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Ano 6 Nº 11 2º Semestre / 99

COMUNICAÇÃO & UNIVERSIDADE


ISSN 0104-9933

FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL


FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL
UERJ
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/SISBI/SERPROT

L832 Logos: comunicação e universidade. - Vol. 1, n. 1 (1990) - . -


Rio de Janeiro : UERJ, Faculdade de Comunicação
Social, 1990-
v.

Semestral
ISSN 0104-9933

1. Comunicação - Periódicos. 2. Teoria da informação -


Periódicos. 3. Comunicação e cultura - Periódicos. 4. Sociologia -
Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade
de Comunicação Social.

CDU 007
LOGOS
LOGOS - Ano 6 Nº 11 2º Semestre/1999

Sumário
EDITORIAL
Ricardo Ferreira Freitas .................................................................................................................................. 4

APRESENTAÇÃO
Em torno de Comte: da origem do pensamento social
Héris Arnt ..................................................................................................................................................... 5

ARTIGOS
Augusto Comte: um enfoque crítico
Carlos Henrique de Escobar .......................................................................................................................... 7
Augusto Comte, a obra vivida
Patrick Tacussel ........................................................................................................................................... 15
O projeto comunicacional moderno e os efeitos globais
Nízia Villaça ................................................................................................................................................ 22
Max Weber e a máfia napolitana: uma dramatização do positivismo?
Lamartine P. DaCosta .................................................................................................................................. 25
O futuro posto em questão na obra de Stefan Zweig
Cleia Schiavo Weyrauch ............................................................................................................................. 30
Émile Durkheim e o pensamento sociológico francês no século XIX
Marcos Medeiros ......................................................................................................................................... 34
Nietzsche, precursor da pós-modernidade
Maria Nelida Sampaio Ferraz ....................................................................................................................... 41
A inconclusão do Progresso e a mistura da Ordem - Notas sobre Gilberto Freyre e
o Positivismo no Brasil no século XIX
Luiz Felipe Baêta Neves .............................................................................................................................. 46
Os positivismos e a Faculdade de Direito do Recife
Teodoro Koracakis ....................................................................................................................................... 50
O positivismo e o movimento espírita no Brasil
Alexander José de Souza e Aline Rocha Bieites .......................................................................................... 54

PESQUISA
Legislação e novo currículo - Uma reflexão sobre as Escolas de Comunicação Social
Ricardo Augusto Oberlaender ..................................................................................................................... 59

3
LOGOS

Editorial

Em 1998 foi comemorado o bicentenário de nascimento de Augusto Comte. Com o apoio


do Núcleo de Estudos Governamentais/UERJ, a Faculdade de Comunicação Social/UERJ e
o Centro de Estudos do Atual e do Quotidiano da Universidade de Paris V organizaram um
seminário com teóricos brasileiros e franceses com o objetivo de debater questões em torno
do pensamento social, a partir da interferência de Augusto Comte. Esse evento, que aconte-
ceu na UERJ em dezembro de 1998, discutiu os caminhos da Sociologia desde seu batismo
por Comte.
Polêmico, o ilustre criador do positivismo teve um papel fundamental para o desenvolvi-
mento das ciências sociais e humanas. Comte trouxe os estudos sobre a sociedade, até
então abordados somente pela Filosofia e pela Biologia, para uma área específica, a Socio-
logia. A nova disciplina começa seu percurso em meados do século XIX e cria seus próprios
métodos de investigação, afirmando-se como ciência.
Este número da Logos é resultado desse seminário, do qual participaram Michel Maffesoli,
Patrick Tacussel, Nízia Villaça, Cleia Schiavo, Luiz Felipe Baêta Neves (que co-edita este
número da revista), Luiz Henrique Bahia, Bruno Roy, entre outros. Alguns dos artigos ora
publicados foram baseados em temas apresentados nesse encontro. Outros autores foram
especialmente convidados, como é o caso de Carlos Henrique de Escobar e Lamartine
DaCosta. Este número 11 faz um balanço, em última instância, da origem do pensamento
social e de suas repercussões para as ciências sociais e humanas no decorrer do século XX.

Ricardo Ferreira Freitas


Presidente do Conselho Editorial

4
LOGOS

Apresentação
Em torno de Comte:
da origem do pensamento social
Héris Arnt*

O s leitores da revista Logos,


ao se depararem com um
número dedicado a Augusto
Comte, podem se perguntar o porquê
bre o marxismo, no que diz respeito
à liberação concomitante tanto das
mulheres quanto dos proletários.
Para Carlos Henrique de Escobar, a
o socialismo ´científico` são mais fre-
qüentes do que se imagina”, afirma
Tacussel.
O problema da colonização, num
dessa iniciativa. Teria o Conselho Edi- afinidade com Nietzsche reside no século em que o progresso econômi-
torial, neste final de milênio, se aco- fato de o pensador francês desen- co-industrial europeu está totalmen-
metido de um espírito de anacronis- volver suas idéias num registro to- te ligado ao empreendimento coloni-
mo, de revisionismo ou de nostalgia? talmente fora da influência do idea- al, que escapou à análise de grandes
A leitura da Logos 11, certamente, vai lismo alemão. pensadores do século passado, foi
trazer surpresas. Primeiro, não é uma A leitura desse número da Logos, abordado por Comte. Sobre isso,
revista exclusivamente sobre Comte. portanto, é um convite a um vôo so- Tacussel informa que, no Apelo aos
Vários artigos tratam de outros pen- bre as conexões do pensamento da conservadores, ele “se pronuncia
sadores dos oitocentos. Dizer que nos- modernidade, tendo Augusto Comte sem reservas, pela restituição da Ar-
sa intenção é fazer um ajuste de con- como eixo. gélia aos árabes e por um processo
tas com o século XX, para nos pre- Com Patrick Tacussel, que reúne de descolonização mais abrangente,
pararmos para o século XXI, livres de dados da biografia de Comte, des- que incluiria a Córsega”.
uma herança intelectual que nos liga cobrimos que um tema tão impor- Na leitura que Carlos Henrique de
ao século XIX, seria pretensioso e tante para a história das idéias do Escobar faz de Comte, discutem-se
uma tarefa impossível para uma pe- século XX, como o da autonomia da a filosofia e as contradições do pen-
quena revista. Nossa intenção foi so- mulher, é um dos pontos importan- samento positivista. Para o articulis-
mente, aproveitando as efemérides tes do Calendário positivista. Herdei- ta, as teorias contrárias totalizantes
dos duzentos anos de nascimento do ro tardio das correntes do romantis- justificam-se e justificam o momen-
pai da sociologia, completados em mo, cujo espírito naturalista perdura to histórico de um projeto social da
1998, fazer um mapeamento das teo- sob uma certa forma de cientificismo burguesia no século XIX: “a tota-
rias que marcaram a modernidade e em algumas teorias da modernidade, lização da história, e seu recorte
estão na gênese do pensamento des- Comte crê que somente o sentimento simplista em três estágios, e as aná-
te século que ora se encerra. é capaz de “preservar a sociedade lises esquemáticas como idades es-
Os resultados foram surpreen- européia de uma grave e geral dis- pirituais teológica, metafísica e po-
dentes. Ao procederem a interligação solução”. E para essa nobre função sitiva, na aliás forma progressiva e
entre diferentes autores, os articu- de depurar a sociedade dos exces- ideal, assim como a inserção nela
listas encontraram traços positivistas sos da racionalidade, somente as de uma causa final, mais idealizada
justamente onde estes são vilipen- mulheres, até então politicamente ex- que pensada da cientificidade e da
diados e incorporações onde os teó- cluídas, estariam aptas. É Comte tecnologia, fazem de Comte um pen-
ricos contemporâneos não atribuem que primeiro faz a ligação entre a ne- sador subordinado às metas e ilu-
ou identificam. É o caso da admira- cessidade da incorporação social do sões da burguesia capitalista.” O
ção por Comte de ninguém menos proletariado e a libertação das mu- que, no entanto, não diminui o inte-
do que Nietzsche, como podemos lheres, idéia retomada por Marx e resse pelo estudo do autor.
ver no artigo de Maria Nelida Sampaio Engels no Manifesto Comunista. “As Comte viveu num período de
Ferraz. Ou a influência comtiana so- convergências entre o positivismo e grandes conflitos sociais e de

5
LOGOS

desestabilização da sociedade fran- das teorias sociais que germinaram com a Máfia napolitana, Weber estu-
cesa, em meio a dois acontecimen- no século XIX. Durkheim representa da o crime organizado. Estudo este
tos que transformaram radicalmen- “uma ruptura com um certo natura- pouco conhecido e citado, até mes-
te o panorama urbano: a Revolução lismo, instituindo a sociologia como mo pelos pressupostos relativistas.
Francesa e o começo da industriali- uma ciência social da sociedade”. DaCosta se interessa por essas in-
zação européia. Ele foi um pensador Sua importância na época foi mostrar serções de valores nas práticas cien-
sensível a todas essas crises que – sobretudo aos economistas or- tíficas, encontrando nas entrelinhas
ocorriam na época e vai especular todoxos – “a natureza coletiva das ins- do pensamento do próprio Comte, ra-
sobre a natureza dos fenômenos his- tituições sociais”. O indivíduo não era dical defensor da veracidade da ciên-
tóricos, as descobertas científicas e uma unidade de análise, uma vez que, cia, o reconhecimento de faculdades
como as mudanças radicais da so- segundo Medeiros, para Durkheim “a outras, como as afetivas. Passando
ciedade se estruturam. Como afir- ação individual é governada por repre- por diversos autores, DaCosta procu-
ma Escobar, faltou a Comte - e a sentações que têm origem na coleti- ra chegar a uma epistemologia
todos os teóricos reformistas ou con- vidade”. Ao contrário das teorias pluralista e conciliatória. E nessa li-
servadores da modernidade, arautos totalizantes, Durkheim considerava nha de conciliação, o exemplo de
do progresso e da razão - “as for- que uma ciência só se constituiria Max Weber pode ser profícuo.
mulações revolucionárias, sobretudo como tal quando se subdividisse em Eis algumas das explicações
e particularmente Marx, ou uma fi- um certo número de problemas so- para nossa opção pelos temas tra-
losofia suficientemente radical que lidários. Uma peça fundamental é a tados neste número da Logos e as
Nietzsche começava também a for- concepção de método para as ciên- razões que nos motivaram a formu-
mular sem pretensão de sistemati- cias sociais que se afasta das ci- lar uma reflexão sobre Comte. Pri-
zar e até mesmo de politizar”. ências naturais. Medeiros afirma meiro porque nossa proposta é ir às
É inegável, no entanto, que Comte que o teórico “constrói uma teoria raízes do pensamento da moder-
é o precursor do pensamento social social cujo método, embora guarde nidade, fazendo uma exegese dos
moderno, tendo criado inclusive o ter- semelhança com o método das ci- textos do século XIX que estão “na
mo “sociologia”. Uma questão bási- ências naturais, em particular o da gênese do século XX”, parafrasean-
ca da filosofia comtiana é considerar biologia, será lembrado apenas do Luiz Felipe Baêta Neves, co-edi-
a existência de leis sociais da mes- como metáfora”. tor deste número. A cientificidade
ma forma que existem leis físicas, A questão central em Lamartine das ciências sociais é uma das
tais como as da biologia, da física ou DaCosta é a permanência do mito questões que nasceram nos oitocen-
da química. A “filosofia positiva” da veracidade científica, herança do tos, fizeram parte da história do co-
nada mais é do que um método que Iluminismo, que reaparece de dife- nhecimento do século XX e tudo in-
se propõe a organizar todo o conheci- rentes formas em muitos autores e dica que continuarão pertinentes nas
mento sobre a sociedade em um úni- tem seu ápice na filosofia comtiana reflexões do século XXI.
co sistema científico. Augusto Comte com sua crença na pureza da ciên-
é, tavez, o autor que mais fortemen- cia. Passando por diversos estudio-
te encarna o espírito da modernidade, sos, o articulista mostra os resquí-
com sua fé inabalável na ciência e cios positivistas que estão presen-
no progresso – tanto que ao final de tes em discursos cientificistas, e o
sua carreira cria uma “religião da hu- quanto há de concessão a valores
manidade”. em autores que acreditam na pure-
Influenciado a princípio por za do método científico. DaCosta en-
Comte, Saint-Simon e Spencer, contra em Weber o melhor exemplo
Durkheim vai trilhar um caminho ori- desse embate, já que este sociólo-
ginal para os estudos da sociedade, go, defensor de uma “ciência livre
sendo considerado o fundador da de valores, assumia freqüentemente
escola francesa de sociologia. A obra a contradição como válida”. Desco-
de Durkheim continua atual, sob brimos, com o texto de Lamartine
muitos aspectos. Defendendo uma DaCosta, que essas nuanças do pen-
disciplina ao mesmo tempo teórica samento do autor alemão se origi-
e prática, suas teorias representam nam em uma viagem à Itália, quan-
mudança de rumo na história das do, em contato com “novas experiên- * Héris Arnt é Doutora em Sociolo-
gia pela Universidade de Paris V-
ciências sociais. O artigo de Marcos cias vivenciais, teria reduzido pro- Sorbonne e Professora da Facul-
Medeiros mostra o significativo pa- gressivamente sua crença na pure- dade de Comunicação Social da
pel do autor para o desenvolvimento za da ciência”. Na Itália, em contato UERJ.

6
LOGOS

Augusto Comte: um enfoque crítico


Carlos Henrique de Escobar*

RESUMO
Este artigo traz questões relacionadas
ao positivismo de Augusto Comte, ao al-
F alar de Augusto Comte é falar
complexamente, é dividir-se
em considerações filosóficas
(especulativas e epistemológicas) e
histórico-filosóficas (Comte e a his-
Revolução de 1789, do Iluminismo e
de um utopismo burguês da “pros-
peridade” que oscila entre o revo-
lucionarismo e o reformismo.
É verdade que neste período emer-
cance filosófico e científico de suas teo- tória da filosofia, Comte e o uso que giram, ou estavam prestes a emer-
rias, às influências assumidas e ao con- ele fez das filosofias que o antece- gir, grandes filosofias como a de
texto mais geral da primeira metade do deram). E, enfim, é falar de Comte Schopenhauer, por exemplo, mas este
século XIX. Analisa a inserção das teses
na história, isto é, Comte e a história último, pouco lido, precisou de uma
positivistas no conhecimento científico
numa filosofia de dimensão utópica, na
política e a história das idéias na situação singular para ser valorizado.
qual uma sociologia ideal consente uma França e o comtismo na história das Isto é, necessitou da biografia do jo-
dimensão religiosa. idéias e na história das instituições vem Nietzsche e do entusiasmo dos
Palavras-chave: Comte; positivismo; brasileiras nos séculos XIX e XX. Ao wagnerianos por ele. De resto, pen-
positivismo brasileiro. nível de um artigo, isso nos obriga sadores como Kierkgaard (na Dina-
ao tom de digressão (en passant), marca) ou Marx e Nietzsche (na Ale-
SUMMARY porém sem deixar de indicar que manha) estavam por se instaurar e
This article brings out issues related to pensamos e avaliamos em outro ter- dificilmente Comte teria o que fazer
Augusto Comte’s positivism, to the reno de idéias que em nada, mas com eles, visto que pensavam e ava-
scientific and philosophical reach of his nada absolutamente, lembra os mo- liavam em outro registro que o seu.
theories, the assumed influences and the
tivos e os objetivos mais gerais do Comte foi um professor de mate-
general philosophic context of the first
half of the 19th century. It analyses the
positivismo de Augusto Comte. mática a um nível, se assim se pode
positivist thesis insertion in knowledge dizer, dos “liceus”, e a matemática
***
(or scientific knowledge), in a philosophy (senão as ciências) manteve-se para
of utopian dimensions in which an ideal No período que cobre a primeira ele como um paradigma pedagógico
sociology admits a religion dimension. fase do século XIX é difícil pensar um transformador. Não vai nisso nenhu-
Keywords: Comte; positivism; Brazilian filósofo que tenha plenamente esca- ma crítica, mas a lembrança da vo-
positivism. pado à influência do idealismo alemão. cação pedagógica burguesa de ori-
Augusto Comte nasce em 1798 gem que apregoava um reformismo
RESUMEN e morre em 1857, num período que militante com a Escola, a família, os
Este artículo plantea cuestiones relativas
filosoficamente é tão importante presídios, os manicômios etc. Ora,
al positivismo de Augusto Comte, al al-
quanto inquietante. Se não se é um Bachelard foi um professor de Liceu
cance filosófico y científico de sus
teorías, a las influencias asumidas y al hegeliano (de esquerda ou de direita, quase a vida toda, Deleuze o foi no
contexto más amplio de la primera mitad como mais tarde se veio a caracteri- começo de seu trabalho em Filoso-
del siglo XIX. Analiza la inserción de las zar), está-se obrigatoriamente em fia e, sobretudo, há uma tradição de
tesis positivistas en el conocimiento ci- meio da perplexidade instalada pelo ensino e “capacitação” (pela “ra-
entífico en una filosofía de dimensión utó- afrontamento ao kantismo por parte zão”) no Iluminismo. No pensamen-
pica en la cual una sociología ideal do idealismo alemão. Este hege- to francês, em particular, isto tem um
consiente una dimensión religiosa. lianismo fez-se valer, por exemplo (e tom “emancipatório”, e nele a “ma-
Palabras-clave: Comte; positivismo; na França), num Renouvier e, um turidade”, que Kant tanto apregoava,
positivismo brasileño. constitui o ideário da invenção das
pouco mais tarde, em Hamelin e
Lachelier, mas há também, o que é novas instituições que configuram o
mais determinante para o pensamen- Estado republicano. A ciência, para
to francês da época, a tradição da Comte (e sobretudo a matemática),

7
LOGOS

tem uma acepção cultural e política, A ciência consiste no conhecimento sujeito, não pode estar ausente -,
e mais que um papel propriamente das leis dos fenômenos, para que os Comte foi o primeiro a exigir aten-
“positivista” nas ciências, trata-se fatos, no rigor, por precisos e nume- ção para as questões científicas mo-
de uma utopia burguesa que esmera rosos que sejam, não façam senão dernas. É nesta tradição gnosiológica
um reformismo social. administrar o material irrecusável. clássica, depois num epistemo-
Esta mistura de razões “científi- Portanto, quando se pensa na deter- logismo (século XIX) na forma então
cas” e sociais, de aparente objetivi- minação destas leis, pode-se afirmar, de um formalismo lógico (psicolo-
dade e concretude de propósitos, sem exagero, que a verdadeira ciên- gismo, matematicismo, biologismo
caracteriza não apenas Comte, mas cia, bem longe de consistir em ava- e historicismo), que chegam contem-
também Saint-Simon, de quem ele liações isoladas, tende, pelo contrá- poraneamente às escolas epis-
foi secretário. Senão, todo um con- rio, a colocar-nos além e na medida temológicas, tais como a francesa,
junto de pensadores franceses envol- do possível, da investigação imedia- os nomes de Bachelard, Koyré,
vidos na necessidade de pensarem ta dos atos concretos, substituindo-a Cavailes, Canguilhem, Althusser e
as idéias no volume da força da his- pela previsão racional”. Foucault. Contudo, estes epis-
tória em que estão envolvidos. Seja É uma demanda da filosofia como temólogos - nada comtianos - deixa-
como for, e como começamos a di- o meio pelo qual a ciência se pensa, ram-se penetrar por pensadores, de
zer mais acima, neste amplo contex- ou pelo qual ela é o “espírito huma- certa forma contemporâneos a
to da segunda metade do século XIX, no” já nos termos de uma filosofia e Comte, como Nietzsche, Marx e
é inegável a força do pensamento de de uma religião positiva. A filosofia Freud, e farão valer em suas refle-
Hegel: ele ajudou os filósofos desse chega até à ciência como um impe- xões uma vigilância antiespeculativa
período a organizarem seus pensa- rativo de universalidade e por isso ela bastante saudável.
mentos, mesmo quando eles não não se distingue da premissa espiri- A verdade é que o “univer-
possam propriamente ser chamados tual e espiritualizante do pensamen- salismo” de um Kant e Hegel perde
de hegelianos (como, por exemplo, to comtiano. É este, então, o sua força, ou o brilhantismo de sua
Taine e Renan). Comte tradicional e continuador do armação, no ecletismo de um
Se é verdade que o saber para espírito “clássico racionalista” que, Spencer ou de um Comte. Eles são
Comte se distingue daquilo que ele como Descartes, quer concluir, sob aqueles filósofos cuja “grandeza” de
foi para John Stuart Mill (do concreto uma forma humana, sua reflexão seus sistemas resultam de uma
ao concreto), é porque este saber em conjunto. soma ou ecletismo, o que não signi-
emerge num parâmetro lógico e hie- Vale a pena voltar a citar Comte fica, no entanto, uma filosofia sem
rárquico que o organizava como um para melhor fazer valer este aspecto força de argumentação e sem êxito
processo. Isto é, ele está muito mais totalizante e utópico do seu “sistema”: intelectual. Em Comte tudo se reme-
próximo do espírito da Lógica hege- “Não se deve então conceber, no fun- te ao estatuto espiritual prometido,
liana que da lógica indutiva, como do, senão uma só ciência, a ciência isto é, o positivo como saber cientí-
bem lembrou Ernst Cassirer. Se humana, ou mais precisamente, so- fico se envelopa eticamente numa
Comte insiste que o saber é sobretu- cial (...)”. O centro e o propósito de sacrossanta “sociologia”, como em
do observação, nem por isso ele dei- Comte é o homem burguês, livre para seguida mostraremos.
xa de sublinhar que o pensamento é todos os jogos da tecnociência, mas Trata-se, pois, de saber - como quis
um processo nele mesmo. Comte não livre tão só na medida que esta um positivismo comtiano ingênuo em
fica como Mill (e seu “positivismo”) tecnociência for ainda encarada nas ilu- Portugal e no Brasil - se Comte, com
nos fatos tais quais, pois ele recla- sões emancipatórias de um iluminismo todo o seu sistema, de fato apregoou
ma uma relação entre o geral e o muito seu, que não mascara ou preci- e preservou as ciências ou se, como
particular, cujo propósito é obter leis. sa mascarar seu propósito conserva- parece, as violentou e as hierarquizou
Esta dimensão construtivista com- dor. Não se trata de qualquer “posi- num pensamento que se aspirava utó-
tiana (esta “lógica”) é expressa tivismo”, ou de um cientificismo pico e totalizador. Totalização que
como o “espírito humano” num pro- indutivo, por exemplo, mas de uma homogeniza e “organiza” abstrata-
cesso progressivo e em aberto. O demanda de sistematização pelo hu- mente, em que pese a luta de Comte
positivismo de Comte, ao contrário mano (e humanidade), um ideal que se contra a abstração no conhecimento
dos outros, não se opõe ao espírito sobreleva além das ciências e suas (propriamente científico), e em que
sistemático e à absorção dos fatos questões mais estritas. pese também sua crítica à “identi-
no processo racional. Estranho, contudo, e bastante sin- dade”, que Comte aliás viu nas for-
Comte não quer uma totalização gular, é o fato de - senão de fato, mas mas teológicas e metafísicas dos
abstrata, mas também não quer a pelo menos tematicamente - encon- “discursos” do passado. Em última
multiplicidade concreta. No Discours trarmos em Comte a continuidade instância, o positivismo comtiano é
sur “l’esprit positif” (1a parte), ele das questões do “sujeito do conhe- um pensamento na armadilha (toda
escreve: “O verdadeiro espírito posi- cimento” junto à sistematização no estéril) da oposição sujeito/objeto que
tivo difere, no fundo, tanto do espírito (especulativo) do “universal”. termina por impor o sujeito sobre os
empirismo quanto do misticismo. Em que pese isso - tanto quanto um objetos sob a forma de um “siste-
Esforça-se por abrir caminho entre “hegelianismo” francês, onde um ma humano”. Característica, aliás,
estes dois equívocos funestos (...). Descartes em Kant, ou a questão do mais entranhada desta dificuldade a

8
LOGOS

que agora nos referimos, de um sa- signa de a “verdade humana”. Vai- Daí porque as conclusões forte-
ber sempre tido, mesmo se suposta- se então da física a uma verdade da mente conservadoras, ou francamen-
mente, como fatos e não conceitos, física como “física humana” ou “fí- te reacionárias, de Augusto Comte
e que se deixa ver na concepção sica social”. É isto que também ex- (como no Catecismo Positivista) têm
comtiana da matemática. Aí, um sa- plica (e revela) que o propósito intei- tudo para nos assustar. Aqueles que
ber obrigado aos fatos e também à ro de Comte é realizar o que ele cha- o leram, e até uns poucos que ainda
comprovação dos fatos se vê instau- mou de uma “nova ciência”, isto é, o lêem, não escapam de um certo
rado numa aporia, pois como ajuizar de criar condições através da filoso- espanto com a mistura desagradá-
tais postulados (ou fatos pelos fatos) fia positivista para a emergência de vel, seja das influências tais como
com a primazia dada à matemática uma sociologia repleta de promes- de um Condorcet, ou das utopias bur-
propriamente dita? Comte, então, faz sas. Sociologia comtiana quase no guesas (aparentemente revolucioná-
uma separação entre o que ele deno- estatuto de uma “física social”, e é rias e francamente autoritárias) como
minou “fatos concretos” e o que ele por isso que ele também escreve (em o Saint-Simonismo, e também, por
chamou “fatos gerais”. Segundo ele, 1824): “Revelarei o testemunho de- exemplo, de um economicismo bur-
a matemática existirá em torno dos finitivo de que o desenvolvimento do guês emergente.
segundos - no entanto, “fatos gerais” gênero humano se rege por leis tão Condorcet, matemático como
não é mais fatos, ou “fatos concre- concretas como a queda de uma pe- Comte, realiza uma espécie de mis-
tos”, e de alguma forma já se estaria dra”. E Lévy-Bruhl (in La Philosophie tura pouco convincente entre o pro-
com eles nos conceitos e nas ques- de Augusto Comte), tal como Cassi- gresso científico e o progresso mo-
tões que o dedutivismo levanta. rer (Das Erkanntnisproblem in der ral. E ambos, também, se situam
Mas não se trata aqui de porme- Philosophie und Wissenschaft der num entusiasmo específico do capi-
norizar as ambigüidades e dificulda- neueren Zeit: Von Hegels Tode bis zur tal pelo crescimento técnico ou su-
des deste pensamento, mas tão só gegenwart) exemplificam esta lei so- jeição da natureza. Industrialização
de lembrar que a questão do conhe- ciológica paralela à lei da gravidade e prosperidade burguesa como for-
cimento, do ângulo positivista e neo- na “lei dos três estágios”, confor- ma de nos levar a uma humanidade
positivista, passará por um desdo- me pretensão do próprio Augusto idealizada que eles formulam como
bramento que raramente lembrará o Comte que se autonomeou de causa final.
positivismo de Comte. É, então, por- “Galileu da sociologia”. Comte reivindica antecedentes na
que achamos que o que caracteriza Se é verdade que Comte não está grande filosofia, por exemplo, em
o positivismo comtiano é menos a unificando as ciências numa só Descartes e sob o desígnio equivo-
querela gnosiológica (e episte- metodologia ou as achatando numa cado da presença de um “pensa-
mológica) que um sistema filosófico semelhança improvável, é verdade mento positivista” neste filósofo, tido
“histórico” totalizador, ele mesmo contudo que na hierarquia das ciên- como seu antecessor por ele mes-
menos problematizador do conheci- cias a sociologia comtiana tem um mo. E tudo isso porque Descartes,
mento científico que, em última ins- papel de fundamento último e de mais por estilo do que por convic-
tância, uma metafísica menor sob a totalização ideal do conhecimento. ção, refere-se como base de seu pen-
forma de um ideal e de uma prega- Totalização sob uma forma progres- samento àquilo que ele denominou
ção política. E assim dizemos não siva - hierárquica - das ciências, cujo de a “certeza”. A ascendência posi-
esquecendo (como no Cours de limite (e plenitude) está num certo tivista, suas origens filosóficas -
Philosophie Positive) que Comte par- ideal da “humanidade”. Logo, o pre- como Comte pretendeu de si mesmo
te das matemáticas e das ciências tendido pluralismo metodológico que na forma ingênua de um ideal cien-
naturais, isto é, não esquecendo que o fatual sobre os conceitos sempre tificista -, leva-o a sentir-se herdeiro
junto às matemáticas estão as ciên- lhe exigiu não escapa, na hierar- de filósofos que se sabiam enreda-
cias, a física, a astronomia, a quími- quização das ciências, e no coman- dos em questões e eram suficien-
ca, e tudo isso sob uma forma de do antropomórfico dos seus pressu- temente lúcidos para não terem pre-
“hierarquia das ciências”. Mas isso postos últimos, a um universalismo tendido resolvê-las. Vê-se tudo isso
é, como dissemos, uma outra coisa ideal. Este universalismo move a no- neste texto onde Comte se refere
que a problematização destas ciên- ção de “evolução”, com a qual aos seus predecessores, aliás “pre-
cias propriamente ditas. Comte pretende assegurar um certo decessores” no espírito dos posi-
Comte estipula um horizonte ide- pluralismo metodológico das ciênci- tivismos que em Comte eram as for-
al (burguês, ainda que utópico e utó- as e também um monismo, isto é, mas utilitaristas, materialistas, bio-
pico ainda que conservador) que ele um “método histórico” onde o que logistas e pragmatistas. Diz ele:
diz ser a “sociologia” e que ele pres- se universaliza se universaliza como “Hume constitui meu principal pre-
supõe como objetivo último do co- “espírito” e não como natureza. É um cursor filosófico, Kant se acha a ele
nhecimento. Comte quer, pois, des- “espírito” que não se corporaliza, e acessoriamente ligado; a concepção
te sistema - deste remetimento dos que é “histórico” sob um certo fundamental deste não foi verdadei-
conhecimentos científicos a uma paradigma naturalista - sob um “es- ramente sistematizada e desenvol-
“sociologia” ideal - o estatuto de uma pírito” que se supôs positivista ape- vida senão pelo positivismo. Do
filosofia que não busca nem aufere nas pelo tom científico naturalista. mesmo modo, sob o aspecto políti-
seu “fundamento fora” e que ele de- co, foi necessário que eu completas-
***

9
LOGOS

se Condorcet por De Maistre, de mente comtiano e está no propósito to revolucionário e também à forma
quem logo assimilei (...) todos os filosófico singular de Comte, e ele vai - intensa e múltipla - do Iluminismo,
princípios essenciais, que não são desde uma espécie de filosofia da como crítica e destruição dos valo-
mais agora apreciados senão na es- ciência a uma doutrina a respeito do res de passado, fazem de Comte um
cola positiva. Tais são como Bichat social sob a forma, ou no propósito, cúmplice da Restauração, isto é, de
e Gall, como precursores científicos, de reformar a vida humana impondo uma convicção reformista autoritá-
os seis predecessores imediatos que um estágio positivo. A verdade, po- ria, conservadora. Se é verdade que
hão-de me religar aos três pais sis- rém, é que a noção de “positivo” e seu pensamento (seu entusiasmo
temáticos da verdadeira filosofia “positividade”, nos termos mais ge- com a matemática e as ciências e
moderna, Bacon, Descartes e Leibniz”. rais que Comte utilizava, já estava seu desejo de uma ampla reforma)
E isso não é tudo, pois, concluindo, presente como regras e técnicas de se tornou suspeito durante este pe-
diz ainda Comte: “Em virtude desta um racionalismo moderno desde o ríodo, é verdade também que as ins-
nobre filiação, a Idade Média, inte- século XVI, numa acepção ou histó- pirações burgueso-modernistas de
lectualmente resumida por São Tomás rica filosófica muito geral em torno Comte coincidiam com este mo-
de Aquino, Rogério Bacon e Dante, da razão, ou popular e ingênua sob a mento no propósito mais geral de
subordina-me diretamente ao príncipe forma de um “novo mundo”. deter aquilo que ele e a época cha-
dos verdadeiros pensamentos, o in- Daí porque o próprio Comte já a mavam de anarquia social. E mais,
comparável Aristóteles”. (1978, p.67) veja presente - como “tradição ou tanto quanto isso, Comte foi um
Não é hoje surpreendente apenas positivista” - em Bacon, Locke e pensador nostálgico da Idade Média,
o tom retórico e “grandioso” de Hume, Copérnico, Galileu, Kepler e respeitador de certos valores do ca-
Comte, mas a sua pretensão de her- Newton, mas sobretudo no estreita- tolicismo, conservador nos propósi-
dar e resolver numa “nova religião” mento deste pensamento sob um tos, mesmo se sob a forma es-
todo o saber, todo o conjunto de certo ideal metafísico cientificista. O drúxula, como já dissemos, da
questões que ele levanta. É por aí contexto que pressiona e convence cientificidade, da reforma institu-
que ele nos promete “tudo” e, de Comte da verdade desta postura cional e de uma risível “nova reli-
certa forma, a salvação: “A fim de desborda as influências de intelec- gião da humanidade”. Mas como
instituir, porém, esta concorrência tuais e de cientistas (da modernidade pensar esta intensa e veemente
decisiva cumpria primeiro condensar emergente), e é já a transformação personalização de seu pensamento
assaz o positivismo para que ele se das ciências naturais e das técnicas, a partir de sua história particular e,
pudesse tornar verdadeiramente tanto quanto das revoluções indus- mais tarde, sob a figura, como ele
popular. Tal é o destino especial des- triais com a nova burguesia como quis, de um grande sacerdócio?
te opúsculo excepcional, por cuja classe agente, impondo-se agora Se lembrarmos que os fundado-
causa interrompo durante algumas num humor onipotente. Comte enxer- res da religião se fazem “emble-
semanas minha grande construção ga e faz valer o que já está presente, mados” por uma peregrinação exem-
religiosa...”. (Ibidem) Comte fala do e é o seu ecletismo que a isso se plar (as paixões) na abertura mesma
seu Catecismo Positivista, e nele do junta numa espécie de apropriação de suas teses, Comte não foi muito
seu empenho por uma pregação so- numerosa de teorias e concepções diferente. Não foi diferente, digo, ain-
bretudo no “proletariado e nas mu- que visavam fazer do social, e da his- da que absolutamente diverso, pois
lheres”. No fim deste texto, e sob a tória, um saber científico preciso: as em meio do humor positivista da
forma de um diálogo entre a “mulher” ciências sociais emergentes (a so- modernidade burguesa o relato de si
e o sacerdote, ele escreve: “Eis aí, ciologia), o evolucionismo, a quanti- mesmo como sofrimento e provação
minha caríssima filha, a última expli- ficação da vida. Isto é, uma “posi- não conseguem auferir a “trans-
cação que eu vos devia sobre o ad- tivação” equívoca da vida, em que o cendência” de um Abraão, Moisés,
vento decisivo da religião universal, a saber científico e a pretensão de Jesus, ou Sidarta. Seja como for, o
que aspiram, há tantos séculos, o Oci- absolutizar já não se separam. positivismo comtiano está repleto de
dente e o Oriente”. (Ibidem) Em meio de tudo cabe, no entan- uma história sofrida, de informações
O impressionante é que neste to, reconhecer uma vida singular de e relatos da vida de Augusto Comte,
“imbróglio” retórico e megalômano Augusto Comte, marcada pelo sofri- que vai desde 1798 como filho de um
estão aninhados no otimismo bur- mento e a provação - uma vida e uma fiscal de imposto, em Montpellier,
guês pelo progresso, pela ciência, inserção numa história bastante sin- França, onde ele experimenta dura
pela técnica e sob uma fundamen- gular. Se é verdade que às vezes toda pobreza. Em seguida, e é ele quem
tação genérica, economistas como uma cultura - ou uma história - se nos conta, uma vida repleta de con-
Adam Smith, Say, ideólogos como pode presentificar negativa ou positi- flitos familiares que ele designou
Destut de Tracy e Cabanis e, enfim, vamente numa filosofia, cabe reco- como infernal, pois foi obrigado a
os filósofos já por nós lembrados, e nhecer todos os fatores específicos conflitar com a avareza familiar e
tudo isso na forma estreita de uma de uma França que vem da Revolu- exigências que ameaçavam retirá-lo
leitura, se assim podemos dizer (e ção Francesa até a Restauração, e do trabalho intelectual.
como ele mesmo disse), “positi- que está literalmente presente no No lugar de uma “revelação” (o
vista” mas “non troppo”. Este ter- pensamento e nos valores do posi- Deus da aliança para os patriarcas e
mo (este “positivismo”) é estrita- tivismo comtiano. Críticas ao espíri- profetas), Comte se entusiasma na

10
LOGOS

juventude pela matemática e faz da imaginação e na arbitrariedade e particularmente Marx, ou uma filo-
Escola Politécnica (e dela como um especulativa de Comte, como mo- sofia suficientemente radical que
templo da filosofia cientificista) sua tor e inspiração da sua nova religião, Nietzsche começava também a for-
referência fundamental. Ora, se seu e isso é bastante singular, senão pa- mular sem pretensão de sistemati-
messianismo não tem a pertinência radoxal, num pensamento e numa zar e até mesmo de politizar. Já para
originária (que ele reprovará na sua utopia que se queria positivista. É as pretensões reformistas, o enga-
teoria dos “três estágios” como “teo- também depois de Clotilde de Vaux no tomava a forma de uma convic-
lógico”), ele tem no entanto um vigor que Comte publica os textos decisi- ção na razão, nas técnicas e até
bastante situado e bastante contem- vos de seu pensamento e de sua mesmo no capital, e a burguesia
porâneo com a modernidade. Nesse pregação messiânica. 1 Relata-se “melhorada” era todo o horizonte.
sentido, fica ainda mais claro a força também uma crise depressiva em É pois certamente lá onde este
da motivação histórica e burguesa Comte, que somada aos seus sofri- pensamento burguês “utópico”
(Condorcet) antes que sobretudo mentos familiares, suas provações (Saint-Simon, Fourier, Comte etc.) se
especulativa (Hegel) na formulação do e sua paixão por Clotilde de Vaux, propôs crítico e criador que ele foi
seu pensamento, isto é, um pensa- junto ao seu apelo político a um pro- apenas uma dobra da história burgue-
mento muito mais resultante de te- letariado mais ideal que real, iria sa, que então se passava sem
mas e disposições do momento que configurá-lo num estranho pregador desbordá-la e sem de fato conhecê-
de uma reflexão segura e rigorosa. e num não menos confuso, e até la. Em que pese o fato de Comte ter
Se estes são os temas (a “reve- desigual, messias (positivista). morrido em 1857, e pouco antes de
lação” leiga e dessacralizada) da sua Nietzsche ter escrito e publicado o
***
“religião da humanidade” - de sua seu primeiro livro (Nascimento da
grotesca configuração religiosa, sua De Comte pode-se recusar inte- Tragédia), ou de Comte ser contem-
e de Clotilde de Vaux -, falta lembrar lectualmente quase tudo, mas isso porâneo, por exemplo, de Marx e
que a “paixão” que o singulariza pas- não significa que não se possam Feuerbach sem referir-se a eles, é
sa pela condição de secretário de encontrar todos os motivos que ar- necessário dizer o quanto parece fal-
Saint-Simon, pelo desemprego que mam o seu pensamento na realida- tar a este pensador não só a lucidez,
mais tarde lhe impôs este outro de histórica mais geral do seu tem- o espírito crítico e as teses destes
“messias” dos valores burgueses po. E também nas razões mais pró- filósofos, mas até mesmo uma pos-
emergentes. E não pára aí. Comte ximas, e até pessoais (por mais es- se mais sentida, mais válida, dos fi-
foi um professor frustrado, isto é, um tranhas que sejam) de um certo pro- lósofos que o próprio Comte supõe
intelectual que se preparou e aspirou jeto de si mesmo. Não é nosso pro- essenciais no seu pensamento
a cátedra, mas que não a consegue, pósito aqui rastrear de pressuposto (como Hume e Kant, por exemplo).
e isso aliás injustamente. Claro que a pressuposto o pensamento com- Sobretudo, careceu Comte de uma
isso não concerne a eventuais difi- tiano - seu “positivismo” -, mas isso sensibilidade maior por respeito à
culdades intelectuais da sua parte, não nos impede de contrapor muitas história, sensibilidade que não teve,
mas às próprias qualidades deste das suas teses, e não apenas com como já dissemos, também com o
pensador que certamente se fazia o que pensamos hoje, mas também pensamento especulativo, e no en-
temido por isso. Obrigado a ensinar com aquilo que o pensamento de sua tanto é um pensador especulativo e
em casa para sobreviver, como um época já supunha ser fundamental. “totalizador” como Hegel, que deu
professor particular de matemática, A modernidade, certamente, se prova notória de sua competência
não pode impedir o desfecho negati- justificou em seu espírito crítico e em com a história e com o pensamento.
vo do seu casamento com Caroline sua criatividade frente a todo um atra- A totalização da história, e seu recor-
Massin. É, enfim, sozinho na sua so, senão mesmo barbárie, herdado te simplista em três estágios, e as
casa que Comte começa sua prega- da Igreja e da soberania. Contudo, análises esquemáticas como idades
ção filosófica e religiosa, e é lá tam- ela mesma se revelou cega a res- espirituais teológica, metafísica e po-
bém onde escreve o Curso de Filo- peito de si mesma, e sem rigor filo- sitiva, na aliás forma progressiva e
sofia Positiva, em seis volumes. sófico e político suficiente por res- ideal, assim como a inserção nela de
Sustentado por amigos e num peito aos seus próprios ideais. O pro- uma causa final, mais idealizada que
crescente envolvimento com seus jeto burguês, e nele a modernidade - pensada da cientificidade e da tecno-
sonhos reformistas, Comte começou e em meio de um e de outros as uto- logia, faz de Comte um pensador su-
a reunir em torno de si raros e pou- pias menos ou mais revolucionárias bordinado às metas e ilusões da bur-
cos discípulos. É então quando co- (Babeuf, Cabet, Moises Mos, Flora guesia capitalista.
nhece Clotilde de Vaux, por quem se Tristan, Blanc e Marx), ou francamen- Longe está Comte de uma proble-
apaixona sem jamais auferir da par- te conservadoras no reformismo apa- matização genealógica (própria de
te dela outra coisa que uma entusiás- rentemente radical a que se dispu- um Nietzsche, seu contemporâneo)
tica amizade. Clotilde morre logo em nham (como Comte, por exemplo) - ou de uma problematização trágica
seguida e Comte une ao seu pensa- se viram, enfim, de frente com a im- como fez Kierkgaard, ou então de
mento e à sua pregação esta ima- potência e a pobreza dos seus ideais Marx (de certa forma também seu
gem muito sua, e toda divinizada, da e de suas práticas. Faltavam as for- contemporâneo) que fez da história
“mulher”. É ela que se abre, na mulações revolucionárias, sobretudo uma outra coisa que blocos totaliza-

