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LINGUAGEM, RETÓRICA E FILOSOFIA

NO RENASCIMENTO
Colecção: Forum de Ideias
Leonel Ribeiro dos Santos

LINGUAGEM, RETÓRICA E FILOSOFIA


NO RENASCIMENTO

Edições Colibri
Biblioteca Nacional – Catalogação na Publicação

Santos, Leonel Ribeiro dos, 1947-

Linguagem, retórica e filosofia no renascimento.


(Forum de ideias ; 23)
ISBN 972-772-437-X

CDU 1”14/15”
808.5”14/15”
165.7”14/15”

Título: Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento


_____________________________________________________
Autor: Leonel Ribeiro dos Santos
_____________________________________________________
Editor: Fernando Mão de Ferro
_____________________________________________________
Capa: Ricardo Moita.
Pormenor de As sete artes liberais de Sandro Botticelli (Louvre)
_____________________________________________________
Depósito legal n.º 204 044/03
_____________________________________________________
Tiragem: 1 000 exemplares
_____________________________________________________

Lisboa, Março de 2004


ÍNDICE
__________________

Prefácio ......................................................................................... 7

I. Viragem para a Retórica e conflito entre Filosofia


e Retórica no pensamento renascentista ........................................ 9

II. A teologia retórica dos humanistas ................................................ 77

III. Linguagem, tradução e interpretação no Humanismo


dos séculos XV e XVI ................................................................... 117

IV. Coluccio Salutati e o paradigma filosófico do Humanismo .......... 171

V. Nicolau de Cusa e a sabedoria do Idiota ........................................ 203

VI. Seis breves perfis renascentistas .................................................... 235


Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 6

PREFÁCIO
______________________

No presente volume oferece-se um conjunto de ensaios, dois deles


ainda inéditos, nos quais se propõe uma reapreciação de alguns tópicos
do pensamento renascentista. Uma tese central percorre estes ensaios: a
viragem para a linguagem e o cultivo da eloquência por parte dos huma-
nistas dos séculos XV e XVI devem ser interpretados não como um sinal
da fragilidade filosófica da cultura humanística, mas como uma consis-
tente e coerente reorientação do pensamento no sentido da valorização do
mundo humano, reconhecido como originariamente instaurado pela prá-
xis e como constituído pela incontornável mediação da linguagem.
Essa tese encontra-se exposta e amplamente documentada com base
em fontes primárias sobretudo nos três primeiros ensaios, os quais, embo-
ra redigidos autonomamente e em tempos diferentes, se inscrevem num
mesmo projecto e podem ser lidos como complementares uns dos outros.
Eles sublinham aspectos da filosofia da linguagem e da racionalidade
retórica dos humanistas, mostrando como, para estes, a linguagem não é
valorizada apenas pela sua função comunicacional, literária e retórica,
mas também e acima de tudo pela sua dimensão política, antropológica,
ontológica e até teológica. A linguagem constitui verdadeiramente o novo
contexto e o elemento em que se move e de que se nutre a reflexão filosó-
fica dos pensadores renascentistas, mesmo daqueles que não aceitaram
todos os pressupostos do Humanismo. Daí decorre a importância atribuí-
da às ciências da linguagem como núcleo base do currículo dos studia
humanitatis e a tendência para a retoricização do pensamento, mesmo do
pensamento filosófico e teológico. O cuidado da linguagem afectou assim
tanto o conteúdo como a forma da filosofia nesta época, determinando os
géneros literários de expressão do pensamento e o estilo do filosofar.
Estes últimos, porque não convencionais, constituíram amiúde um obstá-
culo ao reconhecimento do valor filosófico do pensamento humanista e
renascentista, desqualificado precisamente por ser retórico e literário.
Hoje, porém, mais conscientes que somos da condição linguística e retó-
rica do pensamento, estamos em melhor posição para apreciar não apenas
a qualidade literária, mas também a mensagem de pensamento que se
expõe através dessa vasta e rica literatura.
O quarto ensaio tem por objecto a análise de uma obra de Coluccio
Salutati, um dos humanistas florentinos da primeira geração. Concluído
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 7

em 1399, o diálogo De nobilitate legum et medicine poderia ser lido ape-


nas como um exemplar de um género florescente na época – as «disputas
entre disciplinas». A proposta que aqui se faz é a de ler nessa obra, já
claramente enunciado, o paradigma filosófico do Humanismo, como uma
alternativa ao pensamento escolástico e ao pensamento científico natura-
lista da época. Esse paradigma afirma-se no reconhecimento do valor
ontológico do mundo humano (que surge da vida prática e activa e se
realiza nas relações éticas e jurídicas, no espaço cívico e político), reco-
nhecimento que é solidário de uma concepção antropológica que concede
a preponderância à vontade sobre o entendimento e a que corresponde
uma explícita ontologia que subordina a ordem do ser (ens) e da verdade
(verum) à ordem do moralmente bom (bonum).
No quinto ensaio propõe-se a interpretação dum conjunto de diálo-
gos do filósofo alemão Nicolau de Cusa, que têm por personagem central
a estranha figura do Idiota, um homem simples e iletrado, o qual, todavia,
sabe tirar da sua banal ocupação artesanal de fabricante de colheres de
madeira, as mais ousadas conjecturas com que ilumina as grandes ques-
tões filosóficas que nem o filósofo aristotélico nem o humanista acertam
em resolver. Nestes diálogos de Nicolau de Cusa pode captar-se um
aspecto essencial do pensamento do Renascimento: a mudança de regime
da sabedoria, que se afirma cada vez mais como uma sabedoria do mundo
e que é protagonizada não já por profissionais creditados institucional-
mente, mas por aqueles que desempenham tarefas mundanas mesmo
muito banais, como os artesãos ou os vendedores dos mercados públicos.
O volume termina com uma galeria de seis breves perfis de pensado-
res do Renascimento. Mesmo se muito reduzida, a galeria dá uma amos-
tra da grande variedade de programas filosóficos e antropológicos que a
época nos oferece. Talvez seja ainda cedo demais para se escrever uma
História da Filosofia do Renascimento que dê plenamente conta da sua
unidade e simultaneamente de toda a sua diversidade. À primeira vista, a
época parece caracterizar-se pelo pluralismo das experiências e propostas
filosóficas, irredutíveis a uma qualquer unidade. Mas em tal diversidade
há apesar de tudo afinidades e harmonias e não meros desencontros e ruí-
dos. Essas harmonias são, porém, como aliás muitos pensadores da época
explicitamente o pensaram e declararam, harmonias resultantes não só do
contraste dos diversos como até da consonância ou concórdia dos contrá-
rios. O que assim resulta, como exercício da assumida liberdade da
investigação, é uma vivência polifónica do pensamento, e não terá sido
um mero acaso histórico que também a expressão musical tenha sofrido
por essa mesma altura a decisiva revolução que a fez passar da forma
monódica às formas polifónicas.
Lisboa, 1 de Dezembro de 2003
I

VIRAGEM PARA A RETÓRICA


E CONFLITO ENTRE FILOSOFIA E RETÓRICA
NO PENSAMENTO RENASCENTISTA

«Vide amice, quanto nobis omnibus [...] maior sit eloquentie


cura quam vite.»
Petrarca, Epistolae rerum familiarium, XVI.

Barbari atque ignari literarum omnium ita tutantur, quod


dicant se res sequi velle non verba, [...], ideoque non esse
Rhetoricam Philosophiae necessariam. Quorum quidem
stultissimis rationibus ego [...] respondebo, ostendamque
Philosophiam sine oratoria facultate stultam quandam et
circularem seu trivialem disciplinam esse.»
Aurelio Lippo Brandolini, Dialogus de humanae vitae
conditione et toleranda corporis aegritudine (1498),
Basileae, 1543, 114.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 10

INTRODUÇÃO

Com este ensaio pretende-se delinear e caracterizar, nos seus traços


filosoficamente mais relevantes, um aspecto do pensamento dos séculos
XV e XVI cuja importância tem sido já notada por alguns investigadores
que nas últimas décadas se têm ocupado da filosofia do Renascimento.
Referimo-nos ao reconhecimento do papel que a Retórica desempenhou
nos planos de estudos das novas escolas dos humanistas, a partir do final
do século XIV e pelos dois séculos seguintes, e ao ideal da eloquência
que movia os mais destacados representantes do movimento humanístico.1
Partindo desse reconhecimento da importância e significado da Retórica e
da eloquência para o pensamento dos humanistas, propomo-nos interpretá-
-lo como indício do ressurgimento do que se poderia chamar o paradigma
de pensamento retórico, o qual se propõe modelar todas as formas da cultu-
ra e do saber, revelando-se como alternativa ao modelo tradicional escolás-
tico da Dialéctica e da Metafísica. Com a expressão «viragem para a Retó-
rica», que usamos para designar o primeiro impulso desse movimento, pre-
tende-se indicar que não se trata apenas de um aspecto entre outros, mas de
um aspecto que decide a feição da cultura e do pensamento ao longo de
dois séculos. Sendo central, o tema é também estratégico. Impondo-se
como um tópico em torno do qual se mobilizam alguns dos mais destaca-

1
Sobre isso, pode ver-se: John Monfasani, «Humanism and Rhetoric», in Albert Rabil, Jr.
(ed.), Renaissance Humanism, Foundations, Forms, and Legacy, University of
Pennsylvania Press, Philadelphia, 1991, vol. 3, pp. 171-235; Brian Vickers, In Defence
of Rhetoric, Clarendon Press, Oxford, 1988, sobretudo o cap. V: «Renaissance
Reintegration», pp. 254-293; Id., «Rhetorics and Poetics», in: Charles B. Schmitt / Q.
Skinner / E. Kessler /J. Kraye (eds.), The Cambridge History of Renaissance
Philosophy, Cambridge University Press, Cambridge-New York-Melbourne, 1988,
pp. 715-745; Hanna H. Gray, «Renaissance Humanism: The Pursuit of Eloquence»,
Journal of the History of Ideas, 24 (1963) reimpr.: in Renaissance Essays, ed. de
P.O. Kristeller e P.P. Wiener, University of Rochester Press, 1992, pp. 199-216;
Jerrold E. Seigel, Rhetoric and Philosophy in Renaissance Humanism: the Union
of Eloquence and Wisdom, Petrarch to Valla, Princeton, N.J., 1968; Eugenio Garin,
«Retorica e ‘studia humanitatis’ nella cultura del Quattrocento», in B. Vickers (ed.),
Rhetoric Revalued. Papers from the International Society for the History of Rhetoric,
Binghamton, N. York, 1982, pp. 225-239; Paul Oskar Kristeller, «Philosophy and
Rhetoric from Antiquity to the Renaissance», in Id., Renaissance Thought and Its
Sources, ed. de M. Mooney, New York, 1979, pp. 213-259.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 11

dos pensadores da época, a sua abordagem pode ajudar a reconhecer a uni-


dade e a feição característica do pensamento de todo um largo período da
história intelectual europeia. Constitui, pois, nosso propósito pôr em evi-
dência a unidade e continuidade do problema na diversidade das respostas
que recebeu dos mais destacados pensadores dos séculos XV e XVI que
dele se ocuparam. A unidade do tema consente não só a diversidade como
até o antagonismo de posições. Mas isso ocorre num ambiente intelectual
de referências comummente partilhadas pelos vários protagonistas, por dis-
tantes que estejam no espaço e no tempo, por diversas que sejam as respec-
tivas fontes de inspiração ou as matrizes de pensamento.

Captados na sua máxima generalidade, são três os momentos do pro-


cesso que pretendemos expor: 1º – o da clara viragem para a Retórica e
do geral impulso para a retoricização do pensamento (tanto da Filosofia
como da Teologia), um processo que se anuncia desde a primeira geração
de pensadores humanistas (Petrarca, Salutati, Bruni), se decide em
Lorenzo Valla e Angelo Poliziano e atinge a sua extrema expressão em
Mario Nizolio, em meados do século XVI; 2º – o do declarado conflito
entre Filosofia e Retórica, protagonizado, de forma paradigmática, por
Giovanni Pico della Mirandola e Ermolao Barbaro, a meio da penúltima
década do século XV, mas que se estende ainda pelo século seguinte, em
Juan Luis Vives, em Philipp Melanchthon e em Francesco Patrizi; 3º – o
do recuo da Retórica em face das novas dialécticas (de Rudolfo Agricola
e de Pedro Ramo) e sua desqualificação científica e consequente minimi-
zação e redução a uma doutrina de efeitos literários, de tropos e figuras
para adorno do discurso.
Se aquilo que designamos por viragem para a Retórica constitui, pela
sua amplitude e intencionalidade, uma característica do pensamento dos
humanistas, já o tópico do conflito entre Retórica e Filosofia ou, mais
geralmente, o da relação entre Filosofia e Retórica é um tema recorrente
na história do pensamento ocidental, onde é possível identificar períodos
de convivência e de mútua complacência, baseadas na delimitação de
domínios próprios e respectivas competências, mas também momentos de
declarado conflito, como se Retórica e Filosofia configurassem modelos
de racionalidade e de humanidade irreconciliáveis.2 O momento paradig-
mático deste conflito ocorre logo na nascença da Filosofia, no debate tra-
vado entre Platão e os Sofistas.3 Em alguns pensadores do Renascimento

2 Para uma perspectiva de conjunto, veja-se: Samuel Ijsseling, Rhetoric and Philosophy in
Conflict. An Historical Survey, Martinus Nijhoff, The Hague, 1976.
3 Veja-se: S. Ijsseling, «Rhétorique et Philosophie. Platon et les Sophistes, ou la tradition
métaphysique et la tradition rhétorique», Revue Philosophique de Louvain, 74 (1976),
pp. 193-210.
12 Leonel Ribeiro dos Santos

este conflito de nascença é muitas vezes evocado e mesmo reeditado,


com contornos e argumentos muito semelhantes aos usados pelos inter-
locutores antigos.

O objecto deste ensaio é, por certo, muito extenso, temporal, mate-


rial e textualmente falando, mas o ponto de vista que adoptamos é muito
mais circunscrito. Pois o que constitui aqui objecto directo da nossa abor-
dagem não é tanto a análise das vicissitudes da teorização e prática retóri-
cas dos pensadores renascentistas4, quanto a tentativa de identificação do
paradigma de racionalidade retórica emergente naqueles pensadores e a
interpretação dos pressupostos e do significado filosóficos de tal para-
digma. Na abordagem do tema enunciado, o que nos move, em última
instância, é a intenção de captar e de compreender a peculiar concepção
de filosofia dos pensadores humanistas.
A historiografia tradicional sobre a filosofia do Renascimento, de um
modo geral, apenas viu na orientação retórica de muitas das manifestações
do pensamento desse período um sinal negativo, que as desqualificava pre-
cisamente enquanto propostas filosóficas e de pensamento e as remetia
para o domínio da cultura literária. Mas a revalorização da Retórica, levada
a efeito em várias direcções no pensamento contemporâneo e até mesmo o
que se pode já chamar o actual «renascimento da Retórica», também na
Filosofia5, permitem que se aprecie diferentemente, e mesmo positivamen-
te, este aspecto do pensamento dos séculos XV e XVI, tornando possível o
reconhecimento não só da proposta de racionalidade que o caracteriza,
como também do significado filosófico e histórico-filosófico dessa pro-
posta, como alternativa à racionalidade lógico-metafísica dos filósofos
medievais e à racionalidade científico-matemática dos modernos.6

4 Sobre isso, veja-se: James J. Murphy (ed.), Renaissance Eloquence: Studies in the
Theory and Practice of Renaissance Rhetoric, University of California Press, 1983; John
Monfasani, art. cit., in: A. Rabil, Jr. (ed.), ob.cit., vol. 3, pp. 172-235; Don Paul Abbott,
«The Renaissance», in: W.B. Horner (ed.), The Present State of Scholarship in
Historical and Contemporary Rhetoric, University of Missouri Press, Columbia,
Missouri (1983), revised ed. 1990, pp. 84-113.
5 Tenham-se presentes, nomeadamente, as obras de Chaïm Perelman e de Michel Meyer.
De Perelman, L’empire rhétorique – Rhétorique et Argumentation, Vrin, Paris, 1977; (e,
em colab. com L. Olbrechts-Tyteca), Traité de l’argumentation. La nouvelle rhétorique,
Éditions de l’Université de Bruxelles, Bruxelles, 1992. De Michel Meyer: Questions de
rhétorique. Langage, raison et séduction, Librairie Générale Française, Paris, 1993;
(ed.), De la Métaphysique à la Rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles,
Bruxelles, 1986; (ed. com A. Lempereur), Figures et conflits rhétoriques, Éditions de
l’Université de Bruxelles, Bruxelles, 1990.
6 Nos tempos mais recentes, ninguém fez mais pela reabilitação da retórica humanista e
do seu significado filosófico do que Ernesto Grassi. Das suas obras relevantes para o
tema, refiram-se: Macht des Bildes: Ohnmacht der rationalen Sprache. Zur Rettung des
Rhetorischen, DuMont Schauberg, Köln, 1970; Rhetoric as Philosophy. The Humanist
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 13

I
HOMO LOQUENS: O HUMANISMO E A CONSCIÊNCIA
DA CONDIÇÃO LINGUÍSTICA DO HOMEM E DO PENSAMENTO

Seja qual for a importância e o alcance histórico-cultural ou também


filosófico que se lhe reconheça, o Humanismo dos séculos XV e XVI
caracterizou-se, antes de mais, pelo peso e função atribuídos às disciplinas
da linguagem – à Gramática e sobretudo à Retórica – no plano curricular
dos studia humanitatis. Estas disciplinas, integradas no trivium, faziam
parte do curriculum medieval de estudos. Mas adquirem agora uma auto-
nomia, uma importância e uma função que não tinham ali, passando a
constituir o núcleo de todo um novo projecto pedagógico-cultural e a infor-
mar e modelar o conjunto da formação humana. Mas o que é mais signifi-
cativo é que a Retórica tende agora a ganhar ascendente sobre a Dialéctica,
subalternizando-a e reivindicando para si as funções desta em que ainda
reconhece alguma pertinência, ou simplesmente dispensando-a por inútil.
Na verdade, o modo como são entendidas as relações entre as duas discipli-
nas poderia servir de fio condutor para interpretar a evolução do pensa-
mento humanístico.7 Há os que reconhecem a competência respectiva das
duas disciplinas e a necessidade da sua mútua concorrência, como Salutati8,
Vives9 e Philipp Melanchthon.10 Os que se propõem esvaziar de pertinência

Tradition, The Pennsylvania State University Press, 1980; Vico and Humanism. Essays
on Vico, Heidegger and Rhetoric, Peter Lang, N.York, 1990; Einführung in philoso-
phische Probleme des Humanismus, WBG, Darmstadt, 1986.
7 Veja-se: Cesare Vasoli, La dialettica e la retorica dell’Umanesimo. «Invenzione» e
«Metodo» nella cultura del XV e XVI secolo, Feltrinelli, Milano, 1968; Id., «La retorica
e la dialettica e le origini delle concezioni moderne del ‘metodo’, Il Verri, 35/36 (1970),
pp. 250-306; Peter Mack, Renaissance Argument. Valla and Agricola in the Traditions
of Rhetoric and Dialectic, E.J. Brill, Leiden-New York-Köln, 1993.
8 Segundo Salutati, a Lógica ou Dialéctica colhe o entendimento com as suas razões,
ao passo que a Retórica se dirige à vontade, mas são complementares em vista dum
mesmo fim: «ambe quidem, licet diverso tramite, finem unum intendunt, quamvis una
dilucidet intellectum ut animo sciat, altera disponat ut velit, et alia ratione illa probet ut
doceat, hec vero persuadeat ut inclinet.» C. Salutati, Epistolario, ed. de F. Novati,
Roma, 1905, vol. IV, p. 223.
9 O humanista valenciano supõe a complementaridade entre as três disciplinas da lingua-
gem, usando uma metafórica arquitectónica: «in hoc velut sermonis aedificio, Gramma-
tica caedat ligna, et lapides, Dialectica domum erigat, Rhetor condat civitatem...
Grammatica usque ad verborum coniunctionem progrediatur, Dialectica usque ad argu-
mentationem, Rhetorica usque ad sermonem, et, quod exactius est, orationem.» J. L.
Vives, De causis corruptarum artium, lib. III, cap. I, ed.bilingue latim-alemão de
E. Hidalgo-Serna, Fink, München, 1990, p. 111.
10 Autor de tratados de Dialéctica e de Retórica, Melanchthon, que já conhece e aprecia a
nova Dialéctica de Rudolf Agricola – numa Oratio de vita R. Agricola (1539) escre-
14 Leonel Ribeiro dos Santos

a Dialéctica e absorvê-la na Retórica, como Lorenzo Valla e Mario Nizolio,


propósito que adiante mais demoradamente analisaremos. Há, por fim, os
que criam uma nova Dialéctica com base nas partes essenciais da Retórica
(a inventio e a dispositio), deixando para esta as partes secundárias do
adorno e da elocução, como o fazem Rudolfo Agricola11 e Pedro Ramo12,
aspecto que mais extensamente se expõe no ponto IV do presente ensaio.
A tendência mais geral dos humanistas para a subordinação da Dia-
léctica à Retórica revela não só que se passou a dar muito mais valor à
expressão linguística do pensamento, como sobretudo manifesta uma
preocupação com a dimensão prática e humana do conhecimento, ou seja
com a sua eficácia no espaço da vida civil. À investigação da verdade não
é já reconhecido um valor absoluto e autónomo, devendo antes visar, em
última instância, a ordem humana da acção útil. Desenha-se assim uma
nova concepção de sabedoria prudencial e prática, solidária de uma nova
antropologia, marcada não já pela supremacia unilateral da razão, mas
capaz de satisfazer também a dimensão volitiva e afectiva. Não importa
já apenas que a verdade ensine, mas que ela seja, ao mesmo tempo, capaz
de deleitar e de mover os ânimos, tarefas que a Retórica, mais do que a
Dialéctica, está em condições de cumprir.

ve:«Nemo non amat Rodolphi nomen.» –, defende contudo uma estreita afinidade e
complementaridade entre uma e outra e a necessidade de o orador usar os processos da
Dialéctica e de o dialéctico usar os do Retórica. V. infra, nota 136.
11 Rudolf Agricola, De inventione dialectica libri tres (ed. princ. 1515), ed. crítica e trad.
alemã de Lothar Mundt, Max Niemeyer, Tübingen, 1992. A obra de Agricola, de grande
influência e autoridade na primeira metade do século XVI, é responsável pela expoliação
da Retórica daquelas partes que os humanistas para ela tinham recuperado – a inventio e a
dispositio –, deixando-lhe apenas o que respeita ao ornamento do discurso e a preocupa-
ção com o efeito da elocução no auditório. A Dialéctica é reinvestida como ciência geral
da argumentação e do discurso provável. Mas ainda se concebe alguma complementari-
dade entre as artes do discurso: «Primum grammatice docet, quae emendate et aperte
loquendi viam tradit; proximum rhetorice, quae ornatum orationis cultumque et omnes
capiendarum aurium illecebras invenit. Quod reliquum igitur est, videbitur sibi dialectice
vendicare: probabiliter dicere de qualibet re, quae deducitur in orationem.» Ibidem,
pp. 208-210. Sobre Agricola, veja-se, além da obra citada de Peter Mack, também o
artigo de Kees Meerhoff, «Agricola et Ramus – Dialectique et Rhétorique», in. F.
Akkerman / A.J. Vanderjagt (eds.), Rodolphus Agricola Phrisius 1444-1485, Proceedings
of the International Conference at the University of Gröningen 28-30 October 1985,
E.J.Brill, Leiden-New York-Kopenhagen, 1988.
12 Pedro Ramo, como adiante mais demoradamente veremos, dissocia completamente as
duas disciplinas rompendo a íntima solidariedade entre ratio e oratio suposta pelos
humanistas: «dialectica mentis et rationis tota est, rhetorica et grammatica sermonis et
orationis.» Veja-se: Rhetoricae distinctiones in Quintilianum, in: J.J. Murphy e C.
Newlands (eds.), Arguments in Rhetoric Against Quintilian: Translation and Text of
Peter Ramus’s Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), Northern Illinois
University Press, 1986, p. 184.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 15

Sem prejuízo do reconhecimento das linhas de continuidade que


existem, também a este respeito, entre a Idade Média e o Renascimento13,
pode contudo falar-se de uma viragem dos pensadores humanistas para a
linguagem e para a retórica, a qual é acompanhada pela adopção, explí-
cita ou tácita, de um certo número de pressupostos ou axiomas, entre si
solidários, que definem o que se poderia chamar um logos retórico. Não
podendo embora demorar-nos no comentário que cada um deles exigiria,
aqui os enunciamos. São eles: 1º o reconhecimento da importância social,
antropológica e mesmo ontológica da linguagem; 2º – a afirmação do pri-
mado da vida activa e da vida civil sobre a vida contemplativa e privada;
3º – a concepção do homem não apenas como um ser dotado de razão, mas
sobretudo como um ser de acção, de paixões e de afectos; 4º – a afirmação
da retórica como ciência civil e da racionalidade retórica como uma racio-
nalidade prudencial, fundada no reconhecimento duma essencial e íntima
relação triangular entre sapiência, eloquência e prudência; 5º – a afirmação,
enfim, da íntima e natural solidariedade entre sabedoria e eloquência.

Não se pode entender a importância atribuída pelos humanistas às


disciplinas da linguagem, em especial à Retórica, se não se reconhecer que
isso não significa apenas a obstinada defesa de um curriculum peculiar de
estudos, mas decorre de algo mais fundamental: do reconhecimento da
condição do homem como um ser falante, como um ser de comunicação e
de comunidade, do reconhecimento, enfim, da condição linguística do
homem, da razão e do pensamento. Não é por acaso que, desde Petrarca
(1304-1374)14, muitos humanistas glosam o tópico ciceroniano da relação
entre ratio e oratio (razão e discurso, pensamento e linguagem), como os
vínculos que ligam e fundam a sociedade e a comunidade humanas.15

Jorge de Trebizonda (1395-1484), um dos intelectuais emigrados de


Bizâncio que fez carreira em Itália, e a quem se deve, entre outros contri-
13 Os aspectos de continuidade têm sido cada vez mais relevados, à medida que melhor se
vai conhecendo não só a retórica dos medievais como a retórica dos humanistas. Veja-
-se: James J. Murphy, Rhetoric in the Middle Ages. A History of Rhetorical Theory
from Saint Augustine to the Renaissance, University of California Press, Berkeley-Los
Angeles-London, 1974; George A. Kennedy, Classical Rhetoric and Its Christian &
Secular Tradition from Ancient to Modern Times, The University of North Carolina
Press, Chapel Hill, 1980; E. Garin, «Retorica e ‘studia humanitatis’ nella cultura del
Quattrocento», in B. Vickers (ed.), Rhetoric Revalued. Papers from the International
Society for the History of Rhetoric, Binghamton, N.Y., 1982, pp. 225-239.
14 Cf a carta de 1350 a Tommaso da Messina, Epistolae rerum familiarium, ed. de V.
Rossi e U. Bosco, 4 vols., Firenze, 1933-42, vol. I, pp. 45-47.
15 Cícero, De officiis I, 16, 50-56: «Eius autem vinculum est ratio et oratio quae docendo,
discendo, communicando, disceptando, iudicando conciliat inter se homines coniun-
gitque naturali quadam societate».
16 Leonel Ribeiro dos Santos

butos, o primeiro tratado completo de Retórica do Humanismo (Rhetori-


corum libri V, 1433-34), no qual procura fazer a síntese entre a tradição
retórica romana e a tradição helenística e bizantina16, glosando um tópico
ciceroniano, que, na verdade, também era um tópico do pensamento polí-
tico de Aristóteles17, vê na linguagem o sinal da humanidade, o que distin-
gue os homens dos animais. Num Discurso em louvor da eloquência
(1430), o humanista bizantino, escreve: «Consistindo a natureza do
género humano na razão, esta razão na verdade nada aproveita aos
homens a não ser que seja estimulada para o uso comum através do dis-
curso. Qual seria o fruto do engenho subtil, qual o proveito do pensa-
mento penetrante, qual a utilidade da melhor das invenções a não ser que
isso seja trazido à luz pela força do discurso e proposto a todos? Pelo que
temos de confessar que nada melhor do que o discurso nos foi dado por
Deus. [...] Julgas que os homens podem viver entre si mudos? Preferias
que não tivessem língua? Oh que ingratidão a tua para com Deus e para
com a natureza! Pois tendo-nos ele criado homens, tu desejas convertê-
-los em feras e animais desumanos. Pois a razão pela qual somos homens
se não for posta em acto pelo discurso vale tanto no homem como o fogo
18
escondido na pederneira.»
Seja ainda exemplo este passo extraído da obra de Giovanni Ponta-
no, Acerca da linguagem (De sermone, 1509): «A natureza deu ao
homem tanto a razão [...] como a palavra.[...] Mediante a razão os
homens medem e compõem todas as coisas, enquanto pela palavra
conservam e defendem a conciliação natural, que a própria razão dita,
explicam-na e declaram-na, seja em vista do uso e das coisas sérias seja
em vista do jogo e do prazer, pois sem a palavra a razão seria uma coisa
aleijada e maximamente imbecil, sobretudo quando se trata da vida do

16 Sobre a vida e obra de Jorge de Trebizonda, veja-se: John Monfasani, George of


Trebizond. A Biography and Study of His Rhetoric and Logic, E.J.Brill, Leiden, 1976.
17 Aristoteles, Politica I,2, 1253 a 9-17.
18 «Nam cum natura humani generis in ratione consistat, nihil profecto hec ratio prodesse
videtur hominibus nisi oratione in communem usum eliciatur. Quis enim fructus esset
subtilis ingenii, quod excogitationis acute emolumentum, optime inventionis quenam
utilitas, nisi orationis vis protractam ex abditis rem cunctis proponet? Quare nihil
unquam oratione melius a dei tributum confiteri necesse est. [...] Mutosne tu homines
inter se vivere posse putas? Elingues mavis? O in deum et naturam ingratitudinem
tuam! Nam cum ille nos homines creaverit, in feras tu immanesque bestias convertere
cupis. Ratio enim ea qua homines sumus nisi oratione in actum extrudatur tantum valet
in homine quantum ignis abstrusus in silice.» Oratio de laudibus eloquentiae (1430), in
Monfasani, ob. cit. (1976), p. 365, 369. O humanista florentino Poggio Bracciolini
expunha a mesma ideia ao seu amigo Guarino de Verona: «Solus est enim sermo, quo
nos utentes ad exprimendam animi virtutem ab reliquis animantibus segregamur.»
Poggius Florentinus… Guarino suo Veronesi, in E. Garin, Prosatori latini del
Quattrocento, Milano-Napoli, 1952, p. 242.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 17

homem nas acções civis e nas reuniões e assembleias, nas quais a própria
palavra constitui o principal vínculo de toda a sociedade humana e sem ela
de modo nenhum se pode atingir o sumo bem. [...] Portanto, assim como a
razão é guia e mestra para dirigir as acções e para regular as virtudes, a
palavra é o intérprete da mente e como que o instrumento da própria razão,
se bem que se as deliberações, os conselhos e os raciocínios constam de
discursos e estes constam de palavras, então a própria linguagem subminis-
tra à razão o instrumento e a matéria, na qual ela se exerce.»19
É como se dissesse que a razão necessita das palavras não apenas
para comunicar os seus pensamentos, mas até para os pensar. O cap. III
da mesma obra fala do poder e autoridade do discurso (Maximam esse
vim atque auctoritatem orationis). E com isso Pontano não se refere pro-
priamente ao uso retórico da linguagem e do discurso, mas ao «discurso
comum» (de oratione tantum ipsa communi), usado nas relações quoti-
dianas entre os humanos, nos negócios, nas assembleias, no espaço fami-
liar e cívico.
Poderiam aduzir-se inúmeros testemunhos do mesmo teor. A sua
recorrência não indica apenas a cedência a um tópico da moda, mas suge-
re antes uma convicção fundamental amplamente partilhada pelos pensa-
dores humanistas. O homem vive e realiza a sua humanidade no elemento
da palavra. Esta deve ser entendida não apenas como um produto arbitrá-
rio, como um mero instrumento ou um utensílio da razão, mas também
como o seu elemento natural, a partir do qual o próprio pensamento se
pode exercer. Disso tinha consciência o humanista valenciano Juan Luis
Vives (1492-1540), quando apresentava a matéria de que trata a Retórica,
dizendo: «A matéria desta arte é a palavra; a palavra emprestada e não a
própria. A sua finalidade é o dizer bem; e a missão do que fala é manifestar
o que sente e persuadir do que quer ou excitar ou acalmar um afecto ou
uma paixão qualquer. Em todo o discurso, há as palavras e as ideias que
são como que o corpo e a alma. A ideia é como a alma e a vida das pala-

19 «Et rationem homini natura dedit [...] et orationem. [...] Itaque ratione quidem ipsa
homines seque suaque et metiuntur et componunt omnia, oratione autem et conciliatio-
nem a natura insitam conservant tuenturque et, quae ratio ipsa dictat, ea explicant atque
eloquuntur, sive ad usum spectent atque ad seria sive ad iocum ac voluptatem, quando
absque illa ratio manca quaedam res esset maximaque imbecilla, cum hominis praeser-
tim vita in actionibus versetur civilique in congregatione et coetu, cuius oratio ipsa
totiusque humanae societatis vinculum sit praecipuum ac sine ea ad summi boni
adeptionem perveniri nullo modo queat...Igitur ut ratio dux est ac magistra dirigendis
actionibus virtutibusque comparandis, oratio vero mentis est interpres rationisque
ipsius instrumentum quasi quoddam, siquidem consultationes, consilia, ratiocinationes
ipsae denique dissertionibus constant, dissertiones vero verbis, sic eadem ipsa oratio
instrumentum quoque rationi et quasi materiam sumministrat, in qua versetur.» De
sermone libri sex, ed. S. Lupi e A. Risicato, Antenore, Padova / Thesaurus Mundi,
Lugano, 1954, lib. I, cap. I, pp. 3-4.
18 Leonel Ribeiro dos Santos

vras. São vazias e mortas as palavras carentes de sentido e não vivificadas


pela ideia. As palavras são a morada da ideia e como que as luzes que ilu-
minam o véu espesso dos nossos espíritos. [...] Mas as palavras são bem
público do povo e não propriedade de nenhuma arte ou de direito pri-
vado.»20 O mesmo humanista sublinha a íntima relação que no homem
existe entre a linguagem e a razão, e vê naquela, como mais tarde o fará
Descartes, o inequívoco sinal de humanidade, o que distingue os homens
dos animais, pois estes «não têm verdadeira linguagem porque também não
têm mente» (nec verum habent sermonem, nisi quae etiam mentem).21

A ideia de que a linguagem é não só o fundamento da comunidade


humana, o instrumento da comunicação recíproca entre os homens, a
prerrogativa do homem, mas também um património e bem comum do
povo (e não propriedade individual do orador, do poeta ou do filósofo),
encontramo-la expressa de muitos modos. Seja na afirmação de Vives,
citando Horácio, segundo a qual «é o povo que tem o direito sobre a lin-
guagem»22; seja na insistência desse e de muitos outros humanistas, como
Valla, Erasmo e Nizolio, quanto ao dever de respeitar a consuetudo ser-
monum ou a consuetudo veterum, contra a arbitrariedade da criação lin-
guística dos dialécticos e metafísicos. E é desta convicção da condição
linguística do homem e do pensamento que tira toda a sua importância a
Retórica, como ciência ou arte do discurso por excelência. Já numa fase
de ocaso do pensamento humanista, em que a Retórica, de novo expoliada
das suas partes essenciais, se via reduzida a pouco mais do que a uma arte
de ornamentar o discurso, o jesuíta Cipriano Soares, na introdução ao seu
manual escolar para essa disciplina, ainda dá disso testemunho, glosando

20 «Materia hujus artis est sermo, et haec utique mutuata, non propria: finis bene dicere;
artificis autem explicare quae sentiat, aut persuadere quae velit, aut motum animi
aliquem excitare, vel sedare. In sermone omni sunt verba et sensa tamquam corpus et
animus. Sensa enium mens sunt, et quasi vita verborum; ideo etiam mens et sensus
vulgo nominantur. Inanis ac mortua res sunt verba sensu amoto; verba autem sedes sunt
sensorum, et veluti lumina in tantis nostrorum animorum involucris. [...] Verba sunt
populi publica, nullius artis, aut privati Juris.» De ratione dicendi (1532), cap. I, ed.,
trad. e notas de Ana Isabel Camacho e estudo introd. de Emilio Hidalgo-Serna,
Anthropos, Barcelona,1998, pp. 12-14.
21 Ibidem, p. 300.
22 «Jus sermonis populi est.» De causis corruptarum artium, ed. cit., p. 78. A ideia segun-
do a qual a linguagem é, juntamente com a justiça, o vínculo que une e mantém coesas
todas as sociedades humanas, foi desenvolvida por Vives no cap. I do Livro IV desta
mesma obra (ed. cit., p. 152): «Humanae omnes societates duabus potissimum rebus
vinciuntur ac continentur, justitia, et sermone; quarum si alterutra desit, difficile sit
coetum, et congregationem ullam, sive publicam, sive privatam, diutius consistere, ac
conservari… itaque duo sunt velut clavi, quibus conventus hominum reguntur, justitia
et sermo.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 19

sobre o facto de os Gregos usarem um mesmo termo – logos – e os


Latinos também praticamente o mesmo – ratio/oratio – para dizerem a
razão e o discurso ou linguagem: «A semelhança é tanta entre a razão e o
discurso que os Gregos nomearam ambas com um só vocábulo e os Lati-
nos, émulos dos Gregos, nomearam-nas quase com o mesmo vocábulo.
Pois o discurso é uma certa imagem da razão. Deus pôs a razão na mente
a quem foi atribuído todo o reino do espírito; e o supremo artífice colocou
também a sede do discurso na parte mais nobre do corpo. A razão é como
uma certa luz e um lume da vida; o discurso é o brilho e ornamento da
razão. A razão rege e modera o próprio espírito; o discurso dobra mesmo
os espíritos alheios. A aparência da razão é admirável, mas ela está laten-
te no íntimo e é a beleza do discurso que a declara. Como a luz está para
o Sol, que é o príncipe e moderador de todas as restantes luzes, assim o
discurso está para a razão, senhora e raínha de todas as coisas.[...] Se
tanta é a superioridade do discurso, não pode não ser máxima a dignidade
da Retórica, na qual está contida a doutrina do ornamento do discurso.»23

É devido à função eminentemente social da linguagem que a Retórica


vê reconhecida a sua importância política, chegando a ser considerada
pelos humanistas como a scientia civilis por excelência, que abrange
todos os aspectos da vida humana. Este aspecto está bem expresso na
obra de Jorge de Trebizonda, que nisso pretende demarcar-se do que
entende ser a concepção de Aristóteles: «Parece-me que com muita razão
chamaram os nossos maiores à Retórica a arte da humanidade. Aristóteles,
porém, afirmou que ela era uma parte considerável e nobilíssima da ciên-
cia civil, que é mestra e senhora de todas as coisas humanas. Eu, porém,
se posso dizer abertamente o que penso a esse respeito, acho que a rique-
za da ciência do discurso não está contida como parte na ciência civil,
mas é esta que por aquela é englobada e vigiada.»24
23 «Rationis & Orationis tanta est similitudo, ut Graeci [...] uno vtramque vocabulo,
Latini Graecorum aemuli eodem pene nominarint. est enim oratio quasi rationis imago
quaedam. Rationem in mente, cui regnum totius animi tributum est, Deus Opt.Max.
posuit; orationis sedem idem summus opifex in celsissima, ac nobilissima corporis
parte collocavit: ratio est, sicuti lux quaedam, lumenque vitae: oratio est rationis decus,
& ornamentum: ratio regit, ac moderatur proprium animum: oratio flectit etiam alienos:
rationis est species admirabilis, eam tamen intus latentem orationis pulchritudo decla-
rat. Ita quod lumen est Soli principi, ac moderatori luminum reliquorum, id est oratio
rationi dominae, ac reginae rerum omnium.[...] Quod si orationis tanta praestantia est,
non potest non maxima esse dignitas Rhetoricae, qua ornandae orationis doctrina
continetur.» Cipriano Soares, De Arte Rhetorica Libri tres ex Aristotele, Cicerone, &
Quintiliano praecipuè deprompti, Conimbricae, 1562, Prooemium.
24 «Quare mihi rectissime humanitatis hanc artem maiores nominasse videntur. Aristote-
les vero, quem in rhetoricis Cicero sequitur, civilis scientie, que rerum humanarum
omnium magistra et domina est, maximam ac nobilissimam esse partem iudicavit.
Verum ego, si quod sentio aperte dicere liceat, non contineri ut partem in civili scientia
20 Leonel Ribeiro dos Santos

À Retórica é assim atribuída aquela função arquitectónica que Aris-


tóteles atribuía à Política, pois, ainda nos termos de Trebizonda, «nada
existe no âmbito civil que esta ciência não ordene, não instrua e não exe-
cute».25
Cite-se ainda, a este propósito, o testemunho, já relativamente tardio,
colhido também num discurso em louvor da eloquência do jovem profes-
sor de Retórica da universidade de Witemberga, que dá pelo nome de
Philipp Melanchthon (1497-1560). Exortando os jovens ao estudo das
«artes dicendi», propõe a Retórica como uma sabedoria prudencial que
chega a identificar com o próprio conceito humanista de humanitas.26 Diz
ele: «Como fruto não negligenciável do estudo da eloquência resulta que,
pelo uso daquelas artes nas quais se contém a eloquência são excitados e
instruídos os espíritos para que todos examinem mais prudentemente as
coisas humanas, pois não segue a sombra mais próximamente o corpo do
que a prudência acompanha a eloquência. Os antigos consideravam que a
ciência do dizer e o juízo do espírito se adequavam por natureza. E por
isso disseram alguns, não sem razão, que a linguagem é a razão do espí-
rito explicada.[...] De tal modo estão unidas entre si a prudência e a elo-
quência que não podem ser separadas por nenhum motivo.[...] Qual jul-
gais ter sido a ideia dos antigos Latinos ao chamarem humanidade às artes
do dizer? Eles julgavam que com o estudo destas disciplinas não só se
cultivava a língua, mas, além disso, e sobretudo, desse modo se abando-
nava a índole silvestre e se domesticavam e amansavam os espíritos.»27
Todo o empenho posto pelos humanistas no cultivo da Retórica se
orientava no sentido de restaurar o projecto ciceroniano da união íntima

orationis copiam censeo, sed civilem ab hac contineri observarique universam conten-
do.» Oratio de laudibus eloquentiae, apud J. Monfasani, ob. cit. (1976), Appendix 11,
p. 366.
25 «Nihil sub civili unquam invenietur quo non hec ordinet, instruat, atque perficiat.»
Ibidem.
26 Sobre a relação triangular entre ‘sapientia’, ‘prudentia’ e ‘eloquentia’, veja-se: Victoria
Kahn, Rhetoric, Prudence, and Skepticism in the Renaissance, Ithaca/London, 1985.
27 «Accedit huc non contemnendus studiorum eloquentiae fructus, quod earum artium
usu, quibus eloquentia continetur, excitantur, erudiunturque ingenia, ut res humanas
omnes prudentius dispiciant, neque propius umbra corpus adsectatur, quam eloquen-
tiam comitatur prudentia... Videbant inter se maiores nostri haec duo: bene dicendi
scientiam, et animi iudicium natura cohaerere; quare et non inepti quidam orationem
esse dixerunt, explicatam animi rationem... Sic inter se copulatas esse prudentiam ac
eloquentiam, ut divelli nulla ratione possint.... Quid in consilio fuisse censetis veteribus
Latinis, cur dicendi artes humanitatem adpellarint? Iudicabant illi nimirum harum
disciplinarum studio non linguam tantum expoliri, sed et feritatem, barbariemque inge-
niorum corrigi. Nam cultu perinde ac plerique sylvestrem indolem exuunt, mansues-
cunt ingenia, cicuranturque.» Philipp Melanchthon, Encomion Eloquentiae, in Corpus
Reformatorum, ed. C. Bretschneider, Halis Saxonum, 1843, vol. XI, p. 55.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 21

entre sabedoria e eloquência. Coluccio Salutati (1331-1406), um dos pri-


meiros discípulos de Petrarca, expôs com grande clareza e sentido de
equilíbrio esse ideal dos humanistas numa das suas cartas, nestes termos:
«É melhor para a sabedoria e para a eloquência unirem-se, de tal modo
que a segunda exponha o que a primeira compreende. Se surgir um con-
flito a respeito de saber a qual das duas dar a primazia, dê-se à sabedoria.
Mas não se considere inútil dedicar à eloquência sempre um singular,
principal e contínuo esforço, pois o estudo da eloquência não deixa de
fazer parte do função da sabedoria. A eloquência está colocada sob a
sabedoria e nela contida enquanto soma de todas as coisas que podem ser
conhecidas, de tal modo que aquele que cultiva a sabedoria deve cultivar
28
também necessariamente a eloquência.»
É este um axioma que, com maior ou menor ênfase, podemos encon-
trar nos pensadores humanistas. Consumar a unidade entre sabedoria e
eloquência – que precisamente não existia naqueles que na época faziam
profissão de filósofos –, significava, para eles, restaurar o sentido mais
antigo da própria sabedoria humana, antes desta ter sido ocupada pelos
filósofos, designadamente por Sócrates e pelo fundador da Academia, que
provocaram a cisão entre a sabedoria e a eloquência. Esta acusação, cuja
29
matriz se encontra em Cícero , regressa muitas vezes à pena dos
humanistas, desde Jorge de Trebizonda a Mario Nizolio. Assim, o interesse
dos humanistas pela Retórica e o empenho posto por eles na sua restau-
ração devem ser apreciados como fazendo parte do projecto de realização
do ideal ciceroniano da sabedoria eloquente e elegante ou da eloquência
sábia e prudente. Este projecto, porém, embora amplamente partilhado,
não vai cumprir-se sem encontrar também alguns qualificados opositores.
Todavia, mesmo alguns daqueles que mais se vão esforçar por reduzir o
âmbito da Retórica, não deixarão de a cultivar e até alguns dos que pre-
tendem destituí-la da sua função e objecto não deixarão de, à sua manei-
30
ra, propor formas de a conjugar com a Filosofia.

28 «Optime quidem simul coalescunt sapientia et eloquentia, ut quantum illa capit tantum
et ista pertractet. quod si certamen utriusque fiat, que cui preoptanda sit, sapientie
palmam dato. non tamen inutile puta semper eloquentie singularem, precipuam et
continuam operam dare. non enim eloquentie studium non etiam sapientie munus est.
subicitur eloquentia sapientie et in ipsa, quasi toto quodam, quod cuncta scibilia
possideat, continetur, ut qui sapientie studium profitetur, simul et eloquentie profiteatur
necesse sit.» Epistolario, ed. F. Novati, Roma, 1896, vol. III, p. 602.
29 Cícero, De oratore, III, xvi, 60-61.
30 Caso expressivo é o de Pedro Ramo, sem dúvida o pensador que em meados do século
XVI desenvolve o mais sistemático ataque contra a Retórica e os clássicos mestres da tra-
dição retórica e, ainda assim, se apresenta como «professor régio de eloquência e filoso-
fia» e é autor de uma Oratio de studiis philosophiae et eloquentiae conjungendis (1546),
que adiante comentaremos. Veja-se: Petri Rami et Audomari Talaei, Collectaneae,
Praefationes, Epistolae, Orationes, Parisiis, 1577 (reimpr.: G. Olms, Hildesheim, 1969,
22 Leonel Ribeiro dos Santos

II
A RETÓRICA COMO FILOSOFIA,
DE LORENZO VALLA A MARIO NIZOLIO

1. Desde Petrarca e Salutati, muitos humanistas insistiram na neces-


sidade dos studia humanitatis, não só para o exercício das novas funções
civis, como também para o cultivo das ciências e da própria Filosofia. A
ignorância das letras – sobretudo da Gramática e da Retórica – impedia,
segundo eles, o acesso a um verdadeiro saber. E por isso desprezavam os
filósofos do tempo, que ignoravam as disciplinas do curriculum huma-
nista. Leonardo Bruni (1369-1444), num dos seus diálogos, escreve com
ironia: «Não me canso de admirar os ilustres filósofos do nosso tempo,
que ensinam o que não sabem. Como puderam aprender a filosofia se
ignoram as letras? Pois quando falam são mais os solecismos que fazem
do que as palavras que usam.»31
Mas o primeiro que desenvolveu um programa consequente de recon-
dução da Filosofia à Filologia, de subordinação da Dialéctica à Retórica, de
redução da Metafísica à Gramática e à linguagem foi Lorenzo Valla (1407-
-1457). Este humanista romano desencadeou uma intensa campanha em
defesa da restauração da língua latina e da sua elegância, que considerava,
mais do que o Império, constituir a essência da romanidade, e via nessa
restauração a condição para um geral renascimento das letras e das ciências
e para a libertação da opressão a que durante séculos as submeteram os
bárbaros gauleses. Segundo Valla, «enquanto floresceu a língua latina flo-
resceram também as ciências; morta aquela, foram também estas que mor-
reram; todos os grandes filósofos, os grandes oradores, os grandes juriscon-
sultos, os grandes escritores foram exímios na arte de bem falar.»32 Eis um
axioma que sucessivas gerações de humanistas repetirão à saciedade, sendo
poucos os que ousarão pô-lo em causa. O culto da língua latina permitia ao
humanista recuperar aquela sabedoria romana que se exprime nos escritos

pp. 244-254). Sobre Ramo, veja-se: Walter J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of
Dialogue: From the Art of Discourse to the Art of Reason, Harvard University Press,
Cambridge, 1958.
31 «O praeclaros nostri temporis philosophos, siquidem ea docent, quae ipsi nesciunt;
quos ego nequeo satis mirari, quo pacto philosophiam didicerint, cum litteras ignorent;
nam plures soloecismos quam verba faciunt cum loquuntur...». Leonardo Bruni, Ad
Petrum Histrum Dialogus, in E. Garin, Prosatori latini del Quattrocento, p. 58.
32 «Qua vigente quis ignorat studia omnia disciplinasque vigere, occidente occidere? Qui
enim summi philosophi fuerunt, summi oratores, summi iurisconsulti, summi denique
scriptores? nempe ii qui bene loquendi studiosissimi.» Lorenzo Valla, Elegantiae
linguae latinae (1448), in Eugenio Garin, Prosatori latini del Quattrocento, pp. 594 ss.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 23

de Cícero, mas que ele sobretudo reconhecia compendiada nos 12 livros da


Institutio oratoria de Fábio Quintiliano.

No contexto do humanismo quatrocentista, o significado da obra de


Valla evidencia-se sobretudo pela exaltação do valor da Retórica e pela
defesa do primado da eloquência relativamente à Filosofia e a todas as
ciências.33 Ela revela-se como um dos exemplos em que melhor se pode
apreciar até que ponto os novos métodos do humanismo se revelam capa-
zes de transformar interiormente todo o conjunto dos saberes constituí-
dos, incluídas a Filosofia e a Teologia. Ideia fundamental deste humanista
romano é o reconhecimento da importância decisiva da linguagem para a
construção das doutrinas filosóficas e teológicas, o que o leva a insistir na
necessidade da análise linguística e revisão filológica como vias de
acesso à correcta apreensão e compreensão do conteúdo das doutrinas. De
especial importância se revela a crítica que faz à dialéctica e metafísica
escolásticas e a sua tentativa de as reduzir à Retórica, à filologia, à lingua-
gem. Valla acusa os dialécticos e metafísicos de ignorarem a linguagem e
de descuidarem a expressão e sustenta que a maior parte dos erros lógicos
são erros de linguagem e deficiências de expressão, mais facilmente
detectáveis e corrigíveis pela análise gramatical e linguística do que pela
aplicação das regras silogísticas. Este aspecto do seu pensamento tem
levado alguns intérpretes a reconhecerem nele um «filósofo da linguagem
ordinária» e um precursor do Wittgenstein autor das Investigações Filo-
sóficas, que, como este, poderia dizer que «a sua investigação é uma
investigação de natureza gramatical»34 e que está sobretudo apostado em
convencer os dialécticos e filósofos «a não quererem perseverar na igno-
rância dos seus vocábulos e a converterem-se à linguagem natural e tri-
35
lhada pelos sábios.»
33 Sobre Valla, veja-se: Hanna-Barbara Gerl, Rhetorik als Philosophie: Lorenzo Valla,
Fink, München, 1974; Peter Mack, Renaissance Argument: Valla and Agricola in the
Tradition of Rhetoric and Dialectic, Brill, Leiden-N.York-Chicago, 1993.
34 L. Wittgenstein, Philosophical Investigations, § 90 (Basil Blackwell and Mott, Ltd.,
1985; trad. port.: Tratado Lógico-filosófico / Investigações Filosóficas, F. C. Gulbenkian,
Lisboa, p. 249).Veja-se: Richard Waswo, «The ‘Ordinary Language Philosophy’ of
Lorenzo Valla», Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance, 41 (1979), pp. 255-271
(reed. in: Id., Language and Meaning in the Renaissance, Princeton, 1987, pp. 88-112);
John Monfasani, «Was Lorenzo Valla an Ordinary Language Philosopher?», in: W.J.
Connell (ed.), Renaissance Essays II, University of Rochester Press, Rochester, 1993,
pp. 86-100; R. Waswo, «Motives of Misreading», ibidem, pp. 101-109; S. I. Camporeale,
«Lorenzo Valla, ‘Repastinatio, liber primus’: Retorica e linguaggio», in O. Besomi e M.
Regoliosi (ed.), Lorenzo Valla e l’umanesimo italiano, Padova, 1986, pp. 217-239.
35 «Nolint [...] dialectici isti atque philosophantes in suorum quorundam vocabulorum
inscitia perseverare, sed ad naturalem et a doctis tritum sermonem se convertere.»
Laurentii Valle, Repastinatio dialectice et philosophie, ed. crítica de Gianni Zippel,
Antenore, Padova, 1982, vol. I, p. 277.
24 Leonel Ribeiro dos Santos

O humanista romano não se limita a pôr em evidência as bases gra-


maticais e linguísticas da Lógica e a chamar a atenção dos dialécticos e
metafísicos para a importância da linguagem natural. O que ele pretende
é restabelecer a originária identidade que supõe existir entre as palavras e
as coisas – o verbum e a res –, revelando uma essencial dimensão metafí-
sica da linguagem, mas, se assim se pode dizer, à custa da desontologiza-
ção da linguagem. É esta, com efeito, que determina e particulariza os
seres, mediante ela é que as coisas têm existência e adquirem algum sig-
nificado para o homem. Não existe a coisa (res) sem a linguagem (sermo).
A linguagem comum e o uso da linguagem e da fala – a loquendi consue-
tudo, a consuetudo sermonis, o sermo naturalis – constituem já de si uma
interpretação da realidade e exibem o mundo sob a forma da mediação e
instituição humana.36 É neste contexto que se deve entender a proposta de
Valla de reconversão da Lógica e da Metafísica à linguagem natural e
comum, pois esta, segundo ele, contém já regras, economia e densidade
próprias, anteriores a qualquer lógica ou metafísica. Há neste projecto
também a tomada de posição de um romano contra o grego Aristóteles, a
convicção do privilégio da língua latina sobre a grega. Como o escrevia
numa das suas cartas: «Toda a Metafísica consta de muito poucas pala-
vras, e não de coisas, mas de poucas expressões, e estas por admirável
estupidez foram ignoradas por Aristóteles. Todos aqueles vocábulos
‘concreto’ e ‘abstracto’, ‘quididade’, ‘essência’, ‘ser’, ‘ente’ são comple-
tamente disparatados e de nenhum valor, e se ele os tivesse entendido
37
nunca teria dado a outros tanta matéria de insensatez.»
E assim, em oposição à metafísica tradicional, de base aristotélica,
construída sobre a noção generalíssima ens (ente) e respectiva coroa de
transcendentais com que os escolásticos a ornaram (unum, verum, bonum),
Valla propõe uma metafísica simplificada, construída sobre a palavra res
(coisa), expressão da linguagem comum, que não só é a mais universal de

36 Ibidem, pp. 433-434: «Verum licet naturaliter proferantur voces earumque significatio-
nes sint ex institutione hominum, tamen et ipsas voces iisdem arbitratu suo excogita-
runt, perceptis rebus nomina imponentes... nisi hoc ad Deum referre volumus qui
linguas hominum ad turrim Babel divisit. Quanquam et Adam aptavit rebus nomina, et
postea passim caetera vocabula confinxerunt. Quocirca nomen, verbum, et reliquae
orationis partes per se tantum soni sunt, sed multiplicem habent ex institutione
hominum significantiam.» Veja-se: Salvatore I. Camporeale, «Lorenzo Valla, ‘Repasti-
natio, liber primus’: Retorica e linguaggio», ob. cit., pp. 218 ss; R. Waswo, «Motives
of Misreading», in Renaissance Essays II, pp. 108-109.
37 «Metaphysicam totam constare in pauculis verbis, nec in rebus versari, sed in vocibus,
easque voces ab Aristotele per miram hebetudinem ignorari. Omniaque ista vocabula
‘concretum’ et ‘abstractum’, ‘quiditas’, ‘essentia’, ‘esse’, ‘ens’ frenetica plane esse
nulliusque ponderis, quae si ille intellexisset nunquam tantam aliis insaniendi materiam
praebuisset.» Carta a Tortelli (1441), apud Salvatore I. Camporeale, Lorenzo Valla.
Umanesimo e Teologia, Istituto Nazionale di Studi sul Rinascimento, Firenze, 1972,
p. 225.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 25

todas e a que está suposta em todas as outras, inclusivamente na noção de


ens (pois também o ens é ea res quae est), mas que tem ainda, sobre esta
noção-base da metafísica aristotélico-escolástica, a vantagem de indicar
38
imediatamente o que é real, concreto, determinado e próximo. Mais do
que o virtuosismo linguístico, é a intenção de realismo e do concreto que
preside a esta nova ontologia linguística. E também a vontade de recuperar
a sabedoria dos Latinos, considerada preferível à filosofia dos Gregos. Tal
como mais tarde Giambattista Vico, Valla percebeu que se acede a essa
sabedoria directamente pela via da linguagem.39
Em Valla dá-se também uma consciente transformação no modo e
estilo do filosofar, num sentido clara e assumidamente retórico. Num dos
seus principais diálogos filosóficos, em que aborda o tema do supremo
bem (De vero falsoque bono), discutindo as teorias epicuristas, estóicas e
cristãs a esse respeito, um dos intervenientes invoca a sua condição de
orador – e não precisamente a de filósofo – no que obtém o pleno acordo
40
do seu interlocutor. Assim pode falar livremente (libere loqui) acerca
das doutrinas dos filósofos antigos, sem ter de prestar juramento a
nenhuma seita, seguindo o exemplo de Cícero e de Catão. A ocasião dá
azo a que se desenvolva um confronto entre o modo filosófico (dos filó-
sofos) e o modo retórico (dos oradores) de filosofar. Este caracteriza-se
pela evidência, gravidade e magnificência dos discursos, aquele pelas
disputas obscuras, esquálidas e exangues.41 Mas dá azo, sobretudo, a que
se declare a primazia da Retórica sobre a Filosofia. Aquela, numa evoca-
ção do verso 816 da Hécuba de Eurípedes, é chamada rainha de todas as
coisas (regina rerum eloquentia), enquanto a Filosofia é descrita como
«um soldado ou um tribuno que está sob o império da linguagem»
(philosophia velut miles est aut tribunus sub imperatrice oratione).42 Mais
ainda se diz que «todas as coisas que a Filosofia reivindica para si são
pertença dos oradores» (omnia autem que philosophia sibi vendicat nos-

38 Repastinatio, ed. cit.,vol. I, pp. 11-15.


39 De Vico e do seu projecto de deduzir toda uma filosofia a partir da língua, tenha-se
presente o De Antiquissima Italorum Sapientia (1710), em cujo Prefácio se lê: «nos
vero, nullius sectae addicti, ex ipsis vocabulorum originibus quaenam antiquorum
sapientia Italorum fuerit sumus indagaturi.» Giambattista Vico, Le Orazioni Inaugu-
rali, Il De Italorum Sapientia e le Polemiche, ed. a cura di G. Gentile e F. Nicolini,
Laterza, Bari, 1914, p. 126. A aproximação entre Vico e os humanistas foi feita por E.
Grassi (Vico and Humanism. Essays on Vico, Heidegger and Rhetoric, Peter Lang,
N.York, 1990) a propósito de vários tópicos, embora não a este respeito.
40 «Itaque istam sententiam tuam probo ut malis oratorie quam philosophice loqui et ut
plane oratorie loquaris admoneo.» L. Valla, De vero falsoque bono, ed. crítica de
Maristella de Panizza Lorch, Adriatica Editrice, Bari, 1970, p. 15.
41 «Quanto enim evidentius, gravius, magnificentius ab oratoribus illa disseruntur quam a
philosophis obscuris, squalidis, et exanguibus disputantur.» Ibidem.
42 Ibidem, p. 14.
26 Leonel Ribeiro dos Santos

tra sunt) e lhes foram roubadas pelos filósofos. Trata-se, por conseguinte,
de restituir à Retórica o seu rico património que lhe foi roubado (amplis-
simum patrimonium a nescio quibus direptum oratorie restituere).43
Segundo Valla, «se se investigar o passado, ver-se-á que os oradores fala-
ram no meio das cidades acerca de coisas excelentes e importantes muito
antes que os filósofos começassem a tagarelar pelos cantos, e mesmo nos
nossos tempos, ainda que os filósofos se digam reitores dos outros, con-
tudo, os oradores, como a própria realidade ensina, é que devem ser cha-
mados reitores e até mesmo príncipes dos outros.»44
Considere-se ainda um outro importante testemunho, extraído da
Introdução ao livro II da Repastinatio. São aqui confirmados todos os
tópicos que acabamos de identificar, numa clara apropriação pela Retórica
das competências tradicionalmente atribuídas à Dialéctica (esta, enquanto
arte de disputa, da refutação e da argumentação, é por Valla considerada
uma parte da invenção, a qual, por sua vez, é assumida pelo humanista
como uma das cinco partes da Retórica), ao mesmo tempo que se contra-
põe a noção retórica de verdade – uma verdade que subsiste no espaço
inter-subjectivo e comunicacional, de conteúdo prático-moral, aberta e
dirigida a toda a cidade e orientada a persuadir, mover e deleitar – à con-
cepção dialéctica de verdade – uma verdade privada e doméstica. Expli-
45

citam-se as três funções do discurso – o ensinar, o deleitar e o mover –, as


quais só são plenamente satisfeitas no exercício retórico do mesmo. A
inspiração de Quintiliano é notória em todos os pontos, mas de um modo
especial na concepção do orador, a quem é exigido o conhecimento de
todas as ciências, dos negócios e assuntos humanos, da história dos
homens, da psicologia humana, a quem, enfim, sobretudo se exigem as
virtudes morais, a dignidade do porte e a qualidade da linguagem e da dic-
ção. Cito, traduzindo extensamente a página de Valla, porque ela, embora
longa, constitui uma referência para muitos humanistas posteriores:

«Com frequência, pensando comigo próprio acerca de muitos escritores


da arte dialéctica, costumo hesitar se devo acusá-los de ignorância, de
vaidade, de malícia, ou de todas estas coisas ao mesmo tempo.[...] Pois
quando os vejo praticar e ensinar embustes, cavilações e calúnias não
posso deixar de os censurar. [...] A Dialéctica era uma coisa breve e

43 Ibidem, p. 15.
44 «Nam si diligenter tempora exquiramus, antea oratores in media civitate de optimis et
maximis rebus loquebantur quam philosophi in angulis garrire ceperunt, et nostris
quoque temporibus licet philosophi se rectores aliorum dicant, tamen oratores, ut res
ipsa docet, rectores aliorum esse ac principes quidem dicendi sunt.» Ibidem.
45 A noção retórica de verdade encontra-se ainda mais claramente exposta em algumas
páginas da Repastinatio, ed. cit., vol. I, pp. 19-20; vol. II, p. 378. Veja-se, neste volu-
me, pp. 129-130.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 27

inteiramente fácil, como se pode julgar por comparação com a Retórica.


Pois que outra coisa é a Dialéctica, senão uma espécie de confirmação e
de refutação? Estas são partes da invenção, e a invenção é uma das
cinco partes da Retórica. Dizem que ‘pertence ao dialéctico fazer uso do
silogismo’. Mas não o usa também o orador? Ele não só usa o silogis-
mo, como usa também o entimema, o epiquerema e ainda a indução.
Mas vê qual a diferença. O dialéctico usa o silogismo ‘nu’ (se assim me
posso exprimir), ao passo que o orador usa-o ‘vestido e armado, ornado
de ouro e púrpura e pedras preciosas’; de tal modo que este pode juntar
muitas riquezas de preceitos se o quiser, enquanto ao dialéctico convém
a pobreza. Pois o orador não quer apenas ensinar, como faz o dialéctico,
mas também deleitar e mover, o que não vale menos para alcançar a
vitória do que a própria demonstração; contudo ele nem sempre tende à
vitória e nem sempre se exerce em contendas, mas também em persua-
dir acerca das coisas honestas e adequadas a viver bem e santamente,
em dissuadir das coisas torpes e inúteis, em louvar as que merecem lou-
vor e condenar as que merecem vitupério. [...] E assim como nós usa-
mos uma roupa quando estamos em público e outra quando estamos em
casa, uma quando falamos diante do magistrado e outra quando estamos
em privado, pois se deve ter em atenção os olhos do povo, assim o dia-
léctico, cujo discurso é doméstico e privado, não é sensível ao brilho e à
majestade da linguagem como o é o orador. Este, que tem de falar
perante toda a cidade e dizer muitas coisas aos ouvidos públicos, tem de
possuir também o conhecimento de muitas coisas importantes, e a ciên-
cia dificílima de cuidar dos ânimos, o uso de muitos negócios, o conhe-
cimento de todos os povos e de todos os seus feitos e, acima de tudo, a
santidade da vida e uma certa exímia dignidade do espírito e do corpo e
a eficácia da voz. Com efeito, o orador é como o reitor e condutor do
povo. Por isso a Retórica é tão difícil e árdua e não é abraçada por
todos. Pois ela – falo da suma e perfeita eloquência – sente-se feliz
navegando no mar largo e no meio das ondas e voando com velas incha-
das e sonantes, e não cede às vagas, mas domina-as. A Dialéctica, por
seu turno, é amiga da segurança, companheira dos litorais, vê mais as
46
terras do que os mares, rema junto das margens e dos rochedos.»

46 «Frequenter mecum soleo dubitare de plerisque scriptoribus artis dialectice, ignoratio-


nisne eos an vanitatis, an malitie accusem, an de his omnibus. Nam cum illorum errores
non parum multos considero, quibus non minus seipsos quam ceteros videntur dece-
pisse, vel negligentie vel infirmitati humane tribuo.... At (quod indignissimum est) cum
captiones, cavillationes, calumnias video quas et exercent et docent, non possum eis
non succensere [...] Erat enim dialectica res brevis prorsus et facilis, id quod ex compa-
ratione rhetorice diiudicari potest. Nam quid aliud est dialectica, quam species confir-
mationis et confutationis? He ipse sunt partes inventionis, inventio una ex quinque
rhetorice partibus. ‘Dialectici est syllogismo uti’. Quid, non orator eodem utitur? Immo
utitur nec eo solo, verum etiam enthymemate et epicheremate, adde etiam inductionem.
Sed vide quid interest. Dialecticus utitur ‘nudo’ (ut sic loquar) syllogismo, orator autem
‘vestito armatoque, auro et purpura ac gemmis ornato’: ut multe sint ei et magne
preceptorum comparande divitie, si videri volet orator. Dialecticum, prope dixerim,
28 Leonel Ribeiro dos Santos

2. As ideias de Valla não ficaram sem efeito. Mesmo se nem todos


os humanistas o acompanham na tentativa de reduzir a Lógica e a Filosofia
à Gramática e à Retórica, outros, como Erasmo e Melanchthon, apreciam
as suas ideias relativamente à importância dos estudos humanísticos para
todas as ciências e, em particular, para a Teologia. Ainda no século XV
ela encontra eco em Angelo Poliziano (1454-1494), o qual, consciente de
representar uma nova forma de filosofia contrária à «obscura philoso-
phia» dos escolásticos, preferia ser tido por «gramático» a ser conside-
rado como «filósofo».47
Não há, porém, documento que melhor prove a continuidade entre o
pensamento de Valla e o dos humanistas do século XVI do que a obra de
Mario Nizolio (1488-1567) – De veris principiis et vera ratione philoso-
phandi contra pseudophilosophos (1553), a qual se pode com razão con-
siderar como a radicalização do projecto de redução da Filosofia à Retórica
empreendido por Valla cerca de cem anos antes. A relação com Valla é
expressamente assumida por Nizolio, e um dos lugares por este frequen-
tados é precisamente o texto que citámos da Introdução ao livro II da
Repastinatio. Mas Nizolio quer levar à raiz aquilo que nos humanistas
quatrocentistas, e mesmo em Valla, considerava ter ficado ainda somente
48
ao nível dos ramos. Mas se a posição de fundo é idêntica, muito diverso
é o contexto. Nizolio teve a oportunidade de conhecer o desenvolvimento
ocorrido entretanto, designadamente com Rudolfo Agricola (1444-1485)
e Pedro Ramo (1515-1572), os quais haviam reduzido de novo drastica-
mente o âmbito e a função da Retórica, amputando-a de duas das suas

paupertas decet. Quoniam non tantum vult docere orator, ut dialecticus facit, sed
delectare etiam ac movere, que nonnunquam ad victoriam plus valent quam ipsa
probatio; tametsi non ad solam semper victoriam tendit neque semper versatur in
litibus, sed in suadendis honestis et ad bene beateque vivendum pertinentibus
dissuadendisque turpibus atque inutilibus, in laudandis vituperandisque que laudem
mereantur aut vituperationem. [...] Atque sicuti nos alio vestitu utimur cum prodimus in
publicum, alio cum agimus aliquid intra domum, itenque alio cum magistratus, alio
cum privati sumus, propterea quod serviendum est oculis populi, ita dialecticus, cuius
domesticus et privatus est sermo, non eum captabit dicendi nitorem eamque maiestatem
quam captabit orator: cui apud universam civitatem dicendum et multum publicis
auribus dandum est, cui, insuper, adesse debet multa magnarum rerum peritia, perdiffi-
cilis quedam tractandorum animorum scientia, usus complurium negotiorum, omnium
populorum omnisque memorie gestorum notitia, et ante omnia sanctitas vite ac eximia
quedam animi dignitas et corporis vocisque prestantia. Siquidem orator est velut rhetor
ac dux populi. Propter quod longe difficilima rhetorica est et ardua, nec omnibus
capessenda. Nanque lato mari mediisque in undis vagari et tumidis ac sonantibus velis
volitare gaudet, nec fluctibus cedit, sed imperat: de summa et perfecta loquor eloquen-
tia. Dialectica vero amica securitatis, socia litorum, terras potius quam maria intuens,
prope oras et scopulos remigat.» Repastinatio, ed. cit., vol. I, pp. 175-176.
47 Angelus Politianus, Lamia, in Opera Omnia, Basileae, 1553, p. 459.
48 Mario Nizolio, De veris principiis et vera ratione philosophandi contra pseudophi-
losophos libri IV, ed. crítica de Q. Breen, Fratteli Bocca Editori, Roma, 1956, vol. I, p. 35.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 29

partes essenciais – a invenção e a disposição (a tópica e o método) – com


as quais construiram uma nova Dialéctica concebida como doutrina e
método de todo o conhecimento provável.49 Nizolio rejeita esta amputação
e pretende restabelecer a Retórica como fundamento de todas as ciências.
Assim, a sua cruzada não se dirige menos contra os novos dialécticos50 do
que contra os pseudofilósofos e dialécticos escolásticos. Valla afirmava o
primado da Retórica num momento de ascensão e de geral promoção desta
entre os humanistas italianos do segundo quarto do século XV, ao passo
que Nizolio desenvolve as suas teses cem anos mais tarde, num momento
em que a Retórica está claramente em recuo e em queda, reduzida à
muito secundária função de ornamentação do discurso, e nas vésperas de
passar o testemunho a um novo paradigma de racionalidade modelado
pela mathesis.

O motivo central do pensamento de Nizolio é o restabelecimento da


Retórica não só como ciência autónoma e com todas as suas partes, mas
como ciência universal a que todas se subordinam, nomeadamente a Gra-
mática, a Dialéctica e a Metafísica, estas últimas na medida em que são
um domínio originariamente retórico, pois, como ciências autónomas são
rejeitadas. A Dialéctica ou é tida por inútil ou, quando muito, é absorvida
pela Retórica, como o fora já em Valla, mas agora de um modo muito
mais convicto. A Metafísica é igualmente recusada por inútil e por falta
de objecto: por um lado, porque esvaziada dos seus conceitos universais,

49 Veja-se de Rudolf Agricola, De inventione dialectica libri tres (1ª ed. 1515), ed. crítica
de Lothar Mundt, Max Niemeyer, Tübingen, 1992. De Pedro Ramo (Pierre de la
Ramée): Dialectique (1555), reed. Genève, 1964. Para outros aspectos do pensamento
de Ramo acerca da retórica, vejam-se as suas obras: Brutinae Quaestiones (1547), in
Peter Ramus’s Attack on Cicero. Text and Translation of Ramus’s «Brutinae
Quaestiones», ed, e introd. de James J. Murphy, trad. de Carole Newlands, Hermagoras
Press, Davis, 1992; Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), in James J.
Murphy e Carole Newlands, Arguments in Rhetoric Against Quintilian: Translation
and Text of Peter Ramus’s Rhetoricae distinctiones in Quintilianum (1549), Northern
Illinois University Press, 1986.
50 Expressamente visado é Agricola e o roubo que fez à Retórica da sua importante
primeira parte – a invenção – que usurpou para a sua nova Dialéctica: «Deinde primam
officii rhetorici partem, hoc est, inventionem, quam nonnulli etiam doctissimi viri, in
quorum numero etiam est Rodulphus Agricola, nescio qua dementia vel potius furore
correpti ab Oratore removere et ad Dialecticam transferre non erubuerunt.» De veris
principiis, vol. II, p. 107; vol. I, p. 160. Mas há pontos em que Nizolio está de acordo
com Agricola, nomeadamente quando se trata de criticar Aristóteles, os aristotélicos e
os dialécticos escolásticos (Ibidem, vol. II, p. 111). Referências expressas a Pedro
Ramo não se encontram em Nizolio, que terá conhecido as ideias ramistas através dos
escritos de Joachimus Perionius: Pro Aristotele in Petrum Ramum orationes II (1543) e
Pro Ciceronis Oratore contra Petrum Ramum oratio (1547). Veja-se, a este respeito, a
nota de Q. Breen à sua edição do De veris principiis, vol. II, p. 177.
30 Leonel Ribeiro dos Santos

que pretensamente designavam essências imutáveis e eternas; por outro,


porque sendo completamente especulativa, ela não tem lugar entre as ver-
dadeiras ciências, como são aquelas que tratam de realidades concretas e
singulares e que têm uma componente simultaneamente teórica e prática.
Nizolio recusa a concepção apodíctica da verdade, segundo a qual
esta depende da natureza ou essência das coisas e pode ser encontrada e
demonstrada de forma intemporal e abstracta. Em contrapartida, propõe
uma verdade que pressupõe a discussão partilhada que se apoia naquilo
que é conhecido pelo nosso parceiro de discussão ou por aquele a quem
queremos comunicar algo. À demonstração silogística, que pretensamente
se funda nas noções primeiras e, por isso mesmo, mais conhecidas das
próprias coisas, o humanista mantuano contrapõe uma argumentação
retórica baseada na tópica, ou seja no que é mais conhecido pelos
homens, no que é aceite e consensual no espaço comunicacional humano:
«ao provar algo entre os homens é necessário que os argumentos sejam
mais conhecidos por nós do que por natureza, e isso porque é com os
homens e não com a natureza que disputamos.»51
Embora retoricamente muito agressivo, o projecto de Nizolio é
essencialmente de restauração e recuperação de algo destruído ou per-
dido. Pretende acabar com o dissídio entre a língua e o coração, a boca e
a alma, as palavras e as coisas, entre o falar com elegância (ornate dicen-
di) e o agir correctamente (recte faciendi), enfim entre a eloquência e a
sapiência. Propõe-se, portanto, restaurar a primigénia unidade entre Filo-
sofia e Retórica que, segundo Cícero, teria sido quebrada por Sócrates,
mostrando que «não são duas faculdades separadas, mas uma e a mesma,
composta de realidades e de palavras, tal como um animal está composto
de corpo e alma, a que foi imposto o nome de Filosofia a partir da sabe-
doria das coisas unida com a virtude e o nome de Oratória a partir da arte
das palavras e do discurso. Pois nem a Filosofia pode ser perfeita sem o
auxílio das palavras nem a Oratória pode sê-lo sem o auxílio das realida-
des como seu fundamento.»52
E o projecto consuma-se num programa enciclopédico no qual todas
as ciências e artes são reconduzidas a uma divisão fundamental – a Filo-
sofia e a Oratória –, correspondendo aquela «às coisas que devem ser ver-

51 «Oportet ad probandum aliquid inter homines argumenta esse notiora nobis non
naturae, idque quia cum hominibus non cum natura disputamus.» De veris principiis,
vol. II, p. 153.
52 «Philosophiam et Oratoriam non duas esse facultates separatas, sed unam eandemque
ex rebus et verbis tanquam animantem quandam ex corpore et anima compositam, cui a
sapientia rerum cum virtute coniuncta Philosophiae, ab artificio verborum et dicendi,
Oratoriae nomen fuit impositum: nec enim Philosophia sine verborum adiumento, nec
Oratoria sine rerum quasi fundamento perfecta esse potest.» De veris principiis, ed.
cit., vol. II, pp. 32-33.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 31

dadeiramente conhecidas e correctamente praticadas» (ad res vere cog-


noscendas recteque agendas pertinet), a que os antigos chamavam a
sabedoria (sapientia), e a segunda, que diz respeito «às palavras e a toda a
composição do discurso» (ad verba et ad totam orationis compositio-
nem), a que os antigos chamavam a eloquência (eloquentia), mas que,
longe de serem duas realidades distintas, estão uma para a outra como o
corpo está para a alma. Diz Nizolio: «Audazmente devemos admitir e
sem qualquer dúvida afirmar que a Filosofia ou sabedoria é uma facul-
dade e profissão geral e universal, não só de conhecer e de saber, mas
também de agir e de fazer todas as coisas do mundo, tanto divinas como
humanas, tanto celestes como terrestres, tanto quanto o engenho humano
pode alcançar e a natureza das próprias coisas o consente. A Oratória e a
eloquência é igualmente uma arte geral e universal de bem falar e dizer
acerca de todas as coisas do mundo, tanto divinas como humanas, tanto
celestes como terrestres, porém, com aquela mesma condição, a saber, tan-
to quanto o engenho humano o pode conseguir e as próprias coisas se pres-
tam, pela abundância e capacidade, a serem ditas. Para além destas duas,
todas as outras ciências e artes são faculdades ou profissões não gerais nem
universais, mas particulares e especiais, e não acerca de todas as coisas,
53
como estas duas, mas acerca de um só e determinado género de coisas.»
Todo o programa nizoliano de redução da filosofia à linguagem se
assume como radical recusa do realismo metafísico e como explícita
assunção do nominalismo. Não só se rejeita a Metafísica em geral, como
sobretudo se rejeita aquilo com base no qual se constróem todas as meta-
físicas: o conceito universal. Para o humanista, o universal não designa
uma essência, mas é apenas um nome que designa uma colecção de indi-
víduos singulares: «de acordo com os nominalistas, concedemos que nos
nomes estão contidos universais e que as palavras [...] são algo comum e
universal.»54 As palavras são universais, mas não universais reais ou
53 «Iam audacter confitendum est, et sine ulla dubitatione affirmandum, Philosophiam
sive sapientiam, esse facultatem et professionem generalem et universalem, non solum
cognoscendi ac sciendi, sed etiam agendi et faciendi omnes res mundi, tam divinas
quam humanas, tam coelestes quam terrestres quantum quidem humano ingenio
assequi licet, et rerum ipsarum natura patitur. Oratoriam autem et eloquentiam esse
artem similiter generalem et universalem bene loquendi ac dicendi de omnibus rebus
mundi. tam divinis quam humanis. tam caelestibus quam terrestribus. cum illa tamen
eadem conditione, quantum scilicet, humanum ingenium consequi potest, et res ipsae
dicendi de se copiam ac facultatem praestant. Caeteras vero omnes scientiae et artes
praeter has duas, esse facultates et professiones, non generales nec universales, sed
particulares et speciales, et non in omnibus rebus, ut hae duae, sed in uno tantum certo
ac determinato rerum genere versari.» De veris principiis, vol. II, pp. 36-37.
54 «Nos quoque una cum Nominalibus sine ulla dubitatione confitemur universalia in
vocibus ac nominibus reperiri, et voces vere communes universalesque esse [...] Esse
enim universalia, nominum appellativorum revera proprium est, non rerum...» De veris
principiis, vol. I, p. 65.
32 Leonel Ribeiro dos Santos

metafísicos, indicando essências, e sim universais linguísticos. Por outro


lado, não há, segundo Nizolio, uma ciência das essências, e muito menos
de essências imutáveis e eternas, mas apenas ciências de realidades sin-
gulares, nomeadas pelas palavras, cuja substância é colhida no uso e na
prática histórica, na consuetudo sermonum, «no consenso e no modo
habitual de todos os que falam comummente e correctamente» (consensu
et consuetudine omnium communiter et recte loquentium).55 À semelhança
de Valla, mas numa direcção própria, também Nizolio se esforça por
simplificar o sistema das categorias e predicamentos da Lógica e Metafí-
sica, reduzindo os géneros supremos das coisas a apenas duas espécies –
as substâncias e as qualidades –, considerando todos os outros predica-
56
mentos como especificações da qualidade.

Fruto serôdio e intempestivo, a obra de Nizolio pode considerar-se o


canto de cisne do paradigma retórico dos humanistas. Em nenhuma outra
57
foi tão eloquente a «celebração da retórica» e tão radicalizado o projecto
de retoricização da filosofia. Mais ainda do que em Valla, a investigação
filosófica torna-se nele uma investigação de natureza linguística. Tal é o
programa de geral transformação de toda a filosofia que se declara logo
no primeiro capítulo da obra: «O primeiro princípio geral da verdade e do
correcto filosofar é o conhecimento das línguas grega e latina, nas quais
subsistem os ensinamentos e os escritos com quase tudo o que é digno de
ser sabido e conhecido.[...] O segundo princípio da verdade é a ciência
dos preceitos e documentos que se ensinam nos gramáticos e retóricos,
sem os quais toda a doutrina é completamente ignorante e toda a erudição
inerudita. [...] Devido à ignorância e desconhecimento destas não só os
dialécticos e metafísicos mas até os maiores filósofos são como cegos que
caminham sem guia [...] Em toda esta obra, mostraremos, ensinando e
provando, que os preceitos e ensinos da Gramática e da Retórica são
muito mais verdadeiros do que os dialécticos e metafísicos e que para
investigar a verdade e para filosofar correctamente é de longe muito mais
útil e necessário o conhecimento da Gramática e da Retórica do que o da
Dialéctica e da Metafísica.»58

55 O terceiro princípio geral de Nizolio é a «intelligentia communis usus loquendi tum


eorum [auctorum tam Graecorum quam Latinorum] tum etiam populi.» De veris
principiis, vol. I, pp. 26 e 211.
56 De veris principiis, I, pp. 207ss.
57 Paolo Rossi, «La celebrazione della retorica e la polemica antimetafisica nel ‘De
principiis’ di Mario Nizolio», in A. Banfi (ed.), La crisi dell’uso dogmatico della
ragione, Milano, 1953, pp. 99-121.
58 «Primum generale principium veritatis recteque philosophandi ut nos putamus, est
cognitio atque notitia linguarum graecae et latinae, in quibus tradita et scripta sunt; cum
omnia alia fere, quae sunt scitu cognituque dignissima.[...] Secundum principium
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 33

Toda a obra, no volume dos seus quatro livros, é uma exposição ad


nauseam desse projecto. Mas é tempo de voltarmos atrás e de olharmos
um outro aspecto do problema que nos ocupa, de vermos como reagiram
os filósofos a esta declarada pretensão de alguns humanistas de reduzir a
Filosofia à Retórica.

III
A FILOSOFIA CONTRA A RETÓRICA:
A POLÉMICA DE PICO DELLA MIRANDOLA
COM ERMOLAO BARBARO E SUA RESSONÂNCIA POSTERIOR

1. Na primeira geração de humanistas defendia-se, como vimos, o


ideal ciceroniano da aliança entre a eloquentia e a sapientia. Em caso de
conflito entre uma e outra, é a eloquentia que deve ceder, como o dizia
Salutati numa das suas cartas, que acima citámos. Muitos outros huma-
nistas defenderam essa aliança, acusando os barbarismos linguísticos e o
estilo exangue e esquálido dos filósofos tradicionais, como Bruni e Valla,
ou mostrando a conveniência de introduzir na Filosofia o cuidado da lin-
guagem e do estilo, como o faz Jorge de Trebizonda, apontando aos pre-
tensos aristotélicos do seu tempo o exemplo do próprio Aristóteles.
Segundo estes defensores da sabedoria eloquente, a propriedade e mesmo
a beleza da expressão não perturbam, antes realçam, a verdade e a nobre-
za do pensamento. Em contrapartida, «a Filosofia, na qual estão de algum
modo englobadas todas as artes liberais, se for privada da suavidade da
linguagem, quebra toda a gravidade do discurso e destrói todo o sumo do
59
engenho reduzindo-o a uma enorme aridez.»
A insistência dos humanistas nas virtudes de uma filosofia eloquente
não terá deixado de dar os seus resultados, mesmo entre os filósofos de
profissão. Mas o escândalo estala quando um jovem filósofo, amigo e

veritatis est, scientia praeceptorum et documentorum, quae in Grammaticis et Rhetori-


cis traduntur, sine quibus omnis doctrina prorsus est indocta, et omnis eruditio
inerudita. Horum enim ignoratione et inscitia, non solum Dialectici et Metaphysici, sed
etiam Philosophi summi, tanquam caeci sine duce iter facientes... In toto hoc opere
monstraturi sumus, passim docentes et probantes Grammaticas et Rhetoricas
praeceptiones ac traditiones, esse multo veriores Dialecticis et Metaphysicis: et omnino
ad veritatem investigandam, recteque philosophandum, longe utiliorem magisque
necessariam Grammaticae et Rhetoricae cognitionem, quàm Dialecticae et
Metaphysicae.» De veris principiis, vol. I, pp. 22-23.
59 «Nam philosophia, quidam qua omnes liberales artes continentur, si dicendi suavitate
privata sit, omnem orationis gravitatem infringit atque concidit totumque ingenii succum
asperitate imbibit nimia.» Jorge de Trebizonda, Rhetoricorum libri V (1433-34),
Prohemium, apud John Monfasani, ob. cit. (1976), Appendix 12, p. 371.
34 Leonel Ribeiro dos Santos

correspondente de humanistas e em muitos aspectos ele próprio imbuído


da formação, cultura e ideias do Humanismo, o qual, numa carta ao seu
amigo Angelo Poliziano se lamentava precisamente dessa sua condição
híbrida60, salta a terreiro para defender o estilo bárbaro dos filósofos esco-
lásticos contra os adornos retóricos dos humanistas e, em suma, contra a
tendência para reduzir a Filosofia à filologia e até para unir a sabedoria e
a eloquência, a Filosofia e a Retórica.
Esse jovem era Giovanni Pico della Mirandola (1463-1494), o qual,
à sólida formação humanística, juntava o interesse por todas as filosofias
e doutrinas e, de modo particular, pela filosofia escolástica, a cujo estudo
intensamente se aplicara. E o destinatário da invectiva anti-humanista e
anti-retórica era um seu amigo, o humanista veneziano Ermolao Barbaro
(1454-1493), tradutor da Retórica, de Aristóteles, e das Paráfrases a
Aristóteles, de Temístio, que havia sido professor de filosofia moral aris-
totélica em Pádua, antes de fundar escola privada em Veneza.61 Este,
numa carta em que exortava o seu jovem amigo a progredir no estudo do
Grego, escreve – com manifesto exagero, bem tolerável numa carta entre
amigos – não existir nenhuma grande obra em bom Latim que tivesse
sido escrita por alguém que não soubesse também Grego. E é nesse con-
texto que acrescenta «não contar entre os autores da língua latina os
Germanos e Teutões, os quais nem quando estavam vivos viviam e muito
menos vivem depois de mortos; ou se vivem, vivem na condenação e no
vitupério: pois são por toda a gente chamados impuros, rudes, incultos,
62
bárbaros.» Estes os termos.

