NO RENASCIMENTO
Colecção: Forum de Ideias
Leonel Ribeiro dos Santos
Edições Colibri
Biblioteca Nacional – Catalogação na Publicação
CDU 1”14/15”
808.5”14/15”
165.7”14/15”
Prefácio ......................................................................................... 7
PREFÁCIO
______________________
INTRODUÇÃO
1
Sobre isso, pode ver-se: John Monfasani, «Humanism and Rhetoric», in Albert Rabil, Jr.
(ed.), Renaissance Humanism, Foundations, Forms, and Legacy, University of
Pennsylvania Press, Philadelphia, 1991, vol. 3, pp. 171-235; Brian Vickers, In Defence
of Rhetoric, Clarendon Press, Oxford, 1988, sobretudo o cap. V: «Renaissance
Reintegration», pp. 254-293; Id., «Rhetorics and Poetics», in: Charles B. Schmitt / Q.
Skinner / E. Kessler /J. Kraye (eds.), The Cambridge History of Renaissance
Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge-New York-Melbourne, 1988,
pp. 715-745; Hanna H. Gray, «Renaissance Humanism: The Pursuit of Eloquence»,
Journal of the History of Ideas, 24 (1963) reimpr.: in Renaissance Essays, ed. de
P.O. Kristeller e P.P. Wiener, University of Rochester Press, 1992, pp. 199-216;
Jerrold E. Seigel, Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism: the Union
of Eloquence and Wisdom, Petrarch to Valla, Princeton, N.J., 1968; Eugenio Garin,
«Retorica e ‘studia humanitatis’ nella cultura del Quattrocento», in B. Vickers (ed.),
Rhetoric Revalued. Papers from the International Society for the History of Rhetoric,
Binghamton, N. York, 1982, pp. 225-239; Paul Oskar Kristeller, «Philosophy and
Rhetoric from Antiquity to the Renaissance», in Id., Renaissance Thought and Its
Sources, ed. de M. Mooney, New York, 1979, pp. 213-259.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 11
2 Para uma perspectiva de conjunto, veja-se: Samuel Ijsseling, Rhetoric and Philosophy in
Conflict. An Historical Survey, Martinus Nijhoff, The Hague, 1976.
3 Veja-se: S. Ijsseling, «Rhétorique et Philosophie. Platon et les Sophistes, ou la tradition
métaphysique et la tradition rhétorique», Revue Philosophique de Louvain, 74 (1976),
pp. 193-210.
12 Leonel Ribeiro dos Santos
4 Sobre isso, veja-se: James J. Murphy (ed.), Renaissance Eloquence: Studies in the
Theory and Practice of Renaissance Rhetoric, University of California Press, 1983; John
Monfasani, art. cit., in: A. Rabil, Jr. (ed.), ob.cit., vol. 3, pp. 172-235; Don Paul Abbott,
«The Renaissance», in: W.B. Horner (ed.), The Present State of Scholarship in
Historical and Contemporary Rhetoric, University of Missouri Press, Columbia,
Missouri (1983), revised ed. 1990, pp. 84-113.
5 Tenham-se presentes, nomeadamente, as obras de Chaïm Perelman e de Michel Meyer.
De Perelman, L’empire rhétorique – Rhétorique et Argumentation, Vrin, Paris, 1977; (e,
em colab. com L. Olbrechts-Tyteca), Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique,
Éditions de l’Université de Bruxelles, Bruxelles, 1992. De Michel Meyer: Questions de
rhétorique. Langage, raison et séduction, Librairie Générale Française, Paris, 1993;
(ed.), De la Métaphysique à la Rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles,
Bruxelles, 1986; (ed. com A. Lempereur), Figures et conflits rhétoriques, Éditions de
l’Université de Bruxelles, Bruxelles, 1990.
6 Nos tempos mais recentes, ninguém fez mais pela reabilitação da retórica humanista e
do seu significado filosófico do que Ernesto Grassi. Das suas obras relevantes para o
tema, refiram-se: Macht des Bildes: Ohnmacht der rationalen Sprache. Zur Rettung des
Rhetorischen, DuMont Schauberg, Köln, 1970; Rhetoric as Philosophy. The Humanist
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 13
I
HOMO LOQUENS: O HUMANISMO E A CONSCIÊNCIA
DA CONDIÇÃO LINGUÍSTICA DO HOMEM E DO PENSAMENTO
Tradition, The Pennsylvania State University Press, 1980; Vico and Humanism. Essays
on Vico, Heidegger and Rhetoric, Peter Lang, N.York, 1990; Einführung in philoso-
phische Probleme des Humanismus, WBG, Darmstadt, 1986.
7 Veja-se: Cesare Vasoli, La dialettica e la retorica dell’Umanesimo. «Invenzione» e
«Metodo» nella cultura del XV e XVI secolo, Feltrinelli, Milano, 1968; Id., «La retorica
e la dialettica e le origini delle concezioni moderne del ‘metodo’, Il Verri, 35/36 (1970),
pp. 250-306; Peter Mack, Renaissance Argument. Valla and Agricola in the Traditions
of Rhetoric and Dialectic, E.J. Brill, Leiden-New York-Köln, 1993.
8 Segundo Salutati, a Lógica ou Dialéctica colhe o entendimento com as suas razões,
ao passo que a Retórica se dirige à vontade, mas são complementares em vista dum
mesmo fim: «ambe quidem, licet diverso tramite, finem unum intendunt, quamvis una
dilucidet intellectum ut animo sciat, altera disponat ut velit, et alia ratione illa probet ut
doceat, hec vero persuadeat ut inclinet.» C. Salutati, Epistolario, ed. de F. Novati,
Roma, 1905, vol. IV, p. 223.
9 O humanista valenciano supõe a complementaridade entre as três disciplinas da lingua-
gem, usando uma metafórica arquitectónica: «in hoc velut sermonis aedificio, Gramma-
tica caedat ligna, et lapides, Dialectica domum erigat, Rhetor condat civitatem...
Grammatica usque ad verborum coniunctionem progrediatur, Dialectica usque ad argu-
mentationem, Rhetorica usque ad sermonem, et, quod exactius est, orationem.» J. L.
Vives, De causis corruptarum artium, lib. III, cap. I, ed.bilingue latim-alemão de
E. Hidalgo-Serna, Fink, München, 1990, p. 111.
10 Autor de tratados de Dialéctica e de Retórica, Melanchthon, que já conhece e aprecia a
nova Dialéctica de Rudolf Agricola – numa Oratio de vita R. Agricola (1539) escre-
14 Leonel Ribeiro dos Santos
ve:«Nemo non amat Rodolphi nomen.» –, defende contudo uma estreita afinidade e
complementaridade entre uma e outra e a necessidade de o orador usar os processos da
Dialéctica e de o dialéctico usar os do Retórica. V. infra, nota 136.
11 Rudolf Agricola, De inventione dialectica libri tres (ed. princ. 1515), ed. crítica e trad.
alemã de Lothar Mundt, Max Niemeyer, Tübingen, 1992. A obra de Agricola, de grande
influência e autoridade na primeira metade do século XVI, é responsável pela expoliação
da Retórica daquelas partes que os humanistas para ela tinham recuperado – a inventio e a
dispositio –, deixando-lhe apenas o que respeita ao ornamento do discurso e a preocupa-
ção com o efeito da elocução no auditório. A Dialéctica é reinvestida como ciência geral
da argumentação e do discurso provável. Mas ainda se concebe alguma complementari-
dade entre as artes do discurso: «Primum grammatice docet, quae emendate et aperte
loquendi viam tradit; proximum rhetorice, quae ornatum orationis cultumque et omnes
capiendarum aurium illecebras invenit. Quod reliquum igitur est, videbitur sibi dialectice
vendicare: probabiliter dicere de qualibet re, quae deducitur in orationem.» Ibidem,
pp. 208-210. Sobre Agricola, veja-se, além da obra citada de Peter Mack, também o
artigo de Kees Meerhoff, «Agricola et Ramus – Dialectique et Rhétorique», in. F.
Akkerman / A.J. Vanderjagt (eds.), Rodolphus Agricola Phrisius 1444-1485, Proceedings
of the International Conference at the University of Gröningen 28-30 October 1985,
E.J.Brill, Leiden-New York-Kopenhagen, 1988.
12 Pedro Ramo, como adiante mais demoradamente veremos, dissocia completamente as
duas disciplinas rompendo a íntima solidariedade entre ratio e oratio suposta pelos
humanistas: «dialectica mentis et rationis tota est, rhetorica et grammatica sermonis et
orationis.» Veja-se: Rhetoricae distinctiones in Quintilianum, in: J.J. Murphy e C.
Newlands (eds.), Arguments in Rhetoric Against Quintilian: Translation and Text of
Peter Ramus’s Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), Northern Illinois
University Press, 1986, p. 184.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 15
homem nas acções civis e nas reuniões e assembleias, nas quais a própria
palavra constitui o principal vínculo de toda a sociedade humana e sem ela
de modo nenhum se pode atingir o sumo bem. [...] Portanto, assim como a
razão é guia e mestra para dirigir as acções e para regular as virtudes, a
palavra é o intérprete da mente e como que o instrumento da própria razão,
se bem que se as deliberações, os conselhos e os raciocínios constam de
discursos e estes constam de palavras, então a própria linguagem subminis-
tra à razão o instrumento e a matéria, na qual ela se exerce.»19
É como se dissesse que a razão necessita das palavras não apenas
para comunicar os seus pensamentos, mas até para os pensar. O cap. III
da mesma obra fala do poder e autoridade do discurso (Maximam esse
vim atque auctoritatem orationis). E com isso Pontano não se refere pro-
priamente ao uso retórico da linguagem e do discurso, mas ao «discurso
comum» (de oratione tantum ipsa communi), usado nas relações quoti-
dianas entre os humanos, nos negócios, nas assembleias, no espaço fami-
liar e cívico.
Poderiam aduzir-se inúmeros testemunhos do mesmo teor. A sua
recorrência não indica apenas a cedência a um tópico da moda, mas suge-
re antes uma convicção fundamental amplamente partilhada pelos pensa-
dores humanistas. O homem vive e realiza a sua humanidade no elemento
da palavra. Esta deve ser entendida não apenas como um produto arbitrá-
rio, como um mero instrumento ou um utensílio da razão, mas também
como o seu elemento natural, a partir do qual o próprio pensamento se
pode exercer. Disso tinha consciência o humanista valenciano Juan Luis
Vives (1492-1540), quando apresentava a matéria de que trata a Retórica,
dizendo: «A matéria desta arte é a palavra; a palavra emprestada e não a
própria. A sua finalidade é o dizer bem; e a missão do que fala é manifestar
o que sente e persuadir do que quer ou excitar ou acalmar um afecto ou
uma paixão qualquer. Em todo o discurso, há as palavras e as ideias que
são como que o corpo e a alma. A ideia é como a alma e a vida das pala-
19 «Et rationem homini natura dedit [...] et orationem. [...] Itaque ratione quidem ipsa
homines seque suaque et metiuntur et componunt omnia, oratione autem et conciliatio-
nem a natura insitam conservant tuenturque et, quae ratio ipsa dictat, ea explicant atque
eloquuntur, sive ad usum spectent atque ad seria sive ad iocum ac voluptatem, quando
absque illa ratio manca quaedam res esset maximaque imbecilla, cum hominis praeser-
tim vita in actionibus versetur civilique in congregatione et coetu, cuius oratio ipsa
totiusque humanae societatis vinculum sit praecipuum ac sine ea ad summi boni
adeptionem perveniri nullo modo queat...Igitur ut ratio dux est ac magistra dirigendis
actionibus virtutibusque comparandis, oratio vero mentis est interpres rationisque
ipsius instrumentum quasi quoddam, siquidem consultationes, consilia, ratiocinationes
ipsae denique dissertionibus constant, dissertiones vero verbis, sic eadem ipsa oratio
instrumentum quoque rationi et quasi materiam sumministrat, in qua versetur.» De
sermone libri sex, ed. S. Lupi e A. Risicato, Antenore, Padova / Thesaurus Mundi,
Lugano, 1954, lib. I, cap. I, pp. 3-4.
18 Leonel Ribeiro dos Santos
20 «Materia hujus artis est sermo, et haec utique mutuata, non propria: finis bene dicere;
artificis autem explicare quae sentiat, aut persuadere quae velit, aut motum animi
aliquem excitare, vel sedare. In sermone omni sunt verba et sensa tamquam corpus et
animus. Sensa enium mens sunt, et quasi vita verborum; ideo etiam mens et sensus
vulgo nominantur. Inanis ac mortua res sunt verba sensu amoto; verba autem sedes sunt
sensorum, et veluti lumina in tantis nostrorum animorum involucris. [...] Verba sunt
populi publica, nullius artis, aut privati Juris.» De ratione dicendi (1532), cap. I, ed.,
trad. e notas de Ana Isabel Camacho e estudo introd. de Emilio Hidalgo-Serna,
Anthropos, Barcelona,1998, pp. 12-14.
21 Ibidem, p. 300.
22 «Jus sermonis populi est.» De causis corruptarum artium, ed. cit., p. 78. A ideia segun-
do a qual a linguagem é, juntamente com a justiça, o vínculo que une e mantém coesas
todas as sociedades humanas, foi desenvolvida por Vives no cap. I do Livro IV desta
mesma obra (ed. cit., p. 152): «Humanae omnes societates duabus potissimum rebus
vinciuntur ac continentur, justitia, et sermone; quarum si alterutra desit, difficile sit
coetum, et congregationem ullam, sive publicam, sive privatam, diutius consistere, ac
conservari… itaque duo sunt velut clavi, quibus conventus hominum reguntur, justitia
et sermo.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 19
orationis copiam censeo, sed civilem ab hac contineri observarique universam conten-
do.» Oratio de laudibus eloquentiae, apud J. Monfasani, ob. cit. (1976), Appendix 11,
p. 366.
25 «Nihil sub civili unquam invenietur quo non hec ordinet, instruat, atque perficiat.»
Ibidem.
26 Sobre a relação triangular entre ‘sapientia’, ‘prudentia’ e ‘eloquentia’, veja-se: Victoria
Kahn, Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, Ithaca/London, 1985.
27 «Accedit huc non contemnendus studiorum eloquentiae fructus, quod earum artium
usu, quibus eloquentia continetur, excitantur, erudiunturque ingenia, ut res humanas
omnes prudentius dispiciant, neque propius umbra corpus adsectatur, quam eloquen-
tiam comitatur prudentia... Videbant inter se maiores nostri haec duo: bene dicendi
scientiam, et animi iudicium natura cohaerere; quare et non inepti quidam orationem
esse dixerunt, explicatam animi rationem... Sic inter se copulatas esse prudentiam ac
eloquentiam, ut divelli nulla ratione possint.... Quid in consilio fuisse censetis veteribus
Latinis, cur dicendi artes humanitatem adpellarint? Iudicabant illi nimirum harum
disciplinarum studio non linguam tantum expoliri, sed et feritatem, barbariemque inge-
niorum corrigi. Nam cultu perinde ac plerique sylvestrem indolem exuunt, mansues-
cunt ingenia, cicuranturque.» Philipp Melanchthon, Encomion Eloquentiae, in Corpus
Reformatorum, ed. C. Bretschneider, Halis Saxonum, 1843, vol. XI, p. 55.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 21
28 «Optime quidem simul coalescunt sapientia et eloquentia, ut quantum illa capit tantum
et ista pertractet. quod si certamen utriusque fiat, que cui preoptanda sit, sapientie
palmam dato. non tamen inutile puta semper eloquentie singularem, precipuam et
continuam operam dare. non enim eloquentie studium non etiam sapientie munus est.
subicitur eloquentia sapientie et in ipsa, quasi toto quodam, quod cuncta scibilia
possideat, continetur, ut qui sapientie studium profitetur, simul et eloquentie profiteatur
necesse sit.» Epistolario, ed. F. Novati, Roma, 1896, vol. III, p. 602.
29 Cícero, De oratore, III, xvi, 60-61.
30 Caso expressivo é o de Pedro Ramo, sem dúvida o pensador que em meados do século
XVI desenvolve o mais sistemático ataque contra a Retórica e os clássicos mestres da tra-
dição retórica e, ainda assim, se apresenta como «professor régio de eloquência e filoso-
fia» e é autor de uma Oratio de studiis philosophiae et eloquentiae conjungendis (1546),
que adiante comentaremos. Veja-se: Petri Rami et Audomari Talaei, Collectaneae,
Praefationes, Epistolae, Orationes, Parisiis, 1577 (reimpr.: G. Olms, Hildesheim, 1969,
22 Leonel Ribeiro dos Santos
II
A RETÓRICA COMO FILOSOFIA,
DE LORENZO VALLA A MARIO NIZOLIO
pp. 244-254). Sobre Ramo, veja-se: Walter J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of
Dialogue: From the Art of Discourse to the Art of Reason, Harvard University Press,
Cambridge, 1958.
31 «O praeclaros nostri temporis philosophos, siquidem ea docent, quae ipsi nesciunt;
quos ego nequeo satis mirari, quo pacto philosophiam didicerint, cum litteras ignorent;
nam plures soloecismos quam verba faciunt cum loquuntur...». Leonardo Bruni, Ad
Petrum Histrum Dialogus, in E. Garin, Prosatori latini del Quattrocento, p. 58.
32 «Qua vigente quis ignorat studia omnia disciplinasque vigere, occidente occidere? Qui
enim summi philosophi fuerunt, summi oratores, summi iurisconsulti, summi denique
scriptores? nempe ii qui bene loquendi studiosissimi.» Lorenzo Valla, Elegantiae
linguae latinae (1448), in Eugenio Garin, Prosatori latini del Quattrocento, pp. 594 ss.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 23
36 Ibidem, pp. 433-434: «Verum licet naturaliter proferantur voces earumque significatio-
nes sint ex institutione hominum, tamen et ipsas voces iisdem arbitratu suo excogita-
runt, perceptis rebus nomina imponentes... nisi hoc ad Deum referre volumus qui
linguas hominum ad turrim Babel divisit. Quanquam et Adam aptavit rebus nomina, et
postea passim caetera vocabula confinxerunt. Quocirca nomen, verbum, et reliquae
orationis partes per se tantum soni sunt, sed multiplicem habent ex institutione
hominum significantiam.» Veja-se: Salvatore I. Camporeale, «Lorenzo Valla, ‘Repasti-
natio, liber primus’: Retorica e linguaggio», ob. cit., pp. 218 ss; R. Waswo, «Motives
of Misreading», in Renaissance Essays II, pp. 108-109.
37 «Metaphysicam totam constare in pauculis verbis, nec in rebus versari, sed in vocibus,
easque voces ab Aristotele per miram hebetudinem ignorari. Omniaque ista vocabula
‘concretum’ et ‘abstractum’, ‘quiditas’, ‘essentia’, ‘esse’, ‘ens’ frenetica plane esse
nulliusque ponderis, quae si ille intellexisset nunquam tantam aliis insaniendi materiam
praebuisset.» Carta a Tortelli (1441), apud Salvatore I. Camporeale, Lorenzo Valla.
Umanesimo e Teologia, Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento, Firenze, 1972,
p. 225.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 25
tra sunt) e lhes foram roubadas pelos filósofos. Trata-se, por conseguinte,
de restituir à Retórica o seu rico património que lhe foi roubado (amplis-
simum patrimonium a nescio quibus direptum oratorie restituere).43
Segundo Valla, «se se investigar o passado, ver-se-á que os oradores fala-
ram no meio das cidades acerca de coisas excelentes e importantes muito
antes que os filósofos começassem a tagarelar pelos cantos, e mesmo nos
nossos tempos, ainda que os filósofos se digam reitores dos outros, con-
tudo, os oradores, como a própria realidade ensina, é que devem ser cha-
mados reitores e até mesmo príncipes dos outros.»44
Considere-se ainda um outro importante testemunho, extraído da
Introdução ao livro II da Repastinatio. São aqui confirmados todos os
tópicos que acabamos de identificar, numa clara apropriação pela Retórica
das competências tradicionalmente atribuídas à Dialéctica (esta, enquanto
arte de disputa, da refutação e da argumentação, é por Valla considerada
uma parte da invenção, a qual, por sua vez, é assumida pelo humanista
como uma das cinco partes da Retórica), ao mesmo tempo que se contra-
põe a noção retórica de verdade – uma verdade que subsiste no espaço
inter-subjectivo e comunicacional, de conteúdo prático-moral, aberta e
dirigida a toda a cidade e orientada a persuadir, mover e deleitar – à con-
cepção dialéctica de verdade – uma verdade privada e doméstica. Expli-
45
43 Ibidem, p. 15.
44 «Nam si diligenter tempora exquiramus, antea oratores in media civitate de optimis et
maximis rebus loquebantur quam philosophi in angulis garrire ceperunt, et nostris
quoque temporibus licet philosophi se rectores aliorum dicant, tamen oratores, ut res
ipsa docet, rectores aliorum esse ac principes quidem dicendi sunt.» Ibidem.
45 A noção retórica de verdade encontra-se ainda mais claramente exposta em algumas
páginas da Repastinatio, ed. cit., vol. I, pp. 19-20; vol. II, p. 378. Veja-se, neste volu-
me, pp. 129-130.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 27
paupertas decet. Quoniam non tantum vult docere orator, ut dialecticus facit, sed
delectare etiam ac movere, que nonnunquam ad victoriam plus valent quam ipsa
probatio; tametsi non ad solam semper victoriam tendit neque semper versatur in
litibus, sed in suadendis honestis et ad bene beateque vivendum pertinentibus
dissuadendisque turpibus atque inutilibus, in laudandis vituperandisque que laudem
mereantur aut vituperationem. [...] Atque sicuti nos alio vestitu utimur cum prodimus in
publicum, alio cum agimus aliquid intra domum, itenque alio cum magistratus, alio
cum privati sumus, propterea quod serviendum est oculis populi, ita dialecticus, cuius
domesticus et privatus est sermo, non eum captabit dicendi nitorem eamque maiestatem
quam captabit orator: cui apud universam civitatem dicendum et multum publicis
auribus dandum est, cui, insuper, adesse debet multa magnarum rerum peritia, perdiffi-
cilis quedam tractandorum animorum scientia, usus complurium negotiorum, omnium
populorum omnisque memorie gestorum notitia, et ante omnia sanctitas vite ac eximia
quedam animi dignitas et corporis vocisque prestantia. Siquidem orator est velut rhetor
ac dux populi. Propter quod longe difficilima rhetorica est et ardua, nec omnibus
capessenda. Nanque lato mari mediisque in undis vagari et tumidis ac sonantibus velis
volitare gaudet, nec fluctibus cedit, sed imperat: de summa et perfecta loquor eloquen-
tia. Dialectica vero amica securitatis, socia litorum, terras potius quam maria intuens,
prope oras et scopulos remigat.» Repastinatio, ed. cit., vol. I, pp. 175-176.
47 Angelus Politianus, Lamia, in Opera Omnia, Basileae, 1553, p. 459.
48 Mario Nizolio, De veris principiis et vera ratione philosophandi contra pseudophi-
losophos libri IV, ed. crítica de Q. Breen, Fratteli Bocca Editori, Roma, 1956, vol. I, p. 35.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 29
49 Veja-se de Rudolf Agricola, De inventione dialectica libri tres (1ª ed. 1515), ed. crítica
de Lothar Mundt, Max Niemeyer, Tübingen, 1992. De Pedro Ramo (Pierre de la
Ramée): Dialectique (1555), reed. Genève, 1964. Para outros aspectos do pensamento
de Ramo acerca da retórica, vejam-se as suas obras: Brutinae Quaestiones (1547), in
Peter Ramus’s Attack on Cicero. Text and Translation of Ramus’s «Brutinae
Quaestiones», ed, e introd. de James J. Murphy, trad. de Carole Newlands, Hermagoras
Press, Davis, 1992; Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), in James J.
Murphy e Carole Newlands, Arguments in Rhetoric Against Quintilian: Translation
and Text of Peter Ramus’s Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), Northern
Illinois University Press, 1986.
50 Expressamente visado é Agricola e o roubo que fez à Retórica da sua importante
primeira parte – a invenção – que usurpou para a sua nova Dialéctica: «Deinde primam
officii rhetorici partem, hoc est, inventionem, quam nonnulli etiam doctissimi viri, in
quorum numero etiam est Rodulphus Agricola, nescio qua dementia vel potius furore
correpti ab Oratore removere et ad Dialecticam transferre non erubuerunt.» De veris
principiis, vol. II, p. 107; vol. I, p. 160. Mas há pontos em que Nizolio está de acordo
com Agricola, nomeadamente quando se trata de criticar Aristóteles, os aristotélicos e
os dialécticos escolásticos (Ibidem, vol. II, p. 111). Referências expressas a Pedro
Ramo não se encontram em Nizolio, que terá conhecido as ideias ramistas através dos
escritos de Joachimus Perionius: Pro Aristotele in Petrum Ramum orationes II (1543) e
Pro Ciceronis Oratore contra Petrum Ramum oratio (1547). Veja-se, a este respeito, a
nota de Q. Breen à sua edição do De veris principiis, vol. II, p. 177.
30 Leonel Ribeiro dos Santos
51 «Oportet ad probandum aliquid inter homines argumenta esse notiora nobis non
naturae, idque quia cum hominibus non cum natura disputamus.» De veris principiis,
vol. II, p. 153.
52 «Philosophiam et Oratoriam non duas esse facultates separatas, sed unam eandemque
ex rebus et verbis tanquam animantem quandam ex corpore et anima compositam, cui a
sapientia rerum cum virtute coniuncta Philosophiae, ab artificio verborum et dicendi,
Oratoriae nomen fuit impositum: nec enim Philosophia sine verborum adiumento, nec
Oratoria sine rerum quasi fundamento perfecta esse potest.» De veris principiis, ed.
cit., vol. II, pp. 32-33.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 31
III
A FILOSOFIA CONTRA A RETÓRICA:
A POLÉMICA DE PICO DELLA MIRANDOLA
COM ERMOLAO BARBARO E SUA RESSONÂNCIA POSTERIOR
60 Giovanni Pico Della Mirandola / Gian Francesco Pico, Opera omnia, reed. anastática
da ed. de Basileia 1557, G. Olms, Hildesheim, 1969, vol. I, 364: «Simili et ego utar
perfugio ut poetis, rhetoribusque me aprobem, propterea quod philosophari dicar:
philosophis quod rhetorissem, et musas colam... Quippe ego dum geminis (ut aiunt)
sellis sedere volo, utraque excludor, sitque demum (ut dicam paucis) ut nec poeta, nec
rhetor sim, neque philosophus.» Veja-se de F. Bausi, Nec rhetor neque philosophus.
Fonti, lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-
-1487), Olschki, Firenze, 1996.
61 Sobre Ermolao Barbaro, veja-se: V. Branca (ed.), Una famiglia veneziana nella storia:
i Barbaro. Atti del Convegno (Venezia 4-6 de novembre 1993), Istituto Veneto di
Scienze, Lettere ed Arti, Venezia, 1996; Id., La sapienza civile. Studi sull’Umanesimo a
Venezia, Olschki, Firenze, 1998; Id., «Ermolao Barbaro e l’umanesimo veneziano», in
Umanesimo europeo e umanesimo veneziano, a cura di V. Branca, Sansoni, Firenze,
1963, pp. 193-212; Id., «L’umanesimo veneziano alla fine del Quattrocento. Ermolao
Barbaro e il suo circulo», in Storia della cultura veneta, Neri Pozza, Vicenza, III/1,
pp. 123-173.
62 «Nec enim inter auctores latinae linguae numero Germanos et Teutonas, qui ne viven-
tes quidem vivebant, nedum ut extincti vivant; aut si vivunt, vivunt in poenam et
contumeliam: appellantur enim vulgo sordidi, rudes, inculti, barbari.» Ermolao
Barbaro, Epistolae, Orationes et Carmina, ed. critica a cura di Vittore Branca,
Bibliopolis, Firenze, vol. I, p. 86.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 35
67 «Tanta est inter Oratoris munus & Philosophi pugnantia, ut pugnare magis invicem non
possint.» Opera omnia, I, p. 352.
68 Ibidem.
69 «Non desiderat Tullius eloquentiam in Philosopho, sed ut rebus et doctrina satisfaciat.