11
LOGOS

dos e esquematizados. Muito menos formulou a sua Ética. A justiça é a Freud e, particularmente, Foucault,
totalizados e esquematizados numa alternativa histórico-política das que- destroem este mito e redefinem o
abordagem extremamente genérica relas entre os Iluministas, e existiu objeto histórico.
e exterior, como fez Comte, sem até mesmo nos equívocos políticos Comte não soube, nem mesmo
desvendar suas célebres “dimen- de um Heidegger com o seu Rei- poderia, enfocar o pensamento e a
sões espirituais” nos mecanismos torado em 1933. vida de um ângulo trágico e então
das classes e do quiproquó do capi- Em Comte, por sua vez, a pro- encontrar os temas da liberdade, da
tal e do Estado. posta (e a obra) se quer explicitamen- responsabilidade trágica, do acaso e
Comte é vencido pelas facilida- te como resolução social dos sofri- da vida sempre reinventada. Ele na-
des, pelas imprecisões e certezas mentos humanos. Se quer, enfim, turaliza a vida social e está longe de
superficiais de sua época e opta en- como uma solução espiritual (e con- inserir na história a luta dos valores,
tão por um discurso amplo demais e creta) e para isso convoca, como ele a criação dos corpos e dos povos
totalizador demais, opta enfim pelo faz, o proletariado e as “mulheres”. num limiar ético (antes que na for-
seu narcisismo quase ingênuo como Ela está no mesmo parâmetro de um mulação de leis morais). O ideário
Messias do grande reformismo do chamamento revolucionário (ainda que positivista - e não importa que
capital. Comte está longe de sur- Comte deplore a “revolução” e só pre- positivismo - é estreito demais para
preender crítica ou politicamente o ca- gue no propósito da “reforma” da hu- pensar as metafísicas, e até mes-
pital e seus valores, ou as formas manidade); e é por isso que ele tam- mo para “imaginar” a sua supera-
do Estado e seus aparelhos. Esteve bém impõe à sua obra as formas ção. A questão da metafísica na re-
longe de afrontar as crendices e convocatórias e pedagógicas de Cur- flexão da “morte de Deus” em
mesquinharias que instituem e asse- sos, de Manifesto, de Catecismo, e Nietzsche ou da “história do Ser” em
guram todas as religiões e todos os se faz então numa prática que deman- Heidegger serve para atestar, para dar
messias, mesmo aqueles que se da discípulos, cultos e até religião. um testemunho sem pretensão de
impõem pela ilusão de um saber cien- Se tudo isso está atravessado de responder, o tamanho e a complexi-
tífico e de uma tecnologia plena. uma certa concepção equívoca (ain- dade desta questão.
Humilhado demais (por sua família, da que sempre sujeita a diferentes A utilização das noções de trans-
pelas instituições de ensino e pelos avaliações) da técnica, se tudo isso cendência (em Comte criticamente
intelectuais de sua época), ele não se misturou com suas convicções e sob a forma de filosofias dos “dois
foi além da revanche reformista, conservadoras (a Idade Média, o mundos”) e imanência, para pensar
professoral e sacerdotal, isto é, do catolicismo, o autoritarismo, a idéia os “três estágios”, é insuficiente e
ressentimento não contundente e burguesa do progresso etc.), nem por também pouco convincente. O
ilustrado do seu “positivismo”. isso deixou de ser uma das formas remetimento para “fora” - para uma
A verdade é que o século XIX nos modernas de afrontamento de valo- “autoridade” qualquer - não está
ofereceu - no que diz respeito à aná- res do passado. excluído na filosofia positiva da “hu-
lise da história, dos discursos e da manidade” (idealizada) em Comte.
***
urgência de uma alternativa à vida Seja ela o Deus oculto - ou a “hu-
humana - os pensamentos de Nietzsche, Objetivamente, os “três está- manidade” - que Comte impõe
Kierkgaard, Marx e Freud. Claro que gios” - fundamentais para o pensa- como um “fora”, ainda que o de-
houve um Hegel antes - o historiador mento comtiano - já estavam teori- signando como “aquilo de que se
por excelência, mesmo se de um camente presentes no pensamento trata” imanentemente.
ângulo especulativo -, mas o idealis- francês. Seriam até mesmo uma ca- Comte está longe de ter proble-
mo alemão (Fichte, Schelling e Hegel) racterística dele e do espírito burguês matizado as religiões, as metafísicas
dificilmente encontraria ou poderia hegemônico na França iluminista. e até mesmo as ciências, em que
encontrar por ele mesmo uma práxis Turgot (Histoire des progrès de l’esprit pese um resíduo crítico (e até políti-
ou uma política. A filosofia em gran- humain - 1750) fala em três estágios co) inseparável de sua pregação
de parte, ainda que sempre com da humanidade, que é em tudo si- “positivista”. Mas não bastam as
méritos, tem sido uma questão in- métrico à teoria dos “três estágios” acepções desta pregação positivista
terna aos filósofos e raramente rei- de Comte. Da mesma forma Con- (o real, o útil, o certo etc.) para con-
vindica nas massas uma alternativa dorcet, como já lembramos, tratou verter esta grande síntese espe-
ao sofrimento e às privações. Isso estas questões no seu Esquisse d’un culativa e prática do comtismo numa
não quer dizer que os filósofos, até tableau historique des progrès de filosofia do concreto e do ima-
os mais sistemáticos, não afrontam l’esprit humain (1794). Não vamos nentismo pleno. Nem a certeza car-
e discutem, por exemplo, a questão nos deter criticamente nesta ilusão tesiana herdada, nem o empirismo
da “justiça”. Até pelo contrário, pois de um progresso evolutivo (de um humano, nem a “crítica” kantiana tor-
ela é o centro da “sentença de progresso em si e irreversível), mas nada nele “crítica histórica” o ajudam
Anaximandro” e esteve no coração podemos lembrar as reflexões sobre nesta pretensão de uma filosofia sin-
das aventuras políticas de um Platão, o descontinuísmo histórico sob a for- tética e positiva. Aliás, como já fize-
dos estóicos (de um Sêneca, de um ma de uma crítica a um processo mos sentir, de nada vale apregoar um
Marco Aurélio etc.) e nos riscos que histórico contínuo e verdadeiro. Vico, pensamento apologético das ciênci-
um Espinoza correu e por onde ele Nietzsche, mas também Marx e as quando se nega a elas - neste

12
LOGOS

pensamento - um saber efetivo de a sua sociologia (a sua filosofia da beneficiou evidentemente de uma
si mesmas. O que significa dizer “humanidade”) a um “progresso irre- certa crise política e de idéias quan-
que a exigência em Comte de um versível” que ele divide em progres- do da fase da Ditadura Militar. Algo
discurso apenas de fatos ou dos fa- so intelectual e progresso real e his- parecido se passou em Portugal no
tos para a ciência, e não uma filo- tórico. Este paradigma “metafísico”, contexto da Ditadura salazarista e
sofia das causas, não é suficiente se assim posso dizer, é no plano in- suas seqüelas.
para instaurar o universo (neo- telectual, diz Comte, a lei dos três Não foi outra coisa que se viu em
positivista e mais tarde episte- estágios, e no plano das ações a in- épocas anteriores, como quando da
mológico contemporâneo) da refle- dústria. Mas falta impor a estes dois entrada da fenomenologia, do exis-
xão sobre o pensamento científico. progressos o progresso mesmo da tencialismo e, recentemente, de um
Desse conjunto de abordagens, e tecno-ciência que hoje, muito mais certo humanismo franco-alemão por
até de certezas, Comte instaura uma do que um progresso, é também um onde se pretende afrontar um pós-
filosofia que aspirou ser, como disse enigma e uma ameaça. Uma amea- modernismo francês-americanizado.
alguém, uma espécie de Enciclopé- ça à vida e um motor quase inesgo- E isso tanto no Brasil quanto em
dia do século XIX. É nesta filosofia tável para o capital. Portugal. Em parte tudo isso é ver-
“enciclopédica” onde as ciências dade, mas é muito pouco para cons-
***
hierarquizadas se deixam classificar, tituir e explicar a nossa realidade
ao mesmo tempo como sistema e A filosofia de Comte não se com- como de pouca tradição filosófica e
como história, e é nesta ordem (lógi- pleta sem a proposta em si de um de fácil incorporação de modismos
co-histórica) que elas se vêem como progresso moral que ele acredita es- filosóficos franceses. Antes que um
que essencializadas por uma “socio- tar no “altruísmo”. Mas isso ainda uso provincial, é verdade, da última
logia”. Se a “sociologia” não é pro- não é tudo. Comte quer nos impor moda intelectual para escapar magi-
priamente uma “síntese objetiva” no uma “religião” que ele acredita não camente da pobreza de pensamento
espírito matemático, ela é uma “sín- ser aquela do estágio tecnológico, e da ausência de tradição filosófica,
tese subjetiva” nos termos então de porque ela é uma religião da huma- trata-se de um conflito situado, numa
uma humanidade totalizadora. Comte nidade e não de um Deus. Comte, cultura pobre e singular, com forças
“naturaliza” o social e faz da socio- contudo, não negou Deus, apenas diz institucionais e tradições enraizadas
logia um discurso que se quer quase que não há como conhecê-lo. No como a Igreja, os regimes de força e
uma física do “homem” como ho- entanto, a sua “religião” tem tudo o o império recente dos mídias.
mem social. E este social em Comte, que se espera de uma religião de fato. É certo que vivemos (Portugal e
que nada tem a ver com aquilo que Ela tem nele, tal como foi seu dese- Brasil) uma certa dependência cultu-
Marx analisa como massas do tra- jo, o “grande sacerdote”, que suce- ral, mas é certo também que os fa-
balho explorado e luta de classes, deu então, e são ainda suas pala- tores que estabelecem esta disposi-
tem como “célula” a família. Comte vras, a Aristóteles e a São Paulo. Ela ção decorrem, nos nossos casos, de
tem, pois, um enfoque conservador configura também uma espécie de uma história bastante particular. A
deste social - como “natureza” da sacramento sob a forma, arcaica e reflexão, a militância intelectual no
vida humana - e chega ao limite de bárbara, de uma cerimônia onde um mundo europeu desenvolvido, resul-
coisificá-lo no propósito de o confi- recém-nascido é oferecido para “o tou de políticas culturais que, por sua
gurar como um objeto fora e então serviço da humanidade”. De resto, vez, instituíram ou criaram uma tra-
controlável por um discurso com pre- Comte estipula outros rituais que dição no plano das idéias e das ar-
tensão de ciência natural. O tempo acompanham de perto um seu se- tes. Isso não quer dizer que o pensa-
mostrou que a vida humana des- guidor, e que o acompanham inclu- mento seja, em sua essência nacio-
bordava o social, ou que o social ja- sive depois de sua morte. nal, e decorra absolutamente destas
mais se constituiu em natureza, seja Portugal e Brasil viveram assu- singularidades culturais e políticas
lá do que for, e, de resto, que a no- mindo as idéias novas do pensamen- “desenvolvidas”.
ção mesmo de natureza jamais dis- to francês (positivismo, existen- O pensamento não tem pátria -
pôs de outro estatuto que o da ideo- cialismo, marxismo francês, estru- mesmo se sempre responsável da
logia. A sociologia, em Comte, se turalismo e pensamento pós-moder- vida e dos possíveis da vida - já que
configura em um mural de imagens no), e tanto um quanto o outro se ele é um bem comum e a força de
conservadoras que a esquematiza perguntam hoje pela urgência de se sua originalidade quase irreferen-
tanto quanto a esclerosa. Por exem- pensarem e de pensarem o mundo ciável. No entanto, ele não existe ou
plo, Comte fala de uma “estática” e com idéias próprias. Há exemplos existirá como possibilidade abstrata
de uma “dinâmica” na sociologia, recentes, tais como o do estrutura- e genérica, mas a partir de fatos his-
que ele designa por “instituições”, a lismo francês que em Portugal se tóricos e intelectuais e que configu-
primeira, e por “funções”, a segun- impõe sobretudo a partir de uma rem uma cultura e uma política que
da. Na verdade, trata-se com as “ins- Antologia portuguesa do estruturalis- o reclame e que predisponha histori-
tituições” da família, da linguagem mo organizada por Eduardo Prado camente. Brasil e Portugal, a partir
e da propriedade, assim como com Coelho. No Brasil, onde se utilizou de condições históricas novas - a
as “funções” se trata da autoridade amplamente esta Antologia, o estru- democracia portuguesa a partir de 25
e da religião. Comte, enfim, remete turalismo francês como moda se de abril de 1974 e a brasileira nas

13
LOGOS

duas últimas décadas - começam a outra popular. É sobretudo nesta últi- de da herança da Revolução france-
exigir um universo de questões e de ma - e na forma superficial da “opi- sa, 1789, que relia o Iluminismo de
idéias não mais como um provincial nião” e nunca de pensamento ou forma burguesa conservadora, e exi-
conflito de doutrinas “francesas”, questionamento - que o positivismo gia um Estado capaz de uma indús-
mas como originalidade e como e o marxismo existiram entre nós. tria francamente antiliberal), já no
manifestação própria de uma presen- Pouco importa que tenha havido um Brasil este positivismo “empresta-
ça intelectual singular por si mesma. positivismo institucional e um marxis- do” configurava todo um processo
É preciso, pois, que o pensamen- mo universitário no Brasil, já que um político e institucional onde Estado
to se pense sem deixar de pensar e outro foram e permaneceram um e as suas metas pareciam, eram e
esta realidade cultural singular e, por horizonte esquemático e opinativo. Foi permanecem, como que à deriva do
isso mesmo, instrua suas noções e uma maneira mais geral de nos im- seu povo e do seu potencial.
imagens na carga própria e singular por uma modernidade e nela as práti- O Brasil não tinha (e permanece
das vivências portuguesas-brasilei- cas acadêmicas por onde respondía- não tendo) um pensamento próprio,
ras. Retornar por uma genealogia às mos a um mal-estar de terceiro mun- um questionamento próprio e verda-
forças culturais (na literatura, nas do sem que, com um e outro, reali- deiro - e de certa forma, e até mes-
artes e até na história política) que zássemos um conhecimento da nos- mo em razão disso, uma história pró-
possam desde já constituir um solo sa realidade e uma efetiva convoca- pria. O positivismo era o artifício por
e atuar nas formulações das idéias ção política. Ora, somos governados onde as classes dominantes - e a rea-
é fundamental. De tudo isso se hoje exatamente por estes “marxis- lização do Estado entre nós - pode-
depreende que não cabe afrontar os tas” universitários e nos termos, ali- riam assegurar ideologicamente esta
modismos teóricos franceses com ás, cruéis e insensíveis do neo-libe- trágica distância, assim como ele tam-
um certo nacionalismo de razões ralismo (ainda que todos eles “mar- bém manteria fora da “criação do Bra-
(culturais), como se esse fosse o xistas” hoje arrependidos), como fo- sil” o povo e o pensamento, opondo-
eixo da questão. Mas de fazer o pen- mos republicanamente instuticio- se a qualquer prenúncio de um pro-
samento fazendo valer nele o lugar nalizados pelos positivistas. cesso novo e propriamente participan-
único e singular de uma experiência O marxismo “brasileiro” não foi te. De certa forma, o Estado brasilei-
histórica que se quer conhecer. capaz da grandeza teórica do mar- ro é literalmente repressor e “intelec-
Nestes parâmetros não estão xismo - não foi capaz de si mesmo tualmente” um perpetuador do vazio.
apenas as reflexões históricas e po- como discurso crítico da nossa rea- No positivismo comtiano, como se
líticas mas a filosofia mesma (o pen- lidade -, assim como o positivismo sabe, existiu sempre um propósito pe-
samento especulativo), pois ela tam- (com sua utopia social e industrial dagógico, por isso mesmo reformis-
bém se faz na pregnância destes fa- burguesas) não venceu no Brasil as ta e jamais revolucionário. Pedagogia
tores. Platão é singularmente “gre- práticas anárquico-clientelistas her- aparentemente moderna (científica e
go”, como Sêneca (o estóico) é par- dadas do colonialismo. O positi- “humanitária”), mas inconseqüente,
ticularmente o drama romano. Da vismo trazido de fora não teve entre retórica e assumidamente autoritária.
mesma forma Espinoza é português nós uma vida teórica, mas sim uma Tratava-se da forma mais eficaz e abs-
e judeu, e também um cidadão per- vida farsante onde se equilibrariam trata da “razão” - como riqueza e or-
seguido dos Países Baixos. Tal como críticas eventuais à demora de uma dem - que a palavra-chave comtiana
o idealismo alemão - na intensidade sociedade capitalista brasileira e os da “doutrina da educação universal”
da questão do Ser - não pode ser termos conservadores (e autoritá- subscrevia explicitamente. Este
esquecido para entendermos ques- rios) por onde este capitalismo foi positivismo parecia feito à medida
tões tão complexas e próximas como instituído e se impôs. para uma burguesia sempre “gauche”
um certo ideário do nacional-socia- Ambigüidade e convivência da junto ao capitalismo internacional,
lismo alemão. No Brasil as idéias - especulação e do populismo no cujos propósitos se limitavam a um
sempre importadas - foram, por um positivismo comtiano, que no Brasil comando sem teses ou idéias.
lado, formas de afrontar uma reali- foi entendido como um programa fe-
dade imediata e até mesmo insupor- chado (e abstrato) aliado a um uso, Notas
tável. Não é outra a “urgência” do sem o povo e até sem o país, em 1
Os quatro volumes da Política Positiva ou
positivismo comtiano nos intelectu- benefício de pessoas e instituições. Tratado de Sociologia Instituindo a Religião
ais e nas instituições republicanas. O Estado brasileiro arremataria seu da Humanidade (de 1851 a 1854) e também
Talvez possamos dizer o mesmo do entranhado colonialismo com os pres- o Catecismo Positivista, em 1852.
que foi o marxismo entre nós. É cla- supostos autoritários do positivismo.
ro que não nos ocuparemos aqui com Na instituição militar brasileira, o
o que ocorreu com o pensamento de positivismo marca o aspecto de um Bibliografia
Marx no mundo e no Brasil, nem pre- poder sempre hostil ao povo, sempre COMTE, Augusto. Catecismo Positivista. Co-
tenderemos ter feito isso com o conservador e quase perverso. leção “Os Pensadores”, Abril, 1978.
positivismo de Comte. Se o positivismo francês tem ar-
Assim como o positivismo, tam- ticulações claras com a história fran-
bém o marxismo dispunha, lado a cesa, ou dela em parte resulta (por * Carlos Henrique de Escobar é
lado, de uma dimensão teórica e uma exemplo, uma França que se defen- Filósofo.

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LOGOS

Augusto Comte, a obra vivida


Patrick Tacussel*

RESUMO
A vida pessoal de Comte, suas tumultua-
das relações femininas, as vicissitudes
P ercorrendo livremente os tex-
tos de Augusto Comte pode-
ríamos tanto encontrar um
panfletário perspicaz ou imaginativo
em busca de soluções generosas
sição marginal dos reformadores na
metade do século XIX. Ao escolher
por adágio vivre au grand jour, Comte
exprime o desejo de ligar o mundo
vivido social e os acontecimentos do
de ordem profissional, bem como as pre- para problemas de seu tempo, quan- domínio privado. A esta maneira de
ferências por determinados pensadores to cruzar com o paladino de uma se representar a relação do homem
que interferiram no destino da humanida- sinarquia que une os técnicos e os com o mundo soma-se um interesse
de explicam o pensamento positivista do
líderes da indústria, ou deslumbrar a novo: a recepção da ruptura então
autor. Todo esse processo complexo é
estrela polar de uma constelação ro- inaugurada por seus trabalhos.
analisado especialmente na obra Calen-
dário Positivista, essencial para a com- mântica francesa. Desses perfis, ne- Nascido em 19 de janeiro de 1798
preensão de sua produção teórica. nhum é capaz de conquistar a ade- em Montpellier, Isidore Comte optou,
Palavras-chave: Comte; positivismo; Ca- são do leitor. Os relevos do sistema em 1817, por ser chamado pelo seu
lendário Positivista. recortam com clareza as linhas de um segundo nome: Augusto. Seu pai,
quadro coerente de idéias, mas o tom caixa na receita geral do Departamen-
SUMMARY tende para o contraste no interior de to de Hérault, e sua mãe, Rosalie
Comte’s positivist thought can be um concerto de sombras alimentado Boyer, oriunda de uma família de
explained by his personal life, his troubled por paixões, inquietude, melancolia. médicos, eram católicos e legi-
relationships with women, his pro- Os tormentos da existência explicam timistas. Ele nunca foi ligado a seu
fessional problems, as well as his
o arrojo de uma inteligência e de uma pai, um modesto e consciencioso
preferences for some particular authors
who have affected mankind’s fate. This
necessidade de ordem que ainda hoje funcionário que a ele sobreviveu, nem
whole complex process is specially traçam o caminho em sua obra. a seu irmão e irmã, mas a mãe foi
analyzed in his work Positivist Calendar, O positivismo permaneceria, sem publicamente homenageada por sua
which is fundamental for the unders- dúvida, incompreensível se a passa- gratidão e amor. Desde que entrou no
tanding of his theoretical production. gem da filosofia para a religião não ginásio de Montpellier com nove
Keywords: Comte; positivism; Positivist desse a essa conversão ao espiritual anos, o menino suscita a admiração
Calendar. sua verdadeira envergadura, no caso, de colegas e acumula prêmios, den-
social. É importante conhecer um tre os quais o de eloqüência, em
RESUMEN pouco do homem e estender a esfe- 1813. A precoce agilidade de espírito
La vida personal de Comte, sus tumultua- ra de sua presença para ver como tal fez com que fosse notado pelo pas-
das relaciones femeninas y las vicisitudes
exigência de razão e de ambição en- tor Daniel Encontre, filósofo e mate-
de orden profesional, así como sus
preferencias por determinados pensado-
ciclopédica se articula a instintos mático, um professor influente nes-
res que actuaron sobre el destino de la imperiosos, em virtude dos quais os ses anos de formação. Nesse perío-
humanidad, explican el pensamiento indivíduos regulam suas aptidões re- do, deixa de acreditar em Deus; mais
positivista del autor. Todo ese proceso cíprocas para viver em sociedade. A tarde, no prefácio do Catecismo
complejo es analizado especialmente en preocupação biográfica acaba por positivista, afirmará que os habitan-
la obra Calendario Positivista, que es esclarecer o lado noturno da alma que tes do sudoeste da Europa permane-
esencial para la comprensión de su mais brilho dá à doutrina; esta coman- cem menos permeáveis às “leituras
producción teórica. da a interpretação que o próprio autor negativas”, à metafísica protestante
Palabras-clave: Comte; positivismo; ofereceu dos dramas de sua vida e ou deísta, aos sofismas constitucio-
Calendario Positivista.
fixa sua conduta em uma fantas- nais, “ao deplorável exercício do su-
magoria única no gênero. Além dis- frágio universal” e “das maquinações
so ela convida a refletir quanto à po- parlamentares”. Deste ponto de vis-

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ta, a estima que por ele terá Charles operários em 1848 e denuncia os zar a potência material” que continua
Mauras é justificada. O projeto de res- “carrascos de junho”, isto é, os ge- a submeter o mundo real. Comte ob-
tabelecer a autonomia administrativa nerais responsáveis pela repressão. serva que desde o fim da Idade Mé-
da província, a instituição das inten- O primeiro ato da ditadura republica- dia a intervenção do “sexo afetivo”
dências, compostas por cinco depar- na, em que ele fixa o programa, é conteve secretamente as tempesta-
tamentos, a diminuição gradual da abolir o exército. Em 1835, fica soli- des morais características da aliena-
centralização exagerada constituem da dário com os acusados no processo ção mental, segundo suas próprias
mesma forma alguns dos princípios de abril e mais tarde, em 1845, apóia palavras, particularmente no Ociden-
caros ao teórico da Action Française. Barbès e Blanqui, que haviam sido te, e sobretudo na França. O ascen-
Em 1814, entra para a Escola Po- presos. Tudo isso não surpreende dente do romantismo é incontestável.
litécnica, onde confirma interesses muito, visto que o “Sistema de políti- O autor assegura, no Catecismo
muito afastados da disciplina em vi- ca positiva” quer promover uma re- positivista, que a preponderância do
gor no estabelecimento. O estilo sa- pública social, e não política, depois sentimento preserva a sociedade eu-
tírico que alimenta seu comportamen- de uma completa liberdade de expo- ropéia de uma grave e geral dissolu-
to é admirado por seus companhei- sição e de discussão. Esta fase será ção. Ele escreve: “não vejo, em toda
ros. Entretanto, aos olhos da direção o crepúsculo da “vã dominação dos a parte, senão as mulheres que, con-
da instituição, ele é faccioso e radi- boquirrotos sedutores” e favorecerá forme sua salutar exclusão política,
cal. Ele já detesta Robespierre e ve- “a propagação direta das meditações possam me oferecer um ponto de
nera Danton; em seu leito de morte, regeneradoras”. Ao contrário de apoio suficiente para fazer livremen-
pedirá a seus amigos para reabilitar Charles Fourier, sonha em, dessa te prevalecer os princípios segundo
a memória desse último. forma, eliminar os jornalistas, os aca- os quais os proletários acabarão, por
A Escola Politécnica é, então, um dêmicos e os jornais para substituí- fim, capazes de bem postular sua
centro de agitação republicana e los pela “imprensa das ruas”, com confiança teórica e prática”. Seus
bonapartista; logo ela se abrirá às uto- cartazes afixados nas paredes onde dessabores conjugais não atrapalha-
pias socialistas. Os seguidores de se anunciam as notícias e se ex- rão em nada a determinação de en-
Saint-Simon, e depois os de Fourier, põem opiniões. contrar “a angélica interlocutora”, a
vão recrutar, em suas fileiras, adep- Na perspectiva da República Oci- eminente natureza associada para
tos cheios de otimismo. Ela deve dental, a França deve prover-se de sempre ao triunfo de suas convic-
“alimentar as gerações futuras” na um “governo preparatório” exercido ções. Clotilde de Vaux vai desempe-
fórmula de Enfantin. Até a Comuna por um triunvirato de proletários que nhar esse papel, mesmo depois de
de Paris, os alunos e os egressos da dará lugar, em seguida, ao “patriciado seu desaparecimento prematuro.
Escola Politécnica vão fornecer uma industrial”, cujos eleitos terão, previa- A mulher é convocada para uma
coorte de combatentes para as barri- mente, completado sua educação elevada missão no positivismo,
cadas parisienses nas revoluções de social “sob a justa pressão de alguns como no saint-simonismo. Nas duas
1830 e 1848. Vale a pena lembrar que proletários eminentes”. De diferentes filosofias, trata-se de uma “feminili-
durante o cerco de Paris, um grupo maneiras, o princípio fundamental do dade sacerdotal”, ponto capital da
de trabalhadores manuais fundou o comunismo é, de acordo com Au- resistência incontinente a uma corro-
Círculo dos Proletários Positivistas. gusto Comte, absorvido pelo po- são da sensibilidade engendrada pela
Em abril de 1816, a Escola Politécni- sitivismo. Ao empirismo revolucioná- mecanização do trabalho, pelo
ca é fechada e os internos sus- rio, insuficiente e subversivo, a sã nivelamento dos valores, pela idola-
pensos. Alguns meses antes, o jo- doutrina sociológica prefere a introdu- tria do dinheiro e da mercadoria. Este
vem Comte fora expulso por ter ridi- ção dos meios morais. Cabe ao “pro- argumento está destinado a fazer
cularizado um professor desrespeito- letariado contemplativo” concluir essa sucesso: Marx e Engels o tomam
so e redigido contra este, alguém necessária empresa de regeneração emprestado no Manifesto do Partido
chamado Lefebvre, uma petição. Jul- da sociedade. O autor do Discurso Comunista (1847); Georg Simmel
gando que suas possibilidades de sobre o espírito positivo parece ver (1858-1918) consagra à questão vá-
sucesso estavam comprometidas, em cada proletário um filósofo espon- rios artigos. Comte preocupa-se com
Comte não se apresenta no ano se- tâneo e, atrás de qualquer filósofo, um uma demonstração similar àquela dos
guinte para o concurso ao serviço proletário sistemático. Ele desenvol- dois redatores do Manifesto: com a
público. Em seu testamento, ele proi- verá esse programa em 24 de feve- mesma radicalidade, liga “a incorpo-
birá que qualquer membro da Escola reiro de 1847 diante de uma assem- ração social do proletariado à digna
Politécnica assista a seu funeral. bléia dos comunistas parisienses. “O liberação da mulher”. Quanto à cita-
Apesar de o positivismo fazer pre- irresistível apoio das mulheres” vem, ção que se segue, poder-se-ia crê-la
valecer a ordem face ao movimento, além disso, consolidar tal nova força extraída do programa da Primeira In-
seu inventor não demonstra um tem- coletiva “estranha a qualquer preten- ternacional: “Sem essa universal
peramento que seria qualificado, hoje, são doutoral” e, desse modo, capaz emancipação, complemento neces-
de reacionário. Antimilitarista decla- de impor as condições enciclopédi- sário da abolição da servidão, a fa-
rado, foi condenado a três dias de cas indispensáveis que são próprias mília proletária não poderia verdadei-
prisão por ter se recusado a servir na dos que decidem. Esta “santa coali- ramente se constituir, porque a exis-
Guarda Nacional. Toma o partido dos zão social” tem por objetivo “morali- tência feminina aí permanece habi-

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tualmente abandonada a uma horrí- ca à Blainville sua doença e o trata- te, ele luta pela universalidade de seu
vel alternativa entre a miséria e a mento que espera fazer. Apesar do ensino, que postula o desenvolvimen-
prostituição”. As convergências en- diagnóstico de Esquirol, que o consi- to de um homem novo, genérico,
tre o positivismo e o socialismo dera incurável, ele tem alta de 2/12/ possuidor de uma visão coerente de
“científico” são mais freqüentes do 1826 graças à insistência da mãe. seu devir histórico.
que se imagina. Augusto Comte ana- Esta, convencida de que ele estava Para atingir esse grau supremo do
lisa a ação decisiva da burguesia na sendo punido por pecado, organiza, aperfeiçoamento da espécie humana,
turbulência que dá cabo do antigo re- rapidamente, seu casamento religio- Comte anuncia um Traité de l´édu-
gime teológico e militar e ele cons- so. Prisioneiro das circunstâncias, cation universelle que jamais será
tata, desde então, que o proletariado Comte parodia o sermão do vigário e publicado. O calcanhar de Aquiles da
ocidental cultiva irresistíveis preten- assina a certidão como: Brutus- crítica marxiana aparece em definiti-
sões quanto à sua integração na or- Bonaparte Comte. Os adversários do vo como um escudo para a suma
dem moderna. positivismo, os herdeiros mais mor- positivista: tratamos de uma especu-
No Apelo aos conservadores nos, os comentadores universitários lação filosófica que se reivindica ciên-
(1855), ele vai mostrar-se igualmen- desejosos de defender a “respeitabi- cias objetivas, se a atacamos como
te audacioso ao se pronunciar sem lidade” da Sociologia viram nesta si- crença de feitura recente e, por outro
reservas pela restituição da Argélia tuação grotesca o sintoma indubitável lado, de uma visão do mundo meta-
aos árabes e por um processo de de sua loucura crescente. morfoseada em fé dogmática e des-
descolonização mais abrangente, que Basta, no entanto, consultar a re- te modo protegida da revisão e da
incluiria a Córsega. senha crítica do tratado de Brussais reputação, inseparáveis da aventu-
O “batalhão feminino” ocupa po- sobre “a irritação e a loucura” que ra científica. As duas faces são
sição essencial na biografia de Comte. publica em agosto de 1828, no Le complementares, esculpidas em
A mãe Rosalie, morta em março de Journal de Paris, para constatar que um estilo inimitável em que se per-
1837; Caroline Massin, que conheceu Comte fez um exame muito lúcido cebe, sob uma poesia sóbria, “a ad-
em 3/5/1821, com quem se casará da doença mental, baseando-se em mirável inspiração estética que con-
em Paris em 19/2/1926; Clotilde de sua dolorosa experiência. Esta crise verte um simples retrato em um
Vaux, que morreu de tuberculose em foi interpretada por ele como uma quadro profundo”. A intenção didá-
5/4/1846; e Sophie, a fiel criada que espécie de regressão ao estado tica é uma preocupação constante
ele adotou legalmente. Na Addition metafísico e depois para o estado de Augusto Comte, que procura
secrète a seu testamento, Comte fala teológico e mesmo fetichista antes atingir o grande público, especial-
de seu infortúnio conjugal: Caroline, de uma ascensão ao estado positi- mente pela sua Association polyi-
filha natural de uma operária têxtil, era vo. A apreciação que propõe a partir téchnique d´instruction populaire e
o que se chamaria hoje de “uma ga- de seu caso clínico é perspicaz e não seu Cours d´astronomie, lançados
rota de programa”, inscrita desde os parece estar em contradição flagran- em dezembro de 1830.
17 anos no registro de prostituição da te com os dados psiquiátricos con- O prefácio do Catecismo posi-
Chefatura de Polícia. Esse retrato, temporâneos traduzidos no vocabu- tivista insiste nas qualidades de ex-
no entanto, contradiz a apresentação lário de seus praticantes. pressão que convêm à “arte de co-
que ele faz da jovem em uma carta a As seqüências da vida de Augusto municar”, na beleza simples do
seu amigo Vallat: elogia sua graça, Comte e, através dela, a forma de diálogo e na alquimia de concepções
seu bom coração, sua amabilidade, sua odisséia intelectual, forçam a maduras o bastante para abrir o ca-
seus bons hábitos, seu espírito etc. aproximação com a existência dos minho dos sentimentos. As palavras
É provável que o infeliz filósofo tenha outros arquitetos do pensamento so- e as frases devem evitar fomentar as
posteriormente sombreado este qua- cial do século XIX. Podemos pensar consciências de uma instrução desi-
dro. Caroline assistia aos cursos em Saint-Simon, de quem ele foi se- gual: “é preciso, pois, considerar o
positivistas e às sessões na Aca- cretário antes de se integrar às “se- estado próprio do ouvinte e prever as
demie des Sciences e comentava as duções passageiras do prestidigitador modificações que tal exposição sus-
idéias de seu marido. Em 1852, ela superficial e depravado”, em Pierre citará em sua marcha espontânea.”
encontrará em Littré um advogado Leroux, Charles Fourier, Pierre-Joseph O simples discurso lógico parecerá
resolvido a fazer reconhecer seus di- Proudhon... Em sua vizinhança, ele sempre inferior às combinações poé-
reitos; este último não hesita em observa como os modernos se incli- ticas que, por sua moldagem artísti-
ajudá-la quando ela questionou, sem nam à veneração e de que maneira ca, aproximam a linguagem artificial
sucesso, na justiça, o testamento do ela persiste no ambiente das grandes da linguagem natural. A autêntica
teórico defunto. transgressões revolucionárias. Afirma comunicação tira seu calor nativo da
Comte saiu muito abatido do nau- que uma “secreta impulsão social” efusão liberada na exposição. Comte
frágio de seu casamento com Caro- – como a “velha topeira” enterrada pensa que “a concisão do discurso”
line Massin. Profundamente abalado de Marx – está prestes a produzir e “a observação das imagens”, a
pelas fugas de sua mulher, será in- irreversíveis modificações. Ela carac- substituição da prosa pelos versos
ternado em abril de 1826 na clínica teriza esta “transição negativa” e serão um dia capazes de melhorar a
do Dr. Esquirol. Sua lucidez mental fragiliza a dominação das classes transmissão da sabedoria prática, das
não parecia ter diminuído. Ele expli- heterogêneas e efêmeras. Finalmen- sãs indicações teóricas, enfim, de sair