60 Giovanni Pico Della Mirandola / Gian Francesco Pico, Opera omnia, reed. anastática
da ed. de Basileia 1557, G. Olms, Hildesheim, 1969, vol. I, 364: «Simili et ego utar
perfugio ut poetis, rhetoribusque me aprobem, propterea quod philosophari dicar:
philosophis quod rhetorissem, et musas colam... Quippe ego dum geminis (ut aiunt)
sellis sedere volo, utraque excludor, sitque demum (ut dicam paucis) ut nec poeta, nec
rhetor sim, neque philosophus.» Veja-se de F. Bausi, Nec rhetor neque philosophus.
Fonti, lingua e stile nelle prime opere latine di Giovanni Pico della Mirandola (1484-
-1487), Olschki, Firenze, 1996.
61 Sobre Ermolao Barbaro, veja-se: V. Branca (ed.), Una famiglia veneziana nella storia:
i Barbaro. Atti del Convegno (Venezia 4-6 de novembre 1993), Istituto Veneto di
Scienze, Lettere ed Arti, Venezia, 1996; Id., La sapienza civile. Studi sull’Umanesimo a
Venezia, Olschki, Firenze, 1998; Id., «Ermolao Barbaro e l’umanesimo veneziano», in
Umanesimo europeo e umanesimo veneziano, a cura di V. Branca, Sansoni, Firenze,
1963, pp. 193-212; Id., «L’umanesimo veneziano alla fine del Quattrocento. Ermolao
Barbaro e il suo circulo», in Storia della cultura veneta, Neri Pozza, Vicenza, III/1,
pp. 123-173.
62 «Nec enim inter auctores latinae linguae numero Germanos et Teutonas, qui ne viven-
tes quidem vivebant, nedum ut extincti vivant; aut si vivunt, vivunt in poenam et
contumeliam: appellantur enim vulgo sordidi, rudes, inculti, barbari.» Ermolao
Barbaro, Epistolae, Orationes et Carmina, ed. critica a cura di Vittore Branca,
Bibliopolis, Firenze, vol. I, p. 86.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 35

A resposta de Pico, numa carta de 3 de Junho de 1485, que logo foi


lida como um ensaio «Acerca da linguagem dos filósofos» (de genere
dicendi philosophorum), poderá ser interpretada, como aliás o foi pelo
próprio destinatário, como escrita num registo retórico e irónico: como
uma defesa ad absurdum do método e linguagem dos filósofos escolásti-
cos, não só dos germânicos e teutões, de que falava a carta de Barbaro,
mas também dos «gauleses», «britânicos» e «escoceses», tantas vezes
63
visados nas censuras dos humanistas. Ou, então, como um documento
que representa a declaração efectiva de guerra ao paradigma retórico do
pensamento humanista por parte do jovem Pico, estudioso e admirador
dos «bárbaros» filósofos escolásticos visados na carta de Barbaro. A carta
surpreende, em primeiro lugar, porque não é proporcionada ao que lhe
serviu de motivo. Subsistem nela indícios de ambiguidade quanto ao seu
propósito e quanto à sua sinceridade e capacidade de revelar o verdadeiro
pensamento do seu autor, o que tem dado azo às mais diversas interpreta-
ções. Terá Pico aproveitado a oportunidade para praticar a sua eloquência
e cabal domínio das técnicas retóricas produzindo um discurso contra a
eloquência e a favor dos bárbaros? É o que se poderia depreender da lei-
tura do último parágrafo da carta, no qual o seu autor, como que sur-
preendido ele próprio pela dureza e contundência da sua resposta, a ame-
niza, dizendo que ela, na verdade, não traduz aquilo que ele realmente
pensa sobre o assunto, mas que apenas pretendeu colocar-se na pele de
um dos filósofos que Barbaro acusara de «bárbaros», dando voz aos seus
argumentos, sem que isso signifique que esteja de acordo com as respec-
tivas ideias ou que as recomende a um espírito nobre e liberal (quorum
sententiae nec ego plane accedo, nec ingenuo cuiquam et liberali acce-
dendum puto), mas tão somente para desse modo estimular o seu amigo
para que levasse ainda mais longe os louvores da eloquência, da mesma
forma que Glauco, na República de Platão, tecia louvores à injustiça, não
64
a sério, mas para estimular Sócrates a louvar a justiça. A carta de Pico
poderia assim ser lida como um mero exercício retórico de eloquência

63 As principais peças deste singular debate foram recentemente publicadas, em texto


latino e tradução italiana e com um importante estudo introdutório, por F. Bausi: E.
Barbaro / G. Pico Della Mirandola, Filosofia o eloquenza?, Liguori, Napoli, 1998.
Existe uma tradução inglesa: Quirinus Breen, «Giovanni Pico della Mirandola on the
Concept of Philosophy and Rhetoric», Journal of the History of Ideas, 13 (1952),
pp. 384-412. No presente ensaio, para o texto de Pico, usamos, actualizando a grafia, a
edição cit. das Opera omnia, onde a carta a Barbaro ocupa as pp. 351-358 do vol. I;
para as cartas de Barbaro, utilizamos a já citada ed. crítica das Epistolae, Orationes et
Carmina, onde as cartas a Pico ocupam as pp. 84-109 do vol. I.
64 «Sed exercui me libenter in hac materia [...] veluti Glauco ille apud Platonem iniusti-
tiam laudant, non serio, sed ut ad laudes iustitiae Socratem extimulet. Ita ego ut
eloquentiae causam a te augi audiam, in eam licentius repugnante paulisper sensu atque
natura, invectus sum...» Opera omnia, I, p. 358.
36 Leonel Ribeiro dos Santos

contra a Retórica e a eloquência, ou como uma emblemática amostra


daquilo a que Leonid Baktin chamou o carácter dialógico do pensamento
humanista, que precisamente se manifesta na capacidade de assumir e
protagonizar posições antagónicas, tendo porém em vista chegar a uma
síntese das antinomias, mostrando, por conseguinte, a natural e necessária
65
conciliação entre a eloquência e a Filosofia.
Mas, na verdade, e como teremos ocasião de o verificar a propósito
de vários tópicos, as teses expostas na carta de Pico fazem coerência, em
muitos pontos fundamentais, com o pensamento do jovem conde de
Mirandola exposto noutras obras da mesma época, e até com o seu estilo,
que, se sabe imitar as orationes dos humanistas, também se exerce, nas
famosas Conclusiones, segundo ele mesmo diz, «não ao modo do brilho
da língua romana, mas imitando o género de discurso usado pelos cele-
66
bradíssimos disputadores parisienses».
A carta abre com uma inequívoca refutação daquele que fora o pres-
suposto fundamental dos humanistas: a natural aliança da sapiência com a
eloquência, a conveniência e compatibilidade entre Filosofia e Retórica.
65 Leonid M. Baktin, Gli Umanisti Italiani. Stile di Vita e di Pensiero, Laterza, Roma-
-Bari, 1990, pp. 149 ss.
66 «Non Romanae linguae nitorem, sed celebratissimorum Parisiensium disputatorum,
dicendi genus est imitatus, propterea, quod eo nostri temporis philosophi plerique omnes
utuntur.» Opera omnia I, p. 63. Sobre o significado histórico e filosófico da carta de Pico
e, em geral, da polémica Pico-Barbaro existe uma vasta bibliografia, que se divide em
duas tendências: a dos que a tomam a sério e a dos que a tomam por um jogo retórico. A.
Festugière escreve: «Il ne faut pas se méprendre sur l’importance de cette lettre... Cette
lettre n’était point jeu. Quand Pic, jaloux de gloire, eût gagné Rome pour y afficher ses
900 thèses, il annonça qu’il les soutiendrait dans ce style parisien si décrié... Dernier
triomphe de l’université de Paris sur les humanistes trop entichés de beau latin!... Ainsi
l’un des plus aimables types de la Renaissance, l’un de ceux qui en rassemblent le mieux
les traits a pris soin de défendre la pensée médiévale et ce langage dépouillé qui chez les
grands maîtres de Paris fût, au XIIIe. siècle, l’expression même de la raison.» («Studia
Mirandulana», Archives d’Histoire Doctrinale et Littéraire du Moyen Âge, VII (1932),
Paris, Vrin, 1933, p. 165). Veja-se, também L. Valcke, «Jean Pic de la Mirandole et le
style de Paris. Portée d’une critique littéraire», Rinascimento, II serie, 32 (1992), pp. 253-
-273. Na linha da interpretação que aqui propomos, Francesco Bausi, embora reconhe-
cendo o carácter retórico (fictício, irónico, lúdico) da carta de Pico e de toda a polémica
que provocou, não deixa de sublinhar que ela traz à luz motivos reais e não negligenciá-
veis de dissensão entre Pico e Barbaro, decorrentes das respectivas concepções filosóficas
e que, ao mesmo tempo, a carta de Pico traduz na sua ambiguidade o próprio conflito
vivido pelo jovem pensador nos anos da sua formação, não sabendo se era um «poeta»,
um «retor» ou um «filósofo», temendo, como o confessa a Poliziano, não ser realmente
nem uma coisa nem outra. Veja-se a «Introdução» deste autor a: E. Barbaro /G. Pico
Della Mirandola, Filosofia o eloquenza?, Liguori Editore, Napoli, 1998. Sobre este
conflito, v.: Letizia Panizza, «Ermolao Barbaro e Pico della Mirandola tra Retorica e
Dialettica: Il ‘De genere dicendi philosophorum’ del 1485», in: Una Famiglia Veneziana
nella Storia: I Barbaro, Istituto Veneto di Scienze Lettere ed Arti, Venezia, 1996,
pp. 277-330; Jean-Claude Margolin, «Sur la conception humaniste du ‘Barbare’: A
propos de la controverse epistolaire entre Pic de Mirandole et Ermolao Barbaro», Ibidem,
pp. 235-276.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 37

Todos os passos da argumentação de Pico vão no sentido de desconstruir


esse pressuposto e de mostrar precisamente o seu contrário, a saber que
«é tal o conflito entre a função do orador e a função do filósofo que não é
67
possível pensar conflito maior entre ambos». A incompatibilidade é de
objecto, de método, de objectivo, de processos, de linguagem, de pres-
supostos. As contraposições sucedem-se ao longo de toda a carta.
Assim, quanto ao objecto, enquanto a Retórica trata de palavras e de
bagatelas (levibus nugis), a Filosofia ocupa-se de realidades, «trata e dis-
cute acerca das razões das coisas humanas e divinas» (de humanarum
divinarumque rerum rationibus agitur & disputatur).68 Pico ousa atingir a
própria base de autoridade em que assentava o princípio humanista da
íntima relação entre ratio e oratio, interpretando à sua maneira o pensa-
mento do mais comum patrono dos humanistas. Segundo ele, «Túlio não
pretende do filósofo a eloquência, mas a competência nas matérias e na
doutrina. Esse homem tão prudente quanto erudito sabia que o ofício dos
filósofos é compor a mente e não compor o discurso, é cuidar para que
nada se afaste da razão e não cuidar da correcção da frase.»69 A concepção
de homem dos oradores e a dos filósofos são, pois, inconciliáveis.
Jogando com o significado ciceroniano e humanista do adjectivo huma-
nus (culto, erudito), Pico insinua que o orador pretende ser apenas culto
(humanus), ao passo que o filósofo é realmente homem (homo): «Não é
humano aquele que é ignorante da literatura elegante, não é homem
aquele que ignora a Filosofia.»70
Também no método e procedimento são opostas a Retórica e a Filoso-
fia, pois uma usa a mentira, a impostura, o engano e a ilusão, enquanto a
outra usa os processos de demonstração da verdade. Naquela, com artifí-
cios, ardis e ornamentos verbais, ilude-se e engana-se o ouvinte, tentando
persuadi-lo, seduzi-lo ou adulá-lo. Pico reedita todos os tópicos da refu-
tação que Platão havia feito da retórica sofística no Górgias: o ofício do
orador é mentir, enganar, iludir, fazendo aparecer as coisas como grandes
ou pequenas, nobres ou vis, segundo o seu arbítrio e a capacidade da sua
eloquência. Em vez de apresentar a verdade e o ser das coisas, o orador
joga com as aparências. O filósofo nada tem em comum com essa arte de
mentira e de impostura que é a Retórica, pois «todo o seu esforço consiste

67 «Tanta est inter Oratoris munus & Philosophi pugnantia, ut pugnare magis invicem non
possint.» Opera omnia, I, p. 352.
68 Ibidem.
69 «Non desiderat Tullius eloquentiam in Philosopho, sed ut rebus et doctrina satisfaciat.
Sciebat tam prudens quam eruditus homo, nostrum esse componere mentem, potius
quam dictionem, curare ne quid aberret ratio, non oratio.» Ibidem, p. 355.
70 «Non est humanus, qui sit insolens pollitioris literaturae. Non est homo qui sit expers
Philosophiae.» Ibidem, p. 357.
38 Leonel Ribeiro dos Santos

em conhecer e demonstrar a verdade aos outros» (cuius studium omne in


cognoscenda & demonstranda caeteris veritate versatur).71
A oposição entre as palavras e as coisas dobra-se na oposição entre a
linguagem e o pensamento. Aos filósofos «bárbaros», diz Pico, podem
ter-lhes faltado na língua as artes de Mercúrio, mas elas não lhes faltaram
no coração; pode ter-lhes faltado a eloquência, mas não lhes faltou a
ciência».72 O jovem filósofo recusa a ênfase posta pelos humanistas na
expressão da linguagem, que os levava a desprezar todo o pensamento
que não fosse expresso correctamente, quer do ponto de vista gramatical
quer do ponto de vista retórico. Para Pico, pelo contrário, a linguagem é
algo muito secundário, tem uma natureza convencional e arbitrária (com-
positio nominum tota est arbitraria) e ao limite até se poderia prescindir
dela: «Podemos viver sem língua, por certo não comodamente, mas de
73
modo nenhum podemos viver sem coração.» Pode haver uma sabedoria
sem palavras (prodesse potest infantissima sapientia) e, em todo o caso,
seria sempre preferível à mens insipiens de um orador ou de um poeta,
como Lucrécio, o os insipidum de um filósofo, como Duns Escoto. Pois,
«este pode não conhecer os decretos dos gramáticos e dos poetas, mas
aquele não conhece de todo os decretos de Deus e da natureza. Este,
mesmo sem palavras, sente aquilo que, com palavras, não se pode louvar
suficientemente; aquele, falando eloquentemente, diz coisas nefandas.»74
Pico atinge ainda um outro ponto nevrálgico do Humanismo, nomea-
damente do de Valla, que, como sabemos, atribuía à língua latina o pri-
vilégio sobre todas as outras. Segundo o jovem Conde de Mirandola, não
é legítimo consagrar uma língua, por nobre que seja ou haja sido, como
expressão única do pensamento, pois isso levaria a desqualificar as for-
mas de pensamento de outras nações e culturas, antigas ou modernas
(Egípcios, Árabes, Hispânicos, Gauleses, Escoceses, Teutões, Britâni-
cos...), expressas nas respectivas línguas, tão ininteligíveis para um roma-
no como o Latim é incompreensível para elas. O pensamento não é refém
de nenhuma linguagem. Mais do que um purista da língua e um cultor da
elegância formal da linguagem ou um caçador de barbarismos e solecis-
mos nos outros, o filósofo deverá ser um hermeneuta, um decifrador de
linguagens, tentando captar a verdade que nelas se esconde, pois sob

71 Ibidem, p. 352.
72 «Habuisse barbaros, non in lingua, sed in pectore Mercurium, non defuisse illis sapien-
tiam, si defuit eloquentia.» Ibidem.
73 «Vivere sine lingua possumus, fortè non commodè, sed sine corde nullo modo
possumus.» Ibidem.
74 «Hic Grammaticorum, ne Poetarum dicam decreta nescit, ille Dei atque naturae: hic
infantissimus dicendo sentit ea, quae laudari dicendo satis non possunt, ille fando
eloquentissimus loquitur nefanda.» Ibidem.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 39

diferentes línguas e formas de expressão pode dizer-se uma só e mesma


verdade. É isso que Pico pratica, na procura da prisca sapientia dos Anti-
gos75, e revela nisso ter mais o sentido da relatividade de até da historici-
dade da linguagem do que muitos humanistas que se aferravam à imita-
ção das fórmulas do seu Cícero, e que consagravam ou sacralizavam uma
língua morta e estranha como cânone de expressão.
Ainda num outro aspecto essencial a concepção de filosofia de Pico
se opõe à filosofia retórica dos humanistas. Estes defendiam uma sabedo-
ria comum e aberta, de vocação popular e civil, dirigida ao juízo e
aplauso da multidão. Pico, mesmo nesta carta, expõe a sua pessoal con-
cepção de filosofia como verdade encerrada em enigmas, uma «secreta
philosophia», cujo entendimento está reservado aos poucos que o mere-
cem. Assim se justificam como expressões da verdade não só os mistérios
e as fábulas poéticas dos antigos, mas também a linguagem bárbara e
ininteligível dos filósofos. Como aqueloutras, também esta precisa de ser
decifrada para se chegar a apreender a sua substância. Escreve Pico: «não
escrevemos para o vulgo. [...] Tal como os antigos, com os seus enigmas
e invólucros das suas fábulas, afastavam os homens ignorantes dos misté-
rios, também nós costumamos afastar dos nossos banquetes, para que não
os poluam, aqueles que não suportam a casca amarga das palavras... É
preocupação dos filósofos ocultar a sua doutrina ao povo, pois, não sendo
conveniente que eles sejam pelo povo não só louvados mas nem sequer
entendidos, não fica bem que as coisas que escrevem tenham algo de tea-
76
tral, digno de aplauso, que se possa acomodar ao juízo da multidão.»
Não é a forma, o modo, o estilo, mas a matéria, a substância o que
importa ao filósofo. Pico está mais interessado na densidade e seriedade
dos problemas tratados pelos filósofos do que na qualidade da sua lingua-
gem e estilo: «perguntamo-nos sobre aquilo que escrevemos, não sobre o
como; mais: procuramos que seja sem pompa, sem flores do discurso, não
pretendemos que seja agradável, belo e elegante, mas que seja útil, grave

75 G. Pico Della Mirandola, Oratio de hominis dignitate, Opera omnia, vol. I, pp. 326 ss.
76 «Vulgo non scripsimus.[...] Nec aliter quam prisci suis aenigmatis & fabularum involu-
cris, arcebant idiotas homines a mysteriis. Et nos consuevimus absterrere illos a nostris
dapibus, quas non polluere non possent amariori paulum cortice verborum. [...] Simile
philosophorum studium, celare res suas populum, a quo cum non probari modo, sed
nec intelligi illos deceat, non potest non dedecere habere aliquid quae ipsi scribunt
theatrale, plausibile, populare, quod demum multitudinis iudicio accommodare se
videatur.» Ibidem, p. 354. Insistente na carta a Barbaro, neste tópico se condensa a
concepção de filosofia de Pico, de uma filosofia secreta e duma usura da verdade que é
dada a poucos, por contraste com a dos retóricos que propõem uma sabedoria popular,
para o vulgo, a todos comunicável e por todos susceptível de ser entendida, desde que
claramente e convenientemente exposta. A mesma concepção se encontra na Oratio de
hominis dignitate (Opera omnia, I, pp. 328-331), no Heptaplus (Ibidem, pp. 1-2), no
Commento (Ibidem, pp. 921-922).
40 Leonel Ribeiro dos Santos

e digno e que obtenha a majestade não pela delicadeza, mas antes pelo
horror.»77
Os títulos e virtudes do filósofo estão para o jovem Pico noutro
plano: na agudeza da investigação, na profundidade do pensamento, no
cuidado da observação, na seriedade do juízo, na pertinência da síntese,
na facilidade da análise, na capacidade para desfazer ambiguidades, resol-
ver dificuldades, deslindar o que é complexo e embrulhado, com a força
dos silogismos refutar o que é falso e confirmar o que é verdadeiro.
Exprimindo isso num estilo breve e simples, talvez mesmo desajeitado,
rude e bárbaro, mas prenhe de muitas e grandes matérias, rico de ideias,
versando sérias questões e respectivas soluções.78
Em suma: a Filosofia não necessita de vestes ou de ornamentos, de
tropos ou de metáforas. Querer adorná-la e esclarecê-la é ofuscá-la. A
posição de Pico é um qualificado exemplo da defesa da ideia da nuda
veritas ou nuda philosophia: «a Filosofia apresenta-se nua e quer-se natu-
ral e simples. Tudo o que se lhe acrescente adultera-a e corrompe-a.»79 Os
filósofos não devem ser censurados por não serem eloquentes. Devem sim
ser condenados se o forem. Reforçando retoricamente a sua ideia, Pico
contrapõe mesmo à veritas fucata dos humanistas uma veritas monstruosa
na sua aparência exterior e literária, mas rica, preciosa e divina na sua
medula, tal como os Silenos de Alcibíades, de rosto horrível, repugnante,
desprezível, mas por dentro cheios de pedras preciosas. A creditação do
filósofo resulta da qualidade moral da sua vida (si bonus fuerit), da verdade
efectiva do que diz (veritas rei), da sobriedade do seu discurso (sobrietate
orationis), ou seja, se ama aquele género de discurso que «não flui das
amenas florestas das Musas, mas do horrendo antro no qual, segundo
Heraclito, reside a verdade» (non ex amoenis Musarum sylvis, sed ex hor-
80
rendo fluxente antro, in quo dixit Heraclitus latitare veritatem).
Os argumentos de Pico são apoiados com abundantes comparações e
metáforas, por mais que expressamente diga que o filósofo deve abster-se
delas, como algo pernicioso.81 Também dá exemplos e invoca autoridades.
Entre estas destaca-se a de Platão, que eliminou os poetas da sua

77 «Quaerimus nos quidnam scribamus, non quaerimus quomodo, imo quomodo


querimus, ut scilicet sine pompa, & flore ullo orationis, quam nolumus ut delectabilis,
venusta et faceta sit, sed ut utilis, gravis & reverenda, ut maiestatem potius ex horrore,
quam gratiam ex mollitudine consequatur.» Ibidem, p. 353.
78 Ibidem, p. 354.
79 «Nuda se praebet philosophia... sinceram et impermistam se haberi vult, quicquid
admisceas, infecceris, adulteraveris.» Ibidem, p. 356. Também no Commento Pico se
propõe penetrar «alla intima pura & nuda verità» dos conceitos (Ibidem, I, p. 922).
80 Ibidem, pp. 354-355.
81 Ibidem, p. 356.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 41

república82 e muitos outros conceituados autores da antiguidade que, no


seu entendimento, terão não só praticado como defendido a absoluta
separação entre a sabedoria e a eloquência. Entre os exemplos, destaca-se
o de Sócrates, o qual, segundo Pico, expunha os seus ensinamentos «com
palavras nuas e simples» (verbis nudis et simplicibus).83 Simpatizante das
ideias religiosas e políticas de Girolamo Savonarola, Pico podia, por sua
vez, contar com a cumplicidade do frade dominicano neste ponto do seu
pensamento. Pois, num dos seus sermões, também o pregador do
convento de São Marcos escreve: «A verdade quer ser nua, e quanto mais
nua for, tanto mais atrai. Foi por isso que os apóstolos puderam mais com
a verdade nua e simples do que os oradores com as suas ornadas palavras
e os seus discursos cheios de eloquência. A verdade nua atrai os homens
para aquilo que repugna aos seus entendimentos, e isso nenhum orador
poderá alguma vez consegui-lo com a sua arte e a sua eloquência.»84

2. Ermolao Barbaro não esconde o seu embaraço perante o teor da


carta de Pico, a qual rapidamente cai no domínio público, e, dando fé às
declarações da parte final, recebe-a desportivamente como um desafio
que o seu jovem amigo lhe lança para ele próprio exercitar a sua capaci-
dade de defender adequadamente a eloquência, desfazendo os argumentos
do advogado dos filósofos bárbaros. Na sua resposta, Barbaro insiste nos
tópicos do pensamento humanista, defendendo os direitos da Retórica e
da eloquência, mormente naquelas disciplinas que não podem ser objecto
de demonstração apodíctica, como são as que tratam das coisas humanas,
onde há lugar apenas para a persuasão. Não deixa de apontar o abundante
uso de artifícios retóricos na carta de Pico. Pretendendo condenar e rejei-
tar por completo a Retórica, Pico mostra, de facto, como o filósofo a não
pode dispensar. E invoca também ele a autoridade não já dos oradores
mas dos dois maiores filósofos antigos para mostrar como eles realizaram
de facto a aliança entre a sabedoria e a eloquência, pois foram eloquentís-
simos (eloquentissimos viros fuisse) mestres e exemplos não só de filoso-
fia, mas também de eloquência (non solum philosophiae sed etiam elo-
quentiae praesides et antistites fuisse constat).85 Não parece, porém, ter

82 Ibidem, p. 355.
83 Ibidem.
84 «La verità vuol essere nuda, e quanto è più nuda, tanto più inclina. E però avemo
veduto che più hanno possuto gli apostoli con la nuda e semplice verità, che gli oratori
con le loro ornate parole e le loro orazioni piene di eloquenza. La nuda verità tira gli
uomini a quello che lo intelletto loro repugna, il che non arebbe mai potuto tirare
oratore alcuno con sua arte e sua eloquenza.» G. Savonarola, Prediche sopra i Salmi,
ed. a cura di Vincenzo Romano, Angelo Belardetti, Roma, 1969, p. 102.
85 Ermolao Barbaro, Epistolae, Orationes et Carmina, ed. cit., vol. I, p. 108. Veja-se: J.-
-C. Margolin, «Sur la conception humaniste du «Barbare»: a propos de la controverse
42 Leonel Ribeiro dos Santos

atingido o verdadeiro alcance do pensamento do conde de Mirandola,


nem ter correspondido cabalmente ao desafio que aquele lhe lançara para
o exceder no encómio da eloquência.

3. Talvez por se ter dado conta disso, por ter visto que no debate entre
o jovem advogado dos filósofos escolásticos e o humanista veneziano a
balança ficara inclinada demais para o lado da Filosofia, com manifesta
injustiça para a eloquência, um outro humanista entrará no debate, já no
século seguinte e volvidas várias décadas, forjando uma carta como se
fosse de Ermolao Barbaro, em que este responde aos argumentos de Pico
de um modo sistemático e de forma muito mais convincente. Pico terá
encontrado então o adversário à sua altura. O humanista em causa ocul-
tou-se desde o século XVI até muito recentemente sob o nome de Philipp
Melanchthon (1497-1560), o qual já em 1523, num Discurso sobre a
necessidade das artes da linguagem para todo o género de estudos (mais
conhecido por Encomion eloquentiae), havia feito uma explícita, embora
breve, referência crítica à carta de Pico86, de cuja tese discorda, e, a partir
da edição de 1542 dos seus Elementos de Retórica, publicara, em apên-
dice, as cartas respectivas de Pico e de Barbaro, acompanhadas de comen-
tários pessoais. A nova carta apócrifa, a que nos referimos, foi publicada
como apêndice, na edição de 1558 dos Elementos de Retórica do teólogo-
-humanista, precedida da carta de Pico a Barbaro. Todos os editores e
comentadores a consideraram, sem qualquer dúvida, como sendo da auto-
ria de Melanchthon e datada de 1558. Só muito recentemente esta autoria
e datação foram postas em causa.87 Mas, seja quem for o verdadeiro autor

epistolaire entre Pic de la Mirandole et Ermolao Barbaro», in: Una famiglia veneziana
nella storia: i Barbaro. Atti del Convegno (Venezia, 4-6 novembre 1993), Istituto
Veneto di Scienze, Lettere ed Arti, Venezia, 1996, pp. 235-276.
86 Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523), in Corpus Reformatorum, vol. XI,
col. 53: «Picus in epistola, qua barbaris philosophiae scriptoribus patrocinatur, ludens,
credo, in αδόζώ argumento et elegantiam a recte dicendi ratione separat et explicari res
qualicumque oratione posse censet.»
87 Num pequeno artigo publicado em 1992, Erika Rummel tentou provar que a referida
carta não é da autoria de Melanchthon, mas sim de um seu discípulo, Franz Burchard
(Franciscus Vinariensis), e que teria sido escrita em 1534, e não em 1558, como desde
os tempos de Melanchthon e até ao presente se tem pensado (E. Rummel, «Epistola
Hermolai nova ac subditicia: A Declamation Falsely Ascribed to Philipp Melanchthon»,
Archiv für Reformationsgeschichte 83, 1992, pp. 302-305). Todos os que têm tratado o
conflito Pico-Barbaro, não só os mais antigos (A. Festugière, Q. Breen, H. Gray), mas
também os mais recentes (F. Bausi, Nec rhetor neque philosophus, 1996, pp. 15,18 e 29;
Filosofia o eloquenza, 1998), seguindo Carolus G. Bretschneider, o editor das obras de
Melanchthon no Corpus Reformatorum (o qual, por sua vez, seguia todos os editores
das obras e da correspondência de Melanchthon desde a segunda metade do século
XVI, que davam a referida carta como «scripta a Melanchthone»), consideram a carta
datada do ano de 1558 e nunca puseram em causa que a respectiva autoria fosse de
Melanchthon. O mesmo faz Knape, no seu estudo e edição da Retórica de Melanchthon,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 43

da carta, não há dúvida de que, se não é o próprio Melanchthon, é um


humanista do seu círculo e a difusão e o alcance da nova carta a favor de
Ermolao contra Pico tomou a boleia da exposição das ideias melanchtho-
nianas sobre a Retórica, a que andou sempre associada. De resto, a longa

, publicado já depois do artigo de Rummel (v. J. Knape, Philipp Melanchthons


«Rhetorik», Max Niemeyer, Tübingen, 1993, pp. 13 ss). Não dispomos de elementos
decisivos para contestar a tese de Rummel, a qual todavia não responde satisfato-
riamente a algumas questões, nomeadamente: 1ª) Se a carta é de um discípulo de
Melanchthon e não deste (tratar-se-ia então de uma dupla apocrifia!), por que razão há
necessidade de o discípulo (ou alguém por ele) a fazer passar sob o nome do mestre?
Porque necessitava da autoridade deste, ou porque tinha consciência de que a carta,
assim duplamente fictícia, expressava com fidelidade as teses melanchthonianas sobre
a eloquência e a relação entre eloquência e filosofia? 2ª) Como entender que o teólogo-
-humanista se apropriasse de uma peça que não era sua, sendo ainda vivo o respectivo
autor que aliás bem conhecia? 3ª) Como explicar outras referências de Melanchthon ao
conflito Pico-Barbaro, não só no Encomion eloquentiae (1523), como na publicação
em Apêndice às edições dos seus Elementos de Retórica, a partir de 1542, das cartas
respectivas de Pico e Barbaro, seguidas de comentários pessoais, mas não da dita carta
apócrifa, que, ao contrário do que diz Rummel, só é publicada na edição de 1558 dos
Elementos de Retórica? 4ª) Como explicar a perfeita consonância das teses, dos tópicos
e até do uso de certas imagens características que se verifica nos escritos de Melanchthon
sobre a Retórica e a eloquência e nesta carta? A carta exprime perfeitamente o pensa-
mento melanchthoniano, razão pela qual o humanista-teólogo aceita publicá-la em
apêndice à edição de 1558 dos seus Elementos de Retórica, precedida pela carta de
Pico a Barbaro, por considerar que as duas peças «continent illustria exempla Dialectices,
quae adolescentibus ad intelligenda praecepta plurime conductura videntur», por uma
razão pedagógica, portanto. Mas, se a carta é datada de 1534 e se Melanchthon a
conhecia, é estranho que não a tivesse publicado em edições anteriores dos Elementos,
se reconhecia o seu interesse pedagógico. Em suma, mesmo que ponderosas razões
provem que a carta não é de Melanchthon e sim do seu discípulo Franz Burchard,
aquele, ao aceitar publicá-la numa obra sua e sob o seu nome, não está a apropriar-se
indevidamente de uma peça cujo autor ainda está vivo, mas a resgatá-la do esqueci-
mento e a conferir-lhe a autoridade do seu nome, pelo que o facto de Melanchthon não
ser o verdadeiro autor da peça em nada diminui o seu valor e significado enquanto
documento da pervivência do debate entre a racionalidade retórica dos humanistas e a
racionalidade dialéctico-metafísica dos escolásticos, mas antes o sublinha. De resto,
Melanchthon não aceitaria publicar a carta apócrifa se não reconhecesse que ela expri-
mia as suas próprias ideias sobre a matéria e é verosímil pensar que foram estas ideias
que terão inspirado o seu discípulo. O próprio Melanchthon terá não só autorizado a
sua publicação em apêndice ao seu manual, como teria dado alguma ajuda na sua
elaboração, como parece dizê-lo a expressão que acompanha as primeiras edições da
peça «edita cum dispositione Philippi Melanchthonis», expressão que, na primeira
edição da Correspondência de Melanchthon (Kaspar Peucer, Witemberga, 1565), foi
substituída por «scripta a Melanchthone». Que Melanchthon conhecia de há muito a
«nova carta apócrifa de Ermolao», da autoria do seu discípulo, parece sugeri-lo uma carta
sua a Göbler, do ano 1534, citada por Rummel, em que o teólogo-humanista se refere
com apreço ao seu discípulo «Franciscus» e ao seu livrinho – presumivelmente, segundo
Rummel, a nova carta de Ermolao –, que acabava de ser publicado (Corpus Reformato-
rum, vol. 2, p. 804, carta nº 1232). De resto, na edição de 1582 dos Elementorum rhetori-
ces Libri duo de Melanchthon (pp. 169-170), a carta apócrifa vem precedida e introduzida
por uma Dedicatória a Iustinus Goblerus assinada por Franciscus Vinariensis, uma peça
44 Leonel Ribeiro dos Santos

duração deste debate acerca da linguagem da Filosofia e o número e a qua-


lidade dos que nele intervieram só documenta a sua importância histórico-
-filosófica. Não se trata de um mero episódio, mas sim de um debate verda-
deiramente paradigmático e, assim o pensamos, de plena actualidade, mas
que não mereceu ainda a devida atenção por parte dos especialistas.88

Vejamos, então, o que diz a Carta nova e apócrifa de Ermolao, que


responde a Pico (Epistola Hermolai nova ac subdititia, quae respondet
Pico), publicada em apêndice à edição de 1558 dos Elementos de Retó-
rica (Elementorum rhetorices libri duo), de Philipp Melanchthon, prece-
dida pela carta de Pico.89
O seu autor começa por reduzir as teses de Pico a dois tópicos:
1º – atribuição aos bárbaros da ciência absoluta das coisas; 2º – defesa do
direito que têm os filósofos bárbaros de desprezar a eloquência. Mas em
substância toda a carta se resume, como observa, «não tanto numa defesa
dos bárbaros quanto num vitupério da eloquência».90 E são os pressupos-
tos piquianos deste sistemático desprezo da eloquência que o humanista
alemão vai identificar e refutar, mas não sem deixar de acusar Pico de ter
procedido mais como um sofista do que como um retórico, brincando
com coisas demasiado sérias, o que, por certo, não é digno de um verda-

88 que Rummel aduz como prova de que é este, e não Melanchthon, o verdadeiro autor da
carta. A passagem da Dedicatória que a seguir se transcreve poderia confirmar essa
ilação: «Hermolaus recitat quasdam suas pugnas, hoc ne agit quidem, ut refellat Pici
argumenta. Et haud scio an iudicio causam suam peragere noluerit, quod videret eam
non magis Epistolae convenire, quam si quis in exigua tabella ingentem Colossum velit
pingere, quod cum ipse animadverterem, caepi etiam languidiore animo scribere, et
quasi represso cursu restiti, ac breviter ostendi fontes argumentorum Pici, ut ab adoles-
centibus iudicari facilius possit, ubi ille quasi extra viam currat, dum in absurda materia
tuenda ludit.»
Com excepção para Quirinus Breen, que deu uma versão inglesa da carta («Melanch-
thon’s Replay to G.Pico della Mirandola», Journal of the History of Ideas, 13 (1952),
pp. 413-426) e lhe dedicou um artigo («The Subordination of Philosophy to Rhetoric in
Melanchthon. A Study of His Replay to G. Pico della Mirandola», Archiv für Reforma-
tionsgeschichte, 43 (1952), pp. 13-28).
89 Na edição de Witemberga 1558 dos Elementorum Rhetorices Libri duo, as cartas em
apêndice são assim apresentadas: «Epistolae contrariae, una Pici pro barbaris philosophis;
altera pro Hermolao Barbaro scripta a Philippo Melanchthone, quae respondet Pico». Na
ed. de 1582, há uma pequena alteração, caindo o nome de Melanchthon como autor e
sublinhando-se o carácter apócrifo da carta: «Epistolae contrariae: Pici pro Barbaris
Philosophis & Hermolai nova ac subdititia, quae respondet Pico». Na edição de C. G.
Bretschneider, no vol. IX do Corpus Reformatorum (Halis Saxonum, 1842), sob o nº
6658 das Epistolae de Melanchthon e sob o título «Responsio Philippi Melanchth. pro
Hermolao», a peça ocupa as colunas 687-703. Citamos por esta edição (CR).
90 «Tota enim oratio tua, non tam defensio est Barbarorum, quam eloquentiae vitupera-
tio.» CR, 690.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 45

deiro filósofo.91 E denuncia aquilo que costuma ser o vício comum de


todos os que condenam a Retórica, a saber, que o fazem, e talvez sem
disso se darem conta, à custa de extenuados processos retóricos: «é assim
que costumam retoricar os que desprezam os estudos da eloquência.»92 Ao
contrário de Pico, que separara a eloquência da sabedoria, o discípulo de
Melanchthon ou o próprio Melanchthon defendem que elas devem andar
unidas e que a eloquência não deve acompanhar somente as ciências e a
Filosofia, mas também a própria Teologia.93
Em primeiro lugar, critica a concepção piquiana da separação entre
sapientia e eloquentia, entre ratio e oratio, e a concepção de uma filoso-
fia muda, segundo a qual a mente poderia ao limite dispensar a lingua-
gem. Segundo o autor da nova carta, o uso da sabedoria seria nulo se não
fosse comunicado aos homens, e só pode sê-lo pela palavra. A mente não
pode explicar e exteriorizar os seus pensamentos sem a mediação das
palavras: «o uso da sabedoria seria completamente nulo se não pudés-
semos comunicar aos outros o que deliberamos e pensamos sapientemen-
te, e isso não pode ser feito sem uma grande abundância e variedade de
94
discurso.»
Sobretudo, é criticada e discutida a noção de eloquência de Pico. Ela
não é, como supõe o jovem filósofo, um enfeite que se acrescenta à dou-
trina para provocar prazer ou para enganar, nem um cultivo da afectação,
mas uma força e uma virtude peculiar dada aos homens em vista de uma

91 CR IX, 696: «Cum enim profitearis te Philosophiae ac veritati patrocinari, minime ea


fide ac simplicitate causam agis tuam, quam Philosophis tribui postulas. Quorsum enim
pertinent tam multae similitudines tuae undique collectae? quae non solum extenuant
Eloquentiae dignitatem, sed plane iubent velut pestem fugere, nisi ut fucum lectori
faciant, ne Eloquentiae dignitatem aspicere possit? Quaeso te utrum haec Rhetorica
sunt an Sophistica? Certe a viro Philosophico non apte dicuntur.»
92 «Sed sic solent rhetoricari, qui Eloquentiae studia vituperant.» CR IX, 699.
93 O importante impacto da Retórica na reforma da Teologia e dos estudos teológicos nos
séculos XV e XVI é um aspecto que merece um estudo próprio, podendo falar-se
também de uma «teologia retórica», da mesma forma que se pode falar de uma
filosofia retórica dos humanistas. Petrarca, Salutati, Valla, Erasmo e Melanchthon são
sem dúvida os principais protagonistas dessa retoricização da própria Teologia.
Reservamos para um próximo ensaio o tratamento deste aspecto do pensamento dos
humanistas. A figura de Erasmo, praticamente ausente neste ensaio, aparecerá aí em
maior evidência, sobretudo através de uma das suas últimas obras – Ecclesiastae, sive
de ratione concionandi libri IV (Basileia, 1535) –, um verdadeiro e completo manual
de retórica cristã, que desenvolve, no sentido do humanismo teológico, as ideias desse
outro clássico do pensamento retórico, também redescoberto pelos humanistas, que é o
De doctrina christiana de Agostinho de Hipona, e que, por sua vez, se constitui como
paradigma de um florescente género de «retóricas eclesiásticas». Veja-se neste volume
o ensaio «A teologia retórica dos humanistas», pp. 77 sgs.
94 «Nam usus sapientiae plane nullus fuerit, nisi sapienter deliberata atque cogitata
communicare aliis possimus, quod cum sine magna quadam copia et varietate orationis
fieri non queat.» CR, IX, 689.
46 Leonel Ribeiro dos Santos

real utilidade, a saber: «a faculdade de explicar com propriedade e clareza


os sentidos dos ânimos e dos pensamentos, que nisso serve também a
dignidade e a verdade das coisas, para que sejam ditas de modo apto e
correcto, amplificando as que são importantes e diminuindo as que
importa repelir.»95
O humanista insiste neste ponto: a eloquência, para além da função de
deleitar e de mover, tem uma efectiva função de ensino e de serviço da
verdade: «a elocução não é um culto vazio mas algo necessário para
explicar com verdade e propriedade todos os géneros de causas».96 O ofí-
cio do orador não consiste em enganar e mentir, como diz Pico, invocan-
do o Górgias de Platão, mas sim em «ensinar os homens com verdade
acerca das coisas mais importantes» (sed de maximis rebus verè docere
homines), «em ensinar os homens com correcção, com clareza e com dig-
97
nidade acerca das coisas boas e necessárias.»
Para confirmar a sua noção de eloquência contra a do humanista flo-
rentino, o autor da carta apócrifa recorre estrategicamente não aos retores
mas aos dois maiores filósofos antigos, Platão e Aristóteles, assim virando
contra Pico as suas próprias armas. Aqueles filósofos não são só consu-
mados exemplos de eloquência, mas são também mestres de eloquência e
autoridades no que respeita ao reconhecimento da sua importância e fun-
ção nas ciências e nos assuntos humanos. Escreve o autor da carta apócrifa:
«Aqueles príncipes dos filósofos definem a eloquência como a força con-
cedida por Deus ao género dos homens para que eles pudessem ensinar uns
aos outros, com propriedade e clareza, as coisas importantes e neces-
sárias, as religiões, a natureza das coisas celestes e das outras, o direito e
a justiça, todo o dever da virtude... Aqueles filósofos lembram que para
explicar as questões obscuras e sérias é necessário não só uma grande
prudência, que prevê as coisas boas, mas também uma certa maneira de
ensinar e um género de discurso mediante os quais o assunto de que fala-
98
mos se possa expor e oferecer claramente aos olhos dos homens.»
95 «Eloquentia, non est, ut isti somniant, accersitus cultus, sed est facultas proprie ac
dilucide explicandi animorum sensa ac cogitationes, qua in re etiam dignitati et veritati
serviendum est, ut apta et recta dicantur, et ut amplificentur res magnae, et eleventur ea
quae abiici prodest.» CR,IX, 690.
96 «Elocutionem non esse inanem cultum, sed necessarium ad causas omnis generis verè
ac propriè explicandas.» CR,692.
97 «Virum, qui de bonis ac necessariis rebus recte, dilucidè et cum dignitate quadam docet
homines, Oratorem nos vocamus.» CR,692.
98 «Definiunt igitur Eloquentiam hi Philosophorum Principes, vim esse divinitus hominum
generi concessam, ut de magnis et necessariis rebus, de religionibus, de rerum coelestium
atque aliarum natura, de iure ac iustitia, de omni virtutis officio, proprie ac perspicue
docere alii alios possint.[...] Atque illi ipsi Philosophi [...] admonent in obscuris et
gravibus causis explicandis opus esse, non solum prudentia magna, quae res bonas
praevidet, sed etiam via quadam et ratione docendi, et genere sermonis, quod res, de
quibus dicimus, plane exponere et subiicere oculis hominum possit.» CR, 691.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 47

Particular desenvolvimento dá o autor da nova carta à comparação


da Retórica com a Pintura – ut pictura rhetorica99 –, tópico que o seu mes-
tre Melanchthon já expusera largamente no seu Encomion eloquentiae
(1523), no contexto também duma explícita referência à carta de Pico a
Barbaro. Da substância da verdade faz parte a sua forma, a dignidade, a
pertinência e correcção com que é apresentada. O discurso – dizia aí
Melanchthon, evocando talvez um motivo do Fedro de Platão – deve ser
como um corpo bem proporcionado em todos os seus membros. Tal como
o pintor ao pintar os corpos faz consistir a elegância destes na justa
proporção de todos os seus membros que entre si se correspondem, e, se o
não fizer, representa um monstro, assim também aquele que deforma a
genuína imagem do discurso alterando o seu natural, torna-o completa-
mente monstruoso e inepto: «a elegância do discurso é a sua pureza e
100
aparência natural.» Esta mesma ideia é largamente explicitada na carta a
favor de Ermolao: «tal como o objectivo do pintor é imitar os corpos com
verdade e propriedade, assim o objectivo do orador ou da eloquência é
pintar e representar os próprios pensamentos do espírito com um género
de linguagem próprio e luminoso, e para isso necessita de deitar mão de
toda a variedade de cores, das palavras, das sentenças e das figuras e da
arte de o fazer, que é muito mais exigente do que pode sê-lo a arte do
mais perfeito e consumado pintor.»101
Tal como o fizera Barbaro, o autor da carta apócrifa não deixa de
apontar a Pico a contradição em que labora todo o seu discurso: disser-
tando contra a Retórica e sustentando a absoluta incompatibilidade entre
a Filosofia e a Retórica, ele abunda em recursos e expedientes de natureza
99 CR, 692: «Et quoniam quaedam picturae, atque Eloquentiae similitudo est (ut enim
pictura imitatur corpus, ita oratio pingit ac reddit animi sententias) libenter ab illa arte
mutuamur exempla.» Como mostra Rensselaer W. Lee (Ut pictura poiesis. Humanisme
et Théorie de la Peinture XVe-XVIIIe siècles, Macula, Paris, 1991), a troca era mútua,
pois também a Pintura se pensava por analogia com a Retórica e a Poesia e imitava os
respectivos procedimentos. Já L.B. Alberti, no livro III de De pictura (1435), diz que o
pintor deve aprender com os poetas e os retóricos «pois estes têm muitos ornamentos
comuns com o pintor, e não pouco o ajudarão a constituir perfeitamente a composição
da história os literatos, abundantes em notícia de muitas coisas, cujo principal louvor
consiste na invenção». Veja-se: J. R. Spencer, «‘Ut Rhetorica Pictura’. A Study in
Quattrocento Theory of Painting», Journal of the Warburg and Courtauld Institutes, 20
(1957), pp. 26-44.
100 «Ipsa orationis puritas nativaque facies elegantia est.» Encomion Eloquentiae, CR,
XI,53.
101 «Itaque ut Pictoris finis est, vere ac proprie imitari corpora... Ita Rhetoris, sive ita
vocari mavis, Eloquentiae finis est, ipsas animi cogitationes quasi pingere et reprae-
sentare proprio et perspicuo sermonis genere, qua in re cum elaboravit, magna ei
varietate quasi colorum, verborum, sententiarum et figurarum, denique etiam arte
quadam opus erit, ut ego quidem statuo, multo maiore, quam consummati et perfecti
Pictoris ars potest esse ulla.» CR IX, 690-691.
48 Leonel Ribeiro dos Santos

retórica. Discute, em especial, uma das metáforas usadas por Pico, na


qual este compara a Filosofia a uma donzela a quem o enfeite roubaria a
beleza natural, e a Retórica a uma matrona que necessita de enfeites para
esconder a falta de beleza do seu natural. O humanista alemão retorque
que se à donzela não convém o enfeite, também lhe não convém um rosto
monstruoso, como aquele que, na sua carta, Pico chega a propor para a
aparência da verdade. Mas este motivo metafórico dá-lhe ensejo para
explicitar o que entende por adorno ou enfeite do discurso: este não é
algo acrescentado, mas faz parte da natureza da verdade. A cor natural
que exprime com clareza e correcção o pensamento, eis no que consiste o
verdadeiro adorno. Por isso, segundo o autor da nova carta, «o bom dis-
curso não é o enfeitado, mas aquele que exibe a cor natural da sentença
ou pensamento; ao passo que o discurso estranho, confuso e perturbado
deforma e corrompe o sentido das frases e não cumpre aquele que deve
ser o ofício próprio da linguagem».102 Em suma: «o principal ornamento
do discurso é a própria explicação pertinente das coisas, da mesma forma
que o é nas pinturas o proporcionado contorno dos corpos»103 e, «tal como
a candura nas rosas, assim é ínsita a natural simplicidade no discurso do
104
filósofo».
Verdadeira e propriamente filósofo, segundo o humanista alemão, é
o orador, pois é este que, transferindo a filosofia para o uso e vida
comum, realmente ensina aos homens as doutrinas que são boas e úteis,
seja no plano do conhecimento da natureza, seja no plano da religião, seja
105
no plano da vida moral e civil, e o faz com clareza e dignidade. Um filó-
sofo assim não se dedica, como os filósofos bárbaros defendidos por
Pico, a discutir interminavelmente com outros acerca de supostas entida-
des fictícias que não entende nem para nada servem, e também não culti-
va, como Pico, uma sabedoria arcana ou secreta, que reserva para si ou
para um estreito círculo de iniciados. Pelo contrário, ele está animado do
desejo de comunicar a verdade a todos e de um modo que todos o enten-

102 «Nam ea oratio quae est optima, nativus sententiae color est. Aliena, confusa et
perturbata oratio deformat et corrumpit sententias, ac ne affingit quidem, quod debeat
esse orationis officium proprium.» CR, IX, 693-694.
103 «Praecipuus ornatus est ipsa rerum propria explicatio, ut in picturis iusta corporum
lineamenta.» CR, IX,695.
104 «Velut in rosis candor, ita in oratione Philosophi simplicitas quaedam insit nativa.»
CR, IX, 697.
105 CR, IX, 692: «Hunc enim virum, qui de bonis ac necessariis rebus recte, dilucide, et
cum dignitate quadam docet homines, Oratorem nos vocamus: quem tu Philosophum
velis vocari, nondum satis intelligo. Equidem Philosophum voco illum virum, qui cum
res bonas atque utiles humano generi didicit ab tenet, doctrina ex schola atque umbra
ad usum et Rempublicam transfert, docet homines aut de natura rerum, aut de religio-
nibus, aut de regendis civitatibus.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 49

dam: «Nós não falamos de coisas arcanas, que devem ser mantidas ocul-
tas, mas daquelas coisas que importa dizer e manifestar, e interpretamos
os próprios símbolos e os apólogos não com o intuito de encobrir os seus
ensinamentos, mas para que sejam como pinturas dos costumes, úteis
para excitar os ânimos a admirá-los.»106
Mas não é só na Filosofia que o humanista melanchthoniano defende
a importância da eloquência. Defende-a, tal como o seu mestre, também
na Teologia, e contrapõe a teologia eloquente dos Padres da Igreja à mísera
e esquálida teologia dos filósofos e teólogos escolásticos. Chega mesmo
ao ponto de afirmar, como também o faz Erasmo107, que não só os Padres,
mas também os livros da própria Sagrada Escritura – os Profetas, os
Evangelhos, as Cartas de Paulo – abundam de eloquência e de recursos
retóricos e poéticos, e só podem ser capazmente lidos e interpretados por
quem dominar as ciências do discurso. Estas, para proveito dos estudos
humanos e dos estudos teológicos, haviam sido felizmente restauradas, e
nessa ainda recente restauração via o humanista reformado um novo dom
das línguas, uma nova descida do Espírito Santo sobre a Igreja e a Huma-
nidade. Ora, pergunta o humanista, claramente partidário de uma teologia
de inspiração retórica contra a teologia de inspiração dialéctica e metafí-
sica dos escolásticos: «Porque razão se acrescentou ao Evangelho o dom
das línguas, se a eloquência é inútil para expor as matérias sagradas e
grandes? Pois, que outra coisa é o dom das línguas, senão a eloquência,
isto é a faculdade de explicar as coisas obscuras com clareza e abundân-
108
cia?»
Já se vê que também resulta insustentável a outra parte da tese de
Pico, segundo a qual nos filósofos «bárbaros» é que se encontraria a dou-
trina, a verdade, o conhecimento. Como podem ter a ciência, se não
entendem os meios pelos quais ela se alcança, se conserva, se transmite?
Como podem interpretar com pertinência os seus filósofos, como podem
entender as Sagradas Escrituras, se não sabem lê-los nas línguas origi-
nais, se ignoram as ciências da linguagem que permitiriam decifrar o seu
correcto sentido? O discípulo de Melanchthon desenvolve, na resposta a
Pico, uma ideia que o seu mestre expusera com grande convicção já nos

106 «Nos vero non loquimur de arcanis, quae pro tempore occultanda sunt, sed de illis,
quae efferri atque extare oportet, [...] deinde et Symbola et Apologos conditos inter-
pretor, non hoc consilio ut praecepta tegerent, sed ut essent veluti morum picturae,
utiles ad excitandos animos ad admirationem.» CR, IX, 698-699.
107 De Erasmo, vejam-se, nomeadamente: In Novum Testamentum Praefationes e Ratio
seu Compendium verae Theologiae, in Ausgewählte Schriften, ed. bilingue latim-
-alemão, de W.Welzig, WBG, Darmstadt, 1967, vol. III, pp. 22,144-146,150,160.
108 «Deinde cur divinitus additum est Evangelio donum linguarum, si Eloquentia inutilis
est ad res sacras et magnas exponendas? Quid enim aliud est donum linguarum, si
Eloquentia, hoc est, facultas plane et copiose res obscuras explicandi?» CR, IX,697.
50 Leonel Ribeiro dos Santos

seus escritos de juventude: «uma vez que Deus nos quis falar com pala-
vras humanas, é ineptamente que interpretam a linguagem divina os que
são ignorantes da Retórica.»109

Não conhecemos, em toda a vasta literatura dos humanistas dos


séculos XV e XVI, mais inspirado, consistente e equilibrado encómio da
eloquência do que esta carta, em apoio de Barbaro contra Pico, deste dis-
creto humanista, discípulo de Melanchthon, que se ocultou (ou ficou
oculto) sob o nome do seu mestre, garantindo assim um eco à sua «decla-
mação» que o seu próprio nome talvez não lhe pudesse garantir. A não
ser, precisamente, aquele outro Encomion eloquentiae, que o então ainda
jovem professor de Retórica da universidade de Witemberga publicara
em 1523. Todavia, nem um nem outro costumam figurar nos roteiros da
eloquência do Renascimento.110

4. A carta de Pico a Barbaro acerca da linguagem dos filósofos,


manifestamente exagerada na condenação da eloquência, não deixou de
ter impacto noutros pensadores posteriores. Dela podemos ouvir ainda o
eco no humanista valenciano Juan Luis Vives (1492-1540). Este toma
posição no debate coetâneo acerca do ciceronianismo, condenando a
imitação servil das frases ciceronianas e declara que muito mais excelente
e desejável do que ser um Cícero excelente no frasear é «saber toda a
filosofia que se escreveu acerca da natureza das coisas.»111 No capítulo
dedicado à análise da situação da Retórica e das causas históricas da sua
corrrupção, na primeira parte da sua obra De disciplinis (1531), defende,
expressamente contra Valla, a ideia de que qualquer língua, mesmo a
mais vulgar, é capaz de exprimir a eloquência, pois esta depende mais da
substância do pensamento do que do idioma em que este se diz. E remata
a sua reflexão com estas palavras: «Por certo, ninguém deve amar ou
aprovar a impureza e os vícios da linguagem [...]; mas, se for dado esco-
lher, quem não prefere uma linguagem desajeitada e sem ornamentos
acerca de coisas grandes e excelentes, a outra muito adornada e penteada

109 «Cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino inepte iudicaverint
imperiti artium dicendi.» Encomion eloquentiae, CR, XI,63;CR,IX,701-702.
110 Já Dilthey e, mais recentemente, Gadamer haviam chamado a atenção para o interesse
dos escritos retóricos de Melanchthon, mas isso não levou a que fossem estudados e
reeditados. Constitui excepção a este geral desinteresse a obra de Joachim Knape,
Philipp Melanchthons «Rhetorik», Max Niemeyer Verlag, Tübingen, 1993. Nela se
faz um amplo estudo da retórica melanchthoniana e se oferece, além do texto latino da
edição de 1531 (em versão facsimile da ed. Bretschneider de 1846 no vol. XIII do
Corpus Reformatorum), uma tradução alemã da obra.
111 Juan Luis Vives, Obras Completas, trad., comentários e notas de Lorenzo Riber,
Aguilar, Madrid, 1948, vol. I, p. 474.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 51

acerca de frivolidades?»112 No seu tratado de Retórica – De ratione


dicendi (1532) –, este tópico é ainda mais desenvolvido, em termos que
evocam a contraposição estabelecida por Pico entre palavras e coisas:
«Num filósofo, diz Cícero, se ele tem eloquência, não a rejeitarei, mas se
não a tem, também não a exigirei; pois a filosofia é uma ciência toda de
coisas e não de palavras, e é muito mais tolerável que o filósofo peque con-
tra as palavras do que contra a verdade; melhor e mais verdadeiro filósofo é
aquele que exprime coisas belas e elegantes num discurso pobre do que
aquele que profere coisas falsas e bagatelas de modo esplêndido e magní-
fico. Quem não tolerará uma boa sentença dita em Francês, Espanhol,
Alemão ou mesmo em Cita? e se se tolera nestas línguas, porque não se
tolera também num Latim defeituoso?»113

Mas não é este o único eco da polémica de Pico e Barbaro na obra de


Vives. Audível ainda é ele num sugestivo diálogo do mesmo humanista
(entre ele próprio e seu amigo Juan de Vergara), significativamente inti-
tulado A verdade enfeitada (Veritas fucata, 1522), onde se desenvolve
uma sugestiva fábula acerca da relação entre a Filosofia e a Poesia – entre
a verdade e a falsidade –, representadas, respectivamente, por Platão e
por Homero, a qual termina com um protocolo acordado entre ambos.
Tentemos resumi-la.
A verdade começa por ser caracterizada como simples, tosca, severa
e triste, acompanhada pelo medo e pelo ódio, levada no seu trono por um
ancião esquelético e saturniano. Dela quase todos fogem e mesmo os que
dizem segui-la não se entendem entre si. A falsidade, por seu turno, apre-

112 «Equidem sordes, et vitia sermonis nemo vel amare debet vel probare ...; sed, certe, si
detur optio, quis non malit multo immundum, spurcumque magis de rebus atque
excellentibus sermonem, quam de nugis comptissimum atque ornatissimum?» Juan
Luis Vives, De causis corruptarum artium, ed.cit., p. 180.
113 «Eloquentiam in philosopho si attulerit, non rejiciam, inquit Cicero: si non attulerit,
nec requiram; philosophia enim omnis, ars est rerum, non vocum, et tolerabilius est
philosophum peccare in verbo, quam in veritate; melior scilicet ac verior philosophus
est, qui sordida oratione res pulchras atque elegantes promit, quàm contra, qui vel
falsa, vel nugas projicit splendide ac magnifice; bonam sententiam quis non ferat vel
Gallice, vel Hispane, vel Germanice, vel etiam Scythice prolatam; si his linguis, cur
non etiam Latine imperite?» Juan Luis Vives, De ratione dicendi, lib. III, cap. VIII,
ed.cit., p. 280. Esta mesma atitude se encontra amplamente desenvolvida, e atribuída
ao filósofo Pietro Pomponazzi, na obra de Sperone Speroni, Dialogo delle lingue
(1542): «Io ho per fermo, che le lingue d’ogni paese, così l’Arabica e l’Indiana, come
la Romana e l’Ateniese, siano d’un medesimo valore [...] che lingua alcuna del
mondo, sia qual si voglia, non possa aver da se stessa privilegio di significare i
concetti del nostro animo [...] onde chi vorrà parlar di filosofia con parole Mantovane
o Milanese, non gli può esser disdetto a ragione; più che disdetto gli sia il filosofare e
l’intender la cagion delle cose.» (ed., trad. e introd. de Helene Harth, W. Fink,
München, 1975, segundo o texto da ed. de Veneza 1740, pp. 193-194).
52 Leonel Ribeiro dos Santos

senta-se elegante, cortez, com ar palaciano, bem vestida e enfeitada. O


contraste é total: de um lado, a mentira, o disfarce, a astúcia, a fraude, a
adulação. Do lado da verdade, tudo está à vista, tudo é patente, tudo é
simples, certo, sólido. A conciliação entre as duas partes é impossível,
pois a verdade não consegue fazer-se impôr pelos seus argumentos e os
distúrbios são permanentes entre os seguidores de uma e de outra. É então
que, a bem da paz pública, se decide um concílio: os discípulos da verda-
de designam Platão para os representar, enquanto os cultores da falsidade
elegem Homero. Chegado à morada da verdade, Homero tenta convencê-
-la de que ela seria muito mais admirada e desejada se se apresentasse
vestida e adornada, pois aquele que fosse por ela atraído, ao tirar-lhe o
véu e deparar-se então com o seu corpo, sentir-se-ia mais grato e como
que recompensado pelo seu esforço e amá-la-ia ainda mais. Ao que a ver-
dade responde que prefere mostrar-se nua, que sem mais atavios do que
os da sua casta nudez vale muito mais no apreço dos homens, que no seu
natural, percebido rectamente pelo espírito humano, é infinitamente mais
agradável e capaz de despertar amores incríveis. Homero insiste que ele
conhece bem a natureza dos homens e sabe que as coisas não se passam
como a verdade diz. Sobreveio a noite. Homero pediu que o conduzissem
à república de Platão, onde este lhe negou entrada, mas ainda assim pôde
aperceber-se de que nela só existiam dois habitantes – o próprio Platão e
Sócrates – e que era um campo de solidão e de aborrecimento. A verdade,
por sua vez, passou a noite reflectindo demoradamente com os seus con-
selheiros sobre a poposta de Homero de passar a apresentar-se adornada e
sob disfarces poéticos e retóricos. E, na manhã seguinte, resolveu aceitá-
-la, sob condições que ela mesma estabeleceu e comunicou a Homero.
Entre estas não só constava a liberdade de os poetas inventarem ficções e
de os moralistas recorrerem às fábulas e apólogos como expressamente se
determinava que «em todo o tempo fosse permitido a todo o tipo de escri-
tores envolver a verdade em enigmas, em parábolas, em metáforas.»114

Esta peça, construída em torno do tópico veritas nuda – veritas


fucata, representa mais do que um mero exercício retórico do grande
humanista e filósofo valenciano. Ela desenvolve uma importante reflexão
acerca da condição retórica da verdade e do pensamento, exposta sob a
forma retórico-poética da fábula, e bem poderia colocar-se ao nível do
conhecido ensaio de Nietzsche Sobre a verdade e a mentira numa pers-
pectiva para além da moral.

114 Obras Completas I, pp. 883-893. A posição de Vives relativamente às fábulas poéti-
cas está desenvolvida também no De ratione dicendi, lib. III, cap. V-VII.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 53

Mas será que Homero e a sua família de poetas e oradores podem


confiar por muito tempo no acordo conseguido nos aposentos da ver-
dade? Não se levantará de novo Platão com o seu Sócrates contra a turba
dos sofistas e enganadores? Com efeito, é isso que parece significar a
obra que um filósofo platónico – chamado Francesco Patrizi da Cherso
(1529-1597) – publica em Veneza, em 1562, com o título Dez Diálogos
da Retórica115, na qual reedita e desenvolve amplamente todos os argu-
mentos que Platão no seu Górgias havia lançado contra a Retórica, consi-
derando-a não só desnecessária como perniciosa numa cidade bem orde-
nada e governada pela razão, onde devem valer as proposições verdadei-
ras da Filosofia e não as opiniões verosímeis e prováveis dos retóricos. A
Retórica pode ter o seu lugar nos «estados popularescos», sujeitos ao
tumulto das paixões e dos sentimentos.116 Na cidade ideal, porém, onde
impera a lei da razão, interpretada pelo conselho dos sábios, onde tudo está
determinado e fixado de uma vez por todas, onde a verdade se impõe por
um processo demonstrativo, numa cidade assim – que corresponde à Città
felice (1553) desenhada pelo mesmo Patrizi – não há lugar para a Retórica
e seus cultores, os oradores, que não passam de ignorantes, enganadores e
homens malvados e perigosos. Patrizi vai ao ponto de afirmar que a Retó-
rica não é ciência, mas apenas uma habilidade117, e que não tem matéria que
lhe seja própria, nem mesmo os ornamentos do discurso.118 Em suma, o que
resulta destes diálogos é a completa desqualificação da Retórica.
Os Diálogos sobre a Retórica de Patrizi não representam só uma tar-
dia intervenção no grande debate acerca da relação entre Filosofia e Retó-
rica, protagonizado por Pico e Barbaro no final do século anterior. Eles
têm também um carácter prenunciador. Quando o platónico Francesco
Patrizi morre, em 1597, acabava de nascer, em 1596, o filósofo que have-
ria de legitimar a utopia de um mundo do pensamento regido pela razão,
pela ciência, pela mathesis. Segundo alguns, também um mundo e um
pensamento sem retórica.

115 Della Retorica Dieci Dialoghi, ristampa anastastica dell’edizione Venezia 1562, a
cura di Anna Laura Puliafito Bleuel, Conte Editore, Lecce, 1994. Sobre Patrizi, veja-
-se: Eugenio Garin, «Nota su alcuni aspetti delle retoriche rinascimentali e sulla
‘Retorica’ del Patrizi», Archivio di Filosofia, 3 (1953), pp. 7-56; Benedetto Croce, «F.
Patrizi e la critica della retorica antica», in B. Croce, Problemi di estetica e contributi
alla storia dell’estetica italiana, Laterza, Bari, 1966, pp. 299-310; L. M. Brisca, «La
retorica di F. Patrizi o del platonico antiaristotelismo», Aevum, 26 (1952), pp. 434-
-461.
116 Della Retorica, Dialogo VII, pp. 41-43.
117 Ibidem, Dialogo VIII, p. 48.
118 Ibidem, Dialogo V, p. 32.
54 Leonel Ribeiro dos Santos

IV
A CRISE DO PARADIGMA RETÓRICO DO PENSAMENTO
HUMANÍSTICO NOS SEUS PRINCIPAIS MOMENTOS E ASPECTOS

Um dos aspectos mais complexos do problema que aqui nos ocupa, no


espaço do Renascimento, é o da relação entre a Retórica e a Dialéctica, ao
qual já acima brevemente nos referimos. Entre os humanistas do século
XV, a Retórica tende a desempenhar a função que na Idade Média fora
desempenhada pela Dialéctica e esta, quando cultivada, tende a ser consi-
derada também como uma ciência do discurso subordinada à Retórica ou
nela englobada. Muitos humanistas são autores simultaneamente de tra-
tados de Retórica e de Dialéctica (Jorge de Trebizonda, Juan Luis Vives,
Philipp Melanchthon, Pedro Ramo...), encontrando espaço, objecto e fun-
ção próprios para cada uma delas e reconhecendo a necessidade tanto de
uma quanto de outra, embora por vezes alguns acabem confessando a
dificuldade de separar uma da outra e reconhecendo que tanto os dialéc-
ticos necessitam da Retórica como os oradores necessitam da Dialéctica,
aparecendo estas misturadas nos discursos de uns e de outros. Coluccio
Salutati dá testemunho de uma posição de equilíbrio quando, numa das
suas obras, assim resume a função específica das diferentes ciências ser-
mocinais: «philosophia ergo demonstrat, dialectica probat, rhetorica
persuadet, grammatica vero docet.»119 Uma ensina a outra move, uma
aponta a via ao entendimento, a outra inclina a vontade para a acção. Um
dos mais expressivos testemunhos do reconhecimento da afinidade e fecun-
da contaminação entre as duas disciplinas encontra-se em Melanchthon, no
início do Livro I dos seus Elementos de Retórica.120
Mas houve posições extremas, tanto para um lado como para o
outro, procurando uns minimizar a importância da Dialéctica enquanto tal
e reduzi-la à Retórica, como vimos em Valla e Nizolio. Outros, em contra-
partida (e não falamos já dos filósofos escolásticos ou dos seus advogados
como Giovanni Pico della Mirandola), reagirão à tentativa de absolutização
da Retórica por parte dos humanistas e, embora continuem a reconhecer-
-lhe uma especificidade própria no domínio da elocução e do estilo,
retiram-lhe partes substanciais – designadamente a inventio e a dispositio
ou mesmo a memoria – que incorporam como tarefas essenciais de uma
nova Dialéctica diferente da que era praticada pelos pensadores escolásti-
cos. É o que acontece de forma moderada em Vives e Melanchthon e de
forma programática e radical em Rudolfo Agricola e Pedro Ramo.
119 Coluccio Salutati, De laboribus Herculis, ed. crítica de B. L. Ullman, Thesaurus
Mundi, Zürich, 1951, vol. I, cap. 3, p. 17.
120 Veja-se adiante, nota 136.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 55

1. A obra de Rudolfo Agricola (1443-1485) – De inventione dialec-


tica –, publicada em 1515, 30 anos após a morte do seu autor, exerce uma
poderosa influência por todo o século XVI, reconhecível em Vives, em
121
Johannes Sturm, em Erasmo , em Melanchthon, em Lutero, e sobretudo
em Pedro Ramo. Ela decide uma reorientação do pensamento da Retórica
dos humanistas para uma nova Dialéctica humanista que vai buscar à Retó-
rica os seus principais domínios: a inventio e a dispositio, ou seja os tópi-
cos e o método. Falecido no mesmo ano em que decorreu o debate entre
Pico e Barbaro, Agricola é o principal responsável pela destruição da
concepção humanista da Retórica como ciência suprema, do mesmo modo
que Pico foi o principal responsável pela dissolução da crença na afini-
dade e unidade entre a sapiência e a eloquência, preconizada pelos huma-
nistas desde Petrarca.
Em que se traduz o efeito da Invenção Dialéctica de Agricola sobre
o estatuto humanista da Retórica? Em três aspectos essenciais:
1º – Na absorção pela nova Dialéctica daquilo que a tradição do pen-
samento retórico, desde Cícero, considerava serem partes integrantes da
Retórica: a inventio e a dispositio. Agricola não considera isso uma expo-
liação da Retórica, mas a recuperação, por parte da Dialéctica, de domí-
nios que eram originariamente seus e de que os retóricos se vieram a apo-
derar posteriormente. As relações entre Dialéctica e Retórica invertem-se,
voltando a Dialéctica a ser considerada como a ciência de todo o conheci-
mento provável. Posição absolutamente simétrica da de Valla, que atrás
analisámos: neste, fora a Dialéctica a usurpadora da doutrina da refutação
que era reconhecida como parte de uma das partes da Retórica. Que resta
agora para a Retórica? As suas outras partes: memoria, elocutio e pronun-
tiatio. Mas o domínio que lhe é reconhecido como peculiar é o da elocu-
ção. Perdida a função de conhecimento, resta-lhe ocupar-se do ornamento
do discurso, do cultivo e composição da frase, do estilo (sed perspicuitas
122
solum, compositio cultusque orationis suus futura sunt labor).
2º – Na generalização da Dialéctica como disciplina que se aplica a
todas as matérias que sejam objecto de conhecimento provável (e todas o
são, porque mesmo o conhecimento necessário tem de ser provável ou
possível) e na definição da mesma como uma arte do raciocínio argu-

121 O apreço do humanista de Roterdão pelo humanista frisão (de quem foi aluno no colé-
gio de Deventer) está patente neste passo dos Prefácios ao Novo Testamento: «Rudol-
phus Agricola, unicum Germaniae nostrae lumen et ornamentum...». Erasmus, In
Novum Testamentum Praefationes (1516), Ausgewählte Schriften, III, WBG,
Darmstadt, 1990, p. 46. Mais alargado ainda é o encómio no Ciceronianus sive de
optimo dicendi genere (1528), Ausg. Schriften, VII, pp. 276-278.
122 De inventione dialectica, 214.
56 Leonel Ribeiro dos Santos

mentativo acerca de todas as coisas (ars probabiliter de qualibet re pro-


posita disserendi, prout cuiusque natura capax esse fidei poterit).123
Agricola vê a sua empresa como um regresso a Aristóteles, com o
propósito de o corrigir e aperfeiçoar, reunindo a Retórica e a Dialéctica. O
Estagirita considerava-as como a antístrofe uma da outra, mas há lugares
onde considera a Retórica como parte da Dialéctica, entendida esta como
a doutrina de todo o tipo de prova e também, por conseguinte, do enti-
mema ou raciocínio retórico. Se efectivamente se valoriza a Retórica pelo
seu raciocínio específico e se a doutrina geral do raciocínio provável é a
Dialéctica, é difícil não ver como há pelo menos uma zona que é pertença
comum das duas disciplinas e é nessa zona comum que vai decidir-se a
proposta de Agricola. Para além da Dialéctica dos escolásticos e da Retó-
rica dos humanistas entendida como uma disciplina universal, a nova
Dialéctica de Agricola propõe-se como a nova ciência integradora dos
raciocínios e dos discursos, como uma ars disserendi universalis, em
relação à qual a Retórica tem uma função muito restrita e subordinada.124
3º – Na subordinação de todas as funções do discurso (docere, move-
re, delectare) à função propriamente cognitiva, à qual se liga a função
motiva, mas não a de provocar prazer: as duas primeiras funções são
essenciais e universais, mas a última depende da psicologia dos ouvintes.
Só as primeiras são tarefa do dialéctico, cabendo a última ao orador.125 A
unidade orgânica das funções do discurso, pressuposta pela Retórica dos
humanistas, fica assim rompida.
A partir da segunda década do século XVI, com a divulgação da
obra de Agricola, a Dialéctica assume papel cada vez mais importante,
como uma doutrina do método de invenção, como instrumento do conhe-
cimento provável. Em contrapartida, a Retórica vai ver progressivamente
reduzido o seu âmbito e redefinida a sua função. Mas isso não afecta de
imediato o geral reconhecimento da sua importância, nem põe em causa a

123 Ibidem, 212.


124 Ibidem, 242: «Dialectices officium est, probabiliter dicere, ut de quoque certissima et
percepta maxime dicentur, licet ex mediis deducta sint artibus, ita maxime ex dialecti-
ces instituto iureque fiet... Materiam igitur dialectices sciamus omne id esse, de quo
probabiliter est disserere, hoc est, quod proposuimis, quaestio omnis, quaecunque
demum ea sit, dum tamen meminerimus res, et de quibus et per quas disserimus, ex
singulis cuiusque artibus sumi, disserendi autem ordinem rationemque ad dialecticen
pertinere.»
125 Ibidem, 228: «Sunt tamen et ista persaepe coniuncta, ut, que delectat praecipue,
optime etiam doceat oratio, sed et fidei quandoque locum occupat voluptas. Diversas
tamen sunt et diversas habent causas. Docere ergo vel (si id malimus) probabiliter
dicere, proprium est disserentis ... munus. Movere (ad inveniendi rationem) ostendi-
mus cum docendi officio coniunctum esse. Delectare, quoniam auditoris gratia expe-
titur, ad rhetorem rectius pertinebit.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 57

prossecução do ideal humanista da eloquência e da necessidade de a unir


com a sabedoria, com a Filosofia e até com a Teologia. Um género muito
cultivado entre os humanistas continua a ser o dos discursos de elogio da
eloquência.

2. Juan Luis Vives, no seu De ratione dicendi (1532) recupera toda a


tradição do pensamento retórico, não só a dos clássicos latinos (Cícero e
Quintiliano), mas também a dos Padres da Igreja, em particular a de
Santo Agostinho. Mas adverte-se nele uma preferência por Aristóteles,
que considera «o grande mestre e o mais engenhoso artista nessa maté-
ria... que a todos leva vantagem pela sua perspicácia». Num opúsculo em
que faz a apreciação das várias obras de Aristóteles, apresenta o Estagi-
rita como o verdadeiro inventor da Retórica e o que ao mesmo tempo a
126
levou à perfeição. Vives, de facto, não segue a definição de orador dada
por Quintiliano, por a considerar um ideal irrealizável. E até ironiza:
«Quintiliano diz que o orador é o homem bom perito em falar, mas gran-
de fadiga e suor lhe custa manter essa definição... A mim dão-me pena os
esforços desse homem tão sério que quis harmonizar extremos que de si
são tão discordes e de duas coisas que se contradizem quis fazer uma
só.»127 Está dado assim o mote que posteriormente será desenvolvido, de
forma agressiva e sistemática, por Pedro Ramo, contra os grandes mestres
da racionalidade retórica, nomeadamente contra Cícero e Quintiliano. O
humanista valenciano segue Agricola, reivindicando para a Dialéctica a
invenção dos argumentos, que os retores haviam usurpado, e conferindo a
essa ciência um âmbito universal, já que ela se ocupa não só dos discur-
128
sos mas de todas as coisas.
Mas Vives também não aceita a identificação da Retórica com a
sabedoria, proposta por Cícero e seguida pelos humanistas quatrocentis-
tas: «ao proclamar que a Retórica é a sabedoria, a saber, o método do
pensar, a razão do falar e a força do dizer, ele confunde e mistura o que é
diversíssimo e opina que pertence à mesma arte o bem sentir e o bem
129
dizer» , coisas que diferem pelo fim, pela matéria, pela prática. Outro
126 Obras I, pp. 981-982.
127 «Quintilianus colligit … oratorem esse virum bonum dicendi peritum; in quo ita
laborat, et sudat, … ut me gravissimi viri misereat, qui res tam diversas natura voluerit
conjungere, et ex duabus invitis et reluctantibus unam facere». De causis corruptarum
artium, p. 158.
128 Ibidem, p. 130: «totam eam partem, quae est de argumentis inveniendis, occuparunt
Rhetores.»; p. 112: «Dialecticae erat praecipuum, tradere instrumentum inveniendi.»;
ibidem: «non solum est de sermone Dialectica, sed de rebus, et quidem omnibus.»
129 «Cicero … Oratoriam facit esse sapientiam, nempe, cogitandi pronuntiandique ratio-
nem, vimque dicendi: et confundit quae sunt discretissima; atque ejusdem esse artis
bene sentire, et bene dicere.» Ibidem, p. 158.
58 Leonel Ribeiro dos Santos

ponto que será levado à exaustão por Ramo nas suas diatribes contra os
dois grandes mestres da retórica romana.
O humanista valenciano não deixa de sublinhar a importância e
poder da Retórica, dada a influência que reconhece à linguagem sobre a
sociedade e sobre o próprio espírito e pensamento e também pelo peso
que, na sua antropologia, atribui à vontade e aos afectos, o que o leva a
reconhecer que a plena finalidade da linguagem se cumpre nas três
130
dimensões do ensinar, do deleitar e do mover. Eis as suas palavras: «A
Retórica é de grande influência e é necessária para todas as situações da
vida. Pois no homem a lei suprema e o governo estão na vontade, à qual a
razão e o juízo servem de conselheiros, sendo as paixões as suas tochas. É
um facto que as paixões da alma são acesas pelas palavras as quais são
como chispas ou centelhas que excitam, alteram e movem a própria
razão. A Retórica faz com que a palavra exerça uma eficácia enorme no
homem todo e a manifeste em acto. Não foi sem razão que Eurípedes
chamou tirana à eloquência.»131
Ao contrário de Quintiliano, que desenvolve uma concepção mora-
lista da Retórica, Vives expõe uma concepção técnico-pragmática dessa
arte, generalizando-a a todo o tipo de discursos e de matérias. E, seguindo
a proposta de Agricola, Vives reserva para a Dialéctica a invenção dos
argumentos a respeito de todo o tipo de assuntos, embora reconheça que
foram os retóricos, nomeadamente Cícero, os que primeiramente soube-
ram tirar proveito da tópica aristotélica e só mais tarde os dialécticos
acordaram para ocupar essa parte relativa à invenção dialéctica, como se
fosse uma coutada alheia.132 Reintegrada a inventio e a dispositio na nova
Dialéctica, entendida como um organon do conhecimento provável (ins-
trumentum probabilitatis)133, também para Vives o que de mais próprio
resta à Retórica é a elocução.

3. Um outro pensador que merece referência em relação ao problema


da redefinição do espaço e do estatuto da Retórica na primeira metade do
século XVI é Philipp Melanchthon. Professor de Retórica na universidade
de Witemberga e autor de vários manuais tanto de Dialéctica como de
Retórica134, o seu pensamento evoluíu de um menor para um progressivo

130 De tradendis disciplinis, II, Lib.IV, cap. 3, Obras Completas, I, p. 622.


131 Ibidem, p. 621.
132 Obras I, p. 976.
133 Veja-se a obra de Vives, De instrumento probabilitatis, in De artibus libri octo,
Brugis, 1631, fo.61r-73.
134 Para uma análise do conteúdo das sucessivas versões da Retórica melancthoniana,
veja-se: Joachim Knape, Philipp Melanchthons ‘Rhetorik’, pp. 24-54.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 59

maior apreço pela Retórica enquanto disciplina. Segue nesta matéria


sobretudo Cícero e Quintiliano, que considera superiores aos Gregos,
incluindo Aristóteles. Embora acusando o efeito da influência da obra de
Agricola, sobretudo na juventude, em que atribui à Dialéctica o que outros
na sua época atribuem à Retórica135, concebendo aquela simultaneamente
como um artificium inveniendi e como uma «doutrina do método para
todas as questões», Melanchthon acabará por desenvolver uma posição
própria de equilíbrio entre as duas disciplinas, na qual sublinha a afini-
dade, a união e a inseparabilidade da Dialéctica e da Retórica, mostrando
que não se pode entender uma sem a outra. Embora seja função peculiar
da Dialéctica o ensinar e da Retórica o mover, nem os dialécticos na sua
função de ensino podem dispensar a Retórica, nem os oradores podem por
sua vez dispensar os argumentos e raciocínios dos dialécticos. O nexo
entre as duas disciplinas é tão íntimo que é difícil ou mesmo impossível
assinalar a fronteira entre uma e outra. A inventio e a dispositio, os loci
argumentorum, são usados tanto pelo dialéctico como pelo orador, com a
diferença que a Retórica acrescenta à verdade nua da Dialéctica as vestes
da elocução. À Dialéctica cabe ensinar, à Retórica cabe mover e conven-
cer, unindo à clareza do raciocínio a eficácia operativa das suas técnicas.
Demos a palavra ao humanista: «É tanta a afinidade entre a Dialéctica e a
Retórica, que dificilmente se pode notar uma diferença. Alguns julgam
que a invenção e a disposição são comuns a ambas as artes, e que os dia-
lécticos ensinam os tópicos da invenção dos argumentos que os oradores
também costumam usar. Dizem que a diferença é esta: a Dialéctica propõe
as coisas nuas, ao passo que a Retórica acrescenta a elocução como se
fosse um vestido. Embora alguns censurem esta distinção, eu não a repu-
dio, porque... ela mostra aquilo que a Retórica tem de maximamente pró-
prio, ou seja a elocução... E quem quiser analisar com subtileza verá que
esta distinção se pode defender com razão. Se a Retórica não versar ape-
nas acerca de matérias forenses e persuasórias, mas em geral acerca de
todas as matérias das quais se pode falar, de modo nenhum se pode sepa-
rar dela a Dialéctica que define o método de ensinar perfeitamente. Com
frequência o orador usa este método ao ensinar, como faz Cícero no pri-
meiro livro Dos Deveres, e em outras muitas disputas segue os preceitos

135 «...nos dialecticam, alii rhetoricam vocant: Nominibus enim variant auctores, cum ars
eadem sit.» Philipp Melanchthon, De corrigendis adolescentiae studiis (1518), Werke
in Auswahl, Bd. III: Humanistische Schriften, ed. de R. Nürnberger, Gütersloher
Verlagshaus Gerd Mohn, Gütersloh, 1969, pp. 34-35. A influência de Agricola é patente
neste discurso de juventude em que, para Melanchthon, a Dialéctica se ocupa de toda a
linguagem e é considerada como método universal para tratar todo o tipo de questões:
«dialectica… methodus quaedam est omnium quaestionum compendiaria… qua constat
ordo et iudicium cuiusque rei tractandae, ut in quoque videamus, quid, quantum, quale,
cur, quomodo, si simplex sit; sin complexum, verum ne an falsum.» Ibidem, p. 35.
60 Leonel Ribeiro dos Santos

dialécticos ao ensinar e acrescenta a elocução da Retórica. E nos nossos


tempos o mesmo fazem os homens cultos e eloquentes quando ensinam
os homens em assuntos de religião. Os antigos distinguiam-nas atribuindo
à Retórica as matérias forenses e persuasórias e à Dialéctica todas as outras
questões, acerca das quais os homens devem ser ensinados segundo um
certo método. De acordo com esta distinção o fim próprio da Dialéctica é
ensinar, o da Retórica porém é mover e impelir os ânimos, e despertar
neles algum afecto; quando, por exemplo, disputamos acerca da natureza
da virtude, consulta-se a Dialéctica para que mostre o que é a virtude,
quais as suas causas, partes e efeitos. Quando, porém, exortamos os
homens para a prática da virtude, devem seguir-se os tópicos retóricos....
Mas, porque os oradores também não podem prescindir de um método de
ensinar, sobretudo nas matérias forenses, também eles misturaram a dia-
léctica na sua obra... Tiraram dela a forma dos silogismos e muitos outros
preceitos. De tal modo está misturada a Dialéctica com a Retórica que
quase não é possível separá-las.»136

4. Se se pode dizer que a obra começada por Valla, em meados do


século XV, de redução da Dialéctica e da Filosofia à Retórica, foi consu-
mada por Nizolio, no início da segunda metade do século XVI, inversa-
mente, pode também dizer-se que a obra iniciada por Rudolfo Agricola

136 «Tanta est dialecticae et rhetoricae cognatio, vix ut discrimen reprehendi possit.
Quidam enim inventionem ac dispositionem communem utrique arti putant esse, ideo
in dialecticis tradi locos inveniendorum argumentorum, quibus rhetores etiam uti
solent. Verum hoc interresse dicunt, quod dialectica res nudas proponit. Rhetorica
vero addit elocutionem quasi vestitum. Hoc discrimen etsi nonnulli reprehendunt, ego
tamen non repudio, quia et ad captum adolescentium facit, et ostendit, quid rhetorica
maxime proprium habeat, videlicet elocutionem, a qua ipsum rhetorices nomen
factum est. ac si quis subtiliter existimabit, intelliget hoc discrimen recte defendi
posse. Si enim rhetorica non tantum versatur circa forenses et suasorias materias, sed
in genere circa omnes materias, de quibus dicendum est, nullo modo poterit ab ea
divelli dialectica, quae est ratio perfecte docendi. Saepe enim orator utetur hac via in
docendo, ut Cicero in primo Officiorum, et in aliis multis disputationibus, praecepta
dialectica sequitur in docendo, et addit elocutionem ex rhetorica. Et nostris tempori-
bus idem faciunt homines eruditi et copiosi, cum docent homines de religione. Veteres
ita discernebant, rhetoricae tribuebant forenses et suasorias materias, dialecticae vero
omnes quaestiones alias, de quibus certa quadam methodo et ratione docendi sunt
homines. Iuxta hoc discrimen proprius dialecticae finis est docere, rhetoricae autem
permovere atque impellere animos, at ad adfectum aliquem traducere, ut cum de
natura virtutis disputamus, dialectica consulenda erit, quae quid sit virtus, et quas
habeat causas, partes, effectus, ostendat. Cum autem ad virtutem colendam homines
adhortamur, loci rhetorici sequendi erunt... Sed quia ratione docendi rhetores non
poterant carere, praesertim in materiis forensibus, ideo dialecticen etiam admiscuerunt
suo operi. ... Accersunt ex dialectica et formam syllogismorum, et plerasque alia
praecepta. Ita admixta dialectica rhetoricae, non potest ab ea prorsus divelli... »
Elementorum rhetorices, ed. J. Knape, pp. 122-123. Da mesma ideia se faz eco
Erasmo, que escreve : «dialectica, ars sic rhetoricae cognata, ut penè sit eadem».
Ecclesiastae... libri IV (1535), ed. de Basileia, 1544, p. 200.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 61

de redução da Filosofia e da Retórica à Dialéctica, no último quarto do


século XV, atinge o seu desenvolvimento extremo no pensamento de
Pedro Ramo (Pierre de La Ramée, Petrus Ramus – 1515-1572), que se
consolida e expõe entre os anos de 1543 e 1555.
Agricola entendia a sua dialéctica como uma correcção de Aristóte-
les e como um desenvolvimento mais coerente da lógica do Estagirita.
Mas Ramo empreende um programa agressivo de crítica sistemática que
tem por objectivo a destituição dos grandes vultos que constituiam a refe-
rência quer do pensamento dialéctico quer do pensamento retórico, atin-
gindo, sucessiva e complexivamente, Aristóteles, Cícero e Quintiliano.
Em 1543, com a sua obra Aristotelicae animadversiones, que viria a ser
objecto de pública refutação por parte do humanista português António
de Gouveia, Ramo mina os fundamentos da lógica aristotélica. Quatro
anos depois, enfrenta o pensamento retórico de Cícero exposto no De
oratore, encenando uma resposta de Brutus (o destinatário de um dos
tratados retóricos ciceronianos) a Cícero, em que são postos em causa os
pressupostos da retórica ciceroniana. E em 1549, é a vez de se defrontar
com Fábio Quintiliano, cuja Institutio oratoria era uma verdadeira enci-
clopédia do pensamento retórico e uma síntese de toda a retórica clássica
e que, por isso mesmo, constituira a referência maior para muitos huma-
nistas do século XV (Leonardo Bruni, Vitorino da Feltre e sobretudo
Lorenzo Valla).

Abordaremos aqui as Rhetoricae Distinctiones in Quintilianum, que


se podem considerar como a exposição mais completa e amadurecida da
concepção ramista da Retórica. Que erros aponta Ramo em Quintiliano?
Essencialmente três, dos quais decorrem todos os outros: 1º – A noção
de orador como súmula de todas as virtudes morais e intelectuais, como o
«vir bonus peritus dicendi», cujo perfil se traça no último livro da Insti-
tutio do pedagogo romano. 2º – A concepção de Retórica como ciência
fundamental, englobante e universal, de que decorreria a subordinação da
Dialéctica à Retórica. Segundo Ramo, «a Retórica não é uma ciência que
desenvolva todas as capacidades do espírito».137 3º – A atribuição à Retó-
rica da inventio e da dispositio, as quais, na origem, seriam pertença da
Dialéctica e foram usurpadas pelos oradores. Pelo contrário, Ramo recusa
a subordinação da Dialéctica à Retórica e atribui à Dialéctica, como sen-
138
do-lhe próprias, as artes da invenção e da disposição.
137 «Rhetorica enim ars non est, quae omnes animi virtutes explicet.» Rhetoricae distinctio-
nes in Quintilianum, p. 167 (citamos pela ed. de James J. Murphy e Carole Newlands:
Arguments in Rhetoric Against Quintilian: Translation and Text of Peter Ramus’s
Rhetoricae distinctiones in Quintilian, Northern Illinois University Press, 1986).
138 «Nos artes inventionis et dispositionis dialecticae arti, cuius partes propriae sunt, vere
attribuimus. Quintilianus dialecticae doctrinam rhetoricae falso subiicit.» Ibidem, p. 201.
62 Leonel Ribeiro dos Santos

E que contrapõe Ramo ao pedagogo romano?


Uma redistribuição de competências e de domínios entre a Dialéctica
e a Retórica, que implica a redução e a circunscrição desta última à elocu-
ção e à acção, perdendo assim o estatuto de ciência que engloba todas as
outras, enquanto que à Dialéctica são atribuídas a invenção, a disposição
e a memória. Daqui decorre a afirmação da Dialéctica como ciência única
e universal, à qual se subordinam todas as outras e, por conseguinte, tam-
bém a Retórica. Não se trata apenas de uma inversão de posições. Sobre-
leva-se agora a função de conhecimento – do docere – atribuída à Dialéc-
tica, «a qual mostra as leis comuns e maximamente gerais de todas as
139
coisas e mostra-as no raciocínio, no silogismo, no método» , seja como
doutrina do conhecimento necessário e científico, seja como doutrina do
conhecimento provável e opinativo. Pois, como escreve Ramo, na sua Dia-
lectique (1555), «se bem que as coisas conhecidas sejam umas necessárias
e científicas e outras contingentes e opináveis, da mesma forma que a vista
é comum para ver todas as cores, sejam mutáveis ou imutáveis, assim a arte
de conhecer, ou seja, a Dialéctica ou Lógica é uma e a mesma doutrina
apara aperceber todas as coisas... Portanto, diremos que a Dialéctica é a
140
arte de disputar e raciocinar a respeito de qualquer coisa que seja.»

Também se alterou a concepção da relação do pensamento com a lin-


guagem, que vimos ser tão característica do Humanismo, o que se pode
reconhecer no modo como Ramo desenvolve o tópico ratio/oratio. Estas
deixam de estar unidas e solidárias e passam a ser separadas, correspon-
dendo a primeira à Dialéctica e a segunda à Retórica. «Julgo necessário
distinguir e separar as matérias das ciências. A Dialéctica toda ela é da
mente e da razão, ao passo que a Retórica e a Gramática é do discurso e da
frase. Por conseguinte, a Dialéctica terá como próprias as artes da inven-
ção, da disposição e da memória (as quais são absolutamente da mente e se
podem exercer interiormente sem qualquer auxílio da língua ou da frase,
como acontece em muitos mudos e em muitos povos que vivem sem lin-
guagem alguma)... À Retórica, por conseguinte, são deixadas como pró-
prias apenas as duas partes do cultivo da linguagem e da frase, a elocução e
141
a acção, e além destas nada de próprio mais lhe resta.»

139 «Quae leges omnium rerum communes, et maxime generales ostendit in argumento,
syllogismo, methodo.» Ibidem, p. 227.
140 La Dialectique, ed. de Paris, 1555, pp. 3-5.
141 «Artium materias distinguendas et separandas esse iudico. dialectica mentis et rationis
tota est, rhetorica et grammatica sermonis et orationis. Dialectica igitur inventionis,
dispositionis, memoriae (quae mentis omnino sunt et intus sine ullo linguae aut
orationis auxilio exerceri possunt: ut in plerisque mutis, ut in multis populis, qui sine
sermone ullo vivunt) artes proprias habebit... Rhetoricae igitur ex sermonis et oratio-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 63

Mas o mais significativo é que Ramo chega a conceber que a razão


pode mesmo prescindir da linguagem e pensar sem palavras. A lingua-
gem já não é reconhecida como o elemento natural no qual vive e aconte-
ce o pensamento, que gera e onde subsiste a comunidade humana. Mas é
vista como uma espécie de acrescento exterior ao pensamento, e este é
agora considerado como produtor de conceitos silenciosos, auto-sufi-
ciente no seu espaço mental onde dispensa as palavras. Como diz Walter
J. Ong, «aqui a perfeita retórica é não haver retórica nenhuma e o pensa-
mento torna-se um assunto privado e até mesmo anti-social.»142
A dialéctica ramista contrapõe-se, assim, quer à dialéctica de Aris-
tóteles e dos escolásticos, quer à retórica de Cícero, de Quintiliano e dos
Humanistas. Ela é concebida como uma «doutrina do método» e este, por
sua vez, é definido como «a disposição mediante a qual, entre diferentes
coisas, se coloca a primeiramente conhecida em primeiro lugar, a segun-
da no segundo, a terceira no terceiro e assim sucessivamente...»143 No con-
texto desta doutrina geral do método ou metódica universal, Ramo
distingue o «método de natureza» e o «método de prudência». O primeiro
é o que corresponde propriamente à Dialéctica e à ciência, segue a regra
da maior evidência e da anterioridade dos princípios, do mais simples
para o mais complexo, do mais claro e evidente para o mais obscuro e
confuso, do mais geral para o mais particular.144

nis cultu partes duae solae propriae relinquentur, elocutio et actio: proprium praeterea
ac suum rhetorica nihil habebit.» Rhetoricae distinctiones in Quintilianum, p. 184.
Veja-se a mesma ideia numa outra versão: «Duo vero sunt universa deorum munera
hominibus tributa..., ratio et oratio; rationis doctrina, Dialectica est: ideoque quicquid
rationis ac mentis propriu[m] fuerit, quod sine ratione tractari et exerceri possit, id
proprie dialecticae arti attribuito... quoniam ista omnia in hominibus mutis et omni
orationis facultate carentibus insunt. Nam et res cogitant, et judicant et meminerunt; et
omnes omnino homines haec aliquando tacendo melius quam dicendo faciunt...
Orationis laudes ad istam regulam metiamur... Quid rhetoricae relinquetur? non
elocutio solum in tropis et figuris... sed actio.» Petri Rami, Rami Scholarum rhetori-
carum, seu Quaestionum Brutinarum in Oratorem Ciceronis, ed. J. Piscator,
Francofurti, 1593, pp. 13-14.
142 W. J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of Dialogue: From the Art of Discourse to
the Art of Reason, Cambridge, Harvard University Press, 1958, p. 291.
143 La Dialectique, ed. de Paris, 1555, p. 120.
144 «Ce qui est du tout et absolument plus evident et plus notoire est proposé.... d’autant
que ce qui est naturellement plus evident, doibt preceder en ordre et declaration de
doctrine... Or donques combien qu’en toutes vrayes disciplines doutes reigles soyent
generalles et universelles, neantmoins les degrez d’icelles seront distinctz: et d’autant
que chacune sera plus generalle, tant plus precedera: et le generalissime sera le
premier en rang et ordre: car il est le premier de clairté et notice: les subalternes
suyvront, car ilz sont prochains de clairté: et d’iceux les plus notoires precederont, les
moins notoires suyvront... Ceste methode est singuliere et unique es doctrines bien
instituées: car en elle est procedée par choses antecedentes du tout et absolument plus
cleres et notoires, pour esclaircir et illustrer les choses consequentes obscures et
incognues.» La Dialectique, ed. cit., pp. 120ss.
64 Leonel Ribeiro dos Santos

É este um «método de doutrina» de aplicação universal e comum a


todas as ciências, e que deve ser usado também pelos oradores, pelos
poetas e por todos os escritores. O outro, chamado «método de prudên-
cia», corresponde propriamente à Retórica, e é constituído pelo conjunto
dos artifícios e ardis com que o orador pretende captar o ouvinte. Como
escreve Ramo, «todos os tropos e figuras da elocução, todas as graças da
acção, que constituem a Retórica inteira, genuína e separada da Dialécti-
ca, não servem para outra coisa senão para levar o ouvinte impertinente e
teimoso... e não são usados para outro fim a não ser por causa da contu-
mácia e perversidade daquele ouvinte.»145

Isto significa a transformação da Retórica numa tecnologia da astú-


cia, usada sobre quem não domina o seu jogo e as suas habilidades e que,
por isso mesmo, apenas é jogado pelo orador. Estamos muito longe
daquela Retórica entendida como cultura da humanidade aberta, sincera,
leal, como comunidade da palavra entre iguais, que encontrámos nos
humanistas quatrocentistas. Em contrapartida, decide-se aqui aquela fei-
ção mais evidente da Retórica nos tempos modernos, que lhe granjeou a
má fama de que Kant dá testemunho quando, no § 53 da sua Crítica do
Juízo, diz que ela é apenas uma arte de se servir das fraquezas humanas
para atingir os objectivos do orador, uma máquina de convencer (Mas-
chine der Überredung) que rouba aos ouvintes a liberdade de pensar e os
considera também como máquinas, não merecendo enquanto tal qualquer
146
estima e devendo por isso ser rejeitada.
Em suma, ao transferirem para a Dialéctica as funções retóricas da
invenção e da disposição (a tópica e o método), tanto Agricola como
Ramo privaram a Retórica da sua pretensão de ser uma lógica do discurso
persuasivo. Dispensada da tarefa de encontrar e julgar os seus próprios
argumentos, da necessidade de examinar a situação retórica, avaliando os
seus elementos para encontrar os mais eloquentes e eficazes, a Retórica
torna-se doravante uma empresa puramente literária, uma res litteraria.
Outrora uma arte da argumentação, ao serviço de uma sabedoria elo-
quente, ela vê-se agora reduzida a uma simples arte de ornamentação de
frases, de palavras e de gestos.