Sciebat tam prudens quam eruditus homo, nostrum esse componere mentem, potius
quam dictionem, curare ne quid aberret ratio, non oratio.» Ibidem, p. 355.
70 «Non est humanus, qui sit insolens pollitioris literaturae. Non est homo qui sit expers
Philosophiae.» Ibidem, p. 357.
38 Leonel Ribeiro dos Santos
71 Ibidem, p. 352.
72 «Habuisse barbaros, non in lingua, sed in pectore Mercurium, non defuisse illis sapien-
tiam, si defuit eloquentia.» Ibidem.
73 «Vivere sine lingua possumus, fortè non commodè, sed sine corde nullo modo
possumus.» Ibidem.
74 «Hic Grammaticorum, ne Poetarum dicam decreta nescit, ille Dei atque naturae: hic
infantissimus dicendo sentit ea, quae laudari dicendo satis non possunt, ille fando
eloquentissimus loquitur nefanda.» Ibidem.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 39
75 G. Pico Della Mirandola, Oratio de hominis dignitate, Opera omnia, vol. I, pp. 326 ss.
76 «Vulgo non scripsimus.[...] Nec aliter quam prisci suis aenigmatis & fabularum involu-
cris, arcebant idiotas homines a mysteriis. Et nos consuevimus absterrere illos a nostris
dapibus, quas non polluere non possent amariori paulum cortice verborum. [...] Simile
philosophorum studium, celare res suas populum, a quo cum non probari modo, sed
nec intelligi illos deceat, non potest non dedecere habere aliquid quae ipsi scribunt
theatrale, plausibile, populare, quod demum multitudinis iudicio accommodare se
videatur.» Ibidem, p. 354. Insistente na carta a Barbaro, neste tópico se condensa a
concepção de filosofia de Pico, de uma filosofia secreta e duma usura da verdade que é
dada a poucos, por contraste com a dos retóricos que propõem uma sabedoria popular,
para o vulgo, a todos comunicável e por todos susceptível de ser entendida, desde que
claramente e convenientemente exposta. A mesma concepção se encontra na Oratio de
hominis dignitate (Opera omnia, I, pp. 328-331), no Heptaplus (Ibidem, pp. 1-2), no
Commento (Ibidem, pp. 921-922).
40 Leonel Ribeiro dos Santos
e digno e que obtenha a majestade não pela delicadeza, mas antes pelo
horror.»77
Os títulos e virtudes do filósofo estão para o jovem Pico noutro
plano: na agudeza da investigação, na profundidade do pensamento, no
cuidado da observação, na seriedade do juízo, na pertinência da síntese,
na facilidade da análise, na capacidade para desfazer ambiguidades, resol-
ver dificuldades, deslindar o que é complexo e embrulhado, com a força
dos silogismos refutar o que é falso e confirmar o que é verdadeiro.
Exprimindo isso num estilo breve e simples, talvez mesmo desajeitado,
rude e bárbaro, mas prenhe de muitas e grandes matérias, rico de ideias,
versando sérias questões e respectivas soluções.78
Em suma: a Filosofia não necessita de vestes ou de ornamentos, de
tropos ou de metáforas. Querer adorná-la e esclarecê-la é ofuscá-la. A
posição de Pico é um qualificado exemplo da defesa da ideia da nuda
veritas ou nuda philosophia: «a Filosofia apresenta-se nua e quer-se natu-
ral e simples. Tudo o que se lhe acrescente adultera-a e corrompe-a.»79 Os
filósofos não devem ser censurados por não serem eloquentes. Devem sim
ser condenados se o forem. Reforçando retoricamente a sua ideia, Pico
contrapõe mesmo à veritas fucata dos humanistas uma veritas monstruosa
na sua aparência exterior e literária, mas rica, preciosa e divina na sua
medula, tal como os Silenos de Alcibíades, de rosto horrível, repugnante,
desprezível, mas por dentro cheios de pedras preciosas. A creditação do
filósofo resulta da qualidade moral da sua vida (si bonus fuerit), da verdade
efectiva do que diz (veritas rei), da sobriedade do seu discurso (sobrietate
orationis), ou seja, se ama aquele género de discurso que «não flui das
amenas florestas das Musas, mas do horrendo antro no qual, segundo
Heraclito, reside a verdade» (non ex amoenis Musarum sylvis, sed ex hor-
80
rendo fluxente antro, in quo dixit Heraclitus latitare veritatem).
Os argumentos de Pico são apoiados com abundantes comparações e
metáforas, por mais que expressamente diga que o filósofo deve abster-se
delas, como algo pernicioso.81 Também dá exemplos e invoca autoridades.
Entre estas destaca-se a de Platão, que eliminou os poetas da sua
82 Ibidem, p. 355.
83 Ibidem.
84 «La verità vuol essere nuda, e quanto è più nuda, tanto più inclina. E però avemo
veduto che più hanno possuto gli apostoli con la nuda e semplice verità, che gli oratori
con le loro ornate parole e le loro orazioni piene di eloquenza. La nuda verità tira gli
uomini a quello che lo intelletto loro repugna, il che non arebbe mai potuto tirare
oratore alcuno con sua arte e sua eloquenza.» G. Savonarola, Prediche sopra i Salmi,
ed. a cura di Vincenzo Romano, Angelo Belardetti, Roma, 1969, p. 102.
85 Ermolao Barbaro, Epistolae, Orationes et Carmina, ed. cit., vol. I, p. 108. Veja-se: J.-
-C. Margolin, «Sur la conception humaniste du «Barbare»: a propos de la controverse
42 Leonel Ribeiro dos Santos
3. Talvez por se ter dado conta disso, por ter visto que no debate entre
o jovem advogado dos filósofos escolásticos e o humanista veneziano a
balança ficara inclinada demais para o lado da Filosofia, com manifesta
injustiça para a eloquência, um outro humanista entrará no debate, já no
século seguinte e volvidas várias décadas, forjando uma carta como se
fosse de Ermolao Barbaro, em que este responde aos argumentos de Pico
de um modo sistemático e de forma muito mais convincente. Pico terá
encontrado então o adversário à sua altura. O humanista em causa ocul-
tou-se desde o século XVI até muito recentemente sob o nome de Philipp
Melanchthon (1497-1560), o qual já em 1523, num Discurso sobre a
necessidade das artes da linguagem para todo o género de estudos (mais
conhecido por Encomion eloquentiae), havia feito uma explícita, embora
breve, referência crítica à carta de Pico86, de cuja tese discorda, e, a partir
da edição de 1542 dos seus Elementos de Retórica, publicara, em apên-
dice, as cartas respectivas de Pico e de Barbaro, acompanhadas de comen-
tários pessoais. A nova carta apócrifa, a que nos referimos, foi publicada
como apêndice, na edição de 1558 dos Elementos de Retórica do teólogo-
-humanista, precedida da carta de Pico a Barbaro. Todos os editores e
comentadores a consideraram, sem qualquer dúvida, como sendo da auto-
ria de Melanchthon e datada de 1558. Só muito recentemente esta autoria
e datação foram postas em causa.87 Mas, seja quem for o verdadeiro autor
epistolaire entre Pic de la Mirandole et Ermolao Barbaro», in: Una famiglia veneziana
nella storia: i Barbaro. Atti del Convegno (Venezia, 4-6 novembre 1993), Istituto
Veneto di Scienze, Lettere ed Arti, Venezia, 1996, pp. 235-276.
86 Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523), in Corpus Reformatorum, vol. XI,
col. 53: «Picus in epistola, qua barbaris philosophiae scriptoribus patrocinatur, ludens,
credo, in αδόζώ argumento et elegantiam a recte dicendi ratione separat et explicari res
qualicumque oratione posse censet.»
87 Num pequeno artigo publicado em 1992, Erika Rummel tentou provar que a referida
carta não é da autoria de Melanchthon, mas sim de um seu discípulo, Franz Burchard
(Franciscus Vinariensis), e que teria sido escrita em 1534, e não em 1558, como desde
os tempos de Melanchthon e até ao presente se tem pensado (E. Rummel, «Epistola
Hermolai nova ac subditicia: A Declamation Falsely Ascribed to Philipp Melanchthon»,
Archiv für Reformationsgeschichte 83, 1992, pp. 302-305). Todos os que têm tratado o
conflito Pico-Barbaro, não só os mais antigos (A. Festugière, Q. Breen, H. Gray), mas
também os mais recentes (F. Bausi, Nec rhetor neque philosophus, 1996, pp. 15,18 e 29;
Filosofia o eloquenza, 1998), seguindo Carolus G. Bretschneider, o editor das obras de
Melanchthon no Corpus Reformatorum (o qual, por sua vez, seguia todos os editores
das obras e da correspondência de Melanchthon desde a segunda metade do século
XVI, que davam a referida carta como «scripta a Melanchthone»), consideram a carta
datada do ano de 1558 e nunca puseram em causa que a respectiva autoria fosse de
Melanchthon. O mesmo faz Knape, no seu estudo e edição da Retórica de Melanchthon,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 43
88 que Rummel aduz como prova de que é este, e não Melanchthon, o verdadeiro autor da
carta. A passagem da Dedicatória que a seguir se transcreve poderia confirmar essa
ilação: «Hermolaus recitat quasdam suas pugnas, hoc ne agit quidem, ut refellat Pici
argumenta. Et haud scio an iudicio causam suam peragere noluerit, quod videret eam
non magis Epistolae convenire, quam si quis in exigua tabella ingentem Colossum velit
pingere, quod cum ipse animadverterem, caepi etiam languidiore animo scribere, et
quasi represso cursu restiti, ac breviter ostendi fontes argumentorum Pici, ut ab adoles-
centibus iudicari facilius possit, ubi ille quasi extra viam currat, dum in absurda materia
tuenda ludit.»
Com excepção para Quirinus Breen, que deu uma versão inglesa da carta («Melanch-
thon’s Replay to G.Pico della Mirandola», Journal of the History of Ideas, 13 (1952),
pp. 413-426) e lhe dedicou um artigo («The Subordination of Philosophy to Rhetoric in
Melanchthon. A Study of His Replay to G. Pico della Mirandola», Archiv für Reforma-
tionsgeschichte, 43 (1952), pp. 13-28).
89 Na edição de Witemberga 1558 dos Elementorum Rhetorices Libri duo, as cartas em
apêndice são assim apresentadas: «Epistolae contrariae, una Pici pro barbaris philosophis;
altera pro Hermolao Barbaro scripta a Philippo Melanchthone, quae respondet Pico». Na
ed. de 1582, há uma pequena alteração, caindo o nome de Melanchthon como autor e
sublinhando-se o carácter apócrifo da carta: «Epistolae contrariae: Pici pro Barbaris
Philosophis & Hermolai nova ac subdititia, quae respondet Pico». Na edição de C. G.
Bretschneider, no vol. IX do Corpus Reformatorum (Halis Saxonum, 1842), sob o nº
6658 das Epistolae de Melanchthon e sob o título «Responsio Philippi Melanchth. pro
Hermolao», a peça ocupa as colunas 687-703. Citamos por esta edição (CR).
90 «Tota enim oratio tua, non tam defensio est Barbarorum, quam eloquentiae vitupera-
tio.» CR, 690.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 45
102 «Nam ea oratio quae est optima, nativus sententiae color est. Aliena, confusa et
perturbata oratio deformat et corrumpit sententias, ac ne affingit quidem, quod debeat
esse orationis officium proprium.» CR, IX, 693-694.
103 «Praecipuus ornatus est ipsa rerum propria explicatio, ut in picturis iusta corporum
lineamenta.» CR, IX,695.
104 «Velut in rosis candor, ita in oratione Philosophi simplicitas quaedam insit nativa.»
CR, IX, 697.
105 CR, IX, 692: «Hunc enim virum, qui de bonis ac necessariis rebus recte, dilucide, et
cum dignitate quadam docet homines, Oratorem nos vocamus: quem tu Philosophum
velis vocari, nondum satis intelligo. Equidem Philosophum voco illum virum, qui cum
res bonas atque utiles humano generi didicit ab tenet, doctrina ex schola atque umbra
ad usum et Rempublicam transfert, docet homines aut de natura rerum, aut de religio-
nibus, aut de regendis civitatibus.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 49
dam: «Nós não falamos de coisas arcanas, que devem ser mantidas ocul-
tas, mas daquelas coisas que importa dizer e manifestar, e interpretamos
os próprios símbolos e os apólogos não com o intuito de encobrir os seus
ensinamentos, mas para que sejam como pinturas dos costumes, úteis
para excitar os ânimos a admirá-los.»106
Mas não é só na Filosofia que o humanista melanchthoniano defende
a importância da eloquência. Defende-a, tal como o seu mestre, também
na Teologia, e contrapõe a teologia eloquente dos Padres da Igreja à mísera
e esquálida teologia dos filósofos e teólogos escolásticos. Chega mesmo
ao ponto de afirmar, como também o faz Erasmo107, que não só os Padres,
mas também os livros da própria Sagrada Escritura – os Profetas, os
Evangelhos, as Cartas de Paulo – abundam de eloquência e de recursos
retóricos e poéticos, e só podem ser capazmente lidos e interpretados por
quem dominar as ciências do discurso. Estas, para proveito dos estudos
humanos e dos estudos teológicos, haviam sido felizmente restauradas, e
nessa ainda recente restauração via o humanista reformado um novo dom
das línguas, uma nova descida do Espírito Santo sobre a Igreja e a Huma-
nidade. Ora, pergunta o humanista, claramente partidário de uma teologia
de inspiração retórica contra a teologia de inspiração dialéctica e metafí-
sica dos escolásticos: «Porque razão se acrescentou ao Evangelho o dom
das línguas, se a eloquência é inútil para expor as matérias sagradas e
grandes? Pois, que outra coisa é o dom das línguas, senão a eloquência,
isto é a faculdade de explicar as coisas obscuras com clareza e abundân-
108
cia?»
Já se vê que também resulta insustentável a outra parte da tese de
Pico, segundo a qual nos filósofos «bárbaros» é que se encontraria a dou-
trina, a verdade, o conhecimento. Como podem ter a ciência, se não
entendem os meios pelos quais ela se alcança, se conserva, se transmite?
Como podem interpretar com pertinência os seus filósofos, como podem
entender as Sagradas Escrituras, se não sabem lê-los nas línguas origi-
nais, se ignoram as ciências da linguagem que permitiriam decifrar o seu
correcto sentido? O discípulo de Melanchthon desenvolve, na resposta a
Pico, uma ideia que o seu mestre expusera com grande convicção já nos
106 «Nos vero non loquimur de arcanis, quae pro tempore occultanda sunt, sed de illis,
quae efferri atque extare oportet, [...] deinde et Symbola et Apologos conditos inter-
pretor, non hoc consilio ut praecepta tegerent, sed ut essent veluti morum picturae,
utiles ad excitandos animos ad admirationem.» CR, IX, 698-699.
107 De Erasmo, vejam-se, nomeadamente: In Novum Testamentum Praefationes e Ratio
seu Compendium verae Theologiae, in Ausgewählte Schriften, ed. bilingue latim-
-alemão, de W.Welzig, WBG, Darmstadt, 1967, vol. III, pp. 22,144-146,150,160.
108 «Deinde cur divinitus additum est Evangelio donum linguarum, si Eloquentia inutilis
est ad res sacras et magnas exponendas? Quid enim aliud est donum linguarum, si
Eloquentia, hoc est, facultas plane et copiose res obscuras explicandi?» CR, IX,697.
50 Leonel Ribeiro dos Santos
seus escritos de juventude: «uma vez que Deus nos quis falar com pala-
vras humanas, é ineptamente que interpretam a linguagem divina os que
são ignorantes da Retórica.»109
109 «Cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino inepte iudicaverint
imperiti artium dicendi.» Encomion eloquentiae, CR, XI,63;CR,IX,701-702.
110 Já Dilthey e, mais recentemente, Gadamer haviam chamado a atenção para o interesse
dos escritos retóricos de Melanchthon, mas isso não levou a que fossem estudados e
reeditados. Constitui excepção a este geral desinteresse a obra de Joachim Knape,
Philipp Melanchthons «Rhetorik», Max Niemeyer Verlag, Tübingen, 1993. Nela se
faz um amplo estudo da retórica melanchthoniana e se oferece, além do texto latino da
edição de 1531 (em versão facsimile da ed. Bretschneider de 1846 no vol. XIII do
Corpus Reformatorum), uma tradução alemã da obra.
111 Juan Luis Vives, Obras Completas, trad., comentários e notas de Lorenzo Riber,
Aguilar, Madrid, 1948, vol. I, p. 474.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 51
112 «Equidem sordes, et vitia sermonis nemo vel amare debet vel probare ...; sed, certe, si
detur optio, quis non malit multo immundum, spurcumque magis de rebus atque
excellentibus sermonem, quam de nugis comptissimum atque ornatissimum?» Juan
Luis Vives, De causis corruptarum artium, ed.cit., p. 180.
113 «Eloquentiam in philosopho si attulerit, non rejiciam, inquit Cicero: si non attulerit,
nec requiram; philosophia enim omnis, ars est rerum, non vocum, et tolerabilius est
philosophum peccare in verbo, quam in veritate; melior scilicet ac verior philosophus
est, qui sordida oratione res pulchras atque elegantes promit, quàm contra, qui vel
falsa, vel nugas projicit splendide ac magnifice; bonam sententiam quis non ferat vel
Gallice, vel Hispane, vel Germanice, vel etiam Scythice prolatam; si his linguis, cur
non etiam Latine imperite?» Juan Luis Vives, De ratione dicendi, lib. III, cap. VIII,
ed.cit., p. 280. Esta mesma atitude se encontra amplamente desenvolvida, e atribuída
ao filósofo Pietro Pomponazzi, na obra de Sperone Speroni, Dialogo delle lingue
(1542): «Io ho per fermo, che le lingue d’ogni paese, così l’Arabica e l’Indiana, come
la Romana e l’Ateniese, siano d’un medesimo valore [...] che lingua alcuna del
mondo, sia qual si voglia, non possa aver da se stessa privilegio di significare i
concetti del nostro animo [...] onde chi vorrà parlar di filosofia con parole Mantovane
o Milanese, non gli può esser disdetto a ragione; più che disdetto gli sia il filosofare e
l’intender la cagion delle cose.» (ed., trad. e introd. de Helene Harth, W. Fink,
München, 1975, segundo o texto da ed. de Veneza 1740, pp. 193-194).
52 Leonel Ribeiro dos Santos
114 Obras Completas I, pp. 883-893. A posição de Vives relativamente às fábulas poéti-
cas está desenvolvida também no De ratione dicendi, lib. III, cap. V-VII.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 53
115 Della Retorica Dieci Dialoghi, ristampa anastastica dell’edizione Venezia 1562, a
cura di Anna Laura Puliafito Bleuel, Conte Editore, Lecce, 1994. Sobre Patrizi, veja-
-se: Eugenio Garin, «Nota su alcuni aspetti delle retoriche rinascimentali e sulla
‘Retorica’ del Patrizi», Archivio di Filosofia, 3 (1953), pp. 7-56; Benedetto Croce, «F.
Patrizi e la critica della retorica antica», in B. Croce, Problemi di estetica e contributi
alla storia dell’estetica italiana, Laterza, Bari, 1966, pp. 299-310; L. M. Brisca, «La
retorica di F. Patrizi o del platonico antiaristotelismo», Aevum, 26 (1952), pp. 434-
-461.
116 Della Retorica, Dialogo VII, pp. 41-43.
117 Ibidem, Dialogo VIII, p. 48.
118 Ibidem, Dialogo V, p. 32.
54 Leonel Ribeiro dos Santos
IV
A CRISE DO PARADIGMA RETÓRICO DO PENSAMENTO
HUMANÍSTICO NOS SEUS PRINCIPAIS MOMENTOS E ASPECTOS
121 O apreço do humanista de Roterdão pelo humanista frisão (de quem foi aluno no colé-
gio de Deventer) está patente neste passo dos Prefácios ao Novo Testamento: «Rudol-
phus Agricola, unicum Germaniae nostrae lumen et ornamentum...». Erasmus, In
Novum Testamentum Praefationes (1516), Ausgewählte Schriften, III, WBG,
Darmstadt, 1990, p. 46. Mais alargado ainda é o encómio no Ciceronianus sive de
optimo dicendi genere (1528), Ausg. Schriften, VII, pp. 276-278.
122 De inventione dialectica, 214.
56 Leonel Ribeiro dos Santos
ponto que será levado à exaustão por Ramo nas suas diatribes contra os
dois grandes mestres da retórica romana.
O humanista valenciano não deixa de sublinhar a importância e
poder da Retórica, dada a influência que reconhece à linguagem sobre a
sociedade e sobre o próprio espírito e pensamento e também pelo peso
que, na sua antropologia, atribui à vontade e aos afectos, o que o leva a
reconhecer que a plena finalidade da linguagem se cumpre nas três
130
dimensões do ensinar, do deleitar e do mover. Eis as suas palavras: «A
Retórica é de grande influência e é necessária para todas as situações da
vida. Pois no homem a lei suprema e o governo estão na vontade, à qual a
razão e o juízo servem de conselheiros, sendo as paixões as suas tochas. É
um facto que as paixões da alma são acesas pelas palavras as quais são
como chispas ou centelhas que excitam, alteram e movem a própria
razão. A Retórica faz com que a palavra exerça uma eficácia enorme no
homem todo e a manifeste em acto. Não foi sem razão que Eurípedes
chamou tirana à eloquência.»131
Ao contrário de Quintiliano, que desenvolve uma concepção mora-
lista da Retórica, Vives expõe uma concepção técnico-pragmática dessa
arte, generalizando-a a todo o tipo de discursos e de matérias. E, seguindo
a proposta de Agricola, Vives reserva para a Dialéctica a invenção dos
argumentos a respeito de todo o tipo de assuntos, embora reconheça que
foram os retóricos, nomeadamente Cícero, os que primeiramente soube-
ram tirar proveito da tópica aristotélica e só mais tarde os dialécticos
acordaram para ocupar essa parte relativa à invenção dialéctica, como se
fosse uma coutada alheia.132 Reintegrada a inventio e a dispositio na nova
Dialéctica, entendida como um organon do conhecimento provável (ins-
trumentum probabilitatis)133, também para Vives o que de mais próprio
resta à Retórica é a elocução.
135 «...nos dialecticam, alii rhetoricam vocant: Nominibus enim variant auctores, cum ars
eadem sit.» Philipp Melanchthon, De corrigendis adolescentiae studiis (1518), Werke
in Auswahl, Bd. III: Humanistische Schriften, ed. de R. Nürnberger, Gütersloher
Verlagshaus Gerd Mohn, Gütersloh, 1969, pp. 34-35. A influência de Agricola é patente
neste discurso de juventude em que, para Melanchthon, a Dialéctica se ocupa de toda a
linguagem e é considerada como método universal para tratar todo o tipo de questões:
«dialectica… methodus quaedam est omnium quaestionum compendiaria… qua constat
ordo et iudicium cuiusque rei tractandae, ut in quoque videamus, quid, quantum, quale,
cur, quomodo, si simplex sit; sin complexum, verum ne an falsum.» Ibidem, p. 35.
60 Leonel Ribeiro dos Santos
136 «Tanta est dialecticae et rhetoricae cognatio, vix ut discrimen reprehendi possit.
Quidam enim inventionem ac dispositionem communem utrique arti putant esse, ideo
in dialecticis tradi locos inveniendorum argumentorum, quibus rhetores etiam uti
solent. Verum hoc interresse dicunt, quod dialectica res nudas proponit. Rhetorica
vero addit elocutionem quasi vestitum. Hoc discrimen etsi nonnulli reprehendunt, ego
tamen non repudio, quia et ad captum adolescentium facit, et ostendit, quid rhetorica
maxime proprium habeat, videlicet elocutionem, a qua ipsum rhetorices nomen
factum est. ac si quis subtiliter existimabit, intelliget hoc discrimen recte defendi
posse. Si enim rhetorica non tantum versatur circa forenses et suasorias materias, sed
in genere circa omnes materias, de quibus dicendum est, nullo modo poterit ab ea
divelli dialectica, quae est ratio perfecte docendi. Saepe enim orator utetur hac via in
docendo, ut Cicero in primo Officiorum, et in aliis multis disputationibus, praecepta
dialectica sequitur in docendo, et addit elocutionem ex rhetorica. Et nostris tempori-
bus idem faciunt homines eruditi et copiosi, cum docent homines de religione. Veteres
ita discernebant, rhetoricae tribuebant forenses et suasorias materias, dialecticae vero
omnes quaestiones alias, de quibus certa quadam methodo et ratione docendi sunt
homines. Iuxta hoc discrimen proprius dialecticae finis est docere, rhetoricae autem
permovere atque impellere animos, at ad adfectum aliquem traducere, ut cum de
natura virtutis disputamus, dialectica consulenda erit, quae quid sit virtus, et quas
habeat causas, partes, effectus, ostendat. Cum autem ad virtutem colendam homines
adhortamur, loci rhetorici sequendi erunt... Sed quia ratione docendi rhetores non
poterant carere, praesertim in materiis forensibus, ideo dialecticen etiam admiscuerunt
suo operi. ... Accersunt ex dialectica et formam syllogismorum, et plerasque alia
praecepta. Ita admixta dialectica rhetoricae, non potest ab ea prorsus divelli... »
Elementorum rhetorices, ed. J. Knape, pp. 122-123. Da mesma ideia se faz eco
Erasmo, que escreve : «dialectica, ars sic rhetoricae cognata, ut penè sit eadem».
Ecclesiastae... libri IV (1535), ed. de Basileia, 1544, p. 200.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 61
139 «Quae leges omnium rerum communes, et maxime generales ostendit in argumento,
syllogismo, methodo.» Ibidem, p. 227.
140 La Dialectique, ed. de Paris, 1555, pp. 3-5.
141 «Artium materias distinguendas et separandas esse iudico. dialectica mentis et rationis
tota est, rhetorica et grammatica sermonis et orationis. Dialectica igitur inventionis,
dispositionis, memoriae (quae mentis omnino sunt et intus sine ullo linguae aut
orationis auxilio exerceri possunt: ut in plerisque mutis, ut in multis populis, qui sine
sermone ullo vivunt) artes proprias habebit... Rhetoricae igitur ex sermonis et oratio-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 63
nis cultu partes duae solae propriae relinquentur, elocutio et actio: proprium praeterea
ac suum rhetorica nihil habebit.» Rhetoricae distinctiones in Quintilianum, p. 184.
Veja-se a mesma ideia numa outra versão: «Duo vero sunt universa deorum munera
hominibus tributa..., ratio et oratio; rationis doctrina, Dialectica est: ideoque quicquid
rationis ac mentis propriu[m] fuerit, quod sine ratione tractari et exerceri possit, id
proprie dialecticae arti attribuito... quoniam ista omnia in hominibus mutis et omni
orationis facultate carentibus insunt. Nam et res cogitant, et judicant et meminerunt; et
omnes omnino homines haec aliquando tacendo melius quam dicendo faciunt...
Orationis laudes ad istam regulam metiamur... Quid rhetoricae relinquetur? non
elocutio solum in tropis et figuris... sed actio.» Petri Rami, Rami Scholarum rhetori-
carum, seu Quaestionum Brutinarum in Oratorem Ciceronis, ed. J. Piscator,
Francofurti, 1593, pp. 13-14.
142 W. J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of Dialogue: From the Art of Discourse to
the Art of Reason, Cambridge, Harvard University Press, 1958, p. 291.
143 La Dialectique, ed. de Paris, 1555, p. 120.
144 «Ce qui est du tout et absolument plus evident et plus notoire est proposé.... d’autant
que ce qui est naturellement plus evident, doibt preceder en ordre et declaration de
doctrine... Or donques combien qu’en toutes vrayes disciplines doutes reigles soyent
generalles et universelles, neantmoins les degrez d’icelles seront distinctz: et d’autant
que chacune sera plus generalle, tant plus precedera: et le generalissime sera le
premier en rang et ordre: car il est le premier de clairté et notice: les subalternes
suyvront, car ilz sont prochains de clairté: et d’iceux les plus notoires precederont, les
moins notoires suyvront... Ceste methode est singuliere et unique es doctrines bien
instituées: car en elle est procedée par choses antecedentes du tout et absolument plus
cleres et notoires, pour esclaircir et illustrer les choses consequentes obscures et
incognues.» La Dialectique, ed. cit., pp. 120ss.