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LOGOS

de um modo grosseiro de apresenta- um modo de transmissão de idéias d’outre-temps. O novo ciclo, assim
ção que favorece em muito a eficá- que inclui as emoções tanto quanto criado, instaura uma repetição no seio
cia das leituras recomendadas. a razão, o meio onde exerce sua in- de um real alegórico povoado de
Estamos longe, vamos admitir, do fluência a partir de um nódulo solida- emblemas e figuras livres de seu
cientificismo ou do racionalismo po- mente constituído (escola sectária, enigma e de sua fantasia. Desa-
bre, ao qual os historiadores das ciên- círculo de simpatizantes, correligioná- tualizado em relação à sua época,
cias sociais, por vezes açoda- rios...), enfim uma facilidade para este gênero de pensamento pode,
damente, prenderam o construtor da “mudar a ótica histórica” (J. Gabel). no entanto, ser objeto de atualiza-
Synthèse subjective. Seguindo esta definição, podemos ções secundárias fecundas, mesmo
A personalidade e a trajetória de nos interrogar sobre o valor muito cir- se elas continuam ad aperturam
Augusto Comte comportam numero- cunstancial do intellectuel attaché. libri parciais.
sos aspectos que coincidem com a Relembramos que defensores da se- O cenário mental que serve de
definição de literateur sans attaches riedade que criaram obstáculos a pano de fundo para a filosofia comtista
desenvolvida por Karl Mannheim. A Comte e Fourier caíram num esque- se impõe desde 1822 graças a “uma
noção de intelligentsia sans attaches é cimento confortável e definitivo. verdadeira unidade cerebral”. Ele não
bem apropriada para entender o con- As teorias do intellectuel sans pretende de maneira nenhuma esta
texto de fermentação cultural do “pro- attaches surgiram do “vazio” das ide- íntima convergência das duas ordens
fessor ambulante”, cuja situação ma- ologias dominantes em conseqüência de tendências científicas e políticas,
terial nunca deixou de ser precária. da descentralização, da distância ab- anteriormente opostas. Comte preten-
A intelligentsia sans attaches de- soluta diante das pressões sócio- de tê-la descoberto depois de uma
signa os pensadores sociais, cuja cêntricas. Elas estão longe, no entan- meditação de oitenta horas: a lei dos
autoridade é primeiramente espiri- to, de serem eliminadas do viver mais três estados (também chamada lei
tual, e postula alargar no plano mo- concreto. Em geral elas contêm uma de filiação ou lei de evolução). É o
ral e político os resultados do em- validade projetiva – utópica, refor- resultado decisivo desta intensa ati-
preendimento de intenção científica madora ou revolucionária -, drenando vidade do espírito. A fim de tornar seu
ou literária. Este tipo de audácia man- no seu leito os aluviões messiânico, processo mais claro, ele confessa que
tém a febre criadora, enquanto que místico e sincrético. Tentar reduzir a sua carreira se divide em duas ver-
a fama de seus polígrafos repousa essas doutrinas a uma tipologia clás- tentes: a primeira, científica ou filo-
quase que somente sobre a confian- sica é se condenar antecipadamente sófica, expõe um sistema geral das
ça, muitas vezes o fervor, que suas à derrota. Um conservador mesqui- concepções humanas governadas
idéias suscitam junto aos ouvintes nho pode olhar o positivismo pelo pela redução do múltiplo a um; a se-
logo transformados em partidários in- ângulo morto de um modelo progres- gunda, a partir de 1851, transporta as
condicionais. Esse gênio singular sista, seu alter ego não tem nenhu- aquisições do Curso de filosofia po-
acaba consagrado fora dos meios ma dificuldade de sustentar exata- sitiva, redigido de 1830 a 1842, para
institucionais da produção, da circu- mente o contrário. É estranho, para o o nobre domínio da reorganização
lação e da legitimação de conheci- não iniciado, que abre a obra sem di- social e moral. O objetivo especial de
mentos (as academias, as universi- gerir o espírito do autor, sentir o pra- suas pesquisas é de substituir defini-
dade etc.). A “conspiração do silên- zer de uma leitura jamais fechada nela tivamente as bases sobrenaturais da
cio” - a expressão é de Comte -, reu- mesma. Com respeito a Augusto civilização, “cuja decrepitude é por
nindo contra ele a “pedantocracia Comte, os termos empregados no demais evidente”. Reencontrando a
algébrica” e os servidores do con- seu sistema não correspondem à sig- partir de então “uma forte destinação
formismo cultural, reforça sua posi- nificação usual. Os vocábulos mais prática”, a existência se move “de
ção que, por um irônico paradoxo, importantes são evidentemente tira- acordo com a socialidade superior”
escapa definitivamente ao controle dos da língua corrente e por isso re- e a humanidade engaja o futuro se-
crítico julgando as reputações do conhecíveis na sua generalidade, gundo o movimento autônomo de leis
momento. Os fiéis, por vezes, em mas a forma que eles adquirem não emancipadas da tutela das pressões
caso de necessidade o sustentam. é mais sincrônica com o sentido até fetichistas, teológicas e metafísicas.
Na verdade, a excentricidade qua- então a eles atribuído. Por exemplo, As forças do ingovernável cessam de
se sempre involuntária do littérateur a noção de sacerdócio, as palavras comandar diante da necessidade co-
sans attaches o coloca diante de uma ordem ou padre e todos os conceitos tidiana, o jogo das abstrações, o es-
liberdade sem freios nas suas inspi- articulando a majestade da obra se tudo maníaco e infrutífero das cau-
rações e análises. Nenhuma instân- deslocam em um horizonte semânti- sas se apagam diante da compreen-
cia de avaliação é habilitada a fazer co simbolizante, logo suscetível de são do domínio dos determinismos
uma perícia dos seus trabalhos; por apropriações múltiplas. O ritual pelo gênio coletivo.
outro lado, o reformador da humani- positivista, com a sua peça mestra o A ontologia naturalista implícita no
dade espera ser laureado por uma Calendário de comemoração pública, positivismo encontra sua superação
comunidade menos restrita, a dos é uma maneira de preencher a na semi-transcendência dos fenôme-
inimigos de ceticismo estéril. A tese inadequação entre o sentido visado e nos sociais que iluminam o círculo
de Karl Mannheim resume a condi- sua necessária realização através de do Grande-Ser e assegura sua con-
ção desta categoria de pensadores: um gesto concreto, uma prática servação, seu aspecto estático intan-

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LOGOS

gível. A sociologia consiste em construir, “como Lutero, Calvino ou aspira à aproximação do Oriente e do
aprofundar a síntese que deve atual- Rousseau. Augusto Comte lembra, Ocidente, à sua comunhão intelectual
mente coordenar as providências desta maneira, que o crédito intelec- e moral, “fora de toda teologia e
moral, intelectual e material em tor- tual continua insuficiente sem o be- metafísica”. Em nome deste uni-
no do “acordo dos espíritos”, provi- nefício da moral; sob este princípio, versalismo, no Calendário, Buda,
dência geral e cimento do consenso ele confessa, no entanto, abrir uma Confúcio, Maomé figuram no primei-
societário. Retomando a distinção exceção para Bacon. Todas essas ro mês e Moíses é dedicado à
entre o poder temporal e o poder es- precauções são elementares, elas teocracia inicial. Na mesma ordem
piritual, o “estado político da política” sancionam a superioridade do espíri- de idéias, o movimento negativo das
leva a termo a mudança das formas to orgânico sobre o espírito crítico. A etapas passadas da civilização não
de dominação: a primeira passa dos idealização característica do dogma é menosprezado, o que explica a pre-
conquistadores armados para os in- e da moral decorre do são conheci- sença de Cromwell. É verdade que o
dustriais, a segunda emana dos inte- mento da história, “princípio único regicida inspirado promete “o reino
lectuais e dos filósofos que rejeita- da regeneração final”. Somente uma dos santos” num período em que o
ram no passado os representantes justa veneração do passado abre a menosprezo revolucionário ainda era
das igrejas supersticiosas. Para porta para a celebração, ainda, abs- desculpável. Comte gosta de lembrar:
Augusto Comte, este quadro é o trata do futuro. “Tudo é relativo, eis a única coisa
melhor adaptado para conter as ten- Várias vezes, o doutrinário insiste absoluta”. Entretanto, o fantasma da
dências egoístas e favorecer a edu- na dimensão estética desta grandio- totalidade está encravado no coração
cação das vocações altruístas. “Vi- sa elaboração, em seu aspecto de do culto positivista. Este último se
ver para os outros” recomenda o iniciação concreta para a consolida- dirige às vezes ao Grande-Ser, isto é,
amigo das mulheres e dos proletá- ção dos costumes próprios da “gran- à trindade sintética da humanidade (a
rios para coroar um sistema cujas li- de família ocidental”. No entanto, prioridade, o público e a posteridade),
nhas mestras acabam de ser breve- como os adeptos de Saint-Simon, ele ao Grande Fetiche, à Terra, conside-
mente evocadas.
No Calendário positivista, temos
uma peça arqueológica que testemu-
nha a tomada de consciência da
modernidade operando sobre ela
mesma um retorno às etapas de seu
parto lento. Comte ambiciona agir
sobre a continuidade histórica da
temporalidade, colocar sua marca
pessoal sobre a herança dispersa da
alta pirâmide dos progressos da hu-
manidade. Prestando homenagem
aos artesãos de sua edificação, ele
faz o elogio do positivismo construído
na vasta carreira dos séculos. Eviden-
temente, a intenção pedagógica é pa-
tente, o Calendário faz a “publicida-
de” da mesma maneira concebida
por Kant, dos nomes de Apolônio de
Tiana, de Gerber, de Lope de Vega.
Funciona também como um meio
de educação popular ao fixar imutá-
vel hierarquia em cada uma das re-
giões do talento: a poesia antiga, o
drama moderno, a filosofia antiga, a
ciência moderna etc. Louvando com
simetria minuciosa aqueles cuja “con-
tribuição real para a realização da pre-
paração humana “merecem glorifica-
ção, o filósofo quer gratificar a vida
ativa de uma cultura periódica capaz
de vivificar o sentimento de per-
tencimento ou espírito de grupo. Esta
é a razão pela qual ele afastou des-
sas apoteoses todos os autores “que
realmente só destruíram, sem nada

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LOGOS

rada como organismo vivo capaz de Ocidental” imagina que cada pro- virtualmente acessível a todos os
inervação, e ao Grande Local, o es- víncia ou commune acabaria por in- seres humanos.
paço cósmico. corporar as celebrações domésti- Ele retira do 15 de agosto a sua
O inovador adivinha as dificulda- cas no seio do culto afirmativo. A significação católica e pede que se
des que entravam a realização efeti- sociolatria assume aqui a diversi- institua a utopia da virgem-mãe. Ver-
va de um projeto tão excepcional. Não dade das mentalidades, ao mesmo são positivista da Imaculada Concei-
ignorando que a “rotina atual tende tempo que liga costumes dispersos ção, sua festa pública simboliza a
sempre a suscitar mudanças vicio- em torno da invariância sagrada da divinização da mulher e do Grande Ser
sas e incoerentes”, ele espera o mí- comunidade dos mortos. A distin- “se fecundando sem nenhum auxílio
nimo possível dos hábitos modernos. ção comtiana entre teologia e reli- estranho a sua própria constituição”.
É verdade que o ano é calculado a gião é essencial, uma vez que a A igreja positivista do Brasil orques-
partir de treze meses de quatro se- segunda – diferentemente da pri- tra a primeira cerimônia dedicada a
manas, mas cada uma delas come- meira – procura fundir a inteligên- este mito de partenogênese em 15
ça por uma segunda e termina num cia, o sentimento e a atividade em de agosto de 1884, no Rio de Janei-
domingo. A confecção desse quadro um regime único, regulando todas ro. Os gérmens emanados das cren-
se desenvolveu numa atmosfera de as individualidades por sua própria ças absolutas encontram na religião
discussão. Quero lembrar que Littré natureza. Através desse meio, “o relativa uma derivação de sincre-
desejava louvar Jesus Cristo; contrá- sacerdote da Humanidade terá as- tismo supostamente de acordo com
rio a essa escolha, Comte entronizou sim levado livremente a ser adota- o estado moral da humanidade.
São Paulo contra o “pretenso funda- da a sua teoria do passado (...), e O destino e o pensamento do fun-
dor” do catolicismo. Sua visão de his- através disso mesmo ter tomado dador do positivismo são marcados
tória remonta ao nascimento da posse do futuro”, explica a nota em profundidade pelo poder que a
modernidade ocidental no século XIV, preliminar do Calendário. obra queria inicialmente conter. A ver-
mas a “grande crise decisiva”, inau- Desde aprimeira metade do sécu- dade da doutrina enfeitiça o mundo
gurando os novos tempos, ocorre lo XIX, a ideologia do progresso colo- que a lentidão das coisas humanas
em 1789. Assim, para obter uma ca a consciência em uma situação torna quase imóvel no seu fundamen-
data positivista basta subtrair 1788 desconfortável. Como eternizar con- to finalmente revelado. Como nota
do milésimo do ano ou adicionar se- venientemente a existência pessoal Max Horkheimer: “O contentamento
guindo o mesmo princípio; 1849, quando a espiral do futuro comanda daquilo que é não nasce somente de
data do aparecimento do calendá- o sentido da vida em sociedade? Que uma vontade paralisada, mas do sen-
rio, é o septuagésimo primeiro ano significado atribuir ao desaparecimen- timento que depois disso nada acon-
da Grande Revolução. Dessa ma- to físico e individual dentro do univer- tecerá, ao menos nada que de nós
neira, passamos da simples crono- so das satisfações profanas? O que dependa”.
logia dos acontecimentos - privados sobra da nobreza da alma, a partir de Augusto Comte Gutenberg morreu
de sua amplitude emocional - a uma então privada da salvação outorgada em Paris, em 1969, aos 24, às seis
cronosofia marcando tipos de soci- por decreto celeste? Todas estas horas da tarde. Atrás da bandeira ver-
abilidade inesquecíveis e radical- questões crescem como as flores do de positivista, Proudhon seguia o cor-
mente distintos. mal no jardim melancólico dos obser- tejo do enterro no cemitério de Père
O culto dos valores sociais pro- vadores lúcidos da revolução indus- Lachaise em 8 de setembro de 1857.
clamados por Comte não é nada trial; logo depois, Max Weber vai lhe Musset, Vidocq, Eugène Sue e o can-
mais que a religião natural dos po- dar, no seu ensaio sobre Le métier et tor Bérenger morreram neste mesmo
vos, a transfiguração poética do la vocation de savant, um fatal clima ano. Charles Baudelaire publica uma
sentimento de continuidade históri- pesado que lembra o “Céu baixo e obra surpreendente. Michel Lévy edi-
ca. A necessidade de vivificar a pesado” que obceca Baudelaire. An- ta por 800 francos e por cinco anos
lembrança na vida cotidiana engen- tes do sociólogo alemão, Balzac fala Madame Bovary. Entre o desejo de
dra o cuidado moral e protege o sen- do “desencantamento do mundo”. saber e a necessidade de crer se es-
timento comum contra a utopia sub- Esta crise se choca com a unidade tendia então um terreno vago sobre o
versiva, a anarquia, tudo que pro- psíquica do sujeito que não reconhe- qual a nostalgia da inocência enga-
cede da “ignorância das leis funda- ce mais a antiga paisagem das dis- nava a angústia por trás de uma más-
mentais da evolução humana”. Esta tinções sociais. Diferente dos “retró- cara de futuro.
é a concepção do filósofo. O panteão grados”, Augusto Comte julga inepto
positivista não é concebido como despertar os velhos conteúdos da tra-
sistema fechado, ele tende para um dição, mas acredita essencial a sal-
politeísmo de valores compatíveis vaguarda de suas formas e funções.
com a especificidade de cada gru- Se o Grande-Ser tece uma cadeia * Patrick Tacussel é Docteur d´Etat
po, e antecipa com isso uma tese espiritual entre os mortos e os vivos, e Professor da Universidade de
Montpellier na França.
clássica de Max Weber. Ao lado de a teoria da imortalidade subjetiva con-
quinhentos nomes da elite fixados solida os laços de veneração dos vi- Este artigo foi traduzido pelos Pro-
no Calendário, o pregador da “trans- vos para com os desaparecidos em fessores Doutores Luiz Felipe Baêta
missão final da Grande República virtude de uma “santidade social” Neves e João Maia.

21
LOGOS

O projeto comunicacional moderno


e os efeitos globais
Nízia Villaça*

RESUMO
Este artigo pretende pensar a desre-
gulamentação da comunicação con-
A palavra comunicação parti-
lha hoje fundamentalmente
dois imaginários: o do mila-
gre democrático proporcionado pelas
novas tecnologias “globalizantes” e
Desde o fim do século XVIII,
Saint-Simon vai construir as bases
deste novo saber, destas novas Lu-
zes, conjugando a ciência da obser-
vação e a ciência da organização.
temporânea, tendo como horizonte o o de uma geopolítica elitista, frag- Num amálgama de física e biologia,
pensamento de Augusto Comte, sua mentária e transnacional, deter- pretendia abraçar a causa dos indus-
visão positivista e o imaginário da co-
minante da ex-comunhão dos anal- triais (agricultores, fabricantes, ne-
municação como organismo no final
do século XIX.
fabetos eletrônicos. gociantes), incitando-os a juntar-se
Palavras-chave: globalização; positi- Uma reflexão sobre o contempo- e a mobilizar-se para escreverem a
vismo; Comte. râneo leva-nos ao século XIX, quan- História. Apenas aos sábios positi-
do a explosão das técnicas propiciou vos o autor atribuía o direito de contri-
SUMMARY o aparecimento de um pensamento buir para fornecer a coerência do sis-
This article aims at pondering the dominado pelo desenvolvimentismo, tema. Os demais, como no modelo
deregulation of contemporary commu- pela organização e pela ordem. A de propagação da Igreja, deviam tor-
nication in the horizon of August história da comunicação se teceu nar-se apóstolos.
Comte’s thought , his positivist view interligada à transformação de seus A visão positivista de Augusto
and the imagining of communication meios. No século XIX, com Saint- Comte e sua teoria orgânica da socie-
as an institution at the end of the 19 th
Simon, Comte, Malthus, Darwin, a dade participaram desta tendência e,
century.
Keywords: globalization; positivism;
comunicação delineia-se na forma de embora não tenha se detido em estu-
Comte. um organismo, de um corpo com dos sobre comunicação, suas idéias
seus vasos sangüíneos, órgãos, fun- funcionalistas exercem profunda in-
RESUMEN ções etc.. A metáfora biológica do- fluência sobre o campo comunica-
Este artículo se propone a pensar la minará as ciências sociais e a utopia cional pelo fato de que a noção de
desreglamentación de la comunicación é criar uma rede internacional, cone- comunicação se aproximou progres-
contemporánea, teniendo como hori- xões gerais que unam metrópoles e sivamente das noções de desenvol-
zonte el pensamiento de Augusto colônias num macroorganismo. Ingla- vimento e crescimento. Pensava
Comte, su visión positivista y el terra e França dividem à época, o Comte que a sociedade, no seu con-
imaginario de la comunicación como junto, apresentava fenômenos de
poder, de forma dissimétrica. O im-
organismo en fines fines del siglo XIX.
pério inglês e seu desenvolvimento crescimento, estrutura e funções aná-
Palabras-clave: globalización; po-
sitivismo; Comte. industrial polarizam o poder econômi- logas aos fenômenos individuais.
co, enquanto a França detém o atra- “Augusto Comte leva a melhor so-
tivo cultural. De qualquer forma, ha- bre todos os que o precederam pela
via um sentimento geral de que o maneira como concebe os fenôme-
pensamento enciclopédico já não nos sociais; entre outras superiorida-
bastava. “As idéias negativas que aju- des, conta-se a de ter reconhecido a
daram os enciclopedistas a minar a dependência da sociologia em rela-
ordem antiga já não bastam.” (Matte- ção à biologia.” (Smith, 1888, p.7)
lart, 1996, p.116) Era urgente substi- No debate organizado em 1998
tuir estes saberes destruidores e comemorando os duzentos anos de
desorganizadores, estes saberes da nascimento de Augusto Comte, pai
insurreição científica, por um pensa- do positivismo, tendo o Professor
mento e uma prática positivos. Maffesoli como interlocutor, as ques-

22
LOGOS

tões giraram justamente em torno de pensamento da sociologia com- cação o mesmo imaginário, a mes-
dos caminhos tomados pela sociolo- preensiva, constatamos que, na or- ma busca de um paraíso perdido da
gia no momento atual em confronto dem da comunicação, delineia-se ain- comunidade e da comunhão huma-
com o perfil desta ciência quando de da um perfil neo-positivista, apóstolo nas com a construção do mito de
sua criação, registrando os desdobra- da informatização do mundo, que vê um vínculo universal.
mentos no campo comunicacional.1 na globalização a utopia que os do Muitos foram os marcos do pro-
No contemporâneo, a linha da so- século XIX viam na universalização. jeto moderno de universalização cal-
ciologia compreensiva, com seu ape- A euforia do século XIX buscava cados no desenvolvimento da comu-
lo ao particular, ao próximo, à estéti- na tecnologia a reconciliação dos nicação. Na exposição universal de
ca, às micro abordagens, parece dis- antagonismos sociais e as exposi- Paris de 1851, cortou-se a fita da pri-
tanciar-se do racionalismo da ordem ções universais dão prova disso a meira ligação telegráfica por cabo
e do desenvolvimento pregados por partir da segunda metade do século submarino entre Dover e Calais. Na
quem achava que era necessário sa- XIX. As exposições universais ini- de 1855, a estrela é o aparelho tele-
ber para prever e prever para prover. ciadas na França partilhavam com gráfico impressor do anglo-america-
(Maffesoli, 1988) Divergindo da linha o progresso das redes de comuni- no David Hughes. Em 1876, em Fila-
délfia, comemorando o centenário da
independência americana, o telefone
de Graham Bell funcionou pela primei-
ra vez. Em 1893, em Chicago, feste-
jou-se a primeira linha interiorana
Chicago-Nova Iorque. Seguiram-se
os canais interoceânicos, o de Suez
(1889) e o de Panamá. Quanto ao
vapor, estará em toda parte, até a
explosão da eletricidade na Exposi-
ção Internacional em 1881, na Fran-
ça, três anos depois da invenção da
lâmpada incandescente de Edison. É
importante assinalar que, ao contrá-
rio das exposições anteriores, como
acentua Armand Mattelart, só parti-
ciparam quinze nações, em sua mai-
oria européias, além do Japão e EUA,
convidando apenas cientistas e indus-
triais dos países que produziam as
suas aplicações. Os progressos do
telégrafo, cabos submarinos, cami-
nho de ferro, navegação, fonógrafo
(1878 – Edison) são passados em
revista nesta ocasião. As imagens
também estão presentes nas expo-
sições: fotografia e seus avanços, a
imagem animada (praxioscópio), cul-
minando com a exposição de Paris
de 1900 e a cinemateca dos irmãos
Lumière. O filme, no século XX, tor-
na-se o símbolo da universalidade. “O
trabalhador com um vocabulário po-
bre é igual ao cientista (...). Através
deste meio mágico, os extremos da
sociedade aproximam-se um passo
um do outro, no inevitável reequilíbrio
da condição humana.” (Maffesoli,
1988, p.158)
Para Armand Mattelart, esta visão
do mundo, entendido como oficina e
mercado únicos, nações mutuamen-
te dependentes, nações mutuamen-
te repartidas segundo uma divisão
internacional do trabalho que se ins-

23
LOGOS

creveria na natureza das coisas, não Faz sentido a seqüência comtiana das hora é apenas de reflexão, negocia-
resiste à análise da cartografia dos três eras: biológica, metafísica e cien- ção e reestruturação do papel dos Es-
fluxos de comunicação na era dos tífica. Transformar as leis da fisiolo- tados-nações enfraquecidos pelos
impérios. (Mattelart, 1996) No sécu- gia em leis sociais, tal como con- direcionamentos conseqüentes da
lo XIX e no início do século XX, o pen- clama Saint Beuve, é o projeto que subserviência à metrópole ou a um
samento da criação de uma ordem atinge seu apogeu no fim do século bloco de poder. Se a globalização ofe-
universal, embora com capa demo- XIX. Os relativismos, os contraditó- rece uma certa desregulamentação,
crática, criou uma hierarquização rios devem desaparecer para que o esta deve ser usada de forma cons-
mundial centrada inicialmente nos contrato social se exerça, como bem ciente e política, de forma que os
grandes impérios que polarizavam a acentuou Foucault. Mesmo a verda- países em desenvolvimento e seus
comunicação das colônias e poste- de do sexo deve ser estabelecida. mercados não virem joguetes na
riormente nos dois grandes blocos Conclui Maffesoli que um cien- mão de patrões invisíveis que mu-
capitaniados por EUA e Rússia, que tismo que dominou o século XIX não dam de rota nos mares da Internet.
passaram a polarizar o mundo. é mais adequado para apreender a A hora é de afirmar territórios, de-
Se compararmos o projeto de desordenada e contínua “alteridade” fender fronteiras, criar éticas para que
universalização ao da globalização, das comunicações que de múltiplas o movimento dos sem-terra não se
tem-se hoje uma sensação de coi- formas eclode em nossos dias. Mui- estenda ao campo virtual. Repensar
sas fugindo ao controle. Define tos Estados que “deveriam” propi- Comte é pensar nossos limites na
Bauman que o significado mais pro- ciar a “ordem e progresso” posi- complexidade do “glocal”. Como
fundo transmitido pela idéia da tivistas mostram-se incapazes de lembra Michel Maffesoli, estamos
globalização é o do caráter inde- gerar e gerir os recursos necessá- distantes da visão universalizante do
terminado, indisciplinado e de auto rios para tal tarefa, perdendo sua so- positivismo dominador. Indo de en-
propulsão dos assuntos mundiais, a berania militar, econômica e cultu- contro a uma visão triunfalista, que
ausência de um centro, de um pai- ral. Se a política universalista depen- crê a tudo poder abarcar, a sociolo-
nel de controle, de uma comissão dia da demarcação das fronteiras de gia compreensiva que ele propõe par-
diretora, de um gabinete administra- cada Estado, progressivamente sur- ticipa de uma “transcendência
tivo. Se a universalização seguiu pro- gem os grupos de Estados criando imanente”, que brota do próprio cor-
jetos, a globalização dá lugar a pro- uma integração supra-estatal com po social. Nesta perspectiva, não
jeções inesperadas. (Bauman, 1999) dois super blocos. Os não-alinhados “possuímos” a verdade – mas
Nesse sentido, a imagem da passam a ser vistos como antiqua- estamos por dentro de uma “certa”
globalização coloca-se à parte da dos, apegados ao princípio da sobe- verdade. (Maffesoli, 1988)
idéia de universalização; cara ao pro- rania estatal. A regra passa a ser
jeto moderno que ela veio substituir. buscar alianças e entregar pedaços
A idéia de universalização, como se sempre maiores da soberania. Notas
viu, foi cunhada a partir dos recur- Quando descerrou-se a cortina, 1
Seminário Conversas sobre o Pensamen-
sos técnicos das políticas modernas havia Estados sem qualquer poder, to Social – 200 anos de Augusto Comte.
e anunciava, juntamente com outros etnias esquecidas que reclamavam, Participantes: Michel Maffesoli, Patrick
Tacussel, Luiz Felipe Baêta Neves, Nízia
conceitos como civilização, desen- mesmo assim, Estado próprio, ha-
Villaça e Ricardo Ferreira Freitas. Rio de Ja-
volvimento, progresso, a vontade de via novas e velhas nações escapan-
neiro, Jornal do Brasil, Idéias, 5/12/98, p.2.
melhorar as condições de vida em do das gaiolas federalistas e usan-
escala mundial. do sua liberdade apenas para bus-
Michel Maffesoli, a propósito do car a dissolução de sua independên-
fascínio positivista dos primórdios da cia política, econômica e militar no Bibliografia
sociologia que marca o final do sé- MCE e na aliança da OTAN. BAUMAN, Zygmunt. “Depois da Nação-Es-
culo XIX, pontua que cada época pos- O tripé da soberania foi afetado tado, o quê?”. In: Globalização: as conse-
sui seu sistema de investigação e em suas bases e a economia foi a qüências humanas. Rio de Janeiro: Zahar,
que uma grande tendência taxi- mais afetada. As nações-estados tor- 1999.
nômica inicia-se com as Luzes. “O nam-se executivas de forças que MAFFESOLI, Michel. O conhecimento co-
desencontro do mundo, que já havia não controlam politicamente. “Com mum. Rio de Janeiro: Brasiliense, 1988.
instaurado o vazio nas florestas e sua base material destruída, sua so- MATTELART, Armand. A invenção da comu-
nos campos, devia prosseguir em berania e independência anuladas, nicação. Lisboa: Piaget, 1996.
SMITH, A. Richesse de nations. Paris:
sua marca, tornando transparente a sua classe política apagada, a na-
Guillaumin, 1888.
obscura e misteriosa vida em socie- ção-estado torna-se um mero servi-
dade.” (Maffesoli, 1988, p.54) Apon- ço de segurança de mega-empre-
ta o autor a necessidade sentida na sas.”(Bauman, 1999, p.63)
época de se recorrer aos processos Este momento que atravessa- * Nízia Villaça é Professora Titular da
ECO/UFRJ, autora de Cemitério de
laboriosos das ciências naturais para mos instaura discussões radicais mitos: uma leitura de Dalton Trevisan,
estudar as realidades sociais. A bus- sobre a opção pela “neutralidade” Paradoxos do pós-moderno, Em
ca é a da sociedade perfeita, sem global neoliberal, pelos localismos de nome do corpo, Que corpo é esse
fantasmas religiosos ou imaginários. cunho radical, quando na verdade a e Em pauta.

24
LOGOS

Max Weber e a máfia napolitana:


uma dramatização do positivismo?
Lamartine P. DaCosta*

RESUMO
Max Weber igualou o crime organizado ita-
liano à burocracia absolutista do final do sé-
C omo Goethe ao visitar Veneza
e Roma no final do século
18, Max Weber também
redescobriu o humanismo ao visitar
Nápoles um século após. E mais: o
me organizado. (Weber, 1944) Como
incluir, então, nesta mesma linha de
conta uma outra tese weberiana — tão
propalada pelos epígonos da ordem
social disciplinada e legalizada — em
culo XIX. Partindo deste pressuposto, o pre-
sente ensaio procura demonstrar que um pai da sociologia em equivalência a que a ética protestante constituiu a
Weber aparentemente conservador defen- Marx e a Durkheim, em contato com matriz bem sucedida do capitalismo já
dia a ambivalência axiológica, tal como novas experiências vivenciais teria re- triunfante no final do século 19?
Comte. O sentido dramático da ciência duzido progressivamente sua crença A resposta, como pretendemos aqui
positivista desvela-se e reaparece por meio na pureza da ciência, dominante na demonstrar, reside na feição axiológica
das denúncias feitas aos cientistas sociais Europa desde Augusto Comte dos da metodologia de investigação adota-
pelos defensores de uma metodologia meados do século 19. da por Max Weber. Em resumo, ao
pretensamente rigorosa e inequívoca.
Uma comprovação inicial desse enfrentar questões de valor, o sociólo-
Palavras-chave: ciências sociais; posi-
tivismo; Max Weber.
fato encontra-se na sisuda obra “Eco- go defensor mal compreendido de uma
nomia e Sociedade”, opera magnum “ciência livre de valores”, assumia
SUMMARY de Weber, num trecho pouco conhe- freqüentemente a contradição como
Max Weber has matched up Italian orga- cido mas de significado importante na válida, embora despindo-a de importân-
nized crime with absolutist bureaucracy at discussão atual sobre a crescente acei- cia. Daí tais pressupostos relativistas
the end of the 19th century. From such tação do relativismo nas ciências so- surgirem por inserções dentro de
assumption, this text tries to demonstrate ciais. De modo textual e de forma rara temáticas mais amplas.
that an apparently conservative Weber has quanto ao seu estilo habitualmente Acrescente-se ao positivismo miti-
defended axiological ambivalence just as sério, Weber descreve as palavras ou- gado de Weber, um certo jogo cíclico
Comte did. The dramatic sense of positivist vidas por ele de um comerciante produzido pelo embate entre ciência e
science unveils itself and reappears by
napolitano: “Signore, la camorra mi valores que pressupunham influência
means of accusations to social scientists
made by the defenders of a supposedly strict prende x lire nel mese, ma garantisse sobre fatos sociais. Uma evidência
and unmistakable methodology. la sicurenza; lo stato me prende x lire desta oscilação de atitudes dos cien-
Keywords: social sciences; positivism; Max x 10 e garantisce niente.” (Weber, tistas diante de problemas práticos da
Weber. 1944, p.208) vida é encontrada no próprio Augusto
Neste ponto de sua meticulosa aná- Comte. Significativamente, o fundador
RESUMEN lise histórica e econômica dos fatos da sociologia e pai do positivismo tem
Max Weber equiparó el crimen organizado sociais, Weber deixa de lado momen- um comportamento similar a Weber ao
italiano a la burocracia absolutista de fines taneamente a religião, a burocracia ou inserir um comentário ad lattere quan-
del siglo XIX. A partir de este presupuesto, a lei como categorias centrais de suas do do desenrolar das denúncias de ar-
el presente ensayo busca demostrar que
indagações e aceita o banditismo or- bitrariedades por ele atribuídas à
un Weber aparentemente conservador
ganizado como uma alternativa à or- metafísica. Neste caso a quebra da
defendía la ambivalencia axiológica, tal como
Comte. Se descubre el sentido dramático dem social imposta pelo Estado. Eis seriedade comteana é feita por citação
de la ciencia positivista, que se manifesta que neste estágio, o maior vulto da in- de uma “exclamação favorita de
hoy en las denuncias a los científicos sociales vestigação sociológica de sua época Newton”: “O Physique! Guarde-toi de
por defensores de una metodología presun- põe a Máfia napolitana num viés la Metaphysique”. (Comte, 1835, tome
tamente rigorosa e inequívoca. comparatista — citando exemplos da deuxième, p.636)
Palabras-clave: ciencias sociales; posi- Sicília, Índia, China e África — e con- Mais adiante, Comte enseja reve-
tivismo; Max Weber. clui como “aparente” a contradição lar o perigo de se cair no deslumbra-
entre a burocracia absolutista e o cri- mento de argumentos das pseu-

25
LOGOS

dociências, áreas de saber mais numa proposição central e não por si- estas afinal dispondo-se como vias de
afetivas que racionais, mais axio- nalizações como em Comte e Weber. mútua compreensão. (Berlin e Ja-
máticas que empíricas. O texto em Efetivamente, Popper acatou com ha- hanbegloo, 1992, p.108-109)
questão pertence à obra maior de bilidade a presença incontornável de A convivência do positivismo de
Comte — “Cours de Philosophie valores na prática científica mas man- pretensões universalistas com o
Positive”, publicada em 1835, em Pa- teve o controle sobre fatos, objetos e relativismo pluralista não tem se mos-
ris — do qual extraimos o comentário: a própria ciência, criando para isso o trado contudo uma tarefa ausente de
“A preponderância atual de nossas fa- conceito de três mundos: o primeiro rupturas. A publicação em 1997 do li-
culdades afetivas não somente é in- incorpora objetos físicos; o segundo vro “Imposturas Intelectuais” de Alan
dispensável para retirar continuamen- engloba experiências humanas e o Sokal e Jean Bricmont na França e
te nossa inteligência de sua letargia terceiro, os produtos do espírito hu- depois imediatamente em vários ou-
nativa, mas também para dar à sua mano. Esta concepção implica em se tros países, revelou um instigante
atividade qualquer um objetivo perma- dar a possibilidade ao cientista de cir- enraizamento da redução universalista
nente e uma direção determinada, sem cular entre mundos diferenciados e e defesa da singularidade em confron-
os quais ela se engajará necessaria- neles definir suas intervenções como to. Os físicos Sokal e Bricmont em
mente em vagas e incoerentes espe- também manter os cânones do mé- nome da preservação do rigor científi-
culações abstratas.” (Comte, tome todo científico. (Popper e Lorenz, co usaram uma denúncia pública con-
quatre, 1835, p.95-96) 1990)2 Com tal disposição, ao nosso tra o que eles chamaram de abusos
Enfim, Comte concebeu uma ciên- ver, preservou-se por distinção e iso- pelo uso indevido de terminologia e
cia absolutista mas aceitou nas entre- lamento a pureza do método científi- concepções das ciências “exatas” por
linhas “faculdades afetivas” que lhe co, um mito reforçado desde o alvo- parte do “relativismo epistêmico das
daria sentidos e direcionamentos. A recer do Iluminismo na Europa. ciências sociais pós-modernas”. (Sokal
ambivalência, nesta postulação, mas- Aliás, o embate entre ciência e Bricmont, 1999)
cara-se pela complementaridade do “pura” e “impura” constitui uma das Em 1998, Edward Wilson — outro
método — que se baseia no lema manifestações originais do histórico pai, mas da menos generosa socio-
“savoir pour prévoir” — com valores confronto entre o método científico e biologia — também conseguiu chamar
externamente instituídos. A julgar por o mundo dos valores. (Hekman, 1986) a atenção do mundo acadêmico, es-
Adorno em sua famosa crítica do posi- Nessas circunstâncias, no dizer de pecialmente nos Estados Unidos, ao
tivismo, a finalidade da aceitação de Isaiah Berlin, a crença na verdade ab- publicar o livro “A Unidade do Conhe-
valores externos ao método é a de soluta proclamada pelo positivismo cimento – Consiliência”, no qual se
ordenar partes definidas pelas cons- tornou-se irreconciliável com outros propõe a unificação das diferentes dis-
tatações empíricas num todo coeren- tipos de valorizações que não as cien- ciplinas. Estas, quer voltadas para a
te. (Arato e Gebhardt, 1978) Por trás tíficas. Daí, poderíamos então argu- natureza ou para a sociedade, estariam
desta adequação axiológica do posi- mentar, haver uma estreita margem hoje sujeitas à intensa fragmentação e
tivismo, ainda se dando crédito a da conciliação do irreconciliável, que crescente busca de especialização.
Adorno, impõe-se o controle da natu- se manifesta num Weber irônico e Para Wilson, a unificação necessária
reza e da sociedade como nexo cen- num Comte tocado pela culpa. transcorreria por eleição de “leis natu-
tral da doutrina comteana. (Arato e Berlin, continuando sua digressão, rais fundamentais que compreendem
Gebhardt, 1978)1 aponta outra conseqüência: o relati- os princípios subjacentes a todos os
Tentando-se uma síntese, diría- vismo — noção já presente entre os ramos de saber”. (Wilson, 1999)
mos que a aceitação de valores no sofistas da Grécia Antiga — foi tolera- A par dessas novas versões do
interior da prática científica a partir de do progressivamente, pois “ele não embate entre o empírico e o irônico,
referenciais externos teria um signifi- poderia ser declarado já que ao se ex- poderíamos então questionar: seriam
cado funcional, num concerto de de- por por uma proposição esta não po- tanto Sokal & Bricmont como Wilson,
limitação, complementaridade e deria ser relativa”. (Berlin e Ja- meros prolongamentos da ansiedade
operacionalidade. Admitindo-se, hanbegloo, 1992, p.107) Assim, este de Comte por controle e unificação do
como Comte, “vagas e incoerentes relativismo eivado de compaixão es- saber científico? Se verdadeira esta hi-
especulações abstratas” poder-se-ia taria superando o estigma da impure- pótese, por que novas roupagens des-
estimular a fragmentação do conhe- za dos valores não científicos e se re- se embate conseguem aflorar e preva-
cimento e se perderia o controle ine- forçando conceitualmente ao ser lecer em meio à comunidade científi-
rente ao exercício científico. Isto não categorizado, como indica Berlin, vis- ca, presumidamente hábil no lidar com
seria apenas desvelado em leituras à-vis com o pluralismo da sociedade fenômenos repetitivos? Estariam então
de textos comteanos, mas sobretu- atual. Ao fundo e ao cabo, a aceitação os cientistas refletindo mais suas dú-
do por expressões positivistas pos- do relativismo nas ciências sociais vidas epistemológicas e limites de sua
teriores como no exemplo de Karl deve-se à crescente necessidade de influência na natureza e na sociedade
Popper, até hoje com reputação comunicação entre culturas. Simples- do que propriamente confrontos de mo-
intocável na luta para a preservação mente, no mundo presente certos va- dulações do rigor científico?
da pureza científica. lores fizeram-se comuns e permitiram Em tese, ao se revisitar vida e obra
Mas mesmo Popper flexibilizou a circulação de idéias, o que parado- de Max Weber em consonância com
seus imperativos conciliando-os xalmente passou a incluir diferenças, o desenvolvimento de teorias axio-