145 La Dialectique, ed. cit., pp. 133-135. No mesmo ano em que Ramo publica em
francês a sua Dialectique (1555), o seu discípulo e colaborador Antoine Fouquelin
publica La Rhétorique française, que define como «art de bien et élégamment parler»
e consta de duas partes, «Élocution et Prononciation», assim se consumando o
programa ramista de cisão das duas disciplinas. Uma edição recente da Retórica de
Fouquelin encontra-se no volume editado por Francis Goyet: Traités de Poétique et de
Rhétorique de la Renaissance, Librairie Générale Française, Paris, 1990, pp. 345-464.
146 Immanuel Kant, Kritik der Urteilskraft, Akademie Ausgabe (Berlin, Walter de
Gruyter, 1968), Bd. V, p. 327.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 65

O trabalho de expoliação da Retórica em favor da Dialéctica e a


demolição crítica dos principais monumentos e autoridades da tradição
clássica do pensamento retórico não fez sentir de imediato os seus efeitos
sobre o modo de entender a sua utilidade e sobretudo não afectou a ideia
fundamental do pensamento humanista da conveniência de unir a Filoso-
fia com a Eloquência. Mas transformou o entendimento dessa utilidade e
dessa conjugação. É o que podemos ver apreciando um outro aspecto do
pensamento de Ramo, apresentado sob a forma de um projecto pedagógi-
co-didáctico. Referimo-nos ao Discurso acerca da conjugação do estudo
da filosofia e da eloquência (Oratio de studiis philosophiae et eloquen-
tiae conjungendis), proferido em Paris no ano de 1546, que constitui uma
peça importante do pensamento pedagógico do tardio Humanismo e, em
todo o caso, pode considerar-se como uma versão, em registo pedagó-
gico-didáctico, do problema que aqui nos ocupa.
Ramo começa por relatar o plano de estudos praticado por ele e pelo
seu amigo Homero Talon, no Colégio de Presles, onde ambos eram pro-
fessores, e ele também director. Talon ensinava Filosofia de manhã, e
Ramo ensinava Eloquência de tarde. Esta experiência pedagógica visava
obter a melhor educação da juventude, recuperando – assim o pensavam
estes pedagogos – aquilo que fora uma prática dos antigos, designada-
mente do próprio Aristóteles, que de manhã ensinava apenas Filosofia e
de tarde ensinava Retórica (segundo Cícero, para concorrer com Isócra-
tes!), de modo que os seus alunos não fossem como os outros filósofos de
discurso árido, mas possuíssem a abundância e a elegância dos oradores.
O que Ramo propõe é um plano de estudos integrado, como alternativa ao
vulgar plano de estudos sequencial, em que os alunos só acediam a uma
dada disciplina depois de terem feito outras. Agora, trata-se de estudá-las
conjuntamente, ou melhor, alternadamente, de tal modo que o aluno não
só progrida mais, como sobretudo aprenda com muito mais proveito e
mesmo com prazer. No que à Filosofia diz respeito, ele tem agora a pos-
sibilidade de a ver aplicada ou de reconhecer a pertinência das teorias dos
filósofos expostas nas obras dos poetas, dos historiadores, dos oradores.
A Filosofia deixa assim de ser um discurso árido e vazio e ganha conteú-
do, pois o aluno descobre que as ideias dos filósofos têm que ver com a
realidade e a vida dos homens. Demos a palavra a Ramo: «Quanto mais
progressos fizerem em toda a doutrina, tanto mais prazeres terão. E assim
como antes perdiam o amor pela Filosofia ao serem debilitados por obstá-
culos incómodos, agredidos por clamores inanes, derrotados pela perpé-
tua obscuridade das coisas, assim agora, despertados por coisas suavís-
simas, confirmados por exercícios espontâneos, iluminados por uma luz
claríssima, ao sentirem que se tornam cada dia mais sábios toleram com
incrível vontade todas as vigílias, não julgarão estar a cumprir uma tarefa
mas a entregar-se ao ócio, não a fazer um trabalho mas a gozar um pra-
66 Leonel Ribeiro dos Santos

zer. [...] Antes aprendiam pelos duros preceitos da Dialéctica, agora pelo
ameno contacto com os ditos e feitos. Antes liam os costumes dos
homens pintados nos livros dos filósofos [...], agora lêem esses mesmos
costumes nos poetas, nos oradores, nos historiadores, mas captam-nos
impressos em exemplos verdadeiros e vivos. Antes investigavam o que
eram os ventos, as chuvas, as tempestades, as causas das coisas que
explicam a sua origem e o seu fim; agora reconhecem com suavidade a
eficiência daqueles géneros em Virgílio, em Homero e nos outros bons
autores.»147
Neste curriculum integrado de estudos, o aluno é permanentemente
solicitado a usar e a aplicar os conhecimentos adquiridos nas várias dis-
ciplinas. Na verdade, ele agora não aprende disciplinas, que entretanto
esquece antes de poder usá-las, mas aprende conhecimentos cuja utili-
dade de imediato pode reconhecer e aplicar. As leituras serão de Crassus
e de Cícero, para a Eloquência, e de Teofrasto e de Platão para a Filosofia.
Mas não se trata propriamente de um programa para tornar a filosofia
eloquente ou para cultivar a eloquência como ideal supremo do homem, à
maneira de Cícero e de Quintiliano ou do humanismo quatrocentista. É
sobretudo um projecto pragmático que pretende levar os alunos a reter
melhor, com mais sucesso e com mais agrado, o que têm que aprender.
Não se sabe qual seria a eficácia real desta experiência pedagógica,
caso ela fosse generalizada e praticada por outros pedagogos que não
Ramo e Talon. Mas não há dúvida de que ela vinha trazer ao ensino um
grande dinamismo e um forte sentido pragmático e até uma consciência
147 «Quanto igitur in omni doctrina majores progressiones fecerint, tantò pleniores
voluptates percipient. Atque ut antea molestissimis spinis debilitati, inanibus clamori-
bus fracti, perpetua rerum obscuritate deterriti, amorem philosophiae deponebant: ita
nunc suavissimis rebus illecti, liberalibus exercitationibus confirmati, clarissima luce
invitati, cum omnibus modis se et doctiores et disertiores quotidie fieri sentiant, incre-
dibili voluntate omnes vigilias tolerabunt, non sibi negotium exhiberi, sed otium
condonari: non laborem imperari, sed delectationem comparari judicabunt. [...] Antea
de Dialecticae duris admodum et injucundis praeceptiunculis sese obtundebant, nunc
ejus amoenissimum in omnibus dictis et factis maximis et minimis usum intelligent.
Legebant antea pictos hominum mores in philosophorum libris, quid esset fortitudo,
quid temeritas, quid liberalitas, quid effusio: nunc in poëtis, in oratoribus, in historicis,
eosdem mores, sed veris et vivis exemplis impressos percipient. Antea quid essent
venti, quid pluviae, quid tempestates, quae causae rerum et ortus et interitus effice-
rent, inquirebant: nunc eorum generum efficentiam in Virgilio, in Homero, in reliquis
bonis authoribus, suavitate magna recognoscent.» Oratio de studiis philosophiae et
eloquentiae conjungendis Lutetiae habita anno 1546, in: Petri Rami et Audomari
Talaei, Collectaneae, Praefationes, Epistolae, Orationes, Parisiis, 1577 (reed. por
W.J. Ong, Hildesheim, G. Olms, 1969), p. 251. Na mesma linha, aludindo ao método
pedagógico seguido por ele próprio e por Ramo, escreve Homero Talon, no Prefácio à
sua Rhetorica (1544-45): «Commune vero studium utriusque nostrum fuit... Rhetori-
cae, et Philosophiae conjungere... et philosophiam non tantum tenebris, quibus
circumfusa est, sed etiam barbarie, qua foeda, miseraque est, liberare.» Collectaneae,
p. 14.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 67

da intercomunicabilidade dos saberes, que está em consonância com a


ideia ramista de um método único – a Dialéctica – como fundamento da
comunidade dos saberes.

V
A «IDADE DA ELOQUÊNCIA »
NO TEMPO DA CIÊNCIA E DA RAZÃO

Acossada pelos filósofos, por um lado, expoliada das suas partes


essenciais pelos novos dialécticos, por outro lado, destituída de pertinên-
cia científica e desfeita até a sua solidariedade com a sabedoria, a Retórica
vai sobreviver, e medrar mesmo, na literatura e nas artes, na religião e na
política, domínios onde imperam as paixões e os sentimentos, onde cir-
cula amplamente o discurso provável e verosímil, rejeitado pela ciência.
Reduzida a uma doutrina da elocução e do estilo, a uma técnica de orna-
mentação do discurso, ela perde, sobretudo a partir da segunda metade do
século XVI, o vigor, a densidade e a abrangência que tivera nos grandes
pensadores humanistas do século anterior. O novo regime do pensamento
e da cultura será cada vez mais determinado pela prioridade absoluta do
conhecimento e mesmo de um tipo de conhecimento que pretende a cer-
teza e evidência do género daquelas que são exibidas nas ciências mate-
máticas. As formas do pensamento retórico e poético, do discurso prová-
vel e verosímil, associadas à paixão e à imaginação, só serão consentidas
nos subúrbios da rigorosamente planificada urbe da nova ciência e filoso-
fia, permanentemente policiada pela razão. A Retórica vai sobreviver,
apesar de tudo, como disciplina importante dos currículos pedagógicos, e
assiste-se mesmo a uma extraordinária proliferação de tratados e manuais
de Retórica por toda a época do Barroco, que fazem a síntese dos três
grandes representantes da tradição clássica: Aristóteles, Cícero e Quinti-
liano. Com razão Marc Fumaroli pôde falar de uma «idade da eloquên-
cia», florescente ainda em plena época da afirmação da ciência e da
razão.148 Mas aquela unidade entre ratio e oratio, tantas vezes celebrada
pelos humanistas, foi entretanto definitivamente rompida: a ratio é agora
exclusiva propriedade dos novos dialécticos ou dos filósofos que visam o
conhecimento; a oratio, essa é deixada aos oradores, aos quais se con-
sente que exibam no «teatro do mundo» os artifícios de palavras feitos à
medida dos seus engenhos. Mais do que antes, tende agora a Retórica a
tornar-se um conjunto de técnicas para a produção de efeitos engenhosos,
uma maquinaria de estratégias para provocar o deslumbramento ou a per-

148 Marc Fumaroli, L’Âge de l’éloquence. Rhétorique et ‘res literaria’ de la Renaissance


au seuil de l’époque classique, Lib. Droz, Genève, 1980 (Albin Michel, Paris, 1994).
68 Leonel Ribeiro dos Santos

suasão, um arsenal de figuras para enfeitar o discurso. Tende, enfim, a


desvanecer-se como paradigma de racionalidade a que fora elevada pelos
humanistas quatrocentistas. Mas, apesar da geral tendência para a des-
qualificação da Retórica e mesmo para a sua rejeição por parte do pensa-
mento moderno, tem sido possível ainda assim reconhecer a presença de
elementos retóricos na obra e até na concepção do método científico e
filosófico de alguns pensadores modernos, cujas filosofias são geralmente
consideradas como assinalando a ruptura com a tradição do pensamento
humanista e retórico: Francis Bacon, Thomas Hobbes e Descartes.

Na sua obra Sobre a dignidade e o incremento das ciências (De


dignitate et augmentis scientiarum, 1623), Francis Bacon passa em
revista o sistema tradicional dos saberes com o intuito de apontar os seus
erros, mas também de mostrar o que deles pode ainda ser aproveitado. A
Retórica inscreve-se nas ciências da linguagem e, na linha do humanismo
tardio que a reduzira à elocução, é definida como uma «doutrina do
embelezamento da linguagem» (doctrina de illustratione sermonis). Mas
a sua tarefa é agora subordinada aos imperativos da razão e do conheci-
mento. A Retórica está dependente da imaginação, da mesma forma que a
dialéctica está dependente do entendimento. O seu ofício é aplicar e
recomendar os ditames da razão à imaginação para excitar o desejo e a
vontade (officium et munus Rhetoricae non aliud quam ut Rationis dicta-
mina Phantasiae applicet et commendet, ad excitandum appetitum et
voluntatem); o seu fim é encher a imaginação de observações e de ima-
gens, que auxiliem a razão, mas não a oprimam (finis denique Rhetoricae
phantasiam implere observationibus et simulacris, quae rationi suppetias
ferant, non autem eam opprimant). Bacon não rejeita a eloquência, mas
sustenta que esta é inferior à sabedoria (eloquentia autem, si quis vere
rem aestimet, sapientia proculdubio est inferior).149
Referindo-se, em especial, àquela parte da Retórica que Agricola e
Ramo haviam reintegrado na Dialéctica – a inventio –, Bacon faz notar
que há duas espécies de invenção: uma que diz respeito às artes e às ciên-
cias; e outra que respeita à invenção dos argumentos e dos discursos. É
desta última que se ocupam os dialécticos e os retóricos, mas ela é
impropriamente chamada invenção, pois, segundo diz, «inventar é desco-
150
brir o desconhecido, e não relembrar o já conhecido». Usando uma
sugestiva metáfora, o filósofo-chanceler diz que a inventio dos retóricos e

149 Francis Bacon, The Works of F.B., ed. Spedding/Ellis/Heath, London, 1858, vol. I,
pp. 670-671.
150 «Inventio Argumentorum inventio proprie non est. Invenire enim est ignota detegere,
non ante cognita recipere aur revocare.» The Works, I, p. 633. Veja-se, de Lisa
Jardine, Francis Bacon: Discovery and the Art of Discourse, Cambridge University
Press, Cambridge, 1974.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 69

dos novos dialécticos é como ir à caça numa capoeira, em vez de o fazer


em campo aberto e no desconhecido. E se consente no uso do termo tra-
dicional é à custa de infundir nele um sentido completamente novo. E
assim defende a utilidade de uma tópica geral que fosse uma advertência
acerca do que deve ser investigado ou interrogado, e não uma advertência
acerca do que deve afirmar-se ou dizer-se, uma tópica de problemas,
portanto, e não de palavras.151 Indo mais longe ainda, propõe mesmo a
ideia de uma tópica particular, que teria por objecto a identificação dos
tópicos de investigação apropriados às diferentes matérias e ciências e
incluiria uma espécie de preceitos reguladores, os quais, se por um lado
orientariam a investigação, por outro deveriam ser permanentemente afe-
152
ridos e reformulados pelos inventos que viessem a ser feitos.

Quanto a Hobbes, aparentemente tudo na sua filosofia aponta no


sentido de uma desvalorização da Retórica e de um desinteresse pela elo-
quência. Todavia, vários estudos recentes têm posto em relevo a parte da
retórica na obra do autor de Leviathan, o qual redigiu mesmo alguns
pequenos tratados de Retórica, seguindo de perto a obra homónima de
Aristóteles, os quais bem documentam o seu interesse e competência
nesse domínio. Na verdade, Hobbes reconhece a importância da Retórica,
mas tenta reconduzi-la à Lógica, enquanto ciência geral de todo o tipo de
provas ou inferências, seja as do conhecimento apodíctico, seja as do
conhecimento provável ou verosimil. Pois, segundo escreve, «a Retórica
não consiste apenas em mover as paixões do juiz, mas principalmente em
provas, que são inferências: e uma vez que todas as inferências são silo-
gismos, um lógico que saiba notar a diferença que existe entre um silo-
gismo comum e um entimema, que é o silogismo retórico, será o melhor
orador, pois todos os silogismos e inferências pertencem à Lógica, quer
infiram verdade ou probabilidade.»153

151 The Works,I, p. 635.


152 The Works, I, p. 636. Sobre este ponto, veja-se o nosso ensaio «Os Descobrimentos e a
retórica da razão moderna», Philosophica 15 (2000), sobretudo pp. 184-191 e 202-204.
153 «The Rhetoric is an art consisting not only in moving the Passions of the judge, but
chiefly in proofs [...] which are inferences: and all inferences being syllogisms, a
logician, if he would observe the difference between a plain syllogism and an enthy-
meme, which is a rhetorical syllogism, would make the best rhetorician. For all syllo-
gisms and inferences belong properly to logic, whether they infer truth or
probability.» Thomas Hobbes, The English Works of Th.Hobbes (ed. W. Molesworth),
London, 1839, vol. VI, pp. 423-424. Um dos referidos tratados (The Art of Rhetoric
plainly set Forth. With pertinent examples) é actualmente tido por pseudo-hobbesiano.
Existe uma edição recente destas peças, com introdução e aparato crítico de John T.
Harwood: The «Rhetorics» of Thomas Hobbes and Bernard Lamy, Carbondale and
Edwardsville, Southern Illinois U.P., 1986. Sobre a questão da retórica no pensamento
de Hobbes, veja-se: David Johnston, The Rhetoric of Leviathan, Princeton University
70 Leonel Ribeiro dos Santos

Esta declaração pode considerar-se como a explicitação de uma tese


de Aristóteles, o qual, embora reconheça o entimema como o silogismo
próprio da Retórica, remete todavia o tratamento de todos os tipos de silo-
gismo para a Lógica, parecendo legitimar assim a subordinação da Retórica
à Dialéctica.154 Se se relevar na Retórica a sua dimensão argumentativa e
cognitiva, então ela cai para o lado da Dialéctica e tende a ser absorvida
por esta. Tal foi, como vimos, a solução explorada por Agricola e Ramo.155

Também a filosofia cartesiana já foi apresentada como exemplo de


uma «filosofia sem retórica»156 e Descartes como aquele que, na história
do pensamento ocidental, pôs fim à retoricização do logos.157 Mas, nos
últimos anos, esta ideia tem sido controvertida por vários estudos que
puseram em evidência a poderosa retórica que se insinua por detrás da
encadeada «ordem das razões».158
Descartes estudou numa escola de Jesuítas, em cujo plano de estu-
dos, a Retórica ocupava lugar de destaque. Da sua experiência escolar
dessa disciplina e do entendimento que dela fazia deixou testemunho,
breve mas expressivo, numa bem conhecida página do Discours de la
Méthode, onde precisamente contrapõe a eloquência à Retórica e desen-

Press, 1986; e o nosso ensaio «Hobbes e as metáforas do Estado», in Dinâmica do


Pensar, Homenagem a Oswaldo Market, Lisboa, 1991, pp. 217-242; Quentin Skinner,
Reason and Rhetoric in the Philosophy of Hobbes, Cambridge University Press,
Cambridge, 1996; Arlene W. Saxonhouse, «Hobbes, Aristotle, Strauss, and
Rhetoric», International Hobbes Association Newsletter, 6 (November 1987), pp. 1-6.
154 Aristóteles, Rhetorica I,1355 a 4-18. O entendimento aristotélico das relações entre a
Retórica e a Dialéctica (ora apresentadas como réplica ou antístrofe (antístrophos) uma
da outra – Rhet. 1354a 1 – ora apresentada a Retórica como um ramo (paraphyés) da
dialéctica – Rhet. 1356a 25-26) dividira os intérpretes desde a antiguidade (Cícero,
Quintiliano) e continua a dividi-los no Renascimento e até na actualidade, subli-
nhando, uns, a originária identidade, outros, a autonomia das duas disciplinas. Para
um ponto da situação veja-se: S. Cazzola, «Lo statuto concettuale della retorica
aristotelica», Rivista Critica di Storia della Filosofia 31 (1976), pp. 41-72.
155 Sobre a presença das ideias de Pedro Ramo no pensamento de Hobbes e na cultura
inglesa da época, veja-se: W. J. Ong, «Hobbes and Talon’s Ramist Rhetoric in
England», Transactions of the Cambridge Bibliographical Society, I (1951), pp. 260-
-269.
156 Henry Gouhier, «La résistance au vrai et le problème cartésien d’une philosophie sans
rhétorique», in Retorica e Barroco, Atti del III Congresso Intenazionale di Studi
Umanistici, Fratelli Bocca, Roma, 1956, pp. 85-97.
157 Michel Meyer, «Pour une anthropologie rhétorique», in Id. (ed.), De la Métaphysique
à la Rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles, Bruxelles, 1986, pp. 119 ss.
158 Sobre a questão da Retórica no e do pensamento cartesiano, veja-se: M. Fumaroli,
«Ego scriptor: Rhétorique et Philosophie dans le Discours de la Méthode», in H.
Méchouhan (coord.), Problématique et réception du «Discours de la Méthode» et des
«Essais», Paris, Vrin, 1988, pp. 31-46; e o nosso Retórica da evidência ou Descartes
segundo a ordem das imagens, Coimbra, Quarteto, 2001.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 71

volve a ideia de uma eloquência natural e espontânea – um «dom do espí-


rito» –, que não resulta da destreza no emprego das regras e preceitos de
uma arte escolarmente aprendida, mas decorre do próprio vigor e subs-
tância do pensamento. Nas palavras do filósofo: «aqueles que têm o
raciocínio mais forte e que digerem melhor os seus pensamentos a fim de
os tornar maios claros e inteligíveis, podem sempre persuadir melhor
daquilo que propõem ainda que não falem senão baixo bretão e que nunca
tenham aprendido Retórica.»159
Em certo sentido, Descartes está mesmo na linha de alguns huma-
nistas que subordinavam os artifícios da retórica ao talento natural da
eloquência, dizendo que não há arte que valha onde a estultícia é congé-
nita. E, por outro lado, parece também apoiar a tese de Pico contra Bar-
baro, segundo a qual, o pensamento, se é autêntico e tem verdade, não
precisa de preocupar-se com questões de retórica, de eloquência, ou de
adorno, pois a sua eficácia não deixará de se exercer, mesmo se expresso
de forma rude e bárbara. Mas a concepção cartesiana da Retórica expõe-
-se de modo ainda mais explícito numa apreciação que o jovem filósofo,
ocasionalmente assumindo funções de crítico literário, faz da edição das
Cartas do Senhor Guez de Balzac, onde defende a «harmonia das coisas
com as palavras» (concordia rerum cum sermone) e a aliança entre a
graça (venustas), a elegância (elegantia) e a simplicidade (simplicitas),
«tal como a beleza numa mulher perfeitamente formosa» (tanquam in
perfecte formosa muliere pulchritudo)160, evocando a mesmíssima compa-
ração que Pico usara na sua carta a Ermolao Barbaro.

CONCLUSÃO

Numa célebre conferência, proferida a 7 de Maio de 1959, Charles


P. Snow propôs o tópico das «duas culturas» – a retórico-literária e a
científica – cujas relações na época contemporânea se caracterizariam
161
pela mútua incompreensão e mesmo pelo antagonismo. Na verdade, o
tópico constitui uma versão ligeira de um problema antigo, que fora tra-
tado por Dilthey mediante a distinção entre ciências da natureza e ciên-

159 Oeuvres de Descartes, ed. Charles Adam-Paul Tannery (reimpr. Paris, Vrin, 1996),
vol. VI, p. 7.
160 Descartes, Censura quarundam epistolarum Domini Balzaci (1628), Oeuvres, A-T, I,
pp. 7-13.
161 Charles P. Snow, The Two Cultures, Cambridge, 1965; trad. port.: As duas culturas,
Editorial Presença, Lisboa, 1996.
72 Leonel Ribeiro dos Santos

cias do espírito, distinção esta que, de resto, se pode detectar já num diá-
logo de Galileu na forma da contraposição entre «estudos humanos» e
«ciências naturais», os quais implicam métodos diferentes, exprimem
concepções diferentes da realidade, versam sobre objectos diferentes: um
lê directamente e interpreta o livro da natureza escrito em caracteres
geométricos, conseguindo obter conhecimentos tão certos, sólidos e
necessários como as demonstrações da Geometria; o outro lê e interpreta,
com os instrumentos da Gramática e da Retórica, os livros escritos pelos
homens, onde estes expõem as suas opiniões, quase sempre divergentes,
acerca dos assuntos humanos, não podendo aspirar a mais do que a con-
vicções verosímeis e prováveis, argumentadas com razões retóricas.162

Tentando sintetizar o complexo processo intelectual decorrido no


período abrangido pelo tema que nos ocupou neste ensaio, proporíamos
que se falasse não de duas mas de três culturas. Os humanistas viraram a
retórica contra a Dialéctica e a Metafísica escolásticas, mas será a Matese
ou a Geometria (e não a Dialéctica ou a Lógica e a Metafísica de Aristóte-
les e dos escolásticos) que destronará, por sua vez, a Retórica dos huma-
nistas, no mesmo movimento, porém, em que recusa e desqualifica filo-
soficamente a Lógica (Dialéctica) e a Metafísica escolásticas e aristotélicas
e também, assim nos parece, as novas dialécticas de alguns humanistas. O
debate cultural e filosófico travado no decurso dos séculos XV e XVI
decide-se, assim, a favor de um terceiro paradigma de racionalidade, o
qual, tendo embora uma matriz histórica bem antiga, só agora irá revelar
todas as suas virtualidades. Não é a Lógica de Aristóteles ou o seu suce-
dâneo, a Dialéctica dos pensadores medievais e seus continuadores esco-
lásticos, não é a Retórica de Isócrates, de Cícero ou de Quintiliano, e nem
sequer é essa nova Dialéctica construída por Agricola e Pedro Ramo à
custa do património da Retórica clássica e humanista (e que, por isso,
poderia chamar-se com razão uma Dialéctica retórica ou humanista), não
é nenhum destes regimes que está em condições de servir as necessidades
do pensamento a partir do início do século XVII, mas sim uma Matese
universal, de matriz platónica, ciência geral da ordem e da medida, que,
de modo inequívoco, desde as Regulae de Descartes, define o método que
o espírito deve seguir na investigação da verdade e garante o progresso
contínuo dos conhecimentos como uma catena veritatum; que decide o
estatuto da cientificidade do saber, como conhecimento certo, evidente,
claro e distinto; que decide as formas de construção da ciência (a intuição
e a dedução), desqualificando as regras da Lógica escolástica e os proces-
sos da Dialéctica dos humanistas. Mesmo esta, com os seus topica e ape-

162 Galileo Galilei, Le Opere di G.G. (Edizione Nazionale), Firenze, 1890-1909, vol. VII,
p. 78.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 73

sar da insistência no método e na ordem (dispositio), tomados dos retóri-


cos, não é menos inútil para as novas tarefas do pensamento realmente
inventivo do que aqueloutra. Uma e outra poderão, quando muito, ter
alguma vaga função didáctica, mas, por isso mesmo, como o escreve o
autor das Regulae, devem ser remetidas da Filosofia para a Retórica.163
Um dos mais destacados pensadores contemporâneos do pensamento
retórico desenvolveu a ideia segundo a qual o paradigma de racionalidade
retórica corresponderia a uma racionalidade de crise, e reconheceu para-
lelismo entre a condição do logos na época da Sofística grega, a condição
do pensamento humanista na época do Renascimento e a condição da
razão na época contemporânea. O surto e o extraordinário desenvolvi-
mento do pensamento retórico naquelas duas épocas e também na época
contemporânea traduziria uma necessidade criada por um generalizado
estado de crise dos fundamentos dos regimes de racionalidade pre-
existentes. Na Grécia, a crise da crença nos mitos; na segunda metade do
século XX, a crise das grandes ideologias; no Renascimento, a crise da
visão lógico-metafísica da Escolástica medieval.164 Se a ideia é sugestiva,
não nos parece contudo que ela seja suficientemente explicativa do que
realmente está em causa. Não explica, por exemplo, a persistência da
crise, que, no caso do Renascimento, se estende por dois séculos ou mais.
Também não explica a sobrevivência dos paradigmas, mesmo depois de
suplantados por outros. Mas, sobretudo, ela acaba por considerar a racio-
nalidade retórica como uma racionalidade menor ou um «pensamento
débil», como uma racionalidade fraca, de recurso, de que se deita mão no
intervalo entre dois regimes de racionalidade forte, de certezas absolutas,
de sistemas estabelecidos sobre fundamentos tidos como inabaláveis. Pre-
ferimos pensar que os vários paradigmas expõem diferentes concepções,

163 Regulae, Oeuvres, A-T, X, pp. 372-373, 406. Vários estudos recentes sugerem ou
afirmam mesmo que as Regulae de Descartes se movem no ambiente da Dialéctica
ramista concebida como «methodus unica» de todas as ciências e reconhecem na
linguagem cartesiana (invenção, método, disposição, ordem, matese) mais do que uma
simples analogia com a linguagem ramista. Pese embora alguma semelhança de
linguagem, parece-nos que o projecto cartesiano das Regulae não se revê na Dialéctica,
mesmo na de Ramo, da qual nos parece que expressamente se demarca. A Dialéctica
de Ramo ficou refém das suas conquistas feitas à Retórica dos humanistas. Tal como
Bacon, Descartes poderia dizer que a invenção, a ordem e o método da Dialéctica de
Ramo servem apenas para gerir palavras ou conhecimentos já adquiridos, mas não dão
nenhum auxílio quando se trata de descobrir novos conhecimentos certos e evidentes.
Veja-se, em apoio da tese da filiação ramista do pensamento cartesiano: Nelly-
-Bruyère, Méthode et dialectique dans l’oeuvre de La Ramée, Paris, Vrin, 1984;
André Robinet, «Le référant ‘dialectique’ dans les Regulae», Les études philosophi-
ques, 1/ 1996, pp. 3-15; Géraldine Jamart, «Logique, mathématique et ontologie: La
Ramée, précurseur de Descartes», ibidem, pp. 17-28.
164 Veja-se: Michel Meyer, Questions de rhétorique. Langage, raison et séduction, Paris,
1993, «Introduction», pp. 7 ss; Id., «Prefácio» a: C. Perelman / L. O.-Tyteca, Tratado
da Argumentação. A Nova Retórica, Liv. Martins Fontes, São Paulo, 1996, p. XX.
74 Leonel Ribeiro dos Santos

privilegiando diferentes aspectos da realidade, diferentes dimensões do


humano, diferentes virtualidades do pensamento, que têm as suas poten-
cialidades e as suas limitações estruturais. Eles podem ocasionalmente até
fundir-se, podem sobretudo contaminar-se mutuamente, mas mantêm-se
como grandes referências em explícita ou surda tensão, em alternância de
fluxo e refluxo, de evidência ou ocultamento, de domínio ou subor-
dinação. O período do Renascimento constitui um bom exemplo deste
fecundo conflito de paradigmas de racionalidade e por isso também um
privilegiado campo de investigação para quem quiser compreender as
razões que estão em causa no conflito desses paradigmas.

O paradigma retórico do pensamento chama a atenção, mais do que


qualquer outro, para o mundo humano, que é um mundo da razão mas
também dos sentimentos, das paixões, da acção, e ele pretende mesmo ser
a razão do mundo humano frente a todas as tentativas de sistema fechado,
ou de formalização metafísica, lógica ou científica. Mais do que qualquer
outro, este paradigma pressupõe e promove a liberdade de pensamento, o
pluralismo dos pontos de vista, exige o trabalho da argumentação e o res-
peito pela razão e pontos de vista alheios. Ele não garante ao conheci-
mento metafísico e científico uma feliz consciência de si. Mas, sem dúvi-
da, a consciência da sua incontornável condição retórica daria ao pensa-
mento um sentido de humildade e de saudável insegurança, que poderia
constituir um antídoto contra as doenças do dogmatismo, ou contra todas
as formas de absolutismo e de fundamentalismo em filosofia.
II

A TEOLOGIA RETÓRICA DOS HUMANISTAS

«Cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino


inepte iudicaverint imperiti artium dicendi.»
Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523),
Werke, Gütersloh, 1969, Bd.III,58.

«Quemadmodum autem unicum illud dei verbum imago est


patris ... ita humanae mentis quaedam est oratio: qua nihil
habet homo mirabilius aut potentius.»
Erasmo de Roterdão, Ecclesiastes (1535), ed. de
Basileia, 1544,18.

«Rhetoricatur igitur Spiritus sanctus iam, ut exhortatio fiat


illustrior.»
M. Lutero, In XV Psalmos Graduum, Sämtliche
Werke, Weimarer Ausgabe, Bd.40/3,59-60.
76 Leonel Ribeiro dos Santos

I
NO PRINCÍPIO ESTÁ A PALAVRA

1. Se há domínio, para além da Filosofia, onde se tenha feito sentir,


de modo decisivo, o profundo impacto da viragem para a linguagem e
para a Retórica, que caracterizou, de um modo geral, o pensamento dos
humanistas dos séculos XV e XVI, esse é o da Teologia.165 Ao ponto de
se poder falar com razão também de uma retoricização da Teologia, para
o que contribuiram alguns dos mais destacados humanistas desde Petrarca
a Erasmo e Melanchthon, passando por Coluccio Salutati e Lorenzo
Valla.
A abordagem deste tópico, que tem merecido relativamente pouca
atenção166, poderá, no mínimo, ajudar a corrigir a ideia, ainda corrente em
alguma literatura, de que os pensadores do Renascimento e em particular
os humanistas, se não eram tendencialmente descrentes167, eram pelo
165 Este ensaio faz parte de uma investigação mais vasta empreendida sob o título
«Viragem para a Retórica e relações entre Filosofia e Retórica no pensamento dos
séculos XV e XVI», devendo ser lido em articulação com os resultados dessa
investigação (v. cap. I deste volume) e como seu complemento.
166 Com excepção para alguns autores. Sobre Lorenzo Valla, v.: Salvatore I.
Camporeale, Lorenzo Valla. Umanesimo e Teologia, Firenze, 1972. Sobre Erasmo, a
literatura é mais abundante: Jacques Chomarat, Grammaire et Rhétorique chez Erasme,
Belles-Lettres, Paris, 1981, 2 vols.; Jean-Claude Margolin, «Erasme et le Verbe: de la
Rhétorique à l’Herméneutique», in Erasme, l’Alsace et son temps, Strasbourg, 1971,
pp. 87-110. Sobre Melanchthon e Lutero, v.: Klaus Dockhorn, «Rhetorica movet.
Protestantischer Humanismus und karolingische Renaissance», in H. Schanze (ed.),
Rhetorik. Beiträge zu ihrer Geschichte in Deutschland vom 16.-20. Jahrhundert, Fischer
Verlag, Frankfurt, 1974, pp. 17-42. Para o aspecto da exegese e hermenêutica
humanísticas, v.: Henri de Lubac, Exégèse médiévale. Les quatre sens de l’Écriture,
Paris, 1964, vol. IV, cap. X (Humanistes et spirituels), pp. 369-513. Sobre a teologia
bíblica dos humanistas, v.:J.H.Bentley, Humanists and Holy Writ: New Testament
Scholarship in the Renaissance, Princeton, NJ, 1983.
167 É sempre de lembrar, a este propósito, a já clássica obra de Lucien Febvre, Le
problème de l’incroyance au XVIe. siècle. La religion de Rabelais, Albin Michel, Paris,
1942. Mas a mais completa e documentada refutação da tese de um Humanismo
tendencialmente anti-cristão e anti-teológico é a obra de Charles Trinkaus, In Our Image
and Likeness. Humanity and Divinity in Italian Humanist Thought, 2 vol., University of
Notre Dame Press, Notre Dame, Ind., 1995 (1ª ed. 1970). Tenham-se ainda presentes as
duas obras seguintes: G. Di Napoli, Lorenzo Valla. Filosofia e religione nell’
Umanesimo italiano, Roma, 1971; R. Fubini, Umanesimo e secolarizzazione dal
Petrarca al Valla, Roma, 1990.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 77

menos desafeiçoados das questões teológicas. Mas, sobretudo, poderá


ajudar a compreender melhor a contribuição efectiva e decisiva de muitos
deles não só para a reforma dos estudos teológicos e para o novo enten-
dimento destes, como também para a própria renovação da vida e doutri-
na cristãs, desencadeada a partir do fim da segunda década do século XVI
por Martinho Lutero e prosseguida por outros reformadores. Apresenta-
dos por vezes como movimentos de inspiração antagónica168, o Humanis-
mo e a Reforma revelam-se neste ponto profundamente solidários e o
debate teológico entre teólogos romanos e teólogos reformadores, desen-
volvido sobretudo a partir do fim da segunda década do século XVI e que
levaria ao Concílio de Trento, não significou apenas um conflito entre
conteúdos ou proposições da fé cristã, mas torna patente, antes de mais, um
profundo desentendimento quanto à forma como esses conteúdos eram
concebidos: num caso, segundo uma racionalidade dialéctica e metafísica,
herdada da Escolástica medieval; no outro, segundo o que designaríamos
por uma racionalidade retórica, servida por uma especial sensibilidade para
os aspectos linguísticos e literários não só dos textos bíblicos como tam-
bém das fórmulas dogmáticas e teológicas, a qual se reconhecia próxima
das fontes bíblicas e da literatura teológica da Patrística.
A expressão «theologia rhetorica», usada por Charles Trinkaus para
caracterizar a vertente teológica do pensamento de Petrarca169, tomamo-la
aqui de empréstimo, ampliando-a, para designar dois aspectos do pensa-
mento dos humanistas na sua relação com a Teologia: a insistência na

168 Não falando já de Nietzsche (sobre o qual a este propósito se pode ver o nosso ensaio
«Nietzsche e o Renascimento», Revista da Faculdade de Letras, nº 2, 5ª série, Lisboa,
1984, pp. 29-42), veja-se, nomeadamente: Étienne Gilson, «Humanisme médiéval et
Renaissance» (1929), in Idem, Humanisme et Renaissance, Vrin, Paris, 1986, pp. 7-32.
169 Charles Trinkaus, The Poet as Philosopher. Petrarch and the Formation of
Renaissance Consciousness, Yale University Press, New Haven / London, 1978, cap. 4:
«Theologia Poetica and Theologia Rhetorica in Petrarch’s Invectives», pp. 90-113. O
mesmo autor utiliza a expressão para falar do contributo de outros humanistas, como
Aurélio Brandolini e Valla, em vários lugares da sua obra In Our Image and Likeness.
Evidentemente, falamos aqui de Retórica, não na acepção vulgar e geralmente negativa
que lhe é dada, mas naquele sentido pregnante que teve em algumas formas do
pensamento antigo e que os humanistas se esforçaram por recuperar e restaurar. A actual
revalorização da Retórica em vários domínios do pensamento pode ajudar a
compreender melhor a pertinência da luta dos humanistas contra a racionalidade
dialéctica e metafísica dos escolásticos. Para esta recuperação contemporânea da
Retórica, veja-se: de Chaïm Perelman, L’empire rhétorique, Paris, 1977 (trad. port.: O
império retórico. Retórica e argumentação, Lisboa, 1993); de Michel Meyer, Questions
de Rhétorique. Langage, raison et séduction, Lib. Génerale Française, Paris,1993; Idem,
«Pour une anthropologie rhétorique», in Idem (ed.), De la Métaphysique à la
Rhétorique, Éditions de l’Université de Bruxelles, 1986, pp. 119-142; de Ernesto Grassi,
Macht des Bildes. Ohnmacht der rationalen Sprache. Zur Rettung des Rhetorischen,
Köln, 1970.
78 Leonel Ribeiro dos Santos

utilidade e mesmo na necessidade dos studia humanitatis para a profi-


ciência nos estudos teológicos; e a configuração de uma sabedoria teoló-
gica que se reconhece mais próxima das exigências da Retórica do que
dos silogismos da Dialéctica e que sente ter mais que ver com o mundo
humano da palavra, da acção e dos afectos do que com o mundo da razão,
da especulação e das subtilezas lógicas e metafísicas. Daí que muitos
humanistas se reconheçam tanto mais próximos dos antigos Padres da
Igreja quanto mais distantes dos teólogos da Escolástica, cuja teologia
consideram estar contaminada e pervertida pela lógica e metafísica aris-
totélicas e refém destas.

2. O Humanismo dos séculos XV e XVI ainda é por vezes conside-


rado por alguns historiadores do pensamento renascentista como tendo
sido apenas um amplo movimento pedagógico-cultural, que pôs em pri-
meiro plano um currículo onde se destacavam as disciplinas relacionadas
com a linguagem, mas sem especial relevância filosófica.170 Mas ele
pode, na verdade, ser interpretado como tendo representado na história do
pensamento europeu uma viragem no sentido de um novo paradigma de
racionalidade, o qual tem por certo as suas origens na tradição clássica de
Roma e Grécia, mas se distingue, por alguns traços decisivos, do para-
digma que se constituíra a partir do século XIII e se tornara culturalmente
dominante, o qual se fundava em aspectos essenciais do pensamento aristo-
télico, em particular na Lógica ou Dialéctica e na Metafísica, ou seja, na
prevalência da ordem do pensamento e do ser. Por seu turno, o novo para-
digma humanista caracterizar-se-ia por uma orientação geral para a lingua-
gem e para o cultivo da eloquência, orientação esta que é acompanhada
pela adopção, explícita ou tácita, de um certo número de pressupostos ou
axiomas, entre si solidários, os quais configuram o que se poderia chamar
um logos retórico ou uma racionalidade retórica.171 A todos esses axiomas
170 Paul Oskar Kristeller insistiu recorrentemente nesta tese. Dos seus inúmeros ensaios
sobre o tema, veja-se: «Humanism», in Charles B. Schmitt e Quentin Skinner (eds.), The
Cambridge History of Renaissance Philosophy, Cambridge University Press, 1988,
pp. 113-137. Aí se lê (p. 133): «Renaissance humanism... was essentially a scholarly,
educational and literary movement, and among its many concerns, philosophical thought
was not the only or even the dominating one.» Entre os que, pelo contrário, puseram em
evidência o contributo filosófico dos humanistas, refira-se Charles Trinkaus. Para além
das suas duas obras que já citámos em notas anteriores, veja-se: The Scope of Renais-
sance Humanism, The University of Michigan Press, Ann Arbor, 1983.
171 Ninguém fez mais pela reabilitação do significado filosófico do Humanismo,
relevando neste a dimensão antropológica e ontológica da linguagem, do que Ernesto
Grassi, em várias das suas obras, das quais destacamos: Einführung in philosophische
Probleme des Humanismus, WBG, Darmstadt, 1986. A tese que resume a interpretação
que Grassi faz do Humanismo encontra-se nas páginas 57-58 desta obra: o específico
significado filosófico desse movimento não reside nem na redescoberta da metafísica
tradicional de cunho platónico ou neoplatónico, nem numa nova antropologia centrada
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 79

preside o geral reconhecimento da importância social, antropológica e


mesmo ontológica da linguagem, a consciência da condição do homem
como um ser falante, um ser de comunicação e de comunidade, o reco-
nhecimento, enfim, da condição linguística do homem, da razão e do
pensamento, tópicos que os humanistas encontravam no cerne da visão
ciceroniana do mundo, onde, juntamente com a razão, a linguagem é
estabelecida como o fundamento da comunidade e o vínculo da sociedade
humanas.172 É glosando esse tópico que o jovem Philipp Melanchthon
escreve: «Toda a sociedade humana, o fundamento da instituição da vida
pública e privada e de todas as coisas com que sustentamos a vida e, por
conseguinte, o comércio, tudo está contido na linguagem.»173 E, como
mais adiante veremos, para este humanista e teólogo, também a Teologia
subsiste no elemento da linguagem e da palavra.
A expressão máxima deste culto da linguagem por parte dos humanis-
tas expõe-se na ênfase por eles posta na Retórica, a qual tende a substituir a
Dialéctica aristotélica e escolástica, e sobretudo no cultivo da eloquência
que é por eles concebida como o coroamento da humana sabedoria. Para os
humanistas, não é verdadeira sabedoria aquela que não for unida à eloquên-
cia. E, por certo, a maioria deles também subscreveria a proposição recí-
proca: não há verdadeira eloquência onde não exista autêntica sabedoria.174
Para sustentarem a tese da importância primacial da linguagem, os
humanistas aduziam argumentos de natureza política, social ou antropo-
lógica, pondo em realce o papel da palavra na fundação e subsistência da
comunidade humana, ou afirmando a íntima e conatural solidariedade que
no homem existe entre a razão (ratio) e o discurso (oratio). Disso aduzi-
mos já suficientes testemunhos no primeiro ensaio deste volume, ao mes-
mo tempo que interpretámos a recorrência desses tópicos não como indí-
cio de mera cedência a um tema de época, mas como expressão genuína
de uma convicção fundamental e amplamente partilhada pelos pensadores

sobre o Homem e os seus valores imanentes, mas sim no filosofar na e a partir da


palavra. («Unsere These lautet, dass die spezifische philosophische Bedeutung des
Humanismus in ihrer Originalität weder in der Wiederaufnahme der traditionellen
Metaphysik platonischer oder neuplatonischer Prägung besteht noch in einer neuen
Anthropologie mit der Betonnung des Menschen und seiner immanenten Werte, sondern
im Philosophieren in und aus dem Problem des Wortes.»)
172 M.T.Cícero, De officiis, I,16, 50-51: «Eius autem vinculum est ratio et oratio quae
docendo, discendo, communicando, disceptando, iudicando conciliat inter se homines
coniungitque naturali quadam societate.»
173 «Omnis hominum societas, ratio vitae, instituendae publice ac privatim, conqui-
rendorumque omnium quibus vitam tuemur, denique commercia omnia sermone
continentur.» Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523), Corpus Reformato-
rum, Halae, 1843, vol. XI, col. 50.
174 Para toda esta temática e a que segue, tenha-se em conta o que foi dito no cap. I deste
volume, pp. 14-22.
80 Leonel Ribeiro dos Santos

humanistas, segundo a qual o homem vive e realiza a sua humanidade no


elemento da linguagem. Para a maioria dos humanistas, a linguagem não
é um mero instrumento ou utensílio da razão, mas constitui o elemento
natural onde vive e se forma o pensamento, a partir do qual e por meio do
qual a razão se manifesta e exerce realmente o seu poder. Mas alguns
deles foram ainda mais longe e legitimaram a importância e primazia que
concediam à linguagem com argumentos de natureza teológica. Dois há
que a este respeito se destacam: Giovanni Pontano e Erasmo de Roterdão.

3. Num dos seus Diálogos, Pontano confia a um dos intervenientes


uma sugestiva glosa do Prólogo do Evangelho de João. Chariteus – assim
se chama a personagem – declara que acaba de abandonar a tutela de Pla-
tão pela de Hermes, o deus das mensagens, da linguagem e das artes, e
propõe uma estranha síntese da tradição hermética com a tradição bíblica
e cristã em torno do tema do primado absoluto da linguagem, primado
esse que vê afirmado no Prólogo do Evangelho de João, no primeiro
capítulo de Génesis e na literatura sapiencial bíblica (Ecl. 1,4-5), como
também nos livros da tradição hermética, alguns dos quais haviam sido
recentemente divulgados na tradução de Ficino. Assim se exibe, segundo
o humanista, aquela concordantia catholica de doutrinas fundamentais
que interessam ao género humano, que havia sido posta em evidência já
por outros pensadores da época (Nicolau de Cusa, Giovanni Pico della
Mirandola, Marsílio Ficino), numa altura em que as forças espirituais e
institucionais (sobretudo as religiosas), que haviam assegurado durante
séculos a coesão dos espíritos, estavam envolvidas em profunda crise e
em processo de interna desagregação. Ora, o que, tanto na tradição
bíblica como na tradição hermética, aquele humanista capta, como sendo
uma revelação essencial e coincidente, é isto, a saber: que foi pela palavra
que Deus criou o mundo e o homem, e que foi ainda pela palavra que
redimiu e salvou o homem, depois que este, pelo pecado, decaíu do seu
primeiro estado. Mas sigamos o humanista: «Nos assuntos cristãos devem
ser tomados em consideração sobretudo dois princípios: a criação do
próprio mundo e das coisas que nele estão contidas e principalmente a
criação do homem, que é o primeiro princípio e, depois [...] a salvação e a
libertação daquele miserável estado [após o pecado], o que com razão
considero o segundo princípio. O próprio Hermes muitas vezes faz
menção da palavra divina, de modo que para comigo mesmo perscruto e
examino a criação das coisas e contemplo o próprio Deus, o qual, pela
palavra, no princípio criou todas as coisas, e depois, por meio de Gabriel,
que na nossa língua significa génio e na língua grega significa anjo, pela
palavra deu a salvação a todo o universo dos mortais. [...] Por
conseguinte, a própria criação provém da palavra de Deus, ditada pela
sabedoria, no preciso momento em que o próprio Deus a pronunciou e
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 81

disse; ‘Faça-se o céu, faça-se a terra, faça-se a luz’ e todas as outras coi-
sas que provieram da palavra divina. E como para além de Deus e para
além da sabedoria que estava com Deus e com ele está e permanece para
sempre nada mais existia além da palavra que era o próprio Deus, acredi-
tei semelhantemente que todas aquelas coisas provieram do nada pela
palavra e discurso de Deus.»175
Por conseguinte, tal como a própria palavra divina foi o princípio da
criação do mundo e do homem, assim foi também o princípio da redenção
e salvação do mesmo homem. A partir desta implantação teológica, que
põe em evidência o originário poder criador e redentor da palavra, já não
surpreende o desenvolvimento que o mesmo humanista dá aos aspectos
da relevância antropológica e política da linguagem, num tratado expres-
samente a esta dedicado, o De sermone.176
Três décadas mais tarde, o mesmo tópico será objecto de amplo
desenvolvimento por parte de Erasmo, e isso numa obra que se apresenta

175 «In re quidem Christiana duo potissimum principia esse consideranda: et mundi
ipsius rerumque quae eo continentur hominisque praecipue creationem, quod primum
quidem principium est, et generis ipsius humani, postquam in immensum crevit labique
in ruinam improbitate ac libidine coepit sua, salutem atque interitu illo miserabili
receptionem, quod secundum quidem principium iure appellandum censeo. Quodque
Hermes ipse divini saepe verbi mentionem faciat, sic mecum ipse et rerum creationem
perscrutor examinoque et Deum ipsum contemplor, ut qui initio per sapientiam quae
sunt cuncta quidem verbo creasse illum contendem; post vero per Gabrielem, sive
nostro genium sive Graeco nomine angelum, salutem etiam verbo peperisse mortalium
generi universo. [...] Igitur creationem ipsam provenisse crediderim ex verbo Dei,
dictante sapientia, quo sattim momento enuntiavit Deus ipse dixitque: ‘Fiat coelum,
fiat terra, fiat lux’ quaeque coetera divino ex ipso verbo provenerunt omnia. Cumque
praeter Deum ipsum antea praeterque sapientiam, quae cum Deo et erat ab initio et fuit
et est semper, nihil existeret omnino aliud praeterque verbum, quod ipsum Deus
quidem erat, crediderim similiter omnia illa e nihilo verbo ipso Dei dictoque provenis-
se.» Giovanni Pontano, Dialoge, ed. bilingue latim-alemão, W. Fink, München, 1984,
pp. 570-576.
176 Giovanni Pontano, De sermone libri sex (1509), ed.de E. Lupi e A. Risicato,
Antenore, Padova / Thesaurus Mundi, Lugano, 1954. A relação entre a relevância
teológica e a relevância antropológica da linguagem está, aliás, claramente expressa
nesta passagem do Diálogo antes citado: o homem não dispõe de nenhuma força e
faculdade que seja maior que a linguagem e tem também ele o poder de pela palavra
resgatar da morte os seus semelhantes, animando-os e confortando-os: «Itaque ut
verbum ipsum principium fuit creationis et mundi et hominis, sic et principium etiam
eiusdem a mortis tenebris ac miseriis vindicandi. Nec mirum hoc ulli bene instituto
divinaeque caritatis observandi videatur, si consideraverit verbis etiam hominum
ipsorum alios iam iam in mortem prolabentes in vitam e morte restitutos, alios, dum
pati contumeliosa nequeunt verba, mortem sibi ipsos conscivisse. Quod si nulla maior
est hominis vis ac facultas quam quae constat e verbis, mirum, si Deus verbo suo
mundum primo constituit procreavitque hominem, deinde verbo etiam illum suo
vindicavit ab interitu miserabili restituitque ad vitae munera etiam coelestis ac
perbeatae?» Ibidem, p. 576.
82 Leonel Ribeiro dos Santos

como um verdadeiro tratado de retórica cristã, ou, melhor dizendo, como


a legitimação da dignidade da função do orador cristão, largamente inspi-
rada na IV Parte de De doctrina christiana do Bispo de Hipona. Trata-se
da obra Ecclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV (1535). Já ante-
riormente, na segunda edição (1519) da sua tradução do Novo Testamen-
to, contrariando a tradicional interpretação intelectualista e indo ao
encontro do novo gosto exegético e teológico linguisticamente formado,
o humanista holandês vertera o termo grego «logos», do início do Prólo-
go do Quarto Evangelho, por «sermo»: In principio erat sermo. Mas,
numa das suas últimas obras, vai glosar amplamente esse motivo da cris-
tologia joanina, segundo o qual o Filho de Deus é chamado o «Verbo ou a
Palavra de Deus» (verbum sive sermo Dei).177 Para Erasmo, mais ainda
do que para Pontano, a palavra não é só o instrumento privilegiado e
essencial da acção de Deus, através do qual ele exerce a sua criação e
salvação, mas exprime a própria natureza divina, na medida em que,
segundo o próprio Evangelho, o Filho de Deus, absoluta imagem do Pai,
por nenhum outro nome é designado com mais propriedade senão por
esse, como a Palavra ou o Discurso de Deus. E, para o humanista, é desta
raiz teológica que, em última instância, resulta toda a substância e
importância da própria palavra humana e a dignidade da função do
pregador ou do orador cristão na comunidade dos crentes e a primazia
que nesta comunidade deve ser reconhecida ao ministério da palavra. É
toda a teologia trinitária, toda a cristologia e eclesiologia, enfim, é toda a
antropologia que decorre da Palavra essencial e principial.
Dada a extraordinária relevância do texto erasmiano, no qual, aliás,
se condensa e onde atinge a máxima expressão toda a filosofia e mesmo
toda a teologia da linguagem dos humanistas, ser-nos-á consentido que o
citemos um pouco mais extensamente. Assim escreve o humanista de
Roterdão: «Muitos e vários são os carismas que a divina caridade, ávida
como é da nossa salvação, concedeu ao género humano para lhe preparar
a vida eterna, mas nenhum deles é mais magnificente e mais eficaz do
que o carisma de dispensar a própria palavra de Deus ao seu rebanho:
nem há, em toda a hierarquia eclesiástica, função mais preclara pela
dignidade ou mais difícil de exercer, ou mais abundante pela utilidade, do
que a de anunciar ao povo a vontade divina e assim ministrar-lhe a filoso-
fia celeste. Por isso, aquele sumo Eclesiasta que é o filho de Deus, a ima-
gem absolutíssima do Pai, que é a força e a sabedoria eterna daquele que
o gerou e através de quem o Pai distribuíu ao género humano todos os
bens que havia decretado dar à família dos mortais, por nenhum outro

177 Também o humanista e historiador renascentista português João de Barros, na sua


Cartinha (1539), adopta a versão de Erasmo, que sem dúvida conhecia: «Em o começo
era a palavra: e a palavra era acerca de Deos; Deos era a palavra.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 83

nome mais magnífico e significativo é designado nas sagradas letras do


que quando é chamado verbo ou palavra de Deus. [...] Palavra de Deus
ninguém foi chamado a não ser Cristo, o único que por natureza é Deus, e
é segundo esta natureza que ele é designado por este título de Palavra de
Deus, cujos anunciadores são os Eclesiastas. A palavra do homem é a
imagem veraz da mente, que é dada no discurso como que num espelho.
Pois é do coração que procedem os pensamentos, segundo diz o Senhor.
Cristo, porém, é a palavra do Deus omnipotente e sempiterno, sem prin-
cípio e sem fim, que promana do sempiterno coração do Pai: por ele, o
Pai criou todas as coisas, por ele governa todas as coisas criadas, por ele
resgatou o género humano decaído, por ele reuniu para si a Igreja, por
ele, de modo singular e inenarrável, quis revelar-se ao mundo, por ele dá
vida aos mortos, por ele difunde os dons do Espírito Santo, por ele acres-
centa uma secreta energia aos sacramentos da Igreja, por ele há-de julgar
o orbe terrestre [...] Ele é aquela incompreensível palavra anunciadora
certíssima da mente divina, que nunca diverge do arquétipo da suprema
verdade. Por ele nos falou aquela mente eterna de muitos modos nos pro-
fetas; por ele nos falou de modo evidentíssimo, quando enviado à terra,
nascido homem a partir do homem, de modo que não queria já apenas ter
os ouvidos mas unir-se a todos. Mas a palavra humana não é proferida
sem o espírito. De resto, tal como é a nossa palavra, assim é o nosso espí-
rito. Porém, dado que nas coisas divinas aquele que profere a palavra é
omnipotente, também a palavra proferida é omnipotente e assim também
o espírito é omnipotente, e procedente igualmente de ambos. Acima da
sublimidade daquela mente divina nada se pode pensar, mas se de algum
modo o pensamento humano a pode alcançar, nada no homem existe mais
digno do que a mente, pela qual de longe nos distinguimos da natureza
dos animais e somos uma espécie de imagem da mente divina. Foi por
terem ficado admirados com isto que alguns dos principais filósofos sus-
peitaram que as almas humanas eram como uma espécie de centelhas
daquela luz imutável da qual [Horácio] Flaco dizia ‘E fixou-se no lodo
uma partícula da aura divina’; nisto, sem dúvida, erraram torpemente,
pois era como se pensassem que Deus fosse uma coisa corpórea, divisível
ou propagável e que uma coisa criada pudesse ser uma porção de Deus.
Todavia, perceberam correctamente que o homem não tinha outro modo
de aceder mais proximamente à natureza do nume eterno a não ser pela
razão e pelo discurso, a que os Gregos chamam nou kai logou. A mente é
a fonte, a palavra é a imagem que promana da fonte. Da mesma forma
que aquela única palavra de Deus é a imagem do Pai, em nehuma parte
dele dissemelhante de tal modo que com ele faz uma só natureza, assim o
discurso é uma espécie de imagem da mente humana [...] e o homem
nada tem mais admirável e poderoso. A linguagem, promanando do cora-
ção que é a fonte do discurso, expõe a força e o afecto daquele coração
84 Leonel Ribeiro dos Santos

com vigor admirável, de tal modo que o homem não possui outra parte de
si que seja ou mais útil ou mais perniciosa ao homem.»178
Não é de crer que nestas glosas humanistas, seja de um motivo da
sabedoria hermética ou de tópicos da sabedoria bíblica, se trate de meros
exercícios literários. E que dizer da importância que assume a Palavra na
visão luterana da vivência cristã? A Palavra divina é aí contraposta à

178 «Plurima sunt uariaque charismata, quae diuina bonitas, ut est auida nostrae salutis,
humano generi prouidit ad parandam uitam aeternam, sed nullum in his est magnifi-
centius aut efficatius, quàm gregi dominico dispensare uerbum ipsius: nec est aliud
munus in uniuersa hierarchia ecclesiastica, uel dignitate praeclarius, uel ad praestan-
dum difficilius, uel usu copiosius, quàm diuinae uoluntatis ad populum agere praeco-
nem, ac coelestis philosophiae dispensatorem. Proinde summus ille Ecclesiastes dei
filius, qui est imago patris absolutissima, qui uirtus et sapientia genitoris esta aeterna,
per quem patri uisum est humanae genti largiri, quicquid bonorum mortalium generi
dare decreuerat, nullo alio cognomine magnificentius significantiúsue denotatur in
sacris literis, quàm quum dicitur uerbum, siue sermo dei. [...] Verbum dei nemo dictus
est praeter Christum, qui solus natura est deus, iuxta quam naturam hoc titulo designa-
tur uerbum dei, cuius praecones sunt Ecclesiastae. Sermo hominis uerax imago est
mentis, sic oratione quasi speculo reddita. Ex corde enim procedunt cogitationes, ait
dominus. Christus autem est sermo dei omnipotens, qui sine initio, sine fine sempiter-
nus, à sempiterno corde patris promanat: per hunc pater condidit uniuersa, per hunc
gubernat omnia condita, per hunc restituit prolapsum hominum genus, per hunc sibi
conglutinauit ecclesiam, per hunc singulari et inenarrabili modo uoluit innotescere
mundo, per hunc uiuificat mortuos, per hunc dilargitur dona santi spiritus, per hunc
arcanam energiam addit ecclesiae sacramentis, per hunc iudicabit orbem terrarum [...]
Hic est ille incomprehensibilis sermo, diuinae mentis certissimus enarrator, et ab
archetypo summae ueritatis nusquam discrepans: per hunc aeterna illa mens loquuta est
nobis mirabiliter condito mundo: per hunc loquuta est nobis multiphariam in prophetis:
per hunc euidentissime nobis loquutus est, missum in terras, hominem ex homine
natum, ut iam non aures uelleret tantum, sed omnibus etiam ipsis contrectabilis. At
uerbum hominis non profertur absque spiritu. Caeterum qualis est sermo noster, talis
est spiritus noster. At in diuinis quemadmodum proferens uerbum est omnipotens, et
uerbum prolatum aeque omnipotens: ita et spiritus est omnipotens, pariter ab utroque
procedens. Ut autem supra mentis illius diuinae sublimitatem nihil cogitari potest, si
tamen illam ullo modo consequi potest humana cogitatio: ita nihil est in homine praes-
tantius mente, qua parte longissime absumus à natura pecudum, referimusque quandam
diuinae mentis imaginem. Hoc nimirum admirati philosophorum praecipui, suspicati
sunt humanas animas esse ueluti scintillulas quasdam lucis illius incommutabilis, quos
imitatus Flaccus dixit: Atque affigit humo diuinae particulam aurae: in hoc quidem
turpiter errantes quod perinde quais deus sit res corporea, sectilis, aut propagabilis,
existimarunt ullam rem creatam posse dei portionem esse: sed tamen illud recte
perspexerunt, hominem non alia re propius accedere ad naturam aeterni numinis quàm
mente et oratione, quam Graeci  appellant. Mens fons
est, sermo imago à fonte promanans. Quemadmodum autem unicum illud dei uerbum
imago est patris, adeo nulla ex parte promenti dissimilis, ut eiusdem sit cum illo indiui-
duaeque naturae: ita humanae mentis imago quaedam est oratio: qua nihil habet homo
mirabilius aut potentius... ita sermo promanans è corde qui fons est orationis, mirabili
uigore refert uim et affectum illius, ut homo homini non alia sui parte sit uel utilior uel
perniciosior.» Ecclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV, Basileae, 1544, pp. 14
sgs.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 85

humana razão e à sua sabedoria ou filosofia, considerada uma teologia de


pagãos, que mais perturba do que verdadeiramente auxilia a genuína fé
dos crentes. Daí o desprezo de Lutero pela especulação e a sua insistência
na imprescindível necessidade de conhecer o texto bíblico, na convicção
de que através dele Deus fala directamente com o crente e assim o salva,
segundo se lê num passo dos Tischreden: «Não há coisa mais importante
do que podermos crer que Deus fala connosco. Se crermos nisso, já
somos bem-aventurados.»179 A importância que a Palavra de Deus tem na
teologia reformada em geral e, em particular, a teologia luterana da Palavra
não nos parecem ser de todo alheias ao ambiente criado pelos humanistas
de reconhecimento do alto valor e significado antropológico e também
teológico da linguagem. Estaria aí porventura uma pista fecunda a explo-
rar para se repensar a complexa relação que terá existido entre a Reforma
e o Humanismo, movimentos em parte coetâneos e solidários, os quais,
no entanto, alguns quiseram ver como sendo de inspiração antitética.

II
STUDIA HUMANITATIS E STUDIA DIVINITATIS

1. Considerado com razão como o primeiro dos humanistas, também


nisto foi Petrarca iniciador. Dele recebe o primeiro impulso a orientação
do pensamento humanístico para o cultivo da eloquência como comple-
mento da reforma da vida moral. Assim se lê numa sua carta de 1350:
«Exorto-te e aconselho-te a que corrijamos não apenas a vida e os costu-
mes, que é a primeira obra da virtude, mas também o hábito da nossa lin-
guagem, o que nos será dado artificiosamente pelo cultivo da eloquência.
[...] A qual, se não nos fosse necessária, e se a mente não necessitasse dos
auxílios das palavras para explicar em silêncio pelas suas forças os seus
impulsos e os seus bens, deve pelo menos ser cultivada pela utilidade dos
outros com os quais vivemos; cujos ânimos através dos nossos colóquios
podem ser muito auxiliados. [...] Quanto seja útil a eloquência para a
informação da vida humana, é algo bem manifesto quer pela leitura de
muitos autores, quer pela experiência quotidiana que o mostra. [...] De
resto, mesmo que não nos movesse nenhuma caridade para com os outros
homens, ainda assim penso que o estudo da eloquência é excelente e fru-
tuosíssimo para nós mesmos e não deve ser relegado para os últimos

179 «Es gibt kein grosser Ding, als dass wir glauben können, dass Gott mit uns redet.
Wenn wir das glaubten, so waren wir schon selig.» Martinho Lutero, Tischreden, ed.
Kurtland, Philipp Reclam, Stuttgart, 1960, p. 30.
86 Leonel Ribeiro dos Santos

lugares.»180
A arte mediante a qual se desenvolve a eloquência é a Retórica e é
por isso que esta disciplina vai ser chamada a primeiro plano no progra-
ma pedagógico e filosófico dos humanistas. Nas suas Invectivas contra
um certo médico, Petrarca coloca a Retórica e a Poesia acima da Medi-
cina (ou ciência natural), ao mesmo tempo que reconhece naquelas e não
na Lógica, o verdadeiro organon não só da Filosofia como também da
Teologia, chegando mesmo a afirmar que o estudo das disciplinas huma-
nísticas é mais compatível com o Cristianismo do que o estudo da filoso-
fia escolástica e da ciência natural.181 De resto, quanto à filosofia,
Petrarca prefere a dos retóricos e moralistas romanos à de Aristóteles.
Pois, segundo diz, «este ensina, sem dúvida, o que é a virtude, mas nada
ou muito pouco se lê nele que estimule a amar a virtude ou a odiar o
vício.»182 Mas não é tanto o próprio Aristóteles e sim os seus seguidores o
que é visado nas críticas deste pai dos humanistas, o qual reconhece, por
certo, seguindo testemunhos antigos e fidedignos, que nos livros do
filósofo antigo andaria a ciência aliada com a eloquência, tendo-se,
porém, dissolvido completamente essa aliança nas versões e
interpretações que os escolásticos deles fizeram.183
Ao contrário do que muitas vezes se tem escrito, a desafeição pelos

180 «Exhortor ac moneo ut non vitam tantum et mores, quod primum virtutis est opus,
sed sermonis etiam nostri consuetudinem corrigamus, quod artificiose nobis eloquentie
cura prestabit. [...] Que si nobis necessaria non foret et mens, suis viribus nisa bonaque
sua in silentio explicans, verborum suffragiis non egeret, ad ceterorum saltem utilitatem,
quibuscum vivimus, laborandum erat; quorum animos nostris collocutionibus plurium
adiuvari posse non ambigitur. [...] Veruntamen quantum quoque ad informationem
humane vite possit eloquentie, et apud multos auctores lectum et quotidiana experientia
monstrante compertum est. [...] Postremo, si ceterorum hominum caritas nulla nos
cogeret, optimum tamen et nobis ipsis fructuosissimum arbitrarer eloquentie studium
non in ultimis habere.» F. Petrarca, Carta a Tommaso da Messina, Epistolae rerum
familiarium, ed. de V. Rossi e U. Bosco (4 vols., Firenze, 1933-1942), vol. I, pp. 45-47.
181 F. Petrarca, Invective contra medicum quendam, ed. crít. de P.G.Ricci (actualizada
por B.Martinelli), Roma, 1978.
182 «Docet ille [Aristoteles], non inficior, quid est virtus, at stimulos ac verborum facies,
quibus ad amorem virtutis vitiique odium mens urgetur atque incenditur, lectio illa vel
non habet, vel paucissimos habet.» F. Petrarca, De sui ipsius ac multorum ignorantia,
in Prose, ed. a cura di G. Martelloti, P. G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, Milano-Napoli,
1955, p. 744.
183 F. Petrarca, Rerum memorabilium libri II, 2 (Opera, ed. de Basileia,1581,
p. 415):«Moveor tamen quia cum [...] claris et crebris testimoniis Aristotelem non
minus eloquentia quam scientia copiosum legam, in libris tamen eius, qui ad nos vene-
runt, scientiae certa fides, eloquentiae vestigium nullum est, unde grandis mihi stupor
oboritur. Illos mentiri constat elingues simul ac procaces, qui, quoniam Aristoteli suo,
quem semper in ore habent, similes esse nullo modo possunt, illum sibi similem nitun-
tur efficere, dicentes eum, ut qui altissimis rebus intenderet, omnis eloquentiae
contemptorem, quasi in altis rebus nulla verborum claritas possit habitare.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 87

filósofos e pelas suas especulações e a preferência pelos oradores não são


em Petrarca efeito de uma mera sensibilidade literarizante, mas tiram as
suas razões de uma concepção de sabedoria vincadamente prática, que
expressamente invoca o primado do bem e da vontade sobre a verdade e o
entendimento. Escreve Petrarca: «Segundo os sábios, o objecto da vonta-
de é o bem, o objecto do entendimento é a verdade. Mas é mais sábio
querer o bem do que conhecer a verdade, pois aquele nunca carece de
mérito, ao passo que a verdade muitas vezes tem culpa e não tem des-
culpa. Por conseguinte, erram muito aqueles que dedicam o seu tempo a
conhecer a virtude, mas não a adquiri-la, ou ainda pior a conhecer Deus
mas não a amá-lo. Não se pode de modo nenhum conhecer Deus plena-
mente nesta vida, mas pode-se amá-lo devota e ardentemente.»184 É daqui
que decorre também a recusa da via cognoscitiva e especulativa como
privilegiada para chegar a Deus, preferindo, aos filósofos gregos, os reto-
res latinos, ou como diz – referindo-se a Cícero (nomeadamente ao De
natura deorum) e a Séneca – os «nossos próprios filósofos» (no que será
seguido mais tarde por Lorenzo Valla), nos quais colhe uma teologia
retórica, isto é uma verdade capaz não apenas de o ensinar, mas também
de o comover e de o inspirar. A teologia de Petrarca é toda ela dominada
pela doutrina do primado da vontade, colhida directamente da escola
franciscana (em São Boaventura, em João Duns Escoto e em Guilherme
de Ockham), a qual, por sua vez, a bebia no voluntarismo de Santo Agos-
tinho, e esse será também um dos traços que marcará muitos humanistas
posteriores, em particular, Coluccio Salutati e Lorenzo Valla. Esta doutrina
do primado da vontade e dos afectos constitui um dos aspectos caracterís-
ticos da antropologia dos humanistas e contribui para o desenvolvimento
de uma espiritualidade e teologia de feição retórica e para o progressivo
declínio da teologia de base dialéctica e metafísica. Este é também, sem
dúvida, o mais visível ponto de intersecção entre o movimento humanista
e as tendências anti-metafísicas da escolástica nominalista tardo-medieval
e renascentista.185

184 «Voluntatis siquidem obiectum, ut sapientibus placet, est bonitas: obiectum


intellectus est veritas. Satius est autem bonum velle quam verum nosse. Illud enim
merito nunquam caret; hoc saepe etiam culpam habet, excusationem non habet. Itaque
longe errant qui in cognoscenda virtute, non in adipiscenda, et multo maxime qui in
cognoscendo, non amando Deo tempus ponunt. Nam et cognosci ad plenum Deus in
hac vita ullo potest modo, amari autem potest pie atque ardenter.» De sui ipsius et
multorum ignorantia, Prose, pp. 748-749.
185 Sobre este ponto, v.: Panajotis Kondylis, Die neuzeitliche Metaphysikkritik, Klett-
-Cotta, Stuttgart, 1990, pp. 27sgs: «Nominalismus, Humanismus und die Kritik an der
aristotelischen Logik und Metaphysik vom 14. bis 16. Jahrhundert»; Charles Trinkaus,
«Erasmus, Augustine, and the Nominalists», in Idem, The Scope of Renaissance
Humanism, The University of Michigan Press, Ann Arbor, 1983, pp. 274-301.
88 Leonel Ribeiro dos Santos

2. Em muitos aspectos o pensamento de Coluccio Salutati constitui o


desenvolvimento e aprofundamento de tópicos enunciados e abertos por
Petrarca. Tal como no seu mestre, a estratégia deste humanista Chanceler
da República de Florença passa por defender Aristóteles dos seus preten-
sos seguidores, que se apropriaram do seu pensamento, mas deformando-
-o, sobretudo neste ponto, particularmente sensível para os humanistas,
da aliança da ciência com a eloquência. Escreve Salutati a um dos seus
correspondentes: «Não vejo como poderia alguém escrever acerca daque-
les assuntos de que Aristóteles tratou, de forma mais apta, mais suave e
mais copiosa. Lê os seus livros, não apenas os morais e políticos, nos
quais está intimamente unida a máxima eloquência, mas aqueles que
escreveu acerca dos assuntos físicos e metafísicos. Encontrarás tópicos
incapazes de qualquer eloquência tratados por ele de forma eloquentís-
sima e verás como ele, por meio da eloquência, comunicou esplendor e
clareza a coisas obscuríssimas.»186
Também de inspiração petrarquiana é o estatuto atribuído por Salu-
tati à Poesia. Numa das suas cartas, Petrarca havia aproximado a Poesia
da Teologia, quase ousando afirmar que «a poesia é uma teologia acerca
de Deus», a qual profere as suas sentenças não sob o modo de silogismos
mas mediante metáforas e alegorias. Chega mesmo a invocar em apoio da
sua ideia uma passagem de Aristóteles em que este declara que os poetas
foram os primeiros teólogos.187 Mas não há porventura, no conjunto da
vastíssima produção de Poéticas do Renascimento, obra que mais tenha
exaltado a Poesia, ao ponto de a considerar a reunião e perfeição de todas
as ciências, incluindo a Teologia – e operando assim uma verdadeira
«reductio omnium artium ad Poeticam» –, do que a obra de Salutati De
laboribus Herculis, a qual, no seu conjunto, desenvolve uma amplíssima
exposição alegórica dos mitos poéticos relacionados com aquele herói da

186 «Non video, quomodo iis de rebus, quas Aristoteles tractavit, aut aptius, aut suavius,
aut copiosius scribere quisquam potuerit. Lege eius libros, nec morales solum, et
civiles, in quibus magna eloquentia cohaeret, sed eos, qui physici, aut meyaphysici
scribuntur. Invenies locos nullius eloquentiae capaces eloquentissime ab eo tractatos,
rebusque obscurissimis splendorem, et claritatem per eloquentiam attulisse.» C. Salu-
tati, Epistolario, ed. E. Novati, vol. I, p. 138.
187 «Theologia quidem minima adversa poetica est. Miraris? Parum abest quin dicam,
theologiam poeticam esse de Deo, Christum modo leonem, modo agnum, modo
vermen dici, quid nisi poeticum est? Mille talia in Scripturis sacris invenies, quae
persequi longum est. Quid vero aliud parabole Salvatoris in Evangelio sonant, nisi
sermonem a sensibus alienum, sive, ut uno verbo exprimam, alieniloquium, quam
allegoriam usitatiori vocabulo nuncipamus? Atqui ex huiusce sermonis genere poetica
omnis intexta est. Sed subiectum aliud. Quis negat? Illic de Deo deque divinis, hic de
diis hominibus tractatur? unde et apud Aristotelem primos theologizantes poetas
legimus.» F. Petrarca, Epistolae rerum familiarium, ed. cit., vol. II, p. 301.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 89

mitologia grega. Não é já a Filosofia nem a Teologia que detêm o prima-


do entre as ciências, mas sim a Poesia: esta supõe todas as outras como
preâmbulo e leva-as a todas à perfeição realizando e gratificando todas as
funções anímicas do homem, ao ligar os seres uns com os outros por
meio de semelhanças e de metáforas, com ritmo e harmonia, deleitando o
espírito e movendo-o à acção.188 O debate sobre o primado das ciências é
retomado numa outra obra do mesmo humanista, De nobilitate legum et
medicine (1399). Nesta, o que está em causa é saber se é a ciência da
natureza, protagonizada pela Medicina, ou a ciência humana, representa-
da pela Jurisprudência, que detém a primazia e a maior nobreza. 189 O
tema é também de origem petrarquiana. De facto, esta obra de Salutati
parece ser uma retomação muito ampliada das já referidas Invectivas do
seu mestre.
O estudo das ciências da linguagem é em Salutati já claramente
assumido como condição absolutamente necessária não apenas para os
estudos filosóficos e humanos, mas também para os estudos teológicos e
sacros, propondo o humanista a estreita conexão dos studia humanitatis
com os studia divinitatis. Exige-se, antes de mais, a aprendizagem da lín-
gua latina, pois «se não se souber falar o latim, também não se podem
compreender as sagradas letras e as sentenças dos doutores.»190 Segue-se
o estudo da Gramática, verdadeira e única «porta de entrada para todas as
artes liberais, tanto para as ciências humanas como para as ciências divi-
nas», pois «os que pretendem aceder ao conhecimento da doutrina de
Cristo mediante as sagradas letras devem necessariamente entrar nestas
pela Gramática.» Pergunta Salutati: «Como pode ter conhecimento da
Sagrada Escritura aquele que ignora as letras? E como pode saber as
letras aquele que ignora completamente a Gramática? [...] Pois não
entenderá o que ler nem pode preparar outros para ler. Reconheço que
sem as letras pode captar-se a sinceridade da fé, mas não a divina Escri-
tura, nem as exposições dos doutores, nem as tradições, as quais a custo
captam os letrados e de modo nenhum o conseguem os pouco conhecedo-
res da Gramática, se não forem experimentados também nas matérias

188 «Cum sit ab omnibus generata, post omnes artes et ipsam artem artium, philosophiam
et theologiam, hec ars incipit, et cunctas utpote preambulas sibique necessarias pre-
supponit.[...] Poetica simul omnia perficit et imaginativam thesaurumque perceptarum
rerum, memoriam, movet et reducit in actum, per assumptas res atque similitudines res
rebus applicatione delectabili coniungendo (quod quidem nulla prorsus alia facultas
potest efficere), addendo super hoc dulcedinem admirabilis armonie.» C. Salutati, De
laboribus Herculis, I, cap. 3-4 (ed. crít. de B. L. Ullman, pp. 20, 22-23).
189 Sobre o tema, veja-se neste volume o ensaio «Coluccio Salutati e o paradigma filosó-
fico do Humanismo», pp. 173 sgs.
190 «Latine loqui nesciant et ipsas sacras litteras et dicta doctorum ad intelligentiam non
capescant.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, p. 221.
90 Leonel Ribeiro dos Santos

dialécticas e retóricas. E a mesma Gramática não se pode saber na sua


maior parte sem conhecimento das realidades e dos modos segundo os
quais varia a essência das coisas e sem o concurso de todas as ciências,
para além da necessidade de conhecer as palavras. Estão conexos entre si
os estudos de humanidade e também estão conexos os estudos da divin-
dade, de tal modo que não pode haver ciência verdadeira e completa de
uns sem os outros.»191
Numa das suas cartas, dirigida a Frei Giovanni Dominici, Salutati
propõe mesmo um amplo plano de estudos para os religiosos, onde assu-
mem preponderência as disciplinas do trivium, insistindo na necessidade
da Gramática para se lerem e entenderem as próprias Escrituras, da Lógi-
ca para se defender com pertinência e não com sofismas a fé e, final-
mente, da Retórica para persuadir e mover à acção: «Baste quanto se
disse da Lógica, a qual com as suas razões domina e constrange o enten-
dimento; passemos agora à Retórica que está ligada à vontade. Estas duas
artes, ainda que por vias diversas, visam efectivamente o mesmo fim,
ainda que uma ilumine o entendimento para que o espírito saiba, e a outra
o disponha para querer, uma lhe demonstre pela razão e a outra o persua-
da para a acção.»192
Como se vê, Salutati não dispensa de todo por inútil, como o farão
alguns humanistas depois dele, o concurso da Dialéctica ou da Lógica.
Mas afirma que a utilidade desta não se cumpre sem o concurso da Retó-
rica. Para ele, tal como para o seu mestre Petrarca, não basta que a verda-
de seja apresentada e demonstrada com argumentos ao entendimento, se
ela não for igualmente activa sobre a vontade: a função da verdade, para
o humanista florentino, não se esgota no docere, mas deve também ter
poder sobre a vontade e os afectos, movendo o homem para o que é bome

191 «Grammatica [...] ostiaria est omnium liberalium artium omnisque doctrine sive
divina dixerimus sive humana. [...] Christi doctrinam per sacras litteras intraturos a
grammatica debere necessitate quadam incipire. quomodo potest enim Scripture sacre
noticiam sumere qui litteras ignorarit? quomodo potest scire litteras qui grammaticam
omnino non novit? [...] non enim intelligunt que legunt, nec legenda possunt aliis
preparare. potest sine litteris fidei sinceritas percipi, fateor, sed non divina Scriptura,
non doctorum expositiones atque traditiones intelligi, quas vix capere valeant litterati,
et nedum simpliciter docti grammaticam, sed etiam qui dialecticis et rhetoricis
insudarunt. et eadem ipsa grammatica sine noticia rerum et quibus modis rerum
essentia variatur et omnium scientiarum concursu preter necessitatem noticie
terminorum maxima ex parte sciri non potest. connexa sunt humanitatis studia;
connexa sunt et studia divinitatis, ut unius rei sine alia vera completaque scientia non
possit haberi.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, pp. 215-216.
192 «Sed iam satis de logica dictum sit. [...] ad rhetoricam, que cum voluntate
congreditur, veniamus. ambe quidem, licet diverso tramite, finem unum intendunt,
quamvis una dilucidet intellectum ut animo sciat, altera disponat ut velit, et alia ratione
probet ut doceat, hec vero persuadet ut inclinet.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV, p.
223.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 91

honesto ou demovendo-o do que é mau. Se à Lógica cabe o docere, é à


Retórica que cabe o movere. Nesta reivindicação está suposto muito mais
do que uma querela de competências disciplinares. O que verdadeira-
mente está em causa é uma diferente antropologia ou concepção do
homem que neste privilegia a dimensão volitiva, afectiva e activa relati-
vamente à dimensão meramente cognoscitiva.
É frequentemente invocado pelo humanista o exemplo de alguns
antigos Padres da Igreja, de S. Jerónimo e de S. Basílio, mas sobretudo o
de Santo Agostinho. Sobre este diz que «via nos outros e sentia também
em si próprio quão facilmente os doutos na Gramática, na Lógica e na
Retórica penetravam nas verdades teológicas; via quanto estas coisas
eram necessárias aos neófitos, para aprenderem e entenderem as sagradas
letras.»193 E cita, glosando-o, um passo do início do Livro IV de De
doctrina christiana, onde o santo doutor expressamente defende não só a
utilidade como também a necessidade da Retórica para o doutor cristão:
«Dado que a Retórica serve para persuadir tanto acerca do verdadeiro
como do falso, quem ousará dizer que, diante da falsidade, a verdade
deve ficar nas mãos de defensores desarmados, se aqueles que se esfor-
çam por demonstrar a falsidade sabem captar a benevolência, a atenção e
a docilidade daqueles que os ouvem, ao passo que os outros não são
capazes de fazê-lo? Que os primeiros sustentem o erro de modo conciso,
verosímil e claro, e os outros afirmem a verdade de tal modo que escutá-
-la é enfadonho, compreendê-la impossível e crê-la desagradável? Que
aqueles combatam a verdade com argumentos enganosos, afirmando o
falso, e que estes não saibam nem defender a verdade nem refutar a falsi-
dade? Que aqueles, movendo e impelindo os ânimos dos ouvintes para o
erro, os exortem ardentemente, ora aterrorizando-os, ora fazendo-os cho-
rar, ora fazendo-os rir, ao passo que estes, em prol da verdade, os fazem
dormir com um discurso lento e frígido? Quem estará tão pervertido do
gosto que saboreie isto? Se a faculdade da elocução é de grande auxílio
tanto para persuadir das coisas rectas como das coisas más, porque não
associá-la ao estudo dos homens bons para que milite pela verdade, se é
certo que os maus a usurpam para defenderem vãs e perversas causas,
pondo-a ao serviço da iniquidade e do erro? [...] Imaginai um homem
instruído nas artes do discurso que compõem o trivium e que começa o
estudo da escritura e da doutrina cristã e, ao mesmo tempo que esse, um
outro homem que ignora por completo aquelas doutrinas. Quem julgais
193 «Videbat in aliis, sentiebat etiam in seipso quam facile docti grammaticam, logicam
atque rhetoricam in veritates theologicas penetrarent. videbat quam hec necesaria sint
neophitis, ut sacras litteras intelligant atque discant.» C. Salutati, Epistolario, vol. IV,
p. 224. Sobre a presença do pensamento agostiniano em Salutati, v.: Francesco
Bernardo Gianni, «Il magistero di Coluccio Salutati e l’eredità agostiniana», in
Tradizioni patristiche nell’Umanesimo, Edizioni del Galluzzo, Firenze, 2000, pp. 43-80.
92 Leonel Ribeiro dos Santos

que deve e pode aproveitar mais rapidamente e melhor neste estudo, o


instruído ou o completamente ignorante?»194
As perguntas de Agostinho, agora reiteradas por Salutati, vão fazer-
-se ouvir muitas vezes e em vários tons, nos escritos dos humanistas, ao
longo dos dois séculos seguintes. E o efeito do cultivo qualificado das
artes sermocinales e em geral dos studia humanitatis sobre as disciplinas
teológicas vai fazer-se notar a vários níveis, já no século XV, mas sobre-
tudo por toda a primeira metade do século XVI, em perfeita analogia com
o que se passou em relação aos textos da literatura profana e filosófica:
em primeiro lugar, promovendo a revisão crítica dos textos bíblicos a
partir das versões de códices mais antigos entretanto descobertos; empre-
endendo, depois, novas traduções dos mesmos a partir dos originais e
colocando-as em confronto directo com a tradução da Vulgata; final-
mente, renovando a exegese da Escritura e até a interpretação dos dogmas
e doutrinas da fé cristã com base em mais seguras fontes textuais. Gia-
nozzo Manetti, Lorenzo Valla, Erasmo de Roterdão, Martinho Lutero e
Philipp Melanchthon são alguns dos muitos intelectuais humanistas ou
com formação humanística que estiveram envolvidos nesse amplo movi-
mento de recondução da Teologia às suas fontes textuais e que a si mes-
mos impuseram como condição imprescindível para acederem à mensa-
gem da salvação contida nas Escrituras o prévio entendimento da condi-
ção textual e literária destas, só patente àqueles que bem conhecessem a
Gramática e a Retórica.