64 Leonel Ribeiro dos Santos
145 La Dialectique, ed. cit., pp. 133-135. No mesmo ano em que Ramo publica em
francês a sua Dialectique (1555), o seu discípulo e colaborador Antoine Fouquelin
publica La Rhétorique française, que define como «art de bien et élégamment parler»
e consta de duas partes, «Élocution et Prononciation», assim se consumando o
programa ramista de cisão das duas disciplinas. Uma edição recente da Retórica de
Fouquelin encontra-se no volume editado por Francis Goyet: Traités de Poétique et de
Rhétorique de la Renaissance, Librairie Générale Française, Paris, 1990, pp. 345-464.
146 Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft, Akademie Ausgabe (Berlin, Walter de
Gruyter, 1968), Bd. V, p. 327.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 65
zer. [...] Antes aprendiam pelos duros preceitos da Dialéctica, agora pelo
ameno contacto com os ditos e feitos. Antes liam os costumes dos
homens pintados nos livros dos filósofos [...], agora lêem esses mesmos
costumes nos poetas, nos oradores, nos historiadores, mas captam-nos
impressos em exemplos verdadeiros e vivos. Antes investigavam o que
eram os ventos, as chuvas, as tempestades, as causas das coisas que
explicam a sua origem e o seu fim; agora reconhecem com suavidade a
eficiência daqueles géneros em Virgílio, em Homero e nos outros bons
autores.»147
Neste curriculum integrado de estudos, o aluno é permanentemente
solicitado a usar e a aplicar os conhecimentos adquiridos nas várias dis-
ciplinas. Na verdade, ele agora não aprende disciplinas, que entretanto
esquece antes de poder usá-las, mas aprende conhecimentos cuja utili-
dade de imediato pode reconhecer e aplicar. As leituras serão de Crassus
e de Cícero, para a Eloquência, e de Teofrasto e de Platão para a Filosofia.
Mas não se trata propriamente de um programa para tornar a filosofia
eloquente ou para cultivar a eloquência como ideal supremo do homem, à
maneira de Cícero e de Quintiliano ou do humanismo quatrocentista. É
sobretudo um projecto pragmático que pretende levar os alunos a reter
melhor, com mais sucesso e com mais agrado, o que têm que aprender.
Não se sabe qual seria a eficácia real desta experiência pedagógica,
caso ela fosse generalizada e praticada por outros pedagogos que não
Ramo e Talon. Mas não há dúvida de que ela vinha trazer ao ensino um
grande dinamismo e um forte sentido pragmático e até uma consciência
147 «Quanto igitur in omni doctrina majores progressiones fecerint, tantò pleniores
voluptates percipient. Atque ut antea molestissimis spinis debilitati, inanibus clamori-
bus fracti, perpetua rerum obscuritate deterriti, amorem philosophiae deponebant: ita
nunc suavissimis rebus illecti, liberalibus exercitationibus confirmati, clarissima luce
invitati, cum omnibus modis se et doctiores et disertiores quotidie fieri sentiant, incre-
dibili voluntate omnes vigilias tolerabunt, non sibi negotium exhiberi, sed otium
condonari: non laborem imperari, sed delectationem comparari judicabunt. [...] Antea
de Dialecticae duris admodum et injucundis praeceptiunculis sese obtundebant, nunc
ejus amoenissimum in omnibus dictis et factis maximis et minimis usum intelligent.
Legebant antea pictos hominum mores in philosophorum libris, quid esset fortitudo,
quid temeritas, quid liberalitas, quid effusio: nunc in poëtis, in oratoribus, in historicis,
eosdem mores, sed veris et vivis exemplis impressos percipient. Antea quid essent
venti, quid pluviae, quid tempestates, quae causae rerum et ortus et interitus effice-
rent, inquirebant: nunc eorum generum efficentiam in Virgilio, in Homero, in reliquis
bonis authoribus, suavitate magna recognoscent.» Oratio de studiis philosophiae et
eloquentiae conjungendis Lutetiae habita anno 1546, in: Petri Rami et Audomari
Talaei, Collectaneae, Praefationes, Epistolae, Orationes, Parisiis, 1577 (reed. por
W.J. Ong, Hildesheim, G. Olms, 1969), p. 251. Na mesma linha, aludindo ao método
pedagógico seguido por ele próprio e por Ramo, escreve Homero Talon, no Prefácio à
sua Rhetorica (1544-45): «Commune vero studium utriusque nostrum fuit... Rhetori-
cae, et Philosophiae conjungere... et philosophiam non tantum tenebris, quibus
circumfusa est, sed etiam barbarie, qua foeda, miseraque est, liberare.» Collectaneae,
p. 14.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 67
V
A «IDADE DA ELOQUÊNCIA »
NO TEMPO DA CIÊNCIA E DA RAZÃO
149 Francis Bacon, The Works of F.B., ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, vol. I,
pp. 670-671.
150 «Inventio Argumentorum inventio proprie non est. Invenire enim est ignota detegere,
non ante cognita recipere aur revocare.» The Works, I, p. 633. Veja-se, de Lisa
Jardine, Francis Bacon: Discovery and the Art of Discourse, Cambridge University
Press, Cambridge, 1974.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 69
CONCLUSÃO
159 Oeuvres de Descartes, ed. Charles Adam-Paul Tannery (reimpr. Paris, Vrin, 1996),
vol. VI, p. 7.
160 Descartes, Censura quarundam epistolarum Domini Balzaci (1628), Oeuvres, A-T, I,
pp. 7-13.
161 Charles P. Snow, The Two Cultures, Cambridge, 1965; trad. port.: As duas culturas,
Editorial Presença, Lisboa, 1996.
72 Leonel Ribeiro dos Santos
cias do espírito, distinção esta que, de resto, se pode detectar já num diá-
logo de Galileu na forma da contraposição entre «estudos humanos» e
«ciências naturais», os quais implicam métodos diferentes, exprimem
concepções diferentes da realidade, versam sobre objectos diferentes: um
lê directamente e interpreta o livro da natureza escrito em caracteres
geométricos, conseguindo obter conhecimentos tão certos, sólidos e
necessários como as demonstrações da Geometria; o outro lê e interpreta,
com os instrumentos da Gramática e da Retórica, os livros escritos pelos
homens, onde estes expõem as suas opiniões, quase sempre divergentes,
acerca dos assuntos humanos, não podendo aspirar a mais do que a con-
vicções verosímeis e prováveis, argumentadas com razões retóricas.162
162 Galileo Galilei, Le Opere di G.G. (Edizione Nazionale), Firenze, 1890-1909, vol. VII,
p. 78.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 73
163 Regulae, Oeuvres, A-T, X, pp. 372-373, 406. Vários estudos recentes sugerem ou
afirmam mesmo que as Regulae de Descartes se movem no ambiente da Dialéctica
ramista concebida como «methodus unica» de todas as ciências e reconhecem na
linguagem cartesiana (invenção, método, disposição, ordem, matese) mais do que uma
simples analogia com a linguagem ramista. Pese embora alguma semelhança de
linguagem, parece-nos que o projecto cartesiano das Regulae não se revê na Dialéctica,
mesmo na de Ramo, da qual nos parece que expressamente se demarca. A Dialéctica
de Ramo ficou refém das suas conquistas feitas à Retórica dos humanistas. Tal como
Bacon, Descartes poderia dizer que a invenção, a ordem e o método da Dialéctica de
Ramo servem apenas para gerir palavras ou conhecimentos já adquiridos, mas não dão
nenhum auxílio quando se trata de descobrir novos conhecimentos certos e evidentes.
Veja-se, em apoio da tese da filiação ramista do pensamento cartesiano: Nelly-
-Bruyère, Méthode et dialectique dans l’oeuvre de La Ramée, Paris, Vrin, 1984;
André Robinet, «Le référant ‘dialectique’ dans les Regulae», Les études philosophi-
ques, 1/ 1996, pp. 3-15; Géraldine Jamart, «Logique, mathématique et ontologie: La
Ramée, précurseur de Descartes», ibidem, pp. 17-28.
164 Veja-se: Michel Meyer, Questions de rhétorique. Langage, raison et séduction, Paris,
1993, «Introduction», pp. 7 ss; Id., «Prefácio» a: C. Perelman / L. O.-Tyteca, Tratado
da Argumentação. A Nova Retórica, Liv. Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. XX.
74 Leonel Ribeiro dos Santos
I
NO PRINCÍPIO ESTÁ A PALAVRA
168 Não falando já de Nietzsche (sobre o qual a este propósito se pode ver o nosso ensaio
«Nietzsche e o Renascimento», Revista da Faculdade de Letras, nº 2, 5ª série, Lisboa,
1984, pp. 29-42), veja-se, nomeadamente: Étienne Gilson, «Humanisme médiéval et
Renaissance» (1929), in Idem, Humanisme et Renaissance, Vrin, Paris, 1986, pp. 7-32.
169 Charles Trinkaus, The Poet as Philosopher. Petrarch and the Formation of
Renaissance Consciousness, Yale University Press, New Haven / London, 1978, cap. 4:
«Theologia Poetica and Theologia Rhetorica in Petrarch’s Invectives», pp. 90-113. O
mesmo autor utiliza a expressão para falar do contributo de outros humanistas, como
Aurélio Brandolini e Valla, em vários lugares da sua obra In Our Image and Likeness.
Evidentemente, falamos aqui de Retórica, não na acepção vulgar e geralmente negativa
que lhe é dada, mas naquele sentido pregnante que teve em algumas formas do
pensamento antigo e que os humanistas se esforçaram por recuperar e restaurar. A actual
revalorização da Retórica em vários domínios do pensamento pode ajudar a
compreender melhor a pertinência da luta dos humanistas contra a racionalidade
dialéctica e metafísica dos escolásticos. Para esta recuperação contemporânea da
Retórica, veja-se: de Chaïm Perelman, L’empire rhétorique, Paris, 1977 (trad. port.: O
império retórico. Retórica e argumentação, Lisboa, 1993); de Michel Meyer, Questions
de Rhétorique. Langage, raison et séduction, Lib. Génerale Française, Paris,1993; Idem,
«Pour une anthropologie rhétorique», in Idem (ed.), De la Métaphysique à la
Rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1986, pp. 119-142; de Ernesto Grassi,
Macht des Bildes. Ohnmacht der rationalen Sprache. Zur Rettung des Rhetorischen,
Köln, 1970.
78 Leonel Ribeiro dos Santos
disse; ‘Faça-se o céu, faça-se a terra, faça-se a luz’ e todas as outras coi-
sas que provieram da palavra divina. E como para além de Deus e para
além da sabedoria que estava com Deus e com ele está e permanece para
sempre nada mais existia além da palavra que era o próprio Deus, acredi-
tei semelhantemente que todas aquelas coisas provieram do nada pela
palavra e discurso de Deus.»175
Por conseguinte, tal como a própria palavra divina foi o princípio da
criação do mundo e do homem, assim foi também o princípio da redenção
e salvação do mesmo homem. A partir desta implantação teológica, que
põe em evidência o originário poder criador e redentor da palavra, já não
surpreende o desenvolvimento que o mesmo humanista dá aos aspectos
da relevância antropológica e política da linguagem, num tratado expres-
samente a esta dedicado, o De sermone.176
Três décadas mais tarde, o mesmo tópico será objecto de amplo
desenvolvimento por parte de Erasmo, e isso numa obra que se apresenta
175 «In re quidem Christiana duo potissimum principia esse consideranda: et mundi
ipsius rerumque quae eo continentur hominisque praecipue creationem, quod primum
quidem principium est, et generis ipsius humani, postquam in immensum crevit labique
in ruinam improbitate ac libidine coepit sua, salutem atque interitu illo miserabili
receptionem, quod secundum quidem principium iure appellandum censeo. Quodque
Hermes ipse divini saepe verbi mentionem faciat, sic mecum ipse et rerum creationem
perscrutor examinoque et Deum ipsum contemplor, ut qui initio per sapientiam quae
sunt cuncta quidem verbo creasse illum contendem; post vero per Gabrielem, sive
nostro genium sive Graeco nomine angelum, salutem etiam verbo peperisse mortalium
generi universo. [...] Igitur creationem ipsam provenisse crediderim ex verbo Dei,
dictante sapientia, quo sattim momento enuntiavit Deus ipse dixitque: ‘Fiat coelum,
fiat terra, fiat lux’ quaeque coetera divino ex ipso verbo provenerunt omnia. Cumque
praeter Deum ipsum antea praeterque sapientiam, quae cum Deo et erat ab initio et fuit
et est semper, nihil existeret omnino aliud praeterque verbum, quod ipsum Deus
quidem erat, crediderim similiter omnia illa e nihilo verbo ipso Dei dictoque provenis-
se.» Giovanni Pontano, Dialoge, ed. bilingue latim-alemão, W. Fink, München, 1984,
pp. 570-576.
176 Giovanni Pontano, De sermone libri sex (1509), ed.de E. Lupi e A. Risicato,
Antenore, Padova / Thesaurus Mundi, Lugano, 1954. A relação entre a relevância
teológica e a relevância antropológica da linguagem está, aliás, claramente expressa
nesta passagem do Diálogo antes citado: o homem não dispõe de nenhuma força e
faculdade que seja maior que a linguagem e tem também ele o poder de pela palavra
resgatar da morte os seus semelhantes, animando-os e confortando-os: «Itaque ut
verbum ipsum principium fuit creationis et mundi et hominis, sic et principium etiam
eiusdem a mortis tenebris ac miseriis vindicandi. Nec mirum hoc ulli bene instituto
divinaeque caritatis observandi videatur, si consideraverit verbis etiam hominum
ipsorum alios iam iam in mortem prolabentes in vitam e morte restitutos, alios, dum
pati contumeliosa nequeunt verba, mortem sibi ipsos conscivisse. Quod si nulla maior
est hominis vis ac facultas quam quae constat e verbis, mirum, si Deus verbo suo
mundum primo constituit procreavitque hominem, deinde verbo etiam illum suo
vindicavit ab interitu miserabili restituitque ad vitae munera etiam coelestis ac
perbeatae?» Ibidem, p. 576.
82 Leonel Ribeiro dos Santos
com vigor admirável, de tal modo que o homem não possui outra parte de
si que seja ou mais útil ou mais perniciosa ao homem.»178
Não é de crer que nestas glosas humanistas, seja de um motivo da
sabedoria hermética ou de tópicos da sabedoria bíblica, se trate de meros
exercícios literários. E que dizer da importância que assume a Palavra na
visão luterana da vivência cristã? A Palavra divina é aí contraposta à
178 «Plurima sunt uariaque charismata, quae diuina bonitas, ut est auida nostrae salutis,
humano generi prouidit ad parandam uitam aeternam, sed nullum in his est magnifi-
centius aut efficatius, quàm gregi dominico dispensare uerbum ipsius: nec est aliud
munus in uniuersa hierarchia ecclesiastica, uel dignitate praeclarius, uel ad praestan-
dum difficilius, uel usu copiosius, quàm diuinae uoluntatis ad populum agere praeco-
nem, ac coelestis philosophiae dispensatorem. Proinde summus ille Ecclesiastes dei
filius, qui est imago patris absolutissima, qui uirtus et sapientia genitoris esta aeterna,
per quem patri uisum est humanae genti largiri, quicquid bonorum mortalium generi
dare decreuerat, nullo alio cognomine magnificentius significantiúsue denotatur in
sacris literis, quàm quum dicitur uerbum, siue sermo dei. [...] Verbum dei nemo dictus
est praeter Christum, qui solus natura est deus, iuxta quam naturam hoc titulo designa-
tur uerbum dei, cuius praecones sunt Ecclesiastae. Sermo hominis uerax imago est
mentis, sic oratione quasi speculo reddita. Ex corde enim procedunt cogitationes, ait
dominus. Christus autem est sermo dei omnipotens, qui sine initio, sine fine sempiter-
nus, à sempiterno corde patris promanat: per hunc pater condidit uniuersa, per hunc
gubernat omnia condita, per hunc restituit prolapsum hominum genus, per hunc sibi
conglutinauit ecclesiam, per hunc singulari et inenarrabili modo uoluit innotescere
mundo, per hunc uiuificat mortuos, per hunc dilargitur dona santi spiritus, per hunc
arcanam energiam addit ecclesiae sacramentis, per hunc iudicabit orbem terrarum [...]
Hic est ille incomprehensibilis sermo, diuinae mentis certissimus enarrator, et ab
archetypo summae ueritatis nusquam discrepans: per hunc aeterna illa mens loquuta est
nobis mirabiliter condito mundo: per hunc loquuta est nobis multiphariam in prophetis:
per hunc euidentissime nobis loquutus est, missum in terras, hominem ex homine
natum, ut iam non aures uelleret tantum, sed omnibus etiam ipsis contrectabilis. At
uerbum hominis non profertur absque spiritu. Caeterum qualis est sermo noster, talis
est spiritus noster. At in diuinis quemadmodum proferens uerbum est omnipotens, et
uerbum prolatum aeque omnipotens: ita et spiritus est omnipotens, pariter ab utroque
procedens. Ut autem supra mentis illius diuinae sublimitatem nihil cogitari potest, si
tamen illam ullo modo consequi potest humana cogitatio: ita nihil est in homine praes-
tantius mente, qua parte longissime absumus à natura pecudum, referimusque quandam
diuinae mentis imaginem. Hoc nimirum admirati philosophorum praecipui, suspicati
sunt humanas animas esse ueluti scintillulas quasdam lucis illius incommutabilis, quos
imitatus Flaccus dixit: Atque affigit humo diuinae particulam aurae: in hoc quidem
turpiter errantes quod perinde quais deus sit res corporea, sectilis, aut propagabilis,
existimarunt ullam rem creatam posse dei portionem esse: sed tamen illud recte
perspexerunt, hominem non alia re propius accedere ad naturam aeterni numinis quàm
mente et oratione, quam Graeci appellant. Mens fons
est, sermo imago à fonte promanans. Quemadmodum autem unicum illud dei uerbum
imago est patris, adeo nulla ex parte promenti dissimilis, ut eiusdem sit cum illo indiui-
duaeque naturae: ita humanae mentis imago quaedam est oratio: qua nihil habet homo
mirabilius aut potentius... ita sermo promanans è corde qui fons est orationis, mirabili
uigore refert uim et affectum illius, ut homo homini non alia sui parte sit uel utilior uel
perniciosior.» Ecclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV, Basileae, 1544, pp. 14
sgs.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 85
II
STUDIA HUMANITATIS E STUDIA DIVINITATIS
179 «Es gibt kein grosser Ding, als dass wir glauben können, dass Gott mit uns redet.
Wenn wir das glaubten, so waren wir schon selig.» Martinho Lutero, Tischreden, ed.
Kurtland, Philipp Reclam, Stuttgart, 1960, p. 30.
86 Leonel Ribeiro dos Santos
lugares.»180
A arte mediante a qual se desenvolve a eloquência é a Retórica e é
por isso que esta disciplina vai ser chamada a primeiro plano no progra-
ma pedagógico e filosófico dos humanistas. Nas suas Invectivas contra
um certo médico, Petrarca coloca a Retórica e a Poesia acima da Medi-
cina (ou ciência natural), ao mesmo tempo que reconhece naquelas e não
na Lógica, o verdadeiro organon não só da Filosofia como também da
Teologia, chegando mesmo a afirmar que o estudo das disciplinas huma-
nísticas é mais compatível com o Cristianismo do que o estudo da filoso-
fia escolástica e da ciência natural.181 De resto, quanto à filosofia,
Petrarca prefere a dos retóricos e moralistas romanos à de Aristóteles.
Pois, segundo diz, «este ensina, sem dúvida, o que é a virtude, mas nada
ou muito pouco se lê nele que estimule a amar a virtude ou a odiar o
vício.»182 Mas não é tanto o próprio Aristóteles e sim os seus seguidores o
que é visado nas críticas deste pai dos humanistas, o qual reconhece, por
certo, seguindo testemunhos antigos e fidedignos, que nos livros do
filósofo antigo andaria a ciência aliada com a eloquência, tendo-se,
porém, dissolvido completamente essa aliança nas versões e
interpretações que os escolásticos deles fizeram.183
Ao contrário do que muitas vezes se tem escrito, a desafeição pelos
180 «Exhortor ac moneo ut non vitam tantum et mores, quod primum virtutis est opus,
sed sermonis etiam nostri consuetudinem corrigamus, quod artificiose nobis eloquentie
cura prestabit. [...] Que si nobis necessaria non foret et mens, suis viribus nisa bonaque
sua in silentio explicans, verborum suffragiis non egeret, ad ceterorum saltem utilitatem,
quibuscum vivimus, laborandum erat; quorum animos nostris collocutionibus plurium
adiuvari posse non ambigitur. [...] Veruntamen quantum quoque ad informationem
humane vite possit eloquentie, et apud multos auctores lectum et quotidiana experientia
monstrante compertum est. [...] Postremo, si ceterorum hominum caritas nulla nos
cogeret, optimum tamen et nobis ipsis fructuosissimum arbitrarer eloquentie studium
non in ultimis habere.» F. Petrarca, Carta a Tommaso da Messina, Epistolae rerum
familiarium, ed. de V. Rossi e U. Bosco (4 vols., Firenze, 1933-1942), vol. I, pp. 45-47.
181 F. Petrarca, Invective contra medicum quendam, ed. crít. de P.G.Ricci (actualizada
por B.Martinelli), Roma, 1978.
182 «Docet ille [Aristoteles], non inficior, quid est virtus, at stimulos ac verborum facies,
quibus ad amorem virtutis vitiique odium mens urgetur atque incenditur, lectio illa vel
non habet, vel paucissimos habet.» F. Petrarca, De sui ipsius ac multorum ignorantia,
in Prose, ed. a cura di G. Martelloti, P. G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, Milano-Napoli,
1955, p. 744.
183 F. Petrarca, Rerum memorabilium libri II, 2 (Opera, ed. de Basileia,1581,
p. 415):«Moveor tamen quia cum [...] claris et crebris testimoniis Aristotelem non
minus eloquentia quam scientia copiosum legam, in libris tamen eius, qui ad nos vene-
runt, scientiae certa fides, eloquentiae vestigium nullum est, unde grandis mihi stupor
oboritur. Illos mentiri constat elingues simul ac procaces, qui, quoniam Aristoteli suo,
quem semper in ore habent, similes esse nullo modo possunt, illum sibi similem nitun-
tur efficere, dicentes eum, ut qui altissimis rebus intenderet, omnis eloquentiae
contemptorem, quasi in altis rebus nulla verborum claritas possit habitare.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 87
186 «Non video, quomodo iis de rebus, quas Aristoteles tractavit, aut aptius, aut suavius,
aut copiosius scribere quisquam potuerit. Lege eius libros, nec morales solum, et
civiles, in quibus magna eloquentia cohaeret, sed eos, qui physici, aut meyaphysici
scribuntur. Invenies locos nullius eloquentiae capaces eloquentissime ab eo tractatos,
rebusque obscurissimis splendorem, et claritatem per eloquentiam attulisse.» C. Salu-
tati, Epistolario, ed. E. Novati, vol. I, p. 138.
187 «Theologia quidem minima adversa poetica est. Miraris? Parum abest quin dicam,
theologiam poeticam esse de Deo, Christum modo leonem, modo agnum, modo
vermen dici, quid nisi poeticum est? Mille talia in Scripturis sacris invenies, quae
persequi longum est. Quid vero aliud parabole Salvatoris in Evangelio sonant, nisi
sermonem a sensibus alienum, sive, ut uno verbo exprimam, alieniloquium, quam
allegoriam usitatiori vocabulo nuncipamus? Atqui ex huiusce sermonis genere poetica
omnis intexta est. Sed subiectum aliud. Quis negat? Illic de Deo deque divinis, hic de
diis hominibus tractatur? unde et apud Aristotelem primos theologizantes poetas
legimus.» F. Petrarca, Epistolae rerum familiarium, ed. cit., vol. II, p. 301.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 89
188 «Cum sit ab omnibus generata, post omnes artes et ipsam artem artium, philosophiam
et theologiam, hec ars incipit, et cunctas utpote preambulas sibique necessarias pre-
supponit.[...] Poetica simul omnia perficit et imaginativam thesaurumque perceptarum
rerum, memoriam, movet et reducit in actum, per assumptas res atque similitudines res
rebus applicatione delectabili coniungendo (quod quidem nulla prorsus alia facultas
potest efficere), addendo super hoc dulcedinem admirabilis armonie.» C. Salutati, De
laboribus Herculis, I, cap. 3-4 (ed. crít. de B. L. Ullman, pp. 20, 22-23).
189 Sobre o tema, veja-se neste volume o ensaio «Coluccio Salutati e o paradigma filosó-
fico do Humanismo», pp. 173 sgs.
190 «Latine loqui nesciant et ipsas sacras litteras et dicta doctorum ad intelligentiam non
capescant.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, p. 221.
90 Leonel Ribeiro dos Santos
191 «Grammatica [...] ostiaria est omnium liberalium artium omnisque doctrine sive
divina dixerimus sive humana. [...] Christi doctrinam per sacras litteras intraturos a
grammatica debere necessitate quadam incipire. quomodo potest enim Scripture sacre
noticiam sumere qui litteras ignorarit? quomodo potest scire litteras qui grammaticam
omnino non novit? [...] non enim intelligunt que legunt, nec legenda possunt aliis
preparare. potest sine litteris fidei sinceritas percipi, fateor, sed non divina Scriptura,
non doctorum expositiones atque traditiones intelligi, quas vix capere valeant litterati,
et nedum simpliciter docti grammaticam, sed etiam qui dialecticis et rhetoricis
insudarunt. et eadem ipsa grammatica sine noticia rerum et quibus modis rerum
essentia variatur et omnium scientiarum concursu preter necessitatem noticie
terminorum maxima ex parte sciri non potest. connexa sunt humanitatis studia;
connexa sunt et studia divinitatis, ut unius rei sine alia vera completaque scientia non
possit haberi.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, pp. 215-216.
192 «Sed iam satis de logica dictum sit. [...] ad rhetoricam, que cum voluntate
congreditur, veniamus. ambe quidem, licet diverso tramite, finem unum intendunt,
quamvis una dilucidet intellectum ut animo sciat, altera disponat ut velit, et alia ratione
probet ut doceat, hec vero persuadet ut inclinet.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, p.
223.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 91
194 «Nam cum per artem rhetoricam et vera suadeantur et falsa, quis audeat dicere adver-
sus mendacium in defensoribus suis inermem debere consistere veritatem, ut videlicet
illi qui res falsas persuadere conantur, noverint auditorem vel benivolum vel intentum
vel docilem prooemio facere: isti autem non noverint? illa falsa breviter, aperte, veri-
similiter, et isti vera sic narrent ut audire tedeat, intelligere non pateat, credere postre-
mo non libeat? illi fallacibus argumentis veritatem oppugnent, asserant falsitatem; isti
nec vera defendere, nec falsa valeant refutare? illi animos auditorum in errorem
moventes impellentesque, dicendo terreant, contristent, exhilarent, exhortentur arden-
ter; isti vero pro veritate lenti frigidique dormitent? quis ita desipiat ut hoc sapiat? cum
ergo sit in medio posita facultas eloquii, que ad persuadenda seu prava seu recta valet
plurimum, cur non bonorum studio comparatur, ut militet veritati, si eam mali ad obti-
nendas perversas vanasque causas in usu iniquitatis et erroris usurpant? [...] pone tibi
ante oculos unum quempiam in trivio, hoc est sermocinalibus scientiis, eruditum: fac
ipsum cum alio, quenvis, qui studia illa non calleat, fidei christiane doctrinam et sacra-
rum litterarum institutionem incipere: quem putas citius et perfectius imbui posse vel
debere: peritum illum, an rudem et penitus ignorantem?» C. Salutati, Epistolario, vol.
IV, pp. 224-225 (Cf. Santo Agostinho, De doctrina christiana, lib. IV, II,2). Sobre a
recepção desta obra de Agostinho no Renascimento, v.: J. Monfasani, «The De doctri-
na christiana and the Renaissance Rhetoric», in E.D. English (ed.), Reading and
Wisdom: The «De doctrina christiana» of Augustine in the Middle Ages, Notre Dame,
Ind., 1995, pp. 172-188.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 93
III
CRISTIANISMO VERSUS CICERONIANISMO.