26
LOGOS

lógicas em sua época e posteriormen- postulação é compartilhada por Diggins vimento feminista na Alemanha, do
te a ela, poder-se-ia obter significados ao revisitar a vida de Weber do qual se qual Marianne passou a fazer parte ati-
das oscilações ora em conjectura. A extraiu “uma curiosa combinação de vamente. (Diggins, 1999)
publicação em 1996 de uma biografia impulsos anarquistas e convicções con- Seria este o Max Weber reacio-
de Max Weber com base em docu- servadoras”. (Diggins, 1999, p.85) nário e reificador da ordem esta-
mentação epistolar, de autoria do his- A falta de percepção de um Weber belecida freqüentemente esboçado
toriador John P. Diggins, tornou esta recomposto por Diggins seria também por críticos apressados? Se a respos-
possibilidade mais viável por criar um produto da ambivalência intrínseca da ta é negativa, então o sociólogo daí
fio condutor de contextualizações e metodologia sociológica weberiana, na resultante ajusta-se ao perfil preferi-
contrastes entre a experiência da vida qual os “tipos ideais” têm papel domi- do de Diggins: um intelectual voltado
e a teorização acadêmica. nante por levantarem modulações va- para tensões das antinomias típicas
Para Diggins, “o estilo trágico de riadas das ações sociais determinadas do racionalismo de seu tempo sem-
Weber, em vez de oferecer um orde- por valores. (Diggins, 1999) Um teste- pre em confronto com a condição
namento racional da sociedade, apre- munho importante para dar mais vera- humana. (Diggins, 1999)
senta uma dramatização de suas au- cidade a esta assertiva é Georg Lukács, Esta síntese é particularmente pro-
tonomias conforme confronta as inú- sobejamente conhecido por esboçar dutiva ao inserir a obra de Weber nas
meras operações do poder”. (Diggins, um marxismo com interesses cultu- teorias dos valores surgidas durante
1999, p.89) Além disso, “Weber justa- rais, que aderiu às jornadas de discus- e depois de seu trajeto intectual. De
poria carisma à racionalização para dra- são promovidas por Weber na Univer- fato, as chamadas Kulturwerterideen
matizar a natureza dividida da ação sidade de Heidelberg , nas duas primei- (as idéias dos valores na cultura) fo-
humana que o conhecimento não con- ras décadas do século 20. Escreveu ram inicialmente compartilhadas por
seguia unificar. Conhecendo os limites Lukács dando ênfase a um dictum ou- Weber com Simmel, Troeltsch,
do conhecimento ele enfrentou estoi- vido de Weber naquelas reuniões: Rickert e outros nomes de destaque
camente a perda da verdade e objetivi- “Onde os valores começam, a ciência da intelectualidade alemã do final do
dade e foi devido a seu gênio que ele termina”. (Diggins, 1999, p.144) século 19. Estes debates acabaram
pôde, ainda assim, elaborar uma teo- Outra frase emblemática do soció- por levar à dúvida a metodologia cien-
ria racional da ética e da responsabili- logo dos tipos ideais pinçada no acer- tífica, até então mitificada como o
dade”. (Diggins, 1999, p.13) vo da lavra de Diggins confirma a bastião da objetividade e da razão
Ao expor tais preocupações, menção anterior: “Por trás da ação iluminista. (Löwy, 1987)
Diggins faz surgir um Max Weber mais encontra-se o homem”. (Diggins, Um passo adiante dessa posição
voltado para a epistemologia do que 1999, p.152) Embora sintéticas, es- aconteceu três décadas após com Karl
para a ontologia da ciência, tradicio- sas afirmações de ocasião confirma- Mannhein desenvolvendo a concepção
nalmente cultivada pelo positivismo. vam as afinidades intelectuais de de “dependência situacional”, em que
Isto redefine o pensamento weberiano, Weber que incluíam marxistas, já sínteses da realidade investigada refle-
dando-lhe foros de sintonia com preo- exemplificado por Lukács, e espi- tiriam a posição filosófica–histórica do
cupações atuais, como se verifica em ritualistas como Ernest Bloch, em sujeito observador. Isto direcionaria o
outro trecho selecionado: “A defesa meio a variadas tendências acadêmi- relativismo — neste estágio já assim
de Weber da liberdade acadêmica ti- cas, literárias e ideológicas. denominado explicitamente — para
nha tanto a ver com a incerteza episte- Neste contexto, Diggins insere uma “complementaridade recíproca de
mológica quanto com a liberdade polí- Else Jaffé, amante, amiga da espo- diferentes pontos de vista parciais”.
tica. Em vez de unificar nossa visão sa Marianne Weber e discípula do Cír- (Mannhein, 1976, p.179) Na verdade,
em relação ao mundo, o conhecimen- culo Weber na Universidade de com esta proposição, Mannhein endos-
to a fragmenta, enquanto a natureza Heidelberg. Este caso amoroso tor- sava a idéia do perspectivismo antes
de seus objetos requer diferentes pers- nou-se estável na vida de Weber, co- elaborada por Nietzsche e, por vezes,
pectivas e preocupações. Weber via meçando em 1910 quando Else era confirmada pelo Círculo de Heidelberg.
instituições diferentes abrigando esfe- sua aluna e persistiu até sua morte (DaCosta, 1988)
ras distintas de valor; assim, a uni- em 1920. Examinando-se a corres- Depois da Segunda Guerra Mun-
versidade e o Estado apresentavam pondência de Else desvela-se um dial, a temática do relativismo dentro
demandas diferentes ao indivíduo”. Max Weber até então desconhecido, da tradição alemã foi retomada por
(Diggins, 1999, p.179) interessado no “Movimento Erótico” Hans Georg Gadamer — ainda hoje
De resto, Weber não representou e em idéias anarquistas circulantes vivendo em Heidelberg — que criou
efetivamente o papel de defensor do nos anos precedentes à Primeira uma variante da proposição de
capitalismo nem de líder do liberalis- Guerra Mundial. (Diggins, 1999) Mannhein. Introduziu-se, então, na
mo — como marxistas e liberais bra- Com a própria Marianne, Max Wertephilosophie (filosofia dos valo-
sileiros assim entenderam — e muito Weber buscou estímulos eróticos co- res) o nexo da “história efetiva”. Nes-
menos de propositor de uma meto- letivos em 1913 e 1914, com a adesão te estágio, o relativismo foi compreen-
dologia de investigação que reificava a do casal à comuna de Ascora, na Suí- dido como inevitável por incorporar os
repressão social, como assim dispôs ça, onde se praticava o amor livre. efeitos de certos textos sobre gera-
a Escola de Frankfurt em sua fase áu- (Diggins, 1999) Posteriormente, ele in- ções que se sucedem e compreen-
rea da década de 1930. (Jay, 1973) Esta cluiu debates sobre o emergente mo- dem. Gadamer assinalou, finalmen-

27
LOGOS

te, uma tendência da filosofia posi- delimita a modernidade e por vezes “universalista cautelosa”, conseguin-
cionar-se além de dicotomias tais como conceitua a pós-modernidade. (Da do retirar-lhe a pretensa relevância no
objetivismo e relativismo, objetividade Costa, 1988) âmbito acadêmico. (Da Costa, 1988)
e subjetividade ou racionalismo e Eis que a racionalidade — ou ra- Por esse motivo, entendemos que
irracionalismo. (Hekman, 1986) zão instrumental, acompanhando-se há um processo cíclico no debate en-
Por influência de leituras de o pensamento frankfurteano — foi res- tre o modus exato da ciência e o seu
Gadamer, ensaiamos em 1988 uma gatada da perspectiva weberiana símile literário, quer se apelando pelo
conceituação de valores que tentava como o fulcro da denominação lado da metodologia que se nutre no
sedimentar a tradição no tema da positivista e cujo contraponto abriu rigor mitificada ou se assumindo o
axiologia. Propusemos, assim sendo, espaços de legitimação do erotismo perspectivismo que busca incessan-
que valores fossem “aspirações co- libertário, do anarquismo, do feminis- temente o singular. Esta alternância
letivas, volitivas e mutáveis, referi- mo e até mesmo da Máfia napolitana. de apropriação de rótulos e enfoques,
das ao dever ser ideal e descritas Ironicamente, mutatis mutantis, es- tem transcorrido simplesmente em
sobre experiências fundadas em re- sas reações ao racionalismo opres- torno de um único problema, o mes-
lações sociais”. (Da Costa, 1988, sor também foram divisadas pelo mo que animava os filósofos e seus
p.213-214) Nesta mesma década de frankfurteano Hebert Marcuse, um crí- desafetos sofistas no antigo mundo
1980, a intelectualidade brasileira en- tico contumaz das teorias webe- grego: aquele que opunha a episteme
trara em contato com os escritos de rianas. Sem embargo, depois da rea- dos saberes demonstrados e concei-
Jürgen Habermas, e portanto a nos- bilitação promovida por Habermas, há tos fundamentados à doxa que
sa definição procurou espelhar cate- que se sugerir um Weber pouco com- entedia o homem como medida de
gorias principais habermasianas que preendido e desviado de seus propó- todas as coisas.
fundamentavam a axiologia, como o sitos por ter concentrado esforços no Para esta interpretação é sugesti-
“dever ser” e as “relações sociais”. mapeamento sociológico do capita- vo que os positivistas lógicos do Cír-
Outra influência assimilada na lismo, da religião e da burocracia. Em culo de Viena tenham servido de
nossa definição de valores foi a de suma, os críticos teriam confundido contraponto a Mannhein, inclusive ten-
Max Weber por via da reabilitação en- tipos ideais com modelos sociais. tando uma unificação das ciências;
cetada por Habermas. Esta foi a ra- O papel de Habermas, portanto, foi que Popper tenha ganho momentum
zão de optarmos por “aspirações co- de colocar a sociologia de Weber em ao tempo de Gadamer e disputado
letivas, volitivas e mutáveis”, uma sua justa medida, dando ênfase pri- publicamente com Habermas; e que
formulação típica da teoria da ação mariamente à teoria de valores, o que Sokal & Bricmont tenham aparecido
originada no Círculo de Heidelberg. De poderia fundamentar mais adequada- como resposta ao atual pós-moder-
qualquer modo, tornara-se evidente à mente os tipos ideais e demais dispo- nismo, anti-metodológico e anti-
época que avanços na trilha dos va- sitivos metodológicos de flexibilidade fundacional.
lores deveriam se apoiar em pressu- descritiva ao gosto do líder do Círculo Ao nosso ver, Weber não teve opo-
postos weberianos. de Heidelberg. Note-se, por necessá- nentes radicais do seu porte nas ciên-
O próprio Habermas tinha percor- rio, que o maior número de citações cias sociais de sua época porque prati-
rido esse caminho e assimilado a no- encontradas na obra principal de cou uma composição do positivismo
ção de “esferas de valor” pela qual Habermas — a “Teoria da Ação Co- com o perspectivismo. Por isso, há um
Weber interpretara o “desencanta- municativa”, publicada em 1981 — Weber hoje superado e outro atual, de-
mento do mundo”, processo dessa- concerne a Max Weber. Nele, tam- pendendo da feição exposta. Daí depa-
cralizador da cultura imposta pela bém, Habermas buscou inspiração rarmos com um Giddens que considera
modernidade. Nesta mudança cultu- para sua proposta da Ação Comuni- Weber ultrapassado (Giddens, 1990) e
ral, a ciência e a tecnologia — tendo cativa, que homologamente às três um Turner que identifica no mesmo
inicialmente o Renascimento como esferas weberianas, definiu-se como Weber fundamentos e direcionamentos
pano de fundo — teriam substituído interseções de três eixos axiológicos: para se lidar com questões atuais como
a religião como referência básica da fato (ciência), norma (moral) e vivência a globalização, o pluralismo ou a pós-
sociedade. As esferas de valor, no (arte). (Habermas, 1987) modernidade. (Turner, 1996)
caso, foram identificadas por Weber Claro está que o propósito de No Brasil, a ambivalência webe-
como resultado da fragmentação do Habermas foi o de superar Weber, riana foi prematuramente apropriada
mundo, “encantado” pela religião. como também pretendeu fazer com em razão da famosa controvérsia do
Gerou-se, por conseguinte, uma maior o pensamento frankfurteano, dentro “homem cordial” que tipificaria o
ênfase na autonomia e na diferencia- da tradição filosófica alemã de se ul- brasileiro, a partir de 1936, com a pu-
ção da ciência, da moral e da arte. trapassar uma determinada posição blicação de “Raízes do Brasil” por
Esta “racionalização da cultura” foi mantendo-a nos seus elementos es- Sérgio Buarque de Holanda. Este tipo
parafraseada por Weber na expres- senciais. Mas, ao fazê-lo, nivelou ideal, devidamente assumido pelo
são do homem crescentemente pri- sua tentativa ao próprio Weber, a seu autor, foi construído em torno de
sioneiro de uma “armação de ferro”. Mannheim e a Gadamer, uma vez uma antinomia em que cordialidade
(Stahlhartes Gehäuse) Nesta concep- que críticos da Ação Comunicativa e afeto no trato convivem e se con-
ção se poderia encontrar a causa cen- saudaram-na de modo implacável frontam com egoísmo e opressão.
tral do pluralismo axiológico que hoje como “utópica”, “absolutista” ou Para os críticos e desavisados jamais

28
LOGOS

ficou claro se esta caracterização era e audiência — apresenta-se sobre- Bibliografia


virtude ou defeito, o que obrigou tudo com os eixos que delimitam
ARATO, A. e GEBHARDT, E. Introduction
Holanda a esclarecer, por toda sua tais dramatizações. to “Critical Theory and the Philosophy
vida, o significado das antinomias de Não seria por simples acaso, por- of Science”. In: The Essential Frank-
termos não excludentes para efeito tanto, que a tríade de Crease ajusta- furt School Reader. New York: Urizen
de análise. (Morse, 1987) Holanda, se aos eixos de valores de Ha- Books, 1978, p.374-375.
por outro lado, estudou e trabalhou bermas: vida (fato), performance BERLIN, I. e JAHANBEGLOO, R. Conver-
como jornalista correspondente na (norma) e audiência (vivência). Esta sations with Isaiah Berlin. New York:
Alemanha em 1929. Diz ele sobre semelhança também se repete com Charles Scribner’s Sons, 1992.
esta experiência em uma de suas en- os mundos um, dois e três de Popper, COMTE, A. Cours de Philosophie Positive.
trevistas: “Li Kantorowicz, depois desde que se aceite a distinção em Paris: Bachelier, 1835.
CREASE, R.P. Science as Foundational?
Sombart, e através dele cheguei a lugar da interseção como propõe
In: SILVERMAN, H.J. (ed.) Questioning
Weber. Ainda tenho aqui, em minhas Habermas. Foundations. New York: Routledge,
prateleiras, livros de Weber que com- Sintomaticamente, essa última 1993.
prei naquela época; eu devo ter sido qualidade de composição de três DACOSTA, L. P. Valores e moral social no
o primeiro brasileiro a citar Weber em mundos é reencontrada em Kant com Brasil. Tese de Doutoramento em Filo-
uma publicação”.3 Teria Holanda, as- outras três expressões: razão pura, sofia. Rio de Janeiro: Universidade
sim sendo, repetido a frustante ex- razão prática e juízo estético. Hum- Gama Filho, 1988.
periência de confundirem seus tipos bolt, por seu turno, adota três “esta- _____. Environment and Sport – An Inter-
ideais com modelos sociais? dos” em sua argumentação: intelec- national Overview. Porto: University of
Em retrospecto, é evidente que tual, moral e artístico. Esta simetria Porto, 1997.
cientistas e filósofos, quer univer- enfim, mantém-se em abordagens DIGGINS, J. P. Max Weber – A política e o
espírito da Tragédia. Rio de Janeiro:
salistas ou relativistas, estão fazen- contemporâneas como nas “mun-
Record, 1999.
do opções em alternativas igualmen- dialidades” de Hannah Arendt, vida, GIDDENS, A. The consequences of mo-
te válidas e defensáveis, tal como fez ação e obra; nas formas de Lefevbre, dernity. Cambridge: Polity Press, 1990.
Augusto Comte de modo tímido e poíesis, prâxis e mímesis; e nas HABERMAS, J. The theory of commu-
culposo em face à aparente contradi- “empiricidades” de Foucault: vida, nicative action. Boston: Beacon Press,
ção de sua escolha. Não constituirá vontade e linguagem.5 1987.
surpresa, nestes termos, que epis- Afinal, residiria na consideração HEKMAN, S.J. Hermeneutics & The
temologias avançadas dos tempos dos três eixos ora admitidos como Sociology of Knowledge. Cambridge:
correntes estejam apontando para sa- convergentes e sugeridos como um Polity Press, 1986.
beres conciliatórios, com diferentes consenso subjetivo, um meio hábil JAY, M. The dialectical imagination. Litlle
metodologias de investigação, e com- para se desenvolver uma futura Brown and Co: Boston, 1973.
LÖWY, M. Marxismo e Positivismo na So-
plementares de modo a respeitar epistemologia pluralista e conciliató-
ciologia do Conhecimento. São Paulo:
especificidades de sujeitos, objetos, ria? Estaria em Max Weber a chave Busca Vida, 1987.
métodos e áreas de conhecimento.4 metodológica para se instituir tal MANNHEIN, K. Ideologia e Utopia. Rio de
Nessa linha de conciliação há que epistemologia que deve atender a Janeiro: Zahar Editores, 1976.
se dar espaço a Robert Crease, em pluralidade do mundo e simultanea- MORSE, R. Meu Amigo Sérgio. In: Revis-
texto de 1993. Para este filósofo nor- mente seus modos de compreensão? ta do Brasil, n.6 (número especial dedi-
te-americano, a melhor analogia da Não faltou ao conceito do “homem cado a Sérgio Buarque de Holanda),
ciência acontece com a arte dramá- cordial” uma abordagem dramatiza- 1987, p.129-130.
tica, já que ambas atividades consti- da para ser melhor compreedido? Não POPPER, K. e LORENZ, K. L’Avenir est
tuem interação com o mundo da vida, se situaria neste encaminhamento a Ouvert. Paris: Flamarion, 1990.
SOKAL, A. e BRICMONT, J. Imposturas
performance e audiência: “Tal como lição aprendida do comerciante
intelectuais. Rio de Janeiro: Record,
o mundo dramatizado muda de acor- napolitano por Max Weber? 1999.
do com a avaliação crítica das TURNER, B.S. Social Theory. Oxford:
performances, apelando para novos Blackwell, 1996.
textos e novos desempenhos, assim WEBER, M. Economia e Sociedade - vol.
o mundo científico cambia-se pela 1. México: Fondo de Cultura Economica,
avaliação de suas experimentações Notas 1944.
performaticas, o que transcorre por 1
A menção a Adorno se faz como referên- WILSON, E. O. A unidade do conhecimen-
meio de novas teorias e novas cia ao texto “Thesen zur Kunstsoziologie”, to – Consiliência. Rio de Janeiro:
performances”. (Crease, 1993, p.60) publicado em 1967. Campus, 1999.
Por suposto, a dramatização é
2
As menções a Popper concernem ao capí-
tulo em que ele é autor sob a denominação
uma adequada estrutura de signifi-
“Monde des Objets, Monde de Propositions:
cados para hoje se compreender entre les Deux, le Moi”.
Max Weber, tanto quanto as oscila- 3
Graham, p.102-109
ções cíclicas da disputa entre cienti- 4
Compare-se com Da Costa, 1997, p.41-56 * Lamartine P. DaCosta é Doutor em
ficistas e relativistas. E a tríade que 5
O levantamento das tríades aqui citadas é Filosofia e Professor da Universida-
lhe dá sentido — vida, performance encontrado em Da Costa, 1997, p.232 de Gama Filho/RJ.

29
LOGOS

O futuro posto em questão


na obra de Stefan Zweig
Cleia Schiavo Weyrauch*

RESUMO
O humanismo e o pacifismo, propostas
iluministas, colocaram a história sob o
crivo da suspeita. Entre os séculos XIX e
O s acontecimentos históri-
cos que marcaram o sécu-
lo XX, culminando com a
eclosão das duas Grandes Guerras,
colocaram sob suspeita a realização
dade marcada por novas relações
inter-humanas, conseqüência do de-
senvolvimento da ciência em todos
os planos. Para ele, a sociedade,
após ultrapassar os estados teológi-
XX, as concepções de futuro, contidas do humanismo e do pacifismo, das co e metafísico, alcançaria o estado
no evangelho do progresso de Comte e mais diversas formas. No campo da positivo da razão, e mesmo a religião
na pregação do pacifismo do escritor aus-
ciência e da arte, a positividade do da humanidade não possuiria a di-
tríaco Stefan Zweig, foram abaladas pela
futuro apresentava-se com a funda- mensão teológica.
emergência do nazi-fascismo. O escritor
encontrou na América um novo para- ção de novas ciências e o surgimento Stefan Zweig [1881-1942] é um
digma democrático. das vanguardas artístico-culturais. dos autores que coloca em discus-
Palavras-chave: Brasil; futuro; história. Augusto Comte, o fundador da socio- são o conceito de futuro como certe-
logia no século XIX, acreditou na evo- za de justiça social. O otimismo de
SUMMARY lução da sociedade, enquanto Stefan juventude redefine-se diante do avan-
Humanism and pacifism, both illuminist Zweig, baseado nas suas experiên- ço do nazismo. As obras autobiográ-
proposals, have placed history on cias de juventude, afirmava que ficas, O mundo que eu vi e Brasil,
suspicion. Between the 19 th and 20 th “cada década seria uma ante-sala de país do futuro, que o tornaram céle-
centuries, the conceptions of future outra ainda melhor”. De um modo bre no Brasil, dizem dos seus dile-
contained in Comte’s Gospel of progress
geral, as idéias-força de evolução e mas quanto ao futuro da democracia
and in the pacifism preaching of the
Austrian writer Stefan Zweig were
progresso contaminaram o século social na Europa e da possibilidade
shaken by nazi-fascism arrival. The writer XIX e levaram os homens em geral a da experiência social brasileira vir a
found in America a new democratic acreditar que no século XX o futuro ocupar um lugar paradigmático. “O
paradigm. proposto por essas idéias se concre- século XIX com seu idealismo liberal
Keywords: Brazil; future; history. tizaria. Também no campo da religião, achava-se honestamente convencido
a idéia de evolução marcou tanto o de estar no caminho reto e infalível
RESUMEN kardecismo quanto a religião da hu- para o melhor dos mundos.” (...) “Já
El humanismo y el pacifismo, propuestas manidade proposta por Augusto se acreditava mais no progresso do
iluministas, han puesto la historia bajo Comte. Na prática, a sociologia, nas- que na Bíblia, e esse evangelho pa-
sospecha. Entre los siglo XIX y XX, las cida sob a égide do progresso e da recia irrefutavelmente comprovado
concepciones de futuro, contenidas en
racionalidade científica, pretendeu tra- pelos novos milagres da ciência e da
el evangelio del progreso de Comte y en
la pregación del pacifismo del escritor
duzir o que já haviam afirmado os fi- tecnologia.” (Zweig, 1999, p.17)
austriaco Stefan Zweig, fueron conmo- lósofos iluministas sobre o poder De fato, a idéia da aderência da
vidas por la emergencia del nazi-fascis- transformador da razão. racionalidade científica à evolução so-
mo. El escritor encontró en América un No século XIX, a força do futuro cial da humanidade, proclamada por
nuevo paradigma democrático. empobrece a noção de amanhã e in- Augusto Comte, circulava entre os
Palabras-clave: Brasil; futuro; historia. corpora uma nova dimensão filosófi- intelectuais na Europa, que a enten-
ca de traço prometeico. Os cientis- diam como segurança social, respei-
tas do século XIX, sociólogos ou não, to à individualidade, conquistas
apostaram na emergência de uma gradativas do projeto democrático e
qualidade de sociedade quando anun- eficazes intervenções urbanas. Cer-
ciaram sua fé nos novos tempos de tamente a idéia de positividade esta-
racionalidade social. Para Augusto va publicamente posta ao lado das
Comte, o futuro revelaria uma socie- intervenções nos campos da histó-

30
LOGOS

ria, da política, entre outros. Se para patrimônio capaz de servir de base a europeus humanistas, Zweig deixara
Comte a cidade era o lugar da Pátria, projetos nacionais suicidas em vigor a Europa por motivos políticos.
para Zweig era o da cultura e da histó- nos anos 1930-1940, na Europa.2 Ao contrário de Wilhelm Reich,
ria. A exemplo, a descrição que Zweig Do ponto de vista do cotidiano, o Herbert Marcuse, Max Hokheimer,
faz de Viena em O mundo que eu vi discurso sobre a dimensão democrá- Berthold Brecht, Thomas Mann, que
deixa ver o entusiasmo do autor por tica da convivialidade social brasilei- se dirigiram à América do Norte,
um projeto de cidade que o nazismo ra contrastava com a vivência de Zweig escolheu o Brasil para viver e
destruiu. Como grande universo de Zweig na Europa. Na introdução de aqui se suicidou em 1942. Membro
interlocução da arte e da cultura, a ci- Brasil, país do futuro, uma pergunta fervoroso da cultura sentimental
dade de Viena projetou uma experiên- anuncia a procura de um novo vienense, Zweig não conseguiu con-
cia de nivelamento, em que os judeus paradigma: “como poderá conseguir- viver com a interrupção do avanço das
sobressaíram como agentes univer- se no mundo viverem os entes hu- idéias democráticas na Europa e
sais. Mas, o que fez Zweig pensar que manos pacificamente uns ao lado dos morreu, como tudo indica, de “dor
o Rio de Janeiro poderia ser o modelo outros, não obstante todas as dife- política”, vendo o fortalecimento do
de cidade do futuro? renças de raças, classes, pigmentos, nazismo no continente de origem.
religiões e opiniões?” (1941, p.14-15) Com relação à sua morte, outras hi-
Quem foi Stefan Zweig? Ele julgava que o Brasil havia resolvi- póteses apresentam-se, embora sem
Stefan Zweig, famoso escritor do essa “complicada” situação. E a força da primeira.
austríaco, defensor do humanismo continuava: “com a maior admiração,
pacifista, conviveu em Viena com os verifica-se que todas as raças [exis- A conjuntura européia
mais ilustres homens de seu tempo.1 tentes no Brasil] vivem em perfeito Embora a história da Áustria tives-
Estudou em Paris, Berlim e, em acordo entre si”. (p.15) Zweig, se sido marcada por peculiaridades nos
1934, deixou Salzburg, fugindo do na- influenciado pela brutalidade do na- campos da cultura e da política, foi dela
zismo em direção a Londres, de onde zismo, não percebeu os limites da to- que Hitler retirou formas de ação anti-
vem para o Brasil, em 1940. lerância e os atritos político-sociais semitas.3 Karl Lueger e Georg Von
A partir de 1932, inicia correspon- existentes no Brasil entre raças, clas- Schonerer tornaram-se, segundo Carl
dência com seu editor brasileiro e, em ses e nacionalidades. A extensão da Schorske, fontes de inspiração do
1936, visita o país pela primeira vez, violência do processo político alemão Führer, e a ascensão desses líderes na
quando declara a um repórter que havia deixado marcas profundas em cena política austríaca marcou o início
gostaria de escrever um livro sobre o sua personalidade e, como outros de uma era de obscurantismo.
Brasil. Em 1940, transfere-se defini-
tivamente para o Brasil, dando pros-
seguimento a pesquisas que culmi-
nariam com a publicação, em 1941,
de Brasil, país do futuro.
Este livro foi, sem sombra de dú-
vida, escrito por um auto-exilado eu-
ropeu sob o impacto da experiência
tropical americana e do malogro da
experiência liberal na Europa. Consi-
derado por Afrânio Peixoto um dos
mais favorecidos “retratos do Brasil”,
a obra revelou a brasileiros e estran-
geiros o amor de um austríaco que,
através da poética de sua narrativa,
encurtou as distâncias entre os mun-
dos europeu e americano. A narrativa
diz do prazer do encontro com a natu-
reza na América que Zweig, sem ces-
sar, celebra. Da questão político-so-
cial fala com encanto, contrapondo o
modelo alemão e o brasileiro, julgan-
do que este possa constituir um outro
paradigma humanístico diante da fa-
lência do modelo político europeu.
A (suposta) tolerância que marca-
va a vida social brasileira e o tamanho
do território predestinavam o país a ser
um dos mais importantes no futuro. Seu
índice de humanidade constituía-se em

31
LOGOS

Escritor humanista, Stefan Zweig dessas idéias tinham pressa em o Brasil, proposto por Stefan Zweig,
conviveu na Europa pós-Tratado de afastar os demônios do despotismo, incluía a miscigenação inimaginada
Versalhes com o contraste entre a do racismo e do obscurantismo do pelos regimes nazifascistas, sobre-
modernidade técnica e o arcaísmo interior da sociedade. tudo o alemão.
sócio-político, com o debate sócio- Mas, a partir da década de 1920,
cultural e com o exacerbamento de esse eufórico projeto começou a dar No novo paradigma,
temas como nação e povo, conduzi- sinais de fragilidade diante tanto dos o lugar da cidade-capital
dos por idéias xenófobas. Para além discursos de exaltação nacional quan- Em Brasil, país do futuro, a
desses contrastes, presenciou uma to da ideologia de conflito racial. À dialética de complementaridade pro-
grave crise econômica, potencia- universalidade, propõe-se a nacionali- posta, com ênfase no universo só-
lizada pela crise internacional, cujas dade, à paz propõe-se a guerra, à au- cio-político, apóia-se na convergência
conseqüências sociais foram drásti- tonomia dos homens contrapõe-se a essencial expressa na relação entre
cas para o continente europeu. O sujeição a um chefe inquestionável, à natureza e cultura. No caso do relato
marco da paz de Versalhes, conheci- razão humanista opõe-se o fanatismo. sobre a cidade do Rio de Janeiro,
da pela sua brutalidade em relação Com a ascensão do nazismo, ins- associa-se a essa essencialidade os
aos alemães, proporcionou aos adep- tala-se a intolerância e, a partir dela, conceitos de Oriente e Ocidente para
tos da direita e extrema direita os ar- uma política radical e sistemática de dizer da possibilidade de um padrão
gumentos para o fortalecimento, na exclusão que via o projeto inclusivo de cidade que ultrapassa aqueles dis-
sua dimensão perversa, das idéias da modernidade como expressão de cutidos pela vanguarda européia.
românticas de povo e de nação. Como decadência e aniquilação de uma Para um europeu da primeira metade
expressões do espírito alemão, germanidade autêntica. Hitler, a pre- do século XX, a modernidade de um
ambas as idéias abrigaram místicas texto da defesa desta identidade, afir- país era medida pela qualidade mo-
interpretações que exigiam de quem mou, tanto no Mein Kamp,4 em dis- derna de sua capital, pela racio-
as aderisse um comprometimento cursos políticos proferidos, como em nalidade e planejamento de seu terri-
fanático semelhante à lealdade im- suas conversações privadas, 5 ser tório. Na realidade, a afirmação de
posta pelos nacional-socialistas (na necessário religar o povo alemão a uma centralidade política dependia da
Itália, um regime idêntico se instala- partir dos laços históricos sangue/ imagem de poder de uma cidade so-
ra em 1922, ancorando-se na remota solo, combatendo, sempre que ne- bre o território nacional a ela vincula-
história de Roma). cessário, os inimigos dessa concep- do. No caso de Berlim, Hitler, ao as-
Essa ideologia, marcada pela de- ção de identidade. Para ele, a causa sumir o poder em 1933, resolve torná-
fesa dos confrontos radicais, previa do “desregramento da sociedade ale- la cosmopolita e monumental, acima
o aniquilamento fosse de uma clas- mã”6 estava na tolerância ao ideário de Paris e Viena, julgando-a inadequa-
se, geração ou raça. A nova socieda- democrático, inimigo do genuíno es- da para a capital de um Reich que
de alemã deveria sair dos escombros pírito alemão. deveria ser modelo do mundo. Em
de uma luta redentora da raça ariana, Na prática, a política de exclu- conversas registradas por Albert
ameaçada, a partir de 1918, por uma são voltou-se, de fato, contra os ju- Speer, Hitler dizia, ao tomar o poder,
suposta conspiração de socialistas, deus: impedidos de existirem como que “Berlim não é mais do que um
estrangeiros e, sobretudo, de judeus. cidadãos alemães, politicamente di- irregular amontoado de edificações”
Ao contrário do conceito de biofilia ferentes da concepção nazista vigen- (Speer, 1971, p.76), era necessário
defendido por Erich Fromm, aposta- te, como etnia, ou mesmo como torná-la regular e simétrica.
va-se à época na necrofilia, ignoran- indivíduos, quase seis milhões de- Para Stefan Zweig, a cidade do Rio
do-se as conquistas que os democra- les foram exterminados, configuran- de Janeiro, onde viveu mais tempo,
tas europeus e alemães haviam lo- do uma experiência sem preceden- expressava o novo paradigma de ci-
grado alcançar no decorrer dos sécu- te na história. vilização pelo leque de contrastes
los XIX e XX. O clima em que nave- Como Thomas Mann, Bertold complementares que conciliava.
gava a democracia supunha que, em Brecht, Pollock, Max Horkheimer, Além de acentuar que a vida social
breve espaço de tempo, os homens Herbert Marcuse, entre outros, no Rio de Janeiro tolerava todos os
ingressariam na plena cidadania. Fic- Zweig, diante da derrota do projeto contrastes, aplaudia a cidade porque
ção ou não, essa idéia, talvez um inclusivo de democracia na Áustria e não era acometida do “delírio geomé-
conceito-limite, alimentou o projeto na Alemanha, deixa a Europa e pro- trico das avenidas retas, dos nítidos
democrático da modernidade e sen- cura recriar no exílio um novo cruzamentos, da horrenda idéia da
sibilizou levas de homens que, pe- paradigma humanista. excessiva regularidade das modernas
las vias do liberal e do marxo- A urgência da construção do cidades grandes, que sacrificam a
iluminismo, lutaram pela insti- Reich dos mil anos afirmou o concei- simetria da linha e a monotonia das
tucionalização dos seus direitos. Nas to de modernidade conservadora dos formas, precisamente o que sempre
idéias que circulavam na sociedade, nazistas, cujo objetivo era estabele- é o incomparável de toda a cidade:
encontravam-se temas como igual- cer uma ordem inconciliável com as suas surpresas, seus caprichos e
dade social, tolerância, combate ao conquistas decorrentes do iluminis- suas angulosidades e sobretudo seus
despotismo e aperfeiçoamento mo- mo político. O conceito de futuro con- contrastes – esses contrastes entre
ral e social. Na prática, os adeptos tido na narrativa de esperanças para o velho e o novo, entre cidade e natu-

32
LOGOS

reza, entre rico e pobre, entre o traba- apenas o grau de superioridade do Schonerer, industrial, organizou os nacionalis-
lhar e o flanar, contrastes que aqui se espírito humanístico seria capaz de tas radicais em 1882 e implementou uma polí-
gozam em sua harmonia sem par”. neutralizar os ódios entre etnias, clas- tica anti-semita extremada.
(Zweig, 1941, p.232) ses, gerações e nacionalidades.
4
HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo:
Mestre Jou, 1962.
Seu relato sobre a cidade do Rio Para além de seu preconceito ini- 5
Essa afirmação foi retirada de Hitler Secret
de Janeiro refere-se a um novo que cial, descrito na introdução do livro, Conversations, cujo conteúdo define, pelos
se construía a partir de uma dimen- Zweig confessa com todas as letras: documentos de intimidade, a personalidade
são inédita de História, sem a violên- “Eu tinha sobre o Brasil a idéia pre- e as idéias radicais conservadoras de Adolf
cia advinda dos expurgos da vontade tensiosa que sobre ele tem o europeu Hitler.
de um guia, como era o führer ale- e o norte-americano e tenho agora di- 6
No segundo capítulo do livro Minha Luta,
mão. Para ele, na cidade do Rio de ficuldade de retorná-la”. (1941, p.2) Hitler registra suas hostilidades tanto em
janeiro, todos se misturavam, conju- Mas, esse austríaco “pretensioso” foi relação à social-democracia quanto ao socia-
gando-se o novo e o velho, o antigo e capaz de escrever um livro que, em lismo: “O que mais me afastava da social-
o tradicional, Oriente e Ocidente. tempos atuais, serve de reflexão para democracia era sua posição adversária em
Com olhos não viciados pela o estudo das perspectivas do Brasil relação ao movimento pela conservação do
espírito germânico”. (p.44) Identifica como
modernidade urbanística, além de em relação ao futuro. De fato, Stefan
os responsáveis pela degradação das almas
celebrar a relação natureza-cidade, Zweig já amava o Brasil antes mes- germânicas os franceses e judeus.
Zweig via beleza no que se poderia mo de conhecê-lo. De volta à Europa
chamar relação Oriente-Ocidente, tão de sua primeira viagem em 1936, es-
depreciada pelos modernos. Talvez creveu Pequena viagem ao Brasil, que
cansado dos megaprojetos, encon- publicou em vários jornais do mundo. Bibliografia
trasse na cidade do Rio de Janeiro a Segundo Alberto Dines, seu maior bió- DINES, Alberto. Morte no paraíso: a tragé-
beleza da aproximação ideal e neces- grafo no Brasil à época: “Quem co- dia de Stefan Zweig. Rio de Janeiro: Nova
sária entre Natureza e Cultura, Orien- nhece o Brasil de hoje lançou um olhar Fronteira, 1981.
te e Ocidente, tão distante das dis- para o futuro”. FROMM, Erich. O coração do Homem. Rio
cussões da vanguarda européia. “Por Deixo como homenagem a Stefan de Janeiro: Zahar, 1974.
toda a parte a natureza é exuberante, Zweig (1941, p.302) a sua frase GAY, Peter. A cultura de Weimar. Rio de Ja-
(...) e em plena natureza se acha essa dedicada ao Brasil e à cidade do Rio neiro: Paz e Terra, 1978.
KERSHAW, Ian. Hitler, um perfil do poder.
mesma cidade. E uma floresta de de Janeiro:
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
pedra com seus arranha-céus e pe- “Despedida LINDHOLM, Charles. Carisma. Rio de Janei-
quenos palácios, com suas avenidas Quem visita o Brasil, não gosta de ro: Jorge Zahar Editor, 1993.
e praças e ruas estreitas de aspecto o deixar. De toda a parte deseja voltar LOON, Hendrich Van. Tolerância. Rio de Ja-
oriental, com suas choças de negros, para ele. Beleza é coisa rara e beleza neiro: Companhia Editora Nacional, 1942.
e gigantescos ministérios, com suas perfeita é quase um sonho. O Rio, essa RICHARD, Lionel. A República de Weimar.
praias de banho e seus cassinos.” cidade soberba, torna-o realidade nas São Paulo: Cia das Letras, 1988.
(Zweig, 1941, p.190) horas mais tristes. Não há cidade mais SCHOLEM, Gerschom. A mísitica judaica.
O Rio de Janeiro aparece, então, encantadora na terra.” São Paulo: Perspectiva, 1972.
como a cidade que se confundia SCHORSKE, Carl. Vienna fin-de-siècle: políti-
sem parar com a natureza, um belo ca e cultura. São Paulo: Cia das Letras,
1988.
artifício complementar. Em verdade,
SHIRE, William. The Rise and Fall of the III
Zweig entendia a cidade como um Reich. USA: Simom and Schuster nc,
monumento incrustado na Baía da Notas 1960.
Guanabara e nas florestas que a cer- SPEER, Albert. Por dentro do III Reich: os
1
Este círculo de intelectuais incluía Schnitzler,
cavam por todos os lados. Influen- anos da glória. Rio de Janeiro: Artenova,
Hofmannsthal, Herman Hesse, Max Brod,
ciado, similar à maioria dos ale- Thomas e Heinrich Mann, Walter Rathenau, 1971.
mães, pela “união com a natureza”, entre outros. TOLAND, John. Um. New York: Ballantine
encontrou-a plena nos trópicos, quer 2
Entre a primeira e a segunda e definitiva Books, 1977.
na floresta e seus recortes, quer nas vinda de Stefan Zweig ao Brasil, implantou- TREVOR-ROPER, H.R. Hitler’s Secret
interfaces com o mundo civilizado se a Ditadura de Vargas, período denomina- Conversations (1941-1944). A signet book.
americano. do de Estado Novo. Nesse período arbitrá- Published by the New American Library.
ZWEIG, Stefan. Brasil, país do futuro. Rio de
No Brasil, vivia-se a possibilidade rio, algumas das garantias democráticas
foram suspensas, embora a maioria dos jor- Janeiro: Guanabara, 1941.
de uma nova convivência democráti-
ca, baseada na pluralidade étnico- nais não enfatizassem o que os porões da
tortura já registravam.
social, ponto de partida da revisão dos 3
Os movimentos nacionalistas na Áustria
conceitos de cultura e civilização,
neutralizaram, a partir de meados do século * Cleia Schiavo Weyrauch é Dou-
entendidos até então pelo registro da XX, o avanço das idéias austroliberais tora em Comunicação Social pela
razão instrumental. E diz: “já não multinacionalistas. Karl Lueger e Georg Von ECO/UFRJ, Professora do Departa-
estamos dispostos a simplesmente Schonerer foram expressões desses movi- mento de Ciências Sociais da UERJ
equipará-los à idéia de organização e mentos. Lueger, cristão anti-semita, tornou- e Diretora do Departamento Cul-
conforto” (1941, p.19), sugerindo que se prefeito de Viena no início do século. tural da UERJ.