194 «Nam cum per artem rhetoricam et vera suadeantur et falsa, quis audeat dicere adver-
sus mendacium in defensoribus suis inermem debere consistere veritatem, ut videlicet
illi qui res falsas persuadere conantur, noverint auditorem vel benivolum vel intentum
vel docilem prooemio facere: isti autem non noverint? illa falsa breviter, aperte, veri-
similiter, et isti vera sic narrent ut audire tedeat, intelligere non pateat, credere postre-
mo non libeat? illi fallacibus argumentis veritatem oppugnent, asserant falsitatem; isti
nec vera defendere, nec falsa valeant refutare? illi animos auditorum in errorem
moventes impellentesque, dicendo terreant, contristent, exhilarent, exhortentur arden-
ter; isti vero pro veritate lenti frigidique dormitent? quis ita desipiat ut hoc sapiat? cum
ergo sit in medio posita facultas eloquii, que ad persuadenda seu prava seu recta valet
plurimum, cur non bonorum studio comparatur, ut militet veritati, si eam mali ad obti-
nendas perversas vanasque causas in usu iniquitatis et erroris usurpant? [...] pone tibi
ante oculos unum quempiam in trivio, hoc est sermocinalibus scientiis, eruditum: fac
ipsum cum alio, quenvis, qui studia illa non calleat, fidei christiane doctrinam et sacra-
rum litterarum institutionem incipere: quem putas citius et perfectius imbui posse vel
debere: peritum illum, an rudem et penitus ignorantem?» C. Salutati, Epistolario, vol.
IV, pp. 224-225 (Cf. Santo Agostinho, De doctrina christiana, lib. IV, II,2). Sobre a
recepção desta obra de Agostinho no Renascimento, v.: J. Monfasani, «The De doctri-
na christiana and the Renaissance Rhetoric», in E.D. English (ed.), Reading and
Wisdom: The «De doctrina christiana» of Augustine in the Middle Ages, Notre Dame,
Ind., 1995, pp. 172-188.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 93

III
CRISTIANISMO VERSUS CICERONIANISMO.
TEOLOGIA E ELOQUÊNCIA DE VALLA A ERASMO E MELANCHTHON

1. O papel desempenhado pelo humanista romano Lorenzo Valla no


processo de redução da Filosofia à Retórica já foi por nós abordado no
primeiro ensaio deste volume. Aqui vamos confirmar o quanto já se disse,
mas a propósito de um novo domínio do pensamento: o da exegese bíbli-
ca e da Teologia. Na obra de Valla ganha já forma explícita aquilo que
virá a tornar-se uma das grandes controvérsias renascentistas, em torno da
qual se alinham alguns dos mais importantes pensadores humanistas
europeus da segunda metade do século XV e da primeira metade do sécu-
lo XVI. O que nela estava em causa era saber o que se deveria entender
por verdadeira imitação de Cícero. Mas tratava-se igualmente de saber até
que ponto o cultivo das letras clássicas e da elegância dos escritores
pagãos poderia prejudicar ou servir a religião cristã. Era, por conseguinte,
uma controvérsia não só entre pretensos imitadores de Cícero como entre
pretensos seguidores de Cristo, e ficou conhecida como a controvérsia do
Ciceronianismo.195
No Prefácio ao Livro IV das Elegantiae Linguae Latinae (1448), res-
pondendo àqueles que acusavam os humanistas cultores da elegância
clássica e da eloquência de causarem dano à religião cristã, Valla evoca e
comenta demoradamente o famoso episódio da Epístola 22 de S. Jeró-
nimo, onde este relata um sonho que teve e no qual se viu levado perante
o tribunal celeste sendo aí acusado de, na sua juventude, ter sido mais
ciceroniano do que cristão – o famoso «ciceronianus es, non christia-
nus». O episódio era invocado pelos adversários dos humanistas para
apoiar com um argumento de autoridade patrística a rejeição da nova
cultura retórica. Valla vai, porém, propor uma interpretação completa-
mente inesperada do episódio: «aquilo de que Jerónimo se vê acusado no
seu sonho não é de ter sido ciceroniano, mas de não ter sido cristão,

195 Sobre esta controvérsia, veja-se, de Izora Scott, Controversies Over The Imitation of
Cicero in the Renaissance (1910), reed. Hermagoras Press, Davis, Ca., 1991. Pode ver-
-se também a «Introduction» de Emile V. Telle a: Etienne Dolet, Erasmianus sive
Ciceronianus [Dialogus, De Imitatione Ciceroniana, aduersus Desiderium Erasmum
Roterodamum, pro Christophoro Longolio, Lugduni, 1533], Librairie Droz, Genève,
1974, pp. 15-95.
94 Leonel Ribeiro dos Santos

embora falsamente se afirmasse tal, pois desprezara as letras sagradas.»196


E pergunta: «Quem há que seja mais eloquente do que o próprio Jeróni-
mo? Quem há que seja mais oratório? Quem há que seja mais solícito,
mais esforçado, mais rigoroso no dizer bem, embora por vezes o queira
dissimular? Quem? Ele que nem sequer o dissimula, pois quando Rufino
lhe objecta com este seu sonho, ri-se e confessa abertamente que lera as
obras dos gentios e que elas devem ser lidas, e isso é claro em muitos
outros lugares, ainda que não o confesse, sobretudo na carta ao orador
Magno.»197 Mas ainda mais inesperada é a conclusão, revirando contra os
seus adversários filósofos o argumento destes. Segundo Valla, o que pode
causar prejuízo à religião não é a eloquência ciceroniana e dos oradores,
mas as doutrinas dos filósofos: «muitos houve que disseram, mostrando-
-o, que a filosofia dificilmente se harmoniza com a religião cristã, e que
todos os herejes nasceram das fontes da filosofia.»198 Por outras palavras:
a religião cristã vai muito melhor com a eloquência e a racionalidade
retórica dos antigos Padres da Igreja e dos recentes humanistas do que
com a filosofia dialéctica e metafísica dos escolásticos.
A afinidade de Valla com Jerónimo não fica por aqui.199 O exemplo
do grande tradutor da Bíblia vai inspirá-lo também no esforço por rever a
tradução canónica dos textos sagrados no intuito de a aperfeiçoar, de
acordo com a nova sensibilidade e critérios de crítica textual e literária
dos humanistas. Mas, ao reclamar para si o direito de corrigir, mesmo se
pontualmente, a versão canónica do texto sagrado, o humanista romano
considera-se seguidor do espírito do grande tradutor da Bíblia. Move-o
não apenas uma mais aguda sensibilidade para os aspectos de crítica tex-
tual e literária, como também o novo sentido do carácter histórico e vivo
das línguas. Escrevendo ao seu adversário, o humanista florentino Poggio
Bracciolini, que o acusava de desrespeito pela Sagrada Escritura e da
pretensão de corrigir a tradução da Vulgata da autoria de S. Jerónimo,
196 «Quare non fuit illa accusatio quod ciceronianus esset Hieronymus, sed quod non
christianus, qualem se falso esse praedicaverat, cum litteras sacras despiceret.»
Lorenzo Valla, «Praefatio» in lib. IV Elegantiarum linguae latinae, in Prosatori latini
del Quottrocento, ed. a cura di E. Garin, Milano-Napoli, 1952, p. 617.
197 «Quid Hieronymo ipso eloquentius? Quid magis oratorium? Quid, licet ille saepe
dissimulare velit, bene dicendi sollicitius, studiosius, observantius? Quid? quod ne
dissimulabat quidem, nam obiciente sibi hoc somnium Rufino, hominem deridet plane-
que fatetur se lectitare opera gentilium, et lectitare debere, idque cum in aliis multis
locis, quamquam etiam sine confessione palam est, tum vero epistola illa ad Magnum
oratorem.» Ibidem, p. 618.
198 «Multi dixerunt, ostendentes philosophiam cum religione christiana vix cohaerere,
omnesque haereses ex philosophiae fontibus profluisse.» Ibidem, p. 616.
199 Veja-se: Pierre Lardet, «La figure de Jerôme chez Lorenzo Valla», in Mariarosa
Cortesi e Claudio Leonardi (a cura di), Tradizioni Patristiche nell’Umanesimo,
pp. 211-230;
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 95

Valla lembra-lhe que a versão da Bíblia que se tornou canónica entre os


latinos é apenas uma tradução entre outras, a qual se inscreve numa histó-
ria de sucessivas traduções de umas línguas nas outras, do hebraico para o
grego e do grego para o latim. Mas qual destas deve ser considerada a
«Escritura Sagrada»? Só aquela que for a tradução mais correcta. E por
isso a sua própria versão, se for mais correcta do que a tradicional,
mesmo que esta esteja coberta pela autoridade de S. Jerónimo ou de outro
qualquer, é que deve ser considerada como «Escritura Sagrada». Mas
ouçamos o humanista: «Dizes, Poggio, que eu desprezo a Sagrada Escri-
tura. [...] Mas o que é a Sagrada Escritura, a não ser a interpretação de
todo o Antigo e Novo Testamento? Mas esta é múltipla e vária, e uma
não está conforme com a outra. Ou ignoras que a primeira tradução do
hebraico para o grego foi a dos setenta e dois tradutores, que a segunda
foi a de Áquila, que a terceira foi a de Teodósio e por aí adiante até à
sexta, e que assim entre os Gregos e os Latinos tudo se tornou incerto?
Em qual delas dirás tu que está a Sagrada Escritura? Certamente em
nenhuma, a não ser na que for verdadeira interpretação. [...] Por conse-
guinte, eu não faço outra coisa a não ser traduzir melhor do que o anterior
intérprete: de tal modo que a minha tradução, se for verdadeira, deve ser
chamada santa escritura, e não a dele; embora propriamente falando Santa
Escritura seja aquela que os próprios Santos escreveram, seja em hebraico
seja em grego.»200 Qualquer argumento de autoridade deve ceder perante
os princípios de crítica filológico-textual e de pertinência linguístico-
-histórica – a absoluta fidelidade aos textos originais, a consuetudo ser-
monum – aplicados ao texto sagrado da mesma forma que os humanistas
o aplicavam aos textos profanos, reduzindo-se assim a questão da traduzi-
bilidade e da interpretação da linguagem bíblica e teológica à questão
mais geral da relação entre a linguagem, a cultura e a história. De resto, o
próprio Valla reconhece que os defeitos da Vulgata, que se patenteiam no
confronto desta com os originais gregos, não são devidos tanto ao seu

200 «Ais me Pogi contemnere Scripturam Sacram [...] Sed quid est [...] Scriptura Sacra?
omnisne Veteris Novique testamenti interpretatio? At ista multiplex est et varia, atque
haec illi magnopere repugnans. An ignoras ex hebraeo in graecum primam translatio-
nem fuisse Septuaginta duorum Interpretum, secundam Aquilae, tertiam Theodotionis,
ac deinceps perventum usque ad sextam; atque ita apud graecos latinosque fuisse
incerta omnia? Ubi quid dicas tu esse Sacram Scripturam? certe nullam, nisi veram
interpretationem. At haec quae sit incertum est. [...] Itaque [...] si quid emendo non
Scripturam Sacram emendo sed illius [Hieronymi] interpretationem, neque in eam
contimeliosus sum sed pius potius, nec aliud facio, nisi quod melius quam prior inter-
pres transfero. Ut mea translatio sit, si vera fuerit, appellanda Sancta Scriptura, non
illius; etsi proprie Scriptura Sancta sit ea quae Sancti ipsi vel hebraice vel graece
scripserunt.» L.Valla, In Pogium Antidotum, I (in L.Valla, Opera Omnia, ed. de
Basileia,1540; reimpr. a cura di E.Garin, Bottega d’Erasmo, Torino, 1952, vol. I,
p. 268). Seguimos a versão já corrigida segundo o ms. original, proposta por
S.Camporeale, ob. cit., p. 318.
96 Leonel Ribeiro dos Santos

tradutor, pelo qual aliás tinha o mais alto apreço, quanto às sucessivas
gerações de copistas que asseguraram a sua transmissão ao longo de um
milénio. Em suma: à mensagem da Escritura Sagrada não se chega a não
ser pela mediação da sua textualidade, a qual é particularmente complexa
dada a variedade linguística e as vicissitudes da respectiva génese e trans-
missão, exigindo por isso ainda muito mais cuidado do que qualquer obra
da literatura profana. Pelo que Valla recusa que se considere o seu traba-
lho de emenda da versão latina do Novo Testamento como um sinal de
desprezo pela Escritura Sagrada, considerando-o antes como um exercí-
cio de verdadeira piedade. Mas o instrumento para a análise da linguagem
bíblica e teológica não é a dialéctica escolástica e sim os princípios retó-
ricos de Quintiliano e os critérios filológicos collhidos nos escritos dos
autores clássicos gregos e latinos e nos antigos escritores eclesiásticos.
Ao reivindicar o seu direito de rever e emendar a versão canónica do
Novo Testamento, mediante um confronto desta com o texto grego origi-
nal, o humanista romano estava ao mesmo tempo a relativizar todas as
traduções (e também a sua), evidenciando o carácter histórico e secundá-
rio destas perante o valor absoluto e primário dos textos originais.
Valla deixou as suas ideias e aportações a respeito da exegese bíblica
expostas sobretudo na Collatio Novi Testamenti e nas Adnotationes in
Novum Testamentum.201 Apesar do seu carácter avulso e quase
experimental, por vezes mais crítico do que construtivo202, o trabalho
pioneiro de Valla no domínio da exegese bíblica vai revelar toda a sua
potencialidade e alcance nos primeiros decénios do século XVI,
nomeadamente, no empreendimento coordenado pelo Cardeal Cisneros
de edição da Bíblia Poliglota Complutense203, na nova tradução do Novo

201 Lorenzo Valla, Collatio Novi Testamenti, ed. a cura di A. Perosa, Firenze, 1970. Para
uma detalhada análise do conteúdo e significado histórico-teológico destas obras, do
processo da sua composição (a Collatio, redigida entre 1435-1443, constitui a primeira
versão das Adnotationes, redigidas entre 1453-1457) e das polémicas em que o seu autor
se viu envolvido mesmo com outros humanistas, nomeadamente com o florentino
Poggio Bracciolini, por causa das suas ideias a respeito da correcção da Vulgata, veja-
-se: Salvatore I. Camporeale, Lorenzo Valla. Umanesimo e Teologia, Firenze, 1972,
pp. 247 sgs. Por seu turno, Charles Trinkaus sublinha o significado do que se poderia
chamar o positivismo filológico de Valla para a teologia renascentista, nestes termos:
«Valla’s positivism and philologism points up most sharply the affinity that the
humanists felt between a rhetorical, anti-metaphysical approach to the world and the
tradition of a Scriptural, revelational approach to the Christian religion. It was inevita-
ble, and it would seem inevitable once it is realised how central was the concern of the
humanists with rhetorical force and philological precision, that they would seek to
unify the secular with the religious, historical and literary traditions. But again they
wished to do this with a sharp eye for historical and textual accuracy.» In Our Image
and Likeness, vol. 2, pp. 765-766.
202 Aspecto particularmente evidenciado por S. Camporeale, ob.cit., pp. 247 sgs.
203 A versão do Novo Testamento foi editada em 1514 e a do Antigo Testamento em
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 97

Testamento realizada por Erasmo (1ª edição, Basileia, 1516), aliás, em


concorrência com os biblistas de Alcalá de Henares, e depois também nas
traduções da Bíblia para as línguas vulgares, entre as quais se destaca a
levada a cabo por Lutero. As novas traduções da Bíblia, requeridas e
empreendidas em nome dos princípios linguísticos do Humanismo,
tornar-se-iam um dos instrumentos mais poderosos e decisivos da própria
reforma da teologia e da vida cristãs.204

2. O próprio Erasmo evoca como seus inspiradores os humanistas do


século anterior, sobretudo Lorenzo Valla (de quem descobriu e editou em
1505 as Adnotationes) e Angelo Poliziano. Como eles, recusa a ideia de
que a sabedoria cristã ou «philosophia Christi» seja liminarmente incom-
patível com a eloquência. E pergunta, também ele, no Prefácio à sua edi-
ção das Obras de S. Jerónimo: «Como pode o professar Cristo estar em
conflito com a eloquência? Se Cícero pôde falar eloquentemente dos seus
ídolos, como não há-de o cristão poder falar eloquentemente da verdadeira
piedade e religião?»205 Doze anos depois, no seu diálogo Ciceronianus
(1528), também o humanista de Roterdão enfrenta, já num contexto polé-
mico, o célebre dilema exposto por S. Jerónimo numa das suas cartas
(a 22ª) entre o ser cristão ou o ser ciceroniano e resolve-o apontando onde
reside a autêntica imitação de Cícero. Tal como o antigo orador latino pôs
toda a sua eloquência ao serviço da sabedoria romana pagã, que era a úni-
ca e a melhor que podia conhecer, assim o humanista cristão deve colocar
toda a sua eloquência ao serviço da «philosophia Christi», a qual ultra-
passa infinitamente a «sapientia» romana. Escreve o humanista: «Aquele
que por ser muito ciceroniano é pouco cristão, esse nem sequer é cicero-
niano, pois não sabe dizer com propriedade nem entende completamente

1517, mas a edição completa da obra só foi feita em 1522. Veja-se: Marcel Bataillon,
Erasmo y España, F.C.E., México, 1991 (4ª reimpr.), pp. 22-43.
204 Sobre o alcance das revisões do Novo Testamento feitas por Valla e Erasmo, veja-se:
H. Holeczeck, Humanistiche Bibelphilologie als Reformproblem bei Erasmus von
Rotterdam, Thomas More und William Tyndale, Leiden, 1975, pp. 79-100; J. Choma-
rat, «Les ‘Annotations’ de Valla, celles d’Érasme et la grammaire», in O. Fatio / P.
Fraenkel (eds.), Histoire de l’exégèse au XVIe. siècle. Textes du colloque international
tenu à Genève en 1976, Genève, 1978, pp. 202-228; J.H.Bentley, Humanists and Holy
Writ: New Testament Scholarship in the Renaissance, Princeton, 1983, chap. 2:
«Lorenzo Valla: Biblical Philologist», pp. 32-69; chap. 4: «Desiderius Erasmus:
Christian Humanist», pp. 112-193; C.S.Celenza, «Renaissance Humanism and the New
Testament: Lorenzo Valla’s Annotations to the Vulgate», Journal of Medieval and
Renaissance Studies, 24 (1994), pp. 33-52.
205 «An Christi professio pugnat cum eloquentia? Quid autem vetat si Cicero de suis
daemonibus dixit eloquenter: quo minus Christianus item de pietate veraque religione
dicat eloquenter?» Omnium Operum Diui Eusebii Hieronymi Stridonensis, tomus
primus, Basileae, 1516, fl.B7v.
98 Leonel Ribeiro dos Santos

aquilo de que fala, nem é afectado no espírito por aquelas coisas acerca
das quais fala. Por fim, não trata as coisas da sua fé com o mesmo adorno
com que Cícero tratou os assuntos do seu tempo. Para isto se aprendem as
disciplinas, para isto se aprende a filosofia, para isto se aprende a elo-
quência, para que celebremos a glória de Cristo. Este é todo o fim da eru-
dição e da eloquência. Lembremo-nos também de imitar em Cícero o que
é principal. E isso não reside nas palavras ou na superfície do discurso,
mas nas coisas e nas sentenças, no engenho e no juízo.»206 Se Cícero
pudesse viver agora, continua Erasmo, ele falaria como um cristão. Na
verdade, os cristãos estão em vantagem sobre o orador romano no que
respeita à grandeza dos assuntos de que tratam: «No que diz respeito aos
tropos e aos esquemas retóricos, isso temo-lo em comum com Cícero,
mas somos muito superiores a ele na majestade das matérias e na fé.» 207
Muitos humanistas ficaram desiludidos com o Erasmo que se revelava
nesta obra, aparentemente sacrificando os ideais humanistas aos valores
cristãos e criticando muitos dos humanistas do seu tempo – a «seita dos
ciceronianos» – por praticarem uma imitação servil e meramente formal
do orador e pensador romano. O que o diálogo de Erasmo revela é que o
humanista holandês não concebe a eloquência desligada da doutrina,
como algo digno de ser cultivado por si mesmo e de um modo pedante. E
nisso ele inscrevia-se na linhagem dos grandes humanistas desde Petrarca
e Salutati a Valla e Poliziano. Ao mesmo tempo, na linha de Agostinho e
até de Jerónimo, ele expõe com clareza o modo como o cristão dela pode
e deve fazer uso, primeiro, para chegar ao entendimento e, depois, para
expor as doutrinas da «filosofia de Cristo».
Não admira, pois, se no novo método que propõe para a reforma
completa dos estudos teológicos (Ratio seu Methodus compendio perve-
niendi ad veram Theologiam, 1516, 1518), Erasmo recomenda aos futu-
ros teólogos, para além do conhecimento perfeito do Latim, do Grego e
do Hebraico, línguas que lhes permitirão o acesso directo às fontes da
sabedoria clássica e cristã, também o estudo da Poética e da Retórica, de
preferência ao da Dialéctica, para entrarem no adequado entendimento
206 «Qui sic est Ciceronianus, ut parum sit Christianus, is ne Ciceronianus quidem est,
quod non dicit apte, non penitus intelligit ea de quibus loquitur, non afficitur his ex
animo de quibus loquitur, non afficitur his ex animo de quibus verba facit. Postremo
non eodem ornatu tractat res suae professionis, quibus Cicero tractavit argumenta
suorum temporum. Huc discuntur disciplinae, huc philosophia, huc eloquentia, ut
Christi gloriam celebremus. Hic est totius eruditionis et eloquentiae scopus. Admonen-
di sumus et illud, ut quod in Cicerone praecipuum est imitemur. Id non in verbis aut
orationis superficie, sed in rebus ac sententiis, in ingenio consilioque situm est.»
Erasmo, Ciceronianus, Ausgewählte Schriften, WBG, Darmstadt, 1969, vol. VII,
pp. 352-354.
207 «Iam si quid est ornatus in tropis ac schematis, id totum est nobis cum Cicerone
commune; rerum maiestate fideque longe sumus illo superiores.» Ibidem, p. 172.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 99

das Escrituras e na compreensão da verdadeira Teologia. Faz notar que os


Evangelhos estão cheios de parábolas, que são matéria de poetas; que nos
profetas e nas cartas de Paulo abundam os processos típicos dos oradores.
E que, em contrapartida, nada aí se encontra que tenha algo que ver com
Aristóteles ou com Averróis! Nada que soe a «primeiras e segundas
intenções», a «formalidades», a «quididades», a «heceidades», e outras
coisas do género.208 O humanista critica os teólogos escolásticos que pen-
sam poder resolver todos os problemas da interpretação da Escritura com
os preceitos da Dialéctica, ao mesmo tempo que professam o desprezo
pela Gramática e pela Retórica. A Dialéctica, escreve Erasmo, serve ape-
nas para alimentar o desejo de luta (libido rixandi) e toda se esgota em
distinções sofísticas e em multiplicadas dificuldades e subtilezas, as
quais, em vez de abrirem o acesso à inteligência da Escritura, reduzem
esta a um esqueleto frio e sem vida, quando o que importaria seria «infla-
mar os ânimos».209 A profissão teológica, insiste Erasmo, «consiste mais
em despertar afectos do que em inventar argúcias e o principal objectivo
dos teólogos é narrar com sabedoria as divinas letras acerca da fé, e não o
dar razão de questões frívolas; é discorrer com gravidade e eficácia acer-
ca da piedade, suscitar as lágrimas, inflamar os ânimos pelas coisas celes-
tes.»210 É por isso que prefere a teologia dos mais antigos Padres da
Igreja, modelada por uma sabedoria retórica, à teologia dos escolásticos,
modelada pela árida e fria lógica e metafísica de Aristóteles. Neste ponto,
a consonância entre Erasmo, Melanchthon e Lutero era perfeita. A maior
parte das dificuldades de interpretação do Evangelho e da Escritura são,
segundo o humanista holandês, de natureza linguística e retórica, e não de
natureza dialéctica ou teológica. Exige-se do exegeta uma especial sensi-
bilidade literária para entender a mensagem das Escrituras que nestas foi
exarada pelos autores sagrados em formas literárias diversificadas. Se
Cristo usou parábolas em vez de silogismos não foi só porque assim atin-
gia simultaneamente os sábios e os ignorantes: «É que a parábola não é
eficaz apenas para ensinar e persuadir, mas também para suscitar os
afectos, para deleitar, para imprimir intimamente no espírito a evidência,
impedindo que ele se distraia.»211 É claro que o que está aqui em causa é
a concepção retórica de verdade, na sua tríplice dimensão do docere, do

208 In Novum Testamentum Praefationes, Ausgewählte Schriften, vol. III, p. 54.


209 Ibidem, pp. 144-146.
210 «Professio theologica magis constat affectibus quam argutiis [...] Praecipuus
theologorum scopus est sapienter enarrare divinas litteras, de fide, non de frivolis
quaestionibus rationem reddere, de pietate graviter atque efficaciter disserere, lacrimas
excutere, ad caelestia inflammare animos.» Ibidem, p. 170.
211 «Neque verum tantum ad docendum ac persuadendum efficax est parabola, verum ad
commovendos affectus, ad delectandum, ad perspicuitatem, ad eandem sententiam, ne
possit elabi, penitus infigendam animo. Ibidem, vol. III, p. 375.
100 Leonel Ribeiro dos Santos

delectare e do movere.
Para todo este programa, Erasmo inspira-se largamente em Santo
Agostinho, que cita amiúde e particularmente na sua obra De doctrina
christiana, cujo Livro Quarto é, como já se disse, «a um tempo, o último
grande tratado de retórica clássica e o primeiro grande tratado de retórica
eclesiástica».212 Desta obra do Bispo de Hipona, que já acima
encontrámos citada e glosada também por Salutati, fora encontrado um
manuscrito completo, em 1423, pelo arcebispo de Milão, Bartolomeo
Capra, de que se fez edição em 1465. Mas a edição de referência dessa
obra será a que o próprio Erasmo empreende, em 1528/29, integrada nas
Obras de Aurélio Agostinho em 10 tomos, impressa nos prelos de
Frobenius, em Basileia. O humanista de Roterdão tomará depois o último
livro dessa obra como inspiração para escrever ele próprio todo um
tratado de retórica eclesiástica – Ecclesiastae, sive de ratione
concionandi libri IV –, que publica em 1535, e onde desenvolve
amplamente os princípios de uma pedagogia humanística cristã: a
Gramática, como fundamento e, a ela subordinada, a Dialéctica, pois tudo
aquilo de que trata a Dialéctica, trata-o através da linguagem. É através
desta que ela enuncia, define, divide e junta. Ela supõe, por conseguinte,
o conhecimento das palavras mediante as quais as coisas singulares são
declaradas, não segundo o arbítrio dos disputantes, mas de acordo com o
costume dos antigos (consuetudine veterum) que falaram com
propriedade.213 Da mesma forma, se impõe o estudo da Retórica em vista
da eloquência214, ao mesmo tempo que se recusa a Dialéctica que seja
praticada como mera ostentação do engenho e não entendida como uma
arte de julgar rectamente acerca do verdadeiro e do falso.215 Em suma, tal
como Agostinho, Erasmo defende que a revelação de Deus não dispensa
o pregador e o teólogo do conhecimento das disciplinas humanas e, em
especial, das referidas disciplinas da linguagem.216 E o maior sinal dessa
imprescindibilidade encontra-o, como já acima se disse, no facto de o
próprio Filho de Deus ser nomeado, no Prólogo do Evangelho de João,
como a palavra de Deus dada na forma humana (o termo grego logos é
intencional e preferentemente traduzido por sermo, para reforçar a sua
determinação linguística, em vez da intelectualística).217

212 Marc Fumaroli, L’âge de l’éloquence. Rhétorique et «res litteraria» de la


Renaissance au seuil de l’époque classique, Albin Michel, Paris, 1994, p. 71.i
213 Erasmo, Ecclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV, ed. de Basileia, 1544,
p. 206.
214 Ibidem, p. 230.
215 Ibidem, p. 336.
216 Ibidem, pp. 82-83.
217 Ibidem, p. 16.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 101

Também nos Prefácios ao Novo Testamento Erasmo desenvolvera


amplamente o tópico da necessidade que o teólogo tem do conhecimento
das línguas e das propriedades destas, sugerindo que não só os escritores
sagrados mas até o próprio Espírito divino que os inspira também têm a
sua peculiar gramática, poética e retórica: «Deve ter-se em consideração
também a propriedade do discurso teológico. Pois o Espírito divino tem
também a sua peculiar língua e o mesmo se diga dos escritores sagrados,
que quando escrevem em grego referem muitas coisas que são próprias da
língua hebraica. O que dá azo a muitos erros.»218 Em suma,
reiteradamente o humanista insiste na necessidade de se atender aos
aspectos retóricos e poéticos do texto bíblico, tecido de metáforas,
parábolas, tropos e esquemas, a cuja interpretação se acede não
propriamente pela aplicação das regras do raciocínio silogístico ensinadas
pela Dialéctica, mas pelo conhecimento dos procedimentos peculiares da
Retórica e da Poética. Ao mesmo tempo que faz notar que o recurso dos
autores sagrados a estes procedimentos não visa apenas tornar a
mensagem acessível ao povo ignorante, mas trata-se, antes, do cuidado
que aqueles escritores tiveram de se manterem dentro do uso comum da
língua e de comunicarem uma verdade viva, que se dirigia mais aos
afectos do que à mera inteligência ou razão dos homens.

3. Cabe aqui ainda uma breve referência ao desenvolvimento que


estas ideias mereceram também da parte de um outro grande humanista e,
além disso, também grande pedagogo e teólogo, como o foi Philipp
Melanchthon. Da concepção melanchthoniana da Retórica e do modo
como o humanista alemão entende a relação entre a Filosofia e a eloquên-
cia já falámos o bastante, no primeiro ensaio deste volume, pelo que
agora nos podemos concentrar neste aspecto mais particular de ver como
a sua concepção da Retórica e da eloquência afecta também profunda-
mente a sua concepção da Teologia. Como já notámos no início deste
ensaio, não se tem advertido suficientemente o quanto na base dos
desentendimentos teológicos entre os representantes da Igreja romana e
os representantes das novas Igrejas reformadas, em especial da luterana,
esteve o facto de uns desenvolverem uma teologia dialéctica e metafísica,
enquanto os outros desenvolviam uma teologia retórico-humanista, que se
reconhecia mais próxima das origens, não só das próprias fontes bíblicas
da fé, como também das fontes patrísticas da Teologia.
É assaz frequente nos escritos de Melanchthon a crítica aos teólogos

218 «Annotanda est et theologici sermonis proprietas. Nam habet spiritus ille divinus
suam quandam linguam et scriptores illi sacri, et cum Graece scribunt multum referunt
ex proprietate sermonis Hebraici. Atque hinc multis errandi ansa.» Erasmo, In Novum
Testamentum Praefationes, Ausgewählte Schriften, vol. III, p. 64.
102 Leonel Ribeiro dos Santos

escolásticos, os quais, por ignorância da linguagem e desprezo da elo-


quência, teriam corrompido a própria Teologia, pois eram incapazes de
ler e de interpretar correctamente – e isso quer dizer, antes de mais, na
sua literalidade e literariedade – a Escritura: «Como não entendiam a lin-
guagem das sagradas letras, como não tinham nenhum conhecimento da
antiguidade, como não captaram o sentido das controvérsias e sentenças
dos antigos, espalharam na Igreja muitas opiniões ímpias e perniciosas.
Por falta de compreensão da linguagem fabricaram uma teologia
nova.»219
Em contrapartida, do regresso às fontes da doutrina cristã e do estu-
do da eloquência esperava o humanista que resultasse uma regeneração
tanto da Filosofia como da Teologia, que lhes restituísse a genuína nobre-
za original.220 Por isso, a restauração contemporânea das letras humanas é
entendida como um Pentecostes, um novo «dom das línguas» que o Espí-
rito Santo fez descer não apenas sobre a Humanidade, mas também sobre
a sua Igreja.221
Encontramos estas ideias já expostas num Discurso proferido em
1523, no qual o humanista traça o seu plano de estudos académicos e que
ficou conhecido por Encomion eloquentiae. Melanchthon insiste que não
basta que o teólogo conheça ou invoque conhecer as profecias, requeren-
do-se para as entender o conhecimento das ciências da linguagem. Di-lo
desta forma bem expressiva: «Uma vez que Deus se revelou aos homens
por meio de palavras humanas, aqueles que forem ignorantes nas artes da
palavra só poderão interpretar de modo inadequado a palavra divina.»222
Por conseguinte, «é necessário que o teólogo conheça a força das pala-
vras, as quais são como uma espécie de sacrário em que se escondem os

219 «Qui cum sacrarum literarum sermonem non intelligerent, cum nullam haberent
antiquitatis notitiam, cum iudicii inopia veteres controversias ac sententias non recte
acciperent, multas sparserunt in Ecclesia impias et perniciosas opiniones. [...] Itaque
cum sermonem non assequerentur, novam quandam Theologiam architectati sunt.»
Philipp Melanchthon, Corpus Reformatorum, ed. C.G.Bretschneider, Halae, 1842,
vol. IX, col.704.
220 «Revocari ad fontes doctrina christiana necesse sit. Eam ad rem profutura sunt
Eloquentiae studia, quae si quando colere nostri homines incipient, spero Herculem
aliquem exoriturum esse qui monstris illis orbem terrarum liberet, quipe Philosophiae
et Christianae doctrinae nativum decus restituat.» Ibidem.
221 «Deinde cur divinitus additum est Evangelio donum linguarum, si Eloquentia inutilis
est ad res sacras et magnas exponendas? Quid enim aliud est donum linguarum, si
Eloquentia, hoc est, facultas plane et copiose res obscuras explicandi?» Responsio
Philippi Melanchth. pro Hermolao, in Corpus Reformatorum, vol. IX, col.697. Sobre a
discutida autoria melanchthoniana desta peça, veja-se a nota 87 ao primeiro ensaio
deste volume, pp. 43 sgs.
222 «Nam cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino inepte iudicaverint
imperiti artium dicendi.» Philipp Melanchthon, Werke in Auswahl, Bd. III (Huma-
nistische Schriften), Gütersloher Verlagshaus Gerd Mohn, Gütersloh, 1969, p. 58.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 103

mistérios divinos».223 E este professor de Retórica na Universidade de


Witemberga e autor de importantes e influentes manuais de Retórica
declara mesmo que «ninguém poderá ajuizar correctamente acerca da lin-
guagem se não tiver aprendido correctamente a arte da Retórica».224
Toda a teologia e exegese melanchthoniana se inspira e baseia nestes
pressupostos tipicamente humanistas, nunca abandonados. Mas há ainda
um outro aspecto pelo qual a teologia de Melanchthon se revela na sua
feição originariamente retórica. Trata-se da peculiar antropologia deste
humanista e primeiro teólogo do luteranismo, segundo a qual a doutrina
escolástica e tradicional das duas faculdades humanas é ultrapassada a
favor de uma concepção do homem que coloca em primeiro plano a
dimensão afectiva – o coração, considerado como o núcleo mais íntimo do
homem, onde por certo acontece o pecado, mas onde é acolhida também
a acção certificadora da palavra divina que salva e justifica o homem.
Melanchthon evita a linguagem escolástica que dividia o homem em duas
faculdades fundamentais – a cognoscitiva e a volitiva, o entendimento ou
faculdade de conhecer e a vontade ou livre arbítrio –, e propõe uma lin-
guagem mais dinâmica: «Não usaremos os termos razão e livre-arbítrio,
mas nomearemos as partes do homem por força de conhecer e força sub-
metida aos afectos, isto é ao amor, ao ódio, à esperança, ao medo e outros
semelhantes.»225 Numa versão mais tardia da sua antropologia, o teólogo
luterano propõe uma divisão do homem em três partes: a cognoscitiva-
-judicativa (mente, intelecto, razão), a desejante ou apetitiva (vontade) e a
afectiva (coração).226 Mas sobretudo recusa a ideia, tradicional entre os
filósofos (desde Aristóteles aos Estóicos e Escolásticos), segundo a qual a
vontade tem um poder absoluto sobre as paixões e os afectos. A própria
vontade é por ele entendida como uma faculdade originariamente dese-
jante e afectiva, como a própria «fonte dos afectos» ou como aquilo a que
na Bíblia se chama o «coração», e não como uma faculdade com poder de
deliberar arbitrariamente sobre as paixões, dominando-as.227 Por outro
223 «Praeter prophetiam vis verborum cognoscenda est, in quibus tamquam in sacrario
quodam divina mysteria recondita sunt.» Ibidem, p. 59.
224 «De sermone iudicare nemo recte poterit, nisi qui recte dicendi rationem
perdidicerit.» Ibidem, p. 60. Sobre a Retórica de Melanchthon, veja-se: Joachim Knape,
Philipp Melanchthons «Rhetorik», Max Niemeyer Verlag, Tübingen, 1993.
225 «Nos neque rationis neque liberi arbitrii voce utemur, sed hominis partes
nominabimus vim cognoscendi et vim obnoxiam affectibus, hoc est amori, odio, spei,
metui et simulibus.» Loci communes, Werke in Auswahl, Bd. II, p. 22.
226 Loci praecipui theologici (1559), Werke in Auswahl, Bd. II, p. 264:«In homine est
pars cognoscens ac iudicans, quae vocatur mens vel intellectus vel ratio, in hac parte
sunt notitiae. Altera pars appetens vocatur voluntas, quae vel obtemperat iudicio vel
repugnat, et sub voluntate sunt appetitiones sensuum seu affectus, quorum subiectum et
fons est cor, qui interdum congruunt, interdum pugnant cum voluntate.»
227 «Interni affectus non sunt in potestate nostra. Experientia enim usque comperimus
104 Leonel Ribeiro dos Santos

lado, o teólogo-humanista recusa a ideia, comum a muitos filósofos (de


Platão aos Estóicos, de Aristóteles aos Escolásticos), segundo a qual os
afectos seriam uma doença da natureza e que, por conseguinte, deverão
ser tidos por essencialmente negativos. Demos-lhe a palavra: «As escolas
não negam os afectos, mas consideram-nos como doenças da natureza e
basta-lhes que a vontade decida contrariá-los. Eu, porém, nego que haja
alguma força no homem que possa seriamente contrariar os afectos, e
penso que aquelas decisões da vontade não são mais do que um pensa-
mento fictício do intelecto. Pois, uma vez que Deus julga os corações, é
necessário admitir que a suprema e mais importante parte do homem é o
coração juntamente com os seus afectos. De outro modo, por que razão
haveria Deus de estimar o homem pela sua parte mais imbecil e não antes
pela melhor, caso fosse verdade que a vontade é uma outra parte melhor e
mais forte do que o coração e o afecto? Que responderão a isto os sofis-
tas? Facilmente se evitariam todos estes erros crassos, se em vez do
vocábulo aristotélico vontade usássemos o vocábulo coração que a Escri-
tura adopta. Aristóteles chamava vontade à deliberação verdadeira sobre
as obras externas, o que é totalmente mentira. Pois que interessam à dis-
ciplina cristã as obras externas se o coração for insincero? [...] Que
importa exibir a liberdade das obras externas, se o que Deus exige é a
pureza do coração? [...] À mente cristã interessa ver não qual é a
aparência da obra, mas qual é o afecto do ânimo, não qual é a liberdade
das obras, mas se há alguma liberdade dos afectos. Preguem os fariseus
escolásticos a força do livre-arbítrio. O cristão reconhecerá que nada está
menos em seu poder do que o seu coração.»228

non posse voluntatem sua sponte ponere amorem, odium aut similes affectus,sed
affectus affectu vincitur, ut, quia laesus es ab eo, quem amabas, amare desinis. Nam te
ardentius quam quenvis alium amas. Nec audiam sophistas, si negent pertinere ad
voluntatem affectus humanos, amorem, odium, gaudium, moerorem, invidentiam,
ambitionem et similes; nihil enim nunc de fame aut siti dicitur. Quid enim est voluntas,
si non affectuum fons est? Et cur non pro voluntatis vocabulo cordis nomen usurpamus?
Siquidem scriptura potissimum hominis partem cor vocat adeoque eam, in qua
nascuntur affectus. Fallunt autem scholae, cum fingunt voluntatem per naturam suam
adversari affectibus aut posse ponere affectum, quoties hoc monet consulitve intel-
lectus.» Loci praecipui theologici, cap. II, Werke in Auswahl, Bd.II. Cf Loci communes,
Ibidem, p. 28.
228 «Non negant affectus scholae, sed vocant infirmitatem naturae, satis esse, si actus
elicitos diversos habeat voluntas. At ego nego vim esse ullam in homine, quae serio
affectibus adversari possit, censeoque actus illos elicitos non nisi fictitiam cogitationem
intellectus esse. Nam cum corda deus iudicet, necesse est cor cum suis affectibus
summam potissimam hominis partem esse. Alioqui, cur hominem ab imbecilliore parte
deus aestimaret et non potius a meliore, si qua voluntas est alia a corde et affectum
parte melior ac fortior? Quid hic sophistae respondebunt? Quod si vocabulo cordis,
quod usurpat scriptura, uti maluissemus quam Aristotelico vocabulo voluntatis, facile
cavissemus hos tam pingues, tam crassos errores. Vocabat quidem Aristoteles volunta-
tem delectum illum verum in externis operibus, qui fere mendax est. Sed quid ad chris-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 105

Esta antropologia melanchthoniana, que recusa a visão intelectua-


lista e voluntarista da filosofia aristotélica e escolástica e que, no homem,
atribui a primazia à dimensão afectiva sobre a cognitiva e a volitiva, está
em espontânea consonância com o essencial da visão antropológica dos
antigos retores romanos, os quais, com a sua sabedoria eloquente, visa-
vam atingir as diversas dimensões do humano, não apenas as cognitivas
(o docere), mas também as fruitivas (delectare) e as emotivas (movere).
Ela recupera aquilo que o humanista germânico entende ser a essência da
filosofia moral e da própria filosofia, enquanto «pedagogia» da razão que
conduz os homens da barbárie à condição de humanidade, «não pela
sumária coerção, como fazem as leis, mas invitando-os, ensinando-os e
persuadindo-os longamente mediante o cultivo das disciplinas humanísti-
cas, suavizando a rudeza e impetuosidade natural dos seus ânimos, tor-
nando-os mais doces e afáveis, levando-os pela arte a saber o que convém
segundo a diversidade das circunstâncias e a esforçar-se por temperar as
acções com uma certa beleza.»229 Assim se diz em plena evidência a ínti-
ma solidariedade entre o pathos, o ethos e o logos, a originária unidade
que existe entre a ética dos afectos, a antropologia retórica e a concepção
prático-estética de filosofia deste humanista. Mas, para além disso e de
um modo muito mais intencional, com a sua antropologia teológica de
inspiração retórica, Melanchthon propõe-se recuperar a mais genuína
antropologia bíblica, que se diz não numa linguagem metafísica e lógica,
mas numa linguagem retórica que visa despertar os afectos, suscitar as
emoções, exortar ao acolhimento da salvação. E também Lutero, que, nas
teses da sua Disputatio de Homine230, expressamente recusou a antropolo-
gia racionalista aristotélico-escolástica, contrapõe a esta antropologia de
pagãos a visão do homem que se patenteia na Escritura Sagrada. E se nes-
ta vê sobretudo o homem decaído e incapaz de se salvar por si mesmo
sem a graça que lhe é oferecida em Jesus Cristo, também lê nela o extraor-
dinário poder retórico da palavra divina sobre os afectos humanos. E só

tianam disciplinam externa opera, si cor sit insincerum? [...] Quid attinet iactare exter-
norum operum libertatem, cum cordis puritatem deus requirat? [...] Proinde christianam
mentem oportet spectare, non quale sit opus in speciem, sed qualis apud animum
affectus sit, non qualis est operum libertas, sed num qua sit affectuum libertas. Praedi-
cent liberi arbitrii vim Pharisaei scholastici, christianus agnoscet nihil minus in potes-
tate sua esse quam cor suum.» Loci communes, Werke in Auswahl, Bd.II, pp. 29-30.
229 «Et hoc nomine [sc. philosophia moralis] philosophia magis prodest, quia non brevi
dicto coercet, sicut leges, sed longa illa tractatio et meditatio [...] invitat animos, et [...]
dulciores et mitiores reddit, et flectit arte ad decorum pro varietate circunstantiarum, et
condire actiones quadam gratia studet.» Philipp Melanchthon, Philosophiae moralis
epitomes libri duo (1546), Werke in Auswahl, Bd. III, pp.160-161.
230 Martinho Lutero, Disputatio de Homine (1536), edição e comentário de G. Ebeling:
Lutherstudien II: Disputatio de Homine, J.C.B.Mohr, Tübingen, 1977.
106 Leonel Ribeiro dos Santos

assim pode o teólogo reformador dizer, comentando o Salmo 121, que tam-
bém «o Espírito Santo pratica uma retórica», quando com a sua palavra
insta e exorta o homem a confiar na promessa e auxílio divinos, excitando-
-o à perseverança e paciência, assim dilatando, engrandecendo e prolon-
gando a natural brevidade ou estreiteza do coração humano: «a Sua pala-

vra deve ser ouvida e não o nosso coração, o qual apenas sente e vê o
princípio das tentações, mas não vê o fim das dores. O Espírito Santo
retoriciza pois, para que a exortação seja mais clara.»231

IV
DA TEOLOGIA ELOQUENTE À RETÓRICA MORALIZADA
NO HUMANISMO QUINHENTISTA PORTUGUÊS

1. Mas porquê falar apenas dos de longe, se tivemos também aqui


mesmo, neste extremo da Europa, quem soube expor com não menor
brilho e convicção estas mesmas ideias? Referimo-nos ao humanista ebo-
rense André de Resende (1500-1573) e à Oração de Sapiência (Oratio
pro rostris)232 que o mesmo proferiu na Universidade de Lisboa a 1 de
Outubro de 1534, três anos antes da transferência definitiva da Universi-
dade para Coimbra.
Formado nos ambientes universitários do Centro e Norte da Europa,
nomeadamente em Paris e em Lovaina, onde não pôde deixar de sofrer o
efeito da irradiação da figura de Erasmo233, André de Resende partilha

231 «...Iam videbimus, wie er [der Heilige Geist] ein rhetoricam wird ausrichten et
exhortationem treiben usque ad finem psalmi. [...] Propheta [...] hoc agit ut his ceu
promissionibus instet, urgeat et hortetur ad retinendam illam fiduciam in auxilium divi-
num. [...] Quia enim ista, quae contristant, praesentia sunt, contra quae consolantur,
sunt absentia, ideo opus est, dum durant praesentia, quae vexant, ut verbo excitemur ad
perseverantiam et patientiam. [...] Opus est igitur hortationibus, ut ista (liceat enim sic
loqui) naturalis brevitas seu angustia cordis nostri dilatetur, magnificetur, et prolonge-
tur. Hoc potest is, qui videt finem nostrarum tentationum. Eius verbum est audiendum,
nostrum cor non est audiendum, quod tantum sentit et videt principium tentationum, et
doloris finem non videt. Rhetoricatur igitur Spiritus sanctus iam, ut exhortatio fiat
illustrior.» M. Lutero, In XV Psalmos Graduum, Sämtliche Werke, Weimarer Ausgabe,
Bd. 40/3, pp. 59-60.
232 André de Resende, Oração de Sapiência (Oratio pro rostris), trad. de Miguel Pinto
de Menezes, introd. e notas de A. Moreira de Sá, Centro de Estudos de Psicologia e de
História da Filosofia, Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa,1956. Usamos
esta edição, corrigindo, porém, quando necessário, a tradução.
233 Sobre a relação entre André de Resende e Erasmo (de quem o humanista português
escreveu um longo Encomium em verso latino), veja-se: Odette Sauvage, L’itinéraire
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 107

com a generalidade dos humanistas europeus da sua época a desconside-


ração pelos filósofos e teólogos dialécticos, que considera sofistas, e, na
linha de Valla, apenas consente os dialécticos na medida em que eles se
aproximam dos retóricos e dos procedimentos destes. Escreve o humanis-
ta eborense, na sua Oração de Sapiência: «Cícero assaz escarneceu de
alguns dialécticos do seu tempo.[...] Se ele visse os portentos dos mais
ineptos sofistas deste nosso tempo, que julgais que faria? Eu a estes que
tais nunca honrei com o nome de dialécticos. Quando digo dialécticos,
quero abranger os que são vizinhos dos retóricos, e somente destes
diferem em que, contentando-se com provar a verdade nua, deixaram aos
retóricos a luz e o ornato das palavras, e a beleza da expressão. Falo desta
mesma dialéctica que traz luz à verdade, nervos à oração, que inventa os
argumentos, que garante fé ao que é dito, sem a qual toda a oração se tor-
naria seca, baixa, inábil, inconstante e desconexa...»234 Resende prefere,
pois, aos dialécticos propriamente ditos, «os retores a que os latinos cha-
mam oradores, os quais, tendo em comum com os dialécticos tudo o que
releva do método de argumentação, lhe acrescentam como algo que lhes é
peculiar o ornato da dicção, as multiformes luzes do discurso e têm como
fim da sua arte o persuadir.»235
O humanista português critica, por outro lado, o facto de nos estudos
teológicos se ter «abandonado o brilho e a elegância da expressão, que os
antigos Padres sempre juntaram à piedade, e de, perseguindo-se meras
subtilezas, se obrigar a Teologia, rainha de todas as disciplinas, a servir a
Metafísica».236 E pergunta: «Com que proveito repudiamos a elegância

érasmien d’André de Resende (1500-1573), F.C.Gulbenkian, Paris, 1971 (a Oratio pro


rostris, apresentada como «la profession de foi d’un humaniste chrétien» e
«programme pédagogique inspiré par Érasme», é comentada nas pp. 101-106; o texto
latino e respectiva tradução francesa vem nas pp. 107-137). Veja-se também de J. V. de
Pina Martins, o ensaio «Aspects de l’erasmisme d’André de Resende», in Idem,
Humanisme et Renaissance de l’Italie au Portugal. Les deux regards de Janus,
F.C.Gulbenkian, Paris, 1989, vol. 2, pp. 495-553, em especial as págs.521-526.
234 «Cicero quosdam aetatis suae dialecticos derisit satis... Quid si nostri hujus temporis
ineptissimorum sophistarum portenta vidisset, facturum illum putatis? Ego sane istos
taleis dialecticorum nomine nunquam dignatus sum. Sed quum dialecticos dico, eos
intelligi volo, qui vicini rhetoribus sunt, ab illis tantum diversi, quod contenti vel
nudam veritatem probare, verborum lucem et ornatum rhetoribus, dicendique venusta-
tem reliquerunt. Eam ipsam dialecticen dico, quae veritati lumen adfert, nervos oratio-
ni, argumenta invenit, fidem dictis adquirit, sine qua oratio exsucca, humilis, inepta,
inconstans, dissoluta [...] redderetur.» Ibidem, pp. 42-43.
235 «Secundum hos, rhetores, vel si latine mavultis, oratores sequuntur, quibus cum
dialecticis argumentandi ratio communis est, dictionis ornatus peculiaris, orationis
lumina multiformia, finis artis persuadere.» Ibidem.
236 «Relicto dicendi nitore et elegantia, quam semper veteres cum pietate conjunxere,
meras argutias consectati, reginam disciplinarum omnium theologiam, metaphysicae
servire cogamus». Ibidem, p. 50.
108 Leonel Ribeiro dos Santos

do discurso? Se ela houvesse de causar estorvo aos melhores estudos, não


só não suportaria eu que a admitissem, como defenderia que a
exterminassem. Mas eu não vejo em que ponto a eloquência esteja em
conflito com as letras divinas. É evidente que a verdade nua e sem adorno
é mais persuasiva que a mentira, por mais tingida que esta venha com o
estrépito das palavras. Se, porém, as mentiras, escritas com adornos e
elegância, deleitam, quanto mais não deleitará [...] a verdade ornada?
Quanto mais facilmente não persuadirá?»237
Fazendo-se eco da célebre polémica entre anticiceronianos e cicero-
nianos, que sobretudo depois da publicação ainda recente do Ciceronia-
nus (1528) de Erasmo, agitava os seus contemporâneos, e que levava
muitos a desprezar a retórica invocando a sua condição de cristãos –
«Christianus sum, non Ciceronianus» –, Resende toma em relação a essa
polémica uma posição inequívoca, não concebendo, tal como Erasmo,
que a eloquência e o ornato do discurso possam de alguma maneira entrar
em conflito com a religião.238 E, embora sem fazer um juízo totalmente
negativo relativamente aos grandes teólogos da Escolástica (Tomás e
Escoto) e às suas inequívocas capacidades dialécticas – nisso dando pro-
vas de ser mais moderado e justo do que muitos dos seus contemporâneos
(Vives, Melanchthon, Nizolio...) e que o próprio Erasmo –, contrapõe-
-lhes, todavia, os antigos Padres da Igreja, cujos escritos, segundo diz,
exercem sobre quem os lê um poder tal que, no seu entender, só pode
resultar do facto de neles andar unida à piedade a eloquência, a qual, pre-
cisamente, falta aos escolásticos. E assim, escreve: «Vigorosíssimo é o
divino Tomás nas disputas, acérrimo no apertar o inimigo, e muito sagaz
na investigação da verdade, ao ponto de nele podermos reconhecer o
homem aristotélico por excelência. Escoto esgrime admiravelmente os
argumentos e ilude com aplauso o adverssário incauto a tal ponto que já
mereceu o vulgar nome de Subtil. Mas quando o leitor entra nos elegan-
tíssimos escritos de Tertuliano, Lactâncio, Cipriano, Jerónimo, Agosti-
nho, Crisóstomo, Basílio, Nazianzeno, sem querer e sem se dar conta, é
arrebatado, persuadido, tocado e deleitado. A que se deve isso, pergunto,

237 «Sermonis autem elegantiam quo merito repudiamus? Si melioribus studiis


impedimento esset, non modo non admitti eam moderate ferrem, sed etiam auctor
essem exterminandae. Verum ego non video quomodo cum divinis literis pugnet
eloquentia. Hoc certe perspicuum est, nuda veritatem er inornatam, ad persuadendum
esse aptiorem, quam mendacium, quanto velis fucato verborum strepitu. Si autem
mendacia ornate et eleganter scripta delectant, quanto [...] majus ornata veritas
oblectamentum adferet? Quanto persuadebit facilius?» Ibidem, pp. 50-52.
238 Ibidem, p. 42: «... qui si quando quur non rhetoricam didicere, interrogentur, fortiter
et magna, ut ipsi putant constantia, ut ego tamen iudico, protervia, respondere pro se
quisque solent: Christianus sum, non Ciceronianus. Ceu vero cum religione pugnet
dictionis ornatus.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 109

senão pelo benefício da eloquência unida à piedade?» E conclui: «Por


isso, vos aconselho a que sempre conjugueis a elegância e o brilho do
discurso com a sabedoria e principalmente com a divina Teologia.»239
Em perfeita e essencial sintonia com os grandes humanistas da pri-
meira metade do século XVI, cujas ideias por certo bem conhecia,
Resende recupera assim também para a Teologia a concepção retórica da
verdade, a qual deve dirigir-se a todas as faculdades do homem, ilumi-
nando-lhe e persuadindo-lhe o entendimento, despertando-lhe os afectos e
movendo-lhe a vontade para a acção virtuosa e para a piedade.

2. Na cultura portuguesa de Quinhentos, a Oração de Resende não é


o único documento que dá testemunho do debate acerca da importância
da Retórica no pensamento filosófico e teológico. Registe-se ainda um
outro mais tardio, ainda relevante, mas já menos convicto das vantagens
de unir a ciência e a doutrina com a eloquência, o qual ocorre na obra
Imagem da Vida Cristã (1563;1572) do frade jerónimo Heitor Pinto.
Os temas da relação entre Filosofia e eloquência ou o do valor da
Retórica aparecem em pelo menos três dos vários diálogos que compõem
a Imagem. Num deles, comenta-se a atitude de Sócrates relativamente à
eloquência, com explícita alusão aos vários diálogos platónicos onde ela
se expõe. Mas o contexto é o da defesa da necessidade da Filosofia, e a
questão da eloquência só aí aparece indirectamente e por confronto. É um
teólogo que assume aquela defesa, declarando que mesmo para falar con-
tra a Filosofia se tem de dar prova da sua necessidade e fazer ofício de
filósofo. E dá como exemplo Sócrates, o qual, ao falar contra a eloquên-
cia, deu provas da mais elevada eloquência. Cito: «Querendo vós mostrar
por razões que na república não há-de haver filósofos, tomais ofício de
filósofo e, disputando contra a Filosofia, usais dela: como Sócrates que
nunca usou de tão alta eloquência, como quando repreende a eloquência,
o que se entende não da verdadeira mas da falsa, a qual ele repreende no
diálogo de Platão intitulado Górgias, onde lhe chama espécie de adula-
ção, e ao que dela usa, no Fedro, serpente pestífera, e no Menéxeno, feiti-
ceiro e embaidor, pior que Circe, porque esta mudava o exterior, e ele o
interior, roubando o juízo e ofuscando o entendimento. E na Apologia

239 «Nervosissimus est in disputando Divus Thomas, acerrime hostem urget, solertissime
veritatem disquirit, ut hominem Aristotelicotaton adgnoscas. Mirabiliter Scotus
argutatur, nec sine laude incautum adversarium deludit, ut merito Subtilis cognomen
vulgo iam obtineat. Sed quum in Tertulliani, in Lactantii, in Cypriani, in Hieronymi, in
Augustini, in Chrysostomi, in Basilii, in Nazianzeni scripta nitidissima lector inciderit,
nolens et invitus rapitur, persuadetur, adficitur, delectatur. Unde id quaeso, nisi
eloquentiae cum pietate junctae beneficio? Quare vos hortor, adolescentes egregii, ut
sapientiae semper, divinaeque praesertim Theologiae, dictionis elegantiam et nitorem
conjugatis.» Ibidem, p. 52.
110 Leonel Ribeiro dos Santos

vitupera a eloquência dos seus adversários. E em nenhuma parte se esme-


rou mais na eloquência que nestas que a repreende. De maneira que, para
disputar contra a eloquência, usa dela, e então se mostra príncipe de ora-
dores, quando contra eles argumenta, equando quer abater a retórica,
então a exalça, e para a desbaratar a confirma.»240
Se desta passagem ressalta a vantagem da Filosofia sobre a eloquên-
cia, também nela se confirma a distinção entre uma boa e uma má elo-
quência, ao mesmo tempo que se apresenta um exemplo histórico con-
creto e bem eloquente de como a melhor filosofia e a mais elevada
eloquência podem andar de facto unidas, ou de como a boa filosofia para
se afirmar sobre a sofística necessita de usar a eloquência e a retórica,
aparentemente tidas como artes sofísticas. A inspiração platónica do epi-
sódio é óbvia, não só pela tese geral proposta, como pela recensão dos
principais lugares platónicos onde a questão é discutida pelo filósofo
antigo no confronto de Sócrates com os Sofistas.
Num outro lugar, trata-se dum diálogo entre um florentino e um
português, no qual se discute acerca da vantagem, para um cristão, de ler
os livros pagãos escritos em estilo elegante. Todo o contexto do diálogo
evoca a questão do Ciceronianismo, que agitara os humanistas europeus
na primeira metade do século. A tese geral que se depreende do diálogo é
a do primado e excelência da Filosofia, entendida sobretudo como sabe-
doria ou filosofia moral, à qual se deve subordinar a Retórica. Todavia,
reconhece-se à literatura elegante uma utilidade funcional quando usada
em serviço de Deus e da virtude. Por conseguinte, a Retórica é concebida
como algo instrumental, capaz de ser usado tanto para bons como para
maus fins. É o português que toma a defesa da causa da filosofia moral
contra a Retórica, defendida pelo florentino, que considera a eloquência
como «cousa sonora, e resplandecente, e de grande claridade». O eco da
Carta de Pico a Barbaro não deixa de se ouvir em fundo e, de resto, o
filósofo de Mirandola e o seu sobrinho Gianfrancesco Pico (seu biógrafo
e editor) são referidos várias vezes na Imagem, sendo de presumir que o
frade jerónimo tinha diante de si exemplar das Obras de Giovanni Pico,
segundo a edição empreendida pelo sobrinho deste, também filósofo. Não
se deixa de advertir para o poder de sedução da linguagem elegante e para
o perigo que ela representa: «a linguagem, quanto é mais elegante, tanto
mor perigo traz consigo nos livros profanos».241 E insiste-se que é a boa
doutrina e não o estilo refinado o que se deve buscar nos livros que se
lêem: «assim se deve escolher o romance dos livros de boa doutrina,
ainda que não seja tão puro, nem tão refinado, nem de tanto lustro, pois é

240 Frei Heitor Pinto, Imagem da Vida Cristã, ed. com pref. e notas do Pe. M. Alves
Correia, Livraria Sá da Costa Editora, Lisboa, 1940, vol. I, pp. 198-199.
241 Ibidem, vol. III, p. 23.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 111

sem perigo, antes que o dos livros desonestos, por mais polido, e elegan-
te, e de mor primor que pareça, pois é perigoso.»242
A invocação da concepção do orador proposta por Cícero e Quin-
tiliano – o «vir bonus peritus dicendi» – que junta a competência nas artes
do discurso à qualidade moral da sua vida e costumes – permite encontrar
uma solução intermédia de equilíbrio: «Para a eloquência ser proveitosa,
há-de andar unida com a virtude com o liame da prudência do espírito. Até
muitos dos gentios entenderam que para verdadeiro orador não bastava que
fosse perito na arte de dizer, mas que era necessário que tivesse bondade e
virtude: porque desta maneira poderia persuadir e aproveitar.» Mas logo se
fazem ouvir os ecos das diatribes socráticas contra a retórica gorgiana e os
da carta de Pico a Barbaro, advertindo de novo para os perigos da elegân-
cia: «Elegância suave com estilo doce em livros de profanidades não é
outra cousa senão despertador de vícios, cêvo de apetites depravados, e
umas acendalhas, com que se queimam as consciências. Antes queria beber
água clara de fonte medicinal por tarros de vil cortiça, que beber água enlo-
dada de charco peçonhento por vasos de fino ouro. Quero dizer que queria
boa doutrina de livros eruditos e devotos, caso que fossem bárbaros no esti-
lo, antes que as vãs e desonestas fábulas, excitadoras de brutos desejos dos
livros mundanos, posto que chegassem ao cume da singular eloquência.»243
Num outro diálogo, Heitor Pinto regressa ao tema, desta vez fazendo
dialogar um teólogo, um médico e um jurista. Este último manifesta o seu
enfado com o estilo e os modos rudes dos filósofos e a sua preferência
pelos modos elegantes dos retóricos, nestes termos: «Conversei já com
homens que presumiam de filósofos, e achava-os tão carregados e melan-
cólicos que deixei sua conversação. E quão abitumados e sotrancões acho
os filósofos, tão alegres e conversáveis acho os retóricos, e de boa elo-
quência.» Ao que responde o médico com vários exemplos históricos que
mostram a excelência da Filosofia sobre a Retórica: «Diferente sois vós
de Bião, que, sendo filósofo e retórico, foi a Rodes, onde pôs escola de
Filosofia: e, perguntado porque não punha antes escola de Retórica, res-
pondeu: Se eu trago trigo para vender, para que hei-de vender cevada?
Critolau, peripatético, e antes dele Sócrates, e outros muitos vituperaram
a Retórica. E Carmidas e Clitómaco, académicos, afirmaram que não era
arte. A Filosofia foi sempre tida em muita conta, e pelo contrário a Retó-
rica em pouca: e foi tão odiosa em alguns tempos, que os Cretenses a
proibiram em suas leis, e Licurgo nas que deu aos Lacedemónios a man-
dou desterrar da república: e foi por justiça desterrada de muitas cidades
nobres e afamadas.» 244
242 Ibidem.
243 Ibidem, p. 25.
244 Ibidem, vol. III, p. 227.
112 Leonel Ribeiro dos Santos

Desvaloriza este argumento histórico o jurista, que lhe contrapõe o


facto de ter havido também imperadores que desterraram a Filosofia e os
filósofos dos seus reinos. Intervém, por fim, o teólogo, propondo uma
solução moderada, mas tomando claramente o partido da Filosofia. A
Retórica só é consentida quando usada em boas causas, mas o que sejam
as boas causas não é ela que o decide ou o pode ver: «A Retórica é muito
excelente, quando é empregada em serviço de Deus e da virtude. E esta
não a reprovam os antigos, que alegastes, senão a que é convertida em
maus usos.»245
Sensível a um debate que ocupou os mais destacados humanistas
europeus ao longo de mais de dois séculos, Heitor Pinto adopta nele uma
posição moderada que lhe permite ainda conciliar a Filosofia e a Retó-
rica, mas por subordinação da segunda à primeira, da eloquência à ver-
dade. Os três passos analizados revelam uma mesma atitude de pensa-
mento: a tendência para a moralização da Retórica. A eloquência, poten-
cialmente perigosa, é consentida apenas quando está garantido que é
usada em boas causas, as quais devem ser definidas pela filosofia moral
ou pela boa doutrina.
Estas reflexões de Heitor Pinto são já reflexões do ocaso duma época
em que a Retórica chegou a inspirar todo um vasto e elevado programa de
cultura humana. Enquanto expressão desse ocaso, elas estão em plena
sintonia com aquilo a que, no primeiro ensaio deste volume, chamámos o
«recuo da Retórica» e a sua secundarização e menorização, expoliada que
se viu das suas partes mais importantes e reduzida que foi a uma arte de
estratégias elocutivas ou de ardis de sedução que visavam alcançar a per-
suasão dos auditores ou dos leitores. Mas, por estranho que tal pareça, é
neste ocaso da cultura e racionalidade retóricas do Humanismo que vai
florescer aquilo a que se chamou a «idade da eloquência»246 e que vão
proliferar os tratados e manuais de Retórica e por certo também e antes de
mais os de «Retórica eclesiástica».

245 Ibidem.
246 Marc Fumaroli, L’âge de l’éloquence. Rhétorique et «res litteraria» de la
Renaissance au seuil de l’époque classique, (Librairie Droz, Genève, 1980), Albin
Michel, Paris, 1994.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 113
III

LINGUAGEM, TRADUÇÃO E INTERPRETAÇÃO


NO HUMANISMO DOS SÉCULOS XV E XVI

«Quid enim in rerum natura explicari, quid investigari, quid


demonstrari potest, sine sermonis verborumque rem signifi-
cantium beneficio? Sine interpretationis ministerio?»
Johannes Goeddaeus, Commentarius... de verborum et
rerum significatione (1591), 5ª ed., Nassau, 1614, p. 2.
116 Leonel Ribeiro dos Santos

I
HUMANISMO E LINGUAGEM,
OU DA FILOLOGIA COMO FILOSOFIA

Se há um aspecto que possa servir para caracterizar o Humanismo


dos séculos XV e XVI, enquanto movimento cultural e até enquanto pro-
posta filosófica, esse é sem dúvida a importância que nele é reconhecida
a vários níveis ao problema da linguagem. Com as devidas reservas com
que todas as generalizações devem ser tomadas, poderia dizer-se que
numa história filosófica das modulações do pregnante conceito de logos,
que na origem complicava em si, por igual e sem as distinguir, as dimen-
sões ontológicas, lógico-gnoseológicas e linguísticas247, se se pode dizer
que a dimensão onto-lógica (que designa a ordem do pensamento como
correspondendo à ordem mesma do ser) sobressai nos antigos pensadores
gregos, se a dimensão onto-teológica (o logos enquanto princípio criador
e entificativo) foi especialmente desenvolvida pelos pensadores cristãos
da Patrística e da Escolástica medievais, e se a dimensão gnoseológica
(que realça a ordem autónoma do pensamento ou da razão) pode, enfim,
ser considerada como característica dos principais protagonistas do pen-
samento moderno, igualmente se pode dizer que coube aos humanistas
dos séculos XV e XVI trazer a primeiro plano a dimensão linguístico-
-retórica, social e comunicacional do logos, recuperando e erguendo a
ideal de cultura humana superior um paradigma que já havia mostrado as
suas virtualidades nos pensadores da Sofística grega e fora cultivado e
desenvolvido pelos filósofos-retores romanos, nomeadamente por Cícero
e Quintiliano.248
Pode com razão afirmar-se que o paradigma de pensamento dos
humanistas se caracteriza por uma viragem para a linguagem e para a
retórica, viragem esta que vai acompanhada pela adopção, explícita ou

247
Sobre a originária pregnância semântica do termo logos, veja-se: Maria José Vaz Pinto,
A doutrina do Logos na Sofística, Edições Colibri, Lisboa, 2000, pp. 343-345.
248 Sobre o problema geral da linguagem no Renascimento, v.: K.-O. Apel, Die Idee der
Sprache in der Tradition des Humanismus von Dante bis Vico, Bouvier, Bonn, 1975;
Richard Waswo, Language and Meaning in the Renaissance, Princeton, 1987; G.A.
Padley, Grammatical Theory in Western Europe 1500-1700: the Latin tradition,
Cambridge, 1976.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 117

tácita, de um certo número de pressupostos ou axiomas, entre si solidá-


rios, os quais definem o que se poderia chamar um logos retórico ou uma
racionalidade retórica.249 Entre estes axiomas contam-se: a afirmação da
íntima solidariedade e união entre sabedoria e eloquência; a afirmação do
primado da vida activa e civil sobre a vida contemplativa e privada; a
concepção do homem como ser dotado não apenas de razão, mas também
de linguagem (de ratio e de oratio), de acção, de paixões e de afectos,
pelo que importa uma verdade não dirigida apenas à inteligência muda e
silenciosa, mas a uma inteligência comunicacional, capaz de satisfazer
simultaneamente as exigências intelectuais, fruitivas e emotivas do ser
humano: docere, delectare, movere. Mas sobre todos releva o geral reco-
nhecimento da importância social, antropológica, ontológica e até teoló-
gica da linguagem, da condição do homem como um ser falante, como
um ser de comunicação e de comunidade, o reconhecimento, enfim, da
condição linguística do homem, da razão e do pensamento. Desprovida
de linguagem, a razão seria imbecil e aleijada, escrevia Giovanni Ponta-
no, na sua obra De sermone.250 Os humanistas encontravam o tópico da
íntima solidariedade entre razão e linguagem – entre ratio e oratio – no
cerne da visão ciceroniana do mundo, onde a linguagem é dita sinal da
humanidade, fundamento da comunidade e vínculo da sociedade huma-
na.251 E vão glosá-lo à saciedade, se não reduzindo tudo à linguagem,
incluindo a Lógica e a Metafísica, como o intentarão Lorenzo Valla e
Mario Nizolio, pelo menos fazendo passar pela linguagem ou pela
mediação linguística tudo quanto tem algum significado para o homem:
«tudo é abrangido pela linguagem» (omnia sermone continentur), escre-
via o humanista e teólogo Philipp Melanchthon.252 E isso vale para a vida
social e para os negócios, mas igualmente para as ciências, para a Filoso-
fia e para a Teologia. Pois que, como o lembra num dos seus diálogos
(Aegidius) o humanista Giovanni Pontano, mostrando a concordância a
esse respeito entre os escritos bíblicos e os escritos herméticos, foi pela
palavra que Deus criou e redimiu o mundo.253 E, por seu turno, Erasmo,
249 Veja-se o primeiro ensaio deste volume.
250 Giovanni Pontano, De sermone libri sex, ed. S.Lupi e A. Risicato, Antenore, Padova
/ Thesaurus Mundi, Lugano, 1954, lib. I, cap. I, pp. 3-4.
251 M.T. Cícero, De Officiis I,16,50-56: «Eius autem vinculum est ratio et oratio quae
docendo, discendo, communicando, disceptando, iudicando conciliat inter se homines
coniungitque naturali quadam societate.»
252 Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523), Melanchthons Werke in
Auswahl, Bd. III: Humanistische Schriften, ed. por R. Nürnberger, Gütersloher
Verlagshaus Gerd Mohn, Gütersloh, 1969, p. 46: «Omnis hominum societas, ratio vitae
instituendae publice ac privatim conquirendorumque omnium, quibus vitam tuemur,
denique commercia omnia sermone continentur.»
253 Giovanni Pontano, Dialoge, ed. bilingue latim-alemão, München, Wilhelm Fink
Verlag, 1984, pp. 570-576.
118 Leonel Ribeiro dos Santos

no primeiro livro do seu Eclesiastes, glosa longamente o tópico do


Prólogo
ao Evangelho de João, onde, segundo ele muito significativamente, o
próprio Filho de Deus é chamado a Palavra, verbum seu sermo Dei.254

A preponderância da linguagem nas preocupações dos pensadores


humanistas revela-se sobretudo nos seguintes aspectos:
1º – No especial cultivo das ciências da linguagem, as quais são eri-
gidas como núcleo essencial do programa dos studia humanitatis, nomea-
damente, no relevo dado à Retórica e à eloquência e ao ideal ciceroniano
de uma sabedoria eloquente.
2º – Na proliferação de obras expressamente dedicadas à reflexão
sobre a linguagem e a sua relevância – De sermone – ou sobre as artes da
linguagem e do discurso (tratados de Retórica, discursos em louvor da
eloquência), ou ainda sobre as línguas, clássicas ou vulgares.
3º – No impressionante trabalho de tradução ou retradução dos
monumentos literários e sapienciais da Antiguidade, nomeadamente das
obras dos grandes filósofos antigos (Platão, Aristóteles, Plotino e muitos
outros, inclusivamente, os comentadores antigos de Aristóteles, como
Alexandre de Afrodísia e Temístio), trabalho esse no qual se empenha-
ram pessoalmente alguns dos mais destacados protagonistas do pensa-
mento humanista (Leonardo Bruni, Marsílio Ficino, Ermolao Barbaro,
Angelo Poliziano, Erasmo...). Este trabalho de tradução não era um
aspecto menor e desempenhou um importante papel na estratégia dos
humanistas. Traduzir, numa primeira fase, para o latim erudito e, numa
segunda fase, também para algumas línguas vulgares, significava o
esforço para recuperar a verdadeira forma das obras dos antigos e beber
na fonte a sua doutrina ainda pura e genuína, não inquinada ou defor-
mada pelas interpretações filosóficas posteriores e desse modo apropriar-
-se do respectivo conteúdo de pensamento. Restaurar os textos na sua
forma mais próxima da original e depois vertê-los numa tradução fiel e
correcta, era já verdadeiramente filosofar, ou, pelo menos, constituia uma
condição imprescindível para se poder filosofar correcta e pertinentemente.

A crítica mais comum dos humanistas aos filósofos escolásticos –


crítica que se ouvirá pelos séculos XV e XVI e que desqualificava na raiz
não só a forma como também o conteúdo do seu pretenso saber, das suas
doutrinas e até das suas interpretações do pensamento dos autores a cuja

254 Desidério Erasmo de Roterdão, Eclesiastae, sive de ratione concionandi libri IV,
Basileae, 1544, pp. 14 sgs.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 119

autoridade se acolhiam e de quem se reclamavam legítimos herdeiros e


intérpretes – dizia respeito à deficiência linguística e literária das suas
obras, ao desconhecimento ou muito imperfeito conhecimento das lín-
guas clássicas (Latim e Grego), ao uso bárbaro da linguagem, por desco-
nhecimento das virtualidades desta e das ciências que dela se ocupam
(Gramática e Retórica), deficiências estas que em vão eles pretendiam
colmatar invocando apenas o cumprimento das regras da Lógica ou Dia-
léctica. Nos primeiros anos do século XV, Leonardo Bruni fazia dizer a
um dos interlocutores de um seu diálogo: «Não me canso de admirar os
ilustres filósofos do nosso tempo, que ensinam o que não sabem. Pois,
como puderam aprender a filosofia se ignoram as letras? Quando falam,
são mais os solecismos em que incorrem do que as palavras que
usam.»255 E até o moderado Marsílio Ficino desabafa, numa carta a
Giovanni Pietro Patavino: «Numerosos são actualmente não os filósofos
mas os filopompos, que professam defender com enorme arrogância o
pensamento aristotélico, quando na verdade só rara e parcamente poderão
ouvir falar o próprio Aristóteles, e ainda assim não exprimindo-se ele
mesmo em Grego, mas balbuciando coisas alheias numa língua bárbara,
pelo que de modo nenhum o entenderão.»256 No século seguinte,
Melanchthon não dirá menos: como podem os filósofos e teólogos
escolásticos pretender apresentar-se como defensores de Aristóteles e
portadores da boa doutrina se não conseguem sequer ler os escritos do
próprio Aristóteles na língua em que este os escreveu, se ignoram ou
desprezam as ciências da linguagem? Daí as incorrectas interpretações,
daí a proliferação de comentários delirantes.257 E, de resto, observa o
humanista germânico, que viria a ser também o principal teólogo do
luteranismo, «se o próprio Deus quis falar com as nossas palavras, os que
ignoram as ciências da linguagem só podem interpretar a palavra divina
de forma inepta».258 Já no ocaso do Humanismo, em meados do século
255 «O praeclaros nostri temporis philosophos, siquidem ea docent, quae ipsi nesciunt;
quos ego nequeo satis mirari, quo pacto philosophiam didicerint, cum litteras ignorent,
nam plures soloecismos quam verba faciunt cum loquuntur.» Leonardo Bruni, Ad
Petrum Paulum Histrum Dialogus, in E. Garin, Prosatori latini del Quattrocento,
Milano-Napoli, 1952, p. 58.
256 «Sunt multi nostris seculis non Philosophi sed philopompi, qui sensum Aristotelicum
se tenere superbè nimium profitentur, cum tamen Aristotelem ipsum raro admodum
parumque loquentem, et tunc quidem non Grece propria exprimentem, imò Barbare
aliena balbutientem, audiuerint, ideoque minimè intellexerint.» Marsílio Ficino, Opera
omnia, Basileae, 1561, t. I, p. 655.
257 Philipp Melanchthon, Responsio ad Picum, in Corpus Reformatorum, ed. de C.G. Bret-
schneider (Halis Saxonum, 1842), vol. IX, p. 700. Sobre a autoria desta peça – Epistola
Hermolai nova ac subdititia –, veja-se neste volume, pp. 43-45, nota 87.
258 «Nam cum nostris verbis loqui deus voluerit, de sermone divino inepte iudicaverint
imperiti artium dicendi.» Philipp Melanchthon, Encomion eloquentiae (1523),
Melanchthons Werke in Auswahl, III, p. 58.
120 Leonel Ribeiro dos Santos

XVI, Mario Nizolio vai radicalizar todos os pressupostos inspiradores


desse movimento, traduzindo-os num programa sistemático de
refundação da Filosofia em bases linguísticas e retóricas, no qual
estabelece, não já apenas como condição, mas como «primeiro princípio
do correcto filosofar» precisamente o perfeito conhecimento das línguas
clássicas Latim e Grego.259
Com toda a pertinência se pode dizer que a luta filosófica dos
humanistas é uma luta travada no terreno da linguagem, pela linguagem e
com a linguagem. E que a tradução ou retradução das obras dos Antigos
fazia parte integrante e importante da sua estratégia pedagógica, cultural
e filosófica.

II
OS REGIMES FILOSÓFICOS DA LINGUAGEM
NO RENASCIMENTO

Mas não é apenas o regime humanista que ocupa a cena do pensa-


mento nos séculos XV e XVI. Ele convive com outros regimes da lin-
guagem e do pensamento herdados da tradição antiga e medieval, ora em
tensão e conflito, ora em aliança e combinação. Para além do regime
humanista e do regime escolástico, parece-me importante referir, pela
importância decisiva que têm, também sob este aspecto, na cultura filosó-
fica renascentista, o regime hermético e o regime neoplatónico. Só tendo
em conta esta diversidade de regimes, que muitas vezes se entrecruzam e
combinam num mesmo pensador, poderemos entender as diferentes práti-
cas da linguagem filosófica e da tradução filosófica no período do Renas-
cimento. Reconheceremos então que essas práticas pressupõem diferen-
tes concepções acerca da natureza da linguagem e da correcção do seu
uso, mas também acerca da relação da linguagem com o pensamento,
com a realidade, com a verdade, que são, por conseguinte, solidárias de
toda uma visão filosófica do mundo.

1. O regime escolástico, ou a subordinação da linguagem ao pen-


samento e à realidade

A linguagem foi, em geral, concebida pelos pensadores da Escolás-

259 Mario Nizolio, De veris principiis et vera ratione philosophandi contra


pseudophilosophos libri IV (1553), ed. crítica de Q. Breen, Fratelli Bocca Editori,
Roma, 1956, vol. I, p. 22.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 121

tica medieval e renascentista como um instrumento do pensamento para


designação ou das coisas reais ou das essências inteligíveis. Nem a reali-
dade nem o pensamento estão reféns da linguagem ou ao serviço dela. O
inverso é que é verdade. Como o escrevia S. Boaventura, no comentário
ao Livro das Sentenças, «não é a realidade que está submetida à lingua-
gem, mas a linguagem que está submetida à realidade» (non sermoni res,
sed rei sermo est subiectus).260
As próprias línguas e suas particularidades são algo secundário
perante a convicção de que existe uma estrutura racional invariável ou
uma gramática comum a todas as línguas, a qual garante a fundamental
equivalência entre todas elas, uma convicção expressa por Roger Bacon,
na sua Grammatica Graeca: «Segundo a substância, a gramática é uma e
a mesma em todas as línguas, embora varie acidentalmente».261
Segundo esta perspectiva, a ordem da linguagem é remetida para a
ordem do pensamento, regida pelas leis da Lógica ou Dialéctica e, por
sua vez, a ordem do pensamento é remetida para a ordem do ser, segundo
a sequência: modus essendi (realidade) -> modus intelligendi (pensa-
mento) -> modus signandi (palavras) -> modus significandi (significa-
dos). Assim o expõe, em finais do século XIII, o aristotélico averroísta
Siger de Courtrai, na sua obra Summa modorum significandi: «Em pri-
meiro lugar, é concebido pela simples mente o ser e, por isso, os modos
do ser ou as propriedades das coisas precedem o modo de entender, como
a causa precede o efeito... Depois, o modo de entender segue o modo de
ser ou propriedade da coisa, como o entendimento da coisa segue a coisa
mesma... Mas o modo ou razão de designar segue o modo de entender,
porque primeiramente entende-se a coisa e também se concebe antes que
seja designada pela palavra, pois as palavras são signos das paixões...
Finalmente, o modo de significar segue o modo de designar, tal como o
modo de ser das coisas segue as coisas...»262

260 S.Boaventura, Sententiarum Liber I, Dist. XXII, quaest.I. (Commentarius in quattuor


libros Sententiarum Petri Lombardi, Opera omnia, Collegium S. Bonaventurae, 1882,
vol. I). Esta mesma sentença («non sermoni res, sed rei est sermo subiectus») é invo-
cada por Giovanni Pico della Mirandola, na sua Apologia, mas como sendo de Hilário,
reclamando contra os críticos das suas Conclusiones que as palavras (sejam as da
Bíblia sejam as de um qualquer autor) não se podem interpretar sem ter em conta o
sentido ou a intenção do seu autor. Giovanni Pico della Mirandola / Gian Francesco
Pico, Opera omnia (reprod. da ed. de Basileia 1557), Georg Olms, Hildesheim, 1969,
vol. I, p. 149.
261 «Grammatica una et eadem est secundum substantiam in omnibus linguis, licet
accidentaliter varietur.» The Greek Grammar of Roger Bacon and a Fragment of His
Hebrew Grammar, ed. E. Nolan e S. A. Hirsch, Cambridge University Press, 1902 (cit.
apud Helene Harth, «Leonardo Brunis Selbstverständnis als Übersetzer», Archiv für
Kulturgeschichte 50, 1968, p. 46).
262 «Concipitur autem mente simplici primo ens..., ideo modi essendi seu proprietates
rerum seu entium precedunt modum intelligendi, sicut causa effectum ... Nunc modum
122 Leonel Ribeiro dos Santos

Numa tal concepção, valoriza-se o conteúdo e o sentido, não as


palavras, as res não as verba, o que é dito ou se pretende dizer, não o
modo como é dito, a scientia e a doctrina, não a eloquentia. O ideal para
estes pensadores seria mesmo, ao limite, a exposição da verdade na sua
nudez ou «com palavras nuas e simples» (nudis ac simplicibus verbis). O
tópico retórico da «nuda veritas» é assaz recorrente nestes pensadores,
que, de um modo geral, expressamente condenam e recusam a retórica
como prejudicial à verdade e ao pensamento. É o caso do dominicano
Girolamo Savonarola, que protagoniza ainda, em pleno Renascimento, o
paradigma do pensar escolástico, e que escreve, nos Sermões sobre os
Salmos: «A verdade quer ser nua, e quanto mais nua for tanto mais atrai.
E por isso vemos que mais puderam os apóstolos com a nua e simples
verdade do que os oradores com as suas adornadas palavras e os seus
discursos cheios de eloquência. A nua verdade atrai os homens para
aquilo que repugna ao seu entendimento, coisa que não consegue orador
algum com a sua arte e a sua eloquência.»263
Outro tanto diz Giovanni Pico della Mirandola, na famosa carta que
escreve, a 3 de Junho de 1485, ao humanista Ermolao Barbaro, na qual
advoga a causa dos filósofos escolásticos, daqueles mesmos a quem o seu
amigo veneziano havia chamado «sordidi, rudes, inculti, barbari», por-
que não sabiam escrever em bom e elegante Latim. «A filosofia – diz
Pico – apresenta-se nua, e quer-se sem disfarce e sem mistura; tudo o que
se lhe acrescente, corrompe-a e adultera-a».264
Há, por conseguinte, mais do que uma secundarização, verdadeira-
mente um desprezo da retórica na concepção e na prática da linguagem por
parte dos pensadores escolásticos. E isso não propriamente porque estes
pensadores não tivessem sentido estético, mas porque todo o seu interesse
estava posto noutro lado. Para eles, a linguagem cumpre a sua função

essendi seu proprietatem rei sequitur modus intelligendi sicut ipsam rem intellectus
rei.. Modum autem intelligendi sequitur modus seu ratio signandi quia prius intelligitur
res et etiam concipitur antequam per vocem signetur quia voces sunt signa passio-
num... Modum autem signandi sequitur modus significandi sicut rem sequitur modus
rei...». Les oeuvres de Siger de Courtrai, ed. por G. Wallerand, col. «Philosophes
Belges», 8, Louvain, 1913, p. 93ss. A Summa modorum significandi do filósofo belga
foi objecto duma edição mais recente por Jan Pinborg (Amsterdam Studies in the
Theory and History of Linguistic Science, 14, 1977).
263 «La verità vuol essere nuda, e quanto è più nuda, tanto più inclina.E però avemo
veduto che più hanno possuto gli apostoli con la nuda e semplice verità, che gli oratori
con le loro ornate parole e le loro orazioni piene di eloquenza. La nuda verità tira gli
uomini a quello che lo intelletto loro repugna, il che non arebbe mai pottuto tirare
oratore alcuno com sua arte e sua eloquenza.» Prediche sopra i Salmi, ed. a cura di V.
Romano, A. Belardetti, Roma, 1969, 102.
264 «Nuda se praebet philosophia... sinceram et impermixtam se haberi vult, quicquid
admisceas, infecceris, adulteraveris.» Giovanni Pico della Mirandola, Opera I, 356;
«intima pura et nuda verità» (ib., 922).
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 123

sobretudo na medida em que diz e ensina a verdade mesma das coisas, fun-
ção que é regulada pela Lógica ou Dialéctica. Importa acima de tudo o
docere, dirigido à razão, e não o delectare e o movere, visados pelos ora-
dores, que se dirigem às faculdades afectivas e às paixões dos homens.265
No que respeita à teoria e prática da tradução, a referência e autori-
dade para os pensadores medievais (e sê-lo-á ainda largamente também
para os renascentistas!) era S. Jerónimo, em particular, uma sua carta a
Pamáquio, na qual expõe os princípios que o norteavam nomeadamente
na sua tradução da Bíblia. Nessa carta – De optimo genere interpretan-
di266 –, Jerónimo distingue dois tipos de tradução, segundo a diversa
natureza das obras a traduzir. Se se trata de traduzir obras de escritores
profanos, pode o tradutor por vezes libertar-se da palavra original e
procurar sobretudo dar o respectivo sentido, propondo uma tradução ad
sensum ou ad sententiam, não traduzindo palavra por palavra mas o todo
da frase de modo a que nada falhe do sentido da frase, mesmo que algo
falhe nas palavras (sensum exprimere de sensu... non verba sed senten-
tias transtulisse... ut nihil desit ex sensu cum aliquid desit ex verbis); mas
se se trata dos escritos bíblicos, a respectiva tradução deve manter-se o
mais próxima possível dos termos originais e ser uma tradução ad ver-
bum, pois se presume que nesses escritos não foi revelado apenas o sen-
tido, mas foram-no também as próprias palavras que o transportam, a sua

265 Obviamente, não se pode concluir que todos os pensadores medievais e mesmo os
representantes da Escolástica foram insensíveis à retórica e à eloquência. Sejam dois
exemplos, entre muitos outros possíveis: João de Salisbúria, em meados do século XII,
defendia a «doce e frutuosa conjugação da razão e da palavra» (dulcis et fructuosa
conjugatio rationis et verbi) e a união da eloquência e da sapiência, dizendo que «tal
como a eloquência que não ilumina a razão, não só é temerária mas é também cega,
assim a sapiência, que não sabe valer-se do uso da palavra, não só é débil como é de
algum modo coxa» (Sicut enim eloquentia, non modo temeraria est sed etiam caeca,
quam ratio non illustrat; sic et sapientia, quae usu verbi non proficit, non modo debilis
est, sed quodam modo manca.» Metalogicon, 1,1, in Migne, Patrologia Latina, vol. 199,
827 A-B). Por seu turno, S. Boaventura, no De reductione artium ad theologiam (§§ 4
e 18), seguindo de perto o De doctrina christiana de Santo Agostinho, expõe uma
concepção da «filosofia sermocinal ou racional» que abrange as três ciências (Gramáti-
ca, Lógica e Retórica) e as três funções específicas entre si conexas (expressão, ensino
e moção): «Et quoniam tripliciter potest aliquis per sermonem exprimere quod habet
apud se, ut scilicet notum faciat mentis suae conceptum, vel ut amplius moveat ad
credendum, vel ut moveat ad amorem, vel odium; ideo sermocinalis sive rationalis
philosophia triplicatur, scilicet in grammaticam, logicam et rhetoricam; quarum prima
est ad exprimendum, secunda ad docendum, tertia ad movendum.... Si vero considere-
mus sermonem ratione finis, sic est ad exprimendum, ad erudiendum, et ad moven-
dum; sed nunquam exprimit aliquid nisi mediante specie, nunquam docet, nisi
mediante lumine arguente, nunquam movet, nisi mediante virtute; et constat, quod hoc
non fit nisi per speciem et lumen et virtutem intrinsecam intrinsecus animae unita...»
266 Hieronymus Eusebius Presbyter Stridonensis, Epistola LVII ad Pammachium. De
optimo genere interpretandi, in Migne, Patrologia Latina, vol. XXII, 568-579.
124 Leonel Ribeiro dos Santos

ordem e a sintaxe da frase (ubi et verborum ordo mysterium est). Nem


sempre, porém, este princípio é seguido com absoluta fidelidade. Pois
não é a própria Escritura que estabelece a clara distinção entre a letra e o
espírito, privilegiando este em detrimento daquela?267 Daí que o jovem
Giovanni Pico della Mirandola invoque em seu favor, entre outras, tam-
bém a autoridade de Jerónimo, referindo que este, ao comentar a Carta
aos Gálatas, declara que «o Evangelho não está nas palavras das Escritu-
ras, mas no sentido, não na superfície, mas na medula, não nas folhas dos
discursos, mas na raiz da razão».268

2. O regime humanista, ou o cuidado retórico e estético da palavra

Por sua vez, os humanistas, dum modo geral, concebem a linguagem


como uma coisa pública, como algo que é propriedade do povo e sobre a
qual só este tem direito, segundo uma conhecida sentença de Horácio,
que alguns deles gostam de citar e de glosar, como é o caso de Juan Luis
Vives: «Jus sermonis populi est».269 A linguagem deve, por conseguinte,
ser compreendida no seu contexto e uso histórico-social, como uma zona
franca de comunicação, aberta, clara, correcta, elegante. Tudo o que há a
dizer pode ser dito de forma clara, bastando para isso seguir as regras da
Gramática e dominar os processos da Retórica, ou seja, ser um perito nas
ciências da linguagem ou nas artes dicendi. O sentido correcto das pala-
vras e das frases apreende-se, segundo os humanistas, investigando o uso
comum da língua, seja o uso vulgar do povo que a fala, seja, sobretudo, o
uso que dela fizeram os grandes escritores da história duma língua, os
quais fixaram a correcta norma do seu uso erudito. A consuetudo sermo-
num, a consuetudo loquendi, a consuetudo veterum, eis o que constitui a
norma que define o sentido correcto das palavras.
Daí as suas críticas insistentes ao que consideravam barbarismos ou
desvios da correcta linguagem e que detectavam por todo o lado nos
escritos dos filósofos e teólogos escolásticos. Daí também a sua recusa de
todo o uso privado da linguagem ou das terminologias abstrusas dos
lógicos da tardia Idade Média, conhecidos por «terministas», as quais

267 Cf. Jo 3,6; Rom 7,14; 2Cor 3,6.


268 «Hieronymus super epistolam ad Galatas testatur, Non in verbis scripturarum esse
Evangelium, sed in sensu, non in superficie, sed in medulla, non in sermonum folijs,
sed in radice rationis.» Opera Omnia, vol. I, ed. cit., p. 149.
269 De causis corruptarum artium, ed. bilingue latim-alemão de E. Hidalgo-Serna, W.
Fink Verlag, München, 1990, p. 78. No cap. I do De ratione dicendi (ed., trad. e notas
de Ana I. Camacho e estudo introd. de E. Hidalgo-Serna, Anthropos, Barcelona, 1998,
p. 14), a mesma ideia aparece sob outra formulação: «Verba sunt populi publica,
nullius artis, aut privati Juris».
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 125

ofendem a consuetudo sermonum e que ninguém entende a não ser even-


tualmente os poucos que as inventaram e usam. Daí, enfim, a sua crítica
do uso generalizado e indiscriminado de alegorias, que ofendem o uso
literal e literário dos textos e, em geral, a recusa da teoria hermenêutica
medieval, conotada com Orígenes (185-254), da escola de Alexandria,
segundo a qual, numa dada sentença, vários sentidos se sobrepõem uns
aos outros (o literal, o tropológico, o alegórico, o anagógico ou místico).
Esta teoria aplicava-se não só à leitura e interpretação dos livros da Escri-
tura Sagrada, mas também à de outros escritos (aos mitos antigos, à poe-
sia e até aos escritos de alguns filósofos). Um dos grandes impulsionado-
res do movimento humanista, Coluccio Salutati (1331-1406), ainda fez
amplo uso dessa estratégia na sua obra De laboribus Herculis, onde pro-
põe uma interpretação alegórica e moralizante de todos os antigos relatos
míticos relativos à figura de Hércules.270 E outro tanto fará Cristoforo
Landino, nas suas Disputationes Camaldulenses, em cujos quatro livros
leva a cabo uma interpretação da Eneida de Virgílio e da figura de
Eneias, o mítico fundador de Roma, tomado como arquétipo da condição
histórica do homem, tendo por fio condutor um debate acerca do primado
da vida activa ou da vida contemplativa, uma questão central do pensa-
mento dos humanistas quatrocentistas.271 Mas, como acusariam mais
tarde Erasmo e Melanchthon, uma tal estratégia hermenêutica, aplicada
nomeadamente aos textos bíblicos, ao desdobrar uma sentença em múlti-
plos sentidos ou ao alegorizar tudo, acabava por não permitir que se che-
gasse a saber realmente o que ela dizia, pois desse modo todo o sentido
da frase se torna incerto e dependente da arbitrariedade dos intérpretes.272
Os humanistas, mesmo se também alegorizam de quando em quando, vão
todavia preferir uma hermenêutica de base literal e literária, privilegiando
aquele sentido da frase que pode ser apreendido e controlado pelo uso
comum da língua, pelas regras da Gramática e pelos preceitos da Retóri-
ca, de acordo com as normas da boa elocução, onde, por certo, cabem as
figuras, os tropos, as metáforas e as alegorias, mas sempre rentes ao

270 Colluccio Salutati, De laboribus Herculis, ed. crítica de B.L.Ullman, Thesaurus


Mundi, Zürich, 1951, 2 vols.
271 Cristoforo Landino, Disputationes Camaldulenses ad Fredericum Urbanitum Princi-
pem, Florentinae, 1480. Cf. Rainer Weiss, Cristoforo Landino. Das Metaphorische in
den «Disputationes Camaldulenses», Wilhelm Fink, München, 1981.
272 Philipp Melanchthon, Elementorum Rhetorices Libri Duo, ed. de Joachim Knape
(Philipp Melancthons «Rhetorik»), Max Niemeyer, Tübingen, 1993, pp. 145-146:
«Sunt ineptissimi, qui in sacris literis omnia transformant in Allegorias.[...] Caeterum
nos meminerimus unam quandam ac certam et simplicem sententiam ubique quaeren-
dam esse, iuxta praecepta Grammaticae, Dialecticae et Rhetoricae. Nam oratio, quae
non habet unam, ac simplicem sententiam, nihil certi docet. Si quae figurae occurrunt,
hae non debent multos sensus parere, sed iuxta consuetudinem sermonis unam aliquam
sententiam, quae ad caetera quadret, quae dicuntur.»
126 Leonel Ribeiro dos Santos

sentido literal e usados com pertinência e mesura.273


Também a relação das palavras com as coisas se altera no modo de
pensar dos humanistas. Na verdade, para eles a linguagem não diz direc-
tamente as coisas, mas sim o pensamento dos homens acerca das coisas,
ou, antes, o modo como os homens apreendem as coisas e estas para eles
têm significação. Pode dizer-se que a linguagem exprime uma ontologia
peculiar, mas não uma ontologia dos entes e ainda menos uma ontologia
de essências inteligíveis, mas uma ontologia de densidade humana, uma
realidade prático-social. Por isso, os limites da linguagem estabelecida e
falada definem os limites da realidade ou do que tem algum sentido para
os homens. Por isso, «todas as coisas conhecidas podem ser expostas
com palavras conhecidas e significantes» (notae res omnes verbis exponi
notis et significantibus possunt) –, como o escreve Melanchthon, no livro
II dos seus Elementos de Retórica.274
Uma concepção retórica de verdade substitui a concepção lógica e
metafísica de verdade adoptada pelos escolásticos. Esta concepção retó-
rica de verdade está claramente exposta em dois lugares da mais impor-
tante obra filosófica de Lorenzo Valla, a Repastinatio Dialecticae.
Segundo este humanista romano, a verdade ou falsidade de uma afirma-
ção não têm propriamente que ver com a sua adequação à realidade, mas
sim com a sua adequação ao que quer e ao que pensa aquele que a profe-
re. É no espírito dos falantes e na comunicação entre eles que acontece a
verdade ou falsidade duma frase. A questão da verdade só se coloca no
plano da comunicação dos falantes, num plano linguístico, portanto, e
não num plano lógico ou ontológico. Escreve Valla: «Quando afirmamos
que algo é verdadeiro ou falso, isso refere-se ao espírito de quem fala,
que nele existe verdade ou falsidade... Por conseguinte, é em nós, ou seja,
no nosso espírito, que está a verdade e a falsidade.»275 E noutro lugar:
«‘Verdadeiro’ ou ‘verdade’... é uma qualidade que reside no sentido da
mente e da frase: como quando se pergunta: ‘ele pensa isso com verda-
de?’, ‘di-lo com verdade?’. Pois quando perguntamos ‘se existe um
mundo, ou vários’, não perguntamos ‘se é verdade que existe um
273 Desidério Erasmo, Ecclesiastae sive de ratione concionandi, ed. Basileia, 1544,
pp. 628 ss. Erasmo discute amplamente a questão, analisando a posição dos diferentes
Padres da Igreja a esse respeito, e adopta uma posição moderada, mormente no que
respeita à interpretação da Escritura. Embora defenda que se deve privilegiar o sentido
literal e que toda a alegoria se deve fundamentar no sentido histórico e gramatical,
lembrando que a Escritura também diz que «a letra mata», acaba porém por declarar
que não se deve levar o princípio da literalidade ao exagero, se a questão o exige (de
nominibus non erimus anxij, si de re conveniat).
274 Ed. cit., p. 143.
275 Repastinatio, I,19-20: «Cum verum falsumque esse affirmamus, id ad animum
loquentis refertur, quod in eo veritas sit aut falsitas... Itaque in nobis, idest in animo
nostro est veritas et falsitas».
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 127

mundo’, mas a partir da contradição, seja de outrém, como quando dize-


mos: ‘ele pensa com verdade que há vários mundos?’, seja de nós pró-
prios, quando nós mesmos assumimos em nós dois ou vários partidos,
como acontece na deliberação. A investigação da verdade não nasce
antes da controvérsia acerca da coisa. Por conseguinte, a ‘verdade’ é o
conhecimento da coisa controversa, a ‘falsidade’, porém, é o seu desco-
nhecimento, que é uma espécie de prudência ou de imprudência, de
sabedoria ou de insensatez; dito por outras palavras, ‘verdade’ é ora o
conhecimento do espírito a respeito de alguma coisa, ora a significação
da frase resultante do conhecimento do espírito.»276
Os humanistas não estão preocupados primariamente com o uso
científico da linguagem – com a sua capacidade de dizer ou exprimir as
coisas mesmas ou a sua essência –, mas com o seu uso civil e comunica-
cional. E daí a atenção preferentemente dirigida ao auditório ou ao desti-
natário e o relevo concedido ao cuidado da forma. Para eles, a elegância,
o estilo, o adorno – enfim, tudo aquilo que cabe na pregnante noção
humanista de eloquência –, são ingredientes conaturais da verdade e da
sabedoria e estas, como já o escrevia luminosamente Coluccio Salutati,
nunca podem sem eles ser perfeitas.277

3. O regime hermético: a palavra como véu que esconde a verdade

Nascido nos ambientes helenistas dos séculos II e III d.C., muito


cedo o hermetismo se aliou ao neoplatonismo e unidos sobreviveram de
forma mais ou menos difusa durante toda a Idade Média. Redescoberto
nas últimas décadas do século XV por Marsílio Ficino (que traduziu para
o Latim algumas das principais peças do Corpus Hermeticum), associado
por Giovanni Pico della Mirandola e Johannes Reuchlin à Cabala judai-
ca, ele difunde-se por toda a cultura filosófica renascentista e impregna-a

276 Ibidem, II, 378: «‘Verum’ sive ‘veritas’... qualitas est que sensui mentis inest, et
orationi: ut ‘verene ille sentit?’, ‘verene hic loquitur?’. Nam cum querimus ‘an unus
mundus sit, an plures’, non ita querimus ‘an verum sit unum mundum esse’, sed ex
contradictione aut alterius, ut: ‘verene ille sentit pluros mundos esse?’ aut nostra, cum
ipsi apud nos duas pluresve partes, sicut in deliberando suscipimus. Nec ante veri
inquisitio, quam rei controversia nascitur. Itaque ‘veritas’ est notitia rei controverse,
‘falsitas’ vero eiusdem inscitia que est species prudentie aut imprudentie, seu sapientie
aut insipientie; seu dicamus, ‘veritas est tum notitia animi de aliqua re, tum orationis
ex notitia animi profecta significatio.»
277 Coluccio Salutati, Epistolario, III, 602: «optime quidem simul coalescunt sapientia
et eloquentia, ut quantum illa capit tantum et ista pertractet. [...] non enim eloquentie
studium non etiam sapientiae munus est. subicitur eloquentia sapientie et in ipsa, quasi
toto quodam, quod cuncta scibilia possideat, continetur, ut qui sapientie studium
profitetur, simul et eloquentie profiteatur necesse sit.»
128 Leonel Ribeiro dos Santos

profundamente, sendo interpretado como exprimindo uma revelação ori-


ginariamente feita aos humanos pelo deus Hermes Trimegisto, como
constituindo a mais genuína forma duma prisca theologia, cuja recupera-
ção constituia o objectivo maior daqueles pensadores. Esta convicção só
começaria a desmoronar-se a partir das primeiras décadas do século
XVII, depois que o erudito Isaac Casaubon mostrou que o que fora tido
por uma revelação arcaíssima do deus Hermes aos humanos, constituia,
na verdade, tão-só um amálgama de doutrinas sincréticas filosófico-
-religiosas cuja origem se situava nos primeiros séculos da era cristã.
O pensamento hermético, sendo uma doutrina de revelação, labora
num singular paradoxo. Por um lado, transforma todo o teatro do mundo
num fenómeno linguístico, mas, ao mesmo tempo, subtrai à linguagem o
seu poder de comunicação e manifestação da verdade, ou pelo menos
restringe-o a um círculo selecto de iniciados.278 Assim, a linguagem serve
tanto para revelar quanto para ocultar o pensamento ou a verdade, os
quais subsistem sempre rodeados por um halo de mistério. Ela é a veste
ou máscara da verdade, o véu que a recobre, a casca exterior que lhe
esconde a medula do sentido interior e profundo. A nua verdade e a
medula da sabedoria é algo arcano, secreto, que só pode ser revelado aos
poucos iniciados que o mereçam por um esforço especulativo ou por uma
qualidade moral.
Há entre os escritos herméticos um tratado que expressamente
aborda vários aspectos do problema da linguagem e também o da sua tra-
duzibilidade. O tratado não faz parte dos que foram traduzidos por Fici-
no, mas ainda assim, merece ser aqui evocado para se compreender todo
o alcance da concepção hermética da linguagem. Trata-se de um discurso
de Asclépio ao rei Amon, no qual se apresenta a estrutura da realidade
nos seus diversos planos a que preside o Sol como o vivificador univer-
sal. Sublinha-se a força mágica e energia desse discurso, energia e força
essas que se perdem ao tentar-se traduzi-lo, nomeadamente para o Grego:
a força mágica original das palavras egípcias perder-se-ia na ilusória
beleza e vacuidade dos discursos dos gregos que só servem para produzir
demonstrações. Eis o texto, curiosamente escrito em Grego: «Expresso
na língua original este discurso conserva em plena clareza o sentido da
palavra. E, de facto, a mesma particularidade do som e a precisa entoação
dos vocábulos egípcios encerram em si a energia das coisas que se dizem.
Na medida, ó Rei, em que tens poder para isso – tu que tudo podes –
preserva a todo o custo este discurso de toda a tradução, para que mis-
térios tão grandes não cheguem aos gregos e para que o orgulhoso dis-

278 O paradoxo foi bem advertido e exposto por Umberto Eco, no seu ensaio «Aspectos
da semiose hermética», in Idem, Os limites da interpretação, Difel, Lisboa, 1992, pp. 49-
-50.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 129

curso dos gregos, com a sua falta de nervo e com as suas graças ilusórias,
não o faça empalidecer e não anule a gravidade, a robustez, a virtude
incisiva dos vocábulos da nossa língua. Pois os gregos, ó Rei, dispõem
apenas de discursos vazios aptos a produzir demonstrações (lógous
kénous àpodeícseon ènergetikoús), e nisto consiste na verdade toda a sua
filosofia, e num rumor de sons (lógon psóphos). Nós, pelo contrário, não
usamos simplesmente as palavras, mas sons cheios de eficácia (émeis dè
où lógois chrómetha allà phonais mestais ton érgon).»279
Deste mito duma proto-revelação divina não totalmente comunicá-
vel às gerações futuras e feita numa língua originária não capazmente
traduzível nas diferentes línguas históricas (as quais, por isso, são des-
valorizadas e relativizadas face à palavra criadora da origem), da ideia
enfim de que há palavras que têm uma força mágica própria, encontra-
mos ecos em vários pensadores renascentistas, que têm em comum o
banharem-se no elemento da tradição hermética e mágica: Giovanni Pico
della Mirandola, Francesco Patrizi, Giordano Bruno.280
Um típico exemplo renascentista do registo hermético da linguagem
encontra-se (curiosamente, cruzado com o escolástico!) na já citada carta
de Giovanni Pico della Mirandola a Ermolao Barbaro, na qual o jovem
filósofo, assumindo a defesa dos escolásticos, refuta a concepção huma-
nista e retórica de uma verdade clara e aberta, oferecida à fácil compre-
ensão de todos. Diz Pico, falando em nome dos escolásticos, mas expon-
do uma concepção que lhe era muito própria, pois que a encontramos
reiterada em vários passos das suas obras: «Nós não escrevemos para o
vulgo [...], mas da mesma forma que os mais primitivos sábios, com os
seus enigmas e os invólucros das fábulas, mantinham os homens igno-
rantes afastados dos mistérios, assim nós, com a casca um pouco mais
amarga das palavras, costumamos afastá-los dos nossos banquetes para

279 Corpus Hermeticum, XVI, 14-15 (vol. 2 da ed. de A.D. Nock e A.-J.Festugière,
Corpus Hermeticum, Paris, 1945-1954 (3ª ed. 1972-1973); o texto é citado e
comentado em Garin, Il ritorno dei filosofi antichi, Bibliopolis, Napoli, 1994, pp. 69-70.
280 Para Pico, essa língua original mágica era a língua hebraica. Assim se lê nas Con-
clusiones (Opera I, p. 105): «Voces et verba in magico opere efficaciam habent, quia
illud in quo primum magicam exercet natura, vox est Dei. Qualibet vox virtutem habet
in magia, in quantum Dei voce formatur. Nulla nomina ut significativa, et in quantum
nomina sunt, singula et per se sumpta, in magico opere virtutem habere possunt, nisi
sint Hebraica, vel inde proxime derivata.» De Francesco Patrizi, veja-se: Della
Retorica Dieci Dialoghi, reprod. anastática da ed. de Veneza 1562 ao cuidado de Anna
Laura Puliafito Bleuel, Conte Editore, Lecce, 1994, Dialogo I (Il Lamberto, overo del
parlare) pp. 3 v-5 r. Giordano Bruno recenseia entre os princípios das coisas a força dos
nomes, de que encontra testemunho em várias tradições de pensamento: «Ad haec etiam
principia pertinet considerare vim magnam insitam esse in nominibus... Hoc credidisse
Hebraeos, Graecos et alias gentes...» De rerum principiis, Opera magiche, ed. dirigida
por M. Ciliberto e ao cuidado de Simonetta Bassi, Elisabetta Scapparone e Nicoletta
Tirinnanzi, Adelphi Edizioni, Milano, 2000, pp. 696-698.
130 Leonel Ribeiro dos Santos

que não os poluam...»281


As palavras, portanto, não servem propriamente para revelar, mas
para ocultar, não para comunicar e para ensinar aos ignorantes, mas antes
para repelir os leigos e profanos, indignos do banquete da verdade. Eis
uma ideia que ocorre com tanta frequência nos escritos de Pico, que só
pode denunciar uma posição com a qual o jovem filósofo se identificava
profundamente e a respeito da qual se sente largamente confirmado por
toda uma vasta tradição de pensamento.282

281 Opera I, 354: «vulgo non scripsimus [...] nec aliter quam prisci suis aenigmatis et
fabularum involucris arcebant idiotas homines a mysteriis, et nos consuevimus abster-
rere illos a nostris dapibus, quas non polluere non possent, amariori paulum cortice
verborum. Solent et qui thesauros occultare volunt, si non datur seponere, quisquiliis
integere vel ruderibus, ut praetereuntes non deprehendant, nisi quos ipsi dignos eo
munere iudicaverint. Simile philosophorum studium, celare res suas populum, a quo
cum non probari modo, sed nec intelligi illos deceat.»
282 Opera I, 329: «At mysteria secretiora, & sub cortice legis, rudisque verborum
praetextu latitantia, altissimae divinitatis arcana, plebi palam facere, quid erat aliud
quàm dare sanctum canibus, & inter porcos spargere margaritas. Ergo haec clam vulgo
habere, perfectis communicanda, inter quos tantum sapientiam loqui se ait Paulus, non
humani consilij sed divini praecepti fuit. Quem morem antiqui Philosophi sanctissimè
observarunt, Pithagoras nihil scripsit nisi paucula quaedam, quae Damae filiae moriens
commendavit. Aegyptiorum templis insculptae Sphinges, hoc admonebant ut mystica
dogmata per aenigmatum nodos à prophana multitudine inviolata custodirentur. Plato,
Dionys. quaedam de supremis scribens substantijs, per aenigmata, inquit, dicendum
est, ne si epistola fortè ad aliorum pervenerit manus, quae tibi scribimus ab alijs
intelligantur. Aristoteles libros Metaphysicae, in quibus agit de divinis, aeditos esse &
non aeditos dicebat. Quid plura, Iesum Christum vitae magistrum asserit Origenes,
multa revelasse discipulis, quae illi ne vulgo fierent communia, scribere noluerunt.
Quod maximè confirmat Dionysius Areopagita, qui secretiora mysteria à nostrae
religionis authoribus [....] ex animo in animum (sine literis) medio intercedente verbo
ait fuisse transfusa. hoc eodem penitus modo cum ex Dei precepto vera illa legis inter-
pretatio Mosi deitas tradita revelaretur, dicta est Cabala, quod idem est apud Hebraeos
quod apud nos receptio. Ob id scilicet, quòd illam doctrinam non per literarum monu-
menta, sed ordinarijs revelationum successionibus alter ab altero quasi haereditario
iure reciperet.» A mesma ideia no Commento (Opera I, 921-922): «Fu openione delli
antichi theologi non si douere temerariamente publicare le cose diuine & li secreti
mysterij, se non quanto di sopra nera permesso, pero finge el poeta se quasi come
apparechiato ad ragionare piu oltre essere da amore ritratto, & da lui esserli comandato
che al uolgo solo la corteccia de mysterij amorosi dimostri, riserbando la midolla del
uero senso alli intelletti piu eleuati & piu perfetti, regoli osseruata de qualunque delle
cose diuine appresso alli antichi ha scritto. Scriue Origine Iesu Christo hauere reuelato
molti mysterij a descepoli, liquali loro nõ uogliono scriuere, ma solo ad bocca à chi à
loro ne pareua degno li communicavano, & questo cõferma Dionysio areopagita
hauere poi osseruato e sacerdoti nostri e quali per successione luno dallaltro
riceueuano la intelligentia da quelli secreti, li quali non era lecito à scriuere, &
Dionysio à Timotheo esponendo de nomi di Dio & della gerarchia angelica &
ecclesiastica, molti profondi sensi gli comanda che tenga el libro nascoso et non gli
comunichi se non apochi che di tale cognitione sono degni. Questo ordine apresso li
antichi Hebrei fu santissimamente osseruato, & per questo la loro scientia nella quale
la espositione delli abstrusi et absconditi mysterij delle leggi si contiene Cabala si
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 131

Para os pensadores que se movem no ambiente do hermetismo, não


só os documentos sapienciais das primitivas sabedorias, representadas
pelos nomes de Zoroastro, de Hermes ou de Orfeu, mas também as dou-
trinas de alguns filósofos (Pitágoras, Platão, Plotino) são reputadas como
sagradas e como superiormente reveladas por algum deus ou como fruto
de uma especial inspiração divina. Interpretá-las ou traduzi-las é decifrar
o seu sentido profundo e oculto. A linguagem é o veículo que os transmi-
te, mas mais do que oferecer o sentido ou conteúdo de uma doutrina, ela
constitui apenas o pretexto para que o pensamento do leitor ou do intér-
prete se exerça no encalço desse sentido e conteúdo que está para além
delas. Voltando ao jovem Pico, podemos agora entender melhor o que
nos diz, na parte final da sua Oratio, da ingente tarefa que teve como
filósofo-hermeneuta apostado em encontrar, por detrás das mais diversas
linguagens, uma mesma verdade fundamental, a essencial concordância
de todas as doutrinas: «Como era costume dos antigos teólogos, Orfeu
revestiu os mistérios dos seus dogmas com a veste das fábulas e dis-
simulou-os com véus poéticos, de tal modo que quem lê os seus hinos
pode julgar não passarem estes de fabulações e de divagações brincalho-
nas. Quis dizer isto para que se saiba que fadiga foi a minha, que dificul-
dade foi tirar do emaranhado dos enigmas, dos véus das fábulas, os senti-
dos ocultos da secreta filosofia, num assunto tão sério, tão recôndito e
inexplorado para o qual não pude contar com a ajuda do trabalho e esfor-
ço de outros intérpretes.»283
Mas Pico não estava só. Também Ficino se lamenta de que os misté-
rios da sabedoria divina, outrora reservados a sábios que eram ao mesmo
tempo sacerdotes, tenham sido, nos tempos mais recentes, divulgados
entre os profanos e ignorantes, os quais os degradam e os usam mais para

chiama, che significa receptione, perche non per scritto, ma per successione ad bocca
luno dallaltro la riceuano, scientia certo diuina & degna di non partecipare se non con
pochi, fondamento grandissimo della fede nostra, el desiderio della quale mi mosse
allo assiduo studio della Hebraica & Caldaica lingua, senza lequali à al tutto impos-
sibile peruenire alla cognitione di quella. quãto fussi el medesimo stilo da Pythagorici
oseruato dire nõ bisogna, & sanne piena fede la epistola di Lyside ad Hyparco, ne per
altra ragione haueano li Aegyptij dauanti à loro templi scolpito le Sphynge, se nõ per
dichiarare che le cose diuine, quando pure si scriuano, si debbano sotto Enigmatici
uelamenti coprire, come & il poeta nostro nella presente canzona hauer fatto, secondo
le forze nostre habbiamo dichiarato, & il simile essere fato dalli altri cosi graeci come
latini poeti osseruato, nel lib. della nostra poetica philosophia dichiararemo.»
283 Opera I, 331: «Sed qui erat veterum mos Theologorum, ita Orpheus suorum dogma-
tum mysteria fabularum intexit involucris, & poetico velamento dissimulavit, ut si quis
legat illius hymnos, nihil subesse credat praeter fabellas nugasque meracissimas. Quod
volui dixisse ut cognoscatur quis mihi labor, quae fuerit difficultas, ex affectatis
aenigmatum syrpis, ex fabularum latebris latitantes eruere secretae philosophiae sensus
nulla praesertim in re tam gravi, tam abscondita inexplorataque adiuto aliorum inter-
pretum opera & diligentia.»
132 Leonel Ribeiro dos Santos

medrar na malícia do que para crescer na ciência.284 E na Theologia


Platonica diz que os «seis maiores teólogos primitivos» (Zoroastro, Mer-
cúrio Trimegisto, Orfeu, Aglaofemo, Pitágoras, Platão) «cobriam com os
véus poéticos os mistérios sagrados das coisas divinas, para que não se
tornassem comuns aos profanos».285 Todavia, Pico ao interpretar e Ficino
ao traduzir tiveram de transgredir de algum modo essa condição da
oculta sabedoria primeva, propondo-se – como de resto já o haviam feito
Platão e os neoplatónicos – retirar-lhe os véus e proporcionar assim a
outros humanos o acesso aos divinos arcanos em que eles próprios
haviam sido iniciados. É nesta ambiguidade de ocultação-revelação que
acontece a experiência humana da verdade, onde a própria luz cega e a
escuridão ilumina.