TEOLOGIA E ELOQUÊNCIA DE VALLA A ERASMO E MELANCHTHON
195 Sobre esta controvérsia, veja-se, de Izora Scott, Controversies Over The Imitation of
Cicero in the Renaissance (1910), reed. Hermagoras Press, Davis, Ca., 1991. Pode ver-
-se também a «Introduction» de Emile V. Telle a: Etienne Dolet, Erasmianus sive
Ciceronianus [Dialogus, De Imitatione Ciceroniana, aduersus Desiderium Erasmum
Roterodamum, pro Christophoro Longolio, Lugduni, 1533], Librairie Droz, Genève,
1974, pp. 15-95.
94 Leonel Ribeiro dos Santos
200 «Ais me Pogi contemnere Scripturam Sacram [...] Sed quid est [...] Scriptura Sacra?
omnisne Veteris Novique testamenti interpretatio? At ista multiplex est et varia, atque
haec illi magnopere repugnans. An ignoras ex hebraeo in graecum primam translatio-
nem fuisse Septuaginta duorum Interpretum, secundam Aquilae, tertiam Theodotionis,
ac deinceps perventum usque ad sextam; atque ita apud graecos latinosque fuisse
incerta omnia? Ubi quid dicas tu esse Sacram Scripturam? certe nullam, nisi veram
interpretationem. At haec quae sit incertum est. [...] Itaque [...] si quid emendo non
Scripturam Sacram emendo sed illius [Hieronymi] interpretationem, neque in eam
contimeliosus sum sed pius potius, nec aliud facio, nisi quod melius quam prior inter-
pres transfero. Ut mea translatio sit, si vera fuerit, appellanda Sancta Scriptura, non
illius; etsi proprie Scriptura Sancta sit ea quae Sancti ipsi vel hebraice vel graece
scripserunt.» L.Valla, In Pogium Antidotum, I (in L.Valla, Opera Omnia, ed. de
Basileia,1540; reimpr. a cura di E.Garin, Bottega d’Erasmo, Torino, 1952, vol. I,
p. 268). Seguimos a versão já corrigida segundo o ms. original, proposta por
S.Camporeale, ob. cit., p. 318.
96 Leonel Ribeiro dos Santos
tradutor, pelo qual aliás tinha o mais alto apreço, quanto às sucessivas
gerações de copistas que asseguraram a sua transmissão ao longo de um
milénio. Em suma: à mensagem da Escritura Sagrada não se chega a não
ser pela mediação da sua textualidade, a qual é particularmente complexa
dada a variedade linguística e as vicissitudes da respectiva génese e trans-
missão, exigindo por isso ainda muito mais cuidado do que qualquer obra
da literatura profana. Pelo que Valla recusa que se considere o seu traba-
lho de emenda da versão latina do Novo Testamento como um sinal de
desprezo pela Escritura Sagrada, considerando-o antes como um exercí-
cio de verdadeira piedade. Mas o instrumento para a análise da linguagem
bíblica e teológica não é a dialéctica escolástica e sim os princípios retó-
ricos de Quintiliano e os critérios filológicos collhidos nos escritos dos
autores clássicos gregos e latinos e nos antigos escritores eclesiásticos.
Ao reivindicar o seu direito de rever e emendar a versão canónica do
Novo Testamento, mediante um confronto desta com o texto grego origi-
nal, o humanista romano estava ao mesmo tempo a relativizar todas as
traduções (e também a sua), evidenciando o carácter histórico e secundá-
rio destas perante o valor absoluto e primário dos textos originais.
Valla deixou as suas ideias e aportações a respeito da exegese bíblica
expostas sobretudo na Collatio Novi Testamenti e nas Adnotationes in
Novum Testamentum.201 Apesar do seu carácter avulso e quase
experimental, por vezes mais crítico do que construtivo202, o trabalho
pioneiro de Valla no domínio da exegese bíblica vai revelar toda a sua
potencialidade e alcance nos primeiros decénios do século XVI,
nomeadamente, no empreendimento coordenado pelo Cardeal Cisneros
de edição da Bíblia Poliglota Complutense203, na nova tradução do Novo
201 Lorenzo Valla, Collatio Novi Testamenti, ed. a cura di A. Perosa, Firenze, 1970. Para
uma detalhada análise do conteúdo e significado histórico-teológico destas obras, do
processo da sua composição (a Collatio, redigida entre 1435-1443, constitui a primeira
versão das Adnotationes, redigidas entre 1453-1457) e das polémicas em que o seu autor
se viu envolvido mesmo com outros humanistas, nomeadamente com o florentino
Poggio Bracciolini, por causa das suas ideias a respeito da correcção da Vulgata, veja-
-se: Salvatore I. Camporeale, Lorenzo Valla. Umanesimo e Teologia, Firenze, 1972,
pp. 247 sgs. Por seu turno, Charles Trinkaus sublinha o significado do que se poderia
chamar o positivismo filológico de Valla para a teologia renascentista, nestes termos:
«Valla’s positivism and philologism points up most sharply the affinity that the
humanists felt between a rhetorical, anti-metaphysical approach to the world and the
tradition of a Scriptural, revelational approach to the Christian religion. It was inevita-
ble, and it would seem inevitable once it is realised how central was the concern of the
humanists with rhetorical force and philological precision, that they would seek to
unify the secular with the religious, historical and literary traditions. But again they
wished to do this with a sharp eye for historical and textual accuracy.» In Our Image
and Likeness, vol. 2, pp. 765-766.
202 Aspecto particularmente evidenciado por S. Camporeale, ob.cit., pp. 247 sgs.
203 A versão do Novo Testamento foi editada em 1514 e a do Antigo Testamento em
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 97
1517, mas a edição completa da obra só foi feita em 1522. Veja-se: Marcel Bataillon,
Erasmo y España, F.C.E., México, 1991 (4ª reimpr.), pp. 22-43.
204 Sobre o alcance das revisões do Novo Testamento feitas por Valla e Erasmo, veja-se:
H. Holeczeck, Humanistiche Bibelphilologie als Reformproblem bei Erasmus von
Rotterdam, Thomas More und William Tyndale, Leiden, 1975, pp. 79-100; J. Choma-
rat, «Les ‘Annotations’ de Valla, celles d’Érasme et la grammaire», in O. Fatio / P.
Fraenkel (eds.), Histoire de l’exégèse au XVIe. siècle. Textes du colloque international
tenu à Genève en 1976, Genève, 1978, pp. 202-228; J.H.Bentley, Humanists and Holy
Writ: New Testament Scholarship in the Renaissance, Princeton, 1983, chap. 2:
«Lorenzo Valla: Biblical Philologist», pp. 32-69; chap. 4: «Desiderius Erasmus:
Christian Humanist», pp. 112-193; C.S.Celenza, «Renaissance Humanism and the New
Testament: Lorenzo Valla’s Annotations to the Vulgate», Journal of Medieval and
Renaissance Studies, 24 (1994), pp. 33-52.
205 «An Christi professio pugnat cum eloquentia? Quid autem vetat si Cicero de suis
daemonibus dixit eloquenter: quo minus Christianus item de pietate veraque religione
dicat eloquenter?» Omnium Operum Diui Eusebii Hieronymi Stridonensis, tomus
primus, Basileae, 1516, fl.B7v.
98 Leonel Ribeiro dos Santos
aquilo de que fala, nem é afectado no espírito por aquelas coisas acerca
das quais fala. Por fim, não trata as coisas da sua fé com o mesmo adorno
com que Cícero tratou os assuntos do seu tempo. Para isto se aprendem as
disciplinas, para isto se aprende a filosofia, para isto se aprende a elo-
quência, para que celebremos a glória de Cristo. Este é todo o fim da eru-
dição e da eloquência. Lembremo-nos também de imitar em Cícero o que
é principal. E isso não reside nas palavras ou na superfície do discurso,
mas nas coisas e nas sentenças, no engenho e no juízo.»206 Se Cícero
pudesse viver agora, continua Erasmo, ele falaria como um cristão. Na
verdade, os cristãos estão em vantagem sobre o orador romano no que
respeita à grandeza dos assuntos de que tratam: «No que diz respeito aos
tropos e aos esquemas retóricos, isso temo-lo em comum com Cícero,
mas somos muito superiores a ele na majestade das matérias e na fé.» 207
Muitos humanistas ficaram desiludidos com o Erasmo que se revelava
nesta obra, aparentemente sacrificando os ideais humanistas aos valores
cristãos e criticando muitos dos humanistas do seu tempo – a «seita dos
ciceronianos» – por praticarem uma imitação servil e meramente formal
do orador e pensador romano. O que o diálogo de Erasmo revela é que o
humanista holandês não concebe a eloquência desligada da doutrina,
como algo digno de ser cultivado por si mesmo e de um modo pedante. E
nisso ele inscrevia-se na linhagem dos grandes humanistas desde Petrarca
e Salutati a Valla e Poliziano. Ao mesmo tempo, na linha de Agostinho e
até de Jerónimo, ele expõe com clareza o modo como o cristão dela pode
e deve fazer uso, primeiro, para chegar ao entendimento e, depois, para
expor as doutrinas da «filosofia de Cristo».
Não admira, pois, se no novo método que propõe para a reforma
completa dos estudos teológicos (Ratio seu Methodus compendio perve-
niendi ad veram Theologiam, 1516, 1518), Erasmo recomenda aos futu-
ros teólogos, para além do conhecimento perfeito do Latim, do Grego e
do Hebraico, línguas que lhes permitirão o acesso directo às fontes da
sabedoria clássica e cristã, também o estudo da Poética e da Retórica, de
preferência ao da Dialéctica, para entrarem no adequado entendimento
206 «Qui sic est Ciceronianus, ut parum sit Christianus, is ne Ciceronianus quidem est,
quod non dicit apte, non penitus intelligit ea de quibus loquitur, non afficitur his ex
animo de quibus loquitur, non afficitur his ex animo de quibus verba facit. Postremo
non eodem ornatu tractat res suae professionis, quibus Cicero tractavit argumenta
suorum temporum. Huc discuntur disciplinae, huc philosophia, huc eloquentia, ut
Christi gloriam celebremus. Hic est totius eruditionis et eloquentiae scopus. Admonen-
di sumus et illud, ut quod in Cicerone praecipuum est imitemur. Id non in verbis aut
orationis superficie, sed in rebus ac sententiis, in ingenio consilioque situm est.»
Erasmo, Ciceronianus, Ausgewählte Schriften, WBG, Darmstadt, 1969, vol. VII,
pp. 352-354.
207 «Iam si quid est ornatus in tropis ac schematis, id totum est nobis cum Cicerone
commune; rerum maiestate fideque longe sumus illo superiores.» Ibidem, p. 172.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 99
delectare e do movere.
Para todo este programa, Erasmo inspira-se largamente em Santo
Agostinho, que cita amiúde e particularmente na sua obra De doctrina
christiana, cujo Livro Quarto é, como já se disse, «a um tempo, o último
grande tratado de retórica clássica e o primeiro grande tratado de retórica
eclesiástica».212 Desta obra do Bispo de Hipona, que já acima
encontrámos citada e glosada também por Salutati, fora encontrado um
manuscrito completo, em 1423, pelo arcebispo de Milão, Bartolomeo
Capra, de que se fez edição em 1465. Mas a edição de referência dessa
obra será a que o próprio Erasmo empreende, em 1528/29, integrada nas
Obras de Aurélio Agostinho em 10 tomos, impressa nos prelos de
Frobenius, em Basileia. O humanista de Roterdão tomará depois o último
livro dessa obra como inspiração para escrever ele próprio todo um
tratado de retórica eclesiástica – Ecclesiastae, sive de ratione
concionandi libri IV –, que publica em 1535, e onde desenvolve
amplamente os princípios de uma pedagogia humanística cristã: a
Gramática, como fundamento e, a ela subordinada, a Dialéctica, pois tudo
aquilo de que trata a Dialéctica, trata-o através da linguagem. É através
desta que ela enuncia, define, divide e junta. Ela supõe, por conseguinte,
o conhecimento das palavras mediante as quais as coisas singulares são
declaradas, não segundo o arbítrio dos disputantes, mas de acordo com o
costume dos antigos (consuetudine veterum) que falaram com
propriedade.213 Da mesma forma, se impõe o estudo da Retórica em vista
da eloquência214, ao mesmo tempo que se recusa a Dialéctica que seja
praticada como mera ostentação do engenho e não entendida como uma
arte de julgar rectamente acerca do verdadeiro e do falso.215 Em suma, tal
como Agostinho, Erasmo defende que a revelação de Deus não dispensa
o pregador e o teólogo do conhecimento das disciplinas humanas e, em
especial, das referidas disciplinas da linguagem.216 E o maior sinal dessa
imprescindibilidade encontra-o, como já acima se disse, no facto de o
próprio Filho de Deus ser nomeado, no Prólogo do Evangelho de João,
como a palavra de Deus dada na forma humana (o termo grego logos é
intencional e preferentemente traduzido por sermo, para reforçar a sua
determinação linguística, em vez da intelectualística).217
218 «Annotanda est et theologici sermonis proprietas. Nam habet spiritus ille divinus
suam quandam linguam et scriptores illi sacri, et cum Graece scribunt multum referunt
ex proprietate sermonis Hebraici. Atque hinc multis errandi ansa.» Erasmo, In Novum
Testamentum Praefationes, Ausgewählte Schriften, vol. III, p. 64.
102 Leonel Ribeiro dos Santos
219 «Qui cum sacrarum literarum sermonem non intelligerent, cum nullam haberent
antiquitatis notitiam, cum iudicii inopia veteres controversias ac sententias non recte
acciperent, multas sparserunt in Ecclesia impias et perniciosas opiniones. [...] Itaque
cum sermonem non assequerentur, novam quandam Theologiam architectati sunt.»
Philipp Melanchthon, Corpus Reformatorum, ed. C.G.Bretschneider, Halae, 1842,
vol. IX, col.704.
220 «Revocari ad fontes doctrina christiana necesse sit. Eam ad rem profutura sunt
Eloquentiae studia, quae si quando colere nostri homines incipient, spero Herculem
aliquem exoriturum esse qui monstris illis orbem terrarum liberet, quipe Philosophiae
et Christianae doctrinae nativum decus restituat.» Ibidem.
221 «Deinde cur divinitus additum est Evangelio donum linguarum, si Eloquentia inutilis
est ad res sacras et magnas exponendas? Quid enim aliud est donum linguarum, si
Eloquentia, hoc est, facultas plane et copiose res obscuras explicandi?» Responsio
Philippi Melanchth. pro Hermolao, in Corpus Reformatorum, vol. IX, col.697. Sobre a
discutida autoria melanchthoniana desta peça, veja-se a nota 87 ao primeiro ensaio
deste volume, pp. 43 sgs.
222 «Nam cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino inepte iudicaverint
imperiti artium dicendi.» Philipp Melanchthon, Werke in Auswahl, Bd. III (Huma-
nistische Schriften), Gütersloher Verlagshaus Gerd Mohn, Gütersloh, 1969, p. 58.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 103
non posse voluntatem sua sponte ponere amorem, odium aut similes affectus,sed
affectus affectu vincitur, ut, quia laesus es ab eo, quem amabas, amare desinis. Nam te
ardentius quam quenvis alium amas. Nec audiam sophistas, si negent pertinere ad
voluntatem affectus humanos, amorem, odium, gaudium, moerorem, invidentiam,
ambitionem et similes; nihil enim nunc de fame aut siti dicitur. Quid enim est voluntas,
si non affectuum fons est? Et cur non pro voluntatis vocabulo cordis nomen usurpamus?
Siquidem scriptura potissimum hominis partem cor vocat adeoque eam, in qua
nascuntur affectus. Fallunt autem scholae, cum fingunt voluntatem per naturam suam
adversari affectibus aut posse ponere affectum, quoties hoc monet consulitve intel-
lectus.» Loci praecipui theologici, cap. II, Werke in Auswahl, Bd.II. Cf Loci communes,
Ibidem, p. 28.
228 «Non negant affectus scholae, sed vocant infirmitatem naturae, satis esse, si actus
elicitos diversos habeat voluntas. At ego nego vim esse ullam in homine, quae serio
affectibus adversari possit, censeoque actus illos elicitos non nisi fictitiam cogitationem
intellectus esse. Nam cum corda deus iudicet, necesse est cor cum suis affectibus
summam potissimam hominis partem esse. Alioqui, cur hominem ab imbecilliore parte
deus aestimaret et non potius a meliore, si qua voluntas est alia a corde et affectum
parte melior ac fortior? Quid hic sophistae respondebunt? Quod si vocabulo cordis,
quod usurpat scriptura, uti maluissemus quam Aristotelico vocabulo voluntatis, facile
cavissemus hos tam pingues, tam crassos errores. Vocabat quidem Aristoteles volunta-
tem delectum illum verum in externis operibus, qui fere mendax est. Sed quid ad chris-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 105
tianam disciplinam externa opera, si cor sit insincerum? [...] Quid attinet iactare exter-
norum operum libertatem, cum cordis puritatem deus requirat? [...] Proinde christianam
mentem oportet spectare, non quale sit opus in speciem, sed qualis apud animum
affectus sit, non qualis est operum libertas, sed num qua sit affectuum libertas. Praedi-
cent liberi arbitrii vim Pharisaei scholastici, christianus agnoscet nihil minus in potes-
tate sua esse quam cor suum.» Loci communes, Werke in Auswahl, Bd.II, pp. 29-30.
229 «Et hoc nomine [sc. philosophia moralis] philosophia magis prodest, quia non brevi
dicto coercet, sicut leges, sed longa illa tractatio et meditatio [...] invitat animos, et [...]
dulciores et mitiores reddit, et flectit arte ad decorum pro varietate circunstantiarum, et
condire actiones quadam gratia studet.» Philipp Melanchthon, Philosophiae moralis
epitomes libri duo (1546), Werke in Auswahl, Bd. III, pp.160-161.
230 Martinho Lutero, Disputatio de Homine (1536), edição e comentário de G. Ebeling:
Lutherstudien II: Disputatio de Homine, J.C.B.Mohr, Tübingen, 1977.
106 Leonel Ribeiro dos Santos
assim pode o teólogo reformador dizer, comentando o Salmo 121, que tam-
bém «o Espírito Santo pratica uma retórica», quando com a sua palavra
insta e exorta o homem a confiar na promessa e auxílio divinos, excitando-
-o à perseverança e paciência, assim dilatando, engrandecendo e prolon-
gando a natural brevidade ou estreiteza do coração humano: «a Sua pala-
vra deve ser ouvida e não o nosso coração, o qual apenas sente e vê o
princípio das tentações, mas não vê o fim das dores. O Espírito Santo
retoriciza pois, para que a exortação seja mais clara.»231
IV
DA TEOLOGIA ELOQUENTE À RETÓRICA MORALIZADA
NO HUMANISMO QUINHENTISTA PORTUGUÊS
231 «...Iam videbimus, wie er [der Heilige Geist] ein rhetoricam wird ausrichten et
exhortationem treiben usque ad finem psalmi. [...] Propheta [...] hoc agit ut his ceu
promissionibus instet, urgeat et hortetur ad retinendam illam fiduciam in auxilium divi-
num. [...] Quia enim ista, quae contristant, praesentia sunt, contra quae consolantur,
sunt absentia, ideo opus est, dum durant praesentia, quae vexant, ut verbo excitemur ad
perseverantiam et patientiam. [...] Opus est igitur hortationibus, ut ista (liceat enim sic
loqui) naturalis brevitas seu angustia cordis nostri dilatetur, magnificetur, et prolonge-
tur. Hoc potest is, qui videt finem nostrarum tentationum. Eius verbum est audiendum,
nostrum cor non est audiendum, quod tantum sentit et videt principium tentationum, et
doloris finem non videt. Rhetoricatur igitur Spiritus sanctus iam, ut exhortatio fiat
illustrior.» M. Lutero, In XV Psalmos Graduum, Sämtliche Werke, Weimarer Ausgabe,
Bd. 40/3, pp. 59-60.
232 André de Resende, Oração de Sapiência (Oratio pro rostris), trad. de Miguel Pinto
de Menezes, introd. e notas de A. Moreira de Sá, Centro de Estudos de Psicologia e de
História da Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,1956. Usamos
esta edição, corrigindo, porém, quando necessário, a tradução.
233 Sobre a relação entre André de Resende e Erasmo (de quem o humanista português
escreveu um longo Encomium em verso latino), veja-se: Odette Sauvage, L’itinéraire
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 107
239 «Nervosissimus est in disputando Divus Thomas, acerrime hostem urget, solertissime
veritatem disquirit, ut hominem Aristotelicotaton adgnoscas. Mirabiliter Scotus
argutatur, nec sine laude incautum adversarium deludit, ut merito Subtilis cognomen
vulgo iam obtineat. Sed quum in Tertulliani, in Lactantii, in Cypriani, in Hieronymi, in
Augustini, in Chrysostomi, in Basilii, in Nazianzeni scripta nitidissima lector inciderit,
nolens et invitus rapitur, persuadetur, adficitur, delectatur. Unde id quaeso, nisi
eloquentiae cum pietate junctae beneficio? Quare vos hortor, adolescentes egregii, ut
sapientiae semper, divinaeque praesertim Theologiae, dictionis elegantiam et nitorem
conjugatis.» Ibidem, p. 52.
110 Leonel Ribeiro dos Santos
240 Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã, ed. com pref. e notas do Pe. M. Alves
Correia, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1940, vol. I, pp. 198-199.
241 Ibidem, vol. III, p. 23.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 111
sem perigo, antes que o dos livros desonestos, por mais polido, e elegan-
te, e de mor primor que pareça, pois é perigoso.»242
A invocação da concepção do orador proposta por Cícero e Quin-
tiliano – o «vir bonus peritus dicendi» – que junta a competência nas artes
do discurso à qualidade moral da sua vida e costumes – permite encontrar
uma solução intermédia de equilíbrio: «Para a eloquência ser proveitosa,
há-de andar unida com a virtude com o liame da prudência do espírito. Até
muitos dos gentios entenderam que para verdadeiro orador não bastava que
fosse perito na arte de dizer, mas que era necessário que tivesse bondade e
virtude: porque desta maneira poderia persuadir e aproveitar.» Mas logo se
fazem ouvir os ecos das diatribes socráticas contra a retórica gorgiana e os
da carta de Pico a Barbaro, advertindo de novo para os perigos da elegân-
cia: «Elegância suave com estilo doce em livros de profanidades não é
outra cousa senão despertador de vícios, cêvo de apetites depravados, e
umas acendalhas, com que se queimam as consciências. Antes queria beber
água clara de fonte medicinal por tarros de vil cortiça, que beber água enlo-
dada de charco peçonhento por vasos de fino ouro. Quero dizer que queria
boa doutrina de livros eruditos e devotos, caso que fossem bárbaros no esti-
lo, antes que as vãs e desonestas fábulas, excitadoras de brutos desejos dos
livros mundanos, posto que chegassem ao cume da singular eloquência.»243
Num outro diálogo, Heitor Pinto regressa ao tema, desta vez fazendo
dialogar um teólogo, um médico e um jurista. Este último manifesta o seu
enfado com o estilo e os modos rudes dos filósofos e a sua preferência
pelos modos elegantes dos retóricos, nestes termos: «Conversei já com
homens que presumiam de filósofos, e achava-os tão carregados e melan-
cólicos que deixei sua conversação. E quão abitumados e sotrancões acho
os filósofos, tão alegres e conversáveis acho os retóricos, e de boa elo-
quência.» Ao que responde o médico com vários exemplos históricos que
mostram a excelência da Filosofia sobre a Retórica: «Diferente sois vós
de Bião, que, sendo filósofo e retórico, foi a Rodes, onde pôs escola de
Filosofia: e, perguntado porque não punha antes escola de Retórica, res-
pondeu: Se eu trago trigo para vender, para que hei-de vender cevada?
Critolau, peripatético, e antes dele Sócrates, e outros muitos vituperaram
a Retórica. E Carmidas e Clitómaco, académicos, afirmaram que não era
arte. A Filosofia foi sempre tida em muita conta, e pelo contrário a Retó-
rica em pouca: e foi tão odiosa em alguns tempos, que os Cretenses a
proibiram em suas leis, e Licurgo nas que deu aos Lacedemónios a man-
dou desterrar da república: e foi por justiça desterrada de muitas cidades
nobres e afamadas.» 244
242 Ibidem.
243 Ibidem, p. 25.
244 Ibidem, vol. III, p. 227.
112 Leonel Ribeiro dos Santos
245 Ibidem.
246 Marc Fumaroli, L’âge de l’éloquence. Rhétorique et «res litteraria» de la
Renaissance au seuil de l’époque classique, (Librairie Droz, Genève, 1980), Albin
Michel, Paris, 1994.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 113
III
I
HUMANISMO E LINGUAGEM,
OU DA FILOLOGIA COMO FILOSOFIA
247
Sobre a originária pregnância semântica do termo logos, veja-se: Maria José Vaz Pinto,
A doutrina do Logos na Sofística, Edições Colibri, Lisboa, 2000, pp. 343-345.
248 Sobre o problema geral da linguagem no Renascimento, v.: K.-O. Apel, Die Idee der
Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico, Bouvier, Bonn, 1975;
Richard Waswo, Language and Meaning in the Renaissance, Princeton, 1987; G.A.
Padley, Grammatical Theory in Western Europe 1500-1700: the Latin tradition,
Cambridge, 1976.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 117
254 Desidério Erasmo de Roterdão, Eclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV,
Basileae, 1544, pp. 14 sgs.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 119
II
OS REGIMES FILOSÓFICOS DA LINGUAGEM
NO RENASCIMENTO
essendi seu proprietatem rei sequitur modus intelligendi sicut ipsam rem intellectus
rei.. Modum autem intelligendi sequitur modus seu ratio signandi quia prius intelligitur
res et etiam concipitur antequam per vocem signetur quia voces sunt signa passio-
num... Modum autem signandi sequitur modus significandi sicut rem sequitur modus
rei...». Les oeuvres de Siger de Courtrai, ed. por G. Wallerand, col. «Philosophes
Belges», 8, Louvain, 1913, p. 93ss. A Summa modorum significandi do filósofo belga
foi objecto duma edição mais recente por Jan Pinborg (Amsterdam Studies in the
Theory and History of Linguistic Science, 14, 1977).
263 «La verità vuol essere nuda, e quanto è più nuda, tanto più inclina.E però avemo
veduto che più hanno possuto gli apostoli con la nuda e semplice verità, che gli oratori
con le loro ornate parole e le loro orazioni piene di eloquenza. La nuda verità tira gli
uomini a quello che lo intelletto loro repugna, il che non arebbe mai pottuto tirare
oratore alcuno com sua arte e sua eloquenza.» Prediche sopra i Salmi, ed. a cura di V.
Romano, A. Belardetti, Roma, 1969, 102.
264 «Nuda se praebet philosophia... sinceram et impermixtam se haberi vult, quicquid
admisceas, infecceris, adulteraveris.» Giovanni Pico della Mirandola, Opera I, 356;
«intima pura et nuda verità» (ib., 922).