33
LOGOS

Émile Durkheim e o pensamento


sociológico francês no século XIX
Marcos Medeiros*

RESUMO
O século XIX representa para a teoria so-
cial um momento de grande efervescência
do debate crítico. As mudanças institu-
A ntes de comentar propria-
mente a importância do pen-
samento social de Émile
Durkheim no contexto da produção
filosófica e científica do século XIX,
cas e sociais; e, por outro, o indus-
trialismo, responsável pelos progres-
sos técnicos, que representaram uma
excepcional expansão das atividades
econômicas e fabris, gerando uma
cionais marcaram o período, exigindo do é conveniente mencionar que o uso nova divisão do trabalho e uma ex-
pensamento científico uma teoria para os do termo “social” ainda era relativa- traordinária acumulação de capital, o
fenômenos sociais. Foi o momento do es- mente recente no final daquele sé- que resultou em nova estratificação
tabelecimento das ciências humanas como
culo. Grandes correntes de pensa- social, favorecendo a formação das
disciplinas científicas. Este texto procura
mento – o empirismo e a economia classes capitalistas e proletárias.
oferecer uma visão resumida da trajetória
de Émile Durkheim na construção do pen- clássica inglesa, o positivismo e o Nascido em 1858, dez anos mais
samento sociológico francês. socialismo francês, o idealismo ale- tarde do início das rebeliões que mar-
Palavras-chave: positivismo; sociologia; mão – pontificavam como os recur- caram o período 1848-1851, Durkheim
teoria e método. sos teóricos mais disponíveis para pertence a uma geração de pensado-
a explicação da realidade. Do mes- res que viveu um momento histórico
SUMMARY mo modo, ainda não havia uma clara de relativa paz no interior no continen-
The 19th century represents for the social distinção entre os diversos ramos das te europeu, pelo menos até a eclosão
theory a moment of great effervescence “ciências sociais”. A sociologia, dis- do conflito de 1914. Este período ca-
of the critical debate. The institutional ciplina científica de quem Durkheim racterizou-se pelas disputas decorren-
changes marked the period, demanding a
é um dos fundadores, não adquirira tes da expansão do imperialismo co-
theory from the scientific thought for a so-
cial phenomenons. It was the moment of
estatuto e era lecionada nos cursos lonial europeu, que culminou com a
the establishment of the human sciences de “humanidades”, nas cadeiras ou Conferência de Berlim, para a parti-
as scientific disciplines. This paper tries to de filosofia ou de pedagogia. Ou, en- lha das áreas coloniais, em 1885. A
offer a summarized vision of Émile tão, era estudada dentro do esque- luta das idéias envolvendo conserva-
Durkheim’s trajectory in the building of the ma das “grandes sínteses” que ca- dores, reformistas e revolucionários
French sociological thought. racterizou a teoria social desde o agitava a Europa em duas frentes: na
Keywords: positivism; sociology; theory século XVIII. O mundo – no caso a política e na universidade. Embora a
and method. Europa – permanecia perplexo e em opção de Durkheim tenha sido pelo
movimento com as transformações debate no âmbito da universidade, ele
RESUMEN decorrentes do que se denominou vai dialogar com quase todas as cor-
El siglo XIX representa para la teoría soci-
Revolução Industrial. rentes de pensamento, especialmen-
al un momento de gran efervescencia del
debate crítico. Los cambios institucionales
A propósito, como todos sabem, te com o positivismo comtiano e o
marcaron el periodo y exigen del pensa- foram as “revoluções sociais” do sé- socialismo na versão de Saint-Simon.
miento científico una teoría para los culo XVIII e a Revolução Industrial Tais correntes de pensamento aspi-
fenómenos sociales. Era el momento del que criaram o clima intelectual propí- ravam tanto a explicar as mudanças
estabelecimento de las ciencias humanas cio ao aprofundamento das questões ocorridas na organização social,
como disciplinas científicas. Este texto in- teóricas e metodológicas para o es- quanto a fazer do conhecimento cien-
tenta ofrecer una visión resumida de la tabelecimento das disciplinas cientí- tífico um instrumento de ação. Comte
trayectoria de Émile Durkheim en la ficas que vieram a se consolidar no afirma que “só a filosofia positiva
construcción del pensamiento sociológi- decorrer do século XIX: por um lado, pode ser considerada a única base
co francés. as revoluções sociais, responsáveis sólida da reorganização social, que
Palabras-llave: positivismo; sociología;
pelo fim do antigo regime e pelas deve terminar o estado de crise no
teoría e método.
transformações institucionais, políti- qual se encontram, há tanto tempo,

34
LOGOS

as nações civilizadas”. (Comte, 1974, abstrata do espírito, e a ciência, se- outro fato social. Acusa a economia
p.22) Nesse sentido, Durkheim pode gundo Durkheim, estuda aquilo que é; política de ter perdido todos os bene-
ser incluído no elenco de pensadores já a metafísica combina argumentos fícios de seu princípio, permanecen-
preocupados com a reforma social e tendo em vista o que deve ser, como do uma ciência abstrata e dedutiva;
o consenso institucional, dada a im- por exemplo, a questão de saber se o sugere que os economistas confun-
portância que atribuía às instituições, homem é livre ou não. diram a palavra natural com a pala-
como é caso da defesa do regime A esse artificialismo sobre a ori- vra racional, pois “esse homem em
corporativo na divisão do trabalho e, gem e a natureza da vida social geral, esse egoísta sistemático de
especialmente, à educação como ele- Durkheim vai contrapor um argu- que ela (a economia) nos fala é um
mento de adaptação ao meio social. mento, atribuído a Aristóteles, que mero ser de razão. O homem real,
A educação constitui-se, todavia, sugere ser a sociedade um fato da que conhecemos e que somos, apre-
como elemento integrador, já que con- natureza. Durkheim vai atribuir tam- senta outro tipo de complexidade:
siste num esforço contínuo para im- bém um crédito a dois pensadores pertence a um tempo e a um país,
por à criança maneiras de ver, de do século XVIII, Montesquieu e tem uma família, uma cidade, uma
sentir e de agir, às quais ela não che- Condorcet, que declararam que a pátria, um credo religioso e político”.
garia espontaneamente. Outros con- sociedade está submetida a leis ne- (Durkheim, 1974, p.52)
ceitos durkheimianos podem ser cessárias, derivadas da natureza das Não tem sentido, dizia Durkheim,
listados numa nomenclatura que pro- coisas do mundo. No entanto, as a existência da sociedade fora dos
cura traduzir a autonomia da socie- conseqüências desse princípio não indivíduos, que lhe servem de subs-
dade como entidade superior a uma alcançaram a perseverança que o trato, porém ela é algo que transcen-
mera coleção de indivíduos. pensamento científico exige. de a vida individual, não deve ser vis-
A contribuição dos economistas, ta apenas como uma imagem am-
Diálogos durkheimianos que enfatizaram ser as leis sociais pliada da vida individual. Desse
Na trajetória para o estabelecimen- tão necessárias quanto as leis físi- modo, a moral, as regras jurídicas,
to da sociologia como disciplina cien- cas, Durkheim vai aceitá-la com se- os costumes seriam impensáveis se
tífica, Durkheim faz, ao longo de sua veras reservas porque essa senten- o homem não fosse capaz de contra-
vida intelectual e de pesquisador, uma ça, avançada do ponto de vista cien- ir hábitos. Tais hábitos, antes de ema-
ampla revisão epistemológica de tudo tífico para o século XIX, tinha como narem da consciência individual, se-
o que se escreveu de relevante so- pressuposto o indivíduo. A economia riam produto da consciência coletiva.
bre as origens e a natureza das soci- clássica proclamava que a concorrên- Por esta razão, acrescenta Durkheim,
edades. Ele vai observar que “quase cia equilibrava o preço das mercado- Comte situa o ser social no alto de
todos esses teóricos da política viam rias; que eram inúteis as leis emana- uma hierarquia que confere à ordem
na sociedade uma obra humana, um das do Estado para regular o merca- social a prevalência sobre os outros
fruto da arte e da reflexão. Segundo do, pois acima dessas “leis civis” reinos da natureza.
eles, os homens passaram a viver estavam as leis naturais que regiam
juntos porque acharam que seria útil as relações de troca entre indivíduos O positivismo
e bom; foi um artifício imaginado por e entre nações. Com uma curiosa Com Augusto Comte (1798-1857),
eles para melhorar um pouco sua capacidade de abstração, os econo- o diálogo é mais intenso, na medida
condição”. (Durkheim, 1974, p.48) A mistas afirmavam que a única reali- em que com este autor a sociologia
sociedade seria uma construção de dade tangível para o observador era obtém o status de ciência. Esta dis-
nossa imaginação, algo como uma o indivíduo, medida de todas as coi- ciplina, segundo Comte, deveria es-
máquina, que projetada no cérebro de sas, o qual a ciência devia eleger tar voltada para a investigação rigo-
seu criador, teria suas partes reuni- como problema, interrogando quais rosa dos fatos, com a pretensão de
das de acordo com o projeto conce- as condutas individuais mais apropria- alcançar a mesma objetividade das
bido; mesmo sendo resultado de um das a serem adotadas diante das prin- ciências naturais. Reconhecido por
contrato, como queria Rousseau, ou cipais circunstâncias da vida econô- Durkheim como fundador da sociolo-
de uma “guerra de todos contra to- mica. Nesse raciocínio estava apli- gia, Comte avança com proposições
dos”, como pensava Hobbes, a so- cada uma noção reducionista de que no sentido de estabelecer objeto e
ciedade permanecia distante da ema- a vida social estava subsumida pela método para a ciência social, quais
nação coletiva. Sua configuração po- vida econômica. sejam: uma realidade concreta a co-
dia muito bem ser a projeção dos Durkheim, ao contrário, vai afirmar nhecer — as sociedades — e o mé-
desejos pessoais dos autores numa que a vida social abrange todos os todo das ciências positivas para a
estranha combinação do meca- aspectos humanos, quer sejam eco- investigação dos fenômenos sociais.
nicismo com a metafísica. Mecani- nômicos, quer sejam políticos. Cha- Para Comte, a sociedade é algo tão
cista porque os autores da socieda- ma a atenção para o fato de o con- real quanto um organismo vivo. Logo,
de poderiam destruí-la como se des- ceito de indivíduo ser inadequado para deveria ser encarada como objeto de
trói um relógio, e seria um contra-sen- a explicação da sociedade; enfim, pura observação. O estado positivo
so fundar uma ciência que destruís- que o todo não é um resultado mecâ- caracteriza-se pela subordinação da
se seu próprio objeto; metafísica por- nico da soma das partes. E que um imaginação e da argumentação à
que tratava-se de uma construção fato social só pode ser explicado por observação; cada proposição enun-

35
LOGOS

ciada de maneira positiva deve tivos. A matemática, por exemplo, Spencer (1820-1903) uma contribui-
corresponder a um fato, seja particu- apresentava o nível mais geral e ção teórica importante na definição
lar, seja universal. (Comte, 1973) abrangente no estudo dos fenômenos do objeto da sociologia quando este
Essa exterioridade na relação en- naturais. Para Comte, “o caráter fun- autor “faz das sociedades, não da
tre observador e sociedade será um damental da filosofia positiva é tomar humanidade, o objeto da ciência”.
elemento central utilizado por Durkheim todos os fenômenos como sujeitos a (1973, p.399) Isto representa um
na futura definição de fato social. Mas leis naturais invariáveis, cuja desco- pretenso afastamento de uma visão
discordará de Comte no que diz respei- berta precisa e cuja redução ao me- que procurava assegurar a simetria
to à definição do objeto da sociologia, nor número possível constituem o do grande sistema filosófico postula-
como discordará da noção de evolu- objetivo de todos os nossos esforços, do por Comte no Curso de Filosofia
cionismo contida no pensamento considerando como absolutamente Positiva. Spencer, inspirando-se na
comtiano, que, em síntese, passava inacessível e vazia de sentido para biologia, formulou a idéia da evolu-
por três estados — todas as ciências nós a investigação das chamadas ção orgânica como sendo o progres-
e o espírito humano como um todo causas, sejam primeiras, sejam fi- so gradual da vida. Fazia analogia
desenvolvem-se seguindo os referi- nais”. (1974, p.13) Diferentemente entre as sociedades e os seres vi-
dos estados: o teológico, o metafísico dos economistas, que defendiam vos; “declara nitidamente que a so-
e o positivo. (Comte, 1974) enfaticamente a autonomia da eco- ciedade é uma espécie de organis-
Comte pensava a sociedade em nomia política, Comte vai destacar mo. Como todo organismo, nasce de
geral. Para ele, sociedade e humani- uma solidariedade necessária entre um germe, evolui durante um tem-
dade eram a mesma coisa. Adver- as ciências sociais, erigindo a socio- po, para chegar, em seguida, à dis-
sário de Lamark, não admitia que o logia como mãe de todas as discipli- solução final”. (apud Durkheim, 1974,
fato da evolução, exclusivamente, nas que estudam os seres em rela- p.57) Spencer tentou aplicar a lei da
possa diferençar os seres a ponto de ção com a sociedade e com a natu- evolução às sociedades humanas,
originar novas espécies. Comte pen- reza. Portanto, a sociologia concebi- julgando perceber uma tendência de
sava os fenômenos sociais em situa- da por Comte compreendia, em lar- evolução da sociedade militar para a
ção de igualdade em todos os luga- ga medida, a psicologia, porque ele sociedade industrial. Liberal, Spencer,
res, variava apenas de intensidade, não aceitava a abordagem dos fenô- baseado no princípio da competição
assim como o desenvolvimento era menos psicológicos individuais inde- livre, da adaptação e da seleção, de-
o mesmo em toda parte, variando pendentemente do desenvolvimento lineou a construção de uma socieda-
apenas em velocidade. Desse modo, da consciência geral da sociedade, de ideal, observando nela um perfei-
os povos “primitivos” e as nações como abrangia também toda a eco- to equilíbrio entre o homem e o meio
civilizadas estariam apenas em es- nomia política, a ética e a filosofia da ambiente. Essa construção pressu-
tágios diferentes de um único proces- história. A estática, representando a punha a abolição daquelas institui-
so de evolução. Durkheim diz que “de ordem, e a dinâmica, representando ções que interferissem na vigência
fato, sua sociologia é muito menos o progresso, eram aspectos funda- das leis naturais, que seriam capa-
um estudo especial dos seres sociais mentais da sociologia comtiana, que zes, sem a intervenção estatal, de
do que uma meditação filosófica so- considerava relacionais as condições conferir equilíbrio às sociedades.
bre a sociabilidade humana em ge- constantes e o progressivo desenvol- Embora aceite a proposição
ral”. (Durkheim, 1974, p.55) Entretan- vimento da sociedade. spenceriana de eleger as sociedades
to, a forma particular do evolu- Tal compreensão abrigava a idéia e não a humanidade como objeto da
cionismo comtiano também aplica- de que as ciências naturais e as ciên- sociologia, a crítica de Durkheim re-
va-se à ciência, que obedecia neces- cias sociais compartilhavam uma ló- cai ainda sobre a generalidade e a
sariamente, em seu processo de evo- gica comum e talvez até mesmo indeterminação do objeto. Para
lução, à periodização dos três esta- idêntica base metodológica. Ora, se Spencer, o que faz a sociedade é a
dos já mencionados. Assim como o a vida social obedecia a leis naturais justaposição dos indivíduos determi-
desenvolvimento social obedecia a necessárias, a sociologia seria con- nada pela cooperação. Destacando a
uma única forma de evolução, do seqüentemente uma ciência natural cooperação como a essência da vida
mesmo modo a ciência apresentava da sociedade. Desse raciocínio resul- social, classifica as sociedades de
essa solução de continuidade: a ma- tou uma importante contribuição do acordo com o tipo de cooperação
temática, a astronomia, a física, a positivismo para a formação da soci- nelas dominante: a espontânea, que
química, a biologia e por fim a socio- ologia: a nova ciência da sociedade se dá sem premeditação quando os
logia, antes concebida por Comte deveria integrar a mesma lógica fins a alcançar possuem caráter pri-
como “física social”, posto que “a totalizante das outras ciências, supe- vado; e a consciente, que é instituída
fundação da física social completa o rando todo o passado construído pela quando se supõem fins de interesse
sistema das ciências naturais”. especulação metafísica. A operação público reconhecidos por todos.
(1974, p.16) A hierarquia das ciências seguinte, realizada por Durkheim, foi Durkheim, porém, aponta as insufi-
resultava de uma classificação que uma ruptura com certo naturalismo, ciências da noção de cooperação para
obedecia uma generalidade decres- instituindo a sociologia como uma explicar a vida social. Inclui Spencer
cente, ou seja, a complexidade mai- ciência social da sociedade. no rol dos metafísicos quando afirma
or ou menor de seus objetos respec- Durkheim identifica em Herbert que “o que se define não é a socie-

36
LOGOS

dade mas a idéia que dela faz (1844-1922), sociólogo e filósofo fran- dosamente à ordem especial dos fe-
Spencer. E se não sente qualquer cês, como “o primeiro a estudar os nômenos que acabava de estudar.
escrúpulo em proceder deste modo fatos sociais com o objetivo de fazer Seu livro constitui o primeiro capítulo
é porque, para ele, a sociedade não ciência”. (1974, p.60) Comentando da sociologia”. (1974, p.60)
passa de realização de uma idéia, Espinas, Durkheim oferece um exce- Em 1885, Durkheim solicita uma
neste caso a idéia de cooperação”. lente exemplo do que viria a eleger licença para estudar na Alemanha
(1973, p.399) como o método sociológico: “Ao in- com Wilhelm Wundt (1832-1920), fi-
Sobre a trajetória em busca de vés de se ater a visões de conjunto lósofo e psicólogo alemão, que se
repassar as principais etapas de de- da sociedade em geral, limitou-se ao notabilizou pelo estudo da psicologia
senvolvimento da sociologia, do de- estudo de um tipo social em particu- dos povos. Cita Albert Schaeffle
talhe e da precisão para a definição lar; depois, no interior desse próprio (1831-1903), economista e filósofo
do objeto e método, e da crítica à tipo, distinguiu classes e espécies, social alemão, que também desen-
generalidade das noções correntes descrevendo-as com cuidado, e é volveu uma concepção orgânica da
sobre o que faz sociedade, Durkheim dessa observação atenta dos fatos sociedade, que fez com as socieda-
menciona ainda seu colega na Uni- que ele induziu algumas leis, cuja des humanas, ou antes, os povos
versidade de Bordéus, Alfred Espinas generalidade, aliás, restringiu cuida- mais avançados da Europa, o que

37
LOGOS

Espinas fez com o estudo da vida vernada por representações que têm “patológico”. Normal, para Durkheim,
animal. Na Alemanha, onde fica até origem na coletividade. Durkheim é a condição relativa a um tipo social
1886, Durkheim estuda psicologia e define desse modo o âmbito dessas considerado numa fase determinada
antropologia; tem acesso à riqueza representações: ao conjunto das cren- de seu desenvolvimento, quando se
do material etnográfico recolhido ças e dos sentimentos comuns à produz na média das sociedades des-
pelos viajantes naturalistas alemães. média dos membros de uma mes- ta espécie, consideradas na fase cor-
De volta à França, quando pronun- ma sociedade, forma um sistema respondente de sua evolução. (1972,
ciou, em 1888, a Aula Inaugural do determinado que tem sua vida própria; p.56) O exemplo célebre que Durkheim
Curso de Ciências Sociais, na Uni- poderemos chamá-lo de consciência escolhe é o crime: embora condená-
versidade de Bordéus, Durkheim já coletiva ou comum. (Durkheim, 1995) vel socialmente e resulte em sanção
havia reunido os elementos de con- Colocando como problema central punitiva, trata-se de um fato normal e
vicção para afirmar que o objeto da de Da Divisão do Trabalho Social, a comum às sociedades, tanto o crime
sociologia não era nem a humanida- questão das relações entre persona- quanto sua punição. Como as socie-
de nem as sociedades, mas os fa- lidade individual e solidariedade soci- dades complexas são baseadas na di-
tos sociais; o método não é aquele al, a grande interrogação é: “como é ferenciação, é necessário que as tare-
que deduz leis gerais, abstratas, mas que, ao mesmo tempo que se torna fas individuais correspondam a seus
a observação e a experimentação in- mais autônomo, o indivíduo depende desejos e aptidões. Como isso nem
direta, em outros termos, o método mais intimamente da sociedade?”. sempre acontece, os valores ficam
comparativo. (1974) Durkheim publi- (p.50) Ou ainda, como pode ser, ao enfraquecidos e a sociedade é
ca, então, sucessivamente: Elemen- mesmo tempo, mais individualista e ameaçada pela desintegração.
tos de Sociologia [1889], Da Divisão mais solidário? Esta indagação resi- Uma preocupação durkheimiana
do Trabalho Social [1893], As Regras de na idéia de que esses dois movi- era com o estado de anomia em que
do Método Sociológico [1895], O mentos, embora pareçam contraditóri- se encontrava a sociedade européia
Suicídio [1897]. Somente em 1912 os, seguem paralelamente. Durkheim na segunda metade do século XIX. O
foi publicado o livro As Formas Ele- atribui os dois movimentos a uma rápido processo de industrialização
mentares da Vida Religiosa. transformação da solidariedade social, desorganizava as formas tradicionais
decorrente do desenvolvimento cada de reprodução social e econômica fun-
vez mais intenso da divisão do traba- dadas na estrutura familiar, ensejando
A sociologia de Durkheim lho. Os pressupostos teóricos que a ausência de solidariedade e regu-
Com a publicação de Da Divisão norteiam a escolha do objeto apon- lação moral para orientar as condutas.
do Trabalho Social, Durkheim estabe- tam já os caminhos metodológicos Convencido de que não era da com-
leceu as bases definitivas da escola que serão seguidos: a classificação petência exclusiva do Estado essa
sociológica francesa, cuja influência dos tipos de solidariedade, distinguin- função, Durkheim enfatiza o papel das
invadiu o século XX, e orientou na do os principais tipos de grupos soci- corporações como mediadoras do re-
França os estruturalismos e, nos ais. A solidariedade mecânica, ou por lacionamento entre o indivíduo e o
EUA, as escolas funcionalistas. É similitude, é a primeira forma de soli- Estado. A proposta era que a corpo-
bem verdade que o pensamento so- dariedade, encontrada nas socieda- ração substituísse a família, como ins-
ciológico francês tem origem diversa des em que os indivíduos partilham tituição capaz de manter a coesão
e muito do seu êxito é devido à influên- os mesmos valores e sentimentos, social. Para Durkheim, a tríade famí-
cia do conjunto de autores que cola- diferindo pouco entre si. São socie- lia, corporação, sindicato é resultante
boraram com L’année Sociologique, dades tradicionais, onde densidade e de um desdobramento histórico so-
periódico orientador do pensamento e volume são menos intensos, e cujas mente explicado pela força que têm
da pesquisa sociológica na França, regras vêm desde sempre. A solida- os homens de se agrupar. Ele diz: “Do
fundado por Durkheim em 1896. O li- riedade orgânica, característica das mesmo modo que a família foi o am-
vro também alcança, entre outros, sociedades complexas, mais volu- biente no seio do qual se elaboraram
dois grandes objetivos: primeiro, ofe- mosas e mais densas, é o segundo a moral e o direito domésticos, a
rece uma resposta aos debatedores tipo de solidariedade social. Para uma corporação é o meio natural no seio
da época, especialmente aos econo- crescente divisão do trabalho, exigida do qual devem se elaborar a moral e o
mistas ortodoxos, sobre a natureza pelo dinamismo fabril, resultando em direito profissionais”. E adiante: “Os
coletiva das instituições sociais; e, mais especialização e na criação de únicos agrupamentos dotados de cer-
segundo, constrói uma teoria social, mais grupos afeitos a novas ativida- ta permanência são os que hoje se
cujo método, embora guarde seme- des, haveria uma forma específica de chamam sindicatos, seja de patrões,
lhança com o método das ciências coesão para fazer face à anomia ge- seja de operários”. (1995, p.35)
naturais, em particular o da biologia, rada pela complexidade da socieda- Durkheim, ainda, sugere que talvez a
será lembrado apenas como metáfo- de moderna, cuja característica é a corporação esteja destinada a se tor-
ra. O primeiro objetivo desdobra-se solidariedade orgânica. nar a base, ou uma das bases essen-
ainda, pois, para Durkheim, o indiví- O conceito de anomia, que supõe ciais da organização política da socie-
duo, a ação individual, não eram uni- a desintegração ou ausência de nor- dade francesa do período.
dades de análise da sociologia. Em- mas sociais, pertence ao conjunto de Intérpretes de Durkheim dividem
bora tangível, a ação individual é go- idéias sobre as noções de “normal” e sua trajetória teórica entre as “obras

38
LOGOS

de juventude” (Giddens, 1994) e as homogêneas, o grupo é mais reduzi- pensamento humano, ele induz que
obras de maturidade. Os antropólo- do e o desenvolvimento das indivi- tais categorias têm origem na religião.
gos apropriam-se de Durkheim, es- dualidades é menor. Nessas circuns- A elaboração de noções tão indispen-
pecialmente de As Formas Elemen- tâncias, essas sociedades melhor se sáveis ao homem, como tempo, es-
tares da Vida Religiosa, como a pro- prestam à observação. A insistência paço, gênero, número, etc., teria de
dução do “último Durkheim”, que no princípio de “simplicidade” e nas ter uma origem coletiva, e não
abandona o terreno árido da divisão noções de “origem” e de “tradicio- metafísica ou individual. Ao estudar
do trabalho e elege o tema da religião nal” já era revelada na classificação determinadas sociedades primitivas,
como a fonte de todo o simbolismo dos tipos de solidariedade gerados ele conclui que a organização do tem-
que permeia a vida social. De fato, pela divisão do trabalho. Assim, tra- po e do espaço, por exemplo, era
Durkheim vai mais longe quando afir- tava-se de partir do mais simples ao exigência oriunda do grupo; o que ex-
ma que “quase todas as grandes ins- mais complexo, acompanhando seu prime a categoria de tempo é um tem-
tituições sociais nasceram da reli- desenvolvimento. Na medida em que po comum ao grupo, é o tempo soci-
gião” (1973, p.526) e sugere numa a “sociedade mais simples” de to- al; envolvem condutas, modos de
nota de pé de página, nessa mesma das as sociedades não existe, pensar e de agir, enfim, eram repre-
página, que “nós sabemos as origens Durkheim cria um mito de origem, que sentações tomadas da vida social.
religiosas do poder”. Mas isto não serve de explicação para seu ponto Para demonstrar sua tese, discu-
quer dizer que haja uma ruptura no de partida. Ele se pergunta “como te as postulações de duas doutrinas
pensamento durkheimiano. Ao con- descobrir o fundo comum da vida re- em voga na época: o empirismo clás-
trário, a coerência das idéias é ligiosa sob a luxuriante vegetação que sico, que segundo Durkheim leva ao
identificada no conjunto da obra. Ade- a recobre” e responde buscando a irracionalismo; e o apriorismo, que
mais, parece ser uma operação te- gênese do fenômeno, “onde tudo é teria uma base de argumentação
merária separar o primeiro do último mais simples”. (1989, p.34) racionalista. A questão central do
Durkheim, já que esta idéia estava Simples ou complexa, a explica- empirismo é a prevalência do indiví-
contida na formulação de seus pri- ção da sociedade é presidida pela duo como portador de experiências
meiros trabalhos. A idéia é: o fato idéia central de origem. Ele mesmo sensíveis. As categorias, portanto,
social é coisa e representação, pos- diz que não se trata de uma origem seriam construídas a partir dessas
sui uma natureza exterior e exerce absoluta, coisa que está destinada experiências individuais. Durkheim
uma irresistível coerção no conjunto à função especulativa da religião. Tal desmonta esse argumento demons-
de uma dada sociedade, conferindo a função especulativa deve despren- trando o caráter social das categorias
coesão indispensável à existência da der-se da religião em decorrência do desde a sua origem. O cerne dessa
sociedade. O estudo do totemismo só desenvolvimento das ciências posi- proposição está no caráter de univer-
veio corroborar as teses iniciais. tivas. Assim, o que anima Durkheim, salidade e de necessidade que as
em se tratando de origem, é aquele categorias possuem. Nessas circuns-
Sociologia e religião núcleo primeiro ou inicial que pode tâncias, apenas a coletividade pode-
Durkheim empenha-se, em As ser observado. É fazendo uso da ria produzir conceitos de tamanha
Formas Elementares da Vida Religio- indução que ele vai procurar aque- abrangência sobre o real. Elas são
sa, que é um estudo do sistema les elementos essenciais comuns ao coletivas e objetivas e se impõem a
totêmico na Austrália, em reafirmar fenômeno em questão. Partindo do nós. O apriorismo, embora seja
sua convicção no primado da socie- mais simples ao mais complexo, ele racionalista, e admita a singularida-
dade sobre todas as coisas histori- elabora uma teoria “genético-estru- de dos fatos, “atribui ao espírito um
camente dadas. Nesse sentido, a li- tural” da sociedade e de sua evolu- certo poder de ir além da experiên-
nha de coerência é mantida no con- ção. E que “no fundo, o conceito de cia”. Durkheim questiona esse “ir
junto de sua obra, afastando as inter- totalidade, o conceito de sociedade além da experiência”, atribuindo o
pretações de um “antes e depois”. e o conceito de divindade são, ao que fato a uma razão “superior” ou “divi-
A proposta é explicar a religião mais parece, apenas aspectos diferentes na” que teria a capacidade de organi-
primitiva conhecida até aquele mo- de uma única e mesma noção”. zar o pensamento humano: “a razão
mento. Condição fundamental para (1973, p.544, N. do A) é o conjunto das categorias funda-
tal empreendimento é que a religião Para explicar porque “a religião é mentais. É a própria autoridade da
se encontre numa sociedade, cuja coisa eminentemente social”, Durkheim sociedade”. (1973, p.516)
organização não seja ultrapassada por lança os princípios de uma teoria socio- Para Durkheim, um “postulado
nenhuma outra em simplicidade; e a lógica do conhecimento. Ele procura essencial da sociologia é que uma
explicação deve ser possível sem o certos elementos (representações instituição humana não poderia repou-
empréstimo de nenhum elemento de fundamentais, mitos, atitudes rituais) sar sobre o erro e a mentira”. (1973,
religião anterior. comuns e permanentes aos sistemas p.508) Teriam de ter base na nature-
Essa busca pela simplicidade é de crenças. Constata que as religiões za das coisas, ser tomadas da vida
muito importante para o entendimen- são comparáveis e que pertencem ao social ou da sociedade como a mais
to do pensamento durkheimiano. Ele mesmo gênero. Apenas são espéci- alta manifestação do reino da nature-
diz que nas sociedades mais simples es diferentes. Ao examinar a ques- za. Como, então, Durkheim vê esse
tudo é comum a todos: elas são mais tão das categorias fundamentais do reino? Para ele, a sociedade está

39
LOGOS

subsumida pelo reino da natureza. Não clã, do totem, que reúne, por meio ação individual, enquanto desenvol-
há antagonismo. Apenas o reino so- de símbolos, indivíduos que acredi- veram-se vigorosas escolas de
cial é mais complexo. A sociedade tam originarem-se de um ancestral macroteorização, enfatizando o pa-
empresta da natureza, enquanto mun- comum. A conclusão é que, se aos pel de estruturas coercitivas na de-
do observável, o fundamento para a olhos da observação sensível tudo terminação do comportamento in-
construção de seus símbolos, de suas é diverso e descontínuo, a religião dividual e coletivo. (Alexander, 1987)
representações coletivas. foi o agente dessa unidade. Para O pêndulo sobre a questão de
Entre as dificuldades de explicar Durkheim foram as crenças religio- como a ordem é constituída, e da
o homem, entre as concepções sas que permitiram ao homem pri- preeminência do indivíduo ou da so-
empirista e racionalista do indivíduo, mitivo substituir o mundo tal como ciedade, vai oscilar de acordo com
entre a preeminência do indivíduo, os sentidos o percebem por um o pensamento médio num contexto
cujas sensações são subjetivas, e a mundo diferente: domesticado, or- científico determinado. A coesão so-
sociedade, cujas instituições são ob- ganizado e dotado de um sentido cial, do ponto de vista de Durkheim,
jetivas, a escolha durkheimiana re- que a lógica humana lhe atribui. Ele independe dos “índices de qualida-
cai sobre o grupo, que comporta uma diz: “a nossa lógica nasceu dessa de humana” de uma dada socieda-
totalidade radical, a despeito da ca- lógica”. (1989, p.295) Mas a religião de; ao contrário, é a intensidade da
pacidade individual de conceber. só desempenhou esse papel porque solidariedade que vai definir o grau
A teoria do totemismo estuda a ela é fruto do pensamento coletivo. de coesão. Instituições sociais apa-
natureza do símbolo: sua configura- O meio usual de o pensamento “pri- recem e desaparecem e a socieda-
ção exterior, sua origem social e a mitivo” classificar as coisas obe- de permanece, mutante.
vasta rede de relações que ele abran- decia necessariamente a uma lógi-
ge enquanto representação do mun- ca que identificava o sentimento a
do. Pelas suas características, o sím- um objeto material: é dessa relação
bolo desempenha o papel de inter- que vai se originar todo o simbolis-
mediário material entre as consciên- mo de que as sociedades são
cias individuais e a consciência co- revestidas. Bibliografia
letiva. Mas essa intermediação não A sociologia parece ter seguido ALEXANDER, Jeffrey C. O novo movimen-
se dá de maneira automática e me- o destino que Durkheim apontou: to teórico. In: Revista Brasileira de Ciênci-
cânica. Ela faz parte de uma equa- “uma ciência só está verdadeira- as Sociais, n.4, vol. 2, 1987.
ção em que estão envolvidos, por mente constituída quando se divi- CASTRO, Anna Maria de; DIAS EDMUNDO,
meio de processos mentais, ele- diu e subdividiu, quando compreen- F. “Aula Inaugural – Curso de Ciências
mentos dos diversos reinos da natu- de um certo número de problemas Sociais”. In: ____. Introdução ao Pensa-
reza. A lógica “primitiva” desenvol- diferentes e solidários uns dos ou- mento Sociológico. Rio de Janeiro: Livra-
veu essa capacidade de reunir ele- tros. É preciso que ela passe do ria Eldorado, 1974.
mentos de reinos diferentes aos ele- estado de homogeneidade confusa COMTE, A. Curso de Filosofia Positiva. São
Paulo: Abril Cultural, Coleção “Os Pensa-
mentos humanos propriamente. pelo qual ela começou para uma
dores”, 1973.
Tal operação resulta de um conhe- heterogeneidade distinta e ordena- DURKHEIM, E. Da divisão do trabalho soci-
cimento do mundo físico que não é da”. (1974, p.63) A idéia de que o al. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
produzido pelo indivíduo, mas pelo simbolismo é a linguagem das so- _____. As regras do método sociológico. São
grupo. Para organizar as sensações ciedades e a idéia de que o fato Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972.
advindas da experiência sensível e social é coisa e representação co- _____. As formas elementares da vida reli-
explicá-las de modo satisfatório, um letiva exerceram um notável fascí- giosa (O sistema totêmico na Austrália).
sistema de classificação, de comple- nio que se seguiu na pesquisa São Paulo: Edições Paulinas, 1989.
xidade peculiar, foi elaborado. Desse sociológica. Durkheim sugere que é _____. As formas elementares da vida reli-
modo, o símbolo ou o vasto simbo- lícito dizer que, sobretudo a propó- giosa (O sistema totêmico na Austrália).
São Paulo: Abril Cultural, Coleção “Os
lismo aludido por Durkheim, que está sito das sociedades, a estrutura su-
Pensadores”, 1973.
presente em todos os momentos da põe a função e dela provém. As ins- _____. O suicídio. Lisboa: Editorial Presen-
vida social, não é uma entidade saí- tituições não se estabelecem por ça, 1992.
da do nada, nem simples artifícios ou decreto, mas resultam da vida so- GIDDENS, A política, sociologia e teoria so-
etiquetas que se superpõem às re- cial e limitam-se a traduzi-la por cial – Encontros com o pensamento soci-
presentações. Ele é real e construído símbolos aparentes. A estrutura é al clássico e contemporâneo. São Paulo:
a partir de uma lógica informada pe- a função consolidada, é a ação que Unesp, 1988.
las condições sociais. se tornou hábito e se cristalizou.
A tese geral é que um sistema (1974) A sociologia do século XX se
de símbolos permeia, produzindo subdividiu, elegendo diversos pro-
uma espécie de liga, que funciona blemas. Funcionalismos e estrutu-
como um “cimento”, que une o gru- ralismos geraram escolas radicais
po, e dá sentido à vida social. Para e estimulantes de microteorização, * Marcos Medeiros é Jornalista,
explicar a proposição, Durkheim vai acentuando o caráter contingente da Poeta, Sociólogo e Mestre em So-
buscar argumentos no estudo do ordem social e a centralidade da ciologia pelo PPGSA/IFCS/UFRJ.