4. O regime neoplatónico: a linguagem como símbolo que


participa da ilimitada fecundidade expressiva do Uno

Embora muitas vezes esteja de tal modo ligado com o hermetismo


que seja difícil, se não mesmo impossível, distinguir onde acaba um e
começa o outro, o neoplatonismo, que também renasceu intensamente,
sobretudo nas últimas décadas do século XV, graças igualmente às tradu-
ções e comentários de Ficino, traz uma dimensão nova ao entendimento
da linguagem na sua relação com a realidade, com o pensamento e com a
verdade.
Para os neoplatónicos – Jâmblico, Plotino, Porfírio, Proclo, que aqui
considero em bloco, embora tenham mesmo a respeito deste tópico
algumas diferenças entre si –, a linguagem é sobretudo símbolo (vestígio,
marca, sinal) de uma realidade que certamente a transcende, mas nela ao
mesmo tempo se manifesta.286 Ela revela e exprime a verdade, mas nunca
completamente. Participa, todavia, da essencial realidade e da verdade e
destas recebe a sua substância e poder expressivos que assim se multipli-
ca e pluraliza. Se os raios do Sol não são o próprio Sol, ainda assim têm e
revelam algo da natureza solar. A estratégia então é a de multiplicar a

284 Pref. ao De christiana religione, Opera Omnia, Basileae, 1561, vol. I, p. 1.


285 «Sex olim summi theologi [...] sacra divinorum mysteria, ne prophanis communia
fierint poeticis umbraculis obtegebant.» Theol. plat., cap. XVII, 1. Também no
Comentário ficiniano ao De divinis nominibus de Dionísio (Libri de divinis nominibus
commentarium, in M. Ficini, Opera omnia, t.II, p. 1077: «neque inter prophanos eloqui
aut efferre divina.» Ibidem, p. 1036: «Denique quod vetat divina temere divulgari,
confirmatur authoritate Platonis in epistolis prohibentis inter divinorum imperitos
efferri divina. Ait enim nulla rudibus magis ridicula videri quam divina.»
286 Veja-se: Peter Crome, Symbol und Unzulänglichkeit der Sprache. Jamblichos.
Plotin. Porphyrios. Proklos, W. Fink Verlag, München, 1970.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 133

linguagem, diversificar as conjecturas e os modos de dizer a realidade,


para assim dizer, de algum modo, o que nunca alcançamos dizer com-
pletamente, o que é inexprimível de uma vez por todas. E pode até sub-
meter-se a linguagem a uma certa violência para a fazer exprimir mais o
que de modo nenhum pode alguma vez ser completamente dito. O regime
hermético e o regime neoplatónico temperam-se mutuamente, pois
enquanto o primeiro cultiva o que se poderia chamar uma economia da
reserva e da incomunicabilidade (ou da comunicabilidade muito restrita!)
da verdade, o outro, pelo contrário, cultiva a ideia da sua expressividade
e ilimitada multiplicação, sempre inadequada porém. Os próprios teólo-
gos da Patrística e da Escolástica tinham já combinado esses dois regi-
mes e serviam-se deles sobretudo para falar do conhecimento das coisas
divinas a respeito das quais todo o discurso racional claudica. Essa fusão
e adaptação encontra-se maximamente realizada nos escritos do Pseudo-
-Dionísio, os quais serão invocados e glosados sobretudo pelos autores
que pendem para uma teologia de feição mística. É o caso de S. Boa-
ventura, que escreve num dos seus tratados: «O olhar da inteligência é
conduzido à intelecção da verdade da sabedoria divina mediante figuras
enigmáticas e místicas. Pois a invisível sabedoria de Deus não se nos
pode revelar de outro modo que não seja conformando-se à semelhança
daquilo que conhecemos pelas formas das coisas visíveis e exprimindo-
-nos e significando por elas as coisas invisíveis que não conhecemos,
como o refere o Apóstolo aos Romanos: as realidades invisíveis de Deus
são entendidas através das criaturas mundanas e das coisas que foram
criadas. E como o diz o bem-aventurado Dionísio, no livro Da angélica
hierarquia, não é possível captar o brilho do raio divino a não ser envolto
anagogicamente na variedade dos véus sagrados. Os véus sagrados são as
descrições místicas do discurso sagrado, mediante as quais ele é envol-
vido e obscurecido para que se adapte aos nossos olhos, na medida em
que a própria escuridão é a nossa iluminação e a sua ocultação é a nossa
elevação à revelação supramundana dos mistérios.»287

287 «Sic ad intelligendam divinae sapientiae veritatem aenigmaticis ac mysticis figuris


intelligentiae rationalis manuducitur oculus. Aliter enim nobis innotescere non potuit
invisibilis Dei sapientia, nisi se his quae novimus visibilium rerum formis ad similitu-
dinem conformaret et per eas nobis sua invisibilia, quae non novimus, significando
exprimeret; sicut etiam contestatur Apostolus ad Romanos. Invisibilia Dei a creatura
mundi per ea quae facta sunt intellecta conspiciuntur. Et beatus Dionysius, in libro De
angelica hierarchia: ‘Neque possibile, inquit, aliter supersplendere thearchicum
radium, nisi varietate sacrorum velaminum anagogice circumvelatum. Sacra autem
velamina sunt mysticae in sacro Eloquio descriptiones, quibus divinus radius circum-
velatur et obumbratur, ut nostris contemperetur aspectibus, quatenus ipsa obumbratio
nostra sit illuminatio, et sua circumvelatio nostra sit elevatio ac supermundialem reve-
latio arcanorum’». S. Boaventura, De plantatione paradisi, 1, in Obras de S. Boaven-
tura, vol. III, BAC, Madrid, 1957, p. 736.
134 Leonel Ribeiro dos Santos

No Renascimento, Nicolau de Cusa é, ainda antes da divulgação do


pensamento plotiniano pelas traduções e comentários de Ficino, um
expressivo exemplo desta tendência, que terá bebido nomeadamente nos
escritos de Proclo e do Pseudo-Dionísio Areopagita.288 Nos escritos cusa-
nos há, é certo, também vestígios de uma concepção hermética da verda-
de289, mas a vertente expressionista – a necessidade de e o impulso para
dizer – são nele muito mais poderosos do que o culto da «secreta sapien-
tia». No primeiro diálogo do Idiota, o De Sapientia, perante a avidez do
Orador, curioso por saber que estranha sabedoria é aquela que o Idiota
diz possuir, este refreia a sua curiosidade, tentando certificar-se da
conveniente atitude do seu interlocutor para aceder à revelação da ver-
dade: «Se vir que o que te move não é uma curiosa investigação, revelar-
-te-ei grandes coisas... Se não o pedires do coração, estou proibido de o
fazer, pois os segredos da sabedoria não são para se patentear a todos
indiscriminadamente... Não sei se é permitido desvendar tantos segredos
e revelar facilmente tão alta profundidade. Não consigo, porém, conter-
-me sem te satisfazer.»290
Significativamente, o princípio hermético é enunciado, mas para
logo ser transgredido! De facto, a típica atitude cusana não é a da clausu-
ra da verdade, mas a da sua ubíqua patenteação mundana291, não a da
288 Sobre a presença do neoplatonismo procliano no pensamento de Nicolau de Cusa,
veja-se: G. Santinello, «Proclo nel pensiero di Cusano», in Idem, Saggi sull’u-
manesimo di Proclo, Patron, Bologna, 1966, pp. 18-21; Carlo Riccati, «La presenza di
Proclo tra Neoplatonismo arabizante e tradizione dionisiana (Bertholdo di Moosburg e
Nicolò Cusano)», in: G. Piaia (ed.), Concordia discors, Antenore, Padova, 1993,
pp. 23-38; R. Klibansky, Plato’s Parmenides in the Middle Ages and Renaissance,
Medieval and Renaissance Studies, 1 (1943), pp. 203-312. Cusanus Texte, III: Margi-
nalien 2: Proclus latinus. Exzerpte und Randnoten zu den lateinischen Übersetzungen
der Proclus Schriften, C. Winter, Heidelberg, 1986.
289 Cusa estava familiarizado com o pensamento hermético, como se depreende de
referências várias nas suas obras, e possuía mesmo um exemplar do Asclepius que ele
próprio anotou. Veja-se: E. Vansteenberghe, Le Cardinal Nicolas de Cues (1401-
-1464). L’Action – La Pensée, Lille, 1920, pp. 434-436.
290 «Si te absque curiosa inquisitione affectum conspicerem, magna tibi panderem. [...]
Nisi ex affectu oraveris, prohibitus sum, ne faciam, nam secreta sapientiae non sunt
omnibus passim aperienda.[...] Nescio si liceat tanta secreta detegere et tam altam
profunditatem facilem ostendere. Tamen nequeo me continere, quin tibi complaceam.»
Nicolau de Cusa, De sapientia, Opera V, pp. 12-13 e 7. Veja-se todo o opúsculo
cusano De visione Dei.
291 Num dos seus últimos escritos, aquele em que culmina e se resume todo o seu
pensamento – De apice theoriae (1464) –, Nicolau de Cusa faz esta impressionante
declaração: «A verdade é tanto mais fácil quanto mais clara. Outrora eu julgava que ela
se encontrava melhor na obscuridade. A verdade é de uma grande força, nela brilha
fortemente o próprio poder ser. Pois ela grita nas praças, como se lê no livrinho Do
Idiota. Patenteia-se com total certeza por toda a parte como sendo de fácil descoberta.»
(Veritas quanto clarior tanto facilior. Putabam ego aliquando ipsam in obscuro melius
reperiri. Magnae potentiae veritas est, in qua posse ipsum valde lucet. Clamitat enim in
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 135

sonegação da sabedoria, mas a da venatio sapientiae e a da inesgotável


explicatio mentis, que se exprime na sua ilimitada criação de conjecturas
e na symbolica investigatio, numa assumida estratégia de multiplicatio
sermonum.292

III
PRÁTICAS RENASCENTISTAS DA TRADUÇÃO FILOSÓFICA
E RESPECTIVOS PRESSUPOSTOS

Na história da filosofia, o Renascimento representa não só o mais


significativo momento de experiência da tradução filosófica (quer se
considere o volume ou o alcance disso para o destino do pensamento da
época e posterior), como é também relevante pela produção de reflexão
teórica sobre a tradução filosófica e seus pressupostos. Disso queria
seguidamente dar uma ideia, evocando alguns momentos significativos,
nos quais são reconhecíveis os regimes da linguagem identificados no
ponto anterior, por vezes, em conflito entre si, mas não raro, também, em
combinação de uns com outros. São quatro os momentos e quatro os
protagonistas que os representam: Leonardo Bruni, Jorge de Trebizonda,
Marsílio Ficino e Juan Luis Vives.

1. Leonardo Bruni (1369-1444) e Alonso de Cartagena (1384-1456)

Evocarei, antes de mais, um conflito paradigmático, no qual não só


podemos reconhecer como a luta dos humanistas contra os escolásticos
se fazia antes de mais no terreno da linguagem e com novas traduções de
obras filosóficas já anteriormente traduzidas, mas podemos igualmente
compreender como o que estava em causa nessa luta não era apenas uma
questão de correcção de tradução e sim, em última instância, uma ques-
tão de entendimento global dos problemas filosóficos.
Falo do empreendimento levado a cabo por Leonardo Bruni ao retra-
duzir (segundo o próprio, ao traduzir pela primeira vez!) os escritos éticos
e políticos de Aristóteles que haviam sido já traduzidos pelos medievais e
das razões que o mesmo apresenta para justificar esse empreendimento, o
qual mereceu pelo menos duas réplicas em defesa da antiga tradução

plateis, sicut in libello De idiota legisti. Valde certe se undique facilem repertu
ostendit.). Opera XII, p. 120. .
292 «Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio
sermonum perutilis est.» De mente, Opera V, p. 113.
136 Leonel Ribeiro dos Santos

medieval, das quais aqui destaco e abordo apenas uma: a do pensador


hispânico Alonso Garcia de Cartagena.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 137

Entre os humanistas da primeira geração, pelo seu trabalho de tra-


dutor e pela expressa auto-consciência e convicção dos seus pressupos-
tos, destaca-se Leonardo Bruni. As novas traduções que Bruni faz, desig-
nadamente da Ética a Nicómaco e dos escritos Políticos de Aristóteles,
não são apenas uma exigência da nova cultura dos humanistas, que cada
vez mais valorizavam a vida civil e activa e encontravam nos escritos de
filosofia prática do Estagirita um decisivo apoio, mas fazem também
parte duma estratégia de afirmação dessa cultura contra a cultura esco-
lástica tradicional. No final do Prefácio à sua nova tradução da Ética
(1416-1417), o humanista de Arezzo que Florença adoptou e fez Secretá-
rio da República, confessa as razões que o levaram a dar-se ao trabalho
de fazer uma nova tradução: o ter visto como na tradução antiga existiam
tantos erros e se apresentava um Aristóteles tão diferente daquele que se
manifesta nos seus textos originais, deformado não só quanto ao conteú-
do da doutrina mas também quanto ao estilo, e tudo isso para cúmulo
servido num Latim também deficiente. O resultado era um texto semi-
-latino e semi-grego, o que só podia explicar-se pela deficiente compe-
tência linguística do tradutor.293
Dezoito anos mais tarde, no Prefácio à tradução dos escritos Políti-
cos de Aristóteles, Bruni invocará as mesmas razões: «O motivo que me
levou a empreender uma nova tradução foi o mesmo que há dezoito anos
me levou a traduzir os livros de Ética. Como vi que estes livros de Aris-
tóteles, que foram escritos em Grego num estilo elegantíssimo, por vício
do mau tradutor foram redigidos de uma forma ridícula e inepta e ainda
por cima com muitos erros graves nos próprios assuntos, empreendi a
tarefa de uma nova tradução que pudesse ser útil aos homens do nosso
tempo. Pois, que obra minha pode ser mais útil, que poderei eu fazer que
seja mais digno de louvor do que dar, em primeiro lugar, aos meus cida-
dãos, e depois aos outros que usam a língua latina mas ignoram as letras
gregas, a faculdade de verem o Aristóteles, não através dos enigmas e
delírios das traduções ineptas e falsas, mas face a face e de tal modo que
leiam em Latim aquilo que ele escreveu em Grego.»294

293 «Ego igitur infinitis paene huiusmodi erroribus permotus, cum haec indigna
Aristotele, indigna quoque nobis ac lingua nostra arbitrarer, cum suauitatem horum
librorum, quae Graeco sermone maxima est, in asperitatem conuersam, nomina intorta,
res obscuratas, doctrinam labefactatam uiderem, laborem suscepi nouae traductionis, in
qua, ut cetera omittam, id assecutum me puto, ut hos libros nunc primum Latinos
fecerim, cum antea non essent.» Leonardo Bruni, Humanistisch-philosophische
Schriften, ed. de Hans Baron, Teubner, Leipzig/ Berlin, 1928, p. 81.
294 «Convertendi autem interpretandique mihi causa fuit eadem illa, quae iam decem et
octo annis [ante] ad conversionem Ethicorum induxit. Nam cum viderem hos Aristote-
lis libros, qui apud Graecos elegantissimo stilo perscripti sunt, vitio mali interpretis ad
ridiculam quamdam ineptitudinem esse redactos ac praeterea in rebus ipsis errata
permulta ac maximi ponderis, laborem suscepi novae traductionis, quo nostris homini-
138 Leonel Ribeiro dos Santos

Tópico recorrente, nos prefácios de Bruni às suas traduções, é o juí-


zo sobre a grande qualidade estética e retórica das referidas obras aristo-
télicas, à qual os tradutores medievais teriam sido completamente insensí-
veis. «Aristóteles – diz Bruni – escreve com tanta facúndia, tanta varie-
dade e abundância, enche estes seus livros com tantas histórias e exem-
plos que eles quase parecem escritos num estilo retórico [...]. Não há nes-
ses livros questão alguma que seja abordada com menor copiosidade ou
sem ornamento e cor retóricos.»295
Bruni revela particular empenho em garantir que as suas novas tra-
duções permitam aos seus leitores o encontro com esse Aristóteles retó-
rico, bem diferente do esquálido e deformado Aristóteles das traduções
medievais. E era tal a sua convicção a respeito das boas razões das suas
traduções, que escreve, por volta de 1420, um opúsculo em que enuncia
os princípios que podem garantir uma correcta tradução – o De interpre-
tatione recta296 –, opúsculo em que igualmente se encontram explicitados
todos os pressupostos da filosofia da linguagem dos humanistas, acima
identificados.297
Começa o humanista por retomar as razões que, no citado Prefácio à
tradução da Ética, havia invocado para propor uma nova tradução dessa
obra de Aristóteles. A saber: os muitos erros da tradução medieval, que
ofendiam de tal modo a elegância e suavidade da obra aristotélica que
constituiam uma deturpação da mesma, impedindo também a apreensão
do respectivo conteúdo de pensamento. E a que se deve tanto erro? Sim-
plesmente à ignorância das letras (imperitiam solummodo litterarum)298,
responde Bruni.
O opúsculo consta de três partes, sendo a primeira dedicada à expla-
nação do que o humanista entende por modo correcto de traduzir. «Toda
a força da tradução – escreve Bruni – consiste em passar correctamente o
que foi escrito numa língua para outra. Mas ninguém pode fazer isso cor-
rectamente se não possuir uma grande e experimentada competência nas
duas línguas em causa.»299

bus in hac parte prodessem. Quid enim opera mea utilius, quid laude dignius efficere
possim, quam civibus meis primum, deinde ceteris, qui Latina utuntur lingua, ignaris
Graecarum litterarum, facultatem praebere, ut non per anigmata ac deliramenta inter-
pretationum ineptarum ac falsarum, sed de facie ad faciem possint Aristotelem intueri
et, ut ille in Graeco scripsit, sic in Latino perlegere.» Ibidem, pp. 73-74.
295 «Aristoteles certe tanta facundia, tanta varietate et copia, tanta historiarum exem-
plorumque cumulatione hos libros refersit, ut oratorio paene stilo scripti videantur.»
Ibidem.
296 Leonardo Bruni, «De interpretatione recta», ibidem, pp. 81 ss.
297 Cf. Helene Harth, «Leonardo Brunis Selbstverständnis als Übersetzer», Archiv für
Kulturgeschichte 50 (1968), pp. 41-63.
298 L. Bruni, «De interpretatione recta», ibidem, p. 83.
299 «Dico igitur omnem interpretationis vim in eo consistere, ut, quod in altera lingua
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 139

Esta competência ou perícia alcança-se pela leitura frequente e


variada dos escritores mais diversos (filósofos, oradores, poetas, historia-
dores e outros), mormente daqueles que numa dada língua são reconhe-
cidos como mestres da linguagem e do estilo. Só assim se poderá apreen-
der o usual e comum entendimento da força das palavras e dos seus
significados – a consuetudo loquendi –, que deve adoptar como norma e
imitar, evitando introduzir inovações, sobretudo se forem ineptas e bár-
baras.300
Bruni está consciente de que «a tarefa da tradução é enorme e difí-
cil» (Magna res igitur ac difficilis est interpretatio recta).301 Mas está
igualmente convicto de que aquele que observe os princípios por ele
enunciados e possua um perfeito domínio gramatical e retórico das duas
línguas em causa consegue realizar uma tradução correcta e perfeita. Não
ignora, por certo, o humanista que as línguas têm algumas particularida-
des (de musicalidade, de cadência, de número de sílabas nas palavras,
etc.), as quais podem dificultar a tradução não só do conteúdo como tam-
bém da forma da frase de uma língua para a outra. Essa dificuldade não
é, porém, inultrapassável, desde que o tradutor tenha um conhecimento
perfeito dessas particularidades e as observe de modo rigoroso (servatis
ad unguem).302
Particular atenção dedica Bruni ao que poderíamos chamar a dimen-
são estético-retórica das obras, mesmo das dos filósofos, dimensão dita
por expressões abundantes no seu discurso, tais como: maiestas, venus-
tas, suavitas, numerositas, ornatus, gratia. É a completa negligência
desta dimensão o que principalmente o leva a censurar e rejeitar as tradu-
ções medievais. Segundo o humanista, a correcta tradução não deve
deformar o estilo peculiar de cada autor, mas deve mantê-lo. O tradutor
deve deixar-se tomar pela força do estilo do autor que traduz, pois só
assim conseguirá também dar convenientemente conta do conteúdo e
sentido das suas proposições. Por isso, será melhor tradução aquela que
mantiver a imagem e forma da frase original, que não falte com as pala-
vras ao sentido das proposições nem falte com o brilho e o ornato às pró-
prias palavras. Este aspecto é particularmente destacado por Bruni, e
nisso se denuncia a inspiração retórica da sua atitude mesmo em face de
textos filosóficos. Para Bruni, a dimensão estético-retórica, mesmo numa

scriptum sit, id in alteram recte traducatur. Recte autem id facere nemo potest, qui non
multam ac magnam habeat utriusque linguae peritiam.» Ibidem.
300 «Consuetudinis vero figurarumque loquendi, quibus optimi scriptores utuntur,
nequaquam sit ignarus; quos imitetur et ipse scribens, fugiatque et verborum et
orationis novitatem, praesertim ineptam et barbaram.» Ibidem, pp. 85-86.
301 Ibidem, p. 84.
302 Ibidem.
140 Leonel Ribeiro dos Santos

obra filosófica, não é algo apendicial ou acessório, mas faz parte da pró-
pria substância da doutrina e acompanha esta. Não ter isso em conta, por
exemplo, quando se traduz Aristóteles, é deformar gravemente não só a
aparência como também a essência da sua filosofia. Mau tradutor não é
só aquele que não capta, por ignorância linguística, o sentido das pala-
vras da língua original, ou aquele que não encontra na língua para a qual
traduz o termo adequado, mas também aquele que desfigura a forma e o
estilo originais do escritor, tornando assim irreconhecível também o seu
próprio pensamento.303
Segue-se, nas partes II e III do opúsculo, a adução de muitos exem-
plos concretos de má tradução na versão medieval de Aristóteles, por
ofensa dos referidos princípios. E Bruni conclui: «Que direi acerca da
suavidade e perfeição do discurso, que se vê ter Aristóteles trabalhado
muito no Grego. Ao passo que o seu tradutor de tal modo se perde e
deambula que dá pena ver tanta confusão. Custa-me insistir nisto. Pois a
sua tradução está cheia das maiores absurdidades e delírios os quais alte-
ram miseravelmente todo o sentido e clareza daqueles livros e os tornam
de suaves em ásperos, de formosos em disformes, de elegantes em com-
plicados, de sonoros em surdos e em vez de um discurso elegante tem-se
uma rusticidade que faz chorar.»304
Em síntese, quais as teses de Bruni? Em primeiro lugar, a absoluta
exigência do perfeito conhecimento e domínio das línguas de onde e para
onde se traduz. Conhecimento que se alcança pela frequentação assídua
dos escritores clássicos considerados como os legisladores da língua: o
sentido das palavras reside no seu uso pertinente por parte daqueles que
se destacaram numa língua. A consuetudo sermonis, sobretudo a con-
suetudo qualificada daqueles que se destacaram como escritores numa
língua, é o que constitui a norma a imitar, não sendo consentidas inova-
ções arbitrárias, mormente quando resultam da incultura e desconheci-

303 «Et insuper ut habeat auris [severum] iudicium, ne illa, quae rotunde ac numerose
dicta sunt, dissipet ipse quidem atque perturbet. Cum enim in optimo quoque scriptore
et praesertim in Platonis Aristotelisque libris et doctrina rerum sit et scribendi ornatus,
ille demum probatus erit interpres, qui utrumque servabit. Denique interpretis vitia
sunt: si aut male capit, quod transferendum est, aut male reddit aut si id, quod apte
concinneque dictum sit a primo auctore, ipse ita [convertit], ut ineptum et inconcinnum
et dissipatum efficiatur.» Ibidem, p. 86.
304 «Quid dicam de suavitate ac rotunditate orationis, qua quidem in re plurimum
laborasse Aristoteles in Graeco videtur. Hic autem interpres ita dissipatus
delumbatusque est, ut miserandum videatur, tantam confusionem intueri. Taedet me
plura referre. Est enim plena interpretatio eius talium ac maiorum absurditatum et
delirationum, per quas omnis intelectus et claritas illorum librorum miserabiliter
transformatur fiuntque ii libri ex suavibus asperi, ex formosis deformes, ex elegantibus
intricati, ex sonoris absoni et pro palaestra et oleo lacrimabilem suscipiunt
rusticitatem.» Ibidem, p. 96.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 141

mento das línguas. É isso que vê na versão medieval, censurando as


opções do tradutor, por exemplo quando ele usa um termo mais vulgar e
não usado pelos escritores clássicos, ou quando latiniza expressões gre-
gas, face à dificuldade de encontrar para elas os adequados termos lati-
nos. Bruni visa apreender o correcto conteúdo das obras. Mas a sua
insistência vai para a qualidade estético-retórica dos escritos. Para ele,
esta dimensão não é algo acidental que se possa negligenciar, mas faz
parte do conteúdo da obra. Está sem dúvida aqui suposta a concepção
retórica de verdade, segundo a qual esta não visa apenas ensinar, mas
também deleitar, persuadir e mover à acção (docere, delectare, movere).
Este aspecto é essencial e só se entende verdadeiramente se tivermos em
conta a intenção ou projecto de Bruni de reconduzir a filosofia à filolo-
gia, ou antes de as reconciliar, e de assim reconstruir aquela unidade
entre sapientia e eloquentia que reconhecia como sendo o cerne da visão
ciceroniana do mundo. Adverte-se, sem dúvida, no tom de Bruni uma
certa arrogância e petulância da nova cultura humanista, excessivamente
segura de si por dominar as línguas e as ciências da linguagem, o que a
leva a desprezar e a não reconhecer o mínimo valor nos esforços dos tra-
dutores medievais, considerados ignorantes, incultos, bárbaros. A nova
ordem da cultura humanística usava as traduções como arma de combate
contra a antiga e tradicional cultura escolástica. Mas dificilmente podia
ela própria escapar à crítica, que lhe será feita até por pensadores com
formação humanística (por ex., por Giovanni Pico della Mirandola),
segundo a qual por julgarem ser muito peritos em línguas e habilidosos a
construir frases sonoras, já pensam entender e interpretar correctamente
os grandes filósofos. Assim o escreve Pico na sua famosa carta a Barba-
ro, e já depois de ter deposto a toga de defensor dos escolásticos: «Revol-
tam-me o estômago alguns gramatistas, os quais, pelo facto de conhece-
rem as etimologias de dois vocábulos, a tal ponto se ostentam, a tal ponto
se gabam, a tal ponto circulam jactanciosamente por todo o lado, que
acreditam que os filósofos não merecem a menor estima comparados
com eles.»305
Apesar da auto-confiança e convicção que mostra nas suas cartas e
prefácios quanto aos pressupostos humanistas da tradução, as traduções
de Bruni não mereceram incondicional aceitação nem da parte dos seus
contemporâneos, nem da parte de alguns editores posteriores. Os huma-
nistas do seu tempo apreciavam sem dúvida o «novo Aristóteles» que
resultava das suas traduções dos escritos éticos e políticos do Estagirita e
que serviam como arma de combate contra os escolásticos e contra o
305 «Movent mihi stomachum grammatistae quidam, qui, cum duas tenuerint
vocabulorum origines, ita se ostentant, ita venditant, ita cincunferunt iactabundi, ut
prae seipsis pro nihilo habendos philosophos arbitrentur.» Giovanni Pico della
Mirandola, Opera Omnia, vol. I, p. 358.
142 Leonel Ribeiro dos Santos

Aristóteles lógico e metafísico destes. O método de traduzir os filósofos


utilizado por Bruni vai mesmo inspirar outros humanistas posteriores,
não só para as traduções filosóficas mas também para as traduções bíbli-
cas, nas quais também se começa a valorizar a dimensão literal, literária e
retórica como algo imprescindível para a própria apreensão da doutrina.
Ainda em pleno século XV Gianozzo Manetti aplica os pressupostos
humanistas de Bruni na sua tradução dos Salmos a partir do Hebraico e,
no início do século seguinte, Erasmo fará outro tanto na sua tradução do
Novo Testamento.306
Isso não significa que o futuro tenha sido incondicionalmente favo-
rável às traduções de Bruni. Já no século XVI, Henri Estienne aponta
erros na tradução da Ética Nicomaqueia, e desde então até ao presente
poucos foram os que a defenderam ou que reconheceram o seu valor seja
pela fidelidade ao texto original, seja pela sua relevância no contexto do
humanismo quatrocentista. De um modo geral reconhece-se-lhe uma
mais-valia formal e estético-retórica relativamente à tradução medieval,
mas isso é conseguido muitas vezes à custa da perda do conteúdo. Tam-
bém as suas traduções de alguns diálogos (ou partes de diálogos) de Pla-
tão não tiveram aceitação e foram definitivamente ultrapassadas pelas de
Ficino, que as terá tido presentes. De facto, muitas vezes os textos do
filósofo grego são submetidos a maquilhagem para irem ao encontro do
previsível gosto dos destinatários. Isso acontece, nomeadamente, na tra-
dução parcial do Fedro e na tradução do discurso de Alcibíades do Ban-
quete, onde as referências à homossexualidade são apagadas, oferecendo-
-se uma versão moralizante do texto platónico.307
Mas as traduções de Bruni e os respectivos pressupostos mereceram
também pelo menos duas expressas e qualificadas réplicas da parte de
alguns contemporâneos, representantes ou advogados das traduções
medievais de Aristóteles, nomeadamente da tradução da Ética Nicoma-
queia, que se deve a Roberto de Grosseteste (autoria que, aliás, tanto
Bruni como Alonso ignoravam). Nessas réplicas expõem-se os princípios
em que aquela tradução se fundava, e assim se recusa liminarmente a
acusação de Bruni de que ela era fruto duma crassa ignorância das lín-
guas, e por isso defeituosa e inútil. A primeira, escrita em 1430, deve-se
a Alonso Garcia de Cartagena (1384-1456), bispo de Burgos desde 1435
e participante nos concílios de Constança e Basileia. A outra, mais tardia
(1481-1484), deve-se ao dominicano Baptista de Finaro (ou Baptista de’

306 Veja-se: A de Petris, «Le teorie umanistiche del tradurre e l’«Apologeticus» di


Giannozzo Manetti», Bibliothèque d’Humanisme et de Renaissance 37 (1975), pp. 15-32.
307 Para uma apreciação geral das traduções de Bruni, veja-se: James Hankins, Plato in
the Renaissance, pp. 58-81; e Hanna-Barbara Gerl, Philosophie und Philologie, pp. 14-
-16.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 143

Giudici), que foi bispo de Ventimiglia.308 Ocupar-me-ei aqui apenas do


Libellus contra Leonardum de Alonso de Cartagena, ao qual Bruni por
sua vez ainda responderá em algumas das suas cartas.309
Deve, em primeiro lugar, dizer-se que Alonso não recusa a Bruni o
direito de propor uma nova tradução da obra aristotélica. Mas condena o
modo como a apresenta contra a antiga, considerando esta não apenas
como imperfeita, mas como totalmente nula.310 Com uma atitude bem dife-
rente, Alonso não pretende tanto atacar ou ofender o humanista de Arezzo
quanto defender o antigo tradutor.311 E faz isso, não discutindo em minúcia
as opções de Bruni ou do tradutor medieval, mas mostrando a razão de ser
da versão medieval pondo em evidência os pressupostos que a esta subja-
zem (ueritatem translationis ex paucissimis demonstrare)312. Ao longo dos
10 capítulos do seu Libellus, Alonso mais não faz do que explicitar o modo
medieval de entender não só a tradução, como a relação entre a linguagem,
o pensamento e a realidade, que expus no ponto anterior. E é sobretudo por
isto que a sua réplica a Bruni é importante e merece a nossa atenção.313
Explicitemos então as teses do pensador espanhol.
1ª – Carácter secundário e sobredeterminado da língua e da lingua-
gem relativamente ao pensamento e à realidade. Alonso abre o seu dis-
curso com uma tese extrema, e certamente estranha para os nossos ouvi-

308 A réplica de Baptista de Finaro foi editada por M. Grabmann: «Eine ungedrückte
Verteidigungschrift der scholastischen Übersetzung der nikomachischen Ethik
gegenüber dem Humanisten L. Bruni», in: Mittelalterliches Geistesleben I, München,
1926, pp. 440-448.
309 O texto do opúsculo de Alonso de Cartagena encontra-se em: A. Birkenmajer, «Der
Streit des Alonso von Cartagena mit Leonardo Bruni Aretino», in: Beiträge zur
Geschichte des Mitellalters, 5, XX (1920), pp. 129-210; Idem, «Alonso Garcia de
Cartagena – Libellus contra Leonardum (1430)», in: Idem, Études d’histoire des
sciences et de la philosophie du Moyen-Âge, Wroclaw-Warszawa-Krakow, Ossolineum,
1970, pp. 438-462. Uma exaustiva exposição e apreciação deste conflito pode ver-se
em: Hanna-Barbara Gerl, Philosophie und Philologie. Leonardo Brunis Übertragung
der Nikomachischen Ethik in ihren philosophischen Prämissen, Wilhelm Fink,
München, 1981, obra que seguiremos em muitos pontos; Fernando Rubio, «La ‘Etica a
Nicomaco’ traducida por el Aretino: dos Cartas inéditas acerca de la discutida
traducción», La Ciudad de Dios, CLXIV (1952), pp. 553-578.
310 «Sed quia in tantum in antiquam translationem insiluit, ut nedum uitiositatis sed totius
nullitatis redarguat, libros Ethicorum nondum in Latinum conuersos affirmans, quasi non
uitiosa sed penitus nulla translatio fuerit...». Apud A. Birkenmajer, «Der Streit...», p. 441.
311 «Non ut Leonardum offendere, sed ut antiquum translatorem defendere temptem, ad
conflictum accurro.» Ibidem.
312 Ibidem.
313 Como escreve Hanna-Barbara Gerl: «Was Alonso gegen Bruni referiert, entspringt
nicht allein individueller Reflexion; er vertritt vielmehr die Konsequenzen eines
prinzipiell metaphysischen Denkens: grammatische und semantische Probleme sind in
ihrer nur sekundären Fragestellung rückzubinden an die Sachproblematik.» (ob.cit., 26).
144 Leonel Ribeiro dos Santos

dos, na qual minimiza a importância da linguagem e do conhecimento


das línguas para o entendimento das doutrinas filosóficas. Para apreciar a
correcção da tradução antiga, não é necessário o conhecimento do Grego,
mas apenas o conhecimento do conteúdo do texto: «Não importa indagar
se o texto foi escrito assim em Grego mas se pôde ser escrito assim tal
como o tradutor o traduziu (non ergo an in Graeco sic scriptum est, sed
an sic scribi potuit, ut translator noster edixit... inquiramus)».
Trata-se de uma explícita contraposição ao primeiro pressuposto de
Bruni: o da exigência absoluta do conhecimento e domínio perfeito das
línguas. E Alonso prossegue declarando que as línguas são secundárias,
pois o que importa é a razão. «Esta é comum a todos, ao passo que as
línguas são apenas diferentes modos de a exprimir» (ratio omni nationi
communis est, licet diversis idiomatibus exprimatur). Subentende-se que
ao limite a razão poderia dispensar esses instrumentos? Alonso não chega
a tanto, mas sempre declara que o mais importante na tradução medieval
da Ética não é saber se ela soa a Grego, mas sim se a língua latina a tole-
ra, se está escrita com propriedade e se concorda com as coisas mesmas
(An ergo Latina lingua toleret proprieque scriptum sit et rebus ipsis con-
cordet, non an Graeco consonet, discutiemus.)
E porque o próprio Aristóteles não retirou a sua razão da autoridade
da língua grega, mas retirou a autoridade da sua língua e das suas pala-
vras da razão, assim aquilo que está conforme com a razão é o que se
deve pensar como tendo sido dito por Aristóteles e devemos considerar
como tendo sido escrito em grego aquilo que a nossa tradução sabia-
mente exprime com palavras latinas.314
Trata-se, portanto, de ver se a tradução feita (para o Latim) está de
acordo com as coisas mesmas e com a razão e não se ela está conforme
com o grego em que foi escrita. Por conseguinte, o que constitui critério
de verdade não é o texto grego original mas o problema real que o texto
expõe. Assim, em vez de se examinar a escolha de palavras de uma tra-
dução, deve examinar-se o conteúdo real e racional que está para além
das afirmações e das palavras e que deve ser comum a todos, seja para
Aristóteles, seja para o seu tradutor medieval, seja para o seu tradutor
humanista. De acordo com este pressuposto, o problema da tradução é
secundário, pois o que verdadeiramente importa é a própria inteligibili-
dade das coisas. A questão da tradução como questão de correcção histó-
rico-linguística é secundarizado a favor da função de mediação do pen-
samento e da realidade através da linguagem, pois esta só tem sentido na
sua relação com a estrutura lógica do pensamento, a qual, por sua vez, só
314 «Cum igitur Aristoteles ipse non rationem ab auctoritate, sed auctoritatem a ratione
consecutus est, quicquid rationi consonat, haec Aristoteles dixisse putandus est et
Graece arbitremur scriptum fuisse, quicquid Latinis uerbis translatio nostra sapienter
depromit.» Apud A. Birkenmajer, art. cit., p. 442.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 145

o tem igualmente quando subordinada à estrutura racional da realidade.


De igual modo, a qualidade de uma língua não se define pelo seu signifi-
cado histórico-linguístico, pela consuetudo loquendi, mas pela sua rele-
vância lógica. E a questão que importa não é a de saber, como exige
Bruni, se a frase traduzida está latine scripta, mas se está proprie scripta.
Como pertinentemente nota Hanna-Barbara Gerl, Alonso contrapõe à
crítica histórica da linguagem (historische Sprachkritik), defendida por
Bruni, a crítica lógica e ontológica do seu significado (ontologische
Bedeutungskritik).315
2ª – A subordinação da eloquência à ciência, da elegância à verdade
e à doutrina, da persuasão à demonstração. Alonso separa muito clara-
mente aquilo que Bruni expressamente pretendia unir: a ciência e a elo-
quência, a exigência científica de atenção à realidade das coisas e a preo-
cupação estético-retórica, o ensino e a persuasão. Em contrapartida, o
bispo de Burgos escreve: «Aquele que pretende submeter as estritíssimas
conclusões das ciências às regras da eloquência não se dá conta de que o
acrescentar ou o eliminar palavras requerido pela doçura da persuasão
ofendem o rigor da ciência. Aqueles que pretendem subordinar as ciên-
cias à eloquência incorrem, por isso, em muitos erros. Ao passo que o
homem sábio é aquele que discute os assuntos científicos com palavras
restritas e apropriadíssimas e só depois de limados os argumentos e puri-
ficadas as doutrinas consente que, em vista da persuasão, sejam usadas
palavras eloquentes. Por isso, a nossa tradução não deve ser criticada por
discordar das palavras usadas pelos oradores mesmo que sejam os melho-
res; mas deve ser examinada nisto, a saber: se observa a simplicidade das
coisas e a estrita propriedade das palavras. Pois com frequência a elegân-
cia dos discursos, se não for orientada pelo estrito juízo, confunde a sim-
plicidade das coisas, e isso perturba grandemente o correcto entendi-
mento da ciência.»316
Em suma, a eloquência é vista pelo pensador espanhol mais como
perigo para a correcta compreensão e exposição da verdade, do que como

315 Ob. cit., p. 27.


316 «Crede enim mihi: qui scientiarum districtissimas conclusiones eloquentiae regulis
subdere uult, non sapit, cum uerba addere ac detrahere ad persuasionis dulcedinem
pertinet, quod scientiae rigor abhorret. Multis ergo erroribus pateat oportet, qui
scientiam sub eloquentia tradere nititur; sed sapienti uiro illud congruum iudico sub
restrictis et propriissimis uerbis, quae scientifica sunt, discutere, post uero ad elimata
documenta et purificatas doctrinas persuadendo uerbis eloquentibus acclamare. Non
ergo ex eo translatio nostra mordenda est, quod oratorum etiam summorum usitatis
uerbis discordet, sed in hoc examinanda est, an simplicitatem rerum et restrictam
proprietatem uerborum obseruet. Saepe enim elegantia sermonum, si non stricto
iudicio dirigitur, simplicitatem rerum confundit, quod maxime rectum scientiae
intellectum perturbat.» Apud Birkenmajer, art. cit., p. 451.
146 Leonel Ribeiro dos Santos

seu auxiliar. O discurso eloquente procura adornar e complicar aquilo


que pode e deve ser dito de modo breve, diz com uma linguagem impró-
pria (com metáforas) aquilo que pode e deve ser dito com linguagem
própria. Permitir na filosofia o uso desenfreado das palavras é promover,
com a impropriedade das palavras o erro, o qual a pouco e pouco atinge
também as próprias coisas.317
3ª – Por conseguinte, o tradutor medieval não só não pecara por falta
de engenho, por ignorância, ou por descuido, conforme acusava Bruni,
como até vira com muito mais profundidade do que o humanista aquilo
que no texto aristotélico estava realmente em questão (non ex tarditate
ingenii, ut ille putauit, seu inaduertentia quadam, sed cautiori industria
haec omnia profundius animaduertit.)318 Alonso não hesita em dizer que,
do ponto de vista do conteúdo especulativo, a tradução medieval excede
de longe a de Bruni, no que, de resto, tem sido secundado por alguns
intérpretes recentes.319 Nesta reconhece, sem dúvida, o ardor do estilo e a
eloquência do homem, mas detesta o resultado pretendido e alcançado
(ardorem stili cognoui et hominis eloquentiam laudaui, effectum uero,
quem se consecuturum putauit, abhorrui molesteque tuli).320

2. Jorge de Trebizonda (1395-1484)

Este humanista bizantino, que emigrou para Itália onde viria a


desempenhar várias funções (como diplomata, como professor de huma-
nidades em Vicenza, Roma e Mântua, como secretário papal, como autor
do primeiro tratado humanista de retórica e de tratados de teologia e de
filosofia), ficou conhecido sobretudo pela sua agressiva polémica contra
os platónicos Jorge Gemisto (Pleto) e Bessarion, na qual extremava,
contra a geral tendência da época, a contraposição da filosofia de Aristó-
teles à de Platão, considerando esta última como nociva ao Cristianismo,
por favorecer o paganismo e a imoralidade, vindo por isso a merecer o
epíteto de «caluniador de Platão» da parte de Bessarion. Foi também tra-
dutor de várias obras, em particular, de Platão (Leis e Parménides), esta
última por encomenda de Nicolau de Cusa. As suas traduções nem tive-
ram grande difusão nem êxito e foram duramente criticadas como defei-
tuosas e preconceituosas, nomeadamente por Bessarion, que o acusava de

317 «Nec enim in philosophia uerba sine freno laxanda sunt, cum ex improprietate uerbo-
rum error ad ipsas res paulatim accrescat.» Ibidem, p. 445.
318 Ibidem, p. 469.
319 Eugenio Garin, «La fortuna dell’etica aristotelica nel Quattrocento», in Idem, La
cultura filosofica del Rinascimento italiano, p. 64.
320 Apud Birkenmajer, art. cit., p. 440.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 147

não conseguir disfarçar nelas a sua repugnância filosófica pela filosofia


platónica, opinião que tem sido confirmada pela crítica mais recente.
Como observa James Hankins, era tal o desprezo de Trebizonda por Pla-
tão e tal a sua convicção de que a filosofia platónica exercia uma influên-
cia maligna sobre o Cristianismo e sobre os costumes, que, nas suas tra-
duções, ele se esforçava por fazer parecer o filósofo antigo o mais insen-
sato, corrupto e perigoso que podia.321
Mas não é a qualidade das traduções de Trebizonda que me propo-
nho abordar e sim os pressupostos que o humanista invoca. Assim, no
Prefácio à sua tradução do De corona (1444-46) de Demóstenes, lê-se:
«Não existe uma só maneira de traduzir, mas tantas quantas os vários
géneros de realidades em causa. Aquele que traduz coisas árduas e difí-
ceis de entender e de interpretar, e que encontra nos seus autores muitas
coisas ambíguas, ao traduzi-los para uma outra língua deve exprimir mais
as palavras do que o sentido, para que não aconteça que, ao seguir um
sentido que ele capta, não negligencie outros sentidos melhores e mais
elevados. [...] Não há ninguém, a não ser que seja completamente incom-
petente, que não se dê conta de que este modo de traduzir é o que melhor
convém à divina Escritura e aos livros de Aristóteles. Aquele que traduz
algum livro histórico, não se preocupe nada com as palavras, mas uma
vez que perceba a coisa completamente, é-lhe permitido vertê-la a seu
modo, ora mais latamente ora mais estritamente, usando o género histó-
rico de falar. Mas aquele que deseja traduzir para o Latim o discurso de
algum orador grego, esse nem deve ignorar as palavras, nem deve seguir
só o seu sentido, mas deve, para além disso, exprimir, na medida do pos-
sível, o género de discurso e a variedade da expressão.»322
A concepção da tradução segundo o humanista bizantino deve pois
ter em conta os seguintes aspectos:
1º – A diversidade de matérias ou de assuntos, a que correspondem
diferentes géneros de tradução. Não todos os assuntos devem ser traduzi-

321 James Hankins, ob. cit., p-192.


322 «Non enim unus modus in traducendo est, sed pro rerum subiectarum varietate varius
atque diversus. Qui ardua, sensu intellectuque difficilia, et plerumque vel apud ipsos
auctores suos ambigua in aliam linguam vertit, is verba magis exprimat quam sensum ne,
cum eum sensum sequatur quem ipse capiat, alios negligat forte meliores ac altiores. [...]
Hanc traducendi rationem divine scripture Aristotelisque voluminibus convenire nemo
nisi omnino imperitus dubitavit. Qui historicum aliquem vertit, is de verbis nihil laboret,
sed cum rem totam percepit, latius, strictiusve, dum historico genere dicendi utatur, eam
more suo in Latinum vertat licebit. Qui autem oratoris alicuius Greci orationem Latinam
facere cupit, is ignorare non debet non verba, non sensum illius solum sibi sequendum,
sed multo magis orationis genus et dicendi varietatem Latine, quantum facere potest, esse
exprimendam.» (Collectanea Trapezuntiana, Medieval and Renaissance Texts and
Studies, vol. 25, Renaissance Society of America, Renaissance Texts Series, vol. 8,
Binghamton, 1984, p. 94; cit. apud J. Hankins, ob. cit., p. 187).
148 Leonel Ribeiro dos Santos

dos da mesma maneira. Um livro bíblico, um livro de um filósofo, um


escrito histórico, um poema, um discurso retórico exigem do tradutor
diferentes abordagens.
2º – Trebizonda recupera a distinção tradicional entre tradução ad
verbum e tradução ad sensum, que, como sabemos, fora explicitada por
S. Jerónimo, nomeadamente para marcar a diferença entre a tarefa de tra-
duzir um livro bíblico e a de traduzir um livro histórico profano. No pri-
meiro caso, deve seguir-se uma tradução palavra por palavra, pois se
parte do princípio que não só o sentido mas também as próprias palavras
e a sua ordem e sintaxe são reveladas e por isso não podem ser alteradas
arbitrariamente pelo tradutor. No segundo caso, porém, pode ou deve o
tradutor muitas vezes propor uma tradução que, para além das palavras,
verta sobretudo o sentido destas. Mas há textos que são de tal maneira
híbridos que, ao serem traduzidos, requerem que se atenda por igual às
palavras e ao sentido. Tal é o caso de um discurso oratório ou de um
poema. Aqui, segundo Trebizonda, deve ter-se em conta não só as pala-
vras e o sentido, mas também o género do discurso e a variedade da
expressão.
3º – Pelo que à tradução filosófica respeita, segundo o humanista
bizantino, ela aproxima-se mais da tradução ad verbum do que da tradu-
ção ad sensum. Ou seja, o tradutor não deve tornar claro aquilo que no
original é confuso ou ambíguo, pois isso significaria substituir a sua par-
ticular interpretação ao pensamento do autor, impedindo que outros
eventuais leitores cheguem a outras ou mesmo melhores interpretações.
Ao verter um texto que na origem é obscuro e ambíguo num texto dema-
siado claro e inequívoco, o tradutor, querendo beneficiar e valorizar o
texto de origem, está na verdade a tolher-lhe a fecundidade filosófica e a
limitar-lhe o sentido. Trebizonda explicita este ponto na sua crítica à tra-
dução que Teodoro de Gaza fizera dos Problemata de Aristóteles, a res-
peito da qual escreve: «O tradutor fiel é aquele que traduz claramente o
que Aristóteles escreveu com clareza, e que traduz ambígua ou obscura-
mente aquilo que ele escreveu de modo ambíguo ou obscuro. Cada um
deve apreciar segundo o seu engenho cada situação em particular. Se
algumas coisas obscuras te parecem claras ou as ambíguas te parecem
certas, escreve nas margens aquilo que pensas, como nós costumamos
fazer, mas não mistures as tuas opiniões com as alheias. Assim, Aristó-
teles ficará íntegro e a tua opinião não ficará ignorada.»323

323 «Fidus interpretes, quae Aristoteles dilucide scripsit, ea dilucide, quae ambigue aut
obscure, ea similiter traducit.[...] Si vero nonnulla obscura liquide tibi patere putas aut
ambigua tibi certiora esse ducis, in marginibus, sicut nos facere consuevimus, quae
sentis, scribe nec tua cum alienis commisce. Ita enim et Aristoteles integer erit, et
sententia tua non erit ignota.» Apud L. Mohler, Kardinal Bessarion als Theologe,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 149

Embora tenha tido um papel decisivo para a reabilitação da retórica


na cultura quatrocentista e seja mesmo autor do primeiro tratado huma-
nista de Retórica (Rhetoricorum libri V, 1433-34), onde faz já a síntese
entre as tradições da retórica romana e da retórica helenística e bizantina,
Jorge de Trebizonda não dedica à dimensão estético-retórica dos textos
filosóficos o mesmo empenho que vimos em Bruni e noutros humanistas
quatrocentistas.324 Na verdade, apesar das liberdades que por vezes toma
enquanto tradutor, enquanto teorizador da tradução, Trebizonda está
muito mais próximo do entendimento tradicional escolástico do que do
entendimento dos humanistas.

3. Marsílio Ficino (1433-1499)

De longe o mais importante tradutor e intérprete filosófico do


Renascimento, Marsílio Ficino não foi contudo muito generoso em mani-
festar os pressupostos em que baseava o seu labor. Mas, apesar de escas-
sas, as declarações ficinianas acerca do entendimento da tarefa de tradu-
tor e intérprete são suficientes para ilustrar como aquilo a que chamei o
regime hermético e neoplatónico da linguagem se reflecte na tradução de
obras filosóficas. Ficino estava convencido de que Platão era o herdeiro e
intérprete mais qualificado duma antiquíssima e comum tradição de
sabedoria – a prisca theologia – de Zoroastro, de Hermes, de Orfeu, de
Aglaofemo e de Pitágoras.325 E que, por isso, os seus escritos eram sagra-
dos e inspirados e enquanto tais intraduzíveis de um modo perfeito.
Assim o declara no Proémio à sua tradução e ao comentário das obras de
Platão: «Confesso que não expressei completamente nestes livros o estilo
platónico e estou seguro de que ele não pode ser expresso alguma vez por
ninguém, mesmo que seja mais sábio. O seu estilo é semelhante não a um

Humanist, und Staatsmann, 3 vols,, Paderborn, 1923-1942, vol. 3, pp. 298-299.


324 A preocupação com o estilo e o adorno caracterizava as traduções de muitos
humanistas e isso implicava que, por vezes, considerassem a tradução como um livre
exercício lúdico feito sobre o texto original. Um exemplo disso pode ver-se em
Ermolao Barbaro, tradutor das Parafrases a Aristóteles de Temístio. Na Dedicatória ao
Papa Sixto V dessa sua tradução, Barbaro declara não se ter prendido à letra, mas antes
«ter usado livremente, à maneira romana, de translações, de figuras e de tropos» (libere
et translationibus et figuris et tropis usi sumus ad morem romanum), «jogando com o
texto original a seu bel-prazer» (lusimus arbitratu nostro), «tendo por objectivo não
tanto traduzir Temístio para o Latim quanto competir com ele» (non tam latinum
reddere Themistium, quam certare cum eo volui). Ermolao Barbaro, Epistolae, Oratio-
nes, Carmina, ed. V. Branca, Firenze, 1943, vol. I, pp. 8,12,14.
325 «Prisca Gentilium Theologia, in qua Zoroaster, Mercurius, Orpheus, Aglaophemus,
Pythagoras consenserunt, tota in Platonis nostri voluminibus continetur.» Marsilio
Ficino, De christiana religione, Opera omnia, Basileae, 1561, t. I, p. 25.
150 Leonel Ribeiro dos Santos

discurso humano mas a um oráculo divino, por vezes soando mais alto,
por vezes jorrando como a suavidade do néctar, sempre porém captando
os arcanos celestes.»326
A mesma ideia reaparece no Prefácio à sua tradução comentada dos
escritos dum teólogo neoplatónico cristão que corriam sob o nome de
Dionísio Areopagita: «Inebriado com o puro vinho dionisíaco, o nosso
Dionísio exulta por toda a parte. Espalha enigmas, canta ditirambos. Por
isso, é tão árduo penetrar com a inteligência nos seus sentidos profundos
quão difícil imitar as admiráveis composições das palavras e o carácter
quase órfico da expressão, e sobretudo dizê-lo com palavras latinas. Para
se conseguir fazer isso com facilidade é absolutamente necessário sermos
possuídos pelo divino furor. Aquela mesma oração que Dionísio fez à
Trindade pedindo piamente luz para penetrar nos mistérios dos profetas e
apóstolos, façamo-la nós igualmente suplicando que Deus no-la infunda
agora para que consigamos alcançar e exprimir o seu sentido e eloquên-
cia.»327
Num outro passo, Ficino fala da diferença dos estilos de Platão e de
Plotino e da dificuldade que teve para os captar e fixar numa tradução,
em particular o de Plotino, para o que não lhe basta socorrer-se das quali-
ficadas interpretações dos neoplatónicos, mas, além duma mente mais
sublime do que a comum razão humana, ainda necessita do auxílio divi-
no: «A mesma divindade difunde os oráculos divinos entre o género
humano através da boca de ambos, oráculos dignos de um sagacíssimo
tradutor, que, no caso de Platão, tem de esforçar-se por retirar os véus das
imagens, no caso de Plotino, tem de trabalhar diligentemente ora para
exprimir os sentidos secretíssimos que estão por toda a parte, ora para os
expor com as mais concisas palavras. Lembrai-vos de que nunca podereis
penetrar na mente excelsa de Plotino tomando por guia apenas o sentido
ou a humana razão, exigindo-se para tal uma mente mais sublime. [...]
Para interpretar os seus mistérios eu sirvo-me da ajuda de Porfírio e de

326 «Neque uero me Platonicum in his libris stylum omnino expressisse profiteor, neque
rursus ab ullo, quamuis admodum doctiore, unquam exprimi posse confido. Stylum
inquam non tam humano eloquio, quam diuino oraculo similem, saepe quidem tonan-
tem altius, saepe uero nectarea suauitate manantem, semper autem arcana celestia
complectentem.» Marsilii Ficini, Opera omnia, Basileae, 1561, t. II, p. 1129.
327 «Hoc igitur Dionysiaco mero Dionysius noster ebrius exultat passim. Effundit
aenigmate, concinit dithyrambos. Itaque quam arduum est profundos illius sensus
intelligentia penetrare, tam difficile miras uerborum compositiones et quasi Orphicum
dicendi characterem imitari, ac Latinis praesertim uerbis exprimere. Idem profecto ad
id facile consequendum necessarius omnino nobis diuinus est furor. Eadem prorsus
oratione trinitas obsecranda, ut quod Dionysio pie petenti lumen, ad penetranda
Prophetarum, Apostolorumque mysteria, quondam Deus infudit, idem nobis similiter
supplicantibus ad illius sensum eloqiumque consequendum et exprimendum feliciter
nunc infundat.» Opera omnia, t. II, p. 1013..
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 151

Eustóquio e de Proclo, que arrumaram os livros de Plotino e os expuse-


ram. Mas eu espero que ao traduzir e expor os divinos livros de Plotino
não falte a Marsílio Ficino o auxílio divino que é a ajuda mais feliz.»328

Estas passagens e outras do mesmo teor ilustram bem o que chamei


a atitude neoplatónica e hermética da linguagem aplicada à tradução filo-
sófica. Os próprios textos filosóficos – pelo menos os de alguns filósofos
– são considerados como revelados e tratados com um respeito análogo
ao que se dedica a uma revelação divina. Por outro lado, o intérprete ou
tradutor duma obra filosófica está sempre em falta, seja quanto ao enten-
dimento que da verdade e sentido dela alcança, seja quanto à capacidade
de encontrar para essa verdade e sentido a feliz tradução ou expressão
numa outra língua. Não menos do que o autor original, também o tradu-
tor necessita de inspiração e, por isso, a tarefa da tradução não é o
desempenho de uma mera habilidade ou competência linguística e retó-
rica, embora obviamente a seriedade da empresa as exija como condição
necessária, mas não suficiente. Por isso, em suma, a verdadeira tradução
completa-se numa interpretação ou comentário. Ou seja, não pode tradu-
zir bem aquele que bem não interpreta. E não interpreta bem uma filoso-
fia quem o fizer não ouvindo a leitura dos seus mais qualificados intér-
pretes. Há, pois, uma circularidade entre tradução e interpretação, não
tanto no sentido de que uma depende da outra e vice-versa, mas no sen-
tido de que devem afinar-se e controlar-se uma pela outra. Também neste
aspecto é Ficino exemplar, na medida em que não se limitou a traduzir,
mas dobrou as suas traduções de Platão e de Plotino com pessoais inter-
pretações das principais obras ou em geral do pensamento daqueles
filósofos, bem consciente de que alguns deles, como é nomeadamente o
caso de Plotino, «seja pela incrível concisão da linguagem que usam, seja
pela abundância da doutrina ou pela profundidade do seu significado,
necessitam não só de que se lhes traduza a língua, mas que se lhes
comente o pensamento.»329
No essencial, as traduções de Ficino conseguiram resistir ao tempo e
328 «Idem itaque numen per os utrunque humano generi diuina oracula, utrobique
sagacissimo quodam interprete digna, qui ibi quidem in euoluendis figmentorum
incumbat inuolucris, hic uero tum in exprimendis secretissimis ubique sensibus, tum in
explanandis uerbis quam breuissimis diligentius elaboret. Mementote praeterea, uos
haudquamquam uel sensu comite, uel humana ratione duce, sed mente quadam subli-
miore excelsam Plotini mentem penetraturos.[...] Atque utinam in mysteriis huius
interpretandis adminiculum Porphyrii aut Eustochii aut Proculi, qui Plotini libros
disposuerunt atque exposuerunt, nobis adesset. Spero tamen id quod admodum
foelicius est, diuinum auxilium in traducendis explicandisque divinis Plotini libris
Marsilio Ficino non defuturum.» Opera omnia, t. II, p. 1548.
329 «Sed ob incredibilem cum verborum brevitatem, tum sententiarum copiam,
sensusque profunditatem, non translatione tantum linguae, sed commentariis indiget.»
Opera omnia, t. II, p. 1537.
152 Leonel Ribeiro dos Santos

às críticas posteriores, sendo apreciadas desde os tempos de Erasmo até à


actualidade pela sua precisão, completude e penetração filosófica. Pode
dizer-se que o sucesso das traduções filosóficas de Ficino resulta do seu
sensato eclectismo, da sua extraordinária capacidade de temperar o
regime escolástico e o regime humanista com o regime hermético e neo-
platónico da linguagem.

4. Juan Luis Vives (1492-1540)

Reflexões sobre a linguagem abundam nos escritos de Juan Luis


Vives, humanista e pedagogo valenciano que cedo emigrou para o norte
da Europa, vivendo a maior parte da sua não muito longa vida em
Brugges, onde morreu. Do problema da tradução ocupa-se ele expres-
samente no último capítulo do seu manual de retórica, De ratione dicendi
(1532), intitulado «Versiones seu interpretationes». A importância das
ideias de Vives sobre a tradução resulta de dois aspectos: de representa-
rem elas, de algum modo, uma síntese amadurecida e equilibrada das
várias tendências do pensamento humanista sobre o assunto, e por anun-
ciarem já aspectos do entendimento da linguagem e das relações entre as
línguas a que só o Romantismo daria plena expressão.330
Vives pode considerar-se como um caso em que o modelo escolás-
tico de tradução (que visa o pensamento e as coisas mesmas) e o huma-
nista (que visa a correcção e a elegância da linguagem) são simultanea-
mente reconciliados e superados. Nele, o princípio humanista do primado
absoluto da linguagem e das línguas clássicas é já ultrapassado pela cons-
ciência da incomensurabilidade que existe entre a linguagem e a reali-
dade, pela convicção da impossibilidade de haver alguma língua tão per-
feita que possa servir de padrão para todas as outras e pela consciência da
incomensurabilidade absoluta entre as línguas, já que cada uma exprime
algum aspecto da realidade a que as outras são insensíveis total ou par-
cialmente. É esta incomensurabilidade das línguas o que ao limite invia-
biliza também qualquer tradução perfeita de umas línguas nas outras,
pois não há nenhuma língua tão perfeita que seja capaz de conter as
virtualidades de todas as outras. Menos ainda pode alguma língua ter a
legítima pretensão de designar tudo aquilo que existe na realidade, já que
esta, na sua ilimitada manifestação, excede infinitamente as potencialida-
des da própria linguagem e de todas as línguas, as quais, por mais perfei-
tas que sejam, são sempre finitas. A linguagem está sempre em défice

330 Veja-se: Eugenio Coseriu, «Das Problem des Übersetzens bei Juan Luis Vives», in:
Interlinguistica. Sprachvergleich und Übersetzung. Festschrift für M. Wandruszka,
hrsg. v. K.-R. Bausch u. H.-M. Gauger, Tübingen, 1971, pp. 571-582.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 153

relativamente à realidade, «pois as palavras são finitas e a realidade infi-


nita» (verba enim finita sunt, res infinitae).
154 Leonel Ribeiro dos Santos

Não se pense, porém, que fica assim desvalorizada ou facilitada a


função do tradutor. Bem pelo contrário. O humanista afirma a neces-
sidade de o tradutor ser fiel à linguagem, cultor da exactidão e próximo
da palavra e atento às particularidades das línguas, o que requer o cabal
conhecimento destas. Ao mesmo tempo que deve ser fiel à substância ou
matéria de que tratam as obras que traduz, o que implica que ele seja
igualmente um conhecedor dos assuntos em causa. Mas, por outro lado,
Vives defende a liberdade do tradutor e a ousadia deste para usar o seu
engenho natural e interferir criativamente na sua tradução, desde que seja
para potenciar o sentido. O que significa que, para o humanista, traduzir
não é uma operação meramente técnica ou algo que se possa completa-
mente subordinar a regras gerais, mas supõe o juízo criterioso e perti-
nente, que tenha em atenção a diversidade das situações, dos contextos,
dos assuntos.

Demos a palavra ao humanista, transcrevendo parte do capítulo XII


do livro III da citada obra, onde expõe a sua concepção da tradução:
«Tradução é a transferência das palavras de uma língua para outra, con-
servando o sentido. Em algumas destas atende-se somente ao sentido,
noutras somente à frase e à dicção – como se alguém tentasse traduzir
para outras línguas os discursos de Demóstenes ou de Marco Túlio, ou os
poemas de Homero e <Virgílio> Marão, mantendo completamente o seu
aspecto e a cor da expressão. Tentar isto seria próprio de um homem
pouco ciente de quão grande é a diversidade que existe nas línguas. Pois
não há nenhuma língua tão rica e variada que possa corresponder em
todas as coisas às figuras e às imagens de outra, mesmo que seja de uma
pouco eloquente.[...] O terceiro género [de tradução] é quando são tidas
em conta tanto as coisas como as palavras, ou seja, quando as palavras
aduzem força e graça ao sentido, e isso tanto isoladamente como unidas
em conjunto ou no todo da frase. Naquelas em que só se atende à razão
do sentido, devem as palavras interpretar-se livremente e desculpa-se o
tradutor que omitiu algo que não afectava o sentido ou que acrescentou
algo que auxilia o sentido. E as figuras e esquemas de uma língua não
devem exprimir-se noutra e muito menos as que são próprias do idioma.
Também não vejo que seja necessário admitir um solecismo ou barbarismo
para representar o sentido com um mesmo número de palavras, como o
fizeram alguns nas traduções de Aristóteles e das Sagradas Escrituras.»331

331 «Versio est a lingua in linguam verborum traductio sensu servato; harum in
quibusdam solus spectatur sensus, is aliis sola phrasis, et dictio, ut si quis tentaret
Demosthenis, aut Mar. Tullii orationes, aut Homeri vel Maronis carmen in alias
linguas transferre, facie illa et colore dicendi prorsum observato; quod experiri,
hominis esset parum intelligentis quanta sit in linguis diversitas, nulla est enim adeo
copiosa lingua et varia, quae possit per omnia respondere figuris et conformationibus
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 155

Vives segue e glosa a distinção proposta por S. Jerónimo entre tra-


dução ad verbum – a que busca a correspondência palavra a palavra –, a
tradução ad sententiam – que procura captar o sentido da frase, mesmo se
para tal se desista de traduzir palavra por palavra, e a tradução perfeita,
que seria aquela que conjugasse as duas anteriores, respeitando simulta-
neamente as palavras e o sentido. Mas o humanista sabe que esta última é
um ideal difícil de alcançar. Em todo o caso, considera que ser capaz de
apreender o sentido é mais importante do que saber verter palavra a pala-
vra. As palavras servem ou transportam um sentido, e um mesmo signifi-
cado ou significados próximos podem ser veiculados por palavras dife-
rentes de línguas diferentes. De resto, a correspondência nunca é perfeita
entre as línguas, o que significa que algo do potencial semântico de uma
língua pode não ser transposto para os vocábulos de uma outra. Daqui
resulta que toda a tradução é deficiente relativamente à obra original e
nunca a substitui adequadamente. Traduzir será então uma tarefa inútil?
Seria preferível não traduzir e, em vez disso, aceitar a absoluta incomu-
nicabilidade das línguas?
Para Vives, traduzir é útil e necessário. Mais, é um trabalho exigente e
verdadeiramente criador. Pois exige-se de quem o faz não só o perfeito
conhecimento linguístico (da língua de partida como da língua de chega-
da), como também o conhecimento (experiência e prática) dos assuntos ou
matérias que estão em causa (filosofia, medicina, ou qualquer outra arte ou
ciência). A tradução não é apenas uma questão de procurar a correspon-
dência mais ou menos feliz entre palavras de duas línguas, mas uma
correspondência entre palavras que, em última instância, se referem, perti-
nentemente ou não, a coisas. Por isso, o trabalho de tradutor não exige só a
competência linguística, mas requer também o conhecimento efectivo e a
prática nos diferentes domínios do saber e das artes sobre que versam os
escritos que se traduzem. Este conhecimento dos assuntos supre já por si
muitas das dificuldades da incomensurabildade das línguas, pois, desse
modo, o tradutor extrai o conhecimento e o sentido não apenas da língua a
partir da qual traduz mas também da sua experiência de pensamento ou da
sua competência específica numa dada arte. O trabalho de tradução torna-
-se assim verdadeiramente um trabalho de criação e, por isso, o humanista
valenciano pode apelar simultaneamente para a exigência de fidelidade e

etiam infantissimae... Tertium genus est, ubi et res et verba ponderantur, scilicet, ubi
vires et gratiam sensi adferunt verba, eaque vel singula, vel conjuncta, vel ipsa
universa oratione; in quibus sola habetur sensorum ratio, ea sunt interpretando libera,
et habetur venia quaedam vel ommitenti quae ad sensum non faciunt, vel addenti quae
sensum adjuvent; nec sunt figurae et schemata linguae unius in alteram exprimenda,
multo minus quae sunt ex idiomate; nec video quorsum pertineat soloecismum aut
barbarismum admittere, ut totidem verbis sensa repraesentes, quod fecerunt quidam in
Aristotele, et in sacris litteris.» Juan Luis Vives, De ratione dicendi, ed. cit., pp. 290-
-292.
156 Leonel Ribeiro dos Santos

proximidade à palavra e para o sentido da parcimoniosa liberdade e ousa-


dia do tradutor para, indo além do convencional, usar o seu próprio juízo e
critério em determinados contextos, exercendo o seu génio próprio.

Há aqui uma ultrapassagem do pressuposto humanista. Pois não é só


o entendimento do sentido que depende unilateralmente do entendimento
das palavras correctas, segundo o uso linguístico comum ou erudito, mas
também o entendimento das palavras e o ajuizar da sua correcção ou per-
tinência dependem da compreensão do sentido e do conhecimento efecti-
vo da realidade. Não se trata de um círculo vicioso, mas, num novo con-
texto, daquela mesma convicção que encontrámos em Ficino: não traduz
bem quem não interpreta bem.
Segundo Vives, a tradução de obras filosóficas é particularmente
exigente, pois, na medida do possível, nelas se deveria atender a todos os
aspectos: às palavras, ao sentido, aos tropos, figuras e ornamentos da
frase, conservando a força, o decoro e a graça da língua original. Admite
que o tradutor ouse de vez em quando conceder a cidadania a uma figura
peregrina ou a um tropo, quando não se afastam muito dos costumes e do
uso, ou que se necessário invente, com moderação e pertinência, palavras
a partir da língua primeira que venham enriquecer a segunda língua. Mas
o humanista recomenda o princípio enunciado por Trebizonda e que tam-
bém havia sido seguido por Ficino de não se tentar esclarecer com a tra-
dução o que no original é obscuro ou ambíguo, sobretudo nos escritos
sagrados e nos escritos filosóficos, onde o tradutor deve evitar interpor o
seu próprio juízo. Quanto ao estilo e ao aspecto estético e retórico da tra-
dução, eis a sua recomendação: «Deve seguir-se a frase do outro se nela
se adverte alguma força de interpretação [...]; mas se não for o caso,
segue-te a ti mesmo e deixa-te conduzir pela tua óptima natureza, desde
que correctamente instruída. Se podes, luta mesmo com o teu original e
traduz uma frase melhor do que a que recebeste, mais apta e apropriada
ao assunto e aos ouvintes; será melhor aquela que é mais apropriada e
vantajosa e não como fazem alguns que, induzidos por uma perversa vai-
dade de espírito, sobrecarregam uma dicção correcta, nítida e honesta
com tantos ornamentos de estilo que tornam pesado e penoso o que era
fácil e agradável. E que dizer daqueles que desfeiam a elegância e esplen-
dor da frase original com palavras e figuras obscuras, arrastadas, humil-
des, com uma excessiva afectação para mostrar a sua eloquência, sem
nenhum juízo acerca do que seja a natureza e a força de cada frase? Pen-
sam eles que a elocução será tanto mais agradável quanto mais contiver
vocábulos raros, exquisitos e antigos. Quanto mais exactamente tenhas
conservado a graça da frase e mais próximo da palavra a tenhas interpre-
tado, tanto mais preferível e mais excelente será a tua tradução, pois ela
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 157

exprime com mais verdade o seu original.»332


Eis o que pode considerar-se uma feliz súmula do pensamento huma-
nístico acerca da tradução: fidelidade à letra, fidelidade ao sentido, fideli-
dade ao estilo. Mas o triplo imperativo de fidelidade é gerido pelo engenho
e juízo do tradutor a quem cabe apreciar os contextos e, quando oportuno,
intervir com sensatez na elucidação do sentido do texto que traduz.

IV
PENSAR NA PRÓPRIA LÍNGUA,
OU A APOLOGIA DAS TRADUÇÕES EM LÍNGUAS VULGARES

Os humanistas fizeram da restauração e cultivo das línguas clássicas


parte essencial da sua estratégia de reforma cultural. Natural era que a
primazia coubesse ao Latim, língua cujo cultivo encontra o mais acér-
rimo defensor no humanista romano Lorenzo Valla, autor das Elegantiae
linguae latinae (1448). Nesta obra, Valla sustenta a tese, que será depois
repetida por muitos outros humanistas, segundo a qual da mesma forma
que a decadência da língua latina arrastou consigo a ruína e o naufrágio
de todas as artes e ciências, assim a sua restauração na antiga elegância –
isto é, a sua libertação das deformações que séculos de domínio bárbaro
de gauleses, teutões, godos e vândalos nela provocaram – seria natural-
mente seguida do florescimento de todas as ciências. Não se restaurava o
império, mas restaurava-se o que constituia, segundo Valla, a própria
essência de Roma – a sua língua (o magnum latini sermonis sacramen-
tum) –, que ela deu como lei a todo o mundo e que representa o mais
significativo do Império e o que sobreviveu à respectiva forma política e
administrativa, pois «o império romano está onde quer que domine a lín-
gua romana».333

332 «Oratio vel sequenda alterius, si in eo vertatur interpretationis vis aliqua [...]; sin
aliter, te ipsum sequitor, et naturam tuam optimam cuique ducem, modo recte
institutam; si potes contende etiam cum tuo exemplari, et meliorem, quam acceperas
orationem, reddito, hoc aptiorem et commodiorem rei atque auditoribus, nam hoc
demum melius, quod appositius, et conducibilius, non ut quidem prava animi vanitate
inducti faciunt, qui rectam, et nitidam, atque honestam dictionem ita calamistris
omnique cultu onerant, ut ex facili et grata gravem ac molestam reddant, quid illi qui
elegantiam atque splendorem prioris orationis foedant verbis, figurisque obscuris,
tractis, humilibus, immodica affectatione ostentandae facundiae, sine ullo judicio quae
sit cujusque orationis natura et vis? putant enim hoc fore dictionem praestantiorem, si
maxime rara, aut exquisita, aut antiquaria vocabula inferserint. Quo et gratiam
orationis servaris exactius, et propius fueris interpretatus ad verbum, hoc versio erit
potior ac praestabilior, nempe exemplar suum verius exprimens.» Ibidem, p. 236.
333 «Ibi namque romanum imperium est ubicumque romana lingua dominatur.» Lorenzo
Valla, Elegantiae linguae latinae (1448), Prefácio, in: E. Garin, Prosatori latini del
158 Leonel Ribeiro dos Santos

O programa do cultivo das línguas ampliar-se-á posteriormente ao


desiderato do humanista trilingue, que fosse capaz de haurir directamente
nas suas fontes as matrizes da cultura literário-retórica, filosófica e reli-
giosa da Antiguidade. Latim, Grego e Hebraico são, segundo escreve
Erasmo numa carta a Thomas Wolsey, de 18 de Maio de 1519, as «três
línguas sem as quais é coxa toda a doutrina».334
Já Ermolao Barbaro – ele próprio tradutor, do Grego para o Latim,
das Paráfrases a Aristóteles de Temístio e da Retórica de Aristóteles –
exortara o seu amigo Pico a estudar o Grego, pois, segundo diz, «não se
encontra obra importante que tenha sido escrita em língua latina por
alguém que desconhecesse as letras gregas».335 E, como vimos no início
deste ensaio, em meados do século XVI, Mario Nizolio, um convicto
representante do ideal humanista, quando este já se encontrava em fase
descendente, ainda enunciava como «primeiro princípio geral da verdade
e do correcto filosofar» o conhecimento das línguas grega e latina, nas
quais fora escrito e ensinado quase tudo o que era digno de ser sabido e
conhecido, sobretudo a respeito da filosofia, e particularmente da de
Aristóteles. Assim se desqualificavam as interpretações do pensamento
aristotélico que os Escolásticos medievais e renascentistas, ignorantes ou
com conhecimento muito imperfeito dessas línguas, haviam feito e
continuavam a fazer daquele que invocavam como seu patrono. «Desco-
nhecidas estas duas línguas, ou antes ignoradas ou não correctamente
percebidas, ninguém neste tempo pode filosofar correctamente ou proferir
juízo acerca de qualquer questão importante.»336 Na verdade, esta posi-
ção, levada ao limite, implicaria a negação do interesse de qualquer tra-
dução, a qual nunca pode substituir adequadamente a obra mesma. Nizo-
lio tem consciência de que profere o seu princípio numa circunstância
bem determinada, a qual é marcada por duas situações: o geral domínio
da filosofia grega e aristotélica na cultura escolar da época sob a forma
corrupta do pensamento escolástico e a generalização do Latim para a
sua transmissão escolar. Só os Gregos antigos, que falavam naturalmente
o Grego e praticavam uma filosofia ainda não corrompida, estariam
isentos da condição imposta pelo filósofo mantuano. Todos os outros só
podiam entrar na escola de verdadeira filosofia pela porta das duas lín-
guas clássicas. E não há que confiar nas traduções, pois, se as mais anti-

Quattrocento, Milano/Napoli, 1952, p. 596.