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 123
sobretudo na medida em que diz e ensina a verdade mesma das coisas, fun-
ção que é regulada pela Lógica ou Dialéctica. Importa acima de tudo o
docere, dirigido à razão, e não o delectare e o movere, visados pelos ora-
dores, que se dirigem às faculdades afectivas e às paixões dos homens.265
No que respeita à teoria e prática da tradução, a referência e autori-
dade para os pensadores medievais (e sê-lo-á ainda largamente também
para os renascentistas!) era S. Jerónimo, em particular, uma sua carta a
Pamáquio, na qual expõe os princípios que o norteavam nomeadamente
na sua tradução da Bíblia. Nessa carta – De optimo genere interpretan-
di266 –, Jerónimo distingue dois tipos de tradução, segundo a diversa
natureza das obras a traduzir. Se se trata de traduzir obras de escritores
profanos, pode o tradutor por vezes libertar-se da palavra original e
procurar sobretudo dar o respectivo sentido, propondo uma tradução ad
sensum ou ad sententiam, não traduzindo palavra por palavra mas o todo
da frase de modo a que nada falhe do sentido da frase, mesmo que algo
falhe nas palavras (sensum exprimere de sensu... non verba sed senten-
tias transtulisse... ut nihil desit ex sensu cum aliquid desit ex verbis); mas
se se trata dos escritos bíblicos, a respectiva tradução deve manter-se o
mais próxima possível dos termos originais e ser uma tradução ad ver-
bum, pois se presume que nesses escritos não foi revelado apenas o sen-
tido, mas foram-no também as próprias palavras que o transportam, a sua
265 Obviamente, não se pode concluir que todos os pensadores medievais e mesmo os
representantes da Escolástica foram insensíveis à retórica e à eloquência. Sejam dois
exemplos, entre muitos outros possíveis: João de Salisbúria, em meados do século XII,
defendia a «doce e frutuosa conjugação da razão e da palavra» (dulcis et fructuosa
conjugatio rationis et verbi) e a união da eloquência e da sapiência, dizendo que «tal
como a eloquência que não ilumina a razão, não só é temerária mas é também cega,
assim a sapiência, que não sabe valer-se do uso da palavra, não só é débil como é de
algum modo coxa» (Sicut enim eloquentia, non modo temeraria est sed etiam caeca,
quam ratio non illustrat; sic et sapientia, quae usu verbi non proficit, non modo debilis
est, sed quodam modo manca.» Metalogicon, 1,1, in Migne, Patrologia Latina, vol. 199,
827 A-B). Por seu turno, S. Boaventura, no De reductione artium ad theologiam (§§ 4
e 18), seguindo de perto o De doctrina christiana de Santo Agostinho, expõe uma
concepção da «filosofia sermocinal ou racional» que abrange as três ciências (Gramáti-
ca, Lógica e Retórica) e as três funções específicas entre si conexas (expressão, ensino
e moção): «Et quoniam tripliciter potest aliquis per sermonem exprimere quod habet
apud se, ut scilicet notum faciat mentis suae conceptum, vel ut amplius moveat ad
credendum, vel ut moveat ad amorem, vel odium; ideo sermocinalis sive rationalis
philosophia triplicatur, scilicet in grammaticam, logicam et rhetoricam; quarum prima
est ad exprimendum, secunda ad docendum, tertia ad movendum.... Si vero considere-
mus sermonem ratione finis, sic est ad exprimendum, ad erudiendum, et ad moven-
dum; sed nunquam exprimit aliquid nisi mediante specie, nunquam docet, nisi
mediante lumine arguente, nunquam movet, nisi mediante virtute; et constat, quod hoc
non fit nisi per speciem et lumen et virtutem intrinsecam intrinsecus animae unita...»
266 Hieronymus Eusebius Presbyter Stridonensis, Epistola LVII ad Pammachium. De
optimo genere interpretandi, in Migne, Patrologia Latina, vol. XXII, 568-579.
124 Leonel Ribeiro dos Santos
276 Ibidem, II, 378: «‘Verum’ sive ‘veritas’... qualitas est que sensui mentis inest, et
orationi: ut ‘verene ille sentit?’, ‘verene hic loquitur?’. Nam cum querimus ‘an unus
mundus sit, an plures’, non ita querimus ‘an verum sit unum mundum esse’, sed ex
contradictione aut alterius, ut: ‘verene ille sentit pluros mundos esse?’ aut nostra, cum
ipsi apud nos duas pluresve partes, sicut in deliberando suscipimus. Nec ante veri
inquisitio, quam rei controversia nascitur. Itaque ‘veritas’ est notitia rei controverse,
‘falsitas’ vero eiusdem inscitia que est species prudentie aut imprudentie, seu sapientie
aut insipientie; seu dicamus, ‘veritas est tum notitia animi de aliqua re, tum orationis
ex notitia animi profecta significatio.»
277 Coluccio Salutati, Epistolario, III, 602: «optime quidem simul coalescunt sapientia
et eloquentia, ut quantum illa capit tantum et ista pertractet. [...] non enim eloquentie
studium non etiam sapientiae munus est. subicitur eloquentia sapientie et in ipsa, quasi
toto quodam, quod cuncta scibilia possideat, continetur, ut qui sapientie studium
profitetur, simul et eloquentie profiteatur necesse sit.»
128 Leonel Ribeiro dos Santos
278 O paradoxo foi bem advertido e exposto por Umberto Eco, no seu ensaio «Aspectos
da semiose hermética», in Idem, Os limites da interpretação, Difel, Lisboa, 1992, pp. 49-
-50.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 129
curso dos gregos, com a sua falta de nervo e com as suas graças ilusórias,
não o faça empalidecer e não anule a gravidade, a robustez, a virtude
incisiva dos vocábulos da nossa língua. Pois os gregos, ó Rei, dispõem
apenas de discursos vazios aptos a produzir demonstrações (lógous
kénous àpodeícseon ènergetikoús), e nisto consiste na verdade toda a sua
filosofia, e num rumor de sons (lógon psóphos). Nós, pelo contrário, não
usamos simplesmente as palavras, mas sons cheios de eficácia (émeis dè
où lógois chrómetha allà phonais mestais ton érgon).»279
Deste mito duma proto-revelação divina não totalmente comunicá-
vel às gerações futuras e feita numa língua originária não capazmente
traduzível nas diferentes línguas históricas (as quais, por isso, são des-
valorizadas e relativizadas face à palavra criadora da origem), da ideia
enfim de que há palavras que têm uma força mágica própria, encontra-
mos ecos em vários pensadores renascentistas, que têm em comum o
banharem-se no elemento da tradição hermética e mágica: Giovanni Pico
della Mirandola, Francesco Patrizi, Giordano Bruno.280
Um típico exemplo renascentista do registo hermético da linguagem
encontra-se (curiosamente, cruzado com o escolástico!) na já citada carta
de Giovanni Pico della Mirandola a Ermolao Barbaro, na qual o jovem
filósofo, assumindo a defesa dos escolásticos, refuta a concepção huma-
nista e retórica de uma verdade clara e aberta, oferecida à fácil compre-
ensão de todos. Diz Pico, falando em nome dos escolásticos, mas expon-
do uma concepção que lhe era muito própria, pois que a encontramos
reiterada em vários passos das suas obras: «Nós não escrevemos para o
vulgo [...], mas da mesma forma que os mais primitivos sábios, com os
seus enigmas e os invólucros das fábulas, mantinham os homens igno-
rantes afastados dos mistérios, assim nós, com a casca um pouco mais
amarga das palavras, costumamos afastá-los dos nossos banquetes para
279 Corpus Hermeticum, XVI, 14-15 (vol. 2 da ed. de A.D. Nock e A.-J.Festugière,
Corpus Hermeticum, Paris, 1945-1954 (3ª ed. 1972-1973); o texto é citado e
comentado em Garin, Il ritorno dei filosofi antichi, Bibliopolis, Napoli, 1994, pp. 69-70.
280 Para Pico, essa língua original mágica era a língua hebraica. Assim se lê nas Con-
clusiones (Opera I, p. 105): «Voces et verba in magico opere efficaciam habent, quia
illud in quo primum magicam exercet natura, vox est Dei. Qualibet vox virtutem habet
in magia, in quantum Dei voce formatur. Nulla nomina ut significativa, et in quantum
nomina sunt, singula et per se sumpta, in magico opere virtutem habere possunt, nisi
sint Hebraica, vel inde proxime derivata.» De Francesco Patrizi, veja-se: Della
Retorica Dieci Dialoghi, reprod. anastática da ed. de Veneza 1562 ao cuidado de Anna
Laura Puliafito Bleuel, Conte Editore, Lecce, 1994, Dialogo I (Il Lamberto, overo del
parlare) pp. 3 v-5 r. Giordano Bruno recenseia entre os princípios das coisas a força dos
nomes, de que encontra testemunho em várias tradições de pensamento: «Ad haec etiam
principia pertinet considerare vim magnam insitam esse in nominibus... Hoc credidisse
Hebraeos, Graecos et alias gentes...» De rerum principiis, Opera magiche, ed. dirigida
por M. Ciliberto e ao cuidado de Simonetta Bassi, Elisabetta Scapparone e Nicoletta
Tirinnanzi, Adelphi Edizioni, Milano, 2000, pp. 696-698.
130 Leonel Ribeiro dos Santos
281 Opera I, 354: «vulgo non scripsimus [...] nec aliter quam prisci suis aenigmatis et
fabularum involucris arcebant idiotas homines a mysteriis, et nos consuevimus abster-
rere illos a nostris dapibus, quas non polluere non possent, amariori paulum cortice
verborum. Solent et qui thesauros occultare volunt, si non datur seponere, quisquiliis
integere vel ruderibus, ut praetereuntes non deprehendant, nisi quos ipsi dignos eo
munere iudicaverint. Simile philosophorum studium, celare res suas populum, a quo
cum non probari modo, sed nec intelligi illos deceat.»
282 Opera I, 329: «At mysteria secretiora, & sub cortice legis, rudisque verborum
praetextu latitantia, altissimae divinitatis arcana, plebi palam facere, quid erat aliud
quàm dare sanctum canibus, & inter porcos spargere margaritas. Ergo haec clam vulgo
habere, perfectis communicanda, inter quos tantum sapientiam loqui se ait Paulus, non
humani consilij sed divini praecepti fuit. Quem morem antiqui Philosophi sanctissimè
observarunt, Pithagoras nihil scripsit nisi paucula quaedam, quae Damae filiae moriens
commendavit. Aegyptiorum templis insculptae Sphinges, hoc admonebant ut mystica
dogmata per aenigmatum nodos à prophana multitudine inviolata custodirentur. Plato,
Dionys. quaedam de supremis scribens substantijs, per aenigmata, inquit, dicendum
est, ne si epistola fortè ad aliorum pervenerit manus, quae tibi scribimus ab alijs
intelligantur. Aristoteles libros Metaphysicae, in quibus agit de divinis, aeditos esse &
non aeditos dicebat. Quid plura, Iesum Christum vitae magistrum asserit Origenes,
multa revelasse discipulis, quae illi ne vulgo fierent communia, scribere noluerunt.
Quod maximè confirmat Dionysius Areopagita, qui secretiora mysteria à nostrae
religionis authoribus [....] ex animo in animum (sine literis) medio intercedente verbo
ait fuisse transfusa. hoc eodem penitus modo cum ex Dei precepto vera illa legis inter-
pretatio Mosi deitas tradita revelaretur, dicta est Cabala, quod idem est apud Hebraeos
quod apud nos receptio. Ob id scilicet, quòd illam doctrinam non per literarum monu-
menta, sed ordinarijs revelationum successionibus alter ab altero quasi haereditario
iure reciperet.» A mesma ideia no Commento (Opera I, 921-922): «Fu openione delli
antichi theologi non si douere temerariamente publicare le cose diuine & li secreti
mysterij, se non quanto di sopra nera permesso, pero finge el poeta se quasi come
apparechiato ad ragionare piu oltre essere da amore ritratto, & da lui esserli comandato
che al uolgo solo la corteccia de mysterij amorosi dimostri, riserbando la midolla del
uero senso alli intelletti piu eleuati & piu perfetti, regoli osseruata de qualunque delle
cose diuine appresso alli antichi ha scritto. Scriue Origine Iesu Christo hauere reuelato
molti mysterij a descepoli, liquali loro nõ uogliono scriuere, ma solo ad bocca à chi à
loro ne pareua degno li communicavano, & questo cõferma Dionysio areopagita
hauere poi osseruato e sacerdoti nostri e quali per successione luno dallaltro
riceueuano la intelligentia da quelli secreti, li quali non era lecito à scriuere, &
Dionysio à Timotheo esponendo de nomi di Dio & della gerarchia angelica &
ecclesiastica, molti profondi sensi gli comanda che tenga el libro nascoso et non gli
comunichi se non apochi che di tale cognitione sono degni. Questo ordine apresso li
antichi Hebrei fu santissimamente osseruato, & per questo la loro scientia nella quale
la espositione delli abstrusi et absconditi mysterij delle leggi si contiene Cabala si
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 131
chiama, che significa receptione, perche non per scritto, ma per successione ad bocca
luno dallaltro la riceuano, scientia certo diuina & degna di non partecipare se non con
pochi, fondamento grandissimo della fede nostra, el desiderio della quale mi mosse
allo assiduo studio della Hebraica & Caldaica lingua, senza lequali à al tutto impos-
sibile peruenire alla cognitione di quella. quãto fussi el medesimo stilo da Pythagorici
oseruato dire nõ bisogna, & sanne piena fede la epistola di Lyside ad Hyparco, ne per
altra ragione haueano li Aegyptij dauanti à loro templi scolpito le Sphynge, se nõ per
dichiarare che le cose diuine, quando pure si scriuano, si debbano sotto Enigmatici
uelamenti coprire, come & il poeta nostro nella presente canzona hauer fatto, secondo
le forze nostre habbiamo dichiarato, & il simile essere fato dalli altri cosi graeci come
latini poeti osseruato, nel lib. della nostra poetica philosophia dichiararemo.»
283 Opera I, 331: «Sed qui erat veterum mos Theologorum, ita Orpheus suorum dogma-
tum mysteria fabularum intexit involucris, & poetico velamento dissimulavit, ut si quis
legat illius hymnos, nihil subesse credat praeter fabellas nugasque meracissimas. Quod
volui dixisse ut cognoscatur quis mihi labor, quae fuerit difficultas, ex affectatis
aenigmatum syrpis, ex fabularum latebris latitantes eruere secretae philosophiae sensus
nulla praesertim in re tam gravi, tam abscondita inexplorataque adiuto aliorum inter-
pretum opera & diligentia.»
132 Leonel Ribeiro dos Santos
III
PRÁTICAS RENASCENTISTAS DA TRADUÇÃO FILOSÓFICA
E RESPECTIVOS PRESSUPOSTOS
plateis, sicut in libello De idiota legisti. Valde certe se undique facilem repertu
ostendit.). Opera XII, p. 120. .
292 «Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio
sermonum perutilis est.» De mente, Opera V, p. 113.
136 Leonel Ribeiro dos Santos
293 «Ego igitur infinitis paene huiusmodi erroribus permotus, cum haec indigna
Aristotele, indigna quoque nobis ac lingua nostra arbitrarer, cum suauitatem horum
librorum, quae Graeco sermone maxima est, in asperitatem conuersam, nomina intorta,
res obscuratas, doctrinam labefactatam uiderem, laborem suscepi nouae traductionis, in
qua, ut cetera omittam, id assecutum me puto, ut hos libros nunc primum Latinos
fecerim, cum antea non essent.» Leonardo Bruni, Humanistisch-philosophische
Schriften, ed. de Hans Baron, Teubner, Leipzig/ Berlin, 1928, p. 81.
294 «Convertendi autem interpretandique mihi causa fuit eadem illa, quae iam decem et
octo annis [ante] ad conversionem Ethicorum induxit. Nam cum viderem hos Aristote-
lis libros, qui apud Graecos elegantissimo stilo perscripti sunt, vitio mali interpretis ad
ridiculam quamdam ineptitudinem esse redactos ac praeterea in rebus ipsis errata
permulta ac maximi ponderis, laborem suscepi novae traductionis, quo nostris homini-
138 Leonel Ribeiro dos Santos
bus in hac parte prodessem. Quid enim opera mea utilius, quid laude dignius efficere
possim, quam civibus meis primum, deinde ceteris, qui Latina utuntur lingua, ignaris
Graecarum litterarum, facultatem praebere, ut non per anigmata ac deliramenta inter-
pretationum ineptarum ac falsarum, sed de facie ad faciem possint Aristotelem intueri
et, ut ille in Graeco scripsit, sic in Latino perlegere.» Ibidem, pp. 73-74.
295 «Aristoteles certe tanta facundia, tanta varietate et copia, tanta historiarum exem-
plorumque cumulatione hos libros refersit, ut oratorio paene stilo scripti videantur.»
Ibidem.
296 Leonardo Bruni, «De interpretatione recta», ibidem, pp. 81 ss.
297 Cf. Helene Harth, «Leonardo Brunis Selbstverständnis als Übersetzer», Archiv für
Kulturgeschichte 50 (1968), pp. 41-63.
298 L. Bruni, «De interpretatione recta», ibidem, p. 83.
299 «Dico igitur omnem interpretationis vim in eo consistere, ut, quod in altera lingua
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 139
scriptum sit, id in alteram recte traducatur. Recte autem id facere nemo potest, qui non
multam ac magnam habeat utriusque linguae peritiam.» Ibidem.
300 «Consuetudinis vero figurarumque loquendi, quibus optimi scriptores utuntur,
nequaquam sit ignarus; quos imitetur et ipse scribens, fugiatque et verborum et
orationis novitatem, praesertim ineptam et barbaram.» Ibidem, pp. 85-86.
301 Ibidem, p. 84.
302 Ibidem.
140 Leonel Ribeiro dos Santos
obra filosófica, não é algo apendicial ou acessório, mas faz parte da pró-
pria substância da doutrina e acompanha esta. Não ter isso em conta, por
exemplo, quando se traduz Aristóteles, é deformar gravemente não só a
aparência como também a essência da sua filosofia. Mau tradutor não é
só aquele que não capta, por ignorância linguística, o sentido das pala-
vras da língua original, ou aquele que não encontra na língua para a qual
traduz o termo adequado, mas também aquele que desfigura a forma e o
estilo originais do escritor, tornando assim irreconhecível também o seu
próprio pensamento.303
Segue-se, nas partes II e III do opúsculo, a adução de muitos exem-
plos concretos de má tradução na versão medieval de Aristóteles, por
ofensa dos referidos princípios. E Bruni conclui: «Que direi acerca da
suavidade e perfeição do discurso, que se vê ter Aristóteles trabalhado
muito no Grego. Ao passo que o seu tradutor de tal modo se perde e
deambula que dá pena ver tanta confusão. Custa-me insistir nisto. Pois a
sua tradução está cheia das maiores absurdidades e delírios os quais alte-
ram miseravelmente todo o sentido e clareza daqueles livros e os tornam
de suaves em ásperos, de formosos em disformes, de elegantes em com-
plicados, de sonoros em surdos e em vez de um discurso elegante tem-se
uma rusticidade que faz chorar.»304
Em síntese, quais as teses de Bruni? Em primeiro lugar, a absoluta
exigência do perfeito conhecimento e domínio das línguas de onde e para
onde se traduz. Conhecimento que se alcança pela frequentação assídua
dos escritores clássicos considerados como os legisladores da língua: o
sentido das palavras reside no seu uso pertinente por parte daqueles que
se destacaram numa língua. A consuetudo sermonis, sobretudo a con-
suetudo qualificada daqueles que se destacaram como escritores numa
língua, é o que constitui a norma a imitar, não sendo consentidas inova-
ções arbitrárias, mormente quando resultam da incultura e desconheci-
303 «Et insuper ut habeat auris [severum] iudicium, ne illa, quae rotunde ac numerose
dicta sunt, dissipet ipse quidem atque perturbet. Cum enim in optimo quoque scriptore
et praesertim in Platonis Aristotelisque libris et doctrina rerum sit et scribendi ornatus,
ille demum probatus erit interpres, qui utrumque servabit. Denique interpretis vitia
sunt: si aut male capit, quod transferendum est, aut male reddit aut si id, quod apte
concinneque dictum sit a primo auctore, ipse ita [convertit], ut ineptum et inconcinnum
et dissipatum efficiatur.» Ibidem, p. 86.
304 «Quid dicam de suavitate ac rotunditate orationis, qua quidem in re plurimum
laborasse Aristoteles in Graeco videtur. Hic autem interpres ita dissipatus
delumbatusque est, ut miserandum videatur, tantam confusionem intueri. Taedet me
plura referre. Est enim plena interpretatio eius talium ac maiorum absurditatum et
delirationum, per quas omnis intelectus et claritas illorum librorum miserabiliter
transformatur fiuntque ii libri ex suavibus asperi, ex formosis deformes, ex elegantibus
intricati, ex sonoris absoni et pro palaestra et oleo lacrimabilem suscipiunt
rusticitatem.» Ibidem, p. 96.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 141
308 A réplica de Baptista de Finaro foi editada por M. Grabmann: «Eine ungedrückte
Verteidigungschrift der scholastischen Übersetzung der nikomachischen Ethik
gegenüber dem Humanisten L. Bruni», in: Mittelalterliches Geistesleben I, München,
1926, pp. 440-448.
309 O texto do opúsculo de Alonso de Cartagena encontra-se em: A. Birkenmajer, «Der
Streit des Alonso von Cartagena mit Leonardo Bruni Aretino», in: Beiträge zur
Geschichte des Mitellalters, 5, XX (1920), pp. 129-210; Idem, «Alonso Garcia de
Cartagena – Libellus contra Leonardum (1430)», in: Idem, Études d’histoire des
sciences et de la philosophie du Moyen-Âge, Wroclaw-Warszawa-Krakow, Ossolineum,
1970, pp. 438-462. Uma exaustiva exposição e apreciação deste conflito pode ver-se
em: Hanna-Barbara Gerl, Philosophie und Philologie. Leonardo Brunis Übertragung
der Nikomachischen Ethik in ihren philosophischen Prämissen, Wilhelm Fink,
München, 1981, obra que seguiremos em muitos pontos; Fernando Rubio, «La ‘Etica a
Nicomaco’ traducida por el Aretino: dos Cartas inéditas acerca de la discutida
traducción», La Ciudad de Dios, CLXIV (1952), pp. 553-578.
310 «Sed quia in tantum in antiquam translationem insiluit, ut nedum uitiositatis sed totius
nullitatis redarguat, libros Ethicorum nondum in Latinum conuersos affirmans, quasi non
uitiosa sed penitus nulla translatio fuerit...». Apud A. Birkenmajer, «Der Streit...», p. 441.
311 «Non ut Leonardum offendere, sed ut antiquum translatorem defendere temptem, ad
conflictum accurro.» Ibidem.
312 Ibidem.
313 Como escreve Hanna-Barbara Gerl: «Was Alonso gegen Bruni referiert, entspringt
nicht allein individueller Reflexion; er vertritt vielmehr die Konsequenzen eines
prinzipiell metaphysischen Denkens: grammatische und semantische Probleme sind in
ihrer nur sekundären Fragestellung rückzubinden an die Sachproblematik.» (ob.cit., 26).
144 Leonel Ribeiro dos Santos
317 «Nec enim in philosophia uerba sine freno laxanda sunt, cum ex improprietate uerbo-
rum error ad ipsas res paulatim accrescat.» Ibidem, p. 445.
318 Ibidem, p. 469.
319 Eugenio Garin, «La fortuna dell’etica aristotelica nel Quattrocento», in Idem, La
cultura filosofica del Rinascimento italiano, p. 64.
320 Apud Birkenmajer, art. cit., p. 440.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 147
323 «Fidus interpretes, quae Aristoteles dilucide scripsit, ea dilucide, quae ambigue aut
obscure, ea similiter traducit.[...] Si vero nonnulla obscura liquide tibi patere putas aut
ambigua tibi certiora esse ducis, in marginibus, sicut nos facere consuevimus, quae
sentis, scribe nec tua cum alienis commisce. Ita enim et Aristoteles integer erit, et
sententia tua non erit ignota.» Apud L. Mohler, Kardinal Bessarion als Theologe,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 149
discurso humano mas a um oráculo divino, por vezes soando mais alto,
por vezes jorrando como a suavidade do néctar, sempre porém captando
os arcanos celestes.»326
A mesma ideia reaparece no Prefácio à sua tradução comentada dos
escritos dum teólogo neoplatónico cristão que corriam sob o nome de
Dionísio Areopagita: «Inebriado com o puro vinho dionisíaco, o nosso
Dionísio exulta por toda a parte. Espalha enigmas, canta ditirambos. Por
isso, é tão árduo penetrar com a inteligência nos seus sentidos profundos
quão difícil imitar as admiráveis composições das palavras e o carácter
quase órfico da expressão, e sobretudo dizê-lo com palavras latinas. Para
se conseguir fazer isso com facilidade é absolutamente necessário sermos
possuídos pelo divino furor. Aquela mesma oração que Dionísio fez à
Trindade pedindo piamente luz para penetrar nos mistérios dos profetas e
apóstolos, façamo-la nós igualmente suplicando que Deus no-la infunda
agora para que consigamos alcançar e exprimir o seu sentido e eloquên-
cia.»327
Num outro passo, Ficino fala da diferença dos estilos de Platão e de
Plotino e da dificuldade que teve para os captar e fixar numa tradução,
em particular o de Plotino, para o que não lhe basta socorrer-se das quali-
ficadas interpretações dos neoplatónicos, mas, além duma mente mais
sublime do que a comum razão humana, ainda necessita do auxílio divi-
no: «A mesma divindade difunde os oráculos divinos entre o género
humano através da boca de ambos, oráculos dignos de um sagacíssimo
tradutor, que, no caso de Platão, tem de esforçar-se por retirar os véus das
imagens, no caso de Plotino, tem de trabalhar diligentemente ora para
exprimir os sentidos secretíssimos que estão por toda a parte, ora para os
expor com as mais concisas palavras. Lembrai-vos de que nunca podereis
penetrar na mente excelsa de Plotino tomando por guia apenas o sentido
ou a humana razão, exigindo-se para tal uma mente mais sublime. [...]
Para interpretar os seus mistérios eu sirvo-me da ajuda de Porfírio e de
326 «Neque uero me Platonicum in his libris stylum omnino expressisse profiteor, neque
rursus ab ullo, quamuis admodum doctiore, unquam exprimi posse confido. Stylum
inquam non tam humano eloquio, quam diuino oraculo similem, saepe quidem tonan-
tem altius, saepe uero nectarea suauitate manantem, semper autem arcana celestia
complectentem.» Marsilii Ficini, Opera omnia, Basileae, 1561, t. II, p. 1129.
327 «Hoc igitur Dionysiaco mero Dionysius noster ebrius exultat passim. Effundit
aenigmate, concinit dithyrambos. Itaque quam arduum est profundos illius sensus
intelligentia penetrare, tam difficile miras uerborum compositiones et quasi Orphicum
dicendi characterem imitari, ac Latinis praesertim uerbis exprimere. Idem profecto ad
id facile consequendum necessarius omnino nobis diuinus est furor. Eadem prorsus
oratione trinitas obsecranda, ut quod Dionysio pie petenti lumen, ad penetranda
Prophetarum, Apostolorumque mysteria, quondam Deus infudit, idem nobis similiter
supplicantibus ad illius sensum eloqiumque consequendum et exprimendum feliciter
nunc infundat.» Opera omnia, t. II, p. 1013..
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 151
330 Veja-se: Eugenio Coseriu, «Das Problem des Übersetzens bei Juan Luis Vives», in:
Interlinguistica. Sprachvergleich und Übersetzung. Festschrift für M. Wandruszka,
hrsg. v. K.-R. Bausch u. H.-M. Gauger, Tübingen, 1971, pp. 571-582.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 153
331 «Versio est a lingua in linguam verborum traductio sensu servato; harum in
quibusdam solus spectatur sensus, is aliis sola phrasis, et dictio, ut si quis tentaret
Demosthenis, aut Mar. Tullii orationes, aut Homeri vel Maronis carmen in alias
linguas transferre, facie illa et colore dicendi prorsum observato; quod experiri,
hominis esset parum intelligentis quanta sit in linguis diversitas, nulla est enim adeo
copiosa lingua et varia, quae possit per omnia respondere figuris et conformationibus
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 155
etiam infantissimae... Tertium genus est, ubi et res et verba ponderantur, scilicet, ubi
vires et gratiam sensi adferunt verba, eaque vel singula, vel conjuncta, vel ipsa
universa oratione; in quibus sola habetur sensorum ratio, ea sunt interpretando libera,
et habetur venia quaedam vel ommitenti quae ad sensum non faciunt, vel addenti quae
sensum adjuvent; nec sunt figurae et schemata linguae unius in alteram exprimenda,
multo minus quae sunt ex idiomate; nec video quorsum pertineat soloecismum aut
barbarismum admittere, ut totidem verbis sensa repraesentes, quod fecerunt quidam in
Aristotele, et in sacris litteris.» Juan Luis Vives, De ratione dicendi, ed. cit., pp. 290-
-292.