40
LOGOS

Nietzsche, precursor
da pós-modernidade
Maria Nelida Sampaio Ferraz*

RESUMO
Este trabalho ressalta aspectos da filosofia
de Nietzsche, relacionando-os ao pensa-
mento da pós-modernidade. A tensão caos-
“ O homem moderno acabou
por ter o estômago car-
regado de uma massa
enorme de conhecimentos indigestos
que, como diz o conto, se chocam e
pela razão doente. Foi Schopenhauer,
talvez, o primeiro filósofo a perceber
a depravação em jogo, graças à nova
racionalidade instrumental, a serviço
do egoísmo possessivo e aniquilador.
ordem mostra-se como um grande desafio entrechocam em seu ventre.[...] Sem Por trás deste quadro de horror, o filó-
para o autor, que acaba por resolvê-la, dúvida, o sentimento permanece fe- sofo cético intuía, angustiado, as for-
concebendo-a como teoria do eterno re- chado na interioridade como a serpen- ças da vida, do corpo e do desejo.
torno. Partindo da vontade de potência, o te que, após ter engolido alguns coe- Estas forças, naturais e inconscien-
filósofo ganha domínio sobre ela, afirman- lhos vivos, se espicha tranqüilamen- tes, permaneciam, contudo, doloro-
do-a como motor das transmutações indis- te ao sol, evitando se mexer além do samente irrepresentáveis para ele.
pensáveis à conservação da vida. necessário {...} Quem quer que ve- Bem antes disso, no despontar da
Palavras-chave: caos-ordem; positivismo;
nha a passar por isso não deseja Modernidade, entre os séculos XVI e
pós-modernidade.
senão uma coisa: que uma tal cultu- XVII, surgiram “intuitivos”, para os
SUMMARY ra não morra de indigestão.” quais o pensamento se dá num outro
This work emphasizes some aspects of registro de sensibilidade, como Inácio
Nietszche’s philosophy, relating them to “Eu vos digo: é preciso ter ainda de Loyola - muito embora, como bem
post-modern thought. The chaos-order caos dentro de si, para poder dar à notou Barthes (1977), estivesse o fun-
tension presents itself as a great luz uma estrela dançante.” dador da Societas Jesu, pragmatica-
challenge to the author, who finally finds Nietzsche mente ligado ao cálculo e às intenções
a solution which he conceived as the contra-reformadoras -; ou Teresa
eternal return theory. Out of the will to A sociedade industrial, que surge d’Ávila, cujo misticismo dirigia-se ao
power the philosopher gains control over na Europa e logo depois se expande êxtase e ao arrebatamento; ou São
such tension, and asserts it as the motor
para a América do Norte, vai exibir João da Cruz, imerso na noite escura;
of transmutations which are indispensable
to life preservation.
sua face brutal, plenamente e sem ou ainda o quietismo de Mme. Guyon,
Keywords: chaos-order; positivism; post- sutilezas, ainda no século XIX. Os de quem Schopenhauer (e o próprio
modernity. espíritos mais sensíveis contem- Nietzsche) foi grande admirador.
plam, então, o mundo do interesse e Assim, antecedendo Nietzsche,
RESUMEN das trocas onde excede o individua- Schopenhauer toma suas distâncias do
Este trabajo señala aspectos de la lismo burguês. Um desses espíritos mundo da razão e do capital onde reina-
filosofía de Nietzsche, relacionándolos al foi Schopenhauer, para cujos olhos o va o valor de troca, em benefício de
pensamiento de la post-modernidad. La ocidente civilizado aparecia como, uma salvação radicada na negação
tensión entre caos y orden se muestra esteticamente, uma taberna repleta do mundo e no niilismo ascético.
un gran desafío para el autor, que acaba de bêbedos; intelectualmente, um Como os místicos dos séculos XVI e
por resolverla, concibiéndola como teoría
asilo de loucos; e, moralmente, um XVII, Schopenhauer rende-se à ani-
del eterno retorno. A partir de la voluntad
de potencia, el filósofo gana dominio so-
antro de malvados. Se o mundo é a quilação ou sublimação do eu domi-
bre ella, afirmándola como motor de las representação da vontade, então nela nador. Nada pode o pensamento con-
transmutaciones indispensables a la reside a fonte do mal. De outro lado, tra os poderes da vontade cega, em
conservación de la vida. porém, desponta, para este mesmo sua ânsia irrefreável de tudo subme-
Palabras-clave: caos-orden; positivismo; filósofo, o mundo impessoal do de- ter. Com Schopenhauer, porém, o pen-
post-modernidad. sejo, mundo não menos assustador, samento ocidental configura-se como
que não se comunicava com aquele crítica romântica e radical da história
outro, dominado pelo frio cálculo e e da modernidade. A partir dele, o

41
LOGOS

niilismo surge, ao mesmo tempo, estar amarrado a outra coisa. O valor exprimem pelo eterno retorno do
como verdade filosófica e como de troca imposto pelo capitalismo mesmo como um outro, na história.
impasse contraposto ao pensamento. aparece, então, como um deus cruel É nesse ponto que a vontade requer
Que se entende, porém, por “afogando os tremores sagrados do uma estética (e, portanto, uma éti-
niilismo? Para o filósofo francês êxtase religioso, do entusiasmo ca- ca): cabe ao vivente sentir até quan-
Badiou (1989), esta atitude intelectual valheiresco, da sentimentalidade pe- do uma representação é boa e útil o
representa, antes de tudo, o rompi- queno-burguesa, nas águas geladas bastante para a vida; cabe-lhe ava-
mento das figuras tradicionais do vín- do cálculo egoísta”. (Marx apud liar até que ponto se deve permitir a
culo. Surgem, então, ainda no século Badiou, 1989, p.25) O capital tornou- conservação de uma “ilusão do ser”,
XIX, os restauradores, tomados pela se, na leitura de Marx, o dissolvente possibilitando, então, a transmutação
nostalgia daquilo que se perdeu. En- universal das representações sagra- de valores, de modo que a afirmação
tre estes filósofos das suturas, das e dos valores. O caos vai domi- da vida venha a ser o único compro-
Badiou situa Hegel, os positivistas e nando os diversos campos de rela- misso do homem com a história que
o próprio Nietzsche. Anunciando a ção, em benefício do poder de elites inventa: “Só alguns são suficiente-
morte de Deus, Nietzsche enuncia a consagradas. Em lugar da vontade mente serpentes para se despojarem
verdade essencial de nosso tempo: cega e aniquiladora de Schopenhauer, desta pele: no momento em que, sob
a perda dos fundamentos metafísicos o capital surge agora como a potên- este invólucro, a sua primeira nature-
que apoiavam, até então, o pensa- cia niilista da qual os homens são za morreu já”. (s/d, p.209) Assim
mento. Mas, ao se tornar “filósofo da tanto os inventores quanto as vítimas. também, os espíritos que não mudam
suspeita” de uma fraqueza do pen- Mas, para Marx, este niilismo promo- de opinião deixam de ser espíritos.
samento (Foucault, 1980), de uma vido pelo capital é também uma ne- Temeroso, mas com descon-
racionalidade doente, que não ousa cessidade, para que se abra ao ho- certante audácia, Nietzsche confes-
contemplar sua própria verdade fun- mem da modernidade a consciência sa, em sua obra mais celebrada:
damental, Nietzsche teria, segundo de que o acesso ao ser e à verdade é “Esse é o meu perigo, que meu olhar
Badiou, infligido ao matema platôni- impossível fora dos limites da histó- se projete para o alto, enquanto mi-
co a mesma atitude que Platão re- ria. O homem deve assumir a dessa- nha mão quer agarrar e sustentar-se
servara ao poema: a exclusão. Re- cralização, pondo a nu, no capital, a no vazio”. (1983, p.153) De grande
cuperar o matema é, porém, uma verdade do múltiplo puro, como fun- beleza, Assim falou Zaratustra pode
tarefa urgente para o pensamento do de apresentação. Portanto, Marx ser visto como uma sinfonia em qua-
contemporâneo: ao se curar do denuncia todo efeito de Um como tro movimentos, composta para can-
antiplatonismo, a filosofia permitiria apenas uma configuração provisória. tar a difícil libertação do indivíduo da
a retomada do desenvolvimento de Espera, desse modo, o fim das repre- história onde se mantém cativo. Ao
um pensamento genérico que conce- sentações metafísicas, para que, en- sustentar-se no vazio e acreditar no
beria a verdade como produção regu- fim, se instale a utopia marxista da eterno retorno como o outro da histó-
lar do múltiplo, sem renunciar à ver- história, a partir do modelo hegeliano. ria e uma história outra, o projeto lan-
dade como resultado dessa operação. Desvencilhar o homem da meta- çado por Zaratustra/Nietzsche surge
Badiou sonha com a reintegração do física da Presença, de suas assom- em oposição ao de Marx. Toda a obra
matema ao pensamento da moder- brações e de todos os seus avatares, de Nietzsche pode ser vista como
nidade, que se constituiria como poe- tais como o budismo ou as utopias diferentes representações dessa que,
ma, o que se devia principalmente a extraterrenas que pretendiam garan- em verdade, foi sua única busca:
Nietzsche e, depois, a Heidegger. tir a substancialidade dos vínculos, desatar o nó em que ficara cativo o
Os filósofos da suspeita não in- causadora da alienação do homem mestre Schopenhauer, devolvendo
sistiram em dar um sentido “novo” na história e a perenidade das rela- aos contemporâneos o amor fati, o
ao que já não tinha sentido. Em vez ções apenas fora dela, também é o querer-viver que o vôo de Zaratustra,
disso, modificaram inteiramente a projeto de Nietzsche. Mas, em lugar aeronauta do espírito, nos ensina: o
natureza do símbolo, ao levar a cabo da utopia marxista, de caráter coleti- paradoxo de ser livre o vôo, justamen-
o desmascaramento de toda profun- vo, ele lança um desafio, no final do te porque sabe que é preso. Sua obra
didade como sendo apenas efeito de século XIX, que permanece atual, em realiza, em Assim Falou Zaratustra,
superfície, uma ruga ou dobra inscri- face do ano 2000: assumir a verdade o entrelaçamento do misticismo
ta pelo jogo da linguagem. (Foucault, de nossa condição como sendo a de schopenhauriano da vontade de po-
1980) O homem erra e o Ocidente meros fabuladores, potentes, ao nos tência com as teorias positivistas do
declina, uma vez que o Um se trans- tornarmos conscientes da verdade do evolucionismo e do heraclitismo,
forma apenas no resultado de opera- ser como ficção, uma criação do ho- retornando ao ponto de partida. É pre-
ções transitórias. O tempo nos é con- mem que, como tal, sempre perten- ciso ressaltar que a concepção da
tado pelos que detêm o poder. Passi- cerá ao âmbito da história. Criação, história como submissão do homem
vo, o indivíduo ocidental perde a ca- contudo, necessária e incessante, ao devir desprega o pensamento de
pacidade de representação. Não pas- cujas condições se acham na aber- Nietzsche de qualquer idéia teleoló-
sa de mero espectador de uma vida tura do indivíduo ao devir - domínio gica de progresso. A história será
que não lhe pertence. Nada existe das intensidades puras -, de onde vai sempre, para ele, energia em ação e
para ele, de fato, porque nada pode haurir a potência e a saúde que se alegre afirmação das transformações.

42
LOGOS

Portanto, não-terminalidade, inaca- história ou pós-modernidade. Caos de e desvantagem da história para a


bamento, tentativa, errância, enfim. Nis- e ordem apresentam-se como novos vida”, [1874]) e o grupo de obras que
so reside o trágico e a beatitude. desafios para o pensador contempo- se inicia com Humano, Demasiado
Nos anos 90, o conflito das inter- râneo que pretenda chegar a uma Humano [1878], seguindo-se Aurora
pretações, sua pluralidade e conse- compreensão fiel dos paradoxos des- [1881] e A Gaia Ciência [1882]. Mas
qüências para o pensamento filosó- te novo tempo no qual algo resiste e de que positivismo se trata nesta
fico, visto por Nietzsche, ao afirmar, se conserva, enquanto algo irreme- nova metamorfose do filósofo? Lú-
de um lado, a verdade da perda de diavelmente desaparece. cida, animada de espírito crítico, após
fundamentos, de outro, a força eter- Para alcançar sua liberdade de ter constatado a morte de Deus, a fi-
na do devir e a perda da noção de pensamento, simbolizada tanto no losofia de Nietzsche empreende, ago-
origem, torna-se uma questão tanto afastamento do misticismo de ra, a difícil jornada crítica, através da
mais pertinente, quanto mais se Wagner - que por tanto tempo o se- história ocidental, durante a qual des-
avança na experiência da globa- duzira -, quanto do niilismo de mascara o racionalismo platônico (e
lização cultural, conseqüente à revo- Schopenhauer, foi necessário que não o indivíduo Sócrates) e a moral
lução operada no seio da informática. Nietzsche vivesse a grande crise que judaico-cristã, herdeira daquele
Tecnologias que não cessam de se corresponde à fase intermediária de racionalismo (e não o Cristo). Confir-
transformar trouxeram consigo pro- sua obra, fase tradicionalmente con- ma ainda a morte da razão, procla-
fundas alterações no panorama de siderada como positivista. Tal crise mada por Kant, reafirmando, a cada
uma sociedade convulsionada por coloca-se no espaço entre a 2ª Con- passagem, a fundamental descober-
novos hábitos e costumes, bem sideração Extemporânea (“Da utilida- ta da intuição por Schopenhauer. E,
como por um modo absolutamente
novo de relação do indivíduo consi-
go mesmo e com o outro, a partir
das novas concepções de tempo e
de espaço impostas pela telemática
e de uma nova linguagem cada vez
mais disponível para muitos. Esse
“novo mundo”, de navegações ou-
tras, tornou-se de fato ilegível para
os que insistem em abordá-lo, a par-
tir das categorias de entendimento
ditas modernas, herdadas do Ilumi-
nismo. Embora não sejam poucos
os que insistem na redução da com-
plexidade contemporânea ao funcio-
namento dos princípios da razão
iluminista (se assim se pode deno-
minar a ideologia neoliberal em
ação), os espíritos mais sensíveis
percebem que estamos cruzando,
nesse momento, uma outra era.
Como resultado, vivemos na deses-
tabilização, na incerteza, na flu-
tuação e fragmentação cotidianas, no
caos, a bem dizer. É o fim, portanto,
de todo um sistema de pensamento
em que se fundamentava a moder-
nidade histórica. O homem contem-
porâneo não passa sem perceber
diariamente, em volta de si, “frag-
mentos e membros avulsos e hor-
rendos acasos”. Mas, ao mesmo
tempo, este mesmo homem exige
a redenção do disperso: “Eu cami-
nho entre os homens como entre
fragmentos de futuro: daquele futu-
ro que descortino”. (1983, II, p.150)
Acasos sem nome e ocasos nostál-
gicos chocam-se como fenômenos
próprios desta, assim chamada, pós-

43
LOGOS

acima de tudo, desmascara a lingua- tado e imóvel, ele se vê constrangi- rora é uma afirmação da vida como
gem como pretensa ciência, como do ao movimento interior de um devir e transformação permanente,
fundamento de verdades absolutas. espírito fecundo que teima em bro- exigindo um espírito aventureiro,
Nas Considerações Extempo- tar. Nietzsche busca, então, a me- como o de Colombo, para que se
râneas [1873-1876], colocava-se o tamorfose daquele caos interior em venha, como um navegador, a
impasse contra o qual, logo depois, luz e forma. Dedica-se, então, à fi- descortinar um “novo mundo”, para
ele se lançaria: história, palavra que losofia, à medicina e às ciências lá do mar, a salvo do perigo de “en-
designa a vida do pensamento, isto naturais. O amigo, ensaísta e com- calhar perante o infinito”? (s/d,
é, as leis rígidas segundo as quais positor Peter Gast foi o redator do p.252) As linhas finais deste livro,
a vida é interpretada, transmitida e texto que um imobilizado Nietzsche tão importante no conjunto das
conservada, por oposição à própria lhe ditava: Humano, Demasiado Hu- obras de Nietzsche, cheias de emo-
vida como instinto e experiência. A mano [1878-79]. Esta obra foi ção, revelam o desejo de descor-
história, ele conclui, deve, pelo con- dedicada a Voltaire, espírito ilumi- tinar um mundo novo, para lá de
trário, servir à vida. Isto, porém, só nado e implacável, que ele tanto onde estivera talvez encalhado o
poderia se realizar, quando as facul- admirava e que ele exaltará, mais mestre Schopenhauer.
dades primordiais da alma, ou seja, tarde, em Aurora, juntamente com A Gaia Ciência [1886] é um hino
o mais obscuro de nós, o mais sel- Augusto Comte, como “livres pen- de amor ao espírito provençal, ple-
vagem, logo, o menos humano, opu- sadores franceses”. (s/d, p.92) no de vitalidade e de alegria, onde
sesse resistência à invasão des- Em contrapartida, Humano, De- já aparecem, no prólogo, os temas
trutiva das construções intelectuais masido Humano vai congelando do Assim Falou Zaratustra [1881].
“humanas, demasiado humanas”. aqueles mitos que, fruto do idealis- A fase positivista produziu, portan-
Nietzsche postula, ao lado da de- mo alemão, até então permaneciam to, belos frutos, no espírito de
sordem promovida, na sociedade colados a suas máscaras. À análise Nietzsche, ao discipliná-lo no rigor
decadente, pelas leis da história, química empreendida nesta obra de um pensamento que se ressen-
uma desordem interior, positiva, no acrescenta-se a fidelidade ao espíri- tia de mais realidade. Um novo
entanto, na medida em que se pos- to herdado de Schopenhauer que método de conhecimento permite-
sa mostrar como fonte de saúde. O nada mais desejava senão perseve- lhe afirmar, agora, esta alegre ciên-
caos, tal como fora entendido pe- rar no ser. A vida aspira a entender- cia. É neste livro que ele alerta para
los gregos, surge como legítimo se, a crescer. O positivismo dá ao o perigo de que a própria ciência
princípio provocador do pensamen- filósofo também as condições de venha a se tornar um ídolo dos no-
to e das ações humanas, das artes pensar a conservação da vida e seu vos tempos, tomando o lugar das
em geral, entre as quais as técni- crescimento, na esfera do binômio religiões. Com espírito de festa,
cas científicas. O caos existe em vida-morte. Assim, nas obras se- Nietzsche prepara-se para sua via-
nós como ausência de leis, como guintes, Nietzsche vai resgastando, gem de retorno ao ponto de que par-
não-história. Voltando-se para o através do domínio de si, aquele sen- tira: a Gaia Ciência, com seus poe-
dionisismo, Nietzsche vê, no caos timento humano, demasiado huma- mas às vezes bem acabados, às
de cada um, um envelope protetor no, desmascarado como tal, mas, vezes caprichosos, é, segundo
capaz de libertar o homem da doen- ao mesmo tempo, tão necessário ao Salomé (1983), um caminho de ro-
ça histórica da modernidade: “A his- exercício do pensamento. sas que Nietzsche colhe à medida
tória, na medida em que está a ser- Perto de Gênova, berço de que avança, com pleno conheci-
viço da vida, está a serviço de uma Colombo, outro de seus heróis, mento de que vai tecendo, nesse
potência a-histórica e por isso nun- Nietzsche escreveu Aurora, cuja mesmo movimento, sua coroa de
ca, nessa subordinação, poderá e epígrafe tomada do livro dos vedas espinhos.
deverá tornar-se ciência pura, como, já nos coloca no ambiente de luz A fase seguinte da obra de
digamos, a matemática. Mas a que, segundo Lou Salomé, “não é Nietzsche, qualificada de construti-
questão até que grau a vida precisa uma luz terna, fria e intelectual a ilu- va, é a do pensamento de Zaratustra.
em geral do serviço da história é minar o passado: por trás dela já se O ideal estético buscado na obra ini-
uma das questões e cuidados mais levanta o sol que reaquece e dis- cial é retomado, no mito de Dioniso,
altos no tocante à saúde de um ho- pensa a vida”. (Salomé, 1983, mas agora reunido ao feminino en-
mem, de um povo, de uma civiliza- p.114) Aurora atenta para a neces- carnado em Ariadne. O deus muti-
ção. Pois, no caso de uma certa sidade da redescoberta do corpo e lado parece ter encontrado a reden-
desmedida de história a vida des- para todos os sinais de decadência, ção de seu corpo. O caos afinal se
morona e degenera, e por fim, com impressos na moral judaico-cristã. realiza na luz de uma estrela dan-
essa degeneração, degenera tam- Desmascara-a, então, como resis- çarina, como uma nuvem escura
bém a própria história”. (1974, p.68) tência aos instintos naturais, ruína clareada de súbito por um raio.
Os anos de doença e crise de fisiológica, tramas, enfim, contra o Zaratustra realiza o propósito do
Nietzsche promovem a cura de seu aumento da energia somática ne- querer livre: assumir a aparência,
espírito. Como a cobra espichada cessária à vida. Aurora é o livro que suportando a tensão caos-ordem,
ao sol mediterrâneo, após se em- deplora a renúncia ao mundo, a ati- dominante no pensamento assis-
panturrar de cultura ocidental, dei- tude do santo e o misticismo. Au- temático de Nietzsche.

44
LOGOS

Mas, o perfil desse querer livre temido por Schopenhauer. Segundo criador de histórias e, no entanto, cria-
Nietzsche o buscou na segunda fase Vattimo, Humano, Demasiado Hu- dor de um tecido coletivo que sempre
de sua obra, sem a qual ele não po- mano não é somente análise críti- revelará a História. Nietzsche não só
deria retomar aquelas questões de- ca: “não se trata, de facto, de des- nos convida à tarefa difícil, mas afir-
cisivas para o futuro da humanida- mascarar e dissolver os erros, mas mativa de construir pontes e de reunir
de, levando a cabo o jogo que de os ver como a própria nascente fragmentos dispersos, como nos en-
Schopenhauer se vira impedido de da riqueza que nos constitui e que sina a postura a ser adotada por este
jogar. Anuncia, então, a aurora de dá interesse, cor, ser ao mundo” que ele chama de super-homem, já
uma gaia ciência, de uma filosofia (p.132). A obra de Nietzsche é as- que constrói sobre o nada. Estará o
da manhã que significaria o abando- sim toda ela uma profissão de fé no homem contemporâneo pondo mãos
no de tudo que fosse familiar, de toda homem e no ser que ele inventa. É à obra? Será este assumir a criação,
acomodação e decadência, em prol também um convite a que se viva a conforme a proposta de Nietzsche, a
da saúde permanente de um espíri- experiência do erro, abrindo-se, as- pós-modernidade do homem?
to que, sempre insaciável, só pode sim, ao eterno retorno da diferença
existir nômade, curioso e criativo. histórica, graças ao querer, sempre
Como superar os inconvenientes renovado, deste novo homem que,
trazidos por esta velha história oci- tendo aberto mão da metafísica, sela
dental, na qual se agasalham os mi- uma nova aliança com o mais pro-
tos que retiram do homem aquelas fundo de si mesmo, enquanto sonha
energias criadoras, capazes de per- com o vôo das águias. Transforma- Bibliografia
mitir que a história se transforme em se, então, no super-homem, o cons- ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Friedrich
outra? Voltando-se para a não-histó- trutor de pontes sobre o abismo. Nietzsche à travers ses oeuvres. Paris:
ria. Então, surge Nietzsche como Aprende, com Zaratustra, uma dan- Grasset, 1992.
precursor da pós-modernidade na fi- ça cujos compassos são fruto de BADIOU, Alain. Manifesto pela filosofia. Rio
losofia. A modernidade não resiste passos nem sempre desenhados de Janeiro: A Outra Editora, 1991.
BARTHES, Roland. Sade, Fourier, Loyola. São
à análise positivista de Humano, De- com firmeza e cujos saltos configu-
Paulo: Brasiliense, 1977.
masiado Humano. A análise quími- ram risco e salvação, contidos simul- DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. Rio
ca desta época, emprendida neste taneamente num querer-viver como de Janeiro: Editora Rio, 1976.
livro, revela-nos a impossibilidade de niilismo positivo. FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud e Marx,
a história ocidental traçar a sonhada A pós-modernidade, como fim da Theatrum Philosophicum. Porto: Anagra-
marcha da progressiva iluminação modernidade foi, portanto, anuncia- ma, 1980.
daquela mesma consciência históri- da por Nietzsche como a visão de NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou
ca rumo à absolutização do espírito. um novo dia, de uma Aurora, onde o Zaratustra. Rio de Janeiro: Civilização Bra-
A própria verdade em nome da qual historicismo, com suas leis preesta- sileira, 1983.
se realiza tal crítica da história é um belecidas perde sua razão de ser _____. Aurora. Porto: Rés Editora, s/d.
valor que se dissolve. Conhecer as para dar lugar à redenção do homem _____. A origem da Tragédia. São Paulo:
Moraes Editores, s/d.a..
coisas em si mesmas, afirmara num novo estilo, numa nova arte de-
_____. A Gaia Ciência. Rio de Janeiro:
Kant, é totalmente impossível. O senhada a partir dos fragmentos que Ediouro, s/d.b.
conhecimento não passa de “uma restaram: “Eu caminho entre os ho- _____. Humain, Trop Humain. Paris:
série de metaforizações: da coisa à mens como entre fragmentos do fu- Gallimard, 1968.
imagem mental, da imagem à pa- turo: daquele futuro que descortino/ _____. Considerações Extemporâneas. Co-
lavra que exprime o estado de espí- E isso é tudo a que aspira o meu leção “Os Pensadores”. São Paulo: Abril
rito do indivíduo, e desta à palavra poetar: juntar e compor em unidade Cultural, 1974.
imposta como palavra ‘justa’ pelas o que é fragmento e enigma e hor- PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tem-
convenções sociais, e depois de rendo acaso”. (Zaratustra, II) po, caos e as leis da natureza. São Paulo:
novo, desta palavra canonizada à A pós-modernidade, não como o UNESP,1996.
coisa, da qual percebemos só os fim da história, mas do historicismo VATTIMO, Gianni. O fim da modernidade:
niilismo e hermenêutica na cultura pós-
traços mais facilmente metafo- que se impôs no século XIX, anun-
moderna. Lisboa: Editorial Presença,
rizáveis no vocabulário que herda- cia-se, na obra de Nietzsche, espe- 1987.
mos...” (Vattimo, 1987, p.132) cialmente no Zaratustra, livro que
Revela-se, desse modo, o funda- sela a nova aliança, como o tempo
mento sem fundo em que a “verda- de transmutação de todo “foi as-
de”, essa quimera humana, está sim” num “eu quis assim”. A re-
condenada a deslizar, sempre outra, denção do humano só poderá acon-
e espantosamente, sempre a mes- tecer no âmbito dessa submissão
ma. Não há, portanto, verdade nem do homem à força do devir, o que
erro. Há apenas errância, devires, ele considera como amor fati. Isto
cuja única regra de continuidade his- pressupõe o nascimento de uma * Maria Nelida Sampaio Ferraz
tórica é a força daquela vontade nova consciência histórica e de uma é Doutora em Comunicação e
impelida pelo obscuro desejo, tão estética, próprias de um pequeno Cultura.

45
LOGOS

A inconclusão do Progresso
e a mistura da Ordem
Notas sobre Gilberto Freyre
e o Positivismo no Brasil do século XIX
Luiz Felipe Baêta Neves*

“
RESUMO
O artigo é uma análise de Ordem e Pro-
gresso que integra a trilogia clássica de
Gilberto Freyre juntamente com Casa-Gran-
É evidente que vários dis-
cípulos de Comte partici-
param da Revolução re-
publicana no Brasil, não sob a cor
dos radicais absolutos mas como
ção, ela se expressa por uma per-
manente inter-remissão temporal.
Tal inter-remissão – fazendo jogar
momentos históricos vistos analiti-
camente como distintos – faz com
de & Senzala e Sobrados e Mucambos. revolucionários animados (...) de es- que não se possa pensar com faci-
Observam-se a teoria do tempo social do pírito autoritário (...).” lidade na idéia de que a história ca-
Autor, sua noção de identidade cultural, a Gilberto Freyre minha pela eliminação de estágios
articulação que propõe entre grandes re-
julgados obsoletos e prejudiciais a
cortes e a vida quotidiana. Finalmente, apon-
ta-se para a importância do positivismo na
A primeira edição de Ordem e uma suposta “flecha do tempo” de
passagem da Monarquia para a República Progresso2 de Gilberto Freyre data teleologia considerada “certa”.
no Brasil. de 1959. Se ela se distancia, no Esta consideração pelo passado
Palavras-chave: Gilberto Freyre; posi- tempo, de outros clássicos do mes- como integrante do presente e do
tivismo; teoria antropológica. mo Autor, seu próprio título pode ser futuro não é, necessariamente, uma
visto como emblemático de carac- atitude reacionária que fizesse uma
SUMMARY terísticas fundamentais de tantos apologia do passado como momen-
The article is an analysis of Ordem e Pro- trabalhos de Freyre. to hiperidealizado de perfeição so-
gresso, which is part of Gilberto Freyre’s Na verdade, aí se dispõem con- cial – ou divina. Penso que esta con-
classic trilogy together with Casa Gran- comitâncias – não necessariamen- sideração – e digo consideração,
de & Senzala and Sobrados e Mucambos.
te seqüências – temporais que se não aprovação – do passado evita
The Author’s theory of social time, his
notion of cultural identity, the articulation
relacionam de forma mais ou me- que julguemos autoritariamente
proposed by him between big events and nos estrita e que fazem da teoria ideologias, povos, raças, religiões
daily life are remarked. Finally, it is pointed freyreana do tempo algo complexo e tradições que não nos agradam.
out the importance of positivism in the e de construção intelectual sofisti- Muitos exercícios de poder nas-
process of transition between Monarchy cada. Se há uma proposição de evo- cem – e os brasileiros de hoje bem
and Republic in Brazil. lução social e cultural, esta não tem o sabem – das ideologias (que di-
Keywords: Gilberto Freyre; positivism; como decorrência obrigatória uma zem não gostar deste nome) do Pro-
anthropologic theory. superação de momentos anteriores. gresso como meta irretorquível da
O que se propõe ao estudo da his- felicidade humana. Por conseqüên-
RESUMEN
tória é a tarefa de estabelecer os cia, tudo o que não faz parte desta
El artículo es un análisis de Orden y
múltiplos modos pelos quais podem Ideologia do Progresso – ou desta
Progreso que integra la trilogía clásica de
Gilberto Freyre juntamente con Casa Gran- ser desenhados “tipos” ou “perío- Mitologia do Mercado Global, no
de & Senzala y Sobrados y Mucambos. dos” e, ao mesmo tempo, perce- caso – deveria ser eliminado em
Se observa la teoría del tempo social del ber a precariedade de sua existên- nome da Razão Triunfante.
Autor, su noción de identidad cultural, la cia (de “tipos” ou “períodos”). Pre- Gilberto, então, nos faz com-
articulación que propone entre grandes re- cariedade que advém do caráter preender o tempo como uma con-
cortes y la vida cotidiana. Finalmente, se impiedosamente relacional de tais junção de diferenças cujas regras de
apunta para la importancia del positivismo recortes, ou seja, eles não têm uma manifestação deverão ser observa-
en la transición de la Monarquia a la Repú- vida autárquica; dependem – para das também de perto, caso a caso.
blica en Brasil. viver – de se nutrir de outros tipos Há, em Ordem e Progresso, esta
Palabras-clave: Gilberto Freyre; positi-
ou de outros períodos. convivência, de grandes recortes
vismo; teoría antropológica.
Assim, sua identidade nunca se histórico-conceituais e de uma
baseia em uma essência ou funda- miríade de exemplos, digamos lo-

46
LOGOS

cais, daquilo que se manifestaria no damente, de quotidiano da obra – Gilberto – em muitas introdu-
âmbito de cada um desses grandes em Ordem e Progresso como em ções, prefácios, notas – ou no mio-
recortes. O trabalho de Gilberto outros livros – o esforço de seu Au- lo mesmo de seu texto procura se
Freyre, aqui e além, é uma singular tor por situar a obra em sua circuns- situar fazendo alianças ou lançan-
tensão entre conceitos de grande tância histórico-teórica. Ou, mais do ataques a adversários. As alian-
generalidade e uma agitada, anima- precisamente, penso na aplicação ças visariam claramente um apoio
da população de fatos e ilustrações de Gilberto Freyre em estabelecer a suas proposições – apoio oriundo
que ajudariam, não só a colorir o ligações de suas análises com ou- daqueles que considerava expoen-
discurso ou a comentar suas pro- tras produzidas por outros Autores tes intelectuais – ou institucionais
posições, mas, também, teriam o ou por outras linhagens teóricas. – e que viriam, senão a legitimar,
efeito de neutralizar as inclinações
imperiais dos macroconceitos.
Estes, por sua vez, inibiram uma
tendência à indeterminação dos fa-
tos e ilustrações e sua inclinação a
servirem aos senhores do empi-
ricismo e da reificação. Há, portan-
to, uma tensão que articula flashes
instantâneos, e durações, fre-
qüentemente longas.
Assim, vemos que os macro-
conceitos se referem, se remetem, a
outros e, também, a microconceitos,
que seriam apresentados como o inu-
merável elenco dos atores singulares
e da interminável seqüência de cenas
dos fenômenos históricos.
A relação entre macroconceitos
e microconceitos não deve ser vis-
ta como uma relação de dependên-
cia, digamos, entre um plano de de-
terminada generalidade e outro. Os
microconceitos – fatos, ilustrações,
exemplos – não são a expressão
simples de macroconceitos; não
têm suas características nem suas
propriedades. Não são as “partes de
uma totalidade” que contivessem,
em ponto menor, aquilo que a tota-
lidade conteria. Os macroconceitos,
por sua vez, não são o resultado de
uma soma – ou de uma média – de
uma dispersão de supostos even-
tos ou coisas empíricas de que se-
riam a manifestação conceitual.
Muitas vezes, de algum tempo
a esta parte, tem-se falado de um
Gilberto Freyre precursor dos estu-
dos concernentes ao quotidiano –
ou, pelo menos, como um de seus
primeiros artífices. É pertinente que
ele seja assim considerado desde
que se mantenha a articulação des-
te quotidiano com os amplos qua-
dros conceituais que concebia e que
se aplicavam a extensões tempo-
rais vastas.
E mais que isto: é preciso foca-
lizar o quotidiano da própria obra do
grande ensaísta. Chamo, figura-

47
LOGOS

ao menos a reforçar uma posição erudita quanto ligeira em sua enu- de fecundação com outros tempos
tão ameaçada quanto valorosa. É meração galopante – cortada por (passados ou futuros). Além de per-
neste campo beligerante que se vê, vírgulas que acicatam sua veloci- mitir, igualmente, sua interação com
com clareza, uma espécie de afas- dade. Este enunciado de caráter apa- novos espaços sociais relacionais.
tamento apaixonado de um Autor rentemente apenas descritivo esca-
***
por sua obra. Gilberto fala de seu pa do anedótico por sua articulação
trabalho como um analista tão ex- tensa, como dissemos há pouco, Para o imaginário social do e
terior quanto enamorado. com as propostas macroconceituais freyreano, os períodos de transição
Procura estabelecer um espaço e por uma demarcação, uma dis- social são privilegiados. São quase
para si que considera em perigo. Pe- tância que guarda da narrativa. uma decorrência espontânea do lu-
rigo que, com freqüência, tem a cu- É sempre bom se ter em conta gar central atribuído à coexistência,
riosa conotação do desconhecimen- que Gilberto Freyre, apesar de sua permanentemente relançada, ativa,
to que se abateria sobre o limitado pluralidade e polivalência, não é Au- de passado, presente e futuro. Em
mundo de muitos de seus colegas tor que possa, impunemente, ser um certo sentido, todos os momen-
brasileiros quanto às preocupações visto como um defensor da multi- tos históricos poderiam ser teorica-
teóricas de Gilberto. O mundo exte- plicidade como sinônimo de disper- mente constituídos como transi-
rior – e alguns brasileiros de talento são absoluta. Isto é, sempre é bom cionais, visto que todos têm – ou
– teria correlatos à produção de lembrar que uma de suas ambições podem ter – elementos temporalmen-
Freyre e, mesmo, saberia reconhe- conceituais centrais é a de estabe- te díspares. A contemporaneidade de
cer e elogiar seu empenho inovador. lecer sínteses, permanências, cons- um momento histórico dado não se-
Esta relação com um aspecto da tantes, situações ou figuras típicas. ria, jamais, transparente, composta
materialidade do discurso – dos as- Parece inútil tentar encurralar seu de uma exclusiva temporalidade.
pectos políticos, intelectuais e percurso, quer empurrando-o para o O trabalho do analista social não
institucionais que condicionam a ven- beco sem saída da mera crônica de é o de reconhecer uma homoge-
tura ou fracasso de sua intervenção costumes, quer lançando-o aos des- neidade; é aquele de construir
no mundo – também pode ser vista penhadeiros da “teoria geral da es- conceitualmente a articulação sin-
no esforço de sedução que procura- sência do Homem Brasileiro”. gular de diferenças. Existiria, então,
ria alcançar o leitor. Há um esforço Contra estes perigos podemos in- para nosso Autor, uma miscelânea
teórico-prático de fazer do que é apre- vocar a própria letra freyreana e, a permanente de conteúdos, formas
sentado aos leitores – à sociedade ela, procurar infundir uma interpreta- e ritmos temporais, uma mistura de
– como algo especialmente relevan- ção. Lembro de tantos dos títulos de andamentos, uma miscigenação de
te e pouco (ou nada) conhecido ou seus livros que contêm o signo mes- cenas e durações.
reconhecido. Trata-se de uma atitu- mo da articulação e da relativização Esse caráter transicional aponta
de retórica no sentido de que se pro- na palavra e. Outros analistas já o para uma “instabilidade-em-equilí-
põe o discurso como trabalho que apontaram, como Roberto DaMatta brio” que dificulta a imposição de
não se encerra em sua dimensão es- e Raul Lody. Minha modesta propos- fronteiras rígidas ou de aduanas ex-
tritamente analítica; requer uma ati- ta seria a de imaginar que se acres- cessivas. A possibilidade de via-
vidade de persuasão e convencimen- centasse um outro e a esta análise; gem, de troca, de transação fica,
to que procuraria aliados em diferen- teríamos, então, “Casa-Grande e por seu turno, facilitada. Basta lem-
tes auditórios. Gilberto busca, então, Senzala e...”. Guardaríamos, desse brar o subtítulo de Ordem e Progres-
uma pragmática da leitura, uma modo, duas linhas-de-força da obra so que é não menos que: “Proces-
construção intelectual da ação, que em questão: a marca relacional e o so de desintegração das sociedades
faria de sua produção algo animado aspecto inconclusivo. patriarcal e semipatriarcal no Brasil
pela intenção de ser conhecida e de Nada em Freyre é conclusivo; sob o regime de trabalho livre; as-
ser operante. mesmo quando “conclui” por algu- pectos de um quase meio século
Quanto ao aspecto sedutório do ma posição, ele próprio imediata- de transição do trabalho escravo
discurso freyreano, muito ainda mente – ou em outro momento – para o trabalho livre; e da Monar-
pode ser investigado. Quanto a Or- acaba por olhar tal conclusão de quia para a República”.
dem e Progresso, parece haver viés, de forma parcial ou relati- Observando brevemente a esco-
muito de sedutor não só no conjun- vizadora – ou, até mesmo, acaba lha de Gilberto, o que salta aos
to do texto, em seu estilo geral, mas por negá-la. Assim, não acredito olhos, de início, é a relação de con-
em momentos que podem ser deli- epistemologicamente possível ima- traste entre título e subtítulo. En-
mitados. Penso, em especial, nos ginar um oxímoro que faria de algo quanto o primeiro é sucinto, três
extensos parágrafos que dedica à relacional – Ordem e Progresso – palavras com dois substantivos ar-
exemplificação histórica de suas como fechado em si, definitivo, ticulados por um e, o segundo, o
proposições. São encantadoras – ou completo, acabado. subtítulo, é longo, desdobrado, nu-
melhor, encantatórias – as listas de Este novo e abre a dimensão tem- meroso em suas trinta e sete pala-
hábitos, móveis, objetos, compor- poral – ou melhor, mantém aberta a vras. Enquanto o título é curto, sin-
tamentos, atitudes etc. que são dimensão temporal – para que seja tético em sua alta significação sim-
apresentadas ao leitor de forma tão possível, por exemplo, sua operação bólica produzida pela coincidência

48
LOGOS

com a determinação escrita na ban- to e a conclusão definitiva dos edifí- pois, para – ao menos parcial ou po-
deira nacional brasileira, fruto da Re- cios históricos. tencialmente – o futuro).
pública, o subtítulo é vincado não pela Vale a pena ver como, para nos-
***
modernidade, mas pela pátina do so Autor, a continuidade histórica
tempo; lembra antigos títulos de li- Gilberto Freyre atribui, em Ordem pode se dar não apenas por um ele-
vros que pareciam, tais títulos, inter- e Progresso, especial importância mento analiticamente cernível, mas
mináveis, descritivos, informativos ao positivismo no período que ob- por uma poderosa rede cultural: “O
sobre o que se apresentaria a seguir, serva da história brasileira. A análi- ‘coração íntimo’ do brasileiro da épo-
folheada a capa. O que se verifica, se do ideário e da ação positivistas ca que se seguiu à proclamação da
pois, é um contraste, uma constitui- permite compreensão bastante rica República, se examinado de perto
ção gráfica, cuja materialidade mes- daquele momento – e de tantos ou- (...) haveria de mostrar (...) que exis-
ma é a do ponto-e-contraponto, tão tros... – de nossa sociedade, mas, tia entre a gente do Brasil, do Norte
distantes quanto articuláveis. além disso, suscita curioso confron- ao Sul do País, uma unidade nacio-
Vários outros aspectos merece- to do imaginário do comtismo nacio- nal já tão forte, quanto às crenças,
riam destaque neste pequeno truque nal e o do imaginário freyreano. Va- aos costumes, aos sentimentos,
freyreano, neste atraente jogo de mos, de modo incipiente, propor al- aos jogos, aos brinquedos dessa
conjuntos de palavras tão aparen- guns itens que merecem desdobra- mesma gente, quase toda ela de for-
temente casual e desinteressado mento futuro. mação patriarcal, católica e ibérica
quanto expressivo de sua paixão Assim, o tema da transição, da (...) que não seria com a simples e
pela ourivesaria do estilo. Para men- passagem de uma determinada con- superficial mudança de regímen po-
cionar apenas um ponto, escolha- figuração histórico-cultural, tem no lítico, que aquele conjunto de valo-
mos a palavra quase em “(...) um positivismo, para Gilberto Freyre, res e de constantes de repente se
quase meio século de transição uma solução engenhosa: “Aos desmancharia”. (p.CLXVII)
(...)”. O que quase de imediato se Positivistas é evidente que a subs- A cultura brasileira já tem, àquele
poderia dizer seria quanto à patente tância monárquica no Brasil se afi- ponto, uma espessura trazida pela
imprecisão do termo que, justamen- gurava arcaica; mas não a forma au- unidade nacional que alcançara, fru-
te, trata de alguma coisa imagina- toritária de governo. Ao contrário; to espacial de uma duração tempo-
da precisa – os números, a quanti- eles subiram ao poder procurando ral capaz de afirmá-la. E dela fazer
dade bem delimitada de um sécu- (...) avivar no novo tipo de governo algo determinante historicamente;
lo. Ora, o subtítulo sequer diz de que a autoridade do executivo ou o po- sua profundidade contrasta – e do-
século se tratará (ou de quais sécu- der efetivo dos governantes, para mina – variações epidérmicas,
los, se a análise contemplar partes que a causa do progresso condicio- como a da mudança do regime po-
de dois séculos...), o que já é uma nado pela ordem não fosse sacri- lítico do país no final do século XIX.
espécie de repto, de provocação ficada ao perigo do progresso Esta cultura profunda é tão central
aos que, bons historiadores que se desordenado; nem a da ação refle- e indispensável à vida histórica
pretendem ser, têm como prova de tida à do verbo irresponsável” . quanto o coração é para o corpo – e
sua precisão, de sua umbilical rela- (p.17) Neste exemplo, a noção de para a alma – de todos nós.
ção com os fatos empíricos, de sua autoridade parece ter caráter deci-
honestidade profissional. sivo; é ela que permite a ligação en-
Gilberto Freyre manifesta, no cor- tre um momento instaurador, de pro-
po do livro, distância em relação a gresso e combate ao arcaísmo, e Notas
métodos quantitativos, julgados por um elemento pré-existente (a auto- 1
Versão parcial deste texto foi apresentada
ele, entre outras coisas, como su- ridade monárquica) capaz de evitar no Seminário Internacional Novo Mundo nos
perados. Mas tal senilidade das li- a demasia, o descontrole, a rutura. Trópicos, promovido pela Fundação Gilberto
mitadas práticas quantitativas se alia A ordem é, portanto, indispensá- Freyre, em 10/3/2000, no Recife.
à imprecisão dos números históricos vel à manutenção do progresso; o
2
FREYRE, Gilberto. Ordem e Progresso.
na construção de algo necessário e Processo de desintegração das sociedades
progresso é uma evolução da razão
patriarcal e semipatriarcal no Brasil sob o
permanentemente inacabado. que não deve abrir mão desta para regime de trabalho livre: aspectos de um
Esta construção inacabada para triunfar. O progresso, nesse senti- quase meio século de transição do trabalho
sempre não é a figura de um fracas- do, é uma superação relativa: en- escravo para o trabalho livre; e da Monar-
so; é a afirmação da impossibilidade frenta o que é arcaico, no presente, quia para a República. 3.ed. Rio de Janeiro/
– e/ou do desinteresse – de o analista para edificar o futuro. Ou seja, não Brasília: José Olympio/INL, 1974.
social ser um preciso engenheiro da nega todo o passado (apenas o que
vida humana. A sociedade não é o dele ficou no presente: o arcaico) e
lugar da exatidão – e não é, tampouco, procura rearranjar elementos consi-
o lugar da unidade. A sociedade é, derados úteis para a nova situação * Luiz Felipe Baêta Neves é Pós-dou-
sobretudo, plural, excessiva em seus que se instaura na sociedade. As- tor pela Universidade de Paris V –
relançamentos de ações (e estagna- sim fazendo, observa o passado Sorbonne, Doutor em Antropologia
ções) e em sua virtualidade. Virtua- como thesaurus capaz de conter Social pelo Museu Nacional/UFRJ e
lidade que evita o fechamento absolu- parcelas férteis para o presente (e, Professor na UERJ e na UFRJ.