334 «Tres linguas, sine quibus manca est omnis doctrina.» Opus epistolarum Des. Erasmi
Roterodami, ed. P.S. Allen, H.M.Allen & H.W. Garrod, Oxford, 1906/58, vol. III, p. 588.
335 «Nullius latina lingua tot saeculis extare monumenta, qui litteris graecis caruerit.» E.
Barbaro, Epistolae, Orationes et Carmina, ed. crítica de V. Branca, Firenze, 1943, p. 86.
336 «His enim duabus linguis, vel prorsus ignoratis, vel non recte perceptis, nemo
quisquam hoc tempore recte philosophari aut de maiore ulla re iudicium ferre potest.»
Mario Nizolio, De veris principiis, t.I, 22.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 159

gas (dos medievais) são rudes e repugnantes, as mais recentes (as dos
humanistas, entre os quais cita expressamente Giovanni Argiropulo e
Pietro Alcionio), embora sejam mais eruditas e elegantes, nem sempre
captam adequadamente o pensamento dos autores. De resto, há nos escri-
tos dos filósofos gregos algo que nunca pode ser devidamente vertido
nem para o Latim nem para outra qualquer língua, devido quer a certas
particularidades gramaticais quer às potencialidades semânticas das pala-
vras gregas.337

Lendo hoje as contundentes páginas da obra de Nizolio podemos


fazer uma ideia do que terá significado a violência linguística sobre o
pensamento e a cultura dos séculos XV e XVI. 338 Mas, como toda a
violência, também esta não esteve livre de contestação e de resistência.
Já desde o último quartel do século XV se fazem ouvir recusas explícitas
desse preconceito erigido em princípio pelos humanistas. Destacarei, em
primeiro lugar, a de Pico della Mirandola, na sua já citada carta de res-
posta a Ermolao Barbaro. Escreve o jovem filósofo, atacando o axioma
que, pelo menos desde as Elegantiae de Valla, fazia parte do credo dos
humanistas: «Examinemos que coisa seja essa latinidade que dizeis con-
vir aos filósofos e que eles não satisfazem. Se, por exemplo, ocorre dizer
que o homem ‘é gerado’ pelo Sol, os nossos dirão que ‘é causado’. De
imediato clamareis «isto não é Latim», e isso é verdade; ‘não é dito à
maneira dos Romanos’, e isso é ainda mais verdade, mas errado é con-
cluir que ‘por conseguinte não é correcto’. Pois um árabe ou um egípcio
dizem a mesma coisa; mas não a dizem latinamente e todavia dizem-na
correctamente. Os nomes são impostos às coisas por convenção ou por
natureza. Mas se o são por convenção [...], o que é que pode proibir estes
filósofos, a que chamais bárbaros, de se porem de acordo acerca de uma
norma linguística que para eles não é menos sagrada do que é para vós a
Romana? Não há nenhuma razão para que não a considereis correcta e

337 Ibidem, pp. 22-23: «... in scriptis graecis plurima sunt, quae nequaquam sequuntur
vertentes ex graeco in latinum, aut aliam quamvis linguam, ut articuli Graecorum,
quibus caret sermo latinus, et multae aliae voces, quarum significationes et potestates
perfecte transferri posse non videntur.»
338 Para uma contextualização geral do problema, veja-se: Sarah Stever Gravelle, «The
Latin-vernacular Theory of Language and Culture», in: W.J. Connell (ed.), Renais-
sance Essays, II, University of Rochester Press, 1993, pp. 110-129; Paul-Oskar
Kristeller, «The Origin and Development of the Language of Italian Prose», in Idem,
Renaissance Thought, II, New York, 1965; Idem, «Italian and Vernacular in
Fourthenth- and Fifteenth-Century Italy», Journal of the Rocky Montain Medieval and
Renaissance Association 6 (1985), pp. 106-126; Carlo Dionisotti, Gli umanisti e il
volgare fra quattro e cinquecento, Firenze, 1968; R. Fubini, «La coscienza del latino
negli umanisti: An latina lingua Romanorum esset peculiare idioma», Studi medievali,
s.2, nº 2 (1961), pp. 505-550.
160 Leonel Ribeiro dos Santos

considereis a vossa, se é verdade que a imposição dos nomes é comple-


tamente arbitrária [...]. Quando eles falam convosco, muitas vezes apete-
ce-lhes rir e muitas coisas não as entendem. O mesmo vos acontece a vós
quando falais com eles. Anacarsis incorre em solecismos entre os Ate-
nienses, e os Atenienses fazem outro tanto entre os Citas. Mas se a cor-
recção dos nomes depende da natureza das coisas, quem devemos con-
sultar a respeito dessa correcção, os retores ou os filósofos, se só estes
indagaram a natureza de todas as coisas e dela possuem o conhecimento?
Pode acontecer que aquelas palavras que os ouvidos rejeitam como sendo
ásperas, a razão as aceite como sendo as mais afins das coisas.»339
Também Vives, no seu De disciplinis (1531), defenderá, expres-
samente contra Valla, a ideia de que qualquer língua, mesmo a mais vul-
gar, é capaz de exprimir não só a ciência como a eloquência, pois esta
depende mais da substância e força do próprio pensamento do que do
idioma em que este se diz. O humanista valenciano remata a sua reflexão
com estas palavras: «Por certo, ninguém deve amar ou aprovar a impureza
e os vícios da linguagem [...]; mas, se for dado escolher, quem não prefere
uma linguagem desajeitada e sem ornamentos acerca de coisas grandes e
excelentes, a outra muito adornada e penteada acerca de frivolidades?»340
No De ratione dicendi (1532), o mesmo tópico é ainda mais desenvolvido,
em termos que evocam os da carta de Pico a Barbaro: «A filosofia é uma
ciência toda de coisas e não de palavras, e é muito mais tolerável que o
filósofo peque contra as palavras do que contra a verdade; melhor e mais
verdadeiro filósofo é aquele que exprime coisas belas e elegantes num

339 «Sed amabo incognoscamus quid isthaec sit Latinitas, quam solam dicitis debere
philosophos et non persoluere. Si dicendo incurrat exempli causa à sole hominem
produci, causari hominem nostrates dicent. Clamabis actutum hoc non est Latinum,
huc usque uerè, non est Romane dictum: hoc uero uerius, igitur non rectè peccat
argumentum: Dicet Arabs eandem rem, dicet Aegyptius, non dicent Latinè, sed tamen
rectè. Aut enim nomina rerum arbitrio constant, aut natura. Si fortuito positu, ut scilicet
communione hominum in eandem sententiam conueniente, quo sanxerint unum-
quodque nomine appellari, ita apud eos rectè appelletur. Quid prohibet hosce philoso-
phos quos nuncupatis barbaros, conspirasse in unam dicendi normam, apud eos non
secus sanctam ac habeantur apud uos Romana, illam cur rectam non appelletis, appel-
letis uestram, nulla est ratio. Si haec impositio nominum tota est arbitraria, quod si
dignari illam Romani nominis appellatione non uultis, Gallicam uocetis, Britannicam,
Hispanam, uel quod uulgares dicere solent Parisiensem. Cum ad uos loquentur, contin-
get eos pleraque rideri, pleraque non intelligi, idem accidit uobis apud eos loquentibus.
[...] Anacharsis apud Athenienses soloecismum facit, Athenienses apud Scythas. Quòd
si nominum rectitudo pendet ex natura rerum, debemus ne rhetores an philosophos qui
rerum omnium naturam soli perspectam habent et exploratam de hac rectitudine
consulere? fortè quae aures respuunt, utpote asperula, acceptat ratio, utpote rebus
cognatiore.» Opera omnia, ed. cit., vol. I, pp. 356-357.
340 «Equidem sordes, et vitia sermonis nemo vel amare debet vel probare...; sed, certe, si
detur optio, quis non malit multo immundum, spurcumque magis de rebus atque exce-
lentibus sermonem, quam de nugis comptissimum atque ornatissimum?» Ed. cit., p. 180.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 161

discurso pobre do que aquele que profere coisas falsas e bagatelas de modo
esplêndido e magnífico. Quem não tolerará uma boa sentença dita em
Francês, Espanhol, Alemão ou mesmo Cita? E se se tolera nestas línguas,
porque não se há-de tolerar também num Latim defeituoso?»341
Estas palavras de Vives dão suporte teórico a um processo já irrever-
sível e em curso ao longo de todo o século XVI, o qual se traduzirá na
relativização do estatuto de privilégio das línguas clássicas como línguas
da cultura superior e sobretudo na progressiva afirmação da dignidade
das línguas vulgares e da capacidade destas não só para tratarem os
assuntos humanos comuns, mas também para exprimirem o pensamento,
a ciência e a filosofia.
A este propósito, refira-se um outro testemunho, bastante menos
conhecido mas que me parece particularmente significativo, não só por-
que surge no contexto de uma apologia da dignidade das línguas vulga-
res, mas porque é posto na boca de um dos mais importantes filósofos
renascentistas da primeira metade do século XVI, Pietro Pomponazzi,
apresentado, sem dúvida intencionalmente, como alguém que não se
destacava pela especial competência linguística, a não ser no seu dialecto
mantuano. Esse testemunho encontra-se no Dialogo delle lingue (1542),
da autoria de Sperone Speroni, que havia sido aluno de Pomponazzi em
Bolonha. Esta obra inscreve-se no amplo debate acerca da dignidade das
línguas vulgares, que vinha já desde o fim da Idade Média e se prolonga
com cada vez maior intensidade por todo o século XVI.342 Se em
341 «Philosophia enim omnis, ars est rerum, non vocum, et tolerabilius est philosophum
peccare in verbo, quam in veritate; melior scilicet ac verior philosophus est, qui
sordida oratione res pulchras atque elegantes promit, quam contra, qui vel falsa, vel
nugas projicit splendide ac magnifice; bonam sententiam quis non ferat vel Gallice, vel
Hispane, vel Germanice, vel etiam Scythice prolatam; si his linguis, cur non etiam
Latine imperite?». Juan Luis Vives, De ratione dicendi, lib. III, cap. VIII, ed. Hidalgo
Serna, Anthropos, Barcelona, p. 280.
342 Para além do antecedente medieval que é o De vulgari eloquentia, de Dante, refiram-
-se, entre outros escritos do género, o (perdido) Della volgar poesia, de Vincenzo Colli
(1460-1508), o Discorso o Dialogo intorno alla nostra lingua (1515), de Maquiavel, e a
Deffence et illustration de la langue françoyse (1549), de Joachim Du Bellay. O debate
encontra eco também em Pierre Ronsard, o qual termina o seu poema «L’excellence de
l’esprit de l’homme», escrito como prefácio para a tradução francesa de Tito Lívio por
Hamelin (1559), com uma vigorosa apologia da tradução para o vernáculo, nestes termos:
«Si tous les bons auteurs de Rome et de la Grece
Etaient ainsi traduits, la françoyse jeunesse
Sans tant se travailler à comprendre des mots
Comme des perroquets en une cage enclos
Apprendraient la science en leur propre langage.
Le langage des Grecs ne vaut pas davantage
Que celuy des Françoys ; le mot ne sert de rien
La science fait tout, qui se dit aussi bien
En françoys qu’en latin, notre langue commune.
Les mots sont differents, mais la chose est toute une.»
162 Leonel Ribeiro dos Santos

algumas dessas obras, como na Prose della volgar lingua de Pietro


Bembo (1525), se nota ainda o esforço por conciliar a crescente
consciência das potencialidades e dignidade das línguas vulgares com o
pressuposto humanístico do primado das línguas clássicas, já a obra de
Speroni se apresenta como uma declarada apologia da língua vulgar e
como uma explícita recusa e superação do preconceito dos humanistas
quanto à excelência das línguas clássicas e às vantagens do seu estudo.
Na última parte do diálogo, o autor faz intervir Pomponazzi,
apresentando-o como alguém «que não sabia nenhuma língua, além do
dialecto mantuano» (il quale avvegnachè niuna lingua sapesse dalla
mantovana in fuori).343 Um outro participante no diálogo, Lascaris, visita
o filósofo mantuano e encontra-o a ler os Meteoros de Aristóteles,
socorrendo-se do respectivo comentário de Alexandre de Afrodísia. O
visitante comenta: «Fizestes boa escolha, pois Alexandre é Aristóteles
depois de Aristóteles: Mas eu não imaginava que soubésseis Grego.» Ao
que o filósofo responde que o lê em Latim e não em Grego,
escandalizando com isso o seu visitante, o qual considera que o seu
interlocutor pouco fruto pode colher da leitura duma obra feita não sobre
o original mas sobre uma tradução latina. Entabula-se então um longo e
muito interessante debate, em que os dois interlocutores expõem as suas
respectivas posições e as fundamentam. Lascaris defende a posição
consentânea com os pressupostos dos humanistas: só se pode colher o
genuíno pensamento dos filósofos antigos se estes forem lidos na sua
língua, pois nem todas as línguas são igualmente aptas para exprimir o
pensamento. Pomponazzi (Peretto), por seu lado, defende uma posição
que choca directamente com aqueles pressupostos e fá-lo em nome da
autenticidade do pensamento e da sua acessibilidade ao maior número de
pessoas. Do que não só decorre a ideia de que qualquer língua ou mesmo
qualquer dialecto é uma língua de pensamento, como se depreende ainda
a enorme vantagem que representa para a filosofia de se empreender a
sistemática tradução das obras dos filósofos antigos para o maior número
possível de línguas vulgares. Sigamos alguns passos do diálogo.
Lasc. Eu considero Alexandre de Afrodísia, grego como é, tão dife-
rente de si mesmo quando vertido em Latim, como diferente é um vivo
dum morto.
Per. Isso até poderia ser verdade, mas a mim não me faria diferen-
ça. Antes pensava que tanto me podia ajudar a lição latina, e vulgar, se

P. Ronsard, Le Second Livre des Poemes, Oeuvres Complètes, Gallimard, Paris, II,
p. 840.
343 Sperone Speroni, Dialogo delle lingue (1542), ed. e introd. de Helene Harth, W. Fink
Verlag, München, 1975, p. 110. As passagens da obra, que adiante transcrevemos em
tradução, encontram-se entre as páginas 110 e 129 da edição citada.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 163

em vulgar se encontrasse Alexandre, quanto aos gregos a grega; e foi


com esta esperança que comecei a estudá-lo.
Lasc. É verdade que é melhor que o tenhais em Latim do que não tê-
-lo de todo; mas por certo a vossa doutrina seria o dobro e maior e
melhor do que é, se Aristóteles e Alexandre fossem por vós lidos naquela
língua na qual um escreveu e o outro o expôs.
Per. Por que razão?
Lasc. Porque mais facilmente e com maior elegância de palavras
são expressos por ele os seus conceitos na sua língua do que na de outro.
Per. Isso seria talvez verdade se eu fosse grego, como por nasci-
mento o foi Aristóteles. Mas que um homem lombardo estude Grego para
poder tornar-se mais facilmente filósofo, parece-me coisa não razoável,
e até mesmo desrazoável; não se diminuindo, mas duplicando-se o esfor-
ço: pois melhor e mais cedo pode estudar o aluno Lógica apenas ou ape-
nas Filosofia, do que aplicando-se à Gramática, especialmente à grega.

O interlocutor percebeu a ideia e retorque levando-a ao extremo,


visando com isso que o seu parceiro recue:

Lasc. Por esta mesma razão não deveríeis estudar nem Latim nem
Grego, mas somente a língua vulgar mantuana, e com ela filosofar.

Mas Pomponazzi não só não recua, como confirma com vigor e


convicção a sua tese:

Per. Deus queira que, para serviço de quem vier depois de mim,
alguma douta e piedosa pessoa se desse ao trabalho de verter para vul-
gar todos os livros de qualquer ciência, sejam os gregos, os latinos e os
hebraicos. Talvez os bons filosofantes fossem então em número muito
maior do que o são nos nossos dias e a sua excelência tornar-se-ia muito
mais rara.
Lasc. Ou não vos entendo ou falais com ironia.
Per. Falo assim para dizer a verdade, e como homem movido pela
honra dos italianos. Pois se a injúria dos nossos tempos, tanto presentes
como passados, quer privar-me desta graça, Deus me guarde que eu seja
tão cheio de inveja que deseje privar disso quem nascer depois de mim.

Segue-se uma observação do filósofo acerca da vantagem dos


modernos sobre os antigos, o que contraria o princípio humanista da
excelência dos antigos que, por isso, devem ser incondicional objecto de
imitação. Pomponazzi tem uma atitude optimista relativamente aos
homens do seu tempo, pois a natureza humana, continuando a ser a
mesma que era no tempo de Aristóteles, pode ainda, tal como outrora,
fazer nascer homens capazes de avançar no verdadeiro conhecimento da
164 Leonel Ribeiro dos Santos

natureza. Se há aspecto negativo na cultura da época, esse é precisamente


a subserviência em relação aos antigos, praticada pelos humanistas, a
qual impede os homens de desenvolverem o seu natural talento. E essa
subserviência começa logo na aprendizagem de línguas estranhas, nas
quais se perde o tempo que se poderia com muito mais lucro gastar para
pensar e fazer ciência na própria língua natural de cada qual. Na conti-
nuação, Peretto vai rebater um a um todos os pressupostos dos humanis-
tas: o da imprescindibilidade do conhecimento das línguas clássicas para
filosofar; o da vantagem e privilégio de certas línguas sobre outras como
línguas de ciência, de conhecimento, de cultura superior; a dependência
do pensamento relativamente às línguas («língua alguma do mundo, seja
qual for, possui por si mesma o privilégio de significar os conceitos do
nosso espírito»); a preocupação com a forma e a elegância retórica em
prejuízo da razão, do conteúdo e substância do pensamento (falando de
Aristóteles, diz: «pouco me importaria da elegância da sua frase se os
seus livros fossem escritos sem razão»). No fundo, porém, o Pomponazzi
de Speroni atinge os dois vícios sobre que se instala a cultura dos huma-
nistas: ela é uma cultura de línguas e de palavras, mas não de realidades e
de genuíno pensamento; é uma cultura de elites estéreis e incapazes de
pensar por si mesmas, que, ao imporem o conhecimento de línguas estra-
nhas como condição absolutamente necessária para a filosofia, sonegam
o benefício da cultura e do pensamento aos homens comuns e acabam
assim por impedir a prática efectiva da filosofia, a qual se vê substituída
por um arrogante saber de línguas e por uma erudita imitação literária. É
em nome da autenticidade do pensamento e da verdadeira filosofia que
Pomponazzi defende a generalizada tradução das obras filosóficas dos
gregos, nomeadamente as de Aristóteles, não já apenas para o Latim, mas
para o Italiano e para todas as demais línguas vulgares, de modo a torná-
-las acessíveis à plebe, que assim seria estimulada para o pensamento.
Devolvamos a palavra ao Senhor Peretto (Pomponazzi).

Per. Sofro com a mísera condição destes tempos modernos, nos


quais se estuda não para ser mas para parecer sábio. Havendo uma só
via de razão em qualquer linguagem que seja ela pode conduzir ao
conhecimento da verdade, mas deixamo-la de lado e metemo-nos por
uma via que tanto se afasta do nosso fim como, segundo a opinião de
alguns, nos parece conduzir à sua proximidade. E assim cremos saber
alguma coisa, quando sem conhecer a natureza dela podemos dizer de
que modo a descrevia Cícero, Plínio, Lucrécio, e Virgílio entre os escri-
tores latinos; e entre os gregos Platão, Aristóteles, Demóstenes e Ésqui-
lo. É das meras palavras destes autores que os homens desta época
fazem as suas artes e ciências, de tal modo que dizer língua grega e
latina parece dizer língua divina e que só a língua vulgar seja uma lín-
gua inculta, privada de todo o discurso do intelecto, talvez não por outra
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 165

razão a não ser por esta, que desde crianças e sem estudo a aprendemos,
ao passo que aquelas outras só com muito esforço nos aplicamos como a
línguas que julgamos convir mais com as doutrinas [...] Esta insensata
opinião está de tal modo arreigada nas almas dos mortais que há muitos
que querem fazer crer que para tornar-se filósofo lhes basta saber escre-
ver e ler grego sem mais: como se o espírito de Aristóteles estivesse
encerrado no alfabeto da Grécia como um diabinho num frasco e junta-
mente com ele fosse constrangido a entrar no intelecto dos homens para
fazê-los profetas. Nos meus dias já vi muitos tão arrogantes, totalmente
privados de qualquer ciência e confiados apenas no conhecimento da
língua, que tiveram a ousadia de expôr publicamente os livros de Aris-
tóteles do mesmo modo que expõem os outros livros de humanidades.
Esses considerariam obra perdida verter para o vulgar as doutrinas da
Grécia, tanto pela indignidade da língua como pela estreiteza dos limites
dentro dos quais com a sua linguagem está circunscrita a Itália, conside-
rando vã a tarefa de escrever e de falar de um modo que não seja enten-
dido pelos estudiosos de todo o mundo. Mas o que não foi visto por mim
espero que possam vê-lo algum dia os que nascerem depois de mim, e a
tempo de que as pessoas mais doutas mas menos ambiciosas do que as
presentes sejam dignas de ser louvadas na sua pátria, sem cuidar de
saber se a Magna Grécia ou outro país estranho reverencia os seus
nomes. Pois se a forma das palavras nas quais os futuros filósofos pen-
sarem e escreverem as ciências fosse comum à plebe, então seria próprio
dos amantes e estudiosos das doutrinas o entendimento e o sentido
daquelas palavras, entendimento e sentido que residem não nas línguas
mas nos ânimos dos mortais.»

No diálogo de Speroni, Pomponazzi condena a alienação linguística


porque ela produz a alienação do pensamento. Quem não pensa na pró-
pria língua, também não tem pensamento verdadeiramente próprio. Mas,
ao limite, a língua pouco importa. O que realmente importa é o sentido
ou o conteúdo racional do pensamento, o qual pode dar-se mesmo numa
língua pouco nobre ou deficiente, e até num dialecto plebeu. No que res-
peita à filosofia da linguagem, o Pomponazzi do diálogo de Speroni fala
na mesma linha da carta de Pico a Barbaro e das reservas de Vives ao
latinismo ou romanismo de Valla e está muito mais próximo dos pres-
supostos dos escolásticos do que dos axiomas dos humanistas. Por outro
lado, ao defender a causa das línguas vulgares contra as línguas clássicas,
o filósofo mantuano não estava só e cada vez teria mais adeptos, mesmo
entre os filósofos, à medida que se avançava no século XVI.
E só para referir um último testemunho, seja ainda este, um pouco
mais tardio, colhido nos diálogos filosóficos de Bruno, escritos também
eles em língua vulgar. Um dos interlocutores, depois de responder afir-
166 Leonel Ribeiro dos Santos

mativamente à pergunta se «todos aqueles que entendem a língua italiana


compreendem a filosofia do Nolano» (não necessitando, portanto, de
saber as línguas clássicas), logo prossegue dizendo que «qualquer um
que não sabe Grego pode entender todo o sentido de Aristóteles [...]; e
alguém que não sabe nem Grego, nem Árabe, e talvez nem Latim, como
o Paracelso, pode ter conhecido melhor a natureza dos medicamentos e a
medicina do que Galeno, Avicena e todos os que se fazem ouvir com a
língua romana. As filosofias e as leis não vão à ruína por penúria de
intérpretes de palavras, mas por penúria daqueles que aprofundam os
pensamentos.»344
Bruno antepõe o pensamento efectivo e o conhecimento da natureza
mesma das coisas ao cultivo erudito e estéril das línguas clássicas e pre-
fere aqueles que são capazes de interpretar o sentido e o pensamento aos
que são meros intérpretes de palavras. A língua é o veículo e o ministro
do sentido e do pensamento, mas não vale por si mesma. O conhecimento
das línguas clássicas, ao contrário do que defendia Nizolio, não é garan-
tia suficiente e nem sequer condição absolutamente necessária para se ter
acesso directo à inteligência das coisas e para a correcta interpretação dos
pensadores antigos. Também a filosofia bruniana se dirige a pensadores
que não alienaram a sua capacidade de pensar na sua própria língua, não
a eruditos gramáticos de línguas estranhas ou a meros comentadores e
repetidores de pensamentos alheios.

V
CONCLUSÕES

É tempo de pôr fim a este já longo ensaio e de fazer um balanço


retrospectivo das evidências que se impuseram no percurso que fizemos.
O período do Renascimento apresenta uma enorme diversidade de
concepções e de práticas de tradução, mesmo que consideremos apenas o
estrito domínio das traduções de obras filosóficas. Essa diversidade

344 «GERV.- Dunque, tutti que’ che intendono la lingua italiana, comprenderano la
filosofia del Nolano? POL.- Sí [...] GERV.- Alcun tempo io pensava che questa
prattica [la conosceza delle lingue ] fusse il principale: perché un che non sa greco, può
intender tutto il senso d’Aristotele e conoscere molti errori in quello (...); ed uno che
non su né di greco, né di arabico, e forse né di latino, come il Paracelso, può aver
meglio conosciuta la natura di medicamenti e medicina che Galeno, Avicenna e tutti
che si fanno udir con la lingua romana. Le filosofie e leggi non vanno in perdizione per
penuria d’interpreti di paroli, ma di que’ che profondano ne’ sentimenti.» Giordano
Bruno, De la causa, principio e uno, dialogo terzo, ed. a cura de A. Guzzo, Mursia,
Milano, 1985, pp. 126-127.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 167

decorre não só da natureza dos assuntos e do teor das obras, mas também
da diversidade de concepções filosóficas acerca da natureza da verdade,
da linguagem, da relação entre a linguagem, o pensamento e a realidade.
Mas em que consiste uma boa tradução e como garanti-la? Esta questão
não tem uma resposta simples da parte dos pensadores e tradutores dos
séculos XV e XVI.
Para os escolásticos, uma tradução até pode ser linguística e retori-
camente imperfeita ou deficiente. O que importa é que ela dê conta do
conteúdo racional de uma obra ou do pensamento de um autor e ponha o
leitor em marcha no sentido de pensar adequadamente o que deve ser
pensado: a realidade mesma indicada pela palavra. E para isto valem as
regras da Lógica que ensinam a pensar correctamente, e não tanto as da
Gramática e ainda menos as da Retórica que ensinam a expressão cor-
recta e eloquente. É a verdade lógica e não a verdade linguístico-retórica
o que interessa ao tradutor, segundo esta perspectiva, que está longe de
ter sido protagonizada apenas pelos pensadores escolásticos, mas se pode
encontrar, de uma forma mais ou menos denunciada, em todos aqueles
pensadores que privilegiam o pensamento e secundarizam a sua expres-
são linguística e retórica. Disso há sobejos exemplos não só entre os
modernos como também entre os contemporâneos. Também o Pompo-
nazzi de Speroni está mais na linha dos escolásticos e de Alonso de Car-
tagena do que dos humanistas.
Para os humanistas, para Bruni nomeadamente, a tradução pode e
deve ser perfeita e correcta. Em momento algum o humanista deixa
transparecer a dúvida quanto à possibilidade de verter correctamente uma
língua na outra, mesmo que tenha consciência de algumas particularida-
des que podem tornar a empresa mais árdua. É, por certo, difícil conse-
guir a perfeita adequação de uma língua à outra, mas não é impossível,
desde que o tradutor esteja munido dum perfeito conhecimento das lín-
guas envolvidas e tenha um perfeito domínio das virtualidades da lingua-
gem. Por certo, o horizonte linguístico visado por Bruni é muito limitado,
pois apenas se refere ao Grego e ao Latim, línguas que são apesar de tudo
muito próximas. Para o Aretino, como para a generalidade dos humanis-
tas, a verdade da tradução é antes de mais definida pela correcção lin-
guística, gramatical e retórica e é insensato pretender alcançar a suposta
verdade do pensamento ou o seu conteúdo lógico-metafísico (a sua ade-
quação à realidade) sem garantir a correcta compreensão da linguagem
em que ele se exprime, pois esta não é algo acessório, mas faz parte da
substância do pensamento e da realidade que por ela se diz.
Para um neoplatónico imbuído de hermetismo, como Ficino, não
pode o tradutor ter a convicção de que alguma vez alcançou a tradução
absolutamente perfeita. Ou seja, o conteúdo de verdade de uma obra é
inesgotável e inapreensível de modo absoluto e de uma vez por todas,
168 Leonel Ribeiro dos Santos

mesmo pelo mais perfeito dos tradutores ou intérpretes. O perfeito


conhecimento das línguas e mesmo o da tradição de leitura e interpreta-
ção da obra, são necessários mas não ainda suficientes para assegurar a
boa tradução, requerendo-se uma espécie de congenialidade com o autor
ou uma espécie de inspiração superior que garanta uma intimidade essen-
cial com o pensamento do autor que se traduz. O resultado é uma espécie
de nova criação da obra, sendo o tradutor quase um novo autor, na precisa
medida em que se propõe ser apenas o mais fiel possível à obra e pensa-
mento originais. Numa concepção expressionista da verdade, a tradução
faz parte da própria verdade e do processo da sua multiplicada manifesta-
ção, e por isso o tradutor deve ter em conta as grandes interpretações de
uma obra ou de uma filosofia. Assim merece que também a sua própria
interpretação seja requerida para a tradição das interpretações relevantes
da obra, ou seja, para a história da obra mesma.
Para Juan Luis Vives, também não há tradução perfeita, como pen-
sava Bruni, mas não porque a verdade seja inacessível no mesmo sentido
em que o manifestava Ficino. E sim, em primeiro lugar, porque existe
uma incomensurabilidade entre as línguas e a própria realidade das coi-
sas: aquelas são sempre finitas e limitadas, ao passo que a realidade é
inesgotável e infinita na sua expressão e manifestação e pode haver
aspectos ou dimensões dela a respeito dos quais ainda não houve expe-
riência e tradução linguística em qualquer língua. Mas, em segundo
lugar, também não pode haver tradução perfeita de uma língua para a
outra porque as línguas são incomensuráveis entre si e cada uma tem
particularidades ou virtualidades que não se encontram nas outras. Há,
por isso, sempre algo de residual que, numa tradução, por mais perfeita
que seja, não passa ou não pode mesmo passar de uma língua para a
outra. Isto vale para aquelas línguas que são próximas e da mesma famí-
lia, como é o caso do Latim e do Grego, mas é ainda mais verdadeiro
para línguas que pertençam a diferentes famílias ou matrizes linguísticas.
As particularidades são, antes de mais, de natureza linguística, mas estas
podem indicar também diferentes modos de apreeensão da realidade,
diferentes modos de ver o mundo, diferentes ontologias.
Em suma, na impossibilidade de uma tradução absolutamente perfei-
ta, a mais perfeita seria aquela que conjugasse a correcção linguística e
retórica, a fidelidade ao conteúdo de pensamento, garantido este não ape-
nas pela observância seca das leis da Lógica, mas também por uma apro-
priação congenial do pensamento do autor, a qual, todavia, se mantenha
fiel à sua letra e literariedade. Por conseguinte, uma aliança dos pres-
supostos linguísticos e retóricos de Bruni com a íntima apropriação pro-
posta por Ficino e o cuidado de evitar que a tradução seja apenas de pala-
vras sem conteúdo, como, inversamente, de evitar a pretensão de colher o
conteúdo do pensamento sem a mediação ou mesmo com o desprezo das
palavras e da forma literária em que os filósofos o expuseram. Nem pala-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 169

vras sem conteúdo, nem conteúdo sem palavras; nem a doctrina sem o
ornatus verborum, nem o ornatus sem a doctrina rerum; nem a densi-
dade das coisas sem a elegância das palavras, nem a elegância das pala-
vras sem as coisas. Sendo assim, pode realmente dizer-se, e com muito
mais razões do que as que foram apontadas por Leonardo Bruni, que a
tradução correcta é verdadeiramente uma tarefa verdadeiramente tão
importante quanto difícil.
Nos pensadores dos séculos XV e XVI encontra-se uma vastíssima
prática de tradução filosófica e uma diversificada reflexão sobre os pres-
supostos e os limites de toda a tradução. Aparentemente, essa reflexão
oscila entre dois extremos antagónicos: por um lado, a afirmação da
impossibilidade de traduzir completamente, o que levava ao culto selecto
do original e a conceder o privilégio e autoridade apenas àqueles que a
ele têm acesso. Esta posição está bem protagonizada na sua forma radi-
calizada por Mario Nizolio. Por outro lado, temos a provocadora pro-
posta da tradução generalizada, assente no pressuposto da idêntica digni-
dade originária de todas as línguas e da respectiva condição subordinada
enquanto servidoras do sentido, do pensamento, da realidade, tese que se
depreende com toda a clareza do Diálogo sobre as línguas de Speroni.
Multiplicar a tradução duma obra no maior número de línguas vulgares
possível é multiplicar o seu sentido e proporcionar a mais vasta expres-
são das suas virtualidades, ao mesmo tempo que assim se oferece a um
maior número de pessoas a possibilidade de exercerem o próprio pensa-
mento em diálogo com o pensamento de outros.
O Renascimento viveu como poucas épocas a mitologia das fontes,
das revelações primigénias, das obras originais dos autores antigos e da
sua intraduzibilidade ou, antes, da inesgotabilidade do seu sentido. Em
graus de intensidade diversa e por razões diferentes comungaram dessa
mitologia quer os humanistas mais imbuídos da tradição retórica, quer os
filósofos mais impregnados pelas correntes do hermetismo e do neopla-
tonismo, quer até os escolásticos que sempre acusaram o défice da lin-
guagem frente ao pensamento e à realidade. A verdade, a realidade, o
sentido não são dados em propriedade definitiva a nenhum dos humanos.
Como o dizia o jovem Pico della Mirandola, no que poderá ter sido a
primeira versão do seu famoso Discurso sobre a dignidade do Homem,
«não houve ninguém no passado nem haverá depois de nós a quem seja
dado compreender toda a verdade, pois a sua imensidão é maior do que
alcança a capacidade humana.»345 A verdade, a realidade, o sentido e até
a obra original são inesgotáveis e, por isso, a sua tradução, a sua interpre-
345 «Nemo aut fuit olim aut post nos erit cui se totam dederit veritas comprehendendam.
Maior illius immensitas quam ut par sit ei humana capacitas.» Eugenio Garin, «La
prima redazione dell’ Oratio de Hominis Dignitate», Idem, La Cultura Filosofica del
Rinascimento Italiano, Ricerche e Documenti, Bompiani, Milano, 1994, p. 239.
170 Leonel Ribeiro dos Santos

tação, a sua expressão na linguagem e nas línguas humanas só pode ser


uma tarefa nunca acabada.
IV

COLUCCIO SALUTATI
E O PARADIGMA FILOSÓFICO DO HUMANISMO

«... Plus igitur humanitatis importatur verbo quam commu-


niter cogitetur. Optimi quidem auctorum, tam Cicero quam
alii plures, hoc vocabulo pro doctrina moralique scientia
usi sunt.»
C. Salutati, Epistolario, III, 536
172 Leonel Ribeiro dos Santos

SINOPSE

O Humanismo dos séculos XIV a XVI tem sido objecto de diversas


interpretações no que concerne ao seu significado histórico-filosófico.
Visto por uns como um movimento essencialmente estético-literário,
confinado à restauração e imitação dos modelos da Antiguidade clássica
latina e grega; valorizado por outros como um movimento pedagógico-
-cultural que teve por núcleo o desenvolvimento das disciplinas do tri-
vium medieval autonomizadas como studia humanitatis346; ou
interpretado como emergência do reconhecimento da importância
antropológica e mesmo ontológica da linguagem347 e, por conseguinte,
das disciplinas que dela se ocupam, nisso revelando profundas analogias
com as preocupações filosóficas contemporâneas, dominadas também
elas pelo linguistic turn e mesmo já, segundo alguns, por uma «inflação
da linguagem». Na sua história de mais de dois séculos, o Humanismo
consente por certo todas estas e outras interpretações, sendo difícil
sustentar que alguma delas em exclusivo traduza toda a riqueza desse
movimento, cujos representantes, mesmo que não tivessem sempre uma
declarada intenção filosófica, não eram por isso completamente
desprovidos de preocupações filosóficas.348

346 Esta vertente interpretativa tem sido protagonizada sobretudo por Paul Oskar
Kristeller. Veja-se, entre as numerosas versões da sua tese: «Humanism», in Charles B.
Schmitt / Quentin Skinner (eds.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy,
Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 113-137.
A atribuição ou não do carácter filosófico ao Humanismo depende da noção que se tenha
de filosofia, a qual pode ser mais lata ou mais estreita. Os humanistas tinham da filosofia
uma noção própria, embora nem sempre absolutamente elaborada, que apontava simulta-
neamente para a recuperação da dimensão prática (ético-política) e retórica no sentido da
sapientia eloquente dos pensadores romanos, nomeadamente de Cícero. Veja-se, sobre
este ponto: Cesare Vasoli, «The Renaissance Concept of Philosophy», in: Charles B.
Schmitt / Q. Skinner (eds.), The Cambridge History of Renaissance Philosophy,
Cambridge University Press, Cambridge, 1988, pp. 57-74. Veja-se também Eugenio
Garin, L’umanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento, Laterza, Roma-
-Bari, 1994 (1ª ed.: Der italienische Humanismus, Verlag A. Francke A.G., Bern, 1947).
347 Tal é a proposta de Ernesto Grassi. Veja-se: Einführung in philosophische Probleme
des Humanismus, Wissenschaftliche Buchgesellschaft, Darmstadt, 1986; Idem, La
filosofia del Humanismo. Preeminencia de la palabra, Anthropos, Barcelona, 1993.
348 Para uma apreciação global deste amplo e complexo movimento, veja-se: Albert
Rabil, Jr. (ed.), Renaissance Humanism, Foundations, Forms, and Legacy, University of
Pennsylvania Press, Philadelphia, 1988 (Vol.I: Humanism in Italy; vol. II: Humanism
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 173

O presente ensaio propõe-se chamar a atenção para um aspecto da


filosofia dos humanistas, já focado por mais do que um intérprete349, mas
não ainda, segundo creio, em toda a sua dimensão. Refiro-me à reflexão
que em alguns deles se leva expressamente a efeito no sentido de fundar
o que se poderia chamar uma antropologia e ontologia da práxis350.
Embora o tema pudesse ser rastreado com lucro em vários outros
pensadores humanistas, limito a minha análise a um dos da primeira
geração – Coluccio Salutati351 – e em especial a uma das suas obras, De

beyond Italy; vol. III: Humanism and the Disciplines).


349 Destaque para Hans Baron, In Search of Florentine Civic Humanism. Essays on the
Transition from Medieval to Modern Thought, 2 vols., Princeton University Press,
Princeton, 1989; Idem, The Crisis of Early Italian Renaissance. Civic Humanism and
Republican Liberty in an Age of Classicism and Tyranny, Princeton University Press,
Princeton, 1966 (1ª ed. 1955). Veja-se também Eugene F. Rice, Jr., The Renaissance
Idea of Wisdom, Cambridge, Mass., 1958; Eugenio Garin, L’umanesimo italiano:
filosofia e vita civile nel Rinascimento, Laterza, Bari, 1952.
350 Uma primeira versão deste ensaio, sob o título «Práxis e Humanismo», foi
apresentada como comunicação no «Seminário Luso-espanhol de Filosofia Prática
(Aspectos ontológicos, éticos e políticos da Práxis)», realizado na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa, de 27 a 29 de Novembro de 1995.
351 O humanista Coluccio Salutati (1331-1406), que foi, durante os últimos 30 anos da
sua vida, chanceler da república florentina, não é totalmente um desconhecido pelo que
respeita à sua obra filosófica, mas está longe de ser apreciado em todo o seu valor.
Discípulo de Petrarca, de quem traça um vigoroso perfil, numa de suas cartas (ao conde
Roberto Guidi di Battifolle, de 16 de Agosto de 1373, é autor de uma volumosa e
filosoficamente valiosa correspondência (que Francesco Novati reuniu e editou num
Epistolario em 4 volumes, Roma, 1891,1893,1896 e 1905, respectivamente; a citada
carta encontra-se no vol. I, pp. 177ss.). Para além da obra que me proponho analisar
neste ensaio, merece especial referência, pela sua importância, De laboribus Herculis
(ed. crítica de B. L. Ullman, Thesaurus Mundi, Zürich, 1951, 2 vols.), uma interpretação
alegórica dos relatos poéticos que têm por objecto aquela figura da antiga mitologia e
que constitui, para além disso, uma verdadeira apologia da Poesia e do seu valor
especulativo, como ars artium, na linha de Dante e do próprio Petrarca. Salutati é autor
também de tratados de reflexão moral, de que destaco De fato et fortuna (ed. crítica ao
cuidado de Concetta Bianca, Leo Olschki, Firenze, 1985), onde se mostra um acérrimo
defensor da liberdade da vontade humana frente às formas do determinismo astrológico
e às ocultas forças do destino, tão caras a muitos dos pensadores do Renascimento. A
todos estes responde com a sentença de Tomás de Aquino: «Nullum numen habes si sit
sapientia, sed nos te facimus, fortuna, deam celoque locamus» (ed. cit., p. 213).
Verdadeiro homem entre dois mundos, não menos do que o foi Nicolau de Cusa,
embora sem o alento especulativo e metafísico do filósofo-cardeal, ele é já um convicto
defensor do novo paradigma humanista de uma racionalidade retórica assente no
desenvolvimento do currículo dos studia humanitatis. Terá sido mesmo o primeiro a
usar esta expressão, no De fato et fortuna (1396), mas propunha-se conjugar os studia
humanitatis com os studia divinitatis, pois, segundo dizia, «connexa sunt humanitatis
studia, connexa sunt et studia divinitatis, ut unius rei sine alia vera completaque scientia
non possit haberi» (Epistolario, IV, 216). É notável o seu conhecimento directo e o ágil
uso dos Padres da Igreja a par do conhecimento e uso da cultura clássica e mesmo da
tradição filosófica medieval. Mas, por outro lado, ele ilustra exemplarmente aquela
forma de primeiro humanismo florentino a que Hans Baron chamou «humanismo
174 Leonel Ribeiro dos Santos

nobilitate legum et medicinae352. Farei breves acenos a outros humanistas


apenas para indicar que não estamos perante uma posição isolada, mas
antes perante um tópico que pode bem ser considerado como uma das
linhas de fundo que liga diferentes pensadores e confere até uma certa
unidade de postura filosófica ao próprio movimento humanista, não só

cívico», a nova consciência do poder dos intelectuais laicos (e, no seu caso, também
convicta e profundamente religioso e cristão) e do seu papel na construção da cidade
dos homens e na realização do bem comum à medida do homem. Sobre os aspectos
biográficos de Salutati, veja-se: Eugenio Garin, «I cancellieri umanisti della repubblica
fiorentina da Coluccio Salutati a Bartolomeo Scala», in: Idem, Scienza e vita civile nel
Rinascimento italiano, Laterza, Roma-Bari,1993 (1ª ed., Bari, 1965), pp. 1-32.
Exposições do seu pensamento filosófico encontram-se em: G.M. Sciacca, La visione
della vita nell’Umanesimo e Coluccio Salutati, Palermo, 1954; Matteo Iannizzotto,
Saggio sulla filosofia di Coluccio Salutati, Padova, 1959; Berthold Lewis Ullman, The
Humanism of Coluccio Salutati, Padova, 1963; Eckhard Kessler, Das Problem des
frühen Humanismus. Seine philosophische Bedeutung bei Coluccio Salutati, Wilhelm
Fink, München, 1968; Ronald Witt, Hercules at the Crossroads: The Life, Works, and
Thought of Coluccio Salutati, Durham, N.C., 1983. De muitos tópicos do pensamento
de Salutati encontram-se luminosas exposições e interpretações em Charles Trinkaus,
The Scope of Renaissance Humanism, University of Michigan Press, Ann Arbor, 1983;
Idem, In Our Image and Likeness. Humanity and Divinity in Italian Humanist Thought,
2 vols., University of Notre Dame Press, Notre Dame, Ind, 1995 (1ª ed., Univ. of
Chicago Press, Chicago, Ill., 1970); desta obra, destaque para o II cap. do I volume,
intitulado «Coluccio Salutati: the Will Triumphant», pp. 51-102. Para a relação de
Salutati com a tradição patrística, veja-se o estudo recente de Francesco Bernardo
Gianni, «Il magistero de Coluccio Salutati e l’eredità agostiniana», in: Mariarosa
Corteis / Claudio Leonardi (a cura di), Tradizioni patristiche nell’Umanesimo, Sismel,
Edizioni del Galluzzo, Firenze, pp. 43-80. Para a actividade política de Salutati ao
serviço da Signoria de Florença, veja-se: Peter Herde, «Politik und Rhetorik in Florenz
am Vorabend der Renaissance, Die ideologische Rechtfertigung der Florentiner
Aussenpolitik durch Coluccio Salutati», Archiv für Kulturgeschichte, XLVII (1965),
Heft 2, pp. 141-220. Como observa Trinkaus, na acção e pensamento de Salutati,
«Rhetoric presents not a pattern of inconsistency, and hence of putative insincerity,...
but a source of an affirmation of human grandeur through will and action now
established by him in complete harmony with the divine providence and nature.» (In
Our Image and Likeness, I, p. 344, n.1).
352 Desta obra utilizo a seguinte edição: Coluccio Salutati, De nobilitate legum et
medicine, ed. bilingue latim-alemão, trad. de P.M. Schenkel, introd. de E. Grassi e E.
Kessler, Wilhelm Fink, München, 1990. Existe uma outra edição levada a cabo por
Eugenio Garin para a «Edizione nazionale dei classici del pensiero italiano», o qual
também estabeleceu o texto, o traduziu e o precedeu de uma «Introdução»: Coluccio
Salutati, De nobilitate legum et medicinae. De Verecundia, Firenze, 1947. A obra de
Salutati, datada de 1399, foi escrita como resposta a outra de um médico florentino,
mestre Bernardo, no qual a Medicina era proposta como expoente da ciência da natureza
e como detendo a primazia sobre as Leis e a vida social. Esta polémica tivera, porém,
um antecedente próximo em Petrarca, o qual também se vira na necessidade de
contrariar as tendências hegemónicas da Medicina já numa das suas cartas (Familiares,
V,19, de 13 de Março de 1351) e sobretudo depois nas Invective in medicum quendam
(1352-1353, 1355). Petrarca elabora aí a distinção entre artes mecânicas ou ciências
físicas e artes liberais, entre a
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 175

em Itália mas também a norte dos Alpes, na Alemanha, nos Países


Baixos, na Inglaterra e em França353. Poder-se-ia, aliás, acompanhar a
reflexão desenvolvida pelos pensadores humanistas mesmo em filósofos
da época moderna, e, para nomear alguns, não só em Descartes, que
várias vezes confessa a irredutibilidade da esfera da acção («uso da
vida») à esfera da razão («investigação da verdade») e da vontade ao
entendimento, mas também em Kant, o qual, tendo circunscrito as
fronteiras do legítimo uso teórico da razão e, por conseguinte, de todo o
saber possível ao homem, é levado a reconhecer a subordinação do
interesse especulativo ao interesse prático da razão e a afirmar
inequivocamente o primado deste último.
A referida obra de Salutati documenta exemplarmente um tríplice
debate: um debate epistemológico e científico-profissional, de significa-
do e alcance cultural e filosófico, acerca do estatuto dos saberes – da
ciência natural, representada pela Medicina, e dos estudos humanos,
representados pela ciência das Leis (a Jurisprudência, a Política e a
Moral); um debate ético-antropológico acerca do valor respectivo e do
primado da vida activa ou da vida especulativa e, por conseguinte, um
confronto de modelos antropológicos (entre o ideal do homem intelectual
dedicado à investigação e contemplação da verdade e o ideal do homem
moral, cuja principal faculdade é a vontade, a qual se exerce na acção vir-
tuosa e na acção política em vista da produção do bem comum); por
último, podemos ainda surpreender nesta obra um debate de alcance
metafísico: nela se propõe efectivamente a superação do modo tradicio-
nal de entender a relação entre os transcendentais – o ens, o verum, o
bonum –, subordinando a ontologia do ens e do verum a uma ontologia
do bonum.
Todos estes pontos – o primado da Jurisprudência (do Direito, da
Política, da Moral) sobre a ciência natural, o primado da vida activa
sobre a vida contemplativa, o primado da vontade sobre o entendimento e
o primado do bem sobre a verdade e o ser – são obviamente solidários
entre si, indicando uma clara mudança do paradigma filosófico. Mas o

353 Medicina e a Retórica ou a Poesia e rejeita o argumento da nobreza da Medicina


fundado na sua maior utilidade ou mais óbvia necessidade (o mais útil e necessário não
é o mais nobre, pois se assim fosse o burro seria mais nobre do que o leão, e a galinha
do que a águia). Em contrapartida, afirma o primado da Poesia, que cuida da saúde e
bem-estar do espírito, ao passo que a Medicina cuida apenas do bem-estar do corpo.
Mas, para além destes argumentos e contraposições, que encontramos muito mais
elaborados na obra do seu discípulo Salutati, o que Petrarca pretende atingir é a
autoridade de Aristóteles, invocada pelos defensores do primado da ciência da natureza
frente aos estudos de humanidade.
Veja-se, de Hans Baron, «The Florentine Revival of the Philosophy of the Active
Political Life», ob. cit., vol. I, pp. 134-157; e «The Humanistic Revaluation of the Vita
Activa in Italy and North of the Alps», ob. cit., vol. II, pp. 55-71.
176 Leonel Ribeiro dos Santos

alcance da obra de Salutati não se esgota no dar testemunho de uma crise


ou duma substituição histórica de paradigmas culturais, científicos ou
antropológicos. Ela encerra também uma interessante e coerente proposta
filosófica, na qual alguns elementos do pensamento ético-político antigo
(colhidos sobretudo nos escritos éticos de Aristóteles e nos de Cícero)
são reinterpretados e fundidos numa antropologia voluntarista inspirada
em alguns teólogos medievais (Santo Agostinho, São Bernardo, Duns
Escoto) e tudo isso no horizonte de uma ontologia de inspiração moral e
numa antropologia e filosofia de feição prática onde é reconhecível a
convicção humanista de poder o homem, sobretudo pela sua acção num
contexto civil, criar um mundo próprio, a que chame verdadeiramente seu.

I
UM DEBATE EPISTEMOLÓGICO: O «CONFLITO DAS FACULDADES»,
OU A NOVA ORDEM DOS SABERES

A obra de Salutati pode ser lida, antes de mais, como o relatório de


um histórico «conflito de faculdades», de saberes ou de competências
científicas e profissionais, enfim, de uma «disputa delle arti», como
houve tantas outras no próprio período renascentista e em todas as épocas
de transição cultural354. Ou também como a acta de um debate
epistemológico, entre dois modelos de ciência – as ciências da natureza e
os estudos de humanidade –, representados, respectivamente, pela
Medicina e pela Jurisprudência, em que se discute a qualidade científica
de cada uma delas – a certeza (certitudo) dos seus conhecimentos, a
dignidade dos respectivos objectos ou assuntos de que se ocupam, a
utilidade em função dos fins humanos. Documento significativo a muitos
títulos, a obra regista a transformação da concepção de ciência e da
hierarquia dos saberes ocorrida na transição da Idade Média para o
Renascimento, ao mesmo tempo que propõe e fundamenta a concepção
humanista de ciência e de filosofia.

354 Veja-se, sobre o tema: Lynn Thorndike, Science and Thought in the 15th Century,
New York, 1929; Idem, «The debate for precedence between medicin and law: Further
examples from the 14th to the 17th century», Romanic Review, 27 (1936), 185-190;
Eugenio Garin (ed.), La disputa delle arti nel Quattrocento, Firenze, 1947; Giulio F.
Pagallo, «Nuovi testi per la ‘Disputa delle arti’ nel Quattrocento: La Quaestio di
Bernardo da Firenze e la Disputatio di Domenico Bianchelli», Italia medioevale e
umanistica 2 (1959), 467-482; Cesare Vasoli, «Le discipline e il sistema del sapere», in:
Sapere e /è Potere. Discipline, dispute e professioni nell’Università medievale e
moderna, Atti del IV Convegno, Bologna, 13-15 aprile 1989, vol. II: Verso un nuovo
sistema del sapere, a cura di A. Cristiani, Bologna, 1990, pp. 11-36.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 177

A obra testemunha o desmoronamento do sistema medieval dos


saberes e da hierarquia que o sustentava e lhe dava coerência. Este siste-
ma era constituído, no seu nível superior, por três faculdades ou discipli-
nas – a Teologia, o Direito, a Medicina –, que eram precedidas por uma
espécie de faculdade propedêutica – a das Artes (ou Filosofia), cabendo à
Teologia a função de enquadrar e dar sentido ao conjunto dos saberes.
Por diferente que fosse o modo como cada pensador resolvesse a relação
entre os vários domínios científicos, pode com razão falar-se de uma
«redução das ciências à Teologia» no sistema medieval dos saberes, no
sentido em que, por autónomas que fossem as diversas disciplinas, elas
recebiam a sua superior justificação e função da Teologia, à qual simul-
taneamente serviam. É esse aliás o título de um bem conhecido opúsculo
de São Boaventura. No De nobilitate, porém, a Teologia não constitui já
o horizonte de enquadramento dos saberes como ciência arquitectónica, e
estamos muito longe do projecto medieval de uma qualquer «redução das
ciências à Teologia». A Teologia está ausente no debate e são as outras
duas disciplinas, que se ocupam do homem (do seu corpo ou da sua alma,
do indivíduo fisicamente considerado, ou do homem moral e integrado
no todo social), as que, invocando razões de maior nobreza, discutem
entre si a pretensão de ocupar o lugar deixado vago. Há um momento do
debate em que expressamente se manifesta esta pretensão enquanto pro-
tagonizada pela Medicina. É no capítulo 32, onde o autor discute e rejeita
a tese daqueles que consideravam a Medicina não só como a legítima
representante da ciência da natureza – como uma «irmã ou um ramo da
Física» (physice soror ac ramus)355 – mas, para além disso, pretendiam
ainda reduzir a ela todas as outras ciências, considerando-as como suas
servidoras, e nisso incluíam não só a Filosofia como também a própria
Teologia.356 Estamos, de facto, num momento histórico de crise de para-
digma científico, de crise de modelos epistemológicos e de hierarquia
dos saberes. Salutati, por seu turno, vai contrapor a esta tentação hege-
mónica da Medicina e da ciência da natureza, a centralidade de uma
«sabedoria moral» que é para ele, como fora para Cícero e mesmo para
os Gregos, sinónimo da própria Filosofia357, e que engloba, na sua ampli-
tude, toda a ciência das Leis, a esfera da moralidade e da vida activa – a
condução da vida individual (ou monástica), a Economia, a Ética e a
Política – e também a Lei cristã, por conseguinte, a Teologia, pelo menos
355 De nobilitate, p. 222.
356 «Puduit, semper pudebit, cum unum vestrum memini cuiusdam sui sermonis excursu
figurasse medicinam quasi centrum reliquasque scientias, et scientiam scientiarum
philosophiam, per ambitum circumferentie quasi famulas atque pedissequas possidere,
quodque sacrilege presumptionis fuit, non puduit ipsum divinissimam theologiam in
eodem circulo, veluti medicine famulam, collocare.» De nobilitate, p. 226.
357 De nobilitate, p. 228.
178 Leonel Ribeiro dos Santos

na sua vertente moral.358 Mas, para este humanista, a função da Teologia


no novo contexto cultural é preferentemente desempenhada pela Poesia,
tal como já se insinuava em Dante e se afirmava em Petrarca, o qual não
só recusava a ideia de que a Poesia fosse inimiga da Teologia como afir-
mava ser «a teologia uma poesia acerca de Deus»359. Salutati expõe essa
condição cimeira da Poesia na sua obra De laboribus Herculis, propondo
aí o que se poderia com razão chamar uma «redução de todas as artes à
Poesia», análoga à redução que os medievais haviam feito das ciências à
Teologia. É isso, com efeito, o que se lê num passo da citada obra e que é
explicado ao longo de toda ela: «É óbvio que a narração poética se com-
põe do trivium e do quadrivium. O que na verdade é algo muito peculiar
desta faculdade a que chamamos Poesia e que com justiça se destaca com
singular dignidade sobre as outras. Pois, se quisermos ver correctamente,
esta faculdade é coligida a partir de todas as ciências e artes liberais e
expande o seu perfume e o seu brilho como um ramo constituído por
todo o tipo de flores. E como é gerada a partir de todas, segundo mostrá-
mos, esta arte começa depois de todas as artes e da própria arte das artes,
a Filosofia e a Teologia, e pressupõe todas as artes como sendo-lhe pre-
ambulares e necessárias, narrando tudo o que pode ser dito seja suave-
mente, seja ornadamente, seja subtilmente.»360
Segundo Salutati, a Poesia não só pressupõe o conhecimento de
todas as ciências como é o coroamento de todas elas. Ela expõe por
meios próprios – metáforas, fábulas, alegorias, mitos – verdades essen-

358 «Non reprehendo, si tamen sub ratione politice comprehendas legales differentias
hominum, que quidem usitatius per fidei vocabulum exprimantur. Fuit autem lex
iudaica, nunc autem est et dicitur lex christiana. [...] Omnes enim Christiani preceptis
legis evangelice subiacemus.» De nobilitate, p. 228.
359 F. Petrarca, Epistolae rerum familiarium (ed. Rossi, II, 301; ed. Frassetti, II, 82-83):
«Theologie quidem minima adversa poetica est. Miraris? Parum abest quin dicam,
theologiam poeticam esse de Deo, Christum modo leonem, modo agnum, modo
vermen dici, quid nisi poeticum est? Mille talia in Scripturis sacris invenies, quae
persequi longum est. Quid vero aliud parabole Salvatoris in Evangelio sonant, nisi
sermonem a sensibus alienum, sive, ut uno verbo exprimam, alieniloquium, quam
allegoriam usitatiori vocabulo nuncupamus? Atqui ex huiusce sermonis genere poetica
omnis intexta est. Sed subiectum aliud. Quis negat? Illic de Deo deque divinis, hic de
diis hominibus tractatur; unde et apud Aristotelem primos theologizantes poetas
legimus.»
360 «Clarum est poeticam narrationem ex trivio quadruvioque componi. Quod quidem
adeo peculiare est huius facultatis quam poesim dicimus quod merito super alias
singulari promineat dignitate. Nam si recte voluerimus intueri, ex omnibus scientiis et
liberalibus artibus facultas ista collecta est ac sicut omnigenum florum manipulus et
redolet et effulget. Et cum sit ab omnibus, sicut ostendimus, generata, post omnes artes
et ipsam artem artium, philosophiam et theologiam, hec ars incipit, et cunctas utpote
preambulas sibique necessarias presupponit, quicquid dici potest tum suaviter, tum
ornate, tum subtiliter narratura.» De laboribus Herculis, ed. crítica de B.L. Ullman,
Thesaurus Mundi, Zürich, 1951, pp. 19-20.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 179

ciais de natureza antropológica, moral e mesmo teológica. O De labori-


bus Herculis é uma exaustiva hermenêutica do rico conteúdo antropo-
-teológico e moral contido nos mitos e fábulas poéticas que têm Hércules
por figura central. A linguagem poética é, para o humanista, mais ade-
quada do que a linguagem racional quando se pretende expor as verdades
essenciais que interessam ao homem, e sobretudo as que se referem à
divindade. Não admira por isso que até «os autores das sagradas escritu-
ras tenham envolvido no véu do discurso poético os mistérios da verda-
deira divindade»361. Assim contribui Salutati para a ideia de uma «theolo-
gia poetica», que tão importante foi para os humanistas, desde Petrarca a
Giovanni Pico della Mirandola, e a qual nele convive com a ideia duma
«theologia rhetorica», no que se evidencia o impacto que também sobre a
Teologia tiveram os pressupostos do Humanismo.362
A Medicina havia sido, durante a Idade Média, a ciência que enqua-
drava a investigação da natureza e aparece no De nobilitate como a ciên-
cia natural que tem por objecto o corpo humano e visa o bem estar deste.
Na economia da obra, ela representa o modelo medieval de ciência – na
pretensão de ser uma ciência especulativa ou teorética –, o qual vai ser
discutido e superado por um novo modelo, o duma ciência operativa ou
activa, representada pela ciência das Leis (Direito, Jurisprudência), a qual
na verdade tem um significado muito lato, abrangendo a Moral e a Polí-
tica.363

361 «Sacrarum litterarum auctores poeticae Comtionis velamine divinitatis verae


mysteria retulerunt.» De laboribus Herculis, I, 1, cap. 8. Ninguém fez mais do que
Ernesto Grassi para realçar o papel de Salutati e dos humanistas na recuperação da
importância não só da palavra como sobretudo da palavra poética, vendo nisso
justamente a peculiaridade do logos próprio do Humanismo e o seu inestimável
contributo para a história do pensamento.
362 Sobre este tópico, veja-se: Charles Trinkaus, «From Theologia Poetica to Theologia
Platonica», in: Idem, In Our Image and Likeness, vol. II, pp. 683-721. Sobre Salutati –
«Concept and Practice of Theologia Poetica in Salutati» –, ib., pp. 697-704. Idem, The
Poet as Philosopher, Petrarch and the Formation of Renaissance Consciousness, Yale
University Press, New Haven and London, 1978, sobretudo o cap. IV: «Theologia
Poetica and Theologia Rhetorica in Petrarch’s Invectives», pp. 90-113. Por «theologia
rhetorica» entendo aqui não só a insistência do humanista na utilidade e mesmo na
necessidade dos studia humanitatis para os estudos teológicos, como a configuração de
uma sabedoria teológica que se reconhece mais próxima das exigências da retórica e
dirigida a todas as funções humanas (segundo a trilogia do docere, delectare, movere)
do que dos silogismos da dialéctica que são exclusivamente dirigidos à razão e que
sente ter mais que ver com o mundo humano da palavra e da acção do que com o
mundo da especulação e das subtilezas da ciência e da metafísica.
363 De nobilitate, pp. 168-170. Salutati desenvolve este conceito amplo das Leis
tomando por referência a noção aristotélica da Política como ciência arquitectónica.
Assim, as distinções são meramente formais e não de conteúdo, cabendo na legalis
scientia tanto a lex divina, como a lex naturalis e a politica ratio: «Idem esse politicam
atque leges. Primo quidem quoniam non sit politice finis alius quam sit legum, nec
180 Leonel Ribeiro dos Santos

O debate decorre, portanto, entre mestre Bernardo, um médico que


representa a concepção medieval de ciência e defende o primado da
Medicina, enquanto paradigma de ciência simultaneamente natural e
especulativa, e um representante do novo ideal de saber humanista, que
defende o primado da Jurisprudência, enquanto ciência humana, prática e
civil. Procede sob a forma de teses e de conclusões, que respondem a
vários quesitos ou tópicos em função dos quais se mede a pretendida
nobreza – dignidade e primazia – das duas ciências: a natureza ontoló-
gica do objecto de cada uma delas, a qualidade científica ou certeza (cer-
titudo) dos respectivos princípios e métodos ou processos argumentati-
vos, a respectiva utilidade e necessidade em vista dos fins humanos.
Tratando-se de mostrar a excelência e nobreza das Leis, a ciência adver-
sária é rebaixada com argumentos que acentuam a sua inferioridade e,
por fim, é o próprio adversário que, em face dos argumentos expostos em
favor da nobreza da ciência das Leis, recapitula as razões pelas quais esta
tem vantagem e primazia sobre a sua Medicina enquanto ciência da natu-
reza e as reconhece ele próprio como pertinentes dando-se por vencido.
O debate, que é um belo exemplar de dialéctica forense e de retórica
humanista, termina, portanto, num consenso a respeito da primazia da
ciência das Leis, mas depois de terem sido invocadas e discutidas, para
além das razões epistemológicas, também razões ontológicas, antropoló-
gicas e sociais: a Medicina ocupa-se do que é exterior ao homem, do seu
corpo e do que ele tem de comum com outros seres que lhe são inferiores
(os animais); a Jurisprudência, pelo contrário, ocupa-se com o que é pró-
prio e exclusivo do homem: do seu espírito e sobretudo das suas acções,
da sua conduta virtuosa, seja na esfera da vida individual seja na esfera
da vida civil. Cuida, além disso, não apenas do homem singularmente
considerado e do seu bem particular, mas de toda a sociedade humana e
do bem comum desta.
Significativa é a discussão acerca da certeza e qualidade científica
das duas disciplinas. Toda a argumentação vai no sentido de mostrar que
a Jurisprudência responde muito melhor do que a Medicina ao ideal tra-
dicional de ciência, o qual, todavia, enquanto tal – isto é, enquanto ciên-
cia especulativa –, é criticado e superado no conjunto da obra.364 Os seus

specifice dispartiri possint ab invicem habitus qui finem eundem per omnia sortiuntur.
Non differunt enim hec, nisi tanquam ratio et rationis institutu. [...] Nam quicquid
divina mens habet quod regula sit, mensura directioque vite nostre, hoc est actuum
humanorum, divina lex est. Quicquid huius humanis mentibus est insertum, naturalis
lex et politica ratio dici debet. [...] Intendit politica conservationem humane societatis;
hoc idem intendit et lex. Vult politica civem bonum; et quid aliud latores legum suis
institutionibus moliuntur? Nam si virtutes queris, legalis iusticia cunctas virtutes
amplexa est. Nec aliud est legalis scientia quam ipsa iustitia, vera, divina, naturalis et
eterna.» De nobilitate, p. 170.
364 Sobre a concepção humanista de ciência e a crítica pelos humanistas da ciência
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 181

princípios são mais imediatos e intuitivos do que os da Medicina e até


mesmo do que os da Física. Não são colhidos do exterior, mas estão pre-
sentes na própria mente e são, por isso, imediatamente evidentes e uni-
versalmente reconhecidos:«São três os princípios certíssimos das leis,
que ninguém põe em causa, a saber: o que desejamos que nos seja feito a
nós façamo-lo ao outro; o que não queremos que nos seja feito a nós não
o façamos a ninguém; e o terceiro, o que estabeleceres como sendo justo
em relação a outrém usa-o em relação a ti mesmo.[...] E se se tomar por
testemunho o assentimento comum de todos e a evidência da certeza,
julgo que não se podem negar estes princípios, do mesmo modo que os
primeiros princípios da vossa Física: que o todo é maior do que qualquer
das suas partes.[...] De tal modo que, se comparares estes princípios, são
mais próximos nas leis estes nossos princípios do que os teus na tua ciên-
cia e não possuem menos certeza do que os que propões como sendo sem
dúvida certos, mas não provados nas coisas físicas. Qualquer lei pode
imediatamente ser reduzida aos seus princípios. As vossas, porém, são
deduzidas por infinitos intermédios.»365
Em suma, comparados com os princípios da ciência natural, os prin-
cípios da Jurisprudência são mais imediatos, mais evidentes, e por isso
também mais certos. Noutro passo confirma-se a mesma ideia do ime-
diatismo ou proximidade dos princípios ético-jurídicos, já que são ínsitos
e como que naturalmente inscritos na razão: «As leis têm princípios que
não residem nas coisas exteriores, mas em nós mesmos, e na medida em
que estão inseridos naturalmente nas nossas mentes, eles não podem ser
por nós ignorados, não havendo necessidade de os procurar fora, porque
os possuímos intrinsecamente.»366
Suficientemente fundadas na razão humana, na medida em que lhe
são inatas, as leis encontram, porém, o seu fundamento também na natu-

natural, veja-se: Charles Trinkaus, «Humanism and Science: Humanist Critiques of


Natural Philosophy«, in Idem, The Scope of Renaissance Humanism, pp. 140-168.»
365 «Legum principia sunt [...] tres certissime, quibusque dissentire nullus valeat, equita-
tes: ut quod nobis fieri volumus alteri faciamus; quod nobis fieri nolumus nemini
faciamus; et illud tertium, quod quisque iuris in alium statuerit ipse eodem iure utatur.
[...] Nec puto, si communis assensus omnium testis et evidentia certitudinis sit, hec
principia posse negari [...], quam prima physice vestre principia: quod totum scilicet
maius sit qualibet sua parte [...] Ut, si ratione principiorum ista compares, propinquiora
sint in legibus hec nostra principia quam in tuis tua, nec minus habent certitudinis
quam que in physicis certa quidem, sed non probanda, proponis. Omnis quidem lex
immediate potest ad sua principia illa reduci. Vestra vero per infinita media ab illis
vestris principiis diducuntur.» De nobilitate, pp. 44-46.
366 «[Leges] habent quidem principia, que non in rebus extra, sed in nobis sunt,
insertaque naturaliter in mentibus nostris tali certitudine sunt, quod nobis non possunt
esse non nota, et quod ea non est necessarium ut queramus extrinsecus, quoniam [...]
intrinsecus habemus.» De nobilitate, p. 124.
182 Leonel Ribeiro dos Santos

reza das coisas e no princípio que a estas dá origem. Salutati pressupõe,


de facto, uma fundamentação ontológica e mesmo teológica sui generis
das leis humanas, ao afirmar que o direito e as leis têm uma originária
comunidade não só com a lei natural mas até com a lei divina. Apoiando-
-se na etimologia, o humanista desenvolve um tópico ciceroniano367,
mais tarde glosado também por Vico368 e por Kant369: ius (o direito)
provém de Iovis (Júpiter), aquele que originariamente estabeleceu as
leis370. E, por isso, o direito é a própria lei divina e natural enquanto
reconhecida e promulgada pela lei humana. Lei divina, lei natural e lei
humana são, pois, na realidade uma e a mesma coisa: «Na realidade estas
leis não diferem; são a mesma e uma só. A lei divina institui, a natural
inclina, a humana promulga e ordena. Mas é o mesmo o que é ordenado,
aquilo a que se inclina, e o que é instituído.[...] O fundamento da lei
reside na sua eternidade e associando-se às mentes humanas orienta-as
para aquilo que nela existe e persuade o homem para que constitua e
promulgue aquilo que é comummente bom.»371
Em face disto, não colhe a objecção segundo a qual a certeza das
Leis é menor do que a da Medicina porque aquelas se referem ao que
resulta de actos voluntários sendo, por conseguinte, de promulgação
humana, ao passo que esta se refere ao que é por natureza e, por isso,
necessário. Respondendo a esta objecção, que atinge o carácter científico
das Leis cujas verdades nunca poderiam alcançar o estatuto de proposições
necessárias e apodícticas de verdadeira ciência, mas apenas de opiniões
prováveis e contingentes, Salutati faz engenhosamente notar que, se as
Leis são voluntárias por promulgação, elas são todavia eternas e reveladas
pela natureza, a tal ponto que, se as razões da ciência natural podem ser
postas em causa sem que daí provenha grave prejuízo, já os princípios
das leis não podem ser rejeitados sem que ao mesmo tempo se ponham
em causa os próprios fundamentos da razão e se ofenda toda a humani-
dade. Demos a palavra ao humanista: «Dirás que a Medicina é tirada das
coisas naturais, as Leis porém dos actos voluntários. Mas tem atenção,
pois as coisas legais tanto são voluntárias por promulgação como são

367 Cicero, De Officiis, 28, 102; 29, 104.


368 Giambattista Vico, La scienza nuova, Milano, 1963, vol. I, p. 33: «Giove (dal quale,
appo i latini chiamato Ious, ne fu anticamente detto ious il gius, che poi, contratto, se
disse ‘ius’; onde la giustizia appo tutte le nazioni s’insegna naturalmente con la pietà).»
369 Immanuel Kant, Opus Postumum, Akademie-Ausgabe, Bd. XXI, 148.
370 «Ius igitur, quod a iuvando dicitur vel forsitan a Iove...». De nobilitate, p. 160.
371 «Re quidem leges iste non differunt; idem sunt, una prorsus sunt. Divina quidem lex
instituit, naturalis inclinat, humana promulgat et iubet. Idem autem est quod iubetur, et
ad quod inclinatur, et quod institutum est. [...] Stat in eternitate sua legis ratio, menti-
busque se permiscens humani ad illud eas inclinat quod in ipsa est, persuadetque quod
homo constituat et promulget quod communiter bonum est.» De nobilitate, p. 160.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 183

eternas e reveladas quer pela origem quer pela recepção da natureza.


Nada mais possuem as Leis escritas da vontade do que as leis escritas da
Medicina e da Física... Os vossos autores tiraram-nas da essência percep-
cionada, provada ou crida da verdade... enquanto todos os legisladores as
escreveram tal como as captaram na justiça eterna».372
Poder-se-ia igualmente objectar que as leis, por serem de promulga-
ção humana, têm menos certeza do que a Medicina cujas verdades se
fundam na própria natureza. Mas naquilo que à primeira vista parece ser
uma desvantagem descobre Salutati uma razão de privilégio: «As leis, na
medida em que são de promulgação humana possuem infalibilidade e
baseiam-se numa razão natural ínsita que qualquer um provido de sã
razão vê ou pode advertir meditando ou discorrendo. Mas as que consti-
tuem a Medicina, se faltar a experiência, são incertas ... e podem desilu-
dir e desiludem mesmo por muitos motivos..., pois não exibem sempre
aquela comum razão nem produzem o efeito desejado.»373
A diferença da qualidade científica das duas disciplinas revela-se
também no que concerne aos respectivos métodos ou procedimentos
argumentativos. Salutati estabelece o confronto dos procedimentos meto-
dológicos das duas ciências sublinhando que, enquanto nas Leis, a razão
não necessita de nada além de si mesma e, por conseguinte, todo o seu
trabalho consiste em discutir razões ou deduzir a partir de razões e prin-
cípios, a Medicina está limitada pela experiência e dependente da obser-
vação dos corpos e percepção sensorial dos elementos naturais, sem cujo
concurso e apoio nada pode. Esta dependência da experiência e da obser-
vação de casos individuais impede que a Medicina – e como ela qualquer
ciência natural – cumpra o projecto de universalidade e de certeza visado
pelo ideal antigo de ciência, pois todo o seu saber é contingente, provisó-
rio e incompleto, merecendo por isso mais o nome de conjectura do que o
de verdadeira ciência.374
Toda a habilidade retórica do humanista se manifesta nesta capaci-
dade de reverter a favor das Leis aquilo que à partida parecia ser o privi-

372 «Sed inquis: medicina de naturalibus, leges autem de voluntariis sunt. Sed cave,
quoniam legalia sic voluntaria sunt promulgatione, quod eterna sint revelataque nature
tum origine tum receptione. Nichil enim plus habent scripte leges voluntatis quam
scripte physice vel medicine.[...] Sumpserunt istas vestri de percepte, probate vel
credite veritatis essentia, scripseruntque vobis ipsas quoniam voluerunt, scripseruntque
cunctis legislatores leges quoniam sic in equitate perpetua esse senserunt.» De nobili-
tate, p. 46.
373 «Leges etenim in proposito, prout humane sunt promulgationis, infallibilitatem
habent et naturalem insitam rationem quam qualibet sane mentis videt vel meditando
potest disceptandoque reperiri. Que vero constituunt medicinam, si desit experientia,
sunt incerta et propter multa [...] decipere possunt, imo decipiunt, ut communem illam
semper non exhibeant rationem nec optatum exeant in effectum.» De nobilitate, p. 134.
374 De nobilitate, pp. 266-268.
184 Leonel Ribeiro dos Santos

légio da ciência natural. E assim se explicita o confronto entre o que será


mais tarde consagrado como o método das ciências naturais, da observa-
ção e experimentação, e o método retórico dos estudos humanos (studia
humanitatis). A partir do final do século XVI prevalecerá o método das
ciências naturais, mas agora a hora é do método retórico e da racionali-
dade que ele possibilita e legitima. É claro que o que no fundo torna
irredutíveis estes métodos é a heterogeneidade dos objectos a que se apli-
cam. Estamos aqui perante um caso histórico do confronto entre aquilo a
que se chamou as «duas culturas»375 e que, a partir de Dilthey, se consa-
grou como a oposição entre as «ciências da natureza» e as «ciências do
espírito».376
Por conseguinte, mesmo considerada segundo a exigência da ciência
especulativa, a ciência das Leis leva a melhor sobre a Medicina: não só o
seu objecto é ontológicamente mais digno e mais universal, como ela tem
ainda o privilégio de não carecer da experiência e dos objectos exteriores,
baseando-se apenas na razão, podendo assim exibir um procedimento
metodológico de tipo dedutivo377, quando a Medicina só pode proceder
por via indutiva, valendo-se de casos e observação de casos e de expe-
riências particulares e sempre falíveis quando se pretende generalizá-los:
«Vós os médicos procurais aprender os efeitos dos medicamentos
mediante experiências feitas nos corpos humanos, e até mesmo mediante
lacerações e mortes. E que arte há que seja mais insana, mais cruel e tão
afastada da humanidade do que vencer as feridas com as feridas e as mor-
tes com as mortes? E é assim que vós alcançais as verdades da vossa
medicina e dos vossos remédios. E não vos basta a morte ou a dissecação
de um só homem, mas tendes de matar muitos, dissecar muitos, de mui-
tas idades e compleições, de muitas regiões, de muitas doenças e muitos
modos de vida; é por tentativas que aprendeis as variedades mortais que
se podem enconcontarr a respeito dos homens, seja per se seja per
accidens, e dificilmente conseguis socorrer um só deles após tantas
experiências e mortes de muitos.»378

375 C.P. Snow, The Two Cultures, Cambridge, 1965.


376 A argumentação de Salutati não esconde uma certa repugnância pela Medicina
devido à sua condição empírica e material. Ela lida com o corpo na forma mais vil e
ignóbil que este pode oferecer: membros dissecados e estropiados, intestinos ... «coisas
que nenhum homem pode ver sem que experimente um grande horror» (que
quicumque sine maximo mentis horrore videre potest homo). De nobilitate, pp. 36 e
todo o cap. 38 (pp. 266-268).
377 De nobilitate, p. 136.
378 «Vos [medici] medicamentorum effectum per experientias humanorum corporum,
imo lacerationes et mortes, addiscere procuratis. Et quid habet ars aliqua tam
pestiferum, tam crudele, tamque ab humanitate remotum, quam vulnera vulneribus
mortesque mortibus occupare? Per hac artis medicine medelarumque vestrarum
percipitis veritates. Nec unius hominis mors sufficit aut sectio, tot plane vobis
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 185

Esta desqualificação da Medicina enquanto ciência vale sobretudo


como argumento ad hominem contra as pretensões dos defensores
daquela ciência que na época reivindicava o estatuto de ciência especula-
tiva e que, enquanto tal, se apresentava como sendo o paradigma de
cientificidade. O que Salutati quer mostrar é que a Medicina não é verda-
deiramente ciência e ainda menos é uma ciência especulativa, como pre-
tende sê-lo, cabendo esta condição com propriedade, segundo a doutrina
de Aristóteles, apenas à Filosofia. Pois o saber da Medicina não visa a
contemplação da verdade por si mesma, mas a sua aplicação na cura da
doença: «a ciência especulativa tem em vista o verdadeiro e considera os
objectos da sua especulação enquanto verdadeiros e apenas sob a razão
da verdade, não sob a razão do são ou do doente ou do que não é um nem
outro, de tal modo que a nobre e verdadeira especulação não tem nada de
comum com a especulação do médico.»379 Daqui resulta que a Medicina,
mais do que uma ciência é uma arte de curar380, mas ainda este seu fim é
um fim per accidens e não um fim per se, pois quem cura ou restabelece
a saúde é a natureza mesma ou Deus, pelo que a arte da Medicina é ape-
nas uma arte auxiliar da acção da natureza ou de Deus.381 Destituir assim
a Medicina da sua pretensão de ser uma ciência especulativa, reduzindo-a
à condição de uma arte auxiliar e o médico à condição de um artifex, não
significa que Salutati pretenda estabelecer naquela condição a ciência das
Leis. Na verdade, o ideal de ciência do humanista não é esse, mas sim o
de uma ciência operativa e activa. E, como adiante veremos, é sobretudo
nesta qualidade activa que a ciência das Leis revelará toda a sua digni-
dade e primazia. Mas diga-se desde já que é no contexto da concepção de
uma ciência activa que ganha pertinência a discussão levada a efeito em
torno da utilidade e necessidade respectivas das duas ciências. A argu-
mentação explora o princípio da maior ou menor dignidade ontológica do
respectivo objecto e a maior ou menor universalidade das respectivas
aplicações. Também aqui as Leis levam a melhor sobre a Medicina, pois
esta trata do corpo que o homem tem em comum com os animais, ao
passo que as Leis pretendem a saúde da razão que o homem tem como
aquilo que lhe é próprio; a Medicina propõe-se a saúde do homem sin-
gularmente considerado, enquanto as Leis visam a saúde de todo o corpo

occidendi sunt, totque secandi, quot etates, quot complexiones, quot regiones, quot
morbi, quod victus, et denique quot circa mortales reperiri possunt per se vel per
accidens varietates hominum periculis addiscitis, et vix uni de multis post multorum
mortes et experientias subvenitis.» De nobilitate, p. 268.
379 «Speculativa quidem verum respicit, et speculanda speculatur ut vera et solummodo
sub ratione veri, non sub ratione sani vel egri vel neutri, ut vera et nobilis illa specula-
tio non sit cum medici speculatione communis.» De nobilitate, p. 32.
380 «Medicina verius sit ars quam scientia vel doctrina...». De nobilitate, p. 112.
381 De nobilitate, p. 30.
186 Leonel Ribeiro dos Santos

social e de todo o género humano; a Medicina visa apenas o bem natural


do homem, as Leis visam o bem moral e espiritual, cuja realização cons-
titui o verdadeiro fim do homem. Só a ciência das Leis é, portanto, capaz
de encaminhar o homem para a suprema felicidade (beatitudo) para que
nasceu e, por conseguinte, ela é necessária para que ele oriente correcta-
mente a sua vida em função desse objectivo.382
Concluindo o debate, é a própria Medicina que, num discurso de
recorte retórico, reconhece e enuncia os principais títulos de nobreza da
sua rival, nestes termos: «A origem das Leis é mais nobre do que a
minha. Eu fui criada a partir da terra. A Lei, porém, foi criada a partir da
mente divina. Deus ensinou as Leis no seu Verbo, e a nós revela-as nos
eventos da experiência. Eu sou erigida contingentemente a partir de coi-
sas contingentes; a Lei, porém, é constituída a partir da justiça que é inva-
riável.»383

II
UM DEBATE DE NATUREZA MORAL:
VIDA ACTIVA VERSUS VIDA ESPECULATIVA

Salutati, como muitos outros humanistas, colheu nos escritos de


Cícero, e também nos de Petrarca, a ideia de uma filosofia de feição
moral, que se demarca das especulações científicas e metafísicas dos
escolásticos e das distinções subtis dos «modernos» dialécticos e sofistas.
Essa filosofia consubstancia-se na noção ciceroniana de eloquência e o
próprio conceito de humanitas se explicita como uma «doutrina e ciência
moral»: «os melhores de todos os autores, tanto Cícero como muitos
outros, usaram este vocábulo como designando a doutrina e ciência
moral.»384 Esta concepção é amplamente desenvolvida em vários passos
de De nobilitate, em particular no capítulo 33, dedicado à explicitação da
noção de sabedoria moral e de filosofia moral. Salutati adopta a noção
estóica de filosofia e a respectiva repartição ternária em Física ou filoso-
fia natural, Lógica ou filosofia sermocinal, e Ética ou Moral. Embora
logo acrescente que a última, ou seja a Moral, na medida em que se refe-
re à sabedoria costuma designar-se com o nome de filosofia. Nomeada-
382 Cf ibidem, p. 158 e pp. 102-104.
383 «Nobiliorem ortum esse legum quam meum. Ego de terra creata sum. Lex vero de
mente divina. Leges in Verbo suo Deus tradidit, nos in eventibus experientie revelavit.
Ego contingenter sum ex contingentibus eruta; lex autem est ex equitate que sit inva-
riabilis constituta.» De nobilitate, p. 264.
384 «Optimi quidem auctorum, tam Cicero quam alii plures, hoc vocabulo pro doctrina
moralique scientia usi sunt.» Epistolario, III, p. 536.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 187

mente nos escritos de Cícero, quando este tece louvores à filosofia, é a


parte moral que tem em vista.385
É significativa esta feição moral do Humanismo, que assim se revela
como uma verdadeira filosofia e não apena como um movimento de inte-
resses literários ou retóricos. À filosofia emproada dos «modernos» sofis-
tas e dialécticos, às distinções subtis e especiosas, à curiosa indagação
das causas e princípios de todas as coisas, Salutati prefere, na linha de
Cícero, aquele tipo de filosofia que «cultiva os espíritos, edifica as virtu-
des, elimina os vícios e elucida a verdade de todas as coisas sem recurso
a disputas estéreis».386
Também nas suas cartas o chanceler da República florentina expõe
abundantemente esta concepção de uma filosofia prática, uma filosofia
da vida marcada pelo sentido da utilidade comum, geralmente em con-
fronto com o modo corrente escolar de entender a filosofia, a ciência, a
especulação: «Especulem os outros e provem mediante angustiadas e
inexplicáveis razões – se é que o podem provar – aquelas coisas que nem
podem ser captadas pelo entendimento nem podem ser toleradas contra a
força e a relutância do espírito mais subtil, e que, mesmo quando fossem
sabidas, nem fariam o homem melhor nem mais prudente em relação ao
uso da vida humana.»387
Numa das cartas enuncia-se já claramente o tema do De nobilitate: o
confronto entre as ciências – metafísica, física, medicina – que no meio
da obscuridade investigam as causas e princípios das coisas, o vazio, o
movimento, as faculdades do homem, e uma filosofia que se ocupa em
discriminar o que é o belo e o feio, o justo e o útil. Escreve o humanista:
«Apliquem-se nesta obscuridade sem inveja os médicos e investiguem se
podem encontrar as causas e os princípios das coisas, investigem o vazio
infinito, o fundamento do lugar e do movimento [...] averiguem o que seja
a alma, o senso comum, a fantasia, o entendimento, a razão, a vontade, o
próprio apetite sensitivo, qual a distinção dos sentidos corporais, qual a
sua acção e a sua natureza, o que é o sono e os sonhos; nestas e em todas

385 De nobilitate, pp. 228-230.


386 «In philosophia, que quidem donum divinum omnium moderatrix noscitur esse virtu-
tum et, ut Ciceroniano utar vocabulo (Tusc. V,2,5), expultrix vitiorum et omnium
scientiarum et artium imperatrix ac magistra..., non dico in hac, quam moderni
sophiste ventosa iactatione inani et impudente garrulitate mirantur in scolis; sed in ea,
que animos excolit, virtutes edificat, vitiorum sordes eluit, rerumque omnium, omissis
disputationum ambagibus, veritatem elucidat.» Epistolario, I, p. 178
387 «Speculentur alii et per anxias ac inexplicabiles rationes illa probent, si probabilia
sunt tamen, que nec capi possunt intellectu nec contra subtilioris ingenii vim et
reluctantiam tolerari; que postquam scita fuerint, nec meliorem hominem faciant nec
ad usum humane vite prudentiorem.» Epistolario, II, p. 295.
188 Leonel Ribeiro dos Santos

as outras coisas, dado que não usam os olhos como os linces mas como
os morcegos, é de temer que sonhem eles próprios e tomem estas suas
miragens por realidades e submetam a estes milagres o entendimento ou
até o aprisionem. Nós discutimos o que é o belo, o que é o feio, o que é o
útil e o que o não é.»388
Mas a razão desta opção reside na antropologia de Salutati e na sua
concepção da finalidade do homem, a qual não consiste na especulação e
na ciência, mas no plano ético. A ciência e a especulação não são o fim
do homem e não se justificam como fins em si mesmas, mas valem tão só
na medida em que possibilitam uma acção mais racional (rationabilius
operari)389, ou tornam o homem melhor moralmente falando. O fim do
homem é um fim moral, o seu objecto é o bem – a felicidade – e a facul-
dade que o tem por objecto é a vontade: «Uma vez que o verdadeiro e
extremo fim do homem não é conhecer ou saber, mas aquela suprema
beatitude que consiste em ver Deus tal como ele é e fruir o que é visto e
amá-lo e aderir a ele eternamente pelo amor que une o que ama e o que é
amado [...] e que isto não podemos alcançá-lo pela ciência ou especula-
ção humana mas pela graça de Deus através das virtudes e operações, é
certo que àquela verdadeira felicidade que é a vida activa, cujo princípio
é a vontade, não pertence a [vida] especulativa, que se realiza pelo
entendimento, e nessa mesma beatitude é formalmente mais nobre o acto
da vontade que é o amor do que o acto do entendimento, que é a contem-
plação ou a visão [...] Do que se segue manifestamente que a vida activa,
na medida em que se separa da especulativa, tanto neste mundo como na
pátria celeste, deve ser preferida por todos os modos à especulação.»390

388 «Versentur in hac obscuritate sine invidia medici et inquirunt si reperire possunt,
causas et principia rerum; inquirant vacuum infinitum, loci vel motus rationem... vesti-
gent animam quid sit, quid communis sensus, quid phantasia, quid intellectus, quid
ratio, quid voluntas, quid appetitus ipse sensitivus, que corporalium sensuum
distinctio, quod opus queve natura, quid somnus et somnia, in quibus et aliis omnibus,
cum non lynceis, sed nycticoracum utantur oculis, verendum ipsis est ne somnient...
habeant rerum ista prestigia, subiciant his miraculis intellectum, imo captivent. Nos
quid sit pulchrum, quid turpe, quid utile, quid non... ventilemus.» Epistolario, III,
p. 588.
389 De nobilitate, p. 258.
390 «Verum quoniam verus et extremus hominis finis non est cognoscere sive scire, sed
illa suprema beatitudo, que videre est Deum, sicuti est, visoque frui, visumque diligere
illique eternaliter coherere per dilectionem que sic unit diligentem atque dilectum quod
qui per illam adheret Deo [...], nec hoc adipisci possumus scientia vel speculatione
humana sed Dei gratia per virtutes et operationes, certum est ad illam veram felicita-
tem activam vitam, cuius voluntas principium est, non speculativam pertinere, que
perficitur intellectu, et in ea ipsa beatitudine nobilior et formalior est voluntatis actus,
qui dilectio est, qum actus intellectus, qui contemplatio sive visio dici potest.[...] Ex
quibus [...] manifeste sequitur vitam activam, prout a speculativa dividitur, tam in via
quam in patria speculationi modis omnibus preferendam.» De nobilitate, p. 190.
Petrarca expressara a mesma ideia num passo da sua obra De sui ipsius et multorum
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 189

Enfim, uma razão moral: o saber não é o fim do homem, porque


nunca pode ser alcançado plenamente; se esse fosse o fim do homem,
este ficaria impedido de alcançar a felicidade, porque o caminho do saber
não tem termo. Por conseguinte, o natural desejo de saber deve ser consi-
derado como subordinado a um muito mais fundo e essencial desejo de
felicidade. O saber – a investigação e a contemplação da verdade – não
constitui o fim do homem nem lhe dá a felicidade: é sempre incompleto e
incerto. Só pode, por isso, ser um fim subordinado: «Aquele que quer
saber e que coloca neste saber a sua última felicidade, como vós o fazeis,
não só erra ao pensar que neste mundo, corruptível e entre corruptíveis,
pode encontrar a beatitude, a qual, se não pode durar sempre, não é verda-
deira beatitude, mas erra também porque procura aquilo que não pode
constituir a perfeição de uma vida eterna... Do que se conclui que nem o
nosso saber nem a nossa verdade investigada acerca de todas as coisas,
mesmo se fosse possível, constituem a última felicidade do homem.»391
Assoma em várias passagens uma lúcida consciência dos limites do
entendimento:«Não acredites que tudo se pode saber; pois tudo o que
todos os homens sabem, é mínimo relativamente àquilo que se pode
saber.»392 O saber humano, por mais desenvolvido que seja, é sempre
imperfeito e incompleto: «nunca alguém aprendeu tanto quanto quiz,
nem pode atingir completamente o fim de qualquer arte ou perceber a sua
plenitude. Além disso não se pode ter a perfeição de alguma arte a não
ser que todas as restantes sejam sabidas, de tal modo elas estão ligadas
conjuntamente e uma depende da outra.»393
O reconhecimento dos limites do saber humano funda-se na cons-

ignorantia: «Voluntatis siquidem obiectum, ut sapientibus placet, est bonitas:


obiectum intellectus est veritas. Satius est autem bonum velle quam verum nosse. Illud
enim merito nunquam caret; hoc sepe etiam culpam habet, excusationem non habet.
Itaque longe errant qui in cognoscenda virtute, non in adipiscenda, et multo maxime
qui in cognoscendo, non amando Deo tempus ponunt. Nam et cognosci ad plenum
Deus in hac vita ullo potest modo, amari autem potest pie atque ardenter.» Prose, ed. a
cura di G. Martelloti, P. G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, Milano/Napoli, 1955,
pp. 748-749.
391 «Nam qui scire querit et in hoc quod scire sit ultimam suam felicitatem, ut facitis,
ponit, non solum errat credens in via, corruptibilis et inter corruptibilia, beatitudinem
invenire, que si semper durare non possit vera beatitudo non sit, sed in hoc etiam quod
id querat, quod perfici vita manente non possit...Concluditur, nec scire nostrum nec
investigatam, etiam si possibile sit, rerum omnium veritatem, ultimam esse felicitatem
hominis...» De nobilitate, p. 248.
392 «Nec credas omnia scire posse; quicquid enim omnes homines sciunt, minimum est
eorum que sciri possunt.» De nobilitate, pp. 256-258.
393 «Neminem unquam tantum didicisse quantum voluerit, nec omnino posse artis
cuiuspiam finem attingere aut eius plenitudinem percepisse. Quin etiam alicuius artis
nequit haberi perfectio (adeo simul alligate sunt, unaque pendet ex alter), nisi cetere
sint percepte.» De laboribus Herculis, ed. cit., p. 74.
190 Leonel Ribeiro dos Santos

ciência do próprio processo e progresso do conhecimento e vai em Salu-


tati associado não só a uma explícita declaração de adesão incondicional
aos princípios da fé cristã, conforme ensinados nos Evangelhos, assumi-
dos pela comunidade cristã e expostos pelos Santos Padres da Igreja394,
como chega a admitir a gratuita iluminação divina que socorre a razão
humana na incapacidade desta. Escreve Salutati: «Vejo que a especula-
ção humana de nenhum modo pode ir além do horizonte do hemisfério
intelectual e que só pela claridade da luz criada que a divindade realiza se
pode elevar ... a tal razão de conhecimento e inteligência que não só per-
ceba as coisas criadas, mas compreenda também aquele bem beatífico
incriado que a vossa especulação não alcança mas ao qual conduz por
gratuita proporção o mérito da vida activa. Pelo que me rio e sempre me
ri da dignidade da especulação humana, que exaltais acima da glória da
vida activa, e reconheço, por juízo divino – já que Deus tornou estulta a
sabedoria deste mundo – que lhe deve ser anteposto o mérito da vida
activa.»395
Não deve ver-se nisto uma demissão do pensador ou uma incapaci-
dade de afirmação da autonomia do homem. Esta está suficientemente
afirmada no plano prático, aquele que realmente está ao alcance do
homem, da sua vontade e da sua acção.396 Não é, aliás, exclusiva de Salu-

394 Epistolario, IV, pp. 214-215.


395 «Ego quidem... contueor... humanam speculationem supra intellectualis hemispherii
orizonta nullo modo transire, solumque claritate creati luminis, quod divinitas efficit,
elevari tali ratione cognitionis et intelligentie, quod non solum creata percipiat, sed
increatum illud bonum beatificum comprehendat, ad quem statum speculatio vestra
non erigat, sed active vite meritum gratuita commensuratione perducat. Ex quo rideo
semperque derisi dignitatem humane speculationis, quam super active vite gloriam
exaltatis, que videam sibi divino iudicio, quoniam deus stultam fecit sapientiam huius
mundi, active vite meritum anteponi.» De nobilitate, p. 256.
396 Encontra-se numa das cartas uma expressiva declaração do fideísmo de Salutati, e
significativamente no contexto da sua apologia das artes liberais (do trivium e do
quadrivium) como absolutamente necessárias não só para as ciências humanas mas
também para as ciências teológicas, um tópico que será secundado por muitos huma-
nistas posteriores, sobretudo por aqueles que se propõem levar a cabo a reforma dos
estudos teológicos libertando-os da dialéctica e da metafísica aristotélicas, como
Erasmo e Melanchthon. Epistolario, IV, p. 214-215: «dedit enim Deus servo suo
gratiam hanc ut nunquam in aliquo contra fidem senserim nec etiam, licet contrastare
videretur humana ratio, vel leviter hesitarim. quomodo quidem auderet intellectus
meus vel a sacris dissentire litteris, vel in his, que fidelium universitas determinaverit,
hesitare? nescio de aliis, ego vero id michi semper...michi firmissime persuasi nullam
doctrinam esse fide nostra sacrisque litteris potiorem; quicquidve quod huic contradicit
falsissimum, quicquidve quod ab ea discedit esse delirum; summamque mentis stulti-
ciam semper duxi presumptuosique nimium intellectus ab his que Iesus precepit, ab his
que Paulus docet vel ab his que uterque consulit, que vult vel transtulit Hieronimus,
Ambrosius tractat, exponit Gregorius vel disputat Augustinus aliquo modo discedere
vel nolle viris tante sanctitatis et eruditionis per omnia consentire.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 191

tati a atitude de um certo cepticismo especulativo aliada à confiança nas


faculdades práticas do homem. E, de resto, encontramos com alguma
frequência em pensadores do Renascimento e até da Modernidade o cep-
ticismo especulativo de mãos dadas com o fideísmo teológico ou religioso.
Gianfrancesco Pico della Mirandola, Cornelius Agrippa de Nettesheim,
Erasmo, Montaigne e Pascal, apesar das diferenças e respectivas singula-
ridades, estão nesta mesma linha de pensamento.397
Salutati, defendendo embora a vantagem da vida activa sobre a
especulação, não rejeita esta, mas antes incorpora-a na sua noção de vida
activa, subordinando-a porém aos fins morais. A verdadeira sabedoria
deve aliar a vida activa e a especulativa, embora subordinando esta àquela.
Assim, a ciência será boa, não incondicionalmente, mas somente na
medida em que promova a virtude e contribua para tornar bons os que a
cultivam.398
De resto, não é a ciência que o humanista aprecia e sim a sapiência,
a qual incorpora em si já dimensão moral e a prudência: «A sabedoria
não consiste apenas em especular. Pois se lhe tirares a prudência, nunca
terás um sábio ou a sabedoria... A prudência completa a sabedoria, e se a
eliminares só ficas com uma imperfeita e estéril sabedoria.»399 O huma-
nista admite mesmo, com Santo Agostinho, que «a sabedoria não con-
siste apenas na especulação, mas consta de uma parte activa e uma parte
contemplativa» (sapientiam non solam esse speculationem, sed ex activa
contemplativaque componi), mas conclui que por isso mesmo «a especu-
lação não constitui o bem último do homem embora lhe possa ser subor-
dinada» (speculatio non sit ultimum hominis bonum quandoquidem possit
ad aliud ordinari).400
Ao defender o primado da vida activa sobre a vida especulativa – da
acção moral e política sobre a ciência e a mera erudição – Salutati inau-
gura um dos mais importantes debates do pensamento dos séculos XV e
XVI que mobilizou humanistas de várias gerações desde o princípio do
século XV ao início do século XVII, e não só em Itália como mesmo fora
397 Sobre o cepticismo renascentista e moderno, veja-se: Richard Popkin, The History of
Scepticism from Erasmus to Spinoza, Assen, 1960 (ed. rev.: Berkeley/Los Angeles/
/London, 1979).
398 Epistolario, II, p. 274:«Bona et admirabilis est scientia, si tamen ad virtutis exitum
dirigatur [...] nec solum liberales scientie dicte sunt, quod circa ipsas liberi non servilis
condicionis versarentur, sed quia mortales animos liberant, ut ferantur expeditius in
virtutem. Ut laborandum sit non ut sciamus [...], sed ut ad fieri bonos idonee prepare-
mur.»
399 «Non enim est sapientia [...] solummodo speculari. Nam, si prudentiam abstuleris,
nusquam sapientem aut sapientiam assignabis. [...] Perficit enim sapientiam prudentia,
quam si sustuleris imperfectam inanemque sapientiam assignabis.» De nobilitate,
p. 178.
400 De nobilitate, pp. 178-180.
192 Leonel Ribeiro dos Santos

de Itália, de Leonardo Bruni a Pierre Charron, passando por Cristoforo


Landino401, Erasmo, Vives, Melanchthon, para citar apenas alguns dos
mais destacados representantes.402 Não é demais sublinhar o alcance filo-
sófico deste debate, pois não se trata de um tópico para exercício retó-
rico, mas nele se decide uma orientação característica do Humanismo e
da sua noção de sabedoria, segundo a qual o primado é concedido às
virtudes morais sobre as intelectuais e a ciência é secundarizada frente
aos imperativos da vida prática, moral e política ou, mais propriamente, é
subordinada a estes imperativos. Mas o interesse do tópico, em Salutati,
não reside tanto no facto de ele se encontrar aí na sua primeira formula-
ção, quanto por ser solidário de uma nova antropologia e até de uma nova
ontologia: de uma antropologia da acção e de uma ontologia do bem.
Como se lê em vários momentos do De nobilitate, o fim da ciência espe-
culativa não é mais nobre do que o fim da ciência activa (das Leis, da
Moral, da Política): «O fim da especulação consiste no saber, cujo
objecto é o verdadeiro. Mas o fim das Leis é a direcção dos actos huma-
nos. O seu objecto é o bem, não o bem simplesmente, mas aquele que é
de longe muito mais divino, o bem comum. E não é o bem um princípio
de ser muito mais nobre do que o verdadeiro? Falo aqui não do bem, pelo
qual somos um bem, mas daquele bem mediante o qual nos tornamos e
somos bons.»403
Em suma, ao ideal de vida especulativa, que estabelece como
supremo fim do homem e sua suprema felicidade tão somente a desco-