156 Leonel Ribeiro dos Santos
IV
PENSAR NA PRÓPRIA LÍNGUA,
OU A APOLOGIA DAS TRADUÇÕES EM LÍNGUAS VULGARES
332 «Oratio vel sequenda alterius, si in eo vertatur interpretationis vis aliqua [...]; sin
aliter, te ipsum sequitor, et naturam tuam optimam cuique ducem, modo recte
institutam; si potes contende etiam cum tuo exemplari, et meliorem, quam acceperas
orationem, reddito, hoc aptiorem et commodiorem rei atque auditoribus, nam hoc
demum melius, quod appositius, et conducibilius, non ut quidem prava animi vanitate
inducti faciunt, qui rectam, et nitidam, atque honestam dictionem ita calamistris
omnique cultu onerant, ut ex facili et grata gravem ac molestam reddant, quid illi qui
elegantiam atque splendorem prioris orationis foedant verbis, figurisque obscuris,
tractis, humilibus, immodica affectatione ostentandae facundiae, sine ullo judicio quae
sit cujusque orationis natura et vis? putant enim hoc fore dictionem praestantiorem, si
maxime rara, aut exquisita, aut antiquaria vocabula inferserint. Quo et gratiam
orationis servaris exactius, et propius fueris interpretatus ad verbum, hoc versio erit
potior ac praestabilior, nempe exemplar suum verius exprimens.» Ibidem, p. 236.
333 «Ibi namque romanum imperium est ubicumque romana lingua dominatur.» Lorenzo
Valla, Elegantiae linguae latinae (1448), Prefácio, in: E. Garin, Prosatori latini del
158 Leonel Ribeiro dos Santos
gas (dos medievais) são rudes e repugnantes, as mais recentes (as dos
humanistas, entre os quais cita expressamente Giovanni Argiropulo e
Pietro Alcionio), embora sejam mais eruditas e elegantes, nem sempre
captam adequadamente o pensamento dos autores. De resto, há nos escri-
tos dos filósofos gregos algo que nunca pode ser devidamente vertido
nem para o Latim nem para outra qualquer língua, devido quer a certas
particularidades gramaticais quer às potencialidades semânticas das pala-
vras gregas.337
337 Ibidem, pp. 22-23: «... in scriptis graecis plurima sunt, quae nequaquam sequuntur
vertentes ex graeco in latinum, aut aliam quamvis linguam, ut articuli Graecorum,
quibus caret sermo latinus, et multae aliae voces, quarum significationes et potestates
perfecte transferri posse non videntur.»
338 Para uma contextualização geral do problema, veja-se: Sarah Stever Gravelle, «The
Latin-vernacular Theory of Language and Culture», in: W.J. Connell (ed.), Renais-
sance Essays, II, University of Rochester Press, 1993, pp. 110-129; Paul-Oskar
Kristeller, «The Origin and Development of the Language of Italian Prose», in Idem,
Renaissance Thought, II, New York, 1965; Idem, «Italian and Vernacular in
Fourthenth- and Fifteenth-Century Italy», Journal of the Rocky Montain Medieval and
Renaissance Association 6 (1985), pp. 106-126; Carlo Dionisotti, Gli umanisti e il
volgare fra quattro e cinquecento, Firenze, 1968; R. Fubini, «La coscienza del latino
negli umanisti: An latina lingua Romanorum esset peculiare idioma», Studi medievali,
s.2, nº 2 (1961), pp. 505-550.
160 Leonel Ribeiro dos Santos
339 «Sed amabo incognoscamus quid isthaec sit Latinitas, quam solam dicitis debere
philosophos et non persoluere. Si dicendo incurrat exempli causa à sole hominem
produci, causari hominem nostrates dicent. Clamabis actutum hoc non est Latinum,
huc usque uerè, non est Romane dictum: hoc uero uerius, igitur non rectè peccat
argumentum: Dicet Arabs eandem rem, dicet Aegyptius, non dicent Latinè, sed tamen
rectè. Aut enim nomina rerum arbitrio constant, aut natura. Si fortuito positu, ut scilicet
communione hominum in eandem sententiam conueniente, quo sanxerint unum-
quodque nomine appellari, ita apud eos rectè appelletur. Quid prohibet hosce philoso-
phos quos nuncupatis barbaros, conspirasse in unam dicendi normam, apud eos non
secus sanctam ac habeantur apud uos Romana, illam cur rectam non appelletis, appel-
letis uestram, nulla est ratio. Si haec impositio nominum tota est arbitraria, quod si
dignari illam Romani nominis appellatione non uultis, Gallicam uocetis, Britannicam,
Hispanam, uel quod uulgares dicere solent Parisiensem. Cum ad uos loquentur, contin-
get eos pleraque rideri, pleraque non intelligi, idem accidit uobis apud eos loquentibus.
[...] Anacharsis apud Athenienses soloecismum facit, Athenienses apud Scythas. Quòd
si nominum rectitudo pendet ex natura rerum, debemus ne rhetores an philosophos qui
rerum omnium naturam soli perspectam habent et exploratam de hac rectitudine
consulere? fortè quae aures respuunt, utpote asperula, acceptat ratio, utpote rebus
cognatiore.» Opera omnia, ed. cit., vol. I, pp. 356-357.
340 «Equidem sordes, et vitia sermonis nemo vel amare debet vel probare...; sed, certe, si
detur optio, quis non malit multo immundum, spurcumque magis de rebus atque exce-
lentibus sermonem, quam de nugis comptissimum atque ornatissimum?» Ed. cit., p. 180.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 161
discurso pobre do que aquele que profere coisas falsas e bagatelas de modo
esplêndido e magnífico. Quem não tolerará uma boa sentença dita em
Francês, Espanhol, Alemão ou mesmo Cita? E se se tolera nestas línguas,
porque não se há-de tolerar também num Latim defeituoso?»341
Estas palavras de Vives dão suporte teórico a um processo já irrever-
sível e em curso ao longo de todo o século XVI, o qual se traduzirá na
relativização do estatuto de privilégio das línguas clássicas como línguas
da cultura superior e sobretudo na progressiva afirmação da dignidade
das línguas vulgares e da capacidade destas não só para tratarem os
assuntos humanos comuns, mas também para exprimirem o pensamento,
a ciência e a filosofia.
A este propósito, refira-se um outro testemunho, bastante menos
conhecido mas que me parece particularmente significativo, não só por-
que surge no contexto de uma apologia da dignidade das línguas vulga-
res, mas porque é posto na boca de um dos mais importantes filósofos
renascentistas da primeira metade do século XVI, Pietro Pomponazzi,
apresentado, sem dúvida intencionalmente, como alguém que não se
destacava pela especial competência linguística, a não ser no seu dialecto
mantuano. Esse testemunho encontra-se no Dialogo delle lingue (1542),
da autoria de Sperone Speroni, que havia sido aluno de Pomponazzi em
Bolonha. Esta obra inscreve-se no amplo debate acerca da dignidade das
línguas vulgares, que vinha já desde o fim da Idade Média e se prolonga
com cada vez maior intensidade por todo o século XVI.342 Se em
341 «Philosophia enim omnis, ars est rerum, non vocum, et tolerabilius est philosophum
peccare in verbo, quam in veritate; melior scilicet ac verior philosophus est, qui
sordida oratione res pulchras atque elegantes promit, quam contra, qui vel falsa, vel
nugas projicit splendide ac magnifice; bonam sententiam quis non ferat vel Gallice, vel
Hispane, vel Germanice, vel etiam Scythice prolatam; si his linguis, cur non etiam
Latine imperite?». Juan Luis Vives, De ratione dicendi, lib. III, cap. VIII, ed. Hidalgo
Serna, Anthropos, Barcelona, p. 280.
342 Para além do antecedente medieval que é o De vulgari eloquentia, de Dante, refiram-
-se, entre outros escritos do género, o (perdido) Della volgar poesia, de Vincenzo Colli
(1460-1508), o Discorso o Dialogo intorno alla nostra lingua (1515), de Maquiavel, e a
Deffence et illustration de la langue françoyse (1549), de Joachim Du Bellay. O debate
encontra eco também em Pierre Ronsard, o qual termina o seu poema «L’excellence de
l’esprit de l’homme», escrito como prefácio para a tradução francesa de Tito Lívio por
Hamelin (1559), com uma vigorosa apologia da tradução para o vernáculo, nestes termos:
«Si tous les bons auteurs de Rome et de la Grece
Etaient ainsi traduits, la françoyse jeunesse
Sans tant se travailler à comprendre des mots
Comme des perroquets en une cage enclos
Apprendraient la science en leur propre langage.
Le langage des Grecs ne vaut pas davantage
Que celuy des Françoys ; le mot ne sert de rien
La science fait tout, qui se dit aussi bien
En françoys qu’en latin, notre langue commune.
Les mots sont differents, mais la chose est toute une.»
162 Leonel Ribeiro dos Santos
P. Ronsard, Le Second Livre des Poemes, Oeuvres Complètes, Gallimard, Paris, II,
p. 840.
343 Sperone Speroni, Dialogo delle lingue (1542), ed. e introd. de Helene Harth, W. Fink
Verlag, München, 1975, p. 110. As passagens da obra, que adiante transcrevemos em
tradução, encontram-se entre as páginas 110 e 129 da edição citada.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 163
Lasc. Por esta mesma razão não deveríeis estudar nem Latim nem
Grego, mas somente a língua vulgar mantuana, e com ela filosofar.
Per. Deus queira que, para serviço de quem vier depois de mim,
alguma douta e piedosa pessoa se desse ao trabalho de verter para vul-
gar todos os livros de qualquer ciência, sejam os gregos, os latinos e os
hebraicos. Talvez os bons filosofantes fossem então em número muito
maior do que o são nos nossos dias e a sua excelência tornar-se-ia muito
mais rara.
Lasc. Ou não vos entendo ou falais com ironia.
Per. Falo assim para dizer a verdade, e como homem movido pela
honra dos italianos. Pois se a injúria dos nossos tempos, tanto presentes
como passados, quer privar-me desta graça, Deus me guarde que eu seja
tão cheio de inveja que deseje privar disso quem nascer depois de mim.
razão a não ser por esta, que desde crianças e sem estudo a aprendemos,
ao passo que aquelas outras só com muito esforço nos aplicamos como a
línguas que julgamos convir mais com as doutrinas [...] Esta insensata
opinião está de tal modo arreigada nas almas dos mortais que há muitos
que querem fazer crer que para tornar-se filósofo lhes basta saber escre-
ver e ler grego sem mais: como se o espírito de Aristóteles estivesse
encerrado no alfabeto da Grécia como um diabinho num frasco e junta-
mente com ele fosse constrangido a entrar no intelecto dos homens para
fazê-los profetas. Nos meus dias já vi muitos tão arrogantes, totalmente
privados de qualquer ciência e confiados apenas no conhecimento da
língua, que tiveram a ousadia de expôr publicamente os livros de Aris-
tóteles do mesmo modo que expõem os outros livros de humanidades.
Esses considerariam obra perdida verter para o vulgar as doutrinas da
Grécia, tanto pela indignidade da língua como pela estreiteza dos limites
dentro dos quais com a sua linguagem está circunscrita a Itália, conside-
rando vã a tarefa de escrever e de falar de um modo que não seja enten-
dido pelos estudiosos de todo o mundo. Mas o que não foi visto por mim
espero que possam vê-lo algum dia os que nascerem depois de mim, e a
tempo de que as pessoas mais doutas mas menos ambiciosas do que as
presentes sejam dignas de ser louvadas na sua pátria, sem cuidar de
saber se a Magna Grécia ou outro país estranho reverencia os seus
nomes. Pois se a forma das palavras nas quais os futuros filósofos pen-
sarem e escreverem as ciências fosse comum à plebe, então seria próprio
dos amantes e estudiosos das doutrinas o entendimento e o sentido
daquelas palavras, entendimento e sentido que residem não nas línguas
mas nos ânimos dos mortais.»
V
CONCLUSÕES
344 «GERV.- Dunque, tutti que’ che intendono la lingua italiana, comprenderano la
filosofia del Nolano? POL.- Sí [...] GERV.- Alcun tempo io pensava che questa
prattica [la conosceza delle lingue ] fusse il principale: perché un che non sa greco, può
intender tutto il senso d’Aristotele e conoscere molti errori in quello (...); ed uno che
non su né di greco, né di arabico, e forse né di latino, come il Paracelso, può aver
meglio conosciuta la natura di medicamenti e medicina che Galeno, Avicenna e tutti
che si fanno udir con la lingua romana. Le filosofie e leggi non vanno in perdizione per
penuria d’interpreti di paroli, ma di que’ che profondano ne’ sentimenti.» Giordano
Bruno, De la causa, principio e uno, dialogo terzo, ed. a cura de A. Guzzo, Mursia,
Milano, 1985, pp. 126-127.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 167
decorre não só da natureza dos assuntos e do teor das obras, mas também
da diversidade de concepções filosóficas acerca da natureza da verdade,
da linguagem, da relação entre a linguagem, o pensamento e a realidade.
Mas em que consiste uma boa tradução e como garanti-la? Esta questão
não tem uma resposta simples da parte dos pensadores e tradutores dos
séculos XV e XVI.
Para os escolásticos, uma tradução até pode ser linguística e retori-
camente imperfeita ou deficiente. O que importa é que ela dê conta do
conteúdo racional de uma obra ou do pensamento de um autor e ponha o
leitor em marcha no sentido de pensar adequadamente o que deve ser
pensado: a realidade mesma indicada pela palavra. E para isto valem as
regras da Lógica que ensinam a pensar correctamente, e não tanto as da
Gramática e ainda menos as da Retórica que ensinam a expressão cor-
recta e eloquente. É a verdade lógica e não a verdade linguístico-retórica
o que interessa ao tradutor, segundo esta perspectiva, que está longe de
ter sido protagonizada apenas pelos pensadores escolásticos, mas se pode
encontrar, de uma forma mais ou menos denunciada, em todos aqueles
pensadores que privilegiam o pensamento e secundarizam a sua expres-
são linguística e retórica. Disso há sobejos exemplos não só entre os
modernos como também entre os contemporâneos. Também o Pompo-
nazzi de Speroni está mais na linha dos escolásticos e de Alonso de Car-
tagena do que dos humanistas.
Para os humanistas, para Bruni nomeadamente, a tradução pode e
deve ser perfeita e correcta. Em momento algum o humanista deixa
transparecer a dúvida quanto à possibilidade de verter correctamente uma
língua na outra, mesmo que tenha consciência de algumas particularida-
des que podem tornar a empresa mais árdua. É, por certo, difícil conse-
guir a perfeita adequação de uma língua à outra, mas não é impossível,
desde que o tradutor esteja munido dum perfeito conhecimento das lín-
guas envolvidas e tenha um perfeito domínio das virtualidades da lingua-
gem. Por certo, o horizonte linguístico visado por Bruni é muito limitado,
pois apenas se refere ao Grego e ao Latim, línguas que são apesar de tudo
muito próximas. Para o Aretino, como para a generalidade dos humanis-
tas, a verdade da tradução é antes de mais definida pela correcção lin-
guística, gramatical e retórica e é insensato pretender alcançar a suposta
verdade do pensamento ou o seu conteúdo lógico-metafísico (a sua ade-
quação à realidade) sem garantir a correcta compreensão da linguagem
em que ele se exprime, pois esta não é algo acessório, mas faz parte da
substância do pensamento e da realidade que por ela se diz.
Para um neoplatónico imbuído de hermetismo, como Ficino, não
pode o tradutor ter a convicção de que alguma vez alcançou a tradução
absolutamente perfeita. Ou seja, o conteúdo de verdade de uma obra é
inesgotável e inapreensível de modo absoluto e de uma vez por todas,
168 Leonel Ribeiro dos Santos
vras sem conteúdo, nem conteúdo sem palavras; nem a doctrina sem o
ornatus verborum, nem o ornatus sem a doctrina rerum; nem a densi-
dade das coisas sem a elegância das palavras, nem a elegância das pala-
vras sem as coisas. Sendo assim, pode realmente dizer-se, e com muito
mais razões do que as que foram apontadas por Leonardo Bruni, que a
tradução correcta é verdadeiramente uma tarefa verdadeiramente tão
importante quanto difícil.
Nos pensadores dos séculos XV e XVI encontra-se uma vastíssima
prática de tradução filosófica e uma diversificada reflexão sobre os pres-
supostos e os limites de toda a tradução. Aparentemente, essa reflexão
oscila entre dois extremos antagónicos: por um lado, a afirmação da
impossibilidade de traduzir completamente, o que levava ao culto selecto
do original e a conceder o privilégio e autoridade apenas àqueles que a
ele têm acesso. Esta posição está bem protagonizada na sua forma radi-
calizada por Mario Nizolio. Por outro lado, temos a provocadora pro-
posta da tradução generalizada, assente no pressuposto da idêntica digni-
dade originária de todas as línguas e da respectiva condição subordinada
enquanto servidoras do sentido, do pensamento, da realidade, tese que se
depreende com toda a clareza do Diálogo sobre as línguas de Speroni.
Multiplicar a tradução duma obra no maior número de línguas vulgares
possível é multiplicar o seu sentido e proporcionar a mais vasta expres-
são das suas virtualidades, ao mesmo tempo que assim se oferece a um
maior número de pessoas a possibilidade de exercerem o próprio pensa-
mento em diálogo com o pensamento de outros.
O Renascimento viveu como poucas épocas a mitologia das fontes,
das revelações primigénias, das obras originais dos autores antigos e da
sua intraduzibilidade ou, antes, da inesgotabilidade do seu sentido. Em
graus de intensidade diversa e por razões diferentes comungaram dessa
mitologia quer os humanistas mais imbuídos da tradição retórica, quer os
filósofos mais impregnados pelas correntes do hermetismo e do neopla-
tonismo, quer até os escolásticos que sempre acusaram o défice da lin-
guagem frente ao pensamento e à realidade. A verdade, a realidade, o
sentido não são dados em propriedade definitiva a nenhum dos humanos.
Como o dizia o jovem Pico della Mirandola, no que poderá ter sido a
primeira versão do seu famoso Discurso sobre a dignidade do Homem,
«não houve ninguém no passado nem haverá depois de nós a quem seja
dado compreender toda a verdade, pois a sua imensidão é maior do que
alcança a capacidade humana.»345 A verdade, a realidade, o sentido e até
a obra original são inesgotáveis e, por isso, a sua tradução, a sua interpre-
345 «Nemo aut fuit olim aut post nos erit cui se totam dederit veritas comprehendendam.
Maior illius immensitas quam ut par sit ei humana capacitas.» Eugenio Garin, «La
prima redazione dell’ Oratio de Hominis Dignitate», Idem, La Cultura Filosofica del
Rinascimento Italiano, Ricerche e Documenti, Bompiani, Milano, 1994, p. 239.
170 Leonel Ribeiro dos Santos
COLUCCIO SALUTATI
E O PARADIGMA FILOSÓFICO DO HUMANISMO
SINOPSE
346 Esta vertente interpretativa tem sido protagonizada sobretudo por Paul Oskar
Kristeller. Veja-se, entre as numerosas versões da sua tese: «Humanism», in Charles B.
Schmitt / Quentin Skinner (eds.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy,
Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 113-137.
A atribuição ou não do carácter filosófico ao Humanismo depende da noção que se tenha
de filosofia, a qual pode ser mais lata ou mais estreita. Os humanistas tinham da filosofia
uma noção própria, embora nem sempre absolutamente elaborada, que apontava simulta-
neamente para a recuperação da dimensão prática (ético-política) e retórica no sentido da
sapientia eloquente dos pensadores romanos, nomeadamente de Cícero. Veja-se, sobre
este ponto: Cesare Vasoli, «The Renaissance Concept of Philosophy», in: Charles B.
Schmitt / Q. Skinner (eds.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy,
Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 57-74. Veja-se também Eugenio
Garin, L’umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento, Laterza, Roma-
-Bari, 1994 (1ª ed.: Der italienische Humanismus, Verlag A. Francke A.G., Bern, 1947).
347 Tal é a proposta de Ernesto Grassi. Veja-se: Einführung in philosophische Probleme
des Humanismus, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1986; Idem, La
filosofia del Humanismo. Preeminencia de la palabra, Anthropos, Barcelona, 1993.
348 Para uma apreciação global deste amplo e complexo movimento, veja-se: Albert
Rabil, Jr. (ed.), Renaissance Humanism, Foundations, Forms, and Legacy, University of
Pennsylvania Press, Philadelphia, 1988 (Vol.I: Humanism in Italy; vol. II: Humanism
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 173
cívico», a nova consciência do poder dos intelectuais laicos (e, no seu caso, também
convicta e profundamente religioso e cristão) e do seu papel na construção da cidade
dos homens e na realização do bem comum à medida do homem. Sobre os aspectos
biográficos de Salutati, veja-se: Eugenio Garin, «I cancellieri umanisti della repubblica
fiorentina da Coluccio Salutati a Bartolomeo Scala», in: Idem, Scienza e vita civile nel
Rinascimento italiano, Laterza, Roma-Bari,1993 (1ª ed., Bari, 1965), pp. 1-32.
Exposições do seu pensamento filosófico encontram-se em: G.M. Sciacca, La visione
della vita nell’Umanesimo e Coluccio Salutati, Palermo, 1954; Matteo Iannizzotto,
Saggio sulla filosofia di Coluccio Salutati, Padova, 1959; Berthold Lewis Ullman, The
Humanism of Coluccio Salutati, Padova, 1963; Eckhard Kessler, Das Problem des
frühen Humanismus. Seine philosophische Bedeutung bei Coluccio Salutati, Wilhelm
Fink, München, 1968; Ronald Witt, Hercules at the Crossroads: The Life, Works, and
Thought of Coluccio Salutati, Durham, N.C., 1983. De muitos tópicos do pensamento
de Salutati encontram-se luminosas exposições e interpretações em Charles Trinkaus,
The Scope of Renaissance Humanism, University of Michigan Press, Ann Arbor, 1983;
Idem, In Our Image and Likeness. Humanity and Divinity in Italian Humanist Thought,
2 vols., University of Notre Dame Press, Notre Dame, Ind, 1995 (1ª ed., Univ. of
Chicago Press, Chicago, Ill., 1970); desta obra, destaque para o II cap. do I volume,
intitulado «Coluccio Salutati: the Will Triumphant», pp. 51-102. Para a relação de
Salutati com a tradição patrística, veja-se o estudo recente de Francesco Bernardo
Gianni, «Il magistero de Coluccio Salutati e l’eredità agostiniana», in: Mariarosa
Corteis / Claudio Leonardi (a cura di), Tradizioni patristiche nell’Umanesimo, Sismel,
Edizioni del Galluzzo, Firenze, pp. 43-80. Para a actividade política de Salutati ao
serviço da Signoria de Florença, veja-se: Peter Herde, «Politik und Rhetorik in Florenz
am Vorabend der Renaissance, Die ideologische Rechtfertigung der Florentiner
Aussenpolitik durch Coluccio Salutati», Archiv für Kulturgeschichte, XLVII (1965),
Heft 2, pp. 141-220. Como observa Trinkaus, na acção e pensamento de Salutati,
«Rhetoric presents not a pattern of inconsistency, and hence of putative insincerity,...
but a source of an affirmation of human grandeur through will and action now
established by him in complete harmony with the divine providence and nature.» (In
Our Image and Likeness, I, p. 344, n.1).
352 Desta obra utilizo a seguinte edição: Coluccio Salutati, De nobilitate legum et
medicine, ed. bilingue latim-alemão, trad. de P.M. Schenkel, introd. de E. Grassi e E.
Kessler, Wilhelm Fink, München, 1990. Existe uma outra edição levada a cabo por
Eugenio Garin para a «Edizione nazionale dei classici del pensiero italiano», o qual
também estabeleceu o texto, o traduziu e o precedeu de uma «Introdução»: Coluccio
Salutati, De nobilitate legum et medicinae. De Verecundia, Firenze, 1947. A obra de
Salutati, datada de 1399, foi escrita como resposta a outra de um médico florentino,
mestre Bernardo, no qual a Medicina era proposta como expoente da ciência da natureza
e como detendo a primazia sobre as Leis e a vida social. Esta polémica tivera, porém,
um antecedente próximo em Petrarca, o qual também se vira na necessidade de
contrariar as tendências hegemónicas da Medicina já numa das suas cartas (Familiares,
V,19, de 13 de Março de 1351) e sobretudo depois nas Invective in medicum quendam
(1352-1353, 1355). Petrarca elabora aí a distinção entre artes mecânicas ou ciências
físicas e artes liberais, entre a
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 175
I
UM DEBATE EPISTEMOLÓGICO: O «CONFLITO DAS FACULDADES»,
OU A NOVA ORDEM DOS SABERES
354 Veja-se, sobre o tema: Lynn Thorndike, Science and Thought in the 15th Century,
New York, 1929; Idem, «The debate for precedence between medicin and law: Further
examples from the 14th to the 17th century», Romanic Review, 27 (1936), 185-190;
Eugenio Garin (ed.), La disputa delle arti nel Quattrocento, Firenze, 1947; Giulio F.
Pagallo, «Nuovi testi per la ‘Disputa delle arti’ nel Quattrocento: La Quaestio di
Bernardo da Firenze e la Disputatio di Domenico Bianchelli», Italia medioevale e
umanistica 2 (1959), 467-482; Cesare Vasoli, «Le discipline e il sistema del sapere», in:
Sapere e /è Potere. Discipline, dispute e professioni nell’Università medievale e
moderna, Atti del IV Convegno, Bologna, 13-15 aprile 1989, vol. II: Verso un nuovo
sistema del sapere, a cura di A. Cristiani, Bologna, 1990, pp. 11-36.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 177
358 «Non reprehendo, si tamen sub ratione politice comprehendas legales differentias
hominum, que quidem usitatius per fidei vocabulum exprimantur. Fuit autem lex
iudaica, nunc autem est et dicitur lex christiana. [...] Omnes enim Christiani preceptis
legis evangelice subiacemus.» De nobilitate, p. 228.
359 F. Petrarca, Epistolae rerum familiarium (ed. Rossi, II, 301; ed. Frassetti, II, 82-83):
«Theologie quidem minima adversa poetica est. Miraris? Parum abest quin dicam,
theologiam poeticam esse de Deo, Christum modo leonem, modo agnum, modo
vermen dici, quid nisi poeticum est? Mille talia in Scripturis sacris invenies, quae
persequi longum est. Quid vero aliud parabole Salvatoris in Evangelio sonant, nisi
sermonem a sensibus alienum, sive, ut uno verbo exprimam, alieniloquium, quam
allegoriam usitatiori vocabulo nuncupamus? Atqui ex huiusce sermonis genere poetica
omnis intexta est. Sed subiectum aliud. Quis negat? Illic de Deo deque divinis, hic de
diis hominibus tractatur; unde et apud Aristotelem primos theologizantes poetas
legimus.»
360 «Clarum est poeticam narrationem ex trivio quadruvioque componi. Quod quidem
adeo peculiare est huius facultatis quam poesim dicimus quod merito super alias
singulari promineat dignitate. Nam si recte voluerimus intueri, ex omnibus scientiis et
liberalibus artibus facultas ista collecta est ac sicut omnigenum florum manipulus et
redolet et effulget. Et cum sit ab omnibus, sicut ostendimus, generata, post omnes artes
et ipsam artem artium, philosophiam et theologiam, hec ars incipit, et cunctas utpote
preambulas sibique necessarias presupponit, quicquid dici potest tum suaviter, tum
ornate, tum subtiliter narratura.» De laboribus Herculis, ed. crítica de B.L. Ullman,
Thesaurus Mundi, Zürich, 1951, pp. 19-20.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 179
specifice dispartiri possint ab invicem habitus qui finem eundem per omnia sortiuntur.
Non differunt enim hec, nisi tanquam ratio et rationis institutu. [...] Nam quicquid
divina mens habet quod regula sit, mensura directioque vite nostre, hoc est actuum
humanorum, divina lex est. Quicquid huius humanis mentibus est insertum, naturalis
lex et politica ratio dici debet. [...] Intendit politica conservationem humane societatis;
hoc idem intendit et lex. Vult politica civem bonum; et quid aliud latores legum suis
institutionibus moliuntur? Nam si virtutes queris, legalis iusticia cunctas virtutes
amplexa est. Nec aliud est legalis scientia quam ipsa iustitia, vera, divina, naturalis et
eterna.» De nobilitate, p. 170.
