, trad. H. Garcia, Rio de Janeiro 1971 Cf.
ainda KOSTAS PAPAIOANNOU, Hegel, trad. Ana Maria Patacho, Ed.
Presença. Lisboa 1964» e ainda os textos coligidos no volume Hegel,
ed, da Univ. de Brasília, 1981, passim.
91
iß El Pensamiento de Dilthey, c it, pág, 58-
si Of, supra, nota 13. O texto ali citado também se acha incluído no
Mundo Histórico, mas sem os complementos. Também em seu escrito
sobre “O sistema natural das ciências do espírito no século XVH”,
Dilthey mencionou de passagem o tema do nascimento da hermenêu
tica, ao curso dos debates teológicos do século XVI: ele inclusive con
fessa que o interesse da hermenêutica paia sua própria obra acentuou
a importância que atribula à história de sua formação, desde a teo
logia até às ciências do espirito (Hombre y Mundo en los siglos X V I
e X VII, trad. E,. Imaz, ed. FCE, México 1947, págs. 125 ss,) . Aliás esta
obra foi traduzida na Itália por R. Sauna, também tradutor de Troel
tsch, com um titulo talvez mais semelhante ao do original, W eltans
chauung und Analyse des Menschen seit Renaissance \ind Reforma
tion (L'Analisi delVtuomo e l'intuizione della natura del Rinascimento
al secolo XV II. Ed. Nuova Italia Veneza 1947) — Sobre a hermenêu
tica diltheyana, v,. ainda E PUCOIARELLI em La Esencia de la Fi
losofia, pp. 51 ss.; bem como, paia outros dados ADOLFO PLACHY,
La Teoria della interpretazione. Genesi e storia della ermeneutica mo
derna, ed. Giuffrè, Milão. 1974,
92
24 Cabella mencionar, sobre a trajetória — Já não tanto sobre os caracte
res — do movimento historicisfca, a versäo de Melnecke e a de Croce,
que inclusive polemiza contra aqueie (cf. La Historia como hazaña de la
libertad cit., Parte H págs. 53 ss.) E também indicar o ensaio de KARL
MANNHEIM, "Historicìsm", muito vinculado aos temas de Troeltsch e in
cluido nos Essays on the sociology of Knowledge, ed„ Routledge ds
Kegan Paul, Londres, 1952.
25 No pensamento de ORTEGA, porém, cabe registrar como sutil con
tribuição ao entendimento do enfoque histórico suas observações so
bre o "sentido histórico", sobre o caráter cumulativo da experiência
histórica e sobre a relação entre passado e presente (cf. por exemplo
Historia como sistema, 3.tt etL, Revista de Ocidente, Madrid 1958, pas
sim ).
sc e m ORTEGA (cí. nota anterior) esta teoria repontou também com
certa freqüência. Em certa passagem do Que è filosofia?, ele chegou a
escrever, mui hegelianamente, que "superar é herdar e acrescentar"
(trad. Luis Washington Vita, ed. Livro Ibero-americano, -Rio de Ja
neiro 1961). A idéia do histórico como acumulação e “entesouramen-
to” através das épocas já estava nos üiuninistas e foi expressada em
frase famosa por Shiller (of. ALFREDO STERN, La filosofìa de la h is
toria y problema de los valores, trad. O. Nudler, Eudeba, Buenos Aires
1963, cap. I, p. 17). Sobre esta linha de problemas c t também o notá
vel livro de LEÑEME NEQUETE, Filosofia e história — uma introdu
ção à história da filosofia, Ed. Livraria Sulina, Porto Alegre 1972«
93
ao La Esencia de la Filosofia, cit., pág. 62
ai E. IMAZ, op. cit., pàg. 309.
32 EDUARDO SPRANGER, Formas de Vida„ Psicologia y ètica de la per-
sonaiidod, 4.a ed., Revista de Ocidente (tiad. Ramón de la Sem a), Ma
drid 1954.
33 puCECIARELLI, loc, cit, págs, 60-61 O “Idealismo da liberdade” seria
também, cabe acrescentar, um outro ponto de semelhança com Croce..
Mais paia a posição de Dilthey diante do positivismo, no Prefácio de
Le Monde de VEsprit (ed. c it, pág. 11; cf. também pág. 37).
8*4 El Mundo Histórico, ti ad. Eugênio Imaz, ed, FCE, México 1944 (cf. por
exemplo págs. 5, 29 e 215).
94
Max Weber: Tentativa de Apresentação
Sintética (*)
Ao pensar na obra e nas idé:as de Max Weber, é inevi
tável a impressão de respeito: respeito e admiração, que se
tornam maiores quando levamos em conta o fato de o gran
de sociólogo ter morrido em plena maturidade (1864-1920)
e de haver passado vários períodos da vida doente, sem con
dições de trabalhar.
Max Weber trabalhou sempre intensamente, dedicando-se
aos seus temas com severidade obstinada. Seus estudos reve
lam uma vasta erudição, mas esta sempre esteve, nele (como
nos pensadores de estirpe) a senrço de um sentido crítico
extremamente aguçado. Pouca retórica se encontra em seus
textos, apesar de seu trato com assuntos os mais fascinan
tes das ciências sociais. Torturou-o sempre a preocupação
com a objetividade científica, e é compreensível que ele te
nha dedicado muitas páginas, sempre citadas, a questões
metodológicas.
Para Weber, a objetividade do conhecimento deve ser
mantida incólume, tanto em face dos juízos de valor, que o
sociólogo deve evitar, como em face dos equívocos verbais que
provêm do modo de estudar a realidade. Ele pretendia uma
teoria social isenta de juízos de valor: seria papel do econo
mista, do jurista, do historiador ou do sociólogo, descrever
de modo correto as coisas e mostrar as conexões entre elas,
e não opinar sobre sua conveniência, o que seria missão do
político (o mesmo problema seria retomado, na geração se-*95
* Publicado no Estado de São Paulo, em 11 de dezembro de 1983,
95
giùnte à sua, por alguns autores de relevo como Radbruch
e Kelsen). Por outro lado, Weber montou o conceito de “ti
po-ideal” de que trataremos adiante.
Pessoalmente consideramos muito difícil, senão ilusó
rio e mesmo impossível, que em ciências sociais se possa
evitar inteiramente a projeção de inclinações pessoais. O
próprio Weber, a nosso ver, desmente em certa medida suas
exigências quando abre o caminho à interpretação científi
co-social como captação de significados, pois dentro desta é
comum se insinuarem juizos de valor, Mas em seu tempo,
foi certamente importante que ele colocasse o problema co
mo o colocou.
É característico das obras de Weber o entrelaçamento
entre a perspectiva histórica e a construção sistemática. Es
te aspecto se observa muito peculiarmente em seu tratado
maior, chamado Economia e Sociedade e publicado postu
mamente. É justamente nesta junção do histórico com o sis
temático que se percebe o sentido fundamental que pos
suía para ele a sua noção de “tipos ideais”: cada grande con
ceito corresponde à uma experiência histórica variada e múl
tipla (por exemplo o conceito de “capitalismo”), mas cabe
ao cientista social reduzi-lo a uma imagem unificada e coe
rente, podando-lhe os detalhes menos relevantes e fazendo-
o disponível para a análise conceituai. A sociologia de Max
Weber, apesar de receber o nome de “compreensiva”, não se
confundia nisto com a hermenêutica de seu contemporâneo
Dilthey. Para este a compreensão era um penetrar intuitivo
nas significações dos objetos espirituais; para Weber, ela
era sobretudo a apreensão — mas muito cautelosa — dos
sentidos conexos. Com isto, ou seja, com a idéia de “conexão
de sentido”, Weber (como outros de seu tempo) evitava a
tendência dos historiadores do século XIX a pensarem em
termos causais, e evitava igualmente o esquema, provindo
de Marx e de Engels, que colocava o fator econômico como
realidade básica em termos genéticos.