401 O debate acerca do primado da vida activa ou contemplativa é o tema dos dois
primeiros livros das Disputationes Camaldulenses (1480). Os intérpretes dividem-se
quanto à interpretação da posição de Landino. Para uns, ele resolve o confronto no
sentido inverso do de Salutati e Bruni, dando o privilégio à vida contemplativa,
sofrendo já o impacto do renascimento do platonismo e o magistério de Marsílio
Ficino. Para outros também Landino propõe uma conciliação ou tensão dialéctica entre
os dois géneros de vida, sem sacrifício de um ao outro, e isso estaria bem demonstrado
no percurso do herói Eneas, mítico fundador de Roma, de que o humanista dá, no
terceiro e quarto livros das Disputationes, uma interpretação alegórica, vendo naquele
herói uma figuração da condição humana, por conseguinte, um verdadeiro compêndio
poético da antropologia do humanismo. Esta é a tese defendida por Rainer Weiss
(Cristoforo Landino, Das Metaphorische in den «Disputationes Camaldulenses», W.
Fink, München,1981), nomeadamente contra a interpretação de Eugenio Garin (Der
italienische Humanismus, Bern, 1947,99-104) que vê as Disputationes imbuídas já do
espírito platonizante de Ficino, tendendo, por conseguinte, para a afirmação do
primado da vida especulativa sobre a vida activa.
402 Veja-se de Hans Baron, «The Humanistic Revaluation of the Vita Activa in Italy and
North of the Alps», Idem, In Search of Florentine Civic Humanism, vol. II, pp. 55-71.
403 «Omnis equidem speculationis finis est scire, cuius obiectum est verum. Legum
autem finis est directio actuum humanorum. Obiectum autem est bonum, nec
solummodo bonum simpliciter, sed, quod longe divinius est, commune bonum. Nunc
autem nonne nobilior entis ratio est bonum quam verum? Non bonum quo bonum
aliquod sumus, sed bonum quo boni efficimur atque sumus.» De nobilitate, pp. 32-34.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 193

berta da verdade, contrapõe Salutati uma concepção da realização huma-


na que consiste na fruição da verdade descoberta e sobretudo na acção
que torna o homem bom e útil aos seus semelhantes e a todo género
humano: «Vós pretendeis que o fim da especulação e da felicidade
humana consista na descoberta da verdade; nós, porém, dizemos que ele
consiste em fruir a verdade descoberta e não apenas em fruí-la, mas em
actuar para que o homem se torne bom, para que se conserve a cidade e
para que não se perturbe a sociedade e comunidade do género huma-
no»404. A uma antropologia do homem entendido como ser meramente
espiritual, que se cumpre na realização individualista da sua razão, con-
trapõe Salutati uma antropologia que atende a todas as dimensões essen-
ciais do ser humano, ser individual, mas ao mesmo tempo integrado na
comunidade humana, ser dotado de razão, mas também capaz de se
determinar para a acção no plano ético e no plano político e, em suma,
um ser movido também por afectos, por desejos e paixões. Especulação,
fruição e acção correspondem, em registo antropológico, às dimensões da
concepção retórica de verdade proposta pelo humanista, a qual visa satis-
fazer três funções igualmente essenciais: docere, delectare, movere.405
Salutati defende com coerência e consistência a sua antropologia da
acção, a qual é solidária da sua incondicional defesa da liberdade humana
frente aos determinismos naturais, desenvolvida no De fato et fortuna, e
da sua visão da história e dos feitos humanos, de cujo estudo pode a
razão extrair princípios de orientação para a sua conduta que lhe são
muito mais úteis do que os conhecimentos tirados da observação da natu-
reza.406 Já em 1372, sendo ainda vivo Petrarca, iniciou a redacção de um
404 «Vos finem humane speculationis et felicitatis vultis verum invenisse; nos invento
vero frui, nec frui solummodo, sed operari ut homo bonus fiat, ut conservetur civitas,
et humani generis societas atque communitas non turbetur.» De nobilitate, p. 36.
405 Para Salutati é a poesia que superlativamente satisfaz essa mobilização de todas as
faculdades anímicas: «poetica simul omnia perficit et imaginativam thesaurumque
perceptarum rerum, memoriam, movet et reducit in actum, per assumptas res atque
similitudines res rebus applicatione delectabili coniungendo (quod quidem nulla
prorsus alia facultas potest efficere), addendo super hoc dulcedinem admirabilis
armonie.» De laboribus Herculis, I, p. 23. Em alguns passos da obra, a função cogni-
tiva é atribuída à Lógica, enquanto a activa ou volitiva é atribuída à Retórica: «ambe
quidem, licet diverso tramite, finem unum intendunt, quamvis una dilucidet intel-
lectum ut animo sciat, altera disponat ut velit, et alia ratione illa probet ut doceat, hec
vero persuadeat ut inclinet.» Epistolario, IV, p. 223.
406 O pensamento de Salutati sobre a história e a importância do seu estudo para a
orientação da vida privada e pública está bem expresso numa carta a Juan Fernandez
de Heredia, provavelmente datada de 1 de Fevereiro de 1392 (Epistolario, II, 289-
-297): «rerum gestarum scientia monet principes, docet populos et instruit singulos
quid domi quidque foris, quid secum, quid cum familia, quid cum civibus et amicis,
quidque privatim vel publice sit agendum [...] hec est consiliorum dux atque doctrina;
fugiendorum periculorum regula et bene gerendarum rerum certissimum
documentum.» Ibidem, p. 292.
194 Leonel Ribeiro dos Santos

opúsculo intitulado De vita associabili et operativa, como réplica ao De


vita solitaria do seu mestre. Mas em 1381, escreve, para um amigo que
decidira seguir a vida religiosa, um opúsculo intitulado De saeculo et
religione, onde exalta a excelência da vida monástica. Estas iniciativas,
aparentemente contraditórias, poderiam levar algum intérprete a ver hesi-
tação na sua atitude. Mas tanto na sua correspondência como na obra que
aqui analisamos ele apresenta sem ambiguidades a «negociosa et asso-
ciabilis vita» como preferível a uma vida ociosa e solitária. Desta apro-
veita apenas um, ao passo que aquela é útil e proveitosa a muitos. Neste
ponto, o pensamento do humanista florentino nutre-se por igual da ética
civil ciceroniana, exposta no De Officiis, e da caritas christiana, proposta
nos Evangelhos. De resto, a aparente hesitação do autor pode resultar
apenas da ambiguidade do próprio termo contemplação, por muitos
tomado como sinónimo de especulação, mas que tem um sentido muito
mais pregnante se se considera como o estado ao qual, segundo a doutri-
na cristã, é chamado o homem depois desta vida. É o própro Salutati
quem nos adverte para a necessidade de distinguir os termos (contempla-
ção e especulação) e os planos a que nos referimos (o da vida terrena e
temporal ou o da vida celeste e eterna) ao usá-los: «Não ignoro que há
muitos que usam estes dois termos – especulação e contemplação – como
sinónimos. Mas a contemplação, na medida em que é preferível à vida
activa, é algo diferente da especulação. Neste sentido se diz ser aquela o
fim de todas as acções e a eterna perfeição das alegrias, a qual nunca
pode ser completa na vida terrena, mas apenas se alcança na pátria
celeste, quando Deus for tudo em todos e não o virmos como num espe-
lho e em enigmas mas como ele é. Neste sentido, concedo que a vida
activa precede segundo o tempo, mas a contemplativa, depois de termi-
nado o tempo, está incomparavelmente acima daquela, tanto pelos seus
méritos como pela sua essência. Mas se tomares a contemplação apenas
como especulação da verdade, direi que ela não deve ser preferida à vida
activa nem segundo a essência nem segundo o tempo. A própria especu-
lação é uma espécie de acção, mas não deve ser preferida à operação
segundo a virtude, nem pela essência nem pelos méritos.»407

407 «Nec ignoro multos indifferenter et quasi synonimis uti duobus istis terminis,
speculatione et contemplatione. Sed contemplatio prout active prefertur aliud est a
speculatione. Hoc enim sensu dicitur omnium actionum finis et eterna perfectio
gaudiorum que numquam perfici potest in via, sed perficietur in patria, cum erit omnia
Deus in omnibus et non videbimus per speculum in enigmate, sed prout est. Quo
quidem sensu fateor activam precedere tempore, contemplativam vero, sicut sequitur
tempore, sic incomparabiliter et meritis et precellere ratione. Sed si contemplationem
sumpseris, prout solum est speculatio veritatis, active vite dicam nec ratione nec
tempore preferendam. Ipsa quidem speculatio quedam actio est, operationi tamen
secundum virtutem nec re nec meritis preferenda.» De nobilitate, p. 38.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 195

III
UM DEBATE ANTROPOLÓGICO:
O PRIMADO DA VONTADE SOBRE O ENTENDIMENTO

A preferência pela vida activa em relação à vida especulativa e a


subordinação da ciência e da especulação à moral e à virtude, invocavam,
como vimos, uma razão antropológica, que se condensa na defesa do
primado da vontade sobre o entendimento e uma razão moral e metafí-
sica fundada na primazia do bem sobre a verdade e o ser.408 É no cap. 23
do De nobilitate que encontramos o que nos parece ser o núcleo da con-
cepção antropológica de Salutati. Esta expõe-se sob a forma de um
voluntarismo, que se resume na tese segundo a qual «a vontade é no
homem mais nobre do que o entendimento e é por isso que a vida activa
deve preferir-se à vida especulativa».409
O autor adverte-nos de que quando fala da vontade entende por tal
não o «appetitus naturalis vel sensitivus», mas aquela faculdade do homem
que dispõe de livre arbítrio. Não se trata, porém, de uma vontade cega, mas
de uma vontade que incorpora em si a razão. O que, todavia, não o impede
de insistir na tese da autonomia e independência da vontade relativamente
às demais faculdades e mesmo relativamente ao entendimento. A vontade
impera sobre todas as potências da alma, sejam elas as vegetativas, as sen-
sitivas ou as intelectuais: «ela manda ao entendimento que julgue discor-
rendo sobre as coisas percebidas e tambem à memória que reponha e con-
serve e depois exponha fielmente o que recebeu.»410
Mais: a vontade é concebida como o próprio princípio motor do psi-
quismo humano, o qual sem ela permaneceria inerte se não o movessem
as ordens da vontade: «Para além da alma vegetativa, tudo o que existe
de passivo ou activo na alma ou no animal, que compõe a alma e o corpo,
permanecerá inerte e ocioso, se não o mover o império da vontade, cuja
força e principado é tal sobre as outras potências da alma, que, ainda que

408 «Ratio boni melior atque nobilior sit in creaturis quam ratio veri [...] et cum bonum
progrediatur ultra verum, plus habeat de ratione finis, cumque speculationis obiectum
sit verum, ethice vero et operative [...] bonum obiectum sit [...], concludi... activam
esse speculationi [...] preferendam.» De nobilitate, p. 182.
409 «Quod voluntas est nobilior intellectu, et activa vita sit speculative preferenda.» Este
voluntarismo antropológico tem uma correspondência no plano teológico: «Et quamvis
in deo, qui summe simplex est, voluntas sit sua essentia, et hoc idem in animabus
hominum, ut expressius assignari queat in nobis imago atque vestigium trinitatis...».
De laboribus Herculis, ed. cit., p. 102.
410 «Et ipsum intellectum ordinat ut de perceptis discurrendo iudicet, nec non et memo-
riam, ut reponat atque custodiat demumque fideliter exhibeat quod recepit.» De nobi-
litate, p. 184.
196 Leonel Ribeiro dos Santos

os instrumentos dos sentidos recebam as espécies sensíveis, sem as


ordens da vontade o efeito de tal recepção dificilmente vai por diante.»411
É particularmente significativa a insistência de Salutati no carácter
passivo do entendimento. Este está segundo ele completamente subordi-
nado ao império da vontade. E é este império que permite concluir pela
maior nobreza da vontade em relação ao entendimento.412
Mas a tese da autonomia da vontade relativamente ao entendimento
não remete o autor para uma concepção da absoluta arbitrariedade ou
irracionalidade das decisões. A vontade é sempre livre, mesmo relativa-
mente ao entendimento, não se vendo coagida a seguir as suas orientações.
Pelo contrário, é ela que exige do entendimento, e para seu governo, os
esclarecimentos adequados, não ficando porém determinada por eles.413
O entendimento, por outro lado, permanece sempre um servo (minis-
ter) e um subordinado da vontade, preparando o trabalho desta. Cabe-lhe
não apenas esclarecer o que uma coisa é (quid sit), mas também a sua
qualidade (quale sit); ou seja, a vontade não pretende apenas a considera-
ção indiferente que o entendimento faça acerca da natureza das coisas,
mas requer dele que indague também a qualidade interna e a pertinência
das coisas, de modo a poder fazer delas um uso moralmente recto.
A incondicional defesa da autonomia e primazia da vontade leva
Salutati a refutar as teses dos que defendem a primazia do entendimento,
411 «Iaceret enim iners et segne supra vegetativam quicquid passivum aut activum est in
anima vel in animali, quod corpus animaque componit, nisi moveat illud imperium
voluntatis, cuius quidem tanta vis est tantusque super alias anime potentias principatus,
quod etiam licet sensuum instrumenta recipiant sensibilium species, talis receptionis
effectus sine voluntatis iussibus ulterius vix procedat.» De nobilitate, p. 184.
412 «Nobilior est igitur voluntas quam intellectus imperii dignitate. Et cum sic sit
intellectus sue nature ratione passivus, quod movere se non possit ad agendum nisi
voluntas iubeat, nec in actione persistere nisi semper voluntatis actus assistat, mox
enim desistente voluntate desinit et finitur actio quelibet intellectus, remaneatque in
sue nature ratione passivus, nobiliorem restat esse voluntatem que quidem agens sit
atque movens quam intellectum qui nichil agat nisi solum imperio voluntatis.»
(p. 184). Numa das suas cartas, Salutati é ainda mais preciso na caracterização da
passividade do entendimento: «Intellectus enim adeo segnis est et iners, quod per
semetipsum semper iacet. Nam primus eius actus est, quem a sensibus speciebusque
sensibilium excitatur, quod omnino patientis est. Secundus autem est compositionis
rationisque discursus, quod facere non potest, nisi voluntas imperaverit et semper
astiterit discurrenti; ut quotiens voluntas non precipiat vel ab urgendo desistat,
intellectus noster penitus nichil agat. Nam et obiectum sensibile parum agit, nec per se
potest intellectum possibilem actuare, si voluntas iubens semper intellectui non assistat;
que si mentem fixam ad aliquid teneat, nichil preter illud intelligere valeat vel sentire.»
Epistolario, III, pp. 445-446.
413 «Voluntas est semper, tam in sui actus eliciti quam imperati productione, libera, nec
ab intellectu vel alia potentia potest cogi, liceat valeat inclinari, cum intellectus ab ipsa
voluntate non moveatur solummodo, sed cogatur, nec possit, iubente voluntate, non
speculari, cum eidem, quantum ultra possit in propria actione procedere, non possit
veluti serviens non parere.» De nobilitate, pp. 184-186.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 197

invocando que este é a causa determinante das decisões da vontade, ou


que o seu objecto – a verdade é mais universal e nobre – que o objecto da
vontade, ou ainda que a vontade está limitada nas suas decisões pelas
razões do entendimento. Antecipando Descartes, o nosso humanista sus-
tenta que a autonomia da vontade relativamente às razões do entendi-
mento é tal que o seu poder e vigor se exerce mesmo sobre aquilo que se
ignora, sem que, portanto, careça da evidência do entendimento.414
E vai mais longe ainda, como que vislumbrando a tese kantiana
segundo a qual até o interesse especulativo da razão é determinado pelo
interesse prático, ao dizer que «o desejo natural de saber não é um desejo
do entendimento, mas da vontade, e esse desejo antecede, não só por
natureza mas também segundo o tempo, todo o entendimento e todo o
acto do entendimento»415
Tudo isto faz supor que a vontade tem a sua própria intencionalidade
e teleologia, objecto e princípios próprios, que há por assim dizer uma
ontologia do bom, o que se compreenderá melhor quando, no ponto
seguinte, analisarmos a distinção estabelecida pelo autor entre a ordem
do bem e a ordem da verdade e o seu novo entendimento da hierarquia
que existe entre os transcendentais da metafísica medieval.
Respondendo a uma objecção, tirada da Ética Nicomaqueia (1177
a 11 ss), onde se lê que a virtude mais nobre e divina do homem é a da sua
faculdade intelectual, Salutati tem a oportunidade de interpretar a tese
aristotélica a seu favor, incorporando a vontade no intelecto aristotélico.
Segundo ele, se for bem entendida, a tese aristotélica não separa a von-
tade do entendimento, mas conjuga-os: o intelecto aristotélico incorpora a
vontade. Mais propriamente, porém, deveria dizer-se que é a vontade que
incorpora o entendimento: «A accção segundo a virtude, mesmo que se
entenda esta virtude como sendo a do entendimento, dado que este é pas-
sivo e não pode sem o império da vontade realizar ou permanecer na sua
acção que é inteligir, sem dúvida compreende ao mesmo tempo a vontade
e o entendimento. Existem em nós estas coisas sobremaneira divinas, a
saber os que detêm o domínio através da vontade, e os que possuem a
inteligência graças ao entendimento, o qual nada pode inteligir a não ser
acompanhado do império da vontade.»416

414 «Non moveat etiam, quod non possit vigor et potentia voluntatis ferre super aliquid
ignoratum, ut intellectus evidentiam precedere sit necesse.» Ibidem, p. 190.
415 «Naturale quidem sciendi desiderium non est intellectus, sed voluntatis, quod
omnem intellectum ac intellectus actum, non natura solum, sed ratione temporis
antecedit.» Ibidem, p. 192.
416 «Que quidem Philosophi verba, si recte voluerimus intelligere, non dividunt ab intel-
lectu voluntatem, sed ea sine dubitatione coniungunt. Operatio quidem secundum
virtutem, etiam si volueris hanc virtutem intellectum esse, cum, ut dictum est, sic
passivus sit, quod sine voluntatis imperio non possit in opus suum, quod est intelligere,
198 Leonel Ribeiro dos Santos

Uma passagem do De gratia et libero arbitrio, de S. Bernardo de


Claraval, confirma-o na sua concepção, e revela a sua capacidade de con-
ciliar o intelectualismo aristotélico com o voluntarismo de inspiração
cristã: «Sem dúvida, a vontade é um movimento racional que preside
tanto aos sentidos como aos apetites; tem, por certo, para onde quer que
se dirija, sempre a razão como companheira e por assim dizer como aia
que a segue a pé. Não porque se mova sempre a partir da razão, mas por-
que nunca se move sem razão, de tal modo que faz muitas coisas contra
ela [a razão] através dela, isto é, pelo seu ministério mas contra o seu
conselho ou juízo.»417 De qualquer forma, «a intelecção do entendimento
nunca é causa do movimento da vontade, quando muito pode ser ocasião:
não queremos porque entendemos, pois, se assim fosse, toda a intelecção
produziria o movimento da vontade, mas antes, quando entendemos dá-
-se-nos a possibilidade de querermos.»418
Tendo começado por afirmar a autonomia da vontade e a sua prima-
zia sobre o entendimento, o autor termina por defender a unidade orgâ-
nica do espírito na diferenciação funcional das duas faculdades humanas:
«Embora a vontade e o entendimento devido à unidade da alma sejam
realmente um só, diferem todavia nisto: aquela domina e este serve.
Aquela potência é a senhora, esta porém é a serva.»419
A homologia com a representação política, sublinhada aliás também
pela citação de S. Bernardo, é óbvia: à vontade cabe o principado, o
poder e a decisão; ao entendimento cabe apenas a função subordinada de
aconselhar, de acompanhar e de servir o príncipe.

pergere vel manere, simul voluntatem et intellectum sine dubio comprehendit. Hec
sunt enim in nobis divinissima, principantia per voluntatem et intelligentiam habentia
per intellectum, qui nichil potest intelligere nisi cum imperio voluntatis.» De
nobilitate, p. 188.
417 «Porro voluntas est motus rationalis et sensui presidens et appetitui; habet sane,
quocumque se volvat, [semper] rationem comitem, et quodammodo pedissequam. Non
quod semper ex ratione, sed quod numquam absque ratione moveatur, ita ut multa
faciat per ipsam contra ipsam, hoc est per eius quasi ministerium contra eius consilium
sive iudicium.» De nobilitate, p. 188. A passagem de S. Bernardo encontra-se em
Migne, PL, 182, 1003.
418 «Nec credat aliquis ab intellectu procedere voluntatem et hac ratione nobiliorem esse
potentiam intellectus. Conceptio quidem intellectus non est causa, sed occasio volun-
tatis. Non enim quoniam intelligimus volumus, nam semper causaret intellectio
voluntatem, sed potius cum intelligimus datur nobis ut velle possimus.» De nobilitate,
p. 194.
419 «Ut cum voluntas et intellectus propter unitatem anime realiter unum sint, sic ratione
differant quod illa dominetur, iste serviat. Illa potentia sit domina, ista vero sit serva.»
Ibidem, p. 188.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 199

IV
UM DEBATE METAFÍSICO: O PRIMADO DO BEM (BONUM)
SOBRE O SER (ENS) E A VERDADE (VERUM)

Em vários momentos da sua obra, Salutati propõe-nos o que pode-


ríamos chamar uma fundamentação da sua antropologia numa ontologia,
na qual se afirma o primado do bem moral (bonum) não só sobre a ver-
dade (verum) como também sobre o próprio ser (ens). Eis uma dessas
passagens: «O bom ultrapassa a essência da verdade e do ser, refiro-me
àquele bom pelo qual um homem se diz bom e não àquele pelo qual se
diz um bem. Por certo, todo o homem é um bem por razão da verdade e
do ser; o [bem] moral, porém, que é devido à bondade operativa da razão,
não deveria chamar-se bem, mas bom. É este bom que a política e as leis
visam [...]. Este bem verdadeiro e autêntico, que nos faz bons, é procu-
rado mediante a vida activa, ao passo que a especulação procura a ver-
dade. Por conseguinte, acima do bem, do ser e da verdade, que não
podemos separar de qualquer homem, existe o bem moral que os faz
bons, de tal modo que pode dizer-se que o objectivo último da vida moral
está muito acima do ser, do bem e da verdade que a vossa especulação
procura... Pois eu não especulo apenas para saber, mas para que possa,
depois de saber, agir mais racionalmente.»420
É uma ontologia moralmente configurada esta de Salutati, e pode
dizer-se uma ontologia da práxis, na medida em que traz à evidência
aquele domínio que assoma à existência mediante as decisões e as acções
humanas, que se funda na liberdade da vontade e cujo atributo é a quali-
dade moral e o significado que o homem lhe confere. Para Salutati, esse
domínio tem um nome qualificado: é o da realização moral, mas também
o da acção política no contexto da sociedade ou da comunidade humanas.
A práxis é, por conseguinte, atributo do homem e condição da realização
da sua humanidade. Com efeito, colocar o bem moral acima do bem
ontológico, do ser e da verdade, significa afirmar a capacidade do

420 «Bonum etenim ultra veritatis et entis transgreditur rationem, bonum inquam, quo
bonus homo dicitur, non quo bonum. Omnis quidem homo ratione veritatis et entis
bonum est; moralis autem et operative rationis bonitate, non bonum dici debet esse,
sed bonus. Hoc igitur politica bonum et leges intendunt quoniam, te teste, Philoso-
phus... affirmat: «vos, non sciendi gratia, speculari moralia, sed ut boni fiatis» [ Arist.,
Et.Nic. 1103 b 27] Hoc igitur verum bonum germanumque bonum, quod bonos facit,
activa querit vita, cum speculatio querat verum. Supra bonum igitur ens et verum, quod
ab homine quolibet separari non potest, reperitur morale bonum quod bonos facit, ut
certum sit vite moralis obiectum ultimatius esse, quam ens quod et bonum est et
verum, quod speculatio vestra querit. [...] Nichil enim speculor solum ut sciam, sed ut
possim, postquam sciverim, rationabilius operari.» De nobilitate, p. 258.
200 Leonel Ribeiro dos Santos

homem para agir e produzir o seu mundo próprio, um mundo verdadei-


ramente humano, para além do mundo natural e da própria ordem onto-
lógica dada: «Eu estou sempre ocupado no agir... Pus o meu objectivo na
obra, pois trabalho pela salvação dos mortais. Tudo o que especulo é físi-
co; mas tudo o que faço é meu.»421
O mundo moral tem pois uma densidade ontológica maior do que o
mundo natural ou físico, que é moralmente neutro. E o que aquele tem a
mais do que a simples esfera do ser é precisamente a incorporação da
mais-valia humana, a intervenção da liberdade e da acção humanas. Sem
esta relativa subversão da metafísica tradicional não se compreenderia a
antropologia de Salutati, a qual agora ganha todo o sentido na organici-
dade de uma coerente visão do mundo. Com efeito, tanto a antropologia
voluntarista como a defesa do primado da vida activa compreendem-se
melhor e alcançam maior dimensão a partir desta peculiar implantação
metafísica. E não é só o voluntarismo agostiniano e o criacionismo cris-
tão que se insinuam aqui, mas também aquela ontologia ou metafísica
característica dos povos itálicos, que Giambattista Vico, três séculos mais
tarde, identificará como a que considera convertíveis o verum e o factum
e para a qual verare est facere, com isso significando que no início do ser
e da verdade está uma acção criadora ou instauradora, seja ela divina ou
humana.422 Mas, muito antes de Vico, todos aqueles humanistas que,
como Nicolau de Cusa, Giovanni Pico della Mirandola, Juan Luis Vives
e tantos outros, porão em destaque a liberdade criadora do homem, frente
aos determinismos astrológicos ou naturais, não farão mais do que seguir
por uma via para cuja abertura o humanista Salutati deu, no limiar do
Renascimento, o mais decisivo dos contributos.

421 «Ego semper in agendo versor [...] Terminum meum in opere statui, quoniam pro
mortalium salute laboro. Quicquid enim speculor, physicum est; quicquid autem
operor, est meum.» Ibidem.
422 Giambattista Vico, Le Orazioni inaugurali, il ‘De italorum sapientia’ e le
Polemiche, Laterza, Bari, 1914: «antiquos Italiae sapientes in haec de vero placita
concessisse: verum esse ipsum factum; ac proinde in Deo esse primum verum, quia
Deus primus Factor.» (pp. 131-132). A proximidade de Vico com a visão do mundo
dos humanistas, em particular, com a visão jurisprudencial e retórica de Salutati, é
visível sob muitos aspectos e foi expressamente abordada em vários ensaios por
Ernesto Grassi, reunidos no volume Vico e l’umanesimo, Guerini, Milano, 1992 (trad.
esp. : Vico y el humanismo, Anthropos, Barcelona, 1999).
V

NICOLAU DE CUSA
E A SABEDORIA DO IDIOTA

«Veritas quanto clarior tanto facilior. Putabam ego ali-


quando ipsam in obscuro melius reperiri. Magnae potentiae
veritas est, in qua posse ipsum valde lucet. Clamitat enim
in plateis, sicut in libello De idiota legisti. Valde certe se
undique facilem repertu ostendit.»
Nicolau de Cusa, De apice theoriae, Opera XII, 120.
202 Leonel Ribeiro dos Santos

SINOPSE

Entre as numerosas obras de Nicolau de Cusa (1401-1464) destaca-


-se um políptico constituído pelos diálogos De Sapientia, De Mente e De
Staticis Experimentis, composto em Roma no ano de 1450, em plena fase
de maturidade intelectual do Cardeal-filósofo. A singularidade destes
escritos não resulta apenas do seu carácter dialógico, que encontramos
noutras obras do mesmo autor, mas sobretudo da personagem central que
os ocupa, o Idiota, um homem simples e iletrado, na verdade um pobre
artesão que se ocupa no fabrico de colheres de madeira. É a este homem
pobre e iletrado que o autor confia a exposição de teses fundamentais da
sua visão do mundo e a solução de questões clássicas da filosofia, como a
da relação do uno e do múltiplo, a da natureza e poder da mente humana,
e até a conciliação de algumas doutrinas fundamentais dos dois maiores
pensadores da tradição filosófica, Platão e Aristóteles. E isso num explí-
cito confronto com os saberes letrados tradicionais, representados seja
pelo filósofo aristotélico, seja pelo humanista ou orador, que são os outros
personagens dos referidos diálogos.
Mas, para além da figura do Idiota, que verdadeiramente protagoniza
a própria concepção cusana de sabedoria ou de filosofia como «douta
ignorância», há ainda um outro elemento que confere unidade ao políptico:
no seu conjunto os referidos diálogos podem ser lidos como um desen-
volvido e muito original comentário ao versículo do livro bíblico da
Sabedoria, onde, falando-se da sabedoria de Deus criadora do mundo, se
diz que ela «tudo dispôs em medida, em número e peso».423
Neste ensaio, tento mostrar não só a importância destes diálogos,
enquanto peculiar exposição da filosofia do Cardeal, mas também o seu
significado como expressão da decisiva transformação em curso na
época, no que respeita ao regime e natureza da verdade e dos seus
detentores, à valorização das tarefas mundanas e da vida activa, nas quais
se revela a mais alta sabedoria e das quais se extraem as mais profundas e
verosímeis conjecturas ou as mais «altas teorias» acerca das mais impor-
tantes questões relativas a Deus, ao Mundo e ao Homem. Neste sentido,
423 Sap. ,11,20: «Omnia in mensura et numero et pondere disposuisti.» Mais do que uma
vez o versículo bíblico é expressamente citado ou referido por Cusa. Veja-se: De staticis
experimentis, Opera V, 222; De sapientia, Opera V, 8-9. As obras de Nicolau de Cusa
são citadas pela edição da Academia de Heidelberga, publicadas pela Felix Meiner
Verlag, de Hamburgo (os 3 diálogos do Idiota constituem o vol. V, publicado em 1983).
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 203

o políptico cusano dos diálogos do Idiota, se por um lado pode ler-se em


natural continuidade com as glosas patrísticas e medievais do citado ver-
sículo bíblico424, pode, por outro lado, considerar-se como um original
contributo para a «disputa das artes» e para o debate acerca da sabedoria
e do primado da vida activa ou da vida especulativa, que envolveu
sobretudo os humanistas italianos quatrocentistas425, e como um
importante documento da reabilitação da nobreza do mundo e da
dignidade das vulgares e laicas ocupações humanas, preferíveis às
estéreis disputas dos filósofos. A tese que resume toda a sabedoria do
Idiota cusano poderia expor-se nestes termos: não é nos livros dos
homens e nas doutrinas dos filósofos que se lê ou aprende a sabedoria.
Ela lê-se com maior evidência no livro do mundo, escrito pelo próprio
dedo criador de Deus e está eloquentemente patente em actividades
humanas tão banais como a fabricação artesanal de colheres de madeira
ou as práticas de pesar, medir e contar num mercado público.
Credenciados proprietários da sabedoria não são, pois, os filósofos e nem
sequer os oradores ou humanistas, praticantes de uma ciência letrada,
mas os artesãos, os mercadores e, em suma, os praticantes das mais
simples e comuns actividades humanas. Pois, como lembra o Idiota, no
primeiro dos referidos diálogos, glosando uma passagem de um outro
livro sapiencial bíblico, é «nos mercados e praças públicas que a
sabedoria grita».426

I
O IDIOTA, OU O MUITO PECULIAR SOCRATISMO
DE NICOLAU DE CUSA

Vários comentadores do pensamento cusano têm apontado ou suge-


rido o carácter socrático da personagem central dos referidos diálogos.

424 Sobre este ponto, veja-se: Albert Zimmermann (ed.), Mensura, Mass, Zahl,
Zahlensymbolik im Mittelalter, Walter de Gruyter, Berlin / New York, 1983, 2 vols. Aí
se encontra, no vol. I, o ensaio de Michael Stadler, «Zum Begriff der Mensuratio bei
Cusanus. Ein Beitrag zur Ortung der Cusanischen Erkenntnislehre», pp. 118-131.
425 As relações entre Nicolau de Cusa e o Humanismo têm sido objecto de recorrente
atenção por parte dos investigadores. Veja-se: G. Saitta, Nicolò Cusano e l’umanesimo
italiano, Bologna, 1957; Rudolf Haubst, «Das Menschenbild des Nikolaus von Kues
und der christlichen Humanismus», in: Gregorio Piaia (a cura di), Concordia discors.
Studi su Niccolò Cusano e l’umanesimo europeo offerti a Giovanni Santinello, Ante-
nore, Padova, 1993, pp. 55-75.
426 Prov. 1,20. De Sapientia, Opera V, 6-7: «Ego autem tibi dico, quod ‘sapientia foris’
clamat ‘in plateis’, et est clamor eius, quoniam ipsa habitat ‘in altissimis’».
204 Leonel Ribeiro dos Santos

Há um «aroma socrático» nestes escritos de Cusa, escreve Maurice de


Gandillac.427 E Eusébio Colomer, comentando esse conjunto de escritos,
fala do «espírito autenticamente socrático que os inspira, mas logo acres-
centa que se trata de um socratismo cristão: «Reflexão socrática e interio-
ridade cristã aliam-se numa concepção extraordinariamente sugestiva, na
qual o conhecimento próprio nos leva a reconhecer em nós a imagem de
Deus e a colocar nesta presença exemplar de Deus no espírito humano a
última explicação do nosso conhecimento.»428
O Idiota seria, pois, a própria encarnação da concepção cusana de
sabedoria como «douta ignorância», a demonstração da paradoxal tese,
enunciada logo no primeiro capítulo de De docta ignorantia, segundo a
qual «saber é ignorar» (scire est ignorare) e que «nada pode advir de
mais perfeito mesmo ao homem esforçadíssimo na doutrina do que reco-
nhecer-se doutíssimo na mesma ignorância que lhe é própria, e tanto
mais alguém será douto quanto mais se souber ignorante.»429 E, de facto,
nesse mesmo contexto, o autor evoca, entre as autoridades que confir-
mam a sua proposta de que todo o saber é ignorância, e antes mesmo das
fontes sapienciais bíblicas, a figura de Sócrates, o qual considerava que
«nada sabia a não ser que ignorava» (visum sit se nihil scire nisi quod
ignoraret).430 Com isso, o Cardeal-filósofo indicava inequivocamente
que a sua proposta, por nova e pessoalmente revelada que tivesse sido,
não era de todo inaudita, embora na Apologia declare que só depois de
ter recebido esse conceito por inspiração divina (quando desuper
conceptum recepi) o descobriu também nos escritos dos santos doutores.431
Devemos, por conseguinte, relativizar a ambiência socrática da noção
cusana de «douta ignorância» e do Idiota e, em qualquer caso, não
devemos ser levados a pensar que este último desempenha nos diálogos
que levam o seu nome o mesmo papel que Sócrates desempenha nos
diálogos de Platão.432

427 Genèses de la Modernité, Les douze siècles où se fit notre Europe, Éditions du Cerf,
Paris, 1992, p. 436. Sobre o tema do ‘Idiota’, veja-se: Maurice de Gandillac, Nikolaus
von Kues. Studien zu seiner Philosophie und philosophischer Weltanschauung, Dussel-
dorf, 1953, pp. 45-60; K. Oedinger, «Idiota de Sapientia. Platonisches und antiplato-
nisches Denken bei Nikolaus von Kues», Tijdschrift voor Philosophie, 17 (1955),
pp. 690-698; E.F. Rice, «Nicholas of Cusa’s Idea of Wisdom», Traditio, 13 (1957),
pp. 345-368.
428 Eusebio Colomer, Nicolau de Cusa (1401-1464), Faculdade de Filosofia, Braga,
1964, pp. 21-22.
429 «Nihil enim homini etiam studiosissimo in doctrina perfectior adveniet, quam in ipsa
ignorantia quae ipsi propria est, doctissimum reperiri, et tanto quis doctior erit, quanto
se magis sciverit ignorantem.» De docta ignorantia, I, cap. 1.
430 Ibidem.
431 Apologia doctae ignorantiae, Opera II, p. 12.
432 Mais recentemente, a mesma ideia da irredutibilidade do conceito cusano de «douta
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 205

O Cardeal tinha à sua disposição, tanto na tradição filosófica como


na tradição cristã, neotestamentária e patrística, sobejos motivos de inspi-
ração para construir a sua personagem. Em Actos 4,13, fala-se dos após-
tolos como sendo «homens sem estudos e simples» (homines sine litteris
et idiotae, ou anthropoi agrammatoi kaì idiotai), um passo que viria a ser
glosado por muitos dos Padres.433 Mais próximo de Cusa, no tempo e no
tema, Francisco Petrarca, em De sui ipsius et multorum ignorantia (1367-
-1371), contrapusera à arrogante ciência letrada dos aristotélicos, que o
consideravam um «bom homem, mas ignorante» (virum bonum ydiotam,
sine litteris bonus), uma «pia sapientia» de assumida inspiração agosti-
niana e uma «virtus illiterata»: «Sejam as letras para aqueles que mas
negaram... Para mim, porém, seja a humildade e o conhecimento da
minha própria ignorância e fragilidade... em suma restem-me Deus e
aquela virtude iletrada que eles não me invejam. Rir-se-ão sem dúvida se
ouvirem estas coisas e considerar-me-ão como uma qualquer velhinha
que sem estudos fala piamente. Com efeito para aqueles que estão incha-
dos de cultura das letras nada há mais vil que a piedade, mas para os ver-
dadeiros sábios e sobriamente letrados nada há mais caro, e foi para estes
que se disse que ‘piedade é sabedoria’, ao passo que os outros ao lerem
os meus discursos confirmar-se-ão cada vez mais na sua sentença segun-
do a qual eu sou um bom homem, mas sem cultura.»434

ignorância» a uma mera reminiscência socrática é defendida por João Maria André, na
sua obra Sentido, simbolismo e interpretação no discurso filosófico de Nicolau de
Cusa, FCG/JNICT, Coimbra, 1997, p. 92: «Não é demais reafirmar a abertura para o
infinito inerente à «douta ignorância» precisamente porque é ela que marca a sua espe-
cificidade no pensamento deste autor. Embora ele se reclame de Sócrates como seu
predecessor, a «douta ignorância» só se compreende verdadeiramente, na profundidade
com que Nicolau de Cusa a tematiza, na medida em que for situada no quadro do
pensamento cristão e na positividade com que nesse pensamento o conceito de Infinito
se afirma. Por isso, só no neoplatonismo de raiz cristã, e em autores de que o Pseudo-
-Dionísio, Agostinho e Boaventura poderiam ser citados como exemplos, se poderão
encontrar os verdadeiros antecedentes deste fecundo princípio do filosofar.»
433 Veja-se, entre outros, Agostinho, Ennarrationes in Psalmos, 65,4 (in: Migne,
Patrologia Latina, 36,788).
434 «Litere igitur sint, vel horum qui illas michi auferunt, vel quia horum, nisi fallor,
esse non possunt, sint quorumcunque potuerint; horum autem sit suarum opinio rerum
ingens, et Aristotelis nudum nomen, quod his quinque sillabis multos delectat ignaros;
insuper et inane gaudium, et elatio fundamenti inops ac ruine proxima, omnisque quem
inscii et inflati de suis erroribus fructum vaga et facili credulitate percipiunt. Mea vero
sit humilitas et ignorantie proprie fragilitatisque notitia et nullius nisi mundi et mei
insolentie contemnentium me contemptus, de me diffidentia, de te spes; postremo
portio mea Deus, et, quam michi non invident, virtus illiterata. Ridebunt plane, si hec
audiant, et dicent me ut aniculam quamlibet sine literis pie loqui. His enim literarum
typo tumidis nil pietate vilius, qua veris sapientibus ac sobrie literatis nichil est carius,
quibus scribitur: ‘Pietas est sapientia’, meisque sermonibus magis ac magis in sententia
firmabuntur, ut sine literis bonus sim.» De sui ipsius et multorum ignorantia, in F.
Petrarca, Prose, ed. de G. Martelloti, P.G. Ricci, E. Carrara, E. Bianchi, com introd. de
G. Martelloti, Milano-Napoli, 1955, pp. 718-719 (também apud R. Amaturo, Petrarca,
206 Leonel Ribeiro dos Santos

Nicolau de Cusa possuía, lera e anotara ele próprio os diálogos de


Petrarca, não só o que acabamos de referir como também o diálogo «De
sapientia», o décimo segundo do seu livro De remediis utriusque fortu-
nae (1366), onde se pode ler, na mesma linha do De sui ipsius et multo-
rum ignorantia, que «o primeiro grau da estultícia é alguém acreditar que
é sábio» (credere se sapientem primus ad stultitiam gradus est). A pro-
ximidade do tom e do tema terá sem dúvida facilitado a falsificação his-
tórica que levou alguém435 a publicar a primeira parte do De sapientia
cusano juntamente com os diálogos de Petrarca e assim, durante quatro
séculos, a fez passar como sendo da autoria de Petrarca.436
Mas o tema do Idiota e da sua peculiar sabedoria corre ainda para
além de Cusa, em contextos de meditação teológica e filosófica, emer-
gindo no diálogo De veritate prophetica (1498) de Girolamo Savona-
rola437, insinuando-se no «omo sensa lettere» de Leonardo Da Vinci438, o
qual igualmente desconfia dos letrados que são apenas recitadores e
trombetas das obras dos outros («recitatori e trombetti delle altrui
opere») e prefere interrogar a natureza e a experiência como um mestre
que se dirige aos seus mestres («maestro ai loro maestri»)439, reeditando-
-se, enfim, num diálogo de Giordano Bruno, o Idiota triumphans (1586),
no qual, a personagem, tal como o seu homólogo e homónimo dos diálo-
gos do Cardeal-filósofo, é «sine grammatica litteratus, sine philosophia
sapiens».440

Roma-Bari, 1988, p. 165). Haveria que referir também, como possível fonte próxima
para o tema da sapientia, a Expositio libri Sapientiae, de Mestre Eckhart (ed. de I.
Knoch e H. Fischer), in M. Eckhart, Die deutschen und lateinischen Werke, vol. II,
Berlin/Stuttgart, 1954.
435 A suspeita recaíu sobre Francisco Filelfo (K. Borinski, «Eine unerkannte
Falschung in Petrarcas Werken», Zeitschrift für romanische Philologie, 36 (1912),
586-597; M. de Gandillac, Oeuvres choisies de Nicolas de Cues, p. 214, nota 2), mas
Klibansky afastou essa hipótese reconhecendo a impossibilidade de identificar o
falsário: «falsum quis commiserit, certe diiudicari non potest» (Appendix II, in: N. De
Cusa, Opera V, LXVI).
436 Sobre este ponto, veja-se: R. Klibansky, «Appendix II: De Dialogis de vera Sapientia
Francisco Petrarcae addictis», in: N. De Cusa, Opera, V, LXV-LXXII.
437 G. Savonarola, La verità della profezia / De veritate prophetica, ed. de C. Leonardi,
Ed. del Galluzzo, Firenze, 1997. Um dos intervenientes no diálogo insiste uma e outra
vez na sua ignorância das letras ao mesmo tempo que na abertura do seu espírito e no
ensino colhido do uso das coisas: «quamquam enim litterarum maxime ignarus sum,
non nihil tamen rerum usus me edocuit et aetas ipsa cautiorem effecit.» (pp. 12) E
noutro lugar: «Sum litterarum expers, apertique et nudi ingenii; ac omnino cavillari
nesciens, simpliciter ambulo.» (p. 156).
438 Codex atlanticus, fº 119, vº.
439 Codex atlanticus, fº117, rº.
440 G. Bruno, Due dialoghi sconosciuti e due dialoghi noti, ed. de G. Aquilecchia, Paris,
1957. Sobre o tema do «idiota» e sua recorrência na literatura filosófica e teológica,
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 207

Esta amostra (breve, por certo, mas que poderia ser muito mais alar-
gada) é suficiente para provar que a figura do Idiota, mais do que uma
criação singular de Cusa ou de qualquer outro autor, representa uma per-
sonagem-tipo recorrente na história do pensamento, que encarna uma
determinada atitude humana no que respeita à sabedoria em contraste
com outras atitudes. Desde a oposição de Sócrates à arrogância e jactân-
cia dos Sofistas, especialistas na arte de caçar homens seduzindo-os pela
retórica e vendendo-lhes uma suposta ciência que presumiam possuir441,
à oposição kantiana entre duas concepções de filosofia, a mundana (con-
ceptus cosmicus) que atende aos fins práticos humanos, e a escolar
(Schulbegriff), que apenas cuida da acumulação de conhecimentos e da
sua sistematização442, passando pela oposição neotestamentária e paulina
entre a sabedoria de Deus e a sabedoria dos homens, perante a qual
aquela mais parece loucura, ou pela contraposição petrarquiana entre a
sabedoria piedosa e humilde e a ciência jactanciosa e inchada dos filóso-
fos, seja enfim nos diálogos de Cusa ou de Bruno, o Idiota protagoniza o
homem simples e sem preconceitos, cuja razão não foi corrompida pelos
estudos nem pela fidelidade a alguma autoridade ou escola filosófica,
mas se exprime na sua simplicidade e espontânea fecundidade. O Idiota
ou leigo iletrado é o emissário de um saber humilde e modesto, que não
tem mais credenciais do que as que lhe advêm da sua própria faculdade
natural de pensar exercida no concreto das actividades humanas vulgares,
faculdade que ele usa com um grande sentido de autonomia e ao mesmo
tempo com uma notável consciência dos seus limites, mas que ainda
assim é capaz de abrir clareiras de luz por domínios onde a erudição filo-
sófica criou emaranhadas selvas de questões e de distinções formais. O
Idiota é o contraposto ao homem erudito e letrado, possuidor de um saber
escolar fundado em autores e autoridades e que destas tira a sua compe-
tência, mas que perdeu o sentido do uso e cultivo autónomo das suas
próprias faculdades. Ele está do lado da natureza contra a cultura e a
escola, do lado da simplicidade contra a erudição dos livros, do lado da
atenção às coisas contra o cultivo das palavras.
O Idiota de Cusa é, sem dúvida, a mais notável expressão desta per-
sonagem-tipo, bem representada pela sua recorrência e metamorfose na
história do pensamento ocidental, e o Cardeal-filósofo faz questão de o
fazer apresentar-se na plena consciência de si, quando, nos diálogos, o
põe a declarar que ignora os livros, que não presta muita atenção às pala-
vras, que não é conduzido por nenhuma autoridade, que fala de modo
rústico, que, ao contrário dos filósofos letrados e que têm fama de sábios,

veja-se no Historisches Wörterbuch der Philosophie, a entrada «Laie».


441 Platão, Sofista 221c-223b.
442 I. Kant, Logik, Einleitung, Werke, ed. W. Weischedel, Bd.V, pp. 446-447.
208 Leonel Ribeiro dos Santos

ponderam seriamente com medo de errar, ele diz simplesmente e sem


medo o que pensa.443
Raymund Klibansky, na memória de apresentação da edição destes
diálogos cusanos, ao abordar o problema das fontes da noção do Idiota,
adverte com razão para o cuidado que se deve ter na invocação dessas
fontes, sobretudo quando retiradas dos autores pagãos, considerando que
elas poderão mais obscurecer do que esclarecer a noção cusana de sabe-
doria. Esta, com efeito, não é aquela de que falaram os filósofos gregos e
romanos, mas uma sabedoria divina incarnada nas mentes humanas. O
mesmo autor refere que entre os Irmãos da Vida Comum, com os quais
Nicolau teve a sua primeira formação, havia a convicção de que o
homem simples e ignorante aprendia a sabedoria directamente da escola
de Deus, a qual superava a doutrina das escolas humanas. E cita ainda
outras ocorrências do tema na literatura patrística e na literatura devota e
mística da época, mas conclui sublinhando a originalidade do pensador
do Mosela: Nicolau de Cusa difere de todos aqueles que podem ser
arrolados como suas fontes pelo facto de ser o único que põe o Idiota a
ensinar o Orador e o Filósofo mediante argumentos que dizem respeito à
própria filosofia.444
Personagem-tipo que representa uma atitude humana, o Idiota cusa-
no contrapõe-se aos representantes dos saberes tradicionais, ao filósofo e
ao orador, os outros dois interlocutores dos diálogos, os quais começam
por desprezá-lo sobranceiramente445, mas logo se rendem com crescente
surpresa e admiração ao modo como ele esclarece, com uma impressio-
nante simplicidade, as mais delicadas questões filosóficas, sobre elas
emitindo luminosas conjecturas ou avançando «altas teorias».
No caso dos escritos em análise, a escolha do diálogo por parte do
seu autor obedece a uma economia de diversificação de estratégias expo-

443 «Ignoro scripturas... Ego, qui sum idiota, non multum ad verba attendo... Hoc scio,
quod nullius auctoritas me ducit, etiamsi me movere tentet... Haec autem ... dixerim
cursorie et rustice... Arbitror neminem facilius me cogi posse, ut dicat quae sentit. Nam
cum me ignorantem fatear idiotam, nihil respondere pertimesco. Litterati philosophi ac
famam scientiae habentes merito cadere formidantes gravius deliberant. Tu igitur, quid
a me velis, plane si dixeris, nude recipies». De Mente, Opera Omnia, V, pp. , 207, 164,
133, 160, 89, respectivamente.
444 «At Nicolaus ab illis auctoribus et omnibus qui eos secuti sunt differt in eo quod
solus oratorem et philosophum argumentis ad ipsam philosophiam pertinentibus ab
idiota doceri facit.» Nicolai de Cusa, Idiota, Opera, V, pp. LXI-LXII.
445 Assim o Filósofo, no início do De Mente: «Est mea consuetudo, cum hominem fama
sapientem accedo, de his, quae me angunt, in primis sollicitum esse et scripturas in
medium conferre et inquirere earundem intellectum. Sed cum tu sis idiota, ignoro,
quomodo te ad dicendum excitem, ut, quam habeas de mente intelligentiam, experiar.»
Opera, V, 89.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 209

sitivas do seu pensamento. Também aqui vale o princípio cusano segun-


do o qual «se o que há a dizer nunca pode ser dito de um modo conve-
niente, então é útil multiplicar os modos de o dizer». 446 Mas o recurso a
este género literário de exposição da filosofia, que teve em Platão a sua
mais antiga e paradigmática expressão, tem que ver também com uma
mudança operada na própria natureza do pensamento e no seu estatuto
discursivo. Na época de Cusa assistia-se a um crescente interesse pelo
conhecimento mais directo das obras e do pensamento platónicos, o qual,
após contributos parcelares de vários humanistas (Leonardo Bruni, Jorge
de Trebizonda), viria a ser possível graças à tradução para o latim, por
Marsílio Ficino, de todo o corpus platónico, empreendimento iniciado
ainda em vida do Cardeal mas concluído e publicado já depois da sua
morte. O interesse de Cusa pelo pensamento de Platão está bem docu-
mentado pela sua colecção das traduções medievais e renascentistas dis-
poníveis dos escritos platónicos447 e pelo facto de ele próprio ter
encomendado a Jorge de Trebizonda uma tradução do Parménides para
uso pessoal.448 Na Idade Média, por certo, não faltaram pensadores que
usaram o género dialógico para expor o seu pensamento teológico e filo-
sófico, mas é no Renascimento que o género se torna um dos mais fre-
quentes e característicos modos de exposição do pensamento, dele fazen-
do amplo uso, sobretudo para os assuntos da filosofia moral, os mais
destacados pensadores do período: Petrarca, Salutati, Lorenzo Valla,
Leonardo Bruni, Cristoforo Landino, Leon Battista Alberti, Giovanni
Pontano, Erasmo. Mais tarde, no último quartel do século XVI, numa
época em que já se faz notar a «decadência do diálogo»449, Giordano
Bruno escolherá esse género literário para expor a sua filosofia e ainda
nas primeiras décadas do séc. XVII é sob a forma ágil do diálogo que
Galileu expõe as suas ideias cosmológicas.
Os diálogos filosóficos de Cusa devem também ler-se no contexto
deste amplo renascimento do género dialógico, renascimento que viria a
ser secundado pelo surgimento, já no século XVI, de uma insistente lite-
ratura sobre a natureza do diálogo.450 A predilecção dos pensadores

446 «Nam quod dicendum est, convenienter exprimi nequit. Hinc multiplicatio
sermonum perutilis est.» Ibidem, 113.
447 G. Santinello, «Glosse di mano del Cusano alla Repubblica di Platone»,
Rinascimento, ser. 2, 9 (1969), pp. 117-145.
448 Veja-se: James Hankins, Plato in the Italian Renaissance, Brill, Leiden, 1991,
pp. 184ss. A encomenda terá sido feita a Jorge de Trebizonda provavelmente no ano de
1458.
449 Veja-se a obra de Walter J. Ong, Ramus, Method, and the Decay of Dialogue: From
the Art of Discourse to the Art of Reason, Harvard University Press, Cambridge, 1958.
450 Veja-se: Davide Bigalli e Guido Canziani (ed.), Il Dialogo Filosofico nel ‘500 Euro-
peo, Franco Angeli, Milano, 1990.
210 Leonel Ribeiro dos Santos

renascentistas pelo diálogo não indicia apenas um gosto por um


determinado género literário, mas sim a preferência por um modo de
exposição e de construção do pensamento que tem que ver também com
a natureza do pensamento que se expõe ou comunica através dele.451
Género muito mais ágil e livre do que a summa, o tractatus ou a
quaestio, o diálogo permite entrelaçar discursivamente as dimensões
científico-didácticas e as retórico-estéticas – o docere e o delectare –, e
traduz melhor também a nova consciência do essencial carácter dialógico
do próprio pensamento, a ideia do conhecimento como uma investigação
ou inquisitio não solitária mas partilhada, como uma procura aberta e em
campo aberto, uma verdadeira venatio sapientiae, enfim como a comum
e contínua aventura de uma descoberta e a gratificante e partilhada
colheita de um saber cônscio da sua condição sempre conjecturante e
provisória. Por certo, a adopção do diálogo por parte dos pensadores
quatrocentistas e quinhentistas consente uma grande variedade de
formas, que vão desde as amenas conversações ou colóquios de amigos a
propósito de um tema de interesse comum aos provocantes confrontos
entre concepções filosóficas tidas por antagónicas, como acontece nos
diálogos de Bruno.
Os diálogos cusanos do Idiota também traduzem esta nova feição
dialógica do pensamento e traduzem mesmo o reconhecimento da impor-
tância da mediação da palavra partilhada como modo de acesso à ver-
dade, e isso apesar de, ao mesmo tempo, se declarar a impotência da lin-
guagem para dizer o inefável. Precisamente no primeiro dos diálogos em
apreço, expressamente se fala da «força das palavras» e da necessidade
de uma «teologia sermocinal» ou retórica, isto é, do cuidado que se deve
ter para encontrar a linguagem comum e mais significativa, de modo a
conduzir o interlocutor ao conceito ou ideia que se pretende transmitir-
-lhe, aspecto este em que se revela a sintonia de Cusa com a preocupação
retórica dos humanistas seus contemporâneos e respectiva sensibilidade
ao auditório e à função comunicacional da linguagem. Diz o Idiota: «Se
devo manifestar-te o conceito que tenho de Deus, é necessário que a
minha locução, se tem de servir-te, seja tal que as palavras sejam signifi-
cativas, para que desse modo te possa conduzir ao que se investiga na
força da palavra que nos é comummente conhecida. Ora, Deus é quem se
procura. Por conseguinte, esta é a teologia sermocinal, pela qual me
esforço por conduzir-te a Deus pela força da palavra na medida em que o

451 Um dos autores que mais pôs em evidência o carácter dialógico do pensamento
humanista – o diálogo como carácter estrutural do pensamento dos humanistas – e
procurou interpretar o seu alcance foi Leonid M. Batkin, que ao tópico dedica todo um
capítulo da sua obra Gli Umanisti Italiani. Stile di Vita e di Pensiero, Laterza, Bari,
1990, pp. 124-176.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 211

posso fazer da maneira mais fácil e mais verdadeira.»452


Há nestes diálogos cusanos alguns pormenores que não deixam de
ser significativos. Em primeiro lugar, os ambientes onde decorrem: a loja
dum barbeiro (in hanc tonsoris... apothecam), no caso do diálogo De
sapientia, ou a modesta oficina subterrânea (in subterraneum quendam
locellum) de um artesão, no De Mente e no De staticis experimentis. Em
segundo lugar, as personagens: o próprio Idiota e um Orador – represen-
tante da emergente cultura humanista, confiante nos seus livros e na sua
erudição – nos três diálogos, a que se junta, no segundo diálogo, um Filó-
sofo «aparentemente peripatético», representante do saber tradicional.
Finalmente, a circunstância, que proporciona o encontro dos persona-
gens. Esta surge, no primeiro diálogo, sob a forma de uma (caridosa)
provocação. Sigamos o autor.

«Um pobre idiota aproxima-se de um riquíssimo orador e troçando


falou-lhe assim: Admiro-me do teu orgulho, que te afadigues lendo com
leitura contínua inumeráveis livros e que ainda não tenhas sido condu-
zido à humildade. O que certamente acontece porque a ‘ciência deste
mundo’, na qual consideras estar à frente de todos, é uma espécie de
‘estultícia perante Deus’ e por isso ‘incha’. Ao passo que a verdadeira
ciência humilha. Desejaria que te convertesses a ela, pois aí reside o
tesouro da alegria.»453

Não só o pretexto está dado como o tema do diálogo está enunciado:


trata-se de um diálogo sobre a verdadeira sabedoria. E logo à irónica
provocação responde o Orador, nestes termos: «Que presunção é a tua,
pobre idiota completamente ignorante, que assim minimizas o estudo das
letras, sem o qual ninguém progride?»454
Ao que responde o Idiota: «Não é, grande Orador, presunção, o que
me não deixa ficar calado, mas a caridade. Pois vejo-te dedicado à busca
da sabedoria com muito trabalho em vão... A opinião da autoridade fez

452 «Si tibi de deo conceptum, quem habeo, pandere debeo, necesse est, quod locutio
mea, si tibi servire debet, talis sit, cuius vocabula sint significativa, ut sic te ducere
queam in vi vocabuli, quae est nobis communiter nota, ad quaesitum. Deus est autem
qui quaeritur. Unde haec est sermocinalis theologia, qua nitor te ad deum per vim
vocabuli ducere modo quo possum faciliori et veriori.» De sapientia II, Opera V, 66.
453 «Convenit pauper quidam idiota ditissimum oratorem in foro Romano, quem facete
subridens sic allocutus est:
Miror de fastu tuo, quod, cum continua lectione defatigeris innumerabiles libros
lectitando, nondum ad humilitatem ductus sis; hoc certe ex eo, quia ‘scientia’ ‘huius
mundi’, in qua te ceteros praecellere putas, ‘stultitia’ quaedam ‘est apud deum’ et hinc
‘inflat’. Vera autem scientia humiliat. Optarem, ut ad illam te conferres, quoniam ibi
est thesaurus laetitiae.» De Sapientia, Opera V, 3-4.
454 «Quae est haec praesumptio tua, pauper idiota et penitus ignorans, ut sic parvifacias
studium litterarum, sine quo nemo proficit?» Ibidem, 4.
212 Leonel Ribeiro dos Santos

de ti, que és livre por natureza, algo semelhante a um cavalo preso pelo
cabresto à manjedoura, que só come aquilo que lhe é servido. O teu
entendimento alimenta-se da autoridade dos que escrevem, limitado a um
pasto alheio e não natural.»455
As analogias são rudes, como convém a uma personagem iletrada,
mas o Orador replica-lhe no mesmo registo: «Se o pasto da sabedoria não
está nos livros dos sábios, onde está então?»456
E de novo o Idiota: «Não digo que não esteja aí, o que digo é que o
pasto natural não se encontra aí. Pois os que no princípio se entregaram a
escrever acerca da sabedoria não receberam os estímulos do pasto dos
livros, que ainda não existiam, mas realizavam o homem perfeito pelo
alimento natural. E certamente estes antecedem de longe em sabedoria os
restantes que pensam progredir a partir dos livros.»457
Não fica convencido o Orador, que replica: «Embora talvez sem o
estudo das letras algumas coisas se possam saber, nunca isso é possível a
respeito das coisas difíceis e grandes, pois as ciências desenvolvem-se
por acrescentamentos.»458
Mas o Idiota insiste: «Isto era o que te dizia, a saber que tu és con-
duzido pela autoridade e és enganado. Alguém escreveu uma qualquer
palavra na qual acreditas. Eu porém digo-te, que a sabedoria grita nos
mercados e o seu clamor anda pelas praças, pois ela habita nas
alturas.»459
O Orador não deixa de advertir o seu importuno interlocutor para o
facto de que ele labora numa contradição, pois, sendo e declarando-se
idiota, julga contudo saber. Ao que o visado responde: «Esta é talvez a
diferença entre ti e mim: tu consideras-te sábio, embora o não sejas, e por
isso és soberbo. Eu, porém, sei que sou idiota, e por isso me humilho.

455 «Non est, magne orator, praesumptio, quae me silere non sinit, sed caritas. Nam
video te deditum ad quaerendum sapientiam multo casso labore, a quo te revocare si
possem, ita ut et tu errorem perpenderes, puto contrito laqueo te evasisse gauderes.
Traxit te opinio auctoritatis, ut sis quasi equuus natura liber, sed arte capistro alligatus
praesepi, ubi non aliud comedit nisi quod sibi ministratur. Pascitur enim intellectus
tuus auctoritati scribentium constrictus pabulo alieno et non naturali.» Ibidem, 4-5.
456 «Si non in libris sapientum est sapientiae pabulum, ubi tunc est?» Ibidem, 5.
457 «Non dico ibi non esse, sed dico naturale ibi non reperiri. Qui enim primo se ad
scribendum de sapientia contulerunt, non de librorum pabulo, qui nondum erant,
incrementa receperunt, sed naturali alimento ‘in virum perfectum’ perducebantur. Et
hic ceteros, qui ex libris se putant profecisse, longe sapientia antecedunt.» Ibidem, 5.
458 «Quamvis forte sine litterarum studio aliqua sciri possint, tamen res difficiles et
grandes nequaquam, cum scientiae creverint per additamenta.» Ibidem, 5.
459 «Hoc est quod aiebam, scilicet te duci auctoritate et decipi. Scripsit aliquis verbum
illud, cui credis. Ego autem tibi dico, quod ‘sapientia foris’ clamat ‘in plateis’, et est
clamor eius, quoniam ipsa habitat ‘in altissimis’.» Ibidem, 5-6.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 213

Nisso sou talvez mais douto.»460


O diálogo prossegue no mesmo tom, com o Orador a pedir contas e
esclarecimentos ao ignorante provocador.

«Orador: Como podes ser conduzido à ciência da tua ignorância, sendo


idiota?
Idiota: Não pelos teus livros, mas pelos livros de Deus.
Orador: Quais são eles?
Idiota: Os que escreveu com o seu dedo.461
Orador: E onde se encontram?
Idiota: Em todo o lado (ubique).
Orador: Portanto, também aqui neste mercado (et in hoc foro)?
Idiota: Sem dúvida. Como já disse, a sabedoria grita nas praças.
Orador: Gostaria de ouvir como.»462

Agora é o caridoso provocador que refreia a inesperada curiosidade


do seu parceiro. Cusa põe por duas vezes na boca do seu Idiota a evoca-
ção duma concepção hermética da verdade, segundo a qual esta se retrai
da plena e incondicional manifestação, dando-se apenas aos que provem
merecê-la: «Se não pedires com afecto, estou proibido de o fazer, pois os
segredos da sabedoria não são para se abrirem indiscriminadamente a
todos. [...] Não sei se é permitido revelar tamanhos segredos e patentear
facilmente tão alta profundidade.»463
Mas logo a reserva é ultrapassada, dizendo o mesmo Idiota:«Não
consigo conter-me sem te satisfazer. [...] Se vir que não estás apenas inte-
460 «Haec est fortassis inter te et me differentia: Tu te scientem putas, cum non sis, hin
cuperbis. Ego vero idiotam me esse cognosco, hinc humilior. In hoc forte doctior
exsisto.» Ibidem, 6.
461 «Quos suo digito scripsit.» Ibidem, 7. Este tópico já fora desenvolvido pelo Cardeal
num Sermão da época da redacção do De docta ignorantia (Sermo XXIII, Domine, in
lumine vultus tui, 1440, proferido em Augsburg no dia da Circuncisão): «Non est igitur
nobis in librorum multitudine laborandum, qui ex hominibs fabricati sunt, sed, si
necessarium habemus de sensibili ascendere ad intellegibile et de extrinseco ad intrin-
secum, de visibili ad spirituale, ad ‘librum’ unum ‘Dei digito scriptum’ nos converta-
mus! Fingat igitur unusquisque se Adam esse et per nativitatem in mundum se solum
intrasse et videre hunc mundum....». Tema tradicional no pensamento medieval, ele
encontra-se nomeadamente em Santo Agostinho, em Alain de Lille, em Hugo de S.
Victor, em S. Boaventura. Em Agostinho (Enarratio in Psalmum XLV, 6-7) lê-se:
«Liber tibi sit pagina divina, ut haec audias; liber tibi sit orbis terrarum, ut haec videas.
In istis codicibus non ea legunt, nisi qui litteras noverunt; in toto mundo legat et
idiota.» Para outras ocorrências, veja-se : E. R. Curtius, La littérature européenne et le
Moyen Âge latin, PUF, Paris, 1956, cap. XVI : «Le symbolisme du livre», pp. 471-542.
H. Blumenberg, Die Lesbarkeit der Welt, Suhrkamp, Frankfurt/M., 1981, pp. 59-64.
462 De Sapientia, Opera V, 7.
463 «Nisi ex affectu oraveris, prohibitus sum, ne faciam, nam secreta sapientiae non sunt
omnibus passim aperienda. [...] Nescio, si liceat tanta secreta detegere et tam altam
profunditatem facilem ostendere.» Ibidem, 12-13.
214 Leonel Ribeiro dos Santos

ressado numa investigação curiosa, revelar-te-ei grandes coisas.»464


O Orador foi apanhado e a partir deste momento torna-se um ávido
discípulo e um admirador entusiasta de tão inesperado mestre. Entraram
na loja dum barbeiro e aí se sentaram de frente para o mercado e o Idiota
começou o seu discurso deste modo:

«Já que te disse que a sabedoria grita nas praças e o seu clamor é que
ela habita nas alturas, desejo mostrar-te isso. E em primeiro lugar queria
que me dissesses: O que é que vês ser feito no mercado?
Orador: Vejo num sítio contar o dinheiro, noutro canto pesar as merca-
dorias, e no canto oposto medir o azeite e outras coisas.
Idiota: Estas são as obras daquela razão pela qual os homens se dintin-
guem dos animais; pois contar, pesar e medir não podem os animais
fazê-lo.»465

Neste Exórdio do primeiro diálogo, para além do encontro e da con-


traposição das personagens, do pretexto e da provocação para o debate,
da composição do lugar, temos a proposição do tema: a verdadeira sabe-
doria, mas na sua expressão mundana, a partir da qual, por transferência,
se pode fazer uma ideia incompreensível da altíssima sabedoria. Dando a
palavra ao Idiota: «Transfere este clamor da sabedoria nas praças para a
região mais elevada onde habita a sabedoria e aí encontrarás coisas muito
mais deleitáveis do que em todos os teus elegantíssimos volumes.»466 A
sabedoria para que aponta o discurso do Idiota «não se encontra na arte
oratória e nos grandes volumes escritos pelos homens». Em última ins-
tância, ela tem todos os ingredientes de uma sabedoria mística e implica
o abandono não só da sabedoria deste mundo, como do próprio mundo.467

464 «Tamen nequeo me continere, quin tibi complaceam. [...] Si te absque curiosa
inquisitione affectum conspicerem, magna tibi panderem.» Ibidem, 13 e 7. No De
apice theoriae (Opera XII, 120), o Cardeal-filósofo é ainda mais explícito nesta sua
convicção, pois escreve: «Quanto mais clara é a verdade, tanto mais simples ela é.
Outrora acreditava que ela se encontrava melhor no escuro. A verdade é de uma grande
potência [potentia] pois nela luz o próprio poder ser [posse ipsum]. Ela grita nas
praças, como se lê no livro Do Idiota. Ela patenteia-se facilmente por toda a parte.»
465 «Quoniam tibi dixi sapientiam clamare ‘in plateis’, et clamor eius est ipsam ‘in altis-
simis’ habitare, hoc tibi opstendere sic conabor. Et primum velim dicas: Quid hic fieri
conspicis in foro?
ORATOR: Video ibi numerari pecunias, in alio angulo ponderari merces, ex opposito
mensurari oleum et alia.
IDIOTA: Haec sunt opera rationis illius, per quam homines bestias antecellunt; nam
numerare, ponderare et mensurare bruta nequeunt.» Ibidem, 8.
466 «Hunc clamorem sapientiae in plateis transfer in altissima, ubi sapientia habitat, et
multo delectabiliora reperies quam in omnibus ornatissimis voluminibus tuis.» Ibidem,
12.
467 «Haec sic dicta sufficiant, ut scias sapientiam esse non in arte oratoria aut in
voluminibus magnis, sed in separatione ab istis sensibilibus ac in conversione ad
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 215

Todavia, essa mesma sabedoria que é supramundana exprime-se no


mundo e nas tarefas mundanas, particularmente naquelas que são obra da
razão e que implicam operações de cálculo, de medida e de pesagem.
Mais do que uma inequívoca afirmação da autonomia do mundo, o que
Cusa propõe no seu políptico é o reconhecimento da qualidade divina do
mundo e da nobreza das laicas e vulgares actividades humanas, mor-
mente daquelas que relevam do exercício da razão ou onde se exprime o
poder criador da mente humana. Exercendo-se, a mente humana descobre
e exprime a sabedoria divina na espessura do mundo.
No De Mente o Exórdio é mais curto. É o Orador, já rendido à estra-
nha mas irresistível sabedoria do Idiota, que lhe arranja um novo discí-
pulo, conduzindo um forasteiro filósofo peripatético até ao lugarzinho
subterrâneo, onde o pobre e ignorante artesão tem a sua oficina e, no
momento, se ocupa em fazer sair uma colher de um pedaço de madeira
(ex ligno coclear exprimentem). O Filósofo, que se diz preocupado com o
problema da imortalidade da mente, viera a Roma, por ocasião do Jubi-
leu, com o fim de investigar as doutrinas dos sábios acerca da mente,
pois, segundo lera algures, elas se encontrariam nos livros dum antigo
templo dedicado à Mente no Capitólio. O Orador confirma que Crasso
dedicou de facto um templo à Mente, mas que, após tantas destruições de
Roma, não é mais possível saber se tais livros existiram e quais teriam
sido. E é assim que, para que a viagem do filósofo não fique frustrada, o
convida a visitar a oficina de um Idiota seu conhecido, o qual lhe falará
de qualquer assunto que ele deseje. Desconcertado perante a declaração
do Idiota segundo a qual é da sua arte de fazer colheres que extrai sim-
bolicamente toda a sua ciência, o Filósofo, que só sabe pôr e tratar pro-
blemas a partir dos livros das suas auctoritates, começa por confessar o
seu embaraço: «É meu costume, quando me dirijo a um homem com
fama de sábio, preocupar-me em primeiro lugar com aquelas questões
que me atormentam e trazer para o centro do debate os escritos dos filó-
sofos e indagar a interpretação que ele deles faz. Mas, sendo tu idiota,
não sei como te leve a dizer o que entendes acerca da mente, para que eu
o experimente.»468 Mas logo o Idiota lhe declara não haver ninguém que

simplicissima et infinitam formam et illam recipere in templo purgato ab omni vitio et


fervido amore ei inhaerere, quousque gustare eam queas et videre, quae est omnis
suavitas. Qua degustata vilescent tibi omnia, quae nunc tibi magna videntur, et
humiliaberis, ut nihil arrogantiae in te remaneat neque aliud quodcumque vitium,
quoniam castissimo et purissimo corde semel degustatae sapientiae indissolubiliter
adhaerebis, etiam potius hunc mundum et cincta, quae non sunt iposa, quam ipsam
deserendo.» Ibidem, 55-57.
468 «Est mea consuetudo, cum hominem fama sapientem accedo, de his, quae ma
angunt, in primis sollicitum esse et scripturas in medium conferre et inquirere
earundem intellectum. Sed cum tu sis idiota, ignoro, quomodo te ad dicendum excitem,
ut, quam habeas de mente intelligentiam, experiar.» De Mente, Opera V, 89.
216 Leonel Ribeiro dos Santos

mais facilmente possa ser levado a dizer o que pensa do que ele próprio.
Pois, como se confessa idiota ignorante, nada teme responder, dizendo o
que pensa sem artifícios (nude). Os filósofos letrados e que têm fama de
sábios é que precisam de ponderar gravemente as suas deliberações, com
medo de errar.469
Sentam-se em três pequenos tamboretes dispostos em triângulo e é o
Orador que, dirigindo-se ao Filósofo, lhe diz: «Vês, filósofo, a simplici-
dade deste homem, que não tem para seu uso nada do que seria adequado
para receber um homem da tua importância. Aproveita para fazer o expe-
rimento naquelas questões que, segundo dizias, mais te atormentam. Pois
nada a respeito delas te ocultará, se o souber. Experimentarás, estou
certo, que não foste trazido até aqui em vão.»470 Em resposta, o Filósofo
pede-lhe que fique calado para não perturbar o diálogo, ao que o Orador
responde que será mais um animador do que um perturbador. Dirigindo-
-se ao artesão, prossegue o Filósofo: «Diz, então, idiota – pois esse é o
nome que dizes ter – se possuis alguma conjectura acerca da mente. Ao
que o Idiota responde, propondo o mote que vai explicitar ao longo de
todo o diálogo – a relação etimológica entre mens e mensurare: «Julgo
não haver ninguém, que seja ou tenha sido homem perfeito, que não
tenha alguma noção acerca da mente. Por certo também eu tenho: a
saber, que a mente é aquilo pelo que se faz o termo e a medida de todas
as coisas. Com efeito, conjecturo que a mente se diz de mensurar.»471
Depois do Exórdio, os diálogos prosseguem, cabendo aos sábios
letrados (o Orador ou o Filósofo) fazer as perguntas e manifestar a per-
plexidade ou a admiração perante as surpreendentes respostas do Idiota,
o qual não evita nenhuma das questões ou dificuldades que lhe são pro-
postas, a todas respondendo sem rodeios e com simplicidade, para con-
fessada satisfação dos seus interlocutores. O Idiota cusano, ao contrário
do Sócrates dos diálogos platónicos, não é aquele que interroga, mas
aquele que responde, não, porém, como quem ensina, mas como quem
convida os seus interlocutores a acompanhá-lo na sua experiência de
pensamento no decurso da qual inventa conjecturas e assim descobre
uma sabedoria que se sabe ignorante, a qual todavia permite que se veja
de modo invisível e se atinja de modo inatingível a verdadeira sabedoria
que é a da mente divina. Nos diálogos cusanos é o ignorante que revela

469 Ibidem.
470 «Vides, philosophe, viri huius simplicitatem, qui nihil horum in usu habet, quae ad
recipiendum tanti ponderis virum decentia petit. Fac in experimentum, quae magis, ut
aiebas, te angunt. Nihil enim de his, quae sciverit, te latebit. Experieris, puto, te non
vacue adductum.» Ibidem, 90.
471 «Puto neminem esse aut fuisse hominem perfectum, qui non de mente aliqualem saltem
fecerit conceptum. Habeo quidem et ego: mentem esse, ex qua omnium rerum terminus
et mensura. Mentem quidem a mensurando dici conicio.» De Mente, Opera V, 90.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 217

saber o que os sábios ignoram. São os letrados que levam ao iletrado as


questões não resolvidas dos livros dos seus sábios e filósofos para que
ele, sem estudos e sem recurso a autoridades, mas usando apenas a sua
mente e servindo-se de ingénuas mas luminosas comparações tiradas do
seu humilde ofício, as resolva ou elucide, o que faz, com desconcertante
simplicidade e ao mesmo tempo com grande profundidade.
II
A ESTRANHA SABEDORIA DO IDIOTA CUSANO

Tentemos caracterizar um pouco melhor a sabedoria do Idiota cusano.


É obviamente e antes de mais um saber da própria ignorância, uma
«douta ignorância». No início do primeiro diálogo o autor pôs na boca da
personagem central estas palavras dirigidas ao Orador: «Esta é talvez a
diferença que existe entre ti e mim: tu consideras-te sábio, não o sendo, e
por isso és soberbo. Eu porém reconheço que sou idiota, e por isso me
humilho. Nisto talvez eu seja mais douto.»472 E, logo de seguida, o
mesmo Idiota nos diz onde aprendeu essa estranha «ciência da sua
ignorância», não nos livros humanos mas nos livros escritos pelo dedo de
Deus e que estão patentes em toda a parte para os que os quiserem ler.
Mas essa patenteação mundana da sabedoria, por eloquente e clamorosa
que seja, tem apenas uma vaga semelhança com a verdadeira, perfeita e
infinita sabedoria, a qual está para além de toda a compreensão pela
inteligência e de toda a elocução pelo discurso humano, embora seja ela
que torna possível toda a inteligibilidade e todo o discurso. Constituindo
a referência de tudo, não pode ela mesma ser referenciada por nada,
como o diz o Cardeal nesta página típica do seu peculiar estilo de
pensamento e de discurso:«A sabedoria que todos os homens procuram
com tanto afecto, quando por natureza desejam saber, não se sabe de
outro modo a não ser que ela mesma é mais alta do que toda a ciência e é
inscível e inefável a toda a linguagem e ininteligível por todo o intelecto e
imensurável por toda a medida e infinível por todo o fim e interminável
por todo o termo, e improporcionável por toda a proporção e incomparável
por toda a comparação e infigurável por toda a figuração e informável em
toda a formação e imóvel em todo o movimento e inimaginável em toda a
imaginação e insensível em toda a sensação e inatraída em toda a atracção
e ingustável em todo o gosto e inaudível em toda a audição e invisível em
toda a visão e inapreensível em toda a apreensão e inafirmável em toda a
afirmação e inegável em toda a negação e indubitável em toda a dúvida e
inopinável em toda a opinião. E porque em toda a linguagem é inexpri-
mível, não se pode pensar o fim destas locuções, pois que em todo o pen-

472 De sapientia, Opera V, 6.


218 Leonel Ribeiro dos Santos

samento é impensável, por ela, nela e a partir dela sendo todas as coi-
sas.»473
Em suma, é a própria inefabilidade que nos impele a multiplicar o
discurso. A estratégia do Idiota cusano é diametralmente oposta à do
Wittgenstein autor da bem conhecida última proposição do Tractatus
Logico-philosophicus. Mas demarca-se também da noção de sapientia
dos humanistas quatrocentistas que toda se vertia e comprazia no discur-
so eloquente.
É a sabedoria do Idiota uma sabedoria de experiência que se faz,
uma sabedoria experimentada e experimental. É digna de nota a frequên-
cia com que ocorre, no conjunto destes diálogos, a expressão experi-
mentum, ou o verbo experiri, não falando já do terceiro diálogo que é
expressamente dedicado aos «experimentos de pesagem». Trata-se, nes-
sas ocorrências (algumas das quais em passos já acima citados), de subli-
nhar a experiência inalienável do próprio pensamento ou do exercício da
mente. Cito mais alguns casos: «Claramente experimentamos o espírito
que na nossa mente fala e julga isto é bom, isto é justo, isto é verdadei-
ro...»474; «Experimentamos que a mente é aquela força que, embora careça
de toda a forma nocional, pode, contudo, sendo excitada, assimilar-se a
toda a forma e fazer as noções de todas as coisas.»475; «A mente é uma
substância viva que experimentamos falar internamente e julgar em nós e
que se assemelha mais à infinita substância e à absoluta forma do que a
qualquer outra força de todas as forças espirituais que em nós experi-
mentamos.»476 As diferentes filosofias são também entendidas como
outras tantas expressões das várias experiências que os filósofos tiveram
do poder da mente.477 E o próprio diálogo, enquanto tal, é reconhecido
como uma experiência de pensamento, como um exercício a que os
interlocutores se entregam de bom grado (in his exercitiis libenter ver-
sor). No final do De Mente, o Orador fecha o «colóquio» declarando que
depois de ter ouvido o Idiota a dissertar tão profundamente acerca de
mente, «teve por experiência indubitável a certeza de que existe a mente

473 De sapientia, Opera V, 15-16.


474 «Clare experimur spiritum in mente nostra loquentem et iudicantem hoc bonum, hoc
iustum, hoc verum.» De Mente, Opera V, 119.
475 «Experimur ex hoc mentem esse vim illam, quae licet careat omni notionali forma,
potest tamen excitata se ipsam omni formae assimilare et omnium rerum notiones
facere.» Ibidem.
476 «Mens est viva substantia, quam in nobis interne loqui et iudicare experimur et quae
omni vi alia ex omnibus viribus spiritualibus, quas in nobis experimur, infinitae subs-
tantiae et absolutae formae plus assimilatur.» Ibidem, 121-122.
477 Ibidem, 146-147. «in vi mentis experiebantur» [...] «Ob has aut similes varias
experientias talia ac alia de mente aut anima dixisse rationabiliter credendum.»
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 219

como uma faculdade que mede todas as coisas».478


Esta feição experiencial ou experimental da sabedoria cusana diz-se
pregnantemente na metafórica do gosto – este sentido inalienavelmente
individual e subjectivo –, a qual constitui o ambiente em que se constrói
e se desenvolve todo o diálogo De Sapientia. A sabedoria do idiota é uma
sabedoria saborosa e saboreada, gostosa e gostada, é uma sapida scientia,
uma sapientia que tem sabor: «a sabedoria é o que tem sabor e para o
entendimento nada há mais doce do que ela».479 A pregnante e
envolvente metafórica do gosto diz a incontornável apropriação
subjectiva que está suposta e requerida nesta sabedoria, que não se
contenta com recolher o sabido pelos outros, por o ouvir ou ler, mas que
se deve apreender pessoal e intimamente no gosto interno (in interno
gustu) e de uma forma que satisfaça a totalidade do homem, não apenas
os seus sentidos exteriores ou a sua inteligência, mas também os seus
afectos. Acusa-se nesta feição experiencial da apropriação da sabedoria a
inequívoca matriz mística do pensamento cusano, que se declara nestas
expressivas palavras: «Assim como toda a sabedoria acerca do sabor de
uma coisa que nunca foi saboreada é vã e estéril, até que o sentido atinja
o sabor, o mesmo acontece com esta sabedoria, a qual ninguém saboreia
pelo ouvido, mas apenas a saboreia aquele que a recebe no gosto interior.
Esse não recebe o testemunho daquilo que ouviu, mas saboreou-o experi-
mentalmente em si mesmo. Conhecer muitas descrições do amor que nos
foram deixadas pelos santos sem ter saboreado o amor é uma coisa vã.
Daí que àquele que procura a sabedoria eterna não lhe basta saber as
coisas que a respeito dela se lêem, mas é preciso que a faça sua, depois
que o intelecto percebeu onde ela reside.»480
O tema da experiência é, como se sabe, central no terceiro diálogo
que leva o título Dos experimentos de pesagem (De staticis experimentis)
e que assim começa, nas palavras do Idiota: «Ainda que nada neste
mundo consiga atingir a precisão, contudo no juízo da balança experi-
mentamo-la mais verdadeiramente e daí que em toda a parte ele seja

478 «Indubio nunc experimento certissimum habens mentem vim omnis mensurantem
existere.» Ibidem, 217.
479 «Sapientia est, quae sapit. qua nihil dulcius intellectui.» De Sapientia, Opera V, 17.
Cf. De ludo globi (ed. Paris, 1514, fol. 165v): «Sapientia, hoc est sapida scientia.
Scientia in eo quia sapida: ostenditur viva appraehensio. Et vita intellectualis: est
appraehensio sapientiae, seu sapidae scientiae.».
480 «Sicut enim omnis sapientia de gustu rei numquam gustatae vacua et sterilis est, quous-
que sensus gustus attingat, ita de hac sapientia, quam nemo gustat per auditum, sed solum
ille, qui eam accipit in interno gustu. Ille perhibet testimonium non de his, quae audivit,
sed in se ipso experimentaliter gustavit. Scire multas amoris descriptiones, quas sancti
nobis reliquerunt, sine amoris gustu vacuitas quaedam est. Quapropter ad quaerentem
aeternam sapientiam non sufficit scire ea, quae de ipsa leguntur, sed necesse est, quod
postquam intellectu repperit ubi est, quod eam suam facit.» Opera V, 41-42.
220 Leonel Ribeiro dos Santos

aceite.»481 Neste diálogo, propõe-se a extensão da prática e experiência


da pesagem a todas as artes e actividades humanas (na medicina, na
construção naval, na astronomia, na balística, na música), sugerindo-se a
fecundidade do cruzamento da pesagem com a mensuração geométrica.
A partir desses experimentos, assim crê o Idiota, poder-se-iam alcançar
conjecturas mais verdadeiras acerca de tudo o que se pode saber (sic sta-
ticis experimentis omne scibile praecisiori coniectura accederet)482, ou,
pelo menos, poder-se-iam alcançar conjecturas mais verosímeis e mais
subtis, já que a precisão absoluta é sempre inatingível (venantur sic ele-
menta veriore coniectura,licet praecisio sit semper innatingibilis).483
Mais declara o iletrado artesão romano, reconhecendo embora as
vantagens dum registo sistemático do saber experimental humano, que «a
ciência experimental reclama vastas escrituras e que quantas mais forem
tanto mais se poderá passar de modo infalível dos experimentos à arte
que deles se extrai.»484 Enfim, este ignorante homem de ofício entrevê a
possibilidade de uma teoria geral das concordâncias harmónicas, físicas e
morais, construída a partir da investigação dos pesos das coisas. Pois,
segundo diz, «de um modo geral todas as concordâncias harmónicas se
investigam subtilmente pelos pesos, sendo o peso de uma coisa propria-
mente a proporção harmónica nascida da sua diversa combinação. E até
as amizades e inimizades dos animais e dos homens da mesma espécie e
os costumes e todas as coisas do mesmo género são pesadas de acordo
com as concordâncias harmónicas e as dissonantes contrárias. E do
mesmo modo a saúde do homem se pesa pela harmonia e também a
doença; e, se se vir com subtileza, também a leveza e a gravidade, a pru-
dência e a simplicidade e muitas outras coisas do mesmo género.»485
Esta passagem poderia ser lida como uma notável antecipação das
propostas da ciência experimental, feitas por Francis Bacon no primeiro
quarto do século XVII. Algumas conexões existem, de facto, e a afini-
dade não reside por certo apenas nas palavras, por mais que a inspiração
de um e outro pensador sejam bem distintas. Não devemos esquecer,

481 «Quamquam nihil in hoc mundo praecisionem attingere queat, tamen iudicium
staterae verius experimur et hinc undique acceptum.» De staticis experimentis, Opera
V, 222.
482 Ibidem, 223.
483 Ibidem, 230.
484 Ibidem, 231.
485 «Immo generaliter omnes harmonicae concordantiae per pondera subtilissime
investigantur. Immo pondus rei est proprie harmonica proportio ex varia combinatione
exorta. Immo amicitiae et inimicitiae animalium et hominum eiusdem speciei ac
mores, et quidquid tale ex harmonicis concordantiis et ex contrariis dissonantis
ponderatur. Sic et sanitas hominis harmonia ponderatur atque infirmitas; immo levitas
et gravitas, prudentia et simplicitas et multa talia, si subtiliter advertis.» Ibidem, 239.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 221

porém, que as reflexões cusanas acerca das experiências de pesagem são


feitas no contexto de uma meditação acerca da sabedoria divina que grita
nos mercados e não visa tanto o domínio do mundo material por parte do
homem, mediante a ciência e a técnica, quanto a experiência efectiva da
inacessibilidade da sabedoria divina. Embora o juízo da balança seja o
mais preciso, ele não atinge a precisão absoluta, da mesma forma que a
não atinge nenhuma medida da mente humana. A visão cusana do
mundo, como vimos pelo texto anteriormente transcrito, é aliás marcada
por uma ontologia harmónica que rege por igual coisas e homens, senti-
mentos, virtudes e elementos da natureza. O número e a matemática têm
nela uma natureza mais simbólica e qualitativa do que uma feição quan-
titativa e instrumental. E se instrumentalidade existe, ela é meramente
simbólica, na medida em que por eles podemos fazer uma conjectura
mais verosímil, embora sempre imprecisa e infinitamente distante, a res-
peito do procedimento criador da mente e sabedoria divina. Mas, com
isto, não se pretende negar de todo a eficácia destes diálogos cusanos na
configuração de um ambiente especulativo que proporcionaria a emer-
gência de uma mentalidade que levaria à efectiva e progressiva racionali-
zação do mundo e das actividades humanas, à emergência dum mundo
regido pelo princípio do número, da quantidade e da medida.486

A sabedoria do Idiota é fruto de uma experiência própria e de um


exercício autónomo da razão, mas não deixa de ser reconhecida ao
mesmo tempo como um dom de Deus.487 É a expressão na mente humana
da própria sabedoria de Deus, pois é esta mesma que nos faz desejá-la,
sabê-la, dizê-la, ainda que sempre de modo insatisfeito e insatisfatório. O
Idiota multiplica-se em imagens para dizer esta sua experiência da ina-
cessível acessibilidade da sabedoria: «Pela sabedoria, a partir dela e nela

486 Sobre este ponto controverso, veja-se: Karl Jaspers, Nikolaus Cusanus, Piper & Co.,
München, 1964, p-138; Maurice de Gandillac, «Actualité de Nicolas de Cues»,
Bulletin de la Société Française de Philosophie, 59 (1966), p. 2; R. Haubst, Nikolaus
von Kues und die moderne Wissenschaft, Paulinus Verlag, Trier, 1963; Thomas
McTiche, «Nicholas of Cusa’s theory of science and its metaphysical background», in:
Nicolò Cusano agli inizi del mondo moderno, Sansoni Editore, Firenze, 1970, p. 319;
Fritz Nagel, Nicolaus Cusanus und die Entstehung der exakten Naturwissenschaften,
Aschendorff, Munster, 1984; Stephan Meier-Oeser, Die Präsenz des Vergessenen. Zur
Rezeption der Philosophie des Nicolaus Cusanus vom 15. bis zum 18.Jahrhundert,
Aschendorff, Münster, 1989, pp. 178-183; Alfred W. Crosby, The Measure of Reality.
Quantification and Western Society, 1250-1600, Cambridge University Press,
Cambridge, 1997, pp. 100-102; João Maria André, «Da mística renascentista à raciona-
lidade científica pós-moderna (A propósito da articulação entre Ciência, Filosofia e
Misticismo em Nicolau de Cusa)», Revista Filosófica de Coimbra, 7, vol. 4, (1995),
especialmente as pp. 72-83.
487 «Certe dei donum esse necesse est idiotas clarius fide attingere quam philosophos
ratione». De Mente, Opera V, 86.
222 Leonel Ribeiro dos Santos

se dá todo o saborear interno. Mas ela mesma, porque habita nas alturas,
não é gostada por todo o sabor.»488 Somos atraídos para ela como se fos-
semos guiados pelo odor do seu perfume e apenas alcançamos uma vaga
pregustação do seu sabor.489 Como o íman atrai o ferro assim o nosso
entendimento é atraído pela sabedoria, embora nunca a alcance de um
modo pleno.490 Esta satisfeita insatisfação que obriga a mente humana a
um contínuo progresso, não tem, porém, um sentido negativo, mas antes
evidencia o dinamismo criador e a própria natureza ilimitada da mente
humana, que nunca se satisfaz com as suas aquisições e realizações e, ao
limite, manifesta também a sua condição imortal. Todo o seu movimento,
embora processando-se nas coisas finitas e mundanas, se dirige no sem-
tido de alcançar o inalcançável princípio de onde ela própria provém:
«Sendo ela [a sabedoria] a vida espiritual do entendimento, que em si
tem uma certa pregustação conatural graças à qual com tanto esforço
investiga a fonte da sua vida, sem a qual pregustação não a buscaria nem
saberia que a tinha encontrado se a encontrasse, é por isso que para ela se
move como para a própria vida. E é doce para todo o espírito subir conti-
nuamente para o princípio da vida, mesmo que este seja inacessível.»491

Em suma, a sabedoria do Idiota não deixa de ser uma devota sapien-


tia, embora praticada e exercida nas ocupações mundanas. O regresso ao
Uno, de onde a mente reconhece provirem todas as coisas, é o seu esco-
po, mas ela não o alcança sem fazer a experiência de que todas as coisas,
por múltiplas e diversas que sejam, são-no enquanto nelas o Uno se
manifesta. O Uno, que é o atractor de todo o movimento do entendimento
e da mente para o conhecimento e sabedoria, é também o seu princípio de
vida e de ser e o princípio de toda a vida e de todo o ser. Mas é na espes-
sura do mundo que a mente trabalha e é neste trabalho que ela alcança
toda a sua sabedoria. Como se atinge a sabedoria? – pergunta o Orador.
Na verdade, ela não se atinge, mas é ela que nos atinge sempre que exer-
cemos as nossas faculdades. Como o diz o Idiota: «A sabedoria eterna é
saboreada em todo o saboreável. Ela mesma é o deleite em todo o delei-
488 De Sapientia, Opera V, 17:«Per sapientiam enim et ex ipsa et in ipsa est omne inter-
num sapere. Ipsa autem, quia in altissimis habitat, non est omni sapore gustabilis.»
489 De Sapientia, Opera V, 19: «Sicut enim odor an odorabili multiplicatus in alio
receptus nos allicit ad cursum, ut in odore unguentorum ad unguentum curratur, in
aeterna et infinita sapientia cum in omnibus reluceat, nos allicit ex quadam
praegustatione effectuum, ut mirabili desiderio ad ipsam feramur.»
490 De Sapientia, Opera V, 35.
491 «Cum enim ipsa sit vita spiritualis intellectus, qui in se habet quandam connaturatam
praegustationem, per quem tanto studio inquirit fontem vitae suae, quem sine praegus-
tatione non quaereret nec se repperisse sciret, si reperiret, hinc ad eam ut ad propriam
vitam movetur. Et dulce est omni spiritui ad vitae principium quamvis inaccessibile
continue ascendere.» Ibidem, 20.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 223

tável. Ela mesma é a beleza em todo o belo. Ela mesma é o apetite em


todo o apetecível. E o mesmo se diga de todos os desejáveis.»492
Vale para a questão da sabedoria o que vale para a questão de Deus:
«Toda a questão acerca de Deus, diz o Idiota, pressupõe o que se ques-
tiona. Pois Deus é significado em toda a significação dos termos, mesmo
que ele mesmo seja insignificável, ele é a própria absoluta pressuposição
de todas as coisas, que de qualquer modo que seja são pressupostas, do
mesmo modo que em todo o efeito se pressupõe a causa.»493

A sabedoria do Idiota cusano é uma sabedoria simbólica, por simili-


tude e conjectura. Disso somos avisados logo no início do primeiro diá-
logo: «a suprema sabedoria é esta que saibas como na semelhança se
atinge o inatingível inatingivelmente.»494 Toda a venatio sapientiae é
para Cusa uma symbolica investigatio, a qual se alimenta de alguns pres-
supostos. Em primeiro lugar, do pressuposto paulino de que todo o
conhecimento mundano do homem é um conhecimento especular e
enigmático (in speculo et in aenigmate), segundo o lembra o filósofo no
cap. 11 do livro I de De docta ignorantia.495 Em segundo lugar, o pres-
suposto de matriz neoplatónica e hermética, segundo o qual existe uma
certa proporção – uma mútua conveniência – entre todas as coisas do
universo, a qual, em última instância, resulta do facto de que «todas as
coisas são no máximo uno o próprio uno».496 Finalmente, o pressuposto
da ontologia expressionista cusana, o qual se inspira no neoplatonismo
cristão e afirma a inesgotabilidade do sentido não só daquele Máximo
Absoluto que é a infinita plenitude e a fonte de todo o sentido, mas tam-
bém de todo o sentido expresso e multiplicado de mil modos e formas
pelos seres finitos. Toda a realidade desde o máximo ao mínimo é ines-
gotável expressão e o movimento do conhecimento que tende a captar a
realidade só pode adequar-se a esse dinamismo de uma inesgotabilidade
por excesso de todo o sentido.
O símbolo tem a marca da finitude e da diferença – da transcendên-
cia – relativamente ao simbolizado. Essa dimensão é expressa na lingua-
gem tipicamente cusana do «entender ininteligivelmente», do «ver invi-
sivelmente», do «atingir inatingivelmente o inatingível», e outras do
mesmo teor. Mas, ao mesmo tempo, pela comum radicação ontológica de

492 «Aeterna sapientia in omni gustabili gustatur. Ipsa est delectatio in omni delectabili.
Ipsa est pulchritudo in omni pulchro. Ipsa est appetitio in omni appetibili. Sic de
cunctis desiderabilibis dicito.» Ibidem, 30.
493 De sapientia II, Opera V, 60.
494 «Summa sapientia est haec, ut scias quomodo in similitudine iam dicta attingitur
inattingibile inattingibiliter.» De Sapientia, Opera V, 13.
495 Opera I, 22. Cf. 1Cor 13,12.
496 Ibidem.
224 Leonel Ribeiro dos Santos

todas as coisas no Uno, os símbolos mantêm uma relação ontológica –


uma razão ou proporção de similitude – com aquilo que simbolizam e
não são, por conseguinte, meros signos arbitrários ou convencionais.497
As similitudes cusanas – e isso pode considerar-se um dos inequívo-
cos traços da modernidade do seu autor – são preferencialmente extraídas
da própria actividade humana e racional e não já da natureza. Daí que
todo o diálogo De Mente mais não seja do que a transposição para o pro-
cedimento criador da mente divina da fenomenologia característica duma
arte humana, que nem sequer era socialmente reconhecida pela sua
nobreza: a arte de fabricar colheres de madeira. Como faz notar o artesão,
esta arte tem, em relação a outras artes tidas por mais nobres, como a
escultura ou a pintura, a vantagem de não se limitar a imitar os objectos
dados na natureza, mas de os extrair da natureza de acordo com a ideia –
a «forma da colheridade» – que forjou na sua mente e de acordo com a
qual trabalha a madeira até que esta corresponda àquela forma, o que
sempre acontece com maior ou menor adequação. Por isso, pode o Idiota
considerar a sua arte, da qual tira por igual o sustento do seu corpo e o
alimento do seu espírito, como representando um verdadeiro aumento de
ser ou aperfeiçoamento (uma arte perfectória) e não apenas como uma
imitação (uma arte imitatória) de algo já existente na natureza.
Não deixa de ser notável a economia sapiencial que se exprime nas
convictas palavras deste Idiota: «Eu de bom grado me ocupo nestes exer-
cícios que sem cessar me alimentam tanto a mente como o corpo». 498 E
noutro passo: «Nesta minha arte investigo simbolicamente aquilo que
pretendo e alimento a mente, faço colheres e restauro o corpo; e assim
obtenho o quanto basta de tudo o que me é necessário.»499
O proceder da mente é explicado pelo proceder da produção artesa-
nal e o procedimento de Deus na criação do mundo é explicado pelo pro-
ceder da mente humana. Este douto ignorante sabe aliar com extrema
naturalidade o trabalho manual, que lhe garante o sustento do corpo, com
o trabalho intelectual e especulativo, que lhe alimenta o espírito. Mas a
sua ousadia vai ainda mais longe ao afirmar que a sua arte e todas as
artes humanas em geral são «como que imagens da arte infinita e divi-
na».500 E para que isso não seja apenas uma afirmação, passa à

497 Sobre este tema, veja-se: João Maria André, ob.cit. (1997), pp. 95ss. E ainda, do
mesmo autor: «O problema da linguagem no pensamento filosófico-teológico de
Nicolau de Cusa», Revista Filosófica de Coimbra, nº 4, vol. II (1993), pp. 369-402.
498 «Ego in his exercitiis libenter versor, quae et mentem et corpus indesinenter
pascunt.» De Mente, Opera V, 88.
499 «In hac mea arte id, quod volo, symbolice inquiro et mentem depasco, commuto
coclearia et corpus reficio; ita quidem omnia mihi necessaria, quantum sufficit,
attingo.» Ibidem, 89.
500 «Et nunc me ad hanc artem cocleariam converto. Et primum volo scias me absque
haesitatione asserere omnes humanas artes imagines quasdam esse infinitae et divinae
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 225

demonstração activa e sensível da sua ideia: «A partir desta arte de fazer


colheres aplicarei pois paradigmas simbólicos para que sejam mais
sensíveis as coisas que digo.[...] A colher não tem nenhum outro
exemplar fora da ideia da nossa mente. Pois ainda que o escultor e o pintor
tire os exemplares das coisas que se propõe representar, não é isso que eu
faço, pois faço sair as colheres das madeiras e as escudelas e panelas do
barro. Pois não imito nisso a figura de uma qualquer coisa natural, já que
tais formas de colheres, de escudelas e de panelas só são executadas
mediante a arte humana. Pelo que a minha arte é mais perfeitória do que
imitatória das figuras das criaturas, e nisto ela é muito mais semelhante à
arte infinita.»501
A demonstração prossegue no esforço por tornar visível como a
partir duma única forma mental da colheridade se criam múltiplas colhe-
res todas distintas, nenhuma das quais esgota a forma mental que preside
à sua produção, mas cada uma estando mais ou menos perto dela: «Quero
explicar o procedimento e tornar sensível a forma da colheridade pela
qual a colher se constitui. Como esta por sua natureza não é captada por
nenhum sentido, pois não é branca, nem negra nem de outra qualquer cor
ou som ou cheiro ou sabor ou tacto, tentarei torná-la sensível na medida
do possível. Assim, mediante os meus instrumentos desbasto e escavo a
matéria, neste caso a madeira, por vários movimentos até que nela surja
aquela devida proporção na qual brilhe adequadamente a forma da colhe-
ridade. Assim verás a forma simples e insensível da colheridade brilhar
na representação figural desta madeira quase como na sua imagem. Pelo
que a verdade e a precisão da colheridade, que é imultiplicável e inco-
municável, nunca pode tornar-se perfeitamente sensível por qualquer
instrumento ou homem que seja e em todas as colheres só aquela simpli-
císsima forma diversamente reluz, mais numa e menos noutra e em
nenhuma de um modo preciso.»502

artis.» Ibidem, 94.