364 Sobre a concepção humanista de ciência e a crítica pelos humanistas da ciência
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 181
372 «Sed inquis: medicina de naturalibus, leges autem de voluntariis sunt. Sed cave,
quoniam legalia sic voluntaria sunt promulgatione, quod eterna sint revelataque nature
tum origine tum receptione. Nichil enim plus habent scripte leges voluntatis quam
scripte physice vel medicine.[...] Sumpserunt istas vestri de percepte, probate vel
credite veritatis essentia, scripseruntque vobis ipsas quoniam voluerunt, scripseruntque
cunctis legislatores leges quoniam sic in equitate perpetua esse senserunt.» De nobili-
tate, p. 46.
373 «Leges etenim in proposito, prout humane sunt promulgationis, infallibilitatem
habent et naturalem insitam rationem quam qualibet sane mentis videt vel meditando
potest disceptandoque reperiri. Que vero constituunt medicinam, si desit experientia,
sunt incerta et propter multa [...] decipere possunt, imo decipiunt, ut communem illam
semper non exhibeant rationem nec optatum exeant in effectum.» De nobilitate, p. 134.
374 De nobilitate, pp. 266-268.
184 Leonel Ribeiro dos Santos
occidendi sunt, totque secandi, quot etates, quot complexiones, quot regiones, quot
morbi, quod victus, et denique quot circa mortales reperiri possunt per se vel per
accidens varietates hominum periculis addiscitis, et vix uni de multis post multorum
mortes et experientias subvenitis.» De nobilitate, p. 268.
379 «Speculativa quidem verum respicit, et speculanda speculatur ut vera et solummodo
sub ratione veri, non sub ratione sani vel egri vel neutri, ut vera et nobilis illa specula-
tio non sit cum medici speculatione communis.» De nobilitate, p. 32.
380 «Medicina verius sit ars quam scientia vel doctrina...». De nobilitate, p. 112.
381 De nobilitate, p. 30.
186 Leonel Ribeiro dos Santos
II
UM DEBATE DE NATUREZA MORAL:
VIDA ACTIVA VERSUS VIDA ESPECULATIVA
as outras coisas, dado que não usam os olhos como os linces mas como
os morcegos, é de temer que sonhem eles próprios e tomem estas suas
miragens por realidades e submetam a estes milagres o entendimento ou
até o aprisionem. Nós discutimos o que é o belo, o que é o feio, o que é o
útil e o que o não é.»388
Mas a razão desta opção reside na antropologia de Salutati e na sua
concepção da finalidade do homem, a qual não consiste na especulação e
na ciência, mas no plano ético. A ciência e a especulação não são o fim
do homem e não se justificam como fins em si mesmas, mas valem tão só
na medida em que possibilitam uma acção mais racional (rationabilius
operari)389, ou tornam o homem melhor moralmente falando. O fim do
homem é um fim moral, o seu objecto é o bem – a felicidade – e a facul-
dade que o tem por objecto é a vontade: «Uma vez que o verdadeiro e
extremo fim do homem não é conhecer ou saber, mas aquela suprema
beatitude que consiste em ver Deus tal como ele é e fruir o que é visto e
amá-lo e aderir a ele eternamente pelo amor que une o que ama e o que é
amado [...] e que isto não podemos alcançá-lo pela ciência ou especula-
ção humana mas pela graça de Deus através das virtudes e operações, é
certo que àquela verdadeira felicidade que é a vida activa, cujo princípio
é a vontade, não pertence a [vida] especulativa, que se realiza pelo
entendimento, e nessa mesma beatitude é formalmente mais nobre o acto
da vontade que é o amor do que o acto do entendimento, que é a contem-
plação ou a visão [...] Do que se segue manifestamente que a vida activa,
na medida em que se separa da especulativa, tanto neste mundo como na
pátria celeste, deve ser preferida por todos os modos à especulação.»390
388 «Versentur in hac obscuritate sine invidia medici et inquirunt si reperire possunt,
causas et principia rerum; inquirant vacuum infinitum, loci vel motus rationem... vesti-
gent animam quid sit, quid communis sensus, quid phantasia, quid intellectus, quid
ratio, quid voluntas, quid appetitus ipse sensitivus, que corporalium sensuum
distinctio, quod opus queve natura, quid somnus et somnia, in quibus et aliis omnibus,
cum non lynceis, sed nycticoracum utantur oculis, verendum ipsis est ne somnient...
habeant rerum ista prestigia, subiciant his miraculis intellectum, imo captivent. Nos
quid sit pulchrum, quid turpe, quid utile, quid non... ventilemus.» Epistolario, III,
p. 588.
389 De nobilitate, p. 258.
390 «Verum quoniam verus et extremus hominis finis non est cognoscere sive scire, sed
illa suprema beatitudo, que videre est Deum, sicuti est, visoque frui, visumque diligere
illique eternaliter coherere per dilectionem que sic unit diligentem atque dilectum quod
qui per illam adheret Deo [...], nec hoc adipisci possumus scientia vel speculatione
humana sed Dei gratia per virtutes et operationes, certum est ad illam veram felicita-
tem activam vitam, cuius voluntas principium est, non speculativam pertinere, que
perficitur intellectu, et in ea ipsa beatitudine nobilior et formalior est voluntatis actus,
qui dilectio est, qum actus intellectus, qui contemplatio sive visio dici potest.[...] Ex
quibus [...] manifeste sequitur vitam activam, prout a speculativa dividitur, tam in via
quam in patria speculationi modis omnibus preferendam.» De nobilitate, p. 190.
Petrarca expressara a mesma ideia num passo da sua obra De sui ipsius et multorum
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 189
401 O debate acerca do primado da vida activa ou contemplativa é o tema dos dois
primeiros livros das Disputationes Camaldulenses (1480). Os intérpretes dividem-se
quanto à interpretação da posição de Landino. Para uns, ele resolve o confronto no
sentido inverso do de Salutati e Bruni, dando o privilégio à vida contemplativa,
sofrendo já o impacto do renascimento do platonismo e o magistério de Marsílio
Ficino. Para outros também Landino propõe uma conciliação ou tensão dialéctica entre
os dois géneros de vida, sem sacrifício de um ao outro, e isso estaria bem demonstrado
no percurso do herói Eneas, mítico fundador de Roma, de que o humanista dá, no
terceiro e quarto livros das Disputationes, uma interpretação alegórica, vendo naquele
herói uma figuração da condição humana, por conseguinte, um verdadeiro compêndio
poético da antropologia do humanismo. Esta é a tese defendida por Rainer Weiss
(Cristoforo Landino, Das Metaphorische in den «Disputationes Camaldulenses», W.
Fink, München,1981), nomeadamente contra a interpretação de Eugenio Garin (Der
italienische Humanismus, Bern, 1947,99-104) que vê as Disputationes imbuídas já do
espírito platonizante de Ficino, tendendo, por conseguinte, para a afirmação do
primado da vida especulativa sobre a vida activa.
402 Veja-se de Hans Baron, «The Humanistic Revaluation of the Vita Activa in Italy and
North of the Alps», Idem, In Search of Florentine Civic Humanism, vol. II, pp. 55-71.
403 «Omnis equidem speculationis finis est scire, cuius obiectum est verum. Legum
autem finis est directio actuum humanorum. Obiectum autem est bonum, nec
solummodo bonum simpliciter, sed, quod longe divinius est, commune bonum. Nunc
autem nonne nobilior entis ratio est bonum quam verum? Non bonum quo bonum
aliquod sumus, sed bonum quo boni efficimur atque sumus.» De nobilitate, pp. 32-34.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 193
407 «Nec ignoro multos indifferenter et quasi synonimis uti duobus istis terminis,
speculatione et contemplatione. Sed contemplatio prout active prefertur aliud est a
speculatione. Hoc enim sensu dicitur omnium actionum finis et eterna perfectio
gaudiorum que numquam perfici potest in via, sed perficietur in patria, cum erit omnia
Deus in omnibus et non videbimus per speculum in enigmate, sed prout est. Quo
quidem sensu fateor activam precedere tempore, contemplativam vero, sicut sequitur
tempore, sic incomparabiliter et meritis et precellere ratione. Sed si contemplationem
sumpseris, prout solum est speculatio veritatis, active vite dicam nec ratione nec
tempore preferendam. Ipsa quidem speculatio quedam actio est, operationi tamen
secundum virtutem nec re nec meritis preferenda.» De nobilitate, p. 38.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 195
III
UM DEBATE ANTROPOLÓGICO:
O PRIMADO DA VONTADE SOBRE O ENTENDIMENTO
408 «Ratio boni melior atque nobilior sit in creaturis quam ratio veri [...] et cum bonum
progrediatur ultra verum, plus habeat de ratione finis, cumque speculationis obiectum
sit verum, ethice vero et operative [...] bonum obiectum sit [...], concludi... activam
esse speculationi [...] preferendam.» De nobilitate, p. 182.
409 «Quod voluntas est nobilior intellectu, et activa vita sit speculative preferenda.» Este
voluntarismo antropológico tem uma correspondência no plano teológico: «Et quamvis
in deo, qui summe simplex est, voluntas sit sua essentia, et hoc idem in animabus
hominum, ut expressius assignari queat in nobis imago atque vestigium trinitatis...».
De laboribus Herculis, ed. cit., p. 102.
410 «Et ipsum intellectum ordinat ut de perceptis discurrendo iudicet, nec non et memo-
riam, ut reponat atque custodiat demumque fideliter exhibeat quod recepit.» De nobi-
litate, p. 184.
196 Leonel Ribeiro dos Santos
414 «Non moveat etiam, quod non possit vigor et potentia voluntatis ferre super aliquid
ignoratum, ut intellectus evidentiam precedere sit necesse.» Ibidem, p. 190.
415 «Naturale quidem sciendi desiderium non est intellectus, sed voluntatis, quod
omnem intellectum ac intellectus actum, non natura solum, sed ratione temporis
antecedit.» Ibidem, p. 192.
416 «Que quidem Philosophi verba, si recte voluerimus intelligere, non dividunt ab intel-
lectu voluntatem, sed ea sine dubitatione coniungunt. Operatio quidem secundum
virtutem, etiam si volueris hanc virtutem intellectum esse, cum, ut dictum est, sic
passivus sit, quod sine voluntatis imperio non possit in opus suum, quod est intelligere,
198 Leonel Ribeiro dos Santos
pergere vel manere, simul voluntatem et intellectum sine dubio comprehendit. Hec
sunt enim in nobis divinissima, principantia per voluntatem et intelligentiam habentia
per intellectum, qui nichil potest intelligere nisi cum imperio voluntatis.» De
nobilitate, p. 188.
417 «Porro voluntas est motus rationalis et sensui presidens et appetitui; habet sane,
quocumque se volvat, [semper] rationem comitem, et quodammodo pedissequam. Non
quod semper ex ratione, sed quod numquam absque ratione moveatur, ita ut multa
faciat per ipsam contra ipsam, hoc est per eius quasi ministerium contra eius consilium
sive iudicium.» De nobilitate, p. 188. A passagem de S. Bernardo encontra-se em
Migne, PL, 182, 1003.
418 «Nec credat aliquis ab intellectu procedere voluntatem et hac ratione nobiliorem esse
potentiam intellectus. Conceptio quidem intellectus non est causa, sed occasio volun-
tatis. Non enim quoniam intelligimus volumus, nam semper causaret intellectio
voluntatem, sed potius cum intelligimus datur nobis ut velle possimus.» De nobilitate,
p. 194.
419 «Ut cum voluntas et intellectus propter unitatem anime realiter unum sint, sic ratione
differant quod illa dominetur, iste serviat. Illa potentia sit domina, ista vero sit serva.»
Ibidem, p. 188.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 199
IV
UM DEBATE METAFÍSICO: O PRIMADO DO BEM (BONUM)
SOBRE O SER (ENS) E A VERDADE (VERUM)
420 «Bonum etenim ultra veritatis et entis transgreditur rationem, bonum inquam, quo
bonus homo dicitur, non quo bonum. Omnis quidem homo ratione veritatis et entis
bonum est; moralis autem et operative rationis bonitate, non bonum dici debet esse,
sed bonus. Hoc igitur politica bonum et leges intendunt quoniam, te teste, Philoso-
phus... affirmat: «vos, non sciendi gratia, speculari moralia, sed ut boni fiatis» [ Arist.,
Et.Nic. 1103 b 27] Hoc igitur verum bonum germanumque bonum, quod bonos facit,
activa querit vita, cum speculatio querat verum. Supra bonum igitur ens et verum, quod
ab homine quolibet separari non potest, reperitur morale bonum quod bonos facit, ut
certum sit vite moralis obiectum ultimatius esse, quam ens quod et bonum est et
verum, quod speculatio vestra querit. [...] Nichil enim speculor solum ut sciam, sed ut
possim, postquam sciverim, rationabilius operari.» De nobilitate, p. 258.
200 Leonel Ribeiro dos Santos
421 «Ego semper in agendo versor [...] Terminum meum in opere statui, quoniam pro
mortalium salute laboro. Quicquid enim speculor, physicum est; quicquid autem
operor, est meum.» Ibidem.
422 Giambattista Vico, Le Orazioni inaugurali, il ‘De italorum sapientia’ e le
Polemiche, Laterza, Bari, 1914: «antiquos Italiae sapientes in haec de vero placita
concessisse: verum esse ipsum factum; ac proinde in Deo esse primum verum, quia
Deus primus Factor.» (pp. 131-132). A proximidade de Vico com a visão do mundo
dos humanistas, em particular, com a visão jurisprudencial e retórica de Salutati, é
visível sob muitos aspectos e foi expressamente abordada em vários ensaios por
Ernesto Grassi, reunidos no volume Vico e l’umanesimo, Guerini, Milano, 1992 (trad.
esp. : Vico y el humanismo, Anthropos, Barcelona, 1999).
V
NICOLAU DE CUSA
E A SABEDORIA DO IDIOTA
SINOPSE
I
O IDIOTA, OU O MUITO PECULIAR SOCRATISMO
DE NICOLAU DE CUSA
424 Sobre este ponto, veja-se: Albert Zimmermann (ed.), Mensura, Mass, Zahl,
Zahlensymbolik im Mittelalter, Walter de Gruyter, Berlin / New York, 1983, 2 vols. Aí
se encontra, no vol. I, o ensaio de Michael Stadler, «Zum Begriff der Mensuratio bei
Cusanus. Ein Beitrag zur Ortung der Cusanischen Erkenntnislehre», pp. 118-131.
425 As relações entre Nicolau de Cusa e o Humanismo têm sido objecto de recorrente
atenção por parte dos investigadores. Veja-se: G. Saitta, Nicolò Cusano e l’umanesimo
italiano, Bologna, 1957; Rudolf Haubst, «Das Menschenbild des Nikolaus von Kues
und der christlichen Humanismus», in: Gregorio Piaia (a cura di), Concordia discors.
Studi su Niccolò Cusano e l’umanesimo europeo offerti a Giovanni Santinello, Ante-
nore, Padova, 1993, pp. 55-75.
426 Prov. 1,20. De Sapientia, Opera V, 6-7: «Ego autem tibi dico, quod ‘sapientia foris’
clamat ‘in plateis’, et est clamor eius, quoniam ipsa habitat ‘in altissimis’».
204 Leonel Ribeiro dos Santos
427 Genèses de la Modernité, Les douze siècles où se fit notre Europe, Éditions du Cerf,
Paris, 1992, p. 436. Sobre o tema do ‘Idiota’, veja-se: Maurice de Gandillac, Nikolaus
von Kues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischer Weltanschauung, Dussel-
dorf, 1953, pp. 45-60; K. Oedinger, «Idiota de Sapientia. Platonisches und antiplato-
nisches Denken bei Nikolaus von Kues», Tijdschrift voor Philosophie, 17 (1955),
pp. 690-698; E.F. Rice, «Nicholas of Cusa’s Idea of Wisdom», Traditio, 13 (1957),
pp. 345-368.
428 Eusebio Colomer, Nicolau de Cusa (1401-1464), Faculdade de Filosofia, Braga,
1964, pp. 21-22.
429 «Nihil enim homini etiam studiosissimo in doctrina perfectior adveniet, quam in ipsa
ignorantia quae ipsi propria est, doctissimum reperiri, et tanto quis doctior erit, quanto
se magis sciverit ignorantem.» De docta ignorantia, I, cap. 1.
430 Ibidem.
431 Apologia doctae ignorantiae, Opera II, p. 12.
432 Mais recentemente, a mesma ideia da irredutibilidade do conceito cusano de «douta
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 205
ignorância» a uma mera reminiscência socrática é defendida por João Maria André, na
sua obra Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de
Cusa, FCG/JNICT, Coimbra, 1997, p. 92: «Não é demais reafirmar a abertura para o
infinito inerente à «douta ignorância» precisamente porque é ela que marca a sua espe-
cificidade no pensamento deste autor. Embora ele se reclame de Sócrates como seu
predecessor, a «douta ignorância» só se compreende verdadeiramente, na profundidade
com que Nicolau de Cusa a tematiza, na medida em que for situada no quadro do
pensamento cristão e na positividade com que nesse pensamento o conceito de Infinito
se afirma. Por isso, só no neoplatonismo de raiz cristã, e em autores de que o Pseudo-
-Dionísio, Agostinho e Boaventura poderiam ser citados como exemplos, se poderão
encontrar os verdadeiros antecedentes deste fecundo princípio do filosofar.»
433 Veja-se, entre outros, Agostinho, Ennarrationes in Psalmos, 65,4 (in: Migne,
Patrologia Latina, 36,788).
434 «Litere igitur sint, vel horum qui illas michi auferunt, vel quia horum, nisi fallor,
esse non possunt, sint quorumcunque potuerint; horum autem sit suarum opinio rerum
ingens, et Aristotelis nudum nomen, quod his quinque sillabis multos delectat ignaros;
insuper et inane gaudium, et elatio fundamenti inops ac ruine proxima, omnisque quem
inscii et inflati de suis erroribus fructum vaga et facili credulitate percipiunt. Mea vero
sit humilitas et ignorantie proprie fragilitatisque notitia et nullius nisi mundi et mei
insolentie contemnentium me contemptus, de me diffidentia, de te spes; postremo
portio mea Deus, et, quam michi non invident, virtus illiterata. Ridebunt plane, si hec
audiant, et dicent me ut aniculam quamlibet sine literis pie loqui. His enim literarum
typo tumidis nil pietate vilius, qua veris sapientibus ac sobrie literatis nichil est carius,
quibus scribitur: ‘Pietas est sapientia’, meisque sermonibus magis ac magis in sententia
firmabuntur, ut sine literis bonus sim.» De sui ipsius et multorum ignorantia, in F.
Petrarca, Prose, ed. de G. Martelloti, P.G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, com introd. de
G. Martelloti, Milano-Napoli, 1955, pp. 718-719 (também apud R. Amaturo, Petrarca,
206 Leonel Ribeiro dos Santos
Roma-Bari, 1988, p. 165). Haveria que referir também, como possível fonte próxima
para o tema da sapientia, a Expositio libri Sapientiae, de Mestre Eckhart (ed. de I.
Knoch e H. Fischer), in M. Eckhart, Die deutschen und lateinischen Werke, vol. II,
Berlin/Stuttgart, 1954.
435 A suspeita recaíu sobre Francisco Filelfo (K. Borinski, «Eine unerkannte
Falschung in Petrarcas Werken», Zeitschrift für romanische Philologie, 36 (1912),
586-597; M. de Gandillac, Oeuvres choisies de Nicolas de Cues, p. 214, nota 2), mas
Klibansky afastou essa hipótese reconhecendo a impossibilidade de identificar o
falsário: «falsum quis commiserit, certe diiudicari non potest» (Appendix II, in: N. De
Cusa, Opera V, LXVI).
436 Sobre este ponto, veja-se: R. Klibansky, «Appendix II: De Dialogis de vera Sapientia
Francisco Petrarcae addictis», in: N. De Cusa, Opera, V, LXV-LXXII.
437 G. Savonarola, La verità della profezia / De veritate prophetica, ed. de C. Leonardi,
Ed. del Galluzzo, Firenze, 1997. Um dos intervenientes no diálogo insiste uma e outra
vez na sua ignorância das letras ao mesmo tempo que na abertura do seu espírito e no
ensino colhido do uso das coisas: «quamquam enim litterarum maxime ignarus sum,
non nihil tamen rerum usus me edocuit et aetas ipsa cautiorem effecit.» (pp. 12) E
noutro lugar: «Sum litterarum expers, apertique et nudi ingenii; ac omnino cavillari
nesciens, simpliciter ambulo.» (p. 156).
438 Codex atlanticus, fº 119, vº.
439 Codex atlanticus, fº117, rº.
440 G. Bruno, Due dialoghi sconosciuti e due dialoghi noti, ed. de G. Aquilecchia, Paris,
1957. Sobre o tema do «idiota» e sua recorrência na literatura filosófica e teológica,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 207
Esta amostra (breve, por certo, mas que poderia ser muito mais alar-
gada) é suficiente para provar que a figura do Idiota, mais do que uma
criação singular de Cusa ou de qualquer outro autor, representa uma per-
sonagem-tipo recorrente na história do pensamento, que encarna uma
determinada atitude humana no que respeita à sabedoria em contraste
com outras atitudes. Desde a oposição de Sócrates à arrogância e jactân-
cia dos Sofistas, especialistas na arte de caçar homens seduzindo-os pela
retórica e vendendo-lhes uma suposta ciência que presumiam possuir441,
à oposição kantiana entre duas concepções de filosofia, a mundana (con-
ceptus cosmicus) que atende aos fins práticos humanos, e a escolar
(Schulbegriff), que apenas cuida da acumulação de conhecimentos e da
sua sistematização442, passando pela oposição neotestamentária e paulina
entre a sabedoria de Deus e a sabedoria dos homens, perante a qual
aquela mais parece loucura, ou pela contraposição petrarquiana entre a
sabedoria piedosa e humilde e a ciência jactanciosa e inchada dos filóso-
fos, seja enfim nos diálogos de Cusa ou de Bruno, o Idiota protagoniza o
homem simples e sem preconceitos, cuja razão não foi corrompida pelos
estudos nem pela fidelidade a alguma autoridade ou escola filosófica,
mas se exprime na sua simplicidade e espontânea fecundidade. O Idiota
ou leigo iletrado é o emissário de um saber humilde e modesto, que não
tem mais credenciais do que as que lhe advêm da sua própria faculdade
natural de pensar exercida no concreto das actividades humanas vulgares,
faculdade que ele usa com um grande sentido de autonomia e ao mesmo
tempo com uma notável consciência dos seus limites, mas que ainda
assim é capaz de abrir clareiras de luz por domínios onde a erudição filo-
sófica criou emaranhadas selvas de questões e de distinções formais. O
Idiota é o contraposto ao homem erudito e letrado, possuidor de um saber
escolar fundado em autores e autoridades e que destas tira a sua compe-
tência, mas que perdeu o sentido do uso e cultivo autónomo das suas
próprias faculdades. Ele está do lado da natureza contra a cultura e a
escola, do lado da simplicidade contra a erudição dos livros, do lado da
atenção às coisas contra o cultivo das palavras.
O Idiota de Cusa é, sem dúvida, a mais notável expressão desta per-
sonagem-tipo, bem representada pela sua recorrência e metamorfose na
história do pensamento ocidental, e o Cardeal-filósofo faz questão de o
fazer apresentar-se na plena consciência de si, quando, nos diálogos, o
põe a declarar que ignora os livros, que não presta muita atenção às pala-
vras, que não é conduzido por nenhuma autoridade, que fala de modo
rústico, que, ao contrário dos filósofos letrados e que têm fama de sábios,
443 «Ignoro scripturas... Ego, qui sum idiota, non multum ad verba attendo... Hoc scio,
quod nullius auctoritas me ducit, etiamsi me movere tentet... Haec autem ... dixerim
cursorie et rustice... Arbitror neminem facilius me cogi posse, ut dicat quae sentit. Nam
cum me ignorantem fatear idiotam, nihil respondere pertimesco. Litterati philosophi ac
famam scientiae habentes merito cadere formidantes gravius deliberant. Tu igitur, quid
a me velis, plane si dixeris, nude recipies». De Mente, Opera Omnia, V, pp. , 207, 164,
133, 160, 89, respectivamente.
444 «At Nicolaus ab illis auctoribus et omnibus qui eos secuti sunt differt in eo quod
solus oratorem et philosophum argumentis ad ipsam philosophiam pertinentibus ab
idiota doceri facit.» Nicolai de Cusa, Idiota, Opera, V, pp. LXI-LXII.
445 Assim o Filósofo, no início do De Mente: «Est mea consuetudo, cum hominem fama
sapientem accedo, de his, quae me angunt, in primis sollicitum esse et scripturas in
medium conferre et inquirere earundem intellectum. Sed cum tu sis idiota, ignoro,
quomodo te ad dicendum excitem, ut, quam habeas de mente intelligentiam, experiar.»
Opera, V, 89.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 209
446 «Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio
sermonum perutilis est.» Ibidem, 113.
447 G. Santinello, «Glosse di mano del Cusano alla Repubblica di Platone»,
Rinascimento, ser. 2, 9 (1969), pp. 117-145.
448 Veja-se: James Hankins, Plato in the Italian Renaissance, Brill, Leiden, 1991,
pp. 184ss. A encomenda terá sido feita a Jorge de Trebizonda provavelmente no ano de
1458.
449 Veja-se a obra de Walter J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of Dialogue: From
the Art of Discourse to the Art of Reason, Harvard University Press, Cambridge, 1958.
450 Veja-se: Davide Bigalli e Guido Canziani (ed.), Il Dialogo Filosofico nel ‘500 Euro-
peo, Franco Angeli, Milano, 1990.
210 Leonel Ribeiro dos Santos
451 Um dos autores que mais pôs em evidência o carácter dialógico do pensamento
humanista – o diálogo como carácter estrutural do pensamento dos humanistas – e
procurou interpretar o seu alcance foi Leonid M. Batkin, que ao tópico dedica todo um
capítulo da sua obra Gli Umanisti Italiani. Stile di Vita e di Pensiero, Laterza, Bari,
1990, pp. 124-176.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 211
452 «Si tibi de deo conceptum, quem habeo, pandere debeo, necesse est, quod locutio
mea, si tibi servire debet, talis sit, cuius vocabula sint significativa, ut sic te ducere
queam in vi vocabuli, quae est nobis communiter nota, ad quaesitum. Deus est autem
qui quaeritur. Unde haec est sermocinalis theologia, qua nitor te ad deum per vim
vocabuli ducere modo quo possum faciliori et veriori.» De sapientia II, Opera V, 66.
453 «Convenit pauper quidam idiota ditissimum oratorem in foro Romano, quem facete
subridens sic allocutus est:
Miror de fastu tuo, quod, cum continua lectione defatigeris innumerabiles libros
lectitando, nondum ad humilitatem ductus sis; hoc certe ex eo, quia ‘scientia’ ‘huius
mundi’, in qua te ceteros praecellere putas, ‘stultitia’ quaedam ‘est apud deum’ et hinc
‘inflat’. Vera autem scientia humiliat. Optarem, ut ad illam te conferres, quoniam ibi
est thesaurus laetitiae.» De Sapientia, Opera V, 3-4.
454 «Quae est haec praesumptio tua, pauper idiota et penitus ignorans, ut sic parvifacias
studium litterarum, sine quo nemo proficit?» Ibidem, 4.
212 Leonel Ribeiro dos Santos
de ti, que és livre por natureza, algo semelhante a um cavalo preso pelo
cabresto à manjedoura, que só come aquilo que lhe é servido. O teu
entendimento alimenta-se da autoridade dos que escrevem, limitado a um
pasto alheio e não natural.»455
As analogias são rudes, como convém a uma personagem iletrada,
mas o Orador replica-lhe no mesmo registo: «Se o pasto da sabedoria não
está nos livros dos sábios, onde está então?»456
E de novo o Idiota: «Não digo que não esteja aí, o que digo é que o
pasto natural não se encontra aí. Pois os que no princípio se entregaram a
escrever acerca da sabedoria não receberam os estímulos do pasto dos
livros, que ainda não existiam, mas realizavam o homem perfeito pelo
alimento natural. E certamente estes antecedem de longe em sabedoria os
restantes que pensam progredir a partir dos livros.»457
Não fica convencido o Orador, que replica: «Embora talvez sem o
estudo das letras algumas coisas se possam saber, nunca isso é possível a
respeito das coisas difíceis e grandes, pois as ciências desenvolvem-se
por acrescentamentos.»458
Mas o Idiota insiste: «Isto era o que te dizia, a saber que tu és con-
duzido pela autoridade e és enganado. Alguém escreveu uma qualquer
palavra na qual acreditas. Eu porém digo-te, que a sabedoria grita nos
mercados e o seu clamor anda pelas praças, pois ela habita nas
alturas.»459
O Orador não deixa de advertir o seu importuno interlocutor para o
facto de que ele labora numa contradição, pois, sendo e declarando-se
idiota, julga contudo saber. Ao que o visado responde: «Esta é talvez a
diferença entre ti e mim: tu consideras-te sábio, embora o não sejas, e por
isso és soberbo. Eu, porém, sei que sou idiota, e por isso me humilho.