No famoso ensaio sobre a Ética protestante e o espirito
do Capitalismo, publicado em 1904, Weber procurou precisa
mente utilizar esta idéia. Em vez de atribuir à economia capi
talista o papel de causa, da qual teria surgido como “supra-
estrutura” a ética protestante, ele procurou mostrar a cone
xão entre as duas coisas, situadas ambas num mesmo está-96
96
gio do processo histórico. Com isso se enlaçavam vários pro
blemas como o do comportamento pessoal dos primeiros
grandes financistas do capitalismo, ou o das idéias sociais
de Lutero e de Calvino — este considerado por Weber (como
por Troeltsch) bem mais “moderno” do que aquele. Para
Weber, as estruturas do capitalismo influem evidentemen
te sobre os homens e sobre várias coisas, mas elas por sua
vez dependem de convicções e de pautas de valores para se
rem implantadas. Não era exatamente a idéia de Karl Marx
sobre o fato de que a chamada superestrutura “reage” sobre
a infraestrutura: era uma visão mais abrangente e menos
verticalista.
Já que foi mencionada a noção de capitalismo, convém
aludir novamente ao conceito metodológico em que ela se
ampara. “Capitalismo”, ou ainda “feudalismo”, “protestan
tismo” e outros termos, correspondem a tipos ideais. O con
ceito de tipo ideal serve de esteio para a construção de no
ções como estas. Para Weber, o cientista social tem, diante
da realidade histórica e social, que é sempre múltipla e es
tá sempre em transformação, de fixar os traços principais
de cada grande fenômeno: com estes traços ele configura
um conceito (Troeltsch usava o termo “conceitos gerais”),
com o qual poderá trabalhar com certa uniformidade. Ca
pitalismo houve nos séculos XVI e XVII, e diferente dos sé
culos XIX e XX; o fenômeno apresentou ou vem apresen
tando, também, variações no espaço, mas o sociólogo (e mes
mo o historiador) precisa dispor de um perfil estável para
sobre ele colocar as referências genéricas.
O método dos tipos teve, na obra de Weber, uma aplica
ção muito importante no estudo do poder, ou antes, da do
minação, pois ele distinguía o poder (Macht) da dominação
(Herrschaft). Para Weber, haveria três tipos basilares de
dominação: a carismática, baseada na adesão do grupo a um
líder que se impõe por possuir qualidades excepcionais; a
tradicional, que é exercida sobre pessoas que a aceitam em
face do fato de sempre ter sido “assim”; a racional, ou legal,
que se funda sobre critérios objetivos e se expressa através
de normas genéricas. É viável comparar este esquema com o
de Georges Burdeau, para o qual o poder teria passado por
três estágios sucessivos: o estágio difuso, o pessoal e o ins
titucional.97
97
Estamos confrontando a tipologia de Weber com o es
quema de Burdeau, precisamente para observar que naquela
existe também um componente evolutivo. Neste ponto se no
ta o compromisso (referido linhas acima) entre a constru
ção sociológica e o material histórico na obra de Weber.
Nota se que cada um dos grandes “tipos” de dominação,
que é correlato de um tipo de legitimação, corresponde a um
contexto histórico-cultural. O tradicional é próprio das épo
cas feudais, e o racional se encontra especificamente no Oci
dente contemporâneo, quando o poder tende a tornar-se im
pessoal e a lei se revela como forma por excelência do Di
reito positivo; o carismático emerge em épocas de crise ou
nos períodos de formação, em determinados povos.
& * £
98
que, aludindo às relações entre o traballio intelectual e a
vida, ele observa que somente com a dedicação completa
àquele é que se têm as grandes personalidades da ciência.
Seria também, segundo ele, o mesmo caso com a arte..
É possível tomar-se este tópico para entender a austera
e absorvente dedicação de Weber à ciência, mesmo através
de condições desfavoráveis: ele sabia que o trabalho do cien
tista social não se compagina com o diletantismo, embora
talvez exagerasse no seu severo rigorismo. Por outro lado,
o mesmo conceito, terrivelmente exigente, deve ter exacerba
do o seu conflito íntimo, porquanto sentia dentro de si (inclu
sive por conta de influências de família) um enorme pendor
pela política. Daí ter Weber passado toda a vida preocupa
do com a distinção entre a atitude do cientista, que deve
ser objetiva e isenta de valorações, e a do político, que ne
cessariamente envolve valores e mesmo “paixão”.
A época de Weber foi extremamente densa, tanto quan
to aos processos históricos como quanto ao panorama cultu
ral. Entre 1890 e 1920, na Europa surgiram a obra de Durk
heim e a de Husserl, os principais hvros de Bergson, bem
como o neokantismo e a psicanálise. Foi a época do art nou
veau e da ópera verista, de Puccini e Caruso, bem corno de
Proust e de Spengler Época de tipologias, marcadas pelo re
lativismo intelectual. Cabe mencionar, aliás, entre os pensa
dores sociais do tempo, o próprio irmão de Max, Alfred We
ber, que deixou algumas obras importantes.
Politicamente, a Alemanha de origem bismarqueana des
dobrava, através de crises, uma política imperialista. Em
1917, a Rússia se transformou revolucionariamente num Es
tado totalitário e semi-federal, sob a égide doutrinária do
marxismo e dentro do esquema leninista. Os Estados Unidos
cresciam para o começo de sua sólida hegemonia hemisféri
ca. A Guerra Mundial, que começou em 1914 e terminou em
1918, abalou e recolocou os destinos de vários povos. Come
çava o reinado das chamadas superpotências, marginalizan
do as velhas e cultas nações menores, e chamando aos pou
cos ao palco da história as nações periféricas de outros con
tinentes. O imperialismo em crise reformularia seu domínio
sobre os povos africanos, posteriormente; mas tanto estes
como os latino-americanos continuariam servindo apenas de
mercado consumidor, e de fornecedores de matérias-primas.
99
A aguda sensibilidade de Weber, provida de uma ampla
formação, não desdenhou os estudos históricos em função
de suá aflição com o presente. Ao contrário, desdobrou-se
em confrontos históricos, não generalizando demais — We
ber jamais formulou propriamente uma "filosofia da histó
ria" —, mas buscando constantes e conexões que o ajudas
sem a situar os conceitos.
Enquanto Émile Durkheim (1858-1917), partindo da
idéia da divisão-do-trabalho e fiel ao seu método que pre
tendia ver os fatos sociais “como coisas”, entendeu o seu
tempo como apogeu daquela divisão e acreditou no elemen
to de progresso que o processo divisório envolvia, Max Weber
parece ter desconfiado das leis sociológicas muito lineares
e dos otimismos legados pelo iluminismo. Por outro lado, en
quanto Georg Simmel (1858-1919), fundado sobre determi
nados conceitos de forma e conteúdo, atribuiu às ciências
sociais particulares o estudo dos conteúdos e à sociologia
geral o das formas sociais, Weber partiu também de um con
ceito básico, o de ação social, tomando-o como objeto mais
direto da interpretação sociológica. As definições de Weber,
habitualmente secas e concisas, sem maiores delongas, colo
cam a idéia da ação social, logo num dos itens iniciais de
Economia e Sociedade, como sendo aquela que se orienta
pelas ações de outros, quer passadas, quer futuras, quer pre
sentes. O próprio conceito de relação social (que seria reto
mado na geração seguinte por Leopold von Wiese), é tra
tado por Weber em sentido dinâmico, como "conduta plural
reciprocamente referida”.
É importante anotar que Weber, apesar deste constante
interesse pelo social como ação, isto é, pelo aspecto dinâmi
co dos problemas, não resvalou para o mero "condutismo”,
para o behaviorismo que alguns cientistas sociais da primei
ra fase do século adotaram, Do mesmo modo que, tentando
sempre evitar todo subjetivismo e toda metafísica no tra
tamento sociológico dos problemas, não aderiu ao positivis
mo, apesar das concessões ao evolucionismo (inclusive aque
la contida na tipologia do poder, o que absolutamente não
desvaloriza o esquema).
* * *
100
Fazendo um balanço da contribuição de Weber ao pen
samento social do século XX, podemos distinguir desde logo
dois aspectos: no primeiro, idéias gerais sobre ciência e mé
todo, sobre história geral, sobre organização social, sobre
ação social; no segundo, estudos sobre religião, economia,
história antiga, sociologia urbana e jurídtea, burocracia. Con
forme foi dito, Weber não partilhou o esquema unilateral de
Marx, unilateral e verticalista, segundo o qual a realidade
social se dividiria em duas “estruturas”, a inferior — com
posta pelas relações de produção econômica — e a superior,
integrada por todos os demais elementos da existência hu
mana, Para Weber, uma visão científico-social da realidade
demandava análises muito complexas, e não se poderia ge
neralizar demais: o componente religioso seria mais impor
tante em certos contextos do que em outros, como variaria,
também, a ação do componente econômico. Com a elabora
ção dos “conceitos típicos”, Weber pretendeu conscientemen
te oferecer à sociologia um instrumento de análise empírica e
um ponto de referência estável. Ainda hoje os sociólogos
utilizam estes conceitos, e até às vezes se abusa da expres
são “tipo ideal”. Frequentemente pessoas mal informadas
acusam Weber de “idealismo” em face da expressão, que, em
verdade, inclui o termo ideal em acepção meramente metodo
lógica e epistemológica.
Os extensos trabalhos de Weber sobre economia antiga
e medieval fizeram-no crer que a influência do comércio e
das atividades econômicas sobre valores culturais é inegá
vel, mas não o levaram a acolher um esquema explicativo
causal e simplificante. A explicação, processo interpretati
vo próprio das ciências naturais, se situava num plano dis
tinto da compreensão. Aludimos acima ao problema (que foi
muito discutido pelos pensadores de seu tempo), e ele tem
ligação direta com a idéia das conexões-de-sentido.
Entretanto, a importância destas interpretações, liga
das teoricamente ao tema das relações entre política e eco
nomia, não tinha para ele cunho apenas doutrinário. Como
dissemos, Weber teve intensos interesses políticos, que o co
locaram às vezes em posição difícil, entre o liberalismo ra
cionalista e o nacionalismo germânico. Em seu tempo al
guns problemas concretos, como o dos Junkers (espécie de
101
aristocracia tradicional alemã) e o da transformação do re-
g'me jurídico das terras, chamaram sua atenção.
Ao desenvolver a temática das formas ue dominação,
Weber em realidade tocou numa série de temas extrema
mente variada e importante. A distinção entre o tradiciona
lismo e o racionalismo implica, em sua análise, uma série de
referências que ficaram praticamente definitivas: assim a
referência à legitimidade, ao advento do Estado moderno e
do Direito moderno, à burocracia, à democracia. Para Weber,
o Estado Moderno se baseou sobre o monopólio do ,uso da
força, em sentido distinto do dos reis feudais, e distinto
em" face do novo tipo de legitimação, relacionado com um
novo tipo de Direito.. Neste sentido, ele sublinhou a correla
ção — hoje mencionada por diversos autores — entre a se-
cularização da autoridade e o crescimento de importância
do poder das leis em todos os ramos do Direito.
Seu texto sobre a burocracia, que se encontra na parte
III de Economia e Sociedade, é um exemplo do estilo de We
ber, freqüentemente árido e sem encantos, marcado por uma
forte disciplina conceituai. Deste estudo, típico de sua “ma
neira”, têm partido muitos dos mais expressivos trabalhos
recentes sobre o assunto, inclusive os que concernem ao bu
rocratismo moderno e à sua relação com o capitalismo.
Todos os autores que se preocupam com o destino das
sociedades contemporâneas têm aproveitado idéias de Weber,
a não ser os marxistas radicais, que nelas só enxergam en
trelinhas “burguesas”, ou os extremistas de direita, que o
acusam de compromissos liberais. A problemática da orga
nização social, onde se observa a tendência das estruturas
a triturar o homem; a crise do humanismo clássico, desgas
tado pelas ideologias e pelo excessivo prestigio do técnico
e do perito; a luta do racionalismo por sustentar-se num sé
culo atravacado de violência; a situação das gerações novas,
com sua sensação de estranheza diante dos “sistemas” que
comandam o mundo, tudo isso são temas cuja condução, no
pensamento social de hoje, deve muito a Weber, sobretudo
se tratados com um mínimo de rigor conceituai e de cons
ciência histórica.
É curioso, e isto já foi anotado por alguém, que o pen
samento de Weber tenha influenciado autores das mais diver
sas índoles. Assim Karl Jaspers, que veio da psiquiatria, com
102
formação religiosa fundamental, para a filosofia, tendo sido
um dos maiores nomes do exietencialismo alemão. Ou então
Joseph Schumpeter, economista e pensador social, ligado à
historiografia econômica e autor de estudos muito impor
tantes sobre socialismo, imperialismo e análise econômica.
Ou ainda o americano Talcott Parsons, que inclusive con
centrou sua reflexão sobre os conceitos de ação social e sis
tema sociaL Do mesmo modo o economista Theodor Heuss,
que veio a ser o primeiro presidente da República Federal
Alemã, e, de certo modo, o grande jurista e teórico político
Cari Schmitt, que apoiou doutrinariamente o nazismo e
que, num estudó célebre denominado “legaVdade e legitimi
dade”, utilizou conceitos weberìanos.
Com seu estilo asséptico porém quase sempre pessoal e
enfático, Weber cortou para si mesmo e para sua enorme
sensibilidade muitos caminhes, ou seja, todos aqueles que
ensejariam um glissement literário em sua forma de expres
são. Seu enfoque, ao qual não faltou algo do “cientificismo”
dos naturalistas e positivistas do oitocentos, cortou-lhe por
outra parte o acesso à atitude filosófica: deixou-se discipli
nadamente comportar-se no ângulo “objetivo” e científico
dos temas. Talvez até comportar-se demais. O que entre
tanto não impediu que também a filosofia social, neste sé
culo tão desnorteado, venha, ela também, bebendo em sua
obra estímulos e sugestões.
103
Filosofia e Critica Politica em
Ramalho Ortigão (*)
A história das idéias apresenta certos períodos em que
a concentração de problemas e de expressões parece maior
do que em outros. De certa forma, o hábito de pensar numa
evolução crescente, como aumento de complexidade, tem
feito ver, no pensamento ocidental, tuna gradativa acumu
lação de intensidade e de heterogeneidade, à qual, provavel
mente, não seria estranho associar, por influência dos estu
dos de sociologia do conhecimento, a tendência burguesa à
mobilidade e à flexibilidade sócio-cultural que o capitalismo
trouxe.
Não é tão fácil, porém, a coisa, e todo esquema sobre o
pensamento moderno se faz revisável a cada passo. Há pou
co, Michel Foucault, em livro notabilissimo (Les mots et les
choses. 1966), recolocou completamente o tema, mostrando
como os quadros, sobre os quais repousa o saber moderno,
se reformulam estruturalmente no “subsolo” das formações
ideológicas.
A propósito das idéias de Bamalho Ortigão, o que cabe
ria de logo seria evidentemente ubicá-las em seu século, pri
meiro, e depois em sua geração Foi Ramalho homem, de seu
século, sim, pela forma, pelo enchimento e pelas motivações
intelectuais. Mas cumpre situá-lo de modo concreto em sua
geração: uma geração que tentou repor a intelectualidade
* Contribuição ao "Seminário de Verão de 1971”, promovido pelo Centro
de Estudos Portugueses do Instituto de Letras da UFPe em outubro de
1971, e dedicado ao Centenário de Farpas,
104
portuguesa ao nível da vida cultural européia, vivendo os
problemas da vida do espírito com um empenho extraordi
nario. Uma geração magnífica: Eça, Antero, Oliveira Mar
tins, Teófilo Braga, um grupo pouco coeso mas com mar
cantes denominadores comuns.
Victor de Sá, em seu livro “Perspectivas do Século XIX”,
salienta que “as disputas e a assimilação do pensamento por
tuguês no século XIX estão ainda muito menos por estu
dar que as de qualquer outro período de nossa história”,
adiantando, porém, que muito falta ainda fazer na inter
pretação de suas figuras.
Eça e Ramalho muito se preocuparam com a tomada
de consciência da posição de sua geração, não apenas na
seqüência da vida especificamente intelectual lusa, como
até no aspecto biológico e demográfico. Preocuparam-se com
a crise da eugenia e com ameaça de degenerescência física
do português, que viam estampada no panorama étnico de
sua geração. Ramalho mesmo anotou algo a respeito, no
Ehn Paris.
Aquela geração, que abria os olhos para as mazelas da
pátria e que conhecia a cultura do tempo, intitulou-se cole
tiva e ironicamente “Os Vencidos da Vida”. Mas desde a
questão Coimbrã que a atitude dos “vencidos” era parado
xalmente a de luta constante. A elite intelectual portugue
sa, transitando do romantismo para o realismo, passava ao
mesmo tempo do austero patriotismo de Herculano, chateau-
briandesco e conservantista, para um novo estilo de esfor
ço pela Pátria, munido de novo estilo literário: agora, en
quanto alguns continuavam o labor erudito, outros afiavam
o florete da sátira. Enquanto Antero (que Eça chamava “a
mais poderosa organização filosófica e crítica da Península
neste século) mastigava profundamente a filosofia alemã e
estudava as crises ibéricas com argúeias pungentes, Rama-
lho e Eça preferiram o riso: preferiram-no ao menos duran
te certa fase. Convencidos estavam de que o riso — como
em Cervantes e em Voltaire — era um modo de levar a civi
lização para a justiça, e mais, como dizìa Eça: era a forma
de crítica mais acessível à multidão.
Eis, portanto, a “Ramalhal figura”, ao lado de Eça. a re
digir as Farpas, O autor do Primo Baglio chegou a dizer, em
105
1878, na carta a Joaquim d’Araújo sobre Ramalho: “nós
queríamos lançar as Farpas contra um mundo”. E o propó
sito das Farpas, na expressão de Eça: fazer o público ver ver
dadeiro.
Identidade temporária de trabalho, paralelo constante
de intenções, semelhança visceral de atitude em relação ao
país e à cultura, vinculavam mutuamente Eça e Ramalho.
Se Eça ficou um tanto em seus personagens, tão vivos os
fez, Ramalho, como ensaísta e crítico, foi a bem dizer um
f¡edonista sem ficção: sem personagens inventados. Sem ter
talvez o magnífico estilo de Eça, nem seu espantoso alcance
de escritor e de crítico, Ramalho teve, como ele, o poder
permanente do equilíbrio e da visão clara, o senso da irre
verência oportuna e da zombaria eficaz.,
Não foi Ramalho, concedamos, um “filósofo” no sentido
empertigado e formal da palavra. Poi antes um pensador
social, com preocupações filosóficas e políticas, por deriva
ção necessária. Ele mesmo, em junho de 1882, dizia nas Far
pas (cf. tomo VI, p. 109), que com essa publicação se passa
da crítica à ação, levando as idéias à rua. Tal pragmatismo
porém não era rasteiro, nem total: as idéias que se divul
gavam e defendiam na publicação eram fruto de leituras sé
rias e de análise detida.
Vejamos desde logo a crítica da religião. Ela foi cons
tante nas Farpas, e revela bem os fundamentos filosóficos das
idéias gerais de Ramalho. A falsificação social da religião
parecia-lhe ser, em Portugal, um fenômeno terrivelmente
enraizado. No tomo V (A Religião e a Arte, Lisboa, ed. Co
razzi, 1888), encontramos freqüentes referências a respeito:
ora denunciando concilios católicos, ora práticas comuns,
pela insuportável descaracterização da atitude religiosa e pe
la concepção excessivamente implícita, excessivamente fá
cil e leve de Deus. A “sem-cerimônia para com o Eterno”
irritava Ramalho como uma familiaridade vulgar e contra
producente (vejam-se no volume citado as páginas 5 e se
guintes).
No mesmo tomo V encontramos, no comentário sobre o
poema Velhice do Padre Eterno de Guerra Junqueiro, sérias
e intensas preocupações religiosas. Se era pueril, observava
Ramalho, acreditar num Deus de barbas brancas e manto
bordado, mais pueril ainda seria tentar substituí-lo por um
106
deísmo vago, expressado em literatura epigramática. A fé
tradicional tinha pelo menos, segundo ele, um serviço pres
tado: o de haver sustentado por séculos o comportamento
social de várias gerações E acrescentava, taxativo:
A “Velhice do Padre Eterno” fará enfurecer
o clero minhoto, os cônegos de Braga e os curas
de Traz-os-Montes; mas não fará bater com uma
palpitação nova o coração da mocidade.
107
vando o desvirtuamento da religião, aa disfunções da fé e
o desprestígio das coisas do espírito.
Noutra parte das Farpas, contudo (“Aos membros da As
sociação Católica do Porto”, 1873, cf. tomo n , pág. 86), o cle
ro português aparece dividido, diferentemente, em três clas
ses: os indiferentes, os liberais e os reacionários. Os indife
rentes são em geral os de aldeia, que plantam horta e não
se torturam demais pelas conversões. Os liberais se metem
em política, lêem jornais e freqüentam botequins. Os rea
cionários concentram-se no confessionário, esmiúçam deta
lhes e são ultramontanamente formalistas.
Estas tipologias visavam alcançar o problema mesmo da
vida histórica de Portugal e da sua esclerose cultural, prove
niente de decadência física e psicológica do povo. Enquanto a
mentalidade clerical predominasse, tomando o lugar da re
ligiosidade salutar e autêntica, Portugal continuaria “anê
mico” e incapaz de retomar seus vastos vôos passados.
A mesma ótica realista, aliada à preocupação político-
social, aparece aliás na sua crítica da esmola, formulada a
propósito de uma campanha de auxílio aos pobres, encetada
pelo Diário de Notícias (cf. tomo 5, n.° XXVIIÍ). Distin
guindo entre caridade e assistência, Ramalho sobrevaloriza
a segunda, porque preventiva e social. Para ele, o importan
te, o decisivo, não era a atitude do auxílio, meramente senti
mental, e sim a supressão do pauperismo, objetivada por or
ganizações assistenciais — que em verdade envolveriam re
forma nas instituições, na mentalidade geral e na ordem
social mesma.
Encontramos, portanto, em Ramalho, uma constante
preocupação com a temática religiosa: ora o respeito pelas
grandezas do misticismo ora o registro da decadência da fé,
ora a indignação contra o desvirtuamento da religião na
prática urbana.
Na epístola à Associação Católica do Porto (cf. tomo II,
pp 77 e seguintes), as sátiras atiradas contra a associação
envolvem a anotação da ausência de liberdade de cultos no
país, ausência retrógrada, estranha e descabida para o espí
rito aberto das Farpas. E quando, criticando a pretensão dos
portuenses de serem a concentração do catolicismo em Por
tugal, menciona a posição do catolicismo na história (pp.
81-82), é para elogiar o mundo de obras e de atos que a fé
108
católica produziu na Idade Média, incluindo Tomás de Aqui
no, Dante, Tasso e Cervantes.
No fundo, o que ooía nisso a Ramalho, como em quase
tudo, era o contraste enti e a granueza das coisas, concepções
ou instituições, e o apequenamento com que elas se lhe apre
sentavam na versão lusitana, que a seus olhos parecia sem
pre -provinciana, mesquinha e caricata. Doía-lhe — como aos
de sua geração — ver o país como um lugar onde as coisas
grandes e sérias perdiam sua grandeza e sua seriedade. Em
Portugal, disse noutra parte (Tomo II, p. 248), a religião se re
duzia à beatice ou à devoção das mulheres e à indiferença
dos homens — ambas as coesas mantidas em nível raso.
A compreensão do entre supremo, a idéia de
Deus como núcleo da vida moral ou como foco
dos destinos eternos, essa é inteiramente alheia ao
que nós chamamos geralmente em Portugal a de
voção ou a indiferença.
112
Recheado, portanto, de mentalidade ilustrada e de con
vicções evolucionistas, enxergando entretanto as dimensões
sócio-econômicas de problemas cujos ângulos biológicos e psi
cológicos tanto acentuou, Ramalho se debatia entre dois pó
los: de um lado a bem-querença à pátria, cheia de tradições
válidas e glórias legítimas, em grande parte respaldadas* na
fé assente e nas raízes do medievo; de outro lado, o espetá
culo da decadência, que, como os de seu grupo ou sua gera
ção, viu generalizada no país, e cujo antídoto lhe parecia
estar na reeducação moral e física, fundada no eleatis
mo moderno, no bom senso e na seeularidade. Os problemas
da cultura portuguesa, que em nosso século inspiraram tan
tas reflexões sérias a um Fidelino de Figueiredo, por exem
pio — que em seu Menorìdade da Inteligência clamava por
uma pedagogia menos estática e por uma historiografia me
nos anedótica — os problemas da cultura portuguesa foram
a preocupação constante das Farpas, que os queriam enca
rar dentro do quadro geral da cultura ocidental moderna
como um todo: para confronto, na análise, e para reprogra
mação, na crítica.
Como Eça, Ramalho chorava a mágoa de conviver com
problemas amesquinhados, mas ria e fazia rir, por atitude
saudável e como tática de convencimento. Deste modo as
Farpas ficaram sendo, nas letras de nossa língua, um mo
delo disto: de como colocar o muito sério nas entrelinhas do
muito engraçado.
Observação: A edição das Farpas de Ramalho Ortigão,
utilizada para o presente estudo, foi a de David Corazzi (Lis
boa 1888). A das Últimas Farpas foi a de Francisco Alves-
Ailland e Bertrand (1917).
113
Os “Estudos Politicos 99 de Aron (*)
Raymond Aron Estudos Políticos, trad- de Sér
gio Bath, Editora Universidade de Brasília, 1981,
478 páginas.
114
doutorai, e do filòsofo da história, ató o analista de concei
tos políticos e da política internacional.
Daí que o livro deva interessar tanto aos que admiram
a obra de Aron quanto aos que discordam dela. Presente em
quase todas as grandes questões teórico-políticas do século,
das décadas 30 e 40 para cá, Aron tem desempenhado um
papel permanentemente crítico, sem embargo de certas va
riações na “carga” crítica, mormente quando se trata de ava
liar, refutar ou situar as atitudes ditas de esquerda. O cará
ter “polêmico” de sua obra, talvez um tanto exagerada pelo
autor da Apresentação do livro, se acha mais na posição de
Aron, irredubível aos extremismos e também inconformado
com eles, do que na estratégia ou no estilo que utiliza em
seus textos (a não ser em certas obras, como em UOpium
des intellectuals, aparecida em 1957).
A importância e a amplitude da obra de Aron — cuja
relativa heterogeneidade me parece deva ser registrada —
nos obriga a pensar em comparações. Comparação, por exem
plo, com a de Jean-Paul Sarjre, também presente no âmago do
pensamento do século vinte: Sartre poiventura mais filóso
fo, mais dentro dos grandes temas da metafísica e da onto
logia (apesar de tudo!), embora também sempre aderido às
questões políticas e sociais mais imediatas; Aron mais pen
sador político (se bem filòsofo da história), mais técnico e
mais acadêmico no tratamento de certas áreas ou de certas
faixas da problemática política. Às vezes, talvez, acadêmico
demais-
Estenderia a comparação a uma Hannah Arendt, auto
ra de escritos de suma relevância dentro do pensamento polí
tico atual, nos quais a perspectiva histórica e o elevado ní
vel filosófico se enlaçam a posições basicamente liberais, ou
ao menos, para arriscar um termo que não me agrada, neo-
liberais. Ou a um Henri Lefebvre, marxista por formação
mas cheio de idéias próprias, carregadamente crítico em
certas obras e quase sempre admiravelmente lúcido.
* # *
116
dez muito aceitável, oferecendo ao leitor uma série de ques
tionamentos sobre as conjunturas internacionais de hoje —
tema que funciona como um irresistível tropismo para as
reflexões de Aron.
Vez por outra o leitor mais exigente pode parar diante
de alguns tópicos, meio desconfiado com determinadas alu
sões devidamente distribuídas (contra os Estados Unidos,
contra Cuba, contra os soviéticos). ou meio insatisfeito com
certa falta de “profundidade” encontrada aqui e ali, nas
própiias passagens teóricas. Mas passará adiante, prossegui
rá na leitura e encontrará compensações.
* **
117
opção cética), se aproxima um pouco daquele que Dilthey,
em sua “Teoria das Concepções do Mundo” encontrou nos
gregos da fase final e preconizou para o pensamento contem
porâneo. Aproxima-se tamhém, de certo modo, de outros re
lativismos (como o relativismo sociológico de Sorokin), mas
não se calca apenas em reflexões expressamente filosóficas:
resulta de um modo especial de encarar os panoramas glo
bais. Por outro lado, seu relativismo não é um “neutralismo”
(Aron obviamente não aspira à ciência social neutra e isenta,
como certos autores) indiferente aos valores sociais; ele é
uma espécie de^ anteparo às tentações do engajamento par
tidário total, qüe com freqüência levam ao unilateralismo e
ao maniqueísmo. Cabe observar que o próprio Max Weber,
com cuja obra Aron se entendeu (ou se desentendeu) em
termos críticos desde o início, nem sempre se manteve fiel
àquele cunho não-valorativo que, em sua metodologia, pre
conizou asceticamente para as ciências ditas sociais.
A análise política, constante em todas as fases da vasta
obra de Aron (e presente mesmo indiretamente nos escritos
sociológicos ou filosóficos), é a tônica dominante no presen
te volume. Análise feita em termos de filosofia política (ano
te-se que pelo menos desde Platão filosofia e política se com
binam e se conjugam), em termos de sociologia e história
— mais “alusão” histórica do que reexame, quase sempre
—, ou em termos de comparação de estruturas. O volume,
aliás, inclui um importante ensaio sobre as “Comparações
históricas”. A unir estes modos de estudar a política, encon
tra-se em Aron (em sua obra em geral, e nestes Estudos em
especial) um certo vezo polêmico, sempre citado pelos que o
referem, e que talvez não seja tão grave como vício, mas que
tem funcionado ao que parece como estímulo interior ou co
mo motivação para o desencadeamento (e o encadeamento)
das reflexões de Aron.
Vários analistas de sua obra têm visto em Aron um pes
simista, a par de “realista” e de "relativista”. Vem à idéia a
opinião segundo a qual todo grande pensador político é pes
simista: só os pessimistas desenvolvem sensibilidade bastan
te para apreender os fundamentos dos problemas políticos
centrais de seu tempo. Aliás o próprio Aron toca no tema no
ensaio inicial da primeira parte (“A verdade histórica das
filosofias políticas”). A própria frase final do estudo sobre
118
as “Constelações diplomáticas” define uma perspectiva me
lancólica: “a lógica não fala de modo inequívoco, e a histó
ria não esgotou suas reservas de invenção e de catástrofe”.
Centrando sua visão dos problemas e dos valores sobre
a referência ao tema do poder e ao da liberdade (além do
tema das bases mesmas do pensamento político), Aron pro
cura situar-se constantemente próximo dos acontecimentos
reais. Uma espécie de mistura entre filosofia “posta à pro
va” e jornalismo em alto nível. O ensaio “Liberdade: libe
ral ou libertária”, por exemplo, redigido em 1969, foi elabo
rado em face dos célebres túmultos de 1968 e da aparição da
“nova esquerda”. Esta tendência de Aron o aproxima de cer
to modo (falei nisto linhas acima) de Sartre, sempre ligado
aos fatos, sobretudo nos últimos decênios de vida; afasta-o
de outro estilo de pensadores (como talvez um Isaiah Ber
lin, ou a já citada Hannah Arendt, ou um Bertrand de Jou-
venel, entré outros tantos), mais distanciados do chamado
“dia-a-dia” e empenhados na reflexão mais genérica. O que
não quer dizer que estes sejam necessariamente “alienados”:
no caso, o problema é mais de pendor pessoaL No citado en
saio, de resto, encontram-se equacionamentos bastante equi
librados, postos entre a adesão fácil às contestações daque
le ano e o repúdio total, também fácil: Aron invoca Freud
a propósito de repressão social e com o propósito de testar
as próprias fontes de Marcuse, que era então o grande mentor
das esquerdas.