501 «Applicabo igitur ex hac coclearia arte symbolica paradigmata, ut sensibiliora fiant
quae dixero.... Coclear extra mentis nostrae ideam aliud non habet exemplar. Nam etsi
statuarius aut pictor trahat exemplaria a rebus, quas figurare satagit, non tamen ego,
qui ex lignis coclearia et scutellas et ollas ex luto educo. Non enim in hoc imitor figu-
ram cuiuscumque rei naturalis. Tales enim formae cocleares, scutellares et ollares sola
humana arte perficiuntur. Unde ars mea est magis perfectoria quam imitatoria figura-
rum creatarum et in hoc infinitae arti similior.» Ibidem, 95-96.
502 «Esto igitur, quod artem explicare et formam coclearitatis, per quam coclear
constituitur, sensibilem facere velim. Quae cum in sua natura nullo sensu sit
attingibilis, quia nec alba nec nigra aut alterius coloris vel vocis vel odoris vel gustus
vel tactus, conabor tamen eam modo, quo fieri potest, sensibilem facere. Unde
materiam, puta lignum, per instrumentorum meorum, quae applico, varium motum
dolo et cavo, quousque in eo proportio debita oriatur, in qua forma coclearitatis
convenienter resplendeat. Sic vides formam coclearitatis simplicem et insensibilem in
figurali proportione huius ligni quasi in imagine eius resplendere. Unde veritas et
226 Leonel Ribeiro dos Santos

O exemplo – a semelhança – não serve apenas para expor a natureza


da mente, a relação entre a unidade e a multiplicidade, mas também, por
transferência, a da mente divina e a sua relação com a mente humana e
com a diversidade das criaturas. Se a mente humana é o exemplar que
complica em si a multiplicidade das coisas, a mente divina é o exemplar
da mente humana e esta a imagem viva daquela: «Sabes como a simpli-
cidade divina é complicativa de todas as coisas. A mente é a imagem
desta simplicidade complicante. Pelo que se chamares mente infinita a
esta simplicidade divina, ela mesma será o exemplar da nossa mente. Se
chamares à mente divina a universidade da verdade das coisas, chamarás
à nossa a universidade da assimilação das coisas, como se fosse a univer-
sidade das noções. A concepção da mente divina é a produção das coisas;
a concepção da nossa mente é a noção das coisas. Se a mente divina é a
entidade absoluta, então a sua concepção é a criação dos entes e a con-
cepção da nossa mente é a assimilação dos entes. Aquilo que convém à
verdade da mente divina enquanto infinita, convém à nossa mente como
próxima da sua imagem... Todas as coisas estão em Deus, mas estão aí
como exemplares das coisas; todas as coisas estão na nossa mente, mas
estão aí como semelhanças das coisas. Tal como Deus é a entidade
absoluta, que é a complicação de todos os seres, à semelhança da primei-
ra imagem de um rei desconhecido constitui o exemplar de todas as
outras que são pintadas de acordo com ela.»503
A mente humana revela-se assim como o ponto de mediação entre
Deus e as criaturas mundanas. E por isso se compreende que das suas
operações sejam tiradas as analogias para explicar, de um modo inexpli-
cável embora e sempre apenas conjecturalmente, seja o significado do
mundo seja o próprio Deus. Só através da mente se revela, de um modo
velado embora, a face de Deus no mundo e por esta mediação humana
também as coisas mundanas podem ser indirectamente reconhecidas como

praecisio coclearitatis, quae est immultiplicabilis et incommunicabilis, nequaquam


potest per quaecumque etiam instrumenta et quemcumque hominem perfecte sensibilis
fieri, et in omnibus coclearibus non nisi ipsa simplicissima forma varie relucet, magis
in uno et minus in alio et in nullo praecise.» Ibidem, 97-98.
503 «Scis, quomodo simplicitas divina omnium rerum est complicativa. Mens est huius
complicantis simplicitatis imago. Unde si hanc divinam simplicitatem infinitam
mentem vocitaveris, erit ipsa nostrae mentis exemplar. Si mentem divinam universita-
tem veritatis rerum dixeris, nostram dices universitatem assimilationis rerum, ut si
notionum universitas. Conceptio divinae mentis est rerum productio; conceptio nostrae
mentis est rerum notio. Si mens divina est absoluta entitas, tunc eius conceptio est
entium creatio, et nostrae mentis conceptio est entium assimilatio. Quae enim divinae
menti ut infinitae conveniunt veritati, nostrae conveniunt menti ut propinquae eius
imagini.[...] Omnia in deo sunt, sed ibi rerum exemplaria; omnia in nostra mente, sed
ibi rerum similitudines. Sicut deus est entitas absoluta, quae est omnium entium
complicatio, sic mens nostra est illius entitatis infinitae imago, quae est omnium
imaginum complicatio, quasi ignoti regis prima imago est omnium aliarum secundum
ipsam depingibilium exemplar. Ibidem, 108-111.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 227

imagens de Deus: «A notícia ou a face de Deus desce apenas à natureza


mental, cujo objecto é a verdade, e não vai além a não ser por meio da
mente, de tal modo que a mente é imagem de Deus e exemplar de todas as
imagens de Deus para além dele. Pelo que, na medida em que todas as
coisas participam da mente para além da mente assim também participam
da imagem de Deus, de tal modo que a mente é por si imagem de Deus e
todas as coisas o são depois da mente mas só através da mente.»504
Não só pela extensão mas também pela sua relevância filosófica
destaca-se no políptico cusano do Idiota o De Mente. Este diálogo ocupa
uma efectiva posição central na economia do políptico, pois é nele que se
leva mais longe a meditação acerca da relação entre a sabedoria e o
número, a mensuração e a ponderação que preside a todas as coisas.
Como vimos, o Idiota constrói toda a sua conjectura acerca da mente
com base na analogia entre mens e mensurare, analogia etimológica que
é confirmada pela realidade, pois «a mente tudo mede» (mens omnia
mensurat)505. Mas também aqui, no seu esforço e trabalho de
mensuração, ocupando-se embora nas tarefas humanas e mundanas, ela
visa em última instância alcançar a sua própria e inatingível medida. A
sua avidez em medir todas as coisas e de qualquer modo que seja é o
esforço «para atingir a medida de si própria; pois a mente é a medida
viva, que atinge a sua própria capacidade medindo as outras coisas. Tudo
faz para que se conheça a si mesma. Mas não encontra a sua própria
medida procurando-a em todas as coisas, a não ser onde todas são um. Aí
está a verdade da sua precisão, pois aí está o seu exemplar adequado.»506
É neste contexto que ganha relevo, na economia do diálogo, a medi-
tação sobre o número e sobre a relação íntima entre a mente e o número,
entre o número e as coisas como exemplar simbólico destas, entre o
número e a mente e sabedoria divinas. Não é apenas uma simbólica visão
matemática da realidade o que se retira desta intensa meditação, mas
sobretudo uma esclarecedora compreensão da compossibilidade metafí-
sica da unidade e da pluralidade, de como do Uno pode sair não só o
múltiplo como também o diverso. Assim como na sua unidade a mente
complica a pluralidade das suas noções, assim, por transferência, se pode

504 «Nam dei notitia seu facies non nisi in natura mentali, cuius veritas est obiectum,
descendit, et non ulterius nisi per mentem, ut mens sit imago dei et omnium dei imagi-
num post ipsum exemplar. Unde quantum omnes res post simplicem mentem de mente
participant, tantum et de dei imagine, ut mens sit per se dei imago et omnia post
mentem non nisi per mentem.» Ibidem, 112.
505 Ibidem, 171.
506 «Ut sui ipsius mensuram attingat. Nam mens est viva mensura, quae mensurando alia
sui capacitatem attingit. Omnia enim agit, ut se cognoscat. Sed sui mensuram in
omnibus quaerens non invenit, nisi ubi sunt omnis unum. Ibi est veritas praecisionis
eius, quia ibi exemplar suum adaequatum.» Ibidem, 177.
228 Leonel Ribeiro dos Santos

fazer uma ideia de como na mente divina surge a pluralidade a partir do


máximo uno: «Do facto de a mente divina entender um de uma maneira e
outro de outra maneira, surgiu a pluralidade das coisas. Pelo que se vires
com agudeza, advertirás que a pluralidade das coisas não é senão o modo
de entender da mente divina. Assim conjecturo que se pode dizer irrepre-
ensivelmente que o número é o primeiro exemplar das coisas no espírito
do criador. Isto mostra-o o prazer e a beleza, que é inerente a todas as
coisas, a qual consiste na proporção e esta por sua vez no número. E é
por isto que o número é o principal vestígio que conduz à sabedoria.»507
Por último, a sabedoria do Idiota é uma sabedoria de concórdia filo-
sófica. Nunca é ele que cita ou refere os filósofos ou as seitas filosóficas
a propósito de algum tópico ou de alguma das suas conjecturas. Isso cabe
aos seus eruditos interlocutores. Assim, quando após ter desenvolvido
uma reflexão própria acerca do número como essência de todas as coisas
e exemplar simbólico da realidade, o Filósofo lhe diz que ele pensa como
um pitagórico, ou quando lhe diz que ele tange admiravelmente todas as
seitas de todos os filósofos508, o Idiota responde-lhe que ignora as letras e
que não tem qualquer interesse de saber se é ou não pitagórico, ou outra
coisa qualquer. A sua estratégia vai noutro sentido: dar menos atenção às
palavras do que às coisas, ligar menos ao modo como é dito do que ao
que é realmente dito. Não se detém nos rótulos das doutrinas, se são pita-
góricas ou peripatéticas ou platónicas, pois, segundo diz, apesar da dife-
rente linguagem que usam, os filósofos podem querer dizer a mesma ver-
dade: «quiseram dizer o mesmo... entre eles não se vê diferença a não ser
no modo de considerar as coisas».509 São os seus interlocutores os que se
dão conta de que, segundo a admirável doutrina que o Idiota ensina,
«todos os filósofos concordam entre si» (Miram doctrinam tradidisti,
idiota, omnes philosophos concordandi).510

507 «Ex eo enim, quod mens divina unum sic intelligit et aliud aliter, orta est rerum
pluralitas. Unde si acute respicis, reperies pluralitatem rerum non esse nisi modum
intelligendi divinae mentis. Sic irreprehensibiliter posse dici conicio primum rerum
exemplar in animo conditoris numerum esse. Hoc ostendit delectatio et pulchritudo,
quae omnibus rebus inest, quae in proportione consistit, proportio vero in numero:
Hinc numerus praecipuum vestigium ducens in sapientiam.» Ibidem, 140.
508 Ibidem, 103.
509 «... idem dicere voluerunt... Inter eos non videtur differentia nisi in modo
considerationis». Ibidem, 207-208.
510 Ibidem, 107. O cap. III do De Mente leva o título: «Quomodo intelligantur et concor-
dentur philosophi». No cap. XIII propõe-se a conciliação da doutrina platónica da alma
do mundo com a aristotélica da natureza. Um e outro dizem a mesma realidade, com
nomes diferentes, e essa realidade é Deus, que actua tudo em todas as coisas: «Puto,
quod animam mundi vocavit Plato id, quod Aristoteles naturam. Ego autem nec
animam illam nec naturam aliud esse conicio quam deum omnia in omnibus operan-
tem, quem dicimus spiritus universorum.» Ibidem, 198.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 229

A ideia de concordância manifesta-se nestes diálogos ainda sob uma


outra forma, que não se refere já à concordância dos filósofos mas à uni-
dade e consenso dos povos apesar da sua extrema diversidade, um outro
tópico bem característico do pensamento cusano. No Exórdio do De
Mente é o Filósofo que, contemplando a multidão que por ocasião do
Jubileu acorrera a Roma vinda de todos os lados, diz: «Admiro a fé una
de todos em tanta diversidade dos corpos. Pois como nenhum pode ser
semelhante ao outro, é todavia uma a fé de todos, a qual os trouxe até
aqui com tanta devoção dos confins do orbe.»511 No final do mesmo
diálogo, é o Orador que, dirigindo-se ao Filósofo, evoca este passo do
Exórdio: «A religião inata, que neste ano trouxe a Roma este inumerável
povo e que mereceu a tua veemente admiração, que sempre se
manifestou no mundo segundo a diversidade dos modos, mostra que nos
é naturalmente incutida a imortalidade da nossa alma, de tal modo que
nos é conhecida a imortalidade da nossa alma a partir da comum e
indubitável asserção de todos, da mesma forma que o é a humanidade da
nossa natureza. Pois não temos ciência mais certa de sermos homens do
que de termos mentes imortais, uma vez que a ciência de ambas é uma
asserção comum de todos os homens.»512

Na encruzilhada entre dois mundos, num momento em que, sobre-


tudo no pensamento humanista italiano, era intenso o debate não só a
respeito da natureza da verdadeira sabedoria, mas também a respeito do
primado da vida activa sobre a vida especulativa, pode considerar-se que
Nicolau de Cusa também entrou nesse debate, não, porém, para defender
o primado de uma sobre a outra, mas a unidade indissolúvel de ambas,
exemplarmente exposta na atitude da personagem central dos seus diálo-
gos. Contra uma acção e vida activa obtusas ou uma erudição e especula-
ção alienadas nos livros, o Idiota cusano mostra como a autêntica e mais
sublime sabedoria que é possível ao homem não está desligada da sua
condição mundana, mas está nela imersa e é dela que recebe a lição que
pode iluminar não apenas o mundo mas também o homem e a relação
deste com Deus. Não se pode ignorar o envolvimento teológico e mesmo

511 «Admiror omnium fidem unam in tanta corporum diversitate. Cum enim nullus alteri
similis esse possit, una tamen omnium fides est, quae eos tanta devotione de finibus
orbis advexit.» Ibidem, 86.
512 «Connata religio, quae hunc innumerabilem populum in hoc anno Romam et te
philosophum in vehementem admirationem adduxit, quae semper in mundo in modo-
rum diversitate apparuit, nobis esse naturaliter inditam nostrae mentis immortalitatem
ostendit, ut ita nobis nota sit nostrae mentis immortalitas ex communi omnium indubi-
tate assertione sicut nostrae naturae humanitas. Non enim habemus certiorem scientiam
nos esse homines quam mentes habere immortales, cum utriusque scientia sit commu-
nis omnium hominum assertio.» Ibidem, 217.
230 Leonel Ribeiro dos Santos

místico do pensamento de Cusa que se expõe também nestes diálogos.


Poderemos, por certo, perguntar: que nos propõe afinal o filósofo, uma
sabedoria mundana ou uma sabedoria divina? a mundanização da sabe-
doria ou a divinização do mundo? Importa, em todo o caso, reconhecer o
papel do pensamento cusano no desenvolvimento da consciência do valor
do mundo humano e do espírito laico, mas isso menos por uma laicização
e mundanização da cultura do que pela revelação do poder e da energia
espiritual do mundo e das tarefas laicas. O pensador que, no capítulo 12
do Livro II de De docta ignorantia, contrariando audazmente a tradicio-
nal visão da cosmologia e da concepção aristotélica da condição ontoló-
gica dos elementos do mundo sublunar, dizia que também «a Terra é uma
estrela nobre» (est igitur terra stella nobilis), a qual não deixaria de mos-
trar o seu brilho a um espectador que pudesse observá-la a partir de um
qualquer outro planeta, faz-nos também ver, nestes seus diálogos do
Idiota, a nobreza das ocupações humanas mais vulgares e a alta sabedoria
que nelas fala. Tal como, num episódio narrado por Aristóteles513, o filó-
sofo Heraclito disse um dia aos forasteiros que o visitaram e o encontra-
ram na banal ocupação de se aquecer junto ao forno, que entrassem, pois
também ali, naquele lugar e ocupação vulgares, moravam os deuses,
assim Nicolau de Cusa, pela boca do seu Idiota, nos diz que, mesmo no
desconfortável lugarzinho subterrâneo, onde um pobre e iletrado artesão
tem a sua oficina e se ocupa no seu modestíssimo ofício de fabricar
colheres de pau, mesmo aí, nesse lugar corriqueiro e nessa ocupação
banal, mora e fala eloquentemente a mais alta sabedoria.

513 Aristóteles, De partibus animalium A 5, 645a 17.


VI

SEIS BREVES PERFIS RENASCENTISTAS

«Haec sunt vere aurea tempora, in quibus bonarum litera-


rum studia multis annis neglecta refloruerunt.»
Joahnnes Trithemius, Carta a Jacobus Trithemius, 1506,
Opera Historica, Francofurti, 1601, p. 505.
232 Leonel Ribeiro dos Santos

LORENZO VALLA
E O HUMANISMO RETÓRICO

Lorenzo Valla nasceu em Roma, em 1407 e aí morreu em 1457. A


sua formação não se limitou ao currículo humanista dos studia humani-
tatis. A par dos grandes nomes da tradição retórica, como Cícero e Quin-
tiliano, estudou Aristóteles, os Padres da Igreja, Boécio e até os escolás-
ticos. Esse vasto conhecimento da tradição retórica, filosófica e teológica
deu-lhe bases para sustentar a crítica pertinaz que dirigiu contra a filoso-
fia aristotélico-escolástica e para propor uma nova filosofia fundada na
linguagem e na filologia, ao mesmo tempo que lhe deu consciência da
irredutibilidade que existe entre Filosofia e religião cristã, o que o levaria
a condenar a mistura da Filosofia com a Teologia realizada pelos escolás-
ticos. As suas ideias audazes e sobretudo as suas propostas de crítica
textual e interpretação filológica dos livros bíblicos constituíram motivo
para que fosse convocado perante a Inquisição, em 1445. A sua defesa,
porém, foi tão convincente que, em 1448, o próprio Papa Nicolau V o
convidou para seu secretário pessoal.
As suas obras, marcadas pelo cunho de um pensamento livre e de
vastos interesses, cobrem não só as disciplinas humanísticas, mas tam-
bém a teologia bíblica, a filosofia moral e a história. Destacam-se as
seguintes: Elegantiarum Linguae Latinae Libri Sex, Collatio Novi Tes-
tamenti, De voluptate (depois reformulada sob o título De vero falsoque
bono), De libero arbitrio, Dialecticarum disputationum libri tres ou
Repastinatio dialectice et philosophie. O significado da obra de Valla no
contexto do humanismo quatrocentista evidencia-se sobretudo na exalta-
ção do valor da Retórica e na defesa do primado da eloquência relativa-
mente à Filosofia e a todas as ciências, visando a restauração do ideal
ciceroniano de uma sapientia humana, clara, elegante e útil, em oposição
às obscuras, bárbaras e estéreis subtilezas dos escolásticos coevos. A
obra de Valla revela-se como um dos exemplos em que melhor se pode
apreciar até que ponto os novos métodos do Humanismo acabam por
transformar interiormente todo o conjunto dos saberes constituídos,
incluídas a Filosofia e a Teologia. Com efeito, uma das ideias fundamen-
tais de Valla é o reconhecimento da importância decisiva da linguagem
para a construção das doutrinas filosóficas e teológicas, o que o leva a
insistir na necessidade da análise linguística e revisão filológica como via
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 233

de acesso à correcta apreensão e compreensão do conteúdo das doutrinas,


método que aplicou também na exegese bíblica do Novo Testamento.
Assim garantia ele a autonomia do próprio pensamento em relação às
diferentes auctoritates, assim ganhava distância crítica em relação às
diferentes doutrinas em confronto, ao mostrar como elas se tinham
constituído tanto sobre o desconhecimento da linguagem como sobre a
ignorância da tradição histórica.
De especial importância se revela a crítica de Valla à lógica escolásti-
ca e nominalista (embora sejam identificáveis traços de nominalismo no
seu pensamento) e a sua tentativa de fundar uma nova dialéctica retórica
sobre a base da linguagem e da filologia. Esta dialéctica retórica não se
orientaria já pela procura da verdade abstracta, com o auxílio de silogis-
mos, mas orientar-se-ia pela procura do verosímil e provável, socorrendo-se
dos argumentos retóricos e da tópica dos oradores. Valla acusa os dialéc-
ticos escolásticos de ignorarem a linguagem e de descuidarem a expressão
e sustenta que a maior parte dos erros lógicos são erros de linguagem e de-
ficiências de expressão, mais facilmente detectáveis e resolúveis pela aná-
lise gramatical e linguística do que pela aplicação das regras silogísticas.
Mas a acção do humanista romano não se limita a pôr em evidência
as bases gramaticais e filológicas da Lógica e a chamar a atenção dos
dialécticos para a importância da linguagem comum. O que ele pretende
é restituir a originária identidade que existe entre o verbum e a res, mani-
festando a dimensão metafísica da linguagem. É esta, com efeito, que
determina e particulariza os seres, mediante ela é que as coisas têm exis-
tência e adquirem significado para o homem. A linguagem comum e o
uso da linguagem e da fala (a loquendi consuetudo ou consuetudo ser-
monis) constituem já de si uma interpretação da realidade e exibem o
mundo sob a forma da mediação humana. É neste contexto que se deve
entender a proposta de Valla de transformação da Metafísica com base na
linguagem comum, pois esta, segundo ele, contém já regras e economia
próprias, antes de qualquer lógica ou metafísica. E assim, em oposição à
metafísica tradicional, construída sobre a noção generalíssima ens (ente)
e os respectivos transcendentais (ens, unum, verum, bonum, aliquid, res),
Valla propõe uma metafísica simplificada, construída sobre a noção
latina res (coisa), expressão da linguagem comum, que não só é a mais
universal de todas e a que está suposta em todas as outras, inclusive na
noção de ens – pois também o ens ou ente, se alguma coisa é é ‘aquela
coisa que é’ (ea res quae est) –, mas que tem ainda, sobre aquela noção
da metafísica aristotélico-escolástica, a vantagem de indicar imediata-
mente o que é real, concreto, determinado e próximo.
De inegável interesse filosófico são as concepções de Valla no plano
ético. O seu nome costuma andar associado à ideia do renascimento do
epicurismo no séc. XV, do que daria testemunho o juvenil diálogo De
234 Leonel Ribeiro dos Santos

voluptate (de 1431, depois submetido a novas redacções e por fim trans-
formado no De voluptate ac de vero bono). Neste, criticando como filo-
logicamente falsas as distinções de filósofos, moralistas e teólogos entre
o prazer, de que fala Epicuro, a felicidade, de que fala Aristóteles na sua
Ética Nicomaqueia, e a felicidade e bem-aventurança de que se fala
abundantemente nos livros bíblicos, Valla generaliza o conceito de prazer
ao corpo e ao espírito, identificando-o com o próprio bem: o prazer é o
bem onde quer que ele se encontre, seja no deleite da alma ou do corpo
(voluptas est bonum undecumque quaesitum, in anime et corporis oblec-
tatione positum). Mas, mais do que defender o carácter absoluto do pra-
zer corporal ou mesmo do prazer em geral, o que ele defende é a bondade
intrínseca do prazer (omnis voluptas bona est) e o carácter positivo da
vida contra o culto estóico das virtudes negativas e do sacrifício inútil.
Assim, longe de ser uma apologia incondicional de Epicuro, o diálogo
está antes construído sob forma engenhosamente dialéctica, propondo-se
o seu autor superar a antinomia entre o princípio do prazer, representado
pelo epicurismo, e o princípio da virtude, representado pelo estoicismo,
mediante a concepção cristã, que, ao apresentar Deus como o Sumo Bem,
mostra a efectiva harmonização da virtude com o prazer e a felicidade.
Para a ética renascentista e moderna é significativo também o pequeno
diálogo De libero arbitrio, no qual Valla aborda o magno problema da
conciliação da presciência divina com a liberdade humana. Discute e
rejeita aí a solução apresentada por Boécio, o qual afirmava incondicio-
nalmente a liberdade do homem, e, indo de aporia em aporia, de distin-
ção em distinção (entre praescire e scire, entre scire e velle), termina
reconhecendo o mistério que é a liberdade humana e a incapacidade de
dar uma solução racional para aquele problema, sem todavia concluir
pela desresponsabilização do homem. Este diálogo exercerá profunda
influência sobre Lutero, o qual nele se apoia, no De servo arbitrio, para
atacar a posição de Erasmo. E Leibniz, no final dos Essais de Théodicée
e no contexto do debate com Pierre Bayle, retoma o diálogo de Valla no
ponto aporético em que este o deixou, propondo-se dar-lhe a solução que
lhe faltava, mas reconhecendo a grande clarividência do humanista-
-filósofo no modo de colocar e conduzir o problema.
No seu conjunto, o pensamento de Valla revela-se como um pensa-
mento que se emancipou pelo exercício da leitura e que propõe a atenção
ao verbum como via para a libertação do pensamento. Há em Valla uma
clara relativização das subtilezas especulativas da filosofia escolástica e
um vincado sentido do que é útil e diz respeito à comunidade humana.
Essa orientação prática do seu pensamento explica a subordinação da
filosofia à eloquência e a transformação da metafísica abstracta do ente e
dos transcendentais numa compreensão retórica da realidade, numa tópi-
ca das coisas ou realidades com significado para o homem. A relativi-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 235

zação da Filosofia e a ideia da irredutibilidade entre Filosofia e religião


cristã, bem como a declarada preferência pelas posições dos antigos
Padres da Igreja e da teologia paulina relativamente às dos mais recentes
teólogos-filósofos da escolástica, constitui um dos primeiros sintomas de
ruptura do equilíbrio entre a razão e a fé, ruptura que se acentuará no
período renascentista e moderno e que terá as primeiras manifestações
evidentes em Pomponazzi e sobretudo em Lutero e Melanchthon. Por
outro lado, a insistência de Valla num pensamento de carácter prático e o
reconhecimento da impossibilidade de a razão dar resposta ao problema
fundamental da liberdade humana, ao mesmo tempo que parece sugerir a
autonomia da ordem ética em relação à ordem teorética, abre o passo ao
fideísmo e ao cepticismo, com larga expressão no pensamento renascen-
tista e moderno, em filósofos como Gianfrancesco Pico della Mirandola,
Cornélio Agrippa de Nettesheim, Montaigne, Pascal ou mesmo Kant.

Bibliografia

Obras: Opera omnia, 2 vols., ed. por E. Garin, Torino, 1962 (vol. I: reimpressão da ed.
de Basileia 1540; vol. II: reimpressão de suplementos posteriores); Repastinatio
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bono, ed. por M. Lorch, Bari, 1970; De libero arbitrio, ed. bilingue latim-alemão, por E.
Kessler, München, 1987; Collatio Novi Testamenti, ed. por A. Perosa, Firenze, 1970; De
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Estudos: S. Camporeale, Lorenzo Valla: Umanesimo e teologia, Firenze, 1972; Id.


«Lorenzo Valla tra Medioevo e Rinascimento: Encomion S. Thomae, 1457», Memorie
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quadro storico-culturale del suo ambiente, Roma, 1969; F. Gaeta, Lorenzo Valla:
filosofia e storia nell’Umanesimo italiano, Napoli 1955; H.-B. Gerl, Rhetorik als
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Frage des Paradigmenwechsels von der Scholastik zum Humanismus in der Argumen-
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Giannantonio, Lorenzo Valla, filologo e storiografo dell’Umanesimo, Napoli, 1972; L.
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Agostino Nifo’s criticism of L. Valla», in Rivista critica di storia della Filosofia, 36
(1981), pp. 253-270; Id., «L. Valla: Academic skepticism and the new humanist
dialectic», in The Skeptical Tradition (ed. M. F. Burnyeat), Berkeley, 1983, pp. 253-286;
E. Kessler, «Freiheit des Willens in Vallas De libero arbitrio», in Acta Conventus
Neolatini Turonensis (ed. J.-C. Margolin), Paris, 1980, pp. 637-647; M. P. Lorch, A
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Valla’s De vero falsoque bono, Lactantius and oratorical scepticism», Journal of the
Warburg and Courtauld Institutes, 41 (1978), pp. 76-107; J. E. Seigel, Rhetoric and
Philosophy in Renaissance Humanism. The Union of Eloquence and Wisdom, Petrarch to
236 Leonel Ribeiro dos Santos

Valla, Princeton, 1968; C. Vasoli, La dialettica e la retorica dell’Umanesimo.


«Invenzione» e «Metodo» nella cultura del XV e XVI secolos, Milano, 1968, pp. 37-77;
Id., «Lorenzo Valla, la grande filologia umanistica e la sua funzione nella cultura
filosofica, teologica e storica», in Grande Antologia Filosofica, Milano, s/d, vol. XI,
pp. 29-37 e 107-127; R. Waswo, «The ‘Ordinary Language Philosophy’ of L. Valla»,
Bibliothèque d’Humanisme et Renaissance, 41 (1977), pp. 255-271; Peter Mack,
Renaissance Argument. Valla and Agricola in the Tradition of Rhetoric and Dialectic, E.
J. Brill, Leiden/New York/Köln, 1993.
JORGE GEMISTO
A LUZ QUE VEM DE BIZÂNCIO

Jorge Gemisto nasceu em Constantinopla, por volta de 1355 e mor-


reu em Mistra, em 1452. Teve por mestre um judeu, de nome Eliseu, que
o instruiu nos Oráculos caldaicos, atribuídos a Zoroastro. Ele próprio
escreveu um Comentário aos Oráculos de Zoroastro. Profundo conhece-
dor da cultura grega e fervoroso platónico, concebeu o projecto de uma
renovação política, moral e religiosa inspirada em Platão, que visava a
restauração dos antigos valores, representados nos deuses e cultos do
politeísmo grego. É difícil avaliar a verdadeira intenção desse projecto,
pois a parte da obra em que era exposto – Das Leis – foi queimada pelo
adversário de Gemisto, o patriarca Genádio Escolários, tendo este deixa-
do apenas os fragmentos da obra que melhor evidenciavam as supostas
tendências paganizantes do seu autor. Mais do que de uma real intenção
de restauração do paganismo, movida contra o cristianismo, parece tratar-
-se antes de uma interpretação alegórica dos deuses pagãos, numa anteci-
pação daquele profundo sentido estético que viria a ser tão característico
de alguns pensadores do Renascimento, em particular dos que, como
Ficino e João Pico della Mirandola, foram formados no ambiente do
platonismo florentino, reconhecidamente inspirado por Gemisto. Já octo-
genário, Gemisto fez parte da delegação de teólogos da Igreja Grega ao
Concílio de Ferrara-Florença (1438-1439), o qual tinha por objectivo a
reunificação das Igrejas Latina e Grega. Tendo sido consultado, em 1428,
pelo imperador João Paleólogo, acerca da questão da reunificação das
duas Igrejas, Gemisto pronunciara-se contra tal esforço, talvez porque o
visse determinado mais pela conjuntura política (o assédio dos Turcos a
Constantinopla) do que por uma efectiva maturação das ideias teológicas
e por uma real aproximação entre o Ocidente e o Oriente. Em qualquer
caso, de modo algum aceitava o tratamento não paritário da Igreja Grega
ou a cedência desta em questões doutrinais. No concílio de Ferrara-
Florença teve acção modesta. Jorge de Trebizonda, que viria a ser seu
adversário, refere uma intervenção na qual Gemisto teria declarado não
tardar o tempo em que uma mesma e única religião – que não seria nem a
cristã nem a maometana – se espalharia por toda a terra. Também esta
declaração e outras do género foram frequentemente interpretadas como
inspiradas por sentimentos paganizantes de anticristianismo. Mas há que
238 Leonel Ribeiro dos Santos

notar que muitos pensadores renascentistas contemporâneos (pense-se em


Nicolau de Cusa e no seu opúsculo De pace fidei, 1453) defenderam
teses semelhantes sem que tal significasse defecção na fidelidade ao Cris-
tianismo. É de supor que a ideia de uma religião universal supraconfes-
sional não implicava propriamente a intenção de desalojar o Cristianis-
mo, mas sim o reconhecimento de uma comum tradição teológica revela-
da a todo o género humano – uma prisca theologia –, na qual se encon-
trariam, quando correctamente interpretados, os oráculos de Zoroastro, a
teologia de Platão e a própria revelação bíblica e cristã. Pelo menos esta
foi a versão que viria a revelar-se fecunda entre os platónicos florentinos,
nas quatro últimas décadas do século XV.
Para a história da filosofia a passagem de Gemisto por Florença foi
decisiva por uma outra razão. Segundo o testemunho de Ficino, Cosme
de Médicis ouvia com frequência o sábio bizantino disputando com ardor
a respeito dos «mistérios platónicos» e, entusiasmado por tais discursos,
concebeu a ideia de fundar na sua cidade uma Academia onde se levasse
a cabo o estudo e difusão da filosofia platónica. Gemisto está assim
directamente ligado ao renascimento do platonismo no Ocidente, que
viria a firmar-se a partir da tradução das obras de Platão, por Ficino, e
que constitui um dos acontecimentos mais importantes da história cultu-
ral, filosófica e científica dos sécs. XV e XVI. Foi provavelmente em
Florença que Gemisto trocou este seu nome pelo respectivo sinónimo
ático Pletho, o que os contemporâneos interpretaram como uma forma de
mostrar a sua identificação com Platão (Plethonem, quasi Platonem alte-
rum, dizia Ficino). Para o círculo dos seus amigos de Florença escreveu,
em 1439, um tratado Das Diferenças entre a Filosofia de Platão e de
Aristóteles, obra que desencadeou uma longa e por vezes agressiva polé-
mica a respeito da diferença e hierarquia entre os dois maiores filósofos
da Antiguidade, na qual se envolveram de imediato os filósofos e teólo-
gos bizantinos, e que, por todo o séc. XVI, viria a traduzir-se em vários
projectos ora de confronto ora de conciliação das duas filosofias. Nos 20
capítulos dessa obra, e apesar da promessa do título, trata-se na verdade
menos do confronto entre as duas filosofias do que de uma crítica das
principais teses aristotélicas. Ora se apontam, por vezes de forma bas-
tante sumária, as inconsequências de Aristóteles, ora se faz ver como não
são satisfatoriamente explicadas no aristotelismo questões como a natu-
reza da divindade, a dependência do mundo em relação ao criador, a
natureza da virtude e a imortalidade da alma. Em contrapartida, segundo
o filósofo bizantino, todas estas questões recebem no platonismo adequa-
da solução. Apesar do confessado platonismo de Gemisto, deve notar-se
que se trata de um platonismo profundamente influenciado pelo neopla-
tonismo, através, nomeadamente, de Proclo, e têm sido igualmente iden-
tificadas no seu pensamento influências do estoicismo e até do aristote-
lismo.
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 239

Bibliografia

Obras: Os escritos de Gemisto encontram-se em Migne, Patrologia Graeca 160: 773-


-1020 (com informações biobibliográficas); Traité des Lois (trad. de A. Pelissier e ed. de
Ch. Alexandre), Paris, 1858 (reimpr. Amesterdão, 1966); Tratado sobre las leyes.
Memorial a Teodoro, estudo preliminar, trad. e notas de Francisco L. Lisi e Juan Signes,
Editorial Tecnos, Madrid, 1995; B. Tambrum-Krasker, Georges Gemiste Pléthon. Traité
des vertus, ed. crít. com introd., trad. e comentário por B. T.-K., Atenas/New
York/Kobenhavn/Köln, 1987; Ch. Astruc, «Manuscrits pariciens de Gémiste Pléthon»,
Scriptorium 5 (1951), pp. 114-116; W. Blum, «Einleitung», in Georgios Gemistus Pletho,
Politik, Philosophie und Rhetorik im Spätbyzantinischen Reich (1355-1542) übersetzt und
erläutert von W. B., Stuttgart, 1988; D. Dedes, «Die Handschriften und das Werk des
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(1981), pp. 66-81.

Estudos: D. Dedes, «Die wichtigsten Gründe der Apostasie des Georgios Gemistos
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Plethon, the Essenes, and More’s Utopia», Bibliothèque d’Humanique et Renaissance, 27
(1965), pp. 579-606; J. Draseke, «Plethons und Bessarions Denkschriften über die
Angelegenheiten im Pelopones», Neue Jahrbücher für das Klassische Altertum,
Geschichte und deutsche Literatur, 27 (1911), pp. 102-119; E. Gavin, «Platonini bizantini
platonici italiani», Rivista Critica di Storia della filosofia, III-IV (1956), pp. 341-359; D.
J. Geanakoplos, «Italian Renaissance Thought and Learning and the role of the Byzantine
Emigrés Scholars in Florence, Rome and Venice: A reassessment», Rivista di Studi
Bizantini e Slavi, 3 (1983), pp. 129-157; A. Kélessidon, «Critique de la sophistique par
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Medievo e Rinascimento, Venezia, 1966a, pp. 19-33; Idem, «Platonismo bizantino e
fiorentino e la controversia su Platone e Aristotele», in A. Petusi (ed.), Venezia e
l’Oriente fra Tardo Medievo e Rinascimento, Venezia, 1966b, pp. 103-116; F. Masai, «La
restauration du paganisme par George Gemiste Pléthon», in Il mondo antico nel
Rinascimento. Atti del V Convegno Internazionale di Studi sul Rinascimento, Firenze-
-Palazzo Strozzi, 2-6 Setembro 1956, Firenze, 1958, pp. 55-63; A. Partusi, «In margine
alla questione dell’umanesimo bizantino: il pensiero politico del cadinal Bessarione e i
moi rapporti com il pensiero di Giorgio Gemisto Pletone», Rivista di Studi Bizantini e
Neoellenici, n.s., 5-XV, 1968, pp. 95-104; R. Webb, «The Nomoi of Gemistos Plethon in
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Pléthon et le platonisme de Mistra, Paris, 1956; P. O. Kristeller, Renaissance Thought
and Its Sources, New York, 1979, caps. VII e VIII.
MARSÍLIO FICINO
E O RENASCIMENTO DO PLATONISMO

Marsílio Ficino nasceu em Figline, em 19 de Outubro de 1433 e


morreu em Careggi, em 1 de Outubro de 1499. Após os estudos de
Humanidades, cursa Medicina e Filosofia em Florença. Relacionado com
o círculo dos Médicis (seu pai era o médico dessa poderosa família flo-
rentina), foi ao jovem humanista que Cosme confiou a orientação da
Academia por ele mesmo fundada, em 1462, incumbindo-o da tarefa de
restaurar e divulgar o pensamento de Platão.
Foi durante o Concílio de Florença (1439), celebrado entre as Igrejas
Grega e Latina na continuação do de Basileia (1431) e de Ferrara (1438),
que Cosme de Médicis, ao ouvir o filósofo platónico e teólogo grego
Jorge Gemisto dissertar acerca dos mistérios gregos e, em particular,
acerca das diferenças entre as filosofias de Aristóteles e de Platão, ficou
de tal modo entusiasmado pelas ideias deste último que projectou fundar
uma academia onde fosse restaurada, ensinada e divulgada a doutrina
daquele filósofo antigo. Esse projecto viria a concretizá-lo em 1462,
tendo confiado a sua execução ao jovem humanista Marsílio Ficino, o
qual, em obra escrita em 1456 e que se perdeu (Institutiones ad platoni-
cam disciplinam), dera já provas da sua capacitação para o grandioso
empreendimento. Cosme pôs ao dispor do jovem filósofo os textos gre-
gos de Platão e de Plotino e instalou-o numa propriedade em Careggi,
próximo de Florença, onde Ficino se entregou à tradução das obras de
Platão, de Plotino e de outras fontes neoplatónicas e da tradição hermé-
tica e desde onde animou, com o seu próprio pensamento e personali-
dade, a difusão do espírito e pensamento platónicos. O período áureo da
Academia deu-se sob o reinado de Lourenço, o Magnífico, ele mesmo
um poeta platónico, e sob a orientação de Ficino, começando o seu declí-
nio após a morte destes, ocorrida respectivamente em 1492 e 1499.
A Academia ficiniana, inspirada na de Platão, nas antigas escolas
filosóficas e possivelmente também nas associações religiosas laicas da
época, não era uma instituição organizada à maneira das academias cien-
tíficas que proliferariam na Europa nos sécs. XVII e XVIII. Ela propor-
cionava um ambiente informal de convívio e diálogo filosóficos, congre-
gando um amplo círculo de pensadores e artistas ilustres, entre os quais
se contam algumas das mais destacadas figuras do humanismo italiano da
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 241

segunda metade do séc. XV. Refiram-se, em particular, os nomes de


Giovanni Pico della Mirandola, Leon Battista Alberti e Cristoforo Lan-
dino. Sabe-se que se reuniam para celebrar o nascimento de Platão, orga-
nizavam récitas e palestras sobre textos e temas platónicos, tendo por
modelo o diálogo do filósofo ateniense, O Banquete. O comentário fici-
niano a este diálogo platónico dá uma expressiva amostra do que seriam
as reuniões filosóficas dos membros da Academia. Ficino foi não só o
principal responsável pela Academia mas também a sua mais destacada
figura como pensador. Todavia, apesar da autoridade que lhe advinha do
profundo conhecimento dos textos de Platão e do vigor do seu pensa-
mento próprio, ele foi menos um director do que um dinamizador. Não
havia um sistema rígido de doutrina que vinculasse os membros da pla-
tonica familia. No comum e ágil espírito platónico que respiravam são
contudo reconhecíveis alguns traços característicos, designadamente: a
ideia da conciliação das doutrinas filosóficas e religiosas, o elevado sen-
tido da dignidade do homem, a insistência na liberdade, espontaneidade e
imortalidade da alma, o amor, o ideal da vida contemplativa. O sumo
apreço por Platão não os impedia de minimizar as diferenças e antago-
nismos ou de mostrar mesmo as concordâncias entre o pensamento
daquele e o do seu discípulo Aristóteles. Os platónicos florentinos oporão
contudo uma tenaz resistência às teses dos averroístas e naturalistas do
círculo da Universidade de Pádua, que se reclamavam do pensamento
aristotélico. À luz da contemporânea exegese histórico-filosófica, o pla-
tonismo dos florentinos não serve de critério para apreciar o autêntico
pensamento de Platão. É um platonismo profundamente determinado por
preocupações teológicas ou mesmo místicas e marcado por uma feição
estética. O que de modo algum põe em causa a sua legitimidade como
uma das mais interessantes formas de renascimento da visão platónica do
mundo e muito menos pode impedir de reconhecer a sua fecundidade
especulativa e o seu papel na preparação do advento da moderna visão da
natureza, do cosmos e da ciência, ocorrido (os grandes intervenientes
nesse processo – Copérnico, Kepler, Galileu – tinham disso consciência)
sob a tutela de Platão. Com efeito, o alcance da Academia Florentina
ultrapassou o círculo de Florença e as fronteiras da própria Itália. Com
Ficino se relacionavam humanistas de toda a Europa: da Inglaterra, como
Colet; da Alemanha, como Reuchlin; da França, como Gaugin e Lefèvre
d’Étaples. Também o filósofo português Leão Hebreu viria a ser profun-
damente tocado pelo platonismo florentino, a cujo tema do amor deu um
dos mais notáveis desenvolvimentos.
A vida de Ficino está intimamente ligada ao destino da Academia
Florentina, de que foi o principal responsável e animador, fazendo dela
um dos mais importantes focos de dinamização intelectual do Renasci-
mento. Em 1473 é ordenado sacerdote e chega a ser cónego da Sé de
242 Leonel Ribeiro dos Santos

Florença. Após a queda dos Médicis e a instauração da república, em


1494, Ficino retira-se a Careggi, onde vem a morrer cinco anos depois.

À frente da Academia, a acção de Ficino consistiu, antes de mais, no


ingente trabalho de tradução para latim da totalidade dos escritos de Pla-
tão, de obras de Plotino e de outros neoplatónicos e ainda de muitas
outras fontes do pensamento antigo, nomeadamente da tradição pitagó-
rica, órfica, hermética e zoroástrica, nas quais, aliás, reconhecia uma
revelação comum, que teria sido recolhida e especulativamente desen-
volvida por Platão e, mais tarde, interpretada pelo «filho dilecto» deste,
Plotino. Ficino não se limitou, porém, a traduzir, sendo igualmente dig-
nos de referência os ricos comentários a muitas das obras, cujo conheci-
mento directo proporcionara por vez primeira ao Ocidente. O horizonte
intelectual de Ficino era vastíssimo. Para além das traduções referidas, é
notável o seu conhecimento da teologia patrística, de Dionísio Areopa-
gita, de Agostinho, da filosofia e teologia escolásticas (Boaventura,
Tomás de Aquino, Duns Escoto, Henrique de Gand), dos filósofos ára-
bes, do aristotelismo averroísta, de Epicuro e de Lucrécio. Tão vasto
horizonte filosófico, suportado por um conhecimento directo dos textos,
predestinava-o para a elaboração de uma das mais significativas e fecun-
das sínteses filosóficas do Renascimento. Essa síntese é feita sob a tutela
de Platão. Mas deve dizer-se que o platonismo de Ficino, antes que fosse
lido nos textos mesmos do filósofo antigo, fora bebido nas fontes do pen-
samento patrístico e medieval, sobretudo em Dionísio Areopagita e em
Agostinho, portanto, já medularmente modelado pelo neoplatonismo e
pelo Cristianismo. Daí que o platonismo fíciniano seja um platonismo
teológico, místico e estético, mais do que um platonismo gnoseológico
ou metafísico. A tarefa que se propunha de mostrar o íntimo e profundo
parentesco existente entre a verdadeira filosofia – o platonismo – e a ver-
dadeira religião – o Cristianismo – estava assim extraordinariamente faci-
litada. E, se na sua obra mais importante – a Theologia platonica de
immortalitate animorum (1474) – é a filosofia platónica que é invocada
em abono da «santa religião» e da «verdadeira piedade» (Opera omnia, I,
78), em contrapartida, na obra De christiana religione (1474), declara
que só com o Cristianismo os mistérios de Platão viram desvendado o
seu verdadeiro significado, e se os neoplatónicos (Fílon, Numémo, Ploti-
no, Jâmblico, Proclo) puderam reinventar o sentido profundo do plato-
nismo, deveram-no aos pensadores cristãos (João, Paulo, Dionísio Areo-
pagita), que lhes deram para tal a chave (Opera omnia, I, 25). Filosofia e
religião manifestam, por conseguinte, uma profunda e natural harmonia,
que exclui qualquer subordinação de uma à outra. No fundo, são uma e a
mesma coisa a pia philosophia e a docta religio. No seu impulso para o
divino, o filósofo usa de preferência as «asas» do entendimento, enquan-
to o teólogo usa as da vontade (Opera omnia, I, l), mas o entendimento
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 243

pode iluminar a vontade, e esta, por seu turno, inflama o entendimento e


acode-lhe ali onde ele já não alcança, «onde a ciência não pode penetrar»
(Opera omnia, I, 704; II,1042).
A metafísica de Ficino segue, no essencial, a dos pensadores neo-
platónicos, hierarquicamente constituída e trinitariamente ritmada, des-
cendo do ser supremo – Deus – até ao grau mais ínfimo do ser, que é o
corpo material. Segundo o filósofo florentino, são cinco os níveis funda-
mentais do ser: Deus, o espírito angélico, a alma racional, a qualidade e o
corpo. Sobressai na hierarquia fíciniana o lugar atribuído à alma racional.
Ela é o centro para onde concorrem todos os outros planos e, graças a
esta condição ontológica média, está vocacionada para ligar os seres
superiores e os inferiores. É pelo conhecimento e pelo amor que a alma
se exerce como o ponto de união e a cópula do universo, é por eles que
rege as qualidades e os corpos e se une aos anjos e a Deus. O amor é
elemento essencial da ontologia, cosmologia, ética e estética ficinianas.
Ele é a força cósmica que move e liga o mundo e que impele a alma para
a contemplação e manifestação do seu dinamismo interior. É como um
«furor divino», que se exprime ora como veemente arrebatamento do
espírito para Deus (o amor terreno é tão-só o simulacro deste amor divi-
no), ora como inspiração artística ou «furor poético», ora como vivência
mística, ora como profecia (Opera omnia, I, 615). Também neste ponto
espontaneamente se conjugam o eros platónico e a charitas cristã. Mas a
questão central da filosofia de Ficino, aquela que dá o argumento à sua
obra principal, é a imortalidade da alma. Uma inequívoca razão existen-
cial dita estas palavras com que abre aquela obra: «Se a alma não fosse
imortal, nenhum animal seria mais infeliz do que o homem» – si animus
non esset immortalis, nullum animal esset infelicius homine (Theol. plat.,
lib. I, cap. I, Opera omnia, I, 79). Abundantes razões, extraídas de Platão,
de Plotino, de Agostinho e dos escolásticos, tecem uma argumentação
dirigida sobretudo contra Epicuro, que nega qualquer espécie de imortali-
dade, e contra os averroístas, que negam a imortalidade das almas indivi-
duais. Mais do que o acervo de argumentos colhidos na tradição, o que é
decisivo na economia da concepção ficiniana é a razão que resulta da sua
análise da experiência íntima da própria alma, do esforço desta por
elevar-se gradualmente até alcançar a contemplação e o gozo de Deus,
único estádio capaz de satisfazer a sua inquietude originária. É, portanto,
a teleologia imanente da alma que exige a imortalidade: se a alma não
fosse imortal, o mundo careceria de ordem, harmonia e finalidade, justa-
mente naquele domínio vocacionado para mostrar e realizar a harmonia e
garantir a ordem e finalidade do todo. Por certo, os padres e teólogos do
Concílio de Latrão (1512), que consolidaram formalmente como dogma a
imortalidade da alma, não terão sido insensíveis ao brilho e poder persua-
sivo da argumentação ficiniana. Destaque-se ainda a concepção ficiniana
244 Leonel Ribeiro dos Santos

da forma como algo independente da matéria, como princípio do ser e do


agir, que releva da própria espontaneidade da alma enquanto poder criador
que imita o supremo artista. É costume sublinhar-se a fraqueza da filosofia
ficiniana da natureza. Ela desenvolve-se sob a forma de uma metafísica da
luz, de um heliocentrismo teológico e especulativo (De Sole e De lumine,
in Opera omnia, I, 965-986), que faz pensar na revolução cosmológica de
Copérnico, e sob a forma de um notável comentário ao Timeu de Platão
(Opera omnia, II, 1438-1466), cujas reflexões sobre as proporções harmó-
nicas prenunciam um outro destacado membro da platonica familia,
Johannes Kepler.

Bibliografia

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immortalitate animorum, Paris, 1559 (reimpr.: Hildesheim, 1975); De vita libri tres,
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Philosophica, 14 (1999), pp. 51-84.
LEONARDO DA VINCI
O ARTISTA ENQUANTO FILÓSOFO

Leonardo da Vinci, artista politécnico e filósofo naturalista, nasceu


em Vinci, na Toscana, a 15 de Abril de 1452 e morreu em Amboise na
corte do rei de França, Francisco I, a 2 de Maio de 1519. Considerado um
dos mais destacados representantes do ideal renascentista do homem uni-
versal, a sua personalidade exprime-se com grande originalidade e altura,
nos mais diversos domínios das artes e da especulação, dando provas de
extraordinários recursos criativos na pintura, na arquitectura, na mecânica
e engenharia, na botânica, na fisiologia e na anatomia, na ciência da natu-
reza, na teoria da arte e na filosofia. Tanto a personalidade como a obra
de Leonardo parecem no entanto esconder um enigma do qual se tem ali-
mentado o mito do seu génio e que tem dado matéria para as mais varia-
das interpretações.
Contrariamente ao que pensava Pierre Duhem, que, no seu esforço
por situar Leonardo na linhagem dos cientistas que desenvolveram a físi-
ca e cosmologia medievais e deram origem à ciência moderna galileiana,
forjou um Leonardo erudito, que teria lido quase tudo e que quase todos
teriam lido, a ideia que actualmente reúne mais consenso é a de que Leo-
nardo não teve a formação literária escolar de um humanista, mas a for-
mação politécnica de um artista, colhida no atelier de Verrocchio e
orientada à resolução de problemas práticos de pintura, arquitectura e
engenharia. Mas, apesar de se declarar um «omo senza lettere» e de pre-
ferir o seu saber, aprendido na experiência e na observação da natureza, à
erudição dos letrados, isso não significa que se tenha mantido alheio ao
intenso movimento cultural e filosófico do humanismo florentino do
último quartel do séc. XV, época em que esteve ao serviço dos Médicis
(até 1482). Em Milão, onde serviu Ludovico, o Mouro, entre 1492 e
1499, terá feito parte do círculo de Luca Pacioli, que a ele se refere na
sua obra De divina proportione (1498). Os últimos anos de vida passou-
-os ao serviço de Francisco I, rei de França.
Leonardo rejeita o princípio de autoridade e mantém em relação aos
antigos uma atitude temperada simultaneamente pelo respeito e pelo sen-
tido de autonomia. Os seus estudos de botânica, de anatomia e de fisiolo-
gia e os seus projectos mecânicos estão marcados por uma intenção
essencialmente prática. Mas é uma característica muito peculiar de Leo-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 247

nardo a capacidade de se elevar a uma reflexão sobre os pressupostos


teóricos das artes a que se aplica e é isso o que, antes de mais, torna a sua
obra interessante para a história do pensamento científico e filosófico.
A obra literária e especulativa de Leonardo, mais ainda do que mui-
tas das suas pinturas, ficou inacabada, e o seu pensamento, apenas esbo-
çado sob a forma de fragmentos dispersos por vários códices, carece não
só de sistematização, como também de uma inequívoca visão filosófica
integradora. À falta disso, e tendo em conta a grande variedade de domí-
nios em que se multiplica o seu espírito perscrutador e inventivo, os
intérpretes tendem ora a exagerar ora a minimizar o significado científico
e filosófico dos apontamentos leonardinos. Há os que, como Duhem e
Solmi, sem deixarem de reconhecer o carácter revolucionário das ideias e
inventos de Leonardo, sublinham as fontes medievais e escolásticas onde
terá bebido informação ou inspiração, pressupondo da parte do artista
muito mais leituras e erudição do que parece plausível. Noutro extremo,
estão os que reconhecem em Leonardo o genial precursor de Copérnico,
de Galileu e de Newton, que, em escassos e breves fragmentos, teria dei-
xado indelevelmente registados o heliocentrismo, a lei do movimento
acelerado, o princípio da inércia, a teoria do método experimental. Há
depois os que, como Gentile, Garin e Marinoni, reconhecendo embora os
limites da cultura literária, científica e filosófica de Leonardo, vêem nos
seus escritos sobretudo os elementos característicos da heteróclita cultura
filosófica do Renascimento, designadamente a afinidade com muitas das
ideias do platonismo e neoplatonismo de Ficino e da Academia Floren-
tina. Outros ainda, como Liley e Randall, reconhecendo embora a extra-
ordinária agudeza das intuições e observações de Leonardo, consideram-
-no mais como um genial inventor do que propriamente como um cien-
tista ou um filósofo e, em todo o caso, negam uma influência directa das
suas ideias no desenvolvimento da ciência moderna, uma vez que os seus
escritos só muito tardiamente foram dados a conhecer – o Tratado da
Pintura, em 1651, e os outros a partir do último quartel do séc. XIX.
Enquanto muitos intérpretes, entre os quais se conta Cassirer e Jas-
pers, não hesitam em conceder a Leonardo um lugar de maior ou menor
relevo na história da filosofia renascentista da natureza, da ciência e da
arte, outros, como é o caso de Croce vêem nos apontamentos de Leonar-
do a revelação de um espírito essencialmente antifilosófico e sobretudo,
uma orientação para o mundo exterior e objectivo, bem expressa na sua
teoria da pintura e da visão. Por certo, não é com um conceito estreito de
Filosofia, que se podem medir as reflexões leonardinas. Mas não há
dúvida que há nelas importantes conceitos e mesmo esboços de uma
visão do mundo com inequívoca relevância filosófica. Será muito difícil,
aliás, ultrapassar não só a variedade como a dissensão das interpretações,
enquanto não se dispuser de uma edição cronológica completa dos escri-
248 Leonel Ribeiro dos Santos

tos do artista (empresa talvez mesmo impossível) que permita reconsti-


tuir, na medida do possível, a sua evolução intelectual e discriminar o
que nos seus apontamentos e aforismos é reflexão pessoal e o que sim-
plesmente é matéria extraída de obras por ele lidas.
Segundo nos parece, a visão do mundo de Leonardo, como, aliás, a
de muitos outros pensadores do Renascimento, é essencialmente eclécti-
ca. Nela se fundem elementos do aristotelismo (a insistência no estudo e
observação da natureza, o apelo à experiência, no que se demarca da ten-
dência anti-científica do humanismo retórico e cívico quatrocentista), do
platonismo (o reconhecimento da matemática e da geometria como para-
digmas de cientificidade e de certeza, o pressuposto da existência de pro-
porção e razão no cosmos que pode ser reproduzida e reinventada pela
mente humana) e do neoplatonismo (ideia de uma mesma força cósmica
que se metamorfoseia em todos os seres, a concepção do homem como
microcosmos e modelo do mundo), tudo isso, porém, apropriado com
grande agilidade e liberdade, tendo em vista mais a fecundidade heurística
das ideias do que a fidelidade às tradições doutrinárias. Acima de tudo,
releva a concepção da ciência ligada à prática e à experiência, pensada
como forma de conhecer os segredos e de produzir os efeitos da natureza.
Leonardo contribui decisivamente para a transformação do estatuto da
ciência, vinculando-a à técnica, mas, por outro lado, transforma também o
conceito e o estatuto das artes, exigindo que se elevem à especulação e teo-
rização. A ciência não deve começar e acabar na mente, mas começar na
experiência e acabar nas demonstrações matemáticas. Segundo uma das
suas declarações, nenhuma investigação humana pode pretender dar-se por
verdadeira ciência se não passar pelas demonstrações matemáticas. Mas
antes de descansar em regras gerais, deve o sábio sujeitá-las à prova de
reiteradas experiências. A ciência, segundo Leonardo, requer o concurso
da mente e dos sentidos, da razão e da experiência, cabendo porém à razão
a condução do processo. Como se lê num dos fragmentos, os que especu-
lam sobre os efeitos naturais, ao contrário da natureza, que começa pela
razão e termina na experiência, devem começar pela experiência e com ela
investigar a razão dos efeitos.
Embora também inacabado, o texto mais elaborado de Leonardo é o
Trattato della Pittura, obra que se inscreve num género muito cultivado
no Renascimento, onde convivem as observações e recomendações de
carácter técnico com uma justificação teórica e filosófica da pintura, o
que, só por si, já é revelador de uma profunda alteração cultural e filosó-
fica. Leonardo não apenas defende uma nova hierarquia e sistema das
artes, assente no primado e privilégio da pintura, mas reclama para a
pintura o estatuto de arte liberal e considera-a mesmo como a forma mais
perfeita de alcançar o conhecimento da natureza; por conseguinte, vê na
pintura não só uma forma de conhecimento, mas a própria essência da
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 249

filosofia natural. Sendo uma arte liberal, a pintura é também uma ciência
mental que tem por objecto a perspectiva e as proporções qualitativas das
cores, da luz e da sombra. O privilégio da pintura decorre de uma gno-
siologia que acima de tudo acredita nos sentidos e que estabelece a visão
como critério de verdade, pois, segundo Leonardo, os olhos enganam-se
menos do que o entendimento. A esta gnosiologia da visão só pode cor-
responder uma ontologia do visível: a natureza nas suas várias manifesta-
ções. A ciência-arte da pintura exprime e torna patente a natureza, expon-
do a harmonia, a proporção e a beleza que existe nas próprias formas sen-
síveis. O mundo natural está possuído de razão e de formas. É tarefa do
pintor-filósofo descobri-las e manifestá-las. Para isso, ele como que se
transmuta na mente divina, discorrendo acerca da geração das diversas
essências de todos os seres, e é nessa medida que a sua mente se trans-
forma na própria mente da natureza.

Bibliografia

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literal, trad. fr., pref. e quadro metódico por C. Ravaisson-Mollien, Paris, 1881-1891, 6
vols.; I Manoscritti e i Disegni di L. da V., Roma, 1936 e 1941; Il cod. Urbinate 1270
della Vaticana, raccogliente di mano d’un discepolo di L. da V. – appunti sul Trattato
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Estudos – F. M. Bongioanni, L. pensatore. Saggio sulla posizione filosofica di L. da V.,


Piacenza, 1935; E. Cassirer, Individuum und Kosmos in der Philosophie der Renaissance,
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Leonardo da Vinci, Milano, 1910; P. Duhem, Études sur Léonard de Vinci. Première et
seconde série: Ceux qu’il a lus et ceux qui l’ont lu; Troisième série: Les précurseurs
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da V. raccolti e interpretati, Firenze, 1954; Id., «I manoscritti di L. da V. e le loro
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250 Leonel Ribeiro dos Santos

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naturale di L. da V., Modena, 1890; Id., Nuovi studi sulla filosofia naturale di L. da V.,
Mantova, 1905; E. Troilo, Ricostruzione e interpretazione del pensiero filosofico di L. da V.,
Venezia, 1954; Michael White, Leonardo, o primeiro cientista, Plub. Europa-América,
Mem-Martins, 2003.
PHILIPP MELANCHTHON
DA RESTAURAÇÃO DAS LETRAS À REFORMA DA TEOLOGIA

Sobrinho-neto do grande humanista alemão Johannes Reuchlin,


Melanchthon, nascido em Bretten em 1497, teve uma esmerada formação
de humanista nas universidades de Heidelberga e Tubinga. Por recomen-
dação de Reuchlin e de Erasmo, que tinha por ele grande apreço, viria a
assumir, em 1518, o cargo de professor de Grego na Universidade de
Witemberga, cidade onde morreu em 1560. Nessa Universidade leccio-
nou as disciplinas humanísticas (Retórica, Dialéctica) e teológicas e aí
convive directamente com Lutero, de quem confessa ter aprendido o
Evangelho (Corpus Reformatorum, III, p. 827) e de quem se tornou o
principal colaborador na obra da Reforma e da sistematização da teologia
luterana. Enquanto humanista, Melanchthon escreveu gramáticas de
Latim e de Grego, obras de Retórica e Dialéctica e preparou e publicou
edições e comentários de autores clássicos (Tucídides, Aristóteles, Cíce-
ro, Ovídio, Quintiliano).
Sobre o significado de Melanchthon para a história do pensamento
não há geral acordo. Enquanto uns o consideram o verdadeiro filósofo e
teólogo do protestantismo, que elaborou e sistematizou as intuições fun-
damentais de Lutero, outros consideram-no como um pensador de segun-
da ordem, um erudito, que de modo nenhum estava capacitado para
entender o significado da revolução luterana, sendo por isso levado para
moderadas soluções de compromisso. O que ninguém põe em dúvida é o
seu papel como pedagogo e como organizador das instituições culturais
da Alemanha luterana, o que lhe valeu com plena justiça o título de prae-
ceptor Germaniae. Discutido é também o modo como se dá em Melanch-
thon a relação entre a sua formação de humanista e a sua conversão ao
Evangelho e à Reforma. Numa carta a Camerarius, de 22.1.1525, diz que
se tornou teólogo com o fim de «emendar a vida» (Corpus Reformato-
rum, I, p. 722). Mas isso não significa que tenha abandonado a sua for-
mação e as suas convicções de humanista. Pelo contrário, vai colocá-las
ao serviço da teologia evangélica reformada, ao ponto de se poder dizer
dele que é o pensador que melhor exibe um equilíbrio, não isento de ten-
são, entre o Humanismo e a Reforma, o que só por si bastaria para des-
mentir a tese frequentemente repetida de que aqueles dois movimentos
são inconciliáveis.
252 Leonel Ribeiro dos Santos

Em muitos aspectos se revela a vertente humanista de Melanchthon:


na importância atribuída ao conhecimento das línguas clássicas (Latim,
Grego, Hebraico) e às ciências da linguagem e do discurso (sobretudo a
Retórica e a Dialéctica) na exaltação da eloquência, aliada à verdadeira
doutrina; no reconhecimento da «dignidade do homem», em cuja mente
brilha como num espelho, e apesar do pecado, a sabedoria de Deus, que
se manifesta como «sabedoria da lei» no juízo inato que distingue o bem
e o mal; na afirmação da existência de um espaço autónomo e próprio do
homem – a humanitas –, gerido e construído pela razão, que se realiza na
vida social e nas obras exteriores e se exprime na virtude ético-política da
harmonia et moderatio e também nas artes, letras e ciências; enfim, no
reconhecimento da essencial compatibilidade entre a razão e a fé, sem
sacrifício desta àquela.
A importância concedida às ciências da linguagem não visa apenas o
cultivo das letras humanas, mas também o das letras sagradas. Melanch-
thon adopta, em relação à interpretação da Escritura, a mesma atitude de
atenção à letra e ao carácter literário do texto que o leva a recuperar o
pensamento «original e autêntico» (nativus ac sincerus) dos filósofos
antigos, em particular o de Aristóteles. Preside a todo o pensamento
melanchthoniano o princípio da clara distinção entre a razão e a fé, a Filo-
sofia e a Teologia, a humana doctrina e a christiana cognitio. Distinção
que decorre de uma outra, mais originária e fundamental, que é de ordem
antropológica: a distinção entre o homem exterior e o homem interior,
que corresponde à distinção entre a esfera do conhecimento e a esfera da
afectividade. Pois «a filosofia só olha para as máscaras exteriores dos
homens; ao passo que as sagradas letras perscrutam os seus afectos mais
íntimos e incompreensíveis» (Loci communes; Werke in Auswahl, II,
p. 38).
No que respeita ao problema das relações entre a razão e a fé,
Melanchthon rejeita expressamente a solução escolástica, na qual vê uma
subordinação da doutrina cristã e da interpretação da Escritura às exigên-
cias da razão e das doutrinas humanas. Mas está longe de recusar o con-
curso da razão e da Filosofia. Pelo contrário, propõe mesmo uma espécie
de redução de todas as artes e ciências à Teologia, contrapondo à teologia
sofística dos escolásticos e à teologia bárbara de muitos contemporâneos
aquilo a que chama uma «teologia esclarecida» (erudita theologia), que
aproveita, sem a eles se subordinar, os conhecimentos e informações de
todas as ciências e artes, dizendo mesmo que o teólogo esclarecido
«necessita de todas as doutrinas e artes, as quais estão de tal modo liga-
das entre si que, para atender a cada uma em particular, é necessário
tomar muita coisa das outras» (De philosophia oratio; Werke in Auswahl,
III, p. 88). No que respeita à Filosofia propriamente dita, Melanchthon
rejeita a Escolástica, identificada como uma espécie de sofística e de for-
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 253

malismo estéril, o estoicismo e respectiva teoria dos afectos (apatia) e do


fatum, o epicurismo e sua doutrina do acaso e do determinismo, os plató-
nicos ou académicos, devido à falta de método. Segundo ele, a filosofia,
verdadeiramente esclarecida, que oferece um método seguro, que adopta
as soluções mais sensatas e que, por tudo isso, melhor pode auxiliar o
teólogo, é a de Aristóteles, uma vez restituída à sua forma genuína.
Contudo, não se coíbe de colher elementos de outros pensadores (de
Platão, de Galeno e até dos estóicos) e do corpus aristotélico Melanch-
thon valoriza sobretudo a Lógica ou método dialéctico, a Física, a Psicolo-
gia e a Filosofia moral (ético-política), ignorando quase por completo a
Metafísica, o que, aliás, se coaduna com a sua tendência para o agnosti-
cismo filosófico, segundo o qual «o poder da mente humana não pode
penetrar a natureza das coisas» (Liber de anima; Werke, III, p. 326).
Onde, porém, claudica a razão e a humana doutrina, resta o lugar para a
revelação essencial acerca do homem, do mundo e de Deus, a qual pro-
vém apenas da palavra divina e é acolhida na fé. Esta é, como veremos,
de ordem afectiva e existencial, e não de ordem especulativa ou cogni-
tiva. Particularmente importante é a antropologia melanchthoniana. Ela
parte da distinção tradicional entre o intelecto e a vontade, que Melanch-
thon radicaliza e prefere traduzir pela distinção entre a parte cognoscitiva
e a parte apetitiva, entre a faculdade de conhecer e a faculdade de desejar.
A vontade não é para ele apenas nem fundamentalmente o livre-arbítrio
dos escolásticos, mera faculdade executiva, que obedece ao entendimento
ou potência arbitrariamente deliberativa que pode resistir às paixões ou
afectos, mas é uma faculdade «submetida aos afectos» (amor, ódio, espe-
rança, medo) e ela mesma é um «supremo poder de desejar» (potentia
appetens suprema), que corresponde àquilo que na literatura neotesta-
mentária se designava como sendo o aspecto mais íntimo e irredutível do
homem – o «coração» –, onde nasce o pecado e onde se acolhe também a
justificação.
A partir de uma tal valorização da afectividade, compreende-se a
rejeição da teoria estóica das paixões, segundo a qual estas se reduziriam
a representações inadequadas (opiniones) e a vícios que deveriam ser bani-
dos da natureza humana (Liber de anima; Werke, III, pp. 319 e ss.). Mas
é a própria teologia de Melanchthon que se inscreve nesta antropologia
de matriz afectiva. A fé, com efeito, é do âmbito da faculdade apetitiva
ou afectiva, e não um acto da faculdade cognoscitiva. Fé, di-lo repetida-
mente o teólogo reformado, não é o acolhimento de uma «informação
histórica» (historiae notitiam), mas a confiança dada à consoladora pro-
messa da misericórdia (fiduciam promissae misericordiae) de Deus ofe-
recida em Jesus Cristo, é a «certa e firme consciência da justificação»
(certa et firma conscientia iustificationis). Como se lê numa passagem do
Comentário à Epístola aos Romanos: «Tudo se orienta para que a cons-
254 Leonel Ribeiro dos Santos

ciência se torne certa [da justificação]; pois se não se tornar certa cai no
desespero e não crê ser ouvida por Deus, mas foge sempre dele e odeia-o;
a tal ponto é o mal da dúvida» (Commentarii in Epistolam Pauli ad
Romanos; Werke, V, p. 102). Este verdadeiro «discurso do método» da fé
reformada, que nasce da consciência da falacidade da sabedoria humana
no que concerne à salvação e do reconhecimento de que omnis homo est
mendax, subsiste, em última instância na garantia de que só deus est
verax (ibid., p. 144).
A teologia melanchthoniana constrói-se, tal como a de Lutero, a
partir do comentário à Carta aos Romanos, na qual se apreende, como
revelação fundamental, a tese da justificação apenas pela fé (sola fide
iustificamur), o que é lido como sendo «o núcleo principal e específico
da doutrina cristã e o método para a interpretação de toda a Escritura»
(ibid.. p. 33). Como teólogo, Melanchthon desempenhou papel decisivo
no desenvolvimento, consolidação e sistematização dos princípios da
nova fé luterana. Os Loci communes rerum theologicarum (1521), suces-
sivamente reelaborados, e os Loci praecipui theologici (1559) constituem
a primeira dogmática do luteranismo, onde são explicados, na perspectiva
reformada e com grande clareza e sobriedade especulativas, os principais
tópicos em torno dos quais se decidia a dissensão das confissões religio-
sas: fé, justificação, pecado, graça, livre-arbítrio, boas obras. Também
nos assuntos propriamente teológicos a atitude de Melanchthon é pautada
pelo ideal humanista da moderatio. Sem enfraquecer o essencial da fé
evangélica e recusando firmemente os pontos de vista da teologia da
Igreja romana, que considerava pervertida pela filosofia escolástica, ele
encontra formulações, muito menos crispadas do que as de Lutero, que se
abrem ao diálogo com a doutrina tradicional, graças sobretudo à recupe-
ração e valorização da teologia patrística. Revela-se, por isso, como um
indispensável interlocutor nos esforços em prol de um ecumenismo teo-
lógico que não ignore as suas fontes e, claro está, os seus problemas. Nas
questões éticas, a posição de Melanchthon está obviamente dominada
pela doutrina da justificação apenas pela fé e pela consequente relativiza-
ção do papel do livre-arbítrio e do valor das obras. Nunca a razão sem a
palavra de Deus pode certificar a consciência da remissão dos pecados. E
o livre-arbítrio só respeita às coisas e acções externas, as quais não são
visadas directa e propriamente pelo Evangelho. Mas isso não significa
que o Evangelho dispense a satisfação daquilo que está ao alcance da
razão e do livre-arbítrio do homem. Pelo contrário, a fé supõe o cabal
cumprimento da «doutrina dos costumes e das virtudes, propriamente
chamada a humanitas, que mostra a todas as idades o modo correcto e
civil de viver, distinguindo os homens das bestas» (Praefatio in Officia
Ciceronis; Werke, III, p. 85). Embora muito obscurecida em consequên-
cia do pecado, a lei de Deus subsiste impressa na natureza humana, como
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 255

um vestígio do Criador, e brilha na razão humana sob a forma de um juí-


zo inato, o qual, embora incapaz de redimir interiormente o homem e de
o levar a satisfazer completamente a obediência à lei, é suficiente para
discriminar o que é moralmente honesto do que é desonesto, no que se
refere às acções exteriores e à condução correcta dos assuntos humanos.
Há lugar, por conseguinte, para uma ética da razão humana, autónoma
em relação ao Evangelho, que torna possível a pacífica convivência polí-
tica dos seres humanos. Geralmente seguidor de Aristóteles, Melanch-
thon recorre neste ponto a Platão e propõe uma espécie de inatismo
virtual que daria razão não só das primeiras noções morais, como tam-
bém dos primeiros princípios da ciência. «Não nos perturbemos, diz ele,
com o dito vulgar – nada existe no entendimento que primeiro não tenha
estado nos sentidos. Pois isso, se não for correctamente entendido, é
completamente absurdo, uma vez que as noções universais (universales
notitiae) e o juízo (diiudicatio) não estiveram previamente nos sentidos.
Deve afirmar-se que o entendimento é posto em movimento e excitado
pela acção dos sentidos e pelos objectos singulares para que proceda a
raciocinar os universais e a julgar» (Liber de anima; Werke, III, p. 334).

Bibliografia

Obras: De rethorica libri tres, 1519; Loci communes rerum theologicarum seu
hypotyposes theologicae, 1521; Compendiaria dialectices ratio, 1522; Institutiones
rhetoricae, 1523; Encomion eloquentiae, 1523; Elementorum Rhetorices libri duo, 1531;
Commentarii in Epistolam Pauli ad Romanos, 1532; De philosophia oratio, 1536;
Philosophiae moralis epitomes libri duo, 1546; Initia doctrinae physicae, 1549; Liber de
anima, 1553; Loci praecipui theologici, 1559.

Edições: Opera quae supersunt omnia, ed. C. G. Bretschneider/H. E. Bindseil, Halle-


-Braunschweig, 1834-1860 (= Corpus Reformatorum, vol. I-XXVIII); Supplementa
Melanchthoniana, 5 vols., Leipzig, 1910-1926; Melanchthons Werke in Auswahl, 6 vols.,
ed. R. Stupperich et al., Gütersloh, 1951 (o vol. III – Humanistische Schriften – reúne os
escritos filosóficos mais importantes; cada vol. inclui uma bibliografia selecta);
Melanchthons Briefwechsel, Kritische u. Kommentierte Gesamtausgabe, por H. Scheible,
sob os auspícios da Academia das Ciências de Heidelberg, Frommann-Holzboog,
Stuttgart – Bad Cannstatt, previstos cerca de 47 vols.

Estudos: J. Boisset, Melanchton, éducateur de l’Allemagne, Paris, 1967; H. Gerhards, Die


Entwicklung des Problems der Willensfreiheit bei Philipp Melanchthon (Diss.), Bonn, 1955;
H. Günther, Die Entwicklung der Willenslehre Melanchthons in der Auseinandersetzung mit
Luther und Erasmus (Diss.). Erlangen, 1963; W. Hammer, Die Melanchthonsforschung im
Wandel der Jahrhunderte, 2 vols., Heidelberg, 1967-1968 (contém ampla bibliografia);
R. B. Huschke, Melanchthons Lehre vom Ordo politicus. Ein Beitrag zum Verhältnis von
Glaube und politischen Handeln bei Melanchthon, Gütersloh, 1968; H. Maier, Melanchthon
als Philosoph. An der Grenze der Philosophie, Tübingen, 1909; W. Maurer, Der junge
256 Leonel Ribeiro dos Santos

Melanchthon zwischen Humanismus und Reformation, 2 vols., Göttingen, 1967-1968; Id.,


«Melanchthon und die Naturwissenschaft seiner Zeit», in Archiv für Kulturgeschichte, 44
(1962), pp. 199-226; J. Noryskiewicz, Melanchthons ethische Prinzipienlehre und ihr
Verhältnis zur Moral der Scholastik (Diss.), München, 1903; P. Petersen, Geschichte der
aristotelischen Philosophie im protestantischen Deutschland, Leipzig, 1921 (reimp.
Stuttgart-Bad Cannstatt, 1964), pp. 19-108; A. Sperl, Melanchthon zwischen Humanismus
und Reformation, München, 1959; L. Stern, Philipp Melanchthon: Humanist, Reformator,
Praeceptor Germaniae, Halle, 1960; R. Stupperich, Der unbekannte Melanchthon. Wirken
und Denken des Praeceptor Germaniae in neuer Sicht, Stuttgart, 1961; Günter Frank
(ed.), Melanchthon und die Neuzeit, Frommann-Holzboog, Stuttgart-Bad Cannstatt, 2003.
GIROLAMO CARDANO
E O NATURALISMO RENASCENTISTA

Girolamo Cardano, médico, matemático e filósofo naturalista, nas-


ceu em Pavia, em 24 de Setembro de 1501 e morreu em Roma, a 20 de
Setembro de 1576. Numa notável autobiografia, escrita um ano antes da
sua morte (De vita propria, Opera omnia, I, pp. l ss.), traça um expres-
sivo retrato da sua complexa psicologia e personalidade e conta, com
invulgar franqueza, as circunstâncias que envolveram, desde o ventre de
sua mãe (a qual tentou por todos os meios e sem sucesso o aborto), a sua
conturbada existência de filho ilegítimo. Até aos 20 anos, a sua formação
foi orientada pelo pai (o médico e jurisconsulto Fazio Cardano), que lhe
ensina Euclides e o introduz nas ciências ocultas (expressão que na época
cobria um vasto conglomerado de saberes: medicina, astrologia, magia,
alquimia, cabala, hermetismo, matemática e numerologia). Em 1520 ini-
cia os estudos de Medicina e de Matemática em Pavia, prosseguindo-os
em Pádua, onde obtém, em 1526, o grau de doutor em Medicina. A partir
de então, a sua vida reparte-se entre a prática da Medicina e o ensino da
Medicina e da Matemática, sucessivamente, em Milão (1534-1546), em
Pavia (1547-1551) e em Bolonha (1562-1570). A ousadia de pretender
explicar acontecimentos da vida e paixão de Cristo como resultado da
influência dos astros terá constituído motivo para que fosse preso pela
Inquisição, em 1570, sendo intimado a retractar-se e obrigado a abando-
nar o ensino. A partir de Outubro de 1571 e até à sua morte vive, sob a
protecção do Papa, em Roma.
Com a generalidade dos pensadores do Renascimento, Cardano
comunga da crença na astrologia e na magia natural. As suas especula-
ções e invenções matemáticas (entre as quais consta um método para a
resolução de equações do terceiro grau) estão imbuídas de concepções
místicas e cabalísticas e as suas teorias no domínio da Física e da Mecâ-
nica, por vezes inovadoras, estão envoltas em considerações astrológicas,
mágicas e pampsiquistas que o impedem de atingir a moderna visão
quantitativa e mecânica da natureza. Por outro lado, as ousadas incursões
e explorações nos obscuros domínios do psiquismo, do demoníaco, do
anormal, da interpretação dos sonhos e visões não só constituem um
extraordinário documento dos interesses do espírito renascentista como
fazem de Cardano um precursor das teorias psicanalíticas. As suas obras
258 Leonel Ribeiro dos Santos

filosóficas mais representativas – De subtilitate (1547) e De rerum varie-


tate (1557) – têm carácter enciclopédico, oferecendo um misto de história
natural, cosmologia, física, mecânica, geografia, antropologia e psicolo-
gia. Mas por todos esses domínios perpassa um naturalismo hilozoísta, a
ideia de que uma mesma matéria-prima, constante e originariamente
activa, vai assumindo progressivamente todas as formas de que é capaz,
nada deixando vazio (De Natura, Opera omnia, II, p. 294). Da actividade
originária e movimento vivo da matéria, que atribui ao poder infinito de
uma alma do mundo (ibid., pp. 296-297), brota a variedade dos seres
(segundo o princípio de continuidade), as respectivas transformações
(segundo o princípio de afinidade, por simpatia e antipatia) e a recíproca
interacção orgânica. Embora a ordem, a beleza e a mútua adequação das
partes do universo mostrem que este é regido por um artista sumamente
sábio e prudente, todavia, a natureza exclui qualquer consideração de
finalismo transcendente: não só o todo, mas também cada ser em parti-
cular, têm em si mesmos o seu próprio fim e o homem não é o fim da
natureza, mas tem nela, como qualquer outro ser, lugar e função específi-
cos (ibid., pp. 292-293). Sendo ele próprio uma composição ou mistura
da substância eterna e da substância mortal, cabe-lhe estabelecer a
mediação entre os dois mundos que o constituem, unindo-os em si
mesmo através do conhecimento (De immortalitate animorum, 1545,
p. 256). Cardano distingue dois tipos de conhecimento: nas matemáticas,
a mente cria, por assim dizer, o seu objecto e, por isso, este se lhe adequa
com precisão; mas a ciência natural tem carácter meramente conjectural,
nunca se alcançando por ela a verdadeira essência das coisas. É por isso
que se exige do homem imaginação e génio inventivo, cuidadosa obser-
vação dos fenómenos e subtileza do espírito. É através das ciências e das
artes que se exerce o domínio do homem sobre as coisas mortais. Mas
pelo entendimento e contemplação ele pode ainda elevar-se à divindade e
alcançar a imortalidade (De subtilitate, Opera omnia, III, p. 584). Atinge
assim o reconhecimento de que Deus é causa, fonte, origem e princípio
de tudo quanto existe no universo, mas não chega a conhecer qual o
nome e natureza próprios desse ser supremo, pois isso está para além de
todo o entendimento e só Deus se contempla directamente a si mesmo e
sabe da sua essência (ibid., p. 671). Em De immortalitate animorum,
Cardano submete a minuciosa análise as doutrinas dos filósofos e teólo-
gos a respeito da questão da imortalidade da alma, muito debatida na
época, concluindo que, no fundo, pouco diferem as razões de uns e de
outros, não vendo, nesse ponto, motivo para falar de antagonismo entre a
razão dos filósofos e a fé dos cristãos (ed. cit.. p. 282), o que se poderá
entender como uma tomada de posição em relação à teoria da ‘dupla ver-
dade’ que a esse respeito havia sido proposta por Pomponazzi contra
Ficino. Todavia, certas passagens dessa e de outras obras suas revelam
Linguagem, Retórica e Filosofia no Renascimento 259

pelo menos simpatia pelas teses averroístas acerca da unidade e eterni-


dade do entendimento universal, o que implicaria a negação da imortali-
dade das almas individuais (ibid., pp. 260-261; De subtil., ed. cit.,
p. 586). Neste como, aliás, em muitos outros pontos, Cardano não ofere-
ce respostas explícitas e a sua filosofia pode ser lida como um natura-
lismo imanentista ou interpretada como um exacerbado espiritualismo.

Bibliografia

Obras: G. Cardano, Opera omnia, 10 tomos, Lugduni, 1663 [reimpr.: New York, 1966].

Estudos: H. Morley, The life of G. Cardano of Milan, Physician, 2 vols., London, 1854;
E. Rivari, La mente di G. Cardano, Bologna, 1914; A. Simili, G. Cardano nella luce e
nell’ombra del suo tempo, Milano, 1941; A. Bellini, Girolamo Cardano e il suo tempo,
Milano, 1947; Oystein Ore, Cardano the Gambling Scholar, Princeton, 1953; A.
Mondini, G. Cardano, matematico, medico e filosofo naturale, Roma, 1962; J. C.
Margolin, «Cardan interprète d’Aristote», in Platon et Aristote à la Renaissance. XVIe
Colloque international de Tours, Paris, 1976, pp. 307-333; M. Fierz, Girolamo Gardano
(1501-1576), Basel-Stuttgart, 1977; A. Ingegno, Saggio sulla filosofia di Cardano,
Firenze, 1980.
PROVENIÊNCIA DOS ENSAIOS REUNIDOS NESTE VOLUME

. «Viragem para a Retórica e conflito entre Filosofia e Retórica no pen-


samento renascentista» – foi apresentado como Lição pública das Pro-
vas de Agregação em Filosofia, realizadas na Universidade de Lisboa,
em Julho de 1999 e posteriormente publicado em Philosophica, n.os
17/18 (2001), pp. 171-236.

. «A teologia retórica dos humanistas», redigido em Maio de 1999, ainda


inédito.

. «Linguagem, tradução e interpretação no Humanismo dos séculos XV e


XVI» – foi apresentado em versão abreviada no Colóquio Internacional
«Heidegger, Linguagem, Tradução», realizado na Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa de 7 a 9 de Março de 2002. Ainda inédito.

. «Coluccio Salutati e o paradigma filosófico do Humanismo» – foi apre-


sentado, sob o título «Práxis e Humanismo», como comunicação no
«Seminário Luso-Espanhol de Filosofia Prática (Aspectos ontológicos,
éticos e políticos da Práxis)», realizado na Faculdade de Letras da Uni-
versidade de Lisboa, de 27 a 29 de Novembro de 1995. Já com o actual
título foi posteriormente publicado na Revista Portuguesa de Filosofia
58 (2002), pp. 773-800.

. «Nicolau de Cusa e a sabedoria do Idiota» - foi apresentado como


comunicação no Congresso Internacional «Coincidência dos Opostos e
Concórdia: Caminhos do Pensamento em Nicolau de Cusa», realizado
em Coimbra e Salamanca de 5 a 9 de Novembro de 2001, tendo sido
publicado nas Actas do Congresso (Coimbra, 2002).

. «Seis breves perfis renascentistas» retoma, reelaborando-os e actuali-


zando as referências bibliográficas, os verbetes sobre pensadores do
Renascimento publicados em Logos, Enciclopédia Luso-Brasileira de
Filosofia, Editorial Verbo, Lisboa / São Paulo, 1989 sgs.
Execução Gráfica

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1600-214 Lisboa Codex
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263 Leonel Ribeiro dos Santos

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