455 «Non est, magne orator, praesumptio, quae me silere non sinit, sed caritas. Nam
video te deditum ad quaerendum sapientiam multo casso labore, a quo te revocare si
possem, ita ut et tu errorem perpenderes, puto contrito laqueo te evasisse gauderes.
Traxit te opinio auctoritatis, ut sis quasi equuus natura liber, sed arte capistro alligatus
praesepi, ubi non aliud comedit nisi quod sibi ministratur. Pascitur enim intellectus
tuus auctoritati scribentium constrictus pabulo alieno et non naturali.» Ibidem, 4-5.
456 «Si non in libris sapientum est sapientiae pabulum, ubi tunc est?» Ibidem, 5.
457 «Non dico ibi non esse, sed dico naturale ibi non reperiri. Qui enim primo se ad
scribendum de sapientia contulerunt, non de librorum pabulo, qui nondum erant,
incrementa receperunt, sed naturali alimento ‘in virum perfectum’ perducebantur. Et
hic ceteros, qui ex libris se putant profecisse, longe sapientia antecedunt.» Ibidem, 5.
458 «Quamvis forte sine litterarum studio aliqua sciri possint, tamen res difficiles et
grandes nequaquam, cum scientiae creverint per additamenta.» Ibidem, 5.
459 «Hoc est quod aiebam, scilicet te duci auctoritate et decipi. Scripsit aliquis verbum
illud, cui credis. Ego autem tibi dico, quod ‘sapientia foris’ clamat ‘in plateis’, et est
clamor eius, quoniam ipsa habitat ‘in altissimis’.» Ibidem, 5-6.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 213
«Já que te disse que a sabedoria grita nas praças e o seu clamor é que
ela habita nas alturas, desejo mostrar-te isso. E em primeiro lugar queria
que me dissesses: O que é que vês ser feito no mercado?
Orador: Vejo num sítio contar o dinheiro, noutro canto pesar as merca-
dorias, e no canto oposto medir o azeite e outras coisas.
Idiota: Estas são as obras daquela razão pela qual os homens se dintin-
guem dos animais; pois contar, pesar e medir não podem os animais
fazê-lo.»465
464 «Tamen nequeo me continere, quin tibi complaceam. [...] Si te absque curiosa
inquisitione affectum conspicerem, magna tibi panderem.» Ibidem, 13 e 7. No De
apice theoriae (Opera XII, 120), o Cardeal-filósofo é ainda mais explícito nesta sua
convicção, pois escreve: «Quanto mais clara é a verdade, tanto mais simples ela é.
Outrora acreditava que ela se encontrava melhor no escuro. A verdade é de uma grande
potência [potentia] pois nela luz o próprio poder ser [posse ipsum]. Ela grita nas
praças, como se lê no livro Do Idiota. Ela patenteia-se facilmente por toda a parte.»
465 «Quoniam tibi dixi sapientiam clamare ‘in plateis’, et clamor eius est ipsam ‘in altis-
simis’ habitare, hoc tibi opstendere sic conabor. Et primum velim dicas: Quid hic fieri
conspicis in foro?
ORATOR: Video ibi numerari pecunias, in alio angulo ponderari merces, ex opposito
mensurari oleum et alia.
IDIOTA: Haec sunt opera rationis illius, per quam homines bestias antecellunt; nam
numerare, ponderare et mensurare bruta nequeunt.» Ibidem, 8.
466 «Hunc clamorem sapientiae in plateis transfer in altissima, ubi sapientia habitat, et
multo delectabiliora reperies quam in omnibus ornatissimis voluminibus tuis.» Ibidem,
12.
467 «Haec sic dicta sufficiant, ut scias sapientiam esse non in arte oratoria aut in
voluminibus magnis, sed in separatione ab istis sensibilibus ac in conversione ad
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 215
mais facilmente possa ser levado a dizer o que pensa do que ele próprio.
Pois, como se confessa idiota ignorante, nada teme responder, dizendo o
que pensa sem artifícios (nude). Os filósofos letrados e que têm fama de
sábios é que precisam de ponderar gravemente as suas deliberações, com
medo de errar.469
Sentam-se em três pequenos tamboretes dispostos em triângulo e é o
Orador que, dirigindo-se ao Filósofo, lhe diz: «Vês, filósofo, a simplici-
dade deste homem, que não tem para seu uso nada do que seria adequado
para receber um homem da tua importância. Aproveita para fazer o expe-
rimento naquelas questões que, segundo dizias, mais te atormentam. Pois
nada a respeito delas te ocultará, se o souber. Experimentarás, estou
certo, que não foste trazido até aqui em vão.»470 Em resposta, o Filósofo
pede-lhe que fique calado para não perturbar o diálogo, ao que o Orador
responde que será mais um animador do que um perturbador. Dirigindo-
-se ao artesão, prossegue o Filósofo: «Diz, então, idiota – pois esse é o
nome que dizes ter – se possuis alguma conjectura acerca da mente. Ao
que o Idiota responde, propondo o mote que vai explicitar ao longo de
todo o diálogo – a relação etimológica entre mens e mensurare: «Julgo
não haver ninguém, que seja ou tenha sido homem perfeito, que não
tenha alguma noção acerca da mente. Por certo também eu tenho: a
saber, que a mente é aquilo pelo que se faz o termo e a medida de todas
as coisas. Com efeito, conjecturo que a mente se diz de mensurar.»471
Depois do Exórdio, os diálogos prosseguem, cabendo aos sábios
letrados (o Orador ou o Filósofo) fazer as perguntas e manifestar a per-
plexidade ou a admiração perante as surpreendentes respostas do Idiota,
o qual não evita nenhuma das questões ou dificuldades que lhe são pro-
postas, a todas respondendo sem rodeios e com simplicidade, para con-
fessada satisfação dos seus interlocutores. O Idiota cusano, ao contrário
do Sócrates dos diálogos platónicos, não é aquele que interroga, mas
aquele que responde, não, porém, como quem ensina, mas como quem
convida os seus interlocutores a acompanhá-lo na sua experiência de
pensamento no decurso da qual inventa conjecturas e assim descobre
uma sabedoria que se sabe ignorante, a qual todavia permite que se veja
de modo invisível e se atinja de modo inatingível a verdadeira sabedoria
que é a da mente divina. Nos diálogos cusanos é o ignorante que revela
469 Ibidem.
470 «Vides, philosophe, viri huius simplicitatem, qui nihil horum in usu habet, quae ad
recipiendum tanti ponderis virum decentia petit. Fac in experimentum, quae magis, ut
aiebas, te angunt. Nihil enim de his, quae sciverit, te latebit. Experieris, puto, te non
vacue adductum.» Ibidem, 90.
471 «Puto neminem esse aut fuisse hominem perfectum, qui non de mente aliqualem saltem
fecerit conceptum. Habeo quidem et ego: mentem esse, ex qua omnium rerum terminus
et mensura. Mentem quidem a mensurando dici conicio.» De Mente, Opera V, 90.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 217
samento é impensável, por ela, nela e a partir dela sendo todas as coi-
sas.»473
Em suma, é a própria inefabilidade que nos impele a multiplicar o
discurso. A estratégia do Idiota cusano é diametralmente oposta à do
Wittgenstein autor da bem conhecida última proposição do Tractatus
Logico-philosophicus. Mas demarca-se também da noção de sapientia
dos humanistas quatrocentistas que toda se vertia e comprazia no discur-
so eloquente.
É a sabedoria do Idiota uma sabedoria de experiência que se faz,
uma sabedoria experimentada e experimental. É digna de nota a frequên-
cia com que ocorre, no conjunto destes diálogos, a expressão experi-
mentum, ou o verbo experiri, não falando já do terceiro diálogo que é
expressamente dedicado aos «experimentos de pesagem». Trata-se, nes-
sas ocorrências (algumas das quais em passos já acima citados), de subli-
nhar a experiência inalienável do próprio pensamento ou do exercício da
mente. Cito mais alguns casos: «Claramente experimentamos o espírito
que na nossa mente fala e julga isto é bom, isto é justo, isto é verdadei-
ro...»474; «Experimentamos que a mente é aquela força que, embora careça
de toda a forma nocional, pode, contudo, sendo excitada, assimilar-se a
toda a forma e fazer as noções de todas as coisas.»475; «A mente é uma
substância viva que experimentamos falar internamente e julgar em nós e
que se assemelha mais à infinita substância e à absoluta forma do que a
qualquer outra força de todas as forças espirituais que em nós experi-
mentamos.»476 As diferentes filosofias são também entendidas como
outras tantas expressões das várias experiências que os filósofos tiveram
do poder da mente.477 E o próprio diálogo, enquanto tal, é reconhecido
como uma experiência de pensamento, como um exercício a que os
interlocutores se entregam de bom grado (in his exercitiis libenter ver-
sor). No final do De Mente, o Orador fecha o «colóquio» declarando que
depois de ter ouvido o Idiota a dissertar tão profundamente acerca de
mente, «teve por experiência indubitável a certeza de que existe a mente
478 «Indubio nunc experimento certissimum habens mentem vim omnis mensurantem
existere.» Ibidem, 217.
479 «Sapientia est, quae sapit. qua nihil dulcius intellectui.» De Sapientia, Opera V, 17.
Cf. De ludo globi (ed. Paris, 1514, fol. 165v): «Sapientia, hoc est sapida scientia.
Scientia in eo quia sapida: ostenditur viva appraehensio. Et vita intellectualis: est
appraehensio sapientiae, seu sapidae scientiae.».
480 «Sicut enim omnis sapientia de gustu rei numquam gustatae vacua et sterilis est, quous-
que sensus gustus attingat, ita de hac sapientia, quam nemo gustat per auditum, sed solum
ille, qui eam accipit in interno gustu. Ille perhibet testimonium non de his, quae audivit,
sed in se ipso experimentaliter gustavit. Scire multas amoris descriptiones, quas sancti
nobis reliquerunt, sine amoris gustu vacuitas quaedam est. Quapropter ad quaerentem
aeternam sapientiam non sufficit scire ea, quae de ipsa leguntur, sed necesse est, quod
postquam intellectu repperit ubi est, quod eam suam facit.» Opera V, 41-42.
220 Leonel Ribeiro dos Santos
481 «Quamquam nihil in hoc mundo praecisionem attingere queat, tamen iudicium
staterae verius experimur et hinc undique acceptum.» De staticis experimentis, Opera
V, 222.
482 Ibidem, 223.
483 Ibidem, 230.
484 Ibidem, 231.
485 «Immo generaliter omnes harmonicae concordantiae per pondera subtilissime
investigantur. Immo pondus rei est proprie harmonica proportio ex varia combinatione
exorta. Immo amicitiae et inimicitiae animalium et hominum eiusdem speciei ac
mores, et quidquid tale ex harmonicis concordantiis et ex contrariis dissonantis
ponderatur. Sic et sanitas hominis harmonia ponderatur atque infirmitas; immo levitas
et gravitas, prudentia et simplicitas et multa talia, si subtiliter advertis.» Ibidem, 239.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 221
486 Sobre este ponto controverso, veja-se: Karl Jaspers, Nikolaus Cusanus, Piper & Co.,
München, 1964, p-138; Maurice de Gandillac, «Actualité de Nicolas de Cues»,
Bulletin de la Société Française de Philosophie, 59 (1966), p. 2; R. Haubst, Nikolaus
von Kues und die moderne Wissenschaft, Paulinus Verlag, Trier, 1963; Thomas
McTiche, «Nicholas of Cusa’s theory of science and its metaphysical background», in:
Nicolò Cusano agli inizi del mondo moderno, Sansoni Editore, Firenze, 1970, p. 319;
Fritz Nagel, Nicolaus Cusanus und die Entstehung der exakten Naturwissenschaften,
Aschendorff, Munster, 1984; Stephan Meier-Oeser, Die Präsenz des Vergessenen. Zur
Rezeption der Philosophie des Nicolaus Cusanus vom 15. bis zum 18.Jahrhundert,
Aschendorff, Münster, 1989, pp. 178-183; Alfred W. Crosby, The Measure of Reality.
Quantification and Western Society, 1250-1600, Cambridge University Press,
Cambridge, 1997, pp. 100-102; João Maria André, «Da mística renascentista à raciona-
lidade científica pós-moderna (A propósito da articulação entre Ciência, Filosofia e
Misticismo em Nicolau de Cusa)», Revista Filosófica de Coimbra, 7, vol. 4, (1995),
especialmente as pp. 72-83.
487 «Certe dei donum esse necesse est idiotas clarius fide attingere quam philosophos
ratione». De Mente, Opera V, 86.
222 Leonel Ribeiro dos Santos
se dá todo o saborear interno. Mas ela mesma, porque habita nas alturas,
não é gostada por todo o sabor.»488 Somos atraídos para ela como se fos-
semos guiados pelo odor do seu perfume e apenas alcançamos uma vaga
pregustação do seu sabor.489 Como o íman atrai o ferro assim o nosso
entendimento é atraído pela sabedoria, embora nunca a alcance de um
modo pleno.490 Esta satisfeita insatisfação que obriga a mente humana a
um contínuo progresso, não tem, porém, um sentido negativo, mas antes
evidencia o dinamismo criador e a própria natureza ilimitada da mente
humana, que nunca se satisfaz com as suas aquisições e realizações e, ao
limite, manifesta também a sua condição imortal. Todo o seu movimento,
embora processando-se nas coisas finitas e mundanas, se dirige no sem-
tido de alcançar o inalcançável princípio de onde ela própria provém:
«Sendo ela [a sabedoria] a vida espiritual do entendimento, que em si
tem uma certa pregustação conatural graças à qual com tanto esforço
investiga a fonte da sua vida, sem a qual pregustação não a buscaria nem
saberia que a tinha encontrado se a encontrasse, é por isso que para ela se
move como para a própria vida. E é doce para todo o espírito subir conti-
nuamente para o princípio da vida, mesmo que este seja inacessível.»491
492 «Aeterna sapientia in omni gustabili gustatur. Ipsa est delectatio in omni delectabili.
Ipsa est pulchritudo in omni pulchro. Ipsa est appetitio in omni appetibili. Sic de
cunctis desiderabilibis dicito.» Ibidem, 30.
493 De sapientia II, Opera V, 60.
494 «Summa sapientia est haec, ut scias quomodo in similitudine iam dicta attingitur
inattingibile inattingibiliter.» De Sapientia, Opera V, 13.
495 Opera I, 22. Cf. 1Cor 13,12.
496 Ibidem.
224 Leonel Ribeiro dos Santos
497 Sobre este tema, veja-se: João Maria André, ob.cit. (1997), pp. 95ss. E ainda, do
mesmo autor: «O problema da linguagem no pensamento filosófico-teológico de
Nicolau de Cusa», Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, vol. II (1993), pp. 369-402.
498 «Ego in his exercitiis libenter versor, quae et mentem et corpus indesinenter
pascunt.» De Mente, Opera V, 88.
499 «In hac mea arte id, quod volo, symbolice inquiro et mentem depasco, commuto
coclearia et corpus reficio; ita quidem omnia mihi necessaria, quantum sufficit,
attingo.» Ibidem, 89.
500 «Et nunc me ad hanc artem cocleariam converto. Et primum volo scias me absque
haesitatione asserere omnes humanas artes imagines quasdam esse infinitae et divinae
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 225
504 «Nam dei notitia seu facies non nisi in natura mentali, cuius veritas est obiectum,
descendit, et non ulterius nisi per mentem, ut mens sit imago dei et omnium dei imagi-
num post ipsum exemplar. Unde quantum omnes res post simplicem mentem de mente
participant, tantum et de dei imagine, ut mens sit per se dei imago et omnia post
mentem non nisi per mentem.» Ibidem, 112.
505 Ibidem, 171.
506 «Ut sui ipsius mensuram attingat. Nam mens est viva mensura, quae mensurando alia
sui capacitatem attingit. Omnia enim agit, ut se cognoscat. Sed sui mensuram in
omnibus quaerens non invenit, nisi ubi sunt omnis unum. Ibi est veritas praecisionis
eius, quia ibi exemplar suum adaequatum.» Ibidem, 177.
228 Leonel Ribeiro dos Santos
507 «Ex eo enim, quod mens divina unum sic intelligit et aliud aliter, orta est rerum
pluralitas. Unde si acute respicis, reperies pluralitatem rerum non esse nisi modum
intelligendi divinae mentis. Sic irreprehensibiliter posse dici conicio primum rerum
exemplar in animo conditoris numerum esse. Hoc ostendit delectatio et pulchritudo,
quae omnibus rebus inest, quae in proportione consistit, proportio vero in numero:
Hinc numerus praecipuum vestigium ducens in sapientiam.» Ibidem, 140.
508 Ibidem, 103.
509 «... idem dicere voluerunt... Inter eos non videtur differentia nisi in modo
considerationis». Ibidem, 207-208.
510 Ibidem, 107. O cap. III do De Mente leva o título: «Quomodo intelligantur et concor-
dentur philosophi». No cap. XIII propõe-se a conciliação da doutrina platónica da alma
do mundo com a aristotélica da natureza. Um e outro dizem a mesma realidade, com
nomes diferentes, e essa realidade é Deus, que actua tudo em todas as coisas: «Puto,
quod animam mundi vocavit Plato id, quod Aristoteles naturam. Ego autem nec
animam illam nec naturam aliud esse conicio quam deum omnia in omnibus operan-
tem, quem dicimus spiritus universorum.» Ibidem, 198.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 229
511 «Admiror omnium fidem unam in tanta corporum diversitate. Cum enim nullus alteri
similis esse possit, una tamen omnium fides est, quae eos tanta devotione de finibus
orbis advexit.» Ibidem, 86.
512 «Connata religio, quae hunc innumerabilem populum in hoc anno Romam et te
philosophum in vehementem admirationem adduxit, quae semper in mundo in modo-
rum diversitate apparuit, nobis esse naturaliter inditam nostrae mentis immortalitatem
ostendit, ut ita nobis nota sit nostrae mentis immortalitas ex communi omnium indubi-
tate assertione sicut nostrae naturae humanitas. Non enim habemus certiorem scientiam
nos esse homines quam mentes habere immortales, cum utriusque scientia sit commu-
nis omnium hominum assertio.» Ibidem, 217.
230 Leonel Ribeiro dos Santos
LORENZO VALLA
E O HUMANISMO RETÓRICO
voluptate (de 1431, depois submetido a novas redacções e por fim trans-
formado no De voluptate ac de vero bono). Neste, criticando como filo-
logicamente falsas as distinções de filósofos, moralistas e teólogos entre
o prazer, de que fala Epicuro, a felicidade, de que fala Aristóteles na sua
Ética Nicomaqueia, e a felicidade e bem-aventurança de que se fala
abundantemente nos livros bíblicos, Valla generaliza o conceito de prazer
ao corpo e ao espírito, identificando-o com o próprio bem: o prazer é o
bem onde quer que ele se encontre, seja no deleite da alma ou do corpo
(voluptas est bonum undecumque quaesitum, in anime et corporis oblec-
tatione positum). Mas, mais do que defender o carácter absoluto do pra-
zer corporal ou mesmo do prazer em geral, o que ele defende é a bondade
intrínseca do prazer (omnis voluptas bona est) e o carácter positivo da
vida contra o culto estóico das virtudes negativas e do sacrifício inútil.
Assim, longe de ser uma apologia incondicional de Epicuro, o diálogo
está antes construído sob forma engenhosamente dialéctica, propondo-se
o seu autor superar a antinomia entre o princípio do prazer, representado
pelo epicurismo, e o princípio da virtude, representado pelo estoicismo,
mediante a concepção cristã, que, ao apresentar Deus como o Sumo Bem,
mostra a efectiva harmonização da virtude com o prazer e a felicidade.
Para a ética renascentista e moderna é significativo também o pequeno
diálogo De libero arbitrio, no qual Valla aborda o magno problema da
conciliação da presciência divina com a liberdade humana. Discute e
rejeita aí a solução apresentada por Boécio, o qual afirmava incondicio-
nalmente a liberdade do homem, e, indo de aporia em aporia, de distin-
ção em distinção (entre praescire e scire, entre scire e velle), termina
reconhecendo o mistério que é a liberdade humana e a incapacidade de
dar uma solução racional para aquele problema, sem todavia concluir
pela desresponsabilização do homem. Este diálogo exercerá profunda
influência sobre Lutero, o qual nele se apoia, no De servo arbitrio, para
atacar a posição de Erasmo. E Leibniz, no final dos Essais de Théodicée
e no contexto do debate com Pierre Bayle, retoma o diálogo de Valla no
ponto aporético em que este o deixou, propondo-se dar-lhe a solução que
lhe faltava, mas reconhecendo a grande clarividência do humanista-
-filósofo no modo de colocar e conduzir o problema.
No seu conjunto, o pensamento de Valla revela-se como um pensa-
mento que se emancipou pelo exercício da leitura e que propõe a atenção
ao verbum como via para a libertação do pensamento. Há em Valla uma
clara relativização das subtilezas especulativas da filosofia escolástica e
um vincado sentido do que é útil e diz respeito à comunidade humana.
Essa orientação prática do seu pensamento explica a subordinação da
filosofia à eloquência e a transformação da metafísica abstracta do ente e
dos transcendentais numa compreensão retórica da realidade, numa tópi-
ca das coisas ou realidades com significado para o homem. A relativi-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 235
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Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 245
filosofia natural. Sendo uma arte liberal, a pintura é também uma ciência
mental que tem por objecto a perspectiva e as proporções qualitativas das
cores, da luz e da sombra. O privilégio da pintura decorre de uma gno-
siologia que acima de tudo acredita nos sentidos e que estabelece a visão
como critério de verdade, pois, segundo Leonardo, os olhos enganam-se
menos do que o entendimento. A esta gnosiologia da visão só pode cor-
responder uma ontologia do visível: a natureza nas suas várias manifesta-
ções. A ciência-arte da pintura exprime e torna patente a natureza, expon-
do a harmonia, a proporção e a beleza que existe nas próprias formas sen-
síveis. O mundo natural está possuído de razão e de formas. É tarefa do
pintor-filósofo descobri-las e manifestá-las. Para isso, ele como que se
transmuta na mente divina, discorrendo acerca da geração das diversas
essências de todos os seres, e é nessa medida que a sua mente se trans-
forma na própria mente da natureza.
Bibliografia
Edições dos manuscritos – Les Manuscrits de Léonard de Vinci, ed. fac-sim., transcr.
literal, trad. fr., pref. e quadro metódico por C. Ravaisson-Mollien, Paris, 1881-1891, 6
vols.; I Manoscritti e i Disegni di L. da V., Roma, 1936 e 1941; Il cod. Urbinate 1270
della Vaticana, raccogliente di mano d’un discepolo di L. da V. – appunti sul Trattato
della Pittura, ed. crítica por H. Ludwig, Viena, 1882; Tutti gli Scritti, vol. I: Scritti
letterari, ed. por A. Marinoni, Milano, 1952.
ciência se torne certa [da justificação]; pois se não se tornar certa cai no
desespero e não crê ser ouvida por Deus, mas foge sempre dele e odeia-o;
a tal ponto é o mal da dúvida» (Commentarii in Epistolam Pauli ad
Romanos; Werke, V, p. 102). Este verdadeiro «discurso do método» da fé
reformada, que nasce da consciência da falacidade da sabedoria humana
no que concerne à salvação e do reconhecimento de que omnis homo est
mendax, subsiste, em última instância na garantia de que só deus est
verax (ibid., p. 144).
A teologia melanchthoniana constrói-se, tal como a de Lutero, a
partir do comentário à Carta aos Romanos, na qual se apreende, como
revelação fundamental, a tese da justificação apenas pela fé (sola fide
iustificamur), o que é lido como sendo «o núcleo principal e específico
da doutrina cristã e o método para a interpretação de toda a Escritura»
(ibid.. p. 33). Como teólogo, Melanchthon desempenhou papel decisivo
no desenvolvimento, consolidação e sistematização dos princípios da
nova fé luterana. Os Loci communes rerum theologicarum (1521), suces-
sivamente reelaborados, e os Loci praecipui theologici (1559) constituem
a primeira dogmática do luteranismo, onde são explicados, na perspectiva
reformada e com grande clareza e sobriedade especulativas, os principais
tópicos em torno dos quais se decidia a dissensão das confissões religio-
sas: fé, justificação, pecado, graça, livre-arbítrio, boas obras. Também
nos assuntos propriamente teológicos a atitude de Melanchthon é pautada
pelo ideal humanista da moderatio. Sem enfraquecer o essencial da fé
evangélica e recusando firmemente os pontos de vista da teologia da
Igreja romana, que considerava pervertida pela filosofia escolástica, ele
encontra formulações, muito menos crispadas do que as de Lutero, que se
abrem ao diálogo com a doutrina tradicional, graças sobretudo à recupe-
ração e valorização da teologia patrística. Revela-se, por isso, como um
indispensável interlocutor nos esforços em prol de um ecumenismo teo-
lógico que não ignore as suas fontes e, claro está, os seus problemas. Nas
questões éticas, a posição de Melanchthon está obviamente dominada
pela doutrina da justificação apenas pela fé e pela consequente relativiza-
ção do papel do livre-arbítrio e do valor das obras. Nunca a razão sem a
palavra de Deus pode certificar a consciência da remissão dos pecados. E
o livre-arbítrio só respeita às coisas e acções externas, as quais não são
visadas directa e propriamente pelo Evangelho. Mas isso não significa
que o Evangelho dispense a satisfação daquilo que está ao alcance da
razão e do livre-arbítrio do homem. Pelo contrário, a fé supõe o cabal
cumprimento da «doutrina dos costumes e das virtudes, propriamente
chamada a humanitas, que mostra a todas as idades o modo correcto e
civil de viver, distinguindo os homens das bestas» (Praefatio in Officia
Ciceronis; Werke, III, p. 85). Embora muito obscurecida em consequên-
cia do pecado, a lei de Deus subsiste impressa na natureza humana, como
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 255
Bibliografia
Obras: De rethorica libri tres, 1519; Loci communes rerum theologicarum seu
hypotyposes theologicae, 1521; Compendiaria dialectices ratio, 1522; Institutiones
rhetoricae, 1523; Encomion eloquentiae, 1523; Elementorum Rhetorices libri duo, 1531;
Commentarii in Epistolam Pauli ad Romanos, 1532; De philosophia oratio, 1536;
Philosophiae moralis epitomes libri duo, 1546; Initia doctrinae physicae, 1549; Liber de
anima, 1553; Loci praecipui theologici, 1559.
Bibliografia
Obras: G. Cardano, Opera omnia, 10 tomos, Lugduni, 1663 [reimpr.: New York, 1966].
Estudos: H. Morley, The life of G. Cardano of Milan, Physician, 2 vols., London, 1854;
E. Rivari, La mente di G. Cardano, Bologna, 1914; A. Simili, G. Cardano nella luce e
nell’ombra del suo tempo, Milano, 1941; A. Bellini, Girolamo Cardano e il suo tempo,
Milano, 1947; Oystein Ore, Cardano the Gambling Scholar, Princeton, 1953; A.
Mondini, G. Cardano, matematico, medico e filosofo naturale, Roma, 1962; J. C.
Margolin, «Cardan interprète d’Aristote», in Platon et Aristote à la Renaissance. XVIe
Colloque international de Tours, Paris, 1976, pp. 307-333; M. Fierz, Girolamo Gardano
(1501-1576), Basel-Stuttgart, 1977; A. Ingegno, Saggio sulla filosofia di Cardano,
Firenze, 1980.
PROVENIÊNCIA DOS ENSAIOS REUNIDOS NESTE VOLUME