49
LOGOS

Os positivismos e a Faculdade
de Direito do Recife
Teodoro Koracakis*

RESUMO
Este artigo pretende investigar a pe-
netração das diferentes doutrinas
positivistas no Brasil, a partir de1870,
P ara iniciar este artigo, exami-
naremos os pressupostos
compartilhados por diferentes
tipos de positivismo 1 para, em se-
guida, analisar o movimento cultu-
é colocada: é uma problemática que
escapa ao campo conceitual e teóri-
co do positivismo. Além do mais, ele
analisa os fundamentos sociais do
pensamento pré-científico: pensa-
tendo como primeira escala a Facul- ral detonado na Faculdade de Direito mento mágico etc.; mas a própria
dade de Direito do Recife. Este pro- do Recife, em 1870. ciência nele aparece soberanamen-
cesso irá adicionar novas característi- A chamada posição positivista te livre de vínculos sociais. Em ou-
cas às idéias positivistas, marcando advoga não ser possível um conhe- tras palavras: uma sociologia do co-
fundamentalmente a proliferação das cimento válido da realidade dis- nhecimento (científico), uma análi-
mesmas no país e o posterior desen- sociado do prisma científico. Um se da relação entre o saber e as clas-
volvimento da cultura brasileira. positivismo “ideal-típico” fundamen- ses sociais são contraditórias com
Palavras-chave: positivismo; cultura taria-se, então, em algumas premis- o quadro metodológico fundamental
brasileira; Faculdade de Direito do Re-
sas básicas que estruturariam um do positivismo”. (Löwy, 1987, p.18)
cife.
sistema coerente e operacional: a A idéia de transportar o modelo
SUMMARY sociedade, assim como a natureza, das ciências naturais para a análise
This article aims at investigating the é regida por leis naturais invariáveis, da sociedade surge no século XVIII,
penetration of the different positivist que independem da vontade e da na Europa do Iluminismo. Era uma
doctrines in Brazil since 1870, having ação humana; a sociedade pode ser plataforma intelectual da burguesia
as first step Recife’s Law School. This epistemologicamente assimilada nascente contra a ordem feudal abso-
process will add new characteristics pela natureza e ser analisada pelos lutista. Dos iluministas, Condorcet
to the positivist ideas, fundamentally mesmos métodos utilizados pelas (1743-1794) é o que mais contribuiu
stressing its spread throughout the ciências da natureza; as ciências da para a tentativa de se instituírem leis
country and the subsequent
sociedade, assim como as da natu- naturais para a sociedade. Condorcet,
development of Brazilian culture.
Keywords: positivism; Brazilian culture;
reza, devem limitar-se à observação ao se interessar por economia políti-
Recife’s Law School. e à identificação das causas dos fe- ca, começa a valorizar a precisão da
nômenos, de forma objetiva, neutra, matemática e a especular a validade
RESUMEN livre de julgamentos de valor ou de destes métodos para os fatos sociais.
Este artículo se propone a investigar ideologias. Em suma, uma ciência Considera os métodos das ciências
la penetración de las diferentes axilogicamente neutra, considerada naturais de grande valor para as ciên-
doctrinas positivistas en Brasil, a par- o único conhecimento válido. cias da sociedade.
tir del 1870, tendo como primera es- Michel Löwy, em estudo sobre o O ideal de ciência neutral vai ser
cala la Facultad de Derecho de la ciudad positivismo, comenta as implica- o cerne do pensamento positivista,
de Recife. Este proceso añadirá ções da premissa da neutralidade da que atinge o auge no século XIX. É
nuevas características a las idéias
ciência, no caso das ciências so- importante observar o caráter revo-
positivistas, marcando fundamental-
mente la proliferación de las mismas
ciais: “O axioma da neutralidade lucionário do surgimento desta idéia
en el país y el posterior desarrollo de la valorativa das ciências sociais con- no contexto do Iluminismo, como
cultura brasileña. duz, logicamente, o positivismo a ressalta Michael Löwy: “Mas, há
Palabras-clave: positivismo; cultura negar - ou melhor, a ignorar - o con- ainda em Condorcet uma significa-
brasileña; Facultad de Derecho de dicionamento histórico-social do co- ção utópico-crítica: seu objetivo con-
Recife. nhecimento. A própria questão da fesso é o de emancipar o conheci-
relação entre conhecimento científi- mento social dos “interesses e pai-
co e classes sociais geralmente não xões” das classes dominantes. O

50
LOGOS

cientificismo positivista é aqui um (1820-1903) e o monismo de Haeckel Talvez uma das explicações para a
instrumento de luta contra o obscu- (1834-1910), dois dos principais repercussão do positivismo de Augusto
rantismo clerical, as doutrinas teo- positivistas concomitantes a Comte. Comte seria o esforço do intelectual
lógicas, os argumentos de autorida- O positivismo de Herbert Spencer francês e de seus discípulos para in-
de, os axiomas a priori da Igreja, os está mais preocupado em mostrar a corporar diversos positivismos - nem
dogmas imutáveis da doutrina so- gênese evolutiva dos fatos mais com- todos - sob uma égide comum. Esta
cial e política feudal.” (Löwy, 1987, plexos a partir dos mais simples do incorporação de teorias e de autores
p.19 e 20) que em fixar leis gerais não-dinâmi- (com menos ênfase em autores con-
Contudo, essas idéias surgidas no cas. Pode-se dizer que o positivismo temporâneos a Comte), mas sempre
Iluminismo, de caráter revolucioná- de Spencer enfoca preferencialmente com aspectos cientificistas, materia-
rio, vão ser transformadas no sécu- o desenvolvimento dos fatos no tem- listas, anticlericalistas ou antiabso-
lo XIX com Augusto Comte (1798- po, pois a evolução dos mesmos obe- lutistas por parte da corrente comtiana,
1857), em um sistema conceitual e dece a procedimentos semelhantes pode ser observada nas recomenda-
axiológico que tende à defesa da or- aos dos organismos vivos. Este ções de leituras extraídas do Tratado
dem vigente. A intenção comtista de evolucionismo de Spencer é, inicial- sobre os ares, as águas e os lugares,
fixar as leis naturais que regulam a mente, idêntico ao da Origem das de Hipócrates, (sem data, mas prova-
sociedade tem como meta a manu- Espécies, de Charles Darwin (1809- velmente publicado na primeira déca-
tenção das conquistas das revolu- 1882). Porém, estende o conceito bio- da do século XX) da Igreja e Apostolado
ções burguesas. O método positivo lógico para a análise da sociedade. A Positivista do Brasil. Sob o título Biblio-
de Comte visa afastar as críticas evolução, para Spencer, é progresso teca positivista ou sistema de leituras
negativas e subversivas oriundas do necessário e só acabará, no que se aconselhadas por Augusto Comte, são
antigo Iluminismo e dos socialismos refere ao homem, com a máxima per- recomendados um total de 150 volu-
que surgem. feição e a mais completa felicidade. mes, divididos pelas áreas de poesia,
Comte retomará a idéia de que a Ernst Haeckel também procurou ciência, história e síntese.
ciência da sociedade pertence ao sis- reconstituir toda a evolução dos se- Alguns dos autores e obras su-
tema das ciências naturais, porém res vivos. Formulou uma teoria geridos são os seguintes:
suas intenções serão conservado- evolucionista mais ampla do que a - Poesia (no sentido de obra lite-
ras. Para Comte, objetividade e neu- de Darwin e a de Spencer, aplicável rária): Homero (Ilíada e Odisséia);
tralidade podem ser “importadas” a todo universo, que foi denominada Cervantes (D. Quixote e Novelas
das ciências naturais, instituindo-se de “monismo”. Seu monismo natu- exemplares); Byron - Obras escolhi-
uma ciência natural da sociedade, ou ralista fundia ciência, religião e filo- das (suprimindo nomeadamente o D.
uma “física social”, tão neutra e sofia, concebendo que espírito e ma- Juan);
objetiva quanto a astronomia e a téria eram aspectos diferentes da - Ciência: Condorcet (Aritimética);
química: “Sem admirar nem maldi- mesma substância. Esta fusão tinha Descartes (Geometria); Lamarck (Fi-
zer os fatos políticos, vendo-os es- a intenção de revelar a hegemonia losofia Zoológica); Duméril (História
sencialmente, como em qualquer do material e do objetivo e não de natural);2
outra ciência, como simples temas um subjetivismo metafísico ou de - História: Hume (História da In-
de observação, a física social con- um equilíbrio de importância entre glaterra); Gibbon (História da deca-
sidera, portanto, cada fenômeno sob matéria e espírito. dência romana); Plutarco (Vidas de
o duplo ponto de vista elementar de Outras idéias originárias das ciên- homens ilustres);
sua harmonia com os fenômenos cias naturais também tiveram bas- - Síntese (obras gerais): Aristóteles
coexistentes e de seu encadeamen- tante penetração na época, como é (Política e Moral); Descartes (Discur-
to com o estado anterior e posterior o caso do determinismo de Hippolyte so sobre o método); Gall (Tratado so-
do desenvolvimento humano”. Taine (1828-1893), que subordinava bre as funções do cérebro); Adão
(Comte, apud Löwy, 1987, p.24) indivíduo e raça a fatores geográfi- Smith (Ensaio sobre a história da as-
Essa valorização extrema de um cos, de hereditariedade, de ambien- tronomia).3
tipo de conhecimento, o científico, e te e a circunstâncias determinadas. As diferentes teorias cientificistas
a adoção do modelo das ciências Outro estudo, vindo agora da ciência européias vão chegar ao Brasil a par-
naturais tiveram diversas manifes- médica e que mobilizou os meios in- tir da década de 1870 e abalarão as
tações durante o século XIX, embo- telectuais, foi o conceito psicofi- concepções filosóficas e científicas
ra o positivismo de Comte tenha sido siológico de Claude Bernard (1813- existentes. O exame do percurso des-
a mais visível, constituindo-se em 1878), que associava o comporta- tas idéias no Brasil mostra o papel
um sistema com aceitação ampla mento psíquico ao funcionamento difusor dos intelectuais que se agru-
nos meios intelectuais da época e do organismo humano. Até mesmo pavam em torno da Faculdade de Di-
exercendo influência em teorias e a religião e a Igreja eram discutidos reito de Recife e que se autodeno-
pensamentos posteriores. em termos científicos. O anti - minaram a Escola do Recife.
A romantização da ciência, eleva- clericalismo de Ernest Renan atin- Cruz Costa, no Panorama da His-
da à condição de único conhecimen- giu grande repercussão, realizando tória da Filosofia no Brasil, revela a
to possível e válido, marca também estudos sobre as origens histórico- influência dos outros positivismos na
o evolucionismo de Herbert Spencer biográficas de Jesus Cristo. história intelectual do Brasil na se-

51
LOGOS

gunda metade do século XIX, ao no Brasil antes de 1870: “Até 1868 la. Nas regiões do pensamento teóri-
lado do positivismo de Comte, e o catolicismo reinante não tinha co, o travamento da peleja foi ainda
identifica o caráter simplista dessas sofrido nestas plagas o mais leve mais formidável, porque o atraso era
filosofias como explicação para o abalo; a filosofia espiritualista, ca- horroroso. Um bando de idéias novas
seu sucesso: “Outras correntes do tólica e eclética, a mais insignifican- esvoaçou sobre nós de todos pontos
pensamento filosófico europeu tam- te oposição; a autoridade das insti- do horizonte. Hoje depois de mais de
bém aqui atuaram e, entre elas, a tuições monárquicas, o menor ata- trinta anos; hoje que são elas corren-
concorrer com o positivismo, o que sério por qualquer classe do tes e andam por todas cabeças, não
evolucionismo. Foi ainda o caráter povo; a instituição servil e os direi- têm mais o sabor de novidade, nem
científico, positivo, dessa tendência tos tradicionais do feudalismo prá- lembram mais as feridas, que para as
filosófica, tão próxima do Positi- tico dos grandes proprietários a espalhar, sofremos os combatentes do
vismo, que atraiu as elites brasilei- mais indireta opugnação; o roman- grande decênio: positivismo, evolu-
ras. A doutrina evolucionista de tismo, com seus doces enganosos cionismo, darwinismo, crítica religio-
Herbert Spencer, embora não negue, e encantadores cismares, a mais sa, naturalismo, cientificismo na poe-
põe em dúvida o valor da Metafísica apagada desavença reatora. Tudo sia e no romance, folclore, novos pro-
e afirma que todo o conhecimento tinha adormecido à sombra do man- cessos de crítica e de história literá-
está contido nas ciências. Esta filo- to do príncipe feliz que havia acaba- ria, transformação da instrução do di-
sofia naturalista, simplista e simpli- do com o caudilhismo nas provín- reito e da política, tudo se agitou e o
ficadora condizia com a mentalida- cias da América do Sul e preparado brado de alarma partiu da Escola do
de dos letrados, quase todos auto- a engrenagem da peça política de Recife”. (apud Bosi, 1994, p.166)
didatas, pouco inclinados às abstra- centralização mais coesa que já uma Silvio Romero fixa o momento do
ções, aceitando facilmente tudo vez houve na história de um grande desencadeamento da ruptura anti-
quanto dispensasse um trabalho men- país”. (apud Bosi, 1994, p.165) romântica na produção crítica de
tal contínuo e fatigante. As idéias defi- Em seguida, Silvio Romero mos- seu mestre Tobias Barreto. Romero
nitivas (ou as que assim lhes afigura- tra o surgimento de um novo mo- insiste, em vários textos, em co-
vam ser) pareciam-lhes constituir a mento político, extremamente per- mentar o caráter desbravador de seu
verdadeira essência da sabedoria”. meável ao “bando de idéias novas” amigo, tornando-o um verdadeiro
(Cruz Costa, 1959, p.49) que vinham da Europa: “De repente, símbolo do intelectual militante,
Este tipo de crítica de Cruz Costa por um movimento subterrâneo que divulgador de idéias. No ensaio “A
faz parte de uma linhagem de críti- vinha de longe, a instabilidade de prioridade de Pernambuco no movi-
cas contra as influências de idéias todas as coisas se mostrou e o so- mento espiritual brasileiro”, mais
estrangeiras no pensamento brasi- fisma do império apareceu em toda uma vez destaca a busca por no-
leiro, que acabam se sedimentando sua nudez. A guerra do Paraguai es- vos autores e teorias de Tobias
nos dias de hoje na crítica de tava ainda a mostrar a todas as vis- Barreto, especificando quais seriam
Roberto Schwarz, que elabora o con- tas os imensos defeitos de nossa as “fontes”: “Desde 1870 que ,
ceito de “idéias fora do lugar” para organização militar e o acanhado de abandonando quase totalmente a
descrever a inadequação das idéias nossos progressos sociais, desven- poesia, atirou-se à crítica em seus
importadas. Nas palavras do intelec- dando repugnantemente a chaga da variados ramos. A sua nova intui-
tual paulista: “Ao longo de sua re- escravidão; e então a questão dos ção, elaborada pelo estudo profun-
produção social, incansavelmente o cativos se agita e logo após é se- do do positivismo, do darwinismo,
Brasil põe e repõe idéias européias, guida a questão religiosa; tudo se das escolas de ciência religiosa ale-
sempre no sentido impróprio”. põe em discussão: o aparelho mã, maxime a strussbauriana, pela
(Schwarz, 1992, p.24) sofístico das eleições, o sistema de leitura dos litera-historikern, como
No que tange a essa questão, na arrocho das instituições policiais e Julian Schimdt e Treitschk, e dos
segunda metade do século XIX, o que da magistratura e inúmeros proble- publicistas, como Mohl e Gneist,
acontece é, na verdade, uma guina- mas econômicos: o partido liberal, derramou-se em vários escritos. (...)
da contra o predomínio das idéias expelido grosseiramente do poder, O novíssimo germanismo de Tobias
metafísicas e religiosas sobre a comove-se desusadamente e lan- Barreto, ainda não aplaudido em par-
intelectualidade brasileira. Esta trans- ça aos quatro ventos um programa te alguma do Império, e antes mui-
formação começa em 1870, na Fa- de extrema democracia, quase um to desdenhado, firma-se quanto à
culdade de Direito do Recife, que se verdadeiro socialismo; o partido re- ciência, na intuição monística do
tornou um centro aglutinador de inte- publicano se organiza e inicia uma mundo e da humanidade e pressu-
lectuais. Tobias Barreto (1837-1879) propaganda tenaz que nada iria pa- põe o conhecimento de Comte e de
e seu fiel discípulo Silvio Romero rar”. (apud Bosi, 1994, p.165 e 166) Darwin, e, na literatura, promove im-
(1851-1914) foram os detonadores Romero cita ainda as mudanças plicitamente o princípio da seleção
desta reação, consubstanciada na no campo teórico, revelando “o ban- natural entre as nações, fazendo-
chamada Escola do Recife. do de idéias novas” que chegavam nos jogar à margem as migalhas da
Romero, em 1926, faz um balan- ao Brasil, com primeira parada na civilização francesa, e mergulhar na
ço desse período. Inicialmente, Faculdade de Direito do Recife: “Na grande corrente da cultura alemã”.
mostra como era o quadro cultural política é um mundo inteiro que vaci- (apud Sodré, 1959, p.167)

52
LOGOS

Cruz Costa, mesmo com uma rantes que não sabem de nada.” Notas
postura bastante crítica em relação (apud Schwarcz, 1995, p.148) 1
Usaremos os termos positivista e posi-
às filosofias “importadas” da Euro- Longe da metafísica e do subje- tivismo em sentido lato; quando nos referir-
pa, em especial as germânicas, tivismo, viviam os intelectuais mos ao positivismo de Augusto Comte, isto
como vimos anteriormente, consta- recifenses o ideal de estarem não será explicitado.
ta o papel importantíssimo desem- somente criando teorias, mas tam- 2
Não encontramos a recomendação de
penhado por elas no contexto inte- bém construindo uma nova nação. Origem das espécies de Darwin pelo fato
lectual brasileiro a que nos referi- Os alunos e futuros mestres da Fa- de o evolucionismo darwiniano não ser acei-
mos: “O espencerismo e as corren- culdade de Direito do Recife vinham, to, em vários aspectos, pelos positivistas
tes do evolucionismo alemão te- majoritariamente, de setores da clas- comtianos, sendo, de algum modo, movi-
riam, assim, o seu momento de in- se média urbana, distantes dos pa- mentos antagônicos.
3
Neste item são incluídos ainda a maior par-
fluência na história intelectual do rentescos e dos compromissos com
te dos textos do próprio Comte e textos
Brasil: o espencerismo, numa for- os proprietários rurais. Para esses religiosos, como a Bíblia e o Alcorão (prova-
ma difusa, coincidia com o libera- estudantes, o que os tornava espe- velmente como objeto científico para estu-
lismo da época; e o evolucionismo ciais e poderosos era o significativo dos e não como doutrinas a serem segui-
alemão, modalidade das vicissitu- conhecimento científico que julga- das). (Hipócrates, s/d)
des do materialismo germânico, foi vam ter atingido. Para esses intelec-
como ‘uma rajada de pensamento tuais, a ciência tudo podia e eles ti-
livre, de cultura moderna’, no dizer nham uma verdadeira missão revo-
de Graça Aranha, que passou pelo lucionária a ser cumprida. Bibliografia
Brasil”. (Cruz Costa, 1959, p.50) Esta geração, liderada primeira- BESSIS, Henriette et al. A ciência e o imagi-
Essas concepções positivistas mente por Tobias Barreto e, depois, nário. Brasília: UNB, 1994.
presentes no Brasil, na época, es- nos anos 70, por Silvio Romero, BOSI, Alfredo. História concisa da literatura
tariam, então, mais próximas do es- autodefinia-se baluarte dos novos brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
pírito revolucionário do Iluminismo tempos, uma elite ungida pela ciên- CRUZ COSTA, João. Panorama da história
da filosofia no Brasil. São Paulo: Cultrix,
do que do espírito conservador do cia. “O Brasil depende exclusiva-
1959.
positivismo comtiano. Os alunos da mente de nós e está em nossas HIPÓCRATES. Tratado sobre os ares, as
Faculdade de Direito de Recife mo- mãos. O futuro nos pertence”, (apud águas e os lugares. Igreja e apostolado
viam uma verdadeira “guerra san- Schwarcz, 1995, p.150) dizia o positivista do Brasil, s/d.
ta” contra as antigas teorias, repre- paraninfo da turma de 1900, afir- LINS, Ivan. História do Positivismo no Bra-
sentadas genericamente pelo que mando uma legitimidade que não sil. São Paulo: Companhia Editora Nacio-
chamavam de metafísica. A defe- lhes fora concedida, mas conquis- nal, 1967.
sa de tese de doutorado de Silvio tada e assumida. LÖWY, Michael. As aventuras de Karl Marx
Romero foi transformada em ato po- Finalmente, a Faculdade de Di- contra o Barão de Münchhausen: marxis-
lítico, tendo o evento atingido o auge reito de Recife da segunda metade mo e positivismo na sociologia do conhe-
no diálogo tenso entre o doutorando do século XIX provavelmente foi a cimento. São Paulo: Busca Vida, 1987.
NEVES, Luiz Felipe Baêta. A construção do
e um dos integrantes da banca, instituição acadêmica brasileira que
discurso científico: implicações sócio-cul-
Coelho Rodrigues. O debate ficou mais se apegou de forma radical às turais. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1998.
mais ríspido quando o argüente re- doutrinas cientificistas vindas da Eu- SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das
clamou da oposição de Silvio ropa e à um certa ética correspon- raças: cientistas, instituições e questão
Romero à metafísca: dente a elas. Afastados dos centros racial no Brasil - 1870 – 1930. São Paulo:
“ - Nisto não há metafísica, há de decisão política do país, esses Cia. das Letras, 1995.
lógica, [respondeu o doutorando] pesquisadores viviam a certeza de SCHWARZ, Roberto. “As idéias fora do lu-
- A lógica não exclui a metafísica, que representavam a vanguarda gar” in Ao vencedor as batatas. São Pau-
replicou o argüente. científica do Brasil. “Saibamos ser lo: Livraria Duas Cidades, 1992.
- A metafísica não existe mais, homens de nosso tempo, saibamos SODRÉ, Nelson Werneck. O naturalismo no
Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasilei-
se não o sabia, o saiba, treplicou o ser científicos” (apud Schwarcz,
ra, 1965.
doutorando. Lilia Moritz, 1995, p.151), afirmava
- Não sabia, retrucou [o profes- o professor Octavio Tavares em
sor]. 1910 aos colegas da Faculdade. In-
- Pois vá estudar e aprender para teressante ressaltar que essas teo-
saber que a metafísica está morta. rias que incorporavam não eram das
- Foi o senhor quem a matou?, ciências naturais propriamente di-
perguntou-lhe então o professor. tas, mas das ciências socias apli-
- Foi o progresso, a civilização, cadas, tais como o Direito e a nas-
respondeu o bacharel Silvio Romero, cente Sociologia, que tomam de
que ato contínuo se levantou, tomou empréstimo as metodologias posi- * Teodoro Koracakis é bacharel
os livros que estavam sobre a mesa tivistas das ciências naturais. em Comunicação Social pela
e disse com ar triunfante: - Não es- PUC/RJ e Pós-graduando em Li-
tou para aturar esta corja de igno- teratura Brasileira da UERJ.

53
LOGOS

O positivismo e o movimento
espírita no Brasil
Alexander José de Souza e
Aline Rocha Bieites*

RESUMO
A idéia de progresso atravessa uma série
de sistemas de pensamento que marca-
ram a sociedade ocidental moderna. A filo-
“ O amor por princípio, a ordem
por base, o progresso por
fim”.
(Máxima positivista)
“Nascer, morrer, renascer,
o seu grau de institucionalização.
Trata-se do espiritismo, doutrina sis-
tematizada por Allan Kardec, pseu-
dônimo de Hipolite Léon Denizard
Rivail (1804-1869).
sofia positivista estabeleceu esta idéia progredir – tal é a lei”. Este artigo tem como proposta
como eixo interpretativo para toda a dinâ-
mica social. Pela apreciação de categorias (Ensinamento kardecista) refletir sobre as possíveis convergên-
e estruturas análogas entre positivismo e cias entre esses momentos, que à
espiritismo, com ênfase em sua ascen- Os últimos decênios do século XIX primeira vista nada teriam em co-
são no imaginário social brasileiro, este tex- assistiram à intensa difusão da filoso- mum. Busca-se apreciar positivismo
to propõe-se a examinar esses movimen- fia positivista no Brasil. Sobretudo atra- e espiritismo, tanto na aproximação
tos como manifestações do poderoso vés do Apostolado Positivista, movi- entre suas práticas discursivas, quan-
ideário progressista.
Palavras-chave: positivismo; espiritismo; mento que enfatizava a dimensão re- to na apropriação e difusão dessas
identidade brasileira. ligiosa da obra de Augusto Comte práticas em expressões do imaginá-
(1798–1857), e que exerceu forte in- rio religioso no Brasil. O que nos ins-
SUMMARY fluência na República em instauração. pira a palmilhar esse caminho pouco
The idea of progress goes through a series O lema “ordem e progresso” eter- explorado é a esperança de que, pelo
of thought systems that have characterized nizou na bandeira nacional as mar- exame de propostas aparentemente
modern western society. The positivist cas desta forte matriz positivista, tor- antagônicas, iniciemos uma reflexão
philosophy has established such idea as
an interpretative axis for the whole social
nando as terras brasileiras o mais que possa contribuir para a compreen-
dynamics. By appreciating the categories fecundo solo ideológico no qual o são da polissêmica e contraditória so-
and analogical structures between positivismo lançou raízes, superando ciedade brasileira.
positivism and spiritualism, and by em muito a repercussão obtida em
emphasizing its growth in Brazilian social ***
sua terra natal, a França. Se é verda-
imagining, this text proposes the examination de que o positivismo constituiu vas- Antes de apreciar o desenrolar
of these movements as manifestations of
the powerful progressivism ideas.
ta influência filosófica em toda a so- desses movimentos no Brasil, fa-
Keywords: positivism; spiritualism; Brazilian ciedade ocidental, sua acolhida no zem-se necessárias algumas bre-
identity. Brasil revela contornos excepcio- ves digressões que forneçam sub-
nais. O Templo da Humanidade, 1 sídios para melhor dimensioná-los.
RESUMEN magnífica construção edificada no O contexto sócio-cultural em que
La idea de progreso cruza una série de sis- Rio de Janeiro pelos membros do surgem positivismo e espiritismo
temas de pensamiento que marcaron la Apostolado, materializa essa recepti- era de crise e de reorganização da
sociedade ocidental moderna. La filosofía
positivista estableció esta idea como eje
vidade singular, configurando-se no sociedade ocidental. O poder exer-
interpretativo para toda la dinámica social. mais significativo esforço de institu- cido pela Igreja no decorrer da Ida-
Por la apreciación de categorias y estrutu- cionalização do positivismo. de Média vinha perdendo espaço,
ras análogas entre positivismo y espiritis- Simultaneamente à intensa difu- desde a Reforma Protestante do
mo, con ênfasis en su ascensión en el são da filosofia positivista no Brasil, século XVI. Até então, a concepção
imaginario social brasileño, este texto se outro sistema de pensamento de pro- teológica pressupunha um universo
propone a examinar estos movimentos
como manifestaciones del poderoso ideario
veniência francesa aportou nas ter- estável, criado e mantido por uma
progresista. ras brasileiras na segunda metade do força maior, na qual a organização
Palabras-clave: positivismo; espiritismo; século passado. Sua penetração no social obtinha legitimidade. Falar
identidad brasileña. Brasil superou em muito a atingida sobre dinâmica social não faria sen-
em qualquer outro local, assim como tido em um mundo estático, onde o

54
LOGOS

que foi, o que é e o que será se fun- iluminista. A visão de um universo ciso “agir com circunspecção e não
dem em um todo indiviso. regido por leis físicas passíveis de levianamente, ser positivista e não
Posteriormente, com o Ilumi- estudo colocava em xeque as expli- idealista, para me não deixar arrastar
nismo e a crescente valorização do cações de ordem divina. A busca por pelas ilusões.” (p.17)
papel da razão, a perspectiva teológi- alternativas às explicações de natu- Após estudar fenômenos espíritas,
ca ficou seriamente abalada. O sis- reza metafísica e teológica que do- tentar solucionar os problemas que lhe
tema absolutista, alicerçado em con- minaram a Idade Média tornava-se surgiam com a filosofia e a psicolo-
cepções teológicas, foi especialmen- uma necessidade cada vez mais pre- gia, Kardec propôs que o espiritismo
te contestado pela ênfase do racio- mente. Foi nesse contexto cultural fosse “uma nova ciência que vem re-
nalismo na condução do destino dos e intelectual que eclodiram o posi- velar aos homens, por provas irre-
homens. Seria este também um tema tivismo e o espiritismo. No caso do cusáveis, a existência e a natureza do
central no positivismo. Entende-se a primeiro, verifica-se um movimento mundo espiritual, e as suas relações
sua importância tendo em vista a cientificista e uma religião não-teo- com o mundo corpóreo.” (p.11) Clas-
inviabilidade de mudanças estruturais lógica.2 Quanto ao espiritismo, man- sificava-o também como filosofia, pois
enquanto a fé - base dos dogmas da tinha-se intacto o prestígio da divin- possuía uma conotação própria e inter-
Igreja - impedisse questionamentos dade, porém tal apelo ao transcen- pretava a vida. Estruturou, pois, o es-
sobre a ordem estabelecida. Essa dente não constituía, aos olhos de piritismo, nesses dois pilares: ciência
dinâmica somente iria adquirir inteli- seu fundador, obstáculo à investiga- e filosofia; surgindo daí duas catego-
gibilidade a partir de uma noção de ção científica, e sim um complemen- rias: moral e religião. Para Kardec, po-
progresso, que a concepção posi- to indispensável. dia-se traduzir filosofia por entendimen-
tivista viria plenamente sistematizar, to, ciência por conhecimento, moral por
***
legitimando teoricamente a transição bem proceder e religião por amor a
do poder sustentado em bases teoló- Nascido em Lyon, bacharel em Deus. Pregava que ciência e religião
gicas para uma concepção de Esta- Letras e Ciências e doutor em Medi- são as duas alavancas da inteligência
do fundamentado na razão. Nesta cina, Kardec voltou-se desde cedo humana, uma revelando as leis do
mudança de paradigmas consolida- para a Filosofia. Publicou dezessete mundo material e a outra, as do mun-
va-se, lenta, mas inexoravelmente, obras didático-pedagógicas, entre as do moral. Estas não poderiam contra-
a convicção de que a vida social po- quais gramáticas e manuais de arit- dizer-se, uma vez que possuiriam o
deria ser regida por uma “verdade”, mética. Professor, dirigiu uma esco- mesmo princípio: Deus.
a qual somente o conhecimento ci- la em 1825, fundando depois a pró-
entífico teria acesso. A idéia de pro- pria instituição de ensino, a Institui- ***
gresso colocou em pauta a questão ção Rivail, onde realizou trabalhos de
das dinâmicas sociais. Augusto Comte, por sua vez, con-
aprimoramento da inteligência. En-
Lembremos que, já no século cebeu a sociologia como a ciência da
tretanto, foi a partir da investigação
XIII, Tomás de Aquino, promoven- organização global da sociedade, que
dos chamados “fenômenos espíri-
do sua síntese entre o aristotelismo deveria, por definição, libertar-se de
tas” que Kardec se tornou mundial-
e o cristianismo, alegava a impos- qualquer influência teológica ou
mente conhecido como o codificador
sibilidade de conhecimento de Deus metafísica. Estabeleceu, assim, como
do espiritismo, também denomina-
e, em última instância, de todo co- elemento central em seu sistema, a
do kardecismo.
nhecimento, a não ser pela fé. Uma “Lei dos Três Estados”. Por ela, “cada
Lançou em 1857 o Livro dos Espí-
fenda aberta entre ciência e religião uma de nossas concepções principais,
ritos, no qual determinava as leis que
vinha se intensificando devido a cada ramo de nossos conhecimentos,
regem a convergência entre os dois
uma noção transcendente de Deus, passa sucessivamente por três esta-
planos de vida - o espiritual e o mate-
que o afastava da alma humana. dos históricos diferentes: estado teo-
rial -, erigindo no triângulo “passado-
Atitudes dirigidas pela razão e a idéia lógico ou fictício, estado metafísico ou
presente-futuro” toda a evolução do
de um mundo regido por leis natu- abstrato, estado científico ou positi-
ser humano em um duplo aspecto que
rais ganhavam força. Bases sólidas vo(...)” (1978, p.4)
supostamente o constituiria - alma e
e medidas precisas para o desen- Assim, as ciências evoluiriam de
corpo. Afirma ter estudado os fenô-
volvimento científico tornavam-se um estado teológico (que explica os
menos espíritas muito mais por ob-
os pilares de uma nova mentalida- acontecimentos recorrendo ao influ-
servação do que pelas revelações so-
de da qual Descartes fora um dos xo natural de dioses, seres ou enti-
brenaturais, aplicando à “nova ciên-
maiores sistematizadores. A revo- cia” (1994, p.16) o método de experi- dades superiores e sobrenaturais),
lução intelectual, iniciada no século mentação, observação, comparação para um estado metafísico (crença
XVII com Newton, fortalecia, a des- e dedução de conseqüências, susten- em formas ou essências universais)
peito da religiosidade deste, o mo- tando nunca formular teorias pré- e, finalmente, para um estado positi-
vimento acima mencionado. concebidas. Propõe a dedução das vo (busca das leis subjacentes aos
Tais teorias repercutiram decisiva- causas pelos efeitos, sem admitir fenômenos). Registre-se a significati-
mente por toda a Europa, e de forma como válida uma explicação quando va equivalência com o lugar atribuído
mais intensa na França, onde culmi- esta não podia resolver todas as difi- por Kardec ao espiritismo, como o úl-
naram por germinar o movimento culdades da questão, dizendo ser pre- timo estágio da evolução humana.3

55
LOGOS

O modelo de Comte, retomando idéias, ao menos no que diz respei- bre o imaginário da República, de-
os parâmetros das escolas empi- to às bases sobre as quais edifi- monstra o papel fundamental de
ristas, propunha a observação siste- caram suas doutrinas. Uma inabalá- positivistas como Benjamin Constant
mática para garantir a intersubje- vel e paradoxal “fé” na razão, uma e Demétrio Ribeiro em sua fundação
tividade de qualquer conhecimento. concepção de linearismo progressis- e constituição. Sem mencionar a in-
Para o positivismo, seria inerente à ta na qual se inscreveriam todos os tensa ação ideológica do Apostolado
evolução humana chegar ao ponto de fenômenos da vida humana e social Positivista, que, embora sem atuar
suprimir toda crença não fundamen- e a existência de leis subjacentes diretamente na política, constituiu-
tada em dados empíricos. A primei- aos fenômenos. Estas deveriam ser se, sobretudo através de Miguel Le-
ra etapa da obra de Comte negligen- incessantemente buscadas pela ob- mos e Teixeira Mendes, em decisi-
ciava o tema da religião, negando à servação e experimentação. Eis o va influência nos rumos da Repúbli-
fé o poder de provar a existência de ponto de partida das proposições ca brasileira. Quanto ao espiritismo,
Deus e reabilitando a lógica como ins- espíritas e positivistas. Giumbelli (1997), considerando as
trumento da ciência. Foram coloca- É claro que o positivismo, ampla- estimativas que apontam haver mi-
dos em segundo plano abstrações mente difundido, poderia ter influen- lhões de adeptos da doutrina no Bra-
relacionadas à ação, à vida, ao espí- ciado a formação da doutrina espíri- sil, bem como a amplitude da difu-
rito, aos valores e à personalidade, ta. No entanto, a categoria influên- são de seus valores e sistemas
pois havia uma necessidade de se cia não parece dar conta dessa com- representacionais, conclui que “a
rejeitar a explicação transcendental plexa temática. Falar em influências, impressão que se chega depois de
dos fenômenos. A existência era uma nesse caso, é problemático, tanto uma incursão pela literatura antropo-
questão científica e a religião tendia pela contemporaneidade dos auto- lógica, sociológica e historiográfica
a ser vista como uma utopia. res, quanto pelo reducionismo a dedicada ao espiritismo é a de sua
Entre 1845 e 1849, Comte dá iní- meras relações de causalidade que insuficiência diante da importância
cio à última etapa de sua obra com a esta noção muitas vezes evoca. 5 cultural, social e histórica do assun-
organização da Religião da Humani- Pensamos ser mais fecundo falar to em questão.” (p.15)
dade. Seu objetivo era reorganizar o em relações de analogia, em que, no A expansão de ambos os movi-
poder espiritual, que tem como ca- âmbito das singularidades conjun- mentos revela particularidades da
racterística a adoração da mulher turais, similaridades entre fenôme- identidade nacional brasileira. Mes-
como ser superior e anjo tutelar do nos não necessariamente sucessi- mo sem entrar na complexa ques-
homem. Devido a essas teorias re- vos ou homogêneos podem ajudar tão da formação nacional do Brasil,
cebeu críticas, além do rompimento em muito a compreensão do contex- mencionaremos, a título de ilustra-
de discípulos fiéis, como Émille to mais amplo em que se inserem, ção, uma área de tensão situada nas
Litrée, que não aceitavam tais incur- bem como a existência de bases ide- fronteiras das ideologias política e re-
sões nos domínios religiosos. ológicas com extraordinário poder de ligiosa. Trata-se do peculiar misticis-
A nova religião tentava resolver difusão e repercussão. mo tradicionalmente atribuído ao
os problemas humanos do ponto de Entretanto, somente uma análi- povo brasileiro, possivelmente em
vista intelectual, moral e material. se minuciosa das estruturas discur- decorrência do amálgama étnico so-
Segundo Paula (1978), Comte via a sivas que permeiam estes sistemas bre o qual se formou. Tal caracterís-
religião como um conjunto de princí- permitiriam avaliar o grau de simila- tica, que se revela em uma fé de
pios intelectuais, práticas afetivas e ridade ou mesmo de homologia ou contornos eminentemente sincré-
normas de vida capazes de fazer pre- de complementaridade. As preten- ticos aliada à afetividade, encontra-
valecer o altruísmo sobre o egoís- sões deste trabalho estão longe da ria ampla divulgação nas imagens do
mo. O objetivo da religião era o amor realização de tal empreitada, nos con- “homem cordial”. Buarque de Hollanda
através do culto, o conhecimento tentamos no momento em delinear parecia antever uma inviabilidade so-
através do dogma e a servidão atra- convergências e levantar questões cial nas manifestações do catolicis-
vés do regime, sendo que se deve- para o futuro, sem desconsiderar que mo popular: “religiosidade que se per-
ria amar, conhecer e servir à huma- podem constituir meras equivalênci- dia e se confundia num mundo sem
nidade no lugar da divindade. A pers- as pontuais, casuais idiossincrasias forma e que, por isso mesmo, não
pectiva apostólica contida no aspec- dos autores em questão ou mesmo tinha forças para lhe impor sua or-
to religioso da obra de Comte cons- expressões específicas de uma épo- dem”. (1994, p.111)
tituiu a dimensão mais amplamente ca conturbada por questionamentos. Mesmo atuando em planos dis-
difundida por seus seguidores no tintos, o discurso cientificista co-
***
Brasil, dentre os quais destacaram- mum ao positivismo e ao espiritis-
se Miguel Lemos e Teixeira Mendes. No Brasil, é possível afirmar que mo encontrava-se lado a lado no
estes movimentos, simultaneamen- combate entre as luzes da razão e
***
te portadores e agentes do poderoso as trevas do arcaísmo. Configurava-
Por estas breves considerações ideário cientificista, obtiveram am- se no Brasil, talvez um pouco tardia-
vemos que os contemporâneos pla expansão em uma diversidade mente, a complexa transição de uma
Comte e Kardec4 estavam conside- de dimensões do imaginário social. organização social baseada em prin-
ravelmente próximos no plano das Carvalho (1990), em seu estudo so- cípios teológicos para uma sociedade