Para Aron, a grande prova das teorias políticas é a pró
pria relação entre elas e a realidade. Chega inclusive a ado
tar, no ensaio sobre a verdade histórica das teorias políticas
— escrito a partir de um, ao que parece, muito sugestivo
artigo de Eric Weil —, a idéia de que a imperfeição de cada
grande teoria politica revela seus méritos : ou antes, o mèrito
de cada teoria consiste em agir sobre a realidade histórica a
ponto de modificá-la, e ao modificar-se a realidade se afasta
da teoria — no que vai urna boa dose de hegelianismo, em
bora Aron não o denote senão implicitamente. O tema é re
tomado, noutro sentido, no ensaio inicial da segunda parte,
no qual aflora o problema da distinção entre teoria política
e filosofia política.
A preocupação de Aron com as realidades concretas e com
as coisas de hoje levou-o por outro lado a se fazer comenta-
119
rista de conílitos internacionais. Toda uma teoria das “rela
ções internacionais” (e das “constelações” e conjunturas),
ilustrada com observações sobre clássicos da teoria da guer
ra — de Maquiavel a Clausewitz —, serve de base aos seus
comentários. No fundo, comentários de um ocidentalista,
preocupado com a sobrevivência de certas constantes históri
cas: não por acaso Aron publicaria em 1977 (cinco anos após
a edição francesa dos presentes Estudos), seu Platàoyer pour
VEurbpe Décadente, Sua recusa aos esquerdismos fáceis tem
sido também recusa dos orientalismos hippies, espécie de
metamorfose das “chinoiseries” do século XVIIL
Ocidentalista e relativista, realista e pessimista: «mas
não radicalizante nem cético, nem gerencialista tecnocrati-
zante (como o maquiavelista Bumham), nem tragicamente
cassandre: Aron se situa com muita franqueza e algumas
fraquezas como defensor dos valores liberais, e se revela,
malgré tout, um humanista a serviço de uma insatisfação, a
generalizada insatisfação de sua geração (creio que tam
bém da seguinte, ao menos: ele nasceu em 1905) com o rumo
das coisas num século em que se negaram um a um os ideais
pacifistas e evolucionistas do oitocentos. Nem sempre a clartè
française ajuda inteiramente ao seu serviço: frequentemen
te ele oscila entre o realismo excessivo, que levaria de volta
ao “Príncipe”, e as cautelas liberais, academicamente buri
ladas. Vale a pena, porém, deter-se sobre suas páginas.
120
O Neoliberalismo e o Neomarxismo*
ARTHUR UTZ, Entre o neolìberalismo e o neo
marxismo. Urna filosofia de caminhos alternativos.
tradução de Edwino Aluysius Royer, edição EPU-
EDUSP, São Paulo 1981, pp. 155.
121
suas implicações doutrinárias e suas correlações antropológi
cas. Utz relaciona os prós e os contra da "economia de mer
cado individualizada”, e também os da economia planificada,
que parece identificar com o socialismo; repassa problemas
históricos, sopesa argumentos, analisa supostos filosóficos
(muito interessante neste plano o capítulo IX), e finalmen
te aponta o terceiro caminho. Conseguindo-se evitar os ma
les do individualismo, inerentes ao esquema liberal, e afas
tar os pontos negativos do coletivismo, próprios do socialis
mo, teremos segundo ele uma posição social-personalista (ca
pítulo X, n..° 4), a partir da qual os valores viáveis de cada
um dos sistemas será devidamente absorvido e aproveitado.
Não discutirei aqui se o esquema é eclético. Nada tenho
contra os ecletismos, e aliás vejo muito de radical e de in
conseqüente nas condenações por ai feitas ao ecletismo:
qual o “sistema” filosófico ou político ou econômico que não
apresenta algum tipo ou alguma dose de ecletismo?
Seria mais válido apontar uma certa “facilidade” no es
quema: se o liberalismo tem males e tem méritos, se o socia
lismo também, então escolhamos de cada um o que parece
melhor, e salvemos este século. Além desta quase utópica sim
plificação (que inclusive parece supor um trânsito excessi
vamente fácil da teoria à prática), há que registrar, como
algo realmente discutível a identificação entre marxismo
e planificação econômica, que aparece por exemplo na In
trodução (p. X I), apesar de o autor, mais adiante (p. 17) en
tender o socialismo como uma versão da economia planifi
cada.
De qualquer sorte o tom de certas afirmativas, por de
mais simplificadas, soa dogmático. No caso (ainda na In
trodução) o assertiva sobre o que “deve ser”, como “tercei
ro caminho”, uma economia de mercado social. Sem entrar
no problema, que para aqui seria talvez uma digressão mui
to teórica, de saber o que será realmente o social: fala-se de
masiado no social, nos últimos decênios, e não se esclarece
bem o que ele é; assim para o Estado social, como para a jus
tiça social, etc. Ainda na Introdução, deparamo-nos com ou
tras coisas discutíveis. Uma delas a idéia de que ao neolibe
ralismo faltam bases teóricas, quando o próprio autor trata,
no capítulo n , das bases filosóficas da economia de merca
do — embora com demasiada brevidade,.
122
Expondo os fundamentos do credo liberal (capítulo II),
Utz se mostra de fato surpreendentemente sucinto: pouco
mais de três páginas. Nelas, algumas observações muito úteis,
dentro de uma exposição coerente e clara. Já a explanação
sobre a “economia planificada" e suas bases filosóficas (cap.
n i) é bem mais ampla e mais completa: aqui, inclusive, o
autor retoma implicitamente sua identificação entre socialis
mo e economia planificada ao dizer que o caso do marxismo é
o de uma planificação centralizadora (o que também não pa
rece muito convincente, pois em países fascistas a centrali
zação econômica tem sido a regra, e tem ocorrido em con
jugação com o planejamento administrativo mais rígido).
Apesar, porém, do terreno largamente minado dos pontos
discutíveis, resulta interessante o conteúdo do capítulo III,
onde entram considerações de ordem histórico-social e psico
lógica.
Tal tipo de considerações prossegue dentro dos capítulos
IV e V, com uma inversão das proporções entre tema e ex
tensão: o IV é longo, versando sobre as objeções ao indivi
dualismo (“economia de mercado individualizada”), en
quanto o V é breve e trata precisamente das objeções à eco
nomia planificada. Por sinal, nos deparamos à entrada do
capítulo V com a afirmação de que o marxismo (a “filosofia
marxista”) é a base da economia centralizada. Insisto em
considerar esta idéia como inexata, porquanto o mercanti
lismo e o cameralismo (Kammeralwissenschcift) do século
XVII foram formas políticas de centralismo econômico, e o
próprio Fichte, ao pensar num “Estado comercial fechado”
(que muitos consideram um dos germes do nacionalsocialis
mo) , não estava — ao que me consta — nas fileiras do mar
xismo.
Sempre preso à idéia de um dualismo, do qual se sairia
segundo sua “Terceira Via”, Utz esboça (pág. 4.a") um düema.
Para ele, aliás, o dilema pende psicologicamente para um
dos lados, pois o atrativo filosófico do individualismo lhe pa
rece bem menor que o do socialismo: este tem, a seu ver,
mais “sentido de vida”. Sem embargo, anote-se, de ter afir
mado (na Introdução) ser favorável a uma “sociedade de
produção” e a uma “economia de mercado” correlata a ela.
A solução do autor, isto é, a apresentação formal do
“terceiro caminho”, se encontra no capítulo X. Ele distin-
123
gue, com relativa clareza aliás, entre aquilo que se conside
ra como “terceiro caminho” na ótica neoliberal (algo como
um meio termo entre o liberalismo manchesteriano e o co
munismo total) e o “terceiro caminho” tal como visto pela
ótica socialista (algo como uma planificação da economia
de mercado). A ambas as fórmulas ele opõe o “terceiro ca
minho no pensamento social-personalista”. O pressuposto
fundamental, no caso, seria uma nova epistemologia — que
infelizmente é apresentada apenas como esboço. Para Utz, a
idéia de totalidade, que para o 1 beralismo seria inaplicável
à sociedade, é fundamental (também resisto a aceitar tal
observação, porquanto na sociologia da “Escola Francesa”,
fundada por Durkheim, o essencial era o conceito objetivo
do social como totalidade, e entretanto, apesar de seu soli
darismo, Durkheim não foi um coletivista).
A linha das soluções de Utz, que lembra a filosofia de
Mounier e talvez também a “C’vitas Humana” de Wilhelm
Roepifee, insiste por outro lado sobre a categoria do bem eo~
mum, procurando assumir com isto um certo universalismo
ético, que é defensável, mas que é difícil de fazer transitar
da teoria à prática. Sua solução aceita explícitamente a con
corrência (p. 125), embora cercando-a de cuidados e reco
mendações.
A discussão dita epistemológica, que o autor considera
decisiva, acha-se por sua vez difusa no capítulo IX, onde se
analisa a “concepção do homem” com as correlatas implica
ções filosóficas existentes em cada sistema econômico. Pare
ce evidente que cada sistema — em economia como em políti
ca, ou em pedagogia — supõe uma noção do que seja o ente
humano, mas de certo modo falece ao autor, no caso, um
pouco de atenção para a perspectiva cultural: o que há de
comum, nas concepções antropológicas do liberalismo e do
socialismo, provém do fundo geral em que assentam, e este
é a própria cultura ocidental. Os ismos contemporâneos são
na verdade desdobramentos de questões tipicamente ociden
tais.
* * *
125
sas: a visão economicista das formas sociais, que se obriga
a encarar o capitalismo como um dado básico e determina-
dor de tudo, e a referência ao burgués como tipo humano,
em tomo do qual se condicionam estruturas e valores, nos
vários setores da vida histórica, A concepção burguesa, liga
da à secularização da cultura, tomava a sociedade em sen
tido diverso da ordo aristocrática e das hierarquias daí de
correntes: tomava-a como ocasião e fruto das vontades in
dividuais racionais e livres, O mesmo trecho histórico que
fez triunfar o liberalismo fez também consolidar-se a demo
cracia — em seus passos iniciais, ao menos —, e daí que a de
mocracia em versão liberal tenha sido o modelo político do
minante no século XIX e em parte no XX. A democracia
burguesa (entenda-se: algo que teria sido impassível duran
te o domínio da nobreza e que seria inviável sob o império
dos partidos operários) consistiu em grande medida num
modo de evitar a intervenção do Estado, que tinha sido oni
presente no absolutismo. Ós socialismos do século XIX tam
bém não apreciavam a presença do Estado, mas no século
corrente a pugna contea o capitalismo e contra os resíduos
liberais criou a tendência a ligar estas duas coisas: socializa
ção e estatizaeão. Mesmo porque nas sociedades contempo
râneas o aumento de volume dos serviços públicos (mesmo
nos países capitalistas e nos Estados liberais) condicionou
como tendência praticamente universal o intervencionismo.
A persistência dos valores liberais (já que o liberalismo
como regime ou como ismo se encontra em extinção) e a ne
cessidade de se manterem os serviços que acarretam a estati-
zação, e mais, por outro lado, o crescimento dos movimen
tos socialistas — e dos valores que o socialismo implica —,
levam vários pensadores de nosso tempo a pedirem uma con
ciliação. É óbvio que os valores liberais não são mais, em
nosso tempo, o que foram no século XVm ou no XIX, como
representação ou como realidade, e o mesmo se diga dos va
lores “sociais”; mas também ê certo que há neles, enquanto
valores, um núcleo permanente, que corresponde ao seu signi
ficado para problemas permanentes.
O liberalismo pensou o Estado (ou antes, o governo)
como um meio para garantir a realização do Direito (e por
tanto, dos direitos) ; ou antes, e indiretamente, dos fins que
o Direito estabelece. O econômico, para o esquema mental
126
liberal, seria um suposto, mas não uma determinação. Ado
tar metodologicamente o econômico a título de determina
ção foi precisamente a estratégia antiliberal do marxismo
(o que não impediu que Marx encarasse o Estado como um
mal, tanto quanto os liberais, embora noutro sentido). Com
batido por duas frentes, o socialismo e o conservadorismo —
dentro do qual cabe situar o positivismo de Comte —, o libe
ralismo continuou válido como atitude axiológica, mesmo
quando não mais viável como programa político.
Tudo isso, porém, tem ensejado mal-entendidos, confun
dindo-se freqüentemente estas duas coisas, que cabe manter
distintas: a desestima ao liberalismo em nome de um con
servadorismo tradicionalista (ou de um desigualitarismo aris
tocrático ligado a alguma concepção hierárquica da vida),
e o combate ao liberalismo em função de posições fascisti-
zantes, autocráticas, “modemizadoras” ou totalitaristas. Em
sua travessia para o século vinte, o liberalismo tem enfren
tado ambos os tipos de contestação, a aristocrática e a mas-
sificadora, uma preocupada com a dissolvência de seu “in
dividualismo”, outra inquieta com o “perigo” das liberdades.
No Brasil, diga-se de passagem, os ataques ao liberalismo
têm provindo mais das posições ditas autoritaristas e “mo-
dernizadoras” (veja-se 1937, veja-se 1964), do que do con
servadorismo regionalizante e/ou tradicionalista; o proble
ma tem, inclusive, correspondido à querela sobre centraliza
ção e descentralização, que aqui não dá para expor nem pa
ra examinar.
A sobrevivência do liberalismo — ou antes, dos valores
liberais, bem como de “concepções” liberais — no século vin
te tem corrido por conta de algumas figuras ilustres: umas
exemplares e coerentes, como Hayek, Arendt ou Strauss, ou
tras equivocadas e pretensiosas como Popper.
Aliás, o autor do livro ora em exame observa (cf. página
95) que a plenitude do ideal social liberal somente se cum
priria em face de uma total consciência, por parte dos indi
víduos, de seus deveres sociais, 23 verdade. E é por isso que
o ideário liberal incluiu um “pedagogismo” um tanto utópi
co, segundo o qual os homens deveriam progredir indefini
da e inelutavelmente no plano técnico e no plano moral;
por isso que Kant se preocupou tanto com a lei moral, e a
sociologia de Durkheim — na virada para o século vinte —
127
se converteu em um moralismo com fortes implicações pe
dagógicas e com irma dimensão “solidarista”.
As referências do professor Utz aos conceitos básicos res
valam freqüentemente para o discutível: assim quando afir
ma que no “individualismo” liberal a sociedade e o Estado
apareciam ou aparecem como meros processos tecnológicos
(pp. 33 e seguintes, no capitulo IV)Não. O “egoísmo”, a que o
texto em tela se refere, foi no utilitarismo um componente
entre outros: a moral social dos utilitaristas — que ninguém
vai pretender viabilizar para agora sem mais aquela — in
cluiu um sistema de valores que indicavam a convivência
como dado fundamental. O jEstado, sim, poderia ser tomado
como instrumento (não como “processo tecnológico”), ou
como meio: instrumento com o qual o esquema liberal visa
va a concreta aplicação das normas jurídicas, necessárias —
elas e sua aplicação"— enquanto não progredissem os com
portamentos a ponto de as dispensar, ou de as tomar ar
caicas.
* 4* *
* * ❖
131
Glosa a Julián Marias*
Seria quase dispensável, por evidente, dizer da grande,
da surpreendente honra que para mim representa, nesta
tarde, atuar como comentador da conferência de um pensa
dor do porte de Julián Marías, cuja obra me habituei de há
muito a admirar e a acompanhar. Agradeço, pois, vivamen
te sensibilizado, o convite que me foi feito neste sentido pe
los que organizam o Seminário — tão fecundo como mé
todo de trabalho, tão relevante como instituição cultural.
Mas esta é precisamente a circunstância (e a palavra não
vai aqui isenta de intenções) em que me encontro: tenho
de dar conta de uma tarefa tentadora e séria, mas o tempo
que tive para pensar no assunto foi demasiado curto, para
não falar do fato de não ter podido dispor, propriamente, do
texto do conferencista.
Aproveito então para aludir ao conferencista. E creio
que ao comentador isto não será impertinente, apesar da
apresentação há pouco feita quando da abertura dos traba
lhos.
Julián Marías: creio que ainda na década de 50, por
conta de meu constante interesse pela obra de Ortega (inte
resse que comparti desde então com o professor Gláucio Vei
ga, e com o Professor Machado Neto, infelizmente falecido
antes de chegar aos cinqüenta), vim a conhecer escritos de
Julián Marías. Sua figura, situada na geração seguinte à de
Ortega — e aqui me valho do famoso e sempre frutífero “mé
todo das gerações”, embora apenas para uma indicação de
* Comentário à Conferência de Julián Marías no Seminário de Trapicolo-
logia, na Fundação Joaquim Nabuco, Recife, em 12 de agosto de 1981,
132
passagem —, sua figura pressupõe, como ambiência cultural,
a intelectualidade espanhola das diversas décadas do século
vinte: o legado de Unamuno e o de Ortega (ambos, aliás,
temas de Marías em alguns notáveis estudos), mais o “cír
culo” de contemporâneos e coetáneos de Ortega, desde os
mais ligados a ele e à “Revista de Occidente”, como Fernan
do Vela, Garcia Morente, José Gaos, aos de linha mais di
ferenciada, como Ferrater Mora, Xavier Zubiri, Garcia Bac
ca, Recaséns Siches. Um admirável grupo ligado à vivên
cia ibérica do historicismo e da fenomenologia, às in
fluências de Dilthey e de Husserl, de Spengler e de
Scheller — um tipo de ambiência de que frequentemen
te sentimos falta os que, em países ditos periféricos e em re
giões ditas subdesenvolvidas, fazemos o cultivo do exercício
filosófico e do saber respectivo. Encaixa-se assim,' a obra de
Julián Marías, na continuidade de um tratamento muito
espanhol das coisas, que não deixa, ni con mucho, de ser uni
versal: um tratamento espanhol que é bastante racional pa
ra ser universal e para ter o que ver com a lucidez de um
Vives ou de um Gracián, e que é bastante cervantino para
ser intrìnsecamente vitalista', raciovitalista, para adotar o vo
cábulo cunhado pelo mestre de Marías, Ortega. Universalis
mo e hispanismo, vitalismo e existencialismo, tudo isso está
nas obras de Julián Marías, servido por uma sempre disponí
vel capacidade de análise, que é o outro lado, freqüentemen
te menos visto, de sua (ia a dizer orteguiana) mestria da fra
se, e das frases. Tudo isto se acha, alimentado por uma impres
sionante porém não ostensiva erudição, nos meditados en
saios que perfazem El Método Histórico de las generaciones,
ou nos largos e espessos tópicos sociológicos de La estructura
social, bem como nas exemplares cogitações histórico-fílosó-
ficas de San Anselmo y el Insensato e no livro sobre La Filo
sofia dal Padre Gratry, sem falar na densidade e na suges-
tividade da Introducción a la Filosofia e da História de la
Filosofia. Gostaria de realçar, ainda que também de passa
gem, o assíduo interesse temático de Marías pelo problema
do intelectual, quer como item de uma sociologia do conhe
cimento, quer como indagação sobre um tipo de quéhaeer
humano. Desse interesse resultaram, entre outros textos, os
Ensayos de Teoría e o breve e provocativo livro El intelectual
y su mundo.
133
Não pretendi — já se vê — com essas linhas dar conta
do vasto elenco de escritos do conferencista de hoje, nem
dos diversos aspectos do seu pensamento — tenta-me com
parar esta diversidade, que tem uma unidade, com a célebre
pluralidade de ângulos visuais existente no quadro de Ve-
lásquez que retrata Los Ninas —, mas só aludir ao tipo de
abrangência que sua vigorosa curiosidade pensante vem co
brindo, e nesta abrangência situar seu tema de hoje.
Aludo então ao tema. Gostaria, como comentador, de me
ater a ele, já que não me seria possível ater-me estritamente
à conferência como colocação dele. Fascinante tema, cheio
de ressonâncias e implicações. O acesso a semelhante tema
consiste precisamente em divisar por trás de problemas mais
próximos como o da miscigenação e o do povoamento, ocor
ridos nas Américas durante o" estágio colonial, a conexão
das origens do ser iberoamericano com a grande pulsação
que foi o Renascimento. Não passe sem registro a sutil «no
ção que sempre nos provoca a noção de origens, bem como o
uso — na frase acima — da expressão “ser iberoamericano”,
que coloquei como consciente débito às meditações de Antô
nio Caso e Zum Felde. Trata-se de reexaminar um vasto e
profundo segmento da história cultural do Ocidente, e aqui
cabe acentuar a fertilidade do campo da história cultural
(inclusive entendida à alemã como Kulturgeschichte e co
mo Geistesgeschichte) para as incidências da noção de “ra
zón vital”, tão ,do uso dos orteguianos, tão do gosto de Ju
lián Marías.
O Renascimento foi precisamente um momento da his
tória onde se intensificou enormemente a carga da razão vi
tal: um momento que se tornaria exemplar pela criatividade
e pela vigorosa expansão de formas engendradas. Expansão
da cultura ocidental em busca de outras circunstâncias, num
processo que implicou num verdadeiro transbordar de sím
bolos: todos conhecem o sugestivo estudo de Sérgio Buarque
de Holanda na obra Visão ão Paraíso, sobre os “motivoss edê
nicos no descobrimento e colonização do Brasil”, onde apa
recem os mitos trazidos pelos viajantes dos séculos XV e XVI
para o mundo tropical. Daquele turbulento penetrar de sím
bolos em novas circunstâncias viria inclusive o barroquismo
iberoamericano. O processo é correlato, enquanto quadro
histórico e antropológico, ao da irrupção física do europeu
134
nos trópicos, tema que foi assumido em hora oportuna e em
dimensão correta por Gilberto Freyre, que aliás, na Introdu
ção a O Luso e o Trópico, relacionou a um pensar existencia-
lista o cunho específico das mentes hispánicas, inclusive
quando postas em ação dentro das refrações tropicais.
Do ameríndio — que nuns lugares estava no neolítico,
noutros geria calendários e impérios — às tomadas de cons
ciência mais recentes, a trajetória cultural das América Ibé
ricas ficou presa à relação com aquele contato “inaugural”
do europeu com a terra: vejam-se as análises de Octávio Paz
em El Labirinto de la Soledad, algo discutíveis mas muito pro
vocadoras; vejam-se as reflexões de Zum Felde em El proble-
ma de la cultura americana; veja-se o ensaio de J. M. Bri-
ceño Guerrero sobre La identificación Americana, con la Eu
ropa Segunda. Todas essas tematizações expressam o vínculo
do ser histórico iberoamericano com aquele contato origi
nal e reiteram um problema sempre reposto, o de pertencer
ou não a experiência existencial desse ser ao âmbito cultu
ral do chamado “Ocidente”.
Aquele contato do europeu com a terra americana apre
sentou realmente dois lados. Por uma parte foi trauma, e
deixou como seqüela uma ambivalência incurável; por outra
parte foi fecundação, e deixou um lastro de morfoses histó
ricas sempre úteis para a própria auto-imagem iberoameri
cana. A cada passo as elites intelectuais, nas Américas, se
perguntam se são ou não parte do Ocidente; e a cada passo
a formulação da pergunta retrocede ao tema das origens, a
ver até que ponto a imposição de matrizes culturais euro
péias significou vinculação definitiva ao âmbito cultural oci
dental.
* * *
136
Obra publicada em convênio com a Secretarla de Turis
mo, Cultura e Esportes do Governo de Pernambuco através
da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de Per-
nambuco/FUNDARPE, iniciando-se a editoração ha gestão
do governador Roberto Magalhães Melo e concluída na ges
tão do governador Gustavo Krause Gonçalves Sobrinho.