56
LOGOS

fundamentada na razão, observadas cial, poderia representar à Repúbli- tação teológica e mesmo fetichista,
por Gilberto Freyre em Ordem e Pro- ca em formação pode ser encontra- aqui tão difundidas. Maggie (1975,
gresso (1959, p.742): “(...) Supera- do na Guerra de Canudos (1893- p.12), ao analisar o lugar atribuído à
ção difícil mas que se realizou atra- 1896). O movimento messiânico li- tradição negra nos estudos sobre o
vés de uma valorização mítica de derado por Antônio Conselheiro nos sincretismo, ressalta os estigmas de
quanto pudesse ser qualificado como sertões da Bahia, que tantos reve- primitivismo e fetichismo, que a co-
‘científico’: empenho que as elites zes propiciou ao governo, tinha locava “frente às outras religiões,
positivistas ou parapositivistas con- como característica o desprezo aos num estágio inferior de evolução cul-
seguiram de algum modo comuni- ideais republicanos e apregoava tural” . Como demonstra Bastide
car a outros grupos da população bra- obediência incondicional a um Rei (1985), a persistência dos “candom-
sileira. Donde a época aqui conside- miticamente idealizado. blés”, cuja “inconveniência” para
rada ter se tornado de glorificação da Mais do que sufocar belicamen- segmentos da sociedade branca tra-
parte, senão da massa, da grande te a pretensa “revolução” – o que duzia-se por vezes em violenta re-
parte da gente média, de ‘governo se deu por meio de um dos mais pressão, expressava de certa forma
científico’, de ‘política científica’, de violentos episódios da história bra- a sobrevivência do primitivo, da su-
‘diplomacia científica’, e até de ‘es- sileira -, cabia à República funda- perstição e do atraso. A chegada do
piritismo científico’ ou de ‘religião ci- mentar ideologicamente seus atos. espiritismo de mesa, 6 avesso às
entífica’”. Freyre já antevia que a O morticínio implementado em Belo ritualidades, de origem européia, foi
questão básica era a busca de uma Monte, denominação dada à região bem-vinda em diversos aspectos.
legitimidade científica, que se expri- onde se erigiu o “arraial” de Canu- Por um lado, viabilizou, por assim
misse nos mais diversos âmbitos, dos, nada mais seria do que um dizer, uma forma “evoluída” de re-
da política à cultura, da religião aos ato de barbárie, não fosse a íntima correr aos espíritos. Por outro, per-
negócios públicos. associação entre a empreitada mi- mitia enquadrar o candomblé e ou-
Estes movimentos, cuja propos- litar republicana e a “marcha inexo- tras práticas ditas “primitivas”,
ta maior consistia na busca do pro- rável da civilização rumo ao progres- como estágios, degraus de uma es-
gresso, na subordinação ao crivo da so, mais uma batalha vencida pela cada de evolução espiritual, que ia
razão e da ciência, tornavam-se ex- razão contra as forças retrógradas do arcaísmo pagão à sofisticação
tremamente bem-vindos. Desta di- do arcaísmo”. Em Os Sertões , da espiritualidade européia, para a
nâmica podemos obter alguns ele- Euclides da Cunha chega a classifi- qual a doutrina kardecista represen-
mentos para compreensão tanto da car o Conselheiro como “espécie de taria o ápice: “... os traços de ori-
apropriação de ideais positivistas grande homem pelo avesso... reu- gem africana foram colocados no
pelos implementadores da Repúbli- nia no misticismo doentio todos os vértice mais baixo da ´evolução
ca brasileira como da extraordinária erros e superstições que foram o cultural`, seguidos dos traços indí-
difusão do espiritismo em todo o ter- coeficiente de redução de nossa na- genas e dos traços católicos, assi-
ritório nacional. Do lema positivista cionalidade” (apud Hermann, 1997, milados de forma primitiva. No vér-
“O amor por princípio, a ordem por p.19), e, ao referir-se ao sertanejo, tice mais elevado dessa evolução
base e o progresso por fim”, curio- faz uma clara alusão à concepção cultural, colocavam-se os traços es-
samente, da tríade original, amor- positivista que norteou os ideais re- píritas.” (Maggie, 1975, p.12)
ordem-progresso, foi excluído o pri- publicanos: “... Está na fase reli-
***
meiro elemento, que poderia trazer giosa de um monoteísmo incom-
indesejáveis alusões no plano afetivo preendido, eivado de misticismo ex- Não pretendemos, neste curto re-
e familiar, dos quais se buscava es- travagante, em que se debate o lato, ter respondido às questões so-
tabelecer um distanciamento. fetichismo do índio e do africano. É bre as relações entre o positivismo
A superação de um regime fun- o homem primitivo, audacioso e for- e o espiritismo. Esperamos, contu-
damentado em concepções teológi- te, mas ao mesmo tempo crédulo, do, ter sido bem sucedidos ao pro-
cas tornava-se imprescindível, as- deixando-se facilmente arrebatar por, mediante uma aproximação
sim, para a organização de uma so- pelas superstições mais absurdas” nada usual, uma reflexão sobre a
ciedade em torno de um contrato (apud Tolentino, 1998, p.36) matriz cientificista inerente aos sis-
social de natureza política. Entretan- temas de pensamento elaborados
***
to, a forte tradição teológica que o por Augusto Comte e Alan Kardec.
catolicismo emprestara ao Brasil fa- A inserção e a difusão do karde- Verificamos que kardecismo e
zia com que tal superação assumis- cismo no imaginário social brasilei- positivismo assemelhavam-se espe-
se aspectos delicados, requerendo ro, embora não sigam o mesmo per- cialmente pela ênfase na organiza-
ampla legitimação ideológica para se curso do positivismo, parecem sub- ção de conceitos em sistemas que
efetivar. Sabemos que tal transição metidas a uma dinâmica discursiva pressupunham verificações empí-
gerou embates não só ideológicos similar. A batalha por uma funda- ricas. Ambos introduziram novos en-
como militares. Um exemplo para- mentação racional da prática religio- tendimentos para fenômenos e
digmático da ameaça que a índole sa – cerne da doutrina espírita – deu- dogmas do cristianismo e idealizaram
mística do catolicismo popular, uma se sobretudo nas relações com as religiões que objetivavam a reorgani-
vez convertida em movimento so- crenças africanas, de forte cono- zação do poder espiritual, propondo

57
LOGOS

alternativas ao catolicismo em crise. Notas Bibliografia


Frente à incapacidade de explicar os 1
Movimento fundado em 11 de maio de BAÊTA NEVES, L. F. Construção do discur-
fenômenos do universo pela religião, 1881 por Miguel Lemos, com sede na Rua so teórico. Rio de Janeiro: EdUERJ: 1998
surgiram estes sistemas como ex- Benjamin Constant, 74, Glória. Com impres- BASTIDE, R. As religiões africanas no Bra-
pressão científica de antigas proble- sionante estrutura arquitetônica, trata-se sil. São Paulo: Pioneira, 1985.
máticas religiosas. do primeiro edifício construído para difun- CARVALHO, J.M. A formação das almas –
Avaliar o grau de profundidade ou dir a Religião da Humanidade, sistematiza- O imaginário da República no Brasil. São
“permanência” dos ideais expressos da por Augusto Comte. Paulo: Cia. das Letras, 1990.
no positivismo e no kardecismo re- 2
A respeito do sentido atribuído por Comte COMTE, A. Comte. Coleção “Os Pensa-
vela-se problemático, principalmen- ao termo religião, encontramos no Cate- dores”. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
te, pela plasticidade que marcou a cismo Positivista as seguintes considera- CUPANI, A. A crítica ao positivismo e o
ções: “Em si mesmo este vocábulo indica futuro da filosofia: Florianópolis. UFSC,
difusão destes sistemas em seus
o estado de completa unidade que distin- 1985.
distintos planos de atuação. Corre- DURAND, G. O imaginário. Rio de Janeiro:
mos um duplo risco: o de subesti- gue nossa existência, a um tempo pesso-
al e social, quando toda as suas partes, Difel, 1998.
mar esta permanência se nos FREYRE, G. Ordem e Progresso. Rio de
tanto morais como físicas convergem para
ativermos às manifestações ins- Janeiro: José Olympio, 1959.
um destino comum. Assim este termo
titucionais hoje visíveis; ou de per- seria equivalente à palavra síntese, se esta GIUMBELLI, E. O cuidado dos mortos.
dermos os parâmetros de discussão não estivesse, não por sua própria estru- Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.
em busca de marcas, tanto de uma tura, mas segundo um uso quase univer- HERMANN, J. Canudos: a terra dos ho-
“mentalidade positivista” no meio mens de Deus. In: Estudos – Sociedade
sal, limitada agora só aos domínios do es-
acadêmico, quanto de “manifesta- e Agricultura. Rio de Janeiro: UFRRJ,
pírito, ao passo que a outra compreende o
ções” da doutrina de Kardec na 1997.
conjunto dos atributos humanos.” ([1852]
HOLANDA, S. B. Raízes do Brasil. Rio de
pluralidade religiosa brasileira. Des- 1978, p.139)
Janeiro, 1990.
conhecemos até o momento auto- 3
Tal concepção de um progresso em três
KARDEC, A O livro dos espíritos. São Pau-
res que tenham realizado tal articu- fases não constitui propriamente uma ino-
lo: FEESP, 1986.
lação, ou seja, consideramos que vação, sendo um modelo com preceden-
_____. O que é espiritismo. Rio de Janei-
uma aproximação teórica sólida en- tes bastante antigos. Segundo Durand, os
ro: FEB, 1994.
tre positivismo e espiritismo como primeiros registros de tal concepção re-
_____. Definições espíritas. Niterói: Lachâtre,
montariam ao século XII, com o abade
expressões do ideário cientificista, 1997.
Joaquim de Flore, o qual “situa o progres-
no âmbito das práticas sócio-cultu- MAGGIE, I. Guerra de Orixá. Rio de Janei-
so inelutável da humanidade em três épo- ro: Zahar, 1975.
rais brasileiras, seja uma tarefa ain- cas consecutivas da Revelação, a saber:
da a ser realizada. PAULA, R.D. de G. Religião: uma criação
primeiro a do Pai, depois a do Filho e, por da humanidade. Gênese, evolução, con-
Finalmente, a despeito das simi- último, a do Espírito Santo, isto é, a época flitos do passado e do presente, pers-
laridades entre as perspectivas de da paz universal por vir. (1998, p.47)” pectivas. Rio de Janeiro: Itambe, 1978.
Comte e Kardec, verifica-se que os 4
Embora tal possibilidade seja viável, não há PIRES, J.H. Introdução à filosofia espírita.
fins por eles buscados eram, na ver- registros a respeito de contatos diretos en- São Paulo: FEESP, 1993.
dade, opostos. Nada mais distante tre Comte e Kardec. Obras sobre a “filoso- TOLENTINO, C. Canudos no cinema e as
da proposta de Comte do que fundar fia espírita”, tais como a de Pires (1993), metáforas da nacionalidade. In: Estudos
uma nova teologia, enquanto a exis- reservam exíguo espaço para a reflexão – Sociedade e Agricultura. Rio de Janei-
tência de uma divindade suprema e sobre estas possíveis relações. Por outro ro: UFRRJ, 1997.
de forças sobrenaturais constitui a lado, tais obras são fartas de referências a
base do pensamento kardecista. influências filosóficas daqueles considera-
Entretanto, tais antagonismos po- dos como precursores do espiritismo, entre
estes, Sócrates, Platão, Kant, Hegel e
dem ter suas perspectivas como pa-
Kierkegaard, além do teólogo e físico sueco
radoxalmente complementares. En- Emmanuel Swedenborg.
quanto Comte buscava alçar a ciên- 5
A este respeito, ver: BAÊTA NEVES, 1998,
cia à categoria de uma religião, p.63.
Kardec tentava sistematizar a reli- 6
Termo pelo qual as sessões espíritas são
gião na forma de uma ciência. popularmente mencionadas, tendo em vis-
Positivismo e espiritismo parecem, ta ocorrerem geralmente em torno de uma
enfim, inserir-se na ampla trajetória mesa. Tal prática, na verdade, antecede
de desencantamento e desma- às investigações de Kardec, uma vez que
gicização do mundo que tem mar- ele mesmo admite ter se interessado pelo
cado o desenvolvimento da moder- estudo dos fenômenos espíritas a partir
na sociedade ocidental. da observação das “mesas giratórias”,
espécie de jogo comuns nos círculos so-
ciais frequentados por Kardec em Lyon.
Nelas, de forma lúdica e irreverente, bus- * Alexander José de Souza e
cava-se obter mensagens dos mortos me- Aline Rocha Bieites são Pós-
diante jogos de palavras formados ao aca- graduandos do Mestrado em
so. (Kardec, 1997 e 1994) Psicologia da UERJ.

58
LOGOS

Legislação e novo currículo


Uma reflexão sobre as Escolas de
Comunicação Social
Ricardo Augusto Oberlaender*

RESUMO
Este artigo traça um histórico do surgimento
das Faculdades de Comunicação Social em
nosso país e defende que o currículo pio-
N o Brasil, o ensino de Co-
municação Social em ní-
vel superior decorreu do
Decreto-Lei nº 5.380 de 13 de maio
de 1943, ao tempo do Presidente
os técnicos em educação jornalística
se preocupassem com uma nova
estruturação desses cursos. Ao mes-
mo tempo, os setores empresariais
(final da década de 50) deram-se con-
neiro dos cursos, implantado pelo Parecer Getúlio Vargas em pleno Estado ta de que precisavam de profissionais
631/69, é bem mais qualitativo do que o Novo. Mas esse decreto implanta- mais adestrados, pois o jornalismo
que o sucedeu, estabelecido pela Resolu- va apenas o curso de Jornalismo, tende a ampliar sua atuação, saindo
ção 03/78. Esse currículo, portanto, com a
atendendo a uma velha aspiração do âmbito estrito da informação e da
entrada em vigor da nova Lei de Diretrizes
da classe que o reivindicava desde opinião, para ingressar no cinema, no
e Bases, merece um estudo minucioso por
parte de todas universidades. o princípio do século, como decor- rádio e na televisão, utilizando seus
Palavras- chave: Comunicação Social; cur- rência do modelo americano que já valores para atender uma área até
rículo; cursos superiores. em 1904 formava profissionais para então não disponível no mercado de
o ramo em faculdades. trabalho nacional. As escolas de jor-
SUMMARY A nossa primeira escola de jorna- nalismo não tinham condições para
This article draws the history of the Social lismo foi criada por iniciativa particu- fornecer pessoal de acordo com os
Communication University arrival in our lar. Deve-se a Cásper Líbero, diretor requisitos da demanda, mesmo por-
country and defends that the pioneer do jornal A Gazeta que sempre teve que tanto o Parecer 323/62 que esta-
curriculum of the courses, implemented by em mente este sonho. No entanto, beleceu o primeiro currículo mínimo
the Legal Opinion 631/69, is far more
ele só foi concretizado após sua mor- para os cursos de Comunicação,
qualitative than the succeeding one,
implemented by the Resolution 03/78. That
te, pois seu testamento delegava ao como o 984/65, ambos do Conselho
curriculum, therefore, with the effectiveness jornalista João Baptista de Souza Fi- Federal de Educação, só especifica-
of the new law “Diretrizes e Bases”, needs lho direito para tal. Assim é que, em vam a habilitação em Jornalismo.
a precise study by all universities. 19 de maio de 1947, mediante o De- Foi sob o influxo de tal situação,
Keywords: Social Communication; creto nº 23.087 do Ministério da Edu- ou seja, de um lado a requisição pau-
curriculum; college courses. cação e Cultura, foi criada a Escola latina de profissionais oriunda do
de Jornalismo Cásper Líbero, agrega- empresariado local, e de outro a pres-
da à Faculdade de Filosofia, Ciências são sutil das empresas multinacionais
RESUMEN e Letras de São Bento da Pontifícia utilizando sua influência junto aos cen-
Este artículo plantea un histórico del Universidade Católica de São Paulo. tros do poder no sentido de criar con-
surgimiento de las Facultades de
Em 28 de dezembro de 1949, obteve dições para a venda de seus produ-
Comunicación Social en Braisl y defiende
que el currículo pionero de los cursos, im-
o reconhecimento do MEC, pelo De- tos, que as escolas de jornalismo
plantado por el Parecer 631/69, es muy más creto nº 27.541. transformaram-se na segunda meta-
cualitativo que aquel que lo ha sucedido, el Em abril de 1948, era inaugurado de da década de 60, logo após o golpe
currículo establecido por la Resolución 03/ o curso de jornalismo da Universida- de 64, em escolas de comunicação,
78. Ese currículo, por tanto, con la entrada de do Brasil, hoje Escola de Comuni- abrindo um leque mais extenso de al-
en vigor de la nueva Ley de Directivas y cação da Universidade Federal do Rio ternativas para as novas funções cria-
Bases, pide un estudio minucioso por parte de Janeiro, com funcionamento na das pelo acelerado e desordenado de-
de todas las universidades. Faculdade Nacional de Filosofia. senvolvimento econômico, e que ne-
Palabras-clave: Comunicación Social; cur- O crescimento das populações e cessitava de profissionais específicos
rículo; cursos superiores.
a complexidade da vida moderna, para as áreas de Rádio e Televisão,
que são fatores que dificultam a co- Cinema, Relações Públicas, Edito-
municação social, fizeram com que ração e Publicidade e Propaganda.

59
LOGOS

Muito embora em 1965, a PUC do co para as Faculdades de Comunica- RESOLVE


Rio Grande do Sul já tivesse transfor- ção Social, a exemplo do que já ha- Art. 1º - A formação de profissio-
mado sua Escola de Jornalismo em via feito a PUC gaúcha, que em 1965 nais para as atividades de jornalis-
Faculdade dos Meios de Comunica- transformou sua Escola de Jornalis- mo, escrito, radiofônico, televisado
ção Social, e a Escola de Comunica- mo em Faculdade dos Meios de Co- e cinematográfico; de publicidade e
ção da UFRJ tivesse sido criada em municação Social, tendo inclusive propaganda; de editoração; de docu-
fins de 1967, as escolas de comuni- formado a primeira turma em 1967, mentação e de divulgação oficiais;
cação surgem e se estruturam sob o numa iniciativa pioneira no país, for- e de pesquisa da Comunicação, será
signo do AI-5, portanto no ápice do mando em nível superior, profissio- feita no curso de graduação em Co-
autoritarismo que marcou a vida na- nais de comunicação, tanto para veí- municação Social do que resultarão
cional por quase onze anos. Isso quer culos como para técnicas. grau de bacharel, de habilitação poli-
dizer que a censura, a autocensura e Dado o valor dessa iniciativa e os valente, ou com menção apenas das
o medo pairaram sobre sua trajetória resultados por ela obtidos, os inte- habilitações específicas.
e como resultado teremos essas no- grantes do “Simpósio de Comunica- Art. 2º - O currículo mínimo do
vas instituições de ensino superior ção Social” ofereceram, quando de curso de Comunicações compreen-
seguindo os mesmos padrões das seu encerramento, ao Conselho Fe- derá uma parte comum a todas as
arcaicas escolas de jornalismo: deral de Educação, um anteprojeto modalidades de habilitação e outra
desaparelhadas para a parte técnica, para um currículo único, com ciclos diversificada, em função de habilita-
e na parte teórica, o que pudemos de especialização, visando a ex- ção específica.
assistir, foi a transmissão dogmática tinção dos cursos de jornalismo exis- Art. 3º - A parte comum consti-
e verbalista de conhecimentos adqui- tentes nas Faculdades de Filosofia, tuída de matérias básicas, abrangen-
ridos na bibliografia estrangeira, com Ciências e Letras como também das do as seguintes, além da Sociologia,
predominância de uma orientação escolas de jornalismo independen- integrante dos currículos do grupo de
européia clássica. tes, e a proibição de funcionamento formação social:
A partir do final dos anos 60, a ju- de cursinhos para a formação de pu- 1. Fundamentos Científicos da
ventude brasileira tomou consciência blicitários, jornalistas e relações pú- Comunicação;
da importância dos meios de comu- blicas, espalhados por todo o país, 2. Ética e Legislação dos Meios
nicação. Não podemos afirmar se e que infelizmente até hoje conti- de Comunicação;
essa tendência foi nacional ou mun- nuam a existir, constituindo-se numa 3. Pesquisa de Opinião e Mer-
dial, mas a verdade é que em 1972, afronta às Faculdades. cadologia;
quando foi realizado na ECA - Escola A formação profissional passaria 4. Introdução às Técnicas de Co-
de Comunicação e Artes da Univer- a ser feita somente nas Faculdades municação, compreendendo Prática
sidade de São Paulo - o I Congresso de Comunicação Social, com um de:
Nacional Universitário de Propagan- currículo único de quatro anos, e a a) Jornalismo impresso, radiofô-
da, o número de Faculdades de Co- atividade só poderia ser exercida nico, televisionado e cinematográfico
municação Social em funcionamen- após o registro no Ministério da Edu-
to no país já era de 46, concentradas cação e Cultura.
principalmente nas regiões de São Esse simpósio realizado em Por-
Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. to Alegre, pode mesmo ser consi-
Hoje, não se tem mais conta de derado como o marco que sensibi-
quantas faculdades de Comunicação lizou o Conselho Federal de Educa-
Social estão funcionando no Brasil, ção a legitimar as Faculdades de
mas é certo que quase todo e qual- Comunicação Social, que em 2 de
quer pedido para abertura de uma foi setembro de 1969 aprovou os no-
atendido, e hoje elas devem ser mais vos currículos mínimos, e em 10
de 500 funcionando no país. de outubro do mesmo ano reconhe-
ceu-as através do Parecer 631/69,
Currículo dos cursos de graduação que gerou a Resolução 10/69 do
Sob os auspícios da Associação conselheiro Celso Kelly. O teor da
Brasileira de Relações Públicas - Se- Resolução é o seguinte:
ção do Rio Grande do Sul -, foi reali-
zado durante o período de 11 a 13 de PARECER Nº 631/69, de 10/10/69
julho de 1969, em Porto Alegre, um
“Simpósio de Comunicação Social”, “O Conselho Federal de Educa-
do qual participaram professores uni- ção, na forma do que dispõe o artigo
versitários e profissionais da área de 26, da Lei nº 5.540, de 28 de novem-
comunicação do Rio Grande do Sul, bro de 1968, e tendo em vista as con-
São Paulo e Rio de Janeiro. dições do Parecer nº 631/69, que a
O objetivo primordial desse encon- este se incorpora, homologado pelo
tro foi o de estabelecer currículo úni- Ministério da Educação e Cultura.

60
LOGOS

b) Teleradiodifusão, cinema e teatro quatro disciplinas mencionadas no § Entramos na década de 70 e co-


c) Relações Públicas 1º do art. 3º. municação era expressão usada em
d) Publicidade e Propaganda Art. 5º - No ensino de Técnicas tudo e para tudo. Frases como “o
e) Editoração de Comunicação serão obrigatórias meio é a mensagem”, “quem não se
5. Jornalismo Comparado; e exercitadas a redação verbal (na comunica se trumbica”, “os meios
6. História da Cultura e especial- língua nacional e numa estrangeira) de comunicação são extensões do
mente dos meios de comunicação; e a expressão plástica (organização, homem”, tornaram-se moedas do
7. Problemas Sociais e Econômi- fotografia e ilustração), com base na uso comum em todas as camadas
cos Contemporâneos; Comunicação Visual, Oral e Escrita. sociais, assim como os nomes de
8. Cultura Brasileira; § 1º - A essas disciplinas corres- Abelardo “Chacrinha” Barbosa,
§ 1º - Completarão o currículo pelo ponderão aulas práticas e atividades Edgard Morin e Marshall McLuhan e
menos duas disciplinas, de livre es- profissionais, devendo o curso, para o modismo de estudar numa Facul-
colha, dentre as seguintes: esse fim dispor de: dade de Comunicação explodiu, tra-
1) Biblioteconomia e Bibliografia; 1) Jornal-laboratório; zendo como conseqüências princi-
2) Cibernética; 2) Estúdio-laboratório (para rádio, pais: a falta de professores qualifi-
3) Direito Usual; tevê e cinema); cados, desorganização administrati-
4) Documentação; 3) Atelier de publicidade; va, configurada na abertura indiscri-
5) Economia; 4) Escritório de Pesquisa de Opi- minada desses cursos, baixo nível
6) Estatística; nião e Mercado. de ensino e deficiências de equipa-
7) Idiomas Estrangeiros; § 2º - Não dispondo dos órgãos mentos e laboratórios dentre outras.
8) Filosofia, incluindo Lógica; acima em qualquer área universitá- A formação profissional em Comu-
9) Paginação e Revisão; ria, o curso manterá convênios com nicação Social começou a perder o
10) Política e Administração; entidades públicas e privadas que caráter de novidade ou de moda,
11) Produção e Emissão; possibilitem a prática de técnicas mesmo porque as empresas onde
12) Psicologia Social; curriculares. seus formandos procuravam coloca-
13) Redação e Edição. Art. 6º - A organização do currí- ção, atestavam nos bacharéis uma
§ 2º - Os diplomados em curso culo pleno atribuirá as áreas didáti- grande ineficiência por falta de trei-
de nível superior poderão ser dispen- cas de cada disciplina, admitindo o namento adequado a nível profissio-
sados das disciplinas de com- desdobramento das matérias do cur- nal, contrastando com um certo
plementação (art. 3º, § 2º). rículo mínimo, bem como o acrésci- equilíbrio no que diz respeito à for-
Art. 4º - A formação profissional, mo de disciplinas complementares mação teórica. Estávamos em ple-
constituída de áreas diversificadas, que a escola julgar necessárias. na fase do famoso “milagre brasi-
compreenderá: Art. 7º - A parte comum do curso leiro” e para o empresariado não in-
a) para habilitação polivalente - o deverá ser ministrada na metade da teressava nada ter em seus quadros
aprofundamento das Técnicas de duração mínima prevista no art. 8º um conhecedor profundo das obras
Comunicação, cujo ensino tem seu desta Resolução. de Lacan, Levi-Strauss, David Berlo
começo na Introdução (art. 3º, nº 4), Parágrafo Único - A parte diver- ou Umberto Eco. Para eles, era mais
e mais duas disciplinas das enume- sificada, a que se reserva a outra importante um alienado cultural,
radas no Art. 3º, § 1º, não estudadas metade da duração mínima do cur- mas que pudesse efetivamente em-
anteriormente; so, é destinada à modalidade ou a pregar um mínimo de conhecimento
b) para habilitação específica em qualquer das previstas no mesmo na razão direta de se obterem mais
jornalismo (impresso, radiofônico, art. 4º. lucros. Ademais, vivíamos sob o
televisionado e cinematográfico) - Art. 8º - O curso de Comunica- impacto da mais alta das repressões
aprofundamento nas técnicas das ção terá a duração mínima de 2.200 de que o país já foi vítima, e qual-
letras a e b, art. 3º, nº 4 e mais qua- horas-aula, no mínimo de três e no quer debate que saísse da discus-
tro disciplinas mencionadas no § 1º máximo seis anos letivos.” são do futebol ou do automobilismo,
do art. 3º; com as sucessivas conquistas do pi-
c) para habilitação específica em Este currículo criado em 1969 e loto de Fórmula 1 Emerson Fittipaldi,
relações públicas - o aprofundamento implantado em 1970 e sensível às poderia ser considerado como sub-
nas técnicas da letra c (art. 3º, nº 4) demandas impostas pelo crescimen- versão, cujo prêmio mínimo era um
e mais quatro disciplinas menciona- to das atividades econômico-indus- fichamento nas DOPS - Delegacias
das no § 1º do art. 3º; triais, criou, como vimos, habilita- de Ordem Política e Social - que im-
d) para habilitação específica em ções em Editoração, Relações Pú- pediria qualquer cidadão de ingres-
publicidade e propaganda - o apro- blicas, Publicidade e Propaganda. sar no Serviço Público. O atestado
fundamento nas técnicas da letra a Nele, tem de se louvar, principalmen- de ideologia, uma criação da Alema-
(art. 3º, nº 4) e mais quatro discipli- te, o caráter universitário que deu nha nazista e adotado no Brasil des-
nas mencionadas no § 1º do art. 3º; para a formação de profissionais de de o Estado Novo, era exigido, até
e) para habilitação específica em outras áreas que não o jornalismo, mesmo por algumas empresas pri-
editoração - o aprofundamento na que pela falta de cursos de nível su- vadas. E diante desse clima de
técnica da letra e (art. 3º, nº 4) e mais perior no Brasil, eram autodidatas. autoritarismo, ninguém queria se ex-

61
LOGOS

por a admitir nos seus quadros de missão Central de Revisão de Currí- sarticulações, frutos de seu Enci-
trabalho, um jovem que durante qua- culos, recomendou sua aprovação clopedismo de fundo empírico, as
tro anos de bancos universitários, por pelo Plenário em 12 de dezembro de matérias de natureza profissional têm
falta de condições mínimas de prá- 1977. O processo levava o nº 11.005/ uma orientação descritiva. E esta
tica profissional, o que tinha a ofere- 77, originário da Comissão de Currí- orientação desemboca numa visão
cer era uma cultura adquirida em bi- culo da área de Ciências Humanas, administrativa da Comunicação.
bliografia de autores nascidos e vi- e por unanimidade, o Conselho Fede- Assim as matérias de caráter admi-
vidos em países onde se desfrutava ral de Educação aprovou a conclusão nistrativo, tais como Administração
da mais alta liberdade de expressão. da Comissão Especial com vistas a em Jornalismo e em Relações Pú-
O mais importante não eram letras, reformulação do currículo mínimo dos blicas, têm suas cargas horárias
mas sim números. cursos de graduação em Comunica- debitadas no chamado setor de na-
O estudo e a formação em Co- ção Social, através da Resolução nº tureza profissionalizante, o que reduz
municação Social, antes de termi- 03/78, e que vigora até hoje. a participação curricular das discipli-
nar a primeira metade dos anos 70, Esse novo currículo mínimo de nas ligadas às técnicas e linguagens
já havia adquirido para si própria, Comunicação Social, adotando uma profissionais propriamente ditas. Ora,
como também para seus formandos, espinha dorsal bipartite - Matérias uma das reclamações em relação à
uma forma de irrelevância e vulgari- de Formação Teórica Específica e antiga Resolução nº 10/69 era esta.
dade tal, que a ABEPEC (Associa- Matérias de Natureza Profissional - Logo, o problema se agravou. As-
ção Brasileira de Ensino e Pesquisa foi alvo de críticas no “Seminário sim, a desarticulação entre as cha-
da Comunicação), deliberou por rea- sobre Currículos de Ensino Supe- madas matérias “básicas” e “profis-
lizar o Seminário Nacional sobre Es- rior”, realizado na Universidade do sionalizantes” persistiu com agra-
trutura do Ensino de Comunicação Estado do Rio de Janeiro com o pa- vantes de dupla orientação: o
Social, uma atitude louvável e cora- trocínio da Secretaria de Estado de enciclopedismo e o descritivismo.
josa, uma vez que ainda nos encon- Educação e Cultura do Rio de Ja- Dizemos mais, pois as coisas se ar-
trávamos sob a égide do AI-5. De 26 neiro, do Conselho Estadual de Edu- ticulam, e esta orientação adminis-
a 30 de outubro de 1975, em Águas cação do Rio de Janeiro, da Asso- trativa se prende ao predomínio da
de São Pedro, Estado de São Paulo, ciação Profissional das Mante - concepção de comunicação empre-
reuniram-se professores dos cursos nedoras de Instituições de Ensino sarial, concepção que também é pró-
com o objetivo de reformular o currí- Superior do Rio de Janeiro e da pró- pria das instituições ligadas a pólos
culo mínimo. Como conseqüência pria UERJ, no período de 21 a 23 de de desenvolvimento industriais.
desse Seminário, o então diretor do março de 1979. Agora, que a nova Lei de Diretri-
Departamento de Assuntos Univer- Quanto ao aspecto didático-peda- zes e Bases (LDB) permite que as
sitários do Ministério da Educação e gógico, o currículo fixado pela Reso- Universidades estabeleçam currícu-
Cultura, Prof. Edson Machado de lução nº 03/78 do CFE é conflitante. lo de seus cursos superiores, espe-
Souza, reuniu com a ABEPEC em Conquanto traga para os setores de ramos que a UERJ volte a adotar,
Brasília, no período de 27 a 31 de formação teórica e específica a preo- com algumas alterações, o currícu-
maio de 1976, um grupo de especia- cupação com matérias ligadas à re- lo do Parecer 631/69, antecedido de
listas selecionados em diversas uni- flexão social, o faz de forma enci- uma ampla discussão de seu atual
versidades do país, com a finalida- clopedista. Esta é, aliás, a orienta- corpo docente.
de de reformular o currículo. ção epistemológica destes dois se-
E todo o material proveniente da tores. Uma “adição” por justaposi-
ABEPEC, e da crítica que ele rece- ção de elementos essenciais, al-
beu de vários pontos do país, e que guns, mas não articulados e em per-
alcançou o Relator, foi colocado pe- feita desconexão com a orientação
rante outro grupo de trabalho, esco- das disciplinas de natureza profissi-
lhido por ele próprio na cidade de São onal. Confunde-se a linguagem dos
Paulo, tendo a presidi-lo o Prof. Jaci “mídias” ao nível de seus elemen-
Correia Maraschin. Após acolher to- tos constitutivos com os seus efei-
das as sugestões para alterar o cur- tos técnico-sociais. Pensou-se no
rículo mínimo vigente desde o Pare- aspecto ético da formação do
cer 631/69, o presidente do grupo con- “comunicador social”, mas não se
cluiu por aprovar o parecer do articula esta matéria de uma forma
Relator, Conselheiro Benedito de mais jurídica como no currículo an-
Paula Bittencourt, relativo ao novo terior onde privilegiava-se até uma
currículo do curso de Comunicação disciplina específica, Direito Usual.
Social, com habilitações em Jorna- Portanto, vivemos uma concepção
lismo, Publicidade e Propaganda, temista de Ética, em detrimento de * Ricardo Oberlaender é Relações
Relações Públicas, Rádio e Televi- legislação. Enquanto a orientação Públicas, Publicitário, Advogado,
são e Cinema através do Parecer dos setores Teórico e Específico Mestre em Comunicação pela
1.203/77 de 5/5/77 que levado à Co- apresentam, entre outras, estas de- ECO/UFRJ e Professor da FCS/UERJ.

62
LOGOS

UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO


CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES
Orientação editorial FACULDADE DE COMUNICAÇÃO SOCIAL

1. Considerações Iniciais
Logos: Comunicação e Universidade é uma pu- Reitor
blicação semestral do Programa de Memória em ANTONIO CELSO ALVES PEREIRA
Comunicação da Faculdade de Comunicação Social Vice-reitora
da UERJ. A cada número há uma temática central, NILCÉA FREIRE
focalizada para servir de escopo aos artigos, Sub-reitor de Graduação
organizados por seções. PAULO FÁBIO SALGUEIRO
Sub-reitor de Pós-Graduação e Pesquisa
2. Orientação Editorial REINALDO FELIPPE NERY GUIMARÃES
2.1. Os textos serão revisados e poderão sofrer Sub-reitora de Extensão e Cultura
pequenas correções ou cortes em função das MARIA THEREZINHA NÓBREGA DA SILVA
necessidades editoriais, respeitado o conteúdo. Diretor do Centro de Educação e Humanidades
2.2. Os artigos assinados são de exclusiva res- JOSÉ RICARDO DA SILVA ROSA
ponsabilidade dos autores. Faculdade de Comunicação Social
2.3. É permitida a reprodução total ou parcial das Diretor: RICARDO FERREIRA FREITAS
matérias desta revista, desde que citada a fonte. Vice-diretor: PAULO SÉRGIO MAGALHÃES MACHADO
Chefe do Departamento de Jornalismo
RICARDO DE HOLLANDA
3. Procedimentos Metodológicos Chefe do Departamento de Relações Públicas
3.1. Os trabalhos devem ser apresentados impressos FERNANDO DO NASCIMENTO GONÇALVES
em duas vias, acompanhados do disquete, gravados Chefe do Departamento de Teoria da Comunicação
em editor de texto Word for Windows 6.0 ou 7.0 (ou JOÃO MAIA
compatível para conversão), em espaço duplo, fonte
tamanho 12, não excedendo a 15 laudas (incluindo a LOGOS 11
folha de referências bibliográficas e notas). Editores: Héris Arnt e Luiz Felipe Baêta Neves
3.2. Uma breve referência profissional do autor com Conselho Editorial: Ricardo Ferreira Freitas (Presidente), Angela de
até cinco linhas deve acompanhar o texto. Faria Vieira (UERJ), João Maia (UERJ), João Pedro Dias Vieira (UERJ),
3.3. Os artigos devem ser antecipados por um resumo de Luiz Felipe Baêta Neves (UFRJ/UERJ), Manoel Marcondes Machado
no máximo cinco linhas e três palavras-chave. É desejável Neto (UERJ), Nízia Villaça (UFRJ), Paulo Pinheiro (UniRio) e Ronaldo
que o resumo tenha duas versões, uma em inglês e outra Helal (UERJ)
em espanhol. Consultores Científicos: André Lázaro (UERJ), Danielle Rocha Pitta
3.4. As citações devem vir entre aspas e imedia- (UFPE), Ismar de Oliveira Soares (USP), Luis Custódio da Silva (UFPB),
tamente acompanhadas das referências: sobrenome Nelly de Camargo (UNICAMP), Pedro Gilberto Gomes (UNISINOS),
do autor, ano da obra e página correspondente, entre Robert Shields (Carleton University/Canadá) e Rosa Lucila de
Freitas (UFL)
parênteses.
Projeto Gráfico: Lilian Nabuco e Lao Martins
3.5. As notas devem ser numeradas no corpo do texto.
Redatora: Carmen da Matta
É desejável que sejam em número reduzido. Devem
Diagramação: Fabiana Antonini
ser organizadas em seguida à conclusão do trabalho
Ilustração: Wânia Moita
e antes da bibliografia.
Tradução de Espanhol: Francisco César Manhães Monteiro
3.6. As ilustrações, gráficos e tabelas devem ser
Tradução de Inglês: Eleonora Xavier Wanderley Pires
apresentados em folha separada, no original, gravados
Revisão: Carmen da Matta e Fabiana Antonini
no mesmo disquete, como um apêndice ao artigo,
Estagiários: Daniela Santoro Amin, José Luiz Brandão Albuquerque,
com as respectivas legendas e indicação de loca-
Marcelo Fandinho e Nira Bessler
lização apropriada no texto.
Fotolitos e Impressão: Gráfica UERJ
3.7. A bibliografia, organizada na folha final, não
deverá exceder a dez obras, obedecendo às normas Endereço para correspondência:
da ABNT (Ex.: SOBRENOME DO AUTOR, Nome. Título da PROGRAMA DE MEMÓRIA EM COMUNICAÇÃO
obra. Cidade: Editora, ano.) Os títulos de artigos de REVISTA LOGOS/LED/DJR/FCS/UERJ
revistas devem seguir o mesmo padrão, sendo que o Rua São Francisco Xavier, 524/10º andar/Bloco A - Maracanã
nome da publicação deve vir em itálico (Ex.: 20550-013 - Rio de Janeiro - RJ - Brasil
SOBRENOME DO AUTOR, Nome. Artigo. Cidade: Revista/ Tel.: (21) 587-7645/Fax: (21) 587-7458
Periódico, n.X, mês, ano, página.). E-mail: led@uerj.br/djr@uerj.br/fcs@uerj.